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Uma campanha de fomento àleitura da Secretaria Municipalde Cultura de São Paulo, emparceria com a FundaçãoEditora da Unesp e a ImprensaOficial do Estado de São Paulo.


Comissão EditorialCarlos Augusto CalilCarlos Roberto Campos de Abreu SodréHeloisa JahnJézio Hernani Bomfim GutierreJosé de Souza MartinsLuciana VeitSamuel Titan Jr.Sérgio Vaz


Mário de andradeSão Paulo!comoção de minhavida…seleta organizada porTelê Ancona LopezTatiana Longo Figueiredo


© 2012 Editora UnespFundação Editora da Unesp (FEU)Praça da Sé, 10801001 ‐900 – São Paulo – SPTel.: (0xx11) 3242 ‐7171Fax: (0xx11) 3242 ‐7172www.editoraunesp.com.brwww.livrariaunesp.com.brfeu@editora.unesp.brImprensa Oficial do Estado de São PauloRua da Mooca, 1921, Mooca03103-902 – São Paulo – SPSac: 0800-0123-401sac@imprensaoficial.com.brlivros@imprensaoficial.com.brwww.imprensaoficial.com.brCIP — Brasil. Catalogação na fonteSindicato Nacional dos Editores de Livros, RJA565sAndrade, Mário de, 1893-1945São Paulo! comoção de minha vida... / Mário de Andrade; seletaorganizada por Telê Ancona Lopez, Tatiana Longo Figueiredo. – SãoPaulo: Ed. Unesp: Prefeitura Municipal: Imprensa Oficial do Estadode São Paulo, 2012.176p. (Projeto De Mão Em Mão)Inclui bibliografiaISBN 978-85-393-0254-3 (Unesp)ISBN 978-85-401-0086-2 (Imprensa Oficial)1. Andrade, Mário de, 1893-1945. 2. Poesia brasileira. 3. Contobrasileiro. 4. Modernismo (Literatura) - Brasil. I. Lopez, Telê Ancona.II. Figueiredo, Tatiana Longo. III. Título. IV. Série.12-5093. CDD: 869.91 CDU: 821.134.3(81)-1Editora afiliada:


De Mão Em MãoCom a distribuição de livros gratuitamente em locaisde ampla circulação, este projeto procura incentivar o gostopela leitura.O leitor poderá levar as publicações, sem necessidadede registro de retirada, com o compromisso de que asobras serão entregues em pontos de devolução e assimpartilhadas com futuros leitores. A iniciativa se inseredentro das ações da Secretaria Municipal de Cultura deSão Paulo que buscam a efetivação das políticas de leiturae informação, permitindo que todos os cidadãos tenhamacesso a atividades culturais.Conheça os pontos de distribuição dos livros “De MãoEm Mão” no site www.projetodemaoemmao.com.br.5


SumárioSobre este livro: São Paulo! 11comoção de minha vida…I. A poesia 15Inspiração 17Os cortejos 18O rebanho 19Tietê 20Paisagem n o 1 21Ode ao burguês 22domingo 24Anhangabaú 26noturno 27Tu 30Colloque sentimental 32Paisagem n o 4 34XIII – “Seis horas lá em S. Bento.” 35XVII – “Mário de Andrade, 37intransigente pacifista […]”7


XXII – “A manhã roda 39macia a meu lado”XXXIII – “Meu gozo profundo 40ante a manhã sol”Sambinha 41Paisagem n o 5 42I – Descobrimento 43II – “Meu cigarro está aceso.” 44V – “Aquele quarto me sufoca,” 46Momento 48Toada 49V – Dor 50Momento 52“Minha viola bonita,” 53“São Paulo pela noite.” 54“Garoa do meu São Paulo,” 55“Vaga um céu indeciso 56entre nuvens cansadas.”“Ruas do meu São Paulo,” 57“O bonde abre a viagem,” 58“Eu nem sei se vale a pena” 59“O céu claro tão 61largo, cheio de calma na tarde,”“Na rua Barão de Itapetininga” 62“Beijos mais beijos,” 63“A catedral de São Paulo” 64“Na rua Aurora eu nasci” 65“Quando eu morrer quero ficar,” 66A meditação sobre o Tietê 688


II. A ficção 81Nas terras do igarapé Tietê 83Túmulo, túmulo, túmulo 89Primeiro de Maio 105Balança, Trombeta e Battleship 117ou o descobrimento da almaIII. O poeta por ele mesmo 145Eu sou trezentos… 147notas/Glossário 149Bibliografia 159Endereços úteis 1619


Sobre este livro“São Paulo! comoção de minha vida…”Este verso de Mário de Andrade (1893 ‐1945), compostoem 1922, resume a ligação essencial do escritor paulistanocom uma cidade por ele transfigurada em sua criaçãode artista. São Paulo perpassa a poesia e a prosa domodernista que foi capaz de estender as fronteiras estéticasdo modernismo de programa, afirmando ‐se modernona ironia do olhar sobre a própria obra, sobre seu país esobre seu tempo; na denúncia das injustiças sociais e dascontradições do progresso, assim como na constatação daangústia e da inelutável solidão do homem. Sem esquecero riso, na consciência da precariedade da arte e da vida.Estruturou um projeto literário renovador, muitas vezesvisionário, moldado em três vertentes – estética, ideológicae linguística. O poeta, romancista e contista que pôdetocar verdades humanas está atualmente traduzido emdiversos idiomas.São Paulo, musa e espaço arlequinal, microcosmo percorridopelo eu lírico e pela narrativa de multiplicado11


mário de andradefoco, reflete a experimentação dirigida pelo crivo críticodas vanguardas europeias e por meditadas lições do passado,no anseio de ser brasileiro e assim contribuir parao “contingente universal”. A Pauliceia mariodeandradiananão admite a modernolatria alienada, o bairrismoeufórico ou o nacionalismo ufanista. No mundo de hoje,mostra ‐se, por vezes, de impressionante atualidade.Na presente seleta, São Paulo demora ‐se na poesia desdePauliceia desvairada, 1922, marco em nosso modernismo;e em textos que caminham até “A meditação sobreo Tietê”, poema concluído poucos dias antes de Máriofalecer, em fevereiro de 1945. Na prosa, abrange a rapsódiaMacunaíma, Os contos de Belazarte, os Contos novose a novela inacabada Balança, Trombeta e Battleship,situando ‐se na década de 1920 e nos anos que a seguiram,até a morte do escritor.Esta edição acata o vocabulário e a sintaxe os quais,tanto na prosa como na poesia escolhidas, manifestam‐‐se na língua portuguesa falada no país, enquanto artifícioresultante da pesquisa empreendida por aquele quechegou a trabalhar em uma Gramatiquinha da fala brasileira.Ao pôr em prática a atualização ortográfica dostextos pela norma vigente, a seleta não se furtou a cumprir,paralelamente, a grafia fonética de determinadaspalavras e expressões, compartilhando a preocupaçãocom a prosódia e o sentido, o que, na parcela linguísticado nacionalismo do modernista, responde por idiossiocrasiasortográficas. Ao acatar essas formas e o discurso“oral” de Belazarte (“Belazarte me contou”) ou o cantodo narrador rapsodo em Macunaíma, o estabelecimentodo texto respeitou a sonoridade e o ritmo da frase, questõesde importância estilística capital, assim como a pontuação.Formas como si, milhor, quasi, rúim, viada, ólio,12


sobre este livrodezanove, engulia, há ‐de, já ‐hoje, de ‐tarde, diz ‐que, caixadóclos,malestar, senvergonha, a ‐pé e outras, garantema fidelidade decalcada em manuscritos e tiragens realizadasdurante a vida do autor.Cabe lembrar que o ingresso desta coletânea da obraliterária de Mário de Andrade no projeto De Mão Em Mãovale como o eco que consolida a democratização do saberpela qual este lúcido intelectual lutou, entre 1935 e 1938, àfrente do Departamento de Cultura da Municipalidadede São Paulo. E o livro termina, aberto a novas dimensõesnos versos de “Eu sou trezentos…”.13


I. A poesia


Inspiração *“Onde até na força do verão haviatempestades de ventos e frios decrudelíssimo inverno.”Fr. Luís de Sousa 1São Paulo! comoção de minha vida…Os meus amores são flores feitas de original!…Arlequinal!… Traje de losangos… Cinza e ouro…Luz e bruma… Forno e inverno morno…Elegâncias sutis sem escândalos, sem ciúmes…Perfumes de Paris… Arys! 2Bofetadas líricas no Trianon… 3 Algodoal!…São Paulo! comoção de minha vida…Galicismo 4 a berrar nos desertos da América!* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922, e em Poesias, 1941.17


mário de andradeOs cortejos *Monotonias das minhas retinas…Serpentinas de entes frementes a se desenrolar…Todos os sempres das minhas visões! “Bon giorno, caro”.Horríveis as cidades!Vaidades e mais vaidades…Nada de asas! Nada de poesia! Nada de alegria!Oh! os tumultuários das ausências!Pauliceia – a grande boca de mil dentes;e os jorros dentre a língua trissulcade pus e de mais pus de distinção…Giram homens fracos, baixos, magros…Serpentinas de entes frementes a se desenrolar…Estes homens de São Paulo,todos iguais e desiguais,quando vivem dentro dos meus olhos tão ricos,parecem ‐me uns macacos, uns macacos.* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922.18


A poESIAO rebanho *Oh! minhas alucinações!Vi os deputados, chapéus altos,sob o pálio vesperal, 5 feito de mangas ‐rosas,saírem de mãos dadas do Congresso…Como um possesso num acesso em meus aplausosaos salvadores do meu estado amado!…Desciam, inteligentes, de mãos dadas,entre o trepidar dos táxis vascolejantes,a rua Marechal Deodoro…Oh! minhas alucinações!Como um possesso num acesso em meus aplausosaos heróis do meu estado amado!…E as esperanças de ver tudo salvo!Duas mil reformas, três projetos…Emigram os futuros noturnos…E verde, verde, verde!…Oh! minhas alucinações!Mas os deputados, chapéus altos,mudavam ‐se pouco a pouco em cabras!Crescem ‐lhes os cornos, descem ‐lhes as barbinhas…E vi que os chapéus altos do meu estado amado,com os triângulos de madeira no pescoço,nos verdes esperanças, sob as franjas de ouro da tarde,se punham a pastarrente do palácio do senhor presidente… 6Oh! minhas alucinações!* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922, e em Poesias, 1941.19


mário de andradeTietê *Era uma vez um rio…Porém os Borbas ‐Gatos 7 dos ultranacionais[esperiamente! 8Havia nas manhãs cheias de sol do entusiasmoas monções 9 da ambição…E as gigânteas vitórias!As embarcações singravam rumo do abismal[Descaminho…Arroubos… Lutas… Setas… Cantigas… Povoar!Ritmos de Brecheret!… 10 E a santificação da morte!Foram ‐se os ouros!… E o hoje das turmalinas!… 11– Nadador! vamos partir pela via dum Mato ‐Grosso?– Io! Mai!… (Mais dez braçadas.Quina Migone. 12 Hat Stores. 13 Meia de seda.)Vado a pranzare con la Ruth.* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922.20


A poESIAPaisagem n o 1 *Minha Londres das neblinas finas!Pleno verão. Os dez mil milhões de rosas paulistanas.Há neve de perfumes no ar.Faz frio, muito frio…E a ironia das pernas das costureirinhasparecidas com bailarinas…O vento é como uma navalhanas mãos dum espanhol. Arlequinal!…Há duas horas queimou sol.Daqui a duas horas queima sol.Passa um São Bobo, cantando, sob os plátanos,um tralalá… A guarda ‐cívica! Prisão!Necessidade a prisãopara que haja civilização?Meu coração sente ‐se muito triste…Enquanto o cinzento das ruas arrepiadasdialoga um lamento com o vento…Meu coração sente ‐se muito alegre!Este friozinho arrebitadodá uma vontade de sorrir!E sigo. E vou sentindo,à inquieta alacridade 14 da invernia,como um gosto de lágrimas na boca…* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922, e em Poesias,1941.21


mário de andradeOde ao burguês *Eu insulto o burguês! O burguês ‐níquel, 15o burguês‐burguês!A digestão bem feita de São Paulo!O homem ‐curva! o homem ‐nádegas!O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,é sempre um cauteloso pouco ‐a ‐pouco!Eu insulto as aristocracias cautelosas!Os barões lampiões! os condes Joões! os duques zurros!que vivem dentro de muros sem pulos;e gemem sangues de alguns milréis fracospara dizerem que as filhas da senhora falam o francêse tocam o Printemps 16 com as unhas!Eu insulto o burguês ‐funesto!O indigesto feijão com toucinho, dono das tradições!Fora os que algarismam os amanhãs!Olha a vida dos nossos setembros!Fará sol? Choverá? Arlequinal!Mas à chuva dos rosaiso êxtase fará sempre sol!Morte à gordura!Morte às adiposidades cerebrais!Morte ao burguês ‐mensal!ao burguês ‐cinema! Ao burguês ‐tílburi! 17→* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922, e em Poesias,1941.22


A poESIAPadaria Suíça! 18 Morte viva ao Adriano!“– Ai, filha, que te darei pelos teus anos?– Um colar… – Conto e quinhentos!!!Mas nós morremos de fome!”Come! Come ‐te a ti mesmo, oh! gelatina pasma!Oh! purée de batatas morais!Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!Ódio aos temperamentos regulares!Ódio aos relógios musculares! Morte e infâmia!Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,sempiternamente as mesmices convencionais!De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!Dois a dois! Primeira posição! Marcha!Todos para a Central 19 do meu rancor inebriante!Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!Morte ao burguês de giolhos, 20cheirando religião e que não crê em Deus!Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!Ódio fundamento, sem perdão!Fora! Fu! Fora o bom burguês!…23


mário de andradeDomingo *Missas de chegar tarde, em rendas,e dos olhares acrobáticos…Tantos telégrafos sem fio!Santa Cecília regorgita de corpos lavadose de sacrilégios picturais…Mas Jesus Cristo nos desertos,mas o sacerdote no Confiteor… 21 Contrastar!– Futilidade, civilização…Hoje quem joga?… O Paulistano. 22Para o Jardim América das rosas e dos pontapés!Friedenreich 23 fez gol! Corner! Que juiz!Gostar de Bianco? Adoro. Qual Bartô…E o meu xará maravilhoso!… 24– Futilidade, civilização…Mornamente em gasolinas… Trinta e cinco contos!Tens dez milréis? Vamos ao corso… 25E filar cigarros a quinzena inteira…Ir ao corso é lei. Viste Marília?E Filis? Que vestido: pele só!Automóveis fechados… Figuras imóveis…O bocejo do luxo… Enterro.E também as famílias dominicais por atacado,entre os convenientes perenemente…– Futilidade, civilização.* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922.24


A poESIACentral. Drama de adultério.A Bertini 26 arranca os cabelos e morre.Fugas… Tiros… Tom Mix! 27Amanhã fita alemã… de beiços…As meninas mordem os beiços pensando em fita[alemã…As romas de Petrônio… 28E o leito virginal… Tudo azul e branco!Descansar… Os anjos… Imaculado!As meninas sonham masculinidades…– Futilidade, civilização.25


mário de andradeAnhangabaú *Parques do Anhangabaú nos fogaréus da aurora…Oh larguezas dos meus itinerários!…Estátuas de bronze nu correndo eternamente,num parado desdém pelas velocidades…O carvalho votivo escondido nos orgulhosdo bicho de mármore parido no Salon… 29Prurido de estesias perfumando em rosaiso esqueleto trêmulo do morcego…Nada de poesia, nada de alegrias!…E o contraste boçal do lavradorque sem amor afia a foice…Estes meus parques do Anhangabaú ou de Paris,onde as tuas águas, onde as mágoas dos teus sapos?“– Meu pai foi rei!– Foi. – Não foi. – Foi. – Não foi.” 30Onde as tuas bananeiras?Onde o teu rio frio encanecido 31 pelos nevoeiros,contando histórias aos sacis?…Meu querido palimpsesto 32 sem valor!Crônica em mau latimcobrindo uma écloga 33 que não seja de Virgílio!…* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 192226


A poESIANoturno *Luzes do Cambuci pelas noites de crime… 34Calor!… E as nuvens baixas muito grossas,feitas de corpos de mariposas,rumorejando na epiderme das árvores…Gingam os bondes como um fogo de artifício,sapateando nos trilhos,cuspindo um orifício na treva cor de cal…Num perfume de heliotrópios 35 e de poçasgira uma flor ‐do ‐mal… Veio do Turquestã;e traz olheiras que escurecem almas…Fundiu esterlinas entre as unhas roxasnos oscilantes de Ribeirão Preto…– Batat’assat’ô furnn!… 36Luzes do Cambuci pelas noites de crime!…Calor… E as nuvens baixas muito grossas,feitas de corpos de mariposas,rumorejando na epiderme das árvores…Um mulato cor de ouro,com uma cabeleira feita de alianças polidas…Violão! “Quando eu morrer…” Um cheiro pesado de[baunilhasoscila, tomba e rola no chão…Ondula no ar a nostalgia das Baías…* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922, e em Poesias,1941.27


mário de andradeE os bondes passam como um fogo de artifício,sapateando nos trilhos,ferindo um orifício na treva cor de cal…– Batat’assat’ô furnn!…Calor!… Os diabos andam no arcorpos de nuas carregando…As lassitudes 37 dos sempres imprevistos!e as almas acordando às mãos dos enlaçados!Idílios sob os plátanos!…E o ciúme universal às fanfarras gloriosasde saias cor ‐de ‐rosa e gravatas cor ‐de ‐rosa!…Balcões na cautela latejante, onde florem Iracemaspara os encontros dos guerreiros brancos… 38 Brancos?E que os cães latam nos jardins!Ninguém, ninguém, ninguém se importa!Todos embarcam na Alameda dos Beijos da Aventura!Mas eu… Estas minhas grades em girândolas 39 de[jasmins,enquanto as travessas do Cambuci nos livresda liberdade dos lábios entreabertos!…Arlequinal! Arlequinal!As nuvens baixas muito grossas,feitas de corpos de mariposas,rumorejando na epiderme das árvores…Mas sobre estas minhas grades em girândolas de[jasmins,o estelário delira em carnagens de luz,e meu céu é todo um rojão de lágrimas!…28


A poESIAE os bondes riscam como um fogo de artifício,sapateando nos trilhos,jorrando um orifício na treva cor de cal…– Batat’assat’ô furnn!…29


mário de andradeTu *Morrente chama esgalga, 40mais morta inda no espírito!Espírito de fidalga,que vive dum bocejo entre dois galanteiose de longe em longe uma chávena 41 da treva bem forte!Mulher mais longaque os pasmos alucinadosdas torres de São Bento!Mulher feita de asfalto e de lamas de várzea,toda insultos nos olhos,toda convites nessa boca louca de rubores!Costureirinha de São Paulo,ítalo ‐franco ‐luso ‐brasílico ‐saxônica,gosto dos teus ardores crepusculares,crepusculares e por isso mais ardentes,bandeirantemente!Lady Macbeth 42 feita de névoa fina,pura neblina da manhã!Mulher que és minha madrasta e minha irmã!Trituração ascencional dos meus sentidos!Risco de aeroplano entre Moji e Paris!Pura neblina da manhã!* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922, e em Poesias,1941.30


A poESIAGosto dos teus desejos de crime turcoe das tuas ambições retorcidas como roubos!Amo ‐te de pesadelos taciturnos,Materialização da Canaã do meu Poe! 43Never more! 44Emílio de Menezes insultou a memória do meu Poe… 45Oh! Incendiária dos meus aléns sonoros!tu és o meu gato preto!Tu te esmagaste nas paredes do meu sonho!este sonho medonho!…E serás sempre, morrente chama esgalga,meio fidalga, meio barregã, 46as alucinações crucificantesde todas as auroras de meu jardim!31


mário de andradeColloque sentimental *Tenho os pés chagados nos espinhos das calçadas…Higienópolis!… As Babilônias dos meus desejos[baixos…Casas nobres de estilo… Enriqueceres em tragédias…Mas a noite é toda um véu ‐de ‐noiva ao luar…A preamar dos brilhos das mansões…O jazz ‐band da cor… O arco ‐íris dos perfumes…O clamor dos cofres abarrotados de vidas…Ombros nus, ombros nus, lábios pesados de adultério…E o rouge – cogumelo das podridões…Exércitos de casacas eruditamente bem talhadas…Sem crimes, sem roubos o carnaval dos títulos…Se não fosse o talco adeus sacos de farinha!Impiedosamente…– Cavalheiro… – Sou conde! – Perdão.Sabe que existe um Brás, um Bom Retiro?– Apre! respiro… Pensei que era pedido.Só conheço Paris!– Venha comigo então.Esqueça um pouco os braços da vizinha…– Percebeu, hein! Dou ‐lhe gorjeta e cale ‐se.O sultão tem dez mil… Mas eu sou conde!* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922, e em Poesias,1941.32


A poESIA– Vê? Estas paragens trevas de silêncio…Nada de asas, nada de alegria… A lua…A rua toda nua… As casas sem luzes…E a mirra 47 dos martírios inconscientes…– Deixe ‐me pôr o lenço no nariz.Tenho todos os perfumes de Paris!– Mas olhe, embaixo das portas, a escorrer…– Para os esgotos! Para os esgotos!– … a escorrer,um fio de lágrimas sem nome!…33


mário de andradePaisagem n o 4 *Os caminhões rodando, as carroças rodando,rápidas as ruas se desenrolando,rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos…E o largo coro de ouro das sacas de café!…Na confluência o grito inglês da São Paulo Railway… 48Mas as ventaneiras da desilusão! a baixa do café!…As quebras, as ameaças, as audácias superfinas!…Fogem os fazendeiros para o lar!… Cincinato Braga!… 49Muito ao longe o Brasil com seus braços cruzados…Oh! as indiferenças maternais!…Os caminhões rodando, as carroças rodando,rápidas as ruas se desenrolando,rumor surdo e rouco, estrépitos, estalidos…E o largo coro de ouro das sacas de café!…Lutar!A vitória de todos os sozinhos!…As bandeiras e os clarins dos armazéns abarrotados…Hostilizar!… Mas as ventaneiras dos braços cruzados!…E a coroação com os próprios dedos!Mutismos presidenciais, para trás!Ponhamos os (Vitória!) colares de presas inimigas!Enguirlandemo ‐nos de café ‐cereja!Taratá! e o peã 50 de escárnio para o mundo!Oh! este orgulho máximo de ser paulistamente!!!* Poema publicado em Pauliceia desvairada, 1922, e em Poesias, 1941.34


A poESIAXIII *Seis horas lá em S. Bento.Os lampiões fecham os olhos de repenteÀ voz de comando do sino.A madrugada imensamente escuraAbafa as arquiteturas da praça.E a estátua de Verdi 51 também, graças a Deus!Mãos nos bolsosGrupinhos entanguidosEncafuados nas socavas dos andaimesOs reservistas que nem malfeitores.Dlem! Dlem!…“SANT’ANA”Vem vindo a procissão com tocheiros e luzes.E principia o assalto agitado sem vozes.Anticlericais!Fora estandartes andores!Desaparecem os padres da noite.As filhas ‐de ‐Maria das neblinasEspavoridas pelo Anhangabaú…→* Poema publicado em Losango cáqui ou afetos militares de misturacom os porquês de eu saber alemão, 1926. Obra escrita em 1922,ano no qual o autor, como reservista do exército, realiza exercíciosmilitares. O título Losango foi recortado do traje arlequinal dopoeta em Pauliceia desvairada, escolhida a cor cáqui dos uniformesmilitares à época. Deve ‐se notar, em determinados poemasde Losango cáqui, a organização gráfica que concretiza, na página,um desenho ligado ao tema, poesia visual, como nos Calligrammesde Appolinaire (1880 ‐1918), na vanguarda francesa.35


mário de andradeAssaltantes equilibrados nos estribos.Estilhaço me fere nos olhos o sangue da aurora.Risadas.Chamados.Cigarros acesos.Incêndio!Extermínio!Vitória completa…Faz frio de geada esta manhã…A gente se encosta nos outros, pedindoUma esmolinha de calor.E o bonde abala sapateando nos trilhosEm busca das casernas sinistras cor ‐de ‐chumbo.36


