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Relatorio_Final_CNV_Parte_2

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<strong>Parte</strong> II<br />

AS ESTRUTURAS DO<br />

ESTADO E AS GRAVES<br />

VIOLAçÕes de<br />

direitos humanos


3capítulo<br />

contexto histórico<br />

das graves violações<br />

entre 1946 e 1988


3 – contexto histórico das graves violações entre 1946 e 1988<br />

A) Democracia de 1946<br />

Nós exercíamos o dever de rebelião porque todo cidadão que tem algum compromisso<br />

com o seu grupo, ao se deparar com a ruptura do contrato social que rege a<br />

sociedade, ao se deparar com um golpe de Estado que rompe com as regras, tem o<br />

dever moral de se opor a isso, tem o dever moral de restabelecer a constituição, de<br />

restabelecer as regras da vida em comum que haviam sido usurpadas por um pequeno<br />

grupo que exercia o poder em caráter desse pequeno grupo.<br />

[Antônio Roberto Espinosa, depoimento prestado à <strong>CNV</strong> em parceria com a Comissão<br />

Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, em 24 de janeiro de 2014. Arquivo<br />

<strong>CNV</strong>, 00092.005570/2014-21.]<br />

1. Entre 1946 e 1964, o Brasil viveu um período de democracia frágil, instável, hesitante.<br />

Democracia é sempre melhor do que ditadura. No regime democrático, a política substitui a violência<br />

e os conflitos e confrontos políticos são resolvidos por discussão e eleições. Democracia permite ampliação,<br />

criação e reinvenção de direitos. Os anos entre 1946 a 1964 foram, certamente, bem melhores do<br />

que os da ditadura que os sucederam. Esses anos carregam, entretanto, o peso de uma polícia política<br />

gestada pelo Estado Novo – deformada pela crença de que os que detêm o poder tudo podem e por práticas<br />

violentas que absorveram o pior de nossa tradição escravocrata e das lições de agentes da repressão<br />

estrangeiros, especialmente da Central Intelligence Agency [Agência Central de Inteligência] (CIA).<br />

2. Em 1946, o Brasil emergia em uma nova ordem política, sob o impulso de grandes<br />

transformações internacionais que se harmonizaram com forças internas em favor da democracia,<br />

obrigando a um reposicionamento dos grupos dirigentes. A nova ordem democrática passava a existir<br />

com um sistema socioeconômico bem diverso do que o país conhecera na sua primeira experiência<br />

republicana (1889-1930). Verdade que o país ainda se encontrava preso a uma situação de miséria e<br />

carência abissais, como atestam sua taxa de alfabetização e uma mortalidade infantil mais de seis vezes<br />

maior do que a existente hoje.<br />

3. Apesar da ambiguidade que caracterizava o período, com a prevalência conspícua de regras<br />

advindas do Estado Novo e a participação ativa de muitos dos seus principais agentes políticos, havia<br />

o consenso generalizado de que a Constituição de 1946 representava um avanço para o Brasil.<br />

4. A Constituição de 1946 estabeleceu o equilíbrio entre os três poderes. Recuperou o bicameralismo<br />

da Constituição de 1891, com eleições simultâneas em todo o país, sendo ambas as casas,<br />

Câmara Federal e Senado Federal, responsáveis por votar o orçamento. O texto é liberal, prevendo<br />

que o Estado só poderia intervir na economia mediante lei especial. No que diz respeito à organização<br />

partidária, garantia a formação livre de partidos, embora proibisse a legalidade daqueles que “contrariassem<br />

o regime democrático”.<br />

5. O governo Dutra, o primeiro eleito na democracia recém-instalada, seria fortemente marcado,<br />

em suas bases de sustentação política, pelo continuísmo. Ampliava-se a supremacia da coligação<br />

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varguista no Congresso. A União Democrática Nacional (UDN), criada para lutar contra o regime,<br />

passou a compartilhar o governo e estabeleceu uma aliança com o Partido Social Democrático (PSD).<br />

Mesmo assim, logo ficaram explícitas suas divergências com o presidente deposto Getúlio Vargas, em<br />

especial no que se referia a posições quanto ao nacionalismo e ao seu comportamento ante às classes<br />

trabalhadoras.<br />

6. Atento à importância crescente da economia norte-americana, e da hegemonia política<br />

dos Estados Unidos no processo global de reconstrução da ordem internacional durante o pós-guerra,<br />

o governo decidiu reforçar seu relacionamento com aquele país, promovendo a abertura da economia<br />

ao capital estrangeiro e favorecendo claramente a empresa privada. Em seu início, a resposta da administração<br />

Dutra à inflação oriunda da guerra consistiu em adotar uma política de importação livre de<br />

bens manufaturados, aproveitando as reservas acumuladas durante o conflito mundial. Essa escolha<br />

resultou em um período de estagnação para a indústria nacional.<br />

7. Tendo em vista suas opções, as maiores dificuldades para o governo Dutra passaram a estar<br />

nas ruas e nas fábricas. Em 1945, havia sido criado o Movimento de Unificação dos Trabalhadores<br />

(MUT). Em janeiro de 1946, o MUT promoveu o I Congresso Estadual dos Trabalhadores do Estado<br />

de São Paulo, que defendia a autonomia e a liberdade sindical, exigia o direito de greve, a manutenção<br />

das conquistas sociais e enfatizava a necessidade de criar-se uma central sindical de trabalhadores.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

8. Concomitantemente, tendo obtido uma votação expressiva nas eleições de 1946, o<br />

Partido Comunista do Brasil (PCB) começava a firmar-se, sobretudo em meio à população das<br />

grandes cidades. Em 7 de maio de 1947, a histórica e dominante objeção das elites políticas aos<br />

comunistas fez com que o Tribunal Superior Eleitoral, por três votos contra dois, pusesse o PCB na<br />

ilegalidade. Em maio de 1946, o governo já havia determinado a demissão de todos os funcionários<br />

públicos conhecidos como membros do Partido Comunista. Em 15 de abril de 1947, a Juventude<br />

Comunista teve suas atividades suspensas por um período de seis meses. Nesse mesmo dia, suspenderam-se<br />

as uniões sindicais e outras organizações similares, acusadas de serem controladas por<br />

comunistas, de funcionarem como organismos de cooptação e de buscarem desestabilizar a ordem<br />

vigente. Somente o Sindicato dos Metalúrgicos eliminou, em novembro de 1947, cerca de 900 comunistas<br />

do seu quadro de associados.<br />

9. A ilegalidade do PCB conduziu à cassação dos mandatos de seus eleitos, medida promovida<br />

pelo Legislativo. A cassação do partido teve como consequência a saída do embaixador soviético<br />

do país. Sua ilegalidade foi acompanhada de uma grande onda de violência no país. Ao mesmo tempo<br />

que esses fatos ocorriam, estreitavam-se as relações entre o Brasil e os Estados Unidos.<br />

10. Muitos militares que iniciaram a carreira na Escola Militar do Campo dos Afonsos<br />

durante a guerra tiveram forte atuação na desestabilização do governo Vargas, nas sedições durante o<br />

governo Juscelino e no golpe de 1964. Um dos militares mais identificados com o golpe e com a prática<br />

de graves violações aos direitos humanos durante a ditadura foi o brigadeiro João Paulo Moreira<br />

Burnier. Em entrevista concedida ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea<br />

do Brasil (CPDOC), em 1993, ele disse: “Eu fui da primeira turma formada já no Campo dos Afonsos”.<br />

Uma das mais graves sanções impostas as militares expurgados em 1964 originou-se no Ministério da<br />

Aeronáutica: os oficiais aviadores tiveram seus brevês cassados e foram proibidos de voar.<br />

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3 – contexto histórico das graves violações entre 1946 e 1988<br />

11. Laços de camaradagem profissional e afinidade ideológica uniram militares brasileiros e<br />

americanos que haviam trabalhado do mesmo lado do front, durante a Segunda Guerra Mundial. Um<br />

caso notório foi o das relações pessoais estabelecidas entre Humberto Castelo Branco, futuro marechal<br />

e presidente da República, e Vernon Walters, oficial de ligação entre a Força Expedicionária Brasileira<br />

e o V Corpo do Exército norte-americano. Este último oficial viria a ser adido militar-assistente da<br />

embaixada dos EUA no Brasil de 1945 a 1948, retornando em 1962, como adido militar da embaixada<br />

norte-americana, permanecendo no cargo até 1967.<br />

12. Em dezembro de 1948, foi elaborado o anteprojeto do regulamento da Escola Superior<br />

de Guerra (ESG), escrito por um grupo de militares liderado pelo general Oswaldo Cordeiro de<br />

Farias, além de três militares norte-americanos. Posteriormente, em agosto de 1949, foi criada a Escola<br />

Superior de Guerra, instituto de altos estudos, que pretendia ser um centro de pesquisas sobre segurança<br />

e desenvolvimento do Brasil, e estava diretamente subordinada ao ministro de Estado, chefe do<br />

Estado-Maior das Forças Armadas. A ESG nasce imersa no clima ideológico da época, que postulava<br />

um conflito permanente entre o Ocidente e o Leste comunista, a partir do qual se buscava formular<br />

uma doutrina de segurança nacional.<br />

13. Concluído o mandato de Dutra, Vargas foi eleito para o período de 1950 a 1954. O resultado<br />

eleitoral, quando anunciado, sofreu candente contestação. Partidários da UDN, notadamente<br />

o deputado Aliomar Baleeiro e o jornalista Carlos Lacerda, argumentavam que uma interpretação<br />

criteriosa da Constituição exigia que o candidato vitorioso tivesse a maioria absoluta dos votos. A<br />

influência que Vargas ainda mantinha junto aos militares mais uma vez o socorreu. No Clube Militar,<br />

dois generais influentes – Estillac Leal, presidente do clube, e Zenóbio da Costa – declararam em<br />

público que ele havia vencido as eleições.<br />

14. As Forças Armadas, que, em 1945, haviam tornado possível o estabelecimento de um<br />

regime constitucional democrático, mediante a deposição de Vargas, viam-se cada vez mais envolvidas<br />

nas disputas políticas, no que, aliás, pareciam retomar uma prática inaugurada com a proclamação da<br />

República. Instituições como o Clube Militar tornar-se-iam palco de conflitos políticos, à medida que<br />

os grandes temas ideológicos da década iam adquirindo forma, notadamente as questões do nacionalismo<br />

econômico e das relações com os Estados Unidos, em um contexto no qual o anticomunismo<br />

apareceria como um elemento fundamental da aliança. De maneira geral, a politização da corporação<br />

militar, para além das divisões em frações ideológicas e partidárias, indicava uma posição de relativa<br />

autonomia institucional, com as Forças Armadas se impondo aos demais atores da política nacional<br />

como uma interlocutora do poder Executivo (monitorava crítica de seus atos e grupos de pressão ou de<br />

apoio), e não como parte subordinada desse poder. Reforçava-se um desequilíbrio institucional, foco<br />

de tensões, que seria uma característica fundamental da Realpolitik da década de 1950 e que viria a<br />

ter desdobramentos nos diversos movimentos insurgentes iniciados por oficiais militares, culminando<br />

com o golpe de 1964.<br />

15. Muitos analistas dividem o segundo período constitucional de Vargas em dois momentos:<br />

o primeiro, de 1951 até meados de 1953, quando ele teria buscado firmar uma ampla aliança em torno<br />

das mudanças econômicas, sobretudo em um esforço para industrializar e prover o país de uma política<br />

energética. O segundo, a partir de 1953, quando enfrentou a radicalização de grupos políticos e militares<br />

que associavam à sua oposição, naquele momento, derrotas eleitorais desde a redemocratização.<br />

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16. Vargas submeteu ao Congresso Nacional, e teve aprovadas, todas as suas grandes decisões<br />

econômicas. Entre elas, a criação da Petrobras, do Fundo Nacional de Eletrificação, do Fundo<br />

de Reaparelhamento Econômico, do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico (BNDE) e da<br />

Eletrobras, além de legislações tarifárias e cambiais. Não conseguiu obter base de apoio parlamentar,<br />

nem apoio às iniciativas governamentais.<br />

17. Em 1950, a ala “nacionalista” dos militares, que apoiava Vargas, venceu as eleições do<br />

Colégio Militar e o novo presidente do clube, general Estillac Leal, que viria a ser ministro da Guerra<br />

do governo Vargas, qualificou a vitória como a aprovação de um programa que buscava defender os<br />

interesses nacionais. A recém-empossada diretoria logo passou a ser acusada de comunista. No apagar<br />

das luzes do governo Dutra, os seus adversários, majoritários entre os oficiais mais graduados, transferiram<br />

boa parte da diretoria para unidades afastadas do centro do país.<br />

18. A volta de Getúlio ao poder pelo voto popular recolocou em discussão os temas do nacionalismo<br />

e do trabalhismo – designação genérica que se refere, ao mesmo tempo, aos direitos sociais<br />

e à organização social, mobilizando a imaginação política e galvanizando solidariedade de parte da<br />

sociedade. O novo governo de Vargas foi um contraponto ao de seu predecessor, ao estabelecer um<br />

clima de maior tolerância, favorecendo a atividade sindical e as manifestações públicas, inclusive de<br />

“grupos de esquerda”. Note-se que, para esses grupos, o nacionalismo oferecia uma bandeira legítima,<br />

perfeitamente adequada às suas formulações anti-imperialistas.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

19. O segundo governo Vargas manteve o banimento do Partido Comunista do Brasil (PCB).<br />

Enquadrando sua perseguição e punição, foi promulgada, em 5 de janeiro de 1953, uma nova Lei de<br />

Segurança Nacional, a Lei n o 1.802, que definiu os crimes contra o Estado e a ordem política e social.<br />

Essa lei estabelecia a competência da Justiça Militar para julgamento dos crimes contra a segurança<br />

externa, deixando os crimes contra a segurança interna a critério da Justiça comum.<br />

20. Ao longo do ano de 1953, trabalhadores e organizações sindicais, nas grandes cidades,<br />

convocaram greves por aumento de salários. Em junho, Getúlio nomeou João Goulart para o<br />

Ministério do Trabalho. Desde o início da gestão de João Goulart, conhecido como Jango, a oposição<br />

promoveu uma campanha feroz e diária, por intermédio da imprensa, de boicote e acusações, em que<br />

o jovem ministro era definido como um perigoso “demagogo sindicalista”, “admirador do justicialismo<br />

peronista”, porta-voz de uma classe trabalhadora rebelada. A situação tornou-se particularmente grave<br />

em fevereiro de 1954, quando Jango defendeu um aumento de 100% para o salário mínimo, aplicável,<br />

sobretudo, aos trabalhadores do comércio e da indústria do setor urbano. O aumento prometido alarmou<br />

a classe empresarial, que alegava não poder pagá-lo sem um grande repasse aos preços. Afetaria<br />

também a classe média, que, sob a pressão do custo de vida, não seria beneficiada por medida similar.<br />

21. Nesse contexto, dois dias depois de declarada a pretensão de aumento salarial, um grupo<br />

de oficiais divulgou um documento intitulado “Memorial dos coronéis”, com ampla repercussão na<br />

opinião pública. Nele, contrasta-se a penúria da instituição, suas deficiências técnicas e financeiras, e<br />

a remuneração insuficiente à:<br />

iniciativa de elevação do salário mínimo que, nos grandes centros do país, quase<br />

atingirá o dos vencimentos máximos de um graduado, resultará, por certo, se não<br />

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3 – contexto histórico das graves violações entre 1946 e 1988<br />

corrigida de alguma forma, em aberrante subversão de todos os valores profissionais,<br />

destacando qualquer possibilidade de recrutamento para o Exército de seus<br />

quadros inferiores. 1<br />

O documento não é apenas um rol de reivindicações materiais, de críticas à incúria administrativa do<br />

governo e de acusações de práticas ilegais. É também uma denúncia do “clima de negociatas, desfalques<br />

e malversação de verbas que infelizmente vem nos últimos tempos envolvendo o país e até mesmo o<br />

Exército”, 2 e do descaso do governo com a corporação.<br />

22. O memorial ou manifesto dos coronéis foi enviado a Getúlio por seu ministro da Guerra,<br />

general Ciro Cardoso. Assinado por 82 oficiais, o texto teve a autoria atribuída ao então tenente-coronel<br />

Golbery do Couto e Silva. Entre os signatários, vários militares que seguiriam em franca oposição<br />

aos governos trabalhistas – e alguns teriam posições de destaque no movimento que conduziu ao golpe<br />

militar de dez anos depois. Entre os coronéis, assinam, por exemplo, Syseno Sarmento, Adalberto<br />

Pereira dos Santos, Jurandir de Bizarria Mamede, Antônio Carlos da Silva Muricy, Amaury Kruel,<br />

Ademar de Queiroz e Alfredo Américo da Silva. Entre os tenentes-coronéis que endossaram o documento<br />

estão Golbery do Couto e Silva, Sílvio Frota, Antonio Jorge Corrêa, Ednardo D’Avila Mello,<br />

Fritz Azevedo Manso, Ramiro Tavares Gonçalves e Euler Bentes Monteiro. Diante da repercussão do<br />

memorial, o governo Vargas tenta contornar os impasses substituindo os ministros da Guerra e do<br />

Trabalho. Em 22 de fevereiro de 1954, Zenóbio da Costa assume o Ministério da Guerra. Dois dias<br />

depois, Hugo Faria, um funcionário graduado, torna-se ministro do Trabalho.<br />

23. Os antigetulistas atacavam Jango, mas o seu verdadeiro objetivo era o presidente Vargas.<br />

As manobras institucionais e o ânimo conspiratório haviam se tornado marcas da oposição. Em junho<br />

de 1954, Afonso Arinos, líder da UDN e da oposição parlamentar (UDN-PL-PR-PDC), encaminha<br />

ao Congresso um pedido de impeachment de Vargas, apoiado em acusações de corrupção, conivência<br />

com atos criminosos e imoralidade. Apesar de forte campanha junto à opinião pública, a Câmara dá<br />

vitória esmagadora a Vargas: 136 deputados votam contra o impeachment, e apenas 35 a favor.<br />

24. Havia se posto em marcha um mecanismo de questionamento permanente do regime<br />

e de sua legitimidade. Começa a construir-se, na articulação das Forças Armadas com setores conservadores<br />

do país, a narrativa que buscará legitimar, na década seguinte, o golpe de Estado de 1964.<br />

Essa articulação estaria também presente nas tentativas de impedir as posses dos presidentes Juscelino<br />

Kubitschek e João Goulart.<br />

25. Na madrugada de 5 de agosto de 1954 ocorre uma tentativa de assassinato contra o jornalista<br />

e então candidato a deputado federal Carlos Lacerda. Lacerda sobrevive, mas o major-aviador<br />

Rubens Florentino Vaz, que o acompanhava e dava segurança depois de um comício, é vítima de um<br />

tiro fatal. Em 8 de agosto, Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal de Getúlio, confessa que fora<br />

o mandante do crime.<br />

26. Nesse contexto, o movimento iniciado pelos coronéis ganhou a adesão de generais, da grande<br />

imprensa e dos udenistas mais radicais. Em 21 de agosto, Café Filho, vice-presidente da República,<br />

sugeriu que ambos, Getúlio e ele, renunciassem, para que assumisse a presidência da República o presidente<br />

da Câmara de Deputados, Carlos Luz. A proposta foi repelida. No dia seguinte, um grupo de<br />

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oficiais da Aeronáutica, liderados por Eduardo Gomes, lançou um manifesto exigindo a renúncia do<br />

presidente, documento que lhe foi entregue pelo marechal Mascarenhas de Morais, comandante da Força<br />

Expedicionária Brasileira na Segunda Guerra Mundial. Uma vez mais, Vargas resistiu. Em 23 de agosto,<br />

27 generais do Exército – entre os quais Juarez Távora, Canrobert Pereira da Costa, Pery Bevilaqua,<br />

Humberto de Alencar Castelo Branco, Machado Lopes e Henrique Lott – lançaram um manifesto à<br />

ação, exigindo a renúncia do presidente. Formara-se assim, uma ampla aliança entre o alto oficialato para<br />

derrubar o presidente. Em 24 de agosto, Getúlio dá um tiro em seu peito.<br />

B) O primeiro atentado armado à ordem constitucional de 1946: golpe e contragolpe em 1955<br />

27. O desenlace dramático da crise de agosto de 1954 acabou por desestabilizar os movimentos<br />

para subverter a ordem constitucional vigente, promovidos pelos grupos antigetulistas. O<br />

suicídio de Getúlio Vargas gerou imensa comoção popular, mas também permitiu que se instalasse<br />

o seu sucessor no governo.<br />

28. O primeiro teste político do governo Café Filho foi a realização das eleições para o<br />

Congresso, programadas para outubro de 1954. A votação não alterou fundamentalmente a composição<br />

do Congresso. PSD e PTB registraram pequenos avanços. A UDN, entretanto, perdeu dez<br />

cadeiras, reduzindo sua representação e tornando o partido mais receoso de futuros embates eleitorais.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

29. Em 3 de outubro de 1955, Juscelino Kubitschek foi eleito presidente da República, após o<br />

pleito ter sido garantido por tropas do Exército. Definido o resultado, quase imediatamente uma parte<br />

da oposição passou a defender abertamente um golpe, apelando, no dizer de Carlos Lacerda, a “quem<br />

tem nas mãos a força de decidir a questão. Basta que ouçam a voz do seu patriotismo”. 3 A exemplo do<br />

que já fizera nas eleições de 1950, a UDN voltou a contestar, junto à Justiça Eleitoral, o resultado final<br />

do pleito, utilizando o mesmo argumento de outrora, que agora não oferecia melhor oportunidade<br />

de sucesso: pela Constituição, os candidatos vencedores necessitavam de maioria absoluta de votos.<br />

Em campanhas na imprensa, a oposição udenista continuava afirmando que a eleição de Juscelino<br />

Kubitschek seria a “vitória da minoria”, uma vez que 64,32% dos eleitores não haviam votado em<br />

Juscelino para a Presidência.<br />

30. No dia 1 o de novembro, no enterro do general Canrobert Pereira da Costa, o coronel<br />

Jurandyr de Bizarria Mamede, um dos signatários do manifesto dos coronéis, profere um violento<br />

discurso – na presença do general Lott –, pronunciando-se ampla e favoravelmente a um golpe militar,<br />

e contraria o resultado das eleições presidenciais retomando o mesmo argumento:<br />

Não será por acaso indiscutível mentira democrática um regime presidencial que, dada<br />

a enorme soma de poder que concentra em mãos do Executivo, possa vir a consagrar,<br />

para investiduras do mais alto mandatário da nação, uma vitória da minoria 4<br />

31. O que havia de permanente era a existência de um núcleo importante dentro das Forças<br />

Armadas que reivindicava para si a legitimidade de intervir na vida pública, fora ou a despeito das normas<br />

constitucionais. Sublinhe-se aqui a notável continuidade do pessoal desse grupo, que não é de todo<br />

espantosa, dados os pequenos intervalos de tempo entre os diversos movimentos golpistas. Em contraste,<br />

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3 – contexto histórico das graves violações entre 1946 e 1988<br />

as reações militares em defesa da democracia são combinações ad hoc, formadas ao sabor de circunstâncias<br />

ou do senso de oportunidade e da habilidade dos dirigentes políticos em foco. Nesse contexto, distingue-se<br />

em particular o governo Kubitschek, eleito pelo voto popular e homologado por um movimento<br />

militar, que conheceu durante praticamente todo o seu exercício uma trégua democrática.<br />

C) O governo Juscelino Kubitschek<br />

32. Juscelino Kubitschek (JK) confirma nos seus cargos os dois principais articuladores do<br />

golpe preventivo de 11 de novembro, os quais viabilizaram sua posse: o ministro da Guerra, general<br />

Henrique Teixeira Lott, e o comandante do I Exército, com sede no Rio de Janeiro, o general Odílio<br />

Denys, mantidos nessas posições por praticamente todo o seu mandato. Ao assumir a Presidência,<br />

defronta-se, entretanto, com uma rebelião deflagrada por oficiais da Aeronáutica, que, inconformados<br />

com sua posse, reclamavam sua deposição.<br />

33. Na noite de 10 de fevereiro de 1956, oficiais da Aeronáutica insatisfeitos, liderados<br />

pelo major Haroldo Veloso e pelo capitão José Chaves Lameirão, partiram do Campo dos Afonsos,<br />

no Rio de Janeiro, instalaram-se na base aérea de Jacareacanga, no sul do Pará, e ali organizaram o<br />

seu quartel -general. Encontrando pouca resistência e contando com a cumplicidade de colegas de<br />

farda, os revoltosos tomam posse dos aeródromos das localidades de Itaituba, Belterra e da cidade<br />

de Santarém, esta última já uma importante escala na rota Belém–Manaus. Ao ter conhecimento<br />

da invasão de Santarém, o governo federal, por meio dos ministros militares (major-brigadeiro<br />

do ar Vasco Alves Secco, da Aeronáutica; general de Exército Henrique Duffles Teixeira Lott, do<br />

Exército; e almirante de esquadra Antônio Alves Câmara Júnior, da Marinha), decide adotar uma<br />

reação enérgica para intimidar os revoltosos e impedir o surgimento de novos focos de rebelião. A<br />

Aeronáutica passa a ocupar preventivamente aeródromos da região e um contingente de paraquedistas<br />

do Exército é deslocado pela Força Aérea Brasileira (FAB) do Rio de Janeiro para Belém. No<br />

dia 29 de fevereiro, o levante já havia sido totalmente debelado. Encerrado o episódio, o presidente<br />

Juscelino Kubitschek envia anteprojeto ao Congresso:<br />

concedendo anistia, ampla e irrestrita, a todos os civis e militares que, direta ou indiretamente,<br />

se envolveram, inclusive recusando-se a cumprir ordens de seus superiores, nos<br />

movimentos revolucionários ocorridos no país a partir de 10 de novembro de 1955<br />

até 1 o de março de 1956 (decreto Legislativo n o 22, de 23 de maio de 1956).<br />

A anistia concedida aos revoltosos acabou beneficiando também os militares que, nos embates políticos<br />

do período, haviam sido enquadrados como comunistas. 5<br />

34. Embora convivendo com movimentos conspiratórios, tensões permanentes no meio<br />

militar 6 e, pelo menos, duas pequenas rebeliões (ou atos graves de insubordinação), o governo de<br />

Juscelino Kubitschek desenvolveu-se sob o signo do otimismo. Ele emerge como um período atípico<br />

de desenvolvimento econômico e estabilidade política, no meio de dois governos problemáticos: o de<br />

Getúlio Vargas, que terminou com o seu suicídio, e o de Jânio Quadros (1961), encerrado com sua<br />

renúncia. Tornar-se-ia, assim, o segundo presidente, desde 1945 até o golpe de 1964, que conseguiu<br />

cumprir o seu mandato por inteiro.<br />

92


35. Apesar da estabilidade alcançada em alguns períodos do governo JK, em 2 de dezembro<br />

de 1959, um grupo composto por oficiais da FAB, do Exército e de civis organizou um autodesignado<br />

“movimento revolucionário”, liderado pelo tenente-coronel João Paulo Moreira Burnier, que ficou conhecido<br />

como Revolta de Aragarças. O levante pretendia derrubar o Governo, acusado de corrupção<br />

e de proximidade com o comunismo internacional. Dessa vez, a rebelião durou apenas 36 horas.<br />

36. De maneira geral, no governo de Juscelino Kubitschek não houve políticas destinadas a<br />

introduzir reformas sociais no campo, ou qualquer iniciativa que afetasse o poder ou os interesses dos<br />

grandes proprietários de terra. Durante o seu governo, contudo, começou a se expandir o movimento<br />

das Ligas Camponesas, cujas origens localizavam-se na luta dos foreiros do Engenho Galileia, em<br />

Vitória de Santo Antão, na zona da mata de Pernambuco. Foi lá que a primeira liga foi criada, em 1955.<br />

D) O golpe de 1961, ensaio geral para 1964<br />

37. Em 1960, Jânio Quadros foi eleito presidente. Na época, a legislação eleitoral permitia<br />

chapas independentes para a Presidência e seu vice. Por essa razão, João Goulart, do PTB, foi reeleito.<br />

Alguns meses depois foi enviado pelo presidente, em missão comercial, à China. Ainda nesse país, em<br />

24 de agosto de 1961, teve notícia de que Jânio renunciara. Em conformidade com a Constituição<br />

Federal, João Goulart seria empossado como presidente. Não era o que militares e civis antigetulistas<br />

estavam dispostos a admitir. Iniciou-se, então, o episódio conhecido como a Campanha da Legalidade.<br />

A Campanha da Legalidade foi uma mobilização civil-militar defendendo a posse de João Goulart,<br />

contestada por grupamentos de adversários civis e militares. Em 25 de agosto, Leonel Brizola, governador<br />

do Rio Grande do Sul, lança um manifesto em apoio à posse de João Goulart.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

38. No dia seguinte, o país amanhece com o poder tomado por três ministros militares: o<br />

general Odílio Denys, ministro da Guerra; o brigadeiro Gabriel Grün Moss, ministro da Aeronáutica;<br />

e o almirante Silvio Heck, ministro da Marinha. Esses ministros declararam o estado de sítio, sob o<br />

argumento de impedir manifestações públicas. Entravam em choque duas concepções de legalidade.<br />

Na noite do dia 25, o marechal Lott divulga um manifesto à nação:<br />

Tomei conhecimento, nesta data, da decisão do sr. ministro da Guerra, marechal<br />

Odílio Denys [...] de não permitir que o atual presidente da República, dr. João<br />

Goulart, entre no exercício de suas funções e, ainda, de detê-lo no momento em<br />

que pise no território nacional [...] sinto-me no indeclinável dever de manifestar<br />

o meu repúdio à solução anormal e arbitrária que se pretende impor à Nação.<br />

Dentro desta orientação, conclamo todas as forças vivas da Nação [...] para tomar<br />

posição decisiva e enérgica pelo respeito à Constituição e preservação integral do<br />

regime democrático brasileiro, certo, ainda, de que meus nobres camaradas das<br />

Forças Armadas saberão portar-se à altura das tradições legalistas que marcam a<br />

sua história nos destinos da Pátria. 7<br />

39. Sequencialmente, Lott seria preso por ordem do ministro da Guerra e recolhido à<br />

Fortaleza da Lage, no Rio de Janeiro.<br />

93


3 – contexto histórico das graves violações entre 1946 e 1988<br />

40. Os setores favoráveis aos ministros militares também se mobilizaram. No Rio de Janeiro,<br />

Carlos Lacerda, governador da Guanabara, partidário do golpe desde o seu início, censura os meios de<br />

comunicação e manda ocupar rádios, a fim de que a cadeia da Legalidade não tome o Rio de Janeiro. A<br />

polícia ocupa as oficinas do jornal Última Hora e são apreendidas edições do Jornal do Brasil, Correio da<br />

Manhã, Diário da Noite e Gazeta da Noite. Apenas um periódico seria poupado da censura: a Tribuna<br />

da Imprensa, de propriedade do governador. 8<br />

41. Segundo os líderes do golpe, João Goulart era um agente da subversão no país, perigoso<br />

para a segurança nacional, abertamente identificado com o comunismo internacional. Em um regime<br />

presidencialista como o brasileiro, no qual o chefe do Executivo possuía um grande poder discricionário,<br />

sua posse seria fatalmente um veículo desagregador da ordem e da segurança nacional.<br />

42. A Campanha da Legalidade foi vitoriosa, João Goulart assumiu a Presidência, mas as<br />

articulações para tirá-lo do poder se tornaram cada vez mais consistentes, inclusive do ponto de vista<br />

da ação dos civis.<br />

43. O golpe frustrado de 1961 foi um ensaio geral para 1964. Consideremos, então, o golpe<br />

de 1964: a fundação do novo regime, a autodesignada “Revolução”. Depois, retomemos os seus antecedentes,<br />

no intervalo de 1962-1964.<br />

E) O Golpe de 1964<br />

44. Em 9 de abril de 1964, em manifesto à nação sob a forma de norma jurídica, mais tarde<br />

conhecido como Ato Institucional n o 1, é confirmada a vitória do movimento militar que derrubara<br />

o governo constitucional de João Goulart. Publicado no Diário Oficial de 9 de abril de 1964, o ato<br />

vinha assinado pelos comandantes em chefe das três armas: general do Exército Artur da Costa e<br />

Silva, tenente-brigadeiro Francisco de Assis Correia de Mello e o vice-almirante Augusto Hamann<br />

Rademaker Grunewald. No seu preâmbulo, e de maneira notavelmente sucinta, ele expõe as razões e<br />

o escopo de poder reivindicado pelo regime que formalmente ali se inaugurava:<br />

À NAÇÃO 9<br />

É indispensável fixar o conceito do movimento civil e militar que acaba de abrir ao<br />

Brasil uma nova perspectiva sobre o seu futuro. O que houve e continuará a haver<br />

neste momento, não só no espírito e no comportamento das classes armadas, como<br />

na opinião pública nacional, é uma autêntica revolução.<br />

A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz,<br />

não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação.<br />

A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. Este se manifesta<br />

pela eleição popular ou pela revolução. Esta é a forma mais expressiva e mais radical<br />

do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa, como Poder Constituinte, se le-<br />

94


gitima por si mesma. Ela destitui o governo anterior e tem a capacidade de constituir<br />

o novo governo. Nela se contém a força normativa, inerente ao Poder Constituinte.<br />

Ela edita normas jurídicas sem que nisto seja limitada pela normatividade anterior<br />

à sua vitória. Os Chefes da revolução vitoriosa, graças à ação das Forças Armadas e<br />

ao apoio inequívoco da Nação, representam o Povo e em seu nome exercem o Poder<br />

Constituinte, de que o Povo é o único titular. O Ato Institucional que é hoje editado<br />

pelos Comandantes em Chefe do Exército, da Marinha e da Aeronáutica, em nome<br />

da revolução que se tornou vitoriosa com o apoio da Nação na sua quase totalidade,<br />

se destina a assegurar ao novo governo a ser instituído, os meios indispensáveis à<br />

obra de reconstrução econômica, financeira, política e moral do Brasil, de maneira<br />

a poder enfrentar, de modo direto e imediato, os graves e urgentes problemas de que<br />

depende a restauração da ordem interna e do prestígio internacional da nossa Pátria.<br />

A revolução vitoriosa necessita de se institucionalizar e se apressa pela sua institucionalização<br />

a limitar os plenos poderes de que efetivamente dispõe.<br />

[...]<br />

Os processos constitucionais não funcionaram para destituir o governo, que deliberadamente<br />

se dispunha a bolchevizar o País. Destituído pela revolução, só a<br />

esta cabe ditar as normas e os processos de constituição do novo governo e atribuir-lhe<br />

os poderes ou os instrumentos jurídicos que lhe assegurem o exercício<br />

do Poder no exclusivo interesse do País. Para demonstrar que não pretendemos<br />

radicalizar o processo revolucionário, decidimos manter a Constituição de 1946,<br />

limitando-nos a modificá-la apenas na parte relativa aos poderes do Presidente<br />

da República, a fim de que este possa cumprir a missão de restaurar no Brasil a<br />

ordem econômica e financeira e tomar as urgentes medidas destinadas a drenar<br />

o bolsão comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do<br />

governo como nas suas dependências administrativas. Para reduzir ainda mais os<br />

plenos poderes de que se acha investida a revolução vitoriosa, resolvemos, igualmente,<br />

manter o Congresso Nacional, com as reservas relativas aos seus poderes,<br />

constantes do presente Ato Institucional.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

Fica, assim, bem claro que a revolução não procura legitimar-se através do Congresso.<br />

Este é que recebe deste Ato Institucional, resultante do exercício do Poder<br />

Constituinte, inerente a todas as revoluções, a sua legitimação.<br />

45. O golpe de 1964 introduzia uma mudança radical na base da organização política do<br />

país quando, intitulando-se “movimento revolucionário”, lhe foram atribuídos poderes constitucionais<br />

e ele vem a ser um verdadeiro ato de fundação: “A revolução se distingue de outros movimentos<br />

armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a<br />

vontade da Nação. A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte” e, portanto,<br />

“se legitima por si mesma”. 10<br />

46. A revolução vitoriosa, especifica o documento, “edita normas jurídicas sem que nisto<br />

seja limitada pela normatividade anterior à sua vitória”. O fato revolucionário que se legitimava por<br />

95


3 – contexto histórico das graves violações entre 1946 e 1988<br />

si mesmo fundava-se em uma decisão política fundamental do movimento de 1964, a de impedir a<br />

ação daqueles que se dispunham a “deliberadamente [...] bolchevizar o País” e, assim, “drenar o bolsão<br />

comunista, cuja purulência já se havia infiltrado não só na cúpula do governo como nas suas dependências<br />

administrativas”. Referia-se, naturalmente, ao governo deposto, cuja vigência fora atravessada<br />

por uma série de conflitos e crises político-sociais, estancadas pela emergência do novo regime.<br />

F) Os antecedentes imediatos do golpe de 1964: retomando 1961<br />

47. O relativo sucesso da Campanha da Legalidade simbolizara a participação das grandes<br />

massas urbanas nos embates políticos. A questão polarizou a classe política, em meio à qual surgiu<br />

um grupo minoritário, mas expressivo, de parlamentares, governadores e prefeitos que assumiam<br />

posição não apenas em defesa das instituições, mas também contra aqueles que identificava como<br />

associados à reação golpista.<br />

48. Os movimentos sociais repercutiam essa tendência geral. As atividades sindicais multiplicavam-se,<br />

organizavam-se centrais agrupando sindicatos, as greves começavam a fazer parte da<br />

vida pública, sobretudo nos centros mais industrializados. Mas a sindicalização começava também a<br />

avançar nas áreas rurais, onde havia grandes massas de assalariados, como na região açucareira nordestina,<br />

o que afetava diretamente e assustava os setores menos desenvolvidos e economicamente mais<br />

vulneráveis das classes proprietárias.<br />

49. Emergiam e multiplicavam-se organizações camponesas questionando a distribuição da<br />

terra e exigindo a reforma agrária. Esta era vista por muitos não apenas como instrumento de justiça<br />

social, mas também como um estímulo necessário à expansão das forças produtivas, em uma agricultura<br />

sufocada, em muitas regiões do país, pelo latifúndio.<br />

50. A questão do desenvolvimento econômico tornava-se centro de uma discussão política,<br />

que alcançava a esfera pública ampliada e assumia recortes ideológicos mais nítidos e conflitantes<br />

diante de problemas crônicos e interligados da economia do país: as limitações de sua capacidade de<br />

importação para desenvolver a indústria, o endividamento externo e o déficit publico, cujo crescimento<br />

se acelerou desde o governo JK, bem como as consequentes pressões inflacionárias.<br />

51. O governo João Goulart ainda procurava uma forma de enfrentar a situação econômica,<br />

que exibia dificuldades crescentes no gerenciamento das contas públicas e dos contratos externos. Em<br />

30 de dezembro de 1962, foi divulgado o Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social.<br />

Elaborado por Celso Furtado, futuro ministro extraordinário do Planejamento, era conduzido pelo<br />

ministro da Fazenda San Tiago Dantas. O plano procurava, no curto prazo, estabelecer regras e instrumentos<br />

rígidos para o controle do déficit público e refreamento da inflação.<br />

52. O Plano Trienal fracassou desde o começo, porque nem obteve resultados favoráveis com<br />

investidores e credores norte-americanos, nem conseguiu conter o aumento de preços.<br />

53. Em meio a essas dificuldades, o país atravessava um período de extrema vitalidade política,<br />

em que lideranças de sindicatos e de partidos, assim como elementos de todos os espectros políticos<br />

96


debatiam suas teses ou trocavam insultos na imprensa, nas organizações de classe, no Parlamento e até<br />

dentro de um mesmo partido.<br />

54. A manifestação de movimentos sociais ou grevistas, a balbúrdia política e as manifestações<br />

do suboficialato eram recebidas com suspeição por muitos setores, notadamente por militares, que em<br />

tudo viam uma porta de acesso para a infiltração de comunistas e a expansão de atividades subversivas.<br />

55. Pouco tempo passara desde a vitória da Revolução Cubana. Em 1961, os Estados Unidos<br />

romperam relações diplomáticas com Cuba, enquanto Fidel Castro anunciava seu alinhamento com<br />

o bloco socialista. A Guerra Fria fazia-se presente na América Latina, o que provocou uma mudança<br />

considerável na política dos Estados Unidos com relação ao continente.<br />

56. Intensificam-se o monitoramento da situação interna e as interferências diretas na política<br />

nacional por meio de organizações dirigidas por aliados internos. Isso ficou patente, sobretudo, durante<br />

a campanha eleitoral de 1962, quando se viram multiplicadas as ações de entidades como o Instituto de<br />

Pesquisas e Estudos Sociais (IPES), dirigido pelo general Golbery do Couto e Silva, e o Instituto Brasileiro<br />

de Ação Democrática (IBAD) – que recebiam recursos dos Estados Unidos –, na orientação e financiamento<br />

de certos candidatos. Esse núcleo civil esteve também articulado a grupos fascistas e integralistas<br />

de extrema direita, organizados em movimentos anticomunistas, que praticaram muitos atos de terror e<br />

de intimidação, particularmente junto ao movimento estudantil, então bastante influente.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

57. A luta por reformas e conquistas trabalhistas era frequentemente demonizada. Nos estados<br />

brasileiros em que o governo estava nas mãos de adversários do governo Goulart, já se inicia, antes<br />

do golpe de 1964, uma escalada de violência contra a classe trabalhadora, como ocorreu no Rio de<br />

Janeiro, em São Paulo e em Minas Gerais. Exemplo dessa violência é a praticada no chamado Massacre<br />

de Ipatinga, cidade de Minas Gerais, ocorrido em 7 de outubro de 1963.<br />

58. Em 1964, em meio às tensões sociais e à pressão externa, precipitaram-se os acontecimentos.<br />

O ponto culminante, e que veio a transformar-se em um marco simbólico da derrocada do regime,<br />

foi o comício de 13 de março na estação Central do Brasil, no Rio de Janeiro: uma manifestação a favor<br />

das “reformas de base” em que o presidente João Goulart discursou para 150 mil pessoas, anunciando<br />

reformas como a encampação de refinarias privadas de petróleo e a desapropriação de terras por interesse<br />

social ao longo de rodovias, ferrovias e açudes, em áreas superiores a 500ha numa extensão de 10km.<br />

59. Em 19 de março, realizou-se, no Rio de Janeiro, a Marcha da Família com Deus pela<br />

Liberdade, organizada pela Campanha da Mulher pela Democracia (Camde) e pela Sociedade Rural<br />

Brasileira (SRB).<br />

60. Em 25 de março ocorreu a Revolta dos Marinheiros, quando marinheiros e fuzileiros<br />

navais contrariaram ordens do ministro da Marinha e foram, posteriormente, anistiados por Goulart,<br />

acirrando as tensões entre o governo e os setores militares.<br />

61. No dia 30 de março, o presidente compareceu a uma reunião de sargentos, no Automóvel<br />

Clube do Brasil, com a presença de 3 mil sargentos, discursando em favor das reformas pretendidas<br />

pelo governo e invocando o apoio das Forças Armadas.<br />

97


3 – contexto histórico das graves violações entre 1946 e 1988<br />

62. Em 31 de março, o comandante da 4 a Região Militar, sediada em Juiz de Fora (MG),<br />

iniciou a movimentação de tropas em direção ao Rio de Janeiro. A despeito de algumas tentativas de<br />

resistência, o presidente Goulart reconheceu a impossibilidade de oposição ao movimento militar que o<br />

destituiu. O novo governo foi reconhecido pelo presidente norte-americano, Lyndon Johnson, poucas<br />

horas após os governistas tomarem o poder.<br />

G) Traços constitutivos do regime entre 1964 e 1988: continuidades e mudanças<br />

63. A assinatura do Ato Institucional n o 1 marca o final do período constitucional inaugurado<br />

em 1946. A polarização dos conflitos e a extensão que eles assumiram, em número de<br />

pessoas, de organizações e de instituições implicadas, levou os seus efeitos bem além “do circulo<br />

estrito das cúpulas política e militar”. 11 A “vitória não podia extinguir-se com a deposição do presidente”.<br />

Um vencedor pela força estaria necessariamente em posição de empreender um “expurgo político,<br />

militar e administrativo”. 12<br />

64. No dia 10 de abril, foi divulgada a primeira lista de cassados, que já indicava o largo espectro<br />

de personalidades e instituições visadas pelos militares. Continha 102 nomes, entre os quais 40 congressistas,<br />

militares, governadores, sindicalistas, diplomatas e os ministros mais progressistas de Jango. As cassações<br />

atingiram o PTB em cheio: 19 dos 40 deputados que perderam seus mandatos pertenciam à sigla trabalhista.<br />

65. A lista continha os nomes mais proeminentes da esquerda brasileira na época. Entre os<br />

deputados cassados estavam Leonel Brizola (PTB-GB) e Francisco Julião (PSB-PE). O ex-governador<br />

gaúcho, deputado pelo estado da Guanabara, exilou-se no Uruguai. Francisco Julião, fundador das<br />

Ligas Camponesas, foi preso e ficou na prisão até 1965, quando foi solto, beneficiado por um habeas<br />

corpus, exilando-se no México. Luís Carlos Prestes teve seus direitos políticos mais uma vez revogados<br />

e entrou na clandestinidade.<br />

66. O novo regime não esperou sua formalização para dar inicio à onda repressiva depuradora.<br />

Desde o primeiro dia, os diversos comandos militares procederam a centenas de prisões, entre elas<br />

a de dois governadores de estado: Seixas Dória, de Sergipe, e Miguel Arraes, de Pernambuco. Ambos<br />

foram presos no exercício dos seus mandatos, dos quais foram destituídos por decisão das respectivas<br />

Assembleias Estaduais, constrangidas pela força das armas.<br />

67. Desde as primeiras horas, uma perseguição violenta atingiu sobretudo indivíduos e organizações<br />

mais identificados como esquerdistas, como o Comando Geral dos Trabalhadores (CGT),<br />

a União Nacional dos Estudantes (UNE), as Ligas Camponesas e grupos católicos como a Juventude<br />

Universitária Católica (JUC) e a Ação Popular (AP). “Sete em cada dez confederações de trabalhadores<br />

e sindicatos tiveram suas diretorias depostas.” 13 Milhares de pessoas foram presas. Segundo a<br />

embaixada norte-americana, nos dias seguintes ao golpe, prenderam-se em torno de 5 mil pessoas, 14 e<br />

a ocorrência de brutalidades e torturas foi comum, especialmente no Nordeste.<br />

68. Ao longo do mês de abril de 1964, foram abertos centenas de Inquéritos Policiais-Militares<br />

(IPMs). Chefiados em sua maioria por coronéis, esses inquéritos tinham o objetivo de apurar atividades<br />

consideradas subversivas. Eles implicaram milhares de pessoas e se prolongaram por vários meses.<br />

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69. Nove chineses que participavam de uma missão comercial no Brasil, estabelecida por<br />

Jânio Quadros em 1961, foram presos em 3 de abril de 1964 no apartamento onde estavam, no Rio<br />

de Janeiro, e em seguida torturados. Acusados de subversão e de conspiração, foram condenados a dez<br />

anos de prisão em setembro de 1964 e, no ano seguinte, expulsos do Brasil.<br />

70. O caso dos chineses é exemplar para a caracterização dos métodos com que as ditaduras<br />

operam, entre os quais se destacam a violência e a mentira. Defendendo os nove chineses judicialmente,<br />

Sobral Pinto, referência ética da advocacia brasileira, demonstrou a farsa produzida a partir da prisão.<br />

Ressaltando as inverdades divulgadas sobre os motivos de os chineses estarem no Brasil, denunciando<br />

a remissão das autoridades a provas inexistentes, bem como a tradução falseada de escritos encontrados<br />

com os chineses, Sobral Pinto concluiu a sua defesa afirmando:<br />

O que se pretendeu alcançar, e de fato foi alcançado com tais mentiras, foi persuadir,<br />

tanto os membros das Forças Armadas quanto a opinião pública do país, senão a<br />

opinião pública mundial, que o presidente João Goulart mandara buscar na China<br />

comunista especialistas e técnicos em revolução que, em conluio com políticos<br />

brasileiros, se incumbiriam de implantar no Brasil o regime comunista do tipo que<br />

vigora em Cuba e na China continental. Esse escândalo pede reparação. É preciso<br />

resgatar a honra daqueles nove cidadãos inocentes que serviram de pretexto para<br />

os militares justificarem o golpe de 1964. O povo brasileiro não pode continuar a<br />

conviver com essa vergonha, e clama aos poderes constituídos no Brasil democrático<br />

que anulem a injusta condenação dos nove cidadãos chineses, revoguem o decreto de<br />

suas expulsões e devolvam o dinheiro ao Governo da República Popular da China. 15<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

71. No curso desse período, as Forças Armadas fortaleceram, com a cumplicidade de uma<br />

parte da elite civil, duas práticas que perduraram até o fim do regime: a tutela sobre a classe política e<br />

o controle policial e judicial dos movimentos sociais.<br />

72. Um dia depois de publicada a lista de cassados, o Congresso, mutilado, reuniu-se e elegeu<br />

presidente o marechal Humberto Castelo Branco, até então chefe do Estado-Maior. Com ele se<br />

inaugurava a série de governos militares que duraria 21 anos, até a posse, em 1985, de um presidente<br />

civil, ainda eleito indiretamente dentro das regras estabelecidas pelo regime.<br />

73. O governo Castelo Branco impôs uma série de medidas anti-inflacionárias que afetaram<br />

os assalariados. Aumentou as tarifas de energia elétrica e telefone, e o preço da gasolina e<br />

do pão, que eram subsidiados. Os reajustes salariais passaram a ser feitos com índices inferiores à<br />

inflação, as greves foram praticamente proibidas e foi imposta a rotatividade da mão de obra, sob o<br />

pretexto de conter os custos de produção e o preço final dos produtos. Criou-se o Fundo de Garantia<br />

do Tempo de Serviço (FGTS), que acabou com a estabilidade decenal, adquirida após dez anos de<br />

serviços prestados ao mesmo empregador.<br />

74. A impopularidade advinda da política econômica e das medidas repressivas do Governo,<br />

que logo passaram a atingir parceiros civis e políticos na conspiração do golpe militar, tornava inviável<br />

a convivência do poder estabelecido com a legislação constitucional de 1946, formalmente mantida<br />

pelo primeiro ato institucional.<br />

99


3 – contexto histórico das graves violações entre 1946 e 1988<br />

75. Em outubro de 1965, a oposição que sobreviveu aos primeiros expurgos foi vitoriosa<br />

nas eleições para os governos de dois importantes estados, Minas Gerais e Guanabara. Em resposta,<br />

o governo promulgou, em 27 de outubro, o Ato Institucional n o 2, que, entre outras medidas de<br />

exceção, dissolveu todos os partidos políticos e estabeleceu eleições indiretas para presidente da<br />

República e governadores.<br />

76. No final de novembro são definidas as regras a serem seguidas na reorganização partidária,<br />

que dariam origem à instalação do bipartidarismo no país: de um lado, a agremiação governista Aliança<br />

Renovadora Nacional (Arena) e, de outro, o oposicionista Movimento Democrático Brasileiro (MDB).<br />

77. Castelo Branco assinou três atos institucionais: o terceiro foi o Ato Institucional n o 4,<br />

baixado em 7 de dezembro de 1966. Convocava o Congresso Nacional para a votação e promulgação<br />

de projeto de Constituição apresentado pela Presidência da República e revogava definitivamente a<br />

Constituição de 1946.<br />

78. Em 24 de janeiro de 1967, foi promulgada pelo Congresso Nacional uma nova<br />

Constituição que dava grandes poderes ao presidente da República. Em particular, facultava ao chefe<br />

de Estado editar Decretos-Lei – um instrumento jurídico criado pelo Estado Novo (vigente entre 1937<br />

e 1946) e recriado pelo AI-2 – sobre matérias como segurança nacional e finanças públicas.<br />

79. Juntavam-se aos atos institucionais os atos complementares, igualmente criados pelo<br />

AI-2 e que davam poderes ao presidente para editar normas em torno do ato institucional, livre também<br />

da deliberação do Congresso e da apreciação do Judiciário.<br />

80. O marechal Humberto Castelo Branco foi sucedido em 15 de março de 1967 pelo marechal<br />

Artur da Costa e Silva, que fora eleito indiretamente pelo Congresso Nacional, em 3 de outubro<br />

de 1966, como havia estabelecido a nova legislação. Em 13 de setembro de 1968, tendo em vista os<br />

atos de insurgência em curso na sociedade brasileira, o AI-5 é decretado.<br />

H) O segundo ato fundador da autodesignada Revolução<br />

Quantas vezes teremos que reiterar e demonstrar que a Revolução é irreversível<br />

(Costa e Silva) 16<br />

81. O Ato Institucional n o 5 (AI-5) autorizava o presidente da República a<br />

decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembleias Legislativas e das Câmaras<br />

de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sítio ou fora dele, só<br />

voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo presidente da República.<br />

Decretado o recesso parlamentar, o poder Executivo correspondente fica autorizado<br />

a legislar em todas as matérias e exercer as atribuições previstas nas Constituições ou<br />

na Lei Orgânica dos Municípios.<br />

100


82. O AI-5 aprofundava a autorização para as cassações políticas, estabelecendo que<br />

o presidente da República, sem as limitações previstas na Constituição, poderia suspender os<br />

direitos políticos de qualquer cidadão pelo prazo de dez anos e cassar mandatos eletivos federais,<br />

estaduais e municipais.<br />

83. O mencionado ato também suspendia as garantias constitucionais ou legais de vitaliciedade,<br />

inamovibilidade e estabilidade, bem como a de exercício em funções por prazo certo. Ficava<br />

suspensa (artigo 10 o ) a garantia do habeas corpus, instrumento usado por prisioneiros e perseguidos<br />

políticos do regime para garantir sua vida e liberdade.<br />

84. <strong>Final</strong>mente, todas as ações facultadas ao presidente não eram passíveis de recurso legal.<br />

O AI-5 excluía de apreciação judicial todos os atos alcançados por ele e por seus atos complementares,<br />

bem como os respectivos efeitos.<br />

85. O país não tivera, em toda a sua vida republicana, um conjunto de medidas que concentrasse<br />

tanto poder discricionário nas mãos de um chefe de Estado.<br />

86. Punido com a decretação de recesso, o Congresso sofreu, em acréscimo, o imediato expurgo<br />

de parlamentares. Houve dezenas de cassações na Câmara baseadas no AI-5. Começando com<br />

Márcio Moreira Alves e Hermano Alves, 51 deputados do MDB e 37 da Arena foram privados de seus<br />

mandatos. No Senado, houve a acusação de oito senadores. Assembleias estaduais foram fechadas,<br />

como as do Rio de Janeiro e de São Paulo.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

87. O caso de Márcio Moreira Alves foi o que teve maior repercussão junto à opinião pública<br />

do país. Em 2 de setembro de 1968, o deputado fez um discurso na Câmara protestando contra<br />

a invasão da Universidade de Brasília pela Polícia Federal. Sua crítica à violência do regime e a não<br />

aceitação, pela Câmara, do pedido de cassação de seu mandato, encaminhada pelo Supremo Tribunal<br />

Federal, apressaram a edição do Ato Institucional n o 5 em dezembro de 1968.<br />

88. O Judiciário não tardou a ser atingido. Em janeiro de 1969, três ministros do<br />

Supremo Tribunal Federal, Victor Nunes Leal, Hermes Lima e Evandro Lins e Silva, foram aposentados<br />

compulsoriamente.<br />

89. Um balanço das cassações e perseguições políticas mostra a amplitude da repressão<br />

durante os governos militares. Inventário produzido por Marcus Figueiredo, e citado por José Murilo<br />

de Carvalho, 17 apresenta os seguintes números, produzidos entre 1964 e 1973: 1) foram punidas, com<br />

perda de direitos políticos, cassação de mandato, aposentadoria e demissão, 4.841 pessoas; 2) o AI-1<br />

atingiu, isoladamente, 2.990 pessoas, ou seja, 62% dos punidos entre 1964 e 1973; 3) foram cassados<br />

os mandatos de 513 senadores, deputados e vereadores; 4) perderam os direitos políticos 35 dirigentes<br />

sindicais; 5) foram aposentados ou demitidos 3.783 funcionários públicos, dentre os quais 72 professores<br />

universitários e 61 pesquisadores científicos; 6) foram expulsos ao todo 1.313 militares, entre os<br />

quais 43 generais, 240 coronéis, tenentes -coronéis e majores, 292 capitães e tenentes, 708 suboficiais e<br />

sargentos, trinta soldados e marinheiros; 7) nas policias militar e civil, foram 206 os punidos; 8) foram<br />

feitas 536 intervenções (durante o período entre 1964 e 1970) em organizações operárias, sendo 483<br />

em sindicatos, 49 em federações e quatro em confederações.<br />

101


3 – contexto histórico das graves violações entre 1946 e 1988<br />

90. O Ato Institucional n o 5 foi também utilizado como instrumento de política econômica<br />

e até mesmo em matéria fiscal. A série de medidas e ações repressivas desenvolvidas a partir do mencionado<br />

ato não se coadunava com o processo eleitoral disciplinado pelo regime. Em 26 de fevereiro<br />

de 1969, foi promulgado o Ato Institucional n o 7, que suspendia as eleições para cargos executivos<br />

e legislativos no âmbito federal, estadual e municipal, ficando a cargo do presidente da República,<br />

quando lhe aprouvesse, providenciar junto à Justiça Eleitoral a fixação de novas datas para eleições. O<br />

governo militar estendia crescentemente seus poderes.<br />

91. A sucessão de Costa e Silva seria, por razões fortuitas, atribulada, pois o presidente sofreu<br />

um derrame cerebral e foi substituído por uma junta militar, como solução de transição. Pouco depois<br />

seria escolhido o general Garrastazu Médici para ocupar a Presidência.<br />

I) A ditadura: a política de controle<br />

92. Com Médici, o regime ditatorial-militar brasileiro atingiu sua forma plena. Criara-se uma<br />

arquitetura legal que permitia o controle dos rudimentos de atividade política tolerada. Aperfeiçoarase<br />

um sistema repressor complexo, que permeava as estruturas administrativas dos poderes públicos e<br />

exercia uma vigilância permanente sobre as principais instituições da sociedade civil: sindicatos, organizações<br />

profissionais, igrejas, partidos. Erigiu-se também uma burocracia de censura que intimidava<br />

ou proibia manifestações de opiniões e de expressões culturais identificadas como hostis ao sistema.<br />

Sobretudo, em suas práticas repressivas, fazia uso de maneira sistemática e sem limites dos meios mais<br />

violentos, como a tortura e o assassinato.<br />

93. Médici chegou ao poder em meio à intensificação de ações realizadas por grupos de luta<br />

armada – pelo menos no que se refere à visibilidade e à ousadia –, às quais o Governo responderá com<br />

truculência até então inédita. O novo presidente já havia passado pela chefia do Serviço Nacional de<br />

Informações (SNI), cargo que assumiu em março de 1967, substituindo o general Golbery do Couto<br />

e Silva, e que lhe garantia participação no Conselho de Segurança Nacional (CSN). Sob sua gestão,<br />

o SNI ampliou suas atividades, antes restritas a investigações sobre ação subversiva e corrupção, para<br />

incluir a análise dos problemas políticos, sociais e econômicos que agitavam o país. 18<br />

94. Em 4 de novembro, Carlos Marighella – líder da Aliança Libertadora Nacional (ALN)<br />

e principal figura da luta armada naquele momento – foi fuzilado em São Paulo numa emboscada<br />

comandada pelo delegado Sérgio Fleury. Naquela madrugada, um grupo de frades dominicanos que<br />

dava apoio logístico à ALN havia sido retirado de dentro do Convento das Perdizes, em São Paulo, na<br />

chamada Operação Batina Branca, comandada pelo mesmo Fleury, e se encontrava preso. Dias depois,<br />

frei Betto, também dominicano e pertencente ao mesmo grupo, foi preso no Rio Grande do Sul, onde<br />

auxiliava militantes da luta armada a deixarem o país pela fronteira.<br />

95. Desde julho de 1969, em São Paulo, a Operação Bandeirantes (Oban) concentrava<br />

as ações repressivas, contando inclusive com doações de empresários e industriais para realizar suas<br />

atividades. Em janeiro de 1970, o governo Médici institucionalizou a Oban. A seguir, entraram em<br />

funcionamento o Destacamento de Operações de Informações (DOI) e o Centro de Operações de<br />

Defesa Interna (CODI).<br />

102


96. Já em 16 de janeiro de 1970, Mário Alves, fundador e secretário-geral do Partido<br />

Comunista Brasileiro Revolucionário (PCBR), foi preso pelo DOI-CODI no quartel da Polícia do<br />

Exército, na Rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro. Segundo depoimentos colhidos pela <strong>CNV</strong>,<br />

Mário Alves morreu no local em decorrência de torturas. Seu corpo jamais foi encontrado.<br />

97. Em janeiro de 1970, em visita ao Vaticano, dom Hélder Câmara, arcebispo de Olinda<br />

e Recife, relata ao papa Paulo VI a situação da Igreja católica no Brasil, esclarecendo a denúncia<br />

sobre tortura de presos políticos feita por um grupo de prelados franceses e italianos. Em fevereiro<br />

de 1970, entra em vigor o Decreto-Lei n o 1.077, de 26 de janeiro de 1970, estabelecendo a censura<br />

prévia a livros e revistas.<br />

98. Em 11 de março de 1970, é sequestrado em São Paulo, por militantes da Vanguarda<br />

Popular Revolucionária (VPR), o cônsul japonês Nobuo Okuchi. É libertado quatro dias depois, após<br />

ser trocado por cinco presos políticos. Em sua mensagem de comemoração do sexto aniversário da<br />

“Revolução”, em cadeia de rádio e televisão, o general Médici afirmava: “Haverá repressão, sim. E dura<br />

e implacável. Mas apenas contra o crime e só contra os criminosos”. 19<br />

99. No fim de abril, as Forças Armadas desmantelam o foco de guerrilha implantado por<br />

Carlos Lamarca no Vale do Ribeira, em São Paulo. Em 11 de junho, integrantes da VPR sequestram o<br />

embaixador alemão Ehrenfried von Holleben, exigindo a liberdade de 40 presos políticos. Cinco dias<br />

depois, os presos seguiram para a Argélia e o embaixador foi libertado.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

100. No dia 7 de dezembro de 1970 realiza-se o último sequestro promovido pela luta armada<br />

no Brasil: o do embaixador suíço Giovani Enrico Bucher. Carlos Lamarca foi o líder da ação.<br />

Dessa vez, o governo brasileiro foi mais duro e prolongou a negociação, recusando condições como a<br />

leitura de um manifesto. O embaixador foi libertado em 16 de janeiro de 1971, sendo trocado por 70<br />

prisioneiros políticos, que embarcaram, banidos, para o Chile.<br />

101. Em junho, Stuart Edgard Angel Jones foi preso e levado para o Centro de Informações<br />

de Segurança da Aeronáutica (CISA), na base aérea do Galeão, da III Zona Aérea, que estava sob o<br />

comando do brigadeiro João Paulo Burnier. Ali, é torturado e, segundo relatos de companheiros,<br />

morto. Em resposta à crise decorrente da morte de Stuart Angel, Médici exonerará o ministro da<br />

Aeronáutica, marechal do ar Márcio de Sousa e Melo, em 26 de novembro de 1971, substituído pelo<br />

tenente-brigadeiro Joelmir Campos de Araripe Macedo. No início de dezembro de 1971, o brigadeiro<br />

Burnier é demitido do comando da III Zona Aérea.<br />

102. Em 17 de setembro de 1971, Carlos Lamarca é morto em uma enorme operação<br />

que mobilizou mais de duzentos homens das Forças Armadas e da Polícia Federal, no interior da<br />

Bahia. Com a execução de Lamarca, a maior parte dos líderes das categorias de luta armada estavam<br />

mortos, presos ou exilados, e a resistência armada e organizada ao regime militar se encontrava<br />

praticamente neutralizada.<br />

103. Em 1972, o Exército desencadearia operações contra a guerrilha do Araguaia (v.<br />

Capítulo 14). Organizado pelo Partido Comunista do Brasil (PCdoB), esse movimento localizou-se<br />

na região limítrofe dos estados do Pará, Maranhão e Goiás, às margens do rio Araguaia, reunindo<br />

103


3 – contexto histórico das graves violações entre 1946 e 1988<br />

algumas dezenas de militantes, tendo a maior parte chegado à região por volta de 1970. Toda a área<br />

foi declarada zona de segurança nacional. Apesar dos vastos recursos empregados, o Exército levou<br />

mais de dois anos para concluir sua missão. A tortura foi utilizada largamente contra os insurretos e<br />

os camponeses locais. Em 1975, todos os guerrilheiros estavam mortos ou presos.<br />

104. Desde 1964, a tortura vinha sendo utilizada em maior ou menor grau por agentes da<br />

repressão e não desapareceu com a liquidação das organizações armadas. Era usada para obter informações,<br />

mas também como um meio de dissuasão, de intimidação e disseminação do terror entre as<br />

forças de oposição. O sistema repressivo aperfeiçoou-se, institucionalizou-se.<br />

105. A repressão atingia, sobretudo, grupos ou instituições que procuravam organizar as<br />

classes populares: sindicatos de trabalhadores urbanos e rurais, associações de moradores em bairros<br />

pobres e ainda o trabalho de padres e religiosos junto a esses mesmos grupos.<br />

106. Baseado no apoio militar, dotado de um aparelho repressivo aprimorado, eliminadas<br />

ou neutralizadas as forças de oposição, o governo pôde desenvolver uma política econômica eficiente<br />

em seu desempenho geral – apresentando altas taxas de crescimento –, mas que favorecia sobretudo o<br />

grande capital, sem grande consideração sobre seus efeitos na distribuição da renda ou no bem-estar<br />

da grande maioria da população trabalhadora.<br />

J) O controle da política<br />

107. Em janeiro de 1971, o próprio Médici aponta para sucedê-lo, em reunião com colaboradores<br />

próximos, o chefe do Gabinete Militar, Ernesto Geisel.<br />

108. O golpe de 1964 completava dez anos quando o general Ernesto Geisel foi empossado<br />

na Presidência da República, no dia 15 de março de 1974. Incluindo-se o pequeno interregno da junta<br />

militar que assumira o Governo em função da incapacitação de Costa e Silva, seria a quarta sucessão<br />

na Chefia do Estado conduzida desde então. Se o processo sucessório correspondia a um período de<br />

conflitos e incertezas – como, de resto, acontece a muitos processos sucessórios de ordem diversa –, o<br />

sistema vinha adquirindo a capacidade de reproduzir-se e renovar-se, mantendo certa continuidade e<br />

estabilidade. Esta última sustentava-se, sobretudo, nos poderes incontestes do Executivo, conferidos<br />

pelo Ato Institucional n o 5.<br />

109. Depois do período Médici – durante o qual as restrições às liberdades públicas e as<br />

denúncias sobre violação dos direitos humanos haviam atingiram níveis até então inéditos –, o discurso<br />

do novo presidente surgia, para alguns setores da opinião pública, notadamente imprensa e classe política,<br />

como esboço de um projeto liberalizante. Ao longo todo o governo Geisel, o país passou a viver,<br />

ao mesmo tempo, o embate esporádico entre iniciativas políticas de grupos ou pessoas que protestavam<br />

contras as violências cometidas pelo Estado – e que reivindicavam uma liberalização do regime – e a<br />

permanência ativa e continuada dos instrumentos oficiais de repressão.<br />

110. Com Geisel, o aparelho policial continuaria a perseguir e matar os remanescentes da<br />

oposição armada. Em 1974, foram assassinadas “cerca de 50 pessoas, a maioria nas matas e nos cárceres<br />

104


militares do Araguaia”. 20 O clima de abertura política que marcaria o governo de Geisel não atenuaria<br />

a manutenção da repressão e as graves violações de direitos humanos: no ano de 1974 foram registrados<br />

54 desaparecimentos políticos, o maior número do regime. 21<br />

111. Em janeiro de 1975, iniciou-se mais uma vaga de ações repressivas contra o Partido<br />

Comunista Brasileiro (PCB). Dezenas de militantes foram presos e torturados. Dirigentes, cujos corpos<br />

ainda estão desaparecidos, foram assassinados depois de submetidos à tortura. Além de Luiz<br />

Ignácio Maranhão Filho, Luiz Maranhão e Walter de Souza Ribeiro, dirigentes do PCB, e João<br />

Massena Mello, comunista, ex-deputado estadual carioca, desaparecidos logo nos primeiros dias do<br />

governo Geisel, nunca foram encontrados Jaime Miranda Amorim, Orlando Bonfim Júnior, Nestor<br />

Veras, Hiram Lima Pereira, Élson Costa e Itair Veloso.<br />

112. Em 26 de outubro de 1975, a morte de um prisioneiro político, acusado de ter ligações<br />

com o PCB, causou grande impacto na opinião pública nacional: o comandante do II Exército, general<br />

Ednardo d’Avila Mello, emite nota oficial comunicando que o jornalista Vladimir Herzog fora<br />

encontrado morto por enforcamento em uma das celas do DOI-CODI. Ele era diretor-responsável do<br />

Departamento de Jornalismo da TV Cultura de São Paulo e editor de cultura da revista Visão. Por três<br />

dias, houve greve de estudantes e professores na Universidade de São Paulo. O Sindicato dos Jornalistas<br />

declarou-se em sessão permanente para exigir a abertura de inquérito e a OAB protestou no mesmo<br />

sentido. O cardeal de São Paulo, d. Paulo Evaristo Arns, conduziu um serviço fúnebre ecumênico com<br />

grande participação popular.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

113. No dia 15 de novembro, a imprensa publicou um relatório da 5 a Região Militar (RM) sobre<br />

a prisão de 67 membros do Partido Comunista Brasileiro no Paraná. Dias depois, o Departamento<br />

de Ordem Política e Social (DOPS) 22 paulista divulgou um extenso documento sobre as atividades<br />

dos comunistas no estado, envolvendo 105 nomes de militantes e simpatizantes, entre os quais os<br />

deputados Marcelo Gato, federal, e Nélson Fabiano Sobrinho e Alberto Goldman, estaduais, eleitos<br />

na legenda do MDB. O AI-5 voltou a ser aplicado, em 16 de janeiro de 1976, para cassar o mandato<br />

e suspender por dez anos os direitos políticos dos dois primeiros.<br />

114. Em 17 de janeiro de 1976, ocorreria uma repetição do caso Herzog: Manuel Fiel Filho,<br />

operário do Sindicato dos Trabalhadores nas Indústrias Metalúrgicas, Mecânicas e de Material Elétrico<br />

de São Paulo, teve a sua morte, também nas dependências do DOI-CODI do II Exército, oficialmente<br />

divulgada como suicídio. Também dessa vez o laudo pericial do Instituto Médico Legal foi assinado pelo<br />

médico Harry Shibata, mais tarde punido pelo Conselho de Medicina de São Paulo por falsidade ideológica.<br />

O general Ednardo d’Avila foi demitido do cargo e substituído pelo general Dilermando Gomes Monteiro.<br />

115. No final de março, mais uma vez o governo utiliza o AI-5. Foram cassados os mandatos<br />

dos deputados federais gaúchos Nadir Rosseti e Amauri Müller, ambos do MDB. Três dias<br />

depois, ocorre a cassação do carioca Lysâneas Maciel, que protestara contra as cassações de seus<br />

companheiros de partido.<br />

116. Até o fim do mandato, a Presidência de Geisel será caracterizada – talvez mais do que<br />

as anteriores – por um duplo movimento que atravessa todo o período ditatorial. O primeiro dizia respeito<br />

à vigilância repressiva em vários níveis: censura à imprensa, prisões, tortura e assassinatos. Mais<br />

105


3 – contexto histórico das graves violações entre 1946 e 1988<br />

tarde, o próprio Geisel legitimaria a violência quando, em depoimento concedido a historiadores sobre<br />

sua trajetória no regime autoritário de 64, admitiu considerar a tortura necessária em determinados<br />

casos: “Há circunstâncias em que o indivíduo é impelido a praticar a tortura, para obter determinadas<br />

confissões e, assim, evitar um mal maior”. 23<br />

117. Um segundo movimento era o da reinvenção institucional casuística que visava resguardar<br />

o caráter autoritário do regime em circunstâncias diversas.<br />

118. Em 31 de dezembro de 1977, Geisel comunicou formalmente ao general João Baptista<br />

de Oliveira Figueiredo, chefe do Serviço Nacional de Informações (SNI) desde o inicio de seu governo,<br />

que o indicaria como sucessor. Em 8 abril, durante sua convenção nacional, a Arena segue a indicação<br />

do presidente da República e apoia os nomes de Figueiredo e Aureliano Chaves, governador de Minas<br />

Gerais, respectivamente para presidente e vice-presidente do Brasil. O MDB decidiu apresentar candidaturas<br />

de protesto: para presidente foi escolhido o general Euler Bentes Monteiro, ex-diretor da<br />

Sudene; e o gaúcho Paulo Brossard, senador pelo MDB do Rio Grande do Sul, para vice-presidente.<br />

119. Acertadas as candidaturas, o governo dará um passo importante dentro do processo de<br />

institucionalização do regime, como fora anunciado por Geisel, enviando ao Congresso um conjunto<br />

de medidas aglutinadoras sob o título de Emenda Constitucional n o 11. Esta seria aprovada em outubro<br />

de 1978. 24 O MDB não participou da votação final da emenda, argumentando que as propostas eram<br />

insuficientes e que votá-las seria legitimar uma impostura.<br />

120. A mudança mais importante contida na emenda seria a abolição do AI-5, extinguindo<br />

consequentemente a autoridade do presidente para colocar o Congresso em recesso, cassar parlamentares<br />

ou privar os cidadãos dos seus direitos políticos. Ao mesmo tempo, a emenda inseria novas medidas<br />

de emergência na Constituição. Revogava o Decreto-Lei n o 477, que permitia a expulsão de estudantes<br />

por motivos políticos. Transferia para o Supremo Tribunal Federal (STF) a responsabilidade de cassar<br />

mandatos parlamentares, com base em denúncias enviadas pelo Executivo. Restabelecia o habeas<br />

corpus para crimes políticos e abolia as penas de morte, prisão perpétua e banimento. Previa ainda o<br />

abrandamento das penas previstas na Lei de Segurança Nacional, a diminuição das exigências para a<br />

criação de novos partidos e a restauração do voto em separado do Senado e da Câmara na apreciação<br />

das emendas constitucionais.<br />

121. O general João Figueiredo recebe a Presidência da República para um mandato de seis anos,<br />

que será exercido integralmente. As regras eleitorais definidas pelo seu antecessor favoreciam claramente o<br />

partido do governo. Embora o AI-5 houvesse sido abolido, a Emenda Constitucional n o 11 ainda conferia<br />

poderes excepcionais ao Executivo. Além do mais, a tutela militar explícita sobre o processo político, nas<br />

suas linhas gerais, e o poder repressivo das Forças Armadas guardavam, obviamente, considerável força<br />

dissuasiva. A economia, no entanto, apresentava um quadro desfavorável e que se agravaria rapidamente.<br />

122. Em 28 de agosto de 1979, Figueiredo sancionou a Lei n o 6.683, de iniciativa do governo<br />

e aprovada pelo Congresso, anistiando (artigo 1 o ):<br />

a todos quantos, no período compreendido entre 2 de setembro de 1961 [data da<br />

anistia anterior – houve 47 na história do Brasil 25 ] e 15 de agosto de 1979, come-<br />

106


teram crimes políticos ou conexo com estes, crimes eleitorais, aos que tiveram seus<br />

direitos políticos suspensos e aos servidores da Administração Direta e Indireta,<br />

de fundações vinculadas ao poder público, aos Servidores dos Poderes Legislativo<br />

e Judiciário, aos Militares e aos dirigentes e representantes sindicais, punidos com<br />

fundamento em Atos Institucionais e Complementares.<br />

123. A lei excetuava dos benefícios da anistia (artigo 1 o , parágrafo 2 o ) “os que foram condenados<br />

pela prática de crimes de terrorismo, assalto, sequestro e atentado pessoal”. Entre presos, cassados,<br />

banidos, exilados ou simplesmente destituídos dos seus empregos, a Lei da Anistia beneficiou 4.650<br />

pessoas. Havia então 52 presos políticos, dos quais 17 foram imediatamente libertados e 35 permaneceram<br />

à espera de uma análise de seus processos. Entre os exilados que retornavam ao país, e dando à<br />

lei grande força simbólica, estavam alguns nomes identificados como inimigos do regime desde o seu<br />

início, e cuja participação na vida política do país se estendia por várias décadas: Luís Carlos Prestes,<br />

Leonel Brizola, Miguel Arraes e Francisco Julião.<br />

124. Em 17 de outubro de 1979, um projeto de lei foi enviado ao Congresso propondo a<br />

extinção da Arena e do MDB e a formação, em 18 meses, de novos partidos, que deveriam montar<br />

diretórios em, pelo menos, um quinto dos municípios de nove estados. Apesar da forte oposição do<br />

MDB, o projeto foi aprovado em novembro. Extintos Arena e MDB, novos partidos foram criados.<br />

A Arena reorganizou-se como Partido Democrático Social (PDS), enquanto a maior parte do MDB<br />

criou o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB). Foi também constituído o Partido<br />

Popular (PP), que reunia políticos atuantes, tanto na oposição, como Tancredo Neves, senador eleito<br />

por Minas Gerais em 1978 pelo MDB, como no Governo, como Magalhães Pinto, ex-senador mineiro<br />

pela Arena (1970-78).<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

125. Surgiram, também, ao longo dos meses seguintes, o Partido Democrático Trabalhista<br />

(PDT), liderado por Leonal Brizola, e o Partido dos Trabalhadores (PT), tendo Luiz Inácio Lula da<br />

Silva como a liderança mais expressiva, após ter sido, em 1980, um dos principais líderes sindicais na<br />

greve dos metalúrgicos, na região do ABC, em São Paulo. Lula, com outros dirigentes sindicalistas,<br />

fora preso naquele momento por tropas de choque e oficiais do DOI-CODI. Recriou-se o Partido<br />

Trabalhista Brasileiro (PTB), registrado por uma sobrinha de Getúlio Vargas, a deputada Ivete Vargas.<br />

Este último renasceu sob os auspícios do governo, que conseguia, assim, impedir que Leonel Brizola<br />

ficasse à frente da legenda historicamente varguista.<br />

126. O regime procurava monitorar o processo político, mas, na esfera pública, as movimentações<br />

na sociedade civil já haviam adquirido vida e força consideráveis. A partir de janeiro de 1980, e durante vários<br />

meses, o país assiste a uma série de manifestações terroristas de direita, em oposição a essa vaga liberalizante.<br />

127. Entre essas manifestações, ocorreram 25 atentados sem vítimas, em sua maioria explosões<br />

de bombas em bancas de jornal que vendiam publicações de esquerda, ou aquelas denominadas à<br />

época de “imprensa alternativa”. Em 27 e 28 de agosto, no entanto, cartas-bombas enviadas ao vereador<br />

do Rio de Janeiro Antônio Carlos de Carvalho, do PMDB, e a Eduardo Seabra Fagundes, presidente<br />

da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), tiveram sérias consequências e provocaram imensa indignação:<br />

o jornalista José Ribamar de Freitas, chefe de gabinete do vereador, ficou gravemente ferido e<br />

dona Lida Monteiro da Silva, secretária da OAB, foi morta.<br />

107


3 – contexto histórico das graves violações entre 1946 e 1988<br />

128. Em 30 de abril de 1981, outro episódio de terrorismo teve imensa repercussão: duas bombas<br />

explodiram no Riocentro, na Barra da Tijuca, Rio de Janeiro, onde o Centro Brasil Democrático<br />

(Cebrade) promovia um show de música popular, em comemoração ao Dia do Trabalho, com a presença<br />

de cerca de 20 mil pessoas. Uma das explosões ocorreu em um carro, matando o sargento Guilherme<br />

Pereira do Rosário e ferindo gravemente o motorista, capitão Wilson Luís Chaves Machado, ambos<br />

do CODI do I Exército. O incidente estabelecia uma ligação direta entre os atentados e o aparelho<br />

repressivo do regime. O general Gentil Marcondes, comandante do I Exército, divulgou, entretanto,<br />

a versão de que ambos cumpriam “missão de rotina” e determinou que o sepultamento do sargento<br />

fosse realizado com honras militares.<br />

129. O governo do general Figueiredo tinha ainda, antes do pleito indireto que elegeria o seu<br />

sucessor, duas eleições pela frente: as municipais, de prefeitos e vereadores, em 1980, e as estaduais, de<br />

governadores, senadores, deputados federais e estaduais, em 1982. A maioria dos prefeitos e vereadores<br />

no país pertencia ao PDS, e os governistas receavam uma grande derrota se o pleito ocorresse no prazo<br />

previsto. Uma vez mais, o pragmatismo dos legisladores do regime (a palavra casuísmo era frequentemente<br />

invocada pela oposição) foi mobilizado: em 4 de setembro de 1980, a emenda apresentada<br />

pelo deputado Anísio de Sousa, do PDS de Goiás, foi aprovada pelo Congresso. Ela adiava as eleições<br />

municipais para 1982, associando-as às eleições estaduais. Na opinião do governo, o PDS, e não a<br />

oposição, seria beneficiado com a reunião dessas votações em um mesmo dia. 26<br />

130. Pouco tempo depois, introduz-se mais uma reforma eleitoral, dessa vez de cunho liberalizante<br />

e com o apoio da oposição. Em 13 de novembro de 1980, o Congresso Nacional aprovou<br />

por unanimidade a emenda constitucional proposta pelo governo, que estabelecia eleições diretas para<br />

governador e extinguia a figura do senador “biônico”, preservando os mandatos em andamento. 27<br />

131. Ao aproximar-se das eleições de 1982, o regime retomaria a sua capacidade legiferante<br />

no afã de deter ou evitar os avanços oposicionistas. Em 10 de janeiro de 1982 é aprovada, por decurso<br />

de prazo, facultado pela legislação, a mensagem do Executivo proibindo a coligação de partidos e<br />

estabelecendo a vinculação total de votos. O eleitor seria obrigado a sufragar a chapa integral de um<br />

único partido para os cargos de governador, senador, deputado federal, deputado estadual, prefeito<br />

e vereador. Qualquer discrepância – um voto em candidato de outro partido – implicaria anulação.<br />

132. As duas medidas tornariam praticamente impossível a formação de uma maioria oposicionista.<br />

Para evitar uma completa fragmentação das forças de oposição, o PP incorporou-se ao PMDB no mês seguinte.<br />

133. Em maio foi enviada ao Congresso proposta de emenda constitucional alterando a<br />

composição do Colégio Eleitoral responsável pela eleição do presidente da República. Aprovada em 25<br />

de junho, instituía o voto distrital misto para 1986, suprimia exigências para a formação de partidos e<br />

restituía ao Legislativo algumas das prerrogativas que ele havia perdido desde abril de 1964. 28<br />

K) Epílogo: uma transição sob medida<br />

134. O Colégio Eleitoral reuniu-se em Brasilia, no Congresso Nacional, em 15 de janeiro<br />

de 1985 e elegeu, por 480 votos, Tancredo Neves e José Sarney, ex-presidente do PDS, para<br />

108


presidente da República e vice-presidente, respectivamente, contra os candidatos do PDS, Paulo<br />

Maluf e Flávio Marcílio, que receberam 180 votos, de um total de 686. Houve 17 abstenções e<br />

nove ausências. Tancredo Neves obteve quase o mesmo número de votos (166) de representantes<br />

do PDS que Maluf (174).<br />

“Foi uma autêntica vitória da coalizão”, comenta Skidmore, fazendo alusão ao<br />

sucesso de uma articulação política encaminhada, sobretudo, pelo candidato vitorioso,<br />

que conseguiu durante o segundo semestre de 1984 formar uma aliança<br />

com parte significativa do partido governista para a formação de uma chapa conjunta<br />

que concorreria à Presidência dentro do Colégio Eleitoral. Deram a essa<br />

aliança o nome de Aliança Liberal. 29<br />

135. O país passaria, assim, das mãos de um general presidente para as de dois civis, veteranos<br />

representantes da classe política brasileira, cujas carreiras haviam se iniciado praticamente nos<br />

primórdios do exercício da Constituição de 1946. As causas, a natureza e as implicações dessa mudança<br />

ainda são motivo de debate entre os estudiosos, mas elas certamente têm a ver com as relações entre<br />

dirigentes civis e militares na condução do Estado e da Administração em sociedades contemporâneas.<br />

A morte de Tancredo Neves e a posse de José Sarney como presidente emprestaram um traço<br />

inesperado a essa transição.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

