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Instituto Materno Infantil Professor Fernando Figueira – IMIP<br />

Mestrado <strong>em</strong> Saúde Materno Infantil<br />

ABORDAGEM PSICODINÂMICA DA INTERAÇÃO MÃE-CRIANÇA<br />

DESNUTRIDA GRAVE HOSPITALIZADA<br />

LINHA DE PESQUISA: DESNUTRIÇÃO NA INFÂNCIA<br />

Aluna: Marisa Amorim Sampaio<br />

Orientadora: Profa. Ana Rodrigues Falbo<br />

Co-Orientadora: Profa. Maria do Carmo Camarotti<br />

Co-Orientadora: Profa. Maria Gorete Lucena de Vasconcelos<br />

Recife, 2008


2<br />

INSTITUTO MATERNO INFANTIL PROF. FERNANDO FIGUEIRA<br />

MESTRADO EM SAÚDE MATERNO INFANTIL<br />

MARISA AMORIM SAMPAIO<br />

ABORDAGEM PSICODINÂMICA DA INTERAÇÃO<br />

MÃE-CRIANÇA DESNUTRIDA GRAVE HOSPITALIZADA<br />

RECIFE<br />

2008


3<br />

MARISA AMORIM SAMPAIO<br />

ABORDAGEM PSICODINÂMICA DA INTERAÇÃO<br />

MÃE-CRIANÇA DESNUTRIDA GRAVE HOSPITALIZADA<br />

Linha de pesquisa: Desnutrição na Infância<br />

Dissertação apresentada ao Colegiado do Mestrado<br />

<strong>em</strong> Saúde Materno Infantil do IMIP como parte<br />

dos requisitos para obtenção do grau de Mestre <strong>em</strong><br />

Saúde Materno Infantil<br />

Orientadora: Profa. Ana Rodrigues Falbo<br />

Co-orientadora: Profa. Maria do Carmo Camarotti<br />

Co-orientadora: Profa. Maria Gorete Lucena de Vasconcelos<br />

Recife – 2008


4<br />

F i c ha c a t a l o g r áf i c a<br />

Preparada pela Biblioteca do Instituto Materno Infantil de Pernambuco, IMIP, Ana<br />

Bove<br />

Sampaio, Marisa Amorim<br />

Abordag<strong>em</strong> psicodinâmica da interação mãe-criança desnutrida grave<br />

hospitalizada. -- Recife: O autor, 2008.<br />

228 --- p. il. (figuras e quadros)<br />

Dissertação (mestrado) -- Colegiado do Curso de Mestrado <strong>em</strong> Saúde<br />

Materno Infantil do Instituto Materno Infantil de Pernambuco, IMIP.<br />

Área de concentração: Saúde da criança<br />

Orientadora: Ana Rodrigues Falbo<br />

Co-orientador: Maria do Carmo Camarotti<br />

Co-orientadora: Maria Gorete Lucena de Vasconcelos<br />

1. Relações mãe-filho. 2. Vínculo. 3. Desnutrição. 4. Pesquisa qualitativa. 5.<br />

Psicanálise. 6. Assistência integral à saúde. 7. Pais. 8. Desenvolvimento<br />

infantil. I. Falbo, Ana Rodrigues, orientadora II. Camarotti, Maria do Carmo,<br />

co-orientador. III. Vasconcelos, Maria Gorete Lucena de. IV. Título. V.<br />

Instituto Materno Infantil de Prof. Fernando Figueira, IMIP. NLM WA 310


5<br />

“O modelo que t<strong>em</strong>os dos bebês influi sobre a<br />

maneira que t<strong>em</strong>os de uma sociedade; o modelo<br />

que t<strong>em</strong>os de uma sociedade influi sobre a<br />

maneira sobre a qual nos ocupamos dos bebês; o<br />

modelo que t<strong>em</strong>os da psicopatologia e o modelo<br />

que t<strong>em</strong>os do papel dos pais influenciam bastante<br />

a maneira com que nos ocupamos de bebês.”<br />

Bernard Golse<br />

“Estamos diante da nova ciência como<br />

estiveram diante da velha positivista nossos<br />

ancestrais: deslumbrados e aflitos.”<br />

Carlos Vogt<br />

“Se procurar b<strong>em</strong> você acaba encontrando<br />

não a explicação (duvidosa) da vida, mas a<br />

poesia (inexplicável) da vida.”<br />

Carlos Drumond de Andrade


6<br />

Dedico aos meus pais, a Nossa Senhora de Fátima<br />

e ao meu noivo; amores de natureza diferente,<br />

imprescindíveis e compl<strong>em</strong>entares,<br />

essência da minha vida<br />

“Aconchego”<br />

Thereza Christina Dubeux de Amorim Sampaio (Titina Sampaio)


7<br />

Agradecimentos<br />

Ao meu pai pelo amor incondicional, paciência, incentivo constante e financiamento,<br />

não medindo esforços para me auxiliar na realização desta etapa da minha vida.<br />

Ao meu noivo pelo apoio irrestrito, paciência e compreensão. Léo, seu respeito, amor,<br />

carinho e bom humor são meu porto seguro.<br />

Aos meus irmãos, avó, Tazinha, sogros, cunhados, tias e familiares pela<br />

compreensão, apoio, solidariedade e alegria.<br />

Ao meu querido sobrinho e amigo Edu, pela alegre companhia nas solitárias tardes de<br />

uma pesquisadora iniciante.<br />

A Laís Lins Perreli, por dividir suas impressões iniciais de mãe que também gestava.<br />

Á minha querida e admirada orientadora, Profa. Ana Rodrigues Falbo, pelo auxílio<br />

nesta formação humana e científica. Seu acolhimento, incentivo, solidariedade,<br />

confiança, dedicação, apoio e segurança foram essenciais <strong>em</strong> todas as etapas deste<br />

verdadeiro processo terapêutico. Seu excepcional carinho e dedicação marcam minha<br />

carreira profissional e estréia acadêmica. Aventuramos-nos, mex<strong>em</strong>os <strong>em</strong> nossos<br />

“formigueiros internos”, motivadas pelo re-encontro com nossas mães, com o<br />

inominável, com a Psicanálise <strong>em</strong> interlocução com a Pediatria. Tenho-a como ex<strong>em</strong>plo<br />

de mãe, mulher e profissional. Receba minha gratidão e reconhecimento através de uma<br />

frase de Bárbara Wootton: “é muito mais aos campeões do impossível do que aos<br />

escravos do possível que a humanidade deve sua evolução”.<br />

Às minhas muito queridas co-orientadoras Profa. Maria do Carmo Camarotti e<br />

Profa. Maria Gorete Lucena de Vasconcelos, por se aventurar<strong>em</strong> junto conosco, por<br />

compartilhar<strong>em</strong> de modo excepcional seu t<strong>em</strong>po e experiência, sua atenção aos detalhes,<br />

com muita paciência, além do carinho de mães e colegas, ensinando através do seu amor<br />

pela ciência e profissão. S<strong>em</strong> vocês e Dra Ana este trabalho não teria sido possível.<br />

Às onze mães e seus filhos, por sua confiança, que com suas narrativas tornaram<br />

possível meu aprendizado e a realização deste trabalho.<br />

Às minhas chefes e colegas Dra. Geisy Lima, Dra. Taciana Duque e Dra. Andréa<br />

Echeverria, pelo incentivo e apoio.<br />

Às colegas da Unidade Neonatal do IMIP, <strong>em</strong> especial as amigas do Canguru (Janaína,<br />

Carmen, Rebeca, Ana Luiza, Sandra, Lisania, Diva, Cida, Line, Vilma, Ladjane, Márcia<br />

e Ana) e a alvi-rubra Ozanil, pelo apoio e incentivo, carinhosamente assegurando meu<br />

lugar na equipe.<br />

Aos meus fiéis professores, incentivadores e colaboradores Fátima Caminha e<br />

Edvaldo Souza, por seu carinho e por dividir<strong>em</strong> comigo sua experiência e a grande<br />

mãe, Dra. Ana.


8<br />

Às profissionais atuantes na enfermaria “E” do hospital de Pediatria do IMIP, Dra.<br />

Anna Cleide, Vicentina, Alyne, Fabiana, Thaís, Gabriela, Amanda, Marilda,<br />

Cleide, Simone e Ceça, pelo acolhimento, confiança, paciência, colaboração, incentivo<br />

e carinho.<br />

Às queridas amigas da Brinquedoteca do IMIP, Monique e Sueli, por me<br />

proporcionar<strong>em</strong> incondicional apoio e conforto para a realização deste trabalho.<br />

A professora Maria Lyra (Maninha), por sua influência <strong>em</strong> minha formação, apoio e<br />

colaboração nesta nova etapa profissional.<br />

Aos professores do curso de Mestrado <strong>em</strong> Saúde Materno Infantil do IMIP, pelos<br />

ensinamentos, abertura, aposta e confiança.<br />

A Raquel Costa e o Prof. João Guilherme Bezerra Alves por seu apoio e colaboração<br />

inicial a este trabalho.<br />

Às professoras e colegas Deborah Foinquinos, Kátia Feliciano e Maria do Carmo<br />

Duarte por sua essencial colaboração, paciência e cuidado na avaliação do trabalho, <strong>em</strong><br />

especial pelas contribuições na fase final de discussão da dissertação.<br />

Aos m<strong>em</strong>bros da Banca de Defesa, professores Sílvia Ferreira, Isabella Samico e<br />

Eulálio Cabral Filho, por sua disponibilidade e imprescindível colaboração.<br />

Aos meus colegas do Mestrado, pelas descobertas compartilhadas, prazerosa<br />

convivência e momentos de descontração, além do apoio nas horas de dificuldade.<br />

À minha comadre Elisa Gaspar por sua amizade e por me presentear com minha<br />

querida e meiga afilhada, Irina.<br />

À muito gentil e disponível colega Betinha Cordeiro Fernandes, pelo apoio,<br />

aconselhamento e disponibilidade.<br />

A Maria Arleide da Silva e Natália Banja, pela escuta atenta, disponibilidade e<br />

incentivo.<br />

Às minhas amigas Eduarda Pontual Santos, Eliane Albuquerque, Roberta<br />

Monteiro, Janaína Zoby Viana, Thais Pedrosa e Ana Paula Pedrosa, pela<br />

solidariedade, amizade, incentivo, compreensão e carinho, assumindo parte das minhas<br />

obrigações enquanto realizava o mestrado.<br />

À prima, amiga e colaboradora, Ana Maria Dourado Maciel Groarke, companheira<br />

de todos os momentos, b<strong>em</strong> como a Michael Groarke, ímpar amigo “brasinglês”, por<br />

sua colaboração e ex<strong>em</strong>plo de ética, companheiro de merecidas caipiroscas.<br />

Às amigas e sócias Cristina Araújo, Katarina Kehrle e Tatiana Lins, incentivadoras<br />

das minhas buscas profissionais e pessoais.


9<br />

À minha querida amiga Ana Paula, mãe, esposa, psicóloga, gourmet, dona de<br />

restaurante, por me inspirar com sua determinação e energia.<br />

À minha analista Lucia Rodrigues, pelo suporte no reconhecimento e enfrentamento de<br />

minhas angústias, medos e ansiedades frente a esta importante etapa da minha vida.<br />

Às secretárias do Núcleo de Pesquisa e do Mestrado do IMIP, <strong>em</strong> especial Josefa Lira<br />

de Melo (Dona Zefinha) e Fabiana, pela acolhida carinhosa e ajuda, e a Toinho, fiel<br />

zelador dos recursos acadêmicos, s<strong>em</strong>pre disponível, b<strong>em</strong> humorado e com um sorriso<br />

para dar.<br />

A Virgínia Guimarães Freire Mariz, bibliotecária do IMIP, pela valiosa ajuda na<br />

elaboração da ficha catalográfica.<br />

Aos funcionários do IMIP que, nas suas variadas funções, facilitaram meu percurso no<br />

mestrado. Em especial Sr. Nildo da xérox.<br />

À CAPES - Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior, pelo<br />

auxílio bolsa-estudo.<br />

A Cecês que cuidou de mim como uma mãe com muito carinho, mantendo a casa “de<br />

pé”.<br />

A Sandro que passou a ser meu anjo da guarda.<br />

Ao meu querido Astolfo José, por seu companheirismo e fidelidade.<br />

Meu agradecimento a todos que eu involuntariamente não tenha mencionado e que<br />

estiveram presentes na realização deste trabalho.


10<br />

Lista de Siglas<br />

IMIP – Instituto Materno Infantil Professor Fernando Figueira<br />

DEP – Desnutrição Energético-Protéica<br />

OMS – Organização Mundial de Saúde<br />

PMP – Preocupação Materna Primária<br />

FTT - Failure to Thrive ou Síndrome da Falha no Desenvolvimento<br />

FPRDs – Fatores Micro-Ambientais ou Psicossociais de Risco para a Desnutrição<br />

FPRNs – Fatores Psicossociais de Risco para a Nutrição<br />

HD – Hard Disk (disco rígido)<br />

MP3 – Moving Pictures Experts Group ou arquivo comprimido de computador com<br />

formato utilizado para gravação de áudio<br />

CD – Compact Disc ou disco compacto<br />

CEP – Comitê de Ética <strong>em</strong> Pesquisa<br />

AIDPI – Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância<br />

IDH – Índice de Desenvolvimento Humano<br />

SNG – Sonda Nasogástrica<br />

ReSoMal – Rehidration Solution for Malnutrition (Solução de sais de reidratação oral<br />

para crianças grav<strong>em</strong>ente desnutridas)<br />

GMP – Ganho Médio de Peso<br />

SUS – Sist<strong>em</strong>a Único de Saúde


11<br />

Lista de Fotos, Figura e Quadros<br />

Página<br />

Foto 1 Brinquedoteca 48<br />

Foto 2 Brinquedoteca<br />

48<br />

Foto 3<br />

Foto 4<br />

Sala onde foram realizadas as entrevistas e algumas filmagens, com<br />

tripé da câmera e cesto com brinquedos (setting de filmag<strong>em</strong>)<br />

Colchonete e cesto com brinquedos<br />

48<br />

48<br />

Figura 1 Fluxograma de captação dos participantes e execução do estudo 51<br />

Quadro 1 Caracterização das díades segundo procedência, período e t<strong>em</strong>po de 121<br />

hospitalização. IMIP, Recife, 2007<br />

Quadro 2 Caracterização das mães segundo anos de estudo, ocupação e 121<br />

situação conjugal. IMIP, Recife, 2007<br />

Quadro 3 Caracterização das mães segundo apoio financeiro e <strong>em</strong>ocional, 122<br />

suporte familiar e número de filhos. IMIP, Recife, 2007<br />

Quadro 4 Caracterização das díades quanto ao planejamento da gravidez, 122<br />

satisfação com o sexo da criança e abortos. IMIP, Recife, 2007<br />

Quadro 5 Significados criados pelas mães quanto à doença. IMIP, Recife, 179<br />

2007


12<br />

Resumo<br />

A desnutrição energético-proteica (DEP) infantil, compreendida como transtorno<br />

alimentar integrado pela economia relacional, oferece-se ao olhar clínico como um<br />

quadro complexo com pelo menos três vertentes: médica, psicológica e social. A DEP<br />

poderia ser associada ao campo da psicossomática, onde a representação que o corpo<br />

assume configura um sintoma que altera o real do órgão, r<strong>em</strong>ontando a uma falha no<br />

suporte simbólico da organização do circuito pulsional infantil, considerando-se que a<br />

satisfação afetiva é tão central que sua ausência poderia entravar a própria necessidade<br />

alimentar. Alimento e alimentação estão situados na intersecção da necessidade, da<br />

d<strong>em</strong>anda e do desejo. Buscou-se analisar el<strong>em</strong>entos da psicodinâmica interativa da<br />

díade mãe-criança desnutrida grave no contexto da internação <strong>em</strong> enfermaria pediátrica,<br />

ancorados na expressão dos registros pulsionais de troca, b<strong>em</strong> como segundo el<strong>em</strong>entos<br />

da interação fantasmática, comportamental e afetiva. Utilizou-se o método qualitativo,<br />

baseado no referencial psicanalítico. Foram acompanhadas oito díades de crianças entre<br />

seis e 18 meses de idade e sua mãe biológica, internadas no Instituto Materno Infantil<br />

Professor Fernando Figueira (IMIP). As informações foram coletadas por triangulação<br />

de técnicas através de entrevistas s<strong>em</strong>i-estruturadas, observações e filmagens. Foi<br />

<strong>em</strong>pregada a análise de conteúdo, elegendo-se quatro t<strong>em</strong>as representativos: T<strong>em</strong>ática 1<br />

– O processo de construção da parentalidade; T<strong>em</strong>ática 2 – Vivência e retomada da<br />

parentalidade: interação mãe-criança ao longo da hospitalização; T<strong>em</strong>ática 3 –<br />

Desnutrição e interação mãe-criança: significados criados <strong>em</strong> relação à doença; e<br />

T<strong>em</strong>ática 4 – Psicodinâmica interativa: indícios compreensivos quanto às perturbações<br />

da interação mãe-criança. Os t<strong>em</strong>as ilustram a importância do processo de parentalidade<br />

na psicodinâmica interativa da díade, fatores que pod<strong>em</strong> ter interferido na<br />

construção/ruptura do vínculo, sua contribuição para a situação de desnutrição e<br />

expressão na hospitalização. Reforça-se a influência mútua de mãe e filho na construção<br />

da interação e a complexidade dos distúrbios funcionais, sugerindo que estados<br />

extr<strong>em</strong>os de desnutrição pod<strong>em</strong> estar associados a faltas e/ou falhas nutricionais, b<strong>em</strong><br />

como a vivências de privação ou excesso psicoafetivo. A hospitalização despertou<br />

vivências da mãe e da criança, informando sobre o passado da díade. Em alguns casos o<br />

hospital pareceu ocupar/ser tomado como terceiro da díade, auxiliando na retomada de<br />

aspectos da parentalidade, figurando como lugar potencial de resgate e proteção clíniconutricional<br />

e funcional (funcionamento materno e filial). A doença pode ser pensada,<br />

portanto, como um limite/apelo ao excesso ou à falta materna/paterna. A observação da<br />

interação mãe-criança <strong>em</strong> momentos críticos, como desnutrição e hospitalização e o<br />

reconhecimento do lugar ocupado pela criança na probl<strong>em</strong>ática psíquica da mãe, do<br />

casal e na história trans e intergeracional pod<strong>em</strong> auxiliar família e equipe de saúde na<br />

compreensão do processo de adoecimento e sobre a integralidade da atenção <strong>em</strong> saúde.<br />

Palavras-chave: vínculo, relações objetais, relações mãe-filho, desnutrição, pesquisa<br />

qualitativa, psicanálise, pais, desenvolvimento infantil, assistência integral à saúde.


13<br />

Abstract<br />

Child malnutrition, understood as an eating disorder integrated by the relational<br />

economy, offers to the clinical view as a matter with at least three areas: medical,<br />

psychological and social. Malnutrition could be linked to the field of psychosomatic,<br />

where the representation that the body assumes represents a symptom that changes the<br />

real of the body, referring to a failure in the symbolic support of the infant’s pulsional<br />

circuit, considering that the satisfaction is as affective central that his absence could<br />

hinder the need for food. Food and nutrition are interconnected with need, d<strong>em</strong>and and<br />

the desire. El<strong>em</strong>ents of the interactive psychodynamics from the serious malnourished<br />

hospitalized mother-child pair were analyzed, anchored in the expression of the<br />

pulsional exchange registers, and according to the levels of the fantasmatic, behavioral<br />

and affective interaction. The qualitative methodology was used, based on the<br />

psychoalysis. The research subjects were eight mother-child pairs, consisting of children<br />

aged between six and 18 months and their biological mothers, hospitalized at the<br />

Instituto Materno Infantil Professor Fernando Figueira (IMIP). The data was collected<br />

by triangulation of technics: s<strong>em</strong>i-structured interviews, observations and video<br />

recordings. Content analysis was applied, identifing four th<strong>em</strong>es; Th<strong>em</strong>e 1 - The process<br />

of becoming a parent (parentalization); Th<strong>em</strong>e 2 – The experience of and resumption of<br />

parentalization: mother-child interaction during the period of hospitalization; Th<strong>em</strong>e 3 -<br />

Malnutrition and mother-child interaction: meanings created in relation to the<br />

understanding of the illness; Th<strong>em</strong>e 4 – Interactive Psychodynamics: comprehensive<br />

evidences about the disruption of the mother-child interaction. The th<strong>em</strong>es illustrate the<br />

importance of the parentalization process in the interactive psychodynamics, factors that<br />

could have interfered in the formation/rupture of the mother-child bond, its<br />

repercussions on the situation of malnutrition and the way it manifests itself in a context<br />

of hospitalization. The mutual influence of mother and the child on the construction of<br />

interaction and the complexity of the functional disturbances is reinforced. This study<br />

also suggests that extr<strong>em</strong>e states of malnutrition may be associated to the nutritional<br />

privation and/or errors, as well as the experiences of psychoaffective deprivation or<br />

excess. Hospitalization se<strong>em</strong>ed to awaken past experiences of the mother and child. In<br />

some cases, the hospital se<strong>em</strong>ed to occupy/be taken as a third within the pair, helping<br />

the pair in the resumption of aspects of the parentalization. The hospital potentially<br />

offers clinical, nutritional and functional (of the mother and son) rescue and protection.<br />

The illness can be thought of as a limit/appeal to the maternal/paternal excess/lack. The<br />

observation of mother-child interaction at critical moments, during the malnutrition and<br />

hospitalization, and the recognition of the role of the child in the mother’s psychic<br />

function, of the couple and at the trans and intergerational history, may help the family<br />

and healthcare professionals in the understanding how the illness develops, as well as<br />

the integral care of the health.<br />

Key words: bond, object relations, mother-son relations, malnutrition, qualitative<br />

research, psychoanalysis, parents, child development, integral assistance to the health.


14<br />

Sumário<br />

Página<br />

DEDICATÓRIA<br />

AGRADECIMENTOS<br />

LISTA DE SIGLAS<br />

LISTA DE FOTOS, FIGURA, QUADROS E TABELAS<br />

RESUMO<br />

ABSTRACT<br />

i<br />

ii<br />

v<br />

vi<br />

vii<br />

viii<br />

I INTRODUÇÃO 1<br />

Abordag<strong>em</strong> do probl<strong>em</strong>a 3<br />

Justificativa 4<br />

Objetivos 6<br />

II FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 7<br />

2.1 Aspectos conceituais da interação mãe-criança 7<br />

2.2 Caracterização da interação mãe-criança 10<br />

2.3 Parentalidade 17<br />

2.4 Função materna, função paterna e estruturação infantil 20<br />

2.5 Dinâmica e níveis de interação 27<br />

2.5.1 Interação fantasmática ou segundo as representações mentais<br />

28<br />

maternas precoces<br />

2.5.2 Interação comportamental 30<br />

2.5.3 Interação <strong>em</strong>ocional ou afetiva 32<br />

2.6 As interações nas situações desfavorecidas 34<br />

2.7 Riscos psicossociais para desnutrição (FPRDs) e nutrição (FPRNs) 40


15<br />

2.8 Risco, plasticidade e prevenção <strong>em</strong> psicanálise 41<br />

III CAMINHOS DA PESQUISA 45<br />

3.1 Escolha da metodologia 45<br />

3.2 Contexto da investigação 47<br />

3.3 Seleção das díades 48<br />

3.2.1 Critérios de inclusão 49<br />

3.2.2 Critérios de exclusão 50<br />

3.4 Obtenção dos dados 52<br />

3.5 Estruturação e análise dos dados 59<br />

3.6 Controle da qualidade das informações 63<br />

3.7 Aspectos éticos 64<br />

IV RESULTADOS E DISCUSSÃO DOS DADOS 66<br />

4.1 Caracterização das díades 66<br />

Maria e Gabriel 67<br />

Mina e Pandora 73<br />

Ana Maria e Mariana 78<br />

Rosácea e Angélica 83<br />

Bela e Ian 92<br />

Magdala e Renata 99<br />

Izabel e João 108<br />

Eva e Fátima 115<br />

4.2 T<strong>em</strong>ática 1 – O processo de construção da parentalidade 127<br />

Sub-t<strong>em</strong>a: construção da parentalidade ao longo da gestação por<br />

127<br />

meio da interação mãe-feto


16<br />

145<br />

Sub-t<strong>em</strong>a: vivência da parentalidade por meio da interação mãecriança<br />

no domicílio, enfatizando os sinais interacionais e a<br />

alimentação<br />

158<br />

4.3 T<strong>em</strong>ática 2 – Vivência e retomada da parentalidade: interação mãecriança<br />

ao longo da hospitalização<br />

4.4 T<strong>em</strong>ática 3 – Desnutrição e interação mãe-criança: significados<br />

174<br />

criados <strong>em</strong> relação à doença<br />

4.5 T<strong>em</strong>ática 4 – Psicodinâmica interativa: indícios compreensivos<br />

192<br />

quanto às perturbações da interação mãe-criança<br />

V CONSIDERACOES FINAIS E RECOMENDAÇÕES 205<br />

VI REFERÊNCIAS 212<br />

ANEXOS E APÊNDICES 228<br />

Anexo 1 – Ficha de Acompanhamento do Desenvolvimento<br />

Apêndice 1 – Roteiro das Entrevistas<br />

Apêndice 2 – Roteiro para Análise das Observações Filmadas<br />

Anexo 2 – Parecer de aprovação do Comitê de Ética <strong>em</strong> Pesquisa<br />

Envolvendo Seres Humanos do Instituto Materno Infantil Prof. Fernando<br />

Figueira (IMIP)<br />

Apêndice 3 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (A)<br />

Apêndice 4 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (B)


17<br />

I Introdução<br />

A desnutrição infantil A é um processo multifatorial que envolve causalidade<br />

complexa, com condicionantes biológicos, <strong>em</strong>ocionais e sociais, incluindo o vínculo<br />

mãe-filho. 2-4 Para a compreensão da situação nutricional da criança, a alimentação deve<br />

ser avaliada para além das necessidades fisiológicas, 3,5 uma vez que os primeiros<br />

conflitos interacionais encontram expressão na esfera da alimentação. 5-8<br />

Buscou-se abordar aspectos da carência (pobreza) no plano real (falta da<br />

comida, falha nutricional) e sua conseqüência biológica (desnutrição), investigando<br />

significados que ilustrass<strong>em</strong> como a falta/falha real associada à falta/falha simbólica<br />

pode ter influenciado a interação da díade.<br />

A avaliação da interação mãe-criança é um instrumento importante no<br />

acompanhamento do crescimento e desenvolvimento infantil, principalmente <strong>em</strong><br />

situações <strong>em</strong> que há risco e descontinuidade desse processo. A interação da díade foi<br />

estudada buscando-se compreender o papel des<strong>em</strong>penhado por mãe e criança, focandose<br />

no contexto da desnutrição e hospitalização. A desnutrição foi tomada como uma<br />

situação de risco não apenas sócio-econômico, mas também <strong>em</strong>ocional, observada<br />

enquanto associação complexa de fatores, não numa relação de causa-e-efeito.<br />

A situação de internação evoca um despertar de vivências da mãe e da<br />

criança que pod<strong>em</strong> informar sobre o passado da díade, b<strong>em</strong> como permite que se<br />

observe essa interação enquanto fator para a instalação e perpetuação da desnutrição. A<br />

A A desnutrição energético-protéica (DEP) representa uma variedade de condições patológicas decorrentes<br />

da falta de energia e nutrientes. 1 Ocorre quando o organismo não recebe o aporte nutricional necessário<br />

para o seu metabolismo fisiológico, quando a disponibilidade de alimentos é inferior às necessidades<br />

(DEP primária) ou <strong>em</strong> decorrência do inadequado aproveitamento funcional e biológico dos nutrientes<br />

disponíveis/elevação do gasto energético na presença de doenças associadas (cardiopatias congênitas,<br />

neuropatias, síndrome da imunodeficiência adquirida, pneumopatias crônicas, etc), esta chamada “DEP<br />

secundária”. 1 Segundo a OMS (Organização Mundial de Saúde), 1 crianças cujo indicador peso/altura < -3<br />

escore Z e/ou com presença de ed<strong>em</strong>a simétrico envolvendo no mínimo os pés, são diagnosticadas com<br />

desnutrição aguda grave.


18<br />

abordag<strong>em</strong> da díade no hospital, por meio de observações, entrevistas e filmagens,<br />

permitiu não só a observação dessa hipótese, como também o questionamento a respeito<br />

de contribuições práticas à equipe de saúde: como a compreensão da interação da díade<br />

hospitalizada pode auxiliar no tratamento da desnutrição<br />

Interação pode ser definida como a ação recíproca entre dois fenômenos, 9<br />

enfatizando a noção de interdependência, partindo-se do princípio que a relação da<br />

criança com sua mãe (ou cuidador) se dá <strong>em</strong> um processo bi-direcional, constituído por<br />

um conjunto de fenômenos dinâmicos que ocorr<strong>em</strong> ao longo do t<strong>em</strong>po entre mãe e<br />

filho. 10,11<br />

O estudo da interação mãe-criança abrange extensa gama de abordagens; a<br />

psicanálise traz contribuição importante para o estudo desse fenômeno, uma vez que as<br />

interações envolv<strong>em</strong> não só características manifestas dos envolvidos, como também<br />

el<strong>em</strong>entos representacionais imaginários e fantasmáticos. 10,12 Por el<strong>em</strong>entos<br />

representacionais imaginários e fantasmáticos compreende-se os conteúdos psíquicos<br />

inconscientes, como idealizações representações e valores transmitidos transgeracional e<br />

intergeracionalmente, manifestados através do corpo, da linguag<strong>em</strong> e seus afetos. 7,14<br />

A psicanálise considera que a interação está no fundamento da subjetivação.<br />

O sofrimento psíquico na primeira infância geralmente está associado a dificuldades no<br />

processo interativo, resultando <strong>em</strong> desarmonias nos registros pulsionais de troca, B<br />

ilustrados pela oralidade (pulsão oral, incorporação pela via oral, como no caso da<br />

alimentação), invocação (pulsão invocante: interpelar/ser interpelado, relação com o<br />

outro através da comunicação) e especularidade (pulsão escópica: olhar e ser olhado,<br />

relação através das trocas que envolv<strong>em</strong> o olhar). 6<br />

B Pulsão: representante psíquico dos estímulos originados dentro do organismo e que alcançam a mente,<br />

situado na fronteira entre mental e somático; difere substancialmente de instinto.


19<br />

Nesse sentido, as experiências alimentares no contexto da relação pais-filho<br />

constitu<strong>em</strong> matrizes das modalidades de trocas relacionais vivenciadas pela criança e<br />

base para o contínuo desenvolvimento de suas interações. 15<br />

Considerou-se interação como um processo no qual um conjunto de<br />

fenômenos dinâmicos ocorre entre os atores envolvidos ou implicados, retrospectiva e<br />

prospectivamente.<br />

Supondo-se que a maioria dessas crianças/famílias carrega histórias com um<br />

início de vida multiplamente traumático, a psicanálise pode contribuir com reflexões<br />

que auxili<strong>em</strong> na formulação de políticas de atenção à saúde à infância, de modo que<br />

ações que consider<strong>em</strong> a subjetividade, destinadas a essas famílias evit<strong>em</strong> reproduzir ou<br />

produzir novos traumatismos provocados por práticas equivocadas.<br />

À luz do referencial teórico adotado a interação será descrita quanto aos<br />

aspectos conceituais e quanto às suas características, para então ser associada ao t<strong>em</strong>a<br />

desnutrição/hospitalização.<br />

Abordag<strong>em</strong> do Probl<strong>em</strong>a<br />

Esta pesquisa reflete a transdisciplinaridade resultante do encontro entre<br />

pediatria, psicanálise e psicologia do desenvolvimento, por meio da pesquisa qualitativa.<br />

A desnutrição pôde ser resignificada pelos profissionais envolvidos nesta<br />

pesquisa. Nas palavras de Kreisler 8 a respeito da transdisciplinaridade:<br />

A desnutrição pôde ser resignificada pelos profissionais envolvidos nesta<br />

pesquisa. Nas palavras de Kreisler 8 a respeito da transdisciplinaridade: “para o pediatra,<br />

a reflexão psicanalítica dá sentido aos fatos de observações psicossomáticas e evita<br />

submetê-los a catálogos fenomenológicos estéreis; para o psicanalista, a observação do


20<br />

pediatra pode evitar os desvios e erros cronológicos decorrentes de um bebê mítico<br />

reconstituído pela ‘predição do passado’. É necessário que essa construção<br />

retrospectiva seja ajustada ao presente do bebê tal como ele se oferece ao nosso olhar<br />

na sua realidade corporal e mental (...)”. (1999: 346) 8<br />

O interesse e relevância do t<strong>em</strong>a foram construídos ao longo de experiências<br />

diferentes e compl<strong>em</strong>entares a respeito das origens da organização e expressão psíquica<br />

<strong>em</strong> associação com a patologia orgânica e suas conseqüências ao desenvolvimento<br />

infantil.<br />

Justificativa<br />

A interação mãe-criança é vastamente estudada mediante diferentes<br />

perspectivas teórico – conceituais e metodológicas, como constatado nas bases de dados<br />

pesquisadas (Pubmed, Scielo e Lilacs). No entanto, pontua-se a carência de trabalhos<br />

enfocando a compreensão da dinâmica interativa da díade mãe-criança desnutrida grave<br />

no contexto da hospitalização, justificando-se a originalidade e relevância deste<br />

trabalho.<br />

O IMIP (Instituto Materno Infantil Professor Fernando Figueira) v<strong>em</strong><br />

aplicando, desde 2001, no tratamento da desnutrição infantil, orientações sugeridas pela<br />

OMS 1 (Organização Mundial de Saúde) <strong>em</strong> manual sobre o manejo da desnutrição<br />

infantil grave. Apesar de este conter recomendações relativas à estimulação <strong>em</strong>ocional<br />

da criança, não aborda características da psicodinâmica interativa da díade desnutrida<br />

grave.<br />

Essas díades <strong>em</strong> situação de risco têm sido rara e insuficient<strong>em</strong>ente<br />

pesquisadas <strong>em</strong> sua singular subjetividade, de modo que esta pesquisa lançou o ousado


21<br />

desafio de dispor de ferramentas clínico-acadêmicas a serviço da participação social da<br />

pediatria e da psicanálise, s<strong>em</strong> perder de vista as exigências teóricas e éticas de seus<br />

preceitos básicos, construindo um processo de conhecimento ampliado e coletivo.<br />

Apesar do papel atribuído à mãe no processo de desnutrição infantil, são<br />

escassos os programas dirigidos a essa população. 3,16<br />

Nesta perspectiva, qualquer<br />

programa destinado a desnutridos deve priorizar, dentre outros aspectos, o envolvimento<br />

da família como participante ativo do processo, b<strong>em</strong> como a observação e avaliação da<br />

relação mãe-filho e os aspectos de saúde mental materna, mediante atenção integral. 17<br />

O reconhecimento das competências da criança e das modalidades<br />

interativas da díade está na base do processo de subjetivação e, portanto na promoção de<br />

saúde e prevenção de perturbações do desenvolvimento. 18<br />

É importante que sejam<br />

observados sinais precoces de saúde e de risco para o desenvolvimento infantil, b<strong>em</strong><br />

como de plasticidade (estratégias utilizadas diante do reconhecimento de necessidades e<br />

no cuidado e interação com a criança). 18,19 Este trabalho buscou destacar a importância<br />

do profissional de saúde reconhecer e intervir como forma de promover a saúde e<br />

prevenir distúrbios funcionais e relacionais.<br />

Esse conhecimento t<strong>em</strong> papel essencial na organização de políticas e<br />

práticas desenvolvidas pelo setor saúde, apontando a necessidade de cuidados integrais<br />

efetuados pelos profissionais, caracterizando intervenções de prevenção primária.


22<br />

Objetivos<br />

Objetivo Geral<br />

Analisar a psicodinâmica interativa da díade mãe-criança desnutrida grave no<br />

contexto da internação <strong>em</strong> enfermaria pediátrica.<br />

Objetivos Específicos<br />

Analisar a psicodinâmica interativa da díade mãe-criança a partir de:<br />

1) El<strong>em</strong>entos da interação fantasmática (experiências e representações mentais<br />

maternas): vínculos familiares da mãe, fantasias e significados maternos <strong>em</strong> relação<br />

à desnutrição da criança;<br />

2) El<strong>em</strong>entos da interação comportamental: significado do comportamento da díade<br />

(diálogo tônico: movimentos do feto/bebê e influência de estados tônicos da mãe)<br />

com base nos eventos e sentimentos associados aos períodos gestacional, parto e<br />

puerpério;<br />

3) El<strong>em</strong>entos da interação <strong>em</strong>ocional: sentimentos maternos diante da interação habitual<br />

da criança no domicílio, da interação e comportamento da criança diante do<br />

processo de internação, e a dinâmica interativa da díade com base na observação das<br />

atividades de alimentação e brincar.


23<br />

II Fundamentação Teórica<br />

2.1 Aspectos conceituais da interação mãe-criança<br />

O fenômeno interativo é referido como um compartilhar do si mesmo e do<br />

outro 20 ; processo de “conversação” entre mãe e bebê, protótipo primitivo de todas as<br />

formas ulteriores de troca; 12 ; sist<strong>em</strong>a de feedback mútuo, recíproco entre mãe e bebê 21<br />

segundo a realidade observada e o plano fantasmático - idealizações representações e<br />

valores construídos e transmitidos transgeracional e intergeracionalmente através de<br />

manifestações inconscientes. 22<br />

Os termos interação, inter-relação e interdependência são utilizados por<br />

diversos autores da psicanálise 7,9,12,20,22,23<br />

como sinônimos de ação recíproca,<br />

interpessoal. Esses termos indicam relações de objeto, expressando o investimento<br />

libidinal, representações pertinentes ao relacionamento entre os sujeitos. Por<br />

investimento libidinal compreende-se o deslocamento de energia psíquica, advinda da<br />

pulsão sexual, ou energia fruto da manifestação dinâmica na vida psíquica da pulsão<br />

sexual. A libido pode ser destinada ao próprio organismo (libido narcísica) ou a objetos<br />

externos (libido objetal). 24,25<br />

O termo “relação” se refere ao modo como o sujeito constitui seus objetos e<br />

como estes modelam sua atividade. Objeto é a coisa <strong>em</strong> relação à qual ou através da<br />

qual a pulsão atinge sua finalidade, ou seja, certo tipo de satisfação. O objeto não<br />

necessariamente é exterior, podendo ser uma parte do corpo do próprio indivíduo. 25<br />

O termo “relação de objeto” reflete o modo de relação do sujeito com seu<br />

mundo, resultado complexo da organização da personalidade, de uma apreensão mais ou<br />

menos fantasmática dos objetos e de certos tipos de defesa psíquica. 25


24<br />

Quando o bebê suga e mama não apenas sacia a fome fisiológica, pois<br />

incorpora junto com o leite, também o olhar, o cheiro e a voz da mãe. Não é só a boca<br />

que é alimentada, mas os ouvidos, os olhos, a pele; 26<br />

a alimentação deve ser<br />

compreendida para além das necessidades fisiológicas, uma vez que está situada na<br />

complexidade da interação entre necessidade do alimento, d<strong>em</strong>anda de amor e desejo do<br />

impossível.<br />

Freud elaborou a noção de apoio para explicar a diferença entre “satisfação<br />

da necessidade” e “satisfação da pulsão”, pontuando que a satisfação da pulsão acontece<br />

por meio da ou se apoiando na satisfação da necessidade (corpo), s<strong>em</strong> se confundir com<br />

ela. Assim, para que o bebê possa alcançar na relação alimentar a satisfação da pulsão,<br />

precisa experimentar a satisfação da necessidade, b<strong>em</strong> como se sentir objeto de<br />

satisfação para um outro, ou seja, colocado no lugar de objeto da pulsão para um outro<br />

que se mostra desejante <strong>em</strong> relação a ele. 6,27,28 Laznik 29 l<strong>em</strong>bra que a satisfação<br />

pulsional se dá percorrendo os diferentes pontos do circuito pulsional: incorporar/ser<br />

incorporado (pulsão oral), olhar/ser olhado (pulsão escópica), interpelar/ser interpelado<br />

(pulsão invocante). C Portanto, é na intercessão entre necessidade, d<strong>em</strong>anda e desejo que<br />

se articula a pulsão. Esse aspecto será retomado mais adiante quando a função materna<br />

for abordada, b<strong>em</strong> como no que concerne à noção de prevenção e risco.<br />

A psicanálise compreende os sinais de sofrimento psíquico como<br />

dependentes do somático e do relacional, pois o funcionamento interativo é essencial ao<br />

processo de constituição da subjetividade, precedendo o funcionamento mental adulto,<br />

onde se observa que a criança pequena só dispõe do corpo para manifestação do<br />

C A mudança de necessidade para desejo ocorre <strong>em</strong> todos os registros da pulsão, <strong>em</strong> todos os registros de<br />

troca entre um bebê e seu cuidador principal. Os principais registros pulsionais de troca se r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> à<br />

oralidade (pulsão oral, incorporação pela via oral, como no caso da alimentação), especularidade (pulsão<br />

escópica: olhar e ser olhado, relação através das trocas que envolv<strong>em</strong> o olhar) e invocação (pulsão<br />

invocante: interpelar/ser interpelado, relação com o outro através da comunicação). 6,29


25<br />

sofrimento. 8 T<strong>em</strong>-se, portanto, que o corpo e seu funcionamento são o suporte das<br />

manifestações psíquicas da criança. 8<br />

É por isso que as primeiras dificuldades na<br />

interação mãe-criança encontram expressão na esfera do desenvolvimento oral e da<br />

nutrição, onde a psicopatologia do lactente revela uma grande variedade de doenças e<br />

sintomas. 8 O investimento do bebê na mãe se mostra qualitativamente diferente <strong>em</strong><br />

função de seu desenvolvimento psíquico. A criança passa a reconhecer a mãe como<br />

objeto de desejo (sexto ao 18º mês – segundo momento na formação da subjetividade) D<br />

quando a mãe, anteriormente objeto de satisfação, adquire um sentido simbólico, como<br />

aquela de onde vêm as realizações de desejos. Portanto, o objeto da necessidade passa a<br />

ser objeto de d<strong>em</strong>anda dirigida a um outro, simbolizando o amor desse outro. 12,18<br />

A interação será abordada neste estudo com crianças entre seis e 18 meses,<br />

idade <strong>em</strong> que a criança já t<strong>em</strong> consciência da mãe, do outro da maternag<strong>em</strong>. Nesse<br />

período ocorre o desmame, b<strong>em</strong> como as primeiras manifestações da angústia de<br />

castração, eventos que pod<strong>em</strong> fornecer importantes el<strong>em</strong>entos para análise da dinâmica<br />

interativa. 18 A evolução do estudo sobre a criança reflete uma crescente ênfase na<br />

interação desta com seu parceiro adulto. Anteriormente, focalizava-se o comportamento<br />

da criança, ou do adulto que se ocupava dela, mas pouco se sabia sobre como um reagia<br />

na presença do outro. 13<br />

Se o caráter bidirecional é considerado atualmente parte<br />

implícita no conceito de interação, durante décadas prevaleceu o modelo do parceiro<br />

D Segundo Kupfer et al, 18 o processo de formação da subjetividade pode ser divido <strong>em</strong> três momentos:<br />

seis primeiros meses (grito desarticulado); seis a 18 meses (bebê t<strong>em</strong> consciência da mãe, do outro da<br />

maternag<strong>em</strong>, numa busca pela imag<strong>em</strong> corporal via estado do espelho; ocorr<strong>em</strong> as primeiras<br />

manifestações da angústia de castração); 18 meses <strong>em</strong> diante (vivência da solução dada aos impasses<br />

gerados pela angústia de castração, momento de separação da díade fusionada com a entrada do terceiro,<br />

função paterna). O segundo momento, representado pelo estado do espelho, ilustra o período inaugural de<br />

constituição do eu da criança, prefigurando uma totalidade corporal por meio da percepção da própria


26<br />

adulto (<strong>em</strong> geral a mãe) todo-poderoso e organizador das interações (ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

ator principal, mas também único culpado <strong>em</strong> caso de perturbações). Assim, falava-se<br />

<strong>em</strong> interação (ou relação), mas estudavam-se comportamentos da criança ou da mãe<br />

isolados. 13 A psicanálise traz contribuição importante para o estudo da interação mãecriança,<br />

uma vez que esta envolve não só características manifestas dos parceiros<br />

envolvidos, mas, também, el<strong>em</strong>entos representacionais imaginários e fantasmáticos<br />

diversos. 10 A psicanálise legitima um método de compreensão de como se articulam<br />

esses el<strong>em</strong>entos, projeções, afetos, desejos e comportamentos no desenrolar das<br />

interações. 13 Utilizando-se do referencial psicanalítico, este trabalho considerou interação<br />

como um processo no qual um conjunto de fenômenos dinâmicos (fantasmas parentais e<br />

projeções maternas) ocorre entre os atores envolvidos ou implicados, retrospectiva e<br />

prospectivamente.<br />

2.2 Caracterização da interação mãe-criança<br />

O bebê não é mais visto como uma massa s<strong>em</strong> formas, ou tabula rasa, mas<br />

como um ser complexo que interage com os adultos, um parceiro ativo, até mesmo<br />

iniciador, 7 ativo e pré-adaptado. 22<br />

Brazelton 21 menciona o termo “pré-adaptação” ao se referir aos estímulos<br />

maternos que ating<strong>em</strong> o feto. O autor considera que a experiência intra-uterina précondiciona<br />

o feto ao ritmo materno de sono/vigília e ao seu estilo de reatividade. Esse<br />

“treinamento” intra-uterino constitui a base rítmica dos indícios maternos, aos quais o<br />

bebê pode adaptar suas interações após o nascimento.<br />

imag<strong>em</strong>, quando reconhece e vivencia a imag<strong>em</strong> de seu corpo no espelho como sendo sua própria


27<br />

Klaus e Kennell 30 propõ<strong>em</strong> o conceito “período sensível”, relativo ao bebê e<br />

sua mãe, dando importância científica e ênfase aos primeiros instantes (minutos, horas e<br />

dias) que se segu<strong>em</strong> ao parto, como fundamentais à criação do laço mãe-bebê. Esse<br />

contato inicial entre mãe e filho pode alterar a qualidade da interação ao longo do t<strong>em</strong>po<br />

(amamentação, troca de olhares, comportamento mais afetivo das mães, etc).<br />

Separar bebê e mãe pode acarretar importantes danos a ambos, pois o<br />

processo de “gestação psíquica” da criança continua após o parto, quando a mãe é capaz<br />

de proteger o bebê das ameaças internas (fome, desconforto) e externas (frio, barulho,<br />

luz, etc), por meio de sua capacidade de rêverie, E contendo e organizando física e<br />

psiquicamente o bebê. É através da alimentação e dos outros cuidados maternos que<br />

essa relação é restabelecida. Ao pegar o bebê e colocá-lo no seio, a mãe proporciona<br />

suporte corporal e psíquico. 31,32<br />

A rêverie materna funciona como órgão receptor das sensações que o bebê<br />

obtém de si mesmo e projeta na mãe, no que esta decodifica e devolve ao seu filho de<br />

modo simbolizado. Se a mãe não acolhe as projeções do bebê, este reintrojeta suas<br />

próprias projeções, sendo estas s<strong>em</strong> significado, por não ter<strong>em</strong> sido metabolizadas pela<br />

mãe. 31 Na falha da rêverie, alerta-se para o risco progressivo de não-estabelecimento de<br />

um laço entre mãe e filho. 31,32<br />

O estado de desamparo original do bebê coloca-o <strong>em</strong> dependência total do<br />

outro maternal, o qual funciona como um aparelho de pára-excitação, no sentido de<br />

protegê-lo diante de grandes quantidades de excitação interna e externa, para que não<br />

sofra ameaça de aniquilamento, ruptura. 33<br />

imag<strong>em</strong>.<br />

E Rêverie: habilidade materna para compreender e interpretar as condutas do bebê, funcionando, a mãe,<br />

como órgão receptor das sensações do filho, através das projeções deste. 31


28<br />

Quando a angústia originária, traumática, qualificativa do estado de<br />

desamparo do bebê, encontra no outro primordial a excitação necessária e a páraexcitação<br />

suficiente, dá-se a elaboração psíquica <strong>em</strong> direção à representação, <strong>em</strong> direção<br />

à constituição do simbólico, humano. 33<br />

“Essa é a condição inicial do funcionamento do aparelho psíquico, no qual<br />

a criança é incapaz de dar fim, por si mesma, ao estado de excitação pelo aumento da<br />

tensão de suas necessidades e, menos ainda, de dar conta, por si só da excitação<br />

pulsional necessária e da correspondente pára-excitação pulsional indispensável; este<br />

é o estado de trauma. (...) A vivência da catástrofe é antes de tudo a da catástrofe do<br />

desamparo primordial e a vivência desta catástrofe se dá ‘através’ da angústia<br />

primordial que ‘passa através’ do corpo, inaugurando um psiquesoma. (...) O trauma é<br />

então a catástrofe necessária s<strong>em</strong> o qual não há fundação de aparelho psíquico, n<strong>em</strong><br />

são lançadas as bases da subjetividade.” (2001) 35<br />

O conceito de “trauma” (psíquico) <strong>em</strong> psicanálise inclui duas categorias: os<br />

traumas assimiláveis e os traumas inassimiláveis. Os traumas assimiláveis diz<strong>em</strong><br />

respeito às experiências constituintes, metabolizáveis, passíveis de, num segundo<br />

t<strong>em</strong>po, produzir recalques, sintomas, formações de compromisso entre instâncias<br />

psíquicas <strong>em</strong> conflito. Os quadros relativos ao trauma inassimilável revelam vivências<br />

de perda de si, sensações decorrentes da intromissão de inscrições imetabolizáveis<br />

impostas por um outro adulto, ou um outro adulto substituto que não conseguiu exercer<br />

a função de pára-excitação. 28<br />

Quanto à economia de energia (libido) realizada no parto e pós-parto,<br />

Lebovici 12 esclarece que a mãe precisa re-elaborar o luto de seu estado da gestação e do<br />

filho imaginário (perfeito, ideal, fruto de suas representações inconscientes). Em<br />

seguida, deve fazer o trabalho inverso: “atacar” a criança recém-nascida com desejos e


29<br />

esperanças, reorganizando seu mundo interno segundo novas linhas, com base numa<br />

criança diferente, agora real, externa.<br />

É <strong>em</strong> razão desse trabalho de reorganização mental que a mãe do pós-parto<br />

deve ter a oportunidade de cuidar do filho. No caso do bebê e sua mãe precisar<strong>em</strong> ser<br />

separados no pós-parto e a função materna ser assumida inteiramente pela equipe<br />

hospitalar ou por outros, o aparelho psíquico materno seguirá tendência espontânea a<br />

limitar seus gastos energéticos e a diminuir o trabalho de investimento no bebê real. 12<br />

É nessas condições do final da gestação e no pós-parto que, segundo<br />

Winnicott, 23<br />

a mãe encontra-se mergulhada no estado de “preocupação materna<br />

primária” (PMP). Esse estado predispõe a mãe a cuidar de modo especialmente<br />

disponível do seu bebê, s<strong>em</strong> se sentir libidinalmente vazia. F<br />

Se a maternag<strong>em</strong> não for adequada nesses primeiros meses, a criança<br />

invadida por estímulos do seu próprio corpo e do ambiente externo, cada vez mais<br />

desorganizados, sofre ameaça de aniquilação psíquica. 23<br />

As mães consegu<strong>em</strong>, de modo variado, perceber e reconhecer os sinais<br />

evocativos de necessidades, preferências e limites dos filhos, a forma peculiar de<br />

comunicação destes, ajustando seu comportamento a esses sinais. 12,37<br />

Por vezes<br />

observa-se mães que não respond<strong>em</strong> ao filho, não favorecendo seu conforto físico e<br />

psíquico, ou porque não consegu<strong>em</strong> perceber os sinais, ou porque se recusam a levá-los<br />

<strong>em</strong> conta, ou os interpretam de maneira inadequada. 12<br />

Estando a mãe num lugar privilegiado à formação psíquica da criança,<br />

cogita-se que sua adaptação às necessidades fisiológicas, b<strong>em</strong> como suas respostas<br />

F<br />

A PMP é um estado t<strong>em</strong>porário de sensibilidade aumentada geralmente no final da gravidez,<br />

continuando por algumas s<strong>em</strong>anas após o parto. Essa condição possibilita à mãe sentir como se estivesse<br />

no lugar do bebê, antecipando suas reações, respondendo às necessidades dele por meio de uma adaptação<br />

ativa. 23


30<br />

recíprocas e adequadas, geram harmonia no funcionamento geral da criança, enquanto a<br />

inadequação gera desarmonia e pode resultar <strong>em</strong> doença. 32,38<br />

A título ilustrativo, Ferreira 11,39 descreve a comunicação diálogica da díade,<br />

quando a mãe se dirige à criança, atribuindo-lhe um espaço t<strong>em</strong>poral (turno) durante o<br />

qual o filho pode se organizar.<br />

Assim, a mãe executa um trabalho interpretativo dos comportamentos dela<br />

mesma e da criança, num movimento especular, constante e repetido. O bebê é elevado<br />

à categoria de participante da troca interativa (interlocutor, pois seus comportamentos<br />

são compreendidos como “atos de fala”), ao passo que a mãe utiliza-se da<br />

reversibilidade de papéis (ora ela faz o bebê de ouvinte, ora ela faz do bebê o “falante”).<br />

Nesse interjogo dialógico, o diálogo é alimentado tanto pelas identificações maternas,<br />

como pelas manifestações explícitas do bebê. 39<br />

De início, diante das reações basicamente indiferenciadas do bebê, a mãe faz<br />

predominant<strong>em</strong>ente uso de suas identificações pessoais, verbalizando-as. À medida que<br />

o bebê começa a combinar sinais comunicativos (gestos, vocalizações, sorrisos, olhares)<br />

ou a desenvolver ações concretas (pegar e segurar um brinquedo), a interpretação<br />

materna verbalizada é gradualmente omitida. Assim, o diálogo da díade passa ser uma<br />

“co-produção ou texto organizado”, onde se têm as criações da mãe e a participação do<br />

bebê. 39<br />

Para que o diálogo mãe-bebê se configure, precisa haver desejo do outro<br />

materno, ou seja, a crença da mãe de que as manifestações do bebê têm um destinatário<br />

(ela mesma) e um sentido (atribuído e interpretado por ela). 40


31<br />

Um ex<strong>em</strong>plo de comunicação dialógica é o manhês, G<br />

no qual estão<br />

presentes os el<strong>em</strong>entos organizadores do texto dialógico: falantes (mãe e bebê), turnos<br />

de fala, seqüência de ações coordenadas e um evento <strong>em</strong> andamento. Esses el<strong>em</strong>entos<br />

organizadores configuram o texto como um diálogo, estruturado conjuntamente por mãe<br />

e bebê, uma vez que ambos contribu<strong>em</strong> para a sua construção, cada um ao seu modo,<br />

porém levando <strong>em</strong> consideração a contribuição do outro. 40<br />

Cavalcante 41 destaca que as pausas do manhês exerc<strong>em</strong> o papel fundamental<br />

de guardar o lugar locutório do bebê, pois a mãe, ao mesmo t<strong>em</strong>po <strong>em</strong> que se coloca no<br />

lugar dele, por meio de sua fala atribuída, atribui voz ao filho, garantindo seu lugar de<br />

falante. As pausas do manhês marcam, portanto, a constituição e o deslocamento de<br />

lugares discursivos entre mãe e bebê. 41<br />

O manhês utilizado ao longo dos cuidados maternos ilustra como o<br />

funcionamento dialógico é parte integrante da organização psíquica infantil, exigindo do<br />

cuidador uma relação ao real (do bebê), ao imaginário (posto sobre o bebê) e ao<br />

simbólico (dirigido ao bebê). 42 A mãe trata o filho operando simultaneamente nesses<br />

três registros, introduzindo o bebê neles, na dimensão do humano. Assim, a<br />

gestualidade, o ritmo e as enunciações do bebê mostram que existe ali uma criança (real<br />

do corpo) <strong>em</strong> diálogo com a mãe, com reações atribuídas por esta (imaginário), com a<br />

qual se pode falar (simbólico) e esperar um feedback. 42<br />

Pode-se então conceituar o bebê como um sujeito (ainda que <strong>em</strong><br />

constituição) afetado pela relação com seus cuidadores, nos níveis real, imaginário e<br />

simbólico. A introdução no mundo simbólico se dá na medida <strong>em</strong> que o bebê t<strong>em</strong> suas<br />

G O manhês (motherese ou baby talk) contém as seguintes características: uso de sentenças gramaticais<br />

curtas; repetições; simplicidade sintática; itens lexicais infantilizados; velocidade de fala rápida;<br />

modificação na articulação de certos segmentos; elevação da altura; entonação exagerada, com voz <strong>em</strong><br />

falsetto; grande número de perguntas e imperativos; pausas longas após a fala atribuída. 40


32<br />

próprias expressões (gestos, vocalizes, tosse), tomadas pela mãe como sinais<br />

comunicativos (fome, satisfação, má conduta). 42<br />

Laznik 29 aponta que essa “loucura” das mães é indispensável à constituição<br />

do sujeito da fala. É preciso que alguém seja capaz de realizar essa “ilusão<br />

antecipadora” frente ao bebê, escutando-o como sujeito <strong>em</strong> sua potencialidade de um<br />

sujeito de fala, ouvindo e interpretando aquilo que o bebê ainda não disse, ver nele<br />

aquilo que ele ainda não é. 29 A autora destaca a importância da construção de um lugar<br />

imaginário ao filho no psiquismo materno, da construção de um todo imaginário que<br />

envolva o organismo da criança com palavras, encontrando, no bebê real, a criança<br />

construída imaginariamente <strong>em</strong> seu fantasma. 29<br />

O ser falado antes de falar, como se lá já estivesse, numa alienação fundante<br />

necessária, representa o primeiro momento de constituição psíquica do sujeito-criança, a<br />

unificação do seu corpo e o seu eu: antecipação subjetiva que lhe abre possibilidades de<br />

constituição subjetiva. 29


33<br />

2.3 Parentalidade<br />

Gustav Klimt –O beijo<br />

Segundo Houzel, 42 não basta ser genitor, n<strong>em</strong> ser designado “mãe” ou “pai”<br />

para preencher as condições da parentalidade (ou “processo de transição <strong>em</strong> direção à<br />

parentalidade”, “processo de parentificação”); o status de filho só pode ser atribuído a<br />

partir da subjetividade dos pais.<br />

A parentalidade é um processo co-construído, pois organiza a percepção dos<br />

pais <strong>em</strong> face deles mesmos e do filho, b<strong>em</strong> como a percepção que a criança t<strong>em</strong> a<br />

respeito dos pais (a criança é inscrita e se inscreve). 43 O bebê “anuncia” sua existência<br />

no interior dos pais muito antes do nascimento; os projetos e expectativas parentais que<br />

envolv<strong>em</strong> a sua chegada preparam o lugar para acolhê-lo, representando a preparação<br />

para o espaço do bebê real. 44 Como já destacado anteriormente, autores como Klaus &<br />

Kennell 30 e Brazelton 21 mostraram que o bebê é capaz de estabelecer trocas diádicas e<br />

triádicas, gratificando o narcisismo parental.<br />

A criança está inscrita na transgeracionalidade familiar, na fantasmática<br />

materna e paterna, exercendo papel no jogo dos desejos infantis e das pulsões de seus<br />

pais, 12 produzindo marcas supostamente constituintes na criança. 43 A história dos avós,<br />

os conflitos familiares concentrados no mandato transgeracional são transmitidos à<br />

criança pelos significantes que localizam pais e criança na ord<strong>em</strong> simbólica familiar. 14,43


34<br />

Golse 14 faz distinção entre transmissão transgeracional e intergeracional. A<br />

transmissão transgeracional acontece entre gerações à distância, exercida no sentido<br />

descendente (das gerações passadas para as gerações presentes), sobretudo pelas vias da<br />

linguag<strong>em</strong>, mesmo que por meio de interditos e não-ditos. Transmissão intergeracional<br />

acontece entre as gerações <strong>em</strong> contato, essencialmente pais e filhos, exercidas nos dois<br />

sentidos, ascendente e descendente, via comunicação verbal e não-verbal. 14<br />

A trans e a intergeracionalidade refer<strong>em</strong>-se à constituição subjetiva da<br />

criança, aos significantes que constitu<strong>em</strong> um lugar para o filho no universo simbólico<br />

familiar e dos pais, aos discursos que têm o poder de designar um sujeito, inclusive de<br />

decisão sobre vida e morte do mesmo, seja ela orgânica ou psíquica, pois o significante<br />

altera a própria mecânica do corpo. 45 Golse 14 ainda destaca que todos os fenômenos de<br />

transmissão encontram-se na dinâmica do conflito ambivalente primário entre pulsão de<br />

vida e pulsão de morte.<br />

Laznik 29 destaca a importância da construção de um lugar imaginário para o<br />

bebê no psiquismo parental, pois é fundamental que, no confronto com o real do corpo<br />

do bebê, os pais possam envolver o organismo da criança com palavras, encontrando, no<br />

bebê real, a criança construída imaginariamente <strong>em</strong> seu fantasma, que na criança<br />

possam ser encarnadas as marcas familiares, dizeres que a antecederam, havendo o<br />

recobrimento, pelo imaginário dos pais, do real do corpo do filho. 46<br />

Há uma mãe desejante <strong>em</strong> toda gestação, mesmo que impere a<br />

ambivalência. 47<br />

Não se sabe a que desejos a gravidez v<strong>em</strong> corresponder, mas é<br />

identificável a existência de um lugar de expectativas, medos e anseios que lhe diz<strong>em</strong><br />

respeito. 47 A chegada de um bebê que possa se constituir como bebê humano pressupõe<br />

sua espera; é na antecipação de sua chegada, tecida a partir de identificações, projeções<br />

e fantasias que algo da ord<strong>em</strong> psíquica pode ser construído para acolhê-lo. S<strong>em</strong> esta


35<br />

construção de um “berço psíquico” feito pelos pais, o bebê viveria a catastrófica<br />

experiência de queda da construção psíquica, vivendo o puro real do corpo. 47<br />

Houzel 42<br />

considera três eixos <strong>em</strong> torno dos quais se pod<strong>em</strong> articular o<br />

conjunto das funções adquiridas e des<strong>em</strong>penhadas ou não pelos pais: exercício da<br />

parentalidade, experiência da parentalidade e prática da parentalidade.<br />

Exercício da parentalidade diz respeito ao sentido jurídico, exercício de um<br />

direito, situando pais e filhos nos seus laços de parentesco e os direitos e deveres<br />

decorrentes destes. Trata-se de um conjunto estruturado por laços complexos de<br />

pertinência (afiliação), filiação e aliança. No plano do desenvolvimento psíquico<br />

individual, o exercício da parentalidade está relacionado aos interditos que organizam o<br />

funcionamento psíquico. 42<br />

Experiência da parentalidade r<strong>em</strong>ete à experiência subjetiva consciente e<br />

inconsciente do fato de vir a ser pai/mãe e de preencher papéis parentais. Houzel 42<br />

destaca que este eixo compreende numerosos aspectos, destacando: o desejo pela<br />

criança e o processo de transição <strong>em</strong> direção à parentalidade (por ex<strong>em</strong>plo,<br />

modificações psíquicas que se produz<strong>em</strong> nos pais no decorrer da gravidez e pós-parto,<br />

como a PMP e a síndrome de couvade, H<br />

tendo <strong>em</strong> vista a transição para a<br />

parentalidade). 42<br />

Prática da parentalidade: designa as tarefas cotidianas que os pais dev<strong>em</strong><br />

executar junto à criança na área dos cuidados parentais (físicos e psíquicos). 42<br />

Esses três eixos estão presentes no dia-a-dia das interações entre pais e<br />

filhos, r<strong>em</strong>etendo à situação real da criança, à realidade psíquica de cada um dos<br />

H Síndrome de Couvade: resguardo do pai, representado <strong>em</strong> algumas culturas como um rito facilitador do<br />

reconhecimento da paternidade, retratando simbolicamente seu envolvimento com a gestação e<br />

comprometimento com o filho. A couvade pode ter início durante o período gestacional, surgindo através<br />

de sintomas como náuseas, vômitos, aumento de peso, cálculo renal. 48


36<br />

parceiros da constelação familiar e à dimensão simbólica da parentalidade e da<br />

filiação. 42<br />

O conceito de parentalidade ilustra como a formação do vínculo se assenta<br />

sobre as entranhas do psiquismo parental desde sua formação e deve sua potencialidade<br />

ao <strong>em</strong>préstimo do narcisismo dos pais, de modo que o status de filho só pode ser<br />

atribuído a partir da subjetividade da família e dos pais. 43,47 O lugar ocupado pela<br />

criança na probl<strong>em</strong>ática psíquica da mãe, do casal e na história transgeracional da<br />

família é, portanto, um aspecto fundamental no interjogo das interações posteriores. 43<br />

2.4 Função materna, função paterna<br />

e estruturação infantil<br />

Giovanni Maria Benzoni - Fuga de Pompéia<br />

À medida que foi sendo reconhecido e explicitado o fato do bebê ser um<br />

parceiro ativo e iniciador nas interações, a função materna passou a não mais ser vista<br />

no sentido de criadora da ord<strong>em</strong> frente ao caos de um bebê desorganizado, mas de<br />

adaptar-se a uma organização já existente no bebê, observando-se a construção e troca<br />

de interações mútuas. 7,9,22<br />

Winnicott 23,49 associa função materna e prevenção, teorizando que as bases<br />

da saúde mental são estabelecidas pelo ambiente facilitador da preocupação materna


