13.11.2012 Views

1ª Série Episódio 010 - RTP

1ª Série Episódio 010 - RTP

1ª Série Episódio 010 - RTP

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

CONTA­ME<br />

<strong>1ª</strong> <strong>Série</strong><br />

<strong>Episódio</strong> <strong>010</strong><br />

“FOLHAS CAÍDAS”<br />

OUTUBRO 1968<br />

Adaptação e Guião:


CENA <strong>010</strong> / 00. – PÓS GENÉRICO / IMAGENS DE ARQUIVO<br />

INSERT VÍDEO: ARQUIVO <strong>RTP</strong>:<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

EFEITO: Montagem com imagens de movimento nas ruas da Baixa, interior de<br />

Grandes Armazéns do Grandela ­ MARGARIDA e HERMÍNIA andam às<br />

compras, mexem em alguns artigos expostos, podem provar um chapéu ou pôr<br />

um vestido à frente do corpo e por último as duas a virarem da rua do Ouro<br />

para a rua do Crucifixo.<br />

FIM DE CENA –<br />

2


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 01. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. TARDE. DIA 01<br />

Margarida, António, Toni, Hermínia, Isabel, Carlos<br />

Acabaram o almoço. TONI tem um fato novo vestido, MARGARIDA acerta­lhe<br />

a altura das bainhas das calças e vê se o casaco precisa ou não de ser<br />

apertado. ANTÓNIO toma o café sentado no sofá, CARLOS a seu lado Vê<br />

televisão. HERMÍNIA ainda está sentada à mesa e segue com toda a atenção a<br />

prova do fato do neto. ISABEL entra e sai com cara de poucos amigos.<br />

Toni está cada vez mais incomodado.<br />

MARGARIDA<br />

Estão a ver, o fato é todo ele de Terylene!<br />

HERMÍNIA<br />

E a camisa é Tina e Maciel.<br />

MARGARIDA<br />

Triple Marfel, mãezinha. TRI­PLE MAR­FEL<br />

diz­se.<br />

HERMÌNIA<br />

Pois, foi o que eu disse.<br />

MARGARIDA<br />

Também te comprei uma camisola Dralon, tu<br />

estavas mesmo a precisar agora, para<br />

quando vier o frio.<br />

ANTÓNIO<br />

Parece um senhor …<br />

MARGARIDA<br />

Um senhor doutor.<br />

HERMÍNIA<br />

Um senhor advogado.<br />

TONI<br />

Já posso despir­me?<br />

MARGARIDA<br />

Já filho, já podes, mas sabes o que é que<br />

precisavas agora, cortar um bocadinho esse<br />

cabelo, não vais assim para a universidade.<br />

TONI<br />

Porquê? Agora o cabelo usa­se assim.<br />

3


TONI sai.<br />

ANTÓNIO sai<br />

ANTÓNIO (para Isabel)<br />

O que é que tu tens?<br />

ISABEL<br />

Não tenho nada, pai.<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

ANTÓNIO (para Toni)<br />

A tua mãe tem razão, pareces um pegador<br />

de toiros.<br />

HERMÍNIA<br />

Não parece nada, está tão bem. Sabes<br />

quem é que ele me faz lembrar Guida, o teu<br />

pai no dia em que me pediu namoro.<br />

TONI<br />

Vocês estão todos muito estranhos hoje. Eu<br />

vou­me despir para o quarto.<br />

ANTÓNIO<br />

Pendura o fato para não se amarrotar.<br />

HERMÍNIA<br />

Para quê? É terylene, António, não é<br />

preciso.<br />

MARGARIDA<br />

António, despacha­te que ainda vais chegar<br />

atrasado ao Ministério.<br />

ANTÓNIO<br />

Até logo, logo à noite diz­me quanto é que te<br />

custou o fato do Toni que eu faço questão<br />

de dar­te o dinheiro.<br />

MARGARIDA<br />

Até logo.<br />

ANTÓNIO<br />

Até logo.<br />

HERMÍNIA, ISABEL, CARLOS<br />

Até logo.<br />

MARGARIDA<br />

Maria Isabel antes que eu me<br />

esqueça...Hoje fomos ao Grandela e<br />

encontrámos o Rui Jorge. Foi muito<br />

simpático connosco, não foi, mãe?<br />

4


ISABEL sai.<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

HERMÍNIA<br />

Ele sempre foi educado. Perguntou por ti.<br />

ISABEL (irritada)<br />

E vocês as duas tinham mesmo que ir ao<br />

Grandela, não tinham? A mãe, não me tinha<br />

dito que iam à Rosicler?<br />

MARGARIDA<br />

Pois disse, mas não sabia que os preços do<br />

Grandela eram melhores e tivemos tanta<br />

sorte que o Rui Jorge ainda nos conseguiu<br />

um desconto só para empregados da casa.<br />

ISABEL (farta)<br />

Tenho de ir para o cabeleireiro. Há quem<br />

tenha de trabalhar.<br />

HERMÍNIA<br />

O que é que esta miúda tem?<br />

MARGARIDA<br />

Pergunte lá o que é que ela não tem...ela<br />

anda assim desde que acabou com o Rui.<br />

CARLOS<br />

Calem­se, calem­se – vai começar.<br />

HERMINIA<br />

Estás a ver...já a formiga tem catarro... Já<br />

viste isto!.<br />

INSERT VIDEO: Reportagem sobre provas de atletismo diversas.<br />

CARLOS assiste embevecido, as duas mulheres sorriem, encolhem os ombros<br />

e continuam a conversa.<br />

FIM DE CENA –<br />

PASSAGEM DE TEMPO<br />

NARRADOR (OFF)<br />

Os meus pais e a minha avó só tinham uma<br />

preocupação nos dias que corriam: a<br />

entrada do meu irmão para a Universidade.<br />

Já eu, tinha outras preocupações: o meu<br />

corpo e a sua manutenção física.<br />

5


CENA <strong>010</strong> / 02. INT. – CAFÉ DO FANAN / BAR ­ NOITE. DIA 01<br />

Fánan, António, Dino, Gregório<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

INSERT AUDIO: Ouve­se na rádio A Milionária por Lina Maria, de José Correia<br />

e Jorge Costa Pinto (Lina Maria, Clássicos da Renascença)<br />

FANAN, dum lado do balcão e ANTÓNIO e GREGÓRIO do outro, fazem o<br />

totobola. Um tudo, nada afastado, DINO lê o Diário Popular. Ao lado de<br />

GREGÓRIO está um embrulho rectangular feito em papel pardo.<br />

FANAN<br />

Braga ­ Setúbal?<br />

ANTÓNIO<br />

Xis.<br />

FANAN<br />

Xis, António? Na semana passada o Braga<br />

ganhou ao União de Tomar… e olha que o<br />

União de Tomar, ainda no outro dia deu 2 a<br />

1 ao Sporting…De quem é este embrulho?<br />

GREGÓRIO<br />

É meu.<br />

FANAN<br />

Tá bem. É que o outro dia deixaram uma<br />

dentadura postiça na casa de banho e até à<br />

data ninguém procurou por ela.<br />

ANTÓNIO<br />

Deve ser do Camões.<br />

FANAN<br />

Não, já lhe perguntei.<br />

ANTÓNIO<br />

Deixem­me contar­vos a última do Botas.<br />

DINO<br />

O Salazar já não manda nada! Agora é o<br />

Caetano.<br />

6


ANTÓNIO<br />

Dás­me licença?<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

FÁNAN<br />

Vocês sabem muito bem que eu não quero<br />

politica no meu estabelecimento.<br />

ANTÓNIO<br />

Isto não é política, é uma anedota: Um dia o<br />

Salazar vai a uma vidente e ela diz­lhe que o<br />

vê num carro grande aberto e milhares de<br />

pessoas muito contentes a correr atrás do<br />

carro a bater palmas e a rir. E pergunta o<br />

Salazar: e eu estou a acenar à multidão? E<br />

diz a vidente …<br />

GREGÓRIO (interrompe)<br />

O senhor presidente não pode acenar<br />

porque o seu caixão tem a tampa fechada.<br />

ANTÓNIO (desiludido)<br />

Já sabiam? Podiam ter dito.<br />

FÁNAN (chateado)<br />

Já acabaste?<br />

DINO<br />

Dá­me outra imperial.<br />

Aquilo em França continua uma confusão...<br />

GREGÓRIO<br />

Ainda bem, as coisas têm de mudar.<br />

ANTÓNIO<br />

Mudar o quê? Sempre há­de haver ricos e<br />

pobres.<br />

FANAN<br />

Bonitos e feios. (para Dino) Toma lá a<br />

imperial.<br />

DINO<br />

Obrigado. E para os Franceses a crise está<br />

muito feia.<br />

ANTÓNIO<br />

Porto – Varzim?<br />

7


GREGÓRIO sai.<br />

FIM DE CENA –<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

GREGÓRIO<br />

Vocês acabem sem mim que eu vou ter que<br />

ir ali a um sitio. Podes fazer­me o favor de<br />

me guardares isto até segunda.<br />

ANTÓNIO<br />

Até Segunda não...é o 5 de Outubro, até<br />

terça.<br />

GREGÓRIO<br />

Então se não te importas até terça. Meus<br />

senhores …<br />

TODOS<br />

Boa noite!<br />

ANTÓNIO<br />

Académica ­ Atlético?<br />

FANAN<br />

Um.<br />

DINO<br />

Dois.<br />

ANTÓNIO<br />

Xis.<br />

8


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 03. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. NOITE. DIA 01<br />

Hermínia, Margarida<br />

MARGARIDA está a coser calças à máquina e HERMÍNIA à mão. A televisão<br />

está ligada e percebe­se que o som que se ouve vem da televisão.<br />

INSERT AUDIO: Tonicha está a acabar o tema Vai de Ruz­Truz­Truz, popular<br />

com arranjos de João Viegas. (A Arte e a Música de Tonicha – Polygram).<br />

INSERT VIDEO: Anúncio a um frigorífico.<br />

MARGARIDA<br />

O Rui Jorge foi o primeiro namorado da<br />

Isabel, é natural que ela esteja um<br />

bocadinho abatida com o rompimento.<br />

HERMÍNIA<br />

Com a idade dela já eu tinha casado com o<br />

meu primeiro namorado. Também não tive<br />

mais nenhum.<br />

MARGARIDA<br />

Mas hoje em dia já não são como<br />

antigamente.<br />

HERMÍNIA<br />

O que é que estas raparigas pensam…<br />

MARGARIDA<br />

Olhe para aquilo!<br />

MARGARIDA<br />

Que bonito, olhe o congelador, mãe.<br />

HERMÍNIA<br />

Igual aos outros – é branco. Bebam água da<br />

fonte que também é fresca.<br />

MARGARIDA<br />

Onde é que estão hoje em dia as fontes<br />

mãe?<br />

HERMÍNIA<br />

Isso também é verdade, mas ficava mais<br />

barato do que um frigorifico.<br />

9


INSERT VIDEO: Anúncio a uma Máquina de Lavar.<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

MARGARIDA<br />

Olhe mãe, a nossa é quase igual. Amanhã<br />

vêm entregar.<br />

HERMÍNIA<br />

Primeiro foi uma televisão, agora é uma<br />

máquina de lavar … O que é que virá a<br />

seguir?<br />

MARGARIDA<br />

Ó mãezinha, não comece com isso … a mãe<br />

começa a ver os lençóis a sair da máquina<br />

muito branquinhos...<br />

HERMÍNIA<br />

Eu vou continuar a lavar a minha roupa no<br />

tanque.<br />

MARGARIDA<br />

Vai, Para quê? Para ficar com as mãos<br />

secas, todas gretadas …<br />

HERMÍNIA<br />

Razão tem o padre Antunes quando diz que<br />

agente gasta o dinheiro em porcarias e<br />

depois ficamos cheios de dívidas.<br />

MARGARIDA<br />

O padre Antunes tem quem lhe lave a roupa,<br />

não é ele que a lava.<br />

INSERT VIDEO: Imagens de uma qualquer cerimónia oficial onde Gertrudes<br />

Thomaz esteja de chapéu.<br />

HERMÍNIA<br />

Olha a Gertrudes, parece uma sirigaita.<br />

FIM DE CENA –<br />

PASSAGEM DE TEMPO<br />

MARGARIDA<br />

Também gostava de usar chapéu.<br />

HERMÍNIA<br />

Esta é que deve ter a casa cheia de<br />

frigoríficos e máquinas de lavar.<br />

MARGARIDA (sonhadora)<br />

E aspiradores …<br />

10


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 04. EXT. – DESCAMPADO / TERRENO. MANHÃ. DIA 02<br />

