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Todos os 20 contos aqui foram publicados e bem avaliados no perfil do autor no site Recanto das Letras e também em seu blog Ler Contos de Terror. São narrativas produzidas para um leitor participativo que certamente se envolverá com as histórias.

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CONTOS DE TERROR<br />

2


ÍNDICE<br />

O MISTÉRIO DA CASA ALUGADA 04<br />

LEANAN 13<br />

QUANDO A LUA CHAMA 21<br />

DESEJOS VIVENTES 25<br />

O AMIGO DE SEIS SEMANAS 30<br />

A SOBREVIVENTE 40<br />

PERTUBADORA SURSPRESA 43<br />

O QUE HAVIA NO APARTAMENTO 73 50<br />

DESTINATÁRIOS 57<br />

ENOQUE, A CIDADE DOS HOMICIDAS 60<br />

CIDADE BRUTA, POSTURA DENEGRIDA 63<br />

SOCIOFOBIA 68<br />

UM ANJO VAGANTE 71<br />

PIGMALEÃO 77<br />

A ÁRVORE DA DESGRAÇA 81<br />

A TATUAGEM DO LAGARTO 87<br />

ESCRITOR DE SUCCUBU (AJUDE-ME) 94<br />

DILIGENCIA DOS MORTOS 103<br />

CONFLITO DE ARUANDA 110<br />

O ESPECTRO NA ESCOLA 116<br />

3


O MISTÉRIO DA CASA ALUGADA<br />

Os personagens não são inventados, eles vivem no mundo real,<br />

perambulam pela cidade procurando uma história para interferir, se<br />

escondem em habitações reais. E depois que a noite chega estas<br />

aberrações, que deveriam somente estar impressas nas ficções, entram<br />

em conflito com pessoas verdadeiras, disputam espaço com seres<br />

humanos autênticos que tentam sobreviver neste nosso mundo bestial.<br />

Então não os vejo mais, apenas presumo!<br />

A família nada sabia sobre a casa que tinha alugado. Contragosto<br />

eles novamente tiveram que mudar devido o aumento a aluguel. Só que<br />

agora era diferente, aquelas acomodações possuíam uma locação bem<br />

abaixo do preço, assim, mesmo com os ágios das renovações de contrato<br />

com o locatário, o sobrado ainda teria um preço viável.<br />

Em frente à casa estacionou o caminhão de mudanças, propriedade<br />

que tinha a pintura totalmente gasta, demonstrando grande tempo de<br />

abandono. Alguns vizinhos saíram para bisbilhotar o ocorrido, entre os<br />

curiosos estava um jovem mal encarado de boné que gingava enquanto<br />

caminhava. Comentários eram soltos e arrastados pelo vento que soprava<br />

forte naquele dia até os ouvidos da família recém-chegada. Rumores sem<br />

nenhum efeito para quem sempre esteve de mudança, algo para ser<br />

interpretado como um desejo de apreço e sinal de boas vindas.<br />

Atrás do caminhão estava um taxi que trazia quatro pessoas, uma<br />

mulher loira que já tinha passado dos trinta, seu esposo, um adolescente<br />

aparentando uns quinze anos e também saiu um homem moço com<br />

roupas descoladas que carregava uma mochila além dos cabelos cheios<br />

de gel, seu nome era...<br />

– Ei você da mochila, tu não é o DJ Nêmese? – perguntou o mal<br />

encarado enquanto gingava na direção do sobrado.<br />

4


– Sou. Você me conhece de onde? – perguntou o moço, largando<br />

sua mochila para seu irmão mais novo carregar.<br />

– Cara! Eu curto muito sua discotecagem, você esta tocando onde<br />

agora?<br />

Os dois cumprimentaram-se como amigos de infância, seguindo na<br />

direção oposta à mudança. O adolescente olhou indignado para seu pai<br />

porque sabia que iria fazer o trabalho do irmão mais velho. Na verdade<br />

DJ Nêmese era irmão postiço do jovem Sidnei, filho da sua madrasta.<br />

Sidnei nunca teve opção de escolha, sempre foram as imposições do seu<br />

pai, influenciado pela mulher. Tentando se conformar com a situação, ele<br />

colocou a mochila nas costas, seguindo para trás do caminhão e pegou<br />

uma caixa.<br />

– Atualmente eu estou com um projeto na internet, também corro<br />

atrás de uma casa de shows para ficar residente, contatos é o que não<br />

faltam... – Sidnei ouvia do seu irmão DJ, antes de entrar no novo lar.<br />

Durante todo o dia os três membros da família empenhara-se em<br />

fazer a mudança, acomodações que seriam concluídas apenas quando<br />

estabelecessem uma rotina. Sidnei estava exausto, após engolir uns dois<br />

pedaços de pizza desabou na cama. Uma coisa boa no novo lar era ter<br />

um quarto só para ele, não iria mais disputar espaço no dormitório com<br />

seu irmão postiço, nunca mais ficaria madrugadas cordado, sendo<br />

incomodado pelas musicas eletrônicas que o DJ mixava. Melodia<br />

compassada e barulhenta que outros chamavam de arte.<br />

O vento que soprou na manhã, durante a tarde virou ventania e<br />

pela noite uma grande tempestade alcançou a cidade. Sidnei nem<br />

percebeu os barulhos que atingiam sua janela, não sentiu a rajada de<br />

vento que invadiu seu leito que provocava sons curiosos junto à parede.<br />

O adolescente estava muito cansado para abalar-se com uma simples<br />

chuva de vento, além de já ser adulto. Somente dormiu profundamente.<br />

5


Ao amanhecer, Sidnei despertou sentido forte dores no corpo,<br />

principalmente nos braços. Ele tomou banho, escovou os dentes e notou<br />

que havia um corte na mão esquerda. Possivelmente as dores que sentia<br />

no corpo eram pelo esforço de carregar vários objetos na mudança, só<br />

que não lembrava ter se machucado. Quando as pessoas estão<br />

compenetradas em algum trabalho físico não percebem que esbarram em<br />

alguma quina ou porta, foi o que Sidnei pensou.<br />

No andar de baixo seu pai acabava de passar o café para ser<br />

servido com o pão que comprou mais cedo.<br />

– Bom dia filho, que chuva foi aquela de ontem!<br />

– Choveu? Eu estava tão cansado que nem percebi.<br />

– Foi um dilúvio, mas teve seu lado bom, deu para perceber que as<br />

ruas deste bairro não alagam. Eu também descobri um mercadinho que<br />

vende pão, descendo umas três quadras. Você não sabe, mas enquanto eu<br />

comprava pão notei que umas senhoras conversando sobre a gente, elas<br />

nem desconfiaram que eu era o morador novo.<br />

– E o que elas diziam.<br />

– Estavam cogitando quanto tempo nos ficaríamos morando aqui.<br />

– Serio! O que mais?<br />

– Apenas isto, diziam que nunca permaneceu inquilino neste<br />

sobrado. Mas não parei para ouvir senão eu iria acabar discutindo com<br />

gente que nem conheço. Nossos vizinhos devem ser um bando de<br />

fofoqueiros.<br />

Sentados à mesa, pai e filho compartilhavam momentos raros de<br />

comunhão. Sidnei gostava de estar com seu pai, prender um pouco da<br />

sua atenção com uma conversa qualquer, sem interferência de sua<br />

madrasta ou filho dela. Infelizmente aqueles momentos junto ao seu pai<br />

eram raros mesmo, porque entrou na cozinha o folgado do DJ Nêmese<br />

apenas de cueca, ele reclamava seus direitos de irmão mais velho.<br />

6


– Olha quem acordou primeiro, o carinha que acomodou suas<br />

coisas no quarto errado! – dizia o DJ sem olhar para ninguém e<br />

roubando o pão cortado de Sidnei.<br />

– Devolve... este pão é meu! Você não estava aqui para ajudar na<br />

mudança, fui eu quem carregou suas coisas, então nada mais justo eu<br />

ficar no quarto maior.<br />

– Não ajudei porque estava me enturmando, correndo atrás de<br />

contatos de trabalho. Não seja vigarista e tire suas coisas daquele quarto.<br />

– Contatos de trabalho? Com aquele sujeito mal encarado? Só se<br />

for para traficar drogas!<br />

Neste momento entrou Gorette, mãe do DJ, mulher de hábito<br />

parcial que sempre apoiou seu queridinho como se ele fosse a estrela do<br />

momento. A mamãezinha deu um beijo no seu filinho artista, em seguida<br />

beija o marido e afaga Sidnei despenteando seu cabelo.<br />

– Bom dia mãe... Por favor, explica ao Sidnei que eu preciso de<br />

espaço para poder produzir, ele acomodou-se no quarto maior.<br />

– Ele sabe disso meu querido não se preocupe. Foi apenas um<br />

engano. – dizia Gorette calmamente.<br />

Novamente indignado o adolescente olhou para seu pai, ele já<br />

sabia que teria novamente que ceder aos caprichos do irmão mais velho.<br />

Sidnei quis engolir seu café o mais rápido possível para poder sair<br />

daquele lugar que jamais seria seu de verdade. Uma coisa o consolava,<br />

ele prometeu as garotas deixadas no outro bairro de visitá-las no dia<br />

seguinte, distancia não é empecilho para quem dispõe de tempo e<br />

bicicleta. Dona Eleonora e suas filhas eram uma verdadeira família para<br />

ele, gostaria de ficar com elas, mas não era possível.<br />

Sidnei pensava longe quando foi interrompido pela voz do DJ:<br />

– Sabe aquele carinha que conheci ontem assim que chegamos?<br />

Ele veio com uma estória estranha, falou que não parava ninguém nesta<br />

7


casa. Numa das vezes que esta propriedade esteve vazia ele entrou com<br />

uma garota para um momento intimo, daí o carinha disse que ouviu uns<br />

barulhos muito sinistros que vinham da parede como se cada lado das<br />

divisórias estivessem conversando bem baixinho. – o DJ Nêmese deu<br />

uma gargalhada com a boca cheia de miolo de pão, então sem demora<br />

continuou – O cara não dizia coisa com coisa, parecia estar cheio de<br />

drogas!<br />

– Cuidado com estas pessoas que você anda. – disse o pai, para<br />

depois recordar o que ouviu na padaria – Quando eu fui buscar pão no<br />

mercadinho descendo três quadras ouvi umas senhoras...<br />

Sidnei não ouviu mais nada porque já estava passando pela porta.<br />

Ao retornar para casa no inicio da noite, o adolescente encontrou<br />

um bilhete na porta do seu quarto pedindo para ele retirar as coisas do<br />

cômodo imediatamente. Ele ignorou o recado, pegando uma toalha para<br />

tomar banho. Após sair do chuveiro ficou no computador até cair de<br />

cansaço, só depois tentou dormir um pouco. Apenas tentou porque assim<br />

que colocou a cabeça no travesseiro e as luzes foram apagadas Sidnei<br />

percebeu uns sons estranhos que vinham da parede. Eram diálogos<br />

parecidos com cochichos de alguém que não queria ser notado. Sidnei<br />

ouvia calado, tentado entender qual eram os motivos daquela trama<br />

sussurrada. Seu irmão postiço certamente estava com alguém no cômodo<br />

ao lado. Não era no outro quarto e sim do lado de fora porque mexeram<br />

na maçaneta da porta.<br />

Sidnei levantou devagar, notando que os murmúrios<br />

instantaneamente cessaram. Ele caminhou em direção à porta sem<br />

ascender a luz, andou na ponta dos pés até a entrada do dormitório de<br />

seu irmão e olhou através da fresta. Somente o DJ estava ali, sentado de<br />

costa, agitando-se compenetrado em seu equipamento de som e com<br />

fones no ouvido. O adolescente não queria ser notado, então retornou<br />

8


pelo corredor na ponta dos pés até o leito de seus pais e viu os dois<br />

dormindo. Sorrateiro, Sidnei voltou para sua cama, os sons deveriam ter<br />

vindo do volume auto daqueles fones do DJ. Ele deitou e esperou o sono<br />

vir, permaneceu quietamente sobre a cama, mas outra vez os cochichos<br />

ressurgiram dentro da escuridão, mais próximos como se fossem pessoas<br />

segredando ao seu lado. Ele abriu seus ouvidos para perceber o que<br />

falavam, quando conseguiu escutar:<br />

– Agora?<br />

– Agora não. Espera...<br />

– Agora, já dormiu.<br />

– Agora. Vai!<br />

Sidnei nervoso gritou! Sentiu medo de sofrer alguma agressão<br />

misteriosa, um grito que expelido com todo ar de seus pulmões e retiniu<br />

pelas estruturas da edificação. Ele não conseguiu ver quem era, ouviu<br />

apenas passos correndo, afastado-se, nada mais...<br />

Nada mais? Só o fato de ouvir vozes dentro do quarto já era um<br />

tanto perturbador. Alguma coisa queria machucá-lo ou até matá-lo, mas<br />

o quê? Ainda encoberto pela escuridão do recinto Sidnei uniu as mãos<br />

em uma prece e sentiu que o corte na mão esquerda estava aberto. Logo<br />

ele juntou os dois fatos deixando claro, estas evidências não eram<br />

projeções do acaso.<br />

A porta abriu no mesmo instante que a lâmpada acendeu, sua<br />

família estava ali para socorrê-lo. O primeiro a chegar foi DJ Nêmese.<br />

– O que aconteceu?<br />

– Tinha alguém aqui no quarto... Queria me atacar!<br />

– Foi apenas um sonho filho – disse seu pai.<br />

– Não, estou bem acordado! Olha aqui minha mão...<br />

– Não tem nenhum estranho na casa – alegou o irmão postiço<br />

olhando admiradamente a extensão do cômodo e seus móveis, quando<br />

9


concluiu – senão eu teria ouvido.<br />

– Você estava com fones no ouvido, não viu nem quando eu abri a<br />

porta do seu quarto.<br />

– Êi, espere aí... O quê é isto aqui em cima? – o DJ segurava entre<br />

seus dedos uma caixa preta de CD que pegou sobre a cômoda, depois<br />

disse zangado – Isto aqui é meu disco do Daft Punk. Eu não acredito que<br />

você roubou meu disco do Daft Punk, seu fedelho!<br />

– Eu não roubei, só peguei para fazer uma cópia... – Sidnei não<br />

teve tempo para completar a frase porque o DJ já estava dando-lhe um<br />

pontapé.<br />

– Não me interessa se iria devolver, para mim isto significa furto!<br />

Tem mais coisas minhas aqui dentro?<br />

– Tenha calma querido – dizia a mãe do DJ – nós estamos aqui<br />

para socorrê-lo e não piorar a situação. Olha Sidnei, não se deve pegar<br />

coisas dos outros pedir sem primeiro. Principalmente este quarto que não<br />

é teu.<br />

– Tentaram me atacar agora apouco! – gritava Sidnei olhando<br />

assustado para as três pessoas e continuou – Vocês não estão entendendo<br />

que tem mais alguém nesta casa!?<br />

DJ Nêmese, ainda com expressão de raiva, aponta o dedo para o<br />

irmão e resmunga:<br />

– Tudo bem, eu vou procurar por toda casa... Mas se não encontrar<br />

nada você vai sair agora deste quarto.<br />

– Com todo prazer! – Disse o adolescente, já com uma certa<br />

rejeição àquele lugar, sentia repulsa pelas pessoas que estavam ali<br />

porque nunca lhe deram espaço nem autonomia.<br />

Toda família procurou em cada parte da casa, sempre com uma<br />

indiferença por parte de alguns membros, porém nada encontraram de<br />

anormal. O pai também vasculhou na área externa, nenhuma coisa<br />

10


atípica foi percebida. Desta forma a madrasta Gorette concluiu que<br />

Sidnei estava vendo coisas produzidas por sua imaginação imatura e<br />

fértil, em seguida ordenou:<br />

– Agora pegue seus lençóis junto com o colchão e vá dormir no<br />

outro quarto.<br />

O filho mais jovem obedeceu sem pestanejar porque também era<br />

uma decisão sua, ele estava apreensivo com o que poderiam ser aquelas<br />

vozes. Qual o significado sobre todos aqueles sussurros que tramavam<br />

quando a luz foi apagada. Quem sabe não seja apenas força do habito,<br />

uma espécie de alucinação que outra vez estaria conspirando contra ele.<br />

Sidnei acomodou-se no quarto pequeno, entre as coisas desarrumadas e<br />

roupas largadas pelo chão. Enquanto o DJ satisfeitíssimo seguia para o<br />

dormitório maior, carregando todos seus equipamentos eletrônicos.<br />

Poucos minutos arrastaram-se como uma eternidade para o<br />

perturbado adolescente, até ele ser vencido pelo cansaço e dormir. Um<br />

silêncio aparente pousou sobre aquele teto...<br />

O que mais desassossega um silêncio aparente? Gritos de alarde<br />

semelhantes aos que saíram dos pulmões de Sidnei, colocando toda sua<br />

família em alerta? Porém existem incômodos maiores, como perceber<br />

que conspiram contra sua vida em meio à tranquilidade da pacata noite;<br />

mas a quietude do descanso de Sidnei foi quebrada na manhã seguinte,<br />

ele foi despertado com vários socos e tapas no rosto, dados por sua<br />

madrasta.<br />

– Desgraçado, você matou!!!<br />

– Pare Gorette, eu não fiz nada – mais outro tapa foi dado em sua<br />

cara, seu pai tentou conter a mulher, o suficiente para Sidnei levantar-se<br />

e escapar questionando – O que eu fiz?<br />

– Você sabe assassino... Meu filho está morto!!!<br />

O adolescente correu até o outro dormitório, deparando-se com<br />

11


seu irmão postiço sem vida deitado na cama. Uma expressão mortal de<br />

dor e agonia enrugava sua face descorada. Se a morte for uma passagem<br />

para nossas vidas, então o DJ não conseguiu encontrar a porta porque era<br />

apavorante sua expressão facial! A pessoa que Sidnei mais estimava<br />

naquela casa sempre foi seu pai, porém este estava mais indignado com<br />

o massacre que caiu sobre as costas do adolescente. O corpo do DJ tinha<br />

sofrido um verdadeiro batuque perfurante, toda a carne pálida estava<br />

cortada e seu colchão virou uma esponja que pingava sangue coagulado.<br />

– Assassino! Você arruinou nossas vidas!!! – dizia a madrasta<br />

sedenta por vingança.<br />

O adolescente estava sendo responsabilizado pelo homicídio<br />

ocorrido durante a madrugada na casa recém alugada. Mesmo assim ele<br />

inocentemente tentou se defender, palavras que saíram em vão de seus<br />

lábios, ninguém acreditaria em sua conversa. Entretanto ele tocou na<br />

feria que cicatrizava em sua mão para ariscar:<br />

casa!<br />

– Eu não matei... Eu disse... Eu disse que tinha alguma coisa nesta<br />

12


LEANAN<br />

I<br />

Quais os limites permissíveis para uma ótima noite de amor? Até onde<br />

um solitário homem cederia para satisfazer sua nova conquista? Alguns<br />

querem deixar transparecer uma imagem inteligente, culto e vigor sexual. E<br />

se a nova parceira pedir, em troca das caricias dela, que você cometa atos<br />

ilícitos ou lhe entregue algo pervertido?<br />

Ultimamente Firmino estava um pouco acima do peso, sua beleza mais<br />

atenuada pela maturidade; também é fato que ele dispensou muitas<br />

pretendentes a um casamento estável, junto a uma rotina familiar. Porém ele<br />

pensou que fosse milagre a estonteante farmacêutica da clinica de<br />

manipulação dar em cima dele naquela manhã. Firmino ainda conservava um<br />

pouco de seu encanto, ou seria uma bondade no tratamento dela com os<br />

clientes que lhe fez confundir com um flerte? Não era coisa de sua<br />

imaginação porque o numero de telefone celular da Leanan estava anotado<br />

atrás do cartão. No fim da tarde ele retiraria os medicamentos e iria esclarecer<br />

suas duvidas.<br />

O homem já não era tão atraente aos trintas anos e sua expectativa de<br />

envolver-se com uma mulher tão sensual com Leanan era nula. Quando mais<br />

jovem ele teve um caso com a rainha de bateria da sua escola de samba,<br />

aquela foi a mulher mais bonita que levou para cama. Hoje, com a profissão<br />

de mecânico de ônibus, consegue ter literalmente envolvimentos passageiros.<br />

– Como será esta delicia sem roupas? – era o que Firmino pensava.<br />

Seu linguajar não era adequado para uma mulher tão especial, ele teria<br />

que melhorar seu diálogo, selecionar assuntos legais e argumentos<br />

inteligentes. Teria que conquistar esta sedutora profissional; ela era quase<br />

uma médica.<br />

“Você acredita em bruxas?” Estava impressa essa pergunta no broche<br />

pregado no jaleco da doutora. A indagação do button seria o primeiro passo a<br />

uma conversa bem mística e cativante, Firmino não conseguia parar de<br />

13


eparar os seios farto que pareciam querer saltar fora do jaleco. E o rosto da<br />

mulher então, a coisa mais formosa que poderia contemplar nos últimos anos;<br />

um rosto bem luminoso lhe fitando, com certo ar de desejo expresso numa<br />

pele brilhante e olhos grandes.<br />

– De certa forma os farmacêuticos são manipuladores de extratos<br />

naturais, se estes utilizam elementos que saem da terra para curar então eles<br />

são bruxos. – disse Firmino timidamente no inicio, temendo uma rejeição<br />

antecipada da linda mulher.<br />

– Não é esse tipo de bruxa que meu enfeite cita. – disse Leanan<br />

sorrindo pelo interesse de Firmino. Em seguida ela levanta seus compridos<br />

cabelos loiros para mostrar, próximo à nuca, uma tatuagem de uma<br />

menininha com chapéu pontudo sentada numa vassoura e voando ao lado de<br />

uma ave. Então continuou – Refere-se aquela sacerdotisa que utiliza<br />

elementos que o planeta possui como forma de inventar e fazer magias<br />

miraculosas.<br />

Firmino estava num dilema, se falasse que bruxas não passavam de<br />

fábulas ele poderia perder a oportunidade de ter alguma intimidade com a<br />

farmacêutica; contudo se alegasse acreditar em magia não estaria sendo<br />

verdadeiro em suas convicções. Então ele resolveu fazer um discurso<br />

imparcial.<br />

– São de origem Celta estas sacerdotisas que agem extraindo energia<br />

do planeta, não são? Já que houve uma inquisição contra essas mulheres é<br />

porque suas práticas incomodavam a igreja cristã.<br />

– Eu sou de origem inglesa sabia? Na mitologia Celta havia um deus<br />

que era senhor da fertilidade, protegia a caça e também a agricultura. Os<br />

textos antigos falam que ele tinha a cabeça de veado e os pés de bode, seu<br />

nome é Cernunnos. Quando os católicos chegaram a Grã-Bretanha<br />

associaram esta entidade ao diabo; os padres compararam Cernunnos com<br />

lúcifer devido à insistência nas adorações e sacrifícios do povo a esta<br />

14


venerada divindade.<br />

– Esta lenda eu não conhecia. – pronunciou o homem barrigudo,<br />

vacilando nas suas palavras.<br />

– Não é lenda, são fatos históricos de um povo que também foi<br />

conquistado. Você não acredita na minha origem, não é? Senhor Firmino!<br />

– Eu sei que existe uma energia muito maior do que os seres viventes,<br />

um poder cósmico que trás equilíbrio ao universo além de manter as coisas<br />

progredindo desta forma que vemos; porém eu questiono se tamanha<br />

atividade energética seja uma ação consciente. Como um Ser tão poderoso,<br />

honrado e inteligente assim, como todos falam, pode ser acanhado na mesma<br />

proporção a ponto de jamais se revelar para sua criação? Não é<br />

demasiadamente contraditório para um Deus todo poderoso?<br />

– Então você não acredita que a Terra receba influencias divinas, que<br />

toda esta limitada partícula de vida vagando dentro do cosmo tenha sido<br />

formada por Deus.<br />

– Não! Você não está entendendo meu ponto de vista. Eu não acredito<br />

nem renego, apenas questiono.<br />

– Entendo. – expôs Leanan arregalando ainda mais os olhos,<br />

mostrando uma comunhão entre ela e o homem – Você é um cético.<br />

– Exato! Sou cético.<br />

– Eu leio muito sabia? Uma vez eu vi no livro de Apocalipse que Deus<br />

despreza os céticos porque eles não são quentes muito menos frios, são<br />

mornos em suas convicções. Estes serão vomitados pelo criador.<br />

– Morno? Porque não venero o que pode ser uma reação em cadeia,<br />

uma criação gerada ao acaso? Para ser considerado humano é necessário<br />

viver de ilusões do que existe ou poderia existir? Então sou de outro planeta,<br />

pois não perco tempo refletindo sobre Genesis, muito menos Apocalipse.<br />

Leanan realmente estava afim de Firmino! Ele percebeu tal fato<br />

quando retornou para pegar sua encomenda, próximo do horário de fechar. A<br />

15


farmacêutica fez questão de atendê-lo com a máxima atenção e simpatia.<br />

– Que pena que você chegou. Um cliente interessante como você<br />

merece ter seus medicamentos entregues em casa... e por mim.<br />

– Não seja por isso. Eu estou de ônibus, então você não só levará os<br />

remédios como também o paciente para casa.<br />

– Gostei da proposta. Espera um pouquinho que vou pegar minha<br />

bolsa.<br />

II<br />

Firmino estava agora dentro do carro de Leanan, a noite já tomava<br />

conta das avenidas iluminadas pelos postes e faróis dos veículos. O homem<br />

estava incomodado porque há tempos não ficava com uma pessoa tão<br />

formosa. Ela dirigia por um caminho oposto, pois iriam antes passar na casa<br />

de outra cliente e entregar uma formula intravenosa encomendada. Chegaram<br />

numa pequena rua deserta com muitas árvores e estacionaram em frente à<br />

casa de Dona Mônica que já aguardava na porta. Esta os recebeu<br />

amigavelmente:<br />

– Venha Leanan, entre com seu namorado. Eu fiz torta de frango e o<br />

chá está fresquinho. – pediu a senhora que tinha verias manchas epidérmicas<br />

pelo corpo.<br />

Os três entraram na casa decorada igual a um seriado da década de<br />

1970, além de haver vários enfeites de pássaros. O casal sentou num sofá<br />

posicionado em frente a uma grande estante repleta de livros, entre os dois<br />

móveis havia uma mesinha de centro. A senhora seguiu até a cozinha.<br />

Leanan encostou-se no corpo de Firmino, ele sentia a fragrância do<br />

hálito da mulher como um sinal verde para o beijo. Assim aconteceu, de<br />

forma veemente, até serem interrompidos pelo retorno da idosa anfitriã para<br />

servir o chá.<br />

– E aquela substancia prometida, quando você vai me trazer? –<br />

perguntou à idosa, enquanto fatiava a torta.<br />

16


– Eu não encontro em nenhum canto Dona Mônica; nem nos<br />

concorrentes é possível encomendar. Mas eu acho que já temos um<br />

fornecedor bom, tenha só mais um pouco de paciência.<br />

– Vocês estão falando de medicamentos? Para mim parece uma<br />

conversa de contrabandistas. – disse Firmino, enquanto enfiava na boca um<br />

pedaço generoso da torta.<br />

– Dona Mônica está querendo uma substancia orgânica muito escassa,<br />

serve para tentar reverter o envelhecimento de sua pele. Mas isso não é<br />

assunto para você, sabe por quê? Você não acreditaria no elixir da juventude.<br />

Desconversou a farmacêutica.<br />

em tudo!<br />

– Depois de conhecer você, que é um presente dos céus... eu acredito<br />

– Hum! Que homem galanteador, vai ganhar mais um pedaço de torta.<br />

– servindo outra fatia, Dona Mônica sorriu para a outra.<br />

– Vamos Firmino, come logo que nossa noite esta prometendo!<br />

Novamente dentro do carro, ainda estacionado na frente da casa da<br />

velha, o casal curtia momentos de libidinosas intimidades.<br />

um motel?<br />

– Não seria melhor irmos para um lugar mais privativo Leanan, que tal<br />

– Não, tenho uma idéia melhor. Quero namorar você em um lugar<br />

aberto. – acionando a ignição do veiculo, a farmacêutica partiu.<br />

III<br />

Ela dirigia com uma expressão de mistério em seu rosto, no rádio<br />

tocava uma musica dos Beatles e o homem gordinho olhava através da janela<br />

com expectativa. Até que o carro parou em frente um grande muro branco,<br />

numa imediação desabitada.<br />

– É aqui! Quero você aqui dentro do cemitério.<br />

– Eu não vou sentir clima aí dentro.<br />

17


– Está agora com medo daquilo que sua mente rejeita?<br />

– Não é isto... é que não tem graça transar onde há gente morta.<br />

– Vai ser bom. Não veja como uma profanação e sim um louvor dos<br />

nossos corpos energizado para todos aqueles que estão sem vida aqui dentro.<br />

Vamos venha... Me dê sua mão.<br />

Ele olhou as primeiras gotas do sangue que brotava de seu dedo. Junto<br />

com a recente ferida exposta também surgiu um berro, um grito trazido pelo<br />

susto de ser surpreendido por um ato tão inesperado da sua cobiçada fêmea. A<br />

carne do dedo mindinho foi rasgada por uma pressão de desejo e lascividade<br />

que satisfizeram os dentes daquela boca sedutora. Ela o mordeu depois que<br />

ele conseguiu forçar o portão de entrada.<br />

– Me dá aqui seu dedo, deixa-me ver. – Leanan segurou com ternura a<br />

ferida e, levando com cuidado aos lábios, sugou o sangue que escorria.<br />

– Sua maluca, é assim que trata suas paqueras?<br />

– Aqui fora te provoco dor, mas lá dentro você terá prazer! Venha,<br />

entra comigo.<br />

O lugar não era o mais adequado e a adversidade do terreno fazia o<br />

coração do pesado mecânico palpitar de medo, só que a atmosfera era<br />

favorável para a cópula. A pálida lua crescente pouco iluminava as<br />

particularidades dos amantes, semelhante a uma distante lâmpada, o sereno<br />

refrescava os corpos libidinosos. Não havia mais nada que esconder naquele<br />

momento, porque até mesmo os mais hipócritas dos puritanos também<br />

procriam. Como um escândalo devasso, o sexo é algo essencial para as<br />

pessoas. As ideologias da mente humana podem possuir pretensões adversas,<br />

só que a cúmplice atração entre os casais é a mesma. No ponto de vista de<br />

Firmino aquilo era uma safada loucura, já para ela não passava de uma<br />

simples tara daquilo que é proibido. Enganados estão todos que acreditam<br />

numa mulher que fica nua dentro de cemitérios na madrugada!<br />

Leanan se ajeitou sobre um tumulo de forma receptiva para Firmino e<br />

ordenou com uma voz meiga:<br />

18


– Vem! – em seguida lambeu os beiços sujo com o sangue dele.<br />

A concentração de Firmino não estava focada na sensação do contato<br />

com a fêmea. Ele a observava com certa fraqueza, um receio do que poderia<br />

acontecer depois, medo da malignidade inesperada. Já ela o encarava com<br />

um semblante de ódio na face, franzia a testa e mostrava os dentes cerrados<br />

numa expressão de denso prazer. Não eram gemidos que a garganta dela<br />

emitia, mas conversas inaudíveis. Leanan possuía uma pele muito clara que<br />

crepitava sobre a catacumba, idêntica a uma fogueira ardendo intensamente.<br />

Ela agarrava com força a lapide do tumulo que transgredia, estava ali o<br />

retrato de uma idosa que parecia lhe encarar também. A sensual fera sacudia a<br />

cabeça para os lados, fazendo seu crânio bater contra um vaso com flores que<br />

murchavam pelo abandono.<br />

O homem não queria mais observá-la, suas vistas percorriam toda a<br />

vizinhança que repousava eternamente em seus jazigos e notava uns vultos<br />

sumirem atrás das tumbas. Firmino queria sair logo dali então acelerou seus<br />

movimentos fazendo o corpo da sua parceira corcovar incisivamente. Uma<br />

aterrorizante coruja cinza de olhos enormes posou num crucifixo mais além,<br />

ave que tinha a carcaça de um bicho preso no bico. Ele então sentiu o deleite<br />

chegar, assim baixou a cabeça para ver o corpo da mulher e tremeu quando<br />

reparou uma lacraia andando sobre os seios dela. Os tremores vieram junto<br />

com o auge das delícias carnais, ela o enlaçou com as pernas para prendê-lo<br />

nos quadris. Firmino tentou sair, todavia estava agora sem forças.<br />

– Continua, seu obeso fraco! Ordenou ela com tom de revolta na voz e<br />

cravando suas unhas na genitália dele, querendo que permanecesse nela.<br />

– Me solta Leanan, temos que ir embora!<br />

– Esta tremendo de medo... Covarde! – cravando ainda mais as unhas<br />

na carne que diminuía; a outra mão ela enfiou dentro do vaso e dali retirou<br />

um punhal reluzente de tão amolado – Se parar agora eu te furo, seu frouxo<br />

mortiço!<br />

Firmino suava frio de medo, lutava para desprender-se entre as pernas<br />

19


da mística alquimista que queria capar suas credenciais. Ele em tropeços<br />

desabou no chão, exibindo uma bunda gorda e caindo de cara nas suas<br />

roupas. De quatro ele recolheu velozmente cada peça das vestes e correu<br />

pelado pelos caminhos estreitos entre as sepulturas.<br />

– Volta aqui covarde!!! – exigiu Leanan levantando-se calmamente da<br />

campa que lhe serviu de alcova, na mão direita via-se brilhando a lamina do<br />

punhal, na outra ela prendia entre os dedos o preservativo usado pelos dois.<br />

