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169<br />
desde abril de 2000<br />
O jornal de literatura do Brasil<br />
Curitiba, maio de 2014 | WWW.rascunho.com.br<br />
arte: Dê almeida<br />
A literatura nos dá o poder de sonhar,<br />
especialmente na infância. Existe também<br />
a literatura que dói e que faz enxergar a<br />
dor do outro. Nada mais necessário do<br />
que o exercício da empatia nos dias de<br />
hoje, esses tempos de egoísmo.”<br />
Socorro Acioli • 4/5<br />
Inédito • Limão > Motojiro Kaijii • 28
2<br />
169 • maio_ 2014<br />
eu recomendo<br />
: : Luiz Rebinski<br />
Collor, Itamar e FHC<br />
Uma<br />
18.5.1991<br />
QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />
QUEM SOMOS<br />
Collor<br />
CONTATOesteve ASSINATURA<br />
na<br />
DO<br />
Biblioteca<br />
JORNAL IMPRESSO<br />
Nacional.<br />
CARTAS<br />
Uma<br />
confraria<br />
semana de grandes emoções, preparações. Há<br />
RES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRAEDIÇÕES NOTÍCIAS ANTERIORES OTRO OJOCOLUNISTAS<br />
uns 15 DOM dias, CASMURROtive ENSAIOS que E RESENHAS enfrentar ENTREVISTAS PAIOL uma LITERÁRIO Assembleia<br />
de tolos<br />
PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO<br />
CARTAS<br />
Ignatius J. Reilly, protagonista<br />
de Uma confraria de tolos, é<br />
um Quixote que ainda espera por<br />
reconhecimento. Uma verdadeira<br />
injustiça, porque em certos momentos<br />
do livro de John Kennedy Toole, Ignatius<br />
parece o neto de Quixote que suplantou<br />
a verve nonsense do antepassado com<br />
altas doses de cultura e um egocentrismo<br />
sem limites, o traço mais interessante da<br />
personalidade do herói em questão. Ignatius<br />
é glutão, preguiçoso e pesado demais<br />
para fazer qualquer coisa além de<br />
teorizar contra o caos da modernidade,<br />
a abjeta cultura pop e a desonestidade<br />
do mundo — sobra até para os beatniks.<br />
É um intelectual incompreendido, que<br />
ainda mora com a mãe e nunca teve PIS.<br />
Mas a maré muda e Ignatius é obrigado<br />
a arranjar emprego. Primeiro como vendedor<br />
de cachorro-quente, depois em<br />
uma fábrica de calças onde se mete em<br />
um escândalo e acaba procurado pela<br />
polícia. No final, aos vinte e tantos anos,<br />
foge de casa. Basicamente, é isso. Mas<br />
quando se tem um Ignatius é o suficiente.<br />
Até para ganhar um Pulitzer.<br />
ITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />
Luiz Rebinski<br />
É jornalista e editor do jornal Cândido.<br />
Cartas<br />
: : cartas@rascunho.com.br : :<br />
Importante<br />
OTRO OJO<br />
Rascunho tem sido um dos<br />
mais importantes divulgadores<br />
da literatura brasileira atual,<br />
ao apresentar novos talentos,<br />
abrir campo para a discussão<br />
do texto literário e para o<br />
debate de idéias entre nós.<br />
Parabéns a toda a equipe!<br />
Wander Melo Miranda •<br />
Belo Horizonte — MG<br />
Sábio<br />
Dica de belo presente:<br />
uma assinatura anual do<br />
Rascunho, de Curitiba (PR),<br />
um dos melhores dedicados<br />
ao jornalismo literário.<br />
Luiz Claudio Lins • via Facebook<br />
Comemoração<br />
Hoje (08/04) um dos melhores —<br />
e um dos poucos sobreviventes<br />
— jornais literários do país<br />
está no berço completando<br />
14 anos. Rapaz robusto, que<br />
traz em si as melhores críticas<br />
que tenho visto nas letras<br />
brasileiras. Acompanho desde<br />
2010 e vale a leitura de cada mês.<br />
O melhor, para os que optam em<br />
não assinar: eles disponibilizam<br />
todas as suas edições para<br />
download. Façam bom proveito<br />
e vida longa ao Rascunho!<br />
Ricardo Silva • via Facebook<br />
Reverente<br />
Maior admiração e respeito por<br />
esse trabalho do Rascunho.<br />
Eduardo Lacerda • via Facebook<br />
Envie carta ou e-mail para esta seção com nome<br />
completo, endereço e telefone. Sem alterar o<br />
conteúdo, o Rascunho se reserva o direito de<br />
adaptar os textos. As correspondências devem<br />
ser enviadas para: Al. Carlos de Carvalho, 655<br />
conj. 1205 • CEP: 80430-180 • Curitiba - PR.<br />
Os e-mails para: cartas@rascunho.com.br.<br />
Assinatura anual por apenas 84 reais<br />
assinaturas@rascunho.com.br<br />
quase-diário : : affonso romano de sant’anna<br />
de centenas de funcionários, que pressionados<br />
pela CUT queriam entrar em greve de duas horas<br />
por dia, mais o sábado. Estão pensando em<br />
tumultuar a vinda de Collor. Como a BN se tornou<br />
a mais visível das instituições da cultura,<br />
isto atrai outros interesses. Foi tensa a reunião,<br />
mas afastei o perigo de greve e consegui que recebessem<br />
o aumento de 75% que estava preso,<br />
relativo ao dissídio de 1989.<br />
A recepção de Collor era delicada. Foi o<br />
cenário escolhido para ele anunciar a mudança<br />
política na área cultural, a primeira visita a<br />
um órgão da cultura. Eu havia dito ao Rouanet<br />
quando ele assumiu que a única maneira de o<br />
presidente mudar sua imagem era fazer um discurso<br />
mudando sua política e ir pessoalmente à<br />
BN dizer isto e dar, por exemplo, um milhão de<br />
dólares para reformas.<br />
Lá estavam autoridades várias, Brizola, governador<br />
que aguardou Collor na porta, ao meu<br />
lado, conforme o cerimonial. A segurança passou<br />
toda a semana ensaiando exaustivamente tudo.<br />
Colocaram do lado de fora uma viatura até com<br />
CTI, além de Corpo de Bombeiros. Até médico<br />
pessoal do presidente veio para as inspeções.<br />
Foi ótima a presença dele. Estava atento,<br />
delicado e seguro. Visitamos os grandes armazéns<br />
(vários andares de livros) onde pude lhe<br />
mostrar a beleza da arquitetura e as obras e os<br />
estragos causados pelas chuvas, justificando assim<br />
sua visita e a verba de 300 milhões (1 milhão<br />
de dólares para os consertos).<br />
Impressionante o carinho e delicadeza de<br />
Brizola com Collor. Quem diria? Descendo a<br />
escadaria, no final, Brizola ainda lhe disse algo<br />
sobre a vaia encomendada pela CUT e PCdoB<br />
no passeio defronte: “Não ligue, sr. presidente,<br />
tem ali um pessoal da CUT”.<br />
E Collor: “Ah, isso é desenho animado, já<br />
conheço”. E desceu tranquilo.<br />
Os jornais deram maior destaque. Idem<br />
TV. Só a Folha no lugar de ressaltar a importância<br />
política e cultural do evento, preferiu dar<br />
foto da manifestação.<br />
translato : : eduardo ferreira<br />
A<br />
tradução não é exatamente exercício<br />
vertiginoso. A proliferação de sentidos,<br />
sim. Mas o ofício — o velho ofício<br />
QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />
— mais aposta na observação cuidadosa,<br />
na captação criativa do momento — instantâ-<br />
COLUNISTAS<br />
ENSAIOS E RESENHAS<br />
neo que congela em lâmina singular o leque de<br />
tão múltiplos significados.<br />
O sentido descansa na letra — um átimo<br />
que seja — e já propicia a ocasião da colheita. Colhe<br />
o tradutor o sentido que ali sobeja — como<br />
que exsuda, minando em gotas o que lhe enche<br />
as cavidades.<br />
Palavras e suas cavidades, reentrâncias<br />
onde se alojam significados múltiplos. Seu potencial<br />
é miríade. Ao tradutor cabe a colheita — raspar<br />
o sentido que descansa na superfície da letra.<br />
Das cavidades, a erupção. Erupções de sentimentos<br />
— dádiva da literatura, certamente. Irrupção<br />
dessa gorda prenhez de sentidos.<br />
Pressentir o quase gesto do autor caviloso.<br />
O sentido que se pressente, mesmo que não<br />
se anuncie. Captar a ideia no nascedouro, para<br />
adestrá-la enquanto ainda é tempo. Possível, impossível?<br />
Patinar na disjuntiva elíptica.<br />
Preservar sentidos ou adotar a estratégia<br />
de terra arrasada? Tabula rasa?<br />
DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />
EDIÇÕES ANTERIORES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />
Gatsby (de O grande Gatsby, de F.<br />
Scott Fitzgerald) é metáfora e base<br />
QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />
da ideologia do Novo Rico. Gatsby é rico<br />
sem ter origem na riqueza — daí a necessidade<br />
de manusear símbolos típicos dos ricos<br />
COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS<br />
PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />
tradicionais (como o fato de, segundo afirma ao<br />
narrador Nick, ter frequentado Oxford). Mas o personagem<br />
também incorpora a ideologia daqueles<br />
que estão “fadados a vencer”. Exemplo disso é o roteiro<br />
(roteiro dos que, pela disciplina diária, podem<br />
“chegar lá) escrito num livro que o protagonista tinha<br />
quando criança e mostrado para Nick Carraway<br />
na tarde do velório de Gatsby pelo pai deste último:<br />
Levantar da cama – 6h<br />
Exercício com halteres e escalada de parede – 6h15-6h30<br />
A tradução como lava que lava com fogo ao<br />
seu redor. A limpeza abrasiva da calcinação, que<br />
abre todo um campo novo para a nova escritura,<br />
tradução.<br />
Irrupções, a tradução. Traz lá de baixo os<br />
sentidos submersos, para fazê-los brilhar sob<br />
nova luz.<br />
Tradução, a linguagem se fragmenta. Mesmo<br />
antes, na leitura. Em palavras, em ideias? Sementes<br />
da tradução.<br />
O gosto pelo jogo, a linguagem. Jogo de<br />
palavras, até cansar. Gosto pelos calembures,<br />
ciladas da literatura. Tão difícil de traduzir... Já<br />
não sabe se grava o sentido ou a dinâmica poética<br />
(não sabe se fotografa os deslizes desse som). O<br />
gosto por traduzir o jogo: alma de tradutor.<br />
Ah, tantos dilemas que surgem nessa trama.<br />
A trama da vida toda no texto. Tecer, sem<br />
dúvida, mas não se sabe com fio fino ou grosso.<br />
A quem cabe a decisão? Imprimir delicadeza de<br />
filigrana e caprichar no detalhe ou traçar linhas<br />
largas e deixar que o leitor preencha as tantas lacunas?<br />
Dilemas da tradução.<br />
Texto, perfuração de agulhas no papel. A distância<br />
entre os pontos, a finura (grossura) da linha.<br />
Perfuração também da membrana tênue e tensa da<br />
rodapé : : rinaldo de fernandes<br />
Anotações sobre romances (9)<br />
EDIÇÕES ANTERIORES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />
21.05.1994<br />
Nesta semana, encontro com Itamar. Estou<br />
no Itamaraty, na recepção de reabertura do<br />
Palácio enquanto Museu. Diplomatas por todo<br />
lado. Gente importante. Diário de Minas me<br />
deu as primeiras ideias sobre o texto jornalístico.<br />
Eu vinha, na ocasião de Juiz de Fora, sabendo<br />
quase nada de jornal.<br />
— Mauro, lhe digo, há uma situação engraçada.<br />
Depois que o Itamar virou presidente,<br />
não consigo falar com ele. Os ministros morrem<br />
de ciúme. O Antonio Houaiss quase se demitiu<br />
por isto. Com o Collor, que não conhecia, tive<br />
alguns contatos.<br />
— Ah é? deixa comigo, disse ele (que é<br />
quem faz os discursos de Itamar).<br />
Lá pelas tantas se aproxima e me diz:<br />
— O presidente está na casa.<br />
Saímos andando. Vejo a uns 30 metros<br />
o presidente e sua comitiva passando pelos<br />
salões. O cerimonial abrindo passagem para<br />
conduzir o presidente a uma sala para receber<br />
cumprimentos. Mauro me conduz para a tal<br />
sala. Lá três pessoas: o cardeal D. Eugenio Salles,<br />
o ex-ministro Saraiva Guerreiro e creio que<br />
uma autoridade militar. O presidente chega e<br />
em vez de se dirigir às autoridades vem a mim<br />
como se a gente se conhecesse desde sempre.<br />
A última vez que falei com ele deve ter mais de<br />
30 anos, nos tempos de Juiz de Fora. Pois ele<br />
veio, começou a falar sobre o Granbery, Juiz<br />
de Fora, o Cine Central, lembrou-se de Carlos<br />
(meu irmão), que era seu colega e fazia alguma<br />
estripulia trepando nas árvores da avenida Rio<br />
Branco (em Juiz de Fora), perguntou por ele ,<br />
mandou-lhe um abraço, falou que tinha estado<br />
com a Aizinha e Renault, que foram colegas de<br />
turma com Carlos.<br />
As pessoas olhavam surpresas. Quando<br />
me despedi, várias se acercaram de mim.<br />
Mauro Durante — secretário da presidência —<br />
o mais efusivo, falando também sobre o Cine<br />
Central, da minha entrevista nem sei onde e me<br />
prometendo mandar uma cópia…<br />
Estudar eletricidade etc. – 7h15-8h15<br />
Trabalho – 8h30-16h30<br />
Beisebol e esportes – 16h30-17h<br />
Praticar elocução, postura de corpo e como adquiri-la –<br />
17h-18h<br />
Estudar invenções necessárias – 19h-21h<br />
RESOLUÇÕES GERAIS<br />
Não desperdiçar tempo no Shafters ou [um nome, indecifrável]<br />
Deixar de fumar e de mascar chiclete<br />
Tomar banho dia sim, dia não<br />
Ler um livro ou uma revista edificante por semana<br />
Economizar 5 dólares [riscado] 3 dólares por semana<br />
Ser melhor para com os pais<br />
21.01.1995<br />
Fernando Henrique foi à BN acompanhado<br />
de Dona Ruth, Weffort (ministro) e Marcelo<br />
Alencar (governador). É o segundo presidente<br />
que recebemos. O primeiro foi Collor, quando<br />
começou a fazer as pazes com a cultura e os intelectuais,<br />
sendo Rouanet então secretário de<br />
Cultura. Itamar não foi possível. Visita tranquila,<br />
relaxada. Dividida em três partes. Peguei-o<br />
no passeio público quando chegou pontualmente<br />
com Ruth, às 11 horas, mostrei-lhe a fachada<br />
refeita, entramos no salão recém-reformado,<br />
apresentei-o ao Joaquim Falcão (Fundação<br />
Roberto Marinho) e Ricardo Gribel (Banco<br />
Real), que possibilitaram a reforma. Falei-lhe,<br />
enquanto caminhava, algo sobre a história da<br />
biblioteca. Depois fomos ao 4º andar onde o esperava<br />
a minha diretoria para uma conversa de<br />
quinze minutos, para expor projetos, mostrar-<br />
-lhe alguns livros. Embora o protocolo mande<br />
que ele sente na cabeceira, nos sentamos, com<br />
os outros, face a face. Mostrei-lhe o livro que<br />
editamos sobre a Feira de Frankfurt; contou que<br />
passando pela Alemanha visitou duas das nossas<br />
exposições: de arte primitiva e de arte negra.<br />
Ruth sempre simpática, autografando<br />
seus livros, ela e FHC e Weffort — para a Seção<br />
de Obras Raras. FHC e Ruth (e os paulistas<br />
em geral) não conheciam a Biblioteca Nacional.<br />
Depois fomos aos grandes armazéns, vários andares<br />
de livros, uma visão que deixou a todos<br />
encantados, a verdadeira Biblioteca de Babel<br />
sonhada por Borges. Marcelo Alencar (governador)<br />
perguntando por que não abríamos essa<br />
parte aos leitores (coisa tecnicamente impossível).<br />
FHC perguntando sobre o peso daqueles<br />
andares todos de livros e eu brincando que agora<br />
temos uma moeda de peso — o real, piada<br />
que ele repetiu para os demais.<br />
Depois de tomar uns sucos, fomos para<br />
Seção de Obras Raras onde estavam também<br />
“raros” convidados especiais, representando<br />
áreas diferentes da cultura: Ana Botafogo,<br />
Cacá Diegues, Luiz Schwarz, Sérgio Machado,<br />
Ênio Silveira, Tonia Carrero, Mario Machado.<br />
Dona Ruth logo descobriu Marina que havia<br />
sido sua colega no Conselho das Mulheres nos<br />
anos 80. O presidente pôde conhecer o projeto<br />
de digitalização da fantástica coleção de mapas<br />
antigos, experimentou computadores que<br />
executa as partituras das músicas que temos<br />
no nosso acervo.<br />
Ficou meia hora mais do que o previsto,<br />
tudo tranquilo, ele fazendo um discurso final<br />
de agradecimento. Foi importante sua visita.<br />
Tem um valor simbólico. Colocar o livro/leitura/bibliotecas<br />
no centro da política do governo<br />
— essa é minha intenção ao trazer autoridades<br />
federais aqui.<br />
Reminiscências de uma leitura de Pompeia<br />
palavra — sondando suas tantas cavidades.<br />
Transitar pelo texto com donaire. Empenhar<br />
a pena com firmeza e elegância — e transmiti-las<br />
ao novo texto. Requisitos do tradutor.<br />
Não deixar nada ao acaso, mesmo quando se opta<br />
pelo texto aberto, de linhas grossas.<br />
Fino, grosso, o fio de tradução que tece o<br />
novo texto. Tradução, então, como criação.<br />
Ou talvez tradução simplesmente como teatro<br />
de sombras. A velha ideia da cópia. Jato de<br />
luz forte no escuro e a projeção das palavras do<br />
original no anteparo da página. Projeção do original<br />
sobre nova página, a tradução.<br />
Tradução como sombra, a sombra do original.<br />
Não deixar que esse esplim espúrio — a tristeza<br />
de que é feita toda sombra — amorteça a tua<br />
pulsão, tradutor. Não deixar que o arrufo surdo<br />
te arraste e afunde. Ver a bocaina não como depressão,<br />
mas como passagem ao novo texto.<br />
Viajar essa viagem da tradução — ir seguindo<br />
no vento, seja austro ou minuano. Que o texto<br />
é vento viajado, vem de longe, origem incerta,<br />
atemporal.<br />
Não deixar que as disjuntivas — e são tantas<br />
ao longo desse longo texto — abatam teu ânimo.<br />
Original ou tradução.<br />
Eis, repita-se, o cotidiano administrado<br />
dos que vieram para “vencer”. Mas O grande<br />
Gatsby é ainda o romance da tragédia — da<br />
fortuna que vira desgraça. Algo metaforizado<br />
no livro não só pelo assassinato de Gatsby, mas<br />
sobretudo pela casa vazia, pela ausência dos antigos<br />
convivas no velório e enterro do protagonista<br />
(é dramática a cena de Nick convocando<br />
as pessoas a comparecerem ao funeral). Gatsby,<br />
assim, é o importante que, de uma hora para outra,<br />
se apaga. É o grande que vira pequeno. Daí<br />
a forte ironia do título e que está na estrutura<br />
desse complexo e apaixonante livro, que lê o materialismo<br />
de uma época e os valores que lhe dão<br />
base de forma aguda, penetrante.
169 • maio_ 2014<br />
3<br />
o jornal de<br />
literatura do brasil<br />
fundado em 8 de abril de 2000<br />
Rascunho é uma publicação mensal<br />
da Editora Letras & Livros Ltda.<br />
Rua Filastro Nunes Pires, 175 • casa 2<br />
CEP: 82010-300 • Curitiba - PR<br />
41 3527.2011 rascunho@rascunho.com.br<br />
www.rascunho.com.br<br />
tiragem: 5 mil exemplares<br />
ROGÉRIO PEREIRA<br />
editor<br />
SAMARONE DIAS<br />
editor-assistente<br />
JOÃO LUCAS DUSI<br />
estagiário<br />
COLUNISTAS<br />
Affonso Romano de Sant’Anna<br />
Alberto Mussa<br />
Eduardo Ferreira<br />
Fernando Monteiro<br />
João Cezar de Castro Rocha<br />
José Castello<br />
Luiz Bras<br />
Raimundo Carrero<br />
Rinaldo de Fernandes<br />
Rogério Pereira<br />
ILUSTRAÇÃO<br />
Bruno Schier<br />
Carolina Vigna-Marú<br />
Dê Almeida<br />
Fabiano Vianna<br />
Fábio Abreu<br />
Felipe Rodrigues<br />
Hallina Beltrão<br />
Leandro Valentin<br />
Marco Jacobsen<br />
Osvalter Urbinati<br />
Rafa Camargo<br />
Rafael Cerveglieri<br />
Ramon Muniz<br />
Rettamozo<br />
Ricardo Humberto<br />
Robson Vilalba<br />
Tereza Yamashita<br />
Theo Szczepanski<br />
Tiago Silva<br />
FOTOGRAFIA<br />
Matheus Dias<br />
PROJETO GRÁFICO<br />
e PROGRAMAÇÃO VISUAL<br />
Rogério Pereira / Alexandre de Mari<br />
MANUAL DE GARIMPO : : Alberto Mussa<br />
O fiel e a pedra<br />
COLUNISTAS<br />
ENSAIOS E RESENHAS<br />
DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />
EDIÇÕES ANTERIORES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />
vidraça : : joão lucas dusi<br />
Novos talentos<br />
QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />
Foram divulgados os dois vencedores da edição 2013/2014 do Prêmio<br />
Sesc de Literatura. A jornalista e mestranda em culturas midiáticas<br />
Débora Ferraz, de 27 anos, venceu na categoria Romance com<br />
Enquanto Deus não está olhando. E Parafilias, do bancário<br />
e psicólogo Alexandre Marques Rodrigues, de 34 anos, ganhou na<br />
categoria Conto. Em seu livro, Débora aborda a relação pai e filha, a<br />
perda e a insegurança de ingressar na idade adulta sem preparo. Já<br />
Rodrigues, que “escreve sobre o cotidiano”, tratou da solidão sob a<br />
abordagem das perversões sexuais. Os autores receberão o prêmio em<br />
cerimônia na Academia Brasileira de Letras, prevista para julho de 2014,<br />
e participarão da programação do Centro Cultural Sesc Paraty durante a<br />
Flip. As obras serão publicadas pela Record.<br />
COLUNISTAS<br />
ENSAIOS E RESENHAS<br />
DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />
EDIÇÕES ANTERIORES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />
QUEM<br />
Talvez<br />
SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />
não haja na literatura brasileira<br />
obra ficcional tão heterogênea quanto a<br />
do pernambucano Osman Lins, falecido<br />
prematuramente em 1978, com 54 anos.<br />
Seu livro mais famoso (e provavelmente menos<br />
lido) é o romance Avalovara, de 1973. Constituído<br />
por oito linhas narrativas aparentemente<br />
independentes, que correspondem às oito letras<br />
da mais impressionante frase palíndroma do mundo<br />
(sator arepo tenet opera rotas), Avalovara<br />
pretende ser a súmula da experiência existencial<br />
humana, sobre o jogo lógico das interseções da espiral<br />
(que simboliza o tempo) e do quadrado (representando<br />
o espaço).<br />
Romance que explica o próprio processo de<br />
sua composição, acaba sendo também a celebração<br />
do inominável, das realidades que escapam à<br />
própria literatura, tanto que uma das personagens<br />
fundamentais é designada por um signo impronunciável,<br />
irredutível às letras do alfabeto.<br />
Com Avalovara Osman atinge o auge da sua<br />
fase experimental e geométrica, que conta ainda<br />
com as novelas de Nove, novena e com o romance<br />
A rainha dos cárceres da Grécia.<br />
Curioso que esse mesmo autor cerebral e matemático<br />
tenha escrito, além de teledramaturgia,<br />
as comédias Lisbela e o prisioneiro, levada às<br />
telas com muito sucesso, e Guerra do cansa-<br />
-cavalo, ambas auridas nas tradições populares<br />
nordestinas, como fizeram, por exemplo, Joaquim<br />
Cardozo e Ariano Suassuna.<br />
Tal diversidade é ainda mais surpreendente<br />
quando lemos o primeiro Osman Lins, o da novela<br />
O visitante e dos contos de Os gestos, expoentes<br />
da nossa melhor tradição introspectiva e machadiana.<br />
É entre essas duas últimas vertentes, a da comédia<br />
e a dos contos, que se situa um outro Osman<br />
Lins, o do romance O fiel e a pedra. Entramos<br />
aqui num terreno raro nas letras vernáculas, porque<br />
mais próximo de certo romance de ação típico<br />
das literaturas de língua inglesa.<br />
Bernardo Cedro, o protagonista, vai trabalhar<br />
no engenho de Miguel Benício, que é casado com<br />
Creusa, cujo comportamento adúltero é conhecido<br />
de todos. Para obter o desquite sem deixar bens<br />
para a mulher, Miguel propõe a Bernardo a compra<br />
simulada e fraudulenta de seus imóveis — que<br />
o empregado recusa, preso a seus princípios éticos.<br />
Miguel Benício, então, procura Nestor. E<br />
Bernardo pressente que Miguel, depois de passar<br />
as escrituras, será assassinado, fato que ocorre<br />
pouco depois. Sugerindo que houve crime (e não<br />
acidente, como o corpo caído da escada sugeria),<br />
Bernardo passa a ter no novo dono do engenho um<br />
perigoso inimigo. E apesar de achar que Creusa<br />
não merece, defende os interesses da viúva.<br />
Começa, então, a luta de Bernardo contra os<br />
capangas de Nestor, que quer expulsá-lo do engenho.<br />
A narrativa é densa e culmina com cenas de<br />
sítio e tiroteio. É quando surge a figura inesperada<br />
de um estranho, Ubaldo, que se agiganta no fim.<br />
Osman Lins conseguiu escrever, a despeito<br />
da contemporaneidade, um livro que trata de heróis.<br />
E que não perde, por isso, sua grandeza, sua<br />
complexidade.<br />
O fiel e a pedra, originalmente publicado<br />
em 1961, teve edições da Martins, da Melhoramentos,<br />
do Círculo do Livro e, recentemente, da Companhia<br />
das Letras. Embora a última ainda esteja<br />
em catálogo, é raro encontrá-la nas estantes das<br />
grandes redes livreiras. Nos sebos, devem ser garimpados<br />
os exemplares a partir da segunda edição,<br />
de 1967, pois o texto da princeps foi revisto<br />
por Osman. A R$ 15,00 estão bem pagos.<br />
divulgação<br />
colaboradores desta edição<br />
André Caramuru Aubert<br />
Carlos Eduardo de Magalhães<br />
Clayton de Souza<br />
Felipe Franco Munhoz<br />
Gabriela Silva<br />
Gisele Eberspächer<br />
Guilherme Pavarin<br />
Haron Gamal<br />
Luiz Guilherme Barbosa<br />
Luiz Horácio<br />
Marcelo Antinori<br />
Marcos Pasche<br />
Martim Vasques da Cunha<br />
Maurício Melo Júnior<br />
Motojiro Kaijii<br />
Nelson Shuchmacher Endebo<br />
Paulo Andrade<br />
Paulo Rosenbaum<br />
Rodrigo Casarin<br />
Rodrigo Gurgel<br />
Vilma Costa<br />
Lei 8.313/91 (Lei Rouanet)<br />
Programa Nacional de<br />
Apoio à Cultura (Pronac)<br />
Apoio<br />
patrocínio<br />
realização<br />
Editora<br />
Letras & Livros<br />
Em expansão<br />
A revista literária Substânsia,<br />
editada por Nathan Matos e<br />
Roberto Menezes, chegou a sua<br />
segunda edição e segue aberta para<br />
autores que desejam ter seus textos<br />
publicados. Seguindo a mesma linha<br />
de ampliação do cenário literário,<br />
surge a Editora Substânsia.<br />
Idealizada pelo editor Nathan<br />
Matos, em parceria com Madjer<br />
de Souza Pontes e Talles Azigon,<br />
estreará com O núcleo selvagem<br />
do dia (foto), de Madjer.<br />
divulgação<br />
Pulitzer para Donna<br />
A escritora norte-americana Donna Tartt venceu o Pulitzer na categoria<br />
Ficção, com o romance The Goldfinch. Nele, acompanhamos a trajetória<br />
de Theo Decker, um nova-iorquino de 13 anos que sobrevive a um acidente<br />
em que morre sua mãe. O livro é centrado justamente na pintura Goldfinch,<br />
de 1654, do holandês Carel Fabritius. No Brasil, a Companhia das Letras<br />
já publicou da autora A história secreta (1995, romance de estreia) e O<br />
amigo de infância (2004). The Goldfinch deve sair ainda neste ano.<br />
Na categoria Poesia, 3 sections, do indiano radicado nos Estados Unidos<br />
Vijay Seshadri, levou o Pulitzer. Os versos exploram a consciência humana<br />
do nascimento à demência, alterando entre vozes graciosas e graves.<br />
Nenhum livro do autor foi publicado no Brasil.<br />
Novidades no Jabuti<br />
O Prêmio Jabuti está com inscrições abertas. Este ano, um pouco diferente:<br />
a curadoria passou a ser da escritora e professora Marisa Lajolo; a<br />
cerimônia de entrega do Jabuti, realizada durante oito anos na Sala São<br />
Paulo, desta vez será no Auditório Ibirapuera, dia 18 de novembro; e, por<br />
fim, a criação de uma 27ª categoria, onde o British Council irá laurear a<br />
melhor tradução de obra literária inglês-português e o vencedor participará<br />
de um evento literário no Reino Unido, em 2015. Mais informações no site<br />
www.premiojabuti.com.br<br />
O conto em Floripa<br />
De 19 a 25 de maio, Florianópolis (SC) recebe a 4ª edição do Festival<br />
Nacional de Conto, único evento da América Latina dedicado a esse gênero.<br />
O escritor homenageado será o carioca Sérgio Sant’Anna, quatro vezes<br />
vencedor do Prêmio Jabuti. Entre outros, completam a programação<br />
Daniel Pellizzari, Noemi Jaffe, Cíntia Moscovich e Altair Martins. Os<br />
encontros acontecem no Teatro Sesc Prainha.<br />
Literatura no sertão<br />
O Congresso Internacional do Livro, Leitura e Literatura n o Sertão<br />
(Clisertão) chega à 2ª edição. Acontece em Petrolina (PE), de 5 a 10 de<br />
maio. Entre os convidados, José Luiz Passos, Rogério Pereira, editor do<br />
Rascunho, e José Castello.<br />
Prêmio Brasília<br />
O 2º Prêmio Brasília de Literatura anunciou os 16 autores premiados<br />
entre oito categorias: Biografia, Conto, Crônica, Infantil, Juvenil, Poesia,<br />
Romance e Reportagem. Aos primeiros lugares, R$ 30 mil; aos segundos,<br />
R$ 10 mil. Ganhador do Portugal Telecom 2013, O sonâmbulo<br />
amador, de José Luiz Passos (foto), ficou em primeiro lugar na categoria<br />
Romance. Em segundo, Ana Miranda com O peso da luz — Einstein<br />
do Ceará. Na poesia, Roberval Pereyr levou o primeiro lugar com<br />
Mirantes; Samarone Lima ficou na segunda posição, com O aquário<br />
desenterrado. Antonio Prata ganhou novamente na categoria Crônicas,<br />
com Nu, de botas. O segundo lugar ficou com Labirinto da palavra,<br />
de Claudia Lage, cujas crônicas foram publicadas no Rascunho de 2008<br />
a 2011. No conto, Noemi Jaffe venceu com A verdadeira história do<br />
alfabeto. Em segundo lugar, a coletânea Garimpo, de Beatriz Bracher.<br />
Em Ribeirão Preto<br />
Entre 16 e 25 de maio, Ribeirão Preto (SP) se torna o principal cenário<br />
literário do país. A 14ª Feira Nacional do Livro contará com 600 atrações<br />
gratuitas em 14 espaços diferentes. Com um espetáculo inédito, a bailarina<br />
e coreógrafa Deborah Colker abre o evento; para o encerramento, o<br />
maestro João Carlos Martins rege a orquestra Bachiana Filarmônica do<br />
Sesi. Dentre os escritores convidados, Antonio Prata, Cristovão Tezza,<br />
Ignácio de Loyola Brandão e Ruy Castro. Ao todo, serão 98 escritores<br />
nacionais, 113 escritores locais e seis internacionais. Programação no site<br />
www.feiradolivroribeirao.com.br.<br />
Investigações na McSweeney’s<br />
A edição 46 da revista norte-americana McSweeney’s traz 13 contos<br />
policiais contemporâneos de autores latino-americanos. Participam da<br />
edição o brasileiro Bernardo Carvalho, o mexicano radicado no Brasil Juan<br />
Pablo Villalobos, a argentina Mariana Enríquez, o cubano Jorge Enrique<br />
Lage, entre outros.
