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Pe. ATICO FASSINI, MS<br />
SALETTE:<br />
DE VOLTA À FONTE<br />
MARCELINO RAMOS - RS
IMPRIMA-SE.<br />
Pe. ADILSON SCHIO MS<br />
Superior Provincial<br />
19 de setembro de 2011<br />
165º Aniversário da Aparição de<br />
Nossa Senhora da Salette<br />
Curitiba – Pr.
PREFÁCIO<br />
Muito interessante esse trabalho de Pe. Atico Fassini,<br />
Missionário Saletino, pelo qual o leitor é levado a um melhor<br />
conhecimento tanto das origens quanto dos primeiros passos<br />
da Congregação dos Missionários de Nossa Senhora da Salette.<br />
Com o rigor que lhe é peculiar, o autor conduz o leitor a entrar em<br />
sintonia com Dom Philibert de Bruillard e outros personagens<br />
que deram início <strong>à</strong> aventura <strong>à</strong> qual nos sentimos orgulhosos de<br />
pertencer, com o intuito de torná-la eficazmente presente no<br />
mundo atual.<br />
O Concílio Vaticano II convidou as Congregações a um<br />
esforço de apropriação criativa das fontes e carisma que lhes<br />
deram origem. O objetivo primordial desse convite era fazer com<br />
que os Religiosos assumissem o empenho da re-apropriação dos<br />
eventos, dos personagens e das circunstâncias que deram origem<br />
aos inúmeros carismas que enriqueceram a Igreja. Os carismas<br />
se tornaram meio para que a Igreja pudesse responder <strong>à</strong>s sempre<br />
novas provocações que o Espírito vai suscitando para o bem do<br />
Povo de <strong>De</strong>us. Nossa Congregação durante mais de quinze anos<br />
se engajou nesse esforço que foi concluído com a aprovação de<br />
nossas Constituições pelo Capítulo Geral de 1982. O Pe. Atico,<br />
como Conselheiro Geral e membro do referido Capítulo, deixou<br />
ali sua valiosa contribuição. Um motivo a mais para valorizar<br />
seu esforço na composição do presente estudo.<br />
Tal pesquisa se justifica, ainda, pelo fato de que, vivendo<br />
há mais de um século e meio distantes do ato fundador e dos<br />
personagens que nele intervieram, nós temos necessidade<br />
de penetrar, mais profundamente, nos sentimentos e razões<br />
que deram origem <strong>à</strong> nossa Congregação, para reler, hoje,<br />
com criatividade e ousadia, o evento Salette e o carisma da<br />
Reconciliação. Tal evento e carisma são sinais que marcam<br />
nossa Igreja e nosso mundo.<br />
A esperança do autor, por mim compartilhada plenamente,<br />
é que esta obra se transforme em instrumento para que nós<br />
3
saletinos e, de modo especial nossos formadores e formandos,<br />
naveguemos sempre mais profundamente nas riquezas de nossa<br />
origem, de nossa história e de nosso carisma. Esse texto nos<br />
ajuda a compreender que Maria, em Salette, nos dirige um<br />
convite para centrar nossa atenção em Jesus de Nazaré, visto<br />
como Homem-<strong>De</strong>us em busca de seu Povo, próximo de nós<br />
como o foi de Giraud, do povo da Salette e da região em sua<br />
fragilidade e em sua esperança. Por isso mesmo, esse Jesus é a<br />
expressão mais legítima do <strong>De</strong>us cuja presença vai crescendo<br />
junto ao ser humano, numa história compartilhada.<br />
Façamos, pois, justo e adequado uso deste maravilhoso<br />
trabalho!<br />
Pe. Isidro Augusto Perin MS,<br />
Ex-Superior Geral<br />
4
INTRODUÇÃO<br />
O extraordinário evento vivido na região de LA SALETTE,<br />
na cadeia dos Alpes franceses, a 19 de setembro de 1846,<br />
aconteceu num contexto histórico preciso. A França espelhava o<br />
conturbado Continente Europeu.<br />
O texto que segue, vê pelo retrovisor esse contexto, sem dele<br />
fazer uma leitura exaustiva. Não é fruto de pesquisa científica<br />
em documentos originais ou nos fatos originantes situados<br />
nos meados do século XIX. É apenas, fruto de busca ampla e<br />
de coleta honesta de elementos históricos presentes em obras<br />
de real valor a respeito do Fato da Salette. Fixando os olhos<br />
nesse evento, bebeu exaustivamente em fontes categorizadas,<br />
trabalho de diversos autores, especialistas na matéria. <strong>De</strong>ntre<br />
eles, destaca-se a monumental obra de Pe. Jean Stern ms, “LA<br />
SALETTE – Documents authentiques”, em três volumes, que<br />
cobrem o arco de tempo entre setembro de 1846 a novembro<br />
de 1854, período decisivo para a recepção ativa do insólito<br />
acontecimento. Com método absolutamente científico, Pe. Stern<br />
ali recolhe criticamente e numa ordem cronológica rigorosa,<br />
todos os documentos autênticos que surgiram nesse período em<br />
relação ao assunto.<br />
O texto presente encontra suporte nos três anos de vivência<br />
pastoral de seu autor junto aos peregrinos que freqüentam o local<br />
da Aparição da Salette.<br />
Um sinal concreto permanece assentado na solidez rochosa<br />
das montanhas onde o Fato da Salette aconteceu: a <strong>Fonte</strong>.<br />
Minúscula e humilde fonte. Intermitente era. Permanente se<br />
fez. Jorrando águas de vida nova. Murmúrio suave de água leve,<br />
sinal do Divino que ali chegou e ali acampou.<br />
Donde o título da presente obra: “SALETTE: DE VOLTA À<br />
FONTE”. Retorno que dessedenta e nada mais deseja!<br />
A obra tem consciência de seus limites. <strong>De</strong>spretenciosa,<br />
deseja ser fiel <strong>à</strong> história, orgânica em sua estrutura, e amorosa da<br />
causa da Salette. Sua elaboração tem o modesto intuito de ajudar<br />
5
os interessados em geral, os Leigos e as Leigas Saletinos, e os<br />
candidatos <strong>à</strong> Vida Religiosa Saletina, a que melhor conheçam<br />
o evento de 19 de setembro de 1846. Seu centro de atenção<br />
é a Aparição de Nossa Senhora em LA SALETTE, evento<br />
inspirador da Congregação dos Missionários, das Irmãs, e da<br />
Confraria dela surgidas.<br />
O tema é de parca bibliografia em língua portuguesa.<br />
Também é diminuto o conhecimento da língua francesa que<br />
veicula o principal acervo documental sobre a questão. Daí a<br />
razão dessa obra.<br />
Sirva ela a seu simples objetivo e <strong>De</strong>us será louvado!<br />
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I P A R T E<br />
SALETTE: FATO E CONTEXTO<br />
CAPÍTULO I<br />
SITUAÇÃO HISTÓRICA DA FRANÇA<br />
A verificação passageira do contexto histórico-social da<br />
França do século XIX serve para melhor intuir o significado<br />
transcendente do Fato da Salette. Um simples mosáico de<br />
elementos indicativos permite a percepção aproximativa do que foi<br />
a Europa e, particularmente, a França, nessa época. A explanação<br />
ampla dos mesmos não cabe, porém, no quadro da presente obra.<br />
A situação francesa, nesse período, pode ser considerada<br />
sob diferentes pontos de vista:<br />
1) Situação política interna: seqüelas da Revolução Francesa<br />
de 1789; guerras napoleônicas; instabilidade do regime político;<br />
conflito entre monarquia e república; revoltas populares; Comuna<br />
de Paris; resquícios de cesaropapismo; ímpetos imperialistas...<br />
2) Situação econômica: peso do feudalismo; burguesia rural;<br />
burguesia urbana; início da era industrial; invenção da máquina<br />
a vapor; descoberta da eletricidade; construção de ferrovias;<br />
aplicações em bolsas de valores; especulação financeira;<br />
migração interna para as cidades; demasiada mão de obra urbana;<br />
restrito campo de emprego; surgimento de populações periféricas;<br />
surgimento da consciência de “povo” e de “proletariado”;<br />
produção agrícola sofrida por causa de catástrofes naturais.<br />
André-Jean Tudesq em “La France Romantique et<br />
bourgeoise, 1815-1848”, texto publicado em “Histoire de la<br />
France des origines <strong>à</strong> nos jours”, sob a direção de Georges Duby,<br />
da Academia Francesa, Larousse, 1995, afirma:<br />
- “Quanto <strong>à</strong> prosperidade, encontrou-se ela interrompida<br />
desde o outono de 1846 por uma grave crise econômica. Esta<br />
7
apresentou inicialmente o aspecto tradicional das dificuldades<br />
provocadas por más colheitas; já em 1845 a colheita de batatinhas<br />
(que, em peso, ultrapassava geralmente <strong>à</strong> do trigo) tinha sido<br />
medíocre; em 1846, as colheitas de cereais e forragens foram<br />
gravemente prejudicadas, primeiramente por um calor e sêca<br />
excessivos e, a seguir, no outono, por inundações que pesaram<br />
fortemente sobre a sorte dos cultivadores... O anúncio da crise<br />
do trigo despertou um antigo medo de escassez. O medo da falta<br />
de grãos ou a esperança de vendê-los mais caro, por causa da<br />
penúria, levaram numerosos proprietários a suspenderem suas<br />
vendas. (...) <strong>De</strong>ssa forma, a crise alimentou a crise e criou nas<br />
regiões rurais uma situação revolucionária, sem objetivo político.<br />
Os recursos populares foram assambarcados pelas compras<br />
alimentares e o preço do pão subiu tanto que, quase em toda<br />
parte, não se queria fixá-lo. Em contrapartida, o povo deixou de<br />
comprar vestimentas e outros produtos, e os trabalhadores da<br />
indústria, sobretudo a têxtil, estavam ameaçados de desemprego<br />
no momento em que o aumento do pão tornava mais urgente a<br />
necessidade de se buscarem recursos. (...) A avidez pelas ações<br />
das companhias de estradas de ferro, embora tardia, se alastrou<br />
pelas diversas camadas da burguesia, desviando para o lado da<br />
especulação os capitais até então utilizados de maneira mais<br />
sadia no comércio e na indústria. (...) A parada dos trabalhos<br />
nos canteiros de construção de ferrovias aumenta o número de<br />
desempregados e determina também a suspensão das encomendas<br />
na metalurgia. Assim se acumulam as catástrofes: desemprego,<br />
falências, bancarrotas são acompanhadas por um cortejo de<br />
miséria. (...) Uma parte da opinião burguesa responsabilizava<br />
as doutrinas socialistas pelas sublevações populares esparsas<br />
pelo país afora. (...) O termo “capitalista” entrou no vocabulário<br />
da polêmica. Muitos escândalos aconteceram em 1847. (...) O<br />
enfraquecimento da moralidade atinge todas as classes (...).<br />
As transformações econômicas iriam alterar a hierarquia de<br />
valores...” (in SCHLEWER, p.193-197).<br />
3) Situação social: sociedade dividida entre riqueza e<br />
8
pobreza, cadinho do comunismo; invenção de modernos meios<br />
de comunicação; adoção do sufrágio universal; corrupção<br />
administrativa; crimes passionais na alta sociedade.<br />
4) Situação cultural: expansão do racionalismo voltairiano<br />
e do pensamento iluminista; experiências de distintos tipos de<br />
socialismo; advento do marxismo: em 1841, na Universidade<br />
de Jena, Marx lançou a tese filosófica pela qual condenava a<br />
fé em <strong>De</strong>us como obstáculo <strong>à</strong> liberdade humana; pouco tempo<br />
depois, Feuerbach propagava a idéia de que <strong>De</strong>us é o produto da<br />
alienação do ser humano que se despoja das próprias qualidades<br />
para projetá-las neste ser imaginário; entre 1843 e 1845, em<br />
Paris, Marx descobre o mundo operário e sua fermentação social;<br />
poucos meses antes da Aparição em La Salette, Marx, com a<br />
colaboração de Engels, publica a obra “A ideologia alemã” pela<br />
qual dá ao ateismo teórico de Feuerbach um caráter prático;<br />
lança então, o materialismo dialético; em l848, Marx publica<br />
o “Manifesto Comunista”; nessa época surgem na Europa,<br />
Nietzsche, Freud, Alan Kardec, Auguste Compte...<br />
5) Situação moral e religiosa: ateísmo militante; anticlericalismo;<br />
galicanismo; indiferença religiosa; desintegração do ritmo de vida<br />
e perda dos valores morais e religiosos por causa do êxodo rural;<br />
desequilíbrio na vivência tradicional do tempo semanal e dominical;<br />
abandono da Igreja e da prática religiosa; “ethos” pessoal, familiar e<br />
social transformado.<br />
6) França, terra de santos e de heróis: a Igreja da França<br />
do séc. XIX gerou uma plêiade de eminentes personalidades,<br />
viveu intensa atividade missionária, viu a fundação de muitas<br />
Congregações Religiosas e o testemunho de vida de muitos<br />
santos e santas, e viu igualmente o surgimento de significativos<br />
movimentos sociais de caráter eclesial em benefício dos pobres.<br />
Essas circunstâncias históricas tiveram grande influxo sobre<br />
a mentalidade e a vida do povo de La Salette, através de Corps,<br />
cidade de referência na região. Indiretamente ao menos, esta<br />
situação fez parte da conversação da Bela Senhora com Melânia<br />
e Maximino, durante sua visita a “seu povo”, em La Salette.<br />
9
10<br />
CAPÍTULO II<br />
UM SUBMUNDO NA FRANÇA PROFUNDA<br />
CORPS, pequena cidade assentada no vale do Rio Drac,<br />
nos Alpes do <strong>De</strong>lfinado, sudeste da França, é habitada hoje, por<br />
cerca de três mil moradores. Em meados do século XIX tinha<br />
cerca de 1.300 habitantes.<br />
Por ela passa a “Estrada de Napoleão”, importante via de<br />
comunicação entre o sudeste e o restante da França. A estrada<br />
nacional, hoje asfaltada, leva esse nome porque serviu de<br />
passagem ao Imperador Napoleão ao fugir da prisão na Ilha<br />
de Elba. Dirigia-se a Paris para retomar o poder. Em Corps,<br />
encontrou hospedagem.<br />
Pela localidade de Corps transitavam muitos viajantes que<br />
iam e vinham por esses caminhos da França em direção <strong>à</strong> Itália<br />
e a outros horizontes, e vice-versa. Passageiros em diligências<br />
puxadas por cavalos transportando correio e mercadorias,<br />
cavaleiros isolados, pedestres, portadores de todo tipo de notícias<br />
e histórias, ali encontravam pousada, alimento, bebida e alguma<br />
distração. A situação moral e religiosa da cidade era lamentável.<br />
Antes de chegar a Corps o viajante passa por GRENOBLE, o<br />
grande polo urbano da região, a cerca de 70 klms de distância de Corps.<br />
<strong>De</strong>pois, por LA MURE para chegar, por entre montes esplêndidos, a<br />
GAP, cidade de médio porte, a 50 klms depois de Corps.<br />
LA SALETTE, a pequena “sala” geograficamente plantada<br />
em meio aos Alpes, 9 klms acima de Corps, encontra-se numa<br />
altitude de cerca de 1.300 metros.<br />
A minúscula população do município de ontem e de hoje<br />
vivia e vive encaixada num estreito cenário de montes e vales.<br />
Um acanhado vale ou “garganta” (“gorge”) é a única porta de<br />
entrada que dá acesso para quem vai de Corps a esse pequeno<br />
mundo de rochedos, abismos, pradarias sumárias, florestas<br />
típicas e parca terra cultivável de La Salette. Pobre, desértico e<br />
maravilhoso mundo!
Por essa “garganta” apertada descem as águas frias do riacho<br />
Sézia que brota no entremeio aos imponentes Montes Gargas e<br />
Chamoux com 2.300 metros de altitude.<br />
Nas fraldas das montanhas, há uma extensa área de<br />
pradarias. Grandes rebanhos de ovelhas ali passam o verão, na<br />
transumância pelas pastagens alpinas. A faixa de terra chamada<br />
“Sous-les-Baisses” liga as duas montanhas ao gracioso Monte<br />
Planeau, de menor altitude.<br />
Os montes emolduram o majestoso quadro da encantadora<br />
região de La Salette. O regato Sézia, depois de banhar uma das<br />
paredes do Monte Planeau, caprichoso palco desse extraordinário<br />
“teatro romano” montanhês, molha os pés da cidadezinha de La<br />
Salette e vai regar as cercanias de Corps, desembocando, por<br />
fim, no Rio Drac. Do outro lado do Rio Drac ergue-se, soberbo<br />
em sua beleza, o Monte Obiou com 3.200 metros de altitude.<br />
Hoje, uma estrada regional de asfalto faz a ligação entre<br />
Corps e La Salette, em substituição ao que era, em meados do<br />
século XIX, um caminho carroçável, apenas, de íngreme e<br />
pedregosa subida.<br />
La Salette sempre sofreu as influências, positivas e negativas,<br />
jogadas em CORPS, ponto de encontro de pessoas, culturas e<br />
informações de todo tipo e de muitos lugares,<br />
Cerca de 700 habitantes viviam em La Salette em meados<br />
do séc. XIX. O município era formado por essa parca e sofrida<br />
população, distribuída em doze pequenas aldeias, pobres e<br />
esparsas, ocultas em baixadas e encostas, isoladas nos meandros<br />
das montanhas. O povo era composto por pequenos agricultores e<br />
pastores. Seu contato com o mundo de fora era miúdo, afunilado<br />
como as águas do regato Sézia na descida para Corps. O atraso<br />
cultural e social dessa população era subhumano.<br />
No inverno entre 1845-1846 a região saletina caiu na<br />
miséria. Uma praga desconhecida atingira todos os produtos<br />
agrícolas que formavam a cesta básica desse povo: trigo, uva,<br />
nozes, batatinhas... A penúria se alastrou pelas redondezas e por<br />
toda a França.<br />
11
A situação se agravou no inverno seguinte. Em 1846, ainda,<br />
a produção de cereais foi frustrada em razão de uma primavera<br />
demasiadamente seca e de um verão muito chuvoso. O preço<br />
dos alimentos se tornou extorsivo. O povo não tinha meios para<br />
adquirir suprimentos vindos de fora. A fome se tornou grave<br />
e generalizada. A mortalidade por inanição, sobretudo entre<br />
crianças, agravou o sofrimento dos moradores da área, e suscitou<br />
sentimentos de desespero.<br />
No início de 1847, pela França afora, explodiram movimentos<br />
populares de indignação e pilhagens. A queda na produção<br />
agrícola gerou, por sua vez, uma crise industrial e o conseqüente<br />
desemprego em todo o país. A crise econômica levou <strong>à</strong> crise<br />
demográfica. O número de casamentos e de nascimentos baixou,<br />
enquanto o índice de mortalidade se elevava.<br />
A falta de alimentos se estendeu por outros países europeus,<br />
como a Alemanha e a Bélgica. A Irlanda viveu uma verdadeira<br />
calamidade. A fome obrigou grande parte do povo irlandês a<br />
emigrar para os Estados Unidos, em 1847.<br />
O indiferentismo religioso reduziu a freqüência <strong>à</strong> Igreja,<br />
em La Salette e nas redondezas, sob a influência de Corps.<br />
A mentalidade reinante na França derramava influências<br />
perniciosas sobre esse povo interiorano. A apatia religiosa, o<br />
enfraquecimento da fé, o desprezo pela religião, a blasfêmia,<br />
o trabalho em dias santificados, o desrespeito aos que ainda<br />
freqüentavam a Igreja, a falta de observância da Quaresma, o<br />
anticlericalismo agressivo sufocavam a alma dos habitantes de<br />
La Salette e da região.<br />
A 1.800 metros de altitude, entre as alterosas montanhas do<br />
Gargas, do Chamoux e do Planeau, modesto e belo, manifestouse,<br />
porém, a misericórdia do Senhor na compaixão de Maria por<br />
esse povo sofrido e fechado sobre si mesmo.<br />
O entorno montanhês é extraordinariamente ornado de flores.<br />
Flores, muitas flores multicoloridas, enfeitam a primavera. O<br />
manto branco e espesso da neve abriga o solo contra o rigoroso<br />
frio do inverno. Marmotas, raposas, corvos e cabras selvagens<br />
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habitam os recantos das montanhas. As estrelas estão ao alcance<br />
da mão. O silêncio é imenso e espesso nessa França profunda.<br />
O cenário da Aparição se oculta no fundo do pequeno vale<br />
por onde serpenteia o regato Sézia. Junto a ele, num largo aos<br />
pés da barranca, pastores da região haviam arranjado pedras<br />
para se assentarem nas horas de refeição e descanso.<br />
Do outro lado do riacho, no alto da barranca, uma curta e<br />
estreita faixa de terra forma uma “passarela” entre o Chamoux<br />
e o Gargas ao norte, e o Planeau ao sul. A “passarela” é ladeada<br />
por profundos abismos que abraçam o Monte Planeau.<br />
No sopé de uma das pedras, <strong>à</strong> beira do regato, uma “pequena<br />
fonte” intermitente jorrava água em tempos de chuva ou no<br />
final do inverno com o derretimento da neve. Secava, porém,<br />
no verão. Os pastores se dessedentavam em suas águas poucas,<br />
mas puras, frescas e boas.<br />
Mais acima da pequena fonte intermitente se encontrava<br />
junto ao riacho, uma poça conhecida como “fonte dos homens”.<br />
Nela os pastores apanhavam água para suas necessidades. Mais<br />
abaixo da fonte intermitente, outra poça no regato, a “fonte dos<br />
animais”, servia água para os rebanhos.<br />
Nesse aprazível, embora exíguo, local de encontro de pastores,<br />
Maximino e Melânia repousaram sobre a pastagem, <strong>à</strong> beira do<br />
regato, ao meio dia de 19 de setembro de 1846. O sol escaldante<br />
encontrava um contraponto no frescor do riacho. Convidava a um<br />
descanso de caminhadas estafantes pela montanha.<br />
<strong>De</strong> ponto de encontro de humanos, o local se tornaria ponto<br />
de encontro entre os humanos e o Divino, pela misteriosa visão<br />
que transformou a vida das duas pobres crianças pastoras e do<br />
povo humilde e abandonado desse perdido mundo montanhês.<br />
Por que Maria escolheu esse recanto ignoto, austero,<br />
escarpado, desértico, distante e silencioso, para se manifestar a<br />
duas crianças sem nenhuma significação social, numa atitude de<br />
materna comiseração por um povo faminto, desencaminhado,<br />
morador de baixadas e vales? O divino insondável envolve o<br />
que ali aconteceu.<br />
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14<br />
CAPÍTULO III<br />
SOBREVIVENTES DA BAIXADA HUMANA<br />
Ao longo da história, <strong>De</strong>us se vale dos pequenos para<br />
realizar grandes coisas. Eleitos do Senhor, dois insignificantes<br />
pastores, adolescentes ainda, mas, com identidade própria,<br />
sobreviventes da miséria humana reinante nos vales, galgaram,<br />
a 19 de setembro de 1846, as escarpadas trilhas das montanhas<br />
para testemunharem um grandioso evento no alto do Monte<br />
Planeau, em La Salette.<br />
Quem eram eles antes da Aparição?<br />
1 - PIERRE-MAXIMIN GIRAUD, apelidado de “MÉMIN”,<br />
era natural de Corps. Nasceu a 26 (ou 27 ?...) de agosto de 1835.<br />
Era o quarto filho de um pobre fabricante de carroças. O pai,<br />
Germain Giraud, era natural da região de Corps, bem como a<br />
mãe, Anne-Marie Templier. A mãe morreu a 11 de janeiro de<br />
1837, quando Maximino tinha um ano e meio de idade. Entre os<br />
irmãos havia uma menina, Angélica.<br />
Pouco tempo após a morte da esposa, Germain Giraud casou<br />
novamente. Maximino, porém, ia crescendo sem o devido afeto<br />
e a necessária atenção, apesar da pessoal simpatia e ternura.<br />
O pai passava o dia na oficina ou no bar. Não se preocupava<br />
com os filhos. Não praticava a religião. Guardava a seu modo,<br />
alguns resquícios de fé. A madrasta não tinha amor a Maximino.<br />
Tratava-o mal. O mal amado passaria fome se não fosse a<br />
solidária partilha de alimento que um seu meio-irmão, filho do<br />
pai com a madrasta, lhe prestava.<br />
O garoto Maximino vagueava pelas ruas de Corps, correndo<br />
atrás de diligências e de cavaleiros passantes. Perambulava sem<br />
preocupações, de cá e de lá, acompanhado por uma cabra e o<br />
cachorrinho Lulu, seus grandes amigos.<br />
A família mal estruturada não lhe ofereceu a afeição familiar<br />
de que precisava para seu equilíbrio de vida. Não ia <strong>à</strong> escola,
que não era obrigatória, nem <strong>à</strong> Igreja e ao Catecismo. Nem sabia<br />
rezar por completo o Pai Nosso e a Ave Maria, apesar de certo<br />
empenho do pai durante três ou quatro anos. Mandado <strong>à</strong> Missa,<br />
Maximino preferia evadir-se e brincar pelas ruas de Corps.<br />
Era analfabeto embora esperto, de bom coração, franco<br />
e tagarela. Generoso. Tinha um olhar expressivo e belo.<br />
Sem malícia. <strong>De</strong>scuidado. Irrequieto, era apelidado de<br />
“movimento perpétuo”. Medianamente inteligente. Fisicamente<br />
subdesenvolvido. Inventava historietas para justificar<br />
traquinagens e assim livrar-se de possíveis castigos por parte<br />
dos pais. Falava apenas o “patois”, o dialeto da região, embora,<br />
em suas correrias pela cidade, atrás dos viajantes que por ali<br />
passavam, tivesse aprendido algumas palavras de francês.<br />
Assim correu a vida de Maximino até seus onze anos de idade.<br />
No domingo anterior <strong>à</strong> Aparição, dia 13 de setembro de<br />
1846, Pierre Selme, morador de Ablandens, uma das aldeias que<br />
formam o Município de La Salette, desceu até Corps <strong>à</strong> procura<br />
do amigo, pai de Maximino, para lhe pedir que pusesse o garoto<br />
<strong>à</strong> sua disposição. <strong>De</strong>le precisava por uns dias, para substituir um<br />
pastor seu que estava adoentado.<br />
O pai de Maximino relutou em pôr o menino em serviço<br />
longe de casa. Receava que a irresponsabilidade do filho<br />
causasse incômodos ao patrão e ao próprio pai. O interessado<br />
Pierre Selme, porém, alegou que possuía um terreno próximo <strong>à</strong><br />
pradaria onde Maximino deveria pastorear o pequeno rebanho.<br />
Comprometeu-se, pois, a manter o garoto e o rebanho sob seu<br />
olhar, enquanto ele, Pierre, trabalharia na pequena lavoura nas<br />
proximidades. Diante do compromisso do amigo, Germain<br />
Giraud permitiu que Maximino trabalhasse como pastor, por<br />
uma semana, junto <strong>à</strong> família de Pierre Selme.<br />
Na segunda feira, dia 14 de setembro, Maximino subiu o<br />
Monte Planeau, com o patrão, para conhecer o local e a trilha<br />
que leva até lá. Nos dias seguintes Maximino passou a cuidar do<br />
rebanho na montanha.<br />
Na tarde da quinta feira, dia 17, por acaso encontrou pela<br />
15
primeira vez Melânia que pastoreava no alto do Monte Planeau.<br />
Não se conheciam, apesar de ambos serem naturais de Corps.<br />
Trocaram raras palavras.<br />
Na sexta feira, dia 18, encontraram-se novamente na montanha<br />
e se deram a conhecer melhor. Ao tomarem conhecimento de que<br />
eram conterrâneos, a conversa fluiu mais espontaneamente, apesar<br />
da timidez de Melânia. No fim do dia se despediram fazendo uma<br />
aposta sobre quem seria o primeiro a chegar com os respectivos<br />
e reduzidos rebanhos, <strong>à</strong>s pastagens do alto do monte, na manhã<br />
seguinte, sábado, dia 19 de setembro, dia da Aparição.<br />
2 - FRANÇOISE-MÉLANIE CALVAT, também conhecida<br />
pelo sobrenome de “Mathieu”, tinha quatro anos a mais que<br />
Maximino. Nasceu em Corps, a 7 de novembro de 1831. Seu pai,<br />
Pierre Calvat, serrava madeiras, mas, aceitava qualquer serviço<br />
para a sobrevivência da família. Um homem rude. Com a esposa<br />
Julie Barnaud teve dez filhos. Melânia era a quarta.<br />
A pobreza da família era tão grande que muitas vezes<br />
obrigava as crianças a mendigar pelas ruas de Corps. Melânia<br />
carregou esse peso em sua infância. O pai sempre em busca de<br />
trabalho. A mãe sobrecarregada de preocupações com os filhos.<br />
O clima familiar era pesado e tolhia o necessário equilíbrio<br />
afetivo das crianças.<br />
<strong>De</strong>sde cedo, aos sete ou oito anos de idade, Melânia era<br />
posta a serviço de famílias das redondezas: Sainte-Luce, Queten-Beaumont,<br />
La Salette... A pobreza da família, pobreza maior<br />
que a da família de Maximino, chegava <strong>à</strong> indigência. Durante<br />
a primavera e o verão, Melânia prestava serviços domésticos e<br />
pastoreava pequenos rebanhos pelas montanhas das cercanias.<br />
Com isso tinha comida e dormida garantidas. Durante o<br />
outono e o inverno vivia na casa dos pais onde tudo faltava.<br />
Uma experiência de verdadeira afeição familiar não lhe fora<br />
concedida.<br />
Não tinha condições de freqüentar nem a escola, nem o<br />
catecismo. Não sabia ler, nem escrever. Apesar do esforço da<br />
16
mãe, não aprendera a rezar por inteiro o Pai Nosso e a Ave<br />
Maria. <strong>De</strong> reduzida capacidade intelectual, falava somente o<br />
“patois”, embora soubesse também raras palavras de francês.<br />
A ignorância religiosa e cultural de Melânia antes de 1846 era<br />
inegável. Diversos são os testemunhos históricos a respeito.<br />
<strong>De</strong> mau humor, contrariava-se facilmente. Tímida e<br />
medrosa. Muito descuidada. Lenta e até preguiçosa. Seus muitos<br />
sofrimentos lhe impuseram a tendência de se concentrar sobre si<br />
mesma. Era levada <strong>à</strong> teimosia. Modesta, pura, mas, de poucos<br />
modos. Subdesenvolvida fisicamente. Tinha, porém, feições<br />
delicadas e normais.<br />
Em virtude de suas prolongadas ausências de Corps e da<br />
diferença de idade entre ambos, Melânia não conhecia Maximino,<br />
apesar de serem conterrâneos. Tinham, porém, uma característica<br />
em comum: a extrema pobreza. Pobreza de bens, de saber e de<br />
afeição. Eram, no entanto, inteiramente diferentes no caráter.<br />
Maximino era um garoto extrovertido, apesar da infância<br />
atribulada. Melânia, por causa da solidão vivida como pastora<br />
distante do aconchego familiar, era uma adolesente introvertida.<br />
Entre a primavera e o outono de 1846, Melânia estava em<br />
Ablandens, a serviço da família de Jean-Baptiste Pra, vizinha<br />
de Pierre Selme com quem esteve Maximino. Seu patrão<br />
descreveu-a como preguiçosa, desobediente, desleixada nas<br />
orações. Segundo ele, Melânia só participou das celebrações<br />
paroquiais duas vezes durante os seis meses em que ela trabalhou<br />
em Ablandens. Falava pouco e dificilmente dava resposta quando<br />
alguém lhe dirigia a palavra. Às vezes, por descuido, passava a<br />
noite dormindo sob as estrelas ou no estábulo, obrigando o patrão<br />
a procurá-la. Não se importava de apanhar chuva e permanecer<br />
vestida com a roupa molhada.<br />
Melânia tinha quinze anos de idade por ocasião da Aparição.<br />
No entanto, dada sua fragilidade, parecia não ter mais do que<br />
onze anos. Se bem conhecia o sofrimento antes do evento, o<br />
peso do privilégio que receberia como vidente da Salette lhe<br />
traria outras e muito ingratas vicissitudes na vida.<br />
17
18<br />
CAPÍTULO IV<br />
O EVENTO EXTRAORDINÁRIO<br />
Na manhã do sábado, 19 de setembro de 1846, Melania<br />
e Maximino subiram o Monte Planeau, conduzindo os<br />
respectivos rebanhos. O cãozinho Lulu e a cabra de Maximino o<br />
acompanhavam. Passaram a manhã pastoreando.<br />
Ao ouvir o sino da matriz tocando o “Angelus” do meio dia, no<br />
fundo do vale, o patrão de Maximino, Pierre Selme, que trabalhava<br />
no roçado nas proximidades, avisou as duas crianças que era hora de<br />
almoçar e de levar o rebanho a tomar água na “fonte dos animais”.<br />
As duas crianças subiram pela margem do regato, até a<br />
“fonte dos homens”, para se servirem de água potável. <strong>De</strong>pois,<br />
desceram margeando o regato, até os rústicos assentos de pedra,<br />
junto <strong>à</strong> “pequena fonte” que estava seca. Assentados, os dois<br />
almoçaram frugalmente um pedaço ressequido de pão e outro de<br />
queijo envelhecido.<br />
Em certo momento, alguns pastores da região vieram ao<br />
riacho para apaziguar a sede. <strong>De</strong>tiveram-se por alguns instantes<br />
a conversar com Melânia e Maximino.<br />
<strong>De</strong>pois do almoço, Maximino e Melânia sentiram sonolência<br />
e, contrariamente a seus hábitos, estenderam-se no gramado e<br />
cochilaram por algum tempo. Melânia foi a primeira a despertar.<br />
Preocupada, acordou Maximino dizendo-lhe:<br />
- “Maximino, vamos ver onde estão nossas vacas!”<br />
Atravessaram o Sézia num pulo, e subiram a barranca do<br />
regato. <strong>De</strong> lá puderam ver os animais a certa distância, pastando<br />
tranqüilamente no descampado, no outro lado do riacho. Serenados,<br />
desciam a barranca para apanhar as mochilas deixadas no local do<br />
almoço. Melânia caminhava na frente. Olhando para a “pequena<br />
fonte”, viu repentinamente um globo de intensa e pura luz, “como<br />
se o sol tivesse caído lá”, diriam mais tarde os videntes. O foco<br />
cintilante pairava sobre uma das pedras que lhes havia servido de<br />
mesa de refeição, junto <strong>à</strong> fonte intermitente.