– Fique só com teus demônios, Bruxa! – Gritou o homem tentando<br />

escalar o muro. Apesar de sua pança atrapalhar um pouco, ele pulou para o<br />

outro lado só de cueca. Ouvindo as estridentes gargalhadas da farmacêutica,<br />

ele corria numa fuga aflita do lado de fora – BRUXA!!! Foi as ultima palavra<br />

exclamada na rua.<br />

Leanan abria sua bolsa para guardar com cuidado o látex que tinha seu<br />

conteúdo preso por um nó, em seguida retirou o telefone e discou sem se<br />

preocupar com sua nudez:<br />

– Alô, tia Mônica? Já consegui extrair a essência para sua porção. Não<br />

se preocupe o elixir vai ter eficácia, a senhora vai melhorar... O grande<br />

filósofo saiu correndo como um porco gordo, se cagando de medo! Foi difícil<br />

mais encontramos “a crença de um cético”!<br />

Orgulhosa por mais um dia de trabalho Leanan vestia-se. A coruja<br />

cinza pousou ao seu lado, encararam-se por alguns instantes, ambas tinham<br />

olhos grandes e assustadores. A ave comeu a lacraia que tentava fugir, a<br />

mulher colocou o punhal de volta no vaso e partiu já vestida.<br />

20


QUANDO A LUA CHAMA<br />

Percebi que havia algo de errado naquela sexta-feira quando vi o<br />

Sol aproximando-se do horizonte. Não preciso dizer neste texto que todo<br />

final de tarde as pessoas retornam para descansar em suas casas; pelo<br />

menos nós tentamos chegar aos nossos lares antes de anoitecer, se o<br />

transito permitir. Em finais de semanas assim de calor, em que o<br />

congestionamento é constante até altas horas da madrugada, eu tomo a<br />

precaução de sair de motocicleta. É mais ágil meu deslocamento sobre<br />

duas rodas, principalmente quando se tem muita pressa e ousadia.<br />

Entrei em casa iluminado com as últimas luzes naturais da manhã.<br />

O estofado da moto estava ensopado com o suor que brotou do meu<br />

corpo que tremia de calafrios provocados pelo pânico; pensei que não<br />

conseguiria chegar a tempo! Eu moro em uma casa alugada em um<br />

bairro simples de periferia, o espaço é pouco porém eu tenho tudo que<br />

necessito para resistir àquela noite... Mais uma vez tentarei lutar contra a<br />

sedutora força lunar, que possui sua atmosfera energizada de uma<br />

aterradora atração. Nunca consegui vencer uma sexta-feira de Lua<br />

Cheia, porém iria confrontá-la nesta noite logo terei que ser ativamente<br />

racional e prudente para resistir...<br />

Assim que estacionei a motocicleta na pequena área, cruzei a porta<br />

da entrada de casa já completamente sem roupa porque eu sentia meu<br />

corpo ferver e estralar, igual ao econômico motor de 125 cilindradas da<br />

minha companheira de duas rodas. Os efeitos do véu noturno já estavam<br />

afetando meu organismo; era impressionante o odor forte que saia de<br />

meus poros, como se eu nunca tivesse utilizado sabonete na vida.<br />

Quando a água do chuveiro começou a cair sobre mim, uma espessa<br />

gordura passou a se desprender do meu corpo, parecia ser uma mistura<br />

de suor em excesso que lembrava sebo! Eu tinha que me manter<br />

concentrado, minhas atitudes tinham que ser consequentes. Porém a<br />

metamorfose estava começando...<br />

21


Eu sentia, quando esfregava o sabonete no meu corpo em baixo da<br />

água quente, que minhas mãos tremiam e minhas articulações inchavam.<br />

Parecia que alfinetes me picavam internamente para sair de dentro de<br />

mim.<br />

– Deus me ajude! – disse eu suplicante para o teto, pois minhas<br />

vértebras dilatavam-se, me causando uma enorme dor. Prossegui minha<br />

prece em gemidos – Assim como não quebraram os ossos de seu filho<br />

Jesus na cruz, porque assim estava escrito e nunca fraturei um único<br />

osso sobre aquela moto, não permita que eu triture nenhum inocente!<br />

Um enorme imã me sugava para fora daquela habitação, era o<br />

satélite natural da Terra e eu sabia disso. Então adentrei no quarto dando<br />

murros nas paredes, aqueles socos no bloco eram uma forma de manterme<br />

consciente, sentindo dor. Das gavetas do guarda-roupa retirei uma<br />

cueca, a bíblia e uma algema.<br />

A beleza da luz refletida pelo astro mostrava numa fascinação<br />

assustadora que me magnetizava e me forçava a abandonar minha casa,<br />

eu não queria sair, mas algo me chamava para fora. Em uma ação<br />

completamente desesperada e confusa eu retornei a área onde estava<br />

minha motocicleta e algemei minha perna direita no garfo, bem próximo<br />

da roda. O grilhão de aço tinha a função de me ancorar em terra firme,<br />

igual ao disco de freio do veículo. Tudo para evitar uma fuga impensada<br />

que certamente eu cometeria, como um encarceramento momentâneo,<br />

apenas contra aquela maravilhosa noite que me chamava para cometer<br />

sandices selvagens.<br />

Abri o livro sagrado, folheando algumas páginas até encontrar o<br />

Salmo 73, onde li em voz alta:<br />

“...Como caem na desolação, quase num momento! Ficam<br />

totalmente consumidos de terrores. Como um so... sonho, quando se<br />

acorda, assim, óooh Senhor, quando acordares, desprezarás a apa...<br />

aparência deles. Assim o meu coração se azedou, e sinto picadas nos<br />

22


meus ri... rins. Assim me embruteci, e na... nada sabia; fiquei como um<br />

animal perante tiiiiii...”<br />

A dor era demais para mim e todo meu ser modificava-se em uma<br />

forma animalesca e incompreensível para a biologia dos homens.<br />

Quando eu, já desmaiando de agonia, bradei com toda força de meus<br />

pulmões ao criador:<br />

– DEUS! Se o Senhor existe, não permita que eu perca a razão.<br />

Aaah! AAAh! Grrrr...<br />

Tudo aquilo parecia um sonho, um sonhar de um homem lunático.<br />

Eu estaria agora no mundo da Lua? Há momentos em que não sabemos<br />

se estamos sonhado ou acordado, porém permanecemos sóbrios e<br />

conscientes. É literalmente um turbilhão de águas que correm fortemente<br />

para jamais voltar... Aquele fluxo de águas não volta, porém o rio sempre<br />

estará lá. A intensa névoa esconde o que está em nossa frente, no entanto<br />

eu sei que o rio sempre estará lá. Eu consigo ouvi-lo!<br />

Era já dia quando despertei lentamente, como se estivesse saindo<br />

de um devaneio irrefletido. Eu percebi que estava deitado no chão, sobre<br />

uma gelada vegetação bravia que se umedecia pela densa neblina da<br />

manhã. Então me sentei naquele mato e reparei que estava só de cueca,<br />

um pedaço da algema ainda estava preso em meu tornozelo arroxeado,<br />

todos meus músculos doíam, mas agora não estava mais com medo. O<br />

lugar estava completamente encoberto pela cerração da alvorada, no<br />

entanto eu conhecia bem aquela floresta porque toda vez que a<br />

transformação acontecia era ali que eu despertava. Eu não via o rio mas<br />

conseguia ouvir o barulho da correnteza. Meu corpo agora estava sem<br />

energia, relaxado e minhas fibras musculares doíam muito. Era como se<br />

eu tivesse corrido uma maratona e lutado com dois boxeadores. Sentia<br />

uma prazerosa saciedade e percebi que meu estomago estava farto, o que<br />

eu teria comido durante a noite?<br />

– Por favor Deus, não me mostre à verdade agora. – disse eu<br />

23


aquelas palavras revirando toda a vegetação para procurar minha suposta<br />

presa e continuei a falar com o criador – Eu não queria matar ninguém<br />

Deus!!!<br />

Pisando descalço na terra molhada, eu tentava vencer a neblina,<br />

varrendo a relva com os braços a procura de ossos, seguindo sempre em<br />

direção do som das águas. Quando avistei respingo de sangue eu abri<br />

mais o matagal até encontra uma carcaça que lembrava um animal<br />

quadrúpede. Foi só um cachorro de grande porte o que eu tinha devorado<br />

naquela noite.<br />

– Obrigado Jesus!!! Era apenas um cão vira-lata. – falei eu em<br />

agradecimento aos céus.<br />

A neblina se dissipava depressa, eu teria que retornar para casa<br />

antes que o cadáver daquele cachorro se decomponha. Agora teria que<br />

caminhar novamente pelo matagal abarrotado de ossos humanos ocultos<br />

até a estrada mais próxima. Outra vez eu iria simular um sequestro para<br />

conseguir carona para a cidade. Minha derrota contra a Lua novamente<br />

foi concretizada, no entanto não me preocupava com aquilo. O que eu<br />

realmente queria saber agora era: Onde teria deixado minha Bíblia?<br />

24


DESEJOS VIVENTES (Lenda Urbana)<br />

O cafajeste fugia de carro pela movimentada avenida na<br />

madrugada de sábado. Ele evadiu-se da boate, escorraçado porque tentou<br />

roubar um beijo de uma garota que dançava no meio da pista, só que ela<br />

estava muito bem acompanhada por uns vinte amigos. Então, para evitar<br />

tomar uma surra, Edu abandonou seus colegas e desapareceu como num<br />

truque de mágica, deixando seus camaradas a pé.<br />

Ele não queria voltar para casa, era cedo. Dirigia pela região<br />

central da cidade quando reparou, no ponto de ônibus, uma graciosa<br />

moça solitária. Edu fez o retorno no quarteirão; como perfeito canalha<br />

sedutor que era ele não perderia a oportunidade de abordar uma mulher<br />

sozinha.<br />

– Boa noite moça. Quer uma carona?<br />

– Não, obrigada – disse a mulher de aparência realmente bela, suas<br />

palavras meio que hesitaram porque ela já estava ali plantada há algumas<br />

horas.<br />

– A esta hora da noite não deve ter mais ônibus. – e esticando o<br />

corpo para abrir a porta do carona ele continuou suas investidas – Vem,<br />

entra aqui!<br />

A mulher lançou um olhar vivo, com expressão altaneira que<br />

certamente atraia o sorriso de qualquer galanteador. Só que ela estava<br />

desconfiada das ações de Edu.<br />

– Olha meu nome é Eduardo, sei que você não fala com estranhos,<br />

mas eu estou sozinho e quero só fazer uma boa ação para uma linda<br />

mulher. – pegando seu telefone, ele estendeu para ela – toma liga para<br />

sua família, fale a placa do meu carro e se em menos de vinte minutos<br />

você não estiver em casa com segurança eles podem chamar a policia.<br />

Seus argumentos convenceram-na a entrar toda alegre no<br />

automóvel, estava toda ditosa porque além de ganhar a carona poderia<br />

25


ter um caso, já que Edu não era de se jogar fora.<br />

A conversa fluía bem enquanto seguiam para os bairros na área sul<br />

da cidade, Edu tinha uma desenvoltura para cativar suas conquistas. Ela<br />

ouvia as bobagens cínicas do homem safado e apenas sorria, não ria com<br />

os lábios mas expressava graça com seu olhar animadamente radiante.<br />

Estava expresso no rosto dela o disfarce de uma moça pudica porque,<br />

além de ter um olhar obsceno, também usava um vestido branco<br />

provocante e mantinha seus movimentos inquietos.<br />

– Minha noite será ótima! – presumiu Edu. Ou será que este<br />

pensamento libido partiu dela?<br />

Edu estacionou em frente à casa da ninfa como prometido, apesar<br />

dele perceber que ela não queria entrar.<br />

– Eu moro uns dez minutos para frente, não gostaria de continuar<br />

esta conversa num lugar mais intimo? Questionou o lindo cafajeste,<br />

fazendo carinha de pidão.<br />

– Vamos, mas eu só posso ficar um pouquinho! Aquela foi a deixa<br />

para confirmar que Eduardo era um experiente conquistador, além de<br />

constatar que a mulher encobria seu cinismo.<br />

Os batimentos cardíacos dele estavam acelerados, como uma<br />

overdose de coramina. Aquele estonteante corpo feminino realmente era<br />

um estimulante cardíaco, fazendo o coração de Edu vibrar. Ela possuía<br />

alusão comparada à mulher perfeita, uma tenaz estatua de temperatura<br />

fria, semelhante à escultura do mármore mais polido de todo Mundo<br />

Antigo, eram assim as curvas deleitosas da amante. Ela fazia todas as<br />

fibras musculares de Edu ferver a tal ponto que trazia o equilíbrio entre a<br />

