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Resenha<br />

A total poesia e o livro<br />

Poesia total, de Waly Salomão<br />

Por Rubens da Cunha<br />

O<br />

que é estar diante de um livro que reúne<br />

a poesia completa de um poeta Esta<br />

pergunta me surge diante de Poesia Total,<br />

de Waly Salomão, recém-lançado pela Companhia<br />

das Letras. Talvez seja preciso retomar aqui<br />

um escrito de Roland Barthes a respeito da obra<br />

e do texto. A obra seria, de forma geral, o objeto<br />

de consumo, um “fragmento de substância”; além<br />

disso, a obra tem um pai, que seria o seu autor e<br />

proprietário. Barthes afirma, também, que “a sociedade<br />

postula uma legalidade da relação do autor<br />

com a obra”, ou seja, há uma oficialização, uma<br />

institucionalização do autor e da obra perante o<br />

mercado, os leitores, o cânone literário. Por outro<br />

lado, existe o texto, que não deve ser computável,<br />

porque ele, segundo Barthes, “mantém-se na linguagem”;<br />

é aquilo que se “coloca nos limites das<br />

regras da enunciação (racionalidade, legibilidade,<br />

etc)”. O texto pode ser lido sem a autorização de<br />

seu pai-autor; além de ampliar os limites do leitor,<br />

o texto é provocação, tecido, rede; o texto é plural,<br />

vário, espectral e se interpenetra nos vãos e desvãos<br />

de quem o tenta aprisionar.<br />

Eis o motivo de minha dúvida frente à obra que<br />

reúne a “poesia total” de Waly Salomão. Para o<br />

mercado da literatura, é um lançamento muito<br />

importante, que reúne mais de 30 anos de um<br />

dos principais nomes da poesia brasileira contemporânea.<br />

Estão presentes nesse volume Me<br />

segura qu’eu vou dar um troço (1972), Gigolô de bibelôs<br />

(1983), Poemas de Armarinho de miudezas<br />

(1993), Hélio Oiticica: qual é o parangolé (1996),<br />

Algaravias: Câmaras de ecos (1996), Lábia (1998),<br />

Tarifa de embarque (2000), Pescados vivos (2004),<br />

além de uma reunião de diversas letras de músicas<br />

e de alguns estudos críticos, não de Waly, mas<br />

a respeito de sua obra, muitos escritos por outros<br />

poetas como Francisco Alvim, Paulo Leminski,<br />

Alexei Bueno e Antônio Cícero. Ou seja, a obra<br />

Poesia total abarca e “oficializa” a criação poética<br />

de uma das vozes mais libertárias e libertadoras<br />

que já produziram no nosso país, mas daria conta<br />

da total poesia de Waly<br />

O que temos reunido aqui é uma experiência<br />

com a linguagem e com o tempo. Waly Salomão,<br />

ou Waly Sailormoon, conforme se intitulou, nasceu<br />

na Bahia em 1943 e esteve no centro de algumas<br />

das principais rupturas estéticas ocorridas<br />

no Brasil, sobretudo a partir dos anos de 1970.<br />

Poeta, compositor, diretor de teatro e de shows,<br />

estabeleceu-se como autor de textos que iam delirando<br />

a linguagem, fazendo aproximações com<br />

o cotidiano, com a coloquialidade, mas, ao mesmo<br />

tempo, trazendo, conforme disse Leyla Perrone-Moisés,<br />

um passado remoto que toca Propércio,<br />

Safo, Píndaro, Anacreonte. Ou, como diz um<br />

de seus versos, “Eu não nasci para ser clássico de<br />

nascença […] Fiz tudo ao contrário... Sou todo ao<br />

convulsivo.”<br />

Este tom sempre performático de Waly também<br />

se manifesta em seus textos, que saem da<br />

palavra e tocam, muitas vezes, o desenho, o design,<br />

colocam-se sobre o papel, não tanto naqueles<br />

moldes engenhosos da poesia concreta,<br />

mas de forma a assimilar algo mais caótico e<br />

perigoso. Os textos de Waly, contidos nessa obra,<br />

convulsionam-se sobremaneira, justamente porque<br />

não aceitam as algemas dos gêneros, ou até<br />

mesmo do espaço restrito do livro. Retomemos<br />

Barthes, que diz: “cada palavra poética é assim<br />

um objeto inesperado, uma caixa de pandora de<br />

onde saem voando todas as virtualidades da linguagem;<br />

é portanto produzida e consumida com<br />

uma curiosidade particular, uma espécie de gulodice<br />

sagrada”. Eis a gulodice que precisamos ter<br />

para adentrar os textos de Waly, que essas mais<br />

de 400 páginas tentam abarcar, sobre o título de<br />

Poesia total, a total poesia que se espasma, grita,<br />

geme, dilacera o coração do leitor, pois, como diria<br />

um dos versos do poema “Vigiando o oco do<br />

tempo”: “todas as coisas íntegras dilaceram-se ou<br />

são dilaceradas”. Eis-nos, leitores do século XXI<br />

frente a textos de um poeta que adentrou diversas<br />

searas artísticas, viveu intensamente a contracultura,<br />

mas nunca rompeu com aquele estofo<br />

que a cultura mais tradicional poderia dar. Um<br />

poeta exacerbado que exige do leitor também<br />

muita exacerbação, muito exagero, sobretudo<br />

em tempos de contenção, em tempos de 140 caracteres.<br />

Assim, mesmo aparentemente caótico,<br />

desarticulado, Waly Salomão, ou Waly marinheiro<br />

da lua, mantém-se coerente e coeso no seu desapego<br />

às fórmulas fáceis, aos caminhos já traçados<br />

da poesia. Como ele disse lá no seu primeiro<br />

livro Me segura qu’eu vou dar um troço: “sou um<br />

camaleão: cada hora tiro um som diferente: espécie<br />

de Himalaia Supremo da Cultura Humana:<br />

um Corpus Juris Civili qualquer”, algo que ainda<br />

mantém-se num poema que foi publicado na orelha<br />

da antologia O mel do melhor (e que aparece<br />

na abertura do livro), cujos versos iniciais avisam<br />

“[...] o poeta resta no mundo / com raros talismãs<br />

/ algumas malícias / parcas mandingas. / Ele vai<br />

de peito aberto / para a clareira, / quase sem<br />

amuletos, / quase sem boias. / É se afogando, / se<br />

desafogando: escrever assim / viver assado”. Aos<br />

leitores de Waly Salomão também resta serem<br />

camaleões e a cada hora tirarem sons diferentes;<br />

resta restarem no mundo e irem de peito aberto<br />

se afogar nesse mar de linguagem, cuja obra Poesia<br />

Total tentou conter.<br />

(Rubens da Cunha é poeta e<br />

crítico de teatro, Florianópolis /SC)<br />

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