169 • maio_ 2014<br />
4<br />
169 • maio_ 2014<br />
5<br />
Cheia de<br />
histórias<br />
:: Gabriela Silva<br />
Porto Alegre – RS<br />
Gabriel García Márquez e Guimarães Rosa gostariam de<br />
entabular uma conversa sobre A cabeça do santo, de<br />
Socorro Acioli, por diversos motivos. O primeiro é a história<br />
— essencialmente boa. Samuel é um jovem que começa<br />
a narrativa num estado miserável de existência. Ele vaga pelas<br />
estradas do interior do Ceará, pelas cidades de Juazeiro, Candeia,<br />
Canindé para cumprir a promessa feita à mãe às vésperas de sua<br />
morte: encontrar a avó paterna Nicéia e o pai Manoel e acender velas<br />
aos pés dos santos de sua devoção. E num fragmento de tempo a vida<br />
do protagonista muda. Os outros motivos de que falo vão surgindo<br />
ao longo da narrativa e da nossa leitura. Mas posso enunciar alguns,<br />
não todos, para que o leitor possa descobrir as qualidades do texto,<br />
como eu fiz em cada nova página.<br />
Samuel vive uma série de peripécias, de desenlaces, descobrindo<br />
fatores de sua própria vida e acessando as suas origens. Filho<br />
de Mariinha com Manoel Vale, fora criado pela mãe, expulsa e<br />
renegada pelo pai, pela gravidez e a vergonha de ter sido desonrada.<br />
Sobrevivem, mãe e filho, a custa da ajuda de pessoas boas e do trabalho<br />
com palha que Mariinha realiza. Doente, portadora de sífilis,<br />
que Samuel julga ter sito transmitida pelo pai, ela morre, deixando<br />
os pedidos ao filho.<br />
Ao contar a trajetória de Samuel, Socorro incorpora elementos<br />
que vão ficando evidentes na construção do romance. Um deles é<br />
a religiosidade. Santos que estão presentes no imaginário do povo<br />
nordestino e que funcionam como fonte de fé e misticismo servindo<br />
de eixo para histórias contadas de geração a geração. Padre Cícero,<br />
Santo Antônio e São Francisco formam a tríade divina que compõe a<br />
base da narrativa. Cada um no pedido da mãe deve receber uma vela,<br />
aos seus pés, para salvar a sua alma.<br />
O místico em A cabeça do santo não fica apenas na crença<br />
dos milagres dos santos. A mãe de Samuel, assim como todas as mulheres<br />
de sua família possui o dom de prever a própria morte. Essa<br />
característica do romance se expande no protagonista. Ele mesmo<br />
tem a capacidade de ouvir vozes. Após ser expulso da casa da avó, ele<br />
vai por ordem dela mesma, alojar-se em uma gruta mais afastada.<br />
A gruta é na verdade a cabeça degolada de uma estátua enorme de<br />
Santo Antônio, padroeiro da cidade de Candeia.<br />
Atacado por cães, escondido, doente, Samuel<br />
ouve as histórias contadas pelas vozes que vertem<br />
das paredes da cabeça. Auxiliado por um garoto,<br />
Francisco, ele se recupera e acaba achando uma utilidade<br />
para as vozes que falam o tempo todo. Ele se<br />
torna um Mensageiro do santo, fazendo com que as<br />
mulheres resolvessem seus problemas amorosos.<br />
E então a narrativa toma rumos diferentes: o<br />
místico torna-se o começo de descobertas e desvelamentos<br />
sobre a história de Candeia, suas personagens<br />
e a vida de Samuel.<br />
Sobre a cidade, descobrem-se as irregularidades<br />
de um prefeito, a história de um santo mal<br />
construído e da morte de uma comunidade. Por superstição<br />
dos moradores e por descaso da prefeitura.<br />
Samuel é odiado e perseguido pelo poder local, que<br />
não deseja responder pelas suas ações erradas e inércia<br />
em relação à cidade, assim como a ressurreição de um espaço que<br />
julgavam morto: Candeia não era mais a cidade abandonada.<br />
As personagens vão se desdobrando, mostrando suas histórias<br />
particulares, origens. E toda a trama vai se encaixando, como as peças<br />
que compõem a própria imagem do santo. Histórias de amor,<br />
morte, abandono e esperança, todas depositadas na possibilidade de<br />
que o dom de Samuel e das vozes ouvidas consiga resolver. Socorro<br />
nos apresenta um quadro vasto de personalidades a que são atribuídas<br />
características como solidariedade, esperança, afetuosidade e<br />
outras ruins, mas que também fazem parte tanto das personalidades<br />
ficcionais como reais: ganância, avareza, rancor e tantas outras.<br />
Samuel encontra seu pai, que de forma circular contribuíra<br />
para a decadência da cidade. A história vai se misturando à de<br />
Candeia e o passado torna-se mais claro e o presente assume um<br />
sentido próprio.<br />
Descobre entre as vozes, a história de Rosário. Que herdara da<br />
mãe africana o hábito de cantar às cinco da manhã e às cinco da tarde.<br />
É a voz que acalma o coração de Samuel, todos os dias. A beleza<br />
da voz — associada ao mistério das canções em uma língua que oscila<br />
entre o português e outra desconhecida — vai despertando em Samuel<br />
o que mais tarde se descobriria como amor.<br />
Atendendo aos pedidos da mãe, reforçados pela avó, ele<br />
completa o sentido da sua missão, cumpre a sua jornada de herói.<br />
Samuel vivencia a pobreza e a dor pela perda, constrói amizades,<br />
ajuda a reconstruir uma cidade, a bondade de um santo e o passado<br />
de sua família.<br />
É aos pés dos santos que ele encontra o que procura: Santo Antônio<br />
lhe entrega o pai, exilado na estátua degolada; São Francisco<br />
lhe entrega o caminho para Rosário, que agora lhe acalmaria o coração<br />
não apenas com a voz, mas com a sua presença.<br />
Lendo a biografia de Socorro Acioli, percebemos que ela procurou<br />
aprender para exercer o que lhe sobra: talento. A cabeça do<br />
santo é a carta fiadora de Socorro: confiamos nela como autora.<br />
Confiamos na elaborada trama composta por elementos fantásticos<br />
(nos fascinam tanto), sistemas de encaixes entre passado e presente<br />
e uma circularidade que nos assombra e nos deixa curiosos. Por 168<br />
páginas de texto, conhecemos Samuel e sua história, uma narrativa<br />
pungente de sobrevivência, de amor e, sobretudo de esperança. Se a<br />
literatura é o exercício artístico de representar a vida real, ou basear-<br />
-se nela, Socorro fez isso com habilidade.<br />
A AUTORA<br />
Socorro Acioli<br />
Nasceu em 1975, em Fortaleza (CE). É jornalista e doutora em estudos de<br />
literatura pela Universidade Federal Fluminense. Foi aluna do prêmio Nobel<br />
Gabriel García Márquez na oficina Como contar um conto, em Cuba. Entre<br />
seus livros publicados estão A bailarina fantasma e Ela tem olhos<br />
de céu, ganhador do prêmio Jabuti de literatura infantil em 2013.<br />
: : entrevista : : Socorro Acioli<br />
:: Rogério Pereira<br />
Curitiba – PR<br />
Socorro Acioli acaba de estrear<br />
na literatura adulta<br />
com A cabeça do santo,<br />
escrita a partir de uma oficina<br />
literária com Gabriel García<br />
Márquez. É apenas uma nova fase<br />
em uma trajetória literária de mais<br />
de dez anos, iniciada na literatura infantojuvenil.<br />
Ganhadora do prêmio<br />
Jabuti 2013 com Ela tem olhos<br />
de céu, Socorro é otimista em relação<br />
ao momento literário brasileiro,<br />
sempre mantendo um olhar crítico,<br />
principalmente em relação à produção<br />
voltada a crianças e jovens. Nesta<br />
entrevista concedida por email,<br />
a autora cearense fala de sua breve<br />
convivência com García Márquez,<br />
das dificuldades em ser escritor no<br />
Brasil, do mercado editorial, da formação<br />
de leitores e de sua paixão<br />
pela gastronomia.<br />
• Após 10 anos de uma bem-<br />
-sucedida carreira como autora<br />
de livros infantojuvenis, vocês<br />
estreia na literatura adulta<br />
com A cabeça do santo. Quais<br />
as inquietações que a levaram<br />
a escrever um romance voltado<br />
ao público adulto?<br />
Esse assunto rende uma resposta<br />
cheia de desdobramentos, já que a<br />
definição de idade do público leitor<br />
é algo muito complexo. O que me<br />
fez decidir a linguagem e a identidade<br />
desse livro foi o próprio tema.<br />
Fui arrebatada pela imagem de uma<br />
cabeça oca, gigantesca e inacabada<br />
de Santo Antônio que vi em uma<br />
matéria de jornal. O texto falava dos<br />
problemas causados pela cabeça no<br />
meio da rua e um deles era o fato<br />
de ter servido de morada para um<br />
homem qualquer. Imediatamente,<br />
percebi que tinha um tema e um<br />
personagem muito fortes para construir<br />
um romance a partir dali. Ao<br />
desenvolver a narrativa, decidi que<br />
esse homem teria o poder de ouvir<br />
as orações das mulheres pedindo<br />
por casamento e que armaria uma<br />
confusão com as informações que<br />
tinha em mãos. Pensei em adultério,<br />
crimes, segredos, amores proibidos e<br />
nada disso caberia em uma narrativa<br />
infantil ou juvenil, a princípio. Eu<br />
Abençoada<br />
cozinha<br />
escritor consiga viver de direitos autorais<br />
no Brasil. O que tem ajudado<br />
muito é o número de eventos literários<br />
no país inteiro, que pagam cachês<br />
e ajudam na receita mensal dos<br />
autores. O problema é que viver viajando<br />
para dar palestras destrói essa<br />
rotina de método e silêncio que todo<br />
escritor precisa ter para trabalhar nos<br />
livros. Muitos autores encaram o dilema<br />
cruel de ter um emprego para escrever<br />
sem preocupações ou viver só<br />
de escrever, mas sofrer a cada final de<br />
mês. A falta de respeito e desconhecimento<br />
diante da profissão também é<br />
terrível. A pergunta “você trabalha ou<br />
só escreve?” é o mínimo que se escuta.<br />
Eu coleciono frases de uma grosseria<br />
absurda, especialmente como<br />
autora de livros infantis. Já me convidaram<br />
para eventos onde esperavam<br />
que eu cantasse e dançasse, coisa que<br />
não faço. Sou escritora. O que sei<br />
fazer diante de um grupo de crianças<br />
é conversar sobre meu processo<br />
criativo, contar coisas engraçadas ou<br />
surpreendentes, ler o texto, responder<br />
perguntas. Confundem literatura<br />
infantil com animação de palco,<br />
às vezes. Para ser honesta, acho que<br />
com dez anos de estrada eu já consigo<br />
tirar de letra. Tenho respostas ótimas<br />
para perguntas desrespeitosas sobre<br />
a profissão.<br />
• Ao ler em média de seis a doze<br />
livros por mês, você, obviamente,<br />
é uma leitora muito acima<br />
da média. O que você busca<br />
na leitura de ficção?<br />
Nem sempre consigo esse máximo de<br />
doze livros, mas leio muito e sempre.<br />
O que me ajuda bastante é o advento<br />
fantástico do ebook. Tenho um Kobo<br />
alimentado por uma biblioteca incrível<br />
e aproveito cada minuto livre que<br />
tenho. Tenho metas de leitura, anoto<br />
tudo que leio, faço estatísticas, é um<br />
negócio divertido e meio nerd. Mas<br />
isso não faz de mim uma erudita, porque<br />
leio muita, muita bobagem. Antes<br />
de dormir, geralmente, opto por<br />
livros que contem uma boa história e<br />
não tenho o menor problema em escolher<br />
algo mais leve e nem de perder<br />
tempo com best-seller. Muitas vezes<br />
eu sigo as indicações das minhas leitoras<br />
adolescentes e compro os sucessos<br />
do momento — a maioria dos textos<br />
me irrita, mas eu leio. Ao mesmo<br />
tempo, andei numa fase obsessiva<br />
por autores africanos — Mia Couto,<br />
Agualusa, Luandino Vieira, Pepetela,<br />
Ondjaki, Armenio Vieira. Tive uma<br />
paixonite pelo Ian McEwan, pelo<br />
Murakami. Ano passado fui à Argentina<br />
pela primeira vez e me preparei<br />
lendo Borges. A paixão do momento<br />
é o Valter Hugo Mãe. O que eu busco<br />
na ficção depende do momento. Escolher<br />
um livro é fazer um pacto com<br />
ele, olhando nos olhos da capa. Para<br />
alguns eu digo: “ok, eu quero rir um<br />
pouco com você e esquecer da vida,<br />
por favor”. Diante de outros eu reverencio<br />
o autor e digo: “Nada menos<br />
que arrebatamento, é o que espero”.<br />
• Da sua experiência com jovens<br />
leitores, é possível buscar<br />
explicações para as dificuldades<br />
em formar mais leitores no<br />
Brasil? Quais seriam as principais<br />
barreiras?<br />
É um quadro complexo. O que cerca<br />
um leitor em potencial? Família<br />
e escola. Sem incentivo desses dois<br />
pilares da sua formação, fica difícil<br />
tornar-se leitor. Existem iniciativas<br />
fantásticas no Brasil. Aplaudo de pé o<br />
programa Agentes de Leitura, criado<br />
pelo educador Fabiano dos Santos,<br />
que leva livros de casa em casa. Também<br />
sou entusiasta da Fundação Nacional<br />
do Livro Infantil e Juvenil, que<br />
mantém diversas ações impressionantes<br />
envolvendo autores, ilustradores,<br />
editores, família e professores.<br />
Se eu tiver de arriscar um caminho,<br />
creio que a saída para o problema é o<br />
investimento na formação do professor<br />
leitor. Eu já dei uma palestra para<br />
um público de professores às 20h e<br />
perguntei quantos ali tinham dado<br />
mais de dois turnos de aula. A maioria<br />
levantou o braço. Perguntei quem<br />
trabalhava aos sábados e todos levantaram<br />
o braço. Quando esse professor<br />
vai ler? E sem ter, ele próprio, uma<br />
vida de leitor, como vai transmitir<br />
esse gosto para os alunos? Por outro<br />
lado, vemos um aumento imenso no<br />
mercado de literatura infantil e juvenil<br />
no Brasil. Eventos de editoras<br />
voltados para o público jovem lotam<br />
as livrarias do Brasil, assim como as<br />
tardes de autógrafos de autoras como<br />
Thalita Rebouças, Paula Pimenta,<br />
Bruna Vieira. Estamos falando de números<br />
e nesse sentido, o momento é<br />
de otimismo.<br />
• De que maneira você auxilia<br />
sua filha a se formar uma boa<br />
leitora?<br />
Tenho algumas regras com ela. A primeira<br />
é nunca negar livros que ela<br />
queira comprar. Nunca. A segunda é<br />
não censurar as leituras. Ela escolhe<br />
o que quiser ler, mesmo que eu ache<br />
uma bobagem, eu compro. Comigo<br />
não tem essa de mandar que compre<br />
com mesada, eu invisto mesmo.<br />
E digo sempre às mães que façam a<br />
mesma coisa. Cada leitor tem seu caminho.<br />
Ela viaja comigo para eventos<br />
literários desde pequena, acompanha<br />
minhas palestras e me vê sempre lendo<br />
e falando de livros. Agora me pediu<br />
um Kobo e eu comprei. Acabou de ler<br />
a trilogia Jogos vorazes e começou<br />
O cão dos Baskervilles — está<br />
ado rando. Sim, ela é uma leitora.<br />
Acho que tomei boas decisões nesse<br />
processo.<br />
• O que seria um bom leitor? É<br />
possível defini-lo?<br />
Talvez seja o que lê com prazer, porque<br />
gosta, porque não sabe viver sem<br />
livros. Um por mês, que seja. Talvez<br />
seja o leitor que pensa sobre o que<br />
leu, que sabe compreender os livros<br />
dentro dos seus contextos, que entende<br />
o lugar de cada autor no seu tempo<br />
e sua posição e contrastes diante dos<br />
demais. Talvez seja o que surta nas<br />
livrarias, compra mais do que consegue<br />
ler, ama os autores loucamente.<br />
Existem inúmeros tipos de bons leitores,<br />
não existe um gabarito.<br />
• Na introdução de Aula de leitura<br />
com Monteiro Lobato, você<br />
afirma que “escrevi este livro<br />
porque acredito, a cada minuto<br />
da minha vida, que a literatura<br />
pode salvar o mundo”. Por que<br />
esta crença na literatura?<br />
Uma vez a Fundação Nacional do Livro<br />
Infantil e Juvenil organizou uma<br />
exposição chamada Santos Dumont<br />
leitor de Julio Verne. Fiquei impressionada<br />
com aquilo, com o poder da<br />
literatura como condutora da vida de<br />
um inventor. A boa literatura dá sentido<br />
à vida, no mínimo. Nos melhores<br />
casos, alimenta grandes ideias.<br />
O querido Bartolomeu Campos de<br />
Queiroz disse uma vez que é a imaginação<br />
que movimenta o mundo.<br />
Esse computador onde eu escrevo<br />
e esse outro de onde você me lê só<br />
existe porque alguém imaginou. E a<br />
literatura nos dá isso, esse poder de<br />
sonhar, especialmente na infância.<br />
Existe também a literatura que dói<br />
e que faz enxergar a dor do outro.<br />
Nada mais necessário do que o exercício<br />
da empatia nos dias de hoje, esses<br />
tempos de egoísmo.<br />
• Ao percorrer o Brasil em feiras,<br />
festivais, encontros com<br />
leitores, como você avalia o<br />
momento literário brasileiro<br />
do ponto de vista de mercado?<br />
É possível viver de literatura?<br />
Para alguns autores, sim. Uns têm a<br />
sorte de viver só de vendas de livros,<br />
o melhor dos mundos. Outros conseguem<br />
cumprindo uma agenda de<br />
muitas viagens por mês, nas condições<br />
mais diversas. Mas de qualquer<br />
forma, temos um número razoável<br />
de escritores vivendo de literatura e<br />
isso é muito bom. Do ponto de vista<br />
do mercado, é um momento aquecido.<br />
Muitos eventos, muitos autores<br />
surgindo, muitos livros de sucesso<br />
vendendo bem nas livrarias do Brasil,<br />
vários editais para compras de<br />
governo por ano, concursos, prêmios<br />
literários, etc.<br />
• Você acompanha a produção<br />
literária brasileira? O que mais<br />
te chama a atenção na literatura<br />
atual?<br />
Acompanho, claro. Como leitora e<br />
como amiga de muitos autores — a<br />
maioria que vou conhecendo pela<br />
estrada das feiras e festas literárias.<br />
Os autores sérios estão em busca da<br />
sua própria voz, isso é o que mais me<br />
impressiona. Não temos uma produção<br />
em bloco, aquela série de livros<br />
parecidos. Adriana Lisboa, Tatiana<br />
Salem Levy, Daniel Galera, Michel<br />
Laub, cada um tem seu caminho<br />
próprio, seu projeto literário muito<br />
bem fundamentado. Já na literatura<br />
infantojuvenil surgem muitos autores<br />
novos todos os dias. A maioria<br />
vem copiar o que já deu certo, o que<br />
é uma pena. Uma minoria de muita<br />
qualidade oferece uma voz original.<br />
Isso sim, me anima.<br />
• Você circula com muita desenvoltura<br />
pelas mídias digitais,<br />
com seus blogs, facebook,<br />
twitter. De que maneira o mundo<br />
digital facilita ou atrapalha<br />
a vida dos escritores?<br />
Facilita muito porque é mais rápido<br />
encontrar pessoas. Editores, jornalistas,<br />
críticos, estão todos ali, ao alcance<br />
de um clic. Basta ser amigo virtual<br />
e a porta está aberta para ver e ser<br />
visto. Divulgar eventos pelo facebook<br />
e twitter é maravilhoso e é pelas redes<br />
sociais que os leitores chegam ao blog.<br />
Atrapalha porque toma muito tempo.<br />
E porque o risco de se expor demais<br />
é enorme. É preciso saber dosar bem<br />
quando se posta uma informação que<br />
mil pessoas vão ler. Eu confesso que<br />
gosto bastante, tenho muitos amigos<br />
que conheci pela internet. Adoro receber<br />
os recados dos leitores, especialmente<br />
as coisas engraçadíssimas<br />
que os adolescentes postam. Mas<br />
transito com muito cuidado por esse<br />
terreno virtual.<br />
• Como transformar uma ideia<br />
em boa literatura?<br />
Com muito trabalho. No meu caso,<br />
com um planejamento intenso até<br />
encontrar a estrutura adequada ao<br />
texto. A ficção exige uma série de<br />
tomadas de decisão por parte do<br />
autor. Onde acontecerá a história?<br />
Quem são os personagens? O que<br />
eles querem? O que os impede? Vão<br />
conseguir? Em quanto tempo tudo<br />
acontecerá? Quem contará a história,<br />
um narrador onisciente? Será<br />
em primeira pessoa? Quais as verdades<br />
ou as perguntas que movem<br />
esse texto? Essas são apenas algumas<br />
das perguntas que o livro precisa<br />
responder. O que aprendi com<br />
cursos de roteiro e escrita criativa<br />
me ajudou muito a facilitar o processo.<br />
Juntando os cursos, o estudo<br />
e minha experiência, tenho promovido<br />
oficinas de construção de<br />
narrativa para tentar iluminar esse<br />
caminho entre a ideia e a literatura.<br />
• Qual a importância dos prêmios<br />
literários para os autores?<br />
E qual a importância no<br />
seu caso específico?<br />
Prêmios conferem uma visibilidade<br />
imensa para o livro e o autor. Para o<br />
público leitor, é uma legitimação do<br />
trabalho, um atestado de qualidade.<br />
O Jabuti foi o meu primeiro prêmio<br />
nacional e o salto da minha posição<br />
no mercado foi estrondoso. Muitas<br />
portas se abriram, muitos convites,<br />
muito reconhecimento. Tudo fica<br />
mais fácil depois quando o autor tem<br />
um Jabuti no currículo. Na vida real,<br />
ao menos pra mim, não muda muita<br />
coisa. Continuo batalhando muito,<br />
lutando no dia a dia para seguir<br />
escrevendo, estudando, pensando<br />
meus projetos, correndo muito para<br />
dar palestras, fechar as contas no fim<br />
do mês. Valorizo muito os prêmios<br />
que já recebi, me fizeram feliz e espero<br />
que venham mais. Porém, eles<br />
não mudam quem eu sou.<br />
• Por que manter um blog de<br />
receitas gastronômicas?<br />
Por prazer. Adoro cozinhar, pesquisar<br />
receitas, conhecer ingredientes<br />
novos, reproduzir em casa as<br />
comidas que aprendo nas viagens.<br />
Minhas malas voltam cheias de ingredientes<br />
e utensílios. Faço comida<br />
todos os dias para minha família e é<br />
nesse momento que surgem ótimas<br />
ideias para a literatura. De vez em<br />
quando eu penso que, um dia, pode<br />
surgir um projeto literário daí, mas<br />
nada concreto ainda. Por enquanto,<br />
é prazer e distração.<br />
divulgação<br />
A literatura infantil é arte, é feita por um<br />
autor sensível a determinado tema, ciente<br />
da escolha do seu universo de palavras.<br />
poderia, sim, ter dobrado a esquina<br />
e feito do meu protagonista, Samuel,<br />
apenas um rapazinho brincalhão,<br />
mas essa não era a história que eu<br />
queria contar. Por outro lado, fico<br />
me perguntando se, mesmo com crime,<br />
crueldades, adultério e amores<br />
proibidos, esse livro não poderia ser<br />
lido por um jovem. Penso que pode,<br />
sim. Tanto que a editora inglesa Hot<br />
Key Books está lançando o mesmo<br />
livro, o mesmo enredo, no seu selo<br />
para o público juvenil. A cabeça do<br />
santo, portanto, estaria na categoria<br />
que o mercado internacional chama<br />
de crossover — um texto que pode<br />
agradar a adolescentes e adultos. É<br />
o que tenho visto com o retorno dos<br />
leitores que me escrevem nas redes<br />
sociais, todos os dias.<br />
• No momento da construção<br />
da narrativa, há diferenças<br />
entre escrever para criança,<br />
jovem ou adulto — leitores, supostamente,<br />
diferentes?<br />
Para mim todos exigem muito trabalho,<br />
muito mesmo. Não escrevo<br />
facilmente, inspirada pela Musa. Eu<br />
sofro um bocado. E não acho que<br />
texto infantil é fácil e adulto, difícil.<br />
Não chamo livro infantil de livrinho.<br />
O que muda é o universo ficcional<br />
de cada um. Alguns temas importantes<br />
para adultos não fazem parte<br />
do espectro de interesse de uma<br />
criança. A linguagem também exige<br />
uma atenção, tanto em coisas mais<br />
visíveis, como vocabulário, quando<br />
na composição de metáforas e pontes<br />
de narrativa que talvez um leitor<br />
mais jovem não consiga captar.<br />
Infelizmente, tenho visto critérios<br />
absurdos nesse julgamento da qualidade<br />
no livro infantil. Já vi professoras<br />
dizendo que um bom livro para<br />
crianças não pode falar de morte,<br />
não pode ter palavras de quatro silabas<br />
ou que sejam muito distantes<br />
do vocabulário natural da criança.<br />
Dizem, ainda, que o bom livro infantil<br />
é o que ensina alguma coisa — a<br />
tal alcunha de paradidático. Costumo<br />
fazer palestras para professores<br />
e tento conversar sobre a diferença<br />
entre livro para criança e literatura<br />
infantil. O livro pra criança é aquele<br />
que as bienais vendem aos quilos por<br />
cinco reais, que ensinam as cores e<br />
os tipos de formas de amarrar sapatos.<br />
A literatura infantil é arte, é feita<br />
por um autor sensível a determinado<br />
tema, ciente da escolha do seu universo<br />
de palavras. Ela pode e deve<br />
falar de morte, dor, tristeza, alegria<br />
porque tudo isso faz parte da condição<br />
humana. Enfim, as diferenças<br />
caminham mais no terreno da escolha<br />
dos temas. Ao menos para mim,<br />
escrever exige muito trabalho, não<br />
interessa o destinatário do texto.<br />
• Quais desafios você se impõe<br />
ao iniciar o projeto de um novo<br />
livro?<br />
É muito bom começar um projeto<br />
novo, cheia de esperanças. Na verdade,<br />
é talvez o segundo melhor momento<br />
— o primeiro é receber o livro<br />
pronto. Quando decido por um novo<br />
tema, a primeira providência é comprar<br />
um caderno, onde anoto tudo<br />
o que interessa para a construção<br />
do texto. São muitos desafios. Para<br />
mim, ao menos, um dos maiores é<br />
não repetir o que já fiz antes. Não repetir<br />
temas e estruturas. É difícil, é<br />
arriscado. O mais certo — pensando<br />
no mercado — é repetir o que já funcionou<br />
bem, mas não é o que eu quero<br />
para a minha carreira. Já escrevi<br />
ensaios biográficos, livro infantil em<br />
prosa, em verso, livro juvenil, ensaio<br />
acadêmico, romance. Não sou excelente<br />
em todos os gêneros, mas adoro<br />
experimentar e aprender. Outro<br />
desafio é o tempo. Sou muito lenta,<br />
levo anos em um projeto e o prazo<br />
apertado costuma me atrapalhar<br />
muito. Tento organizar o tempo de<br />
escrita a fim de cumprir os cronogramas,<br />
mas nem sempre consigo. Mais<br />
uma questão é a linguagem. Gosto<br />
de dar um espaço entre um texto e<br />
outro para ler mais e aprender com o<br />
bordado dos grandes autores que tenho<br />
conhecido. Já entendi que meu<br />
forte como autora não tem nada a<br />
ver com reinvenção de linguagem,<br />
ao menos por enquanto. Busco o texto<br />
mais simples enquanto dou sangue<br />
no enredo mais surpreendente<br />
possível. Aliás, surpreender o leitor é<br />
um desafio gigantesco.<br />
• Qual a importância do convívio<br />
com Gabriel García Márquez,<br />
em 2006, na oficina<br />
Como contar um conto, em<br />
Cuba, para a escritura de A cabeça<br />
do santo?<br />
Foi um convívio muito rápido, apenas<br />
cinco dias de aula, mas a importância<br />
foi decisiva. O livro só nasceu por causa<br />
desse contato com ele. Procurei um<br />
tema para mandar e concorrer a uma<br />
vaga na fabulosa oficina Como contar<br />
um conto e foi assim que encontrei<br />
e decidi investir na cabeça do santo.<br />
Ter o aval do García Márquez e ouvir<br />
dele que eu tinha um material maravilhoso<br />
em mãos foi o que me deu coragem<br />
para não desistir. Em termos<br />
práticos, ele sugeriu coisas importantes.<br />
Por exemplo: eu estava na dúvida<br />
se o personagem Samuel deveria<br />
ouvir só as orações das mulheres ou<br />
também os pensamentos do santo.<br />
García Márquez disse que eu deveria<br />
optar pelas rezas, já que conhecer segredos<br />
de amor das mulheres de uma<br />
cidade é uma forma de poder. Outra<br />
coisa que ele repetiu várias vezes pra<br />
turma toda e que me serviu muito foi<br />
a frase: “Conte sua história como se<br />
contasse a da Chapeuzinho Vermelho”.<br />
Ou seja: o seu mundo ficcional<br />
tem que ser claro e só quando conseguimos<br />
definir tudo em um parágrafo<br />
é que temos o domínio da história.<br />
Quando estive com García Márquez,<br />
eu só tinha o começo da ideia do livro.<br />
À época, queria fazer um roteiro<br />
de cinema e insisti nessa linguagem<br />
por quatro anos. Em 2010, por um<br />
conselho do diretor Lula Buarque de<br />
Hollanda, desisti de escrever um roteiro<br />
e comecei a trabalhar no livro,<br />
de verdade. Há influência do García<br />
Márquez no texto, mas vejo uma filiação<br />
muito mais forte com Jorge Amado<br />
e Ariano Suassuna, por exemplo.<br />
Escrevemos a partir do nosso repertório<br />
de leituras e experiência de vida.<br />
Não posso negar que o Realismo Mágico<br />
me marcou, mas não é isso que<br />
estou tentando fazer agora.<br />
• O que mais a marcou na convivência<br />
com García Márquez?<br />
A generosidade e a coragem. Acho incrível<br />
que um Prêmio Nobel de prestígio<br />
internacional, lido, admirado e<br />
querido no mundo inteiro, disponha-<br />
-se a passar uma semana sentado a<br />
serviço de autores iniciantes. No primeiro<br />
dia de aula ele anunciou que<br />
“estava ali para ouvir”. Isso é raro.<br />
Durante a fala de todos os alunos, ele<br />
estava de fato concentrado, empenhado<br />
em entender. Tratava de cada<br />
personagem até esgotar as possibilidades.<br />
Sugeria, cortava, pensava com<br />
força no que poderia melhorar. Por<br />
cinco dias, ele nos deu o melhor que<br />
poderia nos dar: seu talento e experiência.<br />
A outra coisa que me marcou<br />
foi a coragem dele, que me contagiou.<br />
García Márquez precisou de muita<br />
força para enfrentar um sem número<br />
de obstáculos na vida, inclusive a opção<br />
de ser escritor.<br />
• A cabeça do santo tem uma<br />
linguagem<br />
aparentemente<br />
muito simples — uma das qualidades<br />
da narrativa. Como se<br />
deu a construção da voz narrativa<br />
para esta história com traços<br />
de realismo fantástico?<br />
O objetivo era essa mesmo: o mais<br />
simples que eu pudesse fazer. Eu<br />
queria um narrador onisciente e<br />
sensível, que soubesse muito, mas<br />
soubesse dosar as informações. Meu<br />
foco, na Cabeça do santo, foi dar<br />
conta de amarrar essa narrativa<br />
cheia de subenredos. Há um eixo<br />
principal (Samuel indo a Candeia<br />
procurar o pai e a avó) e vários outros<br />
eixos que caminham à margem<br />
(o passado da sua mãe, Mariinha,<br />
o passado da cidade, a história de<br />
Fernando, de Rosário, etc.). Eu precisava<br />
de um texto claro e limpo para<br />
desenvolver essas tramas todas. De<br />
outra forma, eu não teria conseguido.<br />
Por enquanto, pretendo seguir<br />
escrevendo assim, um texto simples<br />
a serviço de enredos complexos.<br />
• Ao ganhar o prêmio Jabuti, no<br />
ano passado, você afirmou que<br />
“o prêmio chega na hora mais<br />
certa possível”, mas que seguirá<br />
“na vida caseira, lendo muito,<br />
pensando muito, demorando<br />
pra escrever, publicando com<br />
cautela”. Como é a sua rotina de<br />
criação e contra quais equívocos<br />
um escritor deve lutar?<br />
No momento, tomei a decisão de só<br />
trabalhar em um projeto de cada vez.<br />
Como eu disse antes, sou muito lenta,<br />
detesto as primeiras versões de<br />
tudo que escrevo e preciso de tempo<br />
para maturar enredo e texto. A rotina<br />
de cada texto começa com a escolha<br />
do tema, depois o desenvolvimento<br />
da narrativa — traçado em um caderno<br />
— e sempre, sempre, sempre<br />
começo tudo de uma pesquisa. Isso<br />
vem da minha formação como jornalista.<br />
Quase tudo que escrevi veio<br />
de um fato real, mas o que produzo<br />
são reportagens inventadas. Só depois<br />
da pesquisa eu consigo traçar o<br />
eixo principal da história, o que vai<br />
acontecer com os protagonistas do<br />
começo ao fim. Sem isso, nem sento<br />
para começar. Preciso saber como<br />
vai terminar — mesmo que depois<br />
eu mude de ideia. Costumo planejar<br />
os capítulos, usando um método de<br />
fichas que aprendi na minha formação<br />
para escrever roteiros de cinema.<br />
Tenho uma ficha para cada capítulo<br />
e nele eu determino o lugar dos fatos.<br />
Isso é ótimo, porque se eu resolver<br />
contar algo só mais à frente, basta<br />
mudar de lugar. Eu ia começar A cabeça<br />
do santo contando o passado<br />
de Candeia, porque a estátua não foi<br />
concluída. Mas depois vi que eu deveria<br />
começar com Samuel, manter a<br />
pergunta no leitor e explicar depois.<br />
Foi só mover a ficha de lugar. Depois<br />
de organizar a estrutura, vem a hora<br />
de escrever uma primeira versão do<br />
texto e assim prosseguir. Mais à frente<br />
chegam os leitores que me ajudam<br />
muito — minha agente, Lúcia Riff, os<br />
editores, preparadores de texto. Sou<br />
grata por esse momento, é o fim da<br />
solidão e o começo do trabalho em<br />
equipe para fazer o livro existir. Mas<br />
isso tudo é só um lado da minha vida<br />
profissional. Tenho ainda a carreira<br />
de professora em construção. Acabei<br />
meu Doutorado e estou ministrando<br />
cursos livres de Construção de Narrativa.<br />
Além, é claro, das rotinas de<br />
dona de casa, de cuidar da família,<br />
da vida toda ao redor.<br />
• Você já afirmou que ser escritor<br />
no Brasil é muito difícil.<br />
Quais as principais dificuldades<br />
que um autor enfrenta<br />
num país como o Brasil?<br />
Instabilidade financeira e desrespeito<br />
diante da profissão. É raro que um<br />
A cabeça do<br />
santo<br />
Socorro Acioli<br />
Companhia das Letras<br />
176 págs.<br />
leia entrevista completa no<br />
www.rascunho.com.br
6<br />
169 • maio_ 2014<br />
Vozes autônomas<br />
Poemas de Alice Sant’Anna e Mário Alex Rosa trazem a composição de um sujeito melancólico<br />
: : Luiz Guilherme Barbosa<br />
Rio de Janeiro – RJ<br />
As coleções de livros de<br />
poemas, desde a década<br />
de 1980, são um instrumento<br />
de leitura da poesia<br />
brasileira. Não só fazem o poema<br />
se acompanhar de um projeto<br />
gráfico colecionável, que se inscreve<br />
na memória da leitura dos poemas,<br />
como também intervêm na<br />
legibilidade da poesia, ao lançarem<br />
novos poetas, acolherem poetas<br />
bissextos, revisarem poetas menos<br />
lembrados, acompanharem as<br />
trajetórias mais comemoradas. De<br />
fato são muitos os elementos que<br />
intervêm na maior ou menor legibilidade<br />
da poesia, e eles incluem a<br />
curadoria da coleção, a audácia do<br />
editor em lançá-la, a viabilidade da<br />
editora, os prêmios almejados ou<br />
alcançados pelo livro. Esses gestos<br />
críticos, mais ou menos fortes, são<br />
muitas vezes decisivos para que o<br />
poema alcance uma espécie de patamar<br />
de legibilidade.<br />
Parece, portanto, que as coleções<br />
de poesia, decorrência do amadurecimento<br />
do mercado editorial<br />
— o que, diga-se de passagem, representa<br />
para as editoras compensar<br />
o encalhe dos livros de poemas<br />
por meio das vendas de romances<br />
best-sellers, livros paradidáticos ou<br />
obras clássicas com poder de venda<br />
a longo prazo —, simbolizam, ao<br />
mesmo tempo, a produção de outro<br />
olhar para o poema. É que a publicação<br />
do livro numa coleção de<br />
poesia inscreve-o numa série que<br />
sugere certo olhar sobre o poema<br />
contemporâneo, certo posicionamento<br />
sobre o que significa fazer<br />
poesia, certa escolha entre os poemas<br />
que serão publicados e aqueles<br />
que, por algum motivo, não chegarão<br />
ao livro ou às livrarias. De um<br />
modo ou de outro, no limiar do visível,<br />
a poesia preserva a ambiguidade<br />
que, desde as edições fantasmas<br />
de pequenas tiragens dos poetas<br />
modernistas, às edições raras da<br />
poesia concreta, às edições mimeografadas<br />
da poesia marginal, como<br />
um espectro, o poema parece guardar<br />
na vida cultural.<br />
A não ser que se recorde a<br />
poesia reunida de Paulo Leminski,<br />
que desbancou, em março de 2013,<br />
uma série de romances best-sellers<br />
tornando-se o livro mais vendido<br />
Rabo de baleia<br />
Alice Sant’Anna<br />
Cosac Naify<br />
64 págs.<br />
Via férrea<br />
Mário Alex Rosa<br />
Cosac Naify<br />
64 págs.<br />
no país. Mas ainda aqui seria oportuno<br />
lembrar a leitura de Flora<br />
Süssekind, que considera boa parte<br />
da obra de Leminski “em diálogo<br />
constante com hagiografias diversas”,<br />
o que inclui “mesmo seu gosto<br />
pelo apostolado, por uma intensa<br />
exposição pública, mesmo quando<br />
a cirrose já se encontrava em estado<br />
avançado”. Seja no caso em<br />
que o poema se expõe multicor nas<br />
vitrines alugadas das grandes livrarias,<br />
seja no caso em que circula invisível,<br />
sob encomenda, em pacotes<br />
de papel pardo da editora à casa<br />
do leitor, é supérfluo mostrá-lo ou<br />
escondê-lo. Tanto faz, porque o poema<br />
não chega na hora certa para<br />
o leitor, mesmo que a encomenda<br />
não atrase e as metas de venda sejam<br />
atingidas ou superadas.<br />
A Cosac Naify lança, sob a<br />
coordenação de Heloisa Jahn, dois<br />
volumes da coleção Poesia contemporânea<br />
brasileira. Depois dos 14<br />
volumes da coleção Ás de colete,<br />
série bolso, coordenada por Carlito<br />
Azevedo; depois dos dois volumes<br />
excelentes de Josely Vianna Baptista<br />
e de Angélica Freitas; depois<br />
ainda de Ximerix, a quimera em<br />
quadrinhos que Zuca Sardan; a<br />
editora lança dois outros, os segundos<br />
livros de poemas de Alice<br />
Sant’Anna e Mário Alex Rosa.<br />
O que atravessa ambos os livros<br />
talvez seja a composição de<br />
um sujeito melancólico, que, a partir<br />
de um olhar contemplativo às<br />
pequenas coisas do cotidiano, projeta<br />
uma série de reminiscências<br />
ou imagens que progressivamente<br />
desfiguram a paisagem do entorno.<br />
Trata-se, portanto, de dois projetos<br />
líricos para o poema. Tratam-se de<br />
poemas que parecem poemas, o<br />
que deve chamar a atenção à leitura,<br />
principalmente se lembrarmos<br />
que o texto de apresentação do livro<br />
de Mário Alex Rosa foi composto<br />
por Armando Freitas Filho, o mesmo<br />
poeta que, em 2012, publicara<br />
uma bonita plaquete em coautoria<br />
com Alice Sant’Anna, Pingue-<br />
-pongue. O mesmo poeta que em<br />
seu último livro, Dever, dedica<br />
versos ao livro de Angélica Freitas,<br />
o poema Cuidado: “Tormento lê-<br />
-lo assim/ sacudido, na superfície/<br />
sem ir até o fundo/ por não saber<br />
nadar/ na sua água desobediente”.<br />
O tormento experimentado na superfície<br />
desobediente da água dos<br />
poemas montados com frases do<br />
Google por Angélica Freitas, das<br />
canções que cantam a mulher gorda<br />
que incomoda muita gente ou<br />
a mulher insanamente bonita que<br />
vai ganhar um carro, contrasta<br />
fortemente com a ambiência delicada<br />
e melancólica e reflexiva dos<br />
poemas de Mário Alex Rosa e Alice<br />
Sant’Anna. O que talvez esteja em<br />
jogo nessa diferença sejam as forças<br />
que constituem a voz de cada poeta,<br />
ora narrativizando as angústias e os<br />
diversos afetos que possam compor<br />
a subjetividade poética mais ou menos<br />
definida numa obra (a demora<br />
em responder uma carta, o fim de<br />
semana na casa dos primos, em<br />
Alice Sant’Anna; a “sombra” que<br />
engole o tempo, as “tardes” intermináveis,<br />
as lembranças “inevitáveis”,<br />
de Mário Alex Rosa), ora dramatizando<br />
as vozes díspares que<br />
possam decompor a subjetividade<br />
poética e pô-la em xeque na obra (o<br />
humor e os jogos de escrita em Angélica<br />
Freitas; os cantos indígenas e<br />
a experiência tradutória em Josely<br />
Vianna Baptista). Ora vozes autônomas,<br />
ora vozes autômatas.<br />
No caso de Mário Alex Rosa, a<br />
OS AUTORES<br />
Alice Sant’Anna<br />
Nasceu no Rio<br />
de Janeiro<br />
(RJ), em<br />
1988. Poeta,<br />
estreou com<br />
Dobradura<br />
em 2008.<br />
Também publicou<br />
em edições independentes<br />
Bichinhos de luz (2009) e, em<br />
coautoria com Armando Freitas<br />
Filho, Pingue-pongue (2012).<br />
Mário Alex Rosa<br />
Nasceu em São<br />
João Del-Rei<br />
(MG), em<br />
1966. Poeta,<br />
publicou<br />
Ouro<br />
Preto em<br />
2012. Também<br />
publicou poemas para<br />
crianças em ABC Futebol<br />
Clube e outros poemas<br />
(2007) e Formigas (2013).<br />
autonomia da voz em sua Via férrea<br />
é duramente conquistada sob<br />
uma dupla condição: desenvolver<br />
um exercício de metalinguagem do<br />
poema de modo a dizer mesmo que<br />
sem as palavras adequadas, e cuidar<br />
para que a luz, o clarão do poema<br />
não dissolva o sujeito. Assim é<br />
que num dos mais pungentes poemas<br />
— e, no livro, a dor está sempre<br />
alta — lê-se “a inevitável lembrança/<br />
daquele pássaro que um dia ‘se<br />
esfacelou na asa do avião’”. O poema<br />
lembrado, Confissão, de Carlos<br />
Drummond de Andrade, é “transferido<br />
para o presente”: o poema, “jogado<br />
à própria sorte, tenta se desviar<br />
de si até onde pode/ e já pode<br />
muito pouco”. O poema dificilmente<br />
desvia de si, talvez se esfacelasse<br />
na asa do avião, mas não: apesar de<br />
sua parca potência desviante, o poema,<br />
“entre um talvez e um se, pode<br />
esperar ou retardar a confissão”. A<br />
sua “camisa de força” (este é o título<br />
do poema) é uma ética calcada<br />
nos valores do poema moderno, de<br />
certo poema moderno: a confissão<br />
é adiada como se o poeta resguardasse<br />
assim o poema de sua dissolução,<br />
como um recuo estratégico<br />
para preservar a linguagem poética<br />
das turbinas horrorosas que, no entanto, são aquilo mesmo que torna o pássaro<br />
memorável. Por isso a valorização do rascunhar na preparação dos poemas,<br />
por isso a insistência na palavra que “não sai. Mata-me mas não sai”, e<br />
sobretudo por isso a valorização do tempo cotidiano e vazio: segundas-feiras,<br />
sábados, domingos, os dias da semana se sucedem e, mesmo que a palavra<br />
não saia, o poema se escreve, e se erige neste paradoxo: “Tentativa 1: eu./<br />
Tentativa 2: neutra./ Tentativa 3: silêncio”.<br />
No caso de Alice Sant’Anna, a palavra sai, a sintaxe das frases joga<br />
com os cortes dos versos e com a ausência de pontuação, produzindo assim<br />
o ritmo de um acontecimento experimentado ou rememorado, como se o<br />
poema filmasse a percepção misturando-se à imaginação, adensando gradativamente<br />
a experiência de leitura. Há, portanto, uma afirmação da poesia<br />
que se encontra com o mundo, este não a ameaça. O lirismo, novamente,<br />
paga um preço: dessa vez, o da imprecisão (onde, quando isso acontece?<br />
que jacas são essas?), o do anonimato dos personagens (m. ou d.), o do poeta<br />
invisível (que, ao se encontrar com o próprio assassino: “que pena! que<br />
desencontro! que perda!/ ela não mora mais aqui”). Estratégias, enfim, de<br />
preservação da voz. Não à toa impressionam mais os poemas que não necessitam<br />
desfigurar uma paisagem conhecida, uma lembrança familiar, uma<br />
viagem de trem pela Europa, pois, neles, a voz consiste na figuração precisa<br />
de um evento que não se enquadra na moldura da memória de um sujeito. É<br />
o caso do poema Há aquilo que fica firme (um poste), que termina:<br />
mas há também o que se movimenta<br />
rápido demais na moldura da janela: um pássaro<br />
sempre pode ser uma andorinha ou uma águia<br />
e um avião nunca sabemos<br />
de onde parte para onde segue<br />
Pois parece ser essa indeterminação de origem e destino, para quem vê<br />
o avião no céu, o horizonte de beleza desses versos, dessa voz.<br />
☞<br />
Leia Emília<br />
Revista digital de leitura e literatura para crianças e jovens<br />
www.revistaemilia.com.br
169 • maio_ 2014<br />
7<br />
Literatura<br />
Lucila Wroblewski<br />
crua e<br />
urgente<br />
O AUTOR<br />
André<br />
Sant’Anna<br />
Em O BRASIL É BOM, André Sant’Anna mostra<br />
o valor da ironia em tempos de tensão social<br />
: : Guilherme Pavarin<br />
São Paulo – SP<br />
Pudera, enquanto resenho,<br />
ser visto de terno e tom sisudo,<br />
pela tevê. Se me permitissem,<br />
pediria emprestado<br />
a voz de apresentador de um<br />
desses programas de crimes/entretenimento,<br />
cercado de helicópteros,<br />
choro e berros, urgente. Não estranhe<br />
além do necessário. Peço, por<br />
um parágrafo, o alarmismo. A cena,<br />
imagine: nossa aeronave sobrevoa<br />
um vilarejo miserável. Imagens, eu<br />
pediria. Me dê imagens desse absurdo!<br />
O que vocês verão – pausa;<br />
tiro os óculos, preocupado; esfrego<br />
os olhos – é impressionante. Corta<br />
para lá, gritaria. Na tela!<br />
Seria a vez de apresentar os<br />
personagens, os entrevistados: o<br />
comunista de classe-média que<br />
odeia a classe C por invadir sua<br />
praia com carros, som alto e algazarra;<br />
o nacionalista que culpa o<br />
direitos humanos pelo atraso do<br />
país; o fã de futebol que atribui o<br />
sucesso da seleção de 70 à ditadura;<br />
aquele que se sentencia superior<br />
por ouvir jazz e planejar “uma<br />
viagem inesquecível para uma ilha<br />
na Indonésia que só ele conhece”;<br />
o torcedor cuja terapia é transferir<br />
as frustrações para o time do coração;<br />
o pastor falso otimista em<br />
busca do dízimo, entre outros. Um<br />
a um, eles discursam em primeira<br />
pessoa, com o aspecto sóbrio, de<br />
quem tem consigo a segurança de<br />
um futuro melhor. São, afirmam, a<br />
reserva moral do país.<br />
Intercalados, esses homens e<br />
mulheres que poderiam participar<br />
de qualquer programa televisivo<br />
sensacionalista são, a bem dizer,<br />
alguns dos protagonistas dos contos<br />
de O Brasil é bom, do mineiro<br />
André Sant’Anna. Cheios de vícios<br />
de linguagem, opinam sobre os<br />
problemas nacionais por meio de<br />
ideias confusas, contraditórias, preconceituosas<br />
e mal ruminadas. Portam-se<br />
como se educados por uma<br />
cultura violenta de mídia, aquela<br />
em que o porta-voz – a exemplo do<br />
tal apresentador eufórico evocado<br />
linhas acima – ensina que a truculência<br />
e o pragmatismo radical<br />
os tornam mais esclarecidos, “de<br />
bem” e ativos em seus meios. Eles<br />
falam mal, muito mal.<br />
A intenção de Sant’Anna é<br />
clara: mostrar, via clichês oratórios<br />
e frases feitas, que conhecemos<br />
alguém com discurso similar. A<br />
missão é bem-sucedida. Os contos<br />
inaugurais são desenvolvidos por<br />
meio de pensamentos tolos e imperativos<br />
que costumam pulular por<br />
redes sociais, propagandas e comentários<br />
de notícias, a exemplo de<br />
“consuma produto nacional”, “basta<br />
que cada um faça sua parte” e,<br />
como sugere o sarcástico título do<br />
livro, “o Brasil não é ruim”. O efeito<br />
é dum cinismo progressivo que<br />
chega ao ponto máximo no conto<br />
O que será que passa na cabeça de<br />
um sujeito nessas condições?, cujo<br />
interlocutor é um esquizofrênico,<br />
que, mesmo incapaz de seguir uma<br />
lógica, dispara, entre delírios e teorias<br />
desconexas, lugares-comuns<br />
como “é preciso haver uma hierarquia”,<br />
“separar o joio do trigo”,<br />
e impropérios como “não gosto de<br />
neguinha”. Não há muita diferença,<br />
sugere Sant’Anna, entre as ideias<br />
atordoadas de um doente mental e<br />
um homem são da classe-média.<br />
Como mostra desde o lançamento<br />
de Amor (1998), que acaba<br />
de ser relançado pela Oito e Meio, e<br />
Sexo (1999), o autor sabe destrinchar<br />
como poucos a inconsistência<br />
das atuais reflexões sobre a sociedade<br />
brasileira. Parte disso pode<br />
ser explicada pelo seu ofício fora da<br />
literatura. Redator de publicidade,<br />
André Sant’Anna tem, segundo seu<br />
currículo online, larga experiência<br />
com marketing político. Não é exagero<br />
concluir que, desse processo de<br />
maquiar a realidade, de inserir elementos<br />
persuasivos em campanhas,<br />
por vezes de modo forçoso e artificial,<br />
o autor tenha se armado para<br />
realizar o movimento inverso, de<br />
desnudamento. O material cru — os<br />
fatos, a opinião popular, a semiótica<br />
destrinchada — está ao seu alcance,<br />
pronto para ser reconstruído. A subversão,<br />
para ele, se torna uma via<br />
dupla: como publicitário, Sant’Anna<br />
joga a favor dos partidos, dos clientes;<br />
como escritor, contra todos.<br />
O Brasil é bom<br />
André Sant’Anna<br />
Companhia das Letras<br />
190 págs.<br />
LEIA TAMBÉM<br />
Amor<br />
André Sant’Anna<br />
Oito e meio<br />
92 págs.<br />
A ironia como<br />
gás lacrimogênio<br />
Não há, na produção literária<br />
de Sant’Anna, quem escape da<br />
ironia corrosiva. Políticos, pobres,<br />
ricos, empresários, hippies, todos<br />
são colocados na lupa do ridículo e<br />
da falta (ou do excesso) de sentido.<br />
E o mérito do mineiro é saber inserir<br />
essa técnica discursiva em uma escrita<br />
sincera, direta. Sua ironia não é<br />
vazia — a tal ironia pela ironia, a qual<br />
tantos críticos culturais americanos<br />
se opõem. A ironia de Sant’Anna<br />
tem meio (estilo) e finalidade (mensagem<br />
crítica). É sua poética.<br />
Faz-se necessário um contexto.<br />
Para muitos ensaístas e pensadores<br />
da cultura atual, a ironia não<br />
passa de um escudo, um fácil mecanismo<br />
de defesa que permite ao<br />
artista se isolar num lugar seguro:<br />
acima da inocência do mundano e,<br />
por outro lado, longe do sublime,<br />
duma obra sincera e redentora. De<br />
uns anos para cá, vê-se um apelo<br />
por uma arte nova, capaz de evoluir<br />
sem a interferência da ironia vazia<br />
e do niilismo que assola muitos autores<br />
pós-modernos. A literatura,<br />
ressalta(ra)m escritores como David<br />
Foster Wallace (1962 – 2008),<br />
deve se aproximar mais da criação<br />
do que da destruição; deve elevar o<br />
espírito humano, não rebaixá-lo.<br />
Nenhum amante das artes<br />
questionaria tal preceito. Mas a<br />
questão é que a ironia de Sant’Anna<br />
faz sentido no momento de tensões<br />
sociais e culturais em que se<br />
encontra o Brasil, esse país que<br />
não é ruim. É evidente, na obra do<br />
mineiro, como a ironia funciona<br />
para criar um processo dialético,<br />
uma construção e uma suspensão<br />
permanentes, resultantes da contradição.<br />
Com a ironia, abre-se,<br />
para citar Hegel (e deixar essa resenha<br />
mais prepotente, desculpe),<br />
a possibilidade de mostrar que uma<br />
realidade sem valor não pode ser<br />
tomada a sério, e deve ser a todo<br />
momento invertida e pervertida.<br />
Eis o efeito o que o autor busca em<br />
cada conto ao falar de um esquerdista<br />
que se sente incomodado por<br />
pobres ou de um homem que não<br />
suporta os direitos do outro: subverter,<br />
anular, apontar para a negatividade<br />
impregnada no pensamento<br />
do brasileiro, seja lá sua classe.<br />
Talvez a melhor definição da<br />
ambivalência desse tipo de ironia<br />
tenha sido proferida pelo crítico<br />
cultural americano Lewis Hyde. Ele<br />
diz: “a ironia só tem emprego emergencial.<br />
Com o tempo, ela se torna a<br />
voz do enjaulado que passou a gostar<br />
da cela”. No caso de Sant’Anna,<br />
lemos uma ironia urgente. O autor<br />
revela isso ao exibir o turbulento<br />
cenário político e social brasileiro:<br />
o consumo como forma de inclusão<br />
social, a educação pífia, uma nação<br />
de comentaristas que quase não lê,<br />
a cega busca por ídolos na fé e no<br />
esporte, os protestos difusos, o poder<br />
de compra como indicador de<br />
felicidade, entre outras críticas diretas<br />
e retas, que não exigem esforços<br />
de interpretação. Não há meio<br />
melhor para tratar desses temas do<br />
que um jogo de oposições, contrastes<br />
e sarcasmo. O trunfo, aqui, é<br />
conseguir fazê-lo por meio de uma<br />
escrita franca, imediata.<br />
E o recurso irônico-emergente<br />
de Sant’Anna não está só no conteúdo.<br />
A forma como ele constrói<br />
seus contos, com erros de grafia e<br />
concordância, pouco vocabulário,<br />
raciocínios tacanhos e idas e voltas<br />
de trechos revela uma emergência<br />
dentro da própria literatura. É quase<br />
um manifesto contra o escrever<br />
bem onde mal se lê. Trata-se de<br />
uma produção literária de guerra,<br />
para não dizer de protesto. Uma<br />
tentativa rápida de conscientizar o<br />
leitor desses tempos de homens e<br />
discursos partidos.<br />
O estilo cru e a<br />
poesia desleixada<br />
No meio do fogo cruzado, o<br />
grande mérito de Sant’Anna é não<br />
se ater à ironia; com habilidade, ele<br />
consegue em alguns textos elevar o<br />
humor cáustico à poesia, ao sublime.<br />
Fica evidente em contos como o<br />
excelente Lodaçal, que já havia sido<br />
publicado pela mesma Companhia,<br />
no volume Essa história está diferente<br />
– Dez contos para canções<br />
de Chico Buarque, inspirada<br />
na música Brejo da Cruz, uma crítica<br />
à fome e à miséria infantil, tema ao<br />
qual Sant’Anna se mantém fiel.<br />
No conto, os pequenos Chiquinho<br />
e Toninho, dois meninos<br />
do Brejo da Cruz que não têm o<br />
que comer, fumam charutos de<br />
maconha sob o luar e imaginam<br />
como seria o mundo fora dali, “da<br />
aldeia”, “do lodaçal”. Eles vão se<br />
transfigurando em personagens urbanos<br />
e deslocados, vários Chiquinhos<br />
e Toninhos da cidade, como o<br />
peão-de-obra, o valentão do bar, o<br />
mendigo, o ator homossexual nordestino,<br />
o lateral-direito que passa<br />
despercebido por times pequenos,<br />
o jornalista de baixa autoestima<br />
que não sabe interagir com os mais<br />
abastados, o policial embrutecido,<br />
o ladrão maconheiro, o evangélico<br />
inerte, o homem que aparece na televisão<br />
sem saber por quê<br />
O Chiquinho na televisão,<br />
num programa de televisão que<br />
o Chiquinho nunca tinha visto, o<br />
Chiquinho no programa de tarde<br />
sendo ridicularizado pelo apresentador<br />
por ter desafinado demais<br />
quando tentou cantar aquela<br />
música do Chico Buarque. O apresentador<br />
do programa de televisão<br />
ainda deu um chute na bunda<br />
do Chiquinho, assim, bem de leve,<br />
só de brincadeira, antes do Chiquinho<br />
sair do palco meio envergonhado,<br />
meio achando legal ter<br />
aparecido na televisão.<br />
Há diversas passagens em que<br />
Sant’Anna transforma a forma irônica<br />
em conteúdo sentimental – uma<br />
sensação poderosa porém nunca<br />
muito clara ou bem definida. O leitor<br />
se constrange com a decadência<br />
dos personagens e, em certos momentos,<br />
consegue também se inspirar<br />
com a criação do autor. Poderia<br />
chamar a técnica de ironia rica, que<br />
gera efeito poético e reflexão. É uma<br />
expressão arriscada e bem por isso<br />
valiosa – maldita, ácida e bela.<br />
Outra característica forte<br />
mantida por Sant’Anna é que a noção<br />
de espaço se dá por nomes de<br />
Nasceu em 1964, em<br />
Belo Horizonte (MG).<br />
É músico, roteirista,<br />
publicitário e escritor.<br />
Filho do também<br />
escritor Sérgio<br />
Sant’Anna, cresceu<br />
no Rio de Janeiro,<br />
onde tocou no grupo<br />
musical Tao e Qual<br />
durante a década de<br />
80, e hoje mora em<br />
São Paulo. Estreou na<br />
literatura como livro<br />
Amor, de 1998, e<br />
depois publicou Sexo,<br />
em 1999, ambos de<br />
contos. Em 2006, lançou<br />
seu primeiro e único<br />
romance, O paraíso<br />
é bem bacana, e,<br />
em 2009, lançou<br />
Inverdades, de contos.<br />
lugares conhecidos, sem descrições<br />
pormenorizadas: o andaime, a Baía<br />
de Guanabara, o trânsito, a portaria,<br />
o brejo, o estádio. Se na perspectiva<br />
romântica, a atmosfera acontece<br />
pela ausência de detalhes, no estilo<br />
de Sant’Anna, ultrarrealista, o clima<br />
dos contos ocorre por meio de<br />
traços descritivos desleixados, carregados<br />
de sentidos amplos, como<br />
“uma cara meio assim, pensando,<br />
babando, muito triste poesia”. A<br />
técnica, quase uma camuflagem,<br />
um esforço para não coser demais<br />
o texto, tem efeito particularmente<br />
eficaz e devastador em contos de temática<br />
político-social. Outra vez, é<br />
o meio como mensagem.<br />
A repetição. A repetição.<br />
O leitor de primeira viagem<br />
talvez estranhe o número de vezes<br />
que uma mesma palavra é escrita<br />
numa página. Não se trata de<br />
maneirismo. A repetição é quem<br />
articula as tramas de Sant’Anna.<br />
Nomes e situações são repetidos à<br />
exaustão. Um traço traz de volta<br />
outros traços. Como um jazz, o movimento<br />
é circular, não-linear, musical.<br />
Há também um componente<br />
estético aí: a repetição carrega um<br />
estigma de tédio, de um tempo em<br />
que os discursos não se desenrolam<br />
com facilidade. Sant’Anna<br />
brinca com isso o tempo todo e<br />
tem, como auge dessa experimentação,<br />
o livro Sexo, em que longos<br />
parágrafos são repetidos com pouca<br />
ou nenhuma mudança de palavras.<br />
Como quem diz: a vida segue<br />
– repetindo-se, engessada.<br />
O grande defeito de O Brasil<br />
é bom é, por certo, a expectativa.<br />
O leitor de outras viagens talvez<br />
esperasse mais. Melhor: talvez esperasse<br />
se surpreender mais. Por<br />
mais que Sant’Anna reforce sua voz<br />
e seu estilo, não se nota evolução<br />
de seus trabalhos anteriores para<br />
cá. A fórmula é a mesma dos seus<br />
lançamentos anteriores de narrativas<br />
curtas. O melhor conto do livro,<br />
vale lembrar, não é inédito, fora publicado<br />
em 2010. Seria interessante<br />
que o autor procurasse equilibrar<br />
mais seu inegável talento estilístico<br />
com narrativas que apostam no<br />
sublime, como Lodaçal, e/ou pessoais,<br />
como o belo relato A história<br />
do futebol, em que ele, o próprio<br />
André, conta sua história ao se metamorfosear<br />
em craques como Jairzinho,<br />
Manfrini e Rivelino.<br />
Talvez a razão para não se<br />
notar um crescimento do autor no<br />
livro seja a urgência de publicar o<br />
livro. É de se compreender.<br />
Sant’Anna é sem dúvida uma<br />
das vozes mais originais da literatura<br />
nacional. Precisa ser ouvido.<br />
E, para isso, precisa falar e, sobretudo,<br />
voltar a se arriscar mais.