A poESIAXVII *Mário de Andrade, intransigente pacifista, internacionalistaamador, comunica aos camaradas que bem contravontade,apesar da simpatia dele por todos os homensda Terra, dos seus ideais de confraternização universal, éatualmente soldado da República, defensor interino doBrasil.E marcho tempestuoso noturno.Minha alma cidade das greves sangrentas,Inferno fogo INFERNO em meu peito,Insolências blasfêmias bocagens na língua.Meus olhos navalhando a vida detestada.A vista renasce na manhã bonita.Pauliceia lá embaixo epiderme ásperaAmbarizada pelo sol vigoroso,Com o sangue do trabalho correndo nas veias das ruas.Fumaça bandeirinha.Torres.Cheiros.BarulhosE fábricas…Naquela casa mora,Mora, ponhamos: Guaraciaba…A dos cabelos fogaréu!…Os bondes meus amigos íntimosQue diariamente me acompanham pro [trabalho… →* Poema publicado em Losango cáqui, 1926 e em Poesias, 1941.37


mário de andradeMinha casa…Tudo caiado de novo!É tão grande a manhã!É tão bom respirar!É tão gostoso gostar da vida!…A própria dor é uma felicidade…38


A poESIAXXII *A manhã roda macia a meu ladoEntre arranha ‐céus de luzConstruídos pelo melhor engenheiro da Terra.Como ele deixou longe as renascenças do sr. dr. Ramos [de Azevedo! 52De que valem a Escola Normal o Théatre Municipal de[l’OpéraE o sinuoso edifício dos Correios ‐e ‐TelégrafosCom aquele relógio ‐diadema made inexpressively?Na Pauliceia desvairada das minhas sensaçõesO Sol é o sr. engenheiro oficial.* Poema publicado em Losango cáqui, 1926.39


mário de andradeXXXIII *“Prazeres e dores prendem a alma no corpocomo com um prego. Tornam ‐a corporal…Consequentemente é impossível a ela chegarpura nos Infernos.”PlatãoMeu gozo profundo ante a manhã sola vida carnaval…AmigosAmoresRisadasOs piás imigrantes me rodeiam pedindo retratinhos de [artistas de cinema, desses que vêm[nos maços de cigarros.Me sinto a Assunção de Murilo! 53Já estou livre da dor…Mas todo vibro da alegria de viver.Eis porque minha alma inda é impura.* Poema publicado em Losango cáqui, 1926 e em Poesias, 1941.40


A poESIASambinha *Vêm duas costureirinhas pela rua das Palmeiras.Afobadas, braços dados, depressinha,Bonitas, Senhor! que até dão vontade pros homens da rua.As costureirinhas vão explorando perigos…Vestido é de seda.Roupa ‐branca é de morim. 54Falando conversas fiadasAs duas costureirinhas passam por mim.– Você vai?– Não vou não!Parece que a rua parou pra escutá ‐las.Nem os trilhos sapecasJogam mais bondes um pro outro.E o sol da tardinha de abrilEspia entre as pálpebras crespas de duas nuvens.As nuvens são vermelhas.A tardinha é cor ‐de ‐rosa.Fiquei querendo bem aquelas duas costureirinhas…Fizeram ‐me peito batendoTão bonitas, tão modernas, tão brasileiras!Isto é…Uma era ítalo ‐brasileira.Outra era áfrico ‐brasileira.Uma era branca.Outra era preta.* Poema publicado em Clã do jabuti, 1927 e em Poesias, 1941.41


mário de andradePaisagem n o 5 *De ‐dia um solzão de matar taperá 55Passeou na cidade o fogo de Deus.Os paulistas andaram que nem caçaremas 56 tontasDaqui pra ali buscando as sombras de mentira.Mas agorinha mesmo deram as vinte horas.De já ‐hoje quando a noite agarrou empurrando a luz[quente pra trás do horizonteBrisou uma friagem de inverno refrescando os pracianos[e a cidade rica.As famílias pararam de suar.Janelas abertas e portas abertas em todas as casas.Se boia, 57 se conversa descansado.Nas varandas portas terraços escurosAcende apagam os vaga ‐lumes dos cigarros.Todas as bulhas se ajuntam num riso feliz.Faz gosto a gente andar assim à toaReparando na calma da sua cidade natal.* Poema publicado em Clã do jabuti, 1927.42


A poESIAIDescobrimento *Abancado à escrivaninha em São PauloNa minha casa da rua Lopes ChavesDe supetão senti um friúme por dentro.Fiquei trêmulo, muito comovidoCom o livro palerma olhando pra mim.Não vê que me lembrei que lá no norte, meu Deus! muito[longe de mim,Na escuridão ativa da noite que caiu,Um homem pálido, magro, de cabelo escorrendo nos[olhos,Depois de fazer uma pele com a borracha do dia,Faz pouco se deitou, está dormindo.Esse homem é brasileiro que nem eu…* Parte I de “Dois poemas acreanos”, publicados em Clã do jabuti,1927 e em Poesias, 1941.43


A poESIANão frequento cafés ‐concertos,Mas tenho as minhas aventuras…Desventurados os coiós!A vida é farta.O mundo é grande.Tem muito canto onde esconder!Subúrbioscasaspensõestáxis…Vejo sonâmbulos ao luarBeijando moças estioladas.Tolos! a poeira sobe no ar…O fumo sobe e morre no ar…Eu vivo no ar!Dançarinar!…45


mário de andradeV *Aquele quarto me sufoca,Prefiro ar livre,Não voltarei.Ar livre, ar leve que dança, dança!Dançam as rosas nos rosais!São flores vermelhasSão botões perfeitosSão rosas abertas, gritos de prazer!São Paulo é um rosal!São Paulo é um jardim!Morena, tem pena,Tem pena de mim!A rosa ‐riso dança nos teus lábiosvermelhosmordidos…Volúpias alegres…O mundo não vê?Nós nos separamos.Nós nos ajuntamos.O bonde passou,O amigo passou…O mundo não vê?* Poema publicado na parte “Danças” de Remate de Males, 1930 eem Poesias, 1941.46


A poESIAA vida é tão curta!Quem tem certeza do amanhã!Lourenço de Medicis?… 59Florença delira.Paris queima,Viena valsa,Berlim ri…E New York abençoa o jazz universal.Negros de cartolaTurcos de casacaMontecarlo e Caldas e CopacabanaTudo é um caxambu!EU DANÇO!Dança do amor sem sentimento?Dança das rosas nos rosais!…47


mário de andradeMomento *Ninguém ignora a inquietação do clima paulistano…Pois tivemos hoje uma arraiada fresca de neblina.Depois do calorão duma noite maldita, sem sono,Uma neblina leviana desprendeu das nuvens lisasE pousou um momentinho sobre o corpo da cidade.Ôh como era boa, e o carinho que teve pousando!Não espantou, não bateu asa, não fez nenhuma bulha,Veio, que nem beijo de minha mãe se estou enfezadoVem mansinho, sem medo de mim, e pousa em[minha testa.Assim neblina fez, e o sopro dela acalmou as penasDesta cidade histórica, desta cidade completa,Cheia de passado e presente, berço nobre onde nasci.Os beijos de minha mãe são tal ‐e‐qual a neblina[madruga…Meu pensamento é tal ‐e‐qual São Paulo, é histórico[e completo,É presente e passado e dele nasce meu ser verdadeiro…Vem, neblina, vem! Beija ‐me, sossega ‐me o meu[pensamento!* Escrito em novembro de 1925, publicado na parte “Marco de viração”de Remate de males, 1930.48


A poESIANo outro lado da cidade,Não sei o quê, foi o vento,O vento me dispersou.Toada *Viajei por terras estranhasEntre flores espantosas,Tive coragem pra tudoNo outro lado da cidade,Sem tomar cuidado em mim.Passeava com tais perícias,Punha girafas na esquina,Quantos milagres na viagem,Meu coração de ninguém!E pude estar sem perigoPor entre aconchegos pagos,Em que o carinho mais velhoInda guardava agressão.Busquei São Paulo no mapa,Mas tudo, com cara nova,Duma tristeza de viagem,Tirava fotografia…E o meu cigarro na tardeBrilhava só, que nem Deus.Fiquei tão pobre, tão tristeQue até meu olhar fechou.No outro lado da cidadeO vento me dispersou.* Poema datado de 1932; publicado na parte “A costela do Grã Cão”de Poesias, 1941.49


mário de andradeV – Dor *A cidade está mais agitada a meidia.As ruas devastam minha virgindadeE os cidadãos talvez marquem encontro nos meus lábios.Minha boca é o peixe macho e derramo núcleos de amor[pelas ruas.Que irão fecundar os ovários da vida algum dia.Eu venho das altas torres, venho dos matos alagados,Com meus passos conduzidos pelo fogo do Grã Cão!Mas pra viver na cidade de São Paulo escondi na[corrente de prataA inútil semente do milho, a maniva, 60E enroupei de acerba 61 seda o arlequinal do meu dizer…E agora apontai ‐me, janelas do Martinelli, 62Calçadas, ruas, ruas, ladeiras rodantes, viadutos,Onde estão os judeus de consciência lívida?Os tortuosos japoneses que flertam São Paulo?Os ágeis brasileiros do Nordeste? os coloridos?Onde estão os coloridos italianos? onde estão os[turcomanos?Onde estão os pardais, madame la Françoise, 63Ergo, ego, Ega, 64 égua, água, iota, calúnia e notícias,Balouçantes nas marquesas dos roxos arranha ‐céus?…Não vos trago a fala de Jesus nem o escudo de Aquiles, 65Nem a casinha pequenina ou a sombra do jatobá. →* Poema datado de 15 de outubro de 1933; publicado na parte “GrãCão do outubro” de Poesias, 1941.50


A poESIATudo escondi no caminho da corrente de prata.Mas eu venho das altas torres trazido ao facho do Grã Cão,Lábios, lábios para o encontro em que cantareis[fatalmente,Ameaçados pela fome que espia detrás da coxilha,A dor, a caprichosa dor desocupada que desde milhões[de existênciasBusca a razão de ser.51


mário de andradeMomento *O vento corta os seres pelo meio.Só um desejo de nitidez ampara o mundo…Faz sol. Fez chuva. E a ventaniaEsparrama os trombones das nuvens no azul.Ninguém chega a ser um nesta cidade,As pombas se agarram nos arranha ‐céus, faz chuva.Faz frio. E faz angústia… É este vento violentoQue arrebenta dos grotões da terra humanaExigindo céu, paz e alguma primavera.* Poema datado de abril de 1937; publicado na parte “Grã Cão dooutubro” de Poesias, 1941.52


A poESIAMinha viola bonita, *Bonita viola minha,Cresci, cresceste comigoNas Arábias.Minha viola namorada,Namorada viola minha,Cantei, cantaste comigoEm Granada.Minha viola ferida,Ferida viola minha,O amor fugiu para lesteNa borrasca.Minha viola quebrada,Raiva, anseios, lutas, vida,Miséria, tudo passou ‐seEm São Paulo.* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].53


mário de andradeSão Paulo pela noite. *Meu espírito alertaBaila em festa e metrópole.São Paulo na manhã.Meu coração abertoDilui ‐se em corpos flácidos.São Paulo pela noite.O coração alçadoSe expande em luz sinfônica.São Paulo na manhã.O espírito cansadoSe arrasta em marchas fúnebres.São Paulo noite e dia…A forma do futuroDefine as alvoradas:Sou bom. E tudo é glória.O crime do presenteEnoitece o arvoredo:Sou bom. E tudo é cólera.* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].54


A poESIAGaroa do meu São Paulo, *– Timbre triste de martírios –Um negro vem vindo, é branco!Só bem perto fica negro,Passa e torna a ficar branco.Meu São Paulo da garoa,– Londres das neblinas finas –Um pobre vem vindo, é rico!Só bem perto fica pobre,Passa e torna a ficar rico.Garoa do meu São Paulo,– Costureira de malditos –Vem um rico, vem um branco,São sempre brancos e ricos…Garoa, sai dos meus olhos.* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].55


mário de andradeVaga um céu indeciso entre nuvens cansadas. *Onde está o insofrido? O mal das almasQuase parece um bem na linha das calçadas,A palavra se inutiliza em brisas calmasDe andantes, onde estou! No entanto é dia claro…Toda forma de ação se esvai numa atonia,Há desamparo e aceitação do desamparo.– Essa história de amar quando começa o dia…* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].56


A poESIARuas do meu São Paulo, *Onde está o amor vivo,Onde está?Caminhos da cidade,Corro em busca do amigo,Onde está?Ruas do meu São Paulo,Amor maior que o cibo, 66Onde está?Caminhos da cidade,Resposta ao meu pedido,Onde está?Ruas do meu São Paulo,A culpa do insofrido,Onde está?Há ‐de estar no passado,Nos séculos malditos,Aí está.* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].57


mário de andradeO bonde abre a viagem, *No banco ninguém,Estou só, stou sem.Depois sobe um homem,No banco sentou,Companheiro vou.O bonde está cheio,De novo porémNão sou mais ninguém.* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].58


A poESIAEu nem sei se vale a pena *Cantar São Paulo na lida,Só gente muito iludidaLimpa o goto e assopra a avena, 67Esta angústia não serena,Muita fome pouco pão,Eu só vejo na funçãoMiséria, dolo, 68 ferida,Isso é vida?São glórias desta cidadeVer a arte contando história,A religião sem memóriaDe quem foi Cristo em verdade,Os chefes nossa amizade,Os estudantes sem textos,Jornalismo no cabresto,Tolos cantando vitória,Isso é glória?Divórcio pra todo o lado,As guampas fazem furor,Grã ‐finos do despudor,No gasogênio 69 empestado,Das moças do operariadoSão os gozosos mistérios,Isso de ter filho, néris,E se ama seja o que for,Isso é amor?* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].59


mário de andradeMas o pior desta naçãoE ter fábrica de gásQue donos ‐da ‐vida fazIanques e ingleses de ação,Tudo vem de convulsãoEnquanto se insulta o Eixo, 70Lights, Tramas, Corporation, 71E a gente de trás pra trás,Isso é paz?Pois nada vale a verdade,Ela mesma está vendida,A honra é uma suicida,Nuvem a felicidade,E entre rosas a cidade,Muito concha e relambória, 72Sem paz, sem amor, sem glória,Se diz terra progredida,Eu pergunto:Isso é vida?60


A poESIAO céu claro tão largo, cheio de calma na tarde, *É ver uma criança adormecidaBaixando as pálpebras sem pensamentoSobre um mundo que ainda não viveu.Luzes suaves e certas, luzes até nas sombras,Doçura em tudo. Os homens estão mais longe,São apenas recordações mansas pousandoNum sentimento sem temor.Os ruídos se amaciam quase envelhecidos,Doçura em tudo. O chão é vagarento,O ar se esquece. A tensão do insofrido se abrandaComo a firmeza das continuações.Eu te guardo, homem do meu caminho…Ôh espelhos, Pireneus, caiçaras insistentes, 73Porque não sereis sempre assim!Abril…* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].61


mário de andradeNa rua Barão de Itapetininga *O meu coração não sabe de si,Não se vê moça que não seja linda,Minha namorada não passeia aqui.Na rua Barão de ItapetiningaMinha aspiração não aguenta mais,A tarde caindo, a vida foi longa,Mas a esperança já está no cais.Na rua Barão de ItapetiningaMinha devoção quebra duma vez,Porque a mulher que eu amo está longe,É… a princesa do império chinês.Na rua Barão de ItapetiningaNoite de São João qualquer mês terá,Em mil labaredas de fogo e sangueBandeira ardente tremulará.Na rua Barão de ItapetiningaMinha namorada vem passear.* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].62


A poESIABeijos mais beijos, *Milhões de beijos preferidos,Venho de amores com a minha amada,Insaciáveis.Rosas mais rosas,Milhões de rosas paulistanas,Venho de sustos com a minha amiga,Implacáveis.Luzes mais luzes,Luzes perdidas na garoa,Trago tristezas no peito vivo,Implacáveis.Ideais, ideais,Ideais raivosos do insofrido,Trago verdades novas na boca,Insaciáveis.Jornais, jornais,Notícias que enchem e esvaziam,– Me dá uma bomba sem retardamento,Implacável!Horas mais horas,Rio do meu mistério esquivo,– Me dá violetas pelos meus dedosInsaciáveis…* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].63


mário de andradeA catedral de São Paulo *Por Deus! que nunca se acaba– Como minha alma.É uma catedral horrívelFeita de pedras bonitas– Como minha alma.A catedral de São PauloNasceu da necessidade.– Como minha alma.Sacro e profano edifício,Tem pedras novas e antigas– Como minha alma.Um dia há ‐de se acabar,Mas depois se destruirá– Como o meu corpo.E a alma, memória triste,Por sobre os homens arisca,Sem porto.* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].64


A poESIANa rua Aurora eu nasci *Na aurora de minha vidaE numa aurora cresci.No largo do PaiçanduSonhei, foi luta renhida,Fiquei pobre e me vi nu.Nesta rua Lopes ChavesEnvelheço, e envergonhadoNem sei quem foi Lopes Chaves. 74Mamãe! me dá essa lua,Ser esquecido e ignoradoComo esses nomes da rua.* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].65


mário de andradeQuando eu morrer quero ficar, *Não contem aos meus inimigos,Sepultado em minha cidade,Saudade.Meus pés enterrem na rua Aurora,No Paiçandu deixem meu sexo,Na Lopes Chaves a cabeçaEsqueçam.No Pátio do Colégio afundemO meu coração paulistano:Um coração vivo e um defuntoBem juntos.Escondam no Correio o ouvidoDireito, o esquerdo nos Telégrafos,Quero saber da vida alheia,Sereia.O nariz guardem nos rosais,A língua no alto do IpirangaPara cantar a liberdade.Saudade…Os olhos lá no JaraguáAssistirão ao que há ‐de vir,O joelho na Universidade,Saudade…* Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma, [1946].66


A poESIAAs mãos atirem por aí,Que desvivam como viveram,As tripas atirem pro Diabo,Que o espírito será de Deus.Adeus.67


mário de andradeA meditação sobre o Tietê *Água do meu Tietê,Onde me queres levar?– Rio que entras pela terraE que me afastas do mar…É noite. E tudo é noite. Debaixo do arco admirávelDa Ponte das Bandeiras o rioMurmura num banzeiro de água pesada e oliosa.É noite e tudo é noite. Uma ronda de sombras,Soturnas sombras, enchem de noite tão vastaO peito do rio, que é como se a noite fosse água,Água noturna, noite líquida, afogando de apreensõesAs altas torres do meu coração exausto. De repenteO ólio das águas recolhe em cheio luzes trêmulas,É um susto. E num momento o rioEsplende em luzes inumeráveis, lares, palácios e ruas,Ruas, ruas, por onde os dinossauros caxingam 75Agora, arranha ‐céus valentes donde saltamOs bichos blau e os punidores gatos verdes,Em cânticos, em prazeres, em trabalhos e fábricas,Luzes e glória. É a cidade… É a emaranhada formaHumana corrupta da vida que muge e se aplaude.E se aclama e se falsifica e se esconde. E deslumbra.Mas é um momento só. Logo o rio escurece de novo,Está negro. As águas oliosas e pesadas se aplacam→* Último poema; versões escritas entre 30 de novembro de 1944 e 12de fevereiro de 1945; Mário de Andrade morre no dia 25 do mesmomês. Poema publicado em Lira paulistana, edição póstuma,[1946].68


A poESIANum gemido. Flor. Tristeza que timbra um caminho[de morte.É noite. E tudo é noite. E o meu coração devastadoÉ um rumor de germes insalubres pela noite insone[e humana.Meu rio, meu Tietê, onde me levas?Sarcástico rio que contradizes o curso das águasE te afastas do mar e te adentras na terra dos homens,Onde me queres levar?…Por que me proíbes assim praias e mar, por queMe impedes a fama das tempestades do AtlânticoE os lindos versos que falam em partir e nunca mais[voltar?Rio que fazes terra, húmus da terra, bicho da terra,Me induzindo com a tua insistência turrona paulistaPara as tempestades humanas da vida, rio, meu rio!…Já nada me amarga mais a recusa da vitóriaDo indivíduo, e de me sentir feliz em mim.Eu mesmo desisti dessa felicidade deslumbrante,E fui por tuas águas levado,A me reconciliar com a dor humana pertinaz,E a me purificar no barro dos sofrimentos dos homens.Eu que decido. E eu mesmo me reconstituí árduo na dorPor minhas mãos, por minhas desvividas mãos, porEstas minhas próprias mãos que me traem,Me desgastaram e me dispersaram por todos os[descaminhos,Fazendo de mim uma trama onde a aranha insaciadaSe perdeu em cisco e pólen, cadáveres e verdades[e ilusões.69


mário de andradeMas porém, rio, meu rio, de cujas águas eu nasci,Eu nem tenho direito mais de ser melancólico e frágil,Nem de me estrelar nas volúpias inúteis da lágrima!Eu me reverto às tuas águas espessas de infâmias,Oliosas, eu, voluntariamente, sofregamente, sujadoDe infâmias, egoísmos e traições. E as minhas vozes,Perdidas do seu tenor, rosnam pesadas e oliosas,Varando terra adentro no espanto dos mil futuros,À espera angustiada do ponto. Não do meu ponto final!Eu desisti! Mas do ponto entre as águas e a noite,Daquele ponto leal à terrestre pergunta do homem,De que o homem há ‐de nascer.Eu vejo, não é por mim, o meu verso tomandoAs cordas oscilantes da serpente, rio.Toda a graça, todo o prazer da vida se acabou.Nas tuas águas eu contemplo o Boi PaciênciaSe afogando, que o peito das águas tudo soverteu.Contágios, tradições, brancuras e notícias,Mudo, esquivo, dentro da noite, o peito das águas,[fechado, mudo,Mudo e vivo, no despeito estrídulo que me fustiga[e devora.Destino, predestinações… meu destino. Estas águasDo meu Tietê são abjetas 76 e barrentas,Dão febre, dão a morte decerto, e dão garças e antíteses. 77Nem as ondas das suas praias cantam, e no fundoDas manhãs elas dão gargalhadas frenéticas,Silvos de tocaias e lamurientos jacarés.Isto não são as águas que se beba, conhecido, isto sãoÁguas do vício da terra. Os jabirus e os socós →70


A poESIAGargalham depois morrem. E as antas e os bandeirantes[e os ingás,Depois morrem. Sobra não. Nem sequer o Boi PaciênciaSe muda não. Vai tudo ficar na mesma, mas vai!…[e os corposPodres envenenam estas águas completas no bem[e no mal.Isto não são águas que se beba, conhecido! Estas águasSão malditas e dão morte, eu descobri! e é por issoQue elas se afastam dos oceanos e induzem à terra dos[homens,Paspalhonas. Isto não são águas que se beba, eu descobri!E o meu peito das águas se esborrifa, ventarrão vem,[se encapelaEngruvinhado de dor que não se suporta mais.Me sinto o Pai Tietê! ôh força dos meus sovacos!Cio de amor que me impede, que destrói e fecunda!Nordeste de impaciente amor sem metáforas,Que se horroriza e enraivece de sentir ‐seDemagogicamente tão sozinho! Ôh força!Incêndio de amor estrondante, enchente magnânima[que me inunda,Me alarma e me destroça, inerme 78 por sentir ‐meDemagogicamente tão só!A culpa é tua, Pai Tietê? A culpa é tuaSe as tuas águas estão podres de felE majestade falsa? A culpa é tuaOnde estão os amigos? onde estão os inimigos?Onde estão os pardais? e os teus estudiosos e sábios, eOs iletrados?→71


mário de andradeOnde o teu povo? e as mulheres! dona Hircenuhdis[Quiroga!E os Prados e os crespos e os pratos e os barbas e os gatos [e os línguas 79Do Instituto Histórico e Geográfico, e os mu ‐seus e a Cúria, e os senhores chantres 80 reverendíssimos,Celso nihil estate varíolas gide memoriam,Calípedes flogísticos 81 e a Confraria Brasiliense 82[e Clima 83E os jornalistas e os trustkistas e a Light e asNovas ruas abertas e a falta de habitações eOs mercados?… E a tiradeira divina de Cristo!…Tu és Demagogia. A própria vida abstrata tem vergonhaDe ti em tua ambição fumarenta.És demagogia em teu coração insubmisso.És demagogia em teu desequilíbrio anticéptico 84E antiuniversitário.És demagogia. Pura demagogia.Demagogia pura. Mesmo alimpada de metáforas.Mesmo irrespirável de furor na fala reles:Demagogia.Tu és enquanto tudo é eternidade e malvasia: 85Demagogia.Tu és em meio à (crase) gente pia:Demagogia.És tu jocoso 86 enquanto o ato gratuito se esvazia:Demagogia.És demagogia, ninguém chegue perto!Nem Alberto, nem Adalberto nem DagobertoEsperto Ciumento Peripatético e CeciE Tancredo e Afrodísio e também ArmidaE o próprio Pedro e também Alcibíades, 87→72


