25.10.2014 Views

mesq9vw

mesq9vw

mesq9vw

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

169<br />

desde abril de 2000<br />

O jornal de literatura do Brasil<br />

Curitiba, maio de 2014 | WWW.rascunho.com.br<br />

arte: Dê almeida<br />

A literatura nos dá o poder de sonhar,<br />

especialmente na infância. Existe também<br />

a literatura que dói e que faz enxergar a<br />

dor do outro. Nada mais necessário do<br />

que o exercício da empatia nos dias de<br />

hoje, esses tempos de egoísmo.”<br />

Socorro Acioli • 4/5<br />

Inédito • Limão > Motojiro Kaijii • 28


2<br />

169 • maio_ 2014<br />

eu recomendo<br />

: : Luiz Rebinski<br />

Collor, Itamar e FHC<br />

Uma<br />

18.5.1991<br />

QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />

QUEM SOMOS<br />

Collor<br />

CONTATOesteve ASSINATURA<br />

na<br />

DO<br />

Biblioteca<br />

JORNAL IMPRESSO<br />

Nacional.<br />

CARTAS<br />

Uma<br />

confraria<br />

semana de grandes emoções, preparações. Há<br />

RES COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRAEDIÇÕES NOTÍCIAS ANTERIORES OTRO OJOCOLUNISTAS<br />

uns 15 DOM dias, CASMURROtive ENSAIOS que E RESENHAS enfrentar ENTREVISTAS PAIOL uma LITERÁRIO Assembleia<br />

de tolos<br />

PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO<br />

CARTAS<br />

Ignatius J. Reilly, protagonista<br />

de Uma confraria de tolos, é<br />

um Quixote que ainda espera por<br />

reconhecimento. Uma verdadeira<br />

injustiça, porque em certos momentos<br />

do livro de John Kennedy Toole, Ignatius<br />

parece o neto de Quixote que suplantou<br />

a verve nonsense do antepassado com<br />

altas doses de cultura e um egocentrismo<br />

sem limites, o traço mais interessante da<br />

personalidade do herói em questão. Ignatius<br />

é glutão, preguiçoso e pesado demais<br />

para fazer qualquer coisa além de<br />

teorizar contra o caos da modernidade,<br />

a abjeta cultura pop e a desonestidade<br />

do mundo — sobra até para os beatniks.<br />

É um intelectual incompreendido, que<br />

ainda mora com a mãe e nunca teve PIS.<br />

Mas a maré muda e Ignatius é obrigado<br />

a arranjar emprego. Primeiro como vendedor<br />

de cachorro-quente, depois em<br />

uma fábrica de calças onde se mete em<br />

um escândalo e acaba procurado pela<br />

polícia. No final, aos vinte e tantos anos,<br />

foge de casa. Basicamente, é isso. Mas<br />

quando se tem um Ignatius é o suficiente.<br />

Até para ganhar um Pulitzer.<br />

ITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />

Luiz Rebinski<br />

É jornalista e editor do jornal Cândido.<br />

Cartas<br />

: : cartas@rascunho.com.br : :<br />

Importante<br />

OTRO OJO<br />

Rascunho tem sido um dos<br />

mais importantes divulgadores<br />

da literatura brasileira atual,<br />

ao apresentar novos talentos,<br />

abrir campo para a discussão<br />

do texto literário e para o<br />

debate de idéias entre nós.<br />

Parabéns a toda a equipe!<br />

Wander Melo Miranda •<br />

Belo Horizonte — MG<br />

Sábio<br />

Dica de belo presente:<br />

uma assinatura anual do<br />

Rascunho, de Curitiba (PR),<br />

um dos melhores dedicados<br />

ao jornalismo literário.<br />

Luiz Claudio Lins • via Facebook<br />

Comemoração<br />

Hoje (08/04) um dos melhores —<br />

e um dos poucos sobreviventes<br />

— jornais literários do país<br />

está no berço completando<br />

14 anos. Rapaz robusto, que<br />

traz em si as melhores críticas<br />

que tenho visto nas letras<br />

brasileiras. Acompanho desde<br />

2010 e vale a leitura de cada mês.<br />

O melhor, para os que optam em<br />

não assinar: eles disponibilizam<br />

todas as suas edições para<br />

download. Façam bom proveito<br />

e vida longa ao Rascunho!<br />

Ricardo Silva • via Facebook<br />

Reverente<br />

Maior admiração e respeito por<br />

esse trabalho do Rascunho.<br />

Eduardo Lacerda • via Facebook<br />

Envie carta ou e-mail para esta seção com nome<br />

completo, endereço e telefone. Sem alterar o<br />

conteúdo, o Rascunho se reserva o direito de<br />

adaptar os textos. As correspondências devem<br />

ser enviadas para: Al. Carlos de Carvalho, 655<br />

conj. 1205 • CEP: 80430-180 • Curitiba - PR.<br />

Os e-mails para: cartas@rascunho.com.br.<br />

Assinatura anual por apenas 84 reais<br />

assinaturas@rascunho.com.br<br />

quase-diário : : affonso romano de sant’anna<br />

de centenas de funcionários, que pressionados<br />

pela CUT queriam entrar em greve de duas horas<br />

por dia, mais o sábado. Estão pensando em<br />

tumultuar a vinda de Collor. Como a BN se tornou<br />

a mais visível das instituições da cultura,<br />

isto atrai outros interesses. Foi tensa a reunião,<br />

mas afastei o perigo de greve e consegui que recebessem<br />

o aumento de 75% que estava preso,<br />

relativo ao dissídio de 1989.<br />

A recepção de Collor era delicada. Foi o<br />

cenário escolhido para ele anunciar a mudança<br />

política na área cultural, a primeira visita a<br />

um órgão da cultura. Eu havia dito ao Rouanet<br />

quando ele assumiu que a única maneira de o<br />

presidente mudar sua imagem era fazer um discurso<br />

mudando sua política e ir pessoalmente à<br />

BN dizer isto e dar, por exemplo, um milhão de<br />

dólares para reformas.<br />

Lá estavam autoridades várias, Brizola, governador<br />

que aguardou Collor na porta, ao meu<br />

lado, conforme o cerimonial. A segurança passou<br />

toda a semana ensaiando exaustivamente tudo.<br />

Colocaram do lado de fora uma viatura até com<br />

CTI, além de Corpo de Bombeiros. Até médico<br />

pessoal do presidente veio para as inspeções.<br />

Foi ótima a presença dele. Estava atento,<br />

delicado e seguro. Visitamos os grandes armazéns<br />

(vários andares de livros) onde pude lhe<br />

mostrar a beleza da arquitetura e as obras e os<br />

estragos causados pelas chuvas, justificando assim<br />

sua visita e a verba de 300 milhões (1 milhão<br />

de dólares para os consertos).<br />

Impressionante o carinho e delicadeza de<br />

Brizola com Collor. Quem diria? Descendo a<br />

escadaria, no final, Brizola ainda lhe disse algo<br />

sobre a vaia encomendada pela CUT e PCdoB<br />

no passeio defronte: “Não ligue, sr. presidente,<br />

tem ali um pessoal da CUT”.<br />

E Collor: “Ah, isso é desenho animado, já<br />

conheço”. E desceu tranquilo.<br />

Os jornais deram maior destaque. Idem<br />

TV. Só a Folha no lugar de ressaltar a importância<br />

política e cultural do evento, preferiu dar<br />

foto da manifestação.<br />

translato : : eduardo ferreira<br />

A<br />

tradução não é exatamente exercício<br />

vertiginoso. A proliferação de sentidos,<br />

sim. Mas o ofício — o velho ofício<br />

QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />

— mais aposta na observação cuidadosa,<br />

na captação criativa do momento — instantâ-<br />

COLUNISTAS<br />

ENSAIOS E RESENHAS<br />

neo que congela em lâmina singular o leque de<br />

tão múltiplos significados.<br />

O sentido descansa na letra — um átimo<br />

que seja — e já propicia a ocasião da colheita. Colhe<br />

o tradutor o sentido que ali sobeja — como<br />

que exsuda, minando em gotas o que lhe enche<br />

as cavidades.<br />

Palavras e suas cavidades, reentrâncias<br />

onde se alojam significados múltiplos. Seu potencial<br />

é miríade. Ao tradutor cabe a colheita — raspar<br />

o sentido que descansa na superfície da letra.<br />

Das cavidades, a erupção. Erupções de sentimentos<br />

— dádiva da literatura, certamente. Irrupção<br />

dessa gorda prenhez de sentidos.<br />

Pressentir o quase gesto do autor caviloso.<br />

O sentido que se pressente, mesmo que não<br />

se anuncie. Captar a ideia no nascedouro, para<br />

adestrá-la enquanto ainda é tempo. Possível, impossível?<br />

Patinar na disjuntiva elíptica.<br />

Preservar sentidos ou adotar a estratégia<br />

de terra arrasada? Tabula rasa?<br />

DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />

EDIÇÕES ANTERIORES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />

Gatsby (de O grande Gatsby, de F.<br />

Scott Fitzgerald) é metáfora e base<br />

QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />

da ideologia do Novo Rico. Gatsby é rico<br />

sem ter origem na riqueza — daí a necessidade<br />

de manusear símbolos típicos dos ricos<br />

COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS<br />

PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />

tradicionais (como o fato de, segundo afirma ao<br />

narrador Nick, ter frequentado Oxford). Mas o personagem<br />

também incorpora a ideologia daqueles<br />

que estão “fadados a vencer”. Exemplo disso é o roteiro<br />

(roteiro dos que, pela disciplina diária, podem<br />

“chegar lá) escrito num livro que o protagonista tinha<br />

quando criança e mostrado para Nick Carraway<br />

na tarde do velório de Gatsby pelo pai deste último:<br />

Levantar da cama – 6h<br />

Exercício com halteres e escalada de parede – 6h15-6h30<br />

A tradução como lava que lava com fogo ao<br />

seu redor. A limpeza abrasiva da calcinação, que<br />

abre todo um campo novo para a nova escritura,<br />

tradução.<br />

Irrupções, a tradução. Traz lá de baixo os<br />

sentidos submersos, para fazê-los brilhar sob<br />

nova luz.<br />

Tradução, a linguagem se fragmenta. Mesmo<br />

antes, na leitura. Em palavras, em ideias? Sementes<br />

da tradução.<br />

O gosto pelo jogo, a linguagem. Jogo de<br />

palavras, até cansar. Gosto pelos calembures,<br />

ciladas da literatura. Tão difícil de traduzir... Já<br />

não sabe se grava o sentido ou a dinâmica poética<br />

(não sabe se fotografa os deslizes desse som). O<br />

gosto por traduzir o jogo: alma de tradutor.<br />

Ah, tantos dilemas que surgem nessa trama.<br />

A trama da vida toda no texto. Tecer, sem<br />

dúvida, mas não se sabe com fio fino ou grosso.<br />

A quem cabe a decisão? Imprimir delicadeza de<br />

filigrana e caprichar no detalhe ou traçar linhas<br />

largas e deixar que o leitor preencha as tantas lacunas?<br />

Dilemas da tradução.<br />

Texto, perfuração de agulhas no papel. A distância<br />

entre os pontos, a finura (grossura) da linha.<br />

Perfuração também da membrana tênue e tensa da<br />

rodapé : : rinaldo de fernandes<br />

Anotações sobre romances (9)<br />

EDIÇÕES ANTERIORES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />

21.05.1994<br />

Nesta semana, encontro com Itamar. Estou<br />

no Itamaraty, na recepção de reabertura do<br />

Palácio enquanto Museu. Diplomatas por todo<br />

lado. Gente importante. Diário de Minas me<br />

deu as primeiras ideias sobre o texto jornalístico.<br />

Eu vinha, na ocasião de Juiz de Fora, sabendo<br />

quase nada de jornal.<br />

— Mauro, lhe digo, há uma situação engraçada.<br />

Depois que o Itamar virou presidente,<br />

não consigo falar com ele. Os ministros morrem<br />

de ciúme. O Antonio Houaiss quase se demitiu<br />

por isto. Com o Collor, que não conhecia, tive<br />

alguns contatos.<br />

— Ah é? deixa comigo, disse ele (que é<br />

quem faz os discursos de Itamar).<br />

Lá pelas tantas se aproxima e me diz:<br />

— O presidente está na casa.<br />

Saímos andando. Vejo a uns 30 metros<br />

o presidente e sua comitiva passando pelos<br />

salões. O cerimonial abrindo passagem para<br />

conduzir o presidente a uma sala para receber<br />

cumprimentos. Mauro me conduz para a tal<br />

sala. Lá três pessoas: o cardeal D. Eugenio Salles,<br />

o ex-ministro Saraiva Guerreiro e creio que<br />

uma autoridade militar. O presidente chega e<br />

em vez de se dirigir às autoridades vem a mim<br />

como se a gente se conhecesse desde sempre.<br />

A última vez que falei com ele deve ter mais de<br />

30 anos, nos tempos de Juiz de Fora. Pois ele<br />

veio, começou a falar sobre o Granbery, Juiz<br />

de Fora, o Cine Central, lembrou-se de Carlos<br />

(meu irmão), que era seu colega e fazia alguma<br />

estripulia trepando nas árvores da avenida Rio<br />

Branco (em Juiz de Fora), perguntou por ele ,<br />

mandou-lhe um abraço, falou que tinha estado<br />

com a Aizinha e Renault, que foram colegas de<br />

turma com Carlos.<br />

As pessoas olhavam surpresas. Quando<br />

me despedi, várias se acercaram de mim.<br />

Mauro Durante — secretário da presidência —<br />

o mais efusivo, falando também sobre o Cine<br />

Central, da minha entrevista nem sei onde e me<br />

prometendo mandar uma cópia…<br />

Estudar eletricidade etc. – 7h15-8h15<br />

Trabalho – 8h30-16h30<br />

Beisebol e esportes – 16h30-17h<br />

Praticar elocução, postura de corpo e como adquiri-la –<br />

17h-18h<br />

Estudar invenções necessárias – 19h-21h<br />

RESOLUÇÕES GERAIS<br />

Não desperdiçar tempo no Shafters ou [um nome, indecifrável]<br />

Deixar de fumar e de mascar chiclete<br />

Tomar banho dia sim, dia não<br />

Ler um livro ou uma revista edificante por semana<br />

Economizar 5 dólares [riscado] 3 dólares por semana<br />

Ser melhor para com os pais<br />

21.01.1995<br />

Fernando Henrique foi à BN acompanhado<br />

de Dona Ruth, Weffort (ministro) e Marcelo<br />

Alencar (governador). É o segundo presidente<br />

que recebemos. O primeiro foi Collor, quando<br />

começou a fazer as pazes com a cultura e os intelectuais,<br />

sendo Rouanet então secretário de<br />

Cultura. Itamar não foi possível. Visita tranquila,<br />

relaxada. Dividida em três partes. Peguei-o<br />

no passeio público quando chegou pontualmente<br />

com Ruth, às 11 horas, mostrei-lhe a fachada<br />

refeita, entramos no salão recém-reformado,<br />

apresentei-o ao Joaquim Falcão (Fundação<br />

Roberto Marinho) e Ricardo Gribel (Banco<br />

Real), que possibilitaram a reforma. Falei-lhe,<br />

enquanto caminhava, algo sobre a história da<br />

biblioteca. Depois fomos ao 4º andar onde o esperava<br />

a minha diretoria para uma conversa de<br />

quinze minutos, para expor projetos, mostrar-<br />

-lhe alguns livros. Embora o protocolo mande<br />

que ele sente na cabeceira, nos sentamos, com<br />

os outros, face a face. Mostrei-lhe o livro que<br />

editamos sobre a Feira de Frankfurt; contou que<br />

passando pela Alemanha visitou duas das nossas<br />

exposições: de arte primitiva e de arte negra.<br />

Ruth sempre simpática, autografando<br />

seus livros, ela e FHC e Weffort — para a Seção<br />

de Obras Raras. FHC e Ruth (e os paulistas<br />

em geral) não conheciam a Biblioteca Nacional.<br />

Depois fomos aos grandes armazéns, vários andares<br />

de livros, uma visão que deixou a todos<br />

encantados, a verdadeira Biblioteca de Babel<br />

sonhada por Borges. Marcelo Alencar (governador)<br />

perguntando por que não abríamos essa<br />

parte aos leitores (coisa tecnicamente impossível).<br />

FHC perguntando sobre o peso daqueles<br />

andares todos de livros e eu brincando que agora<br />

temos uma moeda de peso — o real, piada<br />

que ele repetiu para os demais.<br />

Depois de tomar uns sucos, fomos para<br />

Seção de Obras Raras onde estavam também<br />

“raros” convidados especiais, representando<br />

áreas diferentes da cultura: Ana Botafogo,<br />

Cacá Diegues, Luiz Schwarz, Sérgio Machado,<br />

Ênio Silveira, Tonia Carrero, Mario Machado.<br />

Dona Ruth logo descobriu Marina que havia<br />

sido sua colega no Conselho das Mulheres nos<br />

anos 80. O presidente pôde conhecer o projeto<br />

de digitalização da fantástica coleção de mapas<br />

antigos, experimentou computadores que<br />

executa as partituras das músicas que temos<br />

no nosso acervo.<br />

Ficou meia hora mais do que o previsto,<br />

tudo tranquilo, ele fazendo um discurso final<br />

de agradecimento. Foi importante sua visita.<br />

Tem um valor simbólico. Colocar o livro/leitura/bibliotecas<br />

no centro da política do governo<br />

— essa é minha intenção ao trazer autoridades<br />

federais aqui.<br />

Reminiscências de uma leitura de Pompeia<br />

palavra — sondando suas tantas cavidades.<br />

Transitar pelo texto com donaire. Empenhar<br />

a pena com firmeza e elegância — e transmiti-las<br />

ao novo texto. Requisitos do tradutor.<br />

Não deixar nada ao acaso, mesmo quando se opta<br />

pelo texto aberto, de linhas grossas.<br />

Fino, grosso, o fio de tradução que tece o<br />

novo texto. Tradução, então, como criação.<br />

Ou talvez tradução simplesmente como teatro<br />

de sombras. A velha ideia da cópia. Jato de<br />

luz forte no escuro e a projeção das palavras do<br />

original no anteparo da página. Projeção do original<br />

sobre nova página, a tradução.<br />

Tradução como sombra, a sombra do original.<br />

Não deixar que esse esplim espúrio — a tristeza<br />

de que é feita toda sombra — amorteça a tua<br />

pulsão, tradutor. Não deixar que o arrufo surdo<br />

te arraste e afunde. Ver a bocaina não como depressão,<br />

mas como passagem ao novo texto.<br />

Viajar essa viagem da tradução — ir seguindo<br />

no vento, seja austro ou minuano. Que o texto<br />

é vento viajado, vem de longe, origem incerta,<br />

atemporal.<br />

Não deixar que as disjuntivas — e são tantas<br />

ao longo desse longo texto — abatam teu ânimo.<br />

Original ou tradução.<br />

Eis, repita-se, o cotidiano administrado<br />

dos que vieram para “vencer”. Mas O grande<br />

Gatsby é ainda o romance da tragédia — da<br />

fortuna que vira desgraça. Algo metaforizado<br />

no livro não só pelo assassinato de Gatsby, mas<br />

sobretudo pela casa vazia, pela ausência dos antigos<br />

convivas no velório e enterro do protagonista<br />

(é dramática a cena de Nick convocando<br />

as pessoas a comparecerem ao funeral). Gatsby,<br />

assim, é o importante que, de uma hora para outra,<br />

se apaga. É o grande que vira pequeno. Daí<br />

a forte ironia do título e que está na estrutura<br />

desse complexo e apaixonante livro, que lê o materialismo<br />

de uma época e os valores que lhe dão<br />

base de forma aguda, penetrante.


169 • maio_ 2014<br />

3<br />

o jornal de<br />

literatura do brasil<br />

fundado em 8 de abril de 2000<br />

Rascunho é uma publicação mensal<br />

da Editora Letras & Livros Ltda.<br />

Rua Filastro Nunes Pires, 175 • casa 2<br />

CEP: 82010-300 • Curitiba - PR<br />

41 3527.2011 rascunho@rascunho.com.br<br />

www.rascunho.com.br<br />

tiragem: 5 mil exemplares<br />

ROGÉRIO PEREIRA<br />

editor<br />

SAMARONE DIAS<br />

editor-assistente<br />

JOÃO LUCAS DUSI<br />

estagiário<br />

COLUNISTAS<br />

Affonso Romano de Sant’Anna<br />

Alberto Mussa<br />

Eduardo Ferreira<br />

Fernando Monteiro<br />

João Cezar de Castro Rocha<br />

José Castello<br />

Luiz Bras<br />

Raimundo Carrero<br />

Rinaldo de Fernandes<br />

Rogério Pereira<br />

ILUSTRAÇÃO<br />

Bruno Schier<br />

Carolina Vigna-Marú<br />

Dê Almeida<br />

Fabiano Vianna<br />

Fábio Abreu<br />

Felipe Rodrigues<br />

Hallina Beltrão<br />

Leandro Valentin<br />

Marco Jacobsen<br />

Osvalter Urbinati<br />

Rafa Camargo<br />

Rafael Cerveglieri<br />

Ramon Muniz<br />

Rettamozo<br />

Ricardo Humberto<br />

Robson Vilalba<br />

Tereza Yamashita<br />

Theo Szczepanski<br />

Tiago Silva<br />

FOTOGRAFIA<br />

Matheus Dias<br />

PROJETO GRÁFICO<br />

e PROGRAMAÇÃO VISUAL<br />

Rogério Pereira / Alexandre de Mari<br />

MANUAL DE GARIMPO : : Alberto Mussa<br />

O fiel e a pedra<br />

COLUNISTAS<br />

ENSAIOS E RESENHAS<br />

DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />

EDIÇÕES ANTERIORES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />

vidraça : : joão lucas dusi<br />

Novos talentos<br />

QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />

Foram divulgados os dois vencedores da edição 2013/2014 do Prêmio<br />

Sesc de Literatura. A jornalista e mestranda em culturas midiáticas<br />

Débora Ferraz, de 27 anos, venceu na categoria Romance com<br />

Enquanto Deus não está olhando. E Parafilias, do bancário<br />

e psicólogo Alexandre Marques Rodrigues, de 34 anos, ganhou na<br />

categoria Conto. Em seu livro, Débora aborda a relação pai e filha, a<br />

perda e a insegurança de ingressar na idade adulta sem preparo. Já<br />

Rodrigues, que “escreve sobre o cotidiano”, tratou da solidão sob a<br />

abordagem das perversões sexuais. Os autores receberão o prêmio em<br />

cerimônia na Academia Brasileira de Letras, prevista para julho de 2014,<br />

e participarão da programação do Centro Cultural Sesc Paraty durante a<br />

Flip. As obras serão publicadas pela Record.<br />

COLUNISTAS<br />

ENSAIOS E RESENHAS<br />

DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />

EDIÇÕES ANTERIORES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />

QUEM<br />

Talvez<br />

SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />

não haja na literatura brasileira<br />

obra ficcional tão heterogênea quanto a<br />

do pernambucano Osman Lins, falecido<br />

prematuramente em 1978, com 54 anos.<br />

Seu livro mais famoso (e provavelmente menos<br />

lido) é o romance Avalovara, de 1973. Constituído<br />

por oito linhas narrativas aparentemente<br />

independentes, que correspondem às oito letras<br />

da mais impressionante frase palíndroma do mundo<br />

(sator arepo tenet opera rotas), Avalovara<br />

pretende ser a súmula da experiência existencial<br />

humana, sobre o jogo lógico das interseções da espiral<br />

(que simboliza o tempo) e do quadrado (representando<br />

o espaço).<br />

Romance que explica o próprio processo de<br />

sua composição, acaba sendo também a celebração<br />

do inominável, das realidades que escapam à<br />

própria literatura, tanto que uma das personagens<br />

fundamentais é designada por um signo impronunciável,<br />

irredutível às letras do alfabeto.<br />

Com Avalovara Osman atinge o auge da sua<br />

fase experimental e geométrica, que conta ainda<br />

com as novelas de Nove, novena e com o romance<br />

A rainha dos cárceres da Grécia.<br />

Curioso que esse mesmo autor cerebral e matemático<br />

tenha escrito, além de teledramaturgia,<br />

as comédias Lisbela e o prisioneiro, levada às<br />

telas com muito sucesso, e Guerra do cansa-<br />

-cavalo, ambas auridas nas tradições populares<br />

nordestinas, como fizeram, por exemplo, Joaquim<br />

Cardozo e Ariano Suassuna.<br />

Tal diversidade é ainda mais surpreendente<br />

quando lemos o primeiro Osman Lins, o da novela<br />

O visitante e dos contos de Os gestos, expoentes<br />

da nossa melhor tradição introspectiva e machadiana.<br />

É entre essas duas últimas vertentes, a da comédia<br />

e a dos contos, que se situa um outro Osman<br />

Lins, o do romance O fiel e a pedra. Entramos<br />

aqui num terreno raro nas letras vernáculas, porque<br />

mais próximo de certo romance de ação típico<br />

das literaturas de língua inglesa.<br />

Bernardo Cedro, o protagonista, vai trabalhar<br />

no engenho de Miguel Benício, que é casado com<br />

Creusa, cujo comportamento adúltero é conhecido<br />

de todos. Para obter o desquite sem deixar bens<br />

para a mulher, Miguel propõe a Bernardo a compra<br />

simulada e fraudulenta de seus imóveis — que<br />

o empregado recusa, preso a seus princípios éticos.<br />

Miguel Benício, então, procura Nestor. E<br />

Bernardo pressente que Miguel, depois de passar<br />

as escrituras, será assassinado, fato que ocorre<br />

pouco depois. Sugerindo que houve crime (e não<br />

acidente, como o corpo caído da escada sugeria),<br />

Bernardo passa a ter no novo dono do engenho um<br />

perigoso inimigo. E apesar de achar que Creusa<br />

não merece, defende os interesses da viúva.<br />

Começa, então, a luta de Bernardo contra os<br />

capangas de Nestor, que quer expulsá-lo do engenho.<br />

A narrativa é densa e culmina com cenas de<br />

sítio e tiroteio. É quando surge a figura inesperada<br />

de um estranho, Ubaldo, que se agiganta no fim.<br />

Osman Lins conseguiu escrever, a despeito<br />

da contemporaneidade, um livro que trata de heróis.<br />

E que não perde, por isso, sua grandeza, sua<br />

complexidade.<br />

O fiel e a pedra, originalmente publicado<br />

em 1961, teve edições da Martins, da Melhoramentos,<br />

do Círculo do Livro e, recentemente, da Companhia<br />

das Letras. Embora a última ainda esteja<br />

em catálogo, é raro encontrá-la nas estantes das<br />

grandes redes livreiras. Nos sebos, devem ser garimpados<br />

os exemplares a partir da segunda edição,<br />

de 1967, pois o texto da princeps foi revisto<br />

por Osman. A R$ 15,00 estão bem pagos.<br />

divulgação<br />

colaboradores desta edição<br />

André Caramuru Aubert<br />

Carlos Eduardo de Magalhães<br />

Clayton de Souza<br />

Felipe Franco Munhoz<br />

Gabriela Silva<br />

Gisele Eberspächer<br />

Guilherme Pavarin<br />

Haron Gamal<br />

Luiz Guilherme Barbosa<br />

Luiz Horácio<br />

Marcelo Antinori<br />

Marcos Pasche<br />

Martim Vasques da Cunha<br />

Maurício Melo Júnior<br />

Motojiro Kaijii<br />

Nelson Shuchmacher Endebo<br />

Paulo Andrade<br />

Paulo Rosenbaum<br />

Rodrigo Casarin<br />

Rodrigo Gurgel<br />

Vilma Costa<br />

Lei 8.313/91 (Lei Rouanet)<br />

Programa Nacional de<br />

Apoio à Cultura (Pronac)<br />

Apoio<br />

patrocínio<br />

realização<br />

Editora<br />

Letras & Livros<br />

Em expansão<br />

A revista literária Substânsia,<br />

editada por Nathan Matos e<br />

Roberto Menezes, chegou a sua<br />

segunda edição e segue aberta para<br />

autores que desejam ter seus textos<br />

publicados. Seguindo a mesma linha<br />

de ampliação do cenário literário,<br />

surge a Editora Substânsia.<br />

Idealizada pelo editor Nathan<br />

Matos, em parceria com Madjer<br />

de Souza Pontes e Talles Azigon,<br />

estreará com O núcleo selvagem<br />

do dia (foto), de Madjer.<br />

divulgação<br />

Pulitzer para Donna<br />

A escritora norte-americana Donna Tartt venceu o Pulitzer na categoria<br />

Ficção, com o romance The Goldfinch. Nele, acompanhamos a trajetória<br />

de Theo Decker, um nova-iorquino de 13 anos que sobrevive a um acidente<br />

em que morre sua mãe. O livro é centrado justamente na pintura Goldfinch,<br />

de 1654, do holandês Carel Fabritius. No Brasil, a Companhia das Letras<br />

já publicou da autora A história secreta (1995, romance de estreia) e O<br />

amigo de infância (2004). The Goldfinch deve sair ainda neste ano.<br />

Na categoria Poesia, 3 sections, do indiano radicado nos Estados Unidos<br />

Vijay Seshadri, levou o Pulitzer. Os versos exploram a consciência humana<br />

do nascimento à demência, alterando entre vozes graciosas e graves.<br />

Nenhum livro do autor foi publicado no Brasil.<br />

Novidades no Jabuti<br />

O Prêmio Jabuti está com inscrições abertas. Este ano, um pouco diferente:<br />

a curadoria passou a ser da escritora e professora Marisa Lajolo; a<br />

cerimônia de entrega do Jabuti, realizada durante oito anos na Sala São<br />

Paulo, desta vez será no Auditório Ibirapuera, dia 18 de novembro; e, por<br />

fim, a criação de uma 27ª categoria, onde o British Council irá laurear a<br />

melhor tradução de obra literária inglês-português e o vencedor participará<br />

de um evento literário no Reino Unido, em 2015. Mais informações no site<br />

www.premiojabuti.com.br<br />

O conto em Floripa<br />

De 19 a 25 de maio, Florianópolis (SC) recebe a 4ª edição do Festival<br />

Nacional de Conto, único evento da América Latina dedicado a esse gênero.<br />

O escritor homenageado será o carioca Sérgio Sant’Anna, quatro vezes<br />

vencedor do Prêmio Jabuti. Entre outros, completam a programação<br />

Daniel Pellizzari, Noemi Jaffe, Cíntia Moscovich e Altair Martins. Os<br />

encontros acontecem no Teatro Sesc Prainha.<br />

Literatura no sertão<br />

O Congresso Internacional do Livro, Leitura e Literatura n o Sertão<br />

(Clisertão) chega à 2ª edição. Acontece em Petrolina (PE), de 5 a 10 de<br />

maio. Entre os convidados, José Luiz Passos, Rogério Pereira, editor do<br />

Rascunho, e José Castello.<br />

Prêmio Brasília<br />

O 2º Prêmio Brasília de Literatura anunciou os 16 autores premiados<br />

entre oito categorias: Biografia, Conto, Crônica, Infantil, Juvenil, Poesia,<br />

Romance e Reportagem. Aos primeiros lugares, R$ 30 mil; aos segundos,<br />

R$ 10 mil. Ganhador do Portugal Telecom 2013, O sonâmbulo<br />

amador, de José Luiz Passos (foto), ficou em primeiro lugar na categoria<br />

Romance. Em segundo, Ana Miranda com O peso da luz — Einstein<br />

do Ceará. Na poesia, Roberval Pereyr levou o primeiro lugar com<br />

Mirantes; Samarone Lima ficou na segunda posição, com O aquário<br />

desenterrado. Antonio Prata ganhou novamente na categoria Crônicas,<br />

com Nu, de botas. O segundo lugar ficou com Labirinto da palavra,<br />

de Claudia Lage, cujas crônicas foram publicadas no Rascunho de 2008<br />

a 2011. No conto, Noemi Jaffe venceu com A verdadeira história do<br />

alfabeto. Em segundo lugar, a coletânea Garimpo, de Beatriz Bracher.<br />

Em Ribeirão Preto<br />

Entre 16 e 25 de maio, Ribeirão Preto (SP) se torna o principal cenário<br />

literário do país. A 14ª Feira Nacional do Livro contará com 600 atrações<br />

gratuitas em 14 espaços diferentes. Com um espetáculo inédito, a bailarina<br />

e coreógrafa Deborah Colker abre o evento; para o encerramento, o<br />

maestro João Carlos Martins rege a orquestra Bachiana Filarmônica do<br />

Sesi. Dentre os escritores convidados, Antonio Prata, Cristovão Tezza,<br />

Ignácio de Loyola Brandão e Ruy Castro. Ao todo, serão 98 escritores<br />

nacionais, 113 escritores locais e seis internacionais. Programação no site<br />

www.feiradolivroribeirao.com.br.<br />

Investigações na McSweeney’s<br />

A edição 46 da revista norte-americana McSweeney’s traz 13 contos<br />

policiais contemporâneos de autores latino-americanos. Participam da<br />

edição o brasileiro Bernardo Carvalho, o mexicano radicado no Brasil Juan<br />

Pablo Villalobos, a argentina Mariana Enríquez, o cubano Jorge Enrique<br />

Lage, entre outros.