O sol de final de verão brilhava intenso no céu esplêndido da<br />
meia-tarde desse dia 19 de setembro.<br />
A menina, ao ver o foco de luz, se deteve, assustada, e<br />
voltando-se para o companheiro lhe disse:<br />
- “Maximino, veja essa claridade!”<br />
- “Onde está?”, perguntou o garoto.<br />
- “Lá embaixo!”, respondeu Melânia.<br />
Foram tomados de grande susto. Melânia, apavorada, deixou<br />
cair o bastão de pastora e exclamou:<br />
- “Meu <strong>De</strong>us!”.<br />
Maximino lhe disse então:<br />
- “Pega teu cajado. Eu seguro o meu e vou bater naquilo, se<br />
nos fizer algum mal”.<br />
Imobilizados pelo medo, fixaram seu olhar no misterioso<br />
globo de luz.<br />
Mais tarde, Pe. Lagier, autor de um dos primeiros Relatórios<br />
sobre a Aparição, ao interrogar Melânia, perguntou-lhe:<br />
- “Por que você sentiu medo?”.<br />
A menina respondeu:<br />
- “Porque, vendo aquilo, lembrei que minha patrôa me havia<br />
ameaçado e repreendido mais vezes, dizendo-me que algum<br />
dia certamente veria o diabo ou qualquer outra coisa, porque<br />
quase nunca fazia minhas orações e zombava dos outros quando<br />
rezavam a <strong>De</strong>us, por exemplo, antes e depois das refeições”.<br />
- “Você pensou, então, que estava vendo o diabo?”.<br />
- “Não, não lembro bem o que pensei”.<br />
Entreabrindo-se o clarão, apareceu no dizer das duas<br />
crianças, uma “Senhora” assentada sobre a pedra da refeição,<br />
com os cotovelos apoiados sobre os joelhos e as mãos cobrindo o<br />
rosto banhado em lágrimas, numa atitude de profunda amargura.<br />
Uma “Senhora”, em atitude de “kenose”, de “esvaziamento<br />
de si”. “Kenose” assumida pelo Cristo ao se tornar um de nós<br />
(Fil.2, 6-11). “Esvaziamento de si” assumido por Maria em sua<br />
compaixão por “seu Povo”.<br />
Os pés da “Senhora” repousavam sobre o leito seco da<br />
19
“pequena fonte”. Suas vestimentas, longas e largas, do feitio<br />
das vestes usadas pelas donas de casa da região, induziram<br />
Maximino a comentar mais tarde:<br />
- “Pensamos que se tratava de uma mãe de Valjoufrey (uma<br />
localidade próxima a La Salette), que havia sido maltratada pelos<br />
filhos e que se refugiara na montanha para chorar as mágoas.<br />
Tive vontade de lhe dizer: “Não chore Senhora! Vou ajudá-la!”.<br />
A Senhora, afastando do rosto as mãos, se pôs de pé.<br />
Ocultou as mãos nas mangas do vestido. Cruzou os braços. <strong>De</strong>u<br />
alguns passos em direção <strong>à</strong>s crianças, dizendo-lhes com imenso<br />
carinho:<br />
- “Vinde, meus filhos, não tenhais medo! Aqui estou para<br />
vos anunciar uma grande novidade!”.<br />
As crianças não compreenderam o sentido dessas palavras<br />
ditas em francês. Tocadas, porém, pelo calor humano do chamado,<br />
expresso com voz tão materna e afetuosa, instantaneamente<br />
sentiram o medo se dissipar. A voz “era como que uma música”,<br />
diriam mais tarde. Uma transformação profunda se realizou em<br />
seu coração.<br />
Aproximaram-se apressadamente da “Senhora” desconhecida.<br />
Melânia se postou <strong>à</strong> direita e Maximino <strong>à</strong> esquerda da “Senhora”,<br />
sem saberem quem era Ela. Tão próximos que ninguém poderia<br />
passar entre eles e a “Senhora”.<br />
Invadidas de íntima alegria por serem carinhosamente<br />
chamadas de “meus filhos” por essa misteriosa mulher, certamente<br />
as duas crianças se sentiram gratificadas, compensadas de todas<br />
as frustrações e carências afetivas sofridas na infância.<br />
Se conhecessem o Evangelho, a beleza translúcida da “Senhora”<br />
lhes lembraria a cena da Transfiguração do Senhor (Mt 17, 1-8).<br />
As pobres crianças também não sabiam que a Escritura diz:<br />
- “Um sinal grandioso apareceu no céu: uma Mulher vestida<br />
de sol...” (Ap 12, 1s).<br />
O dia 19 de setembro de 1846, sábado, era véspera da festa<br />
litúrgica de Nossa Senhora das Dores. Festa celebrada no terceiro<br />
domingo de setembro, naquela época. A Igreja, em sua liturgia<br />
20
de Vésperas, cantava naquela tarde a antífona bíblica:<br />
- “Com que abundância de lágrimas o rosto da Virgem Mãe<br />
está inundado, e que tamanha dor transpassa seu coração...”.<br />
A misteriosa “Senhora” chorava sem cessar. Inclinando seu<br />
rosto, suas lágrimas caíam e se desfaziam na luz sem tocar o<br />
chão. Sobressaia em muito <strong>à</strong> estatura das crianças.<br />
Melânia, apesar da claridade intensa, conseguia contemplar<br />
o rosto da “Senhora” e a abundância de suas lágrimas.<br />
Maximino, de estatura menor, mais facilmente contemplava o<br />
Cristo Crucificado-Ressuscitado que se movia misteriosamente<br />
sobre o coração da “Senhora”.<br />
-“Ela chorou durante todo o tempo em que nos falou. Ah!<br />
Bem vi suas lágrimas caírem”, disse Melânia mais tarde (in<br />
JAOUEN, p.12).<br />
Como que suspensa a uns vinte centímetros do solo,<br />
a “Senhora” inspirava um ar de bondade e dignidade, de<br />
simplicidade e grandeza, de materna ternura e real majestade.<br />
Seu fulgor eclipsava o brilho do sol e impedia a formação de<br />
sombras. A luz que emanava de seu rosto era tal que Maximino<br />
mal pôde entrevê-lo. Melânia contemplou mais distintamente a<br />
extraordinária beleza dessa face banhada em lágrimas e marcada<br />
pela tristeza.<br />
A “Senhora” vestia um amplo avental. Nobre “Senhora”!<br />
Humilde “Serva”! Um manto cobria seus ombros e as pontas<br />
se entrecruzavam sobre o peito para se unirem nas costas. Uma<br />
touca brilhante, enfeitada por rosas e encimada por um diadema,<br />
reluzia sobre sua cabeça. Rosas e pérolas também ornavam a<br />
ponta do calçado. Ombros e cintura estavam envoltos com<br />
outras coroas de rosas. Uma forte corrente descia pelos ombros,<br />
paralelamente <strong>à</strong> coroa de rosas. Vestes longas e largas, brancas<br />
e cintilantes, encobriam a figura da “Senhora”. Calçava sapatos<br />
brancos enfeitados de pérolas, de rosas e com uma fivela<br />
dourada. Do pescoço lhe pendia outra corrente com uma cruz de<br />
cerca de vinte e cinco centímetros. À direita da cruz havia uma<br />
torquez entreaberta, e <strong>à</strong> esquerda, um martelo, ambos brilhantes<br />
21
como ouro, e postos a uma pequena distância da cruz. Nela o<br />
Cristo Crucificado-Ressuscitado, Vivo na Vida da Ressurreição,<br />
se movia e era a fonte de toda a Luz que envolvia a Aparição.<br />
Nenhuma sombra havia. O Cristo vivo, segundo a observação<br />
de Maximino, mas, silencioso, “Luz do mundo”, dava <strong>à</strong><br />
“mariofania” da Salette a dimensão de uma “cristofania”.<br />
O cãozinho Lulu, sem se perturbar com o que acontecia,<br />
estava tranqüilamente deitado aos pés de Maximino.<br />
Os dois videntes sentiam-se intensamente felizes durante a<br />
conversação com a “Senhora”. Maximino, sempre irrequieto,<br />
brincava com o cajado de pastor durante a Aparição, girando<br />
o chapéu sobre ele e remexendo com ele os pedriscos do<br />
solo. Nenhum, porém, tocou os pés da “Senhora”, conforme<br />
testemunhou depois.<br />
A “Senhora”, de pé, face <strong>à</strong>s crianças, começou a falar em<br />
francês, língua desconhecida dos dois pastores. Falava, com<br />
autoridade, como “Mãe”, sem revelar o próprio nome. Referiase<br />
a seu “Povo” sem designar de quem se tratava, e a seu “Filho”<br />
sem pronunciar o seu nome.<br />
<strong>De</strong> seus lábios Maximino e Melânia ouviram a seguinte<br />
Mensagem:<br />
- “Se meu povo não quer se submeter, sou forçada a deixar<br />
cair o braço de meu Filho. É tão forte e tão pesado que não posso<br />
mais sustê-lo. Há quanto tempo sofro por vós! Se quiser que<br />
meu Filho não vos abandone, estou incumbida de suplicá-lo sem<br />
cessar. E, quanto a vós, nem fazeis caso! Por mais que rezeis,<br />
por mais que façais, jamais podereis compensar a aflição que<br />
sofro por vós. <strong>De</strong>i-vos seis dias para trabalhar. Reservei-me o<br />
sétimo e não querem me concedê-lo. É isso que torna tão pesado<br />
o braço de meu Filho! E também os carroceiros não sabem jurar<br />
sem abusar do nome de meu Filho. São estas as duas coisas<br />
que tornam tão pesado o braço de meu Filho. Se a colheita se<br />
estraga é só por vossa causa. Eu vo-lo mostrei no ano passado<br />
com as batatinhas. Vós nem fizestes caso! Ao contrário, quando<br />
encontráveis batatinhas estragadas, juráveis abusando do nome<br />
22
de meu Filho. Elas continuarão assim e neste ano, para o Natal,<br />
não haverá mais”.<br />
(Nesse ponto, Melânia se voltou para Maximino, fazendo-lhe<br />
sinal de que não entendia o que a “Senhora” dizia. A “Senhora”,<br />
então, perguntou aos dois:)<br />
- “Não compreendeis meus filhos? Vou dizê-lo de outro modo”.<br />
(Repetiu, então, a seguir, no dialeto regional, o que acabava<br />
de dizer em francês. <strong>De</strong>pois prosseguiu em sua Mensagem,<br />
sempre no mesmo dialeto).<br />
- “Se tiverdes trigo, não se deve semeá-lo. Tudo que<br />
semeardes será devorado pelos insetos, e o que produzir se<br />
transformará em pó ao ser malhado. Virá uma grande fome.<br />
Antes que a fome chegue, as crianças menores de sete anos serão<br />
acometidas de tremor e morrerão nos braços das pessoas que<br />
as carregarem. Os outros farão penitência pela fome. As nozes<br />
caruncharão. As uvas apodrecerão”.<br />
(Nesse ponto, a “Senhora” interrompeu a Mensagem e<br />
disse, em segredo, uma palavra pessoal em francês, a Maximino<br />
e depois a Melânia. Nenhum dos dois ouviu o que a “Senhora”<br />
disse ao outro em particular. Ambos guardaram fielmente essa<br />
palavra pessoal em segredo por toda a vida, apesar dos graves<br />
percalços que suportaram por sua causa. <strong>De</strong>pois Ela continuou<br />
falando <strong>à</strong>s duas crianças):<br />
- “Se se converterem, as pedras e rochedos se transformarão<br />
em montões de trigo, e as batatinhas serão plantadas nos roçados.<br />
Fazeis bem vossa oração, meus filhos?”<br />
- “Não muito, Senhora!”<br />
- “Ah! Meus filhos, é preciso fazê-la bem, <strong>à</strong> noite e de manhã,<br />
dizendo ao menos um Pai Nosso e uma Ave Maria quando não<br />
puderdes fazer melhor, e, quando puderdes fazer melhor, dizei<br />
mais. Durante o verão, só algumas mulheres mais idosas vão <strong>à</strong><br />
Missa. Os outros trabalham no domingo durante o verão. Durante<br />
o inverno, quando não sabem o que fazer, só vão <strong>à</strong> Missa para<br />
zombar da religião. Durante a Quaresma vão ao açougue como<br />
cães. – Nunca vistes trigo estragado, meus filhos?”<br />
23
- “Não, Senhora!”<br />
- “Mas, tu, meu filho, tu deves tê-lo visto uma vez, em Coin,<br />
com teu pai. O dono da roça disse a teu pai que fosse ver seu<br />
trigo estragado. E então, fostes até lá, apanhastes duas ou três<br />
espigas entre as mãos e amarrotando-as, tudo caiu em pó. Ao<br />
voltardes, quando estáveis a mais ou menos meia hora longe de<br />
Corps, teu pai te deu um pedaço de pão dizendo-te: - “Toma,<br />
meu filho, come pão neste ano ainda, pois não sei quem dele<br />
comerá no ano próximo se o trigo continuar assim!”<br />
- “Ah! É verdade, Senhora, agora estou lembrado. Há pouco<br />
não lembrava isso”.<br />
(A “Senhora” encerrou a conversação, acrescentando em<br />
francês):<br />
- “Pois bem, meus filhos, transmitireis isso a todo o meu<br />
povo!”<br />
(A seguir, deu alguns passos e atravessou o regato Sézia.<br />
Sem se voltar, insistiu dizendo:)<br />
- “Vamos, meus filhos, transmiti isso a todo o meu povo!”<br />
Foram suas últimas palavras.<br />
Maximino, em sua candidez, mais tarde afirmou:<br />
- “Comíamos suas palavras e depois ficávamos muito<br />
contentes”.<br />
O profeta Ezequiel viveu semelhante experiência:<br />
- “Então (o Senhor) disse-me: ‘Filho do homem, come o<br />
que tens diante de ti, come este rolo e vai falar com a casa de<br />
Israel’. Abri a boca e ele me deu o rolo para comer. Em seguida,<br />
disse-me: ‘Filho do homem, ingere este rolo que te estou dando<br />
e sacia-te com ele’. Eu o comi. Na boca parecia-me doce como<br />
o mel” (Ez 3, 1-3).<br />
A “Senhora” se pôs a galgar lentamente a barranca, numa<br />
trilha tortuosa, o que permitiu que, mais tarde, peregrinos nela<br />
vissem o traçado do caminho para o Calvário. <strong>De</strong>sde então, a Via<br />
Sacra faz parte da peregrinação <strong>à</strong> Salette.<br />
A “Senhora” se distanciava por uma dezena de passos quando<br />
as crianças se puseram a andar atrás <strong>De</strong>la. Majestosamente Ela<br />
24
avançava de forma ereta. O único movimento que fazia era com<br />
os pés, de modo tão leve, porém, que parecia deslizar por sobre<br />
a relva, sem dobrá-la. No alto da barranca, elevou-se <strong>à</strong> altura<br />
de um metro e meio mais ou menos. Volveu seu olhar para os<br />
céus e depois para a terra, na direção do sudoeste. E desapareceu<br />
suavemente.<br />
- “<strong>De</strong>rretia-se na luz como manteiga ao fogo”, segundo a<br />
cândida expressão de Maximino.<br />
Primeiro a cabeça, depois os braços e os pés. Nos céus,<br />
depois, apenas um grande clarão. Por fim, nada mais!<br />
Melânia exclamou então:<br />
- “Talvez seja uma grande santa...”.<br />
Melânia, com essa palavra, demonstrou que não sabia<br />
quem era aquela “Senhora”. Não possuía, portanto, os dons<br />
sobrenaturais concedidos por <strong>De</strong>us desde a infância e alegados<br />
mais tarde por ela, em seus escritos (cf. CARLIER, p. 24-25,<br />
Nota 2).<br />
Maximino que, em sua ingenuidade, também desconhecia a<br />
identidade daquela “Senhora”, acrescentou:<br />
- “Se soubéssemos que era uma grande santa, teríamos<br />
pedido a Ela que nos levasse consigo!”<br />
Ao ver o calçado da “Senhora” ornado por rosas, o menino<br />
estendeu o braço para apanhar uma delas. Nada conseguiu. Tudo<br />
se desvanecera. Mais tarde, saudoso, Maximino comentou:<br />
- “Ela partiu e me deixou com todos os meus defeitos...”<br />
A grandiosa experiência mística dos dois pobres pastores<br />
havia chegado ao fim, sem saberem quem era a misteriosa<br />
“Senhora”.<br />
O extraordinário evento teria durado cerca de vinte minutos.<br />
Eram mais ou menos três horas da tarde do sábado, 19 de<br />
setembro de 1846.<br />
Outros pastores perambulavam pela região, mas de nada se<br />
aperceberam.<br />
A seguir, Melânia e Maximino buscaram as mochilas junto<br />
<strong>à</strong> fonte intermitente. Eram cerca de quatro horas da tarde. Os<br />
25
dois trocavam impressões sobre o que haviam visto e ouvido,<br />
enquanto retomavam o cuidado com os rebanhos, como se nada<br />
tivesse acontecido.<br />
Maximino comentava o incomparável esplendor que brotava da<br />
Cruz suspensa sobre o coração da “Senhora”. Lembrando que, em<br />
determinado momento da conversação, a Senhora falou a Melânia<br />
sem que Maximino ouvisse o que Ela dizia, perguntou a Melânia:<br />
- “O que é que Ela te disse quando nada dizia?”<br />
A menina respondeu:<br />
- “Ela me disse algo, mas não quero falar disso. Ela me<br />
proibiu de dizê-lo.”<br />
- “Ah! Eu estou contente, Melânia. Ela me confiou também<br />
uma coisa, mas nem eu quero te dizê-la!”, retrucou o menino (in<br />
CARLIER, p. 26).<br />
Ambos compreenderam que haviam sido agraciados com<br />
uma palavra pessoal da parte da “Senhora”.<br />
Nem a “Senhora” disse o próprio nome, nem as crianças lhe<br />
perguntaram como se chamava. Dada a beleza e majestade da<br />
“Senhora”, elas, em sua inocência, simplesmente lhe deram o<br />
nome admirável de a “BELA SENHORA”.<br />
A incomparável visão foi descrita mais tarde, por Maximino,<br />
com as seguintes palavras:<br />
- “Quando preciso falar da Bela Senhora que me apareceu<br />
sobre a Santa Montanha, experimento o embaraço que deve<br />
ter experimentado São Paulo ao voltar do terceiro Céu. Não, o<br />
olho humano jamais viu o que me foi dado ver... Ninguém se<br />
admire, pois, se aquilo a que chamamos de touca, coroa, manto,<br />
corrente, rosas, avental, veste, saia, fivela e calçado, só tinha a<br />
forma disso tudo. No lindo traje, nada havia de terreno. Somente<br />
os raios de diferentes coloridos se entrecruzavam, produzindo<br />
um magnífico conjunto que, ao descrevê-lo, empobrecemos e<br />
materializamos... Era uma luz, mas, uma luz muito diferente de<br />
qualquer outra” (in “Ma profession de foi sur l´Apparition de<br />
Notre-Dame de La Salette”).<br />
A descrição da Aparição e a narrativa da Mensagem da Bela<br />
26
Senhora foram repetidas, com total fidelidade e sem contradições,<br />
por Melânia e Maximino, juntos ou separadamente, milhares de<br />
vezes, frente a inumeráveis peregrinos. Sempre se diziam incapazes<br />
de bem traduzir em palavras, a beleza infinita da celeste visão.<br />
Pierre Selme já havia partido de seu roçado, de volta para<br />
casa. Melânia e Maximino, no final do dia, desceram a montanha<br />
para junto dos respectivos patrões, em Ablandens.<br />
O dia fora repleto de maravilhas realizadas pelo Senhor.<br />
<strong>De</strong>scera Ele novamente, não mais sobre o Monte Sinai para falar<br />
a seu povo por meio de Moisés, mas, sobre o Monte Planeau para<br />
relembrar sua Aliança com seus filhos, através da Bela Senhora.<br />
O Senhor vira a situação de seu povo esmagado, ouvira seus<br />
gemidos, e desceu para libertá-lo. Veio na pessoa da Mãe de Jesus,<br />
numa atitude de imensa compaixão face <strong>à</strong> realidade humana dos<br />
camponeses de La Salette. Maria, Mãe do Senhor, a Bela Senhora,<br />
Mãe da Reconciliação, se apresentou a esse povo atribulado e<br />
pecador, convocando-o a uma vida nova pela conversão.<br />
Num evento realista, num cenário da França mais profunda,<br />
a Bela Senhora aparece vestida ao modo das mães de família<br />
da região, falando a língua do povo, comentando os problemas<br />
vividos pelos camponeses, sinalizando, pelo episódio de Coin,<br />
sua viva presença no cotidiano do povo.<br />
<strong>De</strong>us se insere na história humana para resgatá-la. O<br />
Cristo está no meio dos seus. Maria, a Senhora da Compaixão<br />
Reconciliadora, se manifesta a seus filhos sofridos.<br />
O evento da Salette é manifestação da concreta e misteriosa<br />
inserção do Divino na vida dos humanos. Por entre os humildes<br />
passa o Caminho que é Jesus, o Senhor.<br />
27
28<br />
CAPÍTULO V<br />
ECOS DO EVENTO<br />
O evento produziu repercussões imediatas, fortes,<br />
surpreendentemente comovedoras por entre as motanhas de La<br />
Salette. Com grande rapidez, como a torrente do Sézia, desceram<br />
aos vales e se difundiram amplamente pelas planícies. O povo<br />
de toda a região foi tomado de surpresa.<br />
1. LES ABLANDENS: A SURPRESA DA COMPAIXÃO<br />
DE DEUS<br />
Pierre Selme, patrão de Maximino, ao se deparar com<br />
o menino que, no entardecer daquele extraordinário dia 19 de<br />
setembro, retornava da montanha para Ablandens, perguntoulhe<br />
porque não fora procurá-lo na lavoura durante o dia, como<br />
tinham combinado.<br />
O menino respondeu que uma Bela Senhora havia se detido<br />
com ele e Melânia por algum tempo, na montanha. E narrou o<br />
que vira e ouvira. O patrão ordenou, então, a Maximino que fosse<br />
<strong>à</strong> procura de Melânia para que ela, em sua presença, confirmasse<br />
ou não a história narrada pelo menino.<br />
Chegando <strong>à</strong> casa do vizinho Jéan-Baptiste Pra, patrão de<br />
Melânia, Maximino perguntou <strong>à</strong> mãe de Pra:<br />
- “Mãe Caron, a senhora não viu uma Bela Senhora em fogo<br />
passando pelos ares, lá acima do vale? Ela conversou muito<br />
conosco, Melânia e eu, hoje de tarde, no alto da montanha”.<br />
A vovó se mostrou reticente.<br />
Maximino insistiu:<br />
- “Se a senhora não quer acreditar em mim, chame a Melânia!”<br />
O assunto excitou a curiosidade da família Pra que<br />
rapidamente se congregou. Maximino fez, então, pela segunda<br />
vez, a narrativa da maravilhosa Aparição.<br />
Melânia nada falara ainda porque estava no estábulo,
cuidando das vacas. Procurada pela senhora Pra, retraída, se<br />
recusou a falar:<br />
- “Vi o que Maximino viu. E uma vez que ele já falou, vocês<br />
sabem o que houve!” (in CARLIER, p.29).<br />
Sob insistência, porém, entrou em casa e narrou<br />
absolutamente a mesma história contada pelo menino. Foi a<br />
primeira narrativa do acontecido feita por Melânia.<br />
A partir de então, ambos repetiam sem hesitações a Mensagem<br />
da Bela Senhora, tanto no “patois” quanto no francês. Ao fazêlo,<br />
as crianças pareciam transformadas, causando admiração aos<br />
ouvintes que bem conheciam a ignorância e simplicidade dos<br />
dois pequenos pastores.<br />
Não estava ali um dos indícios da veracidade do fato?<br />
Como poderiam as duas crianças incultas, que mal se haviam<br />
conhecido na véspera, inventar semelhante história? Não teriam<br />
tido nem engenho nem tempo suficiente para tramar tamanha<br />
fantasia. Sua ignorância religiosa era tão crassa que não tinham<br />
a mínima condição de inventar essa história tão impregnada de<br />
temas teológicos e bíblicos.<br />
A vovó Caron ouviu atentamente a narrativa, e comovida,<br />
foi a primeira a assinalar a identidade da Bela Senhora:<br />
- “Essa Bela Senhora é certamente a Santa Virgem!” (in<br />
CARLIER, p. 29).<br />
Refletindo nas palavras repetidas pelas duas crianças:<br />
- “Se meu povo não quer se submeter, sou forçada a deixar<br />
cair o braço de meu Filho”, acrescentou:<br />
- “No céu, só Ela tem um Filho que governa o mundo!...” (in<br />
CARLIER, p. 29).<br />
<strong>Volta</strong>ndo-se, então, para seu filho mais moço, Tiago, lhe<br />
disse em tom de repreensão:<br />
- “Você ouviu o que a Mãe de <strong>De</strong>us disse a esta menina?<br />
<strong>De</strong>pois disso, você ainda vai trabalhar no domingo?...”.<br />
Tiago, desculpando-se, respondeu:<br />
- “Pois sim! Vou acreditar que essa menina viu Maria<br />
Santíssima, ela que nunca reza?...” (in CARLIER, p. 29).<br />
29
Melânia, pensando nessa observação da vovó Caron e na<br />
recomendação da Bela Senhora a respeito da oração, se deteve,<br />
naquela noite, rezando por algum tempo antes de deitar, a ponto<br />
de sua patroa lhe dizer:<br />
- “Você já rezou o suficiente nessa noite, para compensar os<br />
outros dias”.<br />
Era a noite do sábado, 19 de setembro de 1846.<br />
Todos os moradores da pequena e rústica aldeia de<br />
Ablandens tomaram conhecimento do ocorrido. Um aldeão,<br />
funcionário da Prefeitura de La Salette, se apressou em levar o<br />
caso ao conhecimento do Prefeito.<br />
No dia seguinte, domingo, as duas crianças foram levadas<br />
<strong>à</strong> Igreja Paroquial, em La Salette, para relatarem ao Pároco o<br />
ocorrido no alto do Monte Planeau.<br />
30<br />
2 - LA SALETTE E CORPS NA DINÂMICA DA<br />
RECONCILIAÇÃO<br />
Pároco de La Salette, Pe. Jacques Perrin era um venerando<br />
ancião de sessenta anos de idade. Nascera em Jallieu, perto<br />
de La Tour du Pin, em 1782. Simples, bondoso, homem de<br />
oração. <strong>De</strong> saúde precária, não suportava mais o clima severo<br />
das montanhas. Tinha problemas de visão. Não estava mais em<br />
condições de servir bem a Paróquia, tanto que o Prefeito de La<br />