febre do homem mais a umidade fresca da voluptuosa da intimidade<br />

dela. A amante queria estar próxima dos fortes braços do rapaz, era o<br />

calor dele que trazia renovo para seu desejo tornar arder num prazer<br />

crepitante. Eles se amaram como se fossem os últimos viventes da terra.<br />

Feixes solares atravessavam as frestas da janela, querendo tocar na<br />

26


pele nua de Eduardo que ainda dormia sobre cama desforrada. Esgotado<br />

ele abriu os olhos, descansava estático porque tinha desprendido uma<br />

grande quantidade de energia junto com sua amada. Ele abriu os olhos<br />

ao ouvir seu telefone tocar inquieto escondido entre suas roupas.<br />

– Alô?<br />

– Cara você é o maior cretino que conheço, como pode abandonar<br />

a gente na boate? Nós gastamos todo o dinheiro com cerveja e quando...<br />

– Desculpe amigo, não tive tempo nem para avisá-los. Eu saí<br />

praticamnete fugido.<br />

– Amigo? Como você tem coragem de me chamar de amig...<br />

Edu desligou o telefone para não ouvir mais os insultos que<br />

merecia com toda certeza.<br />

A ninfa já não estava mais ali, partiu discretamente enquanto o<br />

homem dormia. Edu despertou com vontade de tê-la novamente ao seu<br />

lado, de alguma forma aquela mulher mexeu com seus sentimentos mais<br />

íntimos. Os traços de seu rosto delineado, os contornos de seu corpo<br />

além das sensações nítidas na memória como um sonho recente. Mas<br />

qual era seu nome? Ele esqueceu de perguntar. Queria tornar a vê-la,<br />

ouvir sua voz, reparar aquele olhar vivo lhe encarando com desejo, só<br />

que ela não deixou telefone. Não importa porque à tarde Edu iria bater<br />

no seu portão, igual um louco apaixonado. Era um risco que pretendia<br />

correr.<br />

Apesar do bairro está mais movimentado pela tarde, Edu<br />

lembrava-se claramente onde ela morava. Ele parou na frente do portão e<br />

por um instante treinou dentro do carro o que dizer, já que desconhecia o<br />

nome a quem chamar. Ele respirou fundo e bateu palmas.<br />

nessa casa.<br />

– Pois não?<br />

– Boa tarde senhor, eu gostaria de falar com uma moça que mora<br />

– Aqui não mora nenhuma garota, apenas eu, minha esposa e meu<br />

27


filho.<br />

– Eu trouxe ela aqui uma vez de carro. – tentando revelar parte do<br />

que realmente aconteceu, e continuou dar explicações – ela disse que<br />

morava aqui, é uma linda mulher de cabelos longos e olhos bem<br />

expressivos.<br />

– Você conhece a Marly de onde? Perguntou o velho, abrindo<br />

rapidamente o portão para tratar com Edu sem formalidades.<br />

– Na verdade eu a conheci ontem, só que perdi seu telefone. O<br />

senhor pode chamá-la?<br />

– Entre, entre...<br />

Eduardo entrou na casa humilde com mobílias antiga. O que<br />

chamou a atenção do homem foi um quadro de Jesus Cristo de manto<br />

vermelho, abençoando o ambiente com a mão direita perfurada e um<br />

coração estampado no peito cravado com uma coroa de espinhos; ao<br />

lado do quadro do messias havia um retrato de mesmo tamanho da ninfa<br />

que Edu estava apaixonado. A imagem da fotografia mostrava-a ela<br />

sorrindo, não com os lábios mas com seus olhos bem vivo.<br />

– Marlene venha cá! – uma senhora surge na sala secando as mãos<br />

com um pano de prato, pelas semelhanças dos traços ela certamente seria<br />

a mãe de Marly. Ao ver a senhora o velho prossegue – Este homem disse<br />

que esteve com Marly ontem, ele está querendo conversar com ela.<br />

– Você deve está se confundindo. – falou pasmada a mãe da jovem,<br />

enquanto buscava apoio para sua repentina fraqueza, sentando no sofá.<br />

– Não há nenhuma confusão, eu gostaria de conversar com a<br />

Marly só por dez minutos. – e apontando para o retrato dela – É ela ali<br />

na parede, eu quero falar com ela.<br />

O velho aproxima-se de sua companheira, que começava chorar<br />

com o pano cobrindo o rosto. Com fisionomia abatida e voz embargada<br />

o pai de Marly conclui:<br />

28


– Nossa filha era uma moça que viveu sua vida intensamente,<br />

assim ela morreu de overdose, foi encontrada estirada próxima a um<br />

ponto de ônibus. Você não esteve com ela porque ontem fez um ano que<br />

faleceu!<br />

Eduardo saiu daquela casa sem dizer nenhuma palavra, saiu<br />

confuso, tentando conjecturar respostas para sua alma aflita. O calor de<br />

seu corpo, sobre os lençóis da cama, serviu de alento a um espírito que<br />

não conformava-se com a morte prematura.<br />

29


O AMIGO DE SEIS SEMANAS<br />

Um dos piores sons deste mundo é ouvir um bocado de terra cair<br />

sobre a tampa do caixão onde está seu amigo. Após presenciarem seu<br />

colega, que em pouco tempo já tinha uma relação fraternal, descansar<br />

eternamente embaixo da terra ele partiu de mãos dadas com a mulher<br />

chorosa mais a criança. Seguiram para fora do cemitério sem dizerem<br />

uma única palavra, em respeito ao morto. Sejamos racionais: Quem<br />

nunca acreditou ou iludiu-se com alguém? Seria melhor recapitular este<br />

caso para que possamos compreender o que vale em uma amizade.<br />

Seis semanas antes Virgílio, sem aviso prévio, sofreu um mal<br />

súbito quando seguia para o trabalho. Ele sentiu uma forte ardência no<br />

braço direito, acompanhada pela falta de fôlego, perdeu os sentidos e<br />

desabou no piso da lotada estação de metrô. Sua parada<br />

cardiorrespiratória virou atração para todos os passageiros, um bom<br />

assunto que muitos iriam expor no trabalho. Assim o corpo de Virgílio<br />

perdia suas energias vitais no meio daquelas centenas de gente<br />

aguardando o próximo trem. A alma do recém-defunto desprendera-se da<br />

carne desamparada e doente, ficando ao chão somente um corpo abatido,<br />

com coração infartado e ventrículo fibrilando.<br />

– Nada mais pode ser feito, ele já está morto. – sussurrou o médico<br />

socorrista para o segurança da estação que estava ao seu lado, mesmo<br />

assim ele continuava procurando sinais no infartado.<br />

– Não doutor, o senhor deve fazer uma massagem cardíaca.<br />

– Não dá mais tempo. Ele está sem respirar por mais de dez<br />

minutos; já houve a morte do cérebro. Nem o desfibrilador resolve<br />

agora.<br />

– Mesmo assim acho que devemos ter fé e fazer uma massagem<br />

cardíaca! – disse o segurança tentando assumir o controle do<br />

atendimento.<br />

30


– O médico ainda sou eu e... – dando uma pausa para olhar toda<br />

aquela gente em volta, continuou a discutir em voz baixa com o outro ao<br />

seu lado – você é o segurança desta estação. Então afaste as pessoas,<br />

porque quero tirar o corpo deste tumulto todo.<br />

Os dois se entreolharam numa disputa de autoridade, um conflito<br />

entre opiniões distintas. O paramédico estava preocupado com a<br />

aglomeração que diariamente agitava a estação, enquanto o segurança<br />

queria dar assistência tardia ao morto. O profissional da saúde se<br />

levantou e seguiu em direção das pessoas aglomeradas, ordenando de<br />

forma irritante e prepotente que afastassem do cadáver e entrassem no<br />

trem que se aproximava.<br />

– Olha, ele conseguiu – disse uma moça espantada, apontando<br />

sobre o ombro do socorrista.<br />

A população entrou em alvoroço, aplaudindo com grande euforia,<br />

olhando na direção onde estava o defunto. O sujeito que deveria resgatar<br />

aquele enfartado olhou para trás, notando que o segurança do metrô dava<br />

assistência ao moribundo que acabara de despertar dos mortos. O<br />

infartado ainda permanecia deitado no chão, mas agora estava consciente<br />

e dialogando com seu novo amigo que trabalhava de segurança, única<br />

pessoa a fazer uma massagem cardíaca nele.<br />

Virgílio seguiu direto para o hospital mais próximo. Quando a<br />

noite chegou, ele assistia as reportagens sobre seu ataque cardíaco em<br />

todos os telejornais da TV. As câmeras de monitoramento da estação<br />

filmaram toda a ação do profissional da segurança, este estava sendo<br />

elogiado na matéria como um verdadeiro herói. Em outro canal<br />

específico uma moça era entrevistada – a mesma que apontou por sobre<br />

o ombro do socorrista – dizendo que o homem do resgate era mau<br />

profissional e todos viram ser negligente com a vida que sofria<br />

agonizante na plataforma de embarque do metrô. Os dias trilhavam<br />

durante a semana sempre se falando no mesmo assunto, de modo a<br />

31


tomar proporções internacionais, havia até debates calorosos nos<br />

programas televisivos da tarde, além da cobrança da opinião publica por<br />

uma explicação pela má conduta da equipe de resgate.<br />

Em um dos quartos, no segundo andar do hospital, Virgílio estava<br />

esperançoso pois acabava de receber alta. Junto com ele estava sua linda<br />

esposa, o filhinho de cinco anos e seu mais novo amigo, o segurança<br />

Pedro. Foi Pedro quem devolveu sua vida, lhe fez massagem cárdica<br />

enquanto muitos se benziam crendo não haver mais esperança para o<br />

infartado. Todos os dias Pedro visitava Virgílio em seu leito porque<br />

agora ambos tinham uma comunhão de vida e confiança.<br />

Quando Virgílio passou pela portaria do hospital, acompanhado de<br />

sua família mais Pedro, vários jornalistas os aguardavam do lado de fora.<br />

– Estou retornando à minha casa com minha esposa, meu filho e<br />

junto com meu novo irmão Pedro. Eu nasci de novo, ressuscitei nos<br />

braços deste homem que devo minha vida! – Talvez fosse exagero por<br />

parte de Virgílio, mas eram palavras repletas de emoção, faladas perto<br />

dos microfones. Com lágrimas nos olhos, abraçando seu filho, esposa e<br />

também Pedro, o infartado continuou dando entrevista – Agora tenho<br />

que manter minha saúde tomando remédios, fazendo uma dieta saudável<br />

e praticar exercícios físicos... Sim, tudo está bem agora... Não guardo<br />

magoas de ninguém... Já perdoei aquele socorrista!<br />

Tentando reestabelecer sua rotina decomposta pela doença, toda<br />

família tentava conviver com as mudanças que Virgílio faria. Sempre<br />

que ele retornava do trabalho fazia uma pausa na estação, tempo para<br />

aguardar o termino do expediente de Pedro. Chegando em casa, o<br />

infartado fazia uma leve refeição, em seguida corria pelas ruas do bairro<br />

com o colega. Pedro adorava conviver com a família de Virgílio, sempre<br />

esteve sozinho no mundo, morava em um apartamento alugado junto<br />

com um funcionário do trabalho. Em determinados dias da semana o<br />

segurança tinha folga, quando Virgílio chegava do serviço encontrava<br />

32


com satisfação o amigo sentado à mesa, tomando café junto com sua<br />

mulher. Sem abalar-se o infartado abraçava seu amigo, ainda grato pela<br />

nova vida.<br />

– Já está pronto para corrida? – Perguntava o segurança.<br />

– Claro que sim, só espera eu trocar de roupa.<br />

– Querido você acabou de chegar, descanse um pouquinho<br />

primeiro – falava a esposa, deixando transparecer que precisava da<br />

companhia do marido também, depois completava – aquele filme que<br />

você queria assistir no cinema vai passar daqui a pouquinho na TV.<br />

– Não posso assistir, tenho que me manter saudável. Dizia Virgílio<br />

sem preocupar-se com a carência da mulher.<br />

Sem dar mais ouvidos, os dois saíram em maratona pela noite.<br />

Porém a corrida foi impedida porque o médico socorrista, aquele mesmo<br />

que não prestou assistência ao infartado, aguardava os dois na rua com<br />

aparência intimidadora.<br />

– O quê está fazendo na frente da minha casa?<br />

O sujeito com expressão de ódio no rosto saca um revolver de trás<br />

das costas, aponta para o segurança e, junto com uma grande quantidade<br />

de saliva, passa cuspir ofensas:<br />

– Por causa deste filho da égua minha vida está arruinada! Eu fui<br />

demitido por uma alegação de incompetência... Sabe o que significa<br />

isto... seu guardinha de merda!? Que eu não tenho mais nada a perder!!!<br />

– Calma cara, todos nós cometemos falhas naquele dia. – disse<br />

Pedro com as mãos espalmadas para seu inimigo, tentando inutilmente<br />

tranquilizá-lo e rematou – nos podemos resolver esta situação juntos,<br />

vamos hoje mesmo aos jornais, é apenas um mal-entendido que iremos<br />

resolver!<br />

– Você não assistiu? Quando saí do hospital eu disse que tinha te<br />

perdoado. Concluiu Virgílio!<br />

33


– Isto não é com você, sabe por quê? – gritava fora de controle o<br />

sujeito armado, apontando o cano para o chão ele prossegue – Porque<br />

era para você estar morto... Um defunto que ajudaria todos à sua volta!!!<br />

– Cara isto não é certo, aquela não era a hora de Virgílio. Ele<br />

precisava ser reanimado! Falou o segurança.<br />

– Você é mesmo um monte de bosta! Sabe quanto tempo eu estou<br />

aqui? Vigiando esta casa? Como tem coragem de dizer que eu estou<br />

errado! Toma desgraçado!!!<br />

O assassino descarregou o tambor do revolver contra Pedro, porém<br />

Virgílio decidiu que seu herói não deveria morrer, era uma divida que<br />

possuía. Assim o pai de família avançou no meio da linha de fogo,<br />

tragando todo o aço que entrava em seu corpo. Um bucólico escudo<br />

humano defendeu seu salvador, Virgílio blindou seu amigo e desabou<br />

agonizando no meio da rua.<br />

***<br />

Virgílio sobreviveu, novamente estava deitado no mesmo quarto<br />

do hospital, recuperando-se misteriosamente de outro choque contra sua<br />

vida. Em menos de um mês ele enfartou na plataforma lotada do metrô,<br />

foi desenganado por um socorrista que deveria fazer-lhe uma massagem<br />

cardíaca, teve sua vida devolvida pelo segurança Pedro e agora tinha<br />

tomado seis tiros para proteger este novo amigo. Estava sem paradeiros<br />

o criminoso que lhe feriu a tiros, desapareceu como um crápula que era.<br />

Através da janela, notava-se a noite reinar neste lado do Globo.<br />

Virgílio abriu os olhos, reparando que o amigo estava sentado ao seu<br />

lado a dizer:<br />

– Bem-vindo ao mundo pela terceira vez!<br />

– Olá, tudo bem com meu herói?<br />

– Nada disso, agora estamos quites! Eu te salvei e você empatou<br />

tudo. Só o doido que atirou em você ainda esta foragido, fugiu depois<br />

que te acertou.<br />

34


– Pedro, você tem que se prevenir, eu suponho que ele possa voltar<br />

para te pegar!<br />

– Que nada, todos os canais de televisão estão divulgando seu<br />

retrato, ele deve estar bem longe agora. – Pedro deu uma pausa para<br />

criar coragem de fazer a pergunta que já tinha ensaiado, respirou fundo e<br />

soltou – Por que você entrou no meio dos tiros? Eu sou um homem que<br />

tem quase nada para abrir mão, não tenho nenhum compromisso familiar<br />

ou missão neste mundo. Por que Virgílio você fez isto? Não pensou na<br />

sua esposa ou filho?<br />

– Você é meu amigo...<br />

– Não é só isso... Qualquer um sabe que outro em seu lugar jamais<br />

morreria pelo colega que conhece há pouco tempo. Por quê?<br />

Virgílio olhou a noite que estava do lado de fora, fazendo uma leve<br />

careta de repudio, depois encarou seu amigo com afeição e disse:<br />

– Quando você me reanimou na estação, acreditando que eu ainda<br />

tinha chances de viver, eu também lutava em outro plano. A sua<br />

ressuscitação sobre meu corpo na plataforma do metrô não era a única<br />

desavença. Eu estava ali também em outra dimensão, não queria morrer,<br />

não era minha hora. Assim, como qualquer outro mortal, eu tentava<br />

resistir perante o anjo da morte que queria me levar para o mundo dos<br />

falecidos. Só que ninguém mais conseguia vê-lo, somente eu existia<br />

contra aquele monstro em forma de gente. Enquanto eu implorava por<br />

mais alguns dias nesta carne, a morte caminhava junto com a noite e<br />

disse que trazia a solução para todos meus males, pois iria por um fim<br />

nas minhas amarguras; novamente eu lhe disse que não queria morrer<br />

ainda! O bicho olhou para meu corpo estirado no chão e lá estava você,<br />

tentando inutilmente me reanimar, foi você que de alguma forma<br />

convenceu a morte em devolver meu espírito. A morte então olhou para<br />

mim perguntando se eu desejava testar minhas resistências contra o<br />

35


destino de toos os mortais. Eu respondi suplicante que sim. Em seguida<br />

ela fragmentou-se na escuridão, porém antes disse-me que caso eu<br />

sentisse medo ela retornaria para me levar instantaneamente! Eu acordei<br />

sentido uma grande comunhão contigo, igual uma ligação entre dois<br />

irmãos. Foi por isso que impedi o bandido de acertar você, porque eu<br />

temeria pela sua agonia em continuar a viver. Enquanto eu não sentir<br />

medo acredito que serei imortal, mas isto é um sarcasmo diabólico pois<br />

penso que estou sendo constantemente testado.<br />

Pedro ouvia atônito cada palavra do outro deitado sobre a maca.<br />

Acontecimento para se duvidar, porém seu amigo falava com uma<br />

convicção veemente, além da situação não ser a propicia para mentir. Ele<br />

então olha Virgílio e diz em tom confiante:<br />

– É difícil de acreditar, só que as evidencias estão cicatrizando na<br />

sua pele. – colocando as mãos na cabeça, maravilhado pelo discurso do<br />

amigo, Pedro levanta e completa – Cara... Muita gente não pensa desta<br />

forma, isto pode ser uma experiência pós-traumática... Mas quem sou eu<br />

para falar que tal dádiva pode ser fatídica para você!<br />

– Será mesmo uma alucinação? É melhor não pagar pra ver.<br />

Contudo não posso ao menos ter um sonho ruim, senão caio duro.<br />

– De uma forma ou outra isto é um milagre! Se for sério como diz<br />

então eu queria muito estar no seu lugar!!!<br />

Três dias depois Virgílio retornou para casa, sob os holofotes da<br />

imprensa. Uma motivação o contagiava porque não estaria desamparado,<br />

seu amigo sabia seu segredo e não deixaria abalar-se. Uma definição<br />

mais especifica para amizade é a confiança, sentimento que Pedro não<br />

deveria receber já que era amante da mulher do outro. Enquanto Virgílio<br />

estava internado, aquele que dizia ser amigo seduziu sua esposa. O<br />

paramédico tentou inutilmente alertá-lo, porém a cegueira da desilusão<br />

encobria os fatos e suspeitas.<br />

– Como matar alguém que tem parceria até com a morte? –<br />

36


pensava Pedro durante o almoço de ação de graça na casa do amigo,<br />

concluindo seu raciocínio de maneira traiçoeira – Tenho que tocar em<br />

seu ponto fraco!<br />

A manhã seguinte foi a mais conclusiva, uma manhã de segundafeira<br />

quando o infartado entrou em um dos vagões do metrô para seguir<br />

ao trabalho. Sentado distraidamente ele não reparou que o exfuncionário<br />

do resgate acomodou-se ao seu lado. Ele jamais esperava um<br />

encontro assim, o cara que por duas vezes quis levá-lo para o cemitério o<br />

cumprimentou:<br />

– Virgílio, precisamos conversar. – Virgílio ficou agitado ao<br />

perceber o outro no seu lado. De forma branda nas palavras o exparamedico<br />

quis contê-lo – Escuta o que tenho para dizer, você sabe que<br />

eu não lhe farei mal.<br />

– O que você quer maluco? Fala logo, senão eu grito para todos<br />

quem é você.<br />

– Rodney, meu nome é Rodney. Eu sei que estou correndo risco,<br />

não só o perigo em ser preso mais também que talvez você não possa<br />

acreditar em mim, entretanto o cara que diz ser seu amigo está tentando<br />

roubar sua família.<br />

– Isto não é verdade! Pedro é como um irmão pra mim.<br />

– Lembra a vez que eu quis matar Pedro e acabei acertando você?<br />

Eu passei três dias seguindo ele, acompanhando a rotina dele quando<br />

vi...<br />

– O que você viu?<br />

– Eu não posso dizer, você tem que voltar para casa e tirar suas<br />

próprias conclusões. – Rodney estendeu a mão e mostrou um embrulho<br />

para Virgílio, continuando – Leve isto, você sabe o que é, vai precisar e<br />

não hesite em usar.<br />

O infartado pegou o embrulho, sentindo que era pesado e<br />

37


consistente devido à densidade do metal contido dentro. Virgílio olhou<br />

para o outro, tentando não abalar-se e disse:<br />

– O que é isso? Você tem ideia do que está querendo?<br />

Rodney olhou no fundo dos olhos de Virgílio, tentando mostrar<br />

que a comunhão dele pelo amigo não valia à pena:<br />

– Você venera tanto aquele sujeito e não enxerga o que está a sua<br />

frente, não é? – e pressionando as mãos que agarrava o embrulho,<br />

encostando no peito de quem segurava, Rodney persistiu – Quando você<br />

passou pela estação não viu seu camarada, sabe onde ele está?<br />

– Ele está de folga. Balbuciou Virgílio, já deixando transparecer<br />

suas duvidas.<br />

– Volta para casa homem. Sua família está com aquele bandido!<br />

Seguindo a contramão do fluxo que trilhava para o labor cotidiano,<br />

o infartado decide retornar para casa, tentando manter a cabeça fria e<br />

razão alinhada no autocontrole. Se bem que falar em razão para uma<br />

pessoa que morrerá quando sentir medo é bem contraditório. Realmente<br />

descobrir que está sendo traído pela esposa, junto com o melhor amigo e<br />

flagrar os dois é ato que coloca toda valentia de um homem a prova.<br />

Virgílio entrou em casa próximo das nove horas, encontrando seu<br />

filhinho sozinho na sala assistindo televisão. O pai abraça sua criança,<br />

indagando onde estaria sua mãe. O menino apenas aponta para o quarto<br />

do casal que estava com a porta trancada. Ele deixa o menino no sofá e<br />

segue de arma em punho na direção do dormitório. Quando encostou o<br />

rosto na porta escuta nitidamente os gemidos prazerosos da sua mulher.<br />

Em uma ação de bravura, junto com as forças das pernas de corredor,<br />

Virgílio arromba a porta com dois chutes e enxerga o que era esperado.<br />

Ele deparou-se com os dois pelados sobre a cama, uma traição que fez a<br />

feria dentro do seu coração reabrir novamente, embora agora não era<br />

uma dor cardiovascular que sentia e sim a decepção de flagrar seu<br />

precioso amor num ato de infidelidade. Virgílio mal conseguiu reprimir<br />

38


o que sentia, seu coração estava quebrantado...<br />

***<br />

Estavam os dois adultos saindo com a criança do cemitério,<br />

homem e mulher caminhavam sem dizer uma palavra em memória ao<br />

morto. Não há som pior que ouvir o barulho oco da terra caindo sobre a<br />

tampa de um caixão. Um taxi os aguardava na saída, então Virgílio abriu<br />

a porta de trás do veículo para a mulher entrar com seu filho e seguiu<br />

para sentar ao lado do motorista.<br />

Ninguém estava feliz naquele dia, mas havia alívio pelo pesado<br />

fardo que ambos deixaram de carregar. Virgílio foi forte para matar o<br />

colega a quem devia sua vida, só que a mesma bravura não foi capaz de<br />

ter com sua mulher. Ele temia viver sem ela, assim morreria também.<br />

Agora Virgílio tinha um propósito para sua imortalidade: Tentar fazer<br />

sua mulher feliz, dar assistência que a esposa nunca teve. Porém, quando<br />

ela ficar fraca pela velhice, não resistindo ao destino de todos os<br />

viventes e morrer, ele então temerá sua perda e será enterrado junto com<br />

sua amada.<br />

– Obrigado Rodney! Pensou o infartado enquanto o taxi partia.<br />

Rodney estava observando o carro sair, escondido entre as árvores<br />

do cemitério. Sobre ele recaiu a culpa pela morte de Pedro. Foi esta a<br />

versão dada em depoimento à polícia.<br />

39


A SOBREVIVENTE<br />

Em montanha de escombros tornou-se um dos prédios<br />

habitacionais recém construídos. Os moradores que ali conviviam<br />

estavam realizados, pois era a concretização de um sonho. Um desejo de<br />

sair da precariedade dos barracos de palafitas sobre o mangue e terem<br />

um pouco de conforto, com uma rua asfaltada além de esgoto encanado<br />

agora virava realidade. Entretanto, uma tragédia estava anunciada.<br />

O edifício de neve andares entregues às famílias carentes pelo<br />

poder público tinha problemas estruturais. Foi o aposentado do oitavo<br />

andar que observou as trincas surgirem em seu banheiro e, quando<br />

alertou a secretaria de obras, ouviu como resposta que era algo natural<br />

onde a fundação da construção ainda estava se acomodando no solo. A<br />

naturalidade persistiu evoluindo gradativamente, a trinca dos banheiros<br />

desceu os andares como uma enorme rachadura e na semana seguinte<br />

podia-se ver a mulher do aposentado tomando banho. A síndica, mulher<br />

escandalosa de favela, acionou o jornal que fez uma matéria publicada<br />

numa sexta-feira. Era tarde demais...<br />

Na manhã de sábado uma viga de concreto envergou, as outras não<br />

suportaram o acumulo de peso e estouraram devido à tamanha tensão. A<br />

síndica realmente era escandalosa, porque foram os berros dela que se<br />

ouviu ao ver os móveis do aposentado, junto com toneladas de<br />

argamassa enrijecida, invadir seu apartamento. Poeira e escombros agora<br />

esmagavam os corpos das famílias humildemente felizes.<br />

Durante os quinze minutos que seguiram, pedidos de socorro e<br />

gritos de dor eram ouvidos no silencio que surgiu após a catástrofe,<br />

porém eles foram calados pela morte.<br />

Um pequeno corpo tentava respirar; pulmões inflavam para puxar<br />

oxigênio, mas só entravam pelas narinas cimento. Com grande<br />

dificuldade aquele corpinho de uma fêmea resistiu à falta de ar debaixo<br />

de uma laje. Sobre a penumbra avassaladora de destroços dos<br />

40


apartamentos ela estava presa e sentido grande dor. Se tivesse lágrimas<br />

ela choraria, contudo só havia um pó cinza que ressecava a boca e<br />

irritava seus brilhantes olhos negros. Seria aquela pilha de concreto sua<br />

sepultura?<br />

A soterrada desconhecida ouviu, bem ao longe, um grupo se<br />

mobilizar para um resgate:<br />

– Tem alguém ai? – Gritava um dos homens que prosseguiu –<br />

mostre sua localização para nós cavar!<br />

Do pequeno corpo infantil da soterrada saiu apenas um gemido,<br />

um único chiado afligindo pela dificuldade em respirar. Uma parede<br />

achatava um de sues pés e a areia tinha estancado o sangue que saiu. Por<br />

alguma razão instintiva, ela deu dois puxões na perna para tira-la de<br />

baixo da estrutura de blocos, quando se contorceu num agudo sofrimento<br />

pois acabara de arrancar seu próprio pé. A jovem ignorada perdeu os<br />

sentidos e desmaiou.<br />

“Descanse só um pouquinho, pequena donzela virgem, porque<br />

quando tu acordar será hora da tua jubilosa glória. Este ainda não é o dia<br />

de teu fenecimento, pois você terá muitos filhos e será feliz. Qual é seu<br />

nome, lindinha, que ainda não sei? Quando você acordar escapara deste<br />

mal de forma extraordinária, porém terá que haver surpresas para não<br />

frustrar nossos leitores. Por enquanto te chamarei com o nome da minha<br />

filha, Júlia – que significa juventude.”<br />

Quando Júlia acordou, já tinha recuperado um pouco das suas<br />

forças e a qualidade do ar estava bem melhor. Lá fora, já tinha caído à<br />

noite com os tratores erguendo os turbilhões de destroços. O holofote<br />

iluminava a área que os bombeiros trabalhavam. Júlia arrastou-se ao<br />

encontro de uma fagulha de luz que enxergava, cavou para abrir<br />

passagem perante os fragmentos de reboco. Ela esgueirou-se por uma<br />

fenda e com o outro pé alavancou um pedaço de metal que impedia seu<br />

acesso ao livramento. Cavou mais um bocado, era aquele o último<br />

41


obstáculo para poder sair.<br />

Finalmente, Júlia estava livre! Desorientada, ela engatinhou<br />

vagarosamente para o lado oposto onde os bombeiros estavam. A<br />

criaturinha tinha perdido uma parte de seu corpo, mas estava muito feliz<br />

porque acabara de lutar contra a morte e venceu! Júlia mancava perto da<br />

calçada de uma rua escura, aquele novo defeito era insignificante porque<br />

ela tinha outras cinco patinhas para poder andar. Sim, era uma linda<br />

baratinha a única sobrevivente daquela catástrofe. A artrópode<br />

cascudinha entrou toda serelepe para dentro de um bueiro uma vez que<br />

iria ser recebida com euforia por seus semelhantes.<br />

Você pode está rindo agora ou até revoltado com esta narrativa.<br />

Porém digo que um dia você também travará uma batalha com a morte e,<br />

certamente, desejará ser tão resistente quanto aquele bicho<br />

insignificante!<br />

42


PERTURBADORA SURPRESA<br />

Qual será a surpresa que seu pai prometeu? Tamanha ansiedade<br />

que a faz permanecer acordada até tarde, deitada sozinha no sofá da sala<br />

iluminada apenas pela grande TV, seus dedinhos apertam de forma<br />

inquieta o controle remoto sem prender a atenção em nenhum canal.<br />

Igual uma minhoca agitada, a menina contorcia seus membros e<br />

afundava cada vez mais no suntuoso sofá macio, aguardando o momento<br />

em que seu pai atravessaria pela porta com a surpresa prometida ao<br />

telefone.<br />

O sofá fofinho lhe incomodava, a mesmice da televisão, com cenas<br />

de um antílope lutando com coices e chifradas contra a faminta leoa para<br />

não ser sua próxima refeição, além das horas que atravessam a<br />

madrugada à dentro também lhe irritavam... e o sono que não vem...<br />

– Cadê meu pai? Tá demorando!<br />

Aquilo era, para a jovem moça, uma espera interminável na qual a<br />

demora fazia sofrer um pouco mais. Sempre foi assim. Ela nunca<br />

conseguiu permanecer acordada para vê-lo chegar. O emprego exigia<br />

muito dele; sua presença na empresa era de extrema importância. Até<br />

mais importante que sua família? Sua mãe até semana passada era quem<br />

aguardava o homem retornar do trabalho, ela sim era mais forte para<br />

ficar quase o fim da madrugada numa vigília agonizante para aguardar o<br />

retorno do marido. A filha Marina despertava já bem tarde da noite com<br />

a discussão do casal, a moça ouvia gritarias de sua mãe dizendo que não<br />

aguentava mais e que iria abandonar tudo! É triste para qualquer filho o<br />

sofrer de uma mãe, as crianças sempre possuem um gral maior de<br />

fragilidade numa crise familiar. Após a ultima briga, que atravessou toda<br />

madrugada, a mulher não quis mais preocupar-se com as desculpas do<br />

marido; agora ela passava seus dias na rua e as noites à base de<br />

tranquilizantes.<br />

Hoje Marina se entristeceu porque retornou da escola e viu que<br />

43


outra vez não havia ninguém em casa. Ela ligou aos prantos para o pai.<br />

Para acalmá-la, o homem disse que aquele sofrimento era passageiro<br />

porque ele iria resolver tudo hoje; falou também que iria ficar mais<br />

tempo em casa e cuidar das duas, além do prometido presente que traria.<br />

Novamente as promessas do seu pai ficaram em meras palavras,<br />

agora Marina não queria pensar nisso tudo. O jeito era tentar dormir.<br />

A garota tentou levantar das almofadas acolchoadas do estofado,<br />

mas estava atolada naquele conforto solitário. Ela então girou o corpo,<br />

rolando lateralmente para cair de quatro no carpete, forçando seu peso<br />

contra o controle remoto que segurava. A pressão da sua mão no objeto<br />

fez a TV trocar de canal, agora o que ela estava testemunhando era um<br />

filme erótico. Ingenuamente, com vergonha da cena que presenciava, ela<br />

apertou outra vez o controle só que a televisão não respondeu, Marina<br />

reparou então que uma das pilhas do aparelho tinha se desprendido.<br />

– Como se coloca isto?<br />

Na imagem a atriz se mexia igual uma amazona nua sobre o corpo<br />

forte do amante enquanto soltava gemidos animalescos; ouvia-se uma<br />

música ao fundo que era uma balada romântica repetitiva e com escassos<br />

acordes. O rosto da moça corou ao notar as façanhas carnais do casal que<br />

contracenavam. Marina agora via a televisão não com volúpia ou desejo<br />

e sim com a mais pura curiosidade. Ela reparava os mamilos da atraente<br />

mulher pularem com absurda exaltação de cima para baixo no mesmo<br />

ritmo que o quadril despido trepidava. A adolescente começou a medir<br />

com suas mãos seu tórax, imaginando se um dia seus seios seriam iguais<br />

ao da atriz, quando ouviu um barulho na porta...<br />

Tomada pelo nervosismo de ser flagrada por seu pai, com os<br />

batimentos do coração acelerado além de tudo mais que expressa<br />

apreensão, ela puxou a tomada da televisão da parede. A imagem da tela<br />

apagou no instante que ela arrancou o fio de forma agressiva, fazendo<br />

com que a treva natural da madrugada retornasse para aquela sala.<br />

Marina não tinha mais tempo para subir ao quarto sem seu pai perceber<br />

44


que havia alguma coisa de errado, então ela jogou-se no sofá novamente<br />

para simular que estava dormindo. Sua ansiedade era enorme para saber<br />

qual seria a surpresa prometida, como faria para descobrir o mistério<br />

antes de pegar no sono de verdade? Enquanto fingia que repousava ela<br />

ouvia o barulho da porta abrindo e fechando, em seguida ela percebeu<br />

também que seu pai aguardou um momento, como se tivesse reparando a<br />

menina deitada nas almofadas e depois caminhou pela escuridão até<br />

subir as escadarias. O som das pegados diminuiu enquanto subia para o<br />

segundo andar. Apesar do breu provocado pela falta de luz que cegaria<br />

os olhos de qualquer cristão, a pessoa que acabara de chegar caminhou<br />

com precisão pela casa.<br />

Marina abriu os olhos. Sua apreensão diminuiu da mesma forma<br />

que o som provocado pelo recém-chegado distanciava-se. Ela conseguia<br />

agora enxergar certas particularidades da sala. Suas retinas estavam se<br />

acomodando ao cômodo sem iluminação, conseguia distinguir as siluetas<br />

de todos os móveis. Os sentimentos da adolescente eram os melhores<br />

naquela noite, estava feliz ao ouvir seu pai chegar, além da segurança<br />

que a presença daquela pessoa afetuosa mas que estava sempre ausente<br />

naquele lar. Não havia mais tristeza para a jovem moça.<br />

Ela levantou, colocou o controle junto com as pilhas ao lado da TV<br />

e seguiu em direção as escadarias para encontrar seu pai no segundo<br />

andar. A pouca luminosidade não era mais empecilho, com facilidade<br />

subiu passo a passo os degraus da escada que lhe conduziria aos quartos<br />

da casa. Em cada nível que subia seu sorriso abria mais porque<br />

desvendaria o que o homem prometeu à sua filhinha. Marina estava na<br />

metade da subida, quando reparou uma reduzida luz avermelhado, algo<br />

semelhante a um brilho que cintilava, pulsando levemente. O que seria<br />

aquela pouca claridade curiosa?<br />

Desta vez seu pé pisou de forma calma em mais um degrau, o pé<br />

direito subiu outro e de novo o esquerdo andou mais outro. Por ultimo os<br />

dois pés chegaram no segundo pavimento. Ela parou para olhar o<br />

45


comprido corredor que seguia para os aposentos e terminava na suíte de<br />

casal, a escadaria terminava no inicio do caminho para os leitos. Então a<br />

jovem moça concluiu que a luz avermelhada estava piscando lentamente<br />

dentro de seu singelo quarto de porta entreaberta. Era lá que seu presente<br />

com certeza estaria, talvez cuidadosamente colocado sobre a cama<br />

forrada com lençóis de estampas infantis. Ao notar a coisa, seus lábios<br />

alargaram em um sorriso exaltadamente belo. Marina apressou-se para<br />

chegar ao cômodo, caminhando a passos largos e com as mãos unidas<br />

sobre a boca para esconder a alegria. Ela queria ocultar por alguns<br />

instantes suas emoções porque, como seu pai já tinha dito, aquilo teria<br />

que ser uma surpresa.<br />

Na frente do seu quarto, ela esticou o braço até abrir a porta<br />

pintada de rosa e mesclada pelo destoante lume rubro vindo de dentro.<br />

Abriu o suficiente para poder passar. Quando notou algo contraditório<br />

que a fez ficar seria... ela paralisou pois o que enxergava seria alguém<br />

estranho ao seu convívio, aquela pessoa não era seu pai!<br />

– Quem é você? – perguntou a moça para o ser forasteiro, a<br />

indagação foi pronunciada numa forma confusa pelas idéias atrapalhadas<br />

dela, pois a pergunta certa seria – O que esta fazendo na minha casa!?<br />

Tão rápido quanto um susto, Marina raciocinou para distinguir o<br />

que via. A pessoa que estava ao lado de sua cama era alguém que a fez<br />

gritar em desespero, o alarme agudo que saiu de sua garganta estremeceu<br />

todas as paredes do quarto e o pânico tomou conta de cada célula de seu<br />

corpo.<br />

Eram olhos sem nenhuma expressão, ao menos uma única emoção,<br />

nem quando a jovem Marina indagou a pálida mulher que trazia suas<br />

roupas sujas e denegridas de sangue; eram daquelas manchas<br />

avermelhadas de onde saiam os brilhos cintilantes. A aparição fez<br />

somente uma reação em resposta, falando em sussurros repetitivos:<br />

– É você a culpada... culpada... culpada!<br />

Por isso que Marina gritou... gritou forte e fugiu, correndo para o<br />

46


quarto de sua mãe, acelerada para não ser apanhada. Ela entrou no<br />

cômodo, trancando a porta atrás dela, agoniadíssima para despertar a<br />

mulher de seu repouso.<br />

– Mamãe! Mamãe! Tem uma mulher no meu quarto... acorda mãe!<br />

– gritava a moça enquanto sacudia a pobre adormecida que ressonava<br />

pelo efeito dos tranquilizantes, porém Marina insistia – Mãe!!! Acorda,<br />

ela está sangrando...<br />

Os esforços de acordar sua mãe eram em vão. O abdômen da<br />

jovem Marina tremia fazendo todo seu corpo sacudir numa agonia<br />

indefesa, um medo consciente de que sua fragilidade ainda infantil a<br />

deixava inerte e repleta de pavor. Sentada no chão, ao lado da mãe que<br />

dormia profundamente.<br />

O que fazer agora?<br />

A criatura estava no outro lado da parede, não era fruto de sua<br />

imaginação. Será? Quem garante que ela não estava sonhando – ou<br />

melhor – tendo um pesadelo, ainda deitada no sofá confortável da sala?<br />

Não, aquilo que vivia estava numa realidade frugal e sóbria, seu mundo<br />

coexistia agora em um terror real. Ela estava sozinha e para sair daquela<br />

situação teria primeiro que lutar contra o pior dos sentimentos: O Medo!<br />

Marina não resistiu e chorou.<br />

– Mamãe, por favor, acorda... Mãããe... não em deixa sozinha!<br />

Sem respostas e tomando outro susto pelos barulhos que vinha do<br />

quarto ao lado a moça olhou sua volta para procurar algo. Uma faca ou<br />

qualquer tipo de arma quem sabe, contudo ela achou o telefone,<br />

instrumento útil também.<br />

– Alô senhor policial, tem uma mulher sangrando na minha casa...<br />

Não, estou com minha mãe no quarto só que ela não quer acordar...<br />

Marina... Eu tenho 13 anos... A mulher está no meu quarto e tentou me<br />

pegar... Não, não é trote acredita em mim... Moro na rua Tiradentes,<br />

numero quatrocentos e nove... Mas enquanto não chega a policia, o que<br />

47


eu faço?... Já tentei, ela tomou remédios e não que acordar... A porta está<br />

trancada... Tá bem, estou esperando!<br />

Em torno das duas mulheres tudo estava estático. Com a porta<br />

trancada para proteção, a moça reparou que já tinha se adaptado a falta<br />

de luz porque na pressa de entrar naquele abrigo não houve nem tempo<br />

para tocar no interruptor. Marina olhava para as paredes encobertas pelas<br />

trevas, alguns cantos que enxergava reduzidamente, mas...<br />

Não, não pode ser possível!!!<br />

Na entrada da suíte daquele aposento começava a sair aquele<br />

brilho avermelhado de novo. As retinas de jovem moça fixaram-se<br />

naquele ponto discernindo assustada os flashs encarnados que partiam<br />

do banheiro.<br />

– É você a culpada... culpada... culpada! – Eram os sussurros que<br />

Marina sentia tocar profundamente na sua alma.<br />

Os tremores voltaram a sacudir seus ossos, porém ela sabia que<br />

teria de reagir para não morrer também, para não desmaiar da mesma<br />

forma que a mulher sobre a cama. Então a jovem se agachou pronta para<br />

fugir na carreira, eram os calafrios do medo que sentia que iriam dar<br />

força para isto. Correria até a escada, desceria os degraus e alcançaria a<br />

porta que a libertaria daquela ameaça fantasmagórica. A cintilância das<br />

luzes aumentavam, certamente a criatura estava vindo ao seu encontro,<br />

não se podia mais esperar... Então ela largou em disparada para<br />

destrancar a porta.<br />

Atravessou o corredor aos berros, tentando escapar do mau<br />

materializado. Fosse a adrenalina ou sua imaginação, porém agora ela<br />

enxergava a sujeita que sangrava por toda parte, sentia segurar seus<br />

tornozelos.<br />

– É você a culpada... culpada... culpada! – era o que ouvia.<br />

Ao descer pela escadaria Marina diminuiu sua velocidade, não<br />

podia mais resistir, a maligna luz avermelhada estava em toda parte.<br />

48


Agora também vinha do lado de fora, entrando pela janela da sala. Num<br />

agonizante e agudo berro Marinha se entregou à perversidade de seu<br />

sofrer...<br />

– Abra a porta é a polícia! – eram as vozes do lado de fora da casa.<br />

O novo brilho reluzente do lado de fora partiam das luzes que<br />

rodavam sobre as viaturas. Seus heróis vieram salvá-la.<br />

Uma detalhada revista foi feita em toda a residência, só que<br />

nenhum estranho foi encontrado. Nada. Muito menos a origem das luzes<br />

rubras de sangue, apenas sua mãe que repousava. Um carro de resgate<br />

chegou ao local, os vizinhos já colocavam as caras na rua para saber o<br />

que acontecia a poucos minutos da aurora. O homem de cabelos<br />

grisalhos da equipe de paramédicos foi ao encontro da moça que tremia,<br />

aquele profissional socorrista tinha muita experiência no que fazia, as<br />

insígnias coladas no uniforme provavam sua competência. No entanto<br />

Marina não estava ferida, muito menos arranhada.<br />

No conforto que o paramédico grisalho trazia vinha junto à notícia<br />

que seu pai não retornaria para casa hoje porque sofreu um violento<br />

acidente de carro, após sair de um restaurante e estava no hospital em<br />

estado grave. Na mão do experiente socorrista havia uma identidade de<br />

uma mulher que também estava dentro do veiculo do desastre; Marina<br />

tinha que olhar o documento para identificar morta.<br />

– É ela, a mulher que estava no meu quarto sangrando... Ela dizia<br />

que eu era a culpada!<br />

Atormentada, a jovem encontrou todas as respostas naquele fim<br />

revelador. A suposta amante de seu pai era quem tomava todo o tempo<br />

dele, porém agora seu espírito perturbador atormentava não só o homem<br />

mais toda a família.<br />

Fim revelador? Possivelmente aquele não seria o desfecho, pois<br />

uma vida perseguidora sem corpo não sente fadiga, muito menos<br />

abandona sua acuada perseguição. Marina estava sim passando por um<br />

período de transição; era o inicio de um convívio opressor...<br />

49


O QUE HAVIA NO APARTAMENTO 73<br />

Era uma tarde normal de quinta-feira quando estávamos nos<br />

preparando para encerrar nosso expediente naquela repartição pública.<br />

Eu e mais duas funcionárias conversávamos, aguardando a saída da<br />

diretora que ainda estava na sua sala salvado arquivos e desligando o<br />

computador. Com um assunto bem corriqueiro, eu e a outras duas<br />

servidoras conversávamos sobre a crescente violência na cidade:<br />

– Vale a pena pagar mais para morar num prédio, justamente pela<br />

presença de um porteiro e das câmeras.<br />

– É apenas uma sensação de conforto, porque os bandidos também<br />

são atraídos pela facilidade e acumulo de bens nos condomínios.<br />

– Isso é verdade, porém eu acho que residir em casa e bem pior.<br />

– Eu sempre residi em casa e só entraram no meu quintal uma vez,<br />

para roubar minha bicicleta. Também vão roubar mais o quê na casa de<br />

um favelado como eu?<br />

– Foi por isso que mandei fazer um muro bem alto, além do<br />

cachorro que avisa quando alguém está próximo. – neste instante surge a<br />

nossa chefe já tirando da bolsa a chave do seu carro, quando eu<br />

perguntei – A senhora mora em apartamento, não é Dona Josefa? Já teve<br />

problemas com a segurança?<br />

A elegante diretora arregalou os olhos verdes esculpidos em um<br />

rosto orgulhoso, meditou por dois segundos e se posicionando à nossa<br />

frente dando início a este testemunho:<br />

A experiência que eu tenho de apartamentos é apenas uma, já que<br />

fui morar nesse que estou assim que me casei. Até os últimos anos<br />

jamais tive do que me queixar. O prédio é da década de 1960, época em<br />

que meu computador era uma máquina de escrever que cheirava óleo<br />

Singer; porém agora eu estou querendo vender meu lar. Sabe aquele<br />

lugar onde você passou boa parte dos seus momentos felizes, vi meus<br />

50


filhos crescerem brincado, as visitas das pessoas que tenho afeto, cada<br />

recinto e cada parte tem uma recordação agradável. Tudo isso agora já<br />

está se apagando. Sendo substituído por uma insatisfação, além da<br />

vontade de mudar daquele prédio o quanto antes.<br />

Vai completar um ano das minhas ultimas férias, no primeiro dia<br />

eu estava jantando com meu marido na sala de estar, a TV ligada passava<br />

o último telejornal. Sabe as habitações projetadas naquela época? Ela<br />

tem áreas bem amplas, justamente para satisfazer os anseios de conforto<br />

através do espaço. Então, eu comia de costa para a televisão e de frente<br />

para o Roberto quando ouvi os sarilhos pela primeira vez. Eram barulhos<br />

que viam do teto, como o de uma bola pesada rolando no piso de cima<br />

ou, quem sabe, uma criança correndo. Sarilhos, sim, um som igual a<br />

alguma coisa rolando bem acelerada. Depois que eu fui deitar escutei<br />

novamente os sons do apartamento de cima. Foi no silencio da noite que<br />

passei a distinguir tais barulhos, uma vez que não conseguia dormir sob<br />

aquela indecifrável intriga. O problema é que não vinham as minhas<br />

lembranças nenhum nome dos prováveis moradores lá de cima, meu<br />

tempo era muito corrido e quando chagava em casa tinha tantos afazeres<br />

que não sobrava nenhum momento para o convívio social com meus<br />

vizinhos. Com certeza teriam estes novos moradores um cachorro<br />

pequeno. Não, o som assemelhava-se ao de crianças brincado. Mas<br />

brincando madrugada adentro?<br />

Nos meus primeiros meses de casada, quando fui morar ali no<br />

condomínio, quem residia naquele andar era Dona Margô. Sim, agora<br />

lembrei, Dona Margô do 73. Ela sempre estava nas reuniões de<br />

condomínio com sua cadeira de rodas, exigindo que colocassem uma<br />

rampa no lugar das escadarias na entrada. “O prédio foi construído em<br />

1960, não dava para mudar mais sua arquitetura. – dizia o sindico da<br />

época”. Dona Margô quase nunca saía, graças às duas escadarias que o<br />

empreendimento possuía, a primeira no hall após o elevadores e a<br />

segunda que dava para a rua. Dona Margô era uma senhora sozinha e<br />

51


abugenta, com suas razões, sempre gritando nas áreas comuns, pedindo<br />

ajuda porque queria descer as escadas... Uma vez ela até caiu da cadeira<br />

de rodas e arrastou-se pelos degraus gritando palavrões aos moradores<br />

que passavam. Esta foi a última vez que ela apareceu em público. Na<br />

mesma época que fiquei grávida do meu primeiro filho, soube que Dona<br />

Margô tinha morrido dentro de seu apartamento, este que fica em cima<br />

do meu, o 73. Depois disso passei anos sem ouvir ruídos lá de cima.<br />

Conforme descansava nas minhas férias, os barulhos das crianças<br />

do apartamento 73 tornaram-se algo corriqueiro, que não incomodava<br />

muito e nem me espantava mais. Na quarta-feira, quando eu retornava<br />

do mercado, encontrei no elevador a minha vizinha do lado. Tivemos<br />

aquela conversa básica de vizinhos até chegar ao assunto que também<br />

aborrecia a senhora Vera: “As crianças do andar de cima ficam brincado<br />

de bola até de madrugada, você consegue dormir?” Respondi que<br />

também ouvia mas não me atrapalhavam muito, conclui a conversa já<br />

com a minha porta aberta e disse que iria alertar o zelador. Assim que<br />

entre interfonei para a portaria quando veio à surpresa, o porteiro<br />

confirmou convictamente que não morava ninguém no apartamento 73.<br />

Como assim, e os sarilhos que a vizinha e eu ouvíamos?<br />

Bati na porta da senhora Vera para relatar o que tinha me dito o<br />

porteiro, ela também ficou pasmada. Resolvemos subir discretamente as<br />

escadarias até o andar de cima e tentar distinguir se os sarilhos realmente<br />