136. De maneira geral, o governo militar deixou para a “Nova República”, denominação<br />

assumida pelo governo recém-empossado, dois legados que se distinguem. O primeiro, como mencionado,<br />

foi a desastrosa situação econômica: uma dívida assustadora, uma inflação galopante e uma<br />

recessão que se prolongava. Tudo isso se arrastou ainda por vários anos e só foi resolvido depois de uma<br />

moratória e vários insucessos de políticas econômicas em mandatos de diferentes presidentes. O segundo<br />

legado é o referente às relações civis-militares na esfera pública, não somente pelo longo período de<br />

dominância dos militares sobre os civis, mas também por fatores relacionados às características do que<br />

a literatura política chama de “transição de regime”.<br />

1 – “Memorial dos coronéis”. .<br />

2 – “Memorial dos coronéis”. .<br />

3 – SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Getúlio a Castelo. 11 a impressão. São Paulo: Paz e Terra, 1996, p. 188.<br />

4 – Revista Manchete, 19/11/1955, citado por CARLONI, Karla G. Marechal Henrique Teixeira Lott: a opção das esquerdas.<br />

Tese de doutorado. PPGH/Instituto de Ciências Humanas e Filosofia, Universidade Federal Fluminense. Niterói:<br />

2010, pp. 107-8.<br />

5 – CARLONI, Karla G. “Embates internos: militares × militares no governo JK”. In: XXVI Simpósio Nacional de História.<br />

São Paulo: XXVI Simpósio Nacional de História – Anpuh 50 anos, 2011, p. 6.<br />

6 – SODRÉ, Nelson Werneck. A história militar do Brasil. 3 a impressão. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979, pp.<br />

366-369.<br />

7 – In: LABAKI, Amir. 1961: a crise da renúncia e a solução parlamentarista. São Paulo: Brasiliense, 1986.<br />

8 – FERREIRA, Jorge. “A legalidade traída: os dias sombrios de agosto e setembro de 1961”. Revista Tempo, Rio de Janeiro,<br />

v. 2, n o 3, p. 15, 1997.<br />

9 – Ato Institucional n o 1, 9/4/1964. .<br />

10 – Ato Institucional n o 1, 9/4/1964. .<br />

11 – GASPARI, Elio. A ditadura envergonhada, 4 a impressão. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 121.<br />

109


3 – contexto histórico das graves violações entre 1946 e 1988<br />

12 – Ibid.<br />

13 – Ibid., p. 135.<br />

14 – Ibid., p. 134.<br />

15 – LEAL, Newton Estillac. “O significado de uma vitória”. Revista do Clube Militar. Rio de Janeiro, n o 107, pp. 3-4,<br />

1950. In: SVARTMAN, Eduardo Munhoz. “Da II Guerra Mundial à Guerra Fria: Conexões entre os exércitos do Brasil<br />

e dos Estados Unidos”. Latin American Research Review. Texas, v. 49, 2014, pp. 83-103.<br />

16 – PORTELLA DE MELLO, Jayme. A Revolução e o governo Costa e Silva. Rio de Janeiro: Guavira, 1979, p. 668. In:<br />

SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Trad. Mário Salviano Silva. Rio de Janeiro: Paz e Terra,<br />

1988, p. 166.<br />

17 – CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil: o longo caminho. 3 a ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,<br />

2002, pp. 164-165.<br />

18 – Verbete “MÉDICI, Emílio Garrastazu”, no site do CPDOC: .<br />

Consultado em 10/10/2014.<br />

19 – PRESIDÊNCIA DA REPÚBLICA. Casa Civil – Biblioteca da Presidência da República. .<br />

20 – GASPARI, Elio. A ditadura encurralada. São Paulo: Companhia das Letras, 2004, p. 22.<br />

21 – SUGIMOTO, Luiz. “Abertura ‘lenta, gradual e segura’ teve repressão ‘ampla e irrestrita’”. Jornal da Unicamp, Campinas<br />

n o 564, p. 5, jun. 2013. .<br />

22 – O Departamento de Ordem Política e Social de São Paulo (DOPS/SP), criado pela Lei 2.034, de 30 de dezembro<br />

1924, passou a denominar-se Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops/SP) em 1975 e foi<br />

extinto pelo Decreto 20.728, de 4 de março de 1983. As referências ao órgão são unificadas como DOPS/SP. Citações de<br />

documentos oficiais, no entanto, manterão a sigla originalmente utilizada.<br />

23 – D’ARAUJO, Maria Celina; CASTRO, Celso (orgs.). Ernesto Geisel [1997]. Rio de Janeiro: Fundação Getulio Vargas,<br />

p. 225.<br />

24 – Emenda Constitucional n o 11, de 13 de outubro de 1978. .<br />

25 – SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Trad. Mário Salviano Silva. Rio de Janeiro: Paz e<br />

Terra, 1988, p. 423.<br />

26 – SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Trad. Mário Salviano Silva. Rio de Janeiro: Paz e<br />

Terra, 1988, p. 432.<br />

27 – “O Congresso aprova a eleição direta em 82”. Folha de S.Paulo, 14/11/1980. In: FOLHA DE S.PAULO. Banco de<br />

dados. .<br />

28 – Verbete “FIGUEIREDO, João Batista”. Dicionário histórico-biográfico brasileiro, no site CPDOC: .<br />

29 – SKIDMORE, Thomas. Brasil: de Castelo a Tancredo, 1964-1985. Trad. Mário Salviano Silva. Rio de Janeiro, Paz e<br />

Terra, 1988, p. 486.<br />

110


4capítulo<br />

órgãos e<br />

procedimentos da<br />

repressão política


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

Uma pergunta que vocês estão cansados de fazer: “Tinha tortura [no DOI-CODI<br />

do II Exército]”. Eu digo que, institucionalmente, não. Mas, eu imagino que possa<br />

ter havido. Eu seria inocente e ia bancar o idiota na frente de vocês se dissesse que<br />

não. E quem nos ensinou a trabalhar foi a Polícia Militar e a Polícia Civil. A Polícia<br />

Civil era [o pessoal] do DOPS, comandados pelo Sérgio Fleury, o maior delegado<br />

que São Paulo já teve. E, lá, era na base do “pau”.<br />

[Depoimento do coronel reformado Pedro Ivo Moézia de Lima à Comissão Nacional<br />

da Verdade, em 9 de setembro de 2014. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002166/2014-92.]<br />

1. Na ditadura militar brasileira, a repressão política nunca foi exercida por uma só organização.<br />

Houve a combinação de instituições distintas, com preponderância das Forças Armadas, além<br />

de papéis importantes desempenhados pelas Polícias Civil e Militar. Também ocorreu a participação<br />

de civis, que financiavam ou apoiavam as ações repressivas. Essa forma de atuação foi incrementada,<br />

principalmente a partir de 1969, em especial em São Paulo, por meio da Operação Bandeirantes<br />

(Oban). E, depois, com os Destacamentos de Operações de Informações − Centros de Operações de<br />

Defesa Interna (DOI-CODI), que se instalaram em várias capitais do país.<br />

2. Com tantos órgãos e hierarquias, um desafio para a repressão política era a coordenação<br />

entre os órgãos e a definição precisa de funções. Houve colaboração entre Exército, Marinha e<br />

Aeronáutica, expressa pelo intenso intercâmbio de informações, em operações coordenadas visando<br />

os mesmos alvos e troca de presos para interrogatórios sob tortura. No entanto, em alguns episódios,<br />

os serviços secretos das Forças Armadas atuaram de forma concorrente.<br />

3. Um exemplo dessa colaboração foi o caso de Eduardo Collen Leite, o “Bacuri”, preso<br />

em 21 de agosto de 1970 no Rio de Janeiro por policiais do DOPS/SP, 1 sob o comando do delegado<br />

Sérgio Fernando Paranhos Fleury. Eduardo Collen Leite foi levado para um centro clandestino de<br />

torturas em São Conrado, no Rio de Janeiro, e depois foi entregue ao Centro de Informações da<br />

Marinha (Cenimar) do Rio de Janeiro. Foi, posteriormente, levado ao DOI-CODI do I Exército<br />

(Rio de Janeiro), onde foi visto pela ex-presa política Cecília Coimbra, já quase sem poder andar. De<br />

lá, Bacuri foi transferido novamente para um centro clandestino de torturas, depois seguiu para o<br />

41 o Distrito Policial de São Paulo, novamente sob os cuidados da equipe do delegado Fleury. Bacuri<br />

também voltou ao Cenimar/RJ, onde foi torturado até setembro, quando foi levado novamente a<br />

São Paulo, primeiro para o DOI-CODI e, depois, para o DOPS/SP, onde foi morto sob tortura.<br />

112


4. Para a compreensão da estrutura dos órgãos da repressão criados pela ditadura militar,<br />

segue o organograma:<br />

Ministério das<br />

Relações<br />

Exteriores<br />

Ciex<br />

Adidâncias<br />

Militares<br />

Estado-Maior<br />

das Forças Armadas<br />

Ministério do<br />

Exército<br />

CIE<br />

Oban<br />

/DOI-CODI<br />

Presidência da<br />

República<br />

Ministério da<br />

Aeronáutica<br />

CISA<br />

A2<br />

Ministério da<br />

Marinha<br />

Cenimar<br />

M2<br />

Ministério da<br />

Justiça<br />

Polícia Federal<br />

Superintendências<br />

Regionais<br />

SNI<br />

Agência Central<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

Divisão de<br />

Inteligência<br />

Divisão de Censura<br />

de Divisões Públicas<br />

Agências<br />

Regionais<br />

DSI<br />

ASI<br />

5. A Polícia Federal (PF) também participou da repressão política do Estado ditatorial.<br />

Nascida em março de 1944, a partir da Polícia Civil do Distrito Federal, em 1960, veio da fusão com<br />

a Guarda Especial de Brasília, com o objetivo de criar uma polícia judiciária do Estado brasileiro,<br />

capaz de atuar em todo o país. No entanto, quando houve a intensificação da repressão política a<br />

partir de 1967, seu efetivo ainda era pequeno. Depoimento do delegado José Paulo Bonchristiano,<br />

do DOPS/SP, conta como esse órgão estadual colaborou na instalação da PF em São Paulo, quando<br />

já era forte a repressão. Inclusive, foram usados contatos do DOPS/SP para pedir doações a empresários.<br />

Outra característica importante da PF é que, durante a ditadura, todos os seus diretores foram<br />

militares, a maior parte com patente de general.<br />

6. Há relatos de vítimas da repressão e documentos oficiais que mostram a organização PF<br />

atuando de forma efetiva na repressão política. Outro papel importante da PF foi na censura − por meio<br />

da Divisão de Censura de Diversões Públicas –, além de ter sido usada pelos militares como cartório,<br />

conduzindo inquéritos e ouvindo militantes já interrogados em outros locais.<br />

7. Paralelamente, havia também as 2 as Seções das Polícias Militares (P2), que funcionavam<br />

como serviços de informações e tiveram grande participação na repressão militar. Mesmo no período<br />

democrático, as P2 de muitos estados ainda continuavam a enviar relatórios ao Exército. 2<br />

113


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

A) A criação de um Sistema Nacional de Informações<br />

8. No Brasil, as primeiras preocupações com a montagem de uma estrutura semelhante ao<br />

que hoje é um serviço de inteligência remontam à institucionalização, em 1927, do Conselho de Defesa<br />

Nacional (CDN), composto pelo presidente da República e seus ministros civis e militares, além dos<br />

chefes dos Estados-Maiores. Segundo o Decreto n o 17.999/1927, o órgão tinha caráter consultivo e suas<br />

atribuições correspondiam ao estudo e à coordenação de informações sobre todas as questões de ordem<br />

financeira, econômica, bélica e moral, relativas à defesa da pátria. Tinha como maior preocupação o<br />

acompanhamento do movimento operário, eventuais repercussões da Revolução Russa de 1917 e os<br />

impactos das crises econômicas no país, tudo ainda muito pouco articulado.<br />

9. Em 1934, a entidade foi reorganizada como o Conselho Superior de Segurança<br />

Nacional (CSSN), com nova composição: uma Comissão de Estudos de Segurança Nacional, a<br />

secretaria-geral de Segurança Nacional e as Seções de Segurança Nacional, uma em cada ministério.<br />

Essas seções, embora em um primeiro momento não fossem propriamente consideradas órgãos<br />

complementares da política de informações, eram um prenúncio de que esse planejamento deveria<br />

abranger, da maneira mais ampla possível, todas as ações do Estado. Os objetivos principais do<br />

conselho eram: estudar os problemas de tempos de paz que, por sua importância e natureza, pudessem<br />

afetar os interesses da defesa nacional; centralizar as questões referentes à defesa do país;<br />

e assessorar as relações entre a secretaria-geral de Segurança Nacional e os outros ministérios, nos<br />

assuntos de suas competências. 3<br />

10. O governo de Getúlio Vargas manteve essa estrutura, não obstante a Polícia Civil do<br />

Distrito Federal (à época, no Rio de Janeiro) e o Ministério da Guerra terem, na prática, se convertido<br />

em serviços secretos contra os inimigos do Estado Novo. Com o fim da Segunda Guerra Mundial e a<br />

deposição de Vargas, o órgão foi substituído pelo Conselho de Segurança Nacional (CSN) e ganhou<br />

novas atribuições, previstas no artigo 162 da Constituição Federal de 1937.<br />

11. O advento da Guerra Fria e a decorrente polarização política no Brasil passaram a exigir maior<br />

profissionalização dos serviços de informação, o que levou a uma transformação da incipiente estrutura,<br />

tendo como referência modelos em larga operação em países como Estados Unidos, França e Inglaterra.<br />

12. Em 1946, na gestão do presidente Eurico Gaspar Dutra, general e ex-ministro da Guerra<br />

no Estado Novo, a estrutura foi mais uma vez reformulada. As Seções de Segurança Nacional, apesar<br />

de subordinadas aos ministros, agiam em estreita relação com a secretaria-geral do CSN, prestando<br />

informações, quando solicitadas. 4 A partir daí, essas seções passaram a atuar, formalmente, como<br />

órgãos complementares do CSN.<br />

1) O Serviço Federal de Informações e Contrainformações (SFICI)<br />

13. O Serviço Federal de Informações e Contrainformações (SFICI) foi criado pelo presidente<br />

Dutra por meio do Decreto n o 9.775, de 6 de setembro de 1946. Como parte do arcabouço do<br />

CSN, o órgão tinha como função centralizar todas as informações ali produzidas. É considerado o<br />

primeiro órgão nacional de informações, com as funções de serviço secreto do país.<br />

114


14. Inicialmente, o SFICI foi criado somente no papel, sem funcionários ou estrutura material.<br />

Seu funcionamento efetivo teve início somente dez anos depois, após funcionários brasileiros<br />

terem sido enviados para visitas técnicas aos serviços de informações dos Estados Unidos. Em 1958,<br />

o presidente Juscelino Kubitschek deu maior autonomia ao órgão, submetendo-o diretamente ao secretário-geral<br />

do CSN. Entre as competências do SFICI, estavam: pesquisa e monitoramento de ocorrências<br />

subversivas; acompanhamento das ações dos partidos políticos; e elaboração de estudos sobre<br />

a conjuntura política e a situação das entidades de classes.<br />

15. Como decorrência natural da implantação definitiva do SFICI, as Seções de Segurança<br />

Nacional dos ministérios civis foram novamente remodeladas e passaram a ter colaboração mais estreita<br />

com a secretaria-geral do CSN. Houve também melhorias nas estruturas, como a previsão de<br />

dedicação exclusiva e gratificações financeiras para os funcionários. No quadro da página ao lado,<br />

vemos como se estruturaram no Ministério da Educação.<br />

16. O general Golbery do Couto e Silva foi o chefe do Sfici durante o governo Jânio<br />

Quadros, cabendo a Subseção de Operações (SSOP) do órgão ao então coronel João Baptista de<br />

Oliveira Figueiredo, que viria a ser o último presidente do período ditatorial. Golbery também foi<br />

peça-chave do Conselho de Segurança Nacional, além de criador do Instituto de Pesquisas e Estudos<br />

Sociais (IPES), centro a partir do qual foi dado apoio civil às conspirações que resultariam no golpe de<br />

1964, e fundador do Instituto Brasileiro de Ação Democrática (IBAD), maior grupo de mobilização<br />

das camadas médias da sociedade contra o governo do presidente João Goulart. Golbery articulou<br />

a Campanha da Mulher pela Democracia (Camde), grupo de mobilização anticomunista contra o<br />

governo democrático. Golbery também criou o Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão central<br />

de inteligência da repressão, com rede capilar de agentes espiões. Ele foi eminência parda do regime<br />

ditatorial e artífice da devolução controlada do poder aos civis. Sempre a seu lado esteve João Baptista<br />

de Oliveira Figueiredo, um dos comandantes do SNI.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

17. Também participaram da organização e implantação do SFICI o então coronel do<br />

Exército Humberto Souza Mello, depois comandante do II Exército durante o governo de Emílio<br />

Garrastazu Médici; o então capitão do Exército Rubens Bayma Denys, membro da assessoria do<br />

Conselho de Segurança Nacional durante o governo de Ernesto Geisel; o coronel do Exército Ednardo<br />

D’Avila Mello, que foi comandante do II Exército quando, nas dependências do DOI-CODI/II<br />

Exército, foram mortos, mediante tortura, o jornalista Vladimir Herzog e o operário Manuel Fiel<br />

Filho. Rubens Bayma Denys e Humberto de Souza Mello estavam entre os quatro brasileiros enviados<br />

aos Estados Unidos para aprender com a CIA (Central Intelligence Agency) e o FBI (Federal Bureau<br />

of Investigation) como implantar uma rede de espionagem e repressão para o SFICI. O órgão existiu<br />

de 1946 até 1964, quando deu lugar ao SNI. 5<br />

2. Comissão Geral de Investigações (CGI)<br />

18. A Comissão Geral de Investigações (CGI) foi criada pelo Decreto n o 53.897, de 27 de<br />

abril de 1964, com a finalidade de regulamentar a investigação sumária, prevista no artigo 7 do Ato<br />

Institucional n o 1, de 9 de abril de 1964. Esse ato suspendia as garantias constitucionais dos brasileiros<br />

por um período de seis meses, podendo retirar a estabilidade, a vitaliciedade da função daqueles que<br />

115


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

secretaria<br />

Gabinete do ministro<br />

SSN/MEC<br />

corpo de auxiliares administrativos<br />

turma de expediente (T-1): arquivo geral,<br />

comunicações mecanografia e biblioteca<br />

CSN (SFICI)<br />

órgão complementar do CSN<br />

turma de expediente (T-2): arquivo geral,<br />

patrimônio, pessoal e protocolo<br />

assistente técnico (subst. diretor)<br />

corpo técnico (caráter consultivo)<br />

designados por portaria ministerial (livre escolha do<br />

ministro, priorizar diretores e cargos de chefia)<br />

protocolo e arquivo de documentos sigilosos<br />

diretoria<br />

reuniões<br />

setor de informação<br />

chefe do setor designado pelo diretor<br />

levantamento de dados sobre possibilidades e<br />

limitações do Poder Nacional<br />

investigações<br />

serviço de criptografia<br />

setor de estudos e planejamento<br />

chefe de setor designado pelo diretor<br />

estudos e avaliação da Conjuntura Nacional<br />

atividades de planejamento<br />

Quadro 1: Organização da Seção de Segurança Nacional, conforme Decreto n o 47.445, de 17/12/1959.<br />

116


poderiam, então, ser demitidos, dispensados, postos em disponibilidade, aposentados e transferidos<br />

para a reserva ou reformados. Podia também suspender os direitos políticos por um período de dez<br />

anos ou cassar mandatos legislativos federais, estaduais e municipais.<br />

19. A CGI era ligada à Presidência da República pela estrutura administrativa do Ministério<br />

da Justiça e Negócios Interiores. As investigações poderiam ser abertas por iniciativa da própria CGI,<br />

por determinação do presidente da República, de ministros de Estado, dos chefes dos gabinetes Civil e<br />

Militar ou por solicitação de dirigentes de autarquias, de sociedades de economia mista, de fundações<br />

e empresas públicas, e de governadores ou prefeitos.<br />

20. A CGI era composta por membros escolhidos pelo presidente da República, e um<br />

deles era indicado para presidir a comissão. A primeira CGI, nomeada por decreto em 5 de maio<br />

de 1964, foi integrada por Estevão Taurino de Rezende Netto, seu presidente, Carlos Povina<br />

Cavalcanti e José Barreto Filho. Posteriormente, em nova composição, o almirante Paulo Bosísio<br />

a presidiu, tendo como demais membros Amarílio Lopes Salgado e Felipe Luiz Paleta Filho. O<br />

órgão foi extinto em 26 de outubro de 1964, e uma nova CGI, ligada ao Ministério da Justiça, foi<br />

criada em 17 de setembro de 1968 pelo Decreto-Lei n o 359. A segunda CGI tinha como objetivo<br />

específico investigar o enriquecimento ilícito de pessoas no exercício de cargo ou função pública,<br />

com vistas ao confisco sumário de seus bens.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

3. O Serviço Nacional de Informações (SNI)<br />

21. O Serviço Nacional de Informações (SNI) foi criado pela Lei n o 4.341, de 13 de junho de<br />

1964, como órgão da Presidência da República. Tinha como atribuição articular e coordenar, em todo<br />

o território nacional, as atividades de informação e contrainformação que interessavam à segurança<br />

nacional, e seu comandante exercia prerrogativas de ministro de Estado.<br />

22. O SNI foi o grande repositório das informações obtidas pelos demais instrumentos<br />

da repressão. Absorveu o Serviço Federal de Informações e Contrainformações (SFICI) e a Junta<br />

Coordenadora de Informações (JCI). Foi idealizado e chefiado, inicialmente, pelo general Golbery do<br />

Couto e Silva, que anos mais tarde teria dito, ao referir-se ao órgão: “Criei um monstro”.<br />

23. Ao SNI foi repassado todo o acervo do antigo SFICI, além de funcionários civis e militares<br />

que ali exerciam funções. Com a reforma administrativa instituída pelo Decreto-Lei n o 200, de<br />

25 de fevereiro de 1967, o órgão foi modificado em busca de modernização administrativa e eficiência<br />

operacional no campo das informações, com o objetivo de fortalecer e aprimorar os instrumentos de<br />

controle, coordenação e planejamento da administração pública.<br />

24. A primeira regulamentação do SNI foi o Decreto n o 55.194, de 10 de dezembro de 1964,<br />

que previa uma chefia civil ou militar de confiança do presidente da República e assistentes, e um gabinete<br />

com status de ministério, além de uma agência central no Distrito Federal e agências regionais. A<br />

agência central estava organizada em Chefia, Seção de Informações Estratégicas, Seção de Segurança<br />

Interna e Seção de Operações Especiais. As agências regionais estruturaram-se nos mesmos moldes,<br />

porém, com menor número de agentes.<br />

117


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

25. O SFICI, até então integrante da secretaria-geral do Conselho de Segurança Nacional<br />

(CSN), foi absorvido pela estrutura do SNI como agência regional, com sede no Rio de Janeiro, então<br />

estado da Guanabara. Enquanto não foi instalada a agência central em Brasília, a agência regional da<br />

Guanabara cumpriu o papel de agência central.<br />

26. Entre as atribuições do chefe do SNI estava a de estabelecer ligação direta com órgãos federais,<br />

estaduais e municipais, com entidades paraestatais e autárquicas, além de poder solicitar a colaboração<br />

de entidades privadas. Outras atribuições eram: criar e extinguir agências; requisitar funcionários e<br />

propor a designação de oficiais das Forças Armadas; classificar assuntos como “secretos” e “ultrassecretos”,<br />

de acordo com o regulamento para a salvaguarda das informações que interessam à segurança nacional.<br />

27. À agência central do SNI cabia, entre outras competências, estabelecer a ligação com as outras<br />

agências, com órgãos cooperadores; processar informes e informações e difundi-los; planejar e implementar<br />

os planos de informação e de contrainformação; acionar seus órgãos de busca; instruir e treinar pessoal; arquivar<br />

a documentação de modo a permitir consulta rápida e manter seus fichários atualizados. As agências<br />

regionais tinham atribuições semelhantes e complementares, já que se reportavam à agência central.<br />

28. A Seção de Informações Estratégicas planejava a pesquisa e a busca de informações, além de<br />

reunir e processar os dados e os estudos realizados. À Seção de Segurança Interna competia identificar e<br />

avaliar tensões oposicionistas, processar os dados e propor sua difusão. E a Seção de Operações Especiais<br />

realizava a busca especializada de informes e participava do planejamento das operações e ações.<br />

29. Alguns dos chefes do SNI eram membros ilustres do regime militar, como os ex-presidentes<br />

Emílio Garrastazu Médici e João Baptista de Oliveira Figueiredo, além de Golbery do Couto e Silva, Ivan<br />

de Souza Mendes e Otávio Aguiar de Medeiros. Dentro da chamada comunidade de informações, o SNI<br />

revelou-se o único organismo a ter as funções definidas, que eram coletar, armazenar, analisar, proteger e<br />

difundir informações sobre os opositores do regime. Mesmo assim, abrigou oficiais como o coronel Freddie<br />

Perdigão Pereira, que executava ações clandestinas, nas quais não havia acatamento à disciplina e à hierarquia<br />

militar. Ele foi o responsável por várias mortes e atentados, como o que vitimou Zuzu Angel e o do Riocentro. 6<br />

30. O general-de-brigada Adyr Fiúza de Castro, um dos fundadores do CIE, explica o funcionamento<br />

do SNI e das Divisões de Segurança e Informações (DSI):<br />

[O] SNI [era] uma coisa que foi criada pela revolução, mas que já existia como embrião.<br />

O SNI só tem um cliente: o presidente da República. Ele só informava ao presidente<br />

da República, a mais ninguém. Então, qualquer agência que quisesse uma<br />

informação do SNI lutaria com grande dificuldade, porque ele não se prontificava a<br />

informar nada. Mas recebia de todos. Criou uma estrutura nos diversos ministérios<br />

civis, com as Divisões de Segurança e Informações − as DSI −, que lhes remetiam<br />

as informações em canal direto, com cópia para o ministro da pasta, porque são<br />

subordinadas ao ministro. Então, a estrutura de informações do SNI era baseada<br />

nas DSI e nos agentes que contratava, ou nos informantes etc. E isso constituía uma<br />

rede muito extensa, porque havia agências exclusivas do SNI em todas as capitais. E<br />

recebia também informações do CIE, da Marinha e da Aeronáutica. Isso era o SNI,<br />

uma estrutura à parte. Agora, elaborava suas informações e entregava ao seu único<br />

118


cliente, que era o presidente da República. Então, se o ministro do Exército quisesse<br />

uma informação do SNI, não iria obter com facilidade. Teria que obter através do<br />

presidente. Se o ministro da Justiça quisesse, seria através do presidente. 7<br />

31. O Decreto n o 96.876, de 29 de setembro de 1988, já sob uma nova Constituição democrática<br />

e o Estado democrático de direito, regulamentou as novas funções do SNI, definindo seu papel na atividade<br />

de informação e contrainformação em proveito da política nacional, especialmente quanto à soberania<br />

nacional e à defesa do Estado. Entre a competência do SNI estavam: difundir conhecimentos para a<br />

Secretaria de Assessoramento da Defesa Nacional; salvaguardar e assistir entidades nacionais no que se refere<br />

à salvaguarda de conhecimentos e dados sob a responsabilidade do Estado; estabelecer doutrina nacional<br />

de informações; preparar profissionais, realizar pesquisas e desenvolvimento científico e tecnológico em<br />

proveito da atividade de informação; colaborar no controle de transferência de tecnologia, considerado o<br />

interesse público; e colaborar com órgãos e entidades encarregados da atividade de controle de estrangeiros.<br />

32. Por conta do novo regulamento, o SNI assumiu a seguinte estrutura: Gabinete do<br />

Ministro, Consultoria Jurídica e Assessoria de Coordenação e de Planejamento, Agência Central, agências<br />

regionais, Escola Nacional de Informações (EsNI), Secretaria Administrativa (SAD), Secretaria<br />

de Controle Interno (SCI), Centro de Informática (CIn), Centro de Telecomunicações e Eletrônica<br />

(CTE), e Centro de Pesquisas e Desenvolvimento para a Segurança das Comunicações (Cepesc).<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

33. O órgão dispunha de um fundo especial (Fesni), de natureza contábil, criado pelo<br />

Decreto-Reservado n o 5, de 12 de julho de 1979, cujo funcionamento foi regulamentado pelo Decreto<br />

n o 96.876/1988. Ao Fesni destinou-se o custeio de projetos e atividades nas áreas de ensino, pesquisa,<br />

programação e desenvolvimento tecnológico. Suas principais fontes de receita eram dotação orçamentária,<br />

serviços prestados e doações, entre outras. O SNI foi extinto nos primeiros dias do governo<br />

Collor, pela Medida Provisória n o 150, de 1990.<br />

4. A Escola Nacional de Informações (EsNI)<br />

34. A instituição de maior destaque na transmissão de conhecimentos de informações foi a<br />

Escola Nacional de Informações (EsNI), do SNI. Montada em cooperação com os Estados Unidos,<br />

a EsNI foi criada a partir de um diagnóstico de que os agentes de informações precisavam ser mais<br />

profissionais. Por isso, a escola nasceu para ser o principal centro de treinamento de agentes de informação.<br />

O presidente Médici enviou o general Ênio dos Santos Pinheiro e o almirante Sérgio Douerty aos<br />

Estados Unidos, onde ficaram por seis meses, tendo aulas na CIA e no FBI. Além dos Estados Unidos,<br />

o SNI mandou oficiais para Alemanha, Israel, França e Inglaterra, para estudarem o funcionamento<br />

dos serviços de informações. 8 Segundo o general Ênio Pinheiro,<br />

na Inglaterra, o Moacir Coelho ficou num forte de Londres, situado no Rio Tâmisa.<br />

Lá havia uma escola especialmente dedicada ao problema com a Irlanda. Não era emboscada.<br />

O relatório que ele trouxe dá para cair duro. Nós somos violentos! É porque<br />

não se sabe o que fazem por aí! Na Alemanha, não havia escola, havia “aparelhos” −<br />

como eles chamam −, casas separadas em que colocavam as equipes. Normalmente,<br />

os oficiais levavam a mulher, que, obrigatoriamente, fazia o curso junto com o marido<br />

119


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

− isso era para evitar o vazamento para as esposas. Na França era diferente. O curso<br />

era na Sûreté Française, perto da Notre Dame – também não era bem uma escola. 9<br />

35. A EsNI foi inaugurada em maio de 1972, tendo Ênio como seu primeiro diretor. Dos<br />

cursos participavam tanto militares como civis. Estes eram selecionados pelos ministérios, e chegavam<br />

a ser maioria em alguns cursos da instituição. 10 Segundo Ênio Pinheiro, havia dois tipos de<br />

agente formados pela escola:<br />

[A formação] incluía dois tipos de pessoas, dois produtos: um, intelectual, e outro<br />

que trabalhava no campo de operações. Havia uma parte no Brasil muito difícil: o<br />

sigilo. O sigilo era um aspecto difícil de se obter, uma dificuldade que se encontrava<br />

até dentro da família. A pessoa que trabalha com informações não pode conversar,<br />

não pode discutir os assuntos do seu trabalho. O brasileiro é muito falador, e isso<br />

é perigoso. Mas nós conseguimos fazer uma seleção e dizer como deveria ser o trabalho.<br />

Também foi feito um código de honra e um código de ética para o pessoal. 11<br />

36. André Leite Pereira Filho, chefe da Seção de Busca e Apreensão do DOI-CODI/II Exército,<br />

foi um dos militares que frequentou a EsNI. O coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, após ser comandante<br />

do DOI-CODI/II Exército, tornou-se instrutor de operações da EsNI e passou a difundir, para alunos vindos<br />

de variados órgãos, as táticas e técnicas empregadas pelo DOI-CODI/II Exército. Assim, os currículos<br />

de formação dos cursos A, B, C1 e C2 da EsNI, após 1976, passaram a contar com um módulo específico<br />

sobre o DOI-CODI. Em audiência pública da <strong>CNV</strong>, Ustra confirmou que, quando era instrutor da EsNI,<br />

confeccionou apostila sobre “Cobertura de ponto e neutralização de aparelhos”. 12 Um interrogatório deixava<br />

de ser ato formal de tomada de depoimento e passava a ser “graduado em intensidade” quando começavam<br />

as sessões de tortura, de acordo com a referida apostila. Os presos eram submetidos a sevícias nas dependências<br />

do DOI e, para garantir que os agentes pudessem atuar mais livremente, os parentes dos militantes<br />

eram mantidos desinformados e sem contato com os presos. Os casos relatados na apostila, obviamente,<br />

não descrevem torturas a familiares. No entanto, sabe-se que eram largamente empregadas para convencer<br />

um preso a falar, conforme apresentado no capítulo 9 deste Relatório.<br />

5. Divisões de Segurança e Informações (DSI)<br />

37. As Divisões de Segurança e Informações (DSI) sucederam as Seções de Segurança<br />

Nacional (SSN), criadas pelos Decretos-Leis n o 9.775 e n o 9.775-A, de 6 de setembro de 1946, e regulamentadas<br />

pelo Decreto n o 47.445, de 17 de dezembro de 1959. As SSN eram órgãos diretamente<br />

subordinados aos respectivos ministros de Estado, criadas para atuar preponderantemente em atividades<br />

relacionadas à segurança nacional, em estreita cooperação com a secretaria-geral do Conselho de<br />

Segurança Nacional. 13 A estrutura das SSN era simples, sendo assim organizada: Direção, Secretaria,<br />

Corpo Técnico, Setor de Informação e Setor de Estudos e Planejamentos.<br />

38. As DSI foram criadas pelo Decreto-Lei n o 200, de 25 de fevereiro de 1967, como órgãos<br />

de assistência direta e imediata aos ministros civis, em mesmo grau de hierarquia que o Gabinete do<br />

Ministro e a Consultoria Jurídica. As DSI passaram a integrar o Sistema Nacional de Informações<br />

(Sisni), por meio da Comunidade Setorial de Informações (CSI) dos ministérios civis. 14 Inicialmente,<br />

120


as DSI possuíam os seguintes cargos em comissão: um diretor, um chefe de Grupos Especiais, um chefe<br />

de Informações e um chefe de Estudos e Planejamento. 15 As DSI foram criadas para atuar preponderantemente<br />

em atividades relacionadas à segurança nacional, em cooperação com a secretaria-geral do<br />

CSN, 16 e como órgão de colaboração com o SNI. 17 Aprovado o primeiro regulamento das DSI, ficava<br />

clara a prevalência das atividades de segurança nacional em relação às de informações. 18 Estabelecia<br />

que as DSI eram “órgãos complementares do CSN, subordinadas diretamente aos respectivos ministros<br />

de Estado e destinam-se ao estudo de assuntos de interesse da segurança nacional, no âmbito das<br />

atribuições de seus ministérios”. No parágrafo único do mesmo artigo aduz-se que “as DSI colaborarão<br />

estreitamente com a secretaria-geral do CSN e com o SNI, aos quais prestarão todas as informações<br />

que lhes forem solicitadas”. A estrutura do órgão era assim constituída: Direção, Assessoria Especial,<br />

Seção de Informações, Seção de Estudos e Planejamento e Seção Administrativa.<br />

39. As DSI estabeleceriam relações diretas com pessoas previamente designadas pelos<br />

órgãos da administração indireta, que ganhariam autonomia. Podiam, por exemplo, contratar pessoal<br />

técnico especializado, por tempo determinado, sob o regime da Consolidação das Leis do<br />

Trabalho. Essa atuação profissional nas DSI era reconhecida, por seus servidores, como um serviço<br />

relevante. Passaram, também, a ter verbas próprias no orçamento do ministério, o que garantia<br />

autonomia financeira no desempenho de suas atribuições. No fundo, o regulamento apontava no<br />

sentido de maior autonomia administrativa e maior controle sobre as atividades de informações no<br />

país. Apesar de, em regra, estarem submetidas diretamente ao ministro, na prática as DSI podiam<br />

receber atribuições diretamente da secretaria-geral do CSN e do SNI, muitas vezes colocando em<br />

xeque a autoridade do ministro de Estado.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

40. Esse último aspecto trazia uma contradição, já que a atividade de informações biográficas,<br />

intensa na fase inicial após o golpe de 1964, agregou às DSI certa conotação policial, transformando-as<br />

em órgão temido dentro dos ministérios. 19 Essa característica teria gerado uma externalidade<br />

negativa para a divisão, visto que disseminava a desconfiança entre os órgãos do ministério, com<br />

prejuízo direto para o desempenho de suas atribuições.<br />

41. Por vezes, a DSI não contaria com o apoio e a confiança do próprio ministro de Estado.<br />

Em alguns casos, as divisões estariam relegadas a uma posição de segundo plano, desempenhando<br />

tarefas não condizentes com suas atribuições legais, como a guarda pessoal do ministro e a segurança<br />

física de instalações. Em outros casos, o órgão viveria fechado sobre si mesmo, sem comunicação com<br />

os demais setores do ministério e, portanto, impossibilitado de executar suas funções. Por fim, havia<br />

casos em que a DSI padeceria de uma espécie de gigantismo, em razão da tentativa dos ministros de suprirem<br />

as deficiências de outros órgãos ministeriais. Tal situação teria ocasionado conflitos com outros<br />

setores, além de uma diversidade artificial na estrutura e no contingente de funcionários entre as DSI.<br />

42. O diretor da DSI era escolhido entre cidadãos civis diplomados pela Escola Superior<br />

de Guerra, ou oficiais superiores da reserva das Forças Armadas, de preferência com curso de comando<br />

e Estado-Maior ou equivalente. Após prévia aprovação de seu nome pelo secretário-geral<br />

do Conselho de Segurança Nacional, era nomeado pelo presidente da República, por indicação do<br />

ministro de Estado. O Decreto n o 66.622, de 22 de maio de 1970, ampliou o rol de competências<br />

dos ministros de Estado em relação ao campo da inteligência, arrolando entre suas atribuições “as<br />

responsabilidades no campo da segurança nacional e no das informações anteriormente consignadas<br />

121


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

às DSI”. Nesse contexto, as divisões continuaram como órgãos subordinados aos ministros, encarregadas,<br />

porém, de assessorá-los nos assuntos pertinentes à segurança nacional e às informações, “sem<br />

prejuízo, no campo das informações, de sua condição de órgão sob a superintendência e coordenação<br />

do SNI”. A partir de então, os regimentos internos desses órgãos deveriam passar pelo crivo<br />

preliminar do SNI. O decreto traduz uma ideia fundamental e lógica: as atividades de segurança<br />

nacional, tais como já eram concebidas as do desenvolvimento nacional, constituem atividades-fim<br />

dos ministérios e, consequentemente, são da responsabilidade direta dos ministros de Estado, no<br />

âmbito de seus respectivos ministérios. As atividades de informações, ainda que também de responsabilidade<br />

dos ministros, são consideradas atividades-meio e foram organizadas sob a forma de<br />

sistemas. Daí o vínculo de coordenação e supervisão das DSI ter ficado a cargo do SNI e não mais<br />

da secretaria-geral do CSN. Essa mudança, portanto, não minimizou a importância da segurança,<br />

mas importou substancial modificação no posicionamento das DSI dentro dos ministérios. 20<br />

43. Enfatiza-se a necessidade de as divisões se adequarem ao espírito do Decreto n o<br />

66.622/1970, que transferiu a responsabilidade dos encargos de segurança nacional e informações das<br />

DSI para os respectivos ministros. Coerente com essa orientação básica, a CSI deveria assim se reger:<br />

A DSI, por sua subordinação direta ao ministro de Estado, deve estar capacitada<br />

a proporcionar assessoramento de alto nível ao respectivo ministro, nos assuntos<br />

de seu ministério, relacionados com a segurança nacional e as informações. Para<br />

tanto, o diretor da DSI deve estar perfeitamente entrosado com a política e as<br />

estratégias setoriais de seu ministério; [...]<br />

As informações setoriais, em princípio, serão coletadas pela DSI, ou CSI, já processadas<br />

pelos órgãos vinculados ao respectivo ministério;<br />

A DSI não terá a iniciativa de realizar operações de busca de informações, nem<br />

realizará ou coordenará atividades de policiamento ou de segurança física (de pessoas<br />

ou organizações);<br />

A DSI coletará os dados necessários aos estudos e planejamentos relativos à segurança<br />

nacional, bem como coordenará e supervisionará as atividades de contrainformação<br />

na área do respectivo ministério;<br />

O pessoal necessário ao funcionamento normal da DSI, ou CSI, deve ser fixado<br />

em estudo prévio pela AC/SNI e constar do quadro de lotação aprovado em decreto,<br />

de modo que as requisições, quando necessárias, só devem ser feitas em caráter<br />

excepcional e por duração limitada. 21<br />

44. Por outro lado, os ministérios e o SNI deveriam respeitar o rol de atribuições das<br />

divisões, não lhes repassando tarefas fora do âmbito da segurança nacional e das informações.<br />

Quanto aos demais órgãos da CSI, deveriam ser constituídos de número reduzido de funcionários,<br />

a ser definido em estudo prévio, tendo como finalidade o assessoramento no campo da segurança<br />

nacional e informações, a salvaguarda de documentos sigilosos e a tramitação de documentos<br />

entre os canais do Sisni.<br />

122


45. Com base no novo marco normativo, foi constituído um grupo de trabalho encabeçado<br />

pelo chefe da AC/SNI, com o intuito de revisar o regulamento das DSI. “O fato de as DSI, no que<br />

se refere às atividades de segurança e informações, terem passado de executantes diretas a assessoras<br />

serviu como orientação básica do GET para elaboração do novo regulamento.” 22<br />

46. <strong>Final</strong>mente, foi publicado o Decreto n o 75.640, de 22 de abril de 1975. Da mesma forma<br />

que os dois regulamentos anteriores, aprovava o regulamento básico das DSI nos ministérios civis e<br />

definiu prazo para a atualização dos regimentos internos pelas divisões e assessorias. As DSI passaram<br />

a ter a seguinte classificação, de acordo com o número de servidores: 23<br />

CLASSIFICAÇÃO EFETIVO MINISTÉRIOS<br />

Tipo 1<br />

Tipo 2<br />

Tipo 3<br />

Não superior a<br />

35 servidores<br />

Não superior a<br />

45 servidores<br />

Não superior a<br />

60 servidores<br />

Ministério da Saúde, das Relações Exteriores e da Previdência e da Assistência Social<br />

Ministério da Fazenda, da Indústria e do Comércio, da Justiça e do Trabalho<br />

Ministério da Agricultura, da Educação e Cultura, das Minas<br />

e Energia, dos Transportes, das Comunicações, do Interior e<br />

Secretaria de Planejamento da Presidência de República<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

47. O “Estudo de situação” e o “Estudo sucinto”, 24 de autoria, respectivamente, do SNI e do<br />

CSN, permitem-nos surpreender aspectos do funcionamento dos órgãos de segurança e informações dos<br />

ministérios civis que permaneciam ocultos em outras fontes. Eles nos fornecem detalhes, ainda que sob o<br />

prisma do CSN e, sobretudo, do SNI, de algumas das dificuldades enfrentadas pela CSI, particularmente<br />

as DSI, em meados da década de 1970. Lançam luz, por exemplo, sobre: a) a falta de prestígio das divisões<br />

dentro da estrutura de alguns ministérios; b) os desafios do órgão no interior de cada pasta, sobretudo no que<br />

concerne à interação com outros setores na busca de dados e informações; c) a falta de clareza, no interior das<br />

próprias divisões, quanto à sua finalidade e atribuições; e d) as distorções e carências em termos de pessoal.<br />

48. Um aspecto importante é perceber a clara tentativa do SNI de conseguir mais “espaço”<br />

nas DSI. Ao que tudo indica, a transformação das SSN em DSI não pavimentou de imediato a relação<br />

do SNI com a CSI nos ministérios, problema que parece não ter tido o mesmo significado para o CSN,<br />

tendo em vista a estreita interação que o órgão já mantinha com as antigas estruturas de inteligência.<br />

Daí, talvez, a necessidade do SNI de lutar por mais influência na nova estrutura, como forma de contrabalançar<br />

os canais de contato de melhor qualidade existentes entre o CSN e a CSI.<br />

49. A configuração da estrutura das Seções de Segurança Nacional, formatadas em 1959,<br />

foi pouco foi alterada. Em função de suas características específicas, passaram a ter novas regras.<br />

A DSI do Ministério das Relações Exteriores, por exemplo, tinha regimento interno para atender a<br />

peculiaridades de sua área de atuação. Já a criação de uma assessoria especial, mesmo tendo caráter<br />

transitório, buscava realizar um levantamento de dados e informações setoriais, contando, inclusive,<br />

com profissionais externos ao quadro do ministério. Até fins da década de 1960, boa parte dos órgãos<br />

da administração pública federal mantiveram estruturas na cidade do Rio de Janeiro, incluindo<br />

setores ligados à coleta de informações. A transferência efetiva de competências e funcionários para<br />

Brasília se deu lentamente ao longo dos anos.<br />

123


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

SNI<br />

estreita colaboração<br />

seção<br />

ministro<br />

DSI<br />

corpo de auxiliares administrativos<br />

secretaria, documentação e arquivo,<br />

controle financeiro e serviços gerais<br />

CSN<br />

órgão complementar<br />

estreita colaboração<br />

assessoria especial<br />

diretor<br />

(nomeado pelo<br />

presidente)<br />

chefe (ref. 5C) – nomeado pelo presidente<br />

grupos especiais<br />

seção de informações<br />

chefe (ref. 5C) – nomeado pelo presidente<br />

planos particulares de informação; medidas de<br />

contrainformação; trabalhos criptografados<br />

normatiza a organização SI/DSI obedecendo a<br />

sistemática da secretaria-geral do CSN e do SNI<br />

seção de estudos e planejamento<br />

chefe (ref. 5C) – nomeado pelo presidente<br />

Quadro 2: Estrutura geral das Divisões de Segurança e Informações, conforme Decreto n o 62.803, de 3/6/1968.<br />

6. Sistema Nacional de Informações (Sisni) e Sistema de Segurança Interna (Sissegin)<br />

50. As reformas das Divisões de Segurança e Informações, em 1970 e 1971, já incorporavam<br />

os princípios norteadores da implantação do Sistema Nacional de Informações (Sisni) e do Sistema de<br />

Segurança Interna (Sissegin), ambos criados em 1970. As DSI passavam, ainda mais amplamente, a<br />

responder ao SNI, com obrigações, inclusive, de encaminhar à agência central do SNI as “informações<br />

necessárias”, de acordo com a periodicidade estabelecida no Plano Nacional de Informações (PNI).<br />

Além de formularem documento especial para os dados que, pelo princípio da oportunidade, deveriam<br />

ser do conhecimento imediato dos clientes do SNI (Decreto n o 67.325/1970).<br />

124


51. As diretrizes da criação do Sissegin estabeleciam que cada comando militar deveria ter<br />

um Conselho de Defesa Interna (Condi), um Destacamento de Operações de Informações (DOI) e<br />

um Centro de Operações de Defesa Interna (CODI), todos sob responsabilidade do comandante do<br />

Exército da área, que era o comandante de uma das seis Zonas de Defesa Interna (ZDI) em que o país<br />

foi dividido. ZDI era o nome do espaço terrestre sob a jurisdição de um Exército ou Comando Militar<br />

da Área, para efeito de segurança interna.<br />

52. Os Condi eram compostos por governadores, comandantes militares, chefes das agências<br />

regionais do SNI, superintendentes regionais do Departamento de Polícia Federal, secretários de<br />

Segurança Pública e, quando necessário, chefes ou diretores de outros órgãos, cabendo-lhes promover<br />

a articulação de todos os órgãos envolvidos – Distrito Naval, Força Aérea, Departamento de Ordem<br />

Política e Social, SNI e Polícia Federal. Seu papel era assessorar os comandantes das ZDI.<br />

53. A regulamentação aprovada em 1969 já previa que fosse contratado pessoal externo com<br />

carteira de trabalho, Consolidação das Leis do Trabalho (CLT), para formar grupos de trabalho que<br />

fizessem levantamentos e estudos específicos. A principal dificuldade enfrentada para a concretização<br />

dessa rede de informações continuava sendo a manutenção das estruturas administrativas pelos ministérios<br />

na cidade do Rio de Janeiro. Por essa razão, somente a partir do início da década de 1970 as<br />

atividades das DSI passaram a ser mais efetivas.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

54. Pesquisas no Diário Oficial da União identificaram pelo menos oito grupos de<br />

trabalho constituídos no Ministério da Educação, entre os anos de 1971 e 1976 – quando foram<br />

diretores da DSI o coronel-aviador Pedro Vercillo (1970-73) e o coronel Armando Rosenzweig<br />

Menezes (1974-78). Como esses grupos eram formados em média por cinco profissionais, e<br />

tinham duração que variava de seis a dez meses, sendo possível a prorrogação, houve grande<br />

ampliação do corpo técnico das DSI.<br />

7. Comunidades Setoriais de Informações (CSI)<br />

55. A implantação das Comunidades Setoriais de Informações (CSI), que integravam o<br />

Sisni, foi importante inovação apresentada pelas reformas administrativas. Anteriormente, a necessidade<br />

de que as DSI estabelecessem ligações com agentes de informação destacados em órgãos vinculados<br />

ao ministério constava apenas dos regulamentos, era mais formal do que operacional. Com a<br />

finalidade de manter controle sobre as atividades das DSI, o diretor e os chefes de setor deveriam ser<br />

nomeados por decreto, de acordo com parecer prévio do SNI. Além disso, foram definidos requisitos<br />

para seus diretores, que, quando civis, deveriam possuir diploma da Escola Superior de Guerra (ESG),<br />

de preferência no seu Curso de Informações; e, quando militares, diplomados na Escola de Comando<br />

e Estado-Maior do Exército, ou o equivalente da Marinha ou da Aeronáutica.<br />

56. A implantação do Sistema Nacional de Informações e, consequentemente, das<br />

Comunidades Setoriais de Informações tinha como objetivo a valorização e profissionalização do<br />

setor. Dessa forma, cargos em comissão previstos para as chefias das DSI tiveram seus vencimentos<br />

majorados e os funcionários requisitados para o setor passaram a receber gratificações pela representação<br />

de gabinete e por serviços especiais, o que implicava significativo acréscimo salarial. O servidor<br />

125


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

aposentado do Ministério da Educação Luiz Motta Molisani, que trabalhou na DSI/MEC, disse que a<br />

gratificação por ele recebida, quando ingressou na DSI, representava mais que o dobro do seu salário. 25<br />

57. O crescimento das Comunidades Setoriais de Informações e a necessidade de controle dos<br />

dados coletados impulsionaram a reorganização e a redefinição do papel das DSI. Em 1975, elas foram<br />

formalmente definidas como órgãos centrais dos Sistemas Setoriais de Informações e Contrainformações<br />

dos ministérios civis. 26 Suas sedes, obrigatoriamente, deveriam estar em Brasília, e as DSI deveriam estabelecer<br />

estreita relação com a secretaria-geral do Conselho de Segurança Nacional.<br />

58. Essa regulamentação buscava dar efetividade aos Sistemas Setoriais de Informações, com<br />

a ampliação dessas estruturas, uma vez que a criação das Assessorias de Segurança e Informações (ASI)<br />

dependeria, desde então, não apenas de disponibilidade financeira, mas também de parecer favorável<br />

do SNI (Decreto n o 75.524/1975). Dessa maneira, a nova regulamentação das DSI buscava limitar,<br />

quantitativa e qualitativamente, os profissionais e os órgãos envolvidos. Para isso, foram estabelecidos<br />

critérios para a criação de ASI, e para a categorização de DSI e ASI. Em complemento, a regulamentação<br />

exigia qualificação técnica dos profissionais envolvidos na coleta de dados e na produção de<br />

informações – em regulamentos anteriores era exigida formação específica apenas para seu diretor. A<br />

partir de 1975, já o chefe da Seção de Informações e Contrainformações e os assessores de informações<br />

deveriam possuir curso da ESG e o curso “A” da EsNI.<br />

59. Era a seguinte a categorização das DSI e ASI:<br />

Quantidade de Pessoal especializado<br />

Tipo<br />

funcionários (chefias e analistas)<br />

DSI Tipo 1 35 4 cargos de chefia e 13 analistas<br />

DSI Tipo 2 45 5 cargos de chefia e 17 analistas<br />

DSI Tipo 3 60 6 cargos de chefia e 24 analistas<br />

ASI Tipo 1 2 1 cargo de chefia<br />

ASI Tipo 2 5 1 cargo de chefia e 2 analistas<br />

ASI Tipo 3 8 1 cargo de chefia e 4 analistas<br />

Qualificação técnica dos funcionários<br />

Tipo<br />

Analista de informações A<br />

Analista de informações B<br />

Analista de segurança<br />

nacional e mobilização A<br />

Analista de segurança<br />

nacional e mobilização B<br />

Qualificação profissional<br />

Curso superior incompleto e curso “B” da EsNI<br />

Curso superior completo e curso “B” da EsNI<br />

Curso superior completo em área de atividade-fim do ministério, órgão ou<br />

entidade, ou curso de Escola de Formação de Oficiais das Forças Armadas<br />

Cumprir os requisitos exigidos para o analista de segurança nacional e mobilização A<br />

e possuir três anos de exercício de atividade-fim em órgão setorial ou seccional do Sisni<br />

60. Em relação a esse quadro, as comunidades complementares eram responsáveis pelas<br />

atividades de informações, em suas respectivas áreas geográficas, fossem elas estaduais (como DOPS<br />

e 2ª Seção da Polícia Militar – P2), municipais, ou mesmo entidades privadas, selecionadas pelo SNI<br />

para realizar repasse de informações ao sistema.<br />

126


B) Órgãos de repressão do Exército<br />

1. A Operação Bandeirante (Oban)<br />

61. A ideia de uma atuação conjunta de todos os órgãos de segurança, federais e estaduais,<br />

no combate aos grupos que lutavam contra a ditadura surgiu após o episódio da deserção, com armas e<br />

munições, em 24 de janeiro de 1969, do capitão Carlos Lamarca, então pertencente ao IV Regimento<br />

de Infantaria, Regimento Raposo Tavares, no bairro de Quitaúna, em Osasco (SP).<br />

62. Em 1 de julho de 1969 foi criada, em São Paulo, a Operação Bandeirantes (Oban), financiada<br />

por multinacionais como o Grupo Ultra, Ford e General Motors. 27 A cerimônia de criação da Oban<br />

contou com a presença das principais autoridades políticas do estado de São Paulo, como o governador<br />

Roberto Costa de Abreu Sodré; o secretário de Segurança Pública Hely Lopes Meirelles, o prefeito da<br />

capital, Paulo Salim Maluf; o comandante do II Exército, general José Canavarro Pereira; além de figuras<br />

proeminentes na elite econômica paulista, oriundas dos meios empresarial e financeiro, como Antonio<br />

Delfim Netto, Gastão Vidigal, Henning Albert Boilesen, Luiz Macedo Quentel e Paulo Sawaya.<br />

63. O nascimento da Oban é decorrência direta da Diretriz para a Política de Segurança<br />

Pública, segundo a qual os comandantes militares de cada área deveriam centralizar informações de<br />

caráter subversivo em um único órgão e sob um único comando. A nova experiência de combate à<br />

subversão tinha como objetivo integrar os órgãos repressivos. Essa necessidade de coordenação centralizada<br />

resultou da avaliação, feita pelo II Exército, da situação da área de São Paulo, que, conforme<br />

documento confidencial intitulado “Operação Bandeirantes”,<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

[...] vem sendo alvo da ação de vários grupos organizados sob as mais diversas<br />

denominações [...] por estudantes habilmente manipulados e pelos adversários da<br />

Revolução de 31 de Março de 1964, todos sob a aliança consciente ou consentida de<br />

elementos do PCB, do PCdoB e outras facções comunistas, já agora identificadas no<br />

propósito comum de derrubada do governo e das instituições. 28<br />

64. A Oban foi criada com a missão de “identificar, localizar e capturar os elementos integrantes<br />

dos grupos subversivos que atuam na área do II Exército, particularmente em São Paulo, com a<br />

finalidade de destruir ou pelo menos neutralizar as organizações a que pertençam”. 29 Para isso, eram fundamentais<br />

a qualidade das informações e a forma como deveriam ser coletadas – o mais rápido possível,<br />

obrigando a que os diversos órgãos de repressão atuassem de forma conjunta e coordenada. Como etapa<br />

anterior à criação da Oban, realizou-se em Brasília, em fevereiro de 1969, o I Seminário de Segurança<br />

Interna, coordenado pelo então ministro da Justiça, Luís Antônio da Gama e Silva, e pelo general Carlos<br />

de Meira Mattos, chefe da Inspetoria-Geral das Polícias Militares. O encontro reuniu secretários de<br />

Segurança Pública, comandantes das polícias militares e superintendentes regionais da Polícia Federal.<br />

65. A partir de maio de 1969, tornou-se comandante do II Exército o general José Canavarro<br />

Pereira, que substituiu o general Manuel Rodrigues de Carvalho Lisboa. O general Ernani Ayrosa da<br />

Silva era o chefe de Estado-Maior, que logo conseguiria a aprovação de todos os órgãos de segurança<br />

atuantes no Estado para um plano de combate à subversão. No plano, cada órgão deveria selecionar,<br />

internamente, agentes a serem cedidos para atuar na nova configuração.<br />

127


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

66. O nome, Operação Bandeirantes, evocava a saga de paulistas que, no século XVII, percorriam<br />

o interior do Brasil desbravando fronteiras e capturando índios, que eram depois vendidos como<br />

escravos. Não por acaso, a Oban utilizava violência extrema em suas ações. O comando da operação<br />

era do II Exército, que chefiava o Centro de Coordenação, a partir do qual se articulavam a Central de<br />

Informações, cujo titular era o chefe do Estado-Maior (EM) do II Exército, e a Central de Operações,<br />

de responsabilidade do subchefe do EM/II Exército. Nessas três coordenações distribuíam-se oficiais<br />

e agentes do II Exército e também de diversos órgãos, como a 4 a Zona Aérea (hoje denominado IV<br />

Comando Aéreo Regional − Comar), 2 a Divisão de Infantaria, Secretaria de Segurança Pública de São<br />

Paulo (SSP-SP) – DOPS/SP, Força Pública do Estado de São Paulo (FPESP) e Guarda Civil – e SNI. O<br />

diretor do DOPS/SP e o chefe da agência São Paulo do SNI eram membros da Central de Informações.<br />

67. Nas folhas de alterações dos militares que participavam da Oban, constava este tipo de<br />

informação: “À disposição do QG da 2 a DI (Operação Bandeirante)”. 30 A participação tanto na Oban,<br />

como, posteriormente, nos DOI-CODI proporcionava a militares e policiais o recebimento de diárias,<br />

que serviam como um incentivo para o agente que participava das equipes desses órgãos. 31<br />

68. Os militares e policiais desses órgãos tinham atribuições específicas, que deveriam estar<br />

integradas às ações da Oban, como as relativas, especificamente, aos membros da 4 a Zona Aérea, como o<br />

apoio às ações de busca de informes e ações repressivas com meios aéreos, com helicópteros e aeronaves; e<br />

da FPESP, como manter ligação com a Polícia Rodoviária Federal, para a revista nas barreiras estaduais. 32<br />

69. Para manter o fluxo de informação, o comando do II Exército definiu reuniões do Centro<br />

de Coordenação “na última semana de cada mês e, extraordinariamente, quando convocado”, enquanto<br />

a Central de Informações e a Central de Operações deveriam se encontrar, “como rotina, uma vez por<br />

semana ou extraordinariamente, quando convocados os seus membros”. Ao fim do dia, a Central de<br />

Informações deveria elaborar um “Sumário diário”, “com término às 17h, contendo a situação em toda a<br />

área do II Exército, no que tange a atividades subversivas”. O documento destacava ainda que “todas as<br />

atividades – seja de informações, seja de operações – serão realizadas no mais absoluto sigilo”, e que qualquer<br />

difusão à imprensa precisava estar “expressamente” autorizada pelo Centro de Coordenação. Dada<br />

a natureza das ações, os agentes deviam portar armamento para “fazer face a qualquer eventualidade”, o<br />

que incluía uso de granadas, metralhadoras portáteis e máscaras contra gases. Assinado pelo comandante<br />

do II Exército, José Canavarro Pereira, o documento enfatizava que “todos os meios são válidos para levar<br />

a bom termo as missões e para salvaguardar a vida dos participantes das operações”. 33<br />

70. O Centro de Operações utilizava parte das dependências da 2 a Companhia de Polícia do<br />

Exército (PE), instalada na rua Abílio Soares, n o 1.130, bairro do Ibirapuera. O local era vizinho àquele<br />

onde, até hoje, permanece o aquartelamento do Comando Militar do Sudeste, na avenida Sargento<br />

Mário Kozel Filho, n o 222.<br />

71. As instruções para investigações e diligências, por parte da 2 a Companhia de Polícia do<br />

Exército, de março de 1969, disponíveis no Arquivo Público do Estado de São Paulo, demonstram<br />

que a 2 a Companhia da PE estava diretamente ligada ao comando do II Exército. Esse comando tinha<br />

tropa disponível para pronto emprego, sem que houvesse necessidade de respeitar uma longa cadeia<br />

hierárquica. Podia também ser acionada pelo comando da Subárea A (Grande São Paulo), e suas atribuições<br />

compreendiam ainda investigações e diligências relativas ao combate a grupos de oposição. 34<br />

128


72. A Oban, inicialmente instalada em dependências do 2 o Batalhão de Reconhecimento<br />

Mecanizado (na rua Manoel da Nóbrega, n o 887) e da Polícia do Exército, logo teve sua sede transferida<br />

para parte das dependências do 36 o Distrito Policial (na rua Tutoia, n o 921), todos em São Paulo. Sem<br />

previsão orçamentária, a Oban recorreu à iniciativa privada e a entidades públicas para organizar-se,<br />

solicitando auxílio financeiro, material (equipamentos, viaturas, mobiliário, armamentos) e de pessoal.<br />

73. A Oban operava a partir de um Centro de Coordenação composto pelos comandantes<br />

do II Exército, da 2 a Região Militar, da 2 a Divisão de Infantaria, do 6 o Distrito Naval, da 4 a Zona<br />

Aérea, pelo diretor do DOPS, pelo secretário de Segurança Pública do estado de São Paulo, pelo<br />

superintendente de Polícia Federal de São Paulo e pelo chefe da agência São Paulo do SNI. Esse<br />

Centro de Coordenação funcionava em três áreas − Central de Informações, Central de Operações<br />

e Central de Difusão −, e contava com uma Coordenação de Execução subordinada à Central de<br />

Informações. Era este o modelo:<br />

II Éxercito<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

Centro de Coordenação<br />

Central de Informações<br />

Central de Operações<br />

Central de Difusão<br />

Coordenação de Execução<br />

74. A Coordenação de Execução, subordinada à Central de Informações, era chefiada pelo<br />

tenente-coronel Waldyr Coelho, que servira na unidade do Exército de Pirassununga, então chefe<br />

da seção de informações do Estado-Maior da 2 a Divisão do Exército. Era o pessoal da Coordenação<br />

de Execução que respondia, sob determinação dos escalões superiores, por ações de prisões ilegais,<br />

interrogatórios, torturas, execuções e desaparecimento forçado de militantes. O então capitão de<br />

artilharia Dalmo Lúcio Muniz Cyrillo foi chefe de uma das equipes de interrogatório preliminar<br />

e depois chefiou equipe da Coordenação de Execução. 35 Posteriormente, integraria a equipe do<br />

DOI-CODI/II Exército. Outro que foi chefe de equipe de busca e orientador de interrogatórios<br />

da Oban, e depois do DOI-CODI, foi o então capitão e hoje tenente-coronel reformado Maurício<br />

Lopes Lima. Ele foi um dos torturadores de Dilma Vanna Rousseff, hoje presidenta da República.<br />

Ela era liderança da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares (VAR-Palmares) e foi presa em<br />

16 de janeiro de 1970. Segundo Dilma Rousseff:<br />

129


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

Dilma Rousseff: Eu me lembro de chegar na Operação Bandeirante, presa, no início<br />

de 1970. Era aquele negócio meio terreno baldio, não tinha nem muro, direito.<br />

Eu entrei no pátio da Operação Bandeirante e começaram a gritar: “Mata!”, “Tira<br />

a roupa”, “Terrorista”, “Filha da puta”, “Deve ter matado gente”. E lembro também<br />

perfeitamente que me botaram numa cela. Muito estranho. Uma porção de mulheres.<br />

Tinha uma menina grávida que perguntou meu nome. Eu dei meu nome verdadeiro.<br />

Ela disse: “Xi, você está ferrada”. Foi o meu primeiro contato com o esperar. A pior<br />

coisa que tem na tortura é esperar, esperar para apanhar. Eu senti ali que a barra era<br />

pesada. E foi. Também estou lembrando muito bem do chão do banheiro, do azulejo<br />

branco. Porque vai formando crosta de sangue, sujeira, você fica com um cheiro. [...]<br />

Entrevistador: Quem batia<br />

Dilma Rousseff: O capitão Maurício [Lopes Lima] sempre aparecia. Ele não era<br />

interrogador, era da equipe de busca. Dos que dirigiam, o primeiro era o Homero, o<br />

segundo era o [capitão Benoni de Arruda] Albernaz. Do terceiro eu não me lembro<br />

o nome. Era um baixinho. Quem comandava era o major Waldyr [Coelho], que a<br />

gente chamava de major Linguinha, porque ele falava assim [com língua presa].<br />

Entrevistador: Quem torturava<br />

Dilma Rousseff: O Albernaz e o substituto dele, que se chamava Tomás. Eu não sei<br />

se é nome de guerra. Quem mandava era o Albernaz, quem interrogava era o Albernaz.<br />

O Albernaz batia e dava soco. Ele dava muito soco nas pessoas. Ele começava a<br />

te interrogar. Se não gostasse das respostas, ele te dava soco. Depois da palmatória,<br />

eu fui pro pau de arara. 36<br />

O capitão Benoni de Arruda Albernaz era o chefe da equipe A de interrogatório preliminar da Oban<br />

quando Dilma foi presa, em janeiro de 1970.<br />

75. A Coordenação de Execução funcionava em um esquema de plantões ininterruptos,<br />

possibilitando que pessoas fossem presas e interrogadas em qualquer horário, do dia ou da noite.<br />

Informações que tinham origem na Oban eram difundidas como se fossem originárias da 2 a Divisão<br />

de Infantaria, que operava no quartel-general do II Exército, sempre assinadas pelo tenente-coronel<br />

Waldir Coelho. Documentos localizados no Arquivo Nacional confirmam que os órgãos participantes<br />

da Oban se reuniam semanalmente, participando dessas reuniões os chefes da 2 a seção do<br />

6 o Distrito Naval, da 4 a Zona Aérea e da Força Pública do Estado de São Paulo, que, fundida com<br />

a Guarda Civil, em 1970, deu origem à Polícia Militar do estado de São Paulo. Contavam também<br />

com representantes do SNI, da Polícia Federal e do DOPS.<br />

76. Em uma dessas reuniões, em 12 de fevereiro de 1970, Waldyr Coelho chegou a sugerir<br />

ao comando do II Exército que se fizesse uma nova operação, com novo nome, a partir do modelo<br />

da Oban, especificamente destinada ao combate à corrupção. Essa nova operação, segundo ele, se<br />

beneficiaria da imagem que a Oban teria junto à população. É o teor de documento confidencial do<br />

comando do 6 o Distrito Naval, informação n o 076/70, de 20 de fevereiro de 1970:<br />

130


Durante a reunião semanal dos órgãos integrantes da Oban, no último dia 12 de<br />

fevereiro, o major Waldyr Coelho comentou ser uma constante, nas declarações<br />

dos elementos mais jovens presos por atos subversivos e/ou terroristas, a descrença<br />

com o combate à corrupção por parte das autoridades constituídas. Visando reduzir<br />

o poder de arregimentação dos terroristas, e aproveitando a imagem que já<br />

desfruta a Oban junto à população, o major Waldyr afirmou que iria sugerir ao<br />

comando do II Exército a criação de uma “Operação”, semelhante à Bandeirante,<br />

especificamente contra a corrupção.<br />

Decorrida uma semana e havendo o exmo. sr. general-comandante do II Exército<br />

reassumido suas funções, o comandante do 6 o Distrito Naval obteve do major Waldyr<br />

confirmação do encaminhamento da sugestão, observando, inclusive, ter sido<br />

tal assunto objeto de entendimentos entre o comandante do II Exército e o exmo. sr.<br />

ministro da Fazenda, quando de sua última estada em São Paulo.<br />

A possível criação desta nova “Operação” poder-se-ia, também, constituir em uma<br />

ampliação da esfera de ação da atual Oban. 37<br />

77. Não apenas militares do Exército mas também servidores de todos os órgãos que formavam<br />

a Oban compunham suas equipes. Eram reconhecidos por letras seguidas por números, como A-1, A-2,<br />

A-3, B-1, B-2, B-3. Foram localizadas referências a equipes classificadas até a letra D e até o número 4. 38<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

78. A Oban respondia igualmente a pedidos de busca, diligências ou informações oriundas<br />

de outros órgãos – identificados como PB, na linguagem da informação. Para a rua Tutoia eram<br />

levados os presos políticos da Oban ou aqueles que, capturados por outros órgãos da repressão, acabavam<br />

entregues a ela, para serem interrogados, normalmente, mediante tortura. Vários morreram<br />

em consequência disso. Em uma listagem de presos produzida pela Oban – difundida para o CIE,<br />

o 6 o Distrito Naval, a 4 a Zona Aérea, a agência São Paulo do SNI e Secretaria de Segurança Pública<br />

do estado de São Paulo –, constam os nomes: 39<br />

Esta AI encaminha por cópia os seguintes documentos:<br />

1) Resumo de declarações prestadas na CE OB pelos indivíduos abaixo, nos dias 10 e 11<br />

setembro de 1970:<br />

a) Carlos Franklin Paixão de Araújo<br />

b) Ariston Oliveira Lucena<br />

c) Ana Bursztyn<br />

d) Pedro Farkas<br />

e) Alfredo Schneider<br />

131


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

f ) Claudia de Souza<br />

g) Reinaldo Morano Filho<br />

h) Coraly Aredes Rosa Novaes<br />

i) Maria Tereza Nogueira Mucci<br />

j) Artur Bielawski<br />

l) Arduino Otavio Laghetto<br />

m) Ana Maria Gomes da Silva<br />

2) Grade de presos de 10 para 11 de setembro de 1970:<br />

[...]<br />

Grade de presos<br />

Relação dos presos nesta seção, do dia 10 para 11 de setembro de 1970:<br />

Nomes Preso por Entrada Prisão Destino<br />

1 Candido Pinto de Melo B-3 11/04 AACD<br />

2 Carlos Franklin Paixão de Araujo Deops 13/08 XAD/1<br />

3 Ariston Oliveira Lucena 16 o DP 19/08 XAD/3<br />

4 Ana Bursztyn Rest. CODI 22/08 ESP/1<br />

5 Neir Cipriano da Silva B-3 03/09 XAD/2<br />

6 Pedro Farkas B-3 03/09 XAD/2<br />

7 Josephina Bacariça Schneider B-4 03/09 ESP/1<br />

8 Alfredo Schneider B-4 03/09 XAD/3<br />

9 Claudia de Souza C-4 08/09 ESP/2<br />

10 Reinaldo Morano Filho Deops 08/09 XAD/2<br />

11 Coraly Aredes Rosa Novaes DPF AM. 10/09 ESP/2<br />

12 Maria Tereza Nogueira Mucci Equipe mista 10/09 ESP/1<br />

13 Artur Bielawski Apres. 10/09 Lib.<br />

14 Arduino Otavio Laghetto C-3 10/09 Lib.<br />

15 Ana Maria Gomes da Silva C-1 10/09 ESP/2<br />

79. A carceragem da Oban tinha pelo menos três celas na delegacia da rua Tutoia, denominadas<br />

xadrez 1, 2 e 3. As mulheres ficavam separadas, provavelmente em uma cela especial – segundo<br />

abreviação utilizada na tabela (ESP/2). Alguns permaneciam encarcerados por muito tempo.<br />

O nome de Cândido Pinto de Melo, que atualmente batiza a União Estadual dos Estudantes de<br />

Pernambuco (UEP), foi registrado na AACD (Associação de Assistência à Criança Deficiente − sigla<br />

132


de uma instituição de fins filantrópicos). Em abril de 1969, Cândido levou dois tiros pelas costas ao<br />

fugir, quando percebeu que seria preso. Um deles o atingiu no rosto, de raspão. O outro na coluna,<br />

deixando-o paraplégico. Preso, fazia sessões de recuperação na AACD. E, nessas ocasiões, homens<br />

armados da Oban ficavam ostensivamente em frente à porta do quarto em que se encontrava, dificultando<br />

seu contato com familiares ou amigos.<br />

80. Relatórios de atividades da Oban com a íntegra dos depoimentos prestados, grades de<br />

presos e outras informações eram difundidos para o CIE, a agência São Paulo do SNI, o 6 o Distrito<br />

Naval e a 4 a Zona Aérea, em intensa troca de informações entre órgãos. Os interrogatórios na Oban<br />

eram denominados preliminares, ou seja, tão logo um militante fosse preso, deveria ser interrogado.<br />

Dessa forma, eram obtidas informações antes que seus contatos percebessem que a pessoa tinha sido<br />

presa. Com isso, buscava-se conhecer pontos predeterminados de encontro, com locais, horários e<br />

dias previamente estabelecidos. Estes pontos serviam para troca de informações ou para aferir se os<br />

militantes não tinham sido presos ou mortos. Assim, deixar de comparecer a um ponto era um forte<br />

indício de ter sido capturado por agentes da repressão.<br />

81. Conhecendo essas rotinas, os agentes da Oban procuravam dar início ao interrogatório<br />

preliminar tão logo o preso chegasse às dependências da rua Tutoia. Posteriormente, presos<br />

passaram a ser levados também para centros clandestinos. Desse modo era possível ter informações<br />

como com quem o militante teria um encontro, quando e onde (em que ponto). Se os interrogatórios<br />

preliminares e as primeiras sessões de tortura lograssem êxito, as equipes tentavam capturar os<br />

contatos do preso ou presa, o que poderia levar a um processo de desmantelamento da organização<br />

à qual pertencia. Em seguida, o preso seria encaminhado ao DOPS, para a formalização do inquérito,<br />

mas, na prática, as sessões de torturas eram tantas que, muitas vezes, os presos permaneciam<br />

naquelas instalações por tempo indeterminado. Por exemplo, Carlos Franklin Paixão de Araújo foi<br />

preso em 13 de agosto de 1970, cerca de um mês antes da confecção do relatório acima referido. 40 Os<br />

interrogatórios de Osvaldo Soares, Manoel Dias do Nascimento e José Amorim de Araújo levaram<br />

cerca de quatro horas cada um (equipe C-2). As sessões de Eva Tereza Skazufka Bergel, em 4 de<br />

junho de 1970, realizados pela equipe A-1, duraram oito horas. 41 Também Antônio de Pádua Prado<br />

Junior foi interrogado por três horas e 40 minutos, pela equipe A-2, em 26 de maio de 1970. Dois<br />

dias depois, foi novamente interrogado, por horas, pela equipe C-2. 42<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

82. Os interrogatórios eram reduzidos a termos nos quais constavam, no cabeçalho, o nome<br />

do interrogado, seus codinomes, a equipe da Oban responsável pela operação, além de dia e hora em<br />

que foram tomadas as declarações. Alguns dias após a realização dos interrogatórios, as informações<br />

eram repassadas para órgãos como o SNI, o CIE, o Distrito Naval e a Zona Aérea de São Paulo. 43<br />

83. O acesso que hoje temos a esses documentos se deve ao fato de que, após o processamento<br />

das declarações prestadas, e das providências tomadas, o SNI e os Centros de Informações das Forças<br />

Armadas arquivavam os documentos correspondentes. Eram esses documentos que fundamentavam<br />

os processos do Conselho de Segurança Nacional e do Superior Tribunal Militar contra os militantes<br />

das organizações de esquerda acusados de crimes previstos na Lei de Segurança Nacional.<br />

84. O acervo do extinto SNI e dos serviços secretos das Forças Armadas são, atualmente, importantes<br />

fontes de informação sobre a ditadura militar. Seus documentos, com milhões de páginas<br />

133


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

de textos, registram o cotidiano da espionagem, o intenso monitoramento aos opositores do regime o<br />

e intercâmbio de informações sobre as investigações entre os órgãos de repressão.<br />

85. Em um desses depoimentos, Osvaldo Soares explica sua viagem a Cuba na companhia<br />

de um indivíduo conhecido como Sanchez, acrescentando que, posteriormente, esse companheiro de<br />

viagem apareceu na revista O Cruzeiro como integrante do Comando de Caça aos Comunistas (CCC).<br />

Ao arquivar essa documentação, os analistas da agência São Paulo do SNI se preocuparam em complementar<br />

o relato com uma foto de Sanchez, proveniente de seus próprios arquivos:<br />

Doutora Elizabeth: localizar, no arquivo, um prontuário sobre atividades do CCC<br />

que inclui uma série de fotografias de indigitados integrantes do CCC. Uma das<br />

fotografias é de “Sanchez”. Tirar xerox e anexar ao prontuário. 44<br />

86. Dessa forma, a circulação de informes não era mero protocolo, e sim a maneira como a<br />

Oban desempenhava importante papel na provisão dos arquivos do SNI e, consequentemente, de todos<br />

os parceiros de sistema. Tanto que em outro interrogatório, na folha de encaminhamento do seu termo<br />

pelo SNI, consta: “Podemos ajudar a identificar o Cid S. Paulo”, militante citado no depoimento de<br />

Edmur Péricles Camargo, que, posteriormente, se tornaria um desaparecido político. Segundo as anotações,<br />

isso seria possível a partir do teor do protocolo n o 2.394/1967, que conteria as informações citadas. 45<br />

87. Na Escola Nacional de Informações (EsNI), após ter comandado o DOI-CODI/II<br />

Exército, órgão que sucedeu a Oban, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra elaborou apostila já referida,<br />

intitulada Neutralização de aparelhos, 46 baseada em casos reais, só que com dados falseados, por<br />

ser mais conveniente a conclusões e ensinamentos da EsNI. No entanto, o teor da apostila é relevante<br />

por apresentar práticas da Oban e do DOI-CODI/II Exército. Um dos casos relatados na referida<br />

apostila, é a prisão de Osvaldo Soares, o “Miguel” ou “Fanta”, em 17 de maio de 1970:<br />

7. Estouro do Aparelho de “Miguel” ou “Fanta”.<br />

a) “Miguel” ou “Fanta”, ex-sargento, expulso da FAB, pertencia à VPR [Vanguarda<br />

Popular Revolucionária].<br />

b) Foi preso pelo DOI-CODI/II Exército e imediatamente interrogado. “Abriu”, em pouco<br />

tempo, o seu aparelho, situado à rua Bonsucesso, bairro do Tatuapé, em São Paulo.<br />

c) Duas turmas da Seção de Operações foram encarregadas do “Estouro”.<br />

d) A casa foi cercada sigilosamente. As luzes da sala encontravam-se acesas. Um<br />

agente aproximou-se e tocou a campainha, mas ninguém atendeu.<br />

e) “Miguel” durante o interrogatório não declarou que moravam outras pessoas<br />

no aparelho.<br />

f) O chefe da operação resolveu “estourar” o aparelho, o que foi feito através da<br />

porta da cozinha.<br />

134


g) Foram encontrados na mesa da cozinha pratos com restos de comida que indicavam<br />

estarem sendo usados até pouco tempo atrás. Os bicos de gás do fogão estavam<br />

quentes demonstrando que alguém havia utilizado o fogão recentemente.<br />

h) Todo o aparelho foi revistado, inclusive o forro da casa. Ninguém foi encontrado.<br />

i) O chefe da operação avisou o oficial de permanência do DOI. “Miguel”, interrogado<br />

com mais rigor, em 30 minutos afirma que no corredor do aparelho<br />

existia um alçapão, muito bem camuflado, onde deveriam estar os outros dois<br />

ocupantes do aparelho.<br />

[...]<br />

l) Agentes conseguem retirar a tampa do alçapão e verificam que no seu interior<br />

estão um homem e uma mulher, ambos armados com revólver calibre 38.<br />

m) Mandados sair do alçapão, não o fazem. Atiram contra os agentes. O tiroteio é<br />

estabelecido e os dois terroristas são mortos. 47<br />

88. Esse relato permite conhecer, também, como se processavam os depoimentos e em que<br />

grau de violência. No item b, por exemplo, pode-se imaginar que o interrogado tenha sido forçado a<br />

informar o endereço de sua residência. No item i, o então major Carlos Alberto Brilhante Ustra descreve<br />

como Miguel teve de ser interrogado “com mais rigor”, por cerca de 30 minutos, até dizer que<br />

havia um esconderijo na casa. Interrogar “com mais rigor” é sinônimo de torturar, palavra que não<br />

deveria ser escrita em um documento como este.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

89. No interior do alçapão estavam Alceri Maria Gomes da Silva e Antônio dos Três Reis<br />

de Oliveira, que foram mortos pelos agentes da Oban. Possivelmente as mortes não ocorreram da<br />

maneira como descrita no documento. No entanto, não há dúvida sobre as responsabilidades da<br />

Oban pela morte de um casal, cujos restos mortais, enterrados no cemitério da Vila Formosa, nunca<br />

foram entregues às famílias.<br />

90. Quanto aos horários, os interrogatórios aconteciam a qualquer tempo, de dia ou à noite,<br />

no horário que fosse mais conveniente. As declarações de Edmur Péricles Camargo, por exemplo,<br />

foram tomadas na noite de 28 de maio de 1970, entre 23h e meia-noite. Um longo interrogatório de<br />

Darcy Rodrigues ocorreu na virada do dia 6 para 7 de maio de 1970. Conduzido pela equipe B-2,<br />

começou às 23h45 e terminou às 4h30. 48 O interrogatório com acareação entre Joaquim Martes,<br />

Eufrásio da Silva Medrado e Pedro Firmino de Santana ocorreu entre 0h30 e 2h de 26 de maio de<br />

1970, realizado pela equipe A-2. 49<br />

91. As informações obtidas nessas sessões eram difundidas em seguida para a análise da<br />

comunidade de informações, fossem obtidas em interrogatórios, fossem manuscritas pelos próprios<br />

presos. 50 Como exemplo, citem-se declarações que teriam sido manuscritas por Edmur Camargo em<br />

26 de maio de 1970, além de outras, manuscritas por Ladislau Dowbor, 51 Eddie Carlos Castor da<br />

Nóbrega 52 e Abel de Barros Lima. 53<br />

135


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

92. Os nomes de integrantes das equipes responsáveis por esses interrogatórios eram ocultados<br />

dos documentos oficiais, dificultando a identificação de quais agentes realizavam a tomada de<br />

depoimentos e quem chefiava cada sessão. Entre os órgãos dos sistemas de informações, havia troca de<br />

dados, informes (o dado bruto) e informações (informes já analisados), além de ser constante o trânsito<br />

de presos. Por exemplo, quando a equipe A-2 tomou o depoimento de Nilson Furtado, na manhã<br />

de 4 de junho de 1970, registrou-se no cabeçalho do documento que Nilson foi preso pelo DOPS/<br />

SP. Concomitantemente, como também se pode verificar em seu termo, a equipe A-1 interrogou Iara<br />

Glória Areias Prado, que havia sido presa pelo DOPS de Porto Alegre. O mesmo vale para Antônio de<br />

Pádua Prado Junior, 54 acima referido. As pessoas detidas eram levadas de uma a outra instituição da<br />

estrutura repressiva, para que cada órgão pudesse, a seu momento e a seu estilo, “trabalhar” o preso –<br />

como era chamado o processo de buscar informações por meio de interrogatórios e sessões de tortura.<br />

93. Em janeiro de 1970, poucos meses após a criação da Oban, o modus operandi dessa operação<br />

já começava a servir de modelo para outros órgãos, como pode ser visto em documento produzido<br />

pela agência São Paulo do SNI. O texto relata que o policial Coutinho, que servira na Oban, estava<br />

novamente trabalhando na Força Pública do Estado de São Paulo, sua instituição de origem, precisamente<br />

na 2 a seção do QG de sua corporação, em que controlava grupo operacional que funcionou nos<br />

moldes da Operação Bandeirante. 55<br />

94. O documento é igualmente ilustrativo de duas práticas que se tornariam corriqueiras e<br />

fundamentais para os trabalhos, não apenas da Oban, mas também nos órgãos que a sucederiam, os<br />