Carlos, Luís, Marinho<br />

Os TRÊS amigos jogam um desafio de futebol na terra com duas equipas de<br />

caricas recheadas com a fotografia de um futebolista.<br />

LUÍS<br />

É golo, é golo – cabeçada de Torres.<br />

MÁRINHO<br />

O Torres é muita bom à cabeçada.<br />

LUÍS<br />

E recomeça o jogo.<br />

CARLOS<br />

É pá, vocês não percebem nada. As caricas<br />

não são um desporto.<br />

MÁRINHO<br />

São pois.<br />

LUÍS<br />

E nós somos campeões.<br />

CARLOS<br />

Acham que nos Jogos Olímpicos se joga às<br />

caricas?<br />

LUÍS<br />

Porque só aqui é que se joga às caricas e<br />

eles não sabem.<br />

MARINHO<br />

Pois é.<br />

CARLOS<br />

Nós devíamos fazer coisas como nos Jogos<br />

Olímpicos.<br />

LUÍS<br />

Nós não somos desportistas.<br />

CARLOS<br />

Na televisão disseram que toda a gente<br />

pode fazer desporto.<br />

MÁRINHO<br />

O quê?<br />

11


CARLOS<br />

Ginástica.<br />

MÁRINHO<br />

Ginástica?<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CARLOS<br />

Sim, Vá, tirem as camisolas e as camisas.<br />

LUÍS<br />

Tenho frio.<br />

MÁRINHO<br />

Eu não tiro a roupa.<br />

CARLOS<br />

O Tarzan também anda sempre de calções<br />

e nunca diz nada.<br />

CARLOS começa a despir­se, fica de calções e camisola interior, os outros<br />

DOIS, contrariados, imitam­no. CARLOS começa a fazer exercícios simples de<br />

ginástica e os outros DOIS repetem­lhe os movimentos.<br />

CARLOS<br />

Um! Dois! Um! Dois! Um! Dois! …<br />

INSERT AUDIO: António Calvário em O Dia Mais Longo de Paul Anka, versão<br />

de J. B. Viegas (O MELHOR de António Calvário, EMI – Valentim de Carvalho)<br />

FIM DE CENA –<br />

CARLOS<br />

Um! Dois! Um! Dois! …<br />

12


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 05. INT. – CABELEIREIRO / SALÃO. MANHÃ. DIA 02<br />

Isabel, Náni, Clara<br />

As TRÊS senhoras preparam o salão para receber as primeiras clientes.<br />

NÁNI<br />

De terylene?<br />

ISABEL<br />

De terylene e uma camisa Triple Marfel e<br />

uma camisola Dralon.<br />

CLARA<br />

Não é todos os dias que se entra na<br />

Universidade.<br />

ISABEL<br />

Pois é, não é para todos. Alguns têm de<br />

trabalhar.<br />

NÁNI<br />

O menino tem roupa nova para ir para a<br />

Universidade e a Isabel trabalha desde os<br />

dezassete.<br />

CLARA<br />

Não me venham para cá armadas em<br />

americanas loucas!<br />

NÁNI<br />

Quais americanas?<br />

CLARA<br />

Quais americanas? Quais americanas? As<br />

feministas, disseram­me que na América<br />

agora tiram os soutiens na rua e queimam­<br />

nos.<br />

ISABEL<br />

Os soutiens?<br />

CLARA<br />

Os soutiens! Agora não usam nada para …<br />

para agarrar.<br />

NÁNI<br />

É capaz de não ser má ideia …<br />

ISABEL<br />

Está na altura de fazermos o que nos dá na<br />

13


FIM DE CENA –<br />

PASSAGEM DE TEMPO<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

gana.<br />

CLARA<br />

Sabem o que é que vos digo? Continuem a<br />

pensar assim que nunca hão­de casar.<br />

ISABEL<br />

Talvez estejamos melhor solteiras.<br />

NÁNI<br />

Em Londres há muitos casais que não são<br />

casados. Vivem juntos, pronto.<br />

ISABEL<br />

E ninguém os chateia.<br />

CLARA (irónica)<br />

Vivem Juntos? … Temos de acompanhar o<br />

nosso tempo… Juntos?<br />

14


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 06. INT. –. CASA LOPES / SALA COMUM ­ TARDE. DIA 02<br />

Carlos, Isabel, Toni, Hermínia, António, Margarida<br />

A FAMÍLIA está toda sentada à mesa, é o almoço de sábado: bacalhau cozido<br />

com grão e ovo cozido – MARGARIDA serve.<br />

MARGARIDA<br />

Ricas postas.<br />

CARLOS<br />

Eu não quero ovo, nem grão.<br />

MARGARIDA<br />

Era o que faltava. Comias só bacalhau …e<br />

nós comíamos o resto.<br />

CARLOS<br />

Poucochinho.<br />

TONI<br />

Tens de comer grão para ficares forte.<br />

CARLOS<br />

Que desporto é que tu fazes, Toni?<br />

TONI<br />

A partir de agora, vai ser “falar pelos<br />

cotovelos”.<br />

ISABEL dá um sorriso de desprezo e ANTÓNIO dá outro de orgulho.<br />

ANTÒNIO<br />

Se fores um bom advogado …<br />

CARLOS<br />

E qual é o desporto do papá?<br />

ANTÓNIO<br />

A corrida. Corro de casa para o ministério,<br />

do ministério para a tipografia, da tipografia<br />

para casa.<br />

CARLOS<br />

E a mãe?<br />

MARGARIDA<br />

A mãe faz muitos desportos: é coser, é<br />

lavar, é encerar, é passar a ferro...<br />

15


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

HERMÍNIA<br />

É campeã, se fosse aqueles jogos que há no<br />

estrangeiro ganhava.<br />

CARLOS<br />

É, é … Aqui ninguém faz desporto. E tu,<br />

Isabel?<br />

ISABEL (mal humorada)<br />

Eu tenho muito cabelo para cortar não tenho<br />

tempo para parvoíces …<br />

TONI<br />

É pá, Belita, estás brava.<br />

ISABEL<br />

Incomodo­te?<br />

TONI<br />

O que é que tens?<br />

ISABEL<br />

Como se isso te interessasse<br />

ISABEL tira o guardanapo e sai direita ao quarto.<br />

ANTÓNIO<br />

Onde é que vais, Maria Isabel?<br />

MARGARIDA<br />

Deixa­a, António, ela anda a passar um mau<br />

bocado desde que largou o Rui Jorge.<br />

ANTÓNIO<br />

Lá por ela estar a passar mal não quer dizer<br />

que agente tenha que passar.<br />

MARGARIDA<br />

Toni, fala com ela.<br />

TONI<br />

Eu? O que é que eu tenho a ver com isto?<br />

ANTÓNIO<br />

Vá lá, faz o que a tua mãe te pede.<br />

TONI<br />

E o que é que lhe digo?<br />

16


TONI levanta­se e dirige­se ao quarto da irmã.<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

HERMÌNIA<br />

Não és irmão dela? Tu é que sabes o que é<br />

que tens de dizer­lhe.<br />

HERMÍNIA<br />

E tu, Carlos, que desporto é que fazes?<br />

CARLOS<br />

Atletismo!<br />

HERMÍNIA<br />

O que é isso?<br />

CARLOS<br />

Saltar, correr, brincar …<br />

MARGARIDA<br />

Sabes o que é que tu devias ser...<br />

futebolista.<br />

ANTÓNIO<br />

Ouve o que a tua mãe te diz,ias para o<br />

estrangeiro jogar, ganhavas muito dinheiro e<br />

ficávamos todos ricos.<br />

HERMÍNIA<br />

É isso mesmo...Havia de ser bonito.<br />

Continuam os QUATRO a conversar, mas agora só se ouve o NARRADOR<br />

FUNDE C/<br />

NARRADOR<br />

Infelizmente a família não partilhava os<br />

meus ideais desportivos. Os meus pais só<br />

pensavam no dinheiro, o meu irmão na<br />

Universidade, a minha irmã no namorado<br />

que tinha mandado embora e a minha avó<br />

só pensava em nós todos. Mas eu já tinha<br />

decidido: ia ser um grande atleta, eles iam<br />

ver.<br />

17


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 07. INT – CHROMA­KEY / SONHO CARLOS ­ DIA 00<br />

Carlos<br />

EFEITO VÍDEO: Montagem da imagem de Carlos a correr nas imagens de uma<br />

corrida dos duzentos metros. CARLOS corta a meta em primeiro e sobe ao<br />

pódio.<br />

LOCUTOR (OFF)<br />

É ele, Carlos, o Português, já se juntou ao<br />

grupo que mais perto está da meta. O nosso<br />

compatriota decide a vitória com os Estados<br />

Unidos da América do Norte, a União<br />

Soviética e a República Democrática da<br />

Alemanha. Avança, Carlos, corre, puxa,<br />

força … Ganhou! México, 1968, medalha de<br />

ouro para Portugal!<br />

INSERT AUDIO: Ouve­se o Hino Nacional quando Carlos sobe ao pódio<br />

FUNDE C/<br />

18


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 08. INT. – CASA LOPES / QUARTO ISABEL. TARDE. DIA 02<br />

Isabel, Toni<br />

ISABEL está sentada na cama a folhear um livro, TONI está de pé, junto à<br />

porta.<br />

TONI<br />

Mas tens alguma coisa contra mim?<br />

ISABEL<br />

Não, Toni, que disparate …<br />

TONI<br />

Então?<br />

ISABEL<br />

Nada, não sei …<br />

TONI<br />

Fala, Isabel.<br />

ISABEL<br />

Achas normal eu ter começado a trabalhar<br />

aos 17 anos?<br />

TONI<br />

Não era o que tu querias?<br />

ISABEL<br />

Ninguém me perguntou nada.<br />

TONI<br />

Quer dizer, agora eu vou entrar para a<br />

Universidade e tu também gostavas de vir. É<br />

isso?<br />

ISABEL<br />

Não sei se gostava de ir para a<br />

Universidade, mas gostava que me tivessem<br />

perguntado – gostava de ter tido essa<br />

oportunidade. Percebes?<br />

TONI olha ISABEL, diz que sim com a cabeça e sai em silêncio.<br />

FIM DE CENA –<br />

19


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 09. EXT. – DESCAMPADO / CAMIÃO ­ TARDE. DIA 02<br />

Carlos, Luís, Marinho<br />

LUÍS e MÁRINHO, encostados ao camião, desafiam CARLOS com o olhar.<br />

MÁRINHO<br />

Chega! Mais ginástica, não.<br />

LUÍS<br />

E eu tenho de ir para casa, Estou cheio de<br />

fome.<br />

MÁRINHO<br />

Também eu, vou lanchar.<br />

CARLOS<br />

Vão! Mas tenham cuidado com o que<br />

comem.<br />

MÁRINHO<br />

O que é que foi, também já não podemos<br />

comer?<br />

CARLOS<br />

Podem comer, mas não podem comer<br />

carcaças.<br />

LUÍS<br />

Porquê?<br />

CARLOS<br />

Porque os atletas não comem pão.<br />

LUÍS<br />

E o que é que eles comem?<br />

CARLOS<br />

Fruta e salada.<br />

MÁRINHO<br />

Luís, vamos embora.<br />

LUÍS<br />

Vamos. Eu já não quero ser desportista.<br />

20


Saem os TRÊS a correr.<br />

FIM DE CENA –<br />

PASSAGEM DE TEMPO<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

MÁRINHO<br />

Nem eu – vou já comer uma sandes de<br />

queijo.<br />

CARLOS<br />

Sandes de queijo? Está bem, vamos<br />

embora?<br />

21


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 10. INT. – CASA LOPES / SALA COMUM. NOITE. DIA 02<br />

