fazenda pilão d'à gua da velha faxina - IHGGI - Instituto Histórico ...
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1<br />
Artigo publicado nos Anais do V Simpósio de Ciências Aplica<strong>da</strong>s <strong>da</strong><br />
FAIT, outubro, 2008, Itapeva, SP.<br />
FAZENDA PILÃO D’ÀGUA DA VELHA FAXINA: PROPOSTA DE<br />
GESTÃO DO PATRIMÔNIO ARQUEOLÓGICO<br />
MARQUES, Silvia Corrêa. Mestre em História Social (FFFLCH-USP), doutoran<strong>da</strong> em Arqueologia<br />
pelo MAE-USP.<br />
Docente – Facul<strong>da</strong>de de Ciência Sociais Agrárias de Itapeva FAIT.<br />
MANZATO, Fabiana. Mestre em Turismo (UCS-RS), doutoran<strong>da</strong> em Arqueologia pelo MAE-USP.<br />
Resumo<br />
Este artigo baseia-se no trabalho elaborado em 2007 para a disciplina Gestão do Patrimônio<br />
Arqueológico, ministra<strong>da</strong> em nível de pós-graduação pelo Prof. Dr. José Luiz de Morais, referente ao<br />
programa do Museu de Arqueologia e Etnologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo. Assim, trata – se de<br />
uma proposta de gestão do patrimônio arqueológico para a Fazen<strong>da</strong> Pilão d’Àgua localiza<strong>da</strong> no<br />
município de Itapeva, Estado de São Paulo. As ações, critérios e valores que fazem parte do universo<br />
do conhecimento acadêmico especializado, muitas vezes, é externo ao habitante local, bem como ao<br />
poder público municipal. Por outro lado, ao criar áreas de tensão, esse debate pode vir a sensibilizar<br />
a comuni<strong>da</strong>de em torno <strong>da</strong> importância <strong>da</strong> preservação <strong>da</strong> <strong>fazen<strong>da</strong></strong>, um sítio arqueológico de valor<br />
histórico riquíssimo, testemunho dos períodos colonial, imperial e republicano. O local passou a fazer<br />
parte do poder público municipal desde 2003, entretanto, são evidentes os processos de destruição e<br />
uso inapropriado desse patrimônio específico.<br />
Palavras chaves: gestão do patrimônio arqueológico; sítio arqueológico; história de Itapeva;<br />
tropeirismo.<br />
Tema central: Gestão do patrimônio cultural.<br />
Abstract<br />
This article is based on the work elaborated in 2007 for the discipline Archaeological Heritage<br />
Management, administered in level of post- graduation by Prof. José Luiz de Morais Dr., regarding the<br />
program of the Archeology and Ethnology Museum of the University of São Paulo. Thus, it is a<br />
proposal of archaeological patrimony management for Pilão d’Água Farm located in Itapeva, State of<br />
São Paulo. The actions, criterions and values that are part of the universe of the specialized<br />
academic knowledge are, many times, external to the local inhabitant, as well as the municipal<br />
government. On the other hand, upon creating areas of tension, this debate can sensitize the<br />
community around the importance of the preservation of the farm, a very rich historical worthy<br />
archaeological site, testimony of the republican, imperial, and colonial periods. The site has become<br />
part of the municipal government since 2003, however, the processes of destruction are evident and<br />
misuse of that specific heritage.<br />
Keywords: Archaeological Heritage Management; Archaeological Site; History of Itapeva;<br />
“Tropeirismo” (cattle drive’s way). .<br />
Main topic: Cultural Heritage Management.<br />
Introdução<br />
A ci<strong>da</strong>de de Itapeva localiza-se a 300 km <strong>da</strong> capital de São Paulo.<br />
Atualmente, tem cerca de 80 mil habitantes e sua origem histórica está diretamente<br />
relaciona<strong>da</strong> ao tropeirismo que durante dois séculos foi responsável pela abertura e
2<br />
alargamento <strong>da</strong>s rotas terrestres, pela comunicação e pelo transporte de cargas para<br />
as regiões longínquas do Brasil, originando um inigualável patrimônio cultural até o<br />
momento <strong>da</strong> decadência desta ativi<strong>da</strong>de após a implantação <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> de ferro no<br />
Brasil, em 1893 (Manzato, 2003).<br />