DOI-CODI: 1) uma é o recurso à tortura para obter informações dos militantes presos. É como se,<br />

para seus agentes, a tortura fosse o meio para alcançar o sucesso das operações, como se os fins justificassem<br />

todos os meios, para além de qualquer dimensão ética.<br />

95. Um dos documentos oficiais que ilustram essa prática se refere à prisão do professor José<br />

Tarcísio Cecílio, informante do DOPS/SP desde 1962, por agentes da Oban:<br />

Que tão logo adentrou a sala, onde se encontrava Tião, o declarante já começou a sofrer<br />

espancamentos de toda espécie, aplicados por um sargento da Operação Bandeirante<br />

que, na ocasião, trajava uma camisa azul; que ato contínuo solicitaram ao declarante<br />

que falasse o que sabia, sendo certo que o declarante insistia em dizer que trabalhava<br />

para o Serviço de Informações do DOPS; [...] que o declarante foi dependurado no<br />

pau de arara, quando teve a sola de seus pés batida com cassetete; que enquanto providenciavam<br />

um aparelho de choque, o referido sargento da Operação Bandeirante,<br />

que vestia camisa azul, passou um [ilegível] pescoço do declarante, parecendo querer<br />

enforcá-lo; [...] que, quando chegou o aparelho de choque, o declarante foi novamente<br />

dependurado no pau de arara, quando lhe aplicaram choques em todo o seu corpo,<br />

inclusive no ânus e no pênis; que quem fazia tais aplicações era o sargento de camisa<br />

azul, da Operação Bandeirante; [...] que em face dos suplícios que sofreu o declarante<br />

está com um dos ouvidos enfermo, os músculos das pernas todos machucados, com os<br />

pulsos e tornozelos inflamados, impossibilitando-o de andar. 56<br />

96. Outra prática comum, na Oban, 2) era a infiltração de agentes nas organizações de<br />

oposição ao regime. Os policiais civis, desde muito habituados a trabalhar com informantes, utiliza-<br />

136


am desse artifício com muito êxito para o desmantelamento de grupos de oposição. Nos órgãos de<br />

composição mista, como no caso da Oban e dos DOI-CODI, a prática foi transmitida pelos policiais<br />

aos colegas militares, a ponto de constituir-se num dos pilares das operações de repressão política, no<br />

desmantelamento de organizações de esquerda.<br />

97. Era intenso o intercâmbio, com troca de informações e também de presos, entre a<br />

Oban e o DOPS/SP, em um ambiente não raro conturbado, tomado de grande tensão. Dessa forma,<br />

desentendimentos no comando eram mesmo naturais, como o que ocorreu entre o tenente-coronel<br />

Waldyr Coelho e o delegado Sérgio Fernando Paranhos Fleury, homem de maior destaque na<br />

Polícia Civil paulista durante a ditadura militar. Dado se estabelecer, entre eles, intensa competição<br />

por resultados, se desentenderam e Fleury e sua equipe acabaram se aproximando do Centro de<br />

Informações da Marinha (Cenimar). Além de utilizar um centro clandestino de prisão e tortura da<br />

Marinha em São Conrado, no Rio de Janeiro, com o apoio do Cenimar, Fleury conduziu a operação<br />

que resultou na morte de Carlos Marighella, na cidade de São Paulo, em 4 de novembro de 1969.<br />

Em 28 de fevereiro de 1970, foi novamente ousado, quando um policial prendeu e levou ao DOPS/<br />

SP Chizuo Osava, conhecido como “Mário Japa”, membro da Vanguarda Popular Revolucionária<br />

(VPR). Fleury resistiu às ordens de mandá-lo à Oban, até que, finalmente, foi obrigado a fazê-lo e,<br />

por sua negligência, foi punido e transferido para a 41 o DP, na Vila Rica. A proeminência alcançada<br />

por Waldyr Coelho o levou a outros embates, como o que se deu com o general Ernani Ayrosa<br />

da Silva, chefe do Estado-Maior do II Exército, que, discretamente, apoiava a atuação de Fleury.<br />

Quando Waldyr Coelho lhe pediu que escolhesse entre ele e Fleury, o delegado foi reconduzido ao<br />

DOPS/SP. E o major acabou chefiando a seção de informações da 2 a Divisão de Infantaria.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

98. Havia também riscos e adversidades para os agentes da Oban. Documento localizado<br />

no Arquivo Nacional, intitulado A Operação Bandeirante – vítimas do terrorismo: Olavo Hanssen e os<br />

demais torturados, traz nomes de alguns dos agentes da Oban que se feriram em missão, como o policial<br />

federal Cláudio Ernesto Canton. Em diligência na rua Maria Antônia, em frente à Universidade<br />

Presbiteriana Mackenzie, em São Paulo, Canton efetuou a prisão de Márcio Beck Machado. Quando<br />

conduzia o preso para uma viatura, foi atingido, na coluna vertebral, por disparos de outros militantes<br />

e morreu, em agosto de 1970.<br />

99. Roberto Artoni, que serviu no DOI-CODI/II Exército, relatou que dois integrantes do<br />

Movimento de Libertação Popular (Molipo), responsáveis pela morte de Canton, tiveram de pagar<br />

com a vida. É que naquela época, segundo Artoni, as operações do órgão eram regidas por uma espécie<br />

de Lei de Talião. 57 Os integrantes do Molipo que foram perseguidos e executados eram Márcio Beck<br />

Machado e Maria Augusta Thomaz 58 , mortos em Rio Verde (GO), em maio de 1973:<br />

Roberto Artoni: Na rua Maria Antônia, mataram um agente meu. O agente Canton<br />

da Polícia Federal. Eu falei que os caras viriam por lá: “Você só vem atrás, não mexe<br />

com os caras”, ele foi tentar prender os dois. Mataram ele.<br />

Comissão Nacional da Verdade: E depois disso os dois fugiram<br />

Roberto Artoni: Fugiram. Esses dois eram dois dos 25 do Molipo, que voltaram de<br />

fora [de Cuba].<br />

137


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

[...]<br />

Comissão Nacional da Verdade: E depois foram pegos<br />

Roberto Artoni: Não. Aí veio a Lei de Talião. Conhece a Lei de Talião 59<br />

100. Em 1970, a Presidência da República elaborou a Diretriz Presidencial de Segurança<br />

Interna. Com base nela foi elaborado, em sequência, o Planejamento de Segurança Interna e, em seguida,<br />

foram criados os DOI-CODI, que expandiram para o restante do Brasil o modelo de São Paulo,<br />

da Oban. A doutrina, cada vez mais impregnada, era que os participantes dos órgãos de repressão<br />

tinham uma missão a cumprir. Para além de meros policiais e militares cumpridores de suas funções,<br />

os agentes da repressão política que compuseram os quadros dos DOI-CODI eram imbuídos de uma<br />

ideologia, difundida como espírito patriótico, que os colocava muitas vezes como soldados leais a seus<br />

comandantes, em uma guerra cujo objetivo principal era eliminar o inimigo interno, personificado em<br />

militantes comunistas e membros de grupos armados.<br />

2) Destacamento de Operações de Informações − Centro de Operações de Defesa<br />

Interna (DOI-CODI)<br />

101. Em outubro de 1970, logo após a posse do presidente Emílio Garrastazu Médici, com a<br />

edição da Diretriz Presidencial de Segurança Interna, o modelo da Oban foi difundido para o território<br />

nacional, com a criação dos Destacamentos de Operações de Informações − Centro de Operações de<br />

Defesa Interna (DOI-CODI). A eficácia da Oban no desbaratamento das organizações de esquerda<br />

em São Paulo serviu de base para o surgimento dos Centros de Operações de Defesa Interna (CODI),<br />

em janeiro de 1970. A medida oficializou o comando do Exército no combate à oposição. Cada CODI<br />

passou a contar com um ou mais Destacamento de Operações e Informações (DOI), encarregado de<br />

executar prisões, investigações e interrogatórios. Tratava-se de unidades de inteligência, especializadas<br />

em operações e subordinadas aos comandantes de cada força. Os DOI-CODI eram comandados<br />

por oficial do Exército, em geral, major ou coronel, e tinham orçamento regular. Para a instrução de<br />

inquéritos encaminhados à Justiça, os DOI se articulavam com o Departamento de Ordem Política e<br />

Social (DOPS) e o DPF. Assim, o DOI-CODI se encarregava dos interrogatórios e remetia os presos<br />

indiciados ao DOPS ou à DPF para a formalização do inquérito.<br />

102. Dessa forma, todos os secretários de Segurança Pública do país foram novamente<br />

reunidos, em Brasília, em um Seminário de Segurança Interna. Receberam instruções para que cada<br />

Comando Militar de Área tivesse um Condi, um DOI-CODI, sob a responsabilidade do comandante<br />

da Força respectiva, nesse caso denominado comandante de Zona de Defesa Interna (ZDI). O país,<br />

então, ficou dividido em seis ZDI. Dependendo da região, poderiam ser criadas, ainda, Áreas de Defesa<br />

Interna (ADI) ou Subáreas de Defesa Interna (SADI).<br />

103. Em 1970, em cumprimento à Diretriz Presidencial de Segurança Interna, foram criados,<br />

pelo Exército brasileiro, os seguintes DOI-CODI: do I Exército, no Rio de Janeiro (então estado<br />

da Guanabara); do II Exército, em São Paulo (SP), do IV Exército, em Recife (PE); e do Comando<br />

Militar do Planalto, em Brasília (DF). Em 1971, foram criados os DOI-CODI da 5 a Região Militar, em<br />

138


Curitiba (PR); da 4 a Divisão de Exército, em Belo Horizonte (MG); da 6 a Região Militar, em Salvador<br />

(BA); da 8 a Região Militar, em Belém (PA); e da 10 a Região Militar, em Fortaleza (CE). Em 1974, foi<br />

criado o DOI-CODI do III Exército, em Porto Alegre (RS).<br />

104. Os DOI eram órgãos operacionais dos CODI, destinados ao combate direto aos grupos<br />

de oposição ao regime militar. Pelas características de sua atuação, os DOI podiam aperfeiçoar suas estruturas,<br />

sempre que houvesse modificação da tática e no modo de agir das organizações consideradas<br />

subversivas. Instalados em todo o território nacional, tinham particularidades, mas seguiam a regra<br />

geral de centralizar todas as informações relativas ao combate das ações de resistência à ditadura. Nos<br />

estados, após seleção, policiais civis e militares ficavam à disposição do comando do Exército na área,<br />

que os encaminhava ao DOI, que também recebiam militares da Marinha e da Força Aérea, além de<br />

agentes da Polícia Federal. Com esse corpo integrado por policiais e militares era possível conjugar<br />

a experiência das polícias no combate ao crime e em técnicas de investigação e interrogatório, com a<br />

disciplina e o planejamento característico das Forças Armadas. 60<br />

105. Pedro Ivo Moézia de Lima relata questões relacionadas à estrutura mista que os órgãos<br />

DOI e CODI possuíam:<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Eram elementos da Polícia Civil, da polícia de São<br />

Paulo. Nós éramos um contingente quase que insignificante lá, nós erámos<br />

menos de 5%, o pessoal das Forças Armadas. Os 95% eram da Polícia Civil,<br />

da Polícia Militar, a Marinha mandava um cara, a Aeronáutica mandava outro.<br />

Mas o grosso eram essas pessoas que integravam. Normalmente tinha um delegado<br />

e um oficial da PM que integrava a equipe de interrogatório. Nós apenas<br />

éramos analistas e dizíamos que tipo de informação nós queríamos. Isso depois<br />

vinha para nós, tá<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

Comissão Nacional da Verdade: O senhor foi por um tempo chefe da seção administrativa<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Sim.<br />

Comissão Nacional da Verdade: Nesse período, na chefia da seção administrativa...<br />

primeiro, me esclareça quais foram as suas funções na chefia da seção administrativa,<br />

o que que o senhor fazia<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Não, eu era responsável por todo o material da... da...<br />

nós trabalhávamos em uma delegacia, ali na rua Tutoia, a metade funcionava como<br />

delegacia de polícia e a outra metade como DOI.<br />

Comissão Nacional da Verdade: Eu imagino então que na sua seção devia ter o registro<br />

de pessoas que ingressavam e saíam<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Não. Não. Não. Não. Eram coisas completamente diferentes,<br />

eu tratava da logística lá do local. Arma, munição, viatura, é... pedidos,<br />

139


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

alimentação. Era isso. O lado operacional era todo lá. Era o outro, tá A equipe de<br />

busca, a equipe de análise, a equipe de interrogatório, tá<br />

Comissão Nacional da Verdade: Fisicamente ficava próximo de onde ficavam os<br />

presos políticos<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Não. A parte de inteligência, de análise etc. ficava<br />

no próprio prédio da delegacia, que é um prédio grande. A parte administrativa<br />

ficava em outro prédio. [...] Lá eram tomados os depoimentos preliminares, para<br />

a organização e iniciação do inquérito. E posteriormente esse pessoal todo ia<br />

para o DOPS. 61<br />

Sobre essa mesma questão, Marco Antônio Tavares Coelho, jornalista preso em meados da década de<br />

1970, expõe:<br />

Funcionava, na mesma sede do DOI, uma delegacia da Polícia Civil – a que chamam<br />

de “auxiliar”. Essa delegacia é curiosa e estranha. Na aparência é uma delegacia<br />

distrital. Disse-me um carcereiro que sua jurisdição é insignificante, dois ou três<br />

quarteirões no Ibirapuera, onde está o DOI. Serve para dar “cobertura” ao DOI,<br />

porque neste utilizam muitas viaturas e pessoal da Polícia Civil de São Paulo. Mas,<br />

volta e meia, essa “auxiliar” recolhe alguns marginais. Uma vez colocaram, na minha<br />

cela, quatro marginais, numa noite. A guarda do DOI é feita, simultaneamente,<br />

por soldados da Polícia do Exército e soldados da Polícia Militar do estado de São<br />

Paulo. Tudo indica que tal estranha “mistura” num quartel militar prende-se a três<br />

razões: comprometer a PM de São Paulo com o DOI; estabelecer o controle mútuo<br />

das duas guarnições militares; contrabalançar a inexperiência dos “catarinas” [recrutas<br />

da Polícia do Exército] com o profissionalismo da PM de São Paulo. 62<br />

106. No documento de Planejamento de Segurança Interna produzido pela Diretriz<br />

Presidencial, consta que<br />

as nossas polícias, acostumadas até então a enfrentar, somente, a subversão praticada<br />

pelo PCB, PCdoB, e pela AP foram surpreendidas e não estavam preparadas<br />

para um novo tipo de luta que surgia, a guerrilha urbana. Até dentro das próprias<br />

Forças Armadas sentiu-se que elas não estavam preparadas para enfrentar, com<br />

os meios disponíveis e as técnicas usadas, até o momento, a guerrilha urbana. [...]<br />

Estabeleceu, assim, o governo brasileiro uma estratégia específica, em âmbito<br />

nacional, que assegurasse a consecução de determinados objetivos fundamentais<br />

para a sobrevivência. 63<br />

107. A portaria n o 141-EME, de 31 de março de 1975, emitida pelo chefe do Estado-Maior<br />

do Exército, Sílvio Couto Coelho da Frota, indica a divisão tipológica (A, B, C) entre as estruturas<br />

do DOI, o que significava “um número fixo de efetivos, entre oficiais e praças do Exército”. 64 Os DOI<br />

de tipo A eram alocados entre o I e o IV Exército, além de integrar o Comando Militar do Planalto,<br />

140


e cada unidade contava com 71 efetivos do Exército, sendo eles: um tenente-coronel, dois majores,<br />

cinco capitães, um subtenente, seis primeiros-sargentos, 14 segundos-sargentos, 20 terceiros-sargentos,<br />

15 cabos e sete soldados.<br />

108. Já os DOI de tipo B alocavam 59 efetivos do Exército e eram incorporados à 4 a Divisão<br />

de Exército (Belo Horizonte), 5 a Região Militar (Salvador), 8 a Região Militar (Belém) e 10 a Região<br />

Militar (Fortaleza). Os DOI de tipo C estavam situados no Comando Militar da Amazônia (Manaus),<br />

na 5 a Região Militar (Curitiba) e na 9 a Região Militar (Campo Grande), e contavam com 39 efetivos<br />

do Exército. Assim, sabe-se que somente pelo Exército foram destinados 728 militares para ocuparem<br />

postos nos 12 DOI estruturados pelo território nacional. 65<br />

109. Segundo o general-de-brigada Adyr Fiúza de Castro, a organização dos CODI seguia<br />

a seguinte estrutura:<br />

O chefe do CODI é o chefe do Estado-Maior do escalão correspondente. Quer<br />

dizer, o chefe do CODI no Rio era o chefe do Estado-Maior do I Exército (hoje<br />

Comando do Leste). O chefe do Estado-Maior na Bahia era o chefe da 6 a Região<br />

Militar. O chefe do Estado-Maior do II Exército de São Paulo era o chefe do<br />

CODI de São Paulo. E esse chefe tinha autoridade delegada pelo comandante da<br />

área, que é um general de quatro estrelas, para fazer reuniões e coordenar a ação<br />

desses órgãos. No Rio, por exemplo, reunia um representante do I Distrito Naval,<br />

um representante da Zona Aérea, um representante do DOPS, um representante<br />

do delegado da Polícia Federal no estado, um representante, como ouvinte, da<br />

agência local do SNI. Quanto ao DOI, era um elemento, uma unidade, como era<br />

o Batalhão de Polícia, como era o DOPS. 66<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

110. Outro aspecto importante dessa estrutura era a formação dos agentes. Roberto Artoni,<br />

à época sargento do Exército que atuava na Seção de Investigação do DOI (a partir de 1971) sob o<br />

codinome “Pedro Aldeia”, relata, por exemplo, que o empresário João Carlos Di Genio, do grupo de<br />

ensino Objetivo e Unip, fornecia bolsas de estudos para agentes do DOI e seus familiares. As pessoas<br />

lotadas no DOI-CODI/II Exército, por exemplo, com frequência iam fazer cursos de informações em<br />

alguma instituição. O Centro de Estudos de Pessoal (CEP), no Forte Duque de Caxias, no Leme, Rio<br />

de Janeiro, era um desses locais. 67<br />

111. A colaboração dos Estados Unidos também foi intensa na formação e especialização<br />

de agentes. Instalações militares americanas chegaram a transmitir ensinamentos a agentes do DOI.<br />

Roberto Artoni relatou que esteve na Carolina do Norte, em Fort Bragg, aprendendo a trabalhar com<br />

explosivos. Fort Bragg é uma unidade militar com cerca de 650 quilômetros quadrados que abriga,<br />

entre outras, forças de operações especiais e paraquedistas. Nesse curso, alunos, todos brasileiros e<br />

de variadas instituições (como Polícias Militares e Forças Armadas), aprendiam a montar e desarmar<br />

explosivos. Cursos para turmas brasileiras eram realizados, também, na United States Army School<br />

of the Americas (Usarsa), ou, simplesmente, Escola das Américas. Por essa instituição, mantida pelos<br />

Estados Unidos e situada no Panamá, passaram alunos brasileiros das mais variadas organizações. Lá<br />

também foram diplomados nomes que depois seriam expoentes de ditaduras na América Latina, como<br />

Leopoldo Galtieri, Manuel Noriega, Roberto Eduardo Viola e Vladimiro Montesinos.<br />

141


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

112. Em material de ensino formulado por Carlos Alberto Brilhante Ustra para os cursos<br />

da Escola Nacional de Informações (EsNI), explica-se que as operações de neutralização deveriam ser<br />

especialmente agressivas quando lidassem com o que chamavam de “subversão”. Preservar a vida dos<br />

militantes não era algo com o que se preocupar nessas operações e, tampouco, policiais e militares não<br />

precisavam justificar suas ações, se a contraparte fosse um opositor do regime. Havia orientação para<br />

que os agentes tomassem cuidado com pessoas inocentes, transeuntes, no curso de ações violentas:<br />

Atenção para a população<br />

Procurando tratá-la com educação, mesmo nos momentos em que seja necessária<br />

a firmeza de atitudes. Ação firme e enérgica não pressupõem maus-tratos e falta<br />

de educação. Qualquer ação injustificada [...] contra pessoas inocentes e populares,<br />

executada por órgão de segurança é vitória para a subversão. 68<br />

113. Para conseguir acesso a bairros, condomínios, casas e edifícios, diferentes tipos de disfarces<br />

podiam ser utilizados. Eram as chamadas histórias-cobertura. As equipes do DOI se vestiam<br />

como garis, carteiros, funcionários de empresa de energia elétrica, usavam macacões de bombeiros<br />

mecânicos ou se identificavam como representantes de firmas especializadas em pesquisas de opinião<br />

pública. Para neutralizar um aparelho, também contavam conseguir colaboração de porteiros<br />

ou síndicos dos edifícios. Na fase de reconhecimento da área que sediaria a operação, o porteiro era<br />

entrevistado. Levantavam-se informações sobre ele como nome, idade, horário de trabalho, local onde<br />

morava, tempo de serviço naquele edifício, entre outras informações. Dessa forma, ficava mais fácil travar<br />

conversa com o funcionário, no dia da operação de neutralização. As equipes do DOI abordavam<br />

o porteiro e o levavam ao apartamento a ser estourado. Valendo-se de algum artifício, o porteiro fazia<br />

com que os ocupantes do imóvel abrissem a porta, facilitando a entrada da turma de choque do DOI. 69<br />

114. Na apostila de Ustra são explicadas técnicas de arrombamento, aconselhando, em último<br />

caso, o uso de explosivos. Em caso de edifício era necessário evacuar os apartamentos vizinhos.<br />

Caso os militantes reagissem com tiros, as equipes da repressão deveriam lançar granadas de gás lacrimogêneo<br />

no interior do imóvel e atirar por janelas e portas.<br />

115. Após entrar no apartamento ou casa e efetuar as prisões, o local era revistado pelas equipes<br />

do DOI, com atenção para alçapões, fundos falsos ou outros locais que pudessem esconder documentos<br />

e materiais úteis à investigação. Muitos dos militantes que sobreviveram à repressão relatam o<br />

desaparecimento de bens após o estouro de aparelhos. Cada turma operacional do DOI deveria portar<br />

consigo um par de óculos escuros, pintados de preto, ou capuz, para impedir a visão do prisioneiro, de<br />

forma que não identificasse para onde foi levado. 70 Roberto Artoni informou nunca ter feito uso dos<br />

referidos óculos, mas sim de capuz, colocado no preso antes de levá-lo ao DOI. 71<br />

116. Não raro um preso era levado ao “ponto” (local previamente marcado para encontro<br />

entre militantes), para indicar com exatidão sua localização. Nesses casos, cumpria usar um disfarce,<br />

evitando que pudesse ser reconhecido por companheiros. No caso de uma diligência chamar a atenção<br />

de transeuntes, deveria ser dito que estava sendo efetuada a prisão de traficantes ou ladrões comuns,<br />

e jamais dizer tratar-se de presos políticos. Também não deveriam constar nos relatórios de missão os<br />

nomes verdadeiros dos integrantes das equipes. 72<br />

142


117. A morte de militantes não era algo a ser evitado. A apostila formulada por Ustra aponta diferenças<br />

entre os tratamentos dispensados a militantes feridos e integrantes da equipe do órgão de segurança:<br />

Em caso de militante ferido:<br />

• Verificar seu estado e revistá-lo;<br />

• Manter o militante sob guarda;<br />

• Comunicar ao chefe da operação e evacuá-lo de acordo com as ordens recebidas.<br />

[...]<br />

Em caso de elemento da equipe ferido:<br />

• Providenciar atendimento o mais rápido possível;<br />

• Verificar sua evacuação para o local determinado pelo chefe da operação. 73<br />

118. Roberto Artoni afirmou ser comum que militantes feridos não fossem levados a um<br />

hospital para receber tratamento, e sim ao próprio DOI. 74 Afinal, era necessário primeiramente identificá-los,<br />

ou tentar obter as informações mais urgentes, sem a preocupação de que tal manobra pudesse<br />

resultar na morte do interrogado.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

119. O setor operacional da estrutura do DOI-CODI era dividido entre as Seções de<br />

Investigação, de Informações e Análise, e de Busca e Apreensão. À Seção de Investigação cabia identificar<br />

e localizar opositores por meio das suas turmas de investigação, compostas de um agente e um<br />

auxiliar, que podiam contar ainda com apoio das turmas complementares – das quais faziam parte<br />

mulheres da polícia feminina e investigadoras da Secretaria de Segurança Pública. No DOI-CODI/II<br />

Exército, por exemplo, a seção chegou a contar com oito mulheres.<br />

120. Muitos dos integrantes da Seção de Investigação eram policiais, em sua maioria<br />

militares, e as equipes saíam para as missões em duplas ou trios. A eles cabia a tarefa de realizar<br />

campanas e seguir pessoas, ou seja, fazer vigilância, mapear a rotina dos militantes, descobrir<br />

quem eram seus contatos, fotografar essas pessoas, identificar locais de residência e aparelhos.<br />

As turmas de investigação recebiam as chamadas ordens da investigação (OI) diretamente do<br />

oficial militar chefe da seção, saíam para as missões e, ao regressar, datilografavam seus relatórios<br />

e encaminhavam à mesma chefia.<br />

121. A fala do jornalista Marcos Tavares Coelho, prisioneiro em diversas unidades do DOI-<br />

CODI, incluindo a sediada no batalhão do II Exército, apresenta referências sobre as informações<br />

apresentadas acima:<br />

É necessário esclarecer que do DOI fazem parte: oficiais do Exército [vários capitães,<br />

poucos majores e um tenente-coronel], mas nenhum usa farda e todos são chamados<br />

143


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

de “doutores”; oficiais da PM de São Paulo, também sem farda, e muitos policiais do<br />

DOPS. Todos são “doutores”, único título utilizado, até em relação aos enfermeiros.<br />

[...] Existe um dado objetivo: uma surda rivalidade entre os oficiais do Exército e os policiais<br />

do DOPS. Aqueles é que mandam, que estão na chefia das equipes, que impõem<br />

o estilo militar ao DOI. Vivem a menosprezar a Polícia Militar pela sua corrupção e<br />

seu “amoldamento” às pressões políticas. De outro lado, o pessoal do DOPS sente que<br />

seu órgão foi esvaziado, mas vê claramente que os militares são pouco competentes<br />

num ramo em que são especialistas [os do DOPS] há dezenas de anos. Ademais, [consideram<br />

que] os “milicos” são grossos e sem nenhuma sensibilidade política. 75<br />

122. A Seção de Informações e de Análise produzia informes, informações, estudos e conclusões<br />

sobre organizações tidas como subversivas. Havia uma subseção de análise e outra de interrogatório.<br />

A Subseção de Análise examinava depoimentos e material apreendido, além de organizar o<br />

arquivo geral e os álbuns fotográficos dos presos e procurados. Esses álbuns eram muito utilizados pelas<br />

turmas de investigação em suas diligências e rondas. A Subseção de Interrogatório possuía três turmas<br />

de interrogatórios preliminares, cada uma composta por seis agentes; uma turma auxiliar, subordinada<br />

ao chefe de cada turma de interrogatório preliminar, encarregava-se do centro de comunicações, da<br />

carceragem e da datilografia dos documentos. Era comum que, do interrogatório, participasse um<br />

delegado ou investigador, chefiado por um oficial do Exército, normalmente capitão. Era o know-how<br />

policial contaminando investigações militares e as práticas de interrogatório e torturas.<br />

123. Sobre essa seção, Marco Tavares Coelho afirma que os interrogatórios, assim como as<br />

torturas e os demais castigos, eram rigorosamente controlados pela chefia da seção. Como os DOI-<br />

CODI possuíam muitos interrogadores e estes eram divididos entre pelo menos três equipes isoladas<br />

(A, B, C), o interrogatório era sempre orientado pelo chefe da Seção de Informações e de Análise.<br />

Assim, ao iniciar-se a inquisição, o interrogador recebia por escrito as perguntas e abaixo delas vinha<br />

o que chamavam de “munição” e a indicação do tratamento a ser dado ao interrogado. 76<br />

124. Cabia à Seção de Busca e Apreensão realizar as diligências quando se pretendesse realizar<br />

uma ação ofensiva – como estourar aparelhos, efetuar prisões, cobrir pontos, conduzir presos,<br />

apreender documentos e materiais dos militantes. Por estar na ação mais direta com esses militantes,<br />

dada a possibilidade de embates armados, era a seção mais sujeita a sofrer baixas. Cada turma de busca<br />

possuía de três a cinco indivíduos, que saíam para as missões em C-14, Kombi ou Opala, todos equipados<br />

com rádio, algo importante numa época em que ainda não havia celulares.<br />

125. Os agentes do DOI-CODI sabiam que militantes, na necessidade de fazer a cobertura dos<br />

“pontos”, transitavam pelas ruas da cidade. Algumas regiões eram especialmente utilizadas pelas organizações<br />

de esquerda. Daí a existência das chamadas rondas – objeto do capítulo 7 da apostila formulada<br />

por Ustra. Eram de dois tipos: rondas especiais, em que os órgãos de segurança conduziam na viatura<br />

um preso, para que apontasse os companheiros que transitavam em via pública. Essas rondas eram mais<br />

específicas, e os locais onde se realizavam eram os comumente frequentados pelos companheiros do preso;<br />

e rondas comuns, efetuadas pelos órgãos de segurança com a finalidade de localizar e prender militantes<br />

que fossem procurados. Essas eram feitas com viaturas sem identificação, e as equipes responsáveis portavam<br />

fuzil, espingarda calibre 12 ou metralhadora de mão. Era comum o emprego das turmas da Seção de<br />

Investigação nessas diligências. Daí a importância do álbum fotográfico, para identificar seus integrantes.<br />

144


126. Na equipe da Seção de Busca e Apreensão havia também as turmas de coleta de dados.<br />

Na linguagem dos órgãos de informações, coleta-se o dado que está disponível e busca-se o que não está<br />

acessível. Essas turmas eram compostas sempre por duas pessoas – sendo um motorista e um oficial da<br />

Polícia Militar ou um delegado da Polícia Civil. E tinham por missão coletar dados tanto em órgãos<br />

públicos, como em universidades, colégios e empresas.<br />

127. Ao analisar falas e depoimentos sobre a organização hierárquica dos DOI-CODI, é<br />

possível perceber que algumas seções possuíam maior destaque do que outras, mesmo quando estavam<br />

no mesmo patamar hierárquico. Por meio do relato do ex-preso Marco Tavares Coelho é possível<br />

observações pontos deste gênero:<br />

Na manhã do dia 21 de janeiro, iniciou-se a fase das torturas na rua Tutoia. Sempre<br />

nela figurou como mentor e executor das piores sevícias, o tal capitão Homero<br />

de Sousa, chefe do Setor de Análise e Interrogatórios (SAI), departamento que é o<br />

núcleo e o “cérebro” − palavra imprópria, pois usam mais os músculos, nas torturas,<br />

do que outra coisa − do DOI. O outro departamento importante é a Seção de<br />

Operações e Capturas. Além disso, existem serviços auxiliares, como datilografia,<br />

identificação, arquivo, cantina, enfermagem etc. 77<br />

128. Por questões de segurança, todos aqueles que integravam o DOI usavam trajes civis,<br />

se tratavam somente por seus codinomes, usavam barba e cabelos compridos ou, pelo menos, que não<br />

fossem com corte militar. Esses agentes operacionais recebiam também documentos de identificação<br />

com nomes falsos, a serem usados em missões específicas. Pedro Ivo Moézia de Lima comenta sobre<br />

o assunto em seu depoimento:<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

Comissão Nacional da Verdade: Por que os agentes do Estado usavam codinomes<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Ah, isso nós aprendemos com os terroristas.<br />

Comissão Nacional da Verdade: Se o senhor puder me explicar...<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Então, é por isso.<br />

Comissão Nacional da Verdade: Mas por quê<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Para ninguém saber quem eu sou. O meu nome verdadeiro<br />

eu escondo, não digo para ninguém. Ninguém. Nós aprendemos... [...]. Eles<br />

usavam codinomes, o codinome era para evitar que fossem identificados. Normalmente,<br />

até usava a técnica de colocar um homem e uma mulher, a mulher não tinha<br />

papel nenhum, era apenas a companheira do cara porque eles iam ter que morar<br />

num lugar e para não levantar suspeitas era um casal que de qualquer jeito tá ali.<br />

Mas via de regra eles não sabiam o nome do outro. E quanto menos eles soubessem<br />

da vida um do outro era melhor para eles. Então, nós adotamos também a mesma<br />

coisa. Lá no DOI os delegados usavam nome... postos de capitão, tenentes, sei lá o<br />

quê. Tem os oficiais que usavam os de delegado e era assim. Ninguém sabia.<br />

145


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

Comissão Nacional da Verdade: Quem escolhia os nomes<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Não, era a própria pessoa.<br />

Comissão Nacional da Verdade: Não tinha uma pessoa<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Não, o cara vai lá e arruma um codinome e tal. Eu<br />

vou dizer mais uma coisinha. Ali muito do que acontecia não era do conhecimento<br />

da maioria da tropa, porque nós tínhamos que ter a nossa identidade preservada.<br />

Então, nós podíamos usar cabelão, bigodão, barba, peruca. Isso eram coisas que os<br />

comandantes das unidades as quais nós pertencíamos não aceitavam. [...] Nós precisávamos<br />

ter a nossa identidade preservada porque, gente, não era brincadeira. [...]<br />

Comissão Nacional da Verdade: Qual era o seu codinome<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Meu codinome Era Ítalo Andreoli.<br />

Comissão Nacional da Verdade: Sempre esse<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Sempre esse. Não usei nenhum outro. 78<br />

3) DOI-CODI/II Exército<br />

129. Um dos destacamentos mistos mais atuantes foi o do DOI-CODI/II Exército (II<br />

Ex), em São Paulo, conhecido como “casa da vovó” por seus integrantes. 79 Instalou-se nas dependências<br />

da Oban, situadas na rua Tutoia, n o 921, no bairro do Paraíso, onde hoje funciona a 36 a<br />

Delegacia de Polícia Civil.<br />

130. Inicialmente, o DOI-CODI/II Ex. contou com um efetivo de 116 homens, oriundos<br />

do Exército (18), da Polícia Militar do estado de São Paulo (72), da Polícia Civil (20), da Aeronáutica<br />

(cinco) e da Polícia Federal (um). A estrutura de destacamento dos DOI-CODI possibilitava a conjugação<br />

de esforços do Exército, da Marinha, da Aeronáutica, do SNI, do DPF e das Secretarias de<br />

Segurança Pública e outros órgãos credenciados, quando fosse o caso. 80<br />

131. A nota de serviço n o 3, de 11 de setembro de 1973, expedida pelo comando do II<br />

Exército, estabeleceu normas para o funcionamento do DOI-CODI/II Ex. Segundo esse documento<br />

confidencial, o destacamento era comandado pelo chefe do Estado-Maior do II Exército e abrigava<br />

uma Central de Informações, uma Central de Operações e uma Central de Assuntos Civis. Sob controle<br />

da Central de Informações, funcionava o Destacamento de Operações de Informações (DOI),<br />

braço operacional responsável pelo combate às organizações de oposição ao regime. Era claro o protagonismo<br />

exercido pelo DOI-CODI e a extensão de sua atuação:<br />

As operações normais e contínuas de combate direto às organizações subversivo-terroristas<br />

são realizadas pelo DOI, com a cooperação dos demais órgãos representados<br />

146


no CODI/II Ex. Devido às características peculiares que envolvem o combate à<br />

subversão e ao terrorismo, particularmente o urbano, [...] a Central de Informações<br />

está sendo constantemente acionada.<br />

[...]<br />

d) Todas as pessoas na área de jurisdição do II Exército, envolvidas em subversão e<br />

terrorismo, ao serem presas serão encaminhadas diretamente ao DOI.<br />

[...]<br />

f) O DOI tem prioridade para a execução de qualquer operação de busca de informes<br />

referentes à subversão e terrorismo na área do II Exército [...].<br />

g) As ocorrências atendidas pelos órgãos da Secretaria de Segurança Pública deverão<br />

ser participadas, diretamente, ao chefe da Central de Informações do CODI/II Ex.<br />

desde que sejam constatadas quaisquer ligações ou suspeita de ligações com subversão<br />

ou terrorismo. 81<br />

132. Anexo a esse documento, um quadro aponta as ligações existentes entre os diversos<br />

órgãos envolvidos na repressão. Ao centro, ficava a Central de Informações do CODI. O organograma<br />

interligava os setores de informações de Marinha, Aeronáutica, Polícia Federal, Polícia Militar, Polícia<br />

Civil, Secretaria de Segurança Pública de São Paulo, a Subárea de Defesa Interna e o SNI.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

133. Mudanças estruturais ocorreram para dotar o órgão de maior capacidade de atuação,<br />

como a ampliação do espaço do destacamento, quando se passou a utilizar parte das dependências<br />

do 36 o DP, inclusive toda a carceragem, e um terreno vizinho, que tinha entrada pela rua Tomaz<br />

Carvalhal, n o 1.030, o que foi possibilitado pelo apoio direto do governo estadual. O Exército abasteceu<br />

o órgão com armamentos, viaturas, sistema de rádio e toda a infraestrutura necessária para suas<br />

operações, além de verbas para o custeio com alimentação, telefones e materiais de expediente. O<br />

combustível das viaturas passou a ser fornecido pela Secretaria de Segurança Pública (SSP).<br />

134. De acordo com o telegrama confidencial expedido pelo SNI em 1979, o empresário<br />

Carlos Eduardo D’Alamo Louzada, na época presidente da Santana de Iguapé Empreendimentos e<br />

Projetos e candidato à vice-presidência da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP),<br />

“nos anos de 1969 e 1970 ajudou materialmente na montagem do DOI/SP durante a gestão do tenente-coronel<br />

Waldyr Coelho em viaturas, transporte aéreo, equipamentos de escritório, armamento<br />

e munição”. 82 O caráter de monitoramento do telegrama evidenciava informações positivas, de acordo<br />

com os órgãos de segurança, sobre o empresário e suas relações político-econômicas com grupos sociais<br />

que apoiavam e/ou estavam inseridos no Estado autoritário brasileiro.<br />

a) Nos anos que antecederam a revolução de março de 1964 e em particular em<br />

1963, participou ativamente do grupo liderado pelo almirante Sílvio Heck; [...]<br />

d) O general Ayrosa, atual chefe do EME quando CH EM/II Exército, em carta<br />

147


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

pessoal agradeceu ao nominado [Carlos Eduardo D’Alamo Louzada] sua inestimável<br />

ajuda em São Paulo no combate ao terrorismo;<br />

e) Colaborou materialmente na melhoria das instalações do atual XII ESQD CAV<br />

MEC (SP) no comando atual do tenente-coronel Beltrão;<br />

f) Em 1977 e 1978 articulou as representações de todas as entidades rurais de São Paulo<br />

para em manifesto apoiarem a candidatura do atual presidente [João Figueiredo];<br />

g) Tem colaborado com a ARJ/SNI cedendo instalações por sua conta de escritórios<br />

operacionais na avenida Nilo Peçanha, n o 165, Rio de Janeiro [...] 83<br />

135. Carlos Eduardo D’Alamo Louzada era apenas um dos diversos empresários brasileiros<br />

(e estrangeiros) que apoiaram a estruturação do sistema de segurança interno planejado pelo regime<br />

militar. Muitos outros também forneceram diferentes tipos de recursos para concretizar os projetos de<br />

implementação das operações especiais, como a Oban, e dos destacamentos mistos, como o DOI-CODI.<br />

136. Em depoimento à <strong>CNV</strong>, o coronel José Barros Paes, comandante da 2 a seção do II<br />

Exército de 1974 a 1976, contou que a comunidade de informações paulista se reunia pelo menos uma<br />

vez por mês. 84 E que a 2 a seção, responsável pelo setor de informações (E2), recebia missões do CIE,<br />

que era órgão diretamente ligado ao gabinete do ministro. O braço operacional da 2 a seção, por sua<br />

vez, era o DOI-CODI/II Exército, cujos agentes executavam as ações. Ao comandante da 2 a seção<br />

competia manter o comandante do II Exército informado, o que se ilustra no organograma a seguir: 85<br />

Ministério do Exército<br />

CIE<br />

II Exército/E2<br />

Comando do II Exército<br />

II Exército/E2<br />

OBAN<br />

(1969-1970)<br />

DOI-CODI<br />

(1970-1976)<br />

137. José Barros Paes confirmou que, para montagem do aparato repressivo, foi necessário<br />

pedir a colaboração do empresariado. Muitos se prontificaram a ajudar – financiando a aquisição de<br />

148


armamentos, aparelhos de comunicação, equipamentos de escuta, munição e viaturas para as equipes.<br />

Feita a montagem inicial, esse apoio não era mais necessário.<br />

138. O DOI-CODI/II Exército contava com um comandante, necessariamente oficial superior,<br />

que era auxiliado por assessoria jurídica e policial chefiada por um delegado de polícia. Carlos<br />

Alberto Brilhante Ustra comandou o destacamento de 29 de setembro de 1970 a 23 de janeiro de<br />

1974. O Setor Operacional era chefiado pelo capitão de artilharia Dalmo Lúcio Muniz Cyrillo, subcomandante<br />

do DOI, e estava dividido nas Seções de Investigação, de Informações e de Análise, e<br />

de Busca e Apreensão. Enquanto José Barros Paes esteve à frente da 2 a seção, era Audir Santos Maciel<br />

quem respondia pelo DOI.<br />

139. A Seção de Investigação era chefiada pelo oficial do Exército Ênio Pimentel da<br />

Silveira, conhecido como dr. Ney ou ainda dr. Ney Borges de Medeiros. Seu substituto era o oficial<br />

do Exército Freddie Perdigão Pereira. As turmas de investigação recebiam as chamadas ordens de<br />

investigação (OI) diretamente de Ênio, saíam para as missões e, ao regressar, datilografavam seus relatórios<br />

e encaminhavam à mesma chefia. O oficial do Exército André Leite Pereira Filho, conhecido<br />

como dr. Edgar, respondia pela Seção de Informações e de Análise, alocada no prédio principal do<br />

36 o DP. Para quem olha essas instalações a partir da rua Tutoia, a metade direita do imóvel pertencia<br />

à delegacia, e a esquerda, ao DOI-CODI. No piso térreo ficava a carceragem. No andar superior, a<br />

Seção de Informações e de Análise.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

140. Por meio da análise de documentos do Arquivo Nacional, pode-se notar a ampliação e<br />

a consolidação da comunidade de informações. A partir do primeiro semestre de 1970, por exemplo,<br />

relatórios da Oban com termos dos interrogatórios dos presos eram difundidos para o CIE, o SNI, o 6 o<br />

Distrito Naval e a 4 a Zona Aérea. 86 No final de 1970, esses relatórios passaram a ser entregues também<br />

à Secretaria de Segurança Pública e ao DOPS/SP. A relação entre DOI-CODI/II Exército e DOPS/<br />

SP era, desde o início, intensa e profícua, com troca de informes, informações, servidores, presos e<br />

também intercâmbio de experiências, que possibilitavam práticas definidoras de seu modus operandi.<br />

Essa relação entre militares e policiais civis chegou a ser muito próxima, como no caso da parceria<br />

entre Ênio Pimentel Silveira, o dr. Ney, do DOI-CODI/II Exército, e o delegado Sérgio Fernando<br />

Paranhos Fleury, do DOPS/SP.<br />

141. Pedro Ivo Moézia de Lima comenta sobre a estreita relação que se estabeleceu entre<br />

os organismos de segurança durante o regime militar na cidade de São Paulo, o que aproximou<br />

militares e policiais:<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Agora, ninguém desconhece que o método da polícia<br />

sempre foi esse, de tortura, do castigo físico.<br />

Comissão Nacional da Verdade: Isso ocorria dentro do DOI-CODI<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Não. Não estou dizendo isso. Eu estou dizendo que o<br />

método era esse.<br />

Comissão Nacional da Verdade: O método onde<br />

149


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Na polícia de São Paulo. Na polícia de São Paulo.<br />

Comissão Nacional da Verdade: Não no DOI-CODI<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: No DOI-CODI não tô dizendo que não tem, eu não<br />

presenciei. Isto que eu estou dizendo. Eu não presenciei.<br />

Comissão Nacional da Verdade: Havia delegados da polícia de São Paulo que atuavam<br />

dentro do DOI-CODI<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Sim. Era a maioria. Era a maioria.<br />

Comissão Nacional da Verdade: Esse pessoal levou esse procedimento para dento<br />

dos DOI-CODI<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Sim, eram eles que... eram eles que... praticamente foi<br />

imposto isso pra gente. Quando se organizou o DOI-CODI, como eu tava falando<br />

aqui, nós éramos em oito capitães, a maioria morreu. Quem tá vivo é o Ustra,<br />

o Dalmo morreu, o Ene morreu, o André morreu, o Faria morreu, tem eu que tô<br />

durando na ação e tem mais um que já veio aqui. De oficiais de academia, que eu<br />

me lembro, eram só esses.<br />

Comissão Nacional da Verdade: O resto vinha da polícia<br />

Pedro Ivo Moézia de Lima: Da Polícia Militar e da Polícia Civil. A Marinha quase<br />

não se metia nisso, a Aeronáutica também não queria saber disso, Polícia Federal<br />

também não entrava nessa. Quem faziam as coisas eram... quem começou com<br />

tudo Quem foi Foi o Fleury. Quando sumiram as armas lá no 4 o RI foi ele que<br />

iniciou as investigações. 87<br />

142. Quando necessário, integrantes do DOI-CODI/II Exército viajavam para outros estados<br />

da federação, em apoio a operações de repressão. Silvio Giglioli, praça do Exército que esteve<br />

lotado no DOI desde a época da Oban, disse que realizou missões no Paraná, em Foz do Iguaçu e no<br />

interior da Bahia, esta última quando procuravam Carlos Lamarca.<br />

143. O DOI-CODI/II Exército rapidamente compreendeu a importância de usar informantes.<br />

Alguns militantes presos aceitaram cooperar com a repressão e ficaram conhecidos como “cachorros”,<br />

pelo fato de que eram controlados, como se tivessem uma coleira. Esses “cachorros” cumpriam<br />

ordens e prestavam serviços, recebendo em troca algum tipo de benefício. Não era incomum que<br />

recebessem pagamentos mensais por serviços prestados.<br />

144. Roberto Artoni e Marival Chaves afirmaram à <strong>CNV</strong> que Severino Teodoro de Melo,<br />

figura proeminente na história do Partido Comunista Brasileiro (PCB), colaborou com o DOI-<br />

CODI/II Exército e era controlado diretamente pelo chefe da Seção de Investigação, Ênio Pimentel<br />

da Silveira. Posteriormente, esse controle teria sido passado para Freddie Perdigão Pereira. 88 Artoni<br />

150


evelou também que Severino colaborava com o DOI enquanto estava no exterior, passando informações<br />

sobre militantes. Outro informante do DOI-CODI foi Wilson Muller, o Fritz, com quem<br />

Roberto Artoni tinha encontros e cuja colaboração teria tornado possível localizar integrantes do<br />

Movimento de Libertação Popular (Molipo). 89<br />

145. Um dos principais informantes do DOI-CODI/II Exército foi João Henrique Ferreira<br />

de Carvalho, conhecido como Jota, e que pertencia à Ação Libertadora Nacional (ALN). João Henrique<br />

passou a colaborar com a repressão em setembro de 1972 e Roberto Artoni foi um de seus controladores.<br />

Em depoimento à <strong>CNV</strong>, João Henrique contou haver participado de diversas rondas. Explicou<br />

que seu trabalho como informante do DOI-CODI/II Exército consistia, basicamente, em rodar pela<br />

cidade na companhia de seus controladores. O DOI pagava-lhe uma pensão e ele estudava com o apoio<br />

do cursinho Objetivo, de Di Genio. Seus controladores – Roberto Artoni e João de Sá Cavalcanti<br />

Neto, conhecido como Fábio Silva Prado (já falecido) – o buscavam na pensão, para realizar essas rondas<br />

especiais. Passeavam de três a quatro vezes por semana, durante todo o dia e em diversos bairros<br />

da capital paulista. João Henrique explicou que a viatura era, na maioria das vezes, um fusca e que,<br />

além do carro em que estavam, sempre havia outras viaturas descaracterizadas do DOI-CODI pela<br />

região. Pelos rádios, os agentes mantinham uma comunicação constante. Em uma dessas rondas especiais,<br />

João Henrique apontou aos agentes do DOI Francisco Seiko Okama, o Baiano. Segundo João<br />

Henrique, a partir das vigilâncias realizadas sobre Baiano, outros militantes da ALN foram caindo:<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

Conforme a situação, as turmas da Seção de Investigação são designadas para estas rondas.<br />

Tais turmas procuram agir aos pares, pois em caso de necessidade o seu efetivo<br />

normal, que é de dois homens, é muito pequeno para ser empenhado numa ação. Como<br />

a ronda se efetua numa mesma área, as turmas da Seção de Investigação que estão empenhadas<br />

na missão podem se reforçar, mutuamente, num prazo muito pequeno. 90<br />

146. João Henrique também relatou que Roberto Artoni foi buscá-lo na pensão para que o<br />

acompanhasse até a Baixada Santista. Tratava-se de uma missão necessária, pois agentes do DOI pensavam<br />

ter localizado Antônio Carlos Bicalho Lana, porém, necessitavam de confirmação. Lana estava<br />

no litoral e havia trocado de hotel para despistar a repressão, mas aparentemente havia sido novamente<br />

localizado. Alguém que o conhecesse poderia confirmar. Era necessário ter certeza da identidade do<br />

perseguido, pois as ações eram agressivas demais para arriscar um alvo errado. Assim, João Henrique<br />

foi levado ao local em que Lana estaria hospedado e João Henrique o reconheceu. 91<br />

147. A <strong>CNV</strong> realizou uma visita de diligência ao local em 27 de novembro de 2013, com<br />

uma equipe de peritos e ex-presos políticos, em que estes indicaram os cômodos onde foram seviciados.<br />

Entre setembro de 1969 e dezembro de 1976, 70 pessoas desapareceram ou morreram na<br />

Oban e no DOI-CODI/SP. Um relatório de estatísticas do DOI-CODI/SP, de dezembro de 1974,<br />

registra que até essa data 50 pessoas haviam sido mortas nessas instalações. No entanto, o Quadro<br />

Geral de Mortos e Desaparecidos da <strong>CNV</strong> indica que até 1974 morreram ou desapareceram 58<br />

militantes no DOI-CODI/SP, sem considerar os casos vinculados à Oban, número superior àquele<br />

indicado no relatório do órgão.<br />

148. O período que concentrou maior número de crimes promovidos nas dependências do DOI-<br />

CODI do II Exército foi entre 1971 e 1974, com 55 vítimas, entre mortos e desaparecidos políticos. Durante<br />

151


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

a maior parte desse período, o órgão foi comandado pelo coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, que atuou<br />

no DOI de 29 de setembro de 1970 a 23 de janeiro de 1974. As arbitrariedades das ações realizadas pelo<br />

DOI-CODI/II Exército atingiam também os familiares de militantes, que não apenas ficavam sem informações<br />

sobre os parentes presos, como também sofriam medidas sem nenhum amparo legal:<br />

Exemplos de casos reais:<br />

Prisão de Márcia Aparecida do Amaral (Lila) em seu aparelho residência.<br />

Através de investigações, a Seção de Informações e Análise do DOI-CODI/II Exército<br />

localizou o aparelho residência de Márcia.<br />

Existiam duas linhas de ação para prendê-la:<br />

À noite, em sua residência; neste caso sua família tomaria conhecimento de sua<br />

prisão;<br />

Na manhã do dia seguinte, quando a mesma se dirigisse para a universidade, onde<br />

cursava o segundo ano de Medicina.<br />

Optou-se pela primeira linha de ação, pois assim a turma de interrogatório teria toda<br />

a noite para interrogá-la [...].<br />

Um agente do DOI, parecendo um playboy, chegou só, com um carro Corcel e com<br />

o rádio ligado a todo volume [...]. Disse que era colega de faculdade de Márcia [...].<br />

Quando Márcia chegou à porta da casa foi presa e encaminhada ao DOI para o<br />

interrogatório. Interrogada, constatou-se que na manhã do dia seguinte teria ponto<br />

com um cubano. Os familiares de Márcia foram impedidos de sair de casa e o telefone<br />

da família foi desligado. 92<br />

149. Em algumas operações, agentes do DOPS/SP coordenaram ações com o DOI-CODI/SP,<br />

como aconteceu no caso de Alceri Maria Gomes da Silva, da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR), e de<br />

Antônio dos Três Reis de Oliveira, da Ação Libertadora Nacional (ALN) (segundo versão oficial, mortos em<br />

tiroteio em 17 de maio de 1970); José Maria Ferreira de Araújo, da VPR (desaparecido em 23 de setembro<br />

de 1970); e Hiroaki Torigoe, do Molipo (desaparecido em 5 de maio de 1972). Muitas dessas ações foram<br />

dirigidas pelos delegados Sérgio Paranhos Fleury, Alcides Cintra Bueno Filho e Alcides Singillo; e ainda<br />

pelo investigador de polícia Carlos Alberto Augusto, conhecido como Carlos Metralha e vinculado a Fleury.<br />

150. Os centros clandestinos de prisão, tortura e morte do DOI-CODI/II Exército eram<br />

do conhecimento dos escalões superiores. Marival Chaves Dias do Canto, ex-sargento que trabalhou<br />

na Seção de Informações e de Análise do DOI-CODI/II Exército, em depoimento à <strong>CNV</strong> citou o<br />

centro clandestino de torturas e execuções conhecido como Fazenda 31 de Março. 93 Seu proprietário,<br />

Joaquim Rodrigues Fagundes, dono da Transportes Rimet, no bairro da Mooca, era muito amigo de<br />

Dalmo Cirilo. Lá, segundo Marival, foram mortos Antônio Carlos Bicalho Lana e Sônia Maria Lopes<br />

de Moraes Angel Jones, após diligências do DOI no litoral paulista.<br />

152


151. O centro clandestino da estrada de Itapevi ficava numa antiga boate chamada Querosene.<br />

Seu proprietário era um irmão de Carlos Setembrino – suboficial da Seção de Busca e Apreensão.<br />

Marival disse também que uma casa no bairro do Ipiranga foi utilizada como centro clandestino. Lá<br />

teria estado Severino Teodoro de Melo. E foi fotografado, quando recebia dinheiro de alguém fardado.<br />

Um sítio às margens da rodovia Castelo Branco também teria sido utilizado como centro clandestino<br />

pelo DOI-CODI/II Exército. Marival chegou a localizar esse sítio – Araçariguama −, em companhia<br />

de Amauri Ribeiro Júnior (repórter da revista IstoÉ).<br />

4) DOI-CODI do I Exército, Rio de Janeiro (RJ)<br />

152. O CODI do Rio de Janeiro foi instalado no quartel da Polícia do Exército, na rua<br />

Barão de Mesquita, Rio de Janeiro (RJ), em 1970, com a função de coordenar ações de defesa relativas<br />

à área de atuação do I Exército. No ano seguinte, criou-se o DOI, nas mesmas dependências, para<br />

atuar no combate à oposição política. A estrutura formada pelo DOI-CODI centralizou funções de<br />

coordenação e execução de ações de repressão contra indivíduos e organizações opositoras do regime.<br />

Em termos de hierarquia, o órgão respondia ao comando do I Exército, regido por Syseno Sarmento,<br />

de 1969 a maio de 1971, e sucedido por Sílvio Frota até março de 1974.<br />

153. Antonio Roberto Espinosa, jornalista e militante da Vanguarda Armada Revolucionária<br />

Palmares (VAR-Palmares), preso em 1969, reflete sobre o processo de reestruturação pelo qual as unidades<br />

militares passaram a partir da década de 1970, com a finalidade de se transformarem em órgãos<br />

mistos, os denominados DOI-CODI:<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

O que que era essa unidade militar Eu depois de muito pensar e fazer algumas<br />

pesquisas cheguei à conclusão de que era um momento em que a repressão estava<br />

se organizando. Que ela não sabia, ainda, como fazer para obter uma maior<br />

eficácia. Em 1969, já tinha surgido em São Paulo a Operação Bandeirante, ainda<br />

não existia o DOI-CODI. No final do ano começa a surgir o DOI-CODI. No<br />

DOI-CODI eles centralizam a repressão. Aqui no Rio de Janeiro acabou sendo<br />

centralizada na Barão de Mesquita, pelo menos essa fase inicial. Nesse momento<br />

aqui no Rio eles estavam fazendo uma especialização por organizações. Deve ter<br />

durado um ou dois meses, essa experiência. E a VAR-Palmares era o lugar pra<br />

onde a PE [Polícia do Exército] da Vila Militar, era o lugar pra onde eram levados<br />

os militantes da VAR-Palmares presos. Então, o DOPS prendeu, mas na mesma<br />

madrugada nós fomos levados para a PE. A PE também prendia, eu falo isso por<br />

ouvir dizer, porque eu passaria lá 29 dias. [...] Nesse momento que nós passamos<br />

por lá, eles estavam especializados em VAR-Palmares. 94<br />

154. No tocante às várias denúncias de graves violações de direitos humanos ocorridas no<br />

DOI-CODI/I Exército, é exemplificador o relato da historiadora Dulce Chaves Pandolfi, ex-militante<br />

da Ação Libertadora Nacional (ALN), segundo o qual<br />

durante os mais de três meses que fiquei no DOI-CODI, fui submetida em diversos<br />

momentos a diversos tipos de tortura. Umas mais simples como socos e<br />

153


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

pontapés. Outras mais grotescas como ter um jacaré andando sobre meu corpo<br />

nu. Recebi muito choque elétrico e fiquei muito tempo pendurada no chamado<br />

pau de arara. [...] servi de cobaia para uma aula de tortura. O professor, diante de<br />

seus alunos, fazia demonstrações com meu corpo. 95<br />

155. O caso da morte do deputado Rubens Beyrodt Paiva nas dependências do DOI-CODI/I<br />

Exército proporcionou ampla repercussão sobre as constantes violações de direitos humanos cometidas<br />

nos destacamentos mistos em questão. Segundo testemunho à <strong>CNV</strong> do coronel Ronald Leão, falecido<br />

em novembro de 2013, Rubens Paiva foi recebido no DOI do I Exército pelos agentes do Centro de<br />

Informações do Exército (CIE) Freddie Perdigão Pereira e Rubens Paim Sampaio. Logo após a recepção<br />

no DOI, Rubens Paiva e Cecília Viveiros de Castro, bem como Marilene de Lima Corona, detida<br />

com Cecília no aeroporto do Galeão, passam a ser interrogados sob tortura por agentes do DOI e do<br />

CIE, um deles identificado por Cecília como sendo “um oficial loiro de olhos azuis”. 96<br />

156. Testemunha ocular das torturas sofridas por Rubens Paiva no DOI do I Exército na<br />

tarde de 21 de janeiro, denominado como “Agente Y”, afirma que após ver a cena foi com o capitão<br />

Ronald Leão à sala do então major Belham, comandante do DOI-CODI/I Exército, a fim de alertá-lo<br />

que o preso não sobreviveria à continuidade das torturas que lhe eram infligidas pelo “agente loiro e<br />

alto” de nome “Hugh, Huges, Hughes”. 97 Investigações da <strong>CNV</strong> identificaram quem seria o agente<br />

Hughes, cujo nome completo é Antônio Fernando Hughes de Carvalho, interrogador do DOI-CODI<br />

à época do desaparecimento de Rubens Paiva. Em 24 de fevereiro de 2014, o “Agente Y” reconhece foto<br />

de Antônio Fernando Hughes de Carvalho, apresentada pela <strong>CNV</strong>, como sendo do agente Hughes. 98<br />

5) Outros DOI-CODI<br />

(a) O DOI-CODI do IV Exército, em Recife (PE)<br />

157. Localizava-se na rua do Riachuelo, no bairro de Boa Vista, na região central da cidade,<br />

ao lado do Hospital Geral do antigo quartel do IV Exército. No destacamento existia um comandante<br />

– capitão, major ou tenente-coronel – e uma seção de análise de documentos e de informações. 99<br />

Além de militares das Forças Armadas, havia agentes da Polícia Federal, da Polícia Civil e da Polícia<br />

Militar. O DOI executava ações junto com o Centro de Informações do Exército (CIE), e seus agentes<br />

realizavam interrogatórios e expediam informações para os outros órgãos da segurança pública. Após<br />

os interrogatórios os presos deveriam ser entregues à Polícia Federal. 100<br />

158. Entre os agentes que exerceram função de chefia do DOI-CODI do IV Exército estão: o<br />

tenente-coronel Hiran Gomes Cavalcanti; o major da Artilharia do Exército Augusto Fernandes Maia;<br />

o coronel do Exército Antônio Cúrcio Neto; e Confúcio Danton de Paula Avelino, na época coronel.<br />

Este atuou de setembro de 1971 a agosto de 1972 em funções de chefia e comando do DOI-CODI<br />

do IV Exército, em Recife (PE). Confúcio Danton se destacou em ações da repressão política em São<br />

Paulo e, posteriormente, no Nordeste, sobretudo na desarticulação do Partido Comunista Brasileiro<br />

Revolucionário (PCBR). À época de sua atuação no DOI-CODI do IV Exército, ocorreram as mortes<br />

de João Mendes Araújo (1972), Miriam Lopes Verbena (1972), Luís Alberto Andrade de Sá e Benevides<br />

(1972) e os desaparecimentos de Mariano Joaquim da Silva (1971) e Ezequias Bezerra da Rocha (1972).<br />

154


159. O coronel Antônio Cúrcio Neto assumiu em 16 de abril de 1973 a função de chefe da<br />

2 a Seção de Informações do Estado-Maior do IV Exército, em que permaneceu até meados de maio de<br />

1974. José Nivaldo Júnior apontou o agente em questão como responsável por seu sequestro em Recife,<br />

em agosto de 1973. Nas cópias das folhas de alterações de Antônio Cúrcio Neto entregues à <strong>CNV</strong> estão<br />

faltando as folhas do segundo semestre de 1973, justamente o período em que foram mortos sob tortura,<br />

no DOI-CODI de Recife, os seguintes presos políticos: Manoel Aleixo da Silva, Emmanuel Bezerra<br />

dos Santos, Manoel Lisboa de Moura, Gildo Macedo Lacerda e João Carlos Novaes da Mata Machado.<br />

160. O major de Artilharia do Exército Augusto Fernandes Maia, assumiu a função de<br />

Adjunto da 2ª Seção do Estado-Maior do IV Exército em Pernambuco em maio de 1973 e permaneceu<br />

em funções de comando no DOI do IV Exército até agosto de 1978. Em 23/12/1974 foi publicado<br />

elogio a ele feito pelo tenente-coronel José Renato Leite, Chefe da 2 a Seção do Estado-Maior do IV<br />

Exército: “Como Chefe do DOI (...), tem prestado bons serviços à 2 a Seção na repressão e combate<br />

à subversão em toda a área do IV Ex.” 101 . Em 31 de março de 1977, outro elogio ao major Augusto<br />

Fernandes Maia foi publicado, desta vez pelo coronel Ney Armando de Mello Meziat, Chefe da 2 a<br />

Seção do Estado-Maior do IV Exército:<br />

Ao ensejo de sua transferência para a 3ª Seção, é dever de justiça destacar a atuação<br />

do tenente-coronel Maia na 2ª Seção, ao longo de quase quatro anos. Desembaraçado,<br />

sério e discreto, além de adjunto da seção, foi comandante do DOI<br />

durante cerca de nove meses, ocasião em que pôde demonstrar sua serenidade,<br />

coragem, desprendimento e capacidade de comando (...) realizando muitas operações<br />

importantes no combate à subversão. 102<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

No comando do major Augusto Fernandes Maia no DOI do IV Exército, no ano de 1974,<br />

ocorreu o desaparecimento de Ruy Frazão Soares, em Petrolina. Fernandes Maia é ainda citado, juntamente<br />

com o coronel Ney Armando de Mello Meziat, como responsável pela tortura do missionário<br />

Frederick Morris, na dependências do DOI do IV Exército, em 1974.<br />

(b) DOI-CODI da 4 a Divisão de Exército, em Belo Horizonte (MG)<br />

161. As Zonas de Defesa Interna (ZDI) nas quais se instalaram os CODI, seguindo o desenho<br />

das áreas de jurisdição dos comandos de Exército, subdividiam-se em Áreas de Defesa Interna<br />

(ADI) e Subáreas de Defesa Interna (SADI). A repressão política em Minas Gerais foi levada a efeito<br />

pelos órgãos de segurança do estado e coordenada pelo I Exército, com comando no Rio de Janeiro.<br />

Em 21 de janeiro de 1971, foi instalado, no quartel-general da 4 a Divisão de Infantaria, o DOI-CODI<br />

em Belo Horizonte, de acordo com a nota de serviço n o 1. A nota estabelecia a união do Exército e<br />

de outras forças de segurança no esforço de “defesa interna” na Subárea da ID/4, de Belo Horizonte.<br />

Os comandantes de cada subárea tinham à sua disposição unidades do Exército presentes na área, da<br />

Polícia Militar, do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS), da Polícia Federal, do Corpo<br />

de Bombeiros e das forças de segurança que dispusessem de órgãos de operações e informações.<br />

162. O DOI-CODI de Belo Horizonte funcionou no terceiro andar do Departamento de<br />

Ordem Política e Social (DOPS), localizado à avenida Afonso Pena, n o 2.351, bairro Funcionários. As<br />

carceragens do próprio DOPS e das penitenciárias do estado eram utilizadas por esse órgão. No que<br />

155


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

se refere à ocorrência de graves violações de direitos humanos no local entre os anos 1971 e 1976, é<br />

elucidativo o auto de qualificação e interrogatório de Ana Lúcia Penna, professora primária e militante<br />

da Ação Popular Marxista-Leninista (APML), constante no Superior Tribunal Militar, segundo o qual<br />

no dia 27 de dezembro [de 1972] foi levada para o DOI [sic] que funciona no<br />

terceiro andar do DOPS e lá após ter sido despida na frente de vários homens viuse<br />

espancada com tapas no rosto e ameaçada de sofrer torturas físicas através de<br />

choques elétricos. 103<br />

(c) DOI-CODI do III Exército, Porto Alegre (RS)<br />

163. Em 1969, foi criada em Porto Alegre a Divisão Central de Informações (DCI), com a<br />

missão de centralizar as ações de combate a grupos insurgentes. O primeiro diretor da DCI foi o então<br />

major Áttila Rohrsetzer, e o órgão era subordinado ao secretário de Segurança Pública do Rio Grande do<br />

Sul. Na DCI, as funções de chefia eram exercidas por delegados de polícia e policiais militares. A DCI só<br />

fazia análise e informações − os interrogatórios e as ações de combate eram executados pelo DOPS-RS.<br />

164. Enquanto em outros estados, ao longo de 1970 e 1971, foram implantados DOI-CODI,<br />

em Porto Alegre, a DCI continuou responsável pelas ações de combate a grupos de militantes, atuando<br />

em uma rede de colaboração que envolvia o III Exército, os secretários de Segurança, o diretor da DCI<br />

e o diretor do DOPS-RS. Toda informação ou acontecimento relevante chegava, imediatamente, ao<br />

conhecimento do III Exército. No Setor de Operações, o delegado Pedro Carlos Seelig, responsável<br />

pelas prisões e pelos interrogatórios, chefiava uma equipe que trabalhava em consonância com as<br />

diretrizes do III Exército. Somente em 1974 a estrutura da DCI foi substituída pelo DOI-CODI do<br />

III Exército, este tendo como comandante o tenente-coronel da artilharia João Oswaldo Leivas Job. 104<br />

(d) DOI-CODI/ IV Exército/6 a Região Militar, em Salvador (BA)<br />

165. A principal operação desenvolvida pelo órgão foi a participação na Operação<br />

Pajussara, uma grande ofensiva, no segundo semestre de 1971, para localizar e eliminar Carlos<br />

Lamarca, àquela altura o inimigo número um da ditadura militar. O relatório da operação,<br />

documento da 2 a Seção do Quartel-General do IV Exército/6 a Região Militar, mostra que<br />

ela foi comandada pelo então major Nilton de Albuquerque Cerqueira, chefe da 2 a Seção do<br />

Estado-Maior da 6 a Região Militar e comandante do DOI de Salvador (BA). 105<br />

166. No relatório da Pajussara, há destaque ao papel desempenhado pelo DOI-CODI/<br />

IV Exército:<br />

O comando da operação ficou definido como sendo da 6 a Região Militar, por intermédio<br />

da central de informações do CODI/6. [...] Destaca-se a participação, em reforço<br />

ao DOI-CODI/6 das equipes do CIE, CISA, Cenimar, SSP-SP e, posteriormente,<br />

do CODI do II Exército, Polícia Militar da Guanabara e SSP da Guanabara. 106<br />

167. A atuação do DOI-CODI de Salvador foi relevante no cerco ao apartamento onde<br />

se encontrava Iara Iavelberg, no qual esta foi morta e foi presa a jovem Nilda Carvalho Cunha, de<br />

156


17 anos. Nilda, após sessões de tortura, teve problemas de saúde e morreu no final do ano de 1971.<br />

Sua mãe, Esmeraldina Carvalho Cunha, passou a denunciar a morte da filha nas ruas de Salvador,<br />

responsabilizando o Exército e as autoridades públicas pela tortura e morte da filha. Ela chegou a ser<br />

presa e levada à Secretaria de Segurança Pública, ocasião em que teria recebido, de um estranho, o<br />

seguinte recado: “O major [referência ao major Nilton Cerqueira] mandou avisar à senhora que, se<br />

não se calar, nós seremos obrigados a fazê-lo”. Em 20 de outubro de 1972, Esmeraldina foi encontrada<br />

morta, em casa, enforcada por um fio.<br />

(e) DOI-CODI da 5 a Região Militar, em Curitiba (PR)<br />

168. Seguindo o padrão de outros DOI-CODI, o órgão no Paraná atuava com a colaboração<br />

do DOPS/PR e da Secretaria de Segurança Pública do Paraná (SSP/PR), que envolvia operações conjuntas,<br />

fornecimento de documentação falsa e uso de dependências policiais para interrogatório. Em<br />

julho de 1975, o tenente-coronel Zuiderzee Nascimento Lins assumiu o comando do DOI-CODI/5 a<br />

RM. Nesse mesmo ano, sob seu comando, o DOI-CODI executou, em parceria com o DOPS/PR a<br />

Operação Marumbi, uma grande investida contra militantes e simpatizantes do PCB no Paraná, na<br />

qual foram presas mais de 100 pessoas, com 65 indiciados. Em Santa Catarina, com o mesmo propósito,<br />

foi desfechada a Operação Barriga Verde.<br />

169. Testemunhas apontam um local clandestino, chamado “Clínica Marumbi”, utilizado<br />

por policiais e oficiais do DOI-CODI para sessões de interrogatório e tortura. No âmbito da Operação<br />

Radar, contra o PCB, testemunhas apontaram que oficiais e agentes do DOI-CODI do II Exército<br />

(São Paulo) participaram de ações da Operação Marumbi. O tenente-coronel Zuiderzee Nascimento<br />

Lins deixou o comando do DOI-CODI/5 a RM em 5 de janeiro de 1978, para assumir função no SNI.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

C) Centros de Informações das Forças Armadas<br />

1. Centro de Informações do Exército (CIE)<br />

170. O Centro de Informações do Exército (CIE) foi criado em 2 de maio de 1967, pelo<br />

Decreto n o 60.664, no governo do presidente Costa e Silva (1967-69), subordinado diretamente ao<br />

gabinete do ministro do Exército. Ao CIE cabia orientar, coordenar e supervisionar todas as atividades<br />

de segurança interna e contrainformações, concorrendo com a 2 a seção do Estado-Maior, também<br />

encarregada dessas atividades.<br />

171. O primeiro diretor do CIE foi o então coronel Adyr Fiúza de Castro. No governo<br />

do general Médici, o CIE era comandado pelo coronel Milton Tavares de Souza. O CIE foi o<br />

principal órgão de repressão das Forças Armadas. Diante de um Exército envolvido na política,<br />

o controle das informações passava a ter importância estratégica, assim como a prerrogativa das<br />

Forças Armadas de ter o controle da segurança interna, que a tornava um ostensivo instrumento<br />

de repressão política.<br />

172. Especializou-se em infiltrar militares nas organizações estudantis e sindicais. Segundo<br />

Cyro Guedes Etchegoyen, chefe de contra-informações do CIE:<br />

157


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

Verificamos que o trabalho [de acabar com movimentos de oposição política] teria<br />

sucesso somente na base de infiltrações. Havia uma experiência policial nesse<br />

sentido, diferente, porque com outras finalidades e sempre lidando com marginais<br />

− eram os chamados “cachorros”. [...] Foi esse sistema que, evoluindo, destruiu<br />

as organizações subversivas. [...] A mudança encontrou dificuldades, mas<br />

passamos a formar o pessoal, insistindo na inteligência do trabalho. Foi essa evolução,<br />

de certo modo rápida, que acabou com eles. Não foi a queda do Lamarca<br />

que acelerou o processo de decomposição das esquerdas revolucionárias. Quando<br />

isso ocorreu, ele não mais pertencia à VPR [Vanguarda Popular Revolucionária],<br />

organização já em extinção. Nessa fase, chegamos a ter muitos infiltrados no<br />

MR-8 e no PCB. Aí está a verdade sobre o nosso sucesso na neutralização das<br />

organizações de esquerda. E eles sabem disso. 107<br />

173. O CIE comandou algumas das principais operações de repressão política, como a chacina<br />

do grupo de Onofre Pinto, da VPR, conhecida como Chacina do Parque Nacional do Iguaçu,<br />

em julho de 1974, ou a Operação Radar (1973-75), montada para a perseguição e eliminação de<br />

dirigentes e militantes do Partido Comunista Brasileiro (PCB), em colaboração com os DOI-CODI,<br />

especialmente o DOI-CODI/II Exército. O CIE manteve também centros clandestinos de tortura<br />

e execução de presos políticos, como a chamada Casa da Morte, de Petrópolis. Nesse centro, o CIE<br />

atuava em coordenação com os DOI-CODI, retirando presos de suas dependências, alguns de outros<br />

estados, e levando para Petrópolis. Os destinos de vários desaparecidos políticos estão ligados a esse<br />

centro clandestino do CIE.<br />

174. Oficiais do CIE já haviam reconhecido o uso do local para interrogatórios. Em entrevista<br />

ao CPDOC, Adyr Fiúza de Castro, chefe do CIE de 1967 a 1969, declarou que<br />

Adyr Fiúza de Castro: [...] o CIE tinha autonomia para trabalhar em qualquer lugar<br />

do Brasil. Eles tinham aparelhos especiais, não oficiais, fora das unidades do I Exército,<br />

para interrogatórios. [...] Como a Casa de Petrópolis.<br />

Entrevistador: Aparelhos como a Casa de Petrópolis<br />

Adyr Fiúza de Castro: Como a Casa de Petrópolis. [...] Mas não me pergunte quais<br />

são as casas do CIE porque eles nunca me contaram. Quando eu era chefe do CIE,<br />

não tinha necessidade disso, porque não havia começado ainda a luta mais aguda,<br />

eu saí em 1969. 108<br />

175. O próprio ex-presidente general Ernesto Geisel, em depoimento em 1994, referiu-se à<br />

Casa de Petrópolis como “dependência do CIE”. 109<br />

2. Centro de Informações da Marinha (Cenimar)<br />

176. Criado em 21 de novembro de 1957 pelo Decreto n o 42.688, o Cenimar é o mais antigo<br />

dos órgãos de inteligência das Forças Armadas. Subordinado ao Estado-Maior da Armada, era com-<br />

158


posto por um diretor (capitão de Mar e Guerra) e um vice-diretor (capitão de Fragata), e estruturava-se<br />

inicialmente em três divisões: Busca, Registro e Seleção, e Serviços Gerais, onde cada encarregado de<br />

divisão, o responsável pela área, deveria ser capitão de corveta.<br />

177. Nos primeiros anos do regime militar, o Cenimar focou seus esforços em questões<br />

internas da própria Marinha. Com o recrudescimento da luta armada pela esquerda, o centro recebeu<br />

a incumbência de combater a chamada subversão, como definido pelo Decreto n o 68.447, de 30 de<br />

março de 1971, que o reestruturou. Pela nova organização interna, o diretor era um oficial-general da<br />

ativa pertencente ao Corpo da Armada, e seu vice, um capitão de Mar e Guerra, admitindo também<br />

em seu quadro de pessoal funcionários civis.<br />

178. Na prática, isso significou que o Cenimar ficou responsável por centralizar a produção<br />

de informações dentro da Marinha, limitando, dessa forma, a atuação das 2 as Seções, setores tradicionalmente<br />

responsáveis pela coleta de informações do Estado-Maior da Armada.<br />

179. Além disso, o centro mantinha agentes infiltrados em organizações de oposição ao<br />

regime militar, permitindo ao órgão conhecer a organização, estrutura e doutrina das principais organizações<br />

de esquerda em atuação no período, como fica evidenciado no dossiê “Ação subversiva no<br />

Brasil”, de maio de 1972, que fazia uma análise detalhada das organizações de esquerda. A partir de<br />

1971, quando ocorreu um afastamento entre o comando do DOI-CODI de São Paulo e o delegado<br />

Sérgio Paranhos Fleury (do DOPS/SP), o Cenimar passou a utilizar os serviços do delegado e de sua<br />

equipe em várias operações, como na prisão de Bacuri, ou no controle de um dos mais conhecidos<br />

infiltrados, José Anselmo dos Santos, o cabo Anselmo.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

180. Depoimentos de militantes à <strong>CNV</strong> revelaram torturas e sevícias em bases da Marinha.<br />

Um conhecido centro de tortura do Cenimar ficava na Base Naval de Ilha das Flores, no município<br />

de São Gonçalo (RJ). Cerca de 200 pessoas foram presas no local entre 1969 e 1971. A <strong>CNV</strong> realizou<br />

diligência no local, quando ex-presos relataram o uso de “pau de arara”, choques, “telefone” (tapa violento<br />

com as mãos abertas simultaneamente nas orelhas da vítima) e palmatória. As mulheres relataram<br />

também o uso de toalhas molhadas, e abusos e ameaças sexuais. O ex-soldado do corpo de fuzileiros<br />

navais Heleno Cruz, que trabalhou na ilha das Flores de junho de 1970 a junho de 1971, no transporte<br />

e carceragem de presos, afirmou que os praças e demais militares que serviam na Ilha das Flores eram<br />

colocados à parte e não tinham acesso às sessões de tortura, conduzidas por oficiais do Cenimar, que<br />

contavam também com agentes cedidos pela Polícia Federal e pelo DOPS do Rio.<br />

181. Em 1986, já no governo do presidente José Sarney, o Cenimar mudou a sigla para CIM,<br />

mantendo o mesmo nome.<br />

3. Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA)<br />

182. O Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica (CISA) foi criado em abril de<br />

1970, em substituição ao Núcleo do Serviço de Informações de Segurança da Aeronáutica (NuSISA). 110<br />

O CISA herdou o acervo do NuSISA, o arquivo da extinta 2 a Seção do Gabinete do Ministro da<br />

Aeronáutica e parte dos documentos produzidos pela 2 a Seção do Estado-Maior da Aeronáutica.<br />

159


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

Com sede no então estado da Guanabara, o CISA foi criado como órgão de direção do Serviço de<br />

Informações de Segurança da Aeronáutica (SISA), com funções normativas e de assessoramento do<br />

Ministério da Aeronáutica, subordinado diretamente ao ministro de Estado. O CISA tinha como<br />

finalidade supervisionar, orientar e coordenar, no âmbito do Ministério da Aeronáutica, as atividades<br />

de informações, segurança e contrainformações de interesse da segurança nacional. 111<br />

183. O CISA era estruturado em Chefia, Divisões, Seções e Agências. Seu chefe era escolhido<br />

entre os oficiais-generais do quadro de oficiais aviadores da ativa, do posto de brigadeiro. Os oficiais que<br />

participaram do órgão tiveram formação em informações e contrainformações no exterior, na School of the<br />

Americas, no Fort Gulick, base das Forças Armadas dos Estados Unidos no Panamá, e também no Brasil, na<br />

Escola Superior de Guerra (ESG) e na Escola Nacional de Informações (EsNI), esta última ligada ao SNI. 112<br />

184. Anteriormente, a produção de documentos de informações no âmbito do então<br />

Ministério da Aeronáutica havia ficado, a partir do golpe de 1964, a cargo do Serviço de Informações<br />

da Aeronáutica, criado pelo Decreto n o 63.005, de 17 de julho de 1968. Esse serviço seguiu os modelos<br />

do Centro de Informações do Exército (CIE) e do Centro de Informações da Marinha (Cenimar),<br />

anteriormente organizados, orientando suas atividades técnicas a partir da implantação do Núcleo<br />

do Serviço de Informações de Segurança da Aeronáutica (NuSISA). O Serviço de Informações da<br />

Aeronáutica foi extinto pelo Decreto n o 64.056, de 3 de fevereiro de 1969, que criou o Serviço de<br />

Informações de Segurança da Aeronáutica (SISA).<br />

185. Em 1971, o CISA foi transferido para Brasília, mas o Escalão Recuado do CISA (Recisa)<br />

foi mantido na cidade do Rio de Janeiro, uma vez que o foco das atenções políticas ainda se encontrava<br />

no eixo Rio-São Paulo. Coube ao CISA, além de outras atribuições: propor ao ministro da<br />

Aeronáutica a fixação de normas e procedimentos para as atividades de informações de segurança e<br />

contrainformações, e também para a seleção, treinamento e aperfeiçoamento de pessoal especializado<br />

nessas atividades; orientar, coordenar e supervisionar todas as atividades de informações e segurança<br />

e de contrainformações no âmbito do Sistema de Informações da Aeronáutica; produzir e difundir<br />

informações internas e de segurança interna no Sistema de Informações da Aeronáutica; como participante<br />

do Sistema Nacional de Informações (Sisni), produzir e difundir informações, conforme o<br />

estabelecido no Plano Nacional de Informações. O Decreto n o 85.428, de 27 de novembro de 1980,<br />

alterou sua denominação para Centro de Informações da Aeronáutica, mantendo, contudo, a mesma<br />

sigla CISA. Em 13 de janeiro de 1988, o órgão foi extinto pelo Decreto n o 95.638.<br />

186. Algumas das operações mais conhecidas do CISA ocorreram sob a chefia do então brigadeiro<br />

João Paulo Moreira Burnier, que atuava na região do 3 o Comando Aéreo, no Rio de Janeiro. Foi lá<br />

que ocorreu a morte sob tortura de Stuart Edgar Angel Jones, em maio de 1971. Em carta escrita pela mãe<br />

de Stuart, Zuzu Angel, à Anistia Internacional, datada de 22 de fevereiro de 1975, ela apontou, entre os<br />

responsáveis pela morte do filho, os seguintes oficiais do CISA: o capitão intendente Lúcio Valle Barroso, o<br />

dr. Celso; o major-aviador Jorge Correia; o tenente-coronel aviador Ferdinando Muniz de Farias; o brigadeiro-do-ar<br />

João Paulo Moreira Burnier; e o brigadeiro-do-ar Carlos Alberto Dellamora, então chefe do CISA.<br />

187. Também em 1971, entre agosto e setembro, o CISA participou ativamente da Operação<br />

Pajussara, cujo objetivo era localizar e eliminar o capitão Carlos Lamarca e seu grupo, no interior da<br />

Bahia. O CISA foi extinto em 1988, substituído pela Secretaria de Inteligência da Aeronáutica (Secint).<br />

160


4. Centro de Informações do Exterior do Ministério das Relações Exteriores (Ciex)<br />

188. O Centro de Informações do Exterior do Ministério das Relações Exteriores (Ciex) foi<br />

criado em 1966 e funcionou até a década de 1980, quando suas funções foram absorvidas pela Divisão<br />

de Segurança e Informações (DSI) do Ministério das Relações Exteriores (DSI-MRE). Inspirado no<br />

modelo britânico de serviço secreto, o Ciex jamais teve existência formal. No organograma do MRE,<br />

abrigou-se sucessivamente sob as denominações de Assessoria de Documentação de Política Exterior<br />

(Adoc) e de Secretaria de Documentação de Política Exterior (Sedoc). De início, esteve vinculado à<br />

secretaria-geral, posteriormente ao gabinete do ministro de Estado das Relações Exteriores.<br />

189. O documento “Criação do Serviço de Informações no Exterior”, de 12 de julho de 1967,<br />

traz a melhor síntese conhecida sobre o papel do Ciex. Segundo o autor, que se oculta sob o pseudônimo<br />

“Armando”, era necessário criar um órgão de informações, no âmbito do MRE, para monitorar as<br />

“ações subversivas” de brasileiros no exterior. Como a produção de informações acontecia, em muitos<br />

casos, clandestinamente, estava fora do campo de atuação tradicional do serviço diplomático. Além<br />

disso, um serviço específico de informações garantiria a especialização necessária para o relacionamento<br />

com os serviços de informações estrangeiros, especialmente os de países aliados.<br />