vinham lá de dentro. Nos aproximamos da porta do apartamento quando<br />

sentimos um cheiro forte de coisa suja, como roupas suadas que estavam<br />

um bom tempo sem lavar. Assim tivemos a constatação que colocou<br />

Dona Vera e eu em alarde, os barulhos vinham lá de dentro! Não pode<br />

ser possível, depois de anos o espírito daquela bruaca deficiente retornou<br />

para assombrar nosso prédio!<br />

Eu contei sobre o caso para meu marido no mesmo instante que ele<br />

chegou em casa, mas a notícia do fantasma do apartamento 73 já estava<br />

sendo comentada até pelas crianças na área de recreação. A fofoqueira da<br />

52


Dona Vera tinha propago para todos os moradores sobre os barulhos que<br />

vinham lá de cima, isto porque ela queria uma solução imediata. Meu<br />

marido Roberto tentou me tranquilizar dizendo que iria ligar para o<br />

sindico depois que tomasse um banho, e assim fez. Como resposta o<br />

sindico afirmou que talvez fosse algum casal de adolescentes que<br />

entrava naquele apartamento para momentos de intimidade, porém<br />

aquela farra iria acabar porque no dia seguinte ele iria chamar a<br />

administradora do condomínio para entrar no apartamento 73.<br />

O stress que tive naquele dia me fez desabar na cama sem ouvir<br />

mais nada, eu acreditava que meu sono viesse junto com a situação<br />

resolvida, antes mesmo da reação do sindico. A última coisa que refleti<br />

acordada foi em qual das duas coisas era pior: ser assombrada por um<br />

encosto senil com rodinhas ou saber que tinha um antro de orgia sobre<br />

meu teto?<br />

Enquanto eu tentava levar uma vida de dona de casa, colocando as<br />

roupas na máquina e dando um jeito na cozinha, minha campainha<br />

tocou. A Dona Vera estava acompanhada do sindico para trazer a noticia<br />

de que o condomínio do apartamento 73 esta em dia, no entanto ligaram<br />

para o proprietário e este disse que não iria vir para o litoral abrir o<br />

apartamento; que contratasse um chaveiro e colocasse a conta no boleto<br />

para ele pagar; soube também que o dono do apartamento tinha muitas<br />

outras habitações desabitadas, ele era uma pessoa de posses. Assim<br />

ambos estavam aguardando a chegada do chaveiro para forçar a tranca<br />

daquela intrigante morada.<br />

Me arrepio toda só de lembrar o que vi naquele apartamento<br />

aberto! Seria melhor eu ter visto a face do próprio diabo do que aquilo,<br />

pelo menos eu não teria a repulsa para ajoelhar-me e pedir perdão a<br />

Jesus por minha alma. Eu não pretendia nem estar pisando naquele chão<br />

imundo, quanto menos ficar de joelhos para uma prece. A imundice ali<br />

dentro era colossal. Tivemos dificuldade em abrir a porta devido a uma<br />

pequena crosta de sujeira no piso, desta camada sórdida que cobria o<br />

53


carpete brotava uma rala vegetação devido ao grande tempo de clausura.<br />

A madeira da entrada, paredes, estofados, mesa de centro e o móvel do<br />

bar estavam imundos e arranhados; igual a alguém que rastejasse há<br />

décadas por toda aquela moradia no intuito de levantar-se. Foi quando<br />

nós vimos o primeiro, caminhando devagar da cozinha, guinando várias<br />

vezes o focinho para cima, tentando farejar-nos... e depois vimos outro,<br />

mais outro, e logo eram dezenas! Estávamos paralisados, como um<br />

momento de transe antes do acidente, transe que foi interrompido pelo<br />

clamor ao Cristo ressuscitado saído dos lábios da Dona Vera; corremos<br />

para fora do apartamento quando eles estavam a uns dez metros da<br />

gente, selando novamente a porta para talvez nunca mais abrir.<br />

Sabe aquela porra toda? A maior pestilência do mundo bem perto<br />

de onde eu durmo! O cheiro, eu ainda sinto o cheiro de ratos podre<br />

quando estou concentrada nos meus afazeres domésticos. É o pior odor<br />

que já senti. Uma sensação contaminante que se espalha por toda a casa<br />

num fedor e causa repúdio; igual uma moléstia que contamina para<br />

depois matar... Como exterminar aquela contaminação de roedores?<br />

A primeira equipe de controle de pragas fez uma visita ao local e<br />

recusou o serviço, não quiseram indicar nenhuma outra empresa e<br />

saíram do prédio assustadíssimos. A segunda empresa também não quis<br />

o trabalho, porém nos orientou a chamarmos algum biólogo ou alguém<br />

da prefeitura porque aquilo era algo a ser analisado. Foi assim que<br />

vieram os técnicos da universidade, convocados pelo controle de<br />

zoonoses da cidade. Depois de dois dias de estudos descobriram que<br />

aquela era uma colônia de ratos diferente, uma que não sentia medo do<br />

ser humano porque nunca tiveram contato conosco. Como indicação<br />

pediram que fosse jogada uma isca especial que matasse depois de cinco<br />

dias, algo jogado pela janela por pessoas que descessem em cordas para<br />

eliminar toda a ninhada sem serem incomodados. Assim foi feito, com<br />

um grupo vindo da capital. O prédio todo permaneceu na expectativa,<br />

esperando o veneno fazer efeito de maneira eficiente. Agora, o cheiro<br />

54


que eu tinha sentido apenas lá dentro daquela habitação era também<br />

percebido por todos os condôminos. Odor que nos fez perceber que o<br />

inevitável estava próximo, a morte deteriorada, o consumo da carne<br />

adoente. Eu deveria esta satisfeita com a mortandade dos roedores, só<br />

que sentia o oposto e tudo aquilo me fez refletir muito sobre minha<br />

existência como um ser frágil também. Eu sou alguém que está no topo<br />

porém posso sumir num instante, como uma bolha flutuante de sabão.<br />

Graças a meu marido que, ao retornar do trabalho à noite, me tirou<br />

daquele purgatório de odor reflexivo e doentio, levando-me para passar<br />

uns dias no hotel.<br />

Assim eu percebi que o maligno não surge das trevas e nem de<br />

qualquer umbral, mas está nesta própria terra.<br />

Eu fiz uma pesquisa detalhada e descobri que este tipo de praga<br />

expõe os ratos mais vulneráveis para fazer a coleta dos alimentos que<br />

encontram, além de deixarem os ratos mais frágeis comerem primeiro,<br />

assim caso a comida esteja contaminada será o elo fraco da colônia que<br />

vai morrer. Agora me responda: Quem me garante que aquela grande<br />

ninhada de roedores foi completamente exterminada? Nesta consulta eu<br />

encontrei uma teoria de um tal Bulwer Lytton – acho que é este o nome<br />

– onde diz que "os instintos das criaturas irracionais detectam ameaças<br />

letais à sua existência". Provavelmente os membros mais fortes devem<br />

ter fugidos da mesma forma que chegaram. Os bichos pestilentos<br />

ficaram mais astutos quando depararam com a necessidade de<br />

manterem-se vivos e reproduzindo-se.<br />

Nesses últimos dias eu não consigo mais descansar direito,<br />

qualquer barulho que escuto já imagino que são aqueles bichos famintos<br />

e ordinários. O pior é que os ruídos vêm dos lugares mais ocultos da<br />

minha casa, como atrás do guarda roupa, na parte interna das portas ou<br />

até dentro dos ralos; algo que só escuto durante o silencio da noite. Sinto<br />

que uma coisa de ruim está oculta dentro do meu lar, alguma influência<br />

coagida, presente e indiferente ao ser humano. Apesar de ninguém do<br />

55


prédio me dar crédito eu acredito que estão escondidos dentro da minha<br />

casa. Já coloquei o apartamento a venda, enquanto isso permaneço numa<br />

vigília constante em minhas madrugadas.<br />

Nós assistíamos aquele depoimento hipnotizante da diretora,<br />

olhávamos o mover de sua boca, juntamente com os gestos eufóricos das<br />

suas mãos e seus olhos verdes mareados. Para quebrar toda tensão<br />

gélida, eu concluí dizendo:<br />

– Ah, tá bom! Boa desculpa para chegar atrasada, só que comigo<br />

não funciona.<br />

Todos ali riram de forma pesada, Dona Josefa ergueu a cabeça,<br />

retornando a ser a discreta e ajuizada senhora de sempre. Assim cada um<br />

partiu daquela repartição pública para suas vidas privadas. No dia<br />

seguinte a diretora entrou com um pedido de afastamento médico,<br />

permanecendo ausente até aposentar-se.<br />

56


DESTINATÁRIOS<br />

Euforicamente descrevo sobre uma série de assassinatos macabros<br />

que a polícia ainda não conseguiu desvendar. Minha agitação não é porque<br />

estou tentando criar uma história bem elaborada muito menos admirável,<br />

mas o motivo é que enquanto eu imagino meu personagem, pasmem, fico<br />

com uma reserva de inveja por tais atos! É semelhante quando vejo um<br />

filme de guerra e tenho desejo de voar num helicóptero com uma<br />

metralhadora ponto 50, ou assistir um filme policial e me imagino<br />

atirando com uma Magno 45.<br />

Você já deve saber que é muito difícil desvendar um crime no<br />

Brasil, principalmente quando as mortes aparentemente não mostram<br />

sinais de lesões traumáticas, perfurantes ou armas de fogo. As vitimas não<br />

acionavam a polícia, não abriam boletim de ocorrência. Sei lá, será que<br />

existia realmente um serial killer? Foi isto que os investigadores do DHPP<br />

(Delegacia de Homicídios e Proteção a Pessoa) questionaram, pois nunca<br />

houve um padrão. Como ele selecionava as pessoas? Elas apenas<br />

desfaleciam doentes.<br />

Poderiam ser velhos, mulheres solteiras, adolescentes, professores,<br />

homens divorciados, qualquer um. Está vendo, não havia um padrão para<br />

deduzir que era um assassino em série.<br />

A primeira morte, que fez ligação com as demais, foi a de um<br />

morador de rua. Ele chegou de ambulância no posto de atendimento<br />

médico numa madrugada chuvosa. O mendigo tinha uma febre muito alta,<br />

além de expelir muito sangue pelos seus orifícios naturais. O diagnostico<br />

veio só depois do podre homem ser enterrado como indigente, ele estava<br />

contaminado por hantavírus. Mais tarde uma prostituta deu entrada no<br />

mesmo pronto socorro com sintomas tardios de leptospirose. O médico<br />

então associou o dois casos: “Enchentes em bairros podres sempre causam<br />

problemas!”<br />

Outro fato que o médico do pronto socorro não detectou, muito<br />

57


menos o legista do IML era que existia uma pequena incisão infeccionada<br />

nos pescoços das vítimas, como se elas tivessem sido perfuradas por um<br />

prego enferrujado. Sei lá... Mais tarde outras cinco pessoas morreram<br />

sofrivelmente com as mesmas características.<br />

Depois que a oitava suposta vítima alertou a polícia, antes de morre<br />

de Tifo Murino, que as investigações se concentraram em encontrar um<br />

monstro homicida. A oitava morte era a de uma aposentada que morava<br />

sozinha, ela denunciou que a porta de sua casa tinha sido arrombada e que<br />

foi abordada por uma pessoa que a fez desmaiar com uma toalha<br />

embebedada por um produto químico forte. Na sua garganta havia um<br />

pequeno furo avermelhado próximo da artéria que depois infeccionou. Os<br />

antibióticos ministrados no hospital apenas prolongaram seu sofrimento e,<br />

como sua morte era inevitável, os médicos resolveram não torturar mais a<br />

aposentada e aceleraram o desfalecimento de seus órgãos.<br />

Todos os outros sete cadáveres foram exumados. Agora as peças<br />

começavam a se encaixar, pois estava lá a causa da morte. Os peritos do<br />

DHPP também entraram na casa da última defunta para fazer a<br />

reconstituição do crime e, segundo os noticiários dos jornais, a cena era<br />

esta:<br />

O maníaco da agulha – assim ele era chamado – chegava sempre<br />

pela madrugada, aproveitando o momento que as ruas estavam vazias e as<br />

pessoas descansando; era fato que ele carregava uma mochila ou sacola<br />

com certos assessórios. De forma soturna e silenciosa ele invadia as casas<br />

onde verificava todas as janelas para saber se não haveria alguma aberta.<br />

Provavelmente ele deva utilizar de uma chave mixa porque não havia<br />

sinais de arrombamento; aquele animalesco psicopata aproximava-se dos<br />

dorminhocos que jaziam vulneráveis na cama, com uma toalha<br />

embebedada por Éter ele fazia a pessoa apagar de vez, em seguida<br />

injetava com uma pequena seringa urina de rato na jugular do seu alvo. A<br />

fadada hospedeira das bactérias dos roedores acordava atordoada, como a<br />

sensação de estar saindo de um tenso pesadelo. Sem saberem, os<br />

58


indivíduos seguiam pela trilha de um sofrível óbito. Era suposto que a<br />

primeira morte (a do morador de rua) e a segunda (da prostituta) fosse um<br />

treinamento para o maníaco testar sua capacidade de ação; já a oitava<br />

vítima (a aposentada), ele não tenha conseguido abrir a porta e forçou a<br />

fechadura com um pé-de-cabra. Porém a peça fundamental que revelaria<br />

quem era o assassino ainda faltava.<br />

Como ele escolhia as pessoas? Qual era o critério de seleção?<br />

Os investigadores visitaram todas as residências dos defuntos que<br />

morreram contaminados e constataram que eles tinham rotinas de vida<br />

diferentes. Umas eram caseiras, outras baladeiras e a aposentada só vivia<br />

para seus gatos. Os policiais olhavam cuidadosamente os objetos nas<br />

casas das vítimas e nada! Eu vi pelo telejornal aquele pobre delegado, que<br />

estava sofrendo muita pressão da mídia, ele retirou das habitações apenas<br />

o computador, além disso, só existia em comum um acumulo de livros na<br />

sala... O agente da lei sabia que teria de agir rápido senão outra pessoa<br />

morreria, ou o maníaco da agulha desapareceria na obscuridade do<br />

anonimato e nunca mais seria encontrado.<br />

– Não se preocupe doutor, o senhor terá muito tempo para encontrar<br />

este lixo humano. Porque ele até tenta parar de matar, mas não consegue!<br />

– dizia um psiquiatra forense que estudava mentes criminosas para o<br />

delegado.<br />

No entanto os computadores apreendidos também não mostravam<br />

relação em comum com os crimes: Skype, E-mail, Facebook, Blogs, nada<br />

em comum. Nada mesmo?<br />

Quem sabe esta história nunca tenha um final e meu personagem<br />

jamais seja encontrado para pagar pelos seus crimes, ou talvez eu possa<br />

lhe mostrar um desfecho exclusivamente voltado para você que me lê<br />

agora! Por favor leitor, me mande seu endereço que eu irei à noite na sua<br />

residência levar pessoalmente o término desta história. Talvez você não<br />

goste muito e arderá um pouco seu pescoço, mas lhe garanto que ela será<br />

mortalmente surpreendente para você!!!<br />

59


ENOQUE, A CIDADE DOS HOMICIDAS<br />

Ali não era lugar para um assassino. Ou melhor, os espíritos que<br />

vagavam pela Terra até aquele momento desconheciam alguém que<br />

liquidasse seu próprio semelhante; um ser que regou toda a relva com o<br />

sangue de seu irmão. Era como um adubo venenoso que exalava toda a<br />

podridão da perversidade que estava oculta no homem. A grama ali cresceu<br />

muito mais e encobriu o corpo; as tâmaras azedamente murcharam; fungos<br />

nocivos brotaram nas cascas das árvores e as flores – que outrora eram<br />

cultivadas pelo homicida – agora subiam mais que de pressa, olhando para o<br />

Céu, clamando por respostas.<br />

Caim pertencia ao vil produto da muita boa criação divina. Satanás<br />

sorria em seus grilhões porque ele próprio não influenciou tal ato de inveja;<br />

fora da natureza humana – ou seja – a imagem e semelhança de Deus. Todas<br />

as entidades maléficas sabiam que Caim tinha uma alma impura, igual a<br />

todos os demônios, porém seu corpo terreno e carnal era superior e de livre<br />

escolha.<br />

– Como uma criação tua, que habita em regiões privilegiadas, pode ter<br />

atos piores que os nossos? – Questionavam os anjos caídos que concluíram –<br />

Será Caim melhor do que nós? Então que seja colocada sua morada ao lado<br />

do vosso trono!<br />

Já os lírios, ao lado da putrefica e desidratada carne de Abel, erguiam<br />

seus talos para o alto com a intenção de serem ouvidos:<br />

– Será este o preço aos teus devotos? Abel fez mal em lhe dar a melhor<br />

oferta? Então coloque o corpo dele ao lado dos arcanjos traidores porque o<br />

cheiro irá incomodar teus inimigos.<br />

O Criador respondeu contra a nova ação humana; o assassino foi<br />

julgado e sentenciado a ser livre. Livre para perambular além do horizonte,<br />

para o leste. Ele temeu em ter o mesmo destino de seu irmão e Deus colocou<br />

um sinal em seu rosto; Caim tinha como prisão o seu próprio corpo. Nas<br />

60


terras onde o homicida tocava os frutos apodreciam, as árvores morriam e<br />

toda a lavoura tornava-se árida. Animais predadores e todos os insetos<br />

repugnantes tentavam lhe ferir, sem matá-lo. Caim vagou por todo o oriente<br />

buscando refugio, tentando fugir dos olhos de seu Juiz; porém outros<br />

espíritos imundos como ele também estavam longe da presença do Criador.<br />

Nessas regiões onde Caim perambulava era oprimido e açoitado até não<br />

suportar mais, fugindo novamente.<br />

Homem vagabundo e renegado que chegou às terras do velho sábio<br />

Node, região seca que tinha como meio de vida o cultivo de animais. Caim<br />

escondeu-se numa caverna próxima ao rebanho. Dias depois, vários animais<br />

morreram de fome – pois todo o pasto minguou – e de doenças misteriosas<br />

porém horrendas; os pastores passaram a ter pesadelos durante a noite e<br />

visões malignas pelo dia; feras selvagens surgiram além dos montes e<br />

devoraram o pouco dos magros rebanhos doente e indefeso que sobrou. Node<br />

descobriu o motivo de todo seu azar tarde demais, porque agora já estava<br />

desgraçado. Ele tinha acolhido em sua propriedade sem saber o Postergado<br />

de Deus. O dono das terras arruinado teve sede de vingança, mas não poderia<br />

matar Caim porque seu mal seria sete vezes pior.<br />

Por uma noite Caim ficou preso sobre a custódia de Node; naquela<br />

madrugada o anjo da morte pousou nas tendas de todas as mulheres grávidas<br />

e com filhos recém-nascidos. Os anciões reuniram-se para decidir o futuro do<br />

primeiro homicida da Terra. Entretanto aquela corte presidida pelo velho<br />

Node era ilegítima, uma vez que o réu já havia sido sentenciado pelo próprio<br />

Criador e seu cárcere lá era infundado pois o castigo de Caim era ser livre.<br />

Pela manhã, o assassino fora posto em liberdade, lhe presenteando com<br />

roupas limpas, mantimentos, jóias e lhe deram uma das virgens escravas por<br />

esposa como pacto de que Caim partisse e jamais invadisse outras terras já<br />

povoadas.<br />

O assassino refugiou em um vale que ficava sempre encoberto pela<br />

sobra de uma montanha. Lá fundou a cidade de Enoque, em homenagem ao<br />

seu filho. Esta cidade tornou-se o exílio de todos os seres homicidas e bestas<br />

61


feras que existem ou um dia já existiram. Como as carcaças acumuladas dos<br />

mortos executados na cidade atraiam inúmeros predadores e aves carniceiras,<br />

o jovem Enoque então decidiu que os habitantes eram obrigados a enterrarem<br />

suas vítimas. Em pouco tempo as pessoas daquela cidade não eram mais<br />

mortas, apenas desapareciam.<br />

Lameque, descendente da quinta geração de Caim deu continuidade ao<br />

sangue impuro de seu antepassado. Havia dois irmãos exumando os corpos<br />

nas covas recentes a procura do pai desaparecido, Lameque ordenou então<br />

que aqueles dois cumprissem o que determinara a lei da cidade e voltasse a<br />

enterrar os defuntos. O herdeiro de Caim, ao ter sua ordem rejeitada, tirou a<br />

vida do irmão mais jovem que lhe tentou ferir-lhe e matou o outro rapaz que<br />

quis pisar em seu cadáver.<br />

Assim a cidade de Enoque cresceu, onde jurou Lameque a suas duas<br />

esposas:<br />

– Sete vezes Caim foi maldito por matar seu próprio irmão Abel,<br />

enquanto a mim, Lameque, setenta vezes sete serei vingado se alguém matarme<br />