Salette, o Sr. Peytard, havia solicitado ao Bispo de Grenoble<br />
a substituição do Padre. A Casa Paroquial, por sua vez, estava<br />
deteriorada, num estado lamentável.<br />
Alguns dias antes da Aparição, o Pe. Jacques recebera a<br />
nomeação para outra comunidade. <strong>De</strong>pois da Aparição, a 9 de<br />
outubro de 1846 deixou a Paróquia de La Salette para assumir a<br />
de Saint-Sixte, em Saint-Geoire. Era muito estimado por Dom<br />
Philibert de Bruillard, Bispo de Grenoble. Tinha grande amor<br />
a Nossa Senhora da Salette cuja Aparição acontecera em sua<br />
Paróquia, no final de seu ministério paroquial. Venerado como<br />
santo, ele morreu na manhã de 20 de janeiro de 1848, na sacristia,
em seu genuflexório, durante a ação de graças após a Missa.<br />
No domingo, 20 de setembro, pela manhã, Melânia e<br />
Maximino, acompanhados de Pedro Selme, desceram de<br />
Ablandens até a Igreja Paroquial de La Salette. No caminho<br />
encontraram um guarda municipal que lhes perguntou para<br />
onde iam naquela hora. Conhecida a história, o guarda logo foi<br />
transmiti-la ao Prefeito que a qualificou de balela.<br />
Chegando <strong>à</strong> Casa Paroquial, as duas crianças quiseram falar<br />
com o Pe. Jacques. Naquele momento, o Pároco estava preparando o<br />
sermão para a Missa dominical. Insistindo junto <strong>à</strong> cozinheira da Casa<br />
Paroquial, as duas crianças conseguiram que ela chamasse o Padre.<br />
Ao tomar conhecimento da história, o Pároco, em lágrimas,<br />
exclamou:<br />
- “Ah! Meus filhos, vocês são felizes, vocês viram a Santa<br />
Virgem!” (in CARLIER, p.31).<br />
E anotou por escrito os principais elementos da história.<br />
Durante a Missa, comovido, comentou o acontecimento,<br />
deixando de lado o que havia preparado para o sermão. Levado<br />
pelo simples sentimento pessoal e sem ter elementos para julgar<br />
o ocorrido na véspera, fez uma declaração prematura a respeito<br />
do evento, como se fosse um fato já confirmado pela autoridade<br />
eclesiástica.<br />
Maximino se deteve na Paróquia por pouco tempo. Voltou<br />
apressadamente a Ablandens de onde, após o café da manhã,<br />
Pedro Selme o levou a Corps para confiá-lo ao pai Giraud.<br />
Melânia, porém, numa atitude de reserva, se deteve no fundo<br />
da Igreja durante a Missa. <strong>De</strong>pois voltou a Ablandens.<br />
Finda a Missa, o Conselho Municipal tinha uma reunião a<br />
fazer na Prefeitura. Havia assuntos do interesse do Município de La<br />
Salette a serem tratados. Ciente do acontecido na véspera, no alto<br />
do Monte Planeau, o Prefeito M. Peytard pôs em discussão o caso.<br />
Como os Conselheiros não haviam entendido o sermão do<br />
Pároco, Jean Moussier, morador de Ablandens e membro do<br />
Conselho Municipal, repetiu a narrativa feita pelos dois pastores<br />
na noite anterior. Ninguém acreditou.<br />
31
À tarde do dia 20 de setembro, o Prefeito, preocupado<br />
e com vinte francos no bolso, dirigiu-se a Ablandens, a cerca<br />
de um quilômetro de distância da Prefeitura, para interrogar<br />
as crianças. Só encontrou Melânia. Maximino já havia partido<br />
durante a manhã, para a casa do pai, em Corps. Pediu, então, a<br />
Melânia que lhe contasse a história, sem interrompê-la.<br />
Peytard admirava a simplicidade da menina, sua firmeza<br />
e entusiasmo ao narrar o acontecido, ela que era tão tímida e<br />
reservada. Fez-lhe algumas perguntas para forçá-la a cair em<br />
contradição. Ameaçou-a de prisão. Prometeu dar-lhe a soma de<br />
vinte francos se ela deixasse de falar desse assunto.<br />
Melânia, firme em sua atitude apesar da imensa pobreza<br />
da família, respondeu-lhe que nem mesmo uma casa cheia de<br />
dinheiro a demoveria de sua certeza. Mostrava-se inflexível. Só<br />
tinha uma resposta a dar:<br />
- “Foi-me dito que contasse, e eu contarei!”<br />
Peytard, homem de formação superior, judicioso, perspicaz,<br />
foi tomado pela surpresa. Inclinou-se a admitir a veracidade do<br />
acontecido.<br />
<strong>De</strong>pois de três horas de interrogatório, pediu a Jéan-Baptiste<br />
Pra, o patrão de Melânia, que não permitisse <strong>à</strong> pastora descer<br />
a Corps e se encontrar com Maximino, antes que ele mesmo,<br />
Prefeito, interrogasse o menino.<br />
O próprio patrão de Melânia, ainda incrédulo quanto ao fato,<br />
ficou surpreendido com a firmeza da menina, de suas respostas<br />
claras, fortes e convincentes. Vendo, porém, a atitude do Prefeito,<br />
começou a acreditar no que Melânia afirmava.<br />
Logo após a partida do Prefeito, Jéan-Baptiste Batista Pra<br />
procurou o ex-patrão de Maximino, Pierre Selme e o Conselheiro<br />
Municipal, Jean Moussier. Os três se puseram de acordo para,<br />
naquela noite de 20 de setembro, em Ablandens, ouvir o relato<br />
de Melânia.<br />
A entrevista com a pastora durou cerca de sete horas. Sua<br />
narrativa foi anotada palavra por palavra e assinada com o título de<br />
“Lettre dictée par la Sainte Vierge <strong>à</strong> deux enfants sur la Montagne de<br />
32
La Salette-Fallavaux” (in CARLIER, p. 34). É o primeiro e valioso<br />
documento escrito sobre a Aparição, datado de 20 de setembro de<br />
1846, dia seguinte ao evento vivido pelos dois pastores no alto do<br />
Monte Planeau. É conhecido como “Relatório Pra”.<br />
Na segunda feira, dia 21, algumas pessoas de Corps subiram<br />
a montanha e constataram com imensa surpresa, que a pequena<br />
fonte intermitente, mas seca no dia 19, vertia água serenamente.<br />
<strong>De</strong>sde então nunca mais cessou de jorrar água pura, em torrente<br />
de graças, tornada permanente.<br />
Alguns dias depois, chegou o novo Pároco de La Salette, Pe.<br />
Louis-Joseph Perrin. Era homem de bom senso, de muita piedade<br />
e zelo pastoral. Havia sido Pároco em Monestier d´Ambel, na<br />
região de Corps, onde o seu irmão Pe. Jacques-Michel Perrin,<br />
capelão do Hospital Geral de Grenoble, o auxiliou por algum<br />
tempo. Apesar do mesmo sobrenome, não tinham parentesco<br />
algum com o Pároco anterior de La Salette.<br />
Pe. Louis-Joseph era natural de La Murette. Nasceu em<br />
1812. Fez seus estudos no Seminário Maior em Grenoble. Foi<br />
ordenado sacerdote aos 29 anos de idade. Tinha 34 anos quando<br />
assumiu a Paróquia de La Salette, a 28 de setembro de 1846,<br />
poucos dias após a Aparição. Já tinha conhecimento do evento,<br />
mas, queria certificar-se pessoalmente a seu respeito.<br />
Sua impressão ao chegar <strong>à</strong> Casa Paroquial foi péssima.<br />
Suportou com paciência a degradação e a pobreza geral da<br />
residência. Passou doze dias com seu antecessor, Pe. Jacques,<br />
trocando idéias sobre a Aparição.<br />
Diariamente muitas pessoas, solitárias ou em pequenos<br />
grupos, já subiam a montanha do evento extraordinário.<br />
Pe. Louis-Joseph, no entretempo, buscava informações<br />
junto a pessoas do local.<br />
<strong>De</strong>z dias após sua instalação na Paróquia, passando por<br />
Ablandens, tomou Melânia consigo e visitou a montanha da<br />
Aparição. Interrogava a menina e anotava todas as suas respostas.<br />
Três outros Padres e mais cerca de trinta pessoas se juntaram a<br />
eles, nessa visita.<br />
33
<strong>De</strong> volta da montanha, o Pe. Louis-Joseph interrogou Pedro<br />
Selme e Batista Pra a respeito das duas crianças. Aos poucos<br />
ele passou a aceitar o fato. Superou preconceitos diante da<br />
clareza dos acontecimentos, deixando-se conquistar pela Bela<br />
Senhora. À luz da Aparição, começou a trabalhar intensamente<br />
na conversão dos paroquianos de sua rebelde comunidade.<br />
A 22 de outubro de 1846, Maximino, com a ajuda de dois<br />
amigos, carregou sobre os ombros, montanha acima, a cruz<br />
instalada no local onde a Bela Senhora subiu aos céus.<br />
A 24 de outubro o Padre enviou carta a Dom Philibert<br />
dizendo-lhe que a Aparição se tornava cada vez mais aceita<br />
e que o número de peregrinos era grande e diário. Observou<br />
também que a prática religiosa crescia cada vez mais entre seus<br />
paroquianos. Concluiu o texto afirmando:<br />
- “Não encontro nada em contrário, e sim, tudo a favor da<br />
realidade”.<br />
A 17 de novembro escreveu igualmente uma carta<br />
circunstanciada ao Pe. Rousselot. Outros escritos foram por ele<br />
enviados <strong>à</strong> Cúria Diocesana.<br />
Os peregrinos provenientes de La Salette, de Corps<br />
e arredores, bem como de regiões mais distantes, subiam<br />
numerosos <strong>à</strong> montanha da Salette desde a primeira semana após<br />
a Aparição até dezembro de 1846, início do inverno.<br />
Corps teve o mérito de iniciar as peregrinações coletivas,<br />
organizadas. Em meados de novembro de 1846 o povo<br />
demonstrava sinais de conversão, encontrando o caminho de<br />
volta <strong>à</strong> Igreja. Surgiu a idéia de se fazer uma procissão para subir<br />
a montanha, já chamada de “a Montanha de Nossa Senhora, de<br />
nossa Boa Mãe”. A idéia se transformou em movimento popular<br />
espontâneo, sem a participação do Clero, sem prévia autorização<br />
episcopal.<br />
A chamada “Confraria dos Penitentes de Corps”, um grupo<br />
devocional da Paróquia, tomou a iniciativa de fazer a primeira<br />
procissão montanha acima, a 17 de novembro de 1846. Reuniu<br />
cerca de seiscentas pessoas. O Pároco, Pe. Mélin, não participou<br />
34
em virtude da proibição expressa do Bispo de Grenoble. Dom<br />
Philibert havia pedido ao Clero que guardasse toda reserva<br />
até que o evento fosse devidamente analisado pela autoridade<br />
eclesiástica competente.<br />
A ausência do Pároco, porém, foi suprida pela devoção do<br />
povo peregrino.<br />
<strong>De</strong>pois de algumas horas de penosa caminhada, os peregrinos<br />
rezaram e cantaram no alto do monte da Aparição. Na volta, ao<br />
chegarem a Corps, os “Penitentes...” não se dispersaram, mas<br />
percorreram as ruas da cidade sem levar em conta os comentários<br />
maldosos do público, de forma que até velhos impenitentes se<br />
juntavam <strong>à</strong> multidão em sinal de conversão.<br />
Milagres começaram a acontecer.<br />
A 28 de novembro uma segunda peregrinação foi realizada<br />
em ação de graça por uma cura milagrosa acontecida em Corps.<br />
Maximino e Melânia encabeçavam a procissão com cerca de mil<br />
e quinhentas pessoas. Algumas Religiosas e todo o grupamento<br />
policial de Corps se incorporaram <strong>à</strong> procissão. Moradores das<br />
vilas dos arredores aderiram ao ato. Apesar da neve que cobria<br />
a Montanha, ninguém se deixava abater. A multidão cantava e<br />
rezava o terço durante as quatro horas estafantes de caminhada.<br />
No meio do povo reunido em prece no local da Aparição,<br />
uma senhora hidrópica, levada nos braços pelo esposo e filho<br />
montanha acima, rezava pedindo a graça da saúde. Junto <strong>à</strong> fonte<br />
milagrosa, repentinamente se sentiu curada. Com grata alegria<br />
depositou, como ex-voto, nos braços do cruzeiro plantado por<br />
Maximino no local da assunção da Bela Senhora, a cruz de ouro<br />
que trazia consigo.<br />
<strong>De</strong> volta a Corps, a multidão percorreu mais uma vez as ruas<br />
da cidade até chegar <strong>à</strong> Igreja Matriz.<br />
Os dois videntes, internos do Colégio das Irmãs da Providência,<br />
em Corps, acompanhavam freqüentemente os peregrinos até o<br />
lugar da Aparição, repetindo-lhes a narrativa do evento.<br />
Seguindo o exemplo de Maximino, Melânia também quis<br />
plantar uma cruz no alto do monte. A cruz, obtida a muito custo<br />
35
por causa da pobreza do pai, foi apresentada ao Pároco para ser<br />
abençoada. Foi-lhe dada uma bênção simples para evitar que o<br />
gesto significasse o reconhecimento da verdade do evento da<br />
Salette.<br />
A 8 de dezembro de 1846, os “Penitentes de Corps” fizeram<br />
sua terceira e última peregrinação no ano. Melânia pôde, então,<br />
instalar sua cruz no ponto onde a Bela Senhora conversou com<br />
os videntes.<br />
A Mensagem da Bela Senhora era incessantemente<br />
proclamada pelos dois videntes e confirmada pelos milagres e<br />
conversões que se multiplicavam.<br />
No entanto, se a misericórdia de <strong>De</strong>us, sinalizada por curas<br />
e conversões, se manifestava no meio do povo, certos males<br />
continuavam recaindo sobre a vida da população. Calamidades<br />
sofridas antes da Aparição prosseguiam depois dela. A palavra<br />
profética da Bela Senhora se concretizava:<br />
-“As batatinhas continuarão a se estragar e, para o Natal, não<br />
haverá mais... As crianças morrerão... Os outros farão penitência<br />
pela fome...”<br />
Efetivamente, o inverno 1846 foi extremamente pesado,<br />
sobretudo para os pobres. Para o Natal não havia mais trigo<br />
nem batatinhas. O pão era muito raro e caro. Os legumes<br />
se deterioravam. Tudo sofreu grande elevação de preço em<br />
virtude da escassez, e da conseqüente especulação por parte dos<br />
mercadores que importavam os produtos de outras localidades.<br />
Os moradores da região não tinham dinheiro para suas compras.<br />
A carestia era enorme.<br />
Na primavera de 1847, homens, mulheres e crianças<br />
percorriam os campos em busca de plantas silvestres para matar<br />
a fome.<br />
Por causa da inanição, a mortalidade, sobretudo a infantil,<br />
devastava a população. A 12 de abril de 1847, Pe. Mélin, de<br />
Corps, levou ao conhecimento do Bispo de Grenoble o fato de<br />
que, de janeiro a abril daquele ano, trinta crianças e dez adultos,<br />
sobre os 1.300 habitantes da Paróquia, haviam morrido de fome.<br />
36
O Tabelionato de Corps registrou, para o ano de 1847, a<br />
cifra de noventa e nove mortes, sendo sessenta e três de crianças,<br />
dentre as quais um irmão menor de Maximino.<br />
A fome se expandiu pela França e Europa em geral. Em<br />
1847 a Irlanda viu um grande número de seus filhos deixarem<br />
o próprio país em direção aos Estados Unidos, por causa do<br />
flagelo.<br />
No entanto, os paroquianos de La Salette apoiavam o Pároco<br />
em seu fervor pela Mãe do Senhor. Na primavera de 1847<br />
instalaram junto com o Padre e com a permissão do Bispo Dom<br />
Philibert, uma grande cruz no alto do Monte Planeau para que,<br />
dos vales, se visualisasse o local da Aparição. Seria um ponto de<br />
atração para os peregrinos.<br />
A 23 de junho de 1847, a Paróquia inteira acompanhou<br />
o Pároco de La Salette em procissão até o ponto do evento<br />
extraordinário. Os homens carregavam cruzes montanha acima,<br />
para plantá-las no local bendito, em forma de Via Sacra. Ali eram<br />
depositadas flores, acendiam-se velas, rezava-se com piedade.<br />
Nesse dia, um desconhecido, rezando as orações próprias da Via<br />
Sacra, se ajoelhou por catorze vezes ao longo do caminho que a<br />
Bela Senhora havia percorrido durante a Aparição.<br />
O povo, tocado em seu coração, prosseguia as peregrinações<br />
com a presença de muitos Padres. Na segunda feira de Pentecostes<br />
de 1847, encontravam-se no local da Aparição mais de três mil<br />
peregrinos, e no dia 31 de maio do mesmo ano, cerca de seis mil<br />
pessoas fizeram sua peregrinação. Pessoas de inúmeras regiões,<br />
de todas as condições, idade e profissão se convertiam.<br />
Vendo o fervor dos fiéis, e com a devida prudência, o Padre<br />
Louis-Joseph, Pároco de La Salette, expôs ao Bispo a idéia de<br />
erigir um oratório no local do evento. Subia a montanha com<br />
frequência, acompanhando peregrinos, com discreção, uma vez<br />
que o fato ainda não fora aprovado pela autoridade eclesiástica.<br />
Na montanha dedicava-se a alguns trabalhos manuais como<br />
o arranjo da pequena fonte, muito procurada pelos visitantes.<br />
Queria facilitar o acesso <strong>à</strong> água milagrosa. Para evitar a<br />
37
degradação da fonte miraculosa e do lugar da Aparição, instalou<br />
uma proteção adequada.<br />
A pedra sobre a qual se assentara a Bela Senhora no início da<br />
Aparição, era objeto de veneração, o que induzia os peregrinos<br />
a parti-la para levar algum pedaço para casa como sagrada<br />
lembrança.<br />
Pe. Louis-Joseph teve a idéia de levar consigo o que restava<br />
da pedra bendita, para conservá-la em seu presbitério. Houve por<br />
causa disso uma disputa entre o Pe. Louis-Joseph, o Prefeito de La<br />
Salette e o Pe. Mélin que guardou a pedra em Corps. O episódio<br />
demonstrava o apego do Pároco de La Salette a tudo que se referia<br />
ao evento maravilhoso ocorrido na montanha, em sua Paróquia.<br />
O Pároco de La Salette, em meio a todos esses acontecimentos,<br />
quis organizar os magníficos festejos do 1º Aniversário da<br />
Aparição. A data de 19 de setembro de 1847 coincidia com<br />
um domingo. Seria um acontecimento grandioso. Pe. Louis-<br />
Joseph podia contar com um auxiliar, pois, havia recebido em<br />
sua paróquia a preciosa ajuda de Pe. Jacques-Michel Perrin, seu<br />
irmão mais velho em idade e sacerdócio. Fora ordenado a 9 de<br />
julho de 1836. Um Padre muito zeloso e estimado.<br />
Prevendo o movimento que a celebração do 1º Aniversário<br />
suscitaria, o Pe. Louis-Joseph, depois de consultado o Bispo,<br />
e com a ajuda do Prefeito Peytard, uma semana antes da festa<br />
levantou no local da Aparição um oratório muito simples, feito<br />
com madeira doada pelo povo de La Salette. O oratório permitiria<br />
celebrar a Missa ao abrigo do tempo.<br />
Ponderada a situação, o Bispo autorizou a celebração de<br />
missas na pequena capela, desde a aurora até o meio-dia, durante<br />
a oitava do 1º Aniversário.<br />
Três dias antes da comemoração festiva, as estradas que<br />
levam a Corps foram tomadas pelas multidões. As Igrejas<br />
estavam repletas de pessoas que buscavam o confessionário.<br />
No dia 18 de setembro a cidade de Corps não comportava mais<br />
gente. À tarde, uma chuva forte e glacial caiu. O povo passou a<br />
noite em oração.<br />
38
Naquela noite ocorreu um fato inesperado: 80 Padres, a<br />
caminho da Montanha, se refugiaram num galpão. O assoalho<br />
não suportou o peso e ruiu. Felizmente não houve feridos.<br />
Os peregrinos, <strong>à</strong> luz de tochas e velas em meio <strong>à</strong> escuridão<br />
e sem conhecer as perigosas trilhas das montanhas, se puseram<br />
a subir até o alto do monte da Aparição desde o começo da<br />
noite de 18 de setembro. Era uma multidão de mais de duas mil<br />
pessoas, sob um tempo assustador. Formava uma fila de cerca<br />
de seis quilômetros de comprimento, cantando e rezando. Os<br />
peregrinos comprimiam-se entre si para se protegerem do vento<br />
e da chuva fria.<br />
Os Padres, refugiados junto <strong>à</strong> pobre capela, entoavam cantos<br />
e preces no oratório, durante a noite.<br />
Às 2hs30 da madrugada, depois de abençoado o oratório,<br />
o Pe. Louis-Joseph e Pe. Jacques-Michel rezaram a Missa, um<br />
frente ao outro, no mesmo altar. Outros Padres se sucederam nas<br />
celebrações eucarísticas, até o meio dia. A Liturgia, nessa época,<br />
não permitia a concelebração eucarística.<br />
Chegada a manhã de 19 de setembro de 1847, o povo de<br />
peregrinos aumentava cada vez mais, apesar do mau tempo.<br />
Pelas dez horas da manhã o céu se abriu. O entusiasmo dos fiéis<br />
se reanimou. Às 11hs30 ninguém mais podia se movimentar,<br />
tal era o aperto da multidão. Para evitar o risco de sufocação em<br />
torno do oratório, as missas foram suspensas.<br />
O Pe. Sibillat, Vigário em La Tronche e, mais tarde, um dos<br />
primeiros Missionários de Nossa Senhora da Salette, tomou,<br />
então, a palavra e fez vibrante alocução ao povo presente. Pe.<br />
Gérin, Pároco da Catedral de Grenoble, fez outro sermão mais<br />
empolgado ainda.<br />
Cerca de duzentos Padres se faziam presentes <strong>à</strong> cerimônia. A<br />
multidão, dividida em dois coros separados pelo vale do riacho<br />
Sézia, local da Aparição, cantava o Magnificat, o Sub Tuum e o<br />
Te <strong>De</strong>um. Um espetáculo inolvidável. Junto <strong>à</strong> fonte milagrosa as<br />
pessoas esperavam por horas para poderem obter um pouco da<br />
água bendita.<br />
39
No meio do povo estavam Maximino e Melânia. Todos<br />
queriam vê-los, ouvi-los e abraçá-los. Por três vezes fizeram a<br />
narrativa da Aparição, em pontos diferentes do local. As pessoas<br />
devoravam suas palavras em silêncio. Algumas pessoas com voz<br />
forte repetiam no meio da multidão a narrativa dos dois videntes<br />
para que todos pudessem ouvir a Mensagem. <strong>De</strong>pois rezaram<br />
o terço com o povo presente. Por mais de uma vez correrram<br />
risco de serem sufocados pela multidão, a ponto de Giraud, o<br />
pai de Maximino, se ver obrigado a salvar o menino do perigo,<br />
levando-o <strong>à</strong> exígua sacristia onde o vidente se confessou com o<br />
Pe. Gérin. As Irmãs de Corps socorreram Melânia.<br />
Melânia era procurada, interrogada, admirada por todos.<br />
Imprudentemente alguém lhe disse:<br />
-“Veja todo esse povo! Você é a responsável por tudo isso!”<br />
Melânia deu de ombros, não levando em consideração o<br />
elogio. Essa palavra imprudente, no entanto, produziria maus<br />
efeitos nas atitudes da vidente no futuro.<br />
Pelas duas horas da tarde os peregrinos começaram a se<br />
dispersar, descendo a montanha. Concluía, pois, a incomparável<br />
peregrinação <strong>à</strong> Montanha da Salette, a 19 de setembro de<br />
1847, em celebração do 1º Aniversário da Aparição. Segundo<br />
estimativas de testemunhas oculares, entre cinqüenta e cem<br />
mil pessoas participaram da comemoração desse evento na<br />
Montanha da Salette.<br />
A respeito da comemoração, o Prefeito de La Salette,<br />
estupefato com o que presenciara, escreveu depois uma carta<br />
a Dom Villecourt, Bispo de La Rochelle, descrevendo o<br />
acontecimento.<br />
À noite desse dia 19 de setembro, o Pároco de La Salette<br />
também quis descrever o que acontecera, em carta enviada ao<br />
mesmo Bispo. A carta foi incluída no livro “Nouveau récit de<br />
l´Apparition de la Sainte Vierge sur la montagne des Alpes”,<br />
publicado por Dom Villecourt em 1847. O Bispo descreveu<br />
nessa obra suas excelentes impressões a respeito do local, dos<br />
videntes e da história da Aparição.<br />
40
Dom Villecourt foi o primeiro Bispo a visitar La Salette.<br />
Subiu a Montanha a 22 de julho de 1847. Maximino, o vidente,<br />
convidado pelo Bispo a acompanhá-lo desde Corps até o local<br />
da Aparição, cheio de contentamento bateu o sino da Igreja<br />
de La Salette durante toda a breve estadia de Dom Villecourt<br />
nesta Paróquia. Em carta posterior, o Bispo exaltou “a candura,<br />
a simplicidade e a humildade” dos paroquianos de La Salette,<br />
reflexo da vida dos dignos Sacerdotes Perrin.<br />
<strong>De</strong>sde que Dom Villecourt ouvira falar da Salette, alimentou<br />
dentro de si uma grande consideração pelo que lá ocorreu.<br />
Estudou a Aparição e a ela deu crédito plenamente. Escreveu<br />
belos textos a respeito. <strong>De</strong> retorno <strong>à</strong> sua Diocese, e passando<br />
por Lyon, o Bispo pregou publicamente sobre o evento. Ao<br />
conhecer o Pe. Louis-Joseph descreveu-o como um “homem de<br />