37<br />

primária, pela capacidade de identificação da mãe com seu bebê. Definindo o papel da<br />

mãe, esse autor se refere à mãe devotada como aquela capaz de se adaptar às<br />

necessidades fundamentais do filho, até este ter a conquista da sua unidade<br />

psicossomática. 23,49<br />

Winnicott 49 pontua que o primeiro grande encontro da mãe com o bebê<br />

ocorre pela alimentação. Seguindo por ex<strong>em</strong>plo, o desejo de mamada do filho, e<br />

adaptando-se quase completamente às necessidades deste, a mãe favorece ao bebê a<br />

importante experiência de dependência absoluta, geradora de confiança no outro. Se<br />

nessa fase não há uma mãe (ou cuidador) capaz de se conectar com o bebê, este fica<br />

num estado de não-integração, tornando-se apenas um corpo com partes soltas,<br />

ocorrendo as falhas primitivas no desenvolvimento, acarretando o surgimento de<br />

patologias mentais. 50<br />

A dependência do bebê para com a mãe é gradualmente substituída pela<br />

dependência relativa e pela autonomia, na medida <strong>em</strong> que introduz<strong>em</strong> falhas e<br />

frustrações necessárias ao processo de subjetivação da criança. Desse modo, a função<br />

materna envolve a alternância “presença e ausência”. 23,29<br />

A psicanálise t<strong>em</strong> a relação mãe-bebê como fonte das experiências<br />

fundantes do psiquismo, das primeiras relações de objeto da criança. A dor psíquica do<br />

bebê, diferent<strong>em</strong>ente da dor do adulto, é expressa mediante pequenos sinais, estilhaços<br />

de dor bruta presentes nos movimentos abruptos do corpo, g<strong>em</strong>idos, sobressaltos, gritos<br />

desarticulados, s<strong>em</strong> significantes. 51 Em sua relação com a mãe, esses sinais tornam-se<br />

mais específicos, onde esta <strong>em</strong>presta suas próprias palavras, gestos e significados à dor<br />

do bebê, ajudando-o a construir seus próprios significados. Esse trabalho interpretativo<br />

da mãe de seus próprios comportamentos e daqueles da criança, num movimento


38<br />

especular, constante, repetido e reversível, caracterizará os primórdios da comunicação<br />

dialógica. 38 Às respostas maternas, o bebê reage com uma satisfação tal que também<br />

adquire valor para a mãe. I Esse movimento dinâmico e recíproco induz um mais além<br />

que a simples satisfação da necessidade, mais além esse que põe o bebê na posição de<br />

desejante, pois <strong>em</strong> razão do que é interpretado como d<strong>em</strong>anda pela mãe, o bebê entra no<br />

universo do desejo que se inscreve entre necessidade e d<strong>em</strong>anda. É na reiteração da<br />

experiência de satisfação que o bebê se vê preso nas malhas do sentido (articulação<br />

entre simbólico e imaginário). 28<br />

Nas palavras de Cullere-Crespin 6 “pelo fato de que suas necessidades sejam<br />

entendidas como d<strong>em</strong>andas desejando ser<strong>em</strong> satisfeitas, o bebê humano deixa seu<br />

estatuto de ser de necessidade para se transformar <strong>em</strong> ser de desejo” (negrito meu)<br />

(2004: 24). 6 Assim, a mãe entende como d<strong>em</strong>anda aquilo que o bebê manifesta como<br />

necessidade, e se coloca duplamente frente ao filho: como mãe, desejando satisfazer seu<br />

filho, e como bebê que um dia foi, pondo <strong>em</strong> prática registros primitivos e inconscientes<br />

sobre a maneira como sua própria mãe cuidou dela como bebê, registros aos quais a<br />

mulher faz apelo ao cuidar do seu próprio filho. 6<br />

I O texto de Kaufmann 28 refere-se originalmente ao termo lacaniano “Outro” (grande outro), não “mãe”,<br />

trazendo-se este para simplificar a compreensão. “Outro” é uma complexa noção lacaniana que diz<br />

respeito ao conjunto dos el<strong>em</strong>entos que compõ<strong>em</strong> o universo simbólico no qual o indivíduo está<br />

mergulhado. Antes da gestação, o recém-nascido está contido no universo simbólico dos seus pais, tanto<br />

no aspecto individual destes, como num sentido mais geral (sociedade, cultura). Essa noção se refere a<br />

algo além de uma pessoa, d<strong>em</strong>arcando a ord<strong>em</strong> simbólica, representando a lei, a linguag<strong>em</strong>, a cultura,<br />

tendo uma dimensão de exterioridade <strong>em</strong> relação ao sujeito, e por isso uma função determinante. O Outro<br />

primordial é a mãe, não enquanto pessoa concreta, mas enquanto função, a função materna. A existência<br />

do Outro está atrelada a um lugar que pode ser ocupado por um substituto e ao cumprimento de uma<br />

função, a do referente estável, denominado “função de mãe”, des<strong>em</strong>penhado por qu<strong>em</strong> ocupa esse lugar.<br />

Assim, para Lacan, a mãe é para o bebê um pequeno outro servindo de grande Outro, na qualidade de<br />

interlocutora da relação primordial, transmitindo ao bebê aspectos reinterpretados por ela mesma do<br />

Outro que a determina. Assim, o Outro só pode atender à d<strong>em</strong>anda de alimento a partir de sua própria<br />

condição desejante. O “pequeno outro”, segundo Fernandes, 45 é o pólo investidor que vai transformar o<br />

corpo biológico <strong>em</strong> corpo erógeno, dando acesso à simbolização, ao corpo vivido como corpo próprio. 45


39<br />

O bebê necessita de alguém colocado no lugar de Outro para identificar os<br />

seus sinais de apelo e transformá-los <strong>em</strong> d<strong>em</strong>anda. 52 Ao longo dessas trocas, a mãe se<br />

r<strong>em</strong>ete ao sist<strong>em</strong>a simbólico ao qual pertence (seu universo simbólico individual,<br />

cultura e sociedade) e organiza as respostas ao filho, re-atualizando e re-significando<br />

seu próprio universo simbólico. 29 Aí está a individualidade do termo maternidade, onde<br />

cada mulher reage de maneira diferente ao seu bebê, com base <strong>em</strong> seu universo<br />

simbólico e <strong>em</strong> suas próprias representações, mesmo pertencendo a uma mesma cultura,<br />

a uma mesma família.<br />

Para a mãe escutar o corpo do bebê e interpretar os sinais deste, precisa ter a<br />

capacidade de investir libidinalmente esse corpo. De acordo com Fernandes, 45<br />

um<br />

investimento desta magnitude supõe que a mãe consiga experimentar prazer ao ter<br />

contato com o corpo da criança e ao nomear para ela (criança) as partes, funções e<br />

sensações desse corpo. Supõe que a mãe consiga transformar o “corpo de sensações” <strong>em</strong><br />

um “corpo falado”.<br />

Desse modo, o papel da mãe não é simplesmente assegurar a conservação da<br />

vida, mas, simultaneamente, permitir o acesso ao prazer através da promoção da<br />

sexualidade. Na falta desse investimento libidinal, a experiência do corpo ficaria ligada<br />

à necessidade, privada da descoberta do corpo de prazer. 29,45<br />

Abordando o papel de espelho da mãe e da família no desenvolvimento<br />

infantil, Winnicott 53 aponta que o bebê vê a si mesmo quando olha o rosto da mãe. A<br />

mãe reflete no seu olhar os estados <strong>em</strong>ocionais do seu bebê, o modo como o percebe.<br />

“Muitos bebês, contudo, têm uma longa experiência de não receber de volta o que estão<br />

dando. Eles olham e não se vê<strong>em</strong> a si mesmos.” (1975: 154-155) 53 Destacando a<br />

questão recíproca das interações, Camarotti 54 aponta que a mãe, por sua vez, ao olhar o


40<br />

filho, também se vê refletida, renarcisada ou, pelo contrário, não reconhecida <strong>em</strong> sua<br />

função.<br />

Para que a criança se veja na mãe (especularmente), precisa reconhecê-la<br />

como objeto de satisfação. No entanto, a mãe nunca será totalmente satisfatória, pois<br />

para ser reconhecida precisa produzir ciclos de alternância entre presença e ausência<br />

(física e simbólica), precisa “falhar”. A experiência de descontinuidade<br />

(presença/ausência da mãe) é estruturante, pois só assim a criança pode experimentar-se<br />

como sujeito desejante, separado da mãe (castrado). 6,18,29<br />

No s<strong>em</strong>inário IV Lacan 55 refere-se à constituição do sujeito a partir de sua<br />

relação com o objeto, ou seja, a relação com a falta do objeto. Distingue três registros<br />

diferentes da falta do objeto, que se articulam para a constituição do sujeito: privação,<br />

frustração e castração. J São três t<strong>em</strong>pos da vivência e transmissão da falta, onde cada<br />

t<strong>em</strong>po engloba e ressignifica o anterior. 55,56<br />

Num primeiro momento, a criança, sujeito da necessidade, grita, com fome.<br />

A mãe interpreta esse grito como apelo, convocada a satisfazer o filho, oferecendo<br />

alimento, objeto da satisfação da necessidade, acompanhado de desejo. Para a mãe<br />

interpretar esse chamado da criança como uma d<strong>em</strong>anda, é preciso que se apresente<br />

como matriz simbólica, alternando-se entre presença e ausência. A ausência é sentida<br />

pela criança como falta, privação, e incide de modos diferentes para a criança e para a<br />

mãe: a mãe se vê privada da criança como representante do objeto de seu desejo (o falo,<br />

objeto simbólico), enquanto a criança é privada da mãe, objeto real da satisfação de sua<br />

necessidade (leite). 56<br />

J Castração: operação da lei que regulamenta as trocas humanas, a interdição do incesto, ponto <strong>em</strong> que a<br />

incompletude é legalizada e a falta ganha o estatuto de motor psíquico, não de vazio a ser preenchido. 25,56


41<br />

Os objetos que a mãe oferece à criança sofr<strong>em</strong> uma mudança de estatuto e,<br />

<strong>em</strong> vez de objetos reais (leite), a mãe passa a ser a possuidora de objetos de “dom”<br />

simbólicos, K que pod<strong>em</strong> ser oferecidos ou não à criança (já na ord<strong>em</strong> da frustração). 56<br />

“A transmissão da falta é imprescindível para que o sujeito se constitua. É<br />

próprio do humano que a satisfação não seja alcançada pelo encontro com o objeto,<br />

pois a satisfação pulsional é parcial e promovida pelo exercício do desejo, guardado<br />

pela manutenção da falta” (2004: 127) 56<br />

A falta, <strong>em</strong> seu estatuto de castração, é pontuada no desenvolvimento da<br />

díade primordialmente com a entrada do pai. Como destacado por Guerra 55 “(...) graças<br />

ao interdito paterno ou castração simbólica, a criança é levada a recalcar sua<br />

identificação primordial ao objeto que satisfazia o desejo da mãe e a renunciar também<br />

ao seu papel de apenas preencher o vazio materno” (1995: 22). 57<br />

O ato castrador é visto pela psicanálise como operação simbólica, pois<br />

representa a lei que incide sobre o vínculo mãe-filho, rompendo a ilusão do ser humano<br />

de se acreditar possuidor ou identificado com a onipotência imaginária. 6,18,29 Essa é a<br />

essência do complexo de Édipo, apesar de geralmente ser enfatizado somente pelo<br />

drama da sexualidade. O complexo de Édipo, entendido como passag<strong>em</strong> ao simbólico, é<br />

um processo estruturante que se desenvolve <strong>em</strong> diferentes t<strong>em</strong>pos ou momentos, onde o<br />

primeiro t<strong>em</strong>po r<strong>em</strong>ete ao interdito paterno que leva ao desfusionamento mãe-filho,<br />

base de todo o resto. 57<br />

K Objetos de “dom” são objetos símbolo do amor que ganham terreno quando o objeto da necessidade é<br />

tomado pela via simbólica, implicando todo o circuito de trocas (orais, especulares, invocantes, anais), as<br />

possibilidades de substituição do objeto propriamente dito. O dom é aquilo que se dá pela mãe ao apelo<br />

da criança. A transformação do objeto real <strong>em</strong> objeto de dom é fundamental para introduzir a criança na<br />

ord<strong>em</strong> humana. 56


42<br />

Assim, é através da intervenção do pai (lei) como privador tanto da criança<br />

como da mãe, instaurador do simbólico, que se configura a possibilidade da criança se<br />

constituir como sujeito e ser introduzido na ord<strong>em</strong> da cultura. 57<br />

Portanto, a função materna é vivida (1) pela antecipação imaginária do que<br />

ainda não existe e (2) no quadro de uma dicotomia marcada pela presença-ausência da<br />

figura materna, (3) para cuja composição a função paterna t<strong>em</strong> um lugar decisivo. 41<br />

O pai também t<strong>em</strong> papel importante nas primeiras experiências de interação<br />

ao evidenciar e comunicar as descobertas interativas do bebê. 9,21 Quando o bebê<br />

responde favoravelmente aos investimentos parentais, isto é, ao se acalmar quando os<br />

pais buscam tranqüilizá-lo, se os segue com o olhar, se alimenta e mostra-se satisfeito,<br />

os pais se sent<strong>em</strong> renarcisados, elevados à posição de bons pais. Entretanto, no bebê que<br />

não responde adequadamente aos cuidados parentais, dá-se o oposto: cada aflição do<br />

bebê soa como uma mensag<strong>em</strong> crítica. 9<br />

Mazet & Stoleru 9 citam também o bebê apático, que se aproximaria do<br />

grav<strong>em</strong>ente desnutrido, desinteressado pelos que o cercam, permanecendo muitos<br />

períodos sonolento ou dormindo, pouco interagindo. Pode acontecer de os pais se<br />

acomodar<strong>em</strong> a essas reações da criança, acolhendo-as como “naturais”, ou alimentar<br />

mágoas contra o bebê que os frustra.<br />

A equipe de saúde, mais especificamente o pediatra, pode ser crucial nesses<br />

momentos, tanto na busca por novas formas de cuidados e estimulação, como no<br />

reconhecimento das competências do bebê e das modalidades interativas da díade/tríade,<br />

enquanto prevenção de perturbações do desenvolvimento. 9 O pediatra é o profissional<br />

de referência na primeira infância, tendo papel primordial na detecção de sinais<br />

precoces de probl<strong>em</strong>as e no encaminhamento das famílias ao psicólogo/psicanalista, ou


43<br />

até mesmo no manejo de certas situações clínicas que permitam aos pais se<br />

reposicionar<strong>em</strong> <strong>em</strong> relação ao filho. 18<br />

O papel da prevenção que cabe ao psicanalista é restabelecer o laço<br />

transferencial pais/bebê, para que o ambiente possa ser, ou voltar a ser, facilitador. 52<br />

2.5 Dinâmica e níveis de interação<br />

Mannoni 58 questiona o que representa para os pais o nascimento de um<br />

filho: desejam a recompensa ou a repetição de sua própria infância, onde o filho ocupará<br />

um lugar entre os sonhos perdidos dos pais, encarregado de preencher o que ficou vazio<br />

no passado parental, uma imag<strong>em</strong> fantasmática que se sobrepõe à sua pessoa real. Esse<br />

“filho de sonho” t<strong>em</strong> por missão reparar o que na história dos pais foi deficiente ou<br />

faltou, ou de prolongar o que eles tiveram que renunciar. 58<br />

Lebovici 12<br />

aborda a questão da parentalidade e dos primórdios da vida<br />

psíquica mediante a construção de representações que os pais criam a respeito do bebê,<br />

antes e depois do nascimento: bebê fantasmático, bebê imaginário e bebê real.<br />

Buscou-se no presente estudo a compreensão do como se articulam essas<br />

representações, fantasmas, projeções, afetos, desejos e comportamentos no desenrolar<br />

das interações, através da observação das díades segundo três níveis de interação<br />

didaticamente divididos – interação fantasmática, interação comportamental e<br />

interação <strong>em</strong>ocional ou afetiva. A compreensão do interjogo entre os níveis de<br />

interação, os significados a respeito do bebê, o investimento no bebê real, o qual põe <strong>em</strong><br />

questão o bebê fantasmático e o imaginário. 51


44<br />

2.5.1 Interação fantasmática ou segundo as<br />

representações mentais maternas precoces<br />

Gustav Klimt – Morte e vida<br />

Segundo Golse, 59<br />

a interação fantasmática refere-se às representações<br />

mentais inconscientes precoces da mãe (antes e durante a gestação), inseridas ou não <strong>em</strong><br />

seus projetos concretos, as quais pod<strong>em</strong> influenciar sua relação com a criança, o estilo<br />

interativo, e o modo de funcionamento do filho.<br />

A interação fantasmática se define como a influência recíproca da vida<br />

psíquica da mãe, do pai e do bebê. Nesse nível, pontua-se o modo como os conteúdos<br />

psíquicos de ambos os parceiros se manifestam nas interações observáveis e como os<br />

fantasmas de um respond<strong>em</strong> e/ou modificam os fantasmas do outro. 9,13<br />

É a esta criança profundamente inscrita na vida mental inconsciente e infantil<br />

dos pais que Lebovici 12<br />

atribui o nome criança fantasmática, enquanto “criança<br />

imaginária” L é aquela que figura nos sist<strong>em</strong>as pré-consciente/consciente. 9<br />

como: 9,10,13,59<br />

Na análise das interações fantasmáticas, é importante abordar aspectos<br />

• Expectativas, antecipações, fantasias e identificações da mãe acerca do<br />

futuro da criança - sexo, escolha do nome e apelido da criança (qu<strong>em</strong>


45<br />

escolheu, por que, quais as associações e recordações ligadas aos mesmos),<br />

aparência física, saúde, comportamento;<br />

• Percepções maternas sobre si própria, como mãe e como pessoa e do seu<br />

parceiro conjugal;<br />

• Percepções da mãe sobre seus próprios pais, como pais e como pessoas;<br />

• Mudanças nas relações dos pais com a própria mãe a partir do nascimento da<br />

criança;<br />

• Atitudes, reações e defesas da mãe e da criança. Neste sentido, Mazet &<br />

Stoleru 9 consideram que uma das modalidades mais importantes da interação<br />

fantasmática é a transmissão à criança, por parte da mãe, de certo sist<strong>em</strong>a<br />

defensivo (mecanismos de defesa).<br />

L O bebê vivido psiquicamente pela mãe, durante a gravidez, como parte do seu corpo, idealizado,<br />

portador de sonhos e devaneios maternos, b<strong>em</strong> como de valores transmitidos intergeracionalmente,<br />

segundo Lebovici. 12


46<br />

2.5.2 Interação comportamental<br />

Gisela Benatti – Série “Madonas Históricas”<br />

Golse 59 considera que este nível de interação engloba el<strong>em</strong>entos da interação<br />

pré-natal (movimentos do bebê no útero, influência de estados tônicos da mãe no feto,<br />

sentimentos relativos a esses movimentos) e o reflexo ou desenvolvimento destes no<br />

pós-natal (influência de estados tônicos da mãe no bebê/criança pequena – diálogo<br />

tônico entre a mãe e a criança – ou seja, aconchego tônico da mãe com a criança ao<br />

longo da interação, a posição da cabeça da criança na amamentação, ajuste ao corpo<br />

materno, etc).<br />

O bebê é reconhecido como parceiro ativo nesse diálogo tônico até mesmo<br />

desde o período pré-natal, manifestando comportamentos intra-uterinos de encolhimento<br />

e relaxamento, por ex<strong>em</strong>plo. 9,19<br />

Mazet & Stoleru 9 faz<strong>em</strong> menção ao conceito de diálogo tônico, esclarecendo<br />

que este designa o conjunto de trocas mediadas pela maneira como a criança é segurada,<br />

agarrada, mantida, e como o bebê responde, isto é, a interação entre as posturas dos<br />

parceiros e o tônus muscular correlativo.<br />

O bebê já está imerso <strong>em</strong> um universo de linguag<strong>em</strong> antes mesmo de nascer.<br />

Portanto, é esperado como falante, imaginado como capaz de se expressar, ainda intraútero,<br />

inserido <strong>em</strong> um campo de linguag<strong>em</strong>, submetido desde seu início às suas<br />

incidências. 52


47<br />

Quanto aos el<strong>em</strong>entos representativos deste nível de interação, destacam-se<br />

aspectos diretamente observáveis como: 9,10,13,59<br />

• As ações - a maneira como o bebê é cuidado, segurado e manipulado nas<br />

atividades de rotina (sensibilidade e resposta materna às manifestações de<br />

conforto e desconforto da criança, mudanças de posição);<br />

• As interações corporais - toque, contato cutâneo, movimento corporal,<br />

carícias, exploração do corpo, ajustes posturais e motores;<br />

• As interações visuais - interação face-a-face, comportamento de esquiva ou<br />

proximidade do contato olho-a-olho;<br />

• As interações vocais e/ou verbais - conteúdo das verbalizações maternas,<br />

entonação, linguag<strong>em</strong>, canto, choro, riso;<br />

• Os comportamentos de ternura - beijos, afagos, abraços, sorrisos;<br />

• Os ciclos de interação, a sincronicidade - alternância de respostas e dos<br />

ciclos de atenção e desligamento, troca de papéis, reciprocidade, controle no<br />

ritmo interativo.


48<br />

2.5.3 Interação <strong>em</strong>ocional ou afetiva<br />

Gustav Klimt - As três idades da mulher<br />

As interações afetivas diz<strong>em</strong> respeito ao clima afetivo das interações e à<br />

influência recíproca da vida <strong>em</strong>ocional do adulto e do bebê. Situações patológicas como<br />

a da mãe deprimida, mostram que o bebê é capaz de perceber e sofrer <strong>em</strong> conseqüência<br />

dos afetos negativos, da não-contingência ou da inexpressividade materna. 13<br />

A interação afetiva leva <strong>em</strong> consideração o fato de que cada parceiro percebe de<br />

maneira mais ou menos precisa o estado afetivo do outro, respondendo com um estado<br />

afetivo que produzirá um novo afeto no parceiro. 9<br />

Golse 60 esclarece que este nível de interação se desenvolve durante o primeiro<br />

ano da criança, principalmente no segundo s<strong>em</strong>estre. O bebê, mesmo s<strong>em</strong> falar,<br />

reconhece os estados afetivos da mãe, e, da mesma forma, a mãe é informada sobre o<br />

estado <strong>em</strong>ocional do seu bebê muito antes que este possa dizer “eu estou triste” ou<br />

“você está triste”.<br />

Quanto aos el<strong>em</strong>entos representativos deste nível, destacam-se os afetos e suas<br />

formas de expressão: 9,10,13,59<br />

• Atenção e sensibilidade aos sinais da criança - interpretação dos sinais,<br />

intensidade da estimulação, qualidade das respostas, escolha de atividades


49<br />

adequadas levando <strong>em</strong> conta a idade, as condições e o desenvolvimento da<br />

criança assim como a situação;<br />

• Responsividade, reciprocidade e os intercâmbios - respostas apropriadas<br />

<strong>em</strong> t<strong>em</strong>po compatível, mutualidade;<br />

• Tonalidade <strong>em</strong>ocional dominante nas trocas afetivas - sentimentos<br />

manifestos no comportamento, no contato corporal, na linguag<strong>em</strong> e na<br />

comunicação <strong>em</strong> geral, o compartilhar das experiências <strong>em</strong>ocionais, a<br />

estabilidade das manifestações afetivas e a sincronia com a situação, a<br />

harmonia nas trocas afetivas;<br />

• As transformações da interação - acompanhando o desenvolvimento físico e<br />

psíquico do parceiro;<br />

• Destaca-se que mais do que a natureza das palavras do discurso materno é o<br />

afeto expresso pela entonação, ritmo, tom, timbre e o sentido da palavra<br />

materna, b<strong>em</strong> como as reações da criança a estas, a atenção que ela dá à mãe,<br />

<strong>em</strong> particular o modo visual, as vocalizações e os sorrisos que pod<strong>em</strong><br />

responder aos afetos maternos.<br />

Durante a observação da díade, cab<strong>em</strong> as seguintes perguntas: a mãe percebe as<br />

mensagens da criança, os sorrisos e gestos dirigidos a ela De que maneira a mãe os<br />

responde Reciprocamente, quais são as respostas da criança às comunicações que lhe<br />

dirige sua mãe, às suas palavras, aos seus olhares, aos seus gestos 9,14<br />

Um último el<strong>em</strong>ento a ser considerado na análise da interação afetiva diz<br />

respeito ao clima <strong>em</strong>ocional percebido pelo pesquisador, “devido <strong>em</strong> parte à interação<br />

que efetivamente t<strong>em</strong> lugar diante dele (e que o implica) e <strong>em</strong> parte às suas próprias<br />

reações psicológicas no interior desta situação” (1990: 122). 9 Cabe ao pesquisador<br />

reconhecer essa dinâmica psicológica, de modo que sua sensibilidade e <strong>em</strong>patia, ao


50<br />

invés de atrapalhar a análise dos el<strong>em</strong>entos da observação, constituam instrumentos<br />

essenciais para perceber as diferentes matizes da interação afetiva.<br />

2.6 As interações nas situações<br />

desfavorecidas<br />

Finbarr O'Reilly – O rosto da verdade<br />

Até o momento buscou-se abordar a interação da díade num processo de<br />

desenvolvimento normal. No entanto, como se caracteriza a interação mãe-criança nas<br />

situações desfavorecidas, a saber, nos ambientes inóspitos como <strong>em</strong> guerras, nos<br />

campos de refugiados, <strong>em</strong> instituições, na hospitalização, diante da desnutrição<br />

Buscar-se-á centrar a discussão enfocando a interação mãe-criança<br />

desnutrida grave no contexto da hospitalização. A criança hospitalizada tende a se<br />

deparar com sentimentos como medo, ansiedade, desamparo, percebendo-se frágil<br />

corporal e <strong>em</strong>ocionalmente, tendendo a reações diversas, tais como regressões, estados<br />

depressivos, fobias e transtornos de comportamento. Além disso, vê-se afastada de seu<br />

cotidiano (atividades, rotinas, familiares e amigos, cheiros, gostos, sons). 60<br />

Na internação, a mãe (ou substituto) aparece como figura de apoio à criança,<br />

mas que, por sua vez, também vivencia medos. A reação materna frente à hospitalização<br />

des<strong>em</strong>penha um papel fundamental na forma como a criança lida com sua própria<br />

situação de internação. 60


51<br />

Junqueira 60 destaca que a reação da criança à hospitalização depende de<br />

vários fatores, particularmente do tipo de vínculo afetivo mãe-filho estabelecido antes<br />

da internação, a idade, personalidade da criança, suas vivências anteriores assim como<br />

as de sua família frente à internação (a reação da mãe e familiares), t<strong>em</strong>po de duração da<br />

hospitalização, atitude da equipe hospitalar.<br />

Falbo & Alves 61 destacam que no Nordeste do Brasil, as formas graves de<br />

desnutrição energético-protéica (DEP) chegam a atingir 24,0% das crianças menores de<br />

cinco anos de idade, hospitalizadas.<br />

No tratamento hospitalar da criança grav<strong>em</strong>ente desnutrida, a OMS 1 definiu<br />

diretrizes para reduzir o risco de morte, encurtar o t<strong>em</strong>po de permanência no hospital e<br />

facilitar a reabilitação e recuperação completa. A OMS 1<br />

recomenda, no contexto<br />

hospitalar, cuidado para evitar a deprivação sensorial, que a mãe (ou cuidador) esteja<br />

com a criança no hospital, e que seja encorajada a alimentá-la, carregá-la, confortá-la e<br />

brincar com ela tanto quanto possível. O número de adultos a interagir com a criança<br />

deve ser pequeno, e após procedimentos médicos como punção venosa, a criança deve<br />

ser carregada e confortada. 1<br />

Na busca por referências bibliográficas <strong>em</strong> importantes bases de dados<br />

(Pubmed, Scielo e Lilacs), os únicos estudos localizados abordando diretamente a<br />

relação da díade e desnutrição foram os do grupo de Nóbrega, 2,3 Campos et al 16 e<br />

Valenzuela, 62<br />

todos abordando o vínculo ou o apego, mas não a psicodinâmica<br />

interativa. O <strong>em</strong>prego da observação da interação mãe-criança foi recorrente <strong>em</strong> estudos<br />

de Psiquiatria e Pediatria enfocando probl<strong>em</strong>as/desordens alimentares e sua associação<br />

com a interação da díade. Entretanto, não foi localizado nenhum estudo sobre interação<br />

mãe-criança desnutrida grave hospitalizada com enfoque na compreensão da dinâmica<br />

interativa da díade.


52<br />

Valenzuela 62<br />

destaca a importância do ambiente de cuidados à criança<br />

(características de personalidade do cuidador) e das características nutricionais do<br />

ambiente intra-uterino e pós-natal precoce no desenvolvimento do apego. Se a<br />

subnutrição precede distúrbios de apego ou se cuidados inadequados preced<strong>em</strong> o<br />

aparecimento de déficits no peso, essas relações têm importantes implicações nas<br />

estratégias de intervenção. Déficits no peso pod<strong>em</strong> ao mesmo t<strong>em</strong>po ser a causa e o<br />

efeito de padrões inadequados de apego. 62<br />

Zavashi et al 63 <strong>em</strong> artigo sobre a influência de aspectos socioeconômicos<br />

desfavoráveis à interação mãe-bebê, destacam que as conseqüências da pobreza sobre o<br />

desenvolvimento da criança estão relacionadas com a estrutura familiar. Assim, essas<br />

adversidades, somadas às características individuais, funcionam como fatores de risco<br />

adicionais ao relacionamento pais-filhos. Famílias pobres tend<strong>em</strong> a acumular fatores de<br />

risco, internalizados e reeditados, de modo que a continuidade intergeracional desses<br />

acaba perpetuando a pobreza. Como fatores protetores ao desenvolvimento infantil t<strong>em</strong>se<br />

a personalidade dos pais, coesão familiar e o sist<strong>em</strong>a externo de suporte. 63<br />

Há que se considerar os casos <strong>em</strong> que a desnutrição reflete a extr<strong>em</strong>a<br />

pobreza socioeconômica da díade. Exist<strong>em</strong> também circunstâncias <strong>em</strong> que a desnutrição<br />

aponta probl<strong>em</strong>as de outra ord<strong>em</strong> que não socioeconômica. Nóbrega et al 2 pontuam que<br />

só os fatores pobreza e falta de comida não bastam para explicar a desnutrição, podendo<br />

a DEP estar relacionada a condições sócio-culturais e <strong>em</strong>ocionais que costumam<br />

acompanhar a pobreza e afetar o estado nutricional, o crescimento e o desenvolvimento<br />

da criança.<br />

Nóbrega et al, 2 abordando a condição nutricional de mães e filhos, destacam<br />

números no mínimo interessantes: das mães de desnutridos, 15,3% eram desnutridas,<br />

30,5% tinham sobrepeso ou eram obesas e 54,2% eram eutróficas. Portanto, 84,7% das


53<br />

mães de desnutridos não eram desnutridas. Nóbrega montou grupo de estudos e<br />

tratamento da desnutrição, levantando a hipótese de que por trás desses números estava<br />

o fraco vínculo mãe-filho. O grupo chegou a criar um instrumento para avaliação do<br />

vínculo mãe/filho. 3<br />

A OMS 1<br />

e o Departamento de Nutrição da Sociedade Brasileira de<br />

Pediatria 4 consideram que a DEP é uma desord<strong>em</strong> tanto de natureza médica como social<br />

que t<strong>em</strong> suas raízes na pobreza. É o resultado final da privação nutricional e,<br />

freqüent<strong>em</strong>ente, <strong>em</strong>ocional por parte daqueles que cuidam da criança, os quais, devido<br />

à falta de entendimento, pobreza ou probl<strong>em</strong>as familiares, são incapazes de prover a<br />

nutrição e o cuidado à criança. 1<br />

Com base <strong>em</strong> Nóbrega, 2<br />

o Departamento de Nutrição da Sociedade<br />

Brasileira de Pediatria 4 desenvolveu modelo causal da desnutrição na infância, incluindo<br />

o aspecto do fraco vínculo mãe-criança, como importante fator para a instalação e<br />

perpetuação da DEP.


54<br />

Block & Krebs 64 descrev<strong>em</strong> a “síndrome da falha no desenvolvimento”<br />

(Failure to Thrive - FTT), pontuando que, apesar da causa fundamental da FTT ser a<br />

deficiência nutricional, a síndrome pode ser multicausal, desde orgânica, a nãoorgânica,<br />

e que essas pod<strong>em</strong> estar associadas. Essa síndrome também foi objeto de<br />

estudo de Skuse 62 e Chatoor et al. 66<br />

Esses autores pontuam que o vínculo criança-cuidador pode ser um<br />

componente importante da síndrome, mas que FTT não é sinônimo de distúrbio do<br />

vínculo, uma vez que muitas crianças têm a síndrome s<strong>em</strong> que tenham probl<strong>em</strong>as<br />

vinculares, b<strong>em</strong> como n<strong>em</strong> todas as crianças com probl<strong>em</strong>as de vínculo têm probl<strong>em</strong>as<br />

de crescimento e desenvolvimento. 64-66<br />

Deve-se considerar que muitos fatores<br />

concorrentes para FTT (pobreza, depressão materna, negligência) aumentam o risco de<br />

distúrbios vinculares. Assim, é recomendado que o clínico considere sua consulta<br />

associada a um profissional de saúde mental, para que este avalie o vínculo cuidadorcriança.<br />

64<br />

Skuse 65 recomenda que a intervenção clínica observe as contribuições feitas<br />

pelo cuidador e pela criança para a dinâmica interativa e assim quebrar o círculo vicioso<br />

de comportamento interativo mal-adaptado. Pontua que a ênfase na culpabilidade<br />

parental como etiologia da FTT, na ausência de evidência direta de negligencia parental,<br />

é inadequada, devendo ser abolida. 65<br />

De acordo com Kerr, Bogues & Kerr, 67<br />

a desnutrição infantil entre<br />

populações <strong>em</strong>pobrecidas e a FTT <strong>em</strong> sociedades ricas são freqüent<strong>em</strong>ente supostas<br />

como entidades diferentes, com origens diferentes. No entanto, observaram que o perfil<br />

das mães de crianças desnutridas apresenta importante s<strong>em</strong>elhança com o perfil das de<br />

crianças com FTT. 67<br />

Identificaram como características das mães de desnutridos:<br />

condições desorganizadas de moradia e <strong>em</strong>prego; contatos sociais reduzidos; ausência


55<br />

ou falta de apoio paterno; relacionamentos esteriotipados e transitórios, focados <strong>em</strong><br />

aspectos materiais; preocupações narcísicas maternas precedendo as necessidades da<br />

criança; experiências de privação na infância; comportamento apático e dependente ou<br />

manipulador e evasivo. 67<br />

Esses autores suger<strong>em</strong> como intervenções: não culpabilizar a mãe,<br />

identificando responsabilidades e estratégias maternas para a manutenção da saúde da<br />

criança; identificar e estimular recursos comunitários no apoio à mãe; e utilizar<br />

programas de intervenção que prioriz<strong>em</strong> não só a distribuição de alimento e as<br />

necessidades nutricionais da criança, mas também prover a família com suporte<br />

<strong>em</strong>ocional continuado, buscando prevenir a perpetuação de outra geração de pais<br />

privados. 67 Ammaniti et al 68 avaliaram os efeitos da idade e presença de patologias<br />

alimentares nos modos de relacionamento mãe-criança durante as refeições. O estudo<br />

confirmou a importância da análise das características individuais da criança, da mãe e<br />

do relacionamento da díade ao longo do desenvolvimento do padrão alimentar nos<br />

primeiros três anos de vida, quanto ao reconhecimento, diagnóstico e tratamento de<br />

desordens alimentares precoces. Os resultados enfatizam a utilidade clínica da pesquisa<br />

na identificação precoce de bebês e crianças <strong>em</strong> risco para probl<strong>em</strong>as alimentares. 68<br />

Chatoor et al 69 estudaram probl<strong>em</strong>as/desordens alimentares e sua associação<br />

com a interação mãe-criança. Propõ<strong>em</strong> que o termo “desord<strong>em</strong> alimentar” seja usado<br />

como um “diagnóstico guarda-chuva”, abarcando desordens alimentares mais<br />

específicas, como a anorexia infantil. O uso da observação da interação mãe-criança<br />

durante a alimentação, associada à história clínica, ao desenvolvimento e à história<br />

alimentar, foi considerada crucial. 69


56<br />

2.7 Fatores psicossociais de risco para a<br />

desnutrição (FPRDs) e para a nutrição<br />

(FPRNs)<br />

Portinari - Retirantes<br />

Solymos, 17 <strong>em</strong> estudo qualitativo exploratório de abordag<strong>em</strong><br />

fenomenológica sobre a experiência da mãe do desnutrido grave e fatores psicossociais,<br />

cita o conceito de “risco para a desnutrição”. É válida de nota a talvez inédita categoria<br />

observada pela autora: identificação da criança desnutrida com a mãe ou algum aspecto<br />

desta que contribua para a desnutrição. 17<br />

Solymos 17 identifica que <strong>em</strong> alguns casos ao invés do fraco vínculo mãefilho,<br />

ocorre uma forte ligação entre a díade, na qual o filho se identifica com a situação<br />

materna (alimentar-se pouco, viver sob stress), assumindo a fragilidade da mãe,<br />

conseqüent<strong>em</strong>ente desnutrindo. No fenômeno apontado por Nóbrega, 2 o distanciamento<br />

afetivo da mãe faz com que a criança fique “desnutrida de amor”, carente de cuidados e<br />

estimulação, afetando seu desenvolvimento psicológico e intelectual.<br />

Campos et al 16 , <strong>em</strong> trabalho interdisciplinar (nutricionista, psicólogo,<br />

assistente social e pediatra) avaliando mães de desnutridos, identificam que os fatores de<br />

risco para a desnutrição, além de econômicos, nutricionais e sociais, também diz<strong>em</strong><br />

respeito ao padrão de interação mãe-filho e às características de personalidade da mãe.<br />

Afirmam que todos esses fatores são tão importantes para a saúde mental da criança,<br />

como são os nutrientes e calorias para a saúde física.


57<br />

Outros trabalhos identificam como risco para desnutrição aspectos como:<br />

condição mental e psicológica da mãe (depressão e qualidade comprometida do vínculo<br />

com a criança), 2,3 estrutura familiar, situação de trabalho, sintomas de depressão na mãe,<br />

alcoolismo <strong>em</strong> algum m<strong>em</strong>bro da família. 70<br />

Solymos 17,71 ressalta a importância de, mais do que buscar a definição dos<br />

fatores de risco individuais, procurar a compreensão da interação entre esses fatores. É<br />

essa complexidade que pode explicar porque, num mesmo ambiente de risco, a<br />

desnutrição ocorre <strong>em</strong> algumas famílias e não <strong>em</strong> outras, ou atinge somente uma criança<br />

na família. 17 A autora propõe ainda a categoria “fatores psicossociais de risco para a<br />

nutrição” (FPRNs), os quais favorec<strong>em</strong> o enfrentamento das dificuldades vividas pelas<br />

mães, fortalecendo estas, proporcionando recursos adicionais para a solução de seus<br />

probl<strong>em</strong>as. 19 Essa definição aproxima-se da idéia de proteção (combate ao risco), como<br />

uma mudança da trajetória de vida, do risco para a adaptação. 17<br />

Sugere os seguintes fatores psicossociais de risco para a nutrição:<br />

estabilidade na família e no trabalho; filhos como fonte de significado para a vida;<br />

iniciativa para procurar recursos, pedir e aceitar auxílio, buscar soluções; abertura ao<br />

relacionamento com a equipe de trabalho (pesquisadores) – a partir dos contatos<br />

surgiam novos recursos, relacionamentos e alternativas de solução para os probl<strong>em</strong>as da<br />

mãe; relacionamentos de ajuda (ter alguém a qu<strong>em</strong> possa recorrer <strong>em</strong> momentos de<br />

necessidade). 17<br />

2.8 Risco, plasticidade e prevenção <strong>em</strong> psicanálise<br />

A noção de risco <strong>em</strong> psicanálise está baseada <strong>em</strong> dados retrospectivos,<br />

associando aspectos biológicos, socioeconômicos e psicológicos (psicodinâmicos).


58<br />

Cramer 22 destaca que uma das contribuições da psiquiatria do bebê é o fato de ter<br />

acrescentado aos fatores de risco na criança ou no seu meio, uma nova dimensão: a<br />

compreensão do sofrimento psíquico por meio de interações de risco, visando à<br />

prevenção.<br />

Risco e prevenção estão interligados <strong>em</strong> psicanálise, pois é somente na<br />

posterioridade que o sintoma se articula e ganha sentido. 6 A prevenção não consiste <strong>em</strong><br />

antecipar a aparição de um sintoma com base no risco previsto, mas <strong>em</strong> tentar<br />

compreender como estão articulados na díade/família os sinais de risco. 6,14 Estes não<br />

alertam sobre o que acontecerá, mas para o entendimento sobre como se configuram na<br />

díade/família. 6<br />

Prevenir não é antecipar, é intervir a t<strong>em</strong>po. A prevenção é benéfica, pois<br />

observa e atua com a díade <strong>em</strong> risco, mas a antecipação ou predição de um sofrimento<br />

psíquico da criança/díade é adoecê-la <strong>em</strong> seu vir a ser. 14<br />

Rohenkohl 70 aponta que elaborar sinais de risco, marcadores ou indicadores<br />

de dificuldades ou patologias infantis t<strong>em</strong> suas implicações, r<strong>em</strong>etendo o profissional de<br />

saúde às interações, ao laço da criança com seu cuidador. “Dada a unanimidade <strong>em</strong><br />

considerar a psicopatologia do bebê como uma psicopatologia da relação do bebê com<br />

qu<strong>em</strong> dele cuida, tornam-se de grande dificuldade as tentativas nosográficas dessa<br />

clínica” (2001). 72<br />

Destacam-se os trabalhos de Kupfer et al, 18 Almeida, 15,73 Cullere-Crespin 6 e<br />

Rohenkhol, 72<br />

todos apontando, com sua própria terminologia, com base na<br />

metapsicologia freudiana, para a condição relacional dos sinais de sofrimento/sinais<br />

positivos do desenvolvimento (Cullere-Crespin), sinais de dificuldades (Rohenkhol),<br />

indicadores clínicos de risco para o desenvolvimento infantil (Kupfer et al), indicadores<br />

de vulnerabilidade (risco)/plasticidade ou resiliência (Almeida).


59<br />

As pesquisas para obtenção e validação de indicadores clínicos de risco para<br />

o desenvolvimento infantil costumam ser criticadas junto a alguns psicanalistas <strong>em</strong><br />

função de princípios éticos e metodológicos da psicanálise tradicional. 6,74 As críticas<br />

consideram que a tentativa de intervir s<strong>em</strong> que haja um endereçamento e uma d<strong>em</strong>anda<br />

(d<strong>em</strong>anda do sintoma) está fadada ao fracasso, 74 uma vez que o tratamento psicanalítico<br />

favorece que o sintoma do sujeito possa se constituir e se endereçar a um Outro, na<br />

transferência. Abre-se, desse modo, importante debate a respeito dos indicadores<br />

clínicos.<br />

Kupfer et al 18 destacam que os indicadores clínicos, mais do que sinais de<br />

desdobramentos possíveis do desenvolvimento infantil (prognóstico), são indicadores de<br />

sofrimento no presente, entendidos como d<strong>em</strong>anda de ajuda, viabilizando intervenções<br />

clínicas <strong>em</strong> saúde coletiva que respeitam os processos singulares de subjetivação. Desse<br />

modo, desenvolv<strong>em</strong> pesquisa multicêntrica (incluindo o IMIP) para validação de<br />

indicadores de risco psíquico para o desenvolvimento <strong>em</strong> crianças nos primeiros 18<br />

meses de idade, visando à detecção precoce de transtornos psíquicos na infância. Esses<br />

indicadores r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> a falhas na construção e estruturação do sujeito psíquico, com base<br />

<strong>em</strong> quatro eixos fundamentais na relação mãe-filho: supor um sujeito, estabelecer a<br />

d<strong>em</strong>anda da criança, alternar presença-ausência, e função paterna (alterização). 18<br />

Cullere-Crespin 6 d<strong>em</strong>onstra que os probl<strong>em</strong>as envolvendo bebês e crianças<br />

pequenas são, sobretudo, perturbações no laço pais-filhos, sendo possível articular<br />

sinais funcionais observáveis no registro pulsional, tendo <strong>em</strong> vista a prevenção pela<br />

equipe de saúde dos distúrbios relacionais no hospital geral. Identifica sinais de<br />

sofrimento precoce (série barulhenta e série silenciosa) e sinais positivos de<br />

desenvolvimento, relativos ao desenrolar dos registros pulsionais (oralidade,<br />

especularidade e invocação). 6


60<br />

Rohenkhol 72 sugere a formalização dos sinais de dificuldades entre o bebê e<br />

seu cuidador primordial, considerando diferentes formas de entrelaçar d<strong>em</strong>anda e<br />

desejo, e os lugares ocupados pelo sujeito e Outro. Desse modo, distingue: 1- sinais de<br />

dificuldades que aparec<strong>em</strong> no corpo do bebê; 2- sinais que apontam para uma função<br />

que foi transbordada; 3- sinais que apontam para uma patologia do laço entre o bebê, os<br />

efeitos dos seus gestos e interesses, e seu cuidador primordial; 4- sinais que apontam<br />

para fracassos nas operações básicas de constituição do sujeito (autismo, psicoses). 72<br />

Almeida, 15,73 traz importante contribuição ao estudo das interações e seu<br />

caráter preventivo na t<strong>em</strong>ática alimentação/nutrição, destacando aspectos da<br />

psicodinâmica interativa da díade. Investiga a correspondência entre padrões de<br />

relacionamento pais-bebê e probl<strong>em</strong>as de alimentação infantil, refletindo sobre fatores<br />

facilitadores ou complicadores na superação de dificuldades alimentares. Sugere 15<br />

indicadores de risco/vulnerabilidade e 10 de resiliência/plasticidade frente a probl<strong>em</strong>as<br />

de alimentação infantil, d<strong>em</strong>onstrando como relações alimentares entre bebês e pais<br />

reflet<strong>em</strong> modalidades de “digestão” M<br />

e processamento de conteúdos <strong>em</strong>ocionais<br />

experienciados no relacionamento pais-criança. 73<br />

A psicopatologia infantil sugere que a criança dá sinais através daquilo que<br />

dispõe: seu corpo, ainda <strong>em</strong> construção significante, mas que já apresenta expressões<br />

somáticas importantes. Essas expressões por si só não são preditivas, somente<br />

indicativas, mas ganham expressão clínica de acordo com outros sinais que se<br />

apresentam, tanto do lado da criança, quanto do lado da mãe. 45<br />

M Digestão: digerir alimentos, digerir a função simbólica da alimentação e dos alimentadores.


61<br />

III Caminhos da Pesquisa<br />

3.1 Escolha da metodologia<br />

Considerando teoria e método como os pilares da pesquisa científica, a<br />

psicanálise e o método qualitativo foram os referenciais teórico/metodológicos adotados<br />

frente à natureza do probl<strong>em</strong>a estudado, devido ao fato de assumir<strong>em</strong> que o lugar do<br />

pesquisador é conseqüência de uma co-construção dinâmica, consciente e inconsciente.<br />

Pressupõ<strong>em</strong> escuta diferenciada do sujeito, singular, diferente do proposto pelo método<br />

quantitativo, na medida <strong>em</strong> que uma escuta diferenciada é propiciada, abrindo-se a<br />

possibilidade do sujeito escutar-se e ser escutado, promovendo dessa forma a<br />

subjetivação. 75<br />

Freud utiliza-se de três sentidos para a psicanálise: como método de<br />

investigação, como modalidade de tratamento e como conhecimento que o método<br />

produz - a teoria psicanalítica. 76<br />

Dentre os diferentes tipos de pesquisa <strong>em</strong> psicanálise (teórica, clínica e<br />

<strong>em</strong>pírica), pontua-se a pesquisa que se apóia e é orientada pela psicanálise, que visa<br />

responder questões colocadas por esta. 77 Utiliza conceitos psicanalíticos e diferentes<br />

técnicas de investigação com fins de teste e aplicação <strong>em</strong> outros cenários clínicos ou<br />

teóricos. Assim, clínica e pesquisa estão separadas pelas técnicas respectivas, mas<br />

unidas pelo método. 78<br />

Segundo Minayo, 79<br />

a pesquisa qualitativa trabalha com o universo de<br />

significados, crenças, valores e atitudes, o que corresponde a um espaço profundo das<br />

relações, processos e fenômenos não reduzíveis à operacionalização de variáveis.<br />

Turato 80 considera que o método qualitativo interpreta os significados - de<br />

natureza psicológica e compl<strong>em</strong>entarmente sociocultural – trazidos por indivíduos


62<br />

(pacientes, familiares, profissionais de saúde e sujeitos da comunidade) acerca dos<br />

múltiplos fenômenos pertinentes ao campo do processo da saúde-doença.<br />

O método qualitativo busca descrever a complexidade dos fenômenos com base<br />

na apreensão e interpretação dos sentimentos e atitudes, mediante a observação de<br />

situações reais e cotidianas, e da compreensão das significações que as pessoas<br />

traz<strong>em</strong>. 80<br />

Propõe a construção não-estruturada dos dados, construção de um<br />

conhecimento que possa representar um momento do objeto, susceptível de<br />

enriquecimento no próprio processo histórico de conhecimento. 80 Isto é, propõe recortes<br />

da realidade, que vão depender, necessariamente, do ponto de vista do pesquisador. 81<br />

Os instrumentos da pesquisa qualitativa fornec<strong>em</strong> flexibilidade na condução do<br />

processo de pesquisa e na avaliação de seus resultados, visto que o entrevistado t<strong>em</strong> um<br />

papel ativo na construção da interpretação do pesquisador. 80,82 O pesquisador concede<br />

ao entrevistado a oportunidade de opinar sobre sua compreensão, caracterizando o<br />

produto da entrevista como um texto negociado, resultante de um processo interativo e<br />

cooperativo envolvendo o entrevistado e o pesquisador na produção do conhecimento. 81<br />

A relação intersubjetiva entrevistador/entrevistado é fundamental no acesso<br />

aos significados, onde o entrevistador assume papel menos diretivo, favorecendo o<br />

diálogo com o entrevistado e fazendo <strong>em</strong>ergir os aspectos do t<strong>em</strong>a. 81<br />

Turato 80 analisa que no método qualitativo o pesquisador é chamado a usar<br />

um quadro eclético de referenciais teóricos no delineamento da pesquisa e para a<br />

discussão dos resultados, tendo <strong>em</strong> vista o espírito da interdisciplinaridade. Assim,<br />

sustenta-se <strong>em</strong> três atitudes identificadas como existencialista, clínica e psicanalítica, as<br />

quais propiciam, respectivamente: postura de acolhida das angústias e ansiedades<br />

inerentes do ser humano; aproximação própria de qu<strong>em</strong> já trabalha na ajuda terapêutica;


63<br />

e a escuta e valorização dos aspectos psicodinâmicos mobilizados na relação afetiva e<br />

direta com os sujeitos sob estudo. 80<br />

Portanto, a pesquisa qualitativa apoiada na psicanálise delineou a abordag<strong>em</strong><br />

teórico/metodológica deste estudo, uma vez que se buscou observar, descrever, analisar<br />

e interpretar os el<strong>em</strong>entos da psicodinâmica interativa da díade mãe-criança, tendo <strong>em</strong><br />

vista a complexidade do comportamento humano. A psicologia do desenvolvimento<br />

também serviu de referencial à compreensão do fenômeno da interação mãe-criança.<br />

3.2 Contexto da investigação<br />

O estudo foi realizado no IMIP, situado na Região Metropolitana central do<br />

Recife, no estado de Pernambuco, entidade não-governamental, filantrópica, s<strong>em</strong> fins<br />

lucrativos, tendo como missão precípua assistência médico-social, ensino e pesquisa.<br />

No IMIP são internados anualmente cerca de 19.200 pacientes pediátricos.<br />

Destes, cerca de 50 crianças (0,3%) são admitidas com <strong>em</strong>agrecimento agudo grave<br />

(peso/altura < -3 escore Z) e cerca de 200 (1,0%) com <strong>em</strong>agrecimento agudo moderado<br />

(peso/altura < -2 escore Z). 83<br />

A enfermaria “E” de pediatria foi utilizada para coleta dos dados por ser<br />

destinada ao tratamento de crianças com DEP grave. Está localizada no quarto andar do<br />

prédio de pediatria geral do IMIP, contando com nove leitos, podendo as crianças ser<br />

acompanhadas por um adulto.<br />

A brinquedoteca, local onde foram realizadas as entrevistas e parte das<br />

filmagens, fica localizada no sétimo andar do prédio de pediatria do IMIP. A sala<br />

utilizada para entrevistas e filmagens era climatizada e prezou pelo sigilo visual e<br />

auditivo. Algumas filmagens ocorreram no pátio da brinquedoteca (FOTOS 1 e 2).


64<br />

O setting de filmag<strong>em</strong> foi composto por colchonete para acomodação da<br />

díade, cesto com brinquedos diversos (bolas, chocalhos, tambor, peças de encaixe,<br />

boneca, fantoches, carros, telefone, panelinhas, pratinhos, xícaras, mamadeira, pedaço<br />

de tecido) e câmera filmadora ancorada no tripé (FOTOS 3 e 4).<br />

Foto 1 - Brinquedoteca<br />

Foto 2 - Brinquedoteca<br />

Foto 3 - Sala onde foram realizadas as entrevistas e<br />

algumas filmagens; tripé da filmadora e cesto com<br />

brinquedos (setting de filmag<strong>em</strong>)<br />

Foto 4 – Colchonete e cesto com brinquedos<br />

3.3 Seleção das díades<br />

A seleção foi circunstancial, de modo a incluir díades adequadas à aquisição<br />

das informações propostas nos objetivos do estudo. Tendo <strong>em</strong> vista a representatividade<br />

e a diversidade na investigação, refletindo a totalidade nas múltiplas dimensões, 84,85<br />

buscou-se abordar o fenômeno da interação mãe-criança <strong>em</strong> díades com o mesmo pano<br />

de fundo socioeconômico, porém que pudess<strong>em</strong> ilustrar com riqueza as diversas


65<br />

nuances do processo interativo (díades com/s<strong>em</strong> dificuldades aparentes na interação,<br />

díades com rede social vasta/precária, díades com dificuldade/facilidade na aquisição de<br />

alimento, dentre outros el<strong>em</strong>entos), nuances essas observadas grosso modo ao longo da<br />

entrevista de contato inicial com a díade e com base nos dados do prontuário da criança.<br />

Uma amostra ideal é capaz de refletir a totalidade nas suas múltiplas<br />

dimensões, propondo os seguintes critérios para a amostrag<strong>em</strong>: (a) definir claramente o<br />

grupo social mais relevante; (b) não esgotamento da amostrag<strong>em</strong> até o <strong>completo</strong><br />

delineamento do quadro <strong>em</strong>pírico da pesquisa - saturação; (c) flexibilidade da<br />

amostrag<strong>em</strong> e inclusão progressiva encaminhada pelas descobertas do campo e seu<br />

confronto com a teoria; (d) possibilidade de triangulação. 87<br />

Por triangulação<br />

compreende-se o uso concomitante de várias técnicas de abordag<strong>em</strong> e modalidades de<br />

análise, de vários informantes e pontos de vista de observação, visando à verificação e<br />

validação da pesquisa. 82,85<br />

3.3.1 Critérios de inclusão<br />

Criança:<br />

- Internada na enfermaria “E” do IMIP;<br />

- Idade entre seis e 18 meses;<br />

- DEP grave primária (indicador peso/altura < -3 escore Z, utilizando o padrão de<br />

referência OMS, 1 e/ou presença de ed<strong>em</strong>a simétrico envolvendo no mínimo os pés;<br />

este critério foi avaliado pelo médico, nutricionista e enfermeira – FIGURA 1).<br />

Mãe:<br />

- Acompanhar o(a) filho(a) ao longo da internação, permanecendo com este(a) com<br />

freqüência suficiente para participar da pesquisa (concluir o roteiro de entrevistas e<br />

filmagens).


66<br />

3.3.2 Critérios de exclusão<br />

Criança:<br />

- Com malformação, síndrome genética, retardo mental grave e/ou transtornos invasivos<br />

do desenvolvimento (autismo, psicose infantil precoce) e com qualquer outra doença<br />

crônica associada. Estimava-se que outra doença pudesse atrapalhar o processo de<br />

vinculação mãe-criança, b<strong>em</strong> como o próprio desenvolvimento motor e cognitivo da<br />

criança;<br />

- Com DEP secundária;<br />

- Internada s<strong>em</strong> a mãe biológica;<br />

- Que não viv<strong>em</strong> ou não mantém contato freqüente (s<strong>em</strong>anal) com a mãe biológica;<br />

- Com extr<strong>em</strong>o atraso do desenvolvimento, (a ponto de inviabilizar experiências<br />

interativas explícitas – com base na “Ficha de Acompanhamento do Desenvolvimento”<br />

– ANEXO 1, instrumento tomado neste estudo como referência desenvolvimentista,<br />

observando-se marcos do desenvolvimento maturativo, psicomotor, social e<br />

psíquico). 86,87<br />

Mãe:<br />

- Com probl<strong>em</strong>as mentais e/ou cognitivos visíveis que tivess<strong>em</strong> o discurso (associação<br />

de idéias, compreensão das perguntas) comprometido durante as entrevistas, a ser<br />

observado mediante contato inicial.<br />

Os dados foram obtidos entre Nov<strong>em</strong>bro de 2006 a Abril de 2007. Do total<br />

de mães contatadas (11), houve uma desistência logo no início da pesquisa (primeira<br />

mãe abordada); uma mãe foi ponderada como inelegível devido à dificuldade na<br />

fluência do discurso e outra deixou o hospital antes da finalização das entrevistas e<br />

filmagens, deixando o marido como acompanhante da criança. Deste modo,


67<br />

acompanharam-se oito díades ao longo do processo de hospitalização (dos primeiros<br />

dias à alta hospitalar), atendendo ao critério de saturação das respostas ou reincidência<br />

das informações, 82 ilustrando adequadamente o quadro <strong>em</strong>pírico da pesquisa.<br />

Figura 1 – Fluxograma de captação dos participantes e execução do estudo<br />

Enfermaria Desnutridos (“E”)<br />

Identificação de possíveis participantes: médico, nutricionista, burocrata e pesquisadora<br />

(11 díades abordadas)<br />

Critérios de Inclusão e Exclusão (contato inicial com mãe e criança)<br />

Elegíveis (10) Não Elegíveis (01)<br />

Termo de Consentimento Livre e<br />

Esclarecido<br />

Não aceitou participar (01)<br />

Aceitaram participar (09)<br />

Análise do prontuário, desenvolvimento<br />

de entrevistas, filmagens e observações<br />

(08) díades acompanhadas até a alta<br />

Mãe saiu do hospital<br />

antes do término das<br />

entrevistas e filmagens,<br />

deixando o marido <strong>em</strong><br />

seu lugar (01)


68<br />

3.4 Obtenção dos dados<br />

Priorizando aspectos do rigor ético e metodológico da pesquisa qualitativa,<br />

como a triangulação, contextualização e auditabilidade N , foram utilizadas entrevistas<br />

individuais s<strong>em</strong>i-estruturadas, observações (filmadas ou não) e anotações retiradas do<br />

prontuário médico da criança.<br />

A pesquisa qualitativa prioriza a utilização de mais de um instrumento na<br />

obtenção de dados, de modo a obter maior validação do estudo com a triangulação,<br />

possibilitando melhor compreensão dos significados e subjetividade do fenômeno<br />

estudado.<br />

O estudo permitiu a triangulação de técnicas (entrevistas, observações<br />

livres e através de filmagens, análise do prontuário médico), triangulação da teoria<br />

(utilização de múltiplas perspectivas teóricas para interpretar um único tipo de dado –<br />

psicanálise e psicologia do desenvolvimento) e triangulação de pesquisadores. 84<br />

O período de internamento nos casos de desnutrição grave geralmente dura<br />

de uma s<strong>em</strong>ana a meses, variando segundo a gravidade e resposta à terapêutica. O<br />

acompanhamento a cada díade durou entre cinco (o mais curto) a trinta e seis dias (mais<br />

longo). O acompanhamento pela pesquisadora foi praticamente diário, passando grande<br />

parte dos dias na enfermaria, fora os períodos <strong>em</strong> que estava na brinquedoteca com<br />

alguma mãe/díade, buscando diminuir o estranhamento inicial de sua presença. Tendo,<br />

inclusive, permanecido na enfermaria quando as mães saiam para almoçar, de modo a<br />

observar a reação das crianças ao afastamento materno.<br />

N<br />

Compreensão somativa, não verificativa, buscando maior aproximação do objeto de estudo e a<br />

triangulação de olhares. A pesquisa qualitativa realiza uma ciência de viabilidade, pois não pretende a<br />

verificação direta dos resultados e conclusões, mas explicar, apontar para um sentido da realidade, do<br />

fenômeno ou do processo estudado. 88


69<br />

Curiosamente, à medida que as mães se acostumavam com a pesquisadora,<br />

algumas delas passaram a solicitar que a pesquisadora “desse uma olhada” na criança,<br />

enquanto estavam fora.<br />

Por se acreditar que a estrutura do sujeito é a mesma <strong>em</strong> todos os lugares,<br />

pois não t<strong>em</strong> a ver com onde está, mas com a díade mesma, a psicodinâmica da<br />

interação mãe-criança pôde ser acessada e analisada no contexto da hospitalização.<br />

A entrada <strong>em</strong> campo foi precedida por contato com a equipe de apoio à<br />

enfermaria dos desnutridos graves (enfermeiras, auxiliares de enfermag<strong>em</strong>, médicos,<br />

nutricionistas e psicóloga), de modo a explicitar os objetivos do estudo e o papel da<br />

pesquisadora, uma vez que esta estaria <strong>em</strong> contato praticamente diário na enfermaria.<br />

Buscou-se a inserção gradual na enfermaria com um dos equipamentos da<br />

pesquisa: câmera filmadora. No sentido de permitir a familiarização da operadora<br />

(s<strong>em</strong>pre a pesquisadora) com o ambiente e o equipamento, b<strong>em</strong> como visando à<br />

familiarização das mães da enfermaria (mesmo aquelas que não participaram do estudo)<br />

com a presença da pesquisadora e seu equipamento de obtenção de dados, as mães<br />

foram convidadas a conhecer a filmadora (manusear e visualizar imagens provisórias,<br />

gravadas a título de teste). Algumas delas solicitaram fotos com seus filhos (a filmadora<br />

também era câmera fotográfica), sendo atendidas <strong>em</strong> sua d<strong>em</strong>anda, fato esse que<br />

facilitou a ambientação da pesquisadora.<br />

A filmadora foi utilizada <strong>em</strong> sua forma móvel (não fixo, s<strong>em</strong> o uso de tripé)<br />

na enfermaria, e na brinquedoteca foi utilizada tanto móvel como com suporte do tripé.<br />

Este instrumento foi escolhido <strong>em</strong> função das necessidades técnicas, qualidade da<br />

imag<strong>em</strong> e som, b<strong>em</strong> como tamanho e peso, de modo a interferir o mínimo possível na<br />

realização das filmagens. A pesquisadora fez breve curso (dois dias, 6:00 horas) para<br />

aprender a manusear o equipamento de alta tecnologia (filmag<strong>em</strong> <strong>em</strong> HD – hard disk ou


70<br />

disco rígido). A filmadora fazia correção automática da luz, não sendo necessário o uso<br />

de luz auxiliar. O equipamento dispunha de microfone interno, suficiente na captação do<br />

som.<br />

O equipamento utilizado na gravação das entrevistas foi o MP3, o qual<br />

consiste num equipamento com possibilidade para armazenar enorme quantidade de<br />

informações auditivas num espaço mínimo e com qualidade de som s<strong>em</strong>elhante a de um<br />

CD.<br />

O prontuário médico da criança foi utilizado na compreensão do<br />

tratamento e evolução clínica. Comumente, foram encontradas referências da equipe de<br />

saúde quanto a aspectos psicológicos da criança e sua mãe.<br />

A pesquisadora realizou imersão no ambiente hospitalar (enfermaria),<br />

acompanhando as díades quase que diariamente, desde os primeiros dias de internação à<br />

alta, descrevendo o processo de hospitalização no diário de campo. Esse registro<br />

continha descrições do ambiente, da díade, dos sentimentos e percepções da<br />

pesquisadora, recortes de falas de diversos atores, buscando contextualizar a<br />

transferência e contratransferência (esses aspectos serão retomados mais adiante). No<br />

mesmo foram realizadas também, anotações logo após as entrevistas e filmagens,<br />

propiciando afastamento afetivo por parte da pesquisadora, contando como mais um<br />

subsídio na compreensão da transferência e contratransferência, além das principais<br />

observações da equipe quanto ao tratamento e evolução clínica da criança (obtidas no<br />

prontuário médico), de modo que fosse descrito todo o processo de hospitalização da<br />

díade, da admissão à alta.<br />

Foi realizado estudo piloto para averiguar a adequação dos procedimentos<br />

escolhidos no acesso à psicodinâmica da interação mãe-criança, tendo <strong>em</strong> vista a<br />

validade/confiabilidade na aproximação do objeto.