A vila de Faxina (posteriormente Itapeva), fun<strong>da</strong><strong>da</strong> oficialmente em 20 de<br />
setembro de 1769 por Antonio Furquim Pedroso, foi um local estratégico na longa<br />
rota do comércio interno de animais que se deslocavam <strong>da</strong> região de Viamão, no<br />
extremo Sul <strong>da</strong> Colônia, para Sorocaba. Esse trajeto era composto por várias<br />
paragens e vilas, como Itapeva, local <strong>da</strong>s muitas <strong>fazen<strong>da</strong></strong>s de invernagens para o<br />
gado vacum, cavalar e, principalmente, para o muar.<br />
Na Estra<strong>da</strong> Geral, os animais se deslocavam junto a tropeiros, camara<strong>da</strong>s,<br />
libertos e escravos, do Sul e dos Campos Gerais de Curitiba, para as feiras de<br />
Sorocaba, que perduraram de 1750 até a segun<strong>da</strong> metade do século XIX, segundo<br />
Marques (2001). Quanto ao destino dos animais, as regiões consumidoras,<br />
destacavam – se: Minas Gerais, Baixa<strong>da</strong> Fluminense, Vale do Paraíba e o Oeste<br />
Paulista. No lombo dos muares, chegavam ao litoral os produtos a serem<br />
exportados: o ouro, o açúcar e o café (Straforini, 2001).<br />
Um registro sobre a Vila de Itapeva e sua pecuária ocorreu no início do ano<br />
de 1820, quando o viajante e naturalista francês Saint-Hilaire (1976, p.277) passou<br />
pelo local:<br />
Itapeva fornece grande quanti<strong>da</strong>de de gado bovino à ci<strong>da</strong>de do Rio de Janeiro,<br />
mas parece que a maior parte <strong>da</strong>s <strong>fazen<strong>da</strong></strong>s <strong>da</strong> região, as quais de resto são em<br />
pequeno número, pertencem a homens ricos que nas mesmas não residem, e<br />
que contrariamente aos fazendeiros de Minas Gerais, despendem suas ren<strong>da</strong>s<br />
alhures.<br />
Maria Thereza S. Petrone (1976), a partir <strong>da</strong>s correspondências e livros de<br />
Antonio <strong>da</strong> Silva Prado, o Barão de Iguape, reconstituiu aspectos fun<strong>da</strong>mentais do<br />
Ciclo do Tropeirismo e mostrou como a riqueza de vilas como Itapeva escoou para<br />
Sorocaba e São Paulo, para as mãos dos negociantes de animais e arrematadores<br />
de impostos. Nesse contexto, Itapeva se desenvolveu como uma grande área de<br />
invernagem de animais, ou engor<strong>da</strong>, principalmente do muar no século XIX.<br />
Portanto, nas <strong>fazen<strong>da</strong></strong>s de Itapeva, como a Pilão d’Água, o aluguel de pastagens,<br />
além de se constituir como a ativi<strong>da</strong>de econômica predominante, portanto, lucrativa,
3<br />
utilizou o trabalho escravo no trato com os animais, no trabalho doméstico e nas<br />
lavouras de milho ( Marques, 2001).<br />
A ativi<strong>da</strong>de agropecuária <strong>da</strong> <strong>fazen<strong>da</strong></strong> em estudo manteve-se até o século XX,<br />
principalmente nas primeiras déca<strong>da</strong>s, com o cultivo do algodão e <strong>da</strong> suinocultura,<br />
cuja produção de banha era destina<strong>da</strong> à ci<strong>da</strong>de de São Paulo. Nesse sentido, a<br />
produção <strong>da</strong> <strong>fazen<strong>da</strong></strong> passou a acompanhar os ciclos econômicos de caráter<br />
regional, sendo as mercadorias transporta<strong>da</strong>s por trem, pois nas terras <strong>da</strong> <strong>fazen<strong>da</strong></strong> já<br />
se fazia presente os trilhos <strong>da</strong> Estra<strong>da</strong> de Ferro Sorocabana.<br />
Assim, de acordo com Manzato (2003), dentre os legados <strong>da</strong> cultura tropeira,<br />
“estão as ‘tralhas’, ou seja, utensílios utilizados no cotidiano pelos tropeiros, tais<br />
como, trempe (fogão), trajes, panelas, etc, assim como àquelas ‘tralhas’ utiliza<strong>da</strong>s<br />
pelas mulas de carga, como as bruacas (bolsas de couro próprias pra carregar o que<br />
não podia molhar), os jacás (cestos trançados em bambu), entre outros”.<br />
Outro marco na história de Itapeva deve-se ao fato de que a ci<strong>da</strong>de, durante a<br />
