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O grande circo místico e o dantismo de Jorge de Lima

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Revista <strong>de</strong> Estudos Interdisciplinares <strong>de</strong> Italiano | Número 04 | março/2012obscurecesse o significado do poema e ignorava que “a varieda<strong>de</strong> das metáforas nãoimpe<strong>de</strong> que um pensamento coeso or<strong>de</strong>ne e aclare as riquezas do fluxo verbal” (BOSI,2007, p. 10), i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>fendida pelos new critics, como T. S. Eliot. No entanto, a paráfrase– essencial para a clareza dos a<strong>de</strong>ptos da explication <strong>de</strong> texte, mas empobrecedora paraos new critics – po<strong>de</strong> ser interessante na tentativa <strong>de</strong> “integrar as figuras <strong>de</strong> linguagemà harmonia totalizante do texto e, ao mesmo tempo, <strong>de</strong>scobrir sua função na geraçãodo significado poético” (TEIXEIRA, 1998, p. 36).Em relação aos new critics, pensando o mais famoso entre os seusrepresentantes, é possível alinhá-lo parcialmente à visão <strong>de</strong> Croce, pois Eliot rejeita aconcepção da poesia como “expressão da personalida<strong>de</strong> do poeta, [e a concebe] comoresultado consciente do trabalho do espírito, que organiza as experiências dapersonalida<strong>de</strong>” (TEIXEIRA, 1998, p. 34-36), da mesma forma que para Croce eranecessária a distinção entre a “personalida<strong>de</strong> poética do autor e personalida<strong>de</strong> empíricaou prática” (BOSI, 2007, p. 40 – grifo do autor). Tendo isso em vista, para que se possaenten<strong>de</strong>r um poema, é interessante que sejam <strong>de</strong>compostas as relações <strong>de</strong> oposição,contradição ou ambiguida<strong>de</strong>, que, segundo Eliot, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do sentimento do autor,pois “o poeta não é <strong>de</strong> qualquer forma notável ou interessante por suas emoçõespessoais (...), que po<strong>de</strong>m ser simples, rasas ou ásperas” (ELIOT, 1972, p. 17). Devemos,sim, nos ater a um exercício minucioso que os new critcs chamaram <strong>de</strong> close reading eque aqui surge como mais uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> leitura para os textos que serãoapresentados a seguir: o poema “O <strong>gran<strong>de</strong></strong> <strong>circo</strong> místico”, <strong>de</strong> <strong>Jorge</strong> <strong>de</strong> <strong>Lima</strong> e a canção“Voi che ’nten<strong>de</strong>ndo il terzo ciel movete”, <strong>de</strong> Dante Alighieri.No intuito <strong>de</strong> aproveitar o que há <strong>de</strong> melhor das visões críticas mencionadas, estaleitura será direcionada às minúcias que mais se mostram relevantes na recuperação dosentido alegórico-anagógico dos dois poetas, principalmente na intenção <strong>de</strong> ressaltar ouniverso metafísico comum e que reflete uma religiosida<strong>de</strong> tão importante para ambos.Partindo para a leitura do primeiro poema, “O <strong>gran<strong>de</strong></strong> <strong>circo</strong> místico”, <strong>de</strong> <strong>Jorge</strong> <strong>de</strong><strong>Lima</strong>, tem-se um texto que se i<strong>de</strong>ntifica com uma narrativa familiar prosaica na qual oleitor conhece da primeira à última geração <strong>de</strong> artistas do <strong>circo</strong> Knieps, gerações<strong>de</strong>rivadas <strong>de</strong> um casamento que contraria a vonta<strong>de</strong> do pai do primeiro patriarca, oqual queria vê-lo médico:O médico <strong>de</strong> câmara da imperatriz Teresa – Fre<strong>de</strong>rico Knieps –resolveu que seu filho também fosse médico,mas o rapaz fazendo relações com a equilibrista Agnes,com ela se casou, fundando a dinastia <strong>de</strong> <strong>circo</strong> Knieps<strong>de</strong> que tanto se tem ocupado a imprensa.(LIMA, 1997, p. 372)46