nesta cidade.<br />

“Então arrependeu-se o Senhor de haver feito o homem sobre a Terra, e<br />

pesou-lhe em seu coração (Gênesis 6:7).”<br />

62


CIDADE BRUTA, POSTURA DENEGRIDA<br />

Pela manhã, sempre observavam um aleijado dormindo no coreto<br />

da praça. O sino da igreja soava anunciando oito horas, convocando os<br />

moradores mais religiosos para a primeira missa celebrada<br />

conjuntamente com batizados das crianças e memórias do sétimo dia dos<br />

falecidos. O padre não pertencia àquele mórbido lugarejo de pessoas<br />

mexeriqueiras; sacerdote que aproveitava dota gente emocionalmente<br />

reunida para tentar instruí-las com um pouco de moralidade, gotas de<br />

ética no grande oceano cultural, conselhos sempre diluídos na conduta<br />

maculada dos moradores. Infeliz também estava o padre porque uma<br />

nova igreja colossal foi erguida perto da praça.<br />

O aleijado abria os olhos e apreciava confuso para os dois<br />

santuários, sem entender como o templo maior tinha aparecido de uma<br />

hora para outra. Seja como for, ele deveria estar sobre efeito da cachaça<br />

durante sua construção, mas agora tentava animar-se ouvindo a<br />

ressonância do sino para mais um dia de mendicância. Com dificuldades<br />

e muitas dores ele ergue-se do chão, sempre com seu corpo afetado pelo<br />

desconforto do piso árido forrado com papelão. Nestes últimos dias de<br />

esmola escassa lhe deixava ainda mais confuso para onde se arrastar;<br />

seguiria para a nova construção protestante, ou continuaria sua tradição<br />

de pedir ajuda na igreja católica? Não importava onde suplica à esmola,<br />

num lugarejo tão pequeno ele conhecia todos os moradores e sabia que<br />

novamente removeria o lixo dos habitantes para matar a fome quando o<br />

Sol se por.<br />

Na lixeira em frente à casa do prefeito o aleijado tentou esquecerse<br />

dos documentos suspeitos que certa vez leu; entre os dejetos contidos<br />

dentro do saco que rasgou em fresta da casa da professora estavam<br />

vários medicamentos controlados; ele evitava o lixo colocado em frente<br />

à casa da enfermeira porque tinha medo dos fetos achados lá dentro; já<br />

as coisas descartadas na frente da habitação de dona Anunciação eram<br />

63


melhores, porém ele tinha que fazer pouco barulho pois sempre havia<br />

homens entrando em sua casa durante toda à noite. É difícil não fazer<br />

barulho quando uma pessoa depende de muletas para locomover-se, mas<br />

era necessário porque o aleijado sabia o que acontecia entre os lençóis de<br />

dona Anunciação, ele conseguia ouvir da janela de seu quarto, por isso<br />

evitava rasgar os sacos menores escondidos entre os restos de pizza e<br />

pães com frios quase inteiros.<br />

Com a mesma dificuldade que carregava há mais de quarenta anos,<br />

o abatido mendigo se posicionava em frente às escadarias da igreja<br />

apostólica romana para suplicar um pouco de ajuda. Ele jamais teve<br />

problemas com o delegado, conhecido seu de infância, porém sempre o<br />

evitava por medo de ser preso ou até surrado. Em toda sua vida ele<br />

sobreviveu sozinho, sem conhecer família, amigos e nos últimos tempos<br />

tinha pouca assistência.<br />

– Uma ajuda por caridade!<br />

– Há anos que este aleijado pede esmola neste ponto, por que não<br />

muda de cidade e vá atrás de novas freguesias?<br />

– Se continuarmos a lhe dar dinheiro ele continuará mendigando.<br />

– Eu sempre estive pedindo ajuda em baixo desta cruz, talvez eu<br />

ainda esteja aqui porque sempre me deram esmolas e nunca uma<br />

oportunidade. Dizia o aleijado.<br />

– Olha só, ainda é petulante!<br />

Enquanto todos escarnavam, aquele homem aleijado resistia cada<br />

vez com mais dificuldades. População que cresceu junta, brincando na<br />

infância, fazendo a primeira comunhão conjuntamente e aprontando na<br />

adolescência. Agora ninguém mais suportava olhar aquele coitado<br />

arrastando-se apoiado por muletas. O padre pregava a compaixão,<br />

caridade aos desfavorecidos, só que suas missas tinham poucos fieis. Do<br />

outro lado da praça, o novo reverendo falava da prosperidade abundante<br />

reservada apenas aos fieis que criam com total convicção, então se<br />

64


aquele mendigo sofre era porque não tinha fé em Deus. Eu me lembro<br />

nitidamente quando as coisas começaram a reverter em favor do<br />

aleijado.<br />

Certa noite, não se aguentando mais de fome, ele saiu pelas<br />

lixeiras contaminadas à procura de alimentos. Eram migalhas sujas que<br />

nutriam seu corpo, porém cada vez mais feriam a dignidade e<br />

manchavam o coração daquele pobre. Com toda cautela do silencio da<br />

madrugada, ele rastejou-se até as coisas descartadas em frente à casa de<br />

dona Anunciação, porém foi surpreendido pela mulher.<br />

– É você então? A pessoa que fica espreitando quem entra ou sai<br />

da minha casa! Tua vida está toda destruída e agora que arruinar a minha<br />

também?<br />

– Eu tenho apenas fome de alimente, com o que consegui pedindo<br />

na igreja não completa para uma marmita.<br />

– É isto, tu quer me subornar em troca de dinheiro!<br />

– Jamais! Estou apenas desesperado por alguma migalha para me<br />

manter por mais uma noite. – o aleijado virou-se e rasgou o primeiro<br />

saco de lixo da mulher, sem ligar para suas alegações ele completou – O<br />

que acontece dentro de sua casa não me interessa.<br />

Dona Anunciação parecia que estava possessa por alguma coisa<br />

maligna, pois quando notou que seu lixo foi violado atacou o aleijado<br />

numa luta em defesa do que foi descartado. Dignidade para comer, para<br />

viver, privacidade nas relações ou nos segredos pessoais, tudo estava em<br />

questão naquela disputa noturna. O desprezo era das duas partes. Então o<br />

mendigo segurou a mulher pelo pescoço e, com a mão que segurava a<br />

muleta, deu vários golpes com o objeto na testa dela.<br />

Pela manhã, sempre observavam um aleijado dormindo no coreto<br />

da praça, o sino da igreja soava anunciando oito horas, convocando os<br />

moradores mais religiosos para a primeira missa. Só que neste dia não<br />

entrou ninguém na igreja, todos estavam cercando o corpo sem vida da<br />

65


mulher com a cabeça quebrada. O padre não pertencia àquele mórbido<br />

lugarejo de pessoas mexeriqueiras, mesmo assim queria resposta para o<br />

homicídio.<br />

– Alguém já chamou o delegado? Perguntou o padre.<br />

– Ele está dentro da casa, averiguando possíveis evidencias.<br />

– Mas muita gente frequenta esta rua de noite, alguém deve ter<br />

visto.<br />

O delegado saiu desapontado da casa porque encontrou suposições<br />

já conhecia, de que dona Anunciação era uma pessoa de reputação<br />

duvidosa. De repente o padre olha contundente para a autoridade policial<br />

e num estalo responde:<br />

– O Aleijado ainda está dormindo no coreto, ele deve ter visto<br />

algo.<br />

Assombrado o mendigo acordou, convicto do desfecho que teria.<br />

Junto com o padre estavam também o delegado, o prefeito, a enfermeira,<br />

além do reverendo e os fiéis das duas igrejas. Toda aquela gente lhe<br />

cercando em indagações sobre o assassinato da madrugada, perguntas<br />

que o faziam tremer como uma criança.<br />

– Parem todos, não estão vendo que este coitado está com medo?<br />

Talvez esteja agonizante de fome. – falou o padre, que prosseguiu – leve<br />

ele para dentro da igreja.<br />

– Não! Para que colocá-lo entre estátuas? Quem garante que este<br />

aleijado não seja cúmplice do crime? – inquiriu com ordem o reverendo,<br />

depois continuou – Se queremos saber a verdade devemos levá-lo para<br />

ser interrogado na delegacia.<br />

– Primeiramente vamos colocá-lo em local seguro, daremos algo<br />

para acalmar sua fome e por fim faremos as perguntas. – articulou o<br />

prefeito, olhando nos olhos do delegado que consentia em apoio.<br />

Era dentro da igreja o lugar que o aleijado se sentia seguro, agora<br />

ainda mais porque tomava um reforçado café e tinha suas feridas<br />

66


tratadas pela enfermeira. O prefeito, como tradição, lhe fazia promessas<br />

de amparo assistencialistas, acompanhado de uma escolta policial<br />

assegurada na voz confiante do delegado. Apenas uma pessoa não estava<br />

lá dentro.<br />

um nome.<br />

– Agora responda homem: Quem atacou dona Anunciação?<br />

– Estava escuro, não deu para ver bem...<br />

– Há poucas pessoas que perambulam de madrugada, fale somente<br />

– Talvez... Sim, eu me lembro! Aquele que prega na outra igreja,<br />

eu ouvi conversando com dona Anunciação nesta madrugada.<br />

Nada mais pode ser feito, prenderem o reverendo acusado de<br />

homicídio. Até o padre, que não pertencia àquele mórbido lugarejo de<br />

pessoas mexeriqueiras, ficou chocado. No dia seguinte o sacerdote<br />

aproveitou as pessoas emocionalmente reunidas para tentar instruí-las<br />

com algumas gotas de moralidade. Até o senso critico do padre estava<br />

diluído, uma vez que somente ele notou a pequena mancha de sangue<br />

presa na muleta do aleijado, porém o sacerdote preferiu considerar<br />

aquilo como um segredo de confissão.<br />

Depois que este caso se resolveu, eu deixei minha janela mais<br />

tempo fechada e fiquei com receio em observar aquele mendigo pedir<br />

esmolas.<br />

67


SOCIOFOBIA<br />

Olá querido filho que tanto amo, como tem passado? Espero você<br />

que esteja bem, frequentado a escola, estudando muito para ser um<br />

grande engenheiro ou um médico e respeitando os adultos.<br />

Inicio esta carta falando que sua mãe jamais teve ódio de ti! Como<br />

posso manter tamanho sentimento por você, que saiu de dentro de mim;<br />

alguém que me trouxe inúmeras alegrias. É difícil de entender, mas o<br />

que sinto não é raiva e sim temor pela sua presença junto a mim. Receio<br />

em ficar descontrolada e machucá-lo.<br />

Foi dentro de um ônibus que surtei pela primeira vez. Sempre<br />

pegava o coletivo das cinco e quinze da manhã e naquela segunda-feira<br />

quando subi todos os acentos já estavam ocupados. Você sabe que<br />

sempre foi assim minha rotina, uma boa cidadã trabalhadora que<br />

acordava cedo para garantir o sustento de nossa família. Um médico<br />

disse que foi excesso de ansiedade, porém, bem antes, seu pai acusou-me<br />

de estar com TPM. Não era nada daquilo que me disseram e agora eu sei<br />

muito bem!<br />

Permaneci toda aquela viajem em pé, vendo o dia amanhecer do<br />

lado de fora enquanto mais pessoas entravam e se espremiam naquele<br />

lugar. Não sei direito qual o momento exato nem o ponto do trajeto<br />

estava mas... era aquele cheiro forte das pessoas. Sabe aquele cheiro de<br />

gente suja, o odor do hálito de todos falando ao mesmo tempo. A<br />

temperatura ali dentro subia da mesma forma que os passageiros<br />

amontoavam-se. Eu olhava para todos os lados e só via rostos raivosos<br />

me encarando, nem a rua enxergava mais pois só haviam indivíduos me<br />

tocando. Eu suava frio, minhas mãos tremiam, uma forte dor de cabeça<br />

incomodava-me, faltava o ar e um homem atrás de mim passou a roçar<br />

suas partes intimas na minha bunda. Foi nesta hora que apaguei...<br />

Filho, imagine qual seria a reação de sua mãe ao acordar algemada<br />

num quarto de hospital. Ali sabe, com toda aquelas gente moribunda,<br />

68


tanto doentes como recém-operadas. Aquele odor de ferida e sangue<br />

disfarçado com desinfetante. Certamente qualquer um poderia me<br />

contaminar... Gritei, com todo ar de meus pulmões. Um grito de<br />

completo desespero, mas sem nenhuma resposta. Um policial junto com<br />

outro segurança me segurou, surgiram mais duas enfermeiras me<br />

tocando também e aplicando uma injeção no meu braço quando apaguei<br />

novamente. . .<br />

Aqueles carrascos carniceiros injetaram muitos tranquilizantes em<br />

minha veia, minha consciência naquela casa de saúde era sempre<br />

limitada e meus braços já estavam totalmente roxos pelas agulhadas.<br />

Quando vi o mentiroso do seu pai, estava eu um pouco atordoada, daí ele<br />

falou que eu tinha assassinado um homem no ônibus, como? Jamais fiz<br />

mal a alguém! Foi assim que perdi o controle, passando a ofendê-lo com<br />

todos os nomes que lembrei. O Cretino do seu pai chamou alguém<br />

novamente para me dopar...<br />

As coisas passaram a ficar nítidas e minha sobriedade normal,<br />

onde me encontrei numa cela de uma penitenciária. Era madrugada<br />

quando observei que, junto a mim, dormiam mais três detentas nas<br />

outras camas. Filho: é injusta minha prisão; sou uma pessoa boa. Você<br />

sabe disso, não é? Aquelas mulheres sim eram criminosas e poderiam me<br />

matar naquele instante. Elas estavam acordadas, apenas esperando uma<br />

distração minha para atacarem. Apenas me defendi tirando o cadarço do<br />

tênis e estrangulando uma magricela que estava mais perto de mim. As<br />

outras duas presas ouviram o barulho da infeliz se debatendo e me<br />

atacaram. Outras agentes entraram chutando minha cabeça e deram<br />

cacetadas nas minhas costas quando desmaiei.<br />

Hoje estou aqui nesta solitária, este lugar é escuro, úmido e quente<br />

como um ventre materno. Não quero sair mais daqui. Há uma guarda<br />

que coloca comida por um buraco e retira o lixo acumulado. Também<br />

tem torneira próxima da latrina onde faço minha higiene e necessidades.<br />

No entanto, a guarda que me alimenta disse que daqui a duas semanas<br />

69


terei que ir à audiência no fórum. Filho, por favor, não deixe eles me<br />

tirarem daqui de dentro! Eu não sei como vou reagir com tantas pessoas<br />

naquele juizado. Peça para seu pai nunca mais me visitar, ele disse que<br />

eu era capaz de dominar minha fraqueza, é conversa fiada daquele falso!<br />

Como posso ser fraca se me acusam de matar? Só deixarei de temer as<br />

pessoas quando elas deixarem de existir; também não gostaria de ver<br />

você outra vez.<br />

Espero que possa entender-me e que algum dia me perdoe. Fique<br />

em paz e nunca mais me procure!<br />

Ana Pópulis, Penitenciária Feminina de Santos.<br />

70


UM ANJO VAGANTE<br />

“O temor em Deus aumenta os dias, mas o perverso terá seus anos<br />

de vida abreviados. (Provérbios 10:27)”<br />

Existe um ditado eslavo que diz “O que não se conta a tua mulher e<br />

nem a seu amigo, fale para um estranho numa viagem”. Isto porque as<br />

palavras de um desconhecido ficam ao vento, especialmente quando são<br />

gritos alheios de uma mulher que ridicularizou você há pouco tempo atrás.<br />

Será que um homem negro, como eu, a beira da estrada clamando por<br />

ajuda seria acudido? Agora não importa mais, não importa porque os<br />

riscos são maiores do que os resultados. Nada importa quando você está<br />

se cagando de medo, até suas forças para pegar um telefone e chama a<br />

policia somem. Eu bem desejava que este acontecimento fosse uma lenda<br />

urbana; poderia ser aquela que o espírito da mãe pede socorro à beira da<br />

estrada para seu filho preso nas ferragens, mas não. Este caso foi vivido<br />

por mim, homem que sofre deboches e incredulidade sempre que o conta.<br />

Sabe que escreveu o rei Salomão no primeiro capítulo do livro<br />

Provérbios? “Aquele que rejeita um conselho sábio e odeia ser reprimido,<br />

quando o mesmo estiver perdido na medonha confusão de juízo, será alvo<br />

de escárnios e zombarias”. É assim que eu me sinto agora.<br />

Como de praxe, eu saí da minha casa por volta das quatro da manhã<br />

em direção à rodovia Anchieta, eu iria subir com meu carro a Serra do<br />

Mar em direção a São Paulo. Fazia parte da minha rotina pegar a estrada<br />

nas madrugadas de segunda-feira, com o intuito de assumir meu plantão<br />

na enfermaria do Hospital das Clinicas, antes do caótico transito da capital<br />

tomar conta das ruas. Era inicio do mês de fevereiro.<br />

Comecei guiando pelas ruas desertas do meu bairro e já percebi que<br />

a cerração fria que antecede a alvorada seria minha principal vilã naquele<br />

dia; a atenção teria de ser redobrada na estrada. Eu peguei a avenida<br />

principal, seguindo tranquilamente até o desvio para a rodovia, perto da<br />

71


saída da cidade. Em pouco tempo eu já estava guiando pela autopista bem<br />

pavimentada, em direção ao pedágio.<br />

Paguei o pedágio rapidamente no guichê; até aquele ponto da<br />

Cônego Domênico Rangoni eu tinha toda extensão da estrada para mim,<br />

de certa forma era uma posse relativa porque tudo estava encoberto por<br />

uma grossa cortina de nevoeiro. Minha visão da pista era de poucos<br />

metros, até os faróis do veículo encontravam dificuldade de atravessar a<br />

serração. Eu guiava alerta, com o radio no volume baixo e passando<br />

constantemente um pano no para-brisa para desembaçá-lo. Neste instante<br />

um flash apontou no retrovisor, uma claridade intensa que foi aumentando<br />

e depois se dividiu em dois faróis de xênon. Eu dei sinal para a direita no<br />

intuito de facilitar a ultrapassagem, mantendo a velocidade constante, até<br />

que eu o avistei saindo do obscuro nevoeiro atrás de mim. O veiculo que<br />

levava minha maldição.<br />

Meu carro era um desses modelos popular da Fiat, com motor<br />

limitado e quase nenhum acessório opcional. Já o outro que vinha para me<br />

ultrapassar era um grande utilitário esportivo importado de cor prateada,<br />

com certeza movido a diesel. Como aquela maquina corria! Ao apontar<br />

paralelo a mim, notei uma musica altíssima junto com gritos vindos de<br />

dentro, quando os vidros do passageiro e do carona baixaram e duas<br />

mulheres completamente embriagadas começaram a jogar latinhas de<br />

cerveja contra mim.<br />

estridentes<br />

– Quer beber? Então toma tição! Ambas davam gargalhadas<br />

– Pega cerveja. Disse a outra de trás.<br />

É um absurdo tamanho ato de preconceito, num mundo que todos<br />

falam ser civilizado. Sociedade instruída, mas maldosa com seu<br />

semelhante. Uma das latinhas estava ainda cheia e atingiu com toda força<br />

no para-brisa, quase partindo o vidro. Eu freei bruscamente, em seguida<br />

guiei até o acostamento para sair do meio da estrada, enquanto ouvia os<br />

últimos xingamentos bem à frente.<br />

72


– Tição! Há há há há...<br />

Eu saí do carro segurando a flanela na mão para ver as avarias<br />

provocadas por aqueles verdadeiros animais irracionais. Um sentimento<br />

de ódio me dominou, deixando-me um pouco desconcentrado, amargura<br />

revoltante pelas injustiças que este mundo nos trás. Olhei a lataria do<br />

veiculo no lado direito, sequei um pouco o para-brisa e parei por um<br />

instante para examinar aquela espessa neblina. Eu comparava o trecho<br />

noturno de serra em minha volta como se fosse meu mundo interior, algo<br />

de se indignar. Um mundo fascinante e tão vivo que elevava-se até<br />

próximo das nuvens, um paraíso perigoso, ao mesmo tempo obscuro,<br />

imprevisível e selvagemente misterioso. Não era seguro permanecer muito<br />

tempo estacionado ali; eu retornei ao veículo e prossegui rumo ao meu<br />

destino já traçado pela vida.<br />

Segui apreensivo, cortando a grossa parede de bruma que não me<br />

deixava ver além do que já sabia. Agora sei por que existem incontáveis<br />

musicas comparando nossas vidas a uma viagem às vezes pavimentada.<br />

Uma autêntica jornada que sempre nos espanta mais a frente. Como na<br />

vida, o percurso que fazia naquele inicio de manhã tinha planos para<br />

mim...<br />

Dirigi compenetrado nas faixas brancas impressas no asfalto que<br />

vinha ao meu encontro como se eu tivesse parado, as mãos seguravam<br />

firme na direção, pisando macio no acelerador. Guiei por cerca de<br />

quatorze quilômetros até avistar novamente aqueles faróis de xênon,<br />

porém, desta vez eles estavam mais a minha frente e apontados para mim.<br />

Reduzi para quarenta por hora, pronto para fazer uma manobra evasiva.<br />

Estava lá, o utilitário esportivo importado capotado no meio da via.<br />

Eu não parei, muito menos diminui a velocidade, somente observei para<br />

saber se haviam alguma vida dentro do grande SUV prateado. Ultrapasseio<br />

pelo lado direito, olhando para dentro da cabine, tentando avistas<br />

pessoas vivas ou mortas. Eu observava o automóvel de cabeça para baixo<br />

desaparecer na nevoa pelo reflexo do retrovisor, quando vagamente notei<br />

73


sair da janela algo que poderia ser um braço acenando de forma rápida.<br />

Era um alerta para minha distração, instante crucial que ela surgiu na<br />

minha frente e eu atropelei!<br />

Colidi violentamente contra o frágil corpo da mulher que decolou. O<br />

impacto contra o capô do carro em velocidade fez a pessoa voar por cima<br />

de mim e desaparecer em algum lugar da Serra do Mar. Pouco deu para<br />

distinguir as características daquela vitima. Eu me assustei quando vi o<br />

leve corpo feminino girando, igual uma boneca lançada para o outro lado,<br />

meu coração disparou de medo e ao mesmo tempo abismado. Abismado<br />

de ouvir o agudo grito que ela soltou, grito que sacudiu toda minha alma e<br />

desapareceu na perdição floresta. Eu não parei o veículo, pelo contrario,<br />

acelerei tentando desaparecer daquela rodovia que me intimidava.<br />

Estacionei o carro próximo do meu trabalho, todos meus músculos<br />

doíam pela tensão nervosa que sentia. Tentei disfarça, me comportando<br />

como se nada tivesse acontecido e iniciei meu expediente no hospital. Só<br />

peço que não me interprete como um cretino medroso; sei que fui covarde<br />

em fugir sem ao menos pedir socorro. Eu tenho como oficio proteger<br />

vidas, mas não fui o culpado pelo capotamento daquele automóvel e temia<br />

por minha liberdade, temia ser indiciado por homicídio. Por favor, não me<br />

julgue por revelar este segredo, porque eu já estava sendo condenado pelo<br />

meu discernimento. Quando sai do carro dei uma discreta observada para<br />

ver as avarias no capô, notei um leve amassado, além de uma sandália<br />

feminina presa na grade de entrada de ar. De forma cuidadosa e prudente<br />

eu retornei ao veículo e puxei a sandália, escondendo o calçado embaixo<br />

do banco do motorista.<br />

Eu tentei, juro que tentei tirar o desastre da madrugada de minha<br />

cabeça, porém minhas idéias eram fixas naquela fração de tempo. Meu<br />

refletir fluía além da atenção no trabalho e dificultava minha concentração<br />

durante as doze horas de plantão dentro do hospital. Eu não vi nada<br />

quando atropelei a mulher que precisava da minha ajuda, embora quando<br />

retorno no tempo eu lembro-me de uma linda face jovem e entorpecida<br />

74


atirando latas de cerveja contra meu carro. Era este rosto que imaginava<br />

morrer, sempre trombando através de mim quando eu caminhava pelos<br />

corredores do hospital. Eu não queria estar mais ali, necessitava tomar<br />

uma medicação forte para descansar um pouco, aliviar-me de um meditar<br />

angustiante que só os homicidas conhecem.<br />

O homem de pele negra contava esta história para uma outra pessoa<br />

dentro do ônibus de viagem que saiu do terminal Jabaquara com destino a<br />

Baixada Santista. O sujeito mal encarado, sentado na poltrona do lado da<br />

janela, ouvia atentamente toda a narrativa. Escutava sem entender o<br />

significado do desfecho, quando comentou:<br />

– Tudo bem, tu viveu uma experiência ruim. Mas porque veio<br />

confessar este crime para mim? Não tem medo de eu denunciá-lo?<br />

– Você conhece meus motivos para lhe contar esta tragédia! Eu não<br />

queria tirar a vida daquela moça, só que uma única fração de desatenção<br />

me tornei um homicida. Da mesma forma que você e seu comparsa que<br />

está sentado na outra fileira pretendem assaltar este ônibus no meio da<br />

viajem; é a necessidade de obter dinheiro rápido sem machucar ninguém.<br />

Porém uma coisa que vocês não sabem é que aqui dentro estão quatro<br />

policiais à paisana que estão voltando para casa e apenas numa única<br />

desatenção de vocês é o suficiente para haver um rio de sangue no soalho<br />

deste automóvel. Eu aconselho que vocês dois desçam em paz do ônibus.<br />

– Tu matou uma mulher na estrada e agora está com medinho de<br />

retornar de carro. – dizia o sujeito mal encarado de forma raivosa e<br />

continuou – Eu acho que tu é tão cretino quanto eu e meu parceiro; não<br />

tem moral nenhuma para me dar conselhos!<br />

O homem negro, sem esboçar nenhum temor, encarou o tipo metido<br />

a malandro sentado ao seu lado e, com semblante amargurado, concluiu:<br />

Você não entende, não é? Meu infortúnio tormento começou após<br />

este acidente, um fardo que carrego não hoje e sim no ano de 2002.<br />

Exatamente, foi em fevereiro de 2002, no entanto sempre que revelo a<br />

75


data todos debocham da minha cara. Isto não é tudo... Quando terminei<br />

meu plantão na enfermaria tive que encarar a rodovia à noite de volta para<br />

casa; mesmo tenso, cansado, transtornado e também me sentindo um<br />

criminoso. Desci a Serra tendo muitas alucinações, toda hora eu colidia<br />

com uma mulher que só existia no meu delírio. Será que eu estaria<br />

amarrado ao suplício daquela morta para sempre? Ela surgia na estrada<br />

sempre fora do meu alcance, até que eu acelerava o motor e atropelava seu<br />

espírito de novo, de novo, e novamente acelerava mais. Acelerava para<br />

evitar ver seu rosto, com da vez que a matei. Agora eu não tinha medo da<br />

rodovia, e sim temia enlouquecer pelo maldito fantasma daquela retardada<br />

que cruzou meu caminho. De repente lembrei que sua sandália estava<br />

embaixo do meu acento. Abri o vidro para jogar seu calçado fora e, ainda<br />

pisando fundo, enfiei uma das mãos em baixo do banco, mas nada<br />

encontrei. Projetei todo meu corpo para baixo, com boa parte do braço<br />

inclinado para encontrar aquela assombrada sandália, até conseguir<br />

agarrar as tiras do calçado! Foi o suficiente para erguer minha cabeça e<br />

reparar que a reta tinha acabado, não deu tempo para fazer a curva e sai da<br />

estrada em direção ao abismo mortal da Serra do Mar. Eu desencarnei<br />

segurando a sandália da minha vítima.<br />

Por um momento ficou confundido o sujeito mal encarado, no<br />

instante seguinte ele olhou para o lado e percebeu que estava sozinho, não<br />

havia ninguém ao seu lado. Rápido como um pensamento sábio em uma<br />

alma criminosa, o ladrão levantou da sua poltrona, foi até seu comparsa e<br />

o convenceu a sair do ônibus. Os dois pediram para o motorista parar no<br />

acostamento, desembarcando para nunca mais tentar assaltar naquele<br />

trecho de rodovia. Não posso narrar se eles viveram muito porque o final<br />

dos delinquentes todos nós conhecemos.<br />

76


PIGMALEÃO<br />

A partir do momento que você observa seus filhos crescerem<br />

adquirindo discernimento sobre o que é certo ou errado suas preocupações<br />

aumentam com relação à educação deles. As brigas com minha esposa em<br />

relação à criação de minha filha eram constantes pelo fato de<br />

discordarmos de algumas atitudes minhas. Eu cresci com uma disciplina<br />

rígida dada pelos meus pais e também tentava passar algo igual para<br />

minha filha. Após uma dessas discussões calorosas com minha mulher,<br />

resolvi me declarar por vencido e saí de casa batendo a porta para beber<br />

nos bares.<br />

Retornei de madrugada completamente embriagado e notei que<br />

minha família me esperava preocupada. Atordoado pelo álcool, eu<br />

cambaleei até a cama para dormir quando tive aquela visão que começava<br />

com o seguinte nome: Pigmaleão!<br />

Levantei-me sem forças para correr atrás de meu notebook, porém<br />

minha esposa o havia escondido. Ela sabe que quando estou alcoolizado<br />

tenho idéias obscuras, com isto ela não me deixa escrever.<br />

– Filha, por favor, pega um papel e uma caneta para seu pai –<br />

balbuciei estas palavras com a boca anestesiada pelo vinho, quase<br />

suplicando.<br />

– Pega não filha, teu pai vai escrever coisas do diabo! – disse minha<br />

mulher.<br />

Eu tinha que escrever a mensagem que rodeava minha mente<br />

naquele instante, senão esqueceria tudo. Ao acordar não me lembraria de<br />

mais nada.<br />

– Eu preciso escrever, devolve meu notebook!<br />

– Não, vai dormir! – as duas falaram em um coro ensaiado.<br />

Neste instante eu me firmei sobre o chão que rodava como um<br />

carrossel e tranquei-me no banheiro, ficando lá a madrugada toda. Pela<br />

77


manhã abri a porta pois minha companheira queria escovar os dentes.<br />

Quando ela entrou deu um grito de horror que sacudiu toda a casa. Eu<br />

tinha cortado os braços com uma lâmina do barbeador e, com um<br />

cotonete, retirava meu próprio sangue para escrever sobre o papel<br />

higiênico – como num pergaminho – esta história que se segue:<br />

É fato confirmado que na Grécia Antiga havia um sábio de nome<br />

Pigmaleão. Ele era um artista que criticava constantemente o<br />

comportamento das mulheres de seu estado, logo escrevia peças teatrais<br />

onde os personagens femininos eram sempre cômicos. Se houvesse uma<br />

mãe encenando, ela teria que ser uma gorda desengonçada; quando era<br />

uma vendedora, o único produto a ser vendido era seu próprio corpo; e daí<br />

para pior. As mulheres da cidade revoltavam-se com o crítico pensador e<br />

tentaram por fim à suas ações por bem ou mal. Pigmaleão percebeu que<br />

sua estratégia de construir uma sociedade melhor estava indo contra o<br />

gosto de seus compatriotas, daí o mestre resolveu agir de outra maneira.<br />

O sábio grego adotou uma menina órfã, de nome Vanglória, para ele<br />

mesmo educá-la com aquilo que achava coerente, ele estava disposto a<br />

provar para todos que era possível construir uma “mulher perfeita”.<br />

Aquela invenção poderia servir de matriz para uma nova nação de seres<br />

puros e evoluídos, do seu ventre sairiam exércitos de filósofos íntegros e<br />

sua semente se propagaria por todo o mundo.<br />

Eram boas as idéias do mestre grego, porém a tal moça foi<br />

sacrificada em seus modos infantis e defeitos. Ela era adestrada como um<br />

animal pelo sábio homem, tinha que comportar-se igual aos seus anseios.<br />

Ela comia unicamente frutas e vegetais em pouca quantidade, banhava-se<br />

quatro vezes ao dia, tinha que estar sempre com os cabelos escovados e<br />

vestimentas limpas. Não poderia expressar emoções, muito menos perder<br />

a concentração nos estudos rígidos e constantes. Na menor falha da jovem<br />

discípula, Pigmaleão a castigava severamente com uma vara de madeira,<br />

sempre pedindo para a moça recitar argumentos que lhe convencesse a<br />

não bater mais forte.<br />

78


– Perdoa-me sábio mestre pelo meu desleixo, vossa consciência<br />

sabe que tais açoites ministrados por este rígido bastão trazem-me<br />

amargura física e toda minha carde sofre com isto. Por conseguinte<br />

contratuo, com minhas palavras, que se tais atos relapsos forem repetidos<br />

por mim o senhor terá o dever de me castigar mais forte ainda. – suplicava<br />

a garota tal discurso para que o homem cessasse a surra.<br />

Vanglória não podia chorar, muito menos olhar nos olhos de seu<br />

mestre. Seu caminhar teria que ser sensual mais não muito vulgar. Sua<br />

costura era a melhor das artesãs e seu cozido excepcionalmente fantástico.<br />

O Tempo passou e Vanglória agora era uma mulher que despertava a<br />

cobiça de todos os homens da Grécia, país que sempre teve fêmeas sábias<br />

e bonitas. Mas o artista mantinha sua criatura enclausurada dentro de casa.<br />

A mulher tinha cicatrizes grossas nas costas pelos castigos que sofria por<br />

anos de adestramento, mas ainda não estava pronta, lhe faltava alguma<br />

coisa. Sua pele era cheirosa, seus cabelos lustrosos e suas ações<br />

magníficas, entretanto o seu professor preservava sua integridade. Para<br />

compensar tamanho sofrimento carnal que sentia por Vanglória,<br />

Pigmaleão se satisfazia com as sacerdotisas de Dionísio – deus do vinho.<br />

Ele adentrava no templo e entregava-se as orgias para louvar em culto ao<br />

deus das insanidades.<br />

Certa noite Pigmaleão sentiu um fortíssimo peso na consciência<br />

com relação a sua discípula. O que faltava para sua completa perfeição?<br />

Ele ainda não sabia, no entanto ela estava incompleta. Ele tentou<br />

argumentar com Vanglória para questioná-la:<br />

– Meu mestre sabe que teu caráter é o meu caráter, que seus desejos<br />

são os meus também, pois servi-lo com minhas forças e inteligência é meu<br />

maior prazer. – disse a escrava Vanglória.<br />

O sábio artista sofreu com aquelas palavras, pois Vanglória era uma<br />

fêmea sem idéias próprias, ela era completamente submissa ao seu mestre,<br />

não lhe dando motivos para conflitos. E aquilo doía em sua alma<br />

79


profundamente!<br />

Pigmaleão então seguiu para o templo da luxuria de Dionísio, porém<br />

encontrou a porta trancada. Um dos eunucos disse que as sacerdotisas do<br />

sexo tinham indo para Atenas, com o intuito de formalizar a paz entre os<br />

gregos e os soldados romanos através cópula carnal. Pigmaleão retornou<br />

para casa mais cedo e descobriu que Vanglória não estava ali. Será que<br />

alguém roubou sua criação?<br />

Aquele homem retornou pela estrada quando ouviu, dentro da<br />

floresta, barulhos de patas galopando. Pigmaleão seguiu em direção aos<br />

ruídos que vinha de dentro da mata, haveria algum cavaleiro com sua<br />

Vanglória certamente. Quando o mestre chegou sorrateiramente para trás<br />

de uma moita, ao encontro do som, notou algo que lhe impactou.<br />

Sua Vanglória estava sendo possuída por um sagitário. A mulher<br />

cavalgava na parte cavalo daquele monstro de uma forma adversa, era na<br />

parte de baixo que ela se agarrava. Aquele ser mitológico parte homem -<br />

parte cavalo tinha seduzido sua criação. Pela primeira vez Pigmaleão<br />

reparou que tinha sido traído por sua Vanglória de forma sardônica. Era<br />

aquela mulher igual a qualquer outra de sua cidade, logo seus anos de<br />

dedicação ao cultivo de uma fêmea primorosa tinham sido em vão.<br />

Entretanto Pigmaleão sorriu com o exemplo que aprendeu de sua aluna e<br />

concluiu que tinha feito um bom trabalho!<br />

Esta sóbria visão que tive durante minha louca embriagues me fez<br />

perceber que não posso ensinar sozinho uma criança que vive integrada<br />

em uma sociedade, porque ela imitará nossos cotidianos igualitário. Tenho<br />

primeiro que mudar o comportamento de meu povo e, nesta aterrorizante<br />

batalha, conseguirei deixar nossas idéias mais evoluídas. Parece ser difícil,<br />

no entanto é mais simples que instruir um filho!<br />

80


A ÁRVORE DA DESGRAÇA<br />

Seria uma tragédia satírica se não fosse verdadeira esta narrativa que<br />

lhes trago agora. É um relato testemunhado por uma colega de trabalho,<br />

que já está próxima da aposentadoria, onde aconteceu na sua rua. Porém a<br />

história daquela sábia senhora será agora descrita pela versão de uma<br />

mente, talvez, as margens do desequilíbrio. Será possível que uma passiva<br />

vida possa testemunhar tão intimamente a ascensão e queda de uma<br />

família ao ponto de tornar-se cúmplice ou agente da desgraça daquelas<br />

pessoas?<br />

Era meados da década de 1960, os gritos dos jovens pela paz<br />

universal eram calados pela censura governamental, não se tinha liberdade<br />

de expressão muito menos poder político. O único poder a ser<br />

conquistado, com o fim da adolescência, era pegando em armas ou<br />

construindo uma família para provê-la com dignidade e um pouco de<br />

comida. Esta segunda opção foi o que escolheu João da Silva.<br />

João mantinha uma barraca na feira onde vendia carne fresca de<br />

porcos; foi ali entre lombo, bisteca e toicinho que ele conheceu Quitéria, a<br />

moça da barraca de hortaliças à frente da sua. Quitéria era uma jovem com<br />

pouca formosura porém tinha uma timidez que atraia João, a única solteira<br />

disponível em seu mundinho reservado entre casa, chiqueiro, feira e os<br />

prostíbulos no Centro de Santos. Com um propósito pré-determinado,<br />

João passou a querer trocar as mercadorias que sobravam no final do dia<br />

com o comerciante da frente. Dalí saiu uma parceria entre feirantes,<br />

quando um vendia carne mandava o cliente comprar tempero no outro<br />

lado da rua e vice-versa. Seis meses passaram quando João resolveu tomar<br />

coragem e pediu a mão de Quitéria em casamento para seu pia.<br />

Quitéria e João foram morar no grande terreno que tinha uma<br />

pequena árvore no centro, a planta servia de sombra para os porcos e era<br />

constantemente regada pelo sangue dos suínos. O novo chefe de família<br />

teve que mudar a planta de lugar para dar espaço a uma casa de carpintaria<br />

81


que custou metade do seu rebanho. A árvore crescia próxima da rua, na<br />

calçada, onde assistiu o nascimento tão esperado José da Silva no ano de<br />

1971, filho único que veio ao mundo após muitas promessas a São José.<br />

Assim como aquela família, a árvore acompanhou todo bairro ser<br />

urbanizado e crescer junto com a vizinhança. João constantemente podava<br />

seus ramos porque agora tinha mais tempo para isto; seu negócio na feira<br />

estava fraco e a vara de porcos restringia-se agora a cinco fêmeas e um<br />

macho.<br />

Quando o pequeno José estava com dez anos, já buscava seu pai nos<br />

botequins completamente embriagado. Dona Quitéria era agora quem<br />

tocava a venda de carne na feira de domingo e, quando retornava para<br />

casa, tinha que acompanhar José à missa para interceder por sua<br />

desesperança. Foi neste mesmo ano que Quitéria, ainda de madrugada,<br />

saiu na caminhonete para montar a barraca no domingo; o pequeno José<br />

acordou e encontrou seu pai pendurado pelo pescoço num dos galhos da<br />

grande árvore. O suicida João tinha a cara toda disforme, com a língua<br />

enegrecida, braços e pernas retesados de tão duros. Apesar do trauma de<br />

seu filho, a mulher não esmoreceu. Ela vendeu seu ponto na feira, se<br />

desfez dos porcos e montou uma avícola para vender carne de frango. Em<br />

plena recessão da década de 1980 a família prosperou e o grande ser<br />

vegetal observava, da calçada, um grande sobrado ser construído no<br />

terreno.<br />

Chegou à década de 1990 e José tinha mais de vinte anos quando<br />

conheceu a mulher de sua vida, casando-se no ano seguinte graças à ajuda<br />

financeira de sua mãe. Ele veio morar junto com a esposa na residência de<br />

Quitéria e – quando o Brasil conquistou o tetra campeonato – seu filho<br />

nasceu; O nome da criança seria uma homenagem ao artilheiro da seleção<br />

brasileira. O pequeno Romário assustava-se muito durante as noites<br />

porque vários morcegos sobrevoavam a grande árvore que tinha rameiras<br />

enormes, atraindo estes mamíferos alados para alimentar-se de seus frutos.<br />

O menino gritava com medo e não conseguia deixar ninguém no sobrado<br />

82


dormir, pensando nos bichos planando à frente de sua casa.<br />

Após uma madrugada de completa insônia da família, José saiu para<br />

comprar um facão ainda bem cedinho, cortando todos os galhos<br />

verdejantes daquela árvore. Uma semana se passou quando bateu em seu<br />

portão um fiscal da prefeitura para multá-lo por ter matado a gigantesca<br />

planta. Agora José teria de provar que a árvore ainda estava viva...<br />

O tempo passou e o monstro de madeira continuava a ser um<br />

tormento para José; suas seivas concentraram-se num único galho, num<br />

único ponto da planta sofrera a fotossíntese e lá surgiu um broto de folhas.<br />