António, Toni, Carlos<br />

Os DOIS sentados no sofá assistem ao final de um jogo.<br />

INSERT VIDEO: vê­se a equipa do Sporting a encaminhar­se para os<br />

balneários, num qualquer jogo dos anos 68/69.<br />

ANTÓNIO levanta­se e vai ao<br />

aparador servir os copos.<br />

ANTÓNIO<br />

Ou perdem ou empatam… Ganhar é que<br />

nunca.<br />

TONI<br />

O pai diz sempre isso quando o Sporting<br />

joga. Perdemos, pronto…<br />

ANTÓNIO<br />

Perdemos não. Desde que deram 5 a 0 ao<br />

Varzim, não jogaram mais nada. O defeito é<br />

teu que não és do Benfica. Vá lá… Bebes<br />

um copinho?<br />

TONI<br />

Um copinho?<br />

ANTÓNIO<br />

Sim, um copinho. Não sabes o que é um<br />

copinho? Uma aguardente?<br />

TONI<br />

Está bem.<br />

ANTÓNIO<br />

Deu­me o engenheiro no Natal de há três<br />

anos! E diz que é uma especialidade.<br />

Queres um cigarro?<br />

TONI (mente)<br />

Eu não fumo.<br />

ANTÓNIO<br />

Pois não..., deixas sempre um pivete a<br />

tabaco na casa de banho que eu tenho de<br />

deitar Pitralon para a tua mãe não perceber.<br />

TONI (atrapalhado)<br />

É só de vez em quando …<br />

22


CARLOS entra de pijama<br />

com um panfleto nas mãos.<br />

FIM DE CENA –<br />

PASSAGEM DE TEMPO<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

ANTÓNIO<br />

Deves pensar que eu sou parvo ou então<br />

que não tive a tua idade. Eu fumo desde os<br />

onze anos, às escondidas, claro. A primeira<br />

vez que pedi licença à tua avó para fumar<br />

um cigarro à frente dela na véspera de<br />

entrar para a tropa.<br />

TONI<br />

Eu não vou para a tropa.<br />

ANTÓNIO (emocionado)<br />

Graças a Deus! Pode ser que a guerra<br />

acabe entretanto … Mas vais para a<br />

Universidade, vais ser advogado, Eu estou<br />

muito contente por ti, estou muito orgulhoso.<br />

Todos me dão os parabéns, no Ministério,<br />

no Fánan, na tipografia. Estou farto de ser<br />

um Zé­Ninguém, mas tenho um filho que vai<br />

ser doutor. Só uma coisa, cuidado com o<br />

que dizes, só estás ali para estudar e vires a<br />

ser advogado. Nada de política, nem<br />

confusões com a polícia.<br />

TONI<br />

Que confusões é que eu posso arranjar com<br />

a polícia?<br />

ANTÓNIO<br />

Eu sei disso, sou eu que falo com as<br />

pessoas. Juízo! Eu sei que isto não está<br />

bem, mas também sei que é mais prudente<br />

não nos metermos. Por favor nunca te metas<br />

em política. Política, nunca.<br />

CARLOS<br />

Ó pai, o que é ditadura?<br />

23


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 11. INT. – CASA LOPES / QUARTO CASAL. NOITE. DIA 02<br />

António, Toni, Margarida<br />

ANTÓNIO, MARGARIDA (de robe e rolos) e TONI, os TRÊS muito nervosos,<br />

estão sentados à beira da cama. MARGARIDA vai tirando panfletos do<br />

embrulho do Gregório e espalha­os pelo chão, lê­se: “Abaixo a ditadura “, “pela<br />

liberdade de associação”, “por um salário digno”, “contra a repressão policial “.<br />

ANTÓNIO (alarmado)<br />

Não tires mais, Guida. Dizem todos a<br />

mesma coisa.<br />

MARGARIDA<br />

E onde é que o Carlitos encontrou isto?<br />

ANTÓNIO<br />

Estava debaixo da mesa do hall e abriu­o.<br />

MARGARIDA (para António, acusadora)<br />

E quem é que pôs isto debaixo da mesa do<br />

hall?<br />

ANTÓNIO (enervado)<br />

E tu achas que eu sabia o que é que estava<br />

aqui dentro?<br />

MARGARIDA<br />

O Gregório quando te deu isto não te disse<br />

nada?<br />

ANTÓNIO (mais irado) (exaltado)<br />

Não. Não me disse nada. Só me pediu para<br />

o guardar até terça porque naquela altura<br />

não ia logo para casa. Eu pensei que era<br />

material para a Tipografia. Quando apanhar<br />

esse gajo, mato­o. O gajo gozou comigo,<br />

gozou com a minha família, fez pouco da<br />

nossa familia.<br />

TONI (assustado)<br />

Não grite, pai. Ainda vai acordar toda a<br />

gente.<br />

MARGARIDA corre à porta, abre­a, espreita para o corredor e volta a entrar.<br />

FIM DE CENA –<br />

MARGARIDA<br />

Não há problema estão todos a dormir.<br />

24


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 12. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES. NOITE. DIA 02<br />

Carlos<br />

CARLOS, de pijama, está sentado em cima da cama com o ouvido colado à<br />

parede para tentar ouvir a conversa no quarto dos pais.<br />

FIM DE CENA –<br />

NARRADOR (OFF)<br />

Estavam todos a dormir, menos eu. A<br />

discussão no quarto dos meus pais deixara­<br />

me de vigília. Primeiro pensava que era por<br />

causa dos panfletos contra a ditadura, mas<br />

era mais grave. O meu pai queria matar um<br />

homem por causa de uma caixa de<br />

bolachas.<br />

25


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 13. INT. – CASA LOPES / QUARTO CASAL. NOITE. DIA 02<br />

António, Toni, Margarida<br />

ANTÓNIO (aflito)<br />

Ajudem­me a juntar os panfletos.<br />

Os TRÊS apanham os papéis espalhados no chão.<br />

MARGARIDA<br />

E se nos apanham com isto? eu nem quero<br />

pensar.<br />

TONI<br />

Calma, mãe, ninguém sabe de nada.<br />

ANTÓNIO<br />

Ninguém diz nada. Nada. Bico calado.<br />

TONI<br />

O pai sabia que o Gregório, era …<br />

ANTÓNIO<br />

Eu sabia lá, conheço o gajo há 20 anos... se<br />

lhe deito a mão...<br />

MARGARIDA<br />

E tu, Toni, vê lá se aprendes …<br />

TONI<br />

Eu?<br />

MARGARIDA<br />

Sim, tu, para não te meteres em política.<br />

Aprende, Toni, aprende. Em política não<br />

acontece nada de bom.<br />

TONI<br />

Mas eu não fiz nada mãe.<br />

MARGARIDA<br />

Já não tínhamos problemas que cheguem...<br />

ANTÓNIO<br />

Estão aqui mais de 500 panfletos, o<br />

suficiente para irmos bater com os costados<br />

em Caxias.<br />

MARGARIDA<br />

Logo agora que a máquina de lavar está a<br />

chegar.<br />

26


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

ANTÓNIO<br />

E o que é que a máquina de lavar tem a ver<br />

com isto?<br />

MARGARIDA<br />

Sei lá. Eu já nem sei o que digo.<br />

TONI saca de um cigarro, MARGARIDA fica de boca aberta.<br />

MARGARIDA<br />

O que é que tu estás a fazer?<br />

ANTÓNIO<br />

Deixa­o estar, eu já lhe dei autorização. Dá­<br />

me aí um, Toni.<br />

MARGARIDA<br />

Ah, já estiveste a falar com ele. Então se o<br />

teu pai autoriza, fuma. Fuma, filho.<br />

MARGARIDA sorri com ternura e faz uma festa na cabeça de TONI.<br />

TONI<br />

Vai ficar a olhar, mãe?<br />

ANTÓNIO<br />

Pronto. Eu vou levar isto a casa do Gregório.<br />

MARGARIDA<br />

A esta hora?<br />

ANTÓNIO<br />

Não quero isto cá em casa nem mais um<br />

minuto.<br />

ANTÓNIO pega na gabardine e no embrulho e sai pela porta.<br />

MARGARIDA e TONI seguem­no.<br />

FIM DE CENA –<br />

27


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 14. EXT. – RUA LOPES / PORTA PRÉDIO. NOITE. DIA 02<br />

António, Margarida, Toni<br />

MARGARIDA e TONI estão na varanda. ANTÓNIO aparece à porta da rua, de<br />

gabardina com a gola levantada, esconde o embrulho no interior dela – está tão<br />

nervoso que fica com cara de suspeito.<br />

INSERT ÁUDIO: Tema musical de James Bond.<br />

MARGARIDA (em voz baixa)<br />

Antóóóóónio!<br />

ANTÓNIO assusta­se com a voz de MARGARIDA e deixa cair os papéis no<br />

chão, apanha­os à pressa e olha para a varanda.<br />

ANTÓNIO (em voz baixa)<br />

Olha os vizinhos.<br />

MARGARIDA (em voz baixa)<br />

Está bem. Tem cuidado.<br />

ANTÓNIO (em voz baixa)<br />

Vão para dentro.<br />

INSERT AUDIO: A música sobe de intensidade.<br />

MARGARIDA e TONI entram em casa.<br />

ANTÓNIO corre pela rua fora.<br />

MARGARIDA e TONI regressam à varanda.<br />

FIM DE CENA –<br />

28


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 15. INT. – CASA LOPES / JANELA QUARTO RAPAZES. NOITE. DIA 02<br />

Carlos<br />

CARLOS com cara de mistério, está por entre os cortinados da janela do seu<br />

quarto a olhar para a rua.<br />

FIM DE CENA –<br />

PASSAGEM DE TEMPO<br />

NARRADOR (OFF)<br />

Agora começava a ver tudo muito mais<br />

claro. A culpa disto tudo era do tal Gregório<br />

que devia ser um dos da ditadura e o meu<br />

pai disfarçara­se de gangster para ir a um<br />

ajuste de contas. Só não percebia o que é<br />

que a caixa de bolachas tinha a ver com<br />

tudo isto.<br />

29


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 16. INT. – CASA LOPES / CASA DE BANHO. MANHÃ. DIA 03<br />

António, Margarida, Hermínia (off)<br />

ANTÓNIO e MARGARIDA estão sentados na borda da banheira.<br />

ANTÓNIO tem o embrulho de Gregório na mão. Falam baixo.<br />

MARGARIDA<br />

Então e ele não atendeu?<br />

ANTÓNIO<br />

Já te disse que não. Passei horas a tocar à<br />

campainha. O que é que querias que eu<br />

fizesse?<br />

MARGARIDA<br />

Não sei, deixavas isso em casa de um<br />

vizinho.<br />

ANTÓNIO<br />

Estás maluca. Àquela hora ir tocar à porta<br />

dos vizinhos para lhes dar esta prenda.<br />

MARGARIDA<br />

Tenho a certeza que o Gregório estava lá e<br />

não quis atender.<br />

ANTÓNIO<br />

Talvez, mas tinha as persianas fechadas.<br />

MARGARIDA<br />

Mas porque é que não deixaste isso em<br />

qualquer lado?<br />

ANTÓNIO<br />

Onde? À noite ainda se dá mais nas vistas.<br />

Estava para deixar à porta de uma loja, mas<br />

apareceu um carro da polícia e eu fiquei tão<br />

aflito que vim a correr para casa.<br />

HERMÍNIA (off)<br />

O que é que vocês estão aí a fazer fechados<br />

há já tanto tempo?<br />

MARGARIDA<br />

Nada, mãe, estamos a conversar um<br />

bocadinho.<br />

HERMÍNIA (off)<br />

Que raio de sítio para ficar à conversa.<br />

30


Escutam HERMÍNIA a afastar­se.<br />

ANTÓNIO sobe para a retrete.<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

MARGARIDA<br />

É que o António cortou­se num dedo.<br />

ANTÓNIO<br />

Ai, Guida, tanto sangue.<br />

HERMÍNIA (off)<br />

Valha­me Deus. O corte é fundo?<br />

MARGARIDA<br />

Não, mãe, mas já sabe como é o António.<br />

HERMÍNIA (off)<br />

Tens ai a água oxigenada<br />

MARGARIDA<br />

Tenho, tenho...está tudo bem.<br />

HERMÍNIA (off)<br />

Tá bem …<br />

MARGARIDA<br />

E agora, António? A polícia pode chegar de<br />

um momento para o outro.<br />

ANTÓNIO<br />

Agora tem de ficar cá em casa, logo à noite<br />

desfazemo­nos dele de qualquer maneira.<br />

MARGARIDA<br />

Mas onde é que o escondemos?<br />

ANTÓNIO<br />

Vou despejar o autoclismo e fechar a<br />

torneira. Tens de dizer a todos que está<br />

estragado e que usem um balde para deitar<br />

água.<br />

MARGARIDA<br />

Vê lá se cais.<br />

ANTÓNIO<br />

Passa­me o embrulho.<br />

31


Quando MARGARIDA pega no embrulho tocam à campainha.<br />

INSERT ÁUDIO: campainha da porta.<br />

Ficam os DOIS muito assustados.<br />

A campainha toca outra vez.<br />

INSERT ÁUDIO: campainha da porta.<br />

Os DOIS continuam paralisados.<br />

MARGARIDA<br />

Ah, meu Deus, a polícia!<br />

HERMÍNIA (off)<br />

Deixem estar que eu abro.<br />

MARGARIDA<br />

Não abra, mãe.<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

HERMÍNIA (off)<br />

Porque é que não hei­de abrir?<br />

MARGARIDA<br />

Deve ser o cobrador da televisão.<br />

HERMÍNIA (off)<br />

E não tens dinheiro?<br />

MARGARIDA passa o embrulho a ANTÓNIO que começa a tentar enfiá­lo no<br />

autoclismo, enquanto ela lhe segura nas pernas.<br />

MARGARIDA<br />

Deixei o porta­moedas no cabeleireiro.<br />

HERMÍNIA (off)<br />

Filha, espreitei pelo ralo: era o Dino. Devia<br />

vir montar a máquina de lavar.<br />

MARGARIDA (animadíssima)<br />

Ah, a máquina de lavar.<br />

MARGARIDA esquece o marido, larga­o e sai porta fora. ANTÓNIO<br />

desequilibra­se e cai.<br />

FIM DE CENA –<br />

PASSAGEM DE TEMPO<br />

32


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 17. EXT. – DESCAMPADO / TERRENO. TARDE. DIA 03<br />