Revolta Constitucionalista de 1932, também denomina<strong>da</strong> Revolução de 32, ficou<br />
entre as duas ci<strong>da</strong>des que sofreram enfrentamentos constantes: Itararé e a pequena<br />
Buri. Itapeva não participou diretamente do combate, mas forneceu, pelo menos, 55<br />
combatentes. Estas observações relaciona<strong>da</strong>s anteriormente permitem delimitar a<br />
relevância <strong>da</strong> locali<strong>da</strong>de de Itapeva e por isso merece destaque para o<br />
desenvolvimento de estudos arqueológicos voltados para estes eventos históricos (e<br />
também aos possíveis pré-históricos).<br />
Assim após estas considerações inicias, destaca-se que a elaboração deste<br />
artigo teve como finali<strong>da</strong>de apresentar uma proposta de trabalho que visasse<br />
atender as exigências <strong>da</strong> disciplina de Gestão do Patrimônio Arqueológico,<br />
ministra<strong>da</strong> pelo Prof. Dr. José Luiz de Morais, no Programa de Pós-Graduação em<br />
Arqueologia do Museu de Arqueologia e Etnologia <strong>da</strong> Universi<strong>da</strong>de de São Paulo,<br />
elaborando desta forma, uma proposta de gestão do patrimônio arqueológico.<br />
Objetivo<br />
- Elaborar uma proposta de gestão do patrimônio arqueológico para a<br />
Fazen<strong>da</strong> Pilão d’Àgua <strong>da</strong> Velha Faxina, em Itapeva, no interior do Estado de São<br />
Paulo.<br />
Objetivos Específicos
4<br />
1. Realizar pesquisas documentais e orais sobre a ocupação histórica <strong>da</strong><br />
locali<strong>da</strong>de;<br />
2. Realizar ações de levantamento, prospecção e resgate arqueológico,<br />
visando avaliar a existência de possíveis ocupações além <strong>da</strong> atual (histórica);<br />
3. Analisar e interpretar as normas legais administrativas, políticas e<br />
econômicas atribuí<strong>da</strong>s ao gerenciamento do patrimônio arqueológico;<br />
4. Propor ações de curto, médio e longo prazo para a gestão do patrimônio<br />
arqueológico;<br />
5. Estabelecer parceria entre MAE/USP, pesquisadores locais (arqueólogos,<br />
historiadores, entre outros), <strong>Instituto</strong> Histórico, Geográfico e Genealógico de Itapeva,<br />
Prefeitura Municipal de Itapeva e Centro de Tradições Tropeiras Juvenal Gaúcho;<br />
6. Propor um aproveitamento alternativo para o Casarão, ou seja, transformálo<br />
em museu ou Casa de Cultura para que o mesmo seja um espaço de lazer e<br />
conhecimento para a população residente e demais visitantes;<br />
7. Criar um espaço destinado ao patrimônio arqueológico de forma a mantêlos<br />
em seu local de origem bem como favorecer o repatriamento de acervos que<br />
estão alojados no município de Piraju e no MAE;<br />
8. Informar a comuni<strong>da</strong>de dos resultados <strong>da</strong> investigação arqueológica em<br />
linguagem adequa<strong>da</strong> (Arqueologia Pública);<br />
9. Facilitar a participação <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de residente na gestão do seu<br />
patrimônio arqueológico através <strong>da</strong> capacitação <strong>da</strong> mão-de-obra para atuarem como<br />
monitores, auxiliares nas escavações, entre outros (Arqueologia Pública);<br />
10. Promover e proteger o patrimônio através de procedimentos científicos, <strong>da</strong><br />
aplicação de normas legislativas que incidem sobre o patrimônio arqueológico e <strong>da</strong><br />
participação <strong>da</strong> população residente (educação patrimonial);<br />
11. Reconstrução de Cenários de Ocupação Humana (objetos arqueológicos<br />
musealizados) em eixos temáticos: Pré-História, Cultura Tropeira e Revolução de 32.<br />
A Fazen<strong>da</strong> Pilão d’Àgua <strong>da</strong> Velha Faxina<br />
A Fazen<strong>da</strong> Pilão d’Água está situa<strong>da</strong> no município de Itapeva, região<br />
sudoeste do Estado de São Paulo, em área limítrofe urbano rural, à margem <strong>da</strong><br />
Rodovia Francisco Alves Negrão (SP – 258), entre Capão Bonito e Itararé, este<br />
distante 2 km <strong>da</strong> divisa com o Estado do Paraná.