Do pequeno broto verdejante que germinou, ramos abertos e floridos eram<br />

sinal de que o gigante resistia. O único galho verde da árvore crescia de<br />

forma diferente, era para baixo a direção que a folhagem seguia. José não<br />

interferiu, deixou aquela prova de vivacidade da planta continuar seu<br />

caminho de desenvolvimento para mostrar ao fiscal do município sua<br />

falha.<br />

Depois de três meses, todo poder do tronco concentrou-se num<br />

único galho florido que ainda crescia em direção ao solo. Anoitecia<br />

quando o chefe da família então subiu ao quarto de seu filho, pois da<br />

janela próxima à cama da criança tinha um ângulo bom de fotografar a<br />

árvore verdejante; seria uma prova a ser anexada no processo junto ao<br />

Paço Municipal. Porém a visão que José teve quando se posicionou no<br />

vitral fez todo seu corpo tremer. O único ramo com folhas tinha a<br />

horrenda forma de seu pai enforcado, uma perfeita silueta do morto!<br />

Estava lá dependurado pelo pescoço e rodeado de morcegos. José estava<br />

infantilmente indefeso, semelhante quando encontrou seu pai desfalecido,<br />

porque não poderia interferir contra aquela planta. No dia seguinte o<br />

homem mandou colocar uma enorme cortina na janela e tentou esquecer a<br />

cena.<br />

A primavera chegou e outros galhos do assustador ser, que<br />

atormentava os pesadelos de José, também cresciam. O dia da audiência<br />

para provar que a árvore estava viva aconteceria daqui a três dias, seu<br />

83


advogado mandou a absurda história para um jornal, o editor se interessou<br />

pelo caso, porque era uma família que tinha de provar, para a<br />

administração pública, que uma planta não estava morta senão pagaria<br />

uma multa equivalente a vinte salários mínimos pelo crime ambiental. Na<br />

manhã seguinte José chega à avícola e abre o jornal, ele viu na fotografia<br />

da reportagem não só a silueta de seu pai enforcado na árvore, mais<br />

também uma segunda pessoa pendurada. Um outro ramo verde tinha a<br />

forma de uma pequenina mulher de vestido, seria sua mãe? Ou seria sua<br />

esposa a próxima vítima?<br />

O homem correu para casa, teria que manter as mulheres da família<br />

bem longe daquele estático monstro. Entrou na habitação e observou que<br />

estava tudo deserto; percorreu a cozinha, área de serviço, subiu pelas<br />

escadas, invadiu os quartos, nada, ninguém! José olhou para a grossa<br />

cortina na janela no quarto do filho tomado pelo desespero, talvez aquilo<br />

fosse uma paranóia sua. O homem sentou na cadeira próxima do<br />

computador para tentar acalmar-se, quando riu da própria loucura. Já<br />

pensou se contasse para sua mãe o que pensava? E o quê sua mulher<br />

acharia daquilo? Ele observou uma foto de sua família ao lado do monitor;<br />

seu filho de 12 anos estava no centro, sendo abraçado pelos pais, ao lado<br />

estava Dona Quitéria. Só faltava uma pessoa para a imagem da família<br />

estar completa, seu pai João.<br />

– Que falta o senhor me faz pai! – disse José para o retrato, tentando<br />

segurar as lágrimas. Quando, de repente, ouviu um ruído saindo do<br />

interior do guarda roupa.<br />

José levanta-se em silencio para checar que som era aquele que<br />

continuava a persistir. Encostou a cabeça na porta: tinha alguém lá dentro!<br />

O homem corajosamente abriu em um gesto rápido as portas do móvel e<br />

surpreendeu escondido um dos moradores da casa.<br />

– Você não deveria estar na escola filho? E que roupa é esta que está<br />

usando Romário?<br />

84


José mesclava sensações de surpresa e ódio ao flagrar seu filho<br />

dentro de casa, no horário em que deveria estar na escola e, além do mais,<br />

usando um vestido de sua mãe, com a cara completamente maquiada. Os<br />

olhos do homem se infernizaram por tamanha fúria, gritando:<br />

– Moleque nojento! Está virando gay? – e fechando os punhos em<br />

forma de marreta, disparou vários murros no corpo frágil do filho dizendo<br />

– Você vai deixar de ser efeminado, sua bichinha!<br />

– Para pai, para... está me machucando! Por favor, para! – clamava<br />

o garoto que se protegia contra as investidas do pai colocando os braços<br />

no rosto.<br />

Em ação de defesa, Romário pegou um dos tênis ao seu alcance e<br />

atirou no rosto do homem, atingindo bem nos olhos, lhe fazendo cegar. O<br />

garoto precipitou a correr do quarto, fugindo para outra parte qualquer da<br />

casa.<br />

– Volta aqui Romário! ROMÁRIO!!! – gritava José com grade<br />

desatino.<br />

Com ardência nos olhos, José procurou seu filho pela casa toda sem<br />

encontrá-lo. Ele retornou ao quanto do menino no intuito de procurar<br />

outros segredos escondidos. Foi ali, dentro do quanto, que José ouviu os<br />

latidos de um cachorro vindo da rua; o pai então teve coragem e abriu a<br />

pesada cortina quando viu... quisera ele ainda estar cego!<br />

Seu filho Romário tinha escalado a árvore para se esconder. Ele<br />

esgueirava-se pelos galhos com aquele longo vestido da sua mãe. José<br />

pegou a cadeira e, em um ato de pânico, jogou pela vidraça para quebrála.<br />

O garoto ouviu o som dos cacos de vidro se despedaçando, notando seu<br />

pai lhe fitando, assustado ele perdeu o equilíbrio.<br />

– ROMÁRIO! NÃÃÃO!!!<br />

Romário estava pendurado em um dos galhos, a gola do vestido<br />

ficou presa nos ramos daquele monstro vegetal.<br />

José voou para acudir o filho quando, ao chegar na calçada, já era<br />

85


tarde demais. O pai pode apenas contemplar a árvore soltar seu menino!<br />

Era verdade, José viu nitidamente a árvore largar a criança que caiu de<br />

cabeça no chão...<br />

Três dias se passaram. José estava sentado em uma sala na<br />

Secretaria do Meio Ambiente da prefeitura para audiência sobre seu ato<br />

contra a natureza. Junto com ele encontravam-se seu advogado, o fiscal<br />

que lhe multou e um encarregado.<br />

– Tem razão senhor José da Silva, aquela árvore esta viva. – disse o<br />

fiscal refletindo arrependidamente sobre sua falha perante aquela família,<br />

continuando – Queira o senhor me desculpar por tamanho transtorno!<br />

No centro da mesa estava o jornal de três dias atrás, trazia a<br />

fotografia de sua gigantesca inimiga verde, mostrando a silueta de seu pai<br />

enforcado de um lado e do outro seu filho pendurado por um vestido; cena<br />

humilhante. José sentia muita vergonha por tamanha exposição que a<br />

árvore lhe deu.<br />

– Realmente, meu vegetal permanecerá vivo por muitos anos. –<br />

concluiu José olhando para baixo, mostrando grande tristeza.<br />

Seu filho tinha sobrevivido... No entanto ele estava agora<br />

tetraplégico, ficaria aprisionado numa cadeira de rodas para sempre! O<br />

vegetal que ele estava se referindo não era a árvore, mas sim seu filho.<br />

Antes Romário fosse um homossexual saudável e ativo do que um<br />

incômodo para a família. O vegetal agora era apenas seu filho porque,<br />

para a horrenda planta, ele tinha acabado de comprar um lindo machado.<br />

86


A TATUAGEM DO LAGARTO<br />

Observando o comportamento das pessoas notei que determinadas<br />

palavras são motivos para pesquisas científicas pelo fato de sempre<br />

fugirmos de pronunciá-las; evitamos falar coisas que trazem más ideias.<br />

Eu nunca tive receio de dizer, por exemplo, as expressões: azar, desgraça,<br />

diabo, etc. Porém há certo vocábulo que evito digitar nas minhas<br />

narrativas. Notei que só digitei tal palavra uma única vez e sempre tento<br />

substituí-la por outras expressões, só que agora serei obrigado a escrevê-la<br />

novamente para dar continuidade a esta história. Tal palavra é:<br />

"depressão". O motivo é que eu conheço no meu intimo o poder<br />

destruidor deste tipo de moléstia que gradativamente amortiza nossa<br />

vontade de viver – quando escrevo ou falo tal palavra sinto todo meu<br />

corpo tremer e relembro os dias agonizantes que passei amargurado com a<br />

já citada expressão.<br />

Graças à outra ironia de nosso destino, um bancário de nome<br />

Fortunato também sofria de depressão. Há anos que ele se sujeitava àquela<br />

agência onde mostrava pessoas felizes nas propagandas; só que agora o<br />

dedicado servidor não tinha ânimo nem mesmo para degustar uma pizza<br />

de manjericão que tanto gostava. Não foi só o stress no trabalho que lhe<br />

causou tamanha dor interior ao ponto de desejar o termino de sua<br />

existência. Ele se iludiu ao aventurar-se numa cidade grande sem amigos,<br />

também foi abandonado pela esposa.<br />

Com um propósito determinado e uma data na cabeça, o bancário<br />

agora estava decidido a cometer suicídio. Seria no dia 15 de dezembro,<br />

um dia após seu aniversário de 33 anos. Antes ele quis fazer uma viagem;<br />

pediu empréstimo, vendeu o carro – já que não iria levá-lo para sua<br />

sepultura – e deixou de pagar o as contas mensais incluindo o aluguel.<br />

Fortunato queria conhecer o México, algo que sempre teve vontade;<br />

quando ele era ainda adolescente ficava curioso em descobrir mais sobre a<br />

cultura Asteca, civilização que possuía uma ciência tão avançada que<br />

87


conseguia prever um período de desequilíbrio climático com<br />

antecedência.<br />

Desembarcando pela manhã no aeroporto da capital mexicana, no<br />

último dia de outubro, logo encontrou uma agitação na cidade que até<br />

aquele momento desconhecia, era véspera do “Dia dos Mortos”. A cidade<br />

estava enfeitada com tecidos estampados, fitas coloridas, flores aromáticas<br />

que nos faziam recordar nossos defuntos, além de uns arranjos macabros<br />

de esqueletos e personagens fantasmagóricos. Fortunato seguiu rumo ao<br />

hotel apenas para confirmar sua reserva, deixar a bagagem no quarto e<br />

fazer o desjejum porque às dez horas sairia um ônibus para as cidades<br />

históricas. No final da excursão ele estava maravilhado com a ciência e<br />

selvageria daqueles povos antigos que foram devastados pelos espanhóis;<br />

no Mercado de Tlatelolco ele aproximou de uma tenda de ervas para<br />

perguntar:<br />

– “¿Tienes alguna cosa para animar um hombre?" – questionou<br />

Fortunato num portunhol bisonho.<br />

O vendedor pensou que ele estava se referindo a alguma porção<br />

contra impotência e lhe ofereceu vários elixires afrodisíacos.<br />

– “No, no. Jo quiero algo fuorte contra depression”.<br />

– ¿Contra depression? Mescalina!<br />

Ele recebeu um envelope de papel onde na parte de fora estava<br />

carimbado de vermelho “mescal-bud”, tal artefato lhe custou mais do que<br />

uma diária no hotel que se hospedou, dentro havia uns dez botões de flor<br />

desidratada. Fortunato tinha sido advertido para esconder a substância da<br />

polícia e utilizar em pouca quantidade. Pela noite no quarto o homem<br />

engoliu uma flor de cacto e, ao ver que os efeitos estavam demorando,<br />

colocou mais uma na boca.<br />

Apesar de eu escrever o que penso, ainda estimo pela integridade de<br />

meus leitores. Com isto, venho alertar que a partir deste ponto haverá<br />

coisas impronunciáveis, todavia tentarei descrevê-las por expressões<br />

menos abomináveis. Caso você seja um leitor que se enoja com coisas<br />

88


epugnantes, sugiro que abandone agora esta leitura!<br />

Com o corpo intoxicado pela substância e num instinto de defesa,<br />

seu organismo convulsionou-se em vômitos todo o excesso da droga.<br />

Fortunato expeliu tudo que tinha dentro do estomago no chão daquele<br />

quarto de hotel. Ele observava detalhadamente o líquido morno que saiu<br />

do seu íntimo como se fosse um filho que acabara de parir; eram lindas as<br />

borboletas multicores que flutuavam junto com a fumaça. Fortunato<br />

refletia enquanto contemplava com o rosto bem perto do dejeto de fluidos.<br />

Aquele caldo fedido era muito importante para a sociedade, – pensava –<br />

talvez a humanidade nem existisse sem seus admiráveis vômitos.<br />

Fortunato sorria com muita satisfação, pois a obra de arte sobre o chão se<br />

movimentava sem que seu criador interferisse. O drogado homem queria<br />

sua quentinha escultura viscosa para dentro de seu corpo novamente então<br />

ele encostou a boca no liquido e sorveu tudo para dentro de si, rolando os<br />

olhos de jubilo e dizendo:<br />

– Você é só minha, eu te amo!<br />

É impressionante as ações de um sujeito sob efeito de narcóticos,<br />

agora ele tinha perdido o equilíbrio e não conseguiu mais levantar do<br />

chão. É melhor ele deitar ali mesmo para curtir em segurança sua fissura...<br />

Vejam só, Fortunato estava tão doido que conseguiu ouvir meu conselho,<br />

desabando no piso melado!<br />

Na manhã seguinte a sensação do homem foi como se ele tivesse<br />

tomado uma surra de pau mesclado com uma enorme ressaca que deixava<br />

a boca seca além de fortes diarreias, porém ele estava sóbrio. Fortunato<br />

resolveu tomar outra dose pouco menor da flor de cacto antes de sair para<br />

conhecer a Cidade do México. No museu de antropologia da capital o<br />

mais novo dependente descobriu que tais povos Astecas criam que tinha<br />

de ser derramados litros de sangue humano para o Sol, senão a<br />

engrenagem do mundo pararia de funcionar. Ele saiu pensando nisso<br />

enquanto curtia os efeitos da droga no seu cérebro, ao contemplar o sol na<br />

rua viu que o astro rei agora, neste mundo civilizado, tinha sede!<br />

89


Fortunato resolveu seguir a pé para o hotel, tirou os sapatos e caminhou<br />

descalço no asfalto quente que lhe dava um sentimento de contentamento,<br />

pois cada migalha de areia era sentida pela sola dos pés massageando-os.<br />

Um vento vindo do norte o afagava; suas narinas sentiam um adorável<br />

odor característico daquela cidade próxima do deserto, como se ele<br />

estivesse com a cara no sovaco da própria mãe! Não disfarce agora leitor,<br />

alguma vez você já sentiu o agradável odor das axilas materna e gostou<br />

muito... Contudo foi pela noite que a ação da toxina da planta se tornou<br />

mais eficaz; ele enxergava não só as pessoas nas ruas que festejavam o<br />

Dia dos Mortos, como também seus espíritos antepassados. Era algo<br />

surreal e imaginável. Fortunato não sentiu medo, apenas uma curiosidade<br />

de ver mais.<br />

Antes de embarcar de regresso ao Brasil, Fortunato comprou mais<br />

da erva que escondeu numa parte do corpo impronunciável. Ele agora<br />

estava muito feliz, um contentamento quimicamente forjado para ser<br />

comprado por excursionistas inexperientes. Não queria mais morrer e sim<br />

provar novamente a sinestesia dos efeitos alucinógenos da planta que<br />

agora fedia a merda. Éca! Setindo-se bem melhor, o homem voltou ao seu<br />

médico porque queria regressar novamente ao trabalho, ele estava<br />

revigorado.<br />

– Seja bem vindo de novo Fortunato – falou do gerente da agência<br />

que concluiu – seu lugar no caixa ainda é o mesmo.<br />

Naquele dia ele trabalhou bem disposto, todos viam ele rindo da<br />

cara de todos, só ele notava que os clientes faziam algo cômico mais não<br />

poderia falar nada, apenas tentava segurar as gargalhadas. Próximo do<br />

horário do almoço, o viciado entrou no banheiro para tomar uma nova<br />

dose da sua aliviante toxina quando notou que outro funcionário fazia algo<br />

peculiar ali dentro, ele estava alucinado demais para saber que era um<br />

delírio. O outro escriturário tinha retirado o terno, gravata e camisa onde<br />