8<br />
169 • maio_ 2014<br />
INQUÉRITO : : Godofredo de Oliveira Neto<br />
Direto do beco<br />
QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />
Alguns versos, ao descobrir o amor na préadolescência,<br />
foram combustível suficiente<br />
para o catarinense Godofredo de Oliveira<br />
Neto voltar-se para a literatura. Nasceu<br />
em Blumenau (SC), em 1951. Começou a ler cedo,<br />
entre 13 ou 14 anos. Sempre hábil em português,<br />
quando estava no cursinho, passou por uma situação<br />
que definiria seu futuro acadêmico: uma redação<br />
não foi bem aceita devido ao conteúdo e o jovem<br />
autor precisou prestar contas com a polícia. Na<br />
universidade, foi chamado duas vezes a depor. O<br />
clima já começava a ficar pesado, e Godofredo via<br />
seus amigos apreensivos; uma amiga, inclusive,<br />
desapareceu. Para alguém que considera a literatura<br />
sinônimo de libertação, o que poderia ser pior do<br />
que estar vivendo a opressão da ditadura? Infeliz<br />
com a situação, partiu para França. Em Paris, na<br />
década de 1970, graduou-se e virou mestre em<br />
Letras pela Universidade da Sorbonne. De volta ao<br />
Brasil, instalou-se no Rio de Janeiro (RJ), onde se<br />
tornou Doutor em Letras pela UFRJ. Seu primeiro<br />
é livro Faina de jurema, de 1981. Entre outros,<br />
é também autor de Menino oculto (premiado<br />
no Jabuti 2006), Amores exilados (lançado<br />
originalmente em 1997 como Pedaço de santo)<br />
e O bruxo do contestado (1996). A ficcionista<br />
(2013) é seu romance mais recente. Atualmente,<br />
vive no Rio de Janeiro e leciona na UFRJ.<br />
COLUNISTAS<br />
ENSAIOS E RESENHAS<br />
DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />
RES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />
• Quando se deu conta de que queria ser escritora?<br />
O poder de ilusão está na cabeça de todo mundo, todo mundo<br />
escreve ou escreveu. O mais comum é o poeminha quando da<br />
descoberta do amor na pré-adolescência. Também comecei assim.<br />
Depois a vida vai te levando para becos e ruelas decisivos<br />
ou não para ações futuras, como ser escritor. Depende então<br />
dessas estradas. Os meus becos me levaram para a escrita desde<br />
muito cedo. Vida leva eu!<br />
• Quais são suas manias e obsessões literárias?<br />
Nunca perder de vista que a obra literária não é um documento.<br />
A emoção estética deve ter prioridade. Daí a gente pode<br />
buscar a verdade histórica. A obsessão é fazer de tudo para<br />
não cair no redemoinho do real, que puxa a gente com força<br />
pra baixo. Abraço do real é abraço de afogado!<br />
• Que leitura é imprescindível no seu dia-a-dia?<br />
A leitura do real — jornais e revistas — e romances e textos<br />
teóricos que mostram a ausência do mundo como o verdadeiro<br />
mundo. Leio um dia sim e o outro também trechos da obra<br />
de Proust. Tenho uma edição maravilhosa, da Gallimard, de<br />
2.500 páginas num só volume, que cabe numa só mão, papel<br />
superfininho. Proust ao alcance das mãos!<br />
• Se pudesse recomendar um livro à presidente Dilma,<br />
qual seria?<br />
S. Bernardo, de Graciliano Ramos. Ela veria que Paulo Honório,<br />
o narrador, apesar de sair vitorioso como gestor de uma<br />
fazenda, é depressivo e angustiado. É que não dá para ser feliz<br />
sozinho!<br />
• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?<br />
Espaço de muita paz às vezes, espaço de música alta e vinho<br />
por outra, muita emoção invariavelmente. Tem que chorar,<br />
rir, se excitar, se apavorar, se emocionar com o próprio texto.<br />
Mas nem sempre a gente consegue.<br />
• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?<br />
Luz não natural. O sol maravilhoso é para brincar de castelinho<br />
de areia, de balde e pazinha na praia de Piçarras; ou em<br />
Camboriú, em Santa Catarina, antes de se tornar Hong Kong.<br />
• O que considera um dia de trabalho produtivo?<br />
Quando a personalidade de artista vence o simples indivíduo.<br />
Se tiver conseguido, beleza.<br />
• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?<br />
Ler o parágrafo que acaba de escrever e achar que o texto não<br />
é teu.<br />
• Qual o maior inimigo de um escritor?<br />
É deixar a memória racional se sobrepujar à memória involuntária.<br />
Perfumes, sons, tocares ou paladares é que te fazem<br />
encontrar o eu mais profundo.<br />
• O que mais lhe incomoda no meio literário?<br />
F.P. (fofocas e perfídias).<br />
• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.<br />
Cruz e Sousa. O racismo no início e o equívoco interpretativo<br />
cometido pelo movimento negro mais tarde quase destroem a<br />
literatura de um dos maiores escritores brasileiros (mas já está<br />
havendo uma reabilitação do genial simbolista).<br />
• Um livro imprescindível e um descartável.<br />
Madame Bovary, de Flaubert, e, como descarte, todos os livros<br />
de autoajuda.<br />
• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um<br />
livro?<br />
Escrever pensando na opinião dos colegas escritores. É letal<br />
para a obra.<br />
• Que assunto nunca entraria em sua literatura?<br />
Qualquer tema que visasse, conscientemente, alterar a ordem<br />
moral ou histórica do leitor visto como um bobinho. Mas a literatura<br />
denuncia sempre as representações ideológicas que<br />
aparecem na linguagem comum, como clichês, preconceitos,<br />
ideologias, dogmas, etc.<br />
• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?<br />
Canto? Meu cantinho ou minha música? Se for meu canto é o<br />
Vale do Itajaí, em Santa Catarina, o único universo que existe.<br />
Se for música, hoje foi I put a spell on you, do Creedence, outro<br />
dia foram os Beatles, Stones, Chico, Gil, Caetano, Paulinho<br />
da Viola, outro ainda The Cure. Em horas introspectivas, Beethoven<br />
e Chopin misturados com Villa Lobos. Eles estão todos<br />
ali quietinhos no Menino oculto.<br />
• Quando a inspiração não vem...<br />
Se trabalhar e suar e se angustiar, ela vem. A voz interior surge<br />
do nada, cavernosa, ditando regras e passando sabão na gente.<br />
• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar<br />
para um café?<br />
O Graciliano autor do S. Bernardo, talvez o maior romance<br />
da literatura brasileira, junto com Brás Cubas, do Machado,<br />
e Grande sertão, do Rosa.<br />
• O que é um bom leitor?<br />
O que se deixa levar pela onda da narrativa. Daí ele vai entender<br />
que a literatura é sinônimo de liberdade, já que ela traz<br />
para o palco iluminado a ilusão consentida. Me lembrei do<br />
Nelson Rodrigues sobre o dinheiro: o dinheiro compra tudo,<br />
até amor sincero! A literatura também.<br />
• O que te dá medo?<br />
Medo de acordar e não ter mais utopias.<br />
• O que te faz feliz?<br />
Construir algo que seja menos a singularidade do eu e mais a<br />
libertação da palavra e do desejo de todos.<br />
• Qual dúvida ou certeza guia seu trabalho?
Realização
10<br />
169 • maio_ 2014<br />
Pássaro de fogo<br />
Artista múltiplo e rebelde, Torquato Neto completaria 70 anos em novembro<br />
: : Paulo Andrade<br />
Araraquara – SP<br />
Neste ano Torquato Neto<br />
completaria 70 anos. O<br />
poeta, nascido em Teresina<br />
(PI) em 9 de novembro<br />
de 1944, cometeu suicídio<br />
na madrugada da data de seu aniversário<br />
em 1972. Às vezes me pergunto,<br />
sem resposta, como o anjo<br />
louco da Tropicália circularia neste<br />
espaço contemporâneo se não tivesse<br />
cometido suicídio. Continuaria<br />
sendo o poeta inadaptado à realidade<br />
e que desafinava o coro dos<br />
contentes ou seria engolido pela<br />
máquina da indústria cultural?<br />
Olhando em retrospectiva<br />
a vida e a obra de Torquato Neto,<br />
nota-se que em seus 28 anos de<br />
existência, ele lidou com diferentes<br />
linguagens: poesia, letra de música,<br />
cinema, televisão, jornal, atuando,<br />
inclusive, em vários veículos<br />
de comunicação.<br />
O livro Os últimos dias de<br />
paupéria, organizado, postumamente,<br />
pela viúva Ana Maria Silva<br />
Duarte e pelo amigo Waly Salomão,<br />
oferece ao leitor um conjunto<br />
de poemas e escritos que vão<br />
do lirismo sensível e intimista à<br />
parodia tropicalista, até atingir,<br />
pós-68, níveis radicais de experimentalismo<br />
construtivo.<br />
A sua obra composta por poemas,<br />
letras de música, textos jornalísticos,<br />
anotações de diários do sanatório<br />
e experiências não verbais,<br />
parece documentos autônomos,<br />
mas em essência, os textos se complementam<br />
e constituem forte unidade<br />
interna. Seus escritos são registros<br />
de um diálogo permanente<br />
entre vida e arte e estão inseridos<br />
num amplo projeto de contestação<br />
da sociedade dos anos 60/70.<br />
Em todas as áreas que atuou,<br />
Torquato manteve uma atitude de<br />
resistência, assumindo seu inconformismo.<br />
Foi um defensor do cinema<br />
super-8, por, além de barato<br />
e fácil de manusear, sua linguagem<br />
permitir um testemunho vivo da<br />
realidade, diferente das produções<br />
que contavam a história “oficial” em<br />
filmes subsidiados pelo governo.<br />
Todas as frentes as quais Torquato<br />
aderiu apontaram um desejo<br />
vital e dramático de registrar com<br />
invenção e inconformismo o contexto<br />
de sua época.<br />
O poeta da canção<br />
Torquato aderiu ao Tropicalismo<br />
transformando-se num dos<br />
seus principais articulistas, por<br />
meio dos manifestos, roteiros de espetáculos<br />
letras de música. Entre as<br />
contribuições do movimento para a<br />
cultura brasileira, destaca-se a síntese<br />
entre música e poesia. Apesar<br />
de o movimento ter promovido intenso<br />
diálogo com as artes plásticas<br />
(Rubens Gerchman, Hélio Oiticica,<br />
Lígia Clark), o cinema (Glauber Rocha),<br />
o teatro (José Celso), é na música<br />
popular que emerge sua força,<br />
já que seus protagonistas eram músicos<br />
ou poetas-letristas.<br />
Entre os avanços estéticos<br />
trazidos pelos tropicalistas, em 67-<br />
68, destacam-se a vinculação entre<br />
texto e melodia, o domínio da entoação,<br />
elaborando conexões entre a<br />
dicção, o modo de cantar e a sonoridade.<br />
Muitos textos de Torquato<br />
Neto foram escritos para serem<br />
cantados dentro desse clima. Ele<br />
retoma uma tradição da oralidade<br />
e utilizou muitos recursos da literatura<br />
de cordel, da qual o poeta era<br />
leitor e colecionador.<br />
No depoimento concedido<br />
a Tárik de Souza, (1984), ao disco<br />
O poeta desfolha a bandeira, Gilberto<br />
Gil, seu principal parceiro,<br />
conta que Torquato, apesar de cantar<br />
muito mal e não tocar nenhum<br />
instrumento, “era muito musical”:<br />
“O Torquato, quase sempre, vinha<br />
Torquato Neto por Robson Vilalba<br />
O AUTOR<br />
Torquato Neto<br />
Nasceu em 9 de novembro de<br />
1944, em Teresina (PI). Estudou<br />
no Colégio dos Irmãos Maristas,<br />
onde conheceu Caetano Veloso<br />
e, por meio deste, Gilberto Gil,<br />
Carlos Capinam, Maria Bethânia,<br />
Gal Costa, Duda Machado, entre<br />
outros. O cinema era o centro<br />
de interesse da turma. Desistiu<br />
de tentar a carreira de diplomata<br />
e decide-se mudar para o Rio<br />
de Janeiro, em 1962, para cursar<br />
Jornalismo. É aprovado no<br />
vestibular na Universidade do<br />
Brasil (hoje a UFRJ). Mas desistiu<br />
do curso no segundo ano. Em 9<br />
de novembro de 1972, sai com<br />
os amigos para comemorar o<br />
aniversário num restaurante.<br />
Voltaram para casa às 4h30.<br />
Quando sua mulher vai dormir,<br />
Torquato veda todas as saídas<br />
de ar do banheiro, abre o gás<br />
do aquecedor, e escreve um<br />
bilhete num caderno espiral<br />
enquanto espera a morte.<br />
A biografia de<br />
Torquato Neto<br />
Toninho Vaz<br />
Nossa Cultura<br />
408 págs.<br />
com o poema completo, como Geleia<br />
geral. Não mudei uma vírgula,<br />
já veio eletrificado”.<br />
A maioria das suas letras possui<br />
uma força visceral quando cantadas,<br />
a exemplo de Nenhuma dor, Mamãe,<br />
coragem, Três da madrugada, Todo<br />
o dia é dia D, A rua, Louvação, Deus<br />
vos salve a casa santa, Lets’play that,<br />
cantadas por Gal Costa, Gilberto Gil,<br />
Caetano Veloso, Edu Lobo, Jards Macalé,<br />
entre outros.<br />
O roteirista<br />
da Tropicália<br />
O Tropicalismo provocou um<br />
deslocamento da contestação política<br />
para o espaço cultural e artístico.<br />
Conscientes do substrato ideológico<br />
que subjaz todo discurso, o<br />
grupo baiano via com desconfiança<br />
qualquer modelo político ou cultural<br />
capaz de superar a exploração<br />
do homem pelo homem.<br />
Adotando um humor tragicômico<br />
e uma atitude anárquica,<br />
a proposta de intervenção cultural<br />
tropicalista acabou por configurar<br />
um painel histórico do país, por<br />
meio de citações, jargões, fragmentos<br />
de discursos. Uma das letras-<br />
-síntese da imagem tropicalista do<br />
Brasil é Geleia geral, musicado por<br />
Gilberto Gil. A expressão foi cunhada<br />
por Décio Pignatari: “na geléia<br />
geral brasileira, alguém deveria<br />
exercer a função de medula e osso”.<br />
Ao construir um panorama<br />
crítico do país, por meio da justaposição<br />
de imagens díspares (o<br />
bumba-meu-boi, a mass media, o<br />
jornal, a cultura pop, o folclore),<br />
os versos evitam qualquer tentativa<br />
de conciliação ou unificação<br />
das diferenças, assumindo as contradições,<br />
tanto como elementos<br />
constitutivos da estética do grupo,<br />
quanto para criticar o discurso nacionalista<br />
e os clichês ufanistas.<br />
Retomando o viés crítico dos<br />
modernistas de 22, Torquato atualiza<br />
a leitura das contradições entre<br />
a cultura popular e a cultura urbana<br />
e sofisticada. Com justaposição de<br />
imagens opostas, o poeta desenha<br />
o cenário cultural antropofágico<br />
do Brasil: “formiplac e céu de anil”,<br />
referência à indústria e à natureza<br />
nacional, “carne seca na janela”, ou<br />
faz alusão ao período da pré-colonização<br />
(“tumbadora na selva selvagem/<br />
pindorama, país do futuro”).<br />
Este último constitui uma das<br />
sínteses da contradição arcaico/<br />
moderno. Pindorama, mito edênico,<br />
citado várias vezes no Manifesto<br />
Antropofágico, é o nome pelo qual<br />
os índios tupi-guarani se referiam<br />
ao Brasil, já a locução adjetiva “país<br />
do futuro”, reforça a galeria de estereótipos<br />
nacionais.<br />
Geleia geral parodia ainda o<br />
Hino à Bandeira, Gonçalves Dias<br />
e faz referência aos escritos oswaldianos<br />
— “a alegria é a prova dos<br />
nove” e “Brutalidade Jardim”. A<br />
bricolagem é enfatizada no refrão<br />
“ê bumba iê, iê, boi”, uma fusão de<br />
dança folclórica e o ritmo do iê-iê-<br />
-iê. Imagem permanente do conflito,<br />
do contraste das linguagens.<br />
Já Marginália II (letra de Torquato,<br />
musicada por Gil), também<br />
funde as raízes do popular e do erudito.<br />
O resultado é uma riqueza de<br />
sonoridade, proporcionada pelos<br />
instrumentos populares (triângulo,<br />
flautas de pífano) e eruditos (metais,<br />
violinos e clarineta). O ritmo nordestino<br />
contrapõe-se à “exuberância”<br />
dos arranjos de influência clássica,<br />
do maestro Rogério Duprat.<br />
A cronista da<br />
geleia geral<br />
Como jornalista, foi um crítico<br />
combativo na coluna “Geleia<br />
Geral”, do jornal Última Hora, entre<br />
71 e 72, atacando o pacto do cinema<br />
com a ordem político-social<br />
no início da década, em especial<br />
as produções de filmes históricos,<br />
eficazes para contar a história do<br />
ponto de vista oficial. Seus principais<br />
alvos foram Carlos Diegues e<br />
Gustavo Dahl que, em 71, vinculavam<br />
seus filmes a uma linguagem<br />
do espetáculo: com as superproduções<br />
históricas, patrocinadas pela<br />
Embrafilme, transformavam o cinema<br />
em mera diversão.<br />
O cronista escreve a partir das<br />
margens, criando espaços de resistência<br />
dentro do sistema. Reiteram-se,<br />
em seus textos as palavras<br />
de ordem para continuar “ocupando<br />
espaços”, numa época em que<br />
os espaços estavam cada vez mais<br />
restritos e proibidos. Na coluna de<br />
30 de novembro de 1971, o cronista<br />
dirigia-se ao leitor, ensinando-o<br />
a “ocupar espaços”, infiltrando-se,<br />
“pelas brechas”, minando o sistema<br />
pelos seus interstícios. “Ocupar<br />
espaço, (...) Não tem nada a ver<br />
com subterrânea (num sentido literal),<br />
e está mesmo pela superfície,<br />
de noite e com muito veneno.”<br />
Navilouca: o diálogo<br />
entre as artes<br />
Outra publicação valiosa para<br />
entender o período pós-68 é a revista<br />
Navilouca, organizada e coordenada<br />
por Torquato Neto e Waly Salomão.<br />
Tendo como subtítulo “Almanaque<br />
dos Aqualoucos”, foi publicada em<br />
1974, dois anos após a sua morte,<br />
reunindo trabalhos do próprio Torquato,<br />
Rogério Duarte, Waly Salomão,<br />
Duda Machado, Jorge Salomão,<br />
Stephen Berg, Luis Otávio Pimentel,<br />
Óscar Ramos, Luciano Figueiredo,<br />
Chacal, Ivan Cardoso, Caetano Veloso,<br />
dos irmãos Campos, Décio Pignatari,<br />
Hélio Oiticica e Lygia Clark.<br />
O nome da publicação foi sugerido<br />
pela Stultifera Navis, a Nau<br />
dos Loucos, barco que na Idade<br />
Média passava nas cidades banhadas<br />
pelo Rio Reno, recolhendo os<br />
idiotas da família e os loucos, para<br />
“desaguarem” ninguém sabe onde.<br />
O projeto da Navilouca exprime<br />
esta ideia: recolher os artistas e<br />
a intelectualidade desgarrada, à<br />
margem, daquele momento.<br />
Navilouca mescla rigor construtivo<br />
com uma arte mais “suja”<br />
em seu projeto gráfico. A intenção<br />
era promover uma metamorfose<br />
entre todas as artes experimentais,<br />
posições estéticas e comportamentos,<br />
sinalizando assim a virada da<br />
década (60/70).<br />
A linguagem dos ensaios “teóricos”<br />
da revista também é experimental,<br />
com ausência de pontuação,<br />
mistura de fontes entre outras<br />
“infrações linguísticas”. O artista<br />
plástico Hélio Oiticica defende num<br />
artigo a desintegração dos “conceitos<br />
de pintura escultura obra (de<br />
arte) acabada display contemplação<br />
lineariedade”. Já que o experimental<br />
não tem fronteiras — “os fios<br />
soltos do experimental são energias<br />
que brotam para um número aberto<br />
de possibilidades?”, conclui.<br />
O poeta rebelde<br />
Torquato Neto não apenas<br />
internalizou os problemas e as<br />
tensões político-sociais dos anos<br />
60/70, mas viveu atormentado pelos<br />
próprios fantasmas interiores,<br />
traduzidos em seu modo particular<br />
de ver e sentir o mundo. Encontramos<br />
na obra do poeta piauiense a<br />
representação do estilhaçamento<br />
que, por entre caminhos e descaminhos,<br />
arrisca-se à palavra escrita<br />
como resistência. Posicionando-se<br />
sempre à margem de qualquer tipo<br />
de discurso dominante, o herói rebelde<br />
evita cristalizar o pensamento<br />
com base em alguma ideologia.<br />
Torquato viveu pouco, mas<br />
com intensidade. Por isso, Waly Salomão<br />
definiu a sua trajetória como<br />
“um pássaro de fogo, naquele sentido<br />
de Stravinski, de iluminação<br />
e queima ao mesmo tempo. Uma<br />
dose muito grande de antropofagia<br />
acompanhada de grande intensidade<br />
de autofagia”. A linha fronteiriça<br />
que separa a sua vida e obra é tão sutil<br />
que se torna difícil esta separação.<br />
Essa fragilidade de fronteiras entre<br />
arte/vida ficou mais evidente com<br />
o suicídio, cujos indícios estão em<br />
vários poemas, profetizam a morte<br />
prematura. Muitos textos de Os últimos<br />
dias de paupéria ilustram<br />
a metáfora do jovem poeta abatido<br />
em pleno voo, sina semelhante à de<br />
muitos mitos românticos.<br />
O suicídio tornou possível<br />
uma releitura da obra de Torquato,<br />
como sugere Waly Salomão:<br />
“Muitas vezes escrever um livro ou<br />
fazer um filme representa adiar um<br />
suicídio, mas no caso de Torquato<br />
Neto pode-se afirmar que o suicídio<br />
precedeu e originou a ‘obra’”.<br />
Como poeta, optou por viver<br />
no limite. Nenhum emblema traduz<br />
tão bem esse comportamento<br />
como a imagem do vampiro. Não<br />
por acaso ele encarnou, de modo<br />
provocativo, a figura lendária ao<br />
protagonizar o super-8 Nosferato<br />
no Brasil (1971), de Ivan Cardoso.<br />
Nesse cult pouco conhecido, Torquato<br />
configurou seu destino de<br />
poeta-suicida, reivindicando para<br />
si o mito do vampiro. Depois dessa<br />
atuação, a imagem de maldito ficou<br />
amalgamada à figura do poeta.<br />
Do mito vampiresco, na tela<br />
e na vida, desdobra-se a metáfora<br />
do escorpião, pertencente à mesma<br />
matriz de agressividade e autodestruição.<br />
Nascido sob o signo<br />
de escorpião, o poeta reescreve em<br />
versos o rito de morte que, ao mesmo<br />
tempo, mata e se suicida com o<br />
próprio veneno, quando se vê sem<br />
saída, num círculo de fogo, segundo<br />
a lenda: “um escorpião encravado/<br />
na sua própria ferida/ não escapa; só<br />
escapo pela porta de saída”. No último<br />
verso, se realiza a perfeita fusão<br />
lírica (eu/escorpião), inserindo-se<br />
no poema de forma trágica poesia e<br />
vida: “só escapo pela porta de saída”.<br />
A despedida do poeta remete-<br />
-nos mais uma vez à imagem do escorpião<br />
acuado, enredado entre as<br />
tensões e conflitos internos, ampliados<br />
pelo regime de repressão, que o<br />
tolheu e reduziu sua ação ao universo<br />
individual. Em meio ao círculo<br />
de fogo, o poeta rebelde proclama a<br />
morte como saída, mas permanece<br />
vivo na cultura brasileira.
169 • maio_ 2014<br />
11<br />
NOSSA AMÉRICA, NOSSO TEMPO : : João Cezar de Castro Rocha<br />
Os produtores de texto e a<br />
escrita expressa (final)<br />
QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />
COLUNISTAS<br />
ENSAIOS E RESENHAS<br />
DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />
EDIÇÕES ANTERIORES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />
O dilema<br />
Em debate realizado na Bienal do Livro do Rio<br />
2013, junto com Veronica Stigger e Ricardo<br />
Lísias, o escritor e crítico Evando Nascimento<br />
propôs uma reflexão incontornável acerca<br />
do dilema relativo à cena literária contemporânea: cada<br />
vez mais, o escritor assume uma presença pública indiscriminada<br />
e inédita na vida cultural brasileira. No<br />
entanto, a leitura efetiva de sua obra permanece num<br />
segundo plano desconcertante. Um sintoma perverso:<br />
no local onde o debate ocorreu, devido às peculiaridades<br />
da organização, nenhum livro dos três autores estava<br />
exposto, ou seja, exemplar algum se encontrava<br />
disponível para venda!<br />
Eis um involuntário retrato em branco e preto<br />
do dilema estrutural que ameaça tornar inócua a bem-<br />
-vinda voga dos festivais literários. Afinal, não há atalho<br />
possível: o ato que define a vitalidade de um sistema<br />
literário não é a produção em série de textos, porém a<br />
leitura refletida da tradição e dos contemporâneos.<br />
Compreenda-se, assim, qual é o sentido da novidade<br />
acima referida, pois, sem dúvida, num passado<br />
nem tão distante, escritores ocuparam um espaço relevante<br />
no imaginário nacional.<br />
Dono de uma legião de admiradores, Jorge Amado<br />
sempre fez jus ao nome. Soube por Josélia Aguiar<br />
que os lançamentos do autor de Suor aqueciam o sistema<br />
literário como um todo: editores, livreiros, jornalistas<br />
culturais e leitores aguardavam o novo livro com<br />
grandes expectativas e seu aparecimento fornecia combustível<br />
mesmo para editoras rivais e, sobretudo, para o<br />
circuito das livrarias, cuja frequência aumentava consideravelmente<br />
nas datas próximas ao lançamento.<br />
Erico Verissimo não ficava atrás e poderíamos recordar<br />
inúmeros outros nomes capazes de galvanizar a<br />
vida literária — não desejo, contudo, esboçar uma lista<br />
de autores, mas ponderar um dilema estrutural.<br />
Menciono apenas dois exemplos de romances definitivos,<br />
publicados em 1984: A república dos sonhos,<br />
de Nélida Piñón, e Viva o povo brasileiro, de<br />
João Ubaldo Ribeiro. Ambos os romances desenvolvem<br />
uma linguagem própria para tratar do conjunto da experiência<br />
histórica nos tristes trópicos, oferecendo uma<br />
reflexão de fôlego sobre os impasses e as promessas da<br />
formação da cultura nacional. No instante de seu lançamento,<br />
os dois livros foram saudados como momentos<br />
decisivos na reflexão sobre a sociedade brasileira. A<br />
recepção da crítica e do público reiterou o reconhecimento,<br />
cuja consequência imediata foi a galvanização<br />
da vida literária em torno dos dois títulos.<br />
Então, qual é exatamente a novidade da circunstância<br />
contemporânea?<br />
De um lado, a presença inédita no espaço público de<br />
autores jovens, que ainda não escreveram suas grandes<br />
obras, mas que já circulam em meios variados, incluindo<br />
aí a tradução de seus livros, com uma desenvoltura maior<br />
do que a dos autores consagrados nos anos de 1980, cuja<br />
visibilidade costumava ser um árduo processo, que geralmente<br />
consumia anos de dedicação à escrita e à leitura,<br />
além da adesão metódica aos rituais da vida literária.<br />
De outro lado, a presença indiscriminada dos mesmos<br />
jovens autores em circuitos os mais diversos: claro,<br />
em primeiro lugar, os festivais e encontros literários, mas<br />
também oficinas de escrita criativa; colunas ou eventuais<br />
colaborações para jornais de ampla circulação; participação<br />
em programas de televisão e de rádio; assiduidade<br />
exemplar em blogs, facebook e twitter; escrita de roteiro<br />
para cinema e televisão; circuito de conferências e curadorias<br />
para instituições como Sesc, Senac, CCBB.<br />
(Etc. Etc. Etc. A diversidade de opções é justamente<br />
o ponto a destacar-se no nível atual de profissionalização<br />
da escrita.)<br />
Por fim, um elemento que vale o quanto paga: a<br />
proliferação de prêmios vultosos, muitos deles dirigidos<br />
especialmente para escritores iniciantes.<br />
O resultado mais notável da conjunção desses três<br />
fatores é a possibilidade que escritores jovens têm de<br />
viver exclusivamente de literatura.<br />
Devagar com o andor: eles não vivem de direitos<br />
autorais, porém das inúmeras atividades propiciadas<br />
pela projeção do escritor no espaço público.<br />
Surge a palavra-chave: esse é um espaço propriamente<br />
literário que assoma a esfera pública brasileira<br />
com uma força antes desconhecida. O fenômeno, portanto,<br />
pouco se relaciona com a acepção usual de “vida<br />
literária”. Aliás, tal forma de convívio, definidor sobretudo<br />
da cena oitocentista, embora presente ainda hoje<br />
em certas áreas, estimulou um método de estudo, desenvolvido<br />
por André Billy, e, entre nós, exercido com<br />
brilho por Brito Broca.<br />
Em tese, a cena contemporânea permite a profissionalização<br />
sempre almejada pelos escritores.<br />
No entanto...<br />
Sistema literário ou curto-circuito?<br />
O samba de uma nota só.<br />
Ou: o eterno retorno do dilema estrutural que<br />
ameaça a vitalidade da literatura hoje em dia.<br />
Ao fim a e ao cabo, viver de literatura, mas não de<br />
direitos autorais é tão-só outro modo de repetir o já dito:<br />
o espetáculo dos festivais literários torna-se cada vez mais<br />
dominante; embora ele seja independente da leitura efetiva<br />
das obras dos autores convidados para a festa.<br />
(Mais ou menos como ser o convidado de honra<br />
e, ainda assim, ser barrado no baile — não na entrada,<br />
porém na saída...)<br />
Ora, ninguém proporia acabar com os encontros<br />
que se multiplicam em todo o país — felizmente, ressalve-se.<br />
Contudo, não é possível fechar os olhos para<br />
o incômodo paradoxo, pois a experiência literária não<br />
pode ter como fundamento livros fechados em prateleiras<br />
empoeiradas.<br />
O surgimento dos produtores de texto, como discuti<br />
nas duas colunas anteriores, é o sintoma mais saliente<br />
desse estado de coisas.<br />
Recupero uma noção de Antonio Candido com um<br />
objetivo duplo: entender a radicalidade do dilema contemporâneo<br />
e, ao mesmo tempo, propor ideias iniciais<br />
sobre formas possíveis de superá-lo; no mínimo, torná-<br />
-lo produtivo.<br />
Em Formação da literatura brasileira (Momentos<br />
decisivos), Candido elaborou o conceito de<br />
sistema literário. A distinção entre “manifestações literárias”<br />
e “literatura propriamente dita” é a grande novidade<br />
teórica e metodológica da Formação. Enquanto<br />
aquelas somente dependem do “talento individual”,<br />
esta tem por base o estabelecimento de uma “tradição<br />
própria”. Isto é, tal distinção pressupõe o funcionamento<br />
do sistema literário. Na definição de Candido: “entendo<br />
aqui por sistema a articulação dos elementos que<br />
constituem a atividade literária regular: autores (...)<br />
públicos (...) tradição”. 1<br />
A história da literatura imaginada por Candido é<br />
a narrativa do processo que conduz autores brasileiros<br />
à leitura e à citação de autores brasileiros — para além<br />
da necessária e inevitável galeria de nomes da literatura<br />
dita universal; afinal de contas, o sal da literatura é o<br />
diálogo sem fronteiras e entre todas as épocas. Nessa<br />
perspectiva, a menção a autores brasileiros cria um domínio<br />
próprio de autorreferência. Os “momentos decisivos”,<br />
referidos no subtítulo, são momentos de leitura<br />
deliberada da própria tradição, plasmada no exato momento<br />
em que ocorre o ato de leitura.<br />
Recorde-se o significativo exemplo empregado<br />
por Quincas Borba para explicar ao atônito Rubião o<br />
sentido onívoro do “Humanitismo”: “(...) Humanitas<br />
precisa comer. Se em vez de um rato ou de um cão, fosse<br />
um poeta, Byron ou Gonçalves Dias, diferia o caso<br />
no sentido de dar matéria a muitos necrológios, mas o<br />
fundo subsistia”. 2 Nesse caso, além da intuição antropofágica,<br />
constante na visão do mundo machadiana, o<br />
fundo é a equivalência entre o poeta inglês e o brasileiro:<br />
o sistema literário se concretiza no instante em que<br />
ambos podem ser citados paralelamente, pois, a partir<br />
de então, um autor (brasileiro) deve tornar-se leitor<br />
tanto de escritores estrangeiros, quanto dos próprios<br />
pares tropicais. Aliás, tarefa que ninguém exerceu com<br />
a maestria de Machado de Assis: é como se os momentos<br />
decisivos da formação conhecessem um nível maior<br />
de autoconsciência na prosa machadiana.<br />
Desse modo, Candido transforma a história literária<br />
no mapeamento da criação de comunidades de<br />
leitores. Trata-se de intuição notável; a sua maneira,<br />
Candido intuía princípios posteriormente sistematizados<br />
pela Estética da Recepção, tal como proposta por<br />
Hans Robert Jauss, nos anos de 1960. O crítico brasileiro<br />
traduziu a história literária numa inovadora análise<br />
combinatória, com base na consideração das inúmeras<br />
possibilidades de relacionamento entre os termos “autor”,<br />
“público” e “obra” — e nada impede que novos<br />
termos se imponham, tornando a equação ainda mais<br />
complexa.<br />
No parágrafo de encerramento do livro, por isso<br />
mesmo, o tema retorna na imagem do “processo por<br />
meio do qual os brasileiros tomaram consciência da sua<br />
existência espiritual e social através da literatura” (p.<br />
681). Nesse caso, o sistema literário supõe o exame da<br />
dinâmica criada entre os vértices do triângulo composto<br />
por autor, obra e público — os elementos propriamente<br />
sistêmicos da história literária.<br />
A relação dos três elementos definiria o caráter<br />
social do literário e, na ausência desse circuito, costuma-se,<br />
ainda nas palavras de Candido, “criar um autopúblico<br />
num país sem público” — esse seria o caso das<br />
academias árcades no século 18.<br />
O paradoxo é que, se a síndrome do “autopúblico”<br />
foi superada, contudo, o público leitor não foi consideravelmente<br />
aumentado. Não há uma relação proporcional<br />
entre o público, ouvinte, que frequenta com entusiasmo<br />
as feiras e encontros, e o público, leitor, que idealmente<br />
seria estimulado pelo contato com os autores.<br />
Ler ou não ler, eis questão.<br />
Como enfrentá-la? Como converter a potência do<br />
contemporâneo em algo mais duradouro do que os encontros<br />
que se multiplicam em todo o país?<br />
(Estaremos condenados à carnavalização de todas<br />
as esferas da cultura?)<br />
Alternativas?<br />
Reitere-se: nos últimos 15 anos, superamos definitivamente<br />
o impasse estrutural do autopúblico. Porém,<br />
ainda não dispomos de um sistema caracterizado<br />
pela associação dinâmica entre produtores e receptores.<br />
Como explicar essa situação propriamente anômica?<br />
Tudo se passa como se Émile Durkheim tivesse antecipado<br />
tal circunstância ao cunhar seu famoso conceito.<br />
No entanto, não se trata de um caso clássico de<br />
anomia, mas da estrutura tipicamente perversa da formação<br />
social brasileira.<br />
Explico-me.<br />
Em lugar de investir seriamente na formação de<br />
novos leitores ou, em sentido mais amplo, na criação do<br />
hábito regular da leitura em todas as gerações, nossos<br />
governantes preferem comprar livros, adquirir tabletes,<br />
construir bibliotecas.<br />
(Entre nós, as casas se edificam pelo teto...)<br />
Daí, o desejo de festejar, pois é muito fácil celebrar<br />
o lançamento de pedras inaugurais, difícil é o trabalho<br />
diuturno de preparação de leitores.<br />
O descompasso entre o caráter inédito da presença<br />
pública do escritor e o surpreendente desinteresse<br />
pela leitura de sua obra é ainda mais grave porque há<br />
décadas já contamos com uma alternativa notável e que<br />
deveria ser difundida para todo o país.<br />
Refiro-me, claro, ao modelo da Jornada Nacional<br />
de Literatura, criado por Tânia Rosing, em Passo Fundo<br />
(RS), cujo esforço merece um reconhecimento nacional,<br />
pois antecipou em décadas a invenção de uma solução<br />
criativa para o dilema estrutural que hoje ameaça estrangular<br />
o desenvolvimento do sistema literário.<br />
Inspirado em seu relevante trabalho, concluo com<br />
uma sugestão.<br />
Segundo estatísticas recentes, a cada dois ou três<br />
dias ocorre um festival literário no Brasil. Trata-se de<br />
fenômeno inédito e que exige uma reflexão sem nenhum<br />
tipo de elitismo. A literatura, assim, ocupa um<br />
espaço público de grande importância. Contudo, como<br />
disse, o ato posterior de leitura não tem conhecido um<br />
crescimento similar.<br />
Em lugar de lamentar o fato, podemos fabular caminhos<br />
alternativos.<br />
Por exemplo: imaginemos que cada evento literário<br />
— de uma Flip ao mais modesto encontro — estabeleça<br />
como regra uma ideia razoavelmente simples e de<br />
execução nada complexa.<br />
Eis: cada encontro homenagearia dois escritores<br />
brasileiros. Daí, uma ou duas edições de um de seus<br />
títulos seriam distribuídas para alunos das escolas públicas<br />
e particulares do entorno do festival. Pelo menos<br />
um semestre antes da realização do encontro, sessões<br />
orientadas de leitura seriam conduzidas por professores<br />
e monitores, devidamente preparados. Uns poucos<br />
meses antes do festival, os autores visitariam a pequena<br />
cidade ou o grande centro, a fim de dialogar com seus<br />
leitores “locais”. Paralelamente um concurso de redação<br />
seria patrocinado pela organização do festival. Em<br />
sua abertura, os alunos seriam premiados; desse modo,<br />
cada encontro literário no Brasil teria como protagonista<br />
o leitor em formação, desatando o nó górdio do<br />
momento presente.<br />
(A formação permanente de leitores, em todas as<br />
idades e classes sociais, é a espada de Alexandre. Na<br />
verdade, o ovo de Colombo, pois é a resposta mais simples<br />
e eficaz.)<br />
A primeira edição da Flip ocorreu em 2003. Uma<br />
década depois, verificou-se o milagre da multiplicação<br />
dos festivais.<br />
Por que não imaginar que o próximo passo deva<br />
ser a criação e multiplicação não mais de ouvintes, porém<br />
de leitores?<br />
Leitores críticos — não preciso acrescentar.<br />
Essa é a tarefa da próxima década.<br />
Então, os produtores de texto tornar-se-iam propriamente<br />
escritores, pois, em primeiro lugar, seriam<br />
leitores.<br />
Notas<br />
1 Antonio Candido. Iniciação à literatura brasileira. 4º edição,<br />
revista pelo autor. Rio de Janeiro: Editora Ouro sobre Azul,<br />
2004, p. 16<br />
2 Machado de Assis. Quincas Borba. Rio de Janeiro:<br />
Civilização Brasileira, 1975, p. 113.
