Escatologia Cristã (EC) - Professor: Geraldo De Mori SJ ...
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DEPARTAMENTO DE TEOLOGIA<br />
<strong>Escatologia</strong> Cristã (<strong>EC</strong>) - <strong>Professor</strong>: <strong>Geraldo</strong> <strong>De</strong> <strong>Mori</strong> <strong>SJ</strong><br />
Programação 2012<br />
<strong>Escatologia</strong> histórica<br />
A escatologia da pessoa ajuda-nos a pensar o fim de cada ser humano enquanto<br />
unidade corpo-alma, matéria-espírito, imanência-transcendência, natureza-graça. Esses<br />
diferentes binômios que constituem a unidade dual do nosso ser não revelam tudo de nossa<br />
existência. Esta é também relação com outros humanos e relação com o mundo dos objetos<br />
transformados pela cultura e pela técnica e com o mundo enquanto natureza que nos<br />
precede e que forma o pressuposto mesmo de nossa vida e de nossa existência. É a esses<br />
aspectos que dedicaremos os próximos blocos temáticos de nossa reflexão sistemática<br />
sobre a escatologia cristã. Na análise do processo de formação desta escatologia nas<br />
Escrituras e na história, vimos os principais elementos que compõem as categorias do que<br />
chamamos escatologia histórica e escatologia cósmica. Alguns autores não fazem esta<br />
distinção, reagrupando tais categorias no interior da escatologia geral. Como a segunda<br />
metado do século XX foi marcada pela tomada de consciência da importância da<br />
escatologia na reflexão sobre a história e sobre o cosmos, achamos bom distinguir o que a<br />
maioria dos tratados apresenta num só bloco. Como já dissemos, essas distinções visam<br />
uma maior clarificação, não consituindo verdadeiras rupturas pois a escatologia da pessoa,<br />
a escatologia histórica e a escatologia cósmica existem somente em inter-relações mútuas.<br />
1. As bases bíblicas da escatologia histórica<br />
O ponto de partida da escatologia histórica é a promessa e a esperança que a<br />
mesma suscita. Como vimos, é a partir do esquema promessa-cumprimento que Israel<br />
constitui-se como povo, instaurando com esse esquema uma ruptura com a visão de mundo<br />
própria à maioria das culturas humanas. Esta ruptura não é tão radical como nos querem<br />
fazer crer certas abordagens simplistas que opõem a visão cíclica do cosmos à visão linear.<br />
Na verdade, toda visão de mundo comporta o cíclico, responsável pelo ritmo e baseado na<br />
repetição dos mesmos fenômenos (estações do ano, festas, ciclos lunar e solar, etc.), e o<br />
linear, responsável pelo novo, pelo inaudito, pela esperança. Na maioria das culturas porém<br />
imperou o cíclico enquanto forma mentis ao passo que em Israel a promessa fazia intervir<br />
eventos que podiam interromper o ritmo inscrito na natureza e nas relações sociais. Ao<br />
prometer a terra a um casal condenado à fatalidade da esterilidade e da errância, <strong>De</strong>us o<br />
transformou em paradigma de uma nova maneira de situar-se diante da realidade e da<br />
história. Nada é escrito de antemão. Tudo depende da aventura da relação livre com o <strong>De</strong>us<br />
da promessa e da aliança. Ao mesmo tempo que a promessa indica o futuro de seu<br />
cumprimento, ou seja o fim enquanto termo e finalidade, ela revela também que tudo é<br />
dado, ou seja tudo é dom do <strong>De</strong>us que se revela, tendo portanto início nele, o Criador de<br />
todas as coisas. No esquema cíclico, qualquer ponto pode ser o começo e o fim da<br />
realidade. Na verdade, tudo parece remeter ao eterno retorno do mesmo. Nada de novo<br />
pode mudar o ritmo fatal que está escrito ou prescrito desde a eternidade da decisão ou da<br />
imobilidade divina. A revelação do <strong>De</strong>us da promessa vai articular protologia e escatologia,<br />
quebrando assim o ciclo do eterno retorno, dando ao cosmos e à história um começo e um<br />
fim, e lançando-os na aventura de uma relação tecida e alimentada pela esperança.<br />
O esquema promessa-cumprimento vai progressivamente sendo retomado e<br />
aprofundado no decorrer da história de Israel. Os profetas vão inscrever sobre ele a<br />
urgência do fim imposto pelo anúncio do dia de YHWH, conduzindo com isso toda a história<br />
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a uma espécie de espera iminente de transformação e de julgamento. As catástrofes da<br />
queda de Samaria e de Jerusalém e o exílio corroboraram os oráculos proféticos, abrindo ao<br />
mesmo tempo a esperança na vinda do messias e alimentando a expectativa de uma<br />
intervenção divina que faria irromper o reinado e a glória divina de YHWH. O retorno do<br />
exílio e a reconstrução do templo foram ainda marcados pelo esquema promessacumprimento<br />
mas o objeto desse esquema interiorizou-se e espiritualizou-se. Israel perdeu<br />
sua autonomia política, pois passou a depender dos diferentes impérios que se sucederam à<br />
dominação babilônica: persa, grego, romano, e readquiriu uma consciência aguda de sua<br />
eleição, reapropriando-se da história passada através da releitura e da edição de suas<br />
Escrituras canônicas. A perseguição do período helenista e a revolta dos Macabeus<br />
imprimiu sobre as Escrituras a marca do termo ou do fim, que se inscreveu sobre o conjunto<br />
dos escritos vétero-testamentários através da literatura e da mentalidade apocalíptica. A<br />
figura do Filho do homem e a preocupação com a iminência do fim alimentarão desde então a<br />
esperança de uma intervenção definitiva e final de <strong>De</strong>us na história. É essa perspectiva que<br />
dominará as leituras da história das correntes apocalípticas do judaísmo no tempo de Jesus.<br />
Jesus recapitula todas as promessas do AT que nele encontram a plenitude de seu<br />
cumprimento. Ele é o eleito por excelência, aquele que cumpre plenamente a vontade do<br />
<strong>De</strong>us da aliança. Ele é o messias prometido, o juiz escatológico do dia de YHWH. Nele<br />
irrompem o reinado e a glória de <strong>De</strong>us. Por ele o mundo antigo chega a seu termo e a história<br />
aparece na sua verdade e no seu sentido mais plenos. Sua palavra e sua ação anunciando<br />
a proximidade do reino de <strong>De</strong>us são o veículo através do qual todas as categorias que dão<br />
sentido e direção à historia são atualizadas e resignificadas. A tensão própria à categoria<br />
reino de <strong>De</strong>us articula e dá sentido às diferentes dimensões do tempo. Fe fato, o passado da<br />
promessa adquire seu verdadeiro rumo no presente daquele que a anuncia e a realiza. Ao<br />
dizer “o reino de <strong>De</strong>us está próximo” e ao convidar seus ouvintes à conversão e à aceitação<br />
desta boa notícia, Jesus investe o presente de uma densidade única. O cumprimento das<br />
promessas do passado adquire nova significação e relevância. O que ja tinha sido realizado<br />
é chamado a se confrontar com aquele que é o reino em pessoa. O que tinha sido frustrado<br />
por má vontade e incapacidade adquire em Jesus a plenitude para a qual tinha sido feita. O<br />
presente do servidor do reino deve tornar-s realidade na história toda inteira. Como no AT<br />
porém, <strong>De</strong>us não obriga o homem a deixar-se modelar pela dinâmica do reino. Ele propõe<br />
um caminho de conversão à boa nova que é o deixá-Lo reinar nos homens e mulheres que<br />
o aceitam. Essa aventura é a da liberdade no dialogo constante com o <strong>De</strong>us que quer reinar<br />
na história humana. Por isso, o presente daquele que aceita tal proposta é um voltar-se<br />
contínuo para o <strong>De</strong>us do reino que se aproxima. O futuro aparece então como a dimensão<br />
constitutiva do reino anunciado e inaugurado por Jesus. Como vimos, é a tensão entre um<br />
“já” e um “ainda não” que define a escatologia néo-testamentaria da história. Esta tensão<br />
está presente na atividade e na pregação de Jesus, como também no evento que revela a<br />
plenitude de sua missão: a cruz e a ressurreição. Em Jesus, <strong>De</strong>us se diz e se revela<br />
inteiramente ao homem, dizendo e revelando ao mesmo tempo o homem a si mesmo. Nele<br />
a história e o cosmos adquirem uma significação única. O homem, a história e o cosmos<br />
seguem porém ainda seu próprio curso. <strong>De</strong>us não os obriga à cristificação, mas apresentalhes<br />
o modelo crístico como o único que pode levá-los à plenitude de sentido. O processo de<br />
conversão do homem, da história e do cosmos ao Cristo é ele também feito da tensão<br />
inerente à escatologia do reino que se aproxima. No agora da acolhida deste reino, <strong>De</strong>us se<br />
faz presente, lançando aquele que acolhe tal anúncio na aventura da esperança que o<br />
mesmo suscita. Como no Crudificado-Ressuscitado, o reino é ao mesmo tempo revelado e<br />
escondido. Tudo está dito e realizado e tudo porta ainda as marcas do não dito e do<br />
irrealizado. O reino de <strong>De</strong>us deve fermentar a massa da história para transformá-la segundo<br />
a desmesura de seu mais perfeito herauta. É essa a perspectiva que parece desdobrar-se<br />
no ínterim que separa a ressurreição da ascensão-pentecostes ou na espera pela parusia<br />
que caracteriza de forma acentuada as gerações que compuseram o NT. A vinda do messias<br />
e a irrupção do reino de <strong>De</strong>us deveriam inaugurar o fim do cosmos e da história. Jesus veio,<br />
anunciou a proximidade do reino, foi reconhecido como messias pelos seus, mas o cosmos<br />
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não foi destruído e a história constinuou seu curso. A expectativa de sua segunda vinda e o<br />
envio do Espírito Santo vão dar a seus discípulos outras categorias para agir e esperar. O<br />
