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Os livros de linhagem e a construção do rei. - O Marrare - UERJ

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O MARRARE 7 – Periódico <strong>do</strong> Setor <strong>de</strong> Literatura Portuguesa da <strong>UERJ</strong> 36<strong>Os</strong> <strong>livros</strong> <strong>de</strong> <strong>linhagem</strong> e a construção <strong>do</strong> <strong>rei</strong>.José D’Assunção BarrosUniversida<strong>de</strong> Severino Sobra (USS)ResumoEsse artigo analisa narrativas <strong>do</strong>s <strong>livros</strong> <strong>de</strong> linhagens portugueses <strong>do</strong>s séculos XIII e XIV, visan<strong>do</strong> aexaminar, nessas fontes literárias, não só a construção nobiliárquica <strong>de</strong> um discurso sobre a Realeza mastambém a elaboração social <strong>de</strong> um Imaginário Régio sintoniza<strong>do</strong> com o Imaginário Cavaleiresco e com asnecessida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> solidarieda<strong>de</strong> nobiliárquica expressas pelos <strong>livros</strong> <strong>de</strong> linhagens medievais.Palavras-chave: operação genealógica; narrativa medieval; genealogia.AbstractThis article analyses narratives of the ancestral books of the XIII and XIV centuries, intending toexamine, in these literary fonts, the aristocratic construction of a discourse about the King<strong>do</strong>m, as alsothe social elaboration of a Kings Imaginary tunning with a Knight Imaginary and with the necessities ofaristocratic solidarity expressed by the medieval ancestral books.Key-words: genealogic operation; medieval narrative; genealogy.Na Ida<strong>de</strong> Média, os indivíduos pertencentes à nobreza eram essencialmente <strong>de</strong>fini<strong>do</strong>s por suaposição em uma intrincada re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações sociais, por suas alianças políticas, por suas relações <strong>de</strong>inter<strong>de</strong>pendência, por seus componentes familiares e pela inserção em uma complexa trama linhagísticaque criava elos (reais e imaginários) entre os nobres e seus antepassa<strong>do</strong>s. É nesse contexto que os Livros<strong>de</strong> Linhagens portugueses <strong>do</strong> século XIII, fontes que alternam habitualmente trechos narrativos e listasgenealógicas <strong>de</strong> famílias nobres, surgem como importantes espaços para a projeção social 2 .A análise literária e historiográfica <strong>de</strong>ssas fontes po<strong>de</strong> lançar luz sobre as estratégias sociais da nobrezamedieval portuguesa, sobre os seus mo<strong>do</strong>s <strong>de</strong> vida e visões <strong>de</strong> mun<strong>do</strong>, permitin<strong>do</strong> examinar adicionalmenteas questões relacionadas à produção e recepção <strong>do</strong> discurso linhagístico. Des<strong>de</strong> já <strong>de</strong>stacaremos que, entre asestratégias <strong>de</strong> que se podiam valer os indivíduos e grupos sociais para a sua projeção e para a <strong>de</strong>preciação <strong>de</strong>seus rivais, estavam a da construção <strong>do</strong>s heróis e trai<strong>do</strong>res familiares, a da associação <strong>de</strong> famílias a circuitoslinhagísticos valoriza<strong>do</strong>s, ou a da difusão <strong>de</strong> narrativas valorativas ou <strong>de</strong>preciativas envolven<strong>do</strong> linhagense famílias conhecidas. Para o historia<strong>do</strong>r, trata-se <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r esses aspectos <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> uma luta <strong>de</strong>representações que envolve diversas forças sociais <strong>de</strong>ntro da socieda<strong>de</strong> medieval portuguesa, inclusive oconfronto e interação entre nobreza e realeza.