Memória <strong>Futura</strong>Variações sobre Ética e MoralMiguel RealeUm ilustre leitor <strong>de</strong> meus artigos quinzenais nestas páginas <strong>de</strong>O Estado <strong>de</strong> S. Paulo sugere-me que esclareça a distinção queexiste entre Ética e Moral, cujos conceitos, a seu ver, andam baralhados,com análoga confusão no que se refere ao Direito e à Política,consi<strong>de</strong>rados ou não subordinados aos mandamentos éticos.É natural que isso aconteça na praxe cotidiana, pois Ética e Moralversam sobre i<strong>de</strong>ias intimamente relacionadas, <strong>de</strong> difícil distinção, comoé reconhecido pelos maiores estudiosos do assunto. Também no planoda Filosofia elas não raro se confun<strong>de</strong>m, chegando a ser empregadascomo sinônimos, mesmo porque, do ponto <strong>de</strong> vista etimológico, tantoem grego como no latim, ambas provêm da palavra costume, que indicaas diretrizes <strong>de</strong> conduta a serem seguidas.Isto não obstante, talvez se possa perceber alguma nota distintivaentre elas, pois a Ética tem por fim <strong>de</strong>terminar os valores fundantesdo comportamento humano, ao passo que a Moral se refeririamais à posição subjetiva perante esses valores, ou à maneira como elesse apresentam objetivamente como regras ou mandamentos. Sob esseângulo, a Moral representaria a realização da Ética in concreto, em nossaexperiência <strong>de</strong> todos os dias.A<strong>de</strong>mais, cabe pon<strong>de</strong>rar que a palavra ética veio, aos poucos, adquirindosentido genérico, bem mais extenso do que lhe foi atribuído porAristóteles, o primeiro a estabelecer os fundamentos essenciais <strong>de</strong>ssamatéria.325Quarto ocupanteda Ca<strong>de</strong>ira 14na <strong>Aca<strong>de</strong>mia</strong><strong>Brasileira</strong> <strong>de</strong><strong>Letras</strong>.
Miguel RealeParece-me que a questão, atualmente, <strong>de</strong>ve ser posta em novos termos, à vistado que representou no mundo das i<strong>de</strong>ias, a cavaleiro dos séculos XIX e XX, oadvento da Teoria dos Valores, ou Axiologia, com a substituição do conceito <strong>de</strong>bem, tradicionalmente apontado como finalida<strong>de</strong> da Ética, pela noção <strong>de</strong> valor.Foi nos domínios da Economia, a partir <strong>de</strong> Adam Smith, que esta palavra passoua ter aplicação mais generalizada, sem se esquecer o impacto da expressão“mais-valia” concebida por Karl Marx, com repercussão em todos os camposda Filosofia.O termo valor, hoje em dia, é como que a palavra-chave <strong>de</strong> todas as ciênciashumanas, indicando algo que <strong>de</strong>ve ser em virtu<strong>de</strong> do significado e papel que lheatribuem as opções ou preferência dos indivíduos e dos grupos sociais.No meu enten<strong>de</strong>r, o valor, como o <strong>de</strong>monstram as i<strong>de</strong>ias sobre a verda<strong>de</strong>, abeleza, a utilida<strong>de</strong> etc., situa-se no “mundo do <strong>de</strong>ver-ser”, que correspon<strong>de</strong> aoque não po<strong>de</strong> ser apenas pensados por implicar sempre uma necessária tomada <strong>de</strong>posição no plano <strong>de</strong> sua realização. Com efeito, se o que é consi<strong>de</strong>rado valioso jamaisse realizasse, seria apenas uma ilusão ou quimera, não merecendo um minutosequer <strong>de</strong> nossa atenção.Isto posto, po<strong>de</strong>r-se-ia afirmar que a Ética é a parte da Filosofia que tem porobjeto os valores que presi<strong>de</strong>m o comportamento humano em todas as suas expressõesexistenciais. Daí a sua preeminência em relação à Moral, à Política e aoDireito, os quais correspon<strong>de</strong>riam a momentos ou formas subordinadas <strong>de</strong> agir.Enten<strong>de</strong>m alguns pensadores que os valores éticos fundamentais seriam inatos,ou seja, inerentes à natureza espiritual do ser humano, enquanto que outrosos consi<strong>de</strong>ram mo<strong>de</strong>los alcançados pela espécie humana ao longo da experiênciahistórica.No meu enten<strong>de</strong>r, é, efetivamente, essa a origem dos valores primordiais daÉtica, firmando-se como conquistas <strong>de</strong>finitivas do processo cultural. A tais valoresbásicos, reconhecidos em uníssono pelos povos culturalmente mais <strong>de</strong>senvolvidos,eu dou o nome <strong>de</strong> invariantes axiológicas. Como se vê, não obstantesua historicida<strong>de</strong>, há valores que, uma vez atingidos, não mais <strong>de</strong>saparecem docenário cultural, a começar pelo valor da pessoa humana, que eu qualifico comovalor-fonte dos <strong>de</strong>mais valores.Não é <strong>de</strong>mais salientar que a Ética po<strong>de</strong> ser entendida como expressão <strong>de</strong>i<strong>de</strong>ias dominantes, como a <strong>de</strong> pessoa ou a <strong>de</strong> liberda<strong>de</strong>, ou então ser vista como326