evento Cristo guarda sua unicidade e importância singulares. É através dele que os homens<br />
são chamados a interpretarem sua existência histórica e cósmica. O dom do Espírito dá aos<br />
discípulos o poder de re-atualizarem o anúncio do Crucificado-Ressuscitado. Ao anúncio do<br />
reino de <strong>De</strong>us que se faz próximo, segue-se o anúncio da ressurreição do herauta do reino.<br />
A comunidade dos que acolhem este anúncio torna-se o novo sinal escatológico da presença<br />
do reino no mundo e na história. Esta comunidade não é ela mesma o reino mas sua<br />
servidora e seu sinal privilegiado. Nela também atualiza-se a tensão constitutiva do anúncio<br />
de Jesus. O passado do Crucificado-Ressuscitado torna-se atualidade hic et nunc na acolhida<br />
da Palavra que anuncia a boa nova do reino e que é ela mesma esta boa nova. Este passado<br />
é também transignificado nos sinais sacramentais que o celebram e no testemunho de vida<br />
dos que se apropriam dos gestos e das atitudes de Jesus. A acolhida da Palavra, a<br />
celebração dos sacramentos e a práxis do reino não se esgotam porém no aqui e no agora<br />
mas voltam-se para o futuro da esperança que inauguram. O Espírito assegura a retranscrição<br />
da memória do Crucificado-Ressuscitado ao longo da história, tornando possível a<br />
reatualização do anúncio do reino e a transformação da história e do cosmos a partir da<br />
desmesura instaurada pelo Cristo. A espera da parusia mostra que o reino não se esgota<br />
em nenhuma de suas atualizações na história, não se confundido portanto com a mesma.<br />
Esta perspectiva imprime à história e ao cosmos a dinâmica da esperança. O cristão é no<br />
mundo o sinal da esperança do reino como também o servidor e o testemunho da espera da<br />
cristificação do cosmos e da história. Sua esperança deve ser ativa, seu serviço e seu<br />
testemunho inventivos. O reino anunciado e o Cristo esperado não o deixam acomodar-se e<br />
não lhe permitem tampouco de identificar as conquistas de sua ação e de seu testemunho<br />
com a totalidade do reino e com a cristificação da realidade. Ao longo de sua história porém,<br />
o cristianismo será sempre tentado a esquecer ou a mal interpretar essa tensão constitutiva<br />
das categorias que sifnificam e dão sentido à sua inserção no seio da história humana.<br />
2. Alguns modelos de interpretação da escatologia histórica<br />
A história que se seguiu à ressurreição do Cristo conheceu o surgimento de uma<br />
escatologia histórica pensada em termos milenaristas ou messiânicos e em termos<br />
apocalípticos. O milenarismo evidencia o objetivo da história e a apocalíptica anuncia seu<br />
fim. Na escatologia milenarista podemos distinguir o milenarismo histórico, que interpreta o<br />
presente como o “reino dos mil anos” do Cristo e como a última idade da humanidade, e o<br />
milenarismo escatológico, que espera o reino do Cristo como aquilo que representará um<br />
futuro outro que o presente e que liga este futuro ao fim deste mundo e à nova criação de<br />
todas as coisas. Na escatologia apocalíptica podemos também distinguir a interpretação<br />
apocalíptica dos últimos tempos, que vê a destruição agindo no seio da história humana, e a<br />
interpretação apocalíptica que desnuda os poderes desta história no julgamento de <strong>De</strong>us<br />
que prepara a nova criação de todas as coisas. Trata-se na verdade de acenturar ora o “já”<br />
da escatologia néo-testamentária ou a tensão que lhe é constitutiva, o seja a do “ainda não”.<br />
2.1. <strong>Escatologia</strong> messiânica<br />
O livro de Daniel e o apocalipse de são João são os principais responsáveis pela<br />
interpretação milenarista da história. Dn 7 fala que o reino do altíssimo será dado aos santos<br />
e Ap 20 diz que antes da segunda vinda do Cristo haverá um reino de paz que durará mil<br />
anos. Videntes, sonhadores e entusiastas se apropriaram destas ideias ao longo da história.<br />
O reino dos mil anos conduziu homens e mulheres a tudo deixar e a ir a seu encontro.<br />
Mártires sofreram e morreram pelo reino de mil anos. Homens e mulheres foram perseguidos,<br />
banidos e assassinados por causa deste mesmo reino milenarista. Por um lado, a história do<br />
mundo cristão se confunde com uma luta pelo reino de mil anos (Norman Cohn). Esta<br />
espera é presente, em sua forma puramente religiosa, nas seitas que tomam distância com<br />
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elação ao mundo, como é o caso dos adventistas, dos mórmons e das testemunhas de<br />
Jeová. Esta ideia é presente na consciência dos que crêem serem encarregados de uma<br />
missão, como é o caso da obra missionária da Igreja diante dos povos pagãos. Ela existe<br />
sob a forma do império cristão que subjuga os povos e empreende a dominação do mundo.<br />
Ela existe sob a forma do restauracionismo cristão que espera o reino de mil anos onde<br />
judeus e cristãos serão reunidos em Sion. Messianismos religiosos, políticos e eclesiásticos<br />
foram alimentados com esta ideia. Como vimos na primeira parte de nosso curso, a Igreja<br />
condenou o milenarismo já nos primeiros séculos de sua história, o que porém não impediu<br />
seu ressurgimento de forma explícita, na idade média (Joaquim de Fiori) ou implícita, nas<br />
formações político-eclesiais da cristandade antiga e nas ideologias seculares da modernidade.<br />
a. Pré-milenarismo e messianismo judeu<br />
A espera do reino de mil anos é chamada quiliasmo segundo o grego e milenarismo<br />
segundo o latim. No uso corrente impuseram-se os termos messianismo e messiânico.<br />
Estudiosos norte-americanos fazem a distinção entre pré-milenarismo, crença segundo a<br />
qual o reino de mil anos representa um período que se situa no futuro, posterior à segunda<br />
vinda de Cristo, pós-milenarismo, crença segundo a qual o reino de mil anos é um período da<br />
história anterior ao retorno do Cristo, e a-milenarismo, que é a negação de todo milenarismo.<br />
Às vezes nega-se todo milênio futuro, mas toma-se um grande período do passado ou do<br />
presente como sendo o milênio. O mais frequente no entanto é que nesse caso a dialética<br />
tempo-eternidade toma o lugar do dinamismo histórico. A história do cristianismo é a história<br />
de uma esperança que se cumpriu antes do termo num milenarismo presente. Não é a<br />
decepção o maior problema do cristianismo durante dois mil anos mas o cumprimento.<br />
Como indica o termo messianismo, as raízes da esperança milenarista encontram-se no AT<br />
e nos escritos judaicos. No AT, trata-se da esperança teo-política na instauração do reino de<br />
<strong>De</strong>us que porá fim aos impérios mundiais (Dn 2 e 7). Este reino pode ser apresentado como<br />
um reino de paz messiânica para as nações tendo como centro Sion, mas também como o<br />
reino eterno do Filho do homem em benefício de todos os homens (Dn 7). O messianismo<br />
ulterior ao judaísmo pode limitar-se ao fato que um dia o messias abolirá a galouth, ou seja<br />
a existência judaica no exílio, ou o messianismo universalista que implica todos os povos. O<br />
sionismo religioso interpretou o retorno dos judeus do exílio em termos messiânicos. Na<br />
fusão cultural entre judaísmo e helenismo, a esperança messiânica combinou-se igualmente<br />
com a ideia grega da idade de ouro, a idade da felicidade em que se consegue tudo o que<br />
as outras idades da história não conseguiram. <strong>De</strong>sde o começo então, dois sonhos se<br />
juntaram : o do reino milenar do Cristo e o da idade de ouro do mundo. A origem do número<br />
simbólico 1000 acha-se em Ez 38,8: “numerosos dias”, retomados pelos rabinos para<br />
explicar a história do mundo de Gn 1 a partir do Sl 90,4: “mil anos são a teus olhos como um<br />
dia”. O reino de mil anos seria a última era do mundo antes do sábado eterno de <strong>De</strong>us na<br />
nova criação. A senhoria do messias faz parte da história do mundo. A nova criação de todas<br />
as coisas que começa com o julgamento final vem em seguida somente. Essas respostas<br />
messiânicas de Israel referem-se às suas crises de fé face às catástrofes teo-políticas e à<br />
experiência do exílio. Elas dão uma resposta às questões opressivas que se põem: por que<br />
os justos devem sofrer tanto e por que os ímpios proliferam? Onde está a justiça de <strong>De</strong>us?<br />
b. Milenarismo cristão<br />
Na Igreja pré-constantiniana, o pré-milenarismo predominava na escatologia cristã.<br />
Essa espera milenarista própria à fé no retorno do Cristo é uma escatologia dos mártires,<br />
sendo predominante no tempo da perseguição dos cristão no Império romano. Ela era uma<br />
das razões pelas quais muitos cristãos, dos quais Euzébio de Cezareia, saudaram a virada<br />
constantiniana como a passagem dos sofrimentos com o Cristo ao reino com o Cristo, e<br />
como o começo do reino de mil anos. Assim que o Império romano deixou se ser a besta<br />
dos abismos para tornar-se o imperium christianum e que o cristianismo perseguido tornou-<br />
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se a religião predominante, o milenarismo transformou-se em presente: o “imperium sacrum”<br />
já é o reino dos mil anos de Ap 20 e a monarquia divina universal de Dn 2 e 7. A salvação e<br />
a senhoria fundiram-se e tornaram-se um. Veio então a missão entre os povos pela cruz e<br />
pela espada e a submissão dos mesmos ao imperium christianum. Nenhuma esperança<br />
aberta ao futuro pode ser tolerada quando se considera que já agora se vive na esperança<br />
cumprida. Outra forma de milenarismo no presente nasceu depois da queda de Roma, na<br />
parte ocidental do Império. Tyconius e Agostinho interpretaram então o tempo do reino de<br />
mil anos como sendo o tempo da Igreja que vai da ascensão do Cristo até seu retorno. O<br />