169 • maio_ 2014<br />

4<br />

169 • maio_ 2014<br />

5<br />

Cheia de<br />

histórias<br />

:: Gabriela Silva<br />

Porto Alegre – RS<br />

Gabriel García Márquez e Guimarães Rosa gostariam de<br />

entabular uma conversa sobre A cabeça do santo, de<br />

Socorro Acioli, por diversos motivos. O primeiro é a história<br />

— essencialmente boa. Samuel é um jovem que começa<br />

a narrativa num estado miserável de existência. Ele vaga pelas<br />

estradas do interior do Ceará, pelas cidades de Juazeiro, Candeia,<br />

Canindé para cumprir a promessa feita à mãe às vésperas de sua<br />

morte: encontrar a avó paterna Nicéia e o pai Manoel e acender velas<br />

aos pés dos santos de sua devoção. E num fragmento de tempo a vida<br />

do protagonista muda. Os outros motivos de que falo vão surgindo<br />

ao longo da narrativa e da nossa leitura. Mas posso enunciar alguns,<br />

não todos, para que o leitor possa descobrir as qualidades do texto,<br />

como eu fiz em cada nova página.<br />

Samuel vive uma série de peripécias, de desenlaces, descobrindo<br />

fatores de sua própria vida e acessando as suas origens. Filho<br />

de Mariinha com Manoel Vale, fora criado pela mãe, expulsa e<br />

renegada pelo pai, pela gravidez e a vergonha de ter sido desonrada.<br />

Sobrevivem, mãe e filho, a custa da ajuda de pessoas boas e do trabalho<br />

com palha que Mariinha realiza. Doente, portadora de sífilis,<br />

que Samuel julga ter sito transmitida pelo pai, ela morre, deixando<br />

os pedidos ao filho.<br />

Ao contar a trajetória de Samuel, Socorro incorpora elementos<br />

que vão ficando evidentes na construção do romance. Um deles é<br />

a religiosidade. Santos que estão presentes no imaginário do povo<br />

nordestino e que funcionam como fonte de fé e misticismo servindo<br />

de eixo para histórias contadas de geração a geração. Padre Cícero,<br />

Santo Antônio e São Francisco formam a tríade divina que compõe a<br />

base da narrativa. Cada um no pedido da mãe deve receber uma vela,<br />

aos seus pés, para salvar a sua alma.<br />

O místico em A cabeça do santo não fica apenas na crença<br />

dos milagres dos santos. A mãe de Samuel, assim como todas as mulheres<br />

de sua família possui o dom de prever a própria morte. Essa<br />

característica do romance se expande no protagonista. Ele mesmo<br />

tem a capacidade de ouvir vozes. Após ser expulso da casa da avó, ele<br />

vai por ordem dela mesma, alojar-se em uma gruta mais afastada.<br />

A gruta é na verdade a cabeça degolada de uma estátua enorme de<br />

Santo Antônio, padroeiro da cidade de Candeia.<br />

Atacado por cães, escondido, doente, Samuel<br />

ouve as histórias contadas pelas vozes que vertem<br />

das paredes da cabeça. Auxiliado por um garoto,<br />

Francisco, ele se recupera e acaba achando uma utilidade<br />

para as vozes que falam o tempo todo. Ele se<br />

torna um Mensageiro do santo, fazendo com que as<br />

mulheres resolvessem seus problemas amorosos.<br />

E então a narrativa toma rumos diferentes: o<br />

místico torna-se o começo de descobertas e desvelamentos<br />

sobre a história de Candeia, suas personagens<br />

e a vida de Samuel.<br />

Sobre a cidade, descobrem-se as irregularidades<br />

de um prefeito, a história de um santo mal<br />

construído e da morte de uma comunidade. Por superstição<br />

dos moradores e por descaso da prefeitura.<br />

Samuel é odiado e perseguido pelo poder local, que<br />

não deseja responder pelas suas ações erradas e inércia<br />

em relação à cidade, assim como a ressurreição de um espaço que<br />

julgavam morto: Candeia não era mais a cidade abandonada.<br />

As personagens vão se desdobrando, mostrando suas histórias<br />

particulares, origens. E toda a trama vai se encaixando, como as peças<br />

que compõem a própria imagem do santo. Histórias de amor,<br />

morte, abandono e esperança, todas depositadas na possibilidade de<br />

que o dom de Samuel e das vozes ouvidas consiga resolver. Socorro<br />

nos apresenta um quadro vasto de personalidades a que são atribuídas<br />

características como solidariedade, esperança, afetuosidade e<br />

outras ruins, mas que também fazem parte tanto das personalidades<br />

ficcionais como reais: ganância, avareza, rancor e tantas outras.<br />

Samuel encontra seu pai, que de forma circular contribuíra<br />

para a decadência da cidade. A história vai se misturando à de<br />

Candeia e o passado torna-se mais claro e o presente assume um<br />

sentido próprio.<br />

Descobre entre as vozes, a história de Rosário. Que herdara da<br />

mãe africana o hábito de cantar às cinco da manhã e às cinco da tarde.<br />

É a voz que acalma o coração de Samuel, todos os dias. A beleza<br />

da voz — associada ao mistério das canções em uma língua que oscila<br />

entre o português e outra desconhecida — vai despertando em Samuel<br />

o que mais tarde se descobriria como amor.<br />

Atendendo aos pedidos da mãe, reforçados pela avó, ele<br />

completa o sentido da sua missão, cumpre a sua jornada de herói.<br />

Samuel vivencia a pobreza e a dor pela perda, constrói amizades,<br />

ajuda a reconstruir uma cidade, a bondade de um santo e o passado<br />

de sua família.<br />

É aos pés dos santos que ele encontra o que procura: Santo Antônio<br />

lhe entrega o pai, exilado na estátua degolada; São Francisco<br />

lhe entrega o caminho para Rosário, que agora lhe acalmaria o coração<br />

não apenas com a voz, mas com a sua presença.<br />

Lendo a biografia de Socorro Acioli, percebemos que ela procurou<br />

aprender para exercer o que lhe sobra: talento. A cabeça do<br />

santo é a carta fiadora de Socorro: confiamos nela como autora.<br />

Confiamos na elaborada trama composta por elementos fantásticos<br />

(nos fascinam tanto), sistemas de encaixes entre passado e presente<br />

e uma circularidade que nos assombra e nos deixa curiosos. Por 168<br />

páginas de texto, conhecemos Samuel e sua história, uma narrativa<br />

pungente de sobrevivência, de amor e, sobretudo de esperança. Se a<br />

literatura é o exercício artístico de representar a vida real, ou basear-<br />

-se nela, Socorro fez isso com habilidade.<br />

A AUTORA<br />

Socorro Acioli<br />

Nasceu em 1975, em Fortaleza (CE). É jornalista e doutora em estudos de<br />

literatura pela Universidade Federal Fluminense. Foi aluna do prêmio Nobel<br />

Gabriel García Márquez na oficina Como contar um conto, em Cuba. Entre<br />

seus livros publicados estão A bailarina fantasma e Ela tem olhos<br />

de céu, ganhador do prêmio Jabuti de literatura infantil em 2013.<br />

: : entrevista : : Socorro Acioli<br />

:: Rogério Pereira<br />

Curitiba – PR<br />

Socorro Acioli acaba de estrear<br />

na literatura adulta<br />

com A cabeça do santo,<br />

escrita a partir de uma oficina<br />

literária com Gabriel García<br />

Márquez. É apenas uma nova fase<br />

em uma trajetória literária de mais<br />

de dez anos, iniciada na literatura infantojuvenil.<br />

Ganhadora do prêmio<br />

Jabuti 2013 com Ela tem olhos<br />

de céu, Socorro é otimista em relação<br />

ao momento literário brasileiro,<br />

sempre mantendo um olhar crítico,<br />

principalmente em relação à produção<br />

voltada a crianças e jovens. Nesta<br />

entrevista concedida por email,<br />

a autora cearense fala de sua breve<br />

convivência com García Márquez,<br />

das dificuldades em ser escritor no<br />

Brasil, do mercado editorial, da formação<br />

de leitores e de sua paixão<br />

pela gastronomia.<br />

• Após 10 anos de uma bem-<br />

-sucedida carreira como autora<br />

de livros infantojuvenis, vocês<br />

estreia na literatura adulta<br />

com A cabeça do santo. Quais<br />

as inquietações que a levaram<br />

a escrever um romance voltado<br />

ao público adulto?<br />

Esse assunto rende uma resposta<br />

cheia de desdobramentos, já que a<br />

definição de idade do público leitor<br />

é algo muito complexo. O que me<br />

fez decidir a linguagem e a identidade<br />

desse livro foi o próprio tema.<br />

Fui arrebatada pela imagem de uma<br />

cabeça oca, gigantesca e inacabada<br />

de Santo Antônio que vi em uma<br />

matéria de jornal. O texto falava dos<br />

problemas causados pela cabeça no<br />

meio da rua e um deles era o fato<br />

de ter servido de morada para um<br />

homem qualquer. Imediatamente,<br />

percebi que tinha um tema e um<br />

personagem muito fortes para construir<br />

um romance a partir dali. Ao<br />

desenvolver a narrativa, decidi que<br />

esse homem teria o poder de ouvir<br />

as orações das mulheres pedindo<br />

por casamento e que armaria uma<br />

confusão com as informações que<br />

tinha em mãos. Pensei em adultério,<br />

crimes, segredos, amores proibidos e<br />

nada disso caberia em uma narrativa<br />

infantil ou juvenil, a princípio. Eu<br />

Abençoada<br />

cozinha<br />

escritor consiga viver de direitos autorais<br />

no Brasil. O que tem ajudado<br />

muito é o número de eventos literários<br />

no país inteiro, que pagam cachês<br />

e ajudam na receita mensal dos<br />

autores. O problema é que viver viajando<br />

para dar palestras destrói essa<br />

rotina de método e silêncio que todo<br />

escritor precisa ter para trabalhar nos<br />

livros. Muitos autores encaram o dilema<br />

cruel de ter um emprego para escrever<br />

sem preocupações ou viver só<br />

de escrever, mas sofrer a cada final de<br />

mês. A falta de respeito e desconhecimento<br />

diante da profissão também é<br />

terrível. A pergunta “você trabalha ou<br />

só escreve?” é o mínimo que se escuta.<br />

Eu coleciono frases de uma grosseria<br />

absurda, especialmente como<br />

autora de livros infantis. Já me convidaram<br />

para eventos onde esperavam<br />

que eu cantasse e dançasse, coisa que<br />

não faço. Sou escritora. O que sei<br />

fazer diante de um grupo de crianças<br />

é conversar sobre meu processo<br />

criativo, contar coisas engraçadas ou<br />

surpreendentes, ler o texto, responder<br />

perguntas. Confundem literatura<br />

infantil com animação de palco,<br />

às vezes. Para ser honesta, acho que<br />

com dez anos de estrada eu já consigo<br />

tirar de letra. Tenho respostas ótimas<br />

para perguntas desrespeitosas sobre<br />

a profissão.<br />

• Ao ler em média de seis a doze<br />

livros por mês, você, obviamente,<br />

é uma leitora muito acima<br />

da média. O que você busca<br />

na leitura de ficção?<br />

Nem sempre consigo esse máximo de<br />

doze livros, mas leio muito e sempre.<br />

O que me ajuda bastante é o advento<br />

fantástico do ebook. Tenho um Kobo<br />

alimentado por uma biblioteca incrível<br />

e aproveito cada minuto livre que<br />

tenho. Tenho metas de leitura, anoto<br />

tudo que leio, faço estatísticas, é um<br />

negócio divertido e meio nerd. Mas<br />

isso não faz de mim uma erudita, porque<br />

leio muita, muita bobagem. Antes<br />

de dormir, geralmente, opto por<br />

livros que contem uma boa história e<br />

não tenho o menor problema em escolher<br />

algo mais leve e nem de perder<br />

tempo com best-seller. Muitas vezes<br />

eu sigo as indicações das minhas leitoras<br />

adolescentes e compro os sucessos<br />

do momento — a maioria dos textos<br />

me irrita, mas eu leio. Ao mesmo<br />

tempo, andei numa fase obsessiva<br />

por autores africanos — Mia Couto,<br />

Agualusa, Luandino Vieira, Pepetela,<br />

Ondjaki, Armenio Vieira. Tive uma<br />

paixonite pelo Ian McEwan, pelo<br />

Murakami. Ano passado fui à Argentina<br />

pela primeira vez e me preparei<br />

lendo Borges. A paixão do momento<br />

é o Valter Hugo Mãe. O que eu busco<br />

na ficção depende do momento. Escolher<br />

um livro é fazer um pacto com<br />

ele, olhando nos olhos da capa. Para<br />

alguns eu digo: “ok, eu quero rir um<br />

pouco com você e esquecer da vida,<br />

por favor”. Diante de outros eu reverencio<br />

o autor e digo: “Nada menos<br />

que arrebatamento, é o que espero”.<br />

• Da sua experiência com jovens<br />

leitores, é possível buscar<br />

explicações para as dificuldades<br />

em formar mais leitores no<br />

Brasil? Quais seriam as principais<br />

barreiras?<br />

É um quadro complexo. O que cerca<br />

um leitor em potencial? Família<br />

e escola. Sem incentivo desses dois<br />

pilares da sua formação, fica difícil<br />

tornar-se leitor. Existem iniciativas<br />

fantásticas no Brasil. Aplaudo de pé o<br />

programa Agentes de Leitura, criado<br />

pelo educador Fabiano dos Santos,<br />

que leva livros de casa em casa. Também<br />

sou entusiasta da Fundação Nacional<br />

do Livro Infantil e Juvenil, que<br />

mantém diversas ações impressionantes<br />

envolvendo autores, ilustradores,<br />

editores, família e professores.<br />

Se eu tiver de arriscar um caminho,<br />

creio que a saída para o problema é o<br />

investimento na formação do professor<br />

leitor. Eu já dei uma palestra para<br />

um público de professores às 20h e<br />

perguntei quantos ali tinham dado<br />

mais de dois turnos de aula. A maioria<br />

levantou o braço. Perguntei quem<br />

trabalhava aos sábados e todos levantaram<br />

o braço. Quando esse professor<br />

vai ler? E sem ter, ele próprio, uma<br />

vida de leitor, como vai transmitir<br />

esse gosto para os alunos? Por outro<br />

lado, vemos um aumento imenso no<br />

mercado de literatura infantil e juvenil<br />

no Brasil. Eventos de editoras<br />

voltados para o público jovem lotam<br />

as livrarias do Brasil, assim como as<br />

tardes de autógrafos de autoras como<br />

Thalita Rebouças, Paula Pimenta,<br />

Bruna Vieira. Estamos falando de números<br />

e nesse sentido, o momento é<br />

de otimismo.<br />

• De que maneira você auxilia<br />

sua filha a se formar uma boa<br />

leitora?<br />

Tenho algumas regras com ela. A primeira<br />

é nunca negar livros que ela<br />

queira comprar. Nunca. A segunda é<br />

não censurar as leituras. Ela escolhe<br />

o que quiser ler, mesmo que eu ache<br />

uma bobagem, eu compro. Comigo<br />

não tem essa de mandar que compre<br />

com mesada, eu invisto mesmo.<br />

E digo sempre às mães que façam a<br />

mesma coisa. Cada leitor tem seu caminho.<br />

Ela viaja comigo para eventos<br />

literários desde pequena, acompanha<br />

minhas palestras e me vê sempre lendo<br />

e falando de livros. Agora me pediu<br />

um Kobo e eu comprei. Acabou de ler<br />

a trilogia Jogos vorazes e começou<br />

O cão dos Baskervilles — está<br />

ado rando. Sim, ela é uma leitora.<br />

Acho que tomei boas decisões nesse<br />

processo.<br />

• O que seria um bom leitor? É<br />

possível defini-lo?<br />

Talvez seja o que lê com prazer, porque<br />

gosta, porque não sabe viver sem<br />

livros. Um por mês, que seja. Talvez<br />

seja o leitor que pensa sobre o que<br />

leu, que sabe compreender os livros<br />

dentro dos seus contextos, que entende<br />

o lugar de cada autor no seu tempo<br />

e sua posição e contrastes diante dos<br />

demais. Talvez seja o que surta nas<br />

livrarias, compra mais do que consegue<br />

ler, ama os autores loucamente.<br />

Existem inúmeros tipos de bons leitores,<br />

não existe um gabarito.<br />

• Na introdução de Aula de leitura<br />

com Monteiro Lobato, você<br />

afirma que “escrevi este livro<br />

porque acredito, a cada minuto<br />

da minha vida, que a literatura<br />

pode salvar o mundo”. Por que<br />

esta crença na literatura?<br />

Uma vez a Fundação Nacional do Livro<br />

Infantil e Juvenil organizou uma<br />

exposição chamada Santos Dumont<br />

leitor de Julio Verne. Fiquei impressionada<br />

com aquilo, com o poder da<br />

literatura como condutora da vida de<br />

um inventor. A boa literatura dá sentido<br />

à vida, no mínimo. Nos melhores<br />

casos, alimenta grandes ideias.<br />

O querido Bartolomeu Campos de<br />

Queiroz disse uma vez que é a imaginação<br />

que movimenta o mundo.<br />

Esse computador onde eu escrevo<br />

e esse outro de onde você me lê só<br />

existe porque alguém imaginou. E a<br />

literatura nos dá isso, esse poder de<br />

sonhar, especialmente na infância.<br />

Existe também a literatura que dói<br />

e que faz enxergar a dor do outro.<br />

Nada mais necessário do que o exercício<br />

da empatia nos dias de hoje, esses<br />

tempos de egoísmo.<br />

• Ao percorrer o Brasil em feiras,<br />

festivais, encontros com<br />

leitores, como você avalia o<br />

momento literário brasileiro<br />

do ponto de vista de mercado?<br />

É possível viver de literatura?<br />

Para alguns autores, sim. Uns têm a<br />

sorte de viver só de vendas de livros,<br />

o melhor dos mundos. Outros conseguem<br />

cumprindo uma agenda de<br />

muitas viagens por mês, nas condições<br />

mais diversas. Mas de qualquer<br />

forma, temos um número razoável<br />

de escritores vivendo de literatura e<br />

isso é muito bom. Do ponto de vista<br />

do mercado, é um momento aquecido.<br />

Muitos eventos, muitos autores<br />

surgindo, muitos livros de sucesso<br />

vendendo bem nas livrarias do Brasil,<br />

vários editais para compras de<br />

governo por ano, concursos, prêmios<br />

literários, etc.<br />

• Você acompanha a produção<br />

literária brasileira? O que mais<br />

te chama a atenção na literatura<br />

atual?<br />

Acompanho, claro. Como leitora e<br />

como amiga de muitos autores — a<br />

maioria que vou conhecendo pela<br />

estrada das feiras e festas literárias.<br />

Os autores sérios estão em busca da<br />

sua própria voz, isso é o que mais me<br />

impressiona. Não temos uma produção<br />

em bloco, aquela série de livros<br />

parecidos. Adriana Lisboa, Tatiana<br />

Salem Levy, Daniel Galera, Michel<br />

Laub, cada um tem seu caminho<br />

próprio, seu projeto literário muito<br />

bem fundamentado. Já na literatura<br />

infantojuvenil surgem muitos autores<br />

novos todos os dias. A maioria<br />

vem copiar o que já deu certo, o que<br />

é uma pena. Uma minoria de muita<br />

qualidade oferece uma voz original.<br />

Isso sim, me anima.<br />

• Você circula com muita desenvoltura<br />

pelas mídias digitais,<br />

com seus blogs, facebook,<br />

twitter. De que maneira o mundo<br />

digital facilita ou atrapalha<br />

a vida dos escritores?<br />

Facilita muito porque é mais rápido<br />

encontrar pessoas. Editores, jornalistas,<br />

críticos, estão todos ali, ao alcance<br />

de um clic. Basta ser amigo virtual<br />

e a porta está aberta para ver e ser<br />

visto. Divulgar eventos pelo facebook<br />

e twitter é maravilhoso e é pelas redes<br />

sociais que os leitores chegam ao blog.<br />

Atrapalha porque toma muito tempo.<br />

E porque o risco de se expor demais<br />

é enorme. É preciso saber dosar bem<br />

quando se posta uma informação que<br />

mil pessoas vão ler. Eu confesso que<br />

gosto bastante, tenho muitos amigos<br />

que conheci pela internet. Adoro receber<br />

os recados dos leitores, especialmente<br />

as coisas engraçadíssimas<br />

que os adolescentes postam. Mas<br />

transito com muito cuidado por esse<br />

terreno virtual.<br />

• Como transformar uma ideia<br />

em boa literatura?<br />

Com muito trabalho. No meu caso,<br />

com um planejamento intenso até<br />

encontrar a estrutura adequada ao<br />

texto. A ficção exige uma série de<br />

tomadas de decisão por parte do<br />

autor. Onde acontecerá a história?<br />

Quem são os personagens? O que<br />

eles querem? O que os impede? Vão<br />

conseguir? Em quanto tempo tudo<br />

acontecerá? Quem contará a história,<br />

um narrador onisciente? Será<br />

em primeira pessoa? Quais as verdades<br />

ou as perguntas que movem<br />

esse texto? Essas são apenas algumas<br />

das perguntas que o livro precisa<br />

responder. O que aprendi com<br />

cursos de roteiro e escrita criativa<br />

me ajudou muito a facilitar o processo.<br />

Juntando os cursos, o estudo<br />

e minha experiência, tenho promovido<br />

oficinas de construção de<br />

narrativa para tentar iluminar esse<br />

caminho entre a ideia e a literatura.<br />

• Qual a importância dos prêmios<br />

literários para os autores?<br />

E qual a importância no<br />

seu caso específico?<br />

Prêmios conferem uma visibilidade<br />

imensa para o livro e o autor. Para o<br />

público leitor, é uma legitimação do<br />

trabalho, um atestado de qualidade.<br />

O Jabuti foi o meu primeiro prêmio<br />

nacional e o salto da minha posição<br />

no mercado foi estrondoso. Muitas<br />

portas se abriram, muitos convites,<br />

muito reconhecimento. Tudo fica<br />

mais fácil depois quando o autor tem<br />

um Jabuti no currículo. Na vida real,<br />

ao menos pra mim, não muda muita<br />

coisa. Continuo batalhando muito,<br />

lutando no dia a dia para seguir<br />

escrevendo, estudando, pensando<br />

meus projetos, correndo muito para<br />

dar palestras, fechar as contas no fim<br />

do mês. Valorizo muito os prêmios<br />

que já recebi, me fizeram feliz e espero<br />

que venham mais. Porém, eles<br />

não mudam quem eu sou.<br />

• Por que manter um blog de<br />

receitas gastronômicas?<br />

Por prazer. Adoro cozinhar, pesquisar<br />

receitas, conhecer ingredientes<br />

novos, reproduzir em casa as<br />

comidas que aprendo nas viagens.<br />

Minhas malas voltam cheias de ingredientes<br />

e utensílios. Faço comida<br />

todos os dias para minha família e é<br />

nesse momento que surgem ótimas<br />

ideias para a literatura. De vez em<br />

quando eu penso que, um dia, pode<br />

surgir um projeto literário daí, mas<br />

nada concreto ainda. Por enquanto,<br />

é prazer e distração.<br />

divulgação<br />

A literatura infantil é arte, é feita por um<br />

autor sensível a determinado tema, ciente<br />

da escolha do seu universo de palavras.<br />

poderia, sim, ter dobrado a esquina<br />

e feito do meu protagonista, Samuel,<br />

apenas um rapazinho brincalhão,<br />

mas essa não era a história que eu<br />

queria contar. Por outro lado, fico<br />

me perguntando se, mesmo com crime,<br />

crueldades, adultério e amores<br />

proibidos, esse livro não poderia ser<br />

lido por um jovem. Penso que pode,<br />

sim. Tanto que a editora inglesa Hot<br />

Key Books está lançando o mesmo<br />

livro, o mesmo enredo, no seu selo<br />

para o público juvenil. A cabeça do<br />

santo, portanto, estaria na categoria<br />

que o mercado internacional chama<br />

de crossover — um texto que pode<br />

agradar a adolescentes e adultos. É<br />

o que tenho visto com o retorno dos<br />

leitores que me escrevem nas redes<br />

sociais, todos os dias.<br />

• No momento da construção<br />

da narrativa, há diferenças<br />

entre escrever para criança,<br />

jovem ou adulto — leitores, supostamente,<br />

diferentes?<br />

Para mim todos exigem muito trabalho,<br />

muito mesmo. Não escrevo<br />

facilmente, inspirada pela Musa. Eu<br />

sofro um bocado. E não acho que<br />

texto infantil é fácil e adulto, difícil.<br />

Não chamo livro infantil de livrinho.<br />

O que muda é o universo ficcional<br />

de cada um. Alguns temas importantes<br />

para adultos não fazem parte<br />

do espectro de interesse de uma<br />

criança. A linguagem também exige<br />

uma atenção, tanto em coisas mais<br />

visíveis, como vocabulário, quando<br />

na composição de metáforas e pontes<br />

de narrativa que talvez um leitor<br />

mais jovem não consiga captar.<br />

Infelizmente, tenho visto critérios<br />

absurdos nesse julgamento da qualidade<br />

no livro infantil. Já vi professoras<br />

dizendo que um bom livro para<br />

crianças não pode falar de morte,<br />

não pode ter palavras de quatro silabas<br />

ou que sejam muito distantes<br />

do vocabulário natural da criança.<br />

Dizem, ainda, que o bom livro infantil<br />

é o que ensina alguma coisa — a<br />

tal alcunha de paradidático. Costumo<br />

fazer palestras para professores<br />

e tento conversar sobre a diferença<br />

entre livro para criança e literatura<br />

infantil. O livro pra criança é aquele<br />

que as bienais vendem aos quilos por<br />

cinco reais, que ensinam as cores e<br />

os tipos de formas de amarrar sapatos.<br />

A literatura infantil é arte, é feita<br />

por um autor sensível a determinado<br />

tema, ciente da escolha do seu universo<br />

de palavras. Ela pode e deve<br />

falar de morte, dor, tristeza, alegria<br />

porque tudo isso faz parte da condição<br />

humana. Enfim, as diferenças<br />

caminham mais no terreno da escolha<br />

dos temas. Ao menos para mim,<br />

escrever exige muito trabalho, não<br />

interessa o destinatário do texto.<br />

• Quais desafios você se impõe<br />

ao iniciar o projeto de um novo<br />

livro?<br />

É muito bom começar um projeto<br />

novo, cheia de esperanças. Na verdade,<br />

é talvez o segundo melhor momento<br />

— o primeiro é receber o livro<br />

pronto. Quando decido por um novo<br />

tema, a primeira providência é comprar<br />

um caderno, onde anoto tudo<br />

o que interessa para a construção<br />

do texto. São muitos desafios. Para<br />

mim, ao menos, um dos maiores é<br />

não repetir o que já fiz antes. Não repetir<br />

temas e estruturas. É difícil, é<br />

arriscado. O mais certo — pensando<br />

no mercado — é repetir o que já funcionou<br />

bem, mas não é o que eu quero<br />

para a minha carreira. Já escrevi<br />

ensaios biográficos, livro infantil em<br />

prosa, em verso, livro juvenil, ensaio<br />

acadêmico, romance. Não sou excelente<br />

em todos os gêneros, mas adoro<br />

experimentar e aprender. Outro<br />

desafio é o tempo. Sou muito lenta,<br />

levo anos em um projeto e o prazo<br />

apertado costuma me atrapalhar<br />

muito. Tento organizar o tempo de<br />

escrita a fim de cumprir os cronogramas,<br />

mas nem sempre consigo. Mais<br />

uma questão é a linguagem. Gosto<br />

de dar um espaço entre um texto e<br />

outro para ler mais e aprender com o<br />

bordado dos grandes autores que tenho<br />

conhecido. Já entendi que meu<br />

forte como autora não tem nada a<br />

ver com reinvenção de linguagem,<br />

ao menos por enquanto. Busco o texto<br />

mais simples enquanto dou sangue<br />

no enredo mais surpreendente<br />

possível. Aliás, surpreender o leitor é<br />

um desafio gigantesco.<br />

• Qual a importância do convívio<br />

com Gabriel García Márquez,<br />

em 2006, na oficina<br />

Como contar um conto, em<br />

Cuba, para a escritura de A cabeça<br />

do santo?<br />

Foi um convívio muito rápido, apenas<br />

cinco dias de aula, mas a importância<br />

foi decisiva. O livro só nasceu por causa<br />

desse contato com ele. Procurei um<br />

tema para mandar e concorrer a uma<br />

vaga na fabulosa oficina Como contar<br />

um conto e foi assim que encontrei<br />

e decidi investir na cabeça do santo.<br />

Ter o aval do García Márquez e ouvir<br />

dele que eu tinha um material maravilhoso<br />

em mãos foi o que me deu coragem<br />

para não desistir. Em termos<br />

práticos, ele sugeriu coisas importantes.<br />

Por exemplo: eu estava na dúvida<br />

se o personagem Samuel deveria<br />

ouvir só as orações das mulheres ou<br />

também os pensamentos do santo.<br />

García Márquez disse que eu deveria<br />

optar pelas rezas, já que conhecer segredos<br />

de amor das mulheres de uma<br />

cidade é uma forma de poder. Outra<br />

coisa que ele repetiu várias vezes pra<br />

turma toda e que me serviu muito foi<br />

a frase: “Conte sua história como se<br />

contasse a da Chapeuzinho Vermelho”.<br />

Ou seja: o seu mundo ficcional<br />

tem que ser claro e só quando conseguimos<br />

definir tudo em um parágrafo<br />

é que temos o domínio da história.<br />

Quando estive com García Márquez,<br />

eu só tinha o começo da ideia do livro.<br />

À época, queria fazer um roteiro<br />

de cinema e insisti nessa linguagem<br />

por quatro anos. Em 2010, por um<br />

conselho do diretor Lula Buarque de<br />

Hollanda, desisti de escrever um roteiro<br />

e comecei a trabalhar no livro,<br />

de verdade. Há influência do García<br />

Márquez no texto, mas vejo uma filiação<br />

muito mais forte com Jorge Amado<br />

e Ariano Suassuna, por exemplo.<br />

Escrevemos a partir do nosso repertório<br />

de leituras e experiência de vida.<br />

Não posso negar que o Realismo Mágico<br />

me marcou, mas não é isso que<br />

estou tentando fazer agora.<br />

• O que mais a marcou na convivência<br />

com García Márquez?<br />

A generosidade e a coragem. Acho incrível<br />

que um Prêmio Nobel de prestígio<br />

internacional, lido, admirado e<br />

querido no mundo inteiro, disponha-<br />

-se a passar uma semana sentado a<br />

serviço de autores iniciantes. No primeiro<br />

dia de aula ele anunciou que<br />

“estava ali para ouvir”. Isso é raro.<br />

Durante a fala de todos os alunos, ele<br />

estava de fato concentrado, empenhado<br />

em entender. Tratava de cada<br />

personagem até esgotar as possibilidades.<br />

Sugeria, cortava, pensava com<br />

força no que poderia melhorar. Por<br />

cinco dias, ele nos deu o melhor que<br />

poderia nos dar: seu talento e experiência.<br />

A outra coisa que me marcou<br />

foi a coragem dele, que me contagiou.<br />

García Márquez precisou de muita<br />

força para enfrentar um sem número<br />

de obstáculos na vida, inclusive a opção<br />

de ser escritor.<br />

• A cabeça do santo tem uma<br />

linguagem<br />

aparentemente<br />

muito simples — uma das qualidades<br />

da narrativa. Como se<br />

deu a construção da voz narrativa<br />

para esta história com traços<br />

de realismo fantástico?<br />

O objetivo era essa mesmo: o mais<br />

simples que eu pudesse fazer. Eu<br />

queria um narrador onisciente e<br />

sensível, que soubesse muito, mas<br />

soubesse dosar as informações. Meu<br />

foco, na Cabeça do santo, foi dar<br />

conta de amarrar essa narrativa<br />

cheia de subenredos. Há um eixo<br />

principal (Samuel indo a Candeia<br />

procurar o pai e a avó) e vários outros<br />

eixos que caminham à margem<br />

(o passado da sua mãe, Mariinha,<br />

o passado da cidade, a história de<br />

Fernando, de Rosário, etc.). Eu precisava<br />

de um texto claro e limpo para<br />

desenvolver essas tramas todas. De<br />

outra forma, eu não teria conseguido.<br />

Por enquanto, pretendo seguir<br />

escrevendo assim, um texto simples<br />

a serviço de enredos complexos.<br />

• Ao ganhar o prêmio Jabuti, no<br />

ano passado, você afirmou que<br />

“o prêmio chega na hora mais<br />

certa possível”, mas que seguirá<br />

“na vida caseira, lendo muito,<br />

pensando muito, demorando<br />

pra escrever, publicando com<br />

cautela”. Como é a sua rotina de<br />

criação e contra quais equívocos<br />

um escritor deve lutar?<br />

No momento, tomei a decisão de só<br />

trabalhar em um projeto de cada vez.<br />

Como eu disse antes, sou muito lenta,<br />

detesto as primeiras versões de<br />

tudo que escrevo e preciso de tempo<br />

para maturar enredo e texto. A rotina<br />

de cada texto começa com a escolha<br />

do tema, depois o desenvolvimento<br />

da narrativa — traçado em um caderno<br />

— e sempre, sempre, sempre<br />

começo tudo de uma pesquisa. Isso<br />

vem da minha formação como jornalista.<br />

Quase tudo que escrevi veio<br />

de um fato real, mas o que produzo<br />

são reportagens inventadas. Só depois<br />

da pesquisa eu consigo traçar o<br />

eixo principal da história, o que vai<br />

acontecer com os protagonistas do<br />

começo ao fim. Sem isso, nem sento<br />

para começar. Preciso saber como<br />

vai terminar — mesmo que depois<br />

eu mude de ideia. Costumo planejar<br />

os capítulos, usando um método de<br />

fichas que aprendi na minha formação<br />

para escrever roteiros de cinema.<br />

Tenho uma ficha para cada capítulo<br />

e nele eu determino o lugar dos fatos.<br />

Isso é ótimo, porque se eu resolver<br />

contar algo só mais à frente, basta<br />

mudar de lugar. Eu ia começar A cabeça<br />

do santo contando o passado<br />

de Candeia, porque a estátua não foi<br />

concluída. Mas depois vi que eu deveria<br />

começar com Samuel, manter a<br />

pergunta no leitor e explicar depois.<br />

Foi só mover a ficha de lugar. Depois<br />

de organizar a estrutura, vem a hora<br />

de escrever uma primeira versão do<br />

texto e assim prosseguir. Mais à frente<br />

chegam os leitores que me ajudam<br />

muito — minha agente, Lúcia Riff, os<br />

editores, preparadores de texto. Sou<br />

grata por esse momento, é o fim da<br />

solidão e o começo do trabalho em<br />

equipe para fazer o livro existir. Mas<br />

isso tudo é só um lado da minha vida<br />

profissional. Tenho ainda a carreira<br />

de professora em construção. Acabei<br />

meu Doutorado e estou ministrando<br />

cursos livres de Construção de Narrativa.<br />

Além, é claro, das rotinas de<br />

dona de casa, de cuidar da família,<br />

da vida toda ao redor.<br />

• Você já afirmou que ser escritor<br />

no Brasil é muito difícil.<br />

Quais as principais dificuldades<br />

que um autor enfrenta<br />

num país como o Brasil?<br />

Instabilidade financeira e desrespeito<br />

diante da profissão. É raro que um<br />

A cabeça do<br />

santo<br />

Socorro Acioli<br />

Companhia das Letras<br />

176 págs.<br />

leia entrevista completa no<br />

www.rascunho.com.br


6<br />

169 • maio_ 2014<br />

Vozes autônomas<br />

Poemas de Alice Sant’Anna e Mário Alex Rosa trazem a composição de um sujeito melancólico<br />

: : Luiz Guilherme Barbosa<br />

Rio de Janeiro – RJ<br />

As coleções de livros de<br />

poemas, desde a década<br />

de 1980, são um instrumento<br />

de leitura da poesia<br />

brasileira. Não só fazem o poema<br />

se acompanhar de um projeto<br />

gráfico colecionável, que se inscreve<br />

na memória da leitura dos poemas,<br />

como também intervêm na<br />

legibilidade da poesia, ao lançarem<br />

novos poetas, acolherem poetas<br />

bissextos, revisarem poetas menos<br />

lembrados, acompanharem as<br />

trajetórias mais comemoradas. De<br />

fato são muitos os elementos que<br />

intervêm na maior ou menor legibilidade<br />

da poesia, e eles incluem a<br />

curadoria da coleção, a audácia do<br />

editor em lançá-la, a viabilidade da<br />

editora, os prêmios almejados ou<br />

alcançados pelo livro. Esses gestos<br />

críticos, mais ou menos fortes, são<br />

muitas vezes decisivos para que o<br />

poema alcance uma espécie de patamar<br />

de legibilidade.<br />

Parece, portanto, que as coleções<br />

de poesia, decorrência do amadurecimento<br />

do mercado editorial<br />

— o que, diga-se de passagem, representa<br />

para as editoras compensar<br />

o encalhe dos livros de poemas<br />

por meio das vendas de romances<br />

best-sellers, livros paradidáticos ou<br />

obras clássicas com poder de venda<br />

a longo prazo —, simbolizam, ao<br />

mesmo tempo, a produção de outro<br />

olhar para o poema. É que a publicação<br />

do livro numa coleção de<br />

poesia inscreve-o numa série que<br />

sugere certo olhar sobre o poema<br />

contemporâneo, certo posicionamento<br />

sobre o que significa fazer<br />

poesia, certa escolha entre os poemas<br />

que serão publicados e aqueles<br />

que, por algum motivo, não chegarão<br />

ao livro ou às livrarias. De um<br />

modo ou de outro, no limiar do visível,<br />

a poesia preserva a ambiguidade<br />

que, desde as edições fantasmas<br />

de pequenas tiragens dos poetas<br />

modernistas, às edições raras da<br />

poesia concreta, às edições mimeografadas<br />

da poesia marginal, como<br />

um espectro, o poema parece guardar<br />

na vida cultural.<br />

A não ser que se recorde a<br />

poesia reunida de Paulo Leminski,<br />

que desbancou, em março de 2013,<br />

uma série de romances best-sellers<br />

tornando-se o livro mais vendido<br />

Rabo de baleia<br />

Alice Sant’Anna<br />

Cosac Naify<br />

64 págs.<br />

Via férrea<br />

Mário Alex Rosa<br />

Cosac Naify<br />

64 págs.<br />

no país. Mas ainda aqui seria oportuno<br />

lembrar a leitura de Flora<br />

Süssekind, que considera boa parte<br />

da obra de Leminski “em diálogo<br />

constante com hagiografias diversas”,<br />

o que inclui “mesmo seu gosto<br />

pelo apostolado, por uma intensa<br />

exposição pública, mesmo quando<br />

a cirrose já se encontrava em estado<br />

avançado”. Seja no caso em<br />

que o poema se expõe multicor nas<br />

vitrines alugadas das grandes livrarias,<br />

seja no caso em que circula invisível,<br />

sob encomenda, em pacotes<br />

de papel pardo da editora à casa<br />

do leitor, é supérfluo mostrá-lo ou<br />

escondê-lo. Tanto faz, porque o poema<br />

não chega na hora certa para<br />

o leitor, mesmo que a encomenda<br />

não atrase e as metas de venda sejam<br />

atingidas ou superadas.<br />

A Cosac Naify lança, sob a<br />

coordenação de Heloisa Jahn, dois<br />

volumes da coleção Poesia contemporânea<br />

brasileira. Depois dos 14<br />

volumes da coleção Ás de colete,<br />

série bolso, coordenada por Carlito<br />

Azevedo; depois dos dois volumes<br />

excelentes de Josely Vianna Baptista<br />

e de Angélica Freitas; depois<br />

ainda de Ximerix, a quimera em<br />

quadrinhos que Zuca Sardan; a<br />

editora lança dois outros, os segundos<br />

livros de poemas de Alice<br />

Sant’Anna e Mário Alex Rosa.<br />

O que atravessa ambos os livros<br />

talvez seja a composição de<br />

um sujeito melancólico, que, a partir<br />

de um olhar contemplativo às<br />

pequenas coisas do cotidiano, projeta<br />

uma série de reminiscências<br />

ou imagens que progressivamente<br />

desfiguram a paisagem do entorno.<br />

Trata-se, portanto, de dois projetos<br />

líricos para o poema. Tratam-se de<br />

poemas que parecem poemas, o<br />

que deve chamar a atenção à leitura,<br />

principalmente se lembrarmos<br />

que o texto de apresentação do livro<br />

de Mário Alex Rosa foi composto<br />

por Armando Freitas Filho, o mesmo<br />

poeta que, em 2012, publicara<br />

uma bonita plaquete em coautoria<br />

com Alice Sant’Anna, Pingue-<br />

-pongue. O mesmo poeta que em<br />

seu último livro, Dever, dedica<br />

versos ao livro de Angélica Freitas,<br />

o poema Cuidado: “Tormento lê-<br />

-lo assim/ sacudido, na superfície/<br />

sem ir até o fundo/ por não saber<br />

nadar/ na sua água desobediente”.<br />

O tormento experimentado na superfície<br />

desobediente da água dos<br />

poemas montados com frases do<br />

Google por Angélica Freitas, das<br />

canções que cantam a mulher gorda<br />

que incomoda muita gente ou<br />

a mulher insanamente bonita que<br />

vai ganhar um carro, contrasta<br />

fortemente com a ambiência delicada<br />

e melancólica e reflexiva dos<br />

poemas de Mário Alex Rosa e Alice<br />

Sant’Anna. O que talvez esteja em<br />

jogo nessa diferença sejam as forças<br />

que constituem a voz de cada poeta,<br />

ora narrativizando as angústias e os<br />

diversos afetos que possam compor<br />

a subjetividade poética mais ou menos<br />

definida numa obra (a demora<br />

em responder uma carta, o fim de<br />

semana na casa dos primos, em<br />

Alice Sant’Anna; a “sombra” que<br />

engole o tempo, as “tardes” intermináveis,<br />

as lembranças “inevitáveis”,<br />

de Mário Alex Rosa), ora dramatizando<br />

as vozes díspares que<br />

possam decompor a subjetividade<br />

poética e pô-la em xeque na obra (o<br />

humor e os jogos de escrita em Angélica<br />

Freitas; os cantos indígenas e<br />

a experiência tradutória em Josely<br />

Vianna Baptista). Ora vozes autônomas,<br />

ora vozes autômatas.<br />

No caso de Mário Alex Rosa, a<br />

OS AUTORES<br />

Alice Sant’Anna<br />

Nasceu no Rio<br />

de Janeiro<br />

(RJ), em<br />

1988. Poeta,<br />

estreou com<br />

Dobradura<br />

em 2008.<br />

Também publicou<br />

em edições independentes<br />

Bichinhos de luz (2009) e, em<br />

coautoria com Armando Freitas<br />

Filho, Pingue-pongue (2012).<br />

Mário Alex Rosa<br />

Nasceu em São<br />

João Del-Rei<br />

(MG), em<br />

1966. Poeta,<br />

publicou<br />

Ouro<br />

Preto em<br />

2012. Também<br />

publicou poemas para<br />

crianças em ABC Futebol<br />

Clube e outros poemas<br />

(2007) e Formigas (2013).<br />

autonomia da voz em sua Via férrea<br />

é duramente conquistada sob<br />

uma dupla condição: desenvolver<br />

um exercício de metalinguagem do<br />

poema de modo a dizer mesmo que<br />

sem as palavras adequadas, e cuidar<br />

para que a luz, o clarão do poema<br />

não dissolva o sujeito. Assim é<br />

que num dos mais pungentes poemas<br />

— e, no livro, a dor está sempre<br />

alta — lê-se “a inevitável lembrança/<br />

daquele pássaro que um dia ‘se<br />

esfacelou na asa do avião’”. O poema<br />

lembrado, Confissão, de Carlos<br />

Drummond de Andrade, é “transferido<br />

para o presente”: o poema, “jogado<br />

à própria sorte, tenta se desviar<br />

de si até onde pode/ e já pode<br />

muito pouco”. O poema dificilmente<br />

desvia de si, talvez se esfacelasse<br />

na asa do avião, mas não: apesar de<br />

sua parca potência desviante, o poema,<br />

“entre um talvez e um se, pode<br />

esperar ou retardar a confissão”. A<br />

sua “camisa de força” (este é o título<br />

do poema) é uma ética calcada<br />

nos valores do poema moderno, de<br />

certo poema moderno: a confissão<br />

é adiada como se o poeta resguardasse<br />

assim o poema de sua dissolução,<br />

como um recuo estratégico<br />

para preservar a linguagem poética<br />

das turbinas horrorosas que, no entanto, são aquilo mesmo que torna o pássaro<br />

memorável. Por isso a valorização do rascunhar na preparação dos poemas,<br />

por isso a insistência na palavra que “não sai. Mata-me mas não sai”, e<br />

sobretudo por isso a valorização do tempo cotidiano e vazio: segundas-feiras,<br />

sábados, domingos, os dias da semana se sucedem e, mesmo que a palavra<br />

não saia, o poema se escreve, e se erige neste paradoxo: “Tentativa 1: eu./<br />

Tentativa 2: neutra./ Tentativa 3: silêncio”.<br />

No caso de Alice Sant’Anna, a palavra sai, a sintaxe das frases joga<br />

com os cortes dos versos e com a ausência de pontuação, produzindo assim<br />

o ritmo de um acontecimento experimentado ou rememorado, como se o<br />

poema filmasse a percepção misturando-se à imaginação, adensando gradativamente<br />

a experiência de leitura. Há, portanto, uma afirmação da poesia<br />

que se encontra com o mundo, este não a ameaça. O lirismo, novamente,<br />

paga um preço: dessa vez, o da imprecisão (onde, quando isso acontece?<br />

que jacas são essas?), o do anonimato dos personagens (m. ou d.), o do poeta<br />

invisível (que, ao se encontrar com o próprio assassino: “que pena! que<br />

desencontro! que perda!/ ela não mora mais aqui”). Estratégias, enfim, de<br />

preservação da voz. Não à toa impressionam mais os poemas que não necessitam<br />

desfigurar uma paisagem conhecida, uma lembrança familiar, uma<br />

viagem de trem pela Europa, pois, neles, a voz consiste na figuração precisa<br />

de um evento que não se enquadra na moldura da memória de um sujeito. É<br />

o caso do poema Há aquilo que fica firme (um poste), que termina:<br />

mas há também o que se movimenta<br />

rápido demais na moldura da janela: um pássaro<br />

sempre pode ser uma andorinha ou uma águia<br />

e um avião nunca sabemos<br />

de onde parte para onde segue<br />

Pois parece ser essa indeterminação de origem e destino, para quem vê<br />

o avião no céu, o horizonte de beleza desses versos, dessa voz.<br />

☞<br />

Leia Emília<br />

Revista digital de leitura e literatura para crianças e jovens<br />

www.revistaemilia.com.br


169 • maio_ 2014<br />

7<br />

Literatura<br />

Lucila Wroblewski<br />

crua e<br />

urgente<br />

O AUTOR<br />

André<br />

Sant’Anna<br />

Em O BRASIL É BOM, André Sant’Anna mostra<br />

o valor da ironia em tempos de tensão social<br />

: : Guilherme Pavarin<br />

São Paulo – SP<br />

Pudera, enquanto resenho,<br />

ser visto de terno e tom sisudo,<br />

pela tevê. Se me permitissem,<br />

pediria emprestado<br />

a voz de apresentador de um<br />

desses programas de crimes/entretenimento,<br />

cercado de helicópteros,<br />

choro e berros, urgente. Não estranhe<br />

além do necessário. Peço, por<br />

um parágrafo, o alarmismo. A cena,<br />

imagine: nossa aeronave sobrevoa<br />

um vilarejo miserável. Imagens, eu<br />

pediria. Me dê imagens desse absurdo!<br />

O que vocês verão – pausa;<br />

tiro os óculos, preocupado; esfrego<br />

os olhos – é impressionante. Corta<br />

para lá, gritaria. Na tela!<br />

Seria a vez de apresentar os<br />

personagens, os entrevistados: o<br />

comunista de classe-média que<br />

odeia a classe C por invadir sua<br />

praia com carros, som alto e algazarra;<br />

o nacionalista que culpa o<br />

direitos humanos pelo atraso do<br />

país; o fã de futebol que atribui o<br />

sucesso da seleção de 70 à ditadura;<br />

aquele que se sentencia superior<br />

por ouvir jazz e planejar “uma<br />

viagem inesquecível para uma ilha<br />

na Indonésia que só ele conhece”;<br />

o torcedor cuja terapia é transferir<br />

as frustrações para o time do coração;<br />

o pastor falso otimista em<br />

busca do dízimo, entre outros. Um<br />

a um, eles discursam em primeira<br />

pessoa, com o aspecto sóbrio, de<br />

quem tem consigo a segurança de<br />

um futuro melhor. São, afirmam, a<br />

reserva moral do país.<br />

Intercalados, esses homens e<br />

mulheres que poderiam participar<br />

de qualquer programa televisivo<br />

sensacionalista são, a bem dizer,<br />

alguns dos protagonistas dos contos<br />

de O Brasil é bom, do mineiro<br />

André Sant’Anna. Cheios de vícios<br />

de linguagem, opinam sobre os<br />

problemas nacionais por meio de<br />

ideias confusas, contraditórias, preconceituosas<br />

e mal ruminadas. Portam-se<br />

como se educados por uma<br />

cultura violenta de mídia, aquela<br />

em que o porta-voz – a exemplo do<br />

tal apresentador eufórico evocado<br />

linhas acima – ensina que a truculência<br />

e o pragmatismo radical<br />

os tornam mais esclarecidos, “de<br />

bem” e ativos em seus meios. Eles<br />

falam mal, muito mal.<br />

A intenção de Sant’Anna é<br />

clara: mostrar, via clichês oratórios<br />

e frases feitas, que conhecemos<br />

alguém com discurso similar. A<br />

missão é bem-sucedida. Os contos<br />

inaugurais são desenvolvidos por<br />

meio de pensamentos tolos e imperativos<br />

que costumam pulular por<br />

redes sociais, propagandas e comentários<br />

de notícias, a exemplo de<br />

“consuma produto nacional”, “basta<br />

que cada um faça sua parte” e,<br />

como sugere o sarcástico título do<br />

livro, “o Brasil não é ruim”. O efeito<br />

é dum cinismo progressivo que<br />

chega ao ponto máximo no conto<br />

O que será que passa na cabeça de<br />

um sujeito nessas condições?, cujo<br />

interlocutor é um esquizofrênico,<br />

que, mesmo incapaz de seguir uma<br />

lógica, dispara, entre delírios e teorias<br />

desconexas, lugares-comuns<br />

como “é preciso haver uma hierarquia”,<br />

“separar o joio do trigo”,<br />

e impropérios como “não gosto de<br />

neguinha”. Não há muita diferença,<br />

sugere Sant’Anna, entre as ideias<br />

atordoadas de um doente mental e<br />

um homem são da classe-média.<br />

Como mostra desde o lançamento<br />

de Amor (1998), que acaba<br />

de ser relançado pela Oito e Meio, e<br />

Sexo (1999), o autor sabe destrinchar<br />

como poucos a inconsistência<br />

das atuais reflexões sobre a sociedade<br />

brasileira. Parte disso pode<br />

ser explicada pelo seu ofício fora da<br />

literatura. Redator de publicidade,<br />

André Sant’Anna tem, segundo seu<br />

currículo online, larga experiência<br />

com marketing político. Não é exagero<br />

concluir que, desse processo de<br />

maquiar a realidade, de inserir elementos<br />

persuasivos em campanhas,<br />

por vezes de modo forçoso e artificial,<br />

o autor tenha se armado para<br />

realizar o movimento inverso, de<br />

desnudamento. O material cru — os<br />

fatos, a opinião popular, a semiótica<br />

destrinchada — está ao seu alcance,<br />

pronto para ser reconstruído. A subversão,<br />

para ele, se torna uma via<br />

dupla: como publicitário, Sant’Anna<br />

joga a favor dos partidos, dos clientes;<br />

como escritor, contra todos.<br />

O Brasil é bom<br />

André Sant’Anna<br />

Companhia das Letras<br />

190 págs.<br />

LEIA TAMBÉM<br />

Amor<br />

André Sant’Anna<br />

Oito e meio<br />

92 págs.<br />

A ironia como<br />

gás lacrimogênio<br />

Não há, na produção literária<br />

de Sant’Anna, quem escape da<br />

ironia corrosiva. Políticos, pobres,<br />

ricos, empresários, hippies, todos<br />

são colocados na lupa do ridículo e<br />

da falta (ou do excesso) de sentido.<br />

E o mérito do mineiro é saber inserir<br />

essa técnica discursiva em uma escrita<br />

sincera, direta. Sua ironia não é<br />

vazia — a tal ironia pela ironia, a qual<br />

tantos críticos culturais americanos<br />

se opõem. A ironia de Sant’Anna<br />

tem meio (estilo) e finalidade (mensagem<br />

crítica). É sua poética.<br />

Faz-se necessário um contexto.<br />

Para muitos ensaístas e pensadores<br />

da cultura atual, a ironia não<br />

passa de um escudo, um fácil mecanismo<br />

de defesa que permite ao<br />

artista se isolar num lugar seguro:<br />

acima da inocência do mundano e,<br />

por outro lado, longe do sublime,<br />

duma obra sincera e redentora. De<br />

uns anos para cá, vê-se um apelo<br />

por uma arte nova, capaz de evoluir<br />

sem a interferência da ironia vazia<br />

e do niilismo que assola muitos autores<br />

pós-modernos. A literatura,<br />

ressalta(ra)m escritores como David<br />

Foster Wallace (1962 – 2008),<br />

deve se aproximar mais da criação<br />

do que da destruição; deve elevar o<br />

espírito humano, não rebaixá-lo.<br />

Nenhum amante das artes<br />

questionaria tal preceito. Mas a<br />

questão é que a ironia de Sant’Anna<br />

faz sentido no momento de tensões<br />

sociais e culturais em que se<br />

encontra o Brasil, esse país que<br />

não é ruim. É evidente, na obra do<br />

mineiro, como a ironia funciona<br />

para criar um processo dialético,<br />

uma construção e uma suspensão<br />

permanentes, resultantes da contradição.<br />

Com a ironia, abre-se,<br />

para citar Hegel (e deixar essa resenha<br />

mais prepotente, desculpe),<br />

a possibilidade de mostrar que uma<br />

realidade sem valor não pode ser<br />

tomada a sério, e deve ser a todo<br />

momento invertida e pervertida.<br />

Eis o efeito o que o autor busca em<br />

cada conto ao falar de um esquerdista<br />

que se sente incomodado por<br />

pobres ou de um homem que não<br />

suporta os direitos do outro: subverter,<br />

anular, apontar para a negatividade<br />

impregnada no pensamento<br />

do brasileiro, seja lá sua classe.<br />

Talvez a melhor definição da<br />

ambivalência desse tipo de ironia<br />

tenha sido proferida pelo crítico<br />

cultural americano Lewis Hyde. Ele<br />

diz: “a ironia só tem emprego emergencial.<br />

Com o tempo, ela se torna a<br />

voz do enjaulado que passou a gostar<br />

da cela”. No caso de Sant’Anna,<br />

lemos uma ironia urgente. O autor<br />

revela isso ao exibir o turbulento<br />

cenário político e social brasileiro:<br />

o consumo como forma de inclusão<br />

social, a educação pífia, uma nação<br />

de comentaristas que quase não lê,<br />

a cega busca por ídolos na fé e no<br />

esporte, os protestos difusos, o poder<br />

de compra como indicador de<br />

felicidade, entre outras críticas diretas<br />

e retas, que não exigem esforços<br />

de interpretação. Não há meio<br />

melhor para tratar desses temas do<br />

que um jogo de oposições, contrastes<br />

e sarcasmo. O trunfo, aqui, é<br />

conseguir fazê-lo por meio de uma<br />

escrita franca, imediata.<br />

E o recurso irônico-emergente<br />

de Sant’Anna não está só no conteúdo.<br />

A forma como ele constrói<br />

seus contos, com erros de grafia e<br />

concordância, pouco vocabulário,<br />

raciocínios tacanhos e idas e voltas<br />

de trechos revela uma emergência<br />

dentro da própria literatura. É quase<br />

um manifesto contra o escrever<br />

bem onde mal se lê. Trata-se de<br />

uma produção literária de guerra,<br />

para não dizer de protesto. Uma<br />

tentativa rápida de conscientizar o<br />

leitor desses tempos de homens e<br />

discursos partidos.<br />

O estilo cru e a<br />

poesia desleixada<br />

No meio do fogo cruzado, o<br />

grande mérito de Sant’Anna é não<br />

se ater à ironia; com habilidade, ele<br />

consegue em alguns textos elevar o<br />

humor cáustico à poesia, ao sublime.<br />

Fica evidente em contos como o<br />

excelente Lodaçal, que já havia sido<br />

publicado pela mesma Companhia,<br />

no volume Essa história está diferente<br />

– Dez contos para canções<br />

de Chico Buarque, inspirada<br />

na música Brejo da Cruz, uma crítica<br />

à fome e à miséria infantil, tema ao<br />

qual Sant’Anna se mantém fiel.<br />

No conto, os pequenos Chiquinho<br />

e Toninho, dois meninos<br />

do Brejo da Cruz que não têm o<br />

que comer, fumam charutos de<br />

maconha sob o luar e imaginam<br />

como seria o mundo fora dali, “da<br />

aldeia”, “do lodaçal”. Eles vão se<br />

transfigurando em personagens urbanos<br />

e deslocados, vários Chiquinhos<br />

e Toninhos da cidade, como o<br />

peão-de-obra, o valentão do bar, o<br />

mendigo, o ator homossexual nordestino,<br />

o lateral-direito que passa<br />

despercebido por times pequenos,<br />

o jornalista de baixa autoestima<br />

que não sabe interagir com os mais<br />

abastados, o policial embrutecido,<br />

o ladrão maconheiro, o evangélico<br />

inerte, o homem que aparece na televisão<br />

sem saber por quê<br />

O Chiquinho na televisão,<br />

num programa de televisão que<br />

o Chiquinho nunca tinha visto, o<br />

Chiquinho no programa de tarde<br />

sendo ridicularizado pelo apresentador<br />

por ter desafinado demais<br />

quando tentou cantar aquela<br />

música do Chico Buarque. O apresentador<br />

do programa de televisão<br />

ainda deu um chute na bunda<br />

do Chiquinho, assim, bem de leve,<br />

só de brincadeira, antes do Chiquinho<br />

sair do palco meio envergonhado,<br />

meio achando legal ter<br />

aparecido na televisão.<br />

Há diversas passagens em que<br />

Sant’Anna transforma a forma irônica<br />

em conteúdo sentimental – uma<br />

sensação poderosa porém nunca<br />

muito clara ou bem definida. O leitor<br />

se constrange com a decadência<br />

dos personagens e, em certos momentos,<br />

consegue também se inspirar<br />

com a criação do autor. Poderia<br />

chamar a técnica de ironia rica, que<br />

gera efeito poético e reflexão. É uma<br />

expressão arriscada e bem por isso<br />

valiosa – maldita, ácida e bela.<br />

Outra característica forte<br />

mantida por Sant’Anna é que a noção<br />

de espaço se dá por nomes de<br />

Nasceu em 1964, em<br />

Belo Horizonte (MG).<br />

É músico, roteirista,<br />

publicitário e escritor.<br />

Filho do também<br />

escritor Sérgio<br />

Sant’Anna, cresceu<br />

no Rio de Janeiro,<br />

onde tocou no grupo<br />

musical Tao e Qual<br />

durante a década de<br />

80, e hoje mora em<br />

São Paulo. Estreou na<br />

literatura como livro<br />

Amor, de 1998, e<br />

depois publicou Sexo,<br />

em 1999, ambos de<br />

contos. Em 2006, lançou<br />

seu primeiro e único<br />

romance, O paraíso<br />

é bem bacana, e,<br />

em 2009, lançou<br />

Inverdades, de contos.<br />

lugares conhecidos, sem descrições<br />

pormenorizadas: o andaime, a Baía<br />

de Guanabara, o trânsito, a portaria,<br />

o brejo, o estádio. Se na perspectiva<br />

romântica, a atmosfera acontece<br />

pela ausência de detalhes, no estilo<br />

de Sant’Anna, ultrarrealista, o clima<br />

dos contos ocorre por meio de<br />

traços descritivos desleixados, carregados<br />

de sentidos amplos, como<br />

“uma cara meio assim, pensando,<br />

babando, muito triste poesia”. A<br />

técnica, quase uma camuflagem,<br />

um esforço para não coser demais<br />

o texto, tem efeito particularmente<br />

eficaz e devastador em contos de temática<br />

político-social. Outra vez, é<br />

o meio como mensagem.<br />

A repetição. A repetição.<br />

O leitor de primeira viagem<br />

talvez estranhe o número de vezes<br />

que uma mesma palavra é escrita<br />

numa página. Não se trata de<br />

maneirismo. A repetição é quem<br />

articula as tramas de Sant’Anna.<br />

Nomes e situações são repetidos à<br />

exaustão. Um traço traz de volta<br />

outros traços. Como um jazz, o movimento<br />

é circular, não-linear, musical.<br />

Há também um componente<br />

estético aí: a repetição carrega um<br />

estigma de tédio, de um tempo em<br />

que os discursos não se desenrolam<br />

com facilidade. Sant’Anna<br />

brinca com isso o tempo todo e<br />

tem, como auge dessa experimentação,<br />

o livro Sexo, em que longos<br />

parágrafos são repetidos com pouca<br />

ou nenhuma mudança de palavras.<br />

Como quem diz: a vida segue<br />

– repetindo-se, engessada.<br />

O grande defeito de O Brasil<br />

é bom é, por certo, a expectativa.<br />

O leitor de outras viagens talvez<br />

esperasse mais. Melhor: talvez esperasse<br />

se surpreender mais. Por<br />

mais que Sant’Anna reforce sua voz<br />

e seu estilo, não se nota evolução<br />

de seus trabalhos anteriores para<br />

cá. A fórmula é a mesma dos seus<br />

lançamentos anteriores de narrativas<br />

curtas. O melhor conto do livro,<br />

vale lembrar, não é inédito, fora publicado<br />

em 2010. Seria interessante<br />

que o autor procurasse equilibrar<br />

mais seu inegável talento estilístico<br />

com narrativas que apostam no<br />

sublime, como Lodaçal, e/ou pessoais,<br />

como o belo relato A história<br />

do futebol, em que ele, o próprio<br />

André, conta sua história ao se metamorfosear<br />

em craques como Jairzinho,<br />

Manfrini e Rivelino.<br />

Talvez a razão para não se<br />

notar um crescimento do autor no<br />

livro seja a urgência de publicar o<br />

livro. É de se compreender.<br />

Sant’Anna é sem dúvida uma<br />

das vozes mais originais da literatura<br />

nacional. Precisa ser ouvido.<br />

E, para isso, precisa falar e, sobretudo,<br />

voltar a se arriscar mais.