Revista <strong>de</strong> Estudos Interdisciplinares <strong>de</strong> Italiano | Número 04 | março/2012Na segunda parte, são feitas as primeiras menções ao universo religioso, tantocom o santo tatuado <strong>de</strong> Lily Braun, como pela vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua filha Margarete <strong>de</strong> entrarpara um convento, esta última menção como a <strong>de</strong>notar que o ventre no qual Margaretefora gerada já a comprometia a uma vida santa:Charlote, filha <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico, se casou com o clown,<strong>de</strong> que nasceram Marie e Oto.E Oto se casou com Lily Braun a <strong>gran<strong>de</strong></strong> <strong>de</strong>slocadoraque tinha no ventre um santo tatuado.A filha <strong>de</strong> Lily Braun – a tatuada no ventrequis entrar para um convento,mas Oto Fre<strong>de</strong>rico Knieps não aten<strong>de</strong>u,e Margarete continuou a dinastia do <strong>circo</strong><strong>de</strong> que tanto se tem ocupado a imprensa.(LIMA, 1997, p. 372)E, finalmente, na terceira e última parte, são feitas referências a outras duasgerações <strong>de</strong> mulheres envolvidas por uma evi<strong>de</strong>nte atmosfera sobrenatural: Margarete,que leva ao extremo o exemplo da tatuagem <strong>de</strong> sua mãe, e suas filhas gêmeas Marie eHelene. Estas últimas nasceram <strong>de</strong> uma violência sexual e são her<strong>de</strong>iras <strong>de</strong> um talentoalém do comum que já se manifestava em sua mãe, completando o quadro <strong>de</strong> figurasfemininas nas quais se concentra todo o misticismo do <strong>circo</strong>.Então, Margarete tatuou o corposofrendo muito por amor <strong>de</strong> Deus,pois gravou em sua pele róseaa Via-Sacra do Senhor dos Passos.E nenhum tigre a ofen<strong>de</strong>u jamais;e o leão Nero que já havia comido dois ventríloquos,quando ela entrava nua pela jaula a<strong>de</strong>ntro,chorava como um recém-nascido.Seu esposo – o trapezista Ludwig – nunca mais a pô<strong>de</strong> amar,pois as gravuras sagradas afastavama pele <strong>de</strong>la o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong>le.Então, o boxeur Rudolf que era ateue era homem fera <strong>de</strong>rrubou Margarete e a violou.Quando acabou, o ateu se converteu, morreu.Margarete pariu duas meninas que são o prodígio do Gran<strong>de</strong> Circo Knieps.Mas o maior milagre são as suas virginda<strong>de</strong>sem que os banqueiros e os homens <strong>de</strong> monóculo têm esbarrado;são as suas levitações que a platéia pensa ser truque;é a sua pureza em que ninguém acredita;são as suas mágicas que os simples dizem que há o diabo;47


Revista <strong>de</strong> Estudos Interdisciplinares <strong>de</strong> Italiano | Número 04 | março/2012composição <strong>de</strong> A Túnica Inconsútil, livro no qual se insere “O <strong>gran<strong>de</strong></strong> <strong>circo</strong> místico”,on<strong>de</strong> se lê em o “Poema do Cristão”:E, tendo a vida eterna, posso transgredir as leis naturais:a minha passagem é esperada nas estradas;venho e irei como uma profecia,sou espontâneo como a intuição e a Fé”.(LIMA, 1997, p. 351)Na terceira parte – que se inicia com um “Então”, quase a <strong>de</strong>notar que a partirdali os fatos realmente viriam à tona – é on<strong>de</strong> se sela uma aliança secreta entreMargarete e a religião; uma aliança não autorizada por seu pai quando este a proíbe <strong>de</strong>entrar para um convento, mas sentida e respeitada pelos animais ferozes; uma aliançacomparável à <strong>de</strong> São Francisco <strong>de</strong> Assis quando este contraria o pai em nome dareligião e quando amansa o lobo <strong>de</strong> Gubbio; uma aliança que não fora respeitada pelohomem fera, mas é sentida por ele como um choque por ter violado uma espécie <strong>de</strong>esposa <strong>de</strong> Cristo e que o faz se redimir e morrer. Ainda, é na terceira parte que surgemas talentosas gêmeas sucessoras dos votos da mãe, que expõem publicamente a suanu<strong>de</strong>z, mas que se entregam somente a Deus e têm apenas as crianças comocúmplices.Como se disse, em “O <strong>gran<strong>de</strong></strong> <strong>circo</strong> místico”, as imagens são bastante claras. Temseum lugar <strong>de</strong>terminado, o <strong>circo</strong>, com pessoas <strong>de</strong>terminadas, os