batismo seria a primeira ressurreição. O reino dos santos iria da primeira até a segunda<br />
vinda do Cristo. Através da Igreja, Cristo exerce já agora a realeza da qual fala Ap 20.<br />
<strong>De</strong>pois da passagem dos mil anos, compreendidos de modo cronológico e literal, crises<br />
apocalípticas se produziram. Elas se referiam à maneira de situar-se na história da<br />
salvação, seja no império cristão, seja na Igreja dominante. O pós-milenarismo difundiu-se<br />
na Europa. O que vem depois do millenium? Satan será solto de novo, Gog e Magog vão<br />
lutar contra o cristianismo e a cidade santa. A apocalíptica pós-milenarista dominou os<br />
espíritos e as representações no crepúsculo da Idade Média. <strong>De</strong>pois do fim do millenium,<br />
vêm as tribulações do fim dos tempos, o combate final entre o Cristo e o anti-Cristo e, em<br />
seguida, o último dia, o do julgamento universal. No fim da Idade média, encontramo-nos em<br />
presença de uma escatologia pós-milenarista e de uma interpretação do presente meramente<br />
apocalíptica. Os Reformadores também estavam convencidos de que o millenium era uma<br />
idade da história situada no passado e que esta idade tinha tomado fim quando tornou-se<br />
manifesto que o papa era o anti-Cristo. Pode-se assim compreender porque Lutero pensava<br />
viver no fim dos tempos e está implicado numa luta contra Roma que era uma luta contra o<br />
anti-Cristo, não vendo nada mais diante dele a não ser o último dia, a ressurreição geral dos<br />
mortos e o grande julgamento universal. As condenações protestantes do milenarismo são<br />
condenações do pré-milenarismo (cf. Confissão de Augsburgo e Confissão Helvética).<br />
c. O renascimento da escatologia messinânica depois da Reforma<br />
Os pós-milenaristas protestantes determinavam sua posição baseados no milenarismo<br />
político ou no milenarismo eclesiástico. Se eles se referiam ao millenium político do Cristo,<br />
eles calculavam os mil anos a partir de Constantino (324) e situavam o fim em 1324. Da<br />
mesma forma que houve um tempo dos mártires cristãos com a viragem constantiniana, da<br />
mesma maneira houve um tempo dos mártires depois de 1324, quando Wiclif e Jan Hus<br />
foram perseguidos de condenados. Os sinais do anti-Cristo tinham se levantado no Império<br />
cristão. Outros faziam a ligação entre a luta contra as conquistas do Islã e as invasões dos<br />
molgóis no império cristão e a luta contra Gog e Magog nos últimos tempos. Para os<br />
protestantes da Europa ocidental, o tempo da Reforma e o que se seguiu à mesma foram os<br />
da luta eclesiástica e política contra o anti-Cristo de Roma. O naufrágio da armada católica<br />
em 1588 fez da Inglaterra a nação eleita nesta luta. Quando so pós-milenaristas protestantes<br />
se referiam ao millenium eclesial, eles calculavam os mil anos a partir da morte e da<br />
ressurreição de Cristo em 33 e chegavam ao ano 1033. Eles datavam a apostasia papal do<br />
pontificado de Silvestre II. <strong>De</strong>sde então duas Igrejas lutavam entre si: a do Cristo e a do anti-<br />
Cristo, a perseguida e a perseguidora. A nova época dos mártires vai até o fim do mundo.<br />
Com o renascimento do milenarismo depois da reforma, o espírito de Joaquim de Fiori vai<br />
também conhecer um novo vigor. Suas obras foram reimprimidas pela primeira vez pelos<br />
anabatistas. Uma vaga filosemita vai também ter lugar na Holanda e na Inglaterra do séc.<br />
XVII. Na Alemanha, o renascimento do milenarismo começou na universidade reformada de<br />
Herborn, levando a um primeiro esboço de teologia da esperança no séc. XVIII. Até a<br />
revolução francesa, o messianismo aberto ao mundo, orientado para um futuro positivo,<br />
predominava nos movimentos pietistas. Na Inglaterra e nos Estados Unidos a interpretação<br />
profética da Bíblia feita no séc. XVII deu nascimento a uma apocalíptica anti-moderna e<br />
fundamentalista. A Bíblia aparece nesse tipo de interpretação como predição e a história<br />
universal como cumprimento dessas predições. A Bíblia é a Palavra de <strong>De</strong>us e ela é por isso<br />
sem erro. Todas as suas predições realizam-se cedo ou tarde. Esta nova apocalíptica é<br />
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difundida até hoje nos USA através de Institutos bíblicos, das conferências proféticas e dos<br />
anúncios do fim do mundo em todos os jornais. <strong>De</strong>sde Ronald Reagan esse tipo de<br />
interpretação combina o fundamentalismo e a preparação de um Harmaguedon nuclear.<br />
2.2. Milenarismo político: o santo Império<br />
O primeiro cumprimento da esperança messiânica no cristianismo foi de natureza<br />
política. A viragem constantiniana transformou a escatologia dos mártires (pós-milenarista)<br />
numa teologia imperialista milenarista (pré-milenarista). Da viragem constantiniana nasce, no<br />
Oriente, o bizantinismo e o tsarismo e, no Ocidente, o ideal teo-político do santo Império que<br />
teria vigência até o fim dos tempos (Carlos Magno). Esse imperialismo cristão se perpetua<br />
até hoje quando falamos de “cristianismo”, “civilização cristã”, “era cristã” ou quando<br />
secularizamos tais termos e falamos de “mundo moderno”, “tempos modernos”, “civilização<br />
técnica e científica”. Em todas essas expressões encontramos a ideia de um cumprimento<br />
político da esperança messiânica no advento do reino de paz de mil anos do Cristo, da<br />
idade de ouro da humanidade e do sábado da natureza do fim dos tempos. Euzébio de<br />
Cezareia foi o primeiro a formular a teologia do imperium christianum. Para ele, o império<br />
romano tornado cristão não era nada mais nada menos que o reino universal do Cristo.<br />
a. Milenarismo político: o santo Império<br />
A pax romana, começada por Augusto e acabada por Constantino, é a realização da<br />
pax messiânica e do “reino de mil anos”. Roma perdeu então o rosto de cidade oposta a<br />
<strong>De</strong>us e aos cristãos, do qual fala Ap 13, e tornou-se uma potência inscrita na história da<br />
salvação chamada a realizar o reino de <strong>De</strong>us sobre a terra. A cidade apocalíptica dos ímpios<br />
tornou-se a cidade da salvação eterna. Começou assim a doutrina teo-política da cidade<br />
santa: Roma, Bizâncio, Moscou. A monarquia do único imperador romano tornou-se uma<br />
garantia para a unidade do império e recebeu uma legitimação religiosa. Isso foi realizado<br />
com a ajuda do monoteísmo cristão, segundo o qual à unica monarquia do céu corresponde<br />
a única monarquia de César: “um só <strong>De</strong>us, um só logos, um só imperador”. A vocação<br />
apocalíptica deste império é de impedir o fim do mundo e de neutralizar Satan. A cruz deixa<br />
de ser o símbolo do Gólgota para se transformar no símbolo da vitória de Constantino sobre<br />
Mexêncio. O santo Império assim inaugurado passa a ser considerado como o objetivo último<br />
do plano divino para as nações e por isso mesmo, como o cumprimento da história universal.<br />
A pretensão deste império não era só de dominar mas igualmente de salvar pela<br />
verdadeira fé. Ele vai por isso realizar a dominação e a conversão dos povos conduzindo-os<br />
à submissão. A monarquia divina era então considerada como imitatio <strong>De</strong>i e dotada de um<br />
explendor sobrenatural. Este absolutismo autocrático imprimiu sua marca ao sistema e à<br />
história políticas de Bizâncio, continuando, após a queda de Constantinopla em 1453, até<br />
1917 na nova Roma, através da autocracia dos Tsares russos de Moscou. Para a teologia<br />
ortodoxa, a fusão da Igreja com o império tornava possível o mundo cristão, que era seu<br />
ponto de partida e ao qual ela se referia. Trata-se de um organismo particular no qual nem a<br />
Igreja nem o Estado tinham existência própria susceptível de ser distinguidas uma da outra.<br />
b. Cristianismo milenarista e missão sob o sinal da violência<br />
A transformação da Igreja cristã numa religião imperial levou ao nascimento e ao<br />
desenvolvimento do monaquismo. Nele se vivia o que as igrejas não podiam mais fornecer:<br />
uma vida comum no seguimento de Jesus, a liberdade diante dos bens e da consideração,<br />
uma vida de contemplação e de amor ao próximo. Sem o monaquismo, as igrejas cristãs<br />
teriam se transformado em religião política do império cristão, esquecendo a cruz do Cristo e<br />
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a liberdade da fé. Enquanto o mundo cristão em geral buscava realizar o reino messiânico<br />
do Cristo no império cristão, a cristandade das ordens religiosas salvaguardava a reserva<br />
escatológica diante dos poderes deste mundo. Até quando durará o santo Império? Até o fim<br />
do mundo. Para exprimir isso, a teologia imperial desenvolveu a ideia da translatio imperii,<br />
ou seja a transferência de um povo a outro até a aparição do anti-Cristo. Para implantar o<br />
poder do santo império a fé cristã tinha que ser implantada em toda parte. Daí a urgência<br />
das missões de cristianização na antiguidade (eslavos, balticos, saxões), na era moderna<br />
(América Latina) e contemporânea (África, Ásia, Oceania), como também as cruzadas e a<br />
luta pela conquista da Terra Santa das mãos dos infiéis que precede o retorno do Cristo.<br />
2.3. Milenarismo político: nação eleita<br />
Outra forma de cumprimento político da esperança milenarista é a ideia de nação<br />
destinada a salvar o mundo. <strong>De</strong>sde o fim do império romano da nação alemã, existe em<br />
quase todos os povos europeus um nacionalismo sublimado em religião. É o caso do<br />
messianismo político de Hitler, caricatura alemã desta ideia, do mito da nação salvadora dos<br />