8<br />

169 • maio_ 2014<br />

INQUÉRITO : : Godofredo de Oliveira Neto<br />

Direto do beco<br />

QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />

Alguns versos, ao descobrir o amor na préadolescência,<br />

foram combustível suficiente<br />

para o catarinense Godofredo de Oliveira<br />

Neto voltar-se para a literatura. Nasceu<br />

em Blumenau (SC), em 1951. Começou a ler cedo,<br />

entre 13 ou 14 anos. Sempre hábil em português,<br />

quando estava no cursinho, passou por uma situação<br />

que definiria seu futuro acadêmico: uma redação<br />

não foi bem aceita devido ao conteúdo e o jovem<br />

autor precisou prestar contas com a polícia. Na<br />

universidade, foi chamado duas vezes a depor. O<br />

clima já começava a ficar pesado, e Godofredo via<br />

seus amigos apreensivos; uma amiga, inclusive,<br />

desapareceu. Para alguém que considera a literatura<br />

sinônimo de libertação, o que poderia ser pior do<br />

que estar vivendo a opressão da ditadura? Infeliz<br />

com a situação, partiu para França. Em Paris, na<br />

década de 1970, graduou-se e virou mestre em<br />

Letras pela Universidade da Sorbonne. De volta ao<br />

Brasil, instalou-se no Rio de Janeiro (RJ), onde se<br />

tornou Doutor em Letras pela UFRJ. Seu primeiro<br />

é livro Faina de jurema, de 1981. Entre outros,<br />

é também autor de Menino oculto (premiado<br />

no Jabuti 2006), Amores exilados (lançado<br />

originalmente em 1997 como Pedaço de santo)<br />

e O bruxo do contestado (1996). A ficcionista<br />

(2013) é seu romance mais recente. Atualmente,<br />

vive no Rio de Janeiro e leciona na UFRJ.<br />

COLUNISTAS<br />

ENSAIOS E RESENHAS<br />

DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />

RES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />

• Quando se deu conta de que queria ser escritora?<br />

O poder de ilusão está na cabeça de todo mundo, todo mundo<br />

escreve ou escreveu. O mais comum é o poeminha quando da<br />

descoberta do amor na pré-adolescência. Também comecei assim.<br />

Depois a vida vai te levando para becos e ruelas decisivos<br />

ou não para ações futuras, como ser escritor. Depende então<br />

dessas estradas. Os meus becos me levaram para a escrita desde<br />

muito cedo. Vida leva eu!<br />

• Quais são suas manias e obsessões literárias?<br />

Nunca perder de vista que a obra literária não é um documento.<br />

A emoção estética deve ter prioridade. Daí a gente pode<br />

buscar a verdade histórica. A obsessão é fazer de tudo para<br />

não cair no redemoinho do real, que puxa a gente com força<br />

pra baixo. Abraço do real é abraço de afogado!<br />

• Que leitura é imprescindível no seu dia-a-dia?<br />

A leitura do real — jornais e revistas — e romances e textos<br />

teóricos que mostram a ausência do mundo como o verdadeiro<br />

mundo. Leio um dia sim e o outro também trechos da obra<br />

de Proust. Tenho uma edição maravilhosa, da Gallimard, de<br />

2.500 páginas num só volume, que cabe numa só mão, papel<br />

superfininho. Proust ao alcance das mãos!<br />

• Se pudesse recomendar um livro à presidente Dilma,<br />

qual seria?<br />

S. Bernardo, de Graciliano Ramos. Ela veria que Paulo Honório,<br />

o narrador, apesar de sair vitorioso como gestor de uma<br />

fazenda, é depressivo e angustiado. É que não dá para ser feliz<br />

sozinho!<br />

• Quais são as circunstâncias ideais para escrever?<br />

Espaço de muita paz às vezes, espaço de música alta e vinho<br />

por outra, muita emoção invariavelmente. Tem que chorar,<br />

rir, se excitar, se apavorar, se emocionar com o próprio texto.<br />

Mas nem sempre a gente consegue.<br />

• Quais são as circunstâncias ideais de leitura?<br />

Luz não natural. O sol maravilhoso é para brincar de castelinho<br />

de areia, de balde e pazinha na praia de Piçarras; ou em<br />

Camboriú, em Santa Catarina, antes de se tornar Hong Kong.<br />

• O que considera um dia de trabalho produtivo?<br />

Quando a personalidade de artista vence o simples indivíduo.<br />

Se tiver conseguido, beleza.<br />

• O que lhe dá mais prazer no processo de escrita?<br />

Ler o parágrafo que acaba de escrever e achar que o texto não<br />

é teu.<br />

• Qual o maior inimigo de um escritor?<br />

É deixar a memória racional se sobrepujar à memória involuntária.<br />

Perfumes, sons, tocares ou paladares é que te fazem<br />

encontrar o eu mais profundo.<br />

• O que mais lhe incomoda no meio literário?<br />

F.P. (fofocas e perfídias).<br />

• Um autor em quem se deveria prestar mais atenção.<br />

Cruz e Sousa. O racismo no início e o equívoco interpretativo<br />

cometido pelo movimento negro mais tarde quase destroem a<br />

literatura de um dos maiores escritores brasileiros (mas já está<br />

havendo uma reabilitação do genial simbolista).<br />

• Um livro imprescindível e um descartável.<br />

Madame Bovary, de Flaubert, e, como descarte, todos os livros<br />

de autoajuda.<br />

• Que defeito é capaz de destruir ou comprometer um<br />

livro?<br />

Escrever pensando na opinião dos colegas escritores. É letal<br />

para a obra.<br />

• Que assunto nunca entraria em sua literatura?<br />

Qualquer tema que visasse, conscientemente, alterar a ordem<br />

moral ou histórica do leitor visto como um bobinho. Mas a literatura<br />

denuncia sempre as representações ideológicas que<br />

aparecem na linguagem comum, como clichês, preconceitos,<br />

ideologias, dogmas, etc.<br />

• Qual foi o canto mais inusitado de onde tirou inspiração?<br />

Canto? Meu cantinho ou minha música? Se for meu canto é o<br />

Vale do Itajaí, em Santa Catarina, o único universo que existe.<br />

Se for música, hoje foi I put a spell on you, do Creedence, outro<br />

dia foram os Beatles, Stones, Chico, Gil, Caetano, Paulinho<br />

da Viola, outro ainda The Cure. Em horas introspectivas, Beethoven<br />

e Chopin misturados com Villa Lobos. Eles estão todos<br />

ali quietinhos no Menino oculto.<br />

• Quando a inspiração não vem...<br />

Se trabalhar e suar e se angustiar, ela vem. A voz interior surge<br />

do nada, cavernosa, ditando regras e passando sabão na gente.<br />

• Qual escritor — vivo ou morto — gostaria de convidar<br />

para um café?<br />

O Graciliano autor do S. Bernardo, talvez o maior romance<br />

da literatura brasileira, junto com Brás Cubas, do Machado,<br />

e Grande sertão, do Rosa.<br />

• O que é um bom leitor?<br />

O que se deixa levar pela onda da narrativa. Daí ele vai entender<br />

que a literatura é sinônimo de liberdade, já que ela traz<br />

para o palco iluminado a ilusão consentida. Me lembrei do<br />

Nelson Rodrigues sobre o dinheiro: o dinheiro compra tudo,<br />

até amor sincero! A literatura também.<br />

• O que te dá medo?<br />

Medo de acordar e não ter mais utopias.<br />

• O que te faz feliz?<br />

Construir algo que seja menos a singularidade do eu e mais a<br />

libertação da palavra e do desejo de todos.<br />

• Qual dúvida ou certeza guia seu trabalho?


Realização


10<br />

169 • maio_ 2014<br />

Pássaro de fogo<br />

Artista múltiplo e rebelde, Torquato Neto completaria 70 anos em novembro<br />

: : Paulo Andrade<br />

Araraquara – SP<br />

Neste ano Torquato Neto<br />

completaria 70 anos. O<br />

poeta, nascido em Teresina<br />

(PI) em 9 de novembro<br />

de 1944, cometeu suicídio<br />

na madrugada da data de seu aniversário<br />

em 1972. Às vezes me pergunto,<br />

sem resposta, como o anjo<br />

louco da Tropicália circularia neste<br />

espaço contemporâneo se não tivesse<br />

cometido suicídio. Continuaria<br />

sendo o poeta inadaptado à realidade<br />

e que desafinava o coro dos<br />

contentes ou seria engolido pela<br />

máquina da indústria cultural?<br />

Olhando em retrospectiva<br />

a vida e a obra de Torquato Neto,<br />

nota-se que em seus 28 anos de<br />

existência, ele lidou com diferentes<br />

linguagens: poesia, letra de música,<br />

cinema, televisão, jornal, atuando,<br />

inclusive, em vários veículos<br />

de comunicação.<br />

O livro Os últimos dias de<br />

paupéria, organizado, postumamente,<br />

pela viúva Ana Maria Silva<br />

Duarte e pelo amigo Waly Salomão,<br />

oferece ao leitor um conjunto<br />

de poemas e escritos que vão<br />

do lirismo sensível e intimista à<br />

parodia tropicalista, até atingir,<br />

pós-68, níveis radicais de experimentalismo<br />

construtivo.<br />

A sua obra composta por poemas,<br />

letras de música, textos jornalísticos,<br />

anotações de diários do sanatório<br />

e experiências não verbais,<br />

parece documentos autônomos,<br />

mas em essência, os textos se complementam<br />

e constituem forte unidade<br />

interna. Seus escritos são registros<br />

de um diálogo permanente<br />

entre vida e arte e estão inseridos<br />

num amplo projeto de contestação<br />

da sociedade dos anos 60/70.<br />

Em todas as áreas que atuou,<br />

Torquato manteve uma atitude de<br />

resistência, assumindo seu inconformismo.<br />

Foi um defensor do cinema<br />

super-8, por, além de barato<br />

e fácil de manusear, sua linguagem<br />

permitir um testemunho vivo da<br />

realidade, diferente das produções<br />

que contavam a história “oficial” em<br />

filmes subsidiados pelo governo.<br />

Todas as frentes as quais Torquato<br />

aderiu apontaram um desejo<br />

vital e dramático de registrar com<br />

invenção e inconformismo o contexto<br />

de sua época.<br />

O poeta da canção<br />

Torquato aderiu ao Tropicalismo<br />

transformando-se num dos<br />

seus principais articulistas, por<br />

meio dos manifestos, roteiros de espetáculos<br />

letras de música. Entre as<br />

contribuições do movimento para a<br />

cultura brasileira, destaca-se a síntese<br />

entre música e poesia. Apesar<br />

de o movimento ter promovido intenso<br />

diálogo com as artes plásticas<br />

(Rubens Gerchman, Hélio Oiticica,<br />

Lígia Clark), o cinema (Glauber Rocha),<br />

o teatro (José Celso), é na música<br />

popular que emerge sua força,<br />

já que seus protagonistas eram músicos<br />

ou poetas-letristas.<br />

Entre os avanços estéticos<br />

trazidos pelos tropicalistas, em 67-<br />

68, destacam-se a vinculação entre<br />

texto e melodia, o domínio da entoação,<br />

elaborando conexões entre a<br />

dicção, o modo de cantar e a sonoridade.<br />

Muitos textos de Torquato<br />

Neto foram escritos para serem<br />

cantados dentro desse clima. Ele<br />

retoma uma tradição da oralidade<br />

e utilizou muitos recursos da literatura<br />

de cordel, da qual o poeta era<br />

leitor e colecionador.<br />

No depoimento concedido<br />

a Tárik de Souza, (1984), ao disco<br />

O poeta desfolha a bandeira, Gilberto<br />

Gil, seu principal parceiro,<br />

conta que Torquato, apesar de cantar<br />

muito mal e não tocar nenhum<br />

instrumento, “era muito musical”:<br />

“O Torquato, quase sempre, vinha<br />

Torquato Neto por Robson Vilalba<br />

O AUTOR<br />

Torquato Neto<br />

Nasceu em 9 de novembro de<br />

1944, em Teresina (PI). Estudou<br />

no Colégio dos Irmãos Maristas,<br />

onde conheceu Caetano Veloso<br />

e, por meio deste, Gilberto Gil,<br />

Carlos Capinam, Maria Bethânia,<br />

Gal Costa, Duda Machado, entre<br />

outros. O cinema era o centro<br />

de interesse da turma. Desistiu<br />

de tentar a carreira de diplomata<br />

e decide-se mudar para o Rio<br />

de Janeiro, em 1962, para cursar<br />

Jornalismo. É aprovado no<br />

vestibular na Universidade do<br />

Brasil (hoje a UFRJ). Mas desistiu<br />

do curso no segundo ano. Em 9<br />

de novembro de 1972, sai com<br />

os amigos para comemorar o<br />

aniversário num restaurante.<br />

Voltaram para casa às 4h30.<br />

Quando sua mulher vai dormir,<br />

Torquato veda todas as saídas<br />

de ar do banheiro, abre o gás<br />

do aquecedor, e escreve um<br />

bilhete num caderno espiral<br />

enquanto espera a morte.<br />

A biografia de<br />

Torquato Neto<br />

Toninho Vaz<br />

Nossa Cultura<br />

408 págs.<br />

com o poema completo, como Geleia<br />

geral. Não mudei uma vírgula,<br />

já veio eletrificado”.<br />

A maioria das suas letras possui<br />

uma força visceral quando cantadas,<br />

a exemplo de Nenhuma dor, Mamãe,<br />

coragem, Três da madrugada, Todo<br />

o dia é dia D, A rua, Louvação, Deus<br />

vos salve a casa santa, Lets’play that,<br />

cantadas por Gal Costa, Gilberto Gil,<br />

Caetano Veloso, Edu Lobo, Jards Macalé,<br />

entre outros.<br />

O roteirista<br />

da Tropicália<br />

O Tropicalismo provocou um<br />

deslocamento da contestação política<br />

para o espaço cultural e artístico.<br />

Conscientes do substrato ideológico<br />

que subjaz todo discurso, o<br />

grupo baiano via com desconfiança<br />

qualquer modelo político ou cultural<br />

capaz de superar a exploração<br />

do homem pelo homem.<br />

Adotando um humor tragicômico<br />

e uma atitude anárquica,<br />

a proposta de intervenção cultural<br />

tropicalista acabou por configurar<br />

um painel histórico do país, por<br />

meio de citações, jargões, fragmentos<br />

de discursos. Uma das letras-<br />

-síntese da imagem tropicalista do<br />

Brasil é Geleia geral, musicado por<br />

Gilberto Gil. A expressão foi cunhada<br />

por Décio Pignatari: “na geléia<br />

geral brasileira, alguém deveria<br />

exercer a função de medula e osso”.<br />

Ao construir um panorama<br />

crítico do país, por meio da justaposição<br />

de imagens díspares (o<br />

bumba-meu-boi, a mass media, o<br />

jornal, a cultura pop, o folclore),<br />

os versos evitam qualquer tentativa<br />

de conciliação ou unificação<br />

das diferenças, assumindo as contradições,<br />

tanto como elementos<br />

constitutivos da estética do grupo,<br />

quanto para criticar o discurso nacionalista<br />

e os clichês ufanistas.<br />

Retomando o viés crítico dos<br />

modernistas de 22, Torquato atualiza<br />

a leitura das contradições entre<br />

a cultura popular e a cultura urbana<br />

e sofisticada. Com justaposição de<br />

imagens opostas, o poeta desenha<br />

o cenário cultural antropofágico<br />

do Brasil: “formiplac e céu de anil”,<br />

referência à indústria e à natureza<br />

nacional, “carne seca na janela”, ou<br />

faz alusão ao período da pré-colonização<br />

(“tumbadora na selva selvagem/<br />

pindorama, país do futuro”).<br />

Este último constitui uma das<br />

sínteses da contradição arcaico/<br />

moderno. Pindorama, mito edênico,<br />

citado várias vezes no Manifesto<br />

Antropofágico, é o nome pelo qual<br />

os índios tupi-guarani se referiam<br />

ao Brasil, já a locução adjetiva “país<br />

do futuro”, reforça a galeria de estereótipos<br />

nacionais.<br />

Geleia geral parodia ainda o<br />

Hino à Bandeira, Gonçalves Dias<br />

e faz referência aos escritos oswaldianos<br />

— “a alegria é a prova dos<br />

nove” e “Brutalidade Jardim”. A<br />

bricolagem é enfatizada no refrão<br />

“ê bumba iê, iê, boi”, uma fusão de<br />

dança folclórica e o ritmo do iê-iê-<br />

-iê. Imagem permanente do conflito,<br />

do contraste das linguagens.<br />

Já Marginália II (letra de Torquato,<br />

musicada por Gil), também<br />

funde as raízes do popular e do erudito.<br />

O resultado é uma riqueza de<br />

sonoridade, proporcionada pelos<br />

instrumentos populares (triângulo,<br />

flautas de pífano) e eruditos (metais,<br />

violinos e clarineta). O ritmo nordestino<br />

contrapõe-se à “exuberância”<br />

dos arranjos de influência clássica,<br />

do maestro Rogério Duprat.<br />

A cronista da<br />

geleia geral<br />

Como jornalista, foi um crítico<br />

combativo na coluna “Geleia<br />

Geral”, do jornal Última Hora, entre<br />

71 e 72, atacando o pacto do cinema<br />

com a ordem político-social<br />

no início da década, em especial<br />

as produções de filmes históricos,<br />

eficazes para contar a história do<br />

ponto de vista oficial. Seus principais<br />

alvos foram Carlos Diegues e<br />

Gustavo Dahl que, em 71, vinculavam<br />

seus filmes a uma linguagem<br />

do espetáculo: com as superproduções<br />

históricas, patrocinadas pela<br />

Embrafilme, transformavam o cinema<br />

em mera diversão.<br />

O cronista escreve a partir das<br />

margens, criando espaços de resistência<br />

dentro do sistema. Reiteram-se,<br />

em seus textos as palavras<br />

de ordem para continuar “ocupando<br />

espaços”, numa época em que<br />

os espaços estavam cada vez mais<br />

restritos e proibidos. Na coluna de<br />

30 de novembro de 1971, o cronista<br />

dirigia-se ao leitor, ensinando-o<br />

a “ocupar espaços”, infiltrando-se,<br />

“pelas brechas”, minando o sistema<br />

pelos seus interstícios. “Ocupar<br />

espaço, (...) Não tem nada a ver<br />

com subterrânea (num sentido literal),<br />

e está mesmo pela superfície,<br />

de noite e com muito veneno.”<br />

Navilouca: o diálogo<br />

entre as artes<br />

Outra publicação valiosa para<br />

entender o período pós-68 é a revista<br />

Navilouca, organizada e coordenada<br />

por Torquato Neto e Waly Salomão.<br />

Tendo como subtítulo “Almanaque<br />

dos Aqualoucos”, foi publicada em<br />

1974, dois anos após a sua morte,<br />

reunindo trabalhos do próprio Torquato,<br />

Rogério Duarte, Waly Salomão,<br />

Duda Machado, Jorge Salomão,<br />

Stephen Berg, Luis Otávio Pimentel,<br />

Óscar Ramos, Luciano Figueiredo,<br />

Chacal, Ivan Cardoso, Caetano Veloso,<br />

dos irmãos Campos, Décio Pignatari,<br />

Hélio Oiticica e Lygia Clark.<br />

O nome da publicação foi sugerido<br />

pela Stultifera Navis, a Nau<br />

dos Loucos, barco que na Idade<br />

Média passava nas cidades banhadas<br />

pelo Rio Reno, recolhendo os<br />

idiotas da família e os loucos, para<br />

“desaguarem” ninguém sabe onde.<br />

O projeto da Navilouca exprime<br />

esta ideia: recolher os artistas e<br />

a intelectualidade desgarrada, à<br />

margem, daquele momento.<br />

Navilouca mescla rigor construtivo<br />

com uma arte mais “suja”<br />

em seu projeto gráfico. A intenção<br />

era promover uma metamorfose<br />

entre todas as artes experimentais,<br />

posições estéticas e comportamentos,<br />

sinalizando assim a virada da<br />

década (60/70).<br />

A linguagem dos ensaios “teóricos”<br />

da revista também é experimental,<br />

com ausência de pontuação,<br />

mistura de fontes entre outras<br />

“infrações linguísticas”. O artista<br />

plástico Hélio Oiticica defende num<br />

artigo a desintegração dos “conceitos<br />

de pintura escultura obra (de<br />

arte) acabada display contemplação<br />

lineariedade”. Já que o experimental<br />

não tem fronteiras — “os fios<br />

soltos do experimental são energias<br />

que brotam para um número aberto<br />

de possibilidades?”, conclui.<br />

O poeta rebelde<br />

Torquato Neto não apenas<br />

internalizou os problemas e as<br />

tensões político-sociais dos anos<br />

60/70, mas viveu atormentado pelos<br />

próprios fantasmas interiores,<br />

traduzidos em seu modo particular<br />

de ver e sentir o mundo. Encontramos<br />

na obra do poeta piauiense a<br />

representação do estilhaçamento<br />

que, por entre caminhos e descaminhos,<br />

arrisca-se à palavra escrita<br />

como resistência. Posicionando-se<br />

sempre à margem de qualquer tipo<br />

de discurso dominante, o herói rebelde<br />

evita cristalizar o pensamento<br />

com base em alguma ideologia.<br />

Torquato viveu pouco, mas<br />

com intensidade. Por isso, Waly Salomão<br />

definiu a sua trajetória como<br />

“um pássaro de fogo, naquele sentido<br />

de Stravinski, de iluminação<br />

e queima ao mesmo tempo. Uma<br />

dose muito grande de antropofagia<br />

acompanhada de grande intensidade<br />

de autofagia”. A linha fronteiriça<br />

que separa a sua vida e obra é tão sutil<br />

que se torna difícil esta separação.<br />

Essa fragilidade de fronteiras entre<br />

arte/vida ficou mais evidente com<br />

o suicídio, cujos indícios estão em<br />

vários poemas, profetizam a morte<br />

prematura. Muitos textos de Os últimos<br />

dias de paupéria ilustram<br />

a metáfora do jovem poeta abatido<br />

em pleno voo, sina semelhante à de<br />

muitos mitos românticos.<br />

O suicídio tornou possível<br />

uma releitura da obra de Torquato,<br />

como sugere Waly Salomão:<br />

“Muitas vezes escrever um livro ou<br />

fazer um filme representa adiar um<br />

suicídio, mas no caso de Torquato<br />

Neto pode-se afirmar que o suicídio<br />

precedeu e originou a ‘obra’”.<br />

Como poeta, optou por viver<br />

no limite. Nenhum emblema traduz<br />

tão bem esse comportamento<br />

como a imagem do vampiro. Não<br />

por acaso ele encarnou, de modo<br />

provocativo, a figura lendária ao<br />

protagonizar o super-8 Nosferato<br />

no Brasil (1971), de Ivan Cardoso.<br />

Nesse cult pouco conhecido, Torquato<br />

configurou seu destino de<br />

poeta-suicida, reivindicando para<br />

si o mito do vampiro. Depois dessa<br />

atuação, a imagem de maldito ficou<br />

amalgamada à figura do poeta.<br />

Do mito vampiresco, na tela<br />

e na vida, desdobra-se a metáfora<br />

do escorpião, pertencente à mesma<br />

matriz de agressividade e autodestruição.<br />

Nascido sob o signo<br />

de escorpião, o poeta reescreve em<br />

versos o rito de morte que, ao mesmo<br />

tempo, mata e se suicida com o<br />

próprio veneno, quando se vê sem<br />

saída, num círculo de fogo, segundo<br />

a lenda: “um escorpião encravado/<br />

na sua própria ferida/ não escapa; só<br />

escapo pela porta de saída”. No último<br />

verso, se realiza a perfeita fusão<br />

lírica (eu/escorpião), inserindo-se<br />

no poema de forma trágica poesia e<br />

vida: “só escapo pela porta de saída”.<br />

A despedida do poeta remete-<br />

-nos mais uma vez à imagem do escorpião<br />

acuado, enredado entre as<br />

tensões e conflitos internos, ampliados<br />

pelo regime de repressão, que o<br />

tolheu e reduziu sua ação ao universo<br />

individual. Em meio ao círculo<br />

de fogo, o poeta rebelde proclama a<br />

morte como saída, mas permanece<br />

vivo na cultura brasileira.


169 • maio_ 2014<br />

11<br />

NOSSA AMÉRICA, NOSSO TEMPO : : João Cezar de Castro Rocha<br />

Os produtores de texto e a<br />

escrita expressa (final)<br />

QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />

COLUNISTAS<br />

ENSAIOS E RESENHAS<br />

DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />

EDIÇÕES ANTERIORES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />

O dilema<br />

Em debate realizado na Bienal do Livro do Rio<br />

2013, junto com Veronica Stigger e Ricardo<br />

Lísias, o escritor e crítico Evando Nascimento<br />

propôs uma reflexão incontornável acerca<br />

do dilema relativo à cena literária contemporânea: cada<br />

vez mais, o escritor assume uma presença pública indiscriminada<br />

e inédita na vida cultural brasileira. No<br />

entanto, a leitura efetiva de sua obra permanece num<br />

segundo plano desconcertante. Um sintoma perverso:<br />

no local onde o debate ocorreu, devido às peculiaridades<br />

da organização, nenhum livro dos três autores estava<br />

exposto, ou seja, exemplar algum se encontrava<br />

disponível para venda!<br />

Eis um involuntário retrato em branco e preto<br />

do dilema estrutural que ameaça tornar inócua a bem-<br />

-vinda voga dos festivais literários. Afinal, não há atalho<br />

possível: o ato que define a vitalidade de um sistema<br />

literário não é a produção em série de textos, porém a<br />

leitura refletida da tradição e dos contemporâneos.<br />

Compreenda-se, assim, qual é o sentido da novidade<br />

acima referida, pois, sem dúvida, num passado<br />

nem tão distante, escritores ocuparam um espaço relevante<br />

no imaginário nacional.<br />

Dono de uma legião de admiradores, Jorge Amado<br />

sempre fez jus ao nome. Soube por Josélia Aguiar<br />

que os lançamentos do autor de Suor aqueciam o sistema<br />

literário como um todo: editores, livreiros, jornalistas<br />

culturais e leitores aguardavam o novo livro com<br />

grandes expectativas e seu aparecimento fornecia combustível<br />

mesmo para editoras rivais e, sobretudo, para o<br />

circuito das livrarias, cuja frequência aumentava consideravelmente<br />

nas datas próximas ao lançamento.<br />

Erico Verissimo não ficava atrás e poderíamos recordar<br />

inúmeros outros nomes capazes de galvanizar a<br />

vida literária — não desejo, contudo, esboçar uma lista<br />

de autores, mas ponderar um dilema estrutural.<br />

Menciono apenas dois exemplos de romances definitivos,<br />

publicados em 1984: A república dos sonhos,<br />

de Nélida Piñón, e Viva o povo brasileiro, de<br />

João Ubaldo Ribeiro. Ambos os romances desenvolvem<br />

uma linguagem própria para tratar do conjunto da experiência<br />

histórica nos tristes trópicos, oferecendo uma<br />

reflexão de fôlego sobre os impasses e as promessas da<br />

formação da cultura nacional. No instante de seu lançamento,<br />

os dois livros foram saudados como momentos<br />

decisivos na reflexão sobre a sociedade brasileira. A<br />

recepção da crítica e do público reiterou o reconhecimento,<br />

cuja consequência imediata foi a galvanização<br />

da vida literária em torno dos dois títulos.<br />

Então, qual é exatamente a novidade da circunstância<br />

contemporânea?<br />

De um lado, a presença inédita no espaço público de<br />

autores jovens, que ainda não escreveram suas grandes<br />

obras, mas que já circulam em meios variados, incluindo<br />

aí a tradução de seus livros, com uma desenvoltura maior<br />

do que a dos autores consagrados nos anos de 1980, cuja<br />

visibilidade costumava ser um árduo processo, que geralmente<br />

consumia anos de dedicação à escrita e à leitura,<br />

além da adesão metódica aos rituais da vida literária.<br />

De outro lado, a presença indiscriminada dos mesmos<br />

jovens autores em circuitos os mais diversos: claro,<br />

em primeiro lugar, os festivais e encontros literários, mas<br />

também oficinas de escrita criativa; colunas ou eventuais<br />

colaborações para jornais de ampla circulação; participação<br />

em programas de televisão e de rádio; assiduidade<br />

exemplar em blogs, facebook e twitter; escrita de roteiro<br />

para cinema e televisão; circuito de conferências e curadorias<br />

para instituições como Sesc, Senac, CCBB.<br />

(Etc. Etc. Etc. A diversidade de opções é justamente<br />

o ponto a destacar-se no nível atual de profissionalização<br />

da escrita.)<br />

Por fim, um elemento que vale o quanto paga: a<br />

proliferação de prêmios vultosos, muitos deles dirigidos<br />

especialmente para escritores iniciantes.<br />

O resultado mais notável da conjunção desses três<br />

fatores é a possibilidade que escritores jovens têm de<br />

viver exclusivamente de literatura.<br />

Devagar com o andor: eles não vivem de direitos<br />

autorais, porém das inúmeras atividades propiciadas<br />

pela projeção do escritor no espaço público.<br />

Surge a palavra-chave: esse é um espaço propriamente<br />

literário que assoma a esfera pública brasileira<br />

com uma força antes desconhecida. O fenômeno, portanto,<br />

pouco se relaciona com a acepção usual de “vida<br />

literária”. Aliás, tal forma de convívio, definidor sobretudo<br />

da cena oitocentista, embora presente ainda hoje<br />

em certas áreas, estimulou um método de estudo, desenvolvido<br />

por André Billy, e, entre nós, exercido com<br />

brilho por Brito Broca.<br />

Em tese, a cena contemporânea permite a profissionalização<br />

sempre almejada pelos escritores.<br />

No entanto...<br />

Sistema literário ou curto-circuito?<br />

O samba de uma nota só.<br />

Ou: o eterno retorno do dilema estrutural que<br />

ameaça a vitalidade da literatura hoje em dia.<br />

Ao fim a e ao cabo, viver de literatura, mas não de<br />

direitos autorais é tão-só outro modo de repetir o já dito:<br />

o espetáculo dos festivais literários torna-se cada vez mais<br />

dominante; embora ele seja independente da leitura efetiva<br />

das obras dos autores convidados para a festa.<br />

(Mais ou menos como ser o convidado de honra<br />

e, ainda assim, ser barrado no baile — não na entrada,<br />

porém na saída...)<br />

Ora, ninguém proporia acabar com os encontros<br />

que se multiplicam em todo o país — felizmente, ressalve-se.<br />

Contudo, não é possível fechar os olhos para<br />

o incômodo paradoxo, pois a experiência literária não<br />

pode ter como fundamento livros fechados em prateleiras<br />

empoeiradas.<br />

O surgimento dos produtores de texto, como discuti<br />

nas duas colunas anteriores, é o sintoma mais saliente<br />

desse estado de coisas.<br />

Recupero uma noção de Antonio Candido com um<br />

objetivo duplo: entender a radicalidade do dilema contemporâneo<br />

e, ao mesmo tempo, propor ideias iniciais<br />

sobre formas possíveis de superá-lo; no mínimo, torná-<br />

-lo produtivo.<br />

Em Formação da literatura brasileira (Momentos<br />

decisivos), Candido elaborou o conceito de<br />

sistema literário. A distinção entre “manifestações literárias”<br />

e “literatura propriamente dita” é a grande novidade<br />

teórica e metodológica da Formação. Enquanto<br />

aquelas somente dependem do “talento individual”,<br />

esta tem por base o estabelecimento de uma “tradição<br />

própria”. Isto é, tal distinção pressupõe o funcionamento<br />

do sistema literário. Na definição de Candido: “entendo<br />

aqui por sistema a articulação dos elementos que<br />

constituem a atividade literária regular: autores (...)<br />

públicos (...) tradição”. 1<br />

A história da literatura imaginada por Candido é<br />

a narrativa do processo que conduz autores brasileiros<br />

à leitura e à citação de autores brasileiros — para além<br />

da necessária e inevitável galeria de nomes da literatura<br />

dita universal; afinal de contas, o sal da literatura é o<br />

diálogo sem fronteiras e entre todas as épocas. Nessa<br />

perspectiva, a menção a autores brasileiros cria um domínio<br />

próprio de autorreferência. Os “momentos decisivos”,<br />

referidos no subtítulo, são momentos de leitura<br />

deliberada da própria tradição, plasmada no exato momento<br />

em que ocorre o ato de leitura.<br />

Recorde-se o significativo exemplo empregado<br />

por Quincas Borba para explicar ao atônito Rubião o<br />

sentido onívoro do “Humanitismo”: “(...) Humanitas<br />

precisa comer. Se em vez de um rato ou de um cão, fosse<br />

um poeta, Byron ou Gonçalves Dias, diferia o caso<br />

no sentido de dar matéria a muitos necrológios, mas o<br />

fundo subsistia”. 2 Nesse caso, além da intuição antropofágica,<br />

constante na visão do mundo machadiana, o<br />

fundo é a equivalência entre o poeta inglês e o brasileiro:<br />

o sistema literário se concretiza no instante em que<br />

ambos podem ser citados paralelamente, pois, a partir<br />

de então, um autor (brasileiro) deve tornar-se leitor<br />

tanto de escritores estrangeiros, quanto dos próprios<br />

pares tropicais. Aliás, tarefa que ninguém exerceu com<br />

a maestria de Machado de Assis: é como se os momentos<br />

decisivos da formação conhecessem um nível maior<br />

de autoconsciência na prosa machadiana.<br />

Desse modo, Candido transforma a história literária<br />

no mapeamento da criação de comunidades de<br />

leitores. Trata-se de intuição notável; a sua maneira,<br />

Candido intuía princípios posteriormente sistematizados<br />

pela Estética da Recepção, tal como proposta por<br />

Hans Robert Jauss, nos anos de 1960. O crítico brasileiro<br />

traduziu a história literária numa inovadora análise<br />

combinatória, com base na consideração das inúmeras<br />

possibilidades de relacionamento entre os termos “autor”,<br />

“público” e “obra” — e nada impede que novos<br />

termos se imponham, tornando a equação ainda mais<br />

complexa.<br />

No parágrafo de encerramento do livro, por isso<br />

mesmo, o tema retorna na imagem do “processo por<br />

meio do qual os brasileiros tomaram consciência da sua<br />

existência espiritual e social através da literatura” (p.<br />

681). Nesse caso, o sistema literário supõe o exame da<br />

dinâmica criada entre os vértices do triângulo composto<br />

por autor, obra e público — os elementos propriamente<br />

sistêmicos da história literária.<br />

A relação dos três elementos definiria o caráter<br />

social do literário e, na ausência desse circuito, costuma-se,<br />

ainda nas palavras de Candido, “criar um autopúblico<br />

num país sem público” — esse seria o caso das<br />

academias árcades no século 18.<br />

O paradoxo é que, se a síndrome do “autopúblico”<br />

foi superada, contudo, o público leitor não foi consideravelmente<br />

aumentado. Não há uma relação proporcional<br />

entre o público, ouvinte, que frequenta com entusiasmo<br />

as feiras e encontros, e o público, leitor, que idealmente<br />

seria estimulado pelo contato com os autores.<br />

Ler ou não ler, eis questão.<br />

Como enfrentá-la? Como converter a potência do<br />

contemporâneo em algo mais duradouro do que os encontros<br />

que se multiplicam em todo o país?<br />

(Estaremos condenados à carnavalização de todas<br />

as esferas da cultura?)<br />

Alternativas?<br />

Reitere-se: nos últimos 15 anos, superamos definitivamente<br />

o impasse estrutural do autopúblico. Porém,<br />

ainda não dispomos de um sistema caracterizado<br />

pela associação dinâmica entre produtores e receptores.<br />

Como explicar essa situação propriamente anômica?<br />

Tudo se passa como se Émile Durkheim tivesse antecipado<br />

tal circunstância ao cunhar seu famoso conceito.<br />

No entanto, não se trata de um caso clássico de<br />

anomia, mas da estrutura tipicamente perversa da formação<br />

social brasileira.<br />

Explico-me.<br />

Em lugar de investir seriamente na formação de<br />

novos leitores ou, em sentido mais amplo, na criação do<br />

hábito regular da leitura em todas as gerações, nossos<br />

governantes preferem comprar livros, adquirir tabletes,<br />

construir bibliotecas.<br />

(Entre nós, as casas se edificam pelo teto...)<br />

Daí, o desejo de festejar, pois é muito fácil celebrar<br />

o lançamento de pedras inaugurais, difícil é o trabalho<br />

diuturno de preparação de leitores.<br />

O descompasso entre o caráter inédito da presença<br />

pública do escritor e o surpreendente desinteresse<br />

pela leitura de sua obra é ainda mais grave porque há<br />

décadas já contamos com uma alternativa notável e que<br />

deveria ser difundida para todo o país.<br />

Refiro-me, claro, ao modelo da Jornada Nacional<br />

de Literatura, criado por Tânia Rosing, em Passo Fundo<br />

(RS), cujo esforço merece um reconhecimento nacional,<br />

pois antecipou em décadas a invenção de uma solução<br />

criativa para o dilema estrutural que hoje ameaça estrangular<br />

o desenvolvimento do sistema literário.<br />

Inspirado em seu relevante trabalho, concluo com<br />

uma sugestão.<br />

Segundo estatísticas recentes, a cada dois ou três<br />

dias ocorre um festival literário no Brasil. Trata-se de<br />

fenômeno inédito e que exige uma reflexão sem nenhum<br />

tipo de elitismo. A literatura, assim, ocupa um<br />

espaço público de grande importância. Contudo, como<br />

disse, o ato posterior de leitura não tem conhecido um<br />

crescimento similar.<br />

Em lugar de lamentar o fato, podemos fabular caminhos<br />

alternativos.<br />

Por exemplo: imaginemos que cada evento literário<br />

— de uma Flip ao mais modesto encontro — estabeleça<br />

como regra uma ideia razoavelmente simples e de<br />

execução nada complexa.<br />

Eis: cada encontro homenagearia dois escritores<br />

brasileiros. Daí, uma ou duas edições de um de seus<br />

títulos seriam distribuídas para alunos das escolas públicas<br />

e particulares do entorno do festival. Pelo menos<br />

um semestre antes da realização do encontro, sessões<br />

orientadas de leitura seriam conduzidas por professores<br />

e monitores, devidamente preparados. Uns poucos<br />

meses antes do festival, os autores visitariam a pequena<br />

cidade ou o grande centro, a fim de dialogar com seus<br />

leitores “locais”. Paralelamente um concurso de redação<br />

seria patrocinado pela organização do festival. Em<br />

sua abertura, os alunos seriam premiados; desse modo,<br />

cada encontro literário no Brasil teria como protagonista<br />

o leitor em formação, desatando o nó górdio do<br />

momento presente.<br />

(A formação permanente de leitores, em todas as<br />

idades e classes sociais, é a espada de Alexandre. Na<br />

verdade, o ovo de Colombo, pois é a resposta mais simples<br />

e eficaz.)<br />

A primeira edição da Flip ocorreu em 2003. Uma<br />

década depois, verificou-se o milagre da multiplicação<br />

dos festivais.<br />

Por que não imaginar que o próximo passo deva<br />

ser a criação e multiplicação não mais de ouvintes, porém<br />

de leitores?<br />

Leitores críticos — não preciso acrescentar.<br />

Essa é a tarefa da próxima década.<br />

Então, os produtores de texto tornar-se-iam propriamente<br />

escritores, pois, em primeiro lugar, seriam<br />

leitores.<br />

Notas<br />

1 Antonio Candido. Iniciação à literatura brasileira. 4º edição,<br />

revista pelo autor. Rio de Janeiro: Editora Ouro sobre Azul,<br />

2004, p. 16<br />

2 Machado de Assis. Quincas Borba. Rio de Janeiro:<br />

Civilização Brasileira, 1975, p. 113.