12<br />
169 • maio_ 2014<br />
169 • maio_ 2014<br />
13<br />
Nem isto, nem<br />
aquilo: poeta<br />
Reedição da obra de CECÍLIA MEIRELES<br />
confirma beleza e autonomia de sua poética<br />
: : Marcos Pasche<br />
Rio de Janeiro – RJ<br />
Há pouco mais de cinco anos tem<br />
havido a reedição da obra de alguns<br />
dos mais importantes poetas<br />
brasileiros. João Cabral de<br />
Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade,<br />
Mario Quintana, Manuel Bandeira, Manoel<br />
de Barros, Ferreira Gullar e Jorge de Lima<br />
têm voltado às livrarias em reproduções que<br />
intentam primar pela alta qualidade: do apuro<br />
na feitura das capas à inclusão de rica iconografia,<br />
da supressão de gralhas à inserção<br />
de estudos críticos, tudo parece assinalar a<br />
iniciativa de um tratamento editorial que<br />
faça jus à representatividade das obras dadas<br />
novamente à luz (embora nem todas contem<br />
com todos os itens acima relacionados).<br />
Pode ser que alguém me advirta por<br />
estar esquecendo algum nome. Se tal acontecer,<br />
será ótimo, porque a advertência chegará<br />
como um sinal da força da poesia brasileira.<br />
Mas o que listo como o que há de mais<br />
importante nas reedições tem a ver com a<br />
virtude didática que é o vício crítico de nossa<br />
historiografia literária comum, ou seja, a<br />
concepção de obras e autores a partir de fases<br />
ou estilos. Dentre os poetas mencionados,<br />
não há um único sequer em cuja obra se encontre<br />
apenas a exemplificação de tendências.<br />
Efetivando de modo maiúsculo a ideia<br />
de que é preciso buscar o novo e o diferente,<br />
tais poetas subverteram padrões antigos e<br />
não deixaram de extrapolar os atualizados,<br />
pois — como novos e diferentes que são —<br />
entenderam que o limite está no padrão que<br />
se pretende absoluto e ignora outras possibilidades,<br />
independentemente do adjetivo que<br />
lhe apareça ao lado.<br />
Ao seleto grupo pode-se associar o<br />
nome de Cecília Meireles — porque sua obra<br />
vem sendo novamente publicada nos últimos<br />
dois anos pela Global, e por ser a sua poética<br />
marcada pelo signo da autonomia intelectual.<br />
Coordenada por André Seffrin, crítico gaúcho<br />
de importantíssimas empreitadas editoriais,<br />
a reedição de Cecília vai além de um “lançar<br />
mais uma vez”, tendo muito e principalmente<br />
de um lançar inaugural. Cito dois exemplos.<br />
O primeiro diz respeito a Espectros, livro de<br />
estreia da poetisa carioca, que durante muito<br />
tempo esteve desaparecido (por renegado<br />
pela autora), até que Antonio Carlos Secchin<br />
o desentranhou da outra luz, onde resplandecem<br />
as coisas ocultas. O livro só foi novamente<br />
visto pelo público quando Secchin o<br />
inseriu em Poesia completa, edição que<br />
em 2001 celebrou o centenário da autora de<br />
Ou isto ou aquilo. Agora, a quase totalidade<br />
dos leitores de Cecília terá pela primeira<br />
vez a oportunidade de conhecer o livro de<br />
maneira independente, exclusivo em sua unidade.<br />
Outro exemplo do que há de inaugural<br />
nessa empresa bibliográfica é o referente aos<br />
opúsculos Doze noturnos da Holanda e<br />
O aeronauta, publicados conjuntamente<br />
em 1952. Marcadas por teores diferentes, as<br />
obras são publicadas pela primeira vez em separado,<br />
o que é um acerto editorial.<br />
A AUTORA<br />
Cecília Meireles<br />
Cecília Meireles por Fábio Abreu<br />
Sei quem é, mas não conheço<br />
É difícil medir o nível de circulação de<br />
um autor, mas suponho que Cecília Meireles<br />
ocupe uma curiosa página de nossa literatura,<br />
por ser um nome tão conhecido quanto<br />
ignorado. Muitos têm referências de sua<br />
obra destinada ao público infantil; aqui e ali<br />
se encontra alguém capaz de citar alguns de<br />
seus versos de cor; e, pela voz de Raimundo<br />
Fagner, suas palavras passearam por mais<br />
de uma vez pelas paradas do sucesso radiofônico.<br />
Entretanto, a visitação crítica à sua<br />
obra ainda parece aquém da importância que<br />
lhe é intrínseca. Talvez que a empreitada em<br />
destaque estimule a mudança do quadro, e é<br />
animador e alvissareiro o trabalho do grupo<br />
de estudiosos convidados aos prefácios dos<br />
livros reeditados.<br />
Assim, destaque-se, inicialmente, o<br />
nome do poeta e crítico Henrique Marques-<br />
-Samyn, encarregado do introito a Espectros<br />
(1919). Renegado pela própria autora,<br />
o livro figura como impregnado por um<br />
parnasianismo inconveniente às ideologias<br />
poéticas que se consolidaram no século 20.<br />
De opinião distinta, Henrique vê na obra da<br />
então iniciante uma procedência que a liga à<br />
produção posterior e que se tornou “oficial”<br />
em Cecília: “(...) não me parece necessário,<br />
nem pertinente, situar o volume numa ‘pré-<br />
-história’ literária de Cecília Meireles. O que<br />
aqui proponho, com todos os riscos inerentes<br />
a esta decisão, é que ousemos reintegrar definitivamente<br />
à produção poética de Cecília<br />
Meireles esta obra, que enfim nos foi inteiramente<br />
restituída”. A verificação dos dezessete<br />
sonetos que compõem o volume permite<br />
facilmente concordar com o prefaciador,<br />
pois por meio deles já se notam alguns dos<br />
elementos caros ao universo literário de Cecília,<br />
como a atmosfera noturna, a evocação<br />
de símbolos tradicionalistas e o apuro formal,<br />
algo observável no poema de abertura, o qual<br />
empresta nome ao livro:<br />
Nas noites tempestuosas, sobretudo<br />
Quando lá fora o vendaval estronda<br />
E do pélago iroso à voz hedionda<br />
Os céus respondem e estremece tudo,<br />
Do alfarrábio, que esta alma ávida sonda.<br />
Erguendo o olhar; exausto a tanto estudo,<br />
Vejo ante mim, pelo aposento mudo,<br />
Passarem lentos, em morosa ronda,<br />
Da lâmpada à inconstante claridade<br />
(Que ao vento ora esmorece ora se aviva,<br />
Em largas sombras e esplendor de sóis),<br />
Silenciosos fantasmas de outra idade,<br />
À sugestão da noite rediviva<br />
— Deuses, demônios, monstros, reis e heróis.<br />
Considerando os livros reimpressos até<br />
o momento (e a cronologia bibliográfica da<br />
autora), Espectros é sucedido por Viagem<br />
(1939), com que “a dicção de Cecília ganha<br />
forma pessoal, inconfundível, e que seria<br />
constante ao longo de seu itinerário”, conforme<br />
assinala Alfredo Bosi. Em sua apresentação,<br />
intitulada A poesia da viajante, o<br />
afamado crítico paulista destaca a simbologia<br />
do título para a poética que a partir dali se<br />
tornava enfim aquela que viria a ser: “Na poesia<br />
de Cecília Meireles o ato de viajar é mais<br />
do que um tema literário. É uma dimensão<br />
vital, um modo de existir do corpo e da alma”.<br />
A tal modalidade de essência artística, somo<br />
o símbolo da canção, também parte da pele<br />
e da carne da poeta: “E aqui estou, cantando”,<br />
anuncia o primeiro verso de Discurso.<br />
Viagem e música se consorciam e se tornam<br />
o transporte uno para destinos diversos, os<br />
quais são sempre um pouso de ida. Viajora e<br />
cantante, a poesia anuncia o milagre da vida,<br />
a dispensar quês e porquês:<br />
Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis<br />
uma sonora ou silenciosa canção:<br />
flor do espírito, desinteressada e efêmera.<br />
Por ela, os homens te conhecerão:<br />
por ela, os tempos versáteis saberão<br />
que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,<br />
quando por ele andou teu coração.<br />
Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1901. Formou-se pela Escola Normal (Instituto de Educação)<br />
em 1917, e exerceu o magistério primário em escolas do Distrito Federal. Publicou seu primeiro<br />
livro de poemas, Espectros, em 1919, em seguida lançou inúmeros títulos, entre livros de<br />
poesia, crônica, literatura infantil, antologias e ensaios. Morreu no Rio de Janeiro, em 1964.<br />
Se os termos que traduzem o ser da<br />
poesia ceciliana são os que sinalizam para<br />
a constituição de uma voz poética que então<br />
se estabelecia em Viagem (o trânsito e<br />
a música), não se pode perder de vista outro<br />
fator responsável pelo adensamento da singularidade<br />
da obra de que tratamos. Falo da<br />
extraordinária capacidade de Cecília Meireles<br />
de exprimir beleza, uma beleza em nada<br />
previsível, ainda que em textos pautados por<br />
assuntos secularmente explorados, como a<br />
devoção amorosa. Se em Cânticos, de 1927,<br />
a abertura se faz com a alta voltagem da antítese<br />
envolvendo o efêmero e o eterno do ser<br />
apaixonado — “O vento do meu espírito/ soprou<br />
sobre a vida./ E tudo que era efêmero/<br />
se desfez./ E ficaste só tu, que és eterno...” —,<br />
no livro de 1939 é frequente o canto amoroso<br />
que se afina pelas desarmonias da existência,<br />
seja em Serenata — “Permite que agora emudeça:/<br />
que me conforme em ser sozinha./ Há<br />
uma doce luz no silêncio/ e a dor é de origem<br />
divina” —, seja em Onda: “Quem falou de<br />
primavera/ sem ter visto o teu sorriso,/ falou<br />
sem saber o que era.// (...) mas quem falou<br />
de deserto/ sem nunca ver os meus olhos.../<br />
— falou, mas não estava certo”.<br />
Se este Viagem é o livro em que se ouve<br />
a Cecília já como segura regente de sua sinfonia,<br />
não é de estranhar que ele traga, como<br />
confirmação, um dos textos mais conhecidos<br />
de toda a sua trajetória. Verdadeira súmula<br />
poética, Motivo explica razões sem renunciar<br />
à linguagem do mistério:<br />
Eu canto porque o instante existe<br />
e a minha vida está completa.<br />
Não sou alegre nem sou triste:<br />
sou poeta.<br />
Irmão das coisas fugidias,<br />
não sinto gozo nem tormento.<br />
Atravesso noites e dias<br />
no vento.<br />
Se desmorono ou se edifico,<br />
se permaneço ou me desfaço,<br />
— não sei, não sei. Não sei se fico<br />
ou passo.<br />
Sei que canto. E a canção é tudo.<br />
Tem sangue eterno a asa ritmada.<br />
E um dia sei que estarei mudo:<br />
— mais nada.<br />
No tempo, nos tempos<br />
Publicado em 1942, Vaga música é<br />
um livro em forte consonância ao anterior. O<br />
prefácio da nova edição coube a João Cezar<br />
de Castro Rocha. Já no primeiro parágrafo de<br />
seu texto, o crítico faz um diagnóstico fundamental<br />
acerca da poética ceciliana. A longura<br />
da citação feita aqui se justifica pelo alcance<br />
do comentário de João Cezar:<br />
Publicado em 1942, Vaga música<br />
ajuda a esclarecer o lugar especial ocupado<br />
por Cecília Meireles na literatura brasileira.<br />
De fato, ela começou a marcar seu nome<br />
em meio à eclosão do modernismo de 1922.<br />
No entanto, desde as primeiras publicações,<br />
Cecília se manteve deliberadamente alheia<br />
à necessidade de afirmar-se através da negação<br />
programática do passado. Pelo contrário,<br />
buscou renovar as fontes clássicas<br />
do lirismo luso-brasileiro, retomando, com<br />
raro domínio técnico, metros tradicionais,<br />
e revigorando, com sensibilidade contemporânea,<br />
formas como a canção, o terceto,<br />
o romance, entre outras. E não se esqueça<br />
do simbolismo, pois, como os estudiosos de<br />
sua obra sempre destacaram, a centralidade<br />
da música e do espiritualismo na sua visão<br />
de mundo muito deve à estética simbolista.<br />
Nesse sentido, os poemas coligidos em Vaga<br />
música levam adiante a fatura literária de<br />
Viagem (1939), recordando uma autêntica<br />
arqueologia poética da tradição.<br />
Essas observações dão conta de traços<br />
basilares da obra ceciliana, dizem muito do<br />
que a autora produziu e do que sua produção<br />
significou em meio a um contexto. Além disso,<br />
tais observações encontram forte eco nos<br />
outros livros agora reeditados, bem como nas<br />
palavras de seus prefaciadores.<br />
Conforme sublinhamos, Henrique Marques-Samyn<br />
afirma que a, por assim dizer,<br />
“ainda-não-Cecília” do primeiro livro, como<br />
é vista convencionalmente, já é, sim, a poetisa<br />
que décadas depois se consagrou. Para<br />
a convenção, ali não há Cecília Meireles por<br />
haver demasia parnasiana (é como em geral<br />
se entende a hegemonia da forma fixa no<br />
volume). O que dizer, então, de Solombra<br />
(1963), apontado por Antonio Carlos Secchin<br />
(no prefácio) como “aquele que viria a ser<br />
o testamento poético de Cecília Meireles”?<br />
Faço a pergunta porque para o estudioso —<br />
dos maiores conhecedores da poesia de Cecília<br />
—, Solombra reúne “alguns dos mais<br />
densos textos de sua obra, formando um livro<br />
austero e complexo”, o qual, ainda com Secchin,<br />
é composto por “vinte e oito poemas de<br />
rigorosa arquitetura”.<br />
De modo algum pretendemos afirmar que a<br />
forma fixa signifique, por si só, poesia de interesse,<br />
tampouco que esse elemento baste para dizer que<br />
Cecília teve a mesma mão do princípio ao fim. Mas<br />
soa curioso que por conta da forma padronizada ela<br />
tenha sido desabonada em seu princípio, e que em<br />
seu ápice a forma padronizada esteja presente. Na<br />
introdução a Amor em Leonoreta (1951), Miguel<br />
Sanches Neto vê na relação do livro com a tradição<br />
lírica portuguesa uma conexão com outras temporalidades,<br />
o que denota um retroagir histórico que<br />
“atende a um projeto unificador, principal energia<br />
lírica de Cecília Meireles”. Esse retorno unificante<br />
transborda naquele que é provavelmente seu livro<br />
mais conhecido — Romanceiro da Inconfidência<br />
(1953) —, tematizado por um importantíssimo<br />
episódio da história nacional e redigido numa estrutura<br />
antiga, mais própria da tradição lusitana do<br />
que da brasileira. Conjugando isso ao que dissemos<br />
no início sobre os poetas reeditados, veremos em<br />
Cecília a independência literária que marcou sua<br />
postura, o que, agora por outro lado, não quer dizer<br />
desprezo pelas conquistas do Modernismo e das<br />
tendências que a ele se ligam. Antes, isso denota<br />
o sábio reconhecimento de que, em poesia, os recursos<br />
não se invalidam, e sua atualidade depende<br />
da maneira como o poeta se serve deles. Voltando<br />
ao preâmbulo de Viagem, nos deparamos com a<br />
afirmação (de Alfredo Bosi) de que “a viajante colhe<br />
o sim e o não de todas as coisas”, e o retorno ao<br />
prefácio de Vaga música permite ver uma opinião<br />
exata a esse respeito: “Não se pense, porém, na imagem<br />
equivocada de uma poesia de antiquário! Na<br />
verdade, os versos de Cecília Meireles transcendem<br />
o tempo imediato, projetando-se no horizonte da<br />
experiência literária, cuja atualidade é assegurada<br />
pela permanência de um fiel público leitor”.<br />
De algumas das páginas desse belo volume<br />
de Cecília Meireles emanam sólidas confirmações<br />
dos juízos postos em relevo aqui. Em Canção quase<br />
inquieta, por exemplo, a voz que canta não se afirma<br />
aguda nem grave: “Sempre assim:/ de um lado,<br />
estandartes do vento.../ — do outro, sepulcros fechados./<br />
E eu me partindo, dentro de mim,/ para<br />
estar no mesmo momento/ de ambos os lados”. A<br />
vocação dual, tão explícita e notada, não se afigura<br />
um ambiente confortável para quem a exprime. O<br />
gesto deliberado de não se filiar a uma diretriz específica<br />
é correlato de liberdade, tão desejada e inalcançável<br />
para muitos. Mas a liberdade tem preço,<br />
que pode se manifestar justamente como angústia<br />
quando se constata a ausência de um porto seguro.<br />
Daí prossegue o poema, em seu desfecho: “Fazedor<br />
da minha vida,/ não me deixes!/ Entende a minha<br />
canção!/ tem pena do meu murmúrio,/ reúne-me<br />
em tua mão!/ Que eu sou gota de murmúrio,/ dividida,/<br />
desmanchada pelo chão...”. E já que a vida<br />
só é possível reinventada — como diz, no livro, o<br />
poema Reinvenção, outro de seus mais conhecidos<br />
textos —, a persona lírica vai desenhar sua imagem<br />
de maneira unitária, ainda que a unidade se conclua<br />
como um vácuo, matéria de Encomenda:<br />
Desejo uma fotografia<br />
como esta — o senhor vê? — como esta:<br />
em que para sempre me ria<br />
como um vestido de eterna festa.<br />
Como tenho a testa sombria,<br />
derrame luz na minha testa.<br />
Deixe esta ruga, que me empresta<br />
um certo ar de sabedoria.<br />
Não meta fundos de floresta<br />
nem de arbitrária fantasia...<br />
Não... Neste espaço que ainda resta,<br />
ponha uma cadeira vazia.<br />
Como indicado antes, Amor em Leonoreta<br />
veio a público em 1951. Também prefaciador da edição<br />
do centenário da autora de Poemas escritos<br />
na Índia, Miguel Sanches Neto assina a apresentação<br />
da plaquete, que é, na bibliografia ceciliana, o<br />
“primeiro livro-poema propriamente dito, revelando<br />
aí o desejo de dar uma andadura mais narrativa<br />
à poesia, cuja culminância será o Romanceiro da<br />
Inconfidência, publicado logo depois”. Ao comentar<br />
o título, Miguel Sanches alarga o esclarecimento<br />
de uma Cecília não propriamente modernista, mas<br />
sim autora de um fazer poético moderno, por meio<br />
do qual o passado não é mero objeto de veneração,<br />
sendo antes um grande mosaico em que pululam<br />
possibilidades de inovação artística: “Amor em<br />
Leonoreta”, prossegue Miguel, “é o portal de entrada<br />
para o medieval luso, um túnel do tempo que<br />
une duas idades, eliminando as distâncias. Não há<br />
interregnos entre o século 13, de onde vem A canção<br />
de Leonoreta, e o século 20, de onde Cecília<br />
Meireles escreve. Trata-se de um único tempo, cerzido<br />
pelo fio forte da poesia. Como se sabe, o refrão<br />
de seu poema, a partir do qual vai construir o livro,<br />
vem de uma peça produzida por João Lobeira, trovador<br />
do século 13”.<br />
Portanto, efetiva-se um dos exercícios mais<br />
prestigiados pela modernidade literária — o da intertextualidade<br />
—, aqui ainda mais denso por estruturar<br />
todo o livro, também moderno por fundir narrativa<br />
e lirismo: “Pela noite remorsa,/ só por alma<br />
te procuro,/ ai, Leonoreta!/ Leva a seta um rumo<br />
claro,/ desfechada no ar escuro.../ O licrone beija<br />
a rosa,/ canta a fênix do alto muro:/ mas é tal meu<br />
desamparo,/ Leonoreta, fin’roseta,/ que a chamar<br />
não me aventuro”.<br />
Publicados em 1952, os Doze noturnos da<br />
Holanda confirmam a variedade e a essência conciliadora<br />
da poesia ceciliana, principalmente por<br />
terem sido publicados em conjunto com um livro<br />
de extensão semelhante (curta), porém de teor distinto:<br />
O aeronauta. Pela primeira vez os livros<br />
circulam em separado, mas aqui a separação não<br />
é divórcio: “Meu nome agora é diverso./ Indeclinável”,<br />
sentencia Dois, do segundo livro. Ao apresentar<br />
Doze noturnos, Aristóteles Angheben Predebon<br />
faz acurada análise do livro à luz de seu vínculo<br />
com a música, afinal, o termo “noturno” tem forte<br />
vínculo com a arte dos sons: “Assim, nos noturnos<br />
de Cecília, não cabe procurar uma poesia cheia de<br />
imagens e metáforas, mas antes a musicalidade intimamente<br />
reflexiva”. A mais, Aristóteles destaca o<br />
caráter noturnal da linguagem do livro, o que confirma<br />
a acepção elementar do termo que se inscreve<br />
no título, ao mesmo tempo em que permite constatar<br />
a imbricação entre tema e forma discursiva:<br />
“(...) enquanto nossa tradição de noturnos veicula<br />
uma meditação sobre a noite, seu silêncio e uma<br />
espécie de comunhão de soledade entre os seres, a<br />
poesia de Cecília faz-se noturna, não apenas pelo<br />
que diz, mas em como o diz”. De quebra, vemos<br />
nesse ponto alto da trajetória da autora mais um ligamento<br />
com seu embrião. Afinal, os espectros têm<br />
na noite seu habitat preferencial: “A noite levava-<br />
-me tão alto/ que os desenhos do mundo se inutilizavam./<br />
Regressavam as coisas à sua infância e<br />
ainda mais longe,/ devolvidas a uma pureza total, a<br />
uma excelsa clarividência”.<br />
Conquanto derive da mesma experiência que<br />
originou o livro anterior (uma viagem de Cecília à<br />
Holanda), O aeronauta tem dicção diferente, a começar<br />
pelo discurso conciso (se comparado ao anterior):<br />
“Ó linguagem de palavras/ longas e desnecessárias!”.<br />
Na prévia, Ivo Barroso acentua a distinção<br />
entre os dois volumes: “De nossa parte, acreditamos<br />
que O aeronauta seja bem mais que um simples<br />
complemento poético dos Noturnos. Seria mesmo<br />
o seu antípoda, a outra face, exprimindo uma nova<br />
dimensão espacial da autora [consta que os onze<br />
poemas do livro tenham sido escritos ou meditados<br />
no voo de volta dos Países Baixos], egressa de um<br />
outro mundo, vivendo em novo estado de espírito”.<br />
No livro anterior, a noite não tem simbologia comum<br />
nem unilateral — “A noite não é simplesmente<br />
um negrume sem margens nem direções” —, entretanto,<br />
não deixa de exibir sua vocação de obscurecer<br />
orientações firmes: “Eu mesma não sei quem sou,<br />
na alta noite”. Assim, O aeronauta, que também<br />
não concebe simbologias por uma perspectiva única<br />
— “Não clameis por sua sorte!/ Tanto é noite quanto<br />
dia./ E vida e morte” —, tem ares amenos e cores<br />
de nuvens, das nuvens livres de cores: “Perdoai-me<br />
chegar tão leve,/ eu, passageiro/ dos céus, de límpido<br />
vento”. De habitual neste livro, só a eterna novidade<br />
ceciliana de ser singular: “E tudo que me respondem/<br />
fica também noutras eras,/ vem de outra<br />
idade./ Pastor que contempla ocasos,/ eu mesmo<br />
sou o meu caminho,/ claro e sozinho”.<br />
O Romanceiro da Inconfidência, publicado<br />
em 1953, é um grande sucesso editorial de Cecília<br />
(a que recebi para resenhar, de 2012, é a nona edição)<br />
e um dos maiores feitos de toda a poesia brasileira.<br />
Causa surpresa que esse êxito comercial seja alcançado<br />
por um livro que, no século 20, foi escrito em forma<br />
arcaica (o romance em verso). Poeta e historiador,<br />
Alberto da Costa e Silva sublinha, no prefácio, justamente<br />
o encontro complementar de poesia e história:<br />
“(...) Cecília Meireles recria poeticamente um pedaço<br />
de tempo e, ao lhe reescrever poeticamente a história,<br />
dá a uma conspiração revolucionária de poetas, num<br />
rincão montanhoso do Império português, a consistência<br />
do mito”. Assim, discurso poético e narrativa<br />
histórica vão aonde não iriam se estivessem amputados,<br />
e, juntos, atingem a magnificência:<br />
Eles eram muitos cavalos<br />
nas margens desses grandes rios<br />
por onde os escravos cantavam<br />
músicas cheias de suspiros.<br />
Eles eram muitos cavalos<br />
e guardavam no fino ouvido<br />
o som das catas e dos cantos,<br />
a voz de amigos e inimigos;<br />
— calados, ao peso da sela,<br />
picados de insetos e espinhos,<br />
desabafando o seu cansaço<br />
em crepusculares relinchos.<br />
O canto derradeiro de Cecília Meireles congrega<br />
a luz e a treva: Solombra, de 1963, é, nas<br />
palavras de Antonio Carlos Secchin, o “testamento<br />
poético” da autora. Como já dissemos algo do livro e<br />
citamos partes de seu prefácio, que ouçamos a cantora,<br />
para que ela dê o tom do encerramento — tom<br />
de solilóquio e sinfonia:<br />
Quero uma solidão, quero um silêncio,<br />
uma noite de abismo e a alma inconsútil,<br />
para esquecer que vivo — libertar-me<br />
das paredes, de tudo que aprisiona;<br />
atravessar demoras, vencer tempos<br />
pulutantes de enredos e tropeços,<br />
quebrar limites, extinguir murmúrios,<br />
deixar cair as frívolas colunas<br />
de alegorias vagamente erguidas.<br />
Ser tua sombra, tua sombra, apenas,<br />
e estar vendo e sonhando à tua sombra<br />
a existência do amor ressuscitada.<br />
Falar contigo pelo deserto.<br />
Fantasia no<br />
Brasil colônia<br />
: : Gisele Eberspächer<br />
Curitiba – PR<br />
O<br />
nome do livro é um<br />
tanto autoexplicativo:<br />
Quatro soldados,<br />
de Samir<br />
Machado de Machado (Não Editora),<br />
narra a história de quatro<br />
oficiais de um antigo exército<br />
brasileiro, em uma época colonial<br />
de definição de fronteiras<br />
e identidade nacionais. São os<br />
últimos anos da guerra entre<br />
jesuítas e índios e o país como<br />
o conhecemos não está mais tão<br />
longe de ser formado.<br />
O primeiro dos soldados<br />
que o leitor conhece é Licurgo,<br />
jovem e inocente. Teve pouco<br />
contato com o mundo antes<br />
de entrar no exército (sua mãe<br />
morreu no parto e seu pai o evitava,<br />
fazendo com que passasse<br />
seus dias pela casa da família) e<br />
pouco sabia do país e das pessoas<br />
antes de começar a lutar por<br />
eles. Sua (des)aventura começa<br />
já na primeira missão, quando<br />
nem tudo vai como se esperava<br />
e ele acaba aprendendo coisas<br />
novas e mudando um pouco sua<br />
visão do mundo.<br />
Outro soldado é o Andaluz<br />
— apesar de que o mais<br />
certo seria chamá-lo de desertor.<br />
É provavelmente o mais<br />
charmoso dos quatro e se permite<br />
ser levado pela vida. Após<br />
abandonar o exército, encontra<br />
vários jeitos para sobreviver,<br />
cada um mais improvável que<br />
o outro. De certa forma é também<br />
um tanto hostil e arrogante.<br />
Dentre os personagens é o<br />
que mais lê e que mais conhece<br />
do mundo e das pessoas.<br />
Já o capitão Antônio Coluna<br />
é misterioso e reservado,<br />
e optou por dar sua vida ao<br />
exército e leva a sério cada uma<br />
de suas missões. Também tem<br />
uma relação conturbada com a<br />
família e opta por esconder seu<br />
título de nobreza português<br />
para viver a vida como um comum<br />
no Brasil.<br />
O último dos soldados,<br />
por opção do autor, só é revelado<br />
mais para o final da narrativa<br />
— e a escolha será mantida<br />
na resenha. Ainda assim,<br />
é possível dizer que ele é uma<br />
figura ambígua, tanto pela maneira<br />
com que é inserido na<br />
narrativa como no papel que<br />
desempenha no exército.<br />
Os quatro personagens<br />
têm personalidades diferentes.<br />
Em comum têm a maneira com<br />
que vivem — andarilhos, parecem<br />
não ter achado seu lugar no<br />
mundo, e em alguns momentos<br />
sequer parecem estar procurando.<br />
Eles mantêm poucas raízes,<br />
não têm exatamente um lugar<br />
para o qual voltar — apenas um<br />
novo para ir em seguida.<br />
Mesmo que cada um dos<br />
soldados esteja vivendo suas próprias<br />
aventuras, o caminho deles<br />
se cruza ao longo da narrativa.<br />
Os encontros são curiosos e as<br />
reações dos personagens, muito<br />
bem montadas, acentuando as<br />
personalidades de cada um.<br />
Quatro soldados é dividido<br />
em quatro partes, cada uma<br />
destinada a narrar um episódio<br />
específico na vida de um ou mais<br />
dos soldados. Esses acontecimentos<br />
são aventuras, com um<br />
tom um tanto místico e fantasioso,<br />
que cria uma aura que<br />
subverte a história real dos livros<br />
didáticos — os personagens se<br />
deparam com labirintos de onde<br />
ninguém sai com vida, mulas<br />
sem cabeça e até monstros enterrados<br />
em cavernas profundas.<br />
O cenário criado nos<br />
mostra apenas que os moradores<br />
dessa nova terra não a entendiam.<br />
O mistério de vir para<br />
um lugar como o Brasil era tamanho<br />
que vários mitos foram<br />
criados no processo de compreensão<br />
desse novo lar e as explicações<br />
místicas eram parte do cotidiano.<br />
O cenário da narrativa é uma terra<br />
onde quem viaja é com frequência<br />
atacado por índios, ainda não<br />
completamente dividida entre espanhóis<br />
e portugueses, habitada<br />
por jesuítas que tentam dar uma<br />
ordem “pacífica” para tudo isso.<br />
Uma das coisas mais interessantes<br />
do livro é o narrador — que<br />
conversa com o leitor com ares de<br />
Dom Casmurro e conta as aventuras<br />
com um olhar quixotesco. E o autor<br />
guarda ainda uma surpresa quanto<br />
ao narrador da história, que se personifica<br />
diante do leitor em determinado<br />
momento do livro. A partir<br />
daí, é interessante perceber como a<br />
criação da linguagem e do tom está<br />
completamente ligada à construção<br />
dos personagens e ao ponto de vista<br />
que o leitor tem da história.<br />
O primeiro parágrafo do livro<br />
(a seguir) já demonstra a maneira<br />
com que o narrador transparece<br />
uma personalidade ao longo da<br />
narrativa. Apesar de a primeira<br />
pessoa não estar presente em todos<br />
os momentos do texto, fica claro<br />
que a história está sendo narrada<br />
por alguém que de certa maneira<br />
soube e reproduz todas as aventuras,<br />
fazendo com que seja determinante<br />
para o formato da narrativa.<br />
Uma vez que cabe a mim, teu<br />
narrador, a obrigação de narrar, e<br />
a ti, meu leitor, a de ler — se assim te<br />
apraz —, faz-se mister, por questões<br />
de cortesia, que nos apresentemos.<br />
Porém, não sendo possível que eu te<br />
conheça, não há sentido que conheças<br />
a mim, posto que cá eu ficaria<br />
em posição de desvantagem contigo.<br />
Permita-me, então, que aqui<br />
apresente somente minha intenção,<br />
e esta é de narrar. E, ao fazer tal<br />
afirmação, estabeleço o compromisso<br />
de que te narrarei somente<br />
aquilo que vi; o que não vi, ouvi; o<br />
que não vi nem ouvi, li. Já aquilo<br />
que não vi, ouvi ou li, inventei, pois,<br />
se as passagens mais cheias de assombros<br />
e maravilhas são todas<br />
verídicas, coube às mais banais e<br />
cotidianas o fardo de serem todas<br />
fictícias, do contrário, como se sabe,<br />
a narrativa não anda, e é preciso<br />
dar verossimilhança aos fatos.<br />
Além disso, logo no começo do<br />
texto o narrador afirma não ser completamente<br />
confiável, dando ainda<br />
mais um tom fantasioso à obra.<br />
Outro aspecto da narrativa é o<br />
uso do humor e de uma ironia leve,<br />
tanto na improbabilidade do que<br />
acontece com os personagens como<br />
nas reações dos personagens perante<br />
tudo. Por exemplo, dois dos soldados<br />
se conhecem em um bordel, que<br />
também é frequentado por um padre<br />
viciado em jogos que, para não cair<br />
em pecado, não aposta dinheiro.<br />
Durante a leitura, é quase<br />
inevitável não se lembrar de Terra<br />
Papagalli, de José Roberto Torero<br />
e Marcos Aurelius Pimenta, mesmo<br />
que esse aconteça em um período<br />
anterior, logo após o descobrimento,<br />
enquanto Quatro soldados se<br />
remete ao período de colonização.<br />
Ainda assim, as duas narrativas<br />
usam o humor, os personagens cativantes<br />
e um tom fantasioso para<br />
imaginar o Brasil de antes.<br />
Algo interessante da história<br />
para amantes de livros é que, ao<br />
longo da narrativa, fica-se sabendo<br />
um pouco sobre como era o cenário<br />
livreiro no país daquela época —<br />
como era difícil achar obras nessas<br />
terras e como existia até um contrabando<br />
de itens em um mercado<br />
negro, permitindo com que obras<br />
chegassem aos seus leitores.<br />
E, falando do objeto livro, a<br />
edição de Quatro soldados traz alguns<br />
itens gráficos que enriquecem a<br />
obra. As aberturas de capítulos têm<br />
ilustrações e a fonte foi desenvolvida<br />
especialmente para o livro, baseada<br />
na tipografia usada no primeiro livro<br />
publicado no Brasil.
14<br />
169 • maio_ 2014<br />
A LITERATURA NA POLTRONA : : José Castello<br />
Calvino e a rapidez<br />
QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />
COLUNISTAS<br />
ENSAIOS E RESENHAS<br />
DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />
RES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />
Ando desconcentrado, e<br />
me repreendo a toda hora<br />
por essa falta de concentração,<br />
que se assemelha<br />
à preguiça. Minha escrita anda fluida,<br />
sai rápido — parece se desenrolar<br />
em uma velocidade maior que<br />
a de meu pensamento. Isso é bom,<br />
mas isso me assusta: parece que<br />
não sou eu que escrevo, que alguém<br />
escreve em meu lugar. Parece que<br />
corro em desvario e, apesar disso,<br />
me arrasto. Lembro-me, então,<br />
do célebre ensaio de Italo Calvino<br />
sobre a rapidez. Retorno a ele, na<br />
esperança de uma luz. Algo que se<br />
não explique, pelo menos situe esse<br />
fluido em que me vejo perdido —<br />
mas também me encontro.<br />
Lembra Calvino de Mercúrio<br />
e de Vulcano, dois deuses potentes,<br />
mas complementares. Mercúrio é<br />
o deus da sintonia, da participação<br />
no mundo. Do derramamento.<br />
Vulcano, ao contrário, o deus da<br />
focalização, do foco, da concentração<br />
construtiva. Ambos agem enquanto<br />
escrevemos. Um nos puxa<br />
para um lado, outro nos puxa para<br />
outro — ambos estão ali. “O trabalho<br />
do escritor deve levar em conta<br />
tempos diferentes: o tempo de<br />
Mercúrio e o tempo de Vulcano”,<br />
alerta Calvino. Forças opostas, que<br />
travam uma luta contínua — e essa<br />
luta é a escrita.<br />
Não, não devemos dispensar<br />
a presença de nenhum dos dois<br />
deuses enquanto escrevemos. A<br />
concentração de Vulcano é condição<br />
necessária para as aventuras<br />
e metamorfoses de Mercúrio. A<br />
mobilidade e agilidade de Mercúrio<br />
são condições necessárias para<br />
que o trabalho de Vulcano ganhe<br />
significado. Precisamos das duas<br />
forças, uma que nos arrasta para<br />
a caverna, outra que nos derrama<br />
sobre o mundo. Precisamos de ambas<br />
para escrever. Se me sinto fluido<br />
(Mercúrio) é porque, de alguma<br />
forma o desejo de concentração<br />
também atua dentro de mim. Um<br />
se destaca: vai à frente. Outro se<br />
arrasta, mas não perde o passo.<br />
Mercúrio, nos lembra Calvino,<br />
é o deus da sintonia, da comunicação,<br />
aquele que está sempre<br />
“entre” duas coisas. Vulcano, ao<br />
contrário, é o deus da caverna,<br />
do recolhimento, da fabricação<br />
solitária. O primeiro promove a<br />
continuidade indiferenciada (derramamento),<br />
o segundo promove<br />
o isolamento egocêntrico (esquizofrenia).<br />
Ambos atuam enquanto<br />
escrevemos, e escrever é o resultado<br />
da luta entre essas duas<br />
tendências. Uma não existe sem<br />
a outra. Sem o desejo de recolhimento<br />
não existe derramamento.<br />
Sem o derramamento, não existe<br />
o desejo de recolhimento. São<br />
como que avesso e direito de um<br />
mesmo impulso.<br />
Para ilustrar essa convivência<br />
necessária, Calvino nos conta<br />
uma lenda chinesa, a história de<br />
Chuang-Tsê, o grande desenhista.<br />
O rei lhe pede que desenhe um<br />
caranguejo. Ele diz que, para isso,<br />
precisa de cinco anos e de uma casa<br />
com doze empregados. O rei lhe dá<br />
o que pede. Passados cinco anos, o<br />
rei o procura novamente e ele diz<br />
que precisa de mais cinco anos e de<br />
outra casa com doze empregados.<br />
Ao fim dos dez anos, o rei, persistente<br />
em seu desejo, o procura<br />
mais uma vez. Então, Chuang-Tsê,<br />
em um segundo, desenha o mais<br />
perfeito dos caranguejos. E dá ao<br />
rei, que agora — porque contou<br />
com a ação das forças opostas —<br />
enfim tem o que deseja.<br />
Sem a lentidão (derramamento,<br />
rascunho, transe) não chegamos<br />
à concentração (obra). Sem o desejo<br />
de concentração, não faz sentido<br />
nos entregarmos à lentidão e à<br />
dispersão. Um dos lados não existe<br />
sem o outro. Este é apenas um dos<br />
paradoxos que ilustram o universo<br />
da escrita. Penso nos argumentos<br />
de Italo Calvino e já me sinto um<br />
pouco melhor. Um pouco menos<br />
“torto”. Se derramo facilmente uma<br />
escrita que me ultrapassa, é porque<br />
uma força oposta, de concentração<br />
e foco, me espera no final. Elas só<br />
existem por contraste, só por contraste<br />
nós as percebemos.<br />
Agora, enfim, posso me derramar<br />
melhor, sem o medo de me<br />
perder. É como alguém que, ao<br />
arrastar um guarda-sol, arrasta<br />
também sua sombra. Impossível<br />
pensar em arrastar o guarda-sol<br />
sem que a sombra seja levada junto.<br />
Do mesmo modo, não devemos<br />
nos assustar se nos flagramos em<br />
uma atitude extrema, porque a<br />
outra — que é o seu oposto — também<br />
está ali.<br />
NOTA<br />
O texto Calvino e a rapidez foi<br />
publicado originalmente no blog A<br />
literatura na poltrona, de O Globo.<br />
Réquiem para o passado<br />
: : Clayton de Souza<br />
São Paulo – SP<br />
reprodução/ facebook<br />
O AUTOR<br />
Marcelo Nocelli<br />
Em O escritor e sua<br />
missão (em esmerada<br />
edição de 2011, pela<br />
Zahar), Thomas Mann<br />
nos confidencia, no Ensaio sobre<br />
Tchekhov, que “cultivava um certo<br />
menosprezo” pelo gênero conto<br />
e sua “ligeireza artística”, incapaz<br />
de se nivelar (é o jovem Mann que<br />
fala) com “a espera heroica ao longo<br />
de anos ou décadas” que o romance<br />
exige. O ficcionista alemão, porém,<br />
haveria de mudar seu julgamento,<br />
atentando-se enfim às “dimensões<br />
interiores que tudo o que é breve e<br />
sintético adquire graças ao gênio”.<br />
A avaliação inicial de Mann,<br />
apesar da revisão posterior, é expressiva,<br />
pois nos faz refletir que a<br />
preterição do conto pelo romance,<br />
observável atualmente no leitor em<br />
geral, é um dado histórico (embora<br />
de natureza diversa). Um dado<br />
passível de mudança desde que o<br />
leitor detenha a virtude da reflexão<br />
analítica capaz de se libertar de<br />
avaliações preconcebidas e equívocas,<br />
enfocando pela segunda vez (e<br />
com lente mais apurada) as nuances<br />
do objeto de sua análise.<br />
Thomas Mann possuía tal virtude,<br />
escassa, como tantas outras<br />
que a boa leitura demanda, nesses<br />
tempos modernos.<br />
Retomando a afirmação do<br />
grande escritor alemão, concluímos<br />
que as virtudes inerentes ao<br />
gênero — ligadas todas à contenção<br />
— apenas vicejam sob a luz incandescente<br />
do gênio. Escassas, portanto,<br />
como os leitores. Como fazer<br />
para elevar esse gênero “a uma<br />
categoria épica” que supere “em<br />
intensidade artística o grandioso, a<br />
obra gigantesca”?<br />
Não há como saber se Marcelo<br />
Nocelli, em seu livro de contos<br />
Reminiscências, se propõe tal<br />
desafio. Por certo o termo épico<br />
não se coaduna com a obra; por<br />
outro lado, esta se beneficia grandemente<br />
de todas as vantagens que<br />
uma expressão lacônica propicia à<br />
prática da narrativa curta.<br />
O livro é composto de 17 narrativas,<br />
a mais extensa não ultrapassando<br />
dez páginas (numa diagramação<br />
bastante agradável, bem<br />
como o projeto gráfico impecável do<br />
artista plástico Leonardo Mathias).<br />
Grande desafio é expressar infortúnios<br />
humanos, plasmar seres vivos<br />
ao invés de títeres, impondo-se o artista<br />
um número exíguo de páginas.<br />
Não que Nocelli conceba personagens<br />
de dimensões shakespearianas,<br />
muito pelo contrário: os tipos<br />
que habitam a obra são corriquei-<br />
Reminiscências<br />
Marcelo Nocelli<br />
Reformatório<br />
147 págs.<br />
TRECHO<br />
Reminiscências<br />
“Nunca havia trabalhado<br />
com tanta dedicação...<br />
Na fresa, o som da ferramenta<br />
afiada cortando<br />
a peça por fazer, soava<br />
como música de violino.<br />
Foi se deixando levar<br />
pelo som da lixadeira em<br />
contratempo com o torno<br />
do amigo ao lado.<br />
ros; mas seus dramas, angústias e<br />
anseios palpitam intensos sobre o<br />
asfalto impassível da cidade.<br />
O título da obra pode ludibriar<br />
o leitor cuja expectativa seja<br />
a de estar diante de um representante<br />
da linha da autoficção<br />
em voga, regada a memórias do<br />
autor. Na verdade, para além de<br />
simples recordações, Reminiscências<br />
conota o entrechoque de<br />
desejos de outrora e realizações<br />
efetivas, bem como de épocas<br />
passadas e presentes, ou a reconstrução<br />
de passados lacunares<br />
por um membro remanescente de<br />
uma família esfacelada.<br />
No primeiro conto, ambiguamente<br />
intitulado Remissão, o leitor<br />
acompanha o retorno de um filho,<br />
após anos de ausência, à cidade natal,<br />
por conta do enterro de seu velho<br />
e austero pai. A relação conflituosa<br />
entre ambos dá o tom do reencontro:<br />
Aproximei-me do corpo (...) e<br />
num ato obtuso de superioridade,<br />
não o toquei (...) Suas mãos entrelaçadas<br />
sobre o peito também não<br />
se moveriam.<br />
Em poucas páginas harmonizam-se<br />
as sensações oscilantes<br />
do filho, suas reminiscências e as<br />
impressões algo ácidas da cidade<br />
modernizada:<br />
No terreno vizinho, onde<br />
naqueles tempos existiu uma pasteurizadora<br />
de leite, hoje há uma<br />
universidade particular, dessas<br />
pasteurizadoras de diplomas.<br />
Nasceu em 1973, em São Paulo<br />
(SP), cidade onde mora. É autor dos<br />
romances O espúrio e Corifeu<br />
assassino. É cronista da Revista ZN. Em<br />
2008, recebeu o prêmio Lima Barreto –<br />
Novos talentos da Literatura.<br />
É a imagem que se impõe ao<br />
filho pródigo que, tardando o reencontro<br />
fúnebre, vai até a padaria em<br />
frente buscar num espresso uma<br />
evocação proustiana de uma época<br />
tão morta quanto o pai. Busca vã,<br />
pois o moderno espresso não reproduz<br />
o sabor de um rústico coador.<br />
Aqui, como em todas as peças<br />
que compõem a obra, as relações<br />
humanas são acres ou ambíguas,<br />
em especial as familiares, cuja problemática<br />
põe em segundo plano o<br />
velho conflito do indivíduo/meio<br />
(esboçado em contos como O operário<br />
da arte). Aliás, muito além<br />
de um competente estudo dessas<br />
relações, Remissão sintetiza bem<br />
os principais temas da obra, pondo<br />
já em relevo a figura quase onipresente<br />
em suas partes: o pai.<br />
De fato, a figura paterna sobressai<br />
aos demais elementos do<br />
livro. É, no entanto, um tema de<br />
muitas variações, indo do ressentimento<br />
explícito (Remissão,<br />
Domingos, O quarto dos fundos)<br />
à empatia e identificação (Lembranças,<br />
Alvitre, A pura, vida).<br />
Mais notável é essa figura suscitar<br />
um exercício de resignificação dos<br />
signos do passado ao narrador; a<br />
título de exemplo, o conto Domingos,<br />
que é uma extensa lembrança<br />
evocada pela memória involuntária,<br />
focaliza a relação da tríade<br />
neto-mãe-avô nos dias dominicais<br />
na casa deste. O perspectivismo do<br />
neto/narrador e da mãe envolve a<br />
figura do avô numa neblina espessa,<br />
convidando o leitor a preencher<br />
as lacunas de seu passado.<br />
Seria possível encontrar uma<br />
unidade simbólica entre as variações<br />
do tema? O que une o severo<br />
dono de casa, o polígamo inveterado,<br />
o utilitarista inflexível e o intransigente<br />
“pai-patrão”?<br />
Uma hipótese seria o assassínio<br />
simbólico do passado (a figura<br />
paterna está presente apenas enquanto<br />
lembrança em muitos dos<br />
contos), ao mesmo tempo em que<br />
uma reinterpretação dele, a fim de<br />
que a superação dos traumas consolide<br />
uma maturação existencial.<br />
As “reminiscências” transcendem<br />
esse embate. Suas dimensões<br />
se ampliam com a temática da velhice<br />
e das transmutações pelas quais<br />
passa o meio urbano, a sepultar os<br />
cenários (e com eles os momentos)<br />
de tanta vida plena (o conto A voz<br />
da experiência); a sepultar mesmo<br />
os sonhos do eu passado, e por consequência<br />
o próprio eu (Amanhã,<br />
um outro dia e A volta).<br />
Eis a real dimensão do termo.<br />
Estilo<br />
A escrita de Nocelli é a expressão<br />
acabada de sua concepção das<br />
relações humanas: seca, sem adornos.<br />
É significativo que personagens<br />
como o velho ranzinza do conto<br />
Planária se expressem através de<br />
períodos curtos. Mas a segurança<br />
no lidar com a linguagem não está<br />
só nessa relação forma/conteúdo.<br />
Ela também se traduz no jogo hábil<br />
(e algo lúdico) com as palavras:<br />
De repente ela aparecia, fumando<br />
na janela (...) me proporcionava<br />
admirar os pequenos,<br />
porém, rijos, empinados, eretos e<br />
arrogantes seios que ficavam na<br />
altura do parapeito.<br />
Moderação é a palavra de ordem,<br />
abarcando o uso de metáforas<br />
e (infelizmente) o recurso mais<br />
atraente de Reminiscências: as<br />
associações entre elementos díspares<br />
como a fresa e o violino em O<br />
operário da arte, a velhice e a lesma<br />
em Planária, etc.<br />
Tal moderação elide o excesso,<br />
tornando efetivo o que é<br />
expresso, como no trecho acima<br />
que seria apenas outra estória obsessiva<br />
de um quarentão por uma<br />
ninfeta, não fosse o dado essencial:<br />
o personagem perdera a mãe aos<br />
três meses, guardando como única<br />
lembrança seus belos seios...<br />
Há que se admirar tais nuances<br />
narrativas que o artista imprime<br />
à obra, ampliando interpretações.<br />
Fomento às virtudes da<br />
boa leitura. E embora o milagre<br />
tchekhoviano, citado por Mann,<br />
não esteja em seu campo de visão,<br />
Reminiscências, trilhando o caminho<br />
da narrativa convencional,<br />
comprova a perícia de um autor,<br />
iniciante no conto, com seu instrumento<br />
de trabalho.