esfregava um tudo de pomada no corpo de um pequeno lagarto negro que<br />

estava balançando a calda de satisfação sobre o ombro dele.<br />

90


– Porque você trás este bicho para a agência, não tem medo do<br />

gerente ver?<br />

– É minha tatuagem nova, a tinta está me dando alergia.<br />

– Cara isto não é uma tatuagem, é um lagarto!<br />

– Eu sei. Parece de verdade não é?<br />

– Mas é um lagarto se mexendo sobre seu ombro. Você não está<br />

sentindo ele balançado o rabo e as patas?<br />

– Fortunato, eu percebi durante todo o dia que você ainda não se<br />

recuperou plenamente, mas pare de fazer isto porque está me deixando<br />

com medo!<br />

– Eu não entendi! Você tem um réptil preto pendurado no ombro e<br />

eu sou o louco?<br />

– Sai de perto de mim seu desequilibrado! – finalizou o outro<br />

funcionário vestindo-se apressadamente e fugindo da presença de<br />

Fortunato.<br />

Ao retornar do almoço, o bancário inveterado permaneceu inquieto,<br />

porque não parava de observar os ombros do homem tatuado. Fortunato<br />

percebia que algo se mexia por baixo da camiseta. A gravura do lagarto<br />

estava viva para ele e caminhando pelas costas do funcionário. Aquilo<br />

deixava Fortunato com uma sensação de repulsa agonizante. Será que seu<br />

colega de trabalho não estava incomodado com o bicho escalando suas<br />

costas? Quando o escriturário aproximou dos caixas para pegar alguns<br />

documentos, Fortunato viu de perto o volume movimentar nas costas do<br />

rapaz; quando uma mosca varejeira pousou no pescoço do tatuado e o<br />

lagarto colocou a pequena cabeça para fora da gola e tragou o inseto numa<br />

linguada!<br />

Fortunato se descontrolou. Ele puxou o monitor de LCD sobre a<br />

bancada ameaçando jogar nas costas do outro trabalhador.<br />

– Tira este maldito bicho de perto de mim! Sai daqui!<br />

– Calma Fortunato, se controla. Olhas os clientes! – tentou acalmar<br />

91


outro caixa.<br />

Porém sem nenhum efeito. Quando Fortunato notou novamente o<br />

movimento nas costas do tatuado, ele tacou com toda força o monitor no<br />

dorso do coitado que caiu desacordado. Dois seguranças junto com o<br />

gerente tentaram conter o mais novo drogado e a confusão estava formada<br />

na agência. O dependente agitador foi obrigado a sair do banco e ir para a<br />

casa, porém ele permaneceu nas redondezas do prédio.<br />

No dia seguinte Fortunato voltou ao trabalho com a mesma roupa<br />

do dia anterior, também estava com sua bolsa e a barba por fazer; mas o<br />

gerente o abordou na entrada, conduzindo para o escritório.<br />

– Fortunato, você ainda está doente. Vá agora para seu psicólogo e<br />

peça outro afastamento.<br />

– Eu estou legal! Só que aquele cretino tinha um lagarto<br />

caminhando nas costas.<br />

– Entenda Fortunato, eu te admiro pelos anos de serviços nesta<br />

empresa, mas se você decidir trabalhar hoje serei obrigado a demiti-lo por<br />

Justa Causa!<br />

– Eu estou curado, não está vendo minha satisfação em trabalhar<br />

aqui? Como o senhor pode me demitir?<br />

– Você agrediu outro funcionário sem nenhum motivo! Ele abalouse<br />

tanto que ainda não veio trabalhar.<br />

– Como não tive motivos? – Fortunato gritou isto soltando muita<br />

saliva entre os dentes. De repente ele puxou de sua bolsa um artefato de<br />

carne; era um braço humano completamente cianótico e emporcalhado<br />

pelo sangue coagulado, gritando enquanto chacoalhava o membro. – Olha<br />

aqui quem tentou me atacar! Este lagarto estava no ombro dele, agora olha<br />

onde está!!!<br />

A tatuagem do lagarto preto estava impressa no antebraço do<br />

membro cadavérico, próximo do cotovelo. Fortunato jogou o braço no<br />

gerente e fugiu da sala. Pela agência ele marchava como se tentasse subir<br />

92


um degrau de uma escada invisível, passou pela porta giratória e<br />

caminhou sempre elevando os joelhos na altura do umbigo. O lunático das<br />

drogas queria, talvez, escalar a escada de Jacó para regressar ao México<br />

galgando as nuvens, mas foi pego em cheio por um carro quando tentou<br />

atravessar a avenida movimentada. O corpo de Fortunato foi arremessado<br />

para o alto; ele adorou a ideia de saber que estava flutuando e sacudia-se<br />

para abraçar o nada. Antes de desabar no solo, o homem olhou para o Sol:<br />

“Sua sede de sangue será saciada hoje”, disse ele para o astro radiante. O<br />

corpo do drogado espatifou no chão e todos seus órgãos explodiram<br />

internamente, regando o asfalto com fluidos cardíacos.<br />

Talvez não seja só uma coincidência, mas Fortunato foi atropelado<br />

por um turista mexicano que tinha acabado de provar o crack, fugindo em<br />

seguida para embarcar no aeroporto, sem falar nada!<br />

93


ESCRITOR DE SUCCUBU (AJUDE-ME)<br />

Antes de qualquer coisa, digo que não tenho satisfação em<br />

produzir este texto, em breve você saberá o porquê. Enquanto digito<br />

estas linhas tento conter minhas emoções e segurar as lágrimas que<br />

teimam e brotar de meus olhos. Por Favor, não considere isto como uma<br />

simples história para tentar assustar-lhe ou uma fantasia de minha cabeça<br />

para lhe entreter; esta é uma desesperada carta pedindo socorro! Talvez<br />

agora eu assuma publicamente minha loucura, ou mostre que estou<br />

sendo atormentado por uma entidade que se revelou para mim em forma<br />

de mulher... Ela sempre esteve ao meu lado!<br />

Tenho sido um homem esperançoso, porém minha fé agora é<br />

pouca. Logo esperarei com pouca convicção que alguma pessoa religiosa<br />

veja meu clamor e interceda em suas orações contra meu mal. Acho<br />

melhor, para minha segurança, não pedir pelo meu exorcismo e tentar<br />

explicar dês do início minha aflição.<br />

Todo adolescente alguma vez já fantasiou uma namorada, é uma<br />

forma de mostrar ser superior aos amigos e esconder sua donzelice.<br />

Comigo não foi diferente; lembro-me que na sexta série falava no<br />

intervalo das aulas sobre minha fantasiosa namorada para os demais<br />

meninos e até lhe davam conselhos de como conquistar uma moça. O<br />

pior era que minhas orientações funcionavam e meus amigos, horas<br />

depois, agradeciam-me pelos primeiros beijos que tinham.<br />

Desculpe-me leitor, mas devo lhe dizer que bem antes disso tive<br />

uma infância muito podre. Eu e minha mãe fomos abandonados pelo<br />

meu pai, quando eu tinha quatro anos; com isto ela teve que entregar a<br />

casa onde nós morávamos de aluguel, foi se aventurar montado um<br />

barraco na favela e me deixou numa creche para poder trabalhar numa<br />

casa de família. Eu senti muito o impacto do declínio familiar e ainda<br />

com poucos anos fiquei doente da alma... Fui encaminhado para vários<br />

médicos, fiz inúmeros exames e todos os diagnósticos mostravam que eu<br />

94


estava normal, apenas sentia saudades de meu pai. Mamãe então, farta<br />

com seu martírio comigo, resolveu levar-me numa velha benzedeira<br />

cigana. Aquela senhora não se atreveu tocar a mão em mim, apenas<br />

alertou que eu possuía um encantamento feito para me matar.<br />

Desesperada, minha mãe aceitou os conselhos da cigana que numa<br />

sexta-feira arrastou-me para um ritual num terreiro onde incorporam<br />

espíritos desencarnados. Como uma sessão de quimioterapia que<br />

envenena todo teu corpo antes de exterminar o câncer, aquele<br />

quebrantamento funcionou mas deixou em mim sequelas.<br />

Eu agora crescia como um menino saudável e maroto de qualquer<br />

bairro pobre. Minha mãe trabalhava o dia todo, deixando-me naquela<br />

creche abarrotada de crianças. Em nenhum momento eu ficava sozinho,<br />

as tias gritavam muito comigo já que eu era muito agitado. Lembro-me<br />

como se fosse ontem que invadi o vestiário das pajens – onde ficava<br />

numa sala próxima da lavanderia – para me esconder e lá ouvi alguém<br />

me chamar. Sabe quando você ouve uma voz lhe chamando e quando<br />

olha não é ninguém, foi isto que aconteceu contudo não parou só nisso:<br />

– Edgar!<br />

– Quem está ai?<br />

– Você não pode me ver, mas não tenha medo. – eram frases<br />

femininas que sussurravam bem perto de mim e continuaram – Eu estou<br />

dentro da sua cabeça, sou seu entendimento e quero te ajudar. Tudo<br />

bem?<br />

– Como?<br />

– Não fale mais nada apenas me ouça, está vendo aquele monte de<br />

lençóis sujos? – eu acenei positivamente com a cabeça – Pois bem, vá<br />

para baixo deles e fique bem quietinho. Não faça nenhum barulho<br />

porque está chegando alguém que poderá te fazer muito mal.<br />

Obedeci minha consciência enfiando-me naquelas roupas fedendo<br />

a fezes e leite dos bebês quando realmente entrou uma mulher. Era a<br />

95


administradora da creche, ela tinha nas mãos uma cópia de todos os<br />

cadeados dos armários, abrindo cada um deles para furtar dinheiro e as<br />

joias das pobres pajens. A ladra praticou o ato por uns dez minutos<br />

quando fugiu para o anonimato. Eu fiquei ali escondido por mais algum<br />

tempo quando ouvi:<br />

– Agora sai logo daqui Edgar e nunca mais retorne neste lugar,<br />

entendeu? Aquilo que você testemunhou jamais deverá ser revelado e se<br />

perguntarem onde você estava diz que ficou no banheiro com dor de<br />

barriga.<br />

As tias acreditaram em cada palavra minha, uma vez que até<br />

minha roupa estava fedendo a excremento. Uma das pajens me arrastou<br />

para baixo do chuveiro para tomar banho quando outra mulher chegou<br />

completamente alterada:<br />

– Maria, só você tem a cópia da minha chave sua ladra vagabunda!<br />

Devolve agora minha aliança de casamento!<br />

Eu tinha cinco anos – mas está nítida a imagem que testemunhei –<br />

quando pelado via passivamente as duas mulheres se pegando pelos<br />

cabelos numa gritaria frenética. Outras funcionárias chegaram para<br />

apartar aquelas vítimas da administradora que sangravam com tantas<br />

unhadas na cara. As duas tias foram demitidas sem a aliança de<br />

casamento aparecer. O tempo passou e os furtos continuaram, até chegar<br />

minha idade de sair daquele depósito de crianças. Todavia meu<br />

consciente continuava a dialogar comigo com uma voz feminina.<br />

É melhor explicar direito o gênesis da minha infelicidade para não<br />

propor suposições. Toda pessoa talentosa tem seu momento de criação<br />

que é uma luz onde acendem suas ideias e trás inspiração. Aquele<br />

momento revelador onde os pensamentos brilham com planos fantásticos<br />

além metas absurdamente valiosas. Alguns chamam este momento de<br />

visão divina, já outros as tratam como presentes dos anjos ou até<br />

lampejos neurais de ideias, mas ela me apresentou com o nome de<br />

96


Fátima Succubu. Foi assim que minha voz criativa se apresentou para<br />

mim, um som feminino que me orienta e também assusta. Talvez seu<br />

nome seja uma alusão a Nossa Senhora de Fátima, aquela santa que se<br />

revelou em Portugal aos três pastores; não sei pois nunca perguntei a ela.<br />

Já o sobrenome Succubu me foi revelado mais tarde – algo que será<br />

desvendado por vocês também. A única coisa que tinha discernimento<br />

era que sempre ela falou comigo e achava aquilo normal. Foi Fátima<br />

quem mostrou que eu não era católico, uma vez que tinha medo de entrar<br />

numa igreja; ela me disse que minha mãe encontraria um outro<br />

companheiro para cuidar dela e ainda que eu seria um escritor famoso.<br />

Será?<br />

Fui para a escola já me mostrando um menino prodígio ao saber<br />

ler e fazer cálculos matemáticos; logo a coordenadora me promoveu para<br />

a turma da segunda série em menos de três meses. Eu sempre estava à<br />

frente dos ensinamentos dos professores pois era tudo revelado pelo som<br />

invisível de uma mulher, com isto não tinha disposição para atentar ao<br />

que explicavam. Enfadado durante as aulas eu passava a brincar muito,<br />

distraindo os outros alunos. Novamente fui encaminhado a um psicólogo<br />

e acabei entregando o nome de minha acompanhante:<br />

– Minha amiga me ensina as coisas o nome dela é Fátima, só que<br />

eu não posso vê-la.<br />

O médico atestou que eu era uma criança muito criativa e ainda<br />

estava na faze de ter “amigo imaginário” devido a minha antiga<br />

melancolia. Minha mão acreditou no médico e eu igualmente.<br />

– Fátima você não existe de verdade. Eu não quero mais falar<br />

contigo senão vão acabar me chamando de maluco.<br />

– Eu êxito sim, só que você não pode me ver ainda. Por favor, só<br />

não pare de conversar comigo senão eu ficarei muito aborrecida. Vamos<br />

fazer um trato, eu só falo com você quando estivermos sozinhos. Tudo<br />

bem assim?<br />

97


– Quando eu vou poder lhe ver?<br />

lhe mostra.<br />

– Quando você deixar de ser criança, aí sim terei outras coisas para<br />

– Como você é?<br />

– Eu sou muito bonita e com cabelos ruivos. Sabe o que mais, eu<br />

não uso roupas.<br />

– E não sente frio?<br />

– Não. Meu corpo é transparente e o vento passa por ele.<br />

– Eu já sei. Sua pele pode atravessar paredes, você já me falou<br />

sobre isto.<br />

O tempo seguiu e agora eu era um problema na escola. Não<br />

gostava de estudar, uma vez que achava que sabia tudo. Minha voz<br />

interior só falava comigo reservadamente e na sesta série minha mãe foi<br />

obrigada a me transferir de colégio. Lembro-me do dia que vi minha<br />

mãe chorando por minha causa, sofri também com ela.<br />

– Edgar, o que está acontecendo com você? É este o futuro que<br />

procura para nós? Ser igual ao seu pai?<br />

– Mãe, me perdoa! Não chora mais porque eu vou mudar...<br />

prometo que vou ouvir mais a senhora.<br />

Esta tinha sido uma noite agonizante para mim, fui deitar com uma<br />

grande sensação de culpa. Não poderia acusar ninguém porque já tinha<br />

doze anos e aprontava na escola por vontade própria. Meu consciente<br />

clamava que eu parasse, porém não dava ouvidos. Nesta mesma noite<br />

outra coisa estranha aconteceu. Sonhei com uma linda mulher de pele<br />

alva e cabelos vermelhos, eu estava na penumbra de meu quarto quando<br />

ela chegou das sombras me acordando para me possuir. Era nítida a<br />

impressão do corpo dela ao meu toque enquanto estava sobre mim.<br />

Quando atingi o auge ela abaixou a cabeça e segredou em meu ouvido:<br />

– Se você for um bom rapaz te dou mais. Agora durma!<br />

Acordei com a roupa de baixo manchada onde, ali deitado, percebi<br />

98


que estava entrando na puberdade. Realmente na nova escola eu virei<br />

outra pessoa, calado, quieto e até fui chamado de menininha porque não<br />

ligava para as garotas que queriam me namorar. Eu até paquerei algumas<br />

vezes, mas minha mente estava evoluída demais para ficar nestas<br />

relações de “intrigas e espinhas”. Minha ideia criativa visitava-me toda<br />

semana em sonhos, mostrando como ser um homem de verdade e<br />

sempre pedindo segredo.<br />

Soube que algo de anormal acontecia comigo quando foi a vez de<br />

perder minha virgindade carnal. Uma vizinha casada com cerca de trinta<br />

anos me seduziu; então marcamos um encontro pela tarde em sua casa,<br />

hora que seu marido estava trabalhando e eu estudando. A mulher<br />

admirou-se ao constatar que eu conhecia mais seu corpo do que o<br />

próprio marido. Aquilo me fez ver que Fátima era um espírito que me<br />

seguia dês de criança. Mas quais eram suas intenções?<br />

– Eu estou aqui para lhe ensinar.<br />

– Você é um fantasma!<br />

– Eu fui uma mulher de carne e osso um dia.<br />

– Você morreu!<br />

– Eu estou viva! E nunca mais procure aquela piranha novamente é<br />

para seu bem!<br />

– Por quê? Ela é de verdade, é real!<br />

– Ela tem marido, vai descobrir e matar vocês dois.<br />

– MENTIRA!!!<br />

– Verdade! Igual aquela diretora na creche, lembra?<br />

Passei a evitar a vizinha, porém ela estava apaixonada por minhas<br />

carícias e queria mais, queria tudo! Eu fugia dela me trancando em casa,<br />

fazendo outros percursos, no entanto ela passou a me perseguir.<br />

é gay.<br />

– Como faço para ela sair do meu pé Fátima?<br />

– Tem duas opções: fique quatro dias sem tomar banho ou fale que<br />

99


Escolhi a segunda opção e assim aconteceu. Esta voz feminina me<br />

tornou mais sensível, fazendo ter talentos mais detalhistas. No ano<br />

seguinte eu conheci minha esposa, outro fato ocorrido, neste período foi<br />

eu descobrir gosto pela leitura e o escândalo da minha vizinha ao ser<br />

esfaqueada junto com um amante pelo marido. Meu cogitar narrativo me<br />

fez passar em alguns concursos públicos.<br />

Só que o Inferno adveio...<br />

Ano passado eu estava digitando meu trabalho de conclusão de<br />

curso para a faculdade, aquilo tinha levado o dia todo e fiquei até sem<br />

comer. Pela madrugada eu ainda digitava o texto em jejum, ouvindo o<br />

que meus pensamentos diziam, quando notei uma mulher nua sentada ao<br />

meu lado. Eu voltei o rosto para ela e vi nitidamente Fátima Succubu.<br />

Era ela sim, bonita, pele branca e de cabelos ruivos. Ela narrava o que eu<br />

tinha de digitar, mas quando parei de escrever ela ordenou:<br />

– Continue, continue...<br />

– Sai de mim Pomba Gira! – Gritei para ela, que se assustou ao<br />

perceber que eu conseguia lhe enxergar. Fátima então deu um sorriso<br />

malicioso e sumiu igual a fumaça na atmosfera.<br />

Daquele dia em diante passei a não responder sua voz, fingi que<br />

ela não existia ou acabaria padecendo num hospício. Fátima porém<br />

ordenava para eu não lhe evitar:<br />

– Edgar, eu sempre estive do seu lado. Você não pode se afastar de<br />

mim lembra? Eu salvei sua vida... por várias vezes... Sem mim você não<br />

vai conseguir raciocinar.<br />

E continuava:<br />

– Edgar, cretino! Não me deixe falando sozinha!!!<br />

Nos meus sonhos ela visitava disfarçadamente, porém eu conhecia<br />

sua forma de dialogar porque ela sempre esteve comigo, logo ignorava.<br />

– Edgar, nós dois somos um! – dizia ela com fúria nas palavras e<br />

continuava – se eu deixar de existir você morrerá porque habito sua<br />

100


consciência, te livrando do feitiço que um dia lhe lançaram.<br />

Não dei ouvidos para Fátima Succubu. Além disso, pesquisei na<br />

internet a origem da palavra Succubu: são espíritos de mulheres com<br />

desejo de vingança. Na Roma Medieval elas seduziam os cavaleiros<br />

templários para lhe escravizar. Esta energia espectral sonda nossas<br />

mentes durante os sonhos enquanto nos possui. Fátima não se<br />

conformou com minha rejeição e agora incorporava nas mulheres,<br />

inclusives nas clientes do meu trabalho. Era ela sim, eu conhecia seu<br />

jeito de falar, onde ameaçava:<br />

mim.<br />

– Você vai sofrer nojento! – Era o que minha patroa gritava para<br />

– Vai me ignorar mesmo? Vou te matar, já era pra você estar morto<br />

mesmo! – proferia comigo uma estranha velha na rua. Porém não sabia<br />

que suas ameaças eram válidas.<br />

Eu repulsava o sono dos justos acompanhado de minha esposa na<br />

cama. Era uma noite de intenso calor, o ambiente estava sendo<br />

refrigerado por um ventilador barulhento mas potente, eu ressonava<br />

sentindo a brisa suave das hélices alisarem minha pele despida quando<br />

um gelo intenso sobrepujou-me. Eu despertei sufocadíssimo com as<br />

garras do nefasto demônio cravadas em meu pescoço, Fátima tinha me<br />

imobilizado com todo seu poder espectral sobre mim e privando-me do<br />

oxigênio vital.<br />

– Chegou sua hora, seu lixo detestável! – sussurrou entre os dentes<br />

enquanto me esganava cada vez mais forte.<br />

Eu já estava sem nenhuma resistência quase desmaiando sem<br />

poder respirar, porém Fátima ofereceu-me uma última oportunidade para<br />

permanecer nesta Terra:<br />

– E agora como se sente? Você vai continuar me ignorando?<br />

O quê eu poderia fazer além de acenar negativamente com a<br />

cabeça e sucumbir desacordado. Quando abrir novamente meus olhos já<br />

101


estava num leito de hospital, minha mulher me disse que eu sofri um mal<br />

súbito com princípio de parada cardiorrespiratória.<br />

– Eu quero sair daqui. – falei para minha esposa com muita<br />

dificuldade. O ar atravessava minha traqueia causando muita ardência.<br />

– Você precisa de ajuda Edgar, pois está fraco demais!<br />

– É, eu sei...<br />

Agora que vocês conhecem minha obrigação de escrever, uma vez<br />

que sou escravizado por esta lástima, tenho que trocar de assunto já que<br />

ouço Fátima Succubu se aproximando...<br />

– O que esta digitando?<br />

– Por que você me atormenta, em vez de tentar ajudar algum pobre<br />

pelo mundo?<br />

– Suas ideias podem influenciar muita gente, logo fui incumbida<br />

de ser teu guia.<br />

– Como posso ter um demônio como guia? Um farol não pode<br />

emitir uma luz negra.<br />

– Quem lhe disse que sou um demônio? Entre as cores brancas e<br />

negras há outras colorações, até imperceptíveis aos olhos humanos. Você<br />

não gosta do azul? Eu talvez emita uma luz vermelha, logo nós dois<br />

juntos mostraremos a todos um brilho roxo. O que acha disso?<br />

102


DILIGÊNCIA DOS MORTOS<br />

"Ai da cidade ensanguentada! Ela está toda cheia de mentiras e de<br />

rapina; não se aparta dela o roubo. Estrépito de açoite há, e o barulho do ruído<br />

das rodas; e os cavalos atropelam, e carros vão saltando. O cavaleiro levanta a<br />

espada flamejante, como a lança relampejante, e ali haverá uma multidão de<br />

mortos, e abundância de cadáveres, e não terão fim os defuntos; tropeçarão<br />

nos seus corpos (Naum 3:1-3)"<br />

Num procedimento fracassado e três corpos agora estavam na frente do<br />

velho supermercado que oferecia no catálogo de ofertas contrafilé por nove e<br />

noventa e nove. A ação frustrada de um policial que estava ali para comprar<br />

cerveja, carvão e carne na sua folga acabou transformando seus doze anos de<br />

serviços prestados ao Estado em mais uma tragédia. Agora restava as viaturas<br />

– que chegaram minutos após os tiros – cobrir os corpos, preservar as<br />

evidencias, dar uma sensação de segurança para os demais clientes além de<br />

aguardar o caminhão do Instituto Médico Legal. Os parentes das vítimas<br />

eram mais eficientes na informação, pois chegaram antes dos repórteres dos<br />

telejornais da noite.<br />

A atendente de caixa estava em estado de choque, com a blusa da firma<br />

lavada em sangue e um buraco no ombro, aguardando o resgate. Era a mãe<br />

da atendente a mais desesperada de todos, apesar da hemorragia já ter parado<br />

de sair da ferida aberta e ver que sua caçula ainda estava consciente, clamava<br />

a Nossa Senhora que não deixasse mais uma trabalhadora morrer. Como uma<br />

cena teatral, um presépio de horrores estava formado em frente ao<br />

supermercado da economia, porém aquele era outro acontecimento que se<br />

tornava corriqueiro nas vidas pacatas daquelas pessoas.<br />

Se o policial Selmo não colocasse na cabeça que deveria sair naquela<br />

sexta-feira para comprar com antecedência os ingredientes do churrasco de<br />

domingo, talvez perderia a promoção de carnes, mas não teria flagrado dentro<br />

do comércio o cano trêmulo do revolver apontado na cara da atendente de<br />

103


caixa. Certamente ele também não iria aproveitar a distração e o nervosismo<br />

do ladrão para sacar sua pistola de dar voz de prisão. Se Selmo não saísse de<br />

casa para ir ao mercado, não seria alvejado com quatro tiros – dois pegaram<br />

no reboco da parede, outro furou uma lata de milho e o quarto atravessando<br />

seu pescoço. Ele não teria revidado já ao ouvir o primeiro disparo, fazendo<br />

pontaria certeira bem no peito do bandido que recuava para rua, disparando<br />

mais duas vezes e atingindo fatalmente a cabeça do cretino que caiu<br />

desfalecido na calçada. Tomado pela adrenalina e com falta de ar, porque o<br />

sangue da ferida em sua garganta dificultava sua respiração. Selmo foi ao<br />

encontro do ladrão, quando avistou um senhor fugindo pensou que fosse um<br />

comparsa e também queimou esta pessoa de tiros. Depois Selmo sucumbiu<br />

no meio-fio, afogado com seu próprio sangue. Três corpos agora estavam<br />

caídos na frente do velho supermercado. A ferida no ombro da atendente de<br />

caixa, seria função da perícia investigar quais das armas fez aquele estrago.<br />

Maldita oferta de carne...<br />

Maldita oferta de carnes humanas, que nos trás indiferença pela vida do<br />

semelhante. Nos tornamos invulneráveis ao medo ou a compaixão, algo que<br />

nos deixa cada vez mais individualistas e pouco cautelosos com a<br />

sobrevivência de nosso semelhante. A continuidade da existência humana.<br />

Maldito excesso de seres humanos na Terra que contamina toda sua<br />

superfície com seu excremento destruidor. A terra está saturada em devorar e<br />

decompor carne humana ao ponto de não suportar mais. A própria mãe Terra<br />

está nos negando água, conforto ou espaço para reproduzirmos.<br />

Maldita ganância humana! Será que existe um Reino dos Céus para<br />

nós, destruidores terrestre? Seremos julgados apenas por nossas ações<br />

individuais ou sofreremos também pelo coletivo inconsciente? As escrituras<br />

nos diz que a salvação é individual para cada ser, mas também não está<br />

escrito que “as más conversações corrompem os bons costumes”? Então<br />

estaremos todos desgraçados!<br />

Ali, em frente ao supermercado, estavam três corpos iluminados pelos<br />

últimos raios de luz natural do dia, esperando o IML. O Sol tocava o<br />

104


horizonte e deixava a atmosfera encarnada. Pássaros fugiam em revoadas a<br />

procura de esconderijos contra a noite que aproximava. As cores que se<br />

formavam no céu eram uma mistura de tonalidades avermelhadas. Foi<br />

quando o último animal alado conseguiu encontrar refúgio que a alma<br />

daqueles três corpos desprenderam-se. Agora os espíritos do policial, ladrão e<br />

do transeunte erguiam para firmar-se em pé. Apenas as três pessoas podiam<br />

avistar-se dali por diante, com se ambos transcendessem a uma outra<br />

dimensão, lugar intermediário entre dia e noite, um crepúsculo eternizado.<br />

Os três espíritos desencarnados tinham ciência do que estava<br />

acontecendo; então passaram a discutir entre eles nervosamente, buscando<br />

quem era o responsável por suas estadas naquela situação. O policial Selmo<br />

insultava o assaltante, enquanto era afrontado pelo outro individuo por tê-lo<br />

matado. Foi neste discurso aflorado que ambos ouviram um som que os<br />

oprimiu no mais intimo de suas consciências. Vinha do final da rua deserta,<br />

em suas direções, uma enorme nuvem negra que deixava turvo a pouca luz,<br />

sendo ecoada pelo som semelhante ao de mil soldados marchando ao<br />

encontro deles. Ambos olhavam o grande monstro que aproximava para<br />

buscar suas almas, eles agora observavam em silêncio. A imagem que viam<br />

era realmente impactante.<br />

Viram uma enorme carruagem escura. Semelhante uma diligência,<br />

igual aquelas do século XIX, da cor de mogno antigo, cheia de detalhes<br />

esculpidos na madeira. A condução era puxada por pessoas – mulheres,<br />

crianças, homens jovens, idosos, todo tipo de gente estava lá – presas por<br />

correntes fincadas com ganchos suas peles. Essas pessoas arrastavam a<br />

grande carruagem e apresentavam aparência de flagelados, com os pés<br />

descalços, usando trapos, ou até seminus, corpos encardidos pela poeira que<br />

levantavam, cabelos desgrenhados por lama e suor. Todos estavam com<br />

semblantes de muitíssima agonia. Suas pisadas cadenciadas produziam<br />

aquele som marcial ao arrastarem a enorme diligência. Inúmeros morcegos e<br />

corvos sobrevoavam os sofridos condutores arrancando com mordidas parte<br />

de sua pele para forçá-los a correr cada vez mais rápido. Grandes vozes<br />

105


misturavam-se àquela gente, algumas de choro, outras de murmúrio ou<br />

lamentação, porém nenhuma era de escárnio por tamanho sofrimento. A<br />

carruagem parou bem próximo dos três espíritos à frente do supermercado e<br />

os três viram a nuvem de poeira, morcegos, insetos e corvos ser sugados para<br />

baixo da grande condução. Na parte de trás agora se podia observar corpos<br />

humanos presos por grilhões, estavam todos mutilados, sendo arrastados pelo<br />

asfalto enquanto a condução se movimentava. Eles viram que apesar de<br />

estarem mutilados ali atrás, os corpos arrastados ainda mexiam em carne<br />

viva, pois a pele ficava pelo caminho. O cheiro que sangue coagulado,<br />

aglutinado ao suor daqueles, dava uma apavorante sensação de pânico aos<br />

três novos mortos que congelaram de medo.<br />

Medonho mesmo era o cocheiro, um ser muito alto que segurava todas<br />

as correntes como se fossem rédeas. Ele permanecia em pé sobre o teto da<br />

carruagem, coberto até a cabeça por um manto escuro. Ao posicionar o<br />

veículo na frente daquelas três pessoas, o ser de vestimenta preta deu um<br />

salto, parando na direção aqueles recém mortos – parecia mais uma levitação<br />

ou um voo do que um pulo. O condutor da diligência elevou suas mãos para<br />

retirar o capuz que encobria seu rosto. Eles viram uma face sem nenhuma<br />

cor, um albino, de traços finos no nariz, boca e queixo – não dando para<br />

distinguir se era homem ou mulher. Aquela cabeça; de cabelos brancos bem<br />

aparados e escovados que escondia as orelhas; voltou-se para os três a sua<br />

frente, causando arrepios em todos os sensores nervosos das almas. O<br />

cocheiro então falou:<br />

– Saudações, recém-chegados! Eu sou “Malak al-Maut Azrael” o<br />

último anjo a ser criado. Graças à rebeldia humana, pois, se não fosse a<br />

degradação do homem a mim não haveria nenhuma serventia. Tenho a<br />

incumbência de recolher e conduzir vossas imortais almas, onde<br />

verdadeiramente estão presas ao espírito do altíssimo, até serem entregues no<br />

grande dia do juízo final. Adianto que até aquele derradeiro momento tenho o<br />

dever de acompanhá-los, pois estou outorgado pela santíssima trindade. Ou<br />

106


seja... Eu sou a Morte! – e abrindo a portinhola da carruagem, saindo de lá<br />

grande quantidade de braços e corpos fantasmagóricos que tentavam fugir, a<br />

morte continuou – Quem quer ser o primeiro a embarcar?<br />

O policial Selmo, nem o ladrão, muito menos o transeunte se<br />

manifestaram. Azrael tomou a iniciativa de escolher. Ele olhou novamente<br />

para o ex-soldado do estado e falou:<br />

– Márcio Selmo de Oliveira, saiu do ventre da professora Maria do<br />

Carmo que também gerou outros dois filhos. Você sempre foi uma criança<br />

forte, saudável e inteligente. Já aos catorze anos conheceu os prazeres carnais<br />

com uma das muitas mulheres que passaram por sua vida. Passou grande<br />

parte de seus dias regados a bebidas, cigarros e proferindo palavras<br />

abomináveis. Entrou para a força policial, dando preferência a tropa de elite<br />

que matava por satisfação em exterminar marginais. Marginais iguais a você.<br />

Muitos das almas que estão aqui comigo foram trazidas por intermédio de<br />

tuas mãos. Casou-se e foi um bom marido, ótimo pai e um agradável vizinho.<br />

Entretanto, eu não estou incumbido de julgá-lo, apenas digo que você foi uma<br />

ferramenta para a sociedade e viveu muito bem. Aceita agora seu lugar nesta<br />

carruagem e passe pela portinhola aberta.<br />

Selmo tremeu o corpo, como querendo fugir, porém o anjo continuou:<br />

– Resistir só lhe trará mais dor. Entre como um soldado obediente que<br />

sempre foi.<br />

Ao encostar à entrada da carruagem, os braços que estavam para fora<br />

agarraram Selmo e – num grito de desespero – foi tragado para dentro da<br />

diligência. O anjo da morte voltou-se para o transeunte prosseguindo:<br />

– Bernardo Conceição da Costa, filho único da dona de casa Fátima<br />

Costa. Sempre esteve doente e com problemas respiratórios, sua mãe passou<br />

horas com você em hospitais e igrejas para alcançar a cura de seus males. Ela<br />

não resistiu a tamanho sofrimento e acabou sucumbindo, sendo seu espírito<br />

recolhido por mim quando você tinha doze anos. Daí em diante seu caráter<br />

107


passou a ser moldado de acordo com os preceitos bíblicos, fazendo de ti um<br />

homem de Deus. Conheceu uma única mulher com que casou e jamais se<br />

envolveu com coisas impuras. Você acha que é melhor do que os demais aqui<br />

dentro? Porém não estou incumbido de julgá-lo; se pensas que é superior aos<br />

seus semelhantes então seu lugar será na dianteira desta carruagem.<br />

Assim que o anjo falou, quatro pesadas correntes de aço enferrujado<br />

saíram da frente do veículo e se enrolaram pelo corpo do transeunte<br />

Bernardo. Agora ele somava aos seres fétidos que puxavam aquela pesada<br />

condução. A Morte olhou por fim o ladrão e disse:<br />

– Pedro José da Silva, saiu do ventre da voluptuosa e promíscua<br />

Márcia da Silva que também gerou outra criança. Cresceu sendo torturado<br />

injustamente por sua mãe e pelos amantes dela. Conheceu o sexo aos oito<br />

anos, ao ser violentado por seu padrasto. Vingou-se dele aos quinze, com<br />

vinte facadas em seu peito. Neste dia em diante você se perdeu no mundo de<br />

podridão e violência, roubando para manter-se. Além do policial Selmo e do<br />

seu padrasto, outra alma está aqui por intermédio de tuas mãos. Você foi um<br />

ser contaminante para a sociedade e viciou uma de suas namoradas, acabando<br />

ela por morrer de overdose. Lembra-se? Porém no teu último momento de<br />

vida clamou pela rendição de Jesus na Cruz e, como os assassinos Caim e<br />

Moises, ou como o ladrão crucificado junto a Cristo tu serás absolvido.<br />

Porém, eu não estou incumbido de julgá-lo, muito menos tenho misericórdia.<br />

Logo seu lugar nesta carruagem é sendo arrastado como um lixo humano.<br />

Ao ouvir isto, o assaltante Pedro correu para esquivar-se de sua posição<br />

na diligência. Azrael esticou seu braço e, como uma enorme foice, fincou<br />

suas garras nas vértebras do ladrão, sendo puxado para junto do veículo.<br />

Grilhões e algemas saíram para prendê-lo, fazendo com que seu corpo duro e<br />

imóvel caísse ao chão.<br />

Por fim a morte retornou a sua posição de condutor, segurando as<br />

rédeas onde agora também estava Bernardo a puxá-la. Saíram de baixo da<br />

carruagem uma nuvem de morcegos, corvos e insetos que passaram a<br />

108


arrancar pedaços das pessoas posicionadas na parte da frente – forçando-as a<br />

movimentar o veículo. Marcharam então todos, com um forte som das rodas,<br />

misturada a agonia daqueles que aguardavam o julgamento do Criador. O<br />

policial Selmo estava agora nos braços da mulher que morreu de overdose<br />

causada pelo assaltante Pedro, ela o acariciava em gratidão pois a jovem tinha<br />