12<br />

169 • maio_ 2014<br />

169 • maio_ 2014<br />

13<br />

Nem isto, nem<br />

aquilo: poeta<br />

Reedição da obra de CECÍLIA MEIRELES<br />

confirma beleza e autonomia de sua poética<br />

: : Marcos Pasche<br />

Rio de Janeiro – RJ<br />

Há pouco mais de cinco anos tem<br />

havido a reedição da obra de alguns<br />

dos mais importantes poetas<br />

brasileiros. João Cabral de<br />

Melo Neto, Carlos Drummond de Andrade,<br />

Mario Quintana, Manuel Bandeira, Manoel<br />

de Barros, Ferreira Gullar e Jorge de Lima<br />

têm voltado às livrarias em reproduções que<br />

intentam primar pela alta qualidade: do apuro<br />

na feitura das capas à inclusão de rica iconografia,<br />

da supressão de gralhas à inserção<br />

de estudos críticos, tudo parece assinalar a<br />

iniciativa de um tratamento editorial que<br />

faça jus à representatividade das obras dadas<br />

novamente à luz (embora nem todas contem<br />

com todos os itens acima relacionados).<br />

Pode ser que alguém me advirta por<br />

estar esquecendo algum nome. Se tal acontecer,<br />

será ótimo, porque a advertência chegará<br />

como um sinal da força da poesia brasileira.<br />

Mas o que listo como o que há de mais<br />

importante nas reedições tem a ver com a<br />

virtude didática que é o vício crítico de nossa<br />

historiografia literária comum, ou seja, a<br />

concepção de obras e autores a partir de fases<br />

ou estilos. Dentre os poetas mencionados,<br />

não há um único sequer em cuja obra se encontre<br />

apenas a exemplificação de tendências.<br />

Efetivando de modo maiúsculo a ideia<br />

de que é preciso buscar o novo e o diferente,<br />

tais poetas subverteram padrões antigos e<br />

não deixaram de extrapolar os atualizados,<br />

pois — como novos e diferentes que são —<br />

entenderam que o limite está no padrão que<br />

se pretende absoluto e ignora outras possibilidades,<br />

independentemente do adjetivo que<br />

lhe apareça ao lado.<br />

Ao seleto grupo pode-se associar o<br />

nome de Cecília Meireles — porque sua obra<br />

vem sendo novamente publicada nos últimos<br />

dois anos pela Global, e por ser a sua poética<br />

marcada pelo signo da autonomia intelectual.<br />

Coordenada por André Seffrin, crítico gaúcho<br />

de importantíssimas empreitadas editoriais,<br />

a reedição de Cecília vai além de um “lançar<br />

mais uma vez”, tendo muito e principalmente<br />

de um lançar inaugural. Cito dois exemplos.<br />

O primeiro diz respeito a Espectros, livro de<br />

estreia da poetisa carioca, que durante muito<br />

tempo esteve desaparecido (por renegado<br />

pela autora), até que Antonio Carlos Secchin<br />

o desentranhou da outra luz, onde resplandecem<br />

as coisas ocultas. O livro só foi novamente<br />

visto pelo público quando Secchin o<br />

inseriu em Poesia completa, edição que<br />

em 2001 celebrou o centenário da autora de<br />

Ou isto ou aquilo. Agora, a quase totalidade<br />

dos leitores de Cecília terá pela primeira<br />

vez a oportunidade de conhecer o livro de<br />

maneira independente, exclusivo em sua unidade.<br />

Outro exemplo do que há de inaugural<br />

nessa empresa bibliográfica é o referente aos<br />

opúsculos Doze noturnos da Holanda e<br />

O aeronauta, publicados conjuntamente<br />

em 1952. Marcadas por teores diferentes, as<br />

obras são publicadas pela primeira vez em separado,<br />

o que é um acerto editorial.<br />

A AUTORA<br />

Cecília Meireles<br />

Cecília Meireles por Fábio Abreu<br />

Sei quem é, mas não conheço<br />

É difícil medir o nível de circulação de<br />

um autor, mas suponho que Cecília Meireles<br />

ocupe uma curiosa página de nossa literatura,<br />

por ser um nome tão conhecido quanto<br />

ignorado. Muitos têm referências de sua<br />

obra destinada ao público infantil; aqui e ali<br />

se encontra alguém capaz de citar alguns de<br />

seus versos de cor; e, pela voz de Raimundo<br />

Fagner, suas palavras passearam por mais<br />

de uma vez pelas paradas do sucesso radiofônico.<br />

Entretanto, a visitação crítica à sua<br />

obra ainda parece aquém da importância que<br />

lhe é intrínseca. Talvez que a empreitada em<br />

destaque estimule a mudança do quadro, e é<br />

animador e alvissareiro o trabalho do grupo<br />

de estudiosos convidados aos prefácios dos<br />

livros reeditados.<br />

Assim, destaque-se, inicialmente, o<br />

nome do poeta e crítico Henrique Marques-<br />

-Samyn, encarregado do introito a Espectros<br />

(1919). Renegado pela própria autora,<br />

o livro figura como impregnado por um<br />

parnasianismo inconveniente às ideologias<br />

poéticas que se consolidaram no século 20.<br />

De opinião distinta, Henrique vê na obra da<br />

então iniciante uma procedência que a liga à<br />

produção posterior e que se tornou “oficial”<br />

em Cecília: “(...) não me parece necessário,<br />

nem pertinente, situar o volume numa ‘pré-<br />

-história’ literária de Cecília Meireles. O que<br />

aqui proponho, com todos os riscos inerentes<br />

a esta decisão, é que ousemos reintegrar definitivamente<br />

à produção poética de Cecília<br />

Meireles esta obra, que enfim nos foi inteiramente<br />

restituída”. A verificação dos dezessete<br />

sonetos que compõem o volume permite<br />

facilmente concordar com o prefaciador,<br />

pois por meio deles já se notam alguns dos<br />

elementos caros ao universo literário de Cecília,<br />

como a atmosfera noturna, a evocação<br />

de símbolos tradicionalistas e o apuro formal,<br />

algo observável no poema de abertura, o qual<br />

empresta nome ao livro:<br />

Nas noites tempestuosas, sobretudo<br />

Quando lá fora o vendaval estronda<br />

E do pélago iroso à voz hedionda<br />

Os céus respondem e estremece tudo,<br />

Do alfarrábio, que esta alma ávida sonda.<br />

Erguendo o olhar; exausto a tanto estudo,<br />

Vejo ante mim, pelo aposento mudo,<br />

Passarem lentos, em morosa ronda,<br />

Da lâmpada à inconstante claridade<br />

(Que ao vento ora esmorece ora se aviva,<br />

Em largas sombras e esplendor de sóis),<br />

Silenciosos fantasmas de outra idade,<br />

À sugestão da noite rediviva<br />

— Deuses, demônios, monstros, reis e heróis.<br />

Considerando os livros reimpressos até<br />

o momento (e a cronologia bibliográfica da<br />

autora), Espectros é sucedido por Viagem<br />

(1939), com que “a dicção de Cecília ganha<br />

forma pessoal, inconfundível, e que seria<br />

constante ao longo de seu itinerário”, conforme<br />

assinala Alfredo Bosi. Em sua apresentação,<br />

intitulada A poesia da viajante, o<br />

afamado crítico paulista destaca a simbologia<br />

do título para a poética que a partir dali se<br />

tornava enfim aquela que viria a ser: “Na poesia<br />

de Cecília Meireles o ato de viajar é mais<br />

do que um tema literário. É uma dimensão<br />

vital, um modo de existir do corpo e da alma”.<br />

A tal modalidade de essência artística, somo<br />

o símbolo da canção, também parte da pele<br />

e da carne da poeta: “E aqui estou, cantando”,<br />

anuncia o primeiro verso de Discurso.<br />

Viagem e música se consorciam e se tornam<br />

o transporte uno para destinos diversos, os<br />

quais são sempre um pouso de ida. Viajora e<br />

cantante, a poesia anuncia o milagre da vida,<br />

a dispensar quês e porquês:<br />

Pousa sobre esses espetáculos infatigáveis<br />

uma sonora ou silenciosa canção:<br />

flor do espírito, desinteressada e efêmera.<br />

Por ela, os homens te conhecerão:<br />

por ela, os tempos versáteis saberão<br />

que o mundo ficou mais belo, ainda que inutilmente,<br />

quando por ele andou teu coração.<br />

Nasceu no Rio de Janeiro (RJ), em 1901. Formou-se pela Escola Normal (Instituto de Educação)<br />

em 1917, e exerceu o magistério primário em escolas do Distrito Federal. Publicou seu primeiro<br />

livro de poemas, Espectros, em 1919, em seguida lançou inúmeros títulos, entre livros de<br />

poesia, crônica, literatura infantil, antologias e ensaios. Morreu no Rio de Janeiro, em 1964.<br />

Se os termos que traduzem o ser da<br />

poesia ceciliana são os que sinalizam para<br />

a constituição de uma voz poética que então<br />

se estabelecia em Viagem (o trânsito e<br />

a música), não se pode perder de vista outro<br />

fator responsável pelo adensamento da singularidade<br />

da obra de que tratamos. Falo da<br />

extraordinária capacidade de Cecília Meireles<br />

de exprimir beleza, uma beleza em nada<br />

previsível, ainda que em textos pautados por<br />

assuntos secularmente explorados, como a<br />

devoção amorosa. Se em Cânticos, de 1927,<br />

a abertura se faz com a alta voltagem da antítese<br />

envolvendo o efêmero e o eterno do ser<br />

apaixonado — “O vento do meu espírito/ soprou<br />

sobre a vida./ E tudo que era efêmero/<br />

se desfez./ E ficaste só tu, que és eterno...” —,<br />

no livro de 1939 é frequente o canto amoroso<br />

que se afina pelas desarmonias da existência,<br />

seja em Serenata — “Permite que agora emudeça:/<br />

que me conforme em ser sozinha./ Há<br />

uma doce luz no silêncio/ e a dor é de origem<br />

divina” —, seja em Onda: “Quem falou de<br />

primavera/ sem ter visto o teu sorriso,/ falou<br />

sem saber o que era.// (...) mas quem falou<br />

de deserto/ sem nunca ver os meus olhos.../<br />

— falou, mas não estava certo”.<br />

Se este Viagem é o livro em que se ouve<br />

a Cecília já como segura regente de sua sinfonia,<br />

não é de estranhar que ele traga, como<br />

confirmação, um dos textos mais conhecidos<br />

de toda a sua trajetória. Verdadeira súmula<br />

poética, Motivo explica razões sem renunciar<br />

à linguagem do mistério:<br />

Eu canto porque o instante existe<br />

e a minha vida está completa.<br />

Não sou alegre nem sou triste:<br />

sou poeta.<br />

Irmão das coisas fugidias,<br />

não sinto gozo nem tormento.<br />

Atravesso noites e dias<br />

no vento.<br />

Se desmorono ou se edifico,<br />

se permaneço ou me desfaço,<br />

— não sei, não sei. Não sei se fico<br />

ou passo.<br />

Sei que canto. E a canção é tudo.<br />

Tem sangue eterno a asa ritmada.<br />

E um dia sei que estarei mudo:<br />

— mais nada.<br />

No tempo, nos tempos<br />

Publicado em 1942, Vaga música é<br />

um livro em forte consonância ao anterior. O<br />

prefácio da nova edição coube a João Cezar<br />

de Castro Rocha. Já no primeiro parágrafo de<br />

seu texto, o crítico faz um diagnóstico fundamental<br />

acerca da poética ceciliana. A longura<br />

da citação feita aqui se justifica pelo alcance<br />

do comentário de João Cezar:<br />

Publicado em 1942, Vaga música<br />

ajuda a esclarecer o lugar especial ocupado<br />

por Cecília Meireles na literatura brasileira.<br />

De fato, ela começou a marcar seu nome<br />

em meio à eclosão do modernismo de 1922.<br />

No entanto, desde as primeiras publicações,<br />

Cecília se manteve deliberadamente alheia<br />

à necessidade de afirmar-se através da negação<br />

programática do passado. Pelo contrário,<br />

buscou renovar as fontes clássicas<br />

do lirismo luso-brasileiro, retomando, com<br />

raro domínio técnico, metros tradicionais,<br />

e revigorando, com sensibilidade contemporânea,<br />

formas como a canção, o terceto,<br />

o romance, entre outras. E não se esqueça<br />

do simbolismo, pois, como os estudiosos de<br />

sua obra sempre destacaram, a centralidade<br />

da música e do espiritualismo na sua visão<br />

de mundo muito deve à estética simbolista.<br />

Nesse sentido, os poemas coligidos em Vaga<br />

música levam adiante a fatura literária de<br />

Viagem (1939), recordando uma autêntica<br />

arqueologia poética da tradição.<br />

Essas observações dão conta de traços<br />

basilares da obra ceciliana, dizem muito do<br />

que a autora produziu e do que sua produção<br />

significou em meio a um contexto. Além disso,<br />

tais observações encontram forte eco nos<br />

outros livros agora reeditados, bem como nas<br />

palavras de seus prefaciadores.<br />

Conforme sublinhamos, Henrique Marques-Samyn<br />

afirma que a, por assim dizer,<br />

“ainda-não-Cecília” do primeiro livro, como<br />

é vista convencionalmente, já é, sim, a poetisa<br />

que décadas depois se consagrou. Para<br />

a convenção, ali não há Cecília Meireles por<br />

haver demasia parnasiana (é como em geral<br />

se entende a hegemonia da forma fixa no<br />

volume). O que dizer, então, de Solombra<br />

(1963), apontado por Antonio Carlos Secchin<br />

(no prefácio) como “aquele que viria a ser<br />

o testamento poético de Cecília Meireles”?<br />

Faço a pergunta porque para o estudioso —<br />

dos maiores conhecedores da poesia de Cecília<br />

—, Solombra reúne “alguns dos mais<br />

densos textos de sua obra, formando um livro<br />

austero e complexo”, o qual, ainda com Secchin,<br />

é composto por “vinte e oito poemas de<br />

rigorosa arquitetura”.<br />

De modo algum pretendemos afirmar que a<br />

forma fixa signifique, por si só, poesia de interesse,<br />

tampouco que esse elemento baste para dizer que<br />

Cecília teve a mesma mão do princípio ao fim. Mas<br />

soa curioso que por conta da forma padronizada ela<br />

tenha sido desabonada em seu princípio, e que em<br />

seu ápice a forma padronizada esteja presente. Na<br />

introdução a Amor em Leonoreta (1951), Miguel<br />

Sanches Neto vê na relação do livro com a tradição<br />

lírica portuguesa uma conexão com outras temporalidades,<br />

o que denota um retroagir histórico que<br />

“atende a um projeto unificador, principal energia<br />

lírica de Cecília Meireles”. Esse retorno unificante<br />

transborda naquele que é provavelmente seu livro<br />

mais conhecido — Romanceiro da Inconfidência<br />

(1953) —, tematizado por um importantíssimo<br />

episódio da história nacional e redigido numa estrutura<br />

antiga, mais própria da tradição lusitana do<br />

que da brasileira. Conjugando isso ao que dissemos<br />

no início sobre os poetas reeditados, veremos em<br />

Cecília a independência literária que marcou sua<br />

postura, o que, agora por outro lado, não quer dizer<br />

desprezo pelas conquistas do Modernismo e das<br />

tendências que a ele se ligam. Antes, isso denota<br />

o sábio reconhecimento de que, em poesia, os recursos<br />

não se invalidam, e sua atualidade depende<br />

da maneira como o poeta se serve deles. Voltando<br />

ao preâmbulo de Viagem, nos deparamos com a<br />

afirmação (de Alfredo Bosi) de que “a viajante colhe<br />

o sim e o não de todas as coisas”, e o retorno ao<br />

prefácio de Vaga música permite ver uma opinião<br />

exata a esse respeito: “Não se pense, porém, na imagem<br />

equivocada de uma poesia de antiquário! Na<br />

verdade, os versos de Cecília Meireles transcendem<br />

o tempo imediato, projetando-se no horizonte da<br />

experiência literária, cuja atualidade é assegurada<br />

pela permanência de um fiel público leitor”.<br />

De algumas das páginas desse belo volume<br />

de Cecília Meireles emanam sólidas confirmações<br />

dos juízos postos em relevo aqui. Em Canção quase<br />

inquieta, por exemplo, a voz que canta não se afirma<br />

aguda nem grave: “Sempre assim:/ de um lado,<br />

estandartes do vento.../ — do outro, sepulcros fechados./<br />

E eu me partindo, dentro de mim,/ para<br />

estar no mesmo momento/ de ambos os lados”. A<br />

vocação dual, tão explícita e notada, não se afigura<br />

um ambiente confortável para quem a exprime. O<br />

gesto deliberado de não se filiar a uma diretriz específica<br />

é correlato de liberdade, tão desejada e inalcançável<br />

para muitos. Mas a liberdade tem preço,<br />

que pode se manifestar justamente como angústia<br />

quando se constata a ausência de um porto seguro.<br />

Daí prossegue o poema, em seu desfecho: “Fazedor<br />

da minha vida,/ não me deixes!/ Entende a minha<br />

canção!/ tem pena do meu murmúrio,/ reúne-me<br />

em tua mão!/ Que eu sou gota de murmúrio,/ dividida,/<br />

desmanchada pelo chão...”. E já que a vida<br />

só é possível reinventada — como diz, no livro, o<br />

poema Reinvenção, outro de seus mais conhecidos<br />

textos —, a persona lírica vai desenhar sua imagem<br />

de maneira unitária, ainda que a unidade se conclua<br />

como um vácuo, matéria de Encomenda:<br />

Desejo uma fotografia<br />

como esta — o senhor vê? — como esta:<br />

em que para sempre me ria<br />

como um vestido de eterna festa.<br />

Como tenho a testa sombria,<br />

derrame luz na minha testa.<br />

Deixe esta ruga, que me empresta<br />

um certo ar de sabedoria.<br />

Não meta fundos de floresta<br />

nem de arbitrária fantasia...<br />

Não... Neste espaço que ainda resta,<br />

ponha uma cadeira vazia.<br />

Como indicado antes, Amor em Leonoreta<br />

veio a público em 1951. Também prefaciador da edição<br />

do centenário da autora de Poemas escritos<br />

na Índia, Miguel Sanches Neto assina a apresentação<br />

da plaquete, que é, na bibliografia ceciliana, o<br />

“primeiro livro-poema propriamente dito, revelando<br />

aí o desejo de dar uma andadura mais narrativa<br />

à poesia, cuja culminância será o Romanceiro da<br />

Inconfidência, publicado logo depois”. Ao comentar<br />

o título, Miguel Sanches alarga o esclarecimento<br />

de uma Cecília não propriamente modernista, mas<br />

sim autora de um fazer poético moderno, por meio<br />

do qual o passado não é mero objeto de veneração,<br />

sendo antes um grande mosaico em que pululam<br />

possibilidades de inovação artística: “Amor em<br />

Leonoreta”, prossegue Miguel, “é o portal de entrada<br />

para o medieval luso, um túnel do tempo que<br />

une duas idades, eliminando as distâncias. Não há<br />

interregnos entre o século 13, de onde vem A canção<br />

de Leonoreta, e o século 20, de onde Cecília<br />

Meireles escreve. Trata-se de um único tempo, cerzido<br />

pelo fio forte da poesia. Como se sabe, o refrão<br />

de seu poema, a partir do qual vai construir o livro,<br />

vem de uma peça produzida por João Lobeira, trovador<br />

do século 13”.<br />

Portanto, efetiva-se um dos exercícios mais<br />

prestigiados pela modernidade literária — o da intertextualidade<br />

—, aqui ainda mais denso por estruturar<br />

todo o livro, também moderno por fundir narrativa<br />

e lirismo: “Pela noite remorsa,/ só por alma<br />

te procuro,/ ai, Leonoreta!/ Leva a seta um rumo<br />

claro,/ desfechada no ar escuro.../ O licrone beija<br />

a rosa,/ canta a fênix do alto muro:/ mas é tal meu<br />

desamparo,/ Leonoreta, fin’roseta,/ que a chamar<br />

não me aventuro”.<br />

Publicados em 1952, os Doze noturnos da<br />

Holanda confirmam a variedade e a essência conciliadora<br />

da poesia ceciliana, principalmente por<br />

terem sido publicados em conjunto com um livro<br />

de extensão semelhante (curta), porém de teor distinto:<br />

O aeronauta. Pela primeira vez os livros<br />

circulam em separado, mas aqui a separação não<br />

é divórcio: “Meu nome agora é diverso./ Indeclinável”,<br />

sentencia Dois, do segundo livro. Ao apresentar<br />

Doze noturnos, Aristóteles Angheben Predebon<br />

faz acurada análise do livro à luz de seu vínculo<br />

com a música, afinal, o termo “noturno” tem forte<br />

vínculo com a arte dos sons: “Assim, nos noturnos<br />

de Cecília, não cabe procurar uma poesia cheia de<br />

imagens e metáforas, mas antes a musicalidade intimamente<br />

reflexiva”. A mais, Aristóteles destaca o<br />

caráter noturnal da linguagem do livro, o que confirma<br />

a acepção elementar do termo que se inscreve<br />

no título, ao mesmo tempo em que permite constatar<br />

a imbricação entre tema e forma discursiva:<br />

“(...) enquanto nossa tradição de noturnos veicula<br />

uma meditação sobre a noite, seu silêncio e uma<br />

espécie de comunhão de soledade entre os seres, a<br />

poesia de Cecília faz-se noturna, não apenas pelo<br />

que diz, mas em como o diz”. De quebra, vemos<br />

nesse ponto alto da trajetória da autora mais um ligamento<br />

com seu embrião. Afinal, os espectros têm<br />

na noite seu habitat preferencial: “A noite levava-<br />

-me tão alto/ que os desenhos do mundo se inutilizavam./<br />

Regressavam as coisas à sua infância e<br />

ainda mais longe,/ devolvidas a uma pureza total, a<br />

uma excelsa clarividência”.<br />

Conquanto derive da mesma experiência que<br />

originou o livro anterior (uma viagem de Cecília à<br />

Holanda), O aeronauta tem dicção diferente, a começar<br />

pelo discurso conciso (se comparado ao anterior):<br />

“Ó linguagem de palavras/ longas e desnecessárias!”.<br />

Na prévia, Ivo Barroso acentua a distinção<br />

entre os dois volumes: “De nossa parte, acreditamos<br />

que O aeronauta seja bem mais que um simples<br />

complemento poético dos Noturnos. Seria mesmo<br />

o seu antípoda, a outra face, exprimindo uma nova<br />

dimensão espacial da autora [consta que os onze<br />

poemas do livro tenham sido escritos ou meditados<br />

no voo de volta dos Países Baixos], egressa de um<br />

outro mundo, vivendo em novo estado de espírito”.<br />

No livro anterior, a noite não tem simbologia comum<br />

nem unilateral — “A noite não é simplesmente<br />

um negrume sem margens nem direções” —, entretanto,<br />

não deixa de exibir sua vocação de obscurecer<br />

orientações firmes: “Eu mesma não sei quem sou,<br />

na alta noite”. Assim, O aeronauta, que também<br />

não concebe simbologias por uma perspectiva única<br />

— “Não clameis por sua sorte!/ Tanto é noite quanto<br />

dia./ E vida e morte” —, tem ares amenos e cores<br />

de nuvens, das nuvens livres de cores: “Perdoai-me<br />

chegar tão leve,/ eu, passageiro/ dos céus, de límpido<br />

vento”. De habitual neste livro, só a eterna novidade<br />

ceciliana de ser singular: “E tudo que me respondem/<br />

fica também noutras eras,/ vem de outra<br />

idade./ Pastor que contempla ocasos,/ eu mesmo<br />

sou o meu caminho,/ claro e sozinho”.<br />

O Romanceiro da Inconfidência, publicado<br />

em 1953, é um grande sucesso editorial de Cecília<br />

(a que recebi para resenhar, de 2012, é a nona edição)<br />

e um dos maiores feitos de toda a poesia brasileira.<br />

Causa surpresa que esse êxito comercial seja alcançado<br />

por um livro que, no século 20, foi escrito em forma<br />

arcaica (o romance em verso). Poeta e historiador,<br />

Alberto da Costa e Silva sublinha, no prefácio, justamente<br />

o encontro complementar de poesia e história:<br />

“(...) Cecília Meireles recria poeticamente um pedaço<br />

de tempo e, ao lhe reescrever poeticamente a história,<br />

dá a uma conspiração revolucionária de poetas, num<br />

rincão montanhoso do Império português, a consistência<br />

do mito”. Assim, discurso poético e narrativa<br />

histórica vão aonde não iriam se estivessem amputados,<br />

e, juntos, atingem a magnificência:<br />

Eles eram muitos cavalos<br />

nas margens desses grandes rios<br />

por onde os escravos cantavam<br />

músicas cheias de suspiros.<br />

Eles eram muitos cavalos<br />

e guardavam no fino ouvido<br />

o som das catas e dos cantos,<br />

a voz de amigos e inimigos;<br />

— calados, ao peso da sela,<br />

picados de insetos e espinhos,<br />

desabafando o seu cansaço<br />

em crepusculares relinchos.<br />

O canto derradeiro de Cecília Meireles congrega<br />

a luz e a treva: Solombra, de 1963, é, nas<br />

palavras de Antonio Carlos Secchin, o “testamento<br />

poético” da autora. Como já dissemos algo do livro e<br />

citamos partes de seu prefácio, que ouçamos a cantora,<br />

para que ela dê o tom do encerramento — tom<br />

de solilóquio e sinfonia:<br />

Quero uma solidão, quero um silêncio,<br />

uma noite de abismo e a alma inconsútil,<br />

para esquecer que vivo — libertar-me<br />

das paredes, de tudo que aprisiona;<br />

atravessar demoras, vencer tempos<br />

pulutantes de enredos e tropeços,<br />

quebrar limites, extinguir murmúrios,<br />

deixar cair as frívolas colunas<br />

de alegorias vagamente erguidas.<br />

Ser tua sombra, tua sombra, apenas,<br />

e estar vendo e sonhando à tua sombra<br />

a existência do amor ressuscitada.<br />

Falar contigo pelo deserto.<br />

Fantasia no<br />

Brasil colônia<br />

: : Gisele Eberspächer<br />

Curitiba – PR<br />

O<br />

nome do livro é um<br />

tanto autoexplicativo:<br />

Quatro soldados,<br />

de Samir<br />

Machado de Machado (Não Editora),<br />

narra a história de quatro<br />

oficiais de um antigo exército<br />

brasileiro, em uma época colonial<br />

de definição de fronteiras<br />

e identidade nacionais. São os<br />

últimos anos da guerra entre<br />

jesuítas e índios e o país como<br />

o conhecemos não está mais tão<br />

longe de ser formado.<br />

O primeiro dos soldados<br />

que o leitor conhece é Licurgo,<br />

jovem e inocente. Teve pouco<br />

contato com o mundo antes<br />

de entrar no exército (sua mãe<br />

morreu no parto e seu pai o evitava,<br />

fazendo com que passasse<br />

seus dias pela casa da família) e<br />

pouco sabia do país e das pessoas<br />

antes de começar a lutar por<br />

eles. Sua (des)aventura começa<br />

já na primeira missão, quando<br />

nem tudo vai como se esperava<br />

e ele acaba aprendendo coisas<br />

novas e mudando um pouco sua<br />

visão do mundo.<br />

Outro soldado é o Andaluz<br />

— apesar de que o mais<br />

certo seria chamá-lo de desertor.<br />

É provavelmente o mais<br />

charmoso dos quatro e se permite<br />

ser levado pela vida. Após<br />

abandonar o exército, encontra<br />

vários jeitos para sobreviver,<br />

cada um mais improvável que<br />

o outro. De certa forma é também<br />

um tanto hostil e arrogante.<br />

Dentre os personagens é o<br />

que mais lê e que mais conhece<br />

do mundo e das pessoas.<br />

Já o capitão Antônio Coluna<br />

é misterioso e reservado,<br />

e optou por dar sua vida ao<br />

exército e leva a sério cada uma<br />

de suas missões. Também tem<br />

uma relação conturbada com a<br />

família e opta por esconder seu<br />

título de nobreza português<br />

para viver a vida como um comum<br />

no Brasil.<br />

O último dos soldados,<br />

por opção do autor, só é revelado<br />

mais para o final da narrativa<br />

— e a escolha será mantida<br />

na resenha. Ainda assim,<br />

é possível dizer que ele é uma<br />

figura ambígua, tanto pela maneira<br />

com que é inserido na<br />

narrativa como no papel que<br />

desempenha no exército.<br />

Os quatro personagens<br />

têm personalidades diferentes.<br />

Em comum têm a maneira com<br />

que vivem — andarilhos, parecem<br />

não ter achado seu lugar no<br />

mundo, e em alguns momentos<br />

sequer parecem estar procurando.<br />

Eles mantêm poucas raízes,<br />

não têm exatamente um lugar<br />

para o qual voltar — apenas um<br />

novo para ir em seguida.<br />

Mesmo que cada um dos<br />

soldados esteja vivendo suas próprias<br />

aventuras, o caminho deles<br />

se cruza ao longo da narrativa.<br />

Os encontros são curiosos e as<br />

reações dos personagens, muito<br />

bem montadas, acentuando as<br />

personalidades de cada um.<br />

Quatro soldados é dividido<br />

em quatro partes, cada uma<br />

destinada a narrar um episódio<br />

específico na vida de um ou mais<br />

dos soldados. Esses acontecimentos<br />

são aventuras, com um<br />

tom um tanto místico e fantasioso,<br />

que cria uma aura que<br />

subverte a história real dos livros<br />

didáticos — os personagens se<br />

deparam com labirintos de onde<br />

ninguém sai com vida, mulas<br />

sem cabeça e até monstros enterrados<br />

em cavernas profundas.<br />

O cenário criado nos<br />

mostra apenas que os moradores<br />

dessa nova terra não a entendiam.<br />

O mistério de vir para<br />

um lugar como o Brasil era tamanho<br />

que vários mitos foram<br />

criados no processo de compreensão<br />

desse novo lar e as explicações<br />

místicas eram parte do cotidiano.<br />

O cenário da narrativa é uma terra<br />

onde quem viaja é com frequência<br />

atacado por índios, ainda não<br />

completamente dividida entre espanhóis<br />

e portugueses, habitada<br />

por jesuítas que tentam dar uma<br />

ordem “pacífica” para tudo isso.<br />

Uma das coisas mais interessantes<br />

do livro é o narrador — que<br />

conversa com o leitor com ares de<br />

Dom Casmurro e conta as aventuras<br />

com um olhar quixotesco. E o autor<br />

guarda ainda uma surpresa quanto<br />

ao narrador da história, que se personifica<br />

diante do leitor em determinado<br />

momento do livro. A partir<br />

daí, é interessante perceber como a<br />

criação da linguagem e do tom está<br />

completamente ligada à construção<br />

dos personagens e ao ponto de vista<br />

que o leitor tem da história.<br />

O primeiro parágrafo do livro<br />

(a seguir) já demonstra a maneira<br />

com que o narrador transparece<br />

uma personalidade ao longo da<br />

narrativa. Apesar de a primeira<br />

pessoa não estar presente em todos<br />

os momentos do texto, fica claro<br />

que a história está sendo narrada<br />

por alguém que de certa maneira<br />

soube e reproduz todas as aventuras,<br />

fazendo com que seja determinante<br />

para o formato da narrativa.<br />

Uma vez que cabe a mim, teu<br />

narrador, a obrigação de narrar, e<br />

a ti, meu leitor, a de ler — se assim te<br />

apraz —, faz-se mister, por questões<br />

de cortesia, que nos apresentemos.<br />

Porém, não sendo possível que eu te<br />

conheça, não há sentido que conheças<br />

a mim, posto que cá eu ficaria<br />

em posição de desvantagem contigo.<br />

Permita-me, então, que aqui<br />

apresente somente minha intenção,<br />

e esta é de narrar. E, ao fazer tal<br />

afirmação, estabeleço o compromisso<br />

de que te narrarei somente<br />

aquilo que vi; o que não vi, ouvi; o<br />

que não vi nem ouvi, li. Já aquilo<br />

que não vi, ouvi ou li, inventei, pois,<br />

se as passagens mais cheias de assombros<br />

e maravilhas são todas<br />

verídicas, coube às mais banais e<br />

cotidianas o fardo de serem todas<br />

fictícias, do contrário, como se sabe,<br />

a narrativa não anda, e é preciso<br />

dar verossimilhança aos fatos.<br />

Além disso, logo no começo do<br />

texto o narrador afirma não ser completamente<br />

confiável, dando ainda<br />

mais um tom fantasioso à obra.<br />

Outro aspecto da narrativa é o<br />

uso do humor e de uma ironia leve,<br />

tanto na improbabilidade do que<br />

acontece com os personagens como<br />

nas reações dos personagens perante<br />

tudo. Por exemplo, dois dos soldados<br />

se conhecem em um bordel, que<br />

também é frequentado por um padre<br />

viciado em jogos que, para não cair<br />

em pecado, não aposta dinheiro.<br />

Durante a leitura, é quase<br />

inevitável não se lembrar de Terra<br />

Papagalli, de José Roberto Torero<br />

e Marcos Aurelius Pimenta, mesmo<br />

que esse aconteça em um período<br />

anterior, logo após o descobrimento,<br />

enquanto Quatro soldados se<br />

remete ao período de colonização.<br />

Ainda assim, as duas narrativas<br />

usam o humor, os personagens cativantes<br />

e um tom fantasioso para<br />

imaginar o Brasil de antes.<br />

Algo interessante da história<br />

para amantes de livros é que, ao<br />

longo da narrativa, fica-se sabendo<br />

um pouco sobre como era o cenário<br />

livreiro no país daquela época —<br />

como era difícil achar obras nessas<br />

terras e como existia até um contrabando<br />

de itens em um mercado<br />

negro, permitindo com que obras<br />

chegassem aos seus leitores.<br />

E, falando do objeto livro, a<br />

edição de Quatro soldados traz alguns<br />

itens gráficos que enriquecem a<br />

obra. As aberturas de capítulos têm<br />

ilustrações e a fonte foi desenvolvida<br />

especialmente para o livro, baseada<br />

na tipografia usada no primeiro livro<br />

publicado no Brasil.


14<br />

169 • maio_ 2014<br />

A LITERATURA NA POLTRONA : : José Castello<br />

Calvino e a rapidez<br />

QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />

COLUNISTAS<br />

ENSAIOS E RESENHAS<br />

DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />

RES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />

Ando desconcentrado, e<br />

me repreendo a toda hora<br />

por essa falta de concentração,<br />

que se assemelha<br />

à preguiça. Minha escrita anda fluida,<br />

sai rápido — parece se desenrolar<br />

em uma velocidade maior que<br />

a de meu pensamento. Isso é bom,<br />

mas isso me assusta: parece que<br />

não sou eu que escrevo, que alguém<br />

escreve em meu lugar. Parece que<br />

corro em desvario e, apesar disso,<br />

me arrasto. Lembro-me, então,<br />

do célebre ensaio de Italo Calvino<br />

sobre a rapidez. Retorno a ele, na<br />

esperança de uma luz. Algo que se<br />

não explique, pelo menos situe esse<br />

fluido em que me vejo perdido —<br />

mas também me encontro.<br />

Lembra Calvino de Mercúrio<br />

e de Vulcano, dois deuses potentes,<br />

mas complementares. Mercúrio é<br />

o deus da sintonia, da participação<br />

no mundo. Do derramamento.<br />

Vulcano, ao contrário, o deus da<br />

focalização, do foco, da concentração<br />

construtiva. Ambos agem enquanto<br />

escrevemos. Um nos puxa<br />

para um lado, outro nos puxa para<br />

outro — ambos estão ali. “O trabalho<br />

do escritor deve levar em conta<br />

tempos diferentes: o tempo de<br />

Mercúrio e o tempo de Vulcano”,<br />

alerta Calvino. Forças opostas, que<br />

travam uma luta contínua — e essa<br />

luta é a escrita.<br />

Não, não devemos dispensar<br />

a presença de nenhum dos dois<br />

deuses enquanto escrevemos. A<br />

concentração de Vulcano é condição<br />

necessária para as aventuras<br />

e metamorfoses de Mercúrio. A<br />

mobilidade e agilidade de Mercúrio<br />

são condições necessárias para<br />

que o trabalho de Vulcano ganhe<br />

significado. Precisamos das duas<br />

forças, uma que nos arrasta para<br />

a caverna, outra que nos derrama<br />

sobre o mundo. Precisamos de ambas<br />

para escrever. Se me sinto fluido<br />

(Mercúrio) é porque, de alguma<br />

forma o desejo de concentração<br />

também atua dentro de mim. Um<br />

se destaca: vai à frente. Outro se<br />

arrasta, mas não perde o passo.<br />

Mercúrio, nos lembra Calvino,<br />

é o deus da sintonia, da comunicação,<br />

aquele que está sempre<br />

“entre” duas coisas. Vulcano, ao<br />

contrário, é o deus da caverna,<br />

do recolhimento, da fabricação<br />

solitária. O primeiro promove a<br />

continuidade indiferenciada (derramamento),<br />

o segundo promove<br />

o isolamento egocêntrico (esquizofrenia).<br />

Ambos atuam enquanto<br />

escrevemos, e escrever é o resultado<br />

da luta entre essas duas<br />

tendências. Uma não existe sem<br />

a outra. Sem o desejo de recolhimento<br />

não existe derramamento.<br />

Sem o derramamento, não existe<br />

o desejo de recolhimento. São<br />

como que avesso e direito de um<br />

mesmo impulso.<br />

Para ilustrar essa convivência<br />

necessária, Calvino nos conta<br />

uma lenda chinesa, a história de<br />

Chuang-Tsê, o grande desenhista.<br />

O rei lhe pede que desenhe um<br />

caranguejo. Ele diz que, para isso,<br />

precisa de cinco anos e de uma casa<br />

com doze empregados. O rei lhe dá<br />

o que pede. Passados cinco anos, o<br />

rei o procura novamente e ele diz<br />

que precisa de mais cinco anos e de<br />

outra casa com doze empregados.<br />

Ao fim dos dez anos, o rei, persistente<br />

em seu desejo, o procura<br />

mais uma vez. Então, Chuang-Tsê,<br />

em um segundo, desenha o mais<br />

perfeito dos caranguejos. E dá ao<br />

rei, que agora — porque contou<br />

com a ação das forças opostas —<br />

enfim tem o que deseja.<br />

Sem a lentidão (derramamento,<br />

rascunho, transe) não chegamos<br />

à concentração (obra). Sem o desejo<br />

de concentração, não faz sentido<br />

nos entregarmos à lentidão e à<br />

dispersão. Um dos lados não existe<br />

sem o outro. Este é apenas um dos<br />

paradoxos que ilustram o universo<br />

da escrita. Penso nos argumentos<br />

de Italo Calvino e já me sinto um<br />

pouco melhor. Um pouco menos<br />

“torto”. Se derramo facilmente uma<br />

escrita que me ultrapassa, é porque<br />

uma força oposta, de concentração<br />

e foco, me espera no final. Elas só<br />

existem por contraste, só por contraste<br />

nós as percebemos.<br />

Agora, enfim, posso me derramar<br />

melhor, sem o medo de me<br />

perder. É como alguém que, ao<br />

arrastar um guarda-sol, arrasta<br />

também sua sombra. Impossível<br />

pensar em arrastar o guarda-sol<br />

sem que a sombra seja levada junto.<br />

Do mesmo modo, não devemos<br />

nos assustar se nos flagramos em<br />

uma atitude extrema, porque a<br />

outra — que é o seu oposto — também<br />

está ali.<br />

NOTA<br />

O texto Calvino e a rapidez foi<br />

publicado originalmente no blog A<br />

literatura na poltrona, de O Globo.<br />

Réquiem para o passado<br />

: : Clayton de Souza<br />

São Paulo – SP<br />

reprodução/ facebook<br />

O AUTOR<br />

Marcelo Nocelli<br />

Em O escritor e sua<br />

missão (em esmerada<br />

edição de 2011, pela<br />

Zahar), Thomas Mann<br />

nos confidencia, no Ensaio sobre<br />

Tchekhov, que “cultivava um certo<br />

menosprezo” pelo gênero conto<br />

e sua “ligeireza artística”, incapaz<br />

de se nivelar (é o jovem Mann que<br />

fala) com “a espera heroica ao longo<br />

de anos ou décadas” que o romance<br />

exige. O ficcionista alemão, porém,<br />

haveria de mudar seu julgamento,<br />

atentando-se enfim às “dimensões<br />

interiores que tudo o que é breve e<br />

sintético adquire graças ao gênio”.<br />

A avaliação inicial de Mann,<br />

apesar da revisão posterior, é expressiva,<br />

pois nos faz refletir que a<br />

preterição do conto pelo romance,<br />

observável atualmente no leitor em<br />

geral, é um dado histórico (embora<br />

de natureza diversa). Um dado<br />

passível de mudança desde que o<br />

leitor detenha a virtude da reflexão<br />

analítica capaz de se libertar de<br />

avaliações preconcebidas e equívocas,<br />

enfocando pela segunda vez (e<br />

com lente mais apurada) as nuances<br />

do objeto de sua análise.<br />

Thomas Mann possuía tal virtude,<br />

escassa, como tantas outras<br />

que a boa leitura demanda, nesses<br />

tempos modernos.<br />

Retomando a afirmação do<br />

grande escritor alemão, concluímos<br />

que as virtudes inerentes ao<br />

gênero — ligadas todas à contenção<br />

— apenas vicejam sob a luz incandescente<br />

do gênio. Escassas, portanto,<br />

como os leitores. Como fazer<br />

para elevar esse gênero “a uma<br />

categoria épica” que supere “em<br />

intensidade artística o grandioso, a<br />

obra gigantesca”?<br />

Não há como saber se Marcelo<br />

Nocelli, em seu livro de contos<br />

Reminiscências, se propõe tal<br />

desafio. Por certo o termo épico<br />

não se coaduna com a obra; por<br />

outro lado, esta se beneficia grandemente<br />

de todas as vantagens que<br />

uma expressão lacônica propicia à<br />

prática da narrativa curta.<br />

O livro é composto de 17 narrativas,<br />

a mais extensa não ultrapassando<br />

dez páginas (numa diagramação<br />

bastante agradável, bem<br />

como o projeto gráfico impecável do<br />

artista plástico Leonardo Mathias).<br />

Grande desafio é expressar infortúnios<br />

humanos, plasmar seres vivos<br />

ao invés de títeres, impondo-se o artista<br />

um número exíguo de páginas.<br />

Não que Nocelli conceba personagens<br />

de dimensões shakespearianas,<br />

muito pelo contrário: os tipos<br />

que habitam a obra são corriquei-<br />

Reminiscências<br />

Marcelo Nocelli<br />

Reformatório<br />

147 págs.<br />

TRECHO<br />

Reminiscências<br />

“Nunca havia trabalhado<br />

com tanta dedicação...<br />

Na fresa, o som da ferramenta<br />

afiada cortando<br />

a peça por fazer, soava<br />

como música de violino.<br />

Foi se deixando levar<br />

pelo som da lixadeira em<br />

contratempo com o torno<br />

do amigo ao lado.<br />

ros; mas seus dramas, angústias e<br />

anseios palpitam intensos sobre o<br />

asfalto impassível da cidade.<br />

O título da obra pode ludibriar<br />

o leitor cuja expectativa seja<br />

a de estar diante de um representante<br />

da linha da autoficção<br />

em voga, regada a memórias do<br />

autor. Na verdade, para além de<br />

simples recordações, Reminiscências<br />

conota o entrechoque de<br />

desejos de outrora e realizações<br />

efetivas, bem como de épocas<br />

passadas e presentes, ou a reconstrução<br />

de passados lacunares<br />

por um membro remanescente de<br />

uma família esfacelada.<br />

No primeiro conto, ambiguamente<br />

intitulado Remissão, o leitor<br />

acompanha o retorno de um filho,<br />

após anos de ausência, à cidade natal,<br />

por conta do enterro de seu velho<br />

e austero pai. A relação conflituosa<br />

entre ambos dá o tom do reencontro:<br />

Aproximei-me do corpo (...) e<br />

num ato obtuso de superioridade,<br />

não o toquei (...) Suas mãos entrelaçadas<br />

sobre o peito também não<br />

se moveriam.<br />

Em poucas páginas harmonizam-se<br />

as sensações oscilantes<br />

do filho, suas reminiscências e as<br />

impressões algo ácidas da cidade<br />

modernizada:<br />

No terreno vizinho, onde<br />

naqueles tempos existiu uma pasteurizadora<br />

de leite, hoje há uma<br />

universidade particular, dessas<br />

pasteurizadoras de diplomas.<br />

Nasceu em 1973, em São Paulo<br />

(SP), cidade onde mora. É autor dos<br />

romances O espúrio e Corifeu<br />

assassino. É cronista da Revista ZN. Em<br />

2008, recebeu o prêmio Lima Barreto –<br />

Novos talentos da Literatura.<br />

É a imagem que se impõe ao<br />

filho pródigo que, tardando o reencontro<br />

fúnebre, vai até a padaria em<br />

frente buscar num espresso uma<br />

evocação proustiana de uma época<br />

tão morta quanto o pai. Busca vã,<br />

pois o moderno espresso não reproduz<br />

o sabor de um rústico coador.<br />

Aqui, como em todas as peças<br />

que compõem a obra, as relações<br />

humanas são acres ou ambíguas,<br />

em especial as familiares, cuja problemática<br />

põe em segundo plano o<br />

velho conflito do indivíduo/meio<br />

(esboçado em contos como O operário<br />

da arte). Aliás, muito além<br />

de um competente estudo dessas<br />

relações, Remissão sintetiza bem<br />

os principais temas da obra, pondo<br />

já em relevo a figura quase onipresente<br />

em suas partes: o pai.<br />

De fato, a figura paterna sobressai<br />

aos demais elementos do<br />

livro. É, no entanto, um tema de<br />

muitas variações, indo do ressentimento<br />

explícito (Remissão,<br />

Domingos, O quarto dos fundos)<br />

à empatia e identificação (Lembranças,<br />

Alvitre, A pura, vida).<br />

Mais notável é essa figura suscitar<br />

um exercício de resignificação dos<br />

signos do passado ao narrador; a<br />

título de exemplo, o conto Domingos,<br />

que é uma extensa lembrança<br />

evocada pela memória involuntária,<br />

focaliza a relação da tríade<br />

neto-mãe-avô nos dias dominicais<br />

na casa deste. O perspectivismo do<br />

neto/narrador e da mãe envolve a<br />

figura do avô numa neblina espessa,<br />

convidando o leitor a preencher<br />

as lacunas de seu passado.<br />

Seria possível encontrar uma<br />

unidade simbólica entre as variações<br />

do tema? O que une o severo<br />

dono de casa, o polígamo inveterado,<br />

o utilitarista inflexível e o intransigente<br />

“pai-patrão”?<br />

Uma hipótese seria o assassínio<br />

simbólico do passado (a figura<br />

paterna está presente apenas enquanto<br />

lembrança em muitos dos<br />

contos), ao mesmo tempo em que<br />

uma reinterpretação dele, a fim de<br />

que a superação dos traumas consolide<br />

uma maturação existencial.<br />

As “reminiscências” transcendem<br />

esse embate. Suas dimensões<br />

se ampliam com a temática da velhice<br />

e das transmutações pelas quais<br />

passa o meio urbano, a sepultar os<br />

cenários (e com eles os momentos)<br />

de tanta vida plena (o conto A voz<br />

da experiência); a sepultar mesmo<br />

os sonhos do eu passado, e por consequência<br />

o próprio eu (Amanhã,<br />

um outro dia e A volta).<br />

Eis a real dimensão do termo.<br />

Estilo<br />

A escrita de Nocelli é a expressão<br />

acabada de sua concepção das<br />

relações humanas: seca, sem adornos.<br />

É significativo que personagens<br />

como o velho ranzinza do conto<br />

Planária se expressem através de<br />

períodos curtos. Mas a segurança<br />

no lidar com a linguagem não está<br />

só nessa relação forma/conteúdo.<br />

Ela também se traduz no jogo hábil<br />

(e algo lúdico) com as palavras:<br />

De repente ela aparecia, fumando<br />

na janela (...) me proporcionava<br />

admirar os pequenos,<br />

porém, rijos, empinados, eretos e<br />

arrogantes seios que ficavam na<br />

altura do parapeito.<br />

Moderação é a palavra de ordem,<br />

abarcando o uso de metáforas<br />

e (infelizmente) o recurso mais<br />

atraente de Reminiscências: as<br />

associações entre elementos díspares<br />

como a fresa e o violino em O<br />

operário da arte, a velhice e a lesma<br />

em Planária, etc.<br />

Tal moderação elide o excesso,<br />

tornando efetivo o que é<br />

expresso, como no trecho acima<br />

que seria apenas outra estória obsessiva<br />

de um quarentão por uma<br />

ninfeta, não fosse o dado essencial:<br />

o personagem perdera a mãe aos<br />

três meses, guardando como única<br />

lembrança seus belos seios...<br />

Há que se admirar tais nuances<br />

narrativas que o artista imprime<br />

à obra, ampliando interpretações.<br />

Fomento às virtudes da<br />

boa leitura. E embora o milagre<br />

tchekhoviano, citado por Mann,<br />

não esteja em seu campo de visão,<br />

Reminiscências, trilhando o caminho<br />

da narrativa convencional,<br />

comprova a perícia de um autor,<br />

iniciante no conto, com seu instrumento<br />

de trabalho.