Carlos, Luís, Marinho<br />

CARLOS, LUÍS e MÁRINHO estão os três em calções e camisola interior de<br />

alças. CARLOS tem nas mãos um manual de atletismo da Mocidade<br />

Portuguesa.<br />

MÁRINHO<br />

Despacha­te que tenho frio.<br />

CARLOS<br />

Está bem, espera (lê) “… o atletismo é o<br />

desporto mais (lê com dificuldade) i­dó­neo<br />

para a in­cre­men­ta­ção física e mental dos<br />

jovens.”<br />

MÁRINHO<br />

E o que é que quer dizer idóneo?<br />

LUÍS<br />

E prementação?<br />

CARLOS<br />

Quer dizer que é bom e faz bem.<br />

LUÍS<br />

Tenho frio.<br />

CARLOS<br />

Nunca viste na televisão? Os atletas estão<br />

todos de camisola interior.<br />

MÁRINHO<br />

Eu vi uns atletas de fato de treino.<br />

LUÍS<br />

Com o nome do país escrito no peito.<br />

CARLOS<br />

Deixem­se de mariquices. Vamos fazer a<br />

maratona.<br />

MÁRINHO<br />

Fazer o quê?<br />

CARLOS<br />

A maratona. É uma corrida.<br />

33


LUÍS<br />

É comprida?<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CARLOS<br />

Não, são só quarenta e dois quilómetros e<br />

meio. É pouco<br />

INSERT AUDIO: Refrão de Amar, Viver, Sonhar, cantado por Fernando Conde<br />

de Chuck Berry e do próprio Fernando Conde. (Biografia do Pop/Rock,<br />

Moviplay Portuguesa, 1997)<br />

Os TRÊS meninos correm.<br />

FIM DE CENA –<br />

34


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 18. INT. – CASA LOPES / QUARTO ISABEL. TARDE. DIA 03<br />

Isabel, Náni<br />

Estão as duas sentadas em cima da cama, NÁNI pinta as unhas a ISABEL.<br />

INSERT AUDIO: Duo Ouro Negro em Agora Vou Ser Feliz (I want to hold your<br />

hand) de John Lennon, Paul McCartney, versão Raul Cruz (All you need is love<br />

Lisboa, EMI 2004)<br />

FUNDE C/<br />

ISABEL<br />

Viste ontem no telejornal as fardas novas<br />

das hospedeiras da TAP?<br />

NÁNI<br />

Ah, Isabel, eram lindas.<br />

ISABEL<br />

E ouviste aquela a dizer que ia para Nova<br />

Iorque como nós dizemos que vamos ali à<br />

Baixa? Fiquei com uma inveja… Ainda hei­<br />

de subir a um avião… (sonhadora) Se eu um<br />

dia fosse hospedeira …<br />

35


CENA <strong>010</strong> / 19. – CHROMA­KEY / SONHO ISABEL ­ DIA 00<br />

Isabel<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

INSERT VIDEO: Imagens de hospedeiras da TAP nos anos 60. Se possível,<br />

imagens de apresentação das novas fardas das hospedeiras da TAP.<br />

Montagem da imagem de ISABEL vestida de hospedeira da TAP.<br />

Nas imagens de arquivo com hospedeiras. Isabel desce de um avião e recebe<br />

um ramo de flores.<br />

INSERT ÁUDIO: aplausos.<br />

INSERT AUDIO: (Continuação do tema da cena 18)<br />

Duo Ouro Negro em Agora Vou Ser Feliz (I want to hold your<br />

hand) de John Lennon, Paul McCartney, versão Raul Cruz<br />

(All you need is love Lisboa, EMI 2004)<br />

FUNDE C/<br />

LOCUTOR (OFF)<br />

Estas senhoras, são as hospedeiras da TAP.<br />

Elegantes, educadas e mulheres do nosso<br />

tempo, treinadas para distribuir simpatia em<br />

qualquer canto do mundo. Isabel Lopes, que<br />

vemos agora na imagem, foi distinguida pela<br />

excelência do seu serviço. A empresa<br />

recompensou­a com uma longa viagem à<br />

volta do mundo e foi recebida no aeroporto<br />

da Portela com um sofisticado ramo de<br />

gladíolos cor de salmão. Bem vinda, Isabel.<br />

Obrigado, hospedeiras da TAP.<br />

36


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 20. INT. – CASA LOPES / QUARTO ISABEL. TARDE. DIA 03<br />

Isabel, Náni<br />

(Continuação da cena <strong>010</strong> / 18)<br />

INSERT AUDIO: (Continuação do tema da cena 18)<br />

Duo Ouro Negro em Agora Vou Ser Feliz (I want to hold your<br />

hand) de John Lennon, Paul McCartney, versão Raul Cruz<br />

(All you need is love Lisboa, EMI 2004)<br />

A conversa continua.<br />

ISABEL mostra um anúncio do Diário de Notícias.<br />

NÁNI<br />

Uma coisa é sonhar, a outra é chegar lá.<br />

ISABEL<br />

Achas que eu não sou capaz de chegar a<br />

hospedeira?<br />

NÁNI<br />

Então tu não querias ir para a Universidade?<br />

ISABEL<br />

Vontade não me falta, mas tenho que ajudar<br />

em casa.<br />

NÁNI<br />

Vê lá se o teu irmão não foi para a<br />

Universidade.<br />

ISABEL<br />

Não vás por aí, Náni. O Toni é o Toni e eu<br />

sou eu. Para já, vou inscrever­me num curso<br />

de inglês. Queres ver?<br />

ISABEL (lê)<br />

“ Aprenda inglês por correspondência<br />

comodamente sentado no seu sofá. Em seis<br />

meses estará apto a viajar pelo mundo<br />

inteiro “.<br />

NÁNI<br />

Eu cá já não me lembro de nada de inglês.<br />

37


Começam as DUAS a rir.<br />

As DUAS continuam a rir.<br />

ISABEL (brinca)<br />

I speak english.<br />

NÁNI (brinca)<br />

O quê?<br />

ISABEL<br />

Eu falo inglês.<br />

NÁNI<br />

Falas, falas.<br />

ISABEL<br />

Love, love.<br />

NÁNI<br />

I love you.<br />

ISABEL<br />

Me too.<br />

NÁNI<br />

Tu, tu. Cu, cu.<br />

ISABEL<br />

Xanadu.<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

INSERT AUDIO: (Continuação do tema da cena 18); Agora com mais volume<br />

Duo Ouro Negro em Agora Vou Ser Feliz (I want to hold your<br />

hand) de John Lennon, Paul McCartney, versão Raul Cruz<br />

(All you need is love Lisboa, EMI 2004)<br />

FIM DE CENA –<br />

38


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 21. EXT. – DESCAMPADO / TERRENO ­ TARDE. DIA 03<br />

Carlos, Luís, Marinho<br />

Os TRÊS continuam a maratona, CARLOS empurra LUÍS e MÁRINHO que<br />

estão exaustos.<br />

CARLOS<br />

Vamos! Vamos! Força …<br />

LUÍS<br />

Já não posso mais.<br />

LUÍS e MÁRINHO param os dois. CARLOS pára de seguida, também está<br />

muito cansado mas disfarça.<br />

CARLOS<br />

Vá lá, malta? Ainda nos faltam quarenta<br />

quilómetros.<br />

LUÍS<br />

É pá, esta coisa do atletismo, cansa muito.<br />

MÁRINHO<br />

Pois é, pá. Porque é que não brincamos a<br />

outra coisa?<br />

LUÍS<br />

Podemos jogar às caricas.<br />

MÁRINHO<br />

Vamos jogar às caricas.<br />

CARLOS<br />

Eu já disse que isso não é um desporto.<br />

LUÍS<br />

Está bem, então não contes comigo para o<br />

desporto.<br />

MÁRINHO<br />

É melhor não contares comigo também.<br />

CARLOS vai à camioneta buscar o Manual de Atletismo.<br />

CARLOS<br />

Esperem, esperem. Tenho aqui mais<br />

desportos.<br />

39


FIM DE CENA –<br />

MÁRINHO<br />

Mais desportos?<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CARLOS<br />

Lançamento de peso … Triplo salto<br />

…flechas...<br />

LUÍS<br />

E caricas?<br />

CARLOS<br />

Isto é um manual de atletismo, não é um<br />

manual de caricas.<br />

MÁRINHO<br />

É porque eles não conhecem.<br />

LUÍS<br />

É um desporto só aqui do bairro.<br />

40


CENA <strong>010</strong> / 22. INT. – CAFÉ FANAN / BAR ­ TARDE. DIA 03<br />

Fánan, Clara, Menina Emília, António, 2 Polícias<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

INSERT AUDIO: No princípio da cena ouve­se vindo do rádio o final de Não<br />

Passes Com Ela À Minha Rua por Fernanda Maria, de Casimiro Ramos e<br />

Carlos Conde (O Melhor dos Melhores – Fernanda Maria – Movieplay – 1994) e<br />

depois passa a ouvir­se Alma de Boémio por Rui de Mascarenhas, de Tião<br />

Carreiro, Benedito Seviero (Rui de Mascarenhas – Encontro às dez – Caravela,<br />

EMI)<br />

CLARA e EMÍLIA, nos seus trajes domingueiros, tomam uma bica ao balcão.<br />

FANAN conta­lhes uma anedota.<br />

FANAN<br />

E diz o Toino para o homem do talho.: “ Ó<br />

compadre, este porco é d’hoje?“. Responde­<br />

lhe o outro. “Não é d’hoje, é doze e<br />

quinhentos.”<br />

CLARA<br />

Que engraçada, mas eu acho que já tinha<br />

ouvido.<br />

MENINA EMÍLIA<br />

Pois tinha, foi ele que nos contou o domingo<br />

passado.<br />

FANAN<br />

Então, deixem lá que eu vou arranjar uma<br />

nova para o domingo que vem.<br />

CLARA<br />

Deite­nos aqui um cheirinho que não está<br />

ninguém a ver.<br />

MENINA EMÍLIA<br />

Eu não quero obrigada.<br />

CLARA<br />

Menina Emília, não seja parva. Hoje é<br />

domingo se não nos divertimos um bocado<br />

ainda morremos estúpidas.<br />

FANAN<br />

E amanhã é 5 de Outubro.<br />

41


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

MENINA EMÍLIA<br />

Então, vá lá. Pelos republicanos.<br />

FANAN<br />

Eu não quero política no meu<br />

estabelecimento.<br />

MENINA EMÍLIA<br />

Já sei! Este homem dá­me cabo dos nervos.<br />

Que feitio.<br />

FANAN<br />

É o que há.<br />

CLARA<br />

Eu já vi pior.<br />

FANAN deita um cheirinho nas bicas das DUAS senhoras. ANTÓNIO aparece<br />

junto ao balcão que dá para a rua, traz o embrulho e tem um penso rápido na<br />

testa.<br />

ANTÓNIO<br />

Fánan.<br />

FANAN<br />

Tas bom, pá. O que foi isso?<br />

ANTÓNIO<br />

Escorreguei ao sair da banheira.<br />

FANAN<br />

Podia ser pior.<br />

ANTÓNIO<br />

O Gregório não passou por aqui?<br />

FANAN<br />

Não, ainda não o vi.<br />

ANTÓNIO<br />

Quero entregar­lhe este embrulho e não dou<br />

com ele.<br />

FANAN<br />

Ele costuma aparecer aos domingos, mas<br />

hoje …<br />

CLARA<br />

O António, está estranho, está esquisito. Ele<br />

42


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

é sempre tão simpático com as mulheres,<br />

nem nos viu.<br />

MENINA EMÍLIA<br />

Então, a dona Clara é patroa da filha e não<br />

sabe?<br />

CLARA<br />

O que é que foi?<br />

MENINA EMÍLIA<br />

Chegou ontem uma máquina de lavar lá<br />

para casa.<br />

CLARA<br />

Uma máquina de lavar?<br />

MENINA EMÍLIA<br />

Gente fina O que é que quer?– já nem falam<br />

à gente.<br />

ANTÓNIO<br />

Se o vires diz­lhe que tenho muita urgência<br />

em falar com ele.<br />

Entram DOIS POLÍCIAS, ANTÒNIO segura logo no embrulho.<br />

FANAN<br />

Claro que sim. Tu dizias que a Académica ia<br />

empatar, não era? Por tua causa, 13 já não<br />

vamos ter.<br />

ANTÓNIO<br />

Deixa lá, melhores dias virão.<br />

ANTÓNIO, olha os POLÍCIAS e afasta­se apressado. CLARA olha os DOIS<br />

POLÍCIAS, dá uma cotovelada a Emília e pisca­lhe o olho como quem aprecia<br />

o que vê. MENINA EMÍLIA faz um ar de desprezo e vira a cara.<br />

FIM DE CENA –<br />

43


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 23. INT. – CASA LOPES / COZINHA. TARDE. DIA 03<br />