190. Os principais focos de atuação do Ciex foram os países do Cone Sul da América Latina,<br />

nomeadamente o Uruguai, a Argentina e o Chile, onde houve grande número de exilados. Na Europa,<br />

o Ciex teve bases em Paris, Lisboa e em capitais de países comunistas, como Moscou e Praga. Na década<br />

de 1980, acompanhando as novas orientações do Sistema Nacional de Informações (Sisni), o órgão<br />

mudou de foco, privilegiando as análises de conjuntura em detrimento das atividades individuais.<br />

O Ciex é tratado em pormenor no capítulo 5 deste Relatório.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

D) Os Departamentos Estaduais de Ordem Política e Social (DOPS)<br />

191. De todos os Departamentos de Ordem Política e Social do país, nenhum foi mais<br />

atuante que o DOPS de São Paulo (DOPS/SP), e é certo que o cenário desse DOPS se reproduz,<br />

trocando situações e atores, nos demais estados. A ideia de uma força policial como essa começa,<br />

no estado, ainda na década de 1910, por ser já grande a preocupação dos governantes com a questão<br />

social. O anarquismo, o sindicalismo e, desde 1917, o espectro do comunismo assustavam as elites,<br />

e passaram a ser considerados problemas da polícia. Trata-se, no caso, da mais antiga polícia política,<br />

criada com a Lei estadual n o 2.034/1924 e regulamentada pelo Decreto n o 4.405-A/1928. Na<br />

época, o presidente da República era Artur Bernardes, que governou sob estado de sítio os quatro<br />

anos de seu mandato, e Carlos de Campos era governador de São Paulo. Anteriormente Delegacia<br />

de Ordem Política e Social, seu nome foi alterado para Departamento Estadual de Ordem Política<br />

e Social (DOPS/SP ou Deops) em 1975.<br />

192. Sob uma visão financeira, quem mais lucrou com a criação do DOPS foi o empresariado,<br />

que, até o surgimento desse braço da polícia política, era obrigado a manter a suas expensas um caro<br />

arquivo com os nomes dos ativistas de questões sociais. O Centro de Indústrias de Fiação e Tecelagem<br />

comemorou a criação da delegacia com este anúncio: “Agora a Delegacia de Ordem Política e Social<br />

está identificando todo o operariado de São Paulo – da capital e do interior. Dentro de algum tempo<br />

161


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

o Centro passará a fornecer uma ficha completa dos indesejáveis – arquivo em que haverá o nome do<br />

delinquente, sua filiação, estado civil, impressão do polegar e fotografia”.<br />

193. Com o correr dos anos, além do aparato burocrático usual em toda repartição<br />

policial – gabinete do delegado (depois diretor), cartório e seção de expediente –, o DOPS/SP<br />

dividiu-se em quatro delegacias. Duas principais: Delegacia de Ordem Política (para investigar<br />

atentados contra a ordem política e social, sindicatos, movimentos sociais, greves); e Delegacia de<br />

Ordem Social (para investigar eleições e partidos políticos); e duas de menor expressão: Delegacia<br />

de Fiscalização de Explosivos, Armas e Munições e Delegacia de Estrangeiros, além de um Serviço<br />

Reservado (que, depois, passou a chamar-se Serviço Secreto), e um Arquivo Geral (boa parte dele,<br />

hoje, em poder do Arquivo do Estado de São Paulo), na prática a mais importante atividade da<br />

instituição – que, além de arquivar e organizar os prontuários das delegacias, ainda expedia atestados<br />

de antecedentes e certidões.<br />

194. No Estado Novo, o órgão participou da repressão à dissidência política e da perseguição<br />

a espiões alemães. 113 O DOPS/SP era o setor policial encarregado, em São Paulo, da repressão<br />

política, apesar de subordinado ao Departamento Federal de Segurança Pública (DFSP), órgão do<br />

Ministério da Justiça. Após a redemocratização (1946), ganhou ainda maior importância, deixando de<br />

ser uma simples delegacia para transformar-se no Departamento de Ordem Política e Social (Decreto-<br />

-Lei n o 14.854, de 1945), estruturado em cinco delegacias: de Explosivos, de Armas e Munições, de<br />

Estrangeiros, de Ordem Econômica, de Ordem Política, e de Ordem Social.<br />

195. Na década de 1950, as funções do órgão eram: dirigir os serviços policiais ligados à<br />

investigação, à prevenção e à repressão dos delitos de caráter político, social e econômico; fiscalizar<br />

importação, exportação, comércio, fabricação, emprego ou uso de armas, explosivos, inflamáveis, munições,<br />

produtos químicos agressivos ou corrosivos; fiscalizar a entrada, a permanência e a saída de<br />

estrangeiros do território nacional, a partir do estado de São Paulo. O DOPS/SP também comandava<br />

o presídio político, que funcionava em dois locais, na rua Paraíso e na avenida Celso Garcia, além de<br />

operar em outros dois setores, o Serviço Secreto e o Serviço Especial de Vigilância.<br />

196. Suas atribuições eram, na prática, tão amplas que lhe permitiam investigar mesmo<br />

outras forças policiais de São Paulo. Prova disso é o acompanhamento que fazia sobre militantes comunistas<br />

que trabalhavam na Força Pública (FP) e na Guarda Civil – até, pelo menos, 1964 –, com<br />

especial destaque para os que estavam sob a égide do Centro Social dos Soldados e Cabos e do Centro<br />

Social dos Sargentos. O começo desse trabalho foi em 27 de outubro de 1953, quando o DOPS/SP<br />

infiltrou um investigador em reunião de uma associação antimilitar da Força Pública conhecida como<br />

Clube dos Vigilantes. 114 11 anos depois, quando do golpe de 1964, relatórios sobre agitações na caserna<br />

continuavam chegando aos arquivos do DOPS/SP.<br />

197. Ponto importante dessa atuação é que, mesmo no período democrático, o órgão não<br />

se reportava somente ao Governo de São Paulo. Mantinha ligações, também, com a secretariageral<br />

do Conselho de Segurança Nacional, órgão ligado à Presidência da República. Foi localizado<br />

documento do conselho, enviado ao Serviço Secreto do DOPS/SP, discutindo a infiltração<br />

comunista na Força Pública por meio da criação do Centro Social dos Soldados e Cabos e do<br />

Centro Social dos Sargentos. 115<br />

162


198. Para os militares ligados ao golpe de 1964, o DOPS/SP era um instrumento valioso,<br />

por ter apoio da elite econômica, técnicos capazes de monitorar a dissidência política e o mais estruturado<br />

arquivo do país. Sem contar as relações que, durante anos, o governo de São Paulo e as Forças<br />

Armadas mantinham. Antes, havia já prestado serviços ao governo central – na República Velha e no<br />

período democrático que a sucedeu.<br />

199. A partir de 1964, passaram a destacar-se, no DOPS/SP, policiais com experiência<br />

em interrogatórios e tortura, e o órgão se especializou, também, no uso de informantes. Um exemplo<br />

dessa atuação foi na operação contra a realização do 30 o Congresso da União Nacional dos<br />

Estudantes (UNE), em Ibiúna (SP), em outubro de 1968. O delegado José Paulo Bonchristiano,<br />

que trabalhou no DOPS/SP entre 1964 e 1972, relata a existência de alunas de cursos universitários<br />

que começaram a comunicar certa movimentação de estudantes. Cita uma delas, sem especificar<br />

a identidade, conhecida no órgão como a “Maçã Dourada”, que forneceu informações sobre José<br />

Dirceu, importante liderança daquele congresso. Bonchristiano disse que o DOPS/SP tinha inúmeros<br />

outros informantes na mesma situação que a dela. Como contrapartida, recebiam dinheiro ou<br />

presentes. Em alguns casos, nem isso, apenas o direito de serem imediatamente liberados quando<br />

presos em manifestações ou atividades ligadas à militância. Sem contar que muitos eram informantes<br />

do DOPS/SP apenas para considerar-se espiões. Foi por meio desses informantes que o DOPS/<br />

SP soube da realização, do local e da data do congresso.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

200. Nesse ano de 1968, começou o inchaço do DOPS/SP, com o ingresso de numerosos delegados<br />

e investigadores no Departamento de Investigações sobre Crime Organizado – DEIC. Sérgio<br />

Fleury assumiu como delegado uma das delegacias do DOPS/SP, depois de um longo tempo como<br />

investigador. O DOPS/SP passou a trabalhar, no combate a militantes, de maneira muito semelhante<br />

à normalmente empregada contra criminosos comuns, e de forma diversa das Forças Armadas, que<br />

utilizavam modelos de repressão adotados nos Estados Unidos e na França. À época, Fleury afirmou a<br />

uma revista semanal que qualquer assalto a banco, fosse praticado com fins políticos ou por assaltantes,<br />

deveria ser investigado como um crime comum, utilizando-se os mesmos métodos. A revista, na<br />

mesma matéria, sem indicar fonte, transcreve declaração de um delegado do DOPS/SP:<br />

Quando a gente prende um malandro, ladrão ou assassino, enfim, um bandido,<br />

e a gente sabe que ele tem um companheiro, obrigamos o preso a nos levar até o<br />

barraco onde o outro mora. O bandido vai lá, bate na porta, o outro pergunta:<br />

“Quem é”, e o bandido responde: “Sou eu”. O camarada abre a porta e entram dez<br />

policiais junto com o bandido. 116<br />

201. Antes de 1964, a polícia tinha liberdade só para torturar criminosos habituais, desvalidos,<br />

pobres em geral − todos considerados, pelos governantes, cidadãos de segunda categoria.<br />

Esses não contavam com nenhuma espécie de proteção. Casos de tortura contra membros das classes<br />

médias sempre foram raros no Brasil. Após 1968, essa proteção social deixou de existir, com respaldo<br />

das Forças Armadas e conivência de parcela significativa da sociedade, de modo que a polícia deixou<br />

de preocupar-se com as consequências, mesmo quando usava métodos ilegais – sobretudo tortura. A<br />

prática era pouco utilizada, nas delegacias, também por outra razão: deixava sequelas, ou marcas físicas<br />

nos corpos. O método tradicional de tortura, no Brasil, sempre foi o pau de arara – que, nas delegacias,<br />

continuou sendo usado até pelo menos o início da década de 1990. Simultaneamente com o choque<br />

163


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

elétrico, era o método de trabalho preferido por nove em dez policiais, com cuidados, naturalmente,<br />

como o de cobrir os pulsos do preso, que era pendurado com pedaços de cobertor, para não deixar<br />

marcas das cordas com que era amarrado. 117<br />

202. O novo estilo de trabalho policial também deixou de lado outra regra não escrita,<br />

que era sufocar os gritos dos torturados. Em uma delegacia comum, sempre foi importante não<br />

revelar à vizinhança que havia tortura no local. Por isso se usavam panos enfiados na boca do<br />

preso, ao começo dos trabalhos, para que permanecesse em silêncio. O ex-preso político Marcos<br />

Arruda relata que foi submetido a sessões de tortura em 1970, enquanto uma radiola tocava, em<br />

alto volume, a música “Jesus Cristo”, sucesso daquele ano, de Roberto Carlos. A música alta foi<br />

colocada para que os vizinhos não ouvissem os gritos dos torturados. Marcos Arruda não pertencia<br />

a nenhuma organização de esquerda e foi preso apenas por ter ido encontrar uma dentista que era<br />

da Ação Libertadora Nacional (ALN). “Depois de nove meses fui solto. Eles torturavam pessoas<br />

próximas de nós para nos obrigar a falar. Não há tortura maior que essa”. 118 Mais tarde, essa regra<br />

foi atenuada. Tanto os presos do DOPS/SP como os que passaram pelo DOI-CODI paulista revelam<br />

que os interrogadores passaram a permitir que torturados gritassem o quanto podiam. Até<br />

incentivavam isso, para amedrontar os outros presos.<br />

203. O abuso da tortura em dissidentes políticos, como se fossem criminosos comuns, não<br />

foi a única inovação trazida pelos novos membros do DOPS/SP. Para identificar estudantes e/ou militantes<br />

que haviam caído na clandestinidade, os policiais passaram a procurar os militantes ausentes<br />

das atividades políticas e estudantis do dia a dia. A tática empregada era a de procurar os que faltavam,<br />

não aqueles que continuavam aparecendo e protestando pelas vias comuns.<br />

204. O melhor exemplo dessa nova doutrina pode ser visto no mais conhecido caso de atuação<br />

do DOPS/SP. Em 4 de novembro de 1969, uma equipe liderada pelos delegados Sérgio Fleury e<br />

Rubens Cardoso de Mello Tucunduva matou Carlos Marighella. No período que antecedeu sua morte,<br />

os agentes do DOPS/SP prenderam e torturaram numerosas pessoas. Seguindo a cartilha de Fleury,<br />

alguns falaram, permitindo que a polícia chegasse a muitos de seus companheiros. Entre os presos se<br />

encontravam dois frades dominicanos, presos no bairro do Catete, no Rio de Janeiro, três dias antes.<br />

Dali foram levados para o Cenimar. No prédio do Ministério da Marinha, Fleury esperava por eles.<br />

E foram torturados imediatamente, com choques elétricos e pau de arara. Por intermédio deles, a repressão<br />

soube como Marighella marcava seus encontros: que ligava para a livraria Duas Cidades, que<br />

usava, nas ligações, o codinome Ernesto. No dia seguinte, o delegado voltou para São Paulo, invadiu<br />

o convento de Perdizes e prendeu mais cinco frades.<br />

205. Essa operação é prova de que o sistema funcionava – uma vitória de Fleury, claro.<br />

Só que, ao mesmo tempo, criou um problema grande para o comando da repressão. E esse problema,<br />

no caso, é que Marighella foi morto numa operação desastrada, em que só policiais atiraram.<br />

Ainda assim, o delegado Tucunduva foi ferido e uma investigadora e um espectador morreram,<br />

demonstrando que o método era profissional, mas a parte operacional, amadora. Por outro lado,<br />

segundo versões levantadas por alguns entrevistados pela <strong>CNV</strong>, a ação provocou constrangimentos<br />

entre o DOPS/SP e o Exército, não pelas falhas operacionais, mas por Marighella ter morrido, já<br />

que setores importantes da repressão o queriam vivo, seja para interrogá-lo, seja para exibi-lo, nas<br />

televisões, como um troféu.<br />

164


206. A federalização de uma polícia política era algo que se buscava desde o início do Estado<br />

Novo. Voltou a ser discutida, em 1958, na II Conferência Nacional de Polícia, e só não foi institucionalizada,<br />

então, pela resistência de São Paulo – para quem o DOPS/SP já estava bem aparelhado.<br />

207. Segundo Mariana Joffily,<br />

até 1969, a repressão política coube essencialmente às Secretarias de Segurança Pública<br />

e aos DOPS de cada estado. Concomitantemente à criação da Operação Bandeirante,<br />

em junho de 1969, o controle operacional das polícias militares passou a ser centralizado<br />

pelo Ministério do Exército. Sua função de policiamento preventivo foi substituída<br />

pela de manutenção da segurança interna. Foi preciso, assim, que o DOPS/SP perdesse<br />

parcela de seu prestígio em detrimento da Operação Bandeirante. E que a iniciativa<br />

de criar um novo modelo repressivo partisse de São Paulo, com estreita colaboração<br />

das elites paulistas, para que a federalização da polícia política se concretizasse. 119<br />

208. O papel desempenhado pela Oban – que funcionava no mesmo local, o 36 o Distrito<br />

Policial de São Paulo – foi assumido pelo DOI-CODI/II Exército. A partir de então, o DOPS/SP<br />

deixaria de ser o principal executor da polícia repressiva em São Paulo, e sua atuação poderia ter se<br />

tornado mesmo supérflua, não fosse permanecer com: a) o controle do Instituto Médico Legal (IML):<br />

quando começou a aumentar o número de presos políticos mortos, era necessário validar tecnicamente<br />

os casos duvidosos, ao menos para aplacar a indignação da opinião pública. Esse órgão era o IML, comandado<br />

pela Polícia Civil; b) o cartório: era necessário manter uma burocracia policial que produzisse<br />

a formalização das prisões e os laudos periciais; tornou-se hábito, a partir daí, que os presos passassem<br />

a prestar depoimentos formais no DOPS/SP, mesmo já depois de terem sido interrogados e torturados<br />

pelos militares do DOI-CODI; e c) os contatos de Fleury: permanecia, no DOPS/SP, uma equipe que<br />

só obedecia a Fleury, e uma rede de informantes que só ele (e seu pessoal) conhecia – sem contar que<br />

o delegado tinha ligações estreitas com o Cenimar: não era um estranho nas Forças Armadas; isso o<br />

manteve na ativa muito além do que seria razoável, mesmo depois de ser transferido para o DEIC.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

209. Por meio de acordos com o Cenimar, a equipe de Fleury manteve controle sobre um<br />

dos mais importantes informantes do período, o cabo Anselmo, responsável por entregar militantes da<br />

Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). Ele levou o DOPS/SP a militantes que acabaram mortos<br />

no episódio que ficou conhecido como a Chacina da Granja de São Bento, na cidade de Paulista (PE),<br />

em 8 de janeiro de 1973.<br />

210. Essa íntima colaboração entre os dois órgãos já havia facilitado a prisão de Eduardo<br />

Collen Leite, o Bacuri, por policiais paulistas, no Rio de Janeiro, em agosto de 1970. Bacuri foi morto<br />

em um suposto tiroteio, em 8 de dezembro daquele ano. A versão inicial era de que havia sido preso<br />

por agentes do Cenimar e, depois, entregue ao DOPS/SP. No entanto, há referências de que a prisão<br />

teria sido feita pela própria equipe do delegado Fleury. À <strong>CNV</strong>, um dos agentes que participou desta<br />

ação, Josmar Bueno, o Joe, ex-boxeador e investigador de polícia que trabalhou no DOPS/SP, relatou<br />

que a equipe de Fleury procurava Bacuri por ele ter matado uma pessoa durante o roubo de um banco.<br />

As informações sobre seu paradeiro foram fornecidas pelo Cenimar. Participaram da prisão, além do<br />

próprio Fleury e de Joe, os policiais João Carlos Tralli, Henrique Perrone, José Guilherme Godinho<br />

Ferreira, o Sivuca e José Campos Correia Filho, o Campão.<br />

165


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

211. No local da campana, Joe recebeu sinal do agente do Cenimar. Quando Bacuri passava,<br />

deu-lhe um soco no queixo. Perrone e Tralli o pegaram, puseram-no dentro de um carro, chapa fria,<br />

dirigido por Campão, e foram até a Barra da Tijuca, onde, numa casa com arquitetura chinesa, fuzileiros<br />

navais faziam guarda. Em outra passagem do depoimento, Joe afirmou que, um mês depois da prisão,<br />

ordenaram que fizesse massagens nas pernas de Bacuri, atrofiadas por ele ter sido pendurado por tempo<br />

demais, no Rio. Depois de uma semana de massagens, no DOPS/SP (e não na carceragem), ele voltou<br />

a andar. No mês seguinte, Joe soube pela imprensa que ele havia sido morto, e não acreditou na versão<br />

difundida, já que Bacuri estava preso e semiparalítico, sem forças para fugir ou trocar tiros com a polícia.<br />

212. Com a morte de Vladimir Herzog e Manuel Fiel Filho, aumentou o clamor público<br />

contra a repressão. Começava o declínio do DOPS/SP. O primeiro a sentir isso na pele foi Sérgio<br />

Fleury, que respondia a inquérito por comandar um esquadrão da morte, o da Polícia Civil de São<br />

Paulo – que tinha como lema defender a sociedade de criminosos. Fleury respondeu a diversos inquéritos<br />

e processos por fazer parte desse esquadrão – quase uma ironia, já que essas mortes não eram relacionadas<br />

com a militância política. A equipe de policiais matava criminosos comuns, numa tentativa<br />

de limpar a sociedade. Foram implicados ele próprio e vários de seus colegas ou subordinados. Fleury<br />

chegou a ser preso, e respondeu a vários inquéritos e processos. Era tão grande o risco de ser condenado<br />

e preso que o governo Médici (em 1973), sentindo-se em débito com o delegado, fez aprovar (por sua<br />

base de apoio no Congresso) a Lei n o 5.941/1973, que passou a ser conhecida com o nome de seu beneficiário<br />

– Lei Fleury –, permitindo que réus primários, e de bons antecedentes, pudessem responder<br />

aos processos em liberdade, mesmo quando condenados em primeira instância e até serem julgados em<br />

última instância. Assim, Fleury permaneceu na direção do DEIC, até sua morte (em 1979).<br />

213. Com a perda de poder e influência do DOPS/SP, assumiu sua diretoria-geral uma figura<br />

mais palatável (apesar de envolvido com a repressão), o ex-chefe do Serviço Secreto, Romeu Tuma.<br />

Investigador, delegado de polícia concursado, bacharel em direito pela PUC-SP, foi diretor-geral do<br />

DOPS paulista de 1977 até 1982. Embora não haja provas de que Tuma tenha participado de sessões<br />

de tortura no DOPS/SP, é fato que trabalhou por anos em edifício onde isso ocorria, chefiando seu<br />

Serviço Secreto. Durante a gestão de Tuma, o DOPS/SP acabou e, em 1982, foi eleito governador o<br />

senador Franco Montoro, quando sua equipe de governo anunciou que extinguiria o órgão. No governo<br />

Figueiredo, Tuma foi superintendente da Polícia Federal (PF) em São Paulo, e vários delegados<br />

e agentes que trabalharam na repressão o acompanharam. Policiais militares foram também compor<br />

sua equipe, na PF. Tuma veio mais tarde a ser diretor-geral da PF, em 1985, durante o governo Sarney,<br />

e depois foi, por duas vezes, senador por São Paulo.<br />

214. A destruição de documentos começou. Os arquivos do DOPS/SP foram transferidos à<br />

Polícia Federal e, em 1990, devolvidos ao governo de São Paulo. Estão hoje sob a guarda do Arquivo<br />

Público do Estado. A documentação existente, no entanto, é incompleta, mostrando que parte desses<br />

documentos foi desviada. Não há nela, por exemplo, nenhum documento sobre informantes do<br />

DOPS/SP, nem sobre agentes que tivessem praticado tortura.<br />

215. A sede do DOPS/SP era na praça General Osório, n o 66, próximo à Estação da Luz,<br />

centro de São Paulo. No subsolo, havia o almoxarifado e a carceragem com capacidade para cerca de<br />

30 presos. Somente a delegacia de Sérgio Paranhos Fleury possuía uma carceragem própria; as demais<br />

utilizavam essa carceragem do subsolo. 120<br />

166


216. No térreo, além da recepção, funcionavam as salas de investigadores e guarda militar,<br />

com cerca de 200 policiais, empregados nas diligências do DOPS/SP. Segundo depoimento à <strong>CNV</strong>,<br />

no térreo e no primeiro andar ficavam investigadores que não pertenciam a nenhuma equipe específica,<br />

ou que estavam de plantão. O acesso ao pavimento térreo era livre, dado ali funcionarem várias<br />

delegacias. No entanto, aos andares superiores só se podia ter acesso com autorização de um delegado.<br />

O ex-investigador Amador Navarro Parra informou que no espaço geográfico do DOPS/SP havia<br />

também uma entrada reservada à diretoria, com elevador privativo. 121<br />

217. No primeiro andar funcionava a chefia-geral dos investigadores, salas para servidores,<br />

seção de pessoal, arquivo geral e restaurante para os servidores. Os investigadores ficavam nesse andar,<br />

perto do restaurante, juntamente com a chefia-geral do departamento, a chefia política e a de ordem<br />

social. Lá eram convocados, pelos investigadores-chefes, para participar de alguma operação. 122<br />

218. O segundo andar era utilizado pelo delegado Sérgio Fleury. Lá trabalhavam ele, três<br />

delegados assistentes, cerca de 40 investigadores e respectiva equipe de carceragem. Só seus protegidos<br />

podiam circular nesse andar. Entre o segundo e o terceiro andares havia uma cela em que ficavam alguns<br />

presos sobre os quais ninguém, nem mesmo no DOPS/SP, poderia saber absolutamente nada, eram<br />

presos “exclusivos” de Sérgio Fleury. 123 Além de Fleury, esse andar seria local de trabalho dos delegados<br />

Afonso Celso de Lima Acra, Alcides Singillo, Edsel Magnotti, Haroldo Ferreira e Roberto Benducce<br />

Faria Coimbra. Ali ficava também a Delegacia de Fiscalização de Explosivos, Armas e Munições.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

219. No terceiro andar funcionava a Delegacia de Ordem Econômica e a Delegacia de<br />

Estrangeiros. 124 Documento do Setor de Segurança do DOPS/SP registra que ali também funcionavam<br />

ambulatórios de médicos e dentistas.<br />

220. No quarto andar funcionavam a Diretoria-Geral e as Delegacias de Ordem Social e<br />

de Ordem Política. Na primeira metade da década de 1970, o diretor-geral, Lúcio Vieira, trabalhava<br />

com Tácito Pinheiro Machado, como primeiro-delegado-assistente, e Luiz Orsatti, como segundodelegado-assistente.<br />

Na Assessoria da Delegacia-Geral estavam os delegados Emiliano Cardoso de<br />

Almeida e Laudo Ubirajara Aparecido Gulla Simoni. Também trabalhavam ali os servidores Domingos<br />

Campanela, Grimaldi e João Augusto de São Paulo Pereira, que pertenciam à Diretoria-Geral. Na<br />

entrada da sala do diretor-geral havia uma luz vermelha que, se acesa, impedia o acesso à sala. Fausto<br />

Barreto de Madureira Pará trabalhou como delegado titular da Delegacia de Ordem Social, contando<br />

em sua equipe com os delegados Ruy Cícero Martins Fontes e Fausto Riniere. Na Delegacia de Ordem<br />

Política o titular era Alcides Cintra Bueno Filho, auxiliado pelos delegados Clyde Gaya da Costa,<br />

Décio Funari Martins e Roberto Gabriel Ward. Era também nesse andar que ficava o Cartório Central.<br />

221. <strong>Final</strong>mente, no quinto andar funcionava o Serviço Secreto e, em uma área separada,<br />

sua Divisão de Informações, Contrainformação e Desinformação. Seu diretor era Romeu Tuma, que<br />

passou, depois, a diretor-geral do DOPS/SP. Dali, os casos eram redistribuídos para a Ordem Política<br />

ou Social, onde eram examinados. Com Tuma trabalhavam os delegados Gil Antônio Ferreira, encarregado<br />

do setor estudantil, e Roberto Quass, diretor da divisão de informações.<br />

222. Apesar de ser uma unidade policial, o DOPS/SP não tinha uma hierarquia rígida, mesmo<br />

no período mais duro da repressão. O caso de Fleury é emblemático, pois ele, na prática, não respondia<br />

167


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

à sua chefia formal, o diretor-geral do departamento. Trabalhava por conta própria, diretamente ligado<br />

aos órgãos federais, sobretudo o DOI-CODI/II Exército e o Cenimar. Da mesma forma, os membros<br />

de sua equipe estavam fora da hierarquia do DOPS/SP, deviam responder somente a ele, Fleury. Daí a<br />

confusão constante que faz com que se pense que Fleury tenha sido diretor-geral do DOPS/SP. 125 Na<br />

equipe de Fleury, atuava Carlos Alberto Augusto, o Carteira Preta ou, segundo militantes, o Carlinhos<br />

Metralha. Na época investigador de polícia, é um dos poucos ainda na ativa, delegado em Itatiba (SP).<br />

Henrique Perrone, João Carlos Tralli, Adhemar Augusto Pereira, o Fininho, José Carlos Campos Filho,<br />

o Campão, e Massilon Bernardes Filho também eram policiais da equipe de Fleury.<br />

223. Durante o regime militar, havia visitação de pessoas de diversas áreas de atuação às<br />

dependências do DOPS/SP. Na entrada do órgão, por razões de segurança, eram registrados nome<br />

e profissão, bem como horários de entrada e saída desses visitantes. Com os arquivos do DOPS/SP<br />

disponíveis para pesquisa no Arquivo Público do Estado de São Paulo, há livros de registro com informações<br />

como as abaixo, de fevereiro de 1972: 126<br />

Nome Cargo Entrada Saída<br />

1 o de fevereiro de 1972, terça-feira<br />

Sr. Inajar Jornalista 16h30 17h30<br />

Sr. Ramos Jornalista 16h40 17h30<br />

Sr. Manoelito de Oliveira Santos Reservado do Deops 19h20 20h30<br />

2 de fevereiro de 1972, quarta-feira<br />

Dr. Gabriel dos Santos Netto Engenheiro 14h45 ____<br />

Dr. Evair de Freitas Garcia Deputado 15h07 15h37<br />

3 de fevereiro de 1972, quinta-feira<br />

Sr. Ramos Jornalista 15h15 15h40<br />

Dr. Geraldo Rezende de Matos FIESP 17h15 _____<br />

4 de fevereiro de 1972, sexta-feira<br />

Elias Daniel Khoury Autorizado pelo diretor 13h20 _____<br />

Dr. Adolfo Florentino Médico 15h15 _____<br />

Dr. Geraldo Rezende de Matos FIESP 18h20 18h43<br />

Dr. Jorge Gabriel Visita 9h14 _____<br />

7 de fevereiro de 1972, segunda-feira<br />

Sr. Antonio di Stefano Vice-cônsul da Itália 12h22 13h<br />

Dr. Damaseo Médico 13h30 _____<br />

Dr. Chapin (com acompanhantes) Cônsul americano 14h55 16h05<br />

Sr. Inajar Jornalista 16h50 18h20<br />

8 de fevereiro de 1972, terça-feira<br />

Dr. Antonio Damaseo Médico 13h08 _____<br />

Coronel Lima Rocha Coronel do Exército 9h19 12h33<br />

Tenente Humberto Berlina da Silva Primeiro-tenente (47 Aérea) 9h29 12h33<br />

Elias Daniel Khoury Amigo do dr. Lúcio (Jundiaí) 14h35 _____<br />

9 de fevereiro de 1972, quarta-feira<br />

Sr. Manoelito de Oliveira Santos B.N. 8h30 8h40<br />

Antonio Minelli Agente do 2 o Exército 12h12 12h16<br />

Sr. Halliwell Cônsul americano 12h21 14h30<br />

Sr. Inajá Jornalista 17h35 18h35<br />

168


Nome Cargo Entrada Saída<br />

10 de fevereiro de 1972, quinta-feira<br />

Sr. Ramos Jornalista 15h45h _____<br />

Major Beltrão Major do Exército 19h10 19h55<br />

11 de fevereiro de 1972, sexta-feira<br />

Dr. Ivair de Freitas Garcia (com<br />

dois acompanhantes)<br />

Deputado 14h55 _____<br />

Sr. Manoelito de Oliveira Santos _____ 17h _____<br />

Sr. Ramos Jornalista 17h40 18h25<br />

Major Beltrão Oficial do Exército 20h 20h11<br />

16 de fevereiro de 1972, quarta-feira<br />

Sargento Geraldo Marques (DOI) com detido 1 o sargento 15h15 15h35<br />

Dr. Ivair de Freitas Garcia Deputado 17h25 17h35<br />

Dr. Leovegildo P. Ramos USP 18h05 18h10<br />

Dr. Morais Suppa Companhia Elétrica de São Paulo 9h55 _____<br />

18 de fevereiro de 1972, sexta-feira<br />

Capitão Enio Oficial do 2 o Exército 15h40 15h50<br />

Dr. Geraldo Rezende de Mattos FIESP 17h55 18h48<br />

21 de fevereiro de 1972, segunda-feira<br />

Sr. Halliwell Cônsul americano 12h 12h30<br />

Dr. Antonio Damaseo Médico 13h08 _____<br />

Sr. Inajá Jornalista 17h10 18h05<br />

Dr. Jair Sanzane (com acompanhante) Gabinete SS 19h20 19h40<br />

Professor Oscar e esposa Professor _____ 09h57<br />

Dr. Antonio Damaseo Médico 13h08 _____<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

23 de fevereiro de 1972, quarta-feira<br />

Sr. Maurício Mota Lima Gabinete do secretário 10h55 11h35<br />

Sr. Sérgio Galti Gabinete do secretário 10h55 11h35<br />

Dr. Weverslau M. A. Souza Advogado 12h05 _____<br />

Sr. Inajá Jornalista 17h10 18h10<br />

Sr. Geraldo Rezende de Mattos FIESP 18h10 19h<br />

24 de fevereiro de 1972, quinta-feira<br />

Sr. capitão Roberto Coimbra do Prado Capitão do Exército 13h03 13h08<br />

Dr. Helton Arylton Juiz auditor 15h30 _____<br />

Dr. Pará e equipe Em diligência _____ 17h45<br />

Dr. Geraldo Rezende FIESP 18h35 06h45<br />

25 de fevereiro de 1972, sexta-feira<br />

Sr. Ramos Jornalista 16h48 _____<br />

Dr. Geraldo Rezende de Mattos FIESP 18h20 19h35<br />

28 de fevereiro de 1972, segunda-feira<br />

Dr. Halliwell Cônsul americano 11h55 12h34<br />

Dr. Antonio Damaseo Médico 13h08 _____<br />

Major Beltrão Major do Exército 17h10 18h40<br />

Dr. Paulo (Operação Bandeirante) DOI 15h25 16h<br />

Dr. Geraldo Rezende de Mattos FIESP 18h40 _____<br />

29 de fevereiro de 1972, terça-feira<br />

Professor Passos (subiu com o dr. Almeida) Professor 11h 12h<br />

Dr. Antonio Damaseo Médico 13h06 _____<br />

169


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

Nome Cargo Entrada Saída<br />

Luiz Apolonio Professor 15h45 16h55<br />

Geraldo Rezende de Mattos FIESP 18h35 _____<br />

224. Nessas listas de visitantes há policiais de outras delegacias, membros das Forças<br />

Armadas, políticos, entregadores de mercadorias, familiares dos presos, advogados, jornalistas, colaboradores<br />

e arrecadadores de fundos para atividades de repressão política. Geraldo Rezende de<br />

Mattos, representante da Federação das Indústrias do Estado de São Paulo (FIESP), era dos que<br />

mais frequentavam as dependências do DOPS/SP. O delegado José Paulo Bonchristiano confirmou<br />

que todos o conheciam como Geraldinho. 127 Registros mostram que, em determinadas ocasiões,<br />

Mattos passou a noite toda no DOPS/SP; em outros, há apenas o registro de sua entrada. 128 O empresário<br />

Paulo Henrique Sawaya Júnior se apresentava como assessor do então ministro Antônio<br />

Delfim Netto. Sawaya Júnior fez parte da coordenação da Oban (1969) e mantinha ligações com o<br />

DOI-CODI/SP (1970). Por meio da Consultores Industriais Associados S.C. (CIA) e da Intelligence<br />

Assessoria Integral, arrecadou fundos entre empresários para financiar a repressão em São Paulo.<br />

Seu nome é mencionado em escritos de Antonio Carlos Fon, porque teria extorquido um empresário<br />

alemão para que financiasse a repressão por uma de suas empresas. 129 Segundo Fon, esse empresário<br />

confirmou, em depoimento, sua atuação. Nos livros do DOPS/SP, seu nome aparece inúmeras vezes,<br />

e em alguns casos se apresentava como agente do SNI, em outros apenas acompanhava Romeu<br />

Tuma. Em 1977, foi agraciado com a Medalha do Pacificador.<br />

225. Há também registros da visitação de diplomatas ao DOPS/SP, motivados pela preocupação<br />

com os direitos humanos ou apenas para tratar de assuntos relativos a cidadãos de seus países,<br />

presos ou com problemas de imigração, já que o DOPS/SP fazia também o papel de polícia de estrangeiros.<br />

Os registros mostram visitas como a de Frederic Chapin, que foi cônsul-geral dos Estados<br />

Unidos em São Paulo, que, entre outros momentos, em dezembro de 1976 denunciou a Chacina da<br />

Lapa e atuou em prol da integridade física dos dirigentes do PCdoB presos nessa operação.<br />

1 – As referências a DOPS/SP e Deops tratam do mesmo órgão, pertencente à Polícia Civil de São Paulo.<br />

2 – A <strong>CNV</strong> identificou um grupo de policiais militares que, quando o governador de São Paulo Franco Montoro estava<br />

em vias de assumir o governo do estado, foram transferidos para a Polícia Federal, acompanhando o delegado Romeu<br />

Tuma (então diretor do DOPS/SP). Após análise dos assentamentos individuais fornecidos à <strong>CNV</strong> pela Polícia Militar do<br />

estado de São Paulo, percebe-se que os policiais militares Angelino Crisafulli, João Batista dos Reis, João Cláudio Valério,<br />

Júlio Marin Filho, Luiz Flaviano Furtado e Ubirajara Bueno Machado foram todos cedidos na mesma data (14/3/1983),<br />

pela Força Pública de São Paulo à Superintendência Regional do Departamento de Polícia Federal de São Paulo. E todos<br />

foram reintegrados ao serviço na Força Pública, poucos dias depois, em 29/3/1983.<br />

3 – Decreto n o 23.873/1934.<br />

4 – Decretos-Leis n o 9.775 e n o 9.775-A/1946.<br />

5 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001422/2014-24.<br />

6 – Consultar o relato desses episódios no Cap. 13 deste Relatório.<br />

7 – D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Glaucio Ary Dillon; CASTRO, Celso (orgs.). Os anos de chumbo: a memória<br />

militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, pp. 44-45.<br />

8 – Ibid., pp. 93-94.<br />

9 – Ibid., p. 135.<br />

10 – Ibid., p. 95.<br />

170


11 – Ibid., p. 136.<br />

12 – Audiência pública da <strong>CNV</strong>, 10/5/2013.<br />

13 – Arquivo Nacional, SNI: BR_AN_BSB_N8_035_A, p. 3.<br />

14 – Decreto n o 60.940, de 4/7/1967.<br />

15 – Ibid.<br />

16 – O primeiro regulamento das DSI foi elaborado por grupo de trabalho instituído junto à secretaria-geral do CSN.<br />

17 – Decreto n o 60.940, de 4/7/1967.<br />

18 – Decreto n o 62.803, de 3/6/1968.<br />

19 – Arquivo Nacional, SNI: BR_AN_BSB_N8_035_A, p. 12.<br />

20 – Ibid., pp. 6-7.<br />

21 – Ibid., p. 16.<br />

22 – Ibid., p. 8.<br />

23 – Decreto n o 75.640, de 22/4/1975.<br />

24 – Estudo sucinto n o 075/1 a SC/74, de 3/10/1974.<br />

25 – Em depoimento à <strong>CNV</strong> em 13/11/2012. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002061/2013-52 (áudio) e 0092.002059/2013-83<br />

(transcriação – CD17).<br />

26 – Regulamento aprovado pelo Decreto n o 75.640/1975.<br />

27 – Relatório projeto Brasil: nunca mais, tomo I, p. 96.<br />

28 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002836/2014-71, p. 4.<br />

29 – Ibid., p. 6.<br />

30 – Pesquisa nas folhas de alterações de militares entregues à <strong>CNV</strong> pelas Forças Armadas.<br />

31 – Há referências a saques de diárias de todos os militares que participaram da Oban e dos DOI-CODI. V. também<br />

depoimento do coronel reformado Pedro Ivo Moézia à Comissão Nacional da Verdade, em 9/11/2014 (Arquivo <strong>CNV</strong>,<br />

00092.002166/2014-92).<br />

32 – Ibid., pp. 6-7.<br />

33 – Ibid., pp. 8-9.<br />

34 – Dossiê 50-Z-9, 45, 7753-2, do Arquivo Público do Estado de São Paulo (Apesp).<br />

35 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092_002058_2014_10.<br />

36 – “Dilma diz ter orgulho de ideais da guerrilha”. Folha de S.Paulo, 21/6/2005, entrevista a Luiz Maklouf Carvalho.<br />

37 – Arquivo Nacional, SNI: BR_DFANBSB_V8_ACE 16645_70.<br />

38 – Por exemplo, Arquivo Nacional, SNI: BR_DFANBSB_V8_ACE 19114_70, e SNI: BR_DFANBSB_V8_ACE<br />

4263_80.<br />

39 – Arquivo Nacional: BR_DFANBSB_V8_ ASP_ACE_4263_80.<br />

40 – Arquivo Nacional, SNI: BR_DFANBSB_V8_ ASP_ACE_4263_80.<br />

41 – Arquivo Nacional, SNI: BR_DFANBSB_V8 ESP_ACE_8515_81_001, pp. 25-27.<br />

42 – Arquivo Nacional, SNI: BR_DFANBSB_V8 ASP_ACE_8516_81, pp. 13, 43 e 45.<br />

43 – V. por exemplo Arquivo Nacional, ASP_ACE_8516_81.<br />

44 – Arquivo Nacional, ESP_ACE_3285_80_002, pp. 6-7 e 9.<br />

45 – Arquivo Nacional, SNI: BR_DFANBSB_V8 ESP_ACE_8515_81_002 e ASP_ACE_8516_81.<br />

46 – “Aparelho” era o nome dado a um esconderijo de militantes clandestinos. “Estourar” o aparelho era localizá-lo,<br />

invadir e prender seus ocupantes.<br />

47 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092_000493_2012_48, p. 180.<br />

48 – Arquivo Nacional, SNI: BR_DFANBSB_V8 ESP_ACE_8522_81_001, p. 43.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

171


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

49 – Arquivo Nacional, SNI: BR_DFANBSB_V8 ASP_ACE_8516_81, pp. 54-56.<br />

50 – Arquivo Nacional, SNI: ASP_ACE_8516_81. pp. 9 e 34-42.<br />

51 – Arquivo Nacional, SNI: BR_DFANBSB_V8 ESP_ACE_3285_80_001, pp. 28 e ss.<br />

52 – Ibid., p. 71 e ESP_ACE_3285_80_002, pp. 2-5.<br />

53 – Arquivo Nacional, SNI: ESP_ACE_3285_80_002, p. 30.<br />

54 – Arquivo Nacional, SNI: BR_DFANBSB_V8 ESP_ACE_8515_81_001, pp. 16-17 e 20-21.<br />

55 – Arquivo Nacional, SNI: BR_DFANBSB_V8 AC_ACE_SEC_19114_70.<br />

56 – Ibid.<br />

57 – Lei de Talião é a regida pela máxima “olho por olho, dente por dente”, que prescreve uma pena na mesma medida do<br />

crime cometido, a chamada retaliação. No caso citado, o militante político responsável pela morte de um agente deveria,<br />

pelo código de conduta da repressão, pagar com a morte.<br />

58 – Consultar relato do episódio no Cap. 13 deste Relatório.<br />

59 – Depoimento à <strong>CNV</strong>, em 23/5/2013. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001311/2013-37.<br />

60 – Ofício n o 2.315/GABINETE-MD, 10/3/2014, encaminhado à <strong>CNV</strong> pelos comandos da Marinha, do Exército e da<br />

Aeronáutica. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000444/2014-77.<br />

61 – Depoimento à <strong>CNV</strong> em 9/11/2014. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002166/2014-92.<br />

62 – COELHO, Marco Antônio Tavares. “Memórias de um comunista”. Revista Estudos Avançados, 13 (37), 1999, p. 60.<br />

63 – Monografia do então major Freddie Perdigão Pereira, apresentada à Escola de Comando do Estado-Maior do Exército,<br />

O Destacamento de Operações de Informações (DOI) no EB – Histórico papel no combate à subversão: situação atual e<br />

perspectivas. Rio de Janeiro, 1977, referindo-se ao documento nos autos do inquérito policial militar (IPM) sobre o caso<br />

Riocentro (Representação Criminal 04_0_200 ANEXO 16, pp. 5-37).<br />

64 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001422/2014-24.<br />

65 – Ibid.<br />

66 – D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Glaucio Ary Dillon; CASTRO, Celso (orgs.). Os anos de chumbo: a memória<br />

militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, p. 46.<br />

67 – Depoimento à <strong>CNV</strong> em 23/5/2013. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001311/2013-37.<br />

68 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092_001855_2013_07, p. 136.<br />

69 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092_001855_2013_07.<br />

70 – Ibid.<br />

71 – Depoimento à <strong>CNV</strong> em 23/5/2013. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001311/2013-37.<br />

72 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092_001855_2013_07.<br />

73 – Ibid., p. 139.<br />

74 – Depoimento à <strong>CNV</strong> em 23/5/2013. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001311/2013-37.<br />

75 – COELHO, Marco Antônio Tavares. “Memórias de um comunista”. Revista Estudos Avançados, 13 (37), 1999, p. 61.<br />

76 – Ibid.<br />

77 – Ibid., p. 59.<br />

78 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002166/2014-92.<br />

79 – Este era o termo usado entre agentes e oficiais, para se referirem às dependências do DOI-CODI de São Paulo. Há<br />

várias referências, elas: SOUZA, Percival de. Autópsia do medo: vida e morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury. São Paulo:<br />

Globo, 2000, p. 11.<br />

80 – Documento nos autos do inquérito policial militar (IPM) sobre caso Riocentro − Representação Criminal 04_0_200<br />

ANEXO 16, pp. 9-10.<br />

81 – Ibid., pp. 16-17.<br />

82 – Arquivo Nacional, SNI: ARJ_ACE_CNF_1610_79, 11 de outubro de 1979.<br />

172


83 – Ibid.<br />

84 – Depoimento à <strong>CNV</strong> em 20/3/2013. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002079/2013-54.<br />

85 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092_001855_2013_07, p. 146.<br />

86 – Arquivo Nacional, SNI: BR_ DFANBSB_ V8_ASP_ACE_8516_81, pp. 2, 27 e 59.<br />

87 – Depoimento à <strong>CNV</strong> em 9/11/2014. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002166/2014-92.<br />

88 – Marival Chaves do Canto: depoimento à <strong>CNV</strong> em 30/10/2012. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000929/2012-07. Roberto<br />

Artoni: depoimento à <strong>CNV</strong> em 23/5/2013. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001311/2013-37.<br />

89 – Roberto Artoni: depoimento à <strong>CNV</strong> em 23/5/2013. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001311/2013-37.<br />

90 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092_001855_2013_07, p. 143.<br />

91 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092_001855_2013_07.<br />

92 – Ibid., p. 140.<br />

93 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000686/2013-80.<br />

94 – Depoimento à <strong>CNV</strong> em 24/1/2014. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000570/2014-21.<br />

95 – Depoimento de Dulce Chaves Pandolfi à Comissão Estadual da Verdade do Rio de Janeiro, ocorrido na Assembleia<br />

Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ) em 28/5/2013. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092_001463_2013_30.<br />

96 – Relatório preliminar de pesquisa Caso Rubens Paiva. Fevereiro de 2014. Arquivo <strong>CNV</strong>, 0092.002621/2014-50.<br />

97 – Ibid.<br />

98 – Ibid.<br />

99 – História oral do Exército na Segunda Guerra Mundial, tomo 6. Rio de Janeiro: Biblioteca do Exército, 2001, p. 266.<br />

100 – Ibid., p. 166.<br />

101 – Arquivo <strong>CNV</strong> n° 00092_002056_2014_21.<br />

102 – Idem.<br />

103 – Brasil: nunca mais, processo n o 16/1972, Auto de Qualificação e Interrogatório, pasta 54, p. 509.<br />

104 – USTRA, Carlos Alberto Brilhante. Rompendo o silêncio: Oban DOI/CODI. Brasília: Editerra Editorial, 1987, pp. 128-29.<br />

105 – Arquivo Nacional, SNI: AC_ACE_41397_71.<br />

106 – Ibid., pp. 6-7.<br />

107 – D’ARAÚJO, Maria Celina; SOARES, Glaucio Ary Dillon; CASTRO, Celso (orgs.). Os anos de chumbo: a memória<br />

militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume Dumará, 1994, p. 118.<br />

108 – Ibid., p. 68.<br />

109 – D’ARAÚJO, Maria Celina; CASTRO, Celso (orgs.). Ernesto Geisel. Rio de Janeiro: Editora da Fundação Getúlio<br />

Vargas, 1997, p. 373.<br />

110 – Decretos n o 66.513, de 29/4/1970, e n o 66.608, de 20/5/1970.<br />

111 – Decreto n o 66.513, de 29/4/1970, artigo 15.<br />

112 – BURNIER, João Paulo Moreira. João Paulo Moreira Burnier (depoimento, 1993). Rio de Janeiro: CPDOC, 2005, p. 72.<br />

113 – HILTON, Stanley. A guerra secreta de Hitler no Brasil. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1983.<br />

114 – BATTIBUGLI, Thaís. Democracia e segurança pública em São Paulo, 1946-1964. Tese de doutorado em Ciência<br />

Política. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2006.<br />

115 – Ibid.<br />

116 – “Estratégia para matar o terror”. Veja, 12/11/1969. Disponível em: . Acesso em 22/10/2014.<br />

117 – MINGUARDY, Guaracy. “Tiras, Gansos e Trutas”. In: Cotidiano e reforma na Polícia Civil. São Paulo: Scritta, 1992.<br />

118 – “Música abafava grito de torturado no DOI-Codi, diz ex-preso político”, Folha de S.Paulo, 18/9/2013.<br />

119 – JOFFILY, Mariana. No centro da engrenagem: os interrogatórios na Operação Bandeirante e no DOI de São Paulo<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

173


4 – órgãos e procedimentos da repressão política<br />

(1969-1975). São Paulo; Rio de Janeiro: Edusp; Arquivo Nacional, 2013, p. 51.<br />

120 – Não havia carceragem feminina no DOPS/SP. Mulheres e presos do sexo masculino que excedessem o limite da<br />

lotação eram levados ao Presídio Tiradentes, onde havia duas alas, uma masculina, outra feminina. Metade do Presídio<br />

Tiradentes era utilizada pelo DOPS/SP. Entre 15 a 20 mulheres eram presas por mês.<br />

121 – Depoimento à <strong>CNV</strong> em 24/5/2013, em São Paulo. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001311/2013-37.<br />

122 – À <strong>CNV</strong>, Amador Navarro Parra identificou Pascoalão e Pizzapio como chefes dos policiais do departamento. Segundo<br />

ele, Pedrinho era chefe da Ordem Social, depois substituído por Perrone – sem que se lembrasse do nome completo<br />

desses policiais. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001311/2013-37.<br />

123 – SOUZA, Percival. Autópsia do medo: vida e morte do delegado Sérgio Paranhos Fleury. São Paulo: Globo, 2000.<br />

124 – Depoimento à <strong>CNV</strong> de José Paulo Bonchristiano em 18/2/2013. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002073/2013-87.<br />

125 – Ibid.<br />

126 – Relação completa dos registros que foram consultados está disponível no arquivo da <strong>CNV</strong>.<br />

127 – Depoimento à <strong>CNV</strong> em 18/2/2013. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002073/2013-87.<br />

128 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092_001855_2013_07, p. 175.<br />

129 – FON, Antônio Carlos. Tortura: a história da repressão política no Brasil. São Paulo: Global, 1979.<br />

174


5capítulo<br />

a participação do estado brasileiro<br />

em graves violações no exterior


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

Parece que não havia realmente o interesse do governo, para o governo como um<br />

todo, com a situação desses brasileiros [no exterior]. Quer dizer, de dar um tratamento<br />

de acordo com as convenções internacionais.<br />

[Adolpho Corrêa de Sá e Benevides, diretor da Divisão de Segurança e Informações<br />

do Ministério das Relações Exteriores de 1971 a 1980, depoimento à <strong>CNV</strong> em 16<br />

de abril de 2014, Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000654/2014-65.]<br />

1. A ditadura não se preocupava apenas com seus opositores no Brasil: o inimigo interno não<br />

podia ser descuidado, mesmo quando fora do território nacional. Potencialmente, incluíam-se nessa<br />

categoria não só os que foram afastados da política pelo Ato Institucional n o 1, de 9 de abril de 1964,<br />

ou identificados pelos órgãos da repressão ao longo dos anos seguintes, mas também todos aqueles que<br />

deixavam o país por discordarem da ditadura. Suspeitos, precisavam ser vigiados.<br />

2. A colaboração do Ministério das Relações Exteriores (MRE) com a política repressiva<br />

do regime, na área de informações, não se limitou às atividades do Centro de Informações do<br />

Exterior (Ciex) – estrutura clandestina criada em 1966, no âmbito do MRE, para funcionar como<br />

serviço secreto voltado à busca encoberta de informação e interlocução com os serviços de inteligência<br />

estrangeiros. Em paralelo havia no MRE, como em todos os outros ministérios civis, uma<br />

Divisão de Segurança e Informações (DSI). O Ciex e a DSI foram os dois pilares da colaboração do<br />

MRE com o aparelho repressivo. Atuaram tanto na vigilância dos brasileiros fora do país, como na<br />

produção de informações visando subsidiar o Serviço Nacional de Informações (SNI) e os órgãos<br />

de inteligência das Forças Armadas e da Polícia Federal, coadjuvando a ação dos órgãos de repressão.<br />

Ambos estavam diretamente subordinados ao gabinete do ministro de Estado das Relações<br />

Exteriores ou à secretaria-geral.<br />

3. Todas as missões diplomáticas e repartições consulares brasileiras estiveram integradas,<br />

de alguma forma, à política repressiva da ditadura. Documentos localizados pela <strong>CNV</strong> nos arquivos<br />

do MRE e no Arquivo Nacional (AN) comprovam que o monitoramento de brasileiros no exterior<br />

não ficou limitado ao trabalho do Ciex ou dos funcionários lotados na DSI, tampouco ficou adstrito<br />

ao fornecimento das informações periódicas estipuladas no Plano Nacional de Informações<br />

(PNI), implementado a partir de 1970. Por meio de instruções vindas, em certos casos, diretamente<br />

da alta chefia do MRE ou da própria DSI, ou ainda por iniciativa de diplomatas em serviço nas<br />

embaixadas e consulados, o MRE pôs sua rede de postos no exterior a serviço da política repressiva.<br />

Muitos diplomatas e funcionários de outras categorias do Serviço Exterior desempenharam funções<br />

de espionagem de brasileiros que se opunham ao regime: restringiram-lhes o exercício de direitos<br />

fundamentais, criaram embaraços à sua vida cotidiana nos países em que residiam, impediram seu<br />

retorno ao Brasil, mantiveram os órgãos repressivos informados de seus passos e atividades no exterior,<br />

e chegaram a interagir com autoridades de outros países para que a repressão brasileira pudesse<br />

atuar além-fronteiras. Inegavelmente, o MRE funcionou, naqueles anos, como uma das engrenagens<br />

do aparato repressivo da ditadura.<br />

176


A) A Divisão de Segurança e Informações na estrutura do Ministério das Relações Exteriores<br />

4. O MRE, por natureza, é um órgão de informação. Tem como uma de suas atividades<br />

precípuas a coleta e o processamento de informações procedentes do exterior, para seu próprio uso e<br />

para os demais setores da administração pública. Sua estrutura compreende a Secretaria de Estado das<br />

Relações Exteriores (SERE), na capital, e uma rede de postos, no exterior – missões diplomáticas e<br />

repartições consulares. A função das embaixadas e dos consulados é diferente – as primeiras, voltadas<br />

à relação entre os Estados; os segundos, à assistência e proteção dos nacionais no exterior –, mas esses<br />

órgãos têm como uma de suas principais atividades fornecer, ao governo brasileiro, informações sobre o<br />

que acontece nos países em que estão sediados. Essas informações são enviadas à Secretaria de Estado,<br />

que centraliza seu processamento. Inicialmente recebidas e tratadas pelas divisões (organizadas por<br />

critérios geográficos ou temáticos), vão sendo depuradas, avaliadas e integradas ao longo de sucessivos<br />

exames pelas instâncias hierarquicamente superiores – departamentos, secretarias-gerais adjuntas<br />

(hoje, subsecretarias-gerais) – até chegarem à mais alta chefia: a secretaria-geral, o gabinete do ministro<br />

de Estado e, eventualmente, a Presidência da República. São essas instâncias superiores de decisão que<br />

determinam diretrizes e políticas a serem adotadas em cada matéria – que, por sua vez, percorrem o<br />

caminho inverso, sob a forma de instruções.<br />

5. O MRE dispõe de pessoal especializado na coleta de informações que produz informes<br />

diários a partir de uma extensa rede de repartições no exterior, de uma organização própria a seu<br />

processamento, de instalações no Brasil, de um sistema de comunicações, de criptografia e arquivo<br />

(de antecedentes, série numerada de comunicações de e para cada posto no exterior, normas especiais<br />

para o tratamento da correspondência sigilosa), e de um sistema de difusão interna, para os órgãos<br />

da Secretaria de Estado, seguindo o princípio da compartimentação, e externa, para outros órgãos da<br />

administração. Em 1964, quando o Brasil ainda não estava ligado ao mundo exterior por sistemas de<br />

comunicação dotados de capilaridade planetária, como o Intelsat ou a internet, era essencial a utilização<br />

dos canais de comunicação do Serviço Exterior brasileiro para o tráfego cotidiano de dados do<br />

interesse da nascente comunidade de informações. 1<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

6. Formalmente, a DSI do MRE – que em 1967 substituiu, como nos demais ministérios<br />

civis, a Seção de Segurança Nacional (SSN) – era mais uma divisão do Ministério. Seguindo a prática<br />

usual do MRE, seus expedientes integravam-se no fluxo normal do Ministério, sendo enviados aos<br />

postos na forma de instruções assinadas “Exteriores”, em representação do ministro de Estado das<br />

Relações Exteriores – autoridade à qual a DSI, pelo decreto de sua criação, estava diretamente subordinada.<br />

Sua outra interface era constituída pelos demais órgãos do Sistema Nacional de Informações<br />

(Sisni), aos quais retransmitia as informações recebidas das missões diplomáticas e repartições consulares<br />

brasileiras no exterior. Cabia-lhe, nesse sistema, uma função de coordenação e tratamento da<br />

informação em sua área de competência; além de encargos derivados, como a manutenção de extenso<br />

fichário de referência, permanentemente atualizado, para recuperação rápida das informações compiladas,<br />

notadamente no que respeitava a nomes de pessoas. Seus meios de ação eram os do próprio<br />

Ministério – que, dessa forma e à diferença de outros ministérios civis, esteve naquele período envolvido<br />

como um todo, como instituição, na implementação das diretrizes de segurança nacional então<br />

vigentes. Essa função, portanto, não era operada unicamente pela DSI, mas permeava também os<br />

diversos órgãos do MRE, no Brasil e no exterior.<br />

177


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

7. Em depoimento à <strong>CNV</strong>, o embaixador Adolpho Corrêa de Sá e Benevides, 2 diretor da<br />

DSI de 1971 a 1980, salientou que a DSI era um órgão de coleta, não de busca de informação.<br />

Didaticamente, traçou a distinção entre esses dois conceitos oriundos da doutrina militar então vigente.<br />

Na coleta, eram empregados meios absolutamente lícitos, e com frequência ostensivos, de acesso à<br />

informação. Em contraste, a busca de informações serve-se, sobretudo, de métodos encobertos, quando<br />

não clandestinos, como a infiltração de informantes ou a interceptação de comunicações postais<br />

ou telefônicas. O relatório da chamada Operação Marco Polo 3 – organizada pelo SNI para monitorar,<br />

em agosto de 1974, a delegação da República Popular da China que veio ao Brasil para concluir as<br />

negociações visando ao estabelecimento de relações diplomáticas entre os dois países – revela que a<br />

DSI/MRE colaborou na fixação de microfones e outros equipamentos de escuta em quartos de hotéis<br />

onde se hospedaram os funcionários chineses.<br />

B) A Comunidade de Informações do Ministério das Relações Exteriores (CI/MRE)<br />

8. O Plano Nacional de Informações (PNI), aprovado pelo Decreto n o 66.732, de 16 de<br />

junho de 1970, estabeleceu a estrutura do Sistema Nacional de Informações (Sisni). E atribuiu, a cada<br />

integrante do sistema, a missão de orientar o planejamento das informações no âmbito de suas áreas<br />

de competência (Planos Setoriais de Informações). O MRE recebeu, como membro componente do<br />

Sisni, o nome de “Comunidade de Informações do Ministério das Relações Exteriores” (CI/MRE).<br />

9. Nos termos do Plano Setorial de Informações (PSI) elaborado pelo MRE (Portaria<br />

n o 309, de 11 de novembro de 1970), a CI/MRE incluía diversos órgãos da Secretaria de Estado e<br />

órgãos no exterior, com diferentes atribuições e graus de entrosamento que correspondiam às suas<br />

funções respectivas no organograma do Ministério. Assim, estava prevista a participação, por ordem<br />

hierárquica, do gabinete do ministro de Estado; da secretaria-geral; da Divisão de Segurança e<br />

Informações; das secretarias-gerais adjuntas para as áreas geográficas e assuntos específicos; dos departamentos;<br />

das divisões geográficas e funcionais; das embaixadas; das missões permanentes junto<br />

a organismos internacionais; das legações; dos consulados de carreira; e das comissões nacionais e<br />

interministeriais subordinadas ao MRE. O Plano Setorial de Informações da CI/MRE foi distribuído<br />

pelo gabinete do ministro Mário Gibson Barboza aos órgãos do MRE no Brasil e no exterior,<br />

por meio de uma série de circulares e memorandos, para ter sua execução iniciada em 1 o de janeiro<br />

de 1971. Previa o fornecimento de “informações necessárias” e “informações setoriais”, dentro de<br />

um calendário rígido em periodicidade e seguindo um formato que era regulado em detalhe (desde<br />

a numeração dos assuntos, agrupados por categorias, até o espaçamento dos parágrafos e regras de<br />

apresentação). Entre essas informações, pedia-se a todas as missões diplomáticas e repartições consulares<br />

que informassem trimestralmente a “influência e atividades de brasileiros inconformados com<br />

a ordem vigente no país” e a “atuação dos exilados, cassados, banidos ou punidos pela Revolução,<br />

no país ou no exterior”. As embaixadas nos países do Leste Europeu deviam enviar informações<br />

trimestrais sobre “brasileiros que estudam ou trabalham em países socialistas”; e as embaixadas nos<br />

países limítrofes deviam relatar, mensalmente, os casos de “subversão da ordem, concretizada ou<br />

potencial” – para citar apenas alguns exemplos, entre mais de uma centena de tópicos numerados,<br />

agrupados por objetivos nacionais e setoriais de informação (ONI e OSI), que abrangiam, além dos<br />

temas próprios à política externa, o acompanhamento das atividades de qualquer pessoa suspeita de<br />

vinculação com o “Movimento Comunista Internacional”. 4<br />

178


10. A DSI do MRE situava-se, nesse conjunto, como um dos órgãos produtores de informações,<br />

na esfera de sua competência, e ocupava, adicionalmente, a função de canal para a interlocução<br />

com os demais integrantes do Sisni, dos quais recebia solicitações e aos quais encaminhava, com maior<br />

ou menor tratamento, as informações pertinentes produzidas pelos demais órgãos da CI/MRE. No<br />

desempenho desse papel, a DSI tinha como interlocutores principais, no âmbito do Sisni, a agência<br />

central do SNI, as segundas seções dos Estados-Maiores das três forças e seus centros de informação –<br />

Ciex, Cenimar e CISA –, além do Centro de Informações da Polícia Federal (CI/DPF). Internamente,<br />

atuava como elo transmissor e coordenador das diretrizes emanadas do SNI.<br />

C) O Centro de Informações do Exterior (Ciex)<br />

11. Em paralelo à DSI/MRE, fora criado em 1966 o Ciex, voltado não apenas à coleta, mas,<br />

sobretudo, à busca de informações – à aquisição de informações com o uso de meios encobertos, não raro<br />

clandestinos. À época, era ministro das Relações Exteriores o general Juracy Montenegro Magalhães,<br />

e secretário-geral de Política Exterior, o embaixador Manoel Pio Corrêa Jr. Cronologicamente, o surgimento<br />

do Ciex 5 deve ser situado no processo de reformulação geral dos órgãos de informação do Estado<br />

brasileiro que se seguiu ao golpe de 1964, com a criação do SNI em junho de 1964 (Lei n o 4.341), do Cie<br />

em maio de 1967 (Decreto n o 60.664) e a do CISA em 1970 (Decreto n o 66.608); com a reorganização,<br />

em março de 1971 (Decreto n o 68.447), do Cenimar, criado em 1957; sem esquecer a instituição de um<br />

curso de informações na Escola Superior de Guerra (ESG), por meio do Decreto n o 55.791, baixado pelo<br />

marechal Castelo Branco em fevereiro de 1965.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

12. Na visão dos novos dirigentes da diplomacia brasileira, o MRE, embora pertencente ao<br />

ramo civil da administração federal, possuía, no tocante à segurança nacional, atribuições semelhantes<br />

às dos ministérios militares. Reaparelhá-lo de forma adequada, para que pudesse desempenhar papel<br />

mais ativo em sua preservação, foi objetivo prioritário do regime instalado em abril de 1964. Com essa<br />

justificativa, e em nome da proteção ao sigilo de suas atividades, certas categorias funcionais deveriam<br />

ser retiradas do domínio da lei geral, mediante a adoção de estatuto jurídico próprio, não raro impreciso<br />

e largamente consuetudinário. Isso explica, em parte, a inexistência de um ato administrativo<br />

de criação do Ciex. Na tradição oral do MRE, fala-se da assinatura de portaria ultrassecreta, jamais<br />

publicada ou encontrada, em que teriam sido capituladas as atribuições do Ciex. Existe, ainda, quem<br />

admita que possa ter havido, com o mesmo grau de sigilo, uma exposição de motivos ao presidente<br />

Castelo Branco, que nela teria aposto sua concordância.<br />

13. Em depoimento à <strong>CNV</strong>, o embaixador Marcos Henrique Camillo Cortes 6 – que foi o<br />

primeiro chefe do Ciex – sustentou que aquele órgão jamais existira, considerando-se a ausência de<br />

texto legal ou regulamentar que dispusesse sobre sua criação. “Para este cargo [de chefe do Ciex] existir,<br />

teria de haver uma portaria, um decreto, uma lei, ou o que seja, senão não existe”, assinalou. Trata-se de<br />

um argumento falacioso. Basta lembrar os inúmeros exemplos, na história da administração pública,<br />

de instituições costumeiras cujo funcionamento prescindiu da existência ou da publicação de normas<br />

específicas de direito positivo. 7<br />

14. No Arquivo Nacional, estão disponíveis 11.327 páginas de documentos produzidos pelo<br />

Ciex. Todos elaborados em papel timbrado com a sigla Ciex, padrão de datilografia semelhante; carim-<br />

179


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

bo redondo, com o selo Ciex, sobre o qual foram apostas as rubricas de chefes que se sucederam uns<br />

aos outros. No fundo documental SNI, no Arquivo Nacional, há inúmeros documentos produzidos<br />

pelo Ciex em que aparecem carimbos de entrada em outros órgãos da comunidade de informações.<br />

Há, também, muitos documentos desses órgãos que citam expressamente, como fonte ou referência,<br />

informes produzidos pelo Ciex e documentos desses órgãos endereçados ao Ciex.<br />

15. Convém não esquecer que a dissimulação é uma das facetas mais características das<br />

atividades ligadas ao mundo da espionagem. No organograma do MRE, o Ciex abrigou-se sob denominações<br />

administrativas diversas, todas subordinadas diretamente à secretaria-geral ou ao gabinete<br />

do ministro de Estado: Assessoria de Documentação de Política Exterior (ADOC), oficializada pela<br />

Portaria n o 357, de 15 de março de 1973, que atualizou o Regimento Interno da Secretaria de Estado<br />

(RISE); ou Secretaria de Documentação de Política Exterior (Sedoc), a partir de 1975. 8<br />

16. Há, por fim, provas documentais ainda mais contundentes: o despacho-telegráfico secreto<br />

e exclusivo n o 616, de 27 de agosto de 1974, para a Embaixada em Lisboa, e o n o 446, de 15 de maio<br />

de 1975, para a Embaixada em Paris, ambos expedidos pelo gabinete do ministro de Estado, em que<br />

o próprio embaixador Azeredo da Silveira informava àquelas missões diplomáticas que nelas decidira<br />

“abrir uma ‘base’ do Centro de Informações do Exterior (Ciex), que me é diretamente subordinado”,<br />

com a designação dos diplomatas responsáveis e instruções aos chefes dos respectivos postos quanto<br />

às funções oficiais que lhes deveriam atribuir, para “propiciar [...] a adequada cobertura e os contatos<br />

indispensáveis”, de maneira a “preservar o máximo grau de sigilo e segurança operativa no desempenho<br />

das tarefas de caráter especial”. 9<br />

17. Em ofício dirigido ao chefe da Seção Estratégica do Estado-Maior do Exército, em novembro<br />

de 1988, o então diretor da DSI do MRE, o embaixador Sérgio Damasceno Vieira, informava<br />

que “foram nesta data destruídos todos os documentos difundidos pelo Estado-Maior do Exército para<br />

o Centro de Informações do Exterior (Ciex), os quais, em virtude da desativação do referido centro,<br />

haviam passado para a custódia desta DSI” (Ofício DSI/MRE n o 016, de 18 de novembro de 1988). 10<br />

18. Ofícios de idêntico teor foram dirigidos, na mesma época, aos Estados-Maiores da<br />

Armada e da Aeronáutica, com relação aos documentos difundidos para o Ciex por aqueles dois<br />

órgãos (Ofícios DSI/MRE n o 017 e n o 018, ambos de 22 de novembro de 1988). Cada um deles era<br />

acompanhado do respectivo “termo de destruição”, numerado e assinado por duas testemunhas.<br />

D) Os antecedentes do Ciex: o intercâmbio com a EIA e a longa transição dos SEI ao Ciex<br />

19. Remontam a 1925 os antecedentes mais longínquos do Ciex, quando Raul Paranhos<br />

do Rio Branco, então ministro plenipotenciário do Brasil em Berna, deu início ao intercâmbio com a<br />

Entente Internationale contre la Troisième Internationale – mais conhecida como Entente Internationale<br />

Anticommuniste (EIA). Organização não governamental com sede em Genebra, a EIA fora fundada em<br />

1924 e era presidida por um advogado suíço, Théodore Aubert, amigo de Raul do Rio Branco e de outros<br />

diplomatas brasileiros. 11 A EIA propunha-se a combater a ação do Komintern – a Internacional Comunista,<br />

sediada em Moscou – no plano internacional e a defender os princípios de ordem, família, propriedade e<br />

pátria, que considerava ameaçados pelos ataques constantes de agrupamentos tidos como subversivos.<br />

180


20. Durante a primeira metade da década de 1930, estreitaram-se os laços entre o MRE<br />

e a EIA – graças, sobretudo, ao político paulista José Carlos de Macedo Soares, nomeado em 1932<br />

para representar o Brasil na Conferência do Desarmamento, em Genebra. Ao ascender ao cargo de<br />

ministro de Estado das Relações Exteriores, em 1934, Macedo Soares trouxe de Genebra Odette de<br />

Carvalho e Souza, sua secretária, com a qual a EIA manteria uma relação de permanente colaboração.<br />

O intercâmbio com a EIA ganhou impulso depois do malogrado levante comunista de novembro de<br />

1935, em que houve envolvimento direto de agentes do Komintern.<br />

21. Em fevereiro de 1936, foram criados, pelo ministro Macedo Soares, os Serviços de<br />

Estudos e Investigações (SEI), 12 chefiados por Odette de Carvalho e Souza. Nomeada naquele mesmo<br />

mês para a carreira diplomática, Odette de Carvalho e Souza fundamentou, em circunstanciado memorial,<br />

as razões para a criação dos SEI (que, a partir de 1937, passariam a chamar-se Serviços Especiais<br />

de Informações). Nesse documento, argumentava que, devido ao caráter internacional do comunismo,<br />

a luta para frear-lhe a expansão teria de ser travada no terreno internacional. Sua coordenação, no<br />

Brasil, só poderia ser levada a efeito pelo MRE. Por um lado, as missões diplomáticas brasileiras constituíam<br />

“ótimos postos de observação”. Suas informações “preciosas” ajudariam a melhor conhecer o<br />

inimigo, suas táticas e palavras de ordem. Já os consulados brasileiros deveriam exercer permanente<br />

vigilância, para evitar a infiltração de armas ou de elementos extremistas de nacionalidade estrangeira.<br />

Em paralelo, as missões diplomáticas e consulados de outros países no Brasil seriam chamados a colaborar<br />

nos processos de expulsão de estrangeiros indesejáveis. Ao manter “constante e estreita ligação<br />

com as instituições internacionais incumbidas do combate ao comunismo” – vale dizer, com a EIA –,<br />

dispunha o MRE de informações provenientes do mundo inteiro, que, por intermédio dos então projetados<br />

SEI, poderiam ser transmitidas “às autoridades mais diretamente interessadas, notadamente, à<br />

polícia e aos ministérios militares”. Por fim, concluía que o mesmo deveria ser feito, pelos SEI, com as<br />

informações que o MRE recebia da rede de postos diplomáticos e consulares no exterior, bem como<br />

das missões diplomáticas e dos consulados estrangeiros no Brasil.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

22. Os mesmos princípios enunciados no memorial apresentado por Odette de Carvalho e<br />

Souza, em janeiro de 1936, estariam presentes na concepção do Ciex, três décadas mais tarde. Pois,<br />

a despeito das sucessivas fraturas que dividiram o mundo comunista – a cisão iugoslava, em 1948; o<br />

estremecimento e depois a ruptura sino-soviética, em 1964; a ascensão do maoísmo ou a multiplicação<br />

de organizações guerrilheiras e de grupos de ação direta em diferentes partes do mundo –, muitos dos<br />

dirigentes e intelectuais orgânicos do regime de 1964 guardavam, do comunismo, uma visão unitária.<br />

“A Revolução Brasileira de Março de 1964, representando um dos mais rudes golpes ao comunismo internacional<br />

[...]”, apontava, por exemplo, o documento “Política de comunicação social no campo externo”,<br />

que será analisado mais adiante. 13 Ao MRE cabia, como preconizara Odette de Carvalho e Souza,<br />

coordenar, no plano internacional, a luta anticomunista – epíteto impreciso e abrangente sob o qual<br />

eram amalgamadas, sobretudo após o AI-5, as mais diferentes formas de oposição à ditadura brasileira.<br />

23. Em setembro de 1939, foi criada, pelo Decreto n o 4.644, a Seção de Segurança Nacional<br />

(Sc. S.N.), subordinada – como os SEI – diretamente ao ministro de Estado. Tinha estrutura mais<br />

robusta do que a do órgão que a antecedera, sendo constituída por sete diplomatas. Reunia-se, normalmente,<br />

uma vez por semana, sob a direção do secretário-geral. Sua estatura hierárquica foi elevada, em<br />

dezembro de 1945, na Reforma Leão Velloso 14 (Decreto-Lei n o 8.324) – que a pôs em pé de igualdade,<br />

no organograma do Ministério, com a Secretaria de Estado, as missões diplomáticas, as repartições<br />

181


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

consulares e o Instituto Rio Branco, recém-criado. Tal situação perseverou no Decreto-Lei n o 9.121,<br />

de abril de 1946, que voltou a reorganizar administrativamente o MRE.<br />

24. Naquele mesmo ano, o Decreto-Lei n o 9.775, de 6 de setembro – que reorganizou o<br />

Conselho de Segurança Nacional (CSN) –, definiu as seções de Segurança Nacional dos ministérios civis<br />

como órgãos complementares do CSN, a cuja secretaria-geral, sempre ocupada pelo chefe do Gabinete<br />

Militar da Presidência da República, deveriam prestar todas as informações que lhes fossem solicitadas.<br />

25. Na Reforma Afonso Arinos 15 (Lei n o 3.917, de julho de 1961), a Seção de Segurança<br />

Nacional foi incorporada à Secretaria de Estado, juntamente com a Secretaria-Geral de Política<br />

Exterior e outros oito órgãos. Assim permaneceu até a publicação do Decreto n o 60.940, de 4 de julho<br />

de 1967, que a transformou em Divisão de Segurança e Informações (DSI), assim como todos os órgãos<br />

congêneres dos demais ministérios civis. Não obstante existir um órgão especializado – a Seção<br />

de Segurança Nacional –, regimentalmente ligado ao CSN, não raro a interlocução do MRE com<br />

as polícias políticas estaduais e do então Distrito Federal ou com o Serviço Federal de Informação e<br />

Contrainformação (SFICI), durante a vigência da Constituição de 1946, foi feita pelo Departamento<br />

Político e Cultural – que, de 1956 a 1958, teve por chefe a embaixadora Odette de Carvalho e Souza.<br />

Isso fica claro em vários pedidos de busca, sob forma de cabogramas que hoje integram o Fundo<br />

Deops, do Arquivo Público do Estado de São Paulo, nos quais o embaixador Pio Corrêa, sucessor da<br />

embaixadora Odette de Carvalho e Souza no Departamento Político, solicitava informações à polícia<br />

paulista sobre estrangeiros que supunha se acharem nesse estado.<br />

26. Essa bipartição, entre a Seção de Segurança Nacional e o Departamento Político, como<br />

que antecipava a dualidade que iria aparecer, depois de 1967, com o agir simultâneo do Ciex e da<br />

DSI. Sucessor de Odette de Carvalho e Souza em altas funções diplomáticas – assim como por sua<br />

liderança na luta anticomunista –, o embaixador Pio Corrêa faria do Departamento Político o ponto<br />

focal, no MRE, da articulação com a Junta Coordenadora de Informações (JCI), criada pelos Decretos<br />

n o 44.489 “A” e n o 45.040, o primeiro em setembro e o segundo em dezembro de 1958. Regulamentada<br />

pelo Decreto n o 46.508 “A”, de julho de 1959, a JCI era presidida pelo secretário-geral do CSN, embora<br />

com subordinação direta ao presidente da República. 16 Em suas memórias, Pio Corrêa identifica<br />

o legado mais precioso que recebera de Odette de Carvalho e Souza:<br />

Fez-me ela, quando assumi o Departamento, um precioso presente: um arquivo, compilado<br />

por ela no Ministério da Justiça, de indivíduos, nacionais e estrangeiros, envolvidos<br />

em atividades subversivas contra os interesses do Brasil, e de organizações ditas<br />

“de fachada”, entidades encobrindo sob rótulos inocentes atividades inconvenientes.<br />

Quando deixei o Departamento no fim do governo Kubitschek [...], deixei esse arquivo,<br />

consideravelmente aumentado, confiado a um oficial amigo, que fazia a ligação<br />

do então Serviço Federal de Informação e Contrainformação (SFICI) com o<br />

Itamaraty. [...] Logo depois da Revolução de 1964, recuperei esse precioso acervo,<br />

que regressou ao Itamaraty. 17<br />

27. O delegado Ruy Lisboa Dourado, da Polícia Civil do antigo Distrito Federal, depois<br />

estado da Guanabara (hoje, Rio de Janeiro), foi um importante colaborador de Pio Corrêa. A <strong>CNV</strong><br />

182


consultou sua pasta de assentamentos funcionais, na qual não há registro de cessão formal ao MRE<br />

durante o biênio em que o embaixador Pio Corrêa esteve à testa do Departamento Político. Em abril<br />

de 1965, pelo Ofício n o D/570/A.A.E, do secretário de Administração, Ruy Dourado foi apresentado<br />

ao ministro de Estado Vasco Leitão da Cunha e colocado à disposição do MRE, para servir junto à<br />

Embaixada do Brasil em Montevidéu. 18 E, um ano depois, com a ascensão de Pio Corrêa à secretaria-<br />

‐geral, foi autorizado a colaborar com o MRE, sem prejuízo de suas funções como delegado de polícia.<br />

28. Documentos do Ciex revelam que Ruy Dourado voltou ao Uruguai no sequestro do<br />

cônsul Aloysio Gomide. E viajou em missão ao Chile, durante o período de Salvador Allende. Em seu<br />

depoimento, o embaixador Marcos Cortes frisou que,<br />

na Embaixada em Montevidéu, efetivamente o Pio chamou o Ruy Dourado [...]. Eu não<br />

sei em que condição: se ele era pago pelo Itamaraty; se era pago pela polícia [...] Ele trabalhava<br />

diretamente com o Pio, ninguém sabia o quê, ninguém sabia por quê, nem como. 19<br />

E) Organização, cadeia de comando e métodos de trabalho do Ciex<br />

29. Ao longo de sua existência, identificamos cinco chefes do Ciex: 1) o primeiro-secretário<br />

Marcos Henrique Camillo Cortes, de 1966 a setembro de 1968; 2) o primeiro-secretário João Carlos<br />

Pessoa Fragoso, de setembro de 1968 a novembro de 1969; 3) o primeiro-secretário (depois conselheiro)<br />

Paulo Sérgio Nery, de janeiro de 1969 a novembro de 1973; 4) o conselheiro (depois ministro) Octavio<br />

José de Almeida Goulart, de novembro de 1973 a março de 1979; 5) o ministro (depois embaixador)<br />

Carlos Luzilde Hildebrandt, de 15 de março de 1979 a 1984.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

30. A <strong>CNV</strong> ouviu os dois primeiros – únicos vivos. O embaixador Cortes, como salientado,<br />

valeu-se de um argumento formalista para negar, simplesmente, a existência do Ciex. Tampouco o<br />

embaixador Fragoso 20 reconheceu ter chefiado o Ciex – admitindo, tão somente, que fora, naquela fase<br />

de sua carreira, o diplomata de ligação entre o MRE e os ministérios militares. Não faltavam a Cortes<br />

nem a Fragoso credenciais políticas ou laços de família para merecerem a confiança dos chefes do regime<br />

castrense. 21 A enumeração de dados de natureza pessoal serve para demonstrar a centralidade do<br />

Ciex e a proximidade de alguns de seus dirigentes com a cúpula do regime militar.<br />

31. Apesar de termos identificado os chefes do Ciex, resta aprofundar o levantamento de<br />

suas bases no exterior – com a identificação dos respectivos chefes, dos funcionários a eles subordinados<br />

e de seus colaboradores externos. A organização do Ciex parece ter seguido um modelo<br />

simples: o núcleo – a “Central” – comunicava-se, por meio de canais próprios e exclusivos, com<br />

as “bases” (abreviatura: BEX), instaladas, de forma dissimulada, em missões diplomáticas e repartições<br />

consulares brasileiras. Não há registro de “bases” que funcionassem fora da rede de postos<br />

do MRE. Tampouco parece ter existido mecanismo de comunicação direta entre as “bases” por<br />

meio do sistema instalado pelo Ciex.<br />

32. A <strong>CNV</strong> conseguiu reunir elementos – documentais ou testemunhais – de que o Ciex teve<br />

bases em capitais do Cone Sul – Assunção, Buenos Aires (BEX/SS), Montevidéu (BEX/EO), Santiago<br />

(BEX/NG); da Europa Ocidental – Paris e Lisboa (BEX/XA); em Genebra; e em capitais da Europa<br />

183


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

do Leste (Praga, Moscou, Varsóvia, Berlim Oriental). Há também fortes indícios do funcionamento<br />

de bases do Ciex em La Paz, Lima, Caracas e Londres.<br />

33. O embaixador Guy Mendes Pinheiro de Vasconcellos foi designado para chefiar a “base”<br />

de Paris pelo despacho-telegráfico secreto-exclusivo n o 446, de 15 de maio de 1975. 22 Em depoimento<br />

à <strong>CNV</strong>, 23 argumentou que a criação de uma base do Ciex em Paris, na embaixada, nada tivera a<br />

ver com o estabelecimento de um mecanismo para troca de informações entre o SNI e o Service de<br />

Documentation Extérieure et de Contre-espionnage (SDECE), principal serviço de inteligência francês,<br />

sobre a situação política em Portugal – conforme indica o despacho-telegráfico acima citado. A<br />

verdadeira razão de seu surgimento, segundo ele, fora a intenção do ministro Azeredo da Silveira de<br />

implantar, na embaixada, uma estrutura de vigilância das atividades do então embaixador Delfim<br />

Netto, 24 cuja desenvoltura nos meios empresariais e ambições políticas não eram bem vistas por setores<br />

do bloco, à época no poder, mais ligados ao presidente Ernesto Geisel. Guy Vasconcellos reconheceu<br />

que “[...] minha atribuição específica, dita de boca, era só para vigiar o Delfim Netto quanto a negociatas.<br />

Esse era o meu objetivo. Esse foi o objetivo de boca que o Octavio Goulart passou para mim”.<br />

Na vigilância estabelecida sobre o embaixador Delfim Netto, fora auxiliado pelo coronel Raimundo<br />

Saraiva Martins – adido militar e supostamente o autor, em 1976, do chamado “Relatório Saraiva”, no<br />

qual teria revelado um caso de corrupção que envolvia Delfim Netto. O embaixador Guy Vasconcellos<br />

revelou também alguns elementos funcionais sobre a operação da base: 1) havia um sistema de comunicações<br />

próprio, diferente do da embaixada, diretamente ligado à “Central”, em Brasília; 2) ele<br />

mesmo cifrava e decifrava as comunicações trocadas com a chefia do Ciex; 3) o Ciex possuía códigos<br />

de cifração próprios, que lhe eram entregues pelo conselheiro Octavio Goulart, chefe do Ciex de então;<br />