169 • maio_ 2014<br />

15<br />

PALAVRA POR PALAVRA : : Raimundo Carrero<br />

Literatura é imagem, cena e metáfora<br />

ção no tratamento de<br />

romances — ou prosa de<br />

ficção — metafóricos, sobretudo na<br />

questão política, optando, quase<br />

sempre pelo documento, a sociologia<br />

ou a antropologia e o panfleto,<br />

deixando o artesanato de fora,<br />

apesar de autores monumentais do<br />

porte de Guimarães Rosa, Clarice<br />

Lispector, Osman Lins ou até Machado<br />

de Assis no século 19.<br />

Por isso, tornou-se comum<br />

tratar das questões da ditadura no<br />

panfleto, na denúncia pura ou sistemática,<br />

ou naquilo que se convencionou<br />

chamar de romance-<br />

-reportagem e romance-denúncia,<br />

jornalismo com jeito de literatura<br />

que servia, diretamente, aos objetivos<br />

políticos. Numa trilha muito<br />

pessoal e particular, surgiu o escritor<br />

goiano José J. Veiga, aí pela década<br />

de 1960, com seus romances<br />

metafóricos, de grande qualidade<br />

literária, mas hoje basicamente<br />

desconhecido dos leitores.<br />

QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />

A<br />

literatura brasileira não Sombras de reis barbudos<br />

é um grande romance<br />

COLUNISTAS DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS OTRO OJO<br />

tem uma grande tradi-<br />

metafórico<br />

ou simbólico, como foi rotulado<br />

na época, embora seja um livro<br />

da mais alta qualidade. Conta a<br />

história de opressão, pânico e falta<br />

de liberdade numa cidadezinha do<br />

interior, pela ótica de um jovem e,<br />

por isso mesmo, ainda mais opressiva.<br />

Na falta de material analítico,<br />

a crítica chamou-o também<br />

de livro fantástico ou de literatura<br />

fantástica, embora a rigor não seja<br />

uma coisa nem outra. Sombras<br />

de reis barbudos é apenas um<br />

romance, e um romance de alta<br />

qualidade artística, como de resto<br />

são os romances de Kafka.<br />

Quando Kafka diz na Metamorfose<br />

que K. acordou transformado<br />

num inseto está realizando<br />

aquilo que se pode chamar<br />

verdadeiramente de obra de arte.<br />

Se escrevesse que K. acordou angustiado,<br />

humilhado, derrotado,<br />

teria feito um bom texto, sem dúvida,<br />

mas não passaria de jornalismo<br />

ou de ensaio. O ensaio diz as<br />

coisas como elas são, num sentido<br />

direto e definitivo, mas a literatura<br />

inventa, recria, estabelece tensão<br />

artística. Transformar o personagem<br />

num inseto faz com que ele<br />

atinja um grau superior de interpretação,<br />

de invenção e provoca,<br />

sem, dúvida, um número imenso<br />

de interpretações.<br />

Um homem angustiado e<br />

humilhado é só um homem angustiado<br />

e humilhado, com força<br />

literária, sem dúvida. Mas falta-lhe<br />

qualidade artística. A qualidade<br />

transformadora. Um inseto é, em si<br />

mesmo, um inseto abjeto, nojento;<br />

portanto, na visão humana, derrotado,<br />

asqueroso. Como imagem, e<br />

literatura é imagem, transmite a visão<br />

caótica e dramática do homem.<br />

Assim também funciona a<br />

obra de Clarice Lispector, cuja força<br />

superior está nas imagens e nos<br />

símbolos. A personagem de A paixão<br />

segundo G. H. come e vomita<br />

uma barata. Não poderia haver<br />

imagem maior para definir o nojo<br />

e a rejeição do mundo. Se ela escreve<br />

que a personagem vomitava o<br />

mundo talvez construísse também<br />

um texto muito forte, mas estaria<br />

fazendo jornalismo, por mais estranho<br />

que pareça.<br />

A literatura se realiza, assim,<br />

no plano dos signos e das insígnias.<br />

E quando se trata de literatura,<br />

é preciso estar atento. Quando<br />

escrevi A história de Bernarda<br />

Soledade, que marca o início da<br />

minha vida literária, queria, com<br />

certeza, me engajar no Movimento<br />

Armorial, mas precisava de elementos<br />

para criticar a opressão e o<br />

medo, sem necessariamente fazer<br />

um discurso jornalístico ou ensaístico.<br />

Era, também, e ao meu modo,<br />

uma crítica ao regime autoritário<br />

vigente. Por isso fui buscar os elementos<br />

da cultura popular nordestina.<br />

Nada mais enriquecedor e<br />

verdadeiro. Segui, de propósito, as<br />

lições do mestre Ariano Suassuna,<br />

de quem sou discípulo orgulhoso.<br />

Usei, em primeiro lugar, a<br />

figura feminina de Bernarda para<br />

evitar o lugar-comum do coronelismo<br />

sertanejo, de forma a criar uma<br />

imagem do poder e, mais ainda, da<br />

sedução do poder. Ao lado dela coloquei<br />

outras duas mulheres — Inês<br />

e Gabriela, significando aí a liberdade<br />

— Inês aparece, quase sempre<br />

nua e desafiadora —, e a loucura do<br />

sonho e da ilusão — Gabriela é uma<br />

velha que atravessa os campos cantando,<br />

com os braços levantados,<br />

sempre vestida de noiva.<br />

Bernarda impõe o que ela<br />

chama de ordem, exige que todas<br />

as terras e que todos seus animais<br />

sejam seus. Torna-se dona<br />

de todos os homens e de todas as<br />

mulheres. Além disso, os animais<br />

têm vida depois de mortos. Uma<br />

história metafórica, que a editora<br />

francesa chama agora de “um<br />

western brasileiro, com toques de<br />

realismo mágico”.<br />

O que importa, para mim,<br />

é que a literatura, a verdadeira e<br />

sagrada literatura, se realiza no<br />

plano artístico do simbólico e do<br />

metafórico, tornando possível o<br />

sonho e a ilusão.<br />

O esboço de um livro<br />

: : Rodrigo Casarin<br />

São Paulo – SP<br />

O<br />

objeto livro é a principal<br />

plataforma (ao menos<br />

ainda) para a publicação<br />

da literatura. Contudo,<br />

qual seria a máxima relação<br />

entre um livro e uma obra literária?<br />

Não digo um entrar com o entorno<br />

e as páginas e o outro com o conteúdo,<br />

isso já é o que acontece. E se<br />

dados vitais do texto estivessem no<br />

ISBN ou na ficha catalográfica? E<br />

se a ilustração da capa ou as inscrições<br />

da lombada contivesse informações<br />

essenciais para que a história<br />

seja entendida? E se um detalhe<br />

fundamental sobre o cenário, algo<br />

que explica muitas das ações dos<br />

personagens, estivesse naquela<br />

última página, no meio do “este livro<br />

foi composto em papel x para<br />

a editora y e impresso na gráfica h<br />

no outono do ano tal”? Mais, e se o<br />

tipo de papel estivesse diretamente<br />

relacionado com o enredo? Estaríamos<br />

indo além da literatura, conciliando<br />

a arte com o objeto livro em<br />

uma simbiose total.<br />

Faço essas perguntas provocado<br />

pela leitura de O bibliotecário<br />

do imperador, de Marco Lucchesi.<br />

Não que a obra apresente alguma<br />

dessas “contravenções”, mas<br />

um ponto me levou à divagação. A<br />

história começa com um prefácio do<br />

revisor. Prefácios são comuns, mas,<br />

de revisores, bastante raros (para<br />

falar a verdade, nunca tinha visto<br />

nenhum). Mais, ao final, não há<br />

assinatura do prefácio. Ainda mais,<br />

o prefácio é precedido por um “1”<br />

bem grande, iniciando a contagem<br />

dos capítulos. Ou seja, o espaço destinado<br />

ao comentário que antecede<br />

a obra foi incorporado à narrativa.<br />

Pode não ser a coisa mais original<br />

do mundo, mas é algo bastante raro<br />

— o que é bom, convenhamos.<br />

Nele, o revisor, que assume<br />

pouco entender de literatura moderna,<br />

faz algumas ponderações ao<br />

livro que está por vir. Compara a<br />

obra com outras que cansou de revisar,<br />

afirma que ela não tem foco e<br />

está alicerçada sobre terreno incerto<br />

e movediço, diz que o autor “não<br />

entende quase nada sobre muita<br />

coisa”. Como se quisesse desencorajar<br />

o leitor — a quem faz elogios<br />

protocolares —, dispara: “Descobre-se<br />

que o livro, que antes parecia<br />

um rio caudaloso, não passa de<br />

um logro, de um simples riacho,<br />

quase sem água. Tentei preveni-<br />

-lo [o autor], mas sua vaidade não<br />

permitiu sequer uma troca de palavras”.<br />

E termina com uma frase típica<br />

dos saudosistas: “Sinto sauda-<br />

O bibliotecário<br />

do imperador<br />

Marco Lucchesi<br />

Biblioteca Azul<br />

112 páginas<br />

O AUTOR<br />

Marco Lucchesi<br />

É poeta, tradutor e ensaísta. Dentre outros,<br />

é autor de O dom do crime e A<br />

memória de Ulisses. Já venceu duas<br />

vezes o Prêmio Jabuti e ocupa a cadeira<br />

15 da Academia Brasileira de Letras.<br />

TRECHO<br />

O bibliotecário do<br />

imperador<br />

“— Perdão, Inácio, mas<br />

não vejo como possa<br />

ter ciúmes do passado e<br />

preencher as qualidades<br />

que me atribui. Pense bem,<br />

sou eu quem o trouxe de<br />

volta à vida, quem o tirou<br />

do limbo do tempo, quem<br />

o tornou contemporâneo,<br />

quem deu voz a seu fantasma,<br />

esse mesmo fantasma<br />

pelo qual os leitores<br />

de hoje sentirão um misto<br />

de entranhada piedade e<br />

admiração...<br />

des dos escritores antigos, dos que<br />

sabiam tecer uma narrativa densa<br />

e ao mesmo tempo ágil”.<br />

Essa intromissão do suposto<br />

revisor tem desdobramentos ao<br />

longo da obra. Em diversos momentos,<br />

o narrador procura se justificar<br />

para o revisor. Um exemplo:<br />

“E se me perco em devaneios, meu<br />

bom Revisor, se não vou direto ao<br />

ponto é porque não achei infelizmente<br />

o esqueleto de Inácio [o alvo<br />

da investigação que deveria mover<br />

a obra]”. Se não bastasse, em algumas<br />

oportunidades o revisor se<br />

torna um intruso e volta para discutir,<br />

por meio de notas de rodapé.<br />

A ideia até que é boa, mas a<br />

execução não funciona bem. Primeiro<br />

porque, no prefácio, o que<br />

o revisor-personagem escreve soa<br />

como uma justificativa, um mea-<br />

-culpa do autor pelo o que está por<br />

vir. Segundo, porque as discussões<br />

ao longo do texto são forçadas e inverossímeis.<br />

Não faz sentido autor<br />

e revisor discutirem durante a narrativa,<br />

da mesma forma que não faz<br />

sentido um revisor atacar o autor<br />

no livro deste, com aval até mesmo<br />

do editor. Soa inverossímil. Ao final,<br />

o intrometido acaba sendo um<br />

fantoche para que o autor consiga<br />

chamar a atenção para alguns momentos<br />

da história, como se utilizasse<br />

esse personagem para poder<br />

comentar e dar alguma complexidade<br />

ao seu próprio texto a partir<br />

de pontos de vista conflitantes.<br />

Alguma razão<br />

para o revisor<br />

Mas a obra de Lucchesi não<br />

se resume a essa questão, é claro.<br />

O bibliotecário do imperador é<br />

uma espécie de busca pela história<br />

de Inácio Augusto César Raposo,<br />

responsável por cuidar dos livros de<br />

dom Pedro II. Para tentar reconstruir<br />

a vida de Inácio, o narrador vai<br />

em busca de vestígios que mostram<br />

a relação do personagem com o objeto<br />

livro. Contudo, o sucesso é parco<br />

e o texto resulta numa espécie de<br />

biografia ficcional frustrada, apenas<br />

com um tatear da história, como um<br />

divulgação<br />

esboço da pessoa que teria sido Inácio.<br />

O próprio narrador/pesquisador<br />

define bem o rastro daquele que<br />

norteia o seu trabalho: é um “personagem<br />

à procura de um autor,<br />

porque precisa contar sua própria<br />

vida, como no drama de Pirandello,<br />

vestido de preto, náufrago de sua<br />

geração. E, no entanto, desapareceu<br />

de repente, como um fantasma,<br />

obrigando-me a persegui-lo nas raras<br />

pistas que encontrei”. Pistas que<br />

foram insuficientes.<br />

Essa busca frustrada, ancorada<br />

principalmente em documentos<br />

e cartas que aparecem aos montes<br />

(empobrecendo a narrativa), acaba<br />

por fazer com que o narrador pegue<br />

raiva de Inácio, o que rende alguns<br />

bons momentos, como o próprio<br />

narrador supondo que o “biografado”<br />

deixou parcos rastros apenas<br />

para que sua história não pudesse<br />

ser contada no futuro. “Vejo-me<br />

aborrecido com sua decisão de deixar<br />

a cena, pouco antes do fim do<br />

ato, longamente planejado e consumado,<br />

sem aviso prévio, fora de enredo,<br />

a produzir graves resultados<br />

ficcionais, trajando terno escuro,<br />

chapéu e casemira. Como se de mim<br />

suspeitasse, digamos, cem anos antes,<br />

e mais obstinado se mostrasse,<br />

e foragido, nas dobras do tempo,<br />

despistando sempre, apagando as<br />

provas, assaltando afrontosamente<br />

os bolsos do futuro”.<br />

Ao final, em um dos momentos<br />

mais interessantes do livro,<br />

Inácio aparece para discutir com<br />

o narrador, chamando-o diretamente<br />

de Marco Lucchesi. Não fica<br />

claro como o fenômeno metafísico<br />

se dá, mas ele resulta em um excelente<br />

diálogo no qual o biografado<br />

reclama do biógrafo por ter transformado<br />

parte de sua vida em um<br />

livro, o que nos remete à discussão<br />

de quem possui os direitos de<br />

uma história, da legitimidade de se<br />

narrar uma vida alheia sem que o<br />

objeto de inspiração e pesquisa autorize<br />

o escritor para tal.<br />

Não bastasse o revisor, o<br />

protagonista da história também<br />

não gosta da obra composta por<br />

Lucchesi, que é um livro razoável,<br />

com alguns bons momentos, algumas<br />

máximas interessantes (como<br />

“A biografia de um homem de livros<br />

encerra uma contradição. A<br />

vida e o livro são inimigos ferozes.<br />

Viver no seio da biblioteca reflete<br />

o isolamento de um bibliopata”),<br />

mas nada muito além disso, nada<br />

marcante. Vendo como o autor se<br />

utilizou de elementos em sua narrativa<br />

para, a todo momento, defender<br />

a obra, fico na dúvida se até<br />

mesmo Lucchesi não teria ressalvas<br />

a fazer sobre O bibliotecário<br />

do imperador.<br />

Contudo, para não ser injusto,<br />

ao final fiquei com outro pensamento:<br />

o que acontece com a história<br />

das pessoas comuns depois que<br />

elas, os amigos e parentes próximos<br />

se vão? Nós morreremos de verdade,<br />

definitivamente, quando mais<br />

nenhuma história sobre nós é contada<br />

ou lembrada. Então, se nossa<br />

vida está num livro, há uma chance<br />

a mais de continuarmos a viver. É<br />

algo para se pensar mais a fundo,<br />

discutir comigo mesmo — às vezes<br />

o Rodrigo e o Rodrigo se pegam<br />

feio aqui na mente — e, quem sabe,<br />

abordar em um texto futuro.


169 • maio_ 2014<br />

16 RUÍDO BRANCO : : Luiz Bras<br />

Pesquisa sobre a evolução<br />

literária no Brasil (13)<br />

Fizemos a destacados escritores, editores,<br />

críticos, professores e jornalistas culturais<br />

brasileiros a pergunta:<br />

• Tendo em vista a quantidade<br />

de livros publicados e a qualidade da<br />

prosa e da poesia brasileiras contemporâneas,<br />

em sua opinião, a literatura<br />

brasileira está num momento bom,<br />

mediano ou ruim?<br />

Alcir Pécora<br />

A meu ver não existe evolução literária,<br />

nem no Brasil, nem fora dele. Se há um lugar<br />

onde a ideia de evolução não funciona, esse é<br />

justamente o da literatura, e me surpreende<br />

que ninguém tenha tocado nisso até agora.<br />

Isso deve ser sinal de alguma coisa. Espero<br />

que não seja efeito de uma crença generalizada<br />

numa narrativa histórica teleológica, progressiva<br />

e etapista, em que o passado é a infância e<br />

o presente, o ápice. Fosse assim, seria sintoma<br />

daquilo que Hartog chamou de presentismo,<br />

pois submete o passado à ideia de pré — ou<br />

seja, como falta ou infância em relação ao presente<br />

— e enclausura a potência do futuro no<br />

imediatismo das escolhas contemporâneas.<br />

A ideia de evolução literária tem interesse<br />

muito reduzido no campo literário, por<br />

muitas razões:<br />

1) Trata-se de um campo que se constitui<br />

como de longa duração (para não falar<br />

em termos idealistas de eternidade ou transcendência).<br />

Isto é, alguns autores do passado<br />

continuam agora tão vivos e, por vezes, até<br />

mais influentes do que quando escreveram.<br />

Isso porque a interpretação deles, ao longo<br />

do tempo, se enriqueceu de muitas maneiras,<br />

tornando-os interlocutores necessários da<br />

compreensão de diferentes tempos e igualmente<br />

do presente. Sob muitos aspectos, podemos<br />

dizer que esses autores supostamente<br />

do passado determinam o presente, pois fornecem<br />

paradigmas para a interpretação dele;<br />

2) Não dá para falar seriamente em<br />

evolução porque o campo da cultura — constituído<br />

de obras de tempos diversos, alimentadas<br />

por interpretações várias e igualmente<br />

de tempos distintos — não tem uma direção<br />

única: as obras não estão correndo todas para<br />

o mesmo fim, como se fossem atletas numa<br />

pista estreita;<br />

3) O evolucionismo aplicado à cultura favorece<br />

uma ideia linear de cultura, como essa<br />

de corredores numa mesma baia, que começam<br />

bebês e terminam atletas triunfantes. A<br />

imagem é caricata propositalmente, porque a<br />

ideia é caricata: quem é o bebê aqui? Homero?<br />

Ésquilo? Virgílio? Dante? Petrarca? Camões?<br />

Shakespeare? Góngora? etc. etc. Quem é melhor<br />

do que quem? De que evolução se pode<br />

falar quando se pensa em nomes como esses?<br />

4) Não dá para evoluir para além da<br />

forma que cada grande autor efetivamente<br />

logrou produzir. Cada uma delas é única em<br />

si mesmo;<br />

5) O máximo que podemos dizer a respeito<br />

do conjunto das obras de arte é que todas<br />

elas têm alguma exigência do novo, mas<br />

o novo não é o que evolui em relação ao mais<br />

antigo, mas o que se indetermina em relação<br />

a ele, o que não pode ser deduzível dele, uma<br />

vez que produz uma forma que não estava<br />

prevista nos modelos anteriores. E como falar<br />

em evolução quando a condição do que segue<br />

é a indeterminação?<br />

6) Cada nova grande obra bagunça a<br />

ordenação hierárquica inteira do campo e o<br />

refaz de alguma maneira: o que parecia na<br />

frente vai para trás, quem estava do lado de<br />

um vai para o lado do outro, quem estava nos<br />

lugares mais iluminados vai para a sombra<br />

etc. etc. Quando falo em bagunçar os tempos<br />

da cultura, penso não apenas no tempo do<br />

presente, mas também nos do passado e do<br />

futuro: a obra realmente nova desarticula a<br />

cadeia evolutiva que não era natural, mas que<br />

estava naturalizada de forma indevida;<br />

QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />

COLUNISTAS<br />

ENSAIOS E RESENHAS<br />

DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />

EDIÇÕES ANTERIORES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />

7) Também as formas literárias não podem<br />

ser pensadas como evolução estrita de<br />

uma em relação às outras; ainda que elas se<br />

sobreponham, se cruzem, uma forma nunca é<br />

o resultado dedutivo do encontro das anteriores.<br />

Acidentes acontecem. O romance não é<br />

derivado das formas anteriores, mas uma resolução<br />

que apenas se compreende em obras<br />

particulares diversas, em diferentes momentos<br />

e situações históricas. A epopeia não pode<br />

ser posta na origem do manifesto de vanguarda,<br />

a não ser como metáfora interpretativa<br />

aplicada a casos particulares;<br />

8) Há muito mais o que dizer, mas me<br />

restrinjo à retomada de um ponto decisivo: boa<br />

parte da história das obras é contingencial e<br />

não resultado de uma intenção ou de uma superação.<br />

Originais extraordinários, que poderiam<br />

ter impacto decisivo, se perdem na chuva, nos<br />

baús, nas prisões, enfim, em desastres e imprevistos;<br />

outros papéis, secundários, passaram<br />

a ocupar lugares chaves e tiveram um papel<br />

histórico considerável; um incêndio matou um<br />

autor anônimo que finalizava uma grande obra,<br />

o suicídio de outro destruiu várias alternativas<br />

de futuro. Isso não é evolução, é contingência,<br />

catástrofe, sorte, fortuna, o que quiser.<br />

Enfim, me sinto como se começasse<br />

apenas uma conversa: escrevo velozmente, e<br />

me sinto profundamente culpado de não poder<br />

dedicar o tempo de reflexão que qualquer<br />

reflexão séria exige.<br />

Alcir Pécora é professor de literatura<br />

da Universidade Estadual de Campinas<br />

Chico Lopes<br />

A despeito dos desânimos e suplícios<br />

pelos quais passam os escritores novos, não<br />

publicados, que têm uma compreensível ansiedade<br />

com serem lidos, achando que a selva editorial<br />

está fechada para os seus tambores, acredito<br />

que o momento é de mediano para bom.<br />

Porque acho que, a rigor, não pode ser<br />

classificado de ruim um mundo editorial tão<br />

agitado por visões contraditórias, autores de<br />

todo tipo, livros de toda ordem, saindo, pedindo<br />

atenção. Pra ser justo com isso, os críticos<br />

teriam que ler muito, teriam que ler tudo, o<br />

que é praticamente impossível, e, na verdade,<br />

todos eles estão presos a certos nichos, predileções<br />

e grupos, o que também é inevitável. O<br />

fenômeno é daqueles cuja amplidão impele à<br />

modéstia e à cautela nos diagnósticos.<br />

O que me parece é que os escritores brasileiros<br />

deveriam ter menos medo da literatura<br />

de gênero, praticar o policial, o suspense, o terror,<br />

a fantasia, a ficção científica, serem menos<br />

geniais e terem mais peito pra concorrer com<br />

um mercado estrangeiro em que muita coisa<br />

medíocre, mas capaz de entreter, dá o tom.<br />

Isso não seria necessariamente ceder ao<br />

tom comercial predatório, seria ter um pouco<br />

menos de pretensão e prestar mais atenção<br />

ao que os leitores (que, afinal, nem são tantos)<br />

procuram. Mas já é generalizada a percepção<br />

de que não faz muito sentido manter<br />

um elitismo daqueles de nariz empinado para<br />

o cheiro de concessão prostituída do mercado.<br />

Os autores brasileiros querem ser lidos,<br />

percorrem pequenos e grandes circuitos de<br />

palestras, participam de concursos, não perdem<br />

oportunidades aqui e ali, e desejam para<br />

seus livros difíceis o que todos desejam: leitores<br />

atentos ou meros fruidores, o que seja.<br />

O que se tem a fazer é aperfeiçoar o<br />

mercado, injetar nele ansiedades estéticas<br />

um tanto mais refinadas, mas jamais pretender<br />

que ele seja a Grande Besta digna de<br />

uma única coisa: bombardeios. Há muita impotência<br />

chorona e pouco digna de confiança<br />

em muitos autores que não fazem sucesso. O<br />

darwinismo do mercado os apavora, mas em<br />

nenhum sistema literário do mundo haverá<br />

quem não alimente queixas.<br />

As pequenas editoras querem crescer,<br />

e merecem estímulo e uma situação menos<br />

desesperadora, muitos autores bons querem<br />

publicação, e a merecem. O pântano do comércio<br />

pode ser horrendo, mas todos têm<br />

que passar por ele. E, mesmo quem não for<br />

capaz de atrair editores, não deve jamais desistir<br />

de aperfeiçoar sua obra em silêncio e invisibilidade,<br />

porque, no mínimo, viverá para<br />

o prazer que sua criação dá.<br />

Chico Lopes é autor de O estranho<br />

no corredor (Editora 34)<br />

PRATELEIRA : : NACIONAL<br />

QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />

COLUNISTAS<br />

ENSAIOS E RESENHAS<br />

DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />

RES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />

A caminhada ou o<br />

homem sem passado<br />

Roberto Nicolato<br />

Blanche<br />

112 págs.<br />

O professor Júlio Saboia está<br />

completamente sem memória. Em<br />

busca de sua identidade, parte para<br />

uma viagem pelos locais sagrados<br />

da Bolívia e do Peru, entre eles o<br />

sítio arqueológico de Tiahuanaco e<br />

Machu Picchu, carregando apenas um<br />

mapa e as passagens. No decorrer da<br />

história, fica na companhia de uma<br />

amante boliviana, de um pesquisador<br />

brasileiro e à mercê da paixão de uma<br />

mulher obsessiva. Livro de estreia do<br />

jornalista e professor Roberto Nicolato.<br />

Outros 40<br />

Arnaldo Antunes<br />

Org.: João Bandeira<br />

Iluminuras<br />

176 págs.<br />

Arnaldo Antunes se consagrou<br />

como vocalista da banda de rock<br />

Titãs, mas sua produção artística é<br />

multifacetada. Neste livro, organizado<br />

pelo amigo João Bandeira, são 40<br />

textos que se concentram em música,<br />

poesia e literatura, onde Antunes<br />

impulsiona o pensamento através do<br />

seu dom de equilíbrio-desequilíbrio<br />

entre o espantosamente óbvio e o<br />

evidentemente estranho. 40 escritos<br />

foi a primeira coletânea organizada;<br />

agora, Outros 40.<br />

Lorde<br />

João Gilberto Noll<br />

Record<br />

128 págs.<br />

Talvez experimentar o diferente seja<br />

a melhor forma de se autodescobrir.<br />

No aeroporto de uma Inglaterra<br />

gelada, um escritor brasileiro não<br />

sabe o que aguarda. Recebera<br />

de um homem misterioso um<br />

convite, as passagens, a oferta de<br />

hospedagem e embarcara. Em seu<br />

destino, transita pelas ruas, hospitais,<br />

hotéis e estabelece relações com<br />

passageiras desconhecidas. Mas, em<br />

suma, só trocou a solidão que vivia<br />

no Brasil pela mesma solidão na<br />

Inglaterra.<br />

Reforma na paulista e<br />

um coração pisado<br />

Elisa Andrade Buzzo<br />

Oitava Rima<br />

272 págs.<br />

Livro de crônicas organizado em<br />

três partes: Horizontes, Vidas e<br />

Tempos. Para a autora, as janelas<br />

constituem o observatório de suas<br />

reflexões — seja do ônibus, do<br />

carro, do apartamento. Com olhar<br />

clínico, tudo se torna prosa: o balé<br />

dos coletivos lotados, um passeio<br />

no shopping a fim de provar um<br />

cupcake, reflexões sobre o outono<br />

preenchendo o vão dos prédios,<br />

tornando a noite colorida numa<br />

cidade cinza como São Paulo.<br />

A grande roda de histórias<br />

Nélio Spréa e Milton Karam<br />

Ilustrações: Katia Horn<br />

Parabolé<br />

144 págs.<br />

Doze histórias inspiradas em relatos<br />

reais. A coletânea surgiu de um projeto<br />

organizado pela Fundação Cultural<br />

de Curitiba em 2012, com a proposta<br />

de fazer 50 sessões de contação de<br />

histórias. Reunião de personagens<br />

emblemáticos, surgidos de relatos<br />

como os de Diva dos Anjos Canuto,<br />

que contou o dia em que seu esposo<br />

foi atacado por um galo; e de Andréa<br />

Regina Portela dos Santos, que relatou<br />

a ida falha dos seus parentes a um<br />

velório: foram ao cemitério errado.<br />

Pow-emas e outros<br />

jabs líricos<br />

Edson Valente<br />

Patuá<br />

95 págs.<br />

Carta ao filho — Ninguém<br />

ensina a ser mãe<br />

Betty Milan<br />

Record<br />

159 págs.<br />

Gol esquecido —<br />

Contos de futebol<br />

Mayrant Galo<br />

A Girafa<br />

96 págs.<br />

Autópsia do bípede<br />

Marco Polo Guimarães<br />

Confraria do Vento<br />

168 págs.<br />

Dez fitas e um tornado<br />

Teresa Urban<br />

Arte & Letra<br />

200 págs.<br />

Versos peculiares sobre o pai, ídolos,<br />

paternidade, viagem, capital da<br />

Bélgica, Mickey Mouse e um clipe do<br />

Joy Division. O chulo e o sagrado se<br />

unem. Nos títulos, até arrisca inglês<br />

e francês. Bate onde dói. Escreve<br />

sobre amor, tema maior de nossas<br />

jornadas existenciais, de forma atual<br />

e com personalidade. O poeta está<br />

no corner e se prepara, aferindo os<br />

batimentos cardíacos do texto, já<br />

sabendo que sempre haverá nocaute.<br />

Neste texto biográfico, a autora se<br />

pergunta como poderia ter evitado<br />

todos os erros que cometeu. Deixandose<br />

nortear pela pergunta, escreve para<br />

o filho e remonta a história dos dois<br />

a fim de descobrir a resposta. Entre<br />

vários relatos, a exposição de sua vida<br />

sentimental para o filho. Betty arrebata<br />

com uma reflexão sobre a mãe e a<br />

mulher, inteiramente calcada no que<br />

viveu. Aqui não há o tabu da boa mãe<br />

infalível.<br />

Contos curtos, direcionados ao esporte<br />

mais popular do Brasil, inspirados pela<br />

poesia mística dos noventa minutos de<br />

uma partida de futebol. Potencializando<br />

emoções, literatura e esporte se<br />

unem. Não só do futebol, porém, é<br />

sustentada a narrativa: conversas em<br />

bares são imprescindíveis para debater<br />

aquela jogada ou o desempenho do<br />

companheiro; na esquina, conversa sobre<br />

garotas; o drama de ser expulso logo nos<br />

primeiros cinco minutos; e muito mais.<br />

Estreia de um poeta no mundo dos<br />

contos. Enredos breves e constante<br />

estranheza. Os personagens não<br />

precisam de nomes, nem dependem<br />

de cenários para existirem; como<br />

protagonistas, suas esquisitices.<br />

Nas memórias de Adriano, o garçom<br />

é espanhol e Deus é doido; nos<br />

minicontos, o político pedófilo é pego,<br />

um novo método de faltar o trabalho,<br />

impulsos animalescos de morder<br />

nádegas e a sorte de não ser atingido<br />

por um boeing.<br />

José Suçuarana é órfão de pai e mãe<br />

por opção. Sua data de nascimento<br />

é incerta e seu sobrenome, um mero<br />

apelido de infância. Mesmo com o<br />

poder de impressionar a academia<br />

norte-americana, continua submisso<br />

cultural e psicologicamente ao<br />

coronelato formador de nossa<br />

nação. No pouco tempo de vida que<br />

lhe resta, grava dez fitas contando<br />

sua vida, endereçadas a Alícia,<br />

militante de esquerda durante a<br />

ditadura militar.


apresenta<br />

BRASIL<br />

Curitiba 25 e 26 Abril<br />

Salvador 9 e 10 Maio<br />

São Paulo 23 e 24 Maio<br />

Rio de Janeiro 6 e 7 Junho<br />

Curitiba<br />

Abdelkader Djemaï Argélia<br />

Cristovão Tezza Brasil<br />

José Castello Brasil<br />

Juan Pablo Villalobos México<br />

Kim Young-Ha Coreia do Sul<br />

Luci Collin Brasil<br />

Mohsen Emadi Irã<br />

Rogério Pereira Brasil<br />

Salvador<br />

Ana Maria Gonçalves Brasil<br />

Carlinhos Brown Brasil<br />

Dama Bete Portugal<br />

Elicura Chihuailaf Chile<br />

Jean-Yves Loude França<br />

Jorge Portugal Brasil<br />

Margareth Menezes Brasil<br />

Marta Quiñónez Colômbia<br />

São Paulo<br />

Alessandro Buzo Brasil<br />

Binho Brasil<br />

Inês Bortagaray Uruguai<br />

Jacob Sam La Rose Inglaterra<br />

Jive EUA<br />

Peter Demant Holanda<br />

Roberta Estrela D´Alva Brasil<br />

Sérgio Vaz Brasil<br />

Rio de Janeiro<br />

Achille Mbembe Camarões<br />

Chacal Brasil<br />

Fabián Casas Argentina<br />

Francisco Bosco Brasil<br />

Marcus Faustini Brasil<br />

Nils Straatman Alemanha<br />

Tatiana Salem Levy Brasil<br />

Conferências<br />

Bernardo Buarque de Holanda<br />

Eduardo Jardim<br />

Eric Nepomuceno<br />

Iza Grispun<br />

Marcos Alvito<br />

Paulo Ribeiro<br />

Rosa Maria Vieira<br />

Yolanda Lobo<br />

APRESENTAÇÃO<br />

PARCERIA<br />

REALIZAÇÃO


18<br />

169 • maio_ 2014<br />

Tediosa floresta<br />

A AMAZÔNIA MISTERIOSA, de Gastão Cruls, é um romance inverossímil e repleto de figuras despersonalizadas<br />

:: Rodrigo Gurgel<br />

São Paulo – SP<br />

Agrippino Grieco escreveu<br />

que o romance A Amazônia<br />

misteriosa, de<br />

Gastão Cruls, lançado<br />

em 1925, é um “livro de sólida ossatura,<br />

com algo de Kipling, Conrad<br />

e Chadourne”. O elogio, bem mais<br />

longo, publicado em Evolução da<br />

prosa brasileira, de 1932, não é<br />

apenas imprudente, mas revela o<br />

lado desagradável, aético, dos sistemas<br />

literários, incluindo o brasileiro,<br />

pois Grieco e Cruls eram sócios,<br />

proprietários da Editora Ariel,<br />

criada em 1930. Essa construção<br />

artificial de celebridades, ainda que<br />

empolgue as panelinhas e, talvez,<br />

facilite temporariamente a venda<br />

dos livros, dura, entretanto, como<br />

dizem os espanhóis, un rato.<br />

De qualquer maneira, não<br />

importa que o louvor exagerado<br />

prenuncie um romance repleto de<br />

problemas ou deficiências — é preciso<br />

ir além da desconfiança, gastar<br />

alguns reais, abrir o livro e conceder<br />

ao escritor a oportunidade de<br />

comprovar que seu amigo não foi<br />

desleal com os possíveis leitores.<br />

Ética e personagens<br />

Em A Amazônia misteriosa,<br />

Cruls tenta recontar, sob o ponto<br />

de vista tupiniquim, o romance<br />

de ficção científica A ilha do Dr.<br />

Moreau, de H. G. Wells, publicado<br />

em 1896, obra de caráter darwinista,<br />

na qual o autor discute os limites<br />

éticos da manipulação biológica de<br />

animais e seres humanos — prática<br />

que hoje recebe o nome eufemístico<br />

de “engenharia genética”.<br />

Depois de se perder durante<br />

uma caçada, o narrador de Cruls<br />

acaba isolado em algum ponto da<br />

Hileia, numa tribo composta unicamente<br />

de mulheres, as mitológicas<br />

amazonas que o explorador espanhol<br />

Francisco de Orellana afirmou<br />

ter visto em 1541. Ali, depara-se<br />

com uma utopia silvícola, na qual, a<br />

depender da idade, cada mulher desempenha<br />

uma função predeterminada.<br />

Tudo é perfeito: da arquitetura<br />

— “habitações bem construídas,<br />

ruas regulares, estradas largas, e<br />

até o arremedo de praças e jardins,<br />

onde muitas árvores deveriam ter<br />

sido plantadas pela mão do homem”<br />

— às relações sociais, estratificadas<br />

e plenas daquele desprendimento<br />

feliz que, segundo os socialistas, deveríamos<br />

sentir enquanto o garrote<br />

do Estado nos estrangula.<br />

Tal lugar paradisíaco não teria<br />

nascido, contudo, sem uma história<br />

sanguínea: no século 16, as predecessoras<br />

das amazonas, ao saberem<br />

da prisão do grande inca Atahualpa<br />

e da vitória dos conquistadores<br />

espanhóis, liderados por Francisco<br />

Pizarro, decepcionadas com a derrota<br />

sofrida pelos maridos, mataram<br />

os filhos de sexo masculino e<br />

fugiram pela “vertente oriental dos<br />

Andes”, vindo cair em plena Amazônia.<br />

Apesar do desprezo que, no<br />

romance, alimentam em relação aos<br />

homens, uma vez por ano, na “Festa<br />

das Pedras-Verdes”, recebem os<br />

varões para um rito que, depois de<br />

algumas horas, se transforma numa<br />

orgia carnavalesca, afinal essas feministas<br />

ainda obedecem à libido<br />

ou à lei da preservação da espécie.<br />

É nesse lugar idílico que o<br />

narrador se depara com Hartmann,<br />

médico alemão que, a princípio, esconde<br />

os motivos de estar ali há oito<br />

anos. No entanto, após rápida investigação,<br />

nosso protagonista descobre<br />

as experiências que ele realiza<br />

com crianças e adultos, dando vida<br />

a mutações excêntricas ou, prática<br />

mais simples, alterando, por meio<br />

de uma lobotomia específica, os centros<br />

cerebrais da fala e da memória.<br />

Apesar das aberrações criadas<br />

pelos experimentos — o que<br />

pode nascer, por exemplo, de um<br />

óvulo humano fecundado com o<br />

esperma do macaco-aranha? —, a<br />

discussão ética surge frágil, pífia,<br />

pois o narrador-protagonista não<br />

passa de um pusilânime que deseja<br />

ficar bem com todos:<br />

Achei de bom alvitre mostrar-me<br />

de perfeito acordo com o<br />

seu ponto de vista, e, dali por diante,<br />

já de regresso, mas sempre conversando<br />

animadamente, só tive<br />

aplausos para os seus trabalhos.<br />

Aliás, esses trabalhos eram de tal<br />

relevância e tão grandes e inesperadas<br />

as novas aquisições trazidas<br />

à ciência que, tirante a desumanidade<br />

dos processos experimentais,<br />

não haveria quem os deixasse de<br />

elogiar. Elogiei-os, portanto, na<br />

certeza de que não comprometia<br />

de todo a minha sinceridade e com<br />

a esperança de, assim, mais fácil,<br />

talvez, me fosse a liberdade.<br />

Não há espaço para crises ou<br />

conflitos no romance. O protagonista<br />

se refestela em seus divertimentos<br />

bucólicos, a possível discussão<br />

ética é jogada no limbo e os personagens,<br />

hábeis contemporizadores,<br />

simplesmente seguem a vida, cada<br />

um divertindo-se em seu universo<br />

particular — enquanto as corajosas<br />

amazonas caçam, pescam, plantam<br />

e se comportam de forma servil.<br />

O desejo de fuga desse paraíso<br />

inverossímil surge quando a<br />

esposa de Hartmann, Rosina, que<br />

se torna amante do narrador, praticamente<br />

impõe a decisão, pois<br />

o médico planeja usá-la em suas<br />

experiências. Mesmo a relação<br />

adúltera é descrita de forma inconsistente,<br />

superficial — e o máximo<br />

de emoção que o escritor consegue<br />

oferecer são parágrafos cujo estilo<br />

remonta ao século 19:<br />

Filtrava-me no sangue a<br />

exultação da natureza ambiente<br />

e as minhas narinas arfavam<br />

sentindo um aroma delicioso.<br />

Seria o perfume do seu corpo ou<br />

a fragrância das corolas recém-<br />

-abertas, da erva tenra e dos frutos<br />

maduros? E os nossos lábios se<br />

colaram num longo beijo...<br />

Um só personagem tem vida<br />

própria, individualidade, e se expressa<br />

de maneira natural: Pacatuba,<br />

fiel companheiro do narrador,<br />

nordestino eternamente arrependido<br />

da viagem e saudoso de sua<br />

gente. Esperto, logo percebe o mal<br />

que se esconde sob a aparência solícita<br />

de Hartmann; e quando é informado<br />

das experiências, conclui:<br />

— Eu não lhe dizia que aquele<br />

não-sei-que-diga tinha de ser muito<br />

miserável? Aqueles olhos de xexéu<br />

não enganam. Lá nos meus mundos<br />

a gente já sabe, tipo de olho<br />

azul não presta, tem temperamento<br />

muito sanguinário. Seu doutor entende<br />

como é? Não presta não...<br />

E, como eu o interpelasse, a<br />

respeito do que pensava da nossa<br />

situação, caso tivéssemos mesmo<br />

de ficar prisioneiros, ele respondeu-me:<br />

— Que é que eu penso? Eu<br />

não penso nada... — E, depois de<br />

uma ligeira pausa em que parecia<br />

querer se recordar de alguma coisa:<br />

— Olhe! E recitou-me:<br />

A desgraça do pau verde<br />

É ter um seco encostado,<br />

Vem o fogo, dá no seco,<br />

E fica o verde queimado.<br />

Logo a seguir, inquiriu-<br />

-me: — Seu doutor entende como<br />

é? — Fiz que não com a cabeça, e<br />

ele concluiu: — Pois é. O pau verde<br />

sou eu... O doutor foi vigiar as<br />

bruxarias desses barbaças e agora<br />

paga o justo pelo pecador.<br />

Movido por incrível senso<br />

prático, medroso, bem-humorado,<br />

parcial, religioso, fiel ao poder das<br />

O AUTOR<br />

Gastão Luís Cruls<br />

Nasceu no Rio de Janeiro<br />

(RJ), em 4 de abril de 1888,<br />

e faleceu na mesma cidade,<br />

em 7 de junho de 1959.<br />

Diplomou-se pela Faculdade<br />

de Medicina do Rio,<br />

exercendo posteriormente<br />

funções de médico<br />

sanitarista no Ministério da<br />

Educação e Saúde. Publicou<br />

seus primeiros contos na<br />

Revista do Brasil e por volta<br />

de 1917 frequentou o círculo<br />

de Antônio Torres, de quem<br />

se tornou grande amigo. De<br />

1931 a 1938, dirige o Boletim<br />

de Ariel, revista bibliográfica<br />

cujo redator-chefe era<br />

Agrippino Grieco. No âmbito<br />

da ficção, deixou: Coivara<br />

(contos, 1920); Ao embalo<br />

da rede (contos, 1923); Elisa<br />

e Helena (1927, romance); A<br />

criação e o criador (1928,<br />

romance); Vertigem (1934,<br />

romance); História puxa<br />

história (1938, contos); e De<br />

pai a filho (1954, romance).<br />

TRECHO<br />

A Amazônia misteriosa<br />

“De espaço a espaço,<br />

mas sempre em imensas<br />

chusmas, os passarões<br />

calavam-se serenamente<br />

do azul e de asas ao pairo,<br />

revoluteando em lindos<br />

voos espiralados, vinham<br />

ter às nossas vizinhanças.<br />

Era tal a profusão dos<br />

corpos brancos que se<br />

diria uma abundante e<br />

singular nevada, caindo<br />

de chofre sobre as galas<br />

da natureza verde.<br />

rezas e das mezinhas, Pacatuba é o<br />

único homem — no sentido de ter<br />

sentimentos, fraquezas, perplexidades,<br />

etc. — em todo o romance.<br />

Linguagem<br />

O que não seria problema nas<br />

mãos de um bom escritor transforma-se,<br />

na pena de Gastão Cruls,<br />

em obstáculo intransponível: o livro<br />

foi escrito sem que ele conhecesse<br />

o Norte do país, a não ser<br />

“através de numerosa e selecionada<br />

bibliografia”, diz a nota da Editora<br />

José Olympio; seu primeiro<br />

contato com a Amazônia só ocorre<br />

em 1928, quando acompanha a<br />

expedição do Marechal Rondon à<br />

fronteira do Brasil com a Guiana<br />

Holandesa, atual Suriname.<br />

Seu apego à bibliografia — e<br />

não à sua capacidade de fantasiar;<br />

o desejo de escrever uma obra que<br />

fosse réplica da floresta — e não<br />

exercício de verossimilhança; a<br />

aflição evidente de transpor para o<br />

livro cada mínimo elemento amazônico,<br />

atribuindo-lhe seu nome<br />

específico; tudo contribui para a<br />

criação de uma narrativa artificial,<br />

que obriga o leitor ao exercício de<br />

consultar, página a página, o “Elucidário”,<br />

formado por cerca de 250<br />

palavras. Usar a expressão “o lago<br />

estava saru”, por exemplo, é condenar<br />

a um vazio mental o leitor que<br />

não domina os regionalismos.<br />

Mas, fosse este o único problema<br />

do romance, Agrippino<br />

Grieco ainda poderia dizer que<br />

Cruls se agarra desesperadamente<br />

à barra da calça de Joseph Conrad,<br />

cujas narrativas utilizam, inúmeras<br />

vezes, o vocabulário náutico.<br />

Na verdade, Cruls não consegue<br />

ir além do preciosismo. Tenta<br />

repetir o que Euclides da Cunha já<br />

fizera, mas só consegue criar retórica<br />

destituída de dramaticidade,<br />

mero discurso ostentatório:<br />

Sumaumeiras gigantescas,<br />

tocaris hercúleos, majestosos cedros,<br />

abrindo as ramas no alto,<br />

faziam o travejamento desse maciço<br />

zimbório de verdura, que<br />

transverberava claridade vaga,<br />

deixando o recesso da mata num<br />

crepúsculo esverdeado. Aí, numa<br />

luta surda mas de todos os instantes,<br />

comprimia-se, amotinada, a<br />

legião sem fim dos outros vegetais.<br />

Árvores portentosas confundindo<br />

raízes e sapopemas na difícil conquista<br />

do solo; troncos seculares<br />

abarcados por cipós constritores;<br />

copagens grenhudas entretecidas<br />

de monstruosas trepadeiras; forquilhas<br />

cravejadas de caraguatás<br />

e parasitas; moitas espessas<br />

de palmeiras; tufos sombrios de<br />

folhagem; estolhos aculeados e<br />

refilhos gavinhentos rojando pelo<br />

chão, unhando a galharia, engrimpando-se<br />

nos ramos; hastes<br />

colubreantes, volutas sarmentosas<br />

e redouças virentes — tudo<br />

aquilo revolto, emaranhado, inóspito,<br />

mas borbulhando viço e regurgitante<br />

de seiva, na “frescura<br />

eterna da vida orgânica”, subia às<br />

avançadas para o azul, num mesmo<br />

anseio de luz.<br />

É o discurso de quem não viu<br />

e, pior, não consegue imaginar,<br />

agarrando-se aos adjetivos, tábua<br />

de salvação do escritor medíocre.<br />

No Capítulo 9, o problema<br />

se agiganta. O canto do uirapuru<br />

é formado de “vocalizações argênteas,<br />

notas de cítara e violino,<br />

harpejos, estridências de sistro e<br />

suavidades de flauta, o chocalhar<br />

de muitos guizos...”. O pássaro é<br />

“cantor mágico” e “instrumentista<br />

incomparável”; a melodia, “acariciadora<br />

e envolvente”; e, depois de<br />

alguns segundos de silêncio, “as escalas<br />

recomeçavam cálidas, vivas,<br />

ondulantes”. Quando o uirapuru<br />

se afasta, os “trinados” ficam “cada<br />

vez mais flébeis e amortecidos pela<br />

distância, até que os sons já surdinavam<br />

ao longe, numa toadilha<br />

quase imperceptível”. Mas não<br />

chegamos ao fim. Pouco depois, o<br />

narrador se lembrará do pássaro,<br />

“sentindo aos ouvidos, num eco<br />

inesquecível, as dulcíloquas melodias<br />

do gorjeador incomparável”.<br />

“Dulcíloquas” é o tipo de vocábulo<br />

que Cruls aprecia. Ele diz:<br />

“nos dessedentamos”; “aos rescaldos<br />

do licor ebriático”; “orgulho do<br />

mais exigente ginasiarca”; “viajante<br />

êxul”; “garridice dos seus trajes”;<br />

“inimitável lavor artístico”. Certo<br />

personagem não caiu, simplesmente,<br />

mas “cambalhotou precípite no<br />

rio”. E a lista é interminável: “os<br />

índios lançavam mão desse alvitre”;<br />

“insetos bezoavam no ar”; “ao<br />

bochorno do meio-dia”; “belo animal<br />

de pelo cetinoso e largamente<br />

ocelado de negro”; “fauce hiante”...<br />

Seu amor pelos arcaísmos<br />

soma-se à afetação exagerada para<br />

criar parágrafos em que renascem<br />

os piores momentos de Alencar:<br />

Estava uma manhã esplêndida,<br />

de sol muito claro e céu azul,<br />

sem nuvens. No ar luminoso, cortado<br />

de voos e regorjeios, pairava<br />

o imenso perfume da mata próxima,<br />

a luxuriar na gala de seus verdes<br />

mais vivos. Uma brisa ligeira<br />

fazia estremecer a fronde dos cajueiros<br />

vigorosos, onde concertavam<br />

de súcia, numa traquinada<br />

azoinante, os grandes bandos de<br />

araçaris, anambés e pipiras que,<br />

de momento a momento, acudiam<br />

aos seus ramos. Ouvia-se também<br />

o rechino de algumas cigarras; e,<br />

pelos sibilos e assobios, macacos<br />

deviam folgar nas fruteiras altas.<br />

Agrippino<br />

No início do romance, o narrador<br />

salienta que é preciso conhecer<br />

a “imensidade da Amazônia para<br />

poder avaliar a mesquinhez ridícula<br />

que assumem as cartas geográficas,<br />

quando, diante delas, procuramos<br />

refazer mentalmente algum trecho<br />

já percorrido”. A Amazônia misteriosa<br />

sofre de mal semelhante:<br />

representação imperfeita, esta mimese<br />

da floresta não é só inverossímil<br />

e repleta de figuras despersonalizadas,<br />

mas foi construída numa<br />

escala enfadonha, tediosa — e isso<br />

é pior do que saber que Agrippino<br />

Grieco realmente exagerou.<br />

NOTA<br />

Desde a edição 122 do Rascunho<br />

(junho de 2010), o crítico Rodrigo<br />

Gurgel escreve a respeito dos<br />

principais prosadores da literatura<br />

brasileira. Na próxima edição, Paulo<br />

Setúbal e A marquesa de Santos.


