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A neo-transferência - Latusa Digital

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<strong>Latusa</strong> digital – ano 3 – Nº 26 – dezembro de 2006A <strong>neo</strong>-transferência * Maria Angela Maia **Em primeiro lugar chama a atenção o termo <strong>neo</strong>-transferência desenvolvidopela Seção clínica de Angers na Convenção de Antibes, publicada com o títuloLa pychose ordinaire. Trata-se do terceiro volume de o Conciliábulo de Angers,publicado com o título Os efeitos surpresa na clínica das psicoses, uma coleçãoque abrange os trabalhos das Seções clínicas da França e da Bélgica, e daConversação de Arcachon, publicada com o título Os casos raros,inclassificáveis da clínica psicanalítica.Há algo novo na clínica das psicoses? A <strong>neo</strong>-transferência criou uma <strong>neo</strong>posiçãodo analista ou trata-se do contrário, a <strong>neo</strong>-posição do analista criouuma <strong>neo</strong>-transferência 1 ? Jacques-Alain Miller pensa que a questão é: “comoqualificar, teorizar, conceitualizar o par psicótico-terapeuta, quando esseterapeuta é analista” 2 . Entendo que essa questão deveria ser vista de formaampla, implicando não apenas a clínica das psicoses, mas a clínica de nossosdias, em que muitos pacientes se apresentam sem endereçamento ao saberinconsciente: a articulação S 1 -S 2 não opera claramente ou então opera, mas é* Trabalho apresentado na I Noite Preparatória da Jornada de Cartéis da EBP-Rio em 19 deoutubro de 2006.** Analista praticante – AP. Membro da Escola Brasileira de Psicanálise (EBP) e da AssociaçãoMundial de Psicanálise (AMP).1MILLER, J. A., et al. La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires: Paidós,2003, p. 131.2Idem, pp. 275-276.1


logo negada pelo paciente, cabendo ao analista o trabalho de sustentar o lugarde crença no inconsciente. Se não é mais preciso demonstrar a existência doinconsciente, tarefa de Freud, a crença no inconsciente como mola dotratamento analítico é criada em cada um desses atendimentos.A idéia é pensar a clínica da neurose segundo o paradigma da psicose que, noúltimo ensino de Lacan, é a estrutura clínica de base para suas formulaçõesteóricas, não mais como déficit, mas como parte da estruturação subjetiva.Nessa direção, uma noção tão cara aos psicanalistas lacanianos, a de sujeito,ganha relevo. Graciela Brodsky em sua conferência sobre a eficácia da análise,no XIV Encontro Brasileiro do Campo Freudiano, lembrou-nos um seminário deMiller, como ela diz antigo e contemporâ<strong>neo</strong>, Causa e consentimento, no qualele desenvolve o momento inicial decisivo do ensino de Lacan: a descoberta daeficácia simbólica, termo tomado de Lévi-Strauss 3 . Essa noção introduz umdeterminismo, a causação significante do sujeito, S 1 -S 2 / $, o efeito sujeito.Ela lembra que, nessa leitura, o sistema significante S 1 -S 2 não necessita oconsentimento do sujeito para produzir o efeito sujeito. É um efeito automáticoda cadeia. Disso, ela deduz que a eficácia analítica não é produzir o sujeito,porque a causação do sujeito ex-siste enquanto há linguagem. Bem como, nãoestaria bem formulado dizer que se busca nas entrevistas preliminaresproduzir o efeito sujeito, porque o efeito sujeito é efeito da eficácia simbólica,se produz porque se fala, ou porque se é sujeito de linguagem. O que seproduz, o que se busca, o que se avalia nas entrevistas preliminares é se osujeito é capaz de mudar de posição a respeito do que ele mesmo diz: se écapaz de se ver em outra perspectiva, se é capaz de ficar desconcertado.Porém, temos que partir da idéia de que há um sujeito, ela conclui.Entendo que G. Brodsky nos esclarece a clínica da neurose, ou melhor, oscasos na clínica das neuroses em que há um endereçamento ao saberinconsciente. Quando isso não ocorre, seja na clínica da neurose, seja na das3BRODSKY, G. “A eficácia da psicanálise”. Em: Opção Lacaniana, n° 41. São Paulo: Eolia, 2004,pp. 68-87.2