*O Livro <strong>de</strong> Linhagens <strong>do</strong> Con<strong>de</strong> D. Pedro, situa<strong>do</strong> na encruzilhada <strong>do</strong>s interesses régios enobiliárquicos, preocupa-se particularmente em registrar um ‘i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> <strong>rei</strong>’ <strong>do</strong> qual se afastam ou seaproximam os vários <strong>rei</strong>s históricos que aparecem nas suas narrativas. Ao mesmo tempo, um exameintensivo <strong>de</strong> suas narrativas vem a mostrar que o imaginário régio assim construí<strong>do</strong> é sempre acompanha<strong>do</strong>O MARRARE - Periódico <strong>do</strong> Setor <strong>de</strong> Literatura Portuguesa da <strong>UERJ</strong>www.omarrare.uerj.br/numero7/jose.htmNúmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X


O MARRARE 7 – Periódico <strong>do</strong> Setor <strong>de</strong> Literatura Portuguesa da <strong>UERJ</strong> 37pela figura <strong>do</strong> ‘bom nobre’, perfeitamente inseri<strong>do</strong> em um padrão i<strong>de</strong>aliza<strong>do</strong> da nobreza. Daí <strong>de</strong>corremalgumas situações alternativas.Em primeiro lugar, na medida em que um <strong>rei</strong> afasta-se da figura i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> <strong>rei</strong>, plenamente realizadanos atributos supra<strong>de</strong>scritos, isso repercute em menores ou maiores fracassos <strong>do</strong> <strong>rei</strong>. Da mesma forma,nobres que se distanciam <strong>do</strong> i<strong>de</strong>al cavaleiresco sofrem conseqüências que vão da simples <strong>de</strong>preciação <strong>de</strong>sua <strong>linhagem</strong> até punições exemplares e soluções trágicas. Por fim, mesmo quan<strong>do</strong> um <strong>rei</strong> principia o seugoverno em conformida<strong>de</strong> com o paradigma <strong>do</strong> ‘bom <strong>rei</strong>’, ele po<strong>de</strong> ver comprometida a sua atuação ao sever cerca<strong>do</strong> <strong>de</strong> maus conselheiros ou nobres que se <strong>de</strong>sviam <strong>do</strong> i<strong>de</strong>al cavaleiresco.Essa última é uma questão cara aos nobiliários portugueses. Vale exemplificar com uma das maisnotáveis passagens da aludida situação <strong>de</strong> complementarida<strong>de</strong> entre a ‘boa ou má nobreza’ e a ‘boa oumá realeza’, que se encontra registrada na narrativa sobre “O <strong>rei</strong> Pedro <strong>de</strong> Castela” incluída no Livro <strong>de</strong>Linhagens <strong>de</strong> Con<strong>de</strong> D. Pedro (LL 21A15) 3 . O problema é coloca<strong>do</strong> logo no princípio <strong>do</strong> texto interpola<strong>do</strong>:da situação i<strong>de</strong>al <strong>do</strong> <strong>rei</strong> que é ‘bem aconselha<strong>do</strong>’ por bons nobres <strong>de</strong> alto valor moral e <strong>de</strong> boa <strong>linhagem</strong>– e que por isso governa a contento – o personagem central resvala em seguida para a situação <strong>do</strong> <strong>rei</strong> queé secunda<strong>do</strong> por priva<strong>do</strong>s da pior qualida<strong>de</strong>, não apenas não-aristocratas como, o que é mais relevante, <strong>de</strong>baixa ín<strong>do</strong>le moral. Nada mais claro:E <strong>de</strong>pois que se <strong>de</strong>l partio <strong>do</strong>m Joham Afonso d’Alboquerque e <strong>de</strong> Me<strong>de</strong>lim, que oconselhava mui bem e verda<strong>de</strong>iramente com gram prol <strong>do</strong>s fidalgos e <strong>do</strong>s outros <strong>do</strong> <strong>rei</strong>no,houve priva<strong>do</strong>s que o conselharaom mui mal, prazencean<strong>do</strong> e dan<strong>do</strong>-lhes mal conselhospor tirarem <strong>de</strong>l mercees, e fezerom-no viver com gran<strong>de</strong>s peca<strong>do</strong>s, filhan<strong>do</strong> muitasmolheres, que lhe foi maa estança, e matou muitos e boos d’alto <strong>linhagem</strong> (LL 