71<br />

As observações e filmagens visaram obter imagens inesperadas da díade<br />

(comportamento da criança diante do afastamento materno, ao longo de brincadeiras<br />

inesperadas da díade, alimentação, brincar da díade na brinquedoteca – livre e diante do<br />

setting de filmag<strong>em</strong> – etc), baseadas nos objetivos do estudo e no referencial teórico.<br />

As observações foram utilizadas como compl<strong>em</strong>ento das verbalizações da<br />

mãe nas entrevistas a respeito de sua interação com a criança, e na compreensão da<br />

comunicação da díade. Isto é, a observação dos laços dinâmicos entre os sinais e<br />

comunicações da díade - os comportamentos interativos, afetos mobilizados. Assim, as<br />

observações permitiram a comparação e compl<strong>em</strong>entação do discurso com as atitudes.<br />

A filmag<strong>em</strong> foi tomada como compl<strong>em</strong>entar na obtenção e análise dos<br />

dados, permitindo a observação de aspectos que não são possíveis por outros<br />

instrumentos, como a entrevista e o prontuário. Neste sentido, autores explicitam que há<br />

el<strong>em</strong>entos que não pod<strong>em</strong> ser apreendidos por meio da fala e da escrita, como o<br />

ambiente, os comportamentos individuais, a linguag<strong>em</strong> não-verbal, a seqüência, a<br />

t<strong>em</strong>poralidade <strong>em</strong> que ocorr<strong>em</strong> os eventos. 89,90<br />

A filmag<strong>em</strong> é indicada para estudo de ações complexas, difíceis de ser<strong>em</strong><br />

integralmente captadas e descritas por um único observador, minimizando a seletividade<br />

do pesquisador, uma vez que a possibilidade de rever várias vezes as imagens gravadas<br />

direciona a atenção para aspectos que teriam passado despercebidos, imprimindo maior<br />

credibilidade ao estudo. 89<br />

Optou-se por entrevistas individuais s<strong>em</strong>i-estruturadas, as quais foram a<br />

base da pesquisa, pois o objetivo foi conhecer <strong>em</strong> profundidade os significados,<br />

motivações e valores que sustentam as representações/visão da mãe (conscientes e<br />

inconscientes). A forma s<strong>em</strong>i-estruturada foi escolhida de modo a permitir a<br />

manifestação da mãe com intervenções delimitadoras por parte da pesquisadora, tendo


72<br />

<strong>em</strong> vista o foco do estudo, porém s<strong>em</strong> cercear o modo, forma e importância das falas e<br />

d<strong>em</strong>ais manifestações da entrevistada. Foi utilizada escuta diferenciada, buscando<br />

facilitar a associação livre do fluxo inconsciente, a fluência do discurso e a<br />

espontaneidade da mãe.<br />

A entrevista individual é tida como instrumento útil <strong>em</strong> estudos de caso,<br />

história oral, histórias de vida e biografias, que d<strong>em</strong>andam um nível maior de<br />

detalhamento. É preferida também quando a investigação aborda assuntos delicados,<br />

difíceis de ser<strong>em</strong> tratados <strong>em</strong> situação de grupo. 81<br />

As entrevistas buscaram ampliar o papel da entrevistada ao fazer com o que<br />

a pesquisadora mantivesse postura de abertura no processo de interação. Logo, buscouse<br />

explorar <strong>em</strong> profundidade o mundo subjetivo da entrevistada, mediante roteiro<br />

norteador (APÊNDICE 1), orientando a condução das entrevistas, s<strong>em</strong> impedir o<br />

aprofundamento de aspectos que pudess<strong>em</strong> ser relevantes ao entendimento do<br />

fenômeno.<br />

O roteiro permitiu, portanto, a análise de el<strong>em</strong>entos maternos, paternos,<br />

parentais, da criança e el<strong>em</strong>entos relacionais mãe-criança (também ilustrados pelas<br />

observações e filmagens), dinamicamente interligados.<br />

Com base na seqüência e organização do discurso da entrevistada, b<strong>em</strong><br />

como nas lacunas ou pontos pouco explorados, pouco explicitados, e na qualidade dos<br />

dados obtidos, foram realizadas entrevistas compl<strong>em</strong>entares, observando-se que o<br />

número de entrevistas foi variável (entre 4 e 7), b<strong>em</strong> como a duração. Salienta-se que,<br />

por vezes, a criança esteve com a mãe, mediante solicitação desta.<br />

As narrativas decorrentes pod<strong>em</strong> ser vistas como formas de expressão da<br />

interação mãe-pesquisadora, interação mãe-comunidade-sociedade-cultura, num


73<br />

movimento dialético, co-construído, onde as histórias são elaboradas e estão situadas<br />

entre os autores, narradores e a audiência. 91<br />

Assim, a interação foi vista não somente como t<strong>em</strong>a da pesquisa, mas como<br />

produto da própria pesquisa, num processo de produção e produto: objetivação da<br />

realidade e objetivação do pesquisador, o qual se torna produto de sua própria<br />

produção. 82 Nesse sentido, pode-se estabelecer o seguinte paralelo quanto às díades <strong>em</strong><br />

questão: díades objetivas (mãe-criança) e díades subjetivas (pesquisadora-mãe,<br />

pesquisadora-criança).<br />

As entrevistas e observações foram conduzidas, gravadas, filmadas e<br />

transcritas pela pesquisadora.<br />

Numa tentativa de aproximação entre pesquisa qualitativa e psicanálise, a<br />

“transferência” e “contratransferência”, fenômenos explicados pela última, foram<br />

considerados na relação intersubjetiva, sendo esta característica central do método<br />

qualitativo, concebida não como obstáculo, mas instrumento inevitável e clareador. 77<br />

Assim, a escolha por entrevistas se justifica por favorecer a relação intersubjetiva, b<strong>em</strong><br />

como na busca por significados às trocas verbais e não-verbais que se estabelec<strong>em</strong> nesse<br />

processo interativo. 89,90<br />

A transferência é um fenômeno que ocorre <strong>em</strong> todas as relações humanas.<br />

Trata-se de reedições de experiências, fantasias e conflitos intrapsíquicos oriundos de<br />

relações objetais anteriores, despertadas na relação com o outro, revividas não como<br />

parte do passado, mas como relação atual com a pessoa. 91 Pode ser compreendida como<br />

o momento <strong>em</strong> que o pesquisador é incluído nos estereótipos, nas séries psíquicas que o<br />

entrevistado construiu ao longo de sua vida. É a partir desse lugar que o pesquisador<br />

pode compreender a trama psicodinâmica das relações de objeto, das interações típicas<br />

do entrevistado, para além do comportamento manifesto. 75


74<br />

Portanto, a relação intersubjetiva/transferencial foi tratada como essencial na<br />

obtenção e análise dos dados, como um dispositivo ou instrumento inevitável e<br />

clareador. Refletir sobre essa relação significa preocupar-se com o que é transmitido<br />

sobre o funcionamento mental do participante e do pesquisador (contratransferência) O ,<br />

através do que ocorre nos níveis verbal e não-verbal, consciente e inconsciente. Mais<br />

ainda: certos aspectos da participante só puderam ser acessados a partir da compreensão<br />

dos sentimentos mobilizados na pesquisadora.<br />

A condução do fenômeno transferencial marca a diferença entre a técnica<br />

como modalidade de tratamento <strong>em</strong> psicanálise e o uso do método de investigação<br />

orientado por esta. A transferência não foi passível de interpretação, no aspecto<br />

psicanalítico, uma vez que o objetivo foi compreender e não trabalhar o fenômeno<br />

transferencial, diferente da técnica interpretativa no tratamento psicanalítico, que busca<br />

pôr <strong>em</strong> evidência e modificar o curso das motivações inconscientes das repetições<br />

transferenciais. 92<br />

O método psicanalítico considera o interjogo das reações transferenciais e<br />

contratransferenciais presente na relação pesquisador-participante. Uma vez que esse é<br />

um processo basicamente inconsciente, a necessária isenção e objetividade do<br />

pesquisador tende a ficar comprometida, se a referência for o <strong>em</strong>pirismo positivista. 93<br />

Porém, se adequadamente trabalhado, esse “comprometimento da objetividade do<br />

pesquisador” pode e deve ser um ponto fundamental para legitimar o método<br />

psicanalítico na pesquisa qualitativa, pois é o campo da experiência transferencial que<br />

constitui o campo da <strong>em</strong>piria freudiana. 76<br />

As observações e filmagens também modificaram, <strong>em</strong> certo ponto, o objeto<br />

da observação. O observador, quando descreve ou filma uma díade <strong>em</strong> interação, traz<br />

O<br />

Contratransferência foi entendido neste trabalho como o conjunto das reações inconscientes do


75<br />

consigo seus afetos, seus modos de comunicação e expressão verbal, gestual e visual,<br />

aos quais os sujeitos observados reag<strong>em</strong>, fazendo o observador reagir <strong>em</strong> contrapartida.<br />

Ambos esperam algo do outro nesta relação: o observador procura o objeto de sua<br />

pesquisa e reage face ao que observa (por ex<strong>em</strong>plo, privilegiando ou evitando certos<br />

ângulos de filmag<strong>em</strong>), enquanto o observado espera uma ajuda, sente-se curioso ou<br />

mesmo inconscient<strong>em</strong>ente estigmatizado ao ser objeto da observação. 89<br />

A própria investigação interfere no objeto a ser investigado e, por isso, não<br />

há neutralidade totalmente possível. A pesquisa está s<strong>em</strong>pre associada à realidade e à<br />

subjetividade do pesquisador. Assim, o pesquisador atua sobre o aquilo que pretende<br />

estudar, a partir de uma interação; há influências diretas e indiretas do pesquisador na<br />

própria ciência que produz, tendo <strong>em</strong> vista que sua produção sofre interferências de sua<br />

história e de seu funcionamento psicológico. 88 Nesse sentido, acredita-se toda pesquisa<br />

relacionada com o ser humano é essencialmente autobiográfica.<br />

Ressalta-se, entretanto, que certo distanciamento pode e deve ser buscado<br />

depois que a contratransferência tenha sido experimentada, criando um afastamento das<br />

reações corporais e sensoriais vividas ao longo das entrevistas e filmagens. 92 A escrita<br />

(diário de campo) e a troca de idéias com colegas de pesquisa auxiliaram neste trabalho.<br />

3.5 Estruturação e análise dos dados<br />

O desafio desta pesquisa foi dar sentido a uma grande quantidade de<br />

informações, identificando os aspectos mais significativos que pudess<strong>em</strong> revelar a<br />

essência do que os dados indicavam.<br />

O processo de análise ocorreu desde o trabalho de campo, formatando a<br />

coleta <strong>em</strong> andamento e auxiliando na compreensão do papel exercido por pesquisadora<br />

pesquisador à pessoa do entrevistado, especialmente à transferência deste.


76<br />

e entrevistada. Buscou-se também compreender o lugar que a criança parecia ocupar no<br />

universo materno, <strong>em</strong> função do discurso da mãe, das d<strong>em</strong>andas da criança, da<br />

psicodinâmica interativa da díade e da transferência e contratransferência.<br />

A análise dos dados buscou a correlação dos el<strong>em</strong>entos obtidos no<br />

prontuário da criança, nas entrevistas, observações, filmagens e diário de campo.<br />

A análise seqüencial auxiliou no desenvolvimento de hipóteses provisórias<br />

acerca do fenômeno <strong>em</strong> questão e dos papéis desenvolvidos/atribuídos por cada sujeito<br />

da pesquisa (mãe, criança, entrevistadora, hospital).<br />

Os dados relativos ao acompanhamento hospitalar das díades (dados do<br />

prontuário, observações escritas no diário de campo, filmagens na enfermaria e na<br />

brinquedoteca e entrevistas com as mães) foram ordenados e reunidos <strong>em</strong> dossiês - um<br />

para cada díade.<br />

As falas (entrevistas e filmagens) foram transcritas na íntegra, com uso<br />

mínimo das convenções da língua padrão culta, anotando-se também suspiros, risos,<br />

choros, pausas longas e certos comportamentos (andar pela sala, ninar, acariciar e<br />

amamentar a criança, dentre outros). As transcrições foram analisadas individual e<br />

coletivamente - discussões entre os m<strong>em</strong>bros da pesquisa - tendo <strong>em</strong> vista a<br />

auditabilidade (verificação somativa, não verificativa; triangulação de olhares), a<br />

representatividade dos significados e confiabilidade interna (através do debate interno<br />

com os orientadores e colaboradores da pesquisa, visando à troca de impressões e<br />

informações).<br />

Para análise das observações filmadas, foi utilizado roteiro (APÊNDICE 2).<br />

Na análise dos dados foi utilizada a metodologia “análise de conteúdo”,<br />

associada à técnica de análise da enunciação, descrita por Bardin 94<br />

A análise de<br />

conteúdo é definida como um conjunto de instrumentos metodológicos ou técnicas de


77<br />

análise da comunicação, visando obter indicadores que permitam a compreensão das<br />

condições de produção/recepção de mensagens. 82,94<br />

A técnica de análise da enunciação apóia-se numa concepção da<br />

comunicação como um processo dinâmico de elaboração, onde se confrontam as<br />

motivações, desejos e investimentos do sujeito, de certo modo acessíveis pela<br />

enunciação. 94<br />

Nessa modalidade, a dinâmica de cada produção é analisada através de<br />

indicadores que reforçam a idéia de singularidade e irredutibilidade de cada sujeito <strong>em</strong><br />

sua elaboração individual do discurso. Dentre esses indicadores, destacam-se: a<br />

seqüência e a dinâmica do discurso (a lógica que estrutura cada entrevista e as relações<br />

entre as proposições utilizadas pelo sujeito) e os el<strong>em</strong>entos atípicos (recorrências,<br />

lapsos, recusas, jogos de palavras, dentre outros). 94<br />

A análise da enunciação comporta ainda a dimensão t<strong>em</strong>ática, isto é, pod<strong>em</strong><br />

ser realizados recortes transversais de falas e atos de fala da díade, de modo que<br />

ilustr<strong>em</strong> t<strong>em</strong>as representativos dos níveis de interação mãe-criança. 94 Portanto, foram<br />

consideradas, não só as falas da mãe, como também, atos de fala desta e da criança, isto<br />

é, todas as produções que não perpassam pela fala, como olhares, toques, posições,<br />

gritos, silêncios, balbucios.<br />

A análise posterior à obtenção dos dados seguiu alguns dos passos descritos<br />

por Pope, Ziebland & Mays, 95 e Minayo: 82<br />

• Leitura flutuante e familiarização: imersão nos dados brutos, tendo <strong>em</strong> vista a<br />

compreensão dinâmica de cada caso, tomando contato exaustivo com o material,<br />

deixando-se impregnar por seu conteúdo, listando idéias chave, el<strong>em</strong>entos<br />

recorrentes, hipóteses iniciais e <strong>em</strong>ergentes;


78<br />

• Construção do corpus e de pontos norteadores: aprofundamento<br />

individual/vertical dos casos, identificação de conceitos e pontos norteadores a<br />

partir dos quais os dados foram examinados e referenciados com base nos<br />

objetivos/el<strong>em</strong>entos de análise do estudo;<br />

• Estrutura de análise: identificação de aspectos similares entre os casos<br />

(horizontalização), recorrentes, ilustrados por recortes de transcrições, núcleos<br />

de sentido, índices ou indexação e t<strong>em</strong>as centrais com subcategorias;<br />

• Análise comparativa e interpretativa dos t<strong>em</strong>as de cada díade, com as devidas<br />

indexações, identificando-se similaridades e singularidades nos casos.<br />

Não havia pressupostos anteriores de t<strong>em</strong>as pré-estabelecidos, conforme os<br />

princípios da psicanálise e da pesquisa qualitativa. O material coletado foi analisado<br />

com base nas categorias analíticas, porém respeitando-se a <strong>em</strong>ergência de novos t<strong>em</strong>as,<br />

assegurando que outros poderiam ser identificados ao longo do processo analítico, <strong>em</strong><br />

função das diferentes representações acerca dos fenômenos abordados.<br />

Após a <strong>em</strong>ergência dos núcleos de sentido, seguiu-se à indexação. As<br />

indexações buscaram não só associar e sintetizar as falas, mas também contextualizá-las<br />

e relacioná-las aos vídeos e observações do diário de campo, conjugando-as à teoria,<br />

comparando e contrastando com o conhecimento disponível. Assim, os t<strong>em</strong>as que<br />

des<strong>em</strong>bocaram das indexações <strong>em</strong>ergiram dos diversos dados transcritos.<br />

Os t<strong>em</strong>as <strong>em</strong>ergiram tanto de el<strong>em</strong>entos <strong>em</strong>píricos (vividos <strong>em</strong> campo),<br />

como de el<strong>em</strong>entos teóricos (derivados do marco teórico que norteou os objetivos<br />

preliminares). Segundo Bardin, 94 “o t<strong>em</strong>a é a unidade de significação que se liberta<br />

naturalmente de um texto analisado segundo critérios relativos à teoria que serve de<br />

guia à leitura” (p. 105).


79<br />

Os t<strong>em</strong>as de cada díade foram comparados de modo a identificar, a partir da<br />

singularidade, regularidades e desvios, ou seja, falas ou eventos que corroboram ou não<br />

as hipóteses provisórias, refinando-as, ilustrando as diversas modalidades interativas das<br />

díades. 95<br />

Assim, a síntese interpretativa apoiou-se na comparação das interpretações a<br />

respeito dos t<strong>em</strong>as, na revisão da literatura e na experiência da pesquisadora.<br />

Quanto ao tratamento dos dados, Gomes et al 84 estabelec<strong>em</strong> distinções a<br />

respeito de três perspectivas: descrição (os dados são tratados como fatos, opiniões dos<br />

informantes), análise (expande a descrição, decompondo os dados, buscando relações<br />

entre as partes) e interpretação (busca os sentidos das falas e das ações para alcançar a<br />

compreensão ou explicação para além dos limites da descrição e da análise). Segundo os<br />

autores, essas perspectivas não são mutuamente excludentes e pod<strong>em</strong> ou não coexistir<br />

formalmente. 84<br />

Ao longo do tratamento dos dados foi possível identificar essas três<br />

perspectivas, coexistindo e auxiliando na compreensão das diversas produções.<br />

3.6 Controle da qualidade das informações<br />

Visando o controle da qualidade das informações, buscou-se que a mãe se<br />

sentisse livre para construir seu discurso e apresentar seu ponto de vista, de modo que o<br />

produto final se aproximasse de um texto negociado, resultante de um processo<br />

interativo, envolvendo tanto o entrevistado como o pesquisador na produção do<br />

conhecimento. 81,82,85<br />

Os significados de cada mãe estão inseridos e se refer<strong>em</strong> a um determinado<br />

contexto, só podendo ser compreensíveis mediante aproximação da realidade individual.


80<br />

A análise contextualizada e complexa desses significados buscou a articulação entre<br />

teoria, método e criatividade diante do objeto, refletindo o critério de objetivação. 82<br />

Considerou-se a singularidade dos sujeitos (díade e pesquisadora), do<br />

contexto das entrevistas e observações, e da transferência desenvolvida, não passíveis de<br />

repetição <strong>em</strong> sua integralidade. Nesse sentido, retoma-se a ética do método<br />

psicanalítico, onde sua originalidade aponta a exclusividade do sujeito: o irreproduzível.<br />

O que se passa entre pesquisador, participante e ambiente, via transferência e<br />

contratransferência, enfim, no setting, não se restringe a um manual metodológico. 96<br />

A confiabilidade interna visou avaliações críticas das participantes, de modo<br />

que o produto final se aproximasse de um texto negociado, resultante de um processo<br />

interativo envolvendo tanto o entrevistado como o pesquisador na produção do<br />

conhecimento. 81,82,85<br />

A validade interna buscou homogeneidade e triangulação com o uso das<br />

técnicas de obtenção dos dados e de vários pontos de vista de pesquisadores (na<br />

análise), b<strong>em</strong> como manutenção dos mesmos instrumentos, ferramentas e pessoa da<br />

pesquisadora (ao longo da coleta e transcrição dos dados).<br />

As inferências com as teorias referenciais – psicanálise e psicologia do<br />

desenvolvimento – e com estudos nacionais e internacionais abordando o mesmo<br />

objeto, conferiram validade externa ao estudo. Assim, o questionamento a respeito do<br />

como a teoria está relacionada e é válida ou se aplica ao objeto, como reflete ou se<br />

aplica à sua realidade, foi almejado no sentido de validade do conteúdo/construto.<br />

3.7 Aspectos éticos<br />

A pesquisa está de acordo com a Declaração de Helsinque e com as Normas<br />

da Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Ética <strong>em</strong> Pesquisa e Conselho Nacional


81<br />

de Saúde. Tendo sido obtida a aprovação prévia do Comitê de Ética <strong>em</strong> Pesquisa <strong>em</strong><br />

Seres Humanos do IMIP (ANEXO 2). A coleta de dados foi realizada com prévia<br />

assinatura do Termo de Consentimento Livre e Esclarecido pelas mães das crianças<br />

participantes ou pelo seu responsável, quando a mãe era menor de idade (APÊNDICES<br />

3 e 4).<br />

Nos casos <strong>em</strong> que foi observada importante dificuldade na interação mãecriança,<br />

a ponto de interferir negativamente na evolução da criança, foi recomendada<br />

consulta com a psicóloga responsável pela enfermaria. O mesmo procedimento foi<br />

válido para os casos <strong>em</strong> que a mãe solicitou consulta psicológica (para si mesma e/ou<br />

criança) ou solicitação vinda de qualquer outro m<strong>em</strong>bro da família ou da equipe<br />

hospitalar.


82<br />

IV Resultados e Discussão dos Dados<br />

4.1 Caracterização das díades<br />

As mães e crianças acompanhadas serão descritas segundo a ord<strong>em</strong><br />

cronológica na obtenção dos dados, com base nas informações fornecidas pelas mães,<br />

obtidas no prontuário médico e observadas ao longo das filmagens. O relato pretende<br />

situar o leitor quanto a aspectos que ilustram as histórias de vida, <strong>em</strong>basando a<br />

compreensão da interação mãe-criança ao longo da hospitalização.<br />

Durante a transcrição utilizou-se a seguinte padronização para situar as<br />

falas: ... espaço no início da fala ou pausa durante a fala, (...) recortes de outras falas ou<br />

recorte na mesma fala, ( ) observações compl<strong>em</strong>entares de conteúdos e comportamentos<br />

não-verbais.<br />

Uma representação iconográfica foi escolhida para ilustrar cada díade,<br />

segundo características afetivas identificadas pela pesquisadora. Os cognomes<br />

escolhidos para as díades se refer<strong>em</strong> a nomes ou eventos destacados pelas mães ou<br />

criados pela pesquisadora <strong>em</strong> função de questões contratransferenciais.


83<br />

Maria e Gabriel<br />

A autoria da imag<strong>em</strong> é desconhecida<br />

O cognome “Gabriel” foi escolhido <strong>em</strong> função das características físicas<br />

“angelicais” da criança: cabelos loiros e cacheados, pele branca e bochechas<br />

literalmente ed<strong>em</strong>atosas. Sua mãe recebe o codinome “Maria” por ter sido a primeira<br />

das mães da pesquisa, associando-se ao nome da mãe soberana.<br />

A díade residia <strong>em</strong> Tupanatinga, agreste de Pernambuco. Gabriel tinha um<br />

ano e sete meses e Maria 22 anos. Estima-se que essa seja a idade da díade, pois ambos<br />

não eram registrados. Maria dizia guardar mágoa de seus pais por ser a única filha não<br />

batizada n<strong>em</strong> registrada; declarou ser católica não praticante.<br />

Maria era a quinta de uma prole de oito. Sua irmã gêmea idêntica foi criada<br />

por uma tia. Seus pais eram casados, ambos trabalhavam <strong>em</strong> roça caseira. Foram<br />

descritos como carinhosos e atenciosos, nunca havendo batido nos filhos, s<strong>em</strong>pre os<br />

aconselhando.<br />

Negou ter passado fome na infância, descrevendo a casa dos pais como um<br />

lugar onde s<strong>em</strong>pre pôde buscar comida. Reconheceu já ter faltado comida <strong>em</strong> sua<br />

própria casa depois que o marido viajou para São Paulo.<br />

Maria declarou ser casada, apesar de nunca ter casado no civil ou no<br />

religioso. Estudou até a primeira série primária.


84<br />

Gabriel era filho único. Segundo Maria, não foi planejado, apesar de<br />

reconhecer que seu grande sonho era ter um filho.<br />

O meu sonho da minha vida era ter um filho assim, cabelinho louro (alisa o cabelo da<br />

criança), assim que n<strong>em</strong> esse... Já realizei o meu sonho. Eu tinha inveja das outras<br />

passeando com os filhos... eu ficava dizendo ‘eu queria ter um filho’, aí pronto, aí Deus me<br />

dei ele.<br />

Maria fez quatro consultas de pré-natal. Gabriel nasceu a termo, com pouco<br />

mais de três quilos. Queria que o nome do filho fosse “Vitor”, mas o marido e a avó<br />

paterna escolheram “Gabriel”.<br />

Maria e seu marido chegaram a ficar separados no final da gravidez e nos<br />

três primeiros meses de Gabriel. Nesse período, Maria permaneceu na casa da mãe.<br />

Reconheceu que seu sonho era casar com o marido e ir morar com ele <strong>em</strong> São Paulo. No<br />

entanto, para ir a São Paulo precisa tirar os seus documentos e os da criança.<br />

O pai de Gabriel tentou registrá-lo, porém devido ao fato de Maria não ser<br />

registrada, não pôde registrar a criança, pois o cartório não aceitou apenas o nome do<br />

pai.<br />

Descreveu o marido como bom para ela, pois lhe comprava roupas, fazia sua<br />

sobrancelha, dava-lhe coisas que seus pais não puderam dar. O marido não tinha<br />

trabalho certo, fazia bicos. Havia partido há três meses para São Paulo <strong>em</strong> busca de<br />

trabalho e de um terreno para construir sua própria casa. Desde então faltou dinheiro a<br />

Maria, de modo que ela passou a lavar roupas para fora. Aguardava que o marido<br />

enviasse dinheiro; enquanto isso recorria à sua própria família e à do marido, de qu<strong>em</strong><br />

recebia comida e procurava para fazer refeições.<br />

A casa que morava com o marido e Gabriel era num armazém de um vão<br />

nos fundos da casa do cunhado, s<strong>em</strong> banheiro. Não tinha onde preparar os alimentos,<br />

cozinhando-os na casa dos pais. Conseqüent<strong>em</strong>ente, Maria parecia comprar basicamente


85<br />

alimentos que não precisass<strong>em</strong> de cozimento ou de fácil preparo: bolacha, biscoito,<br />

pipoca, salgadinho, macarrão instantâneo.<br />

Maria foi confusa e contraditória no que concerne à alimentação do filho.<br />

Nos primeiros contatos dizia que Gabriel comia “comida de panela” (arroz, feijão,<br />

macarrão, sopa, carne), papa, leite, b<strong>em</strong> como pipoca, salgados e balas. Por fim<br />

reconheceu que não dava nada disso a ele, basicamente só o peito.<br />

Chegou a reconhecer que sua família estava certa quando dizia que Gabriel<br />

havia adoecido porque ela o deixava comer a pipoca e os salgados que ele mesmo pedia,<br />

deixando de dar outras comidas por preguiça, dando o peito no lugar. O peito também<br />

foi descrito como o que “sustentou” a criança diante dos vômitos e fastio no auge da<br />

doença.<br />

Mãe ficava brigando pra eu dar comida de panela a ele, mas eu não queria saber de dar<br />

comida de panela, só queria dar mesmo só o peito.<br />

Até o pai dele reclamou, essas pipocas salgadinhas, sabe, era o que eu dava mais a ele, essas<br />

pipoca amarela, num t<strong>em</strong>! Que é b<strong>em</strong> salgada... eu dava a ele. “Mas ô mulher, não compra<br />

dessas pipoca pro teu filho não mulher, tu vai adoecer”, a minha irmã também falava a<br />

mesma coisa, e eu “vai nada, vai nada”, e eu continuava dando a ele. Até o pai dele<br />

reclamou no telefone, ele disse a eu “olhe nega, ta vendo, eu não disse pra você que você não<br />

comprasse aquelas pipocas pra dar pro menino... foi as pipocas que você comprou, eu disse<br />

a você que não comprasse mais nenhuma pipoca”. Eu não compro mais nenhuma pipoca e<br />

não dou a ele, aí pronto (...) eu não dou mais a ele não, n<strong>em</strong> doce. (...) Ele deixava a comida<br />

para comer delas..., aí ele ficava com fastio, não queria comer, só queria saber daquilo ali...,<br />

aí foi isso..., mas agora eu to entendendo, agora eu não dou mais esses negócio de pipoca,<br />

salgadinho, vou só ficar cuidando da alimentação, feijão essas coisas, macarrão, essas<br />

coisas, fazendo cumê, né! Mas pipoca, essas coisas não vou dar mais a ele não.<br />

Os sinais da doença foram percebidos por Maria e sua família<br />

aproximadamente dois meses depois da viag<strong>em</strong> do marido, um mês antes das<br />

internações: fastio, vômitos, inchaço, abandono da deambulação, do brincar e do riso –


86<br />

ficou triste, não era mais aquele menino mais alegre. Alguns desses sinais também foram<br />

apresentados por Maria após a viag<strong>em</strong> do marido: eu não tava... sei lá. Tava meia... O pai dele<br />

foi <strong>em</strong>bora, passei um t<strong>em</strong>po s<strong>em</strong> conseguir dormir, não dava vontade de comer...<br />

Maria atribuiu a doença de Gabriel ao afastamento do marido.<br />

(...) ele (Gabriel) ficou... acho que ele ficou triste... eu pensei “ele adoeceu também por<br />

modo do pai”, sabe, eu fico pensando... Muito pegado com o pai, às vezes quando eu falo<br />

com ele no telefone eu digo a ele, eu digo “olhe Tonho, o menino ta doente por modo de<br />

tu”, porque eu disse a ele, “eu disse que tu não fosse pra São Paulo porque o menino é<br />

muito pegado a tu”..., dizia a ele.<br />

Gabriel passou por dois internamentos breves <strong>em</strong> Arco Verde (quatro dias e<br />

um dia), com suspeita de an<strong>em</strong>ia e síndrome renal (devido ao ed<strong>em</strong>a generalizado),<br />

sendo então encaminhado ao IMIP, onde permaneceu por 15 dias <strong>em</strong> 2006.<br />

Os sinais de melhora foram descritos com base nos mesmos “indicadores”<br />

da doença: diminuição do inchaço, retorno do sorriso, deambulação e brincar.<br />

Com relação aos recursos interativos da díade, foram observadas poucas<br />

verbalizações por parte da mãe, porém havia sorrisos, afagos, beijos, troca de olhares.<br />

Maria não fez uso do manhês. A ludicidade esteve pouco presente <strong>em</strong> seu repertório<br />

interativo. Gabriel fez uso de olhares, sorrisos, choros, gestos (com as mãos, com a<br />

cabeça), movimentos deliberados (derrubar os brinquedos para chamar a atenção da<br />

mãe), mas poucas vocalizações. Não foi observada, por parte de Gabriel, comunicação<br />

verbal do tipo “palavra articulada”, porém crescentes balbucios (vocalizações) e<br />

movimentos da boca s<strong>em</strong> expressão sonora, principalmente nos últimos dias da<br />

hospitalização. Observou-se intensa troca de olhares da criança, seja com a mãe, seja<br />

com a pesquisadora, como forma de comunicação mais freqüente.<br />

Maria parecia compreender necessidades e d<strong>em</strong>andas de Gabriel, porém não<br />

as decodificava verbalmente. Com relação a esse aspecto, Silva et al 97 destacam que


87<br />

existe forte correlação entre o vocalizar infantil e a fala infantil materna, ou seja, quanto<br />

mais a criança vocaliza, mais a mãe fala de modo infantil (manhês) e vice-versa. Maria<br />

não atribuía verbalmente, porém gestualmente, significado aos comportamentos da<br />

criança; não comunicava o que percebia, apreendia, mas seus gestos, olhares, atitudes e<br />

mudança de posicionamento, pareciam visar ao acolhimento da criança ao longo da<br />

interação.<br />

Ao ser questionada sobre como percebia o que Gabriel queria, respondeu<br />

mediante três indícios: indução a partir da comunicação da criança (porque ele aponta e<br />

faz “uhmmm, uhmmm ”) ou indução baseada na observação e experiência (Diário de campo:<br />

Maria disse que sabia que Gabriel não queria comer porque havia comido há pouco - há três horas - e<br />

que ele estava com a barriga cheia - apontando para a barriga da criança); ou mediante intuição<br />

(porque eu sei, eu conheço). A indução baseada na observação (barriga cheia da criança)<br />

parecia falha e perigosa, pois sabia que Gabriel ainda estava ed<strong>em</strong>atoso.<br />

Gabriel não chegou a apresentar brincar simbólico (faz-de-conta). Utilizou o<br />

corpo da mãe como brinquedo durante as mamadas, acariciando seu seio, b<strong>em</strong> como sua<br />

própria sonda, manuseando-a ao mamar. Seu brincar foi <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente solitário, porém<br />

não ignorou outras crianças quando as teve por perto, chegando a realizar trocas simples<br />

<strong>em</strong> ocasiões diferentes. Maria não apresentou interesse <strong>em</strong> aproximar o filho de outras<br />

crianças, chegando até a desconsiderar a aproximação com uma criança, retirando-o de<br />

perto.<br />

Era comum não dar ao filho a oportunidade de escolha, logo sugerindo um<br />

brinquedo, porém diante da recusa de Gabriel, aceitava suas escolhas. Gabriel acolhia os<br />

esforços de apresentação dos objetos por parte da mãe, interessando-se pelo que ela<br />

mostrava, porém exibia vontade própria, por vezes recusando o objeto ou a atividade,


88<br />

comunicando-se gestualmente (com a cabeça - “não” e “sim”; levantando os braços;<br />

apontando; afastando o objeto com as mãos; chorando ou sorrindo).<br />

Segundo Lebovici & Diatkine, 98<br />

as atividades funcionais, por mais<br />

significativas que sejam, só se transformam <strong>em</strong> brincadeira através da intervenção de<br />

uma outra pessoa, através da relação mãe-filho.<br />

Nas filmagens das atividades de alimentação (mamadas, leite no copinho de<br />

plástico e alimentação AIDPI - Atenção Integrada às Doenças Prevalentes na Infância),<br />

Maria sequer chegava a anunciar a atividade ou o alimento, agindo “instintivamente”.<br />

Diante das d<strong>em</strong>andas de Gabriel por independência e brincadeira ao longo das<br />

atividades de alimentação, ora o iludia com outra atividade, ora desistia (justamente na<br />

alimentação AIDPI) após fazer uma breve solicitação verbal à criança.<br />

Mostrou-se passiva diante das escolhas do filho, aceitando-as s<strong>em</strong><br />

questionamentos. Só chegou a reclamar e intervir diante da agressividade de Gabriel,<br />

mas d<strong>em</strong>orou até que se expressasse, o que pode indicar que Maria parecia aceitar<br />

passivamente certos comportamentos do filho, como a recusa para comer.<br />

Maria deu diversos indícios de baixa auto-estima, como a dificuldade para<br />

interagir e se “enturmar” com as outras mães, parecendo repetir a rivalidade que tinha<br />

com as irmãs e cunhadas. Não pedia ajuda externa, esperando que a equipe hospitalar ou<br />

a pesquisadora fizess<strong>em</strong> algo por ela, como de fato ocorreu <strong>em</strong> algumas ocasiões.


89<br />

Mina e Pandora<br />

Leonardo da Vinci - Madona Benois<br />

O cognome desta díade r<strong>em</strong>ete ao nome pelo qual a mãe se referia à criança<br />

<strong>em</strong> seu útero: Pandora, retirado de uma novela da Globo (“O beijo do vampiro”) na qual<br />

a vampira “Mina” se referia à sua vampira bebê (num suposto movimento de rivalidade<br />

com a filha, talvez se sentindo sugada, esvaziada pelo feto).<br />

Provenientes de Pitimbu, litoral sul da Paraíba. Mina tinha 19 anos e<br />

Pandora nove meses. Pandora era a segunda de prole de dois (o mais velho era um<br />

menino de dois anos); nasceu a termo, com pouco mais de três quilos. Mina não<br />

planejou a gravidez n<strong>em</strong> fez pré-natal. Amamentou Pandora por um mês, alegando que<br />

a criança largou o peito, “não quis mais porque ela não tinha bico”. A alimentação de<br />

Pandora consistia basicamente de leite e massa (engrossante), mas outros alimentos já<br />

haviam sido introduzidos (biscoito, macarrão, carne, caldo de carne, suco, iogurte) s<strong>em</strong><br />

dificuldades.<br />

Os dois filhos eram do mesmo marido, do qual estava separada há sete ou<br />

oito meses. O casal ficou juntou por seis anos e meio. Portanto, Mina passou quatro<br />

anos s<strong>em</strong> filhos. Foi expulsa de casa pela mãe aos 13 anos, pois esta descobriu sobre sua<br />

perda da virgindade. Mina foi então morar com o namorado na casa da sogra. Quando<br />

engravidou do primeiro filho, sua mãe lhe ofereceu uma casa para morar com o marido,


90<br />

na qual permaneceu por alguns meses, depois voltando à casa da sogra porque a mãe<br />

precisou alugar a casa.<br />

Apesar de ter descoberto a gravidez no primeiro mês, só sentiu a criança<br />

mexer aos seis meses. Relatou que gostava de estar grávida, pois a mãe lhe comprava<br />

tudo o que queria, b<strong>em</strong> como saía para as festas, mesmo com um “buchão”. No entanto,<br />

sentia-se presa com o nascimento do bebê, impedida de sair.<br />

Quanto ao sexo do feto, sua preferência, b<strong>em</strong> como a do marido e da mãe,<br />

foi por uma menina. Um mês após o nascimento de Pandora, Mina voltou para a casa da<br />

mãe, deixando o marido porque ele não queria trabalhar, era ciumento, não a deixava<br />

sair para festas, b<strong>em</strong> como deixava faltar comida para ela e seus filhos. Mina nunca<br />

trabalhou. Revelou ter passado fome ao longo da gestação, enquanto permaneceu na<br />

casa da sogra. S<strong>em</strong>pre apoiada pela mãe, recebia alimentação desta e era<br />

freqüent<strong>em</strong>ente convidada a ficar <strong>em</strong> sua casa para não passar fome.<br />

A casa da mãe foi descrita como um lugar onde não falta comida, n<strong>em</strong><br />

coisas para si e seus filhos (roupas, brinquedos), onde ela podia sair quando quisesse,<br />

deixando as crianças com a mãe e amigas (estas menores de idade).<br />

Na casa da mãe residiam esta, o padrasto, três irmãos e uma irmã do terceiro<br />

casamento da mãe, Mina e os dois filhos. A casa era de taipa, com dois quartos, sala e<br />

cozinha; com esgoto e água encanada, banheiro do lado de fora.<br />

A mãe de Mina foi descrita como a grande provedora de bens materiais e<br />

afeto. No entanto, recomendou Mina a abortar os dois filhos, imaginando as<br />

dificuldades que Mina (ou ela mesma, a avó) teria para criar as crianças. Mina e o<br />

marido foram contra a orientação da mãe, apesar dessa ter chegado a tomar r<strong>em</strong>édio<br />

para abortar Pandora ao longo do primeiro mês. Declarou não ter religião n<strong>em</strong> prática<br />

religiosa.


91<br />

O pai de Mina deixou a esposa quando Mina tinha três meses de vida. De<br />

início disse não conhecer o pai, mas depois contou que há poucos anos a mãe a levou<br />

para conhecê-lo, mas que ele as tratou com frieza. Mina voltou a procurá-lo e ele lhe<br />

deu dinheiro por duas vezes; no entanto, se o vir na rua não mais o reconhece. Disse que<br />

não mais o procurou, sendo inclusive proibida por sua mãe.<br />

Mina descreveu sua infância com a mãe como boa, apesar dos três<br />

internamentos pelos quais passou.<br />

Mãe disse que eu dava trabalho, ela disse que eu fui internada b<strong>em</strong> umas três vezes<br />

quando eu era pequena. Era muito doente, doente mesmo assim magra. Ela disse que por<br />

isso que os meus menino é assim, por isso, porque quando eu era pequena aí dava muito<br />

trabalho a ela. (...) Ela disse que eu era b<strong>em</strong> magrinha, b<strong>em</strong> choxinha, meu Deus do céu,<br />

ficava entre a vida e a morte, ela ficava doidinha.<br />

Pandora e Mina permaneceram no IMIP por 16 dias, no início de 2007.<br />

Após dez dias de hospitalização <strong>em</strong> Goiana, foram encaminhadas ao IMIP. Pandora teve<br />

um internamento prévio por “cansaço e tosse” há dois meses, por quatro dias. Durante<br />

esse primeiro internamento, a avó materna dividiu com Mina os cuidados de<br />

acompanhamento. Chegou também a visitar filha e neta no IMIP. Antes dos<br />

internamentos, Pandora foi levada a uma rezadeira.<br />

Ao longo das trocas interativas da díade, era freqüente Mina mostrar, mas<br />

não oferecer a Pandora os brinquedos que ela mesma escolhia. Pandora aceitava os<br />

brinquedos escolhidos pela mãe, mas n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre dava atenção aos mesmos, talvez<br />

devido ao modo como a mãe os apresentava: ora muito próximos ao seu rosto, ora<br />

interrompendo a exploração da criança com outro brinquedo, ora não a deixando<br />

explorar o brinquedo apresentado, s<strong>em</strong> respeitar o turno da criança. Pouco deixava a<br />

criança explorar os brinquedos, logo lhe apresentando um novo. Assim, Mina<br />

praticamente não d<strong>em</strong>onstrou reciprocidade ao longo do brincar.


92<br />

Buscava, assim reconheceu, o “bocão” e o sorriso da filha, ora não deixando<br />

que a criança pegasse no objeto que mostrava, ora não respeitando as escolhas de<br />

Pandora, não deixando que explorasse os brinquedos que a própria criança escolhia,<br />

mudando muito de objeto para objeto. Não montou nenhuma brincadeira com a filha.<br />

Quanto às respostas interacionais de Pandora, exibiu freqüent<strong>em</strong>ente<br />

movimentos com a boca, mas s<strong>em</strong> vocalizações, porém com alguns gritos. Mina falava<br />

muito pouco com a filha.<br />

O manhês de Mina serviu como input para a criança sorrir, abrir a boca e<br />

voltar sua atenção para o brinquedo ou para ela mesma. Depois disso, Mina não<br />

aproveitava a resposta de Pandora para continuar a interação, para criar uma atividade,<br />

uma brincadeira, não atribuindo à criança um lugar de resposta nas trocas.<br />

Diante da possibilidade iminente de alta, Mina retomou o estado <strong>em</strong> que a<br />

criança chegou ao IMIP e sua evolução: quando ela chegou tava fraca, ela só queria estar assim,<br />

deitada, tava muito inchada, só queria ficar muito t<strong>em</strong>po deitada, n<strong>em</strong> sentava, queria botar ela de pé e<br />

ela não podia, ficava toda mole. Num tava rindo, só ficava dormindo, triste... Ela não comia.<br />

A narrativa de Mina era cheia de “não sei, sei lá”, parecendo encarar os<br />

eventos da sua vida com muita naturalidade, s<strong>em</strong> conflitos, o que leva a dois<br />

questionamentos:<br />

• Ao não saber explicar ou ao negar situações conflituosas, será que Mina negava<br />

a vivência de conflitos, apontando para uma denegação P , de modo a se livrar da<br />

angústia mobilizada pela vivência de conflitos e de culpa<br />

• Será que Mina não parava para refletir sobre certas situações <strong>em</strong> sua vida, <strong>em</strong> si,<br />

<strong>em</strong> seus filhos, seus planos, vivendo mais no sentido de sobrevivência, s<strong>em</strong><br />

parar para pensar sobre conflitos, desejos, respaldando-se na materialidade, por<br />

P Negação no plano consciente de uma experiência psiquicamente existente, porém inaceitável. 25


93<br />

isso recorrendo aos materialmente provedores Será que com as entrevistas<br />

passou a questionar certos aspectos de sua vida que nunca refletira mais<br />

efetivamente


94<br />

Ana Maria e<br />

Mariana<br />

Leonardo da Vinci - Menino Jesus e Nossa Senhora com João Batista e Santa Anna<br />

Esta díade recebe os cognomes “Ana Maria” e “Mariana” por ter <strong>em</strong> sua<br />

história de vida a repetição e a suposta tentativa de reparação como fenômenos<br />

marcantes. O nome real de Mariana era o mesmo de uma irmã falecida da mãe.<br />

Ressalte-se que Mariana não recebeu o sobrenome do pai, só o da mãe, apesar de ter<br />

sido registrada por este. A exclusão das figuras masculinas também é repetitiva na vida<br />

dessa família.<br />

Ana Maria foi contraditória quanto a qu<strong>em</strong> nomeou a filha: si mesma ou sua<br />

mãe. Disse que o nome foi dado <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> à irmã, para l<strong>em</strong>brá-la. Ana Maria foi<br />

filha única do primeiro casamento da mãe, mas teve ainda outros quatro irmãos pelo<br />

lado materno, dos quais só um está vivo. Essas crianças morreram ao longo do primeiro<br />

ano de vida, pelo menos um por an<strong>em</strong>ia.<br />

Disse não ter conhecido o pai, sequer sabia seu nome, pois sua mãe nunca<br />

havia lhe falado sobre ele, não gostando de tocar no assunto. Antes de vir<strong>em</strong> para<br />

Pernambuco, há dois anos, moraram <strong>em</strong> São Paulo.


95<br />

Questionada sobre o desejo de conhecer seu pai, Ana Maria respondeu que<br />

já teve vontade de procurá-lo, mas que desistiu devido às histórias negativas que ouvira<br />

de vizinhos a respeito dele.<br />

Mariana residia com a mãe, avó materna e tio materno de oito anos, <strong>em</strong><br />

Catende (PE), mata meridional. A casa onde moravam tinha três cômodos, sendo<br />

quarto, sala e cozinha, com banheiro dentro, luz, esgoto e água encanada.<br />

A família recebia o benefício do irmão de Ana Maria, o qual era portador de<br />

deficiência física. Ana Maria estudava (segundo grau), vendia Avon e trabalhava dois<br />

dias da s<strong>em</strong>ana como <strong>em</strong>baladora. Seu ex-padrasto e o pai de Mariana ajudavam<br />

ocasionalmente nas despesas. Reconheceu que no final do mês ficavam “apertadas”,<br />

mas que nunca chegou a faltar nada <strong>em</strong> sua casa, n<strong>em</strong> mesmo quando viviam <strong>em</strong> São<br />

Paulo.<br />

Declarou ser católica praticante. Nunca chegou a se casar com o pai da filha.<br />

O pai de Mariana foi morar no Recife pouco t<strong>em</strong>po depois do seu nascimento, de modo<br />

a trabalhar numa fábrica; desde então, seu contato com a filha e namorada diminuira.<br />

Chegou a visitar filha e namorada no IMIP.<br />

Ana Maria e o namorado moraram juntos por dois meses ao longo da<br />

gestação, mas ela voltou para a casa da mãe de modo a ajudá-la com o irmão portador<br />

de deficiência.<br />

(...) eu fui porque eu vi que mainha num, num tava, é, conseguindo assim, pro mode das<br />

marcação de Bruno (irmão) eu vi que num ia dar pra ela sozinha. Que ela com probl<strong>em</strong>a<br />

de coluna, eu disse “não, pra ela ta carregando ele pra um lado, pro outro, pra depois aí<br />

ta sofrendo da coluna, é melhor eu ajudar ela”, aí eu peguei e fui.<br />

Mariana nasceu pr<strong>em</strong>atura (34 s<strong>em</strong>anas, 2200g), porém s<strong>em</strong> complicações<br />

(permaneceu na maternidade por apenas 24 horas).


96<br />

(...) Às vezes eu até penso que ela nasceu pr<strong>em</strong>atura pro mode isso, pro mode de eu<br />

carregar ele (irmão) pra todo canto. Assim, eu num carregava muito, às vezes mainha<br />

pegava ele pra eu descansar um pouco, mas s<strong>em</strong>pre era eu que carregava ele.<br />

Descreveu a gestação como tranqüila, apesar de não a ter programado.<br />

Chegou a fazer seis consultas de pré-natal. Sua mãe foi qu<strong>em</strong> suspeitou da gravidez,<br />

confirmada aos dois meses. Ana Maria foi confusa quanto à manutenção da gravidez,<br />

relatando que sua mãe chegou a sugerir que abortasse, ao que o namorado foi contra,<br />

inicialmente, e depois ela, Ana Maria.<br />

Quanto à escolha pelo sexo, Ana Maria descreveu como claro o desejo de<br />

sua mãe por uma menina.<br />

Mariana mamou por dois meses.<br />

Foi porque ela não quis mais pegar, eu num sei o que deu nela, porque ela não quis pegar.<br />

S<strong>em</strong>pre quando eu colocava o peito na boca dela ela botava pra chorar (...) Eu senti triste,<br />

né, porque no meu pensamento eu queria que ela mamasse até, até ela quisesse, seis<br />

meses, o t<strong>em</strong>po que ela quisesse mamar ela mamava. Mas ela num quis, né, fazer o quê!<br />

Aí eu ofereci outra coisa a ela.<br />

Ana Maria passou então a seguir as orientações da médica do posto de<br />

saúde.<br />

Ela disse que eu podia dar a ela, assim de leve, um leitinho b<strong>em</strong> ralo. (...) Aí nós foi dando<br />

o leite, aí o leite num tava sustentando ela. Aí ela disse “compre, veja qual é a marca mais<br />

fraca que t<strong>em</strong>, assim, que num seja pesada, e faça um mingau b<strong>em</strong> ralinho pra dar a ela”.<br />

Aí ela foi tomando o mingau se acostumou-se até hoje. Aí quando ela <strong>completo</strong>u quatro<br />

meses ela mandou engrossar um pouquinho o mingau pra ela tomar. Aí ela toma até hoje<br />

o mingau, parou só agora, esses dias aqui.<br />

Antes de adoecer, Mariana foi descrita como alegre, sorridente, esperta, uma<br />

criança que gostava de brincar sozinha, “rindo do nada”; não vivia chorando, como<br />

passou a ficar depois da doença.


97<br />

Mariana tinha seis meses de idade quando foi trazida de Catende (PE) para o<br />

internamento no IMIP <strong>em</strong> decorrência de ed<strong>em</strong>a generalizado, dermatite, infecção<br />

cutânea, escabiose, pneumonia e otite, recebendo alta 40 dias depois, <strong>em</strong> Abril de 2007.<br />

A avó materna foi qu<strong>em</strong> levou a criança ao IMIP, alternando o acompanhamento com<br />

Ana Maria, 15 anos de idade.<br />

Mariana nunca havia sido internada antes. Ana Maria reconheceu os<br />

sintomas da enfermidade (apesar de não concordar com o diagnóstico de desnutrição)<br />

também e principalmente com base na perda de peso e “desânimo” da criança. Observese<br />

a ambigüidade e contradição desse parâmetro, pois a criança passou praticamente<br />

todo o internamento lutando contra o ed<strong>em</strong>a. Do mesmo modo, a melhora de Mariana<br />

foi percebida pela mãe com base no ganho de peso. Ana Maria parecia não acreditar que<br />

os sintomas da filha foss<strong>em</strong> decorrentes da desnutrição.<br />

(...) Eles sab<strong>em</strong> o que tão dizendo, mas, assim, por uma parte não foi só desnutrição,<br />

porque a desnutrição não ia causar ela ficar toda inchada do jeito que ela ta agora. Eu<br />

acho que uma desnutrição, eu acho que não causa isso não, a criança ficar toda inchada,<br />

ficar com mancha no corpo. (...) Eu acho que desnutrição num é assim não. Eu acho que a<br />

criança vai perdendo peso, só perdendo peso. Pode causar outra coisa, mas não chega a<br />

ficar toda inchada, com mancha no corpo, caroço...<br />

Uma prática freqüente de Ana Maria ao longo da internação foi solicitar da<br />

pesquisadora e de m<strong>em</strong>bros da equipe de saúde fotos deles com a filha, fotos de<br />

Mariana sozinha, toda arrumada, a cada s<strong>em</strong>ana com roupas novas, cada vez mais<br />

enfeitada, como uma boneca. Ana Maria costumava sair muito da enfermaria,<br />

desaparecendo por horas, deixando a filha sozinha ou com outras mães “passando um<br />

olhinho”. Quando retornava, manuseava a filha quase s<strong>em</strong>pre no intuito de enfeitá-la<br />

para tirar fotos. No início Mariana mostrava-se passiva diante desses manuseios


98<br />

maternos, mas depois passou a vomitar, sujando toda a roupa, como que boicotando a<br />

mãe, reagindo diante dos comportamentos maternos invasivos.<br />

Ana Maria reconheceu que o pai de Mariana foi visitá-las três vezes, mas<br />

nunca o apresentou a ninguém da equipe de saúde, n<strong>em</strong> à pesquisadora, b<strong>em</strong> como não<br />

solicitou foto com ele. Quando questionada sobre planos futuros com o namorado,<br />

respondeu:<br />

Eu tenho vontade de ta numa casa com ele, eu ele e a nossa filha. ... Aí na mesma hora eu<br />

penso <strong>em</strong> mainha, deixar mainha sozinha com meu irmão. ... (...) v<strong>em</strong> aquele pensamento<br />

“eu não vou deixar minha mãe sozinha com meu irmão porque só t<strong>em</strong> ela e meu irmão e<br />

eu dentro de casa”. Se eu for sair só vai ficar e meu irmão, aí ela vai ter que correr, corre<br />

muito com ele aí vai, num pode ta pegando peso, aí t<strong>em</strong> que ter eu pra ajudar. (...) Aí<br />

quando eu vir ele andando numa muleta mesmo, aí eu, eu penso <strong>em</strong> sair de casa, mas<br />

agora...<br />

- Você já conversou com sua mãe sobre isso<br />

Já. ... Ela diz “você que sente”, eu digo “não, mas por enquanto eu vou sair de casa não”.<br />

Ela num aprova assim que eu saia. (...) Ela “se você sair você num vai levar a menina<br />

não”, eu digo “por quê”. Ela diz assim brincando, pra mim, pra ver o que eu digo. Aí eu<br />

digo “não, eu vou levar sim”. Ela fez “aproveita que arruma uma casa do lado da minha,<br />

pra mim ficar vendo ela todo dia”. Eu digo “se for possível eu arrumo”.


99<br />

Rosácea e Angélica<br />

Rita Valnere - Sleeping Child<br />

Rosácea, cognome atribuído à mãe, é uma flor que dá muitos frutos, porém<br />

d<strong>em</strong>ora 25 anos pra florir. Apesar de a mãe mostrar-se passiva e contraditória diante da<br />

doença e sinais interacionais da filha, criou inúmeros significados relativos à doença.<br />

Coincident<strong>em</strong>ente, tinha acabado de fazer 25 anos quando da internação da criança.<br />

O cognome atribuído à criança também se refere a uma flor, Angélica, que é<br />

frágil, dura poucos dias, porém marcante <strong>em</strong> função do perfume que exala.<br />

Rosácea, seus quatro filhos e o marido residiam <strong>em</strong> Goiana (PE), zona da<br />

mata. A casa da família era de taipa, com três cômodos, água encanada, energia elétrica<br />

e esgoto. Rosácea não trabalhava desde que Angélica nascera. O marido era informal e<br />

estava des<strong>em</strong>pregado, fazendo biscates para manter a família. Não recebiam nenhum<br />

tipo de benefício social, apesar de ter<strong>em</strong> solicitado o Bolsa Família, s<strong>em</strong> resposta. Era<br />

comum Rosácea fazer refeições na casa da mãe, onde também costumava deixar os<br />

filhos quando precisava sair.<br />

Declarou-se casada. Ela e o marido estudaram até a terceira série do<br />

primário. Rosácea recebeu formação católica, porém freqüentava a igreja do Reino de<br />

Deus.<br />

Descreveu sua infância como um período alegre, cheio de brincadeiras. O<br />

pai trabalhava num engenho, o qual por vezes atrasava o salário, ao que a família


100<br />

recorria a vizinhos para comprar comida. Sua mãe era cartomante, estimada como uma<br />

mulher que “sabia de todas as coisas”; acerca do relacionamento com a mãe, respondeu:<br />

Sei lá, acho bom. ... Ela não é ruim pra mim... N<strong>em</strong> eu sou ruim pra ela. O que eu peço<br />

assim ela faz, agora só que ela não pode ficar me ajudando totalmente, assim, né! (...) Eu<br />

gosto, de vez <strong>em</strong> quando ela fica com meus menino. (Ri).<br />

Disse que a mãe se referia a ela (Rosácea) como uma pessoa fraca, tanto no<br />

sentido físico (doente), como psicológico (tendia à “depressão”).<br />

Rosácea descreveu Angélica como uma criança “doentinha desde o<br />

nascimento”, parecendo que o discurso da avó materna da criança se repetia no de<br />

Rosácea, b<strong>em</strong> como a história de Rosácea se repetia com a internação de Angélica.<br />

Angélica nasceu a termo, com quase quatro quilos. Entre o último filho e<br />

Angélica, Rosácea estimou ter sofrido um aborto espontâneo no primeiro mês de<br />

gestação, decorrente de uma raiva.<br />

Descobriu a gravidez de Angélica aos dois meses, sentindo os primeiros<br />

movimentos fetais no mesmo período. Fez quatro consultas de pré-natal, relatando ter<br />

sofrido de an<strong>em</strong>ia e infecção urinária, porém a gestação foi descrita como tranqüila.<br />

Disse ter sentido muita fome, ao que o marido comprava o que ela desejava.<br />

A gravidez não foi planejada, apesar de desejada. Ela mesma nomeou a<br />

criança depois de um comercial de TV ou programa infantil televisivo. Angélica foi<br />

registrada pelo pai, recebendo seu sobrenome.<br />

A criança foi amamentada por um mês e dezenove dias, s<strong>em</strong> complicações.<br />

No entanto, Rosácea achava que a filha não engordava, passando a seguir o conselho<br />

das vizinhas de dar “leite <strong>em</strong> pó forte” para a filha. Aos dois meses, a dieta de Angélica<br />

consistia de mingau (leite com massa), papa, vitamina de banana, suco de laranja e<br />

acerola.


101<br />

(...) Começou com isso, assim, ficando molinha. Tinha vez que ela comia mais ou<br />

menos assim, um tantinho assim... (faz um gesto com os dedos, indicando um volume<br />

na mamadeira, algo perto de 10 ou 20ml). Aí eu disse: “meu Deus do céu, essa<br />

menina num ta querendo, ta s<strong>em</strong> querer comer”, assim. Mas o povo dizia: “Não, mas<br />

num tas dando de mamar Aí não precisa, não, mulé, tu levar pro hospital não”. Eu<br />

ficava com ela <strong>em</strong> casa, é mesmo, porque ela num mama, eu dizia, ela num mama. Aí<br />

começou, começou por três mês <strong>em</strong> diante esses negócio de diarréia forte, se obrar<br />

muito, foi agora, de três mês. (...) Na mamadeirinha mesmo, eu botava mesmo assim,<br />

porque eu botava na chuquinha, porque ela é muito pequena e eu tinha medo de botar<br />

muito pra a barriga não crescer. Colocava na chuquinha. Botava, é 100 ml para ela<br />

tomar... (...) Ela comia, agora só que num pegava peso, né.<br />

- Porque ela não pegava peso, se comia<br />

Eu não sei... Alguma coisa tinha e eu não sabia... alguma doença...<br />

Angélica tinha seis meses quando da internação. Chegou ao IMIP com<br />

queixa de diarréia recorrente, ed<strong>em</strong>a e an<strong>em</strong>ia, encaminhada de Goiana, onde fora<br />

internada duas vezes nos últimos dois meses. Permaneceram 28 dias no IMIP.<br />

A desnutrição parecia ser compreendida como sinônimo de baixo peso ou<br />

perda de peso. Nesse sentido, Rosácea descreveu três dos quatro filhos como<br />

desnutridos, porém alegando que só Angélica não tinha saúde, pois nenhum dos outros<br />

teve probl<strong>em</strong>a com o leite <strong>em</strong> pó, e apenas um chegou a ser internado, devido à asma.<br />

Foi contraditória e confusa quanto ao modo de alimentação da criança, tanto<br />

<strong>em</strong> casa como no hospital, parecendo não compreender os sinais interacionais da filha.<br />

Ora dizia que Angélica passou a não aceitar mais as mamadas, depois que introduzira o<br />

leite <strong>em</strong> pó, ora dizia que ela só queria mamar; ora dizia que a criança alimentava-se<br />

b<strong>em</strong>, ora que praticamente não queria comer; ora dizia ter medo de dar muita comida à<br />

criança, ou certas comidas (comida de panela) que pudess<strong>em</strong> matá-la.<br />

Assim, porque <strong>em</strong> casa ela comia as coisa, né, num comia essas coisa toda, mas tomava<br />

uma vitamina, vitamina de banana, fazia papinha e dava a ela. (Ri) Só num dava comida<br />

que ela ficava batendo a boca, porque quando ela via a gente comer ficava mesmo assim<br />

(imita o gesto com a boca). (Ri) Num dava não, com medo. “Deus me livre dar comida a<br />

essa menina pra matar”, eu dizia.


102<br />

Rosácea parecia tomar as manifestações da criança de modo unívoco, como<br />

d<strong>em</strong>anda por comida, achando que o choro ou os balbucios da filha relacionavam-se<br />

apenas à necessidade (comida). Esse tipo de “leitura” parecia ocorrer já desde a<br />

gestação, diante dos movimentos fetais.<br />

Ao longo da hospitalização, no entanto, Rosácea conseguiu criar novos<br />

significados às d<strong>em</strong>andas e comportamentos da filha, porém nunca os comunicando à<br />

criança. Era de certo modo angustiante assistir às tentativas dela alimentar Angélica.<br />

(Diário de campo) Rosácea não parece saber o que fazer com Angélica <strong>em</strong> seu colo. A<br />

criança reclama, coloca as mãos na cabeça, mas a mãe não consegue acolhê-la,<br />

balançando-a s<strong>em</strong> jeito, mudando-a de posição. Não parece tomar a criança como<br />

interlocutora. A criança parece perdida no seu colo, inquieta, com raiva. Rosácea dá o<br />

peito de modo estranho, não colocando a filha <strong>em</strong> seu corpo, apenas encaixando a boca<br />

no seio, meio que mirando a boca da criança. Dá certo, Angélica pára de espernear, de<br />

reclamar. Amamenta a criança s<strong>em</strong> dizer nada, segurando o bracinho dela, não a<br />

deixando explorar seu corpo. Não há troca de olhares. Quando Rosácea t<strong>em</strong> algo a<br />

comentar quanto às reações da filha, s<strong>em</strong>pre se dirige a mim, nunca à criança.<br />

(Diário de campo) Angélica reclama, mas a mãe não a acolhe, não se comunica com ela.<br />

Rosácea parece não saber o que fazer com a própria filha, não sabe o que ela quer, não a<br />

acolhe <strong>em</strong> seu corpo, n<strong>em</strong> a criança se aninha ao corpo da mãe, afastando a cabeça da<br />

direção da mãe, parecendo desconjuntada. Rosácea insiste <strong>em</strong> mostrar brinquedos à filha,<br />

apesar da repulsa da criança.<br />

(Diário de campo) Em nenhum dos vídeos brincou com o corpo da criança, n<strong>em</strong> com os<br />

sons dela, n<strong>em</strong> com nenhuma produção dela. Não parece ter prazer <strong>em</strong> brincar com a<br />

filha, n<strong>em</strong> desprazer, apenas passividade, entediando-se. Certa vez comentou comigo: “se<br />

ela andasse... ela olha, repara tudo, mas não anda, não brinca...”<br />

(Diário de campo) Angélica está absolutamente mal posicionada no colo da mãe,<br />

praticamente deitada, com suas pernas e braços presos, enquanto Rosácea tenta achar um<br />

espacinho na boca da criança para despejar um pouco de leite com a seringa. Angélica<br />

reluta, bota o leite pra fora com a língua, vira a cabeça, desvia o olhar da mãe, enquanto<br />

esta insiste, numa verdadeira luta. Angélica recusa, mas não chora. É angustiante<br />

observar a cena.