<strong>De</strong>us”.<br />
Dom Villecourt recebeu o chapéu cardinalício, a 17 de<br />
dezembro de 1855. Foi uma recompensa que o Papa Pio IX<br />
lhe concedeu por ter ele pedido a proclamação do Dogma da<br />
Imaculada Conceição. Pio IX sempre lhe votou uma grande<br />
estima. Em sua prolongada doença, recebeu mais vezes a visita<br />
do Papa, no quarto por ele ocupado no Seminário Francês, em<br />
Roma. Morreu a 16 de janeiro de 1867.<br />
Por sua vez, o Pe. Jacques-Michel, com a permissão do<br />
Bispo de Grenoble, recebeu a incumbência de celebrar a Missa<br />
na Montanha depois do 1º Aniversário da Aparição até a festa de<br />
Todos os Santos.<br />
O inverno começava. Não havia alojamentos. A Casa<br />
Paroquial de La Salette se encontrava em estado lastimável.<br />
Assim mesmo, os dois irmãos Padres que levavam uma vida<br />
pobre, de devotamento, alojavam peregrinos, sobretudo<br />
Sacerdotes, que se dirigiam <strong>à</strong> Montanha. Tinham um coração<br />
maior que sua pobre casa.<br />
Freqüentemente os dois irmãos subiam a Montanha.<br />
Durante uma peregrinação, o Pe. Jacques-Michel sofreu um<br />
acidente grave: a mula em que viajava se assutou com o vôo de<br />
41
um pássaro e derrubou o Padre barranco abaixo. <strong>De</strong>vido a sérias<br />
contusões na face, ficou acamado por uma semana.<br />
Dom Philibert, Bispo de Grenoble, no final do inverno, a<br />
13 de março de 1848, deu sua aprovação <strong>à</strong> Novena Perpétua em<br />
honra de Nossa Senhora.<br />
Ao final de março, os dois Padres Perrin comunicaram ao<br />
Bispo o fato da cura de uma pessoa que morava em Saint-Dizier,<br />
onde havia uma Arquiconfraria Reparadora. A existência dessa<br />
associação de devotos levou os dois Padres a organizarem em La<br />
Salette uma entidade semelhante<br />
A 1º de maio de 1848, a pedido dos Padres Perrin, o Bispo<br />
concedeu-lhes a permissão de erigirem na Paróquia de La Salette,<br />
a Confraria de Nossa Senhora das Sete Dores. Dado o fato da<br />
Aparição e da grande devoção <strong>à</strong> Bela Senhora intimamente<br />
unida <strong>à</strong> devoção a Nossa Senhora das Dores, o Pe. Louis tomou<br />
a iniciativa de mudar o nome dessa associação de devotos, para<br />
o de Confraria de Nossa Senhora Reconciliadora da Salette,<br />
tornando-se seu fundador e o primeiro a atribuir <strong>à</strong> Bela Senhora<br />
o título litúrgico “Nossa Senhora Reconciliadora”. Os fiéis da<br />
Paróquia, sem hesitação, aderiram <strong>à</strong> nova denominação (cf.<br />
BASSETTE, p. 159).<br />
O irmão de Pe. Louis, Pe. Jacques-Michel havia descoberto<br />
uma reflexão teológica sobre a “RECONCILIAÇÃO” em chave<br />
mariana, na obra “As glórias de Maria”, de Santo Afonso Maria<br />
de Liguori.<br />
O objetivo da nova Confraria era o de rezar pela conversão dos<br />
pecadores e fazer reparação das ofensas a <strong>De</strong>us. Tinha como norma<br />
a oração diária de um Pai Nosso, de uma Ave Maria e da invocação:<br />
- “Nossa Senhora da Salette, Reconciliadora dos Pecadores,<br />
rogai sem cessar por nós que recorremos a Vós!”.<br />
As inscrições no rol dos membros da Confraria foram<br />
abundantes e rápidas. Em 1850 contava com mais de 18.000<br />
inscritos. Em 1852 o número de membros chegava a 50.000.<br />
Em 22 de agosto de 1852, o Pe. Burnoud, o primeiro Superior<br />
dos Missionários de Nossa Senhora da Salette, pediu ao Bispo<br />
42
Dom Philibert que erigisse canonicamente a Confraria. Dom<br />
Philibert solicitou <strong>à</strong> Santa Sé algumas indulgências em favor<br />
da nova instituição, e a autorização para os Padres peregrinos<br />
celebrarem, na Montanha da Aparição, a Missa Votiva da Santa<br />
Virgem Maria.<br />
A favor da Confraria Nossa Senhora da Salette,<br />
RECONCILIADORA dos pecadores, o Bispo pediu <strong>à</strong> Santa Sé:<br />
- “1) A consagração desse NOME pela autoridade apostólica,<br />
ou sua mudança para outro que fosse julgado mais conveniente<br />
pelo Santo Padre;<br />
- 2) A elevação dessa piedosa associação em<br />
ARQUICONFRARIA <strong>à</strong> qual se filiariam todas as outras que se<br />
formariam a seguir...” (in STERN, p. 73).<br />
A “Arquiconfraria” foi instituída por Pio IX num Breve<br />
datado de 7 de setembro de 1852, com a concessão de diversos<br />
privilégios e indulgências.<br />
O título de “RECONCILIADORA”, aplicado <strong>à</strong> Bela Senhora,<br />
foi assumido imediatamente e com fervor pela piedade popular, e se<br />
mantém vivo na espiritualidade da Congregação dos Missionários<br />
de Nossa Senhora da Salette. A partir das intuições a respeito do<br />
Fato e da Mensagem da Aparição, a Congregação paulatinamente<br />
elaborou seu carisma congregacional <strong>à</strong> luz da Reconciliação.<br />
A dimensão mariana da Reconciliação estava praticamente<br />
esquecida pela Teologia e pela Pastoral, desde a Idade Média.<br />
Um dos últimos grandes teólogos a comentá-la foi Santo<br />
Anselmo de Cantuária (+ 1109). Numa de suas preces se referiu<br />
a Maria como “Mãe da Reconciliação”:<br />
- “Da mesma forma que o Filho de <strong>De</strong>us é a beatitude dos<br />
justos, assim também Vós, fecunda em frutos de salvação,<br />
tendes um Filho que reconcilia os pecadores. Não há outra<br />
Reconcilação senão Aquela que vossa castidade concebeu. Não<br />
há outra Justificação senão aquela que Vós, Virgem, nutristes<br />
no vosso seio. Não há outra Salvação senão Aquele que Vós,<br />
sempre Virgem, gerastes. Ó Senhora, Vós sois, então, a Mãe da<br />
Justificação e dos justificados, a Mãe da Reconciliação e dos<br />
43
econciliados, a Mãe da Salvação e dos que foram salvos. Ó<br />
bem aventurada confiança! Ó refúgio seguro! A Mãe de <strong>De</strong>us é<br />
nossa Mãe. A Mãe Daquele de Quem tudo esperamos, e a Quem<br />
somente, tememos, é nossa Mãe”.<br />
O Pe. Jaouen ms, em “La grâce de La Salette” (1846-1946),<br />
Ed. Du Cerf, Paris, 1946, p. 337, afirma:<br />
- “Um modesto cura de campanha, procurando o sentido<br />
essencial do drama que se desenrolara visivelmente sob os<br />
olhares de duas crianças, encontrou esse título que faz parte<br />
do apanágio sobrenatural de Maria e que os teólogos não<br />
desaprovam, mas a respeito do qual jamais teriam pensado em<br />
torná-lo objeto de uma devoção: sua importância lhes fugia. Era<br />
preciso que a própria Virgem, por meio de todos os momentos<br />
e símbolos de sua aparição, nos explicitasse a riqueza desse<br />
título e suas conexões sobrenaturais para que tivéssemos a idéia<br />
de nele fixarmos nosso olhar e com ele alimentar nossa vida.<br />
Milhões de almas invocaram a Virgem sob esse novo título, ou<br />
mais exatamente, perceberam com novo olhar esse mistério que<br />
ela realiza nos céus desde sempre, a reconciliação dos pecadores<br />
que todos somos” (in BASSETTE, p. 160).<br />
Outras devoções a Nossa Senhora da Salette surgiram<br />
após, como a Novena Perpétua, a oração do Lembrai-vos e as<br />
Ladainhas, segundo a dimensão reconciliadoora. Maravilhas<br />
aconteceram com a prática dessa devoção.<br />
Não contentes ainda, os irmãos Padres Perrin, além da vasta<br />
correspondência por eles mantida, decidiram lançar em 1849, o<br />
periódico “Les Annales de Notre-Dame Réconciliatrice de La<br />
Salette”, um monumento literário sólido. <strong>De</strong>pois lançaram o<br />
“Journal des Pèlerins de Notre-Dame de la Salette”. Receberam<br />
grandes elogios em carta que lhes foi enviada pelo grande<br />
escritor e polemista Louis Veuillot, a 6 de fevereiro de 1849 (cf.<br />
texto integral da carta in V. H., II, pg 58).<br />
Os anos 1848, 1849 e 1850 foram para os dois Padres de<br />
La Salette, excessivamente trabalhosos. Recebiam peregrinos<br />
de todas as partes da Europa. Na Montanha, rezavam diversas<br />
44
missas por dia, em atenção aos peregrinos. Passavam horas<br />
numa salinha, atendendo confissões. Não se preocupavam<br />
consigo mesmos. Fatigado, Pe. Jacques Michel, ao final de<br />
quatro anos em La Salette, pediu, então, transferência para La<br />
Murette, sua terra natal, para um repouso merecido. Seu estado<br />
de saúde, porém, piorou. No Domingo de Ramos, em abril de<br />
1851, pediu os Santos Sacramentos e entregou sua vida a <strong>De</strong>us.<br />
Dom Philbert declarou-o “um de seus Padres de elite”, tal era<br />
sua humildade e heroísmo.<br />
Nessa época, a construção do Santuário era cogitada. Faziase,<br />
antes, necessária a compra do terreno junto <strong>à</strong> Prefeitura<br />
Municipal de La Salette, proprietária de toda a área onde<br />
aconteceu a Aparição.<br />
Com a saúde debilitada, o Padre Louis-Joseph não tinha<br />
mais forças para levar avante os trabalhos pastorais tanto na<br />
Paróquia quanto no alto da Montanha da Aparição. Acompanhou<br />
os acontecimentos, porém, até que os Missionários de Nossa<br />
Senhora da Salette, fundados por Dom Philibert em 1852 para<br />
zelar pelo Santuário, assumissem o posto, mantendo com eles<br />
sempre ótimo relacionamento.<br />
O Pároco de La Salette compreendeu, pois, que era tempo<br />
de se retirar, depois de cinco anos e meio de prodigiosa ação<br />
pastoral em La Salette. Quando de sua partida da Paróquia,<br />
repassou aos novos Missionários todos os documentos relativos<br />
<strong>à</strong> Aparição, bem como o pedaço da pedra sobre a qual a Bela<br />
Senhora esteve assentada, pedra por ele conservada.<br />
O Pe. Louis-Joseph que, em repetidas e cansativas subidas<br />
ao Monte Planeau, acompanhava de perto o movimento dos<br />
peregrinos e a transformação religiosa da Paróquia, escreveu ao<br />
deixar La Salette:<br />
- “Percebia-se, com edificação, a cessação da blasfêmia e dos<br />
trabalhos aos domingos, nas Paróquias vizinhas a La Salette. Iase<br />
<strong>à</strong> Igreja até mesmo nos dias de trabalho, para ouvir a Palavra<br />
de <strong>De</strong>us e receber os sacramentos... Nesse primeiro ano após a<br />
Aparição, não houve uma família sequer de minha Paróquia que<br />
45
não tenha pedido a celebração de uma Missa de ação de graças<br />
em honra da Santa Virgem. Oh! Como era bom ser Pároco então.<br />
Esses foram os dias mais bonitos de minha vida!” (in CARLIER,<br />
p. 57-58).<br />
Com a consciência do dever cumprido, louvava a <strong>De</strong>us por<br />
lhe ter concedido esta graça em La Salette (in V. H., II, p. 79).<br />
A respeito dos dois videntes da Aparição, Pe. Louis-Joseph<br />
também declarou que, quando eram submetidos a interrogatórios,<br />
eles “raramente se cansavam. Interrogados quer separadamente,<br />
quer um frente ao outro, nunca se puseram em contradição entre<br />
si” (in V.H., I, p. 24). Atestou que ambos repetiam sempre a<br />
mesma história por eles ouvida uma só vez dos lábios da Bela<br />
Senhora.<br />
A 15 de abril de 1852, Pe. Burnoud, primeiro Superior dos<br />
Missionários de Nossa Senhora da Salette, e Pe. Sibillat, seu<br />
confrade, assumiram a missão junto aos peregrinos na Santa<br />
Montanha. Estavam presentes os Párocos de Corps e de La<br />
Salette.<br />
O ex-Pároco de La Salette, Pe. Louis-Joseph, em maio de<br />
1852 foi nomeado Pároco de Courtenay, na região de Morestel.<br />
Aos setenta anos de idade, depois de mais trinta anos de<br />
serviço pastoral, deixou o trabalho paroquial e se retirou para<br />
sua cidade natal, La Murette, onde viveu mais dois anos. Ali<br />
morreu no dia de Natal de 1884.<br />
Um sobrinho seu, Pe. Joseph Perrin era naquele momento<br />
o Superior da Comunidade dos Missionários de Nossa Senhora<br />
da Salette no Santuário. Pe. Joseph afirmou que o que mais<br />
admirava na vida de seu tio, Pe. Louis-Joseph, era “seu amor<br />
pelos pobres a quem tanto gostava de socorrer no exercício<br />
de seu ministério, e sua atenção pela promoção das vocações<br />
eclesiásticas e religiosas, bem como a retidão de seu espírito que<br />
o fez compreender a importância dessas duas grandes virtudes<br />
evangélicas: a caridade e o apostolado” (in V. H., II, p. 79).<br />
O Bispo de Grenoble já era Dom Fava, sucessor de Dom<br />
Philibert.<br />
46
3 - OS AGRACIADOS: RETORNO AO QUOTIDIANO<br />
<strong>De</strong>pois da Aparição os videntes voltaram a Corps, para junto<br />
dos familiares.<br />
MAXIMINO, com o ex-patrão, Pierre Selme, o cachorrinho<br />
e a cabra, retornou <strong>à</strong> casa do pai no final da missa dominical do<br />
dia 20 de setembro de 1846. Só encontrou a madrasta. O pai<br />
Giraud estava no bar.<br />
Pierre Selme contou brevemente <strong>à</strong> madrasta do vidente o<br />
que acontecera. <strong>De</strong>pois foi ao bar para se encontrar com o amigo<br />
Giraud. <strong>De</strong>screveu o fato vivido por Maximino e Melânia. Os<br />
presentes, incrédulos, deram uma zombeteira gargalhada.<br />
Maximino repetiu a narrativa do fato.<br />
A partir de então, os curiosos o envolviam como um<br />
“enxame de abelhas de que não é possível se livrar”, segundo o<br />
garoto. Incansavelmente o menino repetia a história a todos os<br />
interessados.<br />
Giraud, naquele domingo, voltou para casa tarde da noite.<br />
Acordou o menino e o fez repetir a história. Vendo a desenvoltura<br />
de Maximino, comentou:<br />
- “É muito esperta a pessoa que tão depressa te pôs na cabeça<br />
tantas coisas. Quanto a mim, a muito custo consegui, ao fim de<br />
três anos, te ensinar o Pai Nosso e a Ave Maria...” (CARLIER,<br />
p. 35).<br />
No dia seguinte os ouvintes chegavam numerosos. Giraud,<br />
irritado com a repetição constante da narrativa do fato, castigou<br />
o filho. Nem por isso os visitantes deixavam de procurar<br />
Maximino. O mais importante dentre eles era o Prefeito de La<br />
Salette.<br />
A 21 de setembro, segunda feira, o Prefeito Peytard chegou<br />
repentinamente na casa de Giraud, em Corps, para ouvir a história<br />
dos lábios de Maximino. Constatou a inteira coincidência entre a<br />
narrativa de Maximino e a de Melânia.<br />
O Prefeito, durante o encontro, disse em tom severo ao<br />
menino:<br />
47
- “Maximino, eu não queria estar em seu lugar. Você espalhou<br />
uma história que assusta as pessoas... Preferiria assassinar<br />
alguém a inventar o que você diz de acordo com Melânia”.<br />
Maximino respondeu:<br />
- “Inventando? Não se pode inventar uma coisa dessas. Nós<br />
falamos do que nossos olhos viram e nossos ouvidos ouviram”<br />
(in CARLIER, p. 35).<br />
O Prefeito Peytard foi vencido pela firmeza do garoto, mas,<br />
ordenou que, no domingo seguinte, dia 27, o menino devia se<br />
encontrar com ele, na Montanha da Aparição.<br />
No dia marcado, o Prefeito subiu o monte, acompanhado por<br />
um sargento da polícia. Melânia também compareceu. No local da<br />
Aparição, as duas crianças repetiram a narrativa tantas vezes feita<br />
ao longo daqueles poucos dias. <strong>De</strong>screveram minuciosamente o<br />
fato. Peytard fez o possível para saber de todos os detalhes da<br />
história e levar as crianças a caírem em contradição. Sentiu-se<br />
vencido e se persuadiu de que as duas crianças diziam a verdade.<br />
Durante a narrativa, o sargento que acompanhava o<br />
Prefeito, repentinamente interrompeu Maximino, chamando-o<br />
de mentiroso. Ameaçou amarrá-lo com uma corda e levá-lo <strong>à</strong><br />
cadeia, se não se retratasse. O menino não se intimidou.<br />
Mais tarde afirmou que, naquele momento, uma voz interior<br />
lhe dizia:<br />
- “Não tenhas medo, meu filho, ninguém te fará mal!” (in<br />
CARLER, p. 40).<br />
Em outra ocasião, Maximino passou por experiência<br />
semelhante quando, <strong>à</strong> beira de um precipício, um soldado de<br />
Corps o agarrou dizendo-lhe:<br />
- “Eu te jogo daqui para baixo se não confessares que tudo<br />
isso é mentira!”<br />
- “Não! Tudo o que vi e ouvi é verdade!” (in CARLIER, p. 40).<br />
Em Corps, o resultado da investigação feita pelo Prefeito<br />
Peytard causou profunda impressão. Muita gente começou a<br />
acreditar no fato, enquanto outros o ironizavam. A notícia se<br />
propagava com a maior rapidez.<br />
48
Naqueles dias, o pai de Maximino, estando em casa, pediu<br />
ao garoto que narrasse novamente o fato. O pai se irritou.<br />
Maximino então lhe disse:<br />
- “Mas, papai, a Senhora me falou também de você!” (in<br />
CARLIER, p. 36).<br />
Diante da surpresa do pai, Maximino contou a ele o episódio<br />
da “terra de Coin” que a Bela Senhora lhe havia relembrado<br />
durante a Aparição.<br />
<strong>De</strong>sse dia em diante, Giraud deixou o filho mais <strong>à</strong> vontade.<br />
Permitiu que o menino acompanhasse a madrasta, a avó, a prima<br />
Melânia Carnal de onze anos, portadora de uma doença nos olhos,<br />
e mais algumas outras pessoas, ao local do evento miraculoso.<br />
Giraud recomendou que examinassem bem a situação para se<br />
assegurarem de que a história contada não era uma impostura.<br />
<strong>De</strong> retorno, a madrasta fez uma detalhada descrição do local.<br />
Afirmou que junto <strong>à</strong> fonte milagrosa, todos haviam tomado água,<br />
e que Melânia Carnal sentira-se aliviada da doença ao lavar seus<br />
olhos na fonte.<br />
Giraud sentiu-se inclinado a acreditar no fato. Cresceu nele<br />
a esperança de, pela água milagrosa, ser curado do mal da asma<br />
crônica que o atormentava.<br />
Tendo subido ao local da Aparição, algum tempo depois,<br />
tomou da água santa e sentiu-se curado. Em sinal de gratidão,<br />
atendeu o repetido pedido de Maximino para que confeccionasse<br />
uma cruz a ser posta no lugar bendito. A cruz foi assentada a 22<br />
de outubro de 1846, no local da assunção da Bela Senhora.<br />
O pai Giraud finalmente procurou o Padre para confessar-se.<br />
Converteu-se. <strong>De</strong>sde então, participava da Missa e Comunhão<br />
todos os dias até o fim da vida. A 24 de fevereiro de 1849, morreu<br />
piedosamente.<br />
MELÂNIA só voltou de Ablandens para a casa de seus<br />
pais em Corps, tempos mais tarde, a 15 de dezembro de 1846.<br />
Não teve melhor sorte junto aos seus. Inicialmente sofreu muita<br />
repressão por causa da Aparição, sobretudo da parte do pai.<br />
A partir de então, juntamente com Maximino, foi admitida<br />
49
no Colégio das Irmãs da Providência, em Corps. As duas crianças<br />
ali permaneceram cerca de quatro anos, até setembro de 1850.<br />
Melânia tinha mais dificuldade no estudo. Mesmo depois<br />
de sete anos de escola cometia numerosos e grandes erros de<br />
ortografia. Essa era uma das deficiências de Maximino também.<br />
É o que transparece numa carta enviada por ambos a Dom<br />
Philibert, em fins de julho de 1847 (Cfr. texto in V. H., II, os.<br />
113-114).<br />
Apesar de colegas na mesma escola, Maximino e Melânia<br />
se mantinham “indiferentes entre si, sem mútua simpatia.<br />
Evitavam-se em vez de se procurar, e aproveitavam sempre a<br />
ocasião para mútuas zombarias” (in CARLIER, p.65). Ao falar<br />
da Bela Senhora, ambos se transformavam.<br />
As Irmãs do Colégio de Corps foram verdadeiras e maternais<br />
educadoras das duas crianças, procurando instruí-las e formar<br />
sua personalidade, acompanhando-as de perto para evitar que<br />
se tornassem presas de interesseiros ou “objeto de veneração”.<br />
A Superiora, Irmã Sainte-Thècle, sobretudo, cuidava para<br />
que os videntes não se envaidecessem por causa do privilégio<br />
recebido. As Irmãs insistiam na formação dos dois videntes para<br />
a humildade.<br />
A instrução e a educação dos videntes era uma tarefa<br />
difícil. O privilégio, na verdade, não havia transformado a<br />
realidade humana das duas crianças. Possuiam belas qualidades.<br />
Mantinham, porém, os mesmos defeitos que possuíam antes<br />
da Aparição. Para evitar elogios superficiais, aprenderam a<br />
se manter discretas. Falavam da Aparição apenas quando<br />
interrogadas a respeito. Suas respostas eram concisas e<br />
estritamente relacionadas <strong>à</strong>s perguntas feitas.<br />
A 8 de novembro de 1847, acompanhadas pelo Pe. Mèlin,<br />
Pároco de Corps, e pela Irmã Sainte-Thècle, Superiora do<br />
Colégio, as duas crianças compareceram diante de uma Comissão<br />
Episcopal presidida por Dom Philibert, em Grenoble. Haviam<br />
sido convocadas para prestar esclarecimentos sobre o evento de<br />
La Salette.<br />
50
Nessa oportunidade, a Irmã Sainte-Thècle revelou que<br />
Maximino tinha levado mais de um ano para aprender a servir a<br />
Missa, e que Melânia levara mais tempo ainda para aprender os<br />
atos de fé, esperança e caridade, apesar das repetições diárias. E,<br />
apreensiva, acrescentou:<br />
- “Há um mês venho receando que Melânia seja tomada de<br />
vaidade por causa da celebridade que o evento lhe propiciou” (in<br />
JAOUEN, p.98).<br />
Por que esse receio de Irmã Sainte-Thècle? Porque, na<br />
comemoração do 1º Aniversário da Aparição, alguém dissera a<br />
Melânia no alto da Montanha:<br />
- “Veja todo esse povo. Você é a responsável por tudo isso!...”<br />
A palavra imprudente trouxe as conseqüências que o futuro<br />
demonstrou. “O futuro de Melânia dependeria, desse momento<br />
em diante, da clarividência de seus guias e da resistência que<br />
ela mesma conseguiria manter face ao Tentador que acabava de<br />
assaltá-la” (in JAOUEN, p. 98).<br />
Em sua firmeza de educadora experimentada, Irmã Sainte-<br />
Thècle procurou manter a menina num caminho equilibrado.<br />
No Colégio, Melânia e Maximino continuaram vivendo em<br />
sua cândida e humilde simplicidade, sem ter consciência plena<br />
da própria celebridade em virtude da Aparição. Os dois levaram<br />
longo tempo para aprender o catecismo, de forma que, só a 7 de<br />
maio de 1848, fizeram a Primeira Comunhão. Maximino tinha<br />
13 anos de idade e Melânia, 16 e meio.<br />
Cansadas do trabalho com as duas crianças, apesar do grande<br />
amor por elas, as Irmãs da Providência pediram ao Bispo que as<br />
liberasse dessa responsabilidade. O Bispo pediu-lhes mais um<br />
ano de cuidados para com os videntes. Isso permitiu que, a 25<br />
de junho de 1850, em Corps, Melânia e Maximino recebessem a<br />
Confirmação das mãos de Dom Dépéry, Bispo de Gap.<br />
Pouco tempo depois, partiram de Corps, seguindo o próprio<br />
caminho. Nunca mais viveram próximos. Ambos, no entanto, embora<br />
distantes entre si, repetiam incessantemente a mesma história aos<br />
interessados, intrepidamente fiéis ao que viram e ouviram.<br />
51
O Espírito Santo lhes havia concedido a mesma graça da<br />
fidelidade e fortaleza dada aos Apóstolos:<br />
- “Não podemos deixar de falar!”.<br />
Dom Villecourt, Mlle. <strong>De</strong>s Brulais, Monsenhor Rousselot e<br />
Dom Dupanloup, entre outros, tiveram longas entrevistas com<br />
Melânia e Maximino quando estavam em Corps, e deixaram<br />
testemunhos memoráveis a respeito da personalidade dos dois<br />
videntes (in CARLIER, p. 63-71; JAOUEN, p. 95-103).<br />
52<br />
4 - Pe. MÉLIN: “Le Bon Papa”<br />
Pe. Pierre Mélin, Pároco de Corps, em meio a tantos e<br />
tão inusitados fatos, mantinha-se em silêncio, observando os<br />
acontecimentos e comentários relativos ao evento ocorrido na<br />
Montanha de La Salette.<br />
Apesar de jovem, com 31 anos de idade, possuía grande<br />