21A15)Depois <strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> <strong>de</strong>svios e cruelda<strong>de</strong>s secundadas pelos maus conselheiros, o <strong>rei</strong> é <strong>de</strong>posto umaprimeira vez e, <strong>rei</strong>nci<strong>de</strong>nte, termina exemplarmente <strong>de</strong>capita<strong>do</strong> por um nobre honra<strong>do</strong> (o con<strong>de</strong> Henrique <strong>de</strong>Castela). A narrativa encerra-se <strong>de</strong> maneira didática, quase à maneira <strong>de</strong> um pequeno ‘espelho <strong>de</strong> príncipes’:Este <strong>rei</strong> leixou exemplo pera os <strong>rei</strong>s haverem boos conselheiros, leaes e entendu<strong>do</strong>se letera<strong>do</strong>s, <strong>de</strong> boa conciencia e sem prazenteo. E antre estes, <strong>do</strong>us homees boos e <strong>de</strong>boo sangue e ricos e <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> esta<strong>do</strong>, que lhe digam as cousas sem receo. E por esto opassou mal este <strong>rei</strong> <strong>do</strong>m Pedro, que se meteo em po<strong>de</strong>r d’homees viis, assi como netos<strong>de</strong> celorgiães e barqueiros que soiam a seer. E o <strong>rei</strong> a que Deus dá entendimento, se creeros boos conselheiros, ama-lo-á Deus, e os boos <strong>do</strong> <strong>rei</strong>no e todasas outras gentes, assi quesempre vivirá em prazer, e quan<strong>do</strong> morrer irá aa gloria celestrial (LL 21A15)Chama atenção o interdito preconiza<strong>do</strong> nessa e em outras narrativas pelos autores <strong>do</strong> nobiliário:não apenas o <strong>rei</strong> <strong>de</strong>ve escolher bons conselheiros, como <strong>de</strong>ve selecioná-los preferencialmente (ou atéobrigatoriamente) na boa nobreza <strong>do</strong> <strong>rei</strong>no. Portanto, a situação i<strong>de</strong>al preconizada pelo nobiliário encontrasena sintonia eficaz <strong>do</strong> ‘bom <strong>rei</strong>’ com os ‘bons nobres’. A complementarida<strong>de</strong> entre a ‘boa nobreza’ e a‘boa realeza’ enquanto personagens <strong>do</strong> discurso linhagístico, e até a intervenção marcante da primeira naconstituição da segunda (o ‘bom nobre’ construin<strong>do</strong> o ‘bom <strong>rei</strong>’ como um educa<strong>do</strong>r implícito, ou como opersonagem que pressiona e exige <strong>do</strong> personagem régio o correto cumprimento <strong>do</strong> seu papel) – eis aquium traço <strong>do</strong> discurso linhagístico que, por hipótese, julgamos ser possível comprovar através da análise <strong>do</strong>significa<strong>do</strong> imanente das narrativas interpoladas <strong>do</strong>s <strong>livros</strong> <strong>de</strong> linhagens.O MARRARE - Periódico <strong>do</strong> Setor <strong>de</strong> Literatura Portuguesa da <strong>UERJ</strong>www.omarrare.uerj.br/numero7/jose.htmNúmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X


O MARRARE 7 – Periódico <strong>do</strong> Setor <strong>de</strong> Literatura Portuguesa da <strong>UERJ</strong> 38Mas as interações entre realeza e nobreza que aparecem implícitas nas narrativas linhagísticasnão param por aí. O <strong>rei</strong> <strong>de</strong>ve se apresentar como o primeiro <strong>do</strong>s nobres, ou como um paradigma para anobreza. Atestam-no algumas frases bastante comuns nos <strong>livros</strong> <strong>de</strong> linhagens, que <strong>de</strong>ixam clara essa funçãoparadigmática <strong>do</strong> <strong>rei</strong>, tais como: “O Ci<strong>de</strong> Rui Diaz foi o mais honra<strong>do</strong> fidalgo que houve em Espanha,que <strong>rei</strong> nom fosse” (LL 8A1) 4 . Ao mesmo tempo, o imaginário régio vai buscar toda a sua substância noimaginário cavaleiresco difundi<strong>do</strong> nos meios nobiliárquicos, reaproprian<strong>do</strong> valores como a ‘honra’, a‘coragem’, a ‘fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong>’.Dessa forma, imaginário régio e imaginário cavaleiresco são interpenetrantes nas narrativaslinhagísticas. Se há um ‘ofício <strong>de</strong> <strong>rei</strong>’ que se elabora com seus valores próprios, e que em diversasoportunida<strong>de</strong>s focaliza a admiração nobiliárquica, os cronistas <strong>do</strong>s nobiliários tentam fazer passar através <strong>de</strong>exempla a idéia <strong>de</strong> que acima <strong>do</strong> <strong>rei</strong>, guian<strong>do</strong> soberanamente os seus bons passos, estão forças maiores queencontram vigorosa expressão em uma ética e em um agir cavaleirescos. Teremos nessa uma outra hipóteseapta a sinalizar o caminho traça<strong>do</strong> por uma cuida<strong>do</strong>sa análise <strong>do</strong> discurso linhagístico.Em termos <strong>de</strong> realeza e ‘atributos <strong>de</strong> força’, enfim, duas ou três posições imaginárias prepon<strong>de</strong>rantesparecem disputar o espaço narrativo <strong>do</strong>s nobiliários – eis aqui uma terceira hipótese <strong>de</strong> trabalho. Da imagem<strong>do</strong> <strong>rei</strong> que é a “cabeça <strong>do</strong> <strong>rei</strong>no” parecem ser possíveis múltiplas leituras. Uma cabeça que se <strong>de</strong>staca <strong>do</strong>corpo? Ou uma cabeça que se vê indissociavelmente presa a esse mesmo corpo, também <strong>do</strong>ta<strong>do</strong> <strong>de</strong> suaparcela <strong>de</strong> autonomia? Ou, quem sabe, uma cabeça que se vê por fim renegada por um corpo amorfo que<strong>de</strong>la <strong>de</strong>sejaria prescindir? Vejamos o que nos têm a dizer as narrativas ...*O paradigma régio manifesto no Livro <strong>de</strong> Linhagens <strong>do</strong> Con<strong>de</strong> D. Pedro começa a ser construí<strong>do</strong>no ‘título VII’, que inclui os relatos relativos ao primeiro <strong>rei</strong> <strong>de</strong> Portugal. Afonso Henriques, aliás, é o <strong>rei</strong>português que realiza mais plenamente o atributo <strong>do</strong> ‘<strong>rei</strong>-guer<strong>rei</strong>ro’, o que já se verificava em crônicasibéricas anteriores (Crônica <strong>do</strong>s Vinte Reis, IV Crônica Breve, mas também o manuscrito toledanoconheci<strong>do</strong> como De Rebus Hispaniae, e que já introduz um capítulo significativo sobre Afonso Henriques).Mas antes das narrativas <strong>de</strong> suas vitórias militares, que visam ressaltar o aspecto heróico <strong>do</strong> <strong>rei</strong>, o Livro <strong>de</strong>Linhagens ocupa-se <strong>de</strong> precisar a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um compromisso <strong>do</strong> futuro <strong>rei</strong> <strong>de</strong> Portugal com a totalida<strong>de</strong><strong>de</strong> atributos pertinentes ao ‘bom <strong>rei</strong>’.Assim, ao morrer, o Con<strong>de</strong> Henrique dirige-se ao seu filho Afonso Henriques – como se prenunciassea sua posterior coroação – e <strong>de</strong>lineia um verda<strong>de</strong>iro mo<strong>de</strong>lo a ser segui<strong>do</strong> pelos <strong>rei</strong>s <strong>de</strong> Portugal, sob pena<strong>de</strong> fracassarem. Principia exigin<strong>do</strong> <strong>do</strong> filho o compromisso em preservar a terra, no que já se estabelecem osatributos régios <strong>de</strong> ‘<strong>de</strong>fensor da terra’ e ‘povoa<strong>do</strong>r’ da mesma. Mas, sobretu<strong>do</strong>, recomenda ao filho que sejacompanheiro <strong>do</strong>s fidalgos e que cumpra com todas as obrigações <strong>de</strong> suserania (que no caso aparecem sob aforma da justa retribuição <strong>de</strong> soldadas). Dessa forma, além <strong>de</strong> ser um ‘<strong>rei</strong> povoa<strong>do</strong>r’ e <strong>de</strong>fensor da terra’, ogovernante <strong>de</strong>verá ser um ‘chefe militar’ companheiro <strong>do</strong>s seus nobres e um suserano impecável:Filho, toda esta terra que te eu leixo <strong>de</strong> Astorga ataa Coimbra, nom percas en<strong>de</strong> un palmo,ca eu a gaanhei com gram coita. E, filho, toma <strong>do</strong> meu coraçom algua cousa, que sejasesforça<strong>do</strong> e sejas companheiro <strong>do</strong>s filhos d’algo, e da-lhes sas soldadas todas (LL 7B-2)O MARRARE - Periódico <strong>do</strong> Setor <strong>de</strong> Literatura Portuguesa da <strong>UERJ</strong>www.omarrare.uerj.br/numero7/jose.htmNúmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X


O MARRARE 7 – Periódico <strong>do</strong> Setor <strong>de</strong> Literatura Portuguesa da <strong>UERJ</strong> 40a alguma distância daquele tipo <strong>de</strong> ‘temerida<strong>de</strong>’ que coloca em risco a vitória e a segurança <strong>do</strong>s seuscomanda<strong>do</strong>s. Começam a aparecer as narrativas em que o <strong>rei</strong> pon<strong>de</strong>ra em meio ao campo <strong>de</strong> batalha (LL2D17), que age com inteligência e cálculo (LL 21A1), e que faz da coragem uma virtu<strong>de</strong> intermediária entreos extremos habita<strong>do</strong>s pelo temerário impru<strong>de</strong>nte e pelo covar<strong>de</strong> <strong>de</strong>sprezível 5 .Já mencionamos anteriormente que, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com as mensagens implícitas nos <strong>livros</strong> <strong>de</strong> linhagens,nada seria <strong>do</strong> ‘bom <strong>rei</strong>’ sem o ‘bom nobre’. Tal idéia po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>monstrada pelo episódio que se segue aodiálogo <strong>do</strong> Con<strong>de</strong> Henrique com seu filho. Depois da morte <strong>do</strong> Con<strong>de</strong>, estabelece-se uma ferrenha disputasucessória <strong>de</strong> Afonso Henriques contra sua mãe e seu padrasto. Nesse embate, <strong>de</strong> acor<strong>do</strong> com a versãoproposta pelo Livro <strong>de</strong> Linhagens, o futuro <strong>rei</strong> <strong>de</strong> Portugal seria fatalmente venci<strong>do</strong>, não fosse a intervençãosalva<strong>do</strong>ra <strong>de</strong> um nobre perfeitamente afina<strong>do</strong> com o i<strong>de</strong>al cavaleiresco – e que se prontifica a socorrer o<strong>rei</strong> no momento necessário. O Livro <strong>de</strong> Linhagens <strong>de</strong>sloca, assim, uma boa parte <strong>do</strong> mérito <strong>de</strong> AfonsoHenriques na sua ascensão à realeza para a figura <strong>de</strong> Soeiro Men<strong>de</strong>s :A fazenda foi feita em Guimarães, e foi arranca<strong>do</strong> Afonso Anriquez e mui malt<strong>rei</strong>to. Eel, in<strong>do</strong> ua legoa <strong>de</strong> Guimarães achou-se com Soeiro Meen<strong>de</strong>z, que o viinha ajudar, edisse: ‘Como viin<strong>de</strong>s assi, senhor?’. Respon<strong>de</strong>o entom Afonso Anriquez: ‘Venho muimal, ca me arrancou meu padrasto e minha madre, que estava com ele na az’. E o SoeiroMeen<strong>de</strong>z lhe disse: ‘Non fezestes siso que aa batalha fostes sem mim. Mais torna<strong>de</strong>voscome <strong>de</strong> cabo aa fazenda, e eu i<strong>rei</strong> convosco, e pren<strong>de</strong>remos vosso padrasto e vossamadre com el’. E disse Afonso Anriquez: ‘Deus man<strong>de</strong> que assi seja’ E <strong>do</strong>m SoeiroMeen<strong>de</strong>z lhe disse: ‘Vós vere<strong>de</strong>s que assi será’. e torn[ou]-se com ele aa batalha, epren<strong>de</strong>o seu padrasto e sa madre (LL 7B-6)Afonso Henriques havia cometi<strong>do</strong> a imprudência (ou a prepotência) <strong>de</strong> ir à batalha sem o apoio <strong>do</strong>bom nobre Soeiro Men<strong>de</strong>s, e por isto fora gravemente <strong>de</strong>rrota<strong>do</strong>. Mas agora o ‘bom nobre’ surgia