103<br />

(Diário de campo) Novamente, a alimentação se passa como uma luta. Angélica está<br />

contida (braços, pernas) e Rosácea tenta “injetar” o leite com a seringa, sequer deixando<br />

a filha chorar. Angélica fecha os olhos, vira a cabeça, tenta colocar o leite pra fora, finge<br />

dormir. Sua expressão, como s<strong>em</strong>pre, é de sofrimento. (...) Rosácea não chama a atenção<br />

da filha para si, não a estimula com falas, risos, manhês, gestos, não faz o leite ser<br />

atraente. Provei do leite e vi que ele de fato é docinho e quentinho, mas falta outro<br />

atrativo... A criança não está b<strong>em</strong> acomodada e Rosácea parece não compreender b<strong>em</strong> os<br />

sinais da filha (quando Angélica quer mais ou quando quer parar).<br />

Fazia praticamente um mês de internação quando Rosácea comentou que<br />

estava muito cansada, precisando ir à sua casa para saber dos outros filhos. Deixou o<br />

marido como acompanhante por três dias. A equipe, b<strong>em</strong> como a pesquisadora, estava<br />

esperançosa que a presença do pai pudesse animar mais a criança, porque Rosácea<br />

parecia cada vez mais passiva. No entanto, Angélica continuou decaindo, parecendo não<br />

fazer diferença quanto à chegada do pai e a saída de mãe. Seu pai também era muito<br />

passivo.<br />

Ao retornar ao hospital, Rosácea comentou que seus seios haviam inchado<br />

muito <strong>em</strong> casa, chegando a derramar leite.<br />

(...) Ela fica querendo mamar, aí inchou. Que quando eu cheguei, eu botei ela no peito, ela<br />

mamou que ficou assim, <strong>em</strong>papachada ela, foi dormir. ... Aí de vez <strong>em</strong> quando, mas eu<br />

num penso nisso muito mais não, porque ela já ta ficando boazinha. Eu penso <strong>em</strong> que ela<br />

fique boa dos pés (os pés da criança voltaram a ficar ed<strong>em</strong>aciados) pra ir pra casa, eu<br />

penso, e comer, cooomer (dá ênfase ao “comer”), quero que ela coma!<br />

E assim Rosácea voltou a amamentar Angélica, exibindo bom fluxo de leite.<br />

(Diário de campo) Rosácea dá de mamar à filha, a qual aceita b<strong>em</strong>, s<strong>em</strong> retirar a boca do<br />

seio. No entanto, Angélica, apesar de deitada no colo da mãe, não parece acolhida, digo,<br />

seu corpo está distante, só a boca é que está próxima.<br />

Diante da repetição de cenas como essa, a pesquisadora escreveu:<br />

(Diário de campo) Desde que terminei as entrevistas e filmagens com Rosácea e Angélica,<br />

passei a ter uma postura mais ativa, lutando por mãe e filha. Passei o caso para a<br />

psicóloga do andar, explicando-lhe tudo o que observara e sentira. Mas a psicóloga é


104<br />

muito concorrida e ocupada no andar, pouco podendo dar atenção ao caso. Isso foi me<br />

deixando angustiada e pedi a ela para auxiliá-la, ao que ela concordou. Senti que eu<br />

agora poderia ter mais liberdade, não propriamente ser a psicóloga da díade, mas poderia<br />

oferecer uma escuta diferente da escuta da pesquisa.<br />

(Diário de campo) Noite passada saí do IMIP angustiada. Cheguei à enfermaria e vi Rosácea<br />

com Angélica no colo, a criança toda desajeitada. Como havia sonhado com Geisy (chefe do<br />

Canguru), a l<strong>em</strong>brança desse sonho logo me veio e sugeri a Rosácea que tentáss<strong>em</strong>os ajeitar<br />

Angélica melhor ao seu corpo. Rosácea não conseguia acomodar a filha, como se elas não se<br />

encaixass<strong>em</strong>. Ela tinha um lençol ao redor da filha e então o estiquei, fazendo como uma<br />

faixa de contenção do Canguru, amarrando mãe e filha. Angélica pareceu acordar, digo,<br />

viver, acordar para a vida, olhando tudo ao seu redor. Rosácea e eu ficamos surpresas com o<br />

conforto e a reação da criança, com sua carinha mais esperta. Perguntei a Dra. Anna Cleide<br />

se poderia trazer uma faixa do Canguru, ao que ela concordou. Voltei com a faixa e<br />

acomodei mãe e filha. Rosácea pareceu olhar mais para a filha, gostando da novidade;<br />

Angélica ficou mais esperta, com o pescoço b<strong>em</strong> mais firme, como eu nunca havia visto,<br />

olhando tudo ao seu redor. Ficamos todas animadas. Eu buscava desesperadamente algum<br />

tipo de intervenção simbolizante que interrompesse a pulsão de morte deflagrada nessa<br />

díade, <strong>em</strong> mim, no hospital!<br />

Alguns dias se passaram e Rosácea pouco usava a faixa com a criança, a<br />

qual virou mais “travesseiro” no bercinho de Angélica que faixa para contato mãe-filha.<br />

A criança continuou definhando, ao que a equipe pontuou:<br />

(Prontuário médico) Paciente apresentando ed<strong>em</strong>a bilateral de m<strong>em</strong>bros inferiores.<br />

Genitora ainda oferecendo água para a paciente. Expliquei para ela a gravidade de se<br />

oferecer líquidos fora o recomendado. Fiquei sabendo também pela auxiliar de<br />

enfermag<strong>em</strong> que a mãe está oferecendo o peito (leite materno) s<strong>em</strong>pre antes de<br />

administrar a dieta do protocolo. Também falei para priorizar a dieta. Acompanhante<br />

refere persistente ed<strong>em</strong>a <strong>em</strong> pés e agora pernas. Conduta: comunicar Serviço Social para<br />

conversar com a mãe.<br />

Foi então que Rosácea procurou a pesquisadora, bastante irritada, pedindo<br />

para conversar no lugar onde filmávamos Angélica (brinquedoteca), d<strong>em</strong>andando uma<br />

escuta diferente, autorizada. Conversamos por quase duas horas. Rosácea desabafou<br />

quanto à raiva que estava da equipe por ter<strong>em</strong> ameaçado chamar o Serviço Social caso


105<br />

ela não parasse de dar água. Disse que há três dias não dava água à filha e que só dava<br />

porque Angélica chorava, achando que era fome ou sede. Questionei-a sobre o que<br />

sentiu quando a médica ameaçou chamar o Serviço Social, Q ao que ela respondeu que<br />

ficou com medo que quisess<strong>em</strong> tirar a criança dela. Também conseguiu falar sobre<br />

“morte”, abordando o t<strong>em</strong>a e ao mesmo t<strong>em</strong>po defendendo-se da idéia, negando que a<br />

criança talvez estivesse pior.<br />

Rosácea pediu para conversarmos novamente no dia seguinte. Pedi<br />

permissão para gravar a conversa. Repetiu alguns t<strong>em</strong>as do dia anterior, defendendo-se<br />

cada vez mais da morte, projetando certos conteúdos na equipe.<br />

Aí ela disse que ia chamar o Serviço Social pra dizer isso, pra dizer que eu tava dando<br />

água. Eu fiz “não, vocês t<strong>em</strong> é que calcular porque a perninha dela ta inchada”, né! Ela<br />

disse “eu não vou dar alta a essa criança porque quando ela chegar <strong>em</strong> casa pode<br />

morrer”. Eu fiz “a minha filha num vai morrer não, a minha filha num vai morrer não. Eu<br />

to vendo a melhora dela, a minha filha não vai morrer” O que eu posso fazer, quando ela<br />

ficar boa eu vou fazer de tudo pra ela ficar boa. Só isso.<br />

- Mas pensar sobre morte, falar sobre isso não é a mesma coisa de acontecer. Num pode<br />

pensar e falar sobre isso não<br />

Num posso não, porque eu sei que ela vai se curar. Ela já ta mamando que os meus peito<br />

chagaram cheio de leite!<br />

A interação da díade mudou, observando-se maior esforço da mãe.<br />

(Diário de campo) Rosácea deu de mamar por uns 10 minutos, no máximo, trocando de<br />

peito, até que Angélica dormiu e ela retirou a criança do peito, ficando com ela no colo,<br />

conversando baixinho com ela, mostrando, agitando o brinquedo que deixei no berço de<br />

Angélica na s<strong>em</strong>ana passada. Rosácea cantarola baixinho, agitando a criança, que parece<br />

b<strong>em</strong> acomodada. Gostaria que isso se repetisse mais vezes! Até que enfim algo de afeto<br />

dessa mãe: irritação, iniciativa, carinho. Algo ocorreu... Não sei se foi a faixa do<br />

Canguru, a bronca que a doutoranda deu nela (chamar o Serviço Social), nossos<br />

encontros na brinquedoteca (entrevistas e intervenções da pesquisadora com o término<br />

das entrevistas e filmagens).<br />

Q Porém não a psicóloga do andar!


106<br />

(Diário de campo) Hoje presenciei troca de olhares entre mãe e filha; Rosácea falou algo<br />

à filha muito baixinho. Angélica está mal posicionada. Rosácea mostra o brinquedo que<br />

dei a elas e a criança observa a mãe balançar o brinquedo, mas não tenta pegá-lo.<br />

(Diário de campo) Angélica apóia sua cabeça no braço, mas não no ombro da mãe.<br />

Rosácea manuseia o relógio que disse ter comprado para a filha brincar “quando crescer,<br />

quando ficar mais sabida”. Deixa o relógio dentro de um plástico duro, não deixando que<br />

a criança manuseie o objeto, mostrando-o fechado.<br />

(Diário de campo) Angélica reclama, fecha os olhos. Rosácea cria significados, passando<br />

a se dirigir à criança, chegando a usar o manhês mais de uma vez. Colocou a criança de<br />

frente para si, beijando-a, olhando-a nos olhos, mas Angélica não retorna o olhar, não<br />

parecendo reconhecer a mãe. Rosácea está mais afetiva, parece ter evoluído <strong>em</strong> sua<br />

interação com a filha, mas a criança parece reativa, protegendo a boca. Por fim, consegue<br />

aproximar a filha do seu corpo e Angélica recosta a cabeça, mas ainda protegendo-se com<br />

os braços cruzados diante da boca. Angélica coloca seu braço entre sua cabeça e o ombro<br />

da mãe. Esta foi a última filmag<strong>em</strong> antes de Angélica morrer.<br />

Na manhã do dia 26 de Fevereiro, Angélica teve uma parada cardiorespiratória,<br />

não respondendo às manobras de reanimação. Passara a madrugada com<br />

distensão abdominal e desconforto respiratório; suspenderam as dietas, inclusive as<br />

mamadas e fizeram lavag<strong>em</strong> gástrica, mas Angélica morreu.<br />

(Diário de campo) A nutricionista disse que haviam suspendido o peito porque Angélica<br />

estava mais ed<strong>em</strong>aciada. No entanto, Rosácea achou que o leite que veio para ser dado na<br />

sonda não era suficiente e que a criança estava com fome. Acabou dando o peito diversas<br />

vezes, aumentando o ed<strong>em</strong>a, o que fez com que Angélica tivesse uma parada cardíaca.<br />

(Diário de campo) A impressão que me dá é que Rosácea, tentando confortar a filha, evitar a<br />

fome, “entupiu” ela de leite, seu leite, leite este que deixou de dar à filha no seu primeiro<br />

mês e meio de vida porque achava que não estava matando a fome n<strong>em</strong> engordando<br />

Angélica. (...) e assim Angélica adoeceu, lenta e repetidamente. Ao final, foi o leite que<br />

influenciou, de alguma forma, a morte da criança. Angélica morreu por “comida d<strong>em</strong>ais”, o<br />

contrário da desnutrição causada pela falta de comida, paradoxal...<br />

(Diário de campo) Sinto que estimulei Rosácea a retomar os primórdios de sua relação com<br />

Angélica, mas que foi justamente esse retorno que no final influenciou de alguma forma a<br />

morte da criança, que talvez tenha feito com que Rosácea se sentisse mãe, (...) Rosácea ia


107<br />

levando a faixa do Canguru, mas tive que pedi-la de volta, apesar da dor que isso me causou<br />

naquele momento, como se eu tirasse um pedaço dela.<br />

(Diário de campo) Espero que essa experiência traga fortaleza, atitude e afeto a Rosácea,<br />

que ela se veja mais mulher e mãe e lute pelos outros filhos, contando-lhes sobre o que<br />

passou com Angélica. Disse-lhe: conte a seus filhos, marido, mãe, vizinhos, a história de<br />

Rosácea e Angélica.<br />

(...) Rosácea disse que enterraria a filha <strong>em</strong> sua cidade. Queria batizá-la, perguntando se era<br />

possível. Disse que veria Angélica quando ela mesma morresse, pois a filha era agora um<br />

anjinho; Angélica dos Santos, esse era o nome dela, não por acaso.<br />

(Diário de campo) Despedi-me dizendo que ela conseguiu ficar com Angélica no hospital,<br />

forte o suficiente para confortar a filha. Rosácea comentou que diria isso à sua mãe, pois<br />

esta dizia que ela era fraca e podia cair numa depressão. Sustentei que ela não foi fraca e<br />

n<strong>em</strong> sucumbiu à depressão, apesar do sofrimento e cansaço, e que chorar e sentir dor neste<br />

momento não era ser fraca, mas poder viver o luto pela filha.


108<br />

Bela e Ian<br />

Leonardo da Vinci - Madona Litta<br />

“Ian” é o diminutivo do nome da criança, um dos apelidos utilizados pela<br />

mãe para se referir ao filho. O cognome “Bela” r<strong>em</strong>ete ao conto da “A Bela e a Fera”, a<br />

ser explicitado mais adiante. Comunicativa, expressiva, sociável, ativa, sobretudo,<br />

afetuosa, Bela animava a enfermaria. Criava inúmeros apelidos ao filho, como<br />

“neguinho” e “buchinho de guaru”. R Ian foi nomeado pela mãe, derivando sua criação<br />

do nome do marido.<br />

Aos quatorze anos Bela saiu de casa, desafiando o desdém dos pais. Foi<br />

morar com o namorado na casa da sogra, onde descobriu que estava grávida. Três meses<br />

após o nascimento da filha, voltou para a casa da mãe. S<strong>em</strong> ter como sustentar a criança<br />

entregou-a aos cuidados da sogra, pois só tinha o leite do peito para dar à criança.<br />

Continuou <strong>em</strong> contato com a filha, falando sobre o ciúme de Ian com a irmã.<br />

A fome era velha conhecida de Bela, sua companheira desde o início da<br />

adolescência, quando o pai abandonou a família para viver com uma amante. Bela<br />

narrou um episódio <strong>em</strong> que, diante do choro de fome da irmã, foi à casa de um vizinho<br />

pegar uma jaca para alimentá-la. Foi nessa situação que conheceu seu segundo marido.<br />

Casou-se mesmo reconhecendo que não o amava, porque a minha mãe tava passando situação<br />

R Guaru: peixe encontrado nos canais da periferia, que quando come muito fica com um “buchinho” ou<br />

barriga grande.


109<br />

e a minha irmã tava chorando e ele ajudou a gente. (...) Aí ele pegou, foi na minha casa e viu minha irmã<br />

chorando. Aí pegou e arrumou umas coisa pra gente comer. Aí eu peguei, minha mãe disse “porque tu<br />

num fica com ele, menina!” Aí por causa disso eu fiquei com ele. Aí pronto, eu fiquei com ele por causa<br />

disso, mas que eu tinha amor, aquele amor por um outro eu não tenho não, num tinha não.<br />

Por esse motivo o cognome escolhido para essa mãe foi “Bela”, do conto “A<br />

Bela e a Fera”, associado à filha que casou com a fera para salvar a família. Ajudar a<br />

mãe com comida ainda parecia ser uma prioridade para Bela, mesmo reconhecendo que<br />

seu relacionamento com a mãe era muito ruim, pois esta deixou de ser carinhosa e<br />

atenciosa depois da morte do marido, assassinado pela amante. Bela tirava do pouco que<br />

tinha para comer, contrariando o marido atual.<br />

Ao preencher o termo de consentimento da pesquisa, comentou que ao<br />

registrá-la sua mãe errou a data do seu nascimento, mas que esse fato não fazia<br />

diferença, uma vez que nunca ninguém com<strong>em</strong>orou seu aniversário. A pesquisadora a<br />

surpreendeu, trazendo um mini bolo na data correta do seu aniversário. Bela e Ian<br />

apagaram a vela com êxtase e logo depois Bela fechou a tampinha do pequeno<br />

recipiente com o bolo, dizendo que o dividiria com o marido mais tarde, descendo<br />

apressadamente as escadas da brinquedoteca carregando seu “pequeno tesouro”.<br />

Bela, Ian e o marido residiam <strong>em</strong> Olinda (PE), Região Metropolitana do<br />

Recife. Bela havia concluído sete anos de estudo, destacando sua vasta experiência de<br />

“se virar na vida”, mesmo não tendo estudado muito. Declarou não ter n<strong>em</strong> seguir<br />

nenhuma prática religiosa.<br />

Os três moravam numa pequena casa de alvenaria nos fundos da casa da avó<br />

paterna de Ian. A casa tinha apenas um cômodo, com uma cozinha improvisada, mas<br />

s<strong>em</strong> água encanada e esgoto.


110<br />

Como Bela não trabalhava, a renda do casal vinha do trabalho do marido<br />

como servente. Alegou nunca ter faltado nada ao filho, apesar de faltar para ela e o<br />

marido. Fizeram uma dívida na barraca <strong>em</strong> função da grande quantidade de fraldas<br />

comprada desde o início da doença, <strong>em</strong>inent<strong>em</strong>ente diarréica. Dentre as estratégias<br />

utilizadas por Bela, estavam a sogra, os vizinhos, a prática do fiado e compras no<br />

atacado. O <strong>em</strong>prego de servente do marido só veio após o nascimento de Ian.<br />

Às vezes a gente comia, às vezes a gente num comia. Mas ele s<strong>em</strong>pre foi uma pessoa<br />

esforçada, sabe! Ele tentava, não faltar, né, mas só que ele num conseguia evitar essas<br />

coisa. Aí a mãe dele vinha, dava um pratinho de cumê hoje, às vezes num dava, dava<br />

condução hoje, amanhã num dava. Ficava falando (...).<br />

Quando não tinha o que comer, Bela dizia fazer o mesmo que fazia na casa<br />

dos pais: tomava um copo de água com açúcar e ia dormir. Esperava o marido chegar<br />

para ir<strong>em</strong> atrás de comida, pois não gostava de pedir aos outros.<br />

Numa espécie de repetição, reconheceu que não parava de dar o peito ao<br />

filho porque t<strong>em</strong>ia que um dia ele adoecesse e não quisesse comer.<br />

No caso dele adoecer, aí já t<strong>em</strong> um alimento pra ele, né! Apesar que isso num alimenta,<br />

mas pode enganar a barriga dele, até dar muita fome, né, assim, dele voltar a comer<br />

direitinho.<br />

- Vai enganando a fome, assim como você falou que fazia quando era criança, com fome,<br />

que pra dormir ia e tomava água com açúcar pra enganar a fome, é isso pra ele<br />

É, é... Isso mesmo.<br />

Apesar da melhora financeira do casal, Bela relatou que o <strong>em</strong>prego do<br />

marido o deixou mais estressado, afastando-os, pois não mais recebia o carinho e<br />

atenção de antes, quando passavam fome na casa da avó. A necessidade de Bela por<br />

atenção do marido e da mãe foram aspectos recorrentes <strong>em</strong> seu discurso.<br />

Apesar de não ter programado a gestação, Bela sonhava <strong>em</strong> ter um filho do<br />

sexo masculino, pois perdera um bebê aos oito meses de gestação fruto de seu segundo


111<br />

casamento, ao qual havia nomeado (ainda na gestação) “Guilherme”. Aos quinze anos<br />

teve uma filha do seu primeiro relacionamento, sendo Ian filho único do terceiro e atual<br />

casamento de Bela, na época da internação com vinte anos.<br />

Sua mãe chegou a recomendar que abortasse Ian, pois o marido de Bela<br />

estava des<strong>em</strong>pregado, ao que Bela e seu marido se opuseram.<br />

Ian nasceu no IMIP, a termo, pesando cerca de três quilos e meio. Ao chegar<br />

<strong>em</strong> casa, Bela recebeu apoio da sogra.<br />

A alimentação de Ian consistia basicamente do leite materno, apesar de Bela<br />

já ter introduzido à alimentação, aos quatro meses, s<strong>em</strong> dificuldade, consistências e<br />

sabores diversos. Reconhecia que Ian gostava de comer cuscuz, sopa, inhame, sucos,<br />

mas depois s<strong>em</strong>pre pedia peito, ao que ela não negava.<br />

De cinco <strong>em</strong> cinco minutos era peito, de cinco <strong>em</strong> cinco minutos era peito. (...) S<strong>em</strong>pre que<br />

eu dava comida, quando ele acabava de comer eu dava o peito. (...) S<strong>em</strong>pre tive vontade,<br />

nunca tirar ele do peito não.<br />

A narrativa a respeito dos cuidados à criança diante do adoecimento era<br />

conflitiva, envolvendo dificuldade dos médicos no diagnóstico e tratamento da<br />

desnutrição, b<strong>em</strong> como certa busca, retomada de Bela por aspectos do nascimento de<br />

Ian, já que ele nasceu no IMIP.<br />

(...) Eu tava levando ele pro médico. Aí a médica fazia “não, mãe, daqui a pouco passa”.<br />

Aí quando eu levei ele pro pronto socorro, aí passou dois soro, né Dois soro na veia dele,<br />

ele tomou tudinho. Aí “pode ir mãe, ta de alta. Ta b<strong>em</strong>, daqui a pouco passa, só basta<br />

fazer efeito”, eu “ta certo”. Aí quando foi no outro dia aí ele foi piorando, piorando, levei<br />

ele no Tricentenário, levei lá, passei mais três dia com ele. Aí quando chegou lá, a médica<br />

ficou examinando ele, “não mãe, isso é normal, é porque os dentinho dele ta nascendo”.<br />

Aí eu “ta certo”. Se num é nada grave, ela ta dizendo, né, então pronto. Aí fui pra casa. Aí<br />

eu, quando vi as coisa piorando (...) “essa mulher num sabe é de nada! (...) O menino ta<br />

aqui morrendo, num sei o quê”, fiquei nervosa. Aí pronto, foi quando eu vim pra cá<br />

(IMIP).


112<br />

Ao longo de 17 dias, entre Fevereiro e Março de 2007, Ian e Bela,<br />

permaneceram no IMIP. A avó paterna da criança auxiliou Bela nos cuidados,<br />

revezando com a nora por dois dias.<br />

Ian tinha um ano e três meses e havia sido atendido <strong>em</strong> outro hospital de<br />

Olinda com queixa de diarréia recorrente há mais de um mês, vômito e febre há onze<br />

dias, b<strong>em</strong> como ed<strong>em</strong>a. No prontuário da criança constava a seguinte informação a<br />

respeito da queixa inicial: mãe refere que há um ano menor v<strong>em</strong> tendo vômitos. Fora o<br />

internamento pregresso de poucos dias <strong>em</strong> outro hospital da região, Ian nunca havia sido<br />

internado antes.<br />

A queixa de Bela a respeito dos vômitos foi conflitiva, freqüent<strong>em</strong>ente<br />

reformulada ao longo das entrevistas. Inicialmente informou que o filho provocava<br />

vômitos, rejeitando os alimentos, solicitando e aceitando apenas ser alimentado ao peito.<br />

(Diário de campo) Ian estava acordado, apontando para tudo que era de comer<br />

(mamadeira, doce da mãe), pedindo com a mão, com o olhar, com balbucios, ao que Bela<br />

dizia “não”. Ian chorou. Perguntei sobre a alimentação do hospital e Bela disse que Ian<br />

só come duas colheradas da comida e às vezes vomita depois. Falou que ele provoca o<br />

vômito, pois só queria o peito, repetindo o comportamento de casa.<br />

A equipe de saúde não chegou a dar importância a essa queixa, uma vez que<br />

a criança aceitou b<strong>em</strong> os alimentos do hospital, por vezes solicitando mais. Em uma das<br />

entrevistas, reconheceu que Ian havia parado de vomitar antes da internação, mas exibiu<br />

ambigüidade na mesma frase: muito antes de eu vim ele parou. Foi, acho que com uns três dia ele<br />

tinha parado já (...) Acho que ele provocava o vômito era na intenção do peito. A minha sogra disse hoje,<br />

vê, ont<strong>em</strong> ele comeu tudinho” (e não vomitou).<br />

Apenas um episódio de vômito foi observado, já próximo da alta de Ian,<br />

quando Bela “entupiu” a criança de comida, compl<strong>em</strong>entando com o peito, de modo que<br />

ele ganhasse logo o peso necessário para a alta hospitalar.


113<br />

Ao longo da internação, Bela passou a reconhecer que a dificuldade de Ian<br />

para comer estava ligada à sua própria dificuldade <strong>em</strong> colocar limites na criança. Por<br />

vezes a equipe parecia desejosa por colocar limites à mãe, agindo como inspetora.<br />

A interação entre Bela e Ian transcorreu s<strong>em</strong>pre com muitas trocas de<br />

olhares, vocalizações, diálogos vocais ou gestuais, como os ex<strong>em</strong>plos a seguir. Bela<br />

colocava-se como tradutora, narrando as descobertas e explorações do filho.<br />

Ian interrompe constant<strong>em</strong>ente a mãe. Desta vez ele derruba o carrinho e dá-se o seguinte<br />

diálogo:<br />

- Uê, uê! (gritando forte)<br />

- Oi, meu amor<br />

- Nau, nau, nau! (gritando e flexionando muito o rosto, mostrando descontentamento)<br />

- O quê Quer não o carrinho mais não é<br />

Bela dá outro brinquedo a Ian e ele <strong>em</strong>ite balbucios suaves, aceitando o novo brinquedo.<br />

(Diário de campo) Ian e Bela brincam com as bolas. Por vezes Bela ameaça ir <strong>em</strong>bora, ao<br />

que Ian reage com raiva; Bela parece achar graça nessa brincadeira. Muitas trocas de<br />

olhares. Exploram b<strong>em</strong> o ambiente, se movimentando bastante. Bela brinca com ele com o<br />

fantoche. Muita comunicação verbal e sincronia da díade; Bela narra tudo. Bela explora<br />

b<strong>em</strong> os brinquedos e os mostra a Ian.<br />

(Diário de campo) Bela e Ian estão na brinquedoteca; Ian pede a comida com as mãos. Ele<br />

anuncia com a mão quando quer mais, quando está pronto para mais uma colherada.<br />

Muitas trocas de olhares, numa verdadeira sincronia. Ian está posicionado de frente para<br />

Bela. A criança quer explorar o copo com a comida, mas o copo é muito frágil,<br />

dificultando sua exploração; ele se irrita.<br />

A dificuldade de Ian era ficar só, iniciar uma brincadeira e brincar quando<br />

sozinho. Toda vez que a mãe se ausentava da enfermaria por um período mais longo ele<br />

não se conformava.<br />

Quando Bela ia alimentar Ian a atividade geralmente se passava com muita<br />

dificuldade, pois ele freqüent<strong>em</strong>ente pedia o peito e ela não conseguia dizer “não” ao<br />

filho, cedendo, por vezes até deixando de dar a comida.


114<br />

(Diário de campo) Bela não consegue botar limite no filho, não conseguindo continuar<br />

com a refeição. Ela não consegue montar um setting alimentar organizado, com regras,<br />

tratando a alimentação ora como uma brincadeira, ora como uma luta. Ian não deixa que<br />

ela se afaste, chorando e chamando-a incessant<strong>em</strong>ente.<br />

(Diário de campo) Bela dá a comida a Ian, mas ele passa a pedir o peito, puxando a blusa<br />

da mãe com voracidade. Ela se recusa a dar o peito e ele se irrita. Bela não consegue<br />

dizer o “não” com firmeza, beijando o filho e dizendo que o peito está “dodói”. Ele<br />

insiste, ela então diz que se ele comer ela dará o peito. Ele chora e ela aproveita a boca de<br />

choro dele e <strong>em</strong>purra uma colher de comida, ao que Ian quase se engasga, cuspindo o<br />

alimento. Ela se diverte com a barganha que ofereceu (o resto da comida por peito), mas<br />

Ian se irrita ainda mais, insistindo no peito. Bela beija Ian e diz que eu (pesquisadora) vou<br />

comer a comida dele (o que implicaria que eu recebesse o peito depois!). Ian insiste,<br />

puxando a blusa dela. Bela acaba cedendo, tentando fazer um acordo com Ian (“mainha<br />

da o teito, tu come depois”, ao que ele não responde, pois só pensa no peito, e ela dá).<br />

Ou seja, é Ian qu<strong>em</strong> controla a atividade, a mãe. Enquanto dá de mamar, comenta “t<strong>em</strong><br />

que comer pra ficar forte pra sair daqui, viu!”. Troca intensa de carinhos e olhares<br />

enquanto amamenta, ao que Bela d<strong>em</strong>onstra muito prazer. Depois de um t<strong>em</strong>po dá um<br />

pouquinho de comida, junto com o peito. A muito custo, Bela dá mais um pouquinho de<br />

comida, alternando com o peito. Insistente, s<strong>em</strong>pre prometendo dar o peito, consegue dar<br />

o resto da comida, numa situação de barganha: “por favorzinho, neném, só esse<br />

pouquinho e mainha dá o teito”, enrolando a criança, pedindo para ele mostrar o<br />

dentinho, brincando de aviãozinho, conseguindo dar o resto do resto da comida,<br />

anunciando “ê, mainha conseguiu!”, olhando para mim, dizendo “É, t<strong>em</strong> que fazer<br />

cambalacho!”. Por fim, como prometido, dá o peito, porém a criança seque havia pedido.<br />

Quinze dias depois da alta a díade retornou ao hospital para o follow up com<br />

a Nutrição. S A nutricionista disse que Ian perdera um pouco de peso, mas que Bela<br />

atribuiu à reação a uma vacina que ele havia tomado. Como era de se esperar, Bela<br />

ainda enfrentava dificuldades para alimentar Ian e conciliar as mamadas, tendo que<br />

deixá-lo com outr<strong>em</strong> para que ele comesse. A nutricionista comentou como seria bom<br />

um grupo interdisciplinar (Psicologia, Nutrição e Terapia Ocupacional, por ex<strong>em</strong>plo)<br />

para trabalhar díades como esta.


115<br />

Magdala e Renata<br />

Giovanni Bellini - Madona Willys<br />

Renata (re-nata), aquela que re-nasce. Foi assim que essa garotinha de um<br />

ano e cinco meses pareceu sair da internação no IMIP: re-nascida, não só pela<br />

recuperação clinico-nutricional, mas especialmente por sua atitude afetiva frente à mãe,<br />

e vice-versa.<br />

O cognome da mãe r<strong>em</strong>ete a uma santa da igreja católica. Magdala foi, na<br />

realidade, nomeada por seus pais <strong>em</strong> homenag<strong>em</strong> a essa santa, pois quase morreu<br />

quando bebê <strong>em</strong> função de uma misteriosa doença.<br />

Ao contrário de outras avós do estudo, a mãe de Magdala foi descrita como<br />

incentivadora de sua capacidade materna. Antes de “casar” com o pai de Renata, chegou<br />

a ter uma filha com um namorado, a qual foi criada pela avó, mãe de Magdala, vivendo<br />

até o momento da pesquisa com essa avó, a qual frisou que cuidaria da criança, porém<br />

que os próximos filhos seriam da responsabilidade de Magdala.<br />

Há quatro meses (contando no período da internação) Magdala passara a<br />

trabalhar formalmente com o marido na função de canavieira, ambos “fichados”,<br />

recebendo também abono pelos seis filhos. Em função da rotina de trabalho, era comum<br />

S Das oito díades acompanhadas, esta foi a única que compareceu ao retorno da Nutrição, porém nenhuma<br />

das oito foi encaminhada ao ambulatório de Psicologia.


116<br />

não ver Renata acordada ao longo da s<strong>em</strong>ana. Sua filha mais velha (12 anos) tomava<br />

conta das d<strong>em</strong>ais crianças na ausência dos pais.<br />

Magdala estava com 33 anos e assim como o marido, não chegou a estudar.<br />

Declarou-se católica, s<strong>em</strong> prática religiosa. Parecia viver um casamento conturbado,<br />

descrevendo o marido como um hom<strong>em</strong> “muito ignorante, bruto com os filhos e<br />

violento na rua”. Disse que permanecia <strong>em</strong> casa por causa dos filhos, pois não gostava<br />

mais do marido. A família chegou a se mudar pelo menos três vezes, seguindo o desejo<br />

do marido. A última mudança ocorreu quando Renata era bebê. Magdala disse não<br />

gostar dessa “mania de cigano” do marido: Aí vende tudo, é um sacrifício pra comprar tudo de<br />

novo! Aí ele diz “se você não quer ir, vá pra casa da sua mãe, senão fique lá <strong>em</strong> casa, que eu vou me<br />

<strong>em</strong>bora”.<br />

No t<strong>em</strong>po da internação estavam morando a quatro meses <strong>em</strong> Escada (PE),<br />

mata meridional. A casa era de alvenaria, com três cômodos, água encanada;<br />

fossa/esgoto.<br />

Magdala afirmou que o dinheiro que recebiam era suficiente para a<br />

subsistência da família, recorrendo ao fiado ou a sua mãe quando falta algo <strong>em</strong> casa<br />

(comida) ou na época da entressafra: Mamãe pra mim é boa d<strong>em</strong>ais, mamãe. Minha valência no<br />

inverno, quando ele ta parando, minha valência é mamãe.<br />

Magdala apresentou discurso conformista diante de certas situações de sua<br />

vida, como ao longo da gestação de Renata:<br />

... Ele (marido) num queria não, mas eu também não queria não, só queria ficar mesmo<br />

com os quatro, os cinco mesmo. ... Ainda tomei chá, ainda. Tomei chá de um mato<br />

chamado melão pra ver se abortava, aí num abortei, porque num tinha que morrer. É,<br />

porque quando é pra acontecer um negócio a pessoa pode fazer o que quiser! Tomava o<br />

chá de noite, quando eu ia dormir e o resto botava <strong>em</strong> cima da casa, no sereno.


117<br />

Os movimentos fetais não pareciam ser tomados como interações, ao que<br />

Magdala dizia não sentir n<strong>em</strong> pensar nada frente aos mesmos, sequer conversando com<br />

o feto. Reconhecia apenas que ficava contente, pois (...) sabia que ela tava viva, num tava<br />

morta. Dizia saber que se tratava de uma criança do sexo f<strong>em</strong>inino, pois queria uma<br />

menina para fazer casal com o filho anterior.<br />

Declarou que Renata nasceu pr<strong>em</strong>atura (oito meses), porém tratava-se de<br />

uma estimativa, pois não fez nenhuma consulta de pré-natal (o mesmo fato se repetiu<br />

com suas d<strong>em</strong>ais gestações, seis antes de Renata).<br />

Renata passou aproximadamente um mês na maternidade, alguns dias <strong>em</strong><br />

companhia da mãe. Renata só foi nomeada e registrada pelos pais após sair da<br />

maternidade, depois de ter sobrevivido à pr<strong>em</strong>aturidade. Fora dada pelo hospital como<br />

abandonada pela família, pois seus pais haviam mudado de endereço (hábito freqüente<br />

dessa família) e nada informaram à equipe. Esse hospital chegou a acionar o Conselho<br />

Tutelar, mas foi uma vizinha que localizou a família.<br />

Levada para casa, Renata (...) só fazia mais dormir. Aí dava banho, dava cumê a ela,<br />

botava ela lá na caminha, e pronto. Foi nesse período que Magdala recorreu à sua mãe para<br />

comprar fraldas e roupinhas para a criança.<br />

Desde seus primeiros meses Renata parecia ser estimulada à autosuficiência,<br />

mesmo no sentido alimentar:<br />

(...) Tinha erva-doce <strong>em</strong> casa, eu fui logo, dei um chazinho de erva-doce. Aí era pra ir<br />

educando a barriguinha dela. Depois eu comprei logo o Camponesa. Num acostumei ela a<br />

tomar leite de lata não porque o de lata é muito caro (...), aí depois pra eu acostumar ela a<br />

comer o de lata pra depois num poder comprar, aí eu disse vô logo acostumar ela a tomar<br />

o leite mais barato logo, que é o Camponesa.<br />

(Diário de campo) Magdala coloca Renata no colchonete e a criança chora, reclamando<br />

muito. Magdala reclama com ela, dizendo que não vai acostumá-la a ficar no braço, dizendo<br />

ainda: “mas olha! Cala a boca! Quando chegar lá vou botar você no berço, mais os teus


118<br />

pano!” Renata pára de chorar, aceitando ficar no colchonete, talvez t<strong>em</strong>endo a ameaça de<br />

ficar s<strong>em</strong> a mãe lá <strong>em</strong>baixo, sozinha com seus paninhos.<br />

Renata foi descrita por Magdala como uma criança quieta, que não<br />

costumava chorar, s<strong>em</strong>pre aceitando qualquer tipo comida, s<strong>em</strong> preferências.<br />

Comunicava-se com a mãe por gestos (aponta para a mamadeira), pois ainda não falava.<br />

Também não andava. A mãe costumava alimentá-la na cama, não na mesa com o resto<br />

da família, pois Renata costumava querer mexer na comida. Ela come b<strong>em</strong>, qualquer coisa!<br />

Quando bota ela na mesa ela num quer sair mais não, quer mexer <strong>em</strong> tudo.<br />

Com exceção da internação quando no nascimento de Renata, nenhum dos<br />

outros seis filhos de Magdala chegou a ser internado. Desde a maternidade, Renata<br />

nunca havia sido levada ao médico; estava com as vacinas atrasadas.<br />

Magdala e Renata estiveram internadas no IMIP ao longo de 12 dias, devido<br />

à falta de apetite da criança por uma s<strong>em</strong>ana, b<strong>em</strong> como tosse, palidez e febre. Magdala<br />

procurou o hospital de Escada, aonde Renata chegou a ser h<strong>em</strong>otransfundida e<br />

encaminhada a outro hospital do Recife antes de chegar ao IMIP. Magdala não sabia<br />

informar o motivo das duas transferências, questionando a internação.<br />

Tava com fastio e tosse já fazia uma s<strong>em</strong>ana. Ela comia, mas comia b<strong>em</strong> pouquinho, aí eu<br />

disse “vou levar ela pro hospital de lá pra dar pelo menos umas vitamina”. Quando chegou<br />

lá, mandou pro hospital de cá. (...) Pedi até pra ela num ser internada, porque meu marido<br />

disse assim “se for pra ela ficar internada, diga que num queira não, mande os doutor, as<br />

doutora passar uma vitamina que eu compro o r<strong>em</strong>édio dela”. (...) Aí ela disse “não, mãe, é<br />

o jeito de internar ela mesmo”. Aí eu “é, ta bom”.<br />

Por mim ela tava <strong>em</strong> casa já, oxe! É pra pesar, pra pegar peso na menina... Amanhã eu vou<br />

falar com o doutor, dizer a ele que ela já ta boa de ir pra casa. Porque essas coisa que faz<br />

aqui eu posso fazer <strong>em</strong> casa, que é dar o leite, dar r<strong>em</strong>édio, eu compro lá, meu marido<br />

compra.


119<br />

Toda vida essa menina foi assim! Desde que essa menina nasceu, que é desse jeito, choxinha<br />

mesmo, s<strong>em</strong> peso, é do calibre mesmo dela, assim mesmo como a senhora! (refere-se à<br />

pesquisadora). ... Amanhã eu vou perguntar ao doutor se ela já ta boa de ir se <strong>em</strong>bora pra<br />

casa, “dê alta a ela que ela já ta boa, e eu num só tenho ela não, tenho é cinco <strong>em</strong> casa<br />

ainda! E eu trabalho, pra botar comida <strong>em</strong> casa, num posso ficar perdendo muito dia não”.<br />

O sentimento de desvalorização da figura materna frente à hospitalização da<br />

criança pareceu se repetir <strong>em</strong> Magdala no período <strong>em</strong> que estava com a filha no IMIP,<br />

atribuindo a melhora da criança aos r<strong>em</strong>édios que os médicos estavam dando, acabando<br />

com o fastio que a filha tinha, fazendo-a ter mais vontade de comer.<br />

Magdala parecia estranhar e não se ver como destinatária das d<strong>em</strong>andas da<br />

filha, como observado mais de uma vez.<br />

Ao longo da internação, Renata evoluiu com boa tolerância à dieta,<br />

passando a chorar por mais leite. Esse foi um comportamento marcante: chorar por<br />

comida, chorar pela mãe.<br />

Renata não olhava para os outros, sequer aceitando ser tocada, afastando-se,<br />

irritadiça, chorando. Inibia-se e era inibida pela mãe <strong>em</strong> suas atitudes exploratórias.<br />

Parecia um “bichinho do mato”, escondida <strong>em</strong> seus cachinhos desgrenhados, <strong>em</strong> sua<br />

roupinha surrada e frouxa para o magro corpinho. Aos poucos foi aceitando o leve e<br />

discreto toque da pesquisadora <strong>em</strong> seu cabelo, <strong>em</strong> seus dedinhos, passando a não desviar<br />

o olhar, por fim esboçando um leve sorriso, explorando como resposta o corpo da<br />

pesquisadora.<br />

Com sua mãe, no entanto, o comportamento de Renata mostrava um outro<br />

extr<strong>em</strong>o: procurava o olhar da mãe, parecia buscar o toque, aproximando-se da mãe,<br />

porém não chorava, repreendida que era diante da iminência do choro. Quando Renata<br />

chegava a chorar, fato raro, Magdala não a tomava no colo, apenas olhando-a.<br />

(Diário de campo) Percebo que Renata quase não sai do berço, não é retirada de lá.<br />

Magdala não estimula a criança, não brinca com ela, quase não a olha, não mostra nada à


120<br />

filha, sequer a janela da enfermaria. Pouco conversa com a filha, só a retirando do berço<br />

para comer e uma vez perdida dar um banho nela. Às vezes dá a impressão que mãe e filha<br />

são duas estranhas. (...) Magdala sai para almoçar e Renata fica quieta, no berço, sentada<br />

ou deitada, com a chupeta na boca, acariciando-se com os lençóis. Quase não olha para a<br />

porta e também não chora.<br />

Renata mudou com a mãe e com a pesquisadora. Acompanhe a evolução de<br />

mãe e filha:<br />

(Diário de campo) Renata chorou com muita irritação quando a mãe desceu para almoçar,<br />

fato novo para o que venho acompanhando dela, pois ela quase não reclama quando a mãe<br />

se afasta. Magdala pareceu estranhar, e disse a Renata: “Oxe!”. Desceu e não disse nada a<br />

filha. A criança logo parou de chorar. Ficou tão quieta no berço, brincando com o ursinho<br />

que a mãe de Angélica lhe <strong>em</strong>prestou / deu, que quando a técnica do laboratório tirou seu<br />

sangue ficou abismada com a quietude e colaboração da criança, me perguntando (eu sequer<br />

havia notado que ela tinha tirado sangue de Renata, pois estava escrevendo no diário) se<br />

Renata era normal. Segundo a técnica, Renata apenas virou de lado e deixou o braço lá para<br />

a técnica trabalhar.<br />

(Diário de campo) Renata estava dormindo no colchonete, junto aos brinquedos e de repente<br />

acorda, chorando. Magdala tentou acalmá-la verbalmente, s<strong>em</strong> sequer tocar na criança.<br />

Questionei se ela não iria pegar a filha, ao que Magdala disse que não precisava não. Deu<br />

um paninho e a chupeta para a criança e esta logo se acalmou.<br />

(Diário de campo) Magdala não monta brincadeira com a criança. Renata parece<br />

desconfiada; manuseia discretamente objetos; leva um à boca. Magdala praticamente não<br />

fala com ela; não apresenta objetos verbalmente. Tenta brincar com Renata, com seu corpo,<br />

através de um objeto intermediário (carrinho), mas Renata não responde à brincadeira.<br />

(Diário de campo) Magdala parece ausente, quase não olha para Renata. Estimula a criança<br />

a brincar, ou melhor, ordena a ela que brinque, mas não mostra como, não brinca com ela,<br />

apenas mostra a sonoridade dos objetos. Renata parece desconfiada. Magdala explora seu<br />

próprio corpo, ausentando-se cada vez mais do setting de filmag<strong>em</strong>. Magdala deixa a filha<br />

sentada sozinha, mas Renata não reclama, apesar de esboçar expressão de aflição,<br />

procurando a mãe pela sala, mas s<strong>em</strong> dizer nada. Fico aperreada por Renata e tento ir<br />

brincar com ela. Ela me responde negativamente, mostrando que não queria a mim, mas a<br />

sua mãe: vira de costas para mim e chora quando toco nela. Que bom que ela esboçou isso,<br />

pois sei que deseja a mãe. Magdala nada faz diante do choro da filha; preciso chamá-la para<br />

ocupar seu lugar. Magdala apenas pergunta de longe o que houve, d<strong>em</strong>orando para vir.<br />

Estimulo mãe e filha a brincar<strong>em</strong>, mas não adianta. Depois de um t<strong>em</strong>po, Magdala procura


121<br />

piolhos na cabeça de Renata e eu tento brincar com ela; a mãe destina-se ao real do corpo,<br />

aos cuidados básicos, enquanto eu me dirijo à criança imaginária e tento incluí-la num<br />

diálogo, numa brincadeira. Depois de um t<strong>em</strong>po Magdala diz a Renata que brinque, mas não<br />

se coloca como parceira da brincadeira, estimulando um brincar solitário da filha.<br />

(Diário de campo) Renata parece com a boca cheia, mas ainda aceita cada vez mais comida<br />

na boca, s<strong>em</strong> reclamar. Magdala dá a comida, mas não observa se Renata engoliu.<br />

Praticamente não há troca de olhares entre as colheradas. O alimento e a alimentação não<br />

foram anunciados.<br />

(Diário de campo) Renata sorriu quando me viu e deixou que eu fizesse um carinho <strong>em</strong> seu<br />

cabelo, s<strong>em</strong> chorar n<strong>em</strong> recuar, ao contrário, sorrindo para mim.<br />

(Diário de campo) Magdala Renata só e foi conversar com outra mãe. Depois saiu s<strong>em</strong> dizer<br />

nada à criança e Renata começou a chorar, resmungando, mas logo depois parou. Quando<br />

Magdala voltou, perguntei a ela se Renata chorava <strong>em</strong> casa quando ela saía, ao que<br />

Magdala respondeu que Renata não chorava <strong>em</strong> casa e acha que agora ela está chorando no<br />

hospital quando ela sai porque “está ficando mais sabida, mais desenvolvida”. Disse ainda<br />

que desde que vieram para o hospital Renata passou a beliscá-la quando quer sua atenção,<br />

quando está com raiva ou quando quer acordá-la. Ressalte-se que Renata quase nunca via a<br />

mãe sair de casa, pois Magdala saía para trabalhar no início da manhã, quando Renata<br />

ainda dormia, e só voltava às 16, 18hrs. Dá a impressão que Renata está aprendendo a ver a<br />

mãe sair e voltar, a reconhecer a ausência/presença da mãe.<br />

(Diário de campo) Magdala só brinca ou sorri para a filha <strong>em</strong> poucos momentos, muito<br />

rapidamente, não chegando a montar uma brincadeira com a criança. Nesses últimos dias,<br />

no entanto, conseguimos, Renata e eu, montar várias brincadeiras de esconde-esconde.<br />

Algumas vezes eu incluía Magdala propositalmente, pois tinha vontade de mostra-lhe o<br />

potencial da filha para que ela a estimulasse.<br />

(Diário de campo) No final da tarde, Renata brincava com um chocalho que a mãe de outra<br />

criança <strong>em</strong>prestou. Renata deixou o chocalho cair no chão e então vi, pela primeira vez, ela<br />

balbuciar, <strong>em</strong>itindo um leve som para chamar a mãe, mas Magdala sequer percebeu e só<br />

depois pegou o brinquedo, dizendo a Renata que não mais o jogasse no chão. Corri para<br />

pegar minha câmera na brinquedoteca e consegui chegar a t<strong>em</strong>po para filmar o que nomeie<br />

de “fort-da de Renata” T . Nessa brincadeira, observei que Renata passou a mudar de postura,<br />

T Fort-da: <strong>em</strong> “Além do princípio de prazer” (1920), 33 Freud relata a brincadeira de seu neto, com 18<br />

meses, jogando com um carretel, identificando que a criança reconhece a si mesma na presença e na<br />

ausência da mãe. Descobre e pode brincar com a ilusão da ausência, uma referência t<strong>em</strong>poral e espacial<br />

de dentro e fora de si mesmo. Assim, o jogo encena um protesto / satisfação, desaparecimento e retorno.<br />

A criança transforma uma situação na qual estava passiva para outra na qual passa a ser ativa. 33


122<br />

ficando agora também de joelhos, tentando ficar de pé, não mais só sentada. Hoje foi um dia<br />

<strong>em</strong> que Renata sorriu um bocado, mostrou-se interativa e com comportamentos inéditos.<br />

(Diário de campo) Renata estava sentada no berço, brincando com o ursinho, atenta ao pai<br />

da criança vizinha, que a olhava, curioso. Era uma troca tão intensa de olhares, tão<br />

interativa, que pareciam “conversar”, cada um “falando” sobre suas curiosidades e<br />

trajetórias, narrativas silenciosas.<br />

(Diário de campo) Renata está sorridente, aceitando que eu a toque intensamente e brinque<br />

com ela. Porém, ainda é muito tímida ou retraída, pouco acostumada ao contato social, ao<br />

toque e olhares.<br />

(Diário de campo) Renata continuou a chorar, olhando fixamente para Magdala, até que<br />

Magdala falou <strong>em</strong> falseto, dizendo “é pra você brincar, mamãe. Chegue, mamãe bota você<br />

no colo”. Renata pára de chorar instantaneamente. Magdala ri. Percebe que a criança está<br />

esquentada “ta com quentura, vou dar um banhinho nela já, a enfermeira mandou”. Renata<br />

e fica no colo da mãe, brincando com as mãos desta. Percebo que Magdala está mais<br />

afetuosa com a filha, com o passar dos dias, b<strong>em</strong> como Renata t<strong>em</strong> reclamado mais o que<br />

quer, não parando de chorar tão rapidamente como fazia antes.<br />

(Diário de campo) Subi com Magdala e Renata à brinquedoteca. Renata ficou encantada com<br />

a brinquedoteca, como se nunca tivesse ido lá, apesar das quatro sessões anteriores de<br />

filmag<strong>em</strong>. Brincou tanto e com tanto gosto com o cavalinho! Até falou “me dá”! Quando na<br />

salinha, com os brinquedos, explorou-os e interagiu com mais vigor. Quando desc<strong>em</strong>os,<br />

puxei Magdala para um canto e lhe mostrei a filmag<strong>em</strong>, destacando que aquela era a filha<br />

que ela um dia acreditou que não morreria, e que de fato essa criança estava viva. Ela ficou<br />

animada com as imagens, orgulhosa da evolução da filha, mostrando às outras mães, rindo<br />

ao ver o filme.<br />

(Diário de campo) Renata brinca no cavalinho. Muitas trocas de olhar, a mãe ensina como se<br />

balançar, imitando com seu próprio corpo e balançando o cavalo. O chocalho veio junto<br />

(mais um objeto intermediário). Renata sorri e gargalha, balbucia, aponta: <strong>em</strong>ite sinais<br />

interacionais não vistos anteriormente. Renata é clara, explícita sobre o que quer: mudar de<br />

brinquedo. Ela aponta, faz movimentos com o corpo, cabeça, tenta sair do brinquedo, diz<br />

“me dá!” (fala pela primeira vez!). Apesar disso, Magdala custa a compreender, apenas<br />

ouvindo a criança, mas ignorando o pedido. Magdala bota Renata para andar pela primeira<br />

vez na vida da criança, mas não exprime qualquer reação – eu que fico atônita!<br />

(Diário de campo) Mostra as bonecas a Renata, mas a criança só quer saber de se recostar<br />

no ombro da mãe – parece que quer ser a boneca da mãe, ainda não está pronta para


123<br />

brincar com as bonecas. Mãe e filha parec<strong>em</strong> mais cúmplices na exploração da<br />

brinquedoteca. Magdala coloca Renata no cavalinho, comunicando-se mais com a filha. As<br />

duas se divert<strong>em</strong>. Magdala parece enxergar aos poucos uma criança que deseja se divertir,<br />

não apenas uma criança com um corpo a ser cuidado (alimentar, tirar piolhos).<br />

(Diário de campo) Renata está de alta hoje. Desde ont<strong>em</strong> que Magdala fez pitozinhos <strong>em</strong><br />

Renata e hoje eles ainda estão lá, como que l<strong>em</strong>brando a todos nós que Renata é uma<br />

criança, não um bichinho do mato.


124<br />

Izabel e João<br />

Botticelli - Madonna de Pomegranate<br />

A penúltima díade residia <strong>em</strong> Manari (PE), sertão. Manari é conhecida por<br />

ser a cidade com o menor IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do Brasil. 99 Em<br />

compensação, essa era a família que recebia o maior número de auxílios<br />

governamentais: Bolsa Família, programa do leite, incentivo ao pequeno agricultor e<br />

aposentadoria.<br />

Tratava-se de uma família de agricultores que vendia seus produtos na feira<br />

da cidade. Somos pobre, mas comida nunca faltou não, graças a Deus. Na minha casa, que eu digo<br />

hoje, nunca faltou não. A agricultura s<strong>em</strong>pre foi o sustento de Izabel, desde seus pais,<br />

afastando a fome de sua vida. Residiam numa casa de alvenaria com seis cômodos, de<br />

modo que cada residente (sete) tinha sua cama.<br />

Izabel tinha 47 anos e João um ano e cinco meses. A díade recebe esse<br />

cognome segundo Santa Izabel, prima de Nossa Senhora, que engravidou quando<br />

achava que não mais seria possível, dando à luz João.<br />

Izabel engravidou do seu 14º filho quando parecia não acreditar que pudesse<br />

ser mãe a essa altura de sua vida. A criança foi nomeada após o nascimento, por uma de<br />

suas filhas mais velhas, já casada e mãe.


125<br />

Apesar da idade de Izabel, a gestação transcorreu s<strong>em</strong> intercorrências,<br />

culminando num parto vaginal (peso ao nascer: 2835g). No entanto, dezenove dias após<br />

o nascimento de João, seu marido (setenta anos) teve uma crise decorrente da diabetes,<br />

precisando de cuidados hospitalares intensivos. Mãe e filho ficaram então separados por<br />

um dia, fato este que pareceu ter marcado Izabel, obrigando-a a voltar-se mais para o<br />

marido e a lavoura que cultivavam, fonte do sustento familiar. Associou esses episódios<br />

ao fato do seu leite ter secado, amamentando o filho por apenas dois meses,<br />

diferent<strong>em</strong>ente dos outros filhos, os quais foram todos amamentados por pelo menos<br />

quatro meses.<br />

Impregnada pela culpa, Izabel achava que havia se descuidado com o filho,<br />

pois com a doença do marido passou a ir para a roça, deixando João com as filhas de<br />

oito, nove e 13 anos, t<strong>em</strong>endo que elas tenham passado da hora de alimentá-lo. Ressaltese<br />

que esta foi a maneira como ela auxiliou sua própria mãe, tomando conta dos irmãos<br />

mais novos.<br />

João passou meses sendo alimentado basicamente por leite de cabra diluído<br />

<strong>em</strong> água, pão, banana e caldo de feijão. Não aceitava outras comidas e comia tudo aos<br />

poucos.<br />

(...) O negócio dele é que ele num se alimentava b<strong>em</strong>. Aí foi enfraquecendo, cada vez mais<br />

foi enfraquecendo. (...) Porque comia só um pedacinho e depois num queria mais, mais<br />

nada, se abusou-se da comida, só tomava o leite e olhe lá, era b<strong>em</strong> de pouquinho <strong>em</strong><br />

pouquinho.<br />

Católica praticante, Izabel falava com resignação e inúmeros detalhes sobre<br />

a morte de quatro dos seus filhos <strong>em</strong> função da an<strong>em</strong>ia, todos com menos de dois anos<br />

de idade. Apesar de reconhecer que João também tinha an<strong>em</strong>ia e “gastro”, descrevia a<br />

doença dele de modo diferente, acreditando <strong>em</strong> sua recuperação.


126<br />

Deus dá e Deus tira, num é isso! Nós num t<strong>em</strong>os que enfrentar a morte Que um dia nós<br />

vamos, pois é! (...) Acho que foi Deus que consentiu e Deus queria ele lá. Eu acho que foi<br />

isso. (...) E eu já pedi a Deus assim, pra mim “Meu Deus, se for da sua vontade, me dê meu<br />

filho com saúde, e se for da sua vontade, leve pra eu morrer tranqüila.” Eu tenho pedido<br />

s<strong>em</strong>pre, peço pra Deus me dar com saúde. Se não é meu, também leve. Mas como vai ser<br />

meu, se Deus quiser, que até agora ta, Deus ta me abençoando, que ele ta melhorando, que é<br />

meu, num é isso! (...) Eu penso isso, porque eu luto, mas no final, que ele permita eu ir me<br />

<strong>em</strong>bora, né! (...) Se fosse pra criar os outro tudinho, eu tinha criado tudinho. Deus qu<strong>em</strong><br />

cria, eu tinha cuidado, né!<br />

- Que doença é essa que você acha que ele t<strong>em</strong><br />

É gastro, no meu entendimento ela é gastro, porque ela diminui, ela deixa o menino magro,<br />

deixa desnutrido mesmo, ela deixa acabado o menino! Porque ela só mata quando deixa ele<br />

só o corinho e o osso. Assim, como ele tava, assim, desmagrecendo, né, cada dia que passava<br />

ia desmagrecendo mais, eu acho que ainda era ele (gastro) que tava incomodando ele. Isso é<br />

o que eu digo, porque eu vi, não meu, um menino dos outro, se acabaram nesse estado. Lá<br />

tinha uma mulher que tinha um menino, um menino não, uma menina, essa menina, ela<br />

morreu com dois anos. Ta com vinte e poucos anos que ela morreu já. Ela era b<strong>em</strong> magrinha<br />

e ela s<strong>em</strong>pre, num é que, assim, que ela mandava rezar, assim, disse que mandou rezar nove<br />

vezes pra curar essa menina, só que num conseguiu. Então quando a menina morreu, ela<br />

morreu só o corinho e o osso. N<strong>em</strong> carne, assim, nos lábios num ficou pra se ver, os dente<br />

dela ficou tudo de fora. Aí nesse caso dessa menina que to lhe dizendo, ela se acabou dessa<br />

maneira, n<strong>em</strong> carne pra cobrir os dentinho num ficou, os dentinho dela ficou descoberto. A<br />

gente via todos os ossos dela, ficou só o corinho mesmo. (...) No meu entendimento essa<br />

doença é quase como um tipo de câncer, t<strong>em</strong> câncer que num t<strong>em</strong> cura, né, então t<strong>em</strong><br />

também que não t<strong>em</strong> cura. Eu acho essa doença chega igual a isso, porque enquanto a<br />

criança t<strong>em</strong> o sangue e a carnezinha, ela ta resistindo, né, e quando se acaba a carne, fica só<br />

pele e osso, vai <strong>em</strong>bora.<br />

- E o que causa essa doença<br />

Não sei.<br />

- E falaram que era o quê que ele tinha<br />

Pois é isso que eu to lhe falando, gastro. Que a infecção dele tava no intestino, não é! (...)<br />

Quando ele começou foi assim, dando assim umas feridas na boca e dando probl<strong>em</strong>a de<br />

disenteria, diarréia. (...) E continua a diarréia muito forte, ela num pára, a gente dá r<strong>em</strong>édio<br />

e ela vai continuando. Então isso se cura com reza, só cura com reza. (...) Aí ela disse assim,<br />

que eu agradecesse muito a Deus porque o probl<strong>em</strong>a dele tava sério, a gente achava que ele<br />

num ia escapar. Tava sério, mas graças a Deus que até hoje ele ta contando história.


127<br />

- Quanto t<strong>em</strong>po faz que ele está doente<br />

Faz um ano que ele t<strong>em</strong> esse probl<strong>em</strong>a. Fica bom, melhora, depois volta de novo. Não é<br />

continuado não, sabe! Se for pra engordar mesmo, ele num engorda. (...) É, vai e volta.<br />

Diarréia, cocozinho mole. Aí eu vou lá no médico, faço um r<strong>em</strong>edinho, o médico passou um<br />

r<strong>em</strong>edinho pro sangue, e falou pra mim assim “se ele não melhorar com esse t<strong>em</strong> que ir pra<br />

um lugar mais longe”. Exatamente antes de eu terminar o r<strong>em</strong>edinho que o médico passou,<br />

aí chegou as enfermeira lá, falou pra as Agentes de Saúde pra eu ir lá e eu fui. Ela, a<br />

enfermeira, passou uma receitinha de comida pra ele, mas ele não aceitou, que era<br />

batatinha, com ovo, com inhame, feito quase como um purê, né, pra eu dar pra ele, mas ele<br />

não aceitou. E também suco de laranja, ele também não queria. (...) Só que os médicos lá já<br />

tinham passado sulfato ferroso pra ele, mas ele não se deu com sulfato ferroso. Toda vez que<br />

ele tomava, ele vomitava, tomava, vomitava. Aí eu parei, num dei mais. Porque ele tomou<br />

tanto antibiótico, pra parar a, por causa desse probl<strong>em</strong>a que ele tinha, né, que o sangue foi<br />

ficando mais fraco. (...) Aí quando foi com seis dias eu voltei lá e disse “olhe, o r<strong>em</strong>édio que<br />

a enfermeira passou, quando eu dei um dia ele vomitou, no outro dia ele começou a inchar,<br />

os olhos inchados, os pés, as mãos. Vamos ver outra coisa, <strong>em</strong> outro lugar, porque pra tomar<br />

esse ele num toma mais não, ta ficando inchado”. Elas disse “não, mulher, tu ta maluca, né<br />

inchaço não, ele ta é gordo”. Eu disse “gordo não. T<strong>em</strong> dias que ele ta mais cheio, t<strong>em</strong> dias<br />

que ele mais magrinho”. (...) Aí ela encaminhou na quarta e no domingo eu vim, porque só<br />

v<strong>em</strong> carro no domingo.<br />

Izabel e João permaneceram dez dias no IMIP. Inicialmente, devido à<br />

medição e pesag<strong>em</strong> errônea, João foi diagnosticado e tratado para an<strong>em</strong>ia grave,<br />

recebendo por dois dias alimentação livre para idade. Porém, mediante avaliação da<br />

nutrição, foi então identificado com parâmetros para entrar no protocolo de atendimento<br />

a crianças com DEP grave.<br />

(Diário de campo) A nutricionista comentou que muitas crianças receb<strong>em</strong> o diagnóstico de<br />

“an<strong>em</strong>ia grave a esclarecer”, mas na verdade trata-se de desnutrição. Essas crianças são<br />

tratadas inadequadamente, muitas morrendo inclusive, justamente por receber comida<br />

d<strong>em</strong>ais, tratamento inadequadamente conduzido, tendo uma arritmia ou algo do tipo, e<br />

assim entram para estatísticas erradas, não sendo diagnosticadas como desnutridas.<br />

(diário de campo)<br />

Foi interessante como Izabel conseguiu dar ao filho o que ele precisava, n<strong>em</strong><br />

s<strong>em</strong>pre o que ele desejava, aos poucos o incentivando a se adaptar ao hospital. De


128<br />

início, João não deixava que sua mãe se descolasse dele. Na primeira entrevista, Izabel<br />

permaneceu <strong>em</strong> pé, balançando o filho por praticamente uma hora e meia, colado <strong>em</strong><br />

seu corpo. Disse que João sentia falta do lugar onde dormia <strong>em</strong> casa: na rede, a qual era<br />

balançada até ele pegar no sono. Mais adiante, passou a <strong>em</strong>balá-lo no berço,<br />

balançando-o e dando leves tapinhas <strong>em</strong> seu bum-bum até que a criança dormisse. Por<br />

fim, João passou a se regozijar com o balanço do elevador, com os pulos deste ao parar<br />

nos andares, b<strong>em</strong> como com o balanço do cavalinho de plástico da brinquedoteca,<br />

aceitando substitutos do corpo materno.<br />

(Diário de campo) Izabel tenta se sentar, mas João começa a chorar. Ela, pela primeira<br />

vez, reclama, gentilmente, mas reclama e acaba sentando, deixando-o chorar um pouco.<br />

Senta-se e continua a balançar o filho no colo, dizendo “vou sentar só um pouquinho.<br />

Pronto, pronto, ta bom”. Ele continua reclamando, mas pára aos poucos. Izabel começa a<br />

dar limite à criança.<br />

Stork, Ly & Mota 100 estudando perfis de interação mãe-bebê, com relação<br />

aos estilos de técnicas de maternag<strong>em</strong> <strong>em</strong> diversas culturas, destacam, quanto ao<br />

Nordeste do Brasil, o freqüente comportamento das mães de <strong>em</strong>balar todo o corpo do<br />

bebê ou <strong>em</strong>balo parcial (um braço, os ombros, o bum-bum) com a ajuda de tapinhas<br />

rítmicas. O balanço na rede é considerado como um tipo de <strong>em</strong>balo, numa espécie de<br />

continuidade dos movimentos do corpo da mãe, um prolongamento do corpo materno,<br />

utensílio esse que acompanha o sertanejo do nascimento à morte.<br />

No hospital, inicialmente, a comunicação de João consistia basicamente <strong>em</strong><br />

choros irritadiços, ao que a criança passou a fazer uso de gestos com as mãos e com a<br />

cabeça, a indícios de palavras.<br />

A interação entre Izabel e João era rica e dialógica:<br />

(Diário de campo) Izabel utiliza-se dos atos de fala de João, compl<strong>em</strong>entando-os com suas<br />

falas de modo a construir um diálogo (ex: João diz “hã” e Izabel interpreta como um alô<br />

dele ao telefone), respaldando atos de fala do filho.