Margarida, Hermínia, Dino<br />

DINO está a acabar de fazer a montagem da máquina de lavar. MÃE e FILHA<br />

assistem.<br />

HERMÍNIA<br />

Ó, Dino, tu percebes mesmo de máquinas<br />

de lavar?<br />

DINO<br />

Eu, dona Hermínia? Não sabe como é que<br />

me conhecem cá no bairro? Pelo Rei da<br />

Máquina.<br />

MARGARIDA<br />

Ele tem jeito para tudo, mãe.<br />

HERMÍNIA<br />

Se tiveres tanto jeito para as máquinas como<br />

tens para os calos, temos homem.<br />

Abençoada a rapariga que te levar.<br />

MARGARIDA<br />

Então até foi o dino que nos arranjou a<br />

máquina de costura antiga.<br />

DINO<br />

Máquinas é comigo.<br />

HERMÍNIA<br />

Estou aqui para ver.<br />

MARGARIDA<br />

É mesmo bonita a nossa máquina, não é?<br />

DINO<br />

Isto é uma categoria do melhor que há.<br />

HERMÍNIA<br />

Deve ter sido barata, deve …<br />

DINO<br />

O que é bom, não é barato.<br />

44


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

HERMÍNIA<br />

Ora, um tanque da roupa é muito mais<br />

barato.<br />

DINO<br />

E se for lavar a roupa ali ao Tejo, ainda é<br />

mais barato.<br />

MARGARIDA<br />

Isto não tem importância nenhuma agora<br />

toda agente quer ter uma máquina de lavar.<br />

DINO<br />

No futuro, vai ser tudo com máquinas vai<br />

ver.<br />

HERMÍNIA<br />

No futuro? No futuro já cá não estou.<br />

DINO<br />

Porquê? Vai sair?<br />

HERMÍNIA<br />

Vou eu e vais tu, que cá ninguém fica.<br />

DINO<br />

Os americanos agora estão a inventar uma<br />

máquina para cozinhar sem forno, nem fogo,<br />

é tudo com ondas.<br />

HERMÍNIA (espantada)<br />

Ondas?<br />

DINO<br />

Sim, D. Hermínia. Não ouviu falar das ondas<br />

da rádio?<br />

MARGARIDA<br />

Agora vamos passar a cozinhar na<br />

telefonia?<br />

DINO<br />

Estou a falar a sério.<br />

MARGARIDA<br />

Está bem, homem, nós acreditamos.<br />

DINO<br />

Vamos ligar.<br />

45


MARGARIDA<br />

Vamos.<br />

HERMÍNIA<br />

Se estiver a funcionar …<br />

DINO liga a máquina que começa a funcionar.<br />

MARGARIDA está encantada e HERMÌNIA desconfiada.<br />

MARGARIDA<br />

Olhe, mãe, olhe.<br />

HERMÍNIA<br />

O que é isto?<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

DINO<br />

É a trepidação, Isto ao principio abana<br />

sempre um bocadinho, não se preocupe.<br />

MARGARIDA (aflita)<br />

É normal?<br />

HERMÍNIA<br />

Filha, cuidado, ela está a andar. Vai atacar­<br />

nos<br />

MARGARIDA<br />

Ela está a andar. Dino, faça qualquer coisa.<br />

DINO<br />

É só por causa da trepidação, vou pôr um<br />

calço, já fica boa.<br />

DINO calça a máquina e ela fica parada. MARGARIDA está cada vez mais<br />

encantada.<br />

HERMÍNIA<br />

Eu é que tinha razão, vocês já viram algum<br />

tanque da roupa a vir assim contra as<br />

pessoas.<br />

FIM DE CENA –<br />

PASSAGEM DE TEMPO<br />

46


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 24. EXT – CASA LOPES / VARANDA COZINHA. FIM TARDE. DIA 03<br />

António, Isabel, Margarida.<br />

MARGARIDA estende roupa que o ANTÓNIO lhe vai passando. Falam baixo e<br />

misteriosamente.<br />

MARGARIDA<br />

Telefonaste?<br />

ANTÓNIO<br />

Ninguém atende.<br />

MARGARIDA<br />

Porque é que não voltas lá?<br />

ANTÓNIO<br />

Porque já lá fui e bati com o nariz na porta<br />

MARGARIDA<br />

Onde é que puseste o embrulho?<br />

ANTÓNIO<br />

No autoclismo. É o sítio mais seguro.<br />

MARGARIDA<br />

Pois...<br />

ISABEL entra na varanda com o embrulho.<br />

ISABEL<br />

Quem é que pôs isto no autoclismo?<br />

MARGARIDA<br />

O pai.<br />

ANTÓNIO<br />

A mãe.<br />

MARGARIDA<br />

Deve ter sido a avó.<br />

ISABEL<br />

A avó? A avó subiu à retrete e pôs isto<br />

dentro do autoclismo.<br />

ANTÓNIO<br />

Não sei.<br />

ISABEL<br />

Mas o que é isto?<br />

47


ISABEL põe o embrulho no chão e sai da varanda.<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

MARGARIDA (aflita)<br />

É uma coisa do pai que ele pensava ter<br />

dado à avó. Não é?<br />

ISABEL<br />

Não estou a perceber nada. Passa­se<br />

alguma coisa?<br />

ANTÓNIO<br />

O que é que havia de passar­se?<br />

MARGARIDA<br />

Está tudo bem. Põe aí o embrulho e tu dá­<br />

me a roupa.<br />

ISABEL<br />

Não percebo nada, mas está bem. Vocês lá<br />

sabem.<br />

ANTÓNIO (de novo misterioso)<br />

Achas que ela viu o que estava lá dentro?<br />

MARGARIDA<br />

Não, se não tinha dito.<br />

ANTÓNIO<br />

Claro.<br />

MARGARIDA<br />

E agora?<br />

ANTÓNIO<br />

Vou voltar a pô­lo dentro do autoclismo e ter<br />

uma ideia melhor.<br />

MARGARIDA<br />

Vai já, que ela deve estar no quarto.<br />

ANTÓNIO aperta o embrulho nos braços e em bicos de pés entra na cozinha.<br />

MARGARIDA olha em volta a fingir um ar distraído e continua a estender a<br />

roupa.<br />

FIM DE CENA –<br />

48


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 25. EXT – DESCAMPADO / TERRENO – FIM DE TARDE. DIA 03<br />

Marinho, Carlos, Luís<br />

Os TRÊS rapazes estão a vestir as camisas e as camisolas.<br />

CARLOS<br />

E agora, o que é que fazemos?<br />

MÁRINHO<br />

Eu vou para casa.<br />

LUÍS<br />

Eu também. Estou cansado.<br />

CARLOS (sério)<br />

Mas ainda nos faltam tantos desportos …<br />

MÁRINHO<br />

Amanhã. Amanhã é feriado, temos tempo.<br />

LUÍS<br />

Já me doem os pés.<br />

CARLOS<br />

Ainda nos falta o martelo e o salto em altura.<br />

LUÍS<br />

Amanhã. Amanhã, tá bem?<br />

MÁRINHO<br />

Amanhã jogamos caricas e depois logo de<br />

vê.<br />

CARLOS<br />

Caricas? Mas as caricas …<br />

MÁRINHO<br />

Até amanhã, Carlos.<br />

LUÍS<br />

Adeus.<br />

MÁRINHO e LUÍS viram costas e dirigem­se a casa.<br />

FIM DE CENA –<br />

PASSAGEM DE TEMPO<br />

CARLOS<br />

Grandes desportistas …<br />

49


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 26. INT. – CASA LOPES / QUARTO ISABEL. NOITE. DIA 03<br />

Isabel, Margarida<br />

ISABEL, em camisa de dormir, está sentada a ler na Flama um artigo sobre<br />

hospedeiras. Batem à porta.<br />

INSERT AUDIO: Olhando para o Céu por Daniel Bacelar, de Daniel Bacelar<br />

(Biografia do Pop/Rock, Movieplay portuguesa, 1997)<br />

ISABEL<br />

Entre.<br />

MARGARIDA<br />

Estás a ler?<br />

ISABEL<br />

Nada, estou a ouvir música e a ler a ver se<br />

me vem o sono.<br />

MARGARIDA<br />

Eu pensava que tu estavas chateada com o<br />

Rui Jorge, mas já percebi que não … Estive<br />

a falar com o Toni...<br />

ISABEL<br />

Não, mãe, é nada. Não sei o que é que ele<br />

lhe disse.<br />

MARGARIDA<br />

Tu tens pena de não teres estudado mais?<br />

Nós pensámos que tu querias ir trabalhar.<br />

ISABEL<br />

Ninguém me perguntou.<br />

MARGARIDA<br />

Pois não, eu pensava que tu …<br />

ISABEL<br />

Pensava que eu queria casar­me nova,<br />

como fazem todas as mulheres.<br />

MARGARIDA<br />

Na verdade …<br />

ISABEL<br />

Era o normal.<br />

50


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

MARGARIDA<br />

Foi o que eu fiz, o que fez a tua avó.<br />

ISABEL<br />

A mim também já me pareceu normal.<br />

MARGARIDA<br />

E agora já não achas?<br />

ISABEL<br />

Não. Agora, gostava de fazer outras coisas,<br />

mas também não sei o quê.<br />

MARGARIDAS<br />

Mas se tu não sabes o que queres fazer …<br />

ISABEL<br />

Gostava de viajar.<br />

MARGARIDA<br />

Viajar? Mas isso não é modo de vida.<br />

ISABEL<br />

Gostava de ser hospedeira.<br />

MARGARIDA<br />

Hospedeira?<br />

ISABEL (entusiasmada)<br />

Sim. Vou inscrever­me num curso de inglês<br />

por correspondência, para não ter que deixar<br />

o cabeleireiro.<br />

MARGARIDA<br />

Vai, filha, … Se é isso que te faz feliz.<br />

ISABEL<br />

E a mãe gostava de ter uma filha<br />

hospedeira?<br />

MARGARIDA<br />

Adorava. Um filho advogado e uma filha<br />

hospedeira, o que é que eu posso pedir<br />

mais?<br />

ISABEL<br />

Que o Carlos seja Ministro!<br />

Sorriem as DUAS e MARGARIDA baixa­se para beijar a filha.<br />

51


FIM DE CENA –<br />

ISABEL<br />

E o embrulho?<br />

MARGARIDA (a disfarçar)<br />

Qual embrulho?<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

ISABEL<br />

Aquele que a avó guardou no autoclismo.<br />

MARGARIDA<br />

Isso são coisas do teu pai. Dorme bem.<br />

ISABEL<br />

Até amanhã.<br />

52


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 27. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES. NOITE. DIA 03<br />

Carlos, Toni, António<br />

TONI põe um disco e dirige­se para a cama, CARLOS, sentado em cima da<br />

sua cama, segue o irmão com os olhos<br />

INSERT AUDIO: Os teus Olhos Senhora pelos Charruas de João Magalhães,<br />

João Baptista. (Biografia do Pop/Rock, Movieplay Portuguesa, 1997)<br />

ANTÓNIO entre abre a porta.<br />

ANTÓNIO pisca o olho a TONI e sai.<br />

CARLOS<br />

Vá lá, porque é que não dizes?<br />

TONI<br />

Porque é que não digo o quê?<br />

CARLOS<br />

Porque é que não me dizes o que dizer<br />

“Abaixo a Ditadura “?<br />

TONI<br />

Não é nada que te interesse.<br />

CARLOS<br />

Como é que tu sabes o que é que me<br />

interessa?<br />

TONI<br />

Aquilo são coisas que o pai trouxe da<br />

tipografia, são coisas do trabalho dele. Não<br />

têm nada a ver connosco.<br />

CARLOS<br />

Estás a mentir.<br />

TONI<br />

Dorme.<br />

ANTÓNIO<br />

Não são horas de pôr esta música.<br />

TONI<br />

Vou já.<br />

CARLOS<br />

Onde é que vais?<br />

53


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

TONI<br />

Não vou a lado nenhum, dorme.<br />

CARLOS<br />

Ninguém quer saber de mim.<br />

TONI sai do quarto. CARLOS corre a consultar o dicionário.<br />

CARLOS encolhe os ombros e fecha o dicionário.<br />

FIM DE CENA –<br />

NARRADOR(OFF)<br />

Tive de procurar a ditadura no dicionário<br />

mas não percebi nada do que li. O atletismo<br />

preocupava­me mais do que a ditadura, mas<br />

fiquei com a leve impressão de que o meu<br />

pai se tinha metido num enorme sarilho.<br />

CARLOS (lê o dicionário)<br />

“Ditadura. Concentração dos poderes do<br />

Estado numa só pessoa, num partido único,<br />

num grupo ou numa classe que o exerce<br />

com autoridade absoluta.”<br />

54


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 28. INT. – CASA LOPES / COZINHA. NOITE. DIA 03<br />