4) o chefe da “base” não recebia nenhum adicional por essa tarefa – ao contrário do que ocorre<br />

no MRE com os chefes dos Setores de Promoção Comercial (SECOMs); 5) a secretaria da base era<br />

exercida por uma oficial de chancelaria, ligada à comunidade de informações, antes lotada na DSI<br />

e que hoje pertence ao quadro diplomático brasileiro. Visivelmente, o embaixador Guy Vasconcellos<br />

procurou minimizar o papel da base do Ciex no monitoramento dos exilados políticos brasileiros<br />

em Paris. Negou, por igual, que a base tivesse informantes pagos, entre os exilados, ou que possuísse<br />

colaboradores externos de qualquer natureza. Concluída sua missão em Paris, Guy Vasconcellos foi<br />

removido para o Chile, onde – admitiu – sucedeu o então primeiro-secretário Jacques Claude François<br />

Michel Fernandes Vieira Guilbaud à frente da base do Ciex em Santiago.<br />

34. A <strong>CNV</strong> manteve, no início de 2013, contatos preliminares com o embaixador Jacques<br />

Guilbaud, que se achava à época em Brasília, e posteriormente em Londres, onde atualmente reside.<br />

Considerado dissidente da comunidade de informações durante o regime militar, Guilbaud viveu<br />

fora do Brasil de junho de 1980 – quando pediu asilo político ao Canadá – até começos de 2003 –<br />

ano em que foi readmitido na carreira de diplomata, como ministro de primeira classe (embaixador).<br />

Em contatos informais, Guilbaud relatou fatos que vão além do que revelaram Guy Vasconcellos<br />

e outros diplomatas ouvidos pela Comissão. Segundo Guilbaud, uma das funções precípuas dos<br />

chefes de base era estabelecer um enlace com seus homólogos das polícias políticas e dos serviços de<br />

informação locais. Antes de sua partida para Santiago, recebeu uma série de cartas de apresentação<br />

redigidas pelo embaixador Antônio da Câmara Canto, já aposentado, mas sempre ligado à ditadura<br />

chilena, recomendando-o aos principais responsáveis da comunidade de informações do Chile. Em<br />

1978, Guilbaud foi removido de Santiago para Lisboa, onde assumiu a chefia da base. Seu antecessor,<br />

Sérgio Damasceno Vieira, foi deslocado para Caracas, onde há inúmeros indícios de que tenha<br />

184


exercido as mesmas funções. Anteriormente, Damasceno servira em Varsóvia, possivelmente como<br />

chefe da base local. Era como se houvesse uma alternância de postos e funções específica para os<br />

diplomatas e funcionários administrativos do Ciex e da DSI. Paulo Sérgio Nery foi chefe de base em<br />

Montevidéu, Assunção e, possivelmente, Londres. Na Secretaria de Estado, exerceu, consecutivamente,<br />

a subchefia e a chefia do Ciex. Por sua vez, Damasceno ocupou o cargo de assessor especial<br />

da DSI depois de servir em Varsóvia, e antes de ir fundar a base do Ciex em Lisboa. Ao regressar de<br />

Caracas, foi nomeado diretor da DSI.<br />

F) Informantes e codinomes<br />

35. A existência de informantes pagos foi negada por todos os diplomatas ouvidos pela <strong>CNV</strong>.<br />

Cortes e Fragoso, que serviram na Embaixada em Montevidéu depois do golpe de 1964, afirmaram<br />

jamais terem ouvido falar de Alberto Octávio Conrado Avegno – cujo nome aparece num documento<br />

do Ciex como o único infiltrado “no meio subversivo”. 25 Filho de diplomata e ligado ao MRE desde<br />

a infância, Fragoso alegou, igualmente, que não conhecera nem ouvira falar do ministro Otávio<br />

Conrado, pai de Alberto, aposentado em 1957.<br />

36. Em seu depoimento, o embaixador Raul Fernando Leite Ribeiro 26 admitiu que a base<br />

do Ciex em Lisboa – criada em 1974, logo depois da queda da ditadura salazarista – “devia recorrer”<br />

a informantes pagos para acompanhar as atividades políticas dos exilados. Não mediu palavras para<br />

desqualificar o Ciex – que, a seu ver, fazia “o trabalho sujo” de polícia política, nada tendo de um<br />

verdadeiro órgão de inteligência.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

37. A existência de uma rede de informantes pagos foi corroborada em documentos encontrados<br />

no arquivo do MRE e no Arquivo Nacional. A série de comunicações oficiais do MRE revela<br />

que a remuneração de informantes, pagos com verba orçamentária sob a rubrica “Despesas de caráter<br />

reservado”, foi regra no Uruguai durante pelo menos nove anos. Havia elementos da polícia local e<br />

“outras variadas fontes de informação especial” entre os recipiendários. No caso particular de Alberto<br />

Conrado, sua assinatura aparece em carta datilografada que ele mesmo dirigiu ao embaixador Antônio<br />

Corrêa do Lago em 1 o de junho de 1975, em que diz, textualmente, no parágrafo inicial: “Nestas<br />

especiais circunstâncias, sou obrigado a declinar [...] minha condição de integrante do Serviço de<br />

Informações e Segurança do Itamaraty”. 27<br />

38. Em 12 de junho de 1975, a Central do Ciex enviou instruções à base de Montevidéu<br />

(BEX/EO), assim resumidas:<br />

[...] O ministro de Estado tomou conhecimento do assunto [a prisão de Conrado];<br />

aprova e elogia a decisão correta de utilizar o canal do Ciex para o trato do mesmo,<br />

mas lembra a QUEIROZ [o embaixador] que tal canal tem regras próprias, não admitindo<br />

a transmissão por ele de telegramas numerados de BRASEMB [Embaixada<br />

do Brasil] Montevidéu. Assim, os Telegramas n os 646, 647, 653 e 656 devem ser ou<br />

simplesmente anulados ou substituídos por outros mais inofensivos, de preferência<br />

ostensivos, anódinos, sobre assuntos de menor importância. [...]<br />

185


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

Quanto à parte substantiva do problema, espero que FRED [o chefe da base] haja,<br />

desde o primeiro momento, assessorado corretamente QUEIROZ, dizendo-lhe a<br />

verdadeira situação de JOHNSON [Alberto Conrado]. 28<br />

39. Há também referência à prisão de Alberto Conrado, pelas autoridades uruguaias, na<br />

Informação n o 594 do CIE, de 12 de maio de 1977 – da qual consta que, sob interrogatório, Conrado<br />

teria revelado “ser agente do governo brasileiro, trabalhando para o Cenimar”.<br />

40. Em minuta de despacho-telegráfico secreto-exclusivo expedido em 24 de outubro de<br />

1972, pelo gabinete do ministro de Estado para o cônsul-geral em Montevidéu, aparecem as iniciais e,<br />

por duas vezes, a mesma rubrica do então primeiro-secretário Marcos Cortes, na seguinte instrução:<br />

“Vossa Senhoria deverá abster-se até segunda ordem de qualquer investigação sobre ou contato com<br />

Alberto Conrado, filho do funcionário aposentado Otávio Conrado, ambos residentes nessa capital”. 29<br />

41. Prova documental dos pagamentos que o Ciex efetuava para informantes são os cheques<br />

nominais n os 103 e 109, 30 em favor de certo “Ângelo Vicente”, ambos contra o Citibank, agência<br />

Park Avenue, em Nova York. Nesse par de cheques, emitidos em julho e agosto de 1979, aparece, na<br />

parte superior do talonário, o nome de Carlos Hildebrandt, diplomata que então chefiava o Ciex.<br />

O primeiro teve de ser cancelado, por falta de assinatura. Remetidos, ambos, por mala diplomática<br />

para a Embaixada em Montevidéu, o primeiro cheque seguiu acompanhado por uma mensagem<br />

geral (MSG) em que se lê:<br />

Em anexo, cheques nominais n os 101, 102 e 103 no valor total de US$ 8,800.00<br />

(oito mil e oitocentos dólares norte-americanos), para fazer frente às despesas com<br />

essa BEX e que correspondem ao segundo semestre de 1979, assim discriminadas:<br />

a) Sílvio ..................................................................... US$ 4,500.00<br />

b) Zuleica .................................................................. US$ 3,000,00<br />

c) Natércia ................................................................ US$ 300.00<br />

d) Fundo Operacional .............................................. US$ 1,000.00<br />

Total ......................................................................... US$ 8,800.00<br />

2) Os cheques acima deverão ser depositados e sacados através das contas bancárias<br />

de SÍLVIO e EMA, respectivamente.<br />

3) No que concerne a ZULEICA, e tendo em vista o seu pagamento, gostaríamos<br />

de conhecer o ponto de vista de FLORIANO [o ministro-conselheiro] sobre o rendimento<br />

do trabalho por ela apresentado no semestre findo.<br />

4) Rogo acusar telegraficamente o bom recebimento dessa MSG.<br />

42. A identificação desses informantes, e dos codinomes (pseudônimos) que aparecem em<br />

documentos do Ciex, é essencial para a compreensão de seus métodos de trabalho. No caso particular<br />

186


de Alberto Conrado, não há dúvida de que usava os codinomes de “Altair”, “Zuleica”, “Johnson” e<br />

“Carlos Silveira”, entre outros. Alguns pseudônimos, possivelmente, serviram para ocultar diplomatas<br />

que integraram a estrutura do Ciex. Por exemplo, “Gualter” (Carlos Hildebrandt), “Floriano” (Cláudio<br />

Luiz dos Santos Rocha – que negou vínculos com o Ciex), “José” (Otávio Goulart), “Fátima” (Sérgio<br />

Damasceno Vieira) e “Felipe” (Paulo Sérgio Nery).<br />

G) O envolvimento do Ciex ou da DSI/MRE em graves violações aos direitos humanos de<br />

brasileiros no exterior<br />

43. A <strong>CNV</strong> reuniu elementos documentais comprovando o envolvimento do Ciex em<br />

alguns casos de graves violações aos direitos humanos de brasileiros que se encontravam no exterior<br />

durante a ditadura militar.<br />

44. No informe n o 388, 31 de 19 de dezembro de 1970, o coronel Nilo Caneppa, adido<br />

do Exército junto à Embaixada em Buenos Aires, enumerou as tratativas que manteve com autoridades<br />

policiais e militares argentinas, visando à prisão e posterior transferência, para o Brasil, do<br />

militar cassado Jefferson Cardim de Alencar Osório. De forma minuciosa, explicou como, graças<br />

ao sistema de comunicações da embaixada, conseguira, por intermédio do MRE, que o Estado-<br />

Maior da Aeronáutica (EMAER) autorizasse o traslado de Jefferson Cardim, de Buenos Aires até<br />

o Rio de Janeiro, no avião do Correio Aéreo Nacional (CAN) “que transportava o secretário que<br />

conduz a mala diplomática”.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

45. Não aparece, no informe do coronel Caneppa, o nome do diplomata que viajou para o<br />

Brasil nesse voo do CAN. Além de Cardim, que fora detido pela Polícia Federal da Argentina e expulso<br />

daquele país mediante decreto do presidente de facto Roberto Marcelo Levingston, seguiu, clandestinamente,<br />

no mesmo avião, outro indivíduo identificado como Mario Peres Leal. 32 A decisão da Polícia<br />

Federal argentina de entregá-lo, sem formalidade alguma, aos militares brasileiros foi explicada, pelo<br />

adido, como reflexo da carência de dados “para aprofundar o interrogatório”.<br />

46. Na narrativa da prisão do coronel Cardim em Buenos Aires produzida pelo Ciex, chama<br />

a atenção uma sentença que aparece no informe pessoal-secreto s/n de 12 de dezembro de 1970: “Caso<br />

[o presidente] não queira assinar [o decreto de expulsão], JEFFERSON seria de qualquer maneira<br />

entregue clandestinamente às autoridades brasileiras”. No Rio de Janeiro, o coronel Cardim foi levado<br />

ao CISA, onde permaneceu preso até novembro de 1977.<br />

47. Isso sucederia em junho de 1971 com o banido Edmur Péricles Camargo – sequestrado<br />

em Buenos Aires no voo que o levava de Santiago do Chile a Montevidéu. Os dados dessa viagem haviam<br />

sido comunicados, na véspera, pelo cônsul do Brasil em Santiago, o embaixador Mellilo Moreira<br />

de Mello, em telegrama secreto-urgentíssimo à Secretaria de Estado (Telegrama n o 220, de 15 de junho<br />

de 1971). Relatórios do adido do Exército na Embaixada em Buenos Aires e do adido da Aeronáutica<br />

na Embaixada em Montevidéu 33 dão conta, em detalhes, do sucedido em Ezeiza. Mencionam a participação<br />

“do agente do Itamaraty que trabalha em Montevidéu, em ligação com um secretário de Buenos<br />

Aires”, e a presença, no avião da FAB que trouxe o detido ao Galeão, “do secretário Nery, que seguiu<br />

de Brasília no mesmo avião”. O primeiro-secretário Paulo Sérgio Nery, chefe do Ciex, participou do<br />

187


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

traslado – dessa feita clandestino – em avião militar de mais um preso político da Argentina para o<br />

Brasil. Pessoa próxima a Nery confirmou à <strong>CNV</strong> que o diplomata já falecido à época residente em<br />

Brasília, viajara várias vezes em missão eventual a Buenos Aires nos anos de 1970 e 1971. Edmur foi<br />

trazido em avião do CAN para o Brasil, onde desapareceu.<br />

48. Anos depois, em março e abril de 1975, o ministro Rodolpho Kaiser Machado, cônsul-geral<br />

do Brasil em Montevidéu, deu seguimento a uma operação clandestina da polícia política<br />

uruguaia, cujos desdobramentos poderiam ter custado a vida a outro militar cassado – o almirante<br />

Cândido Aragão, à época exilado em Portugal.<br />

49. Em três Telegramas Secretos-Exclusivos (n os 116, 117 e 142, de 15 e 17 de março de 1975,<br />

os dois primeiros, e 8 de abril de 1975, o último), com primeira distribuição para o gabinete do ministro<br />

de Estado das Relações Exteriores – vale dizer, para a Sedoc/Ciex –, Kaiser Machado transmite o<br />

teor de duas cartas manuscritas de Cândido Aragão, que haviam sido interceptadas pelo Departamento<br />

Nacional de Informação e Inteligência (DNII) da polícia uruguaia. Numa delas, o antigo comandante<br />

do Corpo de Fuzileiros Navais afirmava, textualmente: “Não abro nenhum crédito a não ser a sua<br />

destruição [da ditadura militar brasileira] pela violência armada”. 34<br />

50. Coincidência ou não, o nome de Aragão viria a figurar como um dos possíveis alvos da<br />

chamada Fase 3 da Operação Condor, em relatório do Senado norte-americano, o McGovern Report,<br />

de 1978. Nesse documento, que permanece em parte classificado, é feita alusão a gestões norte-americanas<br />

junto aos governos de Portugal e da França, durante a administração do presidente Gerald Ford,<br />

visando prevenir atentados contra exilados latino-americanos na Europa. Além do almirante Aragão,<br />

há menção a outro exilado brasileiro, o ex-juiz Carlos de Figueiredo Sá.<br />

51. No Arquivo Nacional, a <strong>CNV</strong> localizou a Informação n o 0069/16/AC/74 35 sobre “Carlos<br />

Figueiredo de Sá” – encaminhada, pela Agência Central do SNI, ao Estado-Maior do Exército (EME),<br />

em 20 de junho de 1974. Junto, foi achado o Telex n o 327, da 2 a Seção do EME, datado de 10 de<br />

junho de 1974, onde se lê: “FIM ATENDER ADIEX/PORTUGAL VG SOLICITO INFORMAR<br />

COM BREVIDADE VG ANTECEDENTES DO TERRORISTA BRASILEIRO CARLOS<br />

FIGUEIREDO DE SÁ [...]”.<br />

52. Em maio de 1978, a revista Veja publicou matéria sob o título: “O SNI no contra-<br />

-ataque”, na qual refere troca de telegramas cifrados, em setembro de 1975, entre os generais João<br />

Baptista de Oliveira Figueiredo, chefe do SNI, e Carlos Alberto da Fontoura, embaixador do Brasil<br />

em Portugal, sobre a realização de uma “Operação Código 12” – “um atentado aparentando acidente”<br />

contra Cândido Aragão e Carlos Sá.<br />

53. Na Informação n o 0069/16/AC/74, acima referida, consta que, em 31 de janeiro de 1974,<br />

Carlos Sá “foi preso em Roma e levado ao Consulado do Brasil, onde teve seu passaporte apreendido”.<br />

À época, segundo o que a <strong>CNV</strong> conseguiu apurar, circularam rumores na Itália, entre os brasileiros<br />

exilados, do envolvimento de grupos paraestatais na prisão de Sá. Para esclarecer esse episódio, que<br />

poderá lançar novos cones de luz sobre as ramificações internacionais do aparelho repressivo da ditadura<br />

militar, a <strong>CNV</strong> efetuou gestões junto à Embaixada da Itália em Brasília, obtendo autorização de<br />

princípio para a realização de pesquisa em arquivos do governo italiano.<br />

188


H) Colaboração do governo britânico<br />

54. Quando vivia na França, o embaixador Jacques Guilbaud revelou em entrevista<br />

(jamais publicada) a um jornalista brasileiro que o Ciex fora organizado com a colaboração do<br />

Security Service do Reino Unido (MI5). Segundo Guilbaud, o próprio regulamento interno do<br />

Ciex (que até hoje permanece oculto) teve a contribuição de especialistas britânicos. À guisa de<br />

exemplo do tipo de colaboração que teria sido prestada pelos britânicos ao Ciex, Guilbaud mencionou<br />

o modelo da informação (“read and throw it away”) que – afirma – entregou em mãos<br />

ao ministro Azeredo da Silveira em outubro 1978, relatando superfaturamento na aquisição da<br />

residência do embaixador do Brasil em Lisboa. São antigos os rumores sobre uma possível colaboração<br />

entre o MRE e a inteligência britânica. Em pelo menos um caso, eles foram abonados<br />

pela pesquisa historiográfica posterior.<br />

55. No memorial de 1936, citado anteriormente, Odette de Carvalho e Souza relacionou<br />

cinco exemplos de contribuição que o MRE havia prestado à luta anticomunista, durante a primeira<br />

metade da década de 1930. No item IV, dizia, textualmente:<br />

Com a devida antecedência, previu o Itamaraty, e preveniu as autoridades competentes,<br />

das manobras da ANL [Aliança Nacional Libertadora] e do próximo rompimento<br />

da revolução comunista no Brasil, como já denunciara também a presença de<br />

Luís Carlos Prestes no nosso país [...].<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

Ora, o circuito pelo qual teria circulado essa informação, decisiva para o triunfo das forças leais ao<br />

presidente Getúlio Vargas, aparece, reconstituído, na obra Johnny: a vida do espião que delatou a rebelião<br />

comunista de 1935, dos historiadores R. S. Rose (norte-americano) e Gordon D. Scott (canadense). 36<br />

56. Relatam Rose e Scott:<br />

Não se sabe se Prestes ou Olga sabiam, mas o francês de Helena [a companheira de<br />

“Jonny X”] era bom o suficiente para que ela compreendesse os principais pontos<br />

do que estava sendo dito. À noite, Johnny extraía tudo dela. De manhã, transmitia<br />

as informações a Hutt [Alfred Hutt, formalmente o superintendente-geral<br />

da Light, na verdade o chefe operacional do SIS no Brasil]. Este as repassava ao<br />

embaixador inglês Gurney, que codificava o material e telegrafava para Londres.<br />

A comunidade de inteligência britânica selecionava, então, as informações e as<br />

entregava ao ministro do Exterior [José Carlos de Macedo Soares] no Itamaraty<br />

[...]. Por sua vez, o Itamaraty informava Vargas e Filinto Müller, chefe da Polícia<br />

Civil e diretor da DESPS (Delegacia Especial de Segurança Pública e Social). 37<br />

57. Quase um quarto de século depois, em 1960, o diplomata britânico Maurice Oldfield<br />

visitou o Brasil, sendo recebido pelo embaixador Pio Corrêa, na época chefe do Departamento<br />

Político do MRE. Em suas memórias, Pio Corrêa recorda que, treze anos mais tarde, Sir Maurice<br />

Oldfield passaria a chefiar “o Serviço Secreto de Sua Majestade” – o MI5. Não foram encontradas<br />

até o momento, no arquivo do MRE, referências à estada de Maurice Oldfield no país. Tampouco<br />

mereceu resposta a solicitação de acesso a documentos britânicos, ainda classificados, que a <strong>CNV</strong><br />

189


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

endereçou ao primeiro-ministro David Cameron. No futuro, novas informações poderão surgir. 38<br />

Certamente, se houve colaboração entre os serviços de informação britânicos e o Ciex, haverá registros<br />

nos arquivos em Londres. 39<br />

58. Mais do que qualquer outra peça de informação, o documento intitulado “Criação<br />

do Serviço de Informações do Exterior”, 40 com data de 12 de julho de 1967, revela a atração que a<br />

inteligência britânica exerceu sobre os fundadores do Ciex. Foi possivelmente essa atração pelo modelo<br />

britânico que explica a ausência de legalidade formal do Ciex. 41 Merece destaque uma de suas<br />

sentenças: “[...] o serviço secreto inglês, tal como está há vários anos estruturado, parece ser o melhor<br />

modelo para o projeto brasileiro, requerendo um número de adaptações relativamente pequeno às<br />

peculiaridades nacionais”.<br />

59. O documento prossegue com sugestões que “se baseiam amplamente na estrutura e<br />

funcionamento do referido serviço”. Entre elas, a de que os representantes do Serviço de Informações<br />

no Exterior deverão gozar de status diplomático, “sendo inclusive necessário que façam, dentro da<br />

Embaixada ou Consulado em que servirem, trabalho de chancelaria que seja compatível com a função<br />

diplomática de que estiverem ostensivamente investidos”. Para que seja “mantida a característica de<br />

clandestinidade do órgão projetado mesmo dentro do Itamaraty”, sugere-se que a DSI atue como “meio<br />

de contato oficial para esse serviço com os demais órgãos do próprio Itamaraty e outras dependências<br />

da administração pública federal que não integrem a comunidade nacional de informações”. Dessa<br />

forma, e “graças a seus meios especializados de busca clandestina”, o serviço poderia “complementar,<br />

onde e quando se fizer necessário, o trabalho usual das missões diplomáticas e repartições consulares,<br />

resguardando as limitações a que estão obrigadas pelas normas do convívio diplomático”.<br />

I) O desvirtuamento da instituição: monitoramento de brasileiros no exterior<br />

60. O monitoramento pelo MRE dos brasileiros no exterior – fossem eles asilados, estivessem<br />

exilados, banidos do território nacional ou apenas de passagem por algum país estrangeiro – iniciou-se<br />

nas primeiras semanas após o golpe de 1964.<br />

61. No arquivo do Consulado-Geral do Brasil em Montevidéu, há documentos da polícia<br />

uruguaia fazendo referência a suposta reunião política – em 28 de maio de 1964 – entre dois asilados<br />

brasileiros, ambos cassados pelo AI-1, o ex-deputado Leonel Brizola e o coronel Jefferson Cardim de<br />

Alencar Osório, e Raúl Sendic Antonaccio, chefe dos Tupamaros. Ao longo dos anos seguintes, o<br />

Consulado em Montevidéu manteve interlocução constante, e em nível elevado, com a polícia política<br />

uruguaia. Recebia, regularmente, cópias das fichas policiais de brasileiros exilados, as quais, depois<br />

de descaracterizadas, eram encaminhadas por telegrama ou pela mala diplomática à DSI, em Brasília.<br />

Naquele mesmo mês de maio de 1964, deslocou-se até o Uruguai o então tenente-coronel Murilo Rosa,<br />

oficial de informações lotado no SFICI e depois no SNI, o qual viria depois a desempenhar papel fundamental<br />

na organização do Ciex. Em junho de 1964, como que retribuindo a visita de Murilo Rosa,<br />

viajou ao Rio o general Mario Aguerrondo, chefe de polícia de Montevidéu. 42 Curiosamente, os nomes<br />

de Murilo Rosa e de Mario Aguerrondo apareceriam, décadas mais tarde, em dois casos exemplares da<br />

prática do terrorismo de Estado: o atentado do Riocentro em 1981, no Rio de Janeiro, e o sequestro e<br />

assassinato do bioquímico chileno Eugenio Berríos em novembro de 1992, no Uruguai.<br />

190


62. Houve casos em que o monitoramento de brasileiros revelou iniciativa própria<br />

de alguns diplomatas. A embaixatriz Glorinha Paranaguá 43 lembrou que, numa visita da sra.<br />

Sara Kubitschek a Paris, o então cônsul-geral do Brasil na capital francesa, o ministro Hélio<br />

Scarabôtollo, postou-se no saguão do Hotel Bristol, para melhor observar os passos da esposa do<br />

ex-presidente Juscelino Kubitschek.<br />

63. Seu sucessor no Consulado em Paris, o ministro João Luis Areias Neto – antigo chefe<br />

da DSI –, enviava, para Brasília, dados e fotografias de José Eli Savóia da Veiga, que solicitara prorrogação<br />

de passaporte, pedindo confirmação de que se tratava de “subversivo”, antecipando que,<br />

“pela dúvida, já solicitei que sejam discretamente acompanhados seus deslocamentos e arroladas suas<br />

relações” (Telegrama n o 134, de 17 de novembro de 1972). No caso de João Quartim de Moraes,<br />

informava que, a seu pedido, “autoridade francesa passa a vigiá-lo e caso comprove sua ligação<br />

com elemento subversivo ou exercício de atividade política não renovará sua carteira de residente”<br />

(Telegrama n o 122, de 31 de outubro de 1972). De Lisboa, o general Carlos Alberto da Fontoura,<br />

embaixador em Portugal de 1974 a 1978, informava, em telegrama, sobre transferências bancárias<br />

do ex-deputado Márcio Moreira Alves entre contas de que era titular. Ante o afluxo de exilados<br />

brasileiros na República Federal da Alemanha em 1976, o embaixador em Bonn, Egberto da Silva<br />

Mafra, tomou a iniciativa de requerer à chancelaria local “os nomes e endereços dos cidadãos brasileiros<br />

que gozam de autorização para permanecerem, a título particular, neste país, bem como os<br />

números de seus passaportes, data e autoridades expedidora dos mesmos” (Ofício n o 247, de 25 de<br />

junho de 1976, da Embaixada em Bonn). É longa a lista de exemplos recolhidos, pela <strong>CNV</strong>, na série<br />

de telegramas oficiais e ofícios recebidos de embaixadas e consulados.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

64. O cônsul-geral em Santiago em 1972, o embaixador Mellilo Moreira de Mello, deu outro<br />

exemplo de adesão entusiástica às funções de órgão de informações, assumidas por certos setores<br />

do MRE. Chegou a pedir à DSI que verificasse a quem pertencia um automóvel com placa de Porto<br />

Alegre visto rodando em Santiago e a levantar informações sobre brasileiros que estariam tomando<br />

aulas de caratê em clube da capital chilena (Telegramas n o 459, de 22 de julho de 1972, e n o 211, de<br />

10 de abril de 1972, do Consulado-Geral em Santiago). Para melhor exercer essas funções, o cônsul<br />

Mellilo Moreira de Mello e alguns de seus sucessores no cargo não se furtaram a explorar contatos com<br />

informantes brasileiros, infiltrados entre asilados no Chile. Por seu intermédio, obtinham informações<br />

que eram prontamente repassadas, sempre em telegramas de caráter secreto-exclusivo, ao gabinete do<br />

ministro de Estado em Brasília (ver, por exemplo, o Telegrama n o 600, de 20 de dezembro de 1972,<br />

do Consulado-Geral em Santiago).<br />

65. Em pelo menos um caso, a <strong>CNV</strong> comprovou a intervenção de um chefe de posto na condução<br />

do interrogatório de um preso político sob custódia do Exército brasileiro. Basta ler o seguinte<br />

trecho de telegrama que o embaixador Pio Corrêa enviou à Secretaria de Estado, em março de 1965:<br />

Com referência ao depoimento prestado em 28 do corrente no quartel do 1 o Batalhão<br />

de Fronteiras pelo ex-coronel Jefferson de Alencar Osório, cópia do qual<br />

a 5 a Zona Aérea teve a gentileza de facilitar a esta Embaixada, agradeceria fazer<br />

interrogar o indiciado sobre: 1 o ) a identidade das pessoas que compareceram às<br />

reuniões em sua residência em Montevidéu, especialmente à de 15 de março; 2 o )<br />

os contatos que teve com Brizola, precisando locais, datas, pessoas presentes, na-<br />

191


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

tureza e o teor das conversações. [Telegrama n o 219, de 31 de março de 1965, da<br />

Embaixada em Montevidéu.]<br />

66. Noutra comunicação, Pio Corrêa regozijava-se de ter avisado, por telegrama, que o<br />

ex-deputado Eloy Dutra embarcara, em 15 de março de 1965, no voo da Varig para o Brasil, o que<br />

possibilitou sua captura (Telegrama n o 175, de 17 de março de 1965).<br />

67. Em contrapartida, as instruções transmitidas aos postos no exterior podiam descer a<br />

pormenores. Logo após a Revolução dos Cravos, foram enviadas à Embaixada em Lisboa, e às repartições<br />

consulares em todos os territórios sob jurisdição portuguesa, duas circulares-telegráficas, nos<br />

seguintes termos: ante a perspectiva de que “nacionais, ligados à subversão, procurem estabelecer-se<br />

em Portugal”, determinou-se a esses postos que enviassem mensalmente a Brasília<br />

a) os nomes dos brasileiros que façam contato pela primeira vez com o posto, bem<br />

como daqueles que se apresentarem por qualquer motivo, mencionando-se, sempre<br />

que tal suceder, o fato de haverem entrado no país depois de 25 de abril de 1974;<br />

b) os nomes dos brasileiros cuja chegada ao país for possível apurar através de todas<br />

as fontes disponíveis (exemplificativamente: imprensa escrita, falada e televisada;<br />

contatos e quaisquer terceiros).<br />

Pedia-se, ainda, que fosse enviada a identificação completa desses brasileiros (filiação, documentos etc.),<br />

bem como “informações, confirmadas ou não, sobre suas atividades, comportamentos, deslocamentos e<br />

demais ocorrências”, e que, para esse efeito, os postos procurassem “ampliar suas fontes de informação”<br />

(Circulares-Telegráficas n o 9.822, de 3 de maio de 1974, e n o 9.965, de 24 de setembro de 1974).<br />

68. Ao mesmo tempo, as solicitações de renovação de passaporte ou outras prestações consulares<br />

eram usadas, por instrução da Secretaria de Estado, para obtenção, dissimuladamente, de dados<br />

sobre os solicitantes, como se lê em despacho-telegráfico enviado ao Consulado-Geral em Paris:<br />

[...] Muito agradeceria o obséquio das providências de Vossa Senhoria no sentido<br />

de que o interessado, sem suspeitar, preencha normalmente o formulário de pedido<br />

de prorrogação de passaporte e forneça as necessárias fotografias recentes.<br />

Conviria, se possível, que indicasse endereço e telefone onde possa ser encontrado.<br />

Nessa ocasião, ou quando for oportuno, peço sejam fotocopiados os documentos<br />

de que é portador. Uma vez de posse desses elementos, Vossa Senhoria está autorizado<br />

a proceder à apreensão do passaporte n o 860.259, ficando a seu critério o<br />

momento de informá-lo que não receberá outro em substituição. O formulário,<br />

as fotografias, as fotocópias, as informações e o passaporte apreendido deverão<br />

ser encaminhados, pela primeira mala, em sobrecarta dirigida diretamente à DSI.<br />

[Despacho-telegráfico n o 209, de 24 de outubro de 1972.]<br />

69. Um caso especial de monitoramento ocorreu com o ex-presidente João Goulart. Seus<br />

passos foram continuamente seguidos, não apenas no Uruguai e na Argentina – países onde residiu durante<br />

o exílio – mas também em cada um de seus deslocamentos. As comunicações entre a Secretaria de<br />

Estado e as embaixadas, nos países por onde passou, atestam como o MRE utilizou sua rede de postos<br />

192


com esse objetivo. Por exemplo, no Telegrama n o 1.003, enviado em setembro de 1976 à Embaixada em<br />

Paris, são indicados o hotel e o número do quarto em que o ex-presidente Goulart estava hospedado na<br />

capital francesa. Nele figura, ainda, a informação de que, em determinado horário, não estaria nos seus<br />

aposentos, juntamente com a instrução de “manter-me informado de todo e qualquer deslocamento<br />

do sr. João Goulart” (Telegrama n o 1.003, de 9 de setembro de 1976).<br />

70. A permanente vigilância que a ditadura exerceu sobre o ex-presidente João Goulart também<br />

se serviu de alguns consulados privativos (chamados atualmente de vice-consulados), localizados<br />

em cidades de fronteira. Quando João Goulart faleceu, em 6 de dezembro de 1976, em Mercedes, na<br />

província argentina de Corrientes, foi o cônsul privativo em Paso de los Libres, Ney Floriano de Faria<br />

Corrêa – sabidamente ligado ao SNI –, quem transmitiu a notícia à Embaixada em Buenos Aires. 44<br />

Ficou patente, nas pesquisas realizadas pela <strong>CNV</strong>, o papel desempenhado pelos consulados privativos no<br />

monitoramento de brasileiros nas regiões de fronteira. Os titulares dos consulados privativos nas cidades<br />

de Artigas, Bella Unión, Chuy, Rio Branco e Rivera, no Uruguai, enviavam informes circunstanciados<br />

sobre os brasileiros que por lá transitavam à Embaixada e ao Consulado-Geral em Montevidéu com os<br />

quais se comunicavam, por telefone ou mediante ofícios e cartas pessoais. Suas informações eram posteriormente<br />

transmitidas à Secretaria de Estado. Esse controle na zona fronteiriça era articulado, no lado<br />

brasileiro, com a atividade dos órgãos de informação e repressão que operavam no Rio Grande do Sul,<br />

principalmente o DOPS/RS e o III Exército. 45 O mesmo ocorria com o Consulado Privativo em Paso de<br />

los Libres, na fronteira com a Argentina, subordinado ao Consulado-Geral em Buenos Aires.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

71. Fica assim demonstrado que o monitoramento de brasileiros no exterior não ficou limitado<br />

ao trabalho do Ciex tampouco ficou adstrito ao fornecimento das informações periódicas<br />

estipuladas no PNI/PSI.<br />

72. A análise das comunicações trocadas pela Secretaria de Estado com os postos no<br />

exterior, de 1964 a 1979, não comprova apenas a atuação sistemática da DSI como intermediária<br />

dos pedidos de informação ou das instruções provenientes do SNI. Revela, também, grau de desempenho<br />

mais ou menos zeloso no cumprimento dessas orientações, a depender do diplomata que<br />

chefiava o posto ao qual eram destinadas. Nem sempre as instruções eram encaminhadas pela DSI.<br />

Alguns assuntos seriam, conforme o tema, processados por outros segmentos do Ministério, como<br />

a Divisão de Passaportes (DPP) ou o Departamento Consular e Jurídico (DCJ). Não raro, temas de<br />

maior importância ou sensibilidade política eram tratados diretamente entre os postos e o gabinete<br />

do ministro de Estado, ou com a Secretaria-Geral.<br />

73. Exemplo ilustrativo da doutrina imperante foi o tratamento estendido, pelo MRE, aos<br />

brasileiros que se encontravam no Chile no momento do golpe de Estado de 1973. Deliberadamente, o<br />

Estado brasileiro se omitiu no exercício da proteção consular a seus nacionais. Ao negar-lhes autorização<br />

para que voltassem ao Brasil, prolongou a estada de dezenas de detidos, em condições sub-humanas,<br />

no Estádio Nacional em Santiago. Em vez de contribuir para que os brasileiros saíssem do Chile com<br />

destino a outros países (como era, aliás, desejo expresso das novas autoridades chilenas), preocupou-se<br />

em obter listas de nomes e qualificações daqueles que se abrigavam em embaixadas de terceiros países,<br />

ou se refugiavam nas sedes de organizações internacionais. Mais que tudo, interessavam à ditadura<br />

brasileira os dados de partida dos exilados, os quais permitiriam o monitoramento de sua movimentação<br />

posterior. O governo Médici enviou ao Chile uma equipe de militares e policiais brasileiros, para<br />

193


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

interrogar – segundo o depoimento de vários sobreviventes, sob tortura – seus compatriotas detidos<br />

no Estádio Nacional. O Despacho-Telegráfico n o 460, de 16 de outubro de 1973, expedido para a<br />

Embaixada do Brasil em Santiago, registra a presença de agentes brasileiros no Estádio Nacional,<br />

acompanhados pelo sargento Deoclécio Paulo, auxiliar do coronel Walter Mesquita de Siqueira, adido<br />

do Exército e da Aeronáutica. Em depoimento à <strong>CNV</strong>, 46 o hoje capitão Deoclécio Paulo, que serviu<br />

no Chile de maio 1972 até janeiro de 1974, negou ter conhecimento de qualquer apoio da adidância<br />

aos agentes brasileiros que atuaram no Estádio Nacional.<br />

74. Em compensação, há relatos sobre diplomatas ou funcionários de outras categorias do<br />

Serviço Exterior Brasileiro que, inclusive com risco para sua situação profissional, descumpriram instruções,<br />

em benefício de brasileiros perseguidos pelo regime. Houve casos de funcionários repreendidos<br />

por terem, alegadamente, “mantido contato com subversivo brasileiro”. Sanções administrativas<br />

foram aplicadas a funcionários que concederam passaporte, mesmo por equívoco, a brasileiros que<br />

constassem das relações periodicamente atualizadas pela DSI.<br />

75. Foi o caso do segundo-secretário Octavio Eduardo Llambi Campbell Guinle, investigado<br />

em 1970 – por determinação expressa do presidente Garrastazu Médici – pela Comissão<br />

de Investigação Sumária (CIS), órgão de exceção criado com base no AI-5, em represália pela<br />

concessão de passaportes a dois brasileiros asilados no Chile: o almirante Cândido Aragão e o<br />

ex-presidente da UNE, José Serra. 47<br />

J) Restrições à concessão de passaportes e à prática de outros atos de natureza consular<br />

76. A recusa de concessão ou renovação de passaportes aos exilados é outro exemplo do mau<br />

tratamento dispensado pelo MRE à comunidade dos brasileiros que optaram por deixar o país ou se<br />

viram compelidos a fazê-lo. A partir de abril de 1964, foram adotadas medidas visando restringir a<br />

concessão desse tipo de documento (denegação ou restrições temporais ou territoriais), mediante consulta<br />

aos órgãos de informações, segundo diretrizes que variaram ao longo do tempo. Esses controles<br />

abrangiam, in verbis, “não apenas os brasileiros que se encontram como asilados no exterior, como<br />

também aqueles que, por incompatibilidade declarada com o atual governo, decidiram viajar para o<br />

estrangeiro”, sendo extensivos às suas famílias. 48 Os controles acentuaram-se a partir de dezembro de<br />

1968, com a promulgação do AI-5.<br />

77. Sem passaportes ou outros documentos de viagem brasileiros, as famílias de exilados enfrentavam<br />

dificuldades não só para seus deslocamentos, como para regularizar sua situação migratória<br />

nos países de acolhimento. Muitos tiveram de requerer o estatuto de refugiados políticos perante os<br />

organismos internacionais especializados. Nesse caso, passaram a contar com documentos de viagem<br />

que, ironicamente, valiam para todos os países do mundo exceto para seu país de origem. De igual<br />

maneira, era-lhes recusada, pelos consulados ou pelas seções consulares das embaixadas brasileiras, a<br />

prática de atos notariais tais como reconhecimento de diplomas, legalização de procurações ou, ainda,<br />

registro civil dos filhos nascidos no exterior, os quais, em consequência, eram privados da nacionalidade<br />

brasileira. Em contrapartida, os pedidos de passaporte, juntamente com formulários e fotografias<br />

que os instruíam, eram enviados a Brasília, onde serviam para a constituição e atualização da base de<br />

dados dos serviços de inteligência sobre a identidade e o paradeiro dos brasileiros no exterior.<br />

194


78. A partir de 1974, essas restrições passaram a ser contestadas judicialmente, mediante<br />

a impetração de um número crescente de mandados de segurança no antigo Tribunal Federal de<br />

Recursos, cujas decisões foram amplamente favoráveis aos requerentes. A oposição parlamentar – o<br />

antigo Movimento Democrático Brasileiro (MDB) –, a Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e outras<br />

entidades iniciaram persistente campanha denunciando a violação de direitos dos exilados. Não<br />

obstante, continuaram as denegações – e os mandados de segurança.<br />

79. Em 1978, às vésperas da anistia, permanecia válida instrução do MRE às repartições<br />

no exterior, expedida em 1974, que permitia a concessão ou prorrogação de passaporte, sem consulta<br />

prévia, somente aos menores de dezesseis ou aos maiores de 65 anos. Mesmo nesses casos, a dispensa<br />

de consulta prévia não se aplicava quando os pedidos fossem apresentados às embaixadas brasileiras<br />

em países do Pacto de Varsóvia, ou quando os requerentes tivessem residido no Chile, durante o<br />

do presidente Salvador Allende.<br />

80. Em outubro de 1978, o SNI consolidou, em documento de orientação geral, as normas<br />

de procedimento para concessão ou renovação de passaporte comum (PACOM). Foi determinado<br />

que o MRE deveria encaminhar ao SNI as solicitações, acompanhadas dos dados de qualificação dos<br />

requerentes e das informações sobre os requerentes arquivadas na DSI/MRE. Em cada caso, o SNI<br />

decidiria se convinha, ou não, conceder um novo passaporte; renovar o antigo documento; conceder,<br />

tão somente, um título de nacionalidade “para o retorno controlado do interessado ao Brasil”; ou,<br />

simplesmente, “negar o passaporte ou a renovação, como medida protelatória, obrigando o interessado<br />

a recorrer à Justiça, se for do seu interesse”. 49<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

81. Ao longo do primeiro semestre de 1979, os brasileiros incluídos na extensa Lista<br />

Nominal de Controle Consular (LNCC) continuavam sujeitos à concessão de um “passaporte de<br />

90 dias”, assim chamado em alusão ao prazo alegadamente necessário para apuração da situação<br />

judicial no Brasil do solicitante, antes que fosse adotada uma decisão definitiva. Outra opção<br />

era a concessão de um título de nacionalidade para regresso ao Brasil, mediante informação<br />

sobre data e roteiro da viagem de retorno, com antecedência necessária para que os órgãos de<br />

informação fossem avisados.<br />

82. Essas normas de exceção, adotadas a partir de abril de 1964, flagrantemente afrontavam a<br />

Declaração Universal dos Direitos Humanos, cujo artigo XIII estabelece que “todo ser humano tem o<br />

direito de deixar qualquer país, inclusive o próprio, e a este regressar”. Esse artigo da declaração, aprovada<br />

em 1948 pela Assembleia-Geral das Nações Unidas com o voto do Brasil, estipula que o direito<br />

de locomoção é a regra; as exceções devem ser justificadas para que sejam válidas. Sob a perspectiva dos<br />

direitos humanos, o passaporte, ou qualquer outro documento de viagem, é instrumento do indivíduo<br />

para o exercício de um direito fundamental – o de ir e vir; e a denegação de semelhante documento<br />

de viagem cria obstáculos, quando não inviabiliza a realização desse direito.<br />

83. Na ordem jurídica interna, a ilegalidade manifesta na denegação de passaportes a<br />

brasileiros que se achavam no exterior foi admitida, em 1975, em parecer do então consultor jurídico<br />

do Ministério da Justiça sobre a solicitação de um passaporte comum pelo ex-presidente João<br />

Goulart. A seu ver, o direito à obtenção de passaporte decorria da nacionalidade, não da cidadania.<br />

No Regulamento de Passaportes, aprovado pelo Decreto n o 3.345, de 30 de novembro de 1938,<br />

195


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

inexistia previsão de que a autoridade consular viesse a exercer um poder discricionário para denegar<br />

documentos de viagem a quem cumprisse as condições legais e não tivesse, contra si, nenhuma<br />

restrição imposta pelo Judiciário. Tal lacuna foi reconhecida pelo próprio ministro Azeredo da<br />

Silveira, na informação que encaminhou, em agosto de 1975, ao presidente Ernesto Geisel, sobre<br />

o pedido do ex-presidente João Goulart.<br />

84. Considerações jurídicas não inibiam a visão arbitrária do SNI. Para o coronel Newton<br />

Cruz – em 1975, chefe de gabinete do general João Baptista de Oliveira Figueiredo na chefia do SNI<br />

–, “o parecer do consultor jurídico do Ministério da Justiça nada acrescentou ao que já era do conhecimento<br />

do SNI”. Verdadeira política de Estado, a denegação de documentos de viagem aos exilados,<br />

ou a seus familiares, foi uma das práticas mais censuráveis do regime militar brasileiro.<br />

K) Repressão interna no MRE 50<br />

85. No período examinado pela <strong>CNV</strong>, nos termos da Lei n o 12.528/2012, foram instituídas<br />

três comissões de investigação – em 1952, 1964 e 1969 –, voltadas, precipuamente, à repressão de<br />

condutas consideradas subversivas no seio do MRE. Ao analisá-las conjuntamente pela primeira vez, e<br />

de forma comparativa, a <strong>CNV</strong> constatou que os esforços empreendidos para a institucionalização da<br />

repressão interna acompanharam o envolvimento de setores do MRE na política repressiva praticada<br />

no exterior. Atenta aos limites cronológicos de seu mandato legal, a <strong>CNV</strong> também analisou o trabalho<br />

da Comissão de Anistia, que funcionou em 1986, no MRE, por força da Emenda Constitucional n o<br />

26, de 27 de novembro de 1985, sendo considerada um primeiro passo no processo visando à reparação<br />

dos prejuízos administrativos que haviam sido impostos a diversos servidores pelos atos de exceção, na<br />

maioria dos casos em decorrência das comissões anteriores.<br />

86. O episódio conhecido como “Célula Bolívar”, iniciado por uma campanha de imprensa<br />

liderada pelo jornalista Carlos Lacerda, em 1952, levou à instauração do Processo administrativo n o<br />

5/1952. Foi formada uma Comissão de Inquérito, presidida pelo embaixador Hildebrando Accioly,<br />

antigo secretário-geral do MRE. O inquérito tinha como base legal o artigo 225 do Estatuto dos<br />

Funcionários Civis da União, e foi aberto para investigar denúncia do Estado-Maior do Exército sobre<br />

a existência, no MRE, de uma célula do Partido Comunista, formada por jovens diplomatas que usavam<br />

“uma linguagem conspiratória de fundo nitidamente comunista”. 51 Como consequência, em 20<br />

de março de 1953 foram postos em disponibilidade inativa, sem remuneração, mediante uma série de<br />

decretos individuais assinados pelo presidente Getúlio Vargas e por João Neves da Fontoura, ministro<br />

das Relações Exteriores, os diplomatas João Cabral de Melo Neto, Antonio Houaiss, Jatyr de Almeida<br />

Rodrigues, Amaury Banhos Porto de Oliveira e Paulo Augusto Cotrim Rodrigues Pereira, supostos<br />

integrantes da referida célula. Em julho de 1954, o Supremo Tribunal Federal, em decisão unânime,<br />

declarou nula essa pena de disponibilidade não remunerada aplicada a esse grupo de diplomatas, que<br />

foram todos reintegrados ao quadro funcional do MRE.<br />

87. A <strong>CNV</strong> colheu depoimento do embaixador Amaury Banhos Porto de Oliveira, 52 o último<br />

dos servidores investigados em 1952 ainda vivo. Sendo consensualmente tido como um diplomata<br />

de grande qualificação profissional, o embaixador Amaury Banhos enumerou as dificuldades que<br />

enfrentou para ascender na carreira, durante o período pós-1964.<br />

196


88. A Comissão de Investigação Sumária (CIS 64) teve por fundamento os artigos 7 o e 8 o do<br />

ato institucional de 9 de abril de 1964, sendo institucionalizada por meio da Portaria n o 122, datada<br />

de 5 de maio de 1964. Segundo análise dos documentos encontrados pela <strong>CNV</strong>, todas as investigações<br />

da CIS 64 foram instigadas pelos membros da própria comissão ou por sugestão de altos órgãos<br />

governamentais, como o CSN ou a Comissão Geral de Investigação (CGI). Nos trabalhos da CIS 64,<br />

transparece a influência da investigação que fora realizada pela comissão de 1952. Com a ruptura da<br />

ordem constitucional, depois do golpe de 1964, haviam desaparecido vários dos obstáculos legais com<br />

os quais se defrontara a comissão anterior, para combater suposta infiltração comunista no MRE.<br />

89. Em documento secreto de 14 de julho de 1964, o embaixador Antonio Camillo de Oliveira,<br />

presidente da CIS 64, afirma ao ministro de Estado que “a Comissão de Investigações [...] recebeu, de<br />

diferentes fontes [...] diversas listas e indicações de funcionários que estariam comprometidos ideologicamente”<br />

e cita que “alguns documentos que poderiam justificar tal procedimento se encontram nos<br />

arquivos do Ministério, como ocorre em relação aos diplomatas Amaury Banhos Porto de Oliveira [...],<br />

João Cabral de Melo Neto [...] e Paulo Augusto Cotrim Rodrigues Pereira”. 53 Na pauta de investigações<br />

da CIS 64, também constaram outros temas: malversação de fundos públicos, quebra de sigilo de informações,<br />

ameaça à segurança nacional, relações comerciais com países socialistas e questões relativas<br />

à concessão de vistos e passaportes. Com relação ao relatório final da CIS 64 e suas recomendações, em<br />

documento secreto de 8 de outubro de 1964, enviado ao ministro de Estado, os membros da CIS 64 revelam<br />

o entendimento de que fossem “guardadas certas precauções na designação dos referidos funcionários<br />

[funcionários investigados pela CIS 64] para novos postos ou funções, pelo menos durante um decurso<br />

de razoável tempo necessário ao seu completo ajustamento à realidade da vida funcional”. 54<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

90. No contexto político-repressivo surgido com a decretação do AI-5, o ministro de Estado das<br />

Relações Exteriores, José de Magalhães Pinto, emitiu memorando secreto para o chefe do Departamento<br />

de Administração, o embaixador Manoel Emílio Pereira Guilhon, determinando “a constituição, sob sua<br />

presidência, de uma Comissão de Investigação”. 55 Segundo atas de reuniões dos dias 3 e 7 de janeiro de<br />

1969, as primeiras gestões foram o envio de circulares-telegráficas às missões diplomáticas e repartições<br />

consulares, bem como instruções aos chefes em serviço na Secretaria de Estado, reforçando a necessidade<br />

de serem observados os princípios e propósitos do AI-5 e do Ato Complementar n o 39. Um dos objetivos<br />

da comissão restou evidenciado no memorando de 15 de janeiro de 1969, enviado pelo ministro de<br />

Estado ao presidente da comissão, no qual recomendava que a comissão examinasse rigorosamente “casos<br />

comprovados de homossexualismo de funcionários do Ministério suscetíveis de comprometer o decoro e<br />

o bom nome da Casa, tendo em vista o possível enquadramento dos indiciados nos dispositivos do Ato<br />

Institucional n o 5”. 56 Apenas em 3 de fevereiro de 1969, foram decretadas, por portaria sem número, a<br />

criação da CIS 69 e a designação formal dos embaixadores Antônio Cândido da Câmara Canto, Carlos<br />

Sette Gomes Pereira e Manoel Emílio Pereira Guilhon para apuração dos fatos referentes às disposições<br />

do Decreto n o 63.888, de 20 de dezembro de 1968.<br />

91. O relatório secreto da CIS 69 recomendou a aposentadoria compulsória de sete diplomatas<br />

e seis servidores administrativos, sob a alegação de homossexualismo; sugeriu a submissão de<br />

exames para comprovação de condutas homossexuais a dez diplomatas e dois servidores; propôs a aposentadoria<br />

de catorze funcionários por embriaguez e outros dois por risco à segurança nacional e convicções<br />

ideológicas consideradas subversivas. Os trabalhos da CIS 69 não se encerraram com o envio<br />

do relatório secreto de 7 de março de 1969. Como revela a circular n o 7.896, de 11 de março de 1969,<br />

197


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

[...] terminada a fase preliminar dos trabalhos da Comissão de Investigação Sumária<br />

[...] não será ela dissolvida enquanto vigorarem aqueles instrumentos legais.<br />

Seus membros [...] poderão ser convocados sempre que necessário, a fim de investigar<br />

irregularidades de qualquer natureza. 57<br />

Em fevereiro de 1970, foi aberto inquérito contra o segundo-secretário Octavio Guinle pelo então<br />

presidente da comissão, o embaixador Câmara Canto, por ordem do presidente da República e do<br />

ministro de Estado e com o objetivo de apurar as responsabilidades pela concessão de passaportes<br />

comuns a dois exilados brasileiros no Chile: José Serra e Cândido da Costa Aragão.<br />

92. Toda documentação produzida pela CIS 69, 41 maços e 47 fitas, foi enviada ao<br />

SNI em 15 de outubro de 1979, com o beneplácito do então ministro de Estado das Relações<br />

Exteriores, o embaixador Ramiro Saraiva Guerreiro. Essa informação foi confirmada à <strong>CNV</strong><br />

pelo embaixador Adolpho Corrêa de Sá e Benevides, que foi, como diretor da DSI-MRE, o responsável<br />

pela transferência. 58<br />

L) Adidâncias 59<br />

93. Durante a ditadura, os adidos militares das três forças tiveram papel singular junto<br />

às representações diplomáticas, não raro atuando como prolongamento externo dos órgãos de<br />

informação e repressão, desempenhando atividades de monitoramento de refugiados e exilados, e<br />

fomentando a rede de informações e contrainformações do regime. Os oficiais escolhidos para os<br />

cargos de adidos brasileiros no exterior integravam a elite das Forças Armadas, bastando lembrar que<br />

três ex-presidentes exerceram essa função – Ernesto Geisel, em 1942, no Uruguai; Artur da Costa e<br />

Silva, em 1950, na Argentina; e Emílio Garrastazu Médici, em 1964, nos Estados Unidos –, o que<br />

evidencia o prestígio dado a ela.<br />

94. De acordo com o “Regulamento para os adidos e adjuntos de adidos militares junto<br />

às representações diplomáticas brasileiras”, que norteava as relações funcionais entre adidos e<br />

chefes de missão diplomática, a subordinação acontecia no sentido de que o adido militar devia<br />

seguir a orientação geral do chefe da missão, no desempenho de suas atribuições e nas relações<br />

com os adidos de outros países, salvo se essa orientação contrariasse determinações do respectivo<br />

Estado-Maior. Especificamente com relação à missão diplomática brasileira, o adido deveria ser<br />

tratado como um assessor técnico do chefe da missão para assuntos militares, mas autônomo<br />

em suas atividades.<br />

95. Atritos entre os adidos e funcionários diplomáticos, mesmo aqueles de mais alta hierarquia,<br />

parecem sugerir a existência de uma diplomacia paralela, executada pelas adidâncias. Muitos dos<br />

adidos mantinham interlocução direta com altos escalões dos governos estrangeiros, mormente daqueles<br />

sob hegemonia militar. Pesquisa empreendida pela <strong>CNV</strong> revelou que, no período imediatamente<br />

posterior à decretação do AI-5, foi extremamente difícil o relacionamento entre adidos e diplomatas<br />

brasileiros em missão no exterior. Em pelo menos um caso – o do embaixador Bilac Pinto, político da<br />

Arena que chefiava a missão diplomática brasileira na França – ficou demonstrado o monitoramento<br />

que lhe foi imposto pelo adido do Exército, durante quase todo o ano de 1969.<br />

198


96. O documento que tem por título “Operação Europa”, 60 produzido pela Agência Central<br />

do SNI e composto por relatórios e por uma série de fotografias, evidencia que, em 1969, o trabalho<br />

de monitoramento – conduzido pelos adidos – incluiu as atividades do próprio ministro das Relações<br />

Exteriores, o ex-governador de Minas Gerais José de Magalhães Pinto; do então ministro da Fazenda,<br />

Delfim Netto; do governador de São Paulo, Abreu Sodré; e do ex-ministro do Planejamento, Roberto<br />

Campos, nas viagens que realizaram à Europa em junho desse ano.<br />

97. Diversos informes do Ciex relatam o monitoramento, por diplomatas, das atividades desempenhadas<br />

pelos adidos. O Informe do Ciex n o 520, de 23 de novembro de 1971, 61 descreve denúncia<br />

do jornalista uruguaio Eduardo Galeano, que acusava o adido do Exército em Montevidéu, coronel<br />

Moacir Pereira, de ser pessoa destacada pelo presidente Médici para montar uma rede do SNI no Uruguai.<br />

98. A rivalidade entre o as adidâncias e as missões diplomáticas não parece ter sido regra.<br />

Inúmeros telegramas enviados pelas embaixadas à administração central do MRE sugerem ter havido<br />

intensa cooperação na troca de informações entre adidos e diplomatas. Por exemplo, o Telegrama n o<br />

203 da Embaixada em Montevidéu, de 29 de julho de 1964, relata: “A presença dos adidos das três<br />

Forças Armadas que, de forma constante e discreta, mantêm-se em contato com as forças congêneres,<br />

deste país, é de grande utilidade para esta Embaixada”. 62 No depoimento à <strong>CNV</strong>, o embaixador Raul<br />

Fernando Leite Ribeiro 63 salientou que, no período em que serviu como ministro-conselheiro em<br />

Lisboa, a embaixada tinha quatro canais de comunicação simultâneos com a comunidade de informações<br />

no Brasil: os três adidos militares e o chefe da base do Ciex.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

M) A atuação da ditadura brasileira nos foros internacionais<br />

99. Nos organismos multilaterais, tanto na Comissão de Direitos Humanos (CDH), no sistema<br />

ONU, como na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), no sistema OEA, o MRE<br />

articulou a cobertura e a dissimulação das graves violações de direitos humanos, negando, sistematicamente,<br />

a ocorrência de casos de detenções arbitrárias, sequestros, torturas, execuções sumárias e desaparecimentos.<br />

Para tanto, foi formado um grupo interministerial de cujas reuniões participavam, além do<br />

MRE, representantes do Ministério da Justiça, da secretaria-geral do CSN e do SNI. Em depoimento à<br />

<strong>CNV</strong>, o embaixador João Clemente Baena Soares 64 – diplomata a quem coube a coordenação do referido<br />

grupo – revelou que todas as comunicações recebidas, quer da CDH, em Genebra, quer da CIDH, em<br />

Washington, eram encaminhadas, pela DSI, a uma rede controlada pela Casa Militar da Presidência da<br />

República. A DSI/MRE consultava o ministro da Justiça e o SNI, sendo as propostas de respostas feitas<br />

também pela DSI, em vinculação direta com o gabinete do ministro de Estado. Quando se tratava da<br />

Assembleia-Geral da ONU, consultava-se o ministro e este ouvia o presidente da República.<br />

100. Pesquisadores da <strong>CNV</strong> examinaram a documentação relativa aos principais casos sobre<br />

o Brasil apresentados às duas comissões durante a Ditadura Militar. Nela, fica patente que, apesar<br />

de o Brasil ter, desde a década de 1940, desempenhado papel de destaque na elaboração de vários<br />

instrumentos de proteção aos direitos humanos, as vítimas de graves violações não puderam, durante<br />

a ditadura, se beneficiar de maneira expressiva da atuação de organismos multilaterais. Embora os<br />

mecanismos disponíveis tenham sido acionados por indivíduos e organizações, de dentro e mesmo<br />

fora do país, em defesa dos que sofriam perseguição política, ou de grupos sociais em situação de risco,<br />

199


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

os resultados ficaram muito aquém do desejado. Mostraram-se pífios, se comparados aos obtidos por<br />

outros países do Cone Sul, na mesma época. Documentos inéditos analisados pela <strong>CNV</strong> não apenas<br />

confirmam a tese da eficácia da diplomacia brasileira em resguardar os interesses da ditadura, em detrimento<br />

da dignidade humana, como evidenciam de que forma isso se deu e os estratagemas adotados.<br />

1. Sistema ONU<br />

101. Aquela que parece ter sido a primeira correspondência a ingressar no sistema ONU sobre<br />

desrespeito aos direitos humanos no Brasil foi enviada, menos de uma semana depois do golpe de<br />

Estado, em 7 de abril, pelo Congreso Permanente de Unidad Sindical de los Trabajadores de América<br />

Latina (CPUSTAL), do Chile. Não foi a primeira denúncia a ser tratada pela ditadura; mas a resposta,<br />

encaminhada em 11 de junho de 1964, evidencia que a preocupação dos sindicalistas chilenos dizia<br />

respeito a uma questão central para o regime recém-imposto:<br />

O governo brasileiro deseja esclarecer que, ao contrário das alegações do CPUSTAL,<br />

o movimento de restauração da democracia, que irrompeu em 31 de março, buscou,<br />

em particular, assegurar a liberdade e a expansão do movimento sindical que estava,<br />

naquele momento, sob o jugo de um pequeno grupo totalitário de agentes subversivos.<br />

Tendo arrebatado os postos de chefia administrativa dos sindicatos, esta pequena e<br />

inexpressiva minoria estava usando toda a máquina administrativa do Ministério do<br />

Trabalho e os fundos destinados à Previdência Social dos trabalhadores para incitar<br />

continuamente a agitação e manter a subversão sistemática das instituições do país. A<br />

grande massa de trabalhadores, estimada em cerca de 20 milhões, não estava representada<br />

nos sindicatos, uma vez que não têm sido realizadas eleições livres por essas organizações,<br />

controladas por um pequeno grupo de usurpadores. Para citar um exemplo<br />

a esse respeito: apenas no estado de São Paulo, noventa greves de natureza exclusivamente<br />

política ocorreram em um mês, dirigidas primeiramente contra o Congresso<br />

Nacional e resultando na interrupção geral da produção industrial do país. 65<br />

102. Em sua mensagem, o governo brasileiro também fez menção a trecho de discurso proferido<br />

pelo marechal Castello Branco, dentro das comemorações de Primeiro de Maio. Dirigindo-se<br />

“aos trabalhadores do Brasil, homens e mulheres”, declarou:<br />

A Revolução não foi feita contra os direitos dos trabalhadores. Pouco importa que<br />

assoalhem os ainda inconformados por haverem perdido os cofres públicos com<br />

que levavam, com sacrifício dos pobres, uma artificiosa e rendosa luta de classes.<br />

A verdade, porém, é que estamos interessados não apenas em conservar, mas também<br />

em aprimorar as normas de proteção ao trabalhador, promovendo os meios e<br />

instrumentos adequados à sua efetiva aplicação. Respeitaremos os compromissos<br />

internacionais decorrentes das convenções aprovadas na organização do trabalho e,<br />

sem vacilações, aplicaremos a legislação social vigente. 66<br />

103. Em correspondência de 29 de maio, antes, portanto, de tratar da questão levantada<br />

pela CPUSTAL, o representante permanente do Brasil na ONU cuidou de responder a outra de-<br />

200


núncia, envolvendo a prisão de dois angolanos, suspeitos de exercerem atividades subversivas. O caso<br />

havia chegado à Comissão de Direitos Humanos (CDH) em 30 de abril, numa carta enviada pelo<br />

Angolan Committee of Britain in the United Kingdom, e questionava a situação dos estudantes José<br />

Lima Azevedo e Fernando da Costa Andrade. A resposta do governo brasileiro informava que ambos<br />

já estavam em liberdade; mas a relativa agilidade demonstrada no tratamento desses casos iniciais<br />

seria rapidamente substituída por correspondências protocolares, nas quais o governo se eximia de<br />

qualquer responsabilidade, a pretexto de suposta escassez de informações envolvendo as mais distintas<br />

denúncias. O texto passou a ser genérico: “O representante permanente do Brasil deseja informar ao<br />

secretário-geral que, dada a vagueza e generalidade do conteúdo da comunicação em questão, considera<br />

impossível respondê-la”.<br />

104. Durante a ditadura militar, o Brasil teve de lidar com inúmeras denúncias enviadas ao<br />

sistema ONU, por distintas instituições, como a Federación de Obreros y Campesinos Cristianos, da<br />

Costa Rica, e a Unión Nacional de Mujeres Mexicanas. Em 1971, a Alianza de Mujeres Costarricenses<br />

solicitou à CDH que investigasse a situação de cerca de 2 mil mulheres submetidas a tratamentos<br />

cruéis em prisões brasileiras. Em setembro de 1972, foi a vez da Women’s International Democratic<br />

Federation encaminhar comunicação com informações sobre a perseguição e o assassinato de cerca<br />

de 350 mulheres pelo aparato repressivo. No mês seguinte, a seção norte-americana da Anistia<br />

Internacional encaminhou ao secretário-geral da ONU seu estudo sobre tortura contra presos políticos<br />

no Brasil. Intitulado Report on Allegations of Torture in Brazil, o relatório de quase cem páginas<br />

e com dois anexos baseava-se em cartas de presos políticos submetidos à tortura, em testemunhos de<br />

advogados, jornalistas e religiosos e em notícias publicadas pela imprensa, nacional e internacional.<br />

Além dos nomes das vítimas, também identificava notórios torturadores e integrantes do Esquadrão da<br />

Morte e do Comando de Caça aos Comunistas (CCC). O mesmo relatório também foi apresentado ao<br />

embaixador do Brasil no Reino Unido e ao representante permanente na ONU. O objetivo da Anistia<br />

Internacional era que o documento fosse submetido ao Sub-committee on Discrimination, para que o<br />

órgão analisasse o “consistente padrão de graves violações de direitos humanos” indicado. Ao assinar<br />

a correspondência, Roger Baldwin, advogado norte-americano que presidia a Liga Internacional para<br />

os Direitos do Homem, também solicitou que o documento fosse submetido ao governo brasileiro.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

105. Em meados da década de 1970, a ditadura estava preocupada com as “campanhas no<br />

exterior” que vinha sofrendo; embora acreditasse que o volume de alegações relativas ao Brasil estivesse<br />

decrescendo, depois do que os militares entendiam ter sido o auge das denúncias, entre 1969 e 1972,<br />

essa preocupação tinha razão de ser. A demora do governo brasileiro em responder às comunicações<br />

enviadas havia mais de um ano à CDH gerava desconforto entre os integrantes do grupo de trabalho do<br />

Subcomitê de Prevenção à Discriminação e Proteção das Minorias, encarregado de analisar as denúncias<br />

contra o Brasil. A maior parte dos integrantes desse subcomitê estava convicta da possibilidade de<br />

existir, no país, um consistente padrão de graves violações de direitos humanos. Defendia a necessidade<br />

de transmitir, à própria CDH, a situação descrita nas comunicações recebidas. Para ganhar tempo, em<br />

13 de agosto de 1974, o representante permanente do Brasil na ONU encaminhou ao secretário-geral<br />

da instituição correspondência em que declarava “ter a honra de informar” que as autoridades brasileiras<br />

estavam dedicando consideração apropriada às “recentes” comunicações envolvendo “alegadas<br />

violações de direitos humanos no Brasil”, antes de decidir se o governo iria comentá-las ou não. O<br />

uso de delongas refletia o debate interno sobre como o Brasil deveria se relacionar com organismos<br />

multilaterais, que ganhava força naquele início de gestão do general Ernesto Geisel.<br />

201


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

106. A ditadura não ignorava que estavam sob exame, tanto na ONU como na OEA, diversos<br />

casos brasileiros envolvendo tais violações. Desde pelo menos 1974, por causa de comunicações<br />

apresentadas às Nações Unidas sobre violações de direitos humanos, o país era objeto de consideração<br />

dentro de procedimento confidencial. 67 Documento secreto de origem desconhecida, localizado em<br />

arquivo com o carimbo do Ministério da Justiça, 68 registra:<br />

Essencialmente os ataques se concentram nos seguintes temas: a) genocídio ou<br />

tratamento desumano de silvícolas; b) injustiça social e extrema desigualdade na<br />

distribuição de renda nacional; c) objetivos expansionistas ou imperialistas, com<br />

relação aos países vizinhos; e d) repressão, tortura ou eliminação dos adversários<br />

políticos do regime.<br />

E temia ser sancionada por esses organismos uma condenação (mesmo que, formalmente, não se aplicasse<br />

a palavra) que “teria o efeito de estimular internamente as forças de oposição ao governo e, no plano internacional,<br />

alentaria as forças hostis, estimulando-as a prosseguir e ampliar seus esforços difamatórios”.<br />

Também intuía que o interesse pela “problemática dos direitos humanos” seria duradouro:<br />

Desapareceram, recentemente, governos que antes absorviam uma boa parcela das<br />

críticas (Grécia e Portugal). O fim, próximo, do processo de descolonização libera<br />

energias para a causa dos direitos humanos. O governo norte-americano, o da maioria<br />

dos países ocidentais industrializados e alguns latino-americanos apoiam, direta<br />

ou obliquamente, uma maior militância no campo dos direitos do homem. Nosso<br />

regime e seus êxitos continuam a ser fonte de exasperação e ressentimentos por parte<br />

de todos os grupos ativistas da esquerda internacional.<br />

107. Para lidar com essa situação, a alta burocracia do regime ditatorial decidiu então propor<br />

não apenas “diretrizes para a ação diplomática brasileira no foro mundial (Nações Unidas) e no âmbito<br />

regional (Organização dos Estados Americanos), no tratamento de questões relativas aos direitos<br />

humanos que interessam diretamente o Brasil”, mas também “a criação de um mecanismo interno,<br />

informal”, encarregado de apoiar a ação do Brasil na ONU e na OEA. Constituiu-se, em 1974, grupo<br />

de trabalho interministerial (GTI) integrado por representantes do MRE, do MJ, da Secretaria do<br />

CSN e do SNI “para examinar questão relevante ou para proceder a avaliações periódicas do quadro<br />

internacional”. A linha de ação a ser seguida descartava o estabelecimento de diálogo com indivíduos<br />

ou grupos internacionais de pressão, como a Anistia Internacional, a Comissão Internacional de Justiça<br />

ou o Tribunal Bertrand Russell, e previa o acompanhamento “de forma mais estreita” da tramitação de<br />

denúncias e alegações encaminhadas aos sistemas ONU e OEA. Além disso, defendia especial atenção,<br />

por parte das missões permanentes em Nova York, Genebra e Washington,<br />

aos contatos com os setores relevantes do Secretariado da ONU e da OEA onde<br />

atuam, com considerável autonomia, funcionários internacionais identificados com<br />

os propósitos dos grupos internacionais de pressão, de modo a assegurar um comportamento<br />

sóbrio e isento por parte desses funcionários. 69<br />

108. A estratégia proposta pelo GTI era aprofundar a participação do Brasil em ambos<br />

os sistemas, buscando a reeleição na Comissão Interamericana de Direitos Humanos e tentando o<br />

202


ingresso na CDH, nas eleições de 1975. Dois anos depois, o Brasil foi eleito para um dos lugares correspondentes<br />

à América Latina. O objetivo nada tinha a ver com o respeito e a promoção dos direitos<br />

humanos. A ação dos agentes do governo deveria ser defensiva:<br />

[...] embora tanto na OEA quanto na ONU se sustente a ficção da representação,<br />

nos órgãos em apreço, em caráter pessoal, os membros brasileiros, embora mantendo<br />

as aparências, atuarão como agentes do governo, zelando por que as alegações e<br />

denúncias contra nós sejam rejeitadas, desacreditadas ou tenham seu exame adiado,<br />

levantando todas as suspeições cabíveis sobre sua credibilidade. 70<br />

Havia ainda a orientação para que fosse desenvolvido “um esforço positivo [...] naquelas áreas dos direitos<br />

humanos (tolerância religiosa, igualdade racial, defesa dos direitos da mulher e da criança etc.)<br />

nas quais a experiência brasileira é modelar”. Para tanto, era indispensável que os “agentes diplomáticos<br />

designados” dispusessem de “excepcional capacitação profissional”. 71<br />

109. Ficou estabelecido que o MJ funcionaria como órgão de coordenação interna do grupo,<br />

e caberia ao MRE “a coordenação e implementação da política proposta junto aos organismos internacionais,<br />

mantendo o grupo [de trabalho interministerial] informado de tudo que estime relevante”.<br />

O primeiro teste da “linha de ação” proposta pelo GTI parece ter se dado no primeiro semestre de<br />

1975, quando o governo se viu às voltas com distintas comunicações enviadas anteriormente à CDH,<br />

denunciando torturas e desaparecimentos forçados e solicitando intervenção urgente da ONU. 72 Em<br />

6 de maio desse ano, o Conselho Econômico e Social das Nações Unidas (ECOSOC) havia aprovado<br />

decisão de estabelecer um grupo de trabalho destinado a examinar denúncias contra o Brasil, dentro<br />

do procedimento da Resolução 1.503. Em expediente de caráter secreto, o MRE mencionou “a possibilidade<br />

de resposta à ONU para produzir efeitos na Comissão de Direitos Humanos”. A orientação<br />

da consultoria jurídica e da DSI, do MJ, era em sentido inverso, de “que não se deveria responder às<br />

acusações processadas perante os organismos internacionais”. A julgar pelo teor de nota enviada, em<br />

30 de setembro, pelo ministro Armando Falcão ao consultor jurídico do Ministério da Justiça, que<br />

representava aquela pasta no GTI, o entendimento do MRE estava mais próximo da cúpula do governo<br />

do que o do MJ: “A orientação ditada pelo sr. presidente é, efetivamente, no sentido de responder-se a<br />

organismos internacionais idôneos (ONU, OEA)”. 73<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

110. Um diplomata brasileiro, o então segundo-secretário Luiz Henrique Pereira da Fonseca,<br />

integrou, como observador, a mesa da 31 a sessão da CDH, realizada em Genebra, em 18 de fevereiro<br />

de 1975. Depois de declarar que se absteria de comentar casos específicos de “alegadas” violações de<br />

direitos humanos sob consideração do Grupo de Trabalho sobre Situações, aprovado pelo ECOSOC,<br />

apresentou um conjunto de “razões” que justificariam a demora no esclarecimento das denúncias por<br />

parte do governo brasileiro: o grande volume de documentos, que demandavam análise minuciosa;<br />

o fato de os acontecimentos terem ocorrido “meses antes” e em “regiões remotas” do país; e o fato<br />

de o Brasil ser uma república federativa, com muitas etapas jurídicas a serem percorridas, na esfera<br />

administrativa e na esfera judicial, dos estados e da própria federação, antes de uma decisão definitiva<br />

dos tribunais superiores. Na ocasião, Fonseca assegurou que o sistema judicial brasileiro dispunha de<br />

todos os meios para punir os responsáveis por qualquer violação de direitos humanos. Lembrou que,<br />

a exemplo de qualquer outro país civilizado, os acusados só poderiam ser punidos depois do devido<br />

processo legal, e não com base em acusações não confiáveis ou não provadas. Para ele, a CDH deveria<br />

203


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

evitar qualquer decisão “precipitada e insuficientemente informada” sobre a questão, uma vez que os<br />

casos ainda estavam sob análise das autoridades brasileiras.<br />

111. Os comentários do Brasil referentes às denúncias da Anistia Internacional, da Women’s<br />

International Democratic Federation e de um prisioneiro político de São Paulo só chegariam à ONU em<br />

26 de janeiro de 1976. Alegando que o governo brasileiro, por intermédio de seus órgãos competentes,<br />

havia examinado cuidadosamente as acusações de graves violações de direitos humanos, o documento<br />

negava sua procedência por “ausência de fundamento”. De acordo com a resposta de duas páginas e meia,<br />

subscrita pelo representante permanente do Brasil na ONU, os direitos individuais seriam “amplamente<br />

garantidos” no Brasil, tanto pela Constituição, detentora de “extensiva declaração de direitos”, como pela<br />

legislação em vigor: “Essa declaração assegura a todos os indivíduos o direito de representar e peticionar<br />

autoridades públicas, em defesa desses direitos ou contra abusos autoritários, o direito ao habeas corpus e<br />

ao mandado de segurança”. Na ficção construída e encaminhada à CDH, em plena vigência do AI-5, havia<br />

mais o registro de que o Judiciário detinha “a última palavra sobre a constitucionalidade da legislação”.<br />

112. O Grupo de Trabalho sobre Situações realizou cinco encontros para discutir denúncias<br />

contra o Brasil. Embora convencido da existência de sérias violações de direitos humanos, entre 1968 e<br />

1972, o grupo declarou-se impossibilitado de verificar a existência dos recursos jurídicos mencionados<br />

e o respeito a eles diante da contestação oficial do governo brasileiro. Para outro diplomata brasileiro,<br />

o hoje embaixador José Augusto Lindgren Alves, o Grupo de Trabalho sobre Situações declarou-se<br />

impossibilitado de confirmar a veracidade dos fatos denunciados, registrava que não<br />

haviam sido recebidas novas comunicações desde a 31 a sessão da CDH (1975); inferia,<br />

das observações fornecidas pelo governo brasileiro, que teriam sido alcançados<br />

progressos nas áreas econômica, social e política, dispondo o governo de meios legais<br />

e judiciais para prevenir e punir violações de direitos humanos; manifestava a esperança<br />

de que o governo fizesse uso desses meios e concluía que, à luz de tais dados,<br />

não era necessária qualquer nova ação dentro do procedimento da Resolução 1503. 74<br />

Encerrou-se, assim, o exame confidencial da situação do Brasil.<br />

113. Somente em janeiro de 1981, o Grupo de Trabalho sobre o Desaparecimento Forçado<br />

ou Involuntário de Pessoas, da CDH, fez menção específica ao Brasil, em relatório. Depois de receber<br />

informações sobre a prática de desaparições no país, o grupo encaminhou carta ao representante<br />

permanente do Brasil, solicitando a cooperação do governo Figueiredo para a apuração dos fatos e<br />

autorizando visita oficial de dois integrantes do grupo. A ideia era que esses representantes da ONU<br />

entrassem em contato com familiares e amigos das vítimas. O governo considerou desnecessária a visita,<br />

mas respondeu que não se negaria a colaborar. Em relatório de dezembro do mesmo ano, o grupo<br />

de trabalho reiterou a ocorrência de desaparecimentos forçados no país, destacando ter recebido dezenove<br />

informes relativos ao desaparecimento de pessoas e solicitando dados, às autoridades brasileiras,<br />

a respeito de uma dúzia de casos registrados na primeira metade da década de 1970. Em sua réplica,<br />

o governo informou que, por terem infringido a Lei de Segurança Nacional, três integrantes da lista<br />

haviam sido julgados à revelia por tribunais militares e que outros quatro não possuíam antecedentes<br />

criminais. Crítica ao governo brasileiro apareceria somente no relatório de 1985, quando o grupo de<br />

trabalho indicou insatisfação com a postura adotada pelas autoridades do país. Com ajuda de quadro<br />

204


estatístico, demonstrou que a ditadura não contribuiu para o esclarecimento dos desaparecimentos<br />

forçados. Uma avaliação pouco mais incisiva da atuação dos militares seria registrada no ano seguinte,<br />

quando eles não mais governavam o país. 75<br />

2. Sistema OEA<br />

114. Os pesquisadores da <strong>CNV</strong> deram especial atenção aos casos 1.683 e 1.684, os únicos,<br />

durante todo o período de exceção, em que a CIDH chegou a conclusões negativas em relação ao Brasil.<br />

Foi analisado o comportamento do governo brasileiro perante ambos, e feita uma síntese da exposição.<br />

2.1) Caso 1.683 76<br />

115. A CIDH recebeu, em 9 de junho de 1970, comunicação da Confederação Latino-<br />

Americana Sindical Cristã, sediada em Caracas, Venezuela, em que se denunciava a detenção arbitrária,<br />

tortura e morte de Olavo Hansen, dirigente dos trabalhadores da industria têxtil de São Paulo.<br />

Comunicação de idêntico conteúdo foi enviada pela Central Cristã de Trabalhadores do Paraguai,<br />

pela Federação Latino-Americana de Trabalhadores da Indústria da Construção Civil, da Venezuela,<br />

e pela Ação Sindical Argentina.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

116. Nos termos do artigo 42 do Regulamento da CIDH, presidente e secretário executivo<br />

da comissão solicitaram ao governo brasileiro, em 17 de junho de 1970, todas as informações pertinentes<br />

ao caso, que, posteriormente, seriam levadas ao conhecimento da CIDH. Em 26 de outubro<br />

do mesmo ano, a presidência da entidade comunicou ao ministro de Estado das Relações Exteriores<br />

do Brasil, o embaixador Mário Gibson Barboza, que o professor Durward V. Sandifer fora designado<br />

relator do caso. Na mesma ocasião, foi solicitada ao ministro autorização para que tanto o relator como<br />

o secretário executivo da CIDH, sr. Luis Reque, pudessem transitar pelo território brasileiro, com o<br />

objetivo de coletar os dados necessários para a elaboração do relatório.<br />

117. Em resposta de 11 de janeiro de 1971, o chanceler brasileiro, após afirmar o compromisso<br />

do país com os direitos humanos, manifestou sua estranheza diante do pedido de visita feito pela<br />

comissão, alegando que a medida não era necessária (nem oportuna),<br />

pois não se esgotaram outros meios de apuração dos fatos, pois não existe no Brasil<br />

caso algum de violação de direitos humanos que, por sua natureza indiscutível e pela<br />

urgência de solução, até mesmo por motivos humanitários, exigisse aquela intervenção<br />

excepcional da comissão. 77<br />

118. No que diz respeito ao mérito do caso aquela autoridade apresentou cópia de documento<br />

sob o título “2 a auditoria de Exército (2 a Circunscrição Judiciária Militar)”, em que se faz<br />

referência a inquérito policial instaurado por determinação do secretário de Segurança do estado<br />

de São Paulo, a partir de ofício em que o diretor-geral de polícia do DOPS comunicava a prisão e<br />

o falecimento de Olavo Hansen. Nos termos desse documento, o cidadão, natural de São Paulo,<br />

estudante de engenharia, fora preso<br />

205


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

por elementos da Polícia Militar do estado quando distribuía panfletos subversivos<br />

no Campo de Esportes da Vila Maria Zélia, durante uma concentração de trabalhadores<br />

[e] encaminhado à Operação Bandeirante; no dia seguinte, [foi] conduzido ao<br />

DOPS, ‘onde sentiu-se mal, sendo transportado para o Hospital Militar do Exército,<br />

onde veio a falecer’ [...]. Foi submetido a exame necroscópico, no Instituto Médico<br />

Legal, concluindo o laudo que a causa da morte é indeterminada. 78<br />

119. Presidido pelo delegado Sylvio Pereira Machado e acompanhado pelo promotor de<br />

Justiça José Veríssimo de Mello, o inquérito concluiu que Olavo Hansen se suicidou ingerindo paration,<br />

substância usada na fabricação de adubos e inseticidas, “produto manipulado pela indústria onde<br />

trabalhou até 30/4/1970, portanto, um dia antes de ser custodiado no DOPS”. 79<br />

120. Após essa conclusão, o inquérito foi submetido à auditoria militar, e o juiz auditor,<br />

Nelson da Silva Machado Guimarães, decidiu que<br />

improcede [...] a afirmação de que Olavo Hansen cometeu suicídio. O que procede<br />

é a afirmação, estribada em elementos de certeza, de que Olavo Hansen era<br />

portador de moléstia renal (o próprio Olavo o disse, a dois médicos diferentes, em<br />

ocasiões diferentes, conforme se viu acima). Em seguida, a afirmação de que Olavo<br />

Hansen morreu em consequência de uma insuficiência renal aguda, perfeitamente<br />

diagnosticada pela anamnese e pela sintomatologia [...], a primeira vez pelo médico<br />

do quadro de funcionários da Secretaria de Segurança, 80 que o atendeu no Deops;<br />

e, a segunda vez, pelos médicos que o atenderam no Hospital Geral de São Paulo.<br />

Em seguida, a afirmação de que a insuficiência renal aguda foi causada ou acentuada<br />

pela ação de PARATION, produto utilizado na confecção de inseticidas,<br />

no organismo do morto. Em seguida, a afirmação de que inexistem nesses autos<br />

elementos objetivos de convicção de que a morte tenha sido CAUSADA criminosamente.<br />

Em seguida, a afirmação de que Olavo Hansen, se estava distribuindo os<br />

aludidos panfletos numa concentração pacífica de trabalhadores, era, ao mesmo<br />

tempo, mais um AGENTE e VÍTIMA do sistema de ideias mais abominável e<br />

desumano que a mente humana até hoje elaborou. 81<br />

121. O juiz auditor determinou o arquivamento dos autos, e que isso fosse cumprido “até e em<br />

caso de surgirem novos elementos objetivos que modifiquem o resultado da investigação procedida”. 82<br />