5<br />
Figura 1: A Casa Grande ou “Casarão” e a rampa frontal no presente. Foto: Silvio Araújo 2002.<br />
A <strong>fazen<strong>da</strong></strong> com suas inverna<strong>da</strong>s e potreiros, teve vários proprietários. No final<br />
do século XIX, pertenceu à senhora Fortunata Maria de Camargo, sendo<br />
posteriormente adquiri<strong>da</strong> por seu genro o Coronel Donato de Camargo Melo 1 . Já na<br />
déca<strong>da</strong> de 20 do século passado, a proprie<strong>da</strong>de passou para Adelino Rolim. Hans<br />
Henrich Rudof Braren, imigrante alemão, tornou-se proprietário a partir de 1944.<br />
O local passou por várias desapropriações, sendo uma delas para a<br />
construção do campo de aviação, outra para a construção do Centro Comunitário e<br />
Recreativo Bento Alves Natel, na déca<strong>da</strong> de 70 do século passado. Entretanto, esta<br />
antiga área de lazer, por questões de ordem política local, foi abandona<strong>da</strong> no<br />
passado, estando hoje comprometi<strong>da</strong> pelo assoreamento e poluição. Em 2003, o<br />
Município adquiriu 74 alqueires incluindo a sede para construir ali uma escola de<br />
Educação Ambiental, uma parte desses 74 alqueires foi doa<strong>da</strong> para a UNESP de<br />
Itapeva. Dos 960 alqueires, hoje restam aproxima<strong>da</strong>mente 80 alqueires, de acordo<br />
com Oliveira, Arru<strong>da</strong> e Morita (2006).<br />
1 Inventário de Fortunata Maria de Camargo (1894). Cartório do 1º Ofício de Itapeva. Levantamento feito pela<br />
historiadora Sílvia Corrêa Marques.
6<br />
Figura 2: Prédio identificado como Senzala. Substituição do madeiramento antigo (lavrado no<br />
machado), por caibros de eucalipto roliço. Foto: Sílvia Marques, novembro de 2007.<br />
Figura 3: Planta <strong>da</strong> Senzala. Desenho de Nilton de Jesus, 2007.
7<br />
Com o crescimento <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, o entorno <strong>da</strong> <strong>fazen<strong>da</strong></strong> vem se transformando.<br />
No início <strong>da</strong> estra<strong>da</strong> de terra que dá acesso à <strong>fazen<strong>da</strong></strong>, foi construí<strong>da</strong> uma ampla<br />
entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> Facul<strong>da</strong>de de Ciências Sociais e Agrárias de Itapeva (FAIT), próxima a<br />
ela está o Grêmio Recreativo dos Policiais Militares e, após a entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> <strong>fazen<strong>da</strong></strong>,<br />
localiza–se o bairro Santa Maria, chamado por muitos de “favela”, além <strong>da</strong> sede<br />
esportiva do Sindicato dos Papeleiros, de chácaras e do lixão municipal. O<br />
loteamento Colina dos Pinheiros, é formado por pequenas chácaras (em torno de<br />
2.000 à 4.000 m²) contíguas às terras <strong>da</strong> <strong>fazen<strong>da</strong></strong> ( abrangendo também o Recanto<br />
Bento Alves Natel, área de lazer onde está localiza<strong>da</strong> a represa que abastece a<br />
ci<strong>da</strong>de). Na ver<strong>da</strong>de, todo o conjunto é conhecido popularmente como Pilão d´Água.<br />
Em 2006, o poder municipal iniciou ações de limpeza e de recuperação <strong>da</strong> área <strong>da</strong><br />
represa.<br />
A pesquisa arqueológica realiza<strong>da</strong> por Araújo (2006) revelou nesta <strong>fazen<strong>da</strong></strong><br />
muitas estruturas de pedras e uma ruína de um antigo monjolo que aproveitaria o<br />
desnível <strong>da</strong> que<strong>da</strong> d´água <strong>da</strong> cachoeira do Ribeirão Fundo. Foi esta estrutura que<br />
possivelmente deu nome à <strong>fazen<strong>da</strong></strong>. Nesta mesma pesquisa, o autor identificou<br />
edifícios e estruturas de pedras do local e constatou, pelo menos, cinco diferentes<br />
técnicas construtivas, descritas a seguir:<br />
edificação em taipa de pilão e vigas lavra<strong>da</strong>s a machado do Casarão e antiga<br />
Senzala; a segun<strong>da</strong> técnica é composta por estruturas de pedras encaixa<strong>da</strong>s<br />
