MEDICINA NA BEIRA INTERIOR DA PRÉ-HISTÓRIA AO SÉCULO XXIA CRIANÇAAPROXIMAÇÕES VÁRIAS SOB O PONTO DE VISTA HISTÓRICOJoão-Maria Nabais *PREÂMBULOA criança, igual a qualquer pessoa humana, éum ser aparentemente frágil e pouco resistente mascapaz de interagir com o ambiente e provocar asreacções mais díspares <strong>da</strong>s pessoas à sua volta– todos nós, já estivemoscomprometidos talcomo ela, algures nopercurso <strong>da</strong>s nossas vi<strong>da</strong>s.Sujeito de direitose caprichos, gosta deser ouvido de imediatonas suas diferentes exteriorizaçõese comportamentosou seja, nasprimeiras formas de comunicaçãoe de relaçãocom o mundo exterior: osorriso, o choro, irritabili<strong>da</strong>de,alegria, tristeza, raiva, etc.. Muitas vezes, nãopassa de um pequeno grande ditador que se compraza manipular e a chantagear emocionalmentea corte de observadores indulgentes, enfeitiçadospelas várias formas de sedução que utiliza de modoelaborado e lúdico, logo desde muito cedo e ao longodo seu desenvolvimento, para atingir quase sempreos objectivos mais básicos: alimentação, bemestar,atenção e outras formas de amor que podempassar simplesmente pelo colo de um adulto. Numambiente familiar seguro e tranquilo, acções e cui<strong>da</strong>dosespeciais incluem intervenções nas váriasáreas de apoio à saúde, nutrição, educação e assistênciasocial. Estas são as ver<strong>da</strong>deiras bases paragarantir à criança um começo de vi<strong>da</strong> favorável,acompanhado de um progresso harmónico tantofísico como psíquico, associado aos aspectos emocionais,cognitivos, intelectuais e sociais, sem nuncaperder de vista, as características culturais específicasde ca<strong>da</strong> criança integra<strong>da</strong> na célula familiar deuma comuni<strong>da</strong>de, isto é, a etnologia cultural.Entre outros factores importantes, estão osestímulos que essas crianças recebem ao longodos anos, a começar nas horas primordiais apôs onascimento, assim como o incentivo ao aleitamentomaterno, à vacinação atempa<strong>da</strong>, ao apoio veiculadono interior <strong>da</strong> família, à condição <strong>da</strong> i<strong>da</strong>de e donível de escolari<strong>da</strong>dedos pais, etc., etc..O desenvolvimentoinfantil é um conceitoque toma como axioma,o facto <strong>da</strong> criançaser o actor principal doaperfeiçoamento <strong>da</strong>sua evolução, durantetodo o período do crescimento.Ou seja, apósa gestação, o recémnascidocomo ser individual,único, insubstituívelembora dependente, não é proprie<strong>da</strong>de dealguém, embora sobre isto, muitos pais e demaistécnicos, nem sequer alguma vez tenham paradopara pensar e reflectir.Desde o tempo crucial do nascimento e mesmoantes durante todo o período fetal, a competênciaorgânica <strong>da</strong> criança (do latim creantìa, ou de creáre,“criar; fazer crescer”) e até uma boa parte <strong>da</strong> sua essênciacomo ente biológico, são submetidos a umacontínua interdependência e a uma intervenção, socialmenteaceite e geneticamente determina<strong>da</strong>.É um tempo de grande cometimento e compromissofísico e mental, de modo especial nos primeirosanos de vi<strong>da</strong>, traduzindo-se por uma constelaçãode múltiplas modificações morfológicas epsicológicas, envolvendo mu<strong>da</strong>nças graduais contínuasdo comportamento que de novo se acentuamcom a puber<strong>da</strong>de pela aquisição <strong>da</strong>s bases <strong>da</strong>personali<strong>da</strong>de normal do adulto, tudo isto, acompanhadopela maturação complementar <strong>da</strong>s característicassexuais secundárias.5