poloneses e dos sérvios. Nos USA é onde este mito mais se desenvolveu nos últimos séculos.<br />
2.4. Milenarismo eclesial: mãe e mestra dos povos<br />
O milenarismo político do império constantiniano foi desfeito no Ocidente pelos<br />
assaltos dos germanos contra Roma e sua conquista pelos visigodos em 410. Esta queda<br />
do santo império no Ocidente teve como consequência o reforço considerável dos papas no<br />
Ocidente e uma escatologia do além voltada para o cumprimento das aspirações religosas<br />
no céu. A ideia cristã do império foi transferida do imperador cristão ao papa. Não é mais o<br />
santo imperador mas o santo Padre que, a partir de Gelásio I, representa, como pontífice<br />
máximo, o reino de <strong>De</strong>us sobre a terra e o império cristão diante de <strong>De</strong>us. O papas tornamse<br />
os sucessores de Pedro e dos césares. O império entendido como Igreja em Bizâncio<br />
torna-se Igreja compreendida como império em Roma. Não é o santo império mas a santa<br />
Igreja que leva a salvação aos povos. É por isso que ela deve ser reconhecida e dotada de<br />
privilégios como mãe e mestra dos povos. O centralismo político do imperium romanum<br />
torna-se centralismo eclesial de Roma. A cidade dos papas torna-se cidade santa. Roma<br />
passa a ser o centro do reino de paz universal a vir e o garante da idade de ouro. Ela deixa<br />
de ser a cidade apocalíptica dos sacrilégios ímpios para vira a cidade da salvacão eterna.<br />
2.5. O milenarismo da mudança de época: o nascimento dos tempos modernos<br />
a partir do espírito da esperança messiânica<br />
Raízes da modernidade: renascimento que faz do homem a medida de todas as<br />
coisas; reforma que coloca o acento sobre o caráter subjetivo da fé que justifica. Além disso,<br />
podemos também notar na mesma época dois elans concretos significativos da Europa em<br />
direção à modernidade: 1. a descoberta e a conquista da América, que faz com que a razão<br />
vença o mito, levando à cristianização e à colonização e dando à Europa as fontes necessárias<br />
a seus sistema econômico mercantilista e capitalista; 2. a empresa científica e técnica de<br />
dominação da natureza, que reduz a alma do mundo à escravidão, desencantando o mundo<br />
e tornando o homem mestre e proprietário da natureza. O quadro de interpretação religiosa<br />
desta dupla tomada de poder da civilização europeia sobre o mundo foi fornecido pela<br />
esperança messiânica segundo a qual os santos reinarão sobre o mundo durante mil anos<br />
com o Cristo, que eles julgarão os povos e que este reino messiânico será igualmente a<br />
última idade, a idade de ouro da humanidade, antes do fim do mundo. Agora podia ser<br />
cumprido o que tinha sido prometido durante tanto tempo. Foi com esse pathos messiânico<br />
que a modernidade foi saudada e batizada. O que Joaquim de Fiori tinha profetizado se<br />
realiza agora. As Luzes são a terceira idade: a do Espírito. Agora se realiza a dominação<br />
dos homens sobre a terra. A teologia profética e o messianismo pietista são a fonte da fé no<br />
7
progresso e dos ideais humanitários das Luzes na Alemanha. Segundo Lessing: a revelação<br />
é educação à razão e à moralidade, e ela torna-se inútil quando a razão discerne ela mesma<br />
o verdadeiro e o bem. Segundo ele, o reino do espírito inaugura-se agora. Estamos na idade<br />
da humanidade que tornou-se adulta. Ela corresponde ao reino de mil anos do Cristo e de<br />
seus santos dos últimos dias. Kant também compreende a história do desenvolvimento do<br />
gênero humano em termos de tempos últimos. Ele via na revolução francesa um sinal<br />
histórico da disposição moral da humanidade à progredir para o melhor, um sinal dos<br />
tempos escatológicos. Para ele, o milenarismo consiste na unificação política perfeita da<br />
espécie humana, formando uma sociedade das nações e um estado com as dimensões da<br />
humanidade que traria a paz perpétua. A unificação política da espécie humana é o desígnio<br />
da natureza e a causa final da criação ela mesma. O momento da entrada do reino de <strong>De</strong>us<br />
na história, Kant o vê na passagem progressiva da fé da Igreja à religião universal da razão.<br />
Para Fichte, Schelling e Hegel, as transposições do milenarismo teológico em sistemas da<br />
história universal já são dados por supostas. O pathos da realização da religião e da filosofia<br />
em Feuerbach e em Marx como a fé que eles têm na unidade da ideia e da realidade são<br />
tipicamente messiânicas e milenaristas em sua vontade de acabar uma história que não<br />
pode ser acabada. Daí a tendência ao totalitarismo. Todos viviam na esperança de uma<br />
libertação possível e necessária da espécie humana, daquilo que a liga à natureza, para que<br />
ela seja o sujeito de sua própria história. O pathos dos tempos modernos provém do pathos<br />
da declaração de independência norte-americana e da revolução francesa. Trata-se de um<br />
pathos do fim. As utopias do direito e da sociedade embutidas na declaração dos direitos<br />
humanos refletem as visões do reino de mil anos e da idade de ouro, do sábado da história<br />
universal. Os tempos modernos sempre foram vistos como o tempo do fim, depois do qual<br />
não existe outro tempo. É a última idade do mundo. Não existe fim dos tempos modernos<br />
pois eles são eles mesmos o fim. Na França, o iluminismo era leigo e anti-clerical. Ele<br />
pregava portanto a lei dos três estados de Augusto Comte e de Saint-Simon. Na Inglaterra,<br />
o iluminismo era religioso. A dominação dos povos, a tomada de poder sobre a natureza e o<br />
projeto de uma civilização que faz do homem sujeito da história, caracterizam o sonho<br />
milenarista dos tempos modernos. Sua realidade é a moderna civilização técnica e científica.<br />
2.6. Tempo do fim da história humana: exterminacionismo<br />
- O temp do fim nuclear: os meios de destruição massiva<br />
- O tempo do fim ecológico: a destruição da terra<br />
- O tempo do fim econômico: a clochardização do terceiro mundo<br />
2.7. O fim da história: profetas da pós-história<br />
3. Pensar teologicamente a escatologia histórica<br />
A revelação de <strong>De</strong>us na história é então presença e advento: presença do<br />
cumprimento das promessas e advento de uma plenitude que transformará toda a história.<br />
No NT, a retomada, o aprofundamento e a espiritualização do esquema vétero-testamentário<br />
promessa-cumprimento são reinterpretados a partir do anúncio da proximidade do reino de<br />
<strong>De</strong>us e da proclamação do evento pascal. A tensão entre um reino que se faz próximo e que<br />
é ainda está para chegar, e a espera provocada pela ressurreição do “Primogênito dentre os<br />
mortos” instauram uma nova dinâmica no fluxo temporal. Tudo já estava dado no reino<br />
inaugurado e no Crucificado-Ressuscitado mas a realidade não tinha sido inteiramente<br />
transformada em reino de <strong>De</strong>us e nem aqueles que compõem o corpo do Ressuscitado já<br />
conhecem a ressurreição final. O tempo começado na páscoa aguarda ainda a vinda<br />
gloriosa do Senhor, que julgará os vivos e os mortos e entregará o reino ao Pai, para que<br />
<strong>De</strong>us seja tudo em todos. Esse tempo não mais vive esperando o Messias mas a<br />
recapitulação de todas coisas nele e por ele, tarefa animada pelo Espírito e conduzida pela<br />
Igreja, povo de <strong>De</strong>us, corpo de Cristo e templo do Espírito. Neste tempo, a Igreja anuncia a<br />
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Palavra do Crucificado-Ressuscitado, celebra sacramentalmente o mistério de sua páscoa e<br />
testemunha a presença que vai transfigurando praxicamente e cristicamente toda a história.<br />
O cumprimento anunciado por e em Jesus Cristo carrega então as marcas do já<br />
inteiramente realizado e do ainda não plenamente manifestado. Em Cristo, o reino se faz<br />
inteiramente presente e na sua páscoa a humanidade e o mundo alcançam uma plenitude<br />
única, de forma que esse reino e essa páscoa são o ponto a partir do qual tudo pode ser<br />
significado e transfigurado. O ser humano, a história e o mundo já são inteiramente<br />
revelados no evento cristológico, mas nem todo ser humano, nem toda a história e nem todo<br />
o cosmos manifestam ainda a plenitude da cristificação. O reino anunciado pelo Nazareno e<br />
a páscoa do Crucificado-Ressuscitado trabalham a humanidade, a história e o cosmos para<br />
que sejam totalmente cristificados, fazendo-os assim portar e esperar o que lhes dá<br />
significação e sentido. Como vimos, a história do cristianismo sempre será marcada por<br />
essa tensão, tendendo porém muitas vezes a esvaziá-la, identificando uma figura do advir<br />
histórico com a totalidade do reinado ou da senhoria divina, como acontece nas<br />
interpretações milenaristas e apocalípticas da escatologia. Retomaremos essas<br />
interpretações que acabamos de analisar, para em seguida pensá-las teologicamente.<br />
3.1. Sentido e função dos milenarismos e da apocalíptica<br />
Tanto os milenarismos quanto a apocalíptica foram vistos pelo cristianismo numa<br />
perspectiva histórica e numa perspectiva escatológica. Vejamos como pensá-los de tal<br />
maneira que possam corresponder à revelação escatológica presente no evento cristológico.<br />
a. Milerarismo histórico e milenarismo escatológico<br />
A distinção entre milenarismo histórico e milenarismo escatológico permite ver a<br />
diferença entre uma interpretação milenarista do presente político, eclesial ou histórico, e<br />
uma interpretação da espera baseada no futuro que se inscreve no contexto escatológico do<br />
fim e na nova criação do mundo. O milenarismo histórico é uma teoria religiosa que visa a<br />