tato e sabedoria. <strong>De</strong>sempenhou uma nobre missão junto aos<br />
dois videntes nascidos em sua Paróquia. Mantinha-os sob seus<br />
cuidados desde que voltaram de Ablandens para junto de seus<br />
familiares em Corps. Acompanhava-os de perto, mesmo que<br />
estivessem sob o cuidado direto das Irmãs da Providência no<br />
Colégio em Corps. Mostrava-se, porém, reservado e prudente<br />
com relação <strong>à</strong> Aparição, obediente <strong>à</strong>s ordens do Bispo Diocesano.<br />
Não ignorava, no entanto, os rumores que percorriam a Paróquia.<br />
O Pe. Pierre era natural de Jallieu onde nasceu a 6 de maio<br />
de 1810. Fez seus estudos superiores no Seminário Maior de<br />
Grenoble. Como Padre, foi inicialmente professor de Filosofia e<br />
Teologia. <strong>De</strong>pois foi chamado <strong>à</strong> Catedral de Grenoble e nomeado<br />
Vigário do Pároco da Catedral, Padre Gérin. Dali foi transferido<br />
para a Paróquia de Corps.<br />
Pe. Mélin chegou a Corps a 1º de julho de 1841, como pró-<br />
Pároco em substituição ao Pe. Reynier.<br />
A população de Corps estava recheada de anticlericais. Pe. Mélin<br />
enfrentou muitos ultrajes ao chegar. Homem alto e forte, não receava,<br />
porém, as injúrias que o povo indiferente <strong>à</strong> Igreja, lhe dirigia. A cidade
era renomada por sua falta de religião e pouca educação.<br />
Segundo uma carta sua ao Bispo, em dezembro de 1847 a<br />
cidade ainda “era habitada por semi-selvagens” (in STERN, I,<br />
p. 11). Um dos focos de discórdia era a presença do Pe. Viollet,<br />
ex-Pároco de Corps, suspenso de ordens desde 1838. Vivia na<br />
cidade perturbando a comunidade e dividindo os espíritos.<br />
Segundo o Pe. Champon, um dos sucessores de Pe. Mélin<br />
em Corps, a situação religiosa e moral da cidade era péssima<br />
antes de 1846:<br />
- “O espírito de insubordinação, as blasfêmias, a profanação<br />
do domingo, a falta de qualquer mortificação, o abandono da<br />
abstinência e do jejum na Quaresma, o amor desenfreado<br />
pelos divertimentos públicos e pelos cabarés: tal era a situação<br />
moral de nossa população. Corps, como ponto de referência da<br />
região, se distinguia especialmente por todas essas desordens<br />
e caminhava <strong>à</strong> frente das comunidades dos arredores, no largo<br />
caminho do mal e da perdição. (...) Os sacramentos tinham sido<br />
abandonados a ponto de dois homens apenas, fazerem a Páscoa<br />
ou irem <strong>à</strong> Igreja uma vez por semana, muito cedo para escapar<br />
aos insultos de seus concidadãos” (in CARLIER, p. 54-55).<br />
Pe. Melin chegou para pacificar a Paróquia pobre e mal<br />
afamada. Para a sua alegria, a comunidade começou a se<br />
transformar a partir de novembro de 1846, logo após a Aparição<br />
em La Salette. Em seu zelo sacerdotal, incentivava a todos na<br />
prática da religião. Humilde, caridoso, Pe. Mélin tinha total<br />
confiança em Nossa Senhora Reconciliadora dos pecadores. Por<br />
seu intermédio, em 1852, Pe. Viollet, suspenso de ordens, foi<br />
reabilitado para as funções sacerdotais.<br />
Tudo levava o povo a retomar o caminho de <strong>De</strong>us. Até mesmo<br />
a mortalidade infantil que, em três meses, atingiu trinta e três<br />
crianças na região de Corps, e o furacão <strong>à</strong>s vésperas do Natal de<br />
1846. O fenômeno atmosférico fez estragos enormes no casario<br />
da cidade. O povo aterrorizado se reuniu em praça pública.<br />
A tranqüilidade começou a voltar quando os habitantes<br />
assustados viram entre eles Melânia e Maximino rezando pelo<br />
53
em estar da população. O fato despertou de maneira mais forte<br />
ainda na consciência do povo, a necessidade de conversão. Os<br />
confessionários, a partir de então, foram muito procurados.<br />
Naquele Natal, na Missa da Meia-Noite, cerca de quinhentas<br />
comunhões foram distribuídas. A metade delas foi para homens.<br />
Segundo Pe. Mélin, na Páscoa de 1847, contrariamente<br />
<strong>à</strong> de 1846, apenas trinta pessoas dentre as mil e quinhentas<br />
da Paróquia, haviam deixado de cumprir seu dever pascal. A<br />
conversão de Corps se tornara um fato conhecido.<br />
Em 1847, o Bispo de La Rochelle, Dom Villecourt,<br />
testemunhou essa transformação religiosa generalizada não só na<br />
Diocese de Grenoble, mas também, em outras Dioceses vizinhas.<br />
Antes da Aparição, Pe. Mélin conhecia Maximino apenas<br />
como alguém a mais na Paróquia. Jamais o vira na Igreja ou na<br />
escola. O garoto não se preocupava em encontrar-se com o Pároco.<br />
No dia 20 de setembro de 1846, dia seguinte <strong>à</strong> Aparição,<br />
quando Maximino chegou de volta a Corps, a Missa dominical<br />
estava chegando ao fim. <strong>De</strong>scuidado como era, o garoto nem<br />
pensou em procurar o Padre que, por sua vez, também não se<br />
apressou em encontrar o menino já feito objeto de admiração.<br />
Pe. Mélin mantinha-se reservado, segundo um comentário<br />
do próprio vidente:<br />
- “Padre Mélin se mostrou frio e pouco apressado. Todo o mundo<br />
corria atrás de mim, e ele permanecia em seu presbitério. É preciso<br />
dizer que eu também não pensava no Pároco. No sábado, quando o<br />
sino soava para a Missa, minha irmã (Angélica) foi lhe dizer:<br />
- “O senhor sabe que meu irmão viu a Santa Virgem?”<br />
- “Pois bem, diga-lhe que venha me ver depois da Missa” (in<br />
V. H. II, p. 93), respondeu o Padre.<br />
No sábado, dia 26 de setembro, véspera do encontro marcado<br />
do Prefeito com os videntes no alto da montanha, Melânia desceu<br />
de Ablandens a Corps, para uma visita aos familiares.<br />
Pe. Mélin quis ouvi-los separadamente e depois, em<br />
conjunto. O relato de Maximino causou menor impressão ao<br />
Pároco. Ao final da conversa Pe. Mélin perguntou aos dois:<br />
54
- “É tudo o que essa Senhora vos disse?”<br />
- “Não. Ela também nos disse alguma coisa, mas fomos<br />
proibidos de falar” (in CARLIER, p. 41).<br />
O Padre compreendeu que os dois haviam recebido uma<br />
palavra pessoal a ser guardada em segredo. Perguntou-lhes<br />
porque não tinham contado isso a ninguém. Responderam-lhe<br />
que ninguém os havia interrogado a esse respeito. Além do<br />
mais, como se tratava de segredo, não havia razão para falar,<br />
acrescentaram.<br />
<strong>De</strong>pois de recomendar-lhes que rezassem, despediu-os sem<br />
dizer nem sim, nem não a respeito do que ouvira. Maximino<br />
voltou <strong>à</strong> casa do pai, e Melânia retornou a Ablandens onde ficou<br />
até o final do ano a serviço de Jéan-Baptiste Pra, seu patrão.<br />
O Prefeito Peytard, de La Salette, já havia feito seu inquérito.<br />
O Pároco de Corps também queria fazer o seu. Em seu silêncio,<br />
Pe. Mélin procurava certificar-se do acontecido por si mesmo e<br />
não, apenas, a partir de comentários de outrem.<br />
Juntamente com Maximino e algumas outras pessoas, Pe.<br />
Mélin subiu, então, de Corps até o local da Aparição, no dia 28 de<br />
setembro de 1846. <strong>De</strong> passagem por Ablandens, Melânia juntouse<br />
ao grupo. Ao fim de quatro horas de caminhada chegaram ao<br />
Monte Planeau.<br />
O Padre logo sentiu que o “milagre impregnava a atmosfera”<br />
do alto da Montanha. Chegando lá, o grupo se pôs rezar. Alguns<br />
dentre os visitantes quiseram quebrar a pedra sobre a qual a Bela<br />
Senhora se havia sentado, para levar algum fragmento para casa,<br />
como outros visitantes anteriormente haviam feito. Pe. Mélin,<br />
porém, proibiu que o fizessem e carregou consigo o restante da<br />
pedra para conservá-la em Corps. Seria uma preciosa relíquia no<br />
caso de o evento ser confirmado como verídico.<br />
Carregou consigo também um pouco de água da fonte<br />
milagrosa para dá-la de beber a um doente, durante uma novena<br />
feita pela família, em Corps. A cura aconteceu, mas, o Padre<br />
não se apressou em proclamar o fato como milagre. Agia com<br />
sabedoria e prudência.<br />
55
<strong>De</strong>clarou, por fim, que desde esse dia sua convicção a<br />
respeito da verdade da Aparição estava firmada. Tinha razões tão<br />
convincentes que não podia mais duvidar. Aguardava, porém,<br />
algum milagre complementar que confirmasse a Aparição para<br />
poder falar publicamente a respeito.<br />
Impressionado, constatou também o fato de que as duas<br />
crianças sempre narravam a mesma história.<br />
Pe. Mélin compreendeu que devia informar o Bispo Diocesano<br />
de Grenoble, Dom Philibert, sobre tudo e com exatidão. A 4 de<br />
outubro de 1846 enviou ao Bispo a primeira carta a respeito. A<br />
resposta ao Pároco pedia reserva a respeito dos acontecimentos<br />
enquanto o próprio Bispo não fizesse um exame tão exato quanto<br />
severo do caso. <strong>De</strong>sde então, uma correspondência quase diária<br />
entre ambos foi mantida.<br />
O Pároco de Corps também estava preocupado com a vida<br />
das duas pobres crianças. Não era possível abandoná-las. Tinha<br />
profunda comiseração por ambas, as mais deserdadas de seu<br />
povo e ao mesmo tempo as mais favorecidas pelo Céu. Urgia<br />
dar-lhes instrução e formação. Dar-lhes uma vida digna. Elas<br />
estavam <strong>à</strong> mercê de todos: benfeitores e exploradores.<br />
- “Pobres, ignorantes e desprovidos de tudo, os dois<br />
pastores, logo após a Aparição estiveram <strong>à</strong> mercê de todos. Uns<br />
quiseram encarregar-se deles, com interesse sincero por eles,<br />
outros queriam ter consigo essas crianças para se jactarem ou<br />
para explorá-las, seja em proveito de partidos políticos, seja para<br />
os próprios interesses” (in V. H., II, p.108).<br />
O próprio Maximino mais tarde afirmou:<br />
- “Pessoas de Gap, vendo-nos nesse estado, nos propuseram<br />
durante uma subida <strong>à</strong> santa Montanha, de acompanhá-las, Melânia e<br />
eu, até sua cidade, pois lá cuidariam de nossas necessidades e de nossa<br />
educação. Foram os primeiros a pensar em nos instruir e nos fazer sair<br />
do estado miserável em que estávamos” (in V. H., II, p. 108).<br />
Os dois pastores estavam dispostos a aceitar o convite<br />
para irem a Gap. Pe. Mélin, no entanto, não admitia essa idéia.<br />
Formou seus planos e os expôs ao Bispo de Grenoble, em carta<br />
56
de 19 de novembro de 1846. O Bispo respondeu que também<br />
ele estava preocupado com as duas crianças. Oferecia-se até a<br />
pagar a pensão de Melânia junto <strong>à</strong>s Irmãs da Providência em<br />
Corps, e a de Maximino junto a alguma família. Pe. Mélin, por<br />
fim, conseguiu que os dois ficassem com as Irmãs. Duas delas<br />
tomariam conta das crianças: Irmã Sainte-Thècle e Irmã Sainte-<br />
Valérie. Os videntes teriam, pois, onde viver e ser alfabetizados.<br />
Dom Philisbert de Bruillard assumira a pensão dos dois no<br />
Colégio de Corps. As Irmãs, sobretudo a Superiora, Irmã Sainte-<br />
Thècle, passaram a dar-lhes acurada assistência e formação.<br />
Maximino, sendo órfão de pai e mãe, o tio dele, Templier,<br />
se tornou seu tutor. Com isso, o acompanhamento zeloso de<br />
Maximino por parte de Pe. Mélin se tornou mais difícil.<br />
O Padre, porém, continuou sendo um verdadeiro pai para<br />
o menino. Maximino o chamava efetivamente de “Le bon papa<br />
Mélin”. A Irmã Sainte-Thècle era a mãe de que precisava.<br />
Quando o menino foi infectado pela varíola, o Pároco teve<br />
receio de que ele morresse, mas, por duas vezes ouviu de Melânia<br />
uma palavra de esperança:<br />
- ”Ele não vai morrer por causa dessa doença!”.<br />
Pe. Mélin quis dar lições de latim a Maximino, com a intenção<br />
de enviá-lo ao Seminário mais tarde. Havia, porém, muito<br />
esforço a ser feito para burilar a personalidade de Maximino,<br />
corrigindo não só seus erros de ortografia, mas também seus<br />
defeitos de caráter. O próprio menino, relembrando os tempos<br />
de colégio, confessou:<br />
- “Em vez de aproveitar dos bons exemplos e lições que<br />
recebia no Convento da Providência, eu crescia não em ciência<br />
e sabedoria como Melânia, mas em ignorância e estultice” (in V.<br />
H. II, p.120).<br />
Maximino declarou também que, por causa de suas<br />
frequentes fugas do colégio, Pe. Mélin um dia lhe disse:<br />
- “Meu garoto, não posso mais cuidar de você. Volte para o<br />
lugar de onde veio! Pôs-me <strong>à</strong> porta e eu fui forçado a partir para<br />
junto de meu tio” (inV.H.,II,p.121).<br />
57
Essa atitude de Pe. Mélin foi causa de alegria para Maximino<br />
que, assim, livremente podia passear pelas cidades próximas e<br />
ser recebido com admiração em todas as partes. O tio Templier<br />
sentia-se recompensado com isso, porque poderia explorar a<br />
fama do menino e ganhar dinheiro com eventuais “espetáculos”<br />
que Maximino apresentaria manipulando o evento da Salette.<br />
Foi nesse contexto perverso que, a 22 de setembro de 1850,<br />
aconteceu a viagem de Maximino que resultou no célebre<br />
“Incidente de Ars”. O caso entristeceu muito a Pe. Mélin.<br />
Numa carta, Pe. Mélin declarou que sempre se manteve<br />
circunspeto nos detalhes que dava a respeito da Aparição, seja de<br />
viva voz, seja por escrito, sem jamais, porém, abjurar da verdade<br />
ou faltar <strong>à</strong> coragem nas próprias convicções (V. H., II, p. 154).<br />
Por causa disso passou a suportar incompreensões. Sua<br />
prudência em relação <strong>à</strong> Aparição era mal vista por alguns. Até<br />
mesmo em Grenoble encontrava opositores entre os membros<br />
do Clero.<br />
Outra fonte de problemas para ele foi o pedaço da pedra<br />
sobre a qual assentara a Bela Senhora no início da Aparição.<br />
Era o último pedaço que Pe. Mélin encontrou em sua primeira<br />
subida <strong>à</strong> Montanha da Salette. O restante havia sido levado pelos<br />
peregrinos. O Padre recolheu a pedra como relíquia do evento,<br />
mas, foi acusado de roubo. Ele mesmo declarou:<br />
- “Conservei-a religiosamente não para mim, o que poderia<br />
ter feito, mas para as duas Paróquias que deram <strong>à</strong> Aparição seus<br />
elementos primeiros de maneira providencial: La Salette, o<br />
terreno, e Corps, as crianças” (in V. H., II, p.124).<br />
Dom Philibert encerrou essa polêmica ordenando que o<br />
bloco maior da pedra fosse repassado <strong>à</strong> Paróquia de La Salette, e<br />
alguns fragmentos permanecessem em Corps. Pe. Mélin acabou<br />
repassando tudo a La Salette. Hoje, a pedra se encontra em nicho<br />
especial, no Santuário da Montanha Santa.<br />
Diante de todos esses problemas, um dia Pe. Mélin exclamou:<br />
- “Se essa oposição cessasse, eu mesmo seria obrigado<br />
a me tornar meu próprio opositor para melhor fazer brilhar a<br />
58
sobrenaturalidade desse grande Evento. Se ele é obra de <strong>De</strong>us, é<br />
preciso que sofra contradições e perseguições” (in V.H., II, p.127).<br />
Por sua vez, Maximino afirmou:<br />
- “As calúnias de que Pe. Mélin foi objeto, representam uma<br />
honra para ele, e provam que era exatamente o homem certo<br />
para as circunstâncias suscitadas pelo Evento de 19 de setembro<br />
de 1846” (in V. H., II, p. 127).<br />
Com o Mandamento Doutrinal de Dom Philibert a respeito<br />
da Aparição, a 19 de setembro de 1851, o coração de Pe. Mélin<br />
se dilatou mais ainda de pura alegria. Sentia-se inteiramente<br />
livre para falar a favor da grande graça de Maria a seu povo.<br />
Sua alegria chegou ao cúmulo quando, em maio de 1852,<br />
Dom Philibert subiu a Montanha santa para abençoar a pedra<br />
fundamental do Santuário. Nesse mesmo mês de maio, o Bispo<br />
conferiu a Pe. Mélin o título de Cônego Honorário da Catedral.<br />
A Casa Paroquial de Corps vivia repleta de peregrinos e<br />
doentes que buscavam na Montanha a cura para seus males.<br />
Muitas vezes Pe. Mélin os acompanhava ao local da Aparição.<br />
Quando fosse preciso, ele mesmo socorria os viajantes retidos<br />
na montanha por causa do mau tempo. Acompanhou o Bispo<br />
Dom Ullathorne, de Birminghan, Inglaterra, em maio de 1854.<br />
Novamente acompanhou Dom Philibert, em agosto de 1856<br />
quando, já resignatário, o Bispo queria lá celebrar seus 91 anos<br />
de idade e seus 30 anos de ordenação episcopal. Igualmente São<br />
Julião Eymard, Fundador dos Padres do Santíssimo Sacramento,<br />
natural de La Mure, sentia-se feliz em estar com o Pe. Mélin. Tais<br />
visitas eram para o Pároco de Corps um momento de repouso e<br />
consolo.<br />
Durante os 24 anos de ministério em Corps, o Pároco<br />
dedicou-se até o fundo da alma para o bem do povo e por amor<br />
a Nossa Senhora da Salette. Juntamente com o Pároco de La<br />
Salette, se empenhou de coração na aquisição do terreno para a<br />
construção do Santuário no alto da Montanha.<br />
Apesar de todas as preocupações que os videntes lhe davam,<br />
Pe. Mélin amava ternamente as duas crianças. Teve sempre<br />
59
grande interesse por elas e, depois que elas partiram de Corps,<br />
frequentemente lhes enviava cartas. Um dia ele escreveu:<br />
- “Muitas pessoas gostariam de vê-las mais místicas, ao<br />
menos mais perfeitas. A Santa Virgem, porém, deixou-as em sua<br />
própria natureza. Temos que nos contentar com isso. O que Ela<br />
pôs nelas é como uma laranja num vaso. A laranja não transforma<br />
o vaso, não o torna mais cristalino se for de simples vidro. Mas,<br />
o vaso deixa ver fielmente a laranja” (in V.H., II, p. 168).<br />
Dom Ullathorne, Bispo de Birminghan, ao visitar La Salette<br />
em 1854, deixou o seguinte testemunho a respeito do Pe. Mélin:<br />
- “Esse digno eclesiástico é um homem de espírito sólido<br />
e de extrema prudência. Poucas pessoas são tão respeitáveis. É<br />
providencial o fato de que tal Padre se tenha encontrado nesses<br />
lugares, e com tal autoridade, para acompanhar desde o começo,<br />
toda essa questão de La Salette, moderar o zelo que em torno<br />
dele se desenvolvia, e exercer uma vigilância paterna sobre os<br />
pequenos videntes” (in V.H., II, p. 91-92).<br />
Em 1865 o Pe. Mélin voltou <strong>à</strong> Catedral de Grenoble. Morreu<br />
a 19 de junho de l874.<br />
Por ocasião de seu falecimento, o periódico “Les Annales...”<br />
publicou o seguinte elogio fúnebre:<br />
- “Pe. Mélin foi um dos primeiros e mais inteligentes<br />
apóstolos do culto a Nossa Senhora da Salette” (in V.H., II, p.<br />
169).<br />
O Pároco de Corps se doou pela conversão de seu povo. A<br />
imensa torrente de conversões, em La Salette, em Corps, e pela<br />
Europa afora, nele suscitava sentimentos de profunda admiração<br />
e louvor a <strong>De</strong>us por essa graça concedida por intermédio do Fato<br />
da Salette.<br />
A torrente de águas vivas de Reconciliação se tornava a marca<br />
maior desse extraordinário acontecimento. Só <strong>De</strong>us conhece o<br />
número e a identidade dos que encontraram o caminho de vida<br />
nova nas sendas montanhosas que levam <strong>à</strong> Montanha da Salette.<br />
Ontem e hoje. Na Europa e no mundo inteiro. Entre simples e<br />
humides. Entre nobres e intelectuais.<br />
60
Na França, particularmente, no meio da multidão dos que<br />
encontraram a <strong>De</strong>us pela graça do Fato da Salette, tomou vulto<br />
significativo um considerável grupo de reconhecidos intelectuais<br />
que, direta ou indiretamente, beberam da fonte das águas de<br />
vida da Salette e, pela graça da Bela Senhora das Dôres e da<br />
Compaixão, da Solidariedade e da Solidão, da Misericórdia e da<br />
Reconciliação, abraçaram a Cruz do Cristo Morto e Ressucitado<br />
presente sobre o coração da Mãe do Senhor: Léon Bloy, escritor<br />
e polemista, o filósofo Jacques Maritain e sua esposa Raïssa,<br />
Pedro Termier, o geólogo, Van der Meer, Stanislas Fumet, Ernest<br />
Psichari, Paul Claudel, o sublime poeta, e outros mais.<br />
Duas perspectivas de espiritualidade influenciaram de<br />
certo modo, na conversão desses intelectuais: a espiritualidade<br />
da reparação dos pecados e a espiritualidade apocalíptica da<br />
regeneração universal.<br />
A segunda, particularmente, distorceu o Fato da Salette. A<br />
França, desde a revolução de 1879, sofria gravemente do mal<br />
do pessimismo derrotista, originado pelos transtornos políticos<br />
e religiosos que o país vivia. Precisava de conversão.<br />
O evento da Salette infelizmente foi utilizado, nesse<br />
contexto, como esteio para justificar o pensamento apocalíptico<br />
dos que imaginavam e realçavam supostas ameaças e castigos<br />
divinos mais do que a misericordiosa compaixão do Senhor<br />
testemunhada pela Bela Senhora.<br />
Quando Leon Bloy morreu, em 1917, o Fato da Salette se<br />
havia tornado para ele a chave de leitura de todas as desgraças<br />
históricas daquela época, e a fonte do sentido de todos os<br />
sofrimentos que a França, esquecida de <strong>De</strong>us e de Maria, vivia<br />
naquele tempo.<br />
Entre as numerosas personalidades que tiveram alguma<br />
relação com a Salette, está um brasileiro, o Professor Doutor<br />
Newton Freire-Maia, geneticista de renome, que ao final de longo<br />
percurso pelos caminhos do agnosticismo, reencontrou, como<br />
“ateu <strong>à</strong> procura de <strong>De</strong>us” conforme ele mesmo se denominava, a<br />
fé católica recebida na infância. Nesse longo e complexo processo<br />
61
espiritual, vivido, porém, na esperança de encontrar a luz, e não<br />
segundo a visão trágica da história sufocada pela escuridão, a Bela<br />
Senhora da Salette exerceu sobre Newton, maravilhoso influxo<br />
por sua graça reconciliadora, conforme ele mesmo acena em sua<br />
autobiografia “O QUE PASSOU E PERMANECE”, p. 271-278;<br />
281-282. Como cientista, Newton possuía uma firme convicção a<br />
propósito da teoria evolucionista. Tinha, pois, um espírito aberto<br />
ao novo e belo que o processo evolutivo possibilita no universo. A<br />
descoberta do pensamento teológico e científico de Pe. Teilhard de<br />
Chardin SJ, um evolucionista convicto que propôs o conceito de<br />
“evolução criadora”, deu a Newton a necessária e ampla abertura<br />
para abraçar plenamente a fé que procurava.<br />
É imensa a multidão, segundo a imagem do Apocalipse,<br />
congregada junto ao trono do Cordeiro, banhada pela<br />
transbordante misericórdia nascida no coração do Pai e<br />
derramada pela Mãe da Salette.<br />
O Santuário da Montanha de La Salette se tornou o<br />
repositório dessas maravilhas que Maria cantou em seu<br />
Magnificat, maravilhas que se multiplicam pelo braço benigno e<br />
reconciliador do Senhor, estendido sobre seu Povo.<br />
62<br />
CAPÍTULO VI<br />
ALVO DE MUITAS BUSCAS<br />
As duas crianças falavam da Aparição quando eram interrogadas.<br />
Aos curiosos por saberem do “segredo” que a Bela Senhora<br />
lhes havia confiado durante a Aparição, a “palavra pessoal”<br />
que dela carinhosamente receberam, sempre davam respostas<br />
surpreendentes. Assumiam uma intrepidez heróica e uma tenacidade<br />
insuperável diante das pressões sofridas para revelar o que era seu,<br />
exclusivamente seu. Por mais hábeis que fossem as perguntas, mais<br />
impressionantes eram as respostas. Não levavam em consideração<br />
se se tratava de amigos, parentes, Padres ou Bispos.