A poESIANinguém te chegue perto, porque tenhamos o pudor,O pudor do pudor, sejamos verticais e sutis, bemSutis!… E as tuas mãos se emaranham lerdas,E o Pai Tietê se vai num suspiro educado e sereno,Porque és demagogia e tudo é demagogia.Olha os peixes, demagogo incivil! Repete os[carcomidos peixes!São eles que empurram as águas e as fazem servir de[alimentoÀs areias gordas da margem. Olha o peixe dourado sonoro,Esse um é presidente, mantém faixa de crachá no peito,Acirculado de tubarões que escondendo na fuça rotundaO perrepismo 88 dos dentes, se revezam na rota solene,Languidamente presidenciais. Ei ‐vem o tubarão ‐marteloE o lambari ‐spitfire. Ei ‐vem o boto ‐ministro.Ei ‐vem o peixe ‐boi com as mil mamicas imprudentes,Perturbado pelos golfinhos saltitantes e as tabaranasEm zás ‐trás dos guapos Pêdêcês e Guaporés.Eis o peixe ‐baleia entre os peixes muçuns lineares,E os bagres do lodo oliva e bilhões de peixins japoneses;Mas é asnático o peixe ‐baleia e vai logo encalhar[na margem,Pois quis engolir a própria margem, confundido[pela facheada.Peixes aos mil e mil, como se diz, brincabrincandoDe dirigir a corrente, com ares de salva ‐vidas.E lá vem por debaixo e por de ‐banda os interrogativos[peixesInternacionais, uns rubicundos sustentados de mosca,E os espadartes a trote chique, esses são espadartes! [e as duas →73


mário de andradeSemanas Santas se insultam e odeiam, na lufa ‐lufa[de ganharNo bicho o corpo do Crucificado. Mas as águas,As águas choram baixas num murmúrio lívido,[e se difundemTecidas de peixe e abandono, na mais incompetente[solidão.Vamos, Demagogia! eia! sus! aceita o ventre e investe!Berra de amor humano impenitente,Cega, sem lágrima, ignara, colérica, investe!Um dia hás ‐de ter razão contra a ciência e a realidade,E contra os fariseus e as lontras luzidias.E contra os guarás e os elogiados. E contra todos os peixes.E também os mariscos, as ostras e os trairões fartos[de equilíbrio ePundhonor. 89Pum d’honor.Quedê as Juvenilidades[Auriverdes!Eu tenho medo… Meu coração está pequeno, é tantaEssa demagogia, é tamanha,Que eu tenho medo de abraçar os inimigos,Em busca apenas dum sabor,Em busca dum olhar,Um sabor, um olhar, uma certeza…É noite… Rio! meu rio! meu Tietê!É noite muito!… As formas… Eu busco em vão as formasQue me ancorem num porto seguro na terra dos homens.É noite e tudo é noite. O rio tristementeMurmura num banzeiro de água pesada e oliosa.Água noturna, noite líquida… Augúrios 90 mornos afogamAs altas torres do meu exausto coração.→74


A poESIAMe sinto esvair no apagado murmulho das águas.Meu pensamento quer pensar, flor, meu peitoQuereria sofrer, talvez (sem metáfora) uma dor irritada…Mas tudo se desfaz num choro de agoniaPlácida. Não tem formas nessa noite, e o rioRecolhe mais esta luz, vibra, reflete, se aclara, refulge,E me larga desarmado nos transes da enorme cidade.Se todos esses dinossauros imponentes de luxo e[diamante,Vorazes de genealogias e de arcanos,Quisessem reconquistar o passado…Eu me vejo sozinho, arrastando sem músculoA cauda do pavão e mil olhos de séculos,Sobretudo os vinte séculos de anticristianismoDa por todos chamada Civilização Cristã…Olhos que me intrigam, olhos que me denunciam,Da cauda do pavão, tão pesada e ilusória.Não posso continuar mais, não tenho, porque os homensNão querem me ajudar no meu caminho.Então a cauda se abriria orgulhosa e reflorescenteDe luzes inimagináveis e certezas…Eu não seria tão somente o peso deste meu desconsolo,A lepra do meu castigo queimando nesta epidermeQue encurta, me encerra e me inutiliza na noite,Me revertendo minúsculo à advertência do meu rio.Escuto o rio. Assunto estes balouços em que o rioMurmura num banzeiro. E contemploComo apenas se movimenta escravizada a torrente,E rola a multidão. Cada onda que abrolhaE se mistura no rolar fatigado é uma dor. E o surtoMirim dum crime impune.75


A poESIAOs plutocratas 92 e todos os que são chefes e são fezes?Todos os donos da vida?Eu lhes daria o impossível e lhes daria o segredo,Eu lhes dava tudo aquilo que fica pra cá do gritoMetálico dos números, e tudoO que está além da insinuação cruenta da posse.E se acaso eles protestassem, que não! que não desejamA borboleta translúcida da humana vida, porque preferemO retrato a ólio das inaugurações espontâneas,Com béstias do operário e do oficial, imediatamente[inferior,E palminhas, e mais os sorrisos das máscaras e a[profunda comoção,Pois não! Melhor que isso eu lhes dava uma felicidade[deslumbranteDe que eu consegui me despojar porque tudo sacrifiquei.Sejamos generosíssimos. E enquanto os chefes e as fezesDe mamadeira ficassem na creche de laca e lacinhos,Ingênuos brincando de felicidade deslumbrante:Nós nos iríamos de camisa aberta ao peito,Descendo verdadeiros ao léu da corrente do rio,Entrando na terra dos homens ao coro das quatro estações.Pois que mais uma vez eu me aniquilo sem reserva,E me estilhaço nas fagulhas eternamente esquecidas,E me salvo no eternamente esquecido fogo de amor…Eu estalo de amor e sou só amor arrebatadoAo fogo irrefletido do amor.… eu já amei sozinho comigo; eu já cultivei tambémO amor do amor, Maria! 93E a carne plena da amante, e o susto várioDa amiga, e a confidência do amigo… Eu já amei→77


mário de andradeContigo, Irmão Pequeno, no exílio da preguiça elevada,[escolhidoPelas águas do túrbido rio do Amazonas, meu outro sinal. 94E também, ôh também! na mais impávida glóriaDescobridora da minha inconstância e aventura,Desque me fiz poeta e fui trezentos, 95 eu ameiTodos os homens, odiei a guerra, salvei a paz!E eu não sabia! Eu bailo de ignorâncias inventivas,E a minha sabedoria vem das fontes que eu não sei!Quem move meu braço? Quem beija por minha boca?Quem sofre e se gasta pelo meu renascido coração?Quem? senão o incêndio nascituro do amor?…Eu me sinto grimpado no arco da Ponte das Bandeiras,Bardo mestiço, e o meu verso vence a cordaDa caninana sagrada, e afina com os ventos dos ares,[e enrouqueceÚmido nas espumas da água do meu rio,E se espatifa nas dedilhações brutas do incorpóreo Amor.Por que os donos da vida não me escutam?Eu só sei que eu não sei por mim! sabem por mim as fontesDa água, e eu bailo de ignorâncias inventivas.Meu baile é solto como a dor que range, meuBaile é tão vário que possui mil sambas insonhados!Eu converteria o humano crime num baile mais densoQue estas ondas negras de água pesada e oliosa,Porque os meus gestos e os meus ritmos nascemDo incêndio puro do amor… Repetição. Primeira voz[sabida, o Verbo.Primeiro troco. Primeiro dinheiro vendido. Repetição[logo ignorada.Como é possível que o amor se mostre impotente assimAnte o ouro pelo qual o sacrificam os homens, →78


A poESIATrocando a primavera que brinca na face das terras,Pelo outro tesouro que dorme no fundo baboso do rio!É noite! é noite!… E tudo é noite! E os meus olhos são[noite!Eu não enxergo sequer as barcaças na noite.Só a enorme cidade. E a cidade me chama e pulveriza,E me disfarça numa queixa flébil e comedida,Onde irei encontrar a malícia do Boi PaciênciaRedivivo. Flor. Meu suspiro ferido se agarra,Não quer sair, enche o peito de ardência ardilosa,Abre o olhar, e o meu olhar procura, flor, um tilintarNos ares, nas luzes longe, no peito das águas,No reflexo baixo das nuvens.São formas… Formas que fogem, formasIndivisas, se atropelando, um tilintar de formas fugidiasQue mal se abrem, flor, se fecham, flor, flor, informes,[inacessíveis,Na noite. E tudo é noite. Rio, o que eu posso fazer!…Rio, meu rio… mas porém há ‐de haver com certezaOutra vida melhor do outro lado de láDa serra! E hei ‐de guardar silêncio!O que eu posso fazer!… hei ‐de guardar silêncioDeste amor mais perfeito do que os homens?…Estou pequeno, inútil, bicho da terra, derrotado.No entanto eu sou maior… Eu sinto uma grandeza[infatigável!Eu sou maior que os vermes e todos os animais.E todos os vegetais. E os vulcões vivos e os oceanos,Maior… Maior que a multidão do rio acorrentado,Maior que a estrela, maior que os adjetivos,→79


mário de andradeSou homem! vencedor das mortes, bem ‐nascido além[dos dias,Transfigurado além das profecias!Eu recuso a paciência, o boi morreu, eu recuso a esperança.Eu me acho tão cansado em meu furor.As águas apenas murmuram hostis, água vil mas[turrona paulistaQue sobe e se espraia, levando as auroras represadasPara o peito dos sofrimentos dos homens.… e tudo é noite. Sob o arco admirávelDa Ponte das Bandeiras, morta, dissoluta, fraca,Uma lágrima apenas, uma lágrima,Eu sigo alga escusa nas águas do meu Tietê.80


II. A ficção


Nas terras do igarapé Tietê *[…]Porém entrando nas terras do igarapé Tietê adonde oburbom vogava e a moeda tradicional não era mais cacau,em vez, chamava arame contos contecos milréis borós tostãoduzentorréis quinhentorréis, cinquenta paus, noventabagarotes, e pelegas cobres xenxéns caraminguás selosbicos ‐de ‐coruja massuni bolada calcáreo gimbra siridóbicha e pataracos, assim, adonde até liga pra meia ninguémcomprava nem por vinte mil cacaus. Macunaímaficou muito contrariado. Ter de trabucar, ele, herói!…Murmurou desolado:– Ai! que preguiça!…Resolveu abandonar a empresa, voltando pros pagos deque era imperador. Porém Maanape falou assim:– Deixa de ser aruá, mano! Por morrer um carangueijoo mangue não bota luto não! que diacho! desanima nãoque arranjo as coisas!Quando chegaram em São Paulo, ensacou um poucodo tesouro pra comerem e barganhando o resto na Bolsaapurou perto de oitenta contos de réis. Maanape era* Excerto de “Piaimã”, capítulo 5 da rapsódia modernista Macunaíma,o herói sem nenhum caráter, 1928 (1ª. ed.).83


mário de andradefeiticeiro. Oitenta contos não valia muito mas o heróirefletiu bem e falou pros manos:– Paciência. A gente se arruma com isso mesmo, quemquer cavalo sem tacha anda de a ‐pé…Com esses cobres é que Macunaíma viveu.E foi numa boca ‐da ‐noite fria que os manos toparamcom a cidade macota de São Paulo esparramada a beira‐‐rio do igarapé Tietê. Primeiro foi a gritaria da papagaiadaimperial se despedindo do herói. E lá se foi o bando sarapintadovolvendo pros matos do norte.Os manos entraram num cerrado cheio de inajás ouricurisubuçus bacabas mucajás miritis tucumãs trazendono curuatá uma penachada de fumo em vez de palmas ecocos. Todas as estrelas tinham descido do céu branco detão molhado de garoa e banzavam pela cidade. Macunaímalembrou de procurar Ci. Êh! dessa ele nunca poderiaesquecer não, porque a rede feiticeira que ela armarapros brinquedos fora tecida com os próprios cabelos dela eisso torna a tecedeira inesquecível. Macunaíma campeoucampeou mas as estradas e terreiros estavam apinhadosde cunhãs tão brancas tão alvinhas, tão!… Macunaímagemia. Roçava nas cunhãs murmurejando com doçura:“Mani! Mani! filhinhas da mandioca…” perdido de gostoe tanta formosura. Afinal escolheu três. Brincou com elasna rede estranha plantada no chão, numa maloca maisalta que a Paranaguara. Depois, por causa daquela rede serdura, dormiu de atravessado sobre os corpos das cunhãs.E a noite custou pra ele quatrocentos bagarotes.A inteligência do herói estava muito perturbada. Acordoucom os berros da bicharia lá embaixo nas ruas, disparandoentre as malocas temíveis. E aquele diacho desagui ‐açu que o carregara pro alto do tapiri tamanho emque dormira… Que mundo de bichos! que despropósito84


A ficçãode papões roncando, mauaris juruparis sacis e boitatásnos atalhos nas socavas nas cordas dos morros furadospor grotões donde gentama saía muito branquinha branquíssima,de certo a filharada da mandioca!… A inteligênciado herói estava muito perturbada. As cunhãs rindotinham ensinado pra ele que o sagui ‐açu não era saguimnão, chamava elevador e era uma máquina. De ‐manhãzinhaensinaram que todos aqueles piados berros cuquiadassopros roncos esturros não eram nada disso não, erammas cláxons campainhas apitos buzinas e tudo era máquina.As onças pardas não eram onças pardas, se chamavamfordes hupmobiles chevrolés dodges mármons e erammáquinas. Os tamanduás os boitatás as inajás de curuatásde fumo, em vez eram caminhões bondes autobondesanúncios ‐luminosos relógios faróis rádios motocicletastelefones gorjetas postes chaminés… Eram máquinas etudo na cidade era só máquina! O herói aprendendo calado.De vez em quando estremecia. Voltava a ficar imóvelescutando assuntando maquinando numa cisma assombrada.Tomou ‐o um respeito cheio de inveja por essa deusade deveras forçuda, Tupã famanado que os filhos damandioca chamavam de Máquina, mais cantadeira que aMãe ‐d’água, em bulhas de sarapantar.Então resolveu ir brincar com a Máquina pra ser tambémimperador dos filhos da mandioca. Mas as trêscunhãs deram muitas risadas e falaram que isso de deusesera uma gorda mentira antiga, que não tinha deusnão e que com a máquina ninguém não brinca porque elamata. A máquina não era deus não, nem possuía os distintivosfemininos de que o herói gostava tanto. Era feitapelos homens. Se mexia com eletricidade com fogo comágua com vento com fumo, os homens aproveitando asforças da natureza. Porém jacaré acreditou? nem o herói!85


mário de andradeSe levantou na cama e com um gesto, esse sim! bem guaçude desdém, tó! batendo o antebraço esquerdo dentro dooutro dobrado, mexeu com energia a munheca direita prastrês cunhãs e partiu. Nesse instante, falam, ele inventou ogesto famanado de ofensa: a pacova.E foi morar numa pensão com os manos. Estava coma boca cheia de sapinhos por causa daquela primeira noitede amor paulistano. Gemia com as dores e não haviameios de sarar até que Maanape roubou uma chave desacrário e deu pra Macunaíma chupar. O herói chupouchupou e sarou bem. Maanape era feiticeiro.Macunaíma passou então uma semana sem comer nembrincar só maquinando nas brigas sem vitória dos filhosda mandioca com a Máquina. A Máquina era que matavaos homens porém os homens é que mandavam na Máquina…Constatou pasmo que os filhos da mandioca eramdonos sem mistério e sem força da máquina sem mistériosem querer sem fastio, incapaz de explicar as infelicidadespor si. Estava nostálgico assim. Até que uma noite, suspensono terraço dum arranha ‐céu com os manos, Macunaímaconcluiu:– Os filhos da mandioca não ganham da máquina nemela ganha deles nesta luta. Há empate.Não concluiu mais nada porque inda não estava acostumadocom discursos porém palpitava pra ele muitoembrulhadamente muito! que a máquina devia de ser umdeus de que os homens não eram verdadeiramente donossó porque não tinham feito dela uma Iara explicável masapenas uma realidade do mundo. De toda essa embrulhadao pensamento dele sacou bem clarinha uma luz: Oshomens é que eram máquinas e as máquinas é que eramhomens. Macunaíma deu uma grande gargalhada. Percebeuque estava livre outra vez e teve uma satisfa mãe.86


A ficçãoVirou Jiguê na máquina telefone, ligou pros cabarés encomendandolagosta e francesas.[…]87


Túmulo, túmulo, túmulo *Belazarte me contou:Caso triste foi o que sucedeu lá em casa mesmo… Eusempre falo que a gente deve ser enérgico, nunca desanimar,que se entregar é covardia, porém quando a coisadesanda mesmo não tem vontade, não tem paciência quefaça desgraça parar.Um tempo andei mais endinheirado, com empregobom e inda por cima arranjando sempre uns biscates poraí, que me deixavam viver à larga. Dinheiro faz cócega embolso de brasileiro, enquanto não se gasta não há meios desossegar, pois imaginei ter um criado só pra mim. Achavagostoso esses pedaços de cinema: o dono vai saindo, vemo criado com chapéu e bengala na mão, “Prudêncio, hojenão boio em casa, querendo sair, pode. Té logo”. “Té logo,seu Belazarte.”Veio um criado mas eu não simpatizava com ele não.Sei lá si percebeu? uma noite pediu a conta e dei graças.Levei uns pares de dias assim, até que indo ver uns terrenoslonge, estava no mesmo banco do bonde um tiziu* Texto publicado em Os contos de Belazarte, 1934 (1ª ed.), ali datadode 1926; corresponde, de fato, à reescrita de 1934, refundida em1943 ‐1944. Neste livro, o autor transfigura alguns traços autobiográficos.89


mário de andradeextraordinário de simpático. Que olhos sossegados! vocênão imagina. Adoçavam tudo que nem verso de Rilke. 96Desci matutando, vi os terrenos, peguei o bonde que voltava.Instinto é uma curiosidade: quando o condutor veiocobrar a passagem e percebi que era o mesmo da ida, tive acerteza que o negrinho havia de estar no carro. Olhei paratrás, pois não é que estava mesmo! Encontrei os olhos dele,dito e feito: senti uma doçura por dentro uma calma lenta,pensei: está aí, disso é que você carece pra criado. Mudeide banco e meio juruviá puxei conversa:– Me diga ũa coisa, você não sabe por acaso de algummoço que queira ser meu criado? Mas quero brasileiro epreto.Riu manso, apalpando a vista com a pálpebra. Meolhou, respondendo com voz silenciosa, essa mesma degente que não pensa nem viveu passado:– Tem eu, sim senhor. O senhor querendo…– Eu, eu quero sim, por que não havia de querer? Quantovocê pede?Etc. E ele entrou pro meu serviço.Quando indaguei o nome dele, falou que chamava Ellis.Ellis era preto, já disse… Mas uma boniteza de preturacomo nunca eu tinha visto assim. Como linhas até que nãoera essas coisas, meio nhato, 97 porém aquela cor elevava omeu criado a tipo ‐de ‐beleza da raça tizia. Com dezenoveanos sem nem um poucadico de barba, a epiderme de Ellisera um esplendor. Não brilhava mas não brilhava nadamesmo! Nem que ele estivesse trabalhando pesado, suorcorria, ficava o risco da gota feito rastinho de lesma e só.Bastava que lavasse a cara, pronto: voltava o preto opacooutra vez. Era doce, aveludado o preto de Ellis… A gentese punha matutando que havia de ser bom passar a mãonaquela cor humilde, mão que andou todo o dia apertando90


A ficçãopasse ‐bem de muito branco emproado e filho ‐da ‐mãe.Ellis trazia o cabelo sempre bem roçado, arredondandoo coco. Pixaim fininho, tão fofo que era ver piri de beira‐‐rio. 98 Beiço, não se percebia, negro também. Só mesmoo olhar amarelado, cor de ólio de babosa, é que descansavano meio daquela igualdade perfeita. É verdade que osdentes eram brancos, mas isso raramente se enxergava,porque Ellis tinha um sorriso apenas entreaberto. Estavamuito igualado com o movimento da miséria pra andarmostrando gengiva a cada passo. A gente tinha impressãode que nada o espantava mais, e que Ellis via tudo preto,do mesmo preto exato da epiderme.Como criado, manda a justiça contar que ele não foiinteiramente o que a gente está acostumado a chamar decriado bom. Não é que fosse rúim não, porém tinha seuscarnegões, moleza chegou ali, parou. Limpava bem as coisasmas levava uma vida pra limpar esta janela. E depoisdeu de sair muito, não tinha noite que ficasse em casa. Masno sentido de criado moral, Ellis foi sublime. De inteiraconfiança, discreto, e sobretudo amigo. Quando eu asperejavacom ele, escutava tudo num desaponto que só vendo.Sei que eu desbaratava, ia desbaratando, ia ficando semassunto pra desbaratar, meio com dó daquele tão humildeque, a gente percebia, não tinha feito nada por mal. Acabavasendo eu mesmo a discutir comigo:– Sei bem que de tanto lavar copo vem um dia em queum escapole da mão… Está bom, veja si não quebra mais,ouviu?– Sei, seu Belazarte.E ficava esperando, jururu que fazia dó. Eu é que encafifava.Com aquele olho ‐de ‐pomba me seguindo, arrulhandopelo meu corpo numa bulha penarosa de carinhobatido, eu nem sabia o que fazer. Pegava numa gravata,91


mário de andradereparando que tinha pegado nela só pra gesticular, largavada gravata, arranja cabelo, arranja não ‐sei ‐o ‐quê, acabavasempre descobrindo poeira na roupa, ũa mancha, qualquercoisa assim:– Ellis, me limpe isto.Ele vinha chegando meio encolhido e limpava. Entãoolho ‐de ‐babosa pousava em minha justiça, tremendo:– Está bom assim, seu Belazarte?– Está. Pode ir.Ia. Porém ficava rondando. Mesmo que fosse lá no andartérreo trabalhar, me levava no pensamento, ia imaginandoum jeito de me agradar. E não tinha mais parada nos agradinhosdiscretos enquanto eu não ria pra ele. Então gengivaaparecia. Quando chegava de noite já sabe, vinha pedindopra ir no cinema, eu tinha pena, deixava. E quantas vezesainda não acabei dando dinheiro pro cinema!Nesse andar é lógico que eu mesmo estava fazendo artede ficar sem criado. Foi o que sucedeu. Ellis tomou contade mim duma vez. Piorar, piorou não, mas já estava difícilde dizer quem era o criado de nós dois. Sim, porque, afinaldas contas quem que é o criado? quem serve ou quem nãopode mais passar sem o serviço, digo mais, sem a companhiado outro?– Ellis, você já sabe ler?… Uhm… acho que vou ensinarfrancês pra você, porque si um dia eu for pra Europa,não vou sem você.– Si seu Belazarte for, eu vou também.Sempre com o mesmo respeito. Às vezes eu chegavaem casa sorumbático, 99 moído com a trabalheira do dia,Ellis não falava nada, nem vinha com amolação, porémnão arredava pé de mim, descobrindo o que eu queria prafazer. Foi uma dessas vezes que escutei ele falando no portãopra um companheiro:92