umas sobre as outras, identifica<strong>da</strong>s como “muros dos escravos”; a terceira<br />
técnica observa<strong>da</strong> é composta por estruturas de pedras encaixa<strong>da</strong>s umas sobre<br />
as outras, com a utilização de argamassa de saibro, com ou sem mistura de<br />
cacos cerâmicos e entre elas, as esca<strong>da</strong>s, as muretas <strong>da</strong>s rampas que<br />
circun<strong>da</strong>m o Casarão, uma parede inclina<strong>da</strong> que, segundo antigos moradores <strong>da</strong><br />
<strong>fazen<strong>da</strong></strong>, trata –se <strong>da</strong> senzala. Estas três primeiras técnicas construtivas fazem<br />
referência aos períodos do Brasil Colônia e Império. A quarta técnica construtiva<br />
é composta por casas, barracões e um terreiro de tijolo à vista, utilizado<br />
possivelmente para secar cereais, inclusive uma estação de recebimento de<br />
energia elétrica que remonta ao início do século XX, quando a energia elétrica<br />
chegou em Itapeva. Alguns desses edifícios contam com reboque de argamassa<br />
de saibro, outros apresentam alicerces de pedras sobrepostas, típico <strong>da</strong> segun<strong>da</strong><br />
técnica construtiva cita<strong>da</strong>. A quinta e última técnica construtiva é composta por
8<br />
edifícios complementares ou estruturas sobrepostas do Casarão e Senzala<br />
(ARAÚJO, 2006)<br />
Orser (1992, p.84-86) adverte que a maior parte dos sítios arqueológicos<br />
históricos foram ocupados por curtos períodos de tempo tendo como conseqüência a<br />
pouca probabili<strong>da</strong>de de acúmulo de cama<strong>da</strong>s ou formação de micro-estratos. Outro<br />
problema indicado é a destruição <strong>da</strong>s evidências de ocupação de povos anteriores<br />
por técnicas de construção dos povos históricos mais recentes.<br />
Na <strong>fazen<strong>da</strong></strong> foram identificados três núcleos de solos antropogênicos (terra<br />
preta) no conjunto Casarão/Senzala. Um quarto núcleo foi recentemente alterado<br />
com ações de terraplanagem para a construção de piquetes para cavalos. Parte <strong>da</strong><br />
<strong>fazen<strong>da</strong></strong> estava sendo utiliza<strong>da</strong> por um grupo identificado como Associação de<br />
Tropeiros, grupo representante <strong>da</strong> tradição tropeira de Itapeva.<br />
Figura 4: Terraplanagem próxima ao muro de pedras, desrespeito a Portaria do IPHAN<br />
230/2002. Foto Sílvio Araújo, novembro de 2006.<br />
A <strong>fazen<strong>da</strong></strong> Pilão d’Água, apesar de não ser reconheci<strong>da</strong> oficialmente pelos<br />
órgãos competentes, ain<strong>da</strong> preserva na arquitetura <strong>da</strong> Casa Grande, nos muros de<br />
pedras construídos pelos escravos, estrutura característica dos “currais em taipa” do<br />
Sul do Brasil, além <strong>da</strong> senzala com terreiro fronteiro, <strong>da</strong> antiga capela e de outras
9<br />
estruturas em pedra sobrepostas ain<strong>da</strong> por serem estu<strong>da</strong><strong>da</strong>s, características<br />
importantes de um bem patrimonial de interesse histórico e arqueológico.<br />
Pela abor<strong>da</strong>gem <strong>da</strong> paisagem ou do entorno de ambientação de sítios e<br />
locais de interesse arqueológico, a localização geográfica <strong>da</strong> <strong>fazen<strong>da</strong></strong> merece uma<br />
atenção maior. Considerando uma área mais extensa, encontram-se duas<br />
edificações de interesse futuro para a arqueologia: a ponte ain<strong>da</strong> em uso <strong>da</strong> antiga<br />
Estra<strong>da</strong> de Ferro Sorocabana sobre o córrego do Aranha e o antigo matadouro<br />
municipal desativado. Ambos localizados nas imediações <strong>da</strong> entra<strong>da</strong> <strong>da</strong> ci<strong>da</strong>de, na<br />
Aveni<strong>da</strong> José Ermírio de Moraes, que se encontra em obras para futura duplicação.<br />
A ação <strong>da</strong>s máquinas fez surgir na paisagem a imponente ponte de ferro.<br />
Atualmente, esta <strong>fazen<strong>da</strong></strong> tem forte representativi<strong>da</strong>de para a comuni<strong>da</strong>de de<br />