legitimação de um poder político ou eclesiástico, passível de violências e decepções. O<br />
milenarismo escatológico é uma imagem necessária da esperança na resistência, no<br />
sofrimento e nos exílios do mundo. Nas Igrejas ortodoxa, católica e protestantes, ele foi<br />
objeto de condenações doutrinais. Nas comunidades não conformistas, ele é a referência,<br />
não deixando de ser desenvolvido de maneira sempre nova. Sua condenação é feita a partir<br />
do milenarismo histórico, que compreende o presente político ou eclesial como o reino de<br />
mil anos do Cristo, não tolerando nenhuma esperança num reino do Cristo alternativo que o<br />
colocaria em questão. As escatologias que se desenvolveram no seio ou no fim de um reino<br />
do Cristo considerado como presente só têm como perspectiva a grande catástrofe de Gog<br />
e Magog e o grande julgamento universal do último dia. Essas escatologias pós-milenaristas<br />
se enraízam porém numa determinação falsa do lugar do presente na história da salvação.<br />
Toda escatologia que pretende ser cristã e não somente utópica ou apocalíptica deve<br />
ter um fundamento cristológico. A primeira questão a por à escatologia milenarista não é a<br />
de saber se sua verificação existencial é possivel ou se ela é puro sonho entusiasta, mas se<br />
ela tem seu fundamento em Cristo. Falando de cristologia não nos perguntamos se o Jesus<br />
terrestre enunciou ou não as profecias referentes ao fim da história e do mundo, mas se a<br />
esperança milenarista tem seu fundamento em sua vinda, em sua morte na cruz e em sua<br />
ressurreição. Que o Cristo tenha vindo neste mundo e aparecido em Jesus, crucificado e<br />
ressuscitado, este é o pressuposto da fé cristã referente à escatologia. Com tal pressuposto<br />
afirmamos que, com a vinda do Cristo, o novo eon já começou no seio do antigo eon. A<br />
senhoria do Cristo ainda é contestada aqui e agora, pois não vemos ainda que tudo lhe seja<br />
submetido (Hb 2,8). É porque a vida na comunidade do Cristo deve ser considerada como<br />
uma participação no combate do Cristo. Este combate tem duas faces. Por um lado, os<br />
crentes têm a missão messiânica do Cristo, como foi o caso dos discípulos e dos apóstolos.<br />
9
Por outro lado, eles são introduzidos, com esta missão, nos sofrimentos do Cristo, como foi<br />
o caso dos mártires. A missão e o destino do Cristo comandam igualmente a vida e a morte<br />
dos discípulos. Qual é a esperança suscitada por esta comunhão com o Cristo? É a<br />
esperança de tomar parte na ressurreição e na vida do Cristo depois de ter tomado parte em<br />
sua missão e em sua morte. Os que morrem com ele viverão então também com ele.<br />
Mas de qual ressurreição estamos falando? A esperança própria dos cristãos é a de<br />
ressuscitarem dentre os mortos com o Cristo para viverem com ele e não a ressurreição<br />
universal dos mortos, cuja espera não é necessariamente cristã, como o mostra Jo 11,24<br />
(“eu sei que meu irmão ressuscitará na ressurreição do último dia”). Qual é a relação entre a<br />
ressurreição dentre os mortos, que é a do Cristo e dos seus, e a ressurreição universal dos<br />
mortos? Segundo 1 Cor 15, enquanto primícias dos que morreram, o Cristo é o príncipe da<br />
vida, e os seus são os que caminharam ou caminham com ele. No fim, a morte será<br />
aniquilada e engolida na vitória da vida que penetrará tudo. A ressurreição universal dos<br />
mortos é a consequência última deste processo da nova criação que começou com a vinda<br />
do Cristo. Segundo o Apocalipse de João, a ressurreição dos crentes é uma antecipação da<br />
ressurreição universal dos mortos no último dia, e esta última palavra pertence ao grande<br />
julgamento univesal. Nesta perspectiva, a saída da história universal é dupla: vida eterna e<br />
danação eterna. A maneira paulina de ver as coisas conduz ao universalismo da vida cujo<br />
fundamento é cristológico. A maneira de ver do Apocalipse conduz a uma cristologia que é<br />
subordinada ao julgamento universal numa concepção de tipo apocalíptico. O milenarismo<br />
fundado na ressurreição do Cristo dentre os mortos tem por consequência o universalismo<br />
da vida eterna. O milenarismo fundado nas representações do julgamento de tipo legalista e<br />
apocalíptico tem como consequência a partição da humanidade em bem aventurados e em<br />
condenados. Na primeira maneira de abordar as coisas, a cristologia comanda a<br />
escatologia, enqaunto na segunda, a escatologia apocalíptica é o pressuposto da cristologia.<br />
O problema mais difícil da escatologia milenarista é o problema do tempo. Como é<br />
possível pensar um cumprimento do tempo histórico na história, antes do último dia, e o<br />
começo da nova e eterna criação? Até aqui, a interpretação profética da Escritura, no<br />
quadro da história da salvação, pensou a esperança milenarista no quadro do tempo linear<br />
do calendário. Ora, o efeito da parusia do Cristo e de seu reino não é somente que tudo se<br />
torne diferente no tempo mas que o tempo ele mesmo se torne diferente. A situação do<br />
conjunto do mundo é modificada. É porque é falso inscrever o reino messiânico no tempo do<br />
calendário, pois este é o tempo deste mundo que passa. Se <strong>De</strong>us é o Senhor da história, ele<br />
não cede sua providência a outros. A astrologia não tem nada a ver com a providência do<br />
Criador, e as promessas do <strong>De</strong>us que vem não são cedidas a um pretendido plano histórico<br />
ou a um plano de salvação de <strong>De</strong>us. Ele as guarda em sua mão. O tempo é determinado<br />
por aquilo que advém. Do ponto de vista teológico, o tempo é determinado pela presença ou<br />
ausência, ou seja pelos diferentes modos de presença de <strong>De</strong>us nele. Há um tempo da lei e<br />
um tempo do Evangelho, há um tempo do messias, um tempo do Senhor e um tempo da<br />
eternidade. Falamos de modo análogo de diferentes épocas no seio das quais se modifica o<br />
paradigma do conjunto da vida, do pensamento e da sensibilidade: antiguidade, Idade<br />
Média, tempos modernos, ou ainda, modernidade, pós-modernidade. Do ponto de vista<br />
teológico, fazemos a distinção entre o reino da natureza, no qual <strong>De</strong>us é presente enquanto<br />
Criador, o reino da graça, no qual ele é presente por sua aliança com Israel e pelo Cristo na<br />
Igreja, o reino da glória, no qual ele habita na criação como em seu templo. Para a fé cristã,<br />
o presente é marcado pela presença do Cristo no Espírito que vivifica. É porque ela espera<br />
um futuro do Cristo na ressurreição dentre os mortos e na vida dada a nossos corpos<br />
mortais (Rm 8,11), e então um tempo que não é mais marcado pelo combate do Cristo mas<br />
por seu reino. Este tempo não é mais comandado pela precariedade, mas pelo fato de<br />
permanecer no instante bem aventurado. Sem esperança num tal tempo cumprido e numa<br />
tal vitória da vida, nenhum homem toma parte no combate messiânico do Cristo contra os<br />
poderes da corrupção e do aniquilamento. A teologia cristã não é uma teologia da história<br />
universal, mas uma teologia histórica da luta e da esperança. Ela não ensina, como a fé<br />
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moderna no progresso, esse milenarismo secular do presente, que no futuro tudo se tornará<br />
sempre melhor. Ela não ensina tampouco que no futuro tudo se tornará sempre pior, como o<br />
faz a apocalíptica moderna. Ela insiste no fato de que no futuro a situação deste mundo será<br />
cada vez mais crítica. O crescimento do poder humano e a concentração cada vez maior<br />
deste poder fazem com que o risco cresça, pois ao mesmo tempo crescem os poderes de<br />
construção dos homens, como também seu poder de destruição. Se na história as coisas<br />
tornam-se cada vez mais críticas, então elas se mostram também cada vez mais perigosas.<br />
O reino de mil anos de Cristo, o reino de paz, é a imagem contrária, positiva, que a<br />
esperança opõe à destruição anticristã do mundo na tempestade de fogo, e ela é<br />
indispensável aqui e agora a toda vida e a toda ação alternativa que se opõem à devastação<br />
do mundo. Sem esperança milenarista, a ética cristã da resistência e do seguimento de<br />
Cristo perde sua motivação mais forte. Sem a espera de um reino alternativo do Cristo, a<br />
comunidade cristã perde seu caráter de comunidade que contrasta com a sociedade.<br />
Porque o milenarismo original era uma escatologia dos mártires, ele é o oposto de toda<br />
evasão escatológica e de todo saber que se apoiaria sobre uma história da salvação.<br />
A espera milenarista faz a mediação entre a história do mundo atual e o fim do<br />
mundo e o novo mundo que existirá. Ela permite de se representar o fim como uma<br />
passagem. A cristocracia é a passagem do estado atual do mundo ao cumprimento do<br />
mundo a advir. A passagem se opera por uma série de eventos e pela sucessão de<br />
diferentes fases. Se se omite esta passagem, como o fazem as escatologias não<br />
milenaristas, então a história do mundo termina, segundo a imaginação moderna, por um<br />
big-bang final, como ela começou por um big-bang inicial. Trata-se de imagens que evocam<br />
Hiroshima, que não têm nenhuma pertinência para a vida e o agir aqui e agora, pois elas<br />
consideram que a vida e o agir aqui e agora não têm nenhuma pertinência quanto ao fim do<br />
mundo enquanto o fim do mundo do qual os homens são os autores resulta precisamente da<br />
vida e do agir insconscientes e irresponsáveis aqui e agora. “<strong>De</strong>pois de nós é o dilúvio”:<br />
viver segundo este ditado tem por efeito dilúvios financeiros, nucleares e ecológicos. As<br />
gerações que seguem serão engolidas na acumulação da dívida, no lixo atômico e no meio<br />