A ficção– Hoje não, seu Belazarte carece de mim.Até achei graça. E principiei verificando que aquilo nãotinha jeito mais, Ellis não trabalhava. Estava tomando umlugar muito grande em minha vida. Pois então vamos fazeralguma coisa pelo futuro dele, decidi. Entramos os doisnuma explicação que me abateu, por causa dos sentimentosdesencontrados que me percorreram. Ellis me confessouque pensava mesmo em ser chofer, mas não tinhadinheiro pra tirar a carta. Tive ciúmes, palavra. Secretamenteeu achava que ele devia só pensar em ser meu criado.Mas venci o sentimento besta e falei que isso era o demenos, porque eu emprestava os cobres. Só que não pudevencer a fraqueza e, com pretexto de esclarecer, ajuntei:– Você pense bem, decida e volte me falar. Chofer ébom, dá bem, só que é ofício perigoso e já tem muito choferpor aí. Muitas vezes a gente imagina que faz um giroe faz mas é um jirau. Enfim, tudo isso é com você. Já faleique ajudo, ajudo.Foi então que ele me confessou que precisava ganharmais porque estava com vontade de casar.– Ellis, mas que idade você tem, Ellis!– Dezanove, sim senhor.– Puxa! e você já quer casar!Deu aquele sorriso entreaberto, sossegado:– Gente pobre carece casar cedo, seu Belazarte, sinãovira que nem cachorro sem dono.Não entendi logo a comparação. Ellis esclareceu:– Pois é: cachorro sem dono não vive comendo lixodos outros?…Meio que me despeitava também, isso do Ellis gostarde mais outra pessoa que do patrão, porém já sei melivrar com facilidade destes egoísmos. Perguntei quem eraa moça.93


mário de andrade– É tizia que nem eu mesmo, seu Belazarte. Se chamaDora.Encabulou, tocando na namorada. Falei mais uma vezpra ele pensar bem no que ia fazer e me comunicasse.Dias depois ele veio:– Seu Belazarte… andei matutando no que o senhor mefalou, semana atrás…– Resolveu?– Pois então a gente pode fazer uma coisa: espero o dia‐‐dos ‐anos do senhor e depois saio.Tive um despeito machucando. Decerto fui duro:– Está bom, Ellis.Não se mexeu. Depois de algum tempo, muito baixinho:– Seu Belazarte…– O que é.– Mas… seu Belazarte… eu quero sair por bem dacasa do senhor… até a Dora me falou que… me falou quedecerto o senhor aceitava ser nosso padrinho…Custou ele falar de tanta comoção. Olhei pra ele. O óliode babosa destilava duas lágrimas negras no pretume liso.Me comovi também.– Sai por bem, é lógico! Não tenho queixa nenhumade você.– Quando o senhor quiser alguma coisa, me chame queeu venho fazer. O senhor foi muito bom para mim…– Não fui bom, Ellis, fui como devia porque você tambémfoi direito.Botei a mão no ombro dele pra sossegar o comovidosoluçante, estava engasgado, o pobre!… Sem se esperar,rápido, virou a cara de lado, encolheu o ombro, beijouminha mão, partiu fechando a porta.Já me sentava outra vez, pensando naquele beijoque fazia a minha mão tão recompensada por toda a94


A ficçãohumanidade, a porta abriu de leve. E ele, não se mostrando:– Seu Belazarte, o senhor não falou que aceitava…Até me ri.– Aceito, Ellis! Quando que você casa?– Si arranjar licença logo, caso no 8 de dezembro, simsenhor, dia da Virgem Maria.Não me logrou, porém logrou a Virgem Maria. Saiu decasa dias depois do meu aniversário, 100 e nem bem donaRepública fez anos, 101 casou com a Dora, num dia claro queparecia querer durar a vida inteira. Cheguei do casamentocom uma felicidade artística dentro de mim. Você não imaginaque coisa mais bonita Ellis e Dora juntos! Mulatinhalisa, lisa, cor de ouro, isto é, cor de ólio de babosa, cor dosolhos de Ellis! E nos olhos então todo esse pretume impossívelque o medo põe na cor do mato à noite. Você decertoque já reparou: a gente vê uns olhos de menina boa e jura:“Palavra que nunca vi olho tão preto”, vai ver? quando muitoolho é cor de fumo de mapinguim. 102 É o receio da genteque bota escureza temível nos olhos desses nossos pecados…Que gostosa a Dora! Era uma pretarana de cabeloacolchoado e corpo de potranquinha independente. Tinhaum jeito de não ‐querer, muito fiteiro, um dengue meio fatigadooscilando na brisa, tinha uma fineza de S espichado,que fazia ela parecer maior do que era, uma graça flexível…Nem sei bem o que é que o corpo dela tinha, só sei queespantava tanto o desejo da gente, que desejo ficava de bocaaberta, extasiado, sem gesto, deixando respeitosamente elapassar por entre toda a cristandade… Dora linda!Ellis desapareceu uns meses e me esqueci dele. A vidaé tão bondosa que nunca senti falta de ninguém. Reapareceu.Foi engraçado até. Me levantei tarde, desci pra bebermeu mate, Ellis no hol, encerando.95


mário de andrade– Bom ‐dia, seu Belazarte.– Ué! quê que você está fazendo aqui!– Dona Mariquinha 103 me chamou pra limpar a casa.– Mas você não está trabalhando então!– Trabalho, sim senhor, mas a vida anda mesmo dura,seu Belazarte, a gente carece de ir pegando o que acha.A fúria de casar borrara os sonhos do chofer. Viviade pedreiro. Mamãe encontrou com ele e se lembrou dedar esse dinheiro semanal pro mendigo quasi. Um Ellisesmolambado, todo sujo de cal. Dora andava com muitoenjoo, coisa do filho vindo. Não trabalhava mais. Elliscom pouco serviço. Estava magro e bem mais feio. Derepente uma semana não apareceu. Que é, que não é, afinalveio uma conhecida contar que Ellis tinha adoecidode resfriado, estava tossindo muito, aparecendo unscaroços do lado da cara. Quando vi ele até assustei, eraum caroção medonho, parecendo abscesso. Foi no dentista,não sei… dentista andou engambelando Ellis umsem ‐fim de tempo, começou aparecendo novo caroço dooutro lado da cara. Mamãe imaginou que era anemia.Mandamos Ellis no médico de casa, com recomendação.Resultado: estava fraquíssimo do peito e si não tomassecuidado, bom!Calvário começou. Ele não sabia bem o que havia defazer, eu também não podia estar recolhendo dois emcasa. Inda mais doentes! Vacas magras também estavampastando no meu campo nesse tempo… Foi uma tristeza.Ellis andou de cá pra lá, fazendo tudo e não fazendo nada.Mandou buscar a mãe, que vivia numa chacrinha emprestadaem Botucatu, foram morar todos juntos na lonjurada Casa Verde, diz ‐que pra criar galinha e por causa do arbom. Não arranjaram nada com as galinhas nem com osares. Vieram pra cidade outra vez. Foram morar perto de96


A ficçãocasa, num porão, depois eu vi o porão, que coisa! Todosmorando no buraco de tatu, Ellis, Dora, a mãe dele e maisdois gafanhotinhos concebidos de passagem.Ellis voltara pra pedreiro, encerava nossa casa e outrasque arranjamos, andou consertando esgotos, depois naCompanhia de Gás… Não tinha parada, emagrecendo,não se descobriu remédio que acabasse inteiramente comos caroços.Meio rindo, meio sério, nem eram bem sete da manhã,um dia apareceu contando que era pai. Vinha participar e:– Seu Belazarte, vinha também saber si o senhor queriaser padrinho do tiziu, o senhor já está servindo de meutudo mesmo.Falei que sim, meio sem gostar nem desgostar, estavajá me acostumando. Dei vinte milréis. Mamãe, que era amadrinha, andou indo lá no porão deles, arranjando roupasde lã pro desgraçadinho novo.Nem semana depois, chego em casa e mamãe me contaque Dora tinha adoecido. Pedi pra ela ir lá outra vez,ela foi. Mandamos médico. Dora piorou do dia pra noite,e morreu quem a gente menos imaginava que morresse.Número um.Agora sim, e a criança? É verdade que a mãe do Ellistinha inda filho de peito, desmamou o safadinho que jáestava errando língua portuguesa, e o leite dela foi mudandode porão.O dia do batizado, sofri um desses desgostos, fatigantespra mim que vivo reparando nas coisas. Primeiro quisque o menino se chamasse Benedito, nome abençoado detodos os escravos sinceros, porém a mãe do Ellis resmungouque a gente não devia desrespeitar vontade de morto,que Dora queria que o filho chamasse Armando ou LuísCarlos. Então pus autoridade na questão e cedendo um97


mário de andradepouco também, acabamos carimbando o desgraçadinhocom o título de Luís.Havia muita lembrança de Dora naquilo tudo, há sódois dias que ela adormecera. Fizemos logo o batizadoporque o menino estava muito aniquiladinho.Engraçado o Ellis… Até hoje não me arrisco a entenderbem qual era o sentimento dele pela Dora. Quando veiome comunicar a morte da pobre, até parecia que eu gostavamais dela, com este meu jeito de ficar logo num pasmodanado, sucedendo coisa triste.– Dora morreu, seu Belazarte.– Morreu, Ellis!Nem posto explicar com quanto sentimento gritei. Ellistambém não estava sossegado não, mas parecia mais incapacidadede sofrer que tristeza verdadeira. O amarelãodos olhos ficara rodeado dum branco vazio. Dora ia fazerfalta física pra ele, como é que havia de ser agora com osdesejos? Isso é que está me parecendo foi o sofrimento perguntadodo Ellis. E pra decidir duma vez a indecisão, elevinha pra mim cuja amizade compensava. E seria mesmopor amizade? Aqui nem a gente pode saber mais, de tantoque os interesses se misturavam no gesto, e determinavama fuga de Ellis pra junto de mim. Eu era amigo dele,não tinha dúvida, porém numa ocasião como aquela nãoé muito de amigo que a gente precisa não, é mais de pessoaque saiba as coisas. Eu sabia as coisas, e havia de arranjarum jeito de acomodar a interrogação.… e quem diz que na amizade também não existe esseinteresse de ajutório?… Existe, só que mais bonito queno amor, porque interesse está longe do corpo, é mistérioda vida silenciosa espiritual. Depois, amor… É inútil ospernósticos estarem inventando coisas atrapalhadas praencherem o amor de trezentas auroras ‐boreais ou caem98


A ficçãono domínio da amizade, que também pode existir entrebigode e seios, ou então principiam sutilizando os gestosfísicos do amor, caem na bandalheira. Observando,feito eu, amor de sem ‐educação, a gente percebe mesmoque nele não tem metafísica: uma escolha proveniente dosentimento que a babosa recebe dum corpo estranho, eem seguida furrum ‐fum ‐fum. A força do amor é que elepode ser ao mesmo tempo amizade. Mas tudo o que existede bonito nele, não vem dele não, vem da amizade grudadanele. Amor quando enxerga defeito no objeto amado,cega: “Não faz mal!” Mas o amigo sente: “Eu perdoo você.”Isso é que é sublime no amigo, essa repartição contínua desi mesmo, coisa humana profundamente, que faz a genteviver duplicado, se repartindo num casal de espíritosamantes que vão, feito passarinhos de voo baixo, pairandorente ao chão sem tocar nele…Dora era corpo só. E uma bondade inconsciente. Eunão tinha corpo mas era protetor. E principalmente erao que sabia as coisas. Desta vez amor não se uniu comamizade: o amor foi pra Dora, a amizade pra mim. Naturalque o Ellis procedesse dessa forma, sendo um frouxo.Batizado fatigante. Não paga a pena a gente imaginarque todos somos iguais, besteira! Mamãe, por causa damuita religião, imagina que somos. Inventou de convidarEllis, mãe e tutti quanti 104 pra comer um doce emnossa casa, vieram. Foi um ridículo oprimente pra nósos superiores, e deprimente pra eles os desinfelizes. Estavamesquerdos, cheios de mãos, não sabendo pegar naxicra. E eu então! Qualquer gesto que a gente faz, pegarno pão, na bolacha, pronto: já é diferente por classe damaneira, igualzinha muitas vezes, com que o pobre peganessas coisas. Parece lição. A gente fica temendo rebaixaro outro e também já não sabe pegar na xicra mais. Custei99


mário de andradepra inventar umas frases engraçadas, depois reparei quenão tinham graça nenhuma por causa da Dora se dependurandonelas, não deixando a graça rir. De repente fui‐‐me embora.Não levou nem semana, o desgraçadinho pegou mirrandomais, mirrando e esticou. Número dois.Ellis nem pôde tratar do enterro. Não é que estivessepenando muito, mas o caroço tinha dado de crescer nolado esquerdo agora. Na véspera tivera uma vertigem, ninguémsabe por que, junto do filho morrendo. Foi pra camacom febrão de quarenta ‐e ‐um no corpo tremido.Era a tuberculose galopante que, sem nenhum respeitopelas regras da cidade, estava fazendo cento ‐e ‐vinte porhora na raia daquele peito apertado. Quando Ellis soube,virou meu filho duma vez. Mandava contar tudo pra mim.Mas não sei por que delicadeza sublime, por que invençãode amizade, descobriu que não me dou bem com a tísica.O certo é que nunca me mandou pedir pra ir vê ‐lo. Fui.Fui, também uma vez só, de passagem, falando que estavana hora de ir pro trabalho. Mas não deixei faltar nadapra ele. Nada do que eu podia dar, está claro, leite de vacasmagras.Durou três meses, nem isso, onze semanas em que meparece foi feliz. Sim, porque virara criança, e talvez pelaprimeira vez na vida, inventava essas pequenas faceiricescom que a gente negaceia o amor daqueles por quem sesabe amado. Mantimento, remédios, roupa, tudo minhamãe é que providenciava pra ele, conforme desejo meu.Pois de supetão vinha um pedido engraçado, que Ellisqueria comer sopa da minha casa, que si eu não podiamandar pra ele ũa meia igualzinha àquela que usara nobatizado do desgraçadinho, com lista amarela, outra roxaaté em cima… Uma feita mandou pedir de emprestado a100


A ficçãoalmofada que eu tinha no meu estúdio e que, ele mandoudizer, até já estava bem velha. É lógico que almofada foi,porém dadinha duma vez.Da minha parte era tudo agora gestos mecânicos deprotetor, meu Deus! como a vida esperada se mecaniza…Não sei… Ellis creio que não, mas eu já fazia muito queestava acostumado a sentir Ellis morto. E aquela esperada morte já pra mim era bem ũa morte longa, um andarna gandaia dentro da morte, que não me dava mais queuma saudade cômoda do passado. Era amigo dele, juro,mas Ellis estava morto, e com a morte não se tem direitode contar na vida viva. Ele, isso eu soube depois, ele sim,estava vivendo essa morte já chegada, numa contemplaçãosublime do passado, única realidade pra ele. Dora tinhasido uma função. A vida prática não fora sinão comer,dormir, trabalhar. No que se agarraria aquele morto emférias? Em mim, é lógico. Isso eu sube depois… Levava odia falando no amigo, pensando no amigo. E todas aquelasfaceirices de pedidos e vontadinhas de criança, não passavamde jeitos de se recordar mais objetivamente de mim.De se aproximar de mim, que não ia vê ‐lo.Cheguei em casa pra almoçar, a mãe do Ellis viera dizerque ele estava me chamando, não gostei nada. Si agoraele principiava pedindo mais isso, eu que tenho um brutohorror de tísica… Enfim mandei a criada lá, que depoisdo almoço ia.Quando cheguei na porta, os uivos da mãe dele mederam a notícia inesperada. Sim, inesperada, porque jáestava acostumado a ficar esperando e perdera a noçãode que o esperado havia mesmo de vir. Entrei. Estavamuma italianona vermelha de tanto choro por tabela e doistizius fumando.– Morreu!101


mário de andrade– Ahm, su Beladzarte, tanto que o povero está chamandoo sinhore!– Mas já morreu, é!– Que esperandza! desde manhãzinha está cham…– Onde ele está?Um dos tizius.– Está lá dentro, sim senhor.Jogou o cigarro e foi mostrando caminho. Segui atrás.Pulei por cima dos uivos saindo duma furna que nunca viudia, e lá numa sala mais larga, com entrada em arco semporta dando pro quintal interior, num canto invisível, choravauma vela, era ali. Ellis vasquejava com as borlas doscaroços dependurados pros lados, medonho de magro. Estavamorrendo desde manhã, sempre chamando por mim.– Mas por que não me avisaram!Eram não sei quantas vezes que agarravam a vela nasmãos dele já em cruz, pra sempre fantasiadas de morte.De repente soluço parava. O moribundo engulia em seco epegava me chamando outra vez. Afinal parara de chamarfazia mais de hora. Parece que a coisa estava chegando.Falei baixo, sem querer, me acomodando com o silêncioda morte:– Ellis… ôh Ellis!Nada. Só o respiro serrando na madeira seca da garganta.Os outros me olhavam, esperando o bem que euia fazer pro coitado. Até parecia que o importante ali eraeu. Insisti, lutando com a amizade da morte, mais uniformeque a minha. Com mentira e tudo, até me parece queeu insistia mais pra vencer a predominância da morte, eaqueles assistentes não me verem perder numa luta. Boteia mão na testa morna de Ellis, havia de me sentir.– Ellis! sou eu, Ellis!… Sossegue que já cheguei, ouviu!Estou juntinho de você, ouviu!… Ellis!102


A ficçãoO soluço parou.– Pronto! Ansim que está fatchendo desde de manhán,ô povero!… Tira áa vela, Maria!– Deixe a vela, ôh Ellis!Ellis abriu as pálpebras, principiou abrindo, pareciaque não parava mais de as abrir. Ficaram escancaradas,mas ólio de babosa não vê que escorrendo mais! pupilasfixas, retas, frechando o teto preto. Pus minha cara ondeelas me focalizassem.– Estou aqui, Ellis! Não tenha medo! você está meenxergando, hein!– Está sim, seu Belazarte. Viu! desde manhã que está deolho fechado. Ele queria muito be… bem o senhor! também…também o senhor tem sido muito bom pro coitado…de meu filho, ai!… aaai! meu filho está morrendo,ahn! ahn! ahn!…– Ellis! você está precisando de alguma coisa, hein! Eufaço!A gelatina me recebia sem brilhar. As pálpebras foramcerrando um bocado. Instintivamente apressei a fala, praque os olhos inda recebessem meu carinho:– Eu faço tudo pra você! não quero que te falte nada,ouviu bem!Os olhos se esconderam de todo com muita calma.– Meu filho morreu! ai, ai!… Aaai!…Tive um momento de desespero porque Ellis não davasinal de me sentir. Insisti mais, ajoelhando junto da cama.– Ora, o que é isso, Ellis!…– ahan… só falava no senhor, ahn… ontem mesmodisse pra mim, ahan, que, ahn, milhorando cavava umpoço… fundo, aáin… pra enterrar todos os mi… micróbiospra despois, pedir pra morar, ahn… no porão da casado senhor… aai!103


mário de andrade– Levem ela! não vale a pena ele estar escutando essechoro!Transportaram os uivos. Estaria escutando ainda?Insisti numa esperança exacerbada pela anedota da negra,sem querer, perverso, voz pura, doce de carícia:– Ellis! você não me responde mesmo!Abriu um pouco os olhos outra vez. Me via!… foi tão humilde que nem teve o egoísmo de sustentarcontra mim a indiferença da morte. O olhar dele teve umapalpitação franca pra mim. Ellis me obedecia ainda comesse olhar. Fosse por amizade, fosse por servilismo, obedeceu.Isso me fez confundir extraordinariamente com osmanejos da vida, a morte dele. Desapareceu mistério, fatalidade,tudo o que havia de grandioso nela. Foi ũa mortefamiliar. Foi ũa morte nossa, entre amigos, direitinhoaquele dia em que resolvemos, meu aniversário passado,ele ir buscar o casamento e a choferagem de ganhar mais.Cerrava os olhos calmo. Pesei a mão no corpo dele praque me sentisse bem. Ao menos assim, Ellis ficava segurode que tinha ao pé dele o amigo que sabia as coisas. Entãonão o deixaria sofrer. Porque sabia as coisas…Número três.104


Primeiro de Maio *No grande dia Primeiro de Maio, não eram bem seishoras e já o 35 pulara da cama, afobado. Estava muito bem‐‐disposto, até alegre, ele bem afirmara aos companheirosda Estação da Luz que queria celebrar e havia de celebrar.Os outros carregadores mais idosos meio que tinhamcaçoado do bobo, viesse trabalhar que era melhor, trabalhodeles não tinha feriado. Mas o 35 retrucara com altivezque não, não carregava mala de ninguém, havia de celebraro dia deles. E agora tinha o grande dia pela frente.Dia dele… Primeiro quis tomar um banho pra ficarbem digno de existir. A água estava gelada, ridente, celebrando,e abrira um sol enorme e frio lá fora. Depois feza barba. Barba era aquela penuginha meia loura, mas foiassim mesmo buscar a navalha dos sábados, herdada dopai, e se barbeou. Foi se barbeando. Nu só da cintura pracima por causa da mamãe por ali, de vez em quando adistância mais aberta do espelhinho refletia os músculosviolentos dele, desenvolvidos desarmoniosamente nosbraços, na peitaria, no cangote, pelo esforço cotidiano decarregar peso. O 35 tinha um ar glorioso e estúpido. Porém* Texto publicado em Contos novos, edição póstuma, 1947; escritoentre 1934 e 1942.105


mário de andradeele se agradava daqueles músculos intempestivos, fazendoa barba.Ia devagar porque estava matutando. Era a esperançadum turumbamba macota, 105 em que ele desse uns socosformidáveis nas fuças dos polícias. Não teria raiva especialdos polícias, era apenas a ressonância vaga daqueledia. Com seus vinte anos fáceis, o 35 sabia, mais da leiturados jornais que de experiência, que o proletariado erauma classe oprimida. E os jornais tinham anunciado quese esperava grandes “motins” do Primeiro de Maio, emParis, em Cuba, no Chile, em Madri.O 35 apressou a navalha de puro amor. Era em Madri,no Chile que ele não tinha bem lembrança se ficava naAmérica mesmo, era a gente dele… Uma piedade, um beijolhe saía do corpo todo, feito proteção sadia de macho, iaparar em terras não sabidas, mas era a gente dele, defender,combater, vencer… Comunismo?… Sim, talvez fosseisso. Mas o 35 não sabia bem direito, ficava atordoado comas notícias, os jornais falavam tanta coisa, faziam tamanhamisturada de Rússia, só sublime ou só horrenda, e o35 infantil estava por demais machucado pela experiênciapra não desconfiar, o 35 desconfiava. Preferia o turumbambaporque não tinha medo de ninguém, nem do Carnera,ah, um soco bem nas fuças dum polícia… A navalhaapressou o passo outra vez. Mas de repente o 35 não imaginoumais em nada por causa daquele bigodinho de cinemaque era a melhor preciosidade de todo o seu ser. Lembrouaquela moça do apartamento, é verdade, nunca mais tinhapassado lá pra ver se ela queria outra vez, safada! Riu.Afinal o 35 saiu, estava lindo. Com a roupa preta deluxo, um nó errado na gravata verde com listinhas brancase aqueles admiráveis sapatos de pelica amarela que nãopudera sem comprar. O verde da gravata, o amarelo dos106