paracorrigir a situação e lhe oferecer o apoio que o conduziria à vitória. O sucesso <strong>do</strong> <strong>rei</strong> é assim a aparênciamais externa <strong>do</strong> sucesso <strong>do</strong> nobre, e o nobiliário mostra aqui o seu discurso corporativista, on<strong>de</strong> a ‘cabeça’<strong>do</strong> <strong>rei</strong>no nada seria sem o apoio <strong>do</strong>s membros (<strong>do</strong>s bons membros) que são a nobreza.Depois das referências sem maiores conteú<strong>do</strong>s significativos aos <strong>do</strong>is próximos sucessores <strong>de</strong> AfonsoHenriques, D. Sancho II é o segun<strong>do</strong> <strong>rei</strong> a merecer referência expressiva no título VII <strong>do</strong> Livro <strong>de</strong> Linhagens– referência que, embora relativamente curta, é marcante para a construção <strong>de</strong>ssa variante linhagística <strong>do</strong>imaginário régio:Reinou seu filho <strong>do</strong>m Sancho, e começou mui bem <strong>de</strong> seer mui boo <strong>rei</strong> e <strong>de</strong> justiça, mashouve maos conselheiros, e <strong>de</strong>s ali a<strong>de</strong>ante nom fez justiça. E saio <strong>de</strong> manda<strong>do</strong> da rainha<strong>do</strong>na Biringuela, sa tia, e casou-se com Micia Lopez, e <strong>de</strong>s ali foi pera mal (LL 7C-7)Se um ‘bom nobre’ fora o responsável inicial pelos sucessos <strong>de</strong> Afonso Henriques, são agora os‘maus nobres’ – que se afastam <strong>do</strong> i<strong>de</strong>ário cavaleiresco e que mal aconselham o <strong>rei</strong> – os verda<strong>de</strong>irosresponsáveis pela <strong>de</strong>rrocada final <strong>de</strong> D. Sancho II. Segue-se assim o episódio em que os gran<strong>de</strong>s clérigos<strong>do</strong> <strong>rei</strong>no requisitam ao Papa um ato <strong>de</strong> legitimação para que Afonso III, irmão <strong>do</strong> <strong>rei</strong> Sancho II, inicie oempreendimento da tomada <strong>do</strong> <strong>rei</strong>no.O <strong>de</strong>sgoverno <strong>de</strong> Sancho II explica, na versão <strong>do</strong> Livro <strong>de</strong> Linhagens, a <strong>de</strong>rrocada <strong>do</strong> <strong>rei</strong>no. Issonão quer dizer que se achem justificadas, pelos padrões cavaleirescos, as traições <strong>do</strong>s nobres que tinhamlaços <strong>de</strong> fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> vassálica para com o antigo <strong>rei</strong> e que facilmente os quebraram ou por oportunismo oupor covardia. Algumas das narrativas linhagísticas espezinham precisamente os trai<strong>do</strong>res vassálicos <strong>de</strong>O MARRARE - Periódico <strong>do</strong> Setor <strong>de</strong> Literatura Portuguesa da <strong>UERJ</strong>www.omarrare.uerj.br/numero7/jose.htmNúmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X


O MARRARE 7 – Periódico <strong>do</strong> Setor <strong>de</strong> Literatura Portuguesa da <strong>UERJ</strong> 41Sancho II, e diversas cantigas trova<strong>do</strong>rescas da época apresentam esse outro ponto <strong>de</strong> vista que con<strong>de</strong>naindiretamente a usurpação <strong>de</strong> Afonso III ao criticar sarcasticamente os alcai<strong>de</strong>s que entregaram castelos aoBolonhês no episódio da Guerra Civil. Mas enfim, sanada a crise social, D. Afonso III aparece na seqüênciaproposta pelo Livro <strong>de</strong> Linhagens como um governante exemplar, que aprimora inclusive alguns atributosnecessário ao <strong>rei</strong> i<strong>de</strong>al:El <strong>rei</strong> <strong>do</strong>m Afonso foi mui boo <strong>rei</strong> e justiçoso, e manteve sempre seu <strong>rei</strong>no em paz e semcontenda nem ua (LL 7C-8)Pronto a governar com sabe<strong>do</strong>ria, D. Afonso III consegue finalmente estabelecer a paz no <strong>rei</strong>nocumprin<strong>do</strong> rigorosamente