129<br />

(Diário de campo) Apresenta os objetos ao filho, nomeando alguns. Senta-se de lado, um<br />

pouco virada para frente da criança. Deixa-o explorar b<strong>em</strong> os brinquedos. Monta<br />

brincadeira, esperando o turno da criança; João respalda os investimentos da mãe com<br />

vocalizações. Reconhece preferência de João pelo telefone, comunicando seu entendimento à<br />

criança. Estimula que ele explore os objetos, ensinando-o como fazer, porém respaldando as<br />

tentativas da criança.<br />

(Diário de campo) João brinca jogando o tubo de vitamina C para que sua mãe e eu<br />

pegáss<strong>em</strong>os e o devolvêss<strong>em</strong>os. O brincar de João é basicamente este: jogar e receber, usar<br />

o outro para fazer desaparecer e reaparecer, indício do fort-da. Fica na expectativa de<br />

receber o objeto e dá aquele sorriso quando recebe de volta.<br />

No início da internação Izabel tinha medo de alimentar o filho, t<strong>em</strong>endo que<br />

ele vomitasse, comentando que a barriga dele estava cheia já com o pouco de leite que<br />

tinha tomado horas atrás (João foi diagnosticado com parasitose intestinal). Observe-se<br />

a evolução desta díade quanto à alimentação.<br />

(Diário de campo) Izabel dá o jantar de João, o qual aceita b<strong>em</strong> a comida. Troca de<br />

olhares e comunicação verbal por parte de Izabel, solicitando respostas da criança.<br />

Apesar de reconhecer que ele come aos poucos, praticamente não insiste, parando logo de<br />

dar a comida, t<strong>em</strong>endo que João vomitasse, pois disse que a barriga dele está muito<br />

grande e cheia, pois ele havia tomado leite antes (às 15 horas e estávamos na dieta das<br />

18). No entanto, João ainda pedia mais comida, explicitamente, e comia b<strong>em</strong> quando ela<br />

voltava a dar a comida. João continua pedindo comida. Izabel está com certo receio de<br />

dar, t<strong>em</strong>erosa dele vomitar, b<strong>em</strong> como surpresa com o apetite do filho por comida de<br />

panela. João está no terceiro andar, recebendo alimentação para idade, pois ainda não<br />

conseguiu vaga no quarto andar, apesar de já ter sido diagnosticado como DEP grave.<br />

(Diário de campo) João vê que a comida chegou e olha para o copinho, dizendo “hã, hã”,<br />

pedindo cada vez mais alto, olhando para a mãe. Izabel não anunciou a comida n<strong>em</strong> a<br />

atividade. A colher é grande para sua boca. (...) Está sentado de frente para a mãe. Indica<br />

com a mão, pede mais comida quando a mãe dá uma paradinha. Come aos poucos, ao que<br />

a mãe precisa estimulá-lo, chamando-o, virando-o de frente para ela. Quando ele não<br />

quer mais coloca a mão na boca ou a chupeta, vira-se de costas para a mãe, deita-se,<br />

afasta a colher, e a mãe compreende, verbalizando se entendimento, mas insiste mais um<br />

pouco, persistente e pacient<strong>em</strong>ente, s<strong>em</strong>pre verbalizando. Muitas trocas de olhares. Não<br />

está mais medrosa de insistir mais um pouco na alimentação, como estava no início. Dá a


130<br />

impressão que ela nunca tinha alimentado ele como está fazendo no hospital, não sabia<br />

como ele reagiria à comida.<br />

(Diário de campo) João come na brinquedoteca. Troca de olhares, comunicação verbal da<br />

mãe, sincronia da díade, apesar de certa dispersão de João, ao que ele presta atenção<br />

mais ao ambiente que ao alimento. A mãe percebe a dispersão da criança e tenta<br />

compreender o que chama a atenção dele, porém insistindo no alimento. Consegue que ele<br />

coma tudo, colocando limite e tendo paciência.<br />

Apesar do hospital ter auxiliado a díade <strong>em</strong> seu re-encontro alimentar, a<br />

única perspectiva de Izabel era abandonar a roça, tendo <strong>em</strong> vista a saúde do filho:<br />

(...) este ano não vamos plantar roça porque ele (marido) não pode trabalhar e eu também<br />

com esse menino agora também não vou trabalhar, eu quero que Deus me ajude, que ele<br />

(João) melhore, pra eu dar mais o conforto dele, cuidar mais dele, eu não vou botar roça.<br />

Que se eu botar as menina não estuda, uma estuda de manhã até o meio-dia, aí pra eu<br />

deixar de novo com a mesma pequena, ela não vai cuidar dele como t<strong>em</strong> que cuidar, num<br />

é! Eu já tenho pra mim que este ano nós não vamos trabalhar.


131<br />

Eva e Fátima<br />

A autoria da imag<strong>em</strong> é desconhecida<br />

O cognome “Eva” r<strong>em</strong>ete à mãe mítica da história humana, expressão da<br />

ambivalência (o b<strong>em</strong> e o mal) e fonte das possibilidades humanas. Ao longo das<br />

entrevistas, Eva conseguia falar de sua ambivalência materna de modo muito sincero,<br />

quase nu, abrindo-se com muita facilidade. Sua narrativa era cheia de afeto, falando s<strong>em</strong><br />

cessar por praticamente duas horas ou mais, d<strong>em</strong>andando um espaço onde pudesse falar<br />

sobre si, retomando lutos supostamente não tão b<strong>em</strong> resolvidos.<br />

Enquanto Eva estava ocupada <strong>em</strong> sua narrativa, Fátima explorava<br />

vividamente o ambiente, logo se adaptando e se desvencilhando da mãe, por vezes<br />

fazendo-nos esquecer que se tratava de uma criança frágil e doente. Seu cognome<br />

r<strong>em</strong>ete a Nossa Senhora de Fátima, pois gostava muito de uma medalhinha dessa santa<br />

que a pesquisadora usava no pescoço.<br />

A díade era proveniente de Itapissuma (PE), litoral norte.<br />

A infância de Eva foi marcada pela repetição de experiências de fome e<br />

brutalidade física e verbal por parte do pai quando bebia. A mãe de Eva buscava<br />

proteger os filhos do marido bêbado, certa vez chegando a fugir de casa com a prole,<br />

porém retornando ao reconhecer a falta que o mesmo fazia às crianças.


132<br />

Foi <strong>em</strong>bora uma vez, nós foi tudinho, tudo pequeno, mas a gente tudo apegado a pai. O<br />

mais novo, muito apegado a ele, era chorando direto, direto, queria pai, queria pai, aí nós<br />

voltou pra pai.<br />

Mesmo com toda precariedade dessa família, os pais de Eva continuavam<br />

juntos. O pai parou de beber, assumindo seu lado carinhoso, e a mãe aposentou-se,<br />

realizou o sonho da casa própria, podendo ajudar financeiramente o resto da família.<br />

Fátima tinha dez meses de idade e era a segunda filha de Eva (25 anos),<br />

ambas do mesmo companheiro atual da mãe. Antes da primeira filha, chegou a<br />

engravidar e fazer um aborto. Teve um breve relacionamento anterior, do qual não teve<br />

filhos.<br />

Eva construiu interessante narrativa a respeito desse aborto, o qual pareceu<br />

ter deixado marcas significativas, auxiliando-a na construção da<br />

maternidade/parentalidade. Chegou a tomar r<strong>em</strong>édio para abortar Fátima, porém “caiu<br />

<strong>em</strong> si” e voltou atrás (vomitou o r<strong>em</strong>édio), também convencendo o marido a aceitar a<br />

criança, ao ponto que ele mesmo escolheu o nome e registrou Fátima. O marido t<strong>em</strong>ia<br />

não ter como criar a criança, devido à precária condição financeira da família.<br />

Tanto Eva como o marido preferiam uma criança do sexo masculino para<br />

“fazer par” com a filha mais velha. Ao longo da sua narrativa, se deu conta da repetição<br />

da história da sua mãe, a qual teve nove filhas e apenas um filho, o mais novo.<br />

Ora reconhecia que Fátima havia nascido com saúde (peso ao nascer:<br />

2550g), ora identificava influências externas no ambiente intra-uterino como orig<strong>em</strong> da<br />

desnutrição:<br />

(...) aí eu fazia só mais fumar, era fumar e trabalhando. Aí pronto, aí essa menina acabou<br />

e num deu sustento a ela, por isso que ela nasceu assim desnutrida.


133<br />

Dentre outros significados criados à doença, destacam-se o t<strong>em</strong>po que a<br />

criança passou longe do pai (15 dias), “deixando-a desanimada”; os dentes que estavam<br />

nascendo; estilo alimentar da criança e o costume que a criança tinha de pôr o dedo na<br />

boca. U<br />

A amamentação exclusiva por três meses também foi identificada como<br />

causadora da desnutrição.<br />

(...) ela passou uns três meses só no peito. Agora só no peito, mulé, isso, ela passou uns<br />

dois meses s<strong>em</strong> tomar água, só mamando, s<strong>em</strong> tomar água, s<strong>em</strong> tomar um suco, s<strong>em</strong> tomar<br />

nada. Eu digo que é por isso que a menina desnutriu, ficou desnutrida.<br />

O peito foi oferecido até os cinco meses, concomitant<strong>em</strong>ente com leite <strong>em</strong><br />

pó, acrescido de massa (engrossante) e alimentos do cardápio familiar, adaptando-se<br />

s<strong>em</strong> dificuldades à transição alimentar. Eva acreditava que pelo fato dela mesma não<br />

estar se alimentando adequadamente, devido à dificuldade que passavam, seu leite não<br />

estava mais alimentando a criança.<br />

(...) A gente só t<strong>em</strong> mais leite no peito quando a gente ta comendo alguma coisa também,<br />

né! (...) Num tinha um alimento pra eu sustentar ela de mamar, eu num agüentava. Tinha<br />

dia que ela mamava tanto que chega os meus peito ficava doendo. Que quando a criança<br />

ta mamando, de instante <strong>em</strong> instante quer mamar. O meu leite num tava mais dando<br />

sustância a ela não porque ela num tava conseguindo encher a barriga. V<br />

Reconheceu que houve momentos <strong>em</strong> que passaram dificuldade também<br />

para comprar comida para as filhas, recorrendo à compra por fiado e à sua mãe. No<br />

entanto, poucos meses depois do nascimento de Fátima, Eva o marido mudaram-se com<br />

as filhas para outra cidade, afastando-se dos familiares.<br />

Se tivesse a família perto era bom, mas eu num tenho. Minha mãe me ajudava antes de eu<br />

ir morar lá, minha mãe era minhas mão e meu pé. (...) Quando t<strong>em</strong> uma coisinha assim eu<br />

U Nos primeiros dias de internamento Fátima permanecia freqüent<strong>em</strong>ente com o dedo na boca, a ponto de<br />

feri-lo. Com a evolução, passou a brincar e gradualmente tirar o dedo da boca.


134<br />

faço e dou, mas quando num t<strong>em</strong> é muito ruim, mulé! Eu digo, eu tenho fé <strong>em</strong> Deus eu vou<br />

trabalhar, mas pro mó das duas eu num pude trabalhar, porque se tivesse a família perto,<br />

né, deixava com eles. Pelo menos se eu trabalhasse era pra pagar a casa, comprar<br />

comida, roupa, comida mais melhorzinha...<br />

Apesar da falta que sua família fazia, reconheceu que sua situação financeira<br />

havia melhorado desde a mudança, b<strong>em</strong> como o marido passou a dar mais atenção a ela<br />

e às filhas.<br />

A família se mantinha com o trabalho do marido de carregador. O casal<br />

tinha poucos anos de estudo, submetendo-se a trabalhos por vezes insalubres. Não<br />

recebiam nenhum tipo de suporte social. A casa era de alvenaria, com água encanada,<br />

esgoto, luz elétrica e banheiro dentro, com dois cômodos.<br />

Eva estava há duas s<strong>em</strong>anas com sua mãe e filhas quando percebeu que a<br />

diarréia, vômito e febre de Fátima estavam deixando a criança cada vez mais debilitada.<br />

Eva procurou três rezadores, b<strong>em</strong> como o hospital. Fátima recebeu soro e r<strong>em</strong>édio para<br />

catarro no hospital local e foi mandada para casa. Diante da piora da filha, Eva resolveu<br />

voltar ao hospital, sendo então encaminhada ao IMIP.<br />

Eva relatou que Fátima vinha perdendo peso desde os cinco meses.<br />

Aí eu disse assim “olhe, doutora, mas vê só, o que é isso que ela num pega peso”, ela<br />

disse “não, vá dando (sulfato ferroso) a ela porque ela falta, ela falta três pontinho pra<br />

desnutrir”, ela falou. Aí eu continuei dando mais, ela voltou mais ao normal. E depois<br />

voltava de novo, mulé, pro mesmo! (...) Num sei por que isso, mas ela aumentava, depois<br />

tava abaixando (...) E eu s<strong>em</strong>pre continuando, dando o que elas mandava, né! Ia, só num<br />

passava r<strong>em</strong>édio porque ela num era doente assim, esse negócio dela era só, ela teve um<br />

catarrinho eu fui lá, passou um r<strong>em</strong>edinho, ficou boa. (...) Mas qualquer coisa de gripe ela<br />

fica com esse catarro.<br />

Mãe e filha permaneceram quatorze dias no IMIP. Diante da evolução<br />

clínica da filha, começou a questionar a permanência no hospital.<br />

V Eva ainda tinha leite no período da internação, apesar de Fátima raramente pedir ou ser colocada no


135<br />

(...) as menina diz que só falta ela pegar peso e vai passar outro líquido pra ver como ela<br />

fica. Eu digo então eu vou d<strong>em</strong>orar d<strong>em</strong>ais aqui, mulé! É melhor eu coisar s<strong>em</strong> ninguém<br />

me dar alta! (Ri) Eu digo “vou me <strong>em</strong>bora daqui a pouco s<strong>em</strong> ninguém me dar alta. Se<br />

tivesse pra enterrar eu já tinha passado, que ela já ta boa”, eu disse mesmo assim.<br />

Agora... Eu digo “vocês quer o quê, que ela fique aqui e pegue mais infecção, é!”.Porque<br />

eu indo pra casa, mulé, ela toma o mingauzinho dela, ela engorda num instante. Porque se<br />

ela tivesse com diarréia, vomitando, eu num ia não, e com febre, né! (...) Porque <strong>em</strong> casa<br />

ela come mais, porque <strong>em</strong> casa ela se anima. (...) Porque sabe que é perto do pai, aí ela<br />

fica animada. É por isso, se ele tivesse vindo pra cá ela já tava muito mais melhor.<br />

Apesar de reconhecer que Fátima costumava comer <strong>em</strong> casa “de pouquinho<br />

<strong>em</strong> pouquinho”, aspecto este também observado no hospital, Eva não era persistente<br />

com a filha ao longo da alimentação, ou, <strong>em</strong> contraste, forçava a comida a ponto de<br />

fazer a criança chorar e vomitar.<br />

No início da internação, era freqüente observar Fátima com o dedo na boca e<br />

praticamente s<strong>em</strong> chorar, mesmo diante do afastamento materno.<br />

Eva sai, desta vez avisando que iria ao banheiro, e Fátima chora muito brev<strong>em</strong>ente,<br />

depois coloca o dedo na boca, consolando-se também com um paninho.<br />

No entanto, com o passar dos dias, mãe e filha passaram e agir de modo<br />

diferente.<br />

(Diário de campo) Eva sai para almoçar, mas desta vez Fátima chora muito, passando<br />

depois a se entreter com os objetos do berço: fraldas, boneca, sandália. Ficou de frente<br />

para a porta, para ver o corredor, por vezes olhando se a mãe voltava, suponho. Brincou<br />

comigo, sorridente. O dedo dela está b<strong>em</strong> melhor. Ela chupa b<strong>em</strong> menos o dedo e desta<br />

vez usou brinquedos e objetos de consolo, não o dedo e/ou a fraldinha, como fazia antes.<br />

(Diário de campo) Hora do almoço das mães. Estou só com as crianças na enfermaria.<br />

(...) Fátima brinca com as borrachinhas que Eva usa no cabelo. Leva-as à boca, as joga<br />

no chão. Entro na brincadeira e ela sorri quando entrego as borrachinhas, repetindo tudo<br />

novamente. Seria esse um fort-da<br />

peito. Eva não chegou a dar de mamar nenhuma vez no hospital.


136<br />

(Diário de campo) Reparo que Fátima está mais chorosa quando a mãe sai (passou a<br />

reclamar mais vezes das saídas da mãe) e perguntei a Eva o que ela achava. Eva<br />

concordou comigo e acrescentou que a filha não quis ir para o pai quando ele veio no fimde-s<strong>em</strong>ana,<br />

ao que Eva chamou de “curioso e engraçado”, pois diz que o marido s<strong>em</strong>pre<br />

teve mais jeito com as crianças, brincando mais com elas. Disse que ficou se sentindo<br />

“mais mãe” diante dessa recusa da filha pelo pai. Fátima também está mais comunicativa,<br />

balbuciando mais, pedindo cada vez mais explicitamente a comida à mãe. Acho que a<br />

comunicação entre mãe e filha ficou mais ativa, fluida, como se algo do início da<br />

maternag<strong>em</strong>, da interação inicial entre as duas tivesse sido retomado.<br />

(Diário de campo) Eva parece compreender b<strong>em</strong> os sinais interacionais da filha, mas seu<br />

interesse parece ser ver o desenvolvimento físico e o sorriso da filha, talvez porque estes<br />

estavam sumidos desde que a criança adoeceu. (...) Ultimamente seu brincar com Fátima<br />

t<strong>em</strong> se resumido a breves jogos orais (balbucios e “mordidas”). Seria um retorno a uma<br />

maternag<strong>em</strong>, <strong>em</strong> alguns aspectos, interrompida<br />

- A internação, você acha que ajudou ou atrapalhou a interação, a relação de vocês<br />

Acho que ajudou mais porque eu passei esse t<strong>em</strong>po todinho mais junto dela, né, tendo mais<br />

cuidado com ela, mais do que eu já tinha, aí ficou mais melhor! (Ri) Ficou muito mais<br />

melhor. (...) Ela já ta voltando como era antes, né, a falar comigo desse jeito enrolado<br />

(refere-se aos balbucios da criança), pra eu entender as coisa, né! (...) Ela ta falando<br />

mais. A primeira coisa quando ela começou a ficar melhorzinha, ela chamou logo<br />

“papai”, e “mamãe”. E agora ela já ta fazendo “hã”, as mesma coisa que ela fazia<br />

t<strong>em</strong>pos atrás.


137<br />

Quadro 1 – Caracterização das díades segundo procedência, período e t<strong>em</strong>po de<br />

hospitalização. IMIP, Recife, 2007<br />

Caracterização das Díades<br />

Cognome e idade<br />

da mãe<br />

Cognome e idade da<br />

criança<br />

Procedência<br />

Maria (22ª ) Gabriel (1a 8m ) Tupanatinga (PE)<br />

Agreste<br />

Mina (19a) Pandora (9m) Pitimbu (PB)<br />

Litoral sul<br />

Ana Maria (15a) Mariana (6m) Catende (PE)<br />

Mata meridional<br />

Rosácea (25a) Angélica (6m) Goiana (PE)<br />

Zona da mata<br />

Bela (20a) Ian (1a 3m) Olinda (PE)<br />

Região Metropolitana<br />

do Recife<br />

Magdala (33a) Renata (1a 5m) Escada (PE)<br />

Mata meridional<br />

Izabel (47a) João (1a 5m) Manari (PE)<br />

Sertão<br />

Eva (25ª) Fátima (10m) Itapissuma (PE)<br />

Litoral norte<br />

Período e t<strong>em</strong>po de<br />

hospitalização<br />

Nov<strong>em</strong>bro 2006<br />

(15 dias)<br />

Janeiro de 2007<br />

(16 dias)<br />

Fevereiro a Abril de 2007 (40<br />

dias)<br />

Fevereiro a Março de 2007<br />

(28 dias)<br />

Fevereiro a Março de 2007<br />

(17 dias)<br />

Março de 2007<br />

(12 dias)<br />

Março de 2007<br />

(10 dias)<br />

Março a Abril de 2007<br />

(14 dias)<br />

Quadro 2 – Caracterização das mães segundo anos de estudo, ocupação e situação<br />

conjugal. IMIP, Recife, 2007<br />

Caracterização das Mães<br />

Mãe<br />

Anos de estudo Ocupação Situação conjugal<br />

concluídos<br />

Maria 2 anos Do lar Casada<br />

Mina 5 anos Do lar Separada<br />

Ana Maria 4 anos Estudante e<br />

Solteira<br />

<strong>em</strong>baladora<br />

Rosácea 8 anos Do lar Casada<br />

Bela 3 anos Do lar Casada<br />

Magdala φ Canavieira Casada<br />

Izabel 3 anos Agricultora Casada<br />

Eva 2 anos Do lar Casada


138<br />

Quadro 3 – Caracterização das mães segundo apoio financeiro e <strong>em</strong>ocional, suporte<br />

familiar e número de filhos. IMIP, Recife, 2007<br />

Caracterização das Mães<br />

Mãe<br />

Apoio financeiro e<br />

<strong>em</strong>ocional<br />

Suporte social Número de<br />

filhos<br />

Maria Mãe, padrasto φ 01<br />

Mina Mãe φ 02<br />

Ana Maria<br />

Mãe, padrasto, pai da<br />

criança, prática do<br />

“fiado”<br />

Benefício INSS do<br />

irmão<br />

01<br />

Rosácea<br />

Mãe, família do marido,<br />

prática do “fiado”<br />

Solicitou Bolsa<br />

Família, mas não teve<br />

resposta<br />

Bela<br />

Sogra, vizinhos, prática<br />

φ 02<br />

do “fiado”<br />

Magdala Mãe Bolsa Escola 07<br />

Izabel Filhas, vizinhos Bolsa Família,<br />

aposentadoria do<br />

marido, programa do<br />

leite, incentivo ao<br />

pequeno agricultor<br />

14<br />

Eva<br />

Família materna, família<br />

do marido<br />

04<br />

φ 02<br />

Quadro 4 – Caracterização das díades quanto ao planejamento da gravidez, satisfação<br />

com o sexo da criança e abortos. IMIP, Recife, 2007<br />

Caracterização das Díades<br />

Díade<br />

Gravidez Satisfação<br />

Abortos<br />

planejada diante do sexo<br />

da criança<br />

Maria (22a ) e Gabriel (1a 8m ) Não Sim Não<br />

Mina (19a) e Pandora (9m) Não Sim Não, mas a mãe orientou-a a<br />

abortar Pandora<br />

Ana Maria (15a) e Mariana (6m) Não Sim Não, mas a mãe orientou-a a<br />

abortar Mariana<br />

Rosácea (25a) e Angélica (6m) Não Sim Acha que sim, no primeiro mês;<br />

espontâneo<br />

Bela (20a) e Ian (1a 3m) Não Sim Natimorto aos oito meses;<br />

espontâneo<br />

A mãe orientou-a a abortar Ian<br />

Magdala (33a) e Renata (1a 5m) Não Sim Não, mas tentou abortar Renata<br />

Izabel (47a) e João (1a 5m) Não Não<br />

Eva (25a) e Fátima (10m) Não Não Sim<br />

Provocado


139<br />

A idade das oito mães estudadas foi entre 15 e 47 anos, e a escolaridade<br />

variou da primeira série do ensino fundamental ao segundo ano do ensino médio.<br />

Apenas uma mãe era estudante e duas exerciam atividade fora do lar, uma <strong>em</strong> trabalho<br />

informal e outra canavieira com carteira assinada. Uma era solteira e outra separada, as<br />

d<strong>em</strong>ais mães coabitavam com o marido (<strong>em</strong> todos os casos era o pai da criança). Cinco<br />

dessas mulheres tinham um ou dois filhos, enquanto as d<strong>em</strong>ais quatro, sete e quatorze<br />

filhos. Em todos os casos, esses filhos eram do mesmo pai da criança <strong>em</strong> questão.<br />

A maioria das mães tinha condição socioeconômica precária, característica<br />

compatível com o perfil da clientela do hospital estudado. Quanto ao suporte social,<br />

apenas uma recebia o Bolsa Família, outra o Bolsa Escola, uma usufruía o benefício do<br />

INSS de um irmão portador de deficiência, e outra da aposentadoria do marido. A maior<br />

parte dessas famílias não teve acesso a esses programas sociais.<br />

Todas as mães referiram período(s) <strong>em</strong> que passaram dificuldade financeira,<br />

algumas chegando a passar fome. Diante disso, b<strong>em</strong> como de outros aspectos referentes<br />

à experiência e prática da parentalidade, a família imediata (avós e tios das crianças), e<br />

vizinhos foram referidos como os responsáveis pelo apoio financeiro e <strong>em</strong>ocional.<br />

Poder recorrer aos recursos de continência na família (campo de continência) foi visto<br />

por Almeida 73 como indicador de resiliência frente a probl<strong>em</strong>as de alimentação infantil.<br />

Solymos 17 também referiu a iniciativa para procurar recursos, pedir e aceitar auxílio<br />

como fator psicossocial de risco para a nutrição (proteção).<br />

Nenhuma das gestações foi planejada, b<strong>em</strong> como a descoberta da gravidez<br />

trouxe mudanças na vida dos pais, <strong>em</strong> especial no aspecto financeiro e social. Em cinco<br />

das oito díades o casal ou um dos pais mudou-se, tendo <strong>em</strong> vista a melhoria do sustento<br />

financeiro da família com a chegada do novo m<strong>em</strong>bro. Nos casos <strong>em</strong> que ocorreu a<br />

mudança do casal, houve a perda do apoio da família imediata (avós e tios da criança),


140<br />

b<strong>em</strong> como dificuldade no estabelecimento de vínculos com vizinhos e entidades de<br />

apoio social (posto de saúde, associação comunitária). Algumas mães associaram o<br />

adoecimento ou a piora da criança à perda da proximidade geográfica/apoio <strong>em</strong>ocional<br />

da família e/ou diminuição da atenção dispensada pelo marido após o início do novo<br />

<strong>em</strong>prego. Outro aspecto referido por algumas dessas mães foi a necessidade de buscar<br />

trabalho fora do lar, comprometendo a atenção ao filho.<br />

Dentre as crianças, cinco eram do sexo f<strong>em</strong>inino e três do sexo masculino.<br />

Uma dessas foi a óbito ao longo do estudo. O t<strong>em</strong>po de internação variou entre 10 e 40<br />

dias. Observa-se que os internamentos mais prolongados ocorreram entre as crianças de<br />

menor idade (Mariana, seis meses, 40 dias de internamento; Angélica, seis meses, 28<br />

dias de internamento).<br />

A maioria dessas díades era do interior do estado de Pernambuco e apenas<br />

uma da Região Metropolitana do Recife. Todas haviam sido encaminhadas de outros<br />

hospitais da rede pública, após insucesso no tratamento da doença, n<strong>em</strong> s<strong>em</strong>pre<br />

identificada pelo hospital de orig<strong>em</strong> como desnutrição, principalmente nos casos <strong>em</strong> que<br />

a criança apresentava ed<strong>em</strong>a.<br />

Mudança geográfica da família, sazonalidade da lavoura, des<strong>em</strong>prego e<br />

doença de um dos pais, pareceram ter influenciado no desencadeamento da doença,<br />

interferindo na leitura e resposta da mãe quanto aos sinais interacionais da criança.<br />

Praticamente todas as crianças dormiam na mesma cama com os pais ou<br />

com um dos pais/avó, apesar de referir<strong>em</strong> espaço físico no domicílio, b<strong>em</strong> como<br />

algumas ter<strong>em</strong> berço.<br />

A experiência de falta real parecia balizar a constituição dos vínculos<br />

afetivos da maioria dessas famílias, marcados pela precariedade e fragilidade com que<br />

se iniciavam e eram desfeitos, porém não s<strong>em</strong> prejuízos psíquicos à mãe, expressos na


141<br />

interação com o filho. Algumas dessas mulheres descreveram diversos relacionamentos<br />

conjugais anteriores, construídos e destruídos de modo breve e superficial, mesmo<br />

havendo gerado filhos. Uma das possíveis origens da precariedade do laço mãe-filho,<br />

destacada tanto pelo excesso quanto pela falta, pode estar na precariedade do casal<br />

parental. Assim como s<strong>em</strong> a interação hom<strong>em</strong>-mulher não há preservação da espécie,<br />

s<strong>em</strong> a interação pai-mãe, mãe-filho, não há humanidade.<br />

Destacam-se, portanto, o marcante efeito da realidade nas famílias/díades.<br />

As relações, de modo geral, acredita-se, não pareciam, com algumas exceções, ser<br />

investidas, idealizadas, fantasiadas, ocorrendo s<strong>em</strong> afeto, baseadas no real do corpo, no<br />

real da necessidade.<br />

A pobreza esteve presente <strong>em</strong> todos os casos, quer seja na vertente do<br />

alimento, do olhar, da verbalização, do investimento, das trocas dialógicas e corporais,<br />

e, <strong>em</strong> alguns casos, na capacidade de doação. Destaca-se a relação entre pobreza e<br />

desnutrição no sentido simbólico, na desnutrição afetiva mãe-pai-criança-ambiente.<br />

Desse modo, a desnutrição pode ser pensada não somente como uma síndrome<br />

nutricional decorrente da pobreza real, mas também da pobreza simbólica, resultando<br />

numa desnutrição afetiva, simbólica e fantasmática.


142<br />

Com base nos relatos, foram identificados três t<strong>em</strong>as.<br />

T<strong>em</strong>ática 1 – O processo de construção da parentalidade<br />

• Sub-t<strong>em</strong>a: Construção da parentalidade ao longo da gestação por meio da<br />

interação mãe-feto<br />

• Sub-t<strong>em</strong>a: Vivência da parentalidade por meio da interação mãe-criança no<br />

domicílio, enfatizando os sinais interacionais e a alimentação<br />

T<strong>em</strong>ática 2 – Vivência e retomada da parentalidade: interação mãe-criança ao<br />

longo da hospitalização<br />

- Sinais interacionais percebidos pela mãe, vividos no hospital;<br />

- Adaptação da criança ao hospital <strong>em</strong> função do relacionamento com a mãe;<br />

- Interação da díade entre si e com a pesquisadora: construção de uma terceira<br />

história.<br />

T<strong>em</strong>ática 3 – Desnutrição e interação mãe-criança: significados criados <strong>em</strong> relação<br />

à doença e compreensão desta a partir da interação com a criança e com o hospital<br />

• Sub-t<strong>em</strong>a - Psicodinâmica interativa: indícios compreensivos quanto às<br />

perturbações da interação mãe-criança


143<br />

4.2 T<strong>em</strong>ática 1 – O processo de construção da parentalidade<br />

• Sub-t<strong>em</strong>a: construção da parentalidade ao longo da gestação por meio da<br />

interação mãe-feto<br />

O processo de construção da parentalidade envolve uma série de aspectos<br />

relativos a experiências, projetos e expectativas dos pais. A confirmação da gravidez<br />

pareceu envolver a mulher na construção mais ativa desse processo, algumas buscando<br />

criar espaço à futura criança, mesmo diante da ambivalência de sentimentos. Como<br />

destacado por Iaconelli, 47 há uma mãe desejante <strong>em</strong> toda gestação, mesmo que impere a<br />

ambivalência (mesmo que deseje a morte do bebê). Não se sabe a que desejos a<br />

gravidez v<strong>em</strong> corresponder, mas é identificável a existência de um lugar de<br />

expectativas, medos e anseios que lhe diz<strong>em</strong> respeito. 47<br />

Não obstante o desejo inconsciente, a programação da gravidez não ocorreu<br />

<strong>em</strong> nenhum dos oito casos, evidenciando a fragilidade com que os laços conjugais e a<br />

gestação ocorriam:<br />

- Por que você foi morar com ele (segundo marido)<br />

Porque a minha mãe tava passando situação e a minha irmã tava chorando e ele ajudou a<br />

gente. (...) Aí ele pegou, foi na minha casa e viu minha irmã chorando. Aí pegou e arrumou<br />

umas coisa pra gente comer. Aí eu peguei, minha mãe disse “porque tu num fica com ele,<br />

menina!” Aí por causa disso eu fiquei com ele. Aí pronto, eu fiquei com ele por causa disso,<br />

mas que eu tinha amor, aquele amor por um outro eu não tenho não, num tinha não. (Bela)<br />

- Por que você queria tanto ter uma menina<br />

Por que eu acho que é bonito... Botar uns pitozinho no cabelo, mas essa daqui n<strong>em</strong> cabelo<br />

t<strong>em</strong> direito pra fazer pitó (Ri). (Mina)<br />

Alguns dos maridos e avós maternas pareceriam rejeitar a gravidez,<br />

chegando a recomendar o aborto, <strong>em</strong> função da recorrente preocupação com a


144<br />

alimentação da criança, <strong>em</strong> função da precária condição socioeconômica, t<strong>em</strong>endo a<br />

repetição da experiência de fome.<br />

Minha mãe que ficou falando, né “toma r<strong>em</strong>édio”. Aí ele (marido) “não, você num vai tomar<br />

não, vai deixar, deixe, eu quero, eu quero, eu quero, eu quero!”, “pronto”, eu disse, “pronto,<br />

agora deixe!” Aí até hoje. Queria uma menina ele, Agora não, quando a gente tiver na nossa<br />

casa, tiver ajeitado as nossas coisa, tudinho, direitinho, aí a gente faz outro.<br />

- Por que sua mãe queria que você tirasse<br />

Por causa da situação da gente, né, que assim, esse neguinho num tinha trabalho, aí ela<br />

pensava que ele não queria nada, assim, sério comigo. (Bela)<br />

- E por que sua mãe queria que você tirasse<br />

Mas ela queria assim, sei lá, era pra fazer medo a ele... porque ele não queria mais morar<br />

com eu... Essa daqui também, foi o maior aperreio. Ela me dava tanto r<strong>em</strong>édio pra eu dar<br />

pra ela. Eu pegava num tomava não, eu jogava. (...) Minha mãe disse “se for um menino<br />

eu não vou n<strong>em</strong> lá lhe buscar, não toco n<strong>em</strong> nele”. Aí qu<strong>em</strong> foi me buscar foi ela, aí<br />

quando ela chegou perto de mim ela fez assim “é o quê”. Eu fiz “arrumei uma menina”.<br />

Ela chega pegou ela, ela disse que se fosse menino não ia pegar não.<br />

- Por que sua mãe não queria que você tivesse esses filhos<br />

Sei lá, a dificuldade, né, pra criar... (Mina)<br />

Aí o resultado deu positivo (do teste de gravidez). Até mainha pensou <strong>em</strong> tirar e ele (pai de<br />

Mariana) achou ruim, num gostou. Quando no começo ela descobriu, que nervosa com as<br />

coisa, aí pensou logo <strong>em</strong> tirar, aí ele (pai da criança) “não, vai tirar não”. Aí eu disse a<br />

mainha “também não vou tirar não”. Aí depois que eu disse a mainha que não ia tirar, ela<br />

foi, foi passando o t<strong>em</strong>po e ela se acalmando. Aí foi ficando mais alegre, alegre, aí se<br />

conformou. (...) Aí ela ficou nervosa na hora, mas com o t<strong>em</strong>po ela foi se acalmando, quer<br />

dizer “vai ter que ser uma menina, se num for uma menina eu num sei o que eu faço não,<br />

mas vai ser uma menina”, ela disse assim, brincando. ‘T<strong>em</strong> que ser uma menina pra se<br />

chamar Mariana”. Aí eu disse “é, vai se chamar Mariana mesmo se for”. “Se for uma<br />

menina vai criar, t<strong>em</strong> que ser b<strong>em</strong> criada’, ela dizia. Terminou sendo uma menina”. (Ana<br />

Maria)<br />

O anúncio da gravidez de Eva provocou a seguinte reação do marido: (...) ele<br />

dizia “a situação da gente, a gente num pode n<strong>em</strong> dar o de comer da Roberta (a outra filha do casal),<br />

como é que tu arrumasse esse!”. O aspecto material, o não ter o que dar de comer parecia


145<br />

dificultar a construção da parentalidade, onde ser pai corresponderia a ser o provedor do<br />

b<strong>em</strong> material mais básico: comida.<br />

A experiência de Eva de perda do primeiro filho, mediante uso de chá<br />

abortivo, pareceu encorajá-la a não desistir de Fátima. Destaca-se a diferença com que<br />

se referiu às duas gestações.<br />

Quando foi dois meses eu já tava grávida, mas num foi de Roberta não, foi de outro. Só que<br />

eu num sabia que eu tava grávida, o povo num dizia que eu era histérica! (estéril, infértil)<br />

Aí a menstruação num veio, eu pensava que o negócio tava <strong>em</strong>pancado. Aí quando eu fui<br />

pensar “peraí, isso é gravidez”, aí eu peguei e fui. Quando eu cheguei lá era gravidez, eu já<br />

tava com um mês e quinze dias, mas só que ele num sustentou porque eu tinha tomado<br />

r<strong>em</strong>édio, aí eu perdi. Eu pensava que tava <strong>em</strong>pancado, eu tava incerta, também eu num tinha<br />

ido no médico, o negócio num tinha vindo ainda, tava <strong>em</strong>pancado, aí eu tomei um chazinho<br />

pra vim, eu gosto de tomar (...). Eu disse “eu vou tomar pra vim logo”, mas só que eu tava<br />

grávida e num sabia não. Aí quando eu fui fazer o teste aí eu parei de tomar o chá, aí, mas já<br />

tinha ofendido ele, aí eu perdi, um mês e quinze dias. Aí depois, num passou n<strong>em</strong> um mês,<br />

veio Roberta, foi a maior alegria na minha vida, ter uma criança. Aí pronto, ficou, gerou, aí<br />

tive Roberta.<br />

A respeito da primeira gravidez (abortada), referiu-se ao feto como “ele”,<br />

uma entidade material, <strong>em</strong> relação a qual sua subjetividade pouco parecia se colocar,<br />

não implicando simbólico n<strong>em</strong> imaginário – aquilo que não dá pra saber como era,<br />

“ele”, algo de um mês e 15 dias. Desse modo, tomar um “chazinho” (abortivo) não<br />

assumiu a conotação de aborto, mas “fazer algo para a menstruação vir logo”,<br />

aparent<strong>em</strong>ente não reconhecendo no feto uma criança.<br />

Comparativamente, ao descrever a descoberta da gravidez de Fátima, Eva se<br />

r<strong>em</strong>eteu a uma série de el<strong>em</strong>entos de ambivalência e culpa, reconhecendo no feto uma<br />

criança, a ponto de pedir desculpas à filha intra-útero pelo fato de ter tomado abortivo<br />

também nesta gravidez.<br />

Conversava com ela (feto). Às vezes eu pedia perdão, né, que eu tava dizendo tudo aquilo da<br />

boca pra fora. (...) Aquilo que eu tava dizendo quando ele (pai da criança) dizia que num<br />

queria, aí eu num dizia também, né! Eu num queria que ele desconfiasse também, entendeu


146<br />

Aí só que eu, era da boca pra fora, que eu conversava sozinha quando ele saía de casa, aí<br />

depois as vizinha “é porque tu queres menino mesmo!”, eu disse “não, menina, eu fiquei<br />

porque eu n<strong>em</strong> sabia que eu tava grávida”. Aí, quando foi um t<strong>em</strong>po, mas eu ainda tomei<br />

r<strong>em</strong>édio dela, mulé. Que ele fazia muita raiva a mim, dizia que num queria, que ia me<br />

abandonar, ia deixar eu <strong>em</strong> casa, com o bucho no meio da casa dos outro. Aí eu fui, eu ainda<br />

tomei um r<strong>em</strong>édio aí, mas eu me arrependi, tomei e vomitei tudinho pra fora. Tomei, mas<br />

vomitei tudinho pra fora, mas eu com um medo tão grande, eu digo, eu tomando e pedindo a<br />

Deus que num matasse o menino, assim, tomando porque, pra ele ver que eu tava tomando<br />

mesmo! Mas eu pedindo a Deus assim que não, que não matasse! (...) Aí eu num tomei mais<br />

não. Eu digo “se você quiser tomar, você tome, pra você morrer, agora eu num vô matar<br />

nosso filho não. Você num quer criar, num crie, então pronto, se vire, amanhã eu crio minha<br />

filha sozinha, eu tomar r<strong>em</strong>édio não”, num tomei mais não. Eu num queria perder não, mulé!<br />

(...).<br />

Em Eva, o movimento de aceitação da filha pareceu começar pelas “palavras<br />

da boca pra fora” e pelo “r<strong>em</strong>édio da boca pra fora”, assumindo que queria a criança e<br />

que tomaria conta dela, mesmo que sozinha. Há um sujeito desejante <strong>em</strong> toda gestação,<br />

mesmo que impere a ambivalência. 47<br />

N<strong>em</strong> toda gestação é totalmente aceita ou<br />

desejada, e o não desejado não implica ser rejeitado. 100 Não se sabe a que desejos a<br />

gravidez v<strong>em</strong> corresponder, mas é identificável a existência de um lugar de<br />

expectativas, medos e anseios que lhe diz<strong>em</strong> respeito. 47<br />

Mina parecia não se dar conta do seu próprio investimento no bebê:<br />

- Mas o nome dela não foi de novela não, ou foi<br />

Não, foi uma estudante que falava assim, de vereador, assim, na televisão, que passa, que<br />

passava dificuldade pra tar estudando. Aí apareceu e eu me l<strong>em</strong>brei e eu ia botar o nome<br />

dela.<br />

- O que você achou, imaginou dessa estudante que você quis transmitir para sua filha<br />

Sei lá... É por causa do nome, eu achei bonito.<br />

- O que essa estudante estava falando, ela defendia, buscava alguma coisa<br />

Por que ela passava muita dificuldade, não estudava, aí agora ela tava estudando, não tava<br />

tendo dificuldade. Aí eu vi o nome dela e botei nela.<br />

- Você imaginava, desejava alguma coisa para o seu bebê<br />

Como assim


147<br />

- Você desejava algo para o seu bebê, tipo eu quero que meu bebê seja assim, que faça isso ou<br />

aquilo<br />

Não...<br />

- Nada<br />

... Só que ela nascesse com saúde, né, e que o parto fosse bom, né!<br />

Para Eva, a descoberta da gravidez reflete como a construção da<br />

maternidade passa pelo corpo f<strong>em</strong>inino e pelo imaginário. 44<br />

A gente sente diferença quando ta grávida. Eu senti uma diferença, disse “eu acho que eu to<br />

grávida”. Assim, muda tudo na pessoa, t<strong>em</strong> enjôo, uma diferença nos seio, né, e na vida da<br />

pessoa, fica diferente também. (Ri) Quando a gente sabe que ta mesmo assim, a gente fica<br />

“eu acho que eu to”, ficava feliz, mesmo que eu num queria, mas eu tava feliz por dentro.<br />

Eva parece não só ter construído a idéia de maternidade, mas também<br />

auxiliado o marido <strong>em</strong> sua construção. Envolvendo a si e ao marido na parentalidade,<br />

superando o t<strong>em</strong>or da transgeracionalidade da fome e violência, decidindo não mais<br />

violentar o feto, afastou-se do <strong>em</strong>prego que supostamente agredia ela e o feto, pediu<br />

desculpas a este, parecendo já atribuir subjetividade à futura criança. Recorreu à lei,<br />

representada pela figura do médico, evidenciando que a criança era filha do marido (este<br />

duvidava da paternidade, pois o casal recorria ao coito interrompido com método<br />

contraceptivo), b<strong>em</strong> como buscou o reconhecimento do papel do hom<strong>em</strong>/mulher,<br />

atribuindo culpa/responsabilidade com base no gênero.<br />

“E pra quê tu fosse fazer filho <strong>em</strong> eu!” (...) Ele dizia “a situação da gente, a gente num<br />

pode n<strong>em</strong> dar o de comer da Roberta, como é que tu arrumasse esse (...)”, eu digo “e foi eu<br />

que fiz! Porque eu só faço esperar, você qu<strong>em</strong> faz! E Deus que manda, né! Mas, eu, oxen,<br />

tu que sois hom<strong>em</strong>, tu qu<strong>em</strong> devia ter evitado é tu, porque tu sabe que eu num posso tomar<br />

r<strong>em</strong>édio, eu já vou tomando três tipo de comprimido e num me dou”.


148<br />

O marido passou então a enjoar ao longo da gestação, evidenciando sua<br />

participação (Síndrome de Couvade).<br />

Enjoei até os sete mês. Depois passou pra ele, eu digo “oxen, tas grávido também é!”. (Ri)<br />

A mulher passa pro hom<strong>em</strong> o enjôo também! (Ri)<br />

Diferent<strong>em</strong>ente de Eva, Magdala parece ter aceitado a gravidez com certa<br />

resignação, construindo a idéia de maternidade com pouco investimento.<br />

... Ele (marido) num queria não, mas eu também não queria não, só queria ficar mesmo com<br />

os quatro, os cinco mesmo. ... Ainda tomei chá, ainda. Tomei chá de um mato chamado<br />

melão pra ver se abortava, aí num abortei, porque num tinha que morrer. É, porque quando<br />

é pra acontecer um negócio a pessoa pode fazer o que quiser! Tomava o chá de noite,<br />

quando eu ia dormir e o resto botava <strong>em</strong> cima da casa, no sereno (...)<br />

- Quando então você viu que o chá (abortivo) não deu certo, imaginou algo com relação a<br />

esse bebê <strong>em</strong> sua barriga<br />

Não.<br />

- Pensava, sentia algo para sua bebê<br />

Não.<br />

- Pensou um nome pra ela quando ela estava na sua barriga<br />

Não.<br />

- O que você imaginava dela quando ela ainda estava na sua barriga<br />

Eu só dizia que era uma menina. Num pensava mais nada não, que era uma menina,<br />

somente. (...) Eu queria uma menina para fazer casal com esse de três ano. Agora é tudo os<br />

casal, agora ficou certo.<br />

- Como você se sentia quando percebia sua bebê se mexer na sua barriga<br />

Eu ficava contente, né!<br />

- Por quê<br />

Porque eu sabia que ela tava viva, num tava morta.<br />

- Quando ela se mexia, o que você sentia<br />

Aquele mexido na minha barriga. (Ri) Eu via isso aqui passar assim (mostra o cotovelo).<br />

Ficava assim de lado. Tinha hora que ela descia tudinho, ficava aqui no pé da barriga,<br />

ficava tudo aqui <strong>em</strong> cima, aquela bolinha assim.<br />

- Você conversava com ela<br />

(Ri) Não.<br />

- Achava que ela sentia o que você sentia ou não<br />

... Não.


149<br />

Assim, o que <strong>em</strong> alguns casos parecia figurar como indicador de<br />

vulnerabilidade frente a probl<strong>em</strong>as de alimentação infantil (gravidez, parto e pósparto<br />

conflituosos), segundo Almeida, 73 para outros foi vivido como superação, como<br />

no caso de Eva. Essa mãe parece ter utilizado sua capacidade parental para tolerar a<br />

própria dor e se identificar com o bebê, aspecto esse abordado por Almeida 73 como<br />

indicador de resiliência.<br />

Ao longo da gestação, Mina parecia se colocar mais no lugar de<br />

adolescente e filha que de mãe, não chegando a fazer um enxoval para a criança.<br />

- Como você se sentiu quando descobriu que estava grávida<br />

Sei lá, eu achei bom, mas por outra parte... prende muito a pessoa... Por que eu gosto de<br />

sair, gosto de ir pras danças... Mas assim com eles dois... eu... s<strong>em</strong>pre saio, porque minha<br />

mãe fica com eles dois... Pra onde eu quero ir ela deixa, se for pra praia ela fica com os<br />

dois, pra dança ela também fica.<br />

- Como foi o t<strong>em</strong>po que você estava grávida de Pandora<br />

Era bom porque tudo que eu queria minha mãe comprava.<br />

A experiência subjetiva consciente e inconsciente do fato de vir a ser<br />

pai/mãe e de preencher papéis parentais, nomeada por Houzel 42 de “experiência da<br />

parentalidade” compreende aspectos como o desejo pela criança e o processo de<br />

transição <strong>em</strong> direção à parentalidade (modificações psíquicas que se produz<strong>em</strong> nos pais<br />

no decorrer da gravidez e pós-parto, como a PMP e a Síndrome de Couvade).<br />

T<strong>em</strong>endo prejudicar o feto, já o reconhecendo como sujeito às influências<br />

internas e externas (ambiente externo, desejos, <strong>em</strong>oções, sustos, experienciados pela<br />

gestante), algumas mães buscavam proteger a si e ao filho:<br />

Cada vez que eu tinha raiva eu, já pra num ofender a bichinha na minha barriga, eu dizia<br />

assim a ela, escondido pra ele num ver “ele num quer, mas pode vir, viu, que mainha quer,<br />

que mainha já te ama da barriga!” (ri e olha para a filha, dando um grande suspiro, como<br />

que aliviada). (Eva)


150<br />

Aí eu passava fome, eu sentia dor... sentia muita dor... passava fome, acho que ela<br />

passava, né! (...) Quando eu tava perto da minha mãe eu comia, porque ela comprava,<br />

mas quando não tava na minha casa eu não comia não. (Mina)<br />

A fala de Bela reflete como o vínculo mãe-filho fica evidente já desde a<br />

gestação, apesar das dificuldades externas (fome, violência, probl<strong>em</strong>as de saúde do<br />

feto), marcando a interação com a futura criança:<br />

A gente brigava muito (Bela e o ex-marido). Aí eu tava arrumando a casa e a estante caiu <strong>em</strong><br />

cima da minha barriga. (...) Mas eu fiquei sentindo dor, muita dor, fazia três dia que o<br />

menino tava morto na minha barriga. Aí eu fui pra Encruzilhada, aí acusou que fazia três dia<br />

que ele já tava morto. Ele só fazia subir, subir, num tava como os bebê normal que só fica<br />

<strong>em</strong>baixo, num é, que mexe. Ele não, só ficava subindo e a minha barriga quente. Aí o doutor<br />

disse “olha mãe, vamo ter que fazer o parto agora, urgente”. Eu chorava, pedia a minha<br />

mãe “mainha, num deixa não, num deixa não, doutor, num tirar não!”. Aí fizeram parto<br />

normal. Quando o doutor tirou ele, quando eu vi ele, ele queria que eu pegasse nele, eu num<br />

quero não. Eu disse “num deixa alevar não, mainha, num deixa não”. Era um menino... (...)<br />

Guilherme. Eu que dei esse nome a ele. (...) Eu já tava acostumada com ele. O médico disse<br />

também que ele ia nascer doente, ia ter dodói, ele num ia falar, num ia ouvir, e você ia ter<br />

que ficar o t<strong>em</strong>po todinho batendo nele, ia ter que ficar dando comida de instante <strong>em</strong> instante<br />

a ele, que se era pra ficar assim então ta bom, foi Deus que levou. Eu digo “mesmo assim eu<br />

quero ele”. Aí foram fazer o exame, abriram ele, e eu querendo levar ele pra casa. Mainha<br />

disse “num pode não, num pode não”. Eu, oxe, já tava acostumada com ele. Quando falava<br />

assim, ficava, né, brincando com ele, “cadê o bebê de mamãe!”, ele ficava mexendo, tava<br />

chutando. Quando eu soube disso aí foi muito duro. Eu ainda não esqueço. O povo me<br />

pergunta “tu t<strong>em</strong> quantos filho”, eu digo “três, um no céu e dois ta aqui!”. “Que três<br />

menina, isso não existe mais não!”, eu digo “pra você num existe, mas pra mim existe,<br />

porque ele era um humano, num era invisível não”. (...) Acho t<strong>em</strong> vezes que eu n<strong>em</strong> esqueço,<br />

né, porque ninguém esquece uma coisa dessas. “V<strong>em</strong> cá mainha, v<strong>em</strong> cá! V<strong>em</strong> cá, v<strong>em</strong> cá,<br />

v<strong>em</strong> cá!” (Pega Ian e dá um abraço forte nele.) Aí eu já grávida de Ian,, eu às vezes chorava,<br />

ficava sonhando com ele, com o menino, chorando, eu dizia “eita amor, deixa eu virar, vou<br />

dar peito ao neném!”, “que neném”, eu digo “ó ele aqui, dormindo”, falando, dizendo que<br />

o menino tava, eu só fazia chorar “mô, cadê ele, me da ele pra mim!”, “me da o quê, mô,<br />

num t<strong>em</strong> não, o bebê ta no céu, ele ta vendo você”, “mas eu não to vendo ele, eu quero ele,<br />

eu quero ele!”.


151<br />

Rosácea não parecia creditar subjetividade ao feto que perdera antes de<br />

Angélica, porém aspectos reais e imaginários, s<strong>em</strong> ficar claro qu<strong>em</strong> causou dor e morte<br />

de qu<strong>em</strong>:<br />

Aí quando eu perdi sentia umas dor muito forte, como se fosse uma dor de barriga, eu sentia<br />

e sentia um negócio fazendo assim na barriga. Parece que era ele, é, se esperniando, a<br />

criança morrendo, esperneando. Inté que chegou a hora de, de, dele num resistir mais. Eu<br />

sentia muita dor, aquela dor muito forte na barriga. Aí comecei a sangrar. Agora só que eu<br />

num sabia que era uma gravidez, né (...) E era uma gravidez que eu tinha perdido, uma<br />

criança.<br />

- Como você soube, se deu conta de que era uma gravidez, uma criança<br />

Porque eu disse a ela que saiu um bocado de langanho, uns pedacinho feito assim, uns<br />

pedacinho de carne, b<strong>em</strong> miudinho. Aí eu acho que era... Eu perdi e num sabia. (Ri) Aí eu<br />

fico assim, botando na cabeça, apois eu tive outro filho e num sabia, só isso. (Ri) Só isso<br />

assim que eu fico pensando. Aí eu fico, como é, né, será que era f<strong>em</strong>i, que era macho, como<br />

era, só isso que eu fico. (...) Eu fico pensando: “meu Deus, eu fui mãe de outro...”. Eu fiquei<br />

assim. (Ri) Num sei se, se ele é um anjo, num sei... Será, hein (Ri) Ele é um anjinho, mas só<br />

que ele num veio no mundo. Veio e ao mesmo t<strong>em</strong>po num veio. ... Aí “meu Deus, eu fui mãe<br />

de outro!”<br />

Algumas entrevistadas reconheciam a influência do humor materno no feto,<br />

levando <strong>em</strong> consideração os movimentos fetais.<br />

Quando eu tava alegre ela ficava alegre na minha barriga, pulando, mexendo na minha<br />

barriga. E quando eu tava triste, que eu tinha uma briga dentro de casa, ela não mexia, ela<br />

passava dois dia, três, s<strong>em</strong> mexer. Aí quando eu tava assim eu já sabia que, né, que chega<br />

ofendia ela, né! (Ana Maria)<br />

- Por que você acha que ela se mexia na sua barriga<br />

Eu acho porque tava alegre, porque quando eu tava alegre ela ficava alegre na minha<br />

barriga. Quando eu tava triste ela ficava, n<strong>em</strong> se mexia. (Eva)<br />

Às vezes quando eu tava b<strong>em</strong> alegre ela pulava que só. Agora quando eu tava assim, meio<br />

amuada, num canto, ela ficava indo prum lado, o dia todinho. Se eu ficasse o dia todinho<br />

quieta num canto, assim, amuada, ela num mexia prum lado, num mexia pra nenhum canto.<br />

Agora eu ficando alegre, dando risada, ela s<strong>em</strong>pre pulava, s<strong>em</strong>pre dava um chute, s<strong>em</strong>pre<br />

corria pro outro lado. Quando (...) tava b<strong>em</strong> alto assim, ela. Aí colocava a mão ela corria<br />

pra ele. (Ana Maria)


152<br />

- E qual era o seu sentimento quando ela se mexia<br />

... Ah, eu ficava alegre, né, <strong>em</strong> ver ela mexendo assim, quando a gente colocava a mão.<br />

Ficava, o meu sentimento é que ela tava sentindo mesmo que a gente tava mexendo com ela,<br />

que a gente tava amando ela a partir de quando viu que era uma menina mesmo. Aí disse<br />

“ela sente tudo isso”, que nós falava, num deixava assim mainha dizendo “mas vovó vai<br />

amar tanto essa menina”, aí ela sentindo, eu ficava, ficava alegre porque saber que ela tava<br />

sentindo que nós tava, o que nós tava dizendo e sentindo que nós tava amando ela.<br />

- Você acha que ela sentia<br />

Eu acho que ela sentia, porque, assim, ela ficava b<strong>em</strong> agitada mesmo, pulando de um lado,<br />

do outro, corria pra um lado, corria pro outro. Eu digo “ela ta sentindo que ta conversando<br />

com ela”. (Ana Maria)<br />

Eu dizia assim: “sorri, bebê, tas fazendo o quê, tas chorando é” (Ri) “‘Tas fazendo o quê,<br />

com fome é”, porque na minha barriga, ela ficava só mexendo muito. “É fome”, eu dizia,<br />

“vou dar de comer a tu”, aí eu botava um prato pra comer, comia muito. (Rosácea)<br />

Eva parecia se comunicar com Fátima mediante o simbólico (dirigido a),<br />

sugerindo indícios de uma comunicação dialógica:<br />

Eu comecei a sentir as dor (do parto) quando o pai dela chegou, que ele tava trabalhando.<br />

Mas foi dor na minha barriga! Eu digo “mas oxen, tu adivinhou que teu pai chegou, foi!”,<br />

eu disse pra ela na barriga.<br />

A parentalidade parecia des<strong>em</strong>bocar também nos significados à doença,<br />

onde Rosácea implicava a si e ao marido:<br />

Algum pobr<strong>em</strong>a ela nasceu. ... Num sei, com algum pobr<strong>em</strong>a meu... Algum pobr<strong>em</strong>a do pai...<br />

Agora só que a maternidade de lá é muito pequena, assim, se tivesse feito logo os exame,<br />

descubrido logo alguma coisa... Tinha mandado assim trazer pra outro hospital, né Mas na<br />

maternidade a médica disse que ela tava boa de saúde. Eu truxe. Quando foi de um mês <strong>em</strong><br />

diante ela começou a ficar doente. ... Começou. ... Mas s<strong>em</strong>pre, mas s<strong>em</strong>pre eu cuidei, né ...<br />

Mas ela só andava assim, porque num t<strong>em</strong> criança que, assim né, tão doente, e ela é<br />

doentinha, t<strong>em</strong> pobr<strong>em</strong>inha...