psicoses, não seria o sujeito suposto saber que motivaria a transferência. Nocaso de psicose porque o saber “já está aí” do lado do psicótico, um sabersobre o gozo, um saber fazer com lalíngua, e no caso da neurose porque opaciente “não está nem aí”, não se importa, não se endereça ao saberinconsciente, à linguagem inconsciente. Nesse sentido, uma diferença entre ostermos linguagem, lalíngua, sujeito e falasser seria profícua.A Seção clínica de Angers propõe o par lalíngua-transferência, considerandoque lalíngua motiva a <strong>neo</strong>-transferência como “uma aplicação particular,específica da prática com as psicoses, na qual a lalíngua da transferênciaaparece como um novo tear para tecer o laço social” 4 . A hipótese de criação ede uso da “lalíngua da transferência” como <strong>neo</strong>-transferência nas psicoses temcomo ponto de partida a constatação de que o par sujeito suposto sabertransferênciafuncionaria de maneira distinta nas psicoses. Se a lalíngua é umacriação lingüística do paciente, seu aprendizado e prática pelo par pacienteterapeutaintroduzem a necessidade da “lalíngua da transferência” para forjaro laço social. O trabalho da Seção Clínica de Angers cita Lacan: “É porque há oinconsciente, isto é, lalíngua no que é por coabitação com ela que se define umser chamado falante, que o significante pode ser chamado a fazer sinal, aconstituir signo”. 5Entendo que se trata de uma discussão sobre a transferência que parte daconcepção de inconsciente e de sintoma, segundo uma perspectiva do gozo,assim como da diferença entre lalíngua e linguagem. Para pensar essaarticulação, Lacan apresenta, no Seminário, livro 22: R.S.I, aula de 21 dejaneiro de 1975, o sintoma como uma função matemática que opera, noinconsciente, o ciframento do significante “Um” que “não cessa de se escreverdesvinculado da cadeia associativa”. Na aula de 18 de fevereiro de 1975 domesmo seminário, esclarece que o “sintoma é o modo como cada um goza do4MILLER, J.-A. La psicosis ordinaria: la convención de Antibes, op.cit, p. 132.5Idem, p. 133. Cf. LACAN, J. O seminário, livro 20: Mais, ainda (1972-1973). Rio de Janeiro:Jorge Zahar Editor, 1985, pp. 194-195.3


inconsciente, na medida em que o inconsciente o determina”. Lalíngua écomposta pelos Uns (significante, letra ou número) que não fazem parte dacadeia significante, esta constituinte da linguagem inconsciente.Inicialmente, com a formulação “o inconsciente é estruturado como umalinguagem”, Lacan enunciou que a estrutura do inconsciente segue asdimensões sincrônica e diacrônica do discurso. As leis da metáfora emetonímia indicam tanto como o sentido é produzido, como se torna fixo oucomo se desloca infinitamente. A operação da metáfora (substituiçãosignificante) e a operação da metonímia (combinação significante) produzemefeitos de sentido a partir da operação de retroação de um segundosignificante, S 2, sobre um significante anterior, S 1 . Na metonímia há odeslocamento de sentido de um significante para outro, produzindo um efeitode sentido inerente à cadeia significante. Na metáfora, um segundosignificante, S 2, substitui um primeiro significante, S 1 , ocupando seu lugar nacadeia significante que fora tornado vazio em função do processo criadorengendrado.Nessa perspectiva teórica, Lacan elaborou as teorias da construção do sujeito edo sintoma. O conceito de sintoma foi concebido segundo a estrutura dametáfora, em que um significante recalcado foi substituído por outrosignificante que representa o sujeito. Logo, o significante recalcado poderia vira ser revelado pelo trabalho analítico, eliminando o sintoma e desvelando averdade do sujeito. Nessa via, a prática analítica opera a partir da demanda deinterpretação do saber inconsciente de um sujeito representado pelosignificante e endereçada a um Outro suposto saber sobre o sintoma.Mas, encontrar-se-iam fora do dispositivo analítico aqueles que nadademandariam ao lugar do Outro, senão a manutenção das suas formas degozar dos seus sintomas?Em A psicose ordinária, Miller propõe a decomposição da linguagem emlalíngua e laço social e demarca a operação que os liga como uma questão.Considera também, conforme a conhecida frase de Lacan no Seminário 20,4