ambiente devastado. A escatologia do big-bang final é catastrófica e engendra catástrofes. A<br />
escatologia cristã é messiânica. Ela cura, salva e é escatologia milenarista da passagem.<br />
b. Milenarismos apocalípticos históricos e escatológicos<br />
A interpretação apocaliptica das catástrofes da história universal ou das catástrofes<br />
cósmicas é outra coisa que a interpretação apocalíptica escatológica dos poderes deste<br />
mundo no julgamento de <strong>De</strong>us. As interpretações modernas do tempo do fim humano são<br />
secularizações da apocalíptica bíblica, e o único ponto comum que permanece é a catástrofe,<br />
mas não a esperança. Elas falam do fim sem começo, e do julgamento sem reino. Elas não<br />
suscitam nem esperança nem resistência, mas um medo paralisante e o cinismo. A<br />
apocalíptica tem seu lugar na escatologia, mas não na história. A escatologia no entanto<br />
começa com a apocalíptica. Não existe começo de um mundo novo sem o fim do antigo. Não<br />
existe reino de <strong>De</strong>us sem julgamento da impiedade. Não existe novo nascimento do cosmos<br />
sem as dores do fim. A ressurreição de Cristo dentre os mortos pressupõe sua morte real e<br />
total. É a isso que se refere a apocalíptica cristã. Seu fim real foi seu verdadeiro começo.<br />
As representações do fim do mundo são marginais no AT, aparecendo nos escritos<br />
proféticos tardios: Is 24-27; Za 12-14; Dn 2-7; Jl 3, nos apocrifos: Henoque, apocalipse<br />
siríaco de Baruque, quarto livro de Esdras, e nos escritos propriamente apocalípticos. No<br />
NT, encontramos o pequeno apocalipse sinótico: Mt 24; Mc 13; Lc 21, e o apocalipse de<br />
João. As passagens da profecia à apocalíptica são movediças. Falamos de apocalípticos<br />
quando as representações do agir de <strong>De</strong>us futuro estão em descontinuidade total com<br />
relação à história anterior, e que, por consequência, a crise do julgamento de <strong>De</strong>us é à<br />
escala da história universal e do cosmos. Então a promessa de <strong>De</strong>us representa uma nova<br />
era do mundo ou uma nova criação de todas as coisas. Encontramos apocalipses políticos<br />
11
em Daniel. No sonho de Nabucodonosor (Dn 2), os impérios deste mundo são destruídos<br />
por uma pedra, mas em seguida “o <strong>De</strong>us do céu suscitará um reino que nunca será<br />
destruído e cuja realeza nunca será deixada a outro povo. Ele pulverizará e aniquilará todos<br />
os outros reinos e subsistirá para sempre”. Na imagem das monarquias (Dn 7), os impérios<br />
mundiais surgem do mar do caos sob a forma de bestas, mais cruéis e mais e<br />
repugnantes ainda que as outras. Mas em seguida elas serão queimadas no fogo divino e<br />
<strong>De</strong>us devolverá a soberania sobre o mundo ao “Filho do homem”, ou seja ao homem<br />
verdadeiro, que corresponde a <strong>De</strong>us. Sua soberania será eterna e sua realeza não terá fim.<br />
Encontramos apocalipses cósmicos no livro de Henoque: “a terra se abrirá num<br />
abismo gigante, tudo o que é sobre a terra perecerá, e sobre todas as coisas virá o<br />
julgamento” (1,7). Mas no fim, veremos o trono de <strong>De</strong>us, o “Filho do homem” virá e o céu e a<br />
terra serão recriados (45,4s). Não somente os homens serão julgados, mas também os<br />
anjos decaídos. Segundo 2 Pd 3,10.12, “o dia do Senhor virá. Então os céus desaparecerão<br />
e os elementos se queimarão e se dissolverão”. É somente em seguida que aparecerá um<br />
novo céu e uma nova terra (3,13). Segundo Mt 24,29, “as estrelas cairão do céu, e os<br />
poderes dos céus serão sacudidos”. Então o “filho do homem” se manifestará na glória de<br />
<strong>De</strong>us. Os apocalipses políticos, que fazem referência aos impérios do mundo, nasceram nas<br />
situações em que Israel era oprimido pelas grandes potências. É a visão dos que foram<br />
perseguidos e cuja fé em <strong>De</strong>us é colocada à prova que eles mostram. Este mundo de<br />
violência, injusto e ímpio, acabará quando <strong>De</strong>us, no dia que é o seu, edificará seu reino<br />
sobre a terra, estabelecendo em seu direito aqueles que lhe são fiéis e que no presente<br />
sofrem pelo seu Nome, e que não se submetem às potências e aos demônios deste mundo.<br />
Graças a esta esperança, os santos de Israel mantiveram sua fé em <strong>De</strong>us e resistiram.<br />
<strong>De</strong>trás dos apocalipses cósmicos, que evocam o desaparecimento do mundo e o<br />
começo da nova criação, há uma outra lembrança: a história do dilúvio e de Noé. <strong>De</strong>trás da<br />
história de Noé há o medo de que <strong>De</strong>us poderia se arrepender de ter criado os homens, e<br />
que sua vontade criadora poderia mudar-se em vontade destruidora. Só Noé é salvo do<br />
dilúvio porque ele é a imagem original do justo. É com ele que é concluída a nova aliança da<br />
criação, englobando Noé e os seus, mas também todas as gerações que se seguirão a eles<br />
e todos os seres vivos. <strong>De</strong>trás da história do dilúvio e de Noé existe igualmente a lembrança<br />
da criação no começo, que foi chamada à existência a partir do mar do caos (Gn 1,2) ex<br />
nihilo. Os apocalipses cósmicos revelam um saber sobre a contingência do mundo. O mundo<br />
esta aí, mas ele não existe necessariamente, podendo não existir. Só <strong>De</strong>us existe a partir<br />
dele mesmo e não a partir de um outro. O fim do mundo é a face voltada para nós, e da qual<br />
fazemos a experiência do surgimento de um mundo novo a partir de <strong>De</strong>us. Os apocalipses<br />
de Israel e os dos cristãos esperam um fim do mundo acompanhado de terror, que não é<br />
possível ainda de se representar historicamente. Mas, através desse terror futuro, o olhar se<br />
dirige para o começo de uma nova criação de todas as coisas. É porque tais apocalipses<br />
recorrem à imagem das dores do tempo do fim. Essa dor é a antecipação da esperança. Ela<br />
acompanha o novo nascimento do mundo. As metaforas utilizadas para isso atribuem o<br />
novo nascimento do mundo a <strong>De</strong>us que é mãe (Is 66), a <strong>De</strong>us que é Espírito Santo.<br />
A razão e o fundamento da esperança apocalíptica no seio do fim do mundo é a fé<br />
na fidelidade de <strong>De</strong>us e não um otimismo. <strong>De</strong>us permanecerá fiel ao desígnio que é o seu<br />
na criação, mesmo se o mundo criado por ele perece de sua própria malignidade. A vontade<br />
de <strong>De</strong>us que haja vida é maior que sua vontade de julgar. O seu sim tem mais peso que seu<br />
não. <strong>De</strong>us é fiel porque ele não pode renegar-se a si mesmo (2 Tm 2,13). É porque os<br />
crentes discernem em seu nome um sim escondido. No julgamento, eles percebem a vinda<br />
da graça, e no fim deste mundo eles vêem o começo do mundo novo. As consequências<br />
práticas são paradoxais. “Haverá sinais no sol, na lua e nas estrelas, e sobre a terra as<br />
nações estarão na angústia, amedrontadas pelo barulho do mar e sua agitação. Quando<br />
esses eventos começarem a se produzir, levantai-vos e levantai a cabeça, pois vossa<br />
libertação esta próxima” (Lc 21,25.28). O fim acompanhado de terror coloca fim ao terror<br />
12
sem fim, e traz libertação aos prisioneiros e sofredores e aos que guardam a fé. Não se trata<br />
desta esperança ativa, orientada para o futuro, com a qual Abraão se colocou a caminho e<br />
com a qual Moisés fez sair o povo da escravidão na terra do Egito, mas de uma esperança<br />
que resiste, que é capaz de sofrer e que persevera, no coração de uma situação na qual<br />
não se pode mais fazer nada para afastar o mal. A espera apocalíptica não é um fatalismo<br />
morno que se submete ao destino. Ela levanta, ao contrário, aqueles que são abatidos. A<br />
verdadeira apocalíptica aprende a levantar a cabeça e a ser aberto ao começo novo<br />
suscitado por <strong>De</strong>us no coração mesmo da derrota reconhecida deste sistema do mundo.<br />
As esperas apocalípticas do fim são cristãs? Em seu conteúdo, a pregação de Jesus<br />
não era marcada pelas imagens apocalípticas mas tinha por pressuposto a apocalíptica que,<br />
de uma maneira geral, era a mentalidade do Israel oprimido de seu tempo. Jesus anunciava<br />
aos pobres o reino de <strong>De</strong>us e agia numa proximidade messiânica inaudita para com o<br />
mesmo. Sua pregação e sua vida messiânicas presupunham, de um ponto de vista formal,<br />
os últimos tempos. O NT sublinha que sua vinda, a efusão do Espírito Santo, a pregação do<br />
Evangelho que salva os ímpios, a reunião da comunidade do Cristo do meio de todas as<br />
nações acontecerão no últimos dias. A visão apocalíptica do tempo é incontestavelmente o<br />
contexto da consciência que o cristianismo das origens tinha de sua missão. Quanto ao<br />
conteúdo, o anúncio apostólico do Evangelho às nações é escatológico num duplo ponto de<br />
vista: 1. com a ressurreição de Jesus dentre os mortos, o futuro da ressurreição universal<br />
dos mortos e da vida do mundo futuro já começou. A fé vê em Jesus as primícias dos que<br />
morrreram e o príncipe da vida; 2. por sua exaltação, Jesus é estabelecido Senhor do reino<br />
de <strong>De</strong>us a vir. Por sua morte, ele já venceu o poder do pecado, e por sua ressurreição, <strong>De</strong>us<br />
quebrou o poder da morte. Com relação à apocalíptica judaica, o Evangelho do Cristo se<br />
caracteriza por um deslocamento determinante das fases. A mudança de eon que é<br />
esperada não se produz no fim deste tempo do mundo, mas já agora, no meio do tempo<br />
deste mundo. Na comunidade do Cristo, existe nova criação desde agora, no meio deste<br />
mundo não salvo que corre em direção de seu fim. Na experiência do Espírito, existe desde<br />