153<br />

O modelo explicativo popular acerca do vínculo mãe-feto é denominado<br />

“impressão materna”, onde o comportamento da mãe, seu estado de humor, atitude<br />

moral, agressões físicas, exposição ao meio ambiente, podendo causar danos à criança<br />

ao nascer. 102 Explicação s<strong>em</strong>elhante já é comprovada pela ciência, ex<strong>em</strong>plificada pela<br />

hipótese de Barker (programming), citada por Alves & Figueira, 103<br />

legitimando a<br />

racionalidade popular sobre a “fraqueza de nascença”. 102<br />

Calvasina et al 102 observaram três etnoetiologias da fraqueza de nascença: a<br />

herança biológica da carência nutricional da mãe (falta de comida e desnutrição da mãe<br />

durante a infância e adolescência), a “impressão” direta de acontecimentos, desejos e<br />

sofrimentos experienciados pela gestante no feto, e a combinação dessas duas formas na<br />

mesma gestação.<br />

No caso de Rosácea, a “fraqueza de nascença” parece ter origens não só na<br />

impressão materna intra-uterina, refletindo também a herança intergeracional.<br />

Eu tinha pobr<strong>em</strong>a mesmo. Minha mãe diz que foi desde que eu nasci, tive pobr<strong>em</strong>a de<br />

asma, cansaço, eu tinha pobr<strong>em</strong>a mesmo. (...) Minha mãe até dizia as vez “a menina<br />

(Rosácea) não vai viver não!”. (...)<br />

Outras mães não pareceriam reconhecer no feto sensibilidade e interação,<br />

relacionando-se basicamente ao real do corpo do feto:<br />

- Você acha que ele sentia alguma coisa quando estava na sua barriga ou não<br />

Se ele sentia alguma coisa Se eu achava Naaão... (...) Ah, eu achava que era..., achava que<br />

era..., que o meu menino que tava se mexendo, achava que era isso.<br />

- Por que motivo você acha que ele fazia isso, se mexia<br />

Ele se mexia... Porque ele tava sadio, não era! Na barriga, não tava doente, ele se mexia<br />

b<strong>em</strong> muito... mexia. Eu via isso aqui (faz gesto com o cotovelo) quando passava assim na<br />

minha barriga, assim (imita o gesto com o cotovelo). Chega passava assim... (volta o olhar<br />

para a criança) Ele se mexia b<strong>em</strong> muito assim na minha barriga. (Maria)<br />

A história dos avós, os conflitos familiares concentrados nos mandatos trans<br />

e intergeracionais são transmitidos à criança pelos significantes que localizam pais e


154<br />

criança na ord<strong>em</strong> simbólica familiar. Os avós têm papel primordial nos efeitos da<br />

história transmitida e reconstruída com a chegada da criança. 43 Ao longo da entrevista,<br />

Eva pareceu se dar conta da repetição familiar no sexo das filhas:<br />

- Você me disse que na sua casa também é assim, não é, nove irmãs...<br />

E num é que é mesmo, mulé! Eu nunca que tinha pensado nisso! Oxe, ó pra aí!<br />

Ana Maria parecia repetir perigosamente a história da gravidez da mãe e a<br />

história da irmã com a própria filha.<br />

Eu n<strong>em</strong> cheguei a conhecer não, ele n<strong>em</strong>... assim, mainha ficou só grávida quando separou<br />

dele, grávida de mim. Aí ela disse que, quando ela veio se <strong>em</strong>bora... aí eu acho que ele n<strong>em</strong><br />

sabia que ela tava grávida de mim, porque ele ficou com ela assim por acaso. Aí acho que<br />

ele n<strong>em</strong> sabia que ela tava grávida de mim porque ela veio se <strong>em</strong>bora de lá pra cá, n<strong>em</strong> disse<br />

a ele n<strong>em</strong> nada que já tinha, já tinha se separado já.<br />

- Como foi essa história de ter um filho com quinze anos<br />

Aí isso aí eu n<strong>em</strong>, eu n<strong>em</strong> sei...<br />

- Como assim você não sabe!<br />

Porque foi por acaso! (Ri) Que eu n<strong>em</strong> imaginava que ia ficar grávida.<br />

- Como chamava sua irmã<br />

Mariana.<br />

- Mariana!<br />

Por isso que eu coloquei o nome da minha de Mariana também.<br />

- Por quê<br />

Uma homenag<strong>em</strong> à minha irmã, pra l<strong>em</strong>brar a minha irmã.<br />

- Então sua irmã chamava Mariana...<br />

É, Mariana Araújo dos Santos.<br />

- E a sua é...<br />

Mariana Maria de Araújo. Eu botei Maria porque quase tudinho na família t<strong>em</strong> Maria<br />

depois do primeiro nome.<br />

- Você t<strong>em</strong><br />

Eu tenho, Ana Maria.<br />

- Sua mãe t<strong>em</strong><br />

Mainha é Maria José. Aí o resto é tudo, t<strong>em</strong> Maria Gorete, t<strong>em</strong> um monte, Maria Lúcia, tudo<br />

com Maria. Quando num é no primeiro, é no segundo nome.<br />

- Sua mãe disse que tinha que ser menina


155<br />

Tinha que ser menina. Pra ela tinha que ser menina. Já começou assim, quando eu tava com<br />

quatro meses ela já comprou uma chupeta rosa. Aí eu digo “apois ta com muita certeza”.<br />

Terminou sendo uma menina mesmo.<br />

E as duas se parece muito (Mariana e a tia falecida). T<strong>em</strong> gente que chega lá <strong>em</strong> casa, que<br />

t<strong>em</strong> duas foto, t<strong>em</strong> a dela e t<strong>em</strong> a de Mariana, a minha e a da minha irmã, uma do lado da<br />

outra. Aí olhando as duas foto, o povo chega lá <strong>em</strong> casa diz “é a mesma foto”, aí eu digo “é<br />

não, uma é essa daqui e a outra é a que morreu”.<br />

(Perceba-se o ato falho, falando como se fosse a sua foto e a da irmã)<br />

Seria ingênuo atribuir essas repetições ao acaso, pois, segundo destaca<br />

Hoyer, 104 nenhuma atividade pode ser pensada fora do campo do Outro; é s<strong>em</strong>pre,<br />

necessariamente, uma situação de desejo e de seus extravios. O sujeito-criança não<br />

apenas sofre passivamente seu destino, pois de algum modo contribui para sua aceitação<br />

e inserção no campo do Outro; a maneira pela qual o Outro responde indica que ele<br />

também d<strong>em</strong>anda alguma coisa. 104<br />

“O que está <strong>em</strong> jogo, <strong>em</strong> todos os acontecimentos na constituição psíquica<br />

de um sujeito, aponta para os processos inconscientes e fantasmáticos como resultado<br />

de elaborações, representações e produções psíquicas do sujeito-criança e daquele que<br />

ocupa, para ele, o lugar de Outro primordial.” (2006) 104<br />

Hoyer 104<br />

retoma algumas das questões inconscientes mais importantes à<br />

constituição psíquica: o que o outro quer de mim O que minha mãe deseja O que ela<br />

quer que eu seja para ela O que é que, nela, deu orig<strong>em</strong> à minha existência Qu<strong>em</strong><br />

pode responder a esta d<strong>em</strong>anda Como situar este encontro, e o lugar onde teve orig<strong>em</strong><br />

a existência 104<br />

Mariana não recebeu o sobrenome do pai, assim como Ana Maria, apesar do<br />

pai de Mariana ter, aparent<strong>em</strong>ente, se feito presente nesse processo de nomeação<br />

(escolha do nome e registro formal) e ao longo da gestação e puerpério, chegando a


156<br />

visitar mãe e criança diversas vezes no IMIP. Ana Maria parecia “boicotá-lo”, não só o<br />

excluindo formalmente da sua vida (não queria se casar com ele), e da vida da filha.<br />

Dentre as diversas fotos tiradas no hospital, nenhuma delas incluiu o pai de Mariana,<br />

n<strong>em</strong> sequer uma figura masculina, apenas mulheres, excluído que parecia estar no<br />

exercício e na prática da parentalidade. Tendo <strong>em</strong> vista os indicadores clínicos<br />

apontados por Kupfer et al, 18<br />

questiona-se a respeito do lugar destinado à função<br />

paterna na vida de Mariana e suas implicações na interação da díade.<br />

Pontua-se também a suposta repetição de Ana Maria, com a filha, a respeito<br />

do que vivera com seu próprio pai. Assim, Ana Maria não teve o pai ao longo da sua<br />

vida, sequer foi registrada ou até mesmo reconhecida por esse hom<strong>em</strong>. Ao excluir do<br />

nome de Mariana o sobrenome do pai, b<strong>em</strong> como excluí-lo de outras atribuições,<br />

lugares, Ana Maria parece destinar à filha o mesmo que teve.<br />

A vivência da falta <strong>em</strong> vez de ser vivida como uma falta-a-ser no registro de<br />

uma castração simbólica, parece ter sido vivida como uma falta-no-ser, na dimensão de<br />

uma verdadeira mutilação. 57 Assim, para amenizar essa mutilação, parece ter recorrido a<br />

uma negação da perda, nomeando a filha de acordo com a perda da irmã e a perda de si<br />

mesma, da sua filiação a ser reconstruída.<br />

As relações afetivas da criança são inicialmente marcadas por laços<br />

fusionais entre mãe e filho, os quais faz<strong>em</strong> dele um mero preenchedor da falta materna.<br />

Posteriormente, graças ao interdito paterno ou castração simbólica, a criança é levada a<br />

recalcar sua identificação com o objeto que satisfazia o desejo da mãe e a renunciar<br />

também ao seu papel de apenas preencher o vazio materno. 57 Questiona-se se Ana<br />

Maria de fato renunciou esse papel. O nome de Mariana não parecia representar apenas<br />

uma homenag<strong>em</strong> à falecida irmã. Será que não se tratava de uma tentativa de<br />

preenchimento do vazio angustiante da morte de um bebê com a vinda de um outro que


157<br />

o “substituísse” Destaca-se o grande prejuízo psíquico a Mariana, aparent<strong>em</strong>ente s<strong>em</strong><br />

que Ana Maria e sua mãe se dess<strong>em</strong> conta desse movimento.<br />

- Que idade você tinha quando sua irmã Mariana morreu<br />

Quando ela morreu Eu tinha na faixa de uns doze, treze (...) Aí foi de madrugada que ela<br />

acordou chorando, aí eu levantei pra dar a mamadeira a ela, aí eu vi que tava gelado, eu<br />

fui correndo chamar mainha. Aí mainha esperou amanhecer, deu sete horas, mainha<br />

pegou e levou ela pro hospital. Aí quando foi, quando foi de duas, três hora, aí chegou<br />

mainha só com a roupinha dela na mão. Aí eu botei pra chorar, chorei tanto, chorei tanto<br />

e mainha lá. Porque mainha saiu com uma, com ela e voltaram só com a roupinha que ela<br />

foi... Aí pra mim ali na hora, pra mim tinha acabado ali na hora. (...) Ela era minha vida<br />

também, ela mainha, meu irmão, por eles eu fazia tudo.<br />

Iaconelli 47 destaca que a morte de um bebê reaviva fantasias da morte do<br />

“bebê maravilhoso” com o qual t<strong>em</strong>os que lidar incessant<strong>em</strong>ente numa permanente<br />

relação de destruição e ressurgimento. “Coloca-se outro bebê no lugar do mesmo.<br />

Operação de risco uma vez que a face mortífera do bebê maravilhoso já foi<br />

vislumbrada, s<strong>em</strong> que o bebê de ‘carne e osso’ possa dar suporte para a perda<br />

narcísica” (2005) 47<br />

Afinal, a serviço do quê ou de qu<strong>em</strong> a repetição de um nome parecia estar<br />

Numa tentativa de reparação por parte de Ana Maria, a qual poderia ter<br />

inconscient<strong>em</strong>ente desejado a morte da irmã Será que essas questões estavam<br />

influenciando a prática, exercício e experiência da parentalidade por parte de Ana<br />

Maria Essas são apenas indagações inatingíveis no âmbito e objetivo deste trabalho.<br />

A dificuldade de um dos pais ou de ambos <strong>em</strong> inserir o filho na linhag<strong>em</strong> de<br />

filiação, submetidos inconscient<strong>em</strong>ente a uma determinação simbólica familiar que os<br />

ultrapassa, desloca os pais do lugar de interlocutores privilegiados da criança, resultando<br />

<strong>em</strong> obstáculos à experiência e prática da parentalidade. 43,54


158<br />

Por diversas ocasiões a pesquisadora trocou o nome de Ana Maria por<br />

Mariana, e vice-versa, contratransferencialmente sugerindo tanto que mãe quanto filha<br />

pareciam ocupar o lugar de filha.<br />

Maria parecia sofrer com o fato de ser a única da família que não foi<br />

registrada n<strong>em</strong> batizada, vendo-se impedida no exercício da parentalidade (do ponto de<br />

vista legal), não podendo registrar o próprio filho, b<strong>em</strong> como na prática da parentalidade<br />

(não poderia viajar para São Paulo, b<strong>em</strong> como teve dificuldade para chegar ao hospital<br />

no Recife). No entanto, foi capaz de construir a experiência da parentalidade, assumindo<br />

o lugar de mãe.<br />

Eu guardo uma mágoa (dos pais)... tu sabe porque que eu guardo essa mágoa! Por causa<br />

que eu não fui registrada, eles nunca me batizaram. (...) Lá é assim, t<strong>em</strong> que batizar lá pra<br />

ter o batistério pra fazer o registro. (...) Pra eu viajar eu preciso dos documentos, não<br />

posso viajar s<strong>em</strong> os documentos. Pra eu viajar com ele (Gabriel) tenho que levar os<br />

documentos da minha outra irmã, aí isso é ruim, né! Eu já queria levar o meu mesmo.<br />

- Você pensa <strong>em</strong> engravidar novamente<br />

(balança a cabeça, indicando que não)<br />

- Por que não<br />

Sabe por quê Por causa que eu não tenho documento (...). Eu quero registrar ele<br />

(Gabriel), batizar e me batizar também.<br />

- Gabriel não é registrado<br />

Não. Tonho foi lá registrar ele, mas disseram a ele que tinha que ter os meus papéis<br />

também... Disseram que não podia só no nome do pai não. Ele saiu foi triste de lá....<br />

No caso de Renata, parece que a “aposta” de vida que sua mãe fez quando<br />

deu à luz foi concretizada com o registro assim que a filha saiu do hospital (exercício da<br />

parentalidade). Pontua-se o aspecto intergeracional da repetição dessa “aposta”, onde o<br />

batismo da própria mãe diante da misteriosa doença parecia representar um tipo de<br />

nascimento, confirmando o registro de vida.<br />

(...) Eu me l<strong>em</strong>bro assim, quando eu era novinha eu quase que morria.<br />

- O que houve


159<br />

E eu sei! Aí levaram eu logo pra igreja, pra batizar, foi aí que botaram esse nome meu, de<br />

Magdala. Diz que Magdala é uma santa, aí botaram neu esse nome. Porque disse que quando<br />

eu era novinha eu quase que morria s<strong>em</strong> batizar. Aí pra num morrer pagão, levaram logo pra<br />

batizar. Aí depois que batizou eu num morri.<br />

De modo a garantir um aspecto da prática da parentalidade, alguns pais<br />

precisaram se afastar por motivos econômicos, impossibilitados que pareciam de<br />

assumir o lugar de provedor - a paternidade parecia associada à materialidade, ao<br />

sustento financeiro. Pontua-se, no entanto, que a prática da parentalidade diz respeito<br />

não só aos cuidados físicos, mas também psíquicos. Precisando se afastar devido à falta<br />

real, o pai corre o risco de se afastar também <strong>em</strong> sua presença real, b<strong>em</strong> como<br />

imaginária e simbolicamente. Destaca-se a dialética: precisar se afastar para garantir a<br />

sobrevivência, correndo o risco de comprometer a existência.<br />

A pobreza, a falta real, pode se associar à falta simbólica e afetar<br />

negativamente a interação da díade e a estruturação infantil (a falta do pai e sua<br />

conseqüência à díade será abordada no terceiro t<strong>em</strong>a). O afastamento paterno pode ser<br />

mais perigoso se ocorrer <strong>em</strong> momentos cruciais à tríade (por ex<strong>em</strong>plo, no desmame),<br />

principalmente se outra figura não puder assumir a função paterna.<br />

O marido de Eva, pai de Fátima que precisou afastar-se da família por<br />

motivos novamente materiais (sustento da família), dois meses depois do nascimento da<br />

filha, passando a morar só <strong>em</strong> outra cidade, <strong>em</strong> busca de trabalho.<br />

De modo análogo, o pai de Gabriel parece ter deixado a díade <strong>em</strong> pelo<br />

menos duas ocasiões. Maria e Gabriel pareciam ter adoecido juntos.<br />

Quando ele (Gabriel) nasceu eu fiquei na casa da minha mãe por três meses. Aí depois, aí<br />

depois ele me deixou, sabe, foi pra Petrolândia, aí ficou trabalhando. (...)<br />

- Quanto t<strong>em</strong>po ele ficou lá <strong>em</strong> Petrolândia<br />

Ele tinha me deixado com o menino. Aí eu fiquei na casa de mãe, aí depois de um t<strong>em</strong>po aí<br />

ele voltou, cinco meses, ele veio, aí ficou doidinho pelo menino. A mãe dele ligando:


160<br />

“olhe, o menino ta sabido, o seu filho é sadio” (a sogra de Maria dizendo ao filho, Tonho);<br />

“ai mãe, to doidinho pra ver meu filho” (Tonho respondendo à mãe). Aí pronto, aí depois<br />

ele veio. (...) Aí volt<strong>em</strong>os. Ficou ele, eu e o menino agora. Num instante ele veio. Ele disse<br />

“meu filho é minha vida... meu filho é minha vida”.<br />

- E na época que você e Tonho ficaram separados, como foi para você Você teve alguma<br />

dificuldade com Gabriel ainda bebê<br />

Eu fiquei, eu fiquei... tão assim, sei lá... Que eu gosto muito dele... Fiquei sei lá, não<br />

queria comer. Quando você gosta de alguém, né! (...) Depois que ele (Gabriel) adoeceu<br />

só queria saber do peito, mas quando ele tava sadio comia tudo de panela... eu dava a ele,<br />

foi logo quando ele adoeceu, sabe, e ele não quis saber mais de comer, não quis saber, só<br />

quis saber mais de peito, de peito... (...) Eu dizia a ele (marido) que o menino tava doente,<br />

tudo... e aí ele dizia a mim “como é que eu vou para aí, por causa que aqui eu tô<br />

ganhando b<strong>em</strong>, tô trabalhando”...<br />

Bela, mesmo tendo passado ou passando fome, dizia preferir a atenção do<br />

marido. Chamam-se atenção para a ausência do marido/pai e sua repercussão à díade<br />

num momento essencial à entrada de um terceiro, por ocasião do desmame.<br />

- Nesses primeiros meses com Ian, você se sentia estressada<br />

Não me sentia estressada, muito calma, porque meu marido me dava mais atenção, mais<br />

carinho e agora não, ele v<strong>em</strong> estressado do trabalho, quando chega já é falando.<br />

- Desde quando que isso mudou<br />

Quando ele começou a trabalhar, estressou muito.<br />

- Faz t<strong>em</strong>po que ele começou a trabalhar<br />

Faz não, faz uns sete meses. (...) Ian tinha uns cinco, seis meses, por aí.<br />

- Mas mesmo antes do <strong>em</strong>prego, quando vocês passavam dificuldades, ele era estressado<br />

ou não<br />

Era, assim muito pouco, né, muito pouco. Às vezes ele era estressado também assim<br />

porque num tinha trabalho, se aperreava, né. E quando ele t<strong>em</strong> trabalho ele se aperreia do<br />

mesmo jeito!<br />

- Nesse t<strong>em</strong>po que faltava trabalho pra ele, quando vocês passavam dificuldades, ele<br />

conseguia lhe dar carinho<br />

Conseguia. Conseguia, dava carinho, dava atenção.<br />

- Diferente de hoje <strong>em</strong> dia<br />

É, muito diferente!<br />

- Então mesmo passando dificuldades, faltando o mais básico, você sentia que havia<br />

carinho entre vocês dois


161<br />

Era, e hoje não.<br />

- Como você se sentia, como era o relacionamento de vocês nessa fase <strong>em</strong> que faltava<br />

comida, trabalho pra ele<br />

Muito triste, né, porque eu fica pensando assim “será que o meu filho vai nascer e num vai<br />

ter nada pra gente comer ou dar a ele”, ficava pensando assim... Mas a gente se amava,<br />

mesmo com as dificuldade. Hoje <strong>em</strong> dia eu num sei mais...<br />

- É isso que eu tento entender, porque você fala como se os probl<strong>em</strong>as de hoje <strong>em</strong> dia lhe<br />

afetass<strong>em</strong> mais que os de antigamente!<br />

(Ri) É, os probl<strong>em</strong>as de hoje <strong>em</strong> dia me afetam mais que os probl<strong>em</strong>as de antigamente!<br />

- Por que<br />

Porque eu num, porque assim, eu sabia, que eu acho que ele ia fazer alguma coisa pra<br />

num deixar faltar, né! Eu ficava assim, eu digo “pôxa, ele t<strong>em</strong> que ter responsabilidade,<br />

agora ele sabe que ele t<strong>em</strong> um filho pra cuidar”, né! Num vai deixar faltar. Aí eu num...,<br />

mas agora é muito diferente.<br />

- Você trocaria o que tinha naquela época, mesmo faltando comida, pelo que t<strong>em</strong> hoje<br />

... Trocava.<br />

- Mesmo passando dificuldade<br />

Mesmo. Eu queria mesmo era o carinho dele, a comida a gente se vira... s<strong>em</strong>pre se virou...<br />

• Sub-t<strong>em</strong>a: vivência da parentalidade por meio da interação mãe-criança no<br />

domicílio, enfatizando os sinais interacionais e a alimentação.<br />

Este sub-t<strong>em</strong>a se refere ao lugar que os pais destinam ao futuro bebê,<br />

intimamente relacionado à transgeracionalidade e à parentalidade imaginada antes do<br />

nascimento e exercida com a vinda do bebê real. 46<br />

A construção de um lugar para o filho no psiquismo materno é fundamental<br />

porque no confronto com o real do corpo do bebê, na constatação de sua pr<strong>em</strong>aturidade<br />

ou enfermidade, de modo que a mãe possa constituir um todo imaginário que lhe<br />

permita ser um sujeito. 29,46<br />

O destino do bebê, como futuro sujeito, é escrito nas marcas fundantes que<br />

imprim<strong>em</strong>, sobre o seu corpo no real, os atos dos adultos <strong>em</strong> relação a ele, atos cujo<br />

conteúdo e qualidade irão apresentar diferenças <strong>em</strong> função daquilo que significar para o


162<br />

adulto a imag<strong>em</strong> que vê nesse objeto-bebê que t<strong>em</strong> diante de si. 41<br />

O corpo é<br />

protagonista de uma história que antecede a existência real. 45<br />

Apesar de Renata ter nascido supostamente pr<strong>em</strong>atura e frágil, Magdala<br />

apostou na recuperação da filha. Ressalta-se a importância desse movimento, dessa<br />

“aposta”, antecipação de vida, tendo <strong>em</strong> vista os efeitos constitutivos para Renata.<br />

Jerusalinsky 105 destaca que a necessária ilusão antecipadora criada pela mãe e seus<br />

efeitos constitutivos para o bebê pod<strong>em</strong> estar <strong>em</strong> risco quando só se espera pela morte.<br />

Era muito pouquinho d<strong>em</strong>ais (o peso da criança). A cabecinha da bichinha era, parecia com<br />

um coquinho. Inté meu marido quando foi visitar eu disse que ela num ia n<strong>em</strong> se criar, de tão<br />

pequenininha que ela nasceu. (...) Eu disse que ela ia se criar. (...) Num sei, eu achava que<br />

ela ia se criar. As mulher tudo lá <strong>em</strong> Palmares, no hospital lá, elas dizia pra mim, na<br />

incubadora, elas dizia pra mim “ó, mulé, tua menina, ela num vai se criar assim não, mulé”.<br />

Eu dizia “vai mulé, eu num sei, qu<strong>em</strong> sabe é Deus se ela se cria ou não, qu<strong>em</strong> sabe é Deus se<br />

ela se cria ou não”.<br />

Supostamente “chocada” com o bebê real, s<strong>em</strong> encontrar um lugar para seus<br />

cuidados com a filha, pois não tinha leite para amamentá-la, Magdala foi mandada para<br />

casa. Questiona-se o papel exercido pela equipe de saúde da maternidade, auxiliando ou<br />

não esta mãe a viver o luto do bebê idealizado e a investir no seu bebê real. Estima-se<br />

que algum tipo de obstáculo tenha sido posto por essa equipe, supostamente não<br />

incluindo a mãe nos cuidados com o bebê, talvez vista como “desnecessária” no/ao<br />

hospital, já que não tinha leite (alimento real).<br />

Eu passei um t<strong>em</strong>po com ela, aí depois as enfermeira perguntou por que eu num dô de<br />

cumê a ela, aí eu disse que num tinha mais, porque eu num tava cuidando dela não, qu<strong>em</strong><br />

tava cuidando dela era as enfermeira lá, eu num fazia nada com ela. Elas disse “apois,<br />

mãe, a senhora vai pra casa, vá tomar conta dos outros na sua casa, quando ela tiver de<br />

alta a gente telefona pro hospital”. Aí eu disse “apois tá certo”, aí eu vim me <strong>em</strong>bora. (...)<br />

Qu<strong>em</strong> tava cuidando dela lá era as enfermeira. Elas num deixa eu... ela n<strong>em</strong> dormia<br />

comigo. Ela ficava lá na incubadora. Assim mesmo eu dava cumê a ela, à noitinha, a ela.<br />

Qu<strong>em</strong> dava banho era as enfermeira mesmo. Qu<strong>em</strong> dava o r<strong>em</strong>édio a ela era as<br />

enfermeira. Eu só fazia mesmo era lavar as mão, vestir aquela, aquela bata, lá no


163<br />

hospital, e entrar e pegar nela b<strong>em</strong> pouquinho de nada, pegava ela aí as enfermeira dizia<br />

“ta bom, mãe”. Pegava, botava lá de novo.<br />

Lacan 55 destaca que, <strong>em</strong>bora o objeto real não seja indiferente, não há<br />

necessidade de ser específico. “Mesmo que não seja o seio da mãe, n<strong>em</strong> por isso ele<br />

perderá algo do valor de seu lugar na dialética sexual, de onde se origina a erotização<br />

da zona oral. Não é o objeto que des<strong>em</strong>penha, <strong>em</strong> seu interior, o papel essencial, mas o<br />

fato de que a atividade assumiu uma função erotizada no plano do desejo, o qual se<br />

ordena na ord<strong>em</strong> simbólica” (1957: 188). 55<br />

Desse modo, para a criança, não importa o alimento que a mãe oferece, mas<br />

a posição a partir da qual ela faz essa oferta. A mãe pode alimentar a criança a partir de<br />

seu corpo, situada apenas no eixo da necessidade, s<strong>em</strong> veicular afeto, ou oferecer uma<br />

chupeta e satisfazer a criança, na dimensão do “dom”. 56<br />

Silenciamentos, <strong>em</strong>udecimentos, repúdio com a morte e imperativos<br />

superegóicos (o que e como dev<strong>em</strong> fazer, sentir) obstaculizam os pais na construção de<br />

significados, não permitindo articular simbolicamente a realidade do recém-nascido e a<br />

representação do trauma. 47 Duradouros e patogênicos são os efeitos que esse trauma<br />

provoca na organização psíquica infantil e familiar, 51,106<br />

marcando-os pela falta de<br />

palavras subjetivantes.<br />

Algo parece ter sido interrompido entre Magdala e Renata nesse início de<br />

vida, sendo de alguma forma retomado, talvez com prejuízo, com a intervenção da lei,<br />

representada pelo Conselho Tutelar.<br />

(...) Aí b<strong>em</strong> cedo eu fui bater lá no Conselho (...). Aí eu cheguei lá, eu perguntei, eu disse<br />

“óia, a mãe da menina sou eu, que ta de alta”.<br />

- E o nome dela, foi dado antes dela nascer ou depois<br />

Depois quando ela nasceu.<br />

- Ainda no hospital ou <strong>em</strong> casa


164<br />

Foi <strong>em</strong> casa, quando eu fui fazer o registro dela, quando ela chegou. Ficou muito t<strong>em</strong>po não<br />

pra tirar o registro dela. (...) Ela já tinha saído do hospital, mas lá me deram um papel pra<br />

registrar ela. Qu<strong>em</strong> foi foi o meu marido tirar, eu num fui não. Ele foi no mesmo dia.<br />

- Qu<strong>em</strong> deu o nome<br />

Fui eu.<br />

Ao contrário de Magdala, Izabel, mãe de João, parecia ressentir por ter tido<br />

que se separar do filho, mesmo que por algumas horas.<br />

(...) E com dezenove dias de resguardo passei esse sufoco todinho. Deixei esse menino <strong>em</strong><br />

casa, novinho ainda. ... Aí quando foi à noite, umas onze e pouca da noite, aí veio um médico<br />

dele pra ficar com ele (marido) no hospital pra poder eu ir pra casa. (...) É, meu peito tava<br />

cheio, ele num podia mamar e eu preocupada comigo e com ele, porque ele era muito<br />

novinho. Eu tava também preocupada com o meu marido porque via a hora dele apagar. (...)<br />

Tinha que ajudar o pai, né, queria tar com os dois, mas só que nesse momento eu não podia<br />

ficar com os dois, né! Tinha que deixar um e vim ficar com ele, deixando ele no estado<br />

como ele tava lá e vim cuidar do neném porque num tinha qu<strong>em</strong> cuidasse, né! O médico<br />

ficou lá com ele (com o marido). (...) Depois disso (internação do marido/separação do filho)<br />

eu só tive leite por mais dois meses, secou.<br />

Nas famílias acompanhadas, as quais tinham condição socioeconômica<br />

precária, a experiência e a prática da parentalidade incluíram a recorrente preocupação<br />

com a alimentação da criança, e o t<strong>em</strong>or da repetição da experiência de fome. Esse fato<br />

pareceu des<strong>em</strong>bocar <strong>em</strong> duas atitudes diferentes: obstáculo à criação do filho e/ou<br />

amamentação, ou, pelo contrário, como incentivador do aleitamento. Em relação a esse<br />

último aspecto, no caso de Bela, o leite materno passou a figurar como único alimento<br />

oferecido diante do receio ou da falta real de comida, b<strong>em</strong> como da perspectiva do<br />

adoecimento infantil.<br />

(...) Quando ele ficar doente, como agora mesmo, agora ele ta meio adoentado, só quis o<br />

quê, só quis peito, né! E se eu tirasse ele do peito, ele ia ficar como, ia ser pior ainda,<br />

né! (...) Todos os menino ficava doente, né! Aí eu digo, se o meu ficar um dia (...)<br />

Porque também os meus irmãozinho também, assim, t<strong>em</strong> uma dor de cabeça, t<strong>em</strong> uma<br />

febre, uma coisa ou outra, ficava s<strong>em</strong> comer, dava o peito, aí pronto. Eu nunca vou deixar


165<br />

de dar o peito a ele. (...) Vou deixar ele mamar até quando ele num quiser mais. Num vou<br />

deixar de dar não.<br />

Algumas mães pareciam delegar a prática da parentalidade (tarefas<br />

cotidianas que os pais dev<strong>em</strong> executar junto à criança na área dos cuidados parentais -<br />

físicos e psíquicos) 42 a outra(s) pessoa(s) (familiar ou não).<br />

(...) Quando quer brincar, brinca, quando num quer botar pra chorar... Paula (irmã de<br />

Renata) bota ela no braço, vai andar, vai brincar com ela, vai andar com ela... (Magdala)<br />

(...) Muita gente pega ela lá, minhas amigas, os tio dela que é pequeno pegava ela... (...)<br />

Eu ia pra dança, quando minha mãe queria ir, eu pagava pra ficar, pros outro ficar com<br />

ela, pra eu sair. Eu pagava cinco Reais, dois, pra eu sair, deixava com minhas amiga... Aí<br />

a gente nunca sabe o que elas faz, né, passava a noite com as criança, né!<br />

- Era muito comum você fazer isso, deixar ela com outras pessoas<br />

Eu fazia s<strong>em</strong>pre. Porque, minha mãe fica com ela e com tudinho pra eu sair, só que tinha<br />

vez que ela queria sair pra se divertir também né. Aí eu também gosto muito de sair, aí<br />

não queria ficar <strong>em</strong> casa. Aí quando eu não tinha dinheiro eu arrumava <strong>em</strong>prestado...<br />

arrumava <strong>em</strong>prestado e pagava pra eu ir. (Mina)<br />

(...) Eu ia pra roça e deixava ele com as menina, né, com as menina pequena. (...) Uma<br />

t<strong>em</strong> oito anos, aliás, nove anos, e a outra t<strong>em</strong> treze. Deixava elas cuidando dele, aí<br />

passava muito da hora de dar comidinha dele. Eu ia pra roça, porque desde que meu<br />

marido adoeceu de diabetes e eu tive que ajudar ele. (Izabel)<br />

Mina, diferent<strong>em</strong>ente de Izabel, parecia delegar não somente a prática, mas<br />

também a experiência da parentalidade à sua própria mãe. Ana Maria parecia confusa<br />

quanto ao seu lugar, ora delegando à mãe, ora “correndo atrás do prejuízo”.<br />

Para Mina, a prática da parentalidade parecia estar mais ligada ao aspecto<br />

material. Quando procurou seu pai, a única coisa que parecia querer dele era dinheiro.<br />

Mas eu vi ele (pai) duas vezes. Uma vez fui lá, ele me deu 45 Reais e outra vez ele me deu 30<br />

Real. Mas daqui pra lá eu não vi ele mais não. Se eu ver ele assim na minha frente eu não<br />

conheço ele mais não.<br />

- E o teu padrasto, como é<br />

Ele é bom pra mim, né! Dá as coisa a eu, o que eu quero ele me dá quando eu peço.


166<br />

- E o pai dela (Pandora) te ajuda de alguma forma<br />

Não dá nada. (...) Aí eu morava mais a mãe dele, na casa da mãe dele, ele não queria<br />

trabalhar, aí eu peguei e fui me <strong>em</strong>bora pra casa da minha mãe. Aí qu<strong>em</strong> dá roupa, calçado,<br />

cumê, tudo, é ele (padrasto) e a minha mãe... a eu também.<br />

(Quando estava grávida) Tudo que eu pedia ela me dava. Ela s<strong>em</strong>pre... faz o que eu quero...<br />

ela é uma mãe muito boa pra mim... Se fosse outra não tava... E ela dá as coisa a eu, faz<br />

questão, num reclama, n<strong>em</strong> nada.<br />

- O que você achou diante do fato da sua mãe querer que você tirasse os bebês<br />

Por que... Ela sabia que eu ficando grávida qu<strong>em</strong> ia criar era ela. Porque o pai deles num<br />

trabalhava. Aí quando eu ficasse grávida era ela qu<strong>em</strong> ia criar. Ela e o meu padrasto, qu<strong>em</strong><br />

ia dar as coisas era ela. Aí ela achava que eu ia passar dificuldade.<br />

- Você então acha que sua mãe é uma boa mãe, e você, o que pode dizer de você mesma<br />

como mãe Que tipo de mãe você é<br />

Sei lá, acho que eu sou boa, né!... Eu acho ruim assim porque eu não dou as coisa pra eles,<br />

não dou as coisa pra eles. Não tenho dinheiro pra comprar uma roupa, não tenho dinheiro<br />

pra comprar nada, s<strong>em</strong>pre qu<strong>em</strong> compra é ela, aí eu acho ruim porque não é eu que compro.<br />

Essa idéia de que parentalidade está associada ao aspecto material parecia<br />

também presente <strong>em</strong> Ceça, mãe de Mina. Uma de suas visitas à filha e neta<br />

hospitalizadas foi documentada no diário de campo:<br />

Ceça falou também que o pai das crianças foi na casa dela, um mês depois que ela o avisou<br />

sobre a internação de Pandora. Em seu discurso bastante <strong>em</strong>otivo, cheio de gestos, Ceça<br />

disse que ficou com raiva da d<strong>em</strong>ora dele para ir lá e disse a Sandro(pai de Pandora) que a<br />

menina havia morrido, que não haveria missa de 7º dia e que o enterro já havia ocorrido.<br />

Sandro disse que era mentira, pois ouvira dos vizinhos que a criança estava internada no<br />

Recife. Ceça disse que deu uma bronca nele e que ele apenas riu (“como s<strong>em</strong>pre”, disse ela,<br />

falando de Sandro e Mina, que nesse sentido eles são iguaizinhos). Por fim, Sandro deixou<br />

R$ 20 para o menino.<br />

Bela passou por experiências diferentes com seus dois filhos, no que<br />

concerne à prática e experiência da maternidade. Quando sua primeira filha tinha meses,<br />

precisou dá-la à ex-sogra. No entanto, com Ian a experiência foi diferente.


167<br />

Ela (filha) tinha uns dois meses, não, acho que três pra quatro meses. Aí com a situação que<br />

ele (pai da menina) não queria dar nada a ela, não dava nada a ela, ... aí eu peguei, com oito<br />

meses eu dei a ele, quando ela <strong>completo</strong>u oito meses. Eu levei a menina lá, na casa da mãe<br />

dele. Deixei ela lá e depois disse que ia voltar.<br />

- Como foi pra você tomar essa decisão de deixar sua filha lá<br />

Foi muito dura. Foi, porque ou ela, ou eu b<strong>em</strong> comia, né, ou a gente b<strong>em</strong>, assim, ou ela é<br />

b<strong>em</strong> cuidada ou num é, porque nesse t<strong>em</strong>po a gente num tinha n<strong>em</strong> cumê pra gente, como era<br />

alimentar ela O peito já com oito meses de idade, num dava nada, né, porque mijou,<br />

pronto, foi <strong>em</strong>bora. Aí foi muito ruim, foi muito duro, eu num gostei, não gosto, né, mas num<br />

podia fazer nada. Porque todo dia eu incomodava os povo, os vizinho, né, arruma leite,<br />

arruma açúcar, e os povo já ficava falando, (...) mas não sabia eles que a gente não tinha<br />

condições.<br />

- Como foi cuidar dele (Ian) nesses primeiros dias, nesse primeiro mês<br />

Era muito difícil assim, porque, assim, porque da minha filha muito pouco eu tomei conta,<br />

né, aí no caso o que, assim, que eu ficava muito complicada, quando era de dia, quando ele<br />

chorando, aí o que foi, que eu num sabia, né! Aí ficava muito difícil pra mim cuidar dele<br />

por causa disso. Eu num entendia, né, o que ele sentia, o que ele tinha, essas coisa assim.<br />

- Como foi com sua filha<br />

Com a minha filha foi muito diferente porque raramente, que qu<strong>em</strong> cuidou dela foi a minha<br />

sogra, quando ela era novinha. Eu só fazia dar o peito, só. As comidinha que ela dava, a<br />

água, suco, era tudo ela que dava.<br />

- A sua outra sogra<br />

Era. E essa não, ela que disse “você, você teve filho, você que vai cuidar”. Aí pronto, eu<br />

cuidei. Pedi pro t<strong>em</strong>po passar muito rápido, mas passou tão rápido que eu n<strong>em</strong>, assim, tive<br />

tanto t<strong>em</strong>po de cuidar dele quando era novinho. Num sei se eu deixei, passe logo o t<strong>em</strong>po,<br />

que esse menino ande, aperreie, mas o quê... Foi, pra mim passou muito rápido. Quando eu<br />

vi, ele já tava grande já.<br />

Rotenberg & de Vargas 107<br />

destacam que a partir de queixas sobre a<br />

alimentação da criança (“ela não come”), as mães forçam o filho a comer de qualquer<br />

maneira ou substitu<strong>em</strong> a comida por mamadeira ou leite. Na ânsia de que a criança fique<br />

alimentada, passam a utilizar práticas alimentares inadequadas, associadas ao consumo<br />

do alimento “básico”, com destaque para os alimentos industrializados (leite <strong>em</strong> pó,<br />

macarrão instantâneo, achocolatados, iogurtes e biscoitos salgados). 107


168<br />

Confirmou-se o estudo de Rotenberg & de Vargas, 107 acrescentando-se que<br />

algumas mães passaram a fazer uso de “massas” (engrossantes, farinha da terra)<br />

acrescidas ao leite artificial, mesmo s<strong>em</strong> queixas de alimentação. Maria e Mina<br />

alimentavam os filhos com macarrão instantâneo, “Danone”, pipoca, salgadinhos,<br />

enquanto a “massa” foi referida por outras mães, como Rosácea, Mina e Eva.<br />

No entanto, além do aspecto cultural/social destacado por Rotenberg & de<br />

Vargas, 107 destaca-se ainda outro possível enfoque por trás dessa prática: o uso do<br />

alimento como resposta ao desconforto do filho, pelo fato da mãe mesma não conseguir<br />

dizer “não” à criança ou não conseguir acalmá-la com outros recursos. Nesses casos, o<br />

alimento parecia deslocado de sua função nutritícia.<br />

(...) Essas pipocas salgadinhas, sabe, era o que eu dava mais a ele. Essas pipoca amarela,<br />

num t<strong>em</strong>! Que é b<strong>em</strong> salgada... eu dava a ele. (...) Pirulito, bala também, essas coisas.<br />

(...) Ele deixava a comida para comer delas..., aí ele ficava com fastio, não queria comer,<br />

só queria saber daquilo ali..., aí foi isso..., mas agora eu tô entendendo, agora eu não dou<br />

mais esses negócio de pipoca, salgadinho, vou só ficar cuidando da alimentação, feijão<br />

essas coisas, macarrão, essas coisas, fazendo cumê, né! Mas pipoca, essas coisas não<br />

vou dar mais a ele não. (Maria)<br />

Porque <strong>em</strong> casa eu fazia assim: era mingau, quando ela não queria o mingau eu fazia o<br />

leite com a massa, aí ela tomava. Tomava mais ou menos dois dedos, assim, b<strong>em</strong>, a<br />

barriga chega ficava toda estufada. (Rosácea)<br />

- Ele ta com fome<br />

Ta nada! Mas é assim, toda vez que eu der o leite a ele t<strong>em</strong> que ter peito, peito.<br />

- Por que você acha que ele pede tanto o peito<br />

Eu num sei, acho que já é mania, já é costume. (Bela)<br />

- Aí você disse que pra uma criança de oito meses o peito já num é suficiente. Continua<br />

pensando assim, você acha que isso também é válido pra Ian<br />

Com certeza. Com todos, é assim, com todos os bebês é assim, né Mas acho que nunca<br />

vou deixar não de dar o peito a ele não.<br />

- E se ele continuar nessa dificuldade pra comer, se só quiser o peito<br />

Eu vou dar só o peito! Vou fazer o quê, se ele vai querer só o peito! (Bela)


169<br />

Destaca-se mais um aspecto: o alimento artificial sendo usado diante da<br />

desvalorização da figura materna (<strong>em</strong> detrimento do leite do peito). Almeida 73<br />

enquadrou este aspecto como um indicador de vulnerabilidade frente a probl<strong>em</strong>as de<br />

alimentação infantil.<br />

É, ela nasceu magrinha, desnutridinha... Ela já nasceu assim, daquele jeito, magra, aí eu<br />

ficava assim olhando “meu Deus, minha filha é tão magra! Eu quero que ela engorde”, eu<br />

dizia. Meu leite tava deixando ela mais magra ainda. (Rosácea)<br />

- Porque você começou a dar o NAN 1<br />

Porque eu, porque foi mesmo assim (...) “essa menina é maguuuiiinha, dai leite a ela”, aí<br />

eu ficava assim “não, não, vou dar não porque faz mal a ela”. “Não, pode dar, pode dar”,<br />

aí eu peguei e fiz. Agora eu não sabia que ia fazer mal, né... que ia dar disenteria... Eu<br />

achei que ia fazer b<strong>em</strong> a ela, ia engordar... (Rosácea)<br />

Ou, de modo oposto, o leite materno sendo usado diante da suposta recusa<br />

da criança <strong>em</strong> comer outros alimentos, a mãe aparent<strong>em</strong>ente reforçando a dependência<br />

do filho no peito.<br />

Logo quando ele começou a adoecer... eu dava comida a ele e ele não comia, ele jogava<br />

fora a comida (vomitava), eu tentava, mas ele não sustentava, não sustentava de jeito<br />

nenhum, aí pronto, ele ficava só no peito, só no peito. (...) Ele só queria saber de mamar,<br />

mamar, mamar, mamar, ele não queria comer nada, eu dava o leite a ele, ele não queria,<br />

dava comida a ele, ele não queria, nada, só mamar, só mamar. (Maria)<br />

- Quando ele não queria comer, você tentava novamente ou não<br />

Tentava, mas aí ele começava a chorar, aí pronto, eu parava. Aí pronto, dava o peito a<br />

ele, ele só queria o peito, só o peito, mas de comida de panela assim ele já come, eu dava<br />

a ele, ele já comia... Mas depois que ele começou a inchar ele não quis mais as comida de<br />

panela, só ficou mamando mesmo. (Maria)<br />

- Aí ele ficou só no peito...<br />

Só no peito, ele não queria comida, nada de panela, aí mãe falou assim ‘ta vendo nega, se<br />

você num tivesse dado a comida no peito ele ia morrer de fome’ (...) que ele não quer<br />

comer outra coisa, só quer saber de peito, só do peito mesmo.<br />

- Não entendi, sua mãe achou ruim ou bom você ter posto ele no peito


170<br />

Achou bom, por causa que... se eu tivesse tirado do peito né (...) ele tinha morrido, ele não<br />

queria saber de comida de panela, de nada, só de peito, só de peito, foi o que sustentou, foi<br />

a alimentação, foi o peito. (Maria)<br />

Comigo ele num come, que é a mania dele no peito, né! Ele fica assim, ele sabe que sou<br />

eu, aí se ele num comer eu vou dar o peito a ele. Aí ele já sabe e num quer comer. (...)<br />

Com qualquer pessoa que der a comida a ele, ele come, mas comigo ele não come. (Bela)<br />

A amamentação parecia ser reforçada por Bela talvez projetando <strong>em</strong> Ian<br />

experiências trans e intergeracionais, como o medo da doença ou da fome e o receio de<br />

perder mais um filho diante da falta de comida.<br />

Aí às vezes eu tenho medo de tirar o peito, porque quando fica assim doente só quer peito,<br />

né! Não come nada! Aí eu dou o peito a ele. (...) S<strong>em</strong>pre tive vontade, nunca tirar ele do<br />

peito não. Quando ele ficar doente, como agora mesmo, agora ele ta meio adoentado, só<br />

quis o quê, só quis peito, né! E se eu tirasse ele do peito, ele ia ficar como, ia ser pior<br />

ainda, né (Bela)<br />

- Será que você t<strong>em</strong>ia que o que aconteceu com sua filha pudesse...<br />

É, também! Porque também os meus irmãozinho também, assim, t<strong>em</strong> uma dor de cabeça,<br />

t<strong>em</strong> uma febre, uma coisa ou outra, ficava s<strong>em</strong> comer, dava o peito, aí pronto. Eu nunca<br />

vou deixar de dar o peito a ele.<br />

- Será que você t<strong>em</strong>ia que pudesse faltar alimento para Ian, como você esteve ao longo da<br />

sua vida acostumada a ver<br />

... Já, já pensei muito nisso. (Nesse momento Ian pede o peito e Bela obedece,<br />

comentando: “Ele só quer peito, ta vendo!”). (Bela)<br />

O medo de Bela de repetição da experiência de perda de um filho para a<br />

sogra parecia ser vivido de modo ambivalente, pois ora praticamente oferecia a criança<br />

à sogra, se divertindo <strong>em</strong> ameaçar entregar o filho à avó, ora reforçava a alimentação ao<br />

seio. Ian, <strong>em</strong> contrapartida, chamava indistintamente mãe e avó de “bó-bó”.<br />

- E se ele continuar nessa dificuldade pra comer, se só quiser o peito<br />

Eu vou dar só o peito! Vou fazer o quê, se ele vai querer só o peito! Mas eu vou tentar muito,<br />

vou passar assim t<strong>em</strong>po s<strong>em</strong> dar o peito a ele, pra ver se ele come, vou deixar uns t<strong>em</strong>po ele na<br />

casa da minha sogra pra ver se ele come.


171<br />

- Deixar ele uns t<strong>em</strong>pos na casa da sua sogra<br />

É porque é assim, num é perto da minha casa! Aí toda hora, toda vez que marcar a hora dele<br />

comer aí eu vou dou a ela pra ele comer. Depois quando ele parar de comer eu vou e pego ele<br />

de volta. (Bela)<br />

Os sinais interacionais das crianças pareciam na maioria dos casos tender<br />

para aspectos silenciosos, W diante dos quais as mães descreveram seus filhos como<br />

“quietinhos”, dormindo muito e solicitando pouco, principalmente depois que<br />

perceberam a criança doente. Este aspecto será retomado no terceiro t<strong>em</strong>a.<br />

Essa menina só faz mais dormir. Só faz mais dormir, que ela dorme muito. (...) Ela dorme<br />

muito! (...) S<strong>em</strong>pre foi assim, desde que nasceu ela é uma menina dorminhoca. É dela<br />

mesmo, s<strong>em</strong>pre que foi assim. (Magdala)<br />

- Na sua como casa, como é que ela faz quando está com fome<br />

Ela num chora não, é quietinha. (...) Toda vida essa menina foi assim! Desde que essa<br />

menina nasceu, que é desse jeito. ... (...) Vivia mais dormindo dentro de casa.<br />

- E quando ela ta com a fralda com xixi, com cocô<br />

Aí num diz nada! (Ri)<br />

- Quando ela ta abusada com alguma coisa, como ela lhe diz<br />

Também num diz nada. (Magdala)<br />

Ficou triste, não era mais aquele menino mais alegre. (...) Num dá risada assim que ele ria<br />

para as pessoas, num, num... alegre mesmo, ficou assim um menino triste. Ia para casa de<br />

mãe e ficava desanimado, num brincava mais direito com os outros meninos, sabe, com<br />

meus sobrinhos. Eu já sou tia também, sabe! Eu tenho outra irmã, eu só tenho uma. Aí<br />

num brincava com eles. Ficava tristinho, pra lá, deitado numa cama... Quando passava<br />

pelo quarto para ele assistir um desenho, alguma coisa... ficou triste. Aí pai dizia: “ai meu<br />

Deus do céu, esse menino era tão animado e ta triste desse jeito, num ficava quieto e ta<br />

triste”. “Aí ta vendo, pai, ele ta doente, ele ta mesmo, ta desanimado, ele ta, ta<br />

desanimado d<strong>em</strong>ais” (Maria)<br />

W<br />

R<strong>em</strong>ete-se aqui à série silenciosa descrita por Cullere-Crespin. 6 Essa autora pontua que os sinais<br />

silenciosos geralmente são despercebidos ou vividos como positivos (a criança quietinha, que não<br />

reclama, não dá trabalho), mas que representam a falta de apelo da criança, a qual passa a viver na inércia,<br />

no vazio, s<strong>em</strong> significado, s<strong>em</strong> apetite. Esse tipo de comportamento geralmente é observado nas crianças<br />

desnutridas, que passam a agir com atonia geral, pouco d<strong>em</strong>ando e pouco sendo interpeladas, num círculo<br />

vicioso.


172<br />

Ela só queria ficar dormindo. Aí acordava, chorava, mas só pra botar a chupeta na boca...<br />

Eu tentava dar mingau a ela, ela não comia... (...) Só fazia dormir, somente... (Mina)<br />

Ela chorava, o que ela fazia era só chorar. Assim, ela chorando eu sabia se ela tava com<br />

fome ou se ela tava com sono ou se ela queria que a gente conversasse com ela, ficasse<br />

com ela, brincando com ela, através do choro dela. S<strong>em</strong> ela querer nada, ajeitava ela, ela<br />

querer, essas coisa que nós fazia, ela chorando. Aí eu ia testando se ela queria dormir ou<br />

comer, alguma coisa, através do choro. (Ana Maria)<br />

O círculo vicioso “d<strong>em</strong>andar - não ser atendido” aparece na fala de Ana<br />

Maria:<br />

Às vezes ela chora, mas pára depois por ela mesma... Eu acho que ela sente falta, né,<br />

porque quando eu to perto dela ela num chora, chora assim, de vez <strong>em</strong> quando, mas é<br />

difícil ela chorar, porque s<strong>em</strong>pre quando ela vai chorar eu pego ela, aí eu acho que ela<br />

chora por isso, porque ela diz assim, é, eu acho que ela fica assim “ela num ta aqui pra<br />

me pegar, toda vez que eu choro ela me pega”, aí ela bota pra chorar, vê que ninguém vai<br />

pegar ela, vê que eu num vou pegar ela, que eu num tô por perto pra pegar ela, aí ela<br />

termina dormindo. Aí quando eu chego, que ela acorda, ela arregala o olho assim, às<br />

vezes dava aquela risadinha, b<strong>em</strong> fraquinha, aí eu vou e pego ela, ela fica toda alegre.<br />

A maior parte das mães referia que <strong>em</strong> casa a criança comia aos poucos,<br />

aspecto esse também observado no hospital. Questionadas sobre como os filhos<br />

comiam, responderam:<br />

Acho que ela come de pouquinho <strong>em</strong> pouquinho, num é! Ela num é uma menina de comer<br />

a comida tudinho de uma vez não. Ela é uma menina que s<strong>em</strong>pre a pessoa t<strong>em</strong> que ta<br />

dando uma coisinha a ela. (...) Ela t<strong>em</strong> que deixar aquele pouquinho de comida. Aí eu fico<br />

dando de tiquinho <strong>em</strong> tiquinho, aí ela toma tudinho depois. (Eva)<br />

(...) só aceitava daquelas mamadeira b<strong>em</strong> pequena, tipo chuquinha, eu enchia ela e ele<br />

tomava de duas vez, assim, um pouquinho agora, daí a pouco tomava o outro resto.<br />

(Izabel)<br />

... Quando chegava na hora do almoço, de almoçar, eu botava pra mim e botava pra ele.<br />

Eu pegava, almoçava aí dava a ele. Ele comia duas colher e pronto, pra ele já tava cheio.


173<br />

(...) Muito pouco ele comia. B<strong>em</strong> pouquinho, umas duas colher tava bom pra ele. Depois<br />

de uns t<strong>em</strong>po é que ele queria mais. (Bela)<br />

Algumas mães pareciam usar o corpo da criança como indicador de<br />

fome/saciedade. Destaca-se o perigo desse tipo de leitura, principalmente diante de<br />

sintomas da desnutrição, como o ed<strong>em</strong>a, ou até mesmo diante da infestação por vermes.<br />

(...) Eu s<strong>em</strong>pre sei quando ele ta com fome. (...) Pelo choro dele, pela barriguinha<br />

murchinha. (Bela)<br />

Mais ou menos quando eu vejo a barriguinha sequinha eu já to dando (comida). (Eva)<br />

Tomava mais ou menos dois dedos, assim, b<strong>em</strong>, a barriga chega ficava toda estufada. Mas<br />

a disenteria, aí quando eu olhava a barriga dela chega tava sequinha. (Rosácea)<br />

Observação do diário de campo sobre Izabel e João: apesar de reconhecer que ele come<br />

aos poucos, praticamente não insiste, parando logo de dar a comida, t<strong>em</strong>endo que João<br />

vomitasse, pois disse que a barriga dele está muito grande (inchada, porém a criança está<br />

cheia de vermes) e cheia, pois ele havia tomado leite antes (às 15 horas e estávamos na<br />

dieta das 18), porém, João ainda pedia mais comida, explicitamente, e come b<strong>em</strong> quando<br />

ela volta a dar a comida. Relata também que a barriga de João está cheia porque ele não<br />

arrota depois de comer, não solta gazes. E João continua pedindo comida.<br />

O primeiro t<strong>em</strong>a ilustra a complexidade trans e intergeracional familiar e a<br />

riqueza de el<strong>em</strong>entos que se conjugam nessa construção. Dentre esses el<strong>em</strong>entos,<br />

destacam-se experiências familiares maternas, o relacionamento com o companheiro, a<br />

descoberta e o desejo com a gravidez, b<strong>em</strong> como os papéis assumidos pelos pais na<br />

construção da maternidade/paternidade. As sub-categorias ilustram particularidades das<br />

dimensões da parentalidade (exercício, experiência e prática da parentalidade) e seus<br />

reflexos na interação mãe-criança. Enfatiza, portanto, a importância da pré-história do<br />

sujeito e seus efeitos de inscrição significante na interação da díade. Reforça-se também<br />

uma das conclusões de Rotenberg & de Vargas, 107 a qual admite que as práticas


174<br />

alimentares são construídas a partir de diferentes dimensões que se entrelaçam (de saúde<br />

e de doença, de cuidado, afetiva, econômica, etc).<br />

O processo de parentalidade promove a re-atualização da engrenag<strong>em</strong><br />

psíquica dos pais, tomados pelo encontro consigo e com o filho. É necessário um outro,<br />

provido de um aparato psíquico desejante, afetado pelo encontro entre a criança e aquilo<br />

que a partir desta se re-atualiza <strong>em</strong> seu inconsciente. 104 Como destacado anteriormente,<br />

o Outro só pode atender à d<strong>em</strong>anda de alimento a partir de sua própria condição<br />

desejante.<br />

4.3 T<strong>em</strong>ática 2 – Vivência e retomada da parentalidade: interação mãe-criança ao<br />

longo da hospitalização<br />

- Sinais interacionais percebidos pela mãe, vividos no hospital;<br />

- Adaptação da criança ao hospital <strong>em</strong> função do relacionamento com a mãe;<br />

- Interação da díade entre si e com a pesquisadora: construção de uma terceira<br />

história.<br />

A hospitalização, tomada como processo envolvendo não só a internação da<br />

criança, mas todo o processo de pesquisa, a interação com a pesquisadora, pareceu<br />

despertar vivências da mãe e da criança (lutos mal-resolvidos, t<strong>em</strong>ores), informando<br />

sobre o passado da díade.<br />

Maria parecia rivalizar com as outras mães da enfermaria do mesmo modo<br />

que rivalizava com as irmãs e cunhadas. Parecia t<strong>em</strong>er que a destituíss<strong>em</strong> da<br />

maternidade, uma vez que mãe e filho não tinham os documentos de registro. Insistiu


175<br />

para levar para casa os exames da criança, de modo a mostrar aos familiares, provando<br />

por meio de um documento médico, que havia tomado conta do filho.<br />

No início da hospitalização, Bela não conseguia se afastar de Ian, pois t<strong>em</strong>ia<br />

que alguém pudesse levá-lo, roubá-lo. Parecia reviver experiências como a<br />

separação/perda da filha para a ex-sogra, a perda (morte) do bebê no final da gestação, o<br />

medo de perder Ian na sala de parto. Bela chegou a perder peso nos primeiros dias no<br />

hospital, pois sequer descia ao refeitório para se alimentar. Chorou no primeiro contato<br />

com a pesquisadora, falando que aquele era o dia do aniversário da filha que morava<br />

com a ex-sogra, mas que não estaria com ela por estar com Ian. Talvez, <strong>em</strong> sua<br />

ambivalência de sentimentos, Bela estivesse dividida entre deixar o filho no hospital,<br />

ferida narcisicamente, mais uma vez se vendo implicada (“culpada”) na desnutrição de<br />

um filho, ou, pelo contrário, não querendo largá-lo de modo algum, t<strong>em</strong>endo perdê-lo<br />

como “perdeu” a filha devido, supostamente, à sua “incompetência” materna.<br />

A menina (filha mais velha) tava desnutrida, tava a mesma coisa dele (Ian), desnutrida,<br />

vomitando, com diarréia. (...) Porque assim, eu num tava me alimentando direito, né, e só<br />

tinha o peito pra dar a ela. (...) Aí foi que “menina dá, dá ao pai dela, o pai dela ta aí, ta<br />

muito b<strong>em</strong>”. (...) Internei ela, tomou soro, aí parou, né! Aí os médico passou os negócio<br />

pra ela comer. Eu fiquei pensando “como eu vou dar isso a ela se eu não tenho nada!”.<br />

Aí eu digo “oxen, num agüento não, mainha, mais não”. Aí minha avó foi, arrumou um<br />

dinheiro pra eu levar ela pra lá. Aí eu levei ela...<br />

- Você viu logo ele quando ele nasceu ou d<strong>em</strong>orou<br />

Vi, peguei logo, eu tinha medo de alguém levar ele. Eu disse depois “vocês vão deixar ele<br />

aqui, viu!”<br />

- Você tinha medo de que alguém o tirasse de você<br />

Tiiinha! (Ênfase) Porque, assim, onde, quando ele nasceu a mulher deu logo o menino<br />

dela, né, e soube até de uma mulher que tinha tirado, pegado um menino daqui, tinha<br />

levado. Aí eu fiquei com medo, né! Aí eu digo “oxe, o meu filho, Deus me livre! Ninguém<br />

vai levar não!”.<br />

(...) Porque aqui (IMIP) as menina tava comentando que é, pegaram dois menino daqui. Aí<br />

eu fiquei pensando “meu Deus, será que pod<strong>em</strong> pegar vim meu filho também”, né! “Eu não


176<br />

vou deixar ele aqui sozinho não”. Quando eu tô dormindo eu boto assim, a mão por cima<br />

dele pra ninguém vim escondido e pegar ele.<br />

Transferencialmente, Bela parecia repetir com a pesquisadora o movimento<br />

de “dar” o filho:<br />

(Diário de campo) Ont<strong>em</strong> quando tirei fotos das mães, Bela foi a primeira a me pedir para<br />

tirar uma foto, dizendo que gostaria uma foto comigo, me dando Ian para eu segurar. Ele<br />

choramingou no início, s<strong>em</strong> entender nada, pois ela bruscamente o jogou <strong>em</strong> meus braços.<br />

Ela havia me conhecido no dia anterior.<br />

Apesar de reconhecer que Fátima costumava comer, tanto <strong>em</strong> casa como no<br />

hospital “de pouquinho <strong>em</strong> pouquinho”, b<strong>em</strong> como diante da <strong>em</strong>issão de sinais claros<br />

de que a criança queria o resto da comida, Eva ou não os compreendia (hipótese pouco<br />

provável, pois <strong>em</strong> outras ocasiões que não alimentares lia e respondia s<strong>em</strong> dificuldades<br />

aos sinais da filha) ou tratava a alimentação com certo descaso. Talvez Eva, como uma<br />

estratégia de defesa diante da falta de comida (<strong>em</strong> casa), negava os sinais da criança de<br />

pedido por comida. Cogita-se que a violência diante das experiências de fome ao longo<br />

de sua infância pode ter marcado esta mãe de tal modo que a reedição da fome através<br />

da filha estivesse então sendo negada, visando a autoproteção.<br />

(Diário de campo) Fátima toma a água que a mãe trouxe, mas continua chorando,<br />

tentando pegar novamente a comida e a mamadeira. Eva não dá. A criança chora,<br />

olhando e apontando para a mamadeira e para a comida, mas Eva não faz nada! Depois<br />

de um t<strong>em</strong>po Fátima pára de chorar, desiste da comida e passa a chupar o já machucado<br />

dedinho.<br />

(Diário de campo) Quando se senta com a criança, Eva não anuncia adequadamente o<br />

alimento, n<strong>em</strong> o torna atrativo, b<strong>em</strong> como não deixa que Fátima o explore. Em<br />

contraponto, quando diante dos brinquedos, os apresenta à filha, tornando-os atrativos,<br />

estimulando a exploração da criança.. (...) A alimentação não parece ser tomada como<br />

momento para trocas interativas, apesar da díade ter arsenal para isso. (...) Em todos os<br />

filmes (observações filmadas) Eva não conversa com a filha ao longo da alimentação,


177<br />

apesar de reconhecer os sinais interacionais desta e tomá-la como parceira de diálogos<br />

<strong>em</strong> outras situações.<br />

Ana Maria e sua mãe pareciam receosas <strong>em</strong> investir na criança ao longo da<br />

internação, talvez t<strong>em</strong>endo mais uma morte.<br />

(Diário de campo) Falei com a avó de Mariana e ela estava animada com a neta,<br />

achando-a mais sorridente e com a pele “mais limpinha” (de fato, também achei isso).<br />

Disse que pediu a Ana Maria para ela trazer dois ursinhos coloridos que Mariana gosta<br />

muito. Finalmente algo para a criança, depois de tanto t<strong>em</strong>po! Parece que esperavam<br />

Mariana dar um sinal de melhora para poder<strong>em</strong> investir mais explicitamente na criança,<br />

como alguém que brinca e t<strong>em</strong> gostos.<br />

Supostamente confusa e assustada com a maternidade, Ana Maria<br />

freqüent<strong>em</strong>ente se ausentava por longos períodos da enfermaria.<br />

(Diário de campo) Ana Maria é muito defensiva e quase nunca está na enfermaria com a<br />

filha. Ont<strong>em</strong> na entrevista ela foi muito superficial, falando como se não fosse nada cuidar<br />

de uma criança tão doente e ferida, frágil.<br />

(Diário de campo) Já são 13hrs e Mariana não comeu a mamadeira das 12hrs porque Ana<br />

Maria ainda não apareceu. A auxiliar de enfermag<strong>em</strong> decidiu então dar o leite, ao que<br />

Mariana aceitou b<strong>em</strong>, com boa troca de olhares com a auxiliar, parando para respirar e<br />

sugar mais a mamadeira. Ela não vomitou depois da mamada.<br />

Ana Maria é escorregadia, freqüent<strong>em</strong>ente foge dos cuidados com a filha e dos encontros<br />

comigo. É como se ela se protegesse disso tudo, da filha doente, do medo de perder uma<br />

Mariana novamente. (...) Consegui retomar as entrevistas com Ana Maria. Ela me disse<br />

que ficou a manhã quase toda no cabeleireiro e, apesar de saber sobre a febre e a diarréia<br />

da filha que começaram no início da manhã, segundo ela mesma me falou, deixou a<br />

criança aos cuidados de outros (outras mães e auxiliares de enfermag<strong>em</strong>), solicitando o<br />

ReSoMal e indo para o cabeleireiro. Ela só pode fazer isso por defesa, porque não<br />

acredito que faça isso por descuido n<strong>em</strong> por falta de interesse na criança, pois o discurso<br />

dela é cheio de preocupações adultas. Às vezes acho que ela quer me chocar, mas sei que<br />

é uma responsabilidade muito grande para alguém muito novo. Talvez ela peça uma<br />

trégua de tudo isso, s<strong>em</strong> deixar à mostra seus medos. Acho que ela não t<strong>em</strong> noção de que<br />

sai de perto da criança porque não agüenta, não suporta passar por isso como a mãe<br />

passou com a irmã.


178<br />

Algumas díades pareciam compreender e responder aos sinais interacionais<br />

do parceiro numa comunicação diálogica, 11 onde a mãe se dirigia à criança atribuindolhe<br />

um espaço t<strong>em</strong>poral durante o qual o filho podia se organizar, responder e ser<br />

respaldado. Díades como Izabel e João, Bela e Ian, forneceram importantes ex<strong>em</strong>plos<br />

desse tipo de interação.<br />

No entanto, outras díades pareciam “duelar angustiadamente” ao longo da<br />

alimentação, como Rosácea e Angélica, e por vezes Bela e Ian. A alimentação era uma<br />

atividade tomada na maioria das vezes apenas <strong>em</strong> seu sentido funcional (ganho de<br />

peso), reforçado pela equipe de saúde e tomado pelas mães como único ou principal<br />

meio para saúde/alta hospitalar (este ponto será mais b<strong>em</strong> desenvolvido no próximo<br />

t<strong>em</strong>a).<br />

Ansiosas para que a criança comesse logo, não montavam setting para a<br />

alimentação, ou seja, não anunciavam a atividade n<strong>em</strong> o alimento, muitas vezes não<br />

estavam posicionadas de frente para a criança, dificultando as trocas de olhares.<br />

Também não deixavam que a criança interagisse com o alimento, pois t<strong>em</strong>iam a sujeira<br />

e o desperdício. Além disso, os utensílios para alimentação oferecidos pelo hospital<br />

(colher e copo plásticos) pareciam inadequados ao tamanho da boca da criança e não<br />

favoreciam a exploração do alimento. Assim, pouco se percebia essa atividade como<br />

prazerosa, porém penosa e angustiante.<br />

A hospitalização pareceu representar experiências diferentes para as díades.<br />

Com a saída da mãe para outra atividade fora da enfermaria (refeições, banho), as<br />

crianças reagiam basicamente de dois modos distintos. Algumas reclamavam<br />

continuamente, solicitando a mãe, s<strong>em</strong> conseguir se distrair com qualquer outra<br />

atividade, enquanto outras ficavam inertes, paralisadas ou acostumadas com a ausência<br />

materna. Nenhuma das mães costumava verbalizar sua saída ao filho.


