Título: O prazer, princípio e fim da vida feliz, segundo o epicurismo
Título: O prazer, princípio e fim da vida feliz, segundo o epicurismo
Título: O prazer, princípio e fim da vida feliz, segundo o epicurismo
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
<strong>Título</strong>: O <strong>prazer</strong>, <strong>princípio</strong> e <strong>fim</strong> <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> <strong>feliz</strong>, <strong>segundo</strong> o <strong>epicurismo</strong>.<br />
Carla Cristina Perozzo<br />
Doutoran<strong>da</strong> em Filosofia<br />
PPGF - UFRJ<br />
Para viver, de pouco necessitas.<br />
Basta beber o mudo firmamento<br />
ou encontrar no bosque algus gravetos<br />
e deles extrair a luz <strong>da</strong> terra.<br />
(Ledo Ivo)<br />
A compreensão do <strong>prazer</strong> como o maior dentre todos os bens, e <strong>da</strong> dor como<br />
o mal a ser superado, tal como postula o <strong>epicurismo</strong>, não é original. Antes de<br />
Epicuro, Aristipo de Cirene, fun<strong>da</strong>dor <strong>da</strong> escola cirenaica, e Eudoxo de Cnido, já<br />
defendiam esses pressupostos, característicos de uma orientação filosófica hedonista.<br />
O objetivo de nossa comunicação é discutir a inserção do hedonismo de Epicuro no<br />
cenário filosófico grego, compreendendo como ele se posiciona frente ao<br />
pensamento hedonista já existente e às críticas que este recebe de seus opositores.<br />
Para tanto, privilegiaremos a filosofia cirenaica e as críticas platônicas como<br />
principais referências desse universo a partir do qual Epicuro cria sua escola.<br />
Vejamos um pouco como pensavam os cirenaicos. Em Diógenes Laércio,<br />
uma exposição <strong>da</strong>s principais doutrinas <strong>da</strong> escola é feita tanto no livro II 1 , quanto no<br />
livro X 2 . De acordo com as duas fontes, os cirenaicos compreendiam o <strong>prazer</strong> e a dor<br />
como movimentos; o <strong>prazer</strong>, um movimento suave, a dor, um movimento áspero:<br />
Aqueles que permaneceram fiéis aos ensinamentos de<br />
Aristipo e eram chamados de cirenaicos, professavam<br />
as seguintes opiniões. Eles admitiam duas afecções<br />
básicas: a dor e o <strong>prazer</strong>; o <strong>prazer</strong> é um movimento<br />
suave e a dor é um movimento áspero. Um <strong>prazer</strong> não<br />
se diferencia de outro <strong>prazer</strong>, nem é um <strong>prazer</strong> mais<br />
<strong>prazer</strong>oso que outro. O <strong>prazer</strong> é agradável a todos os<br />
seres vivos; a dor, repelente.<br />
(DIÓGENES LAÉRCIO II, 86-87)<br />
E, logo a seguir, Diógenes Laércio acrescenta:<br />
[Para os cirenaicos]o <strong>prazer</strong> é um bem, mesmo que<br />
resulte dos fatos mais vergonhosos, como diz<br />
1<br />
DIÓGENES LAÉRCIO, Vi<strong>da</strong> e Sentenças dos filósofos ilustres, II, 86-90. O livro II, capítulo VIII, é<br />
dedicado a Aristipo e sua escola.<br />
2<br />
DIÓGENES LAÉRCIO, X, 136-137.