componentes dafamília. Na sua linguagem poética, não existe rigor com a métrica ou com o ritmo, jáque as sílabas variam muito <strong>de</strong> verso a verso e a escassez das rimas nos leva quase apensar em coincidência quando do encontro entre “ateu” e “morreu” no fim <strong>de</strong> doisversos do episódio do homem fera. Como em uma narrativa prosaica, parece que aspalavras <strong>de</strong>ixam <strong>de</strong> lado a ambiguida<strong>de</strong>, e os períodos simples, coor<strong>de</strong>nados ousubordinados dão conta do sentido literal.Já o sentido alegórico, na contramão <strong>de</strong> Croce, po<strong>de</strong> ser sentido <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a primeirageração do <strong>circo</strong> com o filho do médico da Imperatriz, que rejeita a ciência do pai e secasa com a equilibrista Agnes, dando a enten<strong>de</strong>r que a sensibilida<strong>de</strong> intuitiva da artepassaria a ocupar o lugar da precisão científica representada pela medicina, conduzindoàs mais altas experiências sensíveis. Po<strong>de</strong> ser sentido também, e principalmente, pelastatuagens sacras que duas gerações femininas carregaram: 1) a <strong>de</strong> Lily Braum, um santotatuado no ventre que geraria Margarete, a primeira a expor o misticismo que o leitoranseia por ver <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o título do poema; 2) e a da própria Margarete, que sela amencionada aliança por meio da imagem do Senhor dos Passos, uma aliança explícita ecarnal pela nu<strong>de</strong>z que ela ostentava ao se apresentar com os animais, mas oculta esimbólica pelo significado mágico que trazia consigo.49


Revista <strong>de</strong> Estudos Interdisciplinares <strong>de</strong> Italiano | Número 04 | março/2012Mas e o sentimento que anima o poema, tão buscado por Croce e Eliot? Po<strong>de</strong>mser vários, ainda que para alguns pós-mo<strong>de</strong>rnos sejam manifestações da mesma coisa,caracterizando aquilo que po<strong>de</strong> ser chamado <strong>de</strong> “enfoque brutalmente projetivo”(BOSI, 2007, p. 40). O sentimento do poeta – <strong>de</strong> pouca importância para Eliot, pois,segundo ele, “a emoção da poesia será uma coisa muito [mais] complexa” (1972, p. 17)– po<strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificado como uma espécie <strong>de</strong> elevação mística não acessível a todos, aFé contraposta à cegueira <strong>de</strong>monstrada pela imprensa, por exemplo, que se preocupaem relatar os acontecimentos do <strong>circo</strong>, mas que não consegue captar a sua verda<strong>de</strong>iraessência transcen<strong>de</strong>nte. Po<strong>de</strong>-se i<strong>de</strong>ntificar também o sentimento que o poeta querprovocar no leitor, a curiosida<strong>de</strong> natural do ser humano, estimulada pelo misticismo dotítulo a ver aquilo que a imprensa não vê. Po<strong>de</strong>-se i<strong>de</strong>ntificar, ainda, um possívelsentimento do leitor – distante do controle do poeta, ainda que o tente manipular –,que po<strong>de</strong> ir <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o <strong>de</strong>sprezo pelas coisas místicas e alegóricas, chegando à euforiasentida pela platéia do <strong>circo</strong> Knieps quando, como numa visão beatífica, osespectadores se saciam com o espetáculo espiritual <strong>de</strong> suas mulheres.<strong>Lima</strong> e Dante<strong>Jorge</strong> <strong>de</strong> <strong>Lima</strong>, sem dúvida, não é um poeta lembrado por suas composições <strong>de</strong> Atúnica inconsútil (1938) como “O <strong>gran<strong>de</strong></strong> <strong>circo</strong> místico”. O poeta brasileiríssimo <strong>de</strong> “Essanega Fulô” (1928) ou o dificilmente classificável (épico? barroco?) <strong>de</strong> A invenção <strong>de</strong>Orfeu (1952) é muito mais citado por seus poemas mo<strong>de</strong>rnistas ou <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong> doque pelo tempo essencial <strong>de</strong> evolução que faz a ligação entre esses dois períodos.Contudo, é nas suas composições <strong>de</strong>ssa fase intermediária que se manifestaabertamente