“quando enunciei que a transferência era motivada pelo sujeito suposto saber,isso era apenas uma aplicação particular, especificada, do que se faz nessaexperiência” 6 , que a generalização desse algoritmo não seria um caminhoadequado para se pensar <strong>neo</strong>-transferência, pois lalíngua não decorre darelação entre um significante e outro, ela precede logicamente oestabelecimento dessa relação. Ao mesmo tempo ele reputa a psicanálisecomo uma forma de acesso à lalíngua. 7Podemos dizer que lalíngua é fundadora, assim como é fundador o inconscienteestruturado como uma linguagem Miller nos lembra que “a lalíngua capta ofenômeno lingüístico no nível onde ninguém compreende nada” 8 . O relatório daSeção clínica de Angers se vale das palavras de Miller, lalíngua “está feita dealuviões acumulados com os mal-entendidos e com as criações da linguagemde cada um”, para dizer que o “sedimento de lalíngua se faz com as marcasdeixadas por outros sujeitos”. 9Na conversação, Miller diz 10 que lalíngua é constituída “a partir do significantetal como ele já está presente antes da aparição do sujeito” e que “a partir dosignificante falado pelos outros, normalizado pelo Outro ocorrem investimentossingulares”. Por outro lado, Miller não deixa de enfatizar que o “aprendizado daescritura provoca a expulsão desse verde paraíso das homofonias infantis”.A hipótese da Seção de Angers é que o motor da <strong>neo</strong>-transferência não é osujeito suposto saber, e sim a lalíngua da transferência, vista como o quepermite a um significante fazer sinal daquilo que está fora do sentido:onamatopéia, cifra, marca 11 . Eles lembram que Lacan, no Seminário 20,6 Idem, p. 279.7 Idem, p. 134.8 Idem, p. 289.9 Idem, p. 135.10 Idem, p. 289.11 Idem, p. 134.5


distingue dois saberes inconscientes: o saber sobre lalíngua privativo dalinguagem, e o saber fazer com lalíngua privativo do inconsciente” 12 . Assimeles enfatizam a distinção entre o inconsciente e a linguagem: o inconsciente éum saber fazer com lalíngua, é o resultado de um trabalho sobre lalíngua,enquanto a linguagem é uma elucubração de saber sobre lalíngua.Penso que a diferença entre língua, linguagem e lalíngua poderia ser exploradaa partir do estudo crítico de Freud sobre as afasias 13 . Ao demonstrar aexistência de sintomas afásicos independentes de lesões cerebrais, Freudformula uma hipótese sobre a linguagem em que esta seria demarcada a partirde associações e transmissões de imagens, na qual tanto poderia existir umaafasia proveniente de lesões — suspendendo o encadeamento dessasassociações — quanto interrupções, que, não sendo provenientes de quaisquerlesões, atestariam a existência de uma lógica intrínseca à linguagem.É possível, a partir dessa construção de Freud, inferir que ele pressupõe que arepresentação – Vorstellung, signo lingüístico – provoca uma afecção no corpo,que é apreendida por meio de um processo de apresentação – Darstellung – noqual há um desmembramento das imagens constituintes do signo lingüístico,de modo que sua apreensão é desvinculada do código. Essa afecção deixariatraços na topografia corporal. 14O aparelho da linguagem freudiano é formado por duas modalidades derepresentação: representação de objeto — Objektvorstellung — erepresentação de palavra — Wortvorstellung. Propomos pensar que arepresentação de objeto freudiana, constituída por signos visuais, táteis,acústicos, sinestésicos, corresponderia à lalíngua, ou seja, aos restos, aosdetritos dos significantes com os quais o infante entrou em contato, antes deser capaz de discernir suas significações e que se depositaram em seu corpo12Idem, p. 144.13FREUD, S. A interpretação das afasias. Lisboa: Edições 70, 1997, pp. 11-92.14 MAIA, M. A. Tecendo palavras. Rio de Janeiro: Rios Ambiciosos, 1999, pp.13-16.6