122. Perante a CIDH, o Estado brasileiro asseverou que o material submetido à consideração<br />

da entidade<br />

apresenta todas as provas necessárias à demonstração de que a morte de OLAVO<br />

HANSSEN não foi ocasionada por qualquer ato de arbitrariedade praticado pelos<br />

funcionários que o custodiaram. O inquérito instaurado para apurar a morte de<br />

OLAVO HANSSEN por suicídio, quando sob a custódia de autoridades do DOPS,<br />

prova o interesse permanente do governo em apurar e, se for o caso, punir qualquer<br />

violência contra presos de qualquer espécie. 83<br />

206


2.2) Caso 1.684 84<br />

123. Entre junho e julho de 1970, a comissão recebeu três denúncias anônimas (fls. 1 a 31),<br />

em que se afirmava a existência de 12 mil prisioneiros políticos no Brasil, bem como práticas e modalidades<br />

mais comuns de tortura, como afogamento, choque e estupro.<br />

124. Com base nessas denúncias, a exemplo do que já ocorrera no caso 1.683, a CIDH solicitou,<br />

ao governo brasileiro, informações a respeito do assunto, e autorização para que o professor Durward<br />

V. Sandifer, igualmente relator do caso 1.684, pudesse visitar o Brasil para realizar suas próprias investigações.<br />

O Brasil se opôs ao pedido, alegando as mesmas razões expostas no caso 1.683 (fls. 52-56).<br />

125. Quanto ao mérito da questão, o governo brasileiro promoveu um adensamento processual<br />

e burocrático ao apresentar como prova documentação volumosa, porém repetitiva (fl. 237).<br />

Alegou, em síntese, que as supostas vítimas de sevícias e de tortura eram sobretudo criminosos<br />

comuns que atentaram contra o Estado, estando por essa razão, e nos termos da lei, submetidas à<br />

Justiça Militar competente.<br />

126. O relator rejeitou as justificativas apresentadas pelo Brasil para não autorizar sua visita<br />

utilizando uma interpretação extensiva do Regulamento da CIDH, pela qual a comissão tem poder<br />

discricionário para escolher os meios que julgar adequados numa investigação, com a observação in loco<br />

sendo um deles, não havendo necessidade de que se esgotem prazos, pois “um prazo de espera obrigatório,<br />

prévio a qualquer medida da comissão, poderia, em muitos casos, resultar numa demora trágica” (fl. 68).<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

127. Afirmou ainda o relator que o governo brasileiro não apresentou informações suficientes<br />

a respeito das alegações feitas nas denúncias. Diante de respostas evasivas, recomendou-se que fosse<br />

solicitado ao governo do Brasil todas as informações disponíveis relativas às alegações de tortura contra<br />

as pessoas mencionadas nas denúncias, bem como todas as informações relativas aos correspondentes<br />

processos judiciais então em curso. E que essas informações, naquilo em que fossem pertinentes, deveriam<br />

ser transmitidas a todos os reclamantes dos casos 1.683 e 1.684 (fls. 65-66).<br />

128. Por meio da resolução de 3 de maio de 1972, a comissão, citando o informe preparado<br />

pelo relator e pelo presidente, dr. Justino Jiménez de Aréchaga, declarou que, por não ter sido autorizada<br />

a visita do relator ao Brasil, foram colocadas dificuldades ao trabalho investigativo da comissão<br />

que impediram a comprovação da verdade ou da falsidade dos fatos narrados nas denúncias. A prova<br />

reunida, porém, era suficiente para presumir que ocorreram graves casos de torturas e outros maus-<br />

‐tratos. Por isso, foi feita recomendação no sentido de que o Brasil realizasse uma investigação completa,<br />

a cargo de magistrados independentes (não submetidos a disciplinar militar ou policial), capaz<br />

de determinar, com todas as garantias processuais, se houve prática de tortura e se dela participaram<br />

funcionários militares e policiais mencionados no processo. 85<br />

129. Por nota de 12 de outubro de 1973, o governo brasileiro afirmou que foi realizada investigação,<br />

no âmbito de um inquérito, nos termos da ordem jurídica nacional, e sob a direta supervisão do<br />

ministro da Justiça, “o que significa que, desse modo, foram tomadas todas as providências aplicáveis,<br />

às quais não se poderia agregar mais nenhuma outra” (fl. 257).<br />

207


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

2.3) O Brasil e a CIDH. Panorama geral<br />

130. No caso 1.683, a comissão, em seu relatório, concluiu que “as circunstâncias em que<br />

ocorreu a morte de Olavo Hansen configuram prima facie um caso grave de violação do direito à vida”<br />

(fl. 160), e, no caso 1.684, a entidade asseverou que<br />

das provas reunidas [...] resulta a veemente presunção de que ocorreram no Brasil<br />

graves casos de tortura, vexações e maus-tratos, dos quais foram vítimas pessoas de<br />

um e de outro sexo enquanto privadas de sua liberdade (fl. 256).<br />

Concluindo, em ambos os casos, que o governo brasileiro se recusou a adotar as medidas recomendadas<br />

pela comissão no sentido de determinar se houve ou não tortura ou outras graves<br />

violações de direitos, se desses atos participaram ou não funcionários militares e policiais, e se<br />

houve punição dos responsáveis.<br />

131. Essas conclusões foram incluídas no relatório anual de 1973, submetido à IV Assembleia<br />

Geral da OEA, realizada em Atlanta, em abril de 1974. Como a assembleia, limitando-se a tomar<br />

nota do trabalho, não formulou observações às recomendações da comissão, e como concluiu-se que<br />

o governo brasileiro não adotou as medidas recomendadas, ficou legalmente aberta para a comissão a<br />

possibilidade de publicar seu relatório. 86<br />

132. Em vista disso, perante a CIDH, o governo brasileiro passou a ter como objetivo geral<br />

impedir ou, senão, protelar a divulgação do documento. “Efetivamente, quanto maior for o tempo<br />

decorrido entre os fatos tratados nos casos 1.683 e 1.684 e a divulgação dos relatórios que sobre eles<br />

pretende publicar a CIDH, menor será sua repercussão internacional”, lê-se em documento sem data<br />

e sem assinatura, com análise da situação relativa aos casos 1.683 e 1.684. 87<br />

133. Esse objetivo geral compunha-se de objetivos específicos, existentes em duas frentes: a<br />

jurídica e a política. Na frente jurídica, os objetivos específicos do governo brasileiro consistiam em:<br />

a) obter a revisão das decisões proferidas nesses casos, com invocação de fatos novos,<br />

partindo da premissa de que a CIDH não declarou comprovadas as violações, como<br />

exige o artigo 56 de seu regulamento;<br />

b) alegar que não houve esgotamento dos recursos internos, argumentando que, no<br />

Brasil, seria preciso primeiro que o procurador-geral da Justiça Militar tomasse conhecimento<br />

da documentação proveniente da CIDH e verificasse se caberia à Justiça<br />

Militar a instauração ou reabertura dos respectivos inquéritos. Caso não coubesse,<br />

o expediente seria encaminhado ao chefe do Ministério Público competente, na<br />

jurisdição de cada estado onde ocorreram os fatos.<br />

134. O Brasil contava com um aliado na frente jurídica, o professor Carlos Alberto Dunshee<br />

de Abranches. Embora eleito para cumprir mandato a título pessoal na CIDH, o professor Dunshee<br />

de Abranches atuou comprometido com o governo brasileiro, comportando-se, e sendo reconhecido,<br />

como um parceiro confiável, numa posição em que a neutralidade em relação aos Estados nacionais era<br />

208


um pressuposto. O jurista atuou, nos casos 1.683 e 1.684, em duas esferas: a processual e a material.<br />

No campo processual, empenhou-se em criar dificuldades para a publicação do relatório. Segundo<br />

consta em “Informação para o senhor presidente da República”, de 4 de março de 1976, 88 a comissão<br />

ainda não havia, até aquela data, publicado suas conclusões sobre os casos, por não dispor de recursos<br />

suficientes para tanto. Essa dificuldade se devia sobretudo à moção apresentada pelo professor Dunshee<br />

de Abranches, no sentido de que, “se publicados os dois casos, deveriam sê-lo por extenso, ou seja,<br />

incluindo, na sua totalidade, a defesa brasileira, que abrange vários volumes”. Conforme anotado<br />

anteriormente, no caso 1.684, o governo brasileiro apresentou, em sua defesa, documentação extensa,<br />

porém repetitiva; agora, consumadas as investigações e consolidadas as conclusões, o professor<br />

Dunshee de Abranches apresenta moção para, lançando mão dessa mesma documentação, dificultar<br />

a publicação do relatório. Em outras palavras, buscava-se um adensamento burocrático e processual<br />

com o objetivo de impor dificuldades materiais para a divulgação do documento.<br />

135. No plano do mérito, o jurista apresentou voto divergente no caso 1.684, rebatendo todos<br />

os argumentos desenvolvidos no relatório. Dividido em duas partes, o voto contém, na primeira, a<br />

alegação de que não foram esgotados os recursos internos do direito brasileiro e, na segunda, a de que<br />

são improcedentes as conclusões e recomendações apresentadas.<br />

136. Para não aplicar a regra do esgotamento dos recursos internos, a CIDH assumiu<br />

como pressuposto a distinção entre casos individuais e casos gerais: os casos individuais são aqueles<br />

cujo objeto da denúncia é uma lesão a um ou mais direitos fundamentais de uma pessoa ou de várias<br />

pessoas identificadas; já nos caso gerais há uma situação caracterizada pelo fato de que várias pessoas<br />

sofrem atentados contra seus direitos fundamentais, geralmente com risco iminente de que o dano<br />

se estenda a outras pessoas.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

137. Como essa distinção sustenta o argumento desenvolvido pela CIDH no sentido de que<br />

a regra do esgotamento dos recursos internos somente seria aplicável a casos individuais, mas não a<br />

casos gerais, o professor Abranches nega-lhe validade, afirmando em seu voto que ela não existe em<br />

nenhum dos dispositivos do estatuto ou do regulamento. O que há são somente os casos individualmente<br />

considerados, pois,<br />

tanto para a tramitação dos casos contemplados no artigo 38, como nos casos do artigo<br />

53 do regulamento, exige-se que as comunicações ou denúncias contenham menção<br />

precisa ao fato denunciado e o nome ou os nomes das vítimas das supostas violações,<br />

sendo inadmissíveis comunicações de violações contra ‘pessoas indeterminadas’(fl. 3).<br />

Por fim, o professor observa uma incoerência na decisão da CIDH, pois o caso 1.684 reúne casos individuais<br />

determinados, e as recomendações feitas pela comissão dizem respeito a esses casos, não sendo,<br />

portanto, possível, com base em casos gerais, ignorar a regra do esgotamento dos recursos internos e,<br />

ao mesmo tempo, fazer recomendações relativas a casos individuais.<br />

138. No que diz respeito à improcedência das conclusões e recomendações feitas pela<br />

comissão, baseadas sobretudo no fato de que havia indícios suficientes para presumir a violação de<br />

direitos, Dunshee de Abranches, numa curiosa referência ao direito penal para sustentar tese desenvolvida<br />

no âmbito do direito internacional público, asseverou que “nenhuma presunção, por mais<br />

209


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

veemente que seja, poderá justificar a aplicação de uma pena” (fl. 4). O professor, ademais, desqualificou<br />

tanto os responsáveis pelas denúncias feitas contra o Brasil, como a afirmação de que exames<br />

médicos realizados no México e na Argélia, em presos políticos trocados por pessoas sequestradas,<br />

teriam confirmado a realização de torturas.<br />

139. Já na frente política, os objetivos específicos do governo brasileiro foram perseguidos<br />

por meio de gestões do plano multilateral, gestões no plano bilateral e ações sobre as fontes de recursos.<br />

No tocante às gestões no plano multilateral, o representante permanente do Brasil na OEA, o embaixador<br />

Paulo Padilha Vidal, foi instruído a manifestar ao secretário-geral da organização, o diplomata<br />

argentino Alejandro Orfila, que o Brasil não aceitaria a publicação de nenhum fato relacionado com<br />

os casos 1.683 e 1.684, e que era desejo do governo brasileiro o arquivamento do dossiê sobre o Brasil.<br />

Além disso, houve também instruções no sentido de solicitar ao secretário-geral da OEA o afastamento<br />

para outras funções do sr. Luis Reque, secretário executivo da CIDH, cuja atuação teria sido levada<br />

para além dos limites do mandato conferido pelo regulamento da CIDH a seu secretário<br />

executivo [...] No que diz respeito ao Brasil, sabe-se que, na impossibilidade de<br />

publicar o relatório da comissão sobre os dois casos em apreço, pretendia o senhor Reque<br />

‘entregá-los à imprensa’, procedimento que não lhe é facultado pela regulamento. 89<br />

140. Ainda no plano multilateral, o chanceler Azeredo da Silveira informava o presidente da<br />

República da necessidade de canalizar esforços no sentido de reeleger para a vaga na CIDH o professor<br />

Dunshee de Abranches,<br />

que tem tido procedimento correto na comissão, com relação aos casos que envolvem<br />

o Brasil. Caso venha a assumir a Presidência do órgão, pelo sistema de rodízio,<br />

o professor Dunshee de Abranches poderá tornar-se elemento-chave para impedir<br />

a publicação dos dossiers. A ele seriam, oportunamente, transmitidas as reações e<br />

instruções de Vossa Excelência tendo em vista a presente informação. 90<br />

141. Já no tocante às gestões no plano bilateral, nos esforços empreendidos para obter o arquivamento<br />

dos casos, o representante brasileiro deveria igualmente realizar gestões não somente junto<br />

ao representante da Bolívia, para que fossem feitas “pressões moderadoras” sobre o cidadão boliviano<br />

Luiz Reque, como também gestões junto aos representantes de cada país de que era nacional cada um<br />

dos seis outros membros da CIDH: Venezuela (Andrés Aguilar, então presidente da CIDH), Argentina<br />

(Genaro Carrió), Chile (Manuel Bianchi), Estados Unidos (Robert E. Woodward), México (Gabino<br />

Fraga) e Uruguai (Justino Jiménez de Aréchaga). 91 Em suma, nos termos de despacho telegráfico, o<br />

governo brasileiro solicitava que esses governos fizessem gestões<br />

junto ao membro da CIDH nacional desse país [...] a fim de obter seu apoio para o<br />

arquivamento definitivo, pela comissão, dos casos 1.683 e 1.684 [...]. Muito embora<br />

a participação na CIDH seja a título pessoal, e não de representação governamental,<br />

o governo brasileiro está certo de que esse governo poderá sensibilizar o membro<br />

[seu nacional] na CIDH para a presente solicitação brasileira e, no contexto das<br />

tradicionais relações de amizade mantidas bilateralmente com esse país, muito apreciará<br />

suas iniciativas para aquele fim. 92<br />

210


142. Dentre as iniciativas tomadas, vale mencionar o encontro entre o embaixador do Brasil em<br />

Montevidéu, Antônio Corrêa do Lago, e o chanceler uruguaio, Juan Carlos Blanco, que afirmou não ter<br />

condições de efetuar qualquer gestão junto ao dr. Justino Jiménez de Aréchaga [...]<br />

devido à atitude deste com relação ao governo uruguaio [...]. Conhecendo, como<br />

conhecia, no temperamento do referido jurista, sabia que qualquer pedido feito a ele<br />

provocaria exatamente reação contrária. 93<br />

143. No que concerne às ações sobre a fonte de recursos, diante da notícia de que esforços<br />

estariam sendo desenvolvidos, inclusive pelo secretário executivo da comissão, no sentido de conseguir<br />

recursos suficientes para a publicação do relatório, a missão brasileira junto à OEA foi instruída<br />

a “impedir a alocação de fundos orçamentários extraordinários à CIDH, por todos os meios ao<br />

alcance da missão”. 94 Com recursos escassos e medidas protelatórias, contava-se com a possibilidade<br />

de que, mais tarde, se viesse a reconhecer que não haveria mais sentido em dedicar esforços a publicações<br />

sobre casos ultrapassados.<br />

144. Os casos 1.683 e 1.684 dizem ambos respeito a graves violações de direitos fundamentais<br />

cometidas contra pessoas. O Brasil enfrentou as acusações criando dificuldades, seja ao não autorizar a<br />

visita de representantes da CIDH ao país, seja promovendo, sobretudo no caso 1.684, um adensamento burocrático<br />

e processual, produzindo material probatório repetitivo e inútil. Mais tarde, essa documentação<br />

seria utilizada por Dunshee de Abranches para dificultar a publicação do relatório desfavorável ao Brasil.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

145. No plano jurídico, o Brasil defendia a tese de que os recursos internos ainda não haviam<br />

se esgotado e que as provas apresentadas na denúncia eram insuficientes, quando não inidôneas. No<br />

plano político, a diplomacia brasileira agiu nas frentes multilateral e bilateral e contou ainda com a<br />

colaboração de membro da CIDH.<br />

2.4) Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José)<br />

146. Em sua derradeira fase – o governo Figueiredo –, a ditadura militar impediu a adesão<br />

do Brasil à Convenção Americana sobre Direitos Humanos, o “Pacto de São José”. Firmado em 22 de<br />

novembro de 1969 na capital da Costa Rica, pela maioria dos Estados-membros da OEA, o referido<br />

tratado foi assinado pelos Estados Unidos em 1977, no primeiro ano da administração Carter. Em<br />

1980 e 1981, duas entidades representativas da sociedade civil – a Associação Brasileira de Imprensa<br />

(ABI), por seu presidente, Barbosa Lima Sobrinho, e a seção fluminense da Ordem dos Advogados do<br />

Brasil (OAB) – realizaram gestões junto ao governo federal para que o Brasil também aderisse ao tratado.<br />

Submetida à análise do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CDDPH), vinculado<br />

ao Ministério da Justiça, a proposta recebeu parecer contrário do MRE, lido na sessão de 3 de maio de<br />

1983 por seu representante no órgão, o embaixador Marcos Castrioto de Azambuja.<br />

147. No arrazoado, predominavam argumentos de fundo soberanista. No articulado da convenção,<br />

era especialmente criticada a instituição de uma Corte Interamericana de Direitos Humanos,<br />

considerada incompatível com a soberania nacional. Segundo o parecer do MRE, ao conferir à Corte<br />

Interamericana “atribuições de caráter supranacional”, o Pacto de São José contrariava “a posição<br />

211


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

tradicional do governo brasileiro na matéria [...] pelo risco de submissão incontrolável a terceiros de<br />

assuntos sensíveis no campo da soberania nacional”.<br />

148. Todo um parágrafo do parecer era consagrado à crítica dos mecanismos de controle<br />

estabelecidos pelo pacto. Preocupava, em particular, a prerrogativa que o tratado, em seu artigo 64,<br />

parágrafo 1 o , atribuía à Corte de emitir opinião acerca da compatibilidade entre qualquer uma das leis<br />

internas do Estado interessado e instrumentos internacionais de proteção aos direitos humanos de que<br />

era signatário – como a Convenção da Costa Rica.<br />

149. Essa visão contrária à adesão ao Pacto de São José só seria alterada em junho de 1992<br />

no governo Itamar Franco, quando, devidamente aprovado pelo Congresso Nacional, o tratado foi<br />

alvo da adesão do Brasil. A competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos foi<br />

reconhecida em 1998 pelo governo Fernando Henrique Cardoso, 95 por iniciativa do próprio presidente<br />

da República e também após a aprovação do Congresso Nacional, ambos os poderes sensibilizados<br />

pelos argumentos da sociedade civil.<br />

150. Em suma, como ficou demonstrado neste capítulo, através de documentação oficial e de<br />

depoimentos, a diplomacia brasileira integrou, através do Ciex, o sistema de informação da Ditadura<br />

Militar. O MRE contribuiu egregiamente para o bom funcionamento da estrutura de repressão.<br />

151. Essa colaboração com a repressão ilegal ocorreu por meio de duas vias principais.<br />

Primeiro, a omissão em diversos incidentes envolvendo cidadãos brasileiros; por exemplo, diante dos<br />

brasileiros detidos no Estádio Nacional de Santiago de Chile, depois do golpe militar de 1973. Quando<br />

as autoridades chilenas pediram salvo-condutos para libertar os brasileiros, cuja detenção não mais lhes<br />

interessava, o governo brasileiro, em vez dos salvo-condutos, enviou equipes de militares e policiais<br />

para interrogá-los e, segundo depoimentos, torturá-los, com total descaso pela proteção de nacionais,<br />

enfrentando situações de risco fora do Brasil.<br />

152. Segundo, o MRE atuou de forma direta, como no Chile, na cooperação internacional<br />

com ditaduras do Cone Sul – a Operação Condor; fornecendo lista de centenas de passaportes<br />

“extraviados” a países como a República Federal da Alemanha; ou monitorando a entrada e saída de<br />

nacionais fora do país. Ao compartilhar tais informações com o aparato repressivo, o MRE colocou<br />

em risco a vida de muitos cidadãos brasileiros, em alguns casos, destinados ao assassinato por agentes<br />

de Estado. E, no âmbito da Operação Condor, também a de estrangeiros no Brasil.<br />

153. Uma diplomacia – que, por definição, deveria atuar basicamente primeiro do diálogo<br />

e do entendimento – que desvirtuou suas funções a ponto de envolver-se diretamente com a violência<br />

ilegal e com a exceção. Para tanto, mentiu sobre as graves violações de direitos humanos e apelou a subterfúgios<br />

protelatórios, violando os compromissos do Estado brasileiro perante o direito internacional<br />

dos direitos humanos e o direito humanitário.<br />

154. Se considerarmos as funções intrínsecas, perenes e tradicionais do MRE nos governos<br />

democráticos, como “promover os interesses do Estado e da sociedade brasileiros no exterior”, a atuação<br />

do MRE desrespeitou os direitos humanos e as garantias constitucionais dos nacionais e não exerceu<br />

a proteção desses direitos e garantias a seus nacionais no exterior.<br />

212


155. Da mesma forma como no governo federal, ou nas Forças Armadas, em que a cadeia de<br />

comando se estendia do general-presidente aos operadores da tortura, a responsabilidade pelo envolvimento<br />

do MRE, no sistema de informação e nos crimes da ditadura, ia do ministro de Estado das<br />

Relações Exteriores até os quadros inferiores das bases do Ciex no exterior. Pelo flagrante desrespeito<br />

dos direitos dos cidadãos a quem devia proteção segundo o direito internacional, e pela colaboração<br />

com as graves violações de direitos humanos na ditadura, a diplomacia brasileira deverá se obrigar a<br />

compreender como foi possível se deixar capturar por esse envolvimento direto no terrorismo de Estado<br />

com tão graves consequências para as vidas de tantos brasileiros.<br />

ANO<br />

VÍTIMA (ORGANIZAÇÃO)<br />

1973 Nilton Rosa da Silva (MIR)<br />

Túlio Roberto Cardoso Quintiliano (PCBR)<br />

Luiz Carlos de Almeida (POC)<br />

Wanio José Mattos (VPR)<br />

Nelson Kohl (POC)<br />

Edmur Péricles Camargo (M3G)<br />

Tito de Alencar Lima (ALN)<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

1974 Jane Vanini (Chile)<br />

1976 Sidney Fix Marques dos Santos (PORT))<br />

Francisco Tenório Cerqueira Júnior (N/C)<br />

Sérgio Fernando Tula Silberbeg (N/C)<br />

Maria Regina Marcondes Pinto (ACBS)<br />

Maria Auxiliadora Lara Barcellos (VAR-Palmares)<br />

Walter Kenneth Nelson Fleury (OCPO) e (FMP)<br />

1977 Roberto Rascado Rodriguez (Movimento Estudantil)<br />

1978 Therezinha Viana de Assis (AP)<br />

Manoel Custodio Martins (PTB)<br />

1980 Luís Renato do Lago Faria (Movimento Estudantil)<br />

1 – À época, a rede de postos diplomáticos e consulares brasileiros no exterior reunia 86 missões diplomáticas; 64 repartições<br />

consulares; 14 consulados privativos; seis missões junto a organismos internacionais; dois serviços de seleção de<br />

imigrantes; e uma Delegacia do Tesouro Brasileiro. In: Anuário 1964-1966, s/d, s/l, Ministério das Relações Exteriores:<br />

Seção de Publicações da Divisão de Documentação.<br />

2 – Depoimento colhido em 16 de abril de 2014, Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000654/2014-65.<br />

3 – Arquivo Nacional, SNI: PR_DFANBSB_Z4_REX_IPE_0098.<br />

4 – Arquivo do Ministério das Relações Exteriores. Referência: circular telegráfica 1971.<br />

5 – O documento de 12 de julho de 1967 com o título: “Criação do Serviço de Informações no Exterior”, encontrado no<br />

fundo Ciex, detalha a forma como foram pensadas suas diretrizes iniciais. Especifica que o “serviço deverá existir dentro<br />

do mais absoluto grau de sigilo. Essa ‘clandestinidade’ é fundamental para a segurança e eficiência de seu funcionamento<br />

[...]”. Arquivo Nacional, Ciex: BR_DFANBSB_IE.<br />

6 – Depoimento colhido em 18 de fevereiro de 2014, Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.00957/2014-88.<br />

213


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

7 – Em seu estudo sobre a França de Vichy, o historiador Marc Olivier Baruch põe em destaque o papel político de uma<br />

instituição costumeira – a secretaria-geral do governo da República Francesa. Stanley Hoffmann, com obra consagrada,<br />

qualifica o Concerto Europeu, do século XIX, como uma organização internacional não institucional, de natureza consuetudinária,<br />

à semelhança do gabinete britânico e em oposição à Sociedade das Nações ou à ONU. No mundo contemporâneo,<br />

poderiam ser citados o G-7, o G-8, o G-20 ou o BRICS, como instituições costumeiras, cuja formação ocorreu<br />

sem a assinatura de um ato constitutivo.<br />

8 – Ver, por exemplo, informe Ciex 235/76, de 7/7/1976, p. 1/1. Arquivo Nacional, Ciex: BR_DFANBSB_IE_15.7.<br />

9 – Arquivo do MRE, Série Secreto Exclusivo.<br />

10 – Arquivo Nacional, DSI/MRE: BR_DFANBSB_Z4_AGR_DNF.26.<br />

11 – Sobre os primórdios do intercâmbio entre o Itamaraty e a EIA, ver CAILLAT, Michel. L’Entente International Anticommuniste<br />

de Théodore Aubert: organisation interne, réseaux et action d’une international antimarxiste. Tese (Doutorado em<br />

História) – Faculdade de Letras, Universidade de Genebra, Genebra, 2012, p. 170; LODYGENSKY, Dr. Georges. Face<br />

au communisme 1905-1950: quand Genève était le centre du mouvement anticommuniste international. Genebra: Éditions<br />

Slatkine, 2009, pp. 325-28; e HILTON, Stanley. A rebelião vermelha. Rio de Janeiro: Record, 1986, pp. 43-44.<br />

12 – Arquivo Histórico do MRE: CAT 034 ex 1. Comunismo. Referência: 500.1, lata 980, maço 15.604.<br />

13 – Estabelecia o Decreto n o 46.508 “A”, de 20 de julho de 1959, em seu artigo 3 o , parágrafo 1 o : “A designação do representante<br />

de cada ministério civil [na Junta Coordenadora de Informações] será feita mediante portaria do ministro respectivo,<br />

devendo recair, preferencialmente, no diretor da Seção de Segurança Nacional”. Contudo, no caso do Itamaraty, ela<br />

recaiu no chefe do Departamento Político, funcionário de hierarquia muito superior à do diretor da Seção de Segurança<br />

Nacional. “[...] fora nomeado membro e vice-presidente da Junta Coordenadora de Informações, posição que me dava<br />

oficialmente acesso aos informes colhidos pelos diversos órgãos do que veio mais tarde a chamar-se ‘Comunidade de<br />

Informações’, e que tinha como ápice e ponto de convergência final aquela Junta.” In: PIO CORRÊA, Manoel. O mundo<br />

em que vivi. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1995, p. 656.<br />

14 – Pedro Leão Velloso, ministro das Relações Exteriores de 1 o /11/1945 a 31/1/1946.<br />

15 – Afonso Arinos de Melo Franco foi ministro das Relações Exteriores de 1 o /2/1961 a 11/9/1961.<br />

16 – PIO CORRÊA, Manoel. O mundo em que vivi. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1995, p. 656.<br />

17 – GRUPO DE TRABALHO integrado por representantes do Serviço Nacional de Informações, Assessoria Especial<br />

de Relações Públicas da Presidência da República, Ministério das Relações Exteriores e Estado-Maior das Forças Armadas”.<br />

Política de comunicação social no campo externo. Documento anexo à exposição de motivos n o 090/70, do secretário-geral<br />

do Conselho de Segurança Nacional. Brasília: Conselho de Segurança Nacional, 20 de novembro de 1970, p.1.<br />

Arquivo Nacional, DSI MJ: BR_RJANRIO_TT_0_MCP_PRO.180.<br />

18 – Histórico funcional do delegado de polícia Ruy Lisboa Dourado. Arquivo da Polícia Civil do Rio de Janeiro.<br />

19 – Depoimento colhido em 18 de fevereiro de 2014, Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.00957/2014-88.<br />

20 – Depoimento colhido em 18 de fevereiro de 2014, Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000157/2014-67.<br />

21 – O pai de Marcos Cortes, o general Geraldo de Menezes Cortes, foi chefe de polícia do antigo Distrito Federal,<br />

deputado federal e líder da bancada da União Democrática Nacional (UDN), fazendo cerrada oposição ao governo do<br />

presidente João Goulart. Foi, também, padrinho de casamento de Fragoso. Filho do embaixador Bolitreau Fragoso, secretário-geral<br />

do MRE durante a curta administração do chanceler Araújo Castro, no crepúsculo do governo Goulart,<br />

João Carlos Pessoa Fragoso é neto de dois importantes chefes militares do passado: o general Tasso Fragoso, integrante<br />

da Junta Governativa que depôs o presidente Washington Luís, em outubro de 1930; e o general Pantaleão Pessoa,<br />

chefe do Estado-Maior do Exército em novembro de 1935, quando desempenhou papel central na mobilização militar<br />

contra o levante comunista. O último presidiu a Liga de Defesa Nacional – que, por iniciativa sua, se filiou em 1934 à<br />

EIA. Nesse mesmo ano, o general Pantaleão Pessoa supervisionou a organização do CSN. Uma de suas filhas, irmã da<br />

mãe de Fragoso, era casada com o jurista gaúcho João Leitão de Abreu, chefe do Gabinete Civil da Presidência da República<br />

nos governos Médici e Figueiredo. Ao deixar a direção do Ciex, em novembro de 1969, Fragoso passou a trabalhar<br />

sob as ordens de Leitão de Abreu, como subchefe da Casa Civil. Leitão de Abreu, por sua vez, era cunhado do general<br />

Lira Tavares, integrante da Junta Militar que assumiu o poder em 30 de agosto de 1969, graças ao Ato Institucional<br />

n o 12, promulgado para impedir a posse do vice-presidente Pedro Aleixo. Em seu depoimento, Fragoso admitiu que<br />

Leitão de Abreu possa ter sido um dos redatores do AI-12 – que, no preâmbulo, declarou o Brasil em estado de “guerra<br />

revolucionária” e de “guerra psicológica adversa”.<br />

22 – Arquivo do MRE, Série Secreto Exclusivo, BRASEMB Paris.<br />

23 – Depoimento colhido em 17 de fevereiro de 2014, Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000199/2014-06.<br />

24 – Antonio Delfim Netto, embaixador em Paris de fevereiro de 1975 a fevereiro de 1978.<br />

214


25 – Ver informe interno M (PS), 21/10/1970.<br />

26 – Depoimento colhido em 23 de maio de 2014, Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000793/2014-99.<br />

27 – Arquivo Nacional, Ciex: BR_DFANBSB_IE_25.1.<br />

28 –Arquivo Nacional, Ciex: BR_AN_BSB_IE_025_001.<br />

29 – Arquivo do MRE, Série Secreto Exclusivo.<br />

30 – Arquivo Nacional, CIEX: BR_AN_BSB_IE_025_001.<br />

31 – Arquivo Nacional, SNI: BR_DFANBSB_ V8_ACE _32369_71.<br />

32 – Mario Peres Leal é identificado também como Leonardo Gravoy no telegrama ultrassecreto da Embaixada<br />

do Brasil em Buenos Aires datado de 14 de dezembro de 1970. Em depoimento à <strong>CNV</strong>, em 16 de janeiro de 2013<br />

(00092.00425/2013-60), Jefferson Lopetegui de A. Osório, filho de Jefferson Cardim, confirmou que, no voo do CAN<br />

que os transportou de Buenos Aires para o Rio de Janeiro, sentou-se ao lado de um prisioneiro que disse ser paraguaio e<br />

que estava sendo enviado para o Brasil porque a Argentina não havia conseguido determinar sua identidade. Documentos<br />

do Arquivo Nacional revelam que Mario Cozel Rodrigues utilizava vários nomes falsos, dentre eles Ramón Mário Bittencourt,<br />

Dagoberto Peres Leal e Mario Peres Leal, entre outros. 00092.000667/2013-53.<br />

33 – Arquivo Nacional, SNI: BR_DFANBSB_ V8_ACE _41436_71 (informação n o 17, de 17/6/1971, do adido do Exército<br />

em Buenos Aires; informação n o 68, de 23 /6/1971, do adido da Aeronáutica em Montevidéu).<br />

34 – Arquivo do MRE, Série Secreto Exclusivo.<br />

35 – Arquivo Nacional, SNI: BR_DFANBSB_ V8_A0719985 _74.<br />

36 – PIO CORRÊA, Manoel. O mundo em que vivi. Rio de Janeiro: Editora Expressão e Cultura, 1995, p. 581.<br />

37 – ROSE, R. S. e SCOTT, Gordon D. Johnny: a vida do espião que delatou a rebelião comunista de 1935. Trad. Bruno Casotti.<br />

Rio de Janeiro: Record, 2010. Agente duplo, a serviço, simultaneamente, da inteligência militar soviética e do Special Intelligence<br />

Service britânico (SIS, o MI6), o comunista alemão Johann Heinrich de Graaf (codinome: “Jonny X”) fora a fonte das<br />

informações que chegaram até o Itamaraty, por intermédio do embaixador britânico, Hugh Gurney. Toda a operação era comandada,<br />

desde Londres, pelo major Valentine Patrick Terrell Vivian (“Vee-Vee”), chefe da Seção V (contraespionagem) do SIS.<br />

38 – No século XXI os serviços secretos britânicos parecem ter ingressado em período de maior abertura, permitindo, em<br />

certos casos, acesso aos seus arquivos. Na obra Defend the Realm, publicada em 2009 como uma “história autorizada” do<br />

MI5, o professor Christopher Andrew, da Universidade de Cambridge, revela a imensidão dos arquivos a que teve acesso<br />

– mais de 400 mil pastas só em papel.<br />

39 – Em documento do Foreign and Commonwealth Office (FCO), consultado pela <strong>CNV</strong> no National Archives em<br />

Londres (FCO 95/491), o Ministério do Exterior britânico revela que, no primeiro semestre de 1968, funcionário do MRE<br />

teria sugerido a um diplomata da Embaixada no Rio de Janeiro que dois ou três membros do MRE viajassem ao Reino<br />

Unido para receber treinamento sobre o Information Research Department (IRD). Outro documento, um relatório do<br />

Departamento da América Latina do Foreign Office, datado de 10 de março de 1976 (FCO 7/3048), faz menção às práticas<br />

de tortura brasileiras como expressão de técnicas britânicas. Assinala, com base em informações colhidas pelo adido<br />

de defesa em Brasília, a preocupação do presidente Geisel com a imagem negativa que a tortura física estava causando<br />

ao Exército. O general Otávio de Medeiros, diretor da Escola Nacional de Informações (ESNI), seria o responsável pelo<br />

treinamento de militares em técnicas mais modernas de interrogatório, baseadas em métodos psicológicos.<br />

40 – Arquivo Nacional, Ciex: BR_DFANBSB_IE. Referência: BSBZ4. AGR.RFU.8, p. 19.<br />

41 – Explica o professor Christopher Andrew que só em 1989, com a votação do Security Service Act pelo Parlamento, o<br />

serviço secreto britânico ganhou, pela primeira vez em sua longa história, um estatuto legal.<br />

42 – ALDRIGHI, Clara. Conversaciones reservadas entre políticos uruguayos y diplomáticos estadounidenses. Montevidéu:<br />

Ediciones de la Banda Oriental, 2012, pp. 44-45.<br />

43 – Depoimento colhido em 2013, Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001880/2013-82.<br />

44 – Arquivo do MRE; Série Secreto Exclusivo, 1976.<br />

45 – Ver a esse respeito: FERNANDES, Ananda S. Quando o inimigo ultrapassa a fronteira: as conexões repressivas entre a<br />

ditadura civil-militar brasileira e o Uruguai. Dissertação de Mestrado. Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto<br />

Alegre, 2009, em que é analisada, entre outras, a documentação produzida pelas Seções de Ordem Política e Social (SOPS)<br />

que funcionavam no interior do estado.<br />

46 – Depoimento colhido em 21 de julho de 2014. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001604/2014-03.<br />

47 – O informe DSI/84, de 6 de fevereiro de 1970 (ACE 9820/70), localizado pela <strong>CNV</strong> no Arquivo Nacional, mostra<br />

que, informado sobre os fatos em fevereiro de 1970, o ministro Mário Gibson Barboza os levou imediatamente<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

215


5 – a participação do estado brasileiro em graves violações no exterior<br />

ao conhecimento do presidente Médici, que determinou abertura de inquérito. Em seguida, o então ministro Luiz<br />

Octávio Parente de Mello, diretor da DSI/MRE, solicitou ao embaixador Antônio da Câmara Canto, presidente da<br />

CIS, que o assunto fosse examinado por esse órgão de exceção. Guinle foi punido com noventa dias de suspensão.<br />

Estigmatizado pela punição, deixou a carreira diplomática. Em 2002, requereu anistia ao ministro da Justiça, com<br />

base na Lei n o 10.559/2002. Seu pedido, inicialmente acolhido pela Comissão de Anistia, foi indeferido, em 10<br />

de novembro de 2004, pelo ministro Márcio Thomaz Bastos. Guinle recorreu, sem êxito, ao Superior Tribunal de<br />

Justiça (STJ). Em depoimento à <strong>CNV</strong>, Guinle lamentou que, embora transcorridas mais de quatro décadas desde<br />

o episódio consular que lhe arruinou a carreira diplomática, não tenha conseguido ser anistiado e readmitido nos<br />

quadros do MRE, como servidor inativo.<br />

48 – Circulares postais n o 5.215 e n o 5.226, de junho de 1964.<br />

49 – Arquivo Nacional, SNI: AC_ACE_84768_75_001.<br />

50 – Estudo detalhado acerca da repressão interna no MRE consta no Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092_001322_2014_06.<br />

51 – Arquivo do MRE, Referência 312.4.<br />

52 – Depoimento colhido em 30 de março de 2014. 00092.000757/2014-25.<br />

53 – Arquivo do MRE, Referência 312.4.<br />

54 – Ibid.<br />

55 – Arquivo Nacional, DSI MRE: BR_DFANBSB_Z4.<br />

56 – Arquivo do MRE, Referência 312.4.<br />

57 – Arquivo do MRE, Referência 300.12.<br />

58 – Depoimento colhido em 16 de abril de 2014, Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000654/2014-65. Ver memorando n o DSI/827,<br />

datado de 5 de outubro de 1979.<br />

59 – Estudo detalhado acerca das adidâncias consta no Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092_001414_2014_88.<br />

60 – Arquivo Nacional, SNI: BR_DFANBSB_V8_AC_ACE_63719-73.<br />

61 – Arquivo Nacional, Ciex: BR_ DFANBSB_ IE.07.3, pp. 74-86.<br />

62 – Arquivo do MRE, Referência 520.21 (44).<br />

63 – Depoimento colhido em maio de 2014. 00092_000793/2014-99.<br />

64 – Depoimento colhido em 22 de outubro de 2014. 00092_000906_2014_56.<br />

65 – Arquivo do MRE; Referência: Série Organismos Internacionais, 1964.<br />

66 – Discurso proferido pelo general Humberto de Alencar Castello Branco no dia 1 o de maio de 1964, em São Paulo.<br />

.<br />

67 – ALVES, J. A. Lindgren. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, 1994, pp. 88-89.<br />

68 – BR.AN.RIO.TT.O.MCP.PRO.432 – Processo DICOM n o 59.947 (11/7/1975).<br />

69 – BR.AN.RIO.TT.O.MCP.PRO.432 – Processo DICOM n o 59.947 (11/7/1975).<br />

70 – Arquivo Nacional BR.AN.RIO.TT.O.MCP.PRO.432 – Processo DICOM n o 59.947 (11/7/1975).<br />

71 – Ibid.<br />

72 – SECRETO DNU/DSI/34/610.5 (000).<br />

73 – BR.AN.RIO.TT.O.MCP.PRO.432 – Processo DICOM n o 59.947 (11/7/1975), p. 24.<br />

74 – ALVES, J. A. Lindgren. Os direitos humanos como tema global. São Paulo: Perspectiva, 1994, pp. 88-89.<br />

75 – SABADELL, Ana Lucia (Coord.); ESPINOZA MAVILLA, Olga (Coord.). Elaboração jurídico-penal do passado após<br />

mudança do sistema político em diversos países: relatório Brasil. São Paulo: IBCCRIM, 2003, pp. 200-3; MEZAROBBA,<br />

Glenda. O preço do esquecimento: as reparações pagas às vítimas do regime militar. Tese de Doutorado. Faculdade de Filosofia,<br />

Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo (USP), São Paulo, 2008, pp. 357-58.<br />

76 – Caso 1683. Arquivos da CIDH.<br />

77 – MRE/AAA/1/602.60 (20)/1971/5, fl. 30.<br />

78 – Anexo II. Segunda Auditoria do Exército. Proc. 134/70. MRE/AAA/1/602.60 (20)/1971/5, fl. 113.<br />

79 – Ibid., fl. 108.<br />

216


80 – Trata-se do dr. José Geraldo Ciscato, que fora chamado à cela de Olavo Hansen, no dia 8 de maio, e que, segundo<br />

consta no resumo feito pela auditoria militar, ouviu do paciente que “este sofria, desde anos atrás, de moléstia renal, que<br />

vinha sendo tratada” (fl. 108). Embora tenha notado “equimoses de pequena dimensão e grande edema em ambas as<br />

pernas, [o médico esclareceu] que tais edemas são devidos à própria insuficiência renal, isto é, à falta de diurese” (fl. 108).<br />

81 – Anexo II. Segunda Auditoria do Exército. Proc. 134/70. MRE/AAA/1/602.60 (20)/1971/5, fls. 105-6. Todos os<br />

destaques no original.<br />

82 – Anexo II. Segunda Auditoria do Exército. Proc. 134/70. MRE/AAA/1/602.60 (20)/1971/5, fl. 106. Grifo no original.<br />

83 – Arquivo da CIDH, Caso 1684 (fl. 16).<br />

84 – Arquivo da CIDH, Caso 1684.<br />

85 – Resolución sobre el Caso 1684 (Brasil). Arquivo da CIDH, Caso 1684.<br />

86 – Regulamento da CIDH, item 2, artigo 57: “Se a Assembleia Geral ou a Reunião de Consulta não formularem observações<br />

às recomendações da comissão e se o governo aludido no relatório não tiver adotado as medidas recomendadas,<br />

a comissão poderá publicar seu relatório”.<br />

87 – Arquivos da CIDH. Caso 1684.<br />

88 – Arquivo do MRE, Referência: Informações ao Presidente, 1976.<br />

89 – Arquivo do MRE, Referência: Telegrama n o 240, Delegação do Brasil junto à União Panamericana (Delbrasupa)<br />

Washington, de 29/3/1974.<br />

90 – Informação para o presidente da República, assinada pelo ministro de Estado das Relações Exteriores, Antonio F.<br />

Azeredo da Silveira, Índice: CIDH. Casos n os 1.683 e 1.684.<br />

91 – Ibid.<br />

92 - Arquivo do MRE, Referência: despacho-telegráfico n o 38, de 24/1/1977, para as Embaixadas em Buenos Aires, Caracas,<br />

Cidade do México, Montevidéu, Santiago e Washington.<br />

93 – Arquivo do MRE, Referência: Telegrama n o 199, da Embaixada do Brasil em Montevidéu para Secretaria de Estado,<br />

de 18/3/1976. A propósito das posições do jurista uruguaio, no adendo ao caso 1.684, a respeito de novas provas apresentadas<br />

pelo Brasil, Justino Jiménez de Aréchaga foi o relator e, nessa condição, rejeitou o material apresentado, rotulando-o<br />

simples repetição de argumentos já examinados: “O fato é que não há novas provas”.<br />

94 – Arquivo do MRE, Referência: despacho-telegráfico no 101, para Delegação do Brasil junto à União Panamericana<br />

(Delbrasupa), de 10/3/1976.<br />

95 – Sobre a vinculação do Brasil à Convenção Americana, ver Decreto n o 678, de 6/11/1992; sobre o reconhecimento<br />

da competência obrigatória da Corte Interamericana de Direitos Humanos, ver Decreto Legislativo n o 89, de 3/12/1998,<br />

e Decreto n o 4.463, de 8/11/2002.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

217


6capítulo<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

conexões internacionais:<br />

a aliança repressiva no cone sul<br />

e a operação condor<br />

219


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

Somos também sobreviventes da repressão. Perdura em nós a memória e estamos<br />

eticamente obrigados a defendê-la, a nos reencontrar com ela, ainda que seja doloroso.<br />

Tive a possibilidade de sobreviver. Levo comigo a obrigação de não esquecer.<br />

[Universindo Rodriguez Díaz, historiador e sobrevivente do sequestro em Porto<br />

Alegre pela Operação Condor. “Todo está cargado en la memoria, arma de la vida<br />

y de la historia”. In: PADRÓS, Enrique Serra et al. (Org.) A ditadura de Segurança<br />

Nacional no Rio Grande do Sul (1964-1985): história e memória. Conexão Repressiva<br />

e Operação Condor, v. 3. Porto Alegre: Corag, 2010, p. 202.]<br />

1. A coincidência de ditaduras militares de orientação ideológica semelhante na América do<br />

Sul nas décadas de 1970 e 1980 refletiu-se em intensa cooperação regional em assuntos relacionados ao<br />

“combate à subversão”. Apesar das especificidades de cada um desses regimes, os encontros frequentes<br />

entre importantes autoridades, a cumplicidade explícita em foros multilaterais e a existência de acordos<br />

velados no campo político e militar criaram o clima que favoreceu a percepção de que aqueles Estados<br />

formavam um bloco sul-americano de países “anticomunistas”.<br />

2. No contexto da Guerra Fria (1945-91) na América Latina, a Operação Condor (Plan<br />

Cóndor, Operativo Cóndor) foi o nome que se deu a um sistema secreto de informações e ações criado na<br />

década de 1970, por meio do qual Estados militarizados do continente americano (Argentina, Bolívia,<br />

Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai) compartilharam dados de inteligência e realizaram operações extraterritoriais<br />

de sequestro, tortura, execução e desaparecimento forçado de opositores políticos exilados.<br />

Sob a inspiração da doutrina de segurança nacional (DSN), de alcance continental naquele período, as<br />

ditaduras aliadas na Operação Condor elegeram, de forma seletiva, inimigos ideológicos, denominados<br />

“subversivos”, como os alvos por excelência de suas práticas de terrorismo de Estado.<br />

3. Embora não tenham sido apreciadas as responsabilidades do Estado brasileiro, graves<br />

violações de direitos humanos cometidas no marco da Operação Condor foram objeto de condenações<br />

da Corte Interamericana de Direitos Humanos em sentenças de mérito em dois casos:<br />

Goiburú y otros vs. Paraguay, de 2006, 1 e Gelman vs. Uruguay, de 2011. 2 Nas duas ocasiões, a<br />

Corte Interamericana estabeleceu que os serviços de informações de vários países do Cone Sul no<br />

continente americano formaram, durante a década de 1970, uma organização interestatal complexamente<br />

articulada com finalidades criminosas, cujo conteúdo continua sendo revelado ainda<br />

hoje. Essas decisões estabelecem paradigmas do Direito Internacional dos Direitos Humanos que<br />

devem ser observados pela <strong>CNV</strong>.<br />

4. O Informe da Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), da<br />

Argentina (1984), o Informe Rettig da Comissão Nacional de Verdade e Reconciliação, do Chile (1991),<br />

os trabalhos da Comissão da Verdade e Justiça, do Paraguai (2003), e a Investigación Histórica sobre<br />

Detenidos Desaparecidos (2008), do Uruguai, fizeram referência à coordenação repressiva interestatal<br />

durante a década de 1970. Ao examinar essa repressão interestatal, a <strong>CNV</strong> o faz em momento posterior<br />

à publicação das mencionadas sentenças da Corte Interamericana de Direitos Humanos e à caracterização<br />

da Operação Condor como uma organização interestatal complexa com fins criminosos, na<br />

qual se verificou a “instrumentalização do poder estatal como meio e recurso para cometer violações<br />

de direitos”, em clara situação de terrorismo de Estado.<br />

220


A) A Operação Condor<br />

1. Início, desdobramento e características<br />

5. Em 1992, foram encontrados na cidade de Lambaré, a vinte quilômetros a oeste de<br />

Assunção, Paraguai, os arquivos do Departamento de Investigação da Polícia da Capital conhecidos<br />

como “Arquivo do Terror”, totalizando 593 mil páginas microfilmadas, correspondentes a diários, arquivos,<br />

fotos, fichas, relatórios e correspondência secreta das ditaduras do Cone Sul. No acervo, havia<br />

um convite ao Paraguai para tomar parte na “Primeira Reunião de Trabalho de Inteligência Nacional”,<br />

que seria realizada em Santiago do Chile entre os dias 25 de novembro e 1 o de dezembro de 1975.<br />

O convite era assinado pelo coronel Manuel Contreras, chefe da Direção de Inteligência Nacional<br />

(DINA), o órgão central de repressão da ditadura chilena. 3 Acompanhava o convite um documento de<br />

11 páginas, encaminhado pelo diretor da DINA aos seus correspondentes da região, definindo o objetivo<br />

do encontro: uma “coordenação eficaz que permita um intercâmbio oportuno de informações e<br />

experiências, além de certo grau de conhecimento pessoal entre os chefes responsáveis pela segurança”. 4<br />

6. A proposta do serviço de informações chileno para o chamado “Sistema de Coordenação<br />

e Segurança” demandava a operacionalização de um banco de dados e de uma central de informações,<br />

bem como a promoção de reuniões de trabalho regulares entre os serviços de informação do<br />

Cone Sul. O documento da DINA recomendava que o “pessoal técnico” do sistema tivesse imunidade<br />

diplomática e que também estivesse “agregado à sua respectiva representação [nas embaixadas],<br />

de acordo com as normas que fixe cada país, ainda que seja desejável que eles dependam diretamente<br />

de seus Serviços [de Segurança]”. O encontro realizado no Chile dois anos após o golpe que, em<br />

1973, derrubou Salvador Allende, o primeiro presidente socialista eleito em pleito democrático na<br />

América do Sul – é considerado a reunião de fundação da Operação Condor. Estavam presentes<br />

delegações de oficiais dos serviços de informações dos exércitos de seis países: Argentina, Bolívia,<br />

Brasil, Chile, Paraguai e Uruguai. 5<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

7. A entrada posterior do Peru e do Equador na Operação Condor é registrada em um documento<br />

secreto da Central Intelligence Agency (CIA), datado de 22 de agosto de 1978. 6 Esse mesmo<br />

documento evidencia que a cooperação entre os respectivos serviços de segurança e informações dos<br />

países-membros da Condor já existia havia algum tempo, “talvez desde fevereiro de 1974”, e que,<br />

durante os dois anos anteriores à sua formalização, os participantes da organização “haviam se encontrado<br />

em um ou outro dos países-membros para coordenar suas atividades”. Há outros registros sobre<br />

reuniões de trabalho de representantes da Condor em diferentes lugares como o documento Comments<br />

on Operation Condor, elaborado pela CIA em 18 de abril de 1977, parcialmente desclassificado, que<br />

revela uma reunião de trabalho realizada em Buenos Aires, entre os dias 13 e 16 de dezembro de 1976.<br />

Dela participaram representantes dos serviços de informações do Brasil junto com representantes do<br />

Chile, da Bolívia, do Paraguai e do Uruguai, além dos do país anfitrião, a Argentina.<br />

8. O novo acordo político-militar procurou formalizar a união dos aparelhos repressivos do<br />

Cone Sul para neutralizar os opositores aos regimes autoritários da região. A operação desdobrou-se em<br />

três fases. Na Fase 1, houve a formalização da troca de informações entre os serviços de Inteligência,<br />

com a criação de um banco de dados sobre pessoas, organizações e outras atividades de oposição aos<br />

governos ditatoriais. Na Fase 2, aconteceram operações conjuntas nos países do Cone Sul e a troca de<br />

221


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

prisioneiros, mobilizando agentes da repressão local envolvidos na localização e prisão de opositores<br />

caçados por governos estrangeiros. A Fase 3 consistiu na formação de esquadrões especiais integrados<br />

por agentes dos países-membros, assim como por mercenários oriundos de outros países (neofascistas<br />

italianos e cubanos anticastristas), que tinham por objetivo a execução de assassinatos seletivos de<br />

dirigentes políticos. 7 Essa terceira fase, a mais arrojada e secreta, ficou caracterizada por execuções,<br />

como o assassinato de um ministro do governo Allende (1971-73) e o do ex-chanceler Orlando Letelier,<br />

morto por atentado a bomba executado por agentes da DINA em Washington, em setembro de 1976.<br />

9. A Operação Condor teve características definidas: operação de natureza multinacional; ação<br />

transfronteiriça dirigida a pessoas exiladas no estrangeiro; estrutura paraestatal de funcionamento; seleção<br />

precisa de dissidentes; utilização de grupos extremistas, como “sindicatos do crime” e “esquadrões da<br />

morte”; e uso de tecnologia avançada para acesso a um banco de dados comum. Multinacional, porque<br />

suas unidades incluíam efetivos especialmente treinados em dois ou mais países e organizados em esquadrões<br />

baseados nas forças especiais do Exército dos Estados Unidos, US Army Special Operation Forces<br />

(SOF), que têm como missão treinar e conduzir quadros de combate não convencional ou de guerrilhas<br />

clandestinas. Transfronteiriça, porque utilizava os aparatos de Inteligência dos países parceiros ou as<br />

redes paramilitares dos países-membros nas ações de vigilância, seleção de objetivos, sequestro, tortura<br />

e translado de exilados. Paraestatal, porque atuava em um Estado paralelo, à margem da lei, clandestinamente,<br />

sempre de forma coordenada. Precisa e seletiva, porque mirava alvos certeiros entre os líderes<br />

de organizações de esquerda e também outros dirigentes, reais ou potenciais, da resistência da sociedade<br />

civil às ditaduras militares do Cone Sul. Extremista, porque empregava unidades hunter-killer de civis<br />

e paramilitares, reunidas em “esquadrões da morte” clandestinos, para cometer execuções e atentados,<br />

especialmente na Fase 3. O uso de tecnologia avançada para a produção e utilização de um banco de<br />

dados, comum a todos os países-membros, foi proporcionado pela CIA. Sem a ajuda dos Estados Unidos,<br />

nenhum país da região teria tido condições para organizar e operar sozinho o avançado sistema de comunicações<br />

montado para a Operação Condor. O avanço da computação ainda era tímido na região na<br />

década de 1970 e a informatização de dados criptográficos na área de segurança só poderia ser feita com<br />

know-how externo, no caso, estadunidense – um telegrama de 1978, enviado ao Departamento de Estado<br />

dos Estados Unidos por seu embaixador no Paraguai, Robert White, localiza a sede do Sistema Condortel<br />

na área militar da Zona do Canal do Panamá, então controlado pelos Estados Unidos. 8<br />

2. A presença do Brasil na Operação Condor<br />

10. À época em que foi criada a Operação Condor, o general João Baptista de Oliveira<br />

Figueiredo chefiava o Serviço Nacional de Informações (SNI), cargo que ocupou de março de 1974<br />

a junho de 1978. A ele, o coronel da Força Aérea chilena Mário Jahn, vice-chefe da DINA, entregou<br />

pessoalmente o convite do coronel Manuel Contreras para participar da “Primeira Reunião de<br />

Trabalho de Inteligência Nacional” em Santiago, Chile, em novembro de 1975. O depoimento que<br />

Jahn prestou ao juiz Juan Guzman, da Corte de Apelaciones de Santiago de Chile, em 3 de dezembro<br />

de 2003, confirma essa informação. Nesse dia, ratificando uma declaração anterior, de 27 de agosto<br />

de 2003, Jahn lembrou-se claramente do destinatário do convite no Brasil: “João Batista Figueiredos<br />

[sic], persona que conocía de un viaje anterior que hice a Brasil”. 9 Entretanto, Figueiredo não compareceu<br />

à reunião. A participação brasileira em Santiago coube ao Centro de Informações do Exército (CIE),<br />

que detinha a competência em relação ao comando e execução de operações de “combate à subversão”.<br />

222


11. O jornalista Luiz Cláudio Cunha revelou que o governo Geisel (1974-79) enviou para a<br />

reunião de fundação dois oficiais do CIE, 10 ambos comandantes veteranos de operações de repressão à<br />

guerrilha do Araguaia (ver Capítulo 14). O tenente-coronel Flávio de Marco e o major Thaumaturgo<br />

Sotero Vaz participaram da reunião em Santiago na qualidade de observadores e, seguindo instruções<br />

superiores, não assinaram a ata da reunião. O tenente-coronel De Marco morreu em 1984, vítima de<br />

infarto, quando exercia o cargo de diretor-administrativo do Palácio do Planalto no governo do presidente<br />

João Figueiredo. O sobrevivente brasileiro do evento, major Sotero Vaz, hoje general da reserva<br />

e atual assessor parlamentar do Comando Militar da Amazônia (CMA), alegou razões de saúde e<br />

recusou duas convocações da <strong>CNV</strong> para, entre outros, depor sobre o nascimento formal da Condor.<br />

12. Documentos desclassificados pelo Governo dos Estados Unidos evidenciam que, efetivamente,<br />

o Brasil esteve presente em diferentes reuniões da Condor. Um desses documentos é o<br />

resumo da CIA intitulado Weekly Summary, de 2 de julho de 1976, parcialmente desclassificado, que<br />

informa sobre uma reunião de trabalho em Santiago do Chile, em junho de 1976, da qual participaram<br />

os serviços de inteligência do Brasil, juntamente com representantes da Argentina, Bolívia, Chile,<br />

Uruguai e Paraguai. Nesse encontro foi decidido o estabelecimento de um banco de dados computadorizado<br />

sobre pessoas suspeitas de “subversão”. 11 Esse mesmo documento revela o paradeiro de<br />

Edgardo Enríquez Espinosa, terceiro homem do principal grupo guerrilheiro chileno, o Movimiento<br />

de Izquierda Revolucionaria (MIR), preso quase três meses antes, no dia 10 de abril, “entregue aos<br />

chilenos e [que] agora está morto”. Adicionalmente, o informe também registra a prisão, por forças<br />

de segurança da Argentina, de “uma exilada brasileira procurada em Santiago”. Esse dado do informe<br />

coincide com a notícia do desaparecimento da brasileira Maria Regina Marcondes Pinto, que foi vista<br />

pela última vez em companhia de Enríquez na saída de uma reunião em Buenos Aires.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

13. Um telegrama do Departamento de Estado, datado de 19 de julho de 1976, desclassificado<br />

parcialmente, informa que o Brasil manifestara a intenção de se tornar membro pleno, full-fledged<br />

member, da Condor. Confirma também o desenvolvimento da rede secreta de informações e comunicações,<br />

que ficou conhecida como Sistema Condortel, e faz saber que unidades militares do Brasil e da<br />

Argentina estavam operando em conjunto no território de um e outro, “quando necessário”. 12<br />

14. Na referida reunião de fundação da Operação Condor no Chile, em novembro de 1975,<br />

os dois militares que representaram o Brasil pertenciam ao CIE, então chefiado pelo general de brigada<br />

Confúcio Danton de Paula Avelino. O chefe do Estado-Maior do Exército (EME) à época era o general Fritz<br />

Azevedo Manso, que chefiou a missão brasileira na 11 a Conferência dos Exércitos Americanos (CEA) no<br />

Uruguai em 1975, um mês antes da fundação da Condor. Seu antecessor à frente do EME, o general Breno<br />

Borges Fortes, foi o chefe da delegação brasileira na 10 a CEA, na Venezuela, em setembro de 1973, uma<br />

semana antes do golpe que derrubou Allende no Chile. Lá, o general Borges Fortes propôs ampliar a troca<br />

de experiências ou de informações e a ajuda técnica entre os camaradas de armas na “guerra ao comunismo”.<br />

15. Como principal força terrestre do extremo sul brasileiro, na área de fronteira do Brasil<br />

com o Uruguai, a Argentina e o Paraguai – parceiros preferenciais na Operação Condor –, o III<br />

Exército (atual Comando Militar do Sul) teve Borges Fortes como seu comandante entre dezembro de<br />

1969 e maio de 1972. O general Oscar Luiz da Silva sucedeu Borges Fortes e permaneceu à frente do<br />

III Exército até agosto de 1976. Entre agosto de 1976 e outubro de 1977, o III Exército foi comandado<br />

pelo general Fernando Belfort, que deixou seu posto para assumir o Ministério do Exército na crise<br />

223


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

que levou à demissão do ministro Sílvio Frota. Na mudança de comando em Brasília, o presidente<br />

Ernesto Geisel recolheu também na área do III Exército o nome do novo chefe do CIE: o general de<br />

brigada Edison Boscacci Guedes, um ex-adido militar no México, então comandante da 3 a Brigada<br />

de Cavalaria Mecanizada em Bagé, na fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai. O CIE de<br />

Boscacci Guedes era, por missão, o braço operacional da Condor dentro e fora do Brasil. Na década<br />

seguinte, o general Boscacci Guedes seguiu os passos de seus antecessores, Borges Fortes e Fernando<br />

Belfort Bethlem, e assumiu o comando do III Exército, entre agosto de 1986 e maio de 1988. Já não<br />

existiam mais ditaduras no Cone Sul, nem a Operação Condor.<br />

16. Após comandar o DOI-CODI do II Exército, na Rua Tutoia, em São Paulo, entre 1970<br />

e 1974, durante o governo Médici (1969-1974), o major Carlos Alberto Brilhante Ustra foi promovido<br />

a coronel e transferido para Brasília, como chefe do Setor de Operações do CIE, posto que ocupou<br />

entre dezembro de 1974 e dezembro de 1977. Ustra foi sucedido no Setor de Operações do CIE, braço<br />

brasileiro da Condor, pelo então coronel José Antônio Nogueira Belham, que chefiava como major o<br />

DOI-CODI do I Exército, na Rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, à época do sequestro, tortura<br />

e morte do ex-deputado Rubens Paiva (ver Capítulo 12).<br />

17. Outros dois coronéis integrantes de equipes de operações especiais do Exército – Paulo<br />

Malhães e José Brant Teixeira – atuaram na repressão a estrangeiros no Brasil e em missões transfronteiriças<br />

enquanto cumpriram funções no CIE, lotados no gabinete do ministro do Exército durante<br />

boa parte dos governos Médici, Geisel e Figueiredo. O também coronel do Exército Carlos Alberto<br />

Ponzi chefiou a agência de Porto Alegre (APA) do SNI durante o governo Geisel e coordenou a “farsa<br />

de Bagé”, embuste repressivo para mascarar o sequestro dos uruguaios Universindo Rodríguez Díaz,<br />

Lilián Celiberti e seus dois filhos, Camilo e Francesca.<br />

3. Antecedentes históricos da Operação Condor<br />

3.1. A influência dos EUA sobre as Forças Armadas da América Latina<br />

18. A Segunda Guerra Mundial teve efeitos contraditórios sobre as Forças Armadas brasileiras.<br />

A situação de dependência da Divisão de Infantaria Expedicionária em matéria de equipamentos<br />

e formação contrastava com a pujança de recursos econômicos e militares dos Estados Unidos, a cujo<br />

Exército se incorporou a Força Expedicionária Brasileira (FEB) na Itália. Com a ampliação de programas<br />

de fornecimento de equipamentos e treinamento de militares de países aliados ainda durante a<br />

guerra, os Estados Unidos ascenderam à condição de potência hegemônica. No Brasil do pós-guerra,<br />

a influência norte-americana sobre as Forças Armadas superou a influência francesa, que havia predominado<br />

nas primeiras décadas do século XX.<br />

19. Em agosto de 1947, reuniu-se em Petrópolis a Conferência Interamericana para<br />

Manutenção da Paz e da Segurança Continental. Desse encontro, resultaria o Tratado Interamericano<br />

de Assistência Recíproca (TIAR), subscrito por praticamente todos os países das Américas. A principal<br />

justificativa do convênio era o princípio de que um ataque armado movido por qualquer país contra<br />

um Estado americano seria considerado um ataque contra todos eles. O TIAR suscitou uma onda de<br />

protestos na América Latina, com acusações de que os aliados dos Estados Unidos tinham se acorren-<br />

224


tado à estratégia militar norte-americana. A entrada em vigor do TIAR abriu caminho para a primeira<br />

série de acordos bilaterais para o estabelecimento de missões de assessoria militar norte-americana na<br />

maioria dos países da América Latina.<br />

20. Nesse contexto, o Brasil se antecipou aos países vizinhos e, em fevereiro de 1948,<br />

firmou um acordo relativo à presença tanto de pessoal militar brasileiro nos Estados Unidos como<br />

de pessoal militar estadunidense no Brasil. Com base nesse acordo, uma missão militar norte-americana<br />

veio ao Brasil para auxiliar no estabelecimento e na organização de uma escola que desenvolvesse<br />

e consolidasse aspectos fundamentais de segurança e do desenvolvimento, nos moldes do<br />

norte-americano National War College, em Washington, D.C. A Escola Superior de Guerra (ESG)<br />

foi criada pela Lei n o 785 de 1949 como um centro de excelência para a difusão dos conhecimentos<br />

necessários ao exercício de funções de direção e assessoramento superior para o planejamento da<br />

Defesa Nacional. É hoje um Instituto de Altos Estudos de Política, Estratégia e Defesa diretamente<br />

ligado ao Ministério da Defesa.<br />

21. No começo da década de 1950, a eclosão da Guerra da Coreia tiraria a aliança militar<br />

interamericana da inércia relativa do pós-guerra, quando as atenções dos Estados Unidos estiveram<br />

voltadas para a reconstrução da Europa e do Japão, em detrimento da boa vizinhança com a<br />

América Latina. O segundo mandato do presidente Harry Truman (1949-53) na Casa Branca marcou<br />

a escalada nos gastos militares com vistas à contenção da expansão global do comunismo. Sua<br />

expressão maior foi o documento do Conselho de Segurança Nacional conhecido como National<br />

Security Council Report 68 (NSC-68), de 14 de abril de 1950, que alinhavou a política externa<br />

dos Estados Unidos nos vinte anos seguintes de Guerra Fria, deixando claro que a segurança dos<br />

Estados Unidos da América estaria ameaçada em qualquer lugar onde o comunismo tentasse se<br />

impor. Ainda em seu primeiro mandato, Truman promulgou, em 26 de julho de 1947, o Ato sobre<br />

a Segurança Nacional, que criou o Conselho Nacional de Segurança e também a CIA – a agência<br />

de Inteligência responsável pelas informações de segurança nacional fornecidas ao Governo dos<br />

Estados Unidos e que se transformaria no braço operacional de ações encobertas no exterior, como<br />

no caso da tentativa de invasão de Cuba em 1961.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

22. Nessa linha, o sistema interamericano de defesa saiu fortalecido com a aprovação pelo<br />

Congresso dos Estados Unidos do Mutual Security Act, instrumento jurídico que possibilitou uma<br />

série de acordos militares bilaterais efetuados, a partir de 1952, com todos os países da região, exceto o<br />

México e a Argentina. Por toda a América Latina, houve considerável reação pública à assinatura dos<br />

acordos militares. No Brasil, a disputa política interna que caracterizou o segundo governo de Getúlio<br />

Vargas (1951-54) retardou a ratificação do Acordo Militar Brasil-Estados Unidos por 14 meses. A<br />

partir de 1952, os Estados Unidos tornaram-se o principal fornecedor de armamentos, treinamento e<br />

assessoria militar na América Latina.<br />

23. No final da década de 1950, o sistema de ajuda militar vinda dos Estados Unidos<br />

envolvia missões militares norte-americanas em dezoito países; intenso treinamento de oficiais da<br />

América Latina em bases no Panamá e nos Estados Unidos; ampla venda de material militar, à vista<br />

ou a crédito; visitas regulares aos Estados Unidos por parte de oficiais latino-americanos; e um comando<br />

unificado americano para a América Latina, estabelecido na Zona do Canal: o United States<br />

Southern Command (Southcom).<br />

225


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

3.2. A Guerra Fria nas Américas<br />

24. Na liderança de blocos antagônicos – o mundo capitalista de um lado e o mundo socialista<br />

de outro –, os Estados Unidos e a União Soviética iniciaram após a Segunda Guerra Mundial um ciclo de<br />

quase meio século de rivalidade ideológica nos planos político, econômico e social. Detentores de arsenais<br />

atômicos com alto poder destrutivo, as superpotências evitavam o confronto direto que poderia ser letal<br />

para a humanidade. A Guerra Fria fez com que os EUA e a URSS disputassem o espaço de influência em<br />

conflitos regionais, como na Guerra da Coreia (1950-53) e na Guerra do Vietnã (1962-75). No entanto,<br />

o momento mais difícil entre eles acabaria acontecendo a poucos quilômetros das praias da Flórida.<br />

25. Em 1959, Fidel Castro liderou o movimento guerrilheiro que depôs a Ditadura de<br />

Fulgencio Batista (1952-59) em Cuba, dando início a um processo que atingiu os interesses estadunidenses:<br />

a nacionalização de refinarias de petróleo e a desapropriação de terras pertencentes à indústria<br />

açucareira. O novo governo de Castro, inicialmente apenas nacionalista, ganhou a oposição acirrada<br />

da Casa Branca, o que fez Cuba aproximar-se do Kremlin. Depois que, em 1 o de dezembro de 1960,<br />

Castro manifestou em discurso sua afinidade com o marxismo-leninismo desde antes do triunfo da<br />

Revolução Cubana, os Estados Unidos pressionaram a Organização dos Estados Americanos (OEA)<br />

para suspender Cuba da entidade.<br />

26. Em 31 de janeiro de 1960, na reunião dos representantes dos países-membros realizada<br />

em Punta del Este, Uruguai, a OEA resolveu, por pressão dos Estados Unidos, que a adesão por<br />

qualquer membro da OEA ao marxismo-leninismo era “incompatível com o sistema interamericano<br />

e o alinhamento de qualquer governo com o bloco comunista quebraria a unidade e a solidariedade<br />

do continente”. Essa decisão levou à suspensão de Cuba da organização continental. 13 Inicialmente,<br />

o líder da delegação brasileira, Francisco San Tiago Dantas, opôs-se à sanção alegando que ela era<br />

ilegal e que terminaria por consolidar a influência soviética junto a Cuba. Entretanto, a proposta de<br />

sanção – que partira da Colômbia – foi aprovada.<br />

27. Em abril de 1961 houve uma tentativa de invadir Cuba e assassinar Fidel Castro, com a<br />

invasão frustrada da baía dos Porcos, na costa meridional da ilha. A Batalha de Playa Girón, como é<br />

conhecida em Cuba, foi vencida pelas Forças Armadas cubanas, treinadas e equipadas pelos soviéticos,<br />

que em apenas três dias derrotaram os invasores – cerca de 1.400 mercenários e exilados cubanos<br />

anticastristas, apoiados de forma encoberta pelas Forças Armadas estadunidenses e treinados pela<br />

CIA. O episódio deu a Cuba o pretexto para receber armas nucleares da União Soviética. Em outubro<br />

de 1962, Cuba seria palco do momento de maior tensão da Guerra Fria. Fotos aéreas da espionagem<br />

norte-americana revelaram que instalações de lançamento de mísseis com ogivas nucleares estavam<br />

sendo montadas por militares soviéticos. No ano anterior, os Estados Unidos haviam instalado uma<br />

base de mísseis na Turquia, um ponto estrategicamente próximo à União Soviética. Após os Estados<br />

Unidos imporem um bloqueio naval a Cuba – o que levou ao limite de um confronto entre as marinhas<br />

norte-americana e soviética, mantendo o mundo em suspense durante 13 dias – os dois lados cederam,<br />

negociando a mútua retirada de suas armas estratégicas.<br />

28. Quando o Brasil reatou as relações com a União Soviética em 23 de janeiro de 1962,<br />

20 dias depois de os Estados Unidos haverem, eles próprios, rompido as relações com os cubanos, a<br />

Casa Branca desaprovou a independência diplomática do governo parlamentarista de João Goulart<br />

226


(de setembro de 1961 a janeiro de 963), que tinha à frente do Ministério das Relações Exteriores<br />

(MRE) o mesmo San Tiago Dantas que, na Conferência de Punta del Este em 1961, previra que a<br />

sanção imposta pela OEA ao país caribenho seria a consolidação da influência soviética em Cuba.<br />

Preocupava Washington, sobretudo, a possibilidade de Cuba incentivar grupos dissidentes e fomentar<br />

movimentos guerrilheiros pelas Américas.<br />

29. No final de 1961, o governo Kennedy (1961-63) ficou profundamente contrariado com a<br />

recusa de João Goulart em romper relações diplomáticas com Cuba. Os apelos feitos nesse sentido pelo<br />

próprio John Kennedy e por seu embaixador no Brasil, Lincoln Gordon, foram incapazes de convencer<br />

o presidente brasileiro a romper com os comunistas no plano interno, e nem o persuadiram a denunciar<br />

Cuba no plano internacional. O Governo estadunidense começou então a agir com vistas à derrocada<br />

de Goulart. Essa orientação da política norte-americana viria a produzir resultados meses mais tarde,<br />

já no governo Johnson (1963-69), com o golpe militar de abril de 1964. Seguiriam à tomada do poder<br />

pelos militares a ruptura de relações com Cuba e a repressão à esquerda. Fortalece-se então o conceito<br />

de “guerra interna” utilizado pelas Forças Armadas brasileiras.<br />

3.3. As conferências dos Exércitos Americanos (CEA)<br />

30. Em 1960 – pouco mais de um ano após a eclosão da revolução cubana – foi realizada<br />

a I Conferência dos Exércitos Americanos (CEA) com o objetivo de aumentar a colaboração<br />

e integração entre os Exércitos do continente. A primeira conferência – organizada a convite do<br />

general Theodore F. Bogart, do Comando Sul do Exército dos Estados Unidos – realizou-se no<br />

antigo Forte Amador, situado no território norte-americano da Zona do Canal do Panamá, entre<br />

8 e 12 de agosto de 1960. As quatro reuniões seguintes foram realizadas no território continental<br />

dos Estados Unidos. Somente em 1965, em Lima, Peru, iniciou-se o rodízio de conferências fora<br />

do solo estadunidense, com os encontros acontecendo em diferentes pontos das Américas. O Brasil<br />

recebeu a CEA pela primeira vez no crucial ano de 1968, para “discussão de vários temas orientados<br />

para a segurança do hemisfério”.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

31. Na reunião preparatória da I CEA, convocada em julho de 1960 pelo Comando Sul do<br />

Exército dos Estados Unidos, o general José Pablo Spirito, chefe do EME argentino, propôs a seus colegas<br />

o estabelecimento de um plano de ação continental contra a “subversão marxista”. Dessa iniciativa<br />

argentina resultou o primeiro Curso Interamericano de Guerra Contrarrevolucionária, que reuniu em<br />

outubro de 1961, em Buenos Aires, oficiais de catorze países das Américas, entre eles o Brasil. O programa<br />

do curso foi elaborado por um ex-aluno argentino da Escola de Guerra de Paris, o coronel Alcides<br />

López Aufranc, em colaboração com assessores da missão militar francesa em Buenos Aires. Anos mais<br />

tarde, no final de 1970, conforme registrado em telegrama secreto do embaixador norte-americano<br />

em Buenos Aires, de 27 de agosto de 1971, o general López Aufranc, na qualidade de comandante do<br />

III Exército argentino e principal representante da linha dura naquele país, faria visita aos seus colegas<br />

no Brasil a fim de tratar dos desafios às ditaduras no Brasil e na Argentina representados pela recente<br />

eleição de Salvador Allende no Chile e pela ascensão da Frente Ampla no Uruguai.<br />

32. Em setembro de 1973, uma semana antes do golpe que derrubou o governo de Salvador<br />

Allende no Chile, o general brasileiro Breno Borges Fortes, chefe do Estado-Maior do Exército, pregou<br />

227


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

na X CEA, na Venezuela: “Devemos ampliar a troca de experiências, de informações e ajuda técnica entre<br />

os camaradas de armas na guerra ao comunismo”. Em 1975, ano em que se criou a Operação Condor em<br />

Santiago do Chile, a reunião da XI CEA ocorreu em Montevidéu. A delegação brasileira foi chefiada pelo<br />

general do Exército Fritz Azevedo Manso, chefe do Estado-Maior do Exército, e integrada pelo general<br />

de brigada Confúcio Danton de Paula Avelino, chefe do CIE e pelos coronéis Ivan Dentice Linhares e<br />

Harry Alberto Schnarndorf, pelo major Ari Liotto e pelo capitão Carlos Alberto Villanova.<br />

33. Dois anos depois, em Manágua, na XII CEA, o comandante do Exército argentino<br />

Roberto Viola, em nome da ditadura instalada naquele país em março de 1976, reforçou: “A guerra<br />

ideológica não respeita fronteiras”. No marco da Conferência de Manágua, foi realizada a IX Conferência<br />

de Informações dos Exércitos Americanos. Nessa reunião, a delegação brasileira foi composta pelo então<br />

chefe do CIE, pelo general de brigada Antônio da Silva Campos, pelo coronel Paulo da Silva Freitas,<br />

pelo coronel Job Lorena de Sant’Anna e pelo tenente-coronel Léo Frederico Cinelli. 14 O hoje coronel<br />

reformado Léo Cinelli, que detém responsabilidade por torturas e desaparecimentos forçados ocorridos<br />

no centro clandestino conhecido como “Casa Azul”, em Marabá (PA), nos anos de 1973 e 1974, também<br />

havia participado da VII Conferência de Informações dos Exércitos Americanos, ocorrida em Caracas,<br />

na Venezuela, no ano de 1973.<br />

34. A CEA é apresentada como pano de fundo da Operação Condor no parágrafo 46<br />

da sentença proferida pela Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Gelman vs. Uruguai<br />

(2011) – já referido na introdução deste capítulo. A corte afirma que a CEA é “uma organização de<br />

segurança hemisférica inspirada na ‘doutrina de segurança nacional’, que se reunia em sessões secretas<br />

para discutir possíveis estratégias e acordos de atividades conjuntas”.<br />

35. Ainda em 1988, na XVII CEA em Mar del Plata, Argentina, representantes dos exércitos de<br />

15 países das Américas – entre os quais o Brasil – assinaram vários acordos, entre eles o acordo n o 14, que<br />

tinha como tema “as operações psicológicas e os meios de comunicação social na guerra contra o terrorismo”.<br />

Outro acordo, o de n o 15, mantinha a pregação anticomunista: “O Movimento Comunista Internacional<br />

(MCI) continua sendo a ameaça comum e principal a todos os países americanos e, como tal, deve ser combatida,<br />

particularmente através da união e de procedimentos comuns entre todos os Exércitos Americanos”.<br />

36. No dia 21 de junho de 2013, a <strong>CNV</strong> encaminhou ofício ao Ministério da Defesa, requisitando<br />

informações sobre as reuniões da CEA. Em resposta à <strong>CNV</strong>, em 17 de outubro de 2013, o<br />

comando do Exército informou que<br />

não foi possível encontrar as informações que atendam ao solicitado. Tal impossibilidade<br />

decorre do longo período de análise em questão (53 anos) e da consequente<br />

impossibilidade de localizar documentos que pudessem conter eventuais<br />

registros sobre o assunto.<br />

O comando do Exército informou ainda que a<br />

documentação produzida pela CEA encontra-se distribuída no respectivo acervo<br />

histórico, sob a responsabilidade do Exército do Chile, ou nos arquivos da SEPCEA<br />

[Secretaria Executiva Permanente da Conferência dos Exércitos Americanos].<br />

228


Nessas condições, a <strong>CNV</strong> solicitou formalmente ao comando do Exército, por intermédio do Ministério<br />

da Defesa, o acesso ao banco de dados on-line da Secretaria Executiva Permanente da CEA. Não houve<br />

resposta do comando do Exército à solicitação da <strong>CNV</strong>.<br />

B) Envolvimento brasileiro na coordenação repressiva internacional anterior à Operação Condor<br />

37. O esclarecimento das graves violações identificadas como episódios de conexão repressiva<br />

internacional – e que foram cometidas tanto contra cidadãos brasileiros, no Brasil e no exterior,<br />

como contra cidadãos estrangeiros em território brasileiro – exige uma abordagem que favoreça uma<br />

avaliação histórica mais ampla e anterior à formalização da Operação Condor, em novembro de 1975.<br />

Abaixo, listamos algumas dessas violações.<br />

1. Perseguição e vigilância dos exilados brasileiros e transferência extrajudicial<br />

de presos no Uruguai<br />

38. Muito antes da Operação Condor, a ditadura brasileira já mantinha colaboração ativa<br />

com os governos de outros países da América Latina com o intuito de vigiar e restringir direitos de<br />

brasileiros exilados. Desde abril de 1964, logo após a chegada do presidente João Goulart ao Uruguai,<br />

a ditadura brasileira pressionou o Governo de Montevidéu em busca de cooperação para restringir os<br />

direitos à liberdade de expressão e à liberdade de locomoção dos exilados.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

39. No início dos anos 1960, a América Latina era considerada o problema mais importante<br />

da CIA desde a crise dos mísseis de Cuba. No livro Dentro da “companhia”: diário da CIA (1975), o<br />

ex-agente Philip Agee afirmou que a tendência do Brasil em inclinar-se à esquerda sob o governo de<br />

João Goulart inquietava a agência. Com a derrubada de João Goulart da Presidência no Brasil e seu<br />

exílio no Uruguai, o crescente afluxo de exilados brasileiros tornou-se a grande preocupação da CIA.<br />

A estação da CIA em Montevidéu passou a prestar assistência à estação do Rio de Janeiro, com o objetivo<br />

de enriquecer a coleta de informações sobre os exilados. Isso foi feito por meio de investigações<br />

policiais sob a responsabilidade de Philip Agee, que, conforme ele próprio escreveu em seu livro, foi<br />

orientado a vigiar a comunidade de exilados brasileiros.<br />

40. A estação da CIA no Rio de Janeiro colaborou para o controle dos exilados no<br />

Uruguai e interferiu diretamente na designação de diplomatas para a Embaixada do Brasil em<br />

Montevidéu, considerada um “ponto de ebulição” da diplomacia brasileira naquele momento.<br />

Para o cargo de adido militar foi enviado o coronel do Exército Câmara Sena e, para primeiro-secretário,<br />

Lyle Fontoura. Segundo Agee, o novo embaixador em Montevidéu foi indicado<br />

por gestão da CIA. Manoel Pio Corrêa já havia demonstrado eficiência nas operações da CIA<br />

na Cidade do México, quando estivera à frente da Embaixada do Brasil naquele país. Como o<br />

México não reconheceu o Governo militar brasileiro, Pio Corrêa foi chamado de volta ao Brasil<br />

e a estação da CIA no Rio de Janeiro, decidida a fortalecer as operações de vigilância contra os<br />

exilados, gestionou junto à ditadura brasileira para que seu agente fosse nomeado para a missão<br />

do Itamaraty na capital uruguaia. Antes de chegar a Montevidéu, Pio Corrêa visitou as unidades<br />

do III Exército ao longo da fronteira do Rio Grande do Sul com o Uruguai.<br />

229


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

41. No comando da embaixada em Montevidéu, Pio Corrêa articulou uma rede de informações<br />

entre políticos, militares, juízes, delegados de polícia, comerciantes e fazendeiros para<br />

vigiar as atividades do presidente brasileiro deposto, João Goulart, e de seu cunhado, Leonel Brizola,<br />

deputado federal cassado e ex-governador do Rio Grande do Sul. Um dos documentos secretos do<br />