António, Toni, Margarida<br />

ANTÓNIO veste a gabardina e tenta esconder o embrulho dos panfletos no<br />

corpo. MARGARIDA e TONI estão com ele.<br />

MARGARIDA (preocupada)<br />

António, por favor, tu não me voltes para<br />

casa com o embrulho.<br />

ANTÓNIO<br />

Não te preocupes.<br />

ANTÓNIO dá um beijo à mulher e vai para sair.<br />

TONI<br />

Porque é que não os queimamos?<br />

MARGARIDA<br />

Boa ideia<br />

ANTÓNIO<br />

Não, Guida. São muitos papéis e esta tinta<br />

cheira muito mal. O que é que tu queres,<br />

atrair os bombeiros, já nos basta os polícias.<br />

MARGARIDA<br />

Tens razão. Eu vou contigo.<br />

TONI<br />

Eu é que vou!<br />

ANTÓNIO<br />

Não. Não vem ninguém comigo. Estão a ver<br />

o que era apanharem­me a mim, aos<br />

panfletos e a um universitário? Eu não<br />

demoro.<br />

MARGARIDA<br />

Tem cuidado, António.<br />

ANTÓNIO dirige­se à porta da rua, benze­se e sai.<br />

MARGARIDA e TONI acompanham­no à porta e depois correm para a<br />

varanda.<br />

FIM DE CENA –<br />

55


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 29. EXT. – PRÉDIO LOPES / VARANDA SALA ­ NOITE. DIA 03<br />

António, Margarida, Toni<br />

MARGARIDA e TONI na varanda, profundamente preocupados, seguem<br />

ANTÓNIO com o olhar.<br />

INSERT ÁUDIO: Tema musical de 007 – James Bond<br />

CORTA PARA –<br />

56


CENA <strong>010</strong> / 29 A. EXT. – RUA LOPES / RUA ­ NOITE. DIA 03<br />

António<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

ANTÓNIO com a gola da gabardina levantado e ar de suspeito, segue rápido e<br />

colado às paredes.<br />

INSERT ÁUDIO: Tema musical de 007 – James Bond<br />

CORTA PARA –<br />

57


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 30. EXT. – DESCAMPADO / TERRENO – NOITE. DIA 03<br />

António, Polícia 1, Polícia 2<br />

À luz da Lua, ANTÓNIO aproxima­se de um pequeno arbusto, tira o embrulho<br />

do peito, ajoelha­se e tenta pegar­lhe fogo com um isqueiro. Depois de<br />

algumas tentativas, o embrulho pega finalmente fogo. ANTÓNIO é desperto da<br />

sua acção pelo som de passos e vozes e pela luz de uma lanterna.<br />

POLÍCIA 1 (na penumbra)<br />

Quem anda aí? O que é que está a fazer?<br />

Identifique­se!<br />

ANTÓNIO agarra no embrulho a arder, apaga o fogo com as mãos e sai a<br />

correr.<br />

POLÍCIA 1 (off)<br />

Pare ou atiro.<br />

ANTÓNIO continua a correr. Ouve­se um tiro.<br />

INSERT ÁUDIO: um tiro.<br />

ANTÓNIO atira­se ao chão. Uma bala passa perto dele. ANTÓNIO levanta­se<br />

e continua a correr. Ouve­se outro disparo.<br />

INSERT ÁUDIO: um tiro.<br />

FIM DE CENA –<br />

58


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 31 ­ EXT. – PRÉDIO LOPES / VARANDA SALA­ NOITE. DIA 03<br />

Margarida, Toni<br />

Na varanda, TONI e MARGARIDA ficam sobressaltados ao ouvir os tiros.<br />

Aflita, MARGARIDA abraça­se ao FILHO.<br />

CORTA PARA –<br />

MARGARIDA (em voz baixa)<br />

Que foi isto, filho? Dois tiros, ouviste?<br />

MARGARIDA<br />

O que é que fazemos?<br />

TONI (decidido)<br />

Eu vou buscá­lo.<br />

MARGARIDA<br />

Não! Tu não sais daqui. Ai, meu rico,<br />

Santantoninho!<br />

TONI<br />

Olhe. O pai.<br />

59


CENA <strong>010</strong> / 31 A. EXT. – RUA LOPES / RUA – NOITE. DIA 03<br />

António, Fánan, Margarida, Toni<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

ANTÓNIO aparece a correr a uma esquina, assustado, a olhar para todo o<br />

lado.<br />

MARGARIDA (da varanda em voz baixa)<br />

António! Antóóóóónio! Estás bem?<br />

ANTÓNIO, muito nervoso, olha para a janela e faz gestos para que se calem e<br />

entrem em casa, mas MARGARIDA e TONI não saem da varanda<br />

MARGARIDA (da varanda em voz baixa)<br />

Estás bem?<br />

ANTÓNIO (em voz baixa)<br />

Não aconteceu nada. Cala­te.<br />

TONI (em voz baixa para o pai)<br />

Pai. O caixote do lixo.<br />

ANTÓNIO olha e vê um grande caixote do lixo, onde se acumula o lixo do<br />

bairro – como é véspera de feriado não houve recolha.<br />

ANTÓNIO<br />

Vão para dentro.<br />

ANTÓNIO aproxima­se do caixote e começa a tirar as coisas de cima para o<br />

chão, para arranjar espaço para o embrulho bem escondido dentro do caixote.<br />

FANAN aparece à esquina, só MARGARIDA e TONI o vêem.<br />

FANAN<br />

É, tu aí. Pára!<br />

Sobressaltado, ANTÓNIO, atira o embrulho para o chão e levanta os braços<br />

em sinal de rendição. Vira­se e fica boquiaberto ao ver FANAN.<br />

MARGARIDA e TONI assistem da varanda sem serem vistos.<br />

ANTÓNIO<br />

É pá...<br />

FANAN<br />

Ah, és tu. O que é que estás a fazer aqui? A<br />

espalhar o lixo?<br />

ANTÓNIO (mente atrapalhado)<br />

Perdi cinco coroas, não sei onde é que<br />

caíram.<br />

60


Os DOIS recolhem o lixo.<br />

MARGARIDA e TONI sorriem, na varanda.<br />

Desaparecem os DOIS ao virar da esquina.<br />

FIM DE CENA –<br />

PASSAGEM DE TEMPO<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

FANAN<br />

Tem juízo. Ajuda­me a pôr esta porcaria<br />

dentro do caixote. E depois querem que o<br />

país melhore – olha só a merda que fizeste<br />

por causa de cinco coroas.<br />

ANTÓNIO<br />

Tens razão, que se lixem as cinco coroas.<br />

FANAN<br />

Isto nem parece teu. Isto não é o embrulho<br />

do Gregório?<br />

ANTÓNIO<br />

Não. Isto são papéis meus, trouxe­os da<br />

tipografia. Bom, até amanhã, tenho de ir.<br />

FANAN<br />

Não vais a lado nenhum. Não vais a lado<br />

nenhum, sem tomares um copo comigo.<br />

Amanhã é 5 de Outubro, não vais trabalhar.<br />

ANTÓNIO<br />

Mas tenho a minha mulher à espera.<br />

FANAN<br />

As mulheres gostam de esperar. Vens tomar<br />

um copito comigo.<br />

ANTÓNIO<br />

Vamos aí ao café?<br />

FANAN<br />

Já fechou e eu não bebo em minha casa.<br />

Vamos ali ao Barata que ainda tem luz.<br />

61


CENA <strong>010</strong> / 32. EXT. – RUA LOPES / RUA. NOITE. DIA 03<br />

António, Guarda­Nocturno, Margarida e Toni<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

MARGARIDA e TONI continuam na varanda a aguardar ansiosamente o<br />

regresso de ANTÓNIO.<br />

MARGARIDA<br />

Por onde é que andará o teu pai? Ainda por<br />

cima com aqueles papéis debaixo do<br />

braço…<br />

TONI<br />

Foi só beber um copo, vem já.<br />

MARGARIDA<br />

Ainda mais com o Fánan... nunca bebe, mas<br />

quando bebe é o que se sabe.<br />

TONI<br />

Olhe, mãe, lá vem ele.<br />

ANTÓNIO regressa muito apressado, passa pelo marco do correio e pára<br />

como se tivesse tido uma ideia<br />

TONI<br />

O correio, claro!<br />

ANTÓNIO vai a pôr os primeiros panfletos no marco do correio, mas fica<br />

paralisado ao ouvir um grito.<br />

GUARDA­NOCTURNO (off)<br />

Quieto aí.<br />

ANTÓNIO, rapidamente, volta a esconder o embrulho debaixo da gabardina. O<br />

GUARDA­NOCTURNO aproxima­se e fica surpreendido quando reconhece<br />

ANTÓNIO.<br />

GUARDA­NOCTURNO<br />

É você, sôr António?<br />

O GUARDA­NOCTURNO dá um suspiro de alívio.<br />

ANTÓNIO<br />

Quem é que havia de ser, senhor Bento?<br />

GUARDA­NOCTURNO<br />

Que susto que me pregou.<br />

ANTÓNIO<br />

E você a mim.<br />

62


INSERT ÁUDIO: Ouvem­se palmas.<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

GUARDA­NOCTURNO<br />

Desculpe, mas anda para aí um maluco com<br />

a mania de pegar fogo às cartas que estão<br />

nos marcos.<br />

GUARDA­NOCTURNO<br />

Pronto, já me estão a chamar.<br />

ANTÓNIO<br />

Se calhar é o maluco que anda a pegar fogo<br />

às cartas.<br />

O GUARDA­NOCTURNO sai apressado, ANTÓNIO respira fundo, olha para a<br />

varanda e sorri a MARGARIDA e a TONI:<br />

FIM DE CENA –<br />

63


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 33. INT. – CASA LOPES / QUARTO RAPAZES. NOITE. DIA 03<br />

Carlos<br />

CARLOS dá voltas na cama como se estivesse a ter um pesadelo.<br />

FIM DE CENA –<br />

PASSAGEM DE TEMPO<br />

NARRADOR (OFF)<br />

Lembro­me que nessa noite tive um sonho<br />

horrível: o meu pai corria pela rua abaixo a<br />

gritar “Abaixo a Ditadura “ e o Fánan, o<br />

Guarda­nocturno e outros vizinhos corriam<br />

atrás dele aos gritos. E rapidamente fiquei a<br />

saber o que era a ditadura, porque nessa<br />

mesma semana, quando me fui confessar,<br />

perguntei qual era o seu significado ao padre<br />

Antunes e ele mandou­me rezar três Ave<br />

Marias como penitência.<br />

64


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 34. EXT. – DESCAMPADO / CAMIÃO – MANHÃ. DIA 04<br />

Carlos, Marinho, Luís,<br />

Os TRÊS amigos conversam junto à camioneta. CARLOS continua com o seu<br />

manual.<br />

MÁRINHO<br />

Não nos estás a enganar? De certeza que<br />

não temos de correr?<br />

Começam os TRÊS a despir­se.<br />

FIM DE CENA –<br />

CARLOS<br />

Já disse que não.<br />

LUÍS<br />

Nem saltar?<br />

MÁRINHO<br />

Nem temos que atirar nada ao ar?<br />

CARLOS<br />

Nada. Já lhes disse mil vezes, é o mais fácil<br />

que há no atletismo.<br />

MÁRINHO<br />

E podemos ganhar?<br />

CARLOS<br />

Há sempre um vencedor.<br />

MÁRINHO<br />

E porque é que temos de tirar a camisola e a<br />

camisa?<br />

CARLOS<br />

Temos que fazer algum sacrifício.<br />

65


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 35. INT. – CHROMA­KEY / SALA DE TORTURA. DIA 00<br />

António, Pide 1, Pide 2<br />

ANTÓNIO, com a camisa aberta e cara coberta de equimoses, está atado a<br />

uma cadeira e iluminado por um candeeiro. É esbofeteado por um PIDE.<br />

FIM DE CENA –<br />

PIDE 1<br />

Falas ou não falas? … Quem é que te deu<br />

os panfletos? … A que organização estás<br />

ligado? … És comunista? … Fala!<br />

66


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 36. INT. – CASA LOPES / QUARTO CASAL. MANHÃ. DIA 04<br />