sido viciada ainda nova; era Selmo seu vingador. Já o ladrão Pedro sofria<br />

com o atrito do asfalto em sua pele, outros corpos também mutilados ali<br />

tentavam subir sobre ele, queriam usá-lo de tapete.<br />

O tempo terrestre voltou a correr, anoitecia quando o caminhão do IML<br />

seguiu com os corpos recolhidos na frente do supermercado, no mesmo<br />

caminho que desapareceu a grande Diligência dos Mortos.<br />

109


CONFLITO DE ARUANDA<br />

Pela primeira vez a menstruação chegou para Rosana, esta jovem<br />

mulata que se preparava para dormir sobre a cama iluminada apenas pela<br />

luz do abajur, folheando uma revista para adolescentes e com dores de<br />

cólicas. Agora Rosana era uma moça. Sua avó, quando soube do fato<br />

comprou-lhe um presente – era a camisola nova, apenas um pretexto para<br />

a jovem visitá-la. Ao chegar na casa da avó, conhecida também pelo nome<br />

de Mãe Bentinha, a velha quis lhe benzer. Rosana fugiu as pressas, sem<br />

levar a roupa de dormir ainda recusando a tal reza, pois estava agora<br />

fazendo catecismo. Indo para a igreja e em breve teria a primeira<br />

comunhão. Ela não gostava dos costumes daquela preta velha com quem<br />

cresceu frequentando ambas os terreiros de macumba. Porém as intenções<br />

da Mãe Bentinha eram boas, porque quando as garotas iniciam seu ciclo<br />

menstrual uma enorme energia se desprende delas, atraindo míseras forças<br />

indesejáveis. Rosana cria agora num Cristo branco de olhos azuis, com<br />

cabelos loiros bem cacheados e de barba aparada. Para a adolescente,<br />

Jesus era fisicamente tão bonito que poderia ser capa da revista Capricho<br />

que lia.<br />

Antecipo o destino da linda mulata Rosana já neste segundo<br />

parágrafo revelando que, apesar dos anseios por um fim trágico e da<br />

insensatez desta inexperiente adolescente, ela não irá morrer. É<br />

angustiante o fato de criar um personagem, batizá-lo com um nome de<br />

alguém que já existe no mundo real, dar características e mostrar sua<br />

história para depois exterminá-lo. Isto se assemelha ao ato de amassar<br />

uma folha de papel, apertando com força nas mãos, até que a tinta se<br />

transforme em sangue, escorrendo pelos dedos. Criamos nossas heroínas<br />

esperançosos que elas sejam eternizadas através das gerações de leitores.<br />

Como a dissimulada Capitu do livro Don Casmurro ou a influenciável<br />

Luísa da obra O Primo Basílio; entretanto estas duas mulheres marcantes<br />

e memoráveis sucumbiram no final da história. Já Rosana ainda é muito<br />

110


nova e tem muito que aprender. Ela sofrerá, – antes que a noite termine –<br />

sentirá medo e dor, porém ficará mais forte e sábia.<br />

Se um escritor tem tamanha estima por seus personagens, imagine<br />

então a importância da cada um de nós para Deus. Será realmente que Ele<br />

não liga para nosso desejo de existir? Deve ser por isto que os sensatos<br />

gregos criaram vários deuses; para não só dividirem as responsabilidades<br />

com também a culpa pela morte daqueles que amamos.<br />

Olhando ainda para os deuses gregos, tente reparar a relação que<br />

eles têm com os Orixás, eles são tão semelhantes ao ponto de<br />

acreditarmos que são as mesmas entidades. Exemplos disto são as de<br />

Olokun, que é o orixá dos mares, tem as mesmas características de<br />

Poseidon; o protetor da justiça Xangô também controla os trovões como<br />

Zeus; Omulu domina a morte como o deus Hades; Atena não é a<br />

conhecedora da consciência humana assim como Iemanjá? Se seguirmos<br />

por este raciocínio o nome de Iansã nos vem à cabeça para representar<br />

Afrodite, a deusa da sensualidade e do prazer. Talvez os deuses gregos<br />

tenham se cansado da clausura do Monte Olimpo e migraram para uma<br />

floresta invisível sete vezes maior que a Amazônia. Migraram para<br />

Aruanda. Eram estas as divindades que a vó de Rosana cultuava, Mãe<br />

Bentinha cria na verdadeira força destes deuses negros.<br />

No final desta conclusão antagônica, retornamos ao quarto de<br />

Rosana que já tinha pegado no sono. Ela dormia bem arejada com poucas<br />

roupas, apenas de calcinha e camiseta, dormia após tomar comprimidos<br />

para diminuírem as incômodas dores de cólicas. A mulata virgem<br />

descansava em seu repouso revigorante porque amanhã iria bem cedinho à<br />

missa na catedral no centro da cidade. Era lá que adorava estar com seus<br />

amigos de crisma.<br />

Na pouca iluminação do abajur, a moça sentiu frio. Neste mesmo<br />

tempo a lâmpada de cabeceira apagou-se, deixando todo o quarto soturno.<br />

A moça instintivamente encolheu suas pernas sobre a cama para se<br />

aquecer, quando passou a ser despertada com um pouco de cócegas na<br />

111


planta dos pés. Estas cócegas se transformaram em afagos nos seus<br />

tornozelos e logo já eram lascivas carícias em suas pernas. Rosana a<br />

princípio imaginou que fosse apenas um sonho, porém eram bem firmes e<br />

pesadas as mãos que arranhavam suas coxas e subiam cada vez mais. Ao<br />

abrir os olhos, a jovem negra viu apenas a escuridão onde num ato<br />

desesperado usou o tato das mãos para enxergar. Ela sentiu que uma<br />

pessoa estava junto à cama e tentava subir em seu corpo; Rosana deu um<br />

berro do mais profundo assombro, esticando o braço direito para alcançar<br />

o interruptor do abajur. Aquele ser ameaçador tentou imobilizá-la<br />

colocando todo peso do corpo sobre ela. Pela primeira vez a virgem temia<br />

pela sua virtude onde, esticando um pouco mais seu braço, alcançou o fio<br />

da lâmpada na cabeceira; puxava o fio tentando trazer o abajur para perto<br />

dela. Finalmente ela encosta no interruptor da luz, mas a lâmpada não<br />

acende.<br />

A moça estava agora perdida, com alguém que abusaria dela em<br />

meio às trevas! Ela buscava em seus poucos pensamentos alguma reza,<br />

uma oração protetora daquelas impressas nos livros religiosos. Não<br />

lembrou de nenhuma. Agora sentia não duas mãos lhe tocando, mas várias<br />

com dedos grandes e de garras afiadas; sentia falanges arranharem seu<br />

seio sobre a camiseta – cadê seu anjo da guarda para protegê-la? Rosana<br />

tentou rezar o Pai Nosso, porém fugia de sua memória – outra garra<br />

tentava puxar a calcinha que protegia seu sexo. O pânico era tamanho para<br />

a fraca e pequena jovem que não conseguia mais gritar, pois outra mão<br />

espremia sua garganta, limitando sua respiração. Ela lembrou da sua vó,<br />

da tentativa fracassada de benzê-la. lembrou de uma música que ouvia da<br />

Mão Bentinha quando criança – era um cântico dos terreiros de<br />

candomblé. Rosana com voz fraca entoou:<br />

“Se meu pai é Ogum,<br />

Vencedor de demanda...”<br />

112


A criatura sobre ela congelou:<br />

“...Quando vem de Aruanda<br />

É pra salvar filhos de Umbanda.”<br />

Então a lâmpada do abajur ligou.<br />

Duas sombras quase humanas puderam ser vistas pela jovem,<br />

transparente como se fossem fumaças, com fagulhas avermelhadas no<br />

lugar dos olhos e membros muito largos. Um estava em seu corpo e outro<br />

do seu lado lhe segurando, contudo, depois que clareou com a pouca luz<br />

do abajur, os bichos cruéis escorregaram para baixo da cama. Rosana<br />

liberta de toda violência contra ela encolheu-se sentada, agarrando o<br />

travesseiro e chorou convulsivamente. Ela tinha sido deflorada por<br />

demônio, espíritos imundos que lhe tocaram intimamente. Antes fosse um<br />

ladrão, pois assim saberia quem a estava invadindo.<br />

Rosana parou ao avistar um brilho no teto, uma claridade cintilante<br />

de onde descia um homem de pele escura. Ele era um negro muito forte<br />

que a olhava com revolta, porém Rosana não teve medo porque os olhos<br />

mostravam uma intimidade paterna também. Ele era Ogum, o mesmo que<br />

estava estampado no quadro na casa de sua avó. Aquele orixá que<br />

sobrevive na adversidade revoltou-se com tamanha perversidade contra a<br />

moça e deu um urro anunciando uma grande peleja. O deus negro, que<br />

ignoram pudor, apenas portava um tecido azul que cruzava pelo tronco<br />

para guardar sua espada, igual um selvagem índio. Ele ergueu a cama com<br />

seu braço de bronze envelhecido e, lá de baixo, retirou as covardes<br />

pestilências, esmagando ambos pelas pernas quando com a outra mão<br />

soltou o leito da menina e içou sua arma, atravessando o dois pela lâmina<br />

afiada como navalha. Os demônios esfarelaram-se igual a poeira no chão.<br />

Ogum agora poderia cuidar da garota.<br />

O deus da guerra olhou para o lado e gritou por Yewá; ela em<br />

segundos saiu da parede. Yewá era uma grande mulher preta também<br />

113


despida, seus cabelos eram compridos e cacheados adornados com vários<br />

enfeites brilhantes; tinha os seios grandes e firmes, da mesma forma que<br />

suas pernas eram largas como um tronco de árvore. A santa negra olhou<br />

para a donzela deflorada, tirando dos cabelos algumas folhas de ervas que<br />

posicionou no ventre da moça. Um terceiro orixá entrou no quarto.<br />

Chegou a senhora sábia Nanã com uma larga saia branca e uma faixa azul<br />

no quadril cobrindo até os seios; ela trazia numa das mãos um bocado de<br />

lama e águas da chuva na outra. Nanã despejou aqueles dois elementos no<br />

sexo de Rosana onde Yewá cobriu com as folhas verdes, como um<br />

emplasto.<br />

Agora Rosana tinha restabelecido sua virgindade, graças aquelas<br />

duas deusas africanas. Ogum sorria com satisfação e agradecimento a<br />

ambas. Nanã, com uma voz grave e aveludada que só uma cantora de cor<br />

tem, questionou:<br />

– Qual é seu nome, menininha?<br />

– Ro... Rosana. – responde timidamente a jovem mulata.<br />

Ao ouvir o nome dela Nanã conclui:<br />

– A partir de agora seu nome será Nova África porque três Orixás<br />

pelejaram em sua causa, restabelecendo vossa honra e lhe confortando.<br />

Sua vó reza muito por você sabia?<br />

– Muito obrigada Dona! – respondeu agora Nova África, sem saber<br />

o nome daquela sábia santa.<br />

Nova África, após olhar os Orixás partirem, levantou-se para ligar<br />

na parede a luz do quarto. Ela enxergou que seus lençóis estavam<br />

manchados com água, barro, folhas e sangue. A mulata virgem retirou sua<br />

camiseta, ficando completamente nua, juntou sua roupa suja com as<br />

cobertas, embrulhando tudo em uma trouxa. Nova África posicionou-se de<br />

joelhos sobre a cama onde rezou para Deus. Ela agora buscava a<br />

intercessão dos Santos Católicos, pedindo perdão a Jesus porque deuses<br />

negros não existem, achava que estava apenas tendo uma alucinação!<br />

114


O ESPECTRO NA ESCOLA<br />

"A fúria impetuosa da rajada que entrava quase nos elevou do solo.<br />

Era, na verdade, uma noite tempestuosa, embora asperamente bela, uma<br />

noite estranhamente singular, no seu terror e na sua beleza."<br />

Edgar Allan Poe<br />

Segundo o que são ensinados nas aulas de física e química, tudo que<br />

vemos ou sentimos é formado por matéria. Temos recordações agradáveis<br />

quando inspiramos o aroma da areia molhada pela chuva de uma grande<br />

tempestade misturada com o odor de maresia no litoral. Este cheiro chega<br />

ao nariz empurrado pelos vendavais quentes que vem do noroeste<br />

seguindo em direção ao oceano, onde alcançam o equilíbrio. A sensação<br />

de um tenebroso temporal na praia é percebida pelo fato do oxigênio,<br />

dióxido de carbono e outros gases empurrarem moléculas aromáticas<br />

contra nosso corpo através do ar em movimento. Entretanto tal odor<br />

agradável e ao mesmo tempo assustador não pode ser registrado por<br />

nenhum aparelho eletrônico. Esta é uma sensação que só permaneça<br />

registrados em nossas mentes. Mas quando a matéria deixa de existir<br />

ficando apenas uma energia, como um potente relâmpago, será que pode<br />

ser fotografado? Isto é visto como uma inversão incomoda, uma vez que<br />

não podemos registrar visualmente certas matérias mas uma grande<br />

energia acumulada vira linda imagem nas páginas dos livros de ciência. E<br />

o acumulo de energia de um espírito materializado também pode ser<br />

fotografado? Pois foi exatamente o que aconteceu num sábado de outono<br />

dentro de uma escola perto da praia.<br />

Um grupo com cinco jovens, que também estudavam física e<br />

química, integrantes da fanfarra que se preparavam para a manutenção dos<br />

instrumentos do colégio e planejar a convocação de todos os alunos para<br />

integrarem a banda que deveria estar afinada até 7 de Setembro. Eles<br />

aguardavam a caseira abrir o portão e discutiam uma escala de horários<br />

115


para a divulgação durante os dias de aulas. Antônio, sujeito brincalhão,<br />

como todo gordo era muito simpático; ele já tinha concluído o ensino<br />

médio, por isto era um experiente líder das liras. Ali também estavam às<br />

irmãs Paula e Vanessa, a primeira coreografa porta-estandarte e a outra,<br />

que cursava o primeiro ano, namorava Diego. O baterista Diego tocava no<br />

grupo de louvor de sua igreja, logo não poderia ensaiar aos domingos e<br />

aproveitava aquele dia de sábado para namorar mais do que treinar. Já o<br />

último do grupo chamava-se Sérgio, o mais estudioso e o que sofria com<br />

as brincadeiras de Antônio.<br />

Seguiram então os cinco mais a caseira pelo enorme corredor onde<br />

dava acesso as salas de aulas. O som dos seus diálogos se propagavam<br />

pela excelente acústica da escola vazia iluminada apenas em parte pela<br />

claridade do dia que atravessava os vidros encardidos das janelas. Na<br />

metade do caminho havia uma saída que dava para um modesto pátio sujo<br />

por folhas secas que desprendiam de uma enorme árvore no centro; após<br />

atravessarem o jardim e a quadra ambos entraram em outro anexo. Na<br />

segunda construção encontrava-se – na parte térrea – banheiro dos alunos,<br />

depósito de limpeza, uma escadaria protegida por grades, refeitório e a<br />

cozinha. O cadeado que dava para os lances de escada foi destrancado<br />

pela moradora que depois partiu para sua casa no outro lado do terreno.<br />

Além da biblioteca, no segundo piso também havia um pequeno<br />

escritório, mais parecido com um depósito empoeirado, lugar onde o<br />

Grêmio fazia suas reuniões, mantinha uma mesa de ping-pong montada e<br />

estavam guardados os instrumentos da fanfarra.<br />

A formação daquele grupo era bem recente, eles tinham pouco<br />

entrosamento mas se completavam, como várias engrenagens trabalhando<br />

de maneira sincronizada, agindo em conjunto faziam a máquina funcionar.<br />

Eles já se conheciam do 7 de Setembro do ano anterior onde mantiveram<br />

contato para uma mobilização concretizada agora. Há uma outra definição<br />

para aqueles jovens, pois eles não eram peças de uma engrenagem, muito<br />

menos uma máquina ou algo mecânico. A complexidade dos sentimentos<br />

116


aflorados com características marcante daquelas pessoas mostrava que<br />

eles formavam um único corpo com várias cabeças. Antônio contribui<br />

para o corpo com seu espírito de mobilização, auxiliado por sua poderosa<br />

voz persuasiva; Diego era o mais esperançoso com uma bagagem<br />

religiosa, certamente manteria a perseverança nos ensaios; já Sérgio tinha<br />

a incumbência em registrar todos os treinamentos com fotografias para<br />

publicar num diário da internet; a atraente Paula é dedicada e muito<br />

disciplinada; por outro lado Vanessa era totalmente o oposto da irmã nos<br />

sentimentos e só estava ali para permanecer próxima do namorado pois<br />

morria de ciúmes dele. Pelo menos era esta a impressão inicial que um<br />

teria do outro.<br />

Ao entrarem na sala Diego pegou uma das raquetes e bolinha –<br />

deixando a silhueta dos objetos retirados mais limpo e esverdeado que o<br />

restante da mesa – desafiando Sérgio para uma partida. O jovem nerd<br />

aceitou como uma afronta porque daquele era o único esporte que<br />

praticava bem, dando um sorriso sarcástico ao pegar a outra raquete.<br />

Enquanto os dois rapazes se gladiavam, Antônio e as duas moças iam<br />

atrás de panos úmidos para limpar os instrumentos empoeirados.<br />

Quando todas as caixas e tambores estavam limpos, Antônio ficou<br />

revoltado pois os outros ainda jogavam na mesa e ordenou enraivecido:<br />

– Aêh!, vocês não vão ajudar? – jogando um dos panos imundos em<br />

Sérgio e completando – Limpa esta mesa para colocarmos as liras.<br />

O outro sentiu o tecido bater em suas costas e ficar pendurado no<br />

ombro, manchando sua camiseta branca. Ao notar a camisa encardida o<br />

garoto de imediato largou a raquete e retirou a roupa para limpá-la<br />

enquanto protestava:<br />

– Você é ridículo, olha o que fez com minha camiseta! Esta mancha<br />

não vai sair mais!<br />

– Ridículo são vocês dois que brincam em vez de trabalhar. – aponta<br />

para a mochila do jovem nerd e continua – Trouxe a máquina fotográfica<br />

para ficar de enfeite, não tirou nenhuma foto ainda.<br />

117


Sérgio retira o aparelho da mochila enquanto exclama:<br />

– A primeira foto que vou tirar então será da minha camiseta<br />

manchada por um babaca muito do sem graça!<br />

Vanessa então aproxima-se de Diego, em tom intimidador ameaça<br />

Antônio:<br />

– O fato deles não nos ajudarem não é motivo para você maltratálos.<br />

– e se requebrando com uma das mãos na cintura completa – Talvez<br />

você seja um ridículo mesmo e se continuar assim vai trabalhar sozinho.<br />

O clima na sala esfriou de tal forma que um silêncio propagou, sem<br />

nenhuma palavra agora eles trabalhavam cada um no seu canto. Quando<br />

Antônio não suportou mais e resolveu descer, por pouco tempo, porque<br />

em menos de três minutos ele já estava de volta pedindo:<br />

– Alguém aí tem papel higiênico? Os banheiros estão sem.<br />

Ambos riram com o pedido do gordo chato.<br />

– Vai no banheiro dos professores, lá é mais limpo e deve ter papel.<br />

Falou Paula sorrindo.<br />

Após Antônio sair, Vanessa maliciosamente pega a máquina<br />

fotográfico de Sérgio e fala:<br />

– Já teremos a primeira foto de nossos afazeres com a seguinte<br />

legenda: “Gordão trabalhando na louça do vaso sanitário”. Saindo atrás de<br />

Antônio no banheiro.<br />

Os outros três permaneceram limpando as liras por um tempo,<br />

quando um grito de horror feminino ecoou por toda escola e ambos<br />

precipitarem-se para ver o quê estava acontecendo. Encontraram Vanessa<br />

nervosamente agachada no canto da parede do corredor e Antônio<br />

tentando erguê-la enquanto a moça trêmula gaguejava:<br />

– Eu vi, eu vi! Es... estava lá! Eu vi!!!<br />

Calma Vanessa, – tranquilizava Diego enquanto aproxima da<br />

namorada e questiona – o quê você viu?<br />

Uma... uma mulher de vestido preto. Era um fantasma, um<br />

fantasma! Eu vi!<br />

118


Sérgio então seguiu para o local onde a moça apontava à procura de<br />

alguém, alegando:<br />

– Vanessa, não ninguém aqui.<br />

– Eu vi Sérgio! Eu tirei foto dele com sua máquina. Olha, olha, é<br />

verdade. Eu vi!<br />

Levaram Vanessa para o escritório dos instrumentos e, com<br />

semblantes perturbador, viram a fotografia da aparição de vestido preto<br />

que a moça registrou. Todos ficaram aterrorizados com a imagem que<br />

passava de mão em mão; decidido não permanecer nem mais um segundo<br />

naquela escola. Chamaram a caseira explicando que iam comer alguma<br />

coisa e retornavam. Mentira, pois eles seguiram em direção a praia. Todos<br />

se entreolhavam como cúmplices, intrigados com o mistério e riam<br />

nervosamente:<br />

– Deixa eu ver a foto de novo? – Pediu Diego para Sérgio.<br />

– A máquina fotográfica está com a Vanessa.<br />

– Comigo não, cadê a máquina gordão?<br />

– Não está comigo, tá com você Paula?<br />

– Não! Sérgio você não deixou na escola?<br />

– Nossa, ficou sobre a mesa de ping-pong. Vamos buscar? – disse<br />

Sérgio colocando a mão na cabeça.<br />

Ninguém quis se prontificar para acompanhar Sérgio e ainda o<br />

desafiaram a buscá-la, pois ele era o mais cético de todos.<br />

– Sérgio, você tem que ir buscar o seu aparelho, temos que colocar<br />

na internet. Vai lá buscar sua máquina. Pediu Vanessa abraçada ao<br />

namorado.<br />

Sérgio deu sete passos em direção à escola, porém recuou alegando<br />

temerosamente:<br />

– Não quero ir sozinho, tenho medo desse tipo de coisa.<br />

Os cinco caminharam pela calçada da orla para depois virarem na<br />

direção da avenida e partindo cada um para sua casa. Ficou a promessa de<br />

na próxima segunda-feira pegarem a câmera digital, quando a escola<br />

119


estaria cheia de alunos.<br />

Sérgio chegou na sua casa e, em pouco tempo, já estava na cama<br />

deitado. Não consegui dormir apenas pensando na imagem da mulher<br />

impressas na máquina fotográfica, infelizmente seu equipamento não<br />

estava ali para ser analisado no computador. Foi quando teve a ideia de<br />

buscar pela internet por imagens semelhantes, desta forma desvendaria o<br />

mistério ou talvez desmascararia Vanessa. Ele sentou-se na frente do<br />

computador, digitando as palavras chaves para a pesquisa. Primeiro<br />

digitou “fantasma na escola”, não havia nenhuma fotografia idêntica<br />

sequer; “espíritos dentro da escola”; “Ghost in school”; pesquisou por<br />

vídeos e nada. Após vários minutos de buscas e quase desistindo dedilhou<br />

no teclado: “Espectro na Escola” em seguida Enter... Lá estava a imagem<br />

idêntica, sem nenhuma modificação ampliada no monitor. Algo muito<br />

estranho era que na fotografia também estava o corredor de sua escola<br />

sem nenhuma montagem. O jovem inclinou-se para olhar cada detalhe,<br />

sem sinais de manipulação. Cenário, objetos, luzes, sobras, observava o<br />

contorno da roupa negra e por último olhou o rosto. Notou que havia um<br />

pouco de contraste que assemelhava as afeições dos olhos e de um nariz;<br />

ele então colou o rosto na tela e repentinamente a cabeça daquele espectro<br />

mexeu.<br />

Sérgio deu um pulo para trás... Ainda sentado na cadeira esfregou os<br />

olhos, percebendo que era uma ilusão de suas retinas; mas quem colocou a<br />

foto de sua escola na internet? Ele olhou novamente para o monitor e<br />

agora estava só o corredor vazio, sem ninguém na gravura. Como? O que<br />

estava acontecendo? Quando as paredes do quarto começaram a sacudir<br />

produzindo um barulho muito grave, semelhante a trovões de uma<br />

poderosa onda batendo no rochedo. Todas as estruturas de bloco e reboco<br />

das paredes desfragmentaram em terra e Sérgio se viu, com todas as<br />

mobílias do cômodo, ao ar livre. Era algo impossível naquela noite, mas<br />

Sérgio estava junto com sua cama, guarda-roupa, tapete e cadeira na areia<br />

da praia. Ele olhou em volta notando estar sozinho, sob uma espeça<br />

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camada de nuvens no céu. Era uma eminente tempestade que deixava o<br />

ambiente ainda mais em trevas, dava para ele ver os clarões dos<br />

relâmpagos e ouvir a confusão de sons das ondas misturada aos estrondos<br />

dos trovões.<br />

O nerd olhou para um flash que refletiu na água e lá estava<br />

flutuando o espírito que desaparecera do computador lhe observando. Era<br />

realmente algo assustador aquela aparição que estendia uma das mãos<br />

para o garoto como se estivesse pedindo algo. Sérgio notou a máquina<br />

fotográfica estava no seu colo, rapidamente ele conectou o equipamento<br />

ao computador para tentar transferir a imagem do espectro novamente<br />

para a internet. Ao olhar o espírito da mulher que flutuava sobre a margem<br />

das águas viu que ela ainda estava com o braço estendido, só que agora<br />

fazia um aceno negativo com a cabeça. Um gigantesco raio atravessou o<br />

monitor fazendo saltar várias fagulhas em curto, atingindo seu peito,<br />

queimando todo seu corpo que tremia numa convulsão enrijecida.<br />

Ele permaneceu estático sobre a cama com os olhos voltados para o<br />

teto, não estava paralisado, poderia se mexer a hora que bem entendesse,<br />

mas não queria porque tinha com medo. Seu peito doía só pelo fato do seu<br />

coração estar batendo; como se não houvesse espaço suficiente para os<br />

músculos cardíacos se movimentarem, machucando seu pulmão a cada<br />

palpitação, fazendo com que tudo fosse saltar do seu tórax. A visão do<br />

sonho circulava em seus olhos, semelhante uma projeção nas paredes<br />

tomadas pela falta de luz. Sérgio buscava o controle de sua realidade,<br />

tentava acalmar-se respirando de maneira bem calma. As visões então<br />

dissiparam gradativamente como nuvens após o temporal, seus ouvidos se<br />

abriram e ele percebia sair daquele pesadelo onde retornava ao quarto.<br />

Alguns sussurros femininos, bem lá longe, os guiaram no seu<br />

autocontrole; eram diálogos que ouviam em volume baixo e abafado que<br />

gradativamente ficavam nítidos até perceber que eram sua mãe no outro<br />

quarto conversando com seu pai que se preparava para trabalhar. Sérgio<br />

não levantou, muito menos ascendeu à luz para não incomodar sua<br />

121


família. Permaneceu deitado, acordado até a mulher se calar, seu pai sair e<br />

o clarear o dia.<br />

O domingo passou para o jovem nerd de maneira congelada. Sem<br />

ânimo algum deixou que nada acontecesse. Apenas esperou que aquele dia<br />

fosse embora o mais rápido possível. Aguardava as horas passarem,<br />

afundado no sofá, olhando sua irmã mais nova apertar os botões do<br />

controle remoto e trocar os canais de desenho. Ele estava apático, com<br />

poucos pensamentos para processar; tinha esquecido de escovar os dentes,<br />

comeu mal, falou pouco à mesa, não foi tomar banho, apenas permaneceu<br />

estático olhando para a irmãzinha trocar os canais.<br />

Sua mãe já estava servindo o jantar quando reparou que havia algo<br />

de errado com o rapaz:<br />

– Porque você passou o dia tão murchinho, Sérgio? – a mulher<br />

questionou, tocando com as mãos na testa e pescoço do jovem para<br />

examiná-lo, concluindo em seguida – Está se sentido mal?<br />

– Nada não, apenas estou meio pra baixo com um acontecimento<br />

inesperado. Tive até um pesadelo nesta manhã.<br />

– Estão mexendo com você novamente na escola? – Perguntou a<br />

mulher, recordando alguns anos antes, quando os garotos da oitava série o<br />

humilhavam pelo fato dele ser o “Queridinho da Professora”; continuando<br />

– Eu posso ir lá e conversar com a diretora.<br />

– Eu não gostaria de falar sobre isto por enquanto. Só não é nada<br />

grave.<br />

– Sérgio, eu me preocupo com você. Principalmente quando faz<br />

mistérios, além de tudo seu pai...<br />

O garoto interrompeu o princípio de discurso porque aquele não era<br />

o momento para ele ouvir uma palestra e tentou encerrar o assunto falando<br />

de forma impaciente:<br />

– Não é nada de grave mãe e ninguém está me provocando. O que<br />

sinto são coisas estranha que ainda não posso entender, a senhora já deve<br />

ter passado por isto quando era mais jovem.<br />

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– Deve ser porque você está perdendo “o controle”. – iniciando,<br />

mesmo assim a palestra – A gente sempre planeja tudo com antecipação<br />

para nossas vidas fluir de maneira harmoniosa, porém isto nos trás uma<br />

rotina que desanima. Às vezes tirar proveito das situações inesperadas nos<br />

faz evoluir e torna nossas vidas mais relevantes, nos traz sensações<br />

imprevistas que podem ser felizes ou tristes porém emocionantes.<br />

– Entendo... Sérgio disse as últimas palavras daquele chato<br />

domingo, indo para seu quarto.<br />

Ele teve o mesmo pesadelo da noite anterior, a praia deserta e escura<br />

encoberta pelo temporal, os raios, trovões, ondas, sua máquina fotográfica<br />

e a aparição de vestido preto. O fantasma também estava flutuando a beira<br />

do mar, com uma das mãos estendidas pedindo algo. Sérgio, sentado na<br />

cadeira e com os pés na areia, com a câmera digital no colo desta vez<br />

tentou mudar o desfecho do sonho pegando o equipamento para mostrar à<br />

assombração. O jovem notou que agora ela acenava positivamente a<br />

cabeça. Ele se coloca de pé e lança com toda força do seu braço a máquina<br />

fotográfica ao encontro do fantasma. Na metade da trajetória do aparelho<br />

que voava na direção da aparição que o mesmo relâmpago de ontem<br />

cortou o céu, destruindo a máquina que continha o registro fotográfico. A<br />

energia desprendida do impacto foi tão intensa que um clarão ofuscou sua<br />

visão; seguida de um estrondo. Quando Sérgio conseguiu abrir os olhos, já<br />

tinha amanhecido e estava na hora de se arrumar para a escola.<br />

Ele chegou à cozinha, já com o uniforme e mochila nas costas; o<br />

café estava pronto na garrafa térmica junto com o pão de forma e queijo –<br />

sua mãe fizera mais cedo para seu pai, que já tinha saído para o trabalho.<br />

O jovem então comeu rapidamente, enquanto apenas ouvia a televisão que<br />

sua mãe na sala ligou. No telejornal da manhã mostra os acontecimentos<br />

do final da semana com assaltos, trânsito, espetáculos teatrais e agora<br />

mostrava que o dia permaneceria encoberto com algumas pancadas de<br />

chuva durante o dia. Sérgio saiu para a escola, com um plano traçado<br />

assim que recuperasse sua câmera digital; passou pela sala se despedindo<br />

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da mulher acomodada no sofá que o alertou:<br />

– Tchau! Pegou o guarda-chuva? Olha que vai chover!<br />

Assim que entrou no colégio repleto por adolescentes já estava perto<br />

de tocar o sinal. Ele seguiu em direção a sala do Grêmio, onde esqueceu o<br />

aparelho e quando passou pelo pátio cruzou com o casal Vanessa e Diego.<br />

Eles estavam com muita pressa e nem lhe cumprimentaram. O nerd<br />

chegou às escadarias e notou que a caseira fechava as grades que davam<br />

para as escadas. Sérgio pediu para ela esperar mais um pouco porque<br />

queria pegar um aparelho que esquecera no último sábado. A mulher então<br />

respondeu:<br />

– É a máquina fotográfica? Um casal acabou de pegar, mocinha<br />

disse que era dela.<br />

Sérgio correu pelo pátio, esquivando-se dos outros alunos que<br />

estavam em seu caminho para tentar alcançar os dois. Correu pelo<br />

corredor ouvindo os gritos de advertência da inspetora e, ao chegar no<br />

portão de saída, se chocou com Paula.<br />

– Viu para onde foi sua irmã? Ela está com minha máquina com a<br />

fotografia.<br />

– Ela acabou de passar por mim. Estava com Diego e seguiram em<br />

direção a praia.<br />

Neste instante Antônio aparece para divulgar os ensaios da fanfarra<br />

como combinado:<br />

– Por favor Paula, nós precisamos apagar aquela fotografia! Disse<br />

Sérgio nervosamente.<br />

– Mas o quê está se passando com você?<br />

– Venham comigo que te explico! Disse Sérgio puxou os dois pelo<br />

braço.<br />

Chegaram na praia ambos sem fôlego pela corrida, Antônio ficara<br />

um pouco para trás. Pararam para respirar, avistando o casal sentado num<br />

banco mexendo a câmera distraidamente. Sérgio seguiu na direção dos<br />

dois, porém Vanessa percebeu a aproximação do nerd, pegou tudo que era<br />

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seu do banco e fugiu pela areia.<br />

Aquela eram as primeiras horas da manhã, havia um denso teto de<br />

nuvens escuras no céu que deixava o dia mais escuro, anunciando a chuva<br />

que chegaria em instantes. O vento soprava em direção do mar e Vanessa<br />

corria com dificuldades pela areia fofa que levantava a cada pisada. Sérgio<br />

tentou alcançá-la caminhando, ele observou que a moça ganhava<br />

distância, mas não se desesperou, pois o vento a empurrava para a água.<br />

Em pouco tempo ela teria que parar. Antes mesmo do esperado, Vanessa<br />

tropeçou na areia e caiu de cara no chão, se sujando toda. Neste mesmo<br />

instante um trovão estrondoso anunciou a tormenta.<br />

– Afaste de mim! – gritou Vanessa cuspindo areia que continuou –<br />

Eu só quero pegar a foto que tirei, é meu direito, foi eu que fotografei!<br />

– Vanessa, estamos lidando com forças ocultas, – disse Sérgio de<br />

maneira calma enquanto aproximava da garota que arrancava suas<br />

sandálias e tentava levantar, mas era atrapalhada pela areia acolchoada e<br />

ventos fortes. Antônio, Diego e Paula também chegavam atrás do jovem<br />

nerd e outro trovão soou mais perto deles. A atmosfera estava<br />

assustadoramente pesada dando uma sensação de agonia em Sérgio que<br />

continuou sua frase – por favor me escuta, temos que apagar esta<br />

fotografia.<br />

Vanessa apoiou uma das mãos no chão e com a outra, segurando a<br />

câmera eletrônica, tentava se equilibra. Ela levantou-se ainda<br />

cambaleante, ergueu os braços, tentando colocar seu corpo de forma ereta<br />

quando gritou:<br />

– Esta foto é minha, eu fotografei! Todos têm que saber, tenho que<br />

publicar na internet... Vanessa não conseguiu terminar pois com os braços<br />

erguidos se transformou num para raio, um relâmpago entrou pela sua<br />

mão fechada e explodiu em seu corpo.<br />

Duas semanas passaram. Lá estavam na escola mãe e a irmã da<br />

morta, a rotina de ambas haviam mudado após a tragédia. A médica legista<br />

confortou as duas ao dizer que a morte da menina foi instantânea, porém<br />

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no enterro a defunta apresentava uma aparência macabra com uma<br />

expressão de horror no rosto, dentes trincados e a mão com pedaços<br />

derretidos da máquina presa no tecido da pele carbonizada. Elas tentavam<br />

agora retornar a normalidade. Como aquele dia que estava limpo e claro,<br />

com o Sol radiante e suave brisa que movimentava as folhas dos<br />

coqueiros. Na praia agora havia alguns turistas contemplado a paisagem,<br />

banhavam-se nas águas mornas do mar, esportista que corriam pela orla<br />

desviando dos casais de namorados que tomavam sorvete nos quiosques.<br />

Paula chegou na escola com a mãe para pedir transferência, pois não<br />

tinha mais condições de se concentrar nos estudos sem a presença da irmã<br />

que sempre estivera lá. Talvez numa escola nova ela pudesse concluir seus<br />

estudos. Ambas aguardavam o atendimento do lado de fora da secretaria<br />

no largo corredor, quando Paula arregalou os olhos para o teto, apontando<br />

naquela direção grita:<br />

– Mãe ali, está gravado!!! – ela mostrava uma das câmeras de<br />

monitoramento enquanto repetia – Está gravado mãe, a senhora vai ver<br />

que não estou mentindo! Temos que ver as gravações, tá gravado!!!<br />

A moça tremia e desesperadamente apontava para a câmera<br />

pendurada no teto, as lágrimas já brotava dos olhos de Paula e as portas<br />

das salas de aula eram abertas por alunos que começaram sair para verem<br />

de onde vinham os gritos. Sua mãe tentou acalmá-la dizendo:<br />

– Calma filha, eu acredito em você. Nós vamos ver as gravações. –<br />

voltando para uma das atendentes da secretaria continuou – Cadê a<br />

diretora? Ela tem que nos mostrar as gravações...<br />

Foi no monitor de vídeo na sala da diretora que ambas viram<br />

perplexas as imagens daquele fatídico sábado.<br />

– Minha Nossa Senhora! Exclamou a diretora com a mão segurando<br />

o queixo caído, enquanto recuava para tentar afastar-se da imagem.<br />

O vídeo mostrava uma mulher de vestido preto flutuando no<br />

corredor, quando no canto inferior aparecia Vanessa apontando a máquina<br />

fotográfica para o fantasma que balançava negativamente a cabeça; em<br />

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seguida um clarão ocupa toda a tela que fica esbranquiçada, retornando a<br />

normalidade gradativamente. Vanessa agora estava agachada num canto<br />

da parede enquanto o corpo gordo de Antônio se aproximava para acudila.<br />

– Quero uma cópia deste vídeo. Falou a mãe para a diretora de<br />

forma assustadora enquanto abraçava a filha sobrevivente.<br />

Mãe e filha se entreolham onde lá fora, naquele lindo céu surgiu<br />

uma pequena nuvem negra.<br />

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