Ciex, com data de 11 de março de 1969, intitulado “Asilados brasileiros no Uruguai”, especula sobre<br />

as atividades políticas de Brizola no Uruguai a ponto de identificar pessoas que frequentavam<br />

seu apartamento. 15 O coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório e o almirante Cândido da Costa<br />

Aragão eram dois outros exilados sob constante vigilância. 16 Além dos documentos do Ciex que<br />

comprovam a perseguição de Cardim no Uruguai, muitos documentos indicam que o presidente<br />

João Goulart também foi constantemente vigiado no exílio, com detalhes sobre o seu cotidiano,<br />

atividades políticas e até opiniões reveladas em relatórios.<br />

42. Para ter acesso à organização dos exilados no Uruguai, um dos mais importantes agentes<br />

infiltrados foi Alberto Conrado Avegno, que participou de reuniões, em 1968, na Associação de<br />

Exilados Brasileiros no Uruguai (AEBU) e participou, como agente da repressão, de operações de informações<br />

que levaram ao sequestro do coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório, em Montevidéu,<br />

e ao desaparecimento forçado do major Joaquim Pires Cerveira, sequestrado em Buenos Aires. 17<br />

43. Após a ofensiva capitaneada por Pio Corrêa naqueles primeiros anos da ditadura<br />

para obter do Governo uruguaio, ainda democrático, um tratamento restritivo aos exilados brasileiros,<br />

a conjuntura progressivamente autoritária iniciada com a chegada de Pacheco Areco à<br />

Presidência abriu espaço para a coordenação repressiva entre os dois países, como se vê na conversa<br />

com o ministro do Interior uruguaio relatada pelo embaixador Luiz Bastian Pinto, em telegrama<br />

secreto-urgentíssimo “para conhecimento exclusivo do secretário-geral”, datado de 6 de setembro<br />

de 1969, sobre as medidas que o Governo uruguaio, sentindo-se então “bastante forte para<br />

romper com as tradições ultraliberais do país”, se dispunha a adotar “nesse assunto de refugiados<br />

terroristas”, para “oferecer ao Brasil a colaboração de que o Uruguai também tanto necessita”. Em<br />

resposta, a Secretaria de Estado pede ao embaixador que, ao agradecer a colaboração oferecida,<br />

manifeste a disposição do Governo brasileiro para cooperar intimamente com o Governo uruguaio<br />

no mesmo sentido, encarecendo que “quaisquer sugestões do Governo uruguaio serão aqui<br />

examinadas com o maior interesse e simpatia”. 18<br />

44. A pesquisa realizada pela <strong>CNV</strong> nos arquivos do Itamaraty trouxe também à luz evidências<br />

de que o Ministério das Relações Exteriores chegou a estar envolvido diretamente em pelo<br />

menos um episódio de detenção arbitrária no Uruguai, e não apenas pela mão oficiosa do Ciex, mas<br />

de maneira totalmente oficial, ainda que secreta.<br />

45. Assim, foram localizados documentos que comprovam a entrega de cidadão brasileiro<br />

detido no Uruguai à polícia brasileira, na fronteira entre os dois países, acertada em alto nível entre o<br />

embaixador do Brasil e o ministro do Interior do Uruguai, conforme instruções recebidas da alta chefia<br />

do MRE: telegramas datados de outubro de 1969, expedidos pela secretaria-geral – à época ocupada<br />

por Mozart Gurgel Valente – solicitam ao embaixador em Montevidéu, Luiz Bastian Pinto, “comunicar<br />

ao ministro do Interior que o Governo brasileiro muito agradece a colaboração e aceita receber<br />

na fronteira Wilson Nascimento Barbosa” (que fora detido no Uruguai no contexto das medidas de<br />

exceção então vigentes naquele país), e prosseguem com instruções precisas:<br />

230


As autoridades do Departamento de Polícia Federal e da Guarnição Militar estarão<br />

na sexta-feira próxima, pela manhã, em Santana do Livramento para receber o senhor<br />

Wilson Nascimento Barbosa que lhes deverá ser entregue na fronteira com a cidade<br />

de Rivera. Agradeceria obter confirmação das autoridades locais sobre a data sugerida.<br />

As comunicações seguintes atestam que a data e o local de entrega foram tratados diretamente pelo<br />

embaixador do Brasil junto ao próprio ministro do Interior uruguaio. 19<br />

46. Esse episódio, em que fica patente o envolvimento direto, e em alto nível, do Itamaraty,<br />

parece não ser um caso isolado. Vários outros telegramas daquele período dão indicações de que<br />

as operações de detenção de brasileiros em território uruguaio, a pedido das autoridades brasileiras,<br />

ocorreram durante vários anos, envolvendo, em diversas combinações, agentes diplomáticos,<br />

militares e policiais. Aparecem, em documentos variados, a Embaixada e os consulados do Brasil,<br />

o Ciex, as adidâncias militares, a Polícia Federal e o DOPS brasileiros; pelo lado uruguaio, além<br />

dos contatos com diplomatas e ministros de Estado, há registros da participação do Departamento<br />

Nacional de Informações e Inteligência uruguaia (DNII) e das chefaturas de polícia de Montevidéu<br />

e outras cidades. A <strong>CNV</strong> não teve acesso aos documentos das adidâncias militares nas embaixadas<br />

brasileiras. Esses arquivos certamente forneceriam informações importantes sobre o modus operandi<br />

do Estado brasileiro, por meio de suas representações diplomáticas, em atividades de repressão no<br />

exterior. Documentos esparsos, localizados em diversos fundos arquivísticos dos órgãos de segurança<br />

recolhidos ao Arquivo Nacional, fornecem algumas amostras. Assim, em agosto de 1969, o adido<br />

do Exército em Montevidéu relata, no Informe 568-Confidencial, distribuído ao Estado-Maior<br />

do III Exército e ao SNI, que “as autoridades brasileiras haviam solicitado, com especial interesse,<br />

a detenção do indivíduo Jorge Antonio Miranda Jordão”, que esse pedido foi encaminhado pela<br />

chefatura de Rivera à Polícia de Montevidéu, onde Miranda Jordão foi preso no dia 15 de agosto,<br />

sendo encaminhado para a cidade de Rivera no dia 18. E conclui, dando a entender que a prática de<br />

“recambiar” detidos para o Brasil seria usual: “desconhece-se se o marginado foi recambiado para o<br />

Brasil ou ainda se encontra em Rivera”. 20<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

47. Há também, entre os telegramas e ofícios pesquisados no Arquivo Histórico do MRE, muitos<br />

documentos que encaminham informações sobre cidadãos de outras nacionalidades, procurados nos países<br />

vizinhos. Para citar alguns exemplos, o Consulado-Geral de Montevidéu compila e envia regularmente<br />

relações de “estrangeiros subversivos e indesejáveis” (nas quais podem ser encontrados, entre outros, os nomes<br />

de José Mujica Cordano, atual presidente da República do Uruguai, de sua mulher, Lucía Topolansky,<br />

senadora e presidente do Congresso, e de Eleuterio Fernández Huidobro, hoje ministro da Defesa); ou<br />

retransmite à Secretaria de Estado, à Embaixada, e também ao adido do Exército, “para as providências<br />

que forem julgadas cabíveis”, relação, entregue ao cônsul em Chuy por oficial do Exército uruguaio, de 72<br />

nomes de asilados políticos bolivianos que estariam sendo requeridos pelas autoridades uruguaias. 21<br />

2. Atuação do delegado Sérgio Paranhos Fleury no Chile e no Uruguai<br />

48. Em novembro de 1969, o delegado Sérgio Paranhos Fleury, do DOPS de São Paulo, foi<br />

a Porto Alegre, onde acompanhou o interrogatório de Carlos Alberto Libânio Christo, o Frei Betto.<br />

Em seu livro Batismo de sangue (1982), Frei Betto explica:<br />

231


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

Não voltei a ver o delegado Fleury. Segundo os jornais, teria ele ficado quatro ou cinco<br />

dias no Sul. É possível que ele tenha usado a versão de que passara dias me interrogando<br />

para encobrir sua ida a Montevidéu – quem sabe à procura de Joaquim Câmara<br />

Ferreira, quem sabe a fim de adestrar a polícia uruguaia na repressão aos tupamaros.<br />

Documento secreto da Divisão de Segurança e Informações do Ministério das Relações Exteriores do<br />

Brasil intitulado Visita ao Chile do delegado paulista Sérgio Fleury identifica a edição de 31 de março<br />

de 1970 do jornal vespertino esquerdista chileno Última Hora, segundo o qual Fleury tinha estado<br />

em Paris e Montevidéu, onde assessorou a criação da Brigada Repressiva Especial Uruguaia e, naquele<br />

momento, estaria na Argentina. 22 Da Argentina, Fleury partiria para o Chile com o objetivo de “fazer<br />

contatos com a Direção-Geral de Investigações a fim de provar a existência de vinculação de ação<br />

guerrilheira brasileira com os tupamaros uruguaios e também [com] grupos chilenos para ‘justificar’<br />

o enlace da ação repressiva sob o controle da CIA”. 23<br />

49. Essa notícia não foi registrada por acaso em um documento secreto do Ministério das<br />

Relações Exteriores. Diante da divulgação dessas informações na imprensa, a Embaixada brasileira no<br />

Chile e o próprio adido militar responsável pela missão demonstram, ao final do texto, preocupação<br />

com os contatos que Fleury mantinha naquele momento e com possíveis prejuízos à sua missão:<br />

A Embaixada do Brasil em Santiago, bem como o adido militar àquela missão, veem<br />

com apreensão a possibilidade da aludida visita, já anunciada com estardalhaço,<br />

alegando que “se é efetiva tal missão do delegado Fleury”, o noticiário da imprensa<br />

comunista chilena prova, sem dúvida, a total falta de segurança dos contatos do<br />

delegado paulista, cuja missão já estaria prejudicada. 24<br />

50. Em documento secreto do MRE de 20 de maio de 1970, produzido pelo Ciex, do<br />

Itamaraty, Carlos Figueiredo de Sá – brasileiro exilado no Uruguai – teria constatado a presença de<br />

Fleury em Montevidéu. Em outro documento do Ciex, o jornal uruguaio El Eco confirma em notícia<br />

de 18 de outubro de 1971 a presença de Fleury em Montevidéu, na companhia de dois auxiliares,<br />

“Bolinha” e “Marco”, apresentados como membros do DOPS. 25<br />

51. Em depoimento à <strong>CNV</strong>, o ex-delegado do DOPS de São Paulo, José Paulo Bonchristiano,<br />

contou que Fleury tinha 40 investigadores à sua disposição, além de três delegados assistentes. “Quando<br />

precisavam agir fora de São Paulo, não se registravam atritos no sistema repressivo para efetuar prisões<br />

em outros estados do Brasil”. Com o mesmo objetivo, disse Bonchristiano, eles “viajavam muito por<br />

países da América do Sul, como Argentina, Chile e até Peru”. 26 Nessas conexões, Bonchristiano confirma<br />

que os agentes contavam com o apoio de empresas como a Viação Aérea Rio Grandense (Varig)<br />

e a Viação Aérea de São Paulo (Vasp) para o transporte.<br />

52. No Brasil da década de 1970, agentes e diplomatas dos Estados Unidos conviviam com<br />

serviços do DOPS de São Paulo. De acordo com livros da portaria do DOPS que foram disponibilizados<br />

recentemente, os diplomatas Claris Rowley Halliwell, Frederic Lincoln Chapin e C. Harlow<br />

Duffin frequentavam o prédio do DOPS em São Paulo. Halliwell, political officer do consulado<br />

americano, fez 49 visitas ao DOPS entre 1971 e 1974. Somente em 1971, foram 31 visitas suas ao<br />

prédio da polícia política de São Paulo. 27 Outros “representantes diplomáticos também frequenta-<br />

232


vam o DOPS, que abrigava uma delegacia especializada em assuntos estrangeiros, mas nenhum<br />

com a mesma frequência”. 28 O ex-delegado Bonchristiano confirmou ter visto Halliwell, Chapin e<br />

Duffin no prédio do DOPS de São Paulo. Contudo, de acordo com sua declaração, ele só mantinha<br />

contato com o cônsul Niles Bond, comumente chamado de “Mr. Bond”, que era seu contato direto<br />

para tratar sobre cursos do FBI e outras questões.<br />

53. Em entrevista à Agência Pública de Reportagem e Jornalismo Investigativo, em fevereiro<br />

de 2012, Bonchristiano afirmou que o DOPS de São Paulo era “o melhor departamento de polícia<br />

da América Latina”, “fazia todos os levantamentos que conduzissem a algum elemento do partido<br />

Comunista no Brasil, na América Latina inteira”, o que interessava ao governo dos Estados Unidos.<br />

Afirmou ainda que “Fleury era do DOPS e não era do DOPS, era o homem de ligação do DOPS com<br />

os militares, era delegado das Forças Armadas, do Alto Comando”. 29<br />

3. O sequestro do coronel Jefferson Cardim de Alencar Osório em Buenos Aires,<br />

em 10 de dezembro de 1970<br />

54. Jefferson Cardim de Alencar Osório, filho da poeta e professora Carolina Cardim e do<br />

capitão de corveta da Marinha Roberto Alencar Osório, nasceu na cidade do Rio de Janeiro em 1912. Em<br />

1930, então com 18 anos, Jefferson Cardim ingressou na Escola Militar do Realengo, no Rio de Janeiro,<br />

na qualidade de aluno, e daí em diante seguiu a carreira militar. O coronel Jefferson Cardim foi nomeado<br />

pelo presidente João Goulart diretor-técnico da companhia estatal de navegação Lloyd Brasileiro, em<br />

Montevidéu, onde permaneceu até abril de 1964, quando foi atingido pelo Ato Institucional n o 1, tendo<br />

seus direitos políticos cassados. Exilado no Uruguai e inconformado com a consolidação da ditadura<br />

militar, Cardim liderou, em março de 1965, movimento conhecido como Guerrilha de Três Passos.<br />

Preso, torturado e acusado de “traidor da pátria”, foi condenado a oito anos de prisão (ver Capítulo 13).<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

55. Com a colaboração de seu filho Jefferson Lopetegui Osório e do ex-major Joaquim<br />

Pires Cerveira, o coronel Cardim conseguiu escapar da prisão em 1968 (ver depoimento de Jefferson<br />

Lopetegui Osório a Marcelo Chalréo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB, e a Jair<br />

Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos − JDH). Cardim refugiou-se na<br />

Embaixada do México, onde recebeu asilo. Morou também na Argélia, onde recebeu novo asilo político,<br />

renunciando ao anterior recebido pelo Governo mexicano. 30 Cardim passou ainda pelo Chile,<br />

Espanha, Uruguai e Guiana. 31<br />

56. Em novembro de 1970 – ainda quando estava exilado no Uruguai – Jefferson Cardim<br />

de Alencar Osório aceitou um convite de Salvador Allende, candidato à Presidência no Chile, para<br />

trabalhar em seu governo como assessor para a Associação Latino-Americana de Livre-Comércio<br />

(ALALC). Junto com seu filho mais novo, Jefferson Lopetegui Osório, e seu sobrinho, Eduardo<br />

Lopetegui, partiu então de Montevidéu, passou por Colônia do Sacramento e chegou a Buenos<br />

Aires. Dali, seguiria para Mendoza e chegaria à capital chilena. Desde o início desse percurso, o<br />

grupo foi monitorado por agentes brasileiros e uruguaios. 32<br />

57. Ao tomar conhecimento dessa viagem, o coronel de Cavalaria Nilo Caneppa da Silva<br />

acionou a Direção de Coordenação Federal, órgão da inteligência da Polícia Federal argentina, passando<br />

233


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

todas as informações necessárias à identificação do grupo, para que fossem presos. Além disso, Caneppa<br />

se dirigiu ao local, para acompanhar e conferir a ação da polícia. Dois agentes da polícia, armados com<br />

Colt 45, abordaram Jefferson Cardim dizendo que se tratava de uma operação de rotina, pois havia denúncias<br />

de que ele transportava drogas. 33 Sobre o acontecido, relata o próprio Jefferson Cardim:<br />

Embarquei o carro no ferry boat e fizemos a viagem, tranquilos (eu com os jovens) até<br />

então ia bem quando chegamos ao porto de Buenos Aires, cerca das 15 horas, fomos<br />

todos para o carro para desembarcarmos. Ao sair do ferry boat, um senhor, mandou logo<br />

que meu carro ficasse de lado separado dos demais, depois debruçou-se sobre a janela e<br />

disse ser um agente da Polícia Federal argentina, apresentando sua identidade e nos deu<br />

ordem de prisão, ou detenção, pois disse que havia uma denúncia de que eu transportava<br />

drogas. Em seguida mandou que os dois meninos, meu filho de 18 anos e um sobrinho<br />

de 21 anos, passassem para o carro preto da polícia que estava na frente. Nesta altura eu<br />

já me achava cercado por mais dois agentes todos a paisana, que meteram os rapazes no<br />

seu carro e ali mantiveram os mesmos sequestrados por eles, sem poderem sair. 34<br />

58. Mesmo possuindo um passaporte argelino que lhe garantia salvo-conduto na condição<br />

de asilado argelino, Jefferson Cardim foi preso com o filho e o sobrinho. Os três foram conduzidos a<br />

um prédio da polícia argentina e, lá, Jefferson Cardim teve todos os documentos de sua pasta revistados<br />

por um agente: duas cédulas de identidade em branco, um livro de medicina que levava para um<br />

médico em Mendoza, cartas para Santiago do Chile que portava para outros, e uma carta pessoal de<br />

sua esposa. Com esses papéis iniciaram um interrogatório que durou horas. 35<br />

59. Depois disso, foi levado aos empurrões até um calabouço no mesmo edifício, onde estavam<br />

o filho e o sobrinho. Foi conduzido, de madrugada, para uma sala de tortura, como ele próprio relata:<br />

Perguntaram-me se eu já havia me lembrado do endereço do médico em Mendoza.<br />

Respondi-lhe que não sabia e que devia estar no Guia Telefônico daquela cidade.<br />

Então vedaram meus olhos, me aplicaram uns socos nas costas e no ventre para ver<br />

seu eu recordava. Eu realmente ignorava, nem conhecia nenhuma rua de Mendoza<br />

para mentir. Deitaram-me sobre a mesa, ataram meus pés e minhas mãos e aplicaram-me<br />

o choque elétrico que lá chama de “Picana”, como eles diziam. Eu dava<br />

urros de dor, sobretudo quando me aplicaram nos órgãos genitais. 36<br />

60. No dia 12 de dezembro de 1970, foi submetido a um novo interrogatório e outras torturas,<br />

pois os agentes da polícia haviam encontrado em seus pertences uma carta em que seu médico<br />

uruguaio, doutor Navillat, ligado aos tupamaros, havia lhe pedido que entregasse a um colega que<br />

se encontrava exilado em Santiago do Chile. Durante o interstício de prisão em Buenos Aires, seu<br />

filho e seu sobrinho foram, também, submetidos a interrogatórios e torturas.<br />

61. Jefferson Cardim e seu filho foram presos e entregues às autoridades brasileiras “com o<br />

mais rigoroso sigilo sobre a expulsão”. 37 Enquanto o sobrinho, filho de militar uruguaio, foi devolvido<br />

a Montevidéu, Cardim e seu filho, expulsos da Argentina por meio de decreto assinado em tempo<br />

recorde pelo próprio presidente argentino, o ditador Roberto Levingston, foram transportados para o<br />

Brasil em 13 de dezembro de 1970, a bordo de um avião.<br />

234


62. No caso da detenção arbitrária do coronel Jefferson Cardim pela Polícia Federal argentina<br />

e sua entrega a agentes brasileiros, em dezembro de 1970, está comprovado documentalmente o<br />

envolvimento em alto nível do Itamaraty. Conforme relato contido no informe enviado pelo adido<br />

do Exército em Buenos Aires a seu Estado-Maior, 38 o então embaixador em Buenos Aires – futuro<br />

ministro das Relações Exteriores –, Antonio Francisco Azeredo da Silveira, foi informado da operação<br />

(coordenada pelo referido adido e pelo adjunto do adido aeronáutico em Montevidéu, o tenente-coronel<br />

Leuzinger Marques Lima) e permitiu que fosse requerida, via Embaixada, a necessária<br />

autorização de Brasília para o embarque dos brasileiros detidos. Recebe em resposta, do gabinete<br />

do ministro Mário Gibson Barboza, um telegrama ultrassecreto – cuja expedição é autorizada “de<br />

ordem do senhor secretário-geral”, Jorge de Carvalho e Silva – com o índice “Detenção ex-coronel<br />

Jefferson Cardim de Alencar Osório”, a seguinte mensagem:<br />

Para imediato conhecimento do tenente-coronel Leuzinger Lima. Retransmito telegrama<br />

do Estado-Maior da Aeronáutica: “Referência seu telex. Autorizado transporte,<br />

desde que escoltados por dois elementos. Coronel Leuzinger autorizado seguir<br />

Brasil. Autorizado cancelamento escala Montevidéu. CISA”. 39<br />

63. Na capital carioca, Jefferson Cardim de Alencar Osório e seu filho Jefferson<br />

Lopetegui Osório foram mantidos em celas individuais de presos políticos e submetidos a torturas<br />

na Base Aérea do Galeão. Jefferson Cardim foi submetido a vários interrogatórios sobre<br />

suas passagens por Cuba, México, Paris e Santiago e também sobre seu exílio no exterior. Em<br />

diligência de visita à Base Aérea do Galeão, realizada pela <strong>CNV</strong> em 30 de maio de 2014, Jefferson<br />

Lopetegui Osório reconheceu o local onde pousou a aeronave da FAB que o trouxe, com seu pai,<br />

de Buenos Aires para o Brasil.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

64. Jefferson Cardim foi torturado na Base Aérea do Galeão pelo suboficial da Aeronáutica<br />

Abílio Correa de Souza e pelo coronel Ferdinando Muniz de Farias, ambos agentes do CISA. Importante<br />

salientar que Abílio Correa de Souza e Ferdinando Muniz de Farias são citados por Alex Polari de<br />

Alverga como torturadores de Stuart Angel Jones, preso na manhã de 14 de maio de 1971 em uma<br />

região do Grajaú, na Zona Norte do Rio (ver Capítulo 12). Depois do Galeão, Jefferson Cardim de<br />

Alencar Osório foi transferido para a fortaleza de Santa Cruz, em fevereiro de 1971, e, em abril de 1975,<br />

para o Instituto Penal Cândido Mendes na Ilha Grande. Foi libertado no dia 2 de novembro de 1977.<br />

Beneficiou-se da Lei de Anistia de 1979, mas no ano seguinte, sua anistia foi anulada pelo Supremo<br />

Tribunal Militar, e seus direitos políticos foram novamente cassados. Em 1981, exilou-se na França e,<br />

somente quatro anos depois, teve sua anistia ratificada com o fim da ditadura militar. Jefferson Cardim<br />

de Alencar Osório morreu no Rio de Janeiro em 1995.<br />

4. Sequestro e desaparecimento de Edmur Péricles Camargo em Buenos Aires, em 16<br />

de junho de 1971<br />

65. Edmur Péricles Camargo, conhecido como “Gauchão”, era dirigente do M3G (Marx,<br />

Mao, Marighella e Guevara). Foi preso e banido do país, após o sequestro do embaixador suíço no<br />

Brasil, Giovanni Enrico Bucher, quando setenta presos políticos foram trocados pelo diplomata. Foi<br />

para o Chile com os demais banidos, onde permaneceu até junho de 1971. 40<br />

235


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

66. Naquela época, a preocupação com a movimentação do grande número de asilados<br />

no Chile de Allende já não estava limitada às esferas de segurança e despontara também na agenda<br />

diplomática. Telegramas trocados entre a Secretaria de Estado (MRE) e a Embaixada em Buenos<br />

Aires, em janeiro de 1971, com o índice “Coordenação de medidas contra a subversão: Brasil-<br />

Argentina” trazem informações sobre as conversações entre as chancelarias dos dois países sobre “a<br />

possibilidade de ser estabelecida uma adequada coordenação entre as autoridades competentes de<br />

ambos os países, em caráter confidencial, tendente a acentuar o controle de agentes extremistas, de<br />

seus deslocamentos, localização e elementos de luta”. A proposta, que partiu dos argentinos, envolveria<br />

os canais diplomáticos: o embaixador João Hermes Pereira de Araujo relata que o diretor-geral<br />

de Informações da chancelaria argentina sugeriu “que a troca de informações proposta poderia, a<br />

seu ver, processar-se no plano chancelaria-embaixada, em Brasília e em Buenos Aires”, que o sistema<br />

“deveria ter em vista máxima rapidez na troca das informações, a fim de ser eficaz”, e reiterou-lhe “a<br />

importância que o Palácio San Martin atribui a uma mais íntima e permanente colaboração com o<br />

Governo brasileiro em assunto de tão grande atualidade”. 41<br />

67. No dia 16 de junho de 1971, Péricles Camargo deixou Santiago do Chile com destino<br />

a Montevidéu para um tratamento ocular, uma vez que as torturas a que fora submetido no Brasil<br />

haviam comprometido sua visão. Os dados dessa viagem haviam sido comunicados, na véspera, pelo<br />

cônsul do Brasil em Santiago, o embaixador Mellilo Moreira de Mello, em telegrama secreto-urgentíssimo<br />

à Secretaria de Estado. 42 Por sua vez, segundo a informação n o 68, de 16 de junho de 1971, um<br />

adido da Aeronáutica na Embaixada brasileira em Montevidéu recebeu uma comunicação, do posto<br />

Correio Aéreo Nacional (CAN) de Montevidéu, em que se dizia que – com seu próprio nome, Edmur<br />

Péricles Camargo Villaça – o brasileiro estava viajando para o Uruguai pela LAN-Chile. Em contato<br />

com a companhia aérea, o adido verificou que o avião faria escala na Argentina 43 e, após ligação à<br />

Embaixada do Brasil em Buenos Aires, deslocou-se para aquela cidade “a fim de saber das providências<br />

que ali seriam tomadas”. Segundo o adido, “a polícia argentina prendeu Edmur no aeroporto de Ezeiza<br />

e o entregou às autoridades brasileiras”. 44<br />

68. Em outra informação secreta, de n o 17, o adido do Exército em Buenos Aires é também<br />

notificado de que, em 16 de junho de 1971, Péricles Camargo “passaria por Buenos Aires, com destino<br />

a Montevidéu, viajando em avião da LAN-Chile, sendo-lhe solicitado verificar a possibilidade de obter<br />

das autoridades argentinas sua prisão e entrega às autoridades brasileiras”. O contato imediato com autoridades<br />

da Coordenação da Polícia Federal argentina foi feito e, em resposta, chegou a comunicação<br />

de que “a Brigada da Repressão já tinha montado a operação”. 45 O próprio adido que relata a prisão<br />

nesse documento foi ao aeroporto de Ezeiza e constatou que os elementos da polícia federal argentina<br />

estavam no aeroporto e lá teriam detido Péricles Camargo. Assim, de acordo com o informe, entraram<br />

em contato com as autoridades argentinas para detalhes de sua entrega às autoridades brasileiras. 46<br />

69. Foi providenciado um avião da Força Aérea Brasileira (FAB) que chegou em Buenos<br />

Aires na madrugada do dia 17 e, algumas horas depois, partiu para a base militar do Galeão no Rio<br />

de Janeiro. “Por volta das 5h do dia 17, chegou na zona militar do aeroporto um avião da FAB para<br />

o qual foi transferido o terrorista [Péricles Camargo], tendo o avião decolado por volta das 6h45”. 47<br />

O avião da FAB levava Péricles Camargo “acompanhado do coronel Lana, adido aeronáutico, e do<br />

secretário Nery, que seguiu de Brasília no mesmo avião”. 48 O diplomata Paulo Sérgio Nery, morto<br />

em 1979, exercia na época a função de diretor-executivo do Ciex, lotado na Secretaria-Geral do<br />

236


MRE. 49 Miguel Cunha Lana era coronel aviador e exercia as funções de adido militar aeronáutico<br />

em Buenos Aires. De acordo com esse mesmo documento, “o adido da aeronáutica e seu substituto”,<br />

que estavam em Buenos Aires, teriam solucionado “todos os problemas referentes à autorização para<br />

sobrevoo, utilização da área militar aérea e etc.” 50<br />

70. Os agentes apreenderam os papéis que estavam com Edmur, tais como o seu salvo-conduto,<br />

a documentação do serviço de saúde do Chile e uma carta do almirante Cândido Aragão que<br />

deveria ser entregue em mãos ao presidente João Goulart. A informação n o 68 registra que “o agente do<br />

Itamaraty conseguiu obter uma carta de apresentação do general Aragão para um contato de Edmur<br />

em Montevidéu”. 51 Sobre a prisão de Péricles Camargo, o adido de Montevidéu ainda comenta que<br />

“apesar das grandes dificuldades que se tem para acompanhar esse pessoal no Uruguai, no caso presente,<br />

parece que a polícia argentina se precipitou pois, no momento em que o fato venha a público,<br />

será difícil justificar a entrega e o recebimento de um banido”.<br />

71. A relação de passageiros da LAN-Chile veio com a observação de que Edmur Camargo<br />

foi detido pela polícia de Ezeiza. 52 O adido naval do Brasil no Chile, identificado como Jordão, em<br />

documento do Ciex, recebeu “a informação da viagem de Edmur Péricles Camargo graças à infiltração<br />

do Serviço Argentino na LAN-Chile e que, de posse da informação, transmitira a mesma<br />

ao adido aeronáutico em Buenos Aires, o qual montara a ‘operação prisão’ de Edmur”. 53 De acordo<br />

com o Jornal de Serviço de 2 de novembro de 1970, o capitão-de-mar-e-guerra Benedito Jordão<br />

de Andrade, adido naval no Chile, representou o Governo brasileiro nas solenidades de posse do<br />

presidente daquele país, Salvador Allende. 54 Segundo o Diário Oficial, em 19 de dezembro de 1971,<br />

Benedito Jordão de Andrade foi exonerado do cargo de adido naval junto à Embaixada do Brasil no<br />

Chile, com sede em Santiago. 55<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

72. O Ciex, em índice dedicado às “Atividades de asilados e foragidos brasileiros”, distribuiu<br />

aos demais órgãos da comunidade de informações – CIE, SNI-AC, 2 a seção/EME, 2 a seção/EMAER,<br />

Cenimar etc. – a informação n o 429, timbrada como secreta, datada de 21 de outubro de 1971, em<br />

que informava a entrega de um documento às autoridades chilenas por parte de exilados e refugiados<br />

brasileiros dando conta do desaparecimento de Edmur Péricles Camargo e informando que<br />

[...] até esta data [agosto de 1971] EDMUR CAMARGO não mais se comunicou<br />

com qualquer de seus companheiros, os quais têm recebido informes [de companheiros<br />

em Montevidéu e Buenos Aires] de que EDMUR CAMARGO teria sido<br />

preso pelas autoridades argentinas e brasileiras e entregue à ditadura brasileira. 56<br />

5. Um novo aliado no Cone Sul, o Chile de Pinochet<br />

73. A atitude assumida pelo Governo brasileiro nos vários desdobramentos que envolveram o<br />

golpe militar que derrubou o presidente do Chile Salvador Allende, em setembro de 1973, dá mais uma<br />

demonstração da proximidade e colaboração que imperava entre os aparatos militares desses países, e<br />

da participação do Ministério das Relações Exteriores nessa articulação. Muito já foi escrito – e ainda<br />

se escreverá – sobre o apoio prestado pelo Governo brasileiro aos golpistas chilenos. 57 A proximidade<br />

entre o embaixador do Brasil em Santiago, Antônio Câmara Canto, e os militares que viriam a assumir<br />

237


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

o poder no Chile era notória. O embaixador dos Estados Unidos no Chile de 1967 a 1971, Edward<br />

Korry, declarou em 1977 ante o Senado norte-americano que tinha motivos para crer que os militares<br />

brasileiros aconselharam os chilenos; seu sucessor no cargo, Nathaniel Davis, afirmou em livro sobre<br />

o período que a conexão brasileira havia sido confirmada por muitas fontes. As comunicações entre<br />

a Embaixada do Chile no Brasil e a chancelaria chilena na década de 1970, recentemente liberadas<br />

ao público, trazem também revelações nesse sentido, A pesquisa da <strong>CNV</strong> deparou-se com uma série<br />

de telegramas do Consulado-Geral em Santiago ao longo dos anos do governo Allende, classificados<br />

à época como ultrassecretos e dirigidos ao gabinete do ministro Mário Gibson Barboza, com uso de<br />

codinomes e códigos, relativos a contatos com a oposição chilena e possível ação clandestina (referida<br />

como “operação de asfaltamento”), entrega de armas etc., que parecem corroborar essas assunções. A<br />

série apresenta lacunas, em especial os telegramas de Brasília para o consulado, que não foram encontrados<br />

nos arquivos do Itamaraty, onde aparecem apenas as remissivas a esses expedientes. Sua análise<br />

exigiria uma pesquisa mais aprofundada, que poderá trazer à luz novas revelações sobre as articulações<br />

entre o Governo brasileiro e os conspiradores chilenos.<br />

74. A pesquisa nos arquivos do MRE trouxe também evidências documentais de que a atuação<br />

do Estado brasileiro com relação aos seus cidadãos que se encontravam no Chile quando ocorreu<br />

o golpe de Estado, como mencionado no Capítulo 5 deste Relatório, foi muito além da mera omissão<br />

em proteger a vida e a integridade física de seus nacionais. Não se sabe ao certo quantos brasileiros<br />

estavam no Chile naquela ocasião. Fala-se em várias centenas ou mesmo milhares, que para lá se haviam<br />

dirigido, ao longo dos três anos de governo da “Unidad Popular”, para escapar da repressão no<br />

Brasil – uns com intenção de lá ficar, outros de passagem para outros países – ou para testemunhar ou<br />

participar da inovadora experiência política que o Chile vivia naquela conjuntura. Desses brasileiros,<br />

três – Luiz Carlos de Almeida, Nelson de Souza Kohl e Túlio Cardoso Quintiliano – foram levados<br />

de suas casas e mortos por militares chilenos nos primeiros dias após o golpe, sem qualquer processo,<br />

como já foi reconhecido oficialmente pelo Governo do Chile. Segundo lista divulgada anos depois pelo<br />

ex-chefe da DINA (polícia política chilena) Manuel Contreras, 108 brasileiros teriam ficado presos no<br />

Estádio Nacional, um dos quais – Wânio José de Mattos – ali faleceu em situação de deliberada omissão<br />

de socorro. Muitos poderiam ter sido rapidamente libertados. As comunicações do período, entre<br />

a Embaixada e o Consulado em Santiago e a Secretaria de Estado em Brasília, mostram que não só o<br />

MRE não tomou medidas que estavam ao seu alcance e que eram necessárias para que isso ocorresse,<br />

mas chegou mesmo a tomar iniciativas no sentido de impedi-lo.<br />

75. Os primeiros dados que o Itamaraty se preocupou em obter após o golpe – o número e a<br />

identidade dos brasileiros que, a qualquer título, estavam no Chile – não foram voltados, como seria de<br />

se esperar, para a proteção que seria de seu dever estender-lhes, numa conjuntura de extrema violência em<br />

que o simples fato de ser estrangeiro configurava um perigo real. Tanto a Embaixada como o Consulado<br />

no Brasil já vinham monitorando e informando sistematicamente as atividades dos exilados brasileiros<br />

no Chile, porém sem contar, para tanto, com a colaboração das instituições chilenas. O golpe de Estado<br />

no Chile, e a subsequente perseguição aos estrangeiros que lá se encontravam, foi para as autoridades<br />

brasileiras uma ocasião privilegiada para descobrir o paradeiro de centenas de oponentes ao regime brasileiro<br />

que haviam deixado o país e, dali em diante, seguir-lhes a pista em seus deslocamentos no exterior.<br />

76. Assim, já no próprio 11 de setembro, dia do golpe de Estado, a Divisão de Segurança e<br />

Informações (DSI/MRE), chefiada na época pelo então conselheiro Adolpho Corrêa de Sá e Benevides,<br />

238


envia telegramas secretos-urgentes para as embaixadas em Montevidéu, La Paz, Assunção, Buenos<br />

Aires e Lima (e posteriormente a várias outras embaixadas da região), pedindo a esses postos que procurem<br />

obter das autoridades relação nominal dos brasileiros que ingressaram no país, procedentes do<br />

Chile, uma vez que “em decorrência do golpe de Estado no Chile e da crítica situação que o precedeu,<br />

é provável que os brasileiros subversivos lá refugiados estejam procurando abandonar o país e se dirigindo<br />

para os países limítrofes”. 58 A instrução foi cumprida por esses postos com empenho, recorrendo-se,<br />

conforme o caso, a adidos militares, autoridades de inteligência, militares e policiais, ou mesmo gestões<br />

pessoais junto ao Ministério do Interior ou outras instâncias políticas ou diplomáticas. 59<br />

77. No dia 18 de setembro – depois que, por meio de vários telegramas e gestões em Brasília<br />

e Santiago, o Governo brasileiro já fora o primeiro em reconhecer a Junta Militar chilena e travava<br />

conversações sobre o auxílio que poderia prestar-lhe – a DSI envia para a Embaixada em Santiago<br />

uma primeira instrução sobre a situação dos cidadãos brasileiros no Chile, pedindo que procure obter<br />

a colaboração das autoridades chilenas para que sejam transmitidas com urgência, “a fim de serem<br />

informadas às autoridades brasileiras de segurança”, listas dos brasileiros que se encontravam no Chile.<br />

Prossegue a instrução: “Em contrapartida, dada a possibilidade de se encontrarem no Brasil, ou para<br />

cá viajarem, Vossa Excelência poderá informar às autoridades chilenas, com quem entrou em contato<br />

para obter os dados acima referidos, que as relações de cidadãos chilenos ou estrangeiros, que estão<br />

sendo por elas procurados por atividades subversivas, que desejem encaminhar a Vossa Excelência,<br />

serão transmitidas às autoridades brasileiras de segurança, com o pedido de averiguarem a eventual<br />

presença de tais indivíduos no Brasil”. 60<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

78. A resposta recebida de Santiago faz referência aos interrogatórios a que estavam sendo<br />

submetidos os 4.400 prisioneiros alojados no Estádio Nacional – transformado naquela ocasião,<br />

como se sabe, em campo de concentração provisório por onde passaram milhares de detidos chilenos<br />

e estrangeiros e palco de torturas e fuzilamentos. Informa-se que é com base nesses interrogatórios<br />

que as autoridades chilenas estariam iniciando a elaboração de novas listas de estrangeiros, em razão<br />

de terem sido incendiados os arquivos do Ministério do Interior, por ocasião do bombardeio ao<br />

Palácio de La Moneda, onde estava localizado. 61<br />

79. Não se conhecem todas as instruções e informações que circularam entre o MRE em<br />

Brasília e os representantes do Brasil em Santiago do Chile naqueles dias. 62 Mas a documentação<br />

disponível permite traçar um quadro bastante preciso das providências que aquele Ministério adotou<br />

– ou deixou de adotar – com relação à comunidade de brasileiros supreendidos no Chile por<br />

um novo regime que passou a considerar suspeitos e indesejáveis todos os estrangeiros que tivessem<br />

migrado ao país durante o governo Allende.<br />

80. Após várias gestões da Embaixada para obter das autoridades chilenas a lista dos cidadãos<br />

brasileiros detidos no Estádio Nacional ou que já tivessem sido postos em liberdade ou expulsos<br />

para outro país, bem como dos que se encontravam asilados em embaixadas de outros países, 63 o<br />

Consulado do Brasil em Santiago transmite no dia 28 de setembro uma primeira lista de 52 brasileiros<br />

detidos no Estádio Nacional, entregue ao cônsul Luiz Loureiro Dias da Costa, em mãos, pela<br />

chancelaria chilena. Ao lado de cada nome, a respectiva situação: “debe interrogarse nuevamente”,<br />

“justicia militar”, “expulsión” ou “debe abandonar el país”. Cinco desses brasileiros, informa o cônsul,<br />

declararam às autoridades chilenas que desejam regressar ao Brasil, e “as autoridades militares<br />

239


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

chilenas concederão os necessários salvo-condutos, desde que solicitados por mim”. No dia seguinte,<br />

relata que foi ao Estádio Nacional entrevistar-se com o coronel Espinoza, encarregado do destino dos<br />

estrangeiros ali detidos, o qual ficou de fornecer-lhe a lista completa dos brasileiros que desejariam<br />

retornar ao Brasil, para fins de solicitação ao Ministério do Exterior local dos respectivos salvocondutos,<br />

e pede à DSI que informe quais os detidos “cujo regresso é considerado indesejável”. 64<br />

81. No dia 1 o de outubro, envia outra lista: a de 22 brasileiros detidos em instalações da<br />

Marinha na ilha Quiriquina, dos quais 14 já tinham sido liberados; quanto aos demais, “é pensamento<br />

das autoridades militares daquela região deportar para o Brasil os cidadãos brasileiros que formularem<br />

tal desejo”. 65 Com relação a esses, a DSI/MRE preocupa-se em que não se perca o seu rastro caso de<br />

fato sejam deportados: pede ao cônsul que averigue junto às autoridades militares “se seriam postos a<br />

bordo de avião direto para o Brasil (comercial ou militar, chileno ou brasileiro) ou se seriam colocados<br />

em alguma das fronteiras do Chile, nesta hipótese em qual e em que exato local”, e pede atenção<br />

quanto à exatidão dos nomes enviados para facilitar o levantamento de seus antecedentes pelas autoridades<br />

de segurança brasileiras. 66<br />

82. Essa preocupação com a identificação dos brasileiros para subsidiar os órgãos de informação,<br />

aliás, se reflete na intensa circulação das listas fornecidas pelas autoridades chilenas entre<br />

a DSI/MRE, o EME e seu adido na Embaixada em Santiago, o Consulado, o Ciex, do MRE, e os<br />

demais órgãos de Inteligência no Brasil. As listas são também enviadas pela DSI a mais de uma dezena<br />

de embaixadas e consulados do Brasil em capitais americanas e europeias, para que informem sobre<br />

a eventual entrada naqueles países de qualquer desses cidadãos. Também começam a circular entre<br />

todos esses órgãos as listas dos brasileiros que se encontram asilados em embaixadas estrangeiras em<br />

Santiago, quando possível acompanhadas de outros dados como fichas e fotografias, e as informações<br />

sobre suas partidas e chegadas aos respectivos destinos, que o MRE também recebe de seus postos<br />

nesses países e retransmite entre eles “em sistema de cross information”. 67 A Embaixada da Argentina<br />

em Santiago, uma das mais procuradas, chegou a abrigar naqueles dias mais de quinhentos asilados<br />

de diversas nacionalidades, entre os quais pelo menos 110 eram brasileiros. O embaixador do Panamá<br />

teve que alugar uma casa (a do brasileiro Teotônio dos Santos) para ampliar o espaço protegido por<br />

imunidade diplomática de maneira a acomodar, ainda assim em condições totalmente precárias, as<br />

cerca de 260 pessoas, das quais mais de oitenta brasileiros, que se haviam refugiado em seu apartamento.<br />

Outras dezenas de brasileiros foram acolhidos nas embaixadas do México, da Venezuela, da<br />

Itália, da Suécia e várias outras. 68<br />

83. A Secretaria de Estado também se interessa pelos métodos adotados pelas organizações<br />

internacionais, envolvidas, a pedido do Governo chileno, na evacuação de estrangeiros, sobre os<br />

quais instrui o consulado inicialmente a “obter com a necessária discrição e enviar-me informações,<br />

tão pormenorizadas quanto possível”, e depois a procurar obter os nomes e demais dados dos cidadãos<br />

brasileiros que por elas sejam atendidos, para transmiti-los a Brasília “antes de efetuar-se o<br />

transporte das pessoas em questão”. 69<br />

84. Com relação aos presos no Estádio Nacional, o cônsul Dias da Costa envia relação<br />

atualizada dos que pediram para retornar ao Brasil, e reitera a informação sobre as providências que<br />

poderiam ser tomadas de imediato para tirá-los de lá:<br />

240


As autoridades militares chilenas, mediante simples solicitação diplomática para<br />

que sejam expedidos os respectivos salvo-condutos para deixarem o Chile, entregarão<br />

à minha responsabilidade os citados brasileiros. Muitos deles não possuem<br />

presentemente documentação brasileira em ordem. Nada de desabonador encontrei<br />

deles em meus arquivos. Rogo Vossa Excelência autorizar-me a recebê-los e<br />

embarcá-los no primeiro avião Varig. Preço de cada passagem aérea Santiago-Rio<br />

de Janeiro é de US$138,60. Dei ciência deste telegrama ao embaixador Câmara<br />

Canto. Agradeceria instruções urgentíssimas. 70<br />

85. Explica que “o ministro da Defesa tem hoje como séria preocupação esvaziar o Estádio<br />

Nacional, que será palco da revanche do jogo Chile × Rússia para a classificação do mundial de<br />

futebol” e que o coronel Espinoza solicitou sua colaboração no “sentido de resolver rapidamente a<br />

situação dos brasileiros, já que autoridades chilenas devem deixar livres o mais rápido possível as<br />

dependências do estádio e as prisões se encontram superlotadas”. 71 Como não recebe resposta, continua<br />

a insistir. Em 9 de outubro, escreve:<br />

Lembro Vossa Excelência de que pessoas constantes do meu telegrama 179 já nada<br />

devem às autoridades chilenas desde 28/9/1973, data do meu telegrama 164, mas deverão<br />

deixar o país o mais rápido possível. Desde que assumisse eu o compromisso de<br />

mandá-los fora do Chile, os mesmos me seriam incontinenti entregues. As condições<br />

em que se encontram detidos no Estádio Nacional são mais do que precárias, quase<br />

desumanas, visto ter ali como “população flutuante” desde o dia 12 de setembro último<br />

aproximadamente seis mil pessoas. Apelo para o sentido humanitário de Vossa<br />

Excelência afim de receber instruções urgentes já reiteradas no meu telegrama 181. 72<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

86. No entanto, o Estado brasileiro optou por outro curso de ação: no início de outubro, a<br />

DSI/MRE envia ao SNI e outros órgãos de inteligência (CIE, Cenimar, CISA e CI/DPF) os Pedidos<br />

de Busca Secretos-Urgentíssimos n o DSI/2051, DSI/2071 e DSI/2095, pelos quais transmite a lista dos<br />

presos brasileiros no Estádio Nacional e na ilha de Quiriquina, com indicação de sua situação perante<br />

as autoridades chilenas, solicitando “receber, com a maior urgência, os nomes daqueles em favor de<br />

quem não deverá ser solicitado salvo-conduto, caso desejem regressar ao Brasil, por não ser de interesse<br />

das autoridades de segurança tê-los no território nacional neste momento”. No expediente formado no<br />

SNI a partir dos referidos Pedidos de Busca, consta informação, datada de 3 de outubro, dando conta<br />

de que o ministro Marcos Côrtes, do MRE, considerava que, excetuados os banidos, os demais teriam<br />

direito líquido e certo de retornar ao Brasil e poderiam impetrar mandado de segurança caso isso lhes<br />

fosse negado e de que o conselheiro Benevides, por sua vez, afirmava que “na prática o MRE tem<br />

recusado o regresso de alguns brasileiros por orientação do SNI, que tem desaconselhado o retorno”. 73<br />

87. Pode-se presumir que é a partir do recebimento dessas listas que é tomada a decisão,<br />

em algumas das instâncias de inteligência que a pesquisa da <strong>CNV</strong> ainda não logrou identificar,<br />

de enviar ao Chile uma equipe de agentes para interrogar os brasileiros cujos prontuários foram<br />

compilados a partir dos Pedidos de Busca da DSI. Os telegramas da série do MRE registram que o<br />

Itamaraty teve no mínimo conhecimento da presença desses agentes no Estádio Nacional: no dia<br />

15 de outubro, a DSI recebe do Consulado-Geral a informação de que o vice-cônsul, ao apresen-<br />

241


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

tar-se no Estádio Nacional para entregar ao coronel Espinoza a lista de brasileiros cujo retorno ao<br />

Brasil não é desejado pelas autoridades brasileiras, “lá topou com aproximadamente cinco policiais<br />

brasileiros que se encontravam acompanhados pelo sargento Deoclécio Paulo, ordenança do adido<br />

militar à Embaixada do Brasil nesta Capital, e já estavam se ocupando da situação dos brasileiros ali<br />

detidos”. A DSI retransmite o teor dessa comunicação à Embaixada do Brasil, sem nada perguntar<br />

ou comentar. 74 Em outro expediente, o cônsul faz novamente referência aos agentes que chegaram<br />

em um AVRO da FAB e “passaram incontinenti a lidar com os brasileiros detidos no Estádio<br />

Nacional”. Nos arquivos da chancelaria chilena, foi localizada uma solicitação de “autorização de<br />

sobrevoo e pouso” para um avião C-91 (AVRO) da FAB que aterrissou no dia 15 de outubro no<br />

aeroporto de Cerillos trazendo passageiros em proveniência de São Paulo, para onde regressaria no<br />

dia 21. O pedido é assinado pelo coronel Walter Mesquita de Siqueira, adido militar e aeronáutico<br />

da Embaixada do Brasil em Santiago, e consta a anotação: “sobrevoo autorizado verbalmente pelo<br />

senhor oficial de Ligação da Força Aérea Chilena, por motivo de urgência”. 75 O piloto da aeronave,<br />

o brigadeiro Zilson Luiz Pereira da Cunha, ouvido pela <strong>CNV</strong>, afirmou que a lista de passageiros<br />

era confeccionada no gabinete do ministro da Aeronáutica. 76 A <strong>CNV</strong> solicitou ao Ministério da<br />

Defesa as listas dos passageiros e tripulantes desse e de outros sete voos da FAB que aterrissaram em<br />

Santiago, entre 14 de setembro e 19 de dezembro daquele ano, e não obteve resposta.<br />

88. Há inúmeros depoimentos sobre a atuação desses agentes brasileiros, cuja presença no<br />

Estádio Nacional é fato notório, testemunhado por brasileiros e chilenos, 77 que atestam que eles teriam<br />

orientado os militares chilenos nos interrogatórios de presos brasileiros ou procedido pessoalmente aos<br />

interrogatórios sob tortura. Por exemplo, em audiência pública da subcomissão da Memória, Verdade<br />

e Justiça do Senado sobre o tema, realizada em 14 de abril de 2014, vários depoentes descreveram os<br />

agentes e sua atuação, inclusive a tortura por eles aplicada. 78 Em depoimento prestado à <strong>CNV</strong> no dia 7<br />

de novembro de 2013, 79 Osni Geraldo Gomes relata como foi interrogado – pendurado no pau de arara<br />

e submetido a choques elétricos – por três agentes brasileiros, que falavam em português e perguntavam<br />

sobre suas atividades e ligações no Brasil. A sessão de tortura foi presenciada por um grupo de oficiais<br />

chilenos que assistiam a tudo por uma parede de vidro, e de um dos quais o depoente ouviu o seguinte<br />

comentário, dirigido aos demais: “esses são profissionais, prestem atenção”. Outro brasileiro, Luiz Carlos<br />

Guimarães, torturado na mesma ocasião, reconheceu um de seus interrogadores como sendo um oficial<br />

do Cenimar que o havia torturado alguns meses antes, quando estivera preso no Rio de Janeiro. 80<br />

89. O então primeiro-sargento Deoclécio Paulo, na época auxiliar do adido aeronáutico e do<br />

Exército junto à Embaixada do Brasil no Chile, hoje capitão reformado, foi ouvido pela <strong>CNV</strong>. 81 Em seu<br />

depoimento, negou ter estado no Estádio Nacional, negou qualquer conhecimento a respeito da equipe<br />

de agentes brasileiros, e afirmou que seu trabalho no escritório do adido consistia apenas em “datilografar<br />

coisas sem importância, como cartões de aniversário”. No entanto, Deoclécio Paulo, cujos<br />

assentamentos funcionais já indicavam participação anterior em missões da Seção de Informações do<br />

Exército brasileiro, foi laureado com a Medalha do Pacificador com Palma, outorgada “por atos pessoais<br />

de abnegação, coragem e bravura, praticados de 8 de maio de 1972 a 1 o de novembro de 1974”. 82<br />

Seu nome também é citado em documentos do Ciex e do SNI, de 1976, que se referem a um relatório<br />

sobre a participação dos serviços de informação do Brasil no golpe que derrubou Salvador Allende, que<br />

estaria sendo confeccionado pelos asilados brasileiros Márcio Moreira Alves e Carlos de Figueiredo Sá<br />

com a colaboração de um ex-funcionário da Adidância Militar na Embaixada em Santiago, Euclides<br />

Moraes Gomes. Segundo esses documentos, Euclides Moraes Gomes teria relatado que o grupo de<br />

242


militares brasileiros que desembarcou no Chile logo após o golpe com a finalidade de interrogar presos<br />

políticos brasileiros e chilenos seria comandado pelo tenente-coronel Cyro Etchegoyen, informação<br />

que não pôde ser confirmada pela <strong>CNV</strong>. 83 O relatório, que também não foi localizado, citaria os nomes<br />

dos adidos do Exército na Embaixada em Santiago (Walter Mesquita de Siqueira e Décio Barbosa),<br />

como ligados ao CIE; os do adido naval e seu adjunto (Paulo Henchel Marins e Erotildes Lopes da<br />

Silva), como ligados ao Cenimar; os do embaixador Câmara Canto, seu ministro conselheiro Cláudio<br />

Santos Rocha e o assessor de segurança Jaceguay dos Santos Costa, como ligados ao SNI; além disso, os<br />

sargentos Deoclécio Paulo e José Mileski são apontados como “elementos do DOI/GB em Santiago”. 84<br />

A <strong>CNV</strong> solicitou ao Ministério da Defesa documentação sobre os militares brasileiros que teriam sido<br />

denunciados por Euclides Moraes Gomes, mas ainda não pôde comprovar suas alegações.<br />

90. O Itamaraty recebeu no dia 10 de outubro a primeira resposta do SNI sobre os cinco primeiros<br />

brasileiros que haviam solicitado, já em fins de setembro, retornar ao Brasil. A Agência Central<br />

informa inicialmente que “não é conveniente o regresso ao Brasil dos brasileiros Maria das Dores<br />

Romaniolo, Maurício Dias David e João Ernesto Maraschin”; quanto aos dois outros, que não possuem<br />

registros na agência, “solicita-se os dados característicos dos mesmos e as atividades que exerciam no<br />

Brasil e no Chile, antes de serem presos pelas autoridades chilenas”. 85 A recomendação é transmitida<br />

pela DSI/MRE ao Consulado em Santiago, com o pedido de que comunique às autoridades chilenas<br />

que não há interesse por parte do Governo brasileiro em receber essas pessoas no Brasil, e que informe<br />

“sobre as medidas que seriam, em consequência, adotadas por aquelas autoridades”. 86<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

91. Maria das Dores Romaniolo, que estava entre esses cinco, não registrava antecedentes<br />

políticos no SNI, exceto o de ser companheira de Wânio de Mattos, ex-capitão da Força Pública<br />

do Estado de São Paulo ligado à VPR, também detido no Estádio Nacional, onde apresentou<br />

quadro clínico de peritonite aguda e veio a morrer, no dia 16 de outubro, em situação de omissão<br />

de socorro. No entanto, ela (com sua filha de colo) e seus companheiros serão a partir desse<br />

episódio incluídos em circulares do MRE instruindo todas as missões diplomáticas e repartições<br />

consulares a não lhes concederem passaporte ou qualquer outro tipo de documento de viagem sem<br />

consulta prévia. 87 Resgatada do Estádio Nacional pelo Comitê Nacional de Ajuda aos Refugiados,<br />

refugiou-se em Paris onde continuou a ter seu regresso ao Brasil negado, até finalmente voltar ao<br />

país em 1979. Em depoimento à <strong>CNV</strong>, 88 a filha de Maria das Dores e Wânio de Mattos, Roberta<br />

Romaniolo de Mattos, relatou o impacto dessa situação sobre a vida de sua mãe e a sua própria.<br />

Quanto a Wânio, a <strong>CNV</strong> realizou missão ao Chile, onde teve acesso aos autos do processo criminal<br />

instaurado na justiça chilena para investigar seu homicídio, que corrobora o ocorrido com<br />

documentos como os relatórios de visita ao estádio do Comitê Internacional da Cruz Vermelha<br />

(que cita o caso de Wânio), o relatório da autópsia realizada e requerimentos e recibos do Comitê<br />

Nacional de Ajuda aos Refugiados relativos à exumação e cremação do cadáver, que teria sido<br />

inicialmente sepultado, como os demais mortos no Estádio Nacional, no Pátio 29 do Cemitério<br />

Geral de Santiago. Documentos localizados no fundo Ciex do Arquivo Nacional e nos arquivos<br />

do Itamaraty e da chancelaria chilena comprovam que o falecimento de Wânio de Mattos foi<br />

comunicado à Embaixada do Brasil em Santiago e por esta à DSI em Brasília; que o cônsul Dias<br />

da Costa foi procurado por funcionária do Comitê Nacional de Ajuda aos Refugiados, que lhe<br />

apresentou o atestado de óbito e os documentos de que era portador Wânio de Mattos, solicitando<br />

sua assinatura para que fosse providenciada a cremação do corpo; que o cônsul limitou-se a<br />

consultar Brasília e remeter cópia dos documentos à DSI, que por sua vez as encaminhou ao SNI,<br />

243


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

CIE, Cenimar, CISA, CI-DPF, DSI/MJ e às 2 as seções dos Estados-Maiores das Forças Armadas,<br />

do Exército, da Marinha e da Aeronáutica; que também o Ciex informou esses mesmos órgãos<br />

sobre o falecimento de Wânio. 89 Não consta que essas informações ou documentos tenham sido<br />

encaminhados à família de Wânio. Por outro lado, nos relatórios dos Ministérios do Exército, da<br />

Marinha e Aeronáutica apresentados ao ministro da Justiça, em 1993, sobre os dados existentes no<br />

CIE sobre os desaparecidos políticos, constam, a respeito de Wânio de Mattos, apenas seus antecedentes<br />

antes do banimento para o Chile; sobre sua morte, um dos relatórios afirma que “de acordo<br />

com o Jornal do Brasil, em sua edição de 6 de março de 1971, teria sido morto no Chile”, e outro<br />

que “durante os acontecimentos que levaram à deposição do governo Allende, em 11 de setembro<br />

de 1973, teria sido morto no Estádio Nacional de Santiago, segundo imprensa”.<br />

92. Quanto aos demais detidos no Estádio Nacional, a consulta ao SNI a seu respeito ficará<br />

sem resposta, ao menos em tempo oportuno. Em memorando para o secretário-geral das Relações<br />

Exteriores, no dia 11 de outubro, Benevides recapitula a situação, informando que, após ter levado<br />

as diversas comunicações recebidas do consulado ao conhecimento daquele órgão e dos centros de<br />

informação das Forças Armadas, entrevistou-se com o coronel Darcy Boano Mussói, chefe da agência<br />

central do SNI, que lhe transmitiu a orientação “recebida do próprio general Fontoura” de que o<br />

SNI considerava desaconselhável o regresso ao Brasil daqueles elementos que possuíssem registros de<br />

atividades subversivas e, quanto aos demais, “necessitaria receber maiores informações, a fim de poder<br />

examinar caso por caso”. E acrescenta que “o centro de informações de segurança da Aeronáutica – o<br />

único dos órgãos consultados sobre o assunto por esta divisão a responder por escrito, até o momento<br />

–, ao encaminhar os antecedentes disponíveis sobre os brasileiros detidos no Chile, expressou-se favoravelmente<br />

ao seu regresso, condicionando-o, apenas, a que fossem interrogados, na chegada, por<br />

oficiais dos centros de informações militares, com vistas ao levantamento de suas atividades e à busca<br />

de informações sobre subversivos brasileiros no exterior”. 90<br />

93. No entanto, a <strong>CNV</strong> conseguiu localizar nos arquivos da chancelaria chilena apenas um<br />

único pedido de expedição de salvo-conduto, apresentado pelas autoridades brasileiras, para três cidadãos<br />

brasileiros detidos no Estádio Nacional (Antonio Paulo Ferraz, Solange Bastos da Silva e Ricardo<br />

de Azevedo) – outros documentos da série telegráfica do MRE, porém, revelam que nem mesmo esse<br />

pedido teve o aval da Secretaria de Estado, o que levou o ministro Gibson Barboza a, desautorizando<br />

a iniciativa, instruir o embaixador Câmara Canto a “daqui por diante exercer o mais restrito controle<br />

sobre os atos do Consulado-Geral em tudo que se refira a brasileiros suspeitos, subversivos ou que se<br />

encontrem detidos ou sob observação pelas autoridades chilenas”. 91<br />

94. O chefe da DSI, Adolpho Benevides, na época conselheiro e hoje embaixador aposentado,<br />

foi ouvido pela <strong>CNV</strong>. 92 Esclareceu inicialmente que, embora as Divisões de Segurança<br />

dos Ministérios fossem, estatutariamente, órgãos sob a superintendência do SNI, no caso da<br />

DSI do MRE não havia subordinação: “A minha subordinação era ao ministro. Eu muitas vezes<br />

despachava ou com o ministro ou com o secretário-geral”. Quanto aos fatos aqui tratados,<br />

confirmou que “havia um interesse dos órgãos de informação, desde antes do golpe, em saber o<br />

que os brasileiros exilados estavam fazendo no Chile”, e “especialmente depois do golpe, que foi<br />

quando houve uma espécie de diáspora”. Confirmou também que “não houve nenhuma decisão<br />

de proteger” os nacionais. “Tratava-se de levantar informações. O Governo estava sabendo. Havia<br />

até militares brasileiros que foram lá interrogar brasileiros”.<br />

244


95. Esse interesse dos órgãos de informação brasileiros encontrou nos militares chilenos, a partir<br />

do golpe de Estado naquele país, interlocutores privilegiados. Os circuitos diplomáticos continuaram a<br />

ser também mobilizados para tal fim. Documentos obtidos nos arquivos da chancelaria chilena revelam<br />

que a DSI/MRE e a Embaixada do Chile em Brasília começam já nas primeiras semanas do novo regime<br />

a intercambiar informações: o lado brasileiro fornece listas, com fotografias e fichas datiloscópicas, de<br />

brasileiros cujo paradeiro deseja descobrir; pede fotos dos brasileiros que se asilaram no Chile e saíram do<br />

país com destino ao Panamá, México, Venezuela e Argentina; e manifesta sua disposição para colaborar<br />

com as novas autoridades chilenas para “desarticular a máquina terrorista que opera no continente e põe<br />

em perigo a segurança de ambos os países”, oferecendo-se para receber as listas de pessoas que o lado<br />

chileno esteja interessado em capturar, para a eventualidade de se encontrarem em território brasileiro. 93<br />

96. Monitorados de perto em seus deslocamentos, alguns desses brasileiros vieram a tornar-se<br />

desaparecidos políticos. É o caso de cinco dos que em setembro de 1973 buscaram asilo na<br />

Embaixada da Argentina em Santiago e de lá saíram para aquele país: João Batista Rita foi sequestrado<br />

em Buenos Aires em dezembro daquele mesmo ano; José Lavecchia, Victor Ramos, Daniel José de<br />

Carvalho e Joel José de Carvalho, integrantes da VPR, estão entre as vítimas da Chacina do Parque<br />

Nacional do Iguaçu, operação coordenada pelo CIE, em julho de 1974, na região da fronteira Brasil-<br />

Argentina (ver Capítulo 13). Em dezembro de 1973, ofício enviado pelo encarregado de negócios do<br />

Chile no Brasil à chancelaria chilena relata que teve conhecimento, “de forma muito reservada, que<br />

certos contatos entre os serviços de inteligência brasileiro e argentino teriam permitido a viagem de um<br />

grupo de agentes à Argentina para capturar alguns chefes terroristas, entre os quais quatro elementos<br />

que haviam ido ao Chile como asilados em troca do embaixador da Suíça, Bucher”. 94<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

97. Muitos anos depois, os brasileiros que haviam passado pelo Chile naquele período continuavam<br />

marcados por essa condição. Por meio de sucessivas circulares, os postos do MRE no exterior<br />

continuaram a receber listas, obtidas de diversas fontes, dos asilados políticos brasileiros procedentes<br />

do Chile acolhidos em diversos países, sempre com a instrução de incluir essas pessoas nos fichários<br />

da repartição, comunicar imediatamente sua eventual presença na respectiva jurisdição e submeter<br />

a consulta prévia qualquer solicitação por elas apresentada, o mesmo se aplicando às suas famílias. 95<br />

6. Jean Henri Raya Ribard, cidadão francês, e Antonio Luciano Pregoni, cidadão<br />

argentino, desaparecidos em 21 de novembro de 1973, no Rio de Janeiro, em conexão<br />

com o sequestro dos cidadãos brasileiros Joaquim Pires Cerveira e João Batista<br />

Rita, em Buenos Aires, em 5 de dezembro de 1973.<br />

98. Documentos do Centro de Informações do Exterior (Ciex), do Ministério das Relações<br />

Exteriores, abertos à consulta pública pelo Arquivo Nacional no ano de 2012, lançaram luz sobre os desaparecimentos<br />

do francês Jean Henri Raya Ribard e do argentino Antonio Luciano Pregoni, ocorridos<br />

no Brasil no final de novembro de 1973, assim como sobre sua conexão com os sequestros dos brasileiros<br />

Joaquim Pires Cerveira e João Batista Rita, que tiveram lugar em Buenos Aires no dia 5 de dezembro<br />

do mesmo ano. Há informações circunstanciais, que não puderam ser confirmadas pela <strong>CNV</strong>, de que<br />

o desaparecimento de Joaquim Pires Cerveira, João Batista Rita, Juan Raya e Antonio Pregoni estaria<br />

relacionado também ao desaparecimento, em 21 de novembro de 1973, em Copacabana, no Rio de<br />

Janeiro, de Caiupy Alves de Castro, que teria mantido contatos com Cerveira no ano de 1971 no Chile.<br />

245


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

99. Em informe interno do Ciex, datado de 14 de março de 1974, Alberto Conrado Avegno,<br />

agente do Ciex que usava, entre outros, o codinome de “Altair”, sugeriu que a argentina Alicia Eguren,<br />

militante da esquerda peronista, era o contato entre o ex-major brasileiro Joaquim Cerveira e o pequeno<br />

grupo de militantes revolucionários integrado pelo francês Jean Henri Raya, radicado na Argentina<br />

e conhecido como Juan Raya, e pelo argentino Antonio Pregoni. Na década de 1960, Pregoni havia<br />

integrado o grupo Tupamaros, do Uruguai. Joaquim Pires Cerveira, ex-major do Exército brasileiro<br />

e líder de um pequeno grupo conhecido como Frente de Libertação Nacional (FLN), encontrava-se<br />

na Argentina após haver deixado o Chile às vésperas do golpe contra Salvador Allende. Segundo documentos<br />

dos serviços de informações argentinos e brasileiros, Cerveira portava à época passaporte<br />

brasileiro emitido em nome de “Walter de Moura”.<br />

100. O documento do Ciex de 1974 informa que Juan Raya viajara ao Brasil em novembro<br />

de 1973 para realizar uma ação armada em conjunto com o grupo do major Cerveira, que então contava<br />

com a participação de brasileiros integrantes da FLN e do Movimento Revolucionário Tiradentes<br />

(MRT). O alvo da suposta operação não é identificado no documento. Segundo o documento, Alberto<br />

Conrado, agente infiltrado na esquerda peronista, deveria ir ao Rio de Janeiro para investigar melhor<br />

o que havia acontecido com Raya – identificado erroneamente no relatório pelo nome de “Juan Rays”.<br />

101. Denúncia n o 3.366, registrada nos arquivos da Comisión Nacional sobre la<br />

Desaparición de Personas (Conadep), da Argentina, informa que Jean Henri Raya Ribard teria<br />

viajado de Buenos Aires ao Rio de Janeiro em 16 de novembro de 1973, na companhia de Antonio<br />

Luciano Pregoni e de uma terceira pessoa, chamada Antonio Graciani. Todos estão desaparecidos.<br />

De acordo com o habeas corpus em favor de Jean Henri Raya apresentado por sua esposa, Mabel<br />

Bernis, e sua mãe, Gilberte Camille Ribard de Raya, às autoridades judiciais brasileiras em setembro<br />

de 1974, Raya ingressou no Brasil em ônibus da empresa Pluma pela cidade de Uruguaiana, vindo<br />

de Paso de los Libres, Argentina, de onde enviou carta a sua esposa, no dia 18 de novembro de 1973.<br />

Após chegar ao Rio de Janeiro, correspondeu-se com amigos na Argentina fornecendo o endereço:<br />

Avenida Atlântica, n o 3.150, apartamento 204.<br />

102. Os encontros, em Buenos Aires, entre o grupo liderado pelo major Joaquim Pires<br />

Cerveira e o grupo de Juan Raya e Antonio Luciano Pregoni foram confirmados em depoimento<br />

à <strong>CNV</strong> do argentino Julio Cesar Robles, realizado em 8 de abril de 2014 na cidade argentina de<br />

Río Ceballos, na província de Córdoba. Segundo Julio Robles, o primeiro desses encontros teria<br />

ocorrido na confeitaria Richmond, na Rua Florida em Buenos Aires, poucas semanas após o golpe<br />

contra Salvador Allende no Chile. De acordo com Robles, Alicia Eguren teria promovido a aproximação<br />

entre os dois grupos de militantes, a fim de que os argentinos providenciassem assistência<br />

econômica aos brasileiros provenientes do Chile. Julio Robles, que participou de várias iniciativas<br />

de insurgência da resistência peronista na década de 1950 e 1960, informou à <strong>CNV</strong> que Cerveira<br />

esteve nesses encontros na companhia de outros dois brasileiros cujos nomes desconhece, mas que<br />

eles não aparentavam ter mais de trinta anos de idade à época.<br />

103. Robles confirmou à <strong>CNV</strong> que Juan Raya, Antonio Pregoni e outro argentino conhecido<br />

pelo apelido de “El Salteño” – que acredita ser Antonio Graciani – teriam viajado ao Brasil em meados<br />

de novembro de 1973, possivelmente na companhia de um dos brasileiros que integravam o grupo de<br />

Cerveira. Também estaria junto um outro cidadão de nacionalidade chilena. Memorando do Serviço de<br />

246


Inteligência da Prefectura Naval Argentina (órgão equivalente à Capitania dos Portos no Brasil), com data<br />

de 28 de novembro de 1973, disponibilizado à <strong>CNV</strong> pela Comisión Provincial de la Memoria da Província<br />

de Buenos Aires, revela – em complementação ao depoimento de Robles – que as forças armadas e policiais<br />

da Argentina foram informadas pela Polícia Federal de Uruguaiana (RS) que Joaquim Pires Cerveira<br />

estava na Argentina à época e estaria realizando “contatos com organizações extremistas argentinas”.<br />

104. Em informe do Ciex, de 14 de dezembro de 1973, o agente Alberto Conrado (codinome<br />

“Altair”) relatou que estivera “várias vezes” com Cerveira no Chile. Conrado se refere à denúncia<br />

do sequestro de Joaquim Pires Cerveira e João Batista Rita em Buenos Aires e à batida realizada na<br />

casa de Cerveira por um grupo de policiais argentinos que tinha à frente um brasileiro, “dizendo-se<br />

da Interpol”. O agente do Ciex também indica que o “coronel Floriano” – coronel Floriano Aguilar<br />

Chagas, adido do Exército junto à Embaixada do Brasil em Buenos Aires à época – estaria vinculado<br />

tanto à operação de sequestro de Joaquim Pires Cerveira em Buenos Aires como à “penetração” no<br />

Brasil de um “comando argentino” de “peronistas de esquerda”. 96<br />

105. No memorando n o 4, de 29 de outubro de 1974, Arancibia Clavel, agente da<br />

Dirección de Inteligencia Nacional (DINA) chilena, menciona “contatos estabelecidos: coronel<br />

Floriano Aguilar, Agregado Militar del Brasil, me ofreció información sobre la subversión argentina...”.<br />

Documentação recebida pela <strong>CNV</strong> do Ministério Público da Argentina confirma outros<br />

contatos do coronel Floriano Aguilar Chagas com agentes da Inteligência argentina e chilena em<br />

Buenos Aires nos anos de 1974 e 1975. 97<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

106. Em depoimento à <strong>CNV</strong>, o ex-delegado Cláudio Guerra afirmou que o delegado Sérgio<br />

Paranhos Fleury teria sido o responsável pelo sequestro de Cerveira em Buenos Aires e também por seu<br />

traslado para o Brasil – informação que Guerra teria obtido do próprio Fleury. Guerra afirmou ainda que<br />

o corpo do major Joaquim Pires Cerveira lhe foi entregue pelo coronel Freddie Perdigão no Destacamento<br />

de Operações de Informações (DOI), à Rua Barão de Mesquita, Rio de Janeiro, para incineração na usina<br />

Cambahyba, no município de Campos de Goytacazes, no Rio de Janeiro. Em depoimento à <strong>CNV</strong> em 26<br />

de março de 2014, o coronel Paulo Malhães nada falou sobre o sequestro do major Cerveira em Buenos<br />

Aires, mas afirmou acreditar que o ex-militar brasileiro teria sido morto no DOI do Rio de Janeiro.<br />

107. As informações sobre a prisão ilegal e as torturas sofridas por Joaquim Pires Cerveira<br />

e João Batista Rita no DOI do Rio de Janeiro vão ao encontro do conhecimento de um telegrama<br />

confidencial a respeito do paradeiro de Joaquim Pires Cerveira e João Batista Rita, expedido pela<br />

Embaixada do Brasil em Buenos Aires em 14 de fevereiro de 1974, e assinado pelo encarregado de<br />

negócios Paulo Cabral de Melo:<br />

O senhor Oldrich Haselman, representante do escritório para a América Latina do<br />

Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados, pediu-me audiência urgente<br />

sem especificar o assunto. Como não me fosse possível recebê-lo no momento,<br />

designei para tal fim um dos conselheiro da Embaixada.<br />

Em longa conversa em que assumiu tom cordial e informal, sem entregar nenhum<br />

documento, o senhor Haselman se referiu ao assunto do suposto desaparecimento<br />

de dois exilados brasileiros, já amplamente comentado pela imprensa<br />

247


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

local e objeto de comunicações anteriores da Embaixada, cujos nomes o visitante<br />

declinou como sendo Valter de Moura ou Joaquim Pires Cerveira e seu acompanhante,<br />

João Batista Rita.<br />

Segundo o visitante, sua intervenção amigável e informal se deveu a duas razoes:<br />

a) “alguns refugiados brasileiros sem ideologia marxista” o procuraram para informar<br />

que haviam recebido de fonte segura a notícia de que os dois desaparecidos se<br />

encontrariam numa prisão brasileira situada “em Barão de Mesquita”; b) a esposa<br />

de João Batista Rita também o procurou para lhe pedir que intercedesse junto às<br />

autoridades competentes com o fim de descobrir o paradeiro de seu marido “que não<br />

é comunista e nem possui antecedentes, tendo desaparecido quando se achava por<br />

acaso em companhia do outro desaparecido”.<br />

O conselheiro prometeu levar o assunto aos seus superiores, como o fez imediatamente,<br />

perguntando, porém, ao visitante por que razão havia declinado dois nomes<br />

para um dos cidadãos brasileiros, ao que o senhor Haselman respondeu que provavelmente<br />

o exilado Valter de Moura ou Joaquim Cerveira também usava um nome<br />

falso devido a circunstâncias próprias de um exilado político. Evitou, por outro<br />

lado, manifestar sua opinião pessoal acerca das hipóteses levantadas pela imprensa<br />

argentina a propósito do suposto desaparecimento dos dois exilados.<br />

Essa gestão informal ocorrida no dia 4 do corrente mês, não foi comunicada imediatamente,<br />

inclusive porque o próprio funcionário que o atendeu, o conselheiro<br />

Augusto Estellita Lins, pediu-me alguns dias para pesquisar se teria transpirado<br />

na imprensa qualquer comentário que pudesse corroborar o sentido das gestões<br />

do senhor Haselman, verificando porém que até hoje não houve nenhuma outra<br />

menção à presença de qualquer dos dois exilados numa prisão no Brasil. Quanto<br />

à dupla identidade de Moura ou Cerveira, efetivamente ambos os nomes foram<br />

mencionados no noticiário dos jornais de forma pouco clara, mas a maneira<br />

como se expressou o senhor Haselman demonstrava estar seguro de se tratar<br />

efetivamente da mesma pessoa. Não creio que o senhor Oldrich Haselman volte<br />

ao assunto. Agradeceria instruções. 98<br />

108. Em 19 de fevereiro de 1974, poucos dias depois da entrevista do representante do Alto<br />

Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados com o diplomata brasileiro em Buenos Aires,<br />

o correspondente estrangeiro Patrick Keatley, do jornal The Guardian, de Londres, publicou matéria<br />

intitulada “Brazilian rebels tortured after being abducted”, na qual registrou testemunho dos suplícios<br />

sofridos por Joaquim Pires Cerveira e João Batista no DOI do I Exército, no Rio de Janeiro:<br />

Dois membros, líderes do movimento oposicionista clandestino brasileiro, que haviam<br />

procurado refúgio na Argentina, foram sequestrados em Buenos Aires e estão sendo torturados<br />

na prisão da Rua Barão de Mesquita, no Rio de Janeiro, segundo informações.<br />

O relato foi dado ao The Guardian ontem à noite por outro refugiado político brasileiro,<br />

atualmente exilado na Bélgica, o qual viu os dois homens chegando à prisão<br />

248


em uma ambulância da polícia no dia 13 de janeiro. Ele diz que eles foram raptados<br />

por membros do “Esquadrão da Morte”, trajando roupas comuns da polícia, que<br />

esteve também ativa no Chile desde o golpe.<br />

Presumindo que o relato seja preciso − o refugiado foi capaz de dar expressiva corroboração<br />

e também referências pessoais − isto significa que o desaparecimento misterioso<br />

de Joaquim Pires Cerveira e João Batista Rita Pereira do seu lugar de exílio na<br />

Argentina, há dois meses, foi solucionado. [...]<br />

A testemunha ocular que viu Cerveira e Rita no Rio de Janeiro na manhã de 13 de<br />

janeiro de 1974 faz um seguinte relato do aspecto dos dois brasileiros quando foram<br />

levados para a prisão:<br />

“Estavam amarrados juntos em posição fetal, os rostos inchados, mostrando vestígios<br />

de sangue fresco. Estavam em estado de choque obviamente extenuados.<br />

Foram levados para o que é conhecido como celas frigoríficas individuais. São<br />

câmaras de torturas. A temperatura interna pode ser reduzida a menos de quinze<br />

graus. O sistema nervoso do prisioneiro pode também ser afetado. Isto é feito por<br />

meio de um sistema de alto-falantes, que reproduz os gritos de pessoas sofrendo<br />

torturas.” 99<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

Sobre o método de tortura chamado de “cela frigorífica”, descrito pela testemunha, ver o Capítulo 9<br />

deste Relatório.<br />

7. Enrique Ernesto Ruggia, cidadão argentino, desaparecido em 13 de julho 1974<br />

109. O argentino Enrique Ernesto Ruggia nasceu em 25 de julho de 1955, em Corrientes,<br />

na Argentina. Era estudante de Veterinária na Faculdade de Agronomia de Buenos Aires e iniciava<br />

a profissão de fotógrafo. Em 1973, Ruggia conheceu o brasileiro Joel José de Carvalho, integrante<br />

da Vanguarda Popular Revolucionária (VPR). O jovem estudante – que não pertencia a nenhuma<br />

organização política – se encantou com a possibilidade de se engajar na luta guerrilheira latino-americana<br />

a partir do Brasil.<br />

110. No entanto, Ruggia e outros cinco companheiros (Joel José de Carvalho, Daniel<br />

José de Carvalho, José Lavecchia e Victor Carlos Ramos) morreram em uma emboscada no Parque<br />

Nacional do Iguaçu, em 13 de julho de 1974. Onofre Pinto, que também estava no grupo e que<br />

veio do exterior para o Brasil, foi morto posteriormente. O episódio – conhecido como “Chacina<br />

do Parque Nacional do Iguaçu” – foi mencionado pelo coronel do Exército e agente do CIE Paulo<br />

Malhães, em depoimento à <strong>CNV</strong> em 24 de março de 2014. 100 Malhães afirmou ter sido o líder dessa<br />

operação em Foz do Iguaçu e informou, ainda, que os corpos dos cinco guerrilheiros foram enterrados<br />

ali mesmo, no Parque Nacional do Iguaçu.<br />

111. Em 2013, a <strong>CNV</strong> retomou a buscas no Parque Nacional do Iguaçu, iniciadas no ano de<br />

2005, com a finalidade de encontrar os restos mortais dos militantes da VPR desaparecidos.<br />

249


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

C) Vítimas da Operação Condor e de outros mecanismos de coordenação repressiva na<br />

América Latina<br />

1. Cidadãos brasileiros desaparecidos na Argentina no marco da Operação Condor<br />

1.1. Sidney Fix Marques dos Santos, desaparecido em Buenos Aires, em 15 de fevereiro de 1976<br />

112. Sidney Fix Marques dos Santos (1940-76) nasceu em São Paulo (SP). Dirigente<br />

do Partido Operário Revolucionário Trotskista (PORT), abandonou o curso de Geologia da<br />

Universidade de São Paulo (USP) para dedicar-se à militância política e foi o editor responsável pelo<br />

jornal Frente Operária. Ingressou na clandestinidade logo após o golpe militar de 1964, tendo seus<br />

direitos políticos cassados por dez anos em 27 de janeiro de 1967, em função do Ato Institucional n o<br />

2 (AI-2). 101 Em fins de 1972, Sidney Fix Marques dos Santos (codinome “Eduardo”) e sua esposa,<br />

Leonor Elvira Cristalli (codinome “Suzana”), exilaram-se em Buenos Aires, Argentina, onde Fix<br />

trabalhou como programador da IBM. Em 15 de fevereiro de 1976, aos 36 anos de idade, Marques<br />

dos Santos desapareceu na capital argentina.<br />

113. Documento do Itamaraty, classificado como “secreto-urgentíssimo” e intitulado “Suposta<br />

prisão de brasileiro. Pedido de proteção consular. Sidney Fix Marques dos Santos” 102 informa que seu<br />

pai, Cherubim Marques dos Santos, impetrou um habeas corpus à Justiça argentina em favor do filho:<br />

[...] compareceu [...] a este consulado o senhor Cherubim Marques dos Santos para<br />

comunicar haver interposto recurso de habeas corpus em favor de seu filho, Sidney Fix<br />

Marques dos Santos, em virtude de comunicado recebido no Brasil de que esse teria<br />

sido detido em Buenos Aires [...] e se encontraria nas dependências da coordenação<br />

federal da polícia Argentina, fatos que teriam sido denegados pelo órgão em questão.<br />

114. Suzana Olga Fix Marques dos Santos, mãe do brasileiro desaparecido, escreveu duas<br />

cartas ao então ministro das Relações Exteriores, o embaixador Azeredo da Silveira, pedindo que este<br />

intermediasse junto às autoridades argentinas a fim de que o paradeiro de seu filho pudesse ser descoberto.<br />

Na primeira delas, datada de 20 de fevereiro de 1976, 103 ela relata:<br />

Imediatamente após recebermos a notícia que Sidney não voltara para casa naquele<br />

dia 15, meu marido voou para Buenos Aires. Apuramos então, por intermédio de<br />

deputados argentinos, que Sidney fora preso por agentes da Superintendencia de<br />

Seguridad Federal. As autoridades, no entanto, recusam-se a fornecer qualquer informação<br />

sobre ele ou mesmo admitir sua prisão.<br />

115. Outro documento do Consulado do Brasil em Buenos Aires, taxado como “secreto” e<br />

endereçado à Secretaria de Estado (telegrama n o 087, de 28 de fevereiro de 1976), relata:<br />

[...] tive então conhecimento que o juiz federal, doutor Zafaroni, do juizado federal<br />

número dois, onde foi dada entrada pedido [sic] de habeas corpus, tendo<br />

dirigido autoridades abaixo relacionadas sobre eventual detenção de Sidney Fix<br />

Marques dos Santos, de todos recebeu resposta negativa. Foram consultados Mi-<br />

250


nistério do Interior, comando das Forças Armadas e Superintendência de Segurança<br />

Federal. Foram posteriormente consultados, não tendo ainda respondido, o<br />

Governo da Província de Buenos Aires, e também os Serviços de Informação do<br />

Estado, Exército, Marinha e Aeronáutica.<br />

116. Prontuário produzido pelo Centro de Informações do Exército (CIE) informa, na<br />

página 7, que Sidney Fix Marques dos Santos havia requisitado um passaporte, em 8 de janeiro de<br />

1975, junto ao Consulado do Brasil em Buenos Aires. O passaporte brasileiro lhe daria direito a<br />

viajar para as Américas do Norte, Central (exceto Cuba) e do Sul, além da Europa, Ásia, África e<br />