169 • maio_ 2014<br />

19<br />

Escritores e caubóis<br />

O autor precisa pensar através da forma, da história, do ritmo, da palavra, da realidade ficcional<br />

: : Carlos Eduardo<br />

de Magalhães<br />

São Paulo – SP<br />

Literatura é arte em sua<br />

forma escrita e escritores<br />

são aqueles que a produzem,<br />

e que só existem<br />

através de suas obras. São as obras<br />

que definem “ser escritor”, não o<br />

contrário, e seu objeto é o mundo,<br />

ou sua percepção do mundo, ou o<br />

mundo interiorizado por ele que<br />

emerge modificado palavra a palavra.<br />

O objeto de acadêmicos na<br />

área de letras, e dos críticos, é a<br />

obra dos escritores. Literatura não<br />

é o objeto dos escritores, que pensam,<br />

ou deveriam pensar, o mundo.<br />

Um escritor que só bebe, vive<br />

e fala de literatura, em regra, tem<br />

um trabalho pobre, um clone, uma<br />

cópia. Mesmo que sua técnica seja<br />

apurada, e dia a dia a técnica está<br />

mais apurada, o que pode levar a<br />

grandes enganos. E aí a função do<br />

crítico, perceber e dizer. Pensar o<br />

mundo é também pensar de maneira<br />

original e única, moldada por<br />

vivências únicas, obsessões, ideias,<br />

frustrações, raivas, ressentimentos<br />

e sentimentos únicos. E pensar<br />

tem tudo a ver com literatura. Pensar,<br />

não brincar, nem se divertir<br />

ou fazer do texto um amontoado<br />

de sacadas inteligentes, tampouco<br />

torná-lo uma sessão de terapia.<br />

Pensar. Pensar através da forma,<br />

da história, do ritmo, da palavra,<br />

da realidade ficcional.<br />

Quais suas influências literárias,<br />

a quem admira, o que conhece<br />

de nomes importantes é o que comumente<br />

se pergunta a escritores.<br />

A técnica do ofício é outro dos temas<br />

principais. Reflexões sobre<br />

literatura é o que acaba pautando<br />

suas falas. Talvez porque parte das<br />

pessoas que consomem essas palestras<br />

e entrevistas têm por interesse<br />

a literatura, não o mundo. A<br />

palavra escrita e a palavra oral têm<br />

mecanismos de existência diferentes,<br />

quase antagônicos. Na palavra<br />

oral é permitido, se é que não<br />

é quase obrigatório, o improviso.<br />

Na boa palavra escrita, não, nada<br />

é improviso. A reflexão dos escritores<br />

deve estar a serviço de sua<br />

produção literária, é de lá que deve<br />

ser extraída, não explicada, não<br />

por ele. Seja qual for o escritor, as<br />

respostas dadas em palestras são<br />

sempre parecidas porque as perguntas<br />

são as mesmas. Pergunta<br />

boa é aquela que só o autor pode<br />

responder, assim como livro bom<br />

é aquele que só o autor pôde escrever.<br />

Aliás, esse é um dos segredos<br />

de ensaios bons. E ensaio não é<br />

uma dissertação de escola nem um<br />

texto jornalístico. Ensaio é uma literatura<br />

não ficcional.<br />

Economistas podem se tor-<br />

Economistas podem se tornar ótimos escritores,<br />

porque pensam o mundo, e por isso é bem mais<br />

interessante conversar com um economista<br />

sério do que com um escritor.<br />

nar ótimos escritores, porque pensam<br />

o mundo, e por isso é bem<br />

mais interessante conversar com<br />

um economista sério do que com<br />

um escritor. Mas é muitíssimo<br />

mais interessante ler um grande<br />

escritor que conversar com um<br />

grande economista, ou um grande<br />

médico, ou um grande qualquer<br />

coisa. É uma conversa a três, você,<br />

você mesmo e o escritor em literatura.<br />

Em regra, economistas são<br />

bons pra analisar o que é dado, o<br />

que já foi, enquanto um grande escritor<br />

vai além. Em sua obra, define<br />

seu tempo, molda economistas,<br />

médicos, pessoas de gerações abaixo<br />

da sua. Deve ser por isso que escritores<br />

são retratados velhos.<br />

Em 2011, a Grua, editora em<br />

que trabalho, lançou uma Temporada<br />

de originais para captar<br />

novos livros e bons autores. Fazia<br />

parte do regulamento uma breve<br />

biografia do autor. Um jovem que<br />

trabalhava numa espaço cultural<br />

comentou sobre isso “É bom, porque<br />

espanta os aventureiros”. O<br />

jovem não havia entendido nada.<br />

A arte é aventura. Uma aventura<br />

do espírito. A arte não tem dono.<br />

A arte sem aventureiros não é<br />

nada. Ele usava a palavra aventureiro<br />

como alguém sem currículo,<br />

alguém de fora — de fora do quê,<br />

da academia, do mercado editorial,<br />

do sindicato dos artistas, da<br />

“tchurma” de escritores e agitadores<br />

culturais, das redações dos<br />

cadernos culturais dos periódicos<br />

importantes? Então a literatura, ou<br />

outra arte, exige currículo para ser<br />

produzida em alto nível? Claro que<br />

não. E não sejamos ingênuos, claro<br />

também que isso tudo aí em cima<br />

funciona, e melhor do que deveria.<br />

Carreira literária não existe, existe<br />

uma sucessão de livros de um autor.<br />

Existe sua trajetória literária,<br />

que é diferente de carreira. Carreira<br />

é coisa de empresas e de repartições<br />

públicas, ou da burocracia das<br />

letras, traço cultural do corporativismo<br />

brasileiro, dos nossos maiores<br />

problemas estruturais, consolidado<br />

faz décadas na ditadura de<br />

Getúlio Vargas. E se a corporação<br />

é ótima para defesa de interesses,<br />

para a burocracia endêmica, para<br />

a sobrevivência porque paga o pão<br />

de cada dia, não faz bem à literatura<br />

— nem ao país, diga-se. Em tempo,<br />

a relação entre autor e editora é<br />

bem pessoal e deve ser duradoura,<br />

a formação de um autor é um investimento<br />

de longo prazo. Se houvesse<br />

uma incompatibilidade qualquer,<br />

ou uma antipatia à primeira<br />

vista — como por exemplo sinais<br />

de arrogância —, o livro não seria<br />

selecionado, por melhor que fosse.<br />

Mas não aconteceu isso.<br />

Me vem à cabeça Casa tomada,<br />

conto que abre o livro Bestiário,<br />

do escritor argentino Julio Cortázar.<br />

Será que conseguiremos escapar?<br />

O escritor é uma antena que<br />

fica isolada em cima da casa, ele está<br />

fora da engrenagem do motor e observa<br />

o mecanismo, ele é o fotógrafo<br />

invisível das festas de casamento.<br />

Ele é o caubói dos filmes, que passa<br />

pela cidade, dá um monte de tiros,<br />

vai embora solitário no cavalo que<br />

sacrificará quando adoecer. E depois<br />

de um tempo ninguém mais se<br />

lembrará dele, de seu nome, de seu<br />

rosto, mais sua ação terá modificado<br />

a cidade para sempre.<br />

Bons filmes de caubói também<br />

são uma forma de arte.<br />

Desafios da travessia<br />

: : Vilma Costa<br />

Rio de Janeiro – RJ<br />

Divórcio<br />

Ricardo Lísias<br />

Alfaguara<br />

240 págs.<br />

Divórcio, de Ricardo<br />

Lísias, é um romance<br />

que, sob o calor de uma<br />

separação, discute o<br />

amor, a crueldade e a ética ameaçada<br />

pelo desamor e a falta de escrúpulos.<br />

O protagonista recém-casado<br />

encontra um diário da mulher que<br />

o coloca frente a frente com dolorosas<br />

revelações. Desencadeia-se aí a<br />

construção da trama, na qual o personagem<br />

narrador empreende uma<br />

busca de respostas sobre a esposa,<br />

sobre si mesmo e sobre o mundo<br />

que ambos habitam.<br />

Conta com elementos biográficos<br />

de uma suposta “realidade”<br />

e, em cima desses elementos,<br />

elabora a tensão narrativa na qual<br />

vão se constituindo seus demais<br />

personagens. Apesar de o nome<br />

do personagem-narrador coincidir<br />

com o nome de capa do romance,<br />

ou seja, o nome do autor, o sujeito<br />

narrativo situa-se como o eixo problemático<br />

diferenciado na trama.<br />

Estabelece uma encenação de si e<br />

de sua intimidade através do texto.<br />

A partir do momento em que<br />

a escrita se efetiva, personagens e<br />

ação ganham vidas próprias e se<br />

constituem de outra natureza. São<br />

formados, em última análise, sobre<br />

o papel, de palavras e tinta: são elementos<br />

de uma narrativa literária.<br />

A relação autor-personagem acaba<br />

sendo íntima e pode se dar, muitas<br />

vezes, por parte do leitor curioso<br />

que busca também respostas e sentidos<br />

entre literatura e vida.<br />

Entretanto, o material autobiográfico<br />

é apenas a matéria-<br />

-prima dessa produção ficcional.<br />

Segundo a reflexão de Roland Barthes,<br />

mesmo em se tratando de uma<br />

autoficção, é importante que ela<br />

seja lida como um jogo de ficção,<br />

ou seja, como algo que pertence a<br />

um personagem de ficção, inventado<br />

ou reinventado por um autor<br />

de carne e osso. Inútil, portanto, a<br />

especulação sobre verdade ou mentira<br />

dos fatos narrados. Esta seria<br />

uma falsa questão. Muito mais rica<br />

é a leitura crítica que procura deter-<br />

-se aos mecanismos de construção<br />

narrativa e da relação estabelecida<br />

por seus elementos. Eles se movimentam<br />

num jogo complexo que<br />

coloca em discussão aspectos de<br />

uma humanidade ferida, buscando<br />

se reerguer através da escrita de si e<br />

da leitura de seu tempo.<br />

Ricardo Lísias, o personagem-<br />

-narrador, tem como primeira imagem<br />

de si mesmo a de um homem<br />

morto: “Depois de quatro dias sem<br />

dormir, achei que tivesse morrido.<br />

Meu corpo estava deitado na cama<br />

que comprei quando saí de casa.<br />

Olhei-me de uma distância de dois<br />

metros e, além dos olhos vidrados,<br />

tive coragem apenas para conferir<br />

a respiração. Meu tórax não se<br />

movia”. Apenas a dor insuportável<br />

de quem vai perdendo toda a pele<br />

é que o remete para a condição de<br />

ser humano ainda vivo. O estado de<br />

torpor e delírio, causado pelo trauma<br />

por que passa, coloca em dúvida<br />

a “sinceridade” ou mesmo a “sanidade”<br />

desse “eu” em crise. “Tenho<br />

pontos obscuros na minha vida<br />

entre agosto e dezembro de 2011.<br />

Neles devo estar morto.” Alguma<br />

coisa morreu, é inegável. A morte<br />

simbólica de perdas irreparáveis é<br />

fato em separações abruptas como<br />

a de Ricardo Lísias. Mas o personagem<br />

vai mais além e incorpora<br />

dados de realidade palpáveis que<br />

radicalizam os efeitos dos danos<br />

causados no sujeito. As declarações<br />

de desamor da ex-mulher no diário<br />

arrancam-lhe a pele do corpo, roubam<br />

o ar dos pulmões e o ameaçam<br />

de uma morte definitiva. “Resolvi<br />

não falar que às vezes tinha alucinações<br />

e achava que estava dentro<br />

de um texto meu.”<br />

Para suportar e buscar superar<br />

a desestruturação afetiva por<br />

que passa, lança mão de dois dispositivos<br />

emergenciais e definitivos:<br />

o treino para a corrida e a escrita<br />

compulsiva da experiência vivida.<br />

O romance é estruturado em<br />

quinze capítulos a começar por<br />

Quilômetro um – um corpo em<br />

carne viva. A partir daí, seguem os<br />

demais com a numeração antecedida<br />

pela palavra Quilômetro, até<br />

terminar no capítulo Quilômetro<br />

quinze – octogésima sétima corrida<br />

internacional de São Silvestre.<br />

Correr e escrever, escrever e<br />

correr passam a ser as ações sobre<br />

as quais o personagem se debruça<br />

na busca de resgate da sua dignidade<br />

afetiva e de sua recuperação<br />

e superação física. É um homem<br />

ferido, que nesses dois aspectos<br />

se encontra dilacerado. “O corpo<br />

sem pele está mais exposto na<br />

rua. Tentei ficar quieto no cafofo,<br />

mas o medo de morrer de novo me<br />

deixava trêmulo e o suor, toda vez<br />

que eu deitava, incomodava a carne<br />

viva. O jeito é andar.” O corpo<br />

sem a pele dói, os brios e os sentimentos<br />

gritam. A premência da<br />

morte impulsiona para a vida, correr,<br />

superar limites, escrever sobre<br />

o vivido, sobre o sofrido para não<br />

esquecer, para não sucumbir. É<br />

imbuído dessa necessidade de registro<br />

que empreende a invenção<br />

de memórias. Em dado momento<br />

do livro, algumas fotos de família,<br />

lembranças do avô libanês e de<br />

histórias esparsas surgem, quase<br />

como digressões da trama central.<br />

A leitura do diário da mulher,<br />

meses depois do casamento,<br />

revela, além da traição, o desprezo<br />

expresso por ela ao homem que<br />

a amou. O corpo em carne viva<br />

constitui-se enquanto alegoria da<br />

fragilidade desse sujeito exposto à<br />

chuva, ventos e olhares do mundo.<br />

Ferida aberta de uma intimidade<br />

exposta ao domínio coletivo. Espaço<br />

privado e espaço público são<br />

constituídos por porosas fronteiras<br />

que se intercomunicam, como<br />

o mundo interior do personagem,<br />

desprovido da proteção da pele do<br />

corpo está exposto e é atravessado<br />

pelo mundo exterior, suas intrigas,<br />

suas farpas e venenos.<br />

Os quinze capítulos são cortados<br />

por fragmentos do diário da<br />

ex-mulher e, de certa forma, ajuda<br />

a construir a personagem. É bom<br />

lembrar que, apesar da concretude<br />

documental que o discurso do diário<br />

possa apresentar, a seleção dos fragmentos<br />

parte do ponto de vista do<br />

narrador-personagem. As escolhas<br />

dos depoimentos da senhora (X) é<br />

feita pelo protagonista, que põe em<br />

destaque a frivolidade e a crueldade<br />

que a caracteriza, aspectos que<br />

ele até ali desconhecia, movido pela<br />

paixão. Os trechos do diário vão<br />

pouco a pouco tirando a máscara da<br />

mulher que se apresenta: “Eu gosto<br />

de ser casada com um escritor. É só<br />

esconder certas coisas e pronto. Eu<br />

sou uma mulher atraente, não tenho<br />

dificuldade de achar amantes, nunca<br />

tive. (...) Sou a maior jornalista de<br />

cultura do Brasil”.<br />

Muitos desses fragmentos se<br />

apresentam diferenciados da voz do<br />

narrador tanto do ponto de vista gráfico<br />

quanto do estilístico. É um discurso<br />

simplório demais para ser escrito<br />

pela maior jornalista de cultura<br />

do Brasil. Aparecem repetida vezes<br />

mesclando o texto narrativo, repetição<br />

que fere, mas como um ritual<br />

de sacrifício expurga, facilitará mais<br />

tarde a cicatrização. “O Ricardo é um<br />

retardado, não tenho dúvidas, mas<br />

mesmo assim é um escritor, o que<br />

me preserva de certas coisas.”<br />

Os trechos do diário vão mostrando<br />

aspectos mais íntimos da<br />

senhora (X) e ajudam o narrador<br />

na sua construção da ilustre desconhecida<br />

que escolheu para casar:<br />

“Minha ex-mulher é um ser narcísico<br />

inteiramente doentio, o que a<br />

impede de enxergar qualquer coisa<br />

além de um nome em jornais e revistas<br />

e vários cinquentões semipoderosos<br />

na cama”.<br />

Se por um lado, as declarações<br />

do diário deixam Ricardo em<br />

carne viva, por outro, o seu romance<br />

crava as unhas numa ferida<br />

aberta na sociedade brasileira<br />

pela hipocrisia de um determinado<br />

setor de classe, que o narrador denomina<br />

como a elite do nosso país.<br />

O reboliço está formado e ameaças<br />

de processos e coisas do gênero<br />

passam a ser dirigidos ao escritor-<br />

-personagem. Ele responde apenas<br />

com uma discussão metaficcional,<br />

na qual avalia o seu fazer literário e<br />

o produto do seu trabalho. É, nesse<br />

sentido, bem racional e detalhista,<br />

tentando adiantar-se, desnecessariamente,<br />

às críticas que possam<br />

vir. “Divórcio é um romance sobre<br />

o trauma.” Quanto às ameaças<br />

da senhora (X) está tranquilo: “Minha<br />

ex-mulher não existe: é personagem<br />

de um romance”.<br />

A largada na corrida de São<br />

Silvestre e o ponto final no seu livro<br />

trouxeram ao personagem força<br />

física e equilíbrio emocional necessários<br />

para virar a página e deixar<br />

para trás a dor tão aguda da separação<br />

traumática. Para Ricardo Lísias,<br />

autor e personagem, “A arte é<br />

uma possibilidade de resistência”.<br />

Bem que ele “gostaria de contar<br />

tudo”, mas esbarra sempre com a<br />

impossibilidade de traduzir em palavras<br />

toda dor, toda indignação,<br />

todo seu amor. Empreender a travessia<br />

já é uma vitória sobre o silêncio<br />

e a morte. Afirma no romance:<br />

“Acredito que a arte deva desafiar<br />

qualquer tipo de poder. Divórcio<br />

é a minha profissão de fé contra<br />

essas neoditaduras”. E a literatura,<br />

consequentemente, apesar de todas<br />

as suas limitações, é um canal para<br />

soltar o grito, reconstruir uma nova<br />

pele, nova proteção, recobrar as<br />

forças e tocar a vida.


20<br />

169 • maio_ 2014<br />

169 • maio_ 2014<br />

21<br />

A caçada pelo poder<br />

A obra de Thomas Harris escancara a incapacidade do<br />

ser humano de lidar com a infinita imaginação do medo<br />

: : Martim Vasques da Cunha<br />

São Paulo – SP<br />

For those of us climbing to the top of the food chain,<br />

there can be no mercy.<br />

There is but one rule:<br />

hunt or be hunted. Welcome back.<br />

Francis Underwood, em House of cards (S02, E01)<br />

1.<br />

“Ah, o best-seller! Esta incógnita que os literati<br />

não querem compreender! Como eles podem existir?<br />

Como eles podem ter algum sentido nesse mundo onde<br />

nós buscamos o absoluto na arte e queremos destruir a<br />

escravidão do mercado? Afinal, o que são esses monstrengos?<br />

Eles ocupam espaço em nossas livrarias, consomem<br />

o papel que saem das árvores, gastam os bytes<br />

dos nossos computadores, cansam as nossas retinas tão<br />

fatigadas com tramas que ninguém consegue entender,<br />

personagens que jamais existirão na vida real, diálogos<br />

frouxos, narração desastrosa, a ‘suspensão da descrença’<br />

levada ao ponto de ser quase um culto, uma fé sempre<br />

em busca de um milagre — o de que algum exemplar<br />

desse gênero finalmente tenha alguma qualidade a ser<br />

preservada. Mas e o leitor?, você me pergunta. O leitor<br />

deve ter alguma opinião — afinal, se os best-sellers vendem<br />

é porque eles dialogam de alguma forma com este<br />

membro rarefeito do mercado editorial. O leitor?, eu<br />

respondo com outra pergunta. O leitor que vá às favas!”<br />

O pensamento acima foi retirado de forma cirúrgica<br />

de um “fluxo de consciência” (ou stream of consciouness,<br />

se quisermos mais técnicos, mais precisos) de um desses<br />

seres iluminados que fazem parte do petit monde literário<br />

— os aspirantes à fama, aqueles que acreditam piamente<br />

que estão prontos para realizar a arte que superará todas<br />

as artes, o romance que calará a boca de todos os romances,<br />

mas, ao mesmo tempo, não conseguem fazer nada,<br />

só ficam reclamando, a olharem sem nenhum brilho em<br />

seus olhos para as estantes das livrarias, abarrotadas de<br />

best-sellers e alguns clássicos da literatura, resumindo as<br />

suas divagações a uma única pergunta: Por que eu não<br />

consigo escrever algo parecido com isso e ter algum sucesso<br />

para pagar as minhas contas?<br />

A resposta deveria ser, se ele conseguisse ouvir a si<br />

mesmo: Por que você sofre daquilo que é mais ordinário<br />

no petit monde literário — a inveja. Mas esta nunca aparece<br />

por inteiro e às claras, correto? Afinal, quem admitiria<br />

para alguém ao seu lado que sofre exatamente do<br />

mais vergonhoso dos pecados — a inveja, esta serpente<br />

venenosa, que muitos comparam a um câncer, outros a<br />

igualam aos dejetos que saem de nós, e que, no fim, paralisa<br />

o aspirante a escritor porque faz aquilo que todo o<br />

pecado faz: estraga a sua vida? Ninguém, óbvio. Contudo,<br />

lá está ela, presente em cada página de um livro mal<br />

escrito ou que jamais será escrito, presente em cada negociação<br />

de contrato no mercado editorial, presente em<br />

cada crítica literária que, para se autoenganar, resolve<br />

temperá-la com o molho do esnobismo.<br />

Vamos selecionar, por exemplo, uma crítica sobre<br />

um determinado livro que foi um best-seller lançado há<br />

cerca de quinze anos — crítica talvez não seja a palavra<br />

adequada, já que atualmente elas foram fatiadas a<br />

ponto de serem denominadas como “resenhas”. Trata-<br />

-se do texto assinado por ninguém menos que Martin<br />

Amis sobre o então superaguardado romance escrito<br />

por ninguém menos que Thomas Harris — a continuação<br />

do best-seller O silêncio dos inocentes (1988):<br />

Hannibal (1999). Para quem ainda não conseguiu sobreviver<br />

ao fenômeno midiático dos últimos quarenta<br />

anos, aqui vão algumas informações — o Hannibal no<br />

caso é ninguém menos que Hannibal Lecter, o psiquiatra,<br />

médico e genial psicopata que, nas horas vagas,<br />

tinha o costume de comer os órgãos de suas vítimas,<br />

contribuindo assim para o apelido que seus pares (e,<br />

depois, juízes) lhe dariam de “Hannibal, the cannibal”<br />

(infelizmente, a tradução literal desta expressão a faz<br />

perder o trocadilho fonético; se o literati em questão é<br />

monoglota — como muitos que pululam por aí —, não<br />

podemos fazer nada a respeito).<br />

Hannibal foi o terceiro livro de uma série que<br />

logo os especialistas em marketing tentaram apelidá-la<br />

de “Trilogia Lecter” pois ela vinha em sequência de dois<br />

romances que tinham entrado na lista dos mais vendidos<br />

e também haviam sido transformados em dois excelentes<br />

filmes — Dragão Vermelho (publicado em<br />

1981, filmado três anos depois por Michael Mann como<br />

Manhunter, um clássico cult da década de 80) e o já citado<br />

Silêncio, também conhecido no resto do mundo<br />

pelo seu título original — The silence of the lambs (O<br />

silêncio dos inocentes, na tradução no Brasil) — e pela<br />

versão em estado-de-graça que Jonathan Demme conseguiu<br />

fazer com uma igualmente em estado-de-graça<br />

Jodie Foster (interpretando a heroína Clarice Starling)<br />

e um superlativo estado-em-deificação (ou demonização,<br />

de acordo com o ponto de vista) Anthony Hopkins<br />

entregando com prazer uma deliciosa versão de Hannibal<br />

Lecter. Portanto, o clima de expectativa era grande:<br />

o que Harris aprontaria dessa vez?<br />

Ninguém poderia dizer. No caso de<br />

Martin Amis, a expectativa foi tanta que ele<br />

acabou frustrado. Ou não? Em seu texto sobre<br />

Hannibal, publicada na finada revista<br />

Talk, editada por Tina Brown, a mesma jornalista<br />

que quase conseguiu destruir a The<br />

New Yorker (David Remnick jogaria depois<br />

a pá-de-cal) e que ainda hoje polui a nossa<br />

leitura na internet com o seu (atentai para o<br />

nome da publicação, leitores!) The daily beast,<br />

o escritor inglês deixa claro a sua admiração<br />

pelos livros anteriores de Harris. Aliás, é<br />

mais do que uma admiração: se percebermos<br />

bem — e usarmos dos instrumentais que nos<br />

foi dado por Herr Freud — Amis sofre de uma<br />

transferência imediata com o criador de Hannibal<br />

Lecter. Ele queria ser Harris. O autor de<br />

romances invulgares, mas também irregulares,<br />

como A seta do tempo e A viúva grávida,<br />

tinha prestígio no petit monde literário<br />

(tudo bem que ser filho de Kingsley Amis<br />

ajudava um pouco), mas faltava-lhe... sucesso<br />

— o que, em termos mais claros, significa dinheiro.<br />

Não por acaso que, na época em que<br />

sua resenha sobre Hannibal foi publicada,<br />

Amis ainda sofria com o fato de que pedira<br />

a Andrew Wylie, conhecido no mercado pela<br />

alcunha de “O Chacal”, um adiantamento<br />

de 2 milhões de dólares para um romance<br />

que ainda sequer tinha sido escrito — e que<br />

depois seria o admirável A informação —<br />

simplesmente porque ele não tinha dinheiro<br />

para pagar um delicado tratamento dentário<br />

que, entre outras coisas, envolvia retirar<br />

todos os dentes da arcada superior, além de<br />

extirpar um inchaço na gengiva, suspeito de<br />

ser um tumor canceroso. Alguns anos depois,<br />

Amis voltou com os dentes consertados, livre<br />

de ter um câncer, mas, nesse meio tempo,<br />

brigou com sua antiga agente, Pat Kavanagh,<br />

que era, por acaso, esposa de um de seus melhores<br />

amigos, o escritor Julian Barnes.<br />

Pois é: essas são as coisas que fazemos<br />

por dinheiro. Mas também por poder. Afinal,<br />

o que Martin Amis queria ao mostrar o seu<br />

desapontamento por Hannibal em sua resenha<br />

na Talk, além de provar a um leitor mais<br />

arguto que ele tinha saudades do Thomas<br />

Harris dos outros tempos? Assim como Amis<br />

não economizou na admiração do passado,<br />

ele também não economizou nos adjetivos<br />

daquele presente momento de sua vida: de<br />

acordo com seu rigoroso padrão estilístico, a<br />

prosa de Harris, que antes era repleta de observações<br />

agudas que davam dignidade a personagens<br />

imersos em um mundo de predadores,<br />

agora havia se tornado uma “necrópole<br />

do vocabulário” devido a sua “vulgaridade<br />

virtuosística” em que o criador de Hannibal<br />

Lecter havia “ficado gay” pelo seu personagem<br />

mais famoso e, de psicopata divertido, o<br />

transformara em uma espécie de “Camus da<br />

carniça”, repleto de inquietações existenciais<br />

embaladas no mais dissoluto do esnobismo<br />

— algo que, claro, Amis podia entender perfeitamente,<br />

pois ele era um de seus representantes<br />

mais ilustres. Enfim, o enfant terrible<br />

da crítica literária inglesa não gostava mais<br />

de Harris — mas, ainda assim, mostrava o seu<br />

poder ao petit monde de dissecar a quem antes<br />

era visto com um old master que nunca<br />

errara na prática do seu ofício.<br />

Na mesma época, o caderno dominical<br />

do New York Times publicava outro texto<br />

sobre o mesmo livro. Desta vez, contudo, o<br />

autor era ninguém menos que Stephen King.<br />

Para quem ainda não sobreviveu à avalanche<br />

de mídia, todos já devem saber quem é King:<br />

considerado o mestre do gênero horror, este<br />

sim é um escritor que vende, que faz sucesso,<br />

que dá muito dinheiro. E olhem só: ele afirmava<br />

que Hannibal era uma maravilha. Era<br />

exatamente o contrário de tudo o que Amis<br />

tinha dito em sua resenha — o de que o estilo<br />

era uma perfeição, de que os personagens<br />

eram pessoas honradas e sofisticadas que andavam<br />

com naturalidade nos ambientes onde<br />

viviam, que Lecter era o Drácula da nossa<br />

época, pronto para sugar tanto o nosso sangue<br />

como o nosso medo e transformá-los em<br />

material literário de primeira categoria — e<br />

que, mais do que tudo isso, era capaz de conversar<br />

com o leitor comum de igual para igual.<br />

É certo que, na verdade, ninguém sabe<br />

como se dará este fenômeno que tantos querem<br />

alcançar — o “conversar com o leitor comum<br />

de igual para igual” — mas quando isso<br />

acontece, ah, c’est magnifique, como diria Cole<br />

Porter. E King sabe desses assuntos: afinal, o<br />

Thomas Harris por<br />

Ramon Muniz<br />

homem, apesar de também ter uma obra irregular (no nosso padrão de qualidade, em<br />

seus quase sessenta livros publicados, sobra-se apenas Different Seasons, uma coleção<br />

de novelas caprichadas e que mostram que o bardo de Maine poderia ter sido um Martin<br />

Amis do Sul), não precisa fazer adiantamentos vultosos para pagar uma mera conta<br />

ortodentária. Mais: ele não quer ser Thomas Harris — e é muito provável que, no caso, o<br />

inverso seja o verdadeiro, já que Harris gostaria de ter dinheiro suficiente para pagar os<br />

seus constantes cursos no Le Cordon Bleu. Ainda assim, é de se louvar a generosidade de<br />

Stephen King ao resenhar Hannibal. Ele faz aquilo que o crítico literário deveria fazer:<br />

analisa o livro pelo o que ele é, querendo entender quais foram as intenções do autor e,<br />

dessa forma, ajudando o leitor comum, este ser tão abstrato no petit monde, a se guiar se<br />

deve ou não comprar o romance. Isso sim é a mais honesta técnica de venda — quando o<br />

crítico entende o seu objeto sem nenhuma vontade de querer exercer o seu poder em um<br />

mundo que não está nem aí para o verdadeiro mundo ao nosso redor.<br />

Contudo, Thomas Harris não precisa de nada disso. Ao contrário de um Martin<br />

Amis ou de um Stephen King, que colocam um novo romance nas prateleiras a cada<br />

dois, três anos, às vezes ele demora uma década para entregar uma nova criação. Ao<br />

contrário de Amis e King, que são obrigados a dar uma entrevista cada vez que alguma<br />

coisa acontece no maravilhoso mundo da mídia, desde a política de Barack Obama até<br />

a lista dos dez melhores filmes do ano, Harris se esconde da imprensa e não dá uma<br />

declaração pública desde 1974. E, ao contrário desses dois, que praticamente transformaram<br />

as suas vidas em um livro aberto para o público, Harris apenas deixa os seus<br />

leitores saberem que ele gosta de cozinhar, tem uma companheira dedicada há mais de<br />

quarenta anos e que parece ser um regente de coral de igreja quando se deixa fotografar,<br />

com sua vetusta barba de Papai Noel e um olhar bonachão que não dá uma única<br />

pista de que este sujeito é o mesmo que criou um dos personagens mais monstruosos<br />

da literatura contemporânea.<br />

2.<br />

Porque antes de Hannibal Lecter, houve a reportagem policial e o Setembro Negro.<br />

Ou melhor, Domingo negro, o seu primeiro romance, lançado em 1975. Harris<br />

O AUTOR<br />

Thomas Harris<br />

Nasceu no dia 11 de abril de<br />

1940 na cidade de Jackson,<br />

Tennessee. Começou a<br />

sua carreira como repórter<br />

policial tanto nos Estados<br />

Unidos como no México, e foi<br />

também editor da Associated<br />

Press, em Nova York. Seu<br />

primeiro romance, Domingo<br />

negro, foi publicado em 1975,<br />

seguidos depois de Dragão<br />

vermelho (1981), O silêncio<br />

dos inocentes (1988),<br />

Hannibal (1999) e Hannibal<br />

— A origem do mal (2006).<br />

Todos os seus livros foram<br />

transformados em adaptações<br />

cinematográficas de grande<br />

sucesso nas bilheterias.<br />

nasceu no dia 11 de abril de 1940, trabalhou<br />

como jornalista criminal nas publicações da<br />

cidade de Waco, Texas, depois foi repórter<br />

na Associated Press, até que, junto com mais<br />

dois amigos, inspirou-se no atentado terrorista<br />

ocorrido nos Jogos Olímpicos de Munique<br />

e os três decidiram escrever um romance<br />

sobre terrorismo internacional. Os amigos<br />

abandonaram o projeto, mas Harris continuou<br />

— e o resultado foi um livro que ficou<br />

em primeiro lugar na lista dos mais vendidos<br />

do New York Times e um polpudo pagamento<br />

para uma versão cinematográfica, que seria<br />

dirigida por John Frankheiemer e com a<br />

suíça Marthe Keller no papel de uma sedutora<br />

árabe, Dahlia Iyad, que instilaria o “ódio-<br />

-contra-o-Ocidente” do americano abandonado<br />

no Vietnam, o piloto Michael Lander,<br />

desta vez adequadamente interpretado pelo<br />

eterno neurótico Bruce Dern.<br />

Iyad e Lander planejam um daqueles<br />

atentados que, anos depois, anteciparia de<br />

forma assustadora o 11 de setembro: jogar<br />

um dirigível repleto de explosivos em pleno<br />

estádio de futebol americano, lotado, justo no<br />

dia da abertura do Super Bowl. Afinal, quem<br />

imaginaria que uma bomba pode cair literalmente<br />

dos céus? Ninguém, nem mesmo o<br />

superagente do Mossad, David Kabakov, um<br />

daqueles sujeitos que sente o cheiro do Al Fa-<br />

tah muito antes de algum míssil, tanto israelense<br />

como palestino, atingir a faixa de Gaza.<br />

É claro que, na década de 1970, Gaza ainda<br />

não era notícia, e ambos os povos ainda sofriam<br />

as cicatrizes da Guerra dos Seis Dias —<br />

além de Munique, que, até então, tinha sido<br />

algo que ninguém poderia vislumbrar que<br />

poderia ser executado.<br />

Domingo negro parece ser mais um romance<br />

de suspense caça-níquel sobre a caçada<br />

de gato-e-rato contra o tempo, mas já estabelece<br />

o tema sobre o qual Thomas Harris desenvolveria<br />

nos livros seguintes: a incapacidade do ser<br />

humano de lidar com a infinita imaginação do<br />

medo. Todos os personagens, de Dahlia Iyad a<br />

David Kabakov, passando pela amante deste,<br />

Rachel Bauman, até o revoltado Michael Lander,<br />

respiram e suspiram o medo. E Harris o<br />

percebe como poucos, até mesmo nos mínimos<br />

detalhes, como podemos ver no seguinte trecho,<br />

que faria inveja a qualquer descrição feita<br />

por Martin Amis (e que teria um número muito<br />

maior de vocábulos, sem dúvida):<br />

A convalescência de David Kabakov<br />

no apartamento da Dra. Rachel Bauman<br />

foi uma época estranha, quase surreal, para<br />

ela. Sua casa era clara e opressivamente em<br />

ordem — e ele chegou nela como um gato<br />

selvagem que voltou após uma briga na chuva.<br />

O tamanho e a proporção dos quartos e<br />

dos móveis pareceram mudar para Rachel<br />

com a presença de Kabakov e Moshevsky no<br />

lugar. Para homens tão robustos, eles não<br />

pareciam ocupar muito espaço. Isso foi um<br />

alívio para ela, mas depois começou a preocupá-la<br />

um pouco. O tamanho e o silêncio<br />

formam uma estranha combinação na natureza.<br />

Eles são os instrumentos da danação.<br />

Será que os livros de Harris também<br />

são “instrumentos da danação”? Bem, Domingo<br />

negro não aliviava na sua perspectiva<br />

de que, mesmo com um caçador arguto<br />

como Kabakov, o terror podia, de fato, ter a<br />

última palavra. O mesmo pode-se ser afirmado<br />

no segundo romance de Harris, publicado<br />

seis anos depois do primeiro — o estupendo<br />

Dragão vermelho (1981), no qual<br />

somos enfim apresentados ao Dr. Hannibal<br />

Lecter, mesmo que o livro não seja sobre ele,<br />

e sim sobre outro personagem memorável,<br />

Will Graham. O primeiro capítulo já mostra<br />

que Harris domina o bom e velho estilo<br />

Hemingway, em que toda a história do que<br />

o leitor precisa saber que aconteceu é contada<br />

por meio de diálogos secos, precisos e<br />

sem nenhuma espécie de sentimentalismo.<br />

Graham é um gênio da psicologia que tem<br />

o dom — se podemos chamá-lo assim — de<br />

ter empatia com assassinos em série, em<br />

particular com os psicopatas violentos que<br />

perturbam o dia a dia do agente do FBI,<br />

Jack Crawford, que o convida para trabalhar<br />

no seu departamento. O motivo? Agora há<br />

mulheres sendo mortas e estranguladas em<br />

suas casas — e descobriremos depois que o<br />

responsável por tudo isso é Francis Dolarhyde,<br />

um sujeito com lábio leporino e que,<br />

cada vez que mata alguém, acredita estar<br />

mais próximo de se tornar o dragão vermelho<br />

que embeleza algumas gravuras do poeta<br />

e pintor William Blake. Para saber mais exatamente<br />

como esse sujeito pensa, Crawford<br />

sugere a Graham que vá visitar na prisão o<br />

Dr. Lecter, que foi justamente capturado<br />

pelo jovem psicólogo graças a um golpe de<br />

sorte (palavras do bom doutor) e que, com<br />

isso, guardou alguma mágoa do evento.<br />

No prefácio comemorativo aos vinte<br />

anos de publicação do seu livro, Harris, em<br />

uma rara declaração, afirmou que Hannibal<br />

Lecter surgiu em sua mente quando, uma noite,<br />

tentava entender os latidos e os gemidos<br />

dos cães selvagens que rodeavam a sua casa.<br />

Ele precisava de alguém que fosse um duplo<br />

de Will Graham — de alguém que fosse o seu<br />

igual, mas também fosse superior em algo inapreensível.<br />

E conseguiu: o Lecter que surge<br />

em Dragão vermelho é um ser que controla<br />

toda a arquitetura invisível do romance — e<br />

o que era para ser mais um livro comum de<br />

procedimento criminal torna-se um autêntico<br />

plano macabro de vingança em que Hannibal<br />

(já podemos chamá-lo com essa intimidade?)<br />

enfim ensinará ao pobre Graham quais são as<br />

marcas permanentes de se viver em um mundo<br />

onde o medo detém a única imaginação<br />

possível para nossas consciências.<br />

Pois é isso que Thomas Harris faz com<br />

sua obra: ele nos ensina a perceber como a<br />

nossa imaginação é muito precária para perceber<br />

as infinitas variações que o medo traz<br />

para as nossas pobres vidas. E Lecter é a personificação<br />

desse medo — ao mesmo tempo<br />

em que ele o domina, há também a fascinação<br />

de que jamais seremos como esse sujeito porque<br />

não conseguimos adentrar no seu “palácio<br />

da memória”. Poderíamos dizer “graças a<br />

Deus” e irmos em frente; mas não, queremos<br />

saber mais sobre esse personagem, queremos<br />

encaixá-lo nos nossos conceitos, mesmo que<br />

ele mesmo diga que isso é impossível (“Você<br />

não tem como me explicar”, diz. “Eu apenas<br />

aconteci.”) e que a nossa fascinação aumente<br />

a cada virada de página. Talvez o que Harris<br />

quer que saibamos é o mesmo que ele aprendeu<br />

com a parábola de um sultão, que dizia:<br />

eu não possuo falcões, eles moram comigo.<br />

E como toda a caçada, há um momento<br />

em que você deixa de ser o caçado para se<br />

tornar o caçador — afinal, mais cedo ou mais<br />

tarde, nós cumprimos todos os papéis nesta<br />

vida. Mas como fazer para continuar na caçada<br />

e não ser exterminado nela? É em busca<br />

desta resposta que Harris escreve O silêncio<br />

dos inocentes (1988), em que Hannibal<br />

Lecter deixa de ser um mero demiurgo para se<br />

tornar um eficaz psicopompo na vida de Clarice<br />

Starling, jovem agente do FBI que adentra<br />

nos labirintos macabros do crime, em busca<br />

de Buffalo Bill, um serial killer que assassina<br />

mulheres gordinhas e suculentas para depois<br />

se transformar em uma delas (sim, no mundo<br />

predatório de Harris, os psicopatas não entram<br />

no rol do politicamente correto: ou são<br />

deficientes, ou são transformistas sexuais).<br />

Não se sabe se Harris tinha plena noção de<br />

que o seu romance pode ser lido como uma<br />

espécie de iniciação religiosa de uma alma<br />

inocente aos redutos infernais da condição<br />

humana, mas é de se notar que, neste livro,<br />

Lecter não é mais um representante do medo:<br />

ele é o próprio medo, que instiga a brava Clarice<br />

a ir ao fundo de si mesma e enfrentá-lo<br />

com a coragem necessária que só o mundo<br />

permite que os astuciosos sobrevivam.<br />

Para permanecer viva na caçada, Starling<br />

só pode usar da única faculdade que um<br />

ser humano possui quando se depara com<br />

a companhia das trevas: a imaginação. E<br />

quando usamos esse termo, não estamos falando<br />

de criar mundos alternativos ou então<br />

de insistir nas fugas da realidade devido ao<br />

fato de que a pressão existencial torna-se<br />

algo no limite do insuportável. Falamos daquilo<br />

que, às vezes, é a única coisa que nos<br />

resta: colocar-se no lugar do Mal e imaginar<br />

como ele age, sem se deixar contaminar<br />

por ele e, daí, extrair um Bem maior. Eis a<br />

razão deste livro, que também fez sucesso<br />

e deu todo o dinheiro que Harris merecia,<br />

chamar justamente (no título original) “o<br />

silêncio dos cordeiros”. O cordeiro, é claro,<br />

representa o Cristo sacrificado — mas o seu<br />

silêncio é a estratégia mais forte que deve<br />

ser usado contra o Mal Lógico que Hannibal<br />

Lecter tenta imitar. Será este mesmo silêncio<br />

que, no meio da caçada, apascenta os<br />

falcões que existem dentro de nós e que nos<br />

impelem a voar acima das nossas possibilidades,<br />

quando, no fundo, temos de usar a<br />

imaginação para saber que sempre existirá<br />

uma caveira atrás do rosto. Lecter tenta enganar<br />

Clarice, mas não consegue; no final,<br />

ela captura Buffalo Bill por conta própria,<br />

com o apoio de seu verdadeiro mentor, Jack<br />

Crawford, e vence o medo dos seus traumas,<br />

dos seus obstáculos interiores — mesmo<br />

que seja por pouco tempo.<br />

3.<br />

Porque quem disse que o caçador é obrigado<br />

a continuar na caçada? Muitas vezes, ele<br />

pode querer simplesmente desistir — mesmo<br />

quando sabe que isso é impossível. É o que<br />

acontece em Hannibal (1999), a terceira<br />

parte da saga Lecter e o romance onde finalmente<br />

o conhecemos melhor, apesar de isso<br />

não ser muito recomendado tanto pelos psicólogos<br />

como por literati como Martin Amis.<br />

E quando falamos que conhecemos melhor,<br />

isso significa que Harris nos obriga a entrar<br />

no seu “palácio da memória” — uma artimanha<br />

que o “rei-dos-psicopatas” emprestou<br />

dos renascentistas para reconstruir e colocar<br />

em dúvida o seu passado mais do que nebuloso<br />

—, não para humanizá-lo (como pensou<br />

erroneamente Amis), mas para entender<br />

como um homem qualquer se tornou o próprio<br />

medo e como contaminou os corações e<br />

as mentes de todas as outras pessoas — em<br />

especial, a da brava Clarice.<br />

No final de O silêncio dos inocentes,<br />

Lecter havia conseguido escapar da prisão —<br />

e agora vamos acompanhá-lo em suas andanças<br />

por Florença, em que Harris nos confunde<br />

se o esnobismo de seu personagem mais<br />

famoso poderia ser também do autor (ou se<br />

trata de mais uma caipirice no melhor estilo<br />

jeca sulista), enquanto a polícia está no seu<br />

encalço e Clarice Starling enfrenta a verdadeira<br />

descida aos infernos que só a maturidade<br />

proporciona quando percebemos que estamos<br />

velhos demais para continuar na caçada.<br />

A agente do FBI se vê numa ciranda de desejo<br />

erótico e político — e o seu mentor Jack Crawford,<br />

que contrabalançava a influência diabólica<br />

na sua iniciação espiritual descrita em<br />

O silêncio, se vê fraco demais para protegê-<br />

-la de outros predadores burocráticos, como<br />

o repugnante Paul Krendler ou então o monstruoso<br />

multimilionário Mason Verger, uma<br />

antiga vítima que sobreviveu literalmente às<br />

mordidas de Lecter e que agora deseja uma<br />

vingança implacável. O que antes era apenas<br />

sugerido nos livros anteriores, desta vez<br />

Harris deixa bem explícito: Hannibal é um<br />

romance gótico, uma mistura de Bram Stoker<br />

com Flannery O’Connor, em que os símbolos<br />

demoníacos são levados ao limite da ironia,<br />

em um procedimento que daria inveja a Theodor<br />

Adorno; já que, ao mesmo tempo em<br />

que busca alguma humanidade no psicopata<br />

Lecter — sabemos, por exemplo, que ele tem<br />

a sua origem homicida explicada porque sua<br />

irmã mais nova, Mischa, foi devorada por vagabundos<br />

na Segunda Guerra Mundial — ele<br />

retira toda a coragem que antes esperávamos<br />

de Clarice Starling, chegando ao ponto de<br />

jogá-la na cova dos leões, quando Harris termina<br />

a sua história e a transforma na amante<br />

hipnotizada e fascinada de ninguém menos<br />

que... Hannibal Lecter.<br />

Sim, a brava Clarice se encanta perante<br />

os braços de sua aparente nemesis. Mas não<br />

será que sempre foi assim? Nada foi muito<br />

simples no mundo macabro de Thomas Harris,<br />

apesar de tentarem catalogá-lo na prateleira<br />

dos best-sellers. Na verdade, ele faz pela<br />

literatura popular (de massa, como diriam os<br />

estudiosos da indústria cultural...) algo que a<br />

literatura de alta cultura esqueceu há muito<br />

tempo: comunicar ao leitor aquela saudável<br />

suspeita pelo poder que faz uma sociedade<br />

permanecer sã. Porque os romances de Harris<br />

são sobre como um homem qualquer —<br />

o dr. Hannibal Lecter, Dahlia Iyad, Clarice<br />

Starling, Paul Krendler — se deixa envolver<br />

na sua libido dominandi, na sua vontade de<br />

poder, contagiando os outros ao seu redor<br />

para imitá-lo sem pensar nas consequências<br />

morais desses atos, deixando-se fascinar pelo<br />

Mal e pelo medo, controlando a quem quiser,<br />

de todas as formas — do mais baixo ao mais<br />

alto dos escalões do governo —, chegando ao<br />

ponto extremo de comê-las para ter o domínio<br />

completo de seus desejos e de quem não<br />

se submete à sua vontade.<br />

Talvez seja por isso que Thomas Harris<br />

não dê mais declarações à imprensa, tornando-o<br />

assim uma espécie de Thomas Pynchon<br />

da literatura de massa (como bem apelidou<br />

Stephen King). Ambos os autores e seus respectivos<br />

livros têm um código secreto, uma<br />

mensagem que poucos conseguem decifrar:<br />

a de que vivemos em uma sociedade repleta<br />

de psicopatas em atividade ou esperando<br />

apenas a possibilidade de agir. Somos todos<br />

predadores em potencial — e não temos<br />

como escapar da caçada que nos envolve.<br />

Cedo ou tarde, seremos devorados ou teremos<br />

que devorar os outros.<br />

Em tal mundo, não há espaço para a<br />

inocência — e este parece ser o tema do romance<br />

mais recente de Thomas Harris, Hannibal<br />

rising (2006), justamente o livro que<br />

narra como foi a transformação de uma simples<br />

criança a um psicopata sem escrúpulos.<br />

Ao mostrar que o Mal sufoca até mesmo a<br />

provável bondade que existe no coração de<br />

um menino traumatizado, Harris também<br />

mostra que o poder é, antes de tudo, uma<br />

escolha moral que independe do que feito<br />

contra uma pessoa e sim de como ela opta<br />

a reagir com o desejo de vingança ou com<br />

a aceitação da precariedade deste mundo.<br />

E, no meio disso tudo, há sempre a caçada<br />

atrás de um objeto misterioso e intangível<br />

que poucos conseguem definir. Será ela que<br />

faz o leitor perceber que talvez a grande lição<br />

de Thomas Harris aos seus leitores, sejam de<br />

alta ou baixa cultura, tem uma força benéfica<br />

muito mais efetiva do que os arabescos<br />

de Martin Amis — uma lição muito próxima<br />

dos conselhos de Auberon Waugh (sim, o<br />

filho de Evelyn), que uma vez escreveu: “A<br />

sociedade deve aceitar que o desejo de poder<br />

é uma desordem de personalidade por si só,<br />

como o desejo de ter uma relação sexual com<br />

uma criança ou de sentir o gosto de borracha<br />

embaixo de suas roupas. (...) A política,<br />

nunca canso de me dizer, é para deslocados<br />

sociais e emocionais, gente com inteligência<br />

limitada, que têm nada além de rancor em<br />

suas emoções. O propósito da política, para<br />

eles, é ajudá-los a superar essas limitações<br />

e esses sentimentos de inferioridade e compensar<br />

as suas inadequações pessoais na<br />

procura pelo poder. E isso sem dúvida causa<br />

muito mais infelicidade do que felicidade”.<br />

Para irmos além de toda essa tragédia,<br />

talvez possamos terminar com uma exclamação<br />

importante de Ortega y Gasset — na<br />

verdade, um quase-imperativo que se parece<br />

muito com uma ordem militar — e que é um<br />

aviso de profunda raiz moral: “Alerta!”. Em<br />

um livro da maturidade chamado La caza y<br />

los toros, Ortega parte de um simples fato social<br />

do passado — o hábito da caça como um<br />

esporte que revela a capacidade humana de<br />

controlar ou dominar a nossa natureza violenta<br />

— para levantar voos vertiginosos de<br />

pensamento, e afirmar que a própria existência<br />

humana é uma contínua caçada em que<br />

devemos estar constantemente em atenção<br />

imediata, para capturarmos a essência das<br />

coisas reais e não nos deixarmos capturar por<br />

ilusões do passado, nem do futuro e do presente.<br />

Thomas Harris nos ajuda a fazer justamente<br />

isso: a ficarmos alertas com os falcões<br />

dentro de nós, simplesmente porque jamais<br />

poderemos dominá-los. E esta é a única regra<br />

que existe neste mundo devastado pelos canibais<br />

que nos governam.