169 • maio_ 2014<br />
15<br />
PALAVRA POR PALAVRA : : Raimundo Carrero<br />
Literatura é imagem, cena e metáfora<br />
ção no tratamento de<br />
romances — ou prosa de<br />
ficção — metafóricos, sobretudo na<br />
questão política, optando, quase<br />
sempre pelo documento, a sociologia<br />
ou a antropologia e o panfleto,<br />
deixando o artesanato de fora,<br />
apesar de autores monumentais do<br />
porte de Guimarães Rosa, Clarice<br />
Lispector, Osman Lins ou até Machado<br />
de Assis no século 19.<br />
Por isso, tornou-se comum<br />
tratar das questões da ditadura no<br />
panfleto, na denúncia pura ou sistemática,<br />
ou naquilo que se convencionou<br />
chamar de romance-<br />
-reportagem e romance-denúncia,<br />
jornalismo com jeito de literatura<br />
que servia, diretamente, aos objetivos<br />
políticos. Numa trilha muito<br />
pessoal e particular, surgiu o escritor<br />
goiano José J. Veiga, aí pela década<br />
de 1960, com seus romances<br />
metafóricos, de grande qualidade<br />
literária, mas hoje basicamente<br />
desconhecido dos leitores.<br />
QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />
A<br />
literatura brasileira não Sombras de reis barbudos<br />
é um grande romance<br />
COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO<br />
tem uma grande tradi-<br />
metafórico<br />
ou simbólico, como foi rotulado<br />
na época, embora seja um livro<br />
da mais alta qualidade. Conta a<br />
história de opressão, pânico e falta<br />
de liberdade numa cidadezinha do<br />
interior, pela ótica de um jovem e,<br />
por isso mesmo, ainda mais opressiva.<br />
Na falta de material analítico,<br />
a crítica chamou-o também<br />
de livro fantástico ou de literatura<br />
fantástica, embora a rigor não seja<br />
uma coisa nem outra. Sombras<br />
de reis barbudos é apenas um<br />
romance, e um romance de alta<br />
qualidade artística, como de resto<br />
são os romances de Kafka.<br />
Quando Kafka diz na Metamorfose<br />
que K. acordou transformado<br />
num inseto está realizando<br />
aquilo que se pode chamar<br />
verdadeiramente de obra de arte.<br />
Se escrevesse que K. acordou angustiado,<br />
humilhado, derrotado,<br />
teria feito um bom texto, sem dúvida,<br />
mas não passaria de jornalismo<br />
ou de ensaio. O ensaio diz as<br />
coisas como elas são, num sentido<br />
direto e definitivo, mas a literatura<br />
inventa, recria, estabelece tensão<br />
artística. Transformar o personagem<br />
num inseto faz com que ele<br />
atinja um grau superior de interpretação,<br />
de invenção e provoca,<br />
sem, dúvida, um número imenso<br />
de interpretações.<br />
Um homem angustiado e<br />
humilhado é só um homem angustiado<br />
e humilhado, com força<br />
literária, sem dúvida. Mas falta-lhe<br />
qualidade artística. A qualidade<br />
transformadora. Um inseto é, em si<br />
mesmo, um inseto abjeto, nojento;<br />
portanto, na visão humana, derrotado,<br />
asqueroso. Como imagem, e<br />
literatura é imagem, transmite a visão<br />
caótica e dramática do homem.<br />
Assim também funciona a<br />
obra de Clarice Lispector, cuja força<br />
superior está nas imagens e nos<br />
símbolos. A personagem de A paixão<br />
segundo G. H. come e vomita<br />
uma barata. Não poderia haver<br />
imagem maior para definir o nojo<br />
e a rejeição do mundo. Se ela escreve<br />
que a personagem vomitava o<br />
mundo talvez construísse também<br />
um texto muito forte, mas estaria<br />
fazendo jornalismo, por mais estranho<br />
que pareça.<br />
A literatura se realiza, assim,<br />
no plano dos signos e das insígnias.<br />
E quando se trata de literatura,<br />
é preciso estar atento. Quando<br />
escrevi A história de Bernarda<br />
Soledade, que marca o início da<br />
minha vida literária, queria, com<br />
certeza, me engajar no Movimento<br />
Armorial, mas precisava de elementos<br />
para criticar a opressão e o<br />
medo, sem necessariamente fazer<br />
um discurso jornalístico ou ensaístico.<br />
Era, também, e ao meu modo,<br />
uma crítica ao regime autoritário<br />
vigente. Por isso fui buscar os elementos<br />
da cultura popular nordestina.<br />
Nada mais enriquecedor e<br />
verdadeiro. Segui, de propósito, as<br />
lições do mestre Ariano Suassuna,<br />
de quem sou discípulo orgulhoso.<br />
Usei, em primeiro lugar, a<br />
figura feminina de Bernarda para<br />
evitar o lugar-comum do coronelismo<br />
sertanejo, de forma a criar uma<br />
imagem do poder e, mais ainda, da<br />
sedução do poder. Ao lado dela coloquei<br />
outras duas mulheres — Inês<br />
e Gabriela, significando aí a liberdade<br />
— Inês aparece, quase sempre<br />
nua e desafiadora —, e a loucura do<br />
sonho e da ilusão — Gabriela é uma<br />
velha que atravessa os campos cantando,<br />
com os braços levantados,<br />
sempre vestida de noiva.<br />
Bernarda impõe o que ela<br />
chama de ordem, exige que todas<br />
as terras e que todos seus animais<br />
sejam seus. Torna-se dona<br />
de todos os homens e de todas as<br />
mulheres. Além disso, os animais<br />
têm vida depois de mortos. Uma<br />
história metafórica, que a editora<br />
francesa chama agora de “um<br />
western brasileiro, com toques de<br />
realismo mágico”.<br />
O que importa, para mim,<br />
é que a literatura, a verdadeira e<br />
sagrada literatura, se realiza no<br />
plano artístico do simbólico e do<br />
metafórico, tornando possível o<br />
sonho e a ilusão.<br />
O esboço de um livro<br />
: : Rodrigo Casarin<br />
São Paulo – SP<br />
O<br />
objeto livro é a principal<br />
plataforma (ao menos<br />
ainda) para a publicação<br />
da literatura. Contudo,<br />
qual seria a máxima relação<br />
entre um livro e uma obra literária?<br />
Não digo um entrar com o entorno<br />
e as páginas e o outro com o conteúdo,<br />
isso já é o que acontece. E se<br />
dados vitais do texto estivessem no<br />
ISBN ou na ficha catalográfica? E<br />
se a ilustração da capa ou as inscrições<br />
da lombada contivesse informações<br />
essenciais para que a história<br />
seja entendida? E se um detalhe<br />
fundamental sobre o cenário, algo<br />
que explica muitas das ações dos<br />
personagens, estivesse naquela<br />
última página, no meio do “este livro<br />
foi composto em papel x para<br />
a editora y e impresso na gráfica h<br />
no outono do ano tal”? Mais, e se o<br />
tipo de papel estivesse diretamente<br />
relacionado com o enredo? Estaríamos<br />
indo além da literatura, conciliando<br />
a arte com o objeto livro em<br />
uma simbiose total.<br />
Faço essas perguntas provocado<br />
pela leitura de O bibliotecário<br />
do imperador, de Marco Lucchesi.<br />
Não que a obra apresente alguma<br />
dessas “contravenções”, mas<br />
um ponto me levou à divagação. A<br />
história começa com um prefácio do<br />
revisor. Prefácios são comuns, mas,<br />
de revisores, bastante raros (para<br />
falar a verdade, nunca tinha visto<br />
nenhum). Mais, ao final, não há<br />
assinatura do prefácio. Ainda mais,<br />
o prefácio é precedido por um “1”<br />
bem grande, iniciando a contagem<br />
dos capítulos. Ou seja, o espaço destinado<br />
ao comentário que antecede<br />
a obra foi incorporado à narrativa.<br />
Pode não ser a coisa mais original<br />
do mundo, mas é algo bastante raro<br />
— o que é bom, convenhamos.<br />
Nele, o revisor, que assume<br />
pouco entender de literatura moderna,<br />
faz algumas ponderações ao<br />
livro que está por vir. Compara a<br />
obra com outras que cansou de revisar,<br />
afirma que ela não tem foco e<br />
está alicerçada sobre terreno incerto<br />
e movediço, diz que o autor “não<br />
entende quase nada sobre muita<br />
coisa”. Como se quisesse desencorajar<br />
o leitor — a quem faz elogios<br />
protocolares —, dispara: “Descobre-se<br />
que o livro, que antes parecia<br />
um rio caudaloso, não passa de<br />
um logro, de um simples riacho,<br />
quase sem água. Tentei preveni-<br />
-lo [o autor], mas sua vaidade não<br />
permitiu sequer uma troca de palavras”.<br />
E termina com uma frase típica<br />
dos saudosistas: “Sinto sauda-<br />
O bibliotecário<br />
do imperador<br />
Marco Lucchesi<br />
Biblioteca Azul<br />
112 páginas<br />
O AUTOR<br />
Marco Lucchesi<br />
É poeta, tradutor e ensaísta. Dentre outros,<br />
é autor de O dom do crime e A<br />
memória de Ulisses. Já venceu duas<br />
vezes o Prêmio Jabuti e ocupa a cadeira<br />
15 da Academia Brasileira de Letras.<br />
TRECHO<br />
O bibliotecário do<br />
imperador<br />
“— Perdão, Inácio, mas<br />
não vejo como possa<br />
ter ciúmes do passado e<br />
preencher as qualidades<br />
que me atribui. Pense bem,<br />
sou eu quem o trouxe de<br />
volta à vida, quem o tirou<br />
do limbo do tempo, quem<br />
o tornou contemporâneo,<br />
quem deu voz a seu fantasma,<br />
esse mesmo fantasma<br />
pelo qual os leitores<br />
de hoje sentirão um misto<br />
de entranhada piedade e<br />
admiração...<br />
des dos escritores antigos, dos que<br />
sabiam tecer uma narrativa densa<br />
e ao mesmo tempo ágil”.<br />
Essa intromissão do suposto<br />
revisor tem desdobramentos ao<br />
longo da obra. Em diversos momentos,<br />
o narrador procura se justificar<br />
para o revisor. Um exemplo:<br />
“E se me perco em devaneios, meu<br />
bom Revisor, se não vou direto ao<br />
ponto é porque não achei infelizmente<br />
o esqueleto de Inácio [o alvo<br />
da investigação que deveria mover<br />
a obra]”. Se não bastasse, em algumas<br />
oportunidades o revisor se<br />
torna um intruso e volta para discutir,<br />
por meio de notas de rodapé.<br />
A ideia até que é boa, mas a<br />
execução não funciona bem. Primeiro<br />
porque, no prefácio, o que<br />
o revisor-personagem escreve soa<br />
como uma justificativa, um mea-<br />
-culpa do autor pelo o que está por<br />
vir. Segundo, porque as discussões<br />
ao longo do texto são forçadas e inverossímeis.<br />
Não faz sentido autor<br />
e revisor discutirem durante a narrativa,<br />
da mesma forma que não faz<br />
sentido um revisor atacar o autor<br />
no livro deste, com aval até mesmo<br />
do editor. Soa inverossímil. Ao final,<br />
o intrometido acaba sendo um<br />
fantoche para que o autor consiga<br />
chamar a atenção para alguns momentos<br />
da história, como se utilizasse<br />
esse personagem para poder<br />
comentar e dar alguma complexidade<br />
ao seu próprio texto a partir<br />
de pontos de vista conflitantes.<br />
Alguma razão<br />
para o revisor<br />
Mas a obra de Lucchesi não<br />
se resume a essa questão, é claro.<br />
O bibliotecário do imperador é<br />
uma espécie de busca pela história<br />
de Inácio Augusto César Raposo,<br />
responsável por cuidar dos livros de<br />
dom Pedro II. Para tentar reconstruir<br />
a vida de Inácio, o narrador vai<br />
em busca de vestígios que mostram<br />
a relação do personagem com o objeto<br />
livro. Contudo, o sucesso é parco<br />
e o texto resulta numa espécie de<br />
biografia ficcional frustrada, apenas<br />
com um tatear da história, como um<br />
divulgação<br />
esboço da pessoa que teria sido Inácio.<br />
O próprio narrador/pesquisador<br />
define bem o rastro daquele que<br />
norteia o seu trabalho: é um “personagem<br />
à procura de um autor,<br />
porque precisa contar sua própria<br />
vida, como no drama de Pirandello,<br />
vestido de preto, náufrago de sua<br />
geração. E, no entanto, desapareceu<br />
de repente, como um fantasma,<br />
obrigando-me a persegui-lo nas raras<br />
pistas que encontrei”. Pistas que<br />
foram insuficientes.<br />
Essa busca frustrada, ancorada<br />
principalmente em documentos<br />
e cartas que aparecem aos montes<br />
(empobrecendo a narrativa), acaba<br />
por fazer com que o narrador pegue<br />
raiva de Inácio, o que rende alguns<br />
bons momentos, como o próprio<br />
narrador supondo que o “biografado”<br />
deixou parcos rastros apenas<br />
para que sua história não pudesse<br />
ser contada no futuro. “Vejo-me<br />
aborrecido com sua decisão de deixar<br />
a cena, pouco antes do fim do<br />
ato, longamente planejado e consumado,<br />
sem aviso prévio, fora de enredo,<br />
a produzir graves resultados<br />
ficcionais, trajando terno escuro,<br />
chapéu e casemira. Como se de mim<br />
suspeitasse, digamos, cem anos antes,<br />
e mais obstinado se mostrasse,<br />
e foragido, nas dobras do tempo,<br />
despistando sempre, apagando as<br />
provas, assaltando afrontosamente<br />
os bolsos do futuro”.<br />
Ao final, em um dos momentos<br />
mais interessantes do livro,<br />
Inácio aparece para discutir com<br />
o narrador, chamando-o diretamente<br />
de Marco Lucchesi. Não fica<br />
claro como o fenômeno metafísico<br />
se dá, mas ele resulta em um excelente<br />
diálogo no qual o biografado<br />
reclama do biógrafo por ter transformado<br />
parte de sua vida em um<br />
livro, o que nos remete à discussão<br />
de quem possui os direitos de<br />
uma história, da legitimidade de se<br />
narrar uma vida alheia sem que o<br />
objeto de inspiração e pesquisa autorize<br />
o escritor para tal.<br />
Não bastasse o revisor, o<br />
protagonista da história também<br />
não gosta da obra composta por<br />
Lucchesi, que é um livro razoável,<br />
com alguns bons momentos, algumas<br />
máximas interessantes (como<br />
“A biografia de um homem de livros<br />
encerra uma contradição. A<br />
vida e o livro são inimigos ferozes.<br />
Viver no seio da biblioteca reflete<br />
o isolamento de um bibliopata”),<br />
mas nada muito além disso, nada<br />
marcante. Vendo como o autor se<br />
utilizou de elementos em sua narrativa<br />
para, a todo momento, defender<br />
a obra, fico na dúvida se até<br />
mesmo Lucchesi não teria ressalvas<br />
a fazer sobre O bibliotecário<br />
do imperador.<br />
Contudo, para não ser injusto,<br />
ao final fiquei com outro pensamento:<br />
o que acontece com a história<br />
das pessoas comuns depois que<br />
elas, os amigos e parentes próximos<br />
se vão? Nós morreremos de verdade,<br />
definitivamente, quando mais<br />
nenhuma história sobre nós é contada<br />
ou lembrada. Então, se nossa<br />
vida está num livro, há uma chance<br />
a mais de continuarmos a viver. É<br />
algo para se pensar mais a fundo,<br />
discutir comigo mesmo — às vezes<br />
o Rodrigo e o Rodrigo se pegam<br />
feio aqui na mente — e, quem sabe,<br />
abordar em um texto futuro.
169 • maio_ 2014<br />
16 RUÍDO BRANCO : : Luiz Bras<br />
Pesquisa sobre a evolução<br />
literária no Brasil (13)<br />
Fizemos a destacados escritores, editores,<br />
críticos, professores e jornalistas culturais<br />
brasileiros a pergunta:<br />
• Tendo em vista a quantidade<br />
de livros publicados e a qualidade da<br />
prosa e da poesia brasileiras contemporâneas,<br />
em sua opinião, a literatura<br />
brasileira está num momento bom,<br />
mediano ou ruim?<br />
Alcir Pécora<br />
A meu ver não existe evolução literária,<br />
nem no Brasil, nem fora dele. Se há um lugar<br />
onde a ideia de evolução não funciona, esse é<br />
justamente o da literatura, e me surpreende<br />
que ninguém tenha tocado nisso até agora.<br />
Isso deve ser sinal de alguma coisa. Espero<br />
que não seja efeito de uma crença generalizada<br />
numa narrativa histórica teleológica, progressiva<br />
e etapista, em que o passado é a infância e<br />
o presente, o ápice. Fosse assim, seria sintoma<br />
daquilo que Hartog chamou de presentismo,<br />
pois submete o passado à ideia de pré — ou<br />
seja, como falta ou infância em relação ao presente<br />
— e enclausura a potência do futuro no<br />
imediatismo das escolhas contemporâneas.<br />
A ideia de evolução literária tem interesse<br />
muito reduzido no campo literário, por<br />
muitas razões:<br />
1) Trata-se de um campo que se constitui<br />
como de longa duração (para não falar<br />
em termos idealistas de eternidade ou transcendência).<br />
Isto é, alguns autores do passado<br />
continuam agora tão vivos e, por vezes, até<br />
mais influentes do que quando escreveram.<br />
Isso porque a interpretação deles, ao longo<br />
do tempo, se enriqueceu de muitas maneiras,<br />
tornando-os interlocutores necessários da<br />
compreensão de diferentes tempos e igualmente<br />
do presente. Sob muitos aspectos, podemos<br />
dizer que esses autores supostamente<br />
do passado determinam o presente, pois fornecem<br />
paradigmas para a interpretação dele;<br />
2) Não dá para falar seriamente em<br />
evolução porque o campo da cultura — constituído<br />
de obras de tempos diversos, alimentadas<br />
por interpretações várias e igualmente<br />
de tempos distintos — não tem uma direção<br />
única: as obras não estão correndo todas para<br />
o mesmo fim, como se fossem atletas numa<br />
pista estreita;<br />
3) O evolucionismo aplicado à cultura favorece<br />
uma ideia linear de cultura, como essa<br />
de corredores numa mesma baia, que começam<br />
bebês e terminam atletas triunfantes. A<br />
imagem é caricata propositalmente, porque a<br />
ideia é caricata: quem é o bebê aqui? Homero?<br />
Ésquilo? Virgílio? Dante? Petrarca? Camões?<br />
Shakespeare? Góngora? etc. etc. Quem é melhor<br />
do que quem? De que evolução se pode<br />
falar quando se pensa em nomes como esses?<br />
4) Não dá para evoluir para além da<br />
forma que cada grande autor efetivamente<br />
logrou produzir. Cada uma delas é única em<br />
si mesmo;<br />
5) O máximo que podemos dizer a respeito<br />
do conjunto das obras de arte é que todas<br />
elas têm alguma exigência do novo, mas<br />
o novo não é o que evolui em relação ao mais<br />
antigo, mas o que se indetermina em relação<br />
a ele, o que não pode ser deduzível dele, uma<br />
vez que produz uma forma que não estava<br />
prevista nos modelos anteriores. E como falar<br />
em evolução quando a condição do que segue<br />
é a indeterminação?<br />
6) Cada nova grande obra bagunça a<br />
ordenação hierárquica inteira do campo e o<br />
refaz de alguma maneira: o que parecia na<br />
frente vai para trás, quem estava do lado de<br />
um vai para o lado do outro, quem estava nos<br />
lugares mais iluminados vai para a sombra<br />
etc. etc. Quando falo em bagunçar os tempos<br />
da cultura, penso não apenas no tempo do<br />
presente, mas também nos do passado e do<br />
futuro: a obra realmente nova desarticula a<br />
cadeia evolutiva que não era natural, mas que<br />
estava naturalizada de forma indevida;<br />
QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />
COLUNISTAS<br />
ENSAIOS E RESENHAS<br />
DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />
EDIÇÕES ANTERIORES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />
7) Também as formas literárias não podem<br />
ser pensadas como evolução estrita de<br />
uma em relação às outras; ainda que elas se<br />
sobreponham, se cruzem, uma forma nunca é<br />
o resultado dedutivo do encontro das anteriores.<br />
Acidentes acontecem. O romance não é<br />
derivado das formas anteriores, mas uma resolução<br />
que apenas se compreende em obras<br />
particulares diversas, em diferentes momentos<br />
e situações históricas. A epopeia não pode<br />
ser posta na origem do manifesto de vanguarda,<br />
a não ser como metáfora interpretativa<br />
aplicada a casos particulares;<br />
8) Há muito mais o que dizer, mas me<br />
restrinjo à retomada de um ponto decisivo: boa<br />
parte da história das obras é contingencial e<br />
não resultado de uma intenção ou de uma superação.<br />
Originais extraordinários, que poderiam<br />
ter impacto decisivo, se perdem na chuva, nos<br />
baús, nas prisões, enfim, em desastres e imprevistos;<br />
outros papéis, secundários, passaram<br />
a ocupar lugares chaves e tiveram um papel<br />
histórico considerável; um incêndio matou um<br />
autor anônimo que finalizava uma grande obra,<br />
o suicídio de outro destruiu várias alternativas<br />
de futuro. Isso não é evolução, é contingência,<br />
catástrofe, sorte, fortuna, o que quiser.<br />
Enfim, me sinto como se começasse<br />
apenas uma conversa: escrevo velozmente, e<br />
me sinto profundamente culpado de não poder<br />
dedicar o tempo de reflexão que qualquer<br />
reflexão séria exige.<br />
Alcir Pécora é professor de literatura<br />
da Universidade Estadual de Campinas<br />
Chico Lopes<br />
A despeito dos desânimos e suplícios<br />
pelos quais passam os escritores novos, não<br />
publicados, que têm uma compreensível ansiedade<br />
com serem lidos, achando que a selva editorial<br />
está fechada para os seus tambores, acredito<br />
que o momento é de mediano para bom.<br />
Porque acho que, a rigor, não pode ser<br />
classificado de ruim um mundo editorial tão<br />
agitado por visões contraditórias, autores de<br />
todo tipo, livros de toda ordem, saindo, pedindo<br />
atenção. Pra ser justo com isso, os críticos<br />
teriam que ler muito, teriam que ler tudo, o<br />
que é praticamente impossível, e, na verdade,<br />
todos eles estão presos a certos nichos, predileções<br />
e grupos, o que também é inevitável. O<br />
fenômeno é daqueles cuja amplidão impele à<br />
modéstia e à cautela nos diagnósticos.<br />
O que me parece é que os escritores brasileiros<br />
deveriam ter menos medo da literatura<br />
de gênero, praticar o policial, o suspense, o terror,<br />
a fantasia, a ficção científica, serem menos<br />
geniais e terem mais peito pra concorrer com<br />
um mercado estrangeiro em que muita coisa<br />
medíocre, mas capaz de entreter, dá o tom.<br />
Isso não seria necessariamente ceder ao<br />
tom comercial predatório, seria ter um pouco<br />
menos de pretensão e prestar mais atenção<br />
ao que os leitores (que, afinal, nem são tantos)<br />
procuram. Mas já é generalizada a percepção<br />
de que não faz muito sentido manter<br />
um elitismo daqueles de nariz empinado para<br />
o cheiro de concessão prostituída do mercado.<br />
Os autores brasileiros querem ser lidos,<br />
percorrem pequenos e grandes circuitos de<br />
palestras, participam de concursos, não perdem<br />
oportunidades aqui e ali, e desejam para<br />
seus livros difíceis o que todos desejam: leitores<br />
atentos ou meros fruidores, o que seja.<br />
O que se tem a fazer é aperfeiçoar o<br />
mercado, injetar nele ansiedades estéticas<br />
um tanto mais refinadas, mas jamais pretender<br />
que ele seja a Grande Besta digna de<br />
uma única coisa: bombardeios. Há muita impotência<br />
chorona e pouco digna de confiança<br />
em muitos autores que não fazem sucesso. O<br />
darwinismo do mercado os apavora, mas em<br />
nenhum sistema literário do mundo haverá<br />
quem não alimente queixas.<br />
As pequenas editoras querem crescer,<br />
e merecem estímulo e uma situação menos<br />
desesperadora, muitos autores bons querem<br />
publicação, e a merecem. O pântano do comércio<br />
pode ser horrendo, mas todos têm<br />
que passar por ele. E, mesmo quem não for<br />
capaz de atrair editores, não deve jamais desistir<br />
de aperfeiçoar sua obra em silêncio e invisibilidade,<br />
porque, no mínimo, viverá para<br />
o prazer que sua criação dá.<br />
Chico Lopes é autor de O estranho<br />
no corredor (Editora 34)<br />
PRATELEIRA : : NACIONAL<br />
QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />
COLUNISTAS<br />
ENSAIOS E RESENHAS<br />
DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />
RES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />
A caminhada ou o<br />
homem sem passado<br />
Roberto Nicolato<br />
Blanche<br />
112 págs.<br />
O professor Júlio Saboia está<br />
completamente sem memória. Em<br />
busca de sua identidade, parte para<br />
uma viagem pelos locais sagrados<br />
da Bolívia e do Peru, entre eles o<br />
sítio arqueológico de Tiahuanaco e<br />
Machu Picchu, carregando apenas um<br />
mapa e as passagens. No decorrer da<br />
história, fica na companhia de uma<br />
amante boliviana, de um pesquisador<br />
brasileiro e à mercê da paixão de uma<br />
mulher obsessiva. Livro de estreia do<br />
jornalista e professor Roberto Nicolato.<br />
Outros 40<br />
Arnaldo Antunes<br />
Org.: João Bandeira<br />
Iluminuras<br />
176 págs.<br />
Arnaldo Antunes se consagrou<br />
como vocalista da banda de rock<br />
Titãs, mas sua produção artística é<br />
multifacetada. Neste livro, organizado<br />
pelo amigo João Bandeira, são 40<br />
textos que se concentram em música,<br />
poesia e literatura, onde Antunes<br />
impulsiona o pensamento através do<br />
seu dom de equilíbrio-desequilíbrio<br />
entre o espantosamente óbvio e o<br />
evidentemente estranho. 40 escritos<br />
foi a primeira coletânea organizada;<br />
agora, Outros 40.<br />
Lorde<br />
João Gilberto Noll<br />
Record<br />
128 págs.<br />
Talvez experimentar o diferente seja<br />
a melhor forma de se autodescobrir.<br />
No aeroporto de uma Inglaterra<br />
gelada, um escritor brasileiro não<br />
sabe o que aguarda. Recebera<br />
de um homem misterioso um<br />
convite, as passagens, a oferta de<br />
hospedagem e embarcara. Em seu<br />
destino, transita pelas ruas, hospitais,<br />
hotéis e estabelece relações com<br />
passageiras desconhecidas. Mas, em<br />
suma, só trocou a solidão que vivia<br />
no Brasil pela mesma solidão na<br />
Inglaterra.<br />
Reforma na paulista e<br />
um coração pisado<br />
Elisa Andrade Buzzo<br />
Oitava Rima<br />
272 págs.<br />
Livro de crônicas organizado em<br />
três partes: Horizontes, Vidas e<br />
Tempos. Para a autora, as janelas<br />
constituem o observatório de suas<br />
reflexões — seja do ônibus, do<br />
carro, do apartamento. Com olhar<br />
clínico, tudo se torna prosa: o balé<br />
dos coletivos lotados, um passeio<br />
no shopping a fim de provar um<br />
cupcake, reflexões sobre o outono<br />
preenchendo o vão dos prédios,<br />
tornando a noite colorida numa<br />
cidade cinza como São Paulo.<br />
A grande roda de histórias<br />
Nélio Spréa e Milton Karam<br />
Ilustrações: Katia Horn<br />
Parabolé<br />
144 págs.<br />
Doze histórias inspiradas em relatos<br />
reais. A coletânea surgiu de um projeto<br />
organizado pela Fundação Cultural<br />
de Curitiba em 2012, com a proposta<br />
de fazer 50 sessões de contação de<br />
histórias. Reunião de personagens<br />
emblemáticos, surgidos de relatos<br />
como os de Diva dos Anjos Canuto,<br />
que contou o dia em que seu esposo<br />
foi atacado por um galo; e de Andréa<br />
Regina Portela dos Santos, que relatou<br />
a ida falha dos seus parentes a um<br />
velório: foram ao cemitério errado.<br />
Pow-emas e outros<br />
jabs líricos<br />
Edson Valente<br />
Patuá<br />
95 págs.<br />
Carta ao filho — Ninguém<br />
ensina a ser mãe<br />
Betty Milan<br />
Record<br />
159 págs.<br />
Gol esquecido —<br />
Contos de futebol<br />
Mayrant Galo<br />
A Girafa<br />
96 págs.<br />
Autópsia do bípede<br />
Marco Polo Guimarães<br />
Confraria do Vento<br />
168 págs.<br />
Dez fitas e um tornado<br />
Teresa Urban<br />
Arte & Letra<br />
200 págs.<br />
Versos peculiares sobre o pai, ídolos,<br />
paternidade, viagem, capital da<br />
Bélgica, Mickey Mouse e um clipe do<br />
Joy Division. O chulo e o sagrado se<br />
unem. Nos títulos, até arrisca inglês<br />
e francês. Bate onde dói. Escreve<br />
sobre amor, tema maior de nossas<br />
jornadas existenciais, de forma atual<br />
e com personalidade. O poeta está<br />
no corner e se prepara, aferindo os<br />
batimentos cardíacos do texto, já<br />
sabendo que sempre haverá nocaute.<br />
Neste texto biográfico, a autora se<br />
pergunta como poderia ter evitado<br />
todos os erros que cometeu. Deixandose<br />
nortear pela pergunta, escreve para<br />
o filho e remonta a história dos dois<br />
a fim de descobrir a resposta. Entre<br />
vários relatos, a exposição de sua vida<br />
sentimental para o filho. Betty arrebata<br />
com uma reflexão sobre a mãe e a<br />
mulher, inteiramente calcada no que<br />
viveu. Aqui não há o tabu da boa mãe<br />
infalível.<br />
Contos curtos, direcionados ao esporte<br />
mais popular do Brasil, inspirados pela<br />
poesia mística dos noventa minutos de<br />
uma partida de futebol. Potencializando<br />
emoções, literatura e esporte se<br />
unem. Não só do futebol, porém, é<br />
sustentada a narrativa: conversas em<br />
bares são imprescindíveis para debater<br />
aquela jogada ou o desempenho do<br />
companheiro; na esquina, conversa sobre<br />
garotas; o drama de ser expulso logo nos<br />
primeiros cinco minutos; e muito mais.<br />
Estreia de um poeta no mundo dos<br />
contos. Enredos breves e constante<br />
estranheza. Os personagens não<br />
precisam de nomes, nem dependem<br />
de cenários para existirem; como<br />
protagonistas, suas esquisitices.<br />
Nas memórias de Adriano, o garçom<br />
é espanhol e Deus é doido; nos<br />
minicontos, o político pedófilo é pego,<br />
um novo método de faltar o trabalho,<br />
impulsos animalescos de morder<br />
nádegas e a sorte de não ser atingido<br />
por um boeing.<br />
José Suçuarana é órfão de pai e mãe<br />
por opção. Sua data de nascimento<br />
é incerta e seu sobrenome, um mero<br />
apelido de infância. Mesmo com o<br />
poder de impressionar a academia<br />
norte-americana, continua submisso<br />
cultural e psicologicamente ao<br />
coronelato formador de nossa<br />
nação. No pouco tempo de vida que<br />
lhe resta, grava dez fitas contando<br />
sua vida, endereçadas a Alícia,<br />
militante de esquerda durante a<br />
ditadura militar.
apresenta<br />
BRASIL<br />
Curitiba 25 e 26 Abril<br />
Salvador 9 e 10 Maio<br />
São Paulo 23 e 24 Maio<br />
Rio de Janeiro 6 e 7 Junho<br />
Curitiba<br />
Abdelkader Djemaï Argélia<br />
Cristovão Tezza Brasil<br />
José Castello Brasil<br />
Juan Pablo Villalobos México<br />
Kim Young-Ha Coreia do Sul<br />
Luci Collin Brasil<br />
Mohsen Emadi Irã<br />
Rogério Pereira Brasil<br />
Salvador<br />
Ana Maria Gonçalves Brasil<br />
Carlinhos Brown Brasil<br />
Dama Bete Portugal<br />
Elicura Chihuailaf Chile<br />
Jean-Yves Loude França<br />
Jorge Portugal Brasil<br />
Margareth Menezes Brasil<br />
Marta Quiñónez Colômbia<br />
São Paulo<br />
Alessandro Buzo Brasil<br />
Binho Brasil<br />
Inês Bortagaray Uruguai<br />
Jacob Sam La Rose Inglaterra<br />
Jive EUA<br />
Peter Demant Holanda<br />
Roberta Estrela D´Alva Brasil<br />
Sérgio Vaz Brasil<br />
Rio de Janeiro<br />
Achille Mbembe Camarões<br />
Chacal Brasil<br />
Fabián Casas Argentina<br />
Francisco Bosco Brasil<br />
Marcus Faustini Brasil<br />
Nils Straatman Alemanha<br />
Tatiana Salem Levy Brasil<br />
Conferências<br />
Bernardo Buarque de Holanda<br />
Eduardo Jardim<br />
Eric Nepomuceno<br />
Iza Grispun<br />
Marcos Alvito<br />
Paulo Ribeiro<br />
Rosa Maria Vieira<br />
Yolanda Lobo<br />
APRESENTAÇÃO<br />
PARCERIA<br />
REALIZAÇÃO
18<br />
169 • maio_ 2014<br />
Tediosa floresta<br />
A AMAZÔNIA MISTERIOSA, de Gastão Cruls, é um romance inverossímil e repleto de figuras despersonalizadas<br />
:: Rodrigo Gurgel<br />
São Paulo – SP<br />
Agrippino Grieco escreveu<br />
que o romance A Amazônia<br />
misteriosa, de<br />
Gastão Cruls, lançado<br />
em 1925, é um “livro de sólida ossatura,<br />
com algo de Kipling, Conrad<br />
e Chadourne”. O elogio, bem mais<br />
longo, publicado em Evolução da<br />
prosa brasileira, de 1932, não é<br />
apenas imprudente, mas revela o<br />
lado desagradável, aético, dos sistemas<br />
literários, incluindo o brasileiro,<br />
pois Grieco e Cruls eram sócios,<br />
proprietários da Editora Ariel,<br />
criada em 1930. Essa construção<br />
artificial de celebridades, ainda que<br />
empolgue as panelinhas e, talvez,<br />
facilite temporariamente a venda<br />
dos livros, dura, entretanto, como<br />
dizem os espanhóis, un rato.<br />
De qualquer maneira, não<br />
importa que o louvor exagerado<br />
prenuncie um romance repleto de<br />
problemas ou deficiências — é preciso<br />
ir além da desconfiança, gastar<br />
alguns reais, abrir o livro e conceder<br />
ao escritor a oportunidade de<br />
comprovar que seu amigo não foi<br />
desleal com os possíveis leitores.<br />
Ética e personagens<br />
Em A Amazônia misteriosa,<br />
Cruls tenta recontar, sob o ponto<br />
de vista tupiniquim, o romance<br />
de ficção científica A ilha do Dr.<br />
Moreau, de H. G. Wells, publicado<br />
em 1896, obra de caráter darwinista,<br />
na qual o autor discute os limites<br />
éticos da manipulação biológica de<br />
animais e seres humanos — prática<br />
que hoje recebe o nome eufemístico<br />
de “engenharia genética”.<br />
Depois de se perder durante<br />
uma caçada, o narrador de Cruls<br />
acaba isolado em algum ponto da<br />
Hileia, numa tribo composta unicamente<br />
de mulheres, as mitológicas<br />
amazonas que o explorador espanhol<br />
Francisco de Orellana afirmou<br />
ter visto em 1541. Ali, depara-se<br />
com uma utopia silvícola, na qual, a<br />
depender da idade, cada mulher desempenha<br />
uma função predeterminada.<br />
Tudo é perfeito: da arquitetura<br />
— “habitações bem construídas,<br />
ruas regulares, estradas largas, e<br />
até o arremedo de praças e jardins,<br />
onde muitas árvores deveriam ter<br />
sido plantadas pela mão do homem”<br />
— às relações sociais, estratificadas<br />
e plenas daquele desprendimento<br />
feliz que, segundo os socialistas, deveríamos<br />
sentir enquanto o garrote<br />
do Estado nos estrangula.<br />
Tal lugar paradisíaco não teria<br />
nascido, contudo, sem uma história<br />
sanguínea: no século 16, as predecessoras<br />
das amazonas, ao saberem<br />
da prisão do grande inca Atahualpa<br />
e da vitória dos conquistadores<br />
espanhóis, liderados por Francisco<br />
Pizarro, decepcionadas com a derrota<br />
sofrida pelos maridos, mataram<br />
os filhos de sexo masculino e<br />
fugiram pela “vertente oriental dos<br />
Andes”, vindo cair em plena Amazônia.<br />
Apesar do desprezo que, no<br />
romance, alimentam em relação aos<br />
homens, uma vez por ano, na “Festa<br />
das Pedras-Verdes”, recebem os<br />
varões para um rito que, depois de<br />
algumas horas, se transforma numa<br />
orgia carnavalesca, afinal essas feministas<br />
ainda obedecem à libido<br />
ou à lei da preservação da espécie.<br />
É nesse lugar idílico que o<br />
narrador se depara com Hartmann,<br />
médico alemão que, a princípio, esconde<br />
os motivos de estar ali há oito<br />
anos. No entanto, após rápida investigação,<br />
nosso protagonista descobre<br />
as experiências que ele realiza<br />
com crianças e adultos, dando vida<br />
a mutações excêntricas ou, prática<br />
mais simples, alterando, por meio<br />
de uma lobotomia específica, os centros<br />
cerebrais da fala e da memória.<br />
Apesar das aberrações criadas<br />
pelos experimentos — o que<br />
pode nascer, por exemplo, de um<br />
óvulo humano fecundado com o<br />
esperma do macaco-aranha? —, a<br />
discussão ética surge frágil, pífia,<br />
pois o narrador-protagonista não<br />
passa de um pusilânime que deseja<br />
ficar bem com todos:<br />
Achei de bom alvitre mostrar-me<br />
de perfeito acordo com o<br />
seu ponto de vista, e, dali por diante,<br />
já de regresso, mas sempre conversando<br />
animadamente, só tive<br />
aplausos para os seus trabalhos.<br />
Aliás, esses trabalhos eram de tal<br />
relevância e tão grandes e inesperadas<br />
as novas aquisições trazidas<br />
à ciência que, tirante a desumanidade<br />
dos processos experimentais,<br />
não haveria quem os deixasse de<br />
elogiar. Elogiei-os, portanto, na<br />
certeza de que não comprometia<br />
de todo a minha sinceridade e com<br />
a esperança de, assim, mais fácil,<br />
talvez, me fosse a liberdade.<br />
Não há espaço para crises ou<br />
conflitos no romance. O protagonista<br />
se refestela em seus divertimentos<br />
bucólicos, a possível discussão<br />
ética é jogada no limbo e os personagens,<br />
hábeis contemporizadores,<br />
simplesmente seguem a vida, cada<br />
um divertindo-se em seu universo<br />
particular — enquanto as corajosas<br />
amazonas caçam, pescam, plantam<br />
e se comportam de forma servil.<br />
O desejo de fuga desse paraíso<br />
inverossímil surge quando a<br />
esposa de Hartmann, Rosina, que<br />
se torna amante do narrador, praticamente<br />
impõe a decisão, pois<br />
o médico planeja usá-la em suas<br />
experiências. Mesmo a relação<br />
adúltera é descrita de forma inconsistente,<br />
superficial — e o máximo<br />
de emoção que o escritor consegue<br />
oferecer são parágrafos cujo estilo<br />
remonta ao século 19:<br />
Filtrava-me no sangue a<br />
exultação da natureza ambiente<br />
e as minhas narinas arfavam<br />
sentindo um aroma delicioso.<br />
Seria o perfume do seu corpo ou<br />
a fragrância das corolas recém-<br />
-abertas, da erva tenra e dos frutos<br />
maduros? E os nossos lábios se<br />
colaram num longo beijo...<br />
Um só personagem tem vida<br />
própria, individualidade, e se expressa<br />
de maneira natural: Pacatuba,<br />
fiel companheiro do narrador,<br />
nordestino eternamente arrependido<br />
da viagem e saudoso de sua<br />
gente. Esperto, logo percebe o mal<br />
que se esconde sob a aparência solícita<br />
de Hartmann; e quando é informado<br />
das experiências, conclui:<br />
— Eu não lhe dizia que aquele<br />
não-sei-que-diga tinha de ser muito<br />
miserável? Aqueles olhos de xexéu<br />
não enganam. Lá nos meus mundos<br />
a gente já sabe, tipo de olho<br />
azul não presta, tem temperamento<br />
muito sanguinário. Seu doutor entende<br />
como é? Não presta não...<br />
E, como eu o interpelasse, a<br />
respeito do que pensava da nossa<br />
situação, caso tivéssemos mesmo<br />
de ficar prisioneiros, ele respondeu-me:<br />
— Que é que eu penso? Eu<br />
não penso nada... — E, depois de<br />
uma ligeira pausa em que parecia<br />
querer se recordar de alguma coisa:<br />
— Olhe! E recitou-me:<br />
A desgraça do pau verde<br />
É ter um seco encostado,<br />
Vem o fogo, dá no seco,<br />
E fica o verde queimado.<br />
Logo a seguir, inquiriu-<br />
-me: — Seu doutor entende como<br />
é? — Fiz que não com a cabeça, e<br />
ele concluiu: — Pois é. O pau verde<br />
sou eu... O doutor foi vigiar as<br />
bruxarias desses barbaças e agora<br />
paga o justo pelo pecador.<br />
Movido por incrível senso<br />
prático, medroso, bem-humorado,<br />
parcial, religioso, fiel ao poder das<br />
O AUTOR<br />
Gastão Luís Cruls<br />
Nasceu no Rio de Janeiro<br />
(RJ), em 4 de abril de 1888,<br />
e faleceu na mesma cidade,<br />
em 7 de junho de 1959.<br />
Diplomou-se pela Faculdade<br />
de Medicina do Rio,<br />
exercendo posteriormente<br />
funções de médico<br />
sanitarista no Ministério da<br />
Educação e Saúde. Publicou<br />
seus primeiros contos na<br />
Revista do Brasil e por volta<br />
de 1917 frequentou o círculo<br />
de Antônio Torres, de quem<br />
se tornou grande amigo. De<br />
1931 a 1938, dirige o Boletim<br />
de Ariel, revista bibliográfica<br />
cujo redator-chefe era<br />
Agrippino Grieco. No âmbito<br />
da ficção, deixou: Coivara<br />
(contos, 1920); Ao embalo<br />
da rede (contos, 1923); Elisa<br />
e Helena (1927, romance); A<br />
criação e o criador (1928,<br />
romance); Vertigem (1934,<br />
romance); História puxa<br />
história (1938, contos); e De<br />
pai a filho (1954, romance).<br />
TRECHO<br />
A Amazônia misteriosa<br />
“De espaço a espaço,<br />
mas sempre em imensas<br />
chusmas, os passarões<br />
calavam-se serenamente<br />
do azul e de asas ao pairo,<br />
revoluteando em lindos<br />
voos espiralados, vinham<br />
ter às nossas vizinhanças.<br />
Era tal a profusão dos<br />
corpos brancos que se<br />
diria uma abundante e<br />
singular nevada, caindo<br />
de chofre sobre as galas<br />
da natureza verde.<br />
rezas e das mezinhas, Pacatuba é o<br />
único homem — no sentido de ter<br />
sentimentos, fraquezas, perplexidades,<br />
etc. — em todo o romance.<br />
Linguagem<br />
O que não seria problema nas<br />
mãos de um bom escritor transforma-se,<br />
na pena de Gastão Cruls,<br />
em obstáculo intransponível: o livro<br />
foi escrito sem que ele conhecesse<br />
o Norte do país, a não ser<br />
“através de numerosa e selecionada<br />
bibliografia”, diz a nota da Editora<br />
José Olympio; seu primeiro<br />
contato com a Amazônia só ocorre<br />
em 1928, quando acompanha a<br />
expedição do Marechal Rondon à<br />
fronteira do Brasil com a Guiana<br />
Holandesa, atual Suriname.<br />
Seu apego à bibliografia — e<br />
não à sua capacidade de fantasiar;<br />
o desejo de escrever uma obra que<br />
fosse réplica da floresta — e não<br />
exercício de verossimilhança; a<br />
aflição evidente de transpor para o<br />
livro cada mínimo elemento amazônico,<br />
atribuindo-lhe seu nome<br />
específico; tudo contribui para a<br />
criação de uma narrativa artificial,<br />
que obriga o leitor ao exercício de<br />
consultar, página a página, o “Elucidário”,<br />
formado por cerca de 250<br />
palavras. Usar a expressão “o lago<br />
estava saru”, por exemplo, é condenar<br />
a um vazio mental o leitor que<br />
não domina os regionalismos.<br />
Mas, fosse este o único problema<br />
do romance, Agrippino<br />
Grieco ainda poderia dizer que<br />
Cruls se agarra desesperadamente<br />
à barra da calça de Joseph Conrad,<br />
cujas narrativas utilizam, inúmeras<br />
vezes, o vocabulário náutico.<br />
Na verdade, Cruls não consegue<br />
ir além do preciosismo. Tenta<br />
repetir o que Euclides da Cunha já<br />
fizera, mas só consegue criar retórica<br />
destituída de dramaticidade,<br />
mero discurso ostentatório:<br />
Sumaumeiras gigantescas,<br />
tocaris hercúleos, majestosos cedros,<br />
abrindo as ramas no alto,<br />
faziam o travejamento desse maciço<br />
zimbório de verdura, que<br />
transverberava claridade vaga,<br />
deixando o recesso da mata num<br />
crepúsculo esverdeado. Aí, numa<br />
luta surda mas de todos os instantes,<br />
comprimia-se, amotinada, a<br />
legião sem fim dos outros vegetais.<br />
Árvores portentosas confundindo<br />
raízes e sapopemas na difícil conquista<br />
do solo; troncos seculares<br />
abarcados por cipós constritores;<br />
copagens grenhudas entretecidas<br />
de monstruosas trepadeiras; forquilhas<br />
cravejadas de caraguatás<br />
e parasitas; moitas espessas<br />
de palmeiras; tufos sombrios de<br />
folhagem; estolhos aculeados e<br />
refilhos gavinhentos rojando pelo<br />
chão, unhando a galharia, engrimpando-se<br />
nos ramos; hastes<br />
colubreantes, volutas sarmentosas<br />
e redouças virentes — tudo<br />
aquilo revolto, emaranhado, inóspito,<br />
mas borbulhando viço e regurgitante<br />
de seiva, na “frescura<br />
eterna da vida orgânica”, subia às<br />
avançadas para o azul, num mesmo<br />
anseio de luz.<br />
É o discurso de quem não viu<br />
e, pior, não consegue imaginar,<br />
agarrando-se aos adjetivos, tábua<br />
de salvação do escritor medíocre.<br />
No Capítulo 9, o problema<br />
se agiganta. O canto do uirapuru<br />
é formado de “vocalizações argênteas,<br />
notas de cítara e violino,<br />
harpejos, estridências de sistro e<br />
suavidades de flauta, o chocalhar<br />
de muitos guizos...”. O pássaro é<br />
“cantor mágico” e “instrumentista<br />
incomparável”; a melodia, “acariciadora<br />
e envolvente”; e, depois de<br />
alguns segundos de silêncio, “as escalas<br />
recomeçavam cálidas, vivas,<br />
ondulantes”. Quando o uirapuru<br />
se afasta, os “trinados” ficam “cada<br />
vez mais flébeis e amortecidos pela<br />
distância, até que os sons já surdinavam<br />
ao longe, numa toadilha<br />
quase imperceptível”. Mas não<br />
chegamos ao fim. Pouco depois, o<br />
narrador se lembrará do pássaro,<br />
“sentindo aos ouvidos, num eco<br />
inesquecível, as dulcíloquas melodias<br />
do gorjeador incomparável”.<br />
“Dulcíloquas” é o tipo de vocábulo<br />
que Cruls aprecia. Ele diz:<br />
“nos dessedentamos”; “aos rescaldos<br />
do licor ebriático”; “orgulho do<br />
mais exigente ginasiarca”; “viajante<br />
êxul”; “garridice dos seus trajes”;<br />
“inimitável lavor artístico”. Certo<br />
personagem não caiu, simplesmente,<br />
mas “cambalhotou precípite no<br />
rio”. E a lista é interminável: “os<br />
índios lançavam mão desse alvitre”;<br />
“insetos bezoavam no ar”; “ao<br />
bochorno do meio-dia”; “belo animal<br />
de pelo cetinoso e largamente<br />
ocelado de negro”; “fauce hiante”...<br />
Seu amor pelos arcaísmos<br />
soma-se à afetação exagerada para<br />
criar parágrafos em que renascem<br />
os piores momentos de Alencar:<br />
Estava uma manhã esplêndida,<br />
de sol muito claro e céu azul,<br />
sem nuvens. No ar luminoso, cortado<br />
de voos e regorjeios, pairava<br />
o imenso perfume da mata próxima,<br />
a luxuriar na gala de seus verdes<br />
mais vivos. Uma brisa ligeira<br />
fazia estremecer a fronde dos cajueiros<br />
vigorosos, onde concertavam<br />
de súcia, numa traquinada<br />
azoinante, os grandes bandos de<br />
araçaris, anambés e pipiras que,<br />
de momento a momento, acudiam<br />
aos seus ramos. Ouvia-se também<br />
o rechino de algumas cigarras; e,<br />
pelos sibilos e assobios, macacos<br />
deviam folgar nas fruteiras altas.<br />
Agrippino<br />
No início do romance, o narrador<br />
salienta que é preciso conhecer<br />
a “imensidade da Amazônia para<br />
poder avaliar a mesquinhez ridícula<br />
que assumem as cartas geográficas,<br />
quando, diante delas, procuramos<br />
refazer mentalmente algum trecho<br />
já percorrido”. A Amazônia misteriosa<br />
sofre de mal semelhante:<br />
representação imperfeita, esta mimese<br />
da floresta não é só inverossímil<br />
e repleta de figuras despersonalizadas,<br />
mas foi construída numa<br />
escala enfadonha, tediosa — e isso<br />
é pior do que saber que Agrippino<br />
Grieco realmente exagerou.<br />
NOTA<br />
Desde a edição 122 do Rascunho<br />
(junho de 2010), o crítico Rodrigo<br />
Gurgel escreve a respeito dos<br />
principais prosadores da literatura<br />
brasileira. Na próxima edição, Paulo<br />
Setúbal e A marquesa de Santos.