Oceania. Na página 6 do mesmo documento, 104 encontra-se uma “ficha de controle” com os principais<br />

dados do brasileiro e a referência ao Pedido de Busca expedido contra ele. Nessa ficha, ele é<br />

considerado como “foragido”. Na página 9 consta a cópia do telex n o 905-8/102, com data de 24 de<br />

fevereiro de 1976, que é uma resposta enviada pelo então chefe responsável do CIE, o coronel Carlos<br />

Pinto, sobre o apelo de seus pais ao Itamaraty:<br />

Imprensa RJ e SP veicula noticiário sobre subversivo Sidney Fix Marques dos Santos,<br />

constando apelo seus pais ao Itamarati [sic] para que realize gestões junto gov<br />

RA para localizá-lo. Declaram ter mesmo desaparecido naquele país 15 fev 76. Ref<br />

subv foi objeto informação NR 1705/s-102 A6 deste centro, de 15 set 75.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

117. O relatório da agência de São Paulo do SNI 105 evidencia que Marques dos Santos vinha sendo<br />

monitorado pelo menos desde 1973. À página 11 desse documento, os agentes da repressão informam que:<br />

18 mar 73 – Prot. 1.468 – Relatório sobre reunião realizada no DOI, em 14 de março<br />

de 73, da qual consta informe Dops, segundo o qual SIDNEY FIX MARQUES<br />

DOS SANTOS, vivendo no exterior, deseja voltar ao BRASIL.<br />

No mesmo documento, à página 12, informa-se:<br />

14 fev 74 – Prot. 657 – Informe (A-1) 02-B, de 11 Fev 74, do SI/Deops/SP – Dá<br />

conta de ter recebido comunicação segundo a qual SIDNEY FIX MARQUES<br />

DOS SANTOS encontra-se na ARGENTINA.<br />

118. O documento AC_ACE_91957_76 do fundo SNI, produzido por agentes do CIE, informa,<br />

à página 8, que Marques dos Santos “casou-se com Leonor Elvira Cristalli, filha do comunista<br />

trotskista ‘Juan Posadas’, nome falso de Homero Romulo Cristalli” (página 8). Na página 1, comunica-se<br />

que Posadas foi substituído na direção da seção brasileira da IV Internacional por seu genro,<br />

Sidney, e sua filha Leonor. (página 1).<br />

119. Em carta a familiares, datada de 7 de agosto de 1975 – pouco mais de oito meses<br />

antes do golpe que depôs a presidente argentina Isabelita Perón em 24 de março de 1976 –, Sidney<br />

Fix comenta a crise política no país vizinho:<br />

Se vai a uma definição inevitável a curto prazo. Há somente duas saídas históricas<br />

possíveis. Ou o “pinochetazo” (aqui teriam que fuzilar dez vezes o que os nazistas<br />

251


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

da Junta chilena fizeram no Chile), acabar com os sindicatos, fazer a gente comer<br />

capim − logicamente, como soem ser essas coisas, para “defender a Pátria”, a<br />

“civilização cristã” etc. Ou então uma democratização real e medidas contra os<br />

latifundiários, os monopólios, estatizações, formas de planificação da economia,<br />

mobilizar o esforço consciente do povo, que vejam que estão trabalhando para<br />

sua própria felicidade, não para engordar os parasitas. Nós estamos seguros que<br />

o caminho vai ser este último, que a direita não tem mais força, nem condições<br />

concretas para impor-se – começando pelo próprio exército, onde cada vez é maior<br />

a força dos setores dispostos a uma aliança militares-sindicatos para uma saída de<br />

tipo nacionalista-revolucionária. Há um desemprego tremendo e uma das consequências<br />

que eu já sofri diretamente é que perdi o meu... Mas o que é impressionante<br />

aqui é que não há desânimo, pessimismo nas pessoas, todas estão seguras<br />

que vão para a frente, de que se vai triunfar. 106<br />

Na mesma carta, 107 Sidney Fix narra os trâmites para conseguir o passaporte brasileiro. Carta de seu<br />

irmão Paulo Fix 108 encontrada no Arquivo Nacional revela que a partida de Sidney para a Europa já<br />

estava acertada e que a família iria a Buenos Aires para se despedir.<br />

120. Sidney Fix desapareceu antes que ele pudesse reencontrar sua esposa e filha na<br />

Itália. O documento ACE_ACE_115300_78, do fundo SNI, produzido pelo CIE e intitulado<br />

“Regresso de grupos de asilados brasileiros”, com o anexo “Relação de exilados na Argentina:<br />

dados de qualificação e relação de nominados”, informa, à página 12, que: “Em 15 de fevereiro<br />

de 1976, desapareceu em Buenos Aires, após sua prisão pela Polícia Federal argentina, segundo<br />

subversivos radicados na RA, teria sido morto pela AAA”. Não foi encontrado qualquer outro<br />

documento que indique que Marques da Silva possa ter sido sequestrado e morto pela Aliança<br />

Anticomunista Argentina (AAA). Ao contrário, em carta dirigida a seu filho Paulo, Cherubim<br />

Marques dos Santos expressa sua descrença na possibilidade de Sidney ter sido sequestrado por<br />

membros da AAA:<br />

Aqui no Brasil estamos desenvolvendo grande campanha e estou esperando audiência<br />

com o ministro Azeredo da Silveira, no Itamaraty, para o começo da próxima<br />

semana. Na Argentina, depois de quinze dias de verdadeira luta a única conclusão<br />

a que pudemos chegar – e que já é consoladora – é que seu irmão não deve<br />

estar nas mãos da AAA. Esta organização, pelo que soubemos lá, não aprisiona<br />

suas vítimas, matando-as imediatamente. Isto já representa para nós uma nesga<br />

de esperança e, tanto sua mãe como eu, acreditamos que ele, mais cedo ou mais<br />

tarde, irá aparecer com vida. 109<br />

121. Em outra carta, desta vez endereçada à consulesa do Brasil em Buenos Aires, Ruth<br />

Maria Baião, 110 Cherubim Marques dos Santos informa suas conclusões em relação aos motivos que<br />

levaram ao sequestro de seu filho.<br />

O desenrolar dos acontecimentos argentinos leva-me à conclusão de que meu filho<br />

– assim como outros elementos da esquerda – foi detido pelas Forças Armadas em<br />

virtude do “golpe” que se articulava.<br />

252


122. A conclusão a que chega o pai de Sidney naquele momento é respaldada, anos depois,<br />

por um documento secreto do Exército argentino, enviado ao prefeito naval do Atlântico Sul, em que se<br />

indaga sobre brasileiros que tiveram solicitadas as suas capturas, entre eles Sidney Fix Marques dos Santos<br />

(página 6, item 37). O documento – que foi enviado para outros doze órgãos, inclusive a delegacia de<br />

Polícia Federal – é assinado pelo tenente Osvaldo Bernardino Paez, lotado no G-3 Comando subz 51. 111<br />

123. A denúncia do desaparecimento forçado de Sidney Fix Marques dos Santos foi registrada<br />

e protocolada pela Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep), na<br />

Argentina, sob o n o 3.129. Não foi apresentado requerimento sobre o caso à Comissão Especial sobre<br />

Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP).<br />

1.2. Francisco Tenório Cerqueira Júnior, desaparecido em Buenos Aires, em 18 de<br />

março de 1976<br />

124. Francisco Tenório Cerqueira Júnior nasceu no dia 4 de julho de 1940 no Rio de Janeiro.<br />

É filho de Francisco Tenório Cerqueira e Alcina Lourenço Cerqueira. Tenório Júnior iniciou sua carreira<br />

artística aos quinze anos, quando estudava acordeão e violão. Posteriormente, dedicou-se ao piano,<br />

instrumento com o qual fez fama no universo musical. Compôs músicas, lançou discos, participou<br />

de vários festivais e realizou turnês no Brasil e no exterior, ao lado de consagrados nomes da música<br />

brasileira. Na década de 1970, tornou-se um dos mais requisitados artistas no Brasil.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

125. Em 1976, Tenorinho – como era conhecido Tenório Júnior – acompanhava os músicos<br />

Toquinho e Vinicius de Moraes em uma turnê pela América do Sul, com apresentações em Buenos Aires,<br />

e shows que se estenderiam a Punta del Este e a Montevidéu. Na capital argentina, na madrugada de 18<br />

de março, exatamente seis dias antes do golpe militar que derrubou a presidente María Estela Martínez<br />

de Perón (Isabelita), Tenório Júnior saiu de onde estava hospedado – o Hotel Normandie, situado na<br />

esquina da Avenida Sarmiento com a Rua Rodriguez Peña – e foi detido em blitz na Avenida Corrientes,<br />

a uma quadra de seu hotel, e levado para a delegacia da Polícia Federal Argentina n o 5, na Rua Lavalle,<br />

esquina com Riobamba, no centro de Buenos Aires. O relatório Víctimas del Terrorismo de Estado. Informe<br />

de la Comisión Provincial por la Memoria (Argentina) para la Comisión Nacional de la Verdad de Brasil 112<br />

informa que o primeiro dossiê arquivado como “S/ PARADERO ciudadano brasileño FRANCISCO<br />

TENORIO CERQUEIRA” (Mesa DS vários n o 14.387) está datado de 1 o de agosto de 1976, na Jefatura<br />

III, originado por um pedido do paradeiro de Cerqueira Júnior vindo do Consulado-Geral do Brasil.<br />

Manoel Rodriguez Pineda, à época funcionário do consulado do Brasil em Buenos Aires, “indagou se<br />

existiam nessa chefatura antecedentes relacionados com o desaparecimento de Cerqueira Júnior”. O<br />

secretário-geral da Polícia da Província de Buenos Aires respondeu ao consulado que depois “da investigação<br />

realizada por esta chefatura, pode-se determinar que o nominado não se acha nem esteve detido<br />

no âmbito desta polícia”. Em depoimento dado à <strong>CNV</strong>, em 28 de abril de 2012, o ex-agente argentino do<br />

Grupo de Tarefas do Servicio de Información Naval Claudio Vallejos afirmou ter participado da captura<br />

de Tenório Júnior e que o teria levado para a Escuela de Mecánica de la Armada (ESMA). 113<br />

126. Informação de 2006 para o subsecretário de Assuntos Políticos do Ministério das<br />

Relações Exteriores, disponível no Arquivo Nacional, 114 traz anexado trecho de relato de Manoel<br />

Rodriguez Pineda, que descreve buscas realizadas junto ao Corpo de Infantaria Motorizada, na cidade<br />

253


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

de La Plata, Argentina, onde aparentemente Francisco Tenório Júnior teria sido visto por enfermeiros<br />

do Comando de Operações Policiais, que habitualmente ali realizavam visitas para avaliar as condições<br />

de saúde dos detentos. Apesar da insistência de Pineda em obter informações sobre a prisão de Tenório,<br />

foi-lhe dito por um oficial argentino de nome major Fleitas que ele “não poderia autorizar a identificação<br />

do detido em virtude de ser sua função outra e que, no caso, o Consulado ou a Embaixada é que<br />

devem se dirigir ao Ministério das Relações Exteriores e Culto para lograr esse objetivo”. As buscas<br />

por Tenório, no entanto, não puderam ter seguimento em razão do contexto de intensa repressão na<br />

Argentina e no Brasil no ano de 1976.<br />

127. À época, o diplomata Marcos Henrique Camillo Cortes ocupava a função de ministro-conselheiro<br />

da Embaixada do Brasil em Buenos Aires, sendo considerado o “homem forte da<br />

Embaixada”. Cortes chefiara o Ciex de 1966 a 1968. Havia servido sob as ordens do embaixador<br />

Manoel Pio Corrêa Jr., o idealizador do Ciex, na Embaixada do Brasil em Montevidéu e depois<br />

na Secretaria-Geral do MRE. Segundo entrevistas do agente argentino Claudio Vallejos à imprensa<br />

brasileira no ano de 1986, Cortes teria atuado no episódio do desaparecimento de Tenório de forma<br />

conivente com as forças argentinas de repressão.<br />

128. Ouvido pela <strong>CNV</strong> em 19 de fevereiro de 2014, 115 o embaixador Marcos Cortes negou<br />

a versão veiculada por Vallejos em suas declarações à revista Senhor, n o 270, de 20 de maio de 1986.<br />

Negou que houvesse visitado em algum momento a ESMA e disse que jamais encontrou o almirante<br />

Rubén Jacinto Chamorro, seu comandante. Cortes conjecturou que, na Embaixada brasileira, nem<br />

sequer o adido naval teria contato direto com a ESMA. Tal afirmação entra em contradição com<br />

depoimento de Amalia Larralde referido no relatório da Conadep, onde se lê: “En febrero/marzo<br />

de 1979, el G.T. de la ESMA organiza un ‘Curso de Lucha Antisubversiva’, al que fueron invitados<br />

represores de Latinoamérica. Este curso tuvo lugar en la Escuela de Guerra Naval que queda dentro del<br />

predio ocupado por la ESMA. A este curso van torturadores del Uruguay, Paraguay, Bolivia, Nicaragua<br />

y si mal no recuerdo de Brasil y Guatemala”. 116<br />

129. A <strong>CNV</strong> também ouviu em 22 de maio de 2014 a senhora Carmen Magalhães Tenório<br />

Cerqueira, a viúva de Francisco Tenório Cerqueira Júnior e o doutor Marlan de Moraes Marinho<br />

Júnior, o advogado da família. 117 Foi aquela a primeira vez – frisou a viúva − em que a família pôde<br />

apresentar sua versão dos fatos a um órgão governamental brasileiro. Sobre as circunstâncias do desaparecimento<br />

de Tenório Júnior, confirmou que só dez anos depois daquele infausto acontecimento,<br />

pela precitada reportagem da revista Senhor, teve informações mais pormenorizadas acerca da morte<br />

de seu marido. Outra fonte de informação da família foram as reportagens do jornal carioca Tribuna<br />

da Imprensa, que circulou nos dias 19, 20 e 21 de abril de 1986 com declarações de Vallejos sobre<br />

Tenorinho e outros brasileiros presos, torturados e mortos na Argentina durante a ditadura militar.<br />

Nelas, Vallejos apontou os generais Newton Cruz, Otávio de Medeiros, Euclydes de Figueiredo e<br />

Homem de Carvalho como os militares brasileiros mais bem informados sobre a conexão repressiva<br />

Brasil-Argentina no período da Operação Condor.<br />

130. No ano de 2006, foi reconhecida pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos<br />

Políticos a responsabilidade “pela omissão do Estado brasileiro em proteger a vida e a integridade física<br />

de Francisco Tenório Cerqueira Júnior”. 118<br />

254


131. O procurador Miguel Ángel Osorio, responsável pelas investigações judiciais sobre a<br />

Operação Condor na Argentina, apresentou, em 28 de fevereiro de 2012, requerimento de instrução<br />

sobre a tortura, a morte e o desaparecimento forçado de Francisco Cerqueira Tenório Júnior no âmbito<br />

da causa n o 10.961/2011 (“Plan Cóndor III”), da Justiça Federal argentina, como um crime “executado<br />

por integrantes da associação ilícita Operação Condor, de nacionalidade brasileira e argentina, entre<br />

eles uma pessoa que responderia pelo nome de Claudio Vallejos, de alcunha ‘el Gordo’”. 119<br />

1.3. Maria Regina Marcondes Pinto, desaparecida em Buenos Aires, em 10 de abril de 1976<br />

132. Maria Regina Marcondes Pinto nasceu em 17 de julho de 1946 em Cruzeiro (SP),<br />

filha de Benedito Rodrigues Pinto e Iracy Ivette Marcondes Pinto, e desapareceu em 10 de abril 1976,<br />

em Buenos Aires, Argentina. No Brasil, Maria Regina Marcondes trabalhava como bancária e fazia<br />

o curso noturno de Ciências Sociais. Em fins de 1969, ela saiu do país com documentação legal e foi<br />

para Paris, onde já se encontrava seu companheiro, o professor de Ciências Sociais da Universidade de<br />

São Paulo (USP), Emir Sader, perseguido político. Após permanecer cerca de seis meses em Paris, o<br />

casal decidiu ir para Santiago do Chile, integrando o Movimiento de Izquierda Revolucionaria (MIR).<br />

Depois do golpe militar contra Salvador Allende, em 11 de setembro de 1973, o casal deixou o Chile.<br />

Sader foi para a Argentina e Maria Regina veio para o Brasil, reencontrando-se depois com o companheiro<br />

em Buenos Aires, onde viveu até seu desaparecimento em abril de 1976. Na capital argentina,<br />

dava aulas de português em uma escola de línguas.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

133. Como tantos outros brasileiros no exterior, Maria Regina estava sob constante vigilância<br />

das forças de repressão do Brasil. Em 29 de novembro de 1972 foi expedido pela Divisão de Segurança<br />

e Informações do Ministério das Relações Exteriores (DSI/MRE) o Pedido de Busca n o 2.196 contra<br />

Maria Regina Marcondes Pinto, conforme o documento BR_DFANBSB_Z4_PES_0278, pp. 35-36,<br />

do Fundo DSI/MRE, encontrado no Arquivo Nacional. No documento consta a ficha da brasileira<br />

na DSI/MRE. Às páginas 1 e 2, no item 1, é mencionada a existência do ofício n o 313, do Consulado-<br />

Geral em Santiago, solicitando informações sobre a brasileira. No item 5 está registrada a troca de<br />

despacho telegráfico entre o Consulado brasileiro em Santiago e a Embaixada do Brasil no Panamá. O<br />

título do despacho é: “Brasileiros no Chile – saída para outros países”. É importante enfatizar que, após<br />

o golpe no Chile, vários brasileiros buscaram refúgio na Embaixada panamenha e de lá conseguiram<br />

asilo em outros países – dentre eles Maria Regina Marcondes Pinto.<br />

134. Nos arquivos da ditadura brasileira, não foram localizadas informações sobre o<br />

período em que Maria Regina Marcondes Pinto viveu na Argentina após o golpe contra Salvador<br />

Allende em setembro de 1973. Relatório do Ministério da Marinha, encaminhado ao ministro da<br />

Justiça Maurício Corrêa em 1993, traz sobre Maria Regina as seguintes informações: “ABR/73,<br />

exilada no Chile de 1970 a 1973 e na Argentina desde 1973, desapareceu após ser sequestrada, em<br />

companhia do chileno EDGARDO ENRÍQUEZ ESPINOZA (Diário Oficial da União n o 60,<br />

de 28/03/1981 – DOU-SP)”. Relatório do Ministério do Exército, também de 1993, registra que:<br />

“Em 8 de abril de 1976, foi presa na ARGENTINA, juntamente com EDGARDO ENRÍQUEZ,<br />

membro da Comissão Política do MIR chileno, quando cumpria tarefas ligadas às atividades<br />

subversivas naquele país”. 120<br />

255


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

135. No ano de 1994, o deputado Nilmário Miranda, no bojo das atividades da Comissão<br />

Externa da Câmara dos Deputados sobre Mortos e Desaparecidos Políticos, enviou requerimento<br />

de informações ao Ministério do Exército indagando sobre as fontes das informações sobre<br />

Maria Regina Marcondes Pinto e outros mortos e desaparecidos, mas não houve resposta das Forças<br />

Armadas a respeito do assunto.<br />

136. Investigações posteriores realizadas pela Equipe Argentina de Antropologia Forense<br />

(EAAF) definiram que a execução do chileno Edgardo Enríquez teve lugar no dia 10 de abril de 1976, em<br />

Buenos Aires. Foram localizadas fichas datiloscópicas de Enríquez no hospital Pirovano, onde veio a falecer<br />

em consequência dos disparos de arma de fogo que sofreu. Foram também localizados documentos<br />

sobre o sepultamento de Enríquez no cemitério da Chacarita, com um nome falso, mas descobriu-se que<br />

seus restos mortais haviam sido removidos para um ossuário geral onde não puderam ser identificados.<br />

137. Presume-se que Maria Regina Marcondes Pinto tenha sido sequestrada em Buenos<br />

Aires no mesmo dia em que Edgardo Enríquez foi executado. Maria Regina residia em um apartamento<br />

a poucas quadras do local onde Enríquez foi recolhido e levado para o hospital, mas não existem<br />

testemunhos ou documentos que forneçam detalhes mais precisos sobre as circunstâncias de seu<br />

sequestro e desaparecimento em Buenos Aires.<br />

138. Documento da CIA intitulado Weekly Summary, de 2 de julho de 1976, 121 parcialmente<br />

desclassificado e que confirma que Edgardo Enríquez foi preso em Buenos Aires no dia 10 de abril, traz<br />

também a informação de que, enquanto isso (“meanwhile”), foi entregue pela Argentina às autoridades<br />

chilenas “a Brazilian political exile wanted by Santiago” – um exilado(a) brasileiro(a) procurado(a) em<br />

Santiago. O fato de o documento estar apenas parcialmente desclassificado pela CIA e estar tarjado em<br />

várias de suas passagens não permite que se avance no esclarecimento dessa grave violação de direitos<br />

humanos cometida contra uma cidadã brasileira no exterior.<br />

139. Após o desaparecimento forçado de Maria Regina Marcondes Pinto, sua mãe registrou denúncia<br />

sobre seu desaparecimento na Comissão Nacional sobre o Desaparecimento de Pessoas (Conadep),<br />

na Argentina, protocolada sob o n o 3.089. No monumento do parque da Memória, às margens do rio<br />

da Prata, em Buenos Aires, erigido como um espaço simbólico de aversão ao terrorismo do Estado, estão<br />

inscritos os nomes dos mortos e desaparecidos da ditadura argentina (1976-83). Ali está o nome da<br />

brasileira Maria Regina Marcondes Pinto. O Estado argentino reconheceu a responsabilidade por seu<br />

desaparecimento por intermédio da Secretaria de Direitos Humanos da Argentina. Não foi apresentado<br />

requerimento sobre o caso à Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP).<br />

2. Cidadãos argentinos mortos e desaparecidos no Brasil, vítimas de mecanismos de<br />

coordenação repressiva posteriores à formalização da Operação Condor<br />

2.1. Norberto Armando Habegger, cidadão argentino desaparecido no Rio de Janeiro,<br />

em 31 de julho de 1978<br />

140. O cidadão argentino Norberto Armando Habegger era jornalista, ensaísta e escritor.<br />

Em 1964, era secretário-geral da Juventude Democrata-Cristã na Argentina. Em 1968, Habegger foi<br />

256


um dos fundadores da organização Descamisados, que se uniu aos Montoneros no ano de 1972. Como<br />

jornalista, Habegger escreveu em importantes jornais da Argentina, Chile e Uruguai. No ano de 1978,<br />

era secretário político do Movimento Peronista Montonero e, durante a Copa do Mundo daquele ano,<br />

que teve lugar na Argentina, capitaneou forte campanha de denúncias das atrocidades cometidas pela<br />

ditadura militar que tinha à frente o general Jorge Rafael Videla.<br />

141. Norberto Habegger desapareceu em 31 de julho de 1978, quando chegou ao Rio de<br />

Janeiro (RJ), proveniente da cidade do México, em um voo da companhia aérea PanAm. Desapareceu<br />

no Rio de Janeiro, depois de manter contato telefônico com seus companheiros de organização que<br />

se encontravam na Espanha. Usava documentos de um cidadão argentino de nome “Hector Esteban<br />

Cuello”. O nome de Norberto Habegger consta no Dossiê dos Mortos e Desaparecidos Políticos e<br />

na lista anexa à Lei n o 9.140/95. Em depoimento à CEV-RIO e à <strong>CNV</strong> no dia 30 de outubro de<br />

2013, Andrés Habegger, filho de Norberto Habegger, declarou: 122 “O que temos conhecimento é que<br />

ele [Norberto Habegger] foi detido por três militares argentinos que, atualmente, estão presos na<br />

Argentina por causa de outro crime. Eles teriam tido a ajuda da repressão brasileira para capturá-lo”.<br />

Foram apontados por Andrés Habegger como responsáveis pelo sequestro de seu pai os militares<br />

argentinos Enrique José Del Pino, Alfredo Omar Feito e Guillermo Victor Cardozo, atualmente cumprindo<br />

pena em razão de crimes contra a humanidade cometidos em centros clandestinos de detenção<br />

e extermínio sob a jurisdição do Primeiro Corpo do Exército Argentino. 123<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

142. As circunstâncias do desaparecimento sugerem que Norberto Armando Habegger foi<br />

capturado em uma operação conjunta de agentes da repressão brasileiros e argentinos. Essa operação<br />

consistia em uma parceria estreita entre o Centro de Inteligência do Exército brasileiro (CIE) e o<br />

Batalhão de Inteligência 601 do Exército argentino para ações de captura, montagem de bases secretas<br />

e infiltração de agentes. O objetivo era monitorar a movimentação de militantes de esquerda do país<br />

vizinho em território brasileiro.<br />

143. Conforme informações contidas no documento oriundo do SNI BR_ANBSB_N8_<br />

PSN_EST_094, onde se encontram consignadas algumas atas das reuniões dos órgãos responsáveis<br />

pela produção de informações externas, a cooperação entre os serviços de inteligência do Brasil e da<br />

Argentina na repressão aos integrantes de grupos insurgentes argentinos em território brasileiro foi<br />

idealizada pelos altos escalões das Forças Armadas.<br />

144. Nesse cenário, cumpre esclarecer que durante referidas reuniões eram debatidas informações<br />

de inteligência, obtidas pelos órgãos da repressão, relativas ao cenário internacional. Com<br />

relação ao tem em questão, verifica-se na Ata da 69 a reunião dos órgãos responsáveis pela produção de<br />

informações externas que foi discutida a “situação de estrangeiros no Brasil sob a proteção do Alto<br />

Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR)”. Os agentes de informações do SNI<br />

observam que “os serviços responsáveis pela segurança interna têm manifestado preocupação quanto<br />

aos antecedentes de algumas pessoas relacionadas pelo ACNUR, cuja seleção e triagem não se processam<br />

de maneira muito rigorosa”.<br />

145. Consta ainda a informação de que os estrangeiros se locomoviam livremente pelo<br />

país, em razão da incapacidade do ACNUR em monitorar seus refugiados, e poderiam participar de<br />

possíveis atividades subversivas contra o Brasil ou contra seu país de origem: “Há indícios de que o<br />

257


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

ACNUR vem dando prioridade aos elementos originários da Argentina”; e ressaltam que “o recente<br />

decreto aprovado pelo Governo argentino, concedendo ao preso político o direito de opção para deixar<br />

o país, deverá aumentar o afluxo de refugiados buscando a proteção do Comissariado”. O parágrafo<br />

final do documento demonstra a preocupação dos agentes com os possíveis “subversivos” que estariam<br />

no país e deixa claro que, para eles algo mais contundente deveria ser feito.<br />

À luz de tudo o que foi exposto e considerando que as medidas até então adotadas<br />

– visando ao controle eficiente e rigoroso dos estrangeiros que entram no país sob<br />

a proteção do ACNUR – são consideradas insuficientes para enfrentar o crescente<br />

problema, ficou decidido que seria elaborada pelo grupo que estuda o assunto uma<br />

informação às autoridades competentes sugerindo outras e mais eficazes medidas<br />

para uma solução mais adequada do problema. 124<br />

Ademais, destaca-se a informação de que<br />

a situação de estrangeiros − argentinos em sua maioria − que se encontram no BRA-<br />

SIL sob a proteção do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados<br />

(ACNUR), vem sendo estudada por representantes do Ministério da Justiça, do<br />

Ministério das Relações Exteriores, do Serviço Nacional de Informações e da Secretaria-Geral<br />

do Conselho de Segurança Nacional. 125<br />

146. Para ilustrar os fatos apresentados até o momento, o documento AC_ACE_112675_78<br />

demonstra claramente a cooperação militar e a troca de informações de inteligência entre a Argentina<br />

e o Brasil. Nesse documento, datado de junho de 1978, ou seja, um mês antes do desaparecimento de<br />

Habegger, estão relatadas as atividades de grupos “subversivos” argentinos em território estrangeiro,<br />

sendo evidente o conhecimento de ambos os serviços de inteligência sobre a possível entrada no Brasil<br />

de Norberto Habegger, então integrante do comando dos Montoneros, na qualidade de secretário<br />

político (página 11). O mesmo documento faz menção a Horacio Campiglia como secretário militar<br />

no âmbito da estrutura dos Montoneros, assim como a suas atividades no México e no Brasil. Horacio<br />

Campiglia também foi sequestrado no Rio de Janeiro, em março de 1980, juntamente com Mónica<br />

Pinus de Binstock, ambos desaparecidos políticos.<br />

147. Em 25 de março de 2014, o coronel Paulo Malhães fez revelações sobre uma operação militar<br />

encoberta desenvolvida por Brasil e Argentina entre o final da década de 1970 e o início da década de<br />

1980, à qual se referiu como “Operação Gringo”. Durante seu depoimento à <strong>CNV</strong>, 126 Malhães informou<br />

que os repressores argentinos iniciaram as buscas por “subversivos” argentinos em território nacional e<br />

contaram com a colaboração de todo o efetivo de agentes do CIE do Rio de Janeiro. Segundo Malhães:<br />

A Operação Gringo foi [iniciou quando] eles [argentinos] começaram a procurar a<br />

gente. Não só eles, não. Graças a Deus nosso sistema de informações criou fama.<br />

Superou as fronteiras [...]. No começo foi o Chile, foi por acaso também, mas foi o<br />

Chile. [...] Estou abrindo uma frente, de que eu atuei. Porque houve uma coincidência.<br />

Quando nós estávamos acompanhando elementos de organizações subversivas,<br />

começou a aparecer uma série de argentinos naquela área que dá asilo político, acho<br />

que é em Botafogo ali, não é [...]. Começaram a aparecer uma porção de argentinos.<br />

258


A girar por ali. Nós não tínhamos nada que fazer. Eu disse: “vocês vão para a rua e me<br />

fotografam todos os argentinos que vocês virem”. E o pessoal saiu e clic, e clic. Isso que<br />

esse pessoal gosta de fazer. E eu guardei essas fotos. Os argentinos, quando a repressão<br />

começou a aumentar muito na Argentina, eles souberam que vários comandantes,<br />

Comando Nacional, tinham migrado para o Brasil. Então, eles vieram e perguntaram<br />

se a gente tinha noção. Depois de entendimento e autoridade, não foi por nossa conta<br />

não. [...] Ministro com ministro, presidente com presidente, aí apareceram lá para nós.<br />

Eu digo: “eu tenho uma porção de fotografias. Nós não reconhecemos ninguém porque<br />

não conhecemos ninguém, mas eu tenho as fotografias para vocês verem”. Mostrei<br />

as fotografias. Esse [é] não sei quem do ERP, esse é não sei quem do Tupamaro. Esse<br />

eu não sei quem [...], eles [os argentinos] mesmo foi que identificaram. Porque eles<br />

tinham um grave defeito [...] eles prendiam e matavam. Eles não interrogavam.<br />

148. Malhães informou ainda que conversou com os repressores argentinos sobre as execuções<br />

sumárias dos militantes encontrados, declarando que eles deviam ser “interrogados” a fim de que<br />

se pudesse descobrir a identidade e o paradeiro de outros companheiros de partido dos presos, até que<br />

se chegasse aos principais membros de organizações de esquerda. Sobre essa conversa, Malhães afirmou<br />

ter dito aos argentinos: “Mas vem cá, vocês tiveram o trabalho de prender e não interrogaram”.<br />

Segundo Paulo Malhães, após essa “troca” de experiência, os agentes argentinos “ficaram praticamente<br />

acoplados uma temporada” com os agentes brasileiros do CIE. De acordo com o anexo n o 8 (fl. 5),<br />

do Relatório do CIE denominado Operação Gringo/CACO n o 11/79, de 31 de dezembro de 1979,<br />

apreendido na residência de Paulo Malhães durante busca e apreensão realizada pela Polícia Federal e<br />

pelo Ministério Público Federal em 28 de abril de 2014:<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

No nosso trabalho, a entidade que mais se sobressai no apoio aos refugiados políticos<br />

alienígenas é a CARITAS BRASILEIRA [...] Suas atividades no BRASIL, em<br />

apoio aos subversivos do continente, em especial do CONE SUL, têm sido alvo de<br />

nossas operações de informações [...].<br />

149. Na mesma esteira, durante seu depoimento à <strong>CNV</strong> em 7 de fevereiro de 2014, 127 o ex-analista<br />

do DOI-CODI Marival Chaves Dias do Canto explicou como foi montada a Operação Gringo:<br />

[...] Eles pegaram um gringo, [...] esse sujeito eu não sei o nome dele, [...] veio para<br />

o Brasil e passado ao controle dos militares [...] da seção de operações do CIE,<br />

que tinha esse braço no Rio de Janeiro. E aí criou-se a chamada Operação Gringo.<br />

[...] Esse agente infiltrado, argentino, o que ele fazia Ele se ligava com vários<br />

indivíduos ativistas e organizações também. Eu sei que ele fez contato com um<br />

sujeito que foi preso lá atrás, numa fazenda, lá no Mato Grosso, lá atrás. São dois<br />

irmãos que, nessa ocasião do contato, estavam militando no PCdoB. Esse sujeito<br />

produziu muita informação, e ele era assalariado. Era por conta dessa operação<br />

que a Argentina mandava U$ 20 mil para cá todo mês.<br />

Indagado sobre a origem dessa informação, Marival Chaves disse que ficou sabendo da operação no<br />

CIE em Brasília, por meio de comentários. Marival revelou ainda que o responsável em Brasília pelo<br />

“controle” dos agentes infiltrados da Operação Gringo era o sargento Jacy Ochsendorf:<br />

259


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

Quem controlava essa operação aqui em Brasília era o seu irmãozinho aí, irmãozinho<br />

que eu digo que era o irmão mais jovem, né Era o Jacy Ochsendorf. O<br />

Jacy era o controlador dessa operação, era o sujeito que analisava a operação, que<br />

condensava a operação, que recebia [as informações].<br />

150. No Boletim Interno Reservado n o 9, do Ministério do Exército, de 30 de setembro de<br />

1981, está consignado elogio do então coronel José Antônio Nogueira Belham, chefe de operações do<br />

CIE, ao segundo-sargento Jacy Ochsendorf e Souza:<br />

Ao ensejo de minha saída da Seção de Operações do CIE, é por dever de justiça e<br />

por um preito de reconhecimento que louvo e agradeço ao segundo-sargento JACY<br />

OCHSENDORF E SOUZA a colaboração prestada a essa chefia. Como integrante<br />

da S/104.1 – Subseção de Agentes Especiais e Operações Correntes, sempre conduziu<br />

seus trabalhos com dedicação, eficiência e competência, tornando-se um dos<br />

responsáveis pelos êxitos alcançados pela S/104 (Seção de Operações).<br />

151. Sob a chefia do coronel José Antônio Nogueira Belham, Jacy Ochsendorf integrou a<br />

subseção do CIE responsável por “agentes especiais” de 1978 a 1981, período no qual desapareceram<br />

três cidadãos argentinos no Brasil (Norberto Habegger, Horacio Domingo Campiglia e Mónica<br />

Susana Pinus de Binstock) e dois cidadãos argentinos (Liliana Inés Goldenberg e Eduardo Gonzalo<br />

Escabosa) cometeram suicídio na eminência de serem presos na fronteira Brasil-Argentina. Segundo o<br />

anexo n o 12 (fl. 5), do Relatório da Operação Gringo/CACO n o 11/79, 128 de 31 de dezembro de 1979,<br />

“O ESCRITÓRIO-RIO tem enviado ao CIE, através da S-104, vários informes, com pertinência e<br />

veracidade, sobre a atuação dos MONTONEROS no BRASIL”. Revela ainda o mesmo documento:<br />

Desde 1997 até o desaparecimento do MONTONERO NORBERTO HABE-<br />

GGER, o BRASIL era a mais importante base na AMÉRICA DO SUL desde<br />

ORGANIZAÇÃO subversiva. Estiveram morando no RIO DE JANEIRO-RJ<br />

membros da CONDUCCION NACIONAL, como RAUL CLEMENTE YA-<br />

GER e HORÁCIO MENDIZABAL (falecido), acompanhados de elementos do<br />

mais alto nível, como PEREIRA ROSSI – “CARLON”– Secretário de Propaganda<br />

, HORÁCIO CAMPIGLIA “PETRUS”– Secretário Militar e “EDGAR-<br />

DO”, segundo chefe do Estado-Maior do EXÉRCITO MONTONERO. [...] A<br />

fim de poder aprofundar o conhecimento e análise dos acontecimentos e indícios<br />

da BASE BRASIL, decidiu-se por uma tentativa de infiltração nestes setores que,<br />

convenientemente dirigida, possibilitasse a obtenção de resultados positivos, em<br />

um lapso relativamente curto [...].<br />

152. Diante dos documentos e testemunhos expostos, está claro que graves violações de direitos<br />

humanos foram praticadas contra cidadãos argentinos em território brasileiro, por ações de agentes brasileiros<br />

e argentinos, com o conhecimento de altas autoridades governamentais do Brasil e da Argentina.<br />

2.2. Horacio Domingo Campiglia e Mónica Susana Pinus de Binstock, cidadãos<br />

argentinos, desaparecidos no Rio de Janeiro em 12 de março de 1980<br />

260


153. A coordenação repressiva ilegal entre Brasil e Argentina voltou a operar em março de<br />

1980, menos de sete meses após a promulgação da Lei da Anistia no Brasil, quando um avião da Varig,<br />

proveniente de Caracas, desceu no aeroporto internacional do Galeão, no Rio de Janeiro. Foi o destino<br />

final da viagem de Mónica Susana Pinus de Binstock e Horacio Domingo Campiglia, que começou<br />

no México e fez escalas no Panamá e na Venezuela, até chegar ao Rio de Janeiro em 12 de março de<br />

1980, data na qual Horacio Campiglia e Mónica Pinus de Binstock desapareceram.<br />

154. Horacio Domingo Campiglia, 30 anos, e Mónica Susana Pinus de Binstock, 27, eram<br />

cidadãos argentinos e portavam passaportes em nome de Jorge Piñeiro e Maria Cristina Aguirre de<br />

Prinssot. Campiglia fazia parte do comando militar dos Montoneros, grupo guerrilheiro ligado ao<br />

peronismo, e liderava as chamadas TEI, Tropas Especiais de Infantaria treinadas pela Organização<br />

para a Libertação da Palestina (OLP) no sul do Líbano. Os montoneros exilados executavam um plano<br />

de retorno ao país, mas encontraram dura reação do governo militar argentino, organizado para<br />

interceptá-los ainda no exterior, antes de chegarem à Argentina. O grupo responsável pelo sequestro de<br />

Horacio Campiglia e Mónica Pinus de Binstock no Rio de Janeiro era formado por agentes do Batalhão<br />

601, tropa do serviço de Inteligência do Exército argentino, braço operacional da Condor no exterior.<br />

Segundo testemunho do agente argentino Norberto Cendón ao Conadep, a repressão de Buenos Aires<br />

mantinha centros fixos nas duas maiores cidades brasileiras, São Paulo e Rio de Janeiro, além de uma<br />

base em Paso de Los Libres, cidade argentina separada por uma ponte da gaúcha Uruguaiana. Quatro<br />

oficiais e dois civis, todos atuando com codinomes, operavam cada base do Batalhão 601. 129<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

155. Desde dezembro de 1978, o novo adido militar da Argentina em Brasília era o coronel<br />

Jorge Ezequiel Suárez Nelson, que deixara em Buenos Aires o posto de chefe da central de reuniões<br />

de informações do Batalhão 601. Suárez foi removido do posto em Brasília apenas em janeiro de<br />

1981, menos de dez meses após o sequestro de Campiglia e Mónica no Galeão. Só no ano de 1980, 20<br />

militantes dos Montoneros morreram tentando regressar à Argentina. O coronel voltou à Argentina<br />

e, em fevereiro de 1981, assumiu o posto de subsecretário da Secretaria de Inteligência do Estado<br />

(SIDE), o organismo que instalou em Buenos Aires, com a OCOA uruguaia, o centro clandestino<br />

de detenção e torturas “Automotores Orletti”.<br />

156. A importância dos alvos sequestrados no Rio de Janeiro mede-se pelo aparato montado<br />

para caçá-los. Sob torturas, um militante montonero preso revelou na Argentina a ida de Campiglia ao<br />

Rio de Janeiro, um dos cinco líderes militares mais importantes do grupo. A fim de realizar essa operação<br />

de sequestro no Rio de Janeiro, o comando do Batalhão 601 entrou em contato com o serviço de<br />

inteligência do Exército brasileiro. Uma equipe de busca do Batalhão 601 embarcou em Buenos Aires<br />

num Hércules C-130 da Força Aérea argentina, que desembarcou no Rio de Janeiro, provavelmente na<br />

base aérea do Galeão, a fim de capturar Campiglia e Binstock. Os detalhes dessa operação ficaram conhecidos<br />

por meio da desclassificação de documentos pelo Departamento de Estado norte-americano,<br />

nas revelações de um memorando enviado ao embaixador dos Estados Unidos em Buenos Aires, Raúl<br />

Castro, pelo seu oficial de segurança regional, Regional Security Officer (RSO), James J. Blystone. O<br />

documento datado de 7 de abril de 1980, 26 dias após o sequestro no Rio de Janeiro, narra, com base<br />

em informações de fonte da inteligência argentina, circunstâncias da conexão repressiva entre Brasil<br />

e Argentina. Blystone informa no seu memorando secreto: “Os dois montoneros do México foram<br />

capturados vivos e devolvidos à Argentina a bordo do C-130”. O oficial de segurança da Embaixada<br />

norte-americana relata detalhes que as autoridades brasileiras não deveriam ignorar:<br />

261


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

Os argentinos, para não alertar os montoneros, utilizaram uma mulher e um homem<br />

argentinos para que se registrassem em um hotel utilizando os documentos<br />

falsos obtidos com os dois montoneros capturados, deixando dessa forma a pista de<br />

que os dois montoneros do México haviam chegado ao Rio... 130<br />

O agente americano encerra dizendo que Campiglia e Mónica foram levados do Rio de Janeiro para<br />

El Campito, o centro clandestino de detenção do quartel de Campo de Mayo, na capital, a maior<br />

guarnição do Exército argentino.<br />

157. No ano de 2013, foi localizada na Argentina petição do tenente-coronel Eduardo<br />

Francisco Stigliano, de 19 de novembro de 1991, dirigida ao Estado-Maior do Exército argentino<br />

em pleito de indenização, no qual, entre outras considerações, o militar relata a visita do general<br />

Leopoldo Galtieri, então chefe do Estado-Maior do Exército argentino, ao centro clandestino El<br />

Campito. Segundo o tenente-coronel Stigliano, o propósito da vista de Galtieri “era dialogar com<br />

o delinquente subversivo ‘Petrus’ [codinome de Horacio Campiglia], que havia sido capturado [no<br />

Brasil] por uma seção sob minhas ordens”.<br />

158. A fim de esclarecer outros detalhes da circunstância do sequestro e desaparecimento<br />

forçado de Mónica Susana Pinus de Binstock e Horacio Domingo Campiglia no Rio de Janeiro, a<br />

<strong>CNV</strong> solicitou à FAB informações sobre voos de aeronaves militares argentinas entre Buenos Aires e<br />

o Rio de Janeiro em março de 1980, mas não obteve resposta.<br />

2.3. Liliana Inés Goldenberg e Eduardo Gonzalo Escabosa, cidadãos argentinos, mortos<br />

por suicídio na iminência da prisão, em 2 de agosto de 1980<br />

159. Outro exemplo da coordenação repressiva ilegal entre Brasil, Argentina e Paraguai são as<br />

mortes por suicídio, na iminência de sequestro e prisão ilegal, dos argentinos Liliana Inés Goldenberg<br />

e Eduardo Gonzalo Escabosa, ocorridas no dia 2 de agosto de 1980, durante a travessia do casal de<br />

Porto Meira, em Foz do Iguaçu, a Puerto Iguazú, na Argentina. Liliana Goldenberg e Eduardo Gonzalo<br />

Escabosa eram militantes da organização Montoneros. Entre 1977 e 1980, Liliana viveu na Espanha<br />

cumprindo tarefas para sua organização. Em 1980, Liliana e Eduardo decidiram voltar à Argentina<br />

para combater a ditadura militar, optando por regressar ao seu país natal via Foz do Iguaçu. O jornalista<br />

Aluízio Palmar, em artigo publicado em fevereiro de 2004, descreveu o episódio do suicídio do casal:<br />

Num sábado, 2 de agosto de 1980, Liliana, de 27 anos, loura e franzina, e seu<br />

companheiro Eduardo, de trinta anos, embarcaram na lancha Caju IV, pilotada<br />

por Antonio Alves Feitosa, conhecido na região como “Tatu”. Antes da atracação<br />

no lado argentino, dois policiais brasileiros que estavam a bordo mandaram o<br />

piloto parar a lancha e apontaram suas armas para o casal.<br />

Cercados, Liliana e Eduardo ainda puderam ver que mais policiais desciam ao<br />

atracadouro, vindos da aduana argentina. Assim que perceberam ter caído numa<br />

cilada, Liliana e Eduardo se ajoelharam diante de um grupo de religiosos que<br />

estava a bordo e gritaram que eram perseguidos políticos e preferiam morrer ali a<br />

262


serem torturados. Em seguida abriram um saco plástico, tiraram uns comprimidos<br />

e os engoliram bebendo a água barrenta do rio Paraná. Morreram em trinta<br />

segundos, envenenados por uma dose fortíssima de cianureto.<br />

Os religiosos italianos sumiram. Tatu foi convocado à Capitania dos Portos de Foz<br />

do Iguaçu e à Prefectura Naval de Puerto Iguazú e aconselhado a esquecer a morte<br />

dos jovens argentinos ocorrida em sua lancha.<br />

Ao cobrir esse caso na época para o jornal O Globo, eu procurei a Capitania dos Portos<br />

para saber que providências as autoridades navais de Foz do Iguaçu iriam tomar; se seria<br />

aberta uma sindicância, como é de praxe nesse tipo de acontecimento. A resposta que<br />

recebi foi curta e grossa. O oficial que me atendeu disse que o incidente ocorrera do “lado<br />

de lá”, e em seguida mandou um marinheiro me acompanhar até a porta de saída.<br />

Esqueceu-se de que o fato ocorrera também em barco brasileiro, portanto sob jurisdição<br />

nacional. Mas como nossa democracia estava engatinhando e o país ainda<br />

era governado pelos militares e a Lei de Segurança Nacional estava em pleno vigor,<br />

a morte do casal argentino e a participação de policiais brasileiros na emboscada<br />

foram parar no esquecimento dos arquivos inacessíveis. 131<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

160. No ano de 2012, Aluízio Palmar divulgou documento militar paraguaio intitulado<br />

Ingreso de terroristas argentinos a su país a través del nuestro, localizado no “Arquivo do Terror”, em<br />

Assunção. O referido documento é assinado pelo general Alejandro Fretes Dávalos, chefe do Estado-<br />

‐Maior das Forças Armadas paraguaias, e pelo coronel Benito Guanes Serrano, chefe do serviço de<br />

inteligência do Exército do Paraguai, e foi elaborado com base em informações provenientes do serviço<br />

de inteligência da Marinha argentina, com vistas ao compartilhamento pelo lado brasileiro. 132<br />

161. A comunicação do serviço de inteligência paraguaio indica estreita coordenação entre<br />

Argentina, Paraguai e Brasil na vigilância de um casal não identificado de integrantes das TEI dos<br />

Montoneros que, segundo declarações de dois outros integrantes capturados pela Marinha argentina,<br />

pretendia ingressar no Paraguai por volta do dia 15 de julho (de 1980), “proveniente de LIMA<br />

o de BRASIL por vía aérea”. Informe do Serviço de Informações da Superintendência Regional<br />

da Polícia Federal no Rio Grande do Sul, de 12 de agosto de 1980, intitulado “SUICÍDIO DOS<br />

MONTONEROS – LILIANA INÉS GOLDEMBERG E EDUARDO GONZALO ESCABOSA<br />

EM PUERTO IGUAZÚ/RA”, indica o conhecimento detalhado do episódio pelas autoridades brasileiras<br />

e o compartilhamento de informações entre os órgãos da repressão de Brasil e da Argentina após<br />

o suicídio do casal de militantes montoneros. 133<br />

3. Flávio Tavares, cidadão brasileiro sequestrado em 14 de julho de 1977,<br />

torturado e detido arbitrariamente no Uruguai<br />

162. Flávio Aristides de Freitas Tavares, jornalista e advogado, militou na organização<br />

Movimento de Ação Revolucionária (MAR). Foi preso três vezes no Brasil, sendo a primeira em Brasília,<br />

logo após o golpe, em 1964, dentro da redação do jornal Última Hora, do qual era correspondente. A<br />

263


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

segunda prisão ocorreu em agosto de 1967, em sua casa, em Brasília. Tavares foi entregue à polícia do<br />

Exército e interrogado por 72 horas consecutivas. Lá permaneceu preso por quase cinco meses e foi solto<br />

por decisão do Supremo Tribunal Federal (STF). A última prisão de Flávio Tavares no Brasil aconteceu no<br />

dia 6 de agosto de 1969, no Rio de Janeiro RJ, onde ele foi entregue ao Pelotão de Investigações Criminais<br />

(PIC). O jornalista deixou o cárcere trinta dias após sua prisão, em troca da libertação do embaixador<br />

dos Estados Unidos no Brasil, Charles Elbrick. Banido, Flávio Tavares foi juntamente com outros catorze<br />

presos políticos para o México e desde então foi constantemente vigiado como comprovam vários documentos<br />

analisados pela <strong>CNV</strong>, um deles intitulado “FLÁVIO TAVARES. Atividades na Argentina”, com<br />

data de 16 de junho de 1975, do Ciex. 134 No México, voltou a trabalhar na sua profissão, ingressando no<br />

jornal Excelsior, em virtude do qual, como correspondente, viria a mudar-se para Buenos Aires em julho<br />

de 1977. Na capital da Argentina, além do Excelsior, Tavares passou também a escrever para o jornal O<br />

Estado de S. Paulo com o pseudônimo de Júlio Delgado.<br />

163. Tavares conta em seu livro Memórias do esquecimento (2012) que no dia 11 de julho de<br />

1977, a pedido do jornal Excelsior, foi a Montevidéu interceder em favor de Graziano Pascale, também<br />

correspondente do jornal mexicano. O jornalista uruguaio havia sido preso por escrever artigo considerado<br />

“ofensivo” pelos militares de seu país. Três dias depois, quando tentava embarcar de volta para Buenos<br />

Aires no aeroporto de Carrasco, Tavares foi sequestrado por agentes da repressão uruguaia, por volta das<br />

21h30. Em relato, o agente do Ciex Alberto Conrado Avegno, usando o codinome Zuleica, informou<br />

que Tavares fora seguido e se encontrara com Leonel Brizola antes de ir até a Embaixada mexicana. 135<br />

Classificado como “pessoal e secreto” e datado de 19 de setembro de 1977, o documento revela que<br />

a polícia política tinha instruções de prender Tavares na última hora, pois sabia o<br />

OCOA que Tavares estava envolvido com o senhor Arroyo Parra, diplomata mexicano<br />

e também um tal “Oscar” que a polícia política dizia que realmente existia e<br />

que pertencia a uma rede de espionagem russa no Uruguai.<br />

164. Avegno dá detalhes sobre a prisão de Flávio Tavares e informa que Tavares deixou sua<br />

mala na portaria do hotel Iguazu e foi almoçar. Nesse ínterim, a polícia teria aberto a mala do jornalista<br />

e encontrado uma fita cassete. O informante relata que a polícia recolocou a fita cassete na mala, após<br />

ouvi-la, enquanto Tavares já estava na portaria tentando efetivar o pagamento da conta. Tavares deu<br />

uma nota de alto valor e o funcionário do hotel disse não ter troco. Em depoimento à <strong>CNV</strong> no dia 20<br />

de outubro de 2014, 136 Tavares questionou o relatório de Avegno, afirmando que a fita cassete que lhe<br />

havia sido entregue pelo adido cultural do México, Cuitláhuac Arroyo Parra, não estava em sua mala,<br />

mas no bolso de seu casaco, onde também estavam três folhas manuscritas por ele “em francês, com<br />

letra bem miúda”. O jornalista havia anotado nelas o organograma da “Loja dos Sete Irmãos”, denominação<br />

dada no próprio Exército uruguaio ao grupo militar que controlava o Organismo Coordinador<br />

de Operaciones Antisubversivas (OCOA). Tavares tinha escrito nomes de dirigentes e os locais onde<br />

se situavam os centros secretos de tortura utilizados pelo organismo.<br />

165. O documento do Ciex relata que Avegno leu carta endereçada ao cônsul adjunto<br />

do Brasil José Dácio Afonso Miranda e escrita por Flávio Tavares, depois que este fora preso. 137<br />

A partir das informações encontradas, Avegno – que era pago pela Embaixada do Brasil em<br />

Montevidéu – produziu relatório em 16 de setembro de 1977, intitulado “Carta interceptada ao<br />

subversivo Flávio Tavares”.<br />

264


O agente esteve com o original dessa carta, escrita em letra miúda, em duas laudas<br />

e datata [sic] de 31 de agosto. A carta caiu no dia 2 de setembro. A carta lhe foi<br />

cedida para ler na sede de OCOA, Comando de Operações Antissubversivas, que<br />

foi o lugar onde Tavares esteve com o capuz durante as primeiras dezenove horas<br />

e onde foi apertado para falar.<br />

166. A carta de Tavares fora interceptada pela Dirección Nacional de Información y<br />

Inteligencia (DNII) e fora dada a conhecer a Avegno na própria sede do OCOA, local onde Tavares<br />

permaneceu nas primeiras 24 horas do sequestro. De acordo com o relatório do agente do Ciex, o<br />

cônsul Miranda estava sendo informado de “que as primeiras dezenove horas [de Tavares no cárcere]<br />

não tinham sido boas”. Para os militares do OCOA, “o X da questão é o conhecimento que disse o<br />

cônsul ter do mau tratamento que recebeu Tavares” durante esse tempo inicial no cárcere.<br />

167. Após três meses de detenção arbitrária no Uruguai, onde sofreu bárbaras torturas em<br />

centro clandestino, foi permitido a Flávio Tavares tomar um banho – sem vendas e algemas – antes de<br />

ser levado a um juiz militar. Este o informou de que Tavares estava sendo processado por “espionagem<br />

contra o Uruguai”. Dois dias depois Tavares foi removido para o Cárcere Central de Montevidéu, onde<br />

permaneceu por mais seis meses, em cela solitária. Foi libertado depois de uma campanha intensa na<br />

mídia brasileira e internacional movida, dentre outros, pela Ordem dos Advogados do Brasil (OAB),<br />

Associação Brasileira de Imprensa (ABI) e Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH). Flávio<br />

Tavares deixou Montevidéu em 25 de janeiro de 1978, às vésperas do desembarque do general Ernesto<br />

Geisel em visita oficial ao país. Seu destino foi Lisboa, onde permaneceu até retornar ao Brasil, em<br />

1979, depois que a Lei de Anistia foi promulgada.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

4. Cidadãos uruguaios sequestrados no Brasil em 12 de novembro de 1978 no marco<br />

da Operação Condor: Universindo Rodríguez Díaz, Lilián Celiberti de Casariego<br />

e seus filhos menores, Camilo e Francesca<br />

168. Universindo Rodríguez Díaz, estudante de medicina, e Lilián Celiberti, professora,<br />

cidadãos uruguaios, viviam em Porto Alegre, quando foram sequestrados junto com os dois filhos<br />

menores dela, Camilo, de oito anos, e Francesca, de três, no dia 12 de novembro de 1978, um domingo.<br />

Lilián tinha passaporte italiano, assim como as crianças. Universindo, que portava um passaporte<br />

falso no nome de Luís Piqueres de Miguel, tinha em seu próprio nome o status de refugiado<br />

na Suécia concedido pelo Alto Comissariado das Nações Unidas para os Refugiados (ACNUR).<br />

Como militantes do ilegal Partido por la Victoria del Pueblo (PVP), que fazia oposição à ditadura<br />

militar no Uruguai, eles integravam uma rede clandestina que recolhia informações sobre torturas<br />

nos cárceres uruguaios e as repassavam a organismos de defesa dos direitos humanos na Europa.<br />

O sequestro dos uruguaios, como ficou internacionalmente conhecido, foi uma ação de repressão<br />

binacional no âmbito da Operação Condor, com a participação de um comando do Exército uruguaio<br />

atuando em solo brasileiro em conexão com agentes do DOPS gaúcho, com o conhecimento<br />

das autoridades militares do III Exército, atual Comando Militar do Sul.<br />

169. Em 5 de março de 1979, o delegado Pedro Carlos Seelig, vulgo “Major”, e o escrivão<br />

Orandir Portassi Lucas, vulgo “Didi Pedalada”, ambos funcionários do DOPS-RS, foram<br />

265


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

denunciados pelo Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul por “abuso de autoridade”.<br />

De acordo com a denúncia apresentada à 3 a Vara Criminal de Porto Alegre pelo promotor público<br />

Dirceu Pinto, designado pela Procuradoria-Geral da União para o caso, nem Universindo nem<br />

Lilián foram presos “em flagrante cometendo qualquer espécie de delito”. Os uruguaios “foram<br />

detidos ilegalmente por diversos homens”, que “não apresentaram e não estavam munidos de<br />

regular mandado de prisão”.<br />

170. O sequestro de Porto Alegre é considerado um episódio singular no histórico da Operação<br />

Condor, que tinha como padrão o sequestro e a ocultação do paradeiro das vítimas, enquanto estas<br />

eram submetidas à tortura e a interrogatório intenso, antes da execução sumária e do desaparecimento<br />

dos presos. No caso da capital gaúcha, a ação clandestina da Condor teve que ser abortada cinco dias<br />

depois, na sexta-feira, 17 de novembro, pela aparição inesperada, no apartamento da Rua Botafogo<br />

onde Lilián era mantida sob cativeiro, de uma dupla de jornalistas – o repórter Luiz Cláudio Cunha,<br />

da revista Veja, e o fotógrafo João Baptista Scalco, da Placar – alertados por um telefonema anônimo.<br />

171. Confundidos com os militantes uruguaios do PVP, os dois jornalistas foram rendidos<br />

por homens armados e detidos no apartamento, junto com Lilián, até que suas identidades ficassem<br />

comprovadas. Quando os jornalistas foram liberados, o sigilo da operação já estava comprometido.<br />

A ação foi abortada e Lilián foi levada clandestinamente ao Uruguai, em um comboio de três carros<br />

da polícia brasileira, sob o comando do delegado Seelig. Junto estava o capitão do Exército uruguaio<br />

Eduardo Ferro, integrante da Compañía de Contrainformaciones, o braço secreto da repressão uruguaia<br />

que executava ações da Condor sob o comando do Organismo Coordinador de Operaciones<br />

Antisubversivas (OCOA), subordinado ao comando do Exército em Montevidéu.<br />

172. Nos dias anteriores, Lilián e Universindo foram torturados com choques elétricos, pancadas,<br />

socos e pau de arara nas dependências do DOPS gaúcho, no segundo andar do Palácio da Polícia,<br />

o prédio na Avenida Ipiranga onde funcionava a Secretaria de Segurança Pública do Rio Grande do Sul.<br />

Não sabia aonde ia. Depois, no decorrer dos dias, entendi que era a Chefatura da<br />

Polícia. Pude identificar perfeitamente porque fui olhando. Mas nesta primeira viagem,<br />

não. Ali, me levaram a um interrogatório. Tudo era muito vertiginoso. Enquanto<br />

tudo isso, eles me aplicavam choques elétricos nos ouvidos, me atiravam<br />

água, gritavam, etc. Quando descobriram o endereço de minha casa, eu me dirigi<br />

justamente aos brasileiros e lhes disse: “Bom, essa é minha casa. Eu tenho dois filhos<br />

e não pode ser que vocês lhes façam nada”. Aí, Seelig me disse: “Não, não vai acontecer<br />

nada a teus filhos”. Eles não sabiam... Efetivamente [a presença das crianças]<br />

complicava a operação e a saída do país. E também complicava as justificativas.<br />

Sempre é possível dizer que duas pessoas adultas são terroristas, mas não se pode<br />

dizer que duas crianças possam sê-lo. 138<br />

As torturas foram executadas pelo capitão do Exército uruguaio Glauco Yannone, da Compañía de<br />

Contrainformaciones, com a participação da equipe brasileira do DOPS do delegado Seelig.<br />

Havia dois uruguaios que eu identifiquei plenamente. O chefe, que coordenava a<br />

operação com Pedro Seelig, era o major Glauco Yannone, e outro militar que não<br />

266


pude identificar. Esse homem que me falou em brasileiro era Pedro Seelig, um importante<br />

integrante da polícia brasileira. Me botaram para dentro do apartamento e<br />

imediatamente me golpearam muitíssimo. Me bateram com muitos golpes.<br />

Quem mais me batia eram brasileiros. Digo brasileiros porque eles falavam em português.<br />

Me golpearam, me insultaram e começaram a revistar todo o apartamento,<br />

procurando... ali não havia mais do que papéis. [...] Me golpearam tanto, tanto que<br />

Yannone, num momento, sentou no chão. Ele me batia com os punhos. Como seus<br />

punhos estavam doendo, ele tirou o mocassim e começou a me bater com o salto. 139<br />

173. A denúncia do sequestro ganhou espaço na imprensa nacional e internacional, constrangendo<br />

o Governo brasileiro no momento crítico de troca de guarda no Palácio do Planalto: a operação<br />

na capital gaúcha, em novembro de 1978, aconteceu quatro meses antes que o general Ernesto<br />

Geisel desse posse ao seu sucessor na Presidência da República, o general João Baptista Figueiredo, o<br />

quinto e último governante do regime militar. Embaixadas do Brasil no exterior passaram a receber<br />

mensagens de protesto e críticas pela violação dos direitos humanos no país. 140<br />

174. O regime brasileiro insistia, em março de 1979, em classificar como “desaparecimento”<br />

o que o Governo dos Estados Unidos, quatro meses antes, já reconhecia ser um “sequestro”.<br />

Num telegrama secreto datado de 4 de dezembro de 1978, duas semanas após a ação<br />

clandestina em Porto Alegre, o embaixador estadunidense em Montevidéu, Lawrence Pezzullo,<br />

relatava ao Departamento de Estado em Washington, às embaixadas americanas em Brasília,<br />

Buenos Aires, Roma, Estocolmo e Haia e aos consulados em São Paulo, Rio de Janeiro e Porto<br />

Alegre sobre o impacto internacional do sequestro: “Através dos esforços da Anistia Internacional,<br />

o caso tem recebido uma considerável publicidade na Europa”. 141 Quatro meses depois, em 8 de<br />

março de 1979, a Divisão Central de Informações (DCI) da Secretaria de Segurança gaúcha, que<br />

fazia o enlace com a área militar, tratava do caso como o “desaparecimento de uruguaios no RGS”,<br />

em mensagem confidencial enviada à Polícia Federal, à agência local do SNI e à 2 a seção (serviço<br />

de inteligência) do Estado-Maior do III Exército, hoje Comando do Sul. 142<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

175. O fracasso da operação evitou que Lilián e Universindo, embora torturados, fossem<br />

mortos, seguindo a praxe da Condor. O líder do PVP, Hugo Cores, que vivia clandestino em São<br />

Paulo, fora o autor do telefonema anônimo à sucursal da revista Veja em Porto Alegre, denunciando<br />

o sequestro. Em 1993, de volta ao Uruguai democratizado e então deputado e líder do PVP no<br />

Congresso, Cores lembrou:<br />

Todos os uruguaios que foram sequestrados no exterior estão desaparecidos até o<br />

dia de hoje. São ao redor de 180 uruguaios... Os únicos que apareceram nessas<br />

circunstâncias foram Lilián e Universindo porque o fotógrafo [João Batista] Scalco<br />

e o repórter Luiz Cláudio Cunha estiveram com eles e lograram sair. Porque a<br />

cadeia maléfica, satânica, do sequestro é que todos os que sabem caem presos... só<br />

nessas circunstâncias de alguém que é um jornalista com certa relevância, com certo<br />

apoio fora da Rua Botafogo sai e denuncia. Isso foi o que permitiu uma tomada de<br />

consciência de muitos jovens jornalistas, advogados, magistrados, cidadãos comuns,<br />

vizinhos, que foram levantando dados e permitiram reconstruir o feito de que havia<br />

267


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

ocorrido uma intervenção de militares uruguaios com apoio do DOPS e isso havia<br />

determinado o sequestro de um casal e de duas crianças. E que eles estavam lá e se<br />

chamam Lilián Celiberti e Universindo Rodríguez. 143<br />

176. Lilián e Universindo, embora sequestrados, foram julgados como “subversivos e<br />

invasores” pela ditadura uruguaia e condenados a cinco anos de prisão. Em 1983, quase dois anos<br />

antes da saída dos generais do poder, Lilián e Universindo foram libertados e puderam, enfim,<br />

contar os detalhes do sequestro de Porto Alegre. As circunstâncias da operação binacional da<br />

Condor foram confirmadas nos livros Confissões de um ex-torturador, testemunho do soldado do<br />

Exército uruguaio Hugo Walter Garcia Rivas, fotógrafo da Compañía de Contrainformaciones,<br />

que desertou e ganhou refúgio na Noruega; Sequestro no Cone Sul: o caso Lilian e Universindo,<br />

do advogado Omar Ferri, defensor da família Celiberti na Justiça brasileira; e Operação Condor:<br />

o sequestro dos uruguaios pelo jornalista Luiz Cláudio Cunha, testemunha que identificou os sequestradores<br />

do DOPS e investigou o caso por três décadas.<br />

177. O sequestro foi reconhecido em junho de 1980 pela sentença do juiz Moacir Danilo<br />

Rodrigues, que condenou os dois agentes do DOPS, subordinados ao delegado Seelig, que renderam<br />

os jornalistas: o inspetor João Augusto da Rosa e o escrivão Orandir Portassi Lucas. Foi a primeira<br />

vez em que uma sentença criminal da Justiça brasileira alcançava o indevassável sistema de repressão<br />

montado pelo regime de 1964, justamente num evento de conexão internacional. A sentença<br />

condenatória do juiz Moacir Danilo Rodrigues expressou:<br />

Tenho, pois, por tudo o que restou examinado, que o fato narrado na denúncia e<br />

aditamentos aconteceu, isto é, Lilián Celiberti e seus dois filhos, Camilo e Francesca,<br />

e ainda Universindo Díaz foram presos em Porto Alegre e, ao menos por<br />

algum tempo, mantidos sob prisão, para depois serem levados para o Uruguai.<br />

Este fato, seja que nome se lhe queira dar, ocorreu. Disse várias vezes o ex-governador<br />

Synval Guazzelli que o esclarecimento era questão de honra para o seu<br />

governo. Acrescente-se que o repúdio a tal procedimento deve ser almejado por<br />

todo brasileiro que admite viver apenas sob um império: o da lei! [...] Só há uma<br />

causa maior: a verdade! Se as vítimas se encontravam no Brasil de forma ilegal,<br />

caminhos existiam, legais também, como a própria expulsão, com normas específicas<br />

a serem seguidas. 144<br />

178. O mais rumoroso processo internacional da Operação Condor foi aberto em Roma,<br />

Itália, no final de 2007, pelo promotor Giancarlo Capaldo. No rastro de vítimas com nacionalidade<br />

italiana no Cone Sul, Capaldo trabalhou anos para construir sua causa contra os principais personagens<br />

das ditaduras da região, sob o manto da Condor. Lilián Celiberti esteve entre os depoentes.<br />

A denúncia de Capaldo foi aceita, em 27 de dezembro de 2007, pela juíza italiana Luisanna<br />

Figliolia, que emitiu ordens de prisão contra 146 pessoas, entre ditadores, ministros militares, chefes<br />

de serviços secretos e policiais de seis países da Condor (Brasil, Argentina, Uruguai, Bolívia, Peru<br />

e Paraguai), atingindo 61 argentinos, 22 chilenos, 32 uruguaios, sete bolivianos, sete paraguaios,<br />

quatro peruanos – e 13 brasileiros.<br />

268


1 – CORTE IDH. Caso Goiburú et al. vs. Paraguai. Sentença de 22/9/2006. Série C n o 153.<br />

2 – CORTE IDH. Caso Gelman vs. Uruguai. Sentença de 24/2/2011. Série C n o 221. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003115/2014-88.<br />

3 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001515/2013-78.<br />

4 – Ibid.<br />

5 – [Arquivos Desclassificados EUA Operacao Condor/FBI OperationCondor/19july1976.pdf.] Arquivo <strong>CNV</strong>,<br />

00092.003115/2014-88.<br />

6 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003101/2014-64.<br />

7 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001303/2014-71.<br />

8 – .<br />

9 – Processo 2182-92-Operación Cóndor, pp. 2375-79, John Dinges Archive, .<br />

10 – CUNHA, Luiz Cláudio. Operação Condor – O sequestro dos uruguaios: uma reportagem dos tempos da ditadura. Porto<br />

Alegre: L&PM, 2008, pp. 419-20.<br />

11 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002792/2014-89.<br />

12 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002793/2014-23.<br />

13 – AHMRE: OEA, ata n o 8/62.<br />

14 – Portaria Ministerial n o 1.690 de 10/10/1977.<br />

15 – Arquivo Nacional, Ciex/ MRE, BR_AN_BSB_IE_004_003, pp. 24-26.<br />

16 – Arquivo Nacional, Ciex/MRE, BR_AN_BSB_IE_004_003, p. 37.<br />

17 – Arquivo Nacional, Ciex/MRE, BR_ANBSB_IE_003_006, pp. 34-35.<br />

18 – Telegrama n o 414 de 1 o /11/1969, da Embaixada em Montevidéu; Telegrama n o 330 de 1/11/1969, para a Embaixada<br />

em Montevidéu, anexados ao relatório de pesquisa “A participação do Itamaraty na repressão além fronteiras” - Arquivo<br />

<strong>CNV</strong>, 00092.003073/2014-85.<br />

19 – Telegramas n o 418, de 28/10/1969, n o 485, de 28/10/1969, e n o 491, de 29/10/1969, da Embaixada em Montevidéu<br />

– Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003073/2014-85.<br />

20 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003073/2014-85.<br />

21 – Ibid.<br />

22 – Arquivo Nacional, DSI/MRE: BR_DFANBSB_Z4_DPN_BRA_BEX_0020, p. 163.<br />

23 – Ibid.<br />

24 – Ibid.<br />

25 – Arquivo Nacional: Ciex/MRE, BR_AN_BSB_IE_007_003, p. 29.<br />

26 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002073/2013-87.<br />

27 – Arquivo do jornal O Estado de S. Paulo, , acesso em<br />

20/8/2014.<br />

28 – Jornal O Estado de S. Paulo ,<br />

acesso em 20/8/2014.<br />

29 – Agência Pública: , acesso em 20/8/2014.<br />

30 – Arquivo Nacional, SNI: 624_16_AC_76.<br />

31 – Arquivo Nacional, SNI: AC_ACE_SEC_14329_70.<br />

32 – Arquivo Nacional, DPN PES, 746.<br />

33 – Ibid.<br />

34 – Ibid., fl. 158.<br />

35 – Arquivo Nacional, DPN PES, 746.<br />

36 – Ibid., fl. 160.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

269


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

37 – Arquivo Nacional, SNI: AC_ACE_32369_71, p. 5.<br />

38 – Arquivo Nacional, SNI: AC_ACE_32369_71.<br />

39 – Arquivo Nacional, CISA, AC_ACE_32369_71. Telegrama n o 811 de 12/12/1970 para a Embaixada em Buenos<br />

Aires.<br />

40 – Decreto n o 68.050, de 13/1/1971.<br />

41 – Telegrama n o 38, de 18/1/1971, para a Embaixada em Buenos Aires, e Telegrama n o 72 de 18/1/1971, da Embaixada<br />

em Buenos Aires − Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003073/2014-85.<br />

42 – Telegrama n o 220 de 15/6/1971, do Consulado-Geral em Santiago − Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003073/2014-85.<br />

43 – Arquivo Nacional, SNI: DI_ACE_41436_71, p. 26.<br />

44 – Ibid.<br />

45 – Ibid., p. 47.<br />

46 – Ibid.<br />

47 – Ibid.<br />

48 – Arquivo Nacional, DPN PES, 746. p. 26.<br />

49 – Arquivo Nacional, Ciex/MRE, BR_AN_BSB_IE_004_011, p. 1.<br />

50 – Arquivo Nacional, SNI: DI_ACE_41436_71, p. 47.<br />

51 – Ibid., p. 27.<br />

52 – Ibid.<br />

53 – Arquivo Nacional, Ciex/MRE, BR_AN_BSB_IE_008_002, p. 53.<br />

54 – Arquivo Hemeroteca Digital Brasileira da Biblioteca Nacional: .<br />

55 – Diário Oficial da União, 2/12/1971: .<br />

56 – Arquivo Nacional, Fundo Ciex, BR_AN_BSB_IE_007_002, p. 51.<br />

57 – Entre os estudos sobre o período que abordam o tema, o livro Fórmula para o caos: a derrubada de Salvador Allende,<br />

de Luiz Alberto Moniz Bandeira, em particular, contém abundantes referências a telegramas trocados entre a Secretaria<br />

de Estado e Embaixada do Brasil no Chile, antes e depois do golpe de 1973. O artigo de Tanya Harmer, “Brazil’s Cold<br />

War in the Southern Cone 1970-1975” (Cold War History, v. 12, n o 4, novembro de 2012, pp. 659-81, ), baseia-se em documentos desclassificados dos arquivos norte-americanos e chilenos,<br />

que são também a fonte principal da série de reportagens de autoria de Roberto Simon publicadas pelo jornal O Estado de<br />

S. Paulo entre os dias 1 o e 7 de setembro de 2013. V. KORNBLUH, Peter (Ed.), “Brazil Conspired with US to Overthrow<br />

Allende”, agosto de 2009, .<br />

58 – Esses telegramas podem ser conferidos no relatório de pesquisa registrado no Arquivo da <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31.<br />

59 – Ver documentos anexados ao relatório de pesquisa já citado – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31.<br />

60 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31. Telegrama n o 395, de 18/9/1973, para a Embaixada em Santiago, secreto.<br />

61 – Arquivo da <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31. Telegrama n o 942, de 19/9/1973, da Embaixada em Santiago, secreto.<br />

62 – Para além das comunicações por telefone ou outros meios, há telegramas expedidos do e para o gabinete do ministro<br />

Gibson Barboza, cujos números constam da série telegráfica, mas que não foram localizados no Arquivo do MRE.<br />

Também as comunicações que circularam naqueles dias pelos escritórios dos adidos militares em Santiago não foram até<br />

o momento localizadas pelos pesquisadores.<br />

63 – Ver relatório de pesquisa já citado – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31.<br />

64 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31. Telegramas n o 164, de 27/9/1973, e 166, de 29/9/1973, do Consulado-<br />

Geral em Santiago, secretos.<br />

65 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31. Telegrama n o 170 de 1 o /10/1973, do Consulado-Geral em Santiago, secreto.<br />

66 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31. Telegrama n o 279, de 4/10/1973, para o Consulado-Geral em Santiago,<br />

secreto. Telegrama no 177, de 5/10/1973, do Consulado-Geral em Santiago, secreto-urgente.<br />

270


67 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31. Telegrama n o 622, de 10/10/1973, para a Embaixada em Lima, secreto.<br />

68 – Dezenas dessas listas e comunicações podem ser conferidas no anexo documental ao relatório de pesquisa já citado<br />

– Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31.<br />

69 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31. Telegrama n o 288, de 11/10/1973, e 316, de 7/11/1973, para o Consulado-<br />

Geral em Santiago, secretos.<br />

70 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31. Telegrama n o 179, de 5/10/1973, do Consulado-Geral em Santiago, secreto-urgentíssimo.<br />

71 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31. Telegramas n o 180, de 6/10/1973, e no 194, de 15/10/1973, do Consulado-<br />

Geral em Santiago, secretos.<br />

72 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31. Telegrama n o 183, de 9/10/1973, do Consulado-Geral em Santiago, secreto-urgentíssimo.<br />

73 – Informação do SNI – Agência Central, de 3/10/1973. Todos esses expedientes podem ser consultados no relatório já<br />

citado – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31.<br />

74 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31. Telegrama n o 200, de 15/10/1973, do Consulado-Geral em Santiago, secreto-urgentíssimo.<br />

Telegrama n o 460, de 16/10/1973, para a Embaixada em Santiago, secreto.<br />

75 – Permiso de sobrevuelo y aterrizaje en territorio chileno n o 17/73, de 15/10/1973, requerido pela Embaixada do Brasil<br />

em Santiago.<br />

76 – Depoimento prestado à <strong>CNV</strong> em 1 o /8/2014. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001699/2014-57.<br />

77 – A presença de interrogadores brasileiros é assinalada em vários depoimentos prestados em processos judiciais em<br />

curso no Chile sobre os crimes cometidos no Estádio Nacional, aos quais a <strong>CNV</strong> teve acesso.<br />

78 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002758/2014-12.<br />

79 – Depoimento prestado à <strong>CNV</strong> em 7/11/2013. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002434/2013-95.<br />

80 – O relato desse fato – que consta do depoimento de Osni Gomes – pelo próprio Luiz Carlos Guimarães encontra-se<br />

às páginas 565 a 572 do livro 68: a geração que queria mudar o mundo – relatos (FERRER, Eliete [Org.]. Brasília: Ministério<br />

da Justiça, Comissão de Anistia, 2011). Verificou-se posteriormente que o agente do Cenimar em questão, conhecido<br />

como “capitão Mike”, não era João Alfredo Poeck, como por muito tempo se pensou, e sim Alfredo Magalhães, falecido<br />

em 1996. V. CALDAS, Álvaro. Tirando o capuz, 5 a ed. Rio de Janeiro: Garamond, 2004.<br />

81 – Depoimento prestado à <strong>CNV</strong> em 21/7/2014. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001604/2014-03.<br />

82 – Portaria n o 864, de 11/10/1982, do ministro de Estado do Exército, publicada no Diário Oficial da União de<br />

18/10/82, seção II, p. 9108.<br />

83 – Em depoimento prestado ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC)<br />

da Fundação Getulio Vargas, Cyro Etchegoyen, que na época servia no gabinete do ministro do Exército, general Orlando<br />

Geisel, negou que o acompanhamento das atividades dos exilados fizesse parte das atribuições dos militares no exterior,<br />

mas admitiu ter estado no Chile às vésperas do golpe: “fui visitar um menino que estava exilado, queria conversar, saber<br />

algumas coisas” (D’ARAUJO, Maria Celina; DILLON SOARES, Ary; CASTRO, Celso [Orgs.]. Os anos de chumbo: a<br />

memória militar sobre a repressão. Rio de Janeiro: Relume-Dumará, 1994).<br />

84 – Arquivo Nacional, Ciex/MRE, BR_AN_BSB_IE_015_002); Arquivo Nacional, SNI: AC_ACE_93282_76.<br />

85 – Arquivo Nacional, SNI: 257_20_AC.<br />

86 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31. Telegrama n o 291, de 11/10/1973, para o Consulado-Geral em Santiago,<br />

secreto. Ofício 237, do Consulado-Geral em Santiago, de 16/10/1973, secreto.<br />

87 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31. Circular Postal n o 2906, de 22/2/1974, secreta.<br />

88 – Depoimento prestado à <strong>CNV</strong> em 18/9/2014. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000781/2014-64.<br />

89 – Ver perfil relativo a Wânio de Mattos n o v. 3 do Relatório da <strong>CNV</strong>, sobre mortos e desaparecidos Políticos.<br />

90 – Arquivo Nacional, DSI: BR-AN-BSB-Z4.DPN.BRA.BEX.23.<br />

91 – Ver documentos anexados ao relatório de pesquisa já citado. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31.<br />

92 – Depoimento prestado à <strong>CNV</strong> no dia 16/4/2014. Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000781/2014-64.<br />

93 – Ofício n o 26/4, de 10/1/1974, da Embaixada do Chile em Brasília para o ministro das Relações Exteriores do<br />

Chile – anexado ao relatório de pesquisa “A participação do Itamaraty na repressão além fronteiras”; Arquivo <strong>CNV</strong>,<br />

00092.003073/2014-85.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

271


6 – conexões internacionais: a aliança repressiva no cone sul e a operação condor<br />

94 – Ofício confidencial n o 141 de 18/12/1973, da Embaixada do Chile no Brasil ao ministro das Relações Exteriores<br />

do Chile.<br />

95 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003072/2014-31.<br />

96 – Arquivo Nacional, Ciex/MRE, BR_AN_BSB_IE_025_001, p. 305.<br />

97 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001382/2014-11.<br />

98 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002495/2013-52.<br />

99 – Arquivo Nacional, CEMDP, BR_DFANBSB_AT0_0047_0009.<br />

100 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000732/2014-21.<br />

101 – Arquivo Nacional, SNI: ARJ_ACE_5550_81_0004, p. 20.<br />

102 – Arquivo Nacional, SIAN: BR RJANRIO,XX GJ. Telegrama n o 61100. Do Consulado brasileiro em Buenos Aires<br />

para Secretaria de Estado, de 20/2/1976.<br />

103 – Arquivo Nacional, Ciex/MRE, BR_RJANRIO_GJ_0_0_002_d0005de0017.<br />

104 – Arquivo Nacional, SNI: AC_ACE_91957_76.<br />

105 – Arquivo Nacional, SNI: AC_ACE_001701_81.<br />

106 – Arquivo Nacional, Ciex/MRE, BR_RJANRIO_GJ_0_0_002_d0002de0017.<br />

107 – Ibid.<br />

108 – Arquivo Nacional, Ciex/MRE, BR_RJANRIO_GJ_0_0_002_d0002de0003.<br />

109 – Arquivo Nacional, Ciex/MRE, BR_RJANRIO_GJ_0_0_002_d0007de0017.<br />

110 – Ibid.<br />

111 – Arquivo Nacional, SIAN, BR RJANRIO_XX GJ.<br />

112 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001405/2014-97. .<br />

113 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000309/2013-41.<br />

114 – Arquivo Nacional, Ciex/MRE, BR_ ¬DFANBSB_ATO_0035_0002.<br />

115 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000957/2014-88.<br />

116 – Legajo n o 3673.<br />

117 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001156/2014-30.<br />

118 – Arquivo Nacional, CEMDP, BR_DFANBSB_AT0_0035_0001 e BR_DFANBSB_AT0_0035_0002.<br />

119 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002598/2014-01. Justicia Federal da Argentina, Causa n o 10.961/2011, Jdo. Fed. 7 Sec 13.<br />

120 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000830/2013-05.<br />

121 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002792/2014-89.<br />

122 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003096/2014-90.<br />

123 – Ibid.<br />

124 – Arquivo Nacional, SNI: BR_ANBSB_N8_PSN_EST_094.<br />

125 – Ibid.<br />

126 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000732/2014-21.<br />

127 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000664/2013-10.<br />

128 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.003255/2014-55.<br />

129 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.00773/2014-18.<br />

130 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.000607/2014-11.<br />

131 – PALMAR, Aluízio. Onde foi que vocês enterraram nossos mortos Curitiba: Travessa dos Editores, 2005.<br />

132 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.001515/2013-78.<br />

272


133 – Arquivo Nacional, SNI: ACE 4501/82.<br />

134 – Arquivo Nacional, Ciex/MRE, BR_AN_BSB_IE_014_007, p. 45.<br />

135 – Arquivo Nacional, Ciex/MRE, BR_AN_BSB_IE_025_001.<br />

136 – Arquivo <strong>CNV</strong>, 00092.002769/2014-94.<br />

137 – Arquivo Nacional, Ciex/MRE, BR_AN_BSB_IE_025_001.<br />

138 – Lilián Celiberti em O sequestro dos uruguaios: 15 anos depois, RBS TV, vídeo, 21/11/1993.<br />

139 – Universindo Rodríguez Díaz em O sequestro dos uruguaios: 15 anos depois, RBS TV, vídeo, 21/11/1993.<br />

140 – Arquivo Nacional, DSI/MRE: encaminhamento n o 684/79. Arquivo Nacional, DPN, DES. 170. Arquivo Nacional,<br />

DSI/MRE, encaminhamento n o 545/79. Arquivo Nacional, DSI/MRE, n o 406/79.<br />

141 – Arquivo do MJDH, US Dept. of State, A/RPS/IPS.<br />

142 – Arquivo Nacional, SNI: APA_SNI_SR_DPF_RS.<br />

143 – Hugo Cores em O sequestro dos uruguaios: 15 anos depois, RBS TV, vídeo, 21/11/1993.<br />

144 – AJURIS, ESM: n o 1950/1310.<br />

comissão nacional da verdade – relatório – volume i – dezembro de 2014<br />

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