Um determinado senhor disse a Maximino:<br />
- “Você se pôs de acordo com Melânia para contar essa<br />
história e ganhar dinheiro com isso!”.<br />
Maximino lhe respondeu:<br />
- “Pois bem, já que o senhor afirma isso, diga então, quanto<br />
dinheiro recebemos?”.<br />
Diante da surpresa de alguns por causa das prontas e<br />
inteligentes respostas a perguntas feitas, Maximino explicou:<br />
- “As respostas surgem espontaneamente na hora, e sempre<br />
de acordo com as perguntas feitas” (in CARLIER, p. 75).<br />
O Pe. Arbaud dizia:<br />
- “As respostas de Melânia e de Maximino são tão<br />
espirituosas, tão incisivas, tão naturais que me parecem mais<br />
extraordinárias que o próprio Evento...” (in CARLIER, p. 75).<br />
Quando um sacerdote perguntou a Melânia se ela contaria<br />
seu “segredo” ao Padre, quando faria sua Primeira Comunhão,<br />
ela respondeu:<br />
- “Meu segredo não é pecado!” (in CARLIER, p. 76).<br />
Perguntaram-lhe ainda:<br />
- “Como você pode guardar toda essa história que você<br />
ouviu só uma vez? Eu a ouvi por três vezes de sua parte e não<br />
sou capaz de repeti-la”.<br />
Melânia respondeu:<br />
- “Se a Santa Virgem lha tivesse dito, o senhor a saberia” (in<br />
CARLIER, p. 77).<br />
Disseram-lhe:<br />
- “Enfim, você pode ter-se enganado!...”.<br />
A resposta veio rápida:<br />
- “E a FONTE, senhor, por que está lá?” (in CARLIER, p. 78).<br />
Um professor de Seminário disse a Melânia que o<br />
personagem que ela havia visto talvez fosse o demônio. A<br />
resposta foi imediata e contundente:<br />
- “Senhor, o demônio não carrega cruz!” (in CARLIER, p. 78).<br />
Um Padre de Gap objetou a Maximino que a “Senhora”<br />
desapareceu numa nuvem. Maximino afirmou:<br />
63
- “Não havia nuvem alguma!”.<br />
- “Mas é fácil envolver-se numa nuvem e desaparecer...”<br />
- “Senhor, queira, então, envolver-se numa nuvem e<br />
desaparecer...” (in CARLIER, p. 78).<br />
A 22 de maio de 1847, as duas crianças foram convocadas<br />
pelo Tribunal de Grenoble para comparecer perante o Juiz de<br />
Paz, em Corps. Era preciso explicar os fatos que após a Aparição<br />
estavam perturbando a paz da população.<br />
Não era permitida a presença de outras pessoas na sessão.<br />
Os dois videntes, porém, saíram-se muito bem, apesar das<br />
ameaças e dos severos interrogatórios, tanto em conjunto quanto<br />
em separado.<br />
O silêncio do Pároco, Pe. Mélin, que não compareceu ao<br />
processo, serviu para que as próprias crianças se defendessem e<br />
deixassem a verdade vir <strong>à</strong> tona.<br />
Ao mesmo tempo em que circulavam na imprensa críticas<br />
mordazes contra a Aparição, como faziam o jornal “Le Patriote<br />
des Alpes”, de Grenoble, “Le siècle” e “L´Univers” de Paris,<br />
apareciam também opiniões mais precavidas, bem como relatórios<br />
sobre investigações sérias a respeito dos acontecimentos, sobre<br />
interrogatórios rigorosos feitos aos dois videntes, e sobre as<br />
repercussões do “Fato da Salette” como já era denominado.<br />
Antes mesmo do pronunciamento oficial do Bispo de<br />
Grenoble, Dom Philibert de Bruillard, a 19 de setembro de<br />
1851, declarando a autenticidade da Aparição, diversas pessoas,<br />
logo após o evento, haviam tomado a iniciativa de fazerem,<br />
isoladamente e por conta própria, investigações sobre os<br />
acontecimentos de La Salette.<br />
São vários os relatórios particulares. Entre os mais valiosos<br />
estão:<br />
1. Relatório Jéan-Baptiste Pra: é o primeiro escrito sobre<br />
a Aparição, datado do anoitecer do dia seguinte <strong>à</strong> mesma, 20<br />
de setembro de 1846, feito a partir da narrativa de Melânia em<br />
Ablandens, e assinado por Jéan-Baptiste Pra, Pierre Selme e<br />
Jéan Moussier.<br />
64
2. Relatório de José Laurent, de Corps, em dezembro de 1846.<br />
. Notas do Pe. François Lagier, Pároco de Saint-Oierre-de-<br />
Cherennes, nascido em Corps em 1806. Sua presença em Corps,<br />
durante o inverno de 1846-1847, foi de valor inestimável. Chegou<br />
incrédulo a respeito da Aparição, e partiu convicto a respeito,<br />
deixando escritas as certezas por ele adquiridas nesse tempo,<br />
ao final de três longas entrevistas com os dois videntes, entre<br />
fevereiro e março de 1847. Era um investigador competente.<br />
Seus questionamentos foram insistentes e penetrantes. Conhecia<br />
muito bem o “patois” de Corps e, por isso, entendia-se muito<br />
espontaneamente com as duas crianças (in BASSETTE, p. 37s).<br />
4. Relatório F. Long, Tabelião e Juiz em Corps, elaborado<br />
em 1847.<br />
5. Relatório Pe. Lambert, de 29 de maio de 1847. Pe.<br />
Lambert era Vigário em Nîmes. Passou seis dias em La Salette<br />
entrevistando Melânia e Maximino, na presença de seis<br />
testemunhas.<br />
6. Notas de Mlle. <strong>De</strong>s Brulais, Diretora de um pensionato<br />
em Nantes. Foi a La Salette a 10 de setembro de 1847 e para lá<br />
voltou por mais vezes durante os sete anos seguintes, passando<br />
meses em Corps, ouvindo e interrogando Maximino e Melânia.<br />
O resultado de suas entrevistas, feitas com fina sensibilidade<br />
feminina e competente psicologia de professora, deixou uma<br />
obra intitulada “L´Echo de la Sainte Montagne”, publicado em<br />
1852 (in JAOUEN, p. 96).<br />
7. Relatório Villecourt, Bispo de La Rochelle, em 1847 (in<br />
CARLIER, p. 58).<br />
8. Relatório de Pe. Rousselot, de 1848, resultado da pesquisa<br />
oficial feita por Rousselot-Orcel, a pedido do Bispo de Grenoble<br />
(in BASSETTE, p. 72s).<br />
9. Documento de Mons. Dupanloup. Trata-se da<br />
correspondência a um amigo, datada de 11 de junho de 1848.<br />
Nela Dupanloup, Bispo de Orléans, Padre Conciliar do Vaticanio<br />
I em 1870, e um dos mais respeitados educadores do séc. XIX,<br />
na França, relatou os encontros com Maximino e Melânia. A<br />
65
entrevista com Maximino se prolongou por quatorze horas. O<br />
diálogo exigente e inteligente com o menino é de uma dignidade<br />
e inspiração extraordinária. <strong>De</strong> começo mal impressionado<br />
com a rudeza dos videntes, Dupanloup terminou mostrandose<br />
vencido pela candura, transparência, firmeza e veracidade<br />
das duas crianças. Trata-se de documento de grande valor para<br />
firmar a crença na verdade do Fato da Salette (in BACCELLI, p.<br />
54-60; BASSETTE, p. 160s; CARLIER, p. 79-81).<br />
Muitas outras investigações foram realizadas junto aos dois<br />
videntes.<br />
66<br />
CAPÍTULO VII<br />
GRENOBLE: A PALAVRA DA IGREJA<br />
O governo da Diocese de Grenoble, a que pertence LA<br />
SALETTE, exerceu insubstituível papel na afirmação da<br />
Aparição de 19 de setembro de 1846. A Diocese era dirigida por<br />
Dom Philibert de Bruillard.<br />
1 - Um modelo de Bispo<br />
Dom PHILIBERT DE BRUILLARD, Bispo de Grenoble<br />
e Fundador dos Missionários de Nossa Senhora da Salette, era<br />
um Pastor de espírito vivaz, penetrante, e de atividade intensa.<br />
<strong>De</strong> atitudes aristocráticas, tinha um bom coração e uma forte<br />
espiritualidade mariana. Era um octogenário por ocasião da<br />
Aparição. Viu surgirem e desaparecerem diversos governos<br />
francêses. Nasceu sob o “Ancien Regime”, a monarquia real, e<br />
morreu sob o 2º Império. Durante a Revolução Francesa teria dado<br />
a absolvição final ao Rei Luis XVI ao ser condenado <strong>à</strong> morte.<br />
Durante seu episcopado em Grenoble, a Bela Senhora<br />
apareceu nas montanhas de La Salette. Foi justamente chamado<br />
“o primeiro Bispo de Nossa Senhora dos Alpes”.
“Ele viu as tempestades se dissiparem, e se estabelecer,<br />
enfim, de forma pacífica, a verdade a respeito da Aparição<br />
extraordinária de Maria aos pequenos pastores. Hoje, graças<br />
a ele, a Salette parece para sempre firmada” (in “Journal<br />
Réligieux”, de Muret, março de 1861, pg. 162: “Monseigneur<br />
Philibert de Bruillard”).<br />
Segundo o estudo biográfico a respeito de Dom Philibert,<br />
apresentado por Jacques-Olivier Boudon no Colóquio<br />
organizado pelo Institut Catholique de Paris, em setembro de<br />
1996, por ocasião do 150º Aniversário da Aparição em Salette,<br />
e publicado na coletânea “La Salette, Apocalypse, Pèlerinage et<br />
Littérature” (1856-1996), sob o título “L´évêque de La Salette,<br />
Mgr. <strong>De</strong> Bruillard”, ps. 49-62, o Bispo, em sua visão teológica,<br />
acentuava “uma religião severa, marcada pela austeridade”.<br />
Segundo Boudon, Nossa Senhora da Salette, para Dom Philibert,<br />
“é certamente uma mediadora, mas de um <strong>De</strong>us que continua<br />
como <strong>De</strong>us do castigo... O Bispo de Grenoble não esquece que<br />
a mensagem passada em La Salette é uma advertência, isto é,<br />
uma ameaça”.<br />
Boudon afirma, ainda, que coube a Dom Ginoulhiac,<br />
sucessor de Dom Philibert, “privilegiar essa aparição marial mais<br />
do que sua mensagem a ser transmitida, donde o surgimento de<br />
uma peregrinação em que predomina a esperança mais do que o<br />
medo” (id. ib.).<br />
Consequentemente, na Instrução Pastoral e Mandamento de<br />
4 de novembro de 1854, Dom Ginoulhiac afirma que a Salette<br />
“não é uma nova doutrina... mas uma nova graça”. Significa que<br />
os elementos doutrinais contidos na Mensagem são os mesmos<br />
que a Tradição da Igreja sempre ensinou, mas, que a Aparição é<br />
de fato, um novo gesto da bondade de <strong>De</strong>us.<br />
Uma velha lenda diz que Philibert seria filho natural do Rei<br />
Luis XV. Segundo o Pe. Jean Stern, conceituado estudioso do Fato<br />
da Salette, Louis Bassette, em sua obra “Les origines familiales<br />
de Monseigneur Philibert de Bruillard”, publicada em 1975 e<br />
assentada sobre importante documentação, desautorisa essa lenda.<br />
67
Philibert nasceu em Dijon, a 12 de setembro de 1765. Era o<br />
sexto dentre os oito filhos do agricultor Antoine Braillard com<br />
Étiennette Muzelier. Foi batizado no mesmo dia do nascimento,<br />
com o nome de Philibert Brailliard. O pai faleceu a 3 de março<br />
de 1770, aos quarenta e cinco anos de idade, depois de perder<br />
quatro filhos. Viúva aos trinta e quatro anos, a mãe se dedicou<br />
aos outros quatro filhos órfãos de pai. Philibert tinha então quatro<br />
anos e meio de idade.<br />
O passado de Philibert tem, no entanto, algo que se perde no<br />
tempo. Com cinco anos de idade foi levado a Paris. Lá entrou no<br />
Colégio de Navarre, fundado em 1304, pela Rainha Jeanne de<br />
Navarre, esposa de Felipe o Belo, para acolher crianças pobres.<br />
Aos onze anos de idade, o menino Philibert fez a Primeira<br />
Comunhão e recebeu a Crisma. Entrou, depois, no Seminário.<br />
Como e porque Philibert teria mudado o sobrenome de<br />
“Braillard”, sobrenome do pai, para Brailliard, adotado no<br />
Batismo, e finalmente, para o de “Bruillard”, adotado mais tarde?<br />
Na época a grafia de nomes próprios era variável. Como o<br />
sobrenome “Braillard”, e depois, Brailliard, não assentava bem<br />
porque lembrava o ato de “vociferar” (em língua francêsa),<br />
Philibert mudou a primeira vogal de “a” para “u”, o que já tinha<br />
acontecido com a mãe que se chamava “Étiennette Muzelier<br />
Bruillard”. Assim mesmo, a grafia deste sobrenome tardou a se<br />
fixar, pois como Padre, Philibert ainda fez uso da grafia “Bruyarre”.<br />
Em 1780 decidiu entrar no Seminário Maior, chamado<br />
“Comunidade de Laon”, na Rua Montagne Sainte-Geneviève,<br />
em Paris. Os Padres Sulpicianos dirigiam a instituição. Foi<br />
colega do futuro Bispo de Chartres, Dom Frayssinous que, de<br />
1824 a 1827, foi também Ministro de Assuntos Eclesiásticos e<br />
da Instrução Pública, junto ao Governo Francês.<br />
No Colégio, a formação intelectual e espiritual era muito<br />
exigente. Parece que a espiritualidade se voltava mais para o<br />
“aniquilamento” na visão de <strong>De</strong> Bérulle, fundador da famosa<br />
Escola Francesa de Espiritualidade. Em 1790, Philibert obteve o<br />
Bacharelado e a Licença em Teologia, provavelmente na Sorbonne.<br />
68
Antes, a 19 de setembro de 1789, o seminarista Philibert,<br />
ligado <strong>à</strong> sua Diocese de origem, Dijon, foi ordenado Sacerdote<br />
na Capela do Arcebispado de Paris. Como jovem Padre foi<br />
“Repetidor” de Filosofia e Teologia junto aos alunos do<br />
Seminário, em Paris. Durante o “período do terror” da Revolução<br />
Francesa, foi nomeado “Capelão da guilhotina”. Como tal dava<br />
assistência religiosa aos condenados <strong>à</strong> morte durante os anos da<br />
guerra civil.<br />
Alguns dos Sacerdotes, colegas seus de Seminário, foram<br />
mortos por agentes da Revolução Francesa de 1789. Em 1793 foi<br />
encarregado de se posicionar junto <strong>à</strong> rua por onde passavam as<br />
viaturas que levavam os condenados <strong>à</strong> guilhotina, para ministrarlhes<br />
discretamente a absolvição suprema. Entre os condenados<br />
se incluía o Rei Luis XVI.<br />
A vida do Pe. Philibert foi repleta de devotamento e riscos.<br />
Mesmo no período de Terror, percorria a cidade para confessar os<br />
doentes e levar o Viático aos moribundos. Para livrar-se da prisão,<br />
em determinado momento, buscou refúgio junto a amigos.<br />
Durante o verão de 1793, o Terror se intensificou. A<br />
prudência levou o Padre a mudar de identidade. Por duas vezes os<br />
revolucionários investigaram sua moradia. Recebeu a polícia com<br />
tanta polidez que os guardas deixaram-no em paz. Incorporado <strong>à</strong><br />
Guarda Nacional, o uniforme militar facilitava, de certa forma,<br />
seu ministério sacerdotal. Doava-se inteiramente a si mesmo em<br />
seu trabalho pastoral, e doava o que possuía. Precisou tornar-se<br />
professor de latim, francês, música e aritmética para sobreviver.<br />
Sempre sob o olhar vigilante do poder revolucionário. Apesar<br />
disso, discretamente acompanhava as carretas dos condenados ao<br />
cadafalso. Teve a felicidade de reconciliar inúmeras pessoas com<br />
<strong>De</strong>us nesse momento supremo. No meio dessas cenas de horror,<br />
entregava-se <strong>à</strong>s mãos de Maria Santíssima. Sua vida de jovem<br />
Sacerdote foi muito sofrida, mas, de devotamento incansável.<br />
Muitas Religiosas, expulsas de seus Conventos, foram<br />
obrigadas a fundar pequenas escolas para sobreviverem. As<br />
escolas se tornaram, a partir de 1815, berço de novas Comunidades<br />
69
Religiosas. Pe. Philibert foi nomeado Capelão de muitas delas. Nesse<br />
ministério teve, em 1790, a graça de se tornar Diretor Espiritual<br />
daquela que, um dia, seria invocada como Santa Madalena Sofia<br />
Barat, Fundadora das “Irmãs do Sacré-Coeur de Jésus”.<br />
Mais tarde, ao fim de sua vida, depois de seu afastamento da<br />
Diocese, Dom Philibert seria acolhido numa Comunidade dessa<br />
mesma Congregação, em Montffleury, perto de Grenoble.<br />
Providencialmente, Pe. Philibert teve contacto com muitos<br />
santos e mártires da Revolução Francesa.<br />
Quando os dias terríveis da Revolução acabaram, o culto<br />
religioso foi restabelecido conforme a Concordata de 15 de julho<br />
de 1801, entre Napoleão e o Papa Pio VII.<br />
Padre Philibert serviu, então, com grande zelo pastoral<br />
<strong>à</strong> Paróquia de Saint-Sulpice. Em 1803 foi nomeado Cônego<br />
Honorário da Metrópole. Como tal assistiu a coroação de<br />
Napoleão na Igreja de Notre-Dame, a 2 de dezembro de 1803.<br />
O novo clima de relações entre o Imperador e a Santa Sé não<br />
impediu que a ambição pelo poder levasse Napoleão a invadir os<br />
Estados Pontifícios, a prender o Papa e deportá-lo para a França.<br />
O Pe. Bruillard era um pregador memorável. Em 1810 assumiu<br />
a Paróquia de Saint-Nicolas-du-Chardonet, onde trabalhou durante<br />
dez anos. <strong>De</strong>pois passou por outras Paróquias em Paris.<br />
Era considerado como candidato ao Episcopado. Sem nunca<br />
ter cobiçado essa missão, e mantendo-se sempre no humilde<br />
e serviçal pastoreio sacerdotal, o Pe. Philibert, aos 60 anos de<br />
idade, foi nomeado Bispo de Grenoble, a 28 de dezembro de<br />
1825, com a anuência do Rei Carlos X.<br />
Dom Frayssinous, Ministro dos Assuntos Eclesiásticos,<br />
exerceu uma influência decisiva na nomeação de Pe. Philibert para<br />
o episcopado. A Concordata previa que, na França, a escolha de<br />
Bispos era feita pelo Rei, e sua instituição canônica cabia ao Papa.<br />
A ordenação episcopal do Pe. Philibert aconteceu a 6 de<br />
agosto de 1826. A 11 de agosto Dom Philibert prestou juramento<br />
entre as mãos do Rei Carlos X.<br />
Antes de partir de sua Paróquia, em Paris, o novo Bispo,<br />
70
Dom Philibert, participou de diversas solenidades oficiais.<br />
<strong>De</strong>spediu-se da Capital da França deixando a lembrança de um<br />
sacerdote modelar, muito caridoso e bondoso.<br />
<strong>De</strong> Paris havia enviado a Grenoble uma Carta Pastoral datada<br />
do dia de sua ordenação episcopal. Nessa Carta o Bispo utilizou,<br />
pela primeira vez, a assinatura que conservou pelo restante de<br />
sua vida: “Philibert DE Bruillard”.<br />
O “DE” era designativo de nobreza, uma vez que os Bispos,<br />
pela legislação civil em vigor, recebiam o título de “Barão”.<br />
Nessa carta declarou que tomava como modelo a São Francisco<br />
de Sales em sua doçura de coração, mas sem deixar de lado a<br />
firmeza necessária que o episcopado exige.<br />
Chegando a Grenoble, recebeu calorosa acolhida, a 21 de<br />
agosto de 1826. A 25 de agosto, da cátedra, pediu a todos que<br />
excusassem sua “confusão de idéias” (V. H, II, p. 48), fruto da<br />
fadiga da longa viagem e das emoções vividas.<br />
Contemplando uma estátua da Virgem Maria afirmou:<br />
- “Creio que posso testemunhar – e com muita alegria – que<br />
faço parte do número de seus filhos; espero que Ela não deixe de<br />
ser minha Mãe para sempre” (V. H. II, p. 49).<br />
A Diocese de Grenoble contava com cerca de meio milhão<br />
de habitantes, em sua maioria agricultores e criadores de gado.<br />
Tinha 509 Paróquias e 519 Padres.<br />
A cidade de Grenoble, fundada pelo Imperador romano<br />
Graciano, no século IV, tinha cerca de 80 mil habitantes. A maior<br />
parte deles residia dentro das muralhas da cidade. Grandes<br />
intelectuais fazem parte de sua história, inclusive o romancista<br />
Stendhal e o arqueólogo Champollion.<br />
Um ano após a chegada de Dom Philibert, o clima de<br />
Grenoble lhe causou sofrimentos, o que, por algum tempo, o<br />
obrigou a se retirar para Marselha. Pensou, até, em apresentar<br />
sua demissão, mas, as pressões levaram-no a desistir da idéia.<br />
Retomou com firmeza o trabalho episcopal e assim, por mais de<br />
um quarto de século, foi o Bom Pastor da Diocese de Grenoble,<br />
sem mais levar em conta as próprias fragilidades.<br />
71
Visitava com regularidade e zelosamente todas as Paróquias<br />
da Diocese. Empregou todos os seus recursos financeiros pessoais<br />
na ajuda aos pobres, na restauração de Igrejas, na fundação de<br />
pias instituições e na reforma da Catedral. Recebeu a Cruz de<br />
Cavaleiro e a de Oficial da Legião de Honra. Em 1828 reuniu um<br />
Sínodo Diocesano, instituiu um sistema de visitas pastorais <strong>à</strong>s<br />
Paróquias e incentivou as Missões Paroquiais. Preocupou-se com<br />
a formação de seus Padres. As Congregações Religiosas, pouco<br />
numerosas antes, cresceram sensivelmente na Diocese. Tomou<br />
cuidado para evitar amarras com o poder político. Acolheu<br />
devidamente o Príncipe Presidente na Catedral de Grenoble, a<br />
22 de setembro de 1852. Substitui o “Catecismo Imperial” pelo<br />
“Catecismo Diocesano”. Por ocasião de grandes calamidades<br />
naturais na região, incentivou o povo <strong>à</strong> solidariedade para com a<br />
população sofredora.<br />
Apesar de influenciado pelo galicanismo, manteve muita<br />
lealdade ao Papa. Sua espiritualidade cristocêntrica foi marcada<br />
por forte acento mariano, o que equilibrou sua tendência rigorista.<br />
Isso o predispôs a ver com muita simpatia o evento da Salette.<br />
A grande recompensa de sua vida foi a Aparição de Maria<br />
em La Salette. Mais do que ninguém foi o escolhido pela Virgem<br />
Mãe para dar sua chancela definitiva ao grandioso evento de<br />
19 de setembro de 1846, o evento mais extraordinário que<br />
experimentou em sua longa vida.<br />
72<br />
2 - Primeiras informações<br />
Era preciso levar o Fato da Salette ao conhecimento pleno e<br />
preciso de Dom Philibert. Ao Pe. Mélin, como <strong>De</strong>cano da região<br />
de Corps, incumbia a tarefa de informar o Bispo Diocesano.<br />
A partir de 4 de outubro de 1846, quinze dias após a<br />
Aparição e seis dias após sua chegada a Corps como Pároco,<br />
Pe. Mélin começou a enviar informações ao Bispo. Na primeira<br />
correspondência, relatou que havia interrogado as crianças,<br />
juntas e separadamente, e que elas sempre diziam a mesma
coisa apesar das ameaças ou promessas. Acrescentou que, por<br />
isso mesmo, logo entendeu que não se tratava de fantasia da<br />
parte delas.<br />
Informou também ao Bispo que a primeira idéia do povo<br />
da região era a de construir um oratório no local da Aparição,<br />
e que a pedra sobre a qual a Bela Senhora havia sentado, fora<br />
feita em pedaços levados como lembrança pelos visitantes. A<br />
própria relva do trajeto pelo qual a Bela Senhora andou, havia<br />
sido cortada e, aos punhados, levada pelos visitantes como algo<br />
sagrado. Pe. Mélin dizia, ainda, que o povo interpretava o evento<br />
como uma aparição da Virgem Maria. Finalizando a carta, Pe.<br />
Mélin afirmou:<br />
- “Minha convicção pessoal, depois de tudo que pude<br />
recolher como prova, não difere da dos fiéis. Creio que essa<br />
advertência é um grande dom dos céus. Não preciso de outros<br />
prodígios para crer. Meu desejo muito sincero é que o Bom<br />
<strong>De</strong>us, em sua misericórdia, realize alguma nova maravilha para<br />
confirmar a primeira” (in V. H., I, p. 100).<br />
A 4 de novembro de 1846, Pe. Mélin, em nova carta ao<br />
Bispo, comunicou-lhe que, até aquele dia, mais de duas mil<br />
pessoas haviam subido ao monte da Aparição, e que o povo,<br />
incentivado pelas maravilhas que aconteciam, queria construir<br />
uma capela no lugar da Aparição.<br />
Não se haviam passado três semanas ainda depois da Aparição,<br />
que ela já era difundida de maneira distorcida, acompanhada de<br />
caricaturas horríveis e de cantilenas impregnadas de ofensiva ironia.<br />
Para impedir que essas falsidades desviassem a fé do povo,<br />
bem como para dar uma resposta aos Padres que solicitavam<br />
uma orientação a propósito do fato, Dom Philibert de Bruillard,<br />
a 9 de outubro de 1846, enviou ao Clero da Diocese uma Circular<br />
pela qual ordenava a observância da norma que ele mesmo havia<br />
anteriormente publicado, com os seguintes dizeres:<br />
- “Proibimos, sob pena de suspensão ipso facto, declarar,<br />
imprimir ou publicar algum novo milagre, sob qualquer pretexto<br />
de notoriedade que ele possa ter, a não ser em virtude da autoridade<br />
73
da Santa Sé ou da nossa, depois de um exame que deverá ser exato e<br />
severo. Ora, não nos pronunciamos a respeito dos acontecimentos<br />
de que se trata. A sabedoria e o dever vos obrigam, pois, <strong>à</strong> maior<br />
reserva e, sobretudo, a um silêncio absoluto em relação a esse<br />
assunto, na tribuna sagrada” (in STERN, 1, p.57).<br />
Acrescentou, ao final, que nem as imagens nem as cantilenas<br />
em questão, haviam sido aprovadas por ele, antes o contrariavam<br />
grandemente, e que, severa e formalmente, as reprovava.<br />
Em fevereiro de 1847, Pe. Mélin recebeu um texto intitulado<br />
“Addition”. Tratava-se de um “Acréscimo” <strong>à</strong> Mensagem da<br />
Salette, enviado pelo Pe. Léopold Baillard. O texto descrevia<br />
os pecados que provocavam a cólera de <strong>De</strong>us, as catástrofes<br />
que atingiriam algumas grandes cidades da França, bem como<br />
os Ministros do Senhor que não cumpriam com seu dever.<br />
Alarmado, Pe. Mélin enviou o texto a Dom Philibert.<br />
Em resposta a 3 de março de 1847, o Bispo afirmava que<br />
no texto do “Addition” havia algumas coisas que lembravam,<br />
sim, o Fato da Salette. Acrescentava, porém, que era preciso ter<br />
cuidado com as afirmações do texto porque podiam ser mero<br />
fruto de desequilíbrio psíquico.<br />
Na verdade, Pe. Léopold e seus dois irmãos, também<br />
Sacerdotes, pouco mais tarde deixaram o ministério e se<br />
juntaram <strong>à</strong> seita de Vintras, bastante difundida na França no séc.<br />
XIX. Os adeptos da seita haviam caído na “mariolatria”, pois<br />
consideravam Maria como a 4ª Pessoa da Santíssima Trindade.<br />
O texto chamado “Addition” favoreceu, segundo Pe. Jean Stern,<br />
o surgimento da questão dos “Segredos da Salette” (STERN, p. 33).<br />
Reticências e recriminações a respeito da Aparição chegavam<br />