um importante traço do seu caráter, a religiosida<strong>de</strong>. Des<strong>de</strong> Tempo eEternida<strong>de</strong> (publicado com Murilo Men<strong>de</strong>s em 1935) prevalece a temática católicamilitante,a começar pela frase “Restauremos a poesia em Cristo” estampada na folha<strong>de</strong> rosto.Mario <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong> diz que <strong>Jorge</strong> <strong>de</strong> <strong>Lima</strong> “é, na melhor expressão da palavra, umtradicional, apresentando em suas poesias, perfeitamente mo<strong>de</strong>rnas e apegadas àpoética mo<strong>de</strong>rna, um valor <strong>de</strong> eternida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> permanência” (1997, p. 88), exatamentecomo Dante, uma vez que o florentino, apesar <strong>de</strong> muito apegado às tradições clássicasgrega e latina, as propõe <strong>de</strong> forma muito inovadora na sua poesia. Em relação aoconteúdo, quando reinventa essas culturas elegendo Virgílio, poeta clássico latino,como seu guia no Inferno e no Purgatório, ou criando uma nova i<strong>de</strong>ntificação para oherói grego Ulisses 2 , por exemplo, em um dos episódios mais visitados da Comédia. Já2 Diferente do homérico, o Ulisses dantesco é punido no reino infernal junto aos maus conselheiros (Inf.XXVI), recuperando a épica grega e latina ao elencar suas frau<strong>de</strong>s, mas narrando uma morte diferente50


Revista <strong>de</strong> Estudos Interdisciplinares <strong>de</strong> Italiano | Número 04 | março/2012em relação à sua própria cultura medieval, Dante a reinventa quando propõe o volgareillustre, língua que i<strong>de</strong>aliza teoricamente no De Vulgari eloquentia e aplica em sua obrapoética, o que lhe possibilita, entre outras coisas, criar a terza rima enca<strong>de</strong>ada (GORNI,2009, p. 56) e inaugurar um novo modo <strong>de</strong> fazer poesia.Leal (1986, p. 19-25), fazendo referência a conteúdos como a “unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentidomístico”, a “composição numérica” e o “anseio <strong>de</strong> elevação” na obra <strong>de</strong> <strong>Jorge</strong> <strong>de</strong> <strong>Lima</strong>,coloca-se entre os vários críticos que aproximam a sua maneira <strong>de</strong> fazer poesia à <strong>de</strong>Dante Alighieri. Segundo ele, <strong>Lima</strong> é o poeta que “melhor enten<strong>de</strong>u a importância <strong>de</strong>Dante” e que traduz essa influência em novas criações poéticas. Cabe lembrar que opoeta florentino, assim como <strong>Lima</strong>, é muito mais lembrado por sua fase inicial,sintetizada na Vida Nova, e por sua fase <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong>, representada na DivinaComédia, do que pelo percurso poético-filosófico que ele nos apresenta no De Vulgarieloquentia ou no Convívio.De acordo com Cruz (1997, p. 137), “O <strong>gran<strong>de</strong></strong> <strong>circo</strong> místico” está entre ospoemas <strong>de</strong> A túnica inconsútil que “não sofreram tanto o impacto emocional das<strong>de</strong>scobertas teológicas, litúrgicas e bíblicas do poeta”. Mas não é <strong>de</strong> se negar que ostrês conteúdos <strong>de</strong>tectados por Leal em A invenção <strong>de</strong> Orfeu estejam presentes tambémnaquele poema. A “unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sentido místico” talvez se mostre como a mais óbvia, jáque a presença do oculto é explícita <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o título e <strong>de</strong>senvolvida durante a narrativa apartir dos significados alegóricos <strong>de</strong>scritos anteriormente, da mesma forma como emDante isso fica evi<strong>de</strong>nte pela divisão <strong>de</strong> sua principal obra com títulos que se remetemao sobrenatural como Inferno, Purgatório e Paraíso. A “composição numérica” po<strong>de</strong> serabertamente explorada a partir do número três, presente no poema tanto pelas trêspartes que o compõem quanto pelas três gerações <strong>de</strong> mulheres que manifestam umaestreita ligação com o sagrado: Lily Braun, Margarete e as gêmeas Marie e Helene.Número três que, por sua vez, é