Hipóbotos em sua obra Sobre as Escolas Filosóficas.<br />
Pois mesmo que a ação seja absur<strong>da</strong>, to<strong>da</strong>via o <strong>prazer</strong><br />
é por si mesmo desejável e bom.<br />
Entretanto, a remoção <strong>da</strong> dor que é defendi<strong>da</strong> por<br />
Epicuro, não é um <strong>prazer</strong> aos olhos deles, e nem a<br />
ausência de <strong>prazer</strong> é dor. Prazer e dor são<br />
movimentos, ao passo que nem a ausência de dor,<br />
nem a ausência de <strong>prazer</strong> são movimentos, visto que a<br />
ausência de dor é como se fosse o estado de quem está<br />
adormecido. (DIÓGENES LAÉRCIO II, 88-89)<br />
Essa oposição agonística entre os movimentos de <strong>prazer</strong> e dor resulta numa<br />
orientação moral muito polêmica. Entendendo que o <strong>prazer</strong> é sempre movimento,<br />
não existe um <strong>prazer</strong> diferente do outro. Não existe um <strong>prazer</strong> mais <strong>prazer</strong>oso ou<br />
melhor que outro. No máximo, os cirenaicos reconheciam uma diferenciação entre as<br />
experiências <strong>prazer</strong>osas, pelo fato de elas residirem no corpo ou na alma. E disso<br />
concluíam que:<br />
Os <strong>prazer</strong>es físicos são preferíveis aos <strong>prazer</strong>es <strong>da</strong><br />
alma e as dores físicas piores que as <strong>da</strong> alma.<br />
(DIÓGENES LAÉRCIO II, 90)<br />
Essa predileção pelos <strong>prazer</strong>es do corpo é conseqüência direta <strong>da</strong> definição<br />
de <strong>prazer</strong> e dor como movimentos no corpo e na alma. O <strong>prazer</strong> do corpo é aquele<br />
mais fácil de alcançar, renovar, e também de manter por um período mais<br />
prolongado, uma vez que “o movimento <strong>da</strong> alma se exaure com o tempo.” 3 Em<br />
virtude disso, inclusive, “as penas físicas são piores que as penas <strong>da</strong> alma. Por isso,<br />
os culpados são punidos com tormentos físicos.” 4<br />
O <strong>prazer</strong> é por si mesmo desejável. É, por natureza, o maior móbil de nossos<br />
desejos. Desse modo, <strong>segundo</strong> os cirenaicos, qualquer evento ou experiência que<br />
envolva ganho de <strong>prazer</strong>, torna-se imediatamente isento de condenação, por mais que<br />
envolva ações moralmente questionáveis.<br />
O desconforto ético causado por esse tipo de pensamento origina críticas<br />
contundentes. Como justificar que o maior bem almejado pelos homens seja capaz de<br />
autorizar as práticas mais egoístas e desagregadoras <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> coletiva, já que limita<strong>da</strong>s<br />
apenas pela satisfação de ca<strong>da</strong> indivíduo?<br />
3<br />
DIÓGENES LAÉRCIO II, 90.<br />
4<br />
Ibidem.
Epicuro rebate essa polêmica posição do pensamento hedonista que lhe<br />
antecede: é fun<strong>da</strong>mental que o <strong>prazer</strong> seja acompanhado de prudência (phronesis) 5 ,<br />
beleza e justiça.<br />
Não existe vi<strong>da</strong> <strong>prazer</strong>osa sem prudência, beleza e<br />
justiça, e não existe prudência, beleza e justiça, sem<br />
<strong>prazer</strong>. A quem falta isso não é possível a vi<strong>da</strong><br />
<strong>prazer</strong>osa.(DIÓGENES LAÉRCIO X, Máxima Principal, V)<br />
O <strong>prazer</strong> acompanhado de prudência, beleza e justiça é riqueza que -e porquepossui<br />
limites. É satisfação que não direciona para um tempo infinito, mas ao<br />
contrário, dedica-se à plenitude do tempo finito. 6 Do mesmo modo, a felici<strong>da</strong>de<br />
(eu<strong>da</strong>imonia) é conquista que se dá dentro destes limites: <strong>da</strong> prudência que orienta<br />
para a escolha do <strong>prazer</strong> <strong>da</strong>s coisas simples, onde a beleza e a justiça são possíveis,<br />
<strong>segundo</strong> a natureza.<br />
E o que dizer <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de, <strong>segundo</strong> a ótica cirenaica? Ora, o <strong>prazer</strong> cinético<br />
precisa ser constantemente buscado ou acrescentado, portanto, a felici<strong>da</strong>de não<br />
poderia ser outra coisa que não o somatório dos <strong>prazer</strong>es experienciados:<br />