a Dom Philibert, até mesmo da parte do Governo Francês. O<br />
Tribunal de Grenoble fez suas investigações. O Ministro da<br />
Justiça e dos Cultos queixava-se a propósito do Fato da Salette e<br />
ameaçava seus seguidores.<br />
A 12 de junho de 1847, em carta a Dom Philibert, o Ministro<br />
denunciava a distribuição de gravuras da pretensa aparição, e<br />
de folhetos contendo o prenúncio de uma grande fome e de<br />
74
assustadora mortalidade infantil. Assinalava também o pedido<br />
da Bela Senhora para que os agricultores não semeassem trigo,<br />
pois uma praga agrícola o prejudicaria ao ser debulhado. Ora,<br />
semelhante palavra, segundo o Ministro, só poderia trazer<br />
funesto resultado para a economia rural do país e comprometer<br />
a tranqüilidade pública.<br />
O Bispo quis tranqüilizar o Ministro dizendo-lhe que<br />
semelhantes publicações não eram suas, nem tinham sua<br />
aprovação, uma vez que o fato de La Salette não havia sido<br />
devidamente analisado pela autoridade eclesiástica.<br />
Nesse entretempo, Pe. Mélin mantinha o Bispo<br />
constantemente informado. A 12 de outubro desse mesmo ano,<br />
escreveu a ele dizendo-lhe que o evento da Salette preocupava<br />
a todos e continuava realizando maravilhas, i.e., que o povo<br />
participava intensamente dos ofícios religiosos na Paróquia de<br />
Corps, que havia deixado de trabalhar nos domingos, e que<br />
um grande número de visitantes subia a montanha da Aparição,<br />
rezando ao longo do trajeto.<br />
A 4 de novembro de 1847, em nova carta ao Bispo, o<br />
Pe. Mélin afirmava que a Aparição assumia cada vez maior<br />
consistência, que ele mesmo recebia grande quantidade de<br />
correspondências, e que numerosos visitantes, provenientes de<br />
muitos lugares, tomavam conta da Casa Paroquial em Corps.<br />
Segundo a informação, cerca de quatrocentas pessoas haviam<br />
interrogado as duas crianças, e mais de duas mil haviam visitado<br />
a Montanha. Concluía a carta afirmando:<br />
- “<strong>De</strong>sejo ardentemente que esse fato seja confirmado! Ele<br />
me é pesado, me atormenta. Já não posso mais duvidar!” (in V.<br />
H., I, p. 101).<br />
A atitude do Bispo face ao evento da Salette, no entanto, não<br />
era nem de incredulidade, nem de hostilidade, mas de prudência<br />
e sabedoria. O Bispo queria refletir, informar-se, rezar e aguardar<br />
os fatos antes de se pronunciar.<br />
Três meses após o Fato da Salette, o Bispo Dom Philibert já<br />
possuía volumoso dossiê a esse respeito.<br />
75
76<br />
CAPÍTULO VIII<br />
À PROCURA DO SENTIDO<br />
Era chegado o momento de se fazer a investigação canônica<br />
necessária para averiguar a verdade do evento da Salette e seu<br />
sentido para a Igreja.<br />
1 - A investigação inicial<br />
Dom Philibert recebia informações de todos os lados e de<br />
todo tipo.<br />
Além dos interrogatórios e análises feitos por particulares, o<br />
Bispo solicitou a algumas pessoas que, em seu nome, visitassem a<br />
montanha da Salette, interrogassem os videntes e investigassem os<br />
fatos relativos <strong>à</strong> Aparição, de maneira a se obter uma informação<br />
segura.<br />
Nos meses de fevereiro e maio de 1847, os dois Sacerdotes<br />
Lagier e Lambert, conhecedores do “patois” da região de Corps,<br />
haviam interrogado sistematicamente, mas a titulo privado, os<br />
dois videntes, Melânia e Maximino.<br />
A seguir, em junho, o Pe. Nicolas Bez publicou uma<br />
obra feita com seriedade e a partir de investigações no local:<br />
“Pèlerinage <strong>à</strong> La Salette, ou Examen critique de l´apparition de<br />
la Sainte Vierge <strong>à</strong> deux bergers Mélanie Mathieu et Maximin<br />
Giraud”. Dom Philibert recebeu o livro. Tinha assim, em mãos,<br />
o texto integral da Mensagem da Bela Senhora.<br />
Tendo em vista as repercussões causadas pelo Fato da<br />
Salette, a profunda devoção popular e mariana, a expansão<br />
da Confraria de Nossa Senhora Reconciliadora da Salette, os<br />
muitos milagres e conversões, a convicção favorável ao Fato<br />
por parte de numerosos Sacerdotes e leigos, e as peregrinações<br />
imensas e freqüentes até a Montanha da Salette, o Bispo se<br />
tornara particularmente devoto de Nossa Senhora da Salette e<br />
se alegrava com a expansão dessa devoção. Não impedia que os
Padres visitassem o local da Aparição, nem que dela falassem<br />
em particular.<br />
Conhecedor, porém, das normas eclesiásticas em vigor,<br />
e reservando-se o direito que elas lhe atribuíam, assumiu a<br />
responsabilidade de analisar o caso e de se pronunciar a respeito<br />
em momento oportuno.<br />
O Pe. Auvergne, Cônego e Secretário da Diocese, era o<br />
guardião do “Dossier de La Salette” formado no final de 1846. O<br />
dossiê estava devidamente conservado no Bispado de Grenoble.<br />
Dom Philibert convocou, então, uma primeira Comissão<br />
Oficial, formada por dois grupos de eclesiásticos diocesanos, o<br />
dos Cônegos da Catedral de Grenoble e o dos Professores do<br />
Seminário Maior da Diocese. Foram encarregados de analisar o<br />
“Dossier de La Salette” existente.<br />
A 15 de dezembro de 1846 a Comissão apresentou a Dom<br />
Philibert o seu parecer. Havia constatado não só a realidade de<br />
um fato grandioso em La Salette, mas também, seus resultados<br />
extraordinários no meio do povo. Mantinha-se, porém, muita<br />
circunspeção.<br />
Algum tempo depois desse primeiro estudo, o Bispo encaminhou<br />
o processo canônico de investigação dos acontecimentos e da<br />
respectiva análise. A 19 de julho de 1847, nomeou, oficialmente<br />
e com plenos poderes como “Comissários <strong>De</strong>legados”, a M.<br />
Rousselot, Vigário Geral Honorário, Cônego da Catedral e Professor<br />
do Seminário Maior de Grenoble, e M. Orcel, Superior do mesmo<br />
Seminário. Quem eram os dois eminentes “Comissários”?<br />
a) Pierre-Joseph Rousselot nasceu a 12 de abril de 1785, em<br />
Doubs, filho de pais muito religiosos e estimados em sua terra.<br />
Atingido pela varíola aos três anos de idade, carregou no rosto as<br />
marcas da doença pelo resto da vida. Na infância se divertia com<br />
as vibrações dos tambores e evoluções da Guarda da Revolução.<br />
Fez seus primeiros estudos em escolas de Barboux, sua região<br />
natal. Tanto em Barboux, quanto em Paris, republicanos e<br />
regalistas se combatiam entre si. A Guarda Nacional perseguia<br />
os católicos. Muitos dentre eles se refugiavam na Suissa.<br />
77
O pai de Pierre-Joseph teve que fazer o mesmo. O menino<br />
tinha sete anos então. Na Suissa, Pierre Joseph foi internado na<br />
Abadia Trapista de Val-Sainte, em junho de 1793. Apesar de<br />
sua pouca idade, convivia com velhos monges e com eles se<br />
levantava <strong>à</strong>s três horas da manhã para participar do Ofício da<br />
Comunidade. Em pouco tempo se habituou ao regime claustral.<br />
No Mosteiro fez sua Primeira Comunhão e recebeu a Crisma.<br />
A Revolução Francesa, porém, causava problemas também<br />
na Suissa. O Abade de Val-Sainte pediu ao Czar da Rússia que<br />
lhe permitisse instalar seu Mosteiro em território russo, em<br />
região adequada <strong>à</strong> vida monástica.<br />
Além dos Monges, foram transferidos para a Rússia<br />
também 60 meninos e 40 meninas. Ao todo, 244 pessoas. A<br />
partida aconteceu a 17 de janeiro de 1798. Ao longo do caminho<br />
mantinha-se o regime de vida monacal.<br />
Em 1800 chegaram ao território russo, na região da Ucrânia.<br />
Como o Czar acabava de restabelecer relações com a França<br />
de Napoleão, o grupo foi mal recebido e logo tiveram que<br />
tomar o caminho de volta. Passaram por Dantzig. Chegaram a<br />
Hambourg, na Alemanha, onde permaneceram até 1801, quando<br />
os Monges foram forçados a deixar o território alemão.<br />
Finalmente, tendo a Suissa recuperado a tranqüilidade<br />
política, os Monges voltaram a Val-Sainte de onde haviam<br />
saído. Rousselot se encontrava entre eles. Entre 1803 e 1805,<br />
Rousselot que já era Irmão Plácido, seu nome de Monge trapista,<br />
fez os cursos de Filosofia e Teologia em Fribourg. <strong>De</strong>pois voltou<br />
a Val-Sainte como professor dos jovens estudantes.<br />
Teve, porém, que se evadir das tropas napoleônicas que<br />
buscavam, em países vizinhos, os jovens franceses para obrigálos<br />
a fazer o serviço militar na França. Rousselot refugiou-se na<br />
Itália. Por não possuir passaporte, foi preso. <strong>De</strong>pois de três dias<br />
de detenção, foi liberado.<br />
Sendo procurado ainda, decidiu buscar segurança no<br />
Mosteiro de Briançon. Com medo de ser descoberto, foi a Paris,<br />
em março de 1810, para regularizar definitivamente sua situação<br />
78
diante do Governo napoleônico. Passando por Grenoble e Lyon,<br />
chegou a Paris a 25 de janeiro de 1811.<br />
Com medo de se apresentar, decidiu fugir para alguma<br />
ilha distante. Chegando a Bordeaux, e sendo reconhecido, seu<br />
passaporte foi carimbado como desertor. Conseguiu evadir-se<br />
para buscar refúgio em Briançon.<br />
Passando por Bourg-d´Oisans foi acolhido pelo Pároco que,<br />
vendo suas qualidades, quis logo encaminhar sua ordenação<br />
sacerdotal.<br />
Aos 26 anos de idade foi recebido como professor<br />
do Seminário Menor de Côte-Saint-André, na Diocese de<br />
Grenooble. Estava sobrecarregado de fadigas por causa de<br />
suas longas andanças. Logo foi alvo de simpatia geral por sua<br />
bondade e sabedoria.<br />
Foi ordenado sacerdote a 19 de setembro de 1813, e<br />
imediatamente nomeado professor de Teologia Dogmática no<br />
Seminário Maior de Grenoble, função que exerceu durante<br />
cinqüenta e três anos. Com outros anos de professor em outros<br />
locais, somou sessenta e dois anos de ensino. <strong>De</strong> 1813 a 1831<br />
ensinou Dogma. <strong>De</strong> 1832 a 1856, lecionou Moral. Como<br />
professor, combateu o jansenismo, os exageros galicanistas e os<br />
ultramontanistas. Era notável por sua sabedoria, previdência e<br />
moderação.<br />
<strong>De</strong>ixando de lado o magistério, foi nomeado Diretor<br />
Espiritual. Lecionava ainda cursos especiais para os futuros<br />
sacerdotes. Foi professor até sua morte. Cerca de três mil<br />
sacerdotes da Diocese de Grenoble foram alunos seus. Foi<br />
nomeado Cônego e depois Vigário Geral da Diocese. Sua vida,<br />
porém, foi iluminada, sobretudo, pelo Fato da Salette. Estudou o<br />
Fato sem precipitação. A Bela Senhora o havia escolhido como<br />
um de seus grandes defensores. Morreu em 12 de agosto de<br />
1865.<br />
Em 1848, publicou o livro “La vérité sur l´événement de<br />
La Salette” que contém o Relatório Rousselot, e em 1850, o<br />
“Nouveaux documents sur l´événement de La Salette”. Os dois<br />
79
textos foram publicados com a aprovação de Dom Philibert.<br />
Antes, ao final de 1847, haviam sido objeto de estudo por parte<br />
da Comissão Episcopal que analisou o evento da Salette.<br />
b) Jacques-Philippe Orcel nasceu a 1º de maio de 1805. Foi<br />
ordenado sacerdote a 18 de julho de 1830. Em 1837 foi nomeado<br />
Superior do Seminário Maior de Grenoble, e mais tarde, Vigário<br />
Geral da Diocese. Quando de sua nomeação como Comissário<br />
<strong>De</strong>legado, ainda não acreditava na realidade da Aparição.<br />
80<br />
2 - A análise conclusiva<br />
Em carta enviada a Pe. Mélin a 28 de agosto de 1847, Dom<br />
Philibert havia autorizado a celebração de Missa na Montanha,<br />
no 1º Aniversário da Aparição. Na carta, o Bispo observava<br />
que a autorização não significava “uma decisão doutrinal”.<br />
Igualmente não via inconvenientes em se publicar a obra de<br />
Dom Villecourt, Bispo de La Rochelle, sobre sua peregrinação <strong>à</strong><br />
Salette. Dom Philibert viu nesse texto, um preliminar favorável<br />
ao julgamento doutrinal sobre o evento O clima favorecia a<br />
investigação canônica.<br />
Rousselot e Orcel partiram de Grenoble a 27 de julho<br />
de 1847. Percorreram nove Dioceses da França para colher<br />
informações.<br />
A 25 de agosto chegaram a Corps onde interrogaram os dois<br />
videntes. Com eles visitaram o local da Aparição, acompanhados<br />
por Pe. Mélin, Pe. Perrin e Pe. Paquet, por mais alguns Padres<br />
da Diocese de Fréjus e de Gap, e por trinta e quatro outros<br />
peregrinos.<br />
<strong>De</strong> volta a Grenoble, Rousselot elaborou um relatório<br />
sobre o trabalho feito com o Pe. Orcel. A 15 de outubro<br />
o Relatório estava concluído. Nele Rousselot expunha as<br />
próprias impressões, favoráveis <strong>à</strong> Aparição, e as impressões<br />
de eclesiásticos e leigos que pediam o julgamento doutrinal.<br />
Rousselot havia sido conquistado. Queria agora conquistar o<br />
Bispo a favor da veracidade do Fato da Salette. Rousselot se
tornou o melhor artífice do célebre Mandamento Doutrinal de<br />
19 de setembro de 1851.<br />
O Bispo leu o texto do relatório de Rousselot. Fez algumas<br />
observações, e achou que era chegado o momento de convocar<br />
uma Comissão para examinar o caso.<br />
Esta segunda Comissão de análise canônica do evento da<br />
Salette era composta por dezesseis membros: dois Vigários<br />
Gerais, o Superior do Seminário Maior, oito Cônegos da Catedral<br />
e mais cinco Párocos na cidade de Grenoble. Entre eles estavam<br />
Rousselot, Orcel, Bouvier, <strong>De</strong>smoulins, Bois, Michon, Henry,<br />
Petit, Revol, Gay, Rivaux, Michallet, Albertin e Cartellier.<br />
A Comissão, sob a presidência de Dom Philibert, começou<br />
seus trabalhos a 8 de novembro de 1847.<br />
A 15 de novembro, na segunda sessão, também estavam<br />
presentes Pe. Mélin, Maximino e Melânia. A terceira sessão<br />
aconteceu a 16 de novembro. Na quarta, no dia 17, se fez presente<br />
o Pe. Perrin, Pároco de La Salette.<br />
Na quinta sessão, a 22 de novembro, o Bispo chamou a<br />
atenção da Comissão para que não continuasse a perder tempo<br />
com a discussão de elementos estranhos <strong>à</strong> Aparição. A sexta<br />
reunião aconteceu a 6 de dezembro.<br />
Faltava discutir as objeções ao fato da Salette. Eram doze as<br />
objeções. O assunto foi debatido pela Comissão em suas duas<br />
últimas sessões, a 13 de dezembro de 1847.<br />
Ao final, Dom Philibert pediu a cada um que respondesse <strong>à</strong><br />
pergunta:<br />
- “O fato é real, ou as crianças teriam enganado ou teriam<br />
sido enganadas?” (in STERN, p. 41).<br />
A grande maioria, isto é, doze sobre dezesseis membros<br />
da Comissão, se pronunciaram favoravelmente a respeito da<br />
veracidade do evento e sobre a credibilidade dos videntes. Três<br />
membros achavam que as provas a respeito do evento eram<br />
insuficientes. O Pe. Cartellier se pronunciou contra o fato.<br />
Contudo, não era chegado, ainda, o momento de o Bispo<br />
Dom Philibert se pronunciar. Importava esperar por informações<br />
81
mais completas e decisivas. O parecer da Comissão teria, no<br />
entanto, seu peso no Mandamento Doutrinal que seria exarado<br />
anos mais tarde.<br />
Dom Philibert, porém, antes do final dos trabalhos da<br />
Comissão, enviou <strong>à</strong> Diocese uma Carta Pastoral sobre a<br />
profanação do Dia do Senhor e sobre a blasfêmia, assuntos<br />
presentes na Mensagem de Bela Senhora, mas, sem referências<br />
<strong>à</strong> Aparição.<br />
Findos os trabalhos da Comissão, no início de 1848,<br />
Rousselot elaborou um projeto de Julgamento Doutrinal sobre o<br />
evento. O Bispo o analisou e acrescentou algumas observações.<br />
O texto, porém, não foi publicado porque, durante os trabalhos<br />
da Comissão, o Cardeal <strong>De</strong> Bonald, Arcebispo de Lyon, havia<br />
remetido a Dom Philibert três cartas em novembro de 1847,<br />
e uma em janeiro de 1848. O Cardeal pedia que não fosse<br />
reconhecida a autenticidade da Aparição. <strong>De</strong> Bonald tinha em<br />
conta a oposição de Pe. Cartellier e as polêmicas a respeito de<br />
aparições que os jornais da época divulgavam.<br />
Mais tarde, o Cardeal de Bonald manifestou sua contrariedade<br />
em relação <strong>à</strong> Salette em outras ocasiões, como a do Concílio<br />
Provincial de LYON, a 30 de junho de 1850.<br />
Pe. Cartelier, aguerrido opositor da Salette, pensava que<br />
no Concílio o Fato da Salette seria definitivamente eliminado.<br />
Antes dessa reunião episcopal, havia elaborado um manuscrito<br />
contra a Aparição.<br />
Dom Philibert queria que o assunto fosse tratado no Concílio.<br />
O Cardeal, porém, impediu a análise do evento da Salette nesse<br />
conclave. Por que razões?<br />
O Bispo de Grenoble, Diocese sujeita <strong>à</strong> Arquidiocese de Lyon,<br />
tinha, porém, a certeza de que a intervenção do Metropolita não<br />
era razão suficiente para impedir que ele mesmo, Dom Philibert, se<br />
pronunciasse a respeito da Aparição. A legislação canônica garantia<br />
como unicamente seu o direito de se pronunciar a propósito.<br />
Na verdade, o Bispo acreditava na realidade da Aparição e<br />
achava como dever seu proteger e favorecer a devoção a Nossa<br />
82
Senhora da Salette. Em carta de 11 de janeiro de 1848, Dom<br />
Philibert tinha deixado claro esse assunto.<br />
O Bispo, naquele momento, se absteve de fazer um<br />
pronunciamento sobre o Fato da Salette, provavelmente<br />
devido <strong>à</strong> situação política provocada em Paris, pela derrubada<br />
da Monarquia e instalação da Segunda República na França.<br />
O pronunciamento poderia suscitar imaginações exaltadas em<br />
relação <strong>à</strong> Aparição.<br />
Em agosto de 1848 foi publicado o livro de Rousselot, “La<br />
vérité sur l´événement de La Salette du 19 septembre 1846”.<br />
Nele foi reproduzido o Relatório apresentado <strong>à</strong> Comissão<br />
Episcopal, no final de 1847. Dom Philibert havia autorizado a<br />
publicação da obra e, no prefácio, revelou como seu o parecer<br />
emitido pela Comissão. A conseqüência imediata foi que o<br />
Clero da Diocese se sentiu liberado para visitar a Montanha da<br />
Aparição e acompanhar os peregrinos que se dirigiam ao local.<br />
Rousselot enviou o livro ao Papa Pio IX. A 20 de setembro<br />
de 1848, em carta enviada a Rousselot, Pio IX agradeceu o envio<br />
da obra, e se disse feliz em saber que muitos peregrinos iam <strong>à</strong><br />
Salette para venerar a Virgem Maria.<br />
A obra de Rousselot causou grande impressão no público<br />
cristão.<br />
Muitos Bispos passaram a pedir a Dom Philibert que se<br />
pronunciasse a respeito da Aparição. Entre eles, Dom Guibert,<br />
Bispo de Viviers, recomendou a Dom Philibert que confiasse<br />
o cuidado do futuro Santuário a uma Comunidade. Mais tarde,<br />
Dom Guibert foi eleito Cardeal de Paris e, em agosto de 1879,<br />
foi enviado a La Salette, como <strong>De</strong>legado do Papa LEÃO XIII,<br />
para a coroação da estátua de Nossa Senhora, na Basílica da<br />
Montanha.<br />
83
84<br />
CAPÍTULO IX<br />
O DESPONTAR DA DECISÃO EPISCOPAL<br />
Em fevereiro de 1848 foi desencadeada a Revolução de<br />
Paris. O fato ocasionou o surgimento de uma onda muito grande<br />
de religiosidade, expressa também em relação <strong>à</strong> Aparição da<br />
Salette. Na Montanha da Aparição os peregrinos chegavam de<br />
todos os países da Europa.<br />
A 8 de setembro desse mesmo ano, com a permissão de Dom<br />
Philibert, os Párocos da região de Corps puderam conduzir seus<br />
paroquianos <strong>à</strong> Santa Montanha. Foi um espetáculo comovente. O<br />
Aniversário da Aparição foi solene. Ao menos 8.000 pessoas se<br />
encontravam na Montanha bendita. O Bispo se fizera representar<br />
pelo Pe. Rousselot, Vigário Geral da Diocese. Maximino e<br />
Melânia estavam presentes em meio <strong>à</strong> multidão.<br />
Nesse tempo Dom Philibert pensou que era chegado o<br />
momento de se adquirir o terreno para o futuro Santuário que ele<br />
tinha em mente. A capela existente na Montanha era provisória.<br />
Ao mesmo tempo, num contexto político exacerbado, certas<br />
pessoas sonhavam com o retorno da Monarquia para restabelecer a<br />
ordem na França. Outras acreditavam que os “segredos” confiados<br />
pela Bela Senhora aos dois videntes poderiam indicar o rumo a<br />
seguir para o futuro do país. Poderiam também confirmar os próprios<br />
sonhos de participar de uma nova ordem política na França. Essa<br />
mentalidade se manifestou de modo exaltado em 1850.<br />
Efetivamente, desde abril de 1847, um senhor chamado<br />
Houzelot, comerciante de objetos religiosos e caçador de<br />
relíquias, residente em Paris, esteve mais vezes em Corps, para<br />
ver Melânia e Maximino. Queria conhecer a identidade do<br />
herdeiro do trono da França. Os “segredos da Salette”, assunto de<br />
curiosidade pública, poderiam, segundo ele, conter informações<br />
importantes a respeito.<br />
O projeto de Houzelot era envolver os videntes com os<br />
partidários do falso barão de Richemont, um aventureiro
impostor que se fazia passar por filho de Luis XVI. O falsário<br />
pretendia ser o herdeiro do trono da França, com o nome de<br />
Luis XVII. Richemont havia conquistado a simpatia de muitas<br />
pessoas crédulas, inclusive de alguns eclesiásticos.<br />
Houzelot era fanático por fenômenos religiosos<br />
extraordinários, ávido por conhecer os “segredos da Salette” e<br />
a verdade propalada pela opinião pública, sobre acontecimentos<br />
sinistros que algumas grandes cidades da França iriam viver:<br />
Paris seria incendiada, Marselha seria submersa pelo mar, o<br />
anticristo apareceria, o apocalipse aconteceria em breve...<br />
Em outubro de 1849, Melânia, por ocasião de uma viagem<br />
<strong>à</strong> “Grande Chartreuse”, aconselhou o engenheiro Dausse,<br />
na presença de Maximino, que não fosse a Paris para não se<br />
tornar uma das vítimas da destruição da capital, prevista por<br />
“visionários”. Dausse, pessoa conhecida e respeitada, concluiu<br />
que Melânia estava se referindo a seu “segredo”.<br />
Essas pretensas profecias eram, portanto, bem conhecidas<br />
dos dois jovens videntes, Melânia e Maximino. O povo todo<br />
falava disso.<br />
Em Corps, <strong>à</strong> influência da curiosidade doentia de Houzelot<br />
se juntou a mórbida presença de Antoine Gay, ex-trapista,<br />
conhecido como possesso do demônio.<br />
Certo dia, Gay subiu a Montanha da Salette, aos urros<br />
e se debatendo. Falava em nome do “demônio Isacarron”.<br />
Congratulava-se com Melânia por ela ter visto Nossa Senhora<br />
(cf. STERN, 3, p. 7-8).<br />
Quanto a Maximino, órfão de pai e mãe, estava sob a tutela<br />
do tio Templier. Maximino não gostava do tutor. Um dia o<br />
menino perguntou a “Isacarron”, possuidor de Gay, quem era<br />
seu maior inimigo. O “demônio” respondeu que era Templier de<br />
quem Maximino devia afastar-se e entrar na Comunidade dos<br />
Maristas de Pe. Colin, em Lyon.<br />
A essas nefastas pressões sobre Maximino, somou-se a de<br />
Paul Bonnefous, originário de Aveyron. Bonnefous, além de<br />
mesclar política e mística em seus discursos, dizia ter recebido<br />
85
do céu a missão de fazer com que Maximino entrasse de fato na<br />
Comunidade Marista de Pe. Colin.<br />
Entrou também em cena o Pe. Joseph Faure que, desde<br />
agosto de 1850, freqüentava a Montanha. Ele havia sido<br />
afastado da Paróquia porque seguia Victorine Sauvet, uma<br />
pseudo-miraculada que se dizia possuída pelo demônio. Faure<br />
se interessava por fenômenos extraordinários, profecias e forças<br />
ocultas. Tinha interesse em conhecer os “segredos da Salette”<br />
As relações humanas, no entorno de Maximino, estavam,<br />
portanto, impregnadas de influências malsãs. Isso o deixava<br />
inquieto. Nesse contexto acontece o “Incidente de Ars”.<br />
86<br />
1 - “O INCIDENTE DE ARS”<br />
A partida de Maximino de Corps para Lyon, na suposição<br />
de que lá entraria na Comunidade Marista, aconteceu a 22 de<br />
setembro de 1850.<br />
Conforme o Pe. Mélin, o possesso Gay tinha revelado que<br />
Maximino devia ir a Ars para que o Santo Cura o ajudasse a<br />
discernir sua vocação.<br />
O tio Templier, tutor de Maximino, consentiu com a idéia,<br />
apesar da oposição de Pe.Mélin. Templier pensava manipular o<br />
menino para ganhar dinheiro, demonstrando sua notoriedade de<br />
vidente da Salette.<br />
Maximino foi conduzido a Lyon e Ars por um benfeitor<br />
seu, Brayer, e por Verrier, amigo de Houzelot. Verrier estava<br />
interessado nos intentos de Richemont.<br />
Maximino, na verdade, queria fazer um passeio. Pouco lhe<br />
interessava uma entrevista com o Cura d´Ars sobre sua vocação.<br />
Passando por Grenoble, o Bispo Dom Philibert tomou<br />
conhecimento da viagem de Maximino. <strong>De</strong>saprovou-a<br />
formalmente. Com certeza intuia os riscos que a envolviam.<br />
Ordenou que Maximino se hospedasse na Escola dos Irmãos<br />
das Escolas Cristãs, em Grenoble, para entrar mais tarde, no<br />
Seminário Menor da Diocese.