Jaó, remanescente de quilombo de Itapeva, porque nas lembranças dos mais velhos<br />
aparece a ligação entre o casal fun<strong>da</strong>dor do quilombo e a <strong>fazen<strong>da</strong></strong>. Esta <strong>fazen<strong>da</strong></strong><br />
teria sido o local de saí<strong>da</strong> de Joaquim e Josepha nos anos posteriores à abolição<br />
para a formação do Jaó, hoje um bairro rural distante aproxima<strong>da</strong>mente 15<br />
quilômetros tanto <strong>da</strong> <strong>fazen<strong>da</strong></strong> como do município. Dessa forma, na <strong>fazen<strong>da</strong></strong> Pilão<br />
d´Água, além dos vestígios arqueológicos, está a memória viva <strong>da</strong> escravidão no<br />
município (Marques, 2001).<br />
Além disso, a Associação <strong>da</strong> Comuni<strong>da</strong>de Negra de Itapeva e Região está<br />
preocupa<strong>da</strong> com o tombamento de documentos e sítios detentores de<br />
reminiscências <strong>da</strong> história e cultura afro–brasileira de Itapeva, pois, alguns leigos<br />
estão identificando o lugar como uma espécie de antigo galpão, numa tentativa de<br />
apagar a memória <strong>da</strong> escravidão em Itapeva, reafirmando a negação <strong>da</strong> importância<br />
dos africanos e seus descendentes na formação histórico–cultural do município.<br />
Portanto, são questões que se entrelaçam com a construção <strong>da</strong> identi<strong>da</strong>de afrodescendente<br />
e com ações que favoreçam a promoção <strong>da</strong> igual<strong>da</strong>de racial a nível<br />
local.<br />
Dessa forma, a arqueologia poderá contribuir através <strong>da</strong> análise <strong>da</strong> cultura<br />
material, juntamente com as fontes históricas para o reencontro dos diversos atores<br />
sociais, as estruturas, a funcionali<strong>da</strong>de <strong>da</strong> <strong>fazen<strong>da</strong></strong> nos seus diversos períodos<br />
econômicos. E ain<strong>da</strong> contribuir para a busca de respostas quanto às divisões<br />
internas e a proximi<strong>da</strong>de <strong>da</strong> Senzala com a Casa Grande, que podem constituir sim<br />
um forte indício material <strong>da</strong> existência de famílias escravas na <strong>fazen<strong>da</strong></strong>, portanto <strong>da</strong><br />
capaci<strong>da</strong>de dos cativos em criar uma sociabili<strong>da</strong>de própria assenta<strong>da</strong> em relações
10<br />
de parentesco tal como os novos estudos sobre a escravidão brasileira têm<br />
demonstrado nas últimas déca<strong>da</strong>s (SLENES, 1996).<br />
Assim, outros estudos acerca <strong>da</strong> escravidão em regiões pertencentes ao<br />
Tropeirismo, mostram tanto a presença predominante de escravos crioulos (nativos)<br />
como a forte presença <strong>da</strong>s famílias no cativeiro, revelando os espaços de<br />
negociação no contexto <strong>da</strong> vigência <strong>da</strong> escravidão. Como, por exemplo, os estudos<br />
de Gutiérrez (1988) referente ao circuito econômico do Paraná, eixo fun<strong>da</strong>mental no<br />
extenso comércio interno de animais, região que estava entre as áreas de criação e<br />
invernagens na rota terrestre dos animais rumo à comercialização em Sorocaba. A<br />
partir dela, a rota ramificava – se em vários caminhos com destino às regiões de São<br />
Paulo, Minas Gerais e Rio de Janeiro. Pesquisando os Maços de População no<br />
Arquivo do Estado, Sílvia Marques identificou muitas <strong>fazen<strong>da</strong></strong>s de invernagens de<br />
Itapeva com famílias escravas em seus plantéis.<br />
Gestão do Patrimônio e Arqueologia Pública<br />
Elaborar uma proposta de gestão do patrimônio arqueológico é uma tarefa<br />
complexa e dinâmica, pois ao ser formula<strong>da</strong> deve ser repensa<strong>da</strong> constantemente,<br />
além de concor<strong>da</strong>r com as leis que competem à União, Estados e Municípios.<br />
Pardi (2002, p.20) define a gestão do patrimônio arqueológico como:<br />
um conjunto de estudos, análises, reflexões e ações que buscam equacionar<br />