associável à tríplice divisão da Divina Comédia, aos trêsguias <strong>de</strong> Dante no poema – Virgílio, Beatriz e São Bernardo –, ao terceiro céu <strong>de</strong> “Voiche ’nten<strong>de</strong>ndo il terzo ciel movete”, bem como à trinda<strong>de</strong> cristã: Pai, Filho e EspíritoSanto, tão presentes <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a porta do Inferno. Já o “anseio <strong>de</strong> elevação” é o que serevela pela última estrofe, pois, ao lançarem seus membros para a visão dos homens esuas almas para a visão <strong>de</strong> Deus, as gêmeas-prodígio do Gran<strong>de</strong> Circo Knieps<strong>de</strong>monstram a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ascen<strong>de</strong>r aos céus – assim como Dante e a sua dama <strong>de</strong> almapura do Convívio, a filosofia –, mostrando saber que seus corpos pertencem a estemundo, mas não os seus espíritos.Além disso, a mesma visão <strong>de</strong> Deus mencionada por <strong>Lima</strong> nesses versos é aquelaque Dante atinge quando viaja pelos céus do Paraíso, aquela que, por outro lado, se dizdaquela que a tradição clássica conhecera, criando o que Boitani (1992, p. 85) vê como prefiguração doespírito dos <strong>de</strong>scobridores do séc. XV por sua morte ter sido em “alto mare aperto”.51


Revista <strong>de</strong> Estudos Interdisciplinares <strong>de</strong> Italiano | Número 04 | março/2012incapaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>screver, sendo a sua linguagem tão potente como a <strong>de</strong> uma criança queainda banha a língua com o leite materno.Da quinci innanzi il mio ve<strong>de</strong>r fu maggioche 'l parlar mostra, ch'a tal vista ce<strong>de</strong>,e ce<strong>de</strong> la memoria a tanto oltraggio.(...)O somma luce che tanto ti levida' concetti mortali, a la mia menteripresta un poco di quel che parevi,e fa la lingua mia tanto possente,ch'una favilla sol <strong>de</strong> la tua gloriapossa lasciare a la futura gente;(...)Omai sarà più corta mia favella,pur a quel ch'io ricordo, che d'un fanteche bagni ancor la lingua a la mammella.DANTE, Par. XXXIII, 55-57 / 67-71 / 106-108)Des<strong>de</strong> então o meu ver mais aumentavaque o falar nosso, que a tal vista ce<strong>de</strong>;como à memória tal excesso agrava.(...)Ó suma luz que já tanto te elevesdos conceitos mortais, à minha menteum pouco dês do que mostraste, e a atreves,língua lhe dando mais eloquente,que uma centelha só da tua glóriapossa ficar para a futura gente;(...)Ora mais curta a fala se mo<strong>de</strong>la,só a quanto eu recordo, que a <strong>de</strong> infanteque na mama da mãe co a língua anela.(I<strong>de</strong>m. Trad. MOURA, 2011, p. 883-885)Para Lucchesi, “os mares dantescos e limianos, por serem cristãos, guardam maisriscos [do que se po<strong>de</strong> prever], pois contam com os abismos da teologia, que seagregam dramaticamente à novíssima paisagem da Comédia e <strong>de</strong> Orfeu” (1997, p. 15-20). E por mais que ele cite apenas as obras <strong>de</strong> maturida<strong>de</strong> <strong>de</strong> nossos dois autores, nãoé <strong>de</strong> se negar que a característica relativa aos riscos ressaltada por esse crítico comecea se manifestar <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as obras que amadurecem o caráter profundamente meditativoem relação ao sagrado que os dois representam: <strong>Lima</strong>, com seus anseios missionários<strong>de</strong> restaurar a poesia em Cristo; e Dante, com a filosofia, a sua dama do Convívio, que52