179<br />

Algumas díades passaram a interagir de modo diferente ao longo desse<br />

processo, evidenciando-se a construção de novos significados às manifestações do<br />

parceiro, anteriormente não lidas ou sequer percebidas como sinais interacionais.<br />

Evidenciou-se a descoberta de um outro que parecia desconhecido ou afastado. Destacase<br />

o reflexo desse movimento na retomada de aspectos da parentalidade e filiação.<br />

A evolução de Renata e Magdala aponta o movimento de passividade para<br />

atividade, onde Renata passou a reclamar a presença materna, colocando-se como<br />

d<strong>em</strong>andante. Renata passou a reconhecer a ausência e a presença da mãe, chegando até<br />

a montar uma brincadeira s<strong>em</strong>elhante ao fort-da descrito por Freud. 33<br />

A ausência materna que antes parecia ser vivenciada por Renata como<br />

“susto” pela ausência abrupta do objeto, aos poucos, com a experiência de ver o<br />

afastamento e o retorno materno no hospital, pôde ser resignificada.<br />

Caminho distinto foi observado no caso de Ian e Bela. O recorte a seguir<br />

ilustra como a criança conseguiu, ao final da internação, brincar só, “desgrudando-se”<br />

da mãe, pelo menos no aspecto lúdico.<br />

(Diário de campo) Bela dorme na cadeira e Ian observa o movimento da enfermaria<br />

sentado no berço, sorrindo. Quando Bela acorda, ele pega a luva inflada que estava no<br />

berço e brinca com a mãe e comigo, jogando a luva para ela e para mim, muito<br />

sorridente, gargalhando. Ele parece melhorar a olhos vistos a interação com a mãe e com<br />

o ambiente, passando a iniciar uma brincadeira, pois antes esperava pela mãe. Por fim,<br />

no dia da alta conseguiu brincar só no berço enquanto sua mãe estava fora da enfermaria,<br />

almoçando.<br />

Pandora passou a estranhar as pessoas, querendo só a mãe:<br />

- Pandora estranha alguém<br />

Ela... Agora ela ta estranhando, né, porque hospital, né, só fica com a mãe... vê só a mãe<br />

na frente, né, não t<strong>em</strong> ninguém pra ficar com ela. Mas s<strong>em</strong>pre quando ela (...) é pra eu,<br />

pra avó dela e pra uma vizinha que t<strong>em</strong> lá, que cuida dela também, dá as coisa a ela...<br />

gosta muito dela, aí ela vai. (Mina)


180<br />

Mariana passou a “pedir” para ser reconhecida por Ana Maria, “pedindo”<br />

colo:<br />

(...) às vez ela bota pra chorar, eu vou ajeitar ela, ela num quer, aí às vezes ela quer que<br />

eu pegue ela, num sei se ela ta a fim de ir pra fora, assim, andando, ela quer que eu pegue<br />

ela e fique andando com ela ou senão pegue ela no colo, às vezes quando eu pego mesmo<br />

ela, sentada ou <strong>em</strong> pé, ela fica quieta, querendo ir pro colo um pouco, porque também<br />

ficar naquela cama, só na cama também, fica com o corpo doído. (AnaMaria)<br />

Evitação e defesas contra entradas externas (João não aceitava outras<br />

comidas, n<strong>em</strong> a voz de outros nos primeiros dias, Renata não aceitava o olhar e toque<br />

externo), inibição das atividades exploratórias (Renata, Gabriel), tendência da criança<br />

à auto-suficiência (o incessante chupar de dedo de Fátima), estímulo parental à autosuficiência<br />

do filho (Magdala, Rosácea), foram identificados por Almeida 73<br />

como<br />

indicadores de risco/vulnerabilidade frente a probl<strong>em</strong>as de alimentação.<br />

Esses comportamentos foram modificados <strong>em</strong> algumas díades ao longo da<br />

hospitalização. Eva, por ex<strong>em</strong>plo, passou a explorar e valorizar mais os sinais<br />

interacionais da filha, aspecto este valorado por Almeida 73<br />

como indicador de<br />

resiliência.<br />

A retomada da parentalidade mediante os sinais interacionais da criança e a<br />

narratividade construída nas entrevistas pareceu ser compreendida/<strong>em</strong>preendida pelas<br />

mães mediante diferentes aspectos: seja pela via do exercício (1), da experiência (2) ou<br />

da prática (3), geralmente envolvendo culpa e reparação.<br />

(1) Aí eu tenho que ir pra catequese pra me preparar pra me batizar... (...) Aí quando eu<br />

chegar lá eu vou estudar também. É por isso, menina, que eu quero ir <strong>em</strong>bora logo, eu<br />

tenho que estudar pra me batizar pra tirar os documentos... pra eu viajar eu preciso dos<br />

documentos, não posso viajar s<strong>em</strong> os documentos. Pra eu viajar com ele (Gabriel) tenho<br />

que levar os documentos da minha outra irmã, aí isso é ruim, né! Eu já queria levar o<br />

meu mesmo. (Maria)


181<br />

(2) - E aquilo que sua mãe falou: “Fabrício é meu, Pandora é de Mina”<br />

(Ri) É dela mesmo, ele.<br />

- E se um dia você se casar<br />

Mas ela diz assim, mas ela dá. (ri) Mas eu levo só essa (Pandora).<br />

- É Você deixaria Fabrício com sua mãe<br />

Deixo! (Soa determinação)<br />

- Por quê<br />

Porquê quando eu descansei dele eu dei a ela.<br />

- Mas ela mesma não queria que você tivesse ele, não foi<br />

Não, foi essa (Pandora). Foi essa que ela num queria que eu tivesse.<br />

(3) Eu vou cuidar b<strong>em</strong> dela agora, né!<br />

- E você já não cuidava b<strong>em</strong> antes não<br />

Cuidava, né, mas assim, sei lá... Não deixar ela assim, na mão dos outros. (...) Eu ia pra<br />

dança, quando minha mãe queria ir, eu pagava pra ficar, pros outro ficar com ela, pra eu<br />

sair. Eu pagava cinco Reais, dois, pra eu sair, deixava com minhas amiga... Aí a gente<br />

nunca sabe o que elas faz, né, passava a noite com as criança, né! Aí agora eu não faço,<br />

não vou fazer isso mais não. (...) Vou cuidar dela b<strong>em</strong>, vou parar de sair... Parar de sair<br />

mais... Não deixar ela com ninguém mais. (Mina)<br />

(3) - E seus planos são...<br />

(...) Chegar <strong>em</strong> casa, ajeitar ele b<strong>em</strong>, cuidar dele.<br />

- O que é “ajeitar, cuidar b<strong>em</strong> dele”<br />

Cuidar b<strong>em</strong> dele, porque de primeiro eu não ajeitava b<strong>em</strong> ele, não cuidava não.<br />

- E agora, ajeitar ele, cuidar b<strong>em</strong> dele vai ser fazer o quê<br />

Ah!... Agora vai ser dar comidinha de panela... (Maria)<br />

(3) - Mas a internação, você acha que ajudou ou atrapalhou a interação, a relação entre<br />

vocês<br />

Acho que ajudou mais porque eu passei esse t<strong>em</strong>po todinho mais junto dela, né, tendo mais<br />

cuidado com ela, mais do que eu já tinha, aí ficou mais melhor! (Ri) (...) Foi uma amostra<br />

pra eu cuidar mais do que eu cuidava dela, como eu to dizendo, dar mais atenção a ela,<br />

né, que eu num dava muita (...) Agora vai ser diferente, num vai ser mais como era, vou<br />

dar mais atenção mais a elas do que ao serviço. Depois que ela tiver dormindo, eu vou,<br />

faço as coisa. (...) Assim, porque quando ela tava mais doentinha, mulé, olhava pra mim<br />

assim, muito doentinha mesmo, mulé, e eu só chorando perto dela, pedindo a Deus que<br />

num levasse minha filha, muita coisa, mulé! Pedia desculpa assim, que eu achava assim,<br />

será que foi porque eu num cuidei muito b<strong>em</strong> dela, que eu deixava ela dormindo, ela se<br />

acordava e ia brincar mais a outra e eu num ligava muito, ia fazer mais serviço do que dar<br />

atenção a ela, né! Aí eu “ai meu Jesus, será que foi isso”. (Fala muito baixinho, quase


182<br />

sussurrando) Mas agora os serviço fica pra lá. (Ri) (...) Quando chegar lá eu vou<br />

conversar com ele, a gente t<strong>em</strong> que comprar a comida certinho, mas, oh mulé, é porque às<br />

vezes a gente num t<strong>em</strong> condições de comprar não, entendeu Por mais que a gente queira,<br />

mas... (Eva)<br />

Ana Maria parecia, através das fotos, reconstruir um pedaço da sua história,<br />

b<strong>em</strong> como a da filha, colocando-se como filha e como mãe. Segundo Celia, 101 quando<br />

entend<strong>em</strong>os o processo de filiação da mãe para com seu filho (quando a mãe foi<br />

atendida na sua regressão), é que ela consegue assumir um estágio mais maduro e tentar<br />

assumir sua maternag<strong>em</strong>.<br />

(Diário de campo) Depois de ver a filha vomitando e receber uma bronca da auxiliar, Ana<br />

Maria teve uma crise de choro, dizendo que não queria mais tirar foto com nenhuma<br />

auxiliar. Deixei-a chorar, pois achei que ela realmente precisava botar pra fora e depois fui<br />

lá conversar com ela. Disse-lhe que ela precisava e merecia chorar, devido à extr<strong>em</strong>a<br />

pressão e responsabilidade pelas quais está passando. Emprestei a ela um significado meu,<br />

dizendo que vê-la chorar significava vê-la reconhecendo e enfrentando o medo, a dor e a<br />

incerteza. Depois disso, Ana Maria tomou Mariana nos braços e saiu da enfermaria.<br />

Abraçava e beijava a filha de modo absolutamente sublime e dedicado, olhando e<br />

acariciando carinhosamente a filha. Eu disse a ela que voltaria mais tarde, depois que ela se<br />

recuperasse, e perguntaria novamente se ela gostaria de tirar as fotos que havia pedido<br />

antes – com as auxiliares. Mais tarde, voltei à enfermaria e Ana Maria estava melhor, b<strong>em</strong><br />

como Mariana. Tiramos várias fotos.<br />

A criança renarcisando a mãe no hospital. Celia 101 destaca o potencial de<br />

interação da criança. Essa competência é referida como fator terapêutico na conquista da<br />

nova etapa na qual se inscreve a parentalidade.<br />

Destacando a questão recíproca das interações, Camarotti 54 aponta que a<br />

mãe também se vê refletida no filho, renarcisada ou, pelo contrário, não reconhecida <strong>em</strong><br />

sua função ou <strong>em</strong> seus desejos. Com exceção de Rosácea, as d<strong>em</strong>ais mães pareciam<br />

cada vez mais renascisadas.


183<br />

(...) Ela já ta voltando como era antes, né, a falar comigo desse jeito enrolado (refere-se<br />

aos balbucios da criança), pra eu entender as coisa, né! (...) Ela ta falando mais. A<br />

primeira coisa quando ela começou a ficar melhorzinha, ela chamou logo “papai”, e<br />

“mamãe”. E agora ela já ta fazendo “hã”, as mesma coisa que ela fazia t<strong>em</strong>pos atrás.<br />

(Eva)<br />

(Diário de campo) (...) acrescentou que Fátima não quis ir para o pai quando ele veio no<br />

fim-de-s<strong>em</strong>ana, ao que Eva chamou de “curioso e engraçado”, pois diz que o marido<br />

s<strong>em</strong>pre teve mais jeito com as crianças, brincando mais com elas, e ela, Eva, ficou se<br />

sentindo mais “mãe” diante dessa recusa da criança. Fátima também está comunicativa,<br />

balbuciando mais, pedindo mais explicitamente comida à mãe. Acho que a comunicação<br />

entre mãe e filha ficou mais ativa, fluida, como se algo do início da maternag<strong>em</strong>, da<br />

interação inicial entre as duas tivesse sido retomado.<br />

- Você acha que esse t<strong>em</strong>po que vocês ficaram aqui no hospital afetou a forma de Pandora<br />

se comunicar com você<br />

... Não (fala baixinho). Agora ela só vai quere saber de mim, agora, não vai querer ir pra<br />

ninguém. Ont<strong>em</strong> ela não queria ir pra avó.<br />

- Você acha bom ou ruim isso<br />

Eu acho bom! (Ri) ... Pro mode de num ficar que n<strong>em</strong> o outro, só querer saber da avó.<br />

- Você pensa procurar o pai dela quando chegar lá<br />

(Balança a cabeça negativamente) ... Sei n<strong>em</strong> quando eu chegar lá vou deixar ele ver ela...<br />

Quando eu chegar lá vou esconder ela pro mode dele não ver ela.<br />

- Você não quer que ele veja ela<br />

(Balança a cabeça negativamente)<br />

- E Fabrício (filho mais velho)<br />

Fabrício pode ver, que Fabrício já conhece ele, gosta dele.<br />

- Será que você t<strong>em</strong> medo que ele goste dela também<br />

(Balança a cabeça afirmativamente) Eu tenho medo que ela goste dele.<br />

(Diário de campo) Bela é jeitosa e cuidadosa, comentando que t<strong>em</strong>e que Leandro (outra<br />

criança internada) se engasgue: “com o meu (filho) é fácil, ele abre a boca e engole, mas<br />

com ele (Leandro) é mais difícil...”. Ian ficou desconfiado, depois chorou quando Bela<br />

colocou Leandro no colo. Ian chorava e dizia “mama, mama, mama”, como eu nunca<br />

havia visto ele dizer antes. (...) Depois que Bela saiu para almoçar, Ian continuou<br />

chorando e pedindo por sua “mama, mama”. Ele chorou, chorou e chorou, esperneou,<br />

resmungou, tussiu, s<strong>em</strong>pre chamando pela mãe.


184<br />

Bela parecia renarcisada não só pela melhora do filho, mas também pela<br />

atenção que recebia da equipe e do marido com a melhora de Ian.<br />

Quanto mais (peso) ele ganhar melhor, né! Assim, porque pelo menos o pai vê a atenção<br />

que eu to dando mais a ele, né, porque ele dizia que eu era muito relaxada, que num dava<br />

comida ao menino e aquilo tudo. Aí pra ele ver, inté ele ta mais bonitinho, mais gordinho,<br />

num sei o quê, eu digo “Claro! To cuidando b<strong>em</strong> do meu filho”. ... (Bela)<br />

No que concerne à interação da díade entre si e com a pesquisadora,<br />

observa-se como esses encontros, interações, narrativas, mesmo que não-verbais,<br />

parec<strong>em</strong> ter influenciado na construção de uma terceira história.<br />

Em todos casos parece ter havido algum tipo de mudança nas interações<br />

mãe-criança-alimento-pesquisadora-hospital. Cogita-se que de algum modo o processo<br />

de pesquisa, a relação intersubjetiva díade-pesquisadora possa ter auxiliado na criação<br />

dessa terceira história, na subjetivação desses sujeitos, promovendo certa melhora na<br />

interação e compreensão do diálogo mãe-criança. Por questões éticas, <strong>em</strong> alguns casos,<br />

depois de finalizadas as entrevistas e filmagens, a pesquisadora se viu compelida<br />

consciente e inconscient<strong>em</strong>ente, a intervir (não no sentido psicanalítico do termo)<br />

ativamente no diálogo de algumas dessas díades, para além dos objetivos da pesquisa.<br />

Isso ocorreu devido à dificuldade da psicóloga do Serviço <strong>em</strong> atender a grande d<strong>em</strong>anda<br />

de casos, ou mesmo <strong>em</strong> decorrência da criação de d<strong>em</strong>anda de algumas mães para com<br />

a pesquisadora.<br />

Questiona-se se essa atitude, associada à própria internação e à participação<br />

da mãe na pesquisa teve repercussões sobre o processo de resgate e proteção do<br />

funcionamento materno-filial pós-hospitalização.<br />

Gomes & Mendonça 91 destacam que essas narrativas pod<strong>em</strong> ser vistas como<br />

formas de expressão da interação mãe-pesquisadora, interação mãe-comunidadesociedade-cultura,<br />

num movimento dialético, co-construído.


185<br />

Golse 14 esclarece que através do estilo interativo que cada criança induz nos<br />

adultos, existe uma maneira utilizada por ela de “contar” algo de sua história precoce,<br />

numa mistura entre sua parte pessoal (seu equipamento próprio) e traços da sua história<br />

precoce (inter e transgeracional). Esse movimento provoca no adulto um tipo de<br />

“indução repetitiva”, através do viés daquilo que a criança o faz experimentar,<br />

influenciando seu estilo de interação habitual. 14<br />

Golse 14 l<strong>em</strong>bra que foi justamente o reconhecimento desse movimento que<br />

suscitou acirrado debate entre Lebovici e Cramer a respeito da capacidade transferencial<br />

do bebê. Lebovici 12 posiciona-se, pontuando que o bebê pode transferir diretamente, e<br />

que quando for modificado por essa dinâmica, ele próprio modificará seus pais, atuando,<br />

de certo modo, como “terapeuta” Cramer, 22 ao contrário, defende que quando a mãe for<br />

tocada, algo mudará no bebê.<br />

Com base <strong>em</strong> Golse, 14 uma questão pode ser colocada: já que as crianças<br />

nos contam suas histórias e contam a si mesmas (duplo movimento da narratividade),<br />

será que conseguimos compreender esse movimento numa pesquisa como esta ou no<br />

dia-a-dia clínico do hospital Será que permitimos à díade/sua família, contar sua<br />

história, facilitando a inscrição de uma terceira história Ou como questionava Leboyer,<br />

o recém-nascido não fala ou somos nós que não o escutamos<br />

“Para se construir, para nascer e para crescer, mesmo os bebês têm<br />

necessidade de uma história – e não somente de uma história biológica ou genética,<br />

mas também de uma história relacional.” (2003: 73) 14<br />

Golse 14<br />

destaca ainda que o terapeuta (acrescento, de qualquer<br />

especialidade), enquanto objeto terceiro, deve dar vazão à sua narratividade, de modo a<br />

auxiliar as díades/tríades a escrever uma história que possa dar coerência existencial ao<br />

sofrimento, recolocando as dificuldades da criança <strong>em</strong> perspectiva com sua biografia e


186<br />

com aquela de seu grupo familiar, social e cultural, numa co-construção ativa. É a partir<br />

dessa inscrição que a criança responderá e poderá se re-inscrever, pois está inscrita no<br />

mundo materno/parental. A criança precisa não só que relat<strong>em</strong>os a ela sua história, mas<br />

que possa aos poucos, ela mesma, aprender a relatar sua própria história, si mesma. 14<br />

Nesse sentido, destacam-se os recortes:<br />

(Diário de campo) Ana Maria pediu fotos com outras profissionais da equipe (doutoranda,<br />

nutricionista, etc, todas mulheres). (...) Veste Mariana como qu<strong>em</strong> veste uma boneca e a<br />

retira do berço para a sessão de fotos, mesmo vendo que a criança está molinha. Disse<br />

que quer mostrar a Mariana algo sobre o período no hospital, um dia quando ela crescer.<br />

Vi-me obrigada a fazer um comentário, uma sugestão, na verdade. Sugeri que ela não<br />

esperasse que Mariana crescesse, que contasse e mostrasse as fotos, a história da<br />

internação desde agora, garantindo o presente, plantando o futuro. Ana Maria nada disse,<br />

apenas deixou a criança no berço e desceu. (...) Ana Maria parece fechar os olhos para o<br />

presente, só pensando nesse “passado-futuro”, pois as fotos parec<strong>em</strong> representar aquilo<br />

que ela não teve: fotos de sua própria infância. Ana Maria me mostra o álbum com fotos<br />

de Mariana, Bruno (irmão de Ana Maria), a falecida Mariana (irmã de Ana Maria), etc.<br />

Reparo que não há fotos de Ana Maria quando bebê, n<strong>em</strong> quando criança pequena,<br />

apenas com uns 10-12 anos, ao contrário de seus irmãos e de Mariana, sua filha. Estimulo<br />

Ana Maria a mostrar o álbum a Mariana e a contar a história desde o começo, incluindo o<br />

pai dela (também não t<strong>em</strong> fotos dele no álbum...).<br />

(...) conheci meu vô, porque até hoje num conheço minha avó, n<strong>em</strong> tenho as foto, n<strong>em</strong><br />

nada. Minha mãe não t<strong>em</strong> foto dela não, porque tinha uma foto num quadro b<strong>em</strong> grandão,<br />

aí foi passando pras mão das minhas tia e ninguém sabe qual é a tia que ta com ele. (Ana<br />

Maria)<br />

O que eu posso fazer, quando ela ficar boa eu vou fazer de tudo pra ela ficar boa. Só isso.<br />

- Quando ela ficar boa<br />

Sim, andar com ela, fazer de tudo que eu quero fazer. Quero dar amor, né Eu dou amor,<br />

Angélica sabe, ela sabe que eu to aqui, mas quando ela for pra casa é que eu vou poder<br />

dar b<strong>em</strong> muito amor pra ela, b<strong>em</strong> muito. ... Aqui eu dô, mas num adianta.<br />

Quando ela crescer eu vou dizer tudinho a ela! (Ri) É isso. “Deixe você crescer que eu<br />

vou dizer tudinho, viu! Como foi sua vida.” Eu digo assim.<br />

- E por que não dizer agora<br />

Quando ela crescer eu digo, agora ela num entende ainda não, é muito novinha, ta muito<br />

doentinha. Depois eu digo, né (Rosácea)


187<br />

(Diário de campo) Subi com Magdala e Renata à brinquedoteca. Renata ficou encantada<br />

com a brinquedoteca, como se nunca tivesse ido lá, apesar das quatro sessões anteriores<br />

de filmag<strong>em</strong>. Brincou tanto e com tanto gosto com o cavalinho! Até falou “me dá”! (...)<br />

Quando desc<strong>em</strong>os, puxei Magdala para um canto e lhe mostrei a filmag<strong>em</strong>, destacando<br />

que aquela era a filha que ela um dia acreditou que não morreria, e que de fato essa<br />

criança estava viva. Ela ficou animada com as imagens, orgulhosa da evolução da filha,<br />

mostrando às outras mães, rindo ao ver o filme.<br />

Este último episódio vivido com Renata e Magdala ilustra como a filmag<strong>em</strong><br />

facilitou a construção de uma terceira história, onde a mãe foi incentivada a falar sobre<br />

uma imag<strong>em</strong> filmada, para que expressasse seus pensamentos e sentimentos, retomando<br />

aspectos supostamente latentes da parentalidade.<br />

Houzel 42 aborda a “parentalidade parcial”, conceito que r<strong>em</strong>ete à porção que<br />

os pais pod<strong>em</strong> assumir, pelo menos <strong>em</strong> parte, com relação a algum eixo da<br />

parentalidade (exercício, experiência, prática), mediante auxílio da equipe de saúde,<br />

garantindo a segurança da criança e melhorando a competência dos pais. Deve-se buscar<br />

valorizar essas parentalidades parciais, permitindo diminuir a ferida narcísica dos pais, e<br />

favorecer a construção, no mundo interno da criança, de imagos parentais de boa<br />

qualidade, b<strong>em</strong> como a prática mais segura da parentalidade. 42<br />

Retomando aspectos anteriormente abordados, ao cuidar da criança, a mãe<br />

institui entre ela e o filho um estilo interativo específico dessa díade, porém resultante<br />

da história pessoal dela, mãe (fruto do bebê que foi um dia, das suas interações<br />

precoces, expectativas, e do adulto que atualmente é), e do encontro com seu filho (este<br />

com suas características interativas próprias, com sua própria história). 9,12,14<br />

Assim, a mãe faz seu filho funcionar à imag<strong>em</strong> de suas próprias<br />

representações infantis, induzindo na criança projeções e movimentos identificatórios<br />

ou contra-identificatórios. Por outro lado, a criança tenta fazer o adulto funcionar<br />

segundo suas primeiras imagos interativas. 14 Esse movimento r<strong>em</strong>ete à plasticidade da


188<br />

criança, na medida <strong>em</strong> que ela se apropriará dessa capacidade inicialmente oferecida,<br />

baseada na rêverie materna, porém repetindo ou não a certos mandatos inter e<br />

transgeracionais, b<strong>em</strong> como projeções, mostrando-se como “historiadora da própria<br />

história que ela mesma contribui a escrever” (2003: 73). 14 Perceba-se que, segundo<br />

Fonagy, história não obrigatoriamente é destino.<br />

Almeida 73 cita que a capacidade do bebê de “reavivar” a relação com a mãe,<br />

b<strong>em</strong> como a permeabilidade das projeções maternas diante do impacto da realidade, da<br />

experiência com o bebê real, são indicadores de resiliência frente a probl<strong>em</strong>as de<br />

alimentação infantil.<br />

Dessas duas histórias deve nascer uma terceira, enraizada nas duas<br />

primeiras, mas que pode funcionar como um espaço de liberdade. 14 Golse 14 destaca<br />

ainda que a narratividade, fruto da criação interativa, ordena os processos de ligação e<br />

t<strong>em</strong> função anti-traumática. “Não poder contar, não poder se contar, não somente se<br />

soma ao traumatismo, mas é um traumatismo <strong>em</strong> si.” (2003: 104) 14 A edificação da<br />

narratividade da criança se inicia na forma pré-verbal, sendo continuada na forma<br />

verbal, a partir da interioração progressiva do test<strong>em</strong>unho e da narração do outro. 14 - X<br />

Assim, João passou a aceitar outras comidas, e Izabel reconheceu que o filho<br />

poderia comê-las:<br />

(...) Até na segunda de tarde lá, ele não sossegava, não tomava n<strong>em</strong> suco e n<strong>em</strong> comida,<br />

assim, n<strong>em</strong> o engrossante no mingau. Mas quando foi na terça-feira ele já pegou um<br />

pouquinho de mingau, na base de dois dedo e pouquinho já. Depois quando chegou aqui <strong>em</strong><br />

cima aí as menina me deu um pouquinho de mingau, eu dou a ele dois dedo, três dedo, ele<br />

toma todinho. (...) A sopa num era um gosto que ele sabia, porque ele só tomava leite e pão<br />

<strong>em</strong> casa. Mas ele aceitou b<strong>em</strong>, né, que ele gostou, ele tava comendo. Porque da primeira que<br />

veio de ont<strong>em</strong> ele num gostou muito, mas a da tarde ele já comeu mais e hoje ele comeu toda.<br />

(...) Deu pra ver que ele come, que gosta de comida, um bocado de coisa. A sopinha ele<br />

gostou, o feijão, a verdura, a comidinha assim com cenoura, arroz e feijão ele não gostou


189<br />

porque ele não comeu. Aí só quis depois que passou no liquidificador, aí ele comeu. (...)<br />

Agora às vezes vinha uma comida doce, jerimum com açúcar, mas nenhuma das vezes ele<br />

comeu, não teve jeito.<br />

Bela parecia resignificar a fome, sendo capaz de suportar a “fome” do filho:<br />

(...) agora aprendi: deixei ele com fome e agora ele come.<br />

Do mesmo modo, Bela pôde, aos poucos, separar-se de Ian, deixando que<br />

ele olhasse o mundo além da mãe, s<strong>em</strong> t<strong>em</strong>er perdê-lo ou “dá-lo” para outras “sogras”.<br />

- Como é que ele t<strong>em</strong> reagido quando você sai para se alimentar, o que você faz<br />

Ele fica chorando. Aí eu tenho que deixar ele chorando pra ir tomar café.<br />

- Então você t<strong>em</strong> suportado, t<strong>em</strong> conseguido descer agora, mesmo vendo ele chorar<br />

Suporto. (...) Antes ficava com fome, fraca, s<strong>em</strong> poder comer. Eu via ele comer e com pena<br />

dele, de deixar ele só, né Aí eu desço, deixo ele lá chorando, vou fazer o quê, né, se t<strong>em</strong><br />

que deixar mesmo. Se eu não comer como eu ficar, se eu não desço<br />

(Diário de campo) Aparece outra criança na porta, que t<strong>em</strong> uns círculos de vidro, e Ian<br />

fica “paquerando” com a criança do outro lado da porta, dizendo “ei, ei”, parecendo<br />

buscar contato social à medida que se adaptava à sala e à medida que eu fui conquistando<br />

a atenção da mãe para mim.<br />

(Diário de campo) Ian sorriu para mim, me chamando (“ei, ei”), fazendo também gesto<br />

com as mãos, apontando para o meu colar. Ele está cada vez mais interativo, as<br />

brincadeiras surg<strong>em</strong> rápido e espontaneamente com ele. Manuseou o colar no meu<br />

pescoço mesmo, com muito cuidado e interesse. (...) Iniciou uma brincadeira de escondeesconde<br />

comigo, arrudiando minha cadeira, procurando o meu rosto e se escondendo,<br />

sorrindo e balbuciando suav<strong>em</strong>ente.<br />

Assim, esse segundo t<strong>em</strong>a traduz a percepção e vivência dos sinais<br />

interacionais e seu papel no auxílio à díade <strong>em</strong> sua adaptação à hospitalização. Destaca<br />

também a narratividade, decorrente da experiência de hospitalização (processo de<br />

internação e participação na pesquisa), auxiliando na percepção de si e do outro e seu<br />

X Golse 6 retoma conceitos de Stern, 20 defendendo que a <strong>em</strong>ergência de um si-subjetivo – entre sete e 18<br />

meses, e do si-verbal aos 18 meses.


190<br />

reflexo na retomada e resignificação de aspectos da parentalidade. Ilustra que o<br />

adoecimento e a hospitalização pod<strong>em</strong> favorecer a interação mãe-filho, atuando como<br />

fatores terapêuticos na retomada do vínculo e na experiência e prática da parentalidade.<br />

A escuta e interpretação materna às manifestações do filho só é possível<br />

quando existe um investimento da mãe no corpo da criança, transformando um corpo de<br />

sensações <strong>em</strong> um corpo falado, 45 interpretando esses sinais corporais como atos de fala,<br />

trocas interativas de um sujeito-interlocutor. 11,38,39,41<br />

Destaca-se a importância da promoção de prazer nas trocas mãe-filho,<br />

principalmente <strong>em</strong> momentos cruciais à interação da díade, como ao longo da doença e<br />

hospitalização, promovendo-se a transformação “corpo de sensações - corpo falado”, 45<br />

alimentado não só pelo pão, mas também ora pelas identificações maternas, ora pelas<br />

manifestações explícitas da criança. 38 É necessário que a mãe experimente prazer no<br />

contato com o corpo do filho, nomeando comportamentos, olhares, balbucios, funções e<br />

sensações desse corpo infantil tão sofrido com a doença.<br />

4.4 T<strong>em</strong>ática 3 – Desnutrição e interação mãe-criança: significados criados <strong>em</strong><br />

relação à doença<br />

O t<strong>em</strong>a r<strong>em</strong>onta aos significados criados diante do complexo processo de<br />

adoecimento, ilustrando a influência da interação mãe-criança e equipe de saúde na<br />

compreensão da desnutrição.<br />

Nenhuma das mães pareceu ter identificado a desnutrição como doença,<br />

apenas considerando como processo mórbido as intercorrências agudas e infecciosas<br />

(diarréia, pneumonia). Não pareciam associar o ed<strong>em</strong>a à desnutrição, uma vez que esta<br />

foi, unanim<strong>em</strong>ente referida como sinônimo de baixo peso ou perda de peso, quase como


191<br />

uma constante da população nordestina. Diante da dificuldade materna <strong>em</strong> identificar os<br />

sinais dos filhos como resultantes de um processo patológico próprio da desnutrição<br />

infantil, cogita-se que a desnutrição afetiva/simbólica dessas mães tenha dificultado a<br />

identificação dos sinais infantis como integrantes de uma patologia, talvez identificadas<br />

com o estado de desnutrição afetivo/simbólico da criança. Cogita-se que a desnutrição<br />

figurasse, para algumas mães, como algo próprio do nordestino, uma identidade<br />

familiar, grupal.<br />

Toda vida essa menina foi assim! Desde que essa menina nasceu que é desse jeito, choxinha<br />

mesmo, s<strong>em</strong> peso, é do calibre mesmo dela, assim mesmo como a senhora! (refere-se à<br />

pesquisadora). ... (Magdala)<br />

Destaca-se também que nenhuma das mães pareceu se implicar afetivamente<br />

nos significados da doença. Talvez o fato de não reconhecer<strong>em</strong> a desnutrição como uma<br />

doença estivesse na ord<strong>em</strong> de uma defesa, uma vez que essa doença apontaria para a<br />

culpa materna/paterna <strong>em</strong> não poder “sustentar” o filho.<br />

Em investigação sobre o discurso de mães moradoras da Região<br />

Metropolitana de Belo Horizonte que perderam seus filhos por causas consideradas<br />

evitáveis (diarréia, desnutrição e pneumonia), Hadad et al 108 destacam que as mães<br />

utilizavam o termo “fraqueza” tanto para referir a constituição física da criança, como o<br />

estado nutricional. Assim, a criança ou nascia fraca (natureza da criança, algo prédeterminado)<br />

ou se tornava fraca (a doença enfraquecendo a criança, diminuindo seu<br />

apetite).<br />

Dentre os significados criados ao adoecimento, destacam-se: transmissão<br />

intra-uterina; leite artificial oferecido precoce e inadequadamente como causador dos<br />

sintomas infecciosos; an<strong>em</strong>ia; reumatismo, probl<strong>em</strong>a renal (devido ao ed<strong>em</strong>a); “tipo de<br />

câncer” – vide tabela com significados criados para a doença.


192<br />

Assim como no trabalho de Frota & Barroso, 109<br />

as mães não pareciam<br />

considerar a desnutrição como algo que pudesse comprometer o crescimento e<br />

desenvolvimento infantil. Os autores relacionaram esse fato ao nível de escolaridade da<br />

mãe (abandono da escola na adolescência, falta de perspectiva de <strong>em</strong>prego). 109<br />

- Você acha que o fato dele estar desnutrido teve ou t<strong>em</strong> alguma conseqüência no<br />

desenvolvimento dele<br />

... Não assim, no desenvolvimento dele não, né Só assim, que ele ta, ele tava vomitando,<br />

com diarréia, aí o peso dele que abaixou, mas o desenvolvimento dele ta muito b<strong>em</strong>, muito<br />

b<strong>em</strong> ele ta. (Bela)<br />

A pesquisa atual aponta não só para a relação sugerida por Frota &<br />

Barroso, 109 mas também para as possíveis projeções maternas na criança. Cramer 22<br />

destaca a potência considerável das projeções massivas que algumas mães faz<strong>em</strong> sobre<br />

seu filho, acarretando patologias funcionais na criança. Esse fato também foi registrado<br />

por Zavaschi et al 63 e por Almeida, 73 onde esta identifica projeções maternas (iminência<br />

de morte, culpa e hostilidade) como um indicador de vulnerabilidade frente a probl<strong>em</strong>as<br />

de alimentação infantil.<br />

Talvez projetando algo seu na criança, Maria atribuiu a doença ao<br />

afastamento do marido.<br />

Ele (Gabriel) ficou... acho que ele ficou triste... eu pensei “ele adoeceu também por modo<br />

do pa”’, sabe, eu fico pensando... Muito pegado com o pai, às vezes quando eu falo com<br />

ele no telefone eu digo a ele, eu digo “olhe Tonho, o menino tá doente por modo de tu, eu<br />

disse que tu não fosse pra São Paulo porque o menino é muito pegado a tu”..., dizia a ele.<br />

Numa importante relação projetiva (projeção de seus t<strong>em</strong>ores diante da<br />

fome, perda da criança, etc), Bela foi pontuada (limite) através das regras do hospital,<br />

b<strong>em</strong> como recebeu atenção da equipe e da pesquisadora, passando a olhar mais para o<br />

filho, projetando a atenção recebida, sendo tratada quanto à sua “desnutrição afetiva”.


193<br />

(...) Assim, porque eu me sinto diferente, né, porque eu nunca tive uma atenção assim,<br />

ninguém nunca me chamou pra conversar comigo, como que passava <strong>em</strong> casa, e a senhora<br />

foi a primeira vez, a primeira pessoa. (Ri) (Bela)<br />

- Por que você acha que ele ta diferente, assim<br />

Acho que é porque quando era <strong>em</strong> casa era muito estressado, né Eu com estresse,<br />

descontava nele. Falava gritando com ele, dava umas tapinha nele, aí eu ficava diferente,<br />

e aqui não, aqui eu to mais calma. Eu não posso dar nele. (Ri) Num falo alto com ele,<br />

porque brigaram comigo lá <strong>em</strong>baixo, “mãe, que é isso, mãe, como o seu bebê!”. (...)<br />

Porque <strong>em</strong> casa meu marido num me dá atenção, e aqui não, aqui eu converso com todo<br />

mundo, brinco com todo mundo, <strong>em</strong> casa s<strong>em</strong>pre t<strong>em</strong> que ter alguma coisa, meu marido é<br />

muito estressado, arenga muito comigo. (Bela)<br />

- Como, de que forma está sendo essa adaptação de Ian ao hospital<br />

Se apegando às pessoa, porque as pessoa dá carinho, né, atenção a ele, brinca com ele. É<br />

o que ele quer, né! (...) Aí pronto, ele quer carinho, ó, brincando. (Bela)<br />

O estudo atual não tinha como objetivo n<strong>em</strong> forneceu material suficiente<br />

para identificar se houve por parte da criança, identificação com algum aspecto materno,<br />

suficiente para contribuir para a desnutrição, como destacado no estudo de Solymos. 17<br />

Algumas mães identificaram a doença, dentre outros aspectos, a partir de<br />

alterações no estado de humor do filho, relatando inclusive “pausas” no<br />

desenvolvimento da criança. A melhora/recuperação foi identificada no mesmo sentido,<br />

associada ao “lazer”, contato social ao longo da internação, b<strong>em</strong> como ao real do corpo.<br />

Quando ela chegou tava fraca, ela só queria estar assim, deitada, tava muito inchada, só<br />

queria ficar muito t<strong>em</strong>po deitada, n<strong>em</strong> sentava, queria botar ela de pé e ela não podia,<br />

ficava toda mole. Num tava rindo, só ficava dormindo, triste.... (Eva)<br />

Ele parou de falar com um ano. (...) Acho que porque ele foi ficando fraquinho, com o<br />

sangue fraco. (...) Acho assim, que a doença criou assim como um pano, né, quando ele<br />

tinha desenvolvido e aí acabou, ele meio que esqueceu, como esquecimento, né, que ele<br />

chamava “papai” e esqueceu, “mamãe” ele esqueceu (...) E agora assim, falando assim,<br />

ele já entende só que num ta falando (Izabel)


194<br />

(Antes dela adoecer) Era gordinha, b<strong>em</strong> forte, alegre, brincava bastante, mas depois<br />

quando ela começou a inchar ficou num mais, mais inchada mesmo, num queria brincar,<br />

num era alegre. (Ana Maria)<br />

(...) ele melhorou e ta se divertindo mais, né, mais do que ele se diverte <strong>em</strong> casa, porque<br />

<strong>em</strong> casa ninguém faz isso com ele, né, e aqui o povo chama pra um canto, chama pro outro<br />

(...) e <strong>em</strong> casa só é as menina mesmo que brinca com ele ou então é o pai que chama ele,<br />

mas os outro não, n<strong>em</strong> eu posso. (...) Ta mais ativo com o povo, dando mais atenção ao<br />

povo, da risada pra um, da pra outro, porque ele num dava, falando com ele, ele<br />

brincando, assim, falando o “não”, porque ele num entende ainda o que é o “não” e o<br />

“sim”, né, a gente fala “não”, ele balança a cabeça, a gente fala “sim”, ele balança a<br />

cabeça, né! (João balança a cabeça afirmativamente, entrando <strong>em</strong> nosso diálogo). Ele<br />

num fazia isso <strong>em</strong> casa ainda não, ainda tava começando. Já ta desarnado... (Izabel)<br />

Ta b<strong>em</strong> melhor, porque ta animado, ta brincando (...), dorme melhor. (Maria)<br />

Eu to achando ela melhor. (...) É que <strong>em</strong> casa ela num comia. Os r<strong>em</strong>édio que tão dando a<br />

ela, né, que <strong>em</strong> casa eu botava o cumê a ela e ela num comia. Aqui ela ta com mais<br />

vontade de comer. (Magdala)<br />

Num falava nada. Ela n<strong>em</strong> sorria, n<strong>em</strong>... Ela ficou parada mesmo, assim... Difícil! (Eva)<br />

Animado, ta animado d<strong>em</strong>ais ele. Diferente, brinca. (...) Aí quando ele via uma bola aí se<br />

animava, mas depois... ficava pra lá, num queria mais saber. Agora não, agora, ó, chega<br />

brinca, d<strong>em</strong>ais ele. (...) Acho que ele num era assim, só queria braço, dormir... o t<strong>em</strong>po<br />

todinho. E agora não, agora ele quer brincar, quer morder, quer beliscar, quer andar,<br />

grita... (Bela)


195<br />

Quadro 5 - Significados criados pelas mães quanto à doença. IMIP, Recife, 2007<br />

Díade<br />

Maria e<br />

Gabriel<br />

A criança adoeceu devido à ausência do pai, pois era muito apegada a ele.<br />

Adoeceu porque só queria mamar, não aceitava comida de panela.<br />

A criança comia muita pipoca salgada e doces, deixando de comer comida de panela, ficando com fastio.<br />

Não estava se alimentando direito, vomitava a comida.<br />

Era gordo e de repente ficou inchado e com fastio.<br />

Adoeceu apesar de ter tomado todas as vacinas.<br />

Achava que a criança estava com probl<strong>em</strong>a nos rins/no coração/hepatite. “Pensava tudo isso, mas desnutrição eu não pensava não, não<br />

pensava que era de jeito nenhum.”<br />

Mina e<br />

Pandora<br />

Criança desnutrida é aquela que está perdendo peso.<br />

A criança adoeceu de repente, era gordinha, mas passou a só querer dormir, chorar, ficando s<strong>em</strong> comer e com diarréia.<br />

Ficou doente por causa do “olhado e vento caído”.<br />

A criança adoeceu porque sua mãe dava muito trabalho quando criança, pois era muito doente (magra).<br />

Ana Maria<br />

e Mariana<br />

A criança desnutrida é aquele que é magra.<br />

A criança era b<strong>em</strong> tratada <strong>em</strong> casa, s<strong>em</strong>pre comeu e bebeu b<strong>em</strong>, na hora, mas de repente (“da noite pro dia”) ficou inchada e com<br />

manchas no corpo, só querendo dormir, s<strong>em</strong> brincar n<strong>em</strong> rir. Era gordinha, mas passou a ficar inchada, s<strong>em</strong> querer comer direito.<br />

A criança adoeceu devido ao inchaço, pois “pegou, foi criando água por dentro, no corpo, mudando de repente”.<br />

Não achava que a desnutrição causasse inchaço, manchas e caroços no corpo, mas que fizesse a criança perder peso. A criança<br />

desnutrida, diferente da sua filha, não come b<strong>em</strong> e está “fora de peso”.


196<br />

Rosácea e<br />

Angélica<br />

A criança nasceu desnutrida, magra, s<strong>em</strong> qualquer explicação causal.<br />

A mãe achava que a criança tinha algum probl<strong>em</strong>a, mas não sabia antes da internação.<br />

A an<strong>em</strong>ia fez a criança ficar com diarréia.<br />

O leite fez mal à criança. “O leite que não se deu com ela, né, aí fez o que fez com ela, infeccionou nela, barriga. (...) A comida que fez<br />

mal ao intestino dela.”<br />

A criança tinha alergia a algum leite, causando infecção no intestino.<br />

A comida de casa (leite e massa) fez mal à criança.<br />

A mistura dos leites artificiais deixou a criança doente, com disenteria.<br />

A criança foi “incorporando” a doença aos poucos, acrescida do “leite que também fez mal”.<br />

A criança comia pouco, não comendo o suficiente para o crescimento normal, por isso ainda não andava n<strong>em</strong> falava.<br />

Algum probl<strong>em</strong>a que a mãe possa ter tido e passado para a criança, como a an<strong>em</strong>ia e o fastio que teve ao longo da gestação, apesar de ter<br />

tomado sulfato ferroso, fazendo a criança nascer doente.<br />

Pelo fato da mãe não ter se alimentado adequadamente ao longo da gestação, devido ao “fastio”, sua barriga era muito pequena,<br />

indicando que a criança nasceria desnutrida.<br />

A mãe pode ter tido algum susto ao longo da gestação, deixando a criança doente.<br />

A criança nasceu com algum probl<strong>em</strong>a herdado da mãe ou do pai.<br />

Talvez a criança tenha nascido com an<strong>em</strong>ia, não havendo sido tratada no hospital onde nascera, terminando por adoecer dois<br />

meses depois.<br />

A an<strong>em</strong>ia e a “desintegração no intestino” (disenteria), fizeram a criança perder peso.<br />

A criança comia tudo que a mãe colocava na mamadeiras, mas ainda assim “não pegava peso”.


197<br />

A criança “pegou” algo, começando por uma gripe, tosse, secreção, catarro, o qual a criança engolia e descia para o intestino: “acho que<br />

foi pegado, porque ela começou assim, com uma gripe, aí ela tava tussindo b<strong>em</strong> pouquinho, mas tava, sabe De vez <strong>em</strong> quando ela dava<br />

uma tussidinha, aí acho que era secreção, catarro. Aí acho que ia pro intestino, o catarro. Engole o catarrinho que fica ajuntando no peito<br />

e desce pro intestino, é assim”.<br />

A criança estava com algum probl<strong>em</strong>a de inchaço ou reumatismo, ocasionando o inchaço das pernas, causando dor. “Ela ta com algum<br />

pobr<strong>em</strong>a de inchaço mesmo, algum reumatismo. Porque t<strong>em</strong> gente que t<strong>em</strong> reumatismo, né Que fica inchando a perna, que dói”.<br />

Criança desnutrida é aquela que nasce “s<strong>em</strong> peso”/perde peso, e ao invés de crescer, diminui o peso, não crescendo n<strong>em</strong> engordando.<br />

Classifica dois tipos de criança desnutrida: a que nasce magra, “choxinha e s<strong>em</strong> peso”, mas que não desenvolve doenças, e<br />

aquela que nasce do mesmo jeito, porém que desenvolve doenças, a ponto de precisar ficar internada.<br />

Bela e Ian<br />

A criança fica desnutrida porque não come direito.<br />

A primeira filha desnutriu porque ela, mãe, não estava se alimentando direito, não provendo “sustância” pelo leite do peito. Uma criança<br />

de oito meses não deveria mamar apenas, pois só o peito não a sustentaria.<br />

Ficou surpresa com o diagnóstico de desnutrição porque achava que o filho mamava b<strong>em</strong>, estava gordo e saudável, só havia passado<br />

alguns dias com febre e diarréia.<br />

Ian desnutriu porque não tudo o que ele comia, vomitava.<br />

Achava que o filho tinha verme.<br />

O probl<strong>em</strong>a da criança não era desnutrição, mas desidratação, falta de líquido, devido à diarréia e vômitos, precisando apenas ganhar<br />

peso.<br />

Magdala e<br />

Renata<br />

Não faltou alimentação ao filho, não entendo o porquê da desnutrição, pois a criança desnutrida é aquela que não come.<br />

O probl<strong>em</strong>a da criança é que comia pouco, estava com fastio e tosse, havendo sido levada ao hospital para tomar vitaminas.<br />

“Eu acho que isso num é doença pra menina ficar internada não. ... Eu podia dar lambedor <strong>em</strong> casa, lambedor de beterraba, lambedor de<br />

tomate. Que dá e fica boa. Mas ela (médica) disse que tinha que ir pro hospital, pra tratar mais...”


198<br />

Izabel e<br />

João<br />

Não achava que a criança era desnutrida porque “toda vida ela foi assim mesmo, desde que ela nasceu, choxinha. (...) É o calibre dela que<br />

ela é assim mesmo”.<br />

No entanto, achava que uma criança desnutrida “é choxinha, s<strong>em</strong> peso”.<br />

A doença do filho era “gastro”, a qual “deixa o menino magro, deixa desnutrido mesmo, ela deixa acabado o menino! Porque ela só mata<br />

quando deixa ele só o corinho e o osso. Assim, como ele tava, assim, desmagrecendo, né, cada dia que passava ia desmagrecendo mais,<br />

eu acho que ainda era ele (gastro) que tava incomodando ele. (...) No meu entendimento essa doença é quase como um tipo de câncer,<br />

t<strong>em</strong> câncer que num t<strong>em</strong> cura, né, então t<strong>em</strong> também que não t<strong>em</strong> cura. Eu acho essa doença chega igual a isso, porque enquanto a<br />

criança t<strong>em</strong> o sangue e a carnezinha, ela ta resistindo, né, e quando se acaba a carne, fica só pele e osso, vai <strong>em</strong>bora”.<br />

A “gastro” do filho não estava no corpo todo, só no intestino, ocasionando a diarréia, por isso a criança estava se recuperando. “É por<br />

causa da ferida que dá infecção, aí dá diarréia. (...) Agora quando fica somente no intestino, aí fica bom, né! Mas quando não, vai<br />

consumindo as carne, o menino vai desfalecendo, aí vai <strong>em</strong>bora.”<br />

A criança tinha também an<strong>em</strong>ia, porém diferente da an<strong>em</strong>ia que outros filhos seus tiveram. “A an<strong>em</strong>ia dele (outro filho) era muito forte.<br />

No caso, ainda era mais forte do que a desse (João), porque esse ainda ta reagindo, e o outro não. (...) Porque t<strong>em</strong> vários tipo, no caso<br />

dele (outro filho) deu convulsão. (...) Era uma an<strong>em</strong>ia diferente, porque quando os menino vinha dar os sintoma, já tava indo <strong>em</strong>bora,<br />

né!”<br />

O leite de gado, acrescido de água, ocasionava a disenteria.<br />

A mãe se culpava, achando que havia se descuidado da criança, deixando-a com as filhas adolescentes, precisando trabalhar na roça.<br />

O probl<strong>em</strong>a da criança consistia numa associação entre gastro, an<strong>em</strong>ia, antibióticos que a criança estava tomando, deixando-a mais fraca,<br />

b<strong>em</strong> como <strong>em</strong> função da diarréia persistente decorrente dos dentes que estavam nascendo,. “Só que ele tava ficando mais fraco, porque a<br />

gastro come as carne, depois teve os antibiótico e mais depois ainda os dente.”<br />

Eva e<br />

Fátima<br />

A criança era desnutrida porque estava com fastio e era magrinha, mas não reconhecia a desnutrição como uma doença. “As enfermeira<br />

que encaminhou ele pra aqui falou ‘é desnutrição’, mas não me falou qual era a doença. (...) Até hoje... Só esse que eles falaram que é<br />

desnutrição, mas não me explicam o tipo da doença, né!”<br />

Culpava-se, achando que o abortivo que havia tomado no início da gravidez ou o ambiente insalubre (produtos químicos) de onde<br />

trabalhara ao longo da gestação talvez pudesse ter “ofendido” a criança, deixando-a doente.<br />

O fumo, o excesso de trabalho e a mal-alimentação materna ao longo da gestação fizeram a criança nascer desnutrida. “Aí pronto, aí essa<br />

menina acabou e num deu sustento a ela, por isso que ela nasceu assim desnutrida.”


199<br />

As dores de cabeça e a insônia que tinha ao longo da gestação indicavam que era doente da filha: “ela na minha barriga, eu num era<br />

doente, mulé, dela”.<br />

A criança ficou doente porque não comia b<strong>em</strong>. A mãe dava comida, mas a criança só comia pouquinho. “(...) Tudo que eu desse a ela, ela<br />

comia, mas tudo de cada coisa um pouquinho de nada. (...) Ela come feijão, ela come macarrão, mas tudo de pouquinho, ela come tudo<br />

de pouquinho. Aí se ela tivesse vontade de comer as coisa, assim, uma vontade boa de comer todinho mesmo, né, ela podia até num ser<br />

desnutrida.”<br />

O fato de a criança viver com o dedo na boca, deixava-a s<strong>em</strong> vontade de comer.<br />

A criança adoeceu porque ficou 15 dias distante do pai.<br />

A criança não nasceu doente, mas estava com baixo peso e teve diarréia e vômito com o passar do t<strong>em</strong>po.<br />

Os dois meses que a criança recebeu amamentação exclusiva deixaram-na desnutrida. “(...) Ela passou uns dois meses s<strong>em</strong> tomar água,<br />

só mamando, s<strong>em</strong> tomar água, s<strong>em</strong> tomar um suco, s<strong>em</strong> tomar nada. Eu digo que é por isso que a menina desnutriu, ficou desnutrida.”<br />

Não entendia o porquê da desnutrição, pois a criança não teve nenhum medo, não caiu.<br />

A criança passou a ter diarréia depois que dois dentinhos começaram a nascer.<br />

A criança adoeceu porque dormiu num colchão no chão, “pegando frieza”.<br />

Apesar das vizinhas ter<strong>em</strong> dito que a criança estava “choxinha”, parecendo desnutrida, a mãe achava que a filha comia normal, era<br />

inteligente, sabida e bebia água à vontade. A doença veio somente depois que a criança teve diarréia e vômito.<br />

Uma criança desnutrida é magra e com baixo peso para a idade.<br />

Desnutrição é “infecção no intestino”. A criança comia, mas não “pegava peso”, perdia peso. Depois de ter tomado o medicamento<br />

passou a comer e “pegar peso”.<br />

Sabe-se que a criança está desnutrida quando passa a perder peso, ficando magra, “s<strong>em</strong> ar, s<strong>em</strong> vida”.<br />

Não sabia a causa da desnutrição, pois a criança era b<strong>em</strong> cuidada, tomava líquido, comia, era banhada, tudo na hora certa, e ainda assim<br />

desnutriu.


Corroborando a visão de Calvasina et al, 102 as narrativas a respeito do<br />

adoecimento suger<strong>em</strong> que a enfermidade é a resposta subjetiva às experiências do<br />

paciente, da família e de todo o seu relacionamento. Com base nas narrativas das mães<br />

desta pesquisa, a enfermidade parece ser decorrente não só da escolaridade materna,<br />

mas também de experiências pessoais, familiares e sociais, incluindo-se também a<br />

interação com a criança.<br />

Bela, por ex<strong>em</strong>plo, sabia que a amamentação exclusiva a uma criança de<br />

oito meses não era nutricionalmente suficiente, podendo levar à desnutrição, como<br />

ocorrido à primeira filha. No entanto, não reconhecia que isso pudesse ocasionar<br />

desnutrição a Ian, de um ano e três meses.<br />

Por que você acha que ela (filha) desnutriu<br />

Por causa disso, né, porque só tinha o peito pra dar a ela. Aí quando aparecia alguma<br />

coisa pra comer era muito difícil. Aí pronto, eu acho que ela ficou assim, por causa disso,<br />

da desnutrição, da (...) (Bela)<br />

- Você acha que a amamentação interfere na alimentação dele<br />

Naaaão. Assim, pela uma parte eu acho assim que ... interfere e outra não, né, porque às<br />

vezes ele num come mais porque fica com intenção no peito, de mamar. ... E outra não,<br />

porque ele come b<strong>em</strong>. Agora eu só queria saber por que esses probl<strong>em</strong>a que aconteceu<br />

com ele ... somente. É uma coisa que eu ainda num entendi foi isso. (Bela)<br />

Reforçando alguns el<strong>em</strong>entos dos achados de Campos et al, 16 aspectos da<br />

personalidade materna, como a baixa auto-estima, pareceram influenciar na percepção<br />

que a mãe tinha a respeito da desnutrição e do tratamento. A desvalorização da figura<br />

materna foi um aspecto identificado por Almeida 73 como indicador de vulnerabilidade<br />

frente a probl<strong>em</strong>as de alimentação infantil. Assim, para Izabel, diferent<strong>em</strong>ente de<br />

Rosácea, sua permanência no hospital foi importante à recuperação da criança.<br />

- O que facilitou e/ou dificultou a adaptação dele, de vocês ao hospital


Teve umas coisa que foi difícil e outras que foi descomplicada, porque se eu num tivesse<br />

ficado aqui com ele talvez ele num tava mais n<strong>em</strong> vivo, se eu num tivesse vindo talvez ele<br />

num tivesse n<strong>em</strong> vivo, podia tar, né, porque quando Deus quer... até a água do pote dura,<br />

né, quando Deus quer nada é difícil. (Izabel)<br />

Quero dar amor, né Eu dou amor a ela aqui, mas num adianta, porque a pessoa dentro<br />

daqui, infunizado. (...) Ela (Angélica) sabe, ela sabe que eu to aqui, mas quando ela for<br />

pra casa é que eu vou poder dar b<strong>em</strong> muito amor pra ela, b<strong>em</strong> muito. (...) Aqui eu dô, mas<br />

num adianta. (Rosácea)<br />

- Você acha que você t<strong>em</strong> alguma participação nessa melhora dele<br />

Eu... Naão... (Maria)<br />

- Melhor Por que você acha que Renata está melhor<br />

Porque eu to achando. Tava mais, tava mais descorada. Tomou sangue. ... Fizeram exame,<br />

só não o de urina. (...) Os r<strong>em</strong>édio que ela ta tomando aqui, né, ta abrindo o apetite dela<br />

(...) Aqui ela ta com mais vontade de comer. (Magdala)<br />

Rosácea parecia não só se implicar na determinação da doença da filha, b<strong>em</strong><br />

como se culpava, apesar de ter realizado o pré-natal e tomado os r<strong>em</strong>édios indicados.<br />

Ao estudar famílias desnutridas, Kerr, Bogues & Kerr 67<br />

suger<strong>em</strong> como<br />

intervenções não culpabilizar a mãe, identificando responsabilidades e estratégias<br />

maternas para a manutenção da saúde da criança.<br />

Abordando a culpa materna frente à desnutrição infantil, Calvasina et al 102<br />

destacam que com a legitimação do discurso médico, a mãe pode internalizar a culpa<br />

pela desnutrição do filho. Em vez de motivá-la a cuidar melhor da criança <strong>em</strong> um<br />

contexto de pobreza, injustiça e desigualdade social, o discurso médico a reprime. 102<br />

Compreende-se que por vezes é necessário à equipe recorrer a atitudes e<br />

instâncias tidas pelas mães como punitivas, como o Serviço Social, porém é preciso<br />

avaliar mais cuidadosamente a indicação de atitudes como essa, pois <strong>em</strong> alguns casos<br />

pod<strong>em</strong> promover ou acirrar sentimentos de culpa, inferioridade e projeções.


(Prontuário médico de Angélica) Acompanhante refere persistente ed<strong>em</strong>a <strong>em</strong> pés e agora<br />

pernas. Conduta: comunicar Serviço Social para conversar com a mãe.<br />

(Diário de campo) Questionei o que ela sentiu quando a médica ameaçou chamar o<br />

Serviço Social, e Rosácea respondeu que ficou com medo que quisess<strong>em</strong> tirar a criança<br />

dela. (...) Falou sobre sua falta de confiança na equipe, dizendo que os médicos não estão<br />

cuidando b<strong>em</strong> da filha dela, mas me pareceu uma projeção dela. Ou seja, ela ouviu dia<br />

desses dos médicos que ela é que não estava cuidando b<strong>em</strong> da filha, b<strong>em</strong> como outras<br />

mães disseram que ela não estava cuidando b<strong>em</strong> da criança porque não lavava as roupas<br />

dela, e acho que a projeção v<strong>em</strong> daí, como se todos estivess<strong>em</strong> contra ela, projetando para<br />

eles o que não suportou. Tentei mostrar isso para ela e também a função de cada um, dela<br />

mesma e da equipe. (Rosácea)<br />

Aí ela disse “num dê água!”, num to dando não, eu num to dando mais água, eu num to<br />

dando. (...) Aí agora eu num to dando mais, faz três dias que eu num to dando. Aí ela disse<br />

que ia chamar o Serviço Social pra dizer isso, pra dizer que eu tava dando água. (...) Eu fiz<br />

“não, t<strong>em</strong> que calcular porque a perninha dela ta inchada”, né! Ela disse “eu não vou<br />

dar alta a essa criança porque quando ela chegar <strong>em</strong> casa pode morrer”. Eu fiz “a minha<br />

filha num vai morrer não, a minha filha num vai morrer não. Eu to vendo a melhora dela,<br />

a minha filha não vai morrer”. (Rosácea)<br />

(Prontuário médico de Ian) Genitora não estava no leito. Conduta: paciente perdendo<br />

peso. Flagrado genitora oferecendo seio materno antes da fórmula.<br />

Um dos el<strong>em</strong>entos presentes no roteiro de entrevista dizia respeito aos<br />

hábitos alimentares familiares (da criança e da família). Foi observado que o discurso de<br />

todas as mães foi modificado ao longo das entrevistas, passando essas a admitir<br />

experiências como fome e dificuldade na compra do alimento. Comparando-se as<br />

anotações nos prontuários com os discursos maternos a respeito dos hábitos alimentares<br />

(referidos na ficha hospitalar como “inquérito alimentar”) foi observada importante<br />

discrepância, onde as mães referiam alimentos que sequer tinham como comprar. A<br />

expressão “inquérito alimentar”, l<strong>em</strong>bra algo de interrogatório, polícia, justiça,


inquisição. É necessário l<strong>em</strong>brar que se trata de famílias pobres, com dificuldades na<br />

esfera alimentar.<br />

Algumas mães sentiam falta de maior atenção na comunicação com a equipe<br />

de saúde, especialmente com o médico. Esse aspecto parecia influenciar por vezes o<br />

relacionamento da mãe com a equipe e a compreensão do tratamento.<br />

- E aqui no hospital, o que disseram a você<br />

... Disse que... pra mim num disseram nada não. (...) Eu disse que ela tava tussindo muito e<br />

tava com fastio. “Só isso mesmo”, eu disse “só”. ... Que eles passasse algum r<strong>em</strong>édio aí<br />

que eu comprava <strong>em</strong> casa. Num queria passar muito t<strong>em</strong>po aqui com ela não. (Magdala)<br />

- Eles não diz<strong>em</strong> n<strong>em</strong> perguntam nada<br />

Eles pergunta, né, eles pergunta como ela ta, se ta fazendo xixi b<strong>em</strong>, se ta fazendo cocô<br />

direito, b<strong>em</strong>. Eu digo que ta. Pergunta se ta comendo direito, eu digo que ta. Se ta<br />

vomitando, eu digo que num ta. Se com diarréia, eu digo que não.<br />

- E o que eles diz<strong>em</strong> sobre ela<br />

Não, num diz<strong>em</strong> nada.<br />

- Você pergunta<br />

Não, pergunto não.<br />

- Por que você não pergunta Não quer saber porque ela precisou ficar internada<br />

... É, quando os doutor chegar perto dela eu vou perguntar o que é que ela t<strong>em</strong>, né!<br />

(Magdala)<br />

(...) Até hoje ninguém me falou nada. Hoje eu não sei de nada. (...) Tiraram chapa do<br />

pulmão dele, fizeram todo tipo de exame, só que ninguém nunca me falou nada, até hoje eu<br />

num entendo. Se teve algum probl<strong>em</strong>a, também ninguém me falou. Só o que ela me falou é<br />

o que eu lhe disse, que ele tava com uma infecção muito forte e que ele não tinha furado as<br />

tripa, né, só foi o que ela falou. Isso foi a enfermeira de lá que me falou. (...) Agora o tipo<br />

do probl<strong>em</strong>a é que ela num me explicou. (Izabel)<br />

- O que pode ter acontecido ou deixado de acontecer pra ele adoecer<br />

Não sei também. É isso que eu fico somente pensando como foi esse tipo de doença que até<br />

hoje eu não sei lhe explicar exatamente como foi, né! (Izabel)<br />

- O que fez ela inchar<br />

... Num sei. ... Acho que ela foi criando água por dentro, e agora porquê eu num sei. Eu<br />

tento entender isso, mas num sei. Eu vejo os médico chegar lá, dizer<strong>em</strong>, falar tudo, mas eu<br />

num entendo, assim, o que eles fala, que eles fala mais o que vai fazer com ela, de hoje <strong>em</strong>


diante como vai ser, aí eu num entendo, aí pra mim eu tenho vontade de chamar um<br />

médico, assim, que acompanhou ela, chamar pra mandar ele explicar pra mim o que fez<br />

ela ficar assim.<br />

- Você ta há um mês aqui, por que ainda não fez isso<br />

Porque assim, eu tenho, tenho vergonha e na mesma hora tenho medo de chamar e eles<br />

disser assim “não, é, o que ta acontecendo com ela é...”, esconder alguma coisa de mim,<br />

entendeu Esconder o que fez, que foi eu que, que, assim, que fiz ela, por algum acaso eu<br />

fiz ela ficar assim desse jeito, se foi alguma coisa que a gente fez dentro de casa, a<br />

amamentação, qualquer coisa, assim, coisa da gente mesmo, aí eu fico mais é com<br />

vergonha de chamar uma pessoa pra vim me explicar. (...) Por isso que eu tenho vontade<br />

assim, agora eu tenho vergonha. Eu tenho vontade de chamar um médico mesmo,<br />

principalmente o que atende ela, chamar, ou um que atende agora ou o que atendeu, que é<br />

uma médica, chamar e perguntar o que é uma desnutrição mesmo e porquê fez ela ficar<br />

assim do jeito que ela ficou, toda inchada, o que foi que causou ela ficar assim. ... Agora<br />

assim, t<strong>em</strong> que ter esse t<strong>em</strong>po só pra mim, entendeu Chamar, assim, numa hora que num<br />

seja, num seja ocupado, assim como a gente ta conversando, pra mim poder entender b<strong>em</strong><br />

o que foi isso, o que fez causar e o que é uma desnutrição. Eu tenho vontade, mas tenho<br />

vergonha de chamar. Desde o dia que ele disse, explicou que ela tava desnutrida, é, com o<br />

tal de, é, como é que chama ed<strong>em</strong>a, né (...) O jeito deles falar, eles são médico, a gente<br />

num entende o que eles tão falando. Agora assim, ele fala uns nome assim tão diferente<br />

que as mãe mesmo num entende, num sabe o que é aquilo, num sabe o significado (...) Aí<br />

eu tenho vontade de chamar eles num canto, assim, só eu e ele, entendeu Pra mim poder<br />

entender, s<strong>em</strong> zuada, s<strong>em</strong> nada, pra poder entender realmente o que é isso. O que é ed<strong>em</strong>a,<br />

o que a desnutrição, o que fez causar ela ficar com, perdendo peso, isso tudo que t<strong>em</strong><br />

anotado no prontuário dela eu queria entender o que é aquilo. Eu procuro entender o que<br />

eles diz<strong>em</strong>, o que escrev<strong>em</strong>, mas num consigo. Só, só com uma pessoa explicando mesmo<br />

pra mim. (Ana Maria)<br />

Outro perigo que se corre é o de centrar-se num discurso orgânico,<br />

desviando a mãe da preocupação materna primária, estimulando-a a viver a<br />

“preocupação médica primária”, ou seja, fenômeno ocorrido quando a mãe, <strong>em</strong> virtude<br />

da doença da criança, passa a se apropriar dos termos técnicos da equipe de saúde, pois<br />

só assim t<strong>em</strong> a sensação de possuir algum valor ou função, 110,111 vivendo o real do corpo<br />

orgânico do bebê, deixando de lado a relação imaginária com a criança real.<br />

Pronto, eu queria entender o que é isso também, o que é ed<strong>em</strong>a. (...) me explicar mesmo o<br />

que era isso, o efeito causal, o que é um ed<strong>em</strong>a, o que é uma desnutrição. (Ana Maria)


Ana Maria parecia particularmente envolvida com a “apuração da verdade”<br />

a respeito da doença da filha. Queria que os médicos sentass<strong>em</strong> com ela e lhe<br />

explicass<strong>em</strong> tudo. Ao desejar isso, será que não queria que sua própria mãe sentasse<br />

com ela e lhe explicasse tudo a respeito de si, do seu pai Parecia ao mesmo t<strong>em</strong>po<br />

t<strong>em</strong>er que os médicos dissess<strong>em</strong> que ela era culpada pela desnutrição da filha; como<br />

talvez também t<strong>em</strong>esse que a mãe dissesse que ela era culpada pela separação dos pais.<br />

Ana Maria parecia ter uma dúvida e uma dívida com a mãe, e assim não saía de casa<br />

para ficar com o pai de Mariana, n<strong>em</strong> perguntava nada à mãe sobre suas origens<br />

paternas.<br />

Será que quando Ana Maria pedia uma explicação para a desnutrição<br />

(racionalização, função paterna), queria o limite da onipotência dessas mulheres (dela<br />

mesma, da mãe), mas parecia t<strong>em</strong>er sair do lugar de onipotente e de inocente (vítima da<br />

mãe), ao mesmo t<strong>em</strong>po, t<strong>em</strong>endo ser apontada como culpada (pela onipotência, pela<br />

falta, pela repetição)<br />

Os critérios de alta hospitalar inclu<strong>em</strong> três parâmetros, a saber: superação do<br />

probl<strong>em</strong>a médico que motivou a admissão ou <strong>em</strong> condição de seguimento ambulatorial;<br />

aceitação por via oral da quota calórica prevista para a fase do tratamento <strong>em</strong> que se<br />

encontra a criança e ganho médio de peso (GMP) ≥ 10g/kg/dia. Apesar disso, o GMP<br />

parecia ser tomado por alguns profissionais como o principal critério para alta.<br />

Insistia-se no real da alimentação, no critério de alta com base no peso da<br />

criança. Tomado dessa forma, esse critério não leva <strong>em</strong> consideração outros aspectos,<br />

como a interação mãe-criança, a atividade alimentar, o suporte social, etc, baseando-se<br />

<strong>em</strong> “fatias da criança”, desconsiderando a integralidade da atenção <strong>em</strong> saúde, um dos<br />

preceitos básicos do SUS (Sist<strong>em</strong>a Único de Saúde).