O <strong>fim</strong> último na reali<strong>da</strong>de é o <strong>prazer</strong> particular,<br />
enquanto a felici<strong>da</strong>de é o somatório dos <strong>prazer</strong>es<br />
particulares, nos quais se incluem também os <strong>prazer</strong>es<br />
passados e os futuros.<br />
(DIÓGENES LAÉRCIO II, 87)<br />
Não é à toa que Hegésias, um dos mais conhecidos expoentes <strong>da</strong> escola<br />
cirenaica 7 , chegava a afirmar que a conquista <strong>da</strong> felici<strong>da</strong>de era absolutamente<br />
impossível:<br />
É absolutamente impossível alcançar a felici<strong>da</strong>de, pois<br />
o corpo é afetado por muitos sofrimentos, a alma sofre<br />
junto com o corpo e se perturba com ele, e a sorte<br />
impede que se realizem muitas esperanças. De tudo<br />
isso resulta que a felici<strong>da</strong>de não existe.<br />
(DIÓGENES LAÉRCIO II, 94)<br />
5<br />
Optamos pela tradução de phronesis por prudência, em Epicuro. De acordo com PETERS (1974),<br />
p.188, a phronesis sempre teve, no pensamento grego, um colorido prático e ético. Entretanto, em<br />
PLATÃO, observamos seu uso também fazendo referência à contemplação intelectual <strong>da</strong>s idéias (cf.<br />
República, 505a ss.). Será com ARISTÓTELES (cf. Ética a Nicômaco VI, 1140 a-b) que a phronesis<br />
retomará o sentido de sabedoria moral e prática, vindo a ocupar um papel central no <strong>epicurismo</strong>, no<br />
estoicismo e na filosofia de Plotino.<br />
6<br />
Cf. DIÓGENES LAÉRCIO X, Máxima Principal, XIX.<br />
7<br />
Cf. DIÓGENES LAÉRCIO II, 93-95.
Que sentido se pode atribuir à felici<strong>da</strong>de, onde tudo é permanente<br />
movimento, mu<strong>da</strong>nça, incompletude e transição? Qualquer ideal de plenitude parece<br />
encontrar sua negação. Nesses termos, a felici<strong>da</strong>de só pode ser uma ilusão. Só há<br />
espaço para o <strong>prazer</strong> e a dor, disputando e alternando sua temporária permanência.<br />
Platão, grande crítico <strong>da</strong>s escolas hedonistas <strong>da</strong> época, estu<strong>da</strong> a dinâmica na<br />
qual convivem o <strong>prazer</strong> (cinético) e a dor. No Filebo, acompanhamos a explicação<br />
<strong>segundo</strong> a qual o <strong>prazer</strong>, sendo movimento, tem sua geração (genesis) atrela<strong>da</strong> à<br />
dissolução (dialysis) <strong>da</strong> dor, e vice-versa. Para uma melhor compreensão desses<br />
processos, basta observarmos situações banais, como a fome e a sede. 8 Em ambos os<br />
exemplos, percebe-se uma situação de falta ou per<strong>da</strong> <strong>da</strong> harmonia e completude<br />
anteriores; uma dissolução ou desagregação (diakrisis) do estado natural, que<br />
explica o surgimento <strong>da</strong> dor. 9 Por isto, o alimentar-se ou beber algum líquido,<br />
consiste na forma de reposição dessa falta ou reconstituição (apodosis) <strong>da</strong> harmonia,<br />
que também vem a ser a gênese do <strong>prazer</strong>. 10<br />
Digo que quando em nós, vivos, dissolve-se a<br />
harmonia, produzem-se juntos, ao mesmo tempo, a<br />
dissolução <strong>da</strong> natureza e a geração <strong>da</strong>s dores. (...)<br />
Quando a harmonia reconstitui-se de novo e restaura a<br />
própria natureza, é preciso dizer que se gera o<br />
<strong>prazer</strong>(...) (Platão, Filebo 31d)<br />
Por isso, ou seja, por terem sua geração e dissolução intrinsecamente liga<strong>da</strong>s<br />
à geração e dissolução <strong>da</strong> dor, esses <strong>prazer</strong>es são chamados por Platão de mistos. A<br />
afirmação de que o <strong>prazer</strong> é sempre um misto de dor chega, no Górgias, ao extremo<br />
do reconhecimento <strong>da</strong> contemporanei<strong>da</strong>de dos dois:<br />
SÓCRATES- Compreende, então, a conseqüência<br />
disso? Ocorre a você que quando disse beber quando<br />
se está com sede, você disse experimentar <strong>prazer</strong>,<br />
experimentando, contemporaneamente, dor? Ou não é<br />
ver<strong>da</strong>de que isso aconteça, contemporaneamente, no<br />
mesmo tempo e no mesmo lugar, seja na alma, seja no<br />
corpo? (Platão, Górgias, 496-e)<br />
8<br />
PLATÃO, Filebo, 31e- 32 a.<br />
9<br />
Id. 32a.<br />
10<br />
Ibid.