o seu papel <strong>de</strong> ‘pacifica<strong>do</strong>r <strong>do</strong> espaço social’. Com ele emerge também umanova nobreza nas posições políticas fundamentais – uma nova ‘boa nobreza’ para o contraponto <strong>de</strong> um bomgoverno. Seu filho D. Dinis continua-lhe a obra <strong>de</strong> pacificação <strong>do</strong> espaço social, e <strong>de</strong> edifica<strong>do</strong>r da imagem<strong>do</strong> <strong>rei</strong> que atua sabiamente na ‘mediação <strong>de</strong> conflitos’, inclusive servin<strong>do</strong> em certa oportunida<strong>de</strong> comomedia<strong>do</strong>r entre <strong>do</strong>is outros <strong>rei</strong>s hispânicos ao prontificar-se a “meter pazes antre el <strong>rei</strong> <strong>do</strong>m James d’Aragom,filho d’el <strong>rei</strong> <strong>do</strong>m Pedro, seu padre, e antre el <strong>rei</strong> <strong>do</strong>m Fernan<strong>do</strong> <strong>de</strong> Castela, filho d’el <strong>rei</strong> <strong>do</strong>m Sancho” (LL7D-3).A seqüência <strong>do</strong> ‘título VII’ nos mostra, <strong>de</strong>ssa forma, um cuida<strong>do</strong> em sintonizar a construção <strong>do</strong>imaginário régio com o imaginário cavaleiresco exigi<strong>do</strong> à nobreza <strong>do</strong> <strong>rei</strong>no. Quan<strong>do</strong> é apoia<strong>do</strong> por umaboa nobreza, o bom <strong>rei</strong> é capaz <strong>de</strong> façanhas esplêndidas. Mas os maus conselheiros são capazes <strong>de</strong> <strong>de</strong>sviarum bom <strong>rei</strong> <strong>do</strong> seu caminho <strong>de</strong> justiça. E nesse momento, quan<strong>do</strong> o <strong>rei</strong> distancia-se <strong>do</strong> padrão régio <strong>de</strong>excelência, torna-se legítimo (ou ao menos inevitável) um movimento para a sua <strong>de</strong>posição, sempre apoia<strong>do</strong>pela boa nobreza e pelos bons clérigos <strong>do</strong> <strong>rei</strong>no (o que não isenta os vassalos diretos <strong>do</strong> <strong>rei</strong> <strong>de</strong>posto, comovimos, <strong>de</strong> continuarem atuan<strong>do</strong> cavaleirescamente no cumprimento das suas obrigações, ou ao menos <strong>de</strong>encontrarem meios cavaleirescos <strong>de</strong> encerrar seus contratos vassálicos).Realeza e nobreza – a boa realeza e a boa nobreza, ou a má realeza e a má nobreza – aparecemintimamente imbrica<strong>do</strong>s. Guardaremos para mais adiante essa íntima relação entre o ‘mau governo régio’ e o‘mau aconselhamento nobre’ – o que aliás implica, na contrapartida, em uma relação correspon<strong>de</strong>nte entre o‘bom governo régio’ e o ‘bom aconselhamento nobre’. Essas mútuas relações revelar-se-ão uma verda<strong>de</strong>irachave para compreen<strong>de</strong>rmos certas narrativas linhagísticas on<strong>de</strong> aparece a personagem régia.O MARRARE - Periódico <strong>do</strong> Setor <strong>de</strong> Literatura Portuguesa da <strong>UERJ</strong>www.omarrare.uerj.br/numero7/jose.htmNúmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X


O MARRARE 7 – Periódico <strong>do</strong> Setor <strong>de</strong> Literatura Portuguesa da <strong>UERJ</strong> 42REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS:KANTOROWICZ, Ernst. <strong>Os</strong> Dois Corpos <strong>do</strong> Rei. São Paulo: CIA das Letras, 1998.Livro <strong>de</strong> Linhagens <strong>do</strong> Con<strong>de</strong> D. Pedro. ed. José Mattoso. “Nova Série” <strong>do</strong>s Portugaliae MonumentaHistorica. Lisboa: A.C.L., 1980.Livros Velhos <strong>de</strong> Linhagens. (incluin<strong>do</strong> o “Livro Velho” e o “Livro <strong>do</strong> Deão”). ed. José Mattoso eJoseph Piel. “Nova Série” 2 Portugaliae Monumenta Historica. Lisboa: Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Ciências, 1980NOTAS:Doutor em História Social pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense. Professor <strong>do</strong>s cursos <strong>de</strong> Graduaçãoe Mestra<strong>do</strong> em História da Universida<strong>de</strong> Severino Sombra (Vassouras, RJ). O texto que aqui se apresenta fazparte <strong>de</strong> uma Pesquisa intitulada ‘O Imaginário Cavalheiresco através das fontes narrativas e genealógicas<strong>de</strong> Portugal nos séculos XIII e XIV’, <strong>de</strong>senvolvida junto ao Real Gabinete Português <strong>de</strong> Leitura (Rio <strong>de</strong>Janeiro) com o apoio da ‘Fundação Calouste Gulbenkien’ <strong>de</strong> Lisboa.2<strong>Os</strong> <strong>livros</strong> <strong>de</strong> linhagens foram compila<strong>do</strong>s em momentos diversos entre o século XIII e XIV, sofren<strong>do</strong>sucessivas interpolações até assumirem a sua forma <strong>de</strong>finitiva. São conheci<strong>do</strong>s basicamente três <strong>livros</strong> <strong>de</strong>linhagens: o Livro Velho (LV), o Livro <strong>do</strong> Deão (LD), e o Livro <strong>de</strong> Linhagens <strong>do</strong> Con<strong>de</strong> D. Pedro, que aquichamaremos <strong>de</strong> Livro <strong>de</strong> Linhagens (LL). <strong>Os</strong> perío<strong>do</strong>s presumíveis para as suas compilações vão <strong>de</strong> 1282 a1290 para o LV, <strong>de</strong> 1290 a 1343 para o LD, e <strong>de</strong> 1340 a 1343 para o LL. As três fontes já possuem ediçõesdiplomáticas importantes. 1 – Livros Velhos <strong>de</strong> Linhagens. (incluin<strong>do</strong> o “Livro Velho” e o “Livro <strong>do</strong> Deão”)e 2 – Livro <strong>de</strong> Linhagens <strong>do</strong> Con<strong>de</strong> D. Pedro (MATTOSO e PIEL, 1980).3A narrativa em questão provém <strong>de</strong> uma das refundições <strong>do</strong> Livro <strong>de</strong> Linhagens (a <strong>de</strong> 1265 ou a <strong>de</strong>1283), uma vez que se refere a um personagem contemporâneo a Afonso IV <strong>de</strong> Portugal. Em to<strong>do</strong> caso,incorpora perfeitamente o espírito nobiliárquico das narrativas oriundas <strong>de</strong> perío<strong>do</strong>s anteriores.4Da mesma forma, a narrativa referente ao Con<strong>de</strong> D. Pedro também traz um trecho exemplificativoacerca <strong>do</strong> papel paradigmático <strong>do</strong> <strong>rei</strong>: “ca mais forom por ele postos e feitos em mui gran<strong>de</strong>s comtias capolos melhores quatro homees bõos que forom em Portugal, salvan<strong>do</strong> se forom en<strong>de</strong> <strong>rei</strong>s” (LL 22H14-12A).5Por essa época, começavam também a surgir no Oci<strong>de</strong>nte Medieval eventuais discussões quecontrapunham à imagem <strong>do</strong> ‘<strong>rei</strong> guer<strong>rei</strong>ro’ a <strong>do</strong> ‘<strong>rei</strong> não-combatente’. KANTOROWICZ cita entre outrosexemplos um romance filosófico chama<strong>do</strong> Sidrach, que seria leitura popular no século XIII: “o sábioSidrach, pergunta<strong>do</strong> por seu interlocutor, um fabuloso <strong>rei</strong> <strong>do</strong> Oriente, se o <strong>rei</strong> <strong>de</strong>via ir combater, dava oconselho <strong>de</strong> que o <strong>rei</strong> em pessoa não <strong>de</strong>via combater, mas ficar na retaguarda <strong>de</strong> seu exército, pois ‘seo exército se per<strong>de</strong> o <strong>rei</strong> escapa, po<strong>de</strong> recompor outro exército; mas se o <strong>rei</strong> per<strong>de</strong>, tu<strong>do</strong> está perdi<strong>do</strong>’”(KANTOROWICZ, 1998, p.163-164.)José D’Assunção Barrosjose.assum@globo.comO MARRARE - Periódico <strong>do</strong> Setor <strong>de</strong> Literatura Portuguesa da <strong>UERJ</strong>www.omarrare.uerj.br/numero7/jose.htmNúmero 7 (2006) - ISSN 1981-870X

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