tal como aluvião. Há um saber fazer com lalíngua, mas não um saber sobrelalíngua”.No que diz respeito ao sujeito nesse nível teríamos algo como uma “separaçãofalsa”, conforme Miller.“Isso exige que se distinga duas coisas: primeiramente, sem dúvida osujeito como fala-ser (parlêtre) surge do nada, é uma criatura designificante, mas é igualmente verdadeiro; em segundo lugar, que osujeito tem de emergir do ser vivo, que ele surge de seu statusprimeiro de objeto. O sujeito tem de emergir da causa do desejo damãe pelo menos do causo [causette] do qual esse desejo é feito”. 15Por outro lado, a associação por contigüidade (proximidade, avizinhamento) esemelhança das representações de objeto constitui, para Freud, a modalidadede linguagem que ele nomeia como linguagem asimbólica 16 . Essa modalidadede linguagem é aberta a novas associações, uma vez que o homem seencontra imerso em um mundo de estímulos que o afetam. Proponho entãosua articulação à formulação lacaniana de “linguagem como uma elucubraçãode saber sobre a lalíngua”. Linguagem na qual Lacan sempre ressaltou aprimazia do significante, da articulação significante.Finalmente, a representação de palavra é o efeito da associação darepresentação do objeto visual com a acústica, formando o signo lingüístico. Aassociação dos signos lingüísticos conforma a língua.Por sua vez, Éric Laurent 17 diz na Conversação que aprendemos a língua poruma tradução permanente e constante, a partir de usos mais ou menosregulamentados. No caso da psicose, há um problema quanto ao laço social,15MILLER, J.-A. La psicosis ordinaria: la convención de Antibes, op. cit, p. 135. Cf. Miller, J.-A.“Produzir o sujeito?”. Em: Matemas I. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1996, p. 157.16FREUD, S. A interpretação das afasias, op. cit, p. 76.17MILLER, J.-A. La psicosis ordinaria: la convención de Antibes, op. cit, p. 290-291.7


“se tem sempre uma dimensão de língua privada”, de “ressonânciasparticulares”, e “informar-se sobre essa particularidade é o mesmo que seentregar à tradução”. Lembra-nos que “começamos a nos acostumar a verlalíngua e todo o conjunto desses fenômenos a partir da psicose e não daneurose”, e chega a formular que “a relação normal com lalíngua é a dopsicotizado” 18 . Nessa orientação ele esclarece ser preciso o seguinte:[...] temos de nos ocupar da questão de saber como compreender oque nos é dito, de como compreender a lalíngua do outro que estáafetada por uma significação pessoal a níveis inimagináveis.Metodicamente, tratamos de compreender onde está essamodificação, em que nível ela se produz por uma prática debricolagem generalizada”. 19Éric Laurent esclarece ainda que no momento em que Lacan refaz toda suateorização, ele observa, voando sobre a Sibéria, sulcamentos de significantes enão “o arbitrário do signo e do mapa, os códigos, as mensagens” 20 . Trata-se desulco, de “rota, rotina, de práticas”.“[...] a única maneira de se assegurar que se fala uma língua, que sefala um francês adaptado a um procedimento de tradução geral éfazer chover a chuva de interpretações [...] o que permite lavrar maissulcos. O uso que o psicótico faz de nossa presença é lavrar mais unssulcos que outros. Nós temos que ajudá-lo, com método”. 21Como exemplo, Éric Laurent toma os “expedientes” dos quais um analista sevale para manter contato com seu paciente: em certo momento na sessão elesfalam de literatura norte-americana. A “prática de sulcamento” começa a partirdaí, esclarece. O método não consiste em partir do mais secreto, do mais18Idem, p. 291.19Idem, pp. 291-292.20Idem, p. 292.21Idem, p. 296.8


profundo, do mais escondido, mas procede de um sulcamento operado pelaprática”. 22E conclui: “sem dúvida sempre é preciso que se pergunte que língua fala osujeito” – e aqui eu acrescento, qualquer sujeito e não apenas o psicótico –,“sabendo que é uma bricolagem particular”. 23Referências bibliográficasIrma. Le Conciliabule d”Angers. Effets de surprise dans les psychoses. Paris: Agalma-Le Seuil, 1997.MILLER, J. A., at alli.- La psicosis ordinaria: la convención de Antibes. Buenos Aires:Paidós, 2003.VÁRIOS. Os casos raros, inclassificávei, da clínica psicanalítica. A Conversação deArcachon. Biblioteca Freudiana Brasileira, 1998.22Idem, ibidem.23Idem, p. 297.9

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