Além disso, de acordo com o Filebo, o <strong>prazer</strong> pertence ao gênero ilimitado<br />
(apeiron). 11 Como tal, ele admite a variação (ilimita<strong>da</strong>) entre o mais e o menos,<br />
descrita por Sócrates no exemplo do mais frio e do mais quente 12 : apenas quando é<br />
imposto um limite (peras) ou uma quanti<strong>da</strong>de (poson) a ambos, eles deixam de ser<br />
como tal, quer dizer, deixam de ser mais quente ou frio. 13 Desse modo, conclui-se<br />
que, em tudo aquilo que se manifesta através do gênero ilimitado, inclusive o <strong>prazer</strong>,<br />
não é possível encontrar estabili<strong>da</strong>de ou permanência. 14<br />
Por isso, no Górgias, a famosa comparação que Sócrates faz entre a parte <strong>da</strong><br />
alma que é sede dos desejos (epithymiai) e uma ânfora, descreve uma ânfora fura<strong>da</strong>:<br />
a insaciabili<strong>da</strong>de dos desejos 15 se explica pela impossibili<strong>da</strong>de dos <strong>prazer</strong>es buscados<br />
proporcionarem estabili<strong>da</strong>de e limite. Assim, em uma segun<strong>da</strong> e semelhante<br />
metáfora, Platão compara a vi<strong>da</strong> do intemperante a de um homem que possuísse<br />
muitas ânforas, as quais procurasse sempre manter cheias de mel, vinho, leite e<br />
outros líquidos 16 , mas que, por serem fura<strong>da</strong>s e de má quali<strong>da</strong>de, não reteriam o<br />
conteúdo:<br />
Ele seria obrigado a enchê-los continuamente, dia e<br />
noite, porque, se assim não o fizesse, experimentaria<br />
as maiores dores.<br />
(Górgias, 493e- 494a)<br />
Os argumentos contra a identificação do <strong>prazer</strong> com o bem são categóricos:<br />
Parece improvável retirar o <strong>prazer</strong> <strong>da</strong> condição de instável e ilimitado. Como<br />
conciliar a natureza do <strong>fim</strong> último ou supremo, maior justificativa <strong>da</strong>s escolhas e<br />
ações humanas, com o instável e ilimitado?<br />
Diógenes Laércio relata que a prova aponta<strong>da</strong> por Epicuro a favor do <strong>prazer</strong><br />
como <strong>fim</strong> supremo, encontra-se na disposição natural demonstra<strong>da</strong> pelos seres vivos,<br />
logo após o nascimento, em afastarem-se <strong>da</strong> dor, buscando o <strong>prazer</strong>, sem a<br />
11<br />
PLATÃO, Filebo, 31a.<br />
12<br />
Id. 24 b.<br />
13<br />
Sócrates, partindo dos exemplos do mais frio e do mais quente, ain<strong>da</strong> diz: “acrescenta-lhes agora o<br />
que é mais seco e mais úmido, mais numeroso e menos numeroso, mais rápido e mais lento, maior e<br />
menor, e tudo aquilo que anteriormente incluímos num gênero único, ou seja, a que admite o mais e o<br />
menos.”(Filebo, 25c)<br />
14<br />
A não ser que chamemos de permanente o próprio movimento que caracteriza o ilimitado.<br />
15<br />
PLATÃO, Górgias 493a-b.<br />
16<br />
Podemos interpretar que a varie<strong>da</strong>de de líquidos correspon<strong>da</strong> à multiplici<strong>da</strong>de de “objetos de<br />
desejo”(de <strong>prazer</strong>) que podem ser buscados. Assim, o <strong>prazer</strong> se associa ao múltiplo, como também se<br />
associa ao movimento constante evocado pela imagem <strong>da</strong> água escorrendo <strong>da</strong>s ânforas.