informações sobre os bens culturais, os parceiros envolvidos (comuni<strong>da</strong>de,<br />
cientistas, autori<strong>da</strong>des, mídia...), as estruturas (física e administrativa) e as<br />
questões econômicas inerentes, visando a otimizar o uso e o retorno à atual<br />
geração, a valorização e difusão, bem como a preservação dos sítios ou blocos<br />
testemunhos, do acervo gerado, <strong>da</strong> documentação e do conhecimento produzido<br />
para as gerações futuras.<br />
Planejar e executar uma proposta para gestão do patrimônio visa<br />
potencializar os aspectos positivos que envolvem este bem e ao mesmo tempo<br />
propõe-se a “minimizar ou mesmo evitar que aspectos negativos, como por exemplo,<br />
a degra<strong>da</strong>ção e depre<strong>da</strong>ção” inci<strong>da</strong>m sobre ele (Manzato, 2007).<br />
De acordo com Manzato (2006) a ”fragili<strong>da</strong>de dos sítios e de seus respectivos<br />
vestígios gera nos arqueólogos e representantes do poder público a insegurança em
11<br />
disponibilizá-los a comuni<strong>da</strong>de residente ou para o público em geral”. Essa situação<br />
por vezes constitui-se pela desinformação e desconhecimento de uma proposta de<br />
gestão para áreas arqueológicas e que infelizmente, “conduz ao emprego de uma<br />
política que tende a preservar os sítios e seus respectivos vestígios no sentido<br />
estrito <strong>da</strong> palavra, ou seja, deixando-os fechados, longe do olhar do público”.<br />
O resultado disso, obviamente, tende a ser negativo para ambas as partes,<br />
porque transforma o sítio detentor do patrimônio arqueológico numa locali<strong>da</strong>de<br />
onerosa para o município e predisposto a deteriora-se, além de não desempenhar a<br />
utili<strong>da</strong>de social para a população, contribuindo para que os mesmos sejam<br />
depre<strong>da</strong>dos e até saqueados.<br />
Sendo o patrimônio arqueológico, um bem protegido legalmente, faz com que<br />
a atenção às normas legais vigentes, conste como item prioritário no processo de<br />
gestão, <strong>da</strong>do que seu descumprimento estará sujeito a sanções penais.<br />
Dentre as normas vigentes legais deve-se atentar para: a Carta de Lausanne<br />
de 1990, a Constituição Federal de 1988, especialmente nos Artigos 20, 23 e 216,<br />
os quais definem e normatizam a salvaguar<strong>da</strong> do patrimônio arqueológico, ao<br />
Decreto-Lei nº 25, de 30 de novembro de 1937 que organiza a proteção do<br />
Patrimônio Histórico e Artístico Nacional, a Lei Federal nº 3.924, de 26 de julho de<br />
1961 que dispõe sobre os monumentos arqueológicos pré-históricos e históricos, ao<br />
Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama nº. 001/86), em 23/06/1986 que faz<br />
referencia à proteção do patrimônio ambiental, mas que também abor<strong>da</strong> o<br />
patrimônio arqueológico, a Portaria SPHAN/07/88 que trata dos procedimentos e<br />
desenvolvimento de pesquisas de campo e escavações arqueológicas, Portaria<br />
IPHAN 230/2002 e 28/2003 que considerando a necessi<strong>da</strong>de de compatibilizar as<br />
fases de obtenção de licenças ambientais em urgência com os estudos preventivos<br />
de arqueologia.<br />
De acordo com Morais, “entendido com bem difuso, o patrimônio arqueológico<br />
será de uso comum ao povo brasileiro”, e destaca que:<br />
A União, sua gestora, fixará as regras para sua melhor fruição, mediante a<br />
consoli<strong>da</strong>ção <strong>da</strong> estrutura híbri<strong>da</strong> que garanta a participação direta <strong>da</strong> socie<strong>da</strong>de.<br />
Há que considerar, porém que, resguar<strong>da</strong><strong>da</strong>s as prerrogativas de inserção<br />
nacional, o segmento social mais interessado na sua fruição é a comuni<strong>da</strong>de<br />
local que detém o patrimônio em seu território. Assim cabe ao poder público
12<br />
federal, com o apoio dos poderes estaduais e em parceria com os profissionais<br />
arqueólogos, esclarecer seus propósitos junto à comuni<strong>da</strong>de e ao poder público<br />