A ficçãosapatos, bandeira brasileira, tempos de grupo escolar…E o 35 se comoveu num hausto forte, 106 querendo bem oseu imenso Brasil, imenso colosso gigan ‐ante, foi andandodepressa, assobiando. Mas parou de supetão e se orientouassustado. O caminho não era aquele, aquele era o caminhodo trabalho.Uma indecisão indiscreta o tornou consciente de novoque era o Primeiro de Maio, ele estava celebrando e nãotinha o que fazer. Bom, primeiro decidiu ir na cidade praassuntar alguma coisa. Mas podia seguir por aquela direçãomesmo, era uma volta, mas assim passava na Estaçãoda Luz dar um bom ‐dia festivo aos companheiros trabalhadores.Chegou lá, gesticulou o bom ‐dia festivo, masnão gostou porque os outros riram dele, bestas. Só queem seguida não encontrou nada na cidade, tudo fechadopor causa do grande dia Primeiro de Maio. Pouca gentena rua. Deviam de estar almoçando já, pra chegar cedono maravilhoso jogo de futebol escolhido pra celebrar ogrande dia. Tinha mas era muito polícia, polícia em qualqueresquina, em qualquer porta cerrada de bar e de café,nas joalherias, quem pensava em roubar! nos bancos, nascasas de loteria. O 35 teve raiva dos polícias outra vez.E como não encontrasse mesmo um conhecido, comprouo jornal pra saber. Lembrou de entrar num café,tomar por certo uma média, lendo. Mas a maioria doscafés estavam de porta cerrada e o 35 mesmo achou queera preferível economizar dinheiro por enquanto, porqueninguém não sabia o que estava pra suceder. O mais práticoera um banco de jardim, com aquele sol maravilhoso.Nuvens? umas nuvenzinhas brancas, ondulando no arfeliz. Insensivelmente o 35 foi se encaminhando de novopara os lados do Jardim da Luz. Eram os lados que eleconhecia, os lados em que trabalhava e se entendia mais.107


mário de andradeDe repente lembrou que ali mesmo na cidade tinha bancomais perto, nos jardins do Anhangabaú. Mas o Jardim daLuz ele entendia mais. Imaginou que a preferência vinhado Jardim da Luz ser mais bonito, estava celebrando. Econtinuou no passo em férias.Ao atravessar a estação achou de novo a companheiradatrabalhando. Aquilo deu um malestar fundo nele,espécie não sabia bem, de arrependimento, talvez irritaçãodos companheiros, não sabia. Nem quereria nunca decidiro que estava sentindo já… Mas disfarçou bem, passandosem parar, se dando por afobado, virando pra trás com obraço ameaçador, “Vocês vão ver!”… Mas um riso aqui,outro riso acolá, uma frase longe, os carregadores companheiros,era tão amigo deles, estavam caçoando. O 35 sesentiu bobo, era impossível recusar, envilecido. 107 Odiouos camaradas.Andou mais depressa, entrou no jardim em frente, oprimeiro banco era a salvação, sentou. Mas dali algumcompanheiro podia divisar ele e caçoar mais, teve raiva.Foi lá no fundo do jardim campear banco escondido. Jápassavam negras disponíveis por ali. E o 35 teve uma ideiamuito não pensada, recusada, de que ele também estavauma espécie de negra disponível, assim. Mas não estavanão, estava celebrando, não podia nunca acreditar queestivesse disponível e não acreditou. Abriu o jornal. Havialogo um artigo muito bonito, bem pequeno, falando nanobreza do trabalho, nos operários que eram também os“operários da nação”, é isso mesmo! O 35 se orgulhou todocomovido. Se pedissem pra ele matar, ele matava, roubava,trabalhava grátis, tomado dum sublime desejo de fraternidade,todos os seres juntos, todos bons… Depois vinhamas notícias. Se esperava “grandes motins” em Paris, deuuma raiva tal no 35. E ele ficou todo fremente, 108 quase sem108


A ficçãorespirar, desejando “motins” (devia ser turumbamba) nasua desmesurada força física, ah, as fuças de algum… polícia?polícia. Pelo menos os safados dos polícias.Pois estava escrito em cima do jornal: em São Paulo aPolícia proibira comícios na rua e passeatas, embora sefalasse vagamente em motins de ‐tarde no Largo da Sé.Mas a polícia já tomara todas as providências, até metralhadoras,estava em cima do jornal, nos arranha ‐céus,escondidas, o 35 sentiu um frio. O sol brilhante queimava,banco na sombra? Mas não tinha, que a Prefeitura,pra evitar safadez dos·namorados, punha os bancos sóbem no sol. E ainda por cima era aquela imensidade deguardas e polícias vigiando que nem bem a gente punhaa mão no pescocinho dela, trilo. Mas a Polícia permitira agrande reunião proletária, com discurso do ilustre Secretáriodo Trabalho, no magnífico pátio interno do Paláciodas Indústrias, lugar fechado! A sensação foi claramentepéssima. Não era medo, mas por que que a gente haviade ficar encurralado assim! É! é pra eles depois poderemcair em cima da gente, (palavrão)! Não vou! não sou besta!Quer dizer: vou sim! desaforo! (palavrão), socos, umavisão tumultuária, rolando no chão, se machucava masnão fazia mal, saíam todos enfurecidos do Palácio dasIndústrias, pegavam fogo no Palácio das Indústrias, não!a indústria é a gente, “operários da nação”, pegavam fogona igreja de São Bento mais próxima que era tão linda por“drento”, mas pra que pegar fogo em nada! (O 35 chegaraaté a primeira comunhão em menino…), é melhor a gentenão pegar fogo em nada; vamos no Palácio do Governo,exigimos tudo do Governo, vamos com o general daRegião Militar, deve ser gaúcho, gaúcho só dá é farda,pegamos fogo no palácio dele. Pronto. Isso o 35 consentiu,não porque o tingisse o menor separatismo (e o aprendido109


mário de andradeno grupo escolar?) mas nutria sempre uma espécie de despeitopor São Paulo ter perdido na revolução de 32. Sensaçãoaliás quase de esporte, questão de Palestra ‐Coríntians,cabeça inchada, porque não vê que ele havia de se matarpor causa de uma besta de revolução diz ‐que democrática,vão “eles”!… Se fosse o Primeiro de Maio, pelo menos… O35 mal percebeu que se regava todo por “drento” dum espíritogeneroso de sacrifício. Estava outra vez enormementepiedoso, morreria sorrindo, morrer… Teve uma nítida,envergonhada sensação de pena. Morrer assim tão lindo,tão moço. A moça do apartamento…Salvou ‐se lendo com pressa, oh! os deputados trabalhistaschegavam agora às nove horas, e o jornal convidavam(sic) o povo pra ir na Estação do Norte (a estação rival,desapontou) pra receber os grandes homens. Se levantoumandado, procurou o relógio da torre da Estação da Luz,ora! não dava mais tempo! quem sabe se dá!Foi correndo, estava celebrando, raspou distraído osapato lindo na beirada de tijolo do canteiro, (palavrão),parou botando um pouco de guspe no raspão, depoisengraxo, tomou o bonde pra cidade, mas dando uma voltinhapra não passar pelos companheiros da Estação. Quealvoroço por dentro, ainda havia de aplaudir os homens.Tomou o outro bonde pro Brás. Não dava mais tempo,ele percebia, eram quase nove horas quando chegou nacidade, ao passar pelo Palácio das Indústrias, o relógio datorre indicava nove e dez, mas o trem da Central sempreatrasa, quem sabe? bom: às quatorze horas venho aqui,não perco, mas devo ir, são nossos deputados no tal decongresso, devo ir. Os jornais não falavam nada dos trabalhistas,só falavam dum que insultava muito a religião eexigia divórcio, o divórcio o 35 achava necessário (a moçado apartamento…), mas os jornais contavam que toda a110


A ficçãogente achava graça no homenzinho, “Vós, burgueses”, etoda a gente, os jornais contavam, acabaram se rindo dotal de deputado. E o 35 acabou não achando mais graçanele. Teve até raiva do tal, um soco é que merecia. E agoraestava quase torcendo pra não chegar com tempo naestação.Chegou tarde. Quase nada tarde, eram apenas nove equinze. Pois não havia mais nada, não tinha aquela multidãoque ele esperava, parecia tudo normal. Conhecia algunscarregadores dali também e foi perguntar. Não, não tinhamreparado nada, decerto foi aquele grupinho que parou naporta da estação, tirando fotografia. Aí outro carregadorconferiu que eram os deputados sim, porque tinham tomadoaqueles dois sublimes automóveis oficiais. Nada feito.Ao chegar na esquina o 35 parou pra tomar o bonde,mas vários bondes passaram. Era apenas um moço bem‐‐vestidinho, decerto à procura de emprego por aí, olhandoa rua. Mas de repente sentiu fome e se reachou. Havia pordentro, por “drento” dele um desabalar neblinoso de ilusões,de entusiasmo e uns raios fortes de remorso. Estavatão desgradável, estava quase infeliz… Mas como percebertudo isso se ele precisava não perceber!… O 35 percebeuque era fome.Decidiu ir a ‐pé pra casa, foi a ‐pé, longe, fazendo umesforço penoso para achar interesse no dia. Estava era comfome, comendo aquilo passava. Tudo deserto, era por serferiado, Primeiro de Maio. Os companheiros estavam trabalhando,de vez em quando um carrego, o mais eramconversas divertidas, mulheres de passagem, comentadas,piadas grossas com as mulatas do jardim, mas só asbem limpas mais caras, que ele ganhava bem, todos simpatizavamlogo com ele, ora por que que hoje me deu delembrar aquela moça do apartamento!… Também: moça111


mário de andrademorando sozinha é no que dá. Em todo caso, pra acabar odia era uma ideia ir lá, com que pretexto?… Devia ter idoem Santos, no piquenique da Mobiliadora, doze paus convite,mas o Primeiro de Maio… Recusara, recusara repetindoo “não” de repente com raiva, muito interrogativo,se achando esquisito daquela raiva que lhe dera. Entãoconseguiu imaginar que esse piquenique monstro, aquelejogo de futebol que apaixonava eles todos, assim não ficavaninguém pra celebrar o Primeiro de Maio, sentiu ‐se muitotriste, desamparado. É melhor tomo por esta rua. Isso o35 percebeu claro, insofismável que não era melhor, ficavabem mais longe. Ara, que tem! Agora ele não podia se confessarmais que era pra não passar na Estação da Luz e oscompanheiros não rirem dele outra vez. E deu a volta, deucom o coração cerrado de angústia indizível, com um ventoenorme de todo o ser assoprando ele pra junto dos companheiros,ficar lá na conversa, quem sabe? trabalhar…E quando a mãe lhe pôs aquela esplêndida macarronadacelebrante sobre a mesa, o 35 foi pra se queixar “Estou semfome, mãe”. Mas a voz lhe morreu na garganta.Não eram bem treze horas e já o 35 desembocava noparque Pedro II outra vez, à vista do Palácio das Indústrias.Estava inquieto mas modorrento, 109 que diabo de solpesado que acaba com a gente, era por causa do sol. Nãopodia mais se recusar o estado de infelicidade, a solidãoenorme, sentida com vigor. Por sinal que o parque já semexia bem agitado. Dezenas de operários, se via, eramoperários endomingados, vagueavam por ali, indecisos,ar de quem não quer. Então nas proximidades do palácio,os grupos se apinhavam, conversando baixo, com melancoliade conspiração. Polícias por todo lado.O 35 topou com o 486, grilo quase amigo, que policiavana Estação da Luz. O 486 achara jeito de não trabalhar112


A ficçãoaquele dia porque se pensava anarquista, mas no fundo eracovarde. Conversaram um pouco de entusiasmo semostradeiro,110 um pouco de Primeiro de Maio, um poucode “motins”. O 486 era muito valentão de boca, o 35 pensou.Pararam bem na frente do Palácio das Indústrias quefagulhava de gente nas sacadas, se via que não eram operários,decerto os deputados trabalhistas, havia até moças,se via que eram distintas, todos olhando para o lado doparque onde eles estavam.Foi uma nova sensação tão desagradável que ele deu deandar quase fugindo, polícias, centenas de polícias, moderouo passo como quem passeia. Nas ruas que davam proparque tinha cavalarias aos grupos, cinco, seis, escondidosna esquina, querendo a discrição não ostentar forçae ostentando. Os grilos ainda não faziam mal, são uns(palavrão)! O palácio dava ideia duma fortaleza enfeitada,entrar lá drento, eu!… O 486 então, exaltadíssimo, descreviacoisas piores, massacres horrendos de “proletários” ládentro, descrevia tudo com a visibilidade dos medrosos, opátio fechado, dez mil proletários no pátio e os polícias láem cima nas janelas, fazendo pontaria na maciota.Mas foi só quando aqueles três homens bem ‐vestidos,se via que não eram operários, se dirigindo aos gruposvagueantes, falaram pra eles em voz alta: “Podem entrar!não tenham vergonha! podem entrar!” com voz de mandandoassim na gente… O 35 sentiu um medo franco.Entrar ele! Fez como os outros operários: era impossívelassim soltos, desobedecer aos três homens bem ‐vestidos,com voz mandando, se via que não eram operários. Foramtodos obedecendo, se aproximando das escadarias, maso maior número, longe da vista dos três homens, torciacaminho, iam se espalhar pelas outras alamedas do parque,mais longe.113


mário de andradeEsses movimentos coletivos de recusa, acordaram acovardia do 35. Não era medo, que ele se sentia fortíssimo,era pânico. Era um puxar unânime, uma fraternidade, eracarícia dolorosa por todos aqueles companheiros fortestão fracos que estavam ali também pra… pra celebrar?pra… O 35 não sabia mais pra quê. Mas o palácio era grandiosopor demais com as torres e as esculturas, mas aquelaporção de gente bem ‐vestida nas sacadas enxergando eles(teve a intuição violenta de que estava ridiculamente vestido),mas o enclausuramento na casa fechada, sem espaçode liberdade, sem ruas abertas pra avançar, pra correr doscavalarias, pra brigar… E os polícias na maciota, encarapitadosnas janelas, dormindo na pontaria, teve ódio do486, idiota medroso! De repente o 35 pensou que ele eramoço, precisava se sacrificar: se fizesse um modo bem visívelde entrar sem medo no palácio, todos haviam de seguiro exemplo dele. Pensou, não fez. Estava tão opresso, 111 sedesfibrara tão rebaixado naquela mascarada de socialismo,naquela desorganização trágica, o 35 ficou desoladoduma vez. Tinha piedade, tinha amor, tinha fraternidade,e era só. Era uma sarça ardente, mas era sentimento só.Um sentimento profundíssimo, queimando, maravilhoso,mas desamparado, mas desamparado. Nisto vieram unscavalarias, falando garantidos:– Aqui ninguém não fica não! a festa é lá dentro,me’rmão! no parque ninguém não para não!Cabeças ‐chatas… 112 E os grupos deram de andar outravez, de cá para lá, riscando no parque vasto, com vontade,com medo, falando baixinho, mastigando incerteza. Deuum ódio tal no 35, um desespero tamanho, passava umbonde, correu, tomou o bonde sem se despedir do 486,com ódio do 486, com ódio do Primeiro de Maio, quasecom ódio de viver.114


A ficçãoO bonde subia para o centro mais uma vez. Os relógiosmarcavam quatorze horas, decerto a celebração estavaprincipiando, quis voltar, dava muito tempo, três minutospra descer a ladeira, teve fome. Não é que tivesse fome,porém o 35 carecia de arranjar uma ocupação senão arrebentava.E ficou parado assim, mais de uma hora, mais deduas horas, no Largo da Sé, diz ‐que olhando a multidão.Acabara por completo a angústia. Não pensava, nãosentia mais nada. Uma vagueza cruciante, nem bem sentida,nem bem vivida, inexistência fraudulenta, cínica,enquanto o Primeiro de Maio passava. A mulher de encarnadofoi apenas o que lhe trouxe de novo à lembrança amoça do apartamento, mas nunca que ele fosse até lá, nãohavia pretexto, na certa que ela não estava sozinha. Nada.Havia uma paz, que paz sem cor por “drento”…Pelas dezessete horas era fome, agora sim, era fome.Reconheceu que não almoçara quase nada, era fome, eprincipiou enxergando o mundo outra vez. A multidão jáse esvaziava, desapontada, porque não houvera nem umabriguinha, nem uma correria no Largo da Sé, como seesperava. Tinha claros bem largos, onde os grupos dospolícias resplandeciam mais. As outras ruas do centro,essas então quase totalmente desertas. Os cafés, já sabe,tinham fechado, com o pretexto magnânimo de dar feriadoaos seus “proletários” também.E o 35 inerme, passivo, tão criança, tão já experienteda vida, não cultivou vaidade mais: foi se dirigindo numpasso arrastado para a Estação da Luz, pra os companheirosdele, esse era o domínio dele. Lá no bairro os caféscontinuavam abertos, entrou num, tomou duas médias,comeu bastante pão com manteiga, exigiu mais manteiga,tinha um fraco por manteiga, não se amolava de pagar oexcedente, gastou dinheiro, queria gastar dinheiro, queria115


mário de andradeperceber que estava gastando dinheiro, comprou umamaçã bem rubra, oitocentão! foi comendo com prazer atéos companheiros. Eles se ajuntaram, agora sérios, curiosos,meio inquietos, perguntando pra ele. Teve um instintovoluptuoso de mentir, contar como fora a celebração,se enfeitar, mas fez um gesto só, (palavrão) cuspindo ummuxoxo de desdém pra tudo.Chegava um trem e os carregadores se dispersaram,agora rivais, colhendo carregos em porfia. O 35 encostouna parede, indiferente, catando com dentadinhas cuidadosasos restos da maçã, junto aos caroços. Sentia ‐secômodo, tudo era conhecido velho, os choferes, os viajantes.Surgiu um farrancho 113 que chamou o 22. Foram subirno automóvel mas afinal, depois de muita gritaria, acabaramreconhecendo que tudo não cabia no carro. Era a mãe,eram as duas velhas, cinco meninos repartidos pelos colose o marido. Tudo falando: “Assim não serve não! As malasnão vão não!” aí o chofer garantiu enérgico que as malasnão levava, mas as maletas elas “não largaram não”, só asmalas grandes que eram quatro. Deixaram elas com o 22,gritaram a direção e partiram na gritaria. Mais cabeça‐‐chata, o 35 imaginou com muita aceitação.O 22 era velhote. Ficou na beira da calçada com aquelasquatro malas pesadíssimas, preparou a correia, mascoçou a cabeça.– Deixa que te ajudo, chegou o 35.e foi logo escolhendo as duas malas maiores, que ergueunuma só mão, num esforço satisfeito de músculos. O 22olhou pra ele, feroz, imaginando que o 35 propunha racharo ganho. Mas o 35 deu um soco só de pândega no velhote,que estremeceu socado e cambaleou três passos. Caíramna risada os dois. Foram andando.116


Balança, Trombeta e Battleshipou o descobrimento da alma *Do nascimento até a chegada de Battleship na baía doRio de Janeiro, medeiam poucas informações. Viveu portoda Londres num vagamundear de roubos e indiferenças,até que a paciência lhe ditou como melhor meio devida o pouco perigoso ofício de pickpocket. 114 Aos dozeanos já adotara o nome de Battleship; e até essa noite dosseus dezessete anos de idade só tivera duas prisões, quandotopou com uma festa sobre a qual estava escrito emletras luminosas: Café do Brazil. Vendo a bandeira porcima das letras que a iluminavam, Battleship teve umasensação de repugnância por causa daquela mistura idiotade verde com amarelo, mas a entrada era franca e Battleshipestava enroupado como todos os ingleses destemundo, sobretudo, boné, botinas fortes, entrou. Dentrohavia cartazes provando que o Brasil era admirável, um“Salve 15 de Novembro”, era o dia 15 de novembro, e bastantegente provando café do Brasil. Quando chegou a vezde Battleship, coisa que jamais sucedera na vida, os olhosdele até relampearam de gozo ao sabor da bebida incomparável,que delícia! E como o tumulto lhe estava sendo* Edição póstuma, 1994.117


mário de andradeextraordinariamente propício, ainda ficou por ali, se esfregandonos outros, olhando pras paredes ilustradas, até quejulgou suficientemente farta a colheita, bebeu nova xicra esaiu. Mas que gosto ele trazia na boca, nem uísque!… Atéo cigarro tomara alma nova, tão generoso em seus prazeresque pela primeira vez na vida Battleship suspirou.Não lhe valia de nada o que enxergara nas paredes, portoscivilizados, grandes cidades do Brasil e gentes como Londresmesmo, via detrás dos olhos, era a já agora não repugnantemais, porém selvagíssima paisagem verde e amareladum calor de esporte, índios, redes, palmeiras e ele rei semmedo. Mas foi só quando mais tarde porém, esboçando oriso da alegria ante a bolada boa colhida na festa, que nasceuem Battleship o mando de ir para o Brasil.No dia seguinte esteve sem trabalho, banzando no porto,a ver navios. O Brasil já se afastava aos poucos deleentre a bruma, na azáfama dos cais e aquela naviozadaque partia pro mundo. Só permanecera firme o mandode partir por conciliar dentro do moço a fadiga de dezesseteanos monótonos com a liberdade de quem era só nomundo. Na outra semana Battleship partiu rumo do Egito.Esteve lá, esteve em Marselha, voltou pra Londres nooutro inverno e caiu doente. Quando saiu do hospital, coma mocidade exausta de reagir sobre a moléstia que o queriamatar, não tinha nada, estava na miséria, ao frio completode janeiro. Lhe vinham nostalgias do Sol que doíam,e se valendo da presença agradavelmente esbelta e sema mais leve sombra de fio de barba, apesar dos dezenove,arranjou ‐se de steward 115 num navio e foi pro Egito.Em Lisboa fugiu de bordo, roubou três portugueses, foipra Madri, de lá pra Barcelona, com a intenção firme deir pro Egito. Estava com bastante dinheiro espanhol nobolso do sobretudão que já pesava em plena primavera.118


A ficçãoPôs o dinheiro dentro do boné, costume velho que lhevinha dos tempos de menino e lhe dava sempre a sensaçãoagradável de que era um pobrinho que os outros batiam,roubavam, e por isso carecia se esconder. Lembrou de daro sobretudão pesado pra velha sentada no chão junto dacasa de moda, porém, olhando, se enxergou bem refletidona vitrina, e aquela massa enorme de lã suspensa ao braçolhe compunha tão bem a esbeltez da figura, não deu não.Ia passar um sublime vapor italiano pra Buenos Aires. NaInglaterra, no Egito, em Marselha, e agora excessivamentena Espanha, Battleship sempre escutara o nome de BuenosAires, comprou uma passagem pra lá.Eis toda a vida sem mistério desse moço inglês, até omomento em que ele desembarcou no porto do Rio deJaneiro. Porque Battleship não foi pra Buenos Aires. Umdia, um marinheiro que simpatizara muito com ele, lhecontou que já estávamos nas costas do Brasil. Battleshipteve um sobressalto. Lhe veio completinha aquela noitenunca mais lembrada em que entrara na festa do café doBrasil. Tinha decidido vir pro Brasil e no entanto Egito,Marselha, Egito, Londres, doença, Egito, Lisboa, Egito,puxa quanto Egito! e agora Buenos Aires, Brasil mesmo!…Battleship quase sorriu. O marinheiro estava caceteandomuito ele porque arranjara uma saída pro dia de paradano Rio de Janeiro, pra visitar um fratello trabalhandode engraxate na Avenida. Convidava Battleship pra passear,que era lindo. Desceram juntos. Era uma manhã dejulho, dessas maravilhosas em que o Rio se dissolve numanévoa quentinha de Sol. Os brasileiros estavam todos rindomuito, que pessoal fácil da gente roubar, polícia nenhuma,todos se abraçavam, ninguém se amolava dos outrosencostarem. O marinheiro também estava caceteandomuito ele e de repente, de repente Battleship concebeu o119


mário de andrademando de ficar no Rio, pra se ver livre do marujo. Entrounum café com o pretexto de comprar cigarro, pediu prooutro esperar na porta, e enquanto o marinheiro se distraíacom a rua, foi sair na outra porta extrema, entrouno café pegado, foi se esconder no mictório. Ficou numaansiedade medrosíssima, mais de uma hora ali, e o marinheironão veio. Resolveu sair e na rua o marinheiro nãoestava mais. Voltou pelo caminho andado, sempre cortadode medos naquele perigo insinuante de topar com omarinheiro outra vez. Buscava as calçadas do outro ladoda rua e uma esquisita nostalgia de sofrer lhe punha nostranseuntes a figura fatigante do companheiro. Não penetrouno cais, foi seguindo por detrás dos armazéns atéuma nesga de ruela por onde enxergava o casco alevantadodo navio. Os viajantes já voltavam dos seus passeios nacidade, embarcavam. Battleship ficou ali espreitando atéque o navio foi embora.Quem sabe a língua do Brasil?… Mas Battleship searranjou. Há sempre algum speackenglish 116 no caminhoe os brasileiros adivinham todas as línguas do mundo.Battleship se sentia perfeito naquele inverno cariocaapesar do dinheiro estar finando aos poucos. Agora elepercebia, muito riso, muito abraço, todos eram ‐se amigosíntimos, mas havia uma sensibilidade tal nos corposque era raro Battleship poder roubar. Roubava assim mesmo,principalmente de algum estrangeiro civilizado dovelho mundo, mas estes apareciam pouco na vertigem dasmultidões. Eram multidões feitas de brasileiros, e quandoBattleship conseguia iludir a sensibilidade de algum corpoe surripiar uma carteira, era carteira mas não tinhanada dentro, dez milréis!… Mas Battleship era prudente.Quando percebeu que a semana seguinte seria difícil deviver, falavam tanto que os mineiros eram ricos, partiu pra120