intervenção <strong>da</strong> razão. 17 Esse seria o caminho natural, podemos mesmo dizer,<br />
instintivo, 18 seguido por todos os homens, ou antes, por todos os seres vivos.<br />
Mas então, se esta é uma busca instintiva, cabe perguntar por que os homens<br />
ain<strong>da</strong> precisam <strong>da</strong> filosofia para conquistar o <strong>prazer</strong>. A explicação consiste em não<br />
ser todo e qualquer <strong>prazer</strong> aquele que se identifica com o bem. Os <strong>prazer</strong>es são<br />
diversificados e a maioria deles não possui a duração – não proporciona permanência<br />
– e nem beneficia o corpo e a alma como um todo, ou suas partes mais importantes,<br />
mas apenas satisfaz um desejo particular ou isolado. Não fossem assim, os <strong>prazer</strong>es<br />
não difeririam uns dos outros:<br />
Se todo <strong>prazer</strong> se intensificasse em extensão e duração<br />
e influenciasse todo nosso organismo, ou as partes<br />
mais importantes de nossa natureza, os <strong>prazer</strong>es nunca<br />
difeririam entre si.<br />
(DIÓGENES LAÉRCIO X, Máximas Principais, IX)<br />
A partir <strong>da</strong> diferenciação dos <strong>prazer</strong>es, Epicuro fun<strong>da</strong>menta sua resposta às<br />
críticas usualmente feitas ao hedonismo. O <strong>prazer</strong> buscado pelo <strong>epicurismo</strong> não se<br />
define pelo gozo dos sentidos, e assim, não é o mesmo cultuado pelos intemperantes:<br />
Quando então dizemos que o <strong>prazer</strong> é o <strong>fim</strong>, não nos<br />
referimos aos <strong>prazer</strong>es dos intemperantes ou aos que<br />
consistem no gozo dos sentidos, como acreditam<br />
certas pessoas que ignoram a nossa doutrina, ou não<br />
concor<strong>da</strong>m com ela, ou a interpretam erroneamente,<br />
mas ao <strong>prazer</strong> que é ausência de sofrimentos no corpo<br />
e de perturbações na alma.<br />
(DIÓGENES LAÉRCIO X, Carta a Meneceu, 131)<br />
O <strong>prazer</strong> possui limites ao ser definido como “ausência de sofrimentos no<br />
corpo e de perturbações na alma”; ele é limitado pela própria exclusão de to<strong>da</strong> dor.<br />
Portanto, pode ser estável, e proporcionar a plenitude <strong>da</strong> qual o bem não pode<br />
prescindir.<br />
O argumento do <strong>prazer</strong> catastemático (katastematike hedone) ou <strong>prazer</strong><br />
estático é a grande novi<strong>da</strong>de introduzi<strong>da</strong> por Epicuro. Este é o <strong>prazer</strong> inerente a todos<br />
os seres vivos que, ao se caracterizar pelo repouso e sua estabili<strong>da</strong>de intrínseca,<br />
17<br />
DIÓGENES LAÉRCIO X, Vi<strong>da</strong> de Epicuro, 137.<br />
18<br />
Ibid.