Revista <strong>de</strong> Estudos Interdisciplinares <strong>de</strong> Italiano | Número 04 | março/2012ao livro: “A verda<strong>de</strong>ira oferta <strong>de</strong>ssa obra [o Convívio] é o significado das canções para asquais foi feita, significado que intenciona principalmente induzir os homens aoconhecimento e à virtu<strong>de</strong>” (Cv I IX 7).Canzone, io credo che saranno radicolor che tua ragione intendan bene,tanto la parli faticosa e forte.On<strong>de</strong>, se per ventura elli adiveneche tu dinanzi da persone vadiche non ti paian d'essa bene acorte,allor ti priego che ti riconforte,dicendo lor, diletta mia novella:“Ponete mente almen com'io son bella!”(DANTE. Cv II v. 53-61)Canção, eu creio que serão rarosaqueles que bem enten<strong>de</strong>m a tua razão,pois a falas intensa e forte.E, se por ventura aconteçaque tu vás frente a pessoasque não te pareçam bem entendidas,então te peço que te reconforte,dizendo-lhes, alegre a novida<strong>de</strong>:“Prestai atenção ao menos como sou bela!”.(I<strong>de</strong>m. Tradução nossa não publicada)Dante, ao comentar os seus versos, sabe do seu hermetismo e acredita serempoucos aqueles que realmente <strong>de</strong>cifrarão o seu significado. Sendo assim, no congedo,resolve mudar o <strong>de</strong>stino da sua voz poética, que antes se dirigia aos anjos do terceirocéu, e falar diretamente à sua canção, o que ele nos explica pelo comentário doConvívio: “Nesse momento, advirto-a [a canção] e digo: Se por acaso ocorra que tu váson<strong>de</strong> existem pessoas que pareçam duvidar da tua razão, não te confundas e diga-lhes:Já que não ve<strong>de</strong>s a minha bonda<strong>de</strong>, prestai atenção ao menos na minha beleza” (Cv II XI8). Da mesma forma, parece que a beleza artística do espetáculo circense – e não o seusignificado – é o único elemento acessível àqueles espectadores que não fizeram amesma escolha do patriarca do <strong>circo</strong> Knieps, que trocou a técnica científica pelasensibilida<strong>de</strong> intuitiva; aquela mesma sensibilida<strong>de</strong> que as suas <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntesdirecionam puras como as suas almas para a visão divina, a mesma visão divina queDante alcança nos últimos versos <strong>de</strong> seu Paraíso.REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS54


Revista <strong>de</strong> Estudos Interdisciplinares <strong>de</strong> Italiano | Número 04 | março/2012ALIGHIERI, Dante. Convivio. Edição sob os cuidados da Società Dantesca Italiana. Notas<strong>de</strong> Franca Brambilla Ageno. Florença: Le Lettere, 1995. Vol. 2._________. Epistole I - XIII. Sob os cuidados <strong>de</strong> Arsenio Frugoni e Giorgio BrugnoliMilão-Nápoles: Ricciardi Editore, 1996. Vol. 1._________. La Divina Commedia. Sob os cuidados <strong>de</strong> A. M. Chiavacci Leonardi. Milão:Mondadori, 2005. Vol. 3._________. A Divina Comédia. Tradução <strong>de</strong> Vasco Graça Moura. São Paulo: Landmark,2011.ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. A Túnica Inconsútil. In: LIMA, <strong>Jorge</strong> <strong>de</strong>. Poesia Completa. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 86-90.BOITANI, Piero. L’ombra di Ulisse. Bologna: Il Mulino, 1992.CROCE, Bene<strong>de</strong>tto. Varietà. In: La Critica. Rivista di Letteratura, Storia e Filosofia.Nápoles, n. 21, p. 51-56, 1923._________. Breviário <strong>de</strong> estética, Aesthetica in nuce. Trad. Rodolfo Ilari Jr. São Paulo:Ed. Ática, 2001.CRUZ, Luís Santa. Um poeta e duas cristanda<strong>de</strong>s. In: LIMA, <strong>Jorge</strong> <strong>de</strong>. Poesia Completa.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 129-137.ELIOT, T. S. Tradition and the individual talent. In: 20th century literary criticism: Area<strong>de</strong>r. Londres: Longman, 1972. p. 13-32.GORNI, Guiglielmo. Dante, storia di um visionário. Roma-Bari: Laterza, 2009.LEAL, César. Dante e os mo<strong>de</strong>rnos; Universalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>Jorge</strong> <strong>de</strong> <strong>Lima</strong>. In: Os cavaleiros <strong>de</strong>Júpiter. 2ª Edição. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Tempo Brasileiro, 1986. p. 19-25.LIMA, <strong>Jorge</strong> <strong>de</strong>. A Túnica Inconsútil. In: Poesia Completa. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Aguilar,1997. p. 349-414.LUCCHESI, Marco. O sistema <strong>Jorge</strong> <strong>de</strong> <strong>Lima</strong>. In: LIMA, <strong>Jorge</strong> <strong>de</strong>. Poesia Completa. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Nova Aguilar, 1997. p. 15 - 21.TEIXEIRA, Ivan. New Criticism. Revista Cult. São Paulo. n.17, p. 34-37, set. 1998.55

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