O adolescente e seus acompanhantes recusaram a ordem de<br />
Dom Philibert.<br />
Maximino queria a todo o custo prosseguir em sua viagem a<br />
Ars. Apreciava conhecer lugares novos. Maximino tinha quinze<br />
anos e desejava livar-se de seu tutor. Em Corps sofria muitas<br />
pressões por causa do “segredo”,<br />
Queria fugir desse ambiente demasiadamente opressivo.<br />
Uma viagem serviria de distração.<br />
A 23 de setembro, o grupo tomou o caminho de Grenoble<br />
para Ars. Maximino levou consigo sua irmã Angélica que residia<br />
em Grenoble. Angélica era maior de idade. Teria, portanto, o<br />
direito de tutelar o menino em lugar de Templier.<br />
A 24 de setembro, no fim da tarde, o grupo chegou a<br />
Ars. Levava uma carta de apresentação para o Cura D´Ars,<br />
carta escrita pelo Pe. Nicod, de Lyon. Nicod era partidário de<br />
Richemont, por isso vivia em conflito com o Cardeal <strong>De</strong> Bonald.<br />
Ao chegarem a Ars procuraram sem demora o Santo Cura.<br />
Ele se encontrava no confessionário. O Pe. Raymond, Vigário<br />
Paroquial, recebeu o grupo. Ao ler a carta de Nicod percebeu a<br />
ligação do grupo com Richemont e sua mórbida ideologia ávida<br />
de mistérios.<br />
Ao ver Maximino com o grupo, Pe. Raymond supôs que o<br />
evento da Salette estivesse servindo de montagem para justificar<br />
as pretensões de Richemont. Ora, tanto o Pe. Raymond quanto<br />
o Cardeal de Lyon detestavam toda e qualquer mistificação<br />
em torno do falso barão. Pe. Raymond, então, levado pela ira,<br />
tratou Maximino com aspereza e desdém, como a um impostor<br />
e mentiroso, não lhe permitindo sequer uma palavra em defesa<br />
própria. Como se dizia que o Santo Cura tinha o dom de ler as<br />
consciências, o Vigário Paroquial desafiou Maximino, com suas<br />
histórias sobre a Salette, a enganar o Santo Cura.<br />
Era, pois, de se esperar que o adolescente, gratuitamente<br />
agredido, ruminasse em seu coração uma revolta com<br />
conseqüências inesperadas. Sua vivacidade o levou a arquitetar<br />
uma atitude <strong>à</strong> altura do tratamento recebido.<br />
87
Exasperado, Maximino respondeu a Raymond que o tratava<br />
de mentiroso:<br />
- “Admitamos que eu tenha mentido. Que é que isso pode<br />
me causar?” (in BASSETTE, p. 190).<br />
Raymond se fixou nessa meia palavra do jovem, tomando-a<br />
para seu próprio interesse, como se fosse um desmentido<br />
da Aparição. Para ele, a resposta de Maximino significava<br />
consequentemente o total esvaziamento das pretensões de<br />
Richemont e de seus sequazes.<br />
Pe. Raymond preveniu o Cura quanto a essa palavra de Maximino.<br />
O Cura, que confiava plenamente em seu Vigário, ficou desorientado.<br />
Acreditava no Fato da Salette. Alimentava grande devoção pela Bela<br />
Senhora. Abençoava e distribuía a seus fiéis, imagens da Salette.<br />
A indigna atitude de Raymond talvez se explique pelo fato<br />
de ele ter visitado La Salette em junho de 1849. <strong>De</strong> lá voltou mal<br />
impressionado com o nível de vida do povo de Corps e com a<br />
rudeza dos videntes. Tornou-se um cético em relação <strong>à</strong> Aparição.<br />
Raymond devia também ter problemas de fundo psicológico.<br />
Adolescente, vivera momentos difíceis por causa de conflitos de<br />
religião entre católicos e fanáticos imbuídos de idéias sectárias e<br />
ocultistas. Possuía um caráter dado a ímpetos de violência.<br />
Raymond, por ocasião dessa visita de Maximino a Ars, teve<br />
duas entrevistas com o grupo que acompanhava o adolescente.<br />
Diante de todos revelou suas objeções contra o Fato da Salette,<br />
negando a sinceridade dos videntes Maximino e Melânia.<br />
Maximino teve dois encontros com o Cura D´Ars.<br />
No primeiro encontro, a conversa entre os dois durou<br />
algum tempo. Aconteceu atrás do altar da Igreja de Ars, junto ao<br />
confessionário, na manhã de 25 de setembro. O jovem desejava<br />
confessar-se. Mais tarde, no entanto, Maximino explicou que não<br />
houve propriamente uma confissão. Só afirmou ao Cura que havia<br />
desobedecido a proibição de Dom Philibert de se dirigir a Ars. O<br />
Cura, então, não continuou a ouvi-lo e o mandou confessar-se em<br />
Grenoble. O jovem, no final do encontro, demonstrava satisfação.<br />
O segundo encontro aconteceu no confessionário da<br />
88
Igreja, na mesma manhã. Ao tocar no assunto de sua vocação,<br />
Maximino recebeu da parte do Cura, a ordem de voltar <strong>à</strong> Diocese<br />
de Grenoble e lá resolver o caso.<br />
Nesse encontro com Maximino, a fé do Cura a respeito da<br />
Aparição da Salette caiu por terra. O que aconteceu? Que é que<br />
Maximino lhe teria afirmado? É difícil saber com precisão. A<br />
conversa entre os dois não foi fácil.<br />
O Cura perguntou a Maximino se havia visto Nossa Senhora.<br />
O jovem respondeu que havia visto uma “Senhora”, mas,<br />
não sabia se era a Santíssima Virgem.<br />
Maximino, em sua impulsividade juvenil, talvez quisesse<br />
testar a afirmação de Pe. Raymond a respeito do dom de ler as<br />
consciências por parte do Cura.<br />
Numa atitude pueril própria do irrequieto menino, mas,<br />
certamente carregada de ressentimentos por causa das atitudes de<br />
Pe. Raymond na véspera, Maximino deu ao Cura uma resposta<br />
dúbia nessa conversa de vinte minutos.<br />
O Cura não compreendeu a palavra do vidente. Guardou<br />
dúvidas quanto ao seu sentido. Pensou que o menino se havia<br />
desmentido sobre a Aparição.<br />
Durante o almoço daquele dia 25 de setembro, o Cura<br />
comentou com Raymond a suposta retratação de Maximino.<br />
Raymond imediatamente anunciou a novidade aos quatro cantos<br />
da Paróquia. A indiscrição de Raymond, porém, entristeceu o<br />
Pároco. Muitas pessoas foram induzidas ao erro, pensando que<br />
o Cura houvesse assumido posição contrária <strong>à</strong> Salette.<br />
Na tarde daquele dia, o grupo de Maximino partiu de Ars<br />
para Lyon.<br />
Na manhã seguinte, o Cura deixou de abençoar as medalhas<br />
de Nossa Senhora da Salette. Não quis mais falar sobre o assunto.<br />
2 - SUPERADO O EQUÍVOCO<br />
<strong>De</strong> volta a Lyon, Maximino encontrou o Pe. Nicod. Com<br />
ele estavam o desequilibrado Gay, o falsário Richemont e outras<br />
89
pessoas. Richemont não se deu a conhecer. Maximino, que havia<br />
visto um retrato dele no Colégio de Corps, reconheceu o falso barão.<br />
O encontro suscitou reações em Maximino. O jovem pediu<br />
para se retirar. Queria pôr-se mais <strong>à</strong> vontade. A partir de então,<br />
sentiu-se induzido a inventar “profecias” para tirar proveito dos<br />
circunstantes e compensar as pressões sofridas.<br />
Em Lyon, Maximino também encontrou seu amigo Pe.<br />
Bez. Com ele, em maio de 1847, havia visitado a Montanha da<br />
Salette. A alegria do reencontro foi grande para o jovem.<br />
Pe. Bez pediu-lhe que permanecesse em Lyon e entrasse na<br />
Comunidade dos Maristas. Consultado, Pe. Colin, o fundador da<br />
Comunidade, aprovou a idéia. Maximino foi apresentado a ele,<br />
não como vidente da Salette, mas como sobrinho do Pe. Bez, sob<br />
o pseudônimo de Joseph Bez. O anonimato lhe era conveniente<br />
para evitar problemas maiores por causa da Aparição.<br />
Sabendo do ocorrido em Ars, Pe. Gérin, Cura da Catedral de<br />
Grenoble, a 12 de outubro procurou o Cura, seu grande amigo,<br />
para obter informações diretas sobre o incidente. No final do<br />
mês, Gérin levou as informações a Dom Philibert, comentando<br />
o descrédito do Cura em relação <strong>à</strong> Aparição.<br />
A 22 de outubro de 1850, Maximino, a pedido de Dom<br />
Philibert, foi levado de Lyon a Grenoble pelo engenheiro Dausse.<br />
No dia seguinte, Maximino entrou no Seminário de Rondeau,<br />
próximo a Grenoble. Podia assim, ser interrogado diretamente<br />
sobre o caso de Ars.<br />
A 2 de novembro, em carta levada por Rousselot e Mélin ao<br />
Cura d´Ars, Maximino declarou:<br />
- “Nem na sacristia, nem atrás do altar da Igreja de Ars, o<br />
Cura me perguntou nem sobre a Aparição de La Salette, nem<br />
sobre o meu segredo... Em nenhuma resposta ao Cura D´Ars ou<br />
ao Pe. Raymond, seu Vigário, nada afirmei que fosse contrário<br />
ao que disse a milhares de outras pessoas, desde o dia 19 de<br />
setembro de 1846... Nem jamais disse que o segredo dizia<br />
respeito ao pretenso Luis XVII...” (in CARLIER, p.126-127).<br />
No Bispado de Grenoble, diante de uma Comissão de Padres<br />
90
e leigos, no mesmo dia 2 de novembro, o jovem Maximino<br />
negou “que se tivesse desmentido em Ars”, mas afirmou que<br />
“não compreendendo distintamente o Cura, respondera com<br />
SIM e NÃO ao acaso” (in STERN, 3, p. 20).<br />
O vidente, a 6 de novembro, redigiu nova carta pela<br />
qual autorizava o Cura a relatar a Rousselot e Mélin, o que<br />
tinha acontecido. Ambos, levando a carta, foram a Ars a 8 de<br />
novembro, e ouviram a mesma afirmação que o Pároco fizera<br />
antes, a Gérin.<br />
A partir das explicações dadas pelo Cura, Rousselot e Mélin<br />
concluíram que ele, tendo sido alertado desfavoravelmente por<br />
Raymond, pensou que Maximino tivesse desmentido a Aparição<br />
da Salette, na conversa com o Vigário Paroquial na chegada a<br />
Ars.<br />
<strong>De</strong> retorno a Grenoble, Rousselot e Mélin comunicaram<br />
tudo a Dom Philibert. O Bispo ficou muito intrigado com o<br />
caso. Perguntava-se por que o Cura D´Ars não tinha sido mais<br />
perspicaz e circunspecto nessa história infeliz.<br />
Dom Philibert sentiu, então, que era dever seu proclamar<br />
a própria convicção a respeito do Fato da Salette. Tinha plena<br />
consciência de que cabia a ele, como Bispo de Grenoble,<br />
responsável pela região da Salette, e a mais ninguém, nem<br />
mesmo ao Cura D´Ars, definir a veracidade ou não do evento<br />
miraculoso. A opinião do Cura, que perturbava a crença dos fiéis<br />
em relação <strong>à</strong> Salette, não podia sobrepor-se <strong>à</strong> decisão do Bispo<br />
Diocesano.<br />
Duas semanas depois, o Bispo enviou carta ao Cura d´Ars<br />
referindo-se <strong>à</strong>s afirmações que ele havia feito a Mélin e Rousselot.<br />
Uma declaração assinada por Maximino acompanhou a carta de<br />
Dom Philibert. O Bispo deu testemunho de que a declaração do<br />
vidente possuia todas as caraterísticas da sinceridade, e de que<br />
houvera simplesmente um “mal-entendido” por parte do Cura.<br />
A 21 de novembro, Maximino, já no Seminário Menor da<br />
Diocese de Grenoble, escreveu nova carta ao Cura para dizer-lhe<br />
que o relato de Rousselot e Mélin lhe dava a prova de que ele,<br />
91
Maximino, não se fizera entender pelo Cura e que houvera um malentendido<br />
completo da parte dele. Nessa carta o jovem repetia:<br />
- “Não lhe disse, senhor Cura, e nunca disse com seriedade<br />
a ninguém, que nada vi, e que teria mentido ao fazer a minha<br />
conhecida narrativa, e ter persistido durante três anos nessa<br />
mentira vendo os efeitos. Disse-lhe apenas, senhor Cura, ao sair<br />
da sacristia e na porta, que vi alguma coisa e que não sabia se<br />
era a Santa Virgem ou outra senhora. Nesse momento o senhor<br />
se dirigiu para o meio do povo e nossa conversa terminou... Faço<br />
e escrevo essa declaração com minha alma e consciência...” (in<br />
CARLIER, p. 127).<br />
A tese do mal-entendido por parte do Santo Cura ganhou<br />
corpo na época. Não se pode descartar, porém, no surgimento<br />
do caso, uma possível e imprudente atitude de malícia juvenil,<br />
como gesto de “vingança” de um adolescente mal tratado pelo<br />
Pe. Raymond naquela visita a Ars.<br />
Num interrogatório feito a Maximino pelo Pe. Auvergne,<br />
Secretário do Bispado de Grenoble, o vidente confirmou que o<br />
Cura d´Ars, naquela ocasião, o tomou pela mão e o conduziu <strong>à</strong><br />
porta da sacristia e lhe perguntou:<br />
- “Você viu a Santa Virgem?<br />
- Não, eu não disse que foi a Santa Virgem. E o Padre saiu”<br />
(in BASSETTE, p 198).<br />
Na verdade, em suas narrativas da Aparição, as crianças<br />
sempre falavam em “Bela Senhora” e não em “Nossa Senhora”.<br />
Essa singela denominação de “Bela Senhora” brotou da<br />
imaginação infantil dos dois videntes. Quem identificou a “Bela<br />
Senhora” como sendo Maria, a Mãe do Senhor, foi a avó Caron,<br />
quando da primeira narrativa da Aparição, feita em Ablandens<br />
na noite de 19 de setembro de 1846.<br />
O aparente desmentido de Maximino foi, então, uma simples<br />
artimanha de adolescente acuado, somada <strong>à</strong>s dificuldades do<br />
Cura d´Ars.<br />
O grande vilão desse episódio infeliz foi, na verdade, o Pe.<br />
Raymond.<br />
92
A 5 de dezembro de 1850, o Cura d´Ars escreveu a Dom<br />
Philibert para dizer-lhe que havia sofrido por causa da conversa<br />
com Maximino. E acrescentou:<br />
- “Em fim de contas, Excelência, a ferida não é tão grande,<br />
e se esse fato (a Aparição) é obra de <strong>De</strong>us, o homem não o<br />
destruirá” (in CARLIER, p. 128).<br />
A carta do Cura d´Ars indica uma inflexão de pensamento.<br />
Manifesta que ele se abstinha, provisoriamente, de qualquer<br />
posição definitiva. Havia um discernimento a ser feito.<br />
O caminho estava aberto. O problema estava na interpretação<br />
do ocorrido entre o Cura e Maximino e não na definição da<br />
realidade ou falsidade do evento de La Salette.<br />
A explicação dada pelo Cura nessa carta, porém, não satisfez<br />
inteiramente a Dom Philibert. O Bispo pensava fazer uma<br />
acareação entre ele e Maximino. <strong>De</strong>sistiu por recomendação de<br />
Dom <strong>De</strong>vie, Bispo de Belley, a que Ars pertencia.<br />
Dom Phlibert, então, recolheu todos os documentos relativos<br />
ao caso, os enviou a Dom <strong>De</strong>vie, e se entreteve a respeito com<br />
Dom Chartrousse, Bispo de Valence, e com Dom Guibert, Bispo<br />
de Viviers e futuro Cardeal Arcebispo de Paris.<br />
O Cura D´Ars foi interrogado. A conclusão está numa carta<br />
enviada por Dom <strong>De</strong>vie a Dom Philibert, a 15 de janeiro de<br />
1851, na qual se diz:<br />
- “Nós sempre entendemos como certo que as crianças não<br />
se puseram de acordo para enganar o público, e que elas viram<br />
realmente um personagem que lhes falou. Seria a Santa Virgem?<br />
Tudo leva a crer, mas isso não pode ser constatado a não ser por<br />
milagres diferentes da Aparição” (in CARLIER, p. 128).<br />
A solução persuadiu o Cura de que não havia compreendido<br />
Maximino.<br />
O Cura d´Ars passou alguns anos de muito sofrimento por<br />
causa desse incidente. <strong>De</strong>pois do Mandamento Doutrinal de 19<br />
de setembro de 1851, exarado por Dom Philibert, ele começou a<br />
afirmar que se podia crer na Aparição, uma vez que a autoridade<br />
eclesiástica se pronunciara afirmativamente em relação ao fato.<br />
93
O Cura d´Ars reencontrou a plena fé na Aparição em 1858,<br />
após ter obtido três sinais que pedia a <strong>De</strong>us: a paz interior<br />
perturbada por um fato recente; a visita de um determinado<br />
Padre da Diocese de Grenoble; e enfim, uma graça temporal.<br />
A 12 de outubro de 1858, menos de um ano antes de sua<br />
morte ocorrida a 4 de agosto de 1859, o Cura disse ao Pe. Gérin:<br />
- “Sofri mais do que se possa imaginar: para lhe dar uma<br />
idéia, imagine um homem no deserto em meio a um terrível<br />
turbilhão de areia e pó, não sabendo para que lado se voltar.<br />
Enfim, em meio a tanta agitação e sofrimento, disse-me a mim<br />
mesmo fortemente: “CREDO”, e no mesmo instante reencontrei<br />
a paz, o descanso que havia perdido inteiramente... Agora<br />
me seria impossível não crer na Salette. Pedi sinais para crer<br />
na Salette e os obtive. Pode-se e deve-se crer na Salette” (in<br />
CARLIER, p. 129-130).<br />
A 21 de julho de 1861, Dom Langalerie, Bispo de Belley, em<br />
visita ao Santuário da Salette, afirmou ao Pe. Mélin em relação<br />
ao Cura D´Ars:<br />
- “Era seu Bispo e seu amigo, morreu nos meus braços<br />
declarando-me sua fé na Aparição da Salette. Ele me ouve dos<br />
céus e não me desmentirá” (in BASSETTE, p.202).<br />
A trama do chamado “Incidente de Ars” foi tecida com<br />
diferentes fios:<br />
- a imprudência infantil de Maximino no uso de eventual<br />
jogo de palavras;<br />
- a pressão psicológica exercida sobre Maximino, através<br />
de falsas “profecias apocalípticas” sobre ele impingidas, e pelo<br />
jogo sujo de Richemont;<br />
- a manipulação interesseira do tio e tutor Templier no intento<br />
de explorar a celebridade do adolescente e seu “segredo”;<br />
- a rispidez irresponsável do Pe. Raymond contra Maximino<br />
em Ars.<br />
- a possível tentativa de Maximino em comprovar o<br />
propalado dom de leitura das consciências por parte do Cura;<br />
- o confuso diálogo entre Maximino e o Cura.<br />
94
O episódio, com suas conseqüências negativas, não teria<br />
acontecido se a ordem de Dom Philibert, ao proibir a viagem de<br />
Maximino a Ars, tivesse sido obedecida.<br />
CAPÍTULO X<br />
OS “SEGREDOS” EM ROMA<br />
No início de 1851, a imprensa mantinha acesa a polêmica<br />
em torno do Fato da Salette. Dom Philibert sentia cada vez mais<br />
a responsabilidade de se pronunciar a respeito da veracidade da<br />
Aparição. No seio do episcopado francês havia Bispos favoráveis<br />
<strong>à</strong> verdade do evento. Havia, porém, dois que se opunham <strong>à</strong><br />
Salette: Dom <strong>De</strong>péry, Bispo de Gap, e Dom <strong>De</strong> Bonald, Cardeal<br />
Arcebispo de Lyon.<br />
Dom <strong>De</strong>péry se viu numa posição dúbia e até contrária a<br />
respeito de La Salette. Envolvido por alguns escritos do Pe.<br />
Nicod, Pároco em Lyon, que se havia declarado publicamente a<br />
favor do pseudobarão de Richemont, Dom <strong>De</strong>péry fez afirmações<br />
contraditórias acerca da Aparição.<br />
Em carta a Dom Garibaldi, Núncio Apostólico em Paris,<br />
no começo de fevereiro de 1851, dizia que não havia provas a<br />
favor da Aparição, que os milagres propalados eram falsos, que<br />
Maximino havia desmentido o fato perante o Cura D´Ars, que<br />
havia sido divulgado um “Ofício Litúrgico de La Salette” - Ofício<br />
esse jamais aprovado por Dom Philibert, aliás, - e sobretudo,<br />
que Dom Philibert, com 86 anos de idade, humanamente falando<br />
não tinha a capacidade intelectual necessária para dar um juízo<br />
válido a respeito da Aparição. Em vista de tudo isso, Dom<br />
<strong>De</strong>péry sugeriu ao Núncio que Roma tivesse prudência no caso.<br />
Por sua vez, também no início de 1851, o Cardeal <strong>De</strong><br />
Bonald expressava posições rígidas contra Richemont e contra<br />
a Salette. Os partidários do falso barão eram muitos em Lyon.<br />
Entre eles, estava o Pe. Nicod que acabava de publicar um livro<br />
95
segundo o qual Richemont seria o salvador da pátria arruinada<br />
pela revolução de 1789. O Cardeal condenou o livro.<br />
Maximino, na viagem para Ars, tivera contacto com o Pe.<br />
Nicod e Richemont. Além disso, as informações distorcidas<br />
enviadas pelo Pe. Raymond a <strong>De</strong> Bonald a respeito do incidente<br />
entre Maximino e o Cura d´Ars, acirraram a posição do Cardeal<br />
contra a Salette. O Cardeal suspeitava erradamente que Salette<br />
era uma montagem mistificadora para justificar as pretensões do<br />
falso barão de Richemont.<br />
Somava-se a tudo isso, a má vontade dos vendedores de<br />
objetos religiosos junto ao Santuário de Fourvière, em Lyon, que<br />
temiam a possível concorrência da Salette como prejudicial para<br />
seus negócios, e instigavam o Cardeal contra a Salette.<br />
<strong>De</strong> Bonald pensou que, como Arcebispo a quem a Diocese de<br />
Grenoble estava sujeita, devia intervir no caso da Salette. Além<br />
da alegada trama entre Richemont e Salette, aduzia igualmente,<br />
como razão para sua intervenção, a idade avançada de Dom<br />
Philibert. Tudo isso o levava a crer que devia dar especial<br />
atenção <strong>à</strong> questão.<br />
O que ele, <strong>De</strong> Bonald, poderia fazer nesse caso? Como<br />
Cardeal, em sua condição de “Conselheiro do Papa”, enviou,<br />
a 21 de março de 1851, uma carta confidencial a Rousselot, em<br />
Grenoble, perguntando-lhe:<br />
- “Se Marcelino e sua irmã (!...) estariam dispostos a lhe<br />
confiar seu famoso segredo para transmiti-lo a Sua Santidade” (<br />
in STERN p. 54).<br />
Na carta, o Cardeal demonstrava que não sabia nem o nome<br />
certo de Maximino a quem chamava de “Marcelino”, nem que<br />
Melânia não era sua “irmã”, pois, nenhum parentesco entre<br />
ambos havia...<br />
O assunto chegou aos ouvidos de Dom Philibert. Percebeu<br />
que o Cardeal estava extrapolando de seus poderes. Reagiu.<br />
Apressou-se em tomar em mãos o assunto porque receava<br />
maiores pressões sobre os dois videntes por parte do Cardeal,<br />
uma vez que ele pretendia vê-los em Grenoble, em breve.<br />
96
Sem perda de tempo, os videntes foram consultados por<br />
Rousselot e Auