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Reis do Congo no Brasil, séculos XVIII e XIX - Departamento de ...

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REVISTA DEHISTÓRIA


218--- / Revista <strong>de</strong> História 150 (1º - 2004), xxx-xxxUNIVERSIDADE DE SÃO PAULOReitor: Prof. Dr. A<strong>do</strong>lpho José MelfiVice-Reitor: Prof. Dr. Hélio Nogueira da CruzFACULDADE DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANASDiretor: Prof. Dr. Sedi Hira<strong>no</strong>Vice-Diretor: Profa. Dra. Sandra Margarida NitriniDEPARTAMENTO DE HISTÓRIAChefe: Prof. Dr. Mo<strong>de</strong>sto Florenza<strong>no</strong>Suplente: Profa. Dra. Maria Lígia Coelho Pra<strong>do</strong>REVISTA DE HISTÓRIANúmero 152 (Terceira Série) – 1º semestre <strong>de</strong> 2005 – ISSN 0034-8309Conselho EditorialProfa. Dra. Maria Helena P.T. Macha<strong>do</strong> (Editora)Prof. Dr. Elias Thomé SalibaProfª Drª Cecília Helena L. Salles OliveiraProfª Drª Maria Inez Macha<strong>do</strong> Borges PintoProf. Dr. Julio Cesar Pimentel Pinto FilhoConselho ConsultivoBraz A. Aqui<strong>no</strong> Brancato (PUC-RS)Caio Boschi (PUC-MG)Ciro Flamarion Car<strong>do</strong>so (UFF)Emanuel Araujo (UnB)Eucli<strong>de</strong>s Marchi (UFPA)Fre<strong>de</strong>rico Alexandre <strong>de</strong> Moraes Hecker (UNESP/Assis)Gilberto Luis Alves (UFMTS)Holien Bezerra (UFGO)Janice Theo<strong>do</strong>ro (DH-USP)Jean-Clau<strong>de</strong> Schmitt (EHESS)ProduçãoSecretário: Joceley Vieira <strong>de</strong> SouzaDiagramação, Projeto Gráfico <strong>do</strong> miolo e Capa:Joceley Vieira <strong>de</strong> Souza (joceley@usp.br)Jean-Louis Flandrin (Sorbonne)José Carlos Sebe Bom Meihy (DH-USP)Laura Mello e Souza (DH-USP)Leila Mezan Algranti (UNICAMP)Luis Henrique Dias Tavares (UFBA)Marco Antonio Villa (UFSCar)Serge Gruzinsky (EHESS)Sergio Miceli (USP)Teófilo Ruiz (Brooklyn College)Vavy Pacheco Borges (UNICAMP)Órgão Oficial <strong>do</strong> <strong>Departamento</strong> <strong>de</strong> História da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras e Ciências Humanas – USPFundada em 1950 pelo Professor Eurípe<strong>de</strong>s Simões <strong>de</strong> Paula, seu Diretor até seu falecimento em 1977En<strong>de</strong>reços para correspondência:Comissão Executiva:Av. Professor Lineu Prestes, 338 – Cida<strong>de</strong> Universitária05508-900 – São Paulo – SP – <strong>Brasil</strong>Caixa Postal 8.105 – FAX: (011) 3032-2314Tel.: (011) 3091-3701 – 3091-3731 ramal 229e-mail: joceley@usp.brCompras:Humanitas Livraria – FFLCHRua <strong>do</strong> Lago, 717 – Cida<strong>de</strong> Universitária05508-900 – São Paulo – SP – <strong>Brasil</strong>Fone/fax: (011) 3091-4589e-mail: pubflch@edu.usp.brEste número contou com o apoio financeiro <strong>do</strong>Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em História Social - FFLCH/USP© Copyright 2005 <strong>do</strong>s autores. Os direitos <strong>de</strong> publicação <strong>de</strong>sta edição são daUniversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo – Humanitas Publicações FFLCH/USP – agosto/2005


--- / Revista <strong>de</strong> História 150 (1º - 2004), xxx-xxx 219REVISTA DEHISTÓRIA


220--- / Revista <strong>de</strong> História 150 (1º - 2004), xxx-xxxServiço <strong>de</strong> Biblioteca e Documentação da Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras eCiências Humanas da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São PauloRevista <strong>de</strong> História / <strong>Departamento</strong> <strong>de</strong> História. Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letrase Ciências Humanas. Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo. n. 1 (1950). São Paulo:Humanitas / FFLCH / USP, 1950-Nova Série - 1º Semestre, 1983Terceira Série - 1º Semestre, 1998.SemestralISSN 0034-83091. História I. Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo. Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Filosofia, Letras eCiências Humanas. <strong>Departamento</strong> <strong>de</strong> HistóriaCDD 900


222--- / Revista <strong>de</strong> História 150 (1º - 2004), xxx-xxx


Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27 7DossiêHistória Atlântica:recortes e perspectivas


A DISPERSÃO DO SABER MISSIONÁRIO SOBRE ASAMÉRICAS DE1549 A 1610: O EXEMPLO JESUÍTA *Jean-Clau<strong>de</strong> LaborieProfessor <strong>de</strong> Literatura Comparada - Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> LyonResumoNeste artigo, procuramos reconstruir a homogeneida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um vasto espaçomissionário america<strong>no</strong> que se esten<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> ao Canadá, <strong>no</strong>s séculosXVI e XVII, a partir da aproximação entre fontes primárias e secundáriasoriundas da Companhia <strong>de</strong> Jesus. Longe <strong>de</strong> qualquer realida<strong>de</strong>,emerge assim uma representação espantosamente estável <strong>do</strong> índio, construídaunicamente ten<strong>do</strong> em vista as necessida<strong>de</strong>s políticas. A persistência<strong>de</strong>ssa ficção justificou contu<strong>do</strong> uma parte significativa da estratégiamissionária jesuítica, para em seguida esten<strong>de</strong>r sua influência além dasfronteiras <strong>de</strong>sta or<strong>de</strong>m religiosa.Palavras-ChaveJesuítas séculos XVI e XVII • Missões • AméricasAbstractBy drawing together primary and secondary sources produced by theSociety of Jesus, this article seeks to reconstitute the homogeneouscharacter of a vast missionary space in the Americas, ranging from Brazilto Canada, from the sixteenth to the eighteenth centuries. Although distantfrom reality, an astonishingly stable image of the Indian emerges,<strong>de</strong>veloped strictly from the standpoint of political needs. Nevertheless,the persistence of this fiction bolstered a significant part of Jesuitmissionary strategies and its influence exten<strong>de</strong>d well beyond theboundaries of the Society.KeywordsJesits XVI th - XVII th centuries • Missions • Americas* Tradução: Prof. Dr. Carlos Alberto Zeron - Depto. <strong>de</strong> História-FFLCH/USP


10Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27Entre 1500 e 1700, as viagens <strong>de</strong> <strong>de</strong>scoberta inundam a velha Europa comuma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> informações <strong>no</strong>vas, que a obrigam a uma reestruturaçãoprofunda <strong>de</strong> seus saberes. Esse movimento geral não é, contu<strong>do</strong>, linear, apresentan<strong>do</strong>-seantes sob a forma <strong>de</strong> um caos absoluto.Existe uma vasta literatura sobre o tema, obcecada pela reconstituição <strong>de</strong>filiações e heranças. Mas o maior problema <strong>de</strong>stas tentativas resi<strong>de</strong> <strong>no</strong> fato <strong>de</strong>que elas se fundam geralmente apenas sobre os textos <strong>de</strong> idéias, sobre fontessecundárias que tratam <strong>de</strong> fazer funcionar umas em relação às outras, comose elas não tivessem que se preocupar mais <strong>do</strong> que com uma análise <strong>de</strong> discursoscujas referências e mo<strong>de</strong>los seriam autô<strong>no</strong>mos. Analisam-se então apenasas sínteses elaboradas nas universida<strong>de</strong>s ou <strong>no</strong>s círculos intelectuais europeus,supon<strong>do</strong> um diálogo e controvérsias fechadas sobre eles mesmos. Ora,freqüentemente esses <strong>de</strong>bates possuíam interesses bastante concretos como,por exemplo, o que concernia à natureza <strong>do</strong>s homens <strong>de</strong>scobertos <strong>no</strong> NovoMun<strong>do</strong>, um tema que mobilizou a maior parte <strong>do</strong>s eruditos durante <strong>do</strong>is séculose que <strong>de</strong>termi<strong>no</strong>u o <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> <strong>de</strong> milhões <strong>de</strong> seres huma<strong>no</strong>s. De fato, as empresascoloniais <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s europeus, mas também os <strong>do</strong>gmas religiosos efilosóficos, encontravam-se violentamente confronta<strong>do</strong>s a essa <strong>no</strong>va humanida<strong>de</strong>.A discussão era permanentemente alimentada por fontes primárias, comocartas, narrativas e relações <strong>de</strong> viagens que drenavam as informações diretase os testemunhos oculares, fornecen<strong>do</strong> outras tantas armas aos discursos eruditos.Mas não basta separar os <strong>do</strong>is tipos <strong>de</strong> fontes, primárias e secundárias,para apreen<strong>de</strong>rmos suas relações.É necessário acrescentarmos três evidências sem as quais qualquer análisepermanece lacunar. Em primeiro lugar, o espaço <strong>no</strong> qual circulam os escritosé planetário e irredutível ao simples vai e vem entre a Europa e suas colônias.Novas rotas unem, por exemplo, a América e a África ou a Ásia, e ostextos e imagens vão freqüentemente <strong>do</strong> México ao Japão, da Bahia a Goa,sem passar por Madri ou Lisboa. Em segun<strong>do</strong> lugar, seria bastante ingênuosupor uma transparência das informações veiculadas nas fontes primárias, sempreorientadas e construídas em função <strong>de</strong> situações singulares que motivaramsuas escritas. A relação <strong>de</strong> uma viagem ou <strong>de</strong> uma estadia longínqua funcionasempre como uma moeda com a qual se busca comprar <strong>no</strong>torieda<strong>de</strong>,reconhecimento, privilégios ou, às vezes simplesmente, a vida. Não é apenaso contexto histórico da redação que importa, mas a situação <strong>de</strong> enunciação,na medida em que o vínculo suscita<strong>do</strong> com o <strong>de</strong>stinatário funda a estratégia


Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27 11da escrita. Dessa constatação simples, po<strong>de</strong>mos inferir que é absur<strong>do</strong> falarmos,<strong>no</strong> que diz respeito a estas fontes, <strong>de</strong> et<strong>no</strong>grafia ou antropologia nas acepçõesmo<strong>de</strong>rnas <strong>de</strong>sses termos, já que ambos pressupõem uma preocupação <strong>de</strong>dar conta <strong>do</strong> objeto <strong>de</strong>scrito. Isso não correspon<strong>de</strong> absolutamente à posição<strong>do</strong>s textos que nós evocamos aqui, os quais não fazem nada mais <strong>do</strong> que instrumentalizaros <strong>no</strong>vos mun<strong>do</strong>s e seus habitantes <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> projetos coloniaisou evangeliza<strong>do</strong>res. Desse mo<strong>do</strong>, o objeto encontra-se sempre fragmenta<strong>do</strong>e, então, singularmente ausente.Enfim, não po<strong>de</strong>mos <strong>no</strong>s esquecer totalmente da cro<strong>no</strong>logia, pois convémdiscernir um certo número <strong>de</strong> fases <strong>no</strong> percurso <strong>do</strong>s textos e das idéias. Assim,os textos <strong>do</strong> primeiro encontro – os <strong>de</strong> Colombo, Cartier, Caminha ouVespúcio –, os quais po<strong>de</strong>mos situar entre 1492 e 1510, não se estruturam comoos <strong>do</strong>s viajantes <strong>do</strong> século XVII, que leram aqueles textos <strong>do</strong>s primeiros e freqüentementeos reescreveram. Da mesma forma, os homens também mudam;Colombo é um homem cuja cultura volta-se para a Ida<strong>de</strong> Média. Os missionáriosque <strong>de</strong>ixaram a Europa antes <strong>do</strong> Concílio <strong>de</strong> Trento não portam exatamenteas mesmas idéias que aqueles que partiram após 1568. Os textos europeus queutilizaram esses materiais sem se preocuparem com as situações <strong>de</strong> enunciaçãomodificaram sensivelmente a posição e o uso com relação aos originais. Nãohá, contu<strong>do</strong>, uma evolução linear, pois constatamos numerosas retomadas ouantecipações, conforme os territórios ou os países coloniza<strong>do</strong>res; assim, ostextos sobre a Nova Espanha acumulam-se rapidamente <strong>no</strong> início <strong>do</strong> séculoXVI; a América portuguesa emerge apenas por volta <strong>de</strong> 1550, e a Nova França(apesar <strong>de</strong> Cartier) apenas bem mais tar<strong>de</strong>.Neste imenso movimento <strong>de</strong> textos e <strong>de</strong> homens que caracteriza os séculosXVI e XVII, os missionários ocuparam um lugar excepcional. Eles foram,<strong>de</strong> longe, os escritores mais prolixos e, sobretu<strong>do</strong>, <strong>de</strong>slocaram-se por todas asterras ofertadas ao seu proselitismo. Sua contribuição foi freqüentemente malavaliada, porque foi prisioneira da hagiografia <strong>de</strong> suas respectivas or<strong>de</strong>ns que,ao celebrá-las <strong>de</strong> maneira excessiva, acabaram por <strong>de</strong>squalificá-las aos olhosda ciência laica. O jesuíta François <strong>de</strong> Dainville, sem romper francamente coma hagiografia foi, <strong>no</strong> entanto, um <strong>do</strong>s primeiros a iniciar o trabalho científico<strong>de</strong> recuperação <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> da dívida contraída pela Europa letrada com1Dainville, François <strong>de</strong>, La géographie <strong>de</strong>s Humanistes, Genève, Slatkine, 1969. To<strong>do</strong> olivro é importante para o <strong>no</strong>sso argumento.


12Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27os missionários. Muitas <strong>de</strong> suas análises 1 lançaram luzes sobre a estreita colaboraçãoque existia entre os escritos das missões e os saberes científicos. Otermo “missiologia”, cujo nascimento ele situa <strong>no</strong>s últimos a<strong>no</strong>s <strong>do</strong> século XVI,permite tornar mais precisa sua perspectiva. A emergência <strong>de</strong> um discurso(logos) sobre a missão unificava efetivamente a prática e o saber missionários,sem que se possa discernir uma hierarquia entre os termos. O fato <strong>de</strong> quea evangelização <strong>do</strong> século XVI fundava-se <strong>no</strong> <strong>do</strong>mínio <strong>de</strong> um saber sobre ospagãos, e que inversamente os missionários alimentavam ou produziam saberes<strong>no</strong>vos, constitui uma das perspectivas mais sugestivas <strong>do</strong> conjunto da obra<strong>de</strong>ste padre jesuíta. Textos e contextos entravam assim em relações dinâmicas.Proce<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssa forma, o padre Dainville organizava <strong>no</strong>vas seqüênciasna história cultural <strong>do</strong>s séculos XVI e XVII, relacionan<strong>do</strong> elementos que habitualmenteeram consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s disjuntos. Entretanto, ele <strong>de</strong>slocava seu objetivo<strong>de</strong> especialista da questão escolar para a passagem – fundamental, é verda<strong>de</strong>– entre os <strong>do</strong>is séculos, construin<strong>do</strong> um eixo que implicitamente ia <strong>do</strong> arrolamento<strong>de</strong> da<strong>do</strong>s brutos a uma estruturação progressiva <strong>de</strong> um saber autô<strong>no</strong>mo,suscetível <strong>de</strong> ser ensina<strong>do</strong> <strong>no</strong>s colégios que eram funda<strong>do</strong>s. A sua perspectivaera fundamentalmente jesuítica e francesa, excessivamente <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte da história<strong>do</strong>s colégios da Província jesuítica da França e da elaboração <strong>de</strong>finitivada Ratio sutdiorum. 2A concentração na literatura jesuítica correspon<strong>de</strong>, <strong>no</strong> entanto, a uma escolhaconsciente na medida em que é esse o corpus que oferece as séries <strong>de</strong>fontes mais consistentes e longas. Os discípulos <strong>de</strong> Inácio <strong>de</strong> Loyola permanecemos mais interessantes, espalhan<strong>do</strong>-se sobre todas as terras e, sobretu<strong>do</strong>,organizan<strong>do</strong> paralelamente aos seus <strong>de</strong>slocamentos físicos um sistema <strong>de</strong> correspondênciaúnico e extremamente sofistica<strong>do</strong>, que se estendia à escala <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> conheci<strong>do</strong>. Cada estabelecimento missionário tinha a obrigação <strong>de</strong> redigirregularmente um relatório <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s circunstancia<strong>do</strong>, a fim <strong>de</strong> elaborar,à escala da província, uma carta quadrimestral e, a partir <strong>de</strong> 1570, umacarta anual. Esse “<strong>de</strong>ver <strong>de</strong> escrita” obe<strong>de</strong>cia a três necessida<strong>de</strong>s conjuntas,as quais <strong>de</strong>vemos relacionar aos circuitos <strong>de</strong> difusão: os escritos missionári-2 A Ratio studiorum torna-se operacional em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1595 e os primeiros colégios daFrança se constituem entre 1602 e 1610, cinqüenta a<strong>no</strong>s após os primeiros estabelecimentosdas penínsulas ibérica e itálica.


Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27 13os, que circulam <strong>no</strong> interior da or<strong>de</strong>m segun<strong>do</strong> uma via hierárquica, permitin<strong>do</strong>o controle e a gestão das práticas e <strong>do</strong>s missionários; as publicações organizadaspela Companhia <strong>de</strong> Jesus a fim <strong>de</strong> fornecer a um público curioso as informaçõessobre os mun<strong>do</strong>s longínquos; enfim, os textos, traduzi<strong>do</strong>s em línguavernácula e cuida<strong>do</strong>samente censura<strong>do</strong>s, que seguem igualmente uma terceiravia, <strong>no</strong> interior <strong>do</strong>s colégios, on<strong>de</strong> eles edificam e suscitam vocações para asÍndias.O escrito missionário – e a fortiori o escrito jesuíta – <strong>de</strong>ve, portanto, serconsi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> em função <strong>de</strong> seu estatuto singular. Ele não é legível a não serem relação com a estratégia evangeliza<strong>do</strong>ra e com suas variações, na medidaem que cada palavra é concebida, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua redação, como uma peça <strong>do</strong><strong>do</strong>ssiê das missões. Em julho <strong>de</strong> 1547, o <strong>no</strong>vo secretário <strong>de</strong> Inácio <strong>de</strong> Loyola,Juan Alfonso <strong>de</strong> Polanco, redige o que po<strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada como a carta funda<strong>do</strong>ra3 da estratégia <strong>de</strong> escrita jesuítica. Nesta circular, ele precisa as estratificações<strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s segun<strong>do</strong> os diferentes <strong>de</strong>stinatários, separan<strong>do</strong> ascartas <strong>de</strong> edificação e as hijuelas, as “pequenas filhas” <strong>de</strong>stinadas às informaçõesinternas. Essas precauções são necessárias porque as missões encontramseinvariavelmente em situações <strong>de</strong> conflito, <strong>de</strong> uma parte <strong>no</strong> interior das socieda<strong>de</strong>scoloniais das quais elas participam e, <strong>de</strong> outra parte, com as autorida<strong>de</strong>s<strong>de</strong> tutela, laicas ou religiosas. As cartas e os trata<strong>do</strong>s que chegam a Lisboa, aMadri ou à Paris são concebi<strong>do</strong>s como atos jurídicos, suscetíveis <strong>de</strong> serem li<strong>do</strong>se utiliza<strong>do</strong>s por to<strong>do</strong>s. O mais ínfimo texto sobre os índios que nós ten<strong>de</strong>ríamosa qualificar como antropológico é, antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, uma pru<strong>de</strong>nte justificaçãoda ação em curso: ele po<strong>de</strong> ser publica<strong>do</strong> ou inseri<strong>do</strong> numa síntese, ou elepo<strong>de</strong> ser esqueci<strong>do</strong>, e às vezes mesmo <strong>de</strong>struí<strong>do</strong>, se ele não entra nas preocupações<strong>do</strong> <strong>de</strong>stinatário. Assim, o que conhecemos afinal da literatura missionária,a não ser o que os <strong>de</strong>stinatários selecionaram?A fim <strong>de</strong> evitar a tautologia, é necessário estabelecer a configuração <strong>de</strong> umelemento i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> nas fontes primárias através <strong>do</strong>s seus usos ulteriores, paraseguir as suas transformações e questionar sua perenida<strong>de</strong> e os senti<strong>do</strong>s diversosque ele incorporou num perío<strong>do</strong> suficientemente longo, e em terre<strong>no</strong>s aparentementediferentes. A maneira como os escritos jesuítas apreen<strong>de</strong>m o ameríndio3 Carta <strong>de</strong> 27 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1547, en<strong>de</strong>reçada a toda a Companhia, in Écrits, sob a direção<strong>de</strong> Maurice Giuliani, Paris, Desclée <strong>de</strong> Brouwer, 1991, p. 707-711, que traduz a carta179 <strong>do</strong> vol. I da Monumenta Ignatiana, p. 536-541.


14Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27constitui um ponto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> pertinente na medida em que, falan<strong>do</strong> <strong>do</strong> “gentio”,o missionário exprime implicitamente a necessida<strong>de</strong> e a forma <strong>de</strong> sua açãocomo uma exigência exterior a ele. Assim, convém ler todas as <strong>de</strong>scrições <strong>do</strong>sindígenas como <strong>de</strong>finições em negativo da missão, já que a estratégia missionáriaé sempre o único tema <strong>de</strong>ste tipo <strong>de</strong> texto, e o índio não mais <strong>do</strong> que o instrumento<strong>de</strong> medida <strong>do</strong> trabalho evangélico.Sobre esse assunto, o ponto <strong>de</strong> síntese incontornável da constelação jesuítaé a obra <strong>do</strong> padre José <strong>de</strong> Acosta, De procuranda in<strong>do</strong>rum salute que, publicadaem 1588, recolhe o essencial <strong>do</strong>s saberes acumula<strong>do</strong>s durante cinqüenta a<strong>no</strong>s<strong>de</strong> apostola<strong>do</strong> na América e propõe um programa <strong>de</strong> ação que permaneceráváli<strong>do</strong> até o século <strong>XVIII</strong>. Assim, afirma-se imediatamente a existência <strong>de</strong> umdiscurso especificamente jesuíta sobre os povos a serem converti<strong>do</strong>s, que atravessatodas as divisões culturais. Se consi<strong>de</strong>rarmos apenas o que diz respeitodiretamente aos povos “bárbaros”, o discurso <strong>de</strong> Acosta, sobre o qual voltaremosadiante, expõe o diagnóstico e o tratamento que os jesuítas a<strong>do</strong>tarão automaticamentecom relação a essas populações. Ora, as fontes <strong>de</strong> Acosta sobreeste tipo <strong>de</strong> população provêm <strong>de</strong> apenas duas experiências. Trata-se em primeirolugar da América portuguesa, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1549 a Companhia tem a responsabilida<strong>de</strong>exclusiva da conversão das tribos tupis antropófagas. Acosta po<strong>de</strong> evocarigualmente sua experiência pessoal entre os moxos, tribos semi-nôma<strong>de</strong>s que vivem<strong>no</strong> leste <strong>do</strong> Peru, as quais ele freqüentou durante alguns a<strong>no</strong>s. Acrescentemosque os textos <strong>de</strong>ste padre informarão as estratégias que encontraremos <strong>no</strong> séculoXVII <strong>no</strong> Maranhão, <strong>no</strong> Paraguai, na Nova França e mesmo <strong>no</strong> Ocea<strong>no</strong> Índico. Apermanência, durante <strong>do</strong>is séculos, <strong>de</strong> uma mesma visão <strong>do</strong> ameríndio é o sinal<strong>de</strong> um posicionamento estável da Companhia <strong>de</strong> Jesus <strong>no</strong> interior <strong>de</strong> dispositivoscoloniza<strong>do</strong>res <strong>de</strong> mesma natureza, sejam eles portugueses, espanhóis ou franceses.No terre<strong>no</strong> da história das idéias, a conseqüência é a total neutralização dacontinuida<strong>de</strong> histórica e <strong>de</strong> seu corolário, o progresso. A breve viagem que propomosrealizar aqui começa naturalmente na América portuguesa, que constitui oalfa e o ômega da estratégia jesuíta <strong>de</strong> evangelização <strong>do</strong>s “selvagens”.O jesuíta e o selvagem, primeiro encontroA América portuguesa é o primeiro terre<strong>no</strong> <strong>de</strong> encontro entre os missionáriosjesuítas e os “bárbaros”. Os textos que nascem <strong>de</strong>ssa experiência são oprimeiro confronto das idéias com as realida<strong>de</strong>s. Eles darão forma àquilo queainda não possuía ao se exporem ao para<strong>do</strong>xo <strong>de</strong> confirmar os pressupostos


Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27 15<strong>do</strong>s missionários e, ao mesmo tempo, indicar as adaptações necessárias à boainstrumentação <strong>do</strong>s indígenas.Quan<strong>do</strong>, em março <strong>de</strong> 1549, o primeiro contingente <strong>de</strong> seis jesuítas <strong>de</strong>sembarcana América portuguesa, ele abre o primeiro capítulo da longa história<strong>do</strong>s discípulos <strong>de</strong> Inácio na América. Estes últimos encontram ali uma humanida<strong>de</strong><strong>de</strong>sconcertante, irredutível aos povos com os quais eles já haviam ti<strong>do</strong>alguma experiência. Os indígenas “sem fé, sem lei, sem rei” 4 são dificilmentevincula<strong>do</strong>s ao resto da humanida<strong>de</strong>, como o provará a vasta controvérsia <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adana Europa sobre as origens <strong>do</strong> povoamento america<strong>no</strong>. Os jesuítassão os únicos missionários nessa região até 1580, data a partir da qual osbenediti<strong>no</strong>s (1580), os carmelitas (1584) e os francisca<strong>no</strong>s (1585) juntar-se-ãoa eles. A situação é exatamente inversa àquela que encontramos na Nova Espanha,aon<strong>de</strong> os francisca<strong>no</strong>s chegam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1524 e os jesuítas somente em 1572 5 .Os índios brasileiros eram estranhos pelo fato <strong>de</strong> que o apostola<strong>do</strong> jesuíta nãotinha ti<strong>do</strong> nenhum encontro <strong>de</strong>sse tipo até então. A Índia, o Japão ou a Europanão apresentam os mesmos traços. Trata-se, portanto, <strong>de</strong> um começo.Os missionários portugueses <strong>de</strong>vem, contu<strong>do</strong>, enfrentar essa realida<strong>de</strong> coma pequena bagagem <strong>de</strong> que dispõem. É impossível <strong>de</strong>screver exatamente osconhecimentos por eles adquiri<strong>do</strong>s antes <strong>de</strong> partirem. Po<strong>de</strong>mos apenas suporque a expedição preparada em Portugal podia contar com os principais da<strong>do</strong>sgeográficos <strong>do</strong>s quais a coroa dispunha. No Colégio <strong>de</strong> Coimbra, on<strong>de</strong> haviamsi<strong>do</strong> forma<strong>do</strong>s os primeiros missionários, foram aparentemente centralizadastodas as informações provenientes das fontes jesuíticas, <strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos<strong>de</strong> viajantes ou <strong>de</strong> colo<strong>no</strong>s, ou <strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s textos espanhóis vin<strong>do</strong>s da NovaEspanha. Des<strong>de</strong> a famosa carta <strong>de</strong> Pero Vaz <strong>de</strong> Caminha, companheiro <strong>de</strong>Cabral em 1500 6 , até as raras cartas <strong>do</strong>s colo<strong>no</strong>s que aportavam em Lisboa, arepresentação <strong>do</strong>s indígenas oscilava entre o selvagem <strong>de</strong> boa vonta<strong>de</strong> e o feroz4 Essa fórmula já é um lugar comum, em 1549, nas <strong>de</strong>scrições <strong>do</strong>s ameríndios.5 Essa diferença <strong>de</strong>ve-se a que os jesuítas encontram-se sob o padroa<strong>do</strong> português e asduas or<strong>de</strong>ns mendicantes sob o da Espanha; a reunião das duas coroas modificou essarepartição a partir <strong>de</strong> 1580.6 Utilizamos Caminha, Pêro Vaz <strong>de</strong>, “Lettre au Roi Dom Manuel”, in La découverte duBrésil (1500-1530), textos escolhi<strong>do</strong>s e apresenta<strong>do</strong>s por Ilda <strong>do</strong>s Santos, Paris,Chan<strong>de</strong>igne, 2000.


16Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27antropófago. O que equivale a dizer que nada, ou quase nada, permitia concebera priori uma estratégia <strong>de</strong> evangelização. O único da<strong>do</strong> estável era indireto,constituí<strong>do</strong> pela total entrega <strong>do</strong>s indígenas à Companhia, conforme o <strong>do</strong>cumentooficial que fixa <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1548 a tarefa <strong>do</strong>s jesuítas 7 . Dessa constataçãosimples, po<strong>de</strong>mos concluir que não é surpreen<strong>de</strong>nte encontrar sob a pluma <strong>do</strong>smissionários que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a chegada ao Novo Mun<strong>do</strong>, ainda nem puseram ospés fora da vila recém-fundada, a afirmação da capacida<strong>de</strong> indiscutível <strong>do</strong>sindígenas para a salvação.“To<strong>do</strong>s estes que tratam com<strong>no</strong>sco, dizem que querem ser como <strong>no</strong>s,senão que <strong>no</strong>m tem com que se cubrão como <strong>no</strong>s, e este soo inconvenientetem. Se ouvem tanger à missa, ja aco<strong>de</strong>m, e quanto <strong>no</strong>s vemfazer, tu<strong>do</strong> fazem: assentão-se <strong>de</strong> giolhos, batem <strong>no</strong>s peitos, alevantãoas mãos ao ceo; e ja hum <strong>do</strong>s principaes <strong>de</strong>lles apren<strong>de</strong> a ler e tomalição cada dia com gran<strong>de</strong> cuida<strong>do</strong>, e em <strong>do</strong>us dias soube ho ABC.” 8Mas a base teológica <strong>de</strong>ssa atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>ve ser buscada <strong>de</strong> maneira mais fundamental<strong>no</strong>s textos <strong>de</strong> são Tomás <strong>de</strong> Aqui<strong>no</strong> e <strong>de</strong> santo Agostinho, mais essenciaisque qualquer informação direta. Esses <strong>do</strong>is autores são, com efeito,as referências <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os primeiros jesuítas e orientam sua visão <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>.As três faculda<strong>de</strong>s da alma que <strong>de</strong>terminam a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> re<strong>de</strong>nção, expostas<strong>no</strong> De Trinitate agostinia<strong>no</strong> – a vonta<strong>de</strong>, o entendimento e a memória,fornecerão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a origem o quadro <strong>de</strong> todas as <strong>de</strong>scrições <strong>do</strong> indígena. Otexto que acabamos <strong>de</strong> citar mostra que o entendimento e a boa vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong>síndios são indiscutíveis. A memória virá rapidamente completar essa primei-7O <strong>do</strong>cumento é o Regimento da<strong>do</strong> pelo rei d. João III àquele que ele <strong>no</strong>meou primeiroGoverna<strong>do</strong>r geral <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, Tomé <strong>de</strong> Sousa. Foi este alto funcionário que trouxe consigoa primeira missão jesuíta. No <strong>do</strong>cumento, os jesuítas têm a responsabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s indígenas,que eles <strong>de</strong>vem trazer à civilização, a fim <strong>de</strong> faze-los participar <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimentoracional da <strong>no</strong>va colônia. O clero secular tem o encargo das almas portuguesas. A únicajustificativa da presença <strong>do</strong>s jesuítas é, portanto, a conversão <strong>do</strong>s indígenas. Po<strong>de</strong>mos medira importância <strong>de</strong>sta tarefa quan<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ramos igualmente que a coroa é quem financiaa missão, que em princípio não sobrevive a não ser das esmolas dadas pelo rei.8Carta <strong>de</strong> Manuel da Nobrega ao P. Simão Rodrigues, 10 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1549, in Monumenta<strong>Brasil</strong>iae (MB), vol. 1, p. 111.


Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27 17ra <strong>de</strong>scrição quan<strong>do</strong> os jesuítas, como a maior parte <strong>do</strong>s outros missionários<strong>no</strong> resto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, aproximarão os mitos indígenas <strong>do</strong> Gênesis, <strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong>ali os traços <strong>de</strong> uma lembrança <strong>do</strong> Dilúvio 9 . Na América portuguesa, acrescentar-se-áa suposta lembrança <strong>do</strong>s índios <strong>de</strong> uma primeira revelação pelo apóstolosão Tomás. Os missionários aproximaram-<strong>no</strong> a um herói indígena <strong>no</strong>mea<strong>do</strong>Zumé (pronuncian<strong>do</strong>-se Zomé, assimila-se por contigüida<strong>de</strong> a Tomé), queteria instruí<strong>do</strong> os índios e <strong>de</strong>pois parti<strong>do</strong> prometen<strong>do</strong> voltar. Impressões <strong>de</strong> passossobre rochas fornecerão a prova tangível <strong>de</strong>ssa primeira evangelização.Assim, a primeira metáfora que vem ao espírito <strong>do</strong>s missionários é a da“cera virgem”, sobre a qual seria fácil imprimir a revelação <strong>de</strong> Cristo. Essahumanida<strong>de</strong> encontrar-se-ia na infância, viven<strong>do</strong> em conformida<strong>de</strong> com a leinatural porque ela não conhecia outra. Mas essa aparente confirmação não sesustentará por muito tempo face às dificulda<strong>de</strong>s concretas. Na medida em quea boa vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong>s “selvagens” revela-se inconstante, o discurso mudará <strong>de</strong>natureza, ainda que se manten<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>do</strong> quadro original. O discurso flexionar-se-áem seguida, para se concentrar na <strong>de</strong>scrição das causas e <strong>do</strong>s remédiospara tal situação. Para lutar contra a versatilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s índios, os jesuítasevocam o compelle eos intrare <strong>de</strong> são Paulo e admitem o uso da força para aconversão. Des<strong>de</strong> 1554, o apelo à sujeição forçada como atitu<strong>de</strong> prévia à conversãoe ao batismo <strong>do</strong>s gentios aparece <strong>de</strong> maneira insistente na correspondência<strong>do</strong>s padres da Província <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Com efeito, a missão conheceu emquatro a<strong>no</strong>s uma evolução radical. Os primeiros fracassos são imputa<strong>do</strong>s imediatamenteà ação nefasta <strong>do</strong>s colo<strong>no</strong>s portugueses que encorajam os vícios<strong>do</strong>s índios a fim <strong>de</strong> subtraí-los à influência <strong>do</strong>s religiosos e <strong>de</strong> reservá-los aotrabalho escravo. Sob o impulso <strong>do</strong> provincial <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, Manuel da Nóbrega,alguns irmãos irão à direção aos índios para fundar, <strong>no</strong> lugar on<strong>de</strong> hoje se encontraa cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, um al<strong>de</strong>amento distante da colônia portuguesa.Rapidamente, eles constatarão que os obstáculos à conversão são mais complexose que o confronto direto com os indígenas não é mais eficaz que as9 Em uma carta <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1549, Manuel da Nóbrega escreve: “Tienen memoria <strong>de</strong>lDiluvio, empero falsamente, porque dizen que cubrién<strong>do</strong>se la tierra <strong>de</strong> agua, una mugercon su mari<strong>do</strong>, subieron en un pi<strong>no</strong>, e <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> menguadas las aguas <strong>de</strong>scendieron, y<strong>de</strong> aquéstos procedieron to<strong>do</strong>s los hombres y mugeres.” in MB, vol. 1, p. 153, § 7. Noteseque essa constatação será confirmada e interpretada <strong>no</strong> mesmo senti<strong>do</strong> por to<strong>do</strong>s osprimeiros cronistas.


18Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27soluções prece<strong>de</strong>ntes. Entre 1556 e 1558, <strong>do</strong>is textos escritos por Nóbrega <strong>de</strong>finirãoas principais invariantes da visão jesuíta <strong>do</strong> selvagem. Um diálogo imaginárioentre <strong>do</strong>is missionários e uma carta programática, que to<strong>do</strong>s os comenta<strong>do</strong>resinterpretam hoje como um verda<strong>de</strong>iro pla<strong>no</strong> <strong>de</strong> colonização da Américaportuguesa, formalizam o mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> inserção <strong>do</strong> indígena na empresa cristã <strong>do</strong>Novo Mun<strong>do</strong>, ao mesmo tempo em que dão corpo à sua representação.No Diálogo sobre a conversão <strong>do</strong> gentio 10 , em 1556, os <strong>do</strong>is interlocutoressão mo<strong>de</strong>stos operários da vinha <strong>do</strong> Senhor, um ferreiro e um intérprete. Demaneira progressiva, eles acumulam os elementos que <strong>de</strong>senham a imagem<strong>do</strong> gentio, tal como ele é percebi<strong>do</strong> nesse momento. O diálogo começa porum bestiário <strong>de</strong>preciativo on<strong>de</strong> se misturam porcos, cães, corvos e serpentes 11 .Mas este é apenas um ponto <strong>de</strong> partida tradicional <strong>do</strong> diálogo escolástico,funda<strong>do</strong> sobre um equilíbrio pontual que justifica o fato que os <strong>do</strong>is protagonistasfalam sobre a mesma coisa. Mateus Nogueira, o ferreiro que <strong>do</strong>minaráa seqüência da disputa, reitera em seguida o ponto fundamental, a naturezahumana <strong>do</strong>s índios que receberam a graça <strong>de</strong> Deus 12 . Ele conduz então a conversaçãopara o tema da insuficiência <strong>do</strong>s próprios missionários, colocan<strong>do</strong>oscomo responsáveis pelo fracasso da catequese. A partir <strong>de</strong>sse momento, a<strong>de</strong>monstração a<strong>do</strong>ta a forma <strong>de</strong> um silogismo. Em primeiro lugar, a conversão<strong>de</strong>ve ser uma questão <strong>de</strong> entusiasmo e <strong>de</strong> paixão, sem recurso ao constrangimentoou à obra da razão. Em segun<strong>do</strong> lugar, os índios não possuem umentendimento me<strong>no</strong>r que os ju<strong>de</strong>us ou os maometa<strong>no</strong>s. Não lhes falta mais <strong>do</strong>que a polícia, isto é a educação. Em conclusão, isso os torna mais simples emais acessíveis, pelas vias da carida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> amor, porque não haverá necessi-10“Dialogo sobre a conversão <strong>do</strong> gentio”, in MB, vol. 2, p. 317-345.11“Não <strong>de</strong>is o Sancto aos cãis, nem <strong>de</strong>iteis as pedras preciosas aos porquos”, citan<strong>do</strong>Mat. 7, 6, e continuan<strong>do</strong> assim “...vemos que são cãis em se comerem e matarem, e sãoporcos <strong>no</strong>s vicios e na maneira <strong>de</strong> se tratarem.” E uma pagina <strong>de</strong>pois “nem sei se hé bemchamar-lhe corvo, pois vemos que os corvos, toma<strong>do</strong>s <strong>no</strong>s ninhos, se crião e amanção eensinão, e estes, mais esqueci<strong>do</strong>s da criação que os brutos animais, e mais ingratos queos filhos das biboras que comem suas mãis, nenhum respecto tem ao amor e criação quenelles se faz.” in MB, vol. 2, p. 321 e 322.12 “To<strong>do</strong> o homem hé huma mesma natureza, e to<strong>do</strong> po<strong>de</strong> conhecer a Deus e salvar suaalma, e este ouvi eu dizer que era proximo. Prova-se <strong>no</strong> Evangelho <strong>do</strong> Samarita<strong>no</strong>, on<strong>de</strong>diz Christo N.S. que aquelle hé proximo que usa <strong>de</strong> misericordia.” in MB, vol. 2, p. 326.


Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27 19da<strong>de</strong> <strong>de</strong> extirpar ou <strong>de</strong> combater pelo raciocínio a raiz <strong>do</strong> erro. Contu<strong>do</strong>, parafazê-los respeitar a <strong>no</strong>va religião, será conveniente educá-los e formá-los.Rapidamente, a constatação <strong>do</strong> fracasso é transformada em programa. Odiálogo marca <strong>de</strong> maneira clara o fim <strong>de</strong> um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>cifração da socieda<strong>de</strong>indígena. As contradições que a realida<strong>de</strong> apresentava aos missionáriosresolvem-se na reunificação <strong>do</strong>s postula<strong>do</strong>s e das constatações. As boas disposiçõesprévias e a persistência da selvageria são apenas uma questão <strong>de</strong> tempo.O índio converti<strong>do</strong> está se forman<strong>do</strong> e a tarefa <strong>do</strong>s jesuítas consistirá emtransformar os maus em bons a partir <strong>de</strong> um dispositivo <strong>de</strong> transição em direçãoà civilização, funda<strong>do</strong> na educação e <strong>no</strong> trabalho. O último movimento <strong>do</strong> diálogofornece-<strong>no</strong>s algumas indicações <strong>do</strong> que seria o índio i<strong>de</strong>al através dasfiguras exemplares <strong>do</strong>s converti<strong>do</strong>s, que caucionam a proposição 13 .Dois a<strong>no</strong>s mais tar<strong>de</strong>, em maio <strong>de</strong> 1558, Nóbrega encontra-se numa situaçãobastante diferente. A chegada <strong>de</strong> um <strong>no</strong>vo governa<strong>do</strong>r geral, Mem <strong>de</strong> Sá,favorável à ação <strong>do</strong>s jesuítas, permite-lhe esperar a intervenção rápida e eficaz<strong>do</strong>s solda<strong>do</strong>s da coroa para pacificar e agrupar os índios a fim <strong>de</strong> coloca-los soba tutela <strong>do</strong>s missionários. O texto que ele redige nesse momento 14 é antes tu<strong>do</strong>uma promoção da ação <strong>de</strong>sse governa<strong>do</strong>r, então contesta<strong>do</strong> em Portugal, on<strong>de</strong>os mora<strong>do</strong>res da América portuguesa 15 fazem ouvir seus reclamos. O diagnóstico<strong>do</strong> provincial jesuíta é um pouco diferente. Ele reforça o traço da selvageria<strong>do</strong>s índios e insiste na sua insubmissão, imputada essencialmente à incúria<strong>do</strong>s portugueses que encorajam os seus vícios. A boa natureza <strong>do</strong>s índios não écontestada, mas a pacificação e a se<strong>de</strong>ntarização sob as leis portuguesas sãocolocadas como condições prévias para a conversão. É <strong>no</strong>tável que as leis impostaspor Mem <strong>de</strong> Sá obe<strong>de</strong>cem às sugestões <strong>do</strong> jesuíta concernentes à pros-13Três <strong>no</strong>mes são cita<strong>do</strong>s, Pêro Lopes e Fernão Correia, <strong>do</strong>is tupiniquins converti<strong>do</strong>s naregião <strong>de</strong> São Vicente, et Cayubi, um gran<strong>de</strong> chefe indígena que, com seu irmão Tibiriçá,foram os melhores alia<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s portugueses entre as tribos tupiniquins <strong>do</strong> sul. Cf. Lamission jésuite du Brésil: lettres et autres <strong>do</strong>cuments, edição e tradução <strong>de</strong> Jean-Clau<strong>de</strong>Laborie, Paris, Chan<strong>de</strong>igne, 1998, p. 214.14 Carta <strong>de</strong> Manuel da Nóbrega ao padre Miguel Torres, da Bahia a Lisboa, 8 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong>1558, MB, vol. 2, p. 445-459.15 Os colo<strong>no</strong>s suportam mal as conseqüências da instalação <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res metropolita<strong>no</strong>sna colônia. Os regulamentos alfan<strong>de</strong>gários, as taxas e o controle administrativo ameaçamdiretamente os lucros em curto prazo que eles esperavam. Eles serão os opositores<strong>de</strong> sempre <strong>do</strong>s jesuítas e <strong>do</strong>s governa<strong>do</strong>res que não partilham seus pontos <strong>de</strong> vista.


20Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27crição das festas indígenas, os famosos cauim, e os rituais antropofágicos, ti<strong>do</strong>s<strong>de</strong>s<strong>de</strong> então como práticas repreensíveis. Desenha-se assim uma divisão, perceptível<strong>de</strong>s<strong>de</strong> as primeiras cartas, entre os fatos <strong>de</strong> natureza e os comportamentossociais: a lei natural é respeitada pelos índios, a quem não falta senão a polícia,ou seja, um controle social efetivo. É sobre este último aspecto, portanto, queos jesuítas intervirão, crian<strong>do</strong> os al<strong>de</strong>amentos indígenas e tornan<strong>do</strong>-se os únicosmedia<strong>do</strong>res entre a colônia e os indígenas. O que po<strong>de</strong>mos tomar como umaforma ainda imperfeita <strong>de</strong> “redução” nasce, portanto, <strong>de</strong> uma análise que nãohá em si nada <strong>de</strong> antropológico. As informações sobre os indígenas possuem<strong>no</strong>s textos jesuíticos duas virtu<strong>de</strong>s: primeiramente, elas servem para justificar econfirmar as posições estratégicas da missão e, em seguida, afinar o trabalho<strong>de</strong> catequese, transpon<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneira <strong>de</strong>cisiva uma posição <strong>do</strong>gmática para umaavaliação política. Sob esse aspecto, o tema da antropofagia é interessante namedida em que ele ocupa um lugar me<strong>no</strong>r nas cartas <strong>do</strong>s primeiros jesuítas aomesmo tempo em que se torna um motivo <strong>de</strong> escândalo e <strong>de</strong> curiosida<strong>de</strong> parato<strong>do</strong>s os outros cronistas. Os poucos textos <strong>de</strong> jesuítas que se preocupam em<strong>de</strong>screver o ritual insistem sempre sobre os pontos fracos <strong>do</strong>s quais os missionáriosse servem para <strong>de</strong>sconstrui-lo a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro 16 .Assim se confirma, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, uma imagem coerente e estável <strong>do</strong> selvageme da sua socieda<strong>de</strong>. Eles não possuem religião, nem organização social elaborada,mas eles são fiéis à lei natural. A metáfora da cera virgem que já havíamosencontra<strong>do</strong> sob a pluma <strong>do</strong>s missionários induz a estratégia a ser aplicadapara traze-los à civilização. Os costumes <strong>de</strong>testáveis, sobretu<strong>do</strong> a antropofagia,a sensualida<strong>de</strong> e o gosto imo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> pelo álcool, são <strong>de</strong>sregramentos os quais oenquadramento social <strong>no</strong>s al<strong>de</strong>amentos bastaria para solucionar. O problemaprimordial permanece o <strong>do</strong> estatuto <strong>do</strong>s al<strong>de</strong>amentos, sua separação <strong>do</strong> resto dasocieda<strong>de</strong> colonial e sua subsistência material. É o único elemento que variarásegun<strong>do</strong> as situações políticas e as relações <strong>de</strong> força.O tempo das avaliações. José <strong>de</strong> Acosta16 O tema <strong>do</strong> canibalismo, <strong>no</strong> conjunto das epístolas <strong>do</strong>s jesuítas, é <strong>de</strong>scrito integralmenteapenas duas vezes, em 1549 e em 1551. Depois disso, ele só retorna (sete a oito vezes)<strong>de</strong> maneira fragmentar. Mas o essencial aqui é que o personagem central é... o jesuíta,que assiste e intervém <strong>no</strong> ritual para <strong>de</strong>sviá-lo, seja batizan<strong>do</strong> a vítima, o que <strong>do</strong> ponto<strong>de</strong> vista indígena tornava a carne imprópria para o consumo, seja rouban<strong>do</strong> o instrumentoritual que servia ao sacrifício, seja confiscan<strong>do</strong> o prisioneiro.


Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27 21Os textos <strong>do</strong>s jesuítas da Província <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> circularão <strong>no</strong> interior daCompanhia <strong>de</strong> maneira caótica. Algumas cartas edificantes serão publicadas,mas o essencial permanecerá <strong>no</strong>s arquivos da Or<strong>de</strong>m. A informação <strong>de</strong> 1549será publicada em 1551 e não cessará <strong>de</strong> ser reimpressa nas diversas antologiasitalianas durante to<strong>do</strong> o século XVI. O diálogo será integra<strong>do</strong> a um <strong>do</strong>ssiê,As coisas <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, que se encontra <strong>no</strong>s arquivos <strong>de</strong> Évora, em Portugal 17 . Sefor provável que esse <strong>do</strong>ssiê constitui um resumo <strong>do</strong> conhecimento sobre aAmérica portuguesa, po<strong>de</strong>mos dizer o mesmo com relação ao circuito <strong>do</strong>s colégios:as cartas das missões longínquas são lidas <strong>no</strong>s refeitórios e freqüentementefornecem a matéria para os estu<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s casos <strong>de</strong> consciência. Os gran<strong>de</strong>scolégios constituem, portanto, cruzamentos essenciais, particularmente osque têm a vocação <strong>de</strong> formar os missionários, como o <strong>de</strong> Coimbra (Portugal)ou o <strong>de</strong> La Flêche (Le Mans, França). Traduzidas em francês, espanhol oualemão, as informações das Índias orientais e oci<strong>de</strong>ntais circulam sem que possamosprecisar seus trajetos.A Companhia promove essa transmissão interna e encoraja o esforço <strong>de</strong>síntese a partir <strong>de</strong> 1580, a fim <strong>de</strong> unificar as práticas missionárias às vezes<strong>de</strong>sencontradas. O padre José <strong>de</strong> Acosta, um espanhol forma<strong>do</strong> em Salamanca 18cuja maior parte da carreira será traçada <strong>no</strong> Peru e <strong>no</strong> México, redige entre17 Esse <strong>do</strong>ssiê, que resume o essencial <strong>do</strong> saber acumula<strong>do</strong> sobre os índios <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, éum conjunto <strong>de</strong> ca<strong>de</strong>r<strong>no</strong>s costura<strong>do</strong>s que agrupam os manuscritos mais úteis para o conhecimento<strong>do</strong>s indígenas. Ele só foi publica<strong>do</strong> <strong>no</strong> século XX, mas sua existência, assimcomo o <strong>de</strong> um <strong>do</strong>ssiê semelhante para as Índias orientais, é um indício <strong>de</strong> seu uso inter<strong>no</strong>.Ali encontramos, além <strong>do</strong> diálogo <strong>de</strong> Nóbrega, algumas cartas <strong>do</strong> mesmo e o essencial<strong>do</strong>s <strong>do</strong>cumentos constituí<strong>do</strong>s quan<strong>do</strong> da visita <strong>do</strong> padre Christovão <strong>de</strong> Gouveia, em1584-1585, que <strong>de</strong>u lugar a uma avaliação sobre a evangelização <strong>do</strong>s índios.18José <strong>de</strong> Acosta nasceu em 1540 em Medina <strong>de</strong>l Campo. Ele entra <strong>no</strong> <strong>no</strong>vicia<strong>do</strong> da Companhiaem 1552, em Salamanca, e pronuncia em 1554 os três votos. Sua carreira universitária,em Salamanca e Alcalá, será marcada pelo ensi<strong>no</strong> <strong>de</strong> Domingo <strong>de</strong> Soto e <strong>de</strong> MelchiorCa<strong>no</strong>, que retomam as teorias <strong>de</strong> Francisco <strong>de</strong> Vitoria. Acosta é, portanto, crítico comrelação ao mo<strong>de</strong>lo colonial espanhol e será sempre um <strong>de</strong>fensor <strong>de</strong> uma colonização maissuave, que respeite os direitos <strong>do</strong>s índios. Chegan<strong>do</strong> a Lima em abril <strong>de</strong> 1572, ele visitaa província peruana em 1573-1574. Ele torna-se um especialista <strong>do</strong>s índios, fala quechúa,e será <strong>no</strong>mea<strong>do</strong> provincial <strong>do</strong> Peru em 1576 (até 1581). Ele participa ativamente da primeiracongregação provincial e <strong>do</strong> 3 o Concílio <strong>de</strong> Lima, em 1582, quan<strong>do</strong> se <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m asformas futuras da evangelização. Em 1586, ele volta ao México, que ele aban<strong>do</strong>na em1587 para ir à Espanha, já com o De procuranda in<strong>do</strong>rum salute redigi<strong>do</strong>, que ele submeteráà apreciação <strong>do</strong> rei.19 Acosta, José <strong>de</strong>, De procuranda in<strong>do</strong>rum salute (1 a ed. 1588), Lucia<strong>no</strong> Pereña (dir.),Corpus hispa<strong>no</strong>rum <strong>de</strong> pace, vol. XXIII, Madrid, C.S.I.C., 1984.


22Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-271575 e 1595 um manual que se tornará referência para a catequese <strong>no</strong> NovoMun<strong>do</strong> 19 . Trabalhan<strong>do</strong> na América, ele acrescenta aos materiais disponíveisos frutos <strong>de</strong> sua experiência pessoal nas missões realizadas entre os moxos eos chirigua<strong>no</strong>s, povos comparáveis aos tupis <strong>de</strong> Nóbrega.O texto <strong>de</strong> Acosta é freqüentemente cita<strong>do</strong> por causa <strong>do</strong> seu prólogo, on<strong>de</strong>o padre apresenta uma tipologia <strong>do</strong>s “bárbaros”, hierarquiza<strong>do</strong>s segun<strong>do</strong> trêscategorias: <strong>do</strong>s que possuem uma organização política e uma religião (os chineses,os japoneses...), àqueles <strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, “sem fé, sem lei, sem rei” (ostupis, os caribes), passan<strong>do</strong> pelo estágio intermediário <strong>do</strong>s índios <strong>do</strong> Peru e <strong>do</strong>México, que têm uma organização política e uma religião sem serem, contu<strong>do</strong>,razoáveis. Os selvagens <strong>de</strong>sprovi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, os únicos que <strong>no</strong>s interessam aqui,são <strong>de</strong>scritos segun<strong>do</strong> os mesmos princípios que os da América portuguesa.“Finalmente, a la tercera clase <strong>de</strong> bárbaros <strong>no</strong> es fácil <strong>de</strong>cir las muchasgentes y nacíones <strong>de</strong>l Nuevo Mun<strong>do</strong> que pertenecen. En ella entranlos selvajes semejantes a fieras, que apenas tienen sentimiento huma<strong>no</strong>;sin ley, sin rey, sin pactos, sin magistra<strong>do</strong>s ni república, mudan lahabitacíon, o si la tienen fija, mas se asemeja a cuevas <strong>de</strong> fieras o cercas<strong>de</strong> animales. Tales son primeramente los que los nuestros llamanCaribes, siempre sedien<strong>do</strong>s <strong>de</strong> sangre, crueles con los extraños, que<strong>de</strong>voran carne humana, andan <strong>de</strong>snu<strong>do</strong>s o cubien apenas sus vergüenzas.De este genero <strong>de</strong> bárbaros trato Aristóteles, cuan<strong>do</strong> dijo que podiansu caza<strong>do</strong>s como bestias y <strong>do</strong>ma<strong>do</strong>s por la fuerza. Y en el Nuevo Mun<strong>do</strong>hay <strong>de</strong> ellos infinitas manadas: asi son los Chunchos, los Chiriguanas,los Mojos, los Yscaycingas, que hemos co<strong>no</strong>ci<strong>do</strong> por vivir proximosa nuestras fronteras; asi tambíen la major parte <strong>de</strong> los <strong>de</strong>l <strong>Brasil</strong> yla casi totalidad <strong>de</strong> las parcialida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> la Flórida. Pertenecen tambíena esta clase otros bárbaros, que, aunque <strong>no</strong> son sanguinarios como tigreso panteras, sin embargo se differencian poco <strong>de</strong> los animales.” 20Constatamos que a <strong>de</strong>scrição atém-se a sua falta <strong>de</strong> organização social epolítica. A comparação com os animais selvagens aparece igualmente comoum leitmotiv. A antropofagia alimentar indica uma regressão da sua percepção<strong>do</strong>s indígenas, comparada com o caráter ritualístico atribuí<strong>do</strong> a ela pelos20Acosta, José <strong>de</strong>, “Proêmio”, De Procuranda, op. cit., p. 67.


Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27 23jesuítas em ativida<strong>de</strong> na América portuguesa. Esse quadro da selvageria nãoé, <strong>no</strong> entanto, referencial. Devemos lê-lo antes como uma hipérbole na retórica<strong>do</strong> horror. Esse aspecto é atesta<strong>do</strong> pelas proposições seguintes, que se aproximariam<strong>do</strong> para<strong>do</strong>xo numa exposição analítica.“A to<strong>do</strong>s éstos que apenas son hombres, o son hombres a medias,conviene enseñarles que aprendan a ser hombres, e instruirles como aniños. Y si atrayen<strong>do</strong>los con halagos se <strong>de</strong>jan voluntariamente enseñar,mejor seria; mas si resisten, <strong>no</strong> por eso hay que aban<strong>do</strong>narlos, si<strong>no</strong> quesi se rebelan contra su bien y salvacíon, y se enfurecen contra losmédicos y maestros, hay que contenerlos con fuerza y po<strong>de</strong>r convenientes,y obligarles a que <strong>de</strong>jen la selva y se reúnan en poblaciones y, contrasu voluntad en cierto mo<strong>do</strong>, hacerles fuerza para que entren en el rei<strong>no</strong><strong>de</strong> los cielos.” 21O movimento reproduz aquilo que já havíamos i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> em Nóbrega,ou seja, a idéia <strong>de</strong> que os <strong>de</strong>feitos <strong>do</strong>s bárbaros induzem a atitu<strong>de</strong> a ser a<strong>do</strong>tadacom relação a eles. Nós não sabemos nada além <strong>do</strong> que é necessário ao diagnósticoe ao estabelecimento da or<strong>de</strong>nação. A seqüência <strong>do</strong> primeiro livro, que levao título “Esperança <strong>de</strong> salvação <strong>do</strong>s índios”, é a <strong>de</strong>clinação das soluções experimentadasna Província <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. O capítulo V intitula-se “Por mais bárbarosque sejam os povos das Índias, eles não estão priva<strong>do</strong>s da ajuda da Graça parase salvarem”. Eis aqui a base agostiniana já mencionada. O capítulo VIII, “Aincapacida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s bárbaros nasce não da sua natureza, mas da educação e <strong>do</strong>scostumes”, relembra a distinção entre natureza e cultura, que aparece a partir<strong>de</strong> então como uma das invariantes da maneira jesuítica <strong>de</strong> ver os índios.A redação, mais ampla que a <strong>do</strong> seu pre<strong>de</strong>cessor, coloca a lembrança dabrutalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s indígenas <strong>no</strong> prólogo e se <strong>de</strong>s<strong>do</strong>bra em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong>sse vazio central.O índio não é apreendi<strong>do</strong>, portanto, a não ser sob a forma <strong>de</strong> uma silhuetaque necessitaria <strong>do</strong> jesuíta para ser preenchida. Os espanhóis são, a exemplo<strong>do</strong>s mora<strong>do</strong>res portugueses, os agentes <strong>do</strong> <strong>de</strong>mônio, como lembra o capítulo XI,“Os principais obstáculos para a predicação <strong>do</strong> Evangelho aos índios vêm <strong>do</strong>sespanhóis”, eles que fornecem os piores exemplos <strong>de</strong> iniquida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> barbárie.21 Acosta, José <strong>de</strong>, “Proêmio”, De Procuranda, op. cit., p.69.


24Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27A obra <strong>de</strong> Acosta, retoman<strong>do</strong> exatamente os termos <strong>de</strong> Nóbrega, confirmao mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> <strong>de</strong>scrição jesuíta <strong>do</strong>s índios. O provincial <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> afirmavaposições que a Companhia aceitava, a contragosto, como um esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> fatonuma província longínqua. A obra <strong>do</strong> jesuíta espanhol, cuja publicação foi aceitapelo geral Aquaviva e pelo rei da Espanha, impõe uma estratégia e uma retóricaindiscutíveis. É inútil perguntar-se se, opon<strong>do</strong> <strong>de</strong>scrições positivas a negativas,os jesuítas foram favoráveis aos índios ou não, já que essas <strong>de</strong>scrições fazemparte, na verda<strong>de</strong>, <strong>de</strong> um dispositivo unifica<strong>do</strong>. O selvagem bestial é o índio encontra<strong>do</strong>quan<strong>do</strong> chegaram; o índio tranqüilo é aquele que os missionários fabricam.A pintura das socieda<strong>de</strong>s indígenas é freqüentemente um elemento queorganiza a representação <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo colonial pelos jesuítas. Ela permite o posicionamento<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os atores em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> uma forma vazia e <strong>de</strong> uma questão essencialque, tanto os missionários quanto as autorida<strong>de</strong>s laicas, colocaram-se continuamente:o lugar <strong>do</strong>s índios <strong>no</strong> dispositivo colonial.A dispersão <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>loNo século XVII, abrir-se-ão três gran<strong>de</strong>s frentes <strong>de</strong> evangelização nasquais os jesuítas serão leva<strong>do</strong>s a entrar em contato com populações semelhantesà terceira categoria da classificação <strong>de</strong> Acosta. No Maranhão, <strong>no</strong> <strong>no</strong>rte da Américaportuguesa, os portugueses tentam tomar o controle <strong>de</strong> uma região quelhes estava fechada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> há um século, a fim <strong>de</strong> fazer face às investidas coloniaisfrancesas e holan<strong>de</strong>sas. Após a vitória sobre os franceses da “França equi<strong>no</strong>cial”,em 1615, e sobre os holan<strong>de</strong>ses <strong>de</strong> Recife, em 1642, a coroa portuguesacompreen<strong>de</strong> que sua segurança <strong>de</strong>pendia <strong>de</strong> uma presença forte <strong>no</strong> <strong>no</strong>rte<strong>do</strong> país. Os jesuítas da Assistência portuguesa, e particularmente o mais célebre<strong>de</strong>ntre eles, Antônio Vieira, tornar-se-ão naturalmente as pontas <strong>de</strong> lança <strong>do</strong>império. No extremo sul, <strong>no</strong> Paraguai, os jesuítas ver-se-ão encarrega<strong>do</strong>s da mesmamissão, qual seja aprisionar as populações insubmissas nas fronteiras <strong>do</strong>simpérios espanhol e português, os guaranis. Conhecemos também a história dasfamosas reduções que se estruturarão como uma república autô<strong>no</strong>ma antes <strong>de</strong>serem <strong>de</strong>struídas pela força entre 1760 e 1770, após a interdição da or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>sjesuítas. No outro extremo das terras americanas, <strong>no</strong> Canadá, os jesuítas francesesserão confronta<strong>do</strong>s a indígenas comparáveis, ao substituírem os recoletos e aose engajarem ao la<strong>do</strong> da coroa francesa <strong>no</strong> Québec.Temos então missionários portugueses, italia<strong>no</strong>s, espanhóis, belgas e franceses,forma<strong>do</strong>s pelas mesmas fontes, que conhecem ao mesmo tempo Acos-


Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27 25ta e os empreendimentos <strong>de</strong> seus contemporâneos. Eles empregarão sem nenhumahesitação os mesmos méto<strong>do</strong>s nas terras <strong>de</strong> missão e produzirão textosque seguirão os mesmos mo<strong>de</strong>los estratégicos e retóricos.As situações são comparáveis na medida em que, <strong>no</strong>s três casos, os missionáriosencontram-se nas fronteiras <strong>de</strong> impérios coloniais, diante <strong>de</strong> “selvagens”.Eles <strong>de</strong>vem assegurar a passagem à civilização das tribos insubmissas,saben<strong>do</strong> que <strong>de</strong>vem, contu<strong>do</strong>, protege-las <strong>do</strong> contato, abrupto e <strong>de</strong>strutor, comas socieda<strong>de</strong>s coloniais. To<strong>do</strong>s os textos começam, assim, por pintar a selvageriae a bestialida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s índios; logo vêm as acusações contra os solda<strong>do</strong>sportugueses ou espanhóis, contra os franceses merca<strong>do</strong>res <strong>de</strong> peles ou contraos colo<strong>no</strong>s traficantes e escravagistas; paralelamente, vêm os exemplos edificantes<strong>de</strong> sucessos missionários, com suas legiões <strong>de</strong> converti<strong>do</strong>s e <strong>de</strong> arrependi<strong>do</strong>s.A socieda<strong>de</strong> indígena não aparece, nesses textos, a não ser em relaçãocom a socieda<strong>de</strong> européia, como a medida <strong>do</strong> sucesso jesuíta.Ao narrar a missão <strong>de</strong> Ibiapaba, Vieira começa por estigmatizar a barbárie<strong>do</strong>s índios <strong>no</strong>s seguintes termos:“(...) sain<strong>do</strong> da praia ao rolo <strong>do</strong> mar outros trinta índios, forçosos paraos tirarem às costas, assim ata<strong>do</strong>s consigo se meteram pelo mato <strong>de</strong>ntroe os mataram e cozinharam com gran<strong>de</strong> festa, e os comeram a to<strong>do</strong>s,não ven<strong>do</strong> os que ficaram na nau mais que o fumo <strong>do</strong>s companheiros,que não cheirava ao âmbar por que esperavam. Esta era a vida<strong>do</strong>s Tobajaras <strong>de</strong> Ibiapaba, estas as feras que se criavam e se escondiamnaquelas serras (...)” 22Na primeira relação <strong>do</strong> Canadá, <strong>de</strong> 1632, o padre Paul le Jeune acentua tambéma cruelda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s montanheses e <strong>do</strong>s iroqueses <strong>de</strong>screven<strong>do</strong> com <strong>de</strong>talhesos suplícios que os vence<strong>do</strong>res infligiam aos venci<strong>do</strong>s. Unhas arrancadas, queimadurasrepetidas, escalpos, mordidas, nervos arranca<strong>do</strong>s, tu<strong>do</strong> serve para alimentara visão <strong>de</strong> um selvagem <strong>de</strong> uma cruelda<strong>de</strong> incomensurável. No entanto,algumas linhas adiante <strong>de</strong>sse mesmo texto, o índio é assim evoca<strong>do</strong>:22Vieira, António, “Relação da missão da Serra <strong>de</strong> Ibiapaba”, in Obras escolhidas, prefácioe <strong>no</strong>tas <strong>de</strong> António Sérgio e Hernâni Cida<strong>de</strong>, vol. V, Obras várias (III) Em <strong>de</strong>feza<strong>do</strong>s índios, Lisboa, Livraria Sá da Costa editora, 1951, p. 79-80.


26Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27“Pleût à Dieu que ceux qui peuvent conférer quelque chose à une sisaincte entreprise vissent trois heures durant ce que <strong>no</strong>us voions tousles jours. Ils auroient à mon advis le cœur touché, fut-il <strong>de</strong> bronze. Ilest vray, les sauvages sont barbares ; mais quelle barbarie n’a point estéen Allemagne, en Espagne, en Angleterre, et mesme dans les Gaules,avant que la foy y fût receue ? Quelle manie dans l’Aegypte d’a<strong>do</strong>rer<strong>de</strong>s oig<strong>no</strong>ns, <strong>de</strong>s crocodils, etc. Et cependant, on y a veu par après tantd’âmes sainctes. Faut-il que tant <strong>de</strong> personnes racheptées du sang <strong>de</strong>Jésus-Christ meurent misérables, sans recoig<strong>no</strong>istre leur vray et légitimeSeigneur, et que ce sang a<strong>do</strong>rable ne leur puisse estre appliqué, fauted’un petit secours temporel ? Je pensois que les sauvages fussent à <strong>de</strong>mybrutes, mais ils ont un assés bon sens. Il ne leur manque que l’instruction.Le fond est fort bon ; il ne faut qu’i jetter une bonne semence.” 23Nessa passagem admirável, encontramos integralmente a articulação queNóbrega usara <strong>no</strong> seu Diálogo. O bom senso <strong>de</strong>ve ser compreendi<strong>do</strong> como a inteligência,e a instrução é um sinônimo <strong>de</strong> “polícia”. O “fun<strong>do</strong>” é o respeito à leinatural, que Le Jeune <strong>de</strong>senvolve na seqüência <strong>de</strong> sua relação, <strong>no</strong>tan<strong>do</strong> que “ai<strong>do</strong>latria e a poligamia” são <strong>de</strong>sconhecidas <strong>do</strong>s índios. Os selvagens tornam-seobjeto da pieda<strong>de</strong> porque seu aban<strong>do</strong><strong>no</strong> é sinal da sua virginda<strong>de</strong>. A exaltação <strong>do</strong>padre é um efeito da carida<strong>de</strong>, quer dizer, a melhor prova <strong>do</strong> sucesso da própriamissão. A única diferença é que, em Le Jeune, o movimento é resumi<strong>do</strong> em algumaspoucas linhas. As situações inicial e final não estão disjuntas <strong>no</strong> tempo porquetu<strong>do</strong> está prepara<strong>do</strong> para a realização imediata <strong>do</strong> programa jesuíta.Assim, em algumas décadas, a repetição <strong>de</strong> um discurso imutável acelera-sea ponto <strong>de</strong> se tornar uma evidência.A emergência <strong>do</strong> índioDes<strong>de</strong> a relação <strong>de</strong> 1634, Le Jeune modifica ligeiramente o dispositivoretórico que lhe permitia fazer entrar o indígena <strong>no</strong> projeto colonial. Na medidaem que a conquista encontra uma forma mais estável e que as missões se enraízammais profundamente, o índio cristianiza<strong>do</strong> que os primeiros textostentam forjar em <strong>de</strong>trimento <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fracassos e <strong>de</strong> sofrimentos,23 “Relation briesve, du milieu du bois” du P. Paul Le Jeune, Monumenta Novae Franciae,vol. 2, p. 289.


Jean-Clau<strong>de</strong> Laborie / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 09-27 27começa a existir efetivamente. Já não basta mais ao jesuíta apresentar-se comoum homem pronto para sofrer, pois esse sofrimento tornar-se-ia revela<strong>do</strong>r <strong>do</strong>fracasso da evangelização. Assim, logo emergirá a figura <strong>do</strong> missionário especialista<strong>do</strong>s índios, que transformará a <strong>de</strong>scrição em prova <strong>de</strong> saber e <strong>de</strong> conhecimentodireto. Convém <strong>no</strong>tar, contu<strong>do</strong>, que a <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong>s indígenas aparecesempre sob a forma da ane<strong>do</strong>ta que explicita a presença <strong>do</strong> observa<strong>do</strong>rjesuíta. A onipresença <strong>de</strong>sse olhar transforma o que po<strong>de</strong>ria ter si<strong>do</strong> um esforçoet<strong>no</strong>gráfico em cena vivida. A <strong>de</strong>scrição não po<strong>de</strong> mais aparecer senão comouma garantia da qualida<strong>de</strong> e da pertinência <strong>do</strong> observa<strong>do</strong>r. Vemos claramenteaqui o nascimento <strong>de</strong> um empreendimento editorial como o das Cartas edificantese curiosas da Nova França, que fornece ao público europeu a prova<strong>do</strong> savoir faire <strong>do</strong>s jesuítas.O caso <strong>do</strong> Paraguai é ligeiramente diferente, já que os jesuítas finalizarãoo mo<strong>de</strong>lo concebi<strong>do</strong> na América portuguesa. O sucesso <strong>de</strong>ve-se essencialmenteàs condições políticas locais, que permitem aos jesuítas afastarem as coroas eos colo<strong>no</strong>s das reduções, enquanto que em qualquer outra parte foi-lhes necessárioconfrontar-se com socieda<strong>de</strong>s coloniais, que interditavam a segregação<strong>do</strong>s índios. Mas esse sucesso apresenta-se da mesma maneira em to<strong>do</strong>s ostextos, à diferença <strong>de</strong> que nesse caso, o índio cristianiza<strong>do</strong>, submisso e ator<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômico, é mais real que alhures. Des<strong>de</strong> mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong>século XVII, a carta <strong>do</strong> Paraguai torna-se ela também edificante e curiosa.Po<strong>de</strong>mos concluir que as <strong>de</strong>scrições <strong>do</strong>s ameríndios <strong>no</strong>s textos jesuíticossão praticamente semelhantes durante um século, enquanto que as experiênciasdas quais eles se originam são diversas. Iroqueses, tupis e guaranis assemelham-sena medida em que servem <strong>de</strong> justificativa à ação missionária daquelesque os <strong>de</strong>screvem. De resto, o sucesso da conversão, tantas vezes prometida enarrada nas cartas, é em boa medida ilusória; será, na verda<strong>de</strong>, o <strong>de</strong>senvolvimentoviolento e preda<strong>do</strong>r das socieda<strong>de</strong>s coloniais, a provocar o extermínio <strong>do</strong>s índios,o responsável pelo <strong>de</strong>saparecimento efetivo <strong>do</strong> “bárbaro”.


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LA CESIÓN DE PATRONATO: UNA ESTRATEGIA FAMILIAR ENLA EMANCIPACIÓN DE ESCLAVOS EN CUBA. 1870-1880 *Aisnara Perera DíazMaria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño FuentesMiembros <strong>de</strong>l Seminario Permanente Hispa<strong>no</strong>-Cuba<strong>no</strong> <strong>de</strong> Familia, I<strong>de</strong>ntidadCultural y Cambio Social adjunto al Centro <strong>de</strong> Investigación y Desarrollo <strong>de</strong> laCultura Cubana “Juan Marinello”, Ciudad <strong>de</strong> La Habana, Cuba.ResumoO artigo é <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> ao estu<strong>do</strong> <strong>do</strong>s efeitos imediatos da Lei Moret, ou <strong>do</strong>Ventre Livre, sobre a vivência das famílias escravas cubanas. Com base emum tipo sui generis <strong>de</strong> escritura <strong>no</strong>tarial, as chamadas cessões <strong>de</strong> patronato(cesiones <strong>de</strong> patronato), as autoras estabelecem as relações entre as estratégiasfamiliares utilizadas a favor das crianças <strong>de</strong>claradas formalmentelivres e o conhecimento das práticas legais formais por parte <strong>do</strong>s escravos.Palavras-ChaveEscravidão • Família • Lei Moret ou <strong>do</strong> Ventre Livre • CubaAbstractThis article studies the immediate effects of the Moret Law, also k<strong>no</strong>wnas Free-Womb Law, on Cuban slave families. Exploring a unique type of<strong>no</strong>tarial record, the cesiones <strong>de</strong> patronato (transfer of authority overapprentices), the authors establish the relationship between familystrategies involving children who were <strong>de</strong>clared free and the slaves’familiarity with formal legal practices.KeywordsSlavery • Family • Moret Law • Cuba* Agra<strong>de</strong>cemos al profesor Robert W. Slenes <strong>de</strong> la Universidad Estatal <strong>de</strong> Campinas, Esta<strong>do</strong><strong>de</strong> São Paulo, <strong>Brasil</strong>, sus valiosos comentarios y sugerencias realiza<strong>do</strong>s durante el SeminarioInternacional "Hacer hablar el <strong>do</strong>cumento una práctica historiográfica en la historia<strong>de</strong> la esclavitud y la cultura <strong>de</strong> Cuba y <strong>Brasil</strong>" coordina<strong>do</strong> por la profesora Rebecca J.Scott y realiza<strong>do</strong> <strong>de</strong>l 5 al 27 <strong>de</strong> febrero <strong>de</strong>l 2005 en el Centro <strong>de</strong> Investigación y Desarrollo<strong>de</strong> la Cultura Cubana Juan Marinello La Habana, Cuba.


30Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55La historiografía cubana sobre la esclavitud producida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> la década <strong>de</strong>l80 <strong>de</strong>l siglo XX muestra cierta ausencia <strong>de</strong> matices cuan<strong>do</strong> examina el procesoabolicionista y <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> este la llamada Ley Moret o <strong>de</strong> Vientres Libres <strong>de</strong> 1870. 1Unánimemente se <strong>de</strong>scalifica a la misma por <strong>no</strong> eliminar <strong>de</strong> golpe el omi<strong>no</strong>sosistema a la vez que se le consi<strong>de</strong>ra una continuación encubierta <strong>de</strong> la esclavitud.Por otro la<strong>do</strong> al analizar críticamente su articula<strong>do</strong> se recurre a los reparosprovenientes <strong>de</strong> la Sociedad Abolicionista Española, 2 aunque acertadamentese pone en evi<strong>de</strong>ncia el alcance político <strong>de</strong> la legislación en tanto le restaba fuerzaa la iniciativa emancipa<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> la revolución in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntista iniciada el 10 <strong>de</strong>octubre <strong>de</strong> 1868 por Carlos Manuel <strong>de</strong> Céspe<strong>de</strong>s ofrecién<strong>do</strong>le, precisamente, lalibertad a sus esclavos e incorporán<strong>do</strong>los al movimiento. 3Es común leer en los textos cita<strong>do</strong>s que la ley <strong>no</strong> se cumplía pero, a<strong>de</strong>más<strong>de</strong>l énfasis en las falsificaciones <strong>de</strong> las eda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> los adultos <strong>de</strong> más <strong>de</strong> 60años o cerca<strong>no</strong>s a ella, <strong>no</strong> se revela qué otros aspectos <strong>de</strong> la misma fueronviola<strong>do</strong>s, mientras que para apoyar la i<strong>de</strong>a <strong>de</strong> su alcance limita<strong>do</strong> se insistesólo en las ventajas que la ley le concedía a los dueños, como por ejemplo1Nos referimos sobre to<strong>do</strong> a un grupo <strong>de</strong> textos publica<strong>do</strong>s a raíz <strong>de</strong>l centenario <strong>de</strong> laabolición <strong>de</strong> la esclavitud como una colección <strong>de</strong> artículos <strong>de</strong> varios investiga<strong>do</strong>res edita<strong>do</strong>bajo el titulo <strong>de</strong> La esclavitud en Cuba. La Habana: Editorial Aca<strong>de</strong>mia, 1986. Burguesíaesclavista y abolición. La Habana: Editorial <strong>de</strong> Ciencias Sociales, 1987, <strong>de</strong> María <strong>de</strong>lCarmen Barcia Zequeira, y la compilación <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos brevemente comenta<strong>do</strong>s porTorres Cuevas, Eduar<strong>do</strong> y Eusebio Reyes. Esclavitud y sociedad. Notas y <strong>do</strong>cumentos parala historia <strong>de</strong> la esclavitud negra en Cuba. La Habana: Editorial <strong>de</strong> Ciencias Sociales, 1986.2Sólo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Madrid era posible que se lanzaran generalizaciones como estas "los esclavosmayoritariamente <strong>no</strong> tienen partidas <strong>de</strong> bautismo y era fácil sustituir las verda<strong>de</strong>ras por otrasfalsas", este era el to<strong>no</strong> <strong>de</strong> las <strong>de</strong>nuncias aparecidas en la prensa abolicionistas madrileñarecogidas por Barcia. Ob. Cit. P 143, el calor <strong>de</strong> un <strong>de</strong>bate <strong>de</strong> ín<strong>do</strong>le político es propicio paraque se hagan afirmaciones alarmantes y generaliza<strong>do</strong>ras, pues se trata <strong>de</strong> acusar al "otro", <strong>de</strong><strong>de</strong>nunciarlo en su mala fe; está comproba<strong>do</strong> que muchos esclavos lograron su libertad precisamenteporque guardaban sus partidas bautismales, que si bien el frau<strong>de</strong> era moneda corriente<strong>no</strong> era tan sencillo "sustituir" partidas verda<strong>de</strong>ras por falsas.3De hecho el in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntismo cuba<strong>no</strong> alza<strong>do</strong> en armas <strong>de</strong>s<strong>de</strong> finales <strong>de</strong> 1868 <strong>no</strong> eliminóradicalmente la esclavitud en los campos <strong>de</strong> Cuba libre hasta diciembre <strong>de</strong> 1870 y sólocomo respuesta a la Ley Moret "maniobra <strong>de</strong> la clase <strong>do</strong>minante en Cuba y <strong>de</strong>l po<strong>de</strong>rcolonial para encubrir la esclavitud en la Isla y restarle influencia y atracción almovimiento revolucionario" Torres Cuevas, Eduar<strong>do</strong> y Eusebio Reyes. Ob. Cit. P 241.Para una valoración <strong>de</strong> las i<strong>de</strong>as en tor<strong>no</strong> a la esclavitud, abolición y relaciones racialesen las filas <strong>de</strong>l movimiento revolucionario e in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntista cuba<strong>no</strong> ver Ferrer, Ada."Esclavitud, ciudadanía y los límites <strong>de</strong> la nacionalidad cubana: la guerra <strong>de</strong> los diezaños, 1868-1878", Historia Social, Valencia, 22, 1995, pp. 101-125.


Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55 31aprovecharse <strong>de</strong>l trabajo <strong>de</strong> los libertos hasta que cumplieran los 22 años ypagarle medio jornal hasta los 18. 4 En este pa<strong>no</strong>rama <strong>de</strong> criterios unánimes,que <strong>de</strong> cierta forma iban conforman<strong>do</strong> una visión que le negaba mérito algu<strong>no</strong>a la Ley Moret, irrumpieron los juicios sosteni<strong>do</strong>s por Rebecca J. Scott en sutesis <strong>de</strong> <strong>do</strong>ctora<strong>do</strong> publicada en 1985. 5Quizás el trabajo <strong>de</strong> la Scott ha si<strong>do</strong> más valora<strong>do</strong> por parte <strong>de</strong> los historia<strong>do</strong>reseconómicos y políticos ya que introducía una nueva tesis en el <strong>de</strong>batesobre las causas <strong>de</strong> la abolición en Cuba. 6 En tal senti<strong>do</strong> los historia<strong>do</strong>ressociales al parecer <strong>no</strong> reparan en las múltiples sugerencias que la autora realizaal señalar, en apoyo <strong>de</strong> su hipótesis, la dinámica capacidad movilizativa <strong>de</strong>los esclavos a partir <strong>de</strong> los mecanismos legales existentes. 7 Al respecto apreciaque la ley Moret había introduci<strong>do</strong> cambios institucionales y <strong>de</strong> actitu<strong>de</strong>s queperturbaron el or<strong>de</strong>n social <strong>de</strong> la esclavitud, 8 sin <strong>de</strong>jar <strong>de</strong> reco<strong>no</strong>cer que “durantela mayor parte <strong>de</strong> su vigencia (…) redujo el número total <strong>de</strong> esclavos,pero liberó relativamente pocos esclavos en edad <strong>de</strong> trabajar”. 9 En resumensi bien la Ley Moret <strong>no</strong> tuvo como centro el fin inmediato <strong>de</strong> la esclavitudsi<strong>no</strong> la creación <strong>de</strong> un sistema – el patronato – que permitiera a los dueños <strong>de</strong>esclavos adaptarse a los cambios y asegurar el control <strong>de</strong> la ma<strong>no</strong> <strong>de</strong> obra y lareorganización <strong>de</strong>l trabajo, influyó a la larga en el <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> <strong>de</strong> miles <strong>de</strong> personas.4Artículo 7 párrafo segun<strong>do</strong>. Torres Cuevas, Eduar<strong>do</strong> y Eusebio Reyes. Ob. Cit. p. 227.5Scott, Rebecca J. Slave Eamncipations in Cuba. The Transition to Free Labor, 1860-199. Princeton: Princeton University Press, 1985. Advertimos que para el presente artículoconsultaremos y citaremos la edición cubana <strong>de</strong>l 2001.6Según el profesor José Antonio Piqueras Slave Eamncipations in Cuba. The Transitionto Free Labor, 1860-199, es "la obra más re<strong>no</strong>va<strong>do</strong>ra aparecida hasta entonces sobre lasociedad esclavista cubana <strong>de</strong>s<strong>de</strong> la publicación <strong>de</strong> El ingenio. La autora opuso unaexplicación a la <strong>de</strong>sintegración <strong>de</strong> la esclavitud distinta <strong>de</strong> la contradicción interna <strong>de</strong>lsistema esclavista en general y <strong>de</strong> la oposición entre tec<strong>no</strong>logía avanzada y fuerza <strong>de</strong>trabajo esclava en particular. Scott rechazó una interpretación que entendió <strong>de</strong>terministay negó la inadaptación <strong>de</strong>l esclavo a los avances técnico-económicos (…)" Ver José A.Piqueras. "El final <strong>de</strong> la esclavitud en el Caribe". En: José A. Piqueras (comp.) Azúcar yesclavitud en el final <strong>de</strong>l trabajo forza<strong>do</strong>. Homenaje a M. More<strong>no</strong> Fraginals. Madrid:Fon<strong>do</strong> <strong>de</strong> Cultura Económica, 2002. p 23-25.7Scott, Rebecca J. La emancipación <strong>de</strong> los esclavos en Cuba. La transición al trabajo libre1860-1899. La Habana: Editorial Cami<strong>no</strong>s, 2001. La autora analiza sobre to<strong>do</strong> las reclamacionespresentadas a las Juntas Provinciales <strong>de</strong> Patronato a partir <strong>de</strong> 1880, pp 189-220.8Ibí<strong>de</strong>m. p. 100.9 Ibí<strong>de</strong>m. p. 104.


32Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55Al iniciar nuestras indagaciones sobre la familia esclava en Cuba <strong>no</strong> sospechábamosla importancia que dicha ley tendría para algunas <strong>de</strong> las personasque se convertían poco a poco en el centro <strong>de</strong> nuestros estudios. La meto<strong>do</strong>logíaque proponemos para reconstruir familias <strong>de</strong> negros y mulatos, libres y esclavosen la feligresía <strong>de</strong> Bejucal parte <strong>de</strong> los registros parroquiales, series <strong>de</strong> bautismos,matrimonios y <strong>de</strong>funciones y se complementa con otras fuentes <strong>do</strong>cumentalesy orales. 10 Fue precisamente en este cruzamiento <strong>de</strong> fuentes <strong>do</strong>n<strong>de</strong>acudimos a los archivos <strong>de</strong> las escribanías <strong>de</strong> la ciudad, encontran<strong>do</strong> allí, enmedio <strong>de</strong> cartas <strong>de</strong> libertad, compra-ventas <strong>de</strong> esclavos y testamentos, las cesiones<strong>de</strong> patronato, un tipo <strong>de</strong> escritura que ponía en evi<strong>de</strong>ncia los cambios quela Ley <strong>de</strong> Vientres Libres introducía en las relaciones entre amos y esclavos ypor extensión en la historia familiar <strong>de</strong> los implica<strong>do</strong>s en estas cesiones, loque <strong>no</strong>s permitió encontrarles un justo senti<strong>do</strong> a las mismas. Sin dicho contextoserían sólo <strong>do</strong>cumentos aisla<strong>do</strong>s sin más explicación que la presupuesta habilida<strong>do</strong> capacidad <strong>de</strong> resistencia <strong>de</strong>l “esclavo” o la exclamación asombrada<strong>de</strong>l “qué interesante” ante el sorpresivo “hallazgo”. 11Así entre 1871 – fecha <strong>de</strong> la primera cesión otorgada en la escribanía <strong>de</strong>Barona – y 1880 –año en que comenzó a regir en la Isla la Ley <strong>de</strong> Abolición<strong>de</strong> la esclavitud crean<strong>do</strong> el sistema <strong>de</strong> Patronato – , 12 se pone en circulación10 Perera Díaz, Aisnara y María <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes. Esclavitud, Familia yParroquia en Cuba. Otra mirada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> la microhistoria. Artículo merece<strong>do</strong>r <strong>de</strong>l PremioIberoamerica<strong>no</strong> <strong>de</strong> Ciencias Sociales <strong>de</strong> la Universidad Nacional Autó<strong>no</strong>ma <strong>de</strong> México ensu tercera convocatoria (2005), <strong>de</strong> próxima aparición en la Revista Mexicana <strong>de</strong> Sociología<strong>de</strong> la UNAM. También Una meto<strong>do</strong>logía – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> los registros parroquiales – para lareconstrucción <strong>de</strong> la familia negra en la Cuba colonial. En Boletim <strong>de</strong> História Demográfica,São Paulo, Año XI, <strong>no</strong> 33, setembro <strong>de</strong> 2004, http://www.brnue<strong>de</strong>.com/boletinsenha.htm.11 Vale <strong>de</strong>cir que en otras localida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> la isla se generó también este tipo <strong>de</strong> escritura<strong>no</strong>tarial. Cesiones <strong>de</strong> patronato encontramos en la provincia <strong>de</strong> La Habana involucran<strong>do</strong>familias <strong>de</strong> las feligresías <strong>de</strong>l Santo Cristo <strong>de</strong> La Salud y San Pedro <strong>de</strong>l Quivicán, estaúltima con eco<strong>no</strong>mía cafetalera y por en<strong>de</strong> mayor población esclava que Bejucal. EnCienfuegos, una ciudad ubicada en la costa sur <strong>de</strong>l país y centro <strong>de</strong> una rica regiónplantacionista azucarera Michael Zeuske y Orlan<strong>do</strong> García reportan también dicho <strong>do</strong>cumento,pero <strong>no</strong> realizan un análisis <strong>de</strong> la misma, claro el objetivo que se proponen ensu trabajo difiere en mucho <strong>de</strong>l nuestro, más a<strong>de</strong>lante retomaremos esta referencia.12El texto <strong>de</strong> dicha ley se pue<strong>de</strong> consultar en Pichar<strong>do</strong> Hortensia. Documentos para lahistoria <strong>de</strong> Cuba. La Habana: Editorial <strong>de</strong> Ciencias Sociales, 1973, t. I. pp 420-421. Paraalgu<strong>no</strong>s análisis <strong>de</strong> dicha ley y sus efectos políticos y económicos remitimos a Scott.Ob. Cit, pp. Blackburn, Robin. "La esclavitud, los propietarios extranjeros <strong>de</strong> bo<strong>no</strong>s <strong>de</strong>ltesoro y el <strong>de</strong>rrocamiento <strong>de</strong> la primera República española". En: José A. Piqueras (comp.)Azúcar y esclavitud en el final <strong>de</strong>l trabajo forza<strong>do</strong>. Homenaje a M. More<strong>no</strong> Fraginals.Madrid: Fon<strong>do</strong> <strong>de</strong> Cultura Económica, 2002. pp. 356-363.


Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55 33este tipo <strong>de</strong> escrituras que si bien comenzaron tenien<strong>do</strong> en cuenta sólo a losllama<strong>do</strong>s “párvulos libertos según lo dispuesto por el gobier<strong>no</strong>” 13 terminaronpor incluir a to<strong>do</strong>s los antiguos esclavos, ahora llama<strong>do</strong>s patrocina<strong>do</strong>s.Breve caracterización <strong>de</strong> un espacio: la ciudadSan Felipe y Santiago <strong>de</strong>l Bejucal fue u<strong>no</strong> <strong>de</strong> los asentamientos 14 que elObispo Gerónimo <strong>de</strong> Nostis y <strong>de</strong> Valdés alentó como continua<strong>do</strong>r <strong>de</strong> la estrategiainiciada por su antecesor Diego Eveli<strong>no</strong> <strong>de</strong> Compostela dirigida a establecerlos llama<strong>do</strong>s curatos <strong>de</strong> montes y por medio <strong>de</strong> estos estimular el poblamientointer<strong>no</strong> <strong>de</strong> la isla <strong>de</strong> Cuba. Se trataba así <strong>de</strong> fortalecer el papel <strong>de</strong> laiglesia en la sociedad criolla, institución que controlaba la recaudación y administración<strong>de</strong> las rentas <strong>de</strong>cimales con que estaban gravadas la inmensa parte<strong>de</strong> las explotaciones agrícolas.El 9 <strong>de</strong> mayo <strong>de</strong> 1714, con treinta familias en su mayoría <strong>de</strong> origen canario,se fundaba la ciudad. La Real Cédula <strong>de</strong> erección mencionaba que en el corral<strong>de</strong>l Bejucal, distante siete leguas <strong>de</strong> La Habana, habían “muchos números <strong>de</strong>familias, que vivían sin la educación y enseñanza <strong>de</strong> la <strong>do</strong>ctrina cristiana, porfaltarles el trato y comercio político, pues aunque había un cura que cuida<strong>do</strong>sosolicitaba el bien espiritual <strong>de</strong> aquellas almas, <strong>no</strong> lo podía conseguir por estarmuy distantes u<strong>no</strong>s <strong>de</strong> otros”. 15La estratégica situación geográfica - en la parte más estrecha <strong>de</strong>l <strong>Departamento</strong>Occi<strong>de</strong>ntal <strong>de</strong> la isla - le valió a la pequeña ciudad el que fuera reco<strong>no</strong>cidacomo centro <strong>de</strong> una jurisdicción, limitan<strong>do</strong> por el <strong>no</strong>rte con las <strong>de</strong> Santiago <strong>de</strong> lasVegas y Santa María <strong>de</strong>l Rosario, por el este con la <strong>de</strong> Güines, por el sur con elmar Caribe y por el oeste con la jurisdicción <strong>de</strong> San Antonio Abad o <strong>de</strong> los Baños. 1613Una <strong>de</strong> las varias expresiones con que se justificaba en las partidas <strong>de</strong> bautismo lacondición <strong>de</strong> libres <strong>de</strong> los niños <strong>de</strong> madres esclavas naci<strong>do</strong>s bajo la Ley Moret.14Otras poblaciones fundadas por esa época fueron Santa María <strong>de</strong>l Rosario y Santiago<strong>de</strong> las Vegas.15Esta queja fue transmitida al rey Felipe V por el Obispo Gerónimo Valdés. Acosta,Manuel Maria<strong>no</strong>. Memoria sobre la ciudad <strong>de</strong> San Felipe y Santiago <strong>de</strong>l Bejucal. [Bejucal]JUCEI, SF. p. 6.16Lunar Jiménez, Dania. El <strong>de</strong>sarrollo urba<strong>no</strong> en Bejucal en los Siglos <strong>XVIII</strong> y <strong>XIX</strong>(mo<strong>no</strong>grafía inédita citada con autorización <strong>de</strong> la autora).


34Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55La fundación <strong>de</strong> la ciudad ha si<strong>do</strong> vista como expresión <strong>de</strong>l interés <strong>de</strong> laiglesia por controlar a un consi<strong>de</strong>rable grupo <strong>de</strong> cultiva<strong>do</strong>res <strong>de</strong> tabaco, losfamosos vegueros, que se iban arraigan<strong>do</strong> como gente in<strong>de</strong>pendiente y teníanen sus ma<strong>no</strong>s la más importante materia prima <strong>de</strong> la época. Bejucal se proyectabapues como un centro <strong>de</strong> influencia gubernamental sobre esta población,hasta el momento dispersa y sin muchos vínculos con el po<strong>de</strong>r que residía enLa Habana. El capitán Juan Francisco Núñez <strong>de</strong> Castilla, propietario <strong>de</strong> lastierras que sirvieron <strong>de</strong> asiento para la fundación y dueño a su vez <strong>de</strong> los moli<strong>no</strong>s<strong>de</strong> rapé estaba muy interesa<strong>do</strong> en ejercer el control sobre estos cultiva<strong>do</strong>res,17 <strong>de</strong> ahí su fructífera alianza con las autorida<strong>de</strong>s religiosas que mediaronpara lograr la real aprobación.Pero los funda<strong>do</strong>res <strong>no</strong> contaban con el fomento <strong>de</strong>l ramo en la región <strong>de</strong>Vuelta Abajo y la comprobada superior calidad <strong>de</strong> la hoja que allí se cosechaba,a<strong>de</strong>más <strong>de</strong> que “el verdín para fabricar polvo o rapé <strong>de</strong>caía visiblemente <strong>de</strong>bi<strong>do</strong>a la preferencia <strong>de</strong> los consumi<strong>do</strong>res que ya comenzaban a aficionarse al puroy al cigarrillo.” 18 por lo que para 1780 había conclui<strong>do</strong> el ciclo tabacalero enla jurisdicción. La tierra explotada por años sólo rendía para el cultivo <strong>de</strong> forrajes,<strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que la gana<strong>de</strong>ría pasó a ocupar un lugar importante en la eco<strong>no</strong>míalocal. Según Maria<strong>no</strong> Acosta la cría <strong>de</strong> reses fue estimulada por “haberseintroduci<strong>do</strong> en las mesas el lujo general <strong>de</strong> la carnes cebadas [que] hicieroncambiar el plan agrícola <strong>de</strong> los primeros pobla<strong>do</strong>res”. 1917Según Merce<strong>de</strong>s García el primer Marques <strong>de</strong> San Felipe y Santiago <strong>de</strong>l Bejucal poseíaa<strong>de</strong>más <strong>de</strong> los <strong>do</strong>s ingenios <strong>de</strong> azúcar, varias caballerías <strong>de</strong> tierras arrendadas a un grupo<strong>de</strong> vegueros, <strong>de</strong> los que cobraba contribución y recibía cantida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> tabaco en rama porellos cosecha<strong>do</strong>s, fue un típico hombre <strong>de</strong> negocios con inversiones múltiples y "estambién ejemplo <strong>de</strong> los hacenda<strong>do</strong>s azucareros que pagaron sus negros al Asiento ingléscon tabaco verdín <strong>de</strong> calidad superior". García Rodríguez, Merce<strong>de</strong>s. La aventura <strong>de</strong> fundaringenios. La refacción azucarera en La Habana <strong>de</strong>l siglo <strong>XVIII</strong>. La Habana: Editorial<strong>de</strong> Ciencias Sociales, 2004, p. 31.18 Le Riveren<strong>de</strong> Brusone, Julio J. La Habana. (Biografía <strong>de</strong> una provincia). La Habana:Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> la Historia <strong>de</strong> Cuba, Imprenta Siglo XX, 1960. P 236.19 Acosta. Ob. Cit. p. 26.


Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55 35Por otra parte, aunque en tierras <strong>de</strong> la jurisdicción se establecieron a media<strong>do</strong>s<strong>de</strong>l siglo <strong>XVIII</strong> algu<strong>no</strong>s ingenios como el Poveda, 20 y el Agua Santa, esteúltimo <strong>de</strong> Antonia Pérez <strong>de</strong> Abreu, esposa <strong>de</strong> Carlos <strong>de</strong>l Castillo y Sucre, nieto<strong>de</strong>l funda<strong>do</strong>r <strong>de</strong> la ciudad; o el Jesús María, propiedad <strong>de</strong>l segun<strong>do</strong> Marques<strong>de</strong> Cár<strong>de</strong>nas <strong>de</strong> Monte Hermoso, <strong>no</strong> fue el azúcar renglón <strong>de</strong> importancia enla eco<strong>no</strong>mía local. Tal es así que, a pesar <strong>de</strong> la cercanía <strong>de</strong>l puerto habanero,estos ingenios <strong>no</strong> transitaron con éxito hacia el llama<strong>do</strong> boom azucarero <strong>de</strong>fines <strong>de</strong> aquel siglo. Falta <strong>de</strong> leña, tierras cansadas y pocos capitales para introducirlas mejoras tec<strong>no</strong>lógicas que <strong>de</strong>mandaba la producción a gran escala,fueron las causas <strong>de</strong> este fracaso.Así al contrario <strong>de</strong> lo que sucedió con la región <strong>de</strong> Güines, Bejucal se mantuvocomo un oasis <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> la expansión azucarera que se produjo por lallanura Habana-Matanzas. 21 Por lo cual, <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> inaugura<strong>do</strong> en 1837 el primertramo <strong>de</strong> ferrocarril Habana-Bejucal, que colocó a Cuba en la vanguardia<strong>de</strong>l empleo <strong>de</strong> este tipo <strong>de</strong> transporte, se hizo evi<strong>de</strong>nte que las recaudaciones<strong>no</strong> amortiguaban los gastos <strong>de</strong> la empresa porque:“(...) El territorio por <strong>do</strong>n<strong>de</strong> pasaban las primeras 16 millas <strong>de</strong>l cami<strong>no</strong><strong>de</strong> hierro era relativamente poco productivo; únicamente las regionessituadas más al sur <strong>de</strong> Bejucal podrían suministrar al ferrocarril unvolumen <strong>de</strong> carga realmente satisfactorio (...)”. 22De esta manera la eco<strong>no</strong>mía local terminó íntimamente relacionada con elmerca<strong>do</strong> inter<strong>no</strong> <strong>de</strong> la vecina ciudad <strong>de</strong> La Habana. Allí se consumían los vegetalesy viandas que eran cultiva<strong>do</strong>s en los sitios que antes habían si<strong>do</strong> próspe-20Este ingenio le fue <strong>do</strong>na<strong>do</strong> a la Compañía <strong>de</strong> Jesús en 1720 a raíz <strong>de</strong> su establecimientoen la Isla. En 1767 al ser expulsa<strong>do</strong>s los jesuitas pasa a ser administra<strong>do</strong> por la Junta <strong>de</strong>Temporalida<strong>de</strong>s hasta abril <strong>de</strong> 1770 cuan<strong>do</strong> fue remata<strong>do</strong> por la suma <strong>de</strong> 85 011 pesos alteniente coronel Ventura Doral. Sebastián Ignacio <strong>de</strong> Peñalver, regi<strong>do</strong>r <strong>de</strong>l cabil<strong>do</strong>habanero entra en posesión <strong>de</strong>l ingenio a fines <strong>de</strong>l siglo <strong>XVIII</strong>. García RodríguezMerce<strong>de</strong>s. Misticismos y capitales. La Compañía <strong>de</strong> Jesús en la eco<strong>no</strong>mía habanera <strong>de</strong>lsiglo <strong>XVIII</strong>. La Habana: Editorial <strong>de</strong> Ciencias Sociales, 2000.21 Para un análisis <strong>de</strong> este proceso ver More<strong>no</strong> Fraginals, Manuel. El Ingenio. 3 t. LaHabana: Editorial <strong>de</strong> Ciencias Sociales, 1978.22 Zanetti Lecuona, Oscar y Alejandro García Álvarez. Cami<strong>no</strong>s para el azúcar, La Habana:Editorial <strong>de</strong> Ciencias Sociales, 1987, p. 38.


36Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55ras vegas <strong>de</strong> tabaco. Aves, cer<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Oayti, pavos, carneros se <strong>de</strong>stinaban a losmerca<strong>do</strong>s y carnicerías <strong>de</strong> la capital <strong>de</strong> la isla. La posesión <strong>de</strong> esclavos fue unavez más el medi<strong>do</strong>r <strong>de</strong> la bonanza que alcanzaron los sitieros bejucaleños “...esraro el sitio <strong>do</strong>n<strong>de</strong> <strong>no</strong> haya negra esclava por lo me<strong>no</strong>s y algu<strong>no</strong>s negritos”. 23La escribanía <strong>de</strong> los Barona y el registro <strong>de</strong> la voz esclavaSituada a medio cami<strong>no</strong> entre los puertos <strong>de</strong> La Habana en la costa <strong>no</strong>rtey el <strong>de</strong> Batabanó en la costa sur, Bejucal era un importante punto en la rutaque unía la e<strong>no</strong>rme provincia habanera, gracias a lo cual en ella funcionabanvarios tribunales, primero en las personas <strong>de</strong> los tenientes goberna<strong>do</strong>res y <strong>de</strong>los alcal<strong>de</strong>s mayores, luego en el juzga<strong>do</strong> <strong>de</strong> primera instancia. A dichas justicias<strong>de</strong>bían acudir los habitantes <strong>de</strong> la jurisdicción <strong>de</strong> Santiago <strong>de</strong> las Vegas,y <strong>de</strong> los parti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Bauta, Batabanó, el Ca<strong>no</strong>, Wajay, Guatao, Quivicán, SantoCristo <strong>de</strong> la Salud, San Antonio <strong>de</strong> las Vegas e Isla <strong>de</strong> Pi<strong>no</strong>s. 24La primera escribanía pública <strong>de</strong> cabil<strong>do</strong> y guerra se estableció en 1803, 25pero ya <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1776 existía una administrada por Carlos Ximenez. Con eltiempo llegaron a tres las oficinas <strong>de</strong> este tipo, lo cual proporciona una medida<strong>de</strong> la actividad judicial y <strong>de</strong> la multitud <strong>de</strong> negocios que se concertaban en laciudad. De ello son testimonios los cientos <strong>de</strong> pliegos encua<strong>de</strong>rna<strong>do</strong>s en gruesostomos a los que más <strong>de</strong> una vez se ha acerca<strong>do</strong> el historia<strong>do</strong>r social y económico<strong>de</strong> la esclavitud, pero <strong>no</strong> son justamente las compra-ventas <strong>de</strong> esclavoso <strong>de</strong> propieda<strong>de</strong>s rurales, las cartas <strong>de</strong> libertad o las hipotecas, los <strong>do</strong>cumentosque una vez más promueven el análisis, si<strong>no</strong> otros que tras la fórmula <strong>no</strong>tarialdan fe <strong>de</strong>l interés que por la familia tenían los esclavos cuba<strong>no</strong>s.A pesar <strong>de</strong> que el siervo <strong>no</strong> tenía capacidad contractual hay circunstancias enque es posible encontrarlo como usuario <strong>de</strong> una escribanía. 26 En estos casos es23Acosta. Ob. Cit. p. 26 .24De La Pezuela, Jacobo. Diccionario <strong>de</strong> la Isla <strong>de</strong> Cuba. Tomo I. Madrid, 1866. p. 158.25Acosta. Ob. Cit. p. 17.26Ya en los protocolos <strong>de</strong> la ciudad <strong>de</strong> La Habana a fines <strong>de</strong>l siglo XVI hallamosreferencias a esclavos como "contratantes", es <strong>de</strong>cir como usuarios <strong>de</strong> las escribanías yparte activa <strong>de</strong> la dinámica económica <strong>de</strong> la ciudad, ver De Rojas María Teresa. Índice yextractos <strong>de</strong>l Archivo <strong>de</strong> Protocolos <strong>de</strong> la Habana, 1578-1585. 3 vols, La Habana: ImprentaUcar, García y Cía. MCMXCVII. Una muestra <strong>de</strong> la actividad <strong>de</strong> los esclavos en negocioscotidia<strong>no</strong>s es una carta or<strong>de</strong>n fechada en 1768 y dirigida por el Goberna<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Santiago<strong>de</strong> Cuba al Cabo Comandante <strong>de</strong>l pobla<strong>do</strong> minero El Cobre para que hiciese saber a los


Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55 37indudable que existían acuer<strong>do</strong>s entre amos y esclavos, los cuales entraban en juegocuan<strong>do</strong> los primeros <strong>de</strong>cidían otorgar licencia o simplemente acompañar a su siervoa la oficina para investir, en su presencia, con “<strong>de</strong>rechos civiles” a quien se encontrabaen el escalón más bajo <strong>de</strong> la pirámi<strong>de</strong> social. Los actos realiza<strong>do</strong>s <strong>de</strong>esta suerte han queda<strong>do</strong> como preciosos argumentos a favor <strong>de</strong>l papel activo quetenía el esclavo en los marcos <strong>de</strong> las socieda<strong>de</strong>s coloniales hispanas.Las evi<strong>de</strong>ncias halladas en los protocolos <strong>de</strong> la Escribanía y Notaría <strong>de</strong>Justo Barona Díaz <strong>de</strong> Vivar y luego <strong>de</strong> su hijo Gaspar Barona Acosta con se<strong>de</strong>en la pequeña ciudad <strong>de</strong> Bejucal, 27 <strong>no</strong> tratan <strong>de</strong>l uso directo <strong>de</strong> las leyes, ni <strong>de</strong>reclamaciones <strong>de</strong> <strong>de</strong>rechos, reales o supuestos, pero si tenemos en cuenta queuna escritura <strong>no</strong>tarial es un <strong>do</strong>cumento pre-jurídico, un “constante y vivo trámiteentre la ley y la realidad”, 28 en suma que ella “lleva implícito su valorprobatorio, por el hecho <strong>de</strong> que el <strong>no</strong>tario, posee<strong>do</strong>r <strong>de</strong> la fe pública <strong>de</strong>l Esta<strong>do</strong>,es quien lo certifica; [que a su vez] está ro<strong>de</strong>ada <strong>de</strong> solemnida<strong>de</strong>s o formalida<strong>de</strong>sy representa por lo mismo seguridad jurídica”, 29 <strong>no</strong>s encontramos conpersonas que co<strong>no</strong>cían el valor único <strong>de</strong> los actos que inscribían frente a testigosy a un funcionario que daba fe <strong>de</strong> sus palabras, pero sobre to<strong>do</strong> con sujetos<strong>de</strong> <strong>de</strong>recho 30 e individuos a los cuales se les re-co<strong>no</strong>cía.habitantes <strong>de</strong> dicho pueblo, mediante ban<strong>do</strong>, que se prohibía a los esclavos <strong>de</strong> Su Majestadhacer o tener contratos y negocios con personas libres "vaxo <strong>de</strong> la pena que será nulo elq’ otorgaren y el que diere algún dinero lo pierda y se castigara los esclavos con el <strong>de</strong>stierroal Castillo <strong>de</strong>l Morro por tanto cuatro años". Archivo Nacional <strong>de</strong> Cuba en lo a<strong>de</strong>lante(ANC). Correspon<strong>de</strong>ncia <strong>de</strong> los Capitanes Generales. Leg. 23, n. 27.27Sobre esta familia ver Perera Díaz Aisnara y María <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes."Yo, el Notario: breve reflexión microhistórica sobre el po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> la escritura, en Boletim<strong>de</strong> História Demográfica, Año XI, <strong>no</strong> 33, setembro <strong>de</strong> 20004, http://www.brnue<strong>de</strong>.com/boletinsenha.htm. También Perera Díaz, Aisnara. Juan J. Barona.Crónica <strong>de</strong> su propio viaje. San Antonio <strong>de</strong> los Baños: Editorial Unicornio, 2003.28Canellas López, A. "El <strong>no</strong>taria<strong>do</strong> en España hasta el siglo XIV: Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> la cuestión",en Notaria<strong>do</strong> público y <strong>do</strong>cumento priva<strong>do</strong>: <strong>de</strong> los orígenes al siglo XIV. Actas <strong>de</strong>l VIICongreso Internacional <strong>de</strong> Diplomática, I, Valencia: Generalitat Valenciana, Consellería<strong>de</strong> Cultura, Educació y Ciència, Diputacions d’Alacant, Castelló i Valencia, 1989, p. 101.29"Palabra <strong>de</strong>l Notario": Boletín <strong>de</strong> la Asociación <strong>de</strong> Notarios y Conserva<strong>do</strong>res <strong>de</strong> Chile.Santiago <strong>de</strong> Chile, 2003, ttp://wwwhistoriaeciencia.weblog.com.pt/arquivo/2003_09.html.30 Sobre la llamada personalidad legal y moral <strong>de</strong> los esclavos en las colonias españolasver la interesante discusión y nueva propuesta que realiza Alejandro <strong>de</strong> la Fuente alrespecto <strong>de</strong> los planteamientos conteni<strong>do</strong>s en la obra <strong>de</strong> Frank Tannenbaum Slave andCitizen., De La Fuente se adscribe al concepto, más preciso y objetivo, "<strong>de</strong> reclamación<strong>de</strong> <strong>de</strong>rechos para acortar la distancia que media entre la ley como <strong>de</strong>claración abstracta<strong>de</strong> <strong>de</strong>rechos y los esclavos como actores sociales con sus propias estrategias y objetivos.


38Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55En la mayoría <strong>de</strong> estos testimonios <strong>de</strong>scubrimos algo poco frecuente: lasubjetividad actuante <strong>de</strong> esclavos y libres. En ellos están los individuos, comoel more<strong>no</strong> Cirilo quien a pesar“<strong>de</strong> hallarse ciego e imposibilita<strong>do</strong> <strong>de</strong> trabajar (…) reclama incesantementesu libertad aunque <strong>de</strong> hecho disfruta <strong>de</strong> ella, pues alega (…) el cumplimiento<strong>de</strong> dicha promesa para visitar cuan<strong>do</strong> le plazca a sus parientes yamigos y hacer lo <strong>de</strong>más que puedan las personas libres…” 31Cirilo ha habla<strong>do</strong> a través <strong>de</strong> su último dueño, Don Manuel Oramas, quien<strong>no</strong> tuvo otra opción que cumplir con la voluntad <strong>de</strong> su difunta esposa DoñaEvarista Cabrera. Para aquel, por su avanzada edad, la libertad tenía un senti<strong>do</strong>concreto: po<strong>de</strong>r visitar a parientes y amigos sin solicitar permiso o licenciapor escrito. Sin dudas <strong>no</strong> confiaba en una situación <strong>de</strong> facto que podía variarcon la muerte <strong>de</strong> Oramas y su traspaso a los here<strong>de</strong>ros <strong>de</strong> este, los cuales <strong>no</strong>tendrían reparo en ven<strong>de</strong>rlo. Cirilo co<strong>no</strong>cía el valor argumental <strong>de</strong>l <strong>do</strong>cumentoescrito, por ello exigía “el papel”.Des<strong>de</strong> luego, dichos <strong>do</strong>cumentos también <strong>de</strong>muestran que es posibleencontrar tras el Amo a la persona dispuesta a negociar sus intereses. Des<strong>de</strong>la viuda que se <strong>no</strong>s presenta como una bonda<strong>do</strong>sa señora, que casi siempreconce<strong>de</strong> liberta<strong>de</strong>s condicionadas, hasta el pragmático hombre <strong>de</strong> negociosque prefiere ganarse la lealtad <strong>de</strong> sus siervos <strong>no</strong> por medio <strong>de</strong> castigos, aunque<strong>no</strong> renuncie a ellos, si<strong>no</strong> mediante pequeñas concesiones. Pues sin dudas laestabilidad <strong>de</strong>l sistema esclavista estaba <strong>no</strong> sólo en los mecanismos represivosy <strong>de</strong> coacción violenta si<strong>no</strong> que <strong>de</strong>scansaba en buena medida en cientos <strong>de</strong>miles <strong>de</strong> acuer<strong>do</strong>s individuales y negociaciones ocultas entre amos y esclavos."En vez <strong>de</strong> asumir que el <strong>de</strong>recho positivo <strong>do</strong>taba a los esclavos <strong>de</strong> una personalidad"moral", como afirmaba Tannenbaum, sostengo que fueron los esclavos, al establecer<strong>de</strong>mandas y presionar por el logro <strong>de</strong> beneficios, quienes dieron un significa<strong>do</strong> socialconcreto a los <strong>de</strong>rechos abstractos regula<strong>do</strong>s por el <strong>de</strong>recho positivo. Mediante esasinteracciones con las autorida<strong>de</strong>s y los jueces coloniales, los esclavos actuaban (y eranpercibi<strong>do</strong>s) como sujetos jurídicos con una capacidad legal limitada". De La Fuente,Alejandro. "Slave Law and Claims-Making in Cuba: the Tannenbaum <strong>de</strong>bate revisited".Law and History Review 22;2 (2004), 339-69.31 ANC. Escribanía <strong>de</strong> Justo Barona, Bejucal. 1866. Carta <strong>de</strong> libertad, folio 402.


Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55 39Es co<strong>no</strong>ci<strong>do</strong> que la vida <strong>de</strong>l siervo fue reglamentada y sometida al másestricto control. El <strong>de</strong>recho al matrimonio es el único <strong>de</strong> carácter civil, juntocon el <strong>de</strong> coartarse, que se le reco<strong>no</strong>ció ampliamente por los diversos reglamentoselabora<strong>do</strong>s con ese fin entre 1789 y 1842. 32 Aunque se trató <strong>de</strong> protegera la familia, al prohibirse la venta <strong>de</strong> niños me<strong>no</strong>res <strong>de</strong> tres años y la separación<strong>de</strong> los esposos, 33 por lo general estos <strong>de</strong>rechos digamos mínimos <strong>no</strong> fueronrespeta<strong>do</strong>s por muchos dueños. Los esclavos tuvieron que batallar duramentepor la unidad <strong>de</strong> su parentela, con un por ciento <strong>de</strong> éxito que <strong>no</strong> es posibleprecisar, aunque en muchos <strong>de</strong> los casos estudia<strong>do</strong>s hemos visto la reunificación<strong>de</strong>spués <strong>de</strong> la libertad.Otra mirada a la Ley <strong>de</strong> Vientres Libres <strong>de</strong> 1870.La ley Moret o <strong>de</strong> Vientres Libres <strong>de</strong>l 4 <strong>de</strong> julio <strong>de</strong> 1870 había dispuestola libertad <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s los niños naci<strong>do</strong>s <strong>de</strong> madre esclava, 34 con la condición <strong>de</strong>que aquellos quedasen en po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> los amos en calidad <strong>de</strong> patrocina<strong>do</strong>s hastala edad <strong>de</strong> 22 años, <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> cumpli<strong>do</strong>s los dieciocho años y hasta el cese<strong>de</strong>l patronato su trabajo sería remunera<strong>do</strong> mediante un corto jornal, la mitad<strong>de</strong>l que ganaba un hombre libre. 35 El patronato podía se transmiti<strong>do</strong> “por to<strong>do</strong>slos medios co<strong>no</strong>ci<strong>do</strong>s en <strong>de</strong>recho” y renuncia<strong>do</strong> “por justas causas”. En talcaso se privilegiaba a los padres, legítimos o naturales, y <strong>de</strong> condición libre,a los cuales se les concedía el <strong>de</strong>recho a reivindicar el patronato <strong>de</strong> sus hijospagan<strong>do</strong> al patro<strong>no</strong> los gastos hechos en beneficio <strong>de</strong>l liberto. 3632Ortíz, Fernan<strong>do</strong>. Los negros esclavos. La Habana: Editorial <strong>de</strong> Ciencias Sociales, 1987.Real Cédula e instrucción circular a Indias sobre la educación, trato y ocupación <strong>de</strong> losesclavos, Capítulo VII Matrimonios <strong>de</strong> esclavos. p. 411 y Reglamento <strong>de</strong> esclavos <strong>de</strong>1842 o Código negro hispa<strong>no</strong>-cuba<strong>no</strong>, artículos 34, 35 y 36 sobre coartación p. 447.33Según el Reglamento <strong>de</strong> 1842 en el caso <strong>de</strong> que mari<strong>do</strong> y mujer fueran <strong>de</strong> amos diferentesel amo <strong>de</strong>l esposo <strong>de</strong>bía comprar a la esposa y a los hijos me<strong>no</strong>res <strong>de</strong> tres años.Ibí<strong>de</strong>m. P 446.34Artículo 1. "To<strong>do</strong>s los hijos <strong>de</strong> madres esclavas que nazcan <strong>de</strong>spués <strong>de</strong> la publicación <strong>de</strong>esta ley son <strong>de</strong>clara<strong>do</strong>s libres". Artículo 2. To<strong>do</strong>s los esclavos naci<strong>do</strong>s <strong>de</strong>s<strong>de</strong> el 17 <strong>de</strong>septiembre <strong>de</strong> 1868 hasta la publicación <strong>de</strong> esta ley son adquiri<strong>do</strong>s por el Esta<strong>do</strong> medianteel pago a sus dueños <strong>de</strong> la cantidad <strong>de</strong> 125 pesetas. Torres Cuevas y Reyes. Ob. Cit. p. 227.35Ibi<strong>de</strong>m. Artículo 8, p. 228.36 Ibí<strong>de</strong>m. Artículo 11.


40Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55Sobrepasan<strong>do</strong> el lugar común <strong>de</strong> calificar a la Ley <strong>de</strong> Vientres libres comouna continuación solapada <strong>de</strong> la esclavitud, coincidimos con Rebecca J. Scottcuan<strong>do</strong> sugiere que la ley (…) “Proveía una palanca – débil, frágil, rudimentaria– que permitía a algu<strong>no</strong>s esclavos ejercer influencia sobre su condició<strong>no</strong> la <strong>de</strong> sus parientes.”(…) 37 Sin dudas la ley significó un cambio <strong>de</strong> perspectivaspara muchas familias que habían esta<strong>do</strong> toda su vida en esclavitud. Este“párvulo ingenuo” era el primer miembro <strong>de</strong> la familia que disfrutaba teóricamente<strong>de</strong> la libertad, lo que convertía a la ley en un campo <strong>de</strong> negociaciónentre los dueños, ahora llama<strong>do</strong>s patro<strong>no</strong>s, y sus padres. De este mo<strong>do</strong> lasacciones <strong>de</strong> padres, abuelos y otros parientes fueron <strong>de</strong>cisivas para que la LeyMoret adquiriera un significa<strong>do</strong> concreto más allá <strong>de</strong> sus imperfecciones ysus carencias, y aún <strong>de</strong>l hecho cierto <strong>de</strong> que <strong>no</strong> eliminaba en Cuba la esclavitud.Así las habilida<strong>de</strong>s, co<strong>no</strong>cimientos y relaciones <strong>de</strong> los esclavos – la puestaen acción <strong>de</strong> toda una experiencia social acumulada que <strong>no</strong> po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>s<strong>de</strong>ñar– se conjugaron una vez más para alcanzar la libertad.La publicación <strong>de</strong> la ley en Cuba fue dilatada hasta septiembre <strong>de</strong> 1870.Si bien co<strong>no</strong>cemos el efecto que esta causó entre los círculos <strong>de</strong> propietarios,hacenda<strong>do</strong>s y comerciantes españoles, también sobre las críticas y señalamientospublica<strong>do</strong>s en varios órga<strong>no</strong>s <strong>de</strong> prensa en Madrid, 38 lamentablemente sabemosmuy poco <strong>de</strong> la recensión <strong>de</strong> esta en el país, sobre to<strong>do</strong> entre los esclavos,sin dudas la parte más interesada en su aplicación.La acción combinada <strong>de</strong> los hacenda<strong>do</strong>s propietarios <strong>de</strong> esclavos <strong>de</strong> la Islay <strong>de</strong> las autorida<strong>de</strong>s coloniales retardaron aún más la entrada efectiva <strong>de</strong> la leyen el terre<strong>no</strong> <strong>de</strong> la práctica cotidiana. Así el reglamento para su aplicación fueimplementa<strong>do</strong> hacia finales <strong>de</strong> 1872, cercenan<strong>do</strong> en algu<strong>no</strong>s aspectos el alcance<strong>de</strong> la ley. 39 El reglamento <strong>de</strong>l cinco <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong>l propio año creaba las llamadasJuntas Protectoras <strong>de</strong> Libertos con la función <strong>de</strong> velar por los <strong>de</strong>rechos <strong>de</strong> to<strong>do</strong>slos que la ley Moret había <strong>de</strong>clara<strong>do</strong> libres. 40 Entre sus atribuciones <strong>de</strong>stacamosla referida a la cesión que los patro<strong>no</strong>s pudieran hacer <strong>de</strong> sus <strong>de</strong>rechos:37 Scott. Ob. Cit. pp. 104-105.38 Barcia. Ob. Cit. p. 143.39 Scott. Ob. Cit. p. 99.40 Para ampliar sobre las atribuciones y <strong>de</strong>más funciones <strong>de</strong> las Juntas ver Reglamento<strong>de</strong> la ley <strong>de</strong> 4 <strong>de</strong> julio <strong>de</strong> 1870 sobre la esclavitud en Cuba, fecha<strong>do</strong> el 5 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong>1873. En Torres Cuevas y Reyes [24] pp. 230-241.


Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55 41“admitien<strong>do</strong> las que se fun<strong>de</strong>n en causas que las Juntas consi<strong>de</strong>ren justasy probadas, sin que las renuncias tengan jamás por resulta<strong>do</strong> la separación<strong>de</strong> hijo me<strong>no</strong>r <strong>de</strong> 14 años <strong>de</strong> su madre sierva. Esta separacióntampoco será permitida en los casos <strong>de</strong> transmisión <strong>de</strong>l patronato”. 41Las cesiones <strong>de</strong> patronato son una excelente expresión <strong>de</strong> cómo serecepcionó e interpretó la ley Moret, que <strong>no</strong> sólo incluía las liberta<strong>de</strong>s por eda<strong>do</strong> las ventas <strong>de</strong> madres con sus hijos patrocina<strong>do</strong>s, los que a su vez <strong>no</strong> fueron“vendi<strong>do</strong>s junto a sus madres como un premio extra para el compra<strong>do</strong>r” 42 , locual sugieren nuestros colegas Michael Zeuske y Orlan<strong>do</strong> García Martínez.Cuan<strong>do</strong> un dueño vendía a una madre y a sus hijos naci<strong>do</strong>s con posterioridada septiembre <strong>de</strong> 1868 <strong>no</strong> violaba la ley, algo que también insinúa BarciaZequeira al referirse a las transgresiones que se <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>n <strong>de</strong> los anuncios<strong>de</strong> ventas <strong>de</strong> “negras con sus 'crías' <strong>de</strong>s<strong>de</strong> pocos meses <strong>de</strong> nacidas” 43 , en estoscasos <strong>no</strong> hacía más que transmitir por “justa causa <strong>de</strong> <strong>de</strong>recho” el patronato<strong>de</strong> estos niños, legalmente libres pero someti<strong>do</strong>s a su tutela. Estas ventas ycesiones <strong>de</strong> patronato eran en to<strong>do</strong> caso preferibles a la separación <strong>de</strong> madree hijos tal como ocurría antes <strong>de</strong> la promulgación <strong>de</strong> la ley cuan<strong>do</strong> era lícito,a pesar <strong>de</strong> lo reglamenta<strong>do</strong>, la venta <strong>de</strong> infantes <strong>de</strong> muy corta edad. 4441Ibí<strong>de</strong>m p. 232.42Zeuske, Michael y Orlan<strong>do</strong> García Martínez. "Notarios y esclavos en Cuba (siglo <strong>XIX</strong>)".En Debates y Perspectivas, Cua<strong>de</strong>r<strong>no</strong>s <strong>de</strong> Historia y Ciencias Sociales, Madrid: FundaciónMapfre-Tavera, N. 4, Diciembre <strong>de</strong> 2004, p 144. Quizás para sostener esta afirmaciónhabría que comparar los precios <strong>de</strong> ventas <strong>de</strong> mujeres jóvenes en edad reproductiva sinhijos y con hijos. En el caso <strong>de</strong> que se <strong>de</strong>tectara alguna variación significativa <strong>de</strong> losprecios es posible admitir entonces que efectivamente los hijos fueran un premio, una"contra o ñapa" (como se <strong>de</strong>cía en la época) que el ven<strong>de</strong><strong>do</strong>r daba <strong>de</strong> más y como estímuloal compra<strong>do</strong>r, mientras tanto es arriesga<strong>do</strong> a<strong>de</strong>lantar este tipo <strong>de</strong> juicio. Según unamplio estudio <strong>de</strong>l merca<strong>do</strong> cuba<strong>no</strong> <strong>de</strong> esclavos, los precios <strong>de</strong> la mujeres jóvenes vendidasen La Habana en las décadas <strong>de</strong>l 50 y <strong>de</strong>l 60, alcanzaron como promedio los 788 pesos.Después <strong>de</strong> la Ley Moret los precios cayeron en un 40%, situán<strong>do</strong>se en los 475 pesos.Lamentablemente los autores <strong>de</strong> dicho estudio <strong>no</strong> explican como influyó en el precio ladisposición en tor<strong>no</strong> a los hijos. Bergard, Laird, Fe Iglesias García y María <strong>de</strong>l CarmenBarcia. The Cuban Slave Market. 1700-1880. Cambridge, N.Y: Cambridge UniversityPress. 1995. Versión en CDR p. 104.43Barcia. Ob. Cit. pp. 145 y 157.44Abundan los ejemplos <strong>de</strong> ventas <strong>de</strong> niños. Es sabi<strong>do</strong> que algu<strong>no</strong>s amos, sobre to<strong>do</strong> los<strong>de</strong> pocos recursos, tenían a sus siervas como productoras <strong>de</strong> esclavos y procedían a laventa <strong>de</strong> los hijos <strong>de</strong> estas como la manera más rápida <strong>de</strong> obtener algún dinero en efectivoo para pagar <strong>de</strong>udas. Esta interesante cuestión aguarda por un estudio más <strong>de</strong>talla<strong>do</strong>. Ci-


42Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55Hacía mayo <strong>de</strong> 1871 encontramos la primera referencia concreta a la leyMoret en un <strong>do</strong>cumento que el escriba<strong>no</strong> bejucaleño asienta erróneamente como<strong>de</strong> “libertad”, cuan<strong>do</strong> se trataba <strong>de</strong> una cesión <strong>de</strong> patronato que a su vez podíamuy bien ocultar la venta <strong>de</strong> la párvula libre. Don José Leandro <strong>de</strong> Castañeda yDon Casimiro Amable veci<strong>no</strong>s <strong>de</strong>l pueblo <strong>de</strong> La Salud se habían puesto <strong>de</strong> acuer<strong>do</strong>sobre el <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> <strong>de</strong> la pequeña Nicasia <strong>de</strong> cuatro meses <strong>de</strong> nacida,“(…) que según lo dispuesto por el Superior Gobier<strong>no</strong> es libre <strong>de</strong> todaesclavitud y bajo este concepto fue asentada su partida bautismal perocomo según la misma Superior disposición tiene el otorgante el <strong>de</strong>recho<strong>de</strong> retenerla en su servicio hasta que cumpla dieciocho años bajo lascondiciones prescriptas en la ley <strong>de</strong>l particular como patro<strong>no</strong> <strong>de</strong> la libertasién<strong>do</strong>le gravoso continuar crian<strong>do</strong> a dicha negrita ha acorda<strong>do</strong> conel segun<strong>do</strong> cedérsela como <strong>de</strong>s<strong>de</strong> luego se la ce<strong>de</strong> para que usan<strong>do</strong><strong>de</strong>l referi<strong>do</strong> <strong>de</strong>recho <strong>de</strong> patronato la conserve en su po<strong>de</strong>r hasta la oportunidadque marca la ley <strong>de</strong>l particular bajo las precisas condicionesque la misma prescribe en la forma que pudiera hacerlo el primer comparecientesin responsabilidad <strong>de</strong> ningún género pues queda totalmentelibre y exento <strong>de</strong> carga alguna sobre el particular to<strong>do</strong> lo que ven<strong>de</strong> yreasume el segun<strong>do</strong> que se constituye a mantener y criar dicha negritacomo su patro<strong>no</strong> en la forma or<strong>de</strong>nada por el Superior Gobier<strong>no</strong> sinque ahora ni en ningún tiempo pueda reclamar cosa alguna a Castañedani contra<strong>de</strong>cir el te<strong>no</strong>r <strong>de</strong> esta escritura que ambos ratifican en la másbastante forma obligan<strong>do</strong> a la primera sus bienes según <strong>de</strong>recho... 45Al Castañeda – o al escriba<strong>no</strong> – <strong>no</strong> obstante se le “escapa” la palabra ven<strong>de</strong>,– sin dudas la verda<strong>de</strong>ra intención <strong>de</strong>l acto que realizaba ante el escriba<strong>no</strong> – <strong>de</strong>spuéstamos este ejemplo pues pudimos reconstruir el <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> <strong>de</strong> este infante y apreciar el esfuerzo<strong>de</strong>l abuelo para reunir a la familia: En 21 <strong>de</strong> octubre <strong>de</strong> 1841 el more<strong>no</strong> libre José<strong>de</strong>l Rosario Peñalver, natural y veci<strong>no</strong> <strong>de</strong> Quivicán compra el negrito Sixto, <strong>de</strong> 2 años <strong>de</strong>edad, a Don Pedro Pérez, veci<strong>no</strong> <strong>de</strong>l parti<strong>do</strong> <strong>de</strong> Batabanó. El Pérez a su vez lo habíacompra<strong>do</strong> a Don Juan Lansa cinco meses antes, su valor 100 pesos. ANC. Escribanía <strong>de</strong>José <strong>de</strong> la Luz Portela, 1841, folios 206-206v. En 1861 Sixto Montier es coarta<strong>do</strong> en 800pesos por su abuelo José Montier, quien a<strong>de</strong>más coarta a la madre <strong>de</strong> Sixto, ArcadiaMontier y paga la libertad <strong>de</strong> <strong>do</strong>s nietos naci<strong>do</strong>s en 1858 y 1860. Para las coartacionesver ANC. Escribanía <strong>de</strong> José Ortega 1861. Folios 25 y 25 vuelta, para las liberta<strong>de</strong>s ANC.Escribanía <strong>de</strong> Justo Barona 1858, escritura <strong>de</strong> libertad fechada el 28 <strong>de</strong> julio <strong>de</strong> 1858 yEscribanía <strong>de</strong> José Ortega 1861. Folio 24 vuelta-25.45 ANC. Escribanía <strong>de</strong> Justo Barona. 1871, folio 282 vuelto.


Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55 43<strong>de</strong> haber <strong>de</strong>clara<strong>do</strong> el propósito <strong>de</strong> ce<strong>de</strong>r sus atribuciones. Así Amable asume los<strong>de</strong>rechos y <strong>de</strong>beres <strong>de</strong> patro<strong>no</strong>, sobre to<strong>do</strong> los <strong>de</strong> aprovecharse, llega<strong>do</strong> el caso,<strong>de</strong> los servicios <strong>de</strong> Nicasia. Creemos que esta escritura está a medio cami<strong>no</strong> entreuna venta, a pesar <strong>de</strong> que <strong>no</strong> se hace mención a cantidad <strong>de</strong> dinero y la cesión <strong>de</strong>patronato tal y como la encontramos meses <strong>de</strong>spués en la misma escribanía.Detengámo<strong>no</strong>s brevemente en la fórmula <strong>de</strong> una escritura <strong>de</strong> cesión <strong>de</strong>patronato. Esta refleja los datos que usualmente recogen todas las escrituras:lugar y fecha, i<strong>de</strong>ntidad <strong>de</strong> los comparecientes, los que hacen <strong>de</strong>claración <strong>de</strong>poseer a los niños en virtud <strong>de</strong> haber naci<strong>do</strong> <strong>de</strong> sus esclavas, seguidamente seremiten a la ley y exponen las razones que le llevan al acto <strong>de</strong> cesión, a continuaciónla contraparte previamente i<strong>de</strong>ntificada acepta la cesión, asumien<strong>do</strong>las responsabilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>l caso.En las escrituras <strong>de</strong> 1875 encontramos más formalidad. La entrada en vigor<strong>de</strong> la ley <strong>de</strong>l <strong>no</strong>taria<strong>do</strong> influye en este cambio. Quizás también el hecho <strong>de</strong>que a Justo Barona le haya sucedi<strong>do</strong> en la administración <strong>de</strong> la escribanía, ahoratransformada en Notaría, su hijo Gaspar Barona Acosta, joven con más co<strong>no</strong>cimientos<strong>de</strong> las nuevas leyes y obliga<strong>do</strong> a introducir uniformidad en las escriturasque asiduamente extendía en el <strong>de</strong>spacho familiar.De este mo<strong>do</strong> el proceso hacia una fórmula <strong>no</strong>tarial más completa y abarca<strong>do</strong>ra<strong>de</strong> los térmi<strong>no</strong>s legales que tiene como referente se ha completa<strong>do</strong>.Ahora el <strong>no</strong>tario es más exacto en la i<strong>de</strong>ntificación <strong>de</strong> las partes, a los <strong>no</strong>mbresy apelli<strong>do</strong>s se agrega la naturaleza y vecindario, edad, oficio, la <strong>de</strong>claración<strong>de</strong> estar en el ple<strong>no</strong> goce <strong>de</strong> sus <strong>de</strong>rechos civiles, si se está al corriente <strong>de</strong> lascontribuciones o si por cuestión <strong>de</strong> pobreza <strong>no</strong> se es contribuyente. Parte importante<strong>de</strong> la escritura es aquella <strong>do</strong>n<strong>de</strong> se <strong>de</strong>tallan las obligaciones que asumela persona que recibe el patronato comprometién<strong>do</strong>se “a mantenerlos, vestirlos,calzarlos, educarlos, enseñán<strong>do</strong>le a trabajar e inculcán<strong>do</strong>les buenas materias<strong>de</strong> moralidad en sujeción a lo que en particular tiene dispuesto el SuperiorGobier<strong>no</strong> y a lo que en a<strong>de</strong>lante tengan a bien or<strong>de</strong>nar con referencia a dichoslibertos” 46 o esta otra que a<strong>de</strong>más”se obliga a curarlo <strong>de</strong> sus enfermeda<strong>de</strong>s(…) y to<strong>do</strong> lo <strong>de</strong>más consiguiente conforme a las superiores disposiciones querigen la materia”. 47 Ambas <strong>de</strong>claraciones son reelaboradas a partir <strong>de</strong>l artículo46 ANC. Protocolo <strong>de</strong> Gaspar Barona. 1875. Escritura <strong>de</strong> cesión <strong>de</strong> patronato, 30 <strong>de</strong> enero<strong>de</strong> 1875. Folio 198.47 ANC. Protocolo <strong>de</strong> Gaspar Barona. 1875. Escritura <strong>de</strong> cesión <strong>de</strong> patronato, 13 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1875.


44Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-557 <strong>de</strong> la ley Moret que trataba las obligaciones <strong>de</strong>l patro<strong>no</strong> respecto a susclientes: “vestirlos, asistirlos en sus enfermeda<strong>de</strong>s y darle la enseñanza primariay educación necesaria para ejercer un arte o un oficio”. 48Tenemos la oportunidad <strong>de</strong> comparar las cesiones <strong>de</strong> patronato <strong>de</strong> Bejucalcon la que trascriben en su interesante artículo Zeuske y García Martínez, otorgadaen la ciudad <strong>de</strong> Cienfuegos en <strong>no</strong>viembre <strong>de</strong> 1875. La fórmula empleadapor el <strong>no</strong>tario cienfueguero hace que esta escritura tenga más puntos <strong>de</strong> contactocon una libertad graciosa que con las cesiones <strong>de</strong> patronato tal y comose entendía esta acción según la Ley Moret. Como hemos visto el <strong>no</strong>tario BaronaAcosta crea su propia fórmula <strong>do</strong>n<strong>de</strong> recoge el espíritu <strong>de</strong> la ley en cuantoa los <strong>de</strong>beres <strong>de</strong>l patro<strong>no</strong> con sus patrocina<strong>do</strong>s me<strong>no</strong>res <strong>de</strong> edad, mientras quela escritura otorgada por la señora Concepción Bacallao <strong>de</strong> López a favor <strong>de</strong> suesclava Juliana, se limita a justificar la acción <strong>de</strong> gracia <strong>do</strong>n<strong>de</strong> <strong>no</strong> mediaba pago“en mérito <strong>de</strong> los bue<strong>no</strong>s servicios <strong>de</strong> la citada madre Juliana Padilla,” y a consignarque “se aparta y separa <strong>de</strong> la propiedad, posesión y <strong>de</strong>más acciones que adicha Tomasa <strong>de</strong>l Carmen había y tenia”, 49 eso sí esta cesión tiene la peculiaridad<strong>de</strong> que es la madre, esclava aún, quien se convierte en patrona <strong>de</strong> su hija <strong>de</strong> tresaños, lo cual es reafirmación <strong>de</strong> lo que venimos dicien<strong>do</strong> <strong>de</strong> los espacios <strong>de</strong> negociaciónque permiten que un esclavo adquiera personalidad jurídica plena, puesen su calidad <strong>de</strong> patrona la Padilla estaba obligada a cumplir con ciertos requisitosimpuestos por la Ley <strong>de</strong> Vientres libres, que eran los mismos que le correspondíancomo madre en el caso <strong>de</strong> que fuera libre.Las escrituras <strong>de</strong> cesión <strong>de</strong> patronato que hemos localiza<strong>do</strong> – fechadas entre1871 y 1875 – involucran a abuelas, madrinas u otra personas íntimamenteligadas a las esclavas y a sus hijos. 50 (Ver Anexo II y III) En ellas se ponen <strong>de</strong>relieve la eficacia y funcionabilidad <strong>de</strong> las re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> parentesco consanguíneo ypor afinidad. Por otra parte es muy posible que sean la culminación <strong>de</strong> meses<strong>de</strong> negociaciones, presiones y exigencias, <strong>do</strong>n<strong>de</strong> al parecer <strong>no</strong> intervienen ni elProcura<strong>do</strong>r Síndico ni la Junta Protectora <strong>de</strong> Libertos, es <strong>de</strong>cir sin otro po<strong>de</strong>r48 Torres Cuevas y Reyes [24] p 227.49 Zeuske y García Martínez. Ob. Cit. p.163.50 De las cinco escrituras comprendidas en ese lapso <strong>de</strong> tiempo cuatro tienen comoreceptoras a africanas, <strong>do</strong>s abuelas y <strong>do</strong>s madrinas <strong>de</strong> bautismo, lo cual habla muy a favor<strong>de</strong> la capacidad <strong>de</strong> movilización <strong>de</strong> estas mujeres.


Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55 45media<strong>do</strong>r que la propia gestión ante la autoridad señorial. 51 Significativamente,en ninguna se menciona el dinero pero <strong>no</strong> <strong>de</strong>scartamos que los familiares tuvieranque hacer pagos a los patro<strong>no</strong>s para lograr <strong>de</strong> estos la ansiada entrega. 52Niños libres, madres esclavas: los límites <strong>de</strong> una nueva esperanzaEl <strong>do</strong>cumento que comentamos es precisamente una <strong>de</strong> estas cesiones <strong>de</strong>patronato pero se distingue por un <strong>de</strong>talle especial: la intervención que en elmismo tiene la madre.(Ver Anexo I) Son protagonistas <strong>de</strong> este, la familia que<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1860 habían constitui<strong>do</strong> José María <strong>de</strong> la Can<strong>de</strong>laria López Viera y MaríaIsabel Bal<strong>do</strong>mera Coll. Esclavos <strong>de</strong> amos diferentes habían procrea<strong>do</strong> sietehijos entre 1861 y 1871, pero en 1872 se produjo un giro en la vida <strong>de</strong> la madrey <strong>de</strong> los pequeños.Don José Coll y Rigot, natural <strong>de</strong> Cataluña, pequeño propietario rural,veci<strong>no</strong> <strong>de</strong>l cuartón Buenaventura, jurisdicción <strong>de</strong> Bejucal, <strong>de</strong>cidió que sus días<strong>de</strong> sitiero habían conclui<strong>do</strong>. Des<strong>de</strong> 1829 mantuvo un sitio <strong>de</strong> caballería y media<strong>de</strong> tierras – ubica<strong>do</strong> en Aguas Ver<strong>de</strong>s – con su trabajo personal, auxilia<strong>do</strong> pormuy pocos esclavos, a saber un criollo llama<strong>do</strong> Pablo, otro congo <strong>de</strong> <strong>no</strong>mbreJosé Damián y la criolla Juana María, más los cinco hijos <strong>de</strong> estos naci<strong>do</strong>sentre 1838 y 1851. 53 De ellos fue María Isabel Bal<strong>do</strong>mera, la única que le daríamás esclavos, los siete niños naci<strong>do</strong>s hasta 1871.51Lamentablemente <strong>no</strong> tenemos co<strong>no</strong>cimiento <strong>de</strong> las apelaciones presentadas en las diversasJuntas Protectoras que <strong>no</strong>s permitan hacer una distinción entre las que trataban<strong>de</strong> reclamaciones <strong>de</strong> esta ín<strong>do</strong>le y aquellas que analiza Scott. [24] pp. 106-119.52Quizás este haya si<strong>do</strong> el caso <strong>de</strong> la morena libre natural <strong>de</strong> África María <strong>de</strong>l RosarioRodríguez y <strong>de</strong>l sitiero Don Martín Isla, veci<strong>no</strong> <strong>de</strong> La Salud quien enfrentaba una gravesituación financiera. Isla reco<strong>no</strong>ce que "sién<strong>do</strong>le algo gravoso continuar al cuida<strong>do</strong> <strong>de</strong>dichas párvulas ha acorda<strong>do</strong> ce<strong>de</strong>r el <strong>de</strong>recho <strong>de</strong> patronato que le compete a favor <strong>de</strong> laotra compareciente abuela <strong>de</strong> aquellas". ANC. Protocolo <strong>de</strong> Gaspar Barona. 1875. TomoI. escritura 103 <strong>de</strong> cesión <strong>de</strong> patronato 22 <strong>de</strong> febrero <strong>de</strong> 1875, folio 306. Isla había vendi<strong>do</strong>en 1868 a otra nieta <strong>de</strong> María <strong>de</strong>l Rosario, "una mulatica <strong>no</strong>mbrada María Eufemiacriolla <strong>de</strong> año y medio" por la suma <strong>de</strong> 100 pesos. ANC. Escribanía <strong>de</strong> Justo Barona.1868. folio 219. Como ya <strong>no</strong> podía ven<strong>de</strong>r a las niñas libertas es posible que existiera unacuer<strong>do</strong> <strong>do</strong>n<strong>de</strong> el Isla exigió y recibió un "rescate" por estas y así resarcirse <strong>de</strong> los "dañosy perjuicios" que la ley Moret le infligía .53 En su testamento Coll <strong>de</strong>claró que estos esclavos, más el sitio, una yunta <strong>de</strong> bueyes yun caballo fueron los bienes que había lleva<strong>do</strong> al matrimonio, ANC. Notaria <strong>de</strong> GasparBarona Acosta. 1876. Folio 8.


46Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55El viejo Coll para hacerse <strong>de</strong> capital enajena a cuatro <strong>de</strong> los niños y a lamadre en enero <strong>de</strong> 1872. Por Bal<strong>do</strong>mera y sus hijos Vidal, José Ramón Quintín,Florencia y Pedro López Coll, percibe la suma <strong>de</strong> 2800 pesos, <strong>de</strong> la cual emplea1800 en la compra <strong>de</strong> <strong>do</strong>s casas contiguas <strong>de</strong> mampostería y tejas, situadas enla calle Sacristía. 54 Pero a pesar <strong>de</strong> que dispersa a la parentela pues <strong>do</strong>s <strong>de</strong> loscompra<strong>do</strong>res son <strong>de</strong>l pueblo <strong>de</strong> La Salud, tiene un gesto <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>ración paracon la familia. El mismo día en que formaliza las ventas en la escribanía <strong>de</strong>Justo Barona, otorga escritura <strong>de</strong> cesión <strong>de</strong> patronato <strong>de</strong> la pequeña Cecilia:“(…) <strong>de</strong> su espontánea voluntad y en que está conforme la expuesta sumadre ce<strong>de</strong>, renuncia y transfiere dho (dicho) <strong>de</strong>recho <strong>de</strong> patronato afavor <strong>de</strong> la parda libre Serapia González a quien en el particular poneen el propio lugar y gra<strong>do</strong> <strong>de</strong>l otorgante pero con expresa sujeción a lodispuesto sobre el particular por el Superior Gobier<strong>no</strong> y a lo que en loa<strong>de</strong>lante pueda or<strong>de</strong>narse respecto a los libertos y estan<strong>do</strong> presente DJosé López mediante el cargo <strong>de</strong> Serapia González aceptó a su favorestá escritura y sus térmi<strong>no</strong>s”(…) 55Coll expresa que realiza la cesión espontáneamente. En verdad podía haberentrega<strong>do</strong> a la pequeña Cecilia al compra<strong>do</strong>r <strong>de</strong> Bal<strong>do</strong>mera, pero quizás circunstanciasmuy especiales lo obligaron a este acto. José López, que representa a laGonzález, era el dueño <strong>de</strong>l padre <strong>de</strong> Cecilia y <strong>de</strong> sus tíos y abuelos pater<strong>no</strong>s. Unpropietario que se mostró particularmente generoso con la familia <strong>de</strong> una <strong>de</strong> lastías <strong>de</strong> Cecilia llamada Merced, al conce<strong>de</strong>rles la libertad graciosa a ella y a sushijos habi<strong>do</strong>s con el more<strong>no</strong> libre Benig<strong>no</strong> Contreras. López interpuso su prestigio,solvencia económica y moral a favor <strong>de</strong> la familia <strong>de</strong> su esclavo.Dejar a la pequeña al cuida<strong>do</strong> <strong>de</strong> Serapia González, natural <strong>de</strong> Bejucal y<strong>de</strong>dicada a “lavar y planchar para la calle”, es posible que haya si<strong>do</strong> una <strong>de</strong>cisiónconjunta <strong>de</strong> los padres esclavos. Sabemos que entre esta y la parentela<strong>de</strong> José existían vínculos que se tradujeron en relaciones <strong>de</strong> compadrazgo. 56La parda había accedi<strong>do</strong> a la libertad en 1869 y tenía una sola hija también54 En 1876 Coll a<strong>de</strong>udaba a varias personas la cantidad <strong>de</strong> 717 pesos, entre sus acree<strong>do</strong>resestaban <strong>do</strong>s esclavos.55 ANC. Escribanía <strong>de</strong> Justo Barona 1872. Escritura <strong>de</strong> cesión a la ley <strong>de</strong>l patronato, folio 51.56 En 1877 y 1878 Serapia González fue madrina <strong>de</strong> los <strong>do</strong>s últimos hijos <strong>de</strong> los Contreras-López.


Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55 47liberta, por lo tanto estaba en condiciones <strong>de</strong> acoger a una niña y asumir su atención.Algo que <strong>no</strong> podía hacer la tía Merced López, pues en enero <strong>de</strong> 1872 se encontrabacuidan<strong>do</strong> a una hija nacida en agosto <strong>de</strong>l año anterior. Es <strong>de</strong>cir la familiaContreras-López tenía problemas concretos que enfrentar como conseguir una casapropia <strong>do</strong>n<strong>de</strong> vivir en la medida en que fueron accedien<strong>do</strong> a la libertad. 57Por otra parte esta acción evi<strong>de</strong>ncia la relación <strong>de</strong> cercanía entre libres yesclavos, que fue más usual y dinámica <strong>de</strong> lo que a veces se acepta. Muchos <strong>de</strong>los que como Serapia habían accedi<strong>do</strong> a la libertad <strong>no</strong> se apartaban <strong>de</strong> sus consiervosmediante la <strong>de</strong>fendida línea divisoria <strong>de</strong> la movilidad social. Los libresparticipaban con suma frecuencia en el apadrinamiento <strong>de</strong> los hijos <strong>de</strong> sus ex–compañeros <strong>de</strong> cautiverio, en un simultaneo movimiento <strong>de</strong> aproximación queprestigiaba a ambas partes. En el caso estudia<strong>do</strong> la “línea <strong>de</strong>l color” tampocoseparó a la González y a los López-Coll, la primera <strong>de</strong>scrita como “parda” apesar <strong>de</strong> que su madre era <strong>de</strong><strong>no</strong>minada como arará, lo cual es indicio <strong>de</strong> que supadre era un blanco “<strong>no</strong> co<strong>no</strong>ci<strong>do</strong>” y los segun<strong>do</strong>s clasifica<strong>do</strong>s como “more<strong>no</strong>s”.Quizás el origen africa<strong>no</strong> <strong>de</strong> ambas familias sea la base <strong>de</strong> este encuentro. 58También es digna <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>stacada la proximidad entre esclavos califica<strong>do</strong>scomo “<strong>de</strong> campo,” los López-Coll en los sitios <strong>de</strong> labor <strong>de</strong> sus respectivos dueños,que aunque próximos a la ciudad <strong>de</strong> seguro para trasladarse a esta <strong>de</strong>bían contarcon la correspondiente licencia <strong>de</strong> los amos, y una lavan<strong>de</strong>ra, Serapia, que teníaen la ciudad su escenario laboral. Por supuesto que en una urbe pequeña, comolo era Bejucal, los límites entre lo urba<strong>no</strong> y lo rural se confun<strong>de</strong>n. No obstantevale la observación como prueba <strong>de</strong> que muchas veces es falsa la barrera queparece separar a los esclavos <strong>de</strong> la ciudad <strong>de</strong> los <strong>de</strong>l campo.En la escritura se expresa la conformidad <strong>de</strong> Bal<strong>do</strong>mera para que su hijaquedase al amparo <strong>de</strong> Serapia, una cuestión que a<strong>de</strong>más <strong>de</strong> cubrir las formaslegales <strong>de</strong><strong>no</strong>ta que la ley Moret introducía en algu<strong>no</strong>s casos el consentimiento57De hecho en agosto <strong>de</strong> 1873 a poco <strong>de</strong> nacida la sexta hija, Merced paga 100 pesos a su examo por una "casita con el frente y una culata <strong>de</strong> mampostería y lo <strong>de</strong>más <strong>de</strong> tabla, con eltecho <strong>de</strong> tejas la que fabricó a sus expensas hace tres años tiene seis varas <strong>de</strong> frente yveinticuatro <strong>de</strong> fon<strong>do</strong>". ANC. Escribanía <strong>de</strong> Justo Barona. 1873. Venta real <strong>de</strong> casa, Folio698. El matrimonio llegó a tener nueve hijos, lo cuales quedaron huérfa<strong>no</strong>s <strong>de</strong> madre en 1879.58Hasta el presente en Cuba <strong>no</strong> se ha estudia<strong>do</strong> con sistematicidad la cuestión <strong>de</strong>lpadrinazgo, dicho estudio <strong>de</strong>bería tener como fuente obligada los registros parroquiales.Al respecto hemos <strong>de</strong>dica<strong>do</strong> al tema un capítulo <strong>de</strong> nuestro libro aún inédito Esclavitud,Familia y Parroquia en Cuba. Otra mirada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> la microhistoria.


48Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55pater<strong>no</strong> sobre el <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> <strong>de</strong> los hijos libres. Al me<strong>no</strong>s es la única escritura <strong>de</strong>su tipo <strong>do</strong>n<strong>de</strong> consta el acuer<strong>do</strong> mater<strong>no</strong>. Ella <strong>no</strong> está presente directamenteen el acto, como <strong>no</strong> lo está Serapia, sin embargo es evi<strong>de</strong>nte que ambas tienenvolunta<strong>de</strong>s y <strong>de</strong>seos propios que se ponen <strong>de</strong> manifiesto cuan<strong>do</strong> llegamos alco<strong>no</strong>cimiento <strong>de</strong> los <strong>de</strong>talles que entrelazan las vidas <strong>de</strong> todas estas personas.Mucha confianza habría <strong>de</strong> tener la pareja en la red <strong>de</strong> familiares y amigospara <strong>no</strong> llevar consigo a su niña al pueblo <strong>de</strong> La Salud, <strong>de</strong>ján<strong>do</strong>la en un mun<strong>do</strong><strong>de</strong> personas libres al que por otra parte se integraría el padre meses <strong>de</strong>spués. 59Bal<strong>do</strong>mera y sus otros hijos seguirían sien<strong>do</strong>, por un tiempo que nadie podíacalcular, esclavos <strong>de</strong>pendientes <strong>de</strong> los vaivenes <strong>de</strong> las fortunas <strong>de</strong> sus amos,expuestos a otras ventas pues estaban “sujetos a servir” tal y como expresabala monótona fórmula que justificaba las transacciones <strong>de</strong> personas. Así graciasa los vínculos <strong>de</strong>l parentesco por afinidad, Cecilia permaneció al abrigo <strong>de</strong>“gente amiga” en un entor<strong>no</strong> <strong>de</strong> personas libres. Sus herma<strong>no</strong>s corrieron peorsuerte. Quintín, murió a los <strong>do</strong>s años <strong>de</strong> haber si<strong>do</strong> vendi<strong>do</strong>. Le sobrevivióPedro, al igual que Florencia, enajenada a la ciudad <strong>de</strong> La Habana y Vidal. 60El <strong>do</strong>cumento analiza<strong>do</strong> es sólo una muestra <strong>de</strong> las posibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> construirhistorias <strong>de</strong> vidas a través <strong>de</strong> la explotación intensiva <strong>de</strong> las evi<strong>de</strong>ncias que lasescrituras y <strong>do</strong>cumentos <strong>no</strong>tariales <strong>no</strong>s brindan. El <strong>de</strong>recho a tener relaciones familiarescontra to<strong>do</strong>s los impon<strong>de</strong>rables <strong>no</strong>s presenta a sus crea<strong>do</strong>res, esclavos y libres,personas analfabetas e iletradas, como seres apega<strong>do</strong>s a <strong>no</strong>rmas y valores éticosque <strong>de</strong> cierta manera guían sus actos. Nos interesa ahondar en el po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> trasformaciónque estas escrituras o el mismo acto <strong>de</strong> otorgarlas, ejercieron en las vidas<strong>de</strong> estas personas, buscar las “transgresiones” que lograron introducir en los <strong>do</strong>cumentos,por lo general espacios esquemáticos y regi<strong>do</strong>s por la “fórmula” creadapor el escriba<strong>no</strong> o por la ley, <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que <strong>no</strong>s lleven a un mejor entendimiento <strong>de</strong>los aspectos sociales <strong>de</strong>l fenóme<strong>no</strong> esclavitud y sus implicaciones en las vidas <strong>de</strong>quienes se impusieron a la <strong>de</strong>sesperanza y la humillación.59López liberó graciosamente a to<strong>do</strong>s sus esclavos en 1873, días antes <strong>de</strong> dictar su segun<strong>do</strong>testamento. Eran más <strong>de</strong> <strong>do</strong>ce, to<strong>do</strong>s con relaciones <strong>de</strong> parentesco entre sí, es <strong>de</strong>cirmadres, padres, hijos y herma<strong>no</strong>s, africa<strong>no</strong>s y criollos. Quizás al <strong>no</strong> tener here<strong>de</strong>rosforzosos pu<strong>do</strong> disponer con más libertad <strong>de</strong> sus bienes.60Los López-Coll tuvieron un total <strong>de</strong> ocho hijos. A<strong>de</strong>más <strong>de</strong> los cuatro que se mencionanen la cesión, estaban Lorenza nacida en 1867 y a la cual la viuda <strong>de</strong> Coll ven<strong>de</strong> en 1877,a un veci<strong>no</strong> <strong>de</strong> la ciudad <strong>de</strong> La Habana; Tecla nacida en 1872 pero muerta ese mismo año<strong>de</strong> téta<strong>no</strong> infantil, y Natividad nacida en 1874, cuya <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ncia llega hasta la actualidad.Sabemos que una vez libres, Florencia y Vidal, retornan a la ciudad.


Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55 49Anexo IArchivo Nacional <strong>de</strong> Cuba. Escribanía <strong>de</strong> Justo Barona 1872. Folio 51.Cesión a ley <strong>de</strong> patronatoEn la ciudad <strong>de</strong> Bejucal en veinte <strong>de</strong> enero <strong>de</strong> mil ochocientos setenta y<strong>do</strong>s ante mí el E<strong>no</strong> y testigos compareció D José Coll, mayor <strong>de</strong> edad, veci<strong>no</strong><strong>de</strong>l cuartón <strong>de</strong> Buenaventura a quien <strong>do</strong>y fe co<strong>no</strong>zco y dijo que conserva ensu po<strong>de</strong>r a ley <strong>de</strong> patronato una negrita <strong>no</strong>mbrada Cecilia <strong>de</strong> tres años <strong>de</strong> edadhija <strong>de</strong> otra que fue su esclava Bal<strong>do</strong>mera criolla que he enajena<strong>do</strong> en esa fechaa favor <strong>de</strong> D Ramón <strong>de</strong> León que por la razón explicada la referida negritaCecilia está comprendida en la ley vigente que trata <strong>de</strong> la libertad <strong>de</strong> esclavosy mediante el <strong>de</strong>recho <strong>de</strong> patronato que aquella le asiste el otorgante <strong>de</strong> suespontánea voluntad y en que está conforme la expuesta su madre ce<strong>de</strong>,renuncia y transfiere dho <strong>de</strong>recho <strong>de</strong> patronato a favor <strong>de</strong> la parda libre SerapiaGonzález a quien en el particular pone en el propio lugar y gra<strong>do</strong> <strong>de</strong>l otorgantepero con expresa sujeción a lo dispuesto sobre el particular por el SuperiorGobier<strong>no</strong> y a lo que en lo a<strong>de</strong>lante pueda or<strong>de</strong>narse respecto a los libertos yestan<strong>do</strong> presente D José López mediante el cargo <strong>de</strong> Serapia González aceptoa su favor está escritura y sus térmi<strong>no</strong>s se da por recibi<strong>do</strong> <strong>de</strong> la negrita Ceciliay ofrece cumplir exactamente con las disposiciones que rigen y puedan regiren lo a<strong>de</strong>lante respecto <strong>de</strong>l particular y por lo que a cada u<strong>no</strong> toca guardar ycumplir obligan sus bienes presentes y futuros conforme a dho, en cuyotestimonio así lo otorgaron firmó el compareciente D José Coll y por elaceptante que expresó <strong>no</strong> saber <strong>de</strong> su ruego lo hizo u<strong>no</strong> <strong>de</strong> los testigos que lofueron D Pedro Aceve<strong>do</strong>, D Luis Ortega y D Francisco <strong>de</strong> Paula González,veci<strong>no</strong>s presentes...


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Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55 53Anexo IICesión a ley <strong>de</strong> patronatoEn la ciudad <strong>de</strong> Bejucal en dieciséis <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> mil ochocientos setenta ytres ante mí el E<strong>no</strong> y testigos compareció Da Merced Díaz viuda mayor <strong>de</strong>edad <strong>de</strong> este vecindario a quien <strong>do</strong>y fe co<strong>no</strong>zco y dijo que le pertenece a ley<strong>de</strong> patronato una pardita <strong>no</strong>mbrada Carlota <strong>de</strong> <strong>do</strong>s años <strong>de</strong> edad hija <strong>de</strong> otrasu esclava llamada María <strong>de</strong> Regla, que ha conveni<strong>do</strong> con Regina Caballero 61su madrina <strong>de</strong> este mismo vecindario ce<strong>de</strong>rle bajo el mismo or<strong>de</strong>n <strong>de</strong> patronatoy con las mismas sujeciones y <strong>de</strong>más requisitos que previene dicha ley y lasque pueda en el caso dictar el Superior Gobier<strong>no</strong> a la referida parda Carlotapara que la posea y utilice en su servicio en el or<strong>de</strong>n y forma que pudierahacerlo la compareciente y conforme a las disposiciones indicadas separán<strong>do</strong>seen consecuencia <strong>de</strong> cualesquiera acción y <strong>de</strong>recho que pudiera asistirle y aque to<strong>do</strong> lo ce<strong>de</strong> y traspasa en la indicada Regina Caballero y sin retribución<strong>de</strong> parte <strong>de</strong> esta <strong>de</strong> ninguna clase y presente la referida Regina aceptó a sufavor esta escritura y recibe la parda Carlota en el or<strong>de</strong>n y térmi<strong>no</strong> en que leva cedida y se obliga a cumplir lo que or<strong>de</strong>na la ley <strong>de</strong> la materia en cuyo testimonioasí lo dijeron y firmó la expuesta Da Merced Díaz <strong>no</strong> hacién<strong>do</strong>lo ReginaCaballero por expresar <strong>no</strong> saber a su ruego lo hizo u<strong>no</strong> <strong>de</strong> los testigos que lofueron D Luis Ortega, D Francisco <strong>de</strong> Paula González y D Francisco Correa,veci<strong>no</strong>s presentes.Nota: En esta fecha di testimonio <strong>de</strong> esta escritura en un pliego <strong>de</strong>l sello <strong>de</strong>pobre. Bejucal julio primero <strong>de</strong> mil ochocientos setenta y tres.61 Regina Caballero era lucumí, fue esclava en el ingenio Santa Ana <strong>de</strong> Aguiar. El abuelo<strong>de</strong> la ahijada <strong>de</strong> Regina también era un lucumí <strong>de</strong> <strong>no</strong>mbre Arcadio. Quizás este hechohaya influi<strong>do</strong> en ambos eventos, es <strong>de</strong>cir en que ella fuera la madrina <strong>de</strong> Carlota y que asu vez aceptara ser su patrona. Archivo <strong>de</strong> la Iglesia Parroquial <strong>de</strong> Ascenso <strong>de</strong> San Felipey Santiago <strong>de</strong>l Bejucal (AIPASFSB). Libro 6, 7 y 8 <strong>de</strong> Bautismos <strong>de</strong> Par<strong>do</strong>s y More<strong>no</strong>s<strong>de</strong> la Iglesia Parroquial <strong>de</strong> Ascenso <strong>de</strong> San Felipe y Santiago <strong>de</strong>l Bejucal.


54Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55Anexo IIICesión <strong>de</strong> patronato Escritura 103En la ciudad <strong>de</strong> Bejucal a veintidós <strong>de</strong> febrero <strong>de</strong> mil ochocientos setentay cinco ante mí D Gaspar Barona y Acosta, E<strong>no</strong> Notario Público con fijaresi<strong>de</strong>ncia en esta dha ciudad y <strong>de</strong> los testigos que se dirán comparecieron <strong>de</strong>una parte D Martín Isla, que dijo ser natural y veci<strong>no</strong> <strong>de</strong>l parti<strong>do</strong> <strong>de</strong> La Salud,<strong>de</strong> esta<strong>do</strong> viu<strong>do</strong>, labra<strong>do</strong>r y <strong>de</strong> sesenta años <strong>de</strong> edad y <strong>de</strong> la otra la morenalibre María <strong>de</strong>l Rosario Rodríguez, natural <strong>de</strong> África, 62 <strong>de</strong> este vecindario,viuda y mayor <strong>de</strong> sesenta años <strong>de</strong> edad a quien co<strong>no</strong>zco <strong>de</strong> que <strong>do</strong>y fe y <strong>de</strong>que aseguran estar al corriente el primero en el pago <strong>de</strong> la contribución segúnrecibo que ha presenta<strong>do</strong> y se le <strong>de</strong>vuelve y la segunda que juró solemnemente<strong>no</strong> poseer bienes <strong>de</strong> ninguna clase y aseguran<strong>do</strong> hallarse en el ple<strong>no</strong> goce <strong>de</strong>sus <strong>de</strong>rechos civiles y con la capacidad legal necesaria para este otorgamientodijeron que el primero tiene a su abrigo y cuida<strong>do</strong> en calidad <strong>de</strong> patro<strong>no</strong> <strong>do</strong>snegritas <strong>no</strong>mbradas María Closefula <strong>de</strong> cuatro años <strong>de</strong> edad y Anastasia <strong>de</strong>nueve meses <strong>de</strong> nacida, criollas, hijas <strong>de</strong> su esclava también criolla llamadaRamona González cuyas párvulas pertenecen a la clase <strong>de</strong> libertas según ladisposición <strong>de</strong>l Superior Gobier<strong>no</strong> y sién<strong>do</strong>le algo gravoso continuar al cuida<strong>do</strong><strong>de</strong> dichas párvulas ha acorda<strong>do</strong> ce<strong>de</strong>r el <strong>de</strong>recho <strong>de</strong> patronato que le competea favor <strong>de</strong> la otra compareciente abuela <strong>de</strong> aquellas quedan<strong>do</strong> excento el otorgante<strong>de</strong> toda responsabilidad pues la compareciente María <strong>de</strong>l RosarioRodríguez se hace cargo <strong>de</strong> las referidas párvulas María Closefula y Anastasiaen calidad <strong>de</strong> patrona obligán<strong>do</strong>se a mantenerlas, vestirlas, calzarlas, educarlas,enseñán<strong>do</strong>le a trabajar e inculcán<strong>do</strong>les buenas materias <strong>de</strong> moralida<strong>de</strong>n sujeción a la que en particular tiene dispuesto el Superior Gobier<strong>no</strong> y a loque en a<strong>de</strong>lante tengan a bien or<strong>de</strong>nar con referencia a dichos libertos sin62María <strong>de</strong>l Rosario Rodríguez, era gangá, estuvo esclavizada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1820 en tierras <strong>de</strong>lQuivicán <strong>do</strong>n<strong>de</strong> procreó una familia <strong>de</strong> ocho hijos con un carabalí <strong>de</strong> <strong>no</strong>mbre Eduar<strong>do</strong>,cuan<strong>do</strong> asume el patronato <strong>de</strong> estas nietas tenía algu<strong>no</strong>s biznietos. AIPASFSB. Libros 6,7, 8 y 9 <strong>de</strong> Bautismos <strong>de</strong> indios, par<strong>do</strong>s y more<strong>no</strong>s <strong>de</strong> la Iglesia Parroquial <strong>de</strong> San Pedro<strong>de</strong>l Quivicán. Ramona Norbeta era la me<strong>no</strong>r <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s sus hijos, nacida en La Salud en1844. AIPASFSB. Libro 3 Bautismos <strong>de</strong> par<strong>do</strong>s y more<strong>no</strong>s <strong>de</strong> la Iglesia <strong>de</strong>l Santo Cristo<strong>de</strong> La Salud. 7 <strong>de</strong> julio <strong>de</strong> 1844.


Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55 55que en manera alguna pueda ser molesta<strong>do</strong> ni perjudica<strong>do</strong> el exponente a cuyoefecto le entrega las expresadas negritas bajo cuyo concepto acepta esta escriturala otra compareciente obligán<strong>do</strong>se al cumplimiento <strong>de</strong> todas las cargasque son consiguientes como tal patrona sin responsabilidad alguna por parte<strong>de</strong> Isla y en esa virtud se da por entregada <strong>de</strong> las indicadas negritas y por loque a cada u<strong>no</strong> toca guardar y cumplir obligan sus bienes conforme a <strong>de</strong>recho,así lo dijeron y otorgaron sien<strong>do</strong> testigos D Pedro Fernán<strong>de</strong>z Corvo y D JoséGenaro Valdés, <strong>de</strong> este vecindario y sin excepción para serlo como lo juran, alos cuales <strong>do</strong>y fe co<strong>no</strong>zco, fueron entera<strong>do</strong>s los otorgantes y testigos por míel <strong>no</strong>tario que podían leer por sí esta escritura, lo que rehusaron por lo cualprocedí a su instancia a la lectura íntegra <strong>de</strong> la misma en su solo acto y en suconteni<strong>do</strong> se ratificaron los primeros, <strong>no</strong> firmaron porque expresaron <strong>no</strong> sabery lo hicieron por D Martín Isla u<strong>no</strong> <strong>de</strong> los testigos y por María <strong>de</strong>l RosarioRodríguez D Francisco <strong>de</strong> Paula González, por ante mí que también <strong>do</strong>yfe.(Firma <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s los comparecientes y la <strong>de</strong>l <strong>no</strong>tario)


56Aisnara Perera Díaz e Maria <strong>de</strong> los Ángeles Meriño Fuentes / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 29-55


ACUSAÇÕES ATL ÂNTICAS:O CASO DOS ESCRAVOS NUMNAVIO FANTASMA – RIO DE JANEIRO, 1861Luiz Alberto CouceiroDoutoran<strong>do</strong> <strong>no</strong> Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Sociologiae Antropologia – IFCS/UFRJResumoNosso objetivo neste artigo é analisar o comércio ilegal <strong>de</strong> escravos, parao <strong>Brasil</strong>, numa perspectiva da História Atlântica. Para tanto, analisaremos<strong>do</strong>cumentos concernentes ao Su<strong>de</strong>ste cafeeiro das décadas <strong>de</strong> 1850e 60, fundamentalmente um processo criminal sobre um navio <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>àquela ativida<strong>de</strong>.Palavras-ChaveEscravidão • História Atlântica • Comércio ilegal <strong>de</strong> escravosAbstractThe objective of this article is to analyze the illegal commerce of slavesto Brazil, from an Atlantic History perspective, through <strong>do</strong>cumentsrelated to the coffee plantations of southeastern Brazil in the 1850s and60s. The article is based essentially on a law suit against a vessel <strong>de</strong>stinedfor such activity.KeywordsSlavery • Atlantic history • Illegal commerce of slaves


58Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77A questão e sua narrativaUma das muitas e variadas maneiras <strong>de</strong> conhecermos histórias <strong>de</strong> relaçõesentre escravos, livres e libertos <strong>no</strong> Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> é através <strong>do</strong>s relatos conti<strong>do</strong>s<strong>no</strong>s processos criminais. Tais fontes não contêm aquilo que foi realmentedito, a “verda<strong>de</strong> positiva”. São narrativas transcritas por membros da burocraciaimperial, traduzin<strong>do</strong> as palavras <strong>do</strong>s <strong>de</strong>poentes para a linguagem jurídica <strong>de</strong>então. Entretanto, o dialeto social das relações entre pessoas e grupos po<strong>de</strong> serem parte conheci<strong>do</strong> através da linguagem jurídica inquisitorial, investigativa,fruto da tentativa <strong>de</strong> arrancar a verda<strong>de</strong> policial <strong>do</strong> interior <strong>do</strong>s potencialmentecrimi<strong>no</strong>sos, até que fosse prova<strong>do</strong> o contrário 1 . Não é <strong>de</strong> hoje que a historiografiainternacional se <strong>de</strong>dica a formular méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> estu<strong>do</strong>, pesquisa e escrita sobrea construção <strong>de</strong> relações sociais, aproveitan<strong>do</strong> as fontes escritas produzidas,direta ou indiretamente, por aparelhos institucionais repressivos. Em estu<strong>do</strong>ssignificativos é possível mencionar a utilização <strong>de</strong> fontes tais como processosinquisitoriais sobre cosmologia popular <strong>de</strong> um moleiro em Friuli, <strong>no</strong> século XVI,<strong>de</strong>safia<strong>do</strong>ra da interpretação única da Igreja sobre o universo; <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong>acusa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> heresia <strong>no</strong>s Pirineus, fruto da perseguição da Inquisição, <strong>no</strong> séculoXIV; <strong>do</strong>cumentos cartoriais sobre disputas <strong>de</strong> terra ao re<strong>do</strong>r da figura <strong>de</strong> umexorcista na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Santena, <strong>no</strong> século XVII; cartas <strong>de</strong> pedi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> perdãopor crimes como último recurso ao Rei <strong>de</strong> França e a literatura clan<strong>de</strong>stina naFrança <strong>do</strong> século <strong>XVIII</strong>, antes mesmo da eclosão da Revolução <strong>de</strong> 1789. 21Para exemplos <strong>de</strong> autores que trabalharam com processos criminais sob esta lógica, ver:CHALHOUB, Sidney. Visões da liberda<strong>de</strong>: uma história das últimas décadas da escravidãona Corte. São Paulo: Companhia das Letras, 1990; COUCEIRO, Luiz Alberto. Bumerangueencapsula<strong>do</strong>: um estu<strong>do</strong> sobre a construção social da subjetivida<strong>de</strong> numa cida<strong>de</strong> escravista,Rio <strong>de</strong> Janeiro, c.1860-c.1888. Rio <strong>de</strong> Janeiro: 7Letras, 2003; MACHADO, Maria HelenaPereira Tole<strong>do</strong>. Crime e escravidão: trabalho, luta e resistência nas lavouras paulistas, 1820-1888. São Paulo: <strong>Brasil</strong>iense, 1987 e O pla<strong>no</strong> e o pânico: os movimentos sociais na décadada abolição. Rio <strong>de</strong> Janeiro/São Paulo: Editora UFRJ/EDUSP, 1994.2 Na or<strong>de</strong>m <strong>do</strong>s assuntos apresenta<strong>do</strong>s, cf.: GINZBURG, Carlo. O queijo e os vermes: ocotidia<strong>no</strong> e as idéias <strong>de</strong> um moleiro persegui<strong>do</strong> pela Inquisição. São Paulo: Companhiadas Letras, 1996; LADURIE, Emmanuel Le Roy. Montaillou: povoa<strong>do</strong> occitânico, 1294-1324. São Paulo: Companhia das Letras, 1997; LEVI, Giovanni. A herança imaterial: atrajetória <strong>de</strong> um exorcista <strong>no</strong> Piemonte <strong>do</strong> século XVII. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização <strong>Brasil</strong>eira,2000; DAVIES, Natalie. Histórias <strong>de</strong> perdão e seus narra<strong>do</strong>res na França <strong>do</strong> séculoXVI. São Paulo: Companhia das Letras, 2001 e DARNTON, Robert. Edição e sedição: ouniverso da literatura clan<strong>de</strong>stina <strong>no</strong> século <strong>XVIII</strong>. São Paulo: Companhia das Letras, 1992.


Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77 59Em alguma medida, esses autores se <strong>de</strong>tiveram na análise <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentosconstruí<strong>do</strong>s a partir <strong>de</strong> uma acusação: heresia, feitiçaria, pacto com o diabo,crimes <strong>de</strong> assassinato e subversão política. Uma vez feita oficialmente, a acusação<strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ia um processo <strong>de</strong> relações entre fatores os mais diversos, porpares <strong>de</strong> oposição, metáfora, e semelhança, metonímia, relembran<strong>do</strong> as já consagradascategorias <strong>de</strong> Lévi-Strauss. 3 No caso <strong>do</strong> pensamento or<strong>de</strong>na<strong>do</strong> pelametáfora, as comparações são infinitas, posto que tu<strong>do</strong> <strong>no</strong> cosmos faz senti<strong>do</strong>.Nesta forma <strong>de</strong> pensamento, a construção mental está mais ligada às sensações.No caso <strong>do</strong> pensamento or<strong>de</strong>na<strong>do</strong> pela metonímia, as comparaçõessão finitas, estabelecidas por conceitos, substituin<strong>do</strong> o efeito pela sua causa.Mas, o que po<strong>de</strong>mos tirar disso?Como bem lembraram Mauss & Durkheim, a ativida<strong>de</strong> classificatória po<strong>de</strong>iludir a muitos que seja individual, mas trata-se <strong>de</strong> um fenôme<strong>no</strong> da coletivida<strong>de</strong>,produto da vida social, unin<strong>do</strong> as idéias entre si <strong>no</strong> processo <strong>de</strong> construçãodas formas <strong>de</strong> percepção e conhecimento <strong>do</strong> homem sobre os fenôme<strong>no</strong>ssociais. 4 Pensemos, assim, quan<strong>do</strong> algum comportamento é classifica<strong>do</strong>, porautorida<strong>de</strong>s reconhecidas por instituições repressoras, como con<strong>de</strong>nável, erra<strong>do</strong>ou perigoso. A pessoa acusada <strong>de</strong>ve ser afastada <strong>do</strong> convívio social, postoque ela correspon<strong>de</strong> ao tal comportamento – pacto com diabo, <strong>de</strong>safiar aleitura única <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> da Igreja, blasfemar o Esta<strong>do</strong> francês, por exemplo.Por conseguinte, a pessoa se comporta <strong>no</strong> senti<strong>do</strong> contrário ao <strong>de</strong> seus acusa<strong>do</strong>res,uma vez que são eles os “<strong>do</strong><strong>no</strong>s” <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> classificação. Teríamos,assim, uma metáfora. Por outro la<strong>do</strong>, teríamos uma metonímia <strong>no</strong> caso<strong>do</strong> tribunal da Inquisição, como exemplo <strong>de</strong> aparelho repressor, cada vez maisconceituar numa certa categoria um número varia<strong>do</strong> <strong>de</strong> comportamentos. Éneste senti<strong>do</strong> que trabalharemos.3LÉVI-STRAUSS, Clau<strong>de</strong>. Totemismo hoje. In: Lévi-Strauss. São Paulo: Abril Cultural, 1976,pp. 95-187, Coleção Os Pensa<strong>do</strong>res, vol. L. Esta discussão esten<strong>de</strong>-se em LÉVI-STRAUSS,Clau<strong>de</strong>. O pensamento selvagem. 2 ª . Edição. Campinas: Papirus, 1997, princ. “1 – A ciência<strong>do</strong> concreto”, pp. 15-49. Sobre outras possíveis conexões entre conceitos <strong>de</strong> Lévi-Strauss e aHistória como disciplina, ver GOLDMAN, Márcio. “Lévi-Strauss e os senti<strong>do</strong>s da história.”In: Alguma antropologia. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Relume-Dumará, 1999, pp. 55-64.4 DURKHEIM, Émile & MAUSS, Marcel. “Algumas formas primitivas <strong>de</strong> classificação.” In:MAUSS, Marcel. Ensaios <strong>de</strong> sociologia. 2 ª . Edição. São Paulo: Perspectiva, 1999, pp. 399-455.


60Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77Afinal <strong>de</strong> contas, to<strong>do</strong> processo criminal, ao me<strong>no</strong>s <strong>no</strong> Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>,é <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>a<strong>do</strong> por uma acusação formal, oficializada pela Justiça, após a investigaçãopolicial. Acusa<strong>do</strong>r e acusa<strong>do</strong> serão <strong>no</strong>ssos personagens, e temosque saber o mínimo sobre seus perfis sociais, bem como o clima social <strong>no</strong> qualse encontraram, <strong>no</strong> momento em que se confrontaram, geran<strong>do</strong> um <strong>do</strong>cumento.Desta forma, perguntamos: <strong>no</strong> Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, seria possível uma autorida<strong>de</strong><strong>de</strong>stas instituições inquisitoriais ser acusada, neste mesmo processo <strong>de</strong> produçãoda verda<strong>de</strong>? Nosso objetivo é construir a resposta <strong>de</strong> tal pergunta através<strong>do</strong> estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> que chamamos “acusação atlântica”, um tipo <strong>de</strong> acusação que sópo<strong>de</strong> ser feita, pois só faz senti<strong>do</strong>, <strong>no</strong> momento em que as pessoas em relaçãocompreen<strong>de</strong>m que fazem parte <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relação internacional, como, porexemplo, numa legislação que abarca várias regiões <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A ativida<strong>de</strong> <strong>do</strong>comércio <strong>de</strong> escravos ligava pessoas <strong>de</strong> origem diversa, comportamentos e línguasas mais variadas, produzin<strong>do</strong> <strong>no</strong>vos ambientes <strong>de</strong> convivência, como osnavios negreiros – que transportavam informações e culturas construídas em seuinterior. 5 Estes vários ambientes não po<strong>de</strong>m ser sufoca<strong>do</strong>s através abordagensque levem em conta culturas subordinadas a territórios nacionais, pura e simplesmente.Em se tratan<strong>do</strong> <strong>de</strong> “acontecimentos hemisféricos”, como o tráficointernacional <strong>de</strong> escravos, havia intensa comunicação entre os sujeitos envolvi<strong>do</strong>s,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s preocupadas em reprimir tal ativida<strong>de</strong>, outras preocupadasem lucrar com a mesma e até mesmo marinheiros, os próprios escravos esenhores <strong>de</strong> muitas plantations. 6 Várias pontas <strong>do</strong> Atlântico juntam-se em eventos5O navio como metáfora é utiliza<strong>do</strong> por nós <strong>no</strong> senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> GILROY, Paul. O Atlânticonegro: mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e dupla consciência. Rio <strong>de</strong> Janeiro, São Paulo: Centro <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>sAfro-Asiáticos/UCAM, Editora 34, 2000, p. 38.6Para maior análise <strong>do</strong> chama<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> atlântico, ver LINEBAUGH, Peter. Todas as montanhasatlânticas estremeceram. Revista <strong>Brasil</strong>eira <strong>de</strong> História. São Paulo: ANPUH, MarcoZero, n. 6, setembro <strong>de</strong> 1983, pp. 7-46. Ver também o aprofundamento <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate emSWEENY, Robert. Outras canções <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>: uma crítica <strong>de</strong> “Todas as montanhas atlânticasestremeceram” e LINEBAUGH, Peter. "Réplica". Revista <strong>Brasil</strong>eira <strong>de</strong> História. SãoPaulo: ANPUH, Marco Zero, v. 8, n. 16, março/agosto <strong>de</strong> 1988, pp. 205-231. Sobre umaaplicação sistemática <strong>de</strong>ste <strong>de</strong>bate para o perío<strong>do</strong> próximo ao que vamos trabalhar, verSOARES, Carlos Eugênio Líba<strong>no</strong> & GOMES, Flávio <strong>do</strong>s Santos. Sedições, haitianismo econexões <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>: outras margens <strong>do</strong> Atlântico negro. Novos Estu<strong>do</strong>s CEBRAP, n. 63,julho <strong>de</strong> 2002, pp. 131-144 e GOMES, Flávio <strong>do</strong>s Santos. Experiências transatlânticas esignifica<strong>do</strong>s locais: idéias, temores e narrativas em tor<strong>no</strong> <strong>do</strong> Haiti <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> escravista.Revista Tempo. Rio <strong>de</strong> Janeiro, v. 7, n. 13, 2002, pp. 209-246. Sobre a percepção senhorialacerca da politização <strong>do</strong>s escravos <strong>no</strong> contexto <strong>de</strong> insurreições nas Américas, com informaçõesinterpretadas <strong>no</strong> âmbito internacional, ver GENOVESE, Eugene. Da revolução à


Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77 61como os que vamos narrar e, embora cada lugar tenha as suas especificida<strong>de</strong>s<strong>no</strong> envolvimento com o tráfico <strong>de</strong> escravos, os sujeitos não estavam alheios aoque pensavam sobre acontecimentos políticos <strong>no</strong>utros lugares também envolvi<strong>do</strong>scom aquele comércio. Mais <strong>do</strong> que pensar o Atlântico como um gran<strong>de</strong> eúnico sistema econômico, pensemos como área <strong>de</strong> circulação <strong>de</strong> idéias políticase outras mais. 7O navio: palco <strong>de</strong> um “assassi<strong>no</strong>”, <strong>de</strong> uma “vítima” e das outras em potencialMa<strong>no</strong>el José <strong>de</strong> Campos, juiz <strong>de</strong> Direito <strong>de</strong> Macaé, estava sen<strong>do</strong> processa<strong>do</strong>“justamente pelo zelo com que, sacrifican<strong>do</strong> os seus cômo<strong>do</strong>s, tratoualta <strong>no</strong>ite <strong>de</strong> impedir que um homem ébrio ou malva<strong>do</strong>, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> praticar um<strong>de</strong>lito, continuasse a praticar outros”. 8 A altas horas da madrugada <strong>do</strong> dia <strong>de</strong>z<strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1861, conta Ma<strong>no</strong>el José que foi avisa<strong>do</strong> pelo capitão <strong>de</strong> um barcoque em seu navio se <strong>de</strong>ra um <strong>de</strong>lito. O “<strong>de</strong>linqüente”, contou o tal capitão,se preparava para cometer outros <strong>de</strong>litos. Já o havia coloca<strong>do</strong> a ferros há <strong>do</strong>isdias, em seu navio, mas isso ainda não o havia acalma<strong>do</strong>. Por isso, o juiz foiacorda<strong>do</strong> com o pedi<strong>do</strong> <strong>de</strong> expedir uma patrulha o mais rápi<strong>do</strong> possível parao navio, a fim <strong>de</strong> impedir maior tragédia. Foi o que Ma<strong>no</strong>el José fez, conseguin<strong>do</strong>pren<strong>de</strong>r o <strong>de</strong>linqüente, instauran<strong>do</strong> processo contra o mesmo, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>o capitão <strong>do</strong> navio “muito satisfeito com aquelas providências”.rebelião. São Paulo: Global, 1983, pp. 25-61. Para um gran<strong>de</strong> pa<strong>no</strong>rama <strong>do</strong>s <strong>de</strong>bates diversossobre a perspectiva teórico-meto<strong>do</strong>lógica da História Atlântica, ver CANNY, Nicholas.Writing Atlantic History, or, Reconfiguring the History of Colonial British America. TheJournal of American History, v. 86, n. 3, The nation and beyond: transnational perspectiveson United States History. A special issue. Dec. 1999, pp, 1093-1114, e, para um resumo daperspectiva teórica da história atlântica ver THORNTON, John. A África e os africa<strong>no</strong>s naformação <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> atlântico, 1400-1800. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Campus, 2004, pp. 41-50".7Ver LAW, Robin & MANN, Kristin. West Africa in the Atlantic community: the case ofthe slave coast. The William and Mary Quarterly, 3rd. Series, v. 56, n.2, African andAmerican Atlantic Worlds, apr., 1999, pp. 307-334. Uma abordagem econômica e comparativa<strong>do</strong> Atlântico para o tráfico <strong>de</strong> escravos em relação com os motivos materiais daa<strong>do</strong>ção da mão-<strong>de</strong>-obra compulsória africana nas Américas po<strong>de</strong> ser encontrada emMENARD, Russel R. & SCHWARTZ, Stuart B. “Por que a escravidão africana? A transiçãoda força <strong>de</strong> trabalho <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, <strong>no</strong> México e na Carolina <strong>do</strong> Sul.” In: SZMRECSÁNYI,Tamás (org.), História econômica <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> colonial: coletânea <strong>de</strong> textos apresenta<strong>do</strong>s<strong>no</strong> I Congresso <strong>Brasil</strong>eiro <strong>de</strong> História Econômica (Campus da USP, setembro <strong>de</strong> 1993).São Paulo: HUCITEC, FAPESP, 1996, pp. 3-19.8 Arquivo Nacional, <strong>do</strong>ravante AN, Corte <strong>de</strong> Apelação, Trasla<strong>do</strong>, caixa 130, n. 374, galeria C.


62Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77Após estes fatos, o navio se ausentou <strong>do</strong> porto <strong>de</strong> Macaé. As <strong>de</strong>mais providênciasnão pu<strong>de</strong>ram ser tomadas, uma vez que as investigações <strong>de</strong>veriamser feitas <strong>no</strong> interior <strong>do</strong> navio. Assim, Ma<strong>no</strong>el José teve que esperar seu regresso.O problema técnico que havia <strong>no</strong> processo era simplesmente o fato daprisão ter si<strong>do</strong> feita sem flagrante <strong>de</strong>lito, ou seja, baseada apenas nas <strong>de</strong>núncias<strong>do</strong> capitão <strong>do</strong> navio, confirmadas por sua tripulação. Depoimentos oficiaisnão foram colhi<strong>do</strong>s, apenas informais. Isso gerou um processo <strong>do</strong> presocontra o juiz Ma<strong>no</strong>el José. O <strong>do</strong>cumento que achamos, único sobre o caso, éparte transcrita <strong>de</strong>ste processo – Trasla<strong>do</strong> – na qual o juiz queixa-se exatamente<strong>de</strong> uma “injustiça” cometida contra sua “figura pública”.To<strong>do</strong>s os informantes, os marinheiros, eram escravos, segun<strong>do</strong> afirmou ocapitão <strong>do</strong> navio, que não voltou para ver o que havia aconteci<strong>do</strong> com o “<strong>de</strong>linqüente”.Ao que tu<strong>do</strong> indica, tratava-se <strong>de</strong> alguém que não se a<strong>de</strong>quava maisàquela embarcação, sen<strong>do</strong> <strong>de</strong>speja<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneira legal em algum porto <strong>do</strong> Império<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, uma vez que o navio vinha <strong>de</strong> Cuba – mas com o “capitão falan<strong>do</strong>português claro”, segun<strong>do</strong> o juiz relatou. Além <strong>de</strong> o navio passar incólume pelacosta brasileira, tu<strong>do</strong> ocorreu como se não tivesse esta<strong>do</strong> por aqui. O que ficou<strong>de</strong> tu<strong>do</strong> isso foram os relatos <strong>do</strong> preso, bem como os <strong>do</strong>s policiais que foram atéo navio executar a prisão. O juiz viu a embarcação, e não apenas falou com oseu capitão. Algumas pessoas da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Macaé, segun<strong>do</strong> o juiz, “são testemunhas<strong>de</strong> seu ato <strong>de</strong> justiça e zelo pela or<strong>de</strong>m pública”. Foram muitas as queviram o navio, e presenciaram a tumultuada cena da prisão.Mas, perguntemos, alguém viu os marinheiros escravos? Alguma autorida<strong>de</strong>registrou a passagem <strong>do</strong> navio pelo <strong>Brasil</strong>? Alguém sabia o <strong>no</strong>me <strong>de</strong> algum<strong>do</strong>s seus tripulantes? É compreensível, <strong>de</strong>sta forma, que não haja <strong>do</strong>cumentoalgum para o pesquisa<strong>do</strong>r trabalhar da<strong>do</strong>s sobre este navio, uma vez que nemmesmo as autorida<strong>de</strong>s imperiais os tinham para construir o processo criminalcontra o suposto “<strong>de</strong>linqüente”. Desta forma, po<strong>de</strong>mos dizer que se tratava etrata-se <strong>de</strong> um navio fantasma com escravos, a princípio marinheiros, rapidamentevistos pelos poucos policiais que estiveram a seu bor<strong>do</strong>.O clima social <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssa históriaRelembremos, sumariamente, as leis e seus <strong>de</strong>vi<strong>do</strong>s impactos para o final<strong>do</strong> comércio Atlântico <strong>de</strong> escravos para o <strong>Brasil</strong>, para abrirmos <strong>no</strong>vas questõesem <strong>no</strong>sso caso.


Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77 63Em 1810, mais precisamente em 19 <strong>de</strong> fevereiro, os gover<strong>no</strong>s <strong>de</strong> Portugal eInglaterra assinaram o trata<strong>do</strong> <strong>de</strong> Aliança e Amiza<strong>de</strong>. Na cláusula X, D. João,regente <strong>de</strong> Portugal, e Lord Strangford, envia<strong>do</strong> inglês à corte portuguesa, confessavam-seplenamente convenci<strong>do</strong>s da injustiça e má política <strong>do</strong> comércio <strong>de</strong> escravos.A coroa portuguesa comprometia-se a colaborar com a supressão <strong>do</strong> comércio<strong>de</strong> escravos, proibin<strong>do</strong> seus súditos <strong>de</strong> comerciá-los em territóriosafrica<strong>no</strong>s que não pertencessem a ela. Entretanto, vale ressaltar que, aos súditosportugueses foi conserva<strong>do</strong> o direito <strong>de</strong> traficar escravos <strong>no</strong>s <strong>do</strong>mínios lusita<strong>no</strong>sna África. 9 Muitos membros da burocracia inglesa liga<strong>do</strong>s ao comércio marítimoreclamaram que os traficantes portugueses não eram bem policia<strong>do</strong>s porPortugal, e um forte indício da má-vonta<strong>de</strong> <strong>do</strong> gover<strong>no</strong> <strong>de</strong>sse país em cumprir otrata<strong>do</strong> po<strong>de</strong> ser a dificulda<strong>de</strong> que o gover<strong>no</strong> inglês teve para conseguir passaraquela proibição. 10 Des<strong>de</strong> 1807, o gover<strong>no</strong> inglês já havia proscrito a participação<strong>de</strong> súditos ingleses <strong>no</strong> tráfico <strong>de</strong> escravos, inician<strong>do</strong> imediata campanha militare diplomática contra o mesmo. Portanto, há mais tempo <strong>do</strong> que a assinatura<strong>do</strong>s trata<strong>do</strong>s <strong>de</strong> 1810, o gover<strong>no</strong> inglês pressionava o <strong>de</strong> Portugal para a<strong>de</strong>rir àcampanha contra o comércio <strong>de</strong> escravos.Em 21 e 22 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1815, ambos gover<strong>no</strong>s firmaram <strong>no</strong>vo trata<strong>do</strong> <strong>de</strong>limitan<strong>do</strong>precisamente em quais territórios o comércio <strong>de</strong> escravos seria proibi<strong>do</strong>na costa da África. Mais uma vez, constava neste trata<strong>do</strong> o compromisso <strong>de</strong>que ambas nações agiriam juntas para a gradual supressão <strong>do</strong> comércio <strong>de</strong> escravos.O príncipe regente <strong>de</strong> Portugal proibia que seus vassalos comerciassem oucomprassem escravos em qualquer parte da África ao <strong>no</strong>rte <strong>do</strong> Equa<strong>do</strong>r. Em1817, uma convenção dava direitos a ambos gover<strong>no</strong>s <strong>de</strong> dar buscas em naviosum <strong>do</strong> outro, para verificar a mínima suspeita <strong>de</strong> tráfico <strong>de</strong> escravos. Esta situaçãoradicalizou, em março <strong>de</strong> 1823, com um artigo adicional àquela convençãoque <strong>de</strong>cidia que navios <strong>de</strong> traficantes apresa<strong>do</strong>s pelos cruza<strong>do</strong>res daquelasmarinhas seriam con<strong>de</strong>na<strong>do</strong>s pelos Comissários.Em 23 <strong>de</strong> <strong>no</strong>vembro <strong>de</strong> 1826, <strong>no</strong>vo trata<strong>do</strong> entre <strong>Brasil</strong> e Inglaterra marcoua pressão <strong>de</strong>ste último país a fim <strong>de</strong> impedir que súditos <strong>do</strong> Império <strong>do</strong>9Cf. BETHELL, Leslie. A abolição <strong>do</strong> tráfico <strong>de</strong> escravos <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>: a Grã-Bretanha, o<strong>Brasil</strong> e a questão <strong>do</strong> tráfico <strong>de</strong> escravos. Rio <strong>de</strong> Janeiro, São Paulo: Expressão e Cultura,Editora da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, 1976, p. 22.10Cf. MANCHESTER, Alan K Preeminência inglesa <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>. São Paulo: <strong>Brasil</strong>iense,1973, pp. 151-154.


64Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77<strong>Brasil</strong> comerciassem escravos na costa da África, sen<strong>do</strong> consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> pirataria.Parte <strong>de</strong>ste trata<strong>do</strong> serviu <strong>de</strong> base para a lei <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> <strong>no</strong>vembro <strong>de</strong> 1831,afirman<strong>do</strong> que to<strong>do</strong>s os africa<strong>no</strong>s que foram vendi<strong>do</strong>s como escravos <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> esta data, seriam consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s libertos. Além disso, os traficantesseriam puni<strong>do</strong>s com multa e a pena <strong>de</strong> reexportar os libertos <strong>de</strong> volta para aÁfrica. Até 1845, <strong>de</strong>ram-se algumas reuniões entre representantes <strong>do</strong>s gover<strong>no</strong>s<strong>de</strong> <strong>Brasil</strong> e Inglaterra para negociar com me<strong>no</strong>r ou maior afinco, respectivamente,o final <strong>do</strong> comércio <strong>de</strong> escravos da África para o <strong>Brasil</strong>. Naquelea<strong>no</strong>, além <strong>do</strong> gover<strong>no</strong> inglês reforçar aquela ativida<strong>de</strong> comercial como pirataria,alegava ter o direito <strong>de</strong> dar buscas em navios suspeitos <strong>de</strong> traficar escravos,bem como sujeitar aos tribunais <strong>do</strong> Almiranta<strong>do</strong> e Vice-Almiranta<strong>do</strong>, emseus <strong>do</strong>mínios, os navios brasileiros comprovadamente da<strong>do</strong>s ao tráfico. Erao Bill Aber<strong>de</strong>en, aplica<strong>do</strong> com vigor pelo gover<strong>no</strong> inglês, e senti<strong>do</strong> por umasérie <strong>de</strong> traficantes <strong>de</strong> escravos com as freqüentes perdas comerciais. 11Em 1850, finalmente o Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> resolveu que não mediria esforçospara fiscalizar a aplicação <strong>de</strong> uma <strong>no</strong>va lei, que proibiria o tráfico internacional<strong>de</strong> escravos. Em fins <strong>de</strong> 1849, o então chefe <strong>de</strong> polícia <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro,Eusébio <strong>de</strong> Queiroz, preveniu traficantes <strong>de</strong> escravos <strong>de</strong> que isso realmenteocorreria <strong>no</strong> a<strong>no</strong> seguinte. Temen<strong>do</strong> que não lhe <strong>de</strong>ssem crédito, man<strong>do</strong>u apolícia dar incursões <strong>de</strong> apreensão e fechar os principais <strong>de</strong>pósitos <strong>de</strong> escravos,<strong>no</strong>s arre<strong>do</strong>res da Corte. 12Até então, <strong>de</strong>sembarques clan<strong>de</strong>sti<strong>no</strong>s eram realiza<strong>do</strong>s com a cumplicida<strong>de</strong><strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> agentes <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> corrompi<strong>do</strong>s por traficantes e gran<strong>de</strong>ssenhores <strong>de</strong> escravos – fugin<strong>do</strong>, em gran<strong>de</strong> parte, da fiscalização exercidapor funcionários da marinha inglesa. Os agentes que tentavam aplicar as leisa rigor eram, freqüentemente, hostiliza<strong>do</strong>s pelos corruptos, <strong>de</strong>miti<strong>do</strong>s e atémesmo assassina<strong>do</strong>s. O abuso <strong>de</strong> funcionários da marinha e <strong>do</strong> exército brasileirosera tal que muitos alugavam instalações <strong>do</strong> gover<strong>no</strong> para servirem <strong>de</strong> <strong>de</strong>pósitos<strong>de</strong> escravos. Em 1838 e 1839, por exemplo, um certo coronel Vasques, comandanteda fortaleza <strong>de</strong> São João – localizada à entrada <strong>do</strong> porto <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro – trans-11Para um resumo <strong>de</strong>stas e <strong>de</strong> outras leis antitráfico <strong>de</strong> escravos, da conjuntura diplomáticaentre <strong>Brasil</strong> e Inglaterra bem como algumas outras nações que participavam <strong>do</strong> comércionegreiro, ver GOULART, Maurício. A escravidão africana <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>: das origensà extinção <strong>do</strong> tráfico. 3 a . edição revista. São Paulo: Alfa-Ômega, 1975, pp. 219-263.12 Cf. BETHELL, Leslie. A abolição <strong>do</strong> tráfico <strong>de</strong> escravos <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, p. 301.


Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77 65formou-a num <strong>de</strong>stes <strong>de</strong>pósitos. Em socieda<strong>de</strong> com um tal coronel Tota, que controlavaum outro <strong>de</strong>pósito, situa<strong>do</strong> na baía <strong>de</strong> Botafogo, conseguiu que 12.570 escravosfossem <strong>de</strong>sembarca<strong>do</strong>s <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>. 13 Pessoas eram contratadas pelos traficantespara observarem a costa brasileira, dan<strong>do</strong> sinal para que pequenas embarcações,num momento <strong>de</strong> me<strong>no</strong>r atenção <strong>do</strong>s ingleses, levassem os escravos para o continente.Os escravos iam para lugares já prepara<strong>do</strong>s para recebê-los, on<strong>de</strong> eram vesti<strong>do</strong>scomo se fossem escravos já há tempo <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> e envia<strong>do</strong>s para seus compra<strong>do</strong>resnas casas <strong>de</strong> leilão localizadas na Corte. Enquanto isso, os tumbeiros erampinta<strong>do</strong>s e reforma<strong>do</strong>s para não dar na vista sua real função mercantil, seguin<strong>do</strong> paraganhar lastro na alfân<strong>de</strong>ga <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. 14Apesar <strong>de</strong>stes problemas, quanto maior as campanhas e a repressão oficiaiscontra o comércio <strong>de</strong> escravos para o <strong>Brasil</strong>, me<strong>no</strong>s prestigiada era a imagem<strong>do</strong> traficante: <strong>de</strong> comerciantes ricos e influentes, passaram a piratas vorazese indig<strong>no</strong>s <strong>de</strong> se manterem <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>. Além disso, muitos políticos viam naação <strong>do</strong>s traficantes a semente da gran<strong>de</strong> leva <strong>de</strong> corrupção entre funcionários<strong>de</strong> vários escalões <strong>do</strong> gover<strong>no</strong>. 15 Nos a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> 1830, po<strong>de</strong>-se até mesmo falarnuma “comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> traficantes”, posto que faziam parte <strong>de</strong> uma íntima re<strong>de</strong><strong>de</strong> relações sociais: ocupavam cargos públicos <strong>de</strong> confiança, eram as gran<strong>de</strong>sfortunas da Corte, as relações entre os traficantes transbordavam <strong>do</strong> âmbito comercialpara o pessoal e afetivo, caracterizan<strong>do</strong> um tipo <strong>de</strong> negócio que rezavamais pelas relações pessoais <strong>de</strong> confiança, <strong>do</strong> que pelas impessoais puramenteeconômicas. 16Em 4 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1850, o projeto <strong>de</strong> lei para o final <strong>do</strong> tráfico internacional<strong>de</strong> escravos para o <strong>Brasil</strong>, discuti<strong>do</strong> <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1848, era sanciona<strong>do</strong> em lei peloImpera<strong>do</strong>r Pedro II. Des<strong>de</strong> então, conforme rezava o texto <strong>do</strong> artigo primeiro, osnavios brasileiros, on<strong>de</strong> quer que fossem encontra<strong>do</strong>s, e os navios estrangeiros<strong>de</strong>scobertos em portos, baías, ancora<strong>do</strong>uros e águas territoriais <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, que esti-13Cf. CONRAD, Robert. Tumbeiros: o tráfico escravista para o <strong>Brasil</strong>. São Paulo:<strong>Brasil</strong>iense, 1985, p. 126.14 Cf. CONRAD, Robert. Tumbeiros, p. 130.15 RODRIGUES, Jaime. O infame comércio: propostas e experiências <strong>no</strong> final <strong>do</strong> tráfico<strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s para o <strong>Brasil</strong> (1800-1850). Campinas: Editora da UNICAMP, CECULT,2000, pp. 127-132.16 Este conceito é construí<strong>do</strong> e <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> por FLORENTINO, Ma<strong>no</strong>lo. Em costasnegras: uma história <strong>do</strong> tráfico <strong>de</strong> escravos entre a África e o Rio <strong>de</strong> Janeiro (séculos<strong>XVIII</strong> e <strong>XIX</strong>). São Paulo: Companhia das Letras, 1997, princ. p. 204 em diante.


66Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77vessem transportan<strong>do</strong> escravos eram passíveis <strong>de</strong> captura pelas autorida<strong>de</strong>s brasileiras.A importação <strong>de</strong> escravos para o <strong>Brasil</strong> era, assim, <strong>de</strong>clarada pirataria. Umasérie <strong>de</strong> artigos impunha punições severas aos cúmplices <strong>do</strong>s traficantes – comoa tripulação <strong>do</strong>s navios e funcionários <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> – e legislava sobre o <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> <strong>do</strong>safrica<strong>no</strong>s recupera<strong>do</strong>s pelo <strong>Brasil</strong> – isto é, trabalhar para o Esta<strong>do</strong> até serem reexporta<strong>do</strong>scom custas pagas pelo mesmo. Decretos seguintes à lei a complementaram,como o <strong>de</strong> 14 <strong>de</strong> <strong>no</strong>vembro, <strong>no</strong> qual o gover<strong>no</strong> <strong>de</strong>terminava os critériospara que um navio fosse consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> tumbeiro. 17Mesmo assim, muitos <strong>do</strong>s envolvi<strong>do</strong>s <strong>no</strong> tráfico <strong>de</strong> escravos duvidaram<strong>do</strong> peso da <strong>no</strong>va lei em seus negócios. Até o caso <strong>do</strong> porto <strong>do</strong> Bracuhy, emAngra <strong>do</strong>s <strong>Reis</strong>, bem perto da Corte, envolven<strong>do</strong> importantes figuras políticas<strong>do</strong> Império e prósperos cafeicultores.O Diário <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>no</strong>ticiava, em 11 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 1852, a existência<strong>de</strong> forte boato acerca <strong>do</strong> <strong>de</strong>sembarque <strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s <strong>no</strong> porto <strong>do</strong> Bracuhy,em Angra <strong>do</strong>s <strong>Reis</strong>. No mês <strong>de</strong> janeiro, as autorida<strong>de</strong>s policiais confirmarama <strong>no</strong>tícia, após <strong>de</strong>núncia feita pelo <strong>de</strong>lega<strong>do</strong> <strong>de</strong> polícia <strong>de</strong> Angra em carta <strong>de</strong>22 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro ao ministro <strong>do</strong>s Negócios da Justiça, José Il<strong>de</strong>fonso <strong>de</strong> SousaRamos – substituto <strong>de</strong> Eusébio <strong>de</strong> Queiroz. Segun<strong>do</strong> a carta, escravos foram<strong>de</strong>sembarca<strong>do</strong>s <strong>de</strong> um navio comanda<strong>do</strong> por um capitão <strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong>,rumo à fazenda Santa Rita, <strong>do</strong> comenda<strong>do</strong>r Joaquim José <strong>de</strong> Sousa Breves –<strong>no</strong>sso conheci<strong>do</strong> <strong>de</strong> outros trabalhos. Depois disso, o barco havia si<strong>do</strong> queima<strong>do</strong>em alto-mar. Ainda em janeiro, o ministro informa ao Impera<strong>do</strong>r que<strong>do</strong>is marinheiros <strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong>s, um espanhol e outro inglês haviam si<strong>do</strong>presos. To<strong>do</strong>s trabalhavam <strong>no</strong> tumbeiro Camargo, e confessaram ter participa<strong>do</strong><strong>do</strong> <strong>de</strong>sembarque <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> 500 africa<strong>no</strong>s <strong>no</strong> porto <strong>do</strong> Bracuhy. 18O <strong>de</strong>lega<strong>do</strong> <strong>de</strong> polícia local, Manuel <strong>de</strong> Aguiar Vallim, também era <strong>do</strong><strong>no</strong><strong>de</strong> gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> terras e escravos – segun<strong>do</strong> vários indícios, havia relaçãodireta entre seu enriquecimento e o lucrativo tráfico <strong>de</strong> escravos africa<strong>no</strong>s.19 Seu envolvimento com o caso repercutiu na imprensa local e na Corte.17 Cf. BETHEL, Leslie. A abolição <strong>do</strong> tráfico <strong>de</strong> escravos <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, p. 323-324.18 Cf. ABREU, Martha. “O caso <strong>do</strong> Bracuhy.” In: CASTRO, Hebe Maria Mattos <strong>de</strong> &SCHNOOR, Eduar<strong>do</strong> (orgs.). Resgate: uma janela para o oitocentos. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Topbooks, 1995, pp. 165-195, p. 167.19 Cf. FARIA, Sheila <strong>de</strong> Castro. “Fortuna e família em Bananal <strong>no</strong> século <strong>XIX</strong>.” In:CASTRO, Hebe Maria Mattos <strong>de</strong> & SCHNOOR, Eduar<strong>do</strong> (orgs.). Resgate: uma janelapara o oitocentos. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Topbooks, 1995, pp. 63-97, pp. 71-72.


Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77 67Diante da Justiça, Vallim afirmou que não havia toma<strong>do</strong> atitu<strong>de</strong>s mais enérgicasdiante da <strong>de</strong>núncia daquele <strong>de</strong>sembarque <strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s por saber que autorida<strong>de</strong>s<strong>do</strong> gover<strong>no</strong> imperial já haviam se antecipa<strong>do</strong>. Um contingente policialentre 300 e 400 praças foi envia<strong>do</strong> para patrulhar a região <strong>de</strong> Angra <strong>do</strong>s<strong>Reis</strong> e cercanias – como a cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bananal, on<strong>de</strong> ficava a Resgate, maiordas fazendas <strong>de</strong> Vallim. 20 Uma das conclusões <strong>do</strong> ministro <strong>do</strong>s Negócios daJustiça era <strong>de</strong> que o <strong>de</strong>sembarque havia aconteci<strong>do</strong> na Resgate, segun<strong>do</strong> ospróprios escravos trafica<strong>do</strong>s e compra<strong>do</strong>res locais, como o fazen<strong>de</strong>iro FranciscoRamos <strong>de</strong> Paula. 21 Além disso, o substancial contingente policial asseguravaque gran<strong>de</strong> insurreição <strong>de</strong> escravos po<strong>de</strong>ria ser contida, caso os boatosfossem confirma<strong>do</strong>s. Após a intervenção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> nas fazendas on<strong>de</strong> escravos<strong>do</strong> caso <strong>do</strong> Bracuhy haviam si<strong>do</strong> ilegalmente compra<strong>do</strong>s, outros mais daquelascercanias passaram a acreditar que teriam o mesmo direito. Assim, fugas<strong>de</strong> escravos aumentavam a cada dia. Escravos presos confessaram que apenasestavam exercen<strong>do</strong> seu direito à liberda<strong>de</strong>, assim como os africa<strong>no</strong>s liberta<strong>do</strong>s<strong>de</strong> Resgate e d´outras fazendas mais. 22O gover<strong>no</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> estava disposto a impedir a continuida<strong>de</strong> <strong>do</strong> tráfico <strong>de</strong>escravos para o <strong>Brasil</strong>, e nisso o caso <strong>do</strong> porto <strong>do</strong> Bracuhy foi paradigmáticopara a época. Foram cerca <strong>de</strong> 3 meses <strong>de</strong> investigações e ma<strong>no</strong>bras políticastanto <strong>do</strong>s que lutavam pela con<strong>de</strong>nação, quanto <strong>do</strong>s que lutavam pela absolvição<strong>do</strong>s políticos envolvi<strong>do</strong>s diretamente <strong>no</strong> caso. Mesmo em se tratan<strong>do</strong> <strong>de</strong> umpara<strong>do</strong>xo <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista econômico, isto é, o gover<strong>no</strong> <strong>de</strong> uma nação <strong>de</strong> mão<strong>de</strong>-obramajoritariamente escrava lutan<strong>do</strong> contra o comércio <strong>de</strong> escravos, as pressõescontra os senhores <strong>de</strong> escravos havia diminuí<strong>do</strong> bastante a importação <strong>do</strong>smesmos. Do ponto <strong>de</strong> vista político, este Esta<strong>do</strong> queria mostrar que era ele, enão os gran<strong>de</strong>s proprietários <strong>de</strong> terras e escravos, bem como os traficantes, quemandava <strong>no</strong> gover<strong>no</strong> da nação, dizen<strong>do</strong> o momento certo <strong>de</strong> tomar atitu<strong>de</strong>s contrao trabalho escravo.Após a supressão <strong>do</strong> tráfico internacional <strong>de</strong> escravos para o <strong>Brasil</strong>, em1850, o me<strong>do</strong> senhorial <strong>no</strong> su<strong>de</strong>ste girava em tor<strong>no</strong> <strong>do</strong> choque entre os escravoscompra<strong>do</strong>s das províncias <strong>do</strong> <strong>no</strong>rte e os que já estavam nas fazendas <strong>do</strong>20 Cf. ABREU, Martha. “O caso <strong>do</strong> Bracuhy”, pp. 177-183 e p. 187.21 Cf. ABREU, Martha. “O caso <strong>do</strong> Bracuhy”, p. 177.22 Cf. ABREU, Martha. “O caso <strong>do</strong> Bracuhy”, pp. 189.


68Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77su<strong>de</strong>ste. 23 O tráfico e o comércio inter<strong>no</strong>s <strong>de</strong> escravos já eram realiza<strong>do</strong>s hámuito tempo entre as regiões da Luso-América e as <strong>do</strong> Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, mashaviam se intensifica<strong>do</strong> com o cumprimento da lei <strong>de</strong> 1850 sen<strong>do</strong> fiscaliza<strong>do</strong>pelo gover<strong>no</strong>. Nos primeiros a<strong>no</strong>s daquela década, o então ministro da Justiça,Eusébio <strong>de</strong> Queiróz, pedia relatórios mensais a chefes <strong>de</strong> polícia <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>scomo Angra <strong>do</strong>s <strong>Reis</strong> e Parati, oferecen<strong>do</strong> toda à ajuda necessária paracombater o tráfico. Ao me<strong>no</strong>s até 1853, aqueles relatórios foram rotina, <strong>do</strong>mesmo mo<strong>do</strong> que <strong>no</strong>tícias motivadas por boatos sobre possíveis <strong>de</strong>sembarques<strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s. Uma <strong>de</strong>stas veio três a<strong>no</strong>s após a lei. No dia 25 <strong>de</strong> janeiro<strong>de</strong> 1853, o comandante superior da Guarda Nacional <strong>de</strong> Parati envia uma cartaao presi<strong>de</strong>nte da província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro afirman<strong>do</strong> que “as suspeitassobre um possível <strong>de</strong>sembarque <strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s naquela região são fundadas”.Esta informação mobilizou durante semanas diversas autorida<strong>de</strong>s locais, ten<strong>do</strong>o comandante superior aventa<strong>do</strong> a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reformular as “estratégias<strong>do</strong>s batalhões da região, visto terem melhor treinamento para este tipogravíssimo <strong>de</strong> situação”. 24Durante toda a década seguinte, <strong>no</strong>tícias <strong>de</strong> <strong>de</strong>sembarque <strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s continuavama mobilizar autorida<strong>de</strong>s em vários portos <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. Em maio<strong>de</strong> 1863, o juiz <strong>de</strong> Direito da comarca <strong>de</strong> Angra <strong>do</strong>s <strong>Reis</strong>, Teófilo Ribeiro <strong>de</strong>Rezen<strong>de</strong>, escreve um <strong>do</strong>cumento “Reserva<strong>do</strong>” ao então presi<strong>de</strong>nte da província<strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, Policarpo Lopes <strong>de</strong> Leão. Na carta, o juiz afirma que recebeua Circular Reservada com data <strong>de</strong> 13 daquele mês, expedida por Policarpo,sobre <strong>no</strong>tícia <strong>de</strong> tráfico <strong>de</strong> escravos vin<strong>do</strong> <strong>de</strong> Angola, enviada pelo cônsul <strong>do</strong><strong>Brasil</strong> naquele país. O alerta sobre a ação <strong>de</strong> “contrabandistas” especializa<strong>do</strong>sfez com que o juiz lembrasse o tamanho da costa <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, e “seusinúmeros portos, enseadas e lugares apropria<strong>do</strong>s para o <strong>de</strong>sembarque <strong>de</strong> escravosafrica<strong>no</strong>s”. Por isso, recomen<strong>do</strong>u, <strong>no</strong>vamente, segun<strong>do</strong> afirma, a implantação<strong>de</strong> um navio cruzeiro ativo, sem o qual a vigilância continuaria precária. 2523Cf. COUCEIRO, Luiz Alberto. Reinventan<strong>do</strong> o cativeiro, construin<strong>do</strong> a emancipação:escravos, senhores e lógicas <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> em fazendas <strong>de</strong> café (Su<strong>de</strong>ste, 1860-1888).Revista Acervo: o Arquivo Nacional e seus pesquisa<strong>do</strong>res. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Arquivo Nacional,v. 15, n. 2, 2002, pp. 17-32 e A disparada <strong>do</strong> burro e a cartilha <strong>do</strong> feitor: lógicas moraisna construção <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> entre escravos e livres em fazendas <strong>do</strong> su<strong>de</strong>ste,1860-1888. São Paulo: Revista <strong>de</strong> Antropologia – USP, n. 46 (1), 2003. pp. 41-83.24 Arquivo Público <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, <strong>do</strong>ravante APERJ, fun<strong>do</strong> PP, coleção 82.25 APERJ, PP, coleção 82.


Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77 69Os portos <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro viviam sob forte tensão com a chegada <strong>de</strong>navios com tripulação <strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s, ou mesmo <strong>de</strong> escravos. A palavra marinheiro,naqueles a<strong>no</strong>s, escondia a origem social da pessoa. Somente em 1869,por exemplo, o português Antonio Maria Teixeira <strong>de</strong> Mello, “seqüestra<strong>do</strong>r”<strong>de</strong> escravos que atuava <strong>no</strong>s portos <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o Rio <strong>de</strong> Janeiro, foi preso sob odisfarce <strong>de</strong> marinheiro. 26 Tal categoria era máscara bastante eficaz para transfigurara i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um escravo fugitivo <strong>de</strong> outra região <strong>do</strong> Império ou <strong>do</strong>Atlântico e até mesmo um crimi<strong>no</strong>so <strong>de</strong> guerra. Costume antigo da marinharia<strong>no</strong> Atlântico, era possível que até mesmo um dialeto naval, o pidgin, tenhasi<strong>do</strong> construí<strong>do</strong> e utiliza<strong>do</strong> <strong>no</strong> comércio internacional <strong>de</strong> escravos – há indícios<strong>de</strong> que era fala<strong>do</strong> nas negociações entre traficantes na costa africana, <strong>de</strong>s<strong>de</strong>o século XVII. 27 Já foi constata<strong>do</strong> que os navios ingleses, <strong>no</strong> século <strong>XVIII</strong>,por exemplo, carregavam marinheiros franceses, alemães, portugueses, espanhóis,asiáticos, america<strong>no</strong>s e africa<strong>no</strong>s – algumas vezes sujeitos que escondiamsua condição <strong>de</strong> escravo fugitivo, outras vezes escravos que trabalhavam<strong>no</strong>s navios – a serviço da Rainha Britânica. 28 Nas correntes nem semprecalmas das pesquisas <strong>no</strong>s arquivos, cruzamos em vários momentos com pessoasescondidas não somente nas páginas <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos, mas sob o sig<strong>no</strong> marinheiro.Naquela época, muitos marinheiros aparecem na <strong>do</strong>cumentação comoescravos, e, muitas vezes, encontramos escravos trabalhan<strong>do</strong> como marinheirosem navios <strong>de</strong>stina<strong>do</strong>s ao tráfico. 29Naveguemos por uma <strong>de</strong>stas correntes <strong>de</strong> mares passa<strong>do</strong>s.26AN, IIIJ7-152, Casa <strong>de</strong> Correção <strong>do</strong> Distrito.27Cf. LOVEJOY, Paul E. & RICHARDSON, David. Trust, pawnship, and atlantic history:the institutional foundations of the Old Calabar slave tra<strong>de</strong>. The American Historical Review,v. 104, n. 2, apr. 1999, pp. 333-355, p. 341 e THORNTON, John K. African dimensions ofthe Sto<strong>no</strong> rebellion. The American Historical Review, v. 96, n. 4, oct. 1991, pp. 1101-1113.28RADIKER, Marcus. “Un<strong>de</strong>r the banner of King Death”: the social world of Anglo-Americanpirates, 1716-1726. The William and Mary Quarterly, 3 rd . Series, n. 38, 1981, pp. 203-227.Para informações sobre a vida <strong>no</strong> interior <strong>do</strong>s navios, ver RITCHIE, Robert C. Capitão Kid<strong>de</strong> a guerra contra os piratas. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Campus, 1989, pp. 117-130.29 Cf. RODRIGUES, Jaime. Cultura marítima: marinheiros e escravos <strong>no</strong> tráfico negreiropara o <strong>Brasil</strong> (sécs. <strong>XVIII</strong> e <strong>XIX</strong>). Revista <strong>Brasil</strong>eira <strong>de</strong> História. São Paulo, v. 19, n.38, 1999, pp. 15-53, p. 23. Muitas informações sobre a vida <strong>de</strong> escravos e libertos marinheiros,<strong>no</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da América, po<strong>de</strong>m ser encontradas em BOLSTER, W.Jeffrey. "To feel like a man": black seamen in the Northern States, 1800-1860. The Journalof American History, v. 76, n. 4, mar. 1990, pp. 1173-1199.


70Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77O espectro <strong>de</strong>ste navio po<strong>de</strong> ser visto?Foucault afirmou diversas vezes que o corpo visto como <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>po<strong>de</strong>ria ser regula<strong>do</strong> e manipula<strong>do</strong> pelas instituições oficiais <strong>de</strong> construçãoda verda<strong>de</strong>. 30 Ressaltemos, porém, que <strong>no</strong> bojo <strong>de</strong> tais instituições, longe<strong>de</strong> serem máquinas com perfeito funcionamento, havia querelas entre os construtoresda tal verda<strong>de</strong> objetiva, disputan<strong>do</strong> os mo<strong>do</strong>s pelos quais e quem enquadrariaos acusa<strong>do</strong>s <strong>no</strong>s artigos <strong>do</strong>s códigos morais e éticos. Os exemplossão múltiplos. Para ficarmos apenas com um, lembremos a Inquisição portuguesacomo arena <strong>de</strong> disputas burocráticas por altos postos da hierarquia <strong>de</strong>con<strong>de</strong>nação e punição <strong>do</strong>s acusa<strong>do</strong>s <strong>de</strong> serem feiticeiros e bruxos na Europa,até o início <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong>. 31O tal “<strong>de</strong>linqüente” <strong>do</strong> navio fantasma teve seu corpo entregue ao controle<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Foi uma pessoa controlada pelas correntes da instituição Imperial, daJustiça. Tratava-se <strong>de</strong> um homem que já estava preso por correntes <strong>de</strong> ferro, queo capitão e sua tripulação <strong>de</strong> “escravos marinheiros” afirmaram ameaçar a to<strong>do</strong>s<strong>no</strong> navio, mas que ninguém viu cometer agressão alguma. De oficial mesmo, em<strong>no</strong>sso caso, somente a <strong>de</strong>núncia <strong>de</strong> um preso que acusou um juiz <strong>de</strong> tê-lo prendi<strong>do</strong>por um fato supostamente ocorri<strong>do</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um navio que juridicamente nãoexistia. Em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s estes fatos, tornemos o navio me<strong>no</strong>s fantasma.Seguin<strong>do</strong> informação fornecida pelo capitão ao juiz, admitamos que o naviovinha <strong>de</strong> Cuba, com "escravos cuba<strong>no</strong>s", <strong>de</strong> outras ilhas <strong>do</strong> Caribe ou mesmovin<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Isso seria possível naqueles a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> maior fiscalização,porém não tão eficaz quanto se acredita, na costa <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro?Onze a<strong>no</strong>s após ser promulgada a lei Eusébio <strong>de</strong> Queiróz, <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong>1850, e realmente colocada em prática pela vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> fiscalizar das autorida<strong>de</strong>simperiais, e não somente pelas da marinha britânica em constante vigilânciaem alto mar, uma “Circular Reservada” é expedida pelo ministro <strong>do</strong>s Negóciosda Justiça para os chefes <strong>de</strong> polícia das províncias. 32 Recebida pelo chefe30FOUCAULT, Michel. 1999. “O olho <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r.” In: Microfísica <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r. 14 ª . Edição.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Graal: 209-226 e A verda<strong>de</strong> e as formas jurídicas. 2 ª . Edição. Rio <strong>de</strong>Janeiro: NAU, Depto. <strong>de</strong> Letras – PUC/RJ, 1999.31BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália,séculos XV-<strong>XIX</strong>. São Paulo: Companhia das Letras, 2000.32APERJ, PP, col. 5.


Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77 71<strong>de</strong> polícia da Corte, em 18 <strong>de</strong> fevereiro daquele a<strong>no</strong>, 1861, embora escrita <strong>no</strong>dia 12, a carta fala a tais autorida<strong>de</strong>s sobre <strong>de</strong>sembarques <strong>de</strong> escravos <strong>no</strong>s portos<strong>de</strong> Benguela e <strong>do</strong> Rio Cuanza, ao sul <strong>de</strong> Angola. O autor <strong>do</strong>s mesmos seria“um tal Oliveira Botelho, que foi outrora naquela cida<strong>de</strong> o consignatário <strong>do</strong>snavios negreiros Orytra e Pedreira, que navegam para este Império e para Havana”.A recomendação era que os chefes <strong>de</strong> polícia das províncias realizasseminvestigações acerca <strong>de</strong> quais pessoas tinham relações, e <strong>de</strong> que naturezaeram, com o respectivo traficante, pois isso confirmaria a hipótese <strong>de</strong>le se dirigirpara o Rio <strong>de</strong> Janeiro.Cuba teve seu primeiro gran<strong>de</strong> boom <strong>do</strong> açúcar entre 1790 e 1820, em virtu<strong>de</strong><strong>de</strong> técnicas mais mo<strong>de</strong>rnas <strong>de</strong> plantio e colheita introduzidas pelos franceses.O tráfico <strong>de</strong> escravos acompanhou este aumento da produtivida<strong>de</strong>, umavez que os senhores <strong>de</strong> engenho, em número vertigi<strong>no</strong>samente crescente, passarama comprar uma quantida<strong>de</strong> maior <strong>de</strong> jovens africa<strong>no</strong>s. Entre 1830 e 1860,Cuba tor<strong>no</strong>u-se o maior produtor mundial <strong>de</strong> açúcar, fruto <strong>de</strong> avanços tec<strong>no</strong>lógicos,como a implantação das estradas <strong>de</strong> ferro. A queda <strong>do</strong>s custos com otransporte, soma<strong>do</strong>s à liberação da mão-<strong>de</strong>-obra escrava <strong>do</strong> escoamento <strong>do</strong>produto para as lavouras, fez com que o preço <strong>do</strong> açúcar cuba<strong>no</strong> sofresse umaqueda brutal em relação ao <strong>de</strong> seus concorrentes. O próprio movimento <strong>do</strong>tráfico Atlântico <strong>de</strong> escravos não conseguia acompanhar o crescimento dasnecessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra escrava em Cuba, provocan<strong>do</strong> a migração <strong>de</strong>colo<strong>no</strong>s chineses e <strong>de</strong> escravos índios maias <strong>de</strong> Iucatã. 33As transações comerciais <strong>de</strong> escravos através da rota cubana eram feitascom o envolvimento <strong>de</strong> portos <strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong>s, <strong>no</strong> final <strong>do</strong>s a<strong>no</strong>s 1850 e início<strong>do</strong>s 60. O navio saía <strong>de</strong> Cuba e ancorava, legalmente, <strong>no</strong>s portos <strong>de</strong> NovaIorque, principalmente, Charleston e Nova Orleans. Estava repleto <strong>de</strong> açúcarcuba<strong>no</strong>, que em gran<strong>de</strong> parte era beneficia<strong>do</strong> nas refinarias <strong>no</strong>rte-americanas. 34O agente comercial <strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong> o recebia em um daqueles três portos,encarregan<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> serviço <strong>de</strong> <strong>de</strong>scarga <strong>do</strong> produto, bem como <strong>do</strong> embarque<strong>de</strong> um experiente marinheiro, também <strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong>. O navio seguiria,assim, para a África. Caso fosse abalroa<strong>do</strong> por um cruza<strong>do</strong>r inglês, “provaria”que não estava meti<strong>do</strong> em tráfico <strong>de</strong> escravos, apresentan<strong>do</strong> a <strong>do</strong>cumenta-33Cf. KLEIN, Herbert S. A escravidão africana: América Latina e Caribe. São Paulo:<strong>Brasil</strong>iense, 1987, pp. 113-116.


72Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77ção conseguida <strong>no</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s da América que dizia que o navio pertenciaao tal marinheiro <strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong>. Na costa africana, o navio faria a compra<strong>do</strong>s escravos <strong>no</strong>s portos <strong>de</strong> Moçambique, principalmente, que seriam leva<strong>do</strong>spara Cuba. Quan<strong>do</strong> o navio passasse pelas patrulhas britânicas, mais atentas aocomércio <strong>de</strong> escravos para Cuba durante o <strong>no</strong>vo boom <strong>do</strong> açúcar, o navio assumiria<strong>no</strong>vamente sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> cubana. Nos portos cuba<strong>no</strong>s, parte <strong>de</strong>ste ciclocomercial seria momentaneamente encerra<strong>do</strong>. 35Em 23 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1857 o presi<strong>de</strong>nte da província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro,Luiz Antonio Barbosa, recebeu um ofício “Reserva<strong>do</strong>”, <strong>no</strong> qual o ministro daJustiça, José Thomaz Nabuco <strong>de</strong> Araújo, <strong>de</strong>nunciava a vinda <strong>de</strong> um navio arma<strong>do</strong>para o <strong>Brasil</strong>. O brigue Barca havia saí<strong>do</strong> <strong>de</strong> “Nova Iorque em fins <strong>de</strong>outubro” <strong>de</strong> 1856, “com <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> à Costa da África, on<strong>de</strong> <strong>de</strong>veria receber <strong>de</strong>500 a 600 africa<strong>no</strong>s, já ladi<strong>no</strong>s, para <strong>de</strong>sembarcá-los na província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong>Janeiro”. 36 O Ministro comunicou a <strong>no</strong>tícia ao presi<strong>de</strong>nte daquela província,que or<strong>de</strong><strong>no</strong>u que as “autorida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> litoral <strong>de</strong>ssem mais eficazes providênciasa fim <strong>de</strong> obstar-se à semelhante <strong>de</strong>sembarque.” O receio <strong>do</strong> suposto <strong>de</strong>sembarqueprovocou a a<strong>do</strong>ção <strong>de</strong> medidas radicais <strong>do</strong> ministro da Justiça seguinte,Franscisco Diogo Pereira <strong>de</strong> Vasconcelos, com relação à vigilância <strong>do</strong>s portosvisa<strong>do</strong>s pelos traficantes <strong>de</strong> escravos. Em 28 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1857 o ministro “or<strong>de</strong><strong>no</strong>uao chefe <strong>de</strong> polícia da Corte que efetuasse o pagamento <strong>de</strong> 50 contos <strong>de</strong>réis ao Barão <strong>de</strong> Mauá, referentes à compra <strong>de</strong> um navio bateleira produzi<strong>do</strong>pela Companhia <strong>de</strong> Ponta da Areia”, <strong>de</strong> sua proprieda<strong>de</strong>. A bateleira seria <strong>de</strong>stinadaà prevenção <strong>do</strong> “nefan<strong>do</strong> crime <strong>de</strong> tráfico <strong>de</strong> escravos africa<strong>no</strong>s para o<strong>Brasil</strong>”, uma vez que <strong>no</strong>tícias <strong>de</strong> <strong>de</strong>sembarque giravam sobre os portos <strong>de</strong> Angra<strong>do</strong>s <strong>Reis</strong> e Mangaratiba. 37Notícias referentes a tal rota <strong>do</strong> tráfico <strong>de</strong> escravos envolven<strong>do</strong> NovaIorque, Cuba, costa da África e o Rio <strong>de</strong> Janeiro e São Paulo não paravam <strong>de</strong>chegar ao ministro da Justiça. Logo em seguida à aquisição da bateleira, em34 Cf. SCOTT, Rebecca J. Emancipação escrava em Cuba: a transição para o trabalholivre, 1860-1899. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Campinas: Paz e Terra, Editora da UNICAMP, 1991,pp. 50-51.35MURRAY, David. Odious commerce: Britain, Spain and the abolition of the Cubanslave tra<strong>de</strong>. Cambridge: Cambridge University Press, 1980, pp. 246-249.36AN, IJ1 – 867, Série Justiça/Gabinete <strong>do</strong> Ministro.37 AN, IJ1 – 867, Série Justiça/Gabinete <strong>do</strong> Ministro.


Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77 7320 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1857 o ministro recebeu informação acerca <strong>do</strong> patacho <strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong>M. M. Standard, <strong>do</strong> qual era mestre <strong>de</strong> Deijamb. A <strong>no</strong>tícia vinhada Ilha da Ma<strong>de</strong>ira, e dizia ainda que o tal navio era conheci<strong>do</strong> na ilha como<strong>de</strong>stina<strong>do</strong> ao tráfico <strong>de</strong> escravos africa<strong>no</strong>s. Mais uma vez, as autorida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>litoral <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro foram avisadas para ficar mais vigilantes ainda sobrequalquer indício <strong>de</strong> possível <strong>de</strong>sembarque <strong>de</strong> escravos. 38 O tráfico <strong>de</strong> escravospara Cuba havia realmente revigora<strong>do</strong> em 1857, e não mais estava nasmãos <strong>de</strong> comerciantes brasileiros na África, em Uidá, por exemplo, mas simnas <strong>de</strong> uma <strong>no</strong>va companhia, a Expedición por África, fundada em Havana, ecujos barcos eram equipa<strong>do</strong>s <strong>no</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s e navegavam sob as cores<strong>de</strong> sua ban<strong>de</strong>ira. 39Passaram-se poucos a<strong>no</strong>s e, em 13 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1860, o então ministroda Justiça, João Lustosa da Cunha Paranaguá, foi informa<strong>do</strong> pelo Consula<strong>do</strong><strong>de</strong> Angola sobre a movimentação <strong>no</strong>s portos <strong>de</strong> Luanda <strong>de</strong> um tal Ma<strong>no</strong>elCaeta<strong>no</strong> <strong>do</strong>s Passos e Maurício Thomaz Bittencourt, reconheci<strong>do</strong>s como traficantes<strong>de</strong> escravos da rota acima falada. Tratavam-se <strong>do</strong>s capitães <strong>do</strong> navioFortuna da África, que “em breve aportaria <strong>no</strong>vamente na praia <strong>de</strong> Itacoatiara,em Itaipu, com mais escravos africa<strong>no</strong>s”. Segun<strong>do</strong> o ministro, caso aquelestraficantes fossem pegos, muito <strong>do</strong> crime <strong>do</strong> comércio ilegal <strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s parao <strong>Brasil</strong> po<strong>de</strong>ria ser <strong>de</strong>svenda<strong>do</strong>. 40Estas transações comerciais eram bem conhecidas <strong>no</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s.No final <strong>do</strong>s a<strong>no</strong>s 1850, <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Nova Iorque <strong>de</strong>nunciavam que naviossaíam <strong>do</strong> porto <strong>de</strong>sta cida<strong>de</strong> com <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> a Cuba, prepara<strong>do</strong>s para executar atransação que <strong>de</strong>screvemos. O cônsul inglês em Nova Iorque <strong>de</strong>nunciou, porexemplo, que “<strong>no</strong> verão <strong>de</strong> 1859, o navio Emily saiu <strong>de</strong> Nova Iorque com to<strong>do</strong>o equipamento necessário para um traficante <strong>de</strong> escravos: 15. 000 pés <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>iraserrada, 103 tonéis <strong>de</strong> água fresca, 100 barris <strong>de</strong> arroz, 25 barris <strong>de</strong> bacalhau,20 barris <strong>de</strong> porcos, 50 barris <strong>de</strong> pães, 150 caixas <strong>de</strong> arenque, duas cal-38 AN, IJ1 – 867, Série Justiça/Gabinete <strong>do</strong> Ministro.39Cf. LAW, Robin. A comunida<strong>de</strong> brasileira <strong>de</strong> Uidá e os últimos a<strong>no</strong>s <strong>do</strong> tráfico Atlântico<strong>de</strong> escravos, 1850-66. Afro-Ásia, n. 27, 2002, pp. 41-77, p. 58.40 AN, IJ1 – 869, Série Justiça/Gabinete <strong>do</strong> Ministro.


74Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77<strong>de</strong>iras, <strong>de</strong>z dúzias <strong>de</strong> bal<strong>de</strong>s e duas caixas <strong>de</strong> medicamentos”. 41 Por sua vez, ojornal <strong>no</strong>va-iorqui<strong>no</strong> Continental Monthly <strong>no</strong>ticiou, em janeiro <strong>de</strong> 1862, que:“O número <strong>de</strong> pessoas envolvidas <strong>no</strong> tráfico <strong>de</strong> escravos bem como omontante <strong>de</strong> capital emprega<strong>do</strong> <strong>no</strong> mesmo vai além <strong>do</strong> que po<strong>de</strong>moscalcular. A cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nova Iorque vinha sen<strong>do</strong>, até recentemente, oprincipal porto <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> para este infame comércio; em relação à ela,as cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Boston e Portland são secundárias. Negociantes <strong>de</strong> escravoscontribuíam largamente para a vitalida<strong>de</strong> comercial <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssa metrópole;contribuíram para enriquecer <strong>no</strong>ssa organização política, e, muitasvezes, suas contas bancárias foram exauridas para cida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> eleiçõesem Nova Jérsei, Pensilvânia e Connecticut”. 42O mesmo navio po<strong>de</strong>ria alongar sua viagem caso os escravos não fossem to<strong>do</strong>svendi<strong>do</strong>s, ou caso tivesse que buscar escravos na China, contornan<strong>do</strong> a América<strong>do</strong> Sul. Tal rota, apesar <strong>de</strong> oferecer mais difícil navegação, não envolvia a fuga dafiscalização exercida pelos navios britânicos sobre o tráfico <strong>de</strong> escravos para o<strong>Brasil</strong>. Afinal <strong>de</strong> contas, os navios britânicos estavam mais afasta<strong>do</strong>s da costabrasileira que os navios vin<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Cuba ou <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s. Anteriormente,vimos a <strong>no</strong>tícia <strong>de</strong> que havia navios vin<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Cuba para comerciar escravos africa<strong>no</strong>s<strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. 43 Desta forma, não seria uma conjectura estapafúrdiaque o navio fantasma <strong>de</strong> <strong>no</strong>sso caso queria se livrar <strong>de</strong> um in<strong>de</strong>sejável tripulante,sem que sua passagem pelo Rio <strong>de</strong> Janeiro fosse registrada. E conseguiu. Afinal<strong>de</strong> contas, tu<strong>do</strong> se passou na escuridão da madrugada, sem maiores registros quenão a memória <strong>de</strong> pessoas comuns e <strong>de</strong> funcionários da Justiça.Consi<strong>de</strong>rações finais: metáforas e metonímias (a partir <strong>de</strong> uma acusação) atlânticasUma vez feita a acusação, que resultou num processo criminal contra ojuiz, o suposto “<strong>de</strong>linqüente” <strong>de</strong>to<strong>no</strong>u um processo <strong>de</strong> relação entre termos.Ao procurar socorro <strong>no</strong> juiz, o capitão <strong>do</strong> navio fez uma <strong>de</strong>núncia contra uma41 Cf. THOMAS, Hugh. The slave tra<strong>de</strong>: the history of the Atlantic slave tra<strong>de</strong>, 1440-1870. New York: Touchstone, 1999, p. 770, além <strong>de</strong> to<strong>do</strong> o Cap. 36: “Cuba, the forwardsentinel”, pp. 769-785.42 Apud. THOMAS, Hugh. The slave tra<strong>de</strong>, pp. 771-772. Traduzi<strong>do</strong> por mim.43 MURRAY, David. Odious commerce, p. 250.


Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77 75pessoa perigosa, se colocan<strong>do</strong>, juntamente a sua tripulação, em oposição aomesmo, isto é, como pessoas não perigosas, como aquelas que sofriam daqueleperigo. Ao mostrar o ferimento supostamente feito com uma faca, o capitãose colocou como vítima <strong>do</strong> homem que havia si<strong>do</strong> preso por sua tripulação,ao passo que este era o alvo da providência das autorida<strong>de</strong>s da Justiça emMacaé. Os escravos, além <strong>de</strong> marinheiros, estariam ali como vítimas <strong>de</strong> próximosgolpes <strong>de</strong> faca, e não como merca<strong>do</strong>rias a serem vendidas naquela região.O navio não era posto, na situação crimi<strong>no</strong>sa que supostamente havia se<strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> <strong>no</strong> seu interior, como tumbeiro, mas sim como palco <strong>de</strong> uma “tentativa<strong>de</strong> assassinato”. Os escravos ajudaram os policiais a retirarem o acusa<strong>do</strong>,sen<strong>do</strong> supervisiona<strong>do</strong>s pelo capitão e pelo juiz. Tu<strong>do</strong> isso aconteceu a partir<strong>de</strong> uma experiência rápida e na penumbra da madrugada, às pressas <strong>de</strong> evitarum crime ainda maior. Com o sumiço <strong>do</strong> navio, tu<strong>do</strong> não passou <strong>de</strong> mera conjectura.Não atoa, o único <strong>do</strong>cumento que temos, ou melhor, que encontramossobre este caso é parte <strong>de</strong> um processo aberto pelo “<strong>de</strong>linqüente” quepassou ao papel <strong>de</strong> vítima, numa <strong>no</strong>va conjuntura, e o juiz ao <strong>de</strong> crimi<strong>no</strong>so.Neste senti<strong>do</strong>, gostaríamos <strong>de</strong> chamar atenção para a importância das acusações<strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Império. Muitas fontes <strong>do</strong>cumentais foram produzidas a partir<strong>de</strong> uma simples acusação, muitas vezes provenientes <strong>de</strong> boatos ou <strong>no</strong>tícias <strong>de</strong>jornalistas locais, policiais, inspetores <strong>de</strong> quarteirão, lavra<strong>do</strong>res, e até mesmo<strong>de</strong> escravos. Antes mesmo da instauração <strong>de</strong> um processo criminal, acusaçõesmotivaram investigações cuida<strong>do</strong>sas por parte <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong>s locais, muitas vezeschegan<strong>do</strong> por carta ao conhecimento <strong>de</strong> ministros <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> e chefes <strong>de</strong> polícia,na Corte. Antes mesmo <strong>de</strong> admitirmos a tese <strong>do</strong> me<strong>do</strong> <strong>de</strong> insurreições escravasda parte da elite imperial, temos que pensar o elemento social <strong>de</strong>tona<strong>do</strong>r<strong>de</strong> tanta <strong>do</strong>cumentação produzida por incertezas, baseadas em acusações. 44 Estasacusações po<strong>de</strong>m ser compreendidas como formas <strong>de</strong> se atingir inimigos ouadversários, provocan<strong>do</strong>-lhes incômodas situações <strong>de</strong> constrangimento público,numa disputa <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r local. Vários são os casos <strong>de</strong> processos criminais envolven<strong>do</strong>escravos e senhores, como também somente livres na Corte, que asinvestigações vêm <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>núncia. Tais não provêm <strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfianças44Sobre a visão senhorial <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> insurreição escrava, ver AZEVEDO, Célia MariaMarinho <strong>de</strong>. Onda negra, me<strong>do</strong> branco: o negro <strong>no</strong> imaginário das elites, século <strong>XIX</strong>.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1987, e vários trechos <strong>de</strong> COUCEIRO, Luiz Alberto.Bumerangue encapsula<strong>do</strong>.


76Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77<strong>de</strong> um aparelho <strong>de</strong> inteligência, ou espionagem como ocorria entre Inglaterra eFrança <strong>no</strong> final <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong> e <strong>no</strong> início <strong>do</strong> XX, que investigavam comportamentossociais <strong>de</strong> maneira precavida, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>.A teoria antropológica da feitiçaria, que aborda este objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> apartir das acusações que <strong>de</strong>tonam os conflitos entre as pessoas, na maioria <strong>do</strong>scasos nas socieda<strong>de</strong> africanas, <strong>no</strong>s ajuda muito a pensar o caso brasileiro <strong>de</strong>acusação, <strong>no</strong> século <strong>XIX</strong>. Existem variações diversas na teoria e na meto<strong>do</strong>logia<strong>do</strong>s estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> acusação e crença na feitiçaria, mas permanece comobase <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s eles a pesquisa sobre o que faz <strong>de</strong> uma acusação eficaz, qual acrença que a sustenta. Evans-Pritchard, em seu clássico estu<strong>do</strong> sobre tal fenôme<strong>no</strong>entre os Azan<strong>de</strong>, se preocupou em compreen<strong>de</strong>r uma teoria <strong>do</strong> conhecimentoa partir das formas <strong>de</strong> acusação <strong>de</strong> feitiçaria. 45 Seguin<strong>do</strong> suas trilhas,Gluckman e Douglas enveredaram pela análise <strong>de</strong> tais acusações como umateoria moral e ética <strong>do</strong>s Zulu e <strong>do</strong>s Lele <strong>do</strong> Kasai, respectivamente, como umaforma <strong>de</strong> manutenção <strong>do</strong> equilíbrio das tensões entre os grupos inter<strong>no</strong>s. 46 Fryconseguiu chegar aos seus informantes Shona, na Rhodésia, atual Zimbábue,a partir <strong>de</strong> uma acusação policial sobre o envolvimento político <strong>de</strong> conheci<strong>do</strong>sfeiticeiros com parti<strong>do</strong>s nacionalistas. 47 Mais recentemente, Geschiere estu<strong>do</strong>ua chamada “mo<strong>de</strong>rna feitiçaria” <strong>no</strong>s Camarões através as acusações <strong>de</strong>feitiçaria entre parti<strong>do</strong>s políticos. 48A publicação organizada por Douglas, reunin<strong>do</strong> pela primeira vez historia<strong>do</strong>rese antropólogos <strong>de</strong>dica<strong>do</strong>s aos casos <strong>de</strong> acusação e crença na feitiçaria éum marco teórico, para estu<strong>do</strong>s contemporâneos, inclusive, como a coletânea45 EVANS-PRITCHARD, E. E. . Bruxaria, oráculos e magia entre os Azan<strong>de</strong> (ediçãoresumida, com uma introdução <strong>de</strong> Eva Gillies). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar Editores, 1978.46GLUCKMAN, Max. “The logic of witchcraft.” In: Custom and conflict in Africa.Oxford: Basil Blackwell, 1970, pp. 81-108; DOUGLAS, Mary. The Lele of the Kasai.Lon<strong>do</strong>n: Oxford University Press for the International African Institute, 1963. Ver tambéminteressante auto-reflexão da autora sobre este trabalho em DOUGLAS, Mary. Oslele revisita<strong>do</strong>s, 1987. Acusações <strong>de</strong> feitiçaria à solta. Revista Mana: estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> antropologiasocial, v. 5 n. 2 outubro <strong>de</strong> 1999.47FRY, Peter. Spirits of protest: spirit-mediums and the articulati<strong>no</strong> of consensusamongst the Zezuru of Southern Rho<strong>de</strong>sia. Lon<strong>do</strong>n, New York, Melbourne: CambridgeUniversity Press, 1976.48GESCHIERE, Peter. The mo<strong>de</strong>rnity of witchcraft: Politics and the occult in postcolonialAfrica. Carlotteville e Londres: University Press of Virginia, 1998.


Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77 77organizada pelos Comaroff, exatamente por consolidar a idéia <strong>de</strong> que a crença<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>do</strong> ato <strong>de</strong> acusar alguém <strong>de</strong> feitiçaria, e a acusação, por sua vez,<strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da eficácia da crença na acusação. É aí que o jogo começa. 49 É aíque o historia<strong>do</strong>r social da socieda<strong>de</strong> escravista <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> tem a oportunida<strong>de</strong><strong>de</strong> perceber como gran<strong>de</strong> parte da <strong>do</strong>cumentação produzida assim o foi numsistema <strong>de</strong> acusações que obtiveram eficácia <strong>no</strong> sistema legal brasileiro. Taisacusações in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m <strong>de</strong> ser ou não <strong>de</strong> feitiçaria, ou <strong>de</strong> algum crime que tivesseprevisto <strong>no</strong> Código Criminal, posto que muitas acusações eram feitas combase <strong>no</strong> que as pessoas acreditavam ser crime <strong>no</strong> cotidia<strong>no</strong> <strong>de</strong> suas vidas. Ouseja, estavam ligadas à construção social da acusação, que <strong>de</strong>pendia da culpaque, por sua vez, estava ligada à legitimação social <strong>de</strong> certos tipos <strong>de</strong> pessoacomo acusa<strong>do</strong>ras, bem como outros acusa<strong>do</strong>s.Em <strong>no</strong>sso caso, um navio, em época <strong>de</strong> tensão das autorida<strong>de</strong>s brasileirase internacionais sobre tráfico Atlântico <strong>de</strong> escravos, fundamentalmente pararegiões compra<strong>do</strong>ras <strong>de</strong>sta mão-<strong>de</strong>-obra, jamais po<strong>de</strong>ria aportar com escravossem ser registra<strong>do</strong> por uma autorida<strong>de</strong> da Justiça, que chegou a estar abor<strong>do</strong>.Jamais um navio podia ser fantasma. Este juiz jamais podia escapar, apóstamanha negligência, <strong>de</strong> um sistema <strong>de</strong> acusações como havia <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> Império.A única coisa que escapou foi o navio das autorida<strong>de</strong>s imperiais. Mas não<strong>de</strong> nós, e nem <strong>de</strong> uma acusação atlântica.49 DOUGLAS, Mary. Witchcraft confessions and accusations. Lon<strong>do</strong>n, New York:Tavistock Publication, 1970; COMAROFF, Jean & COMAROFF, John (eds). Mo<strong>de</strong>rnityand its malcontents: ritual and power in postcolonial Africa. Chicago: The University ofChicago Press, 1993.


78Luiz Alberto Couceiro / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 57-77


REIS DO CONGO NO BRASIL,SÉCULOS <strong>XVIII</strong> E <strong>XIX</strong>*Marina <strong>de</strong> Mello e Souza<strong>Departamento</strong> <strong>de</strong> História – FFLCH / USPResumoEsse artigo busca explicar a presença <strong>de</strong> reina<strong>do</strong>s negros, <strong>de</strong>pois chama<strong>do</strong>s<strong>de</strong> congadas, em quase todas as regiões <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> que receberam escravosafrica<strong>no</strong>s, <strong>do</strong> século XVI ao <strong>XIX</strong>. O enfoque a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong> abarca Portugal,África Central e <strong>Brasil</strong> como partes integrantes <strong>de</strong> um mesmo sistemaeconômico, social e cultural, teci<strong>do</strong> em tor<strong>no</strong> <strong>do</strong> Atlântico. A esfera dacultura e as relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r são os centros focais da análise, que se preocupaacima <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> com a formação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s.Palavras-ChaveReina<strong>do</strong>s negros • <strong>Reis</strong> <strong>do</strong> <strong>Congo</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> • I<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> católica negraAbstractThis article aims to explain the existence of Black king<strong>do</strong>ms, later k<strong>no</strong>wnas “congadas”, in almost all Brazilian regions that received African slavesfrom the sixteenth to the nineteenth centuries. The approach places Portugal,Central Africa, and Brazil as component parts of a single eco<strong>no</strong>mic,social and cultural system, woven around the Atlantic. Concerned primarilywith the formation of i<strong>de</strong>ntities, the analysis focuses on the culturalsphere and on power relations.KeywordsBlack king<strong>do</strong>ms • Kings of Kongo in Brazil • Black Catholic i<strong>de</strong>ntity* Agra<strong>de</strong>ço a Maria Helena P.T. Macha<strong>do</strong> os comentários sobre esse texto.


80Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98A existência <strong>de</strong> reis negros em várias socieda<strong>de</strong>s coloniais das Américasé fato que à primeira vista surpreen<strong>de</strong>, pois afinal estas eram socieda<strong>de</strong>s escravistas,nas quais os africa<strong>no</strong>s e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes, isto é, os negros, eramna maioria das vezes proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus senhores, ou seja, escravos, portanto,como podiam, em algumas situações, ser reis? E <strong>no</strong> entanto o foram, como<strong>no</strong>s contam relatos e <strong>do</strong>cumentos <strong>de</strong> várias qualida<strong>de</strong>s que falam sobre os festejos<strong>de</strong> grupos <strong>de</strong> negros pelas ruas, em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> seus reis e principais, ou apenasda existência <strong>de</strong> um rei, que tinha autorida<strong>de</strong> sobre aqueles que o escolhiam.Explora<strong>do</strong>s principalmente por folcloristas, antropólogos e estudiosos dacultura popular, os reina<strong>do</strong>s festivos <strong>no</strong>s quais grupos <strong>de</strong> negros saíam cantan<strong>do</strong>,dançan<strong>do</strong> e representan<strong>do</strong> às ruas, vêm também ocupan<strong>do</strong> alguns historia<strong>do</strong>res,principalmente aqueles interessa<strong>do</strong>s nas manifestações culturais brasileirascom influências africanas. No <strong>Brasil</strong> os primeiros historia<strong>do</strong>res aperceberem a sua importância foram os que pesquisaram e analisaram as irmanda<strong>de</strong>s<strong>de</strong> “homens pretos”, como Julita Scara<strong>no</strong> em seu Escravidão eDevoção, ou os que buscaram <strong>de</strong>svendar a contribuição <strong>do</strong>s africa<strong>no</strong>s para aformação das culturas brasileira e portuguesa, como José Ramos Tinhorão,em Os sons negros <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> e Os pretos em Portugal. 1 Nos muitos estu<strong>do</strong>ssobre irmanda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> “homens pretos” feitos <strong>de</strong>pois da pesquisa pioneira <strong>de</strong>Julita Scara<strong>no</strong>, os reis e outras autorida<strong>de</strong>s a ele associadas apareceram na <strong>do</strong>cumentaçãolevantada. 2 Alguns autores se <strong>de</strong>tiveram com mais vagar outros1Julita Scara<strong>no</strong>, Devoção e escravidão. A Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nossa Senhora <strong>do</strong> Rosário <strong>do</strong>sPretos <strong>no</strong> Distrito Diamanti<strong>no</strong> <strong>no</strong> século <strong>XVIII</strong>, 2ª edição, São Paulo, Companhia EditoraNacional, 1978; José Ramos Tinhorão, Os sons negros <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>. Cantos, danças,folgue<strong>do</strong>s: origens, São Paulo, Art Editora, 1988 e Os pretos em Portugal. Uma presençasilenciosa, Lisboa, Editorial Caminho, 1988.2Alguns <strong>de</strong>sses estu<strong>do</strong>s são: João José <strong>Reis</strong>, A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revoltapopular <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong>, São Paulo, Companhia das Letras, 1991; MaryKarasch, Slave Life in Rio <strong>de</strong> Janeiro 1808-1850, Princeton, Princeton University Press,1987; Patrícia Ann Mulvey, “The Black Lay Brotherhoods of Colonial Brazil: a history”,City University of New York, Ph.D., 1976, University Microfilms International; AntoniaAparecida Quintão, Lá vem meu parente. As irmanda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pretos e par<strong>do</strong>s <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong>Janeiro e em Pernambuco (século <strong>XVIII</strong>), São Paulo, Anablume/Fapesp, 2002; Mariza<strong>de</strong> Carvalho Soares, Devotos da Cor: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> étnica, religiosida<strong>de</strong> e escravidão <strong>no</strong>Rio <strong>de</strong> Janeiro, século <strong>XVIII</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Civilização <strong>Brasil</strong>eira, 2000; Marcos Magalhães<strong>de</strong> Aguiar, “Vila Rica <strong>do</strong>s confra<strong>de</strong>s. A sociabilida<strong>de</strong> confrarial entre negros emulatos <strong>no</strong> século <strong>XVIII</strong>, Dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>, <strong>Departamento</strong> <strong>de</strong> História - FFLCH/


Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98 81com me<strong>no</strong>s sobre as ativida<strong>de</strong>s ligadas a essas realezas, que atuavam principalmentepor ocasião das festas <strong>do</strong>s oragos das irmanda<strong>de</strong>s <strong>de</strong>ntro das quais esseslí<strong>de</strong>res eram escolhi<strong>do</strong>s.Em livro publica<strong>do</strong> em 2002, eu mesma propus uma história da festa dacoroação <strong>de</strong> rei <strong>do</strong> <strong>Congo</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> escravista, traçan<strong>do</strong> os antece<strong>de</strong>ntes daschamadas congadas. 3 É aquele um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> cunho geral, <strong>no</strong> qual eu propusuma interpretação abrangente da presença disseminada <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, <strong>do</strong> séculoXVII ao <strong>XIX</strong> (sem consi<strong>de</strong>rar o presente, pois essas festas ainda acontecem)da tradição que comunida<strong>de</strong>s negras tinham <strong>de</strong> escolher um rei e outras figurasprincipais, que estavam à frente da realização <strong>de</strong> uma festa anual, na quala comunida<strong>de</strong> saía às ruas festejan<strong>do</strong>-<strong>no</strong>s. Além <strong>de</strong> trazer um tema mais explora<strong>do</strong>na antropologia e <strong>no</strong>s estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> folclore para o campo da história, o meulivro também fez um esforço <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r manifestações afro-brasileiras à luzdas realida<strong>de</strong>s africanas, sob inspiração <strong>de</strong> Robert Slenes, <strong>de</strong> Sidney Mintz,<strong>de</strong> Richard Price, e <strong>de</strong> vários outros autores que analisaram <strong>de</strong>ssa perspectivaas socieda<strong>de</strong>s caribenhas e <strong>do</strong> sul <strong>do</strong>s Esta<strong>do</strong>s Uni<strong>do</strong>s 4 . Para isso foi precisome iniciar <strong>no</strong> estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> culturas africanas, especialmente centro-africanas (poisforam estas que <strong>de</strong>ram aos reina<strong>do</strong>s negros a contribuição cultural mais significativa),e <strong>no</strong> estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> catolicismo na África, uma vez que ele já marcavapresença <strong>no</strong> rei<strong>no</strong> <strong>do</strong> <strong>Congo</strong> antes mesmo <strong>de</strong> chegar ao que foi chama<strong>do</strong> <strong>de</strong><strong>Brasil</strong> pelos portugueses. John Thornton foi um autor fundamental para começara enten<strong>de</strong>r o que ele chamou <strong>de</strong> “catolicismo africa<strong>no</strong>”, forja<strong>do</strong> <strong>no</strong> rei<strong>no</strong>USP, 1993; An<strong>de</strong>rson José Macha<strong>do</strong> <strong>de</strong> Oliveira, "Devoção e Carida<strong>de</strong>. Irmanda<strong>de</strong>s religiosas<strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro imperial (1840-1889)", Dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>, <strong>Departamento</strong><strong>de</strong> História, UFF, Niterói, 1995; Marcelo MacCord, “O Rosário <strong>do</strong> Homens Pretos <strong>de</strong>Santo Antonio: alianças e conflitos na história social <strong>do</strong> Recife, 1848-1873”, Dissertação<strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>, <strong>Departamento</strong> <strong>de</strong> História, UNICAMP, Campinas, 2001; ElizabethKiddy, “Brotherhoods of Our Lady of the Rosary of the Blacks: Community and Devotionin Minas Gerais, Brazil.”, UMI Dissertation Information Service, Albuquerque, The Universityof New Mexico, 1998.3Marina <strong>de</strong> Mello e Souza, <strong>Reis</strong> negros <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> escravista. História da festa <strong>de</strong> coroação<strong>de</strong> rei congo, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002.4 Sidney Mintz e Richard Price, The Birth of African-American Culture. An AnthropologicalPerspective, Boston, Beacon Press, 1992 (first edited 1976); Richard Price, Alabi’s World,Baltimore, The Johns Hopkins University Press, 1990; Robert Slenes, “’Malungu ngomavem!’ África coberta e <strong>de</strong>scoberta <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>”, Revista USP, n.12, p.48-67, <strong>de</strong>z/jan/fev 1991-1992 e Na senzala uma flor: as esperanças e as recordações na formação da família escrava– <strong>Brasil</strong> su<strong>de</strong>ste, século <strong>XIX</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Nova Fronteira, 1999.


82Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98<strong>do</strong> <strong>Congo</strong> e espalha<strong>do</strong> para regiões vizinhas. 5 Além <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar na minhaanálise <strong>do</strong>s reina<strong>do</strong>s negros brasileiros algumas <strong>de</strong> suas possíveis relações como chama<strong>do</strong> “catolicismo africa<strong>no</strong>”, o conhecimento das formas <strong>de</strong> organizaçãosocial e política das socieda<strong>de</strong>s africanas, e <strong>de</strong> seus sistemas culturais, permitiuque eu construísse uma interpretação da força da presença <strong>do</strong>s reis negros,e posteriormente das congadas, entre muitas comunida<strong>de</strong>s brasileiras. Éessa minha interpretação que preten<strong>do</strong> expor aqui, <strong>no</strong> final dialogan<strong>do</strong> comtrabalhos posteriores ao meu, que também abordaram os reina<strong>do</strong>s negros <strong>no</strong><strong>Brasil</strong>, como os <strong>de</strong> Linda Heywood e Elizabeth Kiddy. 6No <strong>Brasil</strong> existiram reis negros entre algumas comunida<strong>de</strong>s afro<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes,fossem elas quilombolas ou grupos <strong>de</strong> trabalho, mas principalmentenas que se agrupavam em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> irmanda<strong>de</strong>s leigas <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção a <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>ssantos, com <strong>de</strong>staque para Nossa Senhora <strong>do</strong> Rosário e São Benedito. Aprincipal ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas irmanda<strong>de</strong>s, além daquelas relacionadas ao enterro<strong>do</strong>s irmãos, era a realização da festa anual em homenagem ao seu orago,ou seja, santo <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção, e nela o rei <strong>de</strong>sfilava em cortejo pela cida<strong>de</strong>, segui<strong>do</strong><strong>de</strong> sua corte, <strong>de</strong> seus músicos, <strong>de</strong> seus dança<strong>do</strong>res, que podiam apresentarencenações, algumas vezes <strong>de</strong>scritas por observa<strong>do</strong>res atentos a essas manifestaçõesda cultura afro-brasileira, o que permitiu que informações sobre elaschegassem até nós. Enquanto a maioria <strong>de</strong>ssas <strong>de</strong>scrições são <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong>,para o século <strong>XVIII</strong> po<strong>de</strong>mos recorrer a um ou outro registro feito por observa<strong>do</strong>res<strong>do</strong>s reina<strong>do</strong>s negros e a <strong>do</strong>cumentos <strong>de</strong> irmanda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> “homens pretos”(este é o termo mais comum pelo qual elas são i<strong>de</strong>ntificadas <strong>no</strong>s <strong>do</strong>cumen-5Entre as obras <strong>de</strong> John Thornton, ver especialmente África and Africans in the Making ofthe Atlantic World, 1400-1680, Cambridge, Cambridge University Press, 1992; “On thetrail of voo<strong>do</strong>o: African Christianity in Africa and the Americas”, The Americas, 55, p.261- 278, jan. 1988; “Early Kongo-Portuguese relations: a new interpretation”, in: Historyin Africa. A Journal of Method, Massachusetts, Bran<strong>de</strong>is University, African StudiesAssociation, v.8, p. 183-204, 1981; “The Development of an African Catholic Church inthe King<strong>do</strong>m of Kongo, 1491-1750”, Journal of African History, 25, p. 147-167, 1984.6Linda M. Heywood, “As conexões culturais angola<strong>no</strong>-luso-brasileiras”, em Entre Áfricase Brasis, organiza<strong>do</strong> por Selma Pantoja, São Paulo, Marco Zero / Paralelo 15, 2001(tradução brasileira <strong>de</strong> “The Angolan-Afro-Brazilian Cultural Connections”, Slavery andAbolition, vol.20,n.1, Spring 1999, pp.9-23); Elizabeth W. Kiddy, “Who is the King of<strong>Congo</strong>? A New Look at African and Afro-Brazilian Kings in Brazil”, in Central Africansand Cultural Transformations in the American Diaspora, edited by Linda M. Heywood,Cambridge, Cambridge University Press, 2002.


Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98 83tos), on<strong>de</strong> estão <strong>de</strong>scritas as <strong>no</strong>rmas <strong>de</strong> escolha, as condições impostas aos candidatosaos cargos e suas obrigações.Conforme minha interpretação, esses reis negros <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> escravista erampólos aglutina<strong>do</strong>res <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s que construíam <strong>no</strong>vas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s a partir<strong>do</strong>s seus lega<strong>do</strong>s africa<strong>no</strong>s, acomoda<strong>do</strong>s à estrutura da socieda<strong>de</strong> escravistabrasileira. O intuito da minha análise foi mostrar um processo por meio <strong>do</strong>qual alguns africa<strong>no</strong>s e afro<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes elaboraram uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> negracatólica. Na constituição <strong>de</strong>ssa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, foram importantes as irmanda<strong>de</strong>s<strong>de</strong> “homens pretos”, <strong>no</strong> interior das quais existiu a maioria <strong>do</strong>s reina<strong>do</strong>s negros;contaram as <strong>no</strong>rmas <strong>de</strong> convivência entre escravos e senhores, mas tambémestiveram presentes as experiências <strong>do</strong> “catolicismo africa<strong>no</strong>”, conheci<strong>do</strong><strong>de</strong> muitos centro-africa<strong>no</strong>s escraviza<strong>do</strong>s que foram leva<strong>do</strong>s para o <strong>Brasil</strong>.Os indícios para o século <strong>XVIII</strong> mostram que havia celebrações em tor<strong>no</strong><strong>de</strong> reis <strong>de</strong> diversas nações, preferencialmente centro-africanas mas não só 7 ,enquanto as fontes relativas ao século <strong>XIX</strong> falam quase só em rei <strong>do</strong> <strong>Congo</strong>.Para mim, a proliferação <strong>no</strong> século <strong>XIX</strong> <strong>do</strong> título <strong>de</strong> rei <strong>do</strong> <strong>Congo</strong>, haven<strong>do</strong>antes uma varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> “nações” que escolhiam e festejavam seus reis, <strong>de</strong>veu-seao fato da referência a este rei<strong>no</strong> ter significa<strong>do</strong>s importantes tanto parasenhores e administra<strong>do</strong>res coloniais como para centro-africa<strong>no</strong>s escraviza<strong>do</strong>s,que tinham <strong>de</strong> refazer suas vidas na socieda<strong>de</strong> escravista brasileira, e queeram maioria nas áreas <strong>de</strong> maior incidência <strong>do</strong>s reina<strong>do</strong>s negros. Para eles aexperiência <strong>do</strong> catolicismo também era um elo com a África natal (crescentementei<strong>de</strong>alizada à medida que se afastava <strong>no</strong> tempo), <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> à existência <strong>de</strong>chefes que se diziam católicos <strong>no</strong> <strong>Congo</strong> e em Angola e à incorporação <strong>de</strong>ritos e objetos <strong>de</strong> culto <strong>do</strong> catolicismo por algumas populações centro-africanas.Essa familiarida<strong>de</strong> anterior com formas <strong>de</strong> catolicismo africa<strong>no</strong> aju<strong>do</strong>u aconstrução <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> elaborada e reproduzida por meio <strong>do</strong>s reina<strong>do</strong>snegros realiza<strong>do</strong>s nas irmanda<strong>de</strong>s. Mas além <strong>de</strong>sse aspecto <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m mais7“Apenas amanhecia o dia <strong>de</strong> <strong>Reis</strong>, o campo <strong>de</strong> São Domingos, nas proximida<strong>de</strong>s dacapela, opulentava-se <strong>de</strong> um espetáculo varia<strong>do</strong> e estranho em que Moçambiques,Cabundás, Benguelas, Rebolos, <strong>Congo</strong>s, Cassanges, Minas, e a pluralida<strong>de</strong> finalmente<strong>do</strong>s representantes das nações d’África, escravos <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, exibiam-se autênticos, cadaqual com seu característico fundamental, seu tipo próprio, sua estética privativa.” MelloMoraes Filho, Festas e tradições populares <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, 3ª edição, Rio <strong>de</strong> Janeiro, F.Briguiet& Cia. Editores, 1946, p. 383. (A <strong>de</strong>scrição se refere a festa <strong>do</strong> século <strong>XVIII</strong>.)


84Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98simbólica, as próprias formas <strong>de</strong> organização política africanas, nas quais eracentral a figura <strong>do</strong> chefe, encontraram receptivida<strong>de</strong> junto a tradições da religiosida<strong>de</strong>popular européia, e particularmente lusitana, segun<strong>do</strong> as quais erameleitos alguns reis <strong>de</strong> festa, como <strong>no</strong> caso da festa <strong>do</strong> Divi<strong>no</strong> Espírito Santo.Já para os senhores e administra<strong>do</strong>res da socieda<strong>de</strong> colonial, as festas emtor<strong>no</strong> <strong>de</strong> um rei <strong>do</strong> <strong>Congo</strong> eram na maior parte das vezes aceitas por seremfeitas a partir das irmanda<strong>de</strong>s leigas <strong>de</strong> <strong>de</strong>voção a santos católicos, instituiçõesque integravam os africa<strong>no</strong>s e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes às <strong>no</strong>rmas da socieda<strong>de</strong>escravista. Mas além <strong>de</strong>sse aspecto consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong> como disciplina<strong>do</strong>r <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>snegras, sempre potencialmente ameaça<strong>do</strong>ras, havia elementossimbólicos igualmente importantes para a aceitação <strong>de</strong> reis <strong>do</strong> <strong>Congo</strong>, ou pelome<strong>no</strong>s tolerância à sua existência. Estes se relacionavam à história <strong>do</strong> impérioportuguês, que legitimou sua expansão em parte na ação missionária, justifican<strong>do</strong>-apela necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> converter ao catolicismo o gentio <strong>do</strong>s territóriosreivindica<strong>do</strong>s. No que diz respeito à África, primeiro espaço explora<strong>do</strong> pelosportugueses, os sacer<strong>do</strong>tes tiveram gran<strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong> em difundir a religiãocatólica, com a exceção <strong>do</strong> rei<strong>no</strong> <strong>do</strong> <strong>Congo</strong>, cujos principais chefes aceitaramo batismo em 1491 e a partir <strong>de</strong> então a<strong>do</strong>taram o catolicismo como a religiãoque fundamentava o po<strong>de</strong>r central, mesmo sem aban<strong>do</strong>nar as crenças ancestraise as formas tradicionais <strong>de</strong> legitimação <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r. A crônica portuguesada época registrou com <strong>de</strong>talhes os episódios liga<strong>do</strong>s à conversão <strong>do</strong>s chefescongoleses e <strong>no</strong> século XVI houve uma gran<strong>de</strong> aproximação entre Portugal eo <strong>Congo</strong>, que <strong>no</strong> entanto manteve sua soberania. 8 O momento <strong>de</strong> maior força<strong>do</strong> chama<strong>do</strong> rei<strong>no</strong> <strong>do</strong> <strong>Congo</strong> - um <strong>de</strong>termina<strong>do</strong> território cujas al<strong>de</strong>ias se sujeitavama uma autorida<strong>de</strong> central - foi o perío<strong>do</strong> <strong>do</strong> gover<strong>no</strong> <strong>de</strong> Mbemba Nzinga(1507-1542), batiza<strong>do</strong> ainda criança com o <strong>no</strong>me <strong>de</strong> Afonso <strong>no</strong> momento inauguralda aceitação <strong>do</strong> catolicismo por parte <strong>de</strong> alguns chefes congoleses. D.Afonso I entrou para a história como o mais importante rei católico <strong>do</strong> <strong>Congo</strong>,manten<strong>do</strong> correspondência com D. João II, D. Manuel I e D. João III <strong>de</strong> Portugale apoian<strong>do</strong> a disseminação <strong>do</strong> catolicismo entre a população por ele governada.Essa vitória da ação missionária li<strong>de</strong>rada pela Coroa portuguesa foi reme-8 Para a conversão <strong>do</strong>s chefes congoleses, ver entre outras, a narrativa <strong>de</strong> Rui <strong>de</strong> Pina,“Relação <strong>do</strong> Rei<strong>no</strong> <strong>do</strong> <strong>Congo</strong>”, em Carmem M. Radulet, O cronista Rui <strong>de</strong> Pina e a“Relação <strong>do</strong> Rei<strong>no</strong> <strong>do</strong> <strong>Congo</strong>”, Lisboa, Imprensa Nacional, Casa da Moeda, 1992.


Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98 85morada por séculos, dramatizada em festas públicas e fartamente utilizada parao enaltecimento <strong>do</strong> império português. 9Assim, consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> os reina<strong>do</strong>s negros como manifestações culturais comsignifica<strong>do</strong>s distintos para aqueles que os realizavam, ou seja as comunida<strong>de</strong>snegras, e para aqueles que tinham o controle da socieda<strong>de</strong> escravista, parauns eles seriam formas <strong>de</strong> organização social e <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> <strong>no</strong>vas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s,e para outros seriam comprovação <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio sobre a comunida<strong>de</strong>negra e <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>r articula<strong>do</strong> ao império. Dessa forma, a unificação <strong>do</strong>s diversosreis <strong>de</strong> nação em uma única <strong>de</strong>signação, <strong>de</strong> rei <strong>do</strong> <strong>Congo</strong>, liga-se, <strong>no</strong> meuenten<strong>de</strong>r, a esses <strong>do</strong>is universos culturais, o <strong>do</strong>s negros e o <strong>do</strong>s brancos. Deum la<strong>do</strong> houve a consolidação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> mais uniforme a<strong>do</strong>tada porafrica<strong>no</strong>s <strong>de</strong> origens diferentes, que passaram a se ver como membros <strong>de</strong> umacomunida<strong>de</strong> católica negra, parte da socieda<strong>de</strong> brasileira para a qual eles ouseus antepassa<strong>do</strong>s foram trazi<strong>do</strong>s. De outro la<strong>do</strong>, o lugar <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque que orei<strong>no</strong> <strong>do</strong> <strong>Congo</strong> ocupava <strong>no</strong> imaginário lusita<strong>no</strong>, principal matriz das maneiras<strong>de</strong> pensar da classe senhorial brasileira e que permaneceu presente mesmoquan<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong> se tor<strong>no</strong>u in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> Portugal, aju<strong>do</strong>u a aceitaçãodas congadas e por meio <strong>de</strong>las a integração <strong>de</strong> alguns <strong>do</strong>s grupos <strong>de</strong> <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes<strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s à socieda<strong>de</strong> brasileira.A essa interpretação <strong>de</strong> caráter mais simbólico, po<strong>de</strong>mos somar as informaçõesrelativas ao tráfico <strong>de</strong> escravos centro-africa<strong>no</strong>s para o su<strong>de</strong>ste brasileiro,pois <strong>no</strong> século <strong>XIX</strong>, quan<strong>do</strong> se consoli<strong>do</strong>u a <strong>de</strong>signação <strong>de</strong> rei <strong>do</strong> <strong>Congo</strong><strong>no</strong>s reina<strong>do</strong>s negros existentes <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, cresceu a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> africa<strong>no</strong>sembarca<strong>do</strong>s <strong>no</strong>s portos da região <strong>do</strong> antigo rei<strong>no</strong> <strong>do</strong> <strong>Congo</strong>. A vigilância <strong>do</strong>fisco português sobre as transações comerciais que aconteciam <strong>no</strong> porto <strong>de</strong>Luanda e o cerco <strong>do</strong>s britânicos sobre os navios negreiros fez com que os traficantesreativassem os portos mais próximos à foz <strong>do</strong> rio <strong>Congo</strong>, o que tambémacarretou uma mudança nas rotas interiores <strong>de</strong> abastecimento <strong>de</strong> escravos,que passaram a ser pessoas mais ligadas à área <strong>de</strong> influência <strong>do</strong> mani<strong>Congo</strong>. No território que até o século XVII havia existi<strong>do</strong> uma unida<strong>de</strong> políticacoesa, <strong>no</strong> século <strong>XIX</strong> conjuntos <strong>de</strong> al<strong>de</strong>ias tinham auto<strong>no</strong>mia administra-9 A esse respeito ver também Silvia Lara, “Significa<strong>do</strong>s cruza<strong>do</strong>s: as embaixadas <strong>de</strong> congosna Bahia setecentista”, em Carnavais e outras f(r)estas, organiza<strong>do</strong> por Maria ClementinaPereira Cunha, Campinas, Cecult / Editora Unicamp, 2001.


86Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98tiva e econômica, mas mantinham uma unida<strong>de</strong> simbólica, pois os chefes locaisainda reconheciam a autorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mani <strong>Congo</strong>: o chefe principal, quecontinuava recorren<strong>do</strong> ao catolicismo para reforçar e legitimar sua autorida<strong>de</strong>sobre os <strong>de</strong>mais. 10 Assim, com a chegada <strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s trafica<strong>do</strong>s pelas rotas<strong>do</strong> <strong>Congo</strong> <strong>no</strong> século <strong>XIX</strong>, os laços das comunida<strong>de</strong>s negras brasileiras comaquela região se estreitaram <strong>no</strong>vamente <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> um longo pre<strong>do</strong>mínio <strong>do</strong>porto <strong>de</strong> Luanda e da região <strong>de</strong> Angola. 11Ao estudar os reis negros <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> escravista eu queria encontrar umaexplicação para a disseminação <strong>do</strong>s festejos em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> um rei <strong>do</strong> <strong>Congo</strong> porgran<strong>de</strong> parte <strong>do</strong> território brasileiro <strong>no</strong> século <strong>XIX</strong>. A partir da reconstituiçãoque me foi possível fazer da história da festa <strong>de</strong> coroação <strong>de</strong> reis <strong>do</strong> <strong>Congo</strong> <strong>no</strong><strong>Brasil</strong>, propus, na ocasião, o uso <strong>do</strong> termo “rei congo” como indica<strong>do</strong>r <strong>de</strong> uma<strong>de</strong>terminada i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, expressa num mito vivi<strong>do</strong> nas teatralizações que ocorriamem alguns festejos, como contam relatos <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong>. Por estarem expressosnesse mito sentimentos que ultrapassam em muito o rei<strong>no</strong> <strong>do</strong> <strong>Congo</strong>tal como existiu historicamente, optei por usar o termo como uma categoria eescrevê-lo com letra minúscula. Para mim, o termo “rei congo” remete a umaidéia <strong>de</strong> África construída <strong>no</strong> Novo Mun<strong>do</strong> e ao ser usa<strong>do</strong> como uma categoriaabstrata <strong>do</strong> conhecimento, e não como a <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> histórica,se torna mais geral, como a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> para cuja construção ele serviu.A socieda<strong>de</strong> escravista <strong>no</strong> interior da qual algumas comunida<strong>de</strong>s negrasconstruíram essa i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> católica negra, para a qual o rei era um cataliza<strong>do</strong>r,era um arcabouço <strong>de</strong> coerção e <strong>de</strong> controle sobre os afro<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes. Eo surpreen<strong>de</strong>nte, para retomar uma idéia com a qual comecei esse texto, é queescravos, negros livres e libertos ocupassem as ruas das cida<strong>de</strong>s e os terreirosdas fazendas com procissões, cantos, danças e encenações toleradas e às vezesaté apreciadas pelos senhores, pelos brancos, pelos par<strong>do</strong>s embranqueci<strong>do</strong>spela ascensão social. Com a garantia da liberda<strong>de</strong> oferecida pelo momento da10 A esse respeito ver Susan Herlin Broadhead, “Beyond <strong>de</strong>cline: the King<strong>do</strong>m of theKongo in the eighteenth and nineteenth centuries.” International Journal of AfricanHistorical Studies, 12, pp. 615-650, 1979.11 Ver, entre outros trabalhos, Susan J. Herlin, “Brazil and the Commercialization ofKongo, 1840-1870”, em Enslaving Connections. Changing Cultures of Africa and BrazilDuring the Era of Slavery, edited by José C. Curto and Paul E. Lovejoy, New York,Humanity Books, 2004.


Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98 87festa, chefes negros se mostravam à frente <strong>do</strong>s grupos que os escolheram, queacatavam a sua autorida<strong>de</strong>, que contavam com sua proteção e com que elesassumissem to<strong>do</strong>s os encargos associa<strong>do</strong>s àquele lugar <strong>de</strong> li<strong>de</strong>rança. 12 Mas tambémeram freqüentes os pedi<strong>do</strong>s para que os reina<strong>do</strong>s negros fossem proibi<strong>do</strong>s,porque vistos como ameaça<strong>do</strong>res à or<strong>de</strong>m. A liberalida<strong>de</strong> que podia cercálos,com a tolerância a uma inversão <strong>de</strong> lugares característica <strong>do</strong> tempo da festa,quan<strong>do</strong> a ruptura <strong>do</strong> cotidia<strong>no</strong> permite que o mun<strong>do</strong>, mesmo numa socieda<strong>de</strong>escravista, fosse posto <strong>de</strong> cabeça para baixo, tinha como contrapartida a solicitação<strong>de</strong> medidas repressoras. É o que vemos numa petição escrita em 1771 porum vigário mineiro que não se conformava com o fato <strong>do</strong>s reis negros se atribuíremautorida<strong>de</strong> (reconhecida por muitos) durante a vigência <strong>de</strong> seus reina<strong>do</strong>sfestivos, exigin<strong>do</strong> que as pessoas se <strong>de</strong>scobrissem à sua passagem, que lhesce<strong>de</strong>ssem os melhores lugares na igreja ou que obe<strong>de</strong>cessem a or<strong>de</strong>ns suas <strong>de</strong>natureza diversa, como por exemplo soltar escravos <strong>do</strong>s castigos ou mesmo daca<strong>de</strong>ia. 13 Em um outro extremo das maneiras como a socieda<strong>de</strong> escravista lidavacom os reina<strong>do</strong>s negros, havia senhores que emprestavam jóias a seus escravos,permitiam que se ausentassem, e às vezes participavam ativamente da farsateatral, quan<strong>do</strong> reconheciam a autorida<strong>de</strong>, para eles burlesca, <strong>do</strong> rei. 1412“Após irem à missa cerca <strong>de</strong> 400 homens e mulheres elegeram um rei e uma rainha, emarcharam pelas ruas cantan<strong>do</strong>, dançan<strong>do</strong> e recitan<strong>do</strong> os versos que fizeram, acompanha<strong>do</strong>s<strong>de</strong> oboés, trombetas e tambores bascos. Estavam vesti<strong>do</strong>s com as roupas <strong>de</strong> seus senhorese senhoras, com correntes <strong>de</strong> ouro e brincos <strong>de</strong> ouro e pérolas, alguns <strong>de</strong>les mascara<strong>do</strong>s.Todas as diversões <strong>de</strong>sta cerimônia lhes custaram 100 escu<strong>do</strong>s. O rei e seus oficiaisnão fizeram nada em toda essa semana, além <strong>de</strong> andarem solenemente, com a espada ea adaga ao seu la<strong>do</strong>.” (Observação feita em 1666). Urbain Souchu Rennefort, Histoire<strong>de</strong>s In<strong>de</strong>s Orientales. Paris: Ar<strong>no</strong>ul Seneuze, 1688. Cita<strong>do</strong> em Paulo Augusto Castagna,“Fontes bibliográficas para a pesquisa da prática musical <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> <strong>no</strong>s séculos XVI eXVII, v. III (<strong>do</strong>cumentação), p.485. Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>, Escola <strong>de</strong> Comunicaçõese Artes, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, São Paulo, 1991.13Petição <strong>do</strong> Padre Leonar<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> Castro, vigário cola<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Sebastião <strong>de</strong>Mariana, Minas Gerais, transcrita em parte por Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, “Rosário<strong>do</strong>s homens pretos”, em Poesia completa e prosa, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Companhia José AguilarEditora, 1973, pp. 810 a 815.14Como contam Spix e Martius, que assistiram a um <strong>de</strong>sses reina<strong>do</strong>s em 1818 em Diamantina:“Chegan<strong>do</strong> à igreja da Mãe <strong>de</strong> Deus, preta e só <strong>do</strong>s negros, o rei <strong>de</strong>posto entregou o cetro ea coroa ao seu sucessor, e este fez então uma visita <strong>de</strong> gala, na sua <strong>no</strong>va dignida<strong>de</strong>, ao inten<strong>de</strong>nte<strong>do</strong> Distrito Diamanti<strong>no</strong>, com toda sua corte. O inten<strong>de</strong>nte, já preveni<strong>do</strong> <strong>de</strong>ssa visita, esperouo seu hóspe<strong>de</strong> real em camisola <strong>de</strong> <strong>do</strong>rmir e carapuça. O recém-eleito, negro forro e sapateiro<strong>de</strong> ofício, ao avistar o inten<strong>de</strong>nte, ficou tão atrapalha<strong>do</strong>, que, ao ser convida<strong>do</strong> para sentarse<strong>no</strong> sofá, <strong>de</strong>ixou cair o cetro. O <strong>de</strong>lica<strong>do</strong> Ferreira da Câmara, apanhou-o, e, rin<strong>do</strong>, o resti-


88Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98Mas não era só farsa que havia <strong>no</strong> teatro (ou nas danças dramáticas, comotão bem <strong>de</strong>finiu Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>) 15 , pois para mim é justamente nele queresi<strong>de</strong> o núcleo da construção mítica <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> negra católica <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>escravista. Coroa<strong>do</strong>s na igreja pelo padre <strong>no</strong> dia da festa <strong>do</strong> orago da irmanda<strong>de</strong>que os abrigava, os reis <strong>de</strong>sfilavam com seus séquitos pelos bairros em quemoravam mas também pelos espaços mais <strong>no</strong>bres das cida<strong>de</strong>s, praças e ruason<strong>de</strong> se situavam os prédios da administração e das moradias das pessoas importantes.O grupo ostentava com orgulho suas roupas especiais, o mais luxuosaspossíveis, meia, calção, sapatos <strong>de</strong> fivela, camisas com baba<strong>do</strong>s e casacasengalonadas, manto, cetro e coroa, para as rainhas vesti<strong>do</strong>s à moda européia.As cortes festivas usavam roupas semelhantes às daquelas com que foram <strong>de</strong>scritose retrata<strong>do</strong>s os chefes africa<strong>no</strong>s receben<strong>do</strong> emissários europeus, geralmenteobtidas nas negociações com os comerciantes atlânticos, que tinhamque oferecer aos chefes as merca<strong>do</strong>rias que mais lhes agradavam para obteras licenças para a compra <strong>de</strong> escravos. O que para os senhores luso-brasileirosindicava a a<strong>do</strong>ção <strong>do</strong>s padrões europeus e a subordinação, para a comunida<strong>de</strong>negra <strong>de</strong>via ser lembrança <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s chefes que por terem boas relaçõescom os comerciantes europeus que atuavam em suas terras tinham acesso àquelasroupas, que os distinguiam <strong>do</strong>s me<strong>no</strong>s po<strong>de</strong>rosos <strong>do</strong> que eles. 16tuiu ao rei já cansa<strong>do</strong>, com as palavras: - ‘Vossa Majesta<strong>de</strong> <strong>de</strong>ixou cair o cetro!’ O coro musicalexprimiu com barulhenta toada a respeitosa gratidão pelo gesto <strong>do</strong> inten<strong>de</strong>nte, e, finalmente,saiu toda a multidão, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> haver, segun<strong>do</strong> o costume <strong>do</strong>s escravos, <strong>do</strong>bra<strong>do</strong> o joelhodireito <strong>de</strong>ante das pessoas da casa, e, caminhan<strong>do</strong> alegremente pelas ruas, o rei e a rainhavoltaram às suas choças.” J.B. Von Spix e C.F.P. Von Martius, Viagem pelo <strong>Brasil</strong>, Rio <strong>de</strong>Janeiro, Imprensa Nacional, 1938, v.II, p.129.15Mário <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, “Os congos”, em Danças dramáticas <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, tomo 2, Belo Horizonte,Editora Itatiaia, Brasília, Instituto Nacional <strong>do</strong> Livro, 1982.16“Ficamos para<strong>do</strong>s à porta quan<strong>do</strong> apareceu um volumoso número <strong>de</strong> negros e negras,vesti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> algodão branco e <strong>de</strong> cor, com ban<strong>de</strong>iras ao vento e tambores soan<strong>do</strong>. Quan<strong>do</strong>se aproximaram, <strong>de</strong>scobrimos, <strong>no</strong> meio, o Rei, a rainha e o Secretário <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>. Cada um<strong>do</strong>s primeiros trazia na cabeça uma coroa <strong>de</strong> papel colori<strong>do</strong> e <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>. O Rei estava vesti<strong>do</strong>com uma velha roupa <strong>de</strong> cores diversas, vermelho, ver<strong>de</strong> e amarelo, manto, jaleco ecalções. Trazia na mão um cetro <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira, lindamente <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>. A Rainha envergara umvesti<strong>do</strong> <strong>de</strong> seda azul, da moda antiga. O humil<strong>de</strong> Secretário ostentava tantas cores quantoseu chefe, mas era evi<strong>de</strong>nte que sua roupa provinha <strong>de</strong> várias partes, umas muito estreitase outras <strong>de</strong>masia<strong>do</strong> amplas para ele. As <strong>de</strong>spesas com a sagrada cerimônia <strong>de</strong>viam ser pagaspelos negros e por isso, <strong>no</strong> meio da igreja, estava uma mesinha, com o tesoureiro <strong>de</strong>ssaIrmanda<strong>de</strong> preta e outros dignitários, e sobre ela uma pequena caixa para receber o dinheiro.”(Observação feita em 1814.) Henry Koster, Viagens ao <strong>no</strong>r<strong>de</strong>ste <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, tradução e<strong>no</strong>tas <strong>de</strong> Luis da Câmara Cascu<strong>do</strong>, São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1942, p. 354.


Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98 89Acompanhan<strong>do</strong> os reis e suas cortes vinham toca<strong>do</strong>res <strong>de</strong> instrumentos<strong>de</strong> origem tanto européia quanto africana: diferentes tipos <strong>de</strong> tambores, pia<strong>no</strong>s<strong>de</strong> <strong>de</strong><strong>do</strong>, marimbas, instrumentos <strong>de</strong> corda, além <strong>do</strong>s que dançavam compassos e gestos tipicamente africa<strong>no</strong>s, <strong>de</strong>scritos com espanto e repugnânciapela maioria <strong>do</strong>s registros. 17 Muitas vezes, junto aos personagens reais comtrajes <strong>de</strong> estilo europeu, vinham outros, vesti<strong>do</strong>s <strong>de</strong> maneiras africanas, envoltosem peles, carrega<strong>do</strong>s <strong>de</strong> colares, pulseiras, guizos, e penas na cabeça àsemelhança <strong>do</strong>s sacer<strong>do</strong>tes centro-africa<strong>no</strong>s. As músicas tinham ritmos africa<strong>no</strong>se as letras misturavam palavras africanas com um português com gramáticae sintaxe altera<strong>do</strong>s. Se consi<strong>de</strong>rarmos que as letras cantadas então eramsemelhantes às que foram coletadas a partir <strong>do</strong> final <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong> e início<strong>do</strong> XX, elas falavam <strong>de</strong> situações que remetiam a temas familiares às comunida<strong>de</strong>snegras, como o aprisionamento na África, a travessia <strong>do</strong> ocea<strong>no</strong>, a a<strong>do</strong>ção<strong>do</strong> catolicismo, a interferência <strong>do</strong>s santos na vida cotidiana, situações ligadasao cativeiro e à inserção <strong>do</strong>s africa<strong>no</strong>s e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes na socieda<strong>de</strong>escravista brasileira. O áuge <strong>do</strong>s cortejos festivos era a dança dramática, nemsempre presente, mas <strong>de</strong>scrita por vários observa<strong>do</strong>res. 1817“O <strong>no</strong>vo rei <strong>do</strong>s negros recebeu oficialmente a visita <strong>de</strong> um envia<strong>do</strong> estrangeiro à corte<strong>do</strong> <strong>Congo</strong> (a <strong>de</strong><strong>no</strong>minada congada). A família real e a corte, em roupas <strong>de</strong> gala, dirigiram-secom pompa à praça <strong>do</strong> Merca<strong>do</strong>; o rei e a rainha sentaram-se em ca<strong>de</strong>iras, à suadireita e esquerda, acomodaram-se, em bancos baixos, os ministros, camareiros e camareirase os mais dignitários <strong>do</strong> rei<strong>no</strong>. Deante <strong>de</strong>les, estavam coloca<strong>do</strong>s, em dupla fila, osmúsicos da banda, com sapatos amarelos e vermelhos, meias pretas e brancas, calçasvermelhas e amarelas, com capinhas <strong>de</strong> seda, todas rotas, e faziam uma algazarra infernalcom tambores, flautas, pan<strong>de</strong>iros, chocalhos e com a chorosa marimba; os dança<strong>do</strong>resanunciaram o envia<strong>do</strong> com pulos e cabriolas, com as mais singulares caretas e as maisprofundas mesuras, e traziam os seus presentes, apresentan<strong>do</strong> tão bizarro espetáculo, quese imaginava estar <strong>de</strong>ante <strong>de</strong> um ban<strong>do</strong> <strong>de</strong> macacos. Suas majesta<strong>de</strong>s pretas a princípiorepeliram a visita <strong>do</strong> estrangeiro, mas acabaram receben<strong>do</strong>-o com estas palavras: ‘Quelhes estavam abertas as portas e o coração <strong>do</strong> rei’.” J.B. Von Spix e C.F.P. Von Martius,Viagem pelo <strong>Brasil</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Imprensa Nacional, 1938, v.II, p.130.18 "Fazem to<strong>do</strong>s os a<strong>no</strong>s este extravagante carnaval, adquirin<strong>do</strong> o eleito gran<strong>de</strong> influênciasobre os companheiros. A cena era muito curiosa, misturan<strong>do</strong> singularmente as reminiscênciasda costa africana com os costumes brasileiros e cerimônias religiosas. A princípio, orei <strong>do</strong> <strong>Congo</strong>, em companhia <strong>de</strong> sua meta<strong>de</strong>, vem ocupar uma das ca<strong>de</strong>iras postas <strong>de</strong> antemãopara uso da corte. Ambos estão magnificamente vesti<strong>do</strong>s, trazem coroas <strong>de</strong> prata maciçae cetros <strong>do</strong>ura<strong>do</strong>s. Um gran<strong>de</strong> guarda-chuva os garante da influência da lua, que vem nascen<strong>do</strong>.Coisa digna <strong>de</strong> reparo, o rei traz uma máscara preta, como se tivesse receio <strong>de</strong> que apermanência <strong>no</strong> país lhe tivesse <strong>de</strong>sbota<strong>do</strong> a cor natural. A corte, em cujo traje se misturamtodas as cores e os enfeites mais extravagantes, senta-se <strong>de</strong> cada la<strong>do</strong> <strong>do</strong> casal <strong>de</strong> reis;


90Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98Em essência essa dança representava o enfrentamento entre o exército <strong>de</strong>um rei<strong>no</strong> pagão e o <strong>do</strong> rei cristão <strong>do</strong> <strong>Congo</strong>, que se apresentava cerca<strong>do</strong> <strong>de</strong> seusfamiliares, chefes militares e religiosos. Embaixa<strong>do</strong>res traziam mensagens <strong>do</strong>rei<strong>no</strong> distante, geralmente <strong>de</strong>safia<strong>do</strong>ras, travan<strong>do</strong>-se então uma batalha dançadae cantada, sempre vencida pelo exército cristão <strong>do</strong> <strong>Congo</strong>. Algumas vezes asembaixadas eram amistosas e os emissários <strong>do</strong> rei pagão ausente vinham apresentarsua a<strong>de</strong>são aos festejos católicos. As dramatizações foram <strong>de</strong>scritas commais ou me<strong>no</strong>s <strong>de</strong>talhes e o conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> que era fala<strong>do</strong> só passou a ser registra<strong>do</strong>com mais freqüência a partir <strong>do</strong> século XX. Mas se pensarmos que as narrativasorais remetem a tradições que vêm <strong>de</strong> longa data, po<strong>de</strong>mos acreditar que asfalas das dramatizações <strong>de</strong>scritas pelos observa<strong>do</strong>res <strong>do</strong> <strong>XIX</strong> não eram essencialmentediferentes das observadas algumas décadas <strong>de</strong>pois.Conforme a minha interpretação, nessas danças dramáticas estavam simboliza<strong>do</strong>selementos centrais na formação da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> negra católica das comunida<strong>de</strong>sque se uniam em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> reis, que serviam <strong>de</strong> catalisa<strong>do</strong>res das diferentesi<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s africanas anteriores, diluídas com a passagem <strong>do</strong> tempo, transforman<strong>do</strong>-senuma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> africana una, ligada ao campo <strong>do</strong> mítico e <strong>do</strong> imagina<strong>do</strong>.O rei congo católico, além <strong>de</strong> sinalizar para uma integração à socieda<strong>de</strong>escravista na qual o catolicismo tinha um papel <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque, lembrava tempos <strong>de</strong>glória em terra natal, associada ao po<strong>de</strong>roso rei<strong>no</strong> <strong>do</strong> <strong>Congo</strong>, alia<strong>do</strong> <strong>de</strong> povos europeuse cujos chefes tiveram po<strong>de</strong>r invejável. A rememoração simbólica <strong>do</strong> rei<strong>no</strong>africa<strong>no</strong> católico afirmava uma “africanida<strong>de</strong>”, ou seja uma conexão com a Áfricaconstruída a partir <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e da experiência aqui vivida, que indicava umaparticularida<strong>de</strong> da comunida<strong>de</strong> negra, uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> própria que a distinguia mesmoquan<strong>do</strong> a<strong>do</strong>tava o catolicismo e outras tradições <strong>de</strong> origem portuguesa comoa organização em irmanda<strong>de</strong>s leigas. A vitória dramatizada <strong>do</strong>s homens <strong>do</strong> reivem <strong>de</strong>pois uma infinida<strong>de</strong> <strong>de</strong> outros personagens, os mais consi<strong>de</strong>ráveis <strong>do</strong>s quais eramsem dúvida gran<strong>de</strong>s capitães, guerreiros famosos ou embaixa<strong>do</strong>res <strong>de</strong> potências longínquas,to<strong>do</strong>s paramenta<strong>do</strong>s à moda <strong>do</strong>s selvagens <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, com gran<strong>de</strong>s topetes <strong>de</strong> penas,sabres <strong>de</strong> cavalaria ao la<strong>do</strong>, e o escu<strong>do</strong> <strong>no</strong> braço. Nessa balbúrdia, confundiam-se dançasnacionais, diálogos entre pessoas, entre estas e o rei ou entre o rei e a rainha, combatessimula<strong>do</strong>s e toda espécie <strong>de</strong> cambalhotas dignas <strong>do</strong>s macacos mais exercita<strong>do</strong>s. A coisamais divertida era porém um preto mascara<strong>do</strong> <strong>de</strong> branco, e vesti<strong>do</strong> com a farda vermelha<strong>do</strong> solda<strong>do</strong> inglês; trazia um violão e era acompanha<strong>do</strong> por uma orquestra, por assim dizernacional. A escuridão acabou por engolir estes personagens, que não podiam querer mais<strong>do</strong> que nela se confundir.” (Observação feita em 1843.) Francis Castelnau, Expedição àsregiões centrais da América <strong>do</strong> Sul, tradução Olivério M. <strong>de</strong> Oliveira Pinto, São Paulo,Companhia Editora Nacional, 1949, p.171.


Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98 91congo sobre os pagãos, que acabavam por se converter, confirmava a aceitação<strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>no</strong>va, a<strong>de</strong>quada ao mun<strong>do</strong> para o qual foram trazi<strong>do</strong>s comoescravos, mas on<strong>de</strong> também apren<strong>de</strong>ram formas <strong>de</strong> conquistar a liberda<strong>de</strong> ou condiçõesme<strong>no</strong>s árduas <strong>de</strong> cativeiro. Festejar o rei congo <strong>de</strong>pois <strong>de</strong>ste ter si<strong>do</strong> coroa<strong>do</strong>na igreja pelo sacer<strong>do</strong>te católico, o que remetia a ser ele, tal como em terras africanas,um intermediário privilegia<strong>do</strong> entre este mun<strong>do</strong> e o outro, entre o cotidia<strong>no</strong> eo além, entre os homens e os espíritos e antepassa<strong>do</strong>s, também era festejar umamaneira específica <strong>de</strong> ser. Nessa maneira <strong>de</strong> ser os laços com a África eram fundamentais,mas também os laços com o catolicismo.A dança dramática que era feita <strong>no</strong> século <strong>XIX</strong>, quan<strong>do</strong> foi chamada <strong>de</strong>congada, talvez só então tenha se constituí<strong>do</strong> da forma como foi <strong>de</strong>scrita, poisos relatos mais antigos, <strong>do</strong> XVII e <strong>do</strong> <strong>XVIII</strong>, falam apenas em cortejos comdanças e música, sem mencionar teatralizações, como as que já havia há muitoem festas lusitanas, representan<strong>do</strong> por exemplo o embate entre mouros e cristãos.Mas provavelmente foram tradições africanas que estiveram na base daformação das congadas, apesar da semelhança que também tinham com tradiçõeslusitanas, como mostram as <strong>de</strong>scrições <strong>de</strong> batalhas rituais travadas na região<strong>do</strong> rei<strong>no</strong> <strong>do</strong> <strong>Congo</strong> <strong>no</strong> século XVII por ocasião da entronização e <strong>de</strong> cerimôniasfúnebres <strong>de</strong> chefes, ou <strong>de</strong> festas em sua homenagem. 19 A <strong>de</strong>scriçãofeita por Gaspar Barléus em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> século XVII das danças realizadaspor embaixa<strong>do</strong>res congoleses envia<strong>do</strong>s a Maurício <strong>de</strong> Nassau, <strong>no</strong> Recife, tambémaponta para as matrizes africanas das congadas. 20 O mais provável é que19Por ocasião das cerimônias fúnebres (tambo) em honra da rainha Njinga (cujo <strong>no</strong>mecristão era Ana <strong>de</strong> Souza), em 1663 <strong>no</strong> rei<strong>no</strong> <strong>de</strong> Matamba, na África central, cerca <strong>de</strong>8000 solda<strong>do</strong>s, por cinco dias, participaram <strong>de</strong> danças rituais que simulavam batalhasconforme a <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong> padre Cavazzi, que assistiu pessoalmente aos ritos: “ No mesmoinstante foi da<strong>do</strong> o alarme e to<strong>do</strong>s os solda<strong>do</strong>s, com o porte mais feroz que se possaimaginar, começaram a representar as façanhas <strong>de</strong> <strong>do</strong>na Ana, imitan<strong>do</strong>-a <strong>no</strong> assalto, naretirada, na preparação das ciladas, na <strong>de</strong>fesa, na perseguição <strong>do</strong>s inimigos. Um esquadrão<strong>de</strong>frontava outro, num arreme<strong>do</strong> <strong>de</strong> peleja em que uns fingiam ce<strong>de</strong>r o lugar, outros<strong>de</strong>fendê-lo e outros reconquistá-lo. Alguns caíam como mortos, outros rendiam-se prisioneiros.Um grupo fugia, <strong>de</strong>pois recompunha-se; outro vencia, outro <strong>de</strong>scansava um boca<strong>do</strong>.Era tão encarniçada aquela fingida batalha, que qualquer pessoa a teria julga<strong>do</strong> verda<strong>de</strong>ira.”João António Cavazzi <strong>de</strong> Montecúccolo, Descrição histórica <strong>do</strong>s três rei<strong>no</strong>s <strong>do</strong><strong>Congo</strong>, Matamba e Angola, tradução, <strong>no</strong>tas e índice <strong>do</strong> Padre Gracia<strong>no</strong> Maria Leguzza<strong>no</strong>,Lisboa, Junta <strong>de</strong> Investigação <strong>do</strong> Ultramar, 1965, vol II, livro sexto, p. 156.20 “Eles eram <strong>de</strong> compleição robusta e sadia, rosto negro, muito ágeis <strong>de</strong> membros, queungiam para maior facilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> movimento. Vimo-lhes as danças originais, os saltos, os


92Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98as tradições centro-africanas <strong>de</strong> celebrar momentos chaves liga<strong>do</strong>s às chefiascom danças e batalhas rituais tenham si<strong>do</strong> recriadas em algumas comunida<strong>de</strong>snegras que <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> se organizaram em tor<strong>no</strong> <strong>do</strong>s reina<strong>do</strong>s negros, sen<strong>do</strong>associadas pelos senhores <strong>de</strong> origem portuguesa a tradições medievais, ligadasa embaixadas, entradas reais e à encenação <strong>de</strong> lutas entre mouros e cristãos,as chamadas mouriscadas. 21A minha interpretação <strong>de</strong> como os reina<strong>do</strong>s negros foram cria<strong>do</strong>s a partir<strong>de</strong> contribuições centro-africanas é próxima da abordagem <strong>de</strong> autoras comoLinda Heywood e principalmente Elizabeth Kiddy, que se alinham a uma perspectivasegun<strong>do</strong> a qual os centro-africa<strong>no</strong>s escraviza<strong>do</strong>s recriaram suas culturasnas <strong>no</strong>vas condições da socieda<strong>de</strong> escravista brasileira a partir <strong>de</strong> suas culturas<strong>de</strong> origem. A minha maior crítica a essas autoras e à escola a que elas sealinham é que suas análises pouco percebem a incorporação, por parte dascomunida<strong>de</strong>s negras, <strong>do</strong>s elementos lusita<strong>no</strong>s ou luso-brasileiros, assim comonão dão o <strong>de</strong>vi<strong>do</strong> <strong>de</strong>staque à relação <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação que os senhores e administra<strong>do</strong>restinham com os escravos, forros e mesmo negros livres. O peso da <strong>do</strong>minaçãoe os processos <strong>de</strong> mestiçagem são minimiza<strong>do</strong>s principalmente porLinda Heywood, que <strong>de</strong>staca a recriação <strong>de</strong> culturas africanas <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> escravista.Essa é uma perspectiva que está sen<strong>do</strong> disseminada por estu<strong>do</strong>s recentesentre os quais se alinha também James Sweet, que ao chamar seu livro porRecreating África <strong>de</strong>ixa claro que enten<strong>de</strong> as manifestações afro-brasileirascomo recriações africanas a<strong>de</strong>quadas à <strong>no</strong>va situação <strong>de</strong> vida encontrada naAmérica pelos africa<strong>no</strong>s e seus <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntes. 22 Essa perspectiva é acentuadatemíveis floreios <strong>de</strong> espadas, o cintilar <strong>do</strong>s olhos simulan<strong>do</strong> ira contra o inimigo. Vimostambém a cena em que representavam o seu rei senta<strong>do</strong> <strong>no</strong> solo e testemunhan<strong>do</strong> a majesta<strong>de</strong>por um silêncio pertinaz. Depois vimos a cena <strong>do</strong>s embaixa<strong>do</strong>res vin<strong>do</strong>s <strong>do</strong> estrangeiroe a<strong>do</strong>ran<strong>do</strong> ao rei, conforme o cerimonial usa<strong>do</strong> entre suas nações, as suas posturas, aimitação das suas cortesias e mostras <strong>de</strong> acatamento, cousas que, para divertimento <strong>do</strong>s<strong>no</strong>ssos, exibiam, um tanto alegres <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> beberem.” Gaspar Barléus, História <strong>do</strong>s feitosrecentemente pratica<strong>do</strong>s durante oito a<strong>no</strong>s <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> e <strong>no</strong>utras partes sob o gover<strong>no</strong> <strong>do</strong>ilustríssimo João Maurício, con<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nassau (1647), tradução e a<strong>no</strong>tações <strong>de</strong> CláudioBrandão. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Serviço Gráfico <strong>do</strong> Ministério da Educação, 1940, p. 254.21As celebrações portuguesas ligadas ao po<strong>de</strong>r real, são estudadas, entre outros, por AnaMaria Alves, em As entradas régias portuguesas. Uma visão <strong>de</strong> conjunto, Lisboa, LivrosHorizonte Ltda, s/d. e Rita Gomes Costa, em A corte <strong>do</strong>s reis <strong>de</strong> Portugal <strong>no</strong> finalda Ida<strong>de</strong> Média, Lisboa, Difel, 1995.22James H. Sweet, Recreating África. Culture, Kinship, and Religion in the African-Portuguese World, 1441-1770. Chapel Hill, The University of North Carolina Press, 2003.


Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98 93pela pouca <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong> da compreensão que esses autores têm da socieda<strong>de</strong>colonial brasileira na qual ocorriam as situações que analisaram em seus textos.Entretanto, ao espalhar o olhar para Portugal, Angola e <strong>Brasil</strong> esses autoreschamam a atenção para as ligações entre essas partes <strong>do</strong> império português,que tinha <strong>no</strong> Atlântico um espaço privilegia<strong>do</strong> <strong>de</strong> existência. As conexõesque eles i<strong>de</strong>ntificam entre práticas e crenças centro-africanas e brasileiras sãoextremamente interessantes, mas as sutilezas <strong>do</strong>s processos <strong>de</strong> construção dasocieda<strong>de</strong> brasileira (<strong>no</strong>s quais sem dúvida os africa<strong>no</strong>s e afro<strong>de</strong>scen<strong>de</strong>ntesforam fundamentais), e o peso das <strong>no</strong>rmas ditadas a partir da metrópole colonial,são pouco percebi<strong>do</strong>s. Talvez a característica mais marcante da socieda<strong>de</strong>brasileira <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os seus primórdios seja a mestiçagem. Para lidar com elaa administração colonial teve que alterar as regras <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong> estamental<strong>de</strong> antigo regime, abrin<strong>do</strong> exceções quanto às exigências <strong>de</strong> pureza <strong>de</strong> sanguepara ocupar cargos na administração laica e religiosa, curvan<strong>do</strong>-se à ascensão<strong>de</strong> mestiços a lugares até então reserva<strong>do</strong>s aos brancos católicos. 23 A forçadas misturas ocorridas <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> é aspecto que escapa a esses estudiosos<strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong>s, que preferem pensar em termos <strong>de</strong> áreas <strong>de</strong> preservação<strong>de</strong> aspectos <strong>de</strong> culturas africanas, mesmo que modificadas pelas <strong>de</strong>terminaçõesda <strong>no</strong>va realida<strong>de</strong>.No seu artigo “As conexões culturais angola<strong>no</strong>-luso-brasileiras” (em inglês“The Angolan-Afro-Brazilian Cultural Connections”), Linda Heywoodaborda manifestações católicas negras formadas a partir da diáspora impostapelo tráfico <strong>de</strong> escravos a milhões <strong>de</strong> centro-africa<strong>no</strong>s. As irmanda<strong>de</strong>s católicas<strong>de</strong> homens negros em Lisboa, Luanda e em me<strong>no</strong>r grau <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, e a coroação<strong>de</strong> reis <strong>do</strong> <strong>Congo</strong> em Portugal e em me<strong>no</strong>r grau <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> são temas queela rastreia ten<strong>do</strong> por base alguns poucos autores. O seu <strong>de</strong>sconhecimento acerca<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e da bibliografia brasileira sobre catolicismo negro faz com quechegue a conclusões tão controversas como dizer que a “cultura crioula” brasileiraé herança portuguesa, assim como dizer que foi <strong>de</strong> Luanda que veio ocostume <strong>do</strong>s negros se organizarem em irmanda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> louvor a Nossa Senho-23Silvia H. Lara, em Fragmentos Setecentistas: escravidão, cultura e po<strong>de</strong>r na Américaportuguesa, Tese <strong>de</strong> Livre-Docência, <strong>Departamento</strong> <strong>de</strong> História, IFCH, Unicamp, Campinas,2004, estuda o lugar <strong>do</strong>s mestiços <strong>no</strong> império português, abrin<strong>do</strong> o campo <strong>de</strong> investigaçãoainda quase inexplora<strong>do</strong> da questão da mestiçagem <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> colonial.


94Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98ra <strong>do</strong> Rosário e <strong>de</strong> outros santos <strong>de</strong> sua predileção. 24 Acredita ainda que padresconverti<strong>do</strong>s <strong>no</strong> <strong>Congo</strong> ajudaram a disseminar <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> uma religiosida<strong>de</strong>afro-católica, quan<strong>do</strong> o que as fontes apontam é justamente o contrário, ouseja, como sacer<strong>do</strong>tes católicos brasileiros atuaram como missionários emAngola. 25 Para ela os festejos <strong>de</strong> reis <strong>do</strong> <strong>Congo</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> eram lembranças <strong>de</strong>coisas ocorridas <strong>no</strong> <strong>Congo</strong> e se ligavam não só ao “catolicismo africa<strong>no</strong>” comoàs relações entre as Dioceses <strong>de</strong> Angola e <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Ten<strong>do</strong> o mérito <strong>de</strong> proporuma análise <strong>de</strong> viés atlântico, o conhecimento precário <strong>de</strong> Linda Heywoodsobre a socieda<strong>de</strong> e a historiografia brasileiras impe<strong>de</strong> que ela alcance sua meta,chegan<strong>do</strong> a conclusões problemáticas.Já Elizabeth Kiddy tem maior familiarida<strong>de</strong> com o <strong>Brasil</strong> pois fez pesquisaminuciosa em arquivos brasileiros além <strong>de</strong> assistir e participar ativamente<strong>de</strong> congadas que são feitas ainda hoje nas cercanias <strong>de</strong> Belo Horizonte. 26 Maso seu trabalho que interessa aqui é resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> pesquisa bibliográfica e foiexposto em 1999 num congresso na Howard University organiza<strong>do</strong> por LindaHeywood e publica<strong>do</strong> em 2002. Ali Kiddy se perguntou quem era o rei <strong>do</strong> <strong>Congo</strong><strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> <strong>do</strong>s séculos <strong>XVIII</strong> e <strong>XIX</strong>. Fazen<strong>do</strong> um caminho bastante próximo<strong>do</strong> que eu mesma fiz em tese <strong>de</strong>fendida em 1999 e publicada em 2002, elase opõe às interpretações mais antigas para as quais os festejos em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong>um rei <strong>do</strong> <strong>Congo</strong> remetem ao triunfo da cultura européia sobre a africana e<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que eles “simbolizam um processo <strong>de</strong> tradução cultural e transformaçãoque representa a continuação da cultura centro-africana entre os afro-brasileiros”.27 A ambigüida<strong>de</strong> presente nessa afirmação, que fala em transformaçãoe também em continuida<strong>de</strong>, <strong>no</strong> meu enten<strong>de</strong>r está presente em to<strong>do</strong> o texto,<strong>no</strong> qual a autora se refere sempre à recriação e reconstrução <strong>de</strong> estruturas24“As observações <strong>de</strong> Basti<strong>de</strong> sobre a popularida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses santos e <strong>de</strong> Nossa Senhora <strong>do</strong>Rosário entre a população africana e crioula [...] certamente são remanescentes <strong>de</strong> coisasque ocorreram durante o processo <strong>no</strong> <strong>Congo</strong>.” Linda M. Heywood, “As conexõesculturais angola<strong>no</strong>-luso-brasileiras”, em Entre Áfricas e Brasis, p. 65.25Como mostra a pesquisa <strong>de</strong> Lucilene Reginal<strong>do</strong>, apresentada em sua tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>recentemente <strong>de</strong>fendidada: “Os Rosários <strong>do</strong>s Angolas: Irmanda<strong>de</strong>s negras, experiênciasescravas e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s africanas na Bahia setecentista”, Unicamp, 2005.26 Elizabeth Kiddy, “Brotherhoods of Our Lady of the Rosary of the Blacks: Communityand Devotion in Minas Gerais, Brazil.”, UMI Dissertation Information Service,Albuquerque, The University of New Mexico, 1998.27 Elizabeth Kiddy, “Who is the King of <strong>Congo</strong>? A New Look at African and Afro-BrazilianKings in Brazil”, in Central Africans and Cultural Transformations in the American Diaspora,edited by Linda M. Heywood, Cambridge, Cambridge University Press, 2002, pp. 155-182.


Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98 95sociais e manifestações culturais centro-africanas, não atentan<strong>do</strong> para o queé incorpora<strong>do</strong> da socieda<strong>de</strong> branca senhorial, como a própria a<strong>do</strong>ção das irmanda<strong>de</strong>scomo formas <strong>de</strong> organização social. Também aqui o que impe<strong>de</strong> a autora<strong>de</strong> fazer uma análise mais complexa <strong>do</strong>s processos em curso é a abordagemsuperficial <strong>do</strong> contexto <strong>no</strong> qual as manifestações ocorrem, pouco consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong>as <strong>de</strong>terminações <strong>de</strong> uma relação entre senhores e escravos. Mas a semelhançaentre o trabalho <strong>de</strong> Kiddy e partes <strong>do</strong> meu próprio trabalho, seja naescolha <strong>de</strong> seus temas, <strong>de</strong> suas fontes, ou em algumas das conclusões propostas,não leva a autora a se i<strong>de</strong>ntificar comigo, como ela mesma indica <strong>no</strong> final<strong>do</strong> seu artigo, quan<strong>do</strong> diz ter chega<strong>do</strong> a conclusões diferentes das minhas. Creioque a referida diferença se encontra <strong>no</strong> fato <strong>de</strong> eu chamar atenção para a especificida<strong>de</strong><strong>do</strong> processo <strong>de</strong> formação <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s <strong>no</strong>s quais se <strong>de</strong>stacavamos festejos <strong>de</strong> rei congo, interpretan<strong>do</strong> os símbolos usa<strong>do</strong>s para a construção<strong>de</strong> uma <strong>no</strong>va i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, afro-brasileira, e ela enten<strong>de</strong>r que tradições africanasestavam sen<strong>do</strong> rearranjadas e estavam ganhan<strong>do</strong> <strong>no</strong>vos significa<strong>do</strong>s, maspermaneciam essencialmente africanas.No <strong>de</strong>bate aqui proposto, inseri<strong>do</strong> numa história atlântica da diáspora africanae da análise <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>s formadas a partir o tráfico <strong>de</strong> escravos e da exploração<strong>do</strong> trabalho <strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s escraviza<strong>do</strong>s, to<strong>do</strong>s concordam com a importância <strong>de</strong> seenten<strong>de</strong>r as conexões entre <strong>Brasil</strong>, Portugal e as regiões <strong>do</strong> <strong>Congo</strong> e <strong>de</strong> Angola.Mas como ao abordar o catolicismo negro <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> os <strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong>s conhecemmelhor as realida<strong>de</strong>s africanas, enxergam-na em to<strong>do</strong>s os lugares, enquantoos brasileiros apenas começam a abrir os olhos para a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> entendê-laspara melhor analisar os processos <strong>de</strong> miscigenação cultural ocorri<strong>do</strong>s <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>.Para a consolidação <strong>de</strong> uma produção historiográfica que analise a diáspora africana<strong>de</strong> forma mais consistente e consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> to<strong>do</strong>s os lugares e culturas envolvi<strong>do</strong>s,os <strong>no</strong>rte-america<strong>no</strong>s precisam conhecer melhor o contexto brasileiro <strong>no</strong> qualse inserem as comunida<strong>de</strong>s negras para enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> maneira mais completa asformações culturais e organizações sociais <strong>no</strong>vas, e os brasileiros precisam se<strong>de</strong>dicar mais ao estu<strong>do</strong> da história e das culturas africanas, abrin<strong>do</strong> assim <strong>no</strong>vasperspectivas <strong>de</strong> compreensão das manifestações afro-americanas.Referências BibliográficasAGUIAR, Marcos Magalhães <strong>de</strong>. “Vila Rica <strong>do</strong>s confra<strong>de</strong>s. A sociabilida<strong>de</strong>confrarial entre negros e mulatos <strong>no</strong> século <strong>XVIII</strong>.” Dissertação <strong>de</strong> mestra<strong>do</strong>,<strong>Departamento</strong> <strong>de</strong> História - FFLCH/USP, 1993.


96Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98ALVES, Ana Maria. As entradas régias portuguesas. Uma visão <strong>de</strong> conjunto.Lisboa: Livros Horizonte Ltda, s/d.ANDRADE, Carlos Drummond <strong>de</strong>. “Rosário <strong>do</strong>s homens pretos”, Poesiacompleta e prosa. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Companhia José Aguilar Editora, 1973.ANDRADE, Mário <strong>de</strong>. “Os congos”, Danças dramáticas <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. BeloHorizonte: Editora Itatiaia, Brasília: Instituto Nacional <strong>do</strong> Livro, 1982.BARLÉUS, Gaspar. História <strong>do</strong>s feitos recentemente pratica<strong>do</strong>s durante oito a<strong>no</strong>s<strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> e <strong>no</strong>utras partes sob o gover<strong>no</strong> <strong>do</strong> ilustríssimo João Maurício, con<strong>de</strong><strong>de</strong> Nassau (1647). Tradução e a<strong>no</strong>tações <strong>de</strong> Cláudio Brandão. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Serviço Gráfico <strong>do</strong> Ministério da Educação, 1940.BROADHEAD, Susan Herlin. “Beyond <strong>de</strong>cline: the King<strong>do</strong>m of the Kongo inthe eighteenth and nineteenth centuries”, International Journal of AfricanHistorical Studies, 12, 1979, pp. 615-650.CASTAGNA, Paulo Augusto. “Fontes bibliográficas para a pesquisa da práticamusical <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> <strong>no</strong>s séculos XVI e XVII. Dissertação <strong>de</strong> Mestra<strong>do</strong>, Escola<strong>de</strong> Comunicações e Artes, Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo, São Paulo, 1991.CASTELNAU, Francis. Expedição às regiões centrais da América <strong>do</strong> Sul. TraduçãoOlivério M. <strong>de</strong> Oliveira Pinto. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1949.COSTA, Rita Gomes. A corte <strong>do</strong>s reis <strong>de</strong> Portugal <strong>no</strong> final da Ida<strong>de</strong> Média. Lisboa:Difel, 1995.HERLIN, Susan J. “Brazil and the Commercialization of Kongo, 1840-1870”, EnslavingConnections. Changing Cultures of Africa and Brazil During the Era of Slavery,edited by José C. Curto and Paul E. Lovejoy. New York: Humanity Books, 2004.HEYWOOD, Linda M. “As conexões culturais angola<strong>no</strong>-luso-brasileiras”, Entre Áfricase Brasis, organiza<strong>do</strong> por Selma Pantoja. São Paulo: Marco Zero / Paralelo 15, 2001.KARASCH, Mary. Slave Life in Rio <strong>de</strong> Janeiro 1808-1850. Princeton: PrincetonUniversity Press, 1987.KIDDY, Elizabeth W. “Brotherhoods of Our Lady of the Rosary of the Blacks:Community and Devotion in Minas Gerais, Brazil.” UMI DissertationInformation Service, Albuquerque: The University of New Mexico, 1998.“Who is the King of <strong>Congo</strong>? A New Look at African and Afro-BrazilianKings in Brazil”, Central Africans and Cultural Transformations in theAmerican Diaspora, edited by Linda M. Heywood. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 2002.


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98Marina <strong>de</strong> Mello e Souza / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 79-98REIS, João José. A morte é uma festa. Ritos fúnebres e revolta popular <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong><strong>do</strong> século <strong>XIX</strong>. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.SCARANO, Julita. Devoção e escravidão. A Irmanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Nossa Senhora <strong>do</strong>Rosário <strong>do</strong>s Pretos <strong>no</strong> Distrito Diamanti<strong>no</strong> <strong>no</strong> século <strong>XVIII</strong>. 2ª edição, SãoPaulo: Companhia Editora Nacional, 1978.SLENES, Robert. “’Malungu ngoma vem!’ África coberta e <strong>de</strong>scoberta <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>”.Revista USP, n.12, <strong>de</strong>z/jan/fev 1991-1992, pp.48-67.. Na senzala uma flor: as esperanças e as recordações na formação da famíliaescrava – <strong>Brasil</strong> su<strong>de</strong>ste, século <strong>XIX</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Nova Fronteira, 1999.SOARES, Mariza <strong>de</strong> Carvalho. Devotos da Cor: i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> étnica, religiosida<strong>de</strong>e escravidão <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, século <strong>XVIII</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização<strong>Brasil</strong>eira, 2000.SOUZA, Marina <strong>de</strong> Mello e. <strong>Reis</strong> negros <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> escravista. História da festa<strong>de</strong> coroação <strong>de</strong> rei congo, Belo Horizonte, Editora UFMG, 2002.SPIX e MARTIUS, J.B. Von e C.F.P. Von. Viagem pelo <strong>Brasil</strong>. Rio <strong>de</strong> Janeiro:Imprensa Nacional, 1938.SWEET, James H. Recreating África. Culture, Kinship, and Religion in theAfrican-Portuguese World, 1441-1770. Chapel Hill: The University of NorthCarolina Press, 2003.THORNTON, John K. África and Africans in the Making of the Atlantic World,1400-1680. Cambridge: Cambridge University Press, 1992.. “On the trail of voo<strong>do</strong>o: African Christianity in Africa and theAmericas”, The Americas, 55, jan. 1988, pp. 261- 278.. “Early Kongo-Portuguese relations: a new interpretation”. History inAfrica. A Journal of Method. Massachusetts: Bran<strong>de</strong>is University, AfricanStudies Association, v.8, 1981, p. 183-204.. “The Development of an African Catholic Church in the King<strong>do</strong>m ofKongo, 1491-1750”, Journal of African History, 25, 1984, pp. 147-167.TINHORÃO, José Ramos. Os sons negros <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>. Cantos, danças, folgue<strong>do</strong>s:origens. São Paulo: Art Editora, 1988.. Os pretos em Portugal. Uma presença silenciosa. Lisboa: EditorialCaminho, 1988.


AZEREDO COUTINHO, VISCONDE DE ARARUAMA E AMEMÓRIA SOBRE O COMÉRCIODOS ESCRAVOS DE 1838 *Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese<strong>Departamento</strong> <strong>de</strong> História - FFLCH/USPTâmis Peixoto ParronBolsista <strong>de</strong> Iniciação Científica - DH - FFLCH/USPResumoEm 1838, foi publicada a<strong>no</strong>nimanente <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro uma Memóriasobre o comércio <strong>do</strong>s escravos. A historiografia consi<strong>de</strong>ra o bispo JoséJoaquim da Cunha <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> Coutinho como o autor <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento. Oartigo critica essa atribuição, creditan<strong>do</strong> a Memória a José Carneiro daSilva, 1º Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Araruama. Por fim, contextualiza sua <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> tráficonegreiro <strong>no</strong> quadro <strong>do</strong>s <strong>de</strong>bates políticos da década <strong>de</strong> 1830.Palavras-ChaveTráfico negreiro • I<strong>de</strong>ologia da escravidão • Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>AbstractIn 1838, a paper on the slave tra<strong>de</strong> was published a<strong>no</strong>nymously in Rio <strong>de</strong>Janeiro. Historians have consi<strong>de</strong>red bishop José Joaquim da Cunha <strong>de</strong>Azere<strong>do</strong> Coutinho to be the author of the <strong>do</strong>cument. This article criticizessuch attribution and ascribes it to José Carneiro da Silva, 1 st Viscount ofAraruama. Finally, the authors place Silva’s <strong>de</strong>fense of the slave tra<strong>de</strong>within the context of the political <strong>de</strong>bates of the 1830s.KeywordsSlave tra<strong>de</strong> • I<strong>de</strong>ology of slavery • Brazilian Empire* Este artigo foi escrito <strong>no</strong> âmbito <strong>do</strong> Projeto Temático "A fundação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e da Nação:<strong>Brasil</strong> c.1780-c.1850". Tâmis Peixoto Parron agra<strong>de</strong>ce o financiamento da FAPESP àsua pesquisa.


100Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126O problema da atribuiçãoEm 1838, foi publica<strong>do</strong> a<strong>no</strong>nimamente <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, pela TipografiaImperial e Constitucional <strong>de</strong> Júlio Villeneuve, um opúsculo intitula<strong>do</strong> Memóriasobre comércio <strong>do</strong>s escravos, em que se preten<strong>de</strong> mostrar que este tráficoé, para eles, antes um bem <strong>do</strong> que um mal. A folha <strong>de</strong> rosto indicava unicamenteque a memória havia si<strong>do</strong> escrita por um “natural <strong>de</strong> Campos <strong>do</strong>s Goitacases”.Talvez associan<strong>do</strong> <strong>de</strong> forma imediata a existência <strong>de</strong> poucas <strong>de</strong>fesas abertasda escravidão na história <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> ao fato <strong>de</strong> o bispo José Joaquim da Cunha<strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> Coutinho (1742-1821) ter si<strong>do</strong> um <strong>de</strong> seus maiores expoentes, acrítica histórica <strong>do</strong> século XX creditou a autoria da memória a esse ilustre prela<strong>do</strong>,também filho <strong>do</strong>s Campos <strong>do</strong>s Goitacases.Ao que tu<strong>do</strong> indica, o primeiro a fazê-lo foi o bibliógrafo Rubens Borba<strong>de</strong> Moraes, seguin<strong>do</strong> uma sugestão <strong>de</strong> Sacramento Blake. Na bibliografia queelaborou para a edição <strong>do</strong>s escritos econômicos <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> Coutinho, cujaapresentação ficou a cargo <strong>de</strong> Sérgio Buarque <strong>de</strong> Holanda, Moraes não tevedúvidas em inscrever a memória <strong>no</strong> corpus <strong>do</strong> bispo 1 .A atribuição feita pelo gran<strong>de</strong> bibliógrafo, inserida em um volume prepara<strong>do</strong>pelo gran<strong>de</strong> historia<strong>do</strong>r, levou alguns especialistas a aceitarem a autoriada memória como sen<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> Coutinho. Isso po<strong>de</strong> ser verifica<strong>do</strong> em<strong>do</strong>is trabalhos significativos escritos <strong>no</strong>s últimos vinte a<strong>no</strong>s sobre o problemada escravidão <strong>no</strong> Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Assim, Luiz Felipe <strong>de</strong> Alencastro, aocomentar em sua tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong> a célebre <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> tráfico negreiro apresentadapor Bernar<strong>do</strong> Pereira <strong>de</strong> Vasconcelos na década <strong>de</strong> 1840, que professavaos efeitos benéficos da escravidão para a construção da or<strong>de</strong>m nacional(“<strong>no</strong>ssa civilização provém da costa da África (...), porque daquele continen-1Cf. COUTINHO, J.J.da Cunha <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong>. Obras econômicas. Apresentação <strong>de</strong> SérgioB. <strong>de</strong> Holanda. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1966, “Bibliografia <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong>Coutinho”, p.315. Blake, entretanto, não foi conclusivo em sua atribuição; após sumariaro conteú<strong>do</strong> da Análise sobre a justiça <strong>do</strong> comércio <strong>do</strong> resgate <strong>do</strong>s escravos da costada África, escreveu a seguinte frase: “Penso que é a mesma obra publicada mais tar<strong>de</strong>com o título Memória sobre o comércio <strong>do</strong>s escravos (...).” BLAKE, A.V.A. S. DiccionarioBibliographico Brazileiro. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imprensa Nacional, 1898, 7v, v.4, p.477.Tancre<strong>do</strong> <strong>de</strong> Barros Paiva, em suas Achêgas a um diccionario <strong>de</strong> pseu<strong>do</strong>nymos... (Rio <strong>de</strong>Janeiro: J.Leite e Cia, 1929, item 826), também atribuiu a Memória a Azere<strong>do</strong> Coutinho.Agra<strong>de</strong>cemos essa referência a Cristina Antunes, da Biblioteca José Mindlin.


Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126 101te veio o trabalha<strong>do</strong>r robusto, o único que sob este céu africa<strong>no</strong> e num climamais inclemente então que hoje, po<strong>de</strong>ria ter produzi<strong>do</strong>, como produziu, as riquezasque proporcionaram a <strong>no</strong>ssos pais recursos para mandar seus filhosestudar nas aca<strong>de</strong>mias e universida<strong>de</strong>s da Europa, ali adquirirem os conhecimentos<strong>de</strong> to<strong>do</strong>s os ramos <strong>do</strong> saber, os princípios da Filosofia <strong>do</strong> Direito, emgeral, e <strong>do</strong> Direito Público Constitucional que impulsionaram e apressaram aIn<strong>de</strong>pendência e presidiram à organização consagrada na Constituição e <strong>no</strong>utrasleis orgânicas, ao mesmo tempo fortalecen<strong>do</strong> a liberda<strong>de</strong>”), a contrapôs àlinha <strong>de</strong> argumentação <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> Coutinho em sua Análise sobre a Justiça<strong>do</strong> Comércio <strong>do</strong> Resgate <strong>do</strong>s Escravos da Costa da África (1ª ed: 1798), atreladaa uma compreensão global <strong>do</strong> sistema colonial português. Nas palavras<strong>de</strong> Alencastro, “na medida em que apresenta o tráfico como necessário à manutenção<strong>de</strong> Portugal, Azere<strong>do</strong> Coutinho não po<strong>de</strong> mais legitimar o tráfico ilegalbrasileiro <strong>no</strong> século <strong>XIX</strong>. Daí a razão <strong>de</strong> seu ensaio ser edita<strong>do</strong> a<strong>no</strong>nimamente<strong>no</strong> Rio em 1838.” 2Por sua vez, Jaime Rodrigues, em ótima mo<strong>no</strong>grafia a respeito das propostase experiências em tor<strong>no</strong> <strong>do</strong> final <strong>do</strong> tráfico transatlântico para o <strong>Brasil</strong>,classificou Azere<strong>do</strong> Coutinho entre os poucos homens <strong>de</strong> letras e políticos que,<strong>no</strong> contexto <strong>do</strong>s <strong>de</strong>bates da primeira meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong>, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>ram simultaneamentea manutenção <strong>do</strong> tráfico e da escravidão. Para tanto, Rodriguesse valeu da Análise <strong>de</strong> 1798, das Concordâncias das leis <strong>de</strong> Portugal, e dasbulas pontifícias, das quais umas permitem a escravidão <strong>do</strong>s pretos d’África,e outras proíbem a escravidão <strong>do</strong>s índios <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> (1ª ed: 1808), e da Memóriasobre o comércio <strong>do</strong>s escravos <strong>de</strong> 1838, toman<strong>do</strong> esses <strong>do</strong>cumentos comoexpressão <strong>do</strong> pensamento <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> Coutinho sobre o assunto 3 .2ALENCASTRO, Luiz Felipe <strong>de</strong>. Le Commerce <strong>de</strong>s Vivants: Traite d’Esclaves et “PaxLusitana” dans l’Atlantique Sud. Tese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong>. Paris: Université <strong>de</strong> Paris X, 1985-1986, 3v, v.3, p.553, n.142. A respeito <strong>do</strong> discurso <strong>de</strong> Vasconcelos, Alencastro (v.3, p.516)afirma que foi pronuncia<strong>do</strong> em sessão <strong>de</strong> 1840 <strong>no</strong> Sena<strong>do</strong>, e, em rodapé, indica que retiroua citação <strong>de</strong> Oliveira Lima. Na passagem em questão, <strong>no</strong> entanto, esse autor nãoprecisa a data <strong>do</strong> discurso <strong>de</strong> Vasconcelos. Ver LIMA, O. O império brasileiro (1821-1889). 2ª ed. Belo Horizonte/São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1989, p.106. Em pesquisa sobrea i<strong>de</strong>ologia da escravidão <strong>no</strong> Parlamento <strong>Brasil</strong>eiro, Tâmis Peixoto Parron não localizoua fala <strong>de</strong> Vasconcelos <strong>no</strong>s Anais <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1840.3 Cf. RODRIGUES, Jaime. O infame comércio. Propostas e experiências <strong>no</strong> final <strong>do</strong> tráfico<strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s para o <strong>Brasil</strong> (1800-1850).Campinas: Ed.Unicamp/Cecult/FAPESP,2000, pp.71-2.


102Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126Contu<strong>do</strong>, salvo esses <strong>do</strong>is exemplos, a memória publicada em 1838 recebeupouca atenção da historiografia. Ela sequer foi citada <strong>no</strong>s trabalhos maisrelevantes que trataram da discussão i<strong>de</strong>ológica sobre a escravidão negra <strong>no</strong>Segun<strong>do</strong> Império 4 . Os <strong>de</strong>mais textos escravistas <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> Coutinho, pelocontrário, foram analisa<strong>do</strong>s em profundida<strong>de</strong> por diferentes historia<strong>do</strong>res 5 . Essaatitu<strong>de</strong> <strong>de</strong>rivou, muito provavelmente, da atribuição <strong>de</strong> Rubens Borba <strong>de</strong>Moraes. Afinal, por que analisar um texto impresso quase vinte a<strong>no</strong>s após amorte <strong>de</strong> seu autor, se o mesmo não passava <strong>de</strong> uma reimpressão <strong>de</strong> escritospublica<strong>do</strong>s anteriormente?4 Ver, a respeito, as seguintes publicações: COSTA, Emília Viotti da. Da Senzala à Colônia.(1ª.ed: 1966). São Paulo: <strong>Brasil</strong>iense, 1989; BETHELL, Leslie. A abolição <strong>do</strong> tráfico<strong>de</strong> escravos <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>: A Grã-Bretanha, o <strong>Brasil</strong> e a questão <strong>do</strong> tráfico <strong>de</strong> escravos,1807-1869. (Trad.port.) São Paulo: Edusp – Expressão e Cultura, 1976; CONRAD, Robert.Os últimos a<strong>no</strong>s da escravatura <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, 1850-1888. (1ª.ed: 1972; trad.port.). Rio <strong>de</strong>Janeiro: Civilização <strong>Brasil</strong>eira, 1978; QUEIRÓZ, Suely Robles <strong>Reis</strong> <strong>de</strong>. “Aspectos i<strong>de</strong>ológicosda escravidão”. In: Estu<strong>do</strong>s Econômicos. 13 (1): 85-101, jan./abr.1983;CONRAD, Robert. Tumbeiros. O tráfico <strong>de</strong> escravos para o <strong>Brasil</strong>. (trad.port.) São Paulo:<strong>Brasil</strong>iense, 1985; MATTOS, Ilmar Rohloff <strong>de</strong>. O Tempo Saquarema. A Formação <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> Imperial. São Paulo: Hucitec, 1987; CARVALHO, José Murilo <strong>de</strong>. “Escravidão erazão nacional”. In: Da<strong>do</strong>s – Revista <strong>de</strong> Ciências Sociais. 31 (3): 287-308, 1988;GRADEN, Dale T. “An Act ‘Even of Public Security’: Slave Resistance, Social Tensions,and the End of the International Slave Tra<strong>de</strong> to Brazil, 1835-1856". In: Hispanic AmericanHistorical Review. 76 (2): 248-282, may 1996; MATTOS, Hebe Maria. Escravidão e cidadania<strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> monárquico. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2000; NEEDELL, Jeffrey.“The Abolition of the Brazilian Slave Tra<strong>de</strong> in 1850: Historiography, Slave Agency andStatesmanship”. In: Journal of Latin American Studies. 33 (4): 681-711, <strong>no</strong>vember 2001;GRINBERG, Keila. O fia<strong>do</strong>r <strong>do</strong>s brasileiros. Cidadania, escravidão e direito civil <strong>no</strong>tempo <strong>de</strong> Antonio Pereira Rebouças. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização <strong>Brasil</strong>eira, 2002; REIS,João José. Rebelião escrava <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>. A história <strong>do</strong> levante <strong>do</strong>s Malês em 1835. Ed.revistae ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.5Cf. SIQUEIRA, Sônia Aparecida. “A escravidão negra <strong>no</strong> pensamento <strong>do</strong> bispo Azere<strong>do</strong>Coutinho.” (1ª ed: 1964). In: SILVA, Leonar<strong>do</strong> Dantas (org.) Estu<strong>do</strong>s sobre a escravidãonegra 1. Recife: Fundação Joaquim Nabuco – Editora Massangana, 1988; VAINFAS,Ronal<strong>do</strong>. “Idéias reacionárias <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> <strong>no</strong> final <strong>do</strong> século <strong>XVIII</strong>: a <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> colonialismoe da escravidão na obra <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> Coutinho (1724-1821).” In: L’Amérique Latine face àla Revolution Française. Paris : Association Française <strong>de</strong>s Sciences Sociales sur l’AmériqueLatine, 1989; NEVES, Guilherme Pereira das. “Pálidas e oblíquas luzes: J.J.da C. Azere<strong>do</strong>Coutinho e a Análise sobre a justiça <strong>do</strong> comércio <strong>do</strong> resgate <strong>do</strong>s escravos.” In: SILVA,Maria Beatriz Nizza da (org.). <strong>Brasil</strong>: Colonização e Escravidão. Rio <strong>de</strong> Janeiro: NovaFronteira, 1996; NEVES, Guilherme Pereira das. “Guardar mais silêncio <strong>do</strong> que falar:Azere<strong>do</strong> Coutinho, Ribeiro <strong>do</strong>s Santos e a escravidão”. In: CARDOSO, José Luis (coord.)Eco<strong>no</strong>mia Política e os Dilemas <strong>do</strong> Império Luso-<strong>Brasil</strong>eiro. Lisboa: CNPCDP, 2001;MARQUES, João Pedro. Os Sons <strong>do</strong> Silêncio: o Portugal <strong>de</strong> Oitocentos e a Abolição <strong>do</strong>Tráfico <strong>de</strong> Escravos. Lisboa: Instituto <strong>de</strong> Ciências Sociais, 1999, pp.73-9.


Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126 103Em julho <strong>de</strong> 2003, ao realizar pesquisas <strong>no</strong> arquivo e biblioteca <strong>do</strong> InstitutoHistórico e Geográfico <strong>Brasil</strong>eiro (Rio <strong>de</strong> Janeiro), um <strong>do</strong>s autores <strong>de</strong>ste estu<strong>do</strong>– Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese – encontrou, <strong>no</strong> fichário <strong>de</strong> assuntos (itemescravidão), uma referência que lhe chamou a atenção. Lá, constava que oInstituto guardava uma Memória sobre o comércio <strong>do</strong>s escravos escrita porJosé Carneiro da Silva, 1º Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Araruama, e publicada em 1838. Especialista<strong>no</strong> assunto, porém sem jamais ter li<strong>do</strong> qualquer referência à existência<strong>de</strong> um texto sobre escravidão redigi<strong>do</strong> por Araruama, solicitou a obra. Tratase<strong>de</strong> um exemplar fotocopia<strong>do</strong>, com o <strong>no</strong>me <strong>de</strong> José Carneiro da Silva grafa<strong>do</strong>acima <strong>do</strong>s asteriscos que guardaram o a<strong>no</strong>nimato na folha <strong>de</strong> rosto. No mesmodia, após transcrever por completo o <strong>do</strong>cumento, dirigiu-se à BibliotecaNacional. No fichário <strong>do</strong> setor <strong>de</strong> Obras Raras, não havia qualquer referênciaao opúsculo <strong>de</strong> Araruama, mas, por outro la<strong>do</strong>, <strong>de</strong>ntre as obras <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong>Coutinho, constava um volume com o mesmo título. Em resumo: os funcionáriosda Biblioteca Nacional seguiram a mesma atribuição <strong>de</strong> Sacramento Blakee Rubens Borba <strong>de</strong> Moraes. Porventura, o contrário po<strong>de</strong> ter ocorri<strong>do</strong>: nestecaso, Blake obe<strong>de</strong>cera a uma classificação <strong>do</strong>s bibliotecários <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong>.A Memória e o pensamento pró-escravista <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> CoutinhoUm exame cuida<strong>do</strong>so da Memória sobre o comércio <strong>do</strong>s escravos indica <strong>de</strong>fato que seu autor não é o bispo José Joaquim da Cunha <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> Coutinho. Para<strong>de</strong>monstrar isso, convém reagrupar os argumentos da Memória em três tópicos. Noprimeiro, o autor justifica a continuida<strong>de</strong> <strong>do</strong> comércio africa<strong>no</strong>. No segun<strong>do</strong>, caracterizaa escravidão como fator <strong>de</strong> sustentação e progresso <strong>do</strong> Império. No terceiro,<strong>de</strong>squalifica as ações <strong>do</strong>s homens engaja<strong>do</strong>s na causa antiescravista. À medida quepassamos em revista ponto por ponto esses tópicos, po<strong>de</strong>mos cotejá-los com argumentossemelhantes <strong>do</strong> pensamento <strong>do</strong> bispo <strong>de</strong> Olinda.O princípio que estrutura, na Memória, a justificativa <strong>do</strong> tráfico negreiro é aoposição entre Civilização e Barbárie. Na África, diz o autor, os negros estão <strong>de</strong>to<strong>do</strong> em to<strong>do</strong> perdi<strong>do</strong>s em guerras e, quan<strong>do</strong> entram na posse <strong>de</strong> alguns prisioneiros,ou os ven<strong>de</strong>m a terceiros ou os passam “ao fio da espada”. Já na América, que<strong>no</strong>tável diferença: trazi<strong>do</strong>s às nações cultas, os cativos são sustenta<strong>do</strong>s como “nuncaforam em seu país natal” e, <strong>de</strong> quebra, recebem a graça divina pela <strong>do</strong>utrina cristã,que os tira <strong>do</strong> paganismo e os lança <strong>no</strong> grêmio <strong>do</strong>s “católicos roma<strong>no</strong>s”.Isso apenas <strong>no</strong> que diz respeito ao fim soteriológico <strong>do</strong> tráfico negreiro.Quanto à vida na socieda<strong>de</strong>, as vantagens não são me<strong>no</strong>res. Principalmente


104Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126digna <strong>de</strong> <strong>no</strong>ta é a perspectiva <strong>de</strong> ascensão social, pois os escravos, quan<strong>do</strong>“oficiais peritos”, trabalham não só “para seus senhores, como para si”. Noutraspalavras, eles amealham algum dinheiro e, com isso, fazem a própria vida,adquirin<strong>do</strong> bens materiais ou a própria liberda<strong>de</strong>. “Tenho visto”, conta-<strong>no</strong>s oautor, “escravos senhores <strong>de</strong> escravos, com plantações, criações <strong>de</strong> ga<strong>do</strong> vacume cavalar”, assim como, insiste ele, “escravos libertarem-se, tornarem-se gran<strong>de</strong>sproprietários, serem solda<strong>do</strong>s, chegarem a oficiais <strong>de</strong> patente e servirem outrosempregos públicos que são tão úteis ao Esta<strong>do</strong>” 6 . Por trás <strong>do</strong> raciocínio <strong>do</strong>autor, subenten<strong>de</strong>-se que o abrandamento da escravidão se <strong>de</strong>ve à possibilida<strong>de</strong><strong>de</strong> re-inserção social para to<strong>do</strong>s os cativos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os escravos-proprieda<strong>de</strong>, passan<strong>do</strong>pelos escravos-proprietários até, como por corolário natural, os escravoslibertos – e estes últimos contribuin<strong>do</strong> para o “esplen<strong>do</strong>r da nação, que os temnaturaliza<strong>do</strong>!” Acresce <strong>no</strong>tar que as perspectivas <strong>de</strong> ascensão social já estavaminstitucionalizadas, <strong>no</strong> Império, pela Constituição <strong>de</strong> 1824. O artigo 6º da Cartaoutorgada classificava como cidadãos, <strong>no</strong> teci<strong>do</strong> social <strong>do</strong> Império, to<strong>do</strong>s osescravos crioulos que, por si ou por outrem, haviam se torna<strong>do</strong> libertos: “Sãocidadãos: os que <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> tiverem nasci<strong>do</strong>, quer sejam ingênuos, ou libertos,ainda que o pai seja estrangeiro, uma vez que este não resida por serviço dasua nação.” 7 Dessa forma, a Memória recupera um dispositivo constitucionalbrasileiro – concessão da cidadania – para torná-lo princípio <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> comércionegreiro.Os escritos <strong>do</strong> bispo <strong>de</strong> Olinda apresentam sensíveis diferenças quan<strong>do</strong> tratam<strong>de</strong> justificar o tráfico. O primeiro gran<strong>de</strong> contraste é que sua Análise sobrea Justiça <strong>do</strong> Comércio inscreve-se <strong>no</strong> gênero filosófico que se ocupa da origemdas socieda<strong>de</strong>s e <strong>do</strong>s contratos sociais – questões fora <strong>de</strong> conta na Memória.Fundamentalmente, Azere<strong>do</strong> Coutinho preten<strong>de</strong> provar que tanto a escravidãoem si como o trato <strong>do</strong>s escravos não ferem nem violam o direito natural, ainda6A experiência familiar <strong>de</strong> Araruama (provável autor da Memória) bem <strong>de</strong>monstra atrajetória social ascen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> alguns libertos: na década <strong>de</strong> 1810, seu cunha<strong>do</strong> JoséAntonio <strong>de</strong> Barcelos Coutinho legou parte consi<strong>de</strong>rável <strong>de</strong> seus vultosos bens a filhosque teve com escravas, to<strong>do</strong>s alforria<strong>do</strong>s na pia batismal. Ver, a respeito, SOARES, Márcio<strong>de</strong> Sousa. “De pai para filho: legitimação <strong>de</strong> escravos, herança e ascensão social <strong>de</strong> forros<strong>no</strong>s Campos <strong>do</strong>s Goitacazes, c.1750-c.1830.” Trabalho apresenta<strong>do</strong> ao V Congresso<strong>Brasil</strong>eiro <strong>de</strong> História Econômica, ABPHE, Caxambu-MG, setembro <strong>de</strong> 2003, pp.9-15.7 Constituição Política <strong>do</strong> Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, Título II, “Dos Cidadãos <strong>Brasil</strong>eiros”, Artigo6º, Parágrafo Primeiro. In: MIRANDA, Jorge. O constitucionalismo liberal lusobrasileiro.Lisboa: CNPCDP, 2001, p.238.


Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126 105que não sejam conformes a ele. Para o bispo, a escravidão se justifica por ser odireito natural adaptável às circunstâncias: assim como o homem, que a lei naturalmanda preservar a própria vida, po<strong>de</strong> <strong>de</strong>cepar um braço enfermo a fim <strong>de</strong>evitar o pior, assim também a socieda<strong>de</strong>, que <strong>de</strong>ve preservar a si mesma e a seusmembros, po<strong>de</strong> sacrificar a liberda<strong>de</strong> e a vida <strong>de</strong> alguns integrantes em <strong>no</strong>meda salvação da maioria. 8 Em Concordância das leis <strong>de</strong> Portugal, on<strong>de</strong> se sintetizamalgumas das idéias da Análise, a justiça <strong>do</strong> tráfico também é analisada àluz <strong>do</strong> direito natural, bem como <strong>do</strong>s costumes africa<strong>no</strong>s: “as nações da Áfricaestavam já acostumadas aos trabalhos da agricultura <strong>de</strong>baixo <strong>de</strong> um sol ar<strong>de</strong>nte”,e “já <strong>de</strong> tempos antiqüíssimos estavam <strong>no</strong> costume da escravidão e <strong>de</strong> ven<strong>de</strong>remos braços que lhes eram pesa<strong>do</strong>s, inúteis ou prejudiciais” – costume que “anecessida<strong>de</strong> <strong>do</strong> seu maior bem ou <strong>do</strong> seu me<strong>no</strong>r mal lhes tinha ensina<strong>do</strong>”. 9 Aotrazê-los para a América, Portugal <strong>de</strong>sonerava a África <strong>do</strong>s braços ociosos,poupava da morte os guerreiros aprisiona<strong>do</strong>s ou os crimi<strong>no</strong>sos culpa<strong>do</strong>s e osaproveitava em <strong>no</strong>me da civilização.As consi<strong>de</strong>rações <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> Coutinho sobre o fim soteriológico <strong>do</strong> tráfico<strong>do</strong>s africa<strong>no</strong>s são semelhantes às da Memória: “é melhor e mais conforme aocristianismo <strong>de</strong>ixá-los antes morrer <strong>no</strong> paganismo e na i<strong>do</strong>latria <strong>do</strong> que na <strong>no</strong>ssasanta religião?” 10 Com efeito, ambos os autores partilham <strong>do</strong> antigo pensamentocatólico português – cujas primeiras formulações remontam à i<strong>de</strong>ologiaimperial <strong>do</strong> século XV, passan<strong>do</strong> pelos textos inacia<strong>no</strong>s a partir da centúriaseguinte – sobre o <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> das almas <strong>do</strong>s africa<strong>no</strong>s. 11 Mas, <strong>no</strong> que tange ao8COUTINHO, Obras econômicas., “Análise sobre a justiça...” p. 248. Ver igualmente ostrabalhos cita<strong>do</strong>s na <strong>no</strong>ta 5.9COUTINHO, J. J. da Cunha <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong>. Concordância das leis <strong>de</strong> Portugal e das bulaspontifícias, das quais umas permitem a escravidão <strong>do</strong>s ___ d´África, e outras proibem aescravidão <strong>do</strong>s índios <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> (1ª ed. 1808). Rio <strong>de</strong> Janeiro: Arquivo Nacional, 1888, pp.22-23; Cf. outra justificativa, também <strong>de</strong> cunho jurídico-filosófico, em que se compara odireito <strong>de</strong> comprar escravos africa<strong>no</strong>s com o <strong>de</strong> comprar espólios <strong>de</strong> guerra em COUTINHO,J. J. da Cunha <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong>. Obras Econômicas. “Análise sobre a justiça...”, pp. 267-268.10Cf. COUTINHO, J.J.da Cunha <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong>. Obras econômicas. “Análise sobre a justiça...”p. 256, <strong>no</strong>ta <strong>de</strong> rodapé. O argumento também está presente na Concordância.11 Cf. SAUNDERS, A.C.<strong>de</strong> C.M. História social <strong>do</strong>s escravos e libertos negros em Portugal(1441-1555). (trad.port.) Lisboa: Imprensa Nacional – Casa da Moeda, 1994, pp.63-70; ZERON, Carlos Alberto. La Compagnie <strong>de</strong> Jésus et l’institution <strong>de</strong> l’esclavage auBrésil: les justification d’ordre historique,théologique et juridique, et leur integrationpar une memoire historique (XVIe-XVIIe siècles). Tese <strong>de</strong> Doutora<strong>do</strong>. Paris, EHESS, 1998,2v.; ALENCASTRO, L.F. <strong>de</strong>. O Trato <strong>do</strong>s Viventes. Formação <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> <strong>no</strong> Atlântico Sul,séc.XVI-XVII. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, pp.155-87.


106Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126<strong>de</strong>sti<strong>no</strong> <strong>do</strong>s corpos, não po<strong>de</strong>riam ser mais díspares. Retoman<strong>do</strong> o argumento<strong>de</strong> Turgot, segun<strong>do</strong> o qual a escravidão se revela racional on<strong>de</strong> abundam terrase faltam braços, Azere<strong>do</strong> Coutinho reputa os escravos necessários para as ocupações<strong>de</strong> primeira necessida<strong>de</strong> na América e, por isso, não vê com bons olhos asmanumissões nem a ascensão social <strong>do</strong>s negros: “num país on<strong>de</strong> as artes e asfábricas são proibidas por causa <strong>do</strong> mo<strong>no</strong>pólio da Metrópole, on<strong>de</strong> a opiniãopública diz que o servir é só para escravos, logo que se tira um braço da agricultura,vai <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong> aumentar o número <strong>de</strong> ociosos e vadios, sempre prejudiciaisao Esta<strong>do</strong>, e, por isso, a imperiosa necessida<strong>de</strong> que manda que numa naçãobem regulada se conservem os braços para a agricultura, ainda quecompra<strong>do</strong>s, é também a mesma que manda que aqueles que nasceram numa condiçãoescrava não subam arbitrariamente à condição <strong>de</strong> libertos ociosos”. 12O segun<strong>do</strong> tópico da Memória <strong>de</strong>senvolve-se em tor<strong>no</strong> <strong>do</strong> princípio <strong>de</strong> quea escravidão escora a civilização, estimula o comércio e produz a riqueza <strong>de</strong>certos países. Em complementação ao tópico anterior, <strong>de</strong> que as nações civilizadassão benéficas para os negros, agora os negros é que são benéficos paraas nações civilizadas. “Sem a escravatura, o que seria n’América o seu comércio<strong>de</strong> exportação!” Imprescindível para a extração das minas, o trabalho escravoainda é imperativo para o cultivo da lavoura, “única coisa capaz <strong>de</strong> fazer o<strong>Brasil</strong> chegar a uma categoria que nenhum rei<strong>no</strong> ou império lhe po<strong>de</strong>rá igualar.”Por fim, a Memória ainda argumenta que os escravos são responsáveispela “maior parte da tripulação <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssas embarcações <strong>de</strong> cabotagem, queabastecessem as <strong>no</strong>ssas cida<strong>de</strong>s marítimas <strong>do</strong>s efeitos das outras províncias”.Importa <strong>no</strong>tar que, nessas passagens, o <strong>Brasil</strong> é ti<strong>do</strong> por unida<strong>de</strong> política autô<strong>no</strong>mae in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte, cujo abastecimento das cida<strong>de</strong>s marítimas opera-se porum comércio interprovincial como que auto-suficiente.Azere<strong>do</strong> Coutinho revela-se <strong>no</strong>vamente distante <strong>do</strong> campo semântico emque se estrutura a Memória. Faleci<strong>do</strong> em Portugal, em 1821, <strong>do</strong>is dias antes<strong>de</strong> tomar posse nas Cortes <strong>de</strong> Lisboa como <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> pela Província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong>Janeiro 13 , Coutinho centra seus escritos <strong>no</strong> exame <strong>do</strong> sistema colonial portu-12Cf. COUTINHO, J.J.da Cunha <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong>. Obras econômicas. “Análise sobre a justiça...”,p. 286.13Cf. BERBEL, Márcia Regina. A nação como artefato. Deputa<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> das CortesPortuguesas, 1821-1822.São Paulo: Hucitec, 1999, pp.70-1.


Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126 107guês, que, por essa razão, não mencionam as benesses proporcionadas pelaescravidão senão referin<strong>do</strong>-se, em globo, a Portugal e ao <strong>Brasil</strong>. A metrópole,cuja produção “não chega para pagar o débito <strong>do</strong> seu absolutamente necessário,não tem outro supérfluo para o seu gran<strong>de</strong> comércio da Europa mais <strong>do</strong>que as produções da agricultura das suas dilatadíssimas colônias, principalmente<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>”. Sem o sistema escravista, “como po<strong>de</strong>ria Portugal subsistir”? O paísse veria “sem artes, sem comércio, sem luxo, em um esta<strong>do</strong> propriamente dasnações bárbaras e escravas.” 14 Aqui, o <strong>Brasil</strong> não é reputa<strong>do</strong> como unida<strong>de</strong> política,mas antes como parte <strong>de</strong> um sistema cujo colapso levaria à bancarrota dametrópole. Por fim, como já o dissemos, Coutinho julga que o trabalho escravoafrica<strong>no</strong> <strong>de</strong>ve ser rigorosamente aplica<strong>do</strong> nas necessida<strong>de</strong>s mais prementes dacolônia. Advoga, por isso, que os negros – “aqueles braços feitos mais para umtrabalho contínuo <strong>no</strong> meio <strong>do</strong>s ar<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Sol <strong>do</strong> que para os frios das águas” –não <strong>de</strong>veriam servir na marinhagem, on<strong>de</strong> seriam com muito maior proveitosubstituí<strong>do</strong>s pelos índios <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong>s. 15 Em Discurso sobre o esta<strong>do</strong> atual dasminas <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> (1804), lamentava que os braços africa<strong>no</strong>s se <strong>de</strong>sviassem daagricultura para ser suga<strong>do</strong>s pela alta mortalida<strong>de</strong> das minas. 16 Nada mais opostoao arrazoa<strong>do</strong> expendi<strong>do</strong> <strong>no</strong> <strong>do</strong>cumento <strong>de</strong> 1838.Finalmente, <strong>no</strong> terceiro tópico da Memória sobre o comércio <strong>do</strong>s escravos,o autor <strong>de</strong>sfere críticas virulentas contra os que pugnavam pelo fim <strong>do</strong>tráfico negreiro. Mas, ainda aqui, sua perspectiva distancia-se daquela <strong>de</strong>Azere<strong>do</strong> Coutinho. O <strong>do</strong>cumento <strong>de</strong> 1838 impreca os filantropos <strong>de</strong> conspiraremcontra a riqueza a que o <strong>Brasil</strong> po<strong>de</strong> chegar por meio <strong>do</strong> sistema escravista:“Muitos <strong>de</strong>stes gover<strong>no</strong>s não querem escravos <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, porque calculam <strong>de</strong>antemão e vêm que futuro brilhante espera o <strong>Brasil</strong>”. Segun<strong>do</strong> a Memória, àcapa <strong>do</strong> discurso humanista subjazem interesses econômicos e imperialistasque <strong>de</strong>sejam obstar à marcha <strong>do</strong> progresso brasileiro boicotan<strong>do</strong>-lhe os braçosafrica<strong>no</strong>s. Embora Azere<strong>do</strong> Coutinho também julgue que os filantropossejam ardilosos, encobertos e astutos, os motivos que os movem são o <strong>de</strong>sejo14 Cf. COUTINHO, J.J.da Cunha <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong>. Obras econômicas. “Análise sobre a justiça...”,p. 284-5.15 Cf. COUTINHO, J.J.da Cunha <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong>. Obras econômicas. “Ensaio econômico...”, p. 100.16 Cf. COUTINHO, J.J.da Cunha <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong>. Obras econômicas. “Discurso sobre o esta<strong>do</strong>atual das minas <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>”, pp. 201-202.


108Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126e a ambição <strong>de</strong> solapar o Antigo Regime: “<strong>de</strong>baixo <strong>do</strong> pretexto <strong>de</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r osdireitos quiméricos da liberda<strong>de</strong> e da humanida<strong>de</strong>, [os antiescravistas] se têmmostra<strong>do</strong> inimigos <strong>do</strong>s tro<strong>no</strong>s e da religião”, negan<strong>do</strong> “obediência aos sobera<strong>no</strong>s”e “arman<strong>do</strong> os seus mesmos concidadãos uns contra os outros”. 17 O bispoaproxima-se da Memória apenas numa <strong>no</strong>ta escrita em 1811 para o Ensaio econômicosobre o comércio <strong>de</strong> Portugal com suas colônias, em que reproduz argumentosproduzi<strong>do</strong>s na França: “hoje, dizem os mais sensatos da França que osingleses, <strong>de</strong>baixo da máscara da humanida<strong>de</strong>, querem fazer-se senhores <strong>de</strong> to<strong>do</strong>sos braços <strong>do</strong>s negros da África para cultivarem as muitas terras e possessõesque já têm na Serra Leoa.” 18 Ainda assim, essa crítica é incipiente e pouco<strong>de</strong>senvolvida, quan<strong>do</strong> comparada com a da Memória, on<strong>de</strong> se transforma emteoria conspiratória contra o nascimento <strong>de</strong> um po<strong>de</strong>roso Império.Noutras palavras, enquanto nas reflexões <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> Coutinho a hipocrisia<strong>do</strong>s filantropos aparece, sobretu<strong>do</strong>, como um golpe contra o Absolutismo e a boaor<strong>de</strong>m social, na Memória sobre comércio <strong>do</strong>s escravos a hipocrisia <strong>do</strong>s humanistasé apenas uma lança com que ferir <strong>de</strong> morte a eco<strong>no</strong>mia <strong>de</strong> um futuro grandiosoImpério. E não é difícil apontar a razão para tais diferenças: até a data <strong>de</strong> publicaçãodas obras <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> Coutinho, o Império português não havia si<strong>do</strong> pressiona<strong>do</strong>a dar um fim <strong>no</strong> tráfico <strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s, e os principais corolários <strong>do</strong>s <strong>no</strong>vos temposque ameaçavam pairar sobre as possessões portuguesas eram o da ruptura como Antigo Regime e o da instalação <strong>de</strong> um regime representativo. À medida que aspressões diplomáticas inglesas se fizeram sentir a partir <strong>de</strong> 1810 – e isso explicaa <strong>no</strong>ta que Coutinho aditou em 1811 ao seu Ensaio, originalmente <strong>de</strong> 1794 –, arecepção luso-brasileira alterou-se gradualmente. Depois <strong>do</strong> Trata<strong>do</strong> <strong>de</strong> 1826, queabolia <strong>de</strong>finitivamente o tráfico, as línguas brasileiras mais viperinas já não hesitavamem envenenar o movimento antiescravista, maculan<strong>do</strong>-o com a pecha <strong>de</strong> interesseiro,comezinho e arrivista.17 COUTINHO, J. J. da Cunha <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong>. Concordância das leis <strong>de</strong> Portugal e das BulasPontifícias, p. 17; cf. tb. Obras econômicas. “Análise sobre a justiça...”, p. 237.18 COUTINHO. J.J. da Cunha <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong>. Obras econômicas. “Ensaio econômico...”, p.145, <strong>no</strong>ta “a”.


Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126 109A Memória e a política da escravidãoDe fato, o conteú<strong>do</strong> da Memória sobre o comércio <strong>do</strong>s escravos dialoga intimamentecom a conjuntura <strong>do</strong> sistema escravista brasileiro após 1835 e com o discursoinstaura<strong>do</strong> em mea<strong>do</strong>s da década <strong>de</strong> 1830 pelo grupo conserva<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Regresso,cuja figura mais proeminente foi Bernar<strong>do</strong> Pereira <strong>de</strong> Vasconcelos. Comose sabe, o trato negreiro foi interdito ao <strong>Brasil</strong> pela convenção assinada com a Inglaterraem 1826 e posta em execução em 13 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 1830. Para os parlamentaresbrasileiros, o trata<strong>do</strong> era algo vexatório por dar a ver que a proibição tinhasi<strong>do</strong> imposta <strong>de</strong> fora para <strong>de</strong>ntro, por criar um tribunal estrangeiro para julgar súditosbrasileiros e por tipificar crimes jurídicos fora <strong>do</strong> âmbito da Assembléia nacional.Como o Executivo, hipertrofia<strong>do</strong>, <strong>de</strong>srespeitara a soberania <strong>do</strong>s representantesnacionais da Câmara e <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>, uma lei nacional <strong>de</strong>veria ser imediatamenteaprovada para elevar as intenções brasileiras à esfera <strong>do</strong>s compromissos filantrópicosassumi<strong>do</strong>s <strong>no</strong> exterior e, o que é mais, para reafirmar a preeminência <strong>do</strong> Legislativosobre o Executivo <strong>no</strong> que tocava à política externa. Não por acaso, começaramos trabalhos parlamentares a elaborar a <strong>no</strong>va lei apenas um mês <strong>de</strong>pois da<strong>de</strong>posição <strong>de</strong> D. Pedro I, em abril <strong>de</strong> 1831. 19A lei <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1831, como viria a ser chamada, foi, pois, aprovada<strong>no</strong> contexto <strong>de</strong> radicalização <strong>do</strong> espírito liberal da “Revolução <strong>de</strong> Sete<strong>de</strong> Abril”. Pouco mais <strong>de</strong> 10 a<strong>no</strong>s após sua aprovação, <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s ainda se referiama ela como fruto <strong>de</strong> “um tempo, e esse tempo data da proclamação <strong>do</strong>sistema constitucional, em que passava em moda ser inimigo <strong>do</strong> tráfico <strong>de</strong> africa<strong>no</strong>se que até não se podia ter a reputação <strong>de</strong> homem liberal, <strong>de</strong> homem filósofo,sem ser inimigo <strong>de</strong>sse tráfico”. 20 Ainda <strong>no</strong> contexto <strong>do</strong> Sete <strong>de</strong> Abril,figuras <strong>de</strong> proa como Evaristo da Veiga propunham concursos para a publicação<strong>de</strong> memórias sobre o fim <strong>do</strong> comércio negreiro, e ministros importantescomo Alves Branco chegaram a assinar artigos adicionais com a Inglaterra19 Anais <strong>do</strong> Parlamento <strong>Brasil</strong>eiro - Câmara <strong>do</strong>s Srs. Deputa<strong>do</strong>s [Coligi<strong>do</strong>s por AntonioPereira Pinto]. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Tipographia <strong>de</strong> H. J. Pinto, 1878, 13 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1831, p. 29.Doravante cita<strong>do</strong>s como ACD. Anais <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> <strong>do</strong> Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> [coletor anônimo].Rio <strong>de</strong> Janeiro, s. editora, 1914, 31 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 1831, p. 254. Doravante cita<strong>do</strong>s como AS.20 ACD, 1844, 14 <strong>de</strong> maio, pp. 106-7. A fala é <strong>do</strong> <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> Saturni<strong>no</strong> <strong>de</strong> Souza Oliveira.


110Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126com vistas a recru<strong>de</strong>scer as medidas antitráfico. 21 Desnecessário lembrar quea Rebelião <strong>do</strong>s Malês, em 1835, esporeou alguns liberais com pensamentosradicaliza<strong>do</strong>s e até permitiu que fosse enviada à Corte <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro uma“Representação” da Assembléia Legislativa Provincial da Bahia pedin<strong>do</strong> o fimimediato <strong>do</strong> comércio ilícito <strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s. 22Por outro la<strong>do</strong>, a maioria <strong>do</strong>s Liberais Mo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s dava outro senti<strong>do</strong> aodia 7 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1831. Uma vez reafirma<strong>do</strong>s, com a mera aprovação dalei, os <strong>de</strong>sígnios liberais da Assembléia, assim como a soberania nacional, nãoseria preciso extremar nenhuma política antiescravista para levar às últimasconseqüências as disposições abolicionistas. Durante os <strong>de</strong>bates que aprovarama lei <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> Novembro, os parlamentares reduziram em 85% os prêmiospara os <strong>de</strong>latores <strong>do</strong> tráfico ilícito e <strong>de</strong>rrubaram todas as propostas <strong>de</strong> libertação<strong>do</strong>s escravos contraban<strong>de</strong>a<strong>do</strong>s entre março <strong>de</strong> 1830 (início <strong>do</strong> trata<strong>do</strong> anglo-brasileiro)e <strong>no</strong>vembro <strong>de</strong> 1831 (início da aplicação da <strong>no</strong>va lei). 23Estabeleceu-se, por assim dizer, uma espécie <strong>de</strong> “pacto <strong>do</strong> silêncio” <strong>no</strong>s<strong>de</strong>bates parlamentares após a aprovação da lei <strong>de</strong> 1831: quem era coniventeao tráfico, não dizia nada, apoian<strong>do</strong>-o na prática; quem era contrário, enviavaprojetos para aperfeiçoar a lei, mas via suas propostas invariavelmente <strong>de</strong>ixadas<strong>de</strong> la<strong>do</strong>. Dessa forma, o tráfico <strong>de</strong> escravos foi gradualmente recuperan<strong>do</strong>seu volume. A soma <strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s ilegalmente introduzi<strong>do</strong>s <strong>no</strong> Império passou<strong>de</strong> 1889, em 1834, para 4427, em 1835. No a<strong>no</strong> seguinte, saltou para 14574.Mais impressionante ainda é a escalada a partir <strong>de</strong> 1837: 41002 nesse a<strong>no</strong>,46976 em 1838 e em 1839, finalmente, 61170 – um volume assusta<strong>do</strong>r. 24 Afinal,o que aconteceu <strong>de</strong> 1837 em diante?O grupo <strong>do</strong>s Liberais Mo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s comprometi<strong>do</strong>s com o Sete <strong>de</strong> Abrilseguiu relativamente coeso até 1834 e a aprovação <strong>do</strong> Ato Adicional, quan<strong>do</strong>Diogo Antonio Feijó e Evaristo da Veiga concorreram às eleições para Regentecontra a candidatura <strong>de</strong> Honório Hermeto Carneiro Leão e Bernar<strong>do</strong>21PINTO, Antônio Pereira. Apontamentos para o direito internacional ou collecçãocompleta <strong>do</strong>s histórica e <strong>do</strong>cumentada sobre as Convenções mais importantes. Rio <strong>de</strong>Janeiro: F. L. Pinto & Cia. – Livreiros Editores, 1866, v. 1, pp. 394-398.22 Cf. REIS, João José. Rebelião escrava <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, p.528.23 ACS, 15 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1831, pp. 374-5; 16 <strong>de</strong> junho, pp. 378-9; ACD, 19 <strong>de</strong> outubro, p. 238.24 ELTIS, David; BEHRENDT, Stephen; RICHARDSON, David; e HERBERT, S. Klein.The Trans-Atlantic Slave Tra<strong>de</strong>: A Database on CD-ROM. Cambridge: CambridgeUniversity Press, 1999.


Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126 111Pereira <strong>de</strong> Vasconcelos. Após a <strong>de</strong>rrota eleitoral, Vasconcelos e seu grupo aprofundarama dissensão <strong>no</strong> seio <strong>do</strong>s Liberais Mo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s e fundaram o Regresso,cuja principal pauta política era a reinterpretação <strong>do</strong> Ato Adicional e a revisão<strong>do</strong> i<strong>de</strong>ário liberal da “Revolução <strong>de</strong> Sete <strong>de</strong> Abril”. No que diz respeito ao comércio<strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s, Vasconcelos começou a romper com a tendência <strong>do</strong>s LiberaisMo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s – silenciar-se quan<strong>do</strong> a favor <strong>do</strong> tráfico, propor reformas quan<strong>do</strong>contrário a ele – e, <strong>no</strong> Parlamento mesmo, iniciou uma campanha aberta pelaretomada <strong>do</strong> tráfico e pela revogação da lei <strong>de</strong> 1831. Foi ele o primeiro <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>que propôs a revogação da lei, em 1835. 25 No a<strong>no</strong> seguinte, voltaria a aventara ab-rogação <strong>do</strong>s seus primeiros seis artigos, dizen<strong>do</strong> que eram a fonte <strong>do</strong>“prejuízo moral e <strong>do</strong> interesse público e particular”. Segun<strong>do</strong> Vasconcelos, taisartigos oprimiam os proprietários por lhes retirar a segurança jurídica sobre aproprieda<strong>de</strong> adquirida, uma vez que os escravos africa<strong>no</strong>s introduzi<strong>do</strong>s às escondidas<strong>no</strong> Império eram <strong>de</strong>clara<strong>do</strong>s livres e suscetíveis <strong>de</strong> alienação:“há <strong>de</strong> mostrar que esta lei <strong>de</strong> 1831, isto é, os seus seis primeiros artigossó servem para opressão <strong>do</strong>s cidadãos e interesse <strong>de</strong> alguns especula<strong>do</strong>ressem consciência […]; que um <strong>do</strong>s artigos cuja revogação propõeautoriza a qualquer pessoa para pren<strong>de</strong>r a to<strong>do</strong> africa<strong>no</strong>, semmanda<strong>do</strong> especial da autorida<strong>de</strong>, <strong>do</strong> que tem resulta<strong>do</strong> graves inconvenientese muitos vexames a imensas pessoas […]. Lê-se somente o seguinteprojeto <strong>do</strong> ilustre <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>: ‘A Assembléia Legislativa Provincial<strong>de</strong>creta: Artigo único. São revoga<strong>do</strong>s os primeiros seis artigos dalei <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1831, que <strong>de</strong>clarou livres os africa<strong>no</strong>s importa<strong>do</strong>s<strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>”. 26Em 1837, Vasconcelos volta à cena para lamentar que o projeto – que é“o seu mimoso” – não tinha recebi<strong>do</strong> atenção da Casa. 27 No mesmo a<strong>no</strong>, Cal<strong>de</strong>iraBrant inicia <strong>no</strong> Sena<strong>do</strong> a apresentação <strong>de</strong> um projeto formalmente bemacaba<strong>do</strong> com o objetivo <strong>de</strong> substituir a lei <strong>de</strong> 1831. No texto <strong>do</strong> projeto, cadaum <strong>do</strong>s pontos apresenta<strong>do</strong>s por Vasconcelos volta a aparecer: on<strong>de</strong> a lei <strong>de</strong>1831 <strong>de</strong>clara livres os africa<strong>no</strong>s introduzi<strong>do</strong>s <strong>no</strong> Império, o projeto não o faz;25 ACD, 24 <strong>de</strong> julho, 1835, p. 109.26ACD, 25 <strong>de</strong> junho, 1836, p. 224.27 ACD, 17 <strong>de</strong> junho, 1837, p. 272.


112Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126on<strong>de</strong> a lei <strong>de</strong> 1831 impõe pena também sobre os proprietários que participassem<strong>do</strong> <strong>de</strong>sembarque <strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s, o projeto os reputa apenas cúmplices; on<strong>de</strong>a lei <strong>de</strong> 1831 permite que os proprietários sejam <strong>de</strong>nuncia<strong>do</strong>s por qualquerpessoa e seus cativos sejam aprisiona<strong>do</strong>s, o projeto restringe tais faculda<strong>de</strong>s a<strong>de</strong>núncias feitas acerca <strong>de</strong> escravos que ainda se encontram <strong>no</strong> litoral, masjamais nas fazendas <strong>do</strong>s proprietários. 28A articulação em tor<strong>no</strong> da atitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> Vasconcelos se fez rapidamente perceber,pois muitos ataques à lei <strong>de</strong> 1831 partiram também da socieda<strong>de</strong> civil.De 1836 a 1839, a Assembléia Legislativa Geral se viu às voltas com pelo me<strong>no</strong>s<strong>no</strong>ve representações provinciais ou municipais que postulavam a pura supressãoda fatídica lei ou a alteração <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong> seus termos. As invectivasforam escritas pelas câmaras municipais <strong>de</strong> Valença, Vassouras e Paraíba <strong>do</strong> Sul– coração da cafeicultura na Província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, em processo <strong>de</strong> francaexpansão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década anterior – , assim como pelas assembléias provinciais<strong>de</strong> São Paulo, Rio <strong>de</strong> Janeiro, Minas Gerais e Bahia. Em 1839 e 1840, a câmararecebeu duas representações <strong>de</strong> Minas e outras duas da Bahia nas quais a pauta<strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res era expressamente reivindicada: reforma <strong>do</strong> código <strong>do</strong> processoe <strong>do</strong> código criminal, além da revogação da lei <strong>de</strong> 1831. 29O que se percebe é que o grupo capitanea<strong>do</strong> por Bernar<strong>do</strong> Pereira <strong>de</strong> Vasconcelosconseguiu rápi<strong>do</strong> apoio político <strong>de</strong> importantes câmaras municipaise assembléias provinciais <strong>do</strong> Império, e, com certeza, a <strong>de</strong>fesa pública da escravidãocontribuiu significativamente para isso. Em 1840, Montezuma não seconformava com o surgimento e a rápida consolidação <strong>do</strong> Regresso na Câmara,atribuin<strong>do</strong> ao fenôme<strong>no</strong> a <strong>de</strong>fesa da reabertura <strong>do</strong> tráfico: “Antes <strong>de</strong> 19<strong>de</strong> Setembro, toda a Câmara se recordará <strong>de</strong> que se fazia da lei <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> Novembroe <strong>de</strong>ste projeto que veio <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> uma alavanca política para, poreste meio, se tirar da urna eleitoral aqueles que se haviam <strong>de</strong>clara<strong>do</strong> contra alei [o projeto <strong>de</strong> 1837] <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong>. [...] O parti<strong>do</strong> que subiu ao po<strong>de</strong>r em 19 <strong>de</strong>Setembro, é uma verda<strong>de</strong> constante, fez disso sua alavanca política; e po<strong>de</strong>semesmo asseverar que prometeu, por assim dizer...sim! prometeu que essalei havia <strong>de</strong> ser revogada, que a lei <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> havia <strong>de</strong> passar. Um membroinfluente, o mais influente nesse gabinete [Vasconcelos], nesta casa apresen-28ACS, 30 <strong>de</strong> junho, 1837, pp. 175-181.29 ACD, 4 <strong>de</strong> setembro <strong>de</strong> 1839, p. 36; ACS, 14 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 1840, p. 12.


Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126 113tou um projeto simples, e peremptoriamente revogan<strong>do</strong> a lei <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> Novembro,sem ao me<strong>no</strong>s apresentar algumas medidas salutares que fossem encobrir<strong>de</strong> uma revogação <strong>de</strong> tal natureza.” 30 Além <strong>do</strong>s resulta<strong>do</strong>s eleitorais, acrescelembrar que a campanha <strong>do</strong> grupo conserva<strong>do</strong>r coinci<strong>de</strong> pontualmente com aretomada <strong>do</strong> trato negreiro a níveis superiores aos <strong>do</strong> <strong>de</strong>cênio <strong>de</strong> 1820, quan<strong>do</strong>o comércio era lícito. A tendência pre<strong>do</strong>minante <strong>do</strong>s Liberais Mo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s entre1831 e 1835 – a <strong>de</strong> silenciar-se sobre o tráfico quem era por ele favorável e a <strong>de</strong>criticá-lo quem era a ele contrário – inverte-se <strong>no</strong> grupo conserva<strong>do</strong>r entre 1836e 1839: critica a lei <strong>de</strong> 1831 quem se engaja <strong>no</strong> tráfico ou se interessa por ele,cala-se quem lhe faria reservas.É possível <strong>de</strong><strong>no</strong>minar esse entrosamento <strong>de</strong>scrito acima <strong>de</strong> política da escravidão.Oposta à atitu<strong>de</strong> <strong>do</strong>s liberais <strong>do</strong> Sete <strong>de</strong> Abril –, que eram pela maiorparte coniventes com o tráfico e lutavam para preservá-lo, mas não aban<strong>do</strong>navamo campo discursivo filantrópico e emancipacionista <strong>de</strong> 1831 – a política daescravidão <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res tinha como fundamento a <strong>de</strong>fesa pública <strong>do</strong> tráficoe <strong>do</strong>s proprietários como estratégia <strong>de</strong> amealhar apoio político entre varia<strong>do</strong>sgrupos eco<strong>no</strong>micamente importantes <strong>do</strong> Império. 31 A Memória sobre o comércio<strong>de</strong> escravos, publicada em 1838, enquadra-se perfeitamente nessa <strong>no</strong>va tendência:seu autor, favorável à continuação <strong>do</strong> tráfico, argumenta publicamentea seu favor. Mais <strong>do</strong> que isso: o próprio conteú<strong>do</strong> da memória relaciona-se como repertório utiliza<strong>do</strong> pelos <strong>de</strong>fensores <strong>do</strong> tráfico <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> 1836.Como já vimos, a Memória retrata a escravidão como elemento constitutivoda civilização e <strong>do</strong> progresso <strong>do</strong> Império brasileiro, que, graças ao trabalho<strong>do</strong>s cativos, “po<strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r a sua cabeça para a África, a sua mão direita paraa Ásia, a esquerda para a Europa e o resto <strong>do</strong> corpo por toda a América”.“Quan<strong>do</strong> o <strong>Brasil</strong>, porém, contar em seu seio uma população correspon<strong>de</strong>ntea seu território”, afirma o autor da Memória, “então, digo eu, também, estecomércio <strong>de</strong>ve ser aboli<strong>do</strong>”. A <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> que o Império se escora <strong>no</strong> sistemaescravista encontra-se igualmente numa “Representação” enviada à Câmara<strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s em 1839 pela Assembléia <strong>de</strong> Minas Gerais. Convencida queestava “<strong>do</strong>s justos clamores que em toda esta província se levantam contra alei <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1831”, a Assembléia julgava intempestiva a “proibição<strong>do</strong> tráfico <strong>de</strong> escravos, cujos braços são ainda indispensáveis à conserva-30 ACD, 23 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 1840, pp. 854-5.


114Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126ção e progresso <strong>de</strong> sua Agricultura e Mineração”. As principais ativida<strong>de</strong>s econômicasda Província – “e quiçá [<strong>de</strong>] to<strong>do</strong> o Império” – vão necessitar “aindapor longo tempo <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong>s escravos” enquanto for o “Solo careci<strong>do</strong> <strong>de</strong>suficiente população”. 32 Acresce lembrar que a fala <strong>de</strong> Bernar<strong>do</strong> Pereira <strong>de</strong>Vasconcelos – <strong>de</strong> que a África civiliza o <strong>Brasil</strong> – proferida <strong>no</strong> Parlamento nadécada <strong>de</strong> 1840 não é senão uma bem formulada sentença cujos pressupostospertencem ao mesmo discurso pró-escravista que se estabeleceu <strong>no</strong> Império apartir <strong>de</strong> 1836.O lugar-comum que acusa na filantropia <strong>de</strong> outros Esta<strong>do</strong>s interesses econômicosnão aparece na Memória por acaso. Des<strong>de</strong> 1838, quan<strong>do</strong> acabou com aescravidão <strong>no</strong> próprio Império britânico, o movimento abolicionista inglês havia<strong>de</strong>posita<strong>do</strong> todas as suas fichas na supressão <strong>do</strong> tráfico atlântico alhures. 33 No<strong>Brasil</strong>, o embaixa<strong>do</strong>r britânico Hamilton instou uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> vezes pela ratificação<strong>do</strong>s artigos adicionais <strong>de</strong> 1835, que conferiam aos vasos britânicos maiorpo<strong>de</strong>r para capturar tumbeiros. 34 Para espanto <strong>do</strong>s brasileiros, Portugal teve <strong>de</strong>aceitar em 1839 o bill Palmerston, que foi por lá o equivalente <strong>do</strong> bill Aber<strong>de</strong>en<strong>de</strong> 1845 por aqui. Depois <strong>do</strong> Equipment Act <strong>de</strong> 1839 e <strong>do</strong> crescente número <strong>de</strong>apreensões <strong>de</strong> navios brasileiros, a acusação presente na Memória torna-se verda<strong>de</strong>irobordão retórico e se espalha pelas bocas <strong>do</strong>s mais varia<strong>do</strong>s <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s nadécada <strong>de</strong> 1840. O conserva<strong>do</strong>r Carneiro da Cunha, por exemplo, confessa em1843: “Não creio na amiza<strong>de</strong> <strong>do</strong>s ingleses para co<strong>no</strong>sco; os ingleses querem <strong>de</strong>struira única indústria que temos <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, qual é a agricultura; eles viram muito31O historia<strong>do</strong>r William Cooper Jr. cunhou o termo “política da escravidão” para <strong>de</strong>signaro conjunto <strong>de</strong> valores e práticas que direcionava os eleitores sulistas <strong>do</strong>s EUA a escolherapenas candidatos que não pusessem em questão, na esfera das discussões nacionais, a existência<strong>do</strong> sistema escravista. COOPER Jr., William. Liberty and slavery – southern politicsto 1860 (1ª ed., 1983). Columbia, University of South Caroline Press, 2000. O termo po<strong>de</strong>ser aplica<strong>do</strong> ao perío<strong>do</strong> da Regência, feitas algumas modificações semânticas: aqui, <strong>de</strong>signarianão o conjunto <strong>de</strong> práticas políticas <strong>do</strong> eleitora<strong>do</strong>, mas sim <strong>de</strong> um grupo político (oconserva<strong>do</strong>r) que se servia, na esfera pública, da crítica à lei <strong>de</strong> 1831e da <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong>s interessesescravistas para fundamentar uma estratégia <strong>de</strong> cooptação <strong>de</strong> importantes grupos econômicos<strong>do</strong> Império. Nesse senti<strong>do</strong>, não bastaria ser simplesmente conivente com o tráfico negreiro- o que, <strong>de</strong> resto, ocorreu <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro dia após a aprovação da lei <strong>de</strong> 1831 –, senãolutar, na imprensa e <strong>no</strong> Parlamento, pela sua preservação.32Arquivo da Câmara <strong>do</strong>s Deputa<strong>do</strong>s: A<strong>no</strong> 1839/Lata 126/Maço 11/Pasta 4.33Cf. TEMPERLEY, Howard. British antislavery: 1833-1870. Lon<strong>do</strong>n: Longman, 1972.34 Cf. BETHELL, Leslie. A Abolição <strong>do</strong> tráfico <strong>de</strong> escravos <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, p. 122.


Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126 115bem que, tiran<strong>do</strong>-<strong>no</strong>s os braços, não podia continuar a agricultura; não querem,portanto, que sejamos agricultores, que sejamos industriosos.” E logo em seguidaadita: “Fala-se em filantropia inglesa, fala-se em um trata<strong>do</strong> a respeito <strong>do</strong> tráfico<strong>de</strong> escravatura, quan<strong>do</strong> se conhece que, sob esse pretexto <strong>de</strong> humanida<strong>de</strong>, a Inglaterraquer proteger os seus interesses coloniais.” 35José Carneiro da Silva, o Parti<strong>do</strong> Conserva<strong>do</strong>r e a política da escravidãoNão apenas o discurso da Memória e o momento <strong>de</strong> sua produção se enquadramna conjuntura <strong>de</strong> formação e consolidação <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Conserva<strong>do</strong>r,entre 1836 e 1839, mas também a própria trajetória biográfica <strong>de</strong> seu provávelautor, José Carneiro da Silva, 1º Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Araruama – cuja genealogiaascen<strong>de</strong>nte e <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte segue o curso <strong>de</strong> muitas outras famílias que se envolveram<strong>de</strong> perto com o estabelecimento da corte <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro em 1808 e,a<strong>no</strong>s mais tar<strong>de</strong>, com o projeto <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong>s saquaremas 36 .Como é sabi<strong>do</strong>, após a chegada da família bragantina na capital da colônia,regiões <strong>do</strong>s arre<strong>do</strong>res como Minas Gerais, São Paulo e Bacia <strong>de</strong> Campos adquiremproeminência política e comercial por força das trocas interprovinciais,<strong>do</strong> abastecimento à capital e das produções para o exterior. 37 Como diz o pró-35ACD, 6 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 1843, pp. 542-3. O topos da crítica aos interesses imperiaisingleses na <strong>de</strong>fesa <strong>do</strong> tráfico negreiro para o <strong>Brasil</strong> nasceu já em 1811, a<strong>no</strong> das primeirasapreensões <strong>de</strong> negreiros brasileiros na Costa da Mina. Afora a <strong>no</strong>ta <strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> Coutinhocitada acima, vale lembrar o ofício que D.Rodrigo <strong>de</strong> Souza Coutinho en<strong>de</strong>reçou ao reiJorge III, e que se encontra reproduzi<strong>do</strong> em VERGER, Pierre. Fluxo e refluxo <strong>do</strong> tráfico<strong>de</strong> escravos entre o Golfo <strong>de</strong> Benin e a Bahia <strong>de</strong> To<strong>do</strong>s os Santos, <strong>do</strong>s séculos XVII a<strong>XIX</strong>. (trad.port.) São Paulo: Corrupio, 1987, pp.301-2.36Ilmar Mattos, por exemplo, cita expressamente Araruama como um <strong>do</strong>s membros da<strong>no</strong>va classe senhorial que se formou <strong>no</strong> Centro-Sul <strong>do</strong> Império <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> na primeirameta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong>. Ver seu Tempo Saquarema, p.42.37Cf. DIAS, Maria Odila Silva. “A Interiorização da Metrópole (1808-1853).” In: MOTA,Carlos Guilherme. (org.) 1822: Dimensões. São Paulo: Perspectiva, 1972; LENHARO,Alcir. As tropas da mo<strong>de</strong>ração. O abastecimento da Corte na formação política <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>:1808-1842 [1ªed.: 1979]. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura, Turismoe Esportes, Depto. Geral <strong>de</strong> Documentação e Informação Cultural, Divisão <strong>de</strong> Editoração,1993; MARTINHO, Lenira Menezes & GORESTEIN, Riva. Negociantes e Caixeiros naSocieda<strong>de</strong> da In<strong>de</strong>pendência. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Secretaria Municipal <strong>de</strong> Cultura, Turismoe Esportes, Depto. Geral <strong>de</strong> Documentação e Informação Cultural, Divisão <strong>de</strong> Editoração,1993; OLIVEIRA, Cecilia Helena L. <strong>de</strong> Salles. A Astúcia Liberal. Relações <strong>de</strong> merca<strong>do</strong>e projetos políticos <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro (1820-1824). Bragança Paulista: Edusf-Ícone, 1999.


116Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126prio José Carneiro da Silva, onze a<strong>no</strong>s <strong>de</strong>pois da chegada da família real, astransações <strong>de</strong> Campos <strong>do</strong>s Goitacases com outras áreas brasileiras são intensas:<strong>de</strong> Minas recebe couros, ga<strong>do</strong>s, toucinhos e carnes <strong>de</strong> porco; da Bahia,teci<strong>do</strong>s, louças e cocos; <strong>de</strong> Espírito Santo, pa<strong>no</strong>s <strong>de</strong> algodão e colchas; <strong>do</strong> RioGran<strong>de</strong> <strong>do</strong> Sul, carnes e sebo etc. Entretanto, “com a Cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiroé que faz o seu maior Comércio, para ela envia os seus gêneros e em trocarecebe <strong>de</strong> to<strong>do</strong>s aqueles que vêm da Europa. Fazendas <strong>de</strong> lã, algodão, sedas,galões, vinhos, vinagres, azeites, cerveja, aguar<strong>de</strong>nte, presuntos, paios, sal, louças,trigos, couros curti<strong>do</strong>s, ferragens, em uma palavra, tu<strong>do</strong> o que é necessáriopara a comodida<strong>de</strong> da vida, para o luxo e para o prazer.” 38 Esse entrosamentocomercial, que ce<strong>do</strong> se traduz na realização <strong>de</strong> obras infra-estruturais – por or<strong>de</strong>m<strong>de</strong> D. João VI, abre-se uma estrada entre a região e a província mineira, e JoséCarneiro da Silva pe<strong>de</strong> que secassem parcialmente a Lagoa Feia para encurtaro caminho entre a Vila <strong>de</strong> S. Salva<strong>do</strong>r, futuro município <strong>de</strong> Campos, e o Rio <strong>de</strong>Janeiro –, não tardará em cimentar o comprometimento político que assumirãoas famílias locais com a construção <strong>do</strong> <strong>no</strong>vo aparelho estatal, quer na época dain<strong>de</strong>pendência, quer na <strong>de</strong>posição <strong>de</strong> D. Pedro I em 1831.Entre os potenta<strong>do</strong>s familiares <strong>do</strong> <strong>no</strong>rte fluminense que se aproximam daformação <strong>do</strong> <strong>no</strong>vo Esta<strong>do</strong>, é <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevo a velha estirpe <strong>do</strong>s Carneiro daSilva, cujos ascen<strong>de</strong>ntes remontam ao século XVII 39 , mas cuja política matrimoniala liga com ramos mais recentes, como os Ribeiro <strong>de</strong> Castro, os Neto Cruze os Neto <strong>do</strong>s <strong>Reis</strong>. 40 Inicialmente engajada na criação <strong>de</strong> ga<strong>do</strong>, a família Carneiroda Silva fun<strong>do</strong>u seu primeiro engenho <strong>de</strong> açúcar em 1798, em Quissamã,distrito <strong>de</strong> Macaé, na esteira da crise da produção açucareira mundial provocadapela Revolução <strong>de</strong> São Domingos. Em 1819, João Carneiro da Silva lança a suaMemória topographica e historica sobre os Campos <strong>do</strong>s Goitacazes, empenha-38SILVA, José Carneiro da. Memória topographica e historica sobre os campos <strong>do</strong>sgoitacazes, com huma <strong>no</strong>ticia breve <strong>de</strong> suas producções e commercio offerecida ao muitopo<strong>de</strong>roso Rey e senhor <strong>no</strong>ssos D. João VI por um natural <strong>do</strong> mesmo paiz. Rio <strong>de</strong> Janeiro,Impressão Régia, 1819, p. 52.39 MARIANI, Alay<strong>de</strong> Van<strong>de</strong>rlei. “Quissamã, história e socieda<strong>de</strong>”. In: MARCHIORI,M.E.P. et alli. Quissamã. Rio <strong>de</strong> Janeiro: SPHAN-Fundação Nacional Pró-Memória, 1987,pp. 30-31. Agra<strong>de</strong>cemos a Marina <strong>de</strong> Mello e Souza a indicação <strong>de</strong>sta referência.40 Cf. PANG, Eul-Soo. In Persuit of Ho<strong>no</strong>r and Power: Noblemen of the Southern Crossin Nineteenth-century Brazil. Tuscaloosa and Lon<strong>do</strong>n: The University of Alabama Press,1988, pp. 85-89.


Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126 117se na abertura <strong>de</strong> <strong>no</strong>vos caminhos comerciais pelo hinterland fluminense e já étenente-coronel. Em breve, lutaria pela in<strong>de</strong>pendência brasileira e, a<strong>no</strong>s maistar<strong>de</strong>, atuaria como <strong>de</strong>puta<strong>do</strong> na Assembléia Legislativa Provincial <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong>Janeiro, on<strong>de</strong> hasteará a ban<strong>de</strong>ira <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Conserva<strong>do</strong>r.Como aponta Jeffrey Nee<strong>de</strong>ll, o principal apoio político ao grupo <strong>do</strong> Regresso<strong>no</strong> final da década <strong>de</strong> 1830 provém, sobretu<strong>do</strong>, das famílias aristocratase <strong>do</strong>s produtores <strong>de</strong> açúcar que tinham engenhos encrava<strong>do</strong>s nas zonas baixasda província fluminense – caso da família Carneiro da Silva. A subscriçãodas propostas conserva<strong>do</strong>ras – que incluem a crítica aberta à lei <strong>de</strong> 1831 – sefaz sentir inclusive na Assembléia Legislativa Provincial <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro:já na primeira legislatura, <strong>de</strong> 1836 a 1837, 30 <strong>do</strong>s 75 <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s eleitos alinham-secom o recém-articula<strong>do</strong> grupo conserva<strong>do</strong>r; na legislatura seguinte,<strong>de</strong> 1838 a 1839, os <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> Regresso representam 50% da casa. Não é,pois, <strong>de</strong> admirar que logo na primeira legislatura uma comissão li<strong>de</strong>rada porJosé Clemente Pereira, outro medalhão <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res, emite juízo em <strong>de</strong>sfavorda lei <strong>de</strong> 1831. No a<strong>no</strong> seguinte, a segunda legislatura en<strong>de</strong>reça à AssembléiaGeral representação pedin<strong>do</strong> a revogação da lei <strong>de</strong> 1831. 41Cumpre acrescentar ainda um último ponto <strong>de</strong> convergência. À medidaque os conserva<strong>do</strong>res se consolidam na organização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> brasileiro, acarreira <strong>no</strong>biliárquica <strong>de</strong> Carneiro da Silva dispara. Em 1841, torna-se FidalgoCavaleiro; em 1844, 1º Barão <strong>de</strong> Araruama e, três a<strong>no</strong>s mais tar<strong>de</strong>, 1º Viscon<strong>de</strong>com honras <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>za <strong>de</strong> Araruama. Títulos que apenas confirmama maneira íntima como José Carneiro da Silva privou com a alta corte bragantinae sua burocracia político-administrativa. Mattoso Maia, em discurso necrológicoao Viscon<strong>de</strong>, faleci<strong>do</strong> em 1864, dizia que a “sua fazenda <strong>de</strong> Quissamãtinha si<strong>do</strong> visitada por pessoa da mais alta categoria, tais como o faleci<strong>do</strong> bispo<strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, ministros <strong>de</strong> esta<strong>do</strong>, presi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> província etc., e tanto<strong>do</strong>s gran<strong>de</strong>s da terra como <strong>do</strong>s peque<strong>no</strong>s não podia <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> cativar as simpatiasgerais”. 42 Com efeito, a fazenda <strong>de</strong> Quissamã, além <strong>de</strong> ter recebi<strong>do</strong> VictorFrond e Charles Ribeyrolles, que ajudaram a gravar sua imagem para os con-41 Cf. NEEDELL, Jeffrey D. “Party Formation and State-Making: The Conservative Partyand the Reconstruction of the Brazilian State, 1831-1840”. In Hispanic AmericanHistorical Review, vol. 81(2): 259-308, May 2001, p. 297, p.289.42 Almanak administrativo, mercantil e industrial da corte e província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiropara o a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1865. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Eduar<strong>do</strong> & Henrique Laemmert, 1865, seção“Almanak - necrológio das Casas Titulares”, p. 50.


118Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126temporâneos e para a historiografia <strong>do</strong> século XX, chegou a acomodar a comitivaimperial <strong>de</strong> D. Pedro II, que resolvera ver pessoalmente os melhoramentosmateriais ao <strong>no</strong>rte da província <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro. 43 À morte <strong>do</strong> Viscon<strong>de</strong>sobreviveu sua orientação conserva<strong>do</strong>ra <strong>no</strong> filho Bento Carneiro da Silva (cheferegional <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Conserva<strong>do</strong>r) e <strong>no</strong> genro Almeida Pereira Filho, que chegoua ser ministro <strong>do</strong>s Negócios <strong>do</strong> Império em 1861. 44Em face <strong>de</strong> sua trajetória biográfica, parece bastante plausível que JoséCarneiro da Silva tenha si<strong>do</strong> o autor da Memória sobre o comércio <strong>do</strong>s escravos.Essa atribuição já foi feita <strong>de</strong> fato <strong>no</strong> próprio século <strong>XIX</strong>, apenas <strong>do</strong>isa<strong>no</strong>s <strong>de</strong>pois da morte <strong>do</strong> Viscon<strong>de</strong> 45 . De resto, tal opinião foi algumas vezesen<strong>do</strong>ssada <strong>no</strong> século passa<strong>do</strong>. Na década <strong>de</strong> 1940, a Gran<strong>de</strong> Enciclopédia Portuguesae <strong>Brasil</strong>eira diz que a José Carneiro da Silva são <strong>de</strong>vidas a “<strong>no</strong>távelMemória topográfica sobre o campo <strong>do</strong>s Goytacazes, 1819, e outra, <strong>no</strong>tável43Cf. MARIANI, A. V., op. cit., pp. 35 e 41; BARATA, Carlos Eduar<strong>do</strong> <strong>de</strong> Almeida &BUENO, Antônio Henrique da Cunha. Dicionário das Famílias <strong>Brasil</strong>eiras. São Paulo:Terra Editora, 2001, v. I, p. 657. Sobre sua visita a Quissamã, escreveu Ribeyrolles: “oacolhimento fidalgo que se presta ao estrangeiro nessa gran<strong>de</strong> e antiga casa, on<strong>de</strong> a hospitalida<strong>de</strong>é costume <strong>de</strong> séculos, a simplicida<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>iramente <strong>no</strong>bre <strong>do</strong> anfitrião e acordialida<strong>de</strong> liberal <strong>de</strong> seus filhos permitiram-<strong>no</strong>s tu<strong>do</strong> ver, tu<strong>do</strong> examinar com <strong>de</strong>talhe,<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os trabalhos <strong>do</strong>s campos até às especialida<strong>de</strong>s das usinas, das oficinas e seus aparelhamentos.Vimos aí uma máquina <strong>de</strong> procedência inglesa que aciona três cilindroshorizontais. A engrenagem é simples e segura, a peça fortemente instalada, a rotação <strong>de</strong>gran<strong>de</strong> força. Po<strong>de</strong>-se movê-la com rapi<strong>de</strong>z em caso <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>. Para a distilação daaguar<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> cana completa o sistema um alambique a vapor, aparelho que se encontra<strong>no</strong>s sete estabelecimentos açucareiros que se grupam, num raio <strong>de</strong> algumas léguas, emtor<strong>no</strong> da fazenda matriz”. <strong>Brasil</strong> Pitoresco. (1ª ed: 1859; trad.port.) São Paulo: Martins-MEC, 1976, 2v, v.2, pp.18-9. As litogravuras sobre o trabalho escravo em Quissamã,compostas a partir <strong>de</strong> fotografias <strong>de</strong> Frond, constituem uma das séries <strong>de</strong> imagens sobrea escravidão brasileira mais utilizadas pelos historia<strong>do</strong>res e mesmo pelos livros didáticosvolta<strong>do</strong>s ao Ensi<strong>no</strong> Fundamental e Médio. Para um exemplo recente <strong>de</strong> uso das litogravurasda proprieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Araruama, ver SLENES, Robert W. Na Senzala, uma Flor.Esperanças e recordações na formação da família escrava – <strong>Brasil</strong> Su<strong>de</strong>ste, século <strong>XIX</strong>.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Nova Fronteira, 1999, p.153 e 155.44Cf. MARIANI, A. V., op. cit., p. 41.45Cf. Histoire Générale <strong>de</strong>s Hommes Vivants et <strong>de</strong>s Hommes Morts dans le <strong>XIX</strong>e siècle,<strong>do</strong>nt les fonctions, les ouevres et les positions sociales peuvent être representees d’apres<strong>de</strong>s <strong>do</strong>cuments officiels, <strong>de</strong>s memoires, <strong>de</strong>s manifestes et d’autres écrits recueillis ouindioques dans les archieves <strong>de</strong> lá ouevre, par <strong>de</strong>s ecrivans <strong>de</strong> diverses nations. TomeDeuxième, <strong>de</strong> l’edition ou les articles se classent dans l’ordre alphabetique par Tome.Genève, A la direction <strong>de</strong> l’Histoire Generale, 1860-1866, extrato incluí<strong>do</strong> na pasta 6,lata 3, da coleção “Titulares <strong>do</strong> Império”, arquivo <strong>do</strong> IHGB.


Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126 119também, sobre a escravatura”. 46 Por fim, <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s oitenta, <strong>do</strong>is estu<strong>do</strong>s aindaatribuem a autoria da memória a Araruama – José Ivan Calou Filho, em sua“Introdução” à Concordância das Leis <strong>de</strong> Portugal e das Bulas Pontifícias, eAlay<strong>de</strong> Van<strong>de</strong>rlei Mariani, em estu<strong>do</strong> sobre a vida <strong>do</strong>s proprietários <strong>do</strong> Engenho<strong>de</strong> Quissamã. Todas essa imputações acabam, pois, por corroborar a hipótese<strong>de</strong> que o opúsculo foi composto pelo Viscon<strong>de</strong>.O a<strong>no</strong>nimatoLançada em 1838, a Memória não po<strong>de</strong>ria ser uma republicação <strong>do</strong>s escritos<strong>de</strong> Azere<strong>do</strong> Coutinho. Ainda que respeita<strong>do</strong> pela produção intelectual,o bispo <strong>de</strong> Olinda era visto com reservas pelos liberais brasileiros por causa<strong>do</strong>s escritos absolutistas em que invectivou tão vivamente o sistema representativo.Citá-lo ou republicá-lo na década <strong>de</strong> 1830 era como que revivificar oAntigo Regime em plena monarquia constitucional – risco que nenhum <strong>do</strong>sparti<strong>do</strong>s políticos queria correr, muito me<strong>no</strong>s os conserva<strong>do</strong>res, cujas propostas<strong>de</strong> centralização jurídico-administrativa e cujo apoio adquiri<strong>do</strong> entre osantigos restauracionistas na cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro apresentavam certo ressaibo<strong>de</strong> déjà vu aos liberais mo<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s. 47 Isso é tanto mais manifesto quantoum <strong>do</strong>s autores cita<strong>do</strong>s na Memória é justamente Charles Theremin, <strong>de</strong>fensor<strong>do</strong> i<strong>de</strong>ário escravista e, ao mesmo tempo, advoga<strong>do</strong> <strong>do</strong> regime representativo– portanto, um autor perfeitamente autoriza<strong>do</strong> para as elites liberais e escravistasda Regência. 4846 Gran<strong>de</strong> Enciclopédia Portuguesa e <strong>Brasil</strong>eira – ilustrada com cerca <strong>de</strong> 15.000 gravuras e400 estampas a cores. Rio <strong>de</strong> Janeiro, Editorial Enciclopédia Ilimitada, v. III, 194(?), p. 84.47A respeito <strong>do</strong> apoio aos conserva<strong>do</strong>res pelos antigos restauracionistas, ver NEEDELL,J., “Party Formation”, pp. 283-286.48Cf. THEREMIN, Charles. De l’état présent <strong>de</strong> l’Europe et <strong>de</strong> l’accord entre la légitimitéet le sistème représentatif [1ªed., 1816]. Edição fac-similar sem indicação <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>. ElibronClassics, 2003. Desacreditan<strong>do</strong> o aspecto radical da Revolução Francesa, bem como suafase republicana, Theremin reconhece nela a virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter conduzi<strong>do</strong> todas as nações européiasao sistema representativo: “Os reis aceitaram o sistema representativo, e os povosaceitaram o sistema da legitimida<strong>de</strong>”, união essa que sustém a “verda<strong>de</strong>iras bases da prosperida<strong>de</strong>das nações e da estabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s sobera<strong>no</strong>s”, pp. 6 e 7. A citação <strong>de</strong> Theremin, naMemória, foi extraída das páginas 173-175 <strong>do</strong> seu De l’état présent <strong>de</strong> l’Europe.


120Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126Por outro la<strong>do</strong>, é mais que provável que o autor da Memória seja JoséCarneiro da Silva – homem natural <strong>de</strong> Campos <strong>do</strong>s Goitacases, político conserva<strong>do</strong>r<strong>do</strong> Regresso e proprietário escravista da açucarocracia fluminense. Deto<strong>do</strong> mo<strong>do</strong>, irrefutável é fato <strong>de</strong> o campo discursivo a que pertence a Memóriaconjugar-se perfeitamente com aquele <strong>do</strong> projeto saquarema: conservação<strong>do</strong>s interesses <strong>do</strong>s homens <strong>de</strong> volumoso capital (o que inclui o abastecimento<strong>de</strong> mão-<strong>de</strong>-obra barata) para viabilizar a construção <strong>de</strong> um grandioso império<strong>no</strong>s trópicos. Na prática, isso se realizaria com a edificação <strong>de</strong> um impérioconstitucional civiliza<strong>do</strong> e escravista, à revelia da gigantesca pressão exercidapela Grã-Bretanha. Ora, tal i<strong>de</strong>ário está perfeitamente sintetiza<strong>do</strong> na Memóriasobre o comércio <strong>do</strong>s escravos.Mas, por que a Memória foi dada a imprimir a<strong>no</strong>nimamente? É certo quea crítica pública à lei <strong>de</strong> 1831 realizada pelos conserva<strong>do</strong>res foi uma arma políticamais que eficiente, consi<strong>de</strong>rada a ascensão assusta<strong>do</strong>ramente rápida comque o grupo impôs seu <strong>do</strong>mínio sobre os <strong>de</strong>mais. Entretanto, os regressistasvislumbravam em seu horizonte um verda<strong>de</strong>iro “muro <strong>de</strong> bronze” que a Inglaterrajurava erguer para sufocar o tráfico negreiro – atitu<strong>de</strong> reforçada <strong>de</strong>poisda abolição da escravidão <strong>no</strong> Império britânico em 1838, quan<strong>do</strong> o movimentoabolicionista inglês envi<strong>do</strong>u seus maiores esforços para sufocar os sistemasescravistas alhures. Dessa maneira, os conserva<strong>do</strong>res tinham <strong>de</strong> arranjarsua propaganda com cautela e encontrar o ponto <strong>de</strong> equilíbrio i<strong>de</strong>al, on<strong>de</strong>, <strong>de</strong>um só golpe, conquistariam a simpatia <strong>do</strong>s grupos eco<strong>no</strong>micamente hegemônicos<strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> e repeliriam a fúria <strong>do</strong> Foreign Office ou qualquer guerra extemporânea.Daí seu interesse em, por um la<strong>do</strong>, esquentar os <strong>de</strong>bates sobre o tráfico<strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s quan<strong>do</strong> na oposição (a partir <strong>de</strong> 1836) e, por outro, refreá-lo quan<strong>do</strong><strong>no</strong> po<strong>de</strong>r (efetivamente, a partir <strong>de</strong> 1838), uma vez que a estratégia <strong>de</strong> cooptaçãopolítica po<strong>de</strong>ria se transformar em profun<strong>do</strong> infortúnio diplomático. Talcomo a Memória saiu anônima da tipografia <strong>de</strong> Villeneuve em 1838, assimtambém o projeto <strong>de</strong> Barbacena <strong>de</strong> 1837 sobre a revogação da lei <strong>de</strong> 1831 <strong>do</strong>rmitoutranqüilamente na gaveta saquarema durante o mesmo a<strong>no</strong>.Por fim, há ainda o obstáculo institucional. O Esta<strong>do</strong> brasileiro tinha, afinal<strong>de</strong> contas, aboli<strong>do</strong> o tráfico <strong>de</strong> africa<strong>no</strong>s, e isso significava que a opiniãopolítica <strong>de</strong> um grupo oposicionista não po<strong>de</strong>ria ser mecanicamente transformadaem política <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, sob pena <strong>de</strong> o Gover<strong>no</strong>, <strong>de</strong>srespeitan<strong>do</strong> as própriasleis, <strong>de</strong>vorar-se a si mesmo. Não é por acaso que, justamente em 1838, Vasconcelosgarantiu ao Parlamento total respeito à lei <strong>de</strong> 1831, <strong>de</strong>pois que Montezumao interpelou para que emitisse as opiniões <strong>de</strong> seu Gabinete sobre o trá-


Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126 121fico <strong>de</strong> escravos, por ele tão propaladamente <strong>de</strong>fendi<strong>do</strong> quan<strong>do</strong> na oposição:“Qualquer que seja o juízo que o ministro da justiça [o próprio Vasconcelos]forme a respeito da lei <strong>de</strong> 7 <strong>de</strong> Novembro <strong>de</strong> 1831, há <strong>de</strong> ter fiel e religiosa execuçãoenquanto for lei <strong>de</strong> esta<strong>do</strong>; nem é crível que haja um ministro que emita aopinião que não quer que se executem os trata<strong>do</strong>s, que não quer que se executemas leis.” 49 Naquele mesmo a<strong>no</strong>, era lança<strong>do</strong>, fora <strong>do</strong> Parlamento, mas pelatipografia <strong>do</strong>s conserva<strong>do</strong>res, a Memória sobre o comércio <strong>do</strong>s escravos. Imprimirum <strong>no</strong>me na capa, àquela altura em que os conserva<strong>do</strong>res estavam com asré<strong>de</strong>as <strong>do</strong> gover<strong>no</strong> nas mãos, po<strong>de</strong>ria colocar o recém-funda<strong>do</strong> parti<strong>do</strong> na miradireta <strong>do</strong> cruzeiro inglês – posição um tanto <strong>de</strong>sconfortável. Eles certamentepreferiam um a<strong>no</strong>nimato que os mantivesse nas glórias <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r a um ilustre<strong>no</strong>me que os arrojasse à infâmia <strong>do</strong> <strong>de</strong>sgover<strong>no</strong>.Memória sobre o comércio <strong>do</strong>s escravos, em que se preten<strong>de</strong> mostrar que estetrafico é, para eles, antes um bem <strong>do</strong> que um mal. Escrita por *** Natural <strong>do</strong>sCampos <strong>do</strong>s Goitacazes. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Typographia Imperial e Constitucional<strong>de</strong> J.Villeneuve, 1838, 13pp. 50To<strong>do</strong>s sabem que a maior parte das nações africanas vivem em contínuasguerras; que tratam seus prisioneiros com a última barbarida<strong>de</strong>, e que, finalmente,quan<strong>do</strong> não po<strong>de</strong>m, ou não têm meios <strong>de</strong> os ven<strong>de</strong>r, passam to<strong>do</strong>s ao fio da espada,e, para opróbrio da humanida<strong>de</strong>, em algumas partes os cortam <strong>no</strong> açouguecomo se fossem irracionais, e não se envergonham <strong>de</strong> terem o infame e repugnantecostume <strong>de</strong> comprarem e comerem a carne <strong>de</strong> seus semelhantes.Seria sumamente extenso, se quisesse tratar miudamente <strong>do</strong> quanto sofremaqueles <strong>de</strong>sgraça<strong>do</strong>s negros que uma vez foram feitos prisioneiros! Passemosem silêncio esses quadros horrorosos; o peque<strong>no</strong> esboço que acima fiz,po<strong>de</strong> fazer compreen<strong>de</strong>r quais serão os tratamentos por que passam estas <strong>de</strong>sgraçadasvítimas em po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> uns senhores que ainda são mais ferozes que osleões e os tigres que os cercam.49 ACD, 4 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 1838, pp. 33-34.50 Para esta edição, atualizou-se a ortografia <strong>do</strong> <strong>do</strong>cumento. As <strong>no</strong>tas com asterisco são<strong>do</strong> autor da Memória.


122Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126De que maiores vantagens não gozam os negros que, sen<strong>do</strong> feitos prisioneiros,são vendi<strong>do</strong>s às nações cultas e civilizadas! É certo que, entre estas, háalguns senhores que, esqueci<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s princípios da humanida<strong>de</strong>, os tratam comdureza; mas estes senhores são mais raros <strong>do</strong> que comumente se pensa, e não<strong>de</strong>vem contrabalançar aqueles que, guia<strong>do</strong>s por princípios pios e huma<strong>no</strong>s,tratam os seus escravos com comiseração, cujo número por felicida<strong>de</strong> cadavez mais se aumenta, à medida que as luzes se multiplicam.Nós sabemos que, por uso geral, os fazen<strong>de</strong>iros, quan<strong>do</strong> compram escravos,o primeiro passo que dão é vesti-los e sustentá-los como eles nunca foramem seu país natal, ainda <strong>no</strong> esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>; e passam <strong>de</strong>pois a mandar-lhesensinar a <strong>do</strong>utrina cristã, e fazê-los compreen<strong>de</strong>r a excelência dareligião que professamos, finalmente a fazê-los <strong>de</strong> pagãos e idólatras católicosroma<strong>no</strong>s. E quantas almas por este meio não se salvam, já receben<strong>do</strong> obatismo logo que são compra<strong>do</strong>s, ou <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> estarem instruí<strong>do</strong>s <strong>no</strong>s principaismistérios da fé: fazen<strong>do</strong>-os observar a religião que se lhes ensina, administran<strong>do</strong>-se-lhesos sacramentos e to<strong>do</strong>s os saudáveis meios que ela, sempre humana,sempre sábia e sempre santa, lhes subministra para a sua salvação. É,fundada nestes princípios, que a igreja tolera e aprova o tráfico <strong>de</strong> escravos,muito persuadida que, ainda que se abolisse entre nós este tráfico, eles porisso não seriam mais felizes, porque as nações africanas nunca <strong>de</strong>ixarão <strong>de</strong>guerrearem-se e <strong>de</strong> tratarem os seus prisioneiros como acima fiz ver, sem distoresultar proveito algum.Pelo contrário, quantos há que vivem felizes em po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> seus senhoresbrancos? Eu tenho visto escravos que só têm <strong>de</strong>sta condição o <strong>no</strong>me. Oficiaisperitos, eles não só trabalham para seus senhores, como para si, e chegam pormeios lícitos a ajuntar o dinheiro necessário para sua liberda<strong>de</strong>, que algumasvezes chega a alto preço.Tenho visto escravos senhores <strong>de</strong> escravos, com plantações, criações <strong>de</strong>ga<strong>do</strong> vacum e cavalar, e finalmente com um pecúlio vasto e ren<strong>do</strong>so. Tenhovisto muitos escravos libertarem-se, tornarem-se gran<strong>de</strong>s proprietários, seremsolda<strong>do</strong>s, chegarem a oficiais <strong>de</strong> patente, e servirem outros empregos públicosque são tão úteis ao Esta<strong>do</strong>.Quantos e quantos oficiais <strong>de</strong> ofícios e mesmo <strong>de</strong> outras or<strong>de</strong>ns mais superioresque, <strong>no</strong>utro tempo, foram escravos e hoje vivem com suas famílias, cooperan<strong>do</strong>para o bem <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> nas obras e empregos em que são ocupa<strong>do</strong>s,aumentan<strong>do</strong> a população e o esplen<strong>do</strong>r da nação, que os tem naturaliza<strong>do</strong>!


Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126 123Sem a escravatura, o que seria n’América o seu comércio <strong>de</strong> exportação!Com escravos é que se trabalha nas minas, e que se tiram esse precioso metaltão <strong>de</strong>seja<strong>do</strong>, esses diamantes que têm si<strong>do</strong> <strong>de</strong> um tão gran<strong>de</strong> recurso ao esta<strong>do</strong>;essa lucrativa e sobretu<strong>do</strong> interessante lavoura, principal riqueza <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>,e d’América em geral, da qual a Europa mesma não po<strong>de</strong> mais prescindir.É <strong>de</strong> escravos que se compõe a maior parte da tripulação <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssas embarcações<strong>de</strong> cabotagem, que abastecem as <strong>no</strong>ssas cida<strong>de</strong>s marítimas <strong>do</strong>s efeitosdas outras províncias, por isso que, em um país tão extenso e tão <strong>de</strong>spovoa<strong>do</strong>,é custosíssimo achar homens livres para marinheiros * . Estas reflexões melevariam muito longe, e precisavam mesmo <strong>de</strong> uma pena mais fecunda que aminha; portanto vou transcrever <strong>de</strong> um autor francês uma passagem que servirá<strong>de</strong> provar o que acima me refiro.“É a este povo laborioso (fala <strong>do</strong>s negros), que nós <strong>de</strong>vemos a cultura e afertilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssas colônias da América. Não é aqui o lugar para discutir seo tráfico <strong>do</strong>s negros <strong>de</strong>ve ser proibi<strong>do</strong>. Aqueles que, por uma parte, tem corri<strong>do</strong>à África e tem si<strong>do</strong> testemunhas <strong>do</strong>s excessos bárbaros que acompanhamsempre as guerras contínuas que <strong>de</strong>spovoam estas regiões; aqueles que viramos <strong>de</strong>sgraça<strong>do</strong>s prisioneiros reduzi<strong>do</strong>s a pastar a erva <strong>do</strong>s campos; aqueles que,por outra parte, tem visto os colo<strong>no</strong>s honestos trabalhar por fazer a felicida<strong>de</strong><strong>do</strong>s negros <strong>de</strong> suas habitações, e que souberam, da boca <strong>do</strong>s mesmos negros,que, em tal habitação, eles eram mais felizes que em seu país natal; aqueles*Geralmente se diz que a introdução das máquinas <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> <strong>de</strong>ve fazer cessar a precisão<strong>de</strong> maior número <strong>de</strong> braços. Nos países manufatureiros não duvi<strong>do</strong> que as máquinasdiminuam consi<strong>de</strong>ravelmente o número <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>res; mas não acontece o mesmo<strong>no</strong>s países agricultores <strong>de</strong> açúcar ou <strong>de</strong> café. Por exemplo, nas fábricas <strong>de</strong> açúcar, asmáquinas que mais lhes convêm são as <strong>de</strong> vapor ou água, as quais, para fazerem um serviçoregular e correspon<strong>de</strong>nte a tais fábricas, exigem, pelo me<strong>no</strong>s, duzentos trabalha<strong>do</strong>res: equal será o proprietário que, <strong>no</strong> <strong>no</strong>sso atual esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> população, possa ajustar duzentosjornaleiros para trabalharem em uma fábrica <strong>de</strong> açúcar? No caso mesmo que lhe fossepossível achar tal número, não os po<strong>de</strong>ria ajustar por me<strong>no</strong>s <strong>de</strong> 20$000rs mensais, o queproduz uma soma <strong>de</strong> 48:000$000 rs anuais. Suponhamos, por um momento, que os pu<strong>de</strong>sseajustar por meta<strong>de</strong>: 24:000$000 rs juntos às mais <strong>de</strong>spesas indispensáveis <strong>de</strong> uma<strong>de</strong>stas fábricas, não <strong>de</strong>ixarão <strong>de</strong> arruinar a mais ren<strong>do</strong>sa, e <strong>de</strong>ixá-la <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o primeiro a<strong>no</strong>sem meios <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r continuar, e cairá infalivelmente. O melhor recurso que presentementetemos para mi<strong>no</strong>rar tais inconvenientes, é procurarmos a introdução <strong>de</strong> colo<strong>no</strong>s, afim <strong>de</strong> que tenhamos um rápi<strong>do</strong> aumento na <strong>no</strong>ssa população, porque só assim po<strong>de</strong>rãobaixar <strong>de</strong> preço os jornaleiros, e então serão emprega<strong>do</strong>s em <strong>no</strong>ssas fábricas e lavouras,ao me<strong>no</strong>s em alguns serviços.


124Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126sobretu<strong>do</strong>, que observaram quanto são dóceis, civiliza<strong>do</strong>s e huma<strong>no</strong>s os negrosque se têm ti<strong>do</strong> a paciência <strong>de</strong> bem instruir na religião, serão força<strong>do</strong>s aconvir que o tráfico <strong>de</strong> escravos é <strong>de</strong> fato um bem para eles, tanto como paraseus senhores. Os <strong>de</strong>sastres <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssas colônias, os males recentes <strong>de</strong> SãoDomingos bastarão, sem dúvida, para apreciar o sistema da socieda<strong>de</strong> <strong>do</strong>s pretendi<strong>do</strong>samigos <strong>do</strong>s negros, à qual se é <strong>de</strong>ve<strong>do</strong>r <strong>de</strong> todas essas horrorosas carnificinas,que têm ensangüenta<strong>do</strong> o território francês na América.”Esses pretendi<strong>do</strong>s amigos <strong>do</strong>s negros, como chama o autor francês, nãopo<strong>de</strong>m <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser reputa<strong>do</strong>s como uns incendiários e hipócritas que, nadame<strong>no</strong>s ten<strong>de</strong>m, com seus capciosos discursos, que o verem re<strong>no</strong>var-se <strong>no</strong> seio<strong>do</strong> seu próprio país e nesta pátria, cujo <strong>no</strong>me só tem produzi<strong>do</strong> tão heróicasações, as cenas, que a história <strong>no</strong>s conserva da antiga Itália, da Sicília, daSarmácia, <strong>do</strong> Haiti e outras partes.Na verda<strong>de</strong> custa a sofrer, e nem se po<strong>de</strong> olhar sem horror para estes filantroposque, manchan<strong>do</strong> o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong>sta palavra, preferem antes prestar essespretendi<strong>do</strong>s serviços às nações bárbaras africanas, que nem ao me<strong>no</strong>s lhesagra<strong>de</strong>cem, e que até os reputam como uma opressão, <strong>do</strong> que a seu bem estare da nação que os alimenta.Os gover<strong>no</strong>s europeus clamam contra essa opressão que sofrem os Africa<strong>no</strong>s;mas são outros os princípios que os guiam, e senão, vejamos o que dizMr.Carlos Theremin <strong>no</strong> seu excelente Trata<strong>do</strong> <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> presente da Europa,cap.14. “Assim como nós especulávamos há pouco tempo em <strong>no</strong>ssas feiras eem <strong>no</strong>ssos portos sobre o comércio <strong>do</strong>s negros, que era um <strong>do</strong>s <strong>no</strong>ssos principaisinteresses comerciais, assim também os Mouros continuam a especular entresi sobre suas enseadas, e em seus Bazars, sobre o comércio <strong>do</strong>s brancos, que éo seu principal ou único objeto <strong>de</strong> comércio. Seus reis ou capitães <strong>de</strong> corsários,traficam com os merca<strong>do</strong>res <strong>de</strong> escravos, da liberda<strong>de</strong>, da vida e <strong>do</strong>s corpos <strong>de</strong><strong>no</strong>ssos pais, <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssas mulheres, <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssos filhos e <strong>de</strong> <strong>no</strong>ssas filhas. Um <strong>de</strong>ssebárbaros se obriga a fornecer um certo número <strong>de</strong> homens obreiros ou lavra<strong>do</strong>res,a tanto por cabeça; outro ajusta-se por cem moças núbeis; um terceiro vairoubar ao acaso, e toma tu<strong>do</strong> que encontra, homens e rebanhos.“Sobre essas costas meridionais da Espanha, sobre todas as da Itália, daSicília e Sar<strong>de</strong>nha, os habitantes são surpreendi<strong>do</strong>s <strong>de</strong> improviso por uma algazarra,muitas vezes em meio <strong>de</strong> um passeio ou <strong>de</strong> uma partida <strong>de</strong> prazer; osque po<strong>de</strong>m fogem, os mais são presos, amarra<strong>do</strong>s e conduzi<strong>do</strong>s para as costasd’África, para serem vendi<strong>do</strong>s. Ali, eles sofrem to<strong>do</strong>s os males, que po<strong>de</strong> inventara avareza e a cruelda<strong>de</strong> mais refinada. Não é unicamente os frutos <strong>de</strong> seus


Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126 125trabalhos que se pe<strong>de</strong>m, é a esperança <strong>de</strong> um rico resgate, que os faz maltratarainda mais, a fim <strong>de</strong> que ele venha logo; diariamente os punem, porquenão são resgata<strong>do</strong>s, até que morrem sob os golpes ..... E nós que temos aboli<strong>do</strong>o comércio <strong>do</strong>s negros, <strong>de</strong>ixamos continuar o <strong>do</strong>s <strong>no</strong>ssos compatriotas, enenhuma potência se arma pela generosa, mas fácil empresa proposta porSidney Smith ( * ). E a Inglaterra, senhora <strong>do</strong> Mediterrâneo e <strong>do</strong> Adriático, pelaposse <strong>de</strong> Gibraltar, <strong>de</strong> Malta e das ilhas Iônicas, favorece antes que ela nãotolera este ig<strong>no</strong>minioso tráfico, assim como todas as potências, que concluemtrata<strong>do</strong>s com os Barbarescos! E os membros <strong>do</strong> parlamento britânico, que têmcompatriotas, e talvez amigos ou parentes em os banhos <strong>de</strong> Argel, não se temainda explica<strong>do</strong>, e não tem, acha<strong>do</strong> um <strong>no</strong>vo Wilberforce!“De certo a humanida<strong>de</strong> e os princípios da eterna justiça, são alguma coisa<strong>de</strong>pois <strong>de</strong>sse acor<strong>do</strong> unânime, que tem subtraí<strong>do</strong> à cobiça européia as geraçõesafricanas, e sobretu<strong>do</strong> <strong>de</strong>pois <strong>do</strong> religioso trata<strong>do</strong> concluí<strong>do</strong> entre aRússia, Áustria e Prússia. Mas como isto se faz? Enquanto subtraímos da escravidãoos africa<strong>no</strong>s, nós <strong>de</strong>ixamos reduzi<strong>do</strong>s à escravidão os povos civiliza<strong>do</strong>s,<strong>no</strong>ssos compatriotas, por outros africa<strong>no</strong>s! Nós renunciamos a <strong>no</strong>ssaprópria cobiça, e <strong>de</strong>ixamos um livre curso à cobiça <strong>do</strong>s Barbarescos; seráporque somos as vítimas!”Muitos <strong>de</strong>stes gover<strong>no</strong>s não querem escravos <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, porque calculam<strong>de</strong> antemão, e vêm que futuro brilhante espera o <strong>Brasil</strong>. A feliz situação <strong>de</strong>steImpério que, bem como um disforme gigante, po<strong>de</strong> esten<strong>de</strong>r a sua cabeça paraa África, a sua mão direita para Ásia, a esquerda para a Europa, e o resto <strong>do</strong>corpo por toda a América, não haven<strong>do</strong> talvez região <strong>no</strong> mun<strong>do</strong> mais bem colocadapara comerciar com todas as partes <strong>do</strong> <strong>no</strong>sso Globo, sua extensão, suafertilida<strong>de</strong>, sua imensa exportação que, contu<strong>do</strong>, não é a vigésima parte daque po<strong>de</strong>m fazer seus excelentes e espaçosos portos, sua preciosa ma<strong>de</strong>ira <strong>de</strong>construção e seus outros numerosos recursos, tu<strong>do</strong> atemoriza e assusta a essesgran<strong>de</strong>s políticos, e por isso procuram <strong>de</strong>struir as bases da lavoura, única*Foi necessário que o gover<strong>no</strong> francês recebesse muitas afrontas, e que mesmo a suapolítica interessasse, para resolver-se a fazer a conquista <strong>de</strong> Argel, Constantine, etc;conquista que há muito <strong>de</strong>veria ter si<strong>do</strong> feita, e com a qual se teriam poupa<strong>do</strong> gran<strong>de</strong>sopróbrios e <strong>de</strong>sgraças.


126Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese e Tâmis Peixoto Parron / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 99-126coisa capaz <strong>de</strong> fazer o <strong>Brasil</strong> chegar a uma categoria, que nenhum rei<strong>no</strong> ouimpério lhe po<strong>de</strong>rá igualar.Assim conheçam seus filhos, que da paz e união das partes <strong>de</strong>ste gran<strong>de</strong> to<strong>do</strong><strong>de</strong>pen<strong>de</strong> toda sua prosperida<strong>de</strong>, presente e futura, e que por isso lancem para muitolonge essas sugestões com que não cessam <strong>de</strong> os influir, com o fim unicamente<strong>de</strong> retardar a marcha <strong>de</strong> sua gran<strong>de</strong>za, e <strong>de</strong> <strong>de</strong>smoronar mesmo, se tanto for possível,este agiganta<strong>do</strong> império que, ainda em embrião, tanto os assusta.Quan<strong>do</strong> porém o <strong>Brasil</strong> contar em seu seio uma população correspon<strong>de</strong>ntea seu território: quan<strong>do</strong> o seu comércio for tão extenso, quanto é capaz suafertilida<strong>de</strong> e seus gran<strong>de</strong>s meios; quan<strong>do</strong> a indústria européia tiver, pela introduçãodas artes e ofícios e competentes máquinas, feito me<strong>no</strong>s precisos umgran<strong>de</strong> número <strong>de</strong> braços para suster e fazer andar <strong>no</strong>ssos trabalhos, então,digo eu também, este comércio <strong>de</strong>ve ser aboli<strong>do</strong>, e ainda assim com aquelagradação que <strong>de</strong>ve ter, para se evitar na marcha <strong>do</strong>s acontecimentos saltos quesempre são <strong>no</strong>civos.


Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153 127Artigos


LUKÁCS E ORTEGA, A MODERNIDADE E A FRAGMENTAÇÃO -PRODUÇÃO DA ARTE E AÇÃO DOS HOMENS DECULTURA NOS ANOS 20 E 30 DO SÉCULO XXAna Lúcia Lana NemiCátedra Jaime Cortesão - FFLCH/USPPós-<strong>do</strong>utoramento/FapespResumoO objetivo <strong>de</strong>ste texto é pontuar um <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s <strong>do</strong> <strong>de</strong>bate das eliteseruditas <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XX: o tema <strong>do</strong> intelectual como guardião dacultura e <strong>do</strong>s valores universais frente à barbárie que se configurara <strong>no</strong>final <strong>do</strong> <strong>XIX</strong> e que voltava a se <strong>de</strong>senhar com a ascensão <strong>do</strong>s fascismos.Para isso, <strong>de</strong>stacamos as teses sobre a cultura <strong>de</strong> José Ortega y Gasset eprocuramos analisá-las a partir <strong>de</strong> sugestões lukacsianas.Palavras-ChaveIntelectual • Mo<strong>de</strong>rnização • ArteAbstractThis article discusses one of the issues <strong>de</strong>bated by the erudite elites inthe beginning of the twentieth century: the theme of the intellectual as aguardian of culture and of universal values against the barbaric ten<strong>de</strong>nciesi<strong>de</strong>ntified at the end of the nineteenth century and which reemerged withthe rise of Fascism. The author analyzes Jose Ortega y Gasset’s theses onculture from the perspective of the works of George Lukács.KeywordsIntellectual • Mo<strong>de</strong>rnization • Art


130Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153O ponto <strong>de</strong> partida <strong>de</strong>ste texto é a idéia <strong>de</strong> que Georg Lukács e José Ortegay Gasset são autores que procuraram respon<strong>de</strong>r a uma questão colocada pelacrise <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XX: como recuperar a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ação consciente<strong>do</strong> homem <strong>no</strong> mun<strong>do</strong> das massas? Po<strong>de</strong>mos afirmar, radicalizan<strong>do</strong> um argumento<strong>de</strong> Eduard Ranch, quan<strong>do</strong> aponta a existência <strong>de</strong> “cierto to<strong>no</strong> generacionalentre Lukács e Ortega” porque os <strong>do</strong>is pensa<strong>do</strong>res partem <strong>do</strong> pressuposto<strong>de</strong> que sua socieda<strong>de</strong> é <strong>de</strong>ficitária “<strong>de</strong>s<strong>de</strong> el punto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> la ontología <strong>de</strong>lser social” 1 , que os <strong>do</strong>is autores procuram respostas para o fenôme<strong>no</strong> da ascensãodas massas <strong>no</strong> século <strong>XIX</strong> e sua conseqüente precipitação para o pla<strong>no</strong>da ação política <strong>no</strong> início <strong>do</strong> século XX. Mas o conteú<strong>do</strong> das análises procedidaspelos autores e seus respectivos projetos políticos caminham em senti<strong>do</strong>sopostos. Para discutir esses caminhos opostos, <strong>de</strong>stacamos o tema da produçãoda arte e <strong>do</strong> papel <strong>do</strong>s homens <strong>de</strong> cultura <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 20 e 30 <strong>do</strong> século XX.Segun<strong>do</strong> Lukács, na concepção marxista <strong>de</strong> Literatura assume gran<strong>de</strong>importância o “princípio da <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento na <strong>de</strong>terminaçãodas peculiarida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> qualquer perío<strong>do</strong>”. Mais ainda:“No que concerne à história das i<strong>de</strong>ologias, o materialismo históricoreconhece (...) que o <strong>de</strong>senvolvimento das i<strong>de</strong>ologias não acompanhamecanicamente e nem segue ‘pari passu’ o grau <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimentoeconômico da socieda<strong>de</strong>.” 2Com base nesse suposto <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> por Lukács é que preten<strong>de</strong>mos apresentaruma possível análise <strong>do</strong> texto orteguia<strong>no</strong>. A discussão sobre a inserção dacultura <strong>no</strong>s processos <strong>de</strong> produção da subsistência remonta ao século <strong>XIX</strong> 3 e foi1RANCH, Eduard. “Georg Lukács y Ortega en 1923”, In: Cua<strong>de</strong>r<strong>no</strong>s <strong>de</strong> filosofia i ciencia,nº 15-16, Universidad <strong>de</strong> Valência, 1989, p. 238. Cabe lembrar que o autor, embora nãocite especificamente sua fonte ao <strong>de</strong>finir o termo “tom geracional” cita<strong>do</strong> acima, parece-<strong>no</strong>sestar utilizan<strong>do</strong> uma termi<strong>no</strong>logia orteguiana que conceitua a geração na Históriasegun<strong>do</strong> os problemas vitais enfrenta<strong>do</strong>s por um conjunto <strong>de</strong> homens que, <strong>de</strong>liberadamente,propõem-se a buscar caminhos políticos para tais problemas, mesmo queapontan<strong>do</strong> para soluções diferentes.2 LUKÁCS, G. Ensaios sobre Literatura. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização <strong>Brasil</strong>eira, 1965, p. 17-19.3 Sobre as relações entre produção cultural e produção da subsistência <strong>no</strong> pensamento <strong>de</strong>José Ortega y Gasset veja-se a biografia intelectual <strong>de</strong> Ortega elaborada por Julián MARÍASem Ortega, circunstancia y vocación, Madri, Alianza Editorial, 1986; e a trajetória intelectuale política <strong>de</strong> Ortega elaborada por Antonio ELORZA em La razón y la sombra –Una lectura política <strong>de</strong> Ortega y Gasset. Barcelona: Anagrama, 1984.


Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153 131fundamental para a elaboração <strong>do</strong> pensamento culturalista <strong>de</strong> Ortega y Gasset. Énessa direção que buscamos analisar sua produção e, também, sugerir um paralelocom a produção lukacsiana das três primeiras décadas <strong>do</strong> século XX.Assim, supon<strong>do</strong> o solo histórico como elemento fundamental para a constituiçãodas idéias e admitin<strong>do</strong> a possibilida<strong>de</strong> das idéias apresentarem elementos<strong>de</strong> <strong>de</strong>codificação da realida<strong>de</strong>, mesmo que esses elementos não estejamclaramente expressos na realida<strong>de</strong> observada, estamos propon<strong>do</strong> uma meto<strong>do</strong>logia<strong>de</strong> análise <strong>do</strong> pensamento orteguia<strong>no</strong> cuja fonte é a produção lukacsiana.As ambigüida<strong>de</strong>s que caracterizam o discurso liberal orteguia<strong>no</strong> originam-se,segun<strong>do</strong> acredita-se aqui, na própria constituição <strong>do</strong> capitalismo naEspanha que se <strong>de</strong>senvolveu <strong>de</strong> maneira contraditória porque mesclou elementos<strong>do</strong> “atraso” e elementos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Nesse contexto <strong>de</strong> ambigüida<strong>de</strong>da própria vida social é que Ortega produziu seu discurso.Da arte como pedagogia social à arte como distanciamento da realida<strong>de</strong> negada“Sus estudios en Alemania llegaron a persuadirle <strong>de</strong> que el bienestarpolítico y social está funda<strong>do</strong> en la cultura, y, por consiguiente, que larevitalización política <strong>de</strong> España había <strong>de</strong> basarse en un replanteamientocultural. “ 4A atuação política orteguiana po<strong>de</strong> ser caracterizada como uma “precipitação”pública <strong>de</strong> seu conceito <strong>de</strong> cultura, envolven<strong>do</strong> este os conceitos <strong>de</strong> homem,arte e circunstância. Ortega conceituava o homem segun<strong>do</strong> sua “circunscrição”em uma <strong>de</strong>terminada cultura. Neste senti<strong>do</strong>, a vida humana <strong>de</strong>veriase <strong>de</strong>finir em função <strong>de</strong> sua “socialização cultural”, ou seja, o indivíduo semanifestaria em socieda<strong>de</strong> segun<strong>do</strong> um pensamento científico, ético e estéticoaprendi<strong>do</strong> socialmente. Utilizan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>ssa conceituação que consi<strong>de</strong>ra a culturacomo elemento or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r da vida política e social, Ortega procurava combatero “utilitarismo positivista” que caracterizara o pensamento europeu <strong>no</strong>final <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong> e que fora, segun<strong>do</strong> ele, herança da <strong>de</strong>mocracia burguesa<strong>de</strong>senvolvida <strong>no</strong> mesmo perío<strong>do</strong>.4INMAN FOX, E. I<strong>de</strong>ología y política en las letras <strong>de</strong> fin <strong>de</strong> siglo (1898). Madri: Espasa-Calpe, 1988.


132Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153A arte, <strong>no</strong> pensamento orteguia<strong>no</strong> jovem, era consi<strong>de</strong>rada uma dimensãoda cultura cuja principal característica era a <strong>de</strong> ser um elemento <strong>de</strong> liberaçãoda realida<strong>de</strong>. Dentro <strong>de</strong>ste contexto, ela <strong>de</strong>veria retirar a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua trivialida<strong>de</strong>quotidiana para conferir-lhe representação e simbologia. A experiência<strong>de</strong> observar a obra-<strong>de</strong>-arte assume assim, caráter histórico e político,na medida em que a arte tem a função social <strong>de</strong> “educar” as “massas” atravésdas “propostas” apresentadas pelos artistas em seus trabalhos.Esse “I<strong>de</strong>alismo Político” caracterizou toda a atuação política <strong>de</strong> Orteganas três primeiras décadas <strong>do</strong> século XX: a obra-<strong>de</strong>-arte não po<strong>de</strong>ria ser consi<strong>de</strong>radacomo patrimônio individual, ela <strong>de</strong>veria criar uma totalida<strong>de</strong> fictíciaque pu<strong>de</strong>sse educar as “massas” 5 .O <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> circunstância, especialmente a partirda publicação das "Meditaciones <strong>de</strong>l Quijote" em 1914, ao contrário <strong>do</strong> quepensam autores como Cerezo-Galán e Inman Fox 6 , não parece ter si<strong>do</strong> suficientepara que Ortega superasse esse i<strong>de</strong>alismo que manifestou, acreditamos,em sua vida pública até o início da Guerra Civil em 1936. A “vida cultural”<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rada fundamental, mas não per<strong>de</strong>u sua importância naconfiguração da “vida humana” em sua dimensão “circunstancial”. Ortega<strong>de</strong>finiu a cultura a partir da circunstância e elegeu Espanha como primeiro elementoforma<strong>do</strong>r <strong>de</strong> suas reflexões, mas não <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> consi<strong>de</strong>rar a existência ea importância da divulgação <strong>de</strong> <strong>de</strong>termina<strong>do</strong>s princípios concebi<strong>do</strong>s como<strong>no</strong>rtea<strong>do</strong>res da vida pública <strong>de</strong> cada socieda<strong>de</strong>. A cultura continuaria sen<strong>do</strong> um“repertório <strong>de</strong> soluções” possíveis para respon<strong>de</strong>r às necessida<strong>de</strong>s humanas 7 .Este conceito <strong>de</strong> arte <strong>no</strong>tadamente dinâmica e inventiva acabou por aproximálodas vanguardas artísticas <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século, movimentos culturais <strong>no</strong>s quaisenxergava uma vonta<strong>de</strong> revolucionária <strong>de</strong> superar sua época histórica.A obra <strong>de</strong> arte, enquanto proposta ou solução possível para os problemashuma<strong>no</strong>s, expressaria uma relação específica entre o “yo” e a circunstânciaque se manifestaria em uma intenção <strong>de</strong> alterar a or<strong>de</strong>m sociopolítica vigente.5SALMERÓN, F. Las moceda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Ortega y Gasset. Cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> México: UniversidadAutó<strong>no</strong>ma <strong>de</strong> Máxico, 1983.6ORTEGA Y GASSET, J. “Meditaciones <strong>de</strong>l Quijote”, In: Obras Completas, vol. I, Madri:Alianza Editorial, 1987. CEREZO-GALÁN, P. “Razón vital y liberalismo en Ortega yGasset”, In: Revista <strong>de</strong> Occi<strong>de</strong>nte, Madri, maio-1991, nº 120.7 INMAN FOX, E., op. cit., p. 368-369.


Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153 133Vonta<strong>de</strong> para realizar tal obra-<strong>de</strong>-arte, Ortega encontrou na “Arte Nova”,<strong>de</strong><strong>no</strong>minação que escolheu para i<strong>de</strong>ntificar as <strong>no</strong>vas expressões artísticas <strong>de</strong>vanguarda que procurou <strong>de</strong>finir <strong>no</strong> texto “La <strong>de</strong>shumanización <strong>de</strong>l arte” <strong>de</strong>1925 8 . Neste, Ortega preten<strong>de</strong>u <strong>de</strong>monstrar que o homem e o “homem-massa”possuem reações diferentes frente à arte, sen<strong>do</strong> que aquele utilizaria a invençãoartística como forma <strong>de</strong> opinar e este utilizaria simplesmente a caricatura.Ortega <strong>de</strong>finiu, em tor<strong>no</strong> da “arte <strong>no</strong>va”, sua impopularida<strong>de</strong> quan<strong>do</strong> comparadaao Romantismo <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong>, <strong>no</strong>tadamente popular. Diante <strong>de</strong> umaobra romântica era possível à “massa” reconhecer-se na trama proposta peloartista, o que <strong>de</strong>s<strong>de</strong> logo possibilitava uma i<strong>de</strong>ntificação. Com a “arte <strong>no</strong>va”ocorreria exatamente o contrário. A “massa” não se enxergaria na obra precisamenteporque a “arte <strong>no</strong>va” não se constituiria <strong>de</strong> elementos huma<strong>no</strong>s representa<strong>do</strong>ssegun<strong>do</strong> sua realida<strong>de</strong> factível. Para o observa<strong>do</strong>r <strong>de</strong> tal obra serianecessária capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreensão. Não bastaria “viver” a obra, seria precisocontemplá-la à distância:“Lo característico <strong>de</strong>l arte nuevo es que divi<strong>de</strong> al público en estas <strong>do</strong>sclases <strong>de</strong> hombres: los que lo entien<strong>de</strong>n y los que <strong>no</strong> lo entien<strong>de</strong>n.” 9A “arte <strong>no</strong>va” dirigia-se, neste senti<strong>do</strong>, a uma “mi<strong>no</strong>ria” e não à “massa”.Cabe então <strong>de</strong>finir quais são seus elementos diferencia<strong>do</strong>res frente ao Romantismoque levaram Ortega a afirmá-la como arte para “mi<strong>no</strong>ria”.É preciso estabelecer que, para Ortega, um objeto será obra-<strong>de</strong>-arte apenasna medida em que, ao engendrar uma proposta/projeto, não for real. Dentro<strong>de</strong>sta conceituação, seria possível encontrar um objeto artístico, com característicasreais/humanas, ou uma obra-<strong>de</strong>-arte, quan<strong>do</strong> <strong>de</strong>svinculada da percepçãohumana <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. A “arte <strong>no</strong>va” propor-se-ia a negar o real, a superá-loatravés da retratação artística, o que configuraria uma tendência a racionalizare <strong>de</strong>sumanizar a arte.O que buscariam os artistas <strong>no</strong>vos, seria fugir às representações reais, ouseja, retirar o olhar huma<strong>no</strong> da realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> suas obras. Ortega não chega aformular claramente a tese, mas seu texto parece apontar para a existência <strong>de</strong>8 Ibi<strong>de</strong>m.9ORTEGA Y GASSET, J. “La <strong>de</strong>shumanización <strong>de</strong>l arte”, In: Obras Completas, vol.III, op. cit., p. 355.


134Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153duas dimensões <strong>do</strong> olhar huma<strong>no</strong> sobre a realida<strong>de</strong>, um primeiro olhar queapenas apresenta e <strong>de</strong>screve o real, e um outro olhar que busca interpretaçõese soluções que preten<strong>de</strong>m superar o real.O artista <strong>de</strong> Ortega manifesta sua criação por meio da utilização <strong>de</strong> umaemoção secundária ao simples viver as coisas, é aquele que, por meio da obra<strong>de</strong> arte, triunfa sobre as limitações da condição humana. Este triunfo se constituiriaem criar algo irreal e, ao mesmo tempo, substancial em seu conteú<strong>do</strong>.A <strong>no</strong>va intenção artística enaltecida por Ortega, <strong>de</strong>veria mundificar a idéia,pois realizar a idéia seria o mesmo que realizar o irreal 10 .Ortega acreditava que os “<strong>no</strong>vos artistas”, por meio da realização <strong>de</strong> idéias/projeto em obra-<strong>de</strong>-arte, po<strong>de</strong>riam, e <strong>de</strong>veriam, superar a obra-<strong>de</strong>-arte/caricaturaque, segun<strong>do</strong> ele, havia si<strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvida pelos românticos. Talvez osmo<strong>de</strong>rnistas tenham realmente supera<strong>do</strong> uma certa tendência da <strong>no</strong>vela românticaque caricaturava os comportamentos através <strong>do</strong>s personagens. No entanto,a visão romântica da vida enquanto superação <strong>do</strong>s limites <strong>do</strong> homem –consubstanciada na Espanha pelo mito <strong>do</strong> Quixote – , não parece estar muitodistante <strong>do</strong> <strong>de</strong>sejo orteguia<strong>no</strong> <strong>de</strong> superar a realida<strong>de</strong> circundante através daobra-<strong>de</strong>-arte que <strong>de</strong>nuncie “idéias/projeto”.É <strong>de</strong> se <strong>de</strong>stacar a profunda diferença entre o pensamento orteguia<strong>no</strong> e acrítica tradicional <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rnismo. Enquanto estes últimos criticavam o mo<strong>de</strong>rnismopor seu excessivo apego à estética e pouca consi<strong>de</strong>ração para os problemashuma<strong>no</strong>s, Ortega apontava esta mesma estética como sintoma positivo<strong>de</strong> projeção <strong>de</strong> uma <strong>no</strong>va realida<strong>de</strong>. 11Em seus escritos <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong> 12 já apontava Ortega para essas questões afirman<strong>do</strong>que o político não estaria na palavra usada, mas na intenção <strong>do</strong> poeta. A10Ibi<strong>de</strong>m, p. 376.11 Sobre este tema cabe <strong>de</strong>stacar a bibliografia que compara a produção <strong>do</strong>s mo<strong>de</strong>rnistascom a da geração <strong>de</strong> 1898, cujos conteú<strong>do</strong>s e temas foram partilha<strong>do</strong>s por Ortega. Essesautores apontavam a geração <strong>de</strong> 98 como um grupo preocupa<strong>do</strong> com as questões sociaismais importantes para o homem enquanto os mo<strong>de</strong>rnistas eram reduzi<strong>do</strong>s a preocupações<strong>de</strong> caráter puramente “estetizante”. Cabe citar: DÍAS-PLAJA, G. Mo<strong>de</strong>rnismo frenteal <strong>no</strong>venta y ocho. Madri: Espasa-Calpe, 1966; JESCHKE, H. La generación <strong>de</strong> 1898 enEspaña – Ensayo <strong>de</strong> una <strong>de</strong>terminación <strong>de</strong> su esencia. Santiago <strong>de</strong> Chile: Ediciones <strong>de</strong>la Universidad <strong>de</strong> Chile, s.d.12ORTEGA Y GASSET, J. “Moralejas”, In: Obras Completas, op. cit., vol. I, p. 44-57.


Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153 135palavra seria apenas o instrumento para se trabalhar a matéria da arte. Desumanizara arte estaria em preocupar-se com a idéia e não com a sua manifestação em sig<strong>no</strong>s.Estes se constituiriam <strong>no</strong> huma<strong>no</strong>, <strong>no</strong> particular, <strong>no</strong> sentimento individual. O artista<strong>de</strong>veria procurar os sentimentos universais, além <strong>de</strong> particularismos.Inventar o que não existe. Inventar a partir <strong>do</strong> huma<strong>no</strong>, da contemplação<strong>do</strong>s limites huma<strong>no</strong>s para em seguida superá-los – o instrumento seria a metáfora,não como ornamento, mas como substância. Inventar, seria esta a funçãosocial da arte <strong>no</strong> pensamento orteguia<strong>no</strong>? Em 1904 Ortega afirmava que “laestética es una cuestión política” 13 , po<strong>de</strong>ria trazer em si toda a história <strong>de</strong> umpovo, “el respecto y el amor al pasa<strong>do</strong>” 14 <strong>de</strong> on<strong>de</strong> se po<strong>de</strong>ria retirar “la audacia<strong>de</strong>l pensar científico o artístico” 15 , características que não se encontrariam naarte da Espanha. Ortega jovem queria uma arte cuja função fosse educar eesclarecer o povo. Em “Adán en el Paraíso”, <strong>de</strong> 1910 16 , aprofun<strong>do</strong>u estesapontamentos: a arte possuiria a função universal <strong>de</strong> traduzir as “coisas”, avida e a relação <strong>de</strong> ambas com o homem.Percebe-se uma evolução <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> arte <strong>no</strong> que diz respeito à suafunção social. No primeiro artigo <strong>de</strong> juventu<strong>de</strong> o artista foi apresenta<strong>do</strong> comoum ente nacional, sua função era traduzir um drama nacional por meio <strong>de</strong> suaarte. No artigo <strong>de</strong> 1910, o artista tor<strong>no</strong>u-se um ser universal. Nos <strong>do</strong>is artigosporém, a origem das discussões estéticas encontrava-se <strong>no</strong> problema <strong>de</strong>Espanha – <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>de</strong>corria seu interesse pela obra <strong>de</strong> Zuloaga, diante da qualnão se po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> pensar <strong>no</strong> <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> da Espanha 17 – , a arte era apenasmais um recurso para se problematizar Espanha.Em “La <strong>de</strong>shumanización <strong>de</strong>l arte” <strong>de</strong> 1925, Ortega constatou a existência<strong>de</strong> um artista <strong>no</strong>vo vincula<strong>do</strong> a <strong>de</strong>terminada época histórica e articulou suasidéias como que para compreendê-lo. O artista <strong>no</strong>vo, parecia-lhe, agredia atradição da arte e, por conseqüência, a tradição histórica européia. Esta se tor<strong>no</strong>u,então, a questão central <strong>de</strong> sua conceituação <strong>de</strong> arte: <strong>de</strong>sumanizar a arte,13 I<strong>de</strong>m, “Las fuentecitas <strong>de</strong> Nuremberga”, In: Obras Completas, op. cit., vol. I, p. 425-429.14 Ibi<strong>de</strong>m.15 Ibi<strong>de</strong>m.16 I<strong>de</strong>m, “Adán en el Paraíso”, In: Obras Completas, op. cit., vol. I, p. 473-493.17 I<strong>de</strong>m, “Una exposición Zuloaga?”, In: Obras Completas, op. cit., vol. I, p. 139-141.


136Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153querer <strong>de</strong>struir a tradição da arte – que lhe fora tão cara <strong>no</strong>s primeiros a<strong>no</strong>s <strong>de</strong>estu<strong>do</strong>s na Institución Libre <strong>de</strong> Enseñanza – , não seria uma forma <strong>de</strong> negar opassa<strong>do</strong> europeu e seus produtos sociais? Ao mesmo tempo em que fazia estapergunta, Ortega enaltecia a “arte <strong>no</strong>va”, o que permite indagar se o seu <strong>de</strong>sejomaior não seria exatamente o <strong>de</strong> conferir à arte o caráter político <strong>de</strong> negaçãoda realida<strong>de</strong> européia daqueles a<strong>no</strong>s 20.A “arte <strong>no</strong>va” interessava a Ortega porque lhe parecia manifestar-se, e <strong>de</strong>fato assim o era, a partir <strong>de</strong> uma constatação política que não aceitava a organizaçãosocial da Europa tal como se encontrava naquele início <strong>de</strong> século epor isso tentava superá-la artisticamente.É possível uma relação dialética em que a arte exista através da negaçãoe da continuida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sua própria historicida<strong>de</strong>? Ao mesmo tempo em que teciaelogios à “arte <strong>no</strong>va”, na qual enxergava uma vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir a tradição,Ortega inseria esta mesma arte <strong>no</strong> que consi<strong>de</strong>rava ser o seu verda<strong>de</strong>irocaminho histórico: a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> estilo, a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> criar algo <strong>no</strong>vo <strong>de</strong> fato,algo volta<strong>do</strong> para o futuro. Assim como a “arte <strong>no</strong>va” pretendia recolocar aarte em seu caminho histórico, os europeus também <strong>de</strong>veriam buscar reencontraro verda<strong>de</strong>iro caminho <strong>de</strong> sua História política e social projetan<strong>do</strong> aformação <strong>do</strong> “bloco histórico” 18 em que se constituíra originalmente a Europa.A solução orteguiana segun<strong>do</strong> a qual ruptura e continuida<strong>de</strong> estariam emrelação <strong>de</strong> complementarida<strong>de</strong> <strong>no</strong> momento <strong>de</strong> constituição da obra-<strong>de</strong>-arte,<strong>de</strong>nuncia, na verda<strong>de</strong>, a ambigüida<strong>de</strong> básica <strong>do</strong> seu pensamento sobre se aEspanha <strong>de</strong>veria abrir-se para a Europa, conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>, ou fechar-se<strong>no</strong> tradicionalismo, conteú<strong>do</strong> <strong>do</strong> atraso. Tal era, também, a ambigüida<strong>de</strong> básicada História contemporânea espanhola que vinha <strong>no</strong>rtean<strong>do</strong> os <strong>de</strong>bates intelectuais<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a constituição das Cortes <strong>de</strong> Cádiz e <strong>do</strong> influxo <strong>do</strong>s pensa<strong>do</strong>reskrausistas na primeira meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong>. Se <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, a ambigüida<strong>de</strong><strong>do</strong> solo histórico caracteriza um pensamento cheio <strong>de</strong> tensões e anti<strong>no</strong>mias,<strong>de</strong> outro la<strong>do</strong>, tais tensões <strong>do</strong> pensamento refletem a falta <strong>de</strong> solução para aconvivência entre o “atraso” e a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> presente na socieda<strong>de</strong> espanhola.O texto <strong>de</strong> 1925 <strong>de</strong>finiu, <strong>de</strong>ssa forma, o caráter político da arte e, porextensão, da cultura enquanto elemento <strong>de</strong> problematização e superação da18O termo “bloco histórico” não foi utiliza<strong>do</strong> por Ortega. O autor apenas reporta-se à realida<strong>de</strong>cultural que, segun<strong>do</strong> ele, caracterizaria a vida européia <strong>no</strong> oci<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> continente.


Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153 137circunstância em que se está inseri<strong>do</strong>. Caberia, então, indagar <strong>de</strong> Ortega se asua concepção <strong>de</strong> arte po<strong>de</strong>ria ser aproximada das teses <strong>de</strong> Lukács, críticodaquela arte que apenas fotografa a realida<strong>de</strong> 19 .Sem dúvida, os <strong>do</strong>is autores aproximam-se em duas questões fundamentais:preocupam-se com o crescimento das tendências políticas e artísticas queacabam por adulterar a integrida<strong>de</strong> humana <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>-se levar pelos ventosque o capitalismo seguia nas primeiras décadas <strong>do</strong> século XX 20 . Além disso,foram profundamente influencia<strong>do</strong>s pela condição <strong>de</strong> atraso <strong>de</strong> seus respectivospaíses, especialmente <strong>no</strong> que diz respeito à constituição <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong> liberalancora<strong>do</strong> em porta<strong>do</strong>res sociais <strong>do</strong> discurso produzi<strong>do</strong> pela burguesia <strong>no</strong><strong>de</strong>correr <strong>de</strong> sua ascensão aos po<strong>de</strong>res públicos entre os séculos <strong>XVIII</strong> e <strong>XIX</strong>.É sempre bom também lembrar os estu<strong>do</strong>s alemães <strong>do</strong>s <strong>do</strong>is autores em suasrespectivas fases jovens, durante os a<strong>no</strong>s <strong>de</strong>z <strong>de</strong>ste século. Nas universida<strong>de</strong>salemãs <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século concentravam-se intelectuais marca<strong>do</strong>s pelopensamento <strong>de</strong> Georg Simmel segun<strong>do</strong> o qual o capitalismo teria se constituí<strong>do</strong>sob a égi<strong>de</strong> da transformação <strong>do</strong> trabalho huma<strong>no</strong> em merca<strong>do</strong>ria, tornan<strong>do</strong>seestranho ao homem. Tal transformação teria como principal manifestaçãoa tragédia da cultura, “a alienação da cultura objetiva em relação à culturasubjetiva, o avanço da cultura das coisas e o <strong>de</strong>clínio da cultura das pessoas.” 21Mas <strong>de</strong>stas premissas chegamos a soluções e projetos bastante diferencia<strong>do</strong>s.Vejamos o que afirma Lukács:“(...) qualquer tomada <strong>de</strong> consciência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> exterior não é outracoisa senão o reflexo da realida<strong>de</strong>, que existe in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente daconsciência, nas idéias, representações, sensações, etc., <strong>do</strong>s homens.” 22“A verda<strong>de</strong>ira arte visa o maior aprofundamento e compreensão. (...)apreen<strong>de</strong> exatamente aquele processo dialético vital pelo qual a essênciase transforma em fenôme<strong>no</strong>, se revela <strong>no</strong> fenôme<strong>no</strong>, fixan<strong>do</strong>, tam-19LUKÁCS, G. Ensaios sobre Literatura. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Civilização <strong>Brasil</strong>eira, 1965.20 Do ponto <strong>de</strong> vista político, os <strong>do</strong>is autores discutiram o significa<strong>do</strong> da ascensão <strong>do</strong>sfascismos e <strong>do</strong> movimento sindical <strong>no</strong> início <strong>do</strong> século. No que diz respeito à produçãocultural ambos <strong>de</strong>bateram o crescimento das interpretações irracionalistas da História eas relações entre forma e conteú<strong>do</strong> na produção artística.21 LOWY, M. A evolução política <strong>de</strong> Lukács: 1909-1929. São Paulo: Cortez, 1998, p. 59.22 LUKÁCS, G. Ensaios sobre literatura, op. cit., p. 24-25.


138Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153bém, aquele aspecto <strong>do</strong> mesmo processo segun<strong>do</strong> o qual o fenôme<strong>no</strong>manifesta, na sua mobilida<strong>de</strong>, a sua própria essência.” 23Definin<strong>do</strong> a narrativa como expressão <strong>de</strong>ssa convergência e mútua <strong>de</strong>terminaçãodialética entre a essência e o fenôme<strong>no</strong>, Lukács pô<strong>de</strong>, analisan<strong>do</strong> a Literatura<strong>do</strong> século <strong>XIX</strong>, especialmente as características assumidas pelo romance,<strong>de</strong>monstrar a epopéia burguesa que, da conquista <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> público, on<strong>de</strong> odiscurso em favor das liberda<strong>de</strong>s e da igualda<strong>de</strong> espalhava-se pelo gran<strong>de</strong> mun<strong>do</strong>,acabou por encerrar-se <strong>no</strong> peque<strong>no</strong> mun<strong>do</strong> das conquistas particulares aolongo <strong>do</strong>s a<strong>no</strong>s em que se fortaleceu e expandiu a política imperialista.Utilizan<strong>do</strong>-se <strong>de</strong>ssa conceituação <strong>de</strong> narrativa Lukács estabeleceu uma críticaao naturalismo em Literatura, cuja preocupação estética maior era revelaros meandros da superfície <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> vivi<strong>do</strong>, e às tendências artísticas que <strong>de</strong>fendiamo extremo oposto: a auto<strong>no</strong>mia das “formas artísticas sobre o real”.Para Ortega a simples observação da realida<strong>de</strong> correspon<strong>de</strong>ria, parece<strong>no</strong>s,àquela primeira dimensão <strong>do</strong> olhar huma<strong>no</strong> sobre a realida<strong>de</strong> e, nestesenti<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>mos afirmar que os <strong>do</strong>is autores são críticos <strong>do</strong>s romances naturalistas.O pensa<strong>do</strong>r espanhol, porém, mesmo não advogan<strong>do</strong> a total in<strong>de</strong>pendênciadas formas artísticas sobre o real, acaba por admitir, e mesmo por sugerir,que o artista consiga separar-se da realida<strong>de</strong> vivida para propor uma <strong>no</strong>va realida<strong>de</strong>.Já Lukács esforça-se por <strong>de</strong>monstrar o quão distante <strong>do</strong> i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> confrontaro homem com seus pares e <strong>de</strong>bater a condição humana estão as vanguardasartísticas <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século. 24Ortega traz para o primeiro pla<strong>no</strong> <strong>de</strong> sua argumentação a negação da realida<strong>de</strong>tal como ela se encontrava naquelas primeiras décadas <strong>do</strong> século. Comopensa<strong>do</strong>r liberal vincula<strong>do</strong> à tradição iluminista que não aceitava as conquistas23Ibi<strong>de</strong>m, p. 28-29.24Sobre as teses lukacsianas acerca <strong>do</strong> fim das gran<strong>de</strong>s narrativas e suas críticas ás “narrativasfragmenta<strong>do</strong>ras” é interessante ler o texto <strong>de</strong> Jeanne-Marie GAGNEBIN, “Lukácse a crítica da cultura”, In: ANTUNES, Ricar<strong>do</strong> e REGO, W. L. (orgs.) Lukács – Um Galileu<strong>no</strong> século XX. São Paulo: Boitempo, 1996, pp. 91-96. A autora reflete sobre a polêmica<strong>de</strong> Lukács com Benjamin e indaga <strong>de</strong> maneira sugestiva: “(...) criticar o real, criticar acultura, talvez signifique também criticar as pretensões <strong>de</strong> universalida<strong>de</strong> e <strong>no</strong>rmativida<strong>de</strong><strong>de</strong> <strong>no</strong>ssos discursos: não para abrir a porta ao irracionalismo ou a um retivismo <strong>de</strong>senfrea<strong>do</strong>,mas para ter a paciência <strong>de</strong> perceber como o <strong>de</strong>talhe, o particular, o a<strong>no</strong>rmal, oestranho, o estrangeiro, po<strong>de</strong>m colocar em questão as <strong>no</strong>rmas e as totalida<strong>de</strong>s em questão.”(GAGNEBIN, op. cit., p. 96.)


Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153 139da <strong>de</strong>mocracia <strong>de</strong> massas <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong>, o autor organiza uma crítica da civilizaçãoem função da situação social e política <strong>do</strong> oci<strong>de</strong>nte naquele momento,mais ainda, Ortega preocupa-se com o que <strong>de</strong><strong>no</strong>mina <strong>de</strong> crise da culturaoci<strong>de</strong>ntal 25 . Era a cultura, enquanto elemento or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r e aglutina<strong>do</strong>r da vidasocial que estava colocada em discussão. Por isso a arte <strong>no</strong>va das vanguardas<strong>do</strong> início <strong>do</strong> século era-lhe tão cara: <strong>no</strong> seu enten<strong>de</strong>r, essas manifestações artísticaspartiam da circunstância para compor, mas superavam esta mesma circunstância<strong>no</strong>s resulta<strong>do</strong>s <strong>de</strong> sua produção artística. É <strong>no</strong>s resulta<strong>do</strong>s artísticosque Ortega encontra projetos <strong>de</strong> futuro para a Europa, embora não tenha explicita<strong>do</strong>quais fossem esses projetos.Lukács, parece-<strong>no</strong>s, argumentaria que esta segunda dimensão <strong>do</strong> olharhuma<strong>no</strong>, que Ortega reputa como a verda<strong>de</strong>ira arte, é impossível, posto que ovalor estético da obra <strong>de</strong> arte estaria, exatamente, na sua unida<strong>de</strong> com o processohistórico <strong>do</strong> qual ela não po<strong>de</strong> ser separada. Qualquer projeto que sequeira <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> uma obra <strong>de</strong> arte é, antes <strong>de</strong> tu<strong>do</strong>, resulta<strong>do</strong> daquela unida<strong>de</strong>que <strong>de</strong>fine a gran<strong>de</strong>za e o valor da obra 26 . No primeiro pla<strong>no</strong> da argumentaçãolukacsiana encontra-se, portanto, a unida<strong>de</strong> indissolúvel entre o valorestético e o processo histórico a partir <strong>do</strong> qual o artista compõe sua obra. Nestalógica, as vanguardas <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século representariam manifestações i<strong>de</strong>alistas<strong>de</strong> artistas que não possuem uma concepção <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> clara que lhespossa fornecer o terre<strong>no</strong> fértil e sóli<strong>do</strong> para a produção verda<strong>de</strong>iramente artística.Nesta conceituação i<strong>de</strong>alista se encontraria, também, parece-<strong>no</strong>s, a argumentaçãoorteguiana. Note-se como Lukács <strong>de</strong>fine o artista:“(...) o gran<strong>de</strong> artista não representa coisas ou situações estáticas, esim investiga a direção e o rumo <strong>do</strong>s processos, cumpre-lhe, comoartista, <strong>de</strong>finir o caráter <strong>de</strong> tais processos.” 27“O escritor precisa ter uma concepção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> inteiriça e amadurecida,precisa ver o mun<strong>do</strong> na sua contraditorieda<strong>de</strong> móvel, para selecionarcomo protagonista um ser huma<strong>no</strong> em cujo <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> se cruzemos contrários.” 2825ADORNO & HORKHEIMER Dialética <strong>do</strong> esclarecimento. São Paulo: Zahar, 1985, p. 15.26LUKÁCS, G. op. cit., p. 41-42.27Ibi<strong>de</strong>m, p. 33-34.28Ibi<strong>de</strong>m, p. 78-80.


140Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153O escritor, e por extensão o artista lukacsia<strong>no</strong>, triunfa sobre a realida<strong>de</strong>quan<strong>do</strong> produz uma obra capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>svendá-la, o artista orteguia<strong>no</strong> triunfasobre a realida<strong>de</strong> quan<strong>do</strong> consegue elaborar como que uma alterida<strong>de</strong> da própriarealida<strong>de</strong>. Note-se que Lukács também aponta certo distanciamento necessárioao gran<strong>de</strong> narra<strong>do</strong>r para operar uma seleção <strong>de</strong> elementos essenciaisna composição da obra <strong>de</strong> arte, mas este distanciamento é resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> umapráxis e incorpora o processo histórico à produção artística.O olhar exter<strong>no</strong> à realida<strong>de</strong> a que se refere Ortega vincula-se ao que o autor<strong>de</strong><strong>no</strong>mina <strong>de</strong> reabsorção da circunstância. A negação da realida<strong>de</strong> presente naobra-<strong>de</strong>-arte é que vai configurar tal reabsorção na medida em que <strong>de</strong>sperta osleitores para sua circunstância e para as urgências por ela colocadas. JuliánMarías comenta o conceito <strong>de</strong> reabsorção formula<strong>do</strong> por Ortega:“La rebsorción <strong>de</strong> la circunstancia consiste en su humanización, en suincorporación a esse proyecto <strong>de</strong>l hombre; es <strong>de</strong>cir éste se hace a símismo com las cosas que le están ofrecidas, hace com ellas vida, lasasume proyectán<strong>do</strong>les senti<strong>do</strong>, significación, lógos, en suma. El <strong>de</strong>sti<strong>no</strong><strong>de</strong>l hombre, <strong>de</strong> cada hombre, cuan<strong>do</strong> es fiel a su situación, es <strong>de</strong>cir, su<strong>de</strong>sti<strong>no</strong> concreto y circunstancial, es imponer a lo real su proyecto personal,dar senti<strong>do</strong> a lo que por sí solo <strong>no</strong> lo tiene, extraer el lógos a loinerte, brutal e ilógico, converter eso que simplesmente hay en tor<strong>no</strong><strong>de</strong> mi (circunstancia) en verda<strong>de</strong>ro mun<strong>do</strong>, en su vida personal.” 29Assim, segun<strong>do</strong> Ortega, por meio <strong>do</strong> olhar exter<strong>no</strong> o homem <strong>de</strong>sumanizasua circunstância e sua produção artística, este seria o momento da concepção<strong>do</strong> projeto. A humanização da circunstância e da produção artística seria omomento da projeção pública das <strong>no</strong>vas propostas. Po<strong>de</strong>mos afirmar, acompanhan<strong>do</strong>o raciocínio <strong>de</strong> Ortega, que a obra <strong>de</strong> arte aparece como um filtro<strong>no</strong> qual se materializa uma intenção pública <strong>de</strong> um autor. Ela po<strong>de</strong> significara reabsorção <strong>do</strong> projeto manifesto na obra pela circunstância por meio da atitu<strong>de</strong><strong>do</strong>s leitores frente ao herói apresenta<strong>do</strong> em um romance, ao personagemou à situação social sugerida por um quadro, etc. D. Quixote, neste senti<strong>do</strong>,seria a maior experiência espanhola <strong>de</strong> reabsorção da circunstância em seu29MARÍAS, J. Ortega - Circunstancia y vocación. Madri, Alianza Editorial, 1984, p.400-401.


Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153 141momento <strong>de</strong> <strong>de</strong>sumanização e humanização: Cervantes apresentou um conceitoe um projeto <strong>de</strong> Espanha emblema<strong>do</strong>s na metáfora <strong>do</strong> Cavaleiro da TristeFigura. Talvez, por ter conferi<strong>do</strong> este significa<strong>do</strong> à obra cervantina, é queOrtega <strong>de</strong><strong>no</strong>mi<strong>no</strong>u <strong>de</strong> Meditaciones <strong>de</strong>l Quijote seu primeiro livro, texto <strong>no</strong>qual preten<strong>de</strong>u analisar uma série <strong>de</strong> “circunstâncias“ espanholas, entre asquais a produção literária <strong>de</strong> Baroja e Azorín.As atitu<strong>de</strong>s <strong>de</strong> <strong>de</strong>sumanizar e humanizar a circunstância só seriam possíveispara aqueles homens com vocação para assumir seu próprio <strong>de</strong>sti<strong>no</strong>. Novamenteaqui a distinção entre homem e homem-massa aparece como fundamentalpara compreen<strong>de</strong>r as formulações orteguianas. O homem-massa não possuia consciência da sua circunstância, não seria capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>sumanizá-la, por isso eletambém não compreen<strong>de</strong> a produção artística da chamada arte <strong>no</strong>va, ele se contentacom a visão material e concreta da realida<strong>de</strong>, sugerida pelos românticos <strong>no</strong> enten<strong>de</strong>r<strong>de</strong> Ortega. Por isso, também, a arte <strong>no</strong>va sequer se <strong>de</strong>stina às massas, ela se <strong>de</strong>stinaàs elites intelectuais capazes <strong>de</strong> efetivar as <strong>no</strong>vas propostas. Em Lúkács esta é amais criticável das características das vanguardas artísticas: a arte <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> serum elemento <strong>de</strong> humanização quan<strong>do</strong> seus conteú<strong>do</strong>s distanciam-se <strong>do</strong> solohistórico em que é produzida operan<strong>do</strong> uma separação entre estética e processohistórico. Ao romancista lukacsia<strong>no</strong> caberia refletir a trajetória <strong>do</strong>s homens emsuas relações sociais, <strong>de</strong>svendá-la e, <strong>de</strong>ssa forma, apontar para um maior <strong>de</strong>senvolvimentohuma<strong>no</strong>. Tal proposta ancora-se na <strong>de</strong>fesa radical <strong>do</strong> lega<strong>do</strong> histórico dahumanida<strong>de</strong> que, muitas vezes, encontrava-se em franca contradição com a “disponibilida<strong>de</strong>para o <strong>no</strong>vo na fruição da arte” 30 .Mas, será possível um olhar exter<strong>no</strong> da forma como Ortega sugere? Mesmo<strong>de</strong>ntro da lógica interna <strong>do</strong> seu pensamento po<strong>de</strong>ríamos opor a questão: comoproferir um olhar exter<strong>no</strong> sobre a circunstância se o próprio pensar é caracteriza<strong>do</strong>pelo autor como circunstancialização? Ortega talvez objetasse que o<strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> superar a circunstância seria uma forma <strong>de</strong> enfrentá-la e não <strong>de</strong>abstrair-se <strong>de</strong>la. Mas <strong>de</strong> qualquer forma restaria a indagação: a produção artísticanão teria que estar ancorada em uma visão <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>? Sim, e para tanto,ela não po<strong>de</strong> prescindir <strong>do</strong>s necessários nexos entre a essência e o fenôme<strong>no</strong>presentes nela. A passagem da obra <strong>de</strong> arte como pedagogia social para a arte30KONDER, L., “Estética e política cultural”, In: Ricar<strong>do</strong> ANTUNES e W. L. REGO(orgs.), Lukács – um Galileu <strong>no</strong> século XX. São Paulo: Boitempo, 1996, p. 28.


142Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153como distanciamento da realida<strong>de</strong> negada em seu texto, não resolveu o problemadas relações entre a visão <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> artista e as formas <strong>de</strong> representaçãoartística escolhidas exatamente porque, para Ortega, o primeiro argumentopolítico e cultural daquele início <strong>de</strong> século <strong>de</strong>veria ser a negação darealida<strong>de</strong> que havia produzi<strong>do</strong> os movimentos sindicais, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, e o fascismo,<strong>de</strong> outro. Desta forma, contra o artista que refletia em sua obra as contradições<strong>de</strong> uma realida<strong>de</strong> cujos produtos sociais apontavam para enfrentamentossociais e para o crescimento <strong>do</strong>s movimentos populares, ele afirmava a idéia <strong>de</strong>que não produzia verda<strong>de</strong>ira arte. O artista encontra-se <strong>no</strong> grupo <strong>do</strong>s intelectuaisque, <strong>no</strong> enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Ortega, tinham a dupla função <strong>de</strong> <strong>de</strong>codificar a circunstânciapara a massa e sugerir sua alteração em um projeto político <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>.Retornamos, assim, ao tema das anti<strong>no</strong>mias, ou tensões, como se queira,<strong>do</strong> pensamento orteguia<strong>no</strong>. Cabe, então, tentar avançar <strong>de</strong>sta constatação parauma possível explicação.O autor, sua obra e sua visão <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>Ortega expressava, em sua visão <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>, um profun<strong>do</strong> <strong>de</strong>scontentamentocom os rumos políticos e sociais da Espanha e da Europa. Seu projeto políticomaior foi a regeneração espanhola por meio <strong>de</strong> uma pedagogia social voltada paraa formação <strong>de</strong> elites dirigentes e que pu<strong>de</strong>sse levar o país a superar seu atraso frenteao processo político e cultural <strong>do</strong>s países centrais da Europa, especialmente aAlemanha e a Inglaterra. Essa proposta <strong>de</strong> regeneração tinha por base a concepção<strong>de</strong> que a Europa oci<strong>de</strong>ntal possuía elementos culturais comuns que sustentariama formação <strong>de</strong> uma só Europa. Regenerar a Espanha, ou vertebrar em outras palavras,e unificar a Europa, estes os <strong>do</strong>is pilares que ancoravam seu projeto político.Neste senti<strong>do</strong>, toda sua produção intelectual objetivava <strong>de</strong>monstrar o significa<strong>do</strong>histórico <strong>de</strong>ste projeto. Daí sua preocupação em fundamentar suas teses em <strong>do</strong>ispontos básicos: primeiro, a divisão social entre homens, capacita<strong>do</strong>s para oexercício <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r público, e massas, relegadas à condição <strong>de</strong> segui<strong>do</strong>ras <strong>do</strong>s gruposilumina<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> on<strong>de</strong> <strong>de</strong>corre sua especial atenção ao papel <strong>do</strong>s intelectuaisem socieda<strong>de</strong>s consi<strong>de</strong>radas atrasadas; segun<strong>do</strong>, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um conjunto<strong>de</strong> usos e costumes que permitam à socieda<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar-se como tal, em outraspalavras, a existência <strong>de</strong> um conjunto cultural que opere como referencial parato<strong>do</strong>s os grupos sociais que compõem a nação.Seria possível encontrar um eixo <strong>de</strong> análise <strong>no</strong> qual a produção orteguianareflita, tal como a <strong>de</strong> Thomas Mann <strong>no</strong> enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Lukács, as agruras <strong>de</strong> um país


Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153 143cuja única via <strong>de</strong> acesso para a construção <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> liberal tenha si<strong>do</strong> a viaprussiana, a via que nega os princípios originários <strong>do</strong> próprio liberalismo? Vejamos.Ortega, como homem político e narra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> seu tempo, não conseguiuresolver o problema <strong>do</strong> atraso espanhol <strong>no</strong> âmbito da sua produção intelectual.O atraso, visto como <strong>de</strong>serção das elites <strong>no</strong> que diz respeito à gestão <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>respúblicos e à elaboração <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong> futuro para o país, teria comosolução a formação <strong>de</strong> <strong>no</strong>vas elites intelectuais capazes <strong>de</strong> exercer o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>forma a construir uma Espanha afinada com o que o autor <strong>de</strong><strong>no</strong>minava <strong>de</strong>“nível cultural europeu”. Tal intenção não se realizou, mesmo com os esforçosda Liga <strong>de</strong> Educación Política espanhola. No âmbito <strong>de</strong> sua atuação políticame<strong>no</strong>s ainda, o grupo <strong>de</strong> 1913 ao qual pertenciam a maioria <strong>do</strong>s republica<strong>no</strong>s<strong>de</strong> linha liberal conserva<strong>do</strong>ra como Ortega, participou <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> construçãoda república espanhola após 1930 por poucos a<strong>no</strong>s e o <strong>no</strong>sso autor acaboupor abrigar-se <strong>no</strong> seio <strong>de</strong> sua produção intelectual. Os projetos <strong>de</strong> linha socialistae ditatorial mostraram-se mais competentes na tarefa <strong>de</strong> encontrar porta<strong>do</strong>ressociais para os seus respectivos discursos.Lukács <strong>no</strong>s apresenta um Thomas Mann preocupa<strong>do</strong> com a experiência<strong>do</strong> isolamento <strong>do</strong> indivíduo resultante da evolução da socieda<strong>de</strong> burguesa soba or<strong>de</strong>m imperialista:“(...) o que em Schiller era o simples reflexo <strong>do</strong> atraso alemão, da imaturida<strong>de</strong>objetiva e subjetiva da Alemanha para uma transformação <strong>de</strong>mocrática,possui hoje (momento em que Mann escreve) um acento inteiramente<strong>no</strong>vo, o da incredulida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sconfiança na ativida<strong>de</strong> das massas,nas possibilida<strong>de</strong>s cria<strong>do</strong>ras que provêm <strong>de</strong> baixo.” 31Mann é autor <strong>de</strong> um tempo em que o indivíduo, subsumi<strong>do</strong> <strong>no</strong> âmbito daatuação das massas, não encontra espaço para <strong>de</strong>senvolver idéias e praticar asregras <strong>do</strong> jogo <strong>de</strong>mocrático. É neste contexto que a via prussiana adquire viabilida<strong>de</strong>social posto que os postula<strong>do</strong>s <strong>de</strong>mocráticos não constituíram nenhum “gran<strong>de</strong>mun<strong>do</strong>” autóctone na Alemanha pós 1848. Da mesma forma, é neste contextoque o intelectual enclausura-se <strong>no</strong> seu peque<strong>no</strong> estúdio <strong>de</strong> feitiçarias.31LUKÁCS, G., op. cit., p. 188-90.


144Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153“O estúdio <strong>do</strong> <strong>no</strong>vo Fausto (...) visto <strong>do</strong> exterior, parece bem mais hermeticamentefecha<strong>do</strong> ao exter<strong>no</strong> mun<strong>do</strong> social; porém, na realida<strong>de</strong>,ele é um laboratório <strong>de</strong> feitiçarias, <strong>no</strong> qual todas as tendências perniciosasda época são refinadas até sua expressão mais concentrada. (...) Nopeque<strong>no</strong> mun<strong>do</strong> <strong>de</strong>ste estúdio está contida a quintessência <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>que a espiritualida<strong>de</strong> alemã possui na sua ‘interiorida<strong>de</strong> à sombra <strong>do</strong>po<strong>de</strong>r’, na sua compreensão <strong>de</strong> si, (...). Este estúdio é o sucedâneo <strong>do</strong>gran<strong>de</strong> mun<strong>do</strong> da intelectualida<strong>de</strong> alemã <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> imperialista.” 32A universalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> texto mannia<strong>no</strong> estaria <strong>no</strong> fato <strong>de</strong> que a crise da <strong>de</strong>mocracianão era apenas alemã, era universal, pois engendrou críticas à <strong>de</strong>mocracia, oposiçãoà <strong>de</strong>mocracia e a problematização interna ao discurso <strong>de</strong>mocrático mesmo. A<strong>de</strong>mocracia acaba sen<strong>do</strong> responsabilizada, inclusive, e tal é o discurso orteguia<strong>no</strong>,pela <strong>de</strong>cadência da Europa oci<strong>de</strong>ntal 33 <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século. No caso alemão, e porextensão, acreditamos, <strong>no</strong> caso espanhol, o atraso na constituição <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> liberaljustificaria a maior radicalida<strong>de</strong> com que a crise é enfrentada e, mesmo, as propostas<strong>de</strong> inversão total <strong>do</strong>s valores <strong>de</strong>mocráticos, especialmente os fascismos.Note-se, porém, que Lukács <strong>de</strong>fine o texto mannia<strong>no</strong> como característicodaquele movimento intelectual <strong>do</strong> gran<strong>de</strong> mun<strong>do</strong> das barricadas para o peque<strong>no</strong>mun<strong>do</strong> <strong>do</strong> estúdio e, mais ainda, o texto mannia<strong>no</strong> parece ser crítico <strong>de</strong>sta tendênciapois se bate contra a perda da individualida<strong>de</strong> <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> da ação social.A <strong>de</strong>sumanização, entendida como encerramento <strong>no</strong> estúdio e como “dissolução<strong>do</strong> gran<strong>de</strong> mun<strong>do</strong>”, que caracterizaria a produção intelectual e artística<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> era vista por Mann, e mesmo por Lukács, como barbárie.Ortega utiliza-se da percepção <strong>de</strong>sta <strong>de</strong>sumanização para construir um conceitopositivo <strong>de</strong> arte, aquele em que a arte teria por função afastar-se <strong>do</strong> realpara buscar sua alteração. Mann, ao contrário, e daqui Lukács constrói suacrítica às vanguardas mo<strong>de</strong>rnistas, enxerga sua época como <strong>de</strong>sfavorável à arteexatamente porque para realizá-la seria necessário “romper resoluta e ativamente”com o tempo vivi<strong>do</strong>.32 Ibi<strong>de</strong>m, p. 195.33Na análise culturalista <strong>de</strong> Ortega tal crise ancora-se na perda <strong>do</strong>s valores funda<strong>do</strong>res<strong>do</strong> oci<strong>de</strong>nte, a saber, a “concórdia” e a “vida como liberda<strong>de</strong>”. Veja-se: Ana Lúcia LanaNEMI, “As bases culturais da oci<strong>de</strong>ntalização <strong>no</strong> pensamento <strong>de</strong> José Ortega y Gasset ea influência <strong>de</strong> suas idéias na República brasileira <strong>do</strong>s a<strong>no</strong>s 20 e 30”, In: Revista Ciênciae Trópico, Volume 24, nº 02, Jul./Dez. <strong>de</strong> 1996, p. 359-383.


Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153 145O isolamento <strong>do</strong> indivíduo tem, para Ortega, uma leitura negativa namedida em que <strong>de</strong>nuncia a ascensão das massas ao cenário político espanhole europeu. Não era possível ao indivíduo viver e expressar a sua individualida<strong>de</strong>porque o “sobera<strong>no</strong>” estaria sempre a cobrar a conivência <strong>do</strong> indivíduo paracom o interesse coletivo. De outro la<strong>do</strong>, Ortega consi<strong>de</strong>ra o momento vivi<strong>do</strong>pela sua geração como <strong>de</strong> “elevação <strong>do</strong> nível histórico” 34 e, como tal, sugereelementos positivos a serem analisa<strong>do</strong>s. Em sua conceituação <strong>de</strong> arte o elementopositivo da Europa <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século fica claro: o isolamento seria acondição necessária para a negação da realida<strong>de</strong>, postura fundamental em seupensamento. Na condição <strong>de</strong> isolamento o intelectual po<strong>de</strong>ria projetar outra“circunstância” reabsorven<strong>do</strong> a sua própria.Na análise que Lukács <strong>no</strong>s oferece <strong>de</strong> Mann, o isolamento seria a indicaçãoda impossibilida<strong>de</strong> da arte e da atuação pública <strong>do</strong>s intelectuais. No âmbitoda obra <strong>de</strong> Mann, anulam-se os vínculos entre a socieda<strong>de</strong> e o próprio texto.Mesmo quan<strong>do</strong> busca uma síntese entre fenôme<strong>no</strong> retrata<strong>do</strong> e essência discutidao autor encontra apenas <strong>de</strong>composição e esfacelamento. Tal busca <strong>de</strong> sínteseatinge seu ápice quan<strong>do</strong> chega a ser busca da or<strong>de</strong>m a qualquer custo,este é o momento da quebra <strong>de</strong> qualquer possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> constituição <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong> liberal. Também para Ortega, a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> evitar a ascensão<strong>do</strong>s movimentos políticos vincula<strong>do</strong>s às massas aponta a impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>constituir um Esta<strong>do</strong> liberal na Espanha. 35“Esta aspiração à or<strong>de</strong>m e à síntese, que nasce da mo<strong>de</strong>rna <strong>de</strong>sagregação<strong>do</strong> individualismo, mas que permanece puramente subjetiva, chegaassim a aflorar continuamente, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista conceitual e i<strong>de</strong>ológico,aquelas tendências que conduzem ao reforçamento da reaçãoimperialista. Ou antes, diretamente: ao fascismo. Nisto se manifesta aimanente predisposição da arte mo<strong>de</strong>rna, como síntese formal, às i<strong>de</strong>ologiasreacionárias da época.” 3634ORTEGA Y GASSET, José. A Rebelião das Massas. São Paulo: Martins Fontes, 1989, p. 43-50.35O termo “quebra <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> liberal” foi cunha<strong>do</strong> por Fernan<strong>do</strong> ARIEL <strong>de</strong>l VAL emHistoria e ilegitimidad. La quiebra <strong>de</strong>l esta<strong>do</strong> liberal en Ortega, Madri, Editorial <strong>de</strong> laUniversidad Complutense, 1984. Neste texto o autor procura <strong>de</strong>monstrar exatamente esteprocesso por meio <strong>do</strong> qual o pensamento orteguia<strong>no</strong> caminha <strong>no</strong> senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> negar asconquistas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> liberal em função da urgência <strong>de</strong> garantir a or<strong>de</strong>m ou, em outraspalavras, evitar a efetivação <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r sobera<strong>no</strong> – entendi<strong>do</strong> por Ortega como o po<strong>de</strong>rque seria exerci<strong>do</strong> pelas esquerdas.36 LUKÁCS, G., op. cit., p. 203.


146Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153Da mesma forma que a trajetória <strong>do</strong>s personagens <strong>de</strong> Mann indica uma“i<strong>de</strong>ntificação passiva” com a ascensão <strong>do</strong>s movimentos reacionários queimporiam a “or<strong>de</strong>m a qualquer custo”, o silêncio e o exílio voluntário <strong>de</strong> Ortegaapós a vitória franquista também po<strong>de</strong> ser interpreta<strong>do</strong> como “falta <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa”diante <strong>do</strong>s movimentos reacionários que <strong>do</strong>minaram a Espanha e parte da Europa<strong>do</strong> perío<strong>do</strong>. Na “atmosfera intimista” <strong>do</strong> seu peque<strong>no</strong> mun<strong>do</strong>, Ortega abstevese<strong>de</strong> enfrentar o regime <strong>de</strong> Franco 37 . Mas é exatamente <strong>de</strong>ste encerramento <strong>no</strong>peque<strong>no</strong> mun<strong>do</strong> que <strong>de</strong>corre a impotência <strong>do</strong>s intelectuais para o exercício <strong>de</strong>qualquer função pública naqueles conturba<strong>do</strong>s a<strong>no</strong>s das três primeiras décadas<strong>de</strong>ste século. O peque<strong>no</strong> mun<strong>do</strong> abre todas as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> “feitiçaria”:projetos, teorias, análises, experiências, racionalismos e irracionalismos, etc.,mas nenhuma encontra eco <strong>no</strong> <strong>no</strong>vo mun<strong>do</strong> que estava sen<strong>do</strong> gesta<strong>do</strong> poisnenhuma é resulta<strong>do</strong> <strong>de</strong> práxis social. Mas, há que se ressaltar, Ortega, aocontrário <strong>de</strong> Lukács, nunca <strong>de</strong>ixou muito claro seu posicionamento frente aosfascismos. Embora tenha escrito contra os fascismos 38 , admitia a hipótese <strong>de</strong>ascensão política <strong>de</strong>stes movimentos para conquista da tão propalada or<strong>de</strong>m 39 .Assim, a única possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m seria o estabelecimento <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>liberal pela via prussiana, a via que anula a participação das massas <strong>do</strong>s processos<strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão política. Mas tal via “pelo alto” é, também, uma via <strong>de</strong> mão dupla:o mesmo Esta<strong>do</strong> que alija as massas <strong>de</strong> si é o Esta<strong>do</strong> que se precipita sobre asocieda<strong>de</strong> e nega-lhe o princípio da liberda<strong>de</strong> quan<strong>do</strong> a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstraquerer voltar-se contra ele. Este o fenôme<strong>no</strong> que Adrian discute com seu biógrafo<strong>no</strong> âmbito <strong>do</strong> seu estúdio. Esta a realida<strong>de</strong> que envolveu as duas gerações <strong>de</strong>intelectuais (1898 e 1913) com as quais militou Ortega em favor da liberda<strong>de</strong> e<strong>do</strong> individualismo e contra o pre<strong>do</strong>mínio das massas <strong>no</strong>s po<strong>de</strong>res públicos.Certamente, e não por acaso, foram os estu<strong>do</strong>s na Alemanha que <strong>de</strong>ramfundamento para o culturalismo <strong>de</strong> Ortega <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> político: é a experiência <strong>de</strong>viver em socieda<strong>de</strong>s que sofrem as agruras <strong>do</strong> atraso na constituição <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>37Cabe lembrar que Ortega retor<strong>no</strong>u <strong>do</strong> seu exílio em 1945, quan<strong>do</strong> foi recebi<strong>do</strong> pelosopositores <strong>de</strong> Franco como representante das lutas <strong>do</strong> liberalismo contra os regimesautoritários. Tal atitu<strong>de</strong> das oposições espanholas po<strong>de</strong> ser interpretada como umposicionamento mais marcadamente político <strong>do</strong> que propriamente i<strong>de</strong>ológico em relaçãoao pensamento orteguia<strong>no</strong>. Muitos pensa<strong>do</strong>res espanhóis, inclusive, consi<strong>de</strong>ravam aatitu<strong>de</strong> passiva <strong>de</strong> Ortega frente ao regime <strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> 1940-45 como apoio disfarça<strong>do</strong>.38 ORTEGA Y GASSET, A Rebelião das Massas, op. cit., p. 103-110.39 ARIEL DEL VAL, F., História e ilegitimidad..., op. cit.


Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153 147liberal que fundamenta a reflexão sobre o papel <strong>do</strong>s intelectuais e sobre a atitu<strong>de</strong><strong>de</strong> isolamento característica <strong>de</strong> boa parte <strong>do</strong>s intelectuais <strong>do</strong> perío<strong>do</strong> em questão.Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e fragmentação“Lo que Ortega consi<strong>de</strong>raba la estructura funcional básica <strong>de</strong> la acciónsocial, estaba constitui<strong>do</strong> por la acción <strong>de</strong> los hombres más energéticossobre las masas posibilitada por los vínculos comunes y la mediación<strong>de</strong> la generación, verda<strong>de</strong>ro cuerpo social. Para Lukács toda acciónsobre las masas requiere la organización <strong>de</strong>l parti<strong>do</strong>. Ambos consi<strong>de</strong>ran,sin embargo, que esta acción es <strong>de</strong> urgente realización, que la teoría<strong>de</strong>be guardar consonancia com el verda<strong>de</strong>ro sentir <strong>de</strong> las masas y suslegítimos intereses.” 40Nos a<strong>no</strong>s 20 <strong>do</strong> século XX Lukács e Ortega estavam preocupa<strong>do</strong>s com apossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ação política e cultural consciente das camadas populares,mas o primeiro estuda os caminhos <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento da consciência <strong>de</strong> classe<strong>no</strong> meio operário, enquanto o segun<strong>do</strong> sugere explicitamente a falta <strong>de</strong> condiçõesintelectuais das massas para o exercício da política institucional. Porisso, em História e consciência <strong>de</strong> classe 41 , publica<strong>do</strong> em 1923, Lukács ressaltaa urgência da organização da classe operária que fará o papel <strong>de</strong> vanguardada revolução: é ela que prepara a tomada <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r porque só o proletaria<strong>do</strong>po<strong>de</strong> ser sujeito e objeto <strong>do</strong> seu conhecimento. No mesmo a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1923 Ortegapublica El tema <strong>de</strong> nuestro tiempo 42 , <strong>do</strong>is a<strong>no</strong>s antes <strong>de</strong> La <strong>de</strong>shumanização<strong>de</strong>l arte, mas a sua urgência aponta para a educação das massas <strong>de</strong> maneira aaceitar o recorte social entre massas e mi<strong>no</strong>rias, posto que a consciência <strong>de</strong>fato, esta seria privilégio das elites intelectuais a quem o po<strong>de</strong>r político <strong>de</strong>veriaser entregue. Como Ortega não <strong>de</strong>fine socialmente os agentes sociais que efetivarãoseu projeto, fica-<strong>no</strong>s sempre a impressão <strong>de</strong> estar faltan<strong>do</strong> algum argumento<strong>no</strong> seu texto.40RANCH, E., op. cit., p. 238.41LUKÁCS, G., História e consciência <strong>de</strong> classe. São Paulo: Martins Fontes, 2003.42José ORTEGA Y GASSET, “El tema <strong>de</strong> nuestro tiempo”, In: Obras Completas, op.cit., vol. III, pp. 141-230.


148Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153Como imaginar elites intelectuais <strong>de</strong>svinculadas <strong>de</strong> seu lugar nas relações<strong>de</strong> produção? Quem seriam estes componentes das elites? A referência ao esclarecimentointelectual como critério <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição das elites parece insuficiente...Já Lukács aponta claramente os agentes sociais que efetivarão o seuprojeto: a posição <strong>de</strong> classe <strong>do</strong> proletaria<strong>do</strong> é o local privilegia<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong>qual se po<strong>de</strong> perceber a realida<strong>de</strong> social. Ortega é um perspectivista e, enquantotal, não acredita na existência <strong>de</strong> um local social privilegia<strong>do</strong> a partir <strong>do</strong> qualpossamos compreen<strong>de</strong>r a realida<strong>de</strong> social. Por isso, enquanto Ortega sugere a“geração”, <strong>de</strong>finida pela urgência <strong>no</strong> enfrentamento das questões colocadaspela altura <strong>do</strong> tempo vivi<strong>do</strong>, Lukács sugere o proletaria<strong>do</strong> como porta<strong>do</strong>r <strong>do</strong>discurso que irá transformar a socieda<strong>de</strong> e recolocar a liberda<strong>de</strong> como conteú<strong>do</strong>substantivo da <strong>no</strong>va or<strong>de</strong>m social. Os <strong>do</strong>is autores, <strong>do</strong> ponto <strong>de</strong> vista <strong>do</strong>s conteú<strong>do</strong>s<strong>de</strong> suas reflexões, partem <strong>de</strong> observações sobre a consciência e a visão<strong>de</strong> mun<strong>do</strong> das camadas populares, a massa para Ortega e o proletaria<strong>do</strong> paraLukács, e, com base nessas observações, sugerem uma leitura da arte e da ação<strong>do</strong>s homens <strong>de</strong> cultura. Mas, <strong>de</strong> <strong>no</strong>vo os vetores indicam soluções opostas: oprimeiro autor acredita nas muitas significações possíveis da obra-<strong>de</strong>-arte mo<strong>de</strong>rnaque dialoga com a fragmentação, o segun<strong>do</strong> busca a gran<strong>de</strong> arte na totalida<strong>de</strong>que reúne essência e fenôme<strong>no</strong>, conteú<strong>do</strong> e forma. Interessante <strong>no</strong>tar que,para Lukács, a classe operária po<strong>de</strong> ser revolucionária exatamente porque éher<strong>de</strong>ira das tradições culturais da humanida<strong>de</strong>, a ruptura só é possível <strong>de</strong>ntro<strong>do</strong>s parâmetros <strong>de</strong> compreensão e leitura <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> inscritos nessa tradição.Essas diferenças apontam para o tema da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>: po<strong>de</strong>mos arriscarafirmar que o pensamento lukacsia<strong>no</strong> encontra-se <strong>no</strong> âmbito da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>pois tem a razão como elemento fundamental. Já o pensamento orteguia<strong>no</strong>,buscan<strong>do</strong> fugir da dicotomia que ele <strong>de</strong><strong>no</strong>mina mo<strong>de</strong>rna e que, segun<strong>do</strong> ele,opõe razão e vida, relativiza os conceitos em função da realida<strong>de</strong> vivida – ouda circunstância, como diria o próprio Ortega. Enquanto Lukács busca na tradiçãomo<strong>de</strong>rna a vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ruptura e construção <strong>do</strong> “completamente <strong>no</strong>vo”por cima <strong>do</strong>s “escombros <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>”, Ortega procura mostrar a mo<strong>de</strong>rnizaçãocomo um processo <strong>de</strong> mudança social pelo qual uma socieda<strong>de</strong> aban<strong>do</strong>na suafeição tradicional para alcançar a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. Mas, neste último autor, mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>e tradição não seriam exclu<strong>de</strong>ntes: o mesmo processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnizaçãoque, em tese, <strong>de</strong>veria romper com a tradição, traz em si elementos datradição evi<strong>de</strong>ncia<strong>do</strong>s na diversida<strong>de</strong> circunstancial que caracteriza as váriasrealida<strong>de</strong>s sociais. Não seria possível, portanto, falar em uma mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>,mas em “mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>s circunstanciais”.


Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153 149“La mo<strong>de</strong>rnidad <strong>no</strong> es un concepto sociológico, ni un concepto político,ni propiamente un concepto histórico. Es un mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> civilización característico,que se opone al mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> la tradición, es <strong>de</strong>cir, a todas las <strong>de</strong>másculturas anteriores o tradicionales: frente a la diversidad geográfica y simbólica<strong>de</strong> éstas, la mo<strong>de</strong>rnidad se impone como una, homogénea, radiantea partir <strong>de</strong>l Occi<strong>de</strong>nte. (...) Inextricablemente mito y realidad, lamo<strong>de</strong>rnidad se concreta en to<strong>do</strong>s los <strong>do</strong>minios: Esta<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>, técnicamo<strong>de</strong>rna, música y pintura mo<strong>de</strong>rnas, costumbres y i<strong>de</strong>as mo<strong>de</strong>rnas.” 43A “expansão” da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> oci<strong>de</strong>ntal a partir <strong>do</strong> século XVI, na lógicaorteguiana, foi homogênea na expansão <strong>do</strong>s seus produtos, mas não na percepçãoda historicida<strong>de</strong> <strong>de</strong>stes produtos pelas várias socieda<strong>de</strong>s que foram “invadidas”pelo estilo mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> <strong>de</strong> vida e cultura 44 . O autor aponta para a inexistência <strong>de</strong> umamo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> absoluta e, conseqüentemente, a impossibilida<strong>de</strong> da ruptura total propostapelas revoluções comunistas. A mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> explica-se pela continuida<strong>de</strong>histórica que ela <strong>de</strong>nuncia, não pelas rupturas que anunciou, é como se ela gestasseuma “<strong>no</strong>vida<strong>de</strong> acumulada”, não uma “<strong>no</strong>vida<strong>de</strong> pura”.Ortega fundamenta, assim, uma concepção ambígua da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> on<strong>de</strong>assumir os pressupostos da vida mo<strong>de</strong>rna significa, também, consi<strong>de</strong>rá-loscomo parte da tradição que eles preten<strong>de</strong>m superar. Seu projeto <strong>de</strong> educaçãodas massas para o conhecimento da cultura acumulada que teria permiti<strong>do</strong> aconquista <strong>do</strong>s direitos políticos e civis, era uma <strong>de</strong>finição clara <strong>de</strong> militânciaem favor <strong>do</strong> reformismo social e <strong>do</strong> “liberalismo ético, cultural y político” 45 eem oposição aos movimentos sindicais e fascistas basea<strong>do</strong>s, em sua concepção,na projeção <strong>de</strong> rupturas com a História.Mas o texto <strong>de</strong> Ortega limita-se a constatar a urgência da ação organizadapara o fortalecimento das instituições liberais, o autor não aponta caminhos eatitu<strong>de</strong>s práticas que po<strong>de</strong>riam viabilizar tal proposta. A educação das massasmostrou-se ineficiente e não chegou a ter um número <strong>de</strong> a<strong>de</strong>ptos que pu<strong>de</strong>sse,sequer, viabilizar a proposta a contento. Lukács, ao contrário, afirmou a importância<strong>do</strong>s conselhos <strong>de</strong> fábrica, num primeiro momento, e a urgência <strong>de</strong> reformas43AZAM, G. “Ortega y Gasset, crítico <strong>de</strong> la mo<strong>de</strong>rnidad”, In: Actas <strong>de</strong>l III Seminario <strong>de</strong>Historia <strong>de</strong> la Filosofía española. Ediciones Universidad <strong>de</strong> Salamanca, 1983, p. 300.44 ORTEGA Y GASSET, José, A rebelião das massas, op. cit.45 DÍAZ, E. “Ortega y la Institución Libre <strong>de</strong> Enseñanza”, In: Revista <strong>de</strong> Occi<strong>de</strong>nte, FundaciónOrtega y Gasset <strong>de</strong> Madri, 4ª época, nº 68, jan. 87, p. 123.


150Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153<strong>de</strong>mocráticas em momentos <strong>de</strong> refluxo <strong>do</strong> movimento revolucionário 46 . A geraçãoorteguiana é um conceito que permite o estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> projetos políticos e proposiçõesculturais em épocas históricas <strong>de</strong>finidas, mas não po<strong>de</strong> ser vista comoum projeto político claro <strong>de</strong> intervenção <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> político-institucional.Há que se <strong>de</strong>stacar, a partir das analogias e oposições aqui apontadas, umcerto “tom geracional” na produção <strong>de</strong> Lukács e Ortega. Forma<strong>do</strong>s ambos <strong>no</strong>contexto <strong>do</strong>s <strong>de</strong>bates <strong>do</strong>s a<strong>no</strong>s 10 e 20 que encontraram na Alemanha fundamentoe solo histórico para se <strong>de</strong>senvolver, os <strong>do</strong>is autores foram profundamente marca<strong>do</strong>spela situação social <strong>de</strong> seus respectivos países que possuía, senão outras,pelo me<strong>no</strong>s uma importante semelhança que vale <strong>de</strong>stacar. A condição <strong>de</strong> atraso<strong>no</strong> que diz respeito à constituição <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> liberal e à organização capitalista daprodução <strong>de</strong>u origem a movimentos populares que aliavam as tarefas tradicionais<strong>de</strong> oposição ao Antigo Regime – agin<strong>do</strong> como revolucionários burgueses ereivindican<strong>do</strong> liberda<strong>de</strong>s civis e direitos políticos – com as tarefas tradicionais <strong>de</strong>oposição à or<strong>de</strong>m burguesa propriamente dita – agin<strong>do</strong>, ora como revolucionáriosvincula<strong>do</strong>s ao proletaria<strong>do</strong>, ora como her<strong>de</strong>iros da tradição conserva<strong>do</strong>ra que, <strong>no</strong>início <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong>, buscara construir uma contra-lógica ao racionalismo burguês.Assim, intelectuais como José Ortega y Gasset e os autores vincula<strong>do</strong>s ao 1898espanhol assumem a ambígua postura <strong>de</strong> serem contra o Antigo Regime eanticapitalistas ao mesmo tempo, <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m o voto universal mas <strong>de</strong>sconfiam dasreais possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conquistarem a liberda<strong>de</strong> e a justiça social por meio <strong>de</strong>le 47 .Lowy aponta uma radicalização anticapitalista da intelectualida<strong>de</strong> centroeuropéia<strong>no</strong>s a<strong>no</strong>s 10 e 20 <strong>de</strong>ste século. A oposição entre cultura e civilização,que teria si<strong>do</strong> operada pela mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> por meio <strong>do</strong> capitalismo, agredia ointelectual na medida em que, quantifican<strong>do</strong> a cultura, conferia valor <strong>de</strong> trocaa obras-<strong>de</strong>-arte. Esta postura é especialmente marcante na Alemanha on<strong>de</strong> ascamadas sociais “atingidas <strong>no</strong> seu mo<strong>do</strong> <strong>de</strong> vida, e <strong>no</strong>s seus interesses, pelo46O texto História e consciência <strong>de</strong> classe, cita<strong>do</strong> na <strong>no</strong>ta 40, sugere os conselhos <strong>de</strong> fábrica,já as Teses <strong>de</strong> Blum, <strong>de</strong> 1928, <strong>de</strong>staca o refluxo <strong>do</strong> movimento revolucionário e sugere a organização<strong>de</strong>mocrática <strong>no</strong> lugar da imediata tomada <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r pela classe operária.47 LOWY, M., op. cit, p. 93. Vale ressaltar que Lowy está preocupa<strong>do</strong> apenas com a situaçãoda Hungria pois seu objeto <strong>de</strong> estu<strong>do</strong> é a evolução <strong>do</strong> pensamento <strong>de</strong> Lukács. Sãoos textos <strong>de</strong> Julián Marías e Gil Villegas - Los profetas y el mesías – Lukács y Ortegacomo precursores <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger en el zeitgeist <strong>de</strong> la mo<strong>de</strong>rnidad (1900-1929). México:Fon<strong>do</strong> <strong>de</strong> Cultura Económica, 1996 - além das leituras <strong>de</strong> autores espanhóis como Pérez<strong>de</strong> Ayala e Azaña, que <strong>no</strong>s autorizam a sugerir um paralelo entre o comportamento <strong>do</strong>sintelectuais espanhóis e húngaros face à realida<strong>de</strong> social que viviam.


Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153 151<strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> capitalismo” formaram uma forte base social <strong>de</strong> críticaaos produtos sociais e culturais <strong>do</strong> capitalismo 48 . De um la<strong>do</strong>, e nisso são legítimosher<strong>de</strong>iros <strong>do</strong> romantismo, os intelectuais evocam as antigas tradições<strong>de</strong>struídas pelo avanço <strong>do</strong> racionalismo e da organização capitalista da produçãoe da política. De outro, ou ao mesmo tempo, criticam a falta <strong>de</strong> comprometimentodas populações vinculadas às formas <strong>de</strong> trabalho capitalistas para como que <strong>de</strong><strong>no</strong>minam “cultura” em seu senti<strong>do</strong> universal.Essas anti<strong>no</strong>mias caracterizam socieda<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> capitalismonão esteve marca<strong>do</strong> por uma <strong>de</strong>struição clara da antiga or<strong>de</strong>m e pelaorganização política <strong>de</strong> uma classe social que fizesse o papel <strong>de</strong> vanguarda eporta<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> discurso revolucionário. Po<strong>de</strong>-se, nesta lógica, afirmar certo paralelismoentre o posicionamento ambíguo da intelectualida<strong>de</strong> centro-européiae a ilusão da intelectualida<strong>de</strong> que formou as gerações <strong>de</strong> 1898 e <strong>de</strong> 1913 naEspanha. A estes intelectuais espanhóis não interessava a <strong>de</strong>finição das relações<strong>de</strong> trabalho e as manifestações culturais que representassem recortes <strong>do</strong> teci<strong>do</strong>social. Advogavam o fim <strong>do</strong>s resquícios da antiga or<strong>de</strong>m que havia si<strong>do</strong> construídadurante o século <strong>de</strong> ouro mas, muitos <strong>de</strong>les, enalteciam os feitos espanhóis<strong>do</strong> século XVI quan<strong>do</strong> toda a nação teria se comprometi<strong>do</strong> com um mesmoprojeto <strong>de</strong> vida pública. Criticavam a socieda<strong>de</strong> industrial composta poriletra<strong>do</strong>s e pouco comprometida com a cultura, mas <strong>de</strong>fendiam os direitos inaugura<strong>do</strong>spelo projeto liberal-burguês <strong>do</strong> século <strong>XVIII</strong>.Buscan<strong>do</strong> redimir a nação por meio da educação, estas gerações, que tiveramem Ortega um importante porta-voz, acreditaram, especialmente a <strong>de</strong> 1913,po<strong>de</strong>r tomar os po<strong>de</strong>res públicos com seu projeto regeneracionista sem estarvinculada a nenhuma classe social que pu<strong>de</strong>sse ancorar socialmente suaspropostas. Talvez seja esta a principal característica da intelectualida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s a<strong>no</strong>s10 e 20 que participou <strong>do</strong>s círculos universitários alemães da época guilherminae da belle époque e que era oriunda <strong>de</strong> países ditos “atrasa<strong>do</strong>s” como a Alemanha,a Espanha e a Hungria: acreditar po<strong>de</strong>r redimir a nação <strong>de</strong> seu atraso constituin<strong>do</strong>um Esta<strong>do</strong>, e por conseqüência uma nação, segun<strong>do</strong> os diagnósticos e soluçõesapresenta<strong>do</strong>s por intelectuais ou “homens <strong>de</strong> cultura” 49 .48 Ibi<strong>de</strong>m, p. 30-33.49 É Gil Villegas quem <strong>de</strong>senvolve a hipótese <strong>de</strong> Ortega e Lukács terem compartilha<strong>do</strong> omesmo ambiente intelectual na Alemanha guilhermina que teria influencia<strong>do</strong> fortementeseus pensamentos na juventu<strong>de</strong> e composto o “espírito <strong>do</strong> tempo” que configurou suasrespectivas produções intelectuais. Tal ambiente partilha<strong>do</strong> justificaria o fato <strong>de</strong> ambospo<strong>de</strong>rem ser consi<strong>de</strong>ra<strong>do</strong>s precursores <strong>de</strong> Hei<strong>de</strong>gger. GIL VILLEGAS, op. cit., p. 13.


152Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153Narra<strong>do</strong>r <strong>do</strong> seu tempo, Ortega preten<strong>de</strong>u, <strong>de</strong> um la<strong>do</strong>, redimir a nação<strong>do</strong>s seus males com teses que po<strong>de</strong>mos reputar iluministas na medida em queacreditava que certa pedagogia social evitaria o enfrentamento e a barbárie.De outro la<strong>do</strong>, advogava a hierarquia entre massas e elites esclarecidas comofundamento da organização social. Progresso e resistência são duascomponentes <strong>do</strong> seu pensamento assim como são elementos constitutivos dasocieda<strong>de</strong> espanhola pós Antigo Regime.Observações finaisTalvez valha a pena finalizar alargan<strong>do</strong> a reflexão que tentamos fazer aquipara o mun<strong>do</strong> ibérico. Cabe lembrar, em primeiro lugar, a advertência <strong>de</strong> J. S.da Silva Dias ao analisar o pensamento português <strong>do</strong> século <strong>XVIII</strong>:“Revolução e restauração, progresso e resistência, são constantes <strong>do</strong> pensamentoe da história. E não é das tarefas mais fáceis <strong>do</strong> investiga<strong>do</strong>r <strong>de</strong>scobrira opção retardatária <strong>de</strong>baixo da máscara progressista, ou, pelo invés,<strong>de</strong>scobrir a opção progressista <strong>de</strong>baixo da máscara retardatária.” 50É exatamente esse tema das relações entre progresso e resistência quefundamentou a ação <strong>do</strong>s homens <strong>de</strong> cultura que, <strong>no</strong> final <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong> e início<strong>do</strong> XX, pretendiam apontar os caminhos da mo<strong>de</strong>rnização nacional. Nestesenti<strong>do</strong>, cabe lembrar, em segun<strong>do</strong> lugar, que a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> operar mudançassociais foi a principal inspiração para escrever e para a ação social <strong>de</strong> gerações<strong>de</strong> homens <strong>de</strong> cultura que, entre o final <strong>do</strong> <strong>XIX</strong> e o início <strong>do</strong> XX, e especialmenteem socieda<strong>de</strong>s arcaicas que se mo<strong>de</strong>rnizam rapidamente, preten<strong>de</strong>ramregenerar suas respectivas nações 51 .No caso específico <strong>de</strong> José Ortega y Gasset (1883-1954) sua <strong>de</strong>fesa da “arte<strong>no</strong>va” como elemento <strong>de</strong> fundação <strong>de</strong> <strong>no</strong>vas realida<strong>de</strong>s e sua atuação em favor<strong>de</strong> certa “pedagogia social” capaz <strong>de</strong> redimir a Espanha <strong>do</strong> seu atraso, ao mesmo50SILVA DIAS, J. S. “O ecletismo em Portugal <strong>no</strong> século <strong>XVIII</strong>: gênese e <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> <strong>de</strong>uma atitu<strong>de</strong> filosófica”, In: Revista Portuguesa <strong>de</strong> História, a<strong>no</strong> VI, 1972.51 SEVCENKO, Nicolau, Literatura como missão – Tensões sociais e criação cultural naPrimeira República. São Paulo: <strong>Brasil</strong>iense, 1995, pp. 80-81. Ver também: SEVCENKO,N. “O far<strong>do</strong> <strong>do</strong> homem culto: Literatura e Analfabetismo <strong>no</strong> Prelúdio Republica<strong>no</strong>”, In:Revista <strong>de</strong> Cultura Vozes, n. 09, <strong>no</strong>v. 1980.


Ana Lúcia Lana Nemi / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 129-153 153tempo em que advogava a hierarquia entre massas e elites, tornam a tarefa <strong>do</strong>investiga<strong>do</strong>r que busca “<strong>de</strong>sembaralhar” os imbricamentos entre progresso eresistência fundamental para enten<strong>de</strong>r as apropriações e leituras <strong>do</strong>s seus textos:o autor foi usa<strong>do</strong> como fundamento para posicionamentos liberal-<strong>de</strong>mocráticose para posicionamentos francamente afina<strong>do</strong>s com as teses franquistas. 52Teófilo Braga (1843-1924), intelectual português que participou das Conferências<strong>do</strong> Casi<strong>no</strong> Lisbonense <strong>de</strong> 1871, foi membro funda<strong>do</strong>r <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Republica<strong>no</strong>Português em 1876 e presi<strong>de</strong>nte da República fundada em 1910,também emblema essa atitu<strong>de</strong> que reúne progresso e resistência na ação pública:o mesmo PRP que <strong>de</strong>veria apontar e construir o progresso aju<strong>do</strong>u a sacralizaro Império, dirigi<strong>do</strong> <strong>de</strong> maneira concreta para a África <strong>de</strong>pois das pautas<strong>de</strong> 1892, e a fundar a República exclu<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> 1910. 53E o que dizer <strong>de</strong> Paulo Pra<strong>do</strong> (1869-1943), a sugerir <strong>no</strong> seu Retrato <strong>do</strong><strong>Brasil</strong> 54 a tristeza como traço distintivo <strong>do</strong> caráter nacional e uma certa“revolução” que refundaria a república, a olhar o <strong>Brasil</strong> como homem <strong>de</strong> negóciosrepresentante da melhor burguesia paulista? Progresso ou resistênciaele retira das suas leituras <strong>de</strong> Capistra<strong>no</strong> <strong>de</strong> Abreu e Oliveira Martins?Mas essas últimas são indagações que, embora se inspirem na mesmamatriz que origi<strong>no</strong>u essas poucas sugestões <strong>de</strong> leitura em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> José Ortegay Gasset e Georg Lukács, já vão muito além das <strong>no</strong>ssas pretensões iniciais eficam, portanto, para serem <strong>de</strong>senvolvidas em outro momento.52Cf. ARIEL <strong>de</strong>l VAL, F. Historia e ilegitimidad ..., op. cit. Nota 35; e ELORZA, A. Larazón y la sombra..., op. cit. Nota 03.53BRAGA, Teófilo, História da Literatura portuguesa, Lisboa, Coimbra e Porto: ImprensaNacional – Casa da Moeda, 1984, 4 vols. (1ª edição <strong>do</strong> primeiro volume: 1870) eSoluções positivas da política portuguesa. Porto: Lello & Irmãos, 1913 (1ª edição é <strong>de</strong>1879). Sobre o tema <strong>do</strong> Terceiro Império nas elites intelectuais e republicanas <strong>do</strong> final<strong>do</strong> <strong>XIX</strong> e início <strong>do</strong> XX: ALEXANDRE, Valentim. Origens <strong>do</strong> colonialismo portuguêsmo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>, Lisboa: Sá da Costa, 1979, e Velho <strong>Brasil</strong>, Novas Áfricas. Lisboa: Afrontamento,2000; e SERRÃO, Joel. Liberalismo, socialismo, republicanismo – antologia <strong>de</strong> pensamentopolítico português. Lisboa: Livros Horizonte, 1979.54 PRADO, Paulo. Retrato <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. São Paulo: Cia. das Letras, 1997 (1ª edição <strong>de</strong> 1927).


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INSTRUÇÃO PÚBLICA E REFORMA SOCIAL NA CIDADEDO RIO DE JANEIRO ENTRE 1922 E 1930 *André Luiz PauliloDoutoran<strong>do</strong> - Faculda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Educação/USPResumoEste artigo expõe as orientações <strong>de</strong> uma pesquisa sobre as reformas da instruçãopública na cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro entre 1922 e 1930. As reformas <strong>do</strong>perío<strong>do</strong>, nessa pesquisa, são examinadas sob a perspectiva das orientações e<strong>do</strong>s objetivos <strong>do</strong>s grupos que se propuseram <strong>de</strong>senvolvê-las junto à população.Assim entendidas, as reformas públicas <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> na década <strong>de</strong> 1920 eram uminstrumental comprometi<strong>do</strong> com a reforma social. Sob essa perspectiva, examinam-seas tarefas que as reformas Carneiro Leão e Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> tomarampara si. Finalmente, aponta-se o papel central <strong>do</strong> projeto <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong> <strong>no</strong>planejamento da arquitetura, <strong>do</strong>s programas e das instalações escolares.Palavras-ChaveReforma educacional • Escolarização mo<strong>de</strong>rna • História da educação •Educação popular • Políticas públicasAbstractThis article discusses research on the public education reforms carried out inthe city of Rio <strong>de</strong> Janeiro between 1922 and 1930. The educational reformsare examined from the perspective of the mindset and objectives of those whoproposed to <strong>de</strong>velop the reforms together with the population. From this perspective,the public education reforms of the 1920s were committed to socialreform. Thus, the article analyzes the tasks that Carneiro Leão and Fernan<strong>do</strong><strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> established in their inten<strong>de</strong>d reforms. Finally, the article pointstowards the central role of a project for society as a whole in the architectural,educational and school facilities planned in the reforms.KeywordsEducational Reform • Mo<strong>de</strong>rn Schooling • History of the Education • PopularEducation • Public Policies*Este artigo reproduz em parte algumas das discussões iniciais da minha dissertação <strong>de</strong>mestra<strong>do</strong>: Reforma Educacional e sistema público <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> <strong>no</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral na década<strong>de</strong> 1920. FEUSP, 2001. 230p.


156André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187“Dir-se-ia que, forman<strong>do</strong> as legiões trabalha<strong>do</strong>ras <strong>do</strong> país maisaptas, pela difusão <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> primário, ao manejo eficiente <strong>do</strong>sinstrumentos científicos <strong>de</strong> produção e dan<strong>do</strong> ás classes superioresda socieda<strong>de</strong> mais firmes e mais lúcidas diretrizes <strong>de</strong> pensamento,teríamos encontra<strong>do</strong> a chave soluciona<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>s problemascria<strong>do</strong>s pelo pre<strong>do</strong>mínio da ig<strong>no</strong>rância popular e da relativa inculturadas elites.” Azeve<strong>do</strong> Amaral (O Paíz, <strong>no</strong>v. 1928)Ao fun<strong>do</strong> <strong>de</strong> quase meia década <strong>de</strong> esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> sítio, que foram os a<strong>no</strong>s <strong>de</strong>1922-1926, a historiografia veio perceber um movimento bastante interessante<strong>de</strong> contestação <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, uma resposta às tentativas <strong>de</strong> consagrar opacto oligárquico. Os estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> Boris Fausto, Edgar Carone, Raymun<strong>do</strong> Faoro,Sérgio Micelli, Daniel Pecáult, Celso Castro, Décio Saes, Leôncio Basbaum,Maria Lígia Coelho Pra<strong>do</strong>, Edgard Salva<strong>do</strong>re De Deca, Maria Helena Capelato,Angela <strong>de</strong> Castro Gomes e Nicolau Sevcenko, entre outros ainda, mostram bemcomo as investidas realizadas contra o gover<strong>no</strong> fe<strong>de</strong>ral ou suas instituições oficiaisdurante quase toda a década <strong>de</strong> 1920 exibiram <strong>de</strong> forma reiterada o equívocoda República, a sua verda<strong>de</strong> incompleta. Foi assim com os levantestenentistas <strong>de</strong> 1922 e 1924 que <strong>de</strong>sembocaram <strong>no</strong> que seria a mais contun<strong>de</strong>ntemarcha contra o po<strong>de</strong>r, a Coluna Prestes. Mas também foi o que esteve em jogona movimentação anarco-sindicalista <strong>de</strong> fins da década <strong>de</strong> 1910 e da fundação<strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunista, em 1922. Mesmo as revoltas populares mais espontâneascombatiam a precarieda<strong>de</strong> com que se tratava das questões sociais. Num como<strong>no</strong>utro interessava a <strong>de</strong>núncia <strong>do</strong>s peca<strong>do</strong>s, <strong>do</strong>s vícios enfim, <strong>do</strong>s erros <strong>do</strong>s hi<strong>no</strong>s<strong>no</strong>stálgicos <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>. Tais movimentos observaram formas <strong>de</strong> ação, aplicaramregras aos seus militantes, produziram suas verda<strong>de</strong>s e seus princípios,ou melhor converteram seus princípios em verda<strong>de</strong>s.A mesma historiografia responsável por essa representação <strong>do</strong> perío<strong>do</strong>,que retroce<strong>de</strong> ao gover<strong>no</strong> Campos Sales e vai até Washington Luiz, é tambématenta ao papel <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong> pela educação pública nas estratégias <strong>de</strong> reorganizaçãoou contestação <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r.Boris Fausto situa a instrução na estratégia anarquista <strong>de</strong> luta contra osaparelhos i<strong>de</strong>ológicos <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> e da Igreja 1 , Edgard Carone indica o papel1FAUSTO, Boris. Trabalho urba<strong>no</strong> e conflito social (1890-1920). 4ª edição. São Paulo:Difel, 1977. p. 81 e 82.


André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187 157que ela teve <strong>no</strong> esquema <strong>de</strong> auto-valorização <strong>do</strong>s estratos médios da socieda<strong>de</strong>2 . É o mesmo esquema que Maria Lígia Coelho Pra<strong>do</strong> i<strong>de</strong>ntifica <strong>no</strong> programa<strong>de</strong> ação <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Democrático 3 . Esses três estu<strong>do</strong>s não assumem o temada educação como diretamente político, ou diretamente i<strong>de</strong>ológico, <strong>de</strong>ixan<strong>do</strong>-o,pacificamente, entre a ação <strong>do</strong>s militantes e o contencioso <strong>do</strong>s intelectuais.É, por outro la<strong>do</strong>, a obra pedagógica embotada na ação política <strong>de</strong> contestação<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r levada a efeito por toda década <strong>de</strong> 1920 que Raymun<strong>do</strong> Faoropõe entre parênteses <strong>no</strong> programa reformista das classes <strong>do</strong>minantes. Na sombradas aspirações culturalmente auto<strong>no</strong>mistas, <strong>no</strong>ta, o gover<strong>no</strong> <strong>de</strong>veria educar,cultivar e orientar o povo 4 . São ainda essas as sendas trilhadas por DécioSaes e De Decca quan<strong>do</strong> avaliam as exigências que o tema da industrializaçãofazia aos seus prestigia<strong>do</strong>res. Tratava-se <strong>de</strong> uma vasta empresa intelectual daburguesia industrial em busca <strong>de</strong> instrumentos e processos <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> capazes<strong>de</strong> intensificar a racionalização <strong>do</strong> trabalho 5 .A educação é vista por parte <strong>de</strong>ssa historiografia como uma instituiçãoconstitutiva da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> social. É o caso, por exemplo, da Escola da PraiaVermelha para os jovens militares e da Escola Nacional <strong>de</strong> Belas Artes paraas pessoas <strong>de</strong> prestigio <strong>do</strong> círculo cultural carioca <strong>no</strong> início <strong>do</strong> século. As análises<strong>de</strong> Celso Castro quanto à ação política <strong>do</strong>s militares na primeira república6 e <strong>de</strong> Angela <strong>de</strong> Castro Gomes em relação ao mo<strong>de</strong>rnismo carioca 7 colocamessas duas instituições num campo <strong>de</strong> disputas sociais importante. Noprimeiro caso, a disputa por prestígio social entre os bacharéis militares e civis,2CARONE, Edgard. A Primeira República (1890-1930): texto e contexto. São Paulo:Difel, 1973. p. 298 e 329.3 PRADO, Maria Lígia Coelho. A <strong>de</strong>mocracia ilustrada: o Parti<strong>do</strong> Democrático <strong>de</strong> SãoPaulo, 1926-1934. São Paulo: Ática, 1986. p. 11-12.4 FAORO, Raymun<strong>do</strong>. Os <strong>do</strong><strong>no</strong>s <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r: formação <strong>do</strong> patronato político brasileiro.10ª edição. São Paulo: Globo, 1995. p. 673.5SAES, Décio. Classe média e política na Primeira república brasileira (1889-1930).Petrópolis-RJ: Vozes, 1975. p. 59; DECCA, Edgard <strong>de</strong>. 1930, o silêncio <strong>do</strong>s venci<strong>do</strong>s.São Paulo: <strong>Brasil</strong>iense, 1981. p. 180.6CASTRO, Celso. Os militares e a República: um estu<strong>do</strong> sobre cultura e ação política.Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1995. p. 52-55.7GOMES, Angela <strong>de</strong> Castro. Essa gente <strong>do</strong> Rio...: mo<strong>de</strong>rnismo e nacionalismo. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Fundação Getúlio Vargas, 1999. p. 29.


158André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187<strong>no</strong> segun<strong>do</strong>, a resistência ao “<strong>no</strong>vo” que atacava os paradigmas que lhe conferiamprestígio. Permitem senão vislumbrar, pelo me<strong>no</strong>s consi<strong>de</strong>rar as relaçõestempestuosas que assinalavam o conjunto <strong>de</strong> estratégias pelas quais diferentesgrupos tentavam manter ou melhorar sua posição na estrutura social. Assim consi<strong>de</strong>rada,a educação escolar é tomada como produtora <strong>de</strong> posições diversas eambíguas, a bem da verda<strong>de</strong>, mas que, a <strong>de</strong>speito disso, consolidavam a presençae importância <strong>de</strong> suas instituições.Há análises sobre o perío<strong>do</strong> que <strong>de</strong>stacam a importância estratégica <strong>do</strong>tema da educação nas lutas em tor<strong>no</strong> da regulamentação profissional, <strong>no</strong> <strong>de</strong>batepolítico ou <strong>no</strong>s confrontos sociais. São por elas que passam pesquisas tão diversasquanto as que Edmun<strong>do</strong> Coelho, Leôncio Basbaum e Maria Helena Capelatofizeram acerca da década <strong>de</strong> 1920. São as reformas da instrução o palcocomum <strong>no</strong> qual se <strong>de</strong>senvolveram os <strong>de</strong>bates em tor<strong>no</strong> da liberda<strong>de</strong> profissional,<strong>de</strong> um programa <strong>de</strong> reformas sociais, e da luta contra a proletarização crescenteproduzida pela carestia <strong>do</strong>s a<strong>no</strong>s 1920 que analisam. O sistema público<strong>de</strong> instrução, o ensi<strong>no</strong> superior e o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> escolarização <strong>no</strong> combate políticopela educação adquirem significação social, com implicações que não foramsomente profissionais ou setoriais. Elas acarretaram um protesto que diziarespeito a to<strong>do</strong>s. Criticava-se o projeto <strong>de</strong> construção da república. As reformasfe<strong>de</strong>rais da instrução, <strong>de</strong>scritas por Edmun<strong>do</strong> Coelho, o Inquérito <strong>de</strong> 1926 sobreo ensi<strong>no</strong> paulista realiza<strong>do</strong> pelo Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> São Paulo, analisa<strong>do</strong> por MariaHelena Capelato e o fenôme<strong>no</strong> <strong>do</strong> bacharelismo, aponta<strong>do</strong> por Leôncio Basbaum,colocaram em movimento, <strong>no</strong> jogo oligárquico, as condições <strong>de</strong> exercícioprofissional 8 , <strong>de</strong> coesão e ascensão sociais 9 .Também são conhecidas tanto as análises sobre as condições oferecidaspelo sistema <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> na consolidação <strong>de</strong> um campo intelectual quanto asreflexões sobre a posição <strong>do</strong> intelectuais diante <strong>do</strong> funcionamento <strong>de</strong> tal sistemaou, ainda, sobre o seu papel na configuração <strong>de</strong>sse sistema, <strong>no</strong> país provenientesdas pesquisas acerca <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>rnismo e da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> brasileiros. São8 COELHO, Edmun<strong>do</strong> Campos. As profissões imperiais: medicina, engenharia e advocacia<strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1822-1930. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Record, 1999. p. 251-255.9 BASBAUM, Leôncio. História sincera da república. São Paulo: Alfa-Omega, 1975. p.196; CAPELATO, Maria Helena. Os arautos <strong>do</strong> liberalismo: imprensa paulista, 1920-1945. São Paulo: <strong>Brasil</strong>iense, 1989. p. 140-149.


André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187 159as estratégias <strong>de</strong> reconversão às profissões intelectuais encetadas pelos indivíduosprovenientes <strong>do</strong>s ramos empobreci<strong>do</strong>s da oligarquia e o ônus político esocial da falta <strong>de</strong> um princípio <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> que remetesse a vínculos institucionais,isto é a ausência <strong>de</strong> um campo autô<strong>no</strong>mo com suas hierarquias e estratégiasalicerçadas em critérios relativamente estáveis, os postula<strong>do</strong>s que iluminamo <strong>de</strong>senho e as características <strong>de</strong>ssas pesquisas. Nelas o tema da educaçãoaparece num quadro particularmente interessante <strong>de</strong> escolarização: constituia oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acumular um tipo <strong>de</strong> capital cultural específico e valoriza<strong>do</strong>10 , participa, como instrumento político, da radicalida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s embates sobrea laicida<strong>de</strong> <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> e nas discussões sobre cultura popular, e, como ativida<strong>de</strong>,em to<strong>do</strong>s os seus níveis, das perspectivas profissionais <strong>do</strong>s intelectuais 11 , ou,então, repercute na organização <strong>do</strong>s setores culturais, campo <strong>no</strong> qual a prática<strong>do</strong>s intelectuais inci<strong>de</strong> diretamente 12 .É significativo que o tema da instrução pública apareça em estu<strong>do</strong>s com preocupaçõestão diversificadas. As questões que esses estu<strong>do</strong>s propõe são bastantepreliminares mas não sem importância. Po<strong>de</strong>riam ser esquematicamente formuladas<strong>no</strong> seguinte questionário: qual o papel ocupa<strong>do</strong> pelo sistema público <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong>nas relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r encenadas na primeira República? De que estratégias opo<strong>de</strong>r público lançou mão para reorganizar a instrução pública da capital fe<strong>de</strong>ral?Em uma socieda<strong>de</strong> oligárquica, que tipo <strong>de</strong> estratégia foi capaz <strong>de</strong> produzirdiscursos acerca da educação popular <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a caracterizá-la e constituí-la comoinstituição tão necessária? Com essas questões gostaria <strong>de</strong> pensar os aspectos datrama social e política <strong>do</strong> país que efetivamente se procurou dar solução com asreformas da instrução pública por toda a década <strong>de</strong> 1920.10MICELI, Sérgio. Intelectuais e classe dirigente <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> (1920-1945). São Paulo: Difel,1979. p. 27.11 LAHUERTA, Milton. “Os intelectuais e os a<strong>no</strong>s 1920: mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>, mo<strong>de</strong>rnista, mo<strong>de</strong>rnização.”In.: LORENZO, Helena carvalho <strong>de</strong>; COSTA, Wilma Peres da. A década <strong>de</strong>1920 e as origens <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>. São Paulo: Editora da Unesp, 1997. p. 106-107.12 PÉCAULT, Daniel. Os intelectuais e a política <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>: entre o povo e a nação. SãoPaulo: Ática, 1990. p. 33-34; SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão: tensões sociaise criação cultural na Primeira República. São Paulo: <strong>Brasil</strong>iense, 1983. p. 78-80.


160André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-1871. Sistema público <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> e relações <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r <strong>no</strong>s últimos a<strong>no</strong>s da PrimeiraRepúblicaAs reformas da instrução pública na década <strong>de</strong> 1920 estiveram frente aum cenário político em face <strong>de</strong> intensa transformação. O pacto oligárquicopor meio <strong>do</strong> qual consoli<strong>do</strong>u-se o <strong>no</strong>vo regime passou a sofrer importantesdistensões. De certo mo<strong>do</strong> po<strong>de</strong>-se dizer, com Raymun<strong>do</strong> Faoro, que a políticainaugurada por Campos Sales chegou <strong>de</strong>sacreditada aos gover<strong>no</strong>s ArthurBernar<strong>de</strong>s e Washington Luiz:“As vacilações, as rivalida<strong>de</strong>s que <strong>de</strong>sagregam a unanimida<strong>de</strong> em tor<strong>no</strong><strong>de</strong> Arthur Bernar<strong>de</strong>z refletem o <strong>de</strong>sequilíbrio <strong>do</strong>s suportes <strong>do</strong> envelheci<strong>do</strong>regime. As dúvidas para a indicação <strong>do</strong> vice-presi<strong>de</strong>nte, aotempo vistas como a causa <strong>do</strong> movimento <strong>de</strong> reação, servem para trazerà tona a impossível conciliação. Ao mesmo tempo na transição, oacor<strong>do</strong> precário das energias que contestam. Na vacilação da política<strong>do</strong>s governa<strong>do</strong>res, <strong>no</strong> <strong>de</strong>safio aos principa<strong>do</strong>s, mesmo se uni<strong>do</strong>s, pulsaa rebeldia das camadas populares e <strong>do</strong> corpo militar, agora rever<strong>de</strong>ci<strong>do</strong><strong>de</strong>pois <strong>do</strong> ostracismo <strong>de</strong> <strong>do</strong>is quadriênios. Para<strong>do</strong>xalmente, essacombinação subterrânea há <strong>de</strong> se voltar contra o po<strong>de</strong>r presi<strong>de</strong>ncial,não porque lhe negue a legitimida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conduzir, comandar e dirigir.A reação re<strong>no</strong>va<strong>do</strong>ra quer um gover<strong>no</strong> superior ao estadualismo, às oligarquias,para mandar e li<strong>de</strong>rar, mas em outro rumo. O ataque será aopresi<strong>de</strong>nte porque agora a peça principal <strong>do</strong> mecanismo é o presi<strong>de</strong>nte– ele não é mau porque existe, mas porque governa contra a corrente<strong>de</strong>sencantada neste angustia<strong>do</strong> pós-guerra. Depois <strong>de</strong> 5 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong>1922, até que soe a <strong>de</strong>cisão <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1930, o presi<strong>de</strong>nte será aforça máxima <strong>do</strong> aparelho governamental, mas estará em <strong>de</strong>fensiva,assedia<strong>do</strong> por golpes sem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, não materializa<strong>do</strong>s em reivindicaçõesformuladas. Esta história pertence à outra República, num enga<strong>no</strong>que o calendário antecipou” 13 .De 1922 a 1930 toda uma série <strong>de</strong> eventos transformou a República <strong>do</strong>sConselheiros. De fato, as hostilida<strong>de</strong>s contra o aparelho governamental cerca-13 FAORO, op. cit., p. 619.


André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187 161ram-lhe com motins e colunas, com golpes sem i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>. A brutalida<strong>de</strong> policialnão continha a efervescência das tensões sociais e o exército era incapaz<strong>de</strong> vencer a subversão tenentista. Confinada à função política <strong>do</strong> seu po<strong>de</strong>r, apresidência da República e, com ela, a ação pública per<strong>de</strong>u respal<strong>do</strong> social. Oaviltamento das condições <strong>de</strong> ma<strong>no</strong>bra das oligarquias governistas foi contrabalança<strong>do</strong>pela ação <strong>de</strong> várias organizações civis. A Liga <strong>de</strong> Defesa Nacional,o Centro D. Vidal, a Associação <strong>Brasil</strong>eira <strong>de</strong> Educação, o Parti<strong>do</strong> Democrático,a Aliança Nacional Liberta<strong>do</strong>ra, a Aliança Liberal e o Integralismoavançaram propostas <strong>de</strong> reforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>de</strong> políticas sociais. Todas essasorganizações ocuparam os espaços que o po<strong>de</strong>r público não <strong>do</strong>mi<strong>no</strong>u com sucesso.O que se passou foi uma certa mutação da prática política. Sob o núcleomo<strong>no</strong>lítico e pretendidamente <strong>de</strong>spolitiza<strong>do</strong>, comprometi<strong>do</strong> somente comuma gestão eficiente e estabiliza<strong>do</strong>ra, consegui<strong>do</strong> com os esforços <strong>de</strong> neutralizaçãopolítica opera<strong>do</strong>s <strong>no</strong> âmbito da política <strong>do</strong>s governa<strong>do</strong>res, surgiramentida<strong>de</strong>s interessadas na disputa <strong>do</strong> mo<strong>no</strong>pólio da competência em diversasáreas <strong>do</strong> gover<strong>no</strong>. Mais que assegurar <strong>no</strong>vas formas <strong>de</strong> participação na vidasocial e política das classes médias urbanas, essa movimentação civil, senãoestabeleceu, reivindicou procedimentos <strong>de</strong> melhoramento social. Promoveua convicção <strong>de</strong> que a auto-ajuda cooperativa e a ética social agitariam para areforma <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>.Uma das tarefas que as reformas Carneiro Leão e Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong>tomaram para si foi a <strong>de</strong> fazer ver que, efetivamente, os tempos haviam muda<strong>do</strong>.A primeira coisa a observar sobre elas é que foram pensadas como uminstrumento <strong>de</strong> reforma social. Recompor o sistema produtivo e <strong>de</strong>linear umcivismo <strong>de</strong> cunho nacionalista a partir da remo<strong>de</strong>lação <strong>do</strong> aparelho <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong>da cida<strong>de</strong> foram duas das principais finalida<strong>de</strong>s anunciadas por essas reformas.É nesse senti<strong>do</strong> que reivindicavam a mo<strong>de</strong>rnização das coor<strong>de</strong>nadas sociais,econômicas e culturais conservadas por quase quatro décadas <strong>de</strong> iniquida<strong>de</strong>política patrocinadas pelas oligarquias mandatárias. Como políticaeducacional essa preocupação ganhou contor<strong>no</strong>s específicos.A idéia <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> é a primeira especificida<strong>de</strong> da política educacional<strong>de</strong>senvolvida por Carneiro Leão, entre 1922 e 1926, e Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong>,entre 1927 e 1930, em relação ao discurso político corrente. É bem verda<strong>de</strong>que ela foi regida pelo princípio da unida<strong>de</strong> nacional, carro chefe dasdiscussões políticas <strong>do</strong> momento, entretanto, nas propostas pedagógicas a idéia<strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> aparece como um instrumento eficaz <strong>de</strong> produção da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>social <strong>do</strong> indivíduo perante a coletivida<strong>de</strong> nacional. Dessa perspectiva, foi


162André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187me<strong>no</strong>s como i<strong>de</strong>ologia política e mais como condição pertinente ao aprimoramentoda <strong>de</strong>mocracia representativa que a idéia <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong> penetrou <strong>no</strong>senuncia<strong>do</strong>s das reformas da instrução pública durante os a<strong>no</strong>s 1920 na cida<strong>de</strong><strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro.O pressuposto <strong>de</strong> que a educação a<strong>de</strong>quada à escolarização pública seriaaquela que melhor preparasse para a vida produtiva <strong>do</strong> indivíduo, para o trabalho,foi outra característica particularizada nas preocupações pedagógicas alimentadaspelas reformas Carneiro Leão e Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong>. O intuito erao <strong>de</strong> <strong>de</strong>spertar ou <strong>de</strong>scobrir uma vocação, <strong>de</strong> inculcar uma habilida<strong>de</strong>. O ensi<strong>no</strong>vocacional e os gabinetes <strong>de</strong> orientação profissional <strong>de</strong> certa forma materializavam,em <strong>de</strong>partamentos específicos, a fórmula sob a qual ambas as reformas<strong>de</strong>sejaram equacionar as questões referentes à recomposição <strong>do</strong> sistemapúblico <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> da capital fe<strong>de</strong>ral.E, finalmente, não se po<strong>de</strong> esquecer <strong>do</strong> papel político <strong>de</strong>sempenha<strong>do</strong> pelaescola pública na formação moral e cívica das crianças. Esse foi mais um tópicofreqüentemente reitera<strong>do</strong> <strong>no</strong>s textos oficiais das reformas da instrução<strong>do</strong> perío<strong>do</strong>. O fato <strong>de</strong> que a escola pública servia não apenas para assegurar aauto<strong>no</strong>mia <strong>do</strong> indivíduo, mas também e, sobretu<strong>do</strong>, para garantir a integrida<strong>de</strong>geral da socieda<strong>de</strong> <strong>do</strong>mi<strong>no</strong>u as representações oficiais acerca das finalida<strong>de</strong>sda educação popular. Creio que essas representações revelam o mo<strong>do</strong> comoas reformas <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> procuraram contribuir para a regulamentação da or<strong>de</strong>msocial: conforme as exigências <strong>de</strong> fundamentação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Isto é, conservan<strong>do</strong>as formas <strong>de</strong> relações sociais mais a<strong>de</strong>quadas à essa fundamentação e tornan<strong>do</strong>tal fundamentação um valor reconheci<strong>do</strong> como valor em si mesmo <strong>de</strong>sejávela <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> qualquer diferença étnica, religiosa ou social.Mas não foram somente as referências sociais, econômicas e culturais queganharam contor<strong>no</strong>s específicos quan<strong>do</strong> torna<strong>do</strong>s parte integrante das políticas<strong>de</strong> educação pública. A própria disputa política em tor<strong>no</strong> da implementaçãodas reformas da instrução pública merece ser observada <strong>no</strong>s seus particulares.Dessa perspectiva, a primeira questão que se apresenta é a <strong>do</strong> tempo <strong>de</strong>escolarida<strong>de</strong>. Esse foi o aspecto sobre o qual a discussão acerca das finalida<strong>de</strong>sda educação popular esteve <strong>de</strong>terminada <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> mais preciso. Foi umadiscussão em duas frentes. A primeira visava a solução <strong>de</strong> um problema <strong>de</strong>natureza cívica e nacional realmente grave, na avaliação <strong>de</strong> Carneiro Leão. Aformação das <strong>no</strong>vas gerações foi o motivo <strong>de</strong> um <strong>de</strong>safio intransigente entreduas correntes fortes, li<strong>de</strong>radas por alguns <strong>no</strong>mes <strong>de</strong> muito prestígio e evidênciasociais. De um la<strong>do</strong>, os que queriam a escola primária limitada à alfabetiza-


André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187 163ção em quantida<strong>de</strong> e extensão, <strong>de</strong> outro, os que <strong>de</strong>sejavam elevá-la a função<strong>de</strong> elemento educa<strong>do</strong>r, aparelhada <strong>de</strong> recursos maiores e <strong>de</strong> ação mais prolongadasobre a população. No primeiro caso, a Liga <strong>de</strong> Defesa Nacional (1916)propugnava a alfabetização <strong>do</strong> povo. Acreditava ser maior vantagem elevar <strong>no</strong>máximo o número <strong>do</strong>s que soubessem ler e, para isso, promovia o ensi<strong>no</strong> <strong>de</strong>primeiras letras tão sumário quanto possível. No outro, aqueles que entendiamser o melhor mo<strong>de</strong>lo para a escola pública um ensi<strong>no</strong> primário que <strong>de</strong>sse nãoapenas conhecimentos mais amplos como fosse um seguro início <strong>de</strong> educaçãomoral <strong>no</strong> preparo <strong>do</strong> cidadão capaz <strong>de</strong> cooperar com o país. Desse grupo não sóresultou a Associação <strong>Brasil</strong>eira <strong>de</strong> Educação (1924) como também diversasadministrações da Diretoria Geral <strong>de</strong> Instrução Pública <strong>no</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral. Osa<strong>de</strong>ptos da Liga costumavam <strong>de</strong>nunciar a dilatada duração <strong>do</strong>s cursos primários,as exigências <strong>de</strong> uniforme, os programas pedantescos, enfim, o escárnio àpobreza produzida na escola pública como impedimento à extensão da alfabetização.Já a ABE e mesmo diversos Diretores da Instrução carioca reconheciamna mera alfabetização, <strong>de</strong>sacompanhada da educação, “da verda<strong>de</strong>ira educação<strong>do</strong>s sentimentos”, um perigo individual e social <strong>do</strong>s mais graves 14 .A segunda frente, reuniu posições acerca <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong>. Ela foimais consensual e respon<strong>de</strong>u pela modificação <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s, seu leitmotiv eraa otimização <strong>do</strong>s procedimentos pedagógicos. Ela não dividiu posições, maspreocupações. De um la<strong>do</strong>, esteve em jogo a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aumentar a populaçãoescolar, pelo emprego <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> <strong>do</strong>is tur<strong>no</strong>s, <strong>de</strong> outro a eficiência <strong>do</strong>trabalho escolar, pelo cuida<strong>do</strong> com as prescrições acerca da duração das liçõese das tarefas, a extensão das ativida<strong>de</strong>s e o rendimento <strong>do</strong>s alu<strong>no</strong>s.À disposição <strong>do</strong>s “tempos” <strong>de</strong> aprendizagem seguiu-se a preocupação comsua relação com as condições <strong>de</strong> vida da população. Entrementes, não só aspreocupações com a ação pedagógica ou a formação escolar <strong>de</strong>tiveram a atenção<strong>do</strong>s reforma<strong>do</strong>res da instrução pública nesse perío<strong>do</strong>, as implicações produzidaspelas mudanças <strong>do</strong>s horários <strong>de</strong> entrada e saída da escola e, mesmodas condições <strong>de</strong> <strong>de</strong>slocamento <strong>do</strong>s alu<strong>no</strong>s que completavam o ensi<strong>no</strong> primáriopara os cursos anexos, a Escola Normal ou a uma das escolas profissio-14 CARVALHO, Marta Maria Chagas <strong>de</strong>. Mol<strong>de</strong> nacional e fôrma cívica: história, morale trabalho <strong>no</strong> projeto da Associação <strong>Brasil</strong>eira <strong>de</strong> Educação (1924-1931). São Paulo:USF/FAPESP, 1999.