MEDICINA NA BEIRA INTERIOR DA PRÉ-HISTÓRIA AO SÉCULO XXIO comportamento natural <strong>da</strong> criança implicauma conduta a<strong>da</strong>ptativa, isto é, uma capaci<strong>da</strong>de inataevidente para se adequar às diferentes circunstânciasque a rodeiam e modelam, independentemente<strong>da</strong> sua origem. De igual modo, os vários itens parauma criança concorrer em pé de igual<strong>da</strong>de com osseus pares e se tornar homem, são tão numerososcomo as diferentes culturas existentes. A criança sofree a<strong>da</strong>pta-se continuamente às distintas pressõessociais que a cercam (exs. económicas, geográficas,rácicas, históricas, religiosas, culturais), semesquecer ain<strong>da</strong>, o omnipresente tema <strong>da</strong> diferença,representado por todos os portadores de algumaforma de deficiência física ou mental, porque nascersaudável é um direito natural inalienável.Esta redefinição <strong>da</strong> criança enquanto enti<strong>da</strong>departicular, permitiu descortinar características do serhumano que a história antropológica só admitia nohomem primitivo. A criança surge agora como umnovo homem, quase um homem obscuro e desconhecidopleno de potenciali<strong>da</strong>des até aí insondáveis,as quais têm sido progressivamente revela<strong>da</strong>s,como se tratassem de artefactos arqueológicos.A <strong>Medicina</strong> começa por ser uma arte e umatécnica que se converte numa ver<strong>da</strong>deira ciência,com a finali<strong>da</strong>de de aprofun<strong>da</strong>r o estudo do corpohumano, para desta maneira desven<strong>da</strong>r o seu admirávelfuncionamento, ao pugnar pela manutenção<strong>da</strong> Saúde e sempre que possível competir pelo seurápido restabelecimento.O ramo <strong>da</strong> medicina que cui<strong>da</strong> <strong>da</strong> saúde e dodesenvolvimento <strong>da</strong>s crianças, para além do estudo<strong>da</strong>s doenças que as afectam física e emocionalmente,é a Pediatria (do grego païs, paidós, “criança” +iatreía, “medicina”).Quando os técnicos (pediatras, psicólogos,pe<strong>da</strong>gogos, sociólogos, etc.) estão diante de umacriança é como se contemplassem uma máquinasoberba <strong>da</strong> natureza que possui dentro de si, ummundo infindável de características latentes tão estranhase bizarras como vulgares, prontas a despoletaras manifestações vitais que se tornam patentesnas fases de maior activi<strong>da</strong>de metabólica, isto é, talcomo um segredo vivificante que podia levantar ovéu dos mistérios <strong>da</strong> alma humana (Maria Montessori,1972) ou como para Darwin, que via na criançauma expressão viva <strong>da</strong> teoria <strong>da</strong> evolução.Também a psicanálise (método psicoterapêuticocriado por Freud que assenta essencialmentena exploração do inconsciente) reconhece a importânciados factos ocorridos com origem cedo nainfância, para o despoletar <strong>da</strong>s perturbações psíquicasgraves na criança mais velha e na predisposiçãopara agravar os conflitos potenciais do próprioadulto, entre as pulsões ou impulsos instintivos e osconstrangimentos <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> familiar e social.A Criança, uma invenção recente <strong>da</strong> HistóriaA criança, muito cedo, a partir do nascimento(segundo outros, entre os quais me incluo, já muitoantes, durante a gravidez) é um indivíduo único comuma personali<strong>da</strong>de e uma idiossincrasia próprias,alia<strong>da</strong>s a um temperamento peculiar acrescido, quea acção e protecção maternas devem preservar eestimular… to<strong>da</strong>via, a criança parece ter a capaci<strong>da</strong>dede compreender, o que dela se pode esperar.Mas, o que é uma criança? De repente, perante estasimples pergunta, algo controversa, <strong>da</strong>mos connoscoa experimentar algum desconforto já que não háuma fácil resposta, simples e linear.O que é a criança? Será sempre uma invençãorecente. Porquê? Porque a criança era vista comoum adulto em ponto pequeno, vestindo-se e comportando-sede igual modo. Por outro lado, o desenvolvimento<strong>da</strong>s ciências <strong>da</strong> educação passam aatribuir à criança uma nova dimensão antropológica,reinventando-a e <strong>da</strong>ndo-lhe uma outra configuraçãotanto do ponto de vista sociológico como psicológico.Trata-se do saber e <strong>da</strong> experiência dum mundoparalelo, a infância (o primeiro período <strong>da</strong> vi<strong>da</strong> humana),a que o adulto se permitiu descobrir seja comope<strong>da</strong>gogo, seja simplesmente como progenitor.Philippe Ariès (1914-1984), reconhecido medievalistae historiador francês, investigador <strong>da</strong> históriasocial <strong>da</strong> família e <strong>da</strong> criança, e <strong>da</strong>s mentali<strong>da</strong>des,6