António, Margarida<br />

ANTÓNIO está a ter um pesadelo muito agitado. MARGARIDA, já vestida, dá­<br />

lhe umas pequenas palmadas na cara a tentar acordá­lo.<br />

FIM DE CENA –<br />

PASSAGEM DE TEMPO<br />

ANTÓNIO<br />

Não sei, não sei. Não me bata mais!<br />

MARGARIDA<br />

António! Querido, acorda!<br />

MARGARIDA<br />

Sou eu, a Guida. Acorda!<br />

ANTÓNIO (acorda)<br />

O quê? O quê? … Onde é que está o<br />

pacote?<br />

MARGARIDA<br />

Não te preocupes. Escondi­o debaixo da<br />

nossa cama, aqui ninguém mexe.<br />

ANTÓNIO<br />

Vou levantar­me e vou a casa do Gregório.<br />

MARGARIDA<br />

Vai, filho, vai. Com que é que estavas a<br />

sonhar?<br />

ANTÓNIO<br />

Estava a sonhar que tinha sido apanhado<br />

pela Pide.<br />

MARGARIDA (leva a mão à boca)<br />

Não me digas uma coisa dessas.<br />

67


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 37. INT. – CAFÉ DO FANAN / BAR. TARDE. DIA 04<br />

Fánan, Padre Antunes, Camões, António, Toni, Clara, Menina Emília, Dois<br />

clientes<br />

PADRE ANTUNES e CAMÕES estão sentados a uma mesa, falam como se<br />

conspirassem, CAMÕES traz um fato domingueiro. DOIS CLIENTES ao<br />

balcão. CLARA e MENINA EMÍLIA também ao balcão mas do lado da rua –<br />

bebem duas laranjadas. FANAN está dentro do balcão.<br />

INSERT ÁUDIO: Na rádio ouve­se: 1º ­ Fado Errado por Maria da Fé, de<br />

Frederico de Brito (Maria da Fé, Até Que a Voz Me Doa, Movieplay<br />

Portuguesa, 1991: 2º ­ ­ Colchetes de Oiro por Frei Hermano da Câmara de<br />

Henrique Rêgo e Hermano da Câmara (Biografia do Fado, EMI)<br />

PADRE ANTUNES<br />

Pare de blasfemar, Camões.<br />

CAMÕES<br />

Quer que repita, senhor Padre Antunes? O<br />

dia mais feliz da minha vida foi o 5 de<br />

Outubro de 1910.<br />

PADRE ANTUNES<br />

Você está louco, completamente louco.<br />

Quero ver onde é que você se vai esconder<br />

quando regressar a Monarquia.<br />

CAMÕES<br />

E eu é que estou louco?<br />

MENINA EMÍLIA<br />

Dois miúdos bêbedos.<br />

CLARA<br />

Porque é que estarão a falar baixo?<br />

MENINA EMÍLIA<br />

Coisas de homens, porcarias. Só pensam<br />

nisso.<br />

FANAN<br />

Mais duas imperiais e um pratinho de<br />

batatas fritas por conta da casa.<br />

PADRE ANTUNES<br />

O senhor Camões paga a cerveja.<br />

CAMÕES<br />

Porque carga de água?<br />

68


CLARA finge que fica amuada.<br />

Entram ANTÓNIO e TONI.<br />

CORTA PARA ­<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

PADRE ANTUNES<br />

Porque eu sou o seu pároco e estou a dar­<br />

lhe uma penitência.<br />

FANAN<br />

Ámen!<br />

CLARA<br />

Só a mim é que ninguém paga nada.<br />

MENINA EMÍLIA<br />

Porque a dona Clara não quer …<br />

CLARA<br />

O que é que isso quer dizer?<br />

MENINA EMÍLIA<br />

Quer dizer que o meu ofício me obriga a<br />

estar o dia todo à janela e às vezes vejo o<br />

que quero e o que não quero.<br />

ANTÓNIO<br />

Boa tarde.<br />

CAMÕES<br />

Boa tarde.<br />

69


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 38. INT. – CASA LOPES / COZINHA. TARDE. DIA 04<br />

Hermínia, Margarida<br />

MARGARIDA, acocorada junto à máquina, retira a roupa lavada para dentro de<br />

um alguidar. HERMÍNIA de pé, com um cesto de roupa suja nos braços,<br />

observa a filha.<br />

HERMÍNIA<br />

Podes dizer o que quiseres, mas a mim não<br />

me convences. Não há que chegue ao<br />

sabão e as estas mãos que já lavavam<br />

roupa antes de tu nasceres.<br />

MARGARIDA segura uma camisa acabada de tirar da máquina, levanta­se,<br />

ergue a camisa e observa­a à luz do sol.<br />

HERMÍNIA<br />

Deixa ver.<br />

HERMÍNIA tira a camisa das mãos da filha e observa­a melhor.<br />

CORTA PARA ­<br />

HERMÍNIA<br />

Tu juras que não a lavaste antes à mão?<br />

MARGARIDA<br />

Então, a mãe, não me viu pôr a roupa na<br />

máquina?<br />

HERMÍNIA<br />

Vi …<br />

MARGARIDA<br />

O que é que me diz?<br />

HERMÍNIA<br />

Não digo nada, não tenho nada para dizer.<br />

70


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 37A. INT. – CAFÉ DO FANAN / BAR. TARDE. DIA 04<br />

Fánan, Padre Antunes, Camões, António, Toni, Clara, Menina Emília, Dois<br />

clientes<br />

FANAN serve os martinis.<br />

PADRE ANTUNES (para Toni)<br />

Já te devem ter dado todos os conselhos. Eu<br />

só te quero dizer uma coisa: cuidado com os<br />

niilistas.<br />

TONI<br />

Como, senhor Padre Antunes?<br />

PADRE ANTUNES<br />

Então, és quase doutor e não sabes o que é<br />

o niilismo?<br />

CAMÕES<br />

Deve ter a ver com os reis.<br />

PADRE ANTUNES<br />

Não, seu ignorante republicano. O niilismo é<br />

a doutrina que nega a existência de qualquer<br />

ente superior ao homem.<br />

TONI<br />

Estou a ver.<br />

PADRE ANTUNES<br />

As universidades estão cheias de<br />

descrentes.<br />

FANAN<br />

O senhor padre, desculpe­me, mas a mim<br />

parece­me que o lugar dos crentes não é<br />

nas universidades, é nas igrejas.<br />

MENINA EMÍLIA<br />

Olhe­me a camisa do Toni.<br />

CLARA<br />

O que é que tem?<br />

MENINA EMÍLIA<br />

Está branca, branca como a neve – já deve<br />

ter sido lavada à máquina.<br />

71


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CLARA<br />

Que inveja. Se eu tivesse uma máquina de<br />

lavar já tinha arranjado marido.<br />

INSERT AUDIO: Continua a música iniciada no princípio da cena, agora com<br />

mais volume.<br />

FIM DE CENA –<br />

72


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 38. INT. – CASA LOPES / COZINHA. TARDE. DIA 04<br />

Hermínia, Margarida<br />

MARGARIDA, acocorada junto à máquina, retira a roupa lavada para dentro de<br />

um alguidar. HERMÍNIA de pé, com um cesto de roupa suja nos braços,<br />

observa a filha.<br />

HERMÍNIA<br />

Vou já. Será que é verdade o que disse<br />

aquela rapariga?<br />

MARGARIDA<br />

Qual rapariga?<br />

HERMÍNIA<br />

A da televisão … Disse que na máquina a<br />

roupa fica mais branca.<br />

MARGARIDA está agora de pé, junto à mesa, dobra a roupa e observa a mãe<br />

embevecida. HERMÍNIA começa a pôr roupa na máquina.<br />

Ficam as DUAS a sorrir para a máquina.<br />

FIM DE CENA –<br />

MARGARIDA<br />

O que é que está a fazer?<br />

HERMÍNIA<br />

Estou a fazer uma experiência. Como é que<br />

isto se liga?<br />

MARGARIDA<br />

Espere... Fecha aqui a máquina, aqui põe­se<br />

o detergente, depois fecha porta e carrega<br />

aqui.<br />

HERMÍNIA<br />

Está descansada que eu não tenciono<br />

mexer­lhe.<br />

73


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 39. EXT. – DESCAMPADO / TERRENO. TARDE. DIA 04<br />

Carlos, Luís, Marinho<br />

Os TRÊS andam em fila pelo descampado. CARLOS pára para fazer<br />

correcções.<br />

CARLOS<br />

Não, pá, não é assim.<br />

LUÍS<br />

Não disseste que era para andar depressa?<br />

CARLOS<br />

Mas era como na televisão. Assim!<br />

LUÍS e MÁRINHO esforçam­se por imitar o movimento convicto de CARLOS.<br />

INSERT ÁUDIO: Valsa do Vaqueiro por Duo Ouro Negro a partir de 1 minuto e<br />

50 segundos (O Melhor de Duo ouro Negro, EMI Valentim de Carvalho )<br />

FIM DE CENA –<br />

74


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 40. INT. – CAFÉ FANAN / BAR – TARDE. DIA 04<br />

Fánan, Padre Antunes, Camões, António, Toni, Clara, Emília, Dois clientes,<br />

Carlos, Luís, Marinho.<br />

INSERT ÁUDIO: ouve­se vindo do rádio: Tarde Triste No Campo Pequeno por<br />

Lenita Gentil de Resende Dias, José Guimarães. (Lenita Gentil, O Melhor Dos<br />

Melhores, Movieplay Portuguesa, 1994)<br />

FANAN<br />

Meus senhores já sabem que aqui são<br />

proibidas as tertúlias políticas. Então, senhor<br />

Padre?<br />

CARLOS, MÁRINHO e LUÍS entram a marchar, dão a volta à mesa dos<br />

QUATRO.<br />

Os TRÊS amigos param.<br />

ANTÓNIO<br />

Carlos! Carlos, chega aqui. O que é que<br />

vocês estão a fazer?<br />

CARLOS<br />

Estamos a fazer uma corrida.<br />

ANTÓNIO<br />

Uma corrida?<br />

LUÍS<br />

Uma corrida de Marcha.<br />

MÁRINHO<br />

Adeus.<br />

CARLOS<br />

Vamos que ainda faltam 15 quilómetros.<br />

ANTÓNIO<br />

Quantos?<br />

CARLOS<br />

Quinze quilómetros.<br />

LUÍS<br />

Tanto? Tu disseste que era um passeio.<br />

MÁRINHO<br />

Adeus.<br />

Os TRÊS amigos continuam a marcha, perante as gargalhadas dos presentes.<br />

75


FIM DE CENA –<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

ANTÓNIO<br />

Vistam as camisolas ainda apanham uma<br />

pneumonia.<br />

76


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 41. INT. – CASA LOPES / COZINHA. FIM DE TARDE ­ DIA 04<br />

Hermínia, Margarida<br />

MARGARIA descasca cebolas na mesa da cozinha. Hermínia está sentada<br />

num banco frente à máquina de lavar, segue os seus movimentos.<br />

A máquina pára de rolar.<br />

MARGARIDA<br />

Ó mãe, largue a máquina e ajude­me com o<br />

jantar.<br />

HERMÍNIA<br />

É só mais um bocadinho, já está a acabar.<br />

MARGARIDA<br />

A Máquina trabalha sozinha, não precisa de<br />

companhia.<br />

HERMÍNA<br />

Isto é o maior invento do mundo. Foi uma<br />

bênção que nos caiu em cima.<br />

HERMÍNIA<br />

Já está.<br />

HERMÍNIA tira peça a peça, adira­a e mostra­a a MARGARIDA.<br />

HERMÍNIA<br />

Olha que maravilha. Que limpeza … E<br />

cheira tão bem … como é que eu consegui<br />

viver tantos anos sem uma máquina de<br />

lavar.<br />

MARGARIDA chora por causa das cebolas e ri por causa da MÃE.<br />

FIM DE CENA –<br />

77


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 42. EXT. – DESCAMPADO / CAMIÃO ­ FIM DE TARDE. DIA 04<br />