agora a experiência de um novo nascimento à vida eterna no meio de uma vida que deve<br />
morrer. Do ponto de vista histórico, o deslocamento das fases da viragem apocalíptica dos<br />
eons foi sem dúvida a razão pela qual, no primeiro século, as comunidades cristãs retomaram<br />
as velhas representações apocalípticas do fim do mundo. Por um lado, elas acreditavam<br />
que com a vinda do Cristo e a efusão do Espírito Santo a nova criação já havia começado.<br />
Por outro lado, elas esperavam ainda tribulações para o fim do mundo. As representações<br />
apocalípticas do fim do mundo no NT são subordinadas à espera da parusia do Cristo e ao<br />
acabamento de sua obra de salvação. Na apocalíptica cristã, a espera do Cristo que vem é<br />
mais forte que o medo dos terrores do tempo do fim. A esperança na vinda do Cristo<br />
prevalece sobre as experiências do fim deste mundo que é antecipado pelo medo e pelo terror.<br />
Permanece no entanto um enigma teológico. Por que as comunidades primitivas<br />
esperaram ainda outras lutas finais apocalípticas entre <strong>De</strong>us e os poderes ímpios, entre o<br />
arcanjo Miguel e o dragão, entre o Cristo e o anti-Cristo, uma vez que elas já acreditavam na<br />
vitória escatológica do Cristo sobre a cruz e em sua ressurreição, e que em suas doxologias<br />
elas glorificavam a senhoria do Cristo sobre o universo? Por que, nas imagens apocalípticas<br />
da história, vemos repetir incessantemente o cenário da luta, da derrota, da ressurreição e<br />
da vitória? Por que a besta dos abismos volta de novo? Por que depois do reino de paz de<br />
mil anos há ainda uma luta entre Gog e Magog? Como o “uma vez por todas” cristológico é<br />
compatível com a espera das lutas finais incessantemente renovadas? Do ponto de vista<br />
teológico, seria preciso fazer uma dupla afirmação referente à realidade, e que é paradoxal,<br />
a saber o fim é ainda a vir e o mundo novo já está presente. O deslocamento cristão das<br />
fases do eon conduz a uma simultaneidade onde se recobrem o antigo eon que corre ainda<br />
para seu fim e o novo eon que começou com a vinda do Cristo e a efusão do Espírito de<br />
<strong>De</strong>us. Isso não explica porém porque a ideia das lutas finais apocalípticas foi retomada na fé<br />
no fim e no começo. A fé cristã não pode dissolver-se numa reiteração incessante das lutas<br />
finais ainda em suspenso. O Harmagedon não pode tomar o lugar do Gólgota. Mas por outro<br />
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lado, o “uma vez por todas” não pode ser compreendido segundo uma temporalidade linear.<br />
Trata-se de uma unicidade do Cristo que é escatológica e não simplesmente histórica. Ora a<br />
unicidade escatológica do Cristo pode reproduzir-se historicamente e escatologicamente. É<br />
porque o batismo é ele também “uma vez por todas” e substancialmente não reiterável,<br />
precisamente porque ele simboliza um morrer com o Cristo e um ressuscitr com ele<br />
permanente. Os cenários apocalítpicos do combate final são nesse sentido uma figuração<br />
do envio messiânico do Cristo, de sua condenação à morte apocalíptica e de sua ressurreição<br />
escatológica. Nos apocalipses, os mártires cristãos são eles mesmos conformados ao<br />
mistério pascal do Cristo morto e ressuscitado. O cosmos inteiro conhece uma conformação<br />
da mesma ordem. Ele também é criado de maneira nova através de uma morte e de um<br />
julgamento. Esta figuração do evento cristológico no envento do fim pode igualmente ser<br />
vista, no sentido inverso, como inclusão no evento cristológico do que advém ao mundo<br />
assim e ao cosmos inteiro. Apocalíptica significaria então que a criação toda inteira participa<br />
das aflições do Cristo e que seu abandono e sua destruição tornam-se manifestas à luz da<br />
cruz, a fim de que ela seja conduzida à ressurreição cósmica e à nova criação. O sofrimento<br />
no cosmos é portanto universal porque trata-se de um sofrimento com o Cristo que entrou no<br />
cosmos e, no entanto, o fez explodir quando ressuscitou dentre os mortos e subiu aos céus.<br />
As imagens do fim apocalíptico do mundo fazem necessariamente parte das visões<br />
da esperança sobre o advento do reino de <strong>De</strong>us e do advento da nova criação de todas as<br />
coisas? Na medida em que elas dizem o sofrimento do qual se espera o afastamento, elas<br />
fazem parte de modo necessário. As visões da esperança no futuro de <strong>De</strong>us são visões da<br />
libertação dos perigos do mundo do qual fazemos a experiência e do qual temos medo. A<br />
apocalíptica preserva a doutrina cristã da esperança do otimismo ligeiro dos falsos profetas.<br />
A escatologia não é uma doutrina que prega um happy end da história do mundo. Na situação<br />
presente do mundo, a consolação fácil é tão fatal quanto a desolação profunda. Ninguém<br />
pode assegurar-se de que o pior não se produzirá. Pode-se somente pensar com confiança<br />
que no fim do mundo um novo começo está escondido, desde que colocamos a confiança<br />
neste <strong>De</strong>us que faz existir a partir do nada e que, a partir da morte, cria uma nova vida. Face<br />
aos perigos mortais que corre o mundo, a memória cristã atualiza a morte do Cristo em suas<br />
dimensões apocalípticas, bebendo na sua ressurreição dentre os mortos a esperança na<br />
vida eterna, a esperança no novo nascimento do cosmos. A memória ressurrectionis Christi<br />
permite-nos ver, através do horizonte de nossa própria morte, o vasto espaço de vida eterna,<br />
vendo através do horizonte do fim do mundo o novo mundo de <strong>De</strong>us. Viver desta esperança<br />
significa então que, contra as aparências e contra todas as chances históricas de sucesso,<br />
agiremos desde hoje em conformidade com este mundo de justiça e de paz. Isso obriga a<br />
dizer um não solene ao espírito e à logica dos sistemas de destruição massiva. Isso significa<br />
que digamos um sim sem condição à vida face à morte inelutável de tudo o que é vivo.<br />
3.2. Pensar teologicamente a escatologia histórica<br />
Para a consciência da fé é o mundo futuro que determina a mundo presente. A<br />
relação entre mundo futuro prometido e mundo presente é assumida pela fé bíblica na<br />
tensão entre o já e o ainda não. Esta tensão, por ser flutuante e por não resolver-se no<br />
testemunho das origens, é suscetível de receber ao longo dos anos diversas interpretações<br />
teológicas, especialmente no que se refere à consciência das realidades mundanas atuais à<br />
luz do cumprimento esperado. Em primeiro lugar, estão os que, sublinhando a importância<br />
do ainda não, postularam a novidade absoluta do eschaton e deduziram dali a simples<br />
ruptura que representam as realidades últimas com respeito à continuidade evolutiva da<br />
história. A consequência desta interpretação é a desvalorização geral das realizações<br />
humanas, unida ao sentido da caducidade radical de todo o mundo criado. Ainda sem fazer<br />
seu o pessimismo antropológico do primeiro Barth, a tendência escatologista, própria da<br />
néo-escolástica, tenta sublinhar a absoluta primazia da iniciativa de <strong>De</strong>us sobre a história e<br />
recordar, contra as presunções da razão adulta da modernidade, a enorme fragilidade das<br />
realizações históricas. No entanto, esta tendência não dá razão da relação constitutiva e<br />
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essencial que revela a páscoa de Cristo entre o começo e o cumprimento. Se a escatologia<br />
fosse o simples desmoronamento da obra da criação, a fidelidade do <strong>De</strong>us criador ao pacto<br />
estabelecido com suas criaturas por meio do Filho e com vistas a ele resultaria<br />
incompreensível. A Trindade, revelada na cruz e na ressurreição de Jesus de Nazaré, não<br />
edifica sua glória sobre as ruínas do universo, chamado por ela a existir por puro amor.<br />
A debilidade da postura escatologista levou à interpretação contrária. Insistindo no já<br />
da obra divina na criação e na redenção, a tendência encarnacionista sublinha a continuidade<br />
entre o presente do mundo e o porvir da promessa de <strong>De</strong>us. O eschaton valoriza os frutos<br />
da ação humana e celebra também a glória da criatura junto com a glória divina. Se temos<br />
fé na eficácia do Espírito, se cremos que <strong>De</strong>us é mais poderoso que o mal, se admitimos<br />
que a graça de Cristo é maior que o pecado de Adão, podemos pensar que o peso do bem<br />
realizado no mundo pela obra do Espírito aumenta continuamente, levando o conjunto da<br />
humanidade a uma maior unidade orgânica, a uma maior universalidade, a uma maior paz,<br />
a uma maior liberdade e a uma maior santidade. A consequência desta interpretação é a<br />
valorização da dignidade das realidades terrenas e um notável otimismo antropológico, que<br />
a leva a captar um valor espiritual em cada uma das mudanças realizadas pelo homem,<br />
valorizando também as mudanças em si mesmas como preparação e antecipação do reino.<br />
Nesta linha se move o evolucionismo cristológico de Teilhard de Chardin, segundo o<br />
qual a história é um continuo ascender em direção ao ponto ômega, Cristo, por meio do qual<br />
e com vistas ao qual tudo foi feito, numa cristogênese total, que permite superar o antigo<br />
conflito entre os servidores do céu e os servidores da terra. Resulta daí que o aperfeiçoamento<br />
humano vislumbrado pelo neo-humanismo na evolução coincide com o coroamento da<br />
encarnação esperada por todos os cristãos. O em direção ao alto cristão se incorpora ao em<br />
direção ao adiante humano. Uma perspectiva análoga é a que se deduz das premissas da<br />
cristologia transcendente de Rahner. O movimento de auto-transcendência, inato no homem<br />