A ficçãoBelo Horizonte. Mas aí as carteiras continham era absolutamentenada dentro, nem dez milréis, e de resto, nãohavia multidões. Fez como os retirantes, num golpe devista genial, buscou São Paulo.Depois de Moji das Cruzes na manhã, já não haviaroça mais. Eram pequenas propriedades, bangalôs derecreio, Egito, fábricas, campinhos bem verdes com trêsvacas cada um, Battleship assuntara bem o companheirode cabina guardar alguma coisa debaixo do travesseiro,agora não. Mas lá na suja estação de parada, aquela azáfama,valises, todos queriam descer primeiro do vagão,quando Battleship examinou a carteira, meia hora depois,naquele parque subindo pra arranha ‐céus em delírio, semquase ninguém, eram três contos! Os paulistas deixavam‐‐se roubar.Battleship só não foi pro Esplanada por civilização. Erapickpocket, trinta contos que tivesse, o lugar dele era lugarde pickpocket, foi pra um desses hoteizinhos de improvisodo centro da capital. Mas gastava sem pensar, fez roupasde bom alfaiate, comprou dois bonés festivos, um cinza,um bege, e novo sobretudão que o fim de agosto estavaduro. Sentiu ‐se em casa. Era completamente diferente,bem mais suave, mas havia um vago ar de Londres, misturadocom Marselha, um vago ar de Europa e Battleshipestava em casa. Ficou logo tomado de paixão pelos enormespolícias, limpos, esportivos, circulando com posesfotográficas, e deixando roubar. E os secretas então, gloriosamentevisíveis, gordos, mucudos, 117 todos uniformementenegros de bengalão. Mas olhavam tanto pros bonésdele, aliás era no que toda a gente reparava nele, Battleshipdescobriu logo, ninguém não desconfiava dele, mastodos desconfiavam do boné. Desistiu dos bonés. Comprouchapéus de pano de fabrico paulista, duros, rijos121


mário de andradecomo a lealdade, machucando a testa muito. Mas agoratudo ficara completamente fácil, não havia o boné, e sóos camarões 118 da Light and Power davam pra Battleshipviver de vida sossegada. Só, só neste mundo, só de amigos,Battleship continuava em seus vinte anos imberbes, corpode efebo, 119 cara esmaltada, sapatões, vivendo só nestemundo, estudando a linguagem brasileira nos jornais,comprando todas as revistas ilustradas, que lia em casa,se encharcando de café do Brasil, e fumando cigarros depalha, fortíssimos, que só tinham o defeito de enegrecercom rapidez os dentes. De ‐tarde saía da cama, raspavade leve os dentes com o limpador de unhas, se vestia emtrês segundos, se assoava bem, o que gostava muito defazer só, no quarto, escutando os barulhos curiosos quelhe davam uma sensação cômoda da própria existência eda higiene. Saía pra trabalhar. Parava na esquina pra beberum café expresso, que não lhe agradava muito mas cujavasta máquina de níquel brilhando, lhe dava sempre umarecordação sem saudades, feliz, da catedral de Londres.Ora quando chegou o dia 7 de setembro que era de festanacional, Battleship foi, como todos, ver a grande paradaque se anunciara nos prados do Jockey Club. Battleshipestava bem, com bastante dinheiro no bolso, não muitomas bastante, porém tinha o trabalho cotidiano. Foi noprado da Mooca e foi roubar, mas sempre com aquela severidadesem pensamentos dum velho professor de escolapública, apenas porque era dia de multidão e ele tinhaque trabalhar. Mas, está claro, tinha excessiva prática doofício pra não perceber desde logo que a menina estavacom intenção de o roubar. Uma única diretriz o dominou,enorme raiva. Se em vez de menina fosse algumamulher velha ou ladrão na força do homem, sem dúvidaque o moço teria muito se divertido daquela coincidência122


A ficçãode ladrão roubando ladrão, mas tinha apenas vinte anos ea menina presumivelmente quatorze pela indecisão aindados seios, daí a raiva. O instinto de prestígio que nóssempre sentimos diante dos que estão do mesmo lado danossa idade, lhe mostrara imediato o horror que havia,não no ato puro e abstrato de roubar, mas daquela meninaroubar. Era uma estúpida, merecia castigo, e Battleshipdecidiu castigá ‐la.Imediatamente sentiu que tinha muita pressa, o castigodevia ser agora já. Mas isso não derivava do tamanho daraiva, esta derivara pra aquela decisão aventurosa de castigara menina – o que o deixara inteiramente divertido. Apressa vinha da sujeira da pequena, estava porca. Naquelamisturada matinal de gentes que a festa da independêncialevara ao prado da Mooca, tudo endomingado, a meninapunha um gosto horrendo de fim de semana, suja, suja,maltrapilha, com apenas o vestidinho que nem tinha maiscor de vermelho, sobre o corpo repelente. Aqueles cabelospingando irregularmente da maçaroca inviolável sobre acara, o pescoço… Devia ter muito bicho naqueles cabelos.Tudo na menina deixava Battleship violentamente semconforto. Sempre ele fora discretamente higiênico, mesmono tempo dos dez anos soltos em Londres, e agora então asvacas gordas o punham: numa resplandecente exigênciade limpeza, álgido 120 como a Lua da tarde. Carecia se descartardaquela sórdida, pra voltar ao prazer de si mesmo.Battleship fincou os olhos no longe do campo, inteiramentedistraído de olhos, fácil da gente roubar. A meninaapressada se aproximou, e não tirava os olhos da cara dele,ele bem via com o pensamento. Battleship estava outravez com raiva, mas agora indignado, a estúpida nem sabiase distrair pra disfarçar! E eis que ela o toca no braço ecom tanto peso que era impossível Battleship continuar123


mário de andradena distração. Agarrou a mão dela, era mãozinha fria, semprazer, e olhou com tanta força que a coitadinha teve umestremeção, ficou imóvel. Vinha do fundo dos seus olhosnegros, agora abertos no medo, uma expressão de sofrimentotão quietinho que deixava a existência consolada.Battleship ficou surpreso. Pela primeira vez na vida tevea noção, noção muito longínqua, de que era um desgraçadotambém. Mas aqueles olhos negros lhe diziam tambémque era indiferente ser desgraçado. Estavam os doisassim, um minuto, ela com medo, ele surpreso, quando selembraram de si. E a menina, recuperada, continuou naintenção que o rapaz interceptara, pesou ‐lhe mais a mãono braço e murmurou, fingindo vasta ansiedade:– Me dá esmola!Era esmola, não era roubo, Battleship ficou sem fim.Não tinha piedade, não tinha raiva, não tinha pressamais, estava por tal forma sem razão, meia dificuldadeem respirar tão inútil se achou. “Me dá esmola!” que elarepetia outra vez, certa da esmola agora, mais animadaporque ele não apertava tanto mais o braço dela e a olhavasempre, mas sem aquela força de vista que a estarrecerapouco antes, e sim com olhos inertes, ainda por qualificar.“Só um tostão!… pra pão!” ela insistia, animada cadavez mais; porém, como a resposta não vinha, a frase novadenunciava uma certa impaciência, enquanto a tradição,contradizendo a impaciência leal, teatralizava cada vezmais, com uma burrice que atingia o ridículo, a sua atitudede fingir desgraça. Battleship não estava com mínimaintenção de dar esmola, estava literalmente aquó. 121 Eagora que examinara bem a cara da menina, aquela sujidadetão impregnada, tão conservada como um rito secular,se era menos repugnante assim, não lhe deixava lugarpro mais mínimo impulso de simpatia. Era apenas uma124


A ficçãorevelação surpreendente, Battleship ficara sarapantando.Já umas duas ou três pessoas olhavam algumas vezes prosdois, reparando, e o inglesinho era discreto. Mas ficaranele uma curiosidade fixa, Battleship estava com pressaoutra vez, e, pra o normalizar inda mais nos projetos anteriores,uma raiva nova lhe bateu no ser. Disse “não” frio,largou de golpe o braço da pequena, fincou os olhos nocampo onde os soldados valsavam de focas de music ‐hall.E a menina foi ‐se embora.Mas Battleship não a perdeu de vista mais. Ela andoupor ali, colhendo esmola de um, recusa de outro, até que aparada acabou. Dez mil pessoas se acossavam nas saídasmas Battleship não roubou ninguém, seguia a menina.Assuntou ‐a correr de bonde em bonde, jogar a mão dentrodos automóveis, parar senhores de cinquenta anos, eBattleship calculava nuns dez milréis a colheita quando selembrou que estava em S. Paulo, na carteira de três contose aumentou o cálculo pra vinte milréis. Afinal os bondesforam rareando, e os próprios vendedores de pastéis searranjaram pra partir, tinha acabado a independência. Amenina se orientou na rua. Mas Battleship estava prevenidoagora que não tinha mais povo pro disfarçar, e ela nãoo enxergou. Amarrou a espécie de lenço em que apertaraas moedas, e com uma no dedo foi comprar o doce dodoceiro.Agora ela partia mesmo. Battleship ia segui ‐la quandocompreendeu de repente o que vale um doce. Jogou a moedinhade milréis na cesta enjoativa do doceiro e recebeudez doces num papel. Então seguiu atrás da menina. Elatomara por umas ruelas sem calçamento que rodeavamo prado, depois atravessou um ajuntamento de casinhasnovas, bordejando a linha de bonde. Do outro lado era umcampo aberto, inda sem destino como se aquele lado da125


mário de andradecidade acabasse ali. Havia bosquetes esparsos de arvoretasplebeias, a faixa branca duma rodovia bem tratada, ealém um mato baixo que pra Battleship figurou a jungla 122selvagem. A pequena tomou pela vereda que enfiava pelomato e Battleship, já perto, deu um grito cuidadoso de paz,chamando. Ela virou mas em vão Battleship forçava a bocanum riso e mostrava os doces na mão: nem percebeu quemera, a menina desatou na carreira mato dentro. Battleshipcorreu também, sem refletir. O matinho acabava quaseque ali mesmo, e quando o rapaz entrou por ele já nãoenxergou mais a menina, e apenas no fim do túnel sobreado,a moeda violenta do céu. O coração dele cerrou numpressentimento de perda que doeu muito e desacostumadode sofrer, Battleship arremeteu com desespero na direçãoda outra entrada da vereda. Chegado lá entreparoupra se orientar e teve um baque. Junto mesmo à entradado matinho, à esquerda, no terreno que descia até o corpodesmanchado dum riacho pluvial, havia um rancho. Noterreirinho de frente, descuidado, sujíssimo, estava umamenina, tão suja como o chão, como [que] fazendo comidanum fogareiro miserável. Parara o gesto e o olhava, pasma.Sentada na porta estava ainda uma mulher velha, devia servelhíssima, amulatada na cor, com uma enorme carapinhaembranquecida, fumando num cachimbo comprido.Atrás dela, de pé, se protegendo mais na entressombrado rancho que na velha, a menina da parada recuou maisassim que Battleship apareceu.O moço abriu o papel e estendeu os dez doces comoapresentação. A menina do fogareiro arregalou os olhospro convite mas logo ficou sofridamente inquieta, olhoupros doces, olhou pra velha, olhou pro riso do moço, olhoupra velha outra vez… Mas a mulata que não perdera nadada sua calma virtuosíssima com a chegada do estranho,126


A ficçãofez uma careta de fúria castigante pra pequena, e estarecomeçou a lidar com a panela sem saber. A velha voltoulogo ao seu aspecto de perfeição, mas os olhinhos ávidos,piscando, estavam presos na direção dos doces, desmentindoa calma. Depôs lentamente o cachimbo no chão earrimou ‐se no batente solto, pra se erguer. A que estavajunto dela ajudou ‐a numa monotonia de obrigação. Erauma velha bem grande, que se reduzia à metade, magríssima,engruvinhada por mil reumatismos. Deu uns passosdifíceis na direção de Battleship, e este, se compreendendoaceito, veio ao encontro dela, e lhe depôs os doces nasmãos trêmulas. A velha apertou o embrulho no peito quesaía duma camiseta já sem cor. Battleship recebeu delaum fedor tão nítido de porqueira que, não pôde, recuouum passo. Então saiu da velha uma voz muito fina, muito,agradecendo. Voltou pra sentar de novo, mas lembrou queo moço estava ali e ela devia representar, chamou:– Balança, minha filha venha cá.Isso a menina do fogareiro deu um pulo pra junto davelha e estendeu a mão. A mulata olhou meio inquietapros doces, tinha mesmo que se resolver, deu um. Balança,recebendo o doce, olhou pro moço, já sem nenhum medo.E os olhos dela bem falavam que ele visse como era aquelavelha amaldiçoada, que só dava um doce tendo tantos. ETrombeta recebeu também seu doce de favor.Estes nomes estrambólicos, Balança e Trombeta, Battleshipveio a saber e a compreender só depois. Porqueele estava mesmo decidido a não sabia mais o que, derumos tão impossíveis que tomara a aventura da parada.Mas tudo ainda estava decidido nele que tinha dehaver qualquer coisa com a menina da parada, a Trombeta.A velha sentou de novo, sem preocupação de limpeza,botou o papel inteiramente engordurado pelos doces no127


mário de andradecolo, e levantou do chão o cachimbo. Não houve indecisãonenhuma, porque todos percebiam que Battleshipera só bom, nasceu uma conversação longa que Battleshipaguentou de pé, não tendo cadeira nem onde sentar.As meninas entravam na conversa, sem nenhum respeitopela velha, auxiliando as respostas.Battleship fez umas perguntas e foi logo censurando asordidez das meninas. Mas ninguém não compreendeu doque ele falava. Não era a relativa dificuldade com que ele seexpressava que trouxe a incompreensão, e sim a nenhumaideia de sujeira que havia nas três, piores que irracionais.Viviam de esmolas. A velha, que as meninas chamavamde dona Maria, afirmava que Trombeta era filha dela, masnão havia entre ambas a mais mínima relação de parecença.Não se tratava porém duma mentira da velha, nemmesmo propriamente dum esquecimento, e de fato elacaducava bastante: se tratava sim duma espécie de abandonodo passado, em quem só vivera e por quase cem anosjá, da exclusiva precisão do momento. Ela não sabia maise Battleship logo percebeu que a mulatona inventava respostas,pela simples necessidade de responder. As meninasé que traziam alguma verdade à história daquelas três.Fazia pouco tempo que viviam ali. Trombeta contavaque sempre, desde sempre, dona Maria esmolavalá na cidade puxando ela pelo bracinho de quatro, seis,oito anos. Moravam onde podiam, onde achavam no quemorar, mas sempre nas barras da cidade. À medida queesta crescia, as duas eram enxotadas pra limites novos, praranchos abandonados de carvoeiros, pra restos de bilheteriasde circos idos, pra tábuas ficadas de algum acampamentode cigano. Aos poucos dona Maria ia ficandoencarangada, 123 o que levou naturalmente Trombetaa esmolar sozinha. Se deu logo um certo proveito de128


A ficçãosituação porque os oito anos sozinhos da pequena comoviammais que menina e velha juntas. Também Trombetaera inexperiente e se afoitava muito. A velha ficavasempre pelas barras da cidade em suas caminhadas deesmola. Batia nas chacras, nos mosqueiros 124 de operários,nas vendinhas de beira ‐estrada. E eram restos decomida, farrapos sujos, algum raro tostão que recolhiamas duas. Trombeta, menos por ambição que curiosidade,principiou entrando pelos bairros, batucando os pezinhosmiúdos por avenidas calçadas, e uma vez, desvairada deaventura e surpresa, subiu a ladeira do Carmo e chegou naRua Quinze. Então foi presa. Quando ela percebeu que osoldado segurava no braço dela e a levava por um caminhoque ela não decidia, botou a boca no mundo e reuniugente. Todos pediam pro soldado que deixasse ela irembora que ela não fazia mais, e também o soldado estavacom enorme dó. Deixou que ela partisse, no princípiodevagar, sem coragem depois numa carreira entre lágrimas,porém o dó de todos lhe ajuntara quase oito milréis.Não lhe interessavam tantos milréis e sim o medo horrívelque tivera. Continuou esmolando pelas chacrinhas e botequinssem polícia. A quase irracional momentaneidade damulata já se infiltrara nela também. Uma lata de restos dealmoço lhe interessava mais que oito milréis de alimentospor cozinhar ou panos pra costurar.Devia ter dez, quem ia supondo isso era Battleship,quando uma feita encontrou com outra menina na rua.Esta seria Balança depois, porque naqueles tempos elasse chamavam de “Chíu!” e “você”. Pois um dia Trombetaencontrou uma menina na estrada e as duas brigaram porqueTrombeta ia com um ramo de árvore na mão, a outramenina chegou e disse:– Esse pau é meu.129


mário de andradeBateram bastante uma na outra, se puxaram os cabelos,contaram nomes feios e Trombeta seguiu seu caminho.No outro dia fez questão de passar por ali mas a meninanão estava. Isto é, estava sim. Saiu de repente correndopela porta duma casinhola de estrada que ficara mais pratrás, e se atirou aos tapas sobre Trombeta. Tornaram a sebater muito, só que não doía porque as duas não tinhamforça nenhuma, eram miserinhas de gente. Uma acabavatomada de medo e a outra ficava com gosto de superioridadeno instinto. Foi assim. A outra menina não tinhanada que a prendesse em casa, nem a mãe, uma italianonaque batia às vezes, lhe agradava mais que a liberdade comque a inimiga Trombeta seguia por caminhos inventadose batia nos botequins. Um dia foi com Trombeta, dormiuno quase relento da tapera e não mais se lembrou da italianada mãe.Dona Maria tinha instintos. Uma das meninas pediaesmolas enquanto a outra ficava em casa, diminuindo oreumatismo da velha e fazendo comida, se tinha comidapra cozinhar. Foi então que partiram pra mais longe evieram topar com o rancho abandonado em que estavamagora. E eis que a zona era excelente por causa do JockeyClub que nos domingos proporcionava uma colheitaregular de oito, nove milréis. E ali ficaram alguns anos atéBattleship chegar.Battleship olhou em torno. O matinho seguia até o riachoe parava ali entre arvoretas esparsas. Do outro ladocontinuava subindo o morro e se perdia no além. A unstrezentos metros no campo se percebia a casa brancaduma chacra, com telhado de cottage, 125 surgindo das terrasplantadas. Havia um burro no campo. A manhã estavabem alta e Battleship olhou o relógio pulseira, meio ‐dia.Sentiu fome. As três mulheres já tinham comido na panela130


A ficçãomesmo, o feijão cozido. Ele nem tivera que recusar porquenão fora convidado, era rico. Então Battleship partiudeixando mais cinco milréis pra mulata e um riso dedespedida.Depois que entrou pela vereda do matinho ouviu umruído de carreira atrás de si, virou. Era Trombeta sorrindo,sem compostura. Chegou junto dele, e contou quenem ela nem Balança chamavam dona Maria de “donaMaria” entre si, mas de “Juízo Final”. Era também outrapalavra que elas tinham pegado do padre no dia em queentraram na tal capela e escutaram o sermão, e tinham seentrebatizado pelas palavras engraçadas que escutaramda boca do padre. Então ela ficara Trombeta, e a companheiraBalança. Dona Maria, principiaram chamandode Juízo Final e achavam muita graça, mas um instintoimpossível de respeito, não, uma reserva de superioridadepor quem não era igual a elas, fizera com que não revelassemnunca pra velha que a chamavam de Juízo Final. E,de fato, sem perigo nenhum, diante de dona Maria, umafalava pra outra:– Balança.– Eu.– Juízo Final é isto, um palavrão.Ambas se riam.Pra Battleship a revelação não adiantara nada. Nãoimaginava o que fosse Juízo Final, nem balança, nemtrombetas dum futuro vale da justiça. Mas olhou maisTrombeta, agora tão amiga dele, e uma simpatia gostosa,fez ele esboçar um gesto de proteção. Reforçou a mão deleum ar de pai que ia alisar os cabelos da menina, mas tudoficou por fazer, interrompido pelo nojo. Battleship disseadeus e foi seguindo. No fim do matinho olhou pra trás.Mas Trombeta não estava mais.131


mário de andradeNo bonde o moço ia completamente transformado,participando de tudo. Olhou a paisagem que deslizavaentre amostras de atividade humana, muito rápida e desconfortável.Mas só pôde ajuizar assim no primeiro minutode visão, enquanto a preocupação de tomar o bonde, depagar a passagem e tudo o deixavam ainda bem disponível,porque logo os olhos principiaram não vendo mais oque passava e parecia incrível pra Battleship que Balançae Trombeta vivessem assim. Naquela sujeira. Imediatamenteele decidiu que ia na cidade comprar uns vestidos,sabões, toalhas pras duas, e foi decidido, mas as lojas todasestavam fechadas porque era mais um feriado. Battleshipbanzou muito desempregado. Mas quando foi de ‐tardinha,a ideia fixa de arranjar bem limpas as meninas lhe fezconseguir uma carteira com cento ‐e ‐vinte milréis. Ligoulogo a felicidade com o caso da manhã e decidiu que asmeninas traziam sorte. Caiu uma chuvada braba e Battleshipfoi pro hotel. Fez café, deitou pra fumar e dormiuaté o dia seguinte.Quando acordou teve o bom ‐dia das meninas que imediatamentelhe vieram no pensamento, sorriu. Levantou‐‐se apressado, levou todo o dinheiro que tinha consigo,podia bem gastar tudo porque as meninas davam sorte ede resto era a primeira vez que Battleship imaginava napossibilidade de faltar dinheiro como precisão constante,e não apenas como precaução imediata. Estava fazendoum frio úmido carregado de névoas claras. O rapaz envergouo sobretudão e foi pra rua comprar roupas. Comproumuita coisa. Comprou até uma esponja cara, dessas queas pessoas limpas usam pra acarinhar o corpo no banho.E comprou também um vasto xale marrom pra mulatona.Não tinha pensado nela até esse instante quando a imaginaçãolhe trouxe as meninas bem higiênicas nos seus132


A ficçãovestidinhos azuis e uma velha pitando com elas e suja desdenascer. Não se lembrou de limpar a velha também quenão lhe dava nenhuma raiva, mas a visão ficara inconfortávele Battleship comprou o xale pra esconder a sujeirada velha.Lá chegado, a velha estava sempre no mesmo lugar, sóque tremendo por causa da umidade. No fundo do terrenoo riacho nadava claro, refletindo as nuvens frouxas, muitoaumentado com a chuva da véspera. Trombeta veio correndo,com o colo cheio de gravetos de cozinhar o feijão. Eraa vez dela cozinhar, Balança não estava. A menina sorriupra ele e Battleship teve uma comoção que ele julgou violentíssimaporque, desacostumado a carinhos, o presenteque trazia o impediu de falar, corou. Ficou mesmo encarnadoaté no longo pescoço alvo que afundava no sobretudão,baixou os olhos aturdido porque essa era a primeiraconsciência de falta que lhe pousava no espírito. Tudo ficoususpenso assim, mas Battleship não podia aguentar comsuplício tamanho. Principiou varrendo com o pé um nacode chão e Trombeta logo o ajudou, ajoelhada, varrendo ochão com as mãos. Ela fazia tudo, olhando pra ele e rindo,mas o moço bem quis, e não pôde sustentar os olhos dela.Sorriu amarelo, ajoelhou no chão, desrespeitando sua linhade limpo, e foi desatando os dois enormes embrulhos quetrazia. A mulata parara de fumar olhando com avidez.Surgiu o xale que a cobriu. Depois vieram roupas brancas,dois vastos pares de meia de lã, vestidinhos azuis, pentes,uma barra translúcida de sabão de coco, a esponja, toalhasde rosto, um pedaço comprido de fita de cetim preto queera pras meninas amarrarem os cabelos, e a tesourinhade unhas. Isso Battleship estava tão feliz! Os olhos dele seenchiam de lágrimas ignoradas que o moço logo limpavaporque eram do vento frio. Trombeta se extasiava e não133


mário de andradesabia qual dos vestidinhos escolher. Só a velha quando seconvenceu de que nada mais era pra ela, retomou o pito.Lançou assim mesmo um olhar de ternura comovida sobreTrombeta que agora ia andar bem vestidinha, e recaiu naindiferença. Mas de repente a menina ficou muito inquietae segurou forte no braço de Battleship.– Pra mim!…– Hum ‐hum.– Com Balança?…– Hum ‐hum!Se arriscou a olhar pra menina outra vez. Trombetaenfim compreendera. Ela já tinha atento o hábito de receber,que os doces da véspera assim como essa rouparia nãopassavam de esmolas pra ela. Era uma espécie de obrigaçãodo mundo, e ela recebia a tudo com indiferença dequem recebe o que tem que receber. Porém o excesso, ospanos não usados, a dúvida de que tudo aquilo não passasse[de sonho], e ela não pensou, mas ela teve o sentimentonítido de que havia sonhos, ela a sem sonhos, ea dor insofismável 126 de que havia burlas no mundo. Pramim! É sim pra você, Trombeta, eu comprei tudo pravocê, Trombeta, com sua companheira Balança; e agoratudo isso que eu comprei eu dou pra você, Trombeta,com sua companheirinha, Balança. A noção da dádivabrotou nela feito um Sol macio. E de fato o Sol rompiaa frouxidão das nuvens e veio bater no terreiro. Battleshipolhou pra ela e enxergou um rosto novo. Trombetanão ria não porque os lábios estavam alastrados, fechadinhos,rubros de natureza, guardando um riso interior desublime festa. Os olhos estavam muito grandes, negros,rutilantes, pela primeira vez vivendo o sentido da gratidão.E agora Battleship não podia mais tirar os olhosdela, nem ela os seus de Battleship, ambos se examinando134