169 • maio_ 2014<br />
19<br />
Escritores e caubóis<br />
O autor precisa pensar através da forma, da história, do ritmo, da palavra, da realidade ficcional<br />
: : Carlos Eduardo<br />
de Magalhães<br />
São Paulo – SP<br />
Literatura é arte em sua<br />
forma escrita e escritores<br />
são aqueles que a produzem,<br />
e que só existem<br />
através de suas obras. São as obras<br />
que definem “ser escritor”, não o<br />
contrário, e seu objeto é o mundo,<br />
ou sua percepção do mundo, ou o<br />
mundo interiorizado por ele que<br />
emerge modificado palavra a palavra.<br />
O objeto de acadêmicos na<br />
área de letras, e dos críticos, é a<br />
obra dos escritores. Literatura não<br />
é o objeto dos escritores, que pensam,<br />
ou deveriam pensar, o mundo.<br />
Um escritor que só bebe, vive<br />
e fala de literatura, em regra, tem<br />
um trabalho pobre, um clone, uma<br />
cópia. Mesmo que sua técnica seja<br />
apurada, e dia a dia a técnica está<br />
mais apurada, o que pode levar a<br />
grandes enganos. E aí a função do<br />
crítico, perceber e dizer. Pensar o<br />
mundo é também pensar de maneira<br />
original e única, moldada por<br />
vivências únicas, obsessões, ideias,<br />
frustrações, raivas, ressentimentos<br />
e sentimentos únicos. E pensar<br />
tem tudo a ver com literatura. Pensar,<br />
não brincar, nem se divertir<br />
ou fazer do texto um amontoado<br />
de sacadas inteligentes, tampouco<br />
torná-lo uma sessão de terapia.<br />
Pensar. Pensar através da forma,<br />
da história, do ritmo, da palavra,<br />
da realidade ficcional.<br />
Quais suas influências literárias,<br />
a quem admira, o que conhece<br />
de nomes importantes é o que comumente<br />
se pergunta a escritores.<br />
A técnica do ofício é outro dos temas<br />
principais. Reflexões sobre<br />
literatura é o que acaba pautando<br />
suas falas. Talvez porque parte das<br />
pessoas que consomem essas palestras<br />
e entrevistas têm por interesse<br />
a literatura, não o mundo. A<br />
palavra escrita e a palavra oral têm<br />
mecanismos de existência diferentes,<br />
quase antagônicos. Na palavra<br />
oral é permitido, se é que não<br />
é quase obrigatório, o improviso.<br />
Na boa palavra escrita, não, nada<br />
é improviso. A reflexão dos escritores<br />
deve estar a serviço de sua<br />
produção literária, é de lá que deve<br />
ser extraída, não explicada, não<br />
por ele. Seja qual for o escritor, as<br />
respostas dadas em palestras são<br />
sempre parecidas porque as perguntas<br />
são as mesmas. Pergunta<br />
boa é aquela que só o autor pode<br />
responder, assim como livro bom<br />
é aquele que só o autor pôde escrever.<br />
Aliás, esse é um dos segredos<br />
de ensaios bons. E ensaio não é<br />
uma dissertação de escola nem um<br />
texto jornalístico. Ensaio é uma literatura<br />
não ficcional.<br />
Economistas podem se tor-<br />
Economistas podem se tornar ótimos escritores,<br />
porque pensam o mundo, e por isso é bem mais<br />
interessante conversar com um economista<br />
sério do que com um escritor.<br />
nar ótimos escritores, porque pensam<br />
o mundo, e por isso é bem<br />
mais interessante conversar com<br />
um economista sério do que com<br />
um escritor. Mas é muitíssimo<br />
mais interessante ler um grande<br />
escritor que conversar com um<br />
grande economista, ou um grande<br />
médico, ou um grande qualquer<br />
coisa. É uma conversa a três, você,<br />
você mesmo e o escritor em literatura.<br />
Em regra, economistas são<br />
bons pra analisar o que é dado, o<br />
que já foi, enquanto um grande escritor<br />
vai além. Em sua obra, define<br />
seu tempo, molda economistas,<br />
médicos, pessoas de gerações abaixo<br />
da sua. Deve ser por isso que escritores<br />
são retratados velhos.<br />
Em 2011, a Grua, editora em<br />
que trabalho, lançou uma Temporada<br />
de originais para captar<br />
novos livros e bons autores. Fazia<br />
parte do regulamento uma breve<br />
biografia do autor. Um jovem que<br />
trabalhava numa espaço cultural<br />
comentou sobre isso “É bom, porque<br />
espanta os aventureiros”. O<br />
jovem não havia entendido nada.<br />
A arte é aventura. Uma aventura<br />
do espírito. A arte não tem dono.<br />
A arte sem aventureiros não é<br />
nada. Ele usava a palavra aventureiro<br />
como alguém sem currículo,<br />
alguém de fora — de fora do quê,<br />
da academia, do mercado editorial,<br />
do sindicato dos artistas, da<br />
“tchurma” de escritores e agitadores<br />
culturais, das redações dos<br />
cadernos culturais dos periódicos<br />
importantes? Então a literatura, ou<br />
outra arte, exige currículo para ser<br />
produzida em alto nível? Claro que<br />
não. E não sejamos ingênuos, claro<br />
também que isso tudo aí em cima<br />
funciona, e melhor do que deveria.<br />
Carreira literária não existe, existe<br />
uma sucessão de livros de um autor.<br />
Existe sua trajetória literária,<br />
que é diferente de carreira. Carreira<br />
é coisa de empresas e de repartições<br />
públicas, ou da burocracia das<br />
letras, traço cultural do corporativismo<br />
brasileiro, dos nossos maiores<br />
problemas estruturais, consolidado<br />
faz décadas na ditadura de<br />
Getúlio Vargas. E se a corporação<br />
é ótima para defesa de interesses,<br />
para a burocracia endêmica, para<br />
a sobrevivência porque paga o pão<br />
de cada dia, não faz bem à literatura<br />
— nem ao país, diga-se. Em tempo,<br />
a relação entre autor e editora é<br />
bem pessoal e deve ser duradoura,<br />
a formação de um autor é um investimento<br />
de longo prazo. Se houvesse<br />
uma incompatibilidade qualquer,<br />
ou uma antipatia à primeira<br />
vista — como por exemplo sinais<br />
de arrogância —, o livro não seria<br />
selecionado, por melhor que fosse.<br />
Mas não aconteceu isso.<br />
Me vem à cabeça Casa tomada,<br />
conto que abre o livro Bestiário,<br />
do escritor argentino Julio Cortázar.<br />
Será que conseguiremos escapar?<br />
O escritor é uma antena que<br />
fica isolada em cima da casa, ele está<br />
fora da engrenagem do motor e observa<br />
o mecanismo, ele é o fotógrafo<br />
invisível das festas de casamento.<br />
Ele é o caubói dos filmes, que passa<br />
pela cidade, dá um monte de tiros,<br />
vai embora solitário no cavalo que<br />
sacrificará quando adoecer. E depois<br />
de um tempo ninguém mais se<br />
lembrará dele, de seu nome, de seu<br />
rosto, mais sua ação terá modificado<br />
a cidade para sempre.<br />
Bons filmes de caubói também<br />
são uma forma de arte.<br />
Desafios da travessia<br />
: : Vilma Costa<br />
Rio de Janeiro – RJ<br />
Divórcio<br />
Ricardo Lísias<br />
Alfaguara<br />
240 págs.<br />
Divórcio, de Ricardo<br />
Lísias, é um romance<br />
que, sob o calor de uma<br />
separação, discute o<br />
amor, a crueldade e a ética ameaçada<br />
pelo desamor e a falta de escrúpulos.<br />
O protagonista recém-casado<br />
encontra um diário da mulher que<br />
o coloca frente a frente com dolorosas<br />
revelações. Desencadeia-se aí a<br />
construção da trama, na qual o personagem<br />
narrador empreende uma<br />
busca de respostas sobre a esposa,<br />
sobre si mesmo e sobre o mundo<br />
que ambos habitam.<br />
Conta com elementos biográficos<br />
de uma suposta “realidade”<br />
e, em cima desses elementos,<br />
elabora a tensão narrativa na qual<br />
vão se constituindo seus demais<br />
personagens. Apesar de o nome<br />
do personagem-narrador coincidir<br />
com o nome de capa do romance,<br />
ou seja, o nome do autor, o sujeito<br />
narrativo situa-se como o eixo problemático<br />
diferenciado na trama.<br />
Estabelece uma encenação de si e<br />
de sua intimidade através do texto.<br />
A partir do momento em que<br />
a escrita se efetiva, personagens e<br />
ação ganham vidas próprias e se<br />
constituem de outra natureza. São<br />
formados, em última análise, sobre<br />
o papel, de palavras e tinta: são elementos<br />
de uma narrativa literária.<br />
A relação autor-personagem acaba<br />
sendo íntima e pode se dar, muitas<br />
vezes, por parte do leitor curioso<br />
que busca também respostas e sentidos<br />
entre literatura e vida.<br />
Entretanto, o material autobiográfico<br />
é apenas a matéria-<br />
-prima dessa produção ficcional.<br />
Segundo a reflexão de Roland Barthes,<br />
mesmo em se tratando de uma<br />
autoficção, é importante que ela<br />
seja lida como um jogo de ficção,<br />
ou seja, como algo que pertence a<br />
um personagem de ficção, inventado<br />
ou reinventado por um autor<br />
de carne e osso. Inútil, portanto, a<br />
especulação sobre verdade ou mentira<br />
dos fatos narrados. Esta seria<br />
uma falsa questão. Muito mais rica<br />
é a leitura crítica que procura deter-<br />
-se aos mecanismos de construção<br />
narrativa e da relação estabelecida<br />
por seus elementos. Eles se movimentam<br />
num jogo complexo que<br />
coloca em discussão aspectos de<br />
uma humanidade ferida, buscando<br />
se reerguer através da escrita de si e<br />
da leitura de seu tempo.<br />
Ricardo Lísias, o personagem-<br />
-narrador, tem como primeira imagem<br />
de si mesmo a de um homem<br />
morto: “Depois de quatro dias sem<br />
dormir, achei que tivesse morrido.<br />
Meu corpo estava deitado na cama<br />
que comprei quando saí de casa.<br />
Olhei-me de uma distância de dois<br />
metros e, além dos olhos vidrados,<br />
tive coragem apenas para conferir<br />
a respiração. Meu tórax não se<br />
movia”. Apenas a dor insuportável<br />
de quem vai perdendo toda a pele<br />
é que o remete para a condição de<br />
ser humano ainda vivo. O estado de<br />
torpor e delírio, causado pelo trauma<br />
por que passa, coloca em dúvida<br />
a “sinceridade” ou mesmo a “sanidade”<br />
desse “eu” em crise. “Tenho<br />
pontos obscuros na minha vida<br />
entre agosto e dezembro de 2011.<br />
Neles devo estar morto.” Alguma<br />
coisa morreu, é inegável. A morte<br />
simbólica de perdas irreparáveis é<br />
fato em separações abruptas como<br />
a de Ricardo Lísias. Mas o personagem<br />
vai mais além e incorpora<br />
dados de realidade palpáveis que<br />
radicalizam os efeitos dos danos<br />
causados no sujeito. As declarações<br />
de desamor da ex-mulher no diário<br />
arrancam-lhe a pele do corpo, roubam<br />
o ar dos pulmões e o ameaçam<br />
de uma morte definitiva. “Resolvi<br />
não falar que às vezes tinha alucinações<br />
e achava que estava dentro<br />
de um texto meu.”<br />
Para suportar e buscar superar<br />
a desestruturação afetiva por<br />
que passa, lança mão de dois dispositivos<br />
emergenciais e definitivos:<br />
o treino para a corrida e a escrita<br />
compulsiva da experiência vivida.<br />
O romance é estruturado em<br />
quinze capítulos a começar por<br />
Quilômetro um – um corpo em<br />
carne viva. A partir daí, seguem os<br />
demais com a numeração antecedida<br />
pela palavra Quilômetro, até<br />
terminar no capítulo Quilômetro<br />
quinze – octogésima sétima corrida<br />
internacional de São Silvestre.<br />
Correr e escrever, escrever e<br />
correr passam a ser as ações sobre<br />
as quais o personagem se debruça<br />
na busca de resgate da sua dignidade<br />
afetiva e de sua recuperação<br />
e superação física. É um homem<br />
ferido, que nesses dois aspectos<br />
se encontra dilacerado. “O corpo<br />
sem pele está mais exposto na<br />
rua. Tentei ficar quieto no cafofo,<br />
mas o medo de morrer de novo me<br />
deixava trêmulo e o suor, toda vez<br />
que eu deitava, incomodava a carne<br />
viva. O jeito é andar.” O corpo<br />
sem a pele dói, os brios e os sentimentos<br />
gritam. A premência da<br />
morte impulsiona para a vida, correr,<br />
superar limites, escrever sobre<br />
o vivido, sobre o sofrido para não<br />
esquecer, para não sucumbir. É<br />
imbuído dessa necessidade de registro<br />
que empreende a invenção<br />
de memórias. Em dado momento<br />
do livro, algumas fotos de família,<br />
lembranças do avô libanês e de<br />
histórias esparsas surgem, quase<br />
como digressões da trama central.<br />
A leitura do diário da mulher,<br />
meses depois do casamento,<br />
revela, além da traição, o desprezo<br />
expresso por ela ao homem que<br />
a amou. O corpo em carne viva<br />
constitui-se enquanto alegoria da<br />
fragilidade desse sujeito exposto à<br />
chuva, ventos e olhares do mundo.<br />
Ferida aberta de uma intimidade<br />
exposta ao domínio coletivo. Espaço<br />
privado e espaço público são<br />
constituídos por porosas fronteiras<br />
que se intercomunicam, como<br />
o mundo interior do personagem,<br />
desprovido da proteção da pele do<br />
corpo está exposto e é atravessado<br />
pelo mundo exterior, suas intrigas,<br />
suas farpas e venenos.<br />
Os quinze capítulos são cortados<br />
por fragmentos do diário da<br />
ex-mulher e, de certa forma, ajuda<br />
a construir a personagem. É bom<br />
lembrar que, apesar da concretude<br />
documental que o discurso do diário<br />
possa apresentar, a seleção dos fragmentos<br />
parte do ponto de vista do<br />
narrador-personagem. As escolhas<br />
dos depoimentos da senhora (X) é<br />
feita pelo protagonista, que põe em<br />
destaque a frivolidade e a crueldade<br />
que a caracteriza, aspectos que<br />
ele até ali desconhecia, movido pela<br />
paixão. Os trechos do diário vão<br />
pouco a pouco tirando a máscara da<br />
mulher que se apresenta: “Eu gosto<br />
de ser casada com um escritor. É só<br />
esconder certas coisas e pronto. Eu<br />
sou uma mulher atraente, não tenho<br />
dificuldade de achar amantes, nunca<br />
tive. (...) Sou a maior jornalista de<br />
cultura do Brasil”.<br />
Muitos desses fragmentos se<br />
apresentam diferenciados da voz do<br />
narrador tanto do ponto de vista gráfico<br />
quanto do estilístico. É um discurso<br />
simplório demais para ser escrito<br />
pela maior jornalista de cultura<br />
do Brasil. Aparecem repetida vezes<br />
mesclando o texto narrativo, repetição<br />
que fere, mas como um ritual<br />
de sacrifício expurga, facilitará mais<br />
tarde a cicatrização. “O Ricardo é um<br />
retardado, não tenho dúvidas, mas<br />
mesmo assim é um escritor, o que<br />
me preserva de certas coisas.”<br />
Os trechos do diário vão mostrando<br />
aspectos mais íntimos da<br />
senhora (X) e ajudam o narrador<br />
na sua construção da ilustre desconhecida<br />
que escolheu para casar:<br />
“Minha ex-mulher é um ser narcísico<br />
inteiramente doentio, o que a<br />
impede de enxergar qualquer coisa<br />
além de um nome em jornais e revistas<br />
e vários cinquentões semipoderosos<br />
na cama”.<br />
Se por um lado, as declarações<br />
do diário deixam Ricardo em<br />
carne viva, por outro, o seu romance<br />
crava as unhas numa ferida<br />
aberta na sociedade brasileira<br />
pela hipocrisia de um determinado<br />
setor de classe, que o narrador denomina<br />
como a elite do nosso país.<br />
O reboliço está formado e ameaças<br />
de processos e coisas do gênero<br />
passam a ser dirigidos ao escritor-<br />
-personagem. Ele responde apenas<br />
com uma discussão metaficcional,<br />
na qual avalia o seu fazer literário e<br />
o produto do seu trabalho. É, nesse<br />
sentido, bem racional e detalhista,<br />
tentando adiantar-se, desnecessariamente,<br />
às críticas que possam<br />
vir. “Divórcio é um romance sobre<br />
o trauma.” Quanto às ameaças<br />
da senhora (X) está tranquilo: “Minha<br />
ex-mulher não existe: é personagem<br />
de um romance”.<br />
A largada na corrida de São<br />
Silvestre e o ponto final no seu livro<br />
trouxeram ao personagem força<br />
física e equilíbrio emocional necessários<br />
para virar a página e deixar<br />
para trás a dor tão aguda da separação<br />
traumática. Para Ricardo Lísias,<br />
autor e personagem, “A arte é<br />
uma possibilidade de resistência”.<br />
Bem que ele “gostaria de contar<br />
tudo”, mas esbarra sempre com a<br />
impossibilidade de traduzir em palavras<br />
toda dor, toda indignação,<br />
todo seu amor. Empreender a travessia<br />
já é uma vitória sobre o silêncio<br />
e a morte. Afirma no romance:<br />
“Acredito que a arte deva desafiar<br />
qualquer tipo de poder. Divórcio<br />
é a minha profissão de fé contra<br />
essas neoditaduras”. E a literatura,<br />
consequentemente, apesar de todas<br />
as suas limitações, é um canal para<br />
soltar o grito, reconstruir uma nova<br />
pele, nova proteção, recobrar as<br />
forças e tocar a vida.
20<br />
169 • maio_ 2014<br />
169 • maio_ 2014<br />
21<br />
A caçada pelo poder<br />
A obra de Thomas Harris escancara a incapacidade do<br />
ser humano de lidar com a infinita imaginação do medo<br />
: : Martim Vasques da Cunha<br />
São Paulo – SP<br />
For those of us climbing to the top of the food chain,<br />
there can be no mercy.<br />
There is but one rule:<br />
hunt or be hunted. Welcome back.<br />
Francis Underwood, em House of cards (S02, E01)<br />
1.<br />
“Ah, o best-seller! Esta incógnita que os literati<br />
não querem compreender! Como eles podem existir?<br />
Como eles podem ter algum sentido nesse mundo onde<br />
nós buscamos o absoluto na arte e queremos destruir a<br />
escravidão do mercado? Afinal, o que são esses monstrengos?<br />
Eles ocupam espaço em nossas livrarias, consomem<br />
o papel que saem das árvores, gastam os bytes<br />
dos nossos computadores, cansam as nossas retinas tão<br />
fatigadas com tramas que ninguém consegue entender,<br />
personagens que jamais existirão na vida real, diálogos<br />
frouxos, narração desastrosa, a ‘suspensão da descrença’<br />
levada ao ponto de ser quase um culto, uma fé sempre<br />
em busca de um milagre — o de que algum exemplar<br />
desse gênero finalmente tenha alguma qualidade a ser<br />
preservada. Mas e o leitor?, você me pergunta. O leitor<br />
deve ter alguma opinião — afinal, se os best-sellers vendem<br />
é porque eles dialogam de alguma forma com este<br />
membro rarefeito do mercado editorial. O leitor?, eu<br />
respondo com outra pergunta. O leitor que vá às favas!”<br />
O pensamento acima foi retirado de forma cirúrgica<br />
de um “fluxo de consciência” (ou stream of consciouness,<br />
se quisermos mais técnicos, mais precisos) de um desses<br />
seres iluminados que fazem parte do petit monde literário<br />
— os aspirantes à fama, aqueles que acreditam piamente<br />
que estão prontos para realizar a arte que superará todas<br />
as artes, o romance que calará a boca de todos os romances,<br />
mas, ao mesmo tempo, não conseguem fazer nada,<br />
só ficam reclamando, a olharem sem nenhum brilho em<br />
seus olhos para as estantes das livrarias, abarrotadas de<br />
best-sellers e alguns clássicos da literatura, resumindo as<br />
suas divagações a uma única pergunta: Por que eu não<br />
consigo escrever algo parecido com isso e ter algum sucesso<br />
para pagar as minhas contas?<br />
A resposta deveria ser, se ele conseguisse ouvir a si<br />
mesmo: Por que você sofre daquilo que é mais ordinário<br />
no petit monde literário — a inveja. Mas esta nunca aparece<br />
por inteiro e às claras, correto? Afinal, quem admitiria<br />
para alguém ao seu lado que sofre exatamente do<br />
mais vergonhoso dos pecados — a inveja, esta serpente<br />
venenosa, que muitos comparam a um câncer, outros a<br />
igualam aos dejetos que saem de nós, e que, no fim, paralisa<br />
o aspirante a escritor porque faz aquilo que todo o<br />
pecado faz: estraga a sua vida? Ninguém, óbvio. Contudo,<br />
lá está ela, presente em cada página de um livro mal<br />
escrito ou que jamais será escrito, presente em cada negociação<br />
de contrato no mercado editorial, presente em<br />
cada crítica literária que, para se autoenganar, resolve<br />
temperá-la com o molho do esnobismo.<br />
Vamos selecionar, por exemplo, uma crítica sobre<br />
um determinado livro que foi um best-seller lançado há<br />
cerca de quinze anos — crítica talvez não seja a palavra<br />
adequada, já que atualmente elas foram fatiadas a<br />
ponto de serem denominadas como “resenhas”. Trata-<br />
-se do texto assinado por ninguém menos que Martin<br />
Amis sobre o então superaguardado romance escrito<br />
por ninguém menos que Thomas Harris — a continuação<br />
do best-seller O silêncio dos inocentes (1988):<br />
Hannibal (1999). Para quem ainda não conseguiu sobreviver<br />
ao fenômeno midiático dos últimos quarenta<br />
anos, aqui vão algumas informações — o Hannibal no<br />
caso é ninguém menos que Hannibal Lecter, o psiquiatra,<br />
médico e genial psicopata que, nas horas vagas,<br />
tinha o costume de comer os órgãos de suas vítimas,<br />
contribuindo assim para o apelido que seus pares (e,<br />
depois, juízes) lhe dariam de “Hannibal, the cannibal”<br />
(infelizmente, a tradução literal desta expressão a faz<br />
perder o trocadilho fonético; se o literati em questão é<br />
monoglota — como muitos que pululam por aí —, não<br />
podemos fazer nada a respeito).<br />
Hannibal foi o terceiro livro de uma série que<br />
logo os especialistas em marketing tentaram apelidá-la<br />
de “Trilogia Lecter” pois ela vinha em sequência de dois<br />
romances que tinham entrado na lista dos mais vendidos<br />
e também haviam sido transformados em dois excelentes<br />
filmes — Dragão Vermelho (publicado em<br />
1981, filmado três anos depois por Michael Mann como<br />
Manhunter, um clássico cult da década de 80) e o já citado<br />
Silêncio, também conhecido no resto do mundo<br />
pelo seu título original — The silence of the lambs (O<br />
silêncio dos inocentes, na tradução no Brasil) — e pela<br />
versão em estado-de-graça que Jonathan Demme conseguiu<br />
fazer com uma igualmente em estado-de-graça<br />
Jodie Foster (interpretando a heroína Clarice Starling)<br />
e um superlativo estado-em-deificação (ou demonização,<br />
de acordo com o ponto de vista) Anthony Hopkins<br />
entregando com prazer uma deliciosa versão de Hannibal<br />
Lecter. Portanto, o clima de expectativa era grande:<br />
o que Harris aprontaria dessa vez?<br />
Ninguém poderia dizer. No caso de<br />
Martin Amis, a expectativa foi tanta que ele<br />
acabou frustrado. Ou não? Em seu texto sobre<br />
Hannibal, publicada na finada revista<br />
Talk, editada por Tina Brown, a mesma jornalista<br />
que quase conseguiu destruir a The<br />
New Yorker (David Remnick jogaria depois<br />
a pá-de-cal) e que ainda hoje polui a nossa<br />
leitura na internet com o seu (atentai para o<br />
nome da publicação, leitores!) The daily beast,<br />
o escritor inglês deixa claro a sua admiração<br />
pelos livros anteriores de Harris. Aliás, é<br />
mais do que uma admiração: se percebermos<br />
bem — e usarmos dos instrumentais que nos<br />
foi dado por Herr Freud — Amis sofre de uma<br />
transferência imediata com o criador de Hannibal<br />
Lecter. Ele queria ser Harris. O autor de<br />
romances invulgares, mas também irregulares,<br />
como A seta do tempo e A viúva grávida,<br />
tinha prestígio no petit monde literário<br />
(tudo bem que ser filho de Kingsley Amis<br />
ajudava um pouco), mas faltava-lhe... sucesso<br />
— o que, em termos mais claros, significa dinheiro.<br />
Não por acaso que, na época em que<br />
sua resenha sobre Hannibal foi publicada,<br />
Amis ainda sofria com o fato de que pedira<br />
a Andrew Wylie, conhecido no mercado pela<br />
alcunha de “O Chacal”, um adiantamento<br />
de 2 milhões de dólares para um romance<br />
que ainda sequer tinha sido escrito — e que<br />
depois seria o admirável A informação —<br />
simplesmente porque ele não tinha dinheiro<br />
para pagar um delicado tratamento dentário<br />
que, entre outras coisas, envolvia retirar<br />
todos os dentes da arcada superior, além de<br />
extirpar um inchaço na gengiva, suspeito de<br />
ser um tumor canceroso. Alguns anos depois,<br />
Amis voltou com os dentes consertados, livre<br />
de ter um câncer, mas, nesse meio tempo,<br />
brigou com sua antiga agente, Pat Kavanagh,<br />
que era, por acaso, esposa de um de seus melhores<br />
amigos, o escritor Julian Barnes.<br />
Pois é: essas são as coisas que fazemos<br />
por dinheiro. Mas também por poder. Afinal,<br />
o que Martin Amis queria ao mostrar o seu<br />
desapontamento por Hannibal em sua resenha<br />
na Talk, além de provar a um leitor mais<br />
arguto que ele tinha saudades do Thomas<br />
Harris dos outros tempos? Assim como Amis<br />
não economizou na admiração do passado,<br />
ele também não economizou nos adjetivos<br />
daquele presente momento de sua vida: de<br />
acordo com seu rigoroso padrão estilístico, a<br />
prosa de Harris, que antes era repleta de observações<br />
agudas que davam dignidade a personagens<br />
imersos em um mundo de predadores,<br />
agora havia se tornado uma “necrópole<br />
do vocabulário” devido a sua “vulgaridade<br />
virtuosística” em que o criador de Hannibal<br />
Lecter havia “ficado gay” pelo seu personagem<br />
mais famoso e, de psicopata divertido, o<br />
transformara em uma espécie de “Camus da<br />
carniça”, repleto de inquietações existenciais<br />
embaladas no mais dissoluto do esnobismo<br />
— algo que, claro, Amis podia entender perfeitamente,<br />
pois ele era um de seus representantes<br />
mais ilustres. Enfim, o enfant terrible<br />
da crítica literária inglesa não gostava mais<br />
de Harris — mas, ainda assim, mostrava o seu<br />
poder ao petit monde de dissecar a quem antes<br />
era visto com um old master que nunca<br />
errara na prática do seu ofício.<br />
Na mesma época, o caderno dominical<br />
do New York Times publicava outro texto<br />
sobre o mesmo livro. Desta vez, contudo, o<br />
autor era ninguém menos que Stephen King.<br />
Para quem ainda não sobreviveu à avalanche<br />
de mídia, todos já devem saber quem é King:<br />
considerado o mestre do gênero horror, este<br />
sim é um escritor que vende, que faz sucesso,<br />
que dá muito dinheiro. E olhem só: ele afirmava<br />
que Hannibal era uma maravilha. Era<br />
exatamente o contrário de tudo o que Amis<br />
tinha dito em sua resenha — o de que o estilo<br />
era uma perfeição, de que os personagens<br />
eram pessoas honradas e sofisticadas que andavam<br />
com naturalidade nos ambientes onde<br />
viviam, que Lecter era o Drácula da nossa<br />
época, pronto para sugar tanto o nosso sangue<br />
como o nosso medo e transformá-los em<br />
material literário de primeira categoria — e<br />
que, mais do que tudo isso, era capaz de conversar<br />
com o leitor comum de igual para igual.<br />
É certo que, na verdade, ninguém sabe<br />
como se dará este fenômeno que tantos querem<br />
alcançar — o “conversar com o leitor comum<br />
de igual para igual” — mas quando isso<br />
acontece, ah, c’est magnifique, como diria Cole<br />
Porter. E King sabe desses assuntos: afinal, o<br />
Thomas Harris por<br />
Ramon Muniz<br />
homem, apesar de também ter uma obra irregular (no nosso padrão de qualidade, em<br />
seus quase sessenta livros publicados, sobra-se apenas Different Seasons, uma coleção<br />
de novelas caprichadas e que mostram que o bardo de Maine poderia ter sido um Martin<br />
Amis do Sul), não precisa fazer adiantamentos vultosos para pagar uma mera conta<br />
ortodentária. Mais: ele não quer ser Thomas Harris — e é muito provável que, no caso, o<br />
inverso seja o verdadeiro, já que Harris gostaria de ter dinheiro suficiente para pagar os<br />
seus constantes cursos no Le Cordon Bleu. Ainda assim, é de se louvar a generosidade de<br />
Stephen King ao resenhar Hannibal. Ele faz aquilo que o crítico literário deveria fazer:<br />
analisa o livro pelo o que ele é, querendo entender quais foram as intenções do autor e,<br />
dessa forma, ajudando o leitor comum, este ser tão abstrato no petit monde, a se guiar se<br />
deve ou não comprar o romance. Isso sim é a mais honesta técnica de venda — quando o<br />
crítico entende o seu objeto sem nenhuma vontade de querer exercer o seu poder em um<br />
mundo que não está nem aí para o verdadeiro mundo ao nosso redor.<br />
Contudo, Thomas Harris não precisa de nada disso. Ao contrário de um Martin<br />
Amis ou de um Stephen King, que colocam um novo romance nas prateleiras a cada<br />
dois, três anos, às vezes ele demora uma década para entregar uma nova criação. Ao<br />
contrário de Amis e King, que são obrigados a dar uma entrevista cada vez que alguma<br />
coisa acontece no maravilhoso mundo da mídia, desde a política de Barack Obama até<br />
a lista dos dez melhores filmes do ano, Harris se esconde da imprensa e não dá uma<br />
declaração pública desde 1974. E, ao contrário desses dois, que praticamente transformaram<br />
as suas vidas em um livro aberto para o público, Harris apenas deixa os seus<br />
leitores saberem que ele gosta de cozinhar, tem uma companheira dedicada há mais de<br />
quarenta anos e que parece ser um regente de coral de igreja quando se deixa fotografar,<br />
com sua vetusta barba de Papai Noel e um olhar bonachão que não dá uma única<br />
pista de que este sujeito é o mesmo que criou um dos personagens mais monstruosos<br />
da literatura contemporânea.<br />
2.<br />
Porque antes de Hannibal Lecter, houve a reportagem policial e o Setembro Negro.<br />
Ou melhor, Domingo negro, o seu primeiro romance, lançado em 1975. Harris<br />
O AUTOR<br />
Thomas Harris<br />
Nasceu no dia 11 de abril de<br />
1940 na cidade de Jackson,<br />
Tennessee. Começou a<br />
sua carreira como repórter<br />
policial tanto nos Estados<br />
Unidos como no México, e foi<br />
também editor da Associated<br />
Press, em Nova York. Seu<br />
primeiro romance, Domingo<br />
negro, foi publicado em 1975,<br />
seguidos depois de Dragão<br />
vermelho (1981), O silêncio<br />
dos inocentes (1988),<br />
Hannibal (1999) e Hannibal<br />
— A origem do mal (2006).<br />
Todos os seus livros foram<br />
transformados em adaptações<br />
cinematográficas de grande<br />
sucesso nas bilheterias.<br />
nasceu no dia 11 de abril de 1940, trabalhou<br />
como jornalista criminal nas publicações da<br />
cidade de Waco, Texas, depois foi repórter<br />
na Associated Press, até que, junto com mais<br />
dois amigos, inspirou-se no atentado terrorista<br />
ocorrido nos Jogos Olímpicos de Munique<br />
e os três decidiram escrever um romance<br />
sobre terrorismo internacional. Os amigos<br />
abandonaram o projeto, mas Harris continuou<br />
— e o resultado foi um livro que ficou<br />
em primeiro lugar na lista dos mais vendidos<br />
do New York Times e um polpudo pagamento<br />
para uma versão cinematográfica, que seria<br />
dirigida por John Frankheiemer e com a<br />
suíça Marthe Keller no papel de uma sedutora<br />
árabe, Dahlia Iyad, que instilaria o “ódio-<br />
-contra-o-Ocidente” do americano abandonado<br />
no Vietnam, o piloto Michael Lander,<br />
desta vez adequadamente interpretado pelo<br />
eterno neurótico Bruce Dern.<br />
Iyad e Lander planejam um daqueles<br />
atentados que, anos depois, anteciparia de<br />
forma assustadora o 11 de setembro: jogar<br />
um dirigível repleto de explosivos em pleno<br />
estádio de futebol americano, lotado, justo no<br />
dia da abertura do Super Bowl. Afinal, quem<br />
imaginaria que uma bomba pode cair literalmente<br />
dos céus? Ninguém, nem mesmo o<br />
superagente do Mossad, David Kabakov, um<br />
daqueles sujeitos que sente o cheiro do Al Fa-<br />
tah muito antes de algum míssil, tanto israelense<br />
como palestino, atingir a faixa de Gaza.<br />
É claro que, na década de 1970, Gaza ainda<br />
não era notícia, e ambos os povos ainda sofriam<br />
as cicatrizes da Guerra dos Seis Dias —<br />
além de Munique, que, até então, tinha sido<br />
algo que ninguém poderia vislumbrar que<br />
poderia ser executado.<br />
Domingo negro parece ser mais um romance<br />
de suspense caça-níquel sobre a caçada<br />
de gato-e-rato contra o tempo, mas já estabelece<br />
o tema sobre o qual Thomas Harris desenvolveria<br />
nos livros seguintes: a incapacidade do ser<br />
humano de lidar com a infinita imaginação do<br />
medo. Todos os personagens, de Dahlia Iyad a<br />
David Kabakov, passando pela amante deste,<br />
Rachel Bauman, até o revoltado Michael Lander,<br />
respiram e suspiram o medo. E Harris o<br />
percebe como poucos, até mesmo nos mínimos<br />
detalhes, como podemos ver no seguinte trecho,<br />
que faria inveja a qualquer descrição feita<br />
por Martin Amis (e que teria um número muito<br />
maior de vocábulos, sem dúvida):<br />
A convalescência de David Kabakov<br />
no apartamento da Dra. Rachel Bauman<br />
foi uma época estranha, quase surreal, para<br />
ela. Sua casa era clara e opressivamente em<br />
ordem — e ele chegou nela como um gato<br />
selvagem que voltou após uma briga na chuva.<br />
O tamanho e a proporção dos quartos e<br />
dos móveis pareceram mudar para Rachel<br />
com a presença de Kabakov e Moshevsky no<br />
lugar. Para homens tão robustos, eles não<br />
pareciam ocupar muito espaço. Isso foi um<br />
alívio para ela, mas depois começou a preocupá-la<br />
um pouco. O tamanho e o silêncio<br />
formam uma estranha combinação na natureza.<br />
Eles são os instrumentos da danação.<br />
Será que os livros de Harris também<br />
são “instrumentos da danação”? Bem, Domingo<br />
negro não aliviava na sua perspectiva<br />
de que, mesmo com um caçador arguto<br />
como Kabakov, o terror podia, de fato, ter a<br />
última palavra. O mesmo pode-se ser afirmado<br />
no segundo romance de Harris, publicado<br />
seis anos depois do primeiro — o estupendo<br />
Dragão vermelho (1981), no qual<br />
somos enfim apresentados ao Dr. Hannibal<br />
Lecter, mesmo que o livro não seja sobre ele,<br />
e sim sobre outro personagem memorável,<br />
Will Graham. O primeiro capítulo já mostra<br />
que Harris domina o bom e velho estilo<br />
Hemingway, em que toda a história do que<br />
o leitor precisa saber que aconteceu é contada<br />
por meio de diálogos secos, precisos e<br />
sem nenhuma espécie de sentimentalismo.<br />
Graham é um gênio da psicologia que tem<br />
o dom — se podemos chamá-lo assim — de<br />
ter empatia com assassinos em série, em<br />
particular com os psicopatas violentos que<br />
perturbam o dia a dia do agente do FBI,<br />
Jack Crawford, que o convida para trabalhar<br />
no seu departamento. O motivo? Agora há<br />
mulheres sendo mortas e estranguladas em<br />
suas casas — e descobriremos depois que o<br />
responsável por tudo isso é Francis Dolarhyde,<br />
um sujeito com lábio leporino e que,<br />
cada vez que mata alguém, acredita estar<br />
mais próximo de se tornar o dragão vermelho<br />
que embeleza algumas gravuras do poeta<br />
e pintor William Blake. Para saber mais exatamente<br />
como esse sujeito pensa, Crawford<br />
sugere a Graham que vá visitar na prisão o<br />
Dr. Lecter, que foi justamente capturado<br />
pelo jovem psicólogo graças a um golpe de<br />
sorte (palavras do bom doutor) e que, com<br />
isso, guardou alguma mágoa do evento.<br />
No prefácio comemorativo aos vinte<br />
anos de publicação do seu livro, Harris, em<br />
uma rara declaração, afirmou que Hannibal<br />
Lecter surgiu em sua mente quando, uma noite,<br />
tentava entender os latidos e os gemidos<br />
dos cães selvagens que rodeavam a sua casa.<br />
Ele precisava de alguém que fosse um duplo<br />
de Will Graham — de alguém que fosse o seu<br />
igual, mas também fosse superior em algo inapreensível.<br />
E conseguiu: o Lecter que surge<br />
em Dragão vermelho é um ser que controla<br />
toda a arquitetura invisível do romance — e<br />
o que era para ser mais um livro comum de<br />
procedimento criminal torna-se um autêntico<br />
plano macabro de vingança em que Hannibal<br />
(já podemos chamá-lo com essa intimidade?)<br />
enfim ensinará ao pobre Graham quais são as<br />
marcas permanentes de se viver em um mundo<br />
onde o medo detém a única imaginação<br />
possível para nossas consciências.<br />
Pois é isso que Thomas Harris faz com<br />
sua obra: ele nos ensina a perceber como a<br />
nossa imaginação é muito precária para perceber<br />
as infinitas variações que o medo traz<br />
para as nossas pobres vidas. E Lecter é a personificação<br />
desse medo — ao mesmo tempo<br />
em que ele o domina, há também a fascinação<br />
de que jamais seremos como esse sujeito porque<br />
não conseguimos adentrar no seu “palácio<br />
da memória”. Poderíamos dizer “graças a<br />
Deus” e irmos em frente; mas não, queremos<br />
saber mais sobre esse personagem, queremos<br />
encaixá-lo nos nossos conceitos, mesmo que<br />
ele mesmo diga que isso é impossível (“Você<br />
não tem como me explicar”, diz. “Eu apenas<br />
aconteci.”) e que a nossa fascinação aumente<br />
a cada virada de página. Talvez o que Harris<br />
quer que saibamos é o mesmo que ele aprendeu<br />
com a parábola de um sultão, que dizia:<br />
eu não possuo falcões, eles moram comigo.<br />
E como toda a caçada, há um momento<br />
em que você deixa de ser o caçado para se<br />
tornar o caçador — afinal, mais cedo ou mais<br />
tarde, nós cumprimos todos os papéis nesta<br />
vida. Mas como fazer para continuar na caçada<br />
e não ser exterminado nela? É em busca<br />
desta resposta que Harris escreve O silêncio<br />
dos inocentes (1988), em que Hannibal<br />
Lecter deixa de ser um mero demiurgo para se<br />
tornar um eficaz psicopompo na vida de Clarice<br />
Starling, jovem agente do FBI que adentra<br />
nos labirintos macabros do crime, em busca<br />
de Buffalo Bill, um serial killer que assassina<br />
mulheres gordinhas e suculentas para depois<br />
se transformar em uma delas (sim, no mundo<br />
predatório de Harris, os psicopatas não entram<br />
no rol do politicamente correto: ou são<br />
deficientes, ou são transformistas sexuais).<br />
Não se sabe se Harris tinha plena noção de<br />
que o seu romance pode ser lido como uma<br />
espécie de iniciação religiosa de uma alma<br />
inocente aos redutos infernais da condição<br />
humana, mas é de se notar que, neste livro,<br />
Lecter não é mais um representante do medo:<br />
ele é o próprio medo, que instiga a brava Clarice<br />
a ir ao fundo de si mesma e enfrentá-lo<br />
com a coragem necessária que só o mundo<br />
permite que os astuciosos sobrevivam.<br />
Para permanecer viva na caçada, Starling<br />
só pode usar da única faculdade que um<br />
ser humano possui quando se depara com<br />
a companhia das trevas: a imaginação. E<br />
quando usamos esse termo, não estamos falando<br />
de criar mundos alternativos ou então<br />
de insistir nas fugas da realidade devido ao<br />
fato de que a pressão existencial torna-se<br />
algo no limite do insuportável. Falamos daquilo<br />
que, às vezes, é a única coisa que nos<br />
resta: colocar-se no lugar do Mal e imaginar<br />
como ele age, sem se deixar contaminar<br />
por ele e, daí, extrair um Bem maior. Eis a<br />
razão deste livro, que também fez sucesso<br />
e deu todo o dinheiro que Harris merecia,<br />
chamar justamente (no título original) “o<br />
silêncio dos cordeiros”. O cordeiro, é claro,<br />
representa o Cristo sacrificado — mas o seu<br />
silêncio é a estratégia mais forte que deve<br />
ser usado contra o Mal Lógico que Hannibal<br />
Lecter tenta imitar. Será este mesmo silêncio<br />
que, no meio da caçada, apascenta os<br />
falcões que existem dentro de nós e que nos<br />
impelem a voar acima das nossas possibilidades,<br />
quando, no fundo, temos de usar a<br />
imaginação para saber que sempre existirá<br />
uma caveira atrás do rosto. Lecter tenta enganar<br />
Clarice, mas não consegue; no final,<br />
ela captura Buffalo Bill por conta própria,<br />
com o apoio de seu verdadeiro mentor, Jack<br />
Crawford, e vence o medo dos seus traumas,<br />
dos seus obstáculos interiores — mesmo<br />
que seja por pouco tempo.<br />
3.<br />
Porque quem disse que o caçador é obrigado<br />
a continuar na caçada? Muitas vezes, ele<br />
pode querer simplesmente desistir — mesmo<br />
quando sabe que isso é impossível. É o que<br />
acontece em Hannibal (1999), a terceira<br />
parte da saga Lecter e o romance onde finalmente<br />
o conhecemos melhor, apesar de isso<br />
não ser muito recomendado tanto pelos psicólogos<br />
como por literati como Martin Amis.<br />
E quando falamos que conhecemos melhor,<br />
isso significa que Harris nos obriga a entrar<br />
no seu “palácio da memória” — uma artimanha<br />
que o “rei-dos-psicopatas” emprestou<br />
dos renascentistas para reconstruir e colocar<br />
em dúvida o seu passado mais do que nebuloso<br />
—, não para humanizá-lo (como pensou<br />
erroneamente Amis), mas para entender<br />
como um homem qualquer se tornou o próprio<br />
medo e como contaminou os corações e<br />
as mentes de todas as outras pessoas — em<br />
especial, a da brava Clarice.<br />
No final de O silêncio dos inocentes,<br />
Lecter havia conseguido escapar da prisão —<br />
e agora vamos acompanhá-lo em suas andanças<br />
por Florença, em que Harris nos confunde<br />
se o esnobismo de seu personagem mais<br />
famoso poderia ser também do autor (ou se<br />
trata de mais uma caipirice no melhor estilo<br />
jeca sulista), enquanto a polícia está no seu<br />
encalço e Clarice Starling enfrenta a verdadeira<br />
descida aos infernos que só a maturidade<br />
proporciona quando percebemos que estamos<br />
velhos demais para continuar na caçada.<br />
A agente do FBI se vê numa ciranda de desejo<br />
erótico e político — e o seu mentor Jack Crawford,<br />
que contrabalançava a influência diabólica<br />
na sua iniciação espiritual descrita em<br />
O silêncio, se vê fraco demais para protegê-<br />
-la de outros predadores burocráticos, como<br />
o repugnante Paul Krendler ou então o monstruoso<br />
multimilionário Mason Verger, uma<br />
antiga vítima que sobreviveu literalmente às<br />
mordidas de Lecter e que agora deseja uma<br />
vingança implacável. O que antes era apenas<br />
sugerido nos livros anteriores, desta vez<br />
Harris deixa bem explícito: Hannibal é um<br />
romance gótico, uma mistura de Bram Stoker<br />
com Flannery O’Connor, em que os símbolos<br />
demoníacos são levados ao limite da ironia,<br />
em um procedimento que daria inveja a Theodor<br />
Adorno; já que, ao mesmo tempo em<br />
que busca alguma humanidade no psicopata<br />
Lecter — sabemos, por exemplo, que ele tem<br />
a sua origem homicida explicada porque sua<br />
irmã mais nova, Mischa, foi devorada por vagabundos<br />
na Segunda Guerra Mundial — ele<br />
retira toda a coragem que antes esperávamos<br />
de Clarice Starling, chegando ao ponto de<br />
jogá-la na cova dos leões, quando Harris termina<br />
a sua história e a transforma na amante<br />
hipnotizada e fascinada de ninguém menos<br />
que... Hannibal Lecter.<br />
Sim, a brava Clarice se encanta perante<br />
os braços de sua aparente nemesis. Mas não<br />
será que sempre foi assim? Nada foi muito<br />
simples no mundo macabro de Thomas Harris,<br />
apesar de tentarem catalogá-lo na prateleira<br />
dos best-sellers. Na verdade, ele faz pela<br />
literatura popular (de massa, como diriam os<br />
estudiosos da indústria cultural...) algo que a<br />
literatura de alta cultura esqueceu há muito<br />
tempo: comunicar ao leitor aquela saudável<br />
suspeita pelo poder que faz uma sociedade<br />
permanecer sã. Porque os romances de Harris<br />
são sobre como um homem qualquer —<br />
o dr. Hannibal Lecter, Dahlia Iyad, Clarice<br />
Starling, Paul Krendler — se deixa envolver<br />
na sua libido dominandi, na sua vontade de<br />
poder, contagiando os outros ao seu redor<br />
para imitá-lo sem pensar nas consequências<br />
morais desses atos, deixando-se fascinar pelo<br />
Mal e pelo medo, controlando a quem quiser,<br />
de todas as formas — do mais baixo ao mais<br />
alto dos escalões do governo —, chegando ao<br />
ponto extremo de comê-las para ter o domínio<br />
completo de seus desejos e de quem não<br />
se submete à sua vontade.<br />
Talvez seja por isso que Thomas Harris<br />
não dê mais declarações à imprensa, tornando-o<br />
assim uma espécie de Thomas Pynchon<br />
da literatura de massa (como bem apelidou<br />
Stephen King). Ambos os autores e seus respectivos<br />
livros têm um código secreto, uma<br />
mensagem que poucos conseguem decifrar:<br />
a de que vivemos em uma sociedade repleta<br />
de psicopatas em atividade ou esperando<br />
apenas a possibilidade de agir. Somos todos<br />
predadores em potencial — e não temos<br />
como escapar da caçada que nos envolve.<br />
Cedo ou tarde, seremos devorados ou teremos<br />
que devorar os outros.<br />
Em tal mundo, não há espaço para a<br />
inocência — e este parece ser o tema do romance<br />
mais recente de Thomas Harris, Hannibal<br />
rising (2006), justamente o livro que<br />
narra como foi a transformação de uma simples<br />
criança a um psicopata sem escrúpulos.<br />
Ao mostrar que o Mal sufoca até mesmo a<br />
provável bondade que existe no coração de<br />
um menino traumatizado, Harris também<br />
mostra que o poder é, antes de tudo, uma<br />
escolha moral que independe do que feito<br />
contra uma pessoa e sim de como ela opta<br />
a reagir com o desejo de vingança ou com<br />
a aceitação da precariedade deste mundo.<br />
E, no meio disso tudo, há sempre a caçada<br />
atrás de um objeto misterioso e intangível<br />
que poucos conseguem definir. Será ela que<br />
faz o leitor perceber que talvez a grande lição<br />
de Thomas Harris aos seus leitores, sejam de<br />
alta ou baixa cultura, tem uma força benéfica<br />
muito mais efetiva do que os arabescos<br />
de Martin Amis — uma lição muito próxima<br />
dos conselhos de Auberon Waugh (sim, o<br />
filho de Evelyn), que uma vez escreveu: “A<br />
sociedade deve aceitar que o desejo de poder<br />
é uma desordem de personalidade por si só,<br />
como o desejo de ter uma relação sexual com<br />
uma criança ou de sentir o gosto de borracha<br />
embaixo de suas roupas. (...) A política,<br />
nunca canso de me dizer, é para deslocados<br />
sociais e emocionais, gente com inteligência<br />
limitada, que têm nada além de rancor em<br />
suas emoções. O propósito da política, para<br />
eles, é ajudá-los a superar essas limitações<br />
e esses sentimentos de inferioridade e compensar<br />
as suas inadequações pessoais na<br />
procura pelo poder. E isso sem dúvida causa<br />
muito mais infelicidade do que felicidade”.<br />
Para irmos além de toda essa tragédia,<br />
talvez possamos terminar com uma exclamação<br />
importante de Ortega y Gasset — na<br />
verdade, um quase-imperativo que se parece<br />
muito com uma ordem militar — e que é um<br />
aviso de profunda raiz moral: “Alerta!”. Em<br />
um livro da maturidade chamado La caza y<br />
los toros, Ortega parte de um simples fato social<br />
do passado — o hábito da caça como um<br />
esporte que revela a capacidade humana de<br />
controlar ou dominar a nossa natureza violenta<br />
— para levantar voos vertiginosos de<br />
pensamento, e afirmar que a própria existência<br />
humana é uma contínua caçada em que<br />
devemos estar constantemente em atenção<br />
imediata, para capturarmos a essência das<br />
coisas reais e não nos deixarmos capturar por<br />
ilusões do passado, nem do futuro e do presente.<br />
Thomas Harris nos ajuda a fazer justamente<br />
isso: a ficarmos alertas com os falcões<br />
dentro de nós, simplesmente porque jamais<br />
poderemos dominá-los. E esta é a única regra<br />
que existe neste mundo devastado pelos canibais<br />
que nos governam.