22<br />

169 • maio_ 2014<br />

Malhas que o<br />

Império tece<br />

O português Pedro Rosa Mendes aborda a<br />

independência do Timor-Leste num bem-sucedido romance<br />

O AUTOR<br />

Pedro Rosa<br />

Mendes<br />

Nasceu em 1968, em<br />

Cernache do Bonjardim,<br />

Portugal. É autor de uma<br />

obra heterogênea que<br />

engloba ficção, ensaio e<br />

reportagem, com incursões<br />

no teatro e na poesia. É<br />

autor de quatro romances<br />

– Baía dos tigres (1999,<br />

prêmio Pen de narrativa),<br />

Atlântico (2003), Lenin<br />

oil (2006) e Peregrinação<br />

de Enmanuel Jhesus<br />

(prêmio Pen de narrativa<br />

2011). Atualmente, vive<br />

em Genebra, na Suíça.<br />

: : Haron Gamal<br />

Rio de Janeiro – RJ<br />

A<br />

literatura<br />

portuguesa<br />

contemporânea sempre<br />

nos surpreende com boas<br />

obras, e Peregrinação<br />

de Enmanuel Jhesus, de Pedro<br />

Rosa Mendes, segue a mesma trilha.<br />

Trata-se de um livro que descreve<br />

todo o percurso que resultou na<br />

independência do Timor-Leste do<br />

domínio da República da Indonésia,<br />

em 1999. Mas para os amantes da literatura<br />

a vantagem é que a História<br />

é narrada em forma de ficção.<br />

Já no capítulo de abertura,<br />

Matarufa, veterano da resistência<br />

timorense, relata o dia em que a<br />

ONU anunciou o resultado oficial<br />

do plebiscito que reconheceu a<br />

pequena ilha como país independente:<br />

“Às 9 horas da manhã de<br />

sábado, 4 de setembro de 1999, no<br />

Hotel Ma’hkota, em Díli, Ian Martin,<br />

chefe da missão internacional,<br />

anunciou os resultados da consulta<br />

popular em Timor-Leste: 21,5 por<br />

cento tinham votado a favor da autonomia,<br />

78,5 por cento votaram<br />

contra”. É preciso esclarecer que<br />

“a favor da autonomia” significava<br />

permanecer como região “autônoma”<br />

da Indonésia, o que não foi a<br />

vontade dos habitantes de Timor-<br />

-Leste, pois a maioria optou pela<br />

independência.<br />

O romance possui um eficaz<br />

artifício literário. Começa como<br />

um auto de missão levado avante<br />

pelo bispo Per Kristian Kartevold,<br />

da Igreja da Noruega (outubro/<br />

novembro de 1999). Isto quer dizer<br />

o seguinte: trata-se de uma investigação<br />

sobre o suposto paradeiro<br />

de um nativo, afilhado deste bispo,<br />

que teria desaparecido no Matebian<br />

(montanha sagrada conforme<br />

a tradição local), exatamente no<br />

dia do plebiscito na ilha.<br />

Em forma de inquérito, são<br />

enumerados vários personagens que<br />

teriam concordado em falar sobre o<br />

desaparecido, sobre o país e, enfim,<br />

sobre tudo que estava relacionado<br />

à luta pela libertação. Não escapam<br />

narrativas sobre as tradições dos<br />

vários povos que formam a etnia timorense,<br />

mesmo aqueles que antecederam<br />

a chegada dos portugueses.<br />

É sempre bom lembrar que a chegada<br />

de Portugal à região data do segundo<br />

decênio do século 16. Entre<br />

os personagens que depõem neste<br />

inquérito literário, encontram-se<br />

pessoas que estiveram ao lado da<br />

resistência timorense e outras que<br />

atuaram junto à administração da<br />

ilha sob o domínio da Indonésia ou<br />

fizeram parte do seu serviço secreto.<br />

Como se sabe, a Indonésia invadiu o<br />

Timor logo após a saída dos portugueses,<br />

em 1975.<br />

Ao apresentar testemunhos<br />

de personagens que estiveram em<br />

ambos os lados da luta pelo domínio<br />

do Timor, a narrativa acaba por<br />

tornar-se polifônica. São oito pessoas<br />

(sete homens e uma mulher,<br />

entre os homens há um padre) que<br />

contam a história do país, cada um<br />

sob a sua perspectiva. O romance<br />

de Pedro Rosa Mendes, com isso,<br />

filia-se à narrativa de António Lobo<br />

Peregrinação de<br />

Enmanuel Jhesus<br />

Pedro Rosa Mendes<br />

Tinta da China<br />

376 págs.<br />

TRECHO<br />

Peregrinação de<br />

Enmanuel Jhesus<br />

“Eu nasci em 1974, tinha três<br />

ou quatro anos na altura, não<br />

entendia nada do que estava<br />

a acontecer. O meu pai não<br />

queria dar-me. O soldado<br />

indonésio arrancou-me e<br />

deu-me a minha mãe. Vieram<br />

separá-la de meu pai também.<br />

Lembro-me dos gritos nossos<br />

e deles misturados. Uma<br />

bulha. Depois, mais nada. A<br />

minha mãe, os meus irmãos e<br />

eu continuámos descendo a<br />

encosta. Meu pai ficou para trás.<br />

Antunes, ficcionista que melhor<br />

soube ousar nas letras lusitanas. A<br />

influência de Antunes pode ser observada<br />

não apenas na forma (organização<br />

dos parágrafos, diálogos<br />

e pontuação), mas também na repetição<br />

dos mesmos acontecimentos<br />

sob pontos de vista diferentes.<br />

Além desses aspectos estruturais,<br />

é possível perceber no romance<br />

o mal que toda espécie de colonialismo<br />

foi capaz de causar mundo<br />

afora. Até mesmo a presença portuguesa,<br />

que acabou por predominar<br />

porque permaneceu durante muito<br />

tempo no local e deixou como herança<br />

a língua, é discutida pelo autor.<br />

Portugal colocou uma centelha<br />

a mais na já conturbada rivalidade<br />

existente na região à época das<br />

grandes navegações. Povos de Java<br />

e de Sumatra havia muito pretendiam<br />

o domínio da região.<br />

No final do romance, o autor<br />

empreende uma viagem à Noruega,<br />

aonde vai ao encontro do tal bispo<br />

que seria o autor do relato que nos<br />

apresenta. Após boas observações<br />

sobre o país nórdico, os contrastes<br />

com Portugal e com o Timor, o<br />

suposto “editor” (este seria o papel<br />

de Pedro Rosa Mendes na organização<br />

do livro) estende sua viagem<br />

ao Polo Norte, exatamente à cidade<br />

onde o bispo reside, localizada em<br />

território russo. Ali encontra o religioso<br />

com a saúde já bastante debilitada,<br />

mas ainda capaz de lhe fazer<br />

revelações que proporcionam novo<br />

alento às suas investigações.<br />

Talvez o maior êxito do romance<br />

seja a bem-sucedida exposição<br />

do caráter mágico relativo à<br />

resistência das hostes timorenses<br />

contra os opressores, sejam eles de<br />

onde quer que tenham vindo. Tais<br />

segmentos lembram o realismo<br />

mágico das literaturas da América<br />

Latina. Na luta pela liberdade, até<br />

mesmo os ancestrais estão sempre<br />

de prontidão, habitando um passado<br />

que de certa forma revela-se<br />

sempre presente, ou um presente<br />

que não se atemoriza diante de um<br />

duvidoso futuro.<br />

Outro ponto digno de nota é<br />

a descrição das atrocidades perpetradas<br />

pelas forças de ocupação da<br />

Indonésia, que, segundo a narrativa,<br />

não pouparam velhos, mulheres<br />

e crianças, condenando todos à<br />

fome, à miséria, à morte.<br />

A estada de Pedro Rosa Mendes<br />

no Timor-Leste, a título de<br />

fazer uma série de reportagens sobre<br />

a perspectiva da região após a<br />

independência, acaba por revelar<br />

não apenas a escolha do povo local<br />

pela independência e pela língua<br />

proibida pela Indonésia enquanto<br />

esteve no poder, o português, mas<br />

ainda esclarece que, no mundo<br />

atual, cultura alguma é capaz de<br />

ser autossuficiente.<br />

O bem vence o mal<br />

: : Luiz Horácio<br />

Porto Alegre – RS<br />

O<br />

que falta ao ser humano?<br />

Vir de fábrica com<br />

a tatuagem, em lugar<br />

bem visível, “aprecie<br />

com moderação”. Pouco importa<br />

se estranho ou familiar, o perigo é<br />

o mesmo. Desprezo, roubos, assassinatos<br />

e por aí afora. No quesito<br />

assassinato, parece que o mais em<br />

conta é cometer o crime dentro do<br />

núcleo familiar. Fica tudo em casa.<br />

Para enfrentar essa convivência<br />

inevitável com seu semelhante,<br />

o homem recorre aos ensinamentos<br />

de gurus, de deuses, de pastores,<br />

no mais das vezes de personal trainers.<br />

Não fujo à regra, também tenho<br />

meu guru, aquele que me guia,<br />

que me impulsiona e que também<br />

me freia, atende pelo nome, sem<br />

sobrenome, medo. Foi o que consegui<br />

dentro de minha precariedade.<br />

Emma Forrest, outra classe social,<br />

encontrou no seu psiquiatra,<br />

apelidado de Dr. R, o seu guru. A<br />

autora não disfarça a sua gratidão.<br />

Guru porque ele ultrapassa os limites<br />

profissionais e torna-se amigo e<br />

confidente de Emma.<br />

Nove anos atrás, o dr. R<br />

salvou minha vida. Graças a ele,<br />

meus pais tiveram sua filha de<br />

volta. Temos uma dívida eterna<br />

e somos eternamente gratos pela<br />

dádiva de sua presença em nossa<br />

vida. Com o passar dos anos, eu<br />

brincava com ele dizendo que ele<br />

era um otimista terminal. Graças<br />

a Deus ele era assim; peguei carona<br />

em sua fé e entusiasmo por<br />

Sua voz dentro de mim<br />

Emma Forrest<br />

Trad.: Maira Parula<br />

Rocco<br />

192 págs.<br />

TRECHO<br />

Sua voz dentro de mim<br />

“A primeira vez que fui ver o<br />

dr. R foi em 2000, um bom<br />

ano para mudar de vida.<br />

Peguei o trem da linha 6 ao<br />

sair da emergência,onde<br />

passei a noite toda. Eu me<br />

tornara tão entorpecida em<br />

minha vida, que nem o sexo<br />

eu registrava, a não ser que<br />

doesse, e então eu, muito<br />

distante, podia ver que era<br />

eu na cama. Apesar dos<br />

cor- tes e da bulimia, eu<br />

não conseguia ser rápida o<br />

suficiente para me machucar,<br />

então o namorado era de<br />

alguma ajuda.<br />

um longo tempo. Levarei o dr. R<br />

comigo sempre. Eu me esforçarei<br />

para imitar sua gentileza e equilíbrio,<br />

especialmente perto dos que<br />

são doentes e sofrem, como eu era<br />

quando tive a sorte de ficar sob<br />

seus cuidados.<br />

AUTORA<br />

Emma Forrest<br />

A jornalista, escritora e roteirista<br />

Emma Forrest foi criada em<br />

Londres, Inglaterra, e começou a<br />

carreira ainda adolescente, quando<br />

foi convidada para assinar uma<br />

coluna no jornal Sunday Times.<br />

Posteriormente, colaborou com<br />

publicações como Vogue, Vanity<br />

Fair e Harper’s Bazaar, entre<br />

outras, e teve roteiros comprados<br />

por produtoras como Plan B<br />

Entertainment, do ator Brad Pitt,<br />

e Miramax. Atualmente, vive em<br />

Los Angeles, Estados Unidos.<br />

Sua voz dentro de mim<br />

apresenta as memórias de Emma.<br />

Está lá seu medo, e ela o torna público<br />

ao revelar temer seu lado escuro,<br />

até então algo extremamente<br />

particular.<br />

Durante o período em que<br />

Emma foi paciente do Dr. R, oito<br />

anos, surgem flashbacks, alguns<br />

emblemáticos, tanto para a narrativa<br />

quanto para o leitor começar a<br />

suspeitar do equilíbrio da autora/<br />

personagem. Um exemplo: Emma,<br />

então com 13 anos, visita a galeria<br />

Tate, em Londres. Ela não economiza<br />

tempo em sua observação do<br />

quadro Ofélia, tela de John Everett<br />

Millais.<br />

Vale lembrar que Ofélia traduz<br />

a mulher trágica que à época<br />

—1852 — era presença constante<br />

na pintura romântica. Outro detalhe:<br />

Ofélia era a namorada suicida<br />

de Hamlet. Na pintura de Millais, a<br />

mulher flutua em um lago, aparenta<br />

melancolia e resignação.<br />

O primeiro romance de<br />

Amélie Nothomb, Hygiène de<br />

l’assassin, traz detalhe dessa mesma<br />

pintura na capa. O livro narra<br />

a história de um prêmio Nobel de<br />

literatura ao qual restam dois meses<br />

de vida. Jornalistas do mundo<br />

inteiro pretendem entrevistá-lo,<br />

poucos conseguem. Um misto de<br />

entrevista e tortura. Cinismo e ambiguidade<br />

podem ser a tradução da<br />

obra de Amélie. Tudo resguardado<br />

por Ofélia. Pontos em comum com<br />

Sua voz dentro de mim? Vários.<br />

Elejo um: a sombra da morte que<br />

paira e espreita.<br />

Essa sombra que não se limita<br />

a perseguir a autora, incluo seus<br />

namorados durante esse período<br />

de terapia. Eles se tornam personagens<br />

importantes na narrativa.<br />

Os relacionamentos ocorrem ao<br />

ritmo dos descompassos de Emma,<br />

capazes de carregar ambos às profundezas<br />

mais escuras, ou relacionamentos<br />

tranquilos, beirando a<br />

monotonia.<br />

Emma Forrest até certa altura<br />

da vida parecia não ter motivos<br />

para se preocupar com questões<br />

tão subjetivas, o medo que alimentamos<br />

ou que nos acostumamos é<br />

coisa nossa. Este aprendiz, embora<br />

tosco, tem medos paralisantes de<br />

alguns de seus pensamentos. Mas<br />

deixemos isso de lado. Trouxe o<br />

exemplo apenas para mostrar que<br />

esse vírus ataca mentes privilegiadas<br />

e também as simplórias. No<br />

caso, a do resenhista. Pois bem,<br />

tudo transcorria conforme o figurino<br />

na vida da protagonista, talvez<br />

até excedendo as expectativas. A<br />

autora, ainda jovem, abandonou a<br />

segurança familiar em Londres e<br />

foi viver em Nova York. Ela desfilava<br />

pela passarela da vida, seu dia a<br />

dia era de causar inveja ao mais ferrenho<br />

budista. Jornalista e escritora,<br />

trabalhava para o The Guardian<br />

e seu primeiro livro não tardaria a<br />

ser publicado. Essa é a parte clara<br />

da vida da autora, o lado escuro<br />

acolhia a jovem com problemas<br />

psiquiátricos que se manifestavam<br />

via bulimia e automutilação.<br />

O tema é forte e infelizmente<br />

se propaga em nosso cotidiano —<br />

conheci jovens que se cortavam e<br />

a bulimia é quase um modismo —,<br />

mas Emma trata suas memórias<br />

com humor inteligente. Inclusive<br />

no auge de sua depressão, pelo menos<br />

no livro, ela não permite o domínio<br />

da tristeza, da autopiedade.<br />

Sua voz dentro de mim,<br />

embora sua primorosa narração<br />

que empresta leveza ao tema, é<br />

mais um livro de autoajuda. O<br />

bem, mais uma vez, vence o mal.<br />

Mesmo quando esse bandido cruel<br />

repousa dentro de nós.


169 • maio_ 2014<br />

23<br />

O falso verdadeiro<br />

Os fenômenos excêntricos da obra de H. G. Wells produzem formas de vivência que desconhecemos<br />

: : Nelson Shuchmacher<br />

Endebo<br />

Rio de Janeiro – RJ<br />

Certa vez perguntava Paul<br />

Valéry, após afirmar que<br />

“o falso sustém o verdadeiro”:<br />

“o que seria de<br />

nós sem a ajuda do que inexiste?”.<br />

A problemática que essa questão<br />

invoca é tão antiga quanto o próprio<br />

pensamento. Há, no plano das<br />

ações humanas, um algo de impossível<br />

que é misteriosamente a<br />

imagem necessária das nossas realizações<br />

concretas. Não há política<br />

que se desprenda definitivamente<br />

de seu veio utópico. A literatura<br />

presta um vigoroso e matizado testemunho<br />

disso, e o caso do britânico<br />

H. G. Wells, pioneiro escritor de<br />

utopias científicas, é exemplar nesse<br />

sentido. A coletânea O país dos<br />

cegos e outras histórias, reunindo<br />

a segunda versão do conto-<br />

-título e outras 17 narrativas curtas<br />

cobrindo o período de 1894 a 1939,<br />

dá uma amostra farta dos gêneros<br />

pelos quais Wells passeou em sua<br />

longa carreira, desde a ficção científica<br />

que o fez famoso, até a aventura,<br />

o conto policial e a fábula.<br />

Na segunda metade do reinado<br />

da Rainha Vitória (1837-1901)<br />

o debate sobre as contradições<br />

sociais do Império Britânico — à<br />

época o mais poderoso e abastado<br />

do mundo — foi fortemente<br />

pontuado pelos termos gerais do<br />

imperialismo e socialismo, que figuravam<br />

como possíveis reações<br />

ao predomínio, durante boa parte<br />

do século 19, da fé inabalável no<br />

bem-estar social e espiritual como<br />

consequência do progresso técnico<br />

e científico. Esse característico otimismo<br />

é exemplificado sobretudo<br />

no trabalho histórico de Thomas<br />

Macaulay e na poesia de Alfred<br />

Tennyson. Londres é a primeira cidade<br />

do mundo a ter mais de um<br />

milhão de habitantes, enquanto a<br />

empresa colonial se estende por<br />

todo o globo. É a Grã-Bretanha da<br />

restauração católica de Oxford, um<br />

movimento radical a seu modo; do<br />

utilitarista John Stuart Mill e do<br />

reformismo visionário e filantrópico<br />

de John Ruskin. É a nação<br />

dos dândis desinteressados, dos<br />

estetas decadentes, de Swinburne<br />

e Oscar Wilde; a nação pós-Malthusiana<br />

de Marx, Engels, Darwin<br />

e de Herbert Spencer, cujas ideias<br />

afetaram, para o bem e para o<br />

mal, todos os debates relevantes<br />

da época. É o tempo também do<br />

jornalismo, do sensacionalismo<br />

dos folhetins, e da literatura como<br />

ganha-pão da pequena burguesia,<br />

como a de Wells. Um dos mais<br />

fecundos períodos da literatura<br />

inglesa. Wells foi socialista como<br />

William Morris e Bernard Shaw,<br />

crente de que a degeneração da<br />

sociedade britânica fosse resultado<br />

do desequilíbrio econômico,<br />

mas a tendência de sua arte não é<br />

a panfletagem, como é por vezes a<br />

de Shaw, tampouco é o idealismo,<br />

como na Inglaterra pastoral de<br />

Morris; ela é revolucionária<br />

na medida em que o entusiasmo<br />

pela divulgação<br />

científica, tão típico do<br />

período, é direcionado<br />

para acionar o potencial<br />

reformador da ordem social<br />

que a técnica conserva e<br />

desvela. Wells fora aluno do biólogo<br />

darwinista Thomas Huxley,<br />

e funda suas visões renovadoras<br />

nas ciências e nas miopias científicas<br />

mais proeminentes do fin-de-<br />

-siècle vitoriano, a geologia comparada,<br />

a antropologia, a zoologia,<br />

a física teórica e a etnologia. Nesse<br />

sentido, embora os enredos de<br />

Wells sejam fantásticos, ele é um<br />

realista confortavelmente situado<br />

na tradição romanesca inglesa,<br />

como bem aponta o editor e tradutor<br />

Braulio Tavares no prefácio.<br />

O país dos cegos e<br />

outras histórias<br />

H. G. Wells<br />

Trad.: Braulio Tavares<br />

Alfaguara<br />

342 págs.<br />

O AUTOR<br />

Herbert George Wells<br />

Nasceu em 1866, em Bromley,<br />

Kent, e morreu em Londres,<br />

em 1946. Filho de um<br />

pequeno comerciante, teve<br />

de trabalhar desde cedo para<br />

ganhar a vida. Estudou com<br />

o cientista e humanista T. H.<br />

Huxley. Deu aulas de biologia<br />

antes de se tornar jornalista<br />

e escritor profissional. Autor<br />

de mais de uma centena<br />

de livros, entre romances,<br />

ensaios e contos. No fim do<br />

século 19, publicou obras<br />

pioneiras da ficção científica: A<br />

máquina do tempo, A<br />

ilha do dr. Moureau, O<br />

homem invisível e A<br />

guerra dos mundos.<br />

Modernismo literário<br />

O encouraçado terrestre<br />

descreve os avanços na tecnologia<br />

bélica, especulando não só a mudança<br />

permanente que os tanques<br />

de guerra trariam à estrutura dos<br />

combates, como também a disputa<br />

assídua de nações tecnocratas para<br />

dominá-la; O estranho caso dos<br />

olhos de Davidson propõe a visão<br />

à distância, sugerindo que o tecido<br />

espaço-tempo possa ser dobrado,<br />

como um papel; o conhecidíssimo A<br />

estrela, protótipo dos disaster movies<br />

hollywoodianos, imagina o cataclismo<br />

humano ocasionado pela<br />

passagem de um cometa, e termina<br />

com uma reflexão sobre a Terra devastada<br />

segundo a visão dos marcianos,<br />

que ignoram as dimensões<br />

“reais” da catástrofe, antecipando<br />

assim, timidamente, o perspectivismo<br />

que marca o modernismo<br />

literário. Esse não é entretanto um<br />

perspectivismo nietzschiano. Wells<br />

é um moralista de tintura cristã,<br />

como Dickens, um democrata “na-<br />

H. G. Wells por<br />

Vitor Vanes<br />

tural” para os padrões vitorianos.<br />

Estrutura o principal conto da antologia,<br />

um de seus prediletos, O<br />

país dos cegos, curiosamente nos<br />

moldes da narrativa do Evangelho,<br />

abrindo mão entretanto de seu<br />

conteúdo teológico específico. O<br />

conto narra a chegada de Nunez,<br />

um alpinista perdido nos Andes,<br />

a uma comunidade politicamente<br />

harmoniosa de cegos em um território<br />

geograficamente isolado por<br />

uma série de desastres naturais. Da<br />

antropologia, Wells tira explicações<br />

para a organização social do grupo,<br />

sua religião, seus ritos e crenças; da<br />

etnologia, a razão para os conflitos<br />

culturais entre Nunez, que enxerga,<br />

e os demais. Os mitos dos cegos são<br />

desmistificados pela visão compreensiva<br />

do narrador, francamente<br />

sentenciosa e, dirão hoje, preconceituosa.<br />

Nunez está certo desde o<br />

início, mas é hostilizado e rejeitado<br />

pelos cegos como um lunático; eles,<br />

por sua vez, não possuem sequer o<br />

vocabulário para verbalizarem o ato<br />

de ver. Mas Nunez se adapta, aprende<br />

as doutrinas cosmológicas dos<br />

locais, se apaixona por uma mulher<br />

cega e esquece do mundo exterior,<br />

até o dia em que uma catástrofe finalmente<br />

abre passagem para fora.<br />

Nunez tenta avisar a todos sobre o<br />

desastre iminente, mas é rechaçado<br />

novamente como um herege, um<br />

radical, um louco. Aquele que vê a<br />

verdade, o salvador, é escorraçado<br />

por uma comunidade de tolos. Mas<br />

a estória não é um mero conto moral,<br />

e uma leitura dela como anedota<br />

rebaixando os cegos me parece<br />

equivocada. Ela é uma contribuição<br />

notável para a imaginação do futuro,<br />

considerando uma habilidade<br />

dir-se-ia inata, a visão, como técnica,<br />

como artifício, deslocando o<br />

sentido natural da percepção visual<br />

e valorizando, portanto, o espaço<br />

vital dos cegos em um plano de dignidade<br />

equipolente. Nisso também<br />

Wells adumbra o modernismo.<br />

Outras narrativas valem menção<br />

e admiração: A marca do polegar,<br />

à maneira de Conan Doyle, é<br />

um divertido conto policial que introduz<br />

as impressões digitais como<br />

prova de um crime, algo que fascinava<br />

Sherlock Holmes; A história<br />

do falecido sr. Elvesham é uma<br />

tragédia metafísica que mantém o<br />

interesse do leitor até o final surpreendente,<br />

em uma das melhores<br />

narrativas curtas de Wells; Pollock<br />

e o homem do Porroh, uma sátira<br />

certeira das pesquisas etnológicas<br />

nas colônias africanas e da obsessão<br />

do dito mundo civilizado pela<br />

sanidade mental; O império das<br />

formigas brinca com a ideia de que<br />

o fenômeno da inteligência possa<br />

emergir entre as formigas sul-<br />

-americanas, uma bem-humorada<br />

crítica da mentalidade imperialista<br />

por parte do autor, que se deleita,<br />

ao inverter os vetores do colonialismo,<br />

com os próprios excessos da<br />

sátira diante da invasão europeia<br />

das formigas, para a qual ninguém<br />

está preparado. Otto Maria Carpeaux<br />

notou com acuidade o grande<br />

humorista em Wells, herdeiro de<br />

Charles Dickens. Com efeito, o monóculo<br />

doutor Lidgett, em A história<br />

de Plattner, ou a esposa chantagista<br />

e interesseira do amável e<br />

desengonçado sr. Cave, em O ovo<br />

de Cristal, poderiam facilmente ser<br />

confundidos com criações dickensianas.<br />

Esse último conto, em sua<br />

estrutura narrativa, na maneira em<br />

que estabelece os fatos e introduz a<br />

cena e, principalmente, como apresenta<br />

o personagem principal “trazendo<br />

na barba alguns farelos com<br />

manteiga de seu desjejum”, existe<br />

inteiramente no vastíssimo espaço<br />

imaginativo aberto por Dickens,<br />

que carece da psicologia moral de<br />

um Joseph Conrad ou o senso agudo<br />

de declínio de um Thomas Hardy,<br />

mas que constitui, a seu modo,<br />

um abundante e convincente uni-<br />

TRECHO<br />

O país dos cegos<br />

“Falou das belezas da visão, da<br />

contemplação das montanhas,<br />

do céu e da aurora, e<br />

eles o escutavam com uma<br />

divertida incredulidade que<br />

aos poucos foi se tornando<br />

condenatória. Disseram-lhe<br />

que na verdade não existia<br />

montanha alguma, e que<br />

aquela área rochosa onde as<br />

lhamas pastavam era sem<br />

dúvida o fim do mundo; (...)<br />

verso romanesco, no qual as mazelas<br />

e as delícias do mundo podem<br />

ser devidamente representadas<br />

com a sua própria gravitas, e não<br />

como simples recurso retórico de<br />

suporte a um argumento. Tavares,<br />

no prefácio, comenta que O ovo de<br />

Cristal daria um romance, e é uma<br />

pena que Wells não o tenha desenvolvido,<br />

pois ele me parece ser o<br />

único conto da antologia que apresenta<br />

personagens imediatamente<br />

cativantes, que excedem o papel de<br />

veículo imediato para a expressão<br />

de uma ideia motriz. E a ideia, claro,<br />

maravilhosa: o artefato referido no<br />

título se comunica misteriosamente<br />

com um outro mundo. O conto<br />

termina, como de costume, sem<br />

descobrirmos o que é aquilo, mas<br />

não sem que antes tenhamos uma<br />

crítica das teorias ópticas da virada<br />

do século 20. Jorge Luis Borges reconheceu<br />

a influência desse conto<br />

em duas histórias n’O Aleph.<br />

O editor e tradutor Braulio<br />

Tavares, cujo trabalho com o autor<br />

já rendeu edições nacionais dos célebres<br />

romances A máquina do<br />

tempo e A ilha do dr. Moreau,<br />

fez um ótimo trabalho de seleção. A<br />

tradução é no geral fluida e correta,<br />

altamente legível, embora algumas<br />

soluções não transmitam suficientemente<br />

o sabor da prosa de Wells.<br />

Por exemplo, em O império das<br />

formigas, Wells escreve: “Holroyd<br />

was learning Spanish industriously,<br />

but he was still in the present<br />

tense and substantive stage of<br />

speech, and the only other person<br />

who had any words of English was<br />

a negro stoker, who had them all<br />

wrong”. Tavares traduz corretamente;<br />

a perda é estilística: “Holroyd<br />

estudava o espanhol com toda<br />

aplicação, mas ainda estava naquele<br />

estágio feito apenas de substantivos<br />

e verbos no presente, e a única<br />

outra pessoa que sabia algumas<br />

palavras em inglês era um negro<br />

que trabalhava na fornalha e não<br />

conseguia pronunciá-las direito”.<br />

É comum nos contos de Wells<br />

o narrador confessar que não sabe<br />

bem o que está ocorrendo, ou que<br />

obteve as informações do relato indiretamente.<br />

O que é verdadeiro?<br />

A veia utópica do autor não permite<br />

que o fenômeno em tratamento<br />

seja circunscrito pelo discurso<br />

científico disponível. Mas Wells<br />

talvez seja um otimista como seus<br />

contemporâneos, esperando que<br />

um dia façamos a descrição exata<br />

do que há. Há contudo um outros<br />

viés, igualmente contemporâneo,<br />

que talvez seja mais visível hoje:<br />

os fenômenos excêntricos de Wells<br />

produzem formas de vivência que<br />

ainda não conhecemos, como os<br />

animais das insondáveis profundezas<br />

em Os invasores do mar. E<br />

não há na gramática dos homens<br />

formas correspondentes às suas<br />

ações. Essa falta produz a literatura,<br />

que a busca. E assim o falso<br />

sustém o verdadeiro.


169 • maio_ 2014<br />

24<br />

PRATELEIRA : : internACIONAL<br />

QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />

COLUNISTAS<br />

ENSAIOS E RESENHAS<br />

DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />

EDIÇÕES ANTERIORES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />

Amor em fuga<br />

Bernhard Schlink<br />

Trad.: Herta Elbern<br />

Record<br />

288 págs.<br />

Ao longo dos sete contos que compõem<br />

o livro, o amor no mundo contemporâneo<br />

está em pauta. Não possuem<br />

preconceitos ou distinções, mas não se<br />

tratam de romances felizes. O moderno<br />

conta com contradições, dificuldades<br />

e impossibilidades. Entre a queda do<br />

muro de Berlim e conflitos armados em<br />

países de terceiro mundo, histórias de<br />

pessoas atormentadas por seu passado<br />

e seu presente, de amores incompletos e<br />

hesitantes, mas sempre esperançosos.<br />

Elegias de Duíno<br />

Rainer Maria Rilke<br />

Trad.: Dora Ferreira da Silva<br />

Biblioteca Azul<br />

128 págs.<br />

Em carta de 1921, Rilke apresentou a<br />

chave para estas Elegias, ao alertar que<br />

a religião é uma tendência do coração,<br />

infinitamente simples. São considerados<br />

dez dos poemas mais célebres do<br />

século 20. Gênero que tipicamente<br />

anda lado a lado com o fúnebre, os<br />

versos exalam desamparo existencial,<br />

acompanhados de uma religiosidade<br />

peculiar. O trabalho da tradutora e poeta<br />

Dora Ferreira foi considerado patrimônio<br />

cultural da poesia alemã no Brasil.<br />

Falem de batalhas, de<br />

reis e de elefantes<br />

Mathias Énard<br />

Trad.: Ivone C. Benedetti<br />

L&PM<br />

152 págs.<br />

O brilhante artista italiano Michelangelo<br />

se desentende com o sinistro papa<br />

Júlio II e aceita o convite do sultão<br />

Bayazid para projetar uma grande<br />

ponte no estreito de Bósforo. Misto de<br />

romance histórico e ficção, o livro mais<br />

celebrado do francês Énard parte de<br />

uma passagem obscura da biografia de<br />

Michelangelo e recria a atmosfera de<br />

sedução do Oriente do século 16 em<br />

oposição à Renascença, resgatando o<br />

embate entre o Oriente e Ocidente.<br />

Novembro de 63<br />

Stephen King<br />

Trad.: Beatriz Medina<br />

Suma de Letras<br />

727 págs.<br />

Jake Epping é professor de inglês<br />

em uma cidade do Maine. Enquanto<br />

corrigia redações de seus alunos do<br />

supletivo, descobre uma narrativa brutal<br />

e fascinante escrita pelo faxineiro Harry<br />

Dunning, que sobreviveu de alguma<br />

forma à noite em que seu pai massacrou<br />

a família com marretadas. Como se já<br />

não fosse choque o bastante, Epping é<br />

recrutado por um dono de lanchonete,<br />

Al, para uma missão peculiar: evitar o<br />

assassinato de John Kennedy.<br />

Sangue nas veias<br />

Tom Wolfe<br />

Trad.: Paulo Reis<br />

Rocco<br />

608 págs.<br />

O celebrado jornalista e escritor Tom<br />

Wolfe volta à ativa, num livro que deixa<br />

o jornalismo se submeter aos encantos<br />

da literatura. Tipicamente polêmico,<br />

Wolfe retrata uma Miami repleta de<br />

imigrantes e conflitos culturais, strippers<br />

russas e fisioculturistas, na única cidade<br />

do mundo onde povos com línguas<br />

diferentes tomaram controle das ruas.<br />

Dilemas morais, limites éticos e conflitos<br />

étnicos dão o tom à narrativa, talhada<br />

com precisão e humor ácido.<br />

Felicidade conjugal<br />

Tahar Ben Jelloun<br />

Trad.: Clóvis Marques<br />

Bertrand Brasil<br />

322 págs.<br />

As duas faces de janeiro<br />

Patricia Highsmith<br />

Trad.: Marcelo Pen<br />

Benvirá<br />

320 págs.<br />

O vendedor de armas<br />

Hugh Laurie<br />

Trad.: Cassius Medauar<br />

Planeta<br />

287 págs.<br />

Effi Briest<br />

Theodor Fontaine<br />

Trad.: Mário Frungillo<br />

Estação Liberdade<br />

424 págs.<br />

A última névoa e A<br />

amortalhada<br />

María Luisa Bombal<br />

Trad.: Laura Janina Hosiasson<br />

Cosac Naify<br />

224 págs.<br />

Um pintor precisa se aposentar após<br />

sofrer um AVC. Convencido de que sua<br />

relação conjugal conturbada foi o motivo<br />

do colapso, resolve pintar um último<br />

quadro: o de seu relacionamento. As<br />

cores são fortes e, como toda obra de<br />

arte, está sujeita a diversas opiniões. Com<br />

o tempo ocioso e temendo a depressão,<br />

resolve escrever suas memórias desde o<br />

princípio do relacionamento, passando da<br />

má relação com os sogros ao ódio que,<br />

por fim, se instalou.<br />

Rydal Keener jamais poderia imaginar<br />

que Chester MacFarland era um<br />

estelionatário que a polícia americana<br />

almeja prender. De repente, Keener<br />

está ajudando o malfeitor a ocultar o<br />

corpo de um detetive grego. A causa<br />

desse ato impensado pode ser a<br />

paixão repentina de Rydal por Colette,<br />

a sedutora esposa de Chester. Tratase<br />

de uma cadeia de acontecimentos<br />

que passeiam por ruínas milenares,<br />

vielas escuras e hotéis decadentes.<br />

Thomas Lang, ex-militar de elite, recebe<br />

uma proposta de cem mil dólares<br />

para assassinar um empresário norteamericano.<br />

Ele decide, imediatamente,<br />

alertar a futura vítima — uma boa ação<br />

que não ficará impune. Em que estão de<br />

horas, o benfeitor está jogando cartas<br />

com bilionários impiedosos e colocando<br />

sua vida (entre outras coisas) nas mãos<br />

de muitas mulheres fatais, enquanto<br />

tenta salvar uma linda moça e impedir<br />

um banho de sangue mundial.<br />

A jovem protagonista Effi Briest<br />

sucumbe a um matrimônio indesejado,<br />

fruto do desgosto pela submissão às<br />

normas sociais na Brandemburgo do<br />

século 19. Seu marido, o barão Von<br />

Innstetten, é um burocrata frio e pouco<br />

amoroso, mais preocupado com a<br />

carreira do que com a esposa. Em busca<br />

de um romance acalentado como os<br />

dos livros, Effi cansa da vida insossa<br />

que leva e cede a certas tentações, se<br />

aproximando do pouco quisto Crampas.<br />

Duas novelas que apresentaram<br />

perspectivas completamente novas nos<br />

idos de 1930. Em ambas, protagonistas<br />

do sexo feminino encarando dilemas<br />

muito particulares. Na primeira parte, A<br />

última névoa, a história de uma mulher<br />

aprisionada no casamento com o primo,<br />

um fazendeiro viúvo que não esqueceu a<br />

primeira esposa; em A amortalhada, a<br />

protagonista Ana María repassa sua vida<br />

e seus amores a partir do leito de morte.