local em linguagem adequa<strong>da</strong>, estimulando a inclusão social pelo<br />
reconhecimento e valorização dos bens arqueológicos, em ações de educação<br />
patrimonial (2006, p.194).<br />
Esta afirmação traduz que além do conhecimento <strong>da</strong>s normas vigentes, outro<br />
item relevante na gestão do patrimônio concerne a Arqueologia Pública, ou seja, a<br />
inclusão <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de residente nas ações que envolvem seu patrimônio e o<br />
desenvolvimento <strong>da</strong> responsabili<strong>da</strong>de social <strong>da</strong> disciplina, porque segundo Robrahn-<br />
González (2006, p. 64) agora se entende que “não é mais possível que a<br />
Arqueologia continue volta<strong>da</strong> ao desenvolvimento de um ser abstrato chamado<br />
ciência, colecionador insaciável de novas teorias, novas descobertas”.<br />
Esse processo de reconstrução <strong>da</strong> Arqueologia teve início na déca<strong>da</strong> de<br />
1980, e evidenciou as preocupações com as dimensões sociais desta área<br />
(FUNARI, 2004/2005). Anteriormente a Arqueologia “esteve preocupa<strong>da</strong> com os<br />
vestígios materiais <strong>da</strong>s socie<strong>da</strong>des que estavam nos fun<strong>da</strong>mentos dos modernos<br />
estados nacionais, em particular, a Grécia Antiga e o mundo romano, seguido pelas<br />
civilizações médio-orientais (Egito, Mesopotâmia)", segundo Funari (2003). Durante<br />
muitos anos o foco desta área manteve-se em torno do patrimônio material <strong>da</strong>s elites<br />
porque “as culturas ‘primitivas’ não eram considera<strong>da</strong>s dignas de interesse<br />
científico”. Além disso, a divulgação <strong>da</strong>s pesquisas arqueológicas ocorria<br />
exclusivamente em meio acadêmico, mantendo um “distanciamento <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de,<br />
do ensino não universitário e do público em geral” (CALI, 2002, p.112).<br />
Portanto, acredita-se que a gestão do patrimônio arqueológico é uma etapa<br />
que deman<strong>da</strong> tempo e é primordial para conflitar e estabelecer os limites entre as<br />
ações requeri<strong>da</strong>s e aquelas que são possíveis de execução. Estas ações são<br />
delinea<strong>da</strong>s a partir <strong>da</strong>quelas habili<strong>da</strong>des específicas aos arqueólogos (levantamento,<br />
ca<strong>da</strong>stramento, prospecção, escavação, registros físico, geração de acervo, entre<br />
outros), seguindo-se a este, a inclusão do processo de socialização do patrimônio<br />
por meio <strong>da</strong> participação <strong>da</strong> comuni<strong>da</strong>de residente em ativi<strong>da</strong>des diretas no sítio e<br />
através <strong>da</strong> visitação pública, estabelecidos através <strong>da</strong> elaboração de diagnósticos e<br />
prognósticos, macro e micro-ambiental, <strong>da</strong> <strong>fazen<strong>da</strong></strong> respondendo as normas legais<br />
que incidem sobre o bem.
13<br />
Considerações Finais<br />
O presente texto teve por objetivo levantar algumas questões delica<strong>da</strong>s que<br />
giram em torno dos temas de preservação, proteção e gestão do patrimônio cultural,<br />
em especial o arqueológico. As ações, critérios e valores fazem parte do universo do<br />
conhecimento acadêmico especializado que, muitas vezes, é externo ao habitante<br />
local, bem como ao poder público municipal.<br />
Por outro lado, a Constituição de 1988, artigo 30, delega aos municípios a<br />
prerrogativa de zelar pelos interesses locais. Ao cria áreas de tensão, o debate<br />
sobre a preservação do Patrimônio Arqueológico, parte significativa do Patrimônio<br />
Cultural brasileiro mas que permanece desconhecido do grande público, pode vir a<br />
sensibilizar moradores e políticos em torno <strong>da</strong> preservação <strong>da</strong>s identi<strong>da</strong>des, <strong>da</strong><br />
memória local, <strong>da</strong>s raízes culturais e sociais do município de Itapeva.<br />
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