22<br />
169 • maio_ 2014<br />
Malhas que o<br />
Império tece<br />
O português Pedro Rosa Mendes aborda a<br />
independência do Timor-Leste num bem-sucedido romance<br />
O AUTOR<br />
Pedro Rosa<br />
Mendes<br />
Nasceu em 1968, em<br />
Cernache do Bonjardim,<br />
Portugal. É autor de uma<br />
obra heterogênea que<br />
engloba ficção, ensaio e<br />
reportagem, com incursões<br />
no teatro e na poesia. É<br />
autor de quatro romances<br />
– Baía dos tigres (1999,<br />
prêmio Pen de narrativa),<br />
Atlântico (2003), Lenin<br />
oil (2006) e Peregrinação<br />
de Enmanuel Jhesus<br />
(prêmio Pen de narrativa<br />
2011). Atualmente, vive<br />
em Genebra, na Suíça.<br />
: : Haron Gamal<br />
Rio de Janeiro – RJ<br />
A<br />
literatura<br />
portuguesa<br />
contemporânea sempre<br />
nos surpreende com boas<br />
obras, e Peregrinação<br />
de Enmanuel Jhesus, de Pedro<br />
Rosa Mendes, segue a mesma trilha.<br />
Trata-se de um livro que descreve<br />
todo o percurso que resultou na<br />
independência do Timor-Leste do<br />
domínio da República da Indonésia,<br />
em 1999. Mas para os amantes da literatura<br />
a vantagem é que a História<br />
é narrada em forma de ficção.<br />
Já no capítulo de abertura,<br />
Matarufa, veterano da resistência<br />
timorense, relata o dia em que a<br />
ONU anunciou o resultado oficial<br />
do plebiscito que reconheceu a<br />
pequena ilha como país independente:<br />
“Às 9 horas da manhã de<br />
sábado, 4 de setembro de 1999, no<br />
Hotel Ma’hkota, em Díli, Ian Martin,<br />
chefe da missão internacional,<br />
anunciou os resultados da consulta<br />
popular em Timor-Leste: 21,5 por<br />
cento tinham votado a favor da autonomia,<br />
78,5 por cento votaram<br />
contra”. É preciso esclarecer que<br />
“a favor da autonomia” significava<br />
permanecer como região “autônoma”<br />
da Indonésia, o que não foi a<br />
vontade dos habitantes de Timor-<br />
-Leste, pois a maioria optou pela<br />
independência.<br />
O romance possui um eficaz<br />
artifício literário. Começa como<br />
um auto de missão levado avante<br />
pelo bispo Per Kristian Kartevold,<br />
da Igreja da Noruega (outubro/<br />
novembro de 1999). Isto quer dizer<br />
o seguinte: trata-se de uma investigação<br />
sobre o suposto paradeiro<br />
de um nativo, afilhado deste bispo,<br />
que teria desaparecido no Matebian<br />
(montanha sagrada conforme<br />
a tradição local), exatamente no<br />
dia do plebiscito na ilha.<br />
Em forma de inquérito, são<br />
enumerados vários personagens que<br />
teriam concordado em falar sobre o<br />
desaparecido, sobre o país e, enfim,<br />
sobre tudo que estava relacionado<br />
à luta pela libertação. Não escapam<br />
narrativas sobre as tradições dos<br />
vários povos que formam a etnia timorense,<br />
mesmo aqueles que antecederam<br />
a chegada dos portugueses.<br />
É sempre bom lembrar que a chegada<br />
de Portugal à região data do segundo<br />
decênio do século 16. Entre<br />
os personagens que depõem neste<br />
inquérito literário, encontram-se<br />
pessoas que estiveram ao lado da<br />
resistência timorense e outras que<br />
atuaram junto à administração da<br />
ilha sob o domínio da Indonésia ou<br />
fizeram parte do seu serviço secreto.<br />
Como se sabe, a Indonésia invadiu o<br />
Timor logo após a saída dos portugueses,<br />
em 1975.<br />
Ao apresentar testemunhos<br />
de personagens que estiveram em<br />
ambos os lados da luta pelo domínio<br />
do Timor, a narrativa acaba por<br />
tornar-se polifônica. São oito pessoas<br />
(sete homens e uma mulher,<br />
entre os homens há um padre) que<br />
contam a história do país, cada um<br />
sob a sua perspectiva. O romance<br />
de Pedro Rosa Mendes, com isso,<br />
filia-se à narrativa de António Lobo<br />
Peregrinação de<br />
Enmanuel Jhesus<br />
Pedro Rosa Mendes<br />
Tinta da China<br />
376 págs.<br />
TRECHO<br />
Peregrinação de<br />
Enmanuel Jhesus<br />
“Eu nasci em 1974, tinha três<br />
ou quatro anos na altura, não<br />
entendia nada do que estava<br />
a acontecer. O meu pai não<br />
queria dar-me. O soldado<br />
indonésio arrancou-me e<br />
deu-me a minha mãe. Vieram<br />
separá-la de meu pai também.<br />
Lembro-me dos gritos nossos<br />
e deles misturados. Uma<br />
bulha. Depois, mais nada. A<br />
minha mãe, os meus irmãos e<br />
eu continuámos descendo a<br />
encosta. Meu pai ficou para trás.<br />
Antunes, ficcionista que melhor<br />
soube ousar nas letras lusitanas. A<br />
influência de Antunes pode ser observada<br />
não apenas na forma (organização<br />
dos parágrafos, diálogos<br />
e pontuação), mas também na repetição<br />
dos mesmos acontecimentos<br />
sob pontos de vista diferentes.<br />
Além desses aspectos estruturais,<br />
é possível perceber no romance<br />
o mal que toda espécie de colonialismo<br />
foi capaz de causar mundo<br />
afora. Até mesmo a presença portuguesa,<br />
que acabou por predominar<br />
porque permaneceu durante muito<br />
tempo no local e deixou como herança<br />
a língua, é discutida pelo autor.<br />
Portugal colocou uma centelha<br />
a mais na já conturbada rivalidade<br />
existente na região à época das<br />
grandes navegações. Povos de Java<br />
e de Sumatra havia muito pretendiam<br />
o domínio da região.<br />
No final do romance, o autor<br />
empreende uma viagem à Noruega,<br />
aonde vai ao encontro do tal bispo<br />
que seria o autor do relato que nos<br />
apresenta. Após boas observações<br />
sobre o país nórdico, os contrastes<br />
com Portugal e com o Timor, o<br />
suposto “editor” (este seria o papel<br />
de Pedro Rosa Mendes na organização<br />
do livro) estende sua viagem<br />
ao Polo Norte, exatamente à cidade<br />
onde o bispo reside, localizada em<br />
território russo. Ali encontra o religioso<br />
com a saúde já bastante debilitada,<br />
mas ainda capaz de lhe fazer<br />
revelações que proporcionam novo<br />
alento às suas investigações.<br />
Talvez o maior êxito do romance<br />
seja a bem-sucedida exposição<br />
do caráter mágico relativo à<br />
resistência das hostes timorenses<br />
contra os opressores, sejam eles de<br />
onde quer que tenham vindo. Tais<br />
segmentos lembram o realismo<br />
mágico das literaturas da América<br />
Latina. Na luta pela liberdade, até<br />
mesmo os ancestrais estão sempre<br />
de prontidão, habitando um passado<br />
que de certa forma revela-se<br />
sempre presente, ou um presente<br />
que não se atemoriza diante de um<br />
duvidoso futuro.<br />
Outro ponto digno de nota é<br />
a descrição das atrocidades perpetradas<br />
pelas forças de ocupação da<br />
Indonésia, que, segundo a narrativa,<br />
não pouparam velhos, mulheres<br />
e crianças, condenando todos à<br />
fome, à miséria, à morte.<br />
A estada de Pedro Rosa Mendes<br />
no Timor-Leste, a título de<br />
fazer uma série de reportagens sobre<br />
a perspectiva da região após a<br />
independência, acaba por revelar<br />
não apenas a escolha do povo local<br />
pela independência e pela língua<br />
proibida pela Indonésia enquanto<br />
esteve no poder, o português, mas<br />
ainda esclarece que, no mundo<br />
atual, cultura alguma é capaz de<br />
ser autossuficiente.<br />
O bem vence o mal<br />
: : Luiz Horácio<br />
Porto Alegre – RS<br />
O<br />
que falta ao ser humano?<br />
Vir de fábrica com<br />
a tatuagem, em lugar<br />
bem visível, “aprecie<br />
com moderação”. Pouco importa<br />
se estranho ou familiar, o perigo é<br />
o mesmo. Desprezo, roubos, assassinatos<br />
e por aí afora. No quesito<br />
assassinato, parece que o mais em<br />
conta é cometer o crime dentro do<br />
núcleo familiar. Fica tudo em casa.<br />
Para enfrentar essa convivência<br />
inevitável com seu semelhante,<br />
o homem recorre aos ensinamentos<br />
de gurus, de deuses, de pastores,<br />
no mais das vezes de personal trainers.<br />
Não fujo à regra, também tenho<br />
meu guru, aquele que me guia,<br />
que me impulsiona e que também<br />
me freia, atende pelo nome, sem<br />
sobrenome, medo. Foi o que consegui<br />
dentro de minha precariedade.<br />
Emma Forrest, outra classe social,<br />
encontrou no seu psiquiatra,<br />
apelidado de Dr. R, o seu guru. A<br />
autora não disfarça a sua gratidão.<br />
Guru porque ele ultrapassa os limites<br />
profissionais e torna-se amigo e<br />
confidente de Emma.<br />
Nove anos atrás, o dr. R<br />
salvou minha vida. Graças a ele,<br />
meus pais tiveram sua filha de<br />
volta. Temos uma dívida eterna<br />
e somos eternamente gratos pela<br />
dádiva de sua presença em nossa<br />
vida. Com o passar dos anos, eu<br />
brincava com ele dizendo que ele<br />
era um otimista terminal. Graças<br />
a Deus ele era assim; peguei carona<br />
em sua fé e entusiasmo por<br />
Sua voz dentro de mim<br />
Emma Forrest<br />
Trad.: Maira Parula<br />
Rocco<br />
192 págs.<br />
TRECHO<br />
Sua voz dentro de mim<br />
“A primeira vez que fui ver o<br />
dr. R foi em 2000, um bom<br />
ano para mudar de vida.<br />
Peguei o trem da linha 6 ao<br />
sair da emergência,onde<br />
passei a noite toda. Eu me<br />
tornara tão entorpecida em<br />
minha vida, que nem o sexo<br />
eu registrava, a não ser que<br />
doesse, e então eu, muito<br />
distante, podia ver que era<br />
eu na cama. Apesar dos<br />
cor- tes e da bulimia, eu<br />
não conseguia ser rápida o<br />
suficiente para me machucar,<br />
então o namorado era de<br />
alguma ajuda.<br />
um longo tempo. Levarei o dr. R<br />
comigo sempre. Eu me esforçarei<br />
para imitar sua gentileza e equilíbrio,<br />
especialmente perto dos que<br />
são doentes e sofrem, como eu era<br />
quando tive a sorte de ficar sob<br />
seus cuidados.<br />
AUTORA<br />
Emma Forrest<br />
A jornalista, escritora e roteirista<br />
Emma Forrest foi criada em<br />
Londres, Inglaterra, e começou a<br />
carreira ainda adolescente, quando<br />
foi convidada para assinar uma<br />
coluna no jornal Sunday Times.<br />
Posteriormente, colaborou com<br />
publicações como Vogue, Vanity<br />
Fair e Harper’s Bazaar, entre<br />
outras, e teve roteiros comprados<br />
por produtoras como Plan B<br />
Entertainment, do ator Brad Pitt,<br />
e Miramax. Atualmente, vive em<br />
Los Angeles, Estados Unidos.<br />
Sua voz dentro de mim<br />
apresenta as memórias de Emma.<br />
Está lá seu medo, e ela o torna público<br />
ao revelar temer seu lado escuro,<br />
até então algo extremamente<br />
particular.<br />
Durante o período em que<br />
Emma foi paciente do Dr. R, oito<br />
anos, surgem flashbacks, alguns<br />
emblemáticos, tanto para a narrativa<br />
quanto para o leitor começar a<br />
suspeitar do equilíbrio da autora/<br />
personagem. Um exemplo: Emma,<br />
então com 13 anos, visita a galeria<br />
Tate, em Londres. Ela não economiza<br />
tempo em sua observação do<br />
quadro Ofélia, tela de John Everett<br />
Millais.<br />
Vale lembrar que Ofélia traduz<br />
a mulher trágica que à época<br />
—1852 — era presença constante<br />
na pintura romântica. Outro detalhe:<br />
Ofélia era a namorada suicida<br />
de Hamlet. Na pintura de Millais, a<br />
mulher flutua em um lago, aparenta<br />
melancolia e resignação.<br />
O primeiro romance de<br />
Amélie Nothomb, Hygiène de<br />
l’assassin, traz detalhe dessa mesma<br />
pintura na capa. O livro narra<br />
a história de um prêmio Nobel de<br />
literatura ao qual restam dois meses<br />
de vida. Jornalistas do mundo<br />
inteiro pretendem entrevistá-lo,<br />
poucos conseguem. Um misto de<br />
entrevista e tortura. Cinismo e ambiguidade<br />
podem ser a tradução da<br />
obra de Amélie. Tudo resguardado<br />
por Ofélia. Pontos em comum com<br />
Sua voz dentro de mim? Vários.<br />
Elejo um: a sombra da morte que<br />
paira e espreita.<br />
Essa sombra que não se limita<br />
a perseguir a autora, incluo seus<br />
namorados durante esse período<br />
de terapia. Eles se tornam personagens<br />
importantes na narrativa.<br />
Os relacionamentos ocorrem ao<br />
ritmo dos descompassos de Emma,<br />
capazes de carregar ambos às profundezas<br />
mais escuras, ou relacionamentos<br />
tranquilos, beirando a<br />
monotonia.<br />
Emma Forrest até certa altura<br />
da vida parecia não ter motivos<br />
para se preocupar com questões<br />
tão subjetivas, o medo que alimentamos<br />
ou que nos acostumamos é<br />
coisa nossa. Este aprendiz, embora<br />
tosco, tem medos paralisantes de<br />
alguns de seus pensamentos. Mas<br />
deixemos isso de lado. Trouxe o<br />
exemplo apenas para mostrar que<br />
esse vírus ataca mentes privilegiadas<br />
e também as simplórias. No<br />
caso, a do resenhista. Pois bem,<br />
tudo transcorria conforme o figurino<br />
na vida da protagonista, talvez<br />
até excedendo as expectativas. A<br />
autora, ainda jovem, abandonou a<br />
segurança familiar em Londres e<br />
foi viver em Nova York. Ela desfilava<br />
pela passarela da vida, seu dia a<br />
dia era de causar inveja ao mais ferrenho<br />
budista. Jornalista e escritora,<br />
trabalhava para o The Guardian<br />
e seu primeiro livro não tardaria a<br />
ser publicado. Essa é a parte clara<br />
da vida da autora, o lado escuro<br />
acolhia a jovem com problemas<br />
psiquiátricos que se manifestavam<br />
via bulimia e automutilação.<br />
O tema é forte e infelizmente<br />
se propaga em nosso cotidiano —<br />
conheci jovens que se cortavam e<br />
a bulimia é quase um modismo —,<br />
mas Emma trata suas memórias<br />
com humor inteligente. Inclusive<br />
no auge de sua depressão, pelo menos<br />
no livro, ela não permite o domínio<br />
da tristeza, da autopiedade.<br />
Sua voz dentro de mim,<br />
embora sua primorosa narração<br />
que empresta leveza ao tema, é<br />
mais um livro de autoajuda. O<br />
bem, mais uma vez, vence o mal.<br />
Mesmo quando esse bandido cruel<br />
repousa dentro de nós.
169 • maio_ 2014<br />
23<br />
O falso verdadeiro<br />
Os fenômenos excêntricos da obra de H. G. Wells produzem formas de vivência que desconhecemos<br />
: : Nelson Shuchmacher<br />
Endebo<br />
Rio de Janeiro – RJ<br />
Certa vez perguntava Paul<br />
Valéry, após afirmar que<br />
“o falso sustém o verdadeiro”:<br />
“o que seria de<br />
nós sem a ajuda do que inexiste?”.<br />
A problemática que essa questão<br />
invoca é tão antiga quanto o próprio<br />
pensamento. Há, no plano das<br />
ações humanas, um algo de impossível<br />
que é misteriosamente a<br />
imagem necessária das nossas realizações<br />
concretas. Não há política<br />
que se desprenda definitivamente<br />
de seu veio utópico. A literatura<br />
presta um vigoroso e matizado testemunho<br />
disso, e o caso do britânico<br />
H. G. Wells, pioneiro escritor de<br />
utopias científicas, é exemplar nesse<br />
sentido. A coletânea O país dos<br />
cegos e outras histórias, reunindo<br />
a segunda versão do conto-<br />
-título e outras 17 narrativas curtas<br />
cobrindo o período de 1894 a 1939,<br />
dá uma amostra farta dos gêneros<br />
pelos quais Wells passeou em sua<br />
longa carreira, desde a ficção científica<br />
que o fez famoso, até a aventura,<br />
o conto policial e a fábula.<br />
Na segunda metade do reinado<br />
da Rainha Vitória (1837-1901)<br />
o debate sobre as contradições<br />
sociais do Império Britânico — à<br />
época o mais poderoso e abastado<br />
do mundo — foi fortemente<br />
pontuado pelos termos gerais do<br />
imperialismo e socialismo, que figuravam<br />
como possíveis reações<br />
ao predomínio, durante boa parte<br />
do século 19, da fé inabalável no<br />
bem-estar social e espiritual como<br />
consequência do progresso técnico<br />
e científico. Esse característico otimismo<br />
é exemplificado sobretudo<br />
no trabalho histórico de Thomas<br />
Macaulay e na poesia de Alfred<br />
Tennyson. Londres é a primeira cidade<br />
do mundo a ter mais de um<br />
milhão de habitantes, enquanto a<br />
empresa colonial se estende por<br />
todo o globo. É a Grã-Bretanha da<br />
restauração católica de Oxford, um<br />
movimento radical a seu modo; do<br />
utilitarista John Stuart Mill e do<br />
reformismo visionário e filantrópico<br />
de John Ruskin. É a nação<br />
dos dândis desinteressados, dos<br />
estetas decadentes, de Swinburne<br />
e Oscar Wilde; a nação pós-Malthusiana<br />
de Marx, Engels, Darwin<br />
e de Herbert Spencer, cujas ideias<br />
afetaram, para o bem e para o<br />
mal, todos os debates relevantes<br />
da época. É o tempo também do<br />
jornalismo, do sensacionalismo<br />
dos folhetins, e da literatura como<br />
ganha-pão da pequena burguesia,<br />
como a de Wells. Um dos mais<br />
fecundos períodos da literatura<br />
inglesa. Wells foi socialista como<br />
William Morris e Bernard Shaw,<br />
crente de que a degeneração da<br />
sociedade britânica fosse resultado<br />
do desequilíbrio econômico,<br />
mas a tendência de sua arte não é<br />
a panfletagem, como é por vezes a<br />
de Shaw, tampouco é o idealismo,<br />
como na Inglaterra pastoral de<br />
Morris; ela é revolucionária<br />
na medida em que o entusiasmo<br />
pela divulgação<br />
científica, tão típico do<br />
período, é direcionado<br />
para acionar o potencial<br />
reformador da ordem social<br />
que a técnica conserva e<br />
desvela. Wells fora aluno do biólogo<br />
darwinista Thomas Huxley,<br />
e funda suas visões renovadoras<br />
nas ciências e nas miopias científicas<br />
mais proeminentes do fin-de-<br />
-siècle vitoriano, a geologia comparada,<br />
a antropologia, a zoologia,<br />
a física teórica e a etnologia. Nesse<br />
sentido, embora os enredos de<br />
Wells sejam fantásticos, ele é um<br />
realista confortavelmente situado<br />
na tradição romanesca inglesa,<br />
como bem aponta o editor e tradutor<br />
Braulio Tavares no prefácio.<br />
O país dos cegos e<br />
outras histórias<br />
H. G. Wells<br />
Trad.: Braulio Tavares<br />
Alfaguara<br />
342 págs.<br />
O AUTOR<br />
Herbert George Wells<br />
Nasceu em 1866, em Bromley,<br />
Kent, e morreu em Londres,<br />
em 1946. Filho de um<br />
pequeno comerciante, teve<br />
de trabalhar desde cedo para<br />
ganhar a vida. Estudou com<br />
o cientista e humanista T. H.<br />
Huxley. Deu aulas de biologia<br />
antes de se tornar jornalista<br />
e escritor profissional. Autor<br />
de mais de uma centena<br />
de livros, entre romances,<br />
ensaios e contos. No fim do<br />
século 19, publicou obras<br />
pioneiras da ficção científica: A<br />
máquina do tempo, A<br />
ilha do dr. Moureau, O<br />
homem invisível e A<br />
guerra dos mundos.<br />
Modernismo literário<br />
O encouraçado terrestre<br />
descreve os avanços na tecnologia<br />
bélica, especulando não só a mudança<br />
permanente que os tanques<br />
de guerra trariam à estrutura dos<br />
combates, como também a disputa<br />
assídua de nações tecnocratas para<br />
dominá-la; O estranho caso dos<br />
olhos de Davidson propõe a visão<br />
à distância, sugerindo que o tecido<br />
espaço-tempo possa ser dobrado,<br />
como um papel; o conhecidíssimo A<br />
estrela, protótipo dos disaster movies<br />
hollywoodianos, imagina o cataclismo<br />
humano ocasionado pela<br />
passagem de um cometa, e termina<br />
com uma reflexão sobre a Terra devastada<br />
segundo a visão dos marcianos,<br />
que ignoram as dimensões<br />
“reais” da catástrofe, antecipando<br />
assim, timidamente, o perspectivismo<br />
que marca o modernismo<br />
literário. Esse não é entretanto um<br />
perspectivismo nietzschiano. Wells<br />
é um moralista de tintura cristã,<br />
como Dickens, um democrata “na-<br />
H. G. Wells por<br />
Vitor Vanes<br />
tural” para os padrões vitorianos.<br />
Estrutura o principal conto da antologia,<br />
um de seus prediletos, O<br />
país dos cegos, curiosamente nos<br />
moldes da narrativa do Evangelho,<br />
abrindo mão entretanto de seu<br />
conteúdo teológico específico. O<br />
conto narra a chegada de Nunez,<br />
um alpinista perdido nos Andes,<br />
a uma comunidade politicamente<br />
harmoniosa de cegos em um território<br />
geograficamente isolado por<br />
uma série de desastres naturais. Da<br />
antropologia, Wells tira explicações<br />
para a organização social do grupo,<br />
sua religião, seus ritos e crenças; da<br />
etnologia, a razão para os conflitos<br />
culturais entre Nunez, que enxerga,<br />
e os demais. Os mitos dos cegos são<br />
desmistificados pela visão compreensiva<br />
do narrador, francamente<br />
sentenciosa e, dirão hoje, preconceituosa.<br />
Nunez está certo desde o<br />
início, mas é hostilizado e rejeitado<br />
pelos cegos como um lunático; eles,<br />
por sua vez, não possuem sequer o<br />
vocabulário para verbalizarem o ato<br />
de ver. Mas Nunez se adapta, aprende<br />
as doutrinas cosmológicas dos<br />
locais, se apaixona por uma mulher<br />
cega e esquece do mundo exterior,<br />
até o dia em que uma catástrofe finalmente<br />
abre passagem para fora.<br />
Nunez tenta avisar a todos sobre o<br />
desastre iminente, mas é rechaçado<br />
novamente como um herege, um<br />
radical, um louco. Aquele que vê a<br />
verdade, o salvador, é escorraçado<br />
por uma comunidade de tolos. Mas<br />
a estória não é um mero conto moral,<br />
e uma leitura dela como anedota<br />
rebaixando os cegos me parece<br />
equivocada. Ela é uma contribuição<br />
notável para a imaginação do futuro,<br />
considerando uma habilidade<br />
dir-se-ia inata, a visão, como técnica,<br />
como artifício, deslocando o<br />
sentido natural da percepção visual<br />
e valorizando, portanto, o espaço<br />
vital dos cegos em um plano de dignidade<br />
equipolente. Nisso também<br />
Wells adumbra o modernismo.<br />
Outras narrativas valem menção<br />
e admiração: A marca do polegar,<br />
à maneira de Conan Doyle, é<br />
um divertido conto policial que introduz<br />
as impressões digitais como<br />
prova de um crime, algo que fascinava<br />
Sherlock Holmes; A história<br />
do falecido sr. Elvesham é uma<br />
tragédia metafísica que mantém o<br />
interesse do leitor até o final surpreendente,<br />
em uma das melhores<br />
narrativas curtas de Wells; Pollock<br />
e o homem do Porroh, uma sátira<br />
certeira das pesquisas etnológicas<br />
nas colônias africanas e da obsessão<br />
do dito mundo civilizado pela<br />
sanidade mental; O império das<br />
formigas brinca com a ideia de que<br />
o fenômeno da inteligência possa<br />
emergir entre as formigas sul-<br />
-americanas, uma bem-humorada<br />
crítica da mentalidade imperialista<br />
por parte do autor, que se deleita,<br />
ao inverter os vetores do colonialismo,<br />
com os próprios excessos da<br />
sátira diante da invasão europeia<br />
das formigas, para a qual ninguém<br />
está preparado. Otto Maria Carpeaux<br />
notou com acuidade o grande<br />
humorista em Wells, herdeiro de<br />
Charles Dickens. Com efeito, o monóculo<br />
doutor Lidgett, em A história<br />
de Plattner, ou a esposa chantagista<br />
e interesseira do amável e<br />
desengonçado sr. Cave, em O ovo<br />
de Cristal, poderiam facilmente ser<br />
confundidos com criações dickensianas.<br />
Esse último conto, em sua<br />
estrutura narrativa, na maneira em<br />
que estabelece os fatos e introduz a<br />
cena e, principalmente, como apresenta<br />
o personagem principal “trazendo<br />
na barba alguns farelos com<br />
manteiga de seu desjejum”, existe<br />
inteiramente no vastíssimo espaço<br />
imaginativo aberto por Dickens,<br />
que carece da psicologia moral de<br />
um Joseph Conrad ou o senso agudo<br />
de declínio de um Thomas Hardy,<br />
mas que constitui, a seu modo,<br />
um abundante e convincente uni-<br />
TRECHO<br />
O país dos cegos<br />
“Falou das belezas da visão, da<br />
contemplação das montanhas,<br />
do céu e da aurora, e<br />
eles o escutavam com uma<br />
divertida incredulidade que<br />
aos poucos foi se tornando<br />
condenatória. Disseram-lhe<br />
que na verdade não existia<br />
montanha alguma, e que<br />
aquela área rochosa onde as<br />
lhamas pastavam era sem<br />
dúvida o fim do mundo; (...)<br />
verso romanesco, no qual as mazelas<br />
e as delícias do mundo podem<br />
ser devidamente representadas<br />
com a sua própria gravitas, e não<br />
como simples recurso retórico de<br />
suporte a um argumento. Tavares,<br />
no prefácio, comenta que O ovo de<br />
Cristal daria um romance, e é uma<br />
pena que Wells não o tenha desenvolvido,<br />
pois ele me parece ser o<br />
único conto da antologia que apresenta<br />
personagens imediatamente<br />
cativantes, que excedem o papel de<br />
veículo imediato para a expressão<br />
de uma ideia motriz. E a ideia, claro,<br />
maravilhosa: o artefato referido no<br />
título se comunica misteriosamente<br />
com um outro mundo. O conto<br />
termina, como de costume, sem<br />
descobrirmos o que é aquilo, mas<br />
não sem que antes tenhamos uma<br />
crítica das teorias ópticas da virada<br />
do século 20. Jorge Luis Borges reconheceu<br />
a influência desse conto<br />
em duas histórias n’O Aleph.<br />
O editor e tradutor Braulio<br />
Tavares, cujo trabalho com o autor<br />
já rendeu edições nacionais dos célebres<br />
romances A máquina do<br />
tempo e A ilha do dr. Moreau,<br />
fez um ótimo trabalho de seleção. A<br />
tradução é no geral fluida e correta,<br />
altamente legível, embora algumas<br />
soluções não transmitam suficientemente<br />
o sabor da prosa de Wells.<br />
Por exemplo, em O império das<br />
formigas, Wells escreve: “Holroyd<br />
was learning Spanish industriously,<br />
but he was still in the present<br />
tense and substantive stage of<br />
speech, and the only other person<br />
who had any words of English was<br />
a negro stoker, who had them all<br />
wrong”. Tavares traduz corretamente;<br />
a perda é estilística: “Holroyd<br />
estudava o espanhol com toda<br />
aplicação, mas ainda estava naquele<br />
estágio feito apenas de substantivos<br />
e verbos no presente, e a única<br />
outra pessoa que sabia algumas<br />
palavras em inglês era um negro<br />
que trabalhava na fornalha e não<br />
conseguia pronunciá-las direito”.<br />
É comum nos contos de Wells<br />
o narrador confessar que não sabe<br />
bem o que está ocorrendo, ou que<br />
obteve as informações do relato indiretamente.<br />
O que é verdadeiro?<br />
A veia utópica do autor não permite<br />
que o fenômeno em tratamento<br />
seja circunscrito pelo discurso<br />
científico disponível. Mas Wells<br />
talvez seja um otimista como seus<br />
contemporâneos, esperando que<br />
um dia façamos a descrição exata<br />
do que há. Há contudo um outros<br />
viés, igualmente contemporâneo,<br />
que talvez seja mais visível hoje:<br />
os fenômenos excêntricos de Wells<br />
produzem formas de vivência que<br />
ainda não conhecemos, como os<br />
animais das insondáveis profundezas<br />
em Os invasores do mar. E<br />
não há na gramática dos homens<br />
formas correspondentes às suas<br />
ações. Essa falta produz a literatura,<br />
que a busca. E assim o falso<br />
sustém o verdadeiro.
169 • maio_ 2014<br />
24<br />
PRATELEIRA : : internACIONAL<br />
QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />
COLUNISTAS<br />
ENSAIOS E RESENHAS<br />
DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />
EDIÇÕES ANTERIORES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />
Amor em fuga<br />
Bernhard Schlink<br />
Trad.: Herta Elbern<br />
Record<br />
288 págs.<br />
Ao longo dos sete contos que compõem<br />
o livro, o amor no mundo contemporâneo<br />
está em pauta. Não possuem<br />
preconceitos ou distinções, mas não se<br />
tratam de romances felizes. O moderno<br />
conta com contradições, dificuldades<br />
e impossibilidades. Entre a queda do<br />
muro de Berlim e conflitos armados em<br />
países de terceiro mundo, histórias de<br />
pessoas atormentadas por seu passado<br />
e seu presente, de amores incompletos e<br />
hesitantes, mas sempre esperançosos.<br />
Elegias de Duíno<br />
Rainer Maria Rilke<br />
Trad.: Dora Ferreira da Silva<br />
Biblioteca Azul<br />
128 págs.<br />
Em carta de 1921, Rilke apresentou a<br />
chave para estas Elegias, ao alertar que<br />
a religião é uma tendência do coração,<br />
infinitamente simples. São considerados<br />
dez dos poemas mais célebres do<br />
século 20. Gênero que tipicamente<br />
anda lado a lado com o fúnebre, os<br />
versos exalam desamparo existencial,<br />
acompanhados de uma religiosidade<br />
peculiar. O trabalho da tradutora e poeta<br />
Dora Ferreira foi considerado patrimônio<br />
cultural da poesia alemã no Brasil.<br />
Falem de batalhas, de<br />
reis e de elefantes<br />
Mathias Énard<br />
Trad.: Ivone C. Benedetti<br />
L&PM<br />
152 págs.<br />
O brilhante artista italiano Michelangelo<br />
se desentende com o sinistro papa<br />
Júlio II e aceita o convite do sultão<br />
Bayazid para projetar uma grande<br />
ponte no estreito de Bósforo. Misto de<br />
romance histórico e ficção, o livro mais<br />
celebrado do francês Énard parte de<br />
uma passagem obscura da biografia de<br />
Michelangelo e recria a atmosfera de<br />
sedução do Oriente do século 16 em<br />
oposição à Renascença, resgatando o<br />
embate entre o Oriente e Ocidente.<br />
Novembro de 63<br />
Stephen King<br />
Trad.: Beatriz Medina<br />
Suma de Letras<br />
727 págs.<br />
Jake Epping é professor de inglês<br />
em uma cidade do Maine. Enquanto<br />
corrigia redações de seus alunos do<br />
supletivo, descobre uma narrativa brutal<br />
e fascinante escrita pelo faxineiro Harry<br />
Dunning, que sobreviveu de alguma<br />
forma à noite em que seu pai massacrou<br />
a família com marretadas. Como se já<br />
não fosse choque o bastante, Epping é<br />
recrutado por um dono de lanchonete,<br />
Al, para uma missão peculiar: evitar o<br />
assassinato de John Kennedy.<br />
Sangue nas veias<br />
Tom Wolfe<br />
Trad.: Paulo Reis<br />
Rocco<br />
608 págs.<br />
O celebrado jornalista e escritor Tom<br />
Wolfe volta à ativa, num livro que deixa<br />
o jornalismo se submeter aos encantos<br />
da literatura. Tipicamente polêmico,<br />
Wolfe retrata uma Miami repleta de<br />
imigrantes e conflitos culturais, strippers<br />
russas e fisioculturistas, na única cidade<br />
do mundo onde povos com línguas<br />
diferentes tomaram controle das ruas.<br />
Dilemas morais, limites éticos e conflitos<br />
étnicos dão o tom à narrativa, talhada<br />
com precisão e humor ácido.<br />
Felicidade conjugal<br />
Tahar Ben Jelloun<br />
Trad.: Clóvis Marques<br />
Bertrand Brasil<br />
322 págs.<br />
As duas faces de janeiro<br />
Patricia Highsmith<br />
Trad.: Marcelo Pen<br />
Benvirá<br />
320 págs.<br />
O vendedor de armas<br />
Hugh Laurie<br />
Trad.: Cassius Medauar<br />
Planeta<br />
287 págs.<br />
Effi Briest<br />
Theodor Fontaine<br />
Trad.: Mário Frungillo<br />
Estação Liberdade<br />
424 págs.<br />
A última névoa e A<br />
amortalhada<br />
María Luisa Bombal<br />
Trad.: Laura Janina Hosiasson<br />
Cosac Naify<br />
224 págs.<br />
Um pintor precisa se aposentar após<br />
sofrer um AVC. Convencido de que sua<br />
relação conjugal conturbada foi o motivo<br />
do colapso, resolve pintar um último<br />
quadro: o de seu relacionamento. As<br />
cores são fortes e, como toda obra de<br />
arte, está sujeita a diversas opiniões. Com<br />
o tempo ocioso e temendo a depressão,<br />
resolve escrever suas memórias desde o<br />
princípio do relacionamento, passando da<br />
má relação com os sogros ao ódio que,<br />
por fim, se instalou.<br />
Rydal Keener jamais poderia imaginar<br />
que Chester MacFarland era um<br />
estelionatário que a polícia americana<br />
almeja prender. De repente, Keener<br />
está ajudando o malfeitor a ocultar o<br />
corpo de um detetive grego. A causa<br />
desse ato impensado pode ser a<br />
paixão repentina de Rydal por Colette,<br />
a sedutora esposa de Chester. Tratase<br />
de uma cadeia de acontecimentos<br />
que passeiam por ruínas milenares,<br />
vielas escuras e hotéis decadentes.<br />
Thomas Lang, ex-militar de elite, recebe<br />
uma proposta de cem mil dólares<br />
para assassinar um empresário norteamericano.<br />
Ele decide, imediatamente,<br />
alertar a futura vítima — uma boa ação<br />
que não ficará impune. Em que estão de<br />
horas, o benfeitor está jogando cartas<br />
com bilionários impiedosos e colocando<br />
sua vida (entre outras coisas) nas mãos<br />
de muitas mulheres fatais, enquanto<br />
tenta salvar uma linda moça e impedir<br />
um banho de sangue mundial.<br />
A jovem protagonista Effi Briest<br />
sucumbe a um matrimônio indesejado,<br />
fruto do desgosto pela submissão às<br />
normas sociais na Brandemburgo do<br />
século 19. Seu marido, o barão Von<br />
Innstetten, é um burocrata frio e pouco<br />
amoroso, mais preocupado com a<br />
carreira do que com a esposa. Em busca<br />
de um romance acalentado como os<br />
dos livros, Effi cansa da vida insossa<br />
que leva e cede a certas tentações, se<br />
aproximando do pouco quisto Crampas.<br />
Duas novelas que apresentaram<br />
perspectivas completamente novas nos<br />
idos de 1930. Em ambas, protagonistas<br />
do sexo feminino encarando dilemas<br />
muito particulares. Na primeira parte, A<br />
última névoa, a história de uma mulher<br />
aprisionada no casamento com o primo,<br />
um fazendeiro viúvo que não esqueceu a<br />
primeira esposa; em A amortalhada, a<br />
protagonista Ana María repassa sua vida<br />
e seus amores a partir do leito de morte.