26<br />

169 • maio_ 2014<br />

FORA DE SEQÜÊNCIA : : Fernando Monteiro<br />

Mais tarde ou mais cedo,<br />

vai tudo virar facebook<br />

QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />

COLUNISTAS<br />

ENSAIOS E RESENHAS<br />

DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />

RES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />

Isso deveria ser o estribilho<br />

de um rock lançado por algum<br />

ídolo velho como Mike<br />

Jagger (os atuais Rollings<br />

constrangem), antes de morrer<br />

sobre plateias sexagenárias — alguma<br />

espécie de tributo ao estilo<br />

de Kurt Vonnegut? —, mas, infelizmente,<br />

não é nem uma coisa<br />

nem outra, até porque não soa tão<br />

bem quanto a mais nova pergunta<br />

do Face: “Que simpatia você está<br />

buscando?”.<br />

As perguntas de Mark Zuckerberg<br />

são do ramo da filosofia<br />

de Valesca Popuzuda. O questionário<br />

sobre se a Literatura (assim,<br />

com maiúscula) morreu e tudo o<br />

mais, está implícito, claro. O papel<br />

de escrita que seria de moscas<br />

mortas se houvesse uma grossa<br />

superfície de cola de Burroughs<br />

sobre as letras abandonadas, de<br />

maneira que você pudesse escolher<br />

continuar a ler como um rascunho<br />

ou deixar pra lá, a página<br />

virada, o próximo texto desfeito<br />

na “elegante melancolia do crepúsculo”<br />

de frases que já foram escritas<br />

e não adianta repetir em livros<br />

novos que nascem enrugados<br />

como bebês sem cabeça cuja boca<br />

falta (eu mesmo já escrevi isso em<br />

algum lugar, não?)...<br />

Você sabe que uma civilização<br />

está acabando quando as frases<br />

começam a dar a volta à cabeça<br />

ágrafa da cultura — o mal-estar,<br />

etc. — e ninguém precisa nos dizer<br />

isso numa sala refrigerada de<br />

segundo andar, em clubes literários<br />

de forças quebradas e infinita<br />

hipocrisia que afirma: “continue a<br />

escrever bobagens pelo supremo<br />

bem da arte (assim, com minúscula),<br />

agora que tudo caminha para<br />

ser como feed azul-branco de fotos,<br />

autopropaganda, risos e reticências<br />

graficamente representadas<br />

na banalidade que estragou o<br />

significado das coisas”.<br />

Esse “significado das coisas”<br />

é uma frase estragada sem significado,<br />

uma coisa dita pela tal boca<br />

sem cabeça que assumiu a de nós<br />

todos, ou logo-logo assumirá plenamente,<br />

quando, “na (i)maturidade<br />

do tempo”, tudo for para agitar<br />

antes de usar: caixas de suco,<br />

destinos baratos vividos pela TV,<br />

selvas africanas daquele quarto<br />

de Bradbury com os leões digitais<br />

mastigando os ossos das crianças<br />

reais que perderam as paredes dos<br />

livros antigos cujos meninos dormiam<br />

nos homens da terceira, da<br />

quarta, da quinta leitura no banco<br />

de louça de um quintal das graças<br />

de folhas caídas no escuro.<br />

Lembro-me de algo importante<br />

que havia na conversa sobre<br />

“os grandes cemitérios ao luar” —<br />

era quase noite, a presença dos livros<br />

realmente lidos era opressiva<br />

naquela sala de janelas fechadas<br />

(sempre) como se fosse para interditar<br />

a vida. Essa era a minha ideia<br />

idiota: “interditar” o que quisessem<br />

chamar de “vida”, no lusco-fusco<br />

que trazia uma noite de vagalumes.<br />

A pergunta na manga: todas<br />

as suas histórias mais estranhas se<br />

passavam na China?<br />

“O mundo depende do que<br />

acontece na China” — Baudelaire<br />

havia mesmo escrito isso, num caderno<br />

borrado que fora visto por<br />

alguém que sumira?<br />

Os vagalumes eram os do poema<br />

de cabeça para baixo da gaiola<br />

presa de palavras suspensas do<br />

papel de arroz no qual estava escrito:<br />

“Se você passar uma semana<br />

no velho ‘país dos mandarins’<br />

(argh), talvez venha a escrever<br />

um livro de quatrocentas páginas;<br />

mas, se você ficar seis meses entre<br />

os palácios vermelhos da antiga<br />

Cidade Proibida e o imenso estacionamento<br />

de milhares de bicicletas<br />

(que desaparecerão como<br />

os insetos luminosos debaixo do<br />

lenço do mágico), você, quem<br />

sabe, escreverá um cauteloso artigo<br />

de quatro páginas cheias de<br />

uma perplexidade... E se você ficar<br />

seis anos lá, então você passará<br />

dos sessenta anos sem ter escrito<br />

nada sobre qualquer aspecto de<br />

quaisquer daquelas províncias de<br />

neblina da China”.<br />

Era sobre isso que eu queria<br />

falar — disse o missionário, com o<br />

seu fio de voz, o homem mais velho<br />

que eu jamais vira, uma espécie de<br />

fantasma de carne seca em cima<br />

de ossos que nunca mais caminhariam<br />

sobre aquela terra na qual estava<br />

borrada a data da sua chegada<br />

(olhando, gentilmente, para as<br />

crianças descalças como a missão<br />

falhada da sua vida levada por um<br />

rio atravessado de chuva).<br />

Tinha sido há tanto tempo que<br />

ele poderia ter lido isso em Victor<br />

Segalen — quando Segalen ainda<br />

era lido. Não era muito forte a certeza<br />

de estar ainda vivo, enquanto<br />

lhe mostravam fotos, frases, frisos<br />

azuis passando numa tela de fibra<br />

dobrada na frente da cama de um<br />

sobrevivente de tempos recuados<br />

demais para gerações sem imaginação.<br />

Ou, talvez, todos os tempos<br />

se tornavam incompreensíveis,<br />

embora nenhum houvesse sido assim<br />

cancelado, anulado tão de repente<br />

e transformado em qualquer<br />

coisa que semelhava a vida — mas,<br />

decididamente, não era. E o seu gaguejo<br />

final estava para ser transformado<br />

num “meme” que se tornaria<br />

a febre virótica da semana, quem<br />

sabe, no mundo inteiro para além<br />

dos jardins de pedra de Pequim.<br />

Uma canção de exilado<br />

: : Maurício Melo Júnior<br />

Brasília – DF<br />

Darcy Ribeiro apresentava<br />

Maíra, seu<br />

primeiro romance, e<br />

segundo ele mesmo o<br />

melhor, como um livro nascido da<br />

necessidade de mirar outros mundos.<br />

Exilado no Uruguai, intelectualmente<br />

esgotado pelo trabalho<br />

de escrever O processo civilizatório,<br />

resolveu enfrentar outro<br />

desafio: reunir num romance todo<br />

o imaginário que aprendeu na longa<br />

convivência com os índios. Envolvido<br />

com outros projetos, não<br />

encontrou tempo e espaço para<br />

terminar a empreitada. Em 1969,<br />

preso no Rio de Janeiro, retomou<br />

o texto como uma maneira de<br />

manter a lucidez. Também não foi<br />

desta vez que o terminou. A terceira<br />

e última tentativa aconteceu<br />

durante um segundo exílio, agora<br />

em Lima. “Liberado pelos militares<br />

depois de nove meses de cadeia,<br />

fui aconselhado a sair ligeiro<br />

do país (...). Fui para a Venezuela,<br />

depois para o Chile e, afinal, fixei-<br />

-me no Peru, para ajudar a equipe<br />

do presidente Velasco Alvarado a<br />

pensar a revolução que os peruanos<br />

estavam levando à frente com<br />

toda a força e fervor.”<br />

Diante destes fatos é fácil<br />

pensar em Maíra como um livro<br />

que surgiu para matar a saudade<br />

do exilado. Longe da própria terra,<br />

ou preso quando nela, Darcy se<br />

aproximou do imaginário indígena<br />

para não perder de vez o laço que<br />

o prendia a uma pátria idealizada,<br />

sonhada. Anos depois, ele diria<br />

que perdeu todas as batalhas que<br />

enfrentou, mas só se sentiria derrotado<br />

se estivesse ao lado dos vencedores<br />

oficiais.<br />

Destas utopias e lutas ele<br />

extraiu um romance alegórico em<br />

que apanha as crenças indígenas,<br />

crenças que colheu na convivência<br />

com várias etnias, e as traz para o<br />

mundo real da exploração do índio<br />

e de sua terra. Maíra é sim<br />

um romance de denúncia, bem<br />

aos modos do realismo social que<br />

marcou os romancistas da geração<br />

de 1930, mas foge com maestria<br />

dos códigos sociológicos ou antropológicos.<br />

É claro que muito se<br />

aprende aqui do modo de vida dos<br />

indígenas, mas tudo está diluído<br />

nas entrelinhas de um romance<br />

real e que se resolve muito bem<br />

como instrumento ficcional.<br />

Maíra<br />

Darcy Ribeiro<br />

Global<br />

326 págs.<br />

TRECHO<br />

Maíra<br />

“Muito tempo esteve<br />

Maíra gozando naquele<br />

ser esgalhado, folhento, o<br />

sentimento de ser árvore.<br />

Gostou. Principalmente<br />

das palmeiras que sobem<br />

eretas para abrir seus<br />

leques no mais alto. Dá<br />

gosto subir pelo parafuso<br />

troncal acima, sentindo a<br />

dor das cicatrizes de tantas<br />

folhas que morreram para<br />

a palmeira crescer e dar<br />

coco.<br />

Aliás, já no início, o livro<br />

revela nuances policiais. Um pesquisador<br />

suíço vai à delegacia de<br />

uma cidadezinha do interior para<br />

comunicar que encontrou o corpo<br />

de uma moça branca abandonado<br />

numa praia do rio Iparanã, no<br />

Mato Grosso. Junto a ela estão os<br />

cadáveres de dois recém-nascidos.<br />

Não sabia dizer se a mulher teria<br />

morrido no parto dos gêmeos ou<br />

se teria sido assassinada. O mistério<br />

da morte de Alma, uma aspirante<br />

a missionária, se estende<br />

por toda trama que conta ainda<br />

com pelo menos mais dois bons<br />

enredos paralelos.<br />

O primeiro deles, de cunho<br />

psicológico, segue o drama de Isaías<br />

Mairum. Desde muito pequeno,<br />

o índio foi educado por padres<br />

O AUTOR<br />

Darcy Ribeiro<br />

Nasceu em 1922, em Montes Claros (MG). Formado em Ciências Sociais,<br />

em 1946, construiu uma brilhante carreira intelectual como antropólogo<br />

e etnólogo. Destacou-se como escritor, educador e político. Foi senador<br />

e membro da Academia Brasileira de Letras. Como romancista, além de<br />

Maíra, escreveu O mulo, Migo e Utopia selvagem. Morreu em 1997.<br />

católicos para também se tornar<br />

padre. Estudava em um seminário<br />

em Roma quando decide voltar<br />

para a aldeia em busca de suas<br />

verdades pessoais. No caminho de<br />

volta, conhece Alma, com quem se<br />

junta para a etapa final da viagem.<br />

Esta volta coincide com a morte de<br />

Anacã, o tuxaua, ou seja, o líder da<br />

aldeia, espaço que de direito passa<br />

a pertencer a Isaías.<br />

No segundo enredo paralelo,<br />

Juca, filho de uma índia mairum<br />

com um branco que trabalhava<br />

para o Serviço de Proteção aos Índios<br />

e pacificou os índios da região,<br />

sobrevive explorando a miséria dos<br />

caboclos. A exploração, aliás, começa<br />

com o pai dele que ganhou<br />

muito dinheiro fazendo os índios<br />

extrair o látex das seringueiras.<br />

Divulgação<br />

Neste caminho segue Juca, que<br />

vende de madeira a manteiga feita<br />

com ovos de tartaruga. No momento<br />

ele estava interessado em levar<br />

os aborígenes a conseguir peles de<br />

animais silvestres. E acredita ser o<br />

tempo certo, pois com a morte de<br />

Anacã, que não o queria ver por<br />

perto, pensa poder se aproximar<br />

daqueles que ele chama de primos.<br />

No entanto, persiste a oposição à<br />

sua presença na aldeia.<br />

Esta trama social se completa<br />

ainda com as desconfianças<br />

de Juca. Os pesquisadores suíços<br />

estão na região estudando o comportamento<br />

das formigas, mas o<br />

explorador acredita mesmo que<br />

eles conhecem os segredos das minas<br />

de algum tipo raro e valioso de<br />

minério. E põe o caboclo Quinzim<br />

para espionar os estrangeiros.<br />

Resolvida a questão das tramas,<br />

o romance se ocupa com a<br />

descrição das tradições ritualísticas<br />

dos índios. O enterro de Anacã<br />

é descrito com minúcia, uma<br />

descrição, apesar de mórbida, recheada<br />

de elementos poéticos. Na<br />

mesma trilha segue todo o adorno<br />

lendário que enfeita a narrativa. O<br />

nascimento de Maíra, também um<br />

dos momentos de plena beleza do<br />

texto, se equilibra entre o lírico e o<br />

grotesco sem nunca perder o sentido<br />

que tem para o romance. Ao<br />

mergulhar o leitor em todas estas<br />

teias antropológicas, mais do que<br />

se colocar como ensaísta, Darcy Ribeiro<br />

nos leva a refletir sobre como<br />

os conceitos culturais profundos<br />

aproximam os homens em sua dimensão.<br />

Há nesta criação fenômenos<br />

como o dilúvio universal e o<br />

apocalipse, além de detalhes divinos,<br />

como um sopro capaz de fazer<br />

viver homens e bichos.<br />

Trabalhar com três elementos<br />

tão próximos quanto distintos<br />

— o universo mítico dos índios, as<br />

crises de consciência dos homens e<br />

os jogos de ambição — faz de Darcy<br />

um romancista pleno. Sua linguagem<br />

também precisa se reinventar<br />

a cada momento para chegar à cor<br />

ideal para a narrativa. Neste ponto<br />

chega a se aproximar, medidas<br />

as devidas proporções, de Guimarães<br />

Rosa. Naturalmente que não<br />

descamba para uma inventividade<br />

léxica, mas vai semeando uma poética<br />

que sobrevive nos sentimentos<br />

mais puros e ingênuos. “Não<br />

somos filhos de Deus. Somos os<br />

pais do homem que há de ser”, diz<br />

Maíra ao tentar definir a si mesmo<br />

e ou seu irmão gêmeo.<br />

Maíra, enfim, é um desses<br />

romances que atende muito bem a<br />

todos os leitores. Aos que buscam<br />

divertimento ele se oferece na trama<br />

de mistérios que cerca a morte<br />

de Alma. Para quem quer conhecimento,<br />

os debates antropológicos<br />

são bem honestos na apresentação<br />

de um mundo novo que ainda guarda<br />

seus sentimentos inaugurais.<br />

Àquele que cata denúncia social o<br />

texto se apresenta como um manifesto<br />

em defesa das nossas culturas<br />

mais profundas. No entanto é mesmo<br />

como uma canção de exílio que<br />

deve ser lido, afinal no romance se<br />

apresenta um Brasil real por suas<br />

injustiças e pela força de sua brasilidade.<br />

E este é um elixir bem eficaz<br />

para a cura da saudade.


169 • maio_ 2014<br />

27<br />

Totens da perplexidade<br />

Paulo Rosenbaum<br />

ILUSTRAÇÃO: Rafa Camargo<br />

O AUTOR<br />

Paulo<br />

Rosenbaum<br />

É médico e<br />

escritor. Autor<br />

de sete livros<br />

na área médica<br />

e organizador<br />

de outros<br />

dois. Publicou<br />

o romance<br />

A verdade<br />

lançada ao<br />

solo (Record).<br />

É colunista do<br />

Jornal do Brasil,<br />

na seção Coisas<br />

da política. Edita<br />

o blog Conto de<br />

notícia, publicado<br />

regularmente<br />

n’O Estado de<br />

São Paulo.<br />

Sujeitos indefinidos<br />

peregrinam nas nações<br />

entre benfeitorias sem transcendência,<br />

laicismos imprecisos.<br />

Não se veem campos, sinais de gritos, angústia das vítimas<br />

mas, em cada parada,<br />

a cada pequena entranha,<br />

e, dentro da floresta negra,<br />

cavernas preservadas, coleções intactas, predação canônica<br />

a seleção, naturalmente objetivada<br />

pela negação de qualquer sentido.<br />

Não interessa que não vistes,<br />

(nem quem nunca viu),<br />

não importa o alimento dos dizimados<br />

nem quem fez menos silêncio<br />

no vapor da constância.<br />

Saberemos quando vivermos<br />

fora dos esconderijos desacreditados<br />

na sonolência programada<br />

entre qualidades instáveis,<br />

que estão, como nós, extintas.<br />

Nos rios sem leito, paisagens sobre trilhos<br />

no protocolo superado, a melancolia,<br />

e enquanto o mundo repensa uma paz<br />

os resíduos evaporados<br />

fazem do sensorial<br />

a travessia que importa.<br />

No solo tingido,<br />

como furos de flauta<br />

alternam sons,<br />

das curvas do mundo<br />

na atenuação final das vidas.<br />

Se estamos aqui, ainda e assim<br />

permanecemos, no tempo exato<br />

é que nossos olhos<br />

retêm o não expresso<br />

e, como trens, invadimos o mundo com troncos negros<br />

que moem cores,<br />

para fixar nelas,<br />

a medida do carbono.<br />

Da matéria que se impõe<br />

e referenda o espírito,<br />

subtraindo contextos das proporções extremas<br />

atraídas à latitude da ilusão.<br />

Estivemos nos olhos<br />

respiramos nas noites de cristais<br />

recusamos o esfacelamento e o genocídio com certezas do impossível.<br />

Testemunhamos a violência do descuido,<br />

até que a perplexidade<br />

gere seus totens.


28<br />

169 • maio_ 2014<br />

Limão<br />

169 • maio_ 2014<br />

29<br />

O ex-eterno<br />

marido<br />

Felipe Franco Munhoz<br />

Motojiro Kaijii<br />

Uma nuvem pesada dominava meu<br />

espírito. A sensação não era de<br />

irritação ou tédio; parecia mais<br />

como se tivesse entrado em uma<br />

profunda ressaca depois de noites e noites<br />

bebendo muito. A tuberculose e o esgotamento<br />

nervoso não eram os culpados. E nem<br />

mesmo a minha assustadora dívida. Era apenas<br />

aquele peso indefinível. Me afastou da<br />

música e da poesia que tanto amei — se incomodava<br />

alguém para que me colocasse uma<br />

música, sentia a necessidade de partir depois<br />

de poucas notas. Tudo o que conseguia fazer<br />

era vagar sem destino pelas ruas.<br />

Me sentia atraído por coisas que apresentavam<br />

um toque de beleza decadente. As<br />

vizinhanças decrépitas eram os lugares que<br />

preferia e dentro delas não eram as grandes<br />

ruas, impessoais, que me pareciam simpáticas,<br />

mas sim os becos sujos com aquelas<br />

roupas manchadas penduradas a secar e as<br />

trilhas de lixo atirado pelo chão. Espiar nas<br />

janelas dos quartinhos miseráveis que davam<br />

para os becos também me era prazeroso.<br />

Entre aquelas frágeis casas com paredes de<br />

barro decompostas, que o vento e a chuva em<br />

breve iriam devolver a terra, a força da vida<br />

apenas se sentia nas plantas, na surpresa<br />

inesperada do desbotar de um girassol ou de<br />

solitário botão de flor.<br />

Às vezes, enquanto caminhava por<br />

aquelas ruas, tentava imaginar que escapara<br />

de Quioto para uma cidade distante onde<br />

ninguém me conhecia. Sendai talvez ou Nagasaki.<br />

Teria de ser um lugar tranquilo. Um<br />

quarto em um pequeno hotel, grande e vazio.<br />

Lençóis imaculados, o aroma da tenda contra<br />

mosquitos e um quimono de verão, recém-<br />

-engomado. Poderia passar um mês deitado<br />

ali, sem pensar em nada. Sentia que se desejasse<br />

com muita força, poderia transformar o<br />

lugar onde estava naquele que imaginava... E<br />

quando as imagens se formaram, comecei a<br />

pintá-las, uma a uma, com as cores de minha<br />

preferência, até que elas pudessem ser sobrepostas<br />

àquelas vizinhanças dilapidadas. Então,<br />

e apenas então, podia sentir o prazer de<br />

perder de vista a minha real existência.<br />

Eu também me confortava em admirar as<br />

caixas de fogos de artifício baratos. Alguns vinham<br />

alinhados em pacotinhos grosseiros vermelhos,<br />

púrpura, ouro e azul e tinham nomes<br />

como “Estrelas Cadentes do Templo Chusanji”,<br />

“Guerra de Flores” e “Pálidas Palmeiras”.<br />

Outros, conhecidos como “estalidos de rato”,<br />

eram montados em um catavento dentro das<br />

caixas. Coisas como estas atraíam a atenção.<br />

Contas de vidro colorido eram tesouros<br />

para mim — bolinhas com desenhos de peixes<br />

e flores em relevo, contas de Nanking. Ficar rolando<br />

aquelas bolinhas dentro da minha boca<br />

dava-me um grande prazer, seu gosto tinha<br />

uma sutil e singular frescura. Quando criança,<br />

meus pais me chamavam a atenção por este<br />

tipo de comportamento. Agora, talvez porque<br />

o abatimento fizera estas doces memórias de<br />

infância ainda mais queridas, havia algo especialmente<br />

poético sobre a beleza daquela fresca<br />

e delicada sensação em minha boca.<br />

Como você já deve ter percebido, eu estava<br />

completamente debilitado. E o fato de<br />

que aquelas pequenas coisas, ainda que ligeiramente,<br />

podiam tocar meu coração, fazia<br />

com que sua compra fosse um luxo necessário.<br />

Questão de alguns centavos — mas ainda<br />

assim, uma extravagância, um detalhe de<br />

beleza, que ainda podia excitar meus frágeis<br />

sentidos. Em resumo, um consolo natural.<br />

Quando ainda estava bem, eu adorava<br />

passar meu tempo em lojas de departamentos,<br />

como a Maruzen, com suas prateleiras repletas<br />

de artigos importados. Garrafas vermelhas<br />

e amarelas de eau-de-cologne e eau-de-<br />

-quinine. Frascos de perfume elegantemente<br />

decorados com relevos bem trabalhados, cor<br />

de âmbar e de jade. Cachimbos e canivetes,<br />

sabonetes e tabaco. Depois de uma hora de<br />

busca criteriosa, eu teria esbanjado na compra<br />

de uma lapiseira da melhor qualidade. Agora,<br />

contudo, Maruzen se transformara em um lugar<br />

opressivo e asfixiante. Os livros, os estudantes,<br />

os caixas — todos eles me apavoravam<br />

como se fossem cobradores fantasmas.<br />

TRADUÇÃO: Marcelo Antinori<br />

ILUSTRAÇÃO: Theo Szczepanski<br />

Uma manhã — eu estava me hospedando<br />

em alojamentos de amigos, mudando de<br />

um para outro — meu anfitrião naquele dia foi<br />

para a universidade, me abandonando em seu<br />

quarto vazio. Não tive outra escolha que retomar<br />

meus passeios. Uma força qualquer foi<br />

me levando de uma pequena rua a outra, me<br />

fez parar em frente a uma loja de doces, depois<br />

me levou até uma mercearia onde passei<br />

um bom tempo olhando para o peixe seco e o<br />

tofu em conserva. Dali, fui vagando pela Teramachi<br />

até a Avenida Nijo, parando finalmente<br />

em frente a uma loja de frutas e verduras.<br />

Talvez eu deva apresentar este estabelecimento,<br />

já que era a minha loja favorita entre<br />

todas. Na aparência, não se destacava, ainda<br />

que representasse bem aquela beleza especial<br />

que este tipo de loja possui, mais do que<br />

qualquer outro lugar que tivesse visto. Suas<br />

frutas estavam dispostas em uma banca inclinada<br />

de madeira negra laqueada e lascada na<br />

ponta. Tinham sido arrumadas de uma forma<br />

que sua cor e volume pareciam congelados no<br />

tempo e no espaço, como um grupo de dançarinos<br />

que tivesse olhado para a cabeça da<br />

Medusa e se transformado em pedra. Mais ao<br />

fundo na loja, os vegetais estavam empilhados<br />

em prateleiras cada vez mais altas. As folhas<br />

da cenoura pareciam radiantes e os legumes e<br />

os vegetais brilhavam com gotas de água.<br />

A tenda era ainda mais bonita à noite.<br />

Inundada com a luz de suas vitrines, Teramachi<br />

é uma rua cheia de vida, ainda que<br />

bem mais tranquila que suas equivalentes em<br />

grandes cidades como Tóquio e Osaka. Ainda<br />

assim a vizinhança daquela loja em particular<br />

era curiosamente escura. Na verdade, estava<br />

na esquina da melancólica Avenida Nijo,<br />

mas isso não explicava por que aquela área<br />

tão vizinha à Teramachi era tão pobremente<br />

iluminada. Se aquela área estivesse mais clara,<br />

entretanto, duvido que tivesse me encantado<br />

tanto. O toldo saltava adiante como se<br />

fosse a aba de um chapéu puxada para cima<br />

dos olhos. (Isso não é exagero poético — o lugar<br />

realmente dava vontade de sair gritando<br />

“olha para aquela barraca com seu bonezinho<br />

abaixado”.) Sem luzes ao lado para competir,<br />

e com a escuridão acima, a fileira de lâmpadas<br />

elétricas penduradas por baixo do toldo<br />

banhava os produtos como uma brilhante<br />

chuva de verão. Vista da rua, onde os focos<br />

descobertos provocavam espirais de luz que<br />

penetravam em meus olhos, ou da janela do<br />

segundo andar do Café do outro lado da rua,<br />

havia poucos lugares em Teramachi que me<br />

inspiravam tanto como aquele.<br />

Naquele dia em particular, eu tomei a<br />

decisão inesperada de fazer uma compra ali.<br />

Uma coisa rara estava à venda — limões. Óbvio<br />

que limões não eram incomuns em lojas mais<br />

elegantes, mas aquela barraca dificilmente poderia<br />

ser considerada como acima da média e<br />

por isso raramente exibia aquele produto, ou<br />

pelo menos eu não tinha notado antes. E, meu<br />

Deus, como sou loco por aqueles limões: sua<br />

cor, como um punhado de puro “amarelo-limão”<br />

espremido de um tubo de tinta; sua forma,<br />

uma circunferência perfeitamente comprimida...<br />

Decidi comprar um. Depois, voltei a<br />

vagar pelas ruas de Quioto. Caminhei por um<br />

bom tempo. Me sentia inesperadamente feliz,<br />

como se toda aquela nuvem pesada que sentia<br />

havia tanto tempo sobre mim tivesse ficado<br />

mais leve no momento em que senti nas mãos<br />

a minha nova aquisição. Um paradoxo incompreensível talvez, mas verdadeiro<br />

— minha teimosa melancolia tinha sido enganada por uma simples<br />

fruta. Como é estranho o espírito humano!<br />

A frescura do limão superava qualquer descrição. Naquele momento,<br />

minha tuberculose tinha piorado a ponto de que estava permanentemente<br />

febril. Acho que podia mostrar a meus amigos e conhecidos quão<br />

doente estava simplesmente por um aperto de mãos, já que a minha estava<br />

sempre mais quente. Talvez por causa daquele calor, eu sentia que<br />

a frescura do limão estava penetrando através da minha palma e refrescando<br />

todo o meu corpo.<br />

Várias e várias vezes, levei a fruta até o nariz para sentir seu perfume.<br />

Imagens da Califórnia, sua origem provável, vinham a minha mente<br />

entremeadas de trechos do clássico chinês O mercador de frutas que<br />

eu estudara na escola — “invadindo o nariz” era a frase que lembrava. E<br />

quando enchia meus pulmões com aquele perfume, um jato de sangue<br />

aquecido parecia correr pelo meu corpo, despertando minha vitalidade.<br />

Pensei que nunca antes tinha respirado tão profundamente.<br />

A ideia de que na simples sensação de frescura, textura, perfume<br />

e forma eu tinha me deparado com o que estava procurando por tanto<br />

tempo parece agora estranha. Mas naquele momento eu sentia vontade<br />

de gritar de cima do teto das casas.<br />

Meus passos ficaram mais animados, avancei com excitação crescente<br />

e mesmo orgulho, me imaginando, em alguns momentos, como<br />

um poeta elegantemente vestido que caminhasse pomposamente pelos<br />

bulevares. Observei o limão bem de perto, em contraste com o meu lenço<br />

sujo, e depois contra o meu capote, para sentir melhor como suas cores<br />

refletiam sua textura, e depois apertei em minhas mãos alertando a todos<br />

de sua perfeição. Era isso que tinha me cansado de procurar, o peso<br />

perfeito, a somatória absoluta de todas as coisas boas e bonitas — este<br />

pensamento me pareceu fascinante. Considerando tudo, eu estava abençoadamente<br />

feliz.<br />

Como cheguei lá eu não sei, mas subitamente<br />

me dei conta de que estava em frente<br />

da loja de departamentos Maruzen. Ainda<br />

que a estivesse evitando, naquele momento<br />

não senti nenhuma dúvida em cruzar a porta<br />

e entrar. Vamos tentar, pensei, e caminhei altivo<br />

por suas portas.<br />

Curiosamente, por alguma razão, aquela<br />

sensação de bem-estar que preenchia meu<br />

coração começou a se esvanecer no momento<br />

em que entrei ali. As prateleiras de perfume<br />

e tabaco me deixaram frio. Eu podia sentir<br />

minha depressão levantando sua cabeça outra<br />

vez, e pensei que talvez fosse devido ao<br />

cansaço depois da longa caminhada. Me dirigi<br />

à seção de livros de arte. Será que ainda<br />

tinha energia suficiente para levantar, ainda<br />

que fosse apenas um, aqueles livros pesados?<br />

E ainda assim consegui baixá-los da estante<br />

e abri-los, um após outro. Isso no entanto<br />

foi tudo o que fiz — não desejava examiná-<br />

-los com atenção. Como que enfeitiçado, eu<br />

ia compulsivamente baixando um livro atrás<br />

do outro; dava uma rápida olhada, e passava<br />

ao próximo sem retornar nenhum à estante.<br />

A ideia de continuar fazendo aquilo me parecia<br />

insuportável. O último livro que escolhi<br />

era um dos meus favoritos, uma enorme encadernação<br />

dourada com os trabalhos de Ingres.<br />

E era o mais pesado de todos. Maldição!<br />

Senti aquela fadiga debilitando meus braços<br />

enquanto revirava aquela pilha de livros que<br />

tinha criado. Sentia que minha depressão tinha<br />

retornado com força total.<br />

No passado, eu folheava com prazer<br />

livros como aqueles, saboreando o estranho<br />

contraste entre suas lindas ilustrações e a decoração<br />

monótona da loja. Por que eles não<br />

me atraíam mais?<br />

Assustado eu me lembrei do limão<br />

guardado na manga do quimono. E se tentasse<br />

colocá-lo no alto daquela confusa coleção<br />

de cores, que será que aconteceria?<br />

Aquela agradável delicada explosão de<br />

entusiasmo que tinha sentido antes retornou.<br />

Empilhei os livros ao acaso formando uma<br />

torre, derrubei com força e empilhei outra<br />

vez. Novos livros das estantes foram adicionados<br />

àquela pilha, removidos e depois substituídos<br />

por outros, assumindo a forma de<br />

um castelo de sonhos, primeiro vermelho e<br />

depois azul.<br />

Finalmente estava terminada. Controlando<br />

o palpitar do meu coração, coloquei<br />

cuidadosamente o limão no topo daquele castelo.<br />

Era uma combinação perfeita.<br />

Enquanto admirava meu trabalho, silenciosa<br />

e serenamente o limão sugou todas<br />

aquelas cores envolventes para dentro de<br />

sua circunferência. Dentro daquele ambiente<br />

bolorento da Maruzen aquele ponto sozinho<br />

parecia produzir uma estranha tensão. Permaneci<br />

ali alguns momentos, apenas olhando<br />

para aquela torre.<br />

Subitamente fui surpreendido por outra<br />

ideia insólita: por que não deixar o limão ali<br />

onde ele inocentemente descansava e caminhar<br />

para a saída.<br />

Um estranho sentimento cresceu em<br />

mim. “Devo? Por que não!” Furtivamente<br />

deixei o edifício.<br />

Lá fora, na rua, aquele estranho sentimento<br />

levou-me a rir. Que tipo de vilão era<br />

eu que tinha deixado aquela cintilante bomba<br />

dourada armada entre as estantes da Maruzen.<br />

Se aquela bomba realmente explodisse<br />

com violência no coração da seção de livros<br />

de arte em dez minutos, seria emocionante.<br />

“E então.” Continuei entusiasmado perseguindo<br />

aquela visão, “nada restara daquele<br />

lugar opressivo além de um monte de poeira”.<br />

Saí caminhando pelas ruas de Kyogoku<br />

decoradas com aqueles grotescos cartazes coloridos<br />

de cinema.<br />

O AUTOR<br />

Motojiro Kajii<br />

Nasceu em Osaka (Japão), em 17 de fevereiro de<br />

1901. Aos 19 anos, foi diagnosticado com tuberculose<br />

e morreu da doença aos 31 anos. Aos 24 anos,<br />

publicou Limão em uma revista por ele fundada e seu<br />

trabalho, basicamente pequenos contos, apenas foi<br />

reconhecido após sua morte. Além de Limão, outros<br />

de seus contos — Dias de inverno e Debaixo das<br />

cerejeiras — também se tornaram textos clássicos<br />

da literatura japonesa. Limão foi publicado na<br />

coletânea The Oxford book of Japanese short<br />

stories, organizada por Theodore William Goosen, e<br />

traduzido ao português por Marcelo Antinori a partir da<br />

versão inglesa traduzida do japonês por Robert Ulmer.<br />

Por ocasião do nosso aniversário<br />

de casamento<br />

— dois anos: dois anos<br />

tranquilos — minha esposa,<br />

Eliane, presenteou-me com<br />

um romance: O eterno marido.<br />

O romance foi escrito por Fiódor<br />

Dostoiévski, em 1870; e talvez<br />

seja relevante confessar-lhe que<br />

Dostoiévski figura entre meus<br />

autores prediletos. Junto ao livro,<br />

Eliane anexou um cartão que<br />

dizia, entre outras particularidades,<br />

Para o meu eterno marido.<br />

Comecei a ler naquela noite,<br />

ansioso, após o jantar de comemoração.<br />

E fui logo envolvido<br />

pela angústia aflita do protagonista<br />

Vieltchâninov, a quem o<br />

narrador segue — em sutil onisciência<br />

— com exclusividade.<br />

Uma narrativa arrebatadora.<br />

Quando o personagem está aflito,<br />

o texto está aflito; essa técnica,<br />

que é executada com precisão,<br />

revela-nos o raro artista<br />

maior. No caso de Dostoiévski, a<br />

forma também é conteúdo.<br />

Com tais ideias fermentando,<br />

eu lia o quarto capítulo<br />

do romance; era formulada uma<br />

teoria sobre mulheres “que parecem<br />

ter nascido unicamente<br />

para serem esposas infiéis. (...)<br />

E tudo acontece com a máxima<br />

sinceridade; elas se consideram,<br />

até o fim, justas no mais<br />

alto grau e, está claro, de todo<br />

inocentes”. Tentei recapitular se<br />

havia alguma conhecida, alguma<br />

amiga, Infiel-inocente.<br />

Quando me percebi às voltas<br />

com o parágrafo seguinte:<br />

“Vieltchâninov estava convencido<br />

de que realmente existia esse tipo<br />

de mulher; mas tinha também<br />

certeza de que existia um tipo de<br />

marido correspondente ao dessas<br />

mulheres, marido cuja única destinação<br />

seria a de corresponder a<br />

esse tipo feminino. A seu ver, o<br />

caráter essencial de semelhantes<br />

maridos consistia em serem, por<br />

assim dizer, ‘eternos maridos’,<br />

ou, dizendo melhor, em serem, na<br />

vida, unicamente maridos e” —<br />

Correspondente?, pensei.<br />

— “mais nada. ‘Um homem<br />

dessa espécie nasce e cresce tão somente<br />

para se casar e, após o matrimônio,<br />

tornar-se de imediato<br />

um complemento da esposa, mesmo<br />

que possua indiscutivelmente<br />

personalidade própria. O principal<br />

indício de semelhante marido<br />

é certo ornamento. Ele não pode<br />

deixar de ser portador de chifres,<br />

como o sol não pode deixar de iluminar;<br />

e ele não só ignora o fato:<br />

de acordo com as próprias leis da<br />

natureza, deve ignorá-lo’”.<br />

Meus olhos debatiam-se no<br />

parágrafo, relutavam em retornar<br />

às terríveis palavras, até que,<br />

derrotados, mergulharam também<br />

na memória: mergulharam<br />

fixos no cartão Para o meu eterno<br />

marido. Para o meu Ela, Infiel-<br />

-inocente? eterno marido. Para<br />

o meu eterno marido. Portador<br />

de chifres, como o sol não pode<br />

deixar de iluminar. Eu, portador<br />

de chifres, portador de chifres que<br />

não posso deixar de exibir.<br />

Rasguei! o cartão. Atirei<br />

Dostoiévski à lixeira.<br />

Eliane, boa leitora e nada<br />

ingênua, teria conhecimento do<br />

conteúdo do romance? Ou pior:<br />

Eliane teria o conhecimento engavetado<br />

e agira de forma inconsciente?<br />

Ou pior:, ou pior:,<br />

ou. Não há resolução. A única saída,<br />

ainda que arrasadora, é reescrever<br />

a primeira sentença deste<br />

cruel relato: Por ocasião do nosso<br />

aniversário de casamento — dois<br />

anos; tranquilos? — minha ex-esposa,<br />

Eliane, presenteou-me com<br />

um romance: O eterno marido.<br />

O AUTOR<br />

Felipe Franco<br />

Munhoz<br />

Nasceu em São Paulo,<br />

em 1990. É graduado em<br />

Comunicação Social pela<br />

UFPR. Em 2010, recebeu<br />

uma Bolsa Funarte de<br />

Criação Literária para<br />

escrever — em tempo<br />

integral — o romance<br />

Mentiras, inspirado na<br />

obra de Philip Roth. A<br />

convite da Philip Roth<br />

Society, Felipe leu trechos<br />

do romance durante as<br />

comemorações de 80<br />

anos de Philip Roth, em<br />

Newark, em março de<br />

2013. Em dezembro de<br />

2013, o conto No ringue<br />

de Hemingway foi<br />

publicado pela Travessa<br />

dos Editores. É crítico da<br />

APCA na área de literatura.


30<br />

169 • maio_ 2014<br />

Robert Creeley<br />

Tradução e seleção: André Caramuru Aubert<br />

O<br />

poeta norte-americano Robert Creeley (1926-<br />

2005) é, entre seus conterrâneos e contemporâneos,<br />

um dos mais conhecidos (ou menos desconhecidos)<br />

no Brasil. Além da qualidade de sua<br />

obra, talvez tenha ajudado, para isso, o fato de Creeley ter<br />

estado em São Paulo e conhecido alguns de nossos poetas. O<br />

fato é que ele deixou por aqui alguns admiradores importantes,<br />

como Ruy Vasconcelos e, principalmente, Régis Bonvicino,<br />

editor e tradutor de uma excelente coletânea brasileira<br />

(A UM, poemas. Ed. bilíngue, Ateliê Editorial, 1997).<br />

Ainda assim, diante de tudo o que Robert Creeley produziu,<br />

o que temos dele em português é muito pouco. Os<br />

quarenta e um poemas presentes em A UM, embora bastante<br />

representativos (são uma mistura de sugestões do próprio<br />

autor com os prediletos do tradutor), não passam de uma<br />

gota no oceano diante de alguém que escreveu continuamente<br />

por cerca de sessenta anos, e cuja obra completa, em inglês,<br />

espalha-se em dois volumes com mais de mil e duzentas<br />

páginas no total.<br />

Creeley é uma unanimidade. Discípulo de William Carlos<br />

Williams e admirado por este, foi um líder do grupo Black<br />

Mountain, embora sua poesia muitas vezes ficasse distante<br />

da de outros membros. Elo de ligação entre os Beats e os<br />

poetas da San Francisco Renaissance, e entre os grupos de<br />

Nova York e da Califórnia, ele conseguia circular com desenvoltura<br />

entre poetas como Jack Kerouac e Allen Ginsberg, de<br />

um lado, e Charles Olson e Denise Levertov, de outro. Conhecido<br />

por sua generosidade, Creeley gostava de dar aulas e<br />

não se cansava de orientar novos poetas. Em função da combinação<br />

de sua personalidade com uma produção rigorosa<br />

e intensa, Creeley foi influente como talvez nenhum outro<br />

poeta de sua geração. Segundo alguns, um “poeta de poetas”<br />

por excelência.<br />

A temática de Robert Creeley, como bom discípulo de<br />

W. C. Williams, gira primordialmente em torno das pequenas<br />

coisas, de cenas do cotidiano, de rápidas impressões de<br />

viagem. Econômico e preciso, suas quebras de linha são únicas.<br />

Embora afirmasse que, em poesia, a forma deveria se<br />

subordinar ao conteúdo, poucos poetas contemporâneos são<br />

mais formalmente rigorosos do que ele. Creeley possuía, segundo<br />

Williams, “o mais sutil sentido da medida desde Ezra<br />

Pound”. O que faz com que, estruturados a partir de um íntimo<br />

conhecimento dos sons, da respiração e dos ritmos da<br />

língua inglesa, os poemas de Creeley sejam muito difíceis de<br />

traduzir, especialmente para uma língua tão diferente da dele<br />

quanto é o português (Régis Bonvicino já chamava a atenção<br />

para isso na introdução a A UM). Mas penso que, apesar dos<br />

percalços e das limitações no resultado final, o esforço vale a<br />

pena, tanto para quem traduz quanto para quem lê.<br />

Para esta introdução a Robert Creeley, procurei incluir<br />

alguns poemas de cada uma das etapas de sua carreira. Evitei<br />

apenas os que já haviam aparecido em português, especialmente<br />

na seleção de Régis Bonvicino (mesmo sabendo<br />

que ali estão algumas das mais belas composições de Creeley)<br />

porque, se por um lado eu não poderia pretender fazer<br />

uma tradução melhor, por outro, afinal de contas, eles já estão<br />

disponíveis em livro, em português.<br />

RETURN<br />

Quiet as is proper for such places;<br />

The street, subdued, half-snow, half-rain,<br />

Endless, but ending in the darkened doors.<br />

Inside, they who will be there always,<br />

Quiet as is proper for such people —<br />

Enough for now to be here, and<br />

To know my door is one of these.<br />

RETORNO<br />

Silenciosa como é próprio para lugares assim;<br />

A rua, calma, meio neve, meio chuva,<br />

Sem fim, mas terminando nas portas escuras.<br />

Dentro, aqueles que estão sempre lá,<br />

Silenciosos como é próprio para pessoas assim —<br />

Bastando por ora estar ali, e<br />

Saber que a minha porta é uma destas.<br />

•••<br />

MIDNIGHT<br />

When the rain stops<br />

and the cat drops<br />

out of the tree<br />

to walk<br />

away, when the rain stops,<br />

when the others come home, when<br />

the phone stops,<br />

the drip of water, the<br />

potential of a caller<br />

any Sunday afternoon.<br />

MEIA-NOITE<br />

Quando a chuva para<br />

e o gato desce<br />

da árvore<br />

para sair<br />

andando, quando a chuva para,<br />

quando os outros voltam pra casa, quando<br />

o telefone para,<br />

os pingos d’água, a<br />

possibilidade de um telefonema<br />

uma tarde de domingo qualquer.<br />

•••<br />

FOR HELEN<br />

... If I can<br />

remember anything, it<br />

is the way ahead<br />

you made for me, specifically:<br />

wetness,<br />

now the grass<br />

as early it<br />

has webs, all the lawn<br />

stretched out from<br />

the door, the back<br />

one with a small crabbed<br />

porch. The trees<br />

are, then so high, a huge encrusted<br />

sense of grooved trunk,<br />

I can<br />

slide my finger along<br />

each edge.<br />

PARA HELEN<br />

… Se eu posso<br />

me lembrar de algo, é<br />

do caminho que<br />

você abriu para mim, especificamente:<br />

como mais cedo, tem<br />

teias, todo o campo<br />

estendido para além da<br />

porta, a de trás<br />

para um pequeno, insignificante<br />

alpendre. As árvores<br />

estão, então, tão altas, um forte sentimento de<br />

incrustrados e adequados troncos,<br />

eu posso<br />

deslizar meu dedo por<br />

cada ponta.<br />

•••<br />

AS YOU COME<br />

As you come down<br />

the road, it swings<br />

slowly left and the sea<br />

opens below you,<br />

west. It sounds out.<br />

ENQUANTO VOCÊ VEM<br />

Enquanto você vem<br />

pela estrada, ela vira<br />

lentamente à esquerda e o mar<br />

se abre abaixo de você,<br />

a oeste. Isso se mostra.<br />

•••<br />

THEN<br />

Don’t go<br />

to the mountains,<br />

again — not<br />

away, mad. Let’s<br />

talk it out, you<br />

never went anywhere.<br />

I did — and here<br />

in the world, looking back<br />

on so-called life<br />

with its impeccable<br />

talk and legs and breasts,<br />

I loved you<br />

but not as some<br />

gross habit, please.<br />

Your voice<br />

so quiet now,<br />

so vacant, for me,<br />

no sound, on the phone,<br />

no clothes, on the floor,<br />

no face, no hands,<br />

— if I didn’t want<br />

to be here, I wouldn’t<br />

be here, and would<br />

be elsewhere? Then.<br />

ENTÃO<br />

Não vá<br />

para as montanhas,<br />

de novo — não<br />

embora, zangada. Vamos<br />

resolver isso, você<br />

nunca foi a lugar algum.<br />

na assim chamada vida<br />

com suas impecáveis<br />

conversas e pernas e seios,<br />

eu amei você<br />

mas não enquanto algum<br />

hábito grosseiro, por favor.<br />

Sua voz<br />

tão quieta agora,<br />

tão vazia, para mim,<br />

nenhum som, no telefone,<br />

nenhuma roupa, no chão<br />

nenhuma face, nem mãos,<br />

— se eu não quisesse<br />

estar aqui, eu não estaria<br />

aqui, e estaria<br />

em outro lugar? E então.<br />

•••<br />

SEA<br />

Ever<br />

to sleep,<br />

returning water.<br />

*<br />

Rock’s upright,<br />

thinking.<br />

*<br />

Boy and dog<br />

following<br />

the edge.<br />

*<br />

Come back, first<br />

wave I saw.<br />

*<br />

Old man at<br />

water’s edge, brown<br />

pants rolled up,<br />

white legs, and hair.<br />

*<br />

Thin faint<br />

clouds begin<br />

to drift over<br />

sun, imperceptibly.<br />

*<br />

Stick stuck<br />

in sand, shoes,<br />

sweater, cigarettes.<br />

*<br />

No home more<br />

to go to.<br />

*<br />

But that line,<br />

sky and sea’s,<br />

something else.<br />

*<br />

Adios, water —<br />

for another day.<br />

MAR<br />

Sempre<br />

para dormir,<br />

a água voltando.<br />

*<br />

As rochas à direita,<br />

pensando.<br />

*<br />

Garoto e cachorro<br />

seguindo<br />

pela beira.<br />

*<br />

De volta, a<br />

primeira onda que vi.<br />

*<br />

Um velho na<br />

beira d’água, calças<br />

marrons enroladas nas pernas,<br />

pernas brancas, e cabelos.<br />

*<br />

Leve desmaio<br />

nuvens começam<br />

a vaguear por sobre<br />

o sol, imperceptivelmente.<br />

*<br />

Galho preso<br />

na areia, sapatos,<br />

agasalho, cigarros.<br />

*<br />

Sem uma casa mais<br />

para onde ir.<br />

*<br />

Mas aquela linha,<br />

de céu e mar,<br />

alguma coisa a mais.<br />

*<br />

Adiós, água —<br />

até um outro dia.<br />

umidade,<br />

agora a relva<br />

Eu fui — e aqui<br />

no mundo, olhando para trás<br />

leia mais poemas no www.rascunho.com.br


hq : : ramon muniz<br />

169 • maio_ 2014<br />

31<br />

QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />

COLUNISTAS<br />

DOM CASMURRO ENSAIOS E RESENHAS ENTREVISTAS PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />

OTRO OJO


32<br />

169 • maio_ 2014<br />

sujeito oculto : : rogério pereira<br />

À espera do pai<br />

Ilustração: Fabiano Vianna<br />

QUEM SOMOS CONTATO ASSINATURA DO JORNAL IMPRESSO CARTAS<br />

COLUNISTAS<br />

ENSAIOS E RESENHAS<br />

DOM CASMURRO PAIOL LITERÁRIO PRATELEIRA NOTÍCIAS<br />

IÇÕES ANTERIORES ENTREVISTAS OTRO OJO<br />

Nunca odiei tanto o pai. Eu o<br />

esperava na porta de casa. Ele<br />

descia a rua de pedregulhos.<br />

Havia pouco tempo deixáramos<br />

a roça. Agora, tínhamos de cavar<br />

um chão de concreto e asfalto. Trocamos<br />

a companhia de bois vagarosos pelo ronco<br />

descontrolado de carros e ônibus. Aos<br />

poucos, nos acostumaríamos ao ruído da<br />

nova vida. Atrás da casa de madeira, construímos<br />

nosso estádio — um estropiado<br />

Maracanã ladeado por cedros e uma tímida<br />

valeta. Nossa rede, as ancas do paiol<br />

em cujas vísceras dormiam ratos pançudos.<br />

E as ripas para a construção das estufas<br />

na floricultura onde morávamos de<br />

favor. Éramos retirantes num mundo que<br />

nos amedrontava.<br />

O pai carrega o pacote; vem em minha<br />

direção. Eu o espero. A ansiedade a<br />

pulsar nas vértebras do pescoço. Um nó<br />

prestes a estourar no urro do animal ancestral.<br />

Ele caminha devagar, como se<br />

ambicionasse congelar o tempo, paralisar<br />

o momento de entregar ao filho o pão que<br />

jamais saciaria a fome que arranhava as<br />

costelas delicadas. Te odiei tanto, pai, na<br />

tarde sem fim. A mãe ali por perto cuidando<br />

das azaleias, avencas e samambaias.<br />

Eu já havia anunciado aos amigos. A minha<br />

espera era a espera deles. Éramos<br />

uma horda de gnus à beira de um rio seco,<br />

sem crocodilos. Correríamos em disparada<br />

ao nosso estádio de mentira. Seríamos,<br />

enfim, pequenos deuses capazes de milagres<br />

indecentes. Bastava o pai me estender<br />

as mãos grossas, calosas, herança de<br />

uma roça obsoleta e indesejada. O pai estendeu-me<br />

as mãos. Sobre elas, o pacote.<br />

Um simulacro de Papai Noel, cujas vestes<br />

tornavam risível a triste silhueta. Toma,<br />

filho. Agarrei com todas as minhas forças<br />

de nove anos. Davi e Golias trocando carícias<br />

e gentilezas. Rasguei o papel de cor<br />

indefinida feito o esfomeado a estraçalhar<br />

o vestido da amante.<br />

À minha volta, pares de olhos em<br />

febre. Enfim, abandonaríamos a bola<br />

de plástico emprestada. Teríamos nossa<br />

bola: grande, branca, de capotão. Do papel<br />

amassado, a desilusão. Uma bola pequena,<br />

de cor escura, de borracha, fincava<br />

espinhos na palma da minha mão. Gostou,<br />

filho? A pergunta do pai se perdeu no silêncio<br />

indestrutível. Quietos e resignados,<br />

rumamos ao nosso estádio. Eu carregava<br />

o ódio debaixo do braço.<br />

A bola pequena e feia — borracha<br />

maldita — rapidamente se transformou.<br />

Inventamos a bola perfeita. Nosso silêncio<br />

virou algazarra. Os gnus ruidosos lambiam<br />

o rio caudaloso. Crocodilos não nos<br />

assustavam. Inventamos dribles para a<br />

bola que pulava uma imensidão. Nossos<br />

pés sofriam para dominá-la. Aos poucos,<br />

arrefecemos a sua fúria. Driblamos e a<br />

chutamos vida afora.<br />

Dói menos odiar o pai quando se<br />

está feliz.<br />

NOTA<br />

Texto publicado originalmente no site de<br />

crônicas Vida Breve (www.vidabreve.com.br)

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!