A ficçãonuma paciência curiosa que era de perfeita simpatia.Eram iguais, sentiam ‐se iguais, companheiros de tristeza.Esse era o descobrimento explosivo que acabavam defazer. Brotara de tudo aquilo, arrebentando em escarcéusbarulhentos que não pouco os aturdia, a noção da felicidade.Isto é, pelo contrário, a certeza de que nunca tinhamsido felizes. Em vão Trombeta representara a desgraça,mentira pais doentes em casa, bancara de esfomeada, nosseus caminhos de esmola, tudo fora gesto de teatro, nãolhe dera nunca a mínima inquietação, a mínima verdade.Mas agora um sentimento próprio, pela primeira vez exatamentepessoal, e não nascido da paciência ou da preguiça,ou do costume, como a espécie de amor que ligava astrês mulheres, agora um sentimento dado a fundia commais alguém. Era a simpatia, a camaradagem, o amor deamigo em toda a sua mais esplêndida integração. Pela primeiravez, estimando e desejando possuir alguém, nasciaem Trombeta o instinto de comparação. Se comparoucom o moço e descobriu que não fora nunca feliz, queera uma miserável desgraçada. Percebeu que estava feia.Percebeu que estava suja, não, não percebeu nada disso, anão ser como ilações 127 necessárias mas não conscientes,da sua infelicidade.Battleship violentamente recebera o mesmo sentimento.Assim como Trombeta o julgava lindo, trabalhador,capaz de dar, bom, mas completamente igual a ela nalgumadesgraça insabida, ele a examinava, simpática, ocupadacom a vida, tendo gentes em torno pra se unir. Elenão, era um sozinho maquinal, um estrangeiro, um semfamília vivendo fora da pátria. A saudade de Londres oinvadia. Nunca fora mais que um miserável desgraçado.Ficaram um minuto assim, vivendo sem pensar todasas suas poucas noções de desgraçados. As lágrimas135


mário de andradecorriam francamente pelas faces de Trombeta, mas agoraBattleship continha com energia sua enorme vontade dechorar. Pouco antes suas lágrimas tinham sido por causado vento, mas agora ele sabia que as lágrimas eram dochoro, chorar não. E as suas violentas superioridades dehomem dirigiram a cena.Sorriu. Murmurou uma carícia em inglês, como se dissesse“Bobinha!”, e desistiu de si mesmo pra adquirir umafunda piedade daquela pobrezinha suja.– Você precisa se limpar, Trombeta.Ela imediatamente obedeceu. Olhou rápido em tornose orientando, pegou numa das toalhas de rosto, na barrade sabão e disparou na direção do riacho. Battleship teveque sentar no chão, às gargalhadas. Trombeta desapareceraentre as arvoretas e o moço ficou trocando umas palavrascom a velha.Uns dez minutos depois Trombeta voltou. Tiverahonestamente ideia de se limpar mas sujara toda a toalha.A cabelaça era a mesma com uns pingos de água brilhando.Limpara as pernas mas os pés vinham do barro.E nas mãos enrubescidas pela água inda fria, as unhaspretas agora enojavam mais. Battleship deu um risinhodescontente. Levantou a cabelaça e viu uma orelha, infundiahorror. Mas Trombeta era mesmo bonitinha de carae os nojos de Batlleship terminavam em simpatia, olhostão doces, negros! Junto da gola do vestido trapo a rapidezda limpeza deixara uns traços de sujeira no pescoço.A toalha estava suja mesmo, Battleship pegou na toalha eesfregou os traços com o que achou de limpo na toalha.Mas o limpo era pano seco e o cascão não saiu. Battleshipficou desesperado. Fazia tudo falando, ralhando já com amenina, como se ela fosse dele, e Trombeta estava muitotriste porque não conseguia obedecer ao companheiro.136


A ficção– Vamos até o rio! que ele falou, se decidindo. Levaramas roupas, a tesoura, os pentes. Lá Battleship tirou osobretudão que já estava mesmo sobrando ao Sol, tirou opaletó, o colete, arregaçou as mangas, e depois de sacudirforte a arvoreta pra ver se a roupa dele não caía dos galhos,se orientou. Mas pra chegar na água corrente, tinha ummetro e muito de lama, pra sujar Battleship. Além disso aprópria água corrente era de chuva, barrenta, imagem desujidão. Não havia outra água, mas não havia outra vasilhagamela na casa que não fosse a panelinha de cozinharo feijão. Foram até lá no rancho pra ver se descobriamum jeito e encontraram a velha resmungando por causade Trombeta não estar preparando a comida. A meninaolhou pra Battleship enormemente desolada. Tudo aquiloafinal a estava divertindo muito e a Battleship também.Então ele se lembrou, foi correndo até junto do riacho evoltou com uma tabuinha de cacau que destinava prasmeninas. Deu pra velha, que comesse em vez de feijãoaquele dia, ela bem quis mas guspiu achando rúim. Entãoo moço ficou meio zangado e falou pra ela que fizesse feijãoela mesma, o quê que tinha, um dia só! A velha obedeceupor causa do xale e porque também pela primeiravez despertara nela alguma coisa mais que o instante, e eladescobrira que por causa das meninas era capaz de ter umfuturo risonho. Isto é, futuro sossegado, futuro de xale. Omoço que fizesse o que quisesse contanto que [ela recebesse]xale e doces como os de ontem, cacau não.Battleship entrou no rancho procurando. Encontrouuma caneca e no mato atrás da casa, havia duas tábuasaparelhadas, quem sabe quem tinha deixado ali! Levaramas tábuas, levaram a caneca e Battleship se decidiuenfim a tirar os sapatos e ficar de pé no chão feito asmeninas. Quando foi pra arregaçar as calças, teve pena,137


mário de andradeamarfanhava tudo. Tirou as calças, ficou de cuecas depoisde olhar o horizonte. Mas as arvoretas apagariam qualquervista vinda do além e não tinha gente no horizonte,só um burro branco no longe, comendo capim. Foramdispondo tudo e Battleship descobriu que lá pra dentro domatinho o riacho se estreitava mais, lá era melhor. Levaramentão as tábuas pra um lugar muito propício, ondeelas ficaram de barranco a barranco, cinco centímetrosfora d’água. Estava tudo alegre e a água era limpa na escurezanatural. O inglesinho sentia prazeres deliciados deestar de pé no chão no frio. Vencera a repugnância e estavasó se rindo. Trouxeram tudo pra ali e Battleship mandouTrombeta entrar n’água. Mas uma surpresa amarga o fezexclamar. Se esquecera de comprar sapatos pras meninas,e agora as meias estavam ali pra quê! Depois riu, ficavamdescalças mesmo essas porcas.Foi, sem cerimônia, desabotoando o trapo de Trombetanos botões que sobravam, e a menina ficou nua. Elase ajuntou todinha ao contato do ar frio e Battleship, serindo, borrifou um pouco de água no corpinho escuro,fizeram as pazes. Foi uma limpeza em regra. Aos poucosdesaparecera de ambos a noção de alegria, era um trabalho;e o trabalho se fez com convicção. Só interrompeua seriedade, o fato de chegar Balança, que ficou logoindignada com aquilo tudo e chamou Trombeta de senvergonha.Trombeta não sentiu nada porque o adjetivoera comum entre elas, embora só no momento parecesseter sentido. Mas Battleship falou que Balança se aprontasse,que ele a lavaria também. Balança gritou que não, quenão, seu isto! – uma palavra muito feia. Sentou numa raize ficou olhando de soslaio 128 pros dois.Trombeta ia ficando aos poucos outra gente. Saíradebaixo da sujeira quase um anjo claro, anjo brasileiro,138


A ficçãoé certo, de olhos e cabelos muito escuros, e um corpocopiado da mulataria na esbeltez. Mas, insexuada comoos anjos, a sensação que Trombeta nos dava era a de gravesegurança no pudor. Se ficava tão calmo, contemplandoa menina, como deve ser o sentimento de paz depois deuma guerra comprida.Assim Trombeta vinha saindo do riacho, esguia, quaseum silvo, um silvo sim de cobra, eufônica 129 junto dos milruidinhos que a natureza estava chorando naquele matoda manhã. Não se destacava nem se impunha, pé de carrapicho,pé de flor sem nome, bonita feito folha que a chuvalavou.Battleship, esse estava feliz completamente, sentindo asforças matemáticas do arquiteto. Contemplou um bocadoa menina toda entregue em se esconder na roupa nova,mas tinha trabalho duro a completar. Se voltou, lançandoo braço:– Agora você, Balança.A menina, enroscada num tronco áspero como ela,estava espiando com desprezo, de soslaio sempre, aquelanovidade que saíra da companheira, e tinha, tinha o desejoenorme daquelas fazendas que ninguém nunca usara.Mas que transportes a tomavam desde o instante em queenxergara Trombeta nua e Battleship de cuecas, ambosimensamente nus, se contagiando! E como se analisar?saber o que sentia?… Se o que sentia era um mundo tãonovo, onde faltava nome ao mais mínimo afeto?… Balança?Balança estava medonha por dentro, era medo, eradesejos, ciúmes, despeitos, era uma cólera hirsuta. 130 Amão de Battleship resvalou nela apenas. A menina deude banda com uma delícia de ritmos, e desembestaram osdois matinho adentro, convertendo outra vez a existêncianum brinquedo marginal. O erro, talvez erro procurado,139


mário de andradefoi Balança buscar o limpo pra correr. No matinho Battleshipnão alcançava ninguém. Doíam ‐lhe os pés desacostumados,se machucava muito, e a tristeza viria logopousar no corpo do inglesinho algum gênero de lassidão.131 Mas Balança, alcançado o limite do mato, junto aoriacho, parou olhando pra trás. Battleship saiu bem maispra cima, na vereda, dez passos além. Olhou de cuecaspro mundo, e era o mesmo deserto, só o burro ocupadocom o seu capim. Arrancou na disparada, Balança hesitouno rumo e estava presa. Então bateu. Battleship foiaguentando, cheio de boas defesas, muito lorde no boxe,mas chegou a vez dum tapa que machucou. O branco nãoteve mais contemplação: com dois bofetes Balança parouchorando. Isso é que ele queria, sentiu prazer inesquecível,gosto de prolongar o sofrimento da vencida, foi ralhandomuito com ela, em inglês, chamando ela de “senvergonha”também, e outros nomes feios que escutara maisvezes por aí. E agora Balança nunca mais fugiria dos pulsosque a puxavam pro lugar do banho. Trombeta estavalá, toda de azul, se rindo. Mas foi só quando enxergouTrombeta que Balança compreendeu definitivamente: obanho era impossível mesmo. Se debateu de novo, Battleshiptambém era cabeçudo, e a briga de ambos tomou taisproporções, tanto ódio verdadeiro, que não era fácil maisadivinhar quem venceria. E os gritos de Balança haviamde chamar alguém, pelo menos a velha. Mas o pickpocketsentia um verdadeiro terror por qualquer ruído sem discrição.De repente empurrou Balança pra longe, largou‐‐a, ela caiu na concha da vereda. Trombeta estava ficandoenormemente séria por não compreender. Balança e Battleshiparfavam, 132 imóveis, se olhando com lumes diabólicosdo olhar. Houve um momento incompreensível prostrês, até que o deslumbramento chegou.140


A ficçãoFoi que, quando Battleship perguntou furioso porqueela não queria se lavar também, ficar linda, Balança, vai,recomeçando o choro, disse que estava com vergonha deTrombeta. E foi o deslumbramento.– Eu viro, sua isto! desferiu Trombeta logo, botando alíngua pra legítima “senvergonha” que pusera o mal naroda.Balança também botou logo a língua, enquanto Trombetalhe dava as costas mais que depressa, pra não recebero insulto em cheio sobre o olhar. Insulto de botar a línguaera dos mais fortes entre elas, mas só enquanto se enxergavao gesto da outra. “Ahan” Balança fez, reforçando oinsulto com som, pra Trombeta escutar. Tudo mecânico,sem nenhuma convicção. Os três estavam longe, em quemundos não sabiam, por demais deslumbrados.Mas Battleship imaginou que tudo era por causa dasmeninas estarem brigando, e alvitrou 133 que pois entãoTrombeta podia voltar pro rancho, fazer a comida davelha. Trombeta partiu num rompante, mexendo a bundinhacom raiva, nada curiosa, mas sofrendo a ingratidãodo amigo, meio disfarçando a primeira lágrima femininados seus olhos. Deixara uma encabulação difícil nos doissozinhos, o que era aquilo! eles pensaram sem nenhumaresposta do ser. Mas Battleship era menos completo, erahomem:– Venha agora, Balança…murmurou com mansidão, por não suportar mais tempoo malestar, isto é, a imediatez do mal que estava ali. EntãoBalança veio e ficou nua.E para os olhos dos insetos se balouçando sobre aságuas, nada eles puseram de mal nessa lavação. Apenasestavam muito sérios, e a alegria grátis, que nasce de simesma, não dá nada e nada exige, essa devia andar por141


mário de andradeoutros seres, noutros riachos, talvez apenas nalgum matosem ninguém. Battleship, primeiro sentado, depois decócoras na tábua, lavava sempre com vigor. A esponjaprocurava o corpo imóvel de Balança e se esmigalhavaem jorros de água, enquanto aos poucos a sujeira se diluíalistrando o corpo da menina em fios compridos. Os olhosdela fixavam atentos a vereda, temendo que Trombetaviesse. Battleship, imerso no trabalho, falava ralhos meigos,de voz grave, que Trombeta era muito boazinha, queelas não deviam brigar tanto assim. Havia uma presençavermelha de Trombeta ali, uma presença insuportável.O corpo moreno de Balança emergia da limpeza pareceque mais moreno, um ocre rutilante que as sombras domatinho acentuavam num quase negro, ao mesmo tempoque empalideciam mais o branco violento do torso deBattleship. E tudo pronto, depois dum tempo longo quesurpreendeu os dois pela curteza, quando o inglesinhoquis levantar pra se rever na obra pronta, ele percebeu que,erguido, havia de mostrar pra menina a indiscrição agudaem que se achava e teve um imenso dó. Agarrou sembrinquedo Balança pelo corpo e pelas pernas, suspendeu ‐ano colo e assim pôde se erguer n’água. Balança principiouchorando miúdo no ombro dele, e, patinhando n’água,depois no lamedo, e afinal marchando na terra firme, Battleshipcarregou a menina até a vereda, onde o vestido azula esperava para disfarçar a virgindade que eles tinhamperdido n’água.Dizei, ôh periquitos do ar e piabas d’água, onde nosfica a virgindade!… Nem Battleship, nem Trombeta, nemBalança tinham abandonado aquela integridade físicaque deixa os seres tão sem destino e pueris. Quantoa saber, sabiam de tudo. Balança, Trombeta e Battleshipjá eram sabidíssimos nesses caminhos da vida, nenhuma142


A ficçãohesitação teriam no cumprir o ato do amor. Se diria quea virgindade não depende nem do corpo nem das sabençasdo espírito, mas da consciência de um erro grande danatureza, de que somos todos vítimas… Trombeta, Balançabem que já podiam ter encontrado na várzea algumrapaz destorcido que as derrubasse no chão. Sairiam dosangue zangadíssimas, chamando de “senvergonha”, distoe mais aquilo, o rapagão se rindo. Continuariam virginais.E o mesmo com o pickpocket que olhava uma mulher dealto a baixo, distinguia as boas, comentava doenças, masjamais não deixara que uma deusa de Londres lhe guardasseos dedos mais que o tempo de um chequendes. 134 Obeijo? porcaria.Pois com o espaço de um banho sério, ganha desdeontem a noção agradável das companheiragens, agoraaqueles três tinham como a antecipação dolorosa deque a amizade havia de ser terrível pra eles, devido a tera diferença de homens e mulheres neste mundo. Não secompreendiam ainda, nem a ternura tivera espaço e experiênciapra aveludar aqueles três corações fechadinhos.Elas só o que tinham por enquanto era confiança no moçoe batera em Battleship o desejo de prestígio e de apadrinhar,isso apenas.Mas Balança estragara tudo por causa do temperamentomais inventivo. Num ímpeto primaveril de curiosidade,inventou a vergonha e sexuou todos. Eles não provinhammais nem do sal das águas nem do barro de Deus: provinhamdaquela vitória dos vivos que faz prevalecer, sobreo destino perverso das diferenças, o instinto da felicidade.E eles só viram então o presente, mui dourado e irregular,por detrás de uma dedicação exclusivista, aí está. Trombetalá na panela mexendo, não escutava mesmo nada osralhos da velha, deslumbrada. Balança no riacho limpa,143


mário de andradeenxergara sequer no espaço alguma libélula prateando,deslumbrada. Battleship, surpreso, ignorava se a limpezafora total na menina. Se sentiam todos três jogados numturbilhão de ansiedades, desinfelizes todos os três, comuma pressa indestinada, muito inculta, muito grosseira,agora que estavam tão delicados por dentro, delicadíssimos,só capazes de acarinhar. E assim um riacho de chuvalevou a virgindade dos três.144


III. O poeta por ele mesmo


Eu sou trezentos… *(7 de junho de 1929)Eu sou trezentos, sou trezentos ‐e ‐cinquenta,As sensações renascem de si mesmas sem repouso,Ôh espelhos, ôh Pireneus! ôh caiçaras!Se um deus morrer, irei no Piauí buscar outro!Abraço no meu leito as melhores palavras,E os suspiros que dou são violinos alheios;Eu piso a terra como quem descobre a furtoNas esquinas, nos táxis, nas camarinhas seus próprios[beijos!Eu sou trezentos, sou trezentos ‐e ‐cinquenta,Mas um dia afinal me encontrarei comigo…Tenhamos paciência, andorinhas curtas,Só o esquecimento é que condensa,E então minha alma servirá de abrigo.* Poema publicado em Remate de males, 1930 e em Poesias, 1941.147


Notas/Glossário1. “Onde até na força do verão havia tempestades de ventos efrios de crudelíssimo inverno” Fr. Luís de Sousa: fragmentodestacado do capítulo V, da Vida de Arcebispo, obra deFrei Luís de Sousa, cronista português (1555 ‐1632), consideradoum dos maiores escritores de língua portuguesa. Nacarta a Fernando Sabino, em 21 de março de 1942, Mário deAndrade inclui esse título entre as leituras fundamentaispara a formação do intelectual.2. Arys: o texto, ao incorporar marca de perfume femininodo gosto da elite, atende à literatura de circunstância noprojeto literário do modernista. Eis o anúncio na revistaA Cigarra: “UN JOUR VIENDRA/ Perfume d’Arys o maisluxuoso/ adoptado pelas pessoas elegantes/ o mais captivantee penetrante./ […] ARYS, 3, rue de la Paix, Paris –em todas as perfumarias” (a. 6, n o 125. São Paulo, 1 o dez.1919, p. 4).3. Trianon: restaurante e confeitaria frequentado pela altaburguesia e pela intelectualidade paulistana, no início dodecênio de 1920; local de banquetes de homenagem e deencontros amorosos furtivos. No banquete oferecido aMenotti Del Picchia, em 9 de janeiro de 1921, Oswald de149


mário de andradeAndrade ali discursou lançando o modernismo. Mário deAndrade focalizou o acontecimento, em março de 1921, emsua crônica “De São Paulo”, na série homônima na revistacarioca Ilustração Brasileira.4. Galicismo: francesismo.5. Pálio vesperal: céu róseo, protegendo a cidade como umguarda ‐sol litúrgico, no fim do dia.6. Presidente: na República Velha, os governadores dos estadoseram denominados presidentes.7. Borbas ‐Gatos: referência aos bandeirantes paulistas doséculo XVII; metáfora a partir do nome Manoel de BorbaGato, integrante da grande bandeira chefiada por FernãoDias Paes Leme em busca de esmeraldas.8. Esperiamente: neologismo que alude ao Canottieri Espéria,o mais antigo clube de remo da cidade de São Paulo,fundado por italianos em 1899, para ironizar a idealizaçãodos bandeirantes.9. Monções: bandeiras que seguiam pelos rios nas capitaniasde São Paulo e Mato Grosso, nos séculos XVII e XVIII.10. Ritmos de Brecheret: metáfora vinculada ao Monumento àsbandeiras do escultor Victor Brecheret (1894‐1955), participantedo grupo modernista de São Paulo.11. Turmalinas: pedra verde, metáfora de um tempo semgrandiosidade, utilizando o engano do bandeirante FernãoDias Paes Leme, que morre desconhecendo que asesmeraldas, por ele descobertas, eram turmalinas semvalor. O poema de Olavo Bilac “O Caçador de Esmeraldas”cria o delírio desse bandeirante.12. Quina Migone: anúncio de tônico capilar, refletido no rio.No último poema de Mário, em 1945, “A meditação sobre oTietê”, em 1945, São Paulo retorna espelhada no rio.13. Hat Stores: anúncio da chapelaria de Serafino Chiodi, àRua Direita, no centro da cidade, espelhado no Tietê.150


notas/glossário14. Alacridade: alegria, vivacidade.15. Burguês ‐níquel: exemplo do uso de pares de substantivos,ao invés de adjetivos, nas injúrias endereçadas ao burguês.O poeta assimila, assim, o Manifesto técnico da literaturafuturista.16. Printemps: a Canção sem palavras em lá maior para piano,op. 62, nº 6, de Felix Mendelssohn ‐Bartholdy (1809‐1847),conhecida como Canção da primavera ou Chanson dePrintemps. Peça do repertório dos estudos de piano dasmoças da burguesia paulistana.17. Tílburi: carro de duas rodas e dois assentos (condutor epassageiro), sem boleia, com capota, puxado por um sócavalo.18. Padaria Suíça: naquela época, estabelecimento bastanteconceituado, à rua Formosa.19. Central: delegacia da Polícia, no Pátio do Colégio.20. Giolhos: joelhos, no português antigo.21. Confiteor: parte da missa destinada à confissão.22. Paulistano: time de futebol do Clube Atlético Paulistano,fundado em 1900.23. Friedenreich: Arthur Friedenreich (1892‐1969), consideradopela crítica esportiva um dos maiores centroavantesdo Brasil, pertenceu a vários times de futebol; entre eles oPaulistano.24. Gostar de Bianco? Adoro. Qual Bartô…/ E o meu xarámaravilhoso!…: na década de 1920, além de Friedenreich,Bianco, Bartô e Mário Andrada eram os craques do futebolpaulista.25. Corso: programa da burguesia paulistana que se exibiadesfilando em seus automóveis; propiciava namoros.26. Bertini: Francesca Bertini (1892-1985), grande atriz docinema mudo italiano.151