26<br />
169 • maio_ 2014<br />
FORA DE SEQÜÊNCIA : : Fernando Monteiro<br />
Mais tarde ou mais cedo,<br />
vai tudo virar facebook<br />
QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />
COLUNISTAS<br />
ENSAIOS E RESENHAS<br />
DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />
RES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />
Isso deveria ser o estribilho<br />
de um rock lançado por algum<br />
ídolo velho como Mike<br />
Jagger (os atuais Rollings<br />
constrangem), antes de morrer<br />
sobre plateias sexagenárias — alguma<br />
espécie de tributo ao estilo<br />
de Kurt Vonnegut? —, mas, infelizmente,<br />
não é nem uma coisa<br />
nem outra, até porque não soa tão<br />
bem quanto a mais nova pergunta<br />
do Face: “Que simpatia você está<br />
buscando?”.<br />
As perguntas de Mark Zuckerberg<br />
são do ramo da filosofia<br />
de Valesca Popuzuda. O questionário<br />
sobre se a Literatura (assim,<br />
com maiúscula) morreu e tudo o<br />
mais, está implícito, claro. O papel<br />
de escrita que seria de moscas<br />
mortas se houvesse uma grossa<br />
superfície de cola de Burroughs<br />
sobre as letras abandonadas, de<br />
maneira que você pudesse escolher<br />
continuar a ler como um rascunho<br />
ou deixar pra lá, a página<br />
virada, o próximo texto desfeito<br />
na “elegante melancolia do crepúsculo”<br />
de frases que já foram escritas<br />
e não adianta repetir em livros<br />
novos que nascem enrugados<br />
como bebês sem cabeça cuja boca<br />
falta (eu mesmo já escrevi isso em<br />
algum lugar, não?)...<br />
Você sabe que uma civilização<br />
está acabando quando as frases<br />
começam a dar a volta à cabeça<br />
ágrafa da cultura — o mal-estar,<br />
etc. — e ninguém precisa nos dizer<br />
isso numa sala refrigerada de<br />
segundo andar, em clubes literários<br />
de forças quebradas e infinita<br />
hipocrisia que afirma: “continue a<br />
escrever bobagens pelo supremo<br />
bem da arte (assim, com minúscula),<br />
agora que tudo caminha para<br />
ser como feed azul-branco de fotos,<br />
autopropaganda, risos e reticências<br />
graficamente representadas<br />
na banalidade que estragou o<br />
significado das coisas”.<br />
Esse “significado das coisas”<br />
é uma frase estragada sem significado,<br />
uma coisa dita pela tal boca<br />
sem cabeça que assumiu a de nós<br />
todos, ou logo-logo assumirá plenamente,<br />
quando, “na (i)maturidade<br />
do tempo”, tudo for para agitar<br />
antes de usar: caixas de suco,<br />
destinos baratos vividos pela TV,<br />
selvas africanas daquele quarto<br />
de Bradbury com os leões digitais<br />
mastigando os ossos das crianças<br />
reais que perderam as paredes dos<br />
livros antigos cujos meninos dormiam<br />
nos homens da terceira, da<br />
quarta, da quinta leitura no banco<br />
de louça de um quintal das graças<br />
de folhas caídas no escuro.<br />
Lembro-me de algo importante<br />
que havia na conversa sobre<br />
“os grandes cemitérios ao luar” —<br />
era quase noite, a presença dos livros<br />
realmente lidos era opressiva<br />
naquela sala de janelas fechadas<br />
(sempre) como se fosse para interditar<br />
a vida. Essa era a minha ideia<br />
idiota: “interditar” o que quisessem<br />
chamar de “vida”, no lusco-fusco<br />
que trazia uma noite de vagalumes.<br />
A pergunta na manga: todas<br />
as suas histórias mais estranhas se<br />
passavam na China?<br />
“O mundo depende do que<br />
acontece na China” — Baudelaire<br />
havia mesmo escrito isso, num caderno<br />
borrado que fora visto por<br />
alguém que sumira?<br />
Os vagalumes eram os do poema<br />
de cabeça para baixo da gaiola<br />
presa de palavras suspensas do<br />
papel de arroz no qual estava escrito:<br />
“Se você passar uma semana<br />
no velho ‘país dos mandarins’<br />
(argh), talvez venha a escrever<br />
um livro de quatrocentas páginas;<br />
mas, se você ficar seis meses entre<br />
os palácios vermelhos da antiga<br />
Cidade Proibida e o imenso estacionamento<br />
de milhares de bicicletas<br />
(que desaparecerão como<br />
os insetos luminosos debaixo do<br />
lenço do mágico), você, quem<br />
sabe, escreverá um cauteloso artigo<br />
de quatro páginas cheias de<br />
uma perplexidade... E se você ficar<br />
seis anos lá, então você passará<br />
dos sessenta anos sem ter escrito<br />
nada sobre qualquer aspecto de<br />
quaisquer daquelas províncias de<br />
neblina da China”.<br />
Era sobre isso que eu queria<br />
falar — disse o missionário, com o<br />
seu fio de voz, o homem mais velho<br />
que eu jamais vira, uma espécie de<br />
fantasma de carne seca em cima<br />
de ossos que nunca mais caminhariam<br />
sobre aquela terra na qual estava<br />
borrada a data da sua chegada<br />
(olhando, gentilmente, para as<br />
crianças descalças como a missão<br />
falhada da sua vida levada por um<br />
rio atravessado de chuva).<br />
Tinha sido há tanto tempo que<br />
ele poderia ter lido isso em Victor<br />
Segalen — quando Segalen ainda<br />
era lido. Não era muito forte a certeza<br />
de estar ainda vivo, enquanto<br />
lhe mostravam fotos, frases, frisos<br />
azuis passando numa tela de fibra<br />
dobrada na frente da cama de um<br />
sobrevivente de tempos recuados<br />
demais para gerações sem imaginação.<br />
Ou, talvez, todos os tempos<br />
se tornavam incompreensíveis,<br />
embora nenhum houvesse sido assim<br />
cancelado, anulado tão de repente<br />
e transformado em qualquer<br />
coisa que semelhava a vida — mas,<br />
decididamente, não era. E o seu gaguejo<br />
final estava para ser transformado<br />
num “meme” que se tornaria<br />
a febre virótica da semana, quem<br />
sabe, no mundo inteiro para além<br />
dos jardins de pedra de Pequim.<br />
Uma canção de exilado<br />
: : Maurício Melo Júnior<br />
Brasília – DF<br />
Darcy Ribeiro apresentava<br />
Maíra, seu<br />
primeiro romance, e<br />
segundo ele mesmo o<br />
melhor, como um livro nascido da<br />
necessidade de mirar outros mundos.<br />
Exilado no Uruguai, intelectualmente<br />
esgotado pelo trabalho<br />
de escrever O processo civilizatório,<br />
resolveu enfrentar outro<br />
desafio: reunir num romance todo<br />
o imaginário que aprendeu na longa<br />
convivência com os índios. Envolvido<br />
com outros projetos, não<br />
encontrou tempo e espaço para<br />
terminar a empreitada. Em 1969,<br />
preso no Rio de Janeiro, retomou<br />
o texto como uma maneira de<br />
manter a lucidez. Também não foi<br />
desta vez que o terminou. A terceira<br />
e última tentativa aconteceu<br />
durante um segundo exílio, agora<br />
em Lima. “Liberado pelos militares<br />
depois de nove meses de cadeia,<br />
fui aconselhado a sair ligeiro<br />
do país (...). Fui para a Venezuela,<br />
depois para o Chile e, afinal, fixei-<br />
-me no Peru, para ajudar a equipe<br />
do presidente Velasco Alvarado a<br />
pensar a revolução que os peruanos<br />
estavam levando à frente com<br />
toda a força e fervor.”<br />
Diante destes fatos é fácil<br />
pensar em Maíra como um livro<br />
que surgiu para matar a saudade<br />
do exilado. Longe da própria terra,<br />
ou preso quando nela, Darcy se<br />
aproximou do imaginário indígena<br />
para não perder de vez o laço que<br />
o prendia a uma pátria idealizada,<br />
sonhada. Anos depois, ele diria<br />
que perdeu todas as batalhas que<br />
enfrentou, mas só se sentiria derrotado<br />
se estivesse ao lado dos vencedores<br />
oficiais.<br />
Destas utopias e lutas ele<br />
extraiu um romance alegórico em<br />
que apanha as crenças indígenas,<br />
crenças que colheu na convivência<br />
com várias etnias, e as traz para o<br />
mundo real da exploração do índio<br />
e de sua terra. Maíra é sim<br />
um romance de denúncia, bem<br />
aos modos do realismo social que<br />
marcou os romancistas da geração<br />
de 1930, mas foge com maestria<br />
dos códigos sociológicos ou antropológicos.<br />
É claro que muito se<br />
aprende aqui do modo de vida dos<br />
indígenas, mas tudo está diluído<br />
nas entrelinhas de um romance<br />
real e que se resolve muito bem<br />
como instrumento ficcional.<br />
Maíra<br />
Darcy Ribeiro<br />
Global<br />
326 págs.<br />
TRECHO<br />
Maíra<br />
“Muito tempo esteve<br />
Maíra gozando naquele<br />
ser esgalhado, folhento, o<br />
sentimento de ser árvore.<br />
Gostou. Principalmente<br />
das palmeiras que sobem<br />
eretas para abrir seus<br />
leques no mais alto. Dá<br />
gosto subir pelo parafuso<br />
troncal acima, sentindo a<br />
dor das cicatrizes de tantas<br />
folhas que morreram para<br />
a palmeira crescer e dar<br />
coco.<br />
Aliás, já no início, o livro<br />
revela nuances policiais. Um pesquisador<br />
suíço vai à delegacia de<br />
uma cidadezinha do interior para<br />
comunicar que encontrou o corpo<br />
de uma moça branca abandonado<br />
numa praia do rio Iparanã, no<br />
Mato Grosso. Junto a ela estão os<br />
cadáveres de dois recém-nascidos.<br />
Não sabia dizer se a mulher teria<br />
morrido no parto dos gêmeos ou<br />
se teria sido assassinada. O mistério<br />
da morte de Alma, uma aspirante<br />
a missionária, se estende<br />
por toda trama que conta ainda<br />
com pelo menos mais dois bons<br />
enredos paralelos.<br />
O primeiro deles, de cunho<br />
psicológico, segue o drama de Isaías<br />
Mairum. Desde muito pequeno,<br />
o índio foi educado por padres<br />
O AUTOR<br />
Darcy Ribeiro<br />
Nasceu em 1922, em Montes Claros (MG). Formado em Ciências Sociais,<br />
em 1946, construiu uma brilhante carreira intelectual como antropólogo<br />
e etnólogo. Destacou-se como escritor, educador e político. Foi senador<br />
e membro da Academia Brasileira de Letras. Como romancista, além de<br />
Maíra, escreveu O mulo, Migo e Utopia selvagem. Morreu em 1997.<br />
católicos para também se tornar<br />
padre. Estudava em um seminário<br />
em Roma quando decide voltar<br />
para a aldeia em busca de suas<br />
verdades pessoais. No caminho de<br />
volta, conhece Alma, com quem se<br />
junta para a etapa final da viagem.<br />
Esta volta coincide com a morte de<br />
Anacã, o tuxaua, ou seja, o líder da<br />
aldeia, espaço que de direito passa<br />
a pertencer a Isaías.<br />
No segundo enredo paralelo,<br />
Juca, filho de uma índia mairum<br />
com um branco que trabalhava<br />
para o Serviço de Proteção aos Índios<br />
e pacificou os índios da região,<br />
sobrevive explorando a miséria dos<br />
caboclos. A exploração, aliás, começa<br />
com o pai dele que ganhou<br />
muito dinheiro fazendo os índios<br />
extrair o látex das seringueiras.<br />
Divulgação<br />
Neste caminho segue Juca, que<br />
vende de madeira a manteiga feita<br />
com ovos de tartaruga. No momento<br />
ele estava interessado em levar<br />
os aborígenes a conseguir peles de<br />
animais silvestres. E acredita ser o<br />
tempo certo, pois com a morte de<br />
Anacã, que não o queria ver por<br />
perto, pensa poder se aproximar<br />
daqueles que ele chama de primos.<br />
No entanto, persiste a oposição à<br />
sua presença na aldeia.<br />
Esta trama social se completa<br />
ainda com as desconfianças<br />
de Juca. Os pesquisadores suíços<br />
estão na região estudando o comportamento<br />
das formigas, mas o<br />
explorador acredita mesmo que<br />
eles conhecem os segredos das minas<br />
de algum tipo raro e valioso de<br />
minério. E põe o caboclo Quinzim<br />
para espionar os estrangeiros.<br />
Resolvida a questão das tramas,<br />
o romance se ocupa com a<br />
descrição das tradições ritualísticas<br />
dos índios. O enterro de Anacã<br />
é descrito com minúcia, uma<br />
descrição, apesar de mórbida, recheada<br />
de elementos poéticos. Na<br />
mesma trilha segue todo o adorno<br />
lendário que enfeita a narrativa. O<br />
nascimento de Maíra, também um<br />
dos momentos de plena beleza do<br />
texto, se equilibra entre o lírico e o<br />
grotesco sem nunca perder o sentido<br />
que tem para o romance. Ao<br />
mergulhar o leitor em todas estas<br />
teias antropológicas, mais do que<br />
se colocar como ensaísta, Darcy Ribeiro<br />
nos leva a refletir sobre como<br />
os conceitos culturais profundos<br />
aproximam os homens em sua dimensão.<br />
Há nesta criação fenômenos<br />
como o dilúvio universal e o<br />
apocalipse, além de detalhes divinos,<br />
como um sopro capaz de fazer<br />
viver homens e bichos.<br />
Trabalhar com três elementos<br />
tão próximos quanto distintos<br />
— o universo mítico dos índios, as<br />
crises de consciência dos homens e<br />
os jogos de ambição — faz de Darcy<br />
um romancista pleno. Sua linguagem<br />
também precisa se reinventar<br />
a cada momento para chegar à cor<br />
ideal para a narrativa. Neste ponto<br />
chega a se aproximar, medidas<br />
as devidas proporções, de Guimarães<br />
Rosa. Naturalmente que não<br />
descamba para uma inventividade<br />
léxica, mas vai semeando uma poética<br />
que sobrevive nos sentimentos<br />
mais puros e ingênuos. “Não<br />
somos filhos de Deus. Somos os<br />
pais do homem que há de ser”, diz<br />
Maíra ao tentar definir a si mesmo<br />
e ou seu irmão gêmeo.<br />
Maíra, enfim, é um desses<br />
romances que atende muito bem a<br />
todos os leitores. Aos que buscam<br />
divertimento ele se oferece na trama<br />
de mistérios que cerca a morte<br />
de Alma. Para quem quer conhecimento,<br />
os debates antropológicos<br />
são bem honestos na apresentação<br />
de um mundo novo que ainda guarda<br />
seus sentimentos inaugurais.<br />
Àquele que cata denúncia social o<br />
texto se apresenta como um manifesto<br />
em defesa das nossas culturas<br />
mais profundas. No entanto é mesmo<br />
como uma canção de exílio que<br />
deve ser lido, afinal no romance se<br />
apresenta um Brasil real por suas<br />
injustiças e pela força de sua brasilidade.<br />
E este é um elixir bem eficaz<br />
para a cura da saudade.
169 • maio_ 2014<br />
27<br />
Totens da perplexidade<br />
Paulo Rosenbaum<br />
ILUSTRAÇÃO: Rafa Camargo<br />
O AUTOR<br />
Paulo<br />
Rosenbaum<br />
É médico e<br />
escritor. Autor<br />
de sete livros<br />
na área médica<br />
e organizador<br />
de outros<br />
dois. Publicou<br />
o romance<br />
A verdade<br />
lançada ao<br />
solo (Record).<br />
É colunista do<br />
Jornal do Brasil,<br />
na seção Coisas<br />
da política. Edita<br />
o blog Conto de<br />
notícia, publicado<br />
regularmente<br />
n’O Estado de<br />
São Paulo.<br />
Sujeitos indefinidos<br />
peregrinam nas nações<br />
entre benfeitorias sem transcendência,<br />
laicismos imprecisos.<br />
Não se veem campos, sinais de gritos, angústia das vítimas<br />
mas, em cada parada,<br />
a cada pequena entranha,<br />
e, dentro da floresta negra,<br />
cavernas preservadas, coleções intactas, predação canônica<br />
a seleção, naturalmente objetivada<br />
pela negação de qualquer sentido.<br />
Não interessa que não vistes,<br />
(nem quem nunca viu),<br />
não importa o alimento dos dizimados<br />
nem quem fez menos silêncio<br />
no vapor da constância.<br />
Saberemos quando vivermos<br />
fora dos esconderijos desacreditados<br />
na sonolência programada<br />
entre qualidades instáveis,<br />
que estão, como nós, extintas.<br />
Nos rios sem leito, paisagens sobre trilhos<br />
no protocolo superado, a melancolia,<br />
e enquanto o mundo repensa uma paz<br />
os resíduos evaporados<br />
fazem do sensorial<br />
a travessia que importa.<br />
No solo tingido,<br />
como furos de flauta<br />
alternam sons,<br />
das curvas do mundo<br />
na atenuação final das vidas.<br />
Se estamos aqui, ainda e assim<br />
permanecemos, no tempo exato<br />
é que nossos olhos<br />
retêm o não expresso<br />
e, como trens, invadimos o mundo com troncos negros<br />
que moem cores,<br />
para fixar nelas,<br />
a medida do carbono.<br />
Da matéria que se impõe<br />
e referenda o espírito,<br />
subtraindo contextos das proporções extremas<br />
atraídas à latitude da ilusão.<br />
Estivemos nos olhos<br />
respiramos nas noites de cristais<br />
recusamos o esfacelamento e o genocídio com certezas do impossível.<br />
Testemunhamos a violência do descuido,<br />
até que a perplexidade<br />
gere seus totens.
28<br />
169 • maio_ 2014<br />
Limão<br />
169 • maio_ 2014<br />
29<br />
O ex-eterno<br />
marido<br />
Felipe Franco Munhoz<br />
Motojiro Kaijii<br />
Uma nuvem pesada dominava meu<br />
espírito. A sensação não era de<br />
irritação ou tédio; parecia mais<br />
como se tivesse entrado em uma<br />
profunda ressaca depois de noites e noites<br />
bebendo muito. A tuberculose e o esgotamento<br />
nervoso não eram os culpados. E nem<br />
mesmo a minha assustadora dívida. Era apenas<br />
aquele peso indefinível. Me afastou da<br />
música e da poesia que tanto amei — se incomodava<br />
alguém para que me colocasse uma<br />
música, sentia a necessidade de partir depois<br />
de poucas notas. Tudo o que conseguia fazer<br />
era vagar sem destino pelas ruas.<br />
Me sentia atraído por coisas que apresentavam<br />
um toque de beleza decadente. As<br />
vizinhanças decrépitas eram os lugares que<br />
preferia e dentro delas não eram as grandes<br />
ruas, impessoais, que me pareciam simpáticas,<br />
mas sim os becos sujos com aquelas<br />
roupas manchadas penduradas a secar e as<br />
trilhas de lixo atirado pelo chão. Espiar nas<br />
janelas dos quartinhos miseráveis que davam<br />
para os becos também me era prazeroso.<br />
Entre aquelas frágeis casas com paredes de<br />
barro decompostas, que o vento e a chuva em<br />
breve iriam devolver a terra, a força da vida<br />
apenas se sentia nas plantas, na surpresa<br />
inesperada do desbotar de um girassol ou de<br />
solitário botão de flor.<br />
Às vezes, enquanto caminhava por<br />
aquelas ruas, tentava imaginar que escapara<br />
de Quioto para uma cidade distante onde<br />
ninguém me conhecia. Sendai talvez ou Nagasaki.<br />
Teria de ser um lugar tranquilo. Um<br />
quarto em um pequeno hotel, grande e vazio.<br />
Lençóis imaculados, o aroma da tenda contra<br />
mosquitos e um quimono de verão, recém-<br />
-engomado. Poderia passar um mês deitado<br />
ali, sem pensar em nada. Sentia que se desejasse<br />
com muita força, poderia transformar o<br />
lugar onde estava naquele que imaginava... E<br />
quando as imagens se formaram, comecei a<br />
pintá-las, uma a uma, com as cores de minha<br />
preferência, até que elas pudessem ser sobrepostas<br />
àquelas vizinhanças dilapidadas. Então,<br />
e apenas então, podia sentir o prazer de<br />
perder de vista a minha real existência.<br />
Eu também me confortava em admirar as<br />
caixas de fogos de artifício baratos. Alguns vinham<br />
alinhados em pacotinhos grosseiros vermelhos,<br />
púrpura, ouro e azul e tinham nomes<br />
como “Estrelas Cadentes do Templo Chusanji”,<br />
“Guerra de Flores” e “Pálidas Palmeiras”.<br />
Outros, conhecidos como “estalidos de rato”,<br />
eram montados em um catavento dentro das<br />
caixas. Coisas como estas atraíam a atenção.<br />
Contas de vidro colorido eram tesouros<br />
para mim — bolinhas com desenhos de peixes<br />
e flores em relevo, contas de Nanking. Ficar rolando<br />
aquelas bolinhas dentro da minha boca<br />
dava-me um grande prazer, seu gosto tinha<br />
uma sutil e singular frescura. Quando criança,<br />
meus pais me chamavam a atenção por este<br />
tipo de comportamento. Agora, talvez porque<br />
o abatimento fizera estas doces memórias de<br />
infância ainda mais queridas, havia algo especialmente<br />
poético sobre a beleza daquela fresca<br />
e delicada sensação em minha boca.<br />
Como você já deve ter percebido, eu estava<br />
completamente debilitado. E o fato de<br />
que aquelas pequenas coisas, ainda que ligeiramente,<br />
podiam tocar meu coração, fazia<br />
com que sua compra fosse um luxo necessário.<br />
Questão de alguns centavos — mas ainda<br />
assim, uma extravagância, um detalhe de<br />
beleza, que ainda podia excitar meus frágeis<br />
sentidos. Em resumo, um consolo natural.<br />
Quando ainda estava bem, eu adorava<br />
passar meu tempo em lojas de departamentos,<br />
como a Maruzen, com suas prateleiras repletas<br />
de artigos importados. Garrafas vermelhas<br />
e amarelas de eau-de-cologne e eau-de-<br />
-quinine. Frascos de perfume elegantemente<br />
decorados com relevos bem trabalhados, cor<br />
de âmbar e de jade. Cachimbos e canivetes,<br />
sabonetes e tabaco. Depois de uma hora de<br />
busca criteriosa, eu teria esbanjado na compra<br />
de uma lapiseira da melhor qualidade. Agora,<br />
contudo, Maruzen se transformara em um lugar<br />
opressivo e asfixiante. Os livros, os estudantes,<br />
os caixas — todos eles me apavoravam<br />
como se fossem cobradores fantasmas.<br />
TRADUÇÃO: Marcelo Antinori<br />
ILUSTRAÇÃO: Theo Szczepanski<br />
Uma manhã — eu estava me hospedando<br />
em alojamentos de amigos, mudando de<br />
um para outro — meu anfitrião naquele dia foi<br />
para a universidade, me abandonando em seu<br />
quarto vazio. Não tive outra escolha que retomar<br />
meus passeios. Uma força qualquer foi<br />
me levando de uma pequena rua a outra, me<br />
fez parar em frente a uma loja de doces, depois<br />
me levou até uma mercearia onde passei<br />
um bom tempo olhando para o peixe seco e o<br />
tofu em conserva. Dali, fui vagando pela Teramachi<br />
até a Avenida Nijo, parando finalmente<br />
em frente a uma loja de frutas e verduras.<br />
Talvez eu deva apresentar este estabelecimento,<br />
já que era a minha loja favorita entre<br />
todas. Na aparência, não se destacava, ainda<br />
que representasse bem aquela beleza especial<br />
que este tipo de loja possui, mais do que<br />
qualquer outro lugar que tivesse visto. Suas<br />
frutas estavam dispostas em uma banca inclinada<br />
de madeira negra laqueada e lascada na<br />
ponta. Tinham sido arrumadas de uma forma<br />
que sua cor e volume pareciam congelados no<br />
tempo e no espaço, como um grupo de dançarinos<br />
que tivesse olhado para a cabeça da<br />
Medusa e se transformado em pedra. Mais ao<br />
fundo na loja, os vegetais estavam empilhados<br />
em prateleiras cada vez mais altas. As folhas<br />
da cenoura pareciam radiantes e os legumes e<br />
os vegetais brilhavam com gotas de água.<br />
A tenda era ainda mais bonita à noite.<br />
Inundada com a luz de suas vitrines, Teramachi<br />
é uma rua cheia de vida, ainda que<br />
bem mais tranquila que suas equivalentes em<br />
grandes cidades como Tóquio e Osaka. Ainda<br />
assim a vizinhança daquela loja em particular<br />
era curiosamente escura. Na verdade, estava<br />
na esquina da melancólica Avenida Nijo,<br />
mas isso não explicava por que aquela área<br />
tão vizinha à Teramachi era tão pobremente<br />
iluminada. Se aquela área estivesse mais clara,<br />
entretanto, duvido que tivesse me encantado<br />
tanto. O toldo saltava adiante como se<br />
fosse a aba de um chapéu puxada para cima<br />
dos olhos. (Isso não é exagero poético — o lugar<br />
realmente dava vontade de sair gritando<br />
“olha para aquela barraca com seu bonezinho<br />
abaixado”.) Sem luzes ao lado para competir,<br />
e com a escuridão acima, a fileira de lâmpadas<br />
elétricas penduradas por baixo do toldo<br />
banhava os produtos como uma brilhante<br />
chuva de verão. Vista da rua, onde os focos<br />
descobertos provocavam espirais de luz que<br />
penetravam em meus olhos, ou da janela do<br />
segundo andar do Café do outro lado da rua,<br />
havia poucos lugares em Teramachi que me<br />
inspiravam tanto como aquele.<br />
Naquele dia em particular, eu tomei a<br />
decisão inesperada de fazer uma compra ali.<br />
Uma coisa rara estava à venda — limões. Óbvio<br />
que limões não eram incomuns em lojas mais<br />
elegantes, mas aquela barraca dificilmente poderia<br />
ser considerada como acima da média e<br />
por isso raramente exibia aquele produto, ou<br />
pelo menos eu não tinha notado antes. E, meu<br />
Deus, como sou loco por aqueles limões: sua<br />
cor, como um punhado de puro “amarelo-limão”<br />
espremido de um tubo de tinta; sua forma,<br />
uma circunferência perfeitamente comprimida...<br />
Decidi comprar um. Depois, voltei a<br />
vagar pelas ruas de Quioto. Caminhei por um<br />
bom tempo. Me sentia inesperadamente feliz,<br />
como se toda aquela nuvem pesada que sentia<br />
havia tanto tempo sobre mim tivesse ficado<br />
mais leve no momento em que senti nas mãos<br />
a minha nova aquisição. Um paradoxo incompreensível talvez, mas verdadeiro<br />
— minha teimosa melancolia tinha sido enganada por uma simples<br />
fruta. Como é estranho o espírito humano!<br />
A frescura do limão superava qualquer descrição. Naquele momento,<br />
minha tuberculose tinha piorado a ponto de que estava permanentemente<br />
febril. Acho que podia mostrar a meus amigos e conhecidos quão<br />
doente estava simplesmente por um aperto de mãos, já que a minha estava<br />
sempre mais quente. Talvez por causa daquele calor, eu sentia que<br />
a frescura do limão estava penetrando através da minha palma e refrescando<br />
todo o meu corpo.<br />
Várias e várias vezes, levei a fruta até o nariz para sentir seu perfume.<br />
Imagens da Califórnia, sua origem provável, vinham a minha mente<br />
entremeadas de trechos do clássico chinês O mercador de frutas que<br />
eu estudara na escola — “invadindo o nariz” era a frase que lembrava. E<br />
quando enchia meus pulmões com aquele perfume, um jato de sangue<br />
aquecido parecia correr pelo meu corpo, despertando minha vitalidade.<br />
Pensei que nunca antes tinha respirado tão profundamente.<br />
A ideia de que na simples sensação de frescura, textura, perfume<br />
e forma eu tinha me deparado com o que estava procurando por tanto<br />
tempo parece agora estranha. Mas naquele momento eu sentia vontade<br />
de gritar de cima do teto das casas.<br />
Meus passos ficaram mais animados, avancei com excitação crescente<br />
e mesmo orgulho, me imaginando, em alguns momentos, como<br />
um poeta elegantemente vestido que caminhasse pomposamente pelos<br />
bulevares. Observei o limão bem de perto, em contraste com o meu lenço<br />
sujo, e depois contra o meu capote, para sentir melhor como suas cores<br />
refletiam sua textura, e depois apertei em minhas mãos alertando a todos<br />
de sua perfeição. Era isso que tinha me cansado de procurar, o peso<br />
perfeito, a somatória absoluta de todas as coisas boas e bonitas — este<br />
pensamento me pareceu fascinante. Considerando tudo, eu estava abençoadamente<br />
feliz.<br />
Como cheguei lá eu não sei, mas subitamente<br />
me dei conta de que estava em frente<br />
da loja de departamentos Maruzen. Ainda<br />
que a estivesse evitando, naquele momento<br />
não senti nenhuma dúvida em cruzar a porta<br />
e entrar. Vamos tentar, pensei, e caminhei altivo<br />
por suas portas.<br />
Curiosamente, por alguma razão, aquela<br />
sensação de bem-estar que preenchia meu<br />
coração começou a se esvanecer no momento<br />
em que entrei ali. As prateleiras de perfume<br />
e tabaco me deixaram frio. Eu podia sentir<br />
minha depressão levantando sua cabeça outra<br />
vez, e pensei que talvez fosse devido ao<br />
cansaço depois da longa caminhada. Me dirigi<br />
à seção de livros de arte. Será que ainda<br />
tinha energia suficiente para levantar, ainda<br />
que fosse apenas um, aqueles livros pesados?<br />
E ainda assim consegui baixá-los da estante<br />
e abri-los, um após outro. Isso no entanto<br />
foi tudo o que fiz — não desejava examiná-<br />
-los com atenção. Como que enfeitiçado, eu<br />
ia compulsivamente baixando um livro atrás<br />
do outro; dava uma rápida olhada, e passava<br />
ao próximo sem retornar nenhum à estante.<br />
A ideia de continuar fazendo aquilo me parecia<br />
insuportável. O último livro que escolhi<br />
era um dos meus favoritos, uma enorme encadernação<br />
dourada com os trabalhos de Ingres.<br />
E era o mais pesado de todos. Maldição!<br />
Senti aquela fadiga debilitando meus braços<br />
enquanto revirava aquela pilha de livros que<br />
tinha criado. Sentia que minha depressão tinha<br />
retornado com força total.<br />
No passado, eu folheava com prazer<br />
livros como aqueles, saboreando o estranho<br />
contraste entre suas lindas ilustrações e a decoração<br />
monótona da loja. Por que eles não<br />
me atraíam mais?<br />
Assustado eu me lembrei do limão<br />
guardado na manga do quimono. E se tentasse<br />
colocá-lo no alto daquela confusa coleção<br />
de cores, que será que aconteceria?<br />
Aquela agradável delicada explosão de<br />
entusiasmo que tinha sentido antes retornou.<br />
Empilhei os livros ao acaso formando uma<br />
torre, derrubei com força e empilhei outra<br />
vez. Novos livros das estantes foram adicionados<br />
àquela pilha, removidos e depois substituídos<br />
por outros, assumindo a forma de<br />
um castelo de sonhos, primeiro vermelho e<br />
depois azul.<br />
Finalmente estava terminada. Controlando<br />
o palpitar do meu coração, coloquei<br />
cuidadosamente o limão no topo daquele castelo.<br />
Era uma combinação perfeita.<br />
Enquanto admirava meu trabalho, silenciosa<br />
e serenamente o limão sugou todas<br />
aquelas cores envolventes para dentro de<br />
sua circunferência. Dentro daquele ambiente<br />
bolorento da Maruzen aquele ponto sozinho<br />
parecia produzir uma estranha tensão. Permaneci<br />
ali alguns momentos, apenas olhando<br />
para aquela torre.<br />
Subitamente fui surpreendido por outra<br />
ideia insólita: por que não deixar o limão ali<br />
onde ele inocentemente descansava e caminhar<br />
para a saída.<br />
Um estranho sentimento cresceu em<br />
mim. “Devo? Por que não!” Furtivamente<br />
deixei o edifício.<br />
Lá fora, na rua, aquele estranho sentimento<br />
levou-me a rir. Que tipo de vilão era<br />
eu que tinha deixado aquela cintilante bomba<br />
dourada armada entre as estantes da Maruzen.<br />
Se aquela bomba realmente explodisse<br />
com violência no coração da seção de livros<br />
de arte em dez minutos, seria emocionante.<br />
“E então.” Continuei entusiasmado perseguindo<br />
aquela visão, “nada restara daquele<br />
lugar opressivo além de um monte de poeira”.<br />
Saí caminhando pelas ruas de Kyogoku<br />
decoradas com aqueles grotescos cartazes coloridos<br />
de cinema.<br />
O AUTOR<br />
Motojiro Kajii<br />
Nasceu em Osaka (Japão), em 17 de fevereiro de<br />
1901. Aos 19 anos, foi diagnosticado com tuberculose<br />
e morreu da doença aos 31 anos. Aos 24 anos,<br />
publicou Limão em uma revista por ele fundada e seu<br />
trabalho, basicamente pequenos contos, apenas foi<br />
reconhecido após sua morte. Além de Limão, outros<br />
de seus contos — Dias de inverno e Debaixo das<br />
cerejeiras — também se tornaram textos clássicos<br />
da literatura japonesa. Limão foi publicado na<br />
coletânea The Oxford book of Japanese short<br />
stories, organizada por Theodore William Goosen, e<br />
traduzido ao português por Marcelo Antinori a partir da<br />
versão inglesa traduzida do japonês por Robert Ulmer.<br />
Por ocasião do nosso aniversário<br />
de casamento<br />
— dois anos: dois anos<br />
tranquilos — minha esposa,<br />
Eliane, presenteou-me com<br />
um romance: O eterno marido.<br />
O romance foi escrito por Fiódor<br />
Dostoiévski, em 1870; e talvez<br />
seja relevante confessar-lhe que<br />
Dostoiévski figura entre meus<br />
autores prediletos. Junto ao livro,<br />
Eliane anexou um cartão que<br />
dizia, entre outras particularidades,<br />
Para o meu eterno marido.<br />
Comecei a ler naquela noite,<br />
ansioso, após o jantar de comemoração.<br />
E fui logo envolvido<br />
pela angústia aflita do protagonista<br />
Vieltchâninov, a quem o<br />
narrador segue — em sutil onisciência<br />
— com exclusividade.<br />
Uma narrativa arrebatadora.<br />
Quando o personagem está aflito,<br />
o texto está aflito; essa técnica,<br />
que é executada com precisão,<br />
revela-nos o raro artista<br />
maior. No caso de Dostoiévski, a<br />
forma também é conteúdo.<br />
Com tais ideias fermentando,<br />
eu lia o quarto capítulo<br />
do romance; era formulada uma<br />
teoria sobre mulheres “que parecem<br />
ter nascido unicamente<br />
para serem esposas infiéis. (...)<br />
E tudo acontece com a máxima<br />
sinceridade; elas se consideram,<br />
até o fim, justas no mais<br />
alto grau e, está claro, de todo<br />
inocentes”. Tentei recapitular se<br />
havia alguma conhecida, alguma<br />
amiga, Infiel-inocente.<br />
Quando me percebi às voltas<br />
com o parágrafo seguinte:<br />
“Vieltchâninov estava convencido<br />
de que realmente existia esse tipo<br />
de mulher; mas tinha também<br />
certeza de que existia um tipo de<br />
marido correspondente ao dessas<br />
mulheres, marido cuja única destinação<br />
seria a de corresponder a<br />
esse tipo feminino. A seu ver, o<br />
caráter essencial de semelhantes<br />
maridos consistia em serem, por<br />
assim dizer, ‘eternos maridos’,<br />
ou, dizendo melhor, em serem, na<br />
vida, unicamente maridos e” —<br />
Correspondente?, pensei.<br />
— “mais nada. ‘Um homem<br />
dessa espécie nasce e cresce tão somente<br />
para se casar e, após o matrimônio,<br />
tornar-se de imediato<br />
um complemento da esposa, mesmo<br />
que possua indiscutivelmente<br />
personalidade própria. O principal<br />
indício de semelhante marido<br />
é certo ornamento. Ele não pode<br />
deixar de ser portador de chifres,<br />
como o sol não pode deixar de iluminar;<br />
e ele não só ignora o fato:<br />
de acordo com as próprias leis da<br />
natureza, deve ignorá-lo’”.<br />
Meus olhos debatiam-se no<br />
parágrafo, relutavam em retornar<br />
às terríveis palavras, até que,<br />
derrotados, mergulharam também<br />
na memória: mergulharam<br />
fixos no cartão Para o meu eterno<br />
marido. Para o meu Ela, Infiel-<br />
-inocente? eterno marido. Para<br />
o meu eterno marido. Portador<br />
de chifres, como o sol não pode<br />
deixar de iluminar. Eu, portador<br />
de chifres, portador de chifres que<br />
não posso deixar de exibir.<br />
Rasguei! o cartão. Atirei<br />
Dostoiévski à lixeira.<br />
Eliane, boa leitora e nada<br />
ingênua, teria conhecimento do<br />
conteúdo do romance? Ou pior:<br />
Eliane teria o conhecimento engavetado<br />
e agira de forma inconsciente?<br />
Ou pior:, ou pior:,<br />
ou. Não há resolução. A única saída,<br />
ainda que arrasadora, é reescrever<br />
a primeira sentença deste<br />
cruel relato: Por ocasião do nosso<br />
aniversário de casamento — dois<br />
anos; tranquilos? — minha ex-esposa,<br />
Eliane, presenteou-me com<br />
um romance: O eterno marido.<br />
O AUTOR<br />
Felipe Franco<br />
Munhoz<br />
Nasceu em São Paulo,<br />
em 1990. É graduado em<br />
Comunicação Social pela<br />
UFPR. Em 2010, recebeu<br />
uma Bolsa Funarte de<br />
Criação Literária para<br />
escrever — em tempo<br />
integral — o romance<br />
Mentiras, inspirado na<br />
obra de Philip Roth. A<br />
convite da Philip Roth<br />
Society, Felipe leu trechos<br />
do romance durante as<br />
comemorações de 80<br />
anos de Philip Roth, em<br />
Newark, em março de<br />
2013. Em dezembro de<br />
2013, o conto No ringue<br />
de Hemingway foi<br />
publicado pela Travessa<br />
dos Editores. É crítico da<br />
APCA na área de literatura.
30<br />
169 • maio_ 2014<br />
Robert Creeley<br />
Tradução e seleção: André Caramuru Aubert<br />
O<br />
poeta norte-americano Robert Creeley (1926-<br />
2005) é, entre seus conterrâneos e contemporâneos,<br />
um dos mais conhecidos (ou menos desconhecidos)<br />
no Brasil. Além da qualidade de sua<br />
obra, talvez tenha ajudado, para isso, o fato de Creeley ter<br />
estado em São Paulo e conhecido alguns de nossos poetas. O<br />
fato é que ele deixou por aqui alguns admiradores importantes,<br />
como Ruy Vasconcelos e, principalmente, Régis Bonvicino,<br />
editor e tradutor de uma excelente coletânea brasileira<br />
(A UM, poemas. Ed. bilíngue, Ateliê Editorial, 1997).<br />
Ainda assim, diante de tudo o que Robert Creeley produziu,<br />
o que temos dele em português é muito pouco. Os<br />
quarenta e um poemas presentes em A UM, embora bastante<br />
representativos (são uma mistura de sugestões do próprio<br />
autor com os prediletos do tradutor), não passam de uma<br />
gota no oceano diante de alguém que escreveu continuamente<br />
por cerca de sessenta anos, e cuja obra completa, em inglês,<br />
espalha-se em dois volumes com mais de mil e duzentas<br />
páginas no total.<br />
Creeley é uma unanimidade. Discípulo de William Carlos<br />
Williams e admirado por este, foi um líder do grupo Black<br />
Mountain, embora sua poesia muitas vezes ficasse distante<br />
da de outros membros. Elo de ligação entre os Beats e os<br />
poetas da San Francisco Renaissance, e entre os grupos de<br />
Nova York e da Califórnia, ele conseguia circular com desenvoltura<br />
entre poetas como Jack Kerouac e Allen Ginsberg, de<br />
um lado, e Charles Olson e Denise Levertov, de outro. Conhecido<br />
por sua generosidade, Creeley gostava de dar aulas e<br />
não se cansava de orientar novos poetas. Em função da combinação<br />
de sua personalidade com uma produção rigorosa<br />
e intensa, Creeley foi influente como talvez nenhum outro<br />
poeta de sua geração. Segundo alguns, um “poeta de poetas”<br />
por excelência.<br />
A temática de Robert Creeley, como bom discípulo de<br />
W. C. Williams, gira primordialmente em torno das pequenas<br />
coisas, de cenas do cotidiano, de rápidas impressões de<br />
viagem. Econômico e preciso, suas quebras de linha são únicas.<br />
Embora afirmasse que, em poesia, a forma deveria se<br />
subordinar ao conteúdo, poucos poetas contemporâneos são<br />
mais formalmente rigorosos do que ele. Creeley possuía, segundo<br />
Williams, “o mais sutil sentido da medida desde Ezra<br />
Pound”. O que faz com que, estruturados a partir de um íntimo<br />
conhecimento dos sons, da respiração e dos ritmos da<br />
língua inglesa, os poemas de Creeley sejam muito difíceis de<br />
traduzir, especialmente para uma língua tão diferente da dele<br />
quanto é o português (Régis Bonvicino já chamava a atenção<br />
para isso na introdução a A UM). Mas penso que, apesar dos<br />
percalços e das limitações no resultado final, o esforço vale a<br />
pena, tanto para quem traduz quanto para quem lê.<br />
Para esta introdução a Robert Creeley, procurei incluir<br />
alguns poemas de cada uma das etapas de sua carreira. Evitei<br />
apenas os que já haviam aparecido em português, especialmente<br />
na seleção de Régis Bonvicino (mesmo sabendo<br />
que ali estão algumas das mais belas composições de Creeley)<br />
porque, se por um lado eu não poderia pretender fazer<br />
uma tradução melhor, por outro, afinal de contas, eles já estão<br />
disponíveis em livro, em português.<br />
RETURN<br />
Quiet as is proper for such places;<br />
The street, subdued, half-snow, half-rain,<br />
Endless, but ending in the darkened doors.<br />
Inside, they who will be there always,<br />
Quiet as is proper for such people —<br />
Enough for now to be here, and<br />
To know my door is one of these.<br />
RETORNO<br />
Silenciosa como é próprio para lugares assim;<br />
A rua, calma, meio neve, meio chuva,<br />
Sem fim, mas terminando nas portas escuras.<br />
Dentro, aqueles que estão sempre lá,<br />
Silenciosos como é próprio para pessoas assim —<br />
Bastando por ora estar ali, e<br />
Saber que a minha porta é uma destas.<br />
•••<br />
MIDNIGHT<br />
When the rain stops<br />
and the cat drops<br />
out of the tree<br />
to walk<br />
away, when the rain stops,<br />
when the others come home, when<br />
the phone stops,<br />
the drip of water, the<br />
potential of a caller<br />
any Sunday afternoon.<br />
MEIA-NOITE<br />
Quando a chuva para<br />
e o gato desce<br />
da árvore<br />
para sair<br />
andando, quando a chuva para,<br />
quando os outros voltam pra casa, quando<br />
o telefone para,<br />
os pingos d’água, a<br />
possibilidade de um telefonema<br />
uma tarde de domingo qualquer.<br />
•••<br />
FOR HELEN<br />
... If I can<br />
remember anything, it<br />
is the way ahead<br />
you made for me, specifically:<br />
wetness,<br />
now the grass<br />
as early it<br />
has webs, all the lawn<br />
stretched out from<br />
the door, the back<br />
one with a small crabbed<br />
porch. The trees<br />
are, then so high, a huge encrusted<br />
sense of grooved trunk,<br />
I can<br />
slide my finger along<br />
each edge.<br />
PARA HELEN<br />
… Se eu posso<br />
me lembrar de algo, é<br />
do caminho que<br />
você abriu para mim, especificamente:<br />
como mais cedo, tem<br />
teias, todo o campo<br />
estendido para além da<br />
porta, a de trás<br />
para um pequeno, insignificante<br />
alpendre. As árvores<br />
estão, então, tão altas, um forte sentimento de<br />
incrustrados e adequados troncos,<br />
eu posso<br />
deslizar meu dedo por<br />
cada ponta.<br />
•••<br />
AS YOU COME<br />
As you come down<br />
the road, it swings<br />
slowly left and the sea<br />
opens below you,<br />
west. It sounds out.<br />
ENQUANTO VOCÊ VEM<br />
Enquanto você vem<br />
pela estrada, ela vira<br />
lentamente à esquerda e o mar<br />
se abre abaixo de você,<br />
a oeste. Isso se mostra.<br />
•••<br />
THEN<br />
Don’t go<br />
to the mountains,<br />
again — not<br />
away, mad. Let’s<br />
talk it out, you<br />
never went anywhere.<br />
I did — and here<br />
in the world, looking back<br />
on so-called life<br />
with its impeccable<br />
talk and legs and breasts,<br />
I loved you<br />
but not as some<br />
gross habit, please.<br />
Your voice<br />
so quiet now,<br />
so vacant, for me,<br />
no sound, on the phone,<br />
no clothes, on the floor,<br />
no face, no hands,<br />
— if I didn’t want<br />
to be here, I wouldn’t<br />
be here, and would<br />
be elsewhere? Then.<br />
ENTÃO<br />
Não vá<br />
para as montanhas,<br />
de novo — não<br />
embora, zangada. Vamos<br />
resolver isso, você<br />
nunca foi a lugar algum.<br />
na assim chamada vida<br />
com suas impecáveis<br />
conversas e pernas e seios,<br />
eu amei você<br />
mas não enquanto algum<br />
hábito grosseiro, por favor.<br />
Sua voz<br />
tão quieta agora,<br />
tão vazia, para mim,<br />
nenhum som, no telefone,<br />
nenhuma roupa, no chão<br />
nenhuma face, nem mãos,<br />
— se eu não quisesse<br />
estar aqui, eu não estaria<br />
aqui, e estaria<br />
em outro lugar? E então.<br />
•••<br />
SEA<br />
Ever<br />
to sleep,<br />
returning water.<br />
*<br />
Rock’s upright,<br />
thinking.<br />
*<br />
Boy and dog<br />
following<br />
the edge.<br />
*<br />
Come back, first<br />
wave I saw.<br />
*<br />
Old man at<br />
water’s edge, brown<br />
pants rolled up,<br />
white legs, and hair.<br />
*<br />
Thin faint<br />
clouds begin<br />
to drift over<br />
sun, imperceptibly.<br />
*<br />
Stick stuck<br />
in sand, shoes,<br />
sweater, cigarettes.<br />
*<br />
No home more<br />
to go to.<br />
*<br />
But that line,<br />
sky and sea’s,<br />
something else.<br />
*<br />
Adios, water —<br />
for another day.<br />
MAR<br />
Sempre<br />
para dormir,<br />
a água voltando.<br />
*<br />
As rochas à direita,<br />
pensando.<br />
*<br />
Garoto e cachorro<br />
seguindo<br />
pela beira.<br />
*<br />
De volta, a<br />
primeira onda que vi.<br />
*<br />
Um velho na<br />
beira d’água, calças<br />
marrons enroladas nas pernas,<br />
pernas brancas, e cabelos.<br />
*<br />
Leve desmaio<br />
nuvens começam<br />
a vaguear por sobre<br />
o sol, imperceptivelmente.<br />
*<br />
Galho preso<br />
na areia, sapatos,<br />
agasalho, cigarros.<br />
*<br />
Sem uma casa mais<br />
para onde ir.<br />
*<br />
Mas aquela linha,<br />
de céu e mar,<br />
alguma coisa a mais.<br />
*<br />
Adiós, água —<br />
até um outro dia.<br />
umidade,<br />
agora a relva<br />
Eu fui — e aqui<br />
no mundo, olhando para trás<br />
leia mais poemas no www.rascunho.com.br
hq : : ramon muniz<br />
169 • maio_ 2014<br />
31<br />
QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />
COLUNISTAS<br />
DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />
OTRO OJO
32<br />
169 • maio_ 2014<br />
sujeito oculto : : rogério pereira<br />
À espera do pai<br />
Ilustração: Fabiano Vianna<br />
QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />
COLUNISTAS<br />
ENSAIOS E RESENHAS<br />
DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />
IÇÕES ANTERIORES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />
Nunca odiei tanto o pai. Eu o<br />
esperava na porta de casa. Ele<br />
descia a rua de pedregulhos.<br />
Havia pouco tempo deixáramos<br />
a roça. Agora, tínhamos de cavar<br />
um chão de concreto e asfalto. Trocamos<br />
a companhia de bois vagarosos pelo ronco<br />
descontrolado de carros e ônibus. Aos<br />
poucos, nos acostumaríamos ao ruído da<br />
nova vida. Atrás da casa de madeira, construímos<br />
nosso estádio — um estropiado<br />
Maracanã ladeado por cedros e uma tímida<br />
valeta. Nossa rede, as ancas do paiol<br />
em cujas vísceras dormiam ratos pançudos.<br />
E as ripas para a construção das estufas<br />
na floricultura onde morávamos de<br />
favor. Éramos retirantes num mundo que<br />
nos amedrontava.<br />
O pai carrega o pacote; vem em minha<br />
direção. Eu o espero. A ansiedade a<br />
pulsar nas vértebras do pescoço. Um nó<br />
prestes a estourar no urro do animal ancestral.<br />
Ele caminha devagar, como se<br />
ambicionasse congelar o tempo, paralisar<br />
o momento de entregar ao filho o pão que<br />
jamais saciaria a fome que arranhava as<br />
costelas delicadas. Te odiei tanto, pai, na<br />
tarde sem fim. A mãe ali por perto cuidando<br />
das azaleias, avencas e samambaias.<br />
Eu já havia anunciado aos amigos. A minha<br />
espera era a espera deles. Éramos<br />
uma horda de gnus à beira de um rio seco,<br />
sem crocodilos. Correríamos em disparada<br />
ao nosso estádio de mentira. Seríamos,<br />
enfim, pequenos deuses capazes de milagres<br />
indecentes. Bastava o pai me estender<br />
as mãos grossas, calosas, herança de<br />
uma roça obsoleta e indesejada. O pai estendeu-me<br />
as mãos. Sobre elas, o pacote.<br />
Um simulacro de Papai Noel, cujas vestes<br />
tornavam risível a triste silhueta. Toma,<br />
filho. Agarrei com todas as minhas forças<br />
de nove anos. Davi e Golias trocando carícias<br />
e gentilezas. Rasguei o papel de cor<br />
indefinida feito o esfomeado a estraçalhar<br />
o vestido da amante.<br />
À minha volta, pares de olhos em<br />
febre. Enfim, abandonaríamos a bola<br />
de plástico emprestada. Teríamos nossa<br />
bola: grande, branca, de capotão. Do papel<br />
amassado, a desilusão. Uma bola pequena,<br />
de cor escura, de borracha, fincava<br />
espinhos na palma da minha mão. Gostou,<br />
filho? A pergunta do pai se perdeu no silêncio<br />
indestrutível. Quietos e resignados,<br />
rumamos ao nosso estádio. Eu carregava<br />
o ódio debaixo do braço.<br />
A bola pequena e feia — borracha<br />
maldita — rapidamente se transformou.<br />
Inventamos a bola perfeita. Nosso silêncio<br />
virou algazarra. Os gnus ruidosos lambiam<br />
o rio caudaloso. Crocodilos não nos<br />
assustavam. Inventamos dribles para a<br />
bola que pulava uma imensidão. Nossos<br />
pés sofriam para dominá-la. Aos poucos,<br />
arrefecemos a sua fúria. Driblamos e a<br />
chutamos vida afora.<br />
Dói menos odiar o pai quando se<br />
está feliz.<br />
NOTA<br />
Texto publicado originalmente no site de<br />
crônicas Vida Breve (www.vidabreve.com.br)