164André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187nais criou polêmica. As distâncias percorridas pelas crianças para chegar àescola, as formas <strong>de</strong> transporte utilizadas para tanto e o trabalho exerci<strong>do</strong> pelainfância pobre eram percebi<strong>do</strong>s pelas autorida<strong>de</strong>s <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> e incorpora<strong>do</strong>spelas colunas da imprensa ao universo escolar <strong>de</strong> preocupações com a educação,já articuladas às exigências por que passavam as populações da periferiaurbana para freqüentar a escola.Outro ponto <strong>de</strong> disputa diz respeito aos aspectos materiais da escolarização.A infra-estrutura necessária para erradicar o analfabetismo da capital republicanafoi o ponto nevrálgico <strong>de</strong> ambas as reformas da instrução. No esforço<strong>de</strong> <strong>no</strong>rmalização <strong>do</strong>s valores morais prescritos pelos programas <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> escolaras reformas da instrução <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro procuraram configurar as <strong>no</strong>ções<strong>de</strong> higiene, nação e trabalho e, também, os padrões orais e escritos dacultura letrada por meio <strong>do</strong> investimento material. As fichas médicas, psicológicase pedagógicas, as solenida<strong>de</strong>s, os exercícios físicos, as exposições escolarese os trabalhos manuais, nesse senti<strong>do</strong>, permitiram a circulação tanto <strong>de</strong>uma escrituração cotidiana das categorias psicológicas solicitadas na aprendizagemquanto <strong>do</strong>s dispositivos <strong>de</strong> disciplina <strong>do</strong> corpo. Uma e outra implicadascom o inventário, a distribuição e os usos <strong>do</strong>s objetos capazes <strong>de</strong> conferir umsenti<strong>do</strong> funcional à linguagem, ao juízo e ao gosto burgueses. É dizer que asreformas <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> público procuraram fazer a criança viver uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>ou cultura objetivada, hierarquizada e refundida por processos e recursos implica<strong>do</strong>scom a contextualida<strong>de</strong> (o prédio escolar, os museus, pinacotecas, fábricas,feiras, jardins e repartições públicas, a biblioteca, o cinema e exposiçõesdiversas) ou materialida<strong>de</strong> (materiais fitológicos, zoológicos ougeológicos, <strong>de</strong> higiene ou <strong>de</strong> produção, tabuleiro <strong>de</strong> areia) da aprendizagem.Tratava-se <strong>de</strong> reorganizar o próprio espaço da educação. Entre 1922 e 1930,as reformas <strong>do</strong>s programas <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> escolares tornaram discurso pedagógicoa organização das formas <strong>de</strong> vida social segun<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>los <strong>de</strong> representaçãoe <strong>de</strong> práticas ofereci<strong>do</strong>s à observação por tec<strong>no</strong>logias materiais. O cinemaeducativo, o edifício da escola e o estu<strong>do</strong> da cida<strong>de</strong> contextualizavam aeducação num ambiente <strong>de</strong> convivência social e materializavam a aprendizagemda criança fazen<strong>do</strong>-a observar o filme, a arquitetura e a cida<strong>de</strong>. Po<strong>de</strong>-se<strong>de</strong>duzir que os embates em tor<strong>no</strong> da implementação <strong>de</strong> um tal pla<strong>no</strong> <strong>de</strong> reformanão se <strong>de</strong>ram em tor<strong>no</strong> <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> mas <strong>do</strong> orçamento. Enquanto o planejamentodas reformas <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> público foi alvo <strong>de</strong> um trabalho tecnicamentecuida<strong>do</strong>so <strong>de</strong> reorganização das referências profissionais <strong>do</strong> professora<strong>do</strong>


André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187 165e <strong>de</strong> enunciação das “<strong>no</strong>vas” fórmulas pedagógicas, o trabalho político concentrou-sena consolidação <strong>de</strong> um orçamento suficiente para a reestruturaçãoplanejada <strong>do</strong> sistema escolar público.Diferente <strong>do</strong> que se po<strong>de</strong>ria chamar <strong>de</strong> referências i<strong>de</strong>ológicas das estratégias<strong>de</strong> ação da Diretoria <strong>de</strong> Instrução sobre as práticas <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> utilizadas naescola pública, as negociações em tor<strong>no</strong> <strong>do</strong> tempo <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> e <strong>de</strong> infraestrutura<strong>do</strong> aparelho escolar da capital não se limitaram às iniciativas administrativas,<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ram, sobretu<strong>do</strong>, da eficiência <strong>de</strong>ssas iniciativas em reorganizar osistema público <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> municipal <strong>no</strong>s seus diferentes níveis: primário, <strong>no</strong>rmale profissional. Parece-me estar aí a tarefa principal das reformas <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong>público da capital fe<strong>de</strong>ral nesse perío<strong>do</strong>: na reestruturação <strong>do</strong> sistema <strong>de</strong> educaçãopública vislumbrou-se um meio <strong>de</strong> cumprir um amplo programa <strong>de</strong> reformasocial, uma espécie <strong>de</strong> revolução branca, sem armas.2. A reorganização <strong>do</strong> sistema público <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> da capital fe<strong>de</strong>ralPor trás <strong>de</strong>ssa tarefa, havia a ambição <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r fazer da escola um espaço<strong>de</strong> formação profissional e <strong>de</strong> emancipação social. Para a Diretoria Geral <strong>de</strong>Instrução <strong>do</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral, as várias aparelhagens que eram os programas<strong>de</strong> ensi<strong>no</strong>, o regulamento <strong>de</strong> educação, as instituições <strong>de</strong> assistência social eos prédios escolares ofereciam os meios <strong>de</strong> transformação da escola pública.Por meio <strong>de</strong>sses dispositivos, entre 1922 e 1930, a escola pública promoveuuma fórmula <strong>de</strong> mediação das relações entre a infância, a família, a cultura, aeco<strong>no</strong>mia e o esta<strong>do</strong> que esteve comprometida com a busca <strong>de</strong> uma respostapara os problemas <strong>de</strong> pobreza, diversida<strong>de</strong> cultural e vida urbana que dificultavama administração da vida social pelos po<strong>de</strong>res públicos. As conexões entreescola e ambiente social foram tornadas mais explícitas <strong>no</strong> discurso públicoe os educa<strong>do</strong>res que atuaram <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro aumentaram suas basespopulares e apoio político apelan<strong>do</strong> aos interesses da classe média urbana 15 .15PERALVA, Angelina Teixeira. Classe Moyenne, luttes sociales et education au Brésil.Tese <strong>de</strong> <strong>do</strong>utora<strong>do</strong>. Paris: Institut D’Etu<strong>de</strong> du Developpement Eco<strong>no</strong>mique et Social,Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Paris I, 1986. p. 98-220; SAES, Décio. Classe média e política na Primeirarepública brasileira (1889-1930). Petrópolis-RJ: Vozes, 1975; COSTA, Bolivar.O drama da classe média. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz e Terra, 1973. p. 81-90.


166André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187As mudanças <strong>do</strong>s programas escolares, que favoreciam a construção <strong>de</strong> umalinguagem nacional, <strong>de</strong> uma ética <strong>do</strong> trabalho e o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> carátercontavam com a aquiescência <strong>do</strong>s literati da cida<strong>de</strong>. O apelo à filantropia daboa socieda<strong>de</strong> fizeram-na participar das iniciativas <strong>do</strong> esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> assistir a infânciapobre nas escolas públicas. As perspectivas administrativas regulamentarampadrões <strong>de</strong> formação das crianças e visibilida<strong>de</strong> da or<strong>de</strong>m implica<strong>do</strong>s coma idéia <strong>de</strong> um serviço social para a comunida<strong>de</strong>.Em contrapartida, a re<strong>de</strong>finição <strong>do</strong>s vínculos da escola com o po<strong>de</strong>r públicoenvolveu o estabelecimento <strong>de</strong> dispositivos capazes <strong>de</strong> operacionalizar o esforço<strong>de</strong> sistematização da educação popular. O planejamento, a avaliação e o<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ssa tarefa coletiva e cheia <strong>de</strong> propósitos requisitou <strong>no</strong>vassoluções <strong>de</strong> escolarização. Entre 1922 e 1930, elas foram se suce<strong>de</strong>n<strong>do</strong> <strong>no</strong> discursoda Diretoria Geral <strong>de</strong> Instrução Pública. Primeiro, um <strong>no</strong>vo méto<strong>do</strong> <strong>de</strong>ensi<strong>no</strong>-aprendizagem daria ênfase aos meios ativos <strong>de</strong> educação. Em seguida,os programas <strong>de</strong> assistência social e <strong>de</strong> controle sanitário incorpora<strong>do</strong>s aosprocessos <strong>de</strong> escolarização fariam <strong>do</strong> melhoramento social também uma tarefaescolar. Depois, haveria um conjunto <strong>de</strong> tensões culturais que se procurariaresolver mediante a escola. Ainda teriam lugar <strong>no</strong>s discursos <strong>do</strong> <strong>de</strong>partamento<strong>de</strong> instrução interesses sobre o ensi<strong>no</strong> profissional e a organização <strong>do</strong> trabalholivre <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os bancos escolares. Finalmente, através <strong>do</strong> aproveitamento<strong>de</strong> saberes, <strong>de</strong> técnicas e <strong>de</strong> recursos associa<strong>do</strong>s a ação governamental, os méto<strong>do</strong>sativos <strong>de</strong> educação seriam enuncia<strong>do</strong>s como um conhecimento especializa<strong>do</strong>em prol <strong>do</strong> avanço da socieda<strong>de</strong>.A pedagogia centrada na criança alterou as fórmulas <strong>de</strong> escolarização <strong>do</strong>po<strong>de</strong>r público <strong>no</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral. Inicialmente, foi veiculada como um méto<strong>do</strong><strong>de</strong> observação direta da realida<strong>de</strong>. Sem procurar escrever meto<strong>do</strong>logia, CarneiroLeão orientou-a para a fixação da realida<strong>de</strong> como motivo <strong>de</strong> cultura e para aobservação e a ação como méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> trabalho 16 . Já sob Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong>os programas escolares organizavam a matéria a ensinar em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> três ouquatro gran<strong>de</strong>s centros <strong>de</strong> interesse na mesma medida em que enfatizavam aativida<strong>de</strong> e o trabalho individual e coletivo <strong>do</strong>s alu<strong>no</strong>s. O ensi<strong>no</strong> precisava <strong>de</strong>16CARNEIRO LEÃO, Antônio. Planejar e agir. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jornal <strong>do</strong> Commercio,1942. p. 74-75.


André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187 167um tempo flexível <strong>de</strong> realização, que se ajustasse às necessida<strong>de</strong>s e aos interessespsicológicos <strong>do</strong>s alu<strong>no</strong>s. A partir <strong>de</strong> 1929 os programas <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> das escolasprimárias propunham experiências com os conceitos, excursões e a ativida<strong>de</strong>conjunta <strong>de</strong> professor e alu<strong>no</strong>s. O ensi<strong>no</strong> público, nesse momento, estava abertoà vida prática, isto é, às tarefas <strong>de</strong> elaboração e pesquisa <strong>do</strong>s próprios alu<strong>no</strong>s.Em contrapartida, solicitou técnicas, instituições e instrumentos capazes <strong>de</strong>manter a or<strong>de</strong>m, assim como inculcar a disciplina, na plenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma experiênciaconcreta e vivida.A incorporação <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas sociais <strong>no</strong>s processos <strong>de</strong> educação das criançasse <strong>de</strong>u paralelamente à organização das ciências sociais como disciplina.Foi uma época <strong>de</strong> numerosos lançamentos <strong>de</strong> obras <strong>de</strong> sociologia. Só <strong>no</strong>sprimeiros a<strong>no</strong>s da década <strong>de</strong> 1920 foram publica<strong>do</strong>s uma série inteira <strong>de</strong> livros:O povo brasileiro e sua evolução (1922), Populações Meridionaes <strong>do</strong><strong>Brasil</strong> (1922) e Peque<strong>no</strong>s estu<strong>do</strong>s <strong>de</strong> psycologia social (1923), <strong>de</strong> OliveiraVianna, A questão social (1922), <strong>de</strong> Antônio <strong>de</strong> Sampaio Dória, <strong>Brasil</strong> e a raça(1928) e A formação espiritual <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> (1930), <strong>de</strong> Antônio Batista Pereira,Princípios <strong>de</strong> sociologia jurídica (1922), <strong>de</strong> Eusébio <strong>de</strong> Queirós Lima, Retrato<strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> (1928), <strong>de</strong> Paulo Pra<strong>do</strong> e O Brazil na América (1929), <strong>de</strong> Ma<strong>no</strong>elBomfim. Também foi um perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> intensa ativida<strong>de</strong> em tor<strong>no</strong> das ambiçõese <strong>de</strong>sejos <strong>de</strong> melhoramento social. Em 1923 a fundação da Liga <strong>Brasil</strong>eira <strong>de</strong>Higiene Mental, em 1924 a organização da Associação <strong>Brasil</strong>eira <strong>de</strong> Educação,em 1929 a criação da Fe<strong>de</strong>ração Nacional das Socieda<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Educação emesmo toda a movimentação partidária que ia da fundação <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunistaem 1922 e <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Democrático <strong>do</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral em 1927 representarammanifestações relevantes e autênticas <strong>de</strong> um esforço <strong>de</strong> aperfeiçoamentosocial. Ainda funcionavam na capital fe<strong>de</strong>ral o Instituto <strong>de</strong> Proteção àInfância, a se<strong>de</strong> da Cruz Vermelha <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> e os institutos Manguinhos eBenjamin Constant. Toda essa movimentação envolveu a escola pública. Osdiscursos <strong>de</strong> Carneiro Leão e Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> traziam-lhe o compromissocom a melhoria das condições <strong>de</strong> vida e a eliminação da miséria 17 . Asfichas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> eram vistas como um meio <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar as fontes <strong>de</strong> males17 AZEVEDO, Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong>. Novos caminhos e <strong>no</strong>vos fins: a <strong>no</strong>va política <strong>de</strong> educação<strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>. São Paulo: Melhoramentos, 1931. p. 165; CARNEIRO LEÃO, Antônio. op.cit. p. 99-102.


168André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187sociais como a pobreza e as <strong>do</strong>enças. A ênfase <strong>do</strong>s programas escolares naeducação sanitária e na higiene foi consi<strong>de</strong>rada uma abordagem que po<strong>de</strong>ria<strong>de</strong>terminar uma ação eficaz <strong>de</strong> melhoramento social. Entre 1922 e 1929 a educaçãopública foi associada a um conjunto <strong>de</strong> práticas e convicções sociaisque surgidas <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um segmento das classes médias urbanas alcançariaas classes populares mediante a sua escolarização.A extensão que se pretendia dar ao processo <strong>de</strong> escolarização tinha baseem prescrições tanto sociais quanto morais. O esvaziamento <strong>do</strong> conflito social<strong>no</strong> ambiente escolar foi evi<strong>de</strong>nte na linguagem e <strong>no</strong> tom <strong>do</strong>s textos manusea<strong>do</strong>spelo magistério. Em contrapartida, indicavam que os alu<strong>no</strong>s <strong>de</strong> qualquerescola pública eram suscetíveis aos mesmos padrões <strong>de</strong> conduta e aprendizagem.Por isso, o controle solicita<strong>do</strong> às professoras visava àqueles indivíduose grupo que divergiam da <strong>no</strong>rma. O esforço para fazer da instrução públicauma organização específica <strong>de</strong> relações sociais dissociadas <strong>de</strong> conflitos <strong>de</strong>classe aju<strong>do</strong>u na formulação <strong>de</strong> uma estrutura educacional que ampliava asestratégias e as práticas <strong>de</strong> controle e disciplina das crianças para além <strong>do</strong>sresulta<strong>do</strong>s escolares. Interessavam também os mecanismos <strong>de</strong> permanência ea qualida<strong>de</strong> da freqüência <strong>de</strong>ssas crianças. Manter sob o <strong>do</strong>mínio público aformação moral, intelectual e física das crianças das classes populares foi um<strong>do</strong>s objetivos <strong>de</strong>sse esforço. Carneiro Leão e Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> relacionarama organização da socieda<strong>de</strong> com o indivíduo e a família para proporemreformas <strong>no</strong> aparelho <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> público 18 . Paralelamente, <strong>de</strong>senvolveram e implementaramações que permitiam testemunhar os efeitos das atitu<strong>de</strong>s individuaissobre a comunida<strong>de</strong>, posicionan<strong>do</strong>-os como questões <strong>de</strong> gover<strong>no</strong>. As práticas<strong>de</strong> trabalho em comunida<strong>de</strong>, os instrumentos <strong>de</strong> controle, inspeção eeducação sanitária, os jogos e os méto<strong>do</strong>s ativos <strong>de</strong> aprendizagem criavam condições<strong>de</strong> avaliar as capacida<strong>de</strong>s pessoais que levariam a uma adaptação bemsucedida <strong>do</strong> indivíduo ao seu meio. Não obstante essas ações, relações, formulaçõese indicações conterem os valores <strong>de</strong> um projeto liberal <strong>de</strong> educaçãotambém impunham categorias, distinções e diferenças <strong>de</strong>terminadas por umamoralida<strong>de</strong> postulada <strong>no</strong> âmbito <strong>do</strong>s <strong>de</strong>veres <strong>do</strong> cidadão, conforme o entendi-18 CARNEIRO LEÃO, Antônio. O ensi<strong>no</strong> na capital <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. Rio <strong>de</strong> janeiro: Typ. <strong>do</strong> Jornal<strong>do</strong> Commercio, 1926. p. 127; AZEVEDO, Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong>. “A socialização da escola.” Boletim<strong>de</strong> Educação Pública. A<strong>no</strong> I, n.º 2, Rio <strong>de</strong> Janeiro, julho – setembro <strong>de</strong> 1930. p. 133.


André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187 169mento <strong>de</strong> Rui Beisiegel das conexões entre mudança social e mudança educacionalconstruídas <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong> 19 .A Diretoria Geral <strong>de</strong> Instrução Pública <strong>do</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral tomou o ensi<strong>no</strong>profissional como instrumento <strong>de</strong> educação técnica e, também, social dapopulação pobre. De fato, entre as finalida<strong>de</strong>s que o Decreto n.º 2.940 previupara o ensi<strong>no</strong> técnico profissional constavam a elevação <strong>do</strong> “nível moral e intelectual<strong>do</strong> operaria<strong>do</strong>” e o <strong>de</strong>senvolvimento, nesses trabalha<strong>do</strong>res, da “consciênciadas bases científicas e da significação social <strong>de</strong> sua arte” 20 . Se existiu,<strong>no</strong>s primeiros a<strong>no</strong>s da década <strong>de</strong> 1920, muita preocupação com a orientaçãoprofissional <strong>do</strong>s alu<strong>no</strong>s ainda <strong>no</strong> ensi<strong>no</strong> primário, em 1928, havia também oesforço <strong>de</strong> aliar à aprendizagem <strong>de</strong> um ofício uma preparação escolar <strong>de</strong> prestígiocultural. As soluções encontradas para conjugar termos sociais e moraisao discurso da formação técnico-profissional repercutiram representaçõessobre as condições <strong>de</strong> mudança social das famílias <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>res. De mo<strong>do</strong>que os méto<strong>do</strong>s propostos e a organização conseguida para as escolas e institutosprofissionais <strong>do</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral buscavam <strong>no</strong> culto da “ascensão individual”,<strong>do</strong> “emprego” e da “in<strong>de</strong>pendência econômica” promover o interesse<strong>de</strong>ssa parcela da população. O <strong>de</strong>bate que se seguiu mostrou-os a mercê <strong>de</strong>uma especialização que já se refletia em cada passo da produção industrial.As idiossincrasias entre as possibilida<strong>de</strong>s técnicas <strong>de</strong> operações produtivas específicase as preocupações didáticas com o trabalho huma<strong>no</strong> restringiu, porum la<strong>do</strong>, a Escola Álvaro Baptista ao ensi<strong>no</strong> <strong>de</strong> artes gráficas, a Escola Viscon<strong>de</strong><strong>de</strong> Cayrú ao ensi<strong>no</strong> <strong>de</strong> marcenaria e obras em ma<strong>de</strong>ira, o Instituto JoãoAlfre<strong>do</strong> ao ensi<strong>no</strong> <strong>de</strong> eletro-técnica e mecânica e a Escola Amaro Cavalcantiao ensi<strong>no</strong> comercial. De outra parte, a <strong>de</strong>fesa senão <strong>de</strong> uma imitação da realida<strong>de</strong>social da produção industrial, da necessida<strong>de</strong> das escolas profissionaiscorrespon<strong>de</strong>rem a essa realida<strong>de</strong> com uma produção capaz <strong>de</strong> concorrer <strong>no</strong>smerca<strong>do</strong>s com a indústria armou <strong>de</strong> argumentos a reivindicação da faculda<strong>de</strong>das oficinas das Escolas e Institutos Profissionais aceitarem encomendas relativasa sua especialida<strong>de</strong>. Esta efervescência curricular acerca da formaçãotécnica, moral e intelectual <strong>do</strong> operaria<strong>do</strong>, apesar <strong>de</strong> excluir algumas perspectivassociais da profissionalização, procurou favorecer aqueles que se <strong>de</strong>stina-19BEISIEGEL, Celso <strong>de</strong> Rui. Esta<strong>do</strong> e educação popular. São Paulo: Pioneira, 1974. p. 27-59.20 DISTRITO FEDERAL. Decreto n.º 3281, <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 1928. Art. 269, alínea b e c.


170André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187vam ao trabalho manual apelan<strong>do</strong> diretamente para interesses <strong>de</strong> “uma socieda<strong>de</strong>baseada na organização <strong>do</strong> trabalho e da indústria” 21 .Face a re<strong>de</strong> <strong>de</strong> instituições que se projetou sobre a escola pública surgirampadrões específicos <strong>de</strong> organização <strong>do</strong>s serviços <strong>de</strong> educação <strong>do</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral.A pedagogia centrada na criança, a incorporação <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandas sociais <strong>no</strong>sprocessos <strong>de</strong> educação e as prescrições morais indicadas para a instrução <strong>de</strong>massa tiveram conseqüências imediatas nas práticas diárias da escola. Os serviços<strong>de</strong> assistência e prevenção médica, a educação física, os meios utiliza<strong>do</strong>spara proporcionar meios planeja<strong>do</strong>s para governar a espontaneida<strong>de</strong> infantil eencorajar a solidarieda<strong>de</strong> e a bonda<strong>de</strong> entre as crianças apareceram como umaexpressão das mudanças que naquele momento a Diretoria Geral <strong>de</strong> InstruçãoPública procurou provocar <strong>no</strong> conhecimento que organizava as práticas <strong>de</strong> sala<strong>de</strong> aula e ensi<strong>no</strong>. E, <strong>de</strong> certa forma, serviram <strong>de</strong> apoio para uma arquitetura <strong>de</strong>vínculos entre as rotinas da escola e as práticas sociais e econômicas úteis parauma socieda<strong>de</strong> que enfrentava a industrialização, a urbanização e a “assimilação”<strong>de</strong> populações <strong>de</strong> imigrantes, <strong>de</strong> emigrantes e <strong>de</strong> marginaliza<strong>do</strong>s.A vaga reformista que na década <strong>de</strong> 1920 alterou as fórmulas <strong>de</strong> escolarização<strong>no</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral proce<strong>de</strong>u <strong>de</strong> operações, usos e conexões institucionaisconseguidas em negociações hábeis, ou ardilosas. Alguma evi<strong>de</strong>nciamostra sua ênfase na construção <strong>de</strong> enuncia<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> dispositivos, <strong>de</strong> instrumentose <strong>de</strong> tec<strong>no</strong>logias para controlar as funções <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> das escolas públicasdurante a realização das reformas na estrutura <strong>de</strong> escolarização da capital. Oque supõe o reconhecimento das diversas operações <strong>de</strong> construção <strong>do</strong> senti<strong>do</strong><strong>de</strong> instrução pública efetivadas pelas reformas que Antônio Carneiro Leão e Fernan<strong>do</strong><strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> comandaram entre 1922 e 1930. Mas não se po<strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>rinteiramente o empreendimento somente pela sua pertinência operatória.Também os agenciamentos sociais, os aparelhos <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> e a i<strong>de</strong>ologia que aconfigura e as re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> práticas que organizou-a histórica e socialmente são indícios<strong>de</strong> uma eficácia política. Do mesmo mo<strong>do</strong>, as técnicas e as estratégias pelasquais se fizeram engendrar <strong>no</strong>s pla<strong>no</strong>s <strong>de</strong> educação das escolas públicas dacapital <strong>de</strong>ixaram vestígios nas reformas <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1922 a 1930.21AZEVEDO, Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong>. Novos caminhos e <strong>no</strong>vos fins: a <strong>no</strong>va política <strong>de</strong> educação<strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>. op. cit., p. 47; MENDONÇA, Edgard Süssekind <strong>de</strong>. A produção industrial nasescola profissionaes. In.: Boletim <strong>de</strong> Educação Pública, a<strong>no</strong> I, n.º 2, p. 222-238, abr./jun. 1930. p. 225.


André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187 1713. Instrução pública e educação popularUm princípio geral <strong>no</strong> que diz respeito ao entendimento das práticas, <strong>do</strong>sinstrumentos e <strong>do</strong>s dispositivos postos em funcionamento durante as reformas<strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> público na década <strong>de</strong> 1920: parece-me que a movimentação social <strong>de</strong>fins da década <strong>de</strong> 1910 e na reorganização política da década <strong>de</strong> 1920 concretizadasna organização <strong>do</strong> Parti<strong>do</strong> Comunista, <strong>do</strong> Bloco Operário Camponês e <strong>do</strong>Parti<strong>do</strong> Democrático tor<strong>no</strong>u manifesta a violação das convicções intelectuaisdaqueles que governavam. Ao mesmo tempo foi o apogeu da penetração <strong>de</strong> intelectuais<strong>no</strong> gover<strong>no</strong>. Acusada <strong>de</strong> não cumprir as suas promessas, <strong>de</strong> trair seussonhos, a República recolheu aos seus gabinetes, confortáveis e bem mobilia<strong>do</strong>s,os intelectuais dispostos em acomodá-la numa autorida<strong>de</strong> planifica<strong>do</strong>ra sem fazervacilar a or<strong>de</strong>m social vigente. Neles repousou a ansieda<strong>de</strong> nascida da ausência<strong>de</strong> instrução da população, largada à mingua nas fronteiras da or<strong>de</strong>m e da moralida<strong>de</strong>.E, também, a convicção <strong>de</strong> que só a educação <strong>do</strong> povo seria capaz <strong>de</strong> dissiparos <strong>de</strong>vaneios da fantasia republicana, aquela que proclamou a igualda<strong>de</strong> <strong>de</strong>to<strong>do</strong>s perante a lei, mas ao mesmo tempo apunhalou-a em <strong>no</strong>me <strong>do</strong>s privilégiosparticulares, <strong>do</strong>s favores políticos e <strong>do</strong> racismo científico; <strong>de</strong>clarou a <strong>de</strong>mocraciasagrada, mas submeteu-a aos constrangimentos das oligarquias agrárias e,ainda, afirmou a soberania das leis, enquanto era governada por <strong>de</strong>spóticos Presi<strong>de</strong>ntesou por estranhas entida<strong>de</strong>s assemelhadas. Essa convicção apoiou bemas pretensões <strong>de</strong>sses intelectuais a um papel <strong>de</strong>staca<strong>do</strong> <strong>no</strong> processo <strong>de</strong> acusaçãoda República, mas sobretu<strong>do</strong>, <strong>no</strong>s procedimentos <strong>de</strong> consagração <strong>de</strong> <strong>no</strong>vospadrões <strong>de</strong> verda<strong>de</strong>, beleza e bonda<strong>de</strong>.É preciso não esquecer que essa convicção foi o gran<strong>de</strong> fenôme<strong>no</strong> em tor<strong>no</strong>e a partir <strong>de</strong> que pensou-se a reestruturação <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> público <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro.Ao me<strong>no</strong>s é essa a interpretação que Jorge Nagle dá às discussões sobre aeducação pública quan<strong>do</strong> analisa o mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> escolarização articula<strong>do</strong> nasreformas <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> durante a década <strong>de</strong> 1920. Indica como seu responsáveluma <strong>no</strong>va categoria profissional, o técnico em educação: “Este é que vai daípor diante tratar com quase exclusivida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s assuntos educacionais. (...) Analisa<strong>do</strong>spelos técnicos os problemas [<strong>de</strong> educação] se comprimem num <strong>do</strong>mínioespecializa<strong>do</strong>, e se segregam, ao serem me<strong>no</strong>spreza<strong>do</strong>s as vinculações comos problemas <strong>de</strong> outra or<strong>de</strong>m” 22 .22NAGLE, Jorge. Educação e socieda<strong>de</strong> na Primeira República. São Paulo: EPU; Rio<strong>de</strong> Janeiro: Fundação Nacional <strong>do</strong> Material Escolar, 1974. p. 102.


172André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187Os limites, entretanto, que Jorge Nagle confere a análise <strong>do</strong>s problemaseducacionais dificultam o entendimento <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> político da ação reformistaimpingida ao sistema público <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong>. Para ele, as reformas da instruçãopública realizam-se na mesma medida em que conseguiam organizar oensi<strong>no</strong> público <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com um méto<strong>do</strong> <strong>de</strong> gestão administrativa baseada<strong>no</strong> conhecimento científico <strong>do</strong> meio, com largas perspectivas sociais e abertapara as idéias amplamente re<strong>no</strong>va<strong>do</strong>ras que, segun<strong>do</strong> seu entendimento, sopravam<strong>de</strong> todas as direções. Foi Marta Carvalho quem <strong>no</strong>tou o quanto semelhanteé essa análise da interpretação dada às reformas <strong>do</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral e MinasGerais por Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> na A Cultura <strong>Brasil</strong>eira.É justamente com os limites da interpretação <strong>de</strong> Jorge Nagle que MartaCarvalho opera sua crítica ao projeto político embota<strong>do</strong> <strong>no</strong>s programas <strong>de</strong> reformada educação pública durante a década <strong>de</strong> 1920. Ela compreen<strong>de</strong> o movimento<strong>de</strong> remo<strong>de</strong>lação <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> público a partir <strong>de</strong> suas cores políticas.Ao contrário <strong>de</strong> Nagle, que acreditava terem as reformas <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> público<strong>do</strong> perío<strong>do</strong> transforma<strong>do</strong> um programa mais amplo <strong>de</strong> ação social num restritoprograma <strong>de</strong> formação na qual a escolarização era concebida como a maiseficaz alavanca da história brasileira, diz ela se tratar <strong>de</strong> uma resposta política:“uma das respostas políticas ensaiadas por setores da intelectualida<strong>de</strong> brasileirana re<strong>de</strong>finição <strong>do</strong>s dispositivos <strong>de</strong> <strong>do</strong>minação vigentes” 23 .Trinta a<strong>no</strong>s <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> instalada, a República era vista como uma vítimadas relações históricas, uma <strong>no</strong>va espécie <strong>de</strong> Argus burocrático: ao invés <strong>de</strong>ver, era visto, e com maus olhos. Buscava-se uma <strong>no</strong>va realida<strong>de</strong>, uma transformaçãoda consciência nacional, na verda<strong>de</strong>, uma consciência nacional. O <strong>de</strong>sejo<strong>do</strong> <strong>no</strong>vo trouxe consigo o <strong>de</strong>sejo <strong>de</strong> fazer tábula rasa <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>, cuja<strong>de</strong>finição política Zygmunt Bauman encontrou junto a idéia <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> cultivadapelas classes instruídas <strong>de</strong> fins <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong>: “Como o i<strong>de</strong>al que buscavam,o Esta<strong>do</strong> das classes instruídas pertencia ao futuro. Isso o tornava mais aindaum local <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, não estorva<strong>do</strong> por experiência solene <strong>de</strong> prática política;a necessida<strong>de</strong>, por assim dizer, <strong>de</strong>via ser vislumbrada apenas junto com airrevogável certeza <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>” 24 .23 CARVALHO, Marta Maria Chagas <strong>de</strong>. “Notas para reavaliação <strong>do</strong> movimento educacionalbrasileiro (1920-1930). Ca<strong>de</strong>r<strong>no</strong>s <strong>de</strong> Pesquisa. São Paulo (66): 4-11, agosto <strong>de</strong> 1988. p. 7.24 BAUMAN, Zygmunt. Mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e ambivalência. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Jorge Zahar, 1999. p. 46.


André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187 173Predizer o futuro foi muito <strong>do</strong> que fizeram os intelectuais envolvi<strong>do</strong>s nasreformas da instrução pública <strong>no</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral durante a década <strong>de</strong> 1920.E isso <strong>no</strong>s <strong>do</strong>is senti<strong>do</strong>s aponta<strong>do</strong>s por Bauman, o <strong>do</strong> i<strong>de</strong>al e o da política. Dessaperspectiva, a obra <strong>de</strong> Vicente Lícinio Car<strong>do</strong>so, subdiretor técnico da reformaFernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> e um <strong>do</strong>s maiores expoentes da campanha em prolda educação popular durante a década <strong>de</strong> 1920, revelava muito <strong>do</strong> senti<strong>do</strong> toma<strong>do</strong>pelas reformas da instrução pública quan<strong>do</strong> dizia:“Instruir é formar cidadãos, é sanear mentalmente, é fundamentar oslaços da coletivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro da unida<strong>de</strong> da Pátria. República só po<strong>de</strong>ser concebida como forma <strong>de</strong> gover<strong>no</strong> <strong>de</strong> uma organização vitalmente<strong>de</strong>mocrática. Democracia pressupõe instrução difundida e dilatada. Instruiré pois <strong>de</strong>mocratizar o homem e republicanizar as instituições políticas.Num meio inculto instruir é <strong>de</strong> fato governar sabiamente” 25 .Da política exigiu-se um compromisso com a Nação. Carneiro Leão aoencerrar o relatório sobre a administração <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> municipal em 1925 nãohesita na afirmação:“É, portanto, <strong>no</strong>sso <strong>de</strong>ver procurar to<strong>do</strong>s os meios, fazer to<strong>do</strong>s os sacrifícios,cortar em toda parte, para não comprometermos o futuro dascrianças <strong>de</strong> hoje, daqueles que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m exclusivamente <strong>de</strong> nós. ANação <strong>de</strong> amanhã, feita por eles, a <strong>de</strong> ser me<strong>no</strong>s a obra <strong>de</strong>les próprios,<strong>do</strong> seu valor intrínseco, <strong>do</strong> que da capacida<strong>de</strong> e das possibilida<strong>de</strong>s quelhes <strong>de</strong>rmos para a realizarem” 26 .O que se pergunta agora é justamente sobre os meios, os sacrifícios e osprojetos que <strong>de</strong>veriam constituir as reformas da instrução articuladas para realizara utopia da educação popular, para assegurar o progresso da “Nação <strong>de</strong>amanhã”. Mas, antecipadamente, <strong>de</strong>ve-se sublinhar que a abordagem <strong>de</strong>ssaquestão far-se-á <strong>no</strong>s limites <strong>do</strong>s textos oficiais, das iniciativas usuais enceta-25CARDOSO, Vicente Lícinio. “À margem da república.” In.: CARDOSO, Vicente Lícinioet. al. À margem da história da república. 2ª edição, 2 volumes, Brasília: Editora Universida<strong>de</strong><strong>de</strong> Brasília, 1981. (Biblioteca <strong>do</strong> pensamento político republica<strong>no</strong>, 8). p. 109.26 CARNEIRO LEÃO, Antônio. O ensi<strong>no</strong> na capital <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. op. cit., p. 214.


174André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187das pelas reformas Carneiro Leão e Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong>. Portanto, trata-seme<strong>no</strong>s <strong>de</strong> uma discussão acerca das disputas políticas em tor<strong>no</strong> da educaçãopopular que <strong>de</strong> uma reflexão sobre a arquitetura <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r construída para controlaros negócios da instrução pública.Assim, procurarei tomar como ponto <strong>de</strong> partida para esta reflexão os dispositivosutiliza<strong>do</strong>s pela Diretoria Geral <strong>de</strong> Instrução Pública para condicionaro funcionamento da instituição escolar. Meu itinerário será: a atualização dasreferências teóricas da pedagogia, a modificação <strong>do</strong>s programas escolares, alegislação <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong>, a organização <strong>de</strong> amplos serviços <strong>de</strong> assistência social emedicina e a construção <strong>de</strong> <strong>no</strong>vos edifícios escolares.A atualização das referências teóricas da pedagogia ensinada nas EscolasNormais e das práticas escolares utilizadas <strong>no</strong> sistema <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> públicoempreendida tanto por Carneiro Leão quanto por Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> conduziua um <strong>no</strong>vo quadro <strong>de</strong> referências para o exercício profissional da <strong>do</strong>cência:Kershensteiner, Dewey, Montessori, Decroly, Ferrière entre outros passarama constituir o referen<strong>do</strong> técnico-científico da pedagogia <strong>no</strong> interior da Diretoria<strong>de</strong> Instrução Pública. Sob ele o po<strong>de</strong>r público po<strong>de</strong> assumir a educação popular,<strong>no</strong>s seus diversos níveis, sob o regime da gratuida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> acesso livre euniversal sem gran<strong>de</strong>s justificativas políticas: o compromisso técnico-pedagógicopareceu suficiente para a organização <strong>de</strong> uma administração voltada àaparelhagem, organização e instalação <strong>de</strong> um sistema público <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> capaz<strong>de</strong> receber, instruir e educar a população sem negligenciar o controle disciplinar,a orientação profissional, a formação cívica, a avaliação e correção física,moral e intelectual <strong>do</strong>s indivíduos.A modificação <strong>do</strong>s programas escolares <strong>no</strong>s diversos níveis <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> municipal,<strong>de</strong> certa forma, oficializou e divulgou esse <strong>no</strong>vo quadro <strong>de</strong> referênciaspedagógicas e <strong>de</strong> questões educacionais. Ela alterou o senti<strong>do</strong> da formação<strong>do</strong> professora<strong>do</strong>, recolocou a Escola Normal em evidência e permitiuinvestir num tipo paralelo <strong>de</strong> formação. Os cursos e conferências patrocinadaspela Diretoria <strong>de</strong> Instrução Pública entre 1923 e 1930 fizeram das <strong>no</strong>vas<strong>de</strong>terminações oficiais conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong> um programa <strong>de</strong> formação que a um sótempo funcio<strong>no</strong>u como oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> aperfeiçoamento didático e <strong>de</strong> propaganda<strong>do</strong> regime <strong>de</strong> idéias que se pretendia implantar com a reforma da instruçãopública. Foram os expedientes mais bem sucedi<strong>do</strong>s tanto da reformaCarneiro Leão quanto da reforma Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong>: muito freqüenta<strong>do</strong>spelo professora<strong>do</strong> e bastante <strong>no</strong>ticia<strong>do</strong>s pela imprensa representaram uma importanteponte entre os <strong>no</strong>vos programas <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> e os profissionais respon-


André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187 175sáveis pela sua aplicação. Foi <strong>de</strong>sse diálogo que as duas reformas tiraram seusmaiores divi<strong>de</strong>n<strong>do</strong>s históricos, a criação <strong>de</strong> uma <strong>no</strong>va condição, ou melhor,posição política para a educação pública: a profissional.A promulgação <strong>de</strong> uma <strong>no</strong>va legislação <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> para a capital foi o alvoprimeiro das reformas Carneiro Leão e Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong>. A precisão <strong>do</strong>tiro seria a maior distinção entre elas. Carneiro Leão administrou o ensi<strong>no</strong> soba jurisdição <strong>do</strong>s <strong>de</strong>cretos <strong>de</strong> 1914 e 1916 e mais um conjunto extenso <strong>de</strong> dispositivos,emendas e regulamentações aprovadas pelo Conselho Municipal oupelo Sena<strong>do</strong> que tornavam a legislação sobre o ensi<strong>no</strong> municipal um labirinto<strong>de</strong> regras e disposições. Com a aprovação <strong>do</strong> Decreto n.º 3.281 em 23 <strong>de</strong> janeiro<strong>de</strong> 1928 foi a própria articulação administrativa que mu<strong>do</strong>u com a legislação.A organização <strong>de</strong> duas subdiretorias, a criação <strong>do</strong> almoxarifa<strong>do</strong> privativo daInstrução Pública, a regulamentação para a construção <strong>de</strong> <strong>no</strong>vos edifícios escolares,e a instituição <strong>de</strong> concurso público para provisão <strong>do</strong>s cargos reformularam,antes que o aparelho escolar <strong>do</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral, o funcionamento daprópria Diretoria <strong>de</strong> Instrução. Afetaram substancialmente as circunstânciasnas quais eram feitas as solicitações <strong>de</strong>ssa repartição da prefeitura. Sob o <strong>no</strong>vocódigo a Diretoria <strong>de</strong> Instrução Pública abriu concorrência e julgou os projetos<strong>de</strong> construção <strong>do</strong>s <strong>no</strong>vos edifícios escolares, tarefa da Diretoria <strong>de</strong> Obras Públicas,<strong>no</strong>meou um chefe para a inspeção médica e inaugurou uma clínica escolar,assumin<strong>do</strong> atribuições comumente <strong>de</strong>legadas à Diretoria Geral <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> Pública,exigiu qualificações específicas para a direção das escolas profissionais,enfim, centralizou o controle, fiscalização e administração <strong>do</strong> sistema público<strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> <strong>no</strong>s limites institucionais <strong>de</strong> uma equipe <strong>de</strong> intelectuais, professores,inspetores i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong>s por um projeto comum <strong>de</strong> reforma <strong>do</strong> aparelho escolar:tornar o sistema público <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> uma instância <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r público na reformulação<strong>do</strong> sistema produtivo, na formação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nacional e naconformação moral <strong>do</strong>s hábitos e condutas da criança carioca e brasileira.A organização <strong>de</strong> amplos serviços <strong>de</strong> assistência social e medicina preventivafez parte das políticas <strong>de</strong> educação <strong>de</strong> Carneiro Leão e Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong>.Ela teve uma dupla finalida<strong>de</strong>: social e moral. A um só tempo essesserviços fomentaram tanto uma política <strong>de</strong> ação social, quanto uma estratégia<strong>de</strong> moralização das classes populares. Assim, foram cria<strong>do</strong>s ou aperfeiçoa<strong>do</strong>sserviços que se ocuparam <strong>de</strong> questões sociais tais como <strong>de</strong>snutrição, anemia,<strong>de</strong>ficiências visuais, vermi<strong>no</strong>ses, a tuberculose entre outras moléstias. Aorganização <strong>do</strong>s “pratos <strong>de</strong> sopa” e <strong>do</strong>s “copos <strong>de</strong> leite” nas escolas públicasindicava uma das direções que tomou a reforma Carneiro Leão na sua insis-


176André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187tente tentativa <strong>de</strong> prolongar a permanência das crianças pobres <strong>no</strong> sistema <strong>de</strong>ensi<strong>no</strong>: a distribuição regular <strong>de</strong> alimentos <strong>no</strong> intervalo <strong>do</strong>s perío<strong>do</strong>s letivos.Foi um caminho que Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> não <strong>de</strong>sprezou. Mas em 1928 aintensida<strong>de</strong> que atingiu os números da inspeção médico-escolar é que parecedar o tom da reforma Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> <strong>no</strong> que tangia seu interesse pelaextensão <strong>do</strong>s a<strong>no</strong>s <strong>de</strong> escolarida<strong>de</strong> da população carioca. Na saú<strong>de</strong> <strong>do</strong>s escolaresa reforma Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> focalizou os <strong>de</strong>veres <strong>do</strong> indivíduo com oEsta<strong>do</strong>. Tu<strong>do</strong> se daria como num investimento <strong>de</strong> longo prazo:“Cada alu<strong>no</strong> <strong>de</strong>ve na or<strong>de</strong>m das coisas, transformar-se à sua hora, numfator <strong>de</strong> produção: sua vida é por assim dizer hipotecada ao Esta<strong>do</strong>,isto é, à comunida<strong>de</strong> socialmente organizada <strong>de</strong> que a família é parteintegrante. Se morre ou se torna inútil pela moléstia, a socieda<strong>de</strong> coma qual contraiu uma dívida, <strong>no</strong> perío<strong>do</strong> <strong>de</strong> educação, sofre uma perdairreparável com a morte ou grave com a redução <strong>do</strong> rendimento <strong>do</strong> seutrabalho, com que aumenta, na proporção <strong>de</strong> sua eficiência e duração,a riqueza econômica e social <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>” 27 .Foi, entretanto, na capilarida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas relações que tais iniciativas revelavamcom maior clareza seu aspecto disciplinar. Eram com as enfermeiras escolares,com os pelotões <strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, com as professoras e com o programa <strong>de</strong> higieneque a Diretoria <strong>de</strong> Instrução Pública tratou <strong>do</strong>s aspectos morais <strong>do</strong>s serviços<strong>de</strong> assistência e prevenção médica. Foram nesses capilares que se procurouinculcar <strong>no</strong>s alu<strong>no</strong>s as <strong>no</strong>rmas <strong>de</strong> limpeza e higiene <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> que este agissecomo um peque<strong>no</strong> higienista encarrega<strong>do</strong> <strong>de</strong> propagar em casa os preceitosaprendi<strong>do</strong>s na escola. Com as professoras e os programas era o suficiente.Com as enfermeiras escolares e os pelotões <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> era ainda um passo amais que se procurou dar:“penetrar <strong>no</strong> meio social, <strong>de</strong> que o alu<strong>no</strong> proveio, <strong>no</strong> seio <strong>de</strong> suas famílias,não somente para difundirem, nas camadas populares, a educaçãohigiênica e a profilaxia das moléstias transmissíveis, como também paraobservarem e conhecerem o esta<strong>do</strong> social e sanitário das famílias” 28 .27 AZEVEDO, Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong>. A reforma <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> <strong>no</strong> Districto Fe<strong>de</strong>ral: discursos e entrevistas.São Paulo: Melhoramentos, 1929. p. 47-48.28 AZEVEDO, Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong>. A socialização da escola. op. cit., p. 179.


André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187 177Da construção <strong>de</strong> <strong>no</strong>vos edifícios escolares <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>u a difusão <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong>público na capital. Ao me<strong>no</strong>s foi esse o leitmotiv <strong>do</strong>s artigos <strong>de</strong> jornal, dasmatérias <strong>de</strong> revistas e das palestras que especulavam sobre o tema. Dessa perspectiva,os resulta<strong>do</strong>s que Carneiro Leão obteve com o remanejamento <strong>do</strong>sprofessores dá um boa idéia da extensão <strong>do</strong> sistema público <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong> da cida<strong>de</strong><strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro <strong>no</strong> a<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1926:“Para uma área <strong>de</strong> 43.142 metros quadra<strong>do</strong>s, tivemos o a<strong>no</strong> passa<strong>do</strong>uma matrícula <strong>de</strong> 68.012 alu<strong>no</strong>s e uma freqüência média <strong>de</strong> 52.735.Este a<strong>no</strong> a freqüência já atingiu a 53.831. Dan<strong>do</strong>-se um metro quadra<strong>do</strong>para cada criança não po<strong>de</strong>ríamos ter mais <strong>de</strong> 43.142 alu<strong>no</strong>sfreqüentes, e se conseguimos, premi<strong>do</strong>s pela necessida<strong>de</strong>, 52.735 em1925 e 53.831, <strong>no</strong> a<strong>no</strong> corrente, já ultrapassamos <strong>de</strong> muitos milhares<strong>de</strong> crianças o limite estabeleci<strong>do</strong> pelas <strong>de</strong>terminações pedagógicas.(...)“Com <strong>do</strong>is mil professores para reger classes e área <strong>de</strong> 43.142 metrosquadra<strong>do</strong>s é impraticável qualquer modificação para melhor” 29 .O implemento obti<strong>do</strong> por Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> nessa questão foi, numericamentepouco substantivo, não chegaram a somar uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> <strong>no</strong>vos edifícios,mas simbolicamente bastante significativo: o estilo a<strong>do</strong>ta<strong>do</strong>, o neocolonial,era a reafirmação <strong>do</strong>s valores ditos tradicionais da vida brasileira aomesmo tempo que cumpria a função <strong>de</strong> criar a imagem <strong>de</strong> ruptura das práticaseducativas passadas, sen<strong>do</strong>, como aponta Diana Gonçalves Vidal, o porta<strong>do</strong>r<strong>do</strong> sig<strong>no</strong> da re<strong>no</strong>vação 30 .4. Entre o esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> sítio e a revolução, um caminho para a regeneração:A presença da escola pública na trama social e política da capital <strong>do</strong> paíscresceu em importância entre 1922 e 1930. A atenção que lhe prestaram asreformas da instrução pública nesse perío<strong>do</strong> conviveu e manteve relações coma perspectiva <strong>de</strong> controlar cientificamente a estirpe humana nacional. Efeti-29 CARNEIRO LEÃO, Antônio. O ensi<strong>no</strong> na capital <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, op.cit., p. 34-35.30 VIDAL, Diana Gonçalves. “Nacionalismo e tradição na prática discursiva <strong>de</strong> Fernan<strong>do</strong><strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong>.” Revista <strong>do</strong> Instituto <strong>de</strong> Estu<strong>do</strong>s <strong>Brasil</strong>eiros, n.º 37, São Paulo, p. 35-52,1994. p. 42.


178André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187vamente, por meio da escola pública se preten<strong>de</strong>u significar toda uma tec<strong>no</strong>logia<strong>de</strong> reforma social. Senão sob a condição <strong>de</strong> que fosse transforma<strong>do</strong>ra <strong>do</strong>indivíduo, os instrumentos que lhe foram da<strong>do</strong>s fazia enten<strong>de</strong>r a maquinariamédica e disciplinar que circundava a socieda<strong>de</strong>. Fichas sanitárias, edifícios,regulamentos, programas e rotinas faziam aparecer também na escola públicao que era pertinente para a política. De mo<strong>do</strong> que po<strong>de</strong>-se perfeitamente estudaras reformas da instrução como efeitos <strong>de</strong> uma aposta <strong>do</strong>s po<strong>de</strong>res públicosna regeneração da raça e da nação, <strong>do</strong> controle policial da população e dainstrumentalização <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> para essas ações. O problema então será levantara quantia da aposta, verificar a relevância da ladainha <strong>de</strong> conceitos utilizada diretaou indiretamente para aproximar a instrução pública <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>.Portanto, a reorganização <strong>do</strong>s méto<strong>do</strong>s escolares, a educação sanitária, a<strong>no</strong>va política <strong>de</strong> edificações escolares, o regulamento <strong>de</strong> educação e as instituições<strong>de</strong> assistência social não só constituíra um quadro <strong>de</strong> referências escolares.Respon<strong>de</strong>ram, sobretu<strong>do</strong>, às condições <strong>de</strong> habitação, saú<strong>de</strong> e trabalho dapopulação pobre <strong>do</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral. O esforço <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quação <strong>do</strong>s programase da estrutura escolares em muitos aspectos partilhou mais que preocupações,funções que não eram difíceis <strong>de</strong> localizar também em áreas como o direito,a medicina e a engenharia.No início da década <strong>de</strong> 1920 os bairros miseráveis <strong>do</strong> perímetro urba<strong>no</strong><strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro não pareciam alarmar os bacharéis da República. Ao contrário,indicavam-<strong>no</strong>s a própria evolução <strong>do</strong> crescimento da cida<strong>de</strong> e o alargamentoconcomitante aos seus progressos. Portanto, não havia porque estranhar ashabitações nas favelas ou <strong>no</strong>s morros: “característica bem evi<strong>de</strong>nte da mo<strong>de</strong>rnaeco<strong>no</strong>mia capitalista” 31 . Mesmo porque os po<strong>de</strong>res públicos dispunham <strong>de</strong> umantí<strong>do</strong>to singular para corrigir tal efeito: o carmatello e o alvião <strong>do</strong> progressoque tal como <strong>no</strong> Morro <strong>do</strong> Castelo ou <strong>do</strong> Sena<strong>do</strong> transformariam a precarieda<strong>de</strong>humana em or<strong>de</strong>m urbana. Entretanto, a instalação <strong>de</strong> <strong>no</strong>vas favelas <strong>no</strong> própriocoração da magnifica urbs saneada fez com que o cenário apologéticodas políticas urbanas empreendidas pela prefeitura carioca re<strong>no</strong>vasse seuvínculo histórico com o círculo monstruoso <strong>do</strong> processo <strong>de</strong> regeneração.A aventura protagonizada por Pereira Passos e Oswal<strong>do</strong> Cruz <strong>no</strong> Rio <strong>de</strong>Janeiro da primeira década <strong>do</strong> século XX ainda dizia muito para as gerações31CASTRO, P. J. “Urbanismo”. Jornal <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 10 <strong>de</strong>z. 1926. p. 2.


André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187 179administrativas da década <strong>de</strong> 20. Dizia-lhes o que era uma cida<strong>de</strong> cívica, espaço<strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong> e convivência. Informava a respeito das articulações entre a“<strong>no</strong>rma” e a “infração” na construção <strong>do</strong> espaço urba<strong>no</strong>. Representava, sobretu<strong>do</strong>,a orto<strong>do</strong>xia mo<strong>de</strong>rna <strong>do</strong> planejamento, da or<strong>de</strong>m e da beleza. Era pois,ainda na década <strong>de</strong> 20, uma forma <strong>de</strong> olhar a expansão urbana. Expansão que<strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> vincular-se ao “antigo” regime patriarcal <strong>do</strong> estatuto da terra e daprodução agrária na medida em que atualizava, em escala industrial, a segregaçãosocial <strong>de</strong> quatro séculos <strong>de</strong> escravidão entre proprietários e não proprietários,brancos e negros e, ricos e pobres, à or<strong>de</strong>m competitiva <strong>de</strong> um Rio <strong>de</strong>Janeiro incha<strong>do</strong> <strong>de</strong> capitalismo. Não se tratava, portanto, <strong>de</strong> extirpar o atrasorural como o quiseram Pereira Passos e Oswal<strong>do</strong> Cruz com a remo<strong>de</strong>laçãocompulsória ou a vacinação obrigatória, mas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>nar o progresso mo<strong>de</strong>rnistacomo o quiseram Mello Mattos, Alfred Agache e Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> como código <strong>de</strong> me<strong>no</strong>res (1927), o planejamento da cida<strong>de</strong> (1928) e a reforma <strong>do</strong>ensi<strong>no</strong> (1928). A mudança <strong>de</strong> outrora da população pobre para os morros evárzeas <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro ce<strong>de</strong>ria lugar ao saneamento moral <strong>de</strong> uma cida<strong>de</strong>que não podia mais prescindir <strong>de</strong>ssa massa <strong>de</strong> trabalha<strong>do</strong>res. Medida curativaque a um só momento significava regulamentação, planejamento e reforma.A profilaxia <strong>do</strong> a<strong>no</strong>rmal, <strong>do</strong> estigma ou <strong>do</strong> patológico consignada na imagem<strong>do</strong> saneamento con<strong>de</strong>nsou <strong>no</strong> esforço <strong>de</strong> regeneração <strong>do</strong> indivíduo os valoressociais segun<strong>do</strong> os quais se montou tanto os dispositivos <strong>de</strong> controle e po<strong>de</strong>r<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> frente a população quanto os projetos <strong>de</strong> “mo<strong>de</strong>rnização” da legislação,da cida<strong>de</strong> e da cultura.Sob a rubrica da regeneração da raça e da nação os homens <strong>do</strong> gover<strong>no</strong>republica<strong>no</strong> sistematizaram com habilida<strong>de</strong> política e “competência” técnicaum emaranha<strong>do</strong> <strong>de</strong> valores morais sobre a sexualida<strong>de</strong>, a reprodução e a mortenum quadro <strong>no</strong>sológico <strong>de</strong> <strong>do</strong>enças e disfunções da psique e da hereditarieda<strong>de</strong>apontadas como responsáveis pelo <strong>de</strong>sequilíbrio e pela <strong>de</strong>cadência <strong>do</strong> homemciviliza<strong>do</strong> 32 . Não obstante, o “sucesso” crescente da autorida<strong>de</strong> científica levou-osa crença da possibilida<strong>de</strong> efetiva <strong>de</strong> completar pela mão <strong>do</strong> homemaquilo que a natureza não conseguia alcançar: a civilida<strong>de</strong>. Tanto o esforçopara construir na escola uma psicologia <strong>do</strong> <strong>no</strong>rmal, <strong>do</strong> adaptativo e <strong>do</strong> organi-32FONTENELLE, J. P. Compendio <strong>de</strong> hygiene. 4ª edição. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Canton & Reile,1932. p. 602.


180André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187za<strong>do</strong> quanto o pretexto higienista para to<strong>do</strong> o tipo <strong>de</strong> limpeza social e a sinistraambição <strong>de</strong> uma ciência da hereditarieda<strong>de</strong> vertida em perspectiva <strong>de</strong> controleda estirpe humana por meio da educação o <strong>de</strong>monstraram com farturadurante toda a década <strong>de</strong> 1920. A medicina legal, os higienistas, os testes <strong>de</strong>inteligência e os esforços para o robustecimento da raça da Socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> Medicinae Cirurgia, da Socieda<strong>de</strong> Eugênica ou da Liga <strong>de</strong> Higiene Mental nãorepresentaram outra coisa que formas <strong>de</strong> intervir <strong>no</strong> meio social para produzir,ou assegurar, a <strong>no</strong>rmalida<strong>de</strong>, o progresso e a civilida<strong>de</strong> da vida coletiva.Assim, o casamento, os cuida<strong>do</strong>s <strong>de</strong> si, a freqüência escolar, os tratamentos<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, os hábitos ou costumes culturais ou morais passavam a ser alvo <strong>de</strong>políticas ou campanhas públicas <strong>de</strong> regulamentação ou controle. Elas permearamas reformas da Instrução <strong>do</strong> Direito Penal e da Saú<strong>de</strong> Pública na tentativa<strong>de</strong> disciplinar o marco zero <strong>de</strong>ssas recorrências: o indivíduo. E permaneceramcomo o aspecto mais saliente <strong>de</strong> suas propostas coletivas.O gover<strong>no</strong> republica<strong>no</strong> absorveu por inteiro a urgência da regeneração.Fez das manifestações sociais caso <strong>de</strong> polícia, generalizou o controle social<strong>no</strong> combate <strong>de</strong> epi<strong>de</strong>mias e en<strong>de</strong>mias, tor<strong>no</strong>u o analfabetismo cancro social.Entretanto, lançou os casos, os combates e os cancros num palco político esvazia<strong>do</strong>pelo pacto oligárquico, casou-os com a sensação <strong>de</strong> atraso histórico e,como se não bastasse, vislumbrou-os junto com a irrevogável certeza <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>,colonial, rural e escravocrata. Mesmo assim e diferentemente <strong>do</strong> início<strong>do</strong> século, quan<strong>do</strong> sanear e remo<strong>de</strong>lar significava remover o entulho para limparo terre<strong>no</strong> <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> uma or<strong>de</strong>m civilizada, durante toda a década<strong>de</strong> 1920 procurou produzir meios artificiais <strong>de</strong> homogeneização da cultura eda raça <strong>no</strong> trabalho <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> um Esta<strong>do</strong>-nação mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>. Tratava-se<strong>de</strong> discriminar, na cida<strong>de</strong>, na legislação ou na escola, por meio <strong>de</strong> regulaçõesrestritivas, a dimensão propriamente humana da cultura, ou por meio <strong>do</strong> en<strong>do</strong>ssoirrestrito das práticas científicas, as ambições <strong>no</strong>rmativas e planifica<strong>do</strong>rasda política republicana. De um la<strong>do</strong> alicerçava <strong>no</strong> <strong>do</strong>mínio público o <strong>de</strong>sejo<strong>de</strong> “arrancar <strong>do</strong> Rio <strong>de</strong> Janeiro a mancha negra que da capital brasileira faziauma triste continuação da costa d’África” 33 por outro sancionava ao comportamentomoral a exprobração ao “não po<strong>de</strong>, da rebeldia popular à disciplina das33LINS, Sinval A. “A febre amarella através <strong>de</strong> um seculo <strong>de</strong> observação clinica e orientaçãoscientifica”. O <strong>Brasil</strong> Medico. A<strong>no</strong> XLIV, n.º 10, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 8 mar. 1930. p. 280.


André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187 181ruas”, à “anarquia impenitente armada à dinamite contra o gover<strong>no</strong> legítimo”,à “recusa <strong>do</strong> alistamento eleitoral”, à “falsificação da estatística ou <strong>do</strong> recenseamento”,à “escusa ao júri, funções cívicas ou públicas” 34 . O esforço ia <strong>no</strong> senti<strong>do</strong><strong>de</strong> investir os tribunais, as escolas, os hospitais e o próprio traça<strong>do</strong> urba<strong>no</strong>da cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> para dispor da integrida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> significa<strong>do</strong> das liberda<strong>de</strong>shumanas com legitimida<strong>de</strong>.Para tanto levou-se em consi<strong>de</strong>ração um fenôme<strong>no</strong> importante: a existência<strong>de</strong> uma população ig<strong>no</strong>rante das <strong>no</strong>rmas mais básicas e gerais <strong>de</strong>ssa <strong>no</strong>vaforma assumida pelo po<strong>de</strong>r. Des<strong>de</strong> Os sertões <strong>de</strong> Eucli<strong>de</strong>s da Cunha, O Juazeiro<strong>de</strong> Padre Cícero <strong>de</strong> Lourenço Filho e o Jeca <strong>de</strong> Monteiro Lobato sabia-se daexistência <strong>de</strong> toda uma população <strong>de</strong> gente pobre, “com muito fervor e nenhumaortografia” 35 . Na década <strong>de</strong> 1920 a elite ilustrada, que se freqüentava tanto<strong>no</strong>s salões cariocas, na hípica da Gávea ou <strong>no</strong>s clubes grã-fi<strong>no</strong>s da alta socieda<strong>de</strong>,como <strong>no</strong>s cargos administrativos <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r público, <strong>de</strong>u-se conta dapresença <strong>de</strong>ssa gente <strong>no</strong> próprio sítio conquista<strong>do</strong> da civilização. O Rio <strong>de</strong>Janeiro, urbs saneada, capital da República, cida<strong>de</strong> maravilhosa sentia cadavez mais próximo <strong>de</strong> si o universo clan<strong>de</strong>sti<strong>no</strong> da civilização. Proximida<strong>de</strong>que colocava à prova a capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nar as tec<strong>no</strong>logias <strong>de</strong> planejamento,a divisão <strong>do</strong> trabalho <strong>do</strong> frenético perío<strong>do</strong> Passos – Frontin, a adaptaçãoda civilização aos trópicos representada pela “obra” <strong>de</strong> Oswal<strong>do</strong> Cruz e,sobretu<strong>do</strong>, a or<strong>de</strong>m e o progresso político e social <strong>do</strong> país. E <strong>de</strong> fato, as manifestaçõessociais como os motins e as greves, os <strong>no</strong>vos surtos epidêmicos <strong>de</strong> febreamarela em 1929, o caráter endêmico da tuberculose e da sífilis <strong>no</strong> perío<strong>do</strong>,as favelas <strong>do</strong> centro da cida<strong>de</strong> fechavam, na década <strong>de</strong> 1920, o círculoprometeico <strong>do</strong> eter<strong>no</strong> suplício da civilização <strong>do</strong>s trópicos.Por conta <strong>de</strong>ssa situação a República iniciou a montagem <strong>de</strong> uma estratégiapolítica <strong>de</strong> orquestração <strong>de</strong>sse suplício. Na verda<strong>de</strong>, o que surgia na República<strong>de</strong>sse perío<strong>do</strong>, muito mais <strong>do</strong> que na República <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong>, era anecessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fazer com que o ethos social e cultural da elite ilustrada funcionassetambém nas margens da socieda<strong>de</strong>. Tratava-se <strong>de</strong> conservar <strong>no</strong> Esta<strong>do</strong>a indiscutível autorida<strong>de</strong> sobre as formas <strong>de</strong> controle da or<strong>de</strong>m social. Procu-34 PEIXOTO, Afrânio. “A reforma constitucional e a educação”. O Jornal. Rio <strong>de</strong> Janeiro,11 ago. 1925. p. 01.35 LOURENÇO FILHO, Ma<strong>no</strong>el Bergstron. Juazeiro <strong>do</strong> Padre Cícero. 3ª edição, SãoPaulo: Melhoramentos, s/data.


182André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187rava-se um acor<strong>de</strong> para a República capaz <strong>de</strong> substituir a dispersão da naçãoe a corrupção da raça por um momento <strong>de</strong> harmonia. Creio que o encontraramna prodigiosa con<strong>de</strong>nsação entre os verbos regenerar, mo<strong>de</strong>rnizar e civilizar.Ao dilema euclidia<strong>no</strong>, progredir ou <strong>de</strong>saparecer, a geração republicanarespon<strong>de</strong>u com a uníssona recorrência: “mostremos que vivemos” 36 . Daí secompreen<strong>de</strong> porque a organização administrativa sediada na cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Rio<strong>de</strong> Janeiro, tanto <strong>no</strong> nível fe<strong>de</strong>ral quanto municipal, ce<strong>de</strong>u com facilida<strong>de</strong> àtentação <strong>de</strong> instrumentalizar para o conjunto governamental da República os<strong>no</strong>vos ritmos da vida mo<strong>de</strong>rna. Era questão <strong>de</strong> harmonizar a um só tempo os<strong>de</strong>sti<strong>no</strong>s da nação com os da própria civilização. Não obstante, era impor idéiase instituições, atualizar as práticas <strong>de</strong> expulsão, exclusão e profilaxia sociaisem <strong>no</strong>me <strong>do</strong> bem comum, era também, engendrar na socieda<strong>de</strong> práticas <strong>de</strong>assimilação, inclusão e saneamento <strong>do</strong> indivíduo marginaliza<strong>do</strong> em relação à“cultura” a que <strong>de</strong>veria fazer parte, a nacional. E, portanto, trabalho <strong>de</strong> composição<strong>de</strong> uma nação.Esta<strong>do</strong>-regente, a República precisou, <strong>no</strong> entanto, ensinar sentimentos ehabilida<strong>de</strong>s improváveis <strong>de</strong> se <strong>de</strong>senvolverem <strong>de</strong> outro mo<strong>do</strong> que não pela educação.Empenha<strong>do</strong> na tarefa <strong>de</strong> “fundar” a unida<strong>de</strong> nacional procurou extrapolaros contor<strong>no</strong>s propriamente “<strong>no</strong>sológicos” da regeneração. Nesse momentofoi sobretu<strong>do</strong> necessário educar. O tópico mais celebra<strong>do</strong> <strong>do</strong> palavrea<strong>do</strong>progressista <strong>do</strong> início <strong>do</strong> século XX voltaria, assim, a baila na voz <strong>do</strong>s educa<strong>do</strong>res.O “fim primordial da educação” , escreveu Zelia Braune em artigo para arevista A Educação, era o <strong>de</strong> “proporcionar ao organismo sadio condições taisque permitam seu <strong>de</strong>senvolvimento, impedin<strong>do</strong> o prejuízo que lhe possa advir<strong>de</strong> influências estranhas: obstar as más inclinações <strong>do</strong>s me<strong>no</strong>s perfeitos, evitan<strong>do</strong>a sua queda e a marcha natural para o abismo da enfermida<strong>de</strong>, da <strong>do</strong>r e <strong>do</strong>estiolamento” 37 . A regeneração se faria por meio da cultura. Os gran<strong>de</strong>s pla<strong>no</strong>s,as gran<strong>de</strong>s campanhas, passariam pelo planejamento escolar, pelos programase méto<strong>do</strong>s <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong>. Civilizar foi na década <strong>de</strong> 1920 educar. Em editorialo Jornal <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong> <strong>de</strong>ixava-o claro ao reivindicar uma política cultural quecomeçasse por uma difusão da educação primária, essencial para “atalhar a36CARDOSO, Vicente Licínio. op. cit., p. 13.37 BRAUNE, Zelia. “O fim primordial da educação”. A Educação. a<strong>no</strong> IV, vol. X, n.º 7 e8, Rio <strong>de</strong> Janeiro, jul./ago. <strong>de</strong> 1925. p. 822.


André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187 183mortalida<strong>de</strong> infantil <strong>de</strong> proporções alarmantes, combater diversas en<strong>de</strong>mias,dar educação pelo me<strong>no</strong>s elementar ao maior número <strong>de</strong> pessoas, incorporarà ativida<strong>de</strong> e à vida civilizada massas da população” 38 . Na mesma perspectiva,em entrevista para o Correio da Manhã, o inspetor escolar Deodato <strong>de</strong>Moraes tornaria público o anseio das orientações que a administração CarneiroLeão procurava dar ao ensi<strong>no</strong> primário, por meio <strong>do</strong> curso <strong>de</strong> férias ministra<strong>do</strong>aos professores <strong>do</strong> Distrito Fe<strong>de</strong>ral em 1924, em tornar a criança “um elementoconsciente e eficaz <strong>no</strong> trabalho <strong>de</strong> civilização” 39 . Como se si tratasse<strong>de</strong> um susteni<strong>do</strong> na escala <strong>do</strong> progresso, a educação operou uma espécie <strong>de</strong>atualização <strong>do</strong> fundamentalismo sanitário, <strong>do</strong> fervor científico, das distinçõesculturais e mesmo <strong>do</strong> charme mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> da elite social, sem falar da sua irresistívelinclinação para o autoritarismo anti-liberal. Não esteve sozinha. A instrumentação<strong>do</strong>s aparelhos <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> foi completa. A restrição <strong>do</strong> habeas corpusimpingida à Constituição na reforma <strong>de</strong> 1926 e a formalização <strong>do</strong> estatuto <strong>do</strong> me<strong>no</strong>r<strong>no</strong> Código <strong>de</strong> Me<strong>no</strong>res em 1927, as <strong>no</strong>ções <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e prevenção veiculadas pelascampanhas sanitárias oficiais, a <strong>de</strong>finição urbanista da cida<strong>de</strong> presente <strong>no</strong> pla<strong>no</strong><strong>de</strong> remo<strong>de</strong>lação <strong>de</strong> Alfred Agache, a reforma <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> <strong>de</strong> 1928 e a criaçãocultural articulada pelas casas editoriais, galerias <strong>de</strong> arte e também nas faculda<strong>de</strong>sda capital respondiam a velocida<strong>de</strong> da produção, a pulsação da cida<strong>de</strong>, o dinamismoda aprendizagem, a aceleração <strong>do</strong> progresso, as revoluções estéticas oupolíticas e, enfim, o nascimento e a morte <strong>do</strong> indivíduo a partir <strong>de</strong> uma válida ecompleta erudição, <strong>de</strong>senvolvida com tábuas numéricas, <strong>no</strong>tas <strong>de</strong> rodapé e termi<strong>no</strong>logiacientífica. Em meio a essa instrumentação, os crimi<strong>no</strong>sos, os bêba<strong>do</strong>s, os<strong>do</strong>entes mentais, os <strong>de</strong>genera<strong>do</strong>s morais ou tara<strong>do</strong>s, eram compreendi<strong>do</strong>s comoinúteis sociais, peso morto. Tanto quanto eles as criaturas analfabetas ou envolvidasem ativida<strong>de</strong>s “clan<strong>de</strong>stinas” comprometiam a or<strong>de</strong>m e a harmonia da “regência”ou da composição.De mo<strong>do</strong> que, numa relação <strong>de</strong> complementarida<strong>de</strong> entre educação e Esta<strong>do</strong>po<strong>de</strong>-se aferir, <strong>no</strong> jogo político republica<strong>no</strong>, o esforço para ligar toda a populaçãoà cidadania e esta aos dispositivos da cultura letrada, da escola pública,<strong>do</strong> esta<strong>do</strong> nacional e da <strong>no</strong>rma moral, laica ou católica. Procurava-se,sobretu<strong>do</strong>, dar uma configuração aos procedimentos <strong>de</strong> inclusão social/naci-38 Política cultural. Jornal <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>, Rio <strong>de</strong> Janeiro, 26 jan. 1926. p. 1.39O curso <strong>de</strong> férias e o seu <strong>de</strong>senvolvimento. Correio da Manhã. Rio <strong>de</strong> Janeiro, 10jan. 1924. p. 3.


184André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187onal das populações pobres da capital fe<strong>de</strong>ral ou as proprieda<strong>de</strong>s pedagógicas,médicas, penais ou produtivas <strong>de</strong> exclusão <strong>do</strong>s indivíduos analfabetos,<strong>do</strong>entes, crimi<strong>no</strong>sos ou inúteis. Tratava-se <strong>de</strong> facilitar o controle, <strong>de</strong> arranjara petulância <strong>no</strong>rmativa da integração social com a <strong>de</strong>mocratização <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong>.Para isso a instituição escolar mostrou-se a<strong>de</strong>quada. Não somente como sistema<strong>de</strong> vigilância, escrituração, inscrição e inspeção mas em razão das suastec<strong>no</strong>logias <strong>de</strong> avaliação e exame a escola fora compreendida como a instânciaa<strong>de</strong>quada para i<strong>de</strong>ntificar, corrigir ou eliminar qualquer tipo <strong>de</strong> dissonânciaque atrapalhasse a harmonia social. Desejo <strong>de</strong> fazer a civilização penetrar ossubúrbios sim mas também, tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminar na escola o pólo imanentepara aqueles que queriam se educar e progredir, as reformas da década <strong>de</strong> 1920insistiram na integração entre as estratégias pedagógicas, as formas escolarese a racionalida<strong>de</strong> científica <strong>no</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma política educacional.Ao que correspon<strong>de</strong>u tanto um mo<strong>de</strong>lo escolar capaz <strong>de</strong> atar a formação individualà finalida<strong>de</strong>s cívicas e culturais quanto o uso científico <strong>do</strong>s saberes pedagógicospara atualizar os dispositivos escolares <strong>de</strong> educação. Esse mo<strong>de</strong>lo foi propostoà instrução primária das crianças <strong>no</strong> intuito <strong>de</strong> assegurar uma educaçãoconveniente ao povo. Deveria para tanto não só ensinar a ler e escrever, ou manifestarsig<strong>no</strong>s <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>, mas sobretu<strong>do</strong>, impedir a licenciosida<strong>de</strong> ou promiscuida<strong>de</strong>,burguesa ou proletária, <strong>do</strong> caráter por parte das crianças, controlar aconduta, os hábitos e a moral <strong>do</strong>s alu<strong>no</strong>s, <strong>de</strong>linear procedimentos <strong>de</strong> vigilância eexame capazes <strong>de</strong> fazer distinguir o certo <strong>do</strong> erra<strong>do</strong> ou o <strong>de</strong>ver da infração aosfuturos cidadãos e, também, estabelecer práticas <strong>de</strong> correção, punição ou, conformeo caso, legitimação e incentivo das ações discentes. E assim o fez.A forma assumida pela escola nas reformas Carneiro Leão e Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong>Azeve<strong>do</strong> esteve ligada a estratégias <strong>de</strong> educação dirigidas para a produção <strong>de</strong>limpeza, razão, estilo <strong>de</strong> vida, cultura e disciplina na socieda<strong>de</strong> carioca (alterego da brasileira) e, portanto, a uma materialida<strong>de</strong> investida <strong>de</strong> um <strong>no</strong>vo estatutopedagógico, não somente corretivo - disciplinar mas sobretu<strong>do</strong> sócio -cultural, não só ortopedia físico - mental, mas prédica social. É dizer que aola<strong>do</strong> das preocupações pedagógicas com os materiais usualmente emprega<strong>do</strong>s<strong>no</strong> ensi<strong>no</strong>, a or<strong>de</strong>m e a disciplina <strong>do</strong> corpo discente e, a disposição <strong>do</strong> espaçoescolar e <strong>do</strong>s cuida<strong>do</strong>s com as condições materiais capazes <strong>de</strong> resguardaras crianças <strong>do</strong>s riscos da miséria operária ou da opulência burguesa, das <strong>do</strong>ençascontagiosas ou infecciosas, <strong>do</strong> aglomera<strong>do</strong> urba<strong>no</strong> e, principalmente, daconcorrência moral na apropriação ou produção da cultura “legítima” dadapela escola, ajuntou-se a tarefa <strong>de</strong> consolidar um sistema <strong>de</strong> transmissão <strong>do</strong>


André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187 185saber vincula<strong>do</strong> a aparelhos <strong>de</strong> formação e correção eficientes na adaptação equalificação <strong>do</strong>s alu<strong>no</strong>s à socieda<strong>de</strong>.A reforma Carneiro Leão procurou cumpri-la preparan<strong>do</strong> para a vida mo<strong>de</strong>rna,a reforma Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong>, adaptan<strong>do</strong>-a para um tempo em mudança.Todavia, ambas se encontraram numa idéia car<strong>de</strong>al: recuperar a vida<strong>do</strong> dia a dia para a escola, reunir a escola e a vida, reconquistar uma para outra,e assim criar um <strong>do</strong>mínio próprio para a educação <strong>do</strong> corpo, da mente e <strong>do</strong>espírito. A <strong>no</strong>vida<strong>de</strong> das reformas da instrução na década <strong>de</strong> 1920 consistiujustamente em fazer da escola esse <strong>do</strong>mínio. Nela reuniram espaços <strong>de</strong> disciplinae operações <strong>de</strong> controle capazes <strong>de</strong> funcionar como estratégias <strong>de</strong> emancipação<strong>do</strong> indivíduo e da nação. Por meio <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> assistência social, <strong>do</strong>sserviços médicos, <strong>de</strong> clínica e inspeção, da aplicação <strong>de</strong> testes <strong>de</strong> inteligência,<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrações públicas <strong>de</strong> cultura física e sobretu<strong>do</strong> com Fernan<strong>do</strong><strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong>, da implementação <strong>de</strong> uma política <strong>de</strong> edificações escolares subordinadaàs regras da higiene escolar, da técnica pedagógica e da estética “nacional”,produziram formas sólidas para a panóplia escolar <strong>de</strong> correção e formaçãoda criança. De mo<strong>do</strong> que, não tanto a alfabetização mas a correção daconduta cotidiana forneceria às crianças o comportamento social a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong>ao ple<strong>no</strong> exercício da cidadania.Consi<strong>de</strong>rações finaisNão espanta, portanto, o tipo huma<strong>no</strong> ocupar um papel central <strong>no</strong> planejamentoda arquitetura, <strong>do</strong>s programas e das instalações escolares. Nele esteveem jogo, entretanto, algo mais <strong>do</strong> que a solicitação das forças que o próprioindivíduo dispunha <strong>no</strong> corpo. Havia também uma sofisticação das coaçõessobre a sua liberda<strong>de</strong> frente à coletivida<strong>de</strong>.As reformas da instrução na capital da Velha República durante a década<strong>de</strong> 1920 foram mais uma conseqüência <strong>do</strong> que o ponto <strong>de</strong> partida <strong>de</strong>ssa situação.A escola elementar colocou em ação intervenções constantes e obstinadas<strong>no</strong> controle das experiências da criança. Pronunciava-se pelo <strong>de</strong>senga<strong>no</strong>da consciência e pelo constrangimento <strong>do</strong> corpo. Entretanto, agia por meio<strong>do</strong> “jogo” e da “brinca<strong>de</strong>ira”. E <strong>de</strong> fato, as reformas procuraram sintetizar <strong>no</strong>sseus programas os elos que enca<strong>de</strong>avam a civilização, corrigir por meio <strong>de</strong>suas instalações as patologias sociais, médicas ou psicológicas sem encerraro corpo num mol<strong>de</strong> ou disciplinar pela coação. Sua arquitetura <strong>de</strong>veria facilitara vigilância, mas também produzir prazer estético, tranqüilida<strong>de</strong> e gozo.


186André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187De certo mo<strong>do</strong> para os reforma<strong>do</strong>res da década <strong>de</strong> 1920 a educação capaz <strong>de</strong>moldar e sustentar o corpo não se objetivava em outro lugar que a comunida<strong>de</strong>.Ela e não os procedimentos mecânicos <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, policiais ou instrumentais,<strong>de</strong>veriam constranger a ação <strong>do</strong> indivíduo em socieda<strong>de</strong>. Nessa educação asescolas revelavam a obsessão da vida existente nas reformas da instrução. Revelavamcomo elaborar o <strong>Brasil</strong> já em plena mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>. “Sobre as ruínas <strong>do</strong>serros acumula<strong>do</strong>s” fez se da educação pública na capital <strong>do</strong> país um problemacuja solução interessava à própria vida <strong>do</strong> país 40 . Dela resultou a cunhagem <strong>de</strong>uma “<strong>no</strong>va” escola, indispensável à vitória na luta pela vida, a<strong>de</strong>quada ao <strong>de</strong>senvolvimentoda cultura geral e organizada <strong>de</strong>ntro da vida social 41 . O queeqüivale a dizer que as reformas converteram em dilema o que era <strong>do</strong>utrinaquan<strong>do</strong> multiplicaram os meios <strong>de</strong> controle da subjetivida<strong>de</strong> infantil. A escolhaimplicada <strong>no</strong> dilema educar-se ou <strong>de</strong>saparecer enuncia<strong>do</strong> por Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong>logo após sua posse <strong>no</strong> cargo <strong>de</strong> diretor geral da instrução, não só informavaa <strong>do</strong>utrina pedagógica com a áspera realida<strong>de</strong> nacional como estigmatizavaaqueles que rejeitan<strong>do</strong> o propósito e o significa<strong>do</strong> da “<strong>no</strong>va civilização”comprometiam a or<strong>de</strong>m e a harmonia <strong>do</strong> corpo social.Ao observar-se as diversas representações sobre a escola primária, veiculadaspelas reformas Carneiro Leão e Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong>, po<strong>de</strong>-se distinguirum empreendimento intoxica<strong>do</strong> <strong>de</strong> política, <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r e <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>. Essa característicadas reformas conferiu à escola passagens “velozes” entre seu sistemapedagógico e as preocupações políticas e sociais com a organização <strong>do</strong>trabalho, a manutenção da saú<strong>de</strong> e a i<strong>de</strong>ntificação e seleção das inteligências.Convencida da regeneração por meio da educação, as reformas con<strong>de</strong>nsaramna<strong>no</strong>s <strong>do</strong>mínios fisiológicos, psicológicos e sociológicos. Ou seja, procuraramintegrar a escola ao meio, o indivíduo à socieda<strong>de</strong> – adaptar o indivíduo ao meio,fazer da escola um lugar capaz <strong>de</strong> reunir a “comunida<strong>de</strong>” em tor<strong>no</strong> <strong>de</strong> sua origem,ou melhor, da narrativa na qual ela <strong>de</strong>veria se reconhecer. Em última instânciacontrapor às tradições populares aquilo que Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Azeve<strong>do</strong> cha-40 AZEVEDO, Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong>. Novos caminhos e <strong>no</strong>vos fins: a <strong>no</strong>va política <strong>de</strong> educação<strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>. op. cit., p. 57.41 AZEVEDO, Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong>. A socialização da escola. op. cit., p. 9 e 23; CARNEIROLEÃO, Antônio. O ensi<strong>no</strong> na capital <strong>do</strong> <strong>Brasil</strong>. op. cit., p. 7.


André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187 187mou <strong>de</strong> “a consciência profunda das necessida<strong>de</strong>s nacionais”. Era, <strong>de</strong> fato, conferirà escola o estatuto <strong>de</strong> “aparelho dinâmico <strong>de</strong> ação e reação conscientes” 42 .Não se tratou nem <strong>de</strong> uma arte, nem <strong>de</strong> uma técnica, antes <strong>de</strong> um fim. Na verda<strong>de</strong>três. Primeiro, a regência das formas responsáveis pela harmonia entre ainteriorida<strong>de</strong> individual e o comportamento social. Segun<strong>do</strong>, a erradicação <strong>do</strong>s<strong>de</strong>tritos da mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong>, seus distúrbios, seus excessos. E, finalmente, a construção<strong>de</strong> uma nação, limpa e or<strong>de</strong>nada, se se quiser, mais apropriada aquiloque se consi<strong>de</strong>rava vida humana a<strong>de</strong>quada. Finalida<strong>de</strong>s essas que diziam “civiliza-seou <strong>de</strong>saparece”. Em suma, tratava-se <strong>de</strong> cuidar da única condição prática,positiva e utilitária da vida: aformosea-la 43 .42 AZEVEDO, Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong>. Novos caminhos e <strong>no</strong>vos fins: a <strong>no</strong>va política <strong>de</strong> educação<strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>. op. cit., p. 52 e 118.43AZEVEDO, Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong>. A reforma <strong>do</strong> ensi<strong>no</strong> <strong>no</strong> Districto Fe<strong>de</strong>ral: discursos e entrevistas.op. cit., p. 75.


188André Luiz Paulilo / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 155-187


O ESTADO DE BODIN NO ESTADODO HOMEM RENASCENTISTA 1Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong>Depto. <strong>de</strong> História da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral FluminenseResumoInteressa-<strong>no</strong>s enten<strong>de</strong>r Os Seis Livros da República <strong>de</strong> Jean Bodin <strong>de</strong> mo<strong>do</strong>mais sensível a sua época, <strong>no</strong> tocante à historiografia sobre o homem renascentistae o Esta<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>. O que torna política uma teoria das relações sociaisnão são apenas as referências a parti<strong>do</strong>s ou gover<strong>no</strong>s, mas as estruturas edinâmicas <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r e da autorida<strong>de</strong>. Em Bodin essas percepções têm a famíliacomo cerne, entendida como instituição social plena <strong>de</strong> afetos, e comoarena <strong>de</strong> lutas. Consi<strong>de</strong>ramos também o universo cultural específico com oqual a obra dialoga, <strong>de</strong>stacan<strong>do</strong> a influência <strong>do</strong> neoplatonismo.Palavras-ChaveJean Bodin • Renascimento • Esta<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> • NeoplatonismoAbstractThe aim of the article is to un<strong>de</strong>rstand Jean Bodin’s The Six Books of theCommonwealth in a manner sensitive to its time, with regard to the historiographyof Renaissance man and of the mo<strong>de</strong>rn State. His approach tosocial relations becomes a political theory <strong>no</strong>t only because of referencesto parties or governments, but rather because of his discussion of thestructures and dynamics of power and authority. The family lies at thecore of Bodin’s perceptions, un<strong>de</strong>rstood as a social institution that is bothreplete with emotion as well as a sphere of conflict. The authors also takeinto account the specific cultural universe with which the work interacts,emphasizing the influence of neo-platonism.KeywordsJean Bodin • Renaissance • Mo<strong>de</strong>rn State • Neo-platonism1 A origem da pesquisa encontra-se <strong>no</strong> estágio pós-<strong>do</strong>utoral <strong>de</strong>senvolvi<strong>do</strong> por RodrigoBentes Monteiro <strong>no</strong> Depto. <strong>de</strong> História/USP entre 2001 e 2002, sob supervisão <strong>do</strong> Prof.Dr. Mo<strong>de</strong>sto Florenza<strong>no</strong> (a quem agra<strong>de</strong>cemos pela leitura crítica <strong>de</strong>ste artigo), com bolsaFAPESP. Ela prossegue <strong>no</strong> Depto. <strong>de</strong> História/UFF, on<strong>de</strong> se prepara com os bolsistas <strong>de</strong>iniciação científica (CNPq) Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> e Wagner Leal Carneiro a tradução<strong>do</strong> Livre I <strong>de</strong> Les Six Livres <strong>de</strong> la République, <strong>de</strong> Jean Bodin.


190Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214O Homem é o que ele acredita(Anton Tchécov)Homem renascentistaNos tempos medievais, renascer era emprega<strong>do</strong> com valor religioso <strong>de</strong> se“conhecer uma <strong>no</strong>va disposição <strong>de</strong> amor”, como uma vegetação que cresce<strong>no</strong>vamente, ou ainda em alusão ao mito da fênix. Da mesma forma, o termorenascimento associava-se à “regeneração espiritual”, fazen<strong>do</strong> crer na reencarnação<strong>do</strong> amor após a morte. No século XVII, a palavra renascença ainda erautilizada como referência ao ressurgimento da Antiguida<strong>de</strong> Clássica atravésdas letras e artes. Voltaire sau<strong>do</strong>u o mun<strong>do</strong> literário e artístico da PenínsulaItálica <strong>no</strong> tempo <strong>do</strong>s Médicis como prenúncio das Luzes. No entanto, até mea<strong>do</strong>s<strong>do</strong> Ottocento, a Renascença como idéia historiográfica era um territórioinexplora<strong>do</strong>. Michelet escreveu sobre a gran<strong>de</strong> revolução mental, o <strong>de</strong>scobrimentohuma<strong>no</strong> <strong>de</strong> si e <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Apesar <strong>de</strong> ter antecipa<strong>do</strong> as formulações <strong>de</strong>Burckhardt, a este a posterida<strong>de</strong> associou merecidamente a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong> Renascimentoem termos <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento <strong>do</strong> indivíduo e da <strong>de</strong>scoberta <strong>do</strong>mun<strong>do</strong> e <strong>do</strong> homem. Coube ao historia<strong>do</strong>r suíço a construção <strong>de</strong>sta época histórica,autô<strong>no</strong>ma, com fisio<strong>no</strong>mia própria e coesão interna. Na introdução <strong>de</strong>A Cultura <strong>do</strong> Renascimento na Itália, cuja primeira edição é <strong>de</strong> 1860, alerta<strong>no</strong>spara as inflexões que os leitores – e ele próprio – encontrarão <strong>no</strong> objeto:“Os contor<strong>no</strong>s espirituais <strong>de</strong> uma época cultural oferecem, talvez, a cada observa<strong>do</strong>ruma imagem diferente, e, em se tratan<strong>do</strong> <strong>do</strong> conjunto <strong>de</strong> uma civilizaçãoque é a mãe da <strong>no</strong>ssa e que sobre esta ainda hoje segue exercen<strong>do</strong> a suainfluência, é mister que juízo subjetivo e sentimento interfiram a to<strong>do</strong> o momentotanto na escrita quanto na leitura <strong>de</strong>sta obra” (BURCKHARDT, 1991,p.21). Peter Gay, ao analisar o estilo <strong>de</strong> Burckhardt, encontra um canal intimistaentre o leitor e o tema. A intitulação <strong>de</strong> seu livro em ensaio evi<strong>de</strong>ncia isso,uma vez que este é o gênero mais pessoal que se conhece, crian<strong>do</strong> uma “imagemsegura <strong>do</strong> passa<strong>do</strong>” <strong>de</strong> difícil re-interpretação das regras pré-existentes(GAY, 1990, pp.131-166).Construía-se uma interpretação da Renascença e seus homens sob viéscultural, com uma <strong>no</strong>va percepção <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>. Esse breve perío<strong>do</strong> – o século


Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214 191<strong>XIX</strong> - tor<strong>no</strong>u-se assim celeiro <strong>de</strong> intermináveis discussões acerca <strong>do</strong>s cortesespaciais e temporais que <strong>de</strong>limitam o Renascimento. São diversos osquestionamentos que matizam sua força, sua evolução, o po<strong>de</strong>r <strong>do</strong>s i<strong>de</strong>ais <strong>de</strong>indivíduos e círculos intelectuais. Indaga-se sobre a cristalização da“esgotante” <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> ruptura renascentista como uma eliminação <strong>do</strong> afastamentomedieval <strong>do</strong> homem em relação à civitas terrena e ao mun<strong>do</strong> natural,ou como entendimento <strong>de</strong> um corte sem resíduos. Contesta-se a postulação<strong>de</strong> um esquema hermenêutico <strong>no</strong> pla<strong>no</strong> historiográfico e filosófico, cujo balançorecente foi efetiva<strong>do</strong> por Cesare Vasoli (VASOLI, 2002, pp.3-25).Surgiram análises partin<strong>do</strong> <strong>de</strong>ste mo<strong>de</strong>lo, como a <strong>de</strong> Eugénio Garin, queobserva a estreita relação entre os homens <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong> e o mito renascentista.Segun<strong>do</strong> o historia<strong>do</strong>r italia<strong>no</strong>, a filosofia renascentista seria confundida como contexto da Renascença, haven<strong>do</strong> sobreposição <strong>do</strong> i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong> ao histórico(GARIN, 1991, pp.9-16). Ambos os tempos se confun<strong>de</strong>m na excentricida<strong>de</strong>e nas extravagâncias, e a construção <strong>do</strong> homem renascentista <strong>de</strong> Burckhardt<strong>de</strong><strong>no</strong>ta o quão o passa<strong>do</strong> não é simplesmente passa<strong>do</strong>, mas possui<strong>do</strong>r <strong>de</strong> umacontinuida<strong>de</strong> <strong>no</strong> presente. A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma referência ao pretérito se realizouem outro momento que refletiu também <strong>no</strong>va efervescência na consciênciahumana para o resgate, ou nascimento <strong>de</strong>ste homem renascentista. Essapercepção <strong>do</strong>s historia<strong>do</strong>res contribui para uma análise me<strong>no</strong>s teleológica sobrea subjetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sses indivíduos, enfatizada por Burckhardt, e também parauma relativização da compreensão <strong>do</strong> homem renascentista como <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong>uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> talentos, cara à historiografia em geral. Uma famosapassagem da obra <strong>de</strong> Burckhardt evi<strong>de</strong>ncia algo anteriormente não percebi<strong>do</strong>pelos homens, seu entendimento enquanto indivíduos em sua gênese espacialitaliana: “Na Ida<strong>de</strong> Média (...) o homem reconhecia-se a si próprio apenas enquantoraça, povo, parti<strong>do</strong>, corporação, família ou sob qualquer outra das <strong>de</strong>maisformas <strong>do</strong> coletivo. Na Itália, pela primeira vez, tal véu dispersa-se ao vento;<strong>de</strong>sperta ali uma contemplação e um tratamento objetivo <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e <strong>de</strong> todasas coisas <strong>de</strong>ste mun<strong>do</strong>. Paralelamente a isso, <strong>no</strong> entanto, ergue-se também, naplenitu<strong>de</strong> <strong>de</strong> seus po<strong>de</strong>res, o subjetivo: o homem torna-se um indivíduo espirituale se reconhece enquanto tal” (BURCKHARDT, 1991, p.111).Essa <strong>no</strong>va percepção <strong>de</strong> si acarretaria uma transformação singular <strong>no</strong> universomaterial. Reconhecida, a individualida<strong>de</strong> traria para o homem uma indiferençaquanto ao me<strong>do</strong> da singularida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> ser e parecer diferente <strong>do</strong>s vizinhos.Também não haveria na Península Itálica <strong>do</strong> século XV espaço para falsa


192Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214modéstia ou hipocrisia; o cosmopolitismo era manifestação explícita <strong>do</strong> maisalto grau <strong>de</strong> individualida<strong>de</strong>, expansão das virtu<strong>de</strong>s sem limites espaciais. O<strong>de</strong>senvolvimento nesse contexto <strong>de</strong> uma literatura biográfica seria mais umreflexo da glória mo<strong>de</strong>rna. Diferentemente das interpretações que observamapenas a celebração suntuosa <strong>de</strong> indivíduos sobre-huma<strong>no</strong>s realizan<strong>do</strong> proezasgloriosas, Burckhardt aponta os extremos <strong>de</strong>sta individualida<strong>de</strong>, e os perigosda auto-afirmação. O homem que se orgulhava em cultivar sua personalida<strong>de</strong>mais característica, na literatura mais interessante ou nas roupas que lheapresentavam, necessitava <strong>de</strong> auto-expressão, o que resultava também emagressivida<strong>de</strong> e <strong>de</strong>sumanida<strong>de</strong>. O <strong>de</strong>sejo da fama, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> obter oapreço <strong>do</strong>s outros para confirmar o pessoal, podiam <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ar tragédias.Os crimes da Renascença seriam fruto da obsessão pela preservação da individualida<strong>de</strong>(BURCKHARDT, 1991, pp.81-105).Garin não enxerga este homem “dissipan<strong>do</strong> o véu” <strong>de</strong> forma tão <strong>de</strong>finitiva,conceben<strong>do</strong>-o dicotômico entre a liberda<strong>de</strong> <strong>de</strong> criação e percepção <strong>de</strong> suaspotencialida<strong>de</strong>s, e a angústia pela insegurança, fruto <strong>de</strong>sta mesma liberda<strong>de</strong>que outrora não o acometia. Essa <strong>no</strong>va concepção <strong>de</strong> mun<strong>do</strong> contemplava<strong>no</strong>vos e antigos valores. Entretanto, se Garin encontra confusão entre a filosofiarenascentista e o contexto histórico da Renascença na obra <strong>de</strong> Burckhardt, eletambém não está livre <strong>do</strong>s anseios <strong>de</strong> seu tempo. Sua observação relativa aohomem renascentista carrega implicitamente o pressuposto <strong>de</strong> uma percepçãofuturológica, uma vez que o me<strong>do</strong> <strong>do</strong> homem renascentista, segun<strong>do</strong> Garin, <strong>de</strong>corre<strong>de</strong> se assumir uma <strong>no</strong>va perspectiva ante a <strong>no</strong>va percepção <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>. Masperceber a mudança e temê-la não parece ser uma construção típica <strong>do</strong> homemem questão. Giacomo Marramao argumenta que este ainda não apresentava umaangústia “transindividual” pelo “presente que escapa”, o que caracteriza a“autoconstrição civilizatória”. Seu senso munda<strong>no</strong> <strong>do</strong> tempo forneceria umavisão sincrônica; havia apenas re-estruturação prospectiva <strong>do</strong> espaço, e não umaracionalização futurológica. Dessa forma o homem renascentista não reage comsofrimento e <strong>de</strong>sorientação; ele toma essa re-estruturação como um da<strong>do</strong>, e segueadiante (MARRAMAO, 1995, pp.77-156).Já Agnes Heller, ao olhar para o homem renascentista encontra um ser quenão mais projeta um i<strong>de</strong>al para sua existência, um valor a ser alcança<strong>do</strong>. Acrise <strong>de</strong>ste homem estaria na própria construção <strong>do</strong> conceito <strong>de</strong> si mesmo. NaAntiguida<strong>de</strong> e na Ida<strong>de</strong> Média haveria a concepção <strong>de</strong> um homem i<strong>de</strong>al. Primeiramentecom valores como sabe<strong>do</strong>ria, coragem e mo<strong>de</strong>ração. Depois, ajustiça da cristanda<strong>de</strong> pautada <strong>no</strong>s peca<strong>do</strong>s capitais guiaria a conduta <strong>do</strong>s in-


Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214 193divíduos. O homem da Renascença viveria a irrealização <strong>de</strong> sua gran<strong>de</strong>za e<strong>de</strong> sua pequenez, não conseguin<strong>do</strong> constituir mais um i<strong>de</strong>al que o orientassecomo categoria ontológica (HELLER, 1982, pp.9-27).Outro ponto caro à historiografia diz respeito à versatilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> homemrenascentista. Burckhardt ao mencionar Leon Alberti, encontra neste a personificaçãoda perfeição <strong>de</strong> tu<strong>do</strong> que se propusera a fazer, e apesar disto, eleainda não chegaria perto <strong>de</strong> Leonar<strong>do</strong> da Vinci. Me<strong>no</strong>s eloqüente, ainda quenão fugin<strong>do</strong> à regra, Garin afirma que o homem <strong>de</strong>ste perío<strong>do</strong> é qualifica<strong>do</strong>com uma multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> talentos. Buscan<strong>do</strong> uma explicação para a mesmaidéia, Agnes Heller <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que a versatilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>sse homem estava <strong>no</strong> aparecimentoda produção “burguesa”, e seu nível relativamente baixo <strong>de</strong> produção.A interpretação é bastante consensual (BURCKHARDT, 1991, pp.117-118; GARIN, 1991, pp.9-16; HELLER, 1982).No século <strong>XIX</strong>, auge da fragmentação abrupta <strong>do</strong> conhecimento e <strong>do</strong>safazeres em campos específicos, ocorreu a construção historiográfica da Renascençae <strong>de</strong> seus homens. Este entendimento encontra-se atrela<strong>do</strong> ao reducionismodas funções <strong>do</strong> homem nas socieda<strong>de</strong>s mais complexas. O homemda Renascença não parece enten<strong>de</strong>r-se como tal; o sapateiro Jean <strong>de</strong> Léry, omédico Rabelais e o <strong>de</strong>monólogo Jean Bodin eram comuns <strong>no</strong> universo dasativida<strong>de</strong>s necessárias aos indivíduos daquele tempo. Assim, em <strong>no</strong>ssa percepçãoé necessário reverter esta lógica interpretativa. A multiplicida<strong>de</strong> <strong>de</strong> talentossó existe na medida em que ocorre a multiplicida<strong>de</strong> das ativida<strong>de</strong>s a posteriori<strong>do</strong> fazer e <strong>do</strong> conhecer.Para Eugénio Garin, o homem renascentista sabia que algo <strong>no</strong>vo acontecia,que seu presente configurava-se <strong>de</strong> forma diferenciada. Diversos fatos corroboramesse entendimento: o <strong>do</strong>mínio <strong>do</strong> Império Otoma<strong>no</strong> sobre Bizâncio,o conhecimento <strong>do</strong> grego clássico e os textos da Antiguida<strong>de</strong>. As invençõestec<strong>no</strong>lógicas também indicam mudanças – um <strong>no</strong>vo saber ou uma <strong>no</strong>va necessida<strong>de</strong><strong>do</strong> saber –, interpretadas como égi<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa transformação: pólvora,papel, bússola, imprensa. As navegações e os <strong>de</strong>scobrimentos são temas obrigatórioscomo marcos <strong>do</strong> início <strong>do</strong>s Tempos Mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>s. Contu<strong>do</strong>, esses elementos<strong>de</strong>vem ser compreendi<strong>do</strong>s como conseqüências <strong>de</strong> uma <strong>no</strong>va atuação<strong>do</strong> homem ante a natureza, significan<strong>do</strong> um afastamento em relação às coisasnaturais, e sua <strong>no</strong>va proposta <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> e elaboração <strong>de</strong> outra forma<strong>de</strong> conhecimento. Interessa-<strong>no</strong>s enten<strong>de</strong>r que a transformação <strong>do</strong> homemem sua compreensão <strong>de</strong> si, e conseqüentemente <strong>do</strong>s elementos exter<strong>no</strong>s, acompanhatransformações nas próprias relações entre os homens. Como mudan-


194Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214ça maior, iniciava-se a instituição social entendida como “Esta<strong>do</strong>”, que <strong>de</strong>sperta,também, gran<strong>de</strong> controvérsia historiográfica.Esta<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>Para Jean-Frédéric Schaub, os historia<strong>do</strong>res <strong>do</strong> Antigo Regime interessa<strong>do</strong>s<strong>no</strong> Esta<strong>do</strong> encontram-se sob a injunção das escolhas da escola <strong>do</strong>s Annalese da historiografia marxista, que negligenciaram <strong>no</strong> século XX o estu<strong>do</strong> dapolítica – generalização polêmica, ao pensarmos em vários trabalhos(ANDERSON, 1995; LADURIE, 1994). A isso se soma o relativo triunfo <strong>do</strong>sregimes liberais - fazen<strong>do</strong> com que o tema adquira contor<strong>no</strong>s i<strong>de</strong>ológicos -, eum ambiente político e jurídico caracteriza<strong>do</strong> por fenôme<strong>no</strong>s <strong>de</strong> transferênciada soberania, pela sedução <strong>do</strong> fe<strong>de</strong>ralismo e pelo horizonte transnacionaleuropeu. Nesse quadro, é gran<strong>de</strong> a dificulda<strong>de</strong> em lidar com a periodizaçãoda história política, refém da classificação tradicional. Durante o século XX,pesquisas apresentam uma Ida<strong>de</strong> Média nacional e burocrática, Tempos Mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>sreligiosos e feudais, ou uma Época Contemporânea <strong>de</strong> arcaísmos e resistências.Freqüentemente, em função <strong>de</strong> um paradigma mo<strong>de</strong>rniza<strong>do</strong>r, i<strong>de</strong>ntificase<strong>no</strong> passa<strong>do</strong> a experiência contemporânea, projeções teleológicas <strong>de</strong>signadascomo anacronismos. Sem negar a importância <strong>de</strong> elementos como a precocida<strong>de</strong><strong>do</strong> stato italia<strong>no</strong> ou a teoria da soberania <strong>de</strong> Bodin, Schaub recusa neleso caráter in<strong>de</strong>lével <strong>de</strong> divisores <strong>de</strong> idéias e épocas, que não tiveram em seutempo, mas que uma visão retrospectiva da história lhes conce<strong>de</strong>u. Questionao caráter revolucionário da construção jurídica bodiniana <strong>de</strong> uma soberaniafundada <strong>no</strong> mo<strong>no</strong>pólio da lei, e o próprio estatuto da lei <strong>no</strong> conjunto <strong>do</strong>s instrumentos<strong>no</strong>rmativos <strong>do</strong> Antigo Regime. Em suma, interroga-se sobre a datação<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, supon<strong>do</strong> que a soberania foi realizada por um processo multissecular<strong>de</strong> acumulação <strong>de</strong> forças e direitos por parte da instituição governamental.O discurso da história é assim reenvia<strong>do</strong> à própria construção <strong>do</strong> tempohistórico, pela i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong>s tempos, <strong>do</strong> qual fala o historia<strong>do</strong>r e daqueleque pensa reconstruir. A interpretação positivista <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> francês, <strong>de</strong>ixadaintacta pela historiografia sócio-econômica, fez com que a história política,ao tornar-se objeto da história, funcionasse como história oficial. Aindahoje, a <strong>de</strong>scrição <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> francês sofre para se distanciar <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>lo que<strong>de</strong>termina sua gênese pela emergência <strong>de</strong> um sentimento nacional, ou pela impessoalida<strong>de</strong><strong>do</strong> po<strong>de</strong>r (SCHAUB, 1996, pp.127-141).


Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214 195Mais uma vez, o paradigma <strong>de</strong> interpretação historiográfica surgiu <strong>no</strong> século<strong>XIX</strong>. Uma leitura <strong>de</strong> O Antigo Regime e a Revolução <strong>de</strong> Alexis <strong>de</strong> Tocqueville,<strong>de</strong> 1856, engran<strong>de</strong>ceu a herança centraliza<strong>do</strong>ra da dinâmica revolucionária, situan<strong>do</strong>instituições <strong>no</strong>vas numa tradição <strong>de</strong> séculos (TOCQUEVILLE, 1982;COSANDEY & DESCIMON, 2002, pp.137-138). Reduzin<strong>do</strong> a ruptura, a históriapolítica i<strong>de</strong>ntificou antes da Revolução o anúncio <strong>de</strong> sua obra. Mas a Revoluçãonão foi algo superficial. Além <strong>de</strong> muitas transformações, ela inaugurou aauto<strong>no</strong>mia da política em relação às oposições sociais, finalizan<strong>do</strong> a indistinçãoentre socieda<strong>de</strong> e gover<strong>no</strong>, e forman<strong>do</strong> plenamente o conceito <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> na França<strong>do</strong> século <strong>XIX</strong>. Tal asserção expressa a distância em relação à retórica políticada Ida<strong>de</strong> Mo<strong>de</strong>rna como forma acabada <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r institucional. Nesse senti<strong>do</strong>, paraSchaub, o livro <strong>de</strong> François Furet, embora esvazie a mudança da Revolução naesteira <strong>de</strong> Tocqueville, i<strong>de</strong>ntifica nela essa conquista da in<strong>de</strong>pendência da política(SCHAUB, 1996, pp.144-153; FURET, 1989, pp.145-175).Na recusa meto<strong>do</strong>lógica <strong>de</strong> operar uma cisão entre história e teoria política,antropólogos interessam-se por antigos fenôme<strong>no</strong>s sociais e culturais.Essas sugestões justificam uma démarche da análise política das socieda<strong>de</strong>s<strong>do</strong> Antigo Regime que não passa pela tradicional cro<strong>no</strong>logia da afirmação <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong>. A<strong>de</strong>mais, Schaub i<strong>de</strong>ntifica três frentes <strong>de</strong> re<strong>no</strong>vação: a aceitação <strong>do</strong>sinsumos da história <strong>do</strong> direito, uma hermenêutica <strong>do</strong>s textos antigos me<strong>no</strong>sevolucionista, e a abordagem da história <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> como institucionalizaçãoda socieda<strong>de</strong> - mais <strong>do</strong> que como <strong>de</strong>scrição <strong>de</strong> instituições.O quadro é complexo. A obra <strong>de</strong> Bodin, por exemplo, po<strong>de</strong> ser objeto <strong>de</strong> váriasleituras. Se o jurisconsulto foi um <strong>de</strong>fensor <strong>do</strong> absolutismo, seu pressuposto políticoé interpreta<strong>do</strong> como etapa na formação <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ologia, embora esteja semdúvida liga<strong>do</strong> às guerras religiosas. Mas se a soberania <strong>de</strong> Bodin é uma teoria geral<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, esse senti<strong>do</strong> é contemporâneo. A interpretação, anacrônica, concebe alei como criação <strong>do</strong> direito positivo, <strong>no</strong>rma jurídica suprema. Mas esse anacronismorequer também uma suspensão <strong>do</strong> julgamento sobre a datação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>,que como vimos aprisiona a análise. No <strong>do</strong>mínio administrativo, é conhecida ainterpretação retrospectiva que concebe Bodin como <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>r da função pública,a partir da teoria <strong>do</strong> direito público. Para o jurista francês, a questão consistiaem saber se uma pessoa po<strong>de</strong> possuir um coman<strong>do</strong>, dissocian<strong>do</strong> o ofício <strong>do</strong> oficial,já que o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>lega<strong>do</strong> permanecia proprieda<strong>de</strong> <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Os magistra<strong>do</strong>s –entre eles o rei - <strong>de</strong>tinham competências, mas os títulos conferi<strong>do</strong>s não lhes pertenciam.Mas Bodin, exercen<strong>do</strong> funções <strong>de</strong> um jurisconsulto <strong>de</strong> seu tempo, não


196Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214operava separação completa entre o ofício e sua pessoa, por exemplo, ao atribuirsevai<strong>do</strong>so o pioneirismo na <strong>de</strong>finição da soberania <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r régio, ao pronunciar-sesobre o <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> <strong>do</strong>s oficiais <strong>no</strong> fim <strong>de</strong> cada reina<strong>do</strong>, ou ao impedir o rei <strong>de</strong>lançar <strong>no</strong>vos impostos para a guerra <strong>no</strong>s esta<strong>do</strong>s gerais <strong>de</strong> Blois, 1576. Os laçossociais teci<strong>do</strong>s entre ofícios e instituição monárquica eram muito fortes para queuma teoria da impessoalida<strong>de</strong> absoluta <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r público pu<strong>de</strong>sse se impor(MONTEIRO, 2003, p.172).O savoir-faire <strong>do</strong>s magistra<strong>do</strong>s não era o único limite à expansão <strong>de</strong> umpuro po<strong>de</strong>r público. Bodin também exami<strong>no</strong>u as leis fundamentais, essenciaispara a monarquia: a lei sálica, e a inalienabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong>s <strong>do</strong>mínios da coroa.Nos <strong>do</strong>is casos, as <strong>no</strong>rmas incidiam nas relações entre príncipe e esta<strong>do</strong>s, paraafirmar o caráter dinástico da instituição régia, e fixar condições <strong>do</strong> exercício<strong>do</strong> po<strong>de</strong>r real. Essas disposições <strong>de</strong>sempenharam papel importante <strong>no</strong> trabalho<strong>de</strong> impessoalida<strong>de</strong> da autorida<strong>de</strong> pública, corroboran<strong>do</strong> a teoria da soberania.Desse mo<strong>do</strong>, segun<strong>do</strong> Schaub, os historia<strong>do</strong>res também se equivocam seconcebem a teoria <strong>de</strong> Bodin como mero reflexo <strong>de</strong> seu tempo, ou apenas umaexaltação <strong>do</strong> absolutismo (SCHAUB, 1996, pp.153-159).Entre poucos estudiosos, Michel Senellart rompe com as barreiras cro<strong>no</strong>lógicasna análise <strong>do</strong>s textos, ao verificar como o mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> conceito <strong>de</strong> gover<strong>no</strong>surgiu <strong>de</strong> regras anteriormente elaboradas para o regimen medieval, o gover<strong>no</strong>das almas exerci<strong>do</strong> pelos homens da Igreja (SENELLART, 1995). Sem enveredarpor uma concepção teleológica da história, po<strong>de</strong>-se compreen<strong>de</strong>r comoa visão teórica <strong>de</strong> Bodin permite imaginar a mo<strong>no</strong>polização pelo sobera<strong>no</strong> <strong>do</strong>po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> coman<strong>do</strong> pela lei, mesmo que a socieda<strong>de</strong> política não tenha produzi<strong>do</strong>,propriamente, um Esta<strong>do</strong>. Essa abordagem das estruturas políticas <strong>do</strong> AntigoRegime assume suas tensões inerentes, evi<strong>de</strong>ncian<strong>do</strong> as fragilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>uma história política por <strong>de</strong>mais certa <strong>de</strong> suas conclusões.Nesse senti<strong>do</strong>, Schaub <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> uma história <strong>do</strong>s textos políticos em suaacepção cultural, distancian<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> “fetichismo filosófico”. A história sócioculturalindica a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> maior sensibilida<strong>de</strong> aos conteú<strong>do</strong>s <strong>do</strong>s textos.Com efeito, a chamada escola <strong>de</strong> Cambridge oferece importantes reflexõesacerca <strong>de</strong> um estu<strong>do</strong> comparativo das obras contemporâneas aos“clássicos”, como Quentin Skinner, ou <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ntificação apurada das linguagenspolíticas, como J. G. A. Pocock. Todavia - não obstante a qualida<strong>de</strong><strong>de</strong>ssas análises na utilização <strong>do</strong> méto<strong>do</strong> contextual -, o exemplo <strong>de</strong> Cambridgee <strong>de</strong> sua história das idéias políticas não será reproduzi<strong>do</strong> neste artigo, uma


Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214 197vez que ampliamos aqui a <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> “política” em direção ao âmbito culturale filosófico renascentista (MONTEIRO, 2005; SKINNER, 1996; POCOCK,2003, pp.9-99) 2 .Entre a <strong>de</strong>finição da soberania <strong>de</strong> Bodin e a fundação da soberania nacionalpela Revolução Francesa, um Antigo Regime se move, mo<strong>de</strong>lan<strong>do</strong> a esfera<strong>do</strong> público. Nesse âmbito relacional entre po<strong>de</strong>r público e socieda<strong>de</strong>, nãose po<strong>de</strong> subtrair da história a parte “contratante” da socieda<strong>de</strong>, <strong>no</strong> tempo <strong>do</strong>smonarcas absolutos. Se uma monarquia sacral constituiu uma resposta à dilaceração<strong>do</strong> corpo místico medieval, é preciso questionar as condições sociais<strong>de</strong> mo<strong>no</strong>polização <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>no</strong> pólo público. Como se sabe, as guerras <strong>de</strong> religiãoquebraram o espelho em que a respublica via-se unida como Esta<strong>do</strong> esocieda<strong>de</strong>, como Igreja enfim. Mas se a pretensão da monarquia ao mo<strong>no</strong>póliodas “cerimônias da informação”, na expressão <strong>de</strong> Michèle Fogel, se afirmoucom as guerras <strong>de</strong> religião, a absorção <strong>de</strong>ssa emissão cultural não foi imediata(FOGEL, 1989).Torna-se oportu<strong>no</strong> compreen<strong>de</strong>r como o Esta<strong>do</strong> nascen<strong>do</strong> instituía o social,<strong>de</strong>finia hierarquias e garantia a esfera da intimida<strong>de</strong>, mas também comoagentes sociais representavam status, interiorizan<strong>do</strong> <strong>no</strong>vas legitimida<strong>de</strong>s ehierarquias. Enten<strong>de</strong>-se que a abstração <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, sua secularização e a objetivaçãoda coisa pública fundaram o Esta<strong>do</strong>. Mas como efetuar essa caracterização,quan<strong>do</strong> os negócios priva<strong>do</strong>s e as funções públicas não se separavam?A escola neo-cerimonialista <strong>de</strong> Ralph Giesey <strong>de</strong>scobriu nas gran<strong>de</strong>s cerimôniasa expressão da legitimação sagrada da realeza (GIESEY, 1987). Esta análiseé criticada por Alain Boureau, ao <strong>de</strong>monstrar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contextualizaçãosocial e política <strong>de</strong> cada celebração organizada, observan<strong>do</strong> também quea exaltação transcen<strong>de</strong>nte <strong>do</strong> rei inspirava-se na liturgia cristã (BOUREAU,1988). Sabe-se <strong>de</strong>s<strong>de</strong> Kantorowicz, que a dupla natureza <strong>do</strong> rei era a condiçãosimbólica e jurídica da <strong>de</strong>finição <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, etapa essencial <strong>no</strong> processo <strong>de</strong>abstração da função e garantia <strong>de</strong> sua permanência. Mas a dialética das dignida<strong>de</strong>se <strong>de</strong> seu titular não era limitada ao caso <strong>do</strong> rei bicorporal, sen<strong>do</strong> verificadaem vários estratos sociais, e com muita confusão entre as esferas, como vimos2Isso não é feito por Skinner, ao comentar Bodin – li<strong>do</strong> apenas na tradução para o inglês- como expoente máximo da utilização <strong>do</strong> mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> conceito <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, constitucionalistaem algumas obras, absolutista em outras, reproduzin<strong>do</strong> em seu livro visões retrospectivasda história política (SKINNER, 1996, pp.513-572).


198Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214<strong>no</strong> caso <strong>do</strong> próprio magistra<strong>do</strong> Jean Bodin. A progressiva abstração <strong>do</strong> exercíciodas funções públicas <strong>de</strong>ve ser analisada a partir <strong>do</strong> estu<strong>do</strong> das lógicas sóciopolíticasque comandavam seu investimento por pessoas e famílias, e não apenaspelo prisma <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r monárquico (KANTOROWICZ, 1998).Longe <strong>de</strong> ter <strong>do</strong>mestica<strong>do</strong> os po<strong>de</strong>res hostis (feudais, eclesiásticos, comunais),a monarquia se construía à medida que se construíam outros po<strong>de</strong>res. Essas construçõessimultâneas formavam o substrato <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, pensa<strong>do</strong> em termos organicistase corporativos. Ao mesmo tempo, a constituição histórica <strong>de</strong> uma territorialida<strong>de</strong>da monarquia permite saber como se constituía um espaço <strong>do</strong> rei, público e permanente.A lei fundamental em tor<strong>no</strong> da inalienabilida<strong>de</strong> não remete aos registros <strong>de</strong>teologia moral da Ida<strong>de</strong> Média. O sistema feudal traduzia o suporte territorial emre<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>s, e o rei medieval não era o cume <strong>de</strong>ssa pirâmi<strong>de</strong>, embora<strong>de</strong>sempenhasse papel simbólico. Portanto, a si<strong>no</strong>pse <strong>do</strong> Antigo Regime, vista pelopólo monárquico, seria precisamente o trabalho da instituição <strong>do</strong> rei como árbitro,pelo triunfo i<strong>de</strong>ológico da imortalida<strong>de</strong> <strong>do</strong> rei e pela afirmação jurídica dainalienabilida<strong>de</strong> <strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio (SCHAUB, 1996, pp.159-170).Não obstante, durante o Antigo Regime, a “instituição política da socieda<strong>de</strong>”contou com agentes a serviço <strong>do</strong> rei, encarrega<strong>do</strong>s <strong>de</strong> acelerar um processo<strong>de</strong> <strong>de</strong>svendamento social: juristas, engenheiros, cientistas, cartógrafos, inten<strong>de</strong>ntes,censores, produziam uma cultura <strong>de</strong>sligada da herança teológica medieval.Nesses movimentos, emergia a combinação entre persona <strong>do</strong> rei, especialistase socieda<strong>de</strong>. Era a difusão cultural <strong>de</strong> outra relação com o mun<strong>do</strong> material,através <strong>de</strong> práticas técnicas - lembremos da <strong>no</strong>va atuação <strong>do</strong> homem ante anatureza na Renascença. Entre tantos, <strong>de</strong>stacamos os alquimistas, como emblemaa expressar essa <strong>no</strong>va relação “laica” com a matéria, comparáveis ao apelo posteriora uma tec<strong>no</strong>logia <strong>do</strong> exercício da autorida<strong>de</strong> política. Joël Cornette evoca ahipótese <strong>de</strong> substituição da alquimia pela física mo<strong>de</strong>rna, em mea<strong>do</strong>s <strong>do</strong> séculoXVII, junto à monarquia. Entre Catarina <strong>de</strong> Médici e Luís XIV, produziu-se ummo<strong>de</strong>lo <strong>no</strong> qual, para o Esta<strong>do</strong>, verda<strong>de</strong> e segre<strong>do</strong> - ou mistério - tinham partesligadas (CORNETTE, 1994, pp.475-505; SCHAUB, 1996, p.176). O exemploalquimista evi<strong>de</strong>ncia a lacuna da reflexão <strong>de</strong> Schaub, <strong>no</strong> referente à consi<strong>de</strong>ração<strong>de</strong> aspectos culturais e históricos pertinentes a cada concepção <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r.Embora o historia<strong>do</strong>r francês indique a procedência da abordagem - especialmentepelo contato entre política e literatura -, sua preocupação em <strong>de</strong>smistificarparadigmas da história política <strong>de</strong>ixa-o refém, ele também, <strong>do</strong> tema <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>em sua feição legislativa e institucional. Contu<strong>do</strong>, se não existia Esta<strong>do</strong> naacepção contemporânea, existiam outros tipos <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, ou outras idéias <strong>do</strong>


Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214 199po<strong>de</strong>r, já que uma das boas idéias <strong>de</strong>sse balanço historiográfico consiste emapresentar o po<strong>de</strong>r monárquico em relação à socieda<strong>de</strong>. Ten<strong>do</strong> em vista esseâmbito relacional, trata-se <strong>de</strong> confluir a cultura renascentista e o po<strong>de</strong>r sobera<strong>no</strong>na França <strong>do</strong> século XVI.No rei<strong>no</strong> <strong>do</strong> amorAo enveredar pelo ambiente intelectual da monarquia francesa <strong>no</strong> tempodas guerras <strong>de</strong> religião, Denis Crouzet i<strong>de</strong>ntifica, após a eclosão <strong>do</strong>s conflitos,duas respostas da realeza – não exclu<strong>de</strong>ntes entre si – às violências interconfessionais.A mais evi<strong>de</strong>nte, <strong>de</strong> matriz humanista, tentava fundar a paz pelatolerância da fé reformada. Provavelmente <strong>de</strong> fonte erasmiana, foi <strong>do</strong>minante<strong>de</strong> 1560 a 1568, li<strong>de</strong>rada pelo chanceler Michel <strong>de</strong> L’Hôspital, que se esforçoucom alguns intelectuais – os politiques, entre eles Bodin - para tornar políticauma visão da or<strong>de</strong>m régia. Além <strong>do</strong>s ódios, existia a solução da tolerânciacomo preservação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>, pois sem um po<strong>de</strong>r <strong>do</strong>minante, os homensguerreariam ao infinito. O rei <strong>de</strong>via manter a paz, justificativa da organizaçãosocial e política capaz <strong>de</strong> findar os conflitos. Po<strong>de</strong>-se perceber essa tendênciaem muitas passagens <strong>de</strong> Os Seis Livros da República (CROUZET, 1994,pp.205-213; MONTEIRO, 2003, pp.168-172).Mas havia outra corrente filosófica que convém enfatizar. Os diálogos <strong>de</strong>Platão também foram admira<strong>do</strong>s fora da escola por ele fundada, forman<strong>do</strong> umplatonismo popular e eclético em Alexandria que suplantou o ceticismo daAca<strong>de</strong>mia ateniense. Formulava-se assim uma <strong>do</strong>utrina <strong>de</strong> idéias transcen<strong>de</strong>ntes,com pontos comuns ao neopitagorismo e aos herméticos - teólogos queutilizavam escritos atribuí<strong>do</strong>s ao egípcio Hermes Trimegisto (YATES, 1987,pp.13-18). No século III d.C, padres alexandri<strong>no</strong>s fundiam ensi<strong>no</strong>s da Bíbliae da filosofia grega a elementos <strong>de</strong>sse platonismo. A escola, <strong>de</strong><strong>no</strong>minada <strong>de</strong>poisneoplatônica, transmitiu sua herança à posterida<strong>de</strong>. Nela, Ploti<strong>no</strong> concebiaum universo hierárquico <strong>no</strong> qual o Deus transcen<strong>de</strong>nte ou U<strong>no</strong>, <strong>de</strong>scia porvários graus ao mun<strong>do</strong> corpóreo, enquanto uma íntima experiência espiritualpermitia à consciência retornar através <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> inteligível ao U<strong>no</strong> supremo,ao passo que o mun<strong>do</strong> físico era uma trama <strong>de</strong> afinida<strong>de</strong>s ocultas originadasna alma <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> (KRISTELLER, 1995, pp.55-60).Embora elementos <strong>do</strong> platonismo medieval tenham sobrevivi<strong>do</strong> <strong>no</strong>Renascimento, <strong>no</strong>vos aspectos surgiram pelo encontro com a cultura bizantina.Paul Kristeller não consi<strong>de</strong>ra o platonismo renascentista parte <strong>do</strong> humanismo,


200Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214atribuin<strong>do</strong>-lhe significa<strong>do</strong> próprio como filosofia. Impossível <strong>de</strong>talhar nestebreve estu<strong>do</strong> as atuações <strong>de</strong> Marsílio Fici<strong>no</strong> e Giovanni Pico <strong>de</strong>lla Miran<strong>do</strong>la:a primeira versão em latim <strong>de</strong> Platão e Ploti<strong>no</strong>, a tradução <strong>de</strong> supostas obras<strong>de</strong> Pitágoras e <strong>do</strong> Trimegisto, a síntese entre platonismo, aristotelismo e cristianismoesten<strong>de</strong>n<strong>do</strong>-se aos árabes e hebreus, a influência da Aca<strong>de</strong>mia platônicana Europa (KRISTELLER, 1995, pp.61-69; VASOLI, 2002, pp.193-246). Atribuin<strong>do</strong>à alma humana um lugar central na hierarquia <strong>do</strong> universo, Fici<strong>no</strong> concediaexpressão metafísica ao humanismo. Sua <strong>do</strong>utrina <strong>do</strong> amor espiritual,cunhan<strong>do</strong> o termo amor platônico, tor<strong>no</strong>u-se muito popular. A importânciada ascensão da alma a Deus mediante a contemplação ligava-o aos místicos,e a idéia da unida<strong>de</strong> <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> garantida pela alma influenciaria filósofos comoGiorda<strong>no</strong> Bru<strong>no</strong> (YATES, 1987). No século XVI, diálogos <strong>de</strong> Platão eram li<strong>do</strong>snas aca<strong>de</strong>mias italianas, sobretu<strong>do</strong> em Florença, on<strong>de</strong> conferências sobre afilosofia <strong>do</strong> amor eram freqüentes. Obras <strong>de</strong> Platão e <strong>do</strong>s antigos platônicos, alémdas atribuídas a Orfeu, Zoroastro, Hermes e aos pitagóricos, eram editadas emgrego e latim. Os escritos platônicos renascentistas também foram difundi<strong>do</strong>sem línguas vernáculas, sobretu<strong>do</strong> francesa e italiana. Na França, <strong>do</strong>utos comoLefèvre d’Etaples e poetas religiosos como Margarida <strong>de</strong> Navarra, valiam-sedas idéias <strong>de</strong> Fici<strong>no</strong>, <strong>no</strong> apelo à contemplação e à experiência interior. O amorplatônico tornava-se moda nas aca<strong>de</strong>mias literárias. A influência <strong>do</strong> platonismotambém ocorria na matemática, apreciada por Platão e seus segui<strong>do</strong>res, a expressara superiorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> conhecimento quantitativo sobre o qualitativo, damatemática sobre a física, <strong>do</strong> platonismo sobre o aristotelismo.Nesse âmbito, o po<strong>de</strong>r régio francês da Renascença se caracterizava pelacapacida<strong>de</strong> <strong>do</strong> rei governar como inicia<strong>do</strong> <strong>no</strong>s segre<strong>do</strong>s <strong>do</strong> universo. No sistemaneoplatônico <strong>de</strong> Ronsard, poeta da corte, o universo era regi<strong>do</strong> por umalei <strong>de</strong> alternância. Mesmo que o dia seguisse a <strong>no</strong>ite, que as estações se suce<strong>de</strong>ssem,o bom tempo viria após a tempesta<strong>de</strong>. Em 1566, um teórico explicava aimagem Pietas et Justitia – emblema <strong>de</strong> Carlos IX – a partir <strong>de</strong> Fici<strong>no</strong>, que<strong>de</strong>finia o príncipe como aquele que <strong>de</strong>via, por suas virtu<strong>de</strong>s, ser sábio paraguiar o povo aos bons mo<strong>do</strong>s, na crença e amor <strong>de</strong> Deus. As festas da corte <strong>no</strong>tempo <strong>de</strong> Catarina <strong>de</strong> Médici e <strong>de</strong> seus filhos podiam chocar pela suntuosida<strong>de</strong>.Mas a diversão civilizada afirmava a virtu<strong>de</strong> pacifica<strong>do</strong>ra <strong>do</strong> príncipe quevivia em tranqüilida<strong>de</strong>, oferecen<strong>do</strong> prazeres e diferencian<strong>do</strong>-se <strong>do</strong> tira<strong>no</strong>, queproporcionava opressão, angústias, me<strong>do</strong>s. As festas eram então espelhos dajustiça e pieda<strong>de</strong> régias, incluin<strong>do</strong> os presentes na consagração das virtu<strong>de</strong>s,reflexos da beleza universal cuja sabe<strong>do</strong>ria só o príncipe possuía. Nesse sen-


Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214 201ti<strong>do</strong>, festas, quadros, túmulos e poesias organiza<strong>do</strong>s na corte Valois atuavamcomo talismãs, inspira<strong>do</strong>s em teorias neoplatônicas e herméticas <strong>do</strong> spiritus,como Fici<strong>no</strong> <strong>de</strong>senvolveu a partir <strong>do</strong> lendário Trimegisto 3 .O homem era um mun<strong>do</strong> que refletia o gran<strong>de</strong> mun<strong>do</strong>. Entre a alma e o corpo<strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, entre divinda<strong>de</strong>s celestes e terrestres, havia o spiritus, difundi<strong>do</strong> <strong>no</strong>universo, graças ao qual as influências astrais <strong>de</strong>sciam até o homem. A magiacatalisava o influxo <strong>do</strong> spiritus divi<strong>no</strong> em direção às formas sensíveis. A educaçãoprincipesca, através <strong>de</strong> Plutarco, visava fazer <strong>de</strong> Carlos IX um rei filósofoà semelhança <strong>do</strong>s <strong>de</strong>scritos na República <strong>de</strong> Platão. Como a força unifica<strong>do</strong>ra<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> era um fogo, a chama da realeza por meio da educação e da ciência<strong>de</strong>via ser mantida acesa, contra a <strong>de</strong>generescência (CROUZET, 1994, pp.213-225). Rei filósofo e mago, que se ocupava das ciências da natureza e agia <strong>no</strong>pla<strong>no</strong> natural, na acepção <strong>de</strong> Garin (GARIN, 1991, p.134). Contra a violência,uma realeza da harmonia <strong>do</strong>s contrários se impunha. Para o letra<strong>do</strong> Loys LeRoy, inspira<strong>do</strong> em Platão e Aristóteles, o mun<strong>do</strong> inferior era governa<strong>do</strong> pelomun<strong>do</strong> superior que, segun<strong>do</strong> disposições astrais, tornava os homens inclina<strong>do</strong>sàs virtu<strong>de</strong>s, letras ou guerra, numa estação mais que em outra. Deus alternavao Mal com o Bem, para que os homens não fossem <strong>do</strong>mina<strong>do</strong>s pelo orgulho.Os problemas da França eram naturaliza<strong>do</strong>s assim pela lógica dainstabilida<strong>de</strong> das coisas humanas, da bonança ao sofrimento, e vice-versa. A harmoniauniversal era esse movimento pendular incessante, caben<strong>do</strong> aos governantespromover a concórdia.Num mun<strong>do</strong> religioso dilacera<strong>do</strong>, o amor neoplatônico era a última <strong>de</strong>fesacontra a ruptura, tentativa <strong>de</strong> a<strong>de</strong>são da monarquia ao movimento universal,a esta sabe<strong>do</strong>ria ou prudência que afastava os efeitos astrais, superan<strong>do</strong>os <strong>de</strong>safios políticos e religiosos, pela harmonia <strong>de</strong> contrários que asseguravaa perpetuação da vida. O homem era, portanto, ambivalente, <strong>de</strong>finin<strong>do</strong>-se numadualida<strong>de</strong> conserva<strong>do</strong>ra das coisas. Os que <strong>de</strong>tinham o po<strong>de</strong>r político <strong>de</strong>viamatuar segun<strong>do</strong> essa compensação para atingir o equilíbrio. Catarina <strong>de</strong> Médici,<strong>no</strong>s libelos hugue<strong>no</strong>tes, tor<strong>no</strong>u-se uma feiticeira após o massacre <strong>de</strong> 1572,3 Entre livros e manuscritos inventaria<strong>do</strong>s na morte <strong>de</strong> Catarina <strong>de</strong> Médici, encontram-seedições <strong>de</strong> Platão, <strong>de</strong> Ploti<strong>no</strong>, livros referi<strong>do</strong>s à teologia hebraica, sobretu<strong>do</strong> à cabala, além<strong>de</strong> um sobre as revelações místicas <strong>do</strong> Trimegisto. Em 1563 ela <strong>de</strong>cidiu construir paraHenrique II e ela mesma, em Saint Denis, uma capela funerária em forma <strong>de</strong> rotunda, símbolo<strong>do</strong> universo, com quatro estátuas <strong>de</strong> bronze lembran<strong>do</strong> as virtu<strong>de</strong>s <strong>do</strong> neoplatonismo:fortaleza, justiça, temperança e prudência-sabe<strong>do</strong>ria (CROUZET, 1994, pp.225-240).


202Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214responsável pelos males da França. De fato, ela pertencia a uma cultura mágica.Na Renascença, po<strong>de</strong>r significava também atração <strong>de</strong> forças, comunhão como fluxo vital, parte <strong>de</strong> um sistema esotérico <strong>de</strong> conhecimento que condicionavaa política. Além <strong>do</strong>s eventos das guerras <strong>de</strong> religião, existia uma cultura que aglutinavapo<strong>de</strong>r monárquico, neoplatonismo e hermetismo, ou seja, realeza, filosofiae magia. A religião <strong>do</strong>s últimos Valois era diferente das confrontantes, catolicismoe protestantismo, ao fazer da arte política uma arte mística. Denis Crouzet<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a busca <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r na França da segunda meta<strong>de</strong> <strong>do</strong> século XVI nas imagens<strong>do</strong> mun<strong>do</strong> que seus contemporâneos compunham, em função <strong>do</strong>s seus sistemasfilosófico-metafísicos (CROUZET, 1994, pp.240-253) 4 .Ao conceber o po<strong>de</strong>r como discurso, o historia<strong>do</strong>r francês explica o massacre<strong>de</strong> 24 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 1572 como um sonho perdi<strong>do</strong> da Renascença, e aliviao drama da violência religiosa na França <strong>do</strong> século XVI, que recebeu outraabordagem, por exemplo, <strong>de</strong> Natalie Davis (DAVIS, 1990, pp.129-156). Masresta saber se as idéias neoplatônicas continuavam presentes <strong>no</strong> tempo dasguerras religiosas após o massacre <strong>de</strong> São Bartolomeu, quan<strong>do</strong> os conflitosentre católicos e protestantes se acirraram, em especial na obra que a historiografiapolítica enten<strong>de</strong>u como apenas <strong>de</strong>dicada ao Esta<strong>do</strong> e ao direito 5 . Em1576 Jean Bodin publicava Os Seis Livros da República. Voltamo-<strong>no</strong>s assimpara essas questões, na interpretação da obra e <strong>do</strong> próprio Bodin, em especialsobre o primeiro livro, que comporta a teoria da soberania. Ressalta-se que oautor era um <strong>do</strong>s <strong>de</strong>puta<strong>do</strong>s <strong>do</strong> terceiro esta<strong>do</strong> na assembléia <strong>de</strong> 1576, ocorrida<strong>no</strong> castelo <strong>de</strong> Blois, e tinha ligações com os politiques – grupo <strong>de</strong> católicos4Essa acepção <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r difere da que classifica Catarina <strong>de</strong> Médici como discípula <strong>de</strong>Maquiavel, para quem o príncipe <strong>de</strong>via apren<strong>de</strong>r a não ser bom, sem se i<strong>de</strong>ntificar aomal. Sob esse ponto <strong>de</strong> vista a monarquia francesa da Renascença estava distante <strong>de</strong>Maquiavel. Como estavam os príncipes daquele tempo em geral segun<strong>do</strong> análise <strong>de</strong> JohnLaw na coletânea dirigida por Garin (GARIN, 1991, pp.17-36).5Henrique III, o rei <strong>de</strong> Bodin, importou livros mágicos da Espanha, entre eles um sobre oPicatrix, <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> um escritor árabe <strong>de</strong> influência hermética. Segun<strong>do</strong> Frances Yates,ele foi o centro <strong>de</strong> um forte movimento religioso liga<strong>do</strong> aos capuchinhos, com influências<strong>no</strong> hermetismo francês. No Ballet Comique <strong>de</strong> la Royne, festa realizada em 1581, pelo casamento<strong>do</strong> favorito <strong>do</strong> rei com sua cunhada, a reforma solar e mágica da monarquia francesaante os tempos difíceis era evi<strong>de</strong>nte, concretizada na harmonia da música e da dança.Tempo em que Giorda<strong>no</strong> Bru<strong>no</strong>, também “hermético”, hospedava-se na corte francesa, manten<strong>do</strong>intenso contato com o rei (YATES, 1987, pp.63, 206, 229-230).


Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214 203e protestantes que advogavam a paz política <strong>de</strong> maneira mais in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntedas questões religiosas. Pensemos nas possibilida<strong>de</strong>s que Bodin, como homem<strong>de</strong> seu tempo, usufruiu na composição <strong>de</strong> sua obra, o que reflete a necessida<strong>de</strong><strong>de</strong> uma construção teórica da organização social legítima aos indivíduosnaquele contexto histórico e cultural.Bodin recorre com freqüência aos homens da Antiguida<strong>de</strong>. Roma<strong>no</strong>s,gregos, lati<strong>no</strong>s, egípcios, entre outros, fossem poetas, impera<strong>do</strong>res, jurisconsultos,magistra<strong>do</strong>s, escravos ou mulheres. Também recorre a histórias <strong>de</strong> famílias,relatos <strong>de</strong> viajantes e jargões mitológicos. Não obstante, também se vale<strong>de</strong> homens “mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>s” como exemplos. Homens <strong>do</strong> Império, da Inglaterra,das cida<strong>de</strong>s italianas. Suas menções compreen<strong>de</strong>m uma opinião, um julgamento<strong>de</strong> valor, ou expressam uma crença na veracida<strong>de</strong> para confirmar seus argumentos.Em uma passagem, menciona um filósofo grego e um seu contemporâneo:“todavia, não queremos mostrar uma República I<strong>de</strong>al como Platão eThomas More, chanceler da Inglaterra, imaginaram, mas <strong>no</strong>s contentaremosem seguir as regras Políticas o mais próximo possível...” (BODIN, 2005, p.5) 6 .O jurista em sua obra referencia obras clássicas, mas sua argumentação é direcionadaaos homens <strong>do</strong> seu tempo. Sua percepção <strong>de</strong> tempo po<strong>de</strong> ser entendidacomo sincrônica, uma vez que mistura elementos antigos e <strong>no</strong>vos para interpretaro presente, não crian<strong>do</strong> fantasias futurológicas. A<strong>de</strong>mais, parece firmeem seus argumentos e sistematização, com inúmeras nuances. Não parece umser dicotômico pelo me<strong>do</strong> da liberda<strong>de</strong>, ou angustia<strong>do</strong> pelo tempo que escapa.O jurista escreve com fôlego, quase oitocentas páginas, e escreve tambémvárias outras obras 7 . De acor<strong>do</strong> com Marramao, toma os acontecimentos comoda<strong>do</strong>s e segue adiante, sem sofrimento ou <strong>de</strong>sorientação. Po<strong>de</strong>mos percebersua religiosida<strong>de</strong>, uma responsabilida<strong>de</strong> interior (MARRAMAO, 1995). Tambémseu i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> homem parece ter uma <strong>de</strong>finição:6“Toutefois, <strong>no</strong>us ne voulons pas aussi figurer une Republique en I<strong>de</strong>e sans effect, telleque Platon, & Thomas le More Chancelier d’Angleterre, ont imaginé, mais <strong>no</strong>uscontenterons <strong>de</strong> suyvre les reigles Politiques au plus pres qu’il sera possible ...” (BODIN,1579, p.3). Livro I, capítulo 1, “Qual é o fim principal da República bem organizada”.Tradução em andamento <strong>de</strong> Os Seis Livros da República <strong>de</strong> Rodrigo Bentes Monteiro &Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong>.7 Entre elas Théatre <strong>de</strong> la Nature Universelle (publica<strong>do</strong> após sua morte), Methodus adFacilem Historiarum Cognitionem (1566), La Démo<strong>no</strong>manie <strong>de</strong>s Sorciers (1580) eColloquium Heptaplomeres (1596) (MONTEIRO, 2003, pp.161-164).


204Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214“... quan<strong>do</strong> tem si<strong>do</strong> a questão <strong>de</strong> dar a fé, tratar a paz, <strong>de</strong>nunciar a guerra,acordar ligas ofensivas ou <strong>de</strong>fensivas, limitar as fronteiras, e julgar as diferençasentre os Príncipes e Senhores sobera<strong>no</strong>s, não se tem jamais incluí<strong>do</strong>os ladrões, nem sua fuga, se talvez isto não é feito por necessida<strong>de</strong> forçada,que não é absolutamente sujeito à vonta<strong>de</strong> das leis humanas, as quais têmsempre separa<strong>do</strong> os bandi<strong>do</strong>s e corsários daqueles que nós dizemos inimigosjustos em feito <strong>de</strong> guerra, que mantêm seus Esta<strong>do</strong>s e Repúblicas por via dajustiça, <strong>do</strong>s quais assaltantes e corsários procuram a reversão e a ruína”(BODIN, 2005, p.3) 8 . Mais adiante acrescenta: “De qualquer mo<strong>do</strong>, viver emamiza<strong>de</strong> e socieda<strong>de</strong> repartin<strong>do</strong> igualmente o saque (...) isto não <strong>de</strong>ve serchama<strong>do</strong> socieda<strong>de</strong> nem amiza<strong>de</strong>, nem partilha em termos <strong>de</strong> direito, mas conjuração,roubos e pilhagens, pois o principal ponto, <strong>no</strong> qual jaz a verda<strong>de</strong>iramarca da amiza<strong>de</strong>, seu padrão, é, a saber, o justo gover<strong>no</strong> segun<strong>do</strong> as leis danatureza” (BODIN, 2005, p.5) 9 . Bodin não opõe homem e Deus, razão e fé.Percebe-se como indivíduo, responsável por seus apetites, direções, numconjunto que parece composto <strong>de</strong> valores morais <strong>de</strong> herança medieval, e tambémneoplatônicos.Nesse senti<strong>do</strong>, enxerga as qualida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uma natureza em sua configuraçãoplural, apresentan<strong>do</strong> um distanciamento imanente em relação a esta. Aharmonia melodiosa <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> vista <strong>de</strong> cima, visão <strong>de</strong> um mun<strong>do</strong> exterior aohomem. Retoman<strong>do</strong> a discussão encetada sobre a historiografia renascentista,assim como não há homem que não represente o seu tempo, também não háhomem contraditório em relação a sua época. O que existe é um olhar teóricoreducionista quanto às necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s indivíduos em qualquer tempo. Dessaforma as contradições <strong>do</strong> passa<strong>do</strong> são muitas vezes provenientes <strong>de</strong> constru-8“... quand il a esté question <strong>de</strong> <strong>do</strong>nner la foy, traitter la paix, <strong>de</strong><strong>no</strong>ncer la guerre, accor<strong>de</strong>rligues offensives, ou <strong>de</strong>fensives, borner les frontieres, & <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>r les differents entre lesPrinces & Seigneurs souverains, on n’y a iamais comprins les voleurs, ny leur fuite: sipeut estre cela ne s’est faict par necessité forcee, qui n’est point subiecte à la diferetion<strong>de</strong>s loix humaines, lesquelles ont tousiours separé les brigans & corsaires, d’avec ceuxque <strong>no</strong>us disons droits ennemis en faict <strong>de</strong> guerre: qui maintiennent leurs estats &Republiques par voye <strong>de</strong> iustice, <strong>de</strong> laquelle les brigans & corsaires cherchent l’eversion& ruine” (BODIN, 1579, p.1).9 “& quoy quils semblent vivre en amitié & societé partageans egalement le butin (...), neantmoinscela ne <strong>do</strong>it estre apellé societé, ny amitié, ny partage en termes <strong>de</strong> droit: ains coniuration, voleries& pillages: car le principal poinct, auquel gist la vraye marque d’amitié, leur <strong>de</strong>faut, c’est àsçavoir, le droit gouvernement selon les loix <strong>de</strong> nature” (BODIN, 1579, pp.2-3).


Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214 205ções <strong>de</strong> imaginários ulteriores, que terminam por legitimar as contradições vistasem <strong>no</strong>sso presente, e vice-versa. Em Bodin, não encontramos a angústiaparasitária da subjetivida<strong>de</strong> contemporânea. Em meio aos conflitos religiosos,o jurista observa e dialoga, mas também busca uma ação que possa configuraruma pressão para o fim das contendas <strong>de</strong> seu tempo.No direcionamento neoplatônico, Bodin recorre aos antigos e aos valoresda espiritualida<strong>de</strong> e da sabe<strong>do</strong>ria, para justificar a harmonia necessária aoshomens para uma vida feliz. Mas introduz elementos <strong>no</strong>vos: “É porque os antigoschamavam República uma socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> homens reuni<strong>do</strong>s, para viver comfelicida<strong>de</strong>, essa <strong>de</strong>finição todavia tem mais <strong>do</strong> que é necessário <strong>de</strong> uma parte,e me<strong>no</strong>s <strong>de</strong> outra, pois três pontos principais aí faltam, a saber, a família, asoberania e o que é comum numa República” (BODIN, 2005, p.5) 10 . Alma eum Po<strong>de</strong>r sobera<strong>no</strong> em harmonia necessária ao equilíbrio das partes, ten<strong>do</strong> oU<strong>no</strong> como elemento or<strong>de</strong>na<strong>do</strong>r. Enten<strong>de</strong>-se que este último po<strong>de</strong> ser visto comoo bem absoluto, verda<strong>de</strong>iro. Voltan<strong>do</strong> ao texto, percebemos essas três instâncias<strong>de</strong> forma implícita: família, soberania, coisa pública. Respectivamente, alma,po<strong>de</strong>r e unicida<strong>de</strong>.Em outras passagens, Bodin vale-se <strong>de</strong> fórmulas matemáticas, fascina<strong>do</strong>com o número três, os esta<strong>do</strong>s da França que <strong>de</strong>viam ser compostos em harmoniapelo po<strong>de</strong>r sobera<strong>no</strong>. Mas é o trecho final que melhor evi<strong>de</strong>ncia a conjugação<strong>do</strong>s valores culturais <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>s para o exercício da política, com umareligiosida<strong>de</strong> especial que contradita interpretações acerca <strong>do</strong> jurista comopensa<strong>do</strong>r laico, protestante, ju<strong>de</strong>u ou cético, por quase não citar o Novo Testamentoem sua obra (MONTEIRO, 2003, pp.168-174):“Tu<strong>do</strong> que por vozes e sons contrários se compõe uma <strong>do</strong>ce e naturalharmonia, também <strong>de</strong> vícios e virtu<strong>de</strong>s, <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s diferentes <strong>do</strong>selementos, <strong>de</strong> movimentos contrários, e <strong>de</strong> simpatias e antipatias ligadaspor meios invioláveis, se compõe a harmonia <strong>de</strong>sse mun<strong>do</strong> e <strong>de</strong>suas partes: como também a República, é composta <strong>de</strong> bons e maus,<strong>de</strong> ricos e pobres, <strong>de</strong> sábios e loucos, <strong>de</strong> fortes e fracos, uni<strong>do</strong>s por10“C’est pourquoy les anciens appelloyent Republique, une societé d’hommes assemblés,pour bien & heuresement vivre: laquelle <strong>de</strong>finiction toutefois a plus qu’il ne faut d’unepart, & moions d’une autre: car les trois poincts principaux y manquent, c’est à sçavoir, lafamille, la souveraineté, & ce qui est commun en une Republique” (BODIN, 1579, p.3).


206Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214aqueles que são os intermediários entre uns e outros: sen<strong>do</strong> sempre obem mais po<strong>de</strong>roso que o mal, e os acor<strong>do</strong>s mais que as discórdias. Etanto é assim que a unida<strong>de</strong> sobre os três primeiros números, o intelectosobre as três partes da alma, o ponto indivisível sobre a linha,superfície, e o corpo, assim po<strong>de</strong>-se dizer, que esse gran<strong>de</strong> Rei eter<strong>no</strong>,único, puro, simples, indivisível, eleva<strong>do</strong> acima <strong>do</strong> mun<strong>do</strong> elementar,celeste e inteligível, uniu os três juntos, fazen<strong>do</strong> reluzir o esplen<strong>do</strong>r<strong>de</strong> sua majesta<strong>de</strong> e a <strong>do</strong>çura da Harmonia divina em to<strong>do</strong> o mun<strong>do</strong>, aexemplo <strong>de</strong> que o sábio Rei <strong>de</strong>ve-se conformar, e governar seu Rei<strong>no</strong>”(BODIN, 2005, p.739) 11 .Aí está o Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> justiça harmônica entre o divi<strong>no</strong> e a socieda<strong>de</strong>, emsintonia com poetas da corte e membros da família Valois, bastante diferente<strong>do</strong> Bodin absolutista ou constitucionalista i<strong>de</strong>ntifica<strong>do</strong> por interpretações póstumas(FRANKLIN, 1993). Para esse homem renascentista não havia camposdistintos <strong>do</strong> conhecimento. No entanto, há ainda outro aspecto da obrabodiniana relaciona<strong>do</strong> ao po<strong>de</strong>r que merece ser <strong>de</strong>staca<strong>do</strong>. Diversamente daacepção neoplatônica que remete o jurista a um contexto cultural específico,esse tópico transcen<strong>de</strong> tempos e periodizações da história.O po<strong>de</strong>r da famíliaEmbora utilize jargões revistos pela recente historiografia política como“Esta<strong>do</strong> absolutista” e “burguesia”, Norbert Elias, ao enfatizar as relações entrepo<strong>de</strong>r, socieda<strong>de</strong> e indivíduos <strong>no</strong>s tempos medievais e mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>s, não tem comofoco a discussão <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e o prima<strong>do</strong> da lei. Conceben<strong>do</strong> a época estudada11“Or tout ainsi que par voix & sons contraires il se compose une <strong>do</strong>uce & naturelle harmonie,aussi <strong>de</strong>s vices & vertus, <strong>de</strong>s qualités differentes <strong>de</strong>s elements, <strong>de</strong>s mouvements contraires,& <strong>de</strong>s sympathies & antipathies liees par moyens inviolables, se compose l’harmonie <strong>de</strong> cemon<strong>de</strong> & <strong>de</strong> ses parties: comme aussi la Republique est composee <strong>de</strong> bons & mauvais, <strong>de</strong>riches & <strong>de</strong> poures, <strong>de</strong> sages & <strong>de</strong> fols, <strong>de</strong> forts & <strong>de</strong> foibles, alliés par ceux qui sont moyensentre les uns e les autres: estant tousiours le bien plus puissant que le mal, & les accords plusque les discords. Et tout ainsi que l’unité sur les trois premiers <strong>no</strong>mbres, l’intellect sur letrois parties <strong>de</strong> l’ame, le poinct indivisible sur la ligne, superficie, & le corps: ainsi peut ondire, que ce grand Roy eternel, unique, pur, simple, indivisible, ellevé par <strong>de</strong>ssus le mon<strong>de</strong>elementaire, celeste & intelligible, unit les trois ensemble, faisant reluire la splen<strong>de</strong>ur <strong>de</strong> samaiesté & la <strong>do</strong>uceur <strong>de</strong> l’harmonie divine en tout ce mon<strong>de</strong>, à l’exemple duquel le sage Royse <strong>do</strong>it conformer, & gouverner son Royaume” (BODIN, 1579, p.739).


Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214 207como processo civiliza<strong>do</strong>r, ele rompe com a periodização tradicional, interessa<strong>do</strong>na conduta <strong>do</strong>s sentimentos huma<strong>no</strong>s rumo a uma direção específica, quan<strong>do</strong>o controle efetivo <strong>de</strong> terceiros seria converti<strong>do</strong> em autocontrole <strong>de</strong> <strong>de</strong>sejose libi<strong>do</strong>, para sua adaptação a uma estrutura social complexa (ELIAS, 1993,v.2, pp.193-207). A Renascença é vista como momento significativo <strong>de</strong>ssastransformações, <strong>no</strong> que se refere à organização social em vias <strong>de</strong> encaminhamento,mas também à produção historiográfica que construiu o conceito <strong>de</strong> Renascimentosob o prisma <strong>de</strong> mudança <strong>de</strong> concepção <strong>do</strong> indivíduo sobre si mesmoe o mun<strong>do</strong>. No entanto, esse processo também diz respeito aos mo<strong>no</strong>pólios<strong>de</strong> poucos indivíduos, lí<strong>de</strong>res aptos a exercer ativida<strong>de</strong>s regula<strong>do</strong>ras mediantemecanismos <strong>de</strong> legitimação, responsáveis pelos <strong>de</strong>mais. Dessa forma, os expedientesutiliza<strong>do</strong>s pelas monarquias européias – mormente a francesa - revelavamuma apropriação da intermediação das relações humanas. As li<strong>de</strong>ranças condicionadaspor tradições, mas também por <strong>no</strong>vas construções legitima<strong>do</strong>ras, procuravamaten<strong>de</strong>r a esse <strong>no</strong>vo universo <strong>de</strong> necessida<strong>de</strong>s <strong>do</strong>s indivíduos.Nesse âmbito o amor, outrora concentra<strong>do</strong> na figura <strong>do</strong> mito universal cristão,era catalisa<strong>do</strong> por indivíduos preocupa<strong>do</strong>s em assumir a orientação <strong>do</strong> “rebanhoórfão” da estrutura <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r religioso <strong>no</strong> início <strong>de</strong> sua <strong>de</strong>composição. Ametáfora <strong>de</strong> Schopenhauer – referente a porcos espinhos que se aproximam eafastam até encontrarem uma distância i<strong>de</strong>al para aquecerem-se sem se espetar– ilustra o problema das relações sociais. Mediante essa imagem Freud – cujateoria serviu a Elias – explica a superação da “hostilida<strong>de</strong> primária” entre oshomens na formação <strong>de</strong> grupos pela força <strong>do</strong> amor que vincula os indivíduos,como base, instrumento e efeito da autorida<strong>de</strong>. Para surgir o amor <strong>no</strong> grupo, eranecessária a figura paterna, a compartilhar esse sentimento (FREUD, 1976,pp.52-69). José Brunner afirma que o paradigma edipia<strong>no</strong> <strong>de</strong> Freud é um constructoteórico reducionista, ao fazer <strong>do</strong> <strong>de</strong>senvolvimento masculi<strong>no</strong> uma <strong>no</strong>rmafalocêntrica e autoritária, além <strong>de</strong> resvalar para a universalização mítica (ROTH,2000, pp.76-87). Po<strong>de</strong>mos concordar com a crítica, mas <strong>no</strong> universo francês quinhentista,<strong>de</strong>paramos-<strong>no</strong>s com a existência da lei sálica, que regulava a sucessão<strong>do</strong> tro<strong>no</strong> através <strong>do</strong>s filhos varões. Consi<strong>de</strong>rada a lei mais fundamental <strong>do</strong>rei<strong>no</strong>, caracterizan<strong>do</strong> uma monarquia mantida pela or<strong>de</strong>m dinástica, o respeitoà lei sálica causou guerras externas – como a <strong>do</strong>s Cem A<strong>no</strong>s - e internas – comoas religiosas <strong>do</strong> século XVI.A proteção paterna, como po<strong>de</strong>r e agregação, também se encontra em OsSeis Livros ..., a mostrar que as estruturas paternalistas e a analogia entre paie rei eram perceptíveis e naturalizadas naquele mun<strong>do</strong>. Para Bodin a família


208Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214era a primeira base da sua argumentação <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong>, arcabouço sensível nasua composição filosófica. Segun<strong>do</strong> Pietro Costa, a família era um microcosmoda representação da or<strong>de</strong>m política numa escala maior. Da família chegavaseà República, e <strong>do</strong> pai ao rei, numa configuração patriarcal <strong>de</strong> socieda<strong>de</strong>(COSTA, 1999, pp.65-80). A família seria assim uma espécie <strong>de</strong> sintonia fina<strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> harmônico, enquanto o rei-pai, figura masculina como lí<strong>de</strong>r e indivíduo,seria o juiz para a manutenção <strong>do</strong> processo civiliza<strong>do</strong>r, <strong>no</strong> enten<strong>de</strong>r <strong>de</strong>Elias. Como vimos, o homem renascentista concebia-se <strong>de</strong> forma diferente,perceben<strong>do</strong> uma mudança e uma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> transformação da naturezaque o cercava. Enxergava também o outro <strong>de</strong> maneira diferenciada, necessitan<strong>do</strong><strong>de</strong> mecanismos que estabelecessem <strong>no</strong>vas relações.Nesse senti<strong>do</strong> a mudança <strong>do</strong> homem constituiu na França das guerras religiosasuma necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> restabelecer bases <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> capazes <strong>do</strong> retor<strong>no</strong>à paz e da preservação física <strong>do</strong>s indivíduos. Para os homens, entre elesBodin, tratava-se <strong>de</strong> buscar elementos que reatassem este elo, mediante amemória <strong>de</strong> um passa<strong>do</strong> social, mas também por uma estrutura da autorida<strong>de</strong>presente na sua própria composição psíquica. Desse mo<strong>do</strong>, rei, Deus, sobera<strong>no</strong>e pai seriam variações <strong>de</strong> um mesmo tema, e a adjetivação <strong>de</strong>sta autorida<strong>de</strong>significava a escala <strong>de</strong> valores estruturais <strong>de</strong> uma socieda<strong>de</strong>, sobretu<strong>do</strong> <strong>no</strong>referente à secularização.Bodin, além das discussões acerca da legitimida<strong>de</strong> régia e seus mecanismos,operava <strong>no</strong> sistema <strong>de</strong>ssa estrutura constituinte da autorida<strong>de</strong> e <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, a família,negligenciada por comenta<strong>do</strong>res <strong>de</strong> sua obra 12 : “A segunda parte da <strong>de</strong>finição<strong>de</strong> República que nós colocamos, diz respeito à família, que é a verda<strong>de</strong>ira fontee origem <strong>de</strong> toda República, membro principal <strong>de</strong>sta.” Mais adiante comenta: “Ojusto gover<strong>no</strong> <strong>do</strong> pai e <strong>do</strong>s filhos repousa <strong>no</strong> bom uso <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r, que Deus <strong>de</strong>u aopai sobre os próprios filhos, ou a lei sobre filhos a<strong>do</strong>tivos, e na obediência, amor,e reverência <strong>do</strong>s filhos para com seus pais. A palavra po<strong>de</strong>r é própria a to<strong>do</strong>s quetem po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> comandar a outrem” (BODIN, 2005, pp.10, 25) 13 .12 Por exemplo, na edição <strong>de</strong> Les Six Livres ... abreviada por Gérard Mairet os trechossobre a família, presentes <strong>no</strong>s capítulos 2, 3 e 4 <strong>do</strong> Livre I, são suprimi<strong>do</strong>s (MAIRET,1993, pp.65-81).


Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214 209O po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> comandar emanava primeiramente <strong>de</strong> Deus, posteriormente<strong>do</strong> pai que recebeu este po<strong>de</strong>r divi<strong>no</strong>. Aos filhos, cabia obediência e reverência.Assim a autorida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ste pai era suficiente, se bem usada, para comandaros outros. No universo cultural francês a construção da imagem protetoramasculina ganhava a confiança <strong>de</strong> Bodin <strong>no</strong> referente à autorida<strong>de</strong>: “O coman<strong>do</strong><strong>do</strong>s ménages se pren<strong>de</strong> a quatro forças, <strong>do</strong> mari<strong>do</strong> sobre a mulher, <strong>do</strong> paisobre os filhos, <strong>do</strong> senhor sobre os escravos, <strong>do</strong> mestre sobre os serviçais. E obom gover<strong>no</strong> <strong>de</strong> toda a República, corpos e colégios, socieda<strong>de</strong>s e lares, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong><strong>de</strong> saber comandar e obe<strong>de</strong>cer; diríamos por or<strong>de</strong>m <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> comandar,seguin<strong>do</strong> a divisão que nós colocamos” (BODIN, 2005, p.17) 14 .Po<strong>de</strong>ríamos prosseguir construin<strong>do</strong> uma apologia à categoria ontológica dafamília, a função <strong>de</strong> cada membro – a mãe, os filhos, os servos e os escravos -e mesmo suas quantida<strong>de</strong>s precisas. Bodin em seu contexto <strong>de</strong>sestrutura<strong>do</strong> <strong>de</strong>fundamentações <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> e po<strong>de</strong>r – como era o tempo das guerras <strong>de</strong> religiãona França – recorria a esses elementos arraiga<strong>do</strong>s <strong>no</strong> homem <strong>de</strong> tradiçãomedieval (COSTA, 1999, pp.65-80). Essa referência ocorria <strong>no</strong> momento daelaboração <strong>do</strong>s paradigmas <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong>, e <strong>do</strong> homem renascentista.Mas amor, famílias, po<strong>de</strong>r e Esta<strong>do</strong> também lembram um conheci<strong>do</strong> artigo<strong>de</strong> Eduar<strong>do</strong> Viveiros <strong>de</strong> Castro e Ricar<strong>do</strong> Benzaquen <strong>de</strong> Araújo sobre a peça<strong>de</strong> Shakespeare, Romeu e Julieta. Consi<strong>de</strong>ran<strong>do</strong> a peça teatral paradigmática,os autores incorporam o afeto na análise das relações sociais, pois em Romeue Julieta, “direito” e “afeto” não se acham em perfeita oposição complemen-13“La secon<strong>de</strong> partie <strong>de</strong> la <strong>de</strong>finition <strong>de</strong> Republique que <strong>no</strong>us avons posee, touche lafamille, qui est la vraye source & origine <strong>de</strong> toute Republique, & membre principald’icelle”. “Le droit gouvernement du pere & <strong>de</strong> enfans gist à bien user <strong>de</strong> la puissance,que Dieu a <strong>do</strong>nné au pere sur ses enfans propes, ou la loy sur les enfans a<strong>do</strong>ptés, & enl’obeissance, amour, & reverence <strong>de</strong>s enfans envers les peres. Le mot <strong>de</strong> puissance, estpropre à tous ceux qui ont pouvoir <strong>de</strong> comman<strong>de</strong>r à autruy” (BODIN, 1579, pp.7, 20). Oprimeiro trecho é retira<strong>do</strong> <strong>do</strong> capítulo 2, “Do Ménage, e a diferença entre a República ea família”. Des<strong>de</strong> o século XIII, ménage significava a administração <strong>do</strong>s bens. Faire sonménage tinha então o senti<strong>do</strong> <strong>de</strong> faire ses affaires. No século XIV, a <strong>no</strong>ção abrangia osobjetos <strong>de</strong> uma casa. O senti<strong>do</strong> mo<strong>de</strong>r<strong>no</strong> surgiu <strong>no</strong> século XVI, referente à vida materialda casa, mormente seus cuida<strong>do</strong>s materiais (REY, 1998, pp.2190-2191).14 “Le comman<strong>de</strong>mont <strong>de</strong>s mesnages se prend en quatre forces, du mari envers la femme, dupere envers les enfans, du seigneur envers les esclaves, du maistre envers les serviteurs. Etd’autant que le droit gouvernement <strong>de</strong> toute Republique, corps & colleges, societés &mesnages, <strong>de</strong>spend <strong>de</strong> sçavoir bien comman<strong>de</strong>r & obeir: <strong>no</strong>us dirons par ordre <strong>de</strong> la puissance<strong>de</strong> comman<strong>de</strong>r, suyvant la division que <strong>no</strong>us avons posee” (BODIN, 1579, pp.13-14).


210Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214tar (CASTRO & ARAÚJO, 1977, pp.130-169). O amor <strong>de</strong> Romeu e Julietaindicaria uma valorização especial da <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> indivíduo, acompanhada <strong>do</strong>surgimento <strong>de</strong> <strong>do</strong>mínios relativamente autô<strong>no</strong>mos – a esfera política, associadaao po<strong>de</strong>r. Na Verona <strong>do</strong> século XV, Shakespeare narrou os momentos finaisda luta entre duas famílias <strong>no</strong>bres, com sua pacificação, e a consolidaçãoda autorida<strong>de</strong> <strong>do</strong> príncipe. Nesse ambiente surgia o amor entre <strong>do</strong>is inimigos,Romeu e Julieta. O príncipe era um árbitro com posição eqüidistante em relaçãoàs facções. A morte <strong>do</strong>s amantes dissolveu os ódios, e a união das famíliasimplicou seu fim como entida<strong>de</strong>s autô<strong>no</strong>mas 15 . Para Castro e Araújo, o esquemaamor-indivíduo versus socieda<strong>de</strong>-família não esgota o tema <strong>do</strong> amorna peça, que atinge a própria i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> individual. No caso limite <strong>de</strong> Romeue Julieta, o amor acionaria duas <strong>no</strong>ções <strong>de</strong> indivíduo: como ser moral autô<strong>no</strong>mo,e como membro da espécie.Entretanto, o radicalismo <strong>do</strong> amor teatral e o trágico <strong>de</strong>sti<strong>no</strong> <strong>do</strong>s amantes,uni<strong>do</strong>s apenas na morte, não excluem a convergência entre o amor <strong>de</strong> Romeue Julieta e a consolidação <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r em Verona. Pois a peça <strong>de</strong> Shakespeareseria também um mito que narra, além da origem <strong>do</strong> amor, a fundação <strong>do</strong>Esta<strong>do</strong>. Romeu e Julieta eram indivíduos que só respeitavam a autorida<strong>de</strong> <strong>do</strong>príncipe. Os autores comparam então O Príncipe <strong>de</strong> Maquiavel e a peça teatral.Maquiavel abordaria o político com lógica in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte. O mesmo isolamento<strong>de</strong> <strong>do</strong>mínios estaria em Romeu e Julieta, em direção oposta: o amor, asrelações interindividuais, também não se encontravam imersos na lógica relacionadaà família. Ao separar os indivíduos das famílias, o amor também retirava<strong>de</strong>las a autorida<strong>de</strong> política, concentrada nas mãos <strong>do</strong> príncipe <strong>de</strong>Verona 16 . Em síntese, Eduar<strong>do</strong> Viveiros e Ricar<strong>do</strong> Bezaquen acrescentam outradimensão ao indivíduo como ser moral autô<strong>no</strong>mo, possui<strong>do</strong>r <strong>de</strong> direitos e15Inspira<strong>do</strong>s em Philippe Ariès, para Castro e Araújo o casal Romeu e Julieta seria umamanifestação das “<strong>no</strong>vas formas <strong>de</strong> família” <strong>no</strong> Oci<strong>de</strong>nte, com relações internas <strong>de</strong> afeto.A família conjugal mo<strong>de</strong>rna, formada a partir <strong>de</strong> laços afetivos, individuais, retirarse-iada esfera política, voltan<strong>do</strong>-se para si mesma e constituin<strong>do</strong> <strong>do</strong>mínio próprio, <strong>do</strong>priva<strong>do</strong>, psicológico. Não <strong>no</strong>s parece ser essa a acepção da família bodiniana, que remeteà <strong>no</strong>ção <strong>de</strong> casa <strong>no</strong>bre, forman<strong>do</strong> grupos para o estabelecimento da República. Argumentosdiferentes <strong>de</strong> Ariès, que concentra a análise <strong>no</strong> comportamento familiar, <strong>no</strong> sentimento<strong>de</strong> infância, jogos, disciplinas, instituições <strong>de</strong> ensi<strong>no</strong>, roupas etc (ARIÈS, 1981).16 Os autores observam que a maior parte <strong>de</strong> O Príncipe era dirigida aos principa<strong>do</strong>s <strong>no</strong>vos,não hereditários, ou seja, sem ligação com lealda<strong>de</strong>s familiares, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>n<strong>do</strong> apenas davirtù <strong>do</strong> governante (CASTRO & ARAÚJO, 1977, p.163).


Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214 211<strong>de</strong>veres, mostran<strong>do</strong> como essa concepção oci<strong>de</strong>ntal possui um aspecto que permitea confusão com a idéia <strong>de</strong> indivíduo relacionada à espécie. Esse aspectoseria a personalida<strong>de</strong>, o indivíduo como ser psicológico. A personalida<strong>de</strong> seriaa verda<strong>de</strong> <strong>do</strong> indivíduo, mas também indicaria seu papel social. Desse mo<strong>do</strong>o po<strong>de</strong>r, manipula<strong>do</strong> por indivíduos <strong>de</strong>svincula<strong>do</strong>s da or<strong>de</strong>m tradicional, afastava-seda concepção holística <strong>do</strong> mun<strong>do</strong>, tanto quanto o amor, que ligava indivíduosin<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes da or<strong>de</strong>m moral-social-religiosa.A análise estrutural da peça indica diferenças em relação à teoria <strong>de</strong> Bodine ao Esta<strong>do</strong> francês da Renascença, como figuram neste artigo. Destaca-seprimeiramente a abordagem que <strong>de</strong>scentra o tema <strong>do</strong> âmbito da lei, <strong>do</strong> direitoe da administração, possibilitan<strong>do</strong> o estu<strong>do</strong> <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r vincula<strong>do</strong> a contextosespecíficos e a sentimentos. Mas a família bodiniana, tal como aparece emOs Seis Livros ..., não é a mesma co<strong>no</strong>tada por Castro e Araújo, pois não seopunha ao po<strong>de</strong>r sobera<strong>no</strong> – outrossim era a sua própria base –, tampouco aoamor, embora esse amor não fosse entendi<strong>do</strong> na acepção individual <strong>do</strong> estu<strong>do</strong>antropológico. Dessa forma, se a peça <strong>de</strong> Shakespeare é consi<strong>de</strong>rada um arquétipo,esse caráter mo<strong>de</strong>lar não <strong>de</strong>ve ser atribuí<strong>do</strong> à obra <strong>de</strong> Maquiavel – enem a Bodin –, pois verificamos aqui um Esta<strong>do</strong> francês em ampla relação àsocieda<strong>de</strong>, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> famílias na teoria e na prática. Afinal, como enten<strong>de</strong>ras guerras <strong>de</strong> religião sem as facções familiares Valois Angoulême,Bourbon, Guise, Condé, Montmorency? Disputas que não cessariam com aascensão <strong>de</strong> Henrique IV e o fim das guerras, ressurgin<strong>do</strong> na Fronda durantea me<strong>no</strong>rida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Luís XIV. Como diria Bodin, a família mais po<strong>de</strong>rosa <strong>de</strong>téma soberania. Portanto, Bodin escrevia em acor<strong>do</strong> ao seu rei<strong>no</strong> dinástico e hereditário,diferente das cida<strong>de</strong>s italianas. E buscava em estruturas medievaiscomo a família, os corpos e os colégios, os fundamentos para sua teoria <strong>do</strong>po<strong>de</strong>r. Desse mo<strong>do</strong> o julgamento bodinia<strong>no</strong> negativo sobre Maquiavel, presenteem Os Seis Livros ..., confun<strong>de</strong>-se à experiência histórica tumultuadadas cida<strong>de</strong>s-esta<strong>do</strong>. Bodin contava com a tradição, para elaborar sua puissanceabsolue et perpetuelle (VASOLI, 2002, p.341).Em conclusivo, <strong>de</strong>stacamos a subjetivida<strong>de</strong> da interpretação histórica, e aimportância <strong>do</strong> século <strong>XIX</strong> na elaboração <strong>de</strong> paradigmas historiográficos <strong>do</strong>Renascimento e <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. Leituras que concebem Bodin como artífice <strong>do</strong>conceito <strong>de</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong>vem ser revistas não somente em sua negação, mas pelaremissão <strong>do</strong> conteú<strong>do</strong> <strong>de</strong> sua obra ao mun<strong>do</strong> cultural, filosófico e político como qual ela dialogava – e a separação <strong>de</strong>sses conteú<strong>do</strong>s já <strong>de</strong><strong>no</strong>ta a precarieda<strong>de</strong>da análise. Incorporar a cultura ao estu<strong>do</strong> da política não significa <strong>de</strong>slo-


212Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214car a discussão, mas compreen<strong>de</strong>r <strong>de</strong> mo<strong>do</strong> a<strong>de</strong>qua<strong>do</strong> concepções <strong>de</strong> po<strong>de</strong>rvigentes, <strong>de</strong>scobrin<strong>do</strong> – <strong>no</strong> caso <strong>de</strong> Bodin - outras abstrações e secularizações,para além da história política <strong>do</strong> direito e da administração. O esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> homemrenascentista diz respeito à individualida<strong>de</strong>, e percebemos um Bodin autore vai<strong>do</strong>so <strong>de</strong> sua obra, o que por outro la<strong>do</strong>, punha limites à impessoalida<strong>de</strong><strong>no</strong> exercício <strong>de</strong> sua função, e <strong>de</strong> outros agentes sociais - inclusive o rei. O Esta<strong>do</strong><strong>do</strong> Bodin da Renascença também falava <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al, concretiza<strong>do</strong> <strong>no</strong>amor neoplatônico e na magia hermética, harmonizan<strong>do</strong> Deus, po<strong>de</strong>r sobera<strong>no</strong>,famílias e pessoas. Tratava-se, porém, <strong>de</strong> outro amor que não aquele entreindivíduos, bem como <strong>de</strong> outra família, relacionada aos tempos medievais, oua to<strong>do</strong>s os tempos, pela analogia entre o pai e o rei. Tratava-se <strong>de</strong> outro Esta<strong>do</strong>,diferente da acepção contemporânea, mas diverso também <strong>do</strong> po<strong>de</strong>r concebi<strong>do</strong>por Maquiavel. Mesmo não lidan<strong>do</strong> com o inventário <strong>de</strong> seus livros, enão ten<strong>do</strong> explicita<strong>do</strong> aqui sua biografia, cremos ter forneci<strong>do</strong> subsídios paratornar me<strong>no</strong>s contraditória a figura <strong>do</strong> Bodin político, jurista, <strong>de</strong>monólogo,cético, humanista, neoplatônico. Mediante análise <strong>de</strong> seu texto, percebemolofruto <strong>de</strong> seu tempo, momento em que guerra e refinamento, violência e civilizaçãograssavam entre famílias, po<strong>de</strong>res, <strong>no</strong>bres e plebeus. Mas parece que,ao procurar uma solução para esses problemas, Bodin também falou a outrostempos, razão pela qual ele <strong>no</strong>s <strong>de</strong>sperta gran<strong>de</strong> interesse, a provocar a subjetivida<strong>de</strong>da <strong>no</strong>ssa interpretação.FonteBODIN, Jean. Les Six Livres <strong>de</strong> la République. Lyon: Jean <strong>de</strong> Tournes, 1579, 762 p.,(tradução em exercício <strong>de</strong> Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong>).BibliografiaANDERSON, Perry. Linhagens <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> Absolutista. São Paulo: <strong>Brasil</strong>iense, 1995.ARIÈS, Philippe. História Social da Criança e da Família. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1981.BOUREAU, Alain. Le Simple Corps du Roi: l’impossible sacralité <strong>de</strong>s souverainsfrançais XVe – <strong>XVIII</strong>e siècle. Paris: Éditions <strong>de</strong> Paris, 1988.BURCKHARDT, Jacob. A Cultura <strong>do</strong> Renascimento na Itália: um ensaio. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1991.


Rodrigo Bentes Monteiro & Walter Marcelo Ramun<strong>do</strong> / Revista <strong>de</strong> História 152 (1º - 2005), 189-214 213CASTRO, E. B. Viveiros <strong>de</strong> & ARAÚJO, Ricar<strong>do</strong> Benzaquen. Romeu e Julieta ea origem <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong>. In: VELHO, Gilberto (org.). Arte e Socieda<strong>de</strong>. Rio <strong>de</strong>Janeiro: Zahar, 1977, pp.130-169.CORNETTE, Joël. Le Roi <strong>de</strong> Guerre. Paris: Payot, 1994.COSANDEY, Fanny & DESCIMON, Robert. L’Absolutisme en France: histoireet historiographie. Paris: Seuil, 2002.COSTA, Pietro. Storia <strong>de</strong>lla cittadinanza in Europa: dalla civiltà comunale alsettecento. Roma/Bari: Laterza, 1999, v.1.CROUZET, Denis. La Nuit <strong>de</strong> la Saint-Barthélemy: un rêve perdu <strong>de</strong> laRenaissance. Paris: Fayard, 1994.DAVIS, Natalie Zemon. Culturas <strong>do</strong> Povo: socieda<strong>de</strong> e cultura <strong>no</strong> início da Françamo<strong>de</strong>rna. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz & Terra, 1990.ELIAS, Norbert. O Processo Civiliza<strong>do</strong>r: formação <strong>do</strong> Esta<strong>do</strong> e civilização. Rio<strong>de</strong> Janeiro: Zahar, 1993, v.2.FOGEL, Michèle. Les Cérémonies <strong>de</strong> l’Information dans la France du XVIe. au<strong>XVIII</strong>e. Siècle. Paris: Fayard, 1989.FRANKLIN, Julian H. Jean Bodin et la Naissance <strong>de</strong> la Théorie Absolutiste. Paris:PUF, 1993.FURET, François. Pensan<strong>do</strong> a Revolução Francesa. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Paz & Terra, 1989.FREUD, Sigmund. Psicologia <strong>de</strong> Massa e Análise <strong>do</strong> Eu. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Imago. 1976.GARIN, Eugénio. Ida<strong>de</strong> Média e Renascimento. Lisboa: Estampa, 1989.GARIN, Eugénio (org). O Homem Renascentista. Lisboa: Presença, 1991.GAY, Peter. O Estilo na História. São Paulo: Companhia da Letras, 1990.GIESEY, Ralph. Le Roi ne Meurt Jamais. Paris: Flammarion, 1987.HELLER, Agnes. O Homem <strong>do</strong> Renascimento. Lisboa: Presença, 1982.KANTOROWICZ, Ernst. Os Dois Corpos <strong>do</strong> Rei: um estu<strong>do</strong> <strong>de</strong> teologia políticamedieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.KRISTELLER, Paul. Tradição Clássica e Pensamento <strong>do</strong> Renascimento. Lisboa:Edições 70, 1995.LADURIE, Emmanuel Le Roy. O Esta<strong>do</strong> Monárquico França 1460-1610. SãoPaulo: Companhia das Letras, 1994.MACHIAVELLI, Niccolò. O Príncipe. Rio <strong>de</strong> Janeiro: Ediouro, 2000.


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NORMAS EDITORIAIS DA REVISTA DE HISTÓRIAAs colaborações para a Revista <strong>de</strong> História <strong>de</strong>vem seguir as seguintesespecificações:01. Os artigos terão a extensão <strong>de</strong> 30 páginas <strong>no</strong> máximo, digitadas em fonte TimesNew Roman 12, com espaço 1,5, com margens <strong>de</strong> 2,5 cm. As <strong>no</strong>tas <strong>de</strong>vemser colocadas <strong>no</strong> final <strong>do</strong> texto.02. Os artigos serão acompanha<strong>do</strong>s <strong>de</strong> um resumo <strong>de</strong> <strong>no</strong> máximo 5 linhas emportuguês e inglês e <strong>de</strong> três palavras-chave também em português e em inglês.03. A revista aceitará resenhas <strong>de</strong> livros publica<strong>do</strong>s <strong>no</strong>s <strong>do</strong>is a<strong>no</strong>s anteriores.04. Abaixo <strong>do</strong> <strong>no</strong>me <strong>do</strong> autor <strong>de</strong>verá constar a instituição à qual este se vincula.05. A publicação e os comentários a respeito <strong>de</strong> <strong>do</strong>cumentos inéditos seguirão as<strong>no</strong>rmas especificadas para os artigos.06. As traduções <strong>de</strong>vem vir acompanhadas <strong>de</strong> autorização <strong>do</strong> autor e <strong>do</strong> original<strong>do</strong> texto.07. Caso a pesquisa tenha apoio financeiro <strong>de</strong> alguma instituição, esta <strong>de</strong>verá sermencionada.08. To<strong>do</strong>s os trabalhos <strong>de</strong>vem ser apresenta<strong>do</strong>s em disquete e em 3 vias impressas,das quais 2 não exibirão os da<strong>do</strong>s <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação <strong>do</strong> autor. O programautiliza<strong>do</strong> <strong>de</strong>ve ser compatível com o Word for Win<strong>do</strong>ws.09. To<strong>do</strong>s os textos serão aprecia<strong>do</strong>s por pareceristas especializa<strong>do</strong>s, escolhi<strong>do</strong>spelo Conselho Editorial. Cabe, <strong>no</strong> entanto, ao Conselho Editorial a <strong>de</strong>cisãoreferente à oportunida<strong>de</strong> da publicação das contribuições recebidas.10. Normatização das <strong>no</strong>tas cf. ABNT-NBR 6023:SOBRENOME, Nome. Título <strong>do</strong> livro em itálico: subtítulo. Tradução. Edição,Cida<strong>de</strong>: Editora, a<strong>no</strong>, p. ou pp.SOBRENOME, Nome.Título <strong>do</strong> capítulo ou parte <strong>do</strong> livro. In: Título <strong>do</strong> livroem itálico. Tradução. Edição, Cida<strong>de</strong>: Editora, a<strong>no</strong>, p. ou pp.SOBRENOME, Nome. Título <strong>do</strong> artigo. Título <strong>do</strong> periódico em itálico.Cida<strong>de</strong>:Editora, vol., fascículo, a<strong>no</strong>, p. ou pp.REVISTA DE HISTÓRIAAv. Professor Lineu Prestes, 338CEP 05508-900 – Cida<strong>de</strong> Universitária – SPTel. (011) 3091-3701/3731/3150 Ramal 229 – Fax.(011) 3032-2314E-mail: joceley@usp.br


216Thiago Lima Nico<strong>de</strong>mo / Revista <strong>de</strong> História 151 (2º - 2004), xxx-xxxTítulo Revista <strong>de</strong> HistóriaProjeto Gráfico da Capa e Miolo Joceley Vieira <strong>de</strong> SouzaDiagramação/Editoração Joceley Vieira <strong>de</strong> SouzaDivulgação Humanitas PublicaçõesFormato 160 x 220mmMancha 130 x 192mmFontes Utilizadas Times, Futura Md Cn Bt e Helvética Cn LtPapel Off-set 75g/m 2 (miolo); Supremo 250g/m 2 (capa)Nº <strong>de</strong> páginas 216Tiragem 500 exemplares


História Atlântica: recortes e perspectivasJean-Clau<strong>de</strong> Laborie 09 A dispersão <strong>do</strong> saber missionário sobre as Américas<strong>de</strong> 1549 a 1610: o exemplo jesuítaAisnara Perera Díaz eMaria <strong>de</strong> Los Angeles Meriño Fuentes29 La cesión <strong>de</strong> patronato: una estrategia familiar en laemancipación <strong>de</strong> esclavos en Cuba. 1870-1880Luiz Alberto Couceiro 57 Acusações atlânticas: o caso <strong>do</strong>s escravos num naviofantasma - Rio <strong>de</strong> Janeiro, 1861Marina <strong>de</strong> Mello e Souza 79 <strong>Reis</strong> <strong>do</strong> <strong>Congo</strong> <strong>no</strong> <strong>Brasil</strong>, séculos <strong>XVIII</strong> e <strong>XIX</strong>Rafael <strong>de</strong> Bivar Marquese eTâmis Peixoto Parron99 Azere<strong>do</strong> Coutinho, Viscon<strong>de</strong> <strong>de</strong> Araruama e a Memóriasobre o comércio <strong>do</strong>s escravos <strong>de</strong> 1838ArtigosAna Lúcia Lana Nemi 129 Lukács e Ortega, a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> e a fragmentação -produção <strong>de</strong> arte e ação <strong>do</strong>s homens <strong>de</strong> cultura <strong>no</strong>sa<strong>no</strong>s 20 e 30 <strong>do</strong> século XXAndré Luiz Paulilo 155 Instrução pública e reforma social na cida<strong>de</strong> <strong>do</strong> Rio<strong>de</strong> Janeiro entre 1922 e 1930Rodrigo Bentes Monteiro eWalter Marcelo Ramun<strong>do</strong>189 O Esta<strong>do</strong> <strong>de</strong> Bodin <strong>no</strong> Esta<strong>do</strong> <strong>do</strong> homemrenascentistaPrograma <strong>de</strong> Pós-Graduação emHistória Social - FFLCH/USP

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