e na história, encontra seu pleno cumprimento no encontro escatológico em que o portador<br />
absoluto da salvação chega a adequá-lo por completo. Entretanto, graças ao fato de que o<br />
Logos de <strong>De</strong>us fez sua a histária e a sofreu, pode-se dizer que a história vai construindo sua<br />
própria dimensão definitiva. O que permanece é obra do amor concreto na história, como<br />
obra própria e verdadeira do homem. Não é um destilado moral a partir de uns materiais que<br />
logo logo já não servem para nada. Também a história se submerge na definitividade de <strong>De</strong>us.<br />
No entanto, o mesmo Rahner observa como o encontro com o cumprimento é e<br />
segue sendo assimétrico. O reino de <strong>De</strong>us, o que é definitivo, o que concluirá e porá fim à<br />
história, é algo que virá realmente. Esta situação definitiva não existirá somente como uma<br />
etapa ou um resultado final de uma história programada e atuada pelo homem, mas será<br />
obra de <strong>De</strong>us, ainda que seja possível pensá-la como a auto-transcendência (divina, livre,<br />
simplesmente imprevisível desde nosso ponto de partida) da história. A sobreabundância<br />
revelada na páscoa é algo que não se pode esquecer. O poder da ressurreição não pode<br />
equiparar-se ao simples poder escondido no homem e no mundo. A novidade prometida no<br />
Ressuscitado dentre os mortos é novidade verdadeira, ainda que seja indissoluvelmente<br />
unida à realidade do Crucificado. O otimismo antropológico deve ter em conta a ulterioridade<br />
divina, e medir-se também com a verdade mais profunda do operar humano, revelada pela<br />
cruz. Existe na história um “mistério de iniquidade” que não é possível ignorar ou minimizar.<br />
Este mistério é fruto da culpa original e atual, mas é também ligado com aquela presença<br />
misteriosa, e no entanto real, que a Escritura chama “príncipe deste mundo”. A cruz é pedra<br />
de toque pela qual tudo se mede e aparece em sua verdadeira grandeza e em sua miséria<br />
objetiva. Não é possível afirmar nenhuma continuidade entre o presente do mundo e o futuro<br />
da promessa se se ignora o escândalo da resistência à que se opôs a morte na cruz do<br />
Filho de <strong>De</strong>us. O ainda não e o já se constroem juntamente na vitória sobre a dolorosa<br />
presença do mal, que habita no coração do homem e que continua a devastar a terra.<br />
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Faz-se então necessário conceber a relação entre o amanhã escatológico e o hoje<br />
do homem e da natureza em termos propriamente pascais, compreendendo esta relação a<br />
partir da morte do Cristo e de sua ressurreição vitoriosa. O eschaton, significado e prometido<br />
no Ressuscitado para a pessoa humana e para todo o criado, estará numa relação de<br />
identidade na contradição com o presente deste mundo, análogo ao que existe entre o<br />
Vivente, ressuscitado ao terceiro dia, e o Humilhado da sexta feira santa. Esta relação<br />
implica antes de mais nada a negação e a ruptura, próprias da contradição. Neste sentido, o<br />
futuro de <strong>De</strong>us não confirma o pecado do mundo. Mais ainda, ele é e será juízo. O conteúdo<br />
do eschaton esperado situa-se aqui como permanente reserva escatológica, crítica frente a<br />
todo cumprimento míope neste mundo, mas não totalmente pessimista ou simplesmente<br />
negativo, mas no horizonte positivo da esperança. As promessas escatológicas da tradição<br />
bíblica, liberdade, paz, justiça, reconciliação não podem identificar-se com nenhuma<br />
situação social, qualquer que seja a definição e a descrição que demos dela, nem são<br />
privatizáveis. A história do cristianismo conhece tal identificação direta e tais politizações<br />
das promessas cristãs. No entanto, nelas abandona-se aquela reserva escatológica pela<br />
qual aparece a provisoriedade de todo estado da sociedade alcançado historicamente. Tal<br />
situação aparece em sua provisoriedade. Porque esta reserva escatológica não nos leva a<br />
uma relação negativa, mas a uma relação crítico-dialética com respeito ao presente social.<br />
À função crítica que o ainda não escatológico exerce sobre o presente do mundo,<br />
acrescenta-se a tarefa positiva. À denuncia, o anúncio. A vitória da páscoa sobre a morte é<br />
promessa de vida, onde entra a carne do homem e do mundo em toda sua densidade. Aqui<br />
é onde radica-se a verdade ineliminável do otimismo encarnacionista. Todo compromisso<br />
para que aumente a qualidade de vida da pessoa humana e do ambiente em que vive é<br />
participação no poder vitorioso do Ressuscitado e tem que sustentar-se numa ética pascal<br />
que capte no serviço histórico da promoção humana e na responsabilidade ecológica para<br />
com todas as criaturas, numas formas autênticas do seguimento de Cristo e em caminhos<br />
de realização do cumprimento da santidade. A esperança escatológica converte-se aqui em<br />
práxis libertadora, em ação de transformação do presente para fazê-lo menos distante do<br />
futuro da promessa de <strong>De</strong>us, antecipação do eschaton. Essa esperança não é uma evasão<br />
da história, mas ela possui uma incidência no político e na práxis social. A esperança que<br />
vence a morte deve fincar suas raízes no coração da práxis histórica. Se não toma corpo no<br />
presente para levá-lo adiante, seria somente evasão, futurismo. Proclamar que a vitória que<br />
venceu a morte é nossa fé, será viver esta proclamação sem escapismos, no coração<br />
mesmo da história, no seio de um único processo de libertação que leva essa mesma<br />
história à sua plenitude. Esperar em Cristo é ao mesmo tempo crer na aventura histórica, o<br />
que abre um campo ilimitado de possibilidades ao amor e à ação cristã sobre a realidade.<br />
A relação entre o futuro escatológico e o presente do mundo fica iluminada também<br />
pelo acontecimento pascal no sentido de uma superação mais alta. O eschaton não só<br />
critica e nega o hoje da história em suas resistências e pontos negativos, não só o afirma e<br />
o qualifica em seu processo positivo de libertação e de atualização da justiça social e<br />
ecológica, mas supera-o com a mesma sobreabundância do mistério de <strong>De</strong>us com relação à<br />
criação. A qualificação conduz só à identificação e à nivelação. A crítica limita-se a pôr uma<br />
distância e uma contraposição. Com a superação há que chegar a uma síntese entre os<br />
diversos enunciados antitéticos. Esta superação deve entender-se não só como nova<br />
recuperação dos valores mundanos, com os que <strong>De</strong>us se fez solidário na encarnação do<br />
Filho, nem só como certeza de realização da esperança que não engana, mas também no<br />
sentido de um futuro transcendente. A realidade de <strong>De</strong>us e sua auto-comunicação ao<br />
homem e ao mundo seguem mantendo uma diferença infinita com este mundo e com tudo o<br />
que ele se converte. É esta sobreabundância o que constitui a reserva permanente da<br />
esperança cristã. É ela que põe as bases de uma espiritualidade da espera vigilante e<br />
comprometida, que encontra na profundidade contemplativa e eucarística seu alimento mais<br />
verdadeiro. Esperar não é conhecer o futuro mas estar disposto, numa atitude de infância<br />
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espiritual, a acolhê-lo como um dom. Mas este dom se acolhe na negação da injustiça, no<br />
protesto contra os direitos humanos pisados e na luta pela justiça, pela paz e pela fraternidade.<br />
Esta relação dialética entre o mundo futuro que se espera e o mundo presente, é a<br />
que quis descrever o Vat. II, fazendo seus os aspectos válidos das tendências escatologista<br />
e encarnacionista. A espera de uma nova terra não deve amortizar, mas bem avivar, a<br />
preocupação de aperfeiçoar esta terra, onde cresce o corpo de uma nova família humana,<br />
que pode de alguma maneira antecipar um vislumbre do novo século. Por isso, ainda que se<br />
tenha que distinguir cuidadosamente progresso temporal e crescimento do reino de Cristo,<br />
no entanto, o primeiro, enquanto pode contribuir a ordenar melhor a sociedade humana,<br />
interessa em grande medida ao reino de <strong>De</strong>us. Pois os bens da dignidade humana, a união<br />
fraterna e a liberdade, numa palavra, todos os frutos excelentes da natureza e de nosso<br />
esforço, depois de havê-los propagado pela terra no Espírito do Senhor e de acordo com<br />
seu mandato, voltaremos a encontrá-los limpos de toda mancha, iluminados e<br />
transfigurados, quando Cristo entregar o reino eterno e universal ao Pai. A ética e a<br />
espiritualidade que se derivam desta perspectiva poderiam reduzir-se a uma fidelidade ao<br />
mesmo tempo dupla e única. Fiel ao mundo presente, o cristão deve ser não menos fiel ao<br />
mundo que há de vir. O já da salvação o compromete a construir hoje, com os dons de<br />
<strong>De</strong>us, o amanhã, organizando a esperança no dia dos homens e na história do mundo. Mas<br />
o ainda não, com sua sobreabundância, escondida no mistério da Trindade, o estimula a<br />
não abosolutizar nenhum cumprimento mundano, a exercer com todos e com tudo a reserva<br />
crítica da esperança maior, a não perder nunca a confiança na vitória final de <strong>De</strong>us. A<br />
esperança da ressurreição se oferecerá então como a única e autêntica ressurreição da<br />
esperança. Ela denuncia a miopia de tudo o que, esperando, não é divino e assumirá os<br />
valores de caridade e de paz, presentes em todo lugar no ato do que espera, abrindo ao<br />
futuro da esperança que não morre e que é sentido e pátria para o homem e para o mundo.<br />
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