diferencia-se dos demais <strong>prazer</strong>es, os quais são reconhecidos por envolverem<br />
constante movimento e, portanto, por serem essencialmente instáveis:<br />
As palavras de Epicuro em sua obra Sobre a escolha<br />
são: “a tranqüili<strong>da</strong>de <strong>da</strong> alma e do corpo são <strong>prazer</strong>es<br />
estáticos; a alegria e o deleite consistem em<br />
movimento e ativi<strong>da</strong>de.”<br />
(DIÓGENES LAÉRCIO X, Vi<strong>da</strong> de Epicuro,136)<br />
Trata-se de um novo horizonte aberto, capaz de superar as dificul<strong>da</strong>des<br />
aponta<strong>da</strong>s por Platão nas filosofias hedonistas e, além disso, refutar a tese dos<br />
<strong>prazer</strong>es mistos. O repouso permite que o movimento possa ser dispensado. Assim, o<br />
<strong>prazer</strong> catastemático é aquele que pode permanecer o mesmo, opondo-se à dor e<br />
mantendo-se autárquico frente às mu<strong>da</strong>nças. O <strong>prazer</strong> catastemático só precisa do<br />
mínimo de recursos materiais, necessários a uma sobrevivência digna. Ele afasta a<br />
dor e proporciona sereni<strong>da</strong>de para o desfrute dos demais <strong>prazer</strong>es.<br />
Antes de Epicuro, o repouso era tido como um estado à parte, definido,<br />
inclusive, pela exclusão <strong>da</strong>s sensações de <strong>prazer</strong> e dor. Para os cirenaicos, como já<br />
visto, o repouso é um estado que se assemelha ao sono: ele reúne as “condições<br />
intermediárias” 19 , ausência de <strong>prazer</strong> e de dor, as quais ocupam apenas o tempo que<br />
intermedia os movimentos de <strong>prazer</strong> e dor.<br />
Platão também fala a respeito do estado neutro. 20 Ele concor<strong>da</strong> que esse seria<br />
o estado de quem não experimenta nem dor, nem <strong>prazer</strong>, ou ain<strong>da</strong>, os movimentos<br />
mistos de dor e <strong>prazer</strong>. Entretanto, curiosamente, o estado neutro é descrito no<br />
Filebo como um terceiro tipo de vi<strong>da</strong> (triton ekeinon bion) 21 : aquele no qual a<br />
phronesis encontraria sua melhor expressão:<br />
... no qual não há o gozar, nem o sofrer, mas o<br />
phronein <strong>da</strong> forma mais pura possível.<br />
(Filebo, 55a)<br />
Para Platão, o exercício de phronein ocorre <strong>da</strong> forma mais pura, e assim,<br />
plena, no estado neutro, justamente por não haver interferência ou perturbação dos<br />
movimentos de <strong>prazer</strong> e/ou dor sobre a alma. A estabili<strong>da</strong>de é indispensável à<br />
phronesis.<br />
19<br />
Cf. DIÓGENES LAÉRCIOII, 90.<br />
20<br />
PLATÃO, Filebo, 43d-44a.<br />
21<br />
Cf. Filebo, 55a.
Epicuro também compreende que a estabili<strong>da</strong>de é condição primordial<br />
indispensável à phronesis. Contudo, ele introduz que, tanto a estabili<strong>da</strong>de, quanto a<br />
própria phronesis 22 , estão ao alcance <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> cotidiana: através de uma existência<br />
serena e <strong>prazer</strong>osa, virtuosa e <strong>feliz</strong>, mesmo em meio às mais intensas e profun<strong>da</strong>s<br />
mu<strong>da</strong>nças que a vi<strong>da</strong> de todos e de ca<strong>da</strong> um possa sempre trazer.<br />
22<br />
Na Carta a Meneceu 132, Epicuro atribui à phronesis um duplo papel: ela é “o <strong>princípio</strong> e máximo<br />
bem... mais preciosa que a filosofia... <strong>da</strong> qual se originam to<strong>da</strong>s as outras virtudes.” Desse modo, ao<br />
mesmo tempo, a phronesis é <strong>princípio</strong> e <strong>fim</strong>. Ela é sabedoria (que leva à aquisição do bem) e virtude<br />
(que se manifesta numa vi<strong>da</strong> <strong>prazer</strong>osa).