(Diário de campo) Bela tenta dar a mamadeira das 15hrs para Ian, mas ele toma pouco.<br />

Ela o coloca no braço depois de um t<strong>em</strong>po e passa a tentar a dar o leite da mamadeira,<br />

mas não t<strong>em</strong> sucesso. Passa então a tentar a dar o leite na seringa.Ian resmunga, grita,<br />

esperneia. Às vezes engole o leite, outras vezes cospe, puxando a blusa da mãe para<br />

mamar. Bela tenta vencê-lo pelo cansaço, insistindo, mas ele é brabo, tosse, esperneia,<br />

cospe o leite. (...) Ela é paciente, persistente, reclama “faça isso não, fique quieto, toma,<br />

senão a gente não vai <strong>em</strong>bora!”. Até que, depois de muita luta, Bela consegue terminar de<br />

dar o leite todo. Após a luta intensa, Bela anuncia que dará um banho nele. Foi só ela<br />

terminar de dizer isso que ele vomitou tudo o que comeu. (...) Começou a “entupir” a<br />

criança com comida para que ela ganhasse logo o peso para sair do hospital. Ian parecia<br />

voltar para o suposto esqu<strong>em</strong>a comer-vomitar...<br />

- Por que você acha que ele vomitou hoje depois que tomou o leite<br />

Porque eu tava forçando a ele. Aí ele num tava querendo... Eu tava vendo que ele tava,<br />

tossiu duas vez, né, aí quando foi a terceira botou pra fora. Mas graças a Deus ele tomou<br />

quase tudo. (Bela)<br />

- Porque ele ainda ta aqui<br />

Porque elas acham que ele num ta recuperado ainda por causa do peso. (Izabel)<br />

(Prontuário médico de Ian) Aceita b<strong>em</strong> a dieta. Genitora s<strong>em</strong> queixas. Conduta: paciente<br />

aguardando critério para alta (ganho de peso por três dias consecutivos).<br />

(Diário de campo) Bela comenta novamente que ainda não foi <strong>em</strong>bora “por causa de<br />

10g”. Interessante que ela só associa a alta a esse único critério. (...) Parece ver a<br />

desnutrição como algo simples e s<strong>em</strong> d<strong>em</strong>ais conseqüências ao desenvolvimento da<br />

criança, repercutindo apenas <strong>em</strong> seu peso. (...) Alguns médicos também parec<strong>em</strong> associar<br />

a alta esse único fator (GMP), além, é claro, do estado clínico geral. Nada mais.<br />

Era inquietante a expressão “pegar peso”, como se essas mães já não<br />

pegass<strong>em</strong> peso d<strong>em</strong>ais <strong>em</strong> seu dia-a-dia... Será que a condição de pobreza real, os<br />

próprios filhos, já não se constitui um peso excessivo que poderia ser perdido Porque<br />

não inserir outros indicadores para alta, como a relação mãe-criança Será que essas<br />

mães já não sa<strong>em</strong> com responsabilidade/culpa/peso suficiente Será esse um dos<br />

motivos pelo qual apenas uma mãe retornou à consulta ambulatorial pós-alta Certas


práticas hospitalares precisam ser repensadas, uma vez que o hospital pode exercer o<br />

lugar potencial não só de tratamento, mas de promoção da saúde materno infantil e<br />

prevenção de distúrbios relacionais e funcionais.<br />

Em alguns momentos, o hospital pareceu proporcionar à criança não só a<br />

retomada da adequação nutricional, mas a retomada, <strong>em</strong> certo sentido, e até certo ponto,<br />

das funções materna e filial. Essas “retomadas” pareciam se relacionar, pois à medida<br />

que a criança se recuperava clinica e nutricionalmente, dava indícios de que saía de um<br />

“estado de sideração”, 6-Y voltando a ocupar o lugar de filho que d<strong>em</strong>anda uma mãe.<br />

Questiona-se se essa retomada reverberou no pós-alta, auxiliando no tratamento<br />

continuado da desnutrição. Destaca-se que apenas uma das díades (Rosácea e Angélica)<br />

chegou a ser acompanhada pela psicóloga do Serviço. Ainda assim, nenhuma das outras<br />

díades foi encaminhada para acompanhamento psicológico ambulatorial no pós-alta.<br />

Uma importante limitação deste estudo diz respeito ao não acompanhamento<br />

da díade/família, posteriormente à alta hospitalar. Com base no discurso da equipe e <strong>em</strong><br />

consulta aos prontuários, observou-se que apenas Ian e Bela retornaram ao hospital.<br />

Bela ainda enfrentava dificuldades para alimentar o filho e conciliar as mamadas, tendo<br />

que deixá-lo com outr<strong>em</strong> para que ele comesse. Dois dias antes da alta hospitalar,<br />

pesquisadora e mãe tiveram o seguinte diálogo:<br />

- Ele ta mamando mais ou menos<br />

Menos.<br />

- Por que ele ta mamando menos<br />

Porque a nutricionista mandou eu dar menos o peito a ele agora.<br />

- E como t<strong>em</strong> sido para você dar menos o peito<br />

É ruim! Porque ele chora muito, muito s<strong>em</strong> o peito, mas eu tenho que dar, né!<br />

- Se essa não fosse uma orientação da Nutricionista, você continuaria dando o peito como<br />

dava antes<br />

Eu dava o peito!<br />

Y Estado de sideração: abatimento súbito das forças vitais.


- Você acha que faz sentido essa orientação dela ou é só porque você ta aqui no hospital<br />

Faz, muito!<br />

- Por que<br />

Porque assim, eu dando o peito a ele n<strong>em</strong> ia comer e n<strong>em</strong> ia mamar direito, né! Aí num,<br />

num ia fazer efeito nenhum, ia dar a mesma coisa. E isso não, agora ele ta comendo mais,<br />

experimentando direitinho...<br />

Bela era uma mãe b<strong>em</strong> orientada quanto aos cuidados com o filho, porém<br />

talvez não tenha sido atendida de modo integral, pois sua dificuldade parecia ser de<br />

ord<strong>em</strong> afetiva, relacional, b<strong>em</strong> como social. Esta família não pôde ser trabalhada quanto<br />

à falha da função paterna e suas conseqüências à díade/tríade. Apesar de residir na<br />

Região Metropolitana do Recife, esta díade não foi encaminhada à psicologia<br />

(ambulatório) n<strong>em</strong> ao Serviço Social que poderia orientá-la quanto a dispositivos sociais<br />

oferecidos pelo governo.<br />

4.5 T<strong>em</strong>ática 4 – Psicodinâmica interativa: indícios compreensivos quanto às<br />

perturbações da interação mãe-criança<br />

Com base na psicodinâmica interativa, buscaram-se indícios compreensivos<br />

quanto às perturbações da interação da díade. Questiona-se a respeito dos fatores que<br />

pod<strong>em</strong> ter interferido na construção/ruptura do vínculo mãe-filho, b<strong>em</strong> como sua<br />

contribuição para a situação de desnutrição, mediante expressão na hospitalização.<br />

Bernardino 52 e Kreisler 8 observam que os distúrbios funcionais infantis<br />

pod<strong>em</strong> estar associados a:<br />

o Insuficiência do investimento afetivo/diminuição do feedback da díade;<br />

o Excesso de excitação/falta de proteção afetiva;<br />

o Incoerência na leitura e resposta às solicitações;


o Inconstância, descontinuidade do investimento materno;<br />

o Interação cronicamente vazia ou bruscamente esvaziada;<br />

o Irregularidades quantitativas e/ou qualitativas do vínculo, condições <strong>em</strong><br />

que a criança pode não beneficiar da função materna de pára-excitação<br />

física e psíquica.<br />

Esses movimentos reflet<strong>em</strong> perturbações da interação mãe-criança, podendo<br />

ser observados no âmbito hospitalar, compreendidos mediante o interjogo d<strong>em</strong>andadesejo<br />

e na expressão e vivência das funções materna e paterna. Cramer 22 propôs que se<br />

utilizasse o termo “interações de risco”, r<strong>em</strong>etendo-se aos fatores de risco na criança e<br />

no meio, tendo <strong>em</strong> vista a dimensão interativa. Kreisler 8 refletiu sobre as disposições<br />

individuais da criança, inatas e/ou adquiridas por intermédio das experiências<br />

interacionais primárias. Sugere que as diferenças individuais decorr<strong>em</strong> do equipamento<br />

genético, das condições da vida intra-uterina (dados tanto biológicos como<br />

psicológicos), das condições do nascimento e das circunstâncias físicas e ambientais que<br />

se segu<strong>em</strong>. 8 É através da alternância e regulação recíproca dos funcionamentos materno<br />

e paterno (mãe: atribuição; pai: corte) que a criança t<strong>em</strong> seu espaço assegurado,<br />

podendo advir como sujeito. 6<br />

Assim, as operações simbólicas são realizadas<br />

inicialmente pela mãe, atravessada pela função paterna. 112<br />

Cullere-Crespin 6<br />

destaca que os sinais de sofrimento/desenvolvimento<br />

infantil pod<strong>em</strong> ser identificados com base na dupla modalidade (função materna, função<br />

paterna) das trocas da criança <strong>em</strong> seu laço com o Outro. Desse modo, os sinais<br />

considerados “positivos” aparec<strong>em</strong> quando as duas funções (materna e paterna) são<br />

des<strong>em</strong>penhadas e estão representadas de modo equilibrado, enquanto que os sinais de<br />

sofrimento apontam para o desequilíbrio ou não organização de uma dessas funções. 6


É reconhecido o papel do pai na gênese do desenvolvimento infantil, b<strong>em</strong><br />

como seu papel determinante no aparecimento de distúrbios relacionais/funcionais, seja<br />

diretamente por seus comportamentos, seja por meio das atitudes maternas, se o pai está<br />

ausente. 6,14,18,29,72<br />

Assim, a criança está inserida, desde antes do nascimento, numa<br />

relação triangular.<br />

O pai real é aquele que se insere na díade para regular o novo (des)encontro<br />

entre mãe, criança e falo, que institui um quarto el<strong>em</strong>ento para operar a castração<br />

materna, libertando a criança do desejo insaciável da mãe. Esse é o terceiro t<strong>em</strong>po ou<br />

terceiro registro da falta a que Lacan se r<strong>em</strong>eteu, possível pelo complexo de castração. 56<br />

O pai real comparece como agente da introdução de uma falta simbólica de<br />

um objeto imaginário: o falo. Com a castração, a criança sai marcada <strong>em</strong> relação ao<br />

falo, moeda que possibilitará as futuras trocas da criança com o Outro. Dessa forma, se<br />

estabelece para a criança o que Lacan chamou de “jogo de qu<strong>em</strong> perde, ganha”: a<br />

criança perde a ilusão da completude materna e ganha pertinência social, amplia seu<br />

circuito de trocas. 56<br />

Para que a constituição do sujeito se efetive é preciso que a função paterna<br />

barre, interdite o desejo materno, para que o filho não fique eternamente aprisionado a<br />

ter que responder como objeto do desejo da mãe. A função paterna age como um corte à<br />

compl<strong>em</strong>entariedade no jogo imaginário entre a criança e a mãe, abrindo espaço à<br />

humanização do desejo infantil. Se a criança fica fixada <strong>em</strong> saturar o desejo da mãe<br />

corre o risco de não se constituir como sujeito desejante. 29,57<br />

Como destacado anteriormente, muitos dos pais das crianças estudadas<br />

pareciam excluídos ou se excluír<strong>em</strong> da função paterna (quarto eixo destacado por<br />

Kupfer et al 18 ). Sozinha <strong>em</strong> sua relação com o filho, a mãe pode passar a exercer sua<br />

função de modo omisso ou, pelo contrário, excessivo. A mãe tende a se mostrar


intrusiva, contrastando com a incapacidade/fraqueza da vertente paterna, conseqüência<br />

de um abatimento secundário ou ausência de inscrição primária dessa função. 6<br />

Os sinais da série “barulhenta” indicam que a criança parece tomar sobre si<br />

mesma o suporte da função paterna fraca ou incapaz, mostrando-se ativa, lutando contra<br />

o excesso materno, na tentativa de colocar limite na onipotência da mãe. 6<br />

Em contraste com a série barulhenta, os sinais “silenciosos” parec<strong>em</strong><br />

corresponder à criança que aparent<strong>em</strong>ente deixa de lutar para pôr limite à onipotência<br />

materna, se entregando a uma passividade e atonia que se ass<strong>em</strong>elham à letargia das<br />

crianças desnutridas. 6,8 Cullere-Crespin 6<br />

destaca que esses sinais, diferent<strong>em</strong>ente<br />

daqueles da série barulhenta, tend<strong>em</strong> a ser vistos com certo conforto, a criança<br />

“quietinha”, adaptada, fácil de lidar, que aceita o que vier, ocultando, esses sinais, toda<br />

periculosidade de uma criança que parece se entregar passivamente ao excesso materno.<br />

Do início do adoecimento e ao longo da internação, Mariana pareceu<br />

transitar entre essas duas séries, ora mostrando-se ativa, barulhenta, “dizendo” e<br />

“escolhendo” quando queria comer, b<strong>em</strong> como vomitando na mãe, a mãe, rejeitando o<br />

excesso materno quando era forçada a aceitar o alimento. Em outros momentos parecia<br />

abandonar a luta, “hibernando” no berço, desistindo de “chamar” a mãe, aceitando<br />

passivamente o leite, o qual escorria s<strong>em</strong> sentido pelos cantos da sua boca, golfando o<br />

restante logo <strong>em</strong> seguida. A sonda nasogástrica (SNG) parecia não só dar suporte vital<br />

ao corpo, porém reforçar a intrusão, entravar o prazer. Ana Maria parecia se dar conta<br />

de aspectos desse movimento da filha, porém não sabia como se posicionar como mãe.<br />

(...) eu vejo que ela ta com fome hoje <strong>em</strong> dia quando vou botar a chupeta na boca dela e<br />

ela pega b<strong>em</strong> forte mesmo a chupeta, chega pega com aquela pressão b<strong>em</strong> forte, aí eu vejo<br />

que ela ta com fome mesmo. É quando ela ta assim, por isso que colocaram a sonda de<br />

novo nela, porque ela só queria comer quando ela tava com fome mesmo, quando ela tava<br />

pegando aquela chupeta b<strong>em</strong> forte mesmo ela comia a mamadeira todinha, s<strong>em</strong> reclamar,<br />

s<strong>em</strong> botar pra fora, s<strong>em</strong> nada. Agora quando ela num tava com fome eu tinha que dar à


força, aí foi que colocaram a sonda de novo nela. (...) Aí se apois, se for ficar dando à<br />

força é melhor colocar a sonda, aí colocou a sonda nela. (Ana Maria)<br />

Mariana parecia não ter como se posicionar: chacoalhada, tanto no real do<br />

corpo, como no imaginário e no fantasmático: jogada de um lado para o outro, cuidada<br />

por uma, cuidada por outra, tomada como filha de uma, como filha/boneca de outra.<br />

Contratransferencialmente, a pesquisadora parecia se identificar com<br />

Mariana, ficando “fastiosa”, chegando a perder peso, acolhendo o sofrimento de<br />

Mariana com seu próprio corpo. A pesquisadora praticamente só podia oferecer seu<br />

corpo e sua escuta às díades, não suas interpretações (psicanaliticamente falando), de<br />

modo a não fugir do enquadre da pesquisa.<br />

(Diário de campo) Há dois dias tenho diarréia e estou muito cansada, com “fastio”,<br />

cheguei até a perder peso, talvez dois quilos. Associo meus sintomas aos de Mariana: cada<br />

vez mais rejeito essa situação das fotos que Ana Maria tanto insiste. É como se Mariana e<br />

eu estivéss<strong>em</strong>os rejeitando essa invasão – Mariana por ser tão mexida e r<strong>em</strong>exida pela<br />

mãe para tirar as fotos; eu por ser mexida e r<strong>em</strong>exida do meu lugar de pesquisadora; n<strong>em</strong><br />

Mariana n<strong>em</strong> eu sab<strong>em</strong>os como reagir, a não ser botar tudo isso para fora e amolecer.<br />

Felizmente Ana Maria foi para casa e deixou a mãe como cuidadora, nos dando uma<br />

trégua. A avó disse que Mariana não vomita desde ont<strong>em</strong>, e que os vômitos eram s<strong>em</strong>pre<br />

pós-alimentares. Fico pensando se não era o modo como Ana Maria manuseava Mariana<br />

após a dieta, ou sua presença invasiva.<br />

Parece que desde o início Mariana e Ana Maria foram dificultadas na<br />

construção do laço:<br />

- Você viu logo ela quando ela nasceu ou d<strong>em</strong>orou<br />

Eu vi logo que colocaram num tipo de incubadora com uma luz assim, <strong>em</strong> cima dela. (...)<br />

Aí dali ela já foi direto pro quarto comigo. Aí deixaram ela do lado, do meu lado. Ela tinha<br />

um bercinho, né, mas entrava muita gente estranha, aí eu disse ‘deixa ela do meu lado’, aí<br />

ela ficou do meu lado.<br />

- E o que você sentiu...<br />

Quando vi ela Oxe eu, veio aquele amor assim por dentro por ela, já me agarrei logo<br />

nela e disse “não, ela vai ficar do meu lado”. Aí toda hora mexendo com ela, brincando<br />

com ela, conversando com ela assim. E ela mexia a cabecinha pra um lado, mexia pra o


outro e aquela alegria por dentro. (...) Aí quando foi no segundo dia nós saiu e eu fui<br />

direto pra casa, mas quando chegou <strong>em</strong> casa um monte de visita e eu me agarrando com<br />

ela, as visita querendo pegar ela, eu digo “não, depois você pega”, só agarrada com ela.<br />

(...) Aquele monte de presente na cama e eu, eu digo “meu Deus do céu, isso tudinho<br />

querendo pegar a menina! Não, v<strong>em</strong> amanhã que depois vocês pega, hoje ela é só minha”.<br />

Aí mainha “deixa os outro pegar”, eu “não, amanhã eles pega”. Aí só sei que foi uns seis,<br />

sete dia aquele monte de gente todo dia <strong>em</strong> casa, olhando ela, tudo dizendo “que gracinha,<br />

num sei o quê”, pegando ela. Mainha também naquela <strong>em</strong>polgação, gritaria, eu quase<br />

num via ela. (Ana Maria)<br />

Dentre os sinais que apontam para o transbordamento da função materna,<br />

Rohenkhol 72 destaca que a criança tenta ler na mãe o que pode atiçar seu olhar, seu<br />

investimento. “Quando uma ‘preocupação’, ‘receio’ do cuidador primordial pode ser<br />

lido pelo sujeito como sendo o que o outro quer dele.” (2001) 72<br />

Ian parecia responder ao desejo materno, buscando fisgar a mãe através dos<br />

supostos vômitos, recusando a comida de panela, “colando-se” ao seio materno, seu<br />

objeto primordial e favorito, quase que exclusivo. Ian parecia preso à satisfação<br />

materna, se satisfazendo <strong>em</strong> ser aquele que satisfaz a mãe. Esse movimento é esperado<br />

<strong>em</strong> momento anterior do desenvolvimento infantil, quando o investimento do bebê está<br />

essencialmente ligado ao prazer compartilhado. 113 Bela parecia reforçar o movimento do<br />

filho de satisfazê-la continuamente através da constante busca de Ian por seu seio,<br />

assumindo a qualidade de “boa mãe” (aquela que dá o peito a qualquer hora diante da<br />

d<strong>em</strong>anda da criança). Podia, assim, fazer aquilo do qual fora impedida de fazer com os<br />

outros filhos.<br />

Sales 113<br />

destaca que a restrição dos objetos pode levar a um<br />

<strong>em</strong>pobrecimento do auto-erotismo, atingindo a capacidade da criança de estar só e s<strong>em</strong><br />

angústia na ausência materna. A ligação excessiva ao real do corpo materno, vivida de


forma erótica, pode interferir na organização sexual da criança. Observe-se um diálogo<br />

entre Bela e Ian ao longo de uma das entrevistas:<br />

Aí quando eu digo “cadê a cococa de mãe, cadê a cococa de mãe”.<br />

(Dirige-se agora à criança, olhando para ela, iniciando-se um diálogo entre a díade)<br />

- Cadê a cococa de mãe, ta aonde, hein neném! Óia, a cococa de mainha, ta aonde<br />

- Ehhh... (Ian balbucia, apontando para o rosto da mãe)<br />

- Oxente, ta aí, é! Ta aonde Ta aqui não (aponta para a cueca do filho) Ta não, aqui<br />

não, a cococa<br />

- (Ian olha para a mãe e depois olha e aponta para a cueca)<br />

- Ta aqui é Cadê ela Amostra a mamãe.<br />

- (Ian aponta para a cueca)<br />

Quando eu digo assim, ele, quando ele ta de cueca, eu deixo ele <strong>em</strong> casa de cueca, ele bota<br />

a pitoca pra fora, aí fica assim, puxando e deixa a pitoca dura! (Ri) Aí eu digo “eita, quer<br />

pegar a mãe, ó praí, puxou ao pai!”. (Ri) Somente isso. Num entendo mais não, o que ele<br />

fala não.<br />

Bela reconhecia a dificuldade <strong>em</strong> colocar limites no filho, atestando a falta<br />

de atenção do marido/pai. Supõe-se que o hospital tenha sido tomado como<br />

representante da função paterna, mostrando a Bela que Ian podia ficar só quando ela<br />

saía para almoçar (presença-ausência), e que era capaz de comer outras comidas, desde<br />

que ela dissesse “não” ao desejo de mamada (dela e do filho).<br />

Fragelli & Petri 56 destacam que para um objeto ser símbolo do amor precisa<br />

estar necessariamente relacionado à falta. A palavra “não” da mãe assegura à criança<br />

que mesmo que sua d<strong>em</strong>anda não seja atendida, seu desejo é reconhecido, tendo como<br />

efeito o cessar da reivindicação (criança deixando de ser “rei”).<br />

As interações desenvolvidas no hospital refletiam, <strong>em</strong> alguns casos, apelos<br />

da criança ao desejo da mãe (Renata, João, Fátima, Pandora, Gabriel), ou <strong>em</strong> outras<br />

crianças a tentativa fracassada de fisgar o desejo e o gozo materno (Angélica, Mariana).<br />

A tentativa de algumas crianças <strong>em</strong> chamar a atenção da mãe, d<strong>em</strong>andá-la<br />

numa brincadeira, por vezes era interpretada por algumas com desdém, esvaziando de


sentido o apelo da criança, que repetidamente não era escutada <strong>em</strong> seu sentido<br />

simbólico.<br />

Em certos momentos, algumas díades pareciam ilustrar o “estado de<br />

sideração” descrito por Cullere-Crespin, 6 operando a destituição recíproca (a mãe não<br />

consegue organizar suas respostas ou não as direciona ao filho, e assim a criança não é<br />

“lida” n<strong>em</strong> tampouco “decodificada”, não enviando mais sinais à mãe, como nos casos<br />

de João e Fátima que deixaram de falar, de Pandora que parou de rir, Gabriel que parou<br />

de brincar).<br />

Assim, reforçando as observações de Cullere-Crespin, 6<br />

os dados desta<br />

pesquisa suger<strong>em</strong> que os aparentes estados de sideração/destituição recíproca foram<br />

revertidos nas maior parte das díades. O caso de Rosácea e Angélica sugere que a mãe,<br />

diante do medo de perder a filha para o Serviço Social ou para a morte, buscou ocupar<br />

seu lugar de leitora primordial, talvez nunca ocupado, se dirigindo a uma criança muito<br />

discrepante da real. Apesar de se colocar como “leitora primordial”, Rosácea parecia<br />

não atribuir à filha espaços t<strong>em</strong>porais (turnos) durante os quais a criança pudesse se<br />

organizar, não a elevando à categoria de participante das trocas interativas. Não havia<br />

reversibilidade de papéis, só uma mãe desejosa, “cega” diante do medo de perder a<br />

filha, de deixá-la com fome e com sede, entupindo-a de leite. Será que Rosácea de fato<br />

amamentava Angélica, no sentido libidinal do termo Segundo Sales, a mãe amamenta<br />

o filho quando se deixa mamar pela criança. 113<br />

As manifestações de Angélica pareciam ser lidas de modo unívoco, como<br />

d<strong>em</strong>anda por comida. O oferecimento do alimento como resposta imediata a qualquer<br />

desconforto foi mencionado por Almeida 73 como indicador de vulnerabilidade frente a<br />

probl<strong>em</strong>as de alimentação infantil. Sales 113<br />

também se r<strong>em</strong>eteu a esse aspecto,<br />

pontuando que esse tipo de comportamento materno acaba por produzir uma fusão entre


peito e pele, onde para a mãe o peito parece se transformar numa fonte de leite,<br />

deserotizada, mecânica, e para a criança, como único objeto não só para satisfazer sua<br />

fome, mas também para o fazer calar e sedar.<br />

A repetição desse tipo de atividade, tornada mecânica, pode afetar a ação<br />

fundamental do sujeito, dificultando a mãe <strong>em</strong> supor <strong>em</strong> seu filho um sujeito desejante,<br />

que se comunica para além das necessidades orgânicas. 113 Supor um sujeito e<br />

estabelecer a d<strong>em</strong>anda da criança estão entre os eixos fundamentais na relação mãefilho<br />

destacados por Kupfer et al. 18<br />

No que concerne ao interjogo d<strong>em</strong>anda – desejo, foram observados tanto<br />

hipofuncionamentos diádicos (Magdala e Renata, Rosácea e Angélica), como<br />

hiperfuncionamentos (Bela e Ian). Esses quadros reflet<strong>em</strong> a perseguição materna na<br />

realização do seu desejo, s<strong>em</strong> se dar conta das necessidades do filho<br />

(hiperfuncionamento), ou a pobre d<strong>em</strong>anda libidinal materna frente à criança<br />

(hipofuncionamento). 72<br />

No hipofuncionamento, o grito da criança não parece ecoar na mãe, caindo<br />

no vazio, e é secundariamente a esta ausência de resposta continente que a passividade<br />

se instala. 6 A criança passa a se apresentar aparent<strong>em</strong>ente tranqüila, porém apática, onde<br />

o fenômeno dominante é o retardo no desenvolvimento, b<strong>em</strong> como atraso de peso e<br />

altura, comumente acompanhado de depressão, o que tende a gerar erros de diagnóstico.<br />

A criança é <strong>em</strong> geral hipotônica e hipersônica. 6,8<br />

S<strong>em</strong>elhante ao que Kreisler 8 “anorexia primária ou de inércia”, Lacan 55<br />

utilizou a denominação “anorexia mental” para descrever o estado onde o que impera<br />

não é relativo ao não comer, mas ao comer nada, relativo ao plano simbólico, deixando<br />

evidente a diferença entre necessidade e desejo, pontuando que o corpo marca o<br />

encontro entre Eros e Tanatos. 45 A criança come “nada” para guardar vazio o espaço do


desejo, de modo a não ser tomado pela necessidade do alimento. 55 “É no nível do objeto<br />

anulado como simbólico, pela mãe, que a criança põe <strong>em</strong> xeque a sua dependência, e<br />

precisamente alimentando-se de nada” (1957: 190). 55<br />

Desse modo, a criança utiliza-se de recursos corporais, os únicos de que<br />

dispõe, na tentativa de refisgar o desejo da mãe. Parece não saber se servir do<br />

seio/mamadeira, numa aparente dificuldade motora. A atitude da criança diante do<br />

alimento é de suposta saciedade, avançando os lábios a contragosto, defendendo-se<br />

frouxamente contra o alimento, o qual volta regurgitado, babado, rejeitado. A comida<br />

não parece adquirir sentido à criança, observando-se refeições tristes e infligidoras,<br />

geralmente terminando com vômito s<strong>em</strong> força. As reações contra a imposição alimentar<br />

são passivas, silenciosas, reduzidas a g<strong>em</strong>idos queixosos quase inaudíveis. Observa-se a<br />

ausência de atividades auto-eróticas orais, numa inapetência de viver. 8,22<br />

Quadros de anorexia mental/primária pod<strong>em</strong> estar presentes onde se<br />

observam ritmos de sucção e degustação pobres e débeis, acompanhados de<br />

regurgitação passiva. 8,72 O “preenchimento passivo”, s<strong>em</strong> apetite n<strong>em</strong> prazer aponta<br />

para a indiferenciação do laço: não importa quando, não importa qu<strong>em</strong>. 6<br />

Tudo se passa como se a raiz mais profunda da pulsão de vida fosse minada,<br />

numa inapetência de viver; a criança encontra-se com dificuldade de estabelecer a<br />

continuidade de existir (risco vital, risco psíquico). 112<br />

(Diário de campo) Angélica está no berço. Seu pai saiu antes de dar a dieta dela. (...)<br />

Perguntei a Dra Ana Falbo porque Angélica não come via oral, esperando uma orientação<br />

e uma explicação absolutamente orgânica. Acho que é duro reconhecer o que Dra Ana<br />

disse como resposta: “parece que Angélica é uma daquelas criancinhas que vê<strong>em</strong> para cá,<br />

começam o tratamento b<strong>em</strong>, se adaptam b<strong>em</strong>, mas falta alguma coisa, talvez a centelha de<br />

vida, e assim vai, pega uma infecção aqui, outra ali...”. É duro admitir, mas ela parece<br />

mesmo ser uma dessas crianças s<strong>em</strong> a centelha de vida... (...) Conversei depois com a mãe<br />

vizinha ao berço de Angélica, uma mãe muito ligada e atenta ao seu bebê. Foi incrível o<br />

que ela me disse, tão conectado ao que Dra Ana disse: “essa bebezinha parece aquelas


crianças da África; o olhar dela parece dizer que ela quer viver, mas não sabe como<br />

lutar”. Comento com essa mãe e com a auxiliar que Angélica parece não ter prazer <strong>em</strong><br />

comer, por isso, apesar da fome, põe o leite dado para fora, expulsando aquilo que deveria<br />

lhe trazer vida, lhe dar prazer, porque talvez ela queira algo mais básico que o leite: a<br />

mãe, engolir e ter prazer com essa mãe, com o corpo dela. Parece que Rosácea não<br />

oferece como seu o leite que dá, e assim não o dá com prazer à filha. O pai de Angélica<br />

também é passivo como a esposa. Geralmente está ausente da enfermaria ou dormindo.<br />

Devido ao fato de pôr <strong>em</strong> risco o prognóstico de vida, esse quadro tende a<br />

ser tratado unicamente no âmbito da urgência médica. “Certamente é preciso assegurar<br />

a sobrevida do bebê, mas n<strong>em</strong> por isso a dimensão simbólica do sintoma deve ser<br />

negligenciada.” (2004: 54) 6<br />

Diante do quadro alimentar de Angélica, a mãe e a equipe se engajavam <strong>em</strong><br />

“salvá-la”, satisfazê-la com a oferta de objetos reais (leite, brinquedos, roupas), tomando<br />

a falta/inapetência/pobreza/desnutrição como um vazio a ser preenchido no real, ao<br />

invés de tomar a falta e a própria desnutrição, <strong>em</strong> seu sentido simbólico, como motor do<br />

funcionamento psíquico desta criança.


A dinâmica conflitiva da díade e os distúrbios funcionais infantis<br />

d<strong>em</strong>onstram que os estados de sofrimento da criança dev<strong>em</strong> ser compreendidos como<br />

dependentes do somático, do relacional 7,8<br />

b<strong>em</strong> como do social. Estima-se que o<br />

reconhecimento da interação desses el<strong>em</strong>entos conduza a uma melhora no tratamento e<br />

prevenção dos distúrbios relacionais precoces no hospital, antes de chegar às consultas<br />

especializadas. Aponta-se a necessidade de cuidados integrais nas enfermarias,<br />

caracterizando intervenções de prevenção primária.<br />

Este trabalho ilustrou como o hospital é um lugar onde o sofrimento<br />

psíquico é expresso e pode ser observado como intimamente associado ao somático e ao<br />

relacional, podendo se tornar cada vez mais crônico e fatal ou ser re-inscrito,<br />

resignificado. Ações pontuais desenvolvidas na enfermaria atestam que o hospital pode<br />

exercer importante papel na compreensão do adoecimento, na retomada do vínculo mãecriança<br />

e na experiência e prática da parentalidade.<br />

O sintoma infantil reflete a expressão simbólica do conflito psíquico, através<br />

da interação da criança com o campo dos cuidados maternos, representando a história<br />

do casal parental, encarnando <strong>em</strong> seu corpo o objeto da fantasia materna/parental. 12<br />

Sintomas clínicos infantis estão próximos ao campo da psicossomática, no qual a<br />

representação que o corpo assume configura um sintoma que altera o real do órgão. 8,106<br />

Poder-se-ia associar a desnutrição ao campo psicossomático, onde os<br />

nutrientes não são organicamente absorvidos, r<strong>em</strong>ontando a uma falha no suporte<br />

simbólico da organização do circuito pulsional infantil. Considera-se que a satisfação<br />

afetiva é tão central que sua ausência pode entravar a própria necessidade alimentar. 7<br />

Segundo Cullere-Crespin, 6<br />

estados extr<strong>em</strong>os de desnutrição parec<strong>em</strong><br />

corresponder às faltas nutricionais, mas sua potência mortífera pode ser incr<strong>em</strong>entada<br />

pelas vivências de privação ou de excesso do ponto de vista afetivo. Kreisler 8 enfatiza a


importância do investimento libidinal parental como determinante da qualidade da<br />

organização psicossomática da criança, localizando nas vicissitudes desse investimento<br />

as causas precipitantes do adoecimento.<br />

Fazendo um comparativo entre este estudo e o de Nóbrega, 3 observa-se que<br />

tratam-se de abordagens diferentes ao mesmo fenômeno (desnutrição infantil e vínculo<br />

mãe-filho). Nóbrega utilizou uma avaliação mista (quali-quanti), recorrendo a uma<br />

avaliação do vínculo mãe-filho, ao passo que o presente trabalho baseou-se na análise<br />

da psicodinâmica interativa da díade e no discurso materno. Enquanto Nóbrega associou<br />

a DEP ao fraco vínculo mãe-filho, a análise da psicodinâmica interativa das díades<br />

indicou que algumas mães tinham el<strong>em</strong>entos de forte vínculo com o filho, porém<br />

exerciam a maternidade de modo inadequado (ausente ou exagerado). Sugere-se que a<br />

terminologia proposta por Nóbrega 3 “fraco vínculo” seja discutida, levando-se com<br />

conta a psicodinâmica interativa da díade/tríade, a qual aponta para aspectos mais<br />

abrangentes do vínculo mãe-filho.<br />

Apesar do presente estudo não fornecer informações completas quanto aos<br />

aspectos causais concorrentes para a desnutrição infantil, recomenda-se que a<br />

terminologia proposta por Nóbrega 3 seja aprofundada <strong>em</strong> estudos qualitativos visando<br />

compreender como a interação da díade/tríade se associa à etiologia da DEP.<br />

O manejo hospitalar da desnutrição proposto pela OMS 1 e utilizado no IMIP<br />

inclui dez passos, estando o décimo referenciado como “estimulação física e<br />

<strong>em</strong>ocional”. Z Propõe-se que a observação da psicodinâmica interativa seja pesquisada<br />

como instrumento compl<strong>em</strong>entar a este décimo passo.<br />

Z<br />

Estimulação <strong>em</strong>ocional e física através de programas de brincadeiras que começam durante a<br />

reabilitação e continuam após a alta, pod<strong>em</strong> reduzir substancialmente o risco de retardo mental e<br />

<strong>em</strong>ocional permanentes. 1


V Considerações Finais e Recomendações<br />

“Desde a orig<strong>em</strong>, a criança se alimenta tanto de palavras quanto<br />

de pão, e perece por palavras” (Lacan, S<strong>em</strong>inário IV: 192) 55<br />

Com base nos el<strong>em</strong>entos interacionais, observou-se que apesar de todas as<br />

mães da pesquisa ter<strong>em</strong> características de base s<strong>em</strong>elhantes, configurando situações de<br />

risco, a análise da psicodinâmica interativa das díades evidenciou a inexistência de um<br />

modelo interativo comum. O risco parecia apontar mais para certa vulnerabilidade no<br />

desenvolvimento da tríade.<br />

Confirma-se que o lugar ocupado pela criança na probl<strong>em</strong>ática psíquica da<br />

mãe, do casal e na história trans e intergeracional da família é fundamental no interjogo<br />

das interações posteriores, principalmente nas vividas <strong>em</strong> momentos críticos à díade,<br />

como diante da desnutrição e hospitalização.<br />

A análise dos dados reforça a influência mútua de mãe e filho na construção<br />

da interação e a complexidade dos distúrbios funcionais precoces, sugerindo que estados<br />

extr<strong>em</strong>os de desnutrição pod<strong>em</strong> estar associados não apenas às faltas e/ou falhas<br />

nutricionais, mas também a vivências de privação ou excesso psicoafetivo.<br />

Outro aspecto fundamental a ser considerado na compreensão dessa<br />

dinâmica conflitiva é o des<strong>em</strong>penho da função paterna enquanto terceiro fundamental à<br />

díade mãe-criança. Cogita-se que <strong>em</strong> alguns casos o adoecimento da criança tenha<br />

funcionado como reação à falta/excesso materno, como um apelo à entrada de um<br />

terceiro (pai, hospital, pesquisadora) nessa relação. A doença podendo então ser<br />

pensada, portanto, como um limite/apelo ao excesso ou à falta materna/paterna.


A análise dos t<strong>em</strong>as sugere que a hospitalização despertou vivências da mãe<br />

e da criança, informando sobre o passado da díade. Assim, o que <strong>em</strong> alguns casos<br />

parecia figurar como indicador de vulnerabilidade frente a probl<strong>em</strong>as de alimentação<br />

infantil, para outros foi vivido como resiliência. O hospital pareceu ocupar/ser tomado<br />

por algumas mães como terceiro (acolhendo/colocando limites), auxiliando-as na<br />

retomada de aspectos da parentalidade, figurando como lugar potencial de resgate e<br />

proteção não só clínico-nutricional, mas também funcional (funcionamento materno e<br />

filial).<br />

O fato de alguns comportamentos das díades ter<strong>em</strong> sido modificados ao<br />

longo da internação sugere que ações pontuais desenvolvidas na enfermaria<br />

(disponibilidade <strong>em</strong> escutar e compreender a mãe <strong>em</strong> seus conflitos internos; busca por<br />

significados quanto à doença e os sinais interacionais da díade; construção de uma<br />

terceira história; evitar condutas que culpabiliz<strong>em</strong> a mãe/família; valorização de<br />

parentalidades parciais, diminuindo a ferida narcísica dos pais e favorecendo imagos<br />

parentais de boa qualidade e a prática mais segura da parentalidade) pod<strong>em</strong> auxiliar a<br />

mãe a tomar consciência de suas dificuldades e habilidades, a retomar e reforçar a<br />

maternag<strong>em</strong>/aspectos da parentalidade e reconhecer competências do filho. Essas<br />

intervenções diz<strong>em</strong> respeito não só ao tratamento pediátrico e nutricional, mas também<br />

psicológico, ocupacional e assistencial à família.<br />

Estima-se que a escuta oferecida às díades e o lugar de d<strong>em</strong>anda ocupado<br />

pela pesquisadora pode ser desenvolvido/ocupado pela equipe hospitalar, mediante<br />

reflexão a respeito de práticas hospitalares, organização de serviços, enfim, sobre o<br />

modelo de atendimento oferecido pelo hospital, tendo <strong>em</strong> vista a complexidade do<br />

processo saúde-doença e a integralidade da atenção <strong>em</strong> saúde.


A capacidade da criança <strong>em</strong> se adaptar às diferentes circunstâncias<br />

d<strong>em</strong>onstra que <strong>em</strong> situações complexas não se dev<strong>em</strong> elaborar hipóteses simplistas, pois<br />

é necessário estudar cada caso para propor ajuda adequada às necessidades da criança e<br />

dos pais.<br />

A escuta pode ser trabalhada <strong>em</strong> equipe, <strong>em</strong> reuniões clínicas<br />

interdisciplinares onde os profissionais possam trocar percepções, se colocar<br />

transferencial e contratransferencionalmente, de modo a buscar compreensão mais<br />

abrangente da desnutrição, do processo de adoecimento da díade/tríade e intervir a<br />

t<strong>em</strong>po, trabalhando para que mãe e criança encontr<strong>em</strong> um meio de dizer de outra forma<br />

o que têm a se dizer, que não pela via do adoecimento.<br />

Estima-se que o reconhecimento das competências da criança, das<br />

modalidades interativas da díade e da função potencial de resgate exercida pelo hospital<br />

esteja associado à promoção da saúde materno infantil e prevenção de perturbações no<br />

desenvolvimento da criança. Esse conhecimento t<strong>em</strong> papel essencial na organização de<br />

políticas e práticas desenvolvidas pelo setor saúde, apontando a necessidade de cuidados<br />

integrais efetuados pelos profissionais, caracterizando intervenções de prevenção<br />

primária.<br />

O presente estudo sugere também que a narratividade e o significado criado<br />

a respeito da dinâmica interativa e da doença pareceram ter função estruturante às<br />

díades. Reconhecendo-se importante limitação deste estudo, recomendam-se outros<br />

trabalhos que estendam o acompanhamento da díade posteriormente à alta hospitalar.<br />

É inegável que a desnutrição deixa marca importante no corpo pela falta do<br />

pão, mas é necessário reconhecer que essa marca pode ser potencializada pela falta da<br />

mediação da palavra, do simbólico, seja pela ausência do “sim” ou do “não”, seja pelo<br />

excesso de “sim” ou excesso de “não”. As d<strong>em</strong>andas da mãe/criança desnutrida n<strong>em</strong>


s<strong>em</strong>pre se r<strong>em</strong>et<strong>em</strong> ao objeto real, pois se d<strong>em</strong>anda também o símbolo do amor, objeto<br />

de dom, simbólico da existência. Precisa-se compreender o corpo <strong>em</strong> toda sua<br />

complexidade, protagonista de uma história social, familiar, interacional, que d<strong>em</strong>anda<br />

mais que sobrevivência, a existência <strong>em</strong> si.<br />

A desnutrição infantil, associada ao campo psicossomático, oferece-se ao<br />

olhar clínico como um quadro com pelo menos três vertentes: médica (somático),<br />

psicológica (relacional) e social. A associação dessas vertentes pode fornecer uma<br />

compreensão holística sobre uma das patologias mais comprometedoras do<br />

desenvolvimento infantil. Esse pode ser um sentido potencial aos conceitos de<br />

humanização e integralidade da atenção <strong>em</strong> saúde.<br />

Com base no questionamento levantado na introdução (como a observação<br />

da interação da díade hospitalizada pode auxiliar no tratamento da desnutrição),<br />

destacam-se algumas contribuições práticas e recomendações:<br />

1. Estimular as mães a montar o setting para a alimentação e oferecer o<br />

alimento aos poucos, de modo a promover maior comunicação e prazer nas trocas<br />

alimentares.<br />

2. Utilizar utensílios para alimentação adequados à criança, de modo que<br />

favoreçam a ingestão e exploração do alimento.<br />

3. Promover maior discussão dentro da equipe quando for necessário o uso<br />

da sonda nasogástrica e outros procedimentos invasivos, refletindo sobre o momento e<br />

uso desses instrumentos.<br />

4. Estimular que as mães comuniqu<strong>em</strong> ao filho seu afastamento da<br />

enfermaria, b<strong>em</strong> como que utiliz<strong>em</strong> objeto transitório de modo a auxiliar no conforto à<br />

criança.


5. Estimular a presença da díade na brinquedoteca, b<strong>em</strong> como a dos<br />

contadores de histórias (Projeto Biblioteca Viva) na enfermaria.<br />

6. Favorecer a mãe, ao longo da visita médica, maior comunicação a<br />

respeito dos aspectos imaginários e simbólicos da sua interação com o filho, não se<br />

restringindo ao real do corpo.<br />

7. Buscar os significados maternos sobre a doença, integrando a visão da<br />

mãe à compreensão científica sobre a enfermidade e o tratamento clínico, promovendo<br />

maior equidade na compreensão do processo saúde-doença e na relação equipe de saúde<br />

- família.<br />

8. Promover e estimular a mãe a ser multiplicadora e agente de<br />

transformação na compreensão e tratamento da desnutrição <strong>em</strong> sua comunidade.<br />

9. Evitar o atendimento centrado no orgânico, onde o personag<strong>em</strong> principal<br />

é o corpo, não o sujeito. Esse tipo de atendimento tende a destacar a diferença social da<br />

mãe, inibindo-a, levando-a a se apropriar dos termos técnicos da equipe de saúde,<br />

tentando assim possuir algum valor ou função, afastando-se da sua função materna.<br />

10. Estimular a comunicação entre os profissionais da equipe, promovendo<br />

equidade também nesse relacionamento, opondo-se a que o corpo da criança seja<br />

tomado e lido “aos pedaços”, evitando-se atendimentos segmentados, “fatias da<br />

criança”.<br />

11. Estimular a equipe a trabalhar seus recursos de narratividade, utilizar a<br />

transferência e contratransferência como instrumentos de trabalho, b<strong>em</strong> como o rapport<br />

com a família, pois a qualidade da relação equipe de saúde – criança – pais pode ser um<br />

fator essencial no sucesso ou fracasso terapêutico. Imperativos superegóicos aos pais (o<br />

que e como dev<strong>em</strong> fazer, sentir) obstacularizam a construção de significados, não<br />

permitindo que articul<strong>em</strong> simbolicamente a realidade de si mesmos e do filho. Não raro


vê-se a equipe adoecer física e/ou <strong>em</strong>ocionalmente ao ter contato com realidades tão<br />

adversas, mobilizadoras de conteúdos inconscientes arcaicos. Ressalta-se a importância<br />

da equipe se envolver <strong>em</strong> algum tipo de trabalho de intercontrole, supervisão ou, quando<br />

possível ou desejado, de análise pessoal.<br />

12. Estimular a discussão a respeito da ênfase dada ao critério de alta<br />

baseado no ganho médio de peso, o qual desconsidera a integralidade da atenção <strong>em</strong><br />

saúde materno infantil, um dos preceitos básicos do SUS, b<strong>em</strong> como as próprias<br />

recomendações da OMS. 1 Recomenda-se que outros indicadores, como a relação mãecriança,<br />

sejam utilizados como critério para a alta.<br />

13. Reforçar a importância das orientações à mãe/família no momento da<br />

alta, b<strong>em</strong> como a importância das consultas de retorno, tendo <strong>em</strong> vista não só o<br />

ambulatório de nutrição e pediatria, como também os d<strong>em</strong>ais profissionais da rede de<br />

cuidados.<br />

14. Usar na enfermaria a Ficha de Acompanhamento do Desenvolvimento,<br />

instrumento que pode ser utilizado como auxiliar no diagnóstico da interação mãecriança<br />

AA e no critério para alta.<br />

15. Pensar expressão mais adequada que a utilizada “inquérito alimentar”.<br />

Sugere-se também que este não seja mais realizado na consulta de <strong>em</strong>ergência, porém<br />

na enfermaria, depois de a equipe ter estabelecido rapport com a família.<br />

16. Facilitar que os profissionais de saúde, b<strong>em</strong> como os futuros<br />

profissionais, conheçam a respeito do nascimento psíquico do sujeito, prevenção,<br />

distúrbios da interação mãe-criança e seus reflexos no adoecimento. Compreender,<br />

trabalhar e prevenir os sinais precoces de sofrimento infantil e os distúrbios relacionais,<br />

AA Kupfer et al 18 desenvolv<strong>em</strong> pesquisa que pretende, dentre outros objetivos, acrescentar a esse<br />

instrumento a relação mãe-criança.


nas consultas de puericultura e no hospital geral, antes de chegar às consultas<br />

especializadas pode ser uma estratégia eficaz e econômica.<br />

17. Aumentar o quadro de profissionais de psicologia na enfermaria.<br />

18. Oferecer maior atenção à formação dos profissionais de ponta, nas<br />

comunidades, <strong>em</strong> prol do aperfeiçoamento no diagnóstico precoce e tratamento da<br />

desnutrição, tendo <strong>em</strong> vista o sist<strong>em</strong>a de referência e contra-referência do SUS.<br />

19. Pesquisar a observação da psicodinâmica interativa como instrumento<br />

compl<strong>em</strong>entar ao décimo passo do Manual da OMS. 1<br />

20. Promover pesquisas que estendam o acompanhamento da díade/família<br />

posteriormente à alta hospitalar.


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Anexos e Apêndices<br />

Anexo 1 – Ficha de Acompanhamento do Desenvolvimento<br />

Apêndice 1 – Roteiro das Entrevistas<br />

Apêndice 2 – Roteiro para Análise das Observações Filmadas<br />

Anexo 2 – Parecer de aprovação do Comitê de Ética <strong>em</strong> Pesquisa<br />

Envolvendo Seres Humanos do Instituto Materno Infantil Prof.<br />

Fernando Figueira (IMIP)<br />

Apêndice 3 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (A)<br />

Apêndice 4 – Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (B)


APÊNDICE 1<br />

ROTEIRO DAS ENTREVISTAS<br />

El<strong>em</strong>entos Maternos<br />

Características sócio-econômico-d<strong>em</strong>ográficas<br />

Vínculos familiares maternos<br />

Vínculo conjugal atual<br />

História clínico-nutricional<br />

Significado da criança no psiquismo materno durante a gestação<br />

Significado da criança no psiquismo materno no parto e puerpério<br />

Significado da criança <strong>em</strong> seus primeiros meses de vida (cuidados iniciais)<br />

Sentimentos maternos diante da interação habitual da criança (antes da desnutrição e da<br />

internação)<br />

Fantasias e significados maternos quanto à desnutrição<br />

Sentimentos maternos diante da internação (quanto à interação com a criança, com o<br />

hospital e com a equipe de saúde)<br />

El<strong>em</strong>entos Familiares<br />

Condições sócio-d<strong>em</strong>ográficas da família (subsistência, renda, número de habitantes no<br />

domicílio, condições da habitação, suporte social e assistencial)<br />

Características do pai da criança (contato do pai com a criança e mãe, tipo de<br />

participação do pai na dinâmica familiar, ocupação, transtornos mentais e de<br />

comportamento)<br />

Alimentação da família<br />

El<strong>em</strong>entos Infantis<br />

Desenvolvimento afetivo e psicomotor da criança<br />

História alimentar da criança<br />

A criança internada<br />

El<strong>em</strong>entos da díade <strong>em</strong> interação<br />

Sentimento da mãe diante das atividades de interação com a criança (quanto a si mesma<br />

e quanto à criança)


APÊNDICE 2<br />

ROTEIRO PARA ANÁLISE DAS OBSERVAÇÕES FILMADAS<br />

Díade: ____________________________________________<br />

Data: ___________________________ Filmag<strong>em</strong>: Sim Não<br />

Atividade observada: _______________________________ Local:<br />

__________________<br />

Qu<strong>em</strong> inicia a atividade Como Qual o<br />

contexto desta<br />

Como o outro da díade reage<br />

Como a criança reagiu diante do anúncio<br />

da atividade (choro, sorriso, balbucio,<br />

intensa movimentação motora, recusa)<br />

A mãe anuncia, menciona o brinquedo ou<br />

a brincadeira/alimentação Como<br />

Montou setting<br />

A criança está posicionada de frente para a<br />

mãe; como estava posicionada A mãe<br />

busca acomodar a criança Caso mame,<br />

como está seu corpo <strong>em</strong> relação ao da<br />

mãe<br />

A criança abre a boca, antecipando o<br />

alimento<br />

Caso a criança antecipe o alimento, qual a<br />

reação da mãe (comentário de aprovação,<br />

reclama)<br />

A criança recusa o alimento Como Por<br />

quê<br />

Reação da mãe, caso a criança tenha<br />

recusado o alimento:<br />

• Conversa com a criança<br />

• Usa o lúdico para convencê-la<br />

• Tenta novamente<br />

• Reclama com a criança<br />

• Ameaça a criança<br />

• Bate na criança<br />

• Chama outra pessoa para ajudar<br />

• Simplesmente desiste<br />

• Ignora e continua<br />

Reação da criança (choro, sorriso,<br />

balbucio, intensa movimentação motora,<br />

recusa)<br />

A mãe respeita o ritmo da criança ao longo<br />

da alimentação De que forma respeita<br />

(reciprocamente, esperando algum sinal da


criança) ou não respeita (parece não<br />

perceber os sinais da criança, força, é<br />

agressiva, reclama)<br />

Quanto à responsividade materna,<br />

existiram respostas apropriadas, <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po<br />

compatível<br />

A mãe utiliza algum objeto para<br />

intermediar a atividade Qual Como<br />

A criança se interessa ou recusa o<br />

brinquedo/brincadeira/alimento Como<br />

Por que<br />

A mãe dá oportunidade para a criança<br />

escolher o brinquedo/brincadeira/interagir<br />

com o alimento<br />

Caso a criança busque o<br />

brinquedo/brincadeira/alimento, como a<br />

mãe reage<br />

A mãe respeita o ritmo da criança ao longo<br />

da atividade De que forma respeita<br />

(reciprocamente, esperando algum sinal da<br />

criança) ou não respeita (parece não<br />

perceber os sinais da criança, força, é<br />

agressiva, reclama)<br />

Quanto à responsividade materna,<br />

existiram respostas apropriadas, <strong>em</strong> t<strong>em</strong>po<br />

compatível<br />

Observa-se troca de olhares entre a díade<br />

Como cada uma reage diante dos olhares<br />

da outra<br />

Caso a criança se desorganize, como a<br />

mãe reage<br />

• Ajuda a criança a se reorganizar,<br />

eficazmente, acolhendo<br />

adequadamente a criança<br />

(correspondendo ao que a criança<br />

necessita)<br />

• Ajuda a criança a se reorganizar,<br />

porém de modo ineficaz<br />

(movimenta muito a criança, etc)<br />

• Nada faz, só olha<br />

• Reclama com a criança<br />

• Afasta-se da criança<br />

• Pede ajuda<br />

Como a criança, então desorganizada,<br />

reage frente à resposta materna (busca a<br />

mãe, se reorganiza só, chora)<br />

Recurso utilizado pela criança para se<br />

reorganizar (busca objeto transitório,


chupa o dedo/chupeta, chupa a língua)<br />

Observa-se troca de afagos, beijos,<br />

carícias, cosquinhas, abraços, entre a<br />

díade Quando (contexto) Com que<br />

freqüência<br />

A criança vocaliza, balbucia, diante das<br />

verbalizações maternas<br />

Impressão da observação<br />

Pontos básicos:<br />

• Como se constro<strong>em</strong> as interações (qu<strong>em</strong> dá início e como)<br />

• Em que contexto ocorr<strong>em</strong> as interações<br />

• Recursos utilizados pela díade nas interações (falas, canções, mamanhês,<br />

balbucios, posturas, gestos, choro, sorriso, uso de objetos para intermediar,<br />

auxiliar a interação, se leva os objetos à boca, etc)<br />

• Se há presença de el<strong>em</strong>entos como ludicidade, mamanhês, atribuição de<br />

significado aos diversos comportamentos (vocalizações, gestos, olhares,<br />

atitudes), mudança de posicionamento tendo <strong>em</strong> vista acolhimento da criança ao<br />

longo da interação<br />

• Observa se a mãe se dirige à criança dialogicamente, atribuindo espaços<br />

t<strong>em</strong>porais de interação e resposta (turno ou t<strong>em</strong>po durante o qual, <strong>em</strong> resposta às<br />

mensagens maternas, a criança pode manifestar-se), considerando a criança um<br />

parceiro na interação<br />

• Observa-se a presença de uma seqüência de ações coordenadas<br />

• Mãe e criança consegu<strong>em</strong> comunicar suas intenções<br />

• Como a mãe se sente diante das interações (vê-se eficiente, sente-se parceira<br />

real de uma interação, sente que consegue comunicar suas intenções à criança)


APÊNDICE 3<br />

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (A)<br />

I. Dados de identificação dos sujeitos da pesquisa<br />

Nome da mãe:<br />

Data de nascimento:<br />

Endereço:<br />

Telefone:<br />

Documento de identidade:<br />

Nome da criança:<br />

Sexo:<br />

Data de nascimento:<br />

Número do prontuário:<br />

II. Informações sobre a pesquisa<br />

Título da pesquisa: “Interação Mãe-Criança Desnutrida Grave no Contexto da<br />

Hospitalização”<br />

Pesquisadora: Psicóloga Marisa Amorim Sampaio<br />

Cargo/função: Psicóloga da unidade de neonatologia do IMIP, aluna do Mestrado<br />

<strong>em</strong> Saúde Materno Infantil do IMIP<br />

Inscrição no Conselho Regional (CRP): 02/10.686<br />

Endereço: Av. 17 de Agosto, 2184 – Casa Forte – Recife-PE<br />

Telefones: 3268-7380 / 9178-4972 FAX: 3441-3283<br />

A pesquisa será realizada no Instituto Materno Infantil Prof. Fernando<br />

Figueira – IMIP, buscando compreender a interação da mãe com a sua criança<br />

desnutrida internada no hospital (explicar à mãe <strong>em</strong> termos acessíveis à sua<br />

compreensão o que se pretende fazer). A realização da pesquisa é importante porque<br />

poucos são os estudos sobre a interação entre mães e crianças desnutridas internadas<br />

num hospital, e os resultados poderão auxiliar a equipe no tratamento da desnutrição.<br />

III. Consentimento da participação do investigado<br />

Eu ____________________________________________________, responsável legal<br />

pela criança ________________________________________________, paciente<br />

matriculado no IMIP, registro ___________________________, declaro que fui<br />

devidamente informada pela pesquisadora Marisa Amorim Sampaio sobre a finalidade<br />

da pesquisa “Interação Mãe-Criança Desnutrida Grave no Contexto da Hospitalização”<br />

e estou perfeitamente consciente de que:<br />

1. Concordei <strong>em</strong> participar da pesquisa, juntamente com meu filho(a), s<strong>em</strong> que<br />

recebesse nenhuma pressão;<br />

2. Tenho a garantia de receber resposta a qualquer pergunta ou esclarecimento a<br />

qualquer dúvida acerca dos procedimentos, riscos, benefícios e outros<br />

relacionados com a pesquisa;


3. Estou ciente que estou participando de um estudo de observação, não havendo<br />

qualquer interferência na conduta médica adotada;<br />

4. Meu filho(a) continuará sendo submetido(a) aos atendimentos e tratamento<br />

rotineiros deste hospital, independent<strong>em</strong>ente de minha participação na pesquisa;<br />

5. Participarei de um estudo no qual serão realizadas entrevistas e serei observada<br />

com meu filho(a), atividades essas que poderão ser gravadas e/ou filmadas;<br />

6. Concordo <strong>em</strong> participar de todos os procedimentos da pesquisa (entrevistas e<br />

observações), pois durante os mesmos estarei acompanhando meu filho(a) no<br />

hospital durante sua internação;<br />

7. Dou permissão para que as entrevistas e observações sejam gravadas <strong>em</strong> cassete<br />

e/ou vídeo. Estou ciente que, ao término da pesquisa os resultados serão<br />

divulgados com fins acadêmicos, porém s<strong>em</strong> que meu nome ou o do meu<br />

filho(a) seja associado à pesquisa;<br />

8. Estou ciente que as entrevistas serão transcritas (a fala gravada será<br />

transformada <strong>em</strong> texto de computador) e que alguns colegas pesquisadores<br />

poderão conhecer o conteúdo para discutir os resultados, mas que essas pessoas<br />

estarão submetidas às normas do sigilo profissional;<br />

9. Estou ciente que posso me recusar a dar resposta a determinadas questões das<br />

entrevistas, b<strong>em</strong> como terminar minha participação na pesquisa <strong>em</strong> qualquer<br />

t<strong>em</strong>po, s<strong>em</strong> penalidades ou prejuízos ao atendimento e tratamento que meu<br />

filho(a) recebe no IMIP;<br />

10. A pesquisadora poderá ter acesso ao prontuário do meu filho, resguardando o<br />

sigilo das informações;<br />

11. Fui informada que a pesquisa não representa risco para mim ou para a criança e<br />

que a mesma pode ajudar na compreensão da interação mãe-criança e da<br />

desnutrição;<br />

12. A pesquisadora se comprometeu a me comunicar qualquer resultado que<br />

implique a necessidade de uma intervenção psicológica ou de qualquer outro<br />

profissional, assim como respeitar o sigilo das informações coletadas, o que<br />

significa a possibilidade de encaminhamento para profissional competente que<br />

oferecerá orientação específica ou suporte <strong>em</strong>ocional, se necessário ou caso eu<br />

solicite;<br />

13. Recebi da pesquisadora uma cópia deste documento<br />

Recife, ________ de ________________ de __________<br />

_________________________________<br />

Participante da Pesquisa<br />

_______________________________<br />

Pesquisadora


APÊNDICE 4<br />

TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO (B)<br />

I. Dados de identificação dos sujeitos da pesquisa<br />

Nome da mãe:<br />

Data de nascimento:<br />

Endereço:<br />

Telefone:<br />

Documento de identidade:<br />

Nome da criança:<br />

Sexo:<br />

Data de nascimento:<br />

Número do prontuário:<br />

II. Informações sobre a pesquisa<br />

Título da pesquisa: “Interação Mãe-Criança Desnutrida Grave no Contexto da<br />

Hospitalização”<br />

Pesquisadora: Psicóloga Marisa Amorim Sampaio<br />

Cargo/função: Psicóloga da unidade de neonatologia do IMIP, aluna do Mestrado<br />

<strong>em</strong> Saúde Materno Infantil do IMIP<br />

Inscrição no Conselho Regional (CRP): 02/10.686<br />

Endereço: Av. 17 de Agosto, 2184 – Casa Forte – Recife-PE<br />

Telefones: 3268-7380 / 9178-4972 FAX: 3441-3283<br />

A pesquisa será realizada no Instituto Materno Infantil Prof. Fernando<br />

Figueira – IMIP, buscando compreender a interação da mãe com a sua criança<br />

desnutrida internada no hospital (explicar à mãe <strong>em</strong> termos acessíveis à sua<br />

compreensão o que se pretende fazer). A realização da pesquisa é importante porque<br />

poucos são os estudos sobre a interação entre mães e crianças desnutridas internadas<br />

num hospital, e os resultados poderão auxiliar a equipe no tratamento da desnutrição.<br />

III. Consentimento da participação do investigado<br />

Eu ____________________________________________________, responsável legal<br />

pela mãe e pela criança internada<br />

________________________________________________, paciente matriculado no<br />

IMIP, registro ___________________________, declaro que fui devidamente<br />

informada pela pesquisadora Marisa Amorim Sampaio sobre a finalidade da pesquisa<br />

“Interação Mãe-Criança Desnutrida Grave no Contexto da Hospitalização” e estou<br />

perfeitamente consciente de que:<br />

1. Concordei <strong>em</strong> participar da pesquisa, juntamente com meu filho(a), s<strong>em</strong> que<br />

recebesse nenhuma pressão;


2. Tenho a garantia de receber resposta a qualquer pergunta ou esclarecimento a<br />

qualquer dúvida acerca dos procedimentos, riscos, benefícios e outros<br />

relacionados com a pesquisa;<br />

3. Estou ciente que estou participando de um estudo de observação, não havendo<br />

qualquer interferência na conduta médica adotada;<br />

4. Meu filho(a) continuará sendo submetido(a) aos atendimentos e tratamento<br />

rotineiros deste hospital, independent<strong>em</strong>ente de minha participação na pesquisa;<br />

5. Participarei de um estudo no qual serão realizadas entrevistas e serei observada<br />

com meu filho(a), atividades essas que poderão ser gravadas e/ou filmadas;<br />

6. Concordo <strong>em</strong> participar de todos os procedimentos da pesquisa (entrevistas e<br />

observações), pois durante os mesmos estarei acompanhando meu filho(a) no<br />

hospital durante sua internação;<br />

7. Dou permissão para que as entrevistas e observações sejam gravadas <strong>em</strong> cassete<br />

e/ou vídeo. Estou ciente que, ao término da pesquisa os resultados serão<br />

divulgados com fins acadêmicos, porém s<strong>em</strong> que meu nome ou o do meu<br />

filho(a) seja associado à pesquisa;<br />

8. Estou ciente que as entrevistas serão transcritas (a fala gravada será<br />

transformada <strong>em</strong> texto de computador) e que alguns colegas pesquisadores<br />

poderão conhecer o conteúdo para discutir os resultados, mas que essas pessoas<br />

estarão submetidas às normas do sigilo profissional;<br />

9. Estou ciente que posso me recusar a dar resposta a determinadas questões das<br />

entrevistas, b<strong>em</strong> como terminar minha participação na pesquisa <strong>em</strong> qualquer<br />

t<strong>em</strong>po, s<strong>em</strong> penalidades ou prejuízos ao atendimento e tratamento que meu<br />

filho(a) recebe no IMIP;<br />

10. A pesquisadora poderá ter acesso ao prontuário do meu filho, resguardando o<br />

sigilo das informações;<br />

11. Fui informada que a pesquisa não representa risco para mim ou para a criança e<br />

que a mesma pode ajudar na compreensão da interação mãe-criança e da<br />

desnutrição;<br />

12. A pesquisadora se comprometeu a me comunicar qualquer resultado que<br />

implique a necessidade de uma intervenção psicológica ou de qualquer outro<br />

profissional, assim como respeitar o sigilo das informações coletadas, o que<br />

significa a possibilidade de encaminhamento para profissional competente que<br />

oferecerá orientação específica ou suporte <strong>em</strong>ocional, se necessário ou caso eu<br />

solicite;<br />

13. Recebi da pesquisadora uma cópia deste documento<br />

Recife, ________ de ________________ de __________<br />

_________________________________<br />

Participante da Pesquisa<br />

_______________________________<br />

Pesquisadora

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