mário de andrade27. Tom Mix: (1880‐1940) o mais famoso caubói do cinemanorte‐americano.28. As romas de Petrônio: referência ao filme italiano Quovadis, sucesso mundial do cinema mudo que, em 1913,recria o romance homônimo do escritor polonês H. Sienkiewicz(1846‐1916). Dirigido por Enrico Guazzoni é talvezo primeiro longa ‐metragem conhecido. Na ação quese passa em Roma, no século I d.C., durante a resistênciados cristãos à perseguição movida por Nero, destaca ‐se opersonagem Petrônio, patrício romano e conselheiro doimperador, vivido pelo ator Gustavo Serena.29. Bicho de mármore parido no Salon…: referência a esculturaexibida no Salon d’Autonne, em Paris.30. “– Meu pai foi rei!/ – Foi. – Não foi. – Foi. – Não foi.”: apropriaçãodos versos 30 ‐31 do poema de Manuel Bandeira“Os sapos”, lido na Semana de Arte Moderna, em fevereirode 1922.31. Encanecido: embranquecido.32. Palimpsesto: papiro ou pergaminho cujo texto primitivofoi raspado, para dar lugar a outro.33. Écloga: referência aos poemas pastorais escritos peloromano Virgílio (70‐19 a.C.).34. Luzes do Cambuci pelas noites de crime…: No bairro doCambuci, localizava ‐se o presídio, inaugurado em 1922;demolido na Revolução de 1930.35. Heliotrópios: flores da baunilha ‐de‐jardins.36. – Batat’assat’ô furnn!…: pregão do vendedor de batata‐‐doce assada, nas ruas paulistanas.37. Lassitudes: moleza, languidez.38. Balcões na cautela latejante, onde florem Iracemas/ paraos encontros dos guerreiros brancos…: alusão a personagensdo romance Iracema, de José de Alencar (1829‐1877).152


notas/glossário39. Girândolas: fogos de artifício queimados em roda demadeira.40. Esgalga: longa e esbelta.41. Chávena: xícara.42. Lady Macbeth: personagem da peça Macbeth de WilliamShakespeare (1564‐1616).43. Poe: Edgar Allan Poe (1809‐1849), poeta norte ‐americano,ficcionista e teórico da literatura.44. Never more!: “Nunca mais!”, no refrão do poema de EdgarAllan Poe “The Raven” (“O corvo”).45. Emílio de Menezes insultou a memória do meu Poe…: críticaà paráfrase do poema de Edgar Allan Poe, “O corvo”,feita, em 1917, pelo poeta parnasiano brasileiro Emílio deMenezes (1866‐1918), em Últimas rimas.46. Barregã: prostituta.47. Mirra: essência vegetal usada para embalsamar mortos.48. São Paulo Railway: “The São Paulo’s Railway CompanyLtd”: empreendimento ferroviário formado em 1848 peloVisconde de Mauá e seus sócios ingleses. Inaugurado em1867, representou progresso para São Paulo.49. Cincinato Braga: (1864‐1953), político e economista;destacou ‐se no Partido Republicano Paulista – PRP.50. Peã: canto de celebração pública entre os gregos daAntiguidade.51. Estátua de Verdi: escultura de Amadeo Zani (1869‐1944),no vale do Anhangabaú; presente da colônia italiana àcidade, em 1921.52. Ramos de Azevedo: Francisco de Paula Ramos de Azevedo(1851‐1928) arquiteto e engenheiro; responsabilizou ‐se pordiversas obras na cidade de São Paulo.53. Assunção de Murilo: quadro do pintor espanhol BartoloméEstebán Murillo (1617‐1682).153


mário de andrade54. Roupa ‐branca é de morim.: roupa de baixo de algodãobarato.55. Taperá: andorinha.56. Caçaremas: formigas dos cacaueiros.57. Se boia: come ‐se.58. Esplanada: hotel requintado, muito concorrido, sito atrásdo Teatro Municipal.59. Quem tem certeza do amanhã!/ Lourenço de Medicis?…: opoeta se apropria do verso famoso “Di doman non c’è certezza”de Lorenzo de Medicis (1449‐1492), poeta e estadistado Renascimento.60. Maniva: mandioca brava.61. Acerba: áspera.62. Martinelli: o segundo arranha ‐céu em São Paulo, construídoem 1928; o primeiro, o Sampaio Moreira, é de 1924.63. Madame la Françoise: possível referência à leitura dasmemórias de Françoise Athenaïs, Marquesa de Montespan(1641‐1707).64. Ega: João da Ega, personagem de Os Maias, do romancistaportuguês Eça de Queirós (1845‐1900).65. Aquiles: herói da mitologia grega, participante da guerrade Troia.66. Cibo: sustento.67. Avena: flauta.68. Dolo: trapaça.69. Gasogênio: aparelho usado nos automóveis durante aSegunda Guerra Mundial; produzia um substituto dagasolina, um gás resultante da combustão incompleta docarvão vegetal.70. Eixo: aliança da Alemanha nazista com a Itália fascista e oImpério do Japão na Segunda Guerra Mundial.71. Lights, Tramas, Corporation: trocadilho visando a SãoPaulo Tramway Light and Power Company, companhia154


notas/glossáriocanadense responsável pelos bondes e pelos serviços degeração e distribuição de energia elétrica no município deSão Paulo.72. Relambória: sem graça, inexpressiva.73. Ôh espelhos, Pireneus, caiçaras insistentes,: retomada doverso 3 do poema “Eu sou trezentos…” de Remate de males.74. Lopes Chaves: político paulista, Joaquim Lopes Chaves(1833‐1909), destacou ‐se no Império e na República.75. Caxingam: coxeiam, mancam.76. Abjetas: desprezíveis, ignóbeis.77. Antíteses: figura de linguagem que demarca junção deoposições.78. Inerme: indefeso.79. Línguas: intérpretes, tradutores.80. Chantre: diretor eclesiástico dos coros em igrejas e capelas.81. Celso nihil estate varíolas gide memoriam,/ Calípedes flogísticos:latim inventado, estapafúrdio, satírico.82. Confraria Brasiliense: por Livraria Brasiliense, ponto deencontro de intelectuais em São Paulo; trocadilho.83. Clima: revista cultural paulistana (1941‐1944).84. Anticéptico: que nega a dúvida.85. Malvasia: tipo de uva e de vinho de sabor doce.86. Jocoso: engraçado, divertido.87. Nem Alberto, nem Adalberto nem Dagoberto/ Esperto CiumentoPeripatético e Ceci/ E Tancredo e Afrodísio e tambémArmida/ E o próprio Pedro e também Alcibíades: enumeraçãotomando personagens da história e da literatura.88. Perrepismo: posição política reacionária ligada ao PartidoRepublicano Paulista (PRP).89. Pundhonor: ponto de honra.90. Augúrios: presságios.91. Estulta: estúpida.92. Plutocratas: os ricos.155


notas/glossário112. Cabeças ‐chatas: apelido pejorativo dado aos nordestinos.113. Farrancho: grupo que se dirige a uma festa.114. Pickpocket: no inglês, batedor de carteiras, ladrão.115. Steward: mordomo.116. Speackenglish: pessoa que fala a língua inglesa.117. Mucudos: que têm muque, musculosos.118. Camarões: bondes fechados, gíria.119. Efebo: jovem.120. Álgido: gélido.121. Aquó: sem ação.122. Jungla: selva, de jungle, no inglês.123. Encarangada: com dificuldade de andar.124. Mosqueiros: moradias pobres.125. Cottage: casa de campo inglesa.126. Insofismável: indiscutível.127. Ilações: relações.128. De soslaio: de esguelha, obliquamente.129. Eufônica: harmoniosa.130. Hirsuta: áspera.131. Lassidão: tédio, esgotamento.132. Arfavam: ofegavam.133. Alvitrou: julgou.134. Chequendes: aperto de mão; shakehands, no inglês.157


BibliografiaANDRADE, Mário de. Balança, Trombeta e Battleship ou odescobrimento da alma. Edição genética e crítica de TelêAncona Lopez. São Paulo: Instituto Moreira Salles/ Institutode Estudos Brasileiros, 1994.. Clã do jabuti. São Paulo: Ed. do autor no EstabelecimentoGráfico de Eugenio Cupolo, 1927.. Os contos de Belazarte. 1ª ed., São Paulo: Editora Piratininga,1934; 2ª ed., Rio de Janeiro: Americ ‐Edit, 1944;nova ed.: estabelecimento do texto: Aline Nogueira Marques.Rio de Janeiro: Agir, 2008.. Contos novos. Estabelecimento do texto: HugoCamargo Rocha e Aline Nogueira Marques. Rio deJaneiro: Nova Fronteira, 2011.. Lira paulistana seguida de O carro da Miséria. SãoPaulo: Livraria Martins Editora, [1946].. Losango cáqui ou afetos militares de mistura com osporquês de eu saber alemão. São Paulo: Ed. do autor naCasa Editora A. Tisi, 1926.. Macunaíma, o herói sem nenhum caráter. 1ª ed., SãoPaulo: Ed. do autor no Estabelecimento Gráfico de EugenioCupolo, 1928; 2ª ed., Rio de Janeiro: Livraria José159


mário de andradeOlympio Editora, 1937; nova ed.: estabelecimento de texto:Tatiana Longo Figueiredo e Telê Ancona Lopez. Rio deJaneiro: Agir, 2008.. Pauliceia desvairada. São Paulo: Ed. do autor na gráficada Casa Mayença, 1922.. Poesias. São Paulo: Ed. do autor na Livraria MartinsEditora, 1941.. Poesias completas. Edição crítica de Diléa ZanottoManfio. Belo Horizonte/ São Paulo: Itatiaia/ Edusp, 1987.. Poesias completas. Estabelecimento de texto, introduçãoe notas: Tatiana Longo Figueiredo e Telê AnconaLopez. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2012 (no prelo).. Remate de males. São Paulo: Ed. do autor no EstabelecimentoGráfico de Eugenio Cupolo, 1930.BOAVENTURA, Maria Eugenia (Org.). 22 x 22: a Semana deArte Moderna vista pelos seus contemporâneos. SãoPaulo: Edusp, 2001.160


Endereços úteisAlém dos pontos de distribuição da Coleção De MãoEm Mão, conheça também as unidades do Sistema Municipalde Bibliotecas, onde é possível consultar e emprestarlivros e outros materiais, bem como usufruir de amplaprogramação cultural.Para efetuar empréstimo em uma das unidades, bastase inscrever e obter seu cartão de leitor, levando documentode identidade e comprovante de residência. Seu cartãodo leitor valerá para todas as bibliotecas do Sistema. Confirao regulamento de empréstimo no site ou em uma dasunidades.Para consultar o acervo disponível em cada biblioteca,a programação cultural e outras informações, acesse o sitewww.bibliotecas.sp.gov.br.Toda a programação do Sistema Municipal de Bibliotecasé gratuita.A seguir estão listados endereços de unidades vinculadasà Secretaria Municipal de Cultura.161


mário de andradeBibliotecas públicas descentralizadasAo todo, são 52 bibliotecas espalhadas pelos bairrosda cidade. Oito delas fazem parte do projeto BibliotecasTemáticas, que oferece acervo e atividades específicas nassuas áreas de atuação.Adelpha FigueiredoPça. Ilo Ottani, 146, Canindé, tel.: 2292 ‐3439Afonso TaunayR. Taquari, 549, Mooca, tel.: 2292 ‐5126Afonso SchmidtAv. Elisio Teixeira Leite, 1470, Cruz das Almas, tel.: 3975 ‐2305Alceu Amoroso Lima – Temática em poesiaAv. Henrique Schaumann, 777, Pinheiros, tels.: 3082 ‐5023 /3081‐6092Álvares de AzevedoPça. Joaquim José da Nova, s/n, V. Maria, tel.: 2954 ‐2813Álvaro GuerraAv. Pedroso de Moraes, 1919, Pinheiros, tel.: 3031 ‐7784Amadeu AmaralR. José C. Castro, s/n, Jd. da Saúde, tel.: 5061 ‐3320Anne FrankR. Cojuba, 45, Itaim Bibi, tel.: 3078 ‐6352Arnaldo Magalhães Giácomo, Prof.R. Restinga, 136, Tatuapé, tel.: 2295 ‐0785Aureliano LeiteR. Otto Schubart, 196, Pq. São Lucas, tel.: 2211 ‐7716Belmonte – Temática em cultura popularR. Paulo Eiró, 525, Santo Amaro, tels.: 5687 ‐0408 / 5691 ‐0433Brito BrocaAv. Mutinga, 1425, Pirituba, tels.: 3904 ‐1444 / 3904 ‐2476162


endereços úteisCamila Cerqueira CésarR. Waldemar Sanches, 41, Butantã, tel.: 3731 ‐5210Cassiano Ricardo – Temática em músicaAv. Celso Garcia, 4200, Tatuapé, tel.: 2092 ‐4570Castro AlvesR. Abrahão Mussa, s/n, Jd. Patente, tel.: 2946 ‐4562Clarice LispectorR. Jaricunas, 458, Siciliano, tel.: 3672 ‐1423Cora CoralinaR. Otelo Augusto Ribeiro, 113, Guaianases, tel.: 2557 ‐8004Érico VeríssimoR. Diógenes Dourado, 101, Parada de Taipas, tel.: 3972 ‐0450Gilberto FreyreR. José Joaquim, 290, Sapopemba, tel.: 2143 ‐1811Hans Christian Andersen – Temática em contos de fadasAv. Celso Garcia, 4142, Tatuapé, tel.: 2295 ‐3447Helena SilveiraR. João Batista Reimão, 146, Campo Limpo, tel.: 5841 ‐1259Jamil Almansur HaddadR. Andes, 491 ‐A, Guaianases, tel.: 2557 ‐0067José de Anchieta, Pe.R. Antonio Maia, 651, Perus, tel.: 3917 ‐0751José Mauro de VasconcelosPça. Com. Eduardo Oliveira, 100, Pq. Edu Chaves,tels.: 2242 ‐8196 / 2242 ‐1072José Paulo PaesLgo. do Rosário, 20, Penha, tels.: 2295 ‐9624 / 2295 ‐0401Jovina Rocha Álvares PessoaAv. Pe. Francisco de Toledo, 331, Itaquera, tels.: 2741 ‐7371 /2741‐0371Lenira FraccaroliPça. Haroldo Daltro, 451, Vila Manchester, tel.: 2295 ‐2295163


mário de andradeMalba TahanR. Brás Pires Meira, 100, Veleiros, tel.: 5523 ‐4556Marcos ReyAv. Anacê, 92, Jardim Umarizal, tel.: 5845 ‐2572Mário Schenberg – Temática em ciênciasR. Catão, 611, Lapa, tel.: 3672 ‐0456Menotti Del PicchiaR. São Romualdo, 382, Limão, tels.: 3966 ‐4814 / 3956 ‐5070Milton SantosAv. Aricanduva, 5777, Jardim Aricanduva, tel.: 2726 ‐4882Narbal FontesR. Cons. Moreira de Barros, 170, Santana, tel.: 2973 ‐4461Nuto Sant’AnnaPça. Tenório Aguiar, 32, Santana, tel.: 2973 ‐0072Paulo DuarteR. Arsênio Tavollieri, 45, Jabaquara, tels.: 5011 ‐8819 / 5011 ‐7445Paulo Sérgio MillietPça. Ituzaingó, s/n, Tatuapé, tel.: 2671 ‐4974Paulo SetúbalAv. Renata, 163, Vila Formosa, tels.: 2211 ‐1508 / 2211 ‐1507Pedro NavaAv. Eng. Caetano Álvares, 5903, Mandaqui, tels.: 2973 ‐7293 /2950‐3598Prestes Maia, Pref. (fechada para reforma, retomará as atividadesno 2º semestre de 2012)Av. João Dias, 822, Santo Amaro, tel.: 5687 ‐0513Raimundo de MenezesAv. Nordestina, 780, São Miguel Paulista, tel.: 2297 ‐4053Raul Bopp – Temática em meio ambienteR. Muniz de Sousa, 1155, Aclimação, tel.: 3208 ‐1895Ricardo RamosPça. Centenário de Vila Prudente, 25, Vila Prudente, tel.:2273‐4860164


endereços úteisRoberto Santos – Temática em cinemaR. Cisplatina, 505, Ipiranga, tels.: 2273 ‐2390 / 2063 ‐0901Rubens Borba de MoraesR. Sampei Sato, 440, Ermelino Matarazzo, tel.: 2943 ‐5255Sérgio Buarque de HolandaR. Augusto C. Baumman, 564, Itaquera, tel.: 2205 ‐7406Sylvia OrthofAv. Tucuruvi, 808, Tucuruvi, tels.: 2981 ‐6264 / 2981 ‐6263Thales Castanho de AndradeR. Dr. Artur Fajardo, 447, Freguesia do Ó, tel.: 3975 ‐7439Vicente de CarvalhoR. Guilherme Valência, 210, Itaquera, tel.: 2521 ‐0553Vicente Paulo GuimarãesR. Jaguar, 225, V. Curuçá, tels.: 2035 ‐5322 / 2034 ‐0646Vinicius de MoraesAv. Jardim Tamoio, 1119, Itaquera, tel.: 2521 ‐6914Viriato Corrêa – Temática em literatura fantásticaR. Sena Madureira, 298, V. Mariana, tels.: 5573 ‐4017 / 5574 ‐0389Bibliotecas centraisTradicional instituição do país, a Biblioteca Mário deAndrade possui acervo expressivo com destaque para ascoleções de artes, mapas, periódicos, obras raras e acervoda ONU.Já a Biblioteca Infanto ‐Juvenil Monteiro Lobato reúnesignificativo acervo de literatura brasileira, infantil ejuvenil, acervo bibliográfico e museológico sobre MonteiroLobato de textos teatrais.Mário de AndradeAv. São Luis, 235, República, tel. 3256 ‐5270165


mário de andradeMonteiro LobatoR. Gal. Jardim, 485, V. Buarque, tel.: 3256 ‐4038Bibliotecas do Centro Cultural São PauloAbrigam um dos mais significativos patrimôniosbibliográficos do país.Na Biblioteca Sérgio Milliet destacam‐se obras nasáreas de literatura latino‐americana, filosofia, religião,ciências sociais e história. Possui seções especializadasem artes, hemeroteca, recursos audiovisuais e banco depeças teatrais.A Biblioteca Louis Braille, planejada e equipada paraatender a pessoas com deficiência visual, possui acervoem braile e áudio.A Gibiteca Henfil tem mais de 8 mil títulos entre quadrinhos,fanzines, periódicos e livros sobre histórias emquadrinhos.A Discoteca Oneyda Alvarenga possui acervo especializadoem música erudita e popular, nacional e estrangeira,constituído por livros, partituras, discos de 33 e 78 rpme CDs.Centro Cultural São PauloR. Vergueiro, 1000, ParaísoBiblioteca Sérgio Milliet – tels.: 3397 ‐4003 / 3397 ‐4074 / 3397 ‐4075Biblioteca Louis Braille – tel.: 3397 ‐4088Gibiteca Henfil – tel.: 3397 ‐4090Discoteca Oneyda Alvarenga – tels.: 3397 ‐4071 / 3397 ‐4072166


endereços úteisBiblioteca do Centro Cultural da JuventudeA Biblioteca Jayme Cortez possui um acervo com maisde 10 mil exemplares entre livros, álbuns de HQ, mangás,periódicos e material audiovisual. Conta também com umLaboratório de Idiomas.Biblioteca Jayme CortezAv. Deputado Emílio Carlos, 3641, Cachoeirinha, tel.: 3984‐‐2466, ramal 24Pontos de leituraEspaços criados em bairros desprovidos de equipamentosculturais ou de difícil acesso a Bibliotecas Públicas.André VitalAv. dos Metalúrgicos, 2255, Cidade Tiradentes, tel.: 2282 ‐2562Carolina Maria de JesusR. Teresinha do Prado Oliveira, 119, Parelheiros, tel.: 5921 ‐3665Graciliano RamosR. Prof. Oscar Barreto Filho, 252 (Calçadão Cultural do Grajaú),Parque América – Grajaú, tel.: 5924 ‐9135Jardim LapennaR. Serra da Juruoca, s/n (Galpão da Cultura e Cidadania), JardimLapenna, tel.: 2297 ‐3532Juscelino KubitschekAv. Inácio Monteiro, 55, Cidade Tiradentes, tel.: 2556 ‐3036OlidoAv. São João, 473, Centro, tel.: 3397 ‐0176Parque do PiqueriR. Tuiuti, 515, Tatuapé, tel.: 2092 ‐6524167


mário de andradeParque do RodeioR. Igarapé da Bela Aurora, s/n, Cidade Tiradentes, tel.: 2555 ‐4276Praça do BambuzalR. da Colônia Nova, s/n (Praça Nativo Rosa de Oliveira – Praçado Bambuzal), Jardim Ângela, tel.: 5833 ‐3567São MateusR. Fortaleza de Itapema, 268, Jardim Vera Cruz – São Mateus,tel.: 2019 ‐1718Severino do RamoR. Barão de Alagoas, 340, Itaim Paulista, tels.: 2963 ‐2742 /2568‐3329União dos moradores do Parque AnhangueraR. Amadeu Caego Monteiro, 209, Parque Anhanguera, tel.:3911‐3394Vila MaraR. Conceição de Almeida, 170, São Miguel Paulista, tel.:2586‐2526Bosques de leituraAmbientes culturais alternativos em parques da cidade.Abrem aos domingos e, em alguns endereços, também aossábados. Confira os dias e horários de funcionamento nosite www.bibliotecas.sp.gov.br ou pelo telefone 3675 ‐8096.AnhangueraAv. Fortunata Tadiello Natucci, 1000, PerusCarmoAv. Afonso de Sampaio Souza, 951, ItaqueraCidade de TorontoAv. Cardeal Motta, 84, Pirituba168


endereços úteisEsportivo dos TrabalhadoresR. Canuto Abreu, s/n, TatuapéIbirapueraAv. República do Líbano, 1151 – Portão 7A, MoemaJardim da LuzR. Ribeiro de Lima, 99, LuzLajeadoR. Antonio Thadeo, 74, LajeadoLions Clube TucuruviR. Alcindo Bueno de Assis, 500, TucuruviRaposo TavaresR. Telmo Coelho Filho, 200, Vila Albano – ButantãSanto DiasR. Jasmim da Beirada, 71, Capão RedondoÔnibus‐bibliotecaOs ônibus ‐biblioteca levam livros, jornais, revistas,gibis e programação cultural às comunidades de bairrosperiféricos da cidade. Conta com paradas predeterminadaspara cada dia da semana. Confira os roteiros da suaregião no site www.bibliotecas.sp.gov.br ou pelo telefone2291‐5763.169


Títulos da coleção1 - Missa do galo e outros contosMachado de Assis2 - Contos PaulistanosAntônio de Alcântara Machado3 - A nova Califórnia e outros contosLima Barreto4 - São Paulo! comoção de minha vida…Mário de Andrade5 - Histórias de horrorVários autores


EQUIPE DE REALIZAÇÃOEstabelecimento dos textosTelê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo (Poesia)Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo(Ficção: Macunaíma, o herói sem nenhum caráter)Aline Nogueira Marques (Ficção: “Túmulo, túmulo, túmulo”)Hugo Camargo Rocha e Aline Nogueira Marques(Ficção: “Primeiro de Maio”)Telê Ancona Lopez (Ficção: Balança, Trombeta e Battleship)NotasDiléa Zanotto Manfio, Telê Ancona Lopez eTatiana Longo Figueiredo (Poesia)Telê Ancona Lopez e Tatiana Longo Figueiredo (Ficção)Edição de textoFabiana Mioto (Preparação de original)Leandro Raniero Fernandes (Revisão)Assistência EditorialOlivia Frade ZamboneEditoração EletrônicaEstúdio BogariCapaEstúdio BogariImagem de capa“Painel de azulejos”, de Paulo von Poser.Fotografia de Victor Tronconi.Coordenação De Mão em MãoAnanda Stücker (Secretaria Municipal de Cultura)Oscar D’Ambrosio (Editora Unesp)


SOBRE O LIVROFormato: 12 x 21 cmMancha: 18 x 37 paicasTipologia: Minion Pro 10/13,5Papel: Lagenda 80 g/m² (miolo)Cartão triplex 250 g/m² (capa)1ª edição: 2012Impressão e acabamentoCTP, Impressão e AcabamentoImprensa Oficial do Estado de São Paulo

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