Carlos, Marinho, Luís<br />

Os TRÊS chegam à camioneta quase sem conseguirem andar.<br />

MÁRINHO<br />

Andar custa muito mais que correr.<br />

LUÍS<br />

E é muito mais chato.<br />

Começam a vestir as camisas e as camisolas.<br />

CARLOS<br />

E as pessoas riam­se todas quando nos<br />

viam passar.<br />

LUÍS<br />

Nunca mais na vida vou andar, nem correr.<br />

CARLOS<br />

Também já estou farto do atletismo.<br />

CARLOS tira um saco da camioneta e despeja dele um monte de caricas no<br />

chão.<br />

CARLOS<br />

Só há uma coisa a fazer.<br />

LUÍS<br />

Mas tu não disseste que as caricas não<br />

eram um desporto olímpico?<br />

CARLOS<br />

Agora vi na televisão que em todas as<br />

Olimpíadas aceitam desportos novos.<br />

MÁRINHO<br />

Ainda bem.<br />

CARLOS<br />

Ainda bem.<br />

Começam a jogar com grande entusiasmo às caricas.<br />

FIM DE CENA –<br />

PASSAGEM DE TEMPO<br />

78


CENA <strong>010</strong> / 43. INT. – CASA LOPES / SALA. NOITE. DIA 04<br />

António, Toni, Margarida<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

Já é tarde, o resto da família está a dormir. ANTÓNIO, TONI e MARGARIDA<br />

estão sentados nos sofás, o PAI tem o embrulho nos braços.<br />

ANTÓNIO<br />

Espero que amanhã o Gregório vá trabalhar.<br />

MARGARIDA<br />

Tomara que este embrulho saia daqui<br />

rapidamente.<br />

INSERT ÁUDIO: Ouve­se uma sirene de polícia a aproximar.<br />

A cara dos TRÊS é de puro pânico e medo – dão­se as mãos… A sirene<br />

afasta­se.<br />

TONI<br />

Afastou­se.<br />

TONI sai contrariado.<br />

ANTÓNIO<br />

Estou farto disto.<br />

MARGARIDA<br />

Tenho muito medo.<br />

TONI<br />

E se a polícia volta?<br />

ANTÓNIO<br />

Toni, cama.<br />

TONI<br />

Ó, pai …<br />

ANTÓNIO<br />

Cama, amanhã há universidade.<br />

TONI<br />

Até amanhã.<br />

MARGARIDA<br />

Adeus, filho.<br />

ANTÓNIO<br />

Dorme bem.<br />

79


FIM DE CENA –<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

MARGARIDA<br />

Meteu­nos numa rica alhada o teu amigo<br />

Gregório.<br />

ANTÓNIO<br />

Lá teria as suas razões.<br />

MARGARIDA<br />

O quê?<br />

ANTÓNIO<br />

Acalma­te, eu só estou a dizer que a vida<br />

que agente leva, não é fácil. Às vezes<br />

apetece bater o pé.<br />

MARGARIDA<br />

Por favor, António …<br />

ANTÓNIO<br />

O meu pai tinha razão.<br />

MARGARIDA<br />

E vê lá como é que acabou … Desculpa,<br />

António, não queria dizer isso, estou muito<br />

enervada.<br />

ANTÓNIO<br />

Ainda era um puto mas lembro­me<br />

perfeitamente do que ele dizia: “As coisas<br />

vão ter de mudar, vão ter de mudar …”<br />

MARGARIDA<br />

Isso foi há muito tempo. Agora as coisas<br />

estão diferentes.<br />

ANTÓNIO<br />

Não Guida, não estão. Não mudou nada.<br />

MARGARIDA<br />

Não?<br />

ANTÓNIO<br />

Não.<br />

80


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 44. INT. – CASA LOPES / QUARTO CASAL. NOITE. DIA 04<br />

António, Margarida<br />

ANTÓNIO e MARGARIDA, já de pijama e camisa de noite, olham para o<br />

embrulho que está em cima da cama.<br />

MARGARIDA<br />

Vamos dormir aqui com isto? Não vou<br />

conseguir pregar olho.<br />

ANTÓNIO<br />

Queres que eu vá outra vez para a rua com<br />

isto debaixo do braço?<br />

MARGARIDA<br />

Não. Com certeza que não …<br />

ANTÓNIO<br />

Também não sei como é que vou conseguir<br />

dormir com isto debaixo da cama.<br />

MARGARIDA<br />

Então o que é que fazemos?<br />

ANTÓNIO<br />

Se eu soubesse …<br />

MARGARIDA<br />

Já sei! Já sei! O terraço. Vamos pôr isto no<br />

terraço.<br />

ANTÓNIO<br />

A esta hora?<br />

MARGARIDA<br />

A esta hora é que é bom. Está tudo a dormir.<br />

ANTÓNIO<br />

Vamos!<br />

Rapidamente, ANTÓNIO enfia um fato por cima do pijama e MARGARIDA<br />

veste um robe. Saem apressados com o embrulho.<br />

FIM DE CENA –<br />

81


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 45. EXT. – PRÉDIO LOPES / TERRAÇO ­ NOITE. DIA 04<br />

António e Margarida<br />

ANTÓNIO e MARGARIDA entram muito cuidadosamente no terraço, está lua<br />

cheia, olham para todos os lados, colocam o embrulho ao lado da chaminé.<br />

MARGARIDA dá um beijo rápido a ANTÓNIO, dão as mãos e saem rápidos e<br />

em bicos de pé.<br />

FIM DE CENA –<br />

82


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 46. INT. – CASA LOPES / QUARTO CASAL. NOITE. DIA 04<br />

António, Margarida<br />

INSERT ÁUDIO: som de ventania.<br />

ANTÓNIO e MARGARIDA estão a dormir, pela janela vêem­se folhas de<br />

árvores a voar na rua.<br />

A janela abre­se com a força do vento,<br />

ANTÓNIO<br />

O que foi isto?<br />

ANTÓNIO levanta­se para fechar a janela.<br />

MARGARIDA<br />

Foi a janela que se abriu com o vento.<br />

ANTÓNIO<br />

Está um vendaval dos diabos, achas que<br />

devo lá ir acima buscar o pacote?<br />

MARGARIDA<br />

Não, o embrulho é pesado. Deita­te vá.<br />

ANTÓNIO<br />

Olha para isto, ficou o quarto cheio de<br />

folhas.<br />

MARGARIDA<br />

Abraça­me tenho frio.<br />

ANTÓNIO deita­se e abraça­se a MARGARIDA.<br />

FIM DE CENA –<br />

83


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 47. EXT. – PRÉDIO LOPES / TERRAÇO. NOITE. DIA 04<br />

O Embrulho<br />

O embrulho abre­se com o vento e as folhas vão se soltando uma a uma e<br />

começam a voar no ar.<br />

INSERT ÁUDIO: Nel Blu Di Pinto Di Blu por Domenico Modugno de Migliaci,<br />

Modugno ( Domenico Modugno, The Very Best, Árcade, 1992)<br />

FIM DE CENA –<br />

PASSAGEM DE TEMPO<br />

84


CENA <strong>010</strong> / 48. EXT. – RUA LOPES / RUA ­ MANHÃ. DIA 05<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

Amanhece, do céu chovem os panfletos, a rua fica coberta com os papéis.<br />

INSERT ÁUDIO: Nel Blu Di Pinto Di Blu por Domenico Modugno de Migliaci,<br />

Modugno ( Domenico Modugno, The Very Best, Árcade, 1992)<br />

FIM DE CENA –<br />

85


CENA <strong>010</strong> / 49. INT. – CASA LOPES/SALA. MANHÃ. DIA 05<br />

Hermínia, Isabel, António, Carlos, Toni, Margarida<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

Manhã de terça­feira, muito cedo. MARGARIDA, ainda de robe, serve o<br />

pequeno­almoço a TONI que está vestido com o seu fato novo de terylene.<br />

Entra ANTÓNIO, também já de fato e gravata. ISABEL e CARLOS já estão a<br />

comer.<br />

MARGARIDA<br />

Deixa­me tirar­te a etiqueta da gravata.<br />

Entra HERMÌNIA com uma marmita.<br />

ANTÓNIO<br />

Está muito elegante o meu filho, muito<br />

elegante.<br />

MARGARIDA<br />

Parece um doutor.<br />

ANTÓNIO<br />

Guida, Dá­me ai um café.<br />

Deixa, eu sirvo.<br />

MARGARIDA (para Toni)<br />

Come outra torrada, tens de ir bem<br />

alimentado<br />

TONI<br />

Não tenho fome, mãe.<br />

HERMÍNIA<br />

Toma, filho.<br />

TONI<br />

O que é isto?<br />

HERMÍNIA<br />

Uns peixinhos da horta, como só a tua avó<br />

sabe fazer.<br />

TONI<br />

Ó vó, e eu vou chegar à universidade com a<br />

marmita?<br />

MARGARIDA<br />

Dá cá que eu ponho na tua pasta<br />

86


TONI levanta­se.<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

ANTÓNIO<br />

Despacha­te filho, não podes perder o<br />

autocarro.<br />

MARGARIDA<br />

Toma.<br />

TONI<br />

Já não me lembrava.<br />

CARLOS<br />

Adeus, pá.<br />

ISABEL<br />

Toni!<br />

TONI<br />

Diz?<br />

ISABEL<br />

Boa sorte.<br />

TONI beija a mão de Isabel e faz uma festa na cabeça de CARLOS<br />

TONI sai.<br />

MARGARIDA<br />

Vai, querido.<br />

ANTÓNIO<br />

Não te metas em sarilhos.<br />

HERMÍNIA<br />

E não faltes ao respeito a ninguém.<br />

MARGARIDA<br />

Nem te metas em política. Tem um bom dia.<br />

HERMÍNIA<br />

Deixa­o. Vais despenteá­lo. Ele está tão<br />

bonito.<br />

CARLOS<br />

Deixem­no ir!<br />

TONI<br />

Até logo.<br />

MARGARIDA<br />

Vamos vê­lo à varanda?<br />

87


ANTÓNIO<br />

Vamos.<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

ANTÓNIO, HERMÍNIA e MARGARIDA correm para a varanda. CARLOS e<br />

ISABEL ficam à mesa.<br />

FIM DE CENA –<br />

88


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

CENA <strong>010</strong> / 50. EXT. – RUA LOPES / PORTA PRÉDIO. MANHÃ. DIA 05<br />

Hermínia, António, Margarida, Toni, Menina Emília, Carlos<br />

HERMÍNIA, ANTÓNIO e MARGARIDA entram sorridentes na varanda, dão<br />

com a rua coberta de papéis. Há pessoas que apanham papéis. ANTÓNIO e<br />

MARGARIDA ficam paralisados e olham­se angustiados.<br />

HERMÍNIA<br />

Mas que porcaria é esta? Quem é que fez<br />

isto? Vocês já viram? Isto é coisa de<br />

malucos. Gostava de saber quem vai limpar<br />

esta porcaria … Olhem, o Toni.<br />

Ainda há folhas a cair. TONI ao sair de casa fica tão espantado como os seus<br />

PAIS, apanha um papel do chão e olha para a varanda. ANTÓNIO e<br />

MARGARIDA fazem­lhe imensos sinais até ele largar o panfleto no chão.<br />

HERMÍNIA olha para a FILHA e para o GENRO sem perceber o que é que se<br />

está a passar.<br />

TONI está paralisado debaixo da varanda.<br />

CARLOS aparece à varanda.<br />

HERMÍNIA<br />

Mas o que é que se passa com vocês? Que<br />

sinais são esses?<br />

MARGARIDA<br />

Não é nada, mãe… (para Toni) Toni, vai filho<br />

não te atrases.<br />

CARLOS<br />

Pai, olha os papéis.<br />

ANTÓNIO<br />

Xiuuuu.<br />

ANTÓNIO tapa a boca de CARLOS com a mão. TONI desaparece na esquina.<br />

ANTÓNIO e MARGARIDA olham um para o outro e sorriem. EMÍLIA aparece<br />

com uma vassoura e muito mal disposta começa a varrer as folhas. HERMÍNIA<br />

chora de comoção.<br />

89


CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

INSERT ÁUDIO: Vendaval por Tony de Matos, de A. Rodrigues e Joaquim<br />

Pimentel (O melhor de Tony de Matos, Emi Valentim de Carvalho, 1992)<br />

FIM DE CENA –<br />

NARRADOR (OFF)<br />

Os meus pais estavam felizes, mas<br />

assustados – viveram sempre assustados.<br />

Faziam tudo para proteger os filhos porque<br />

pertenciam a uma geração que havia<br />

crescido muito pobre e com poucas ilusões.<br />

As pessoas da minha idade tiveram mais<br />

sorte. Crescemos num Portugal que<br />

começava a ter esperança em qualquer<br />

coisa e que começava, muito, muito<br />

devagar, a perder o medo.<br />

90


CENA <strong>010</strong> / 99. FICHA TÉCNICA / IMAGENS DE ARQUIVO<br />

CONTA­ME_EPISÓDIO_<strong>010</strong><br />

VÍDEO: Imagens dos anos 60 de manifestações de apoio a Salazar. Primeiras<br />

imagens de Marcelo Caetano existentes após a “queda” de Salazar .<br />

ÁUDIO: Vendaval por Tony de Matos, de A. Rodrigues e Joaquim Pimentel (O<br />

melhor de Tony de Matos, Emi Valentim de Carvalho, 1992)<br />

FIM DE CENA –<br />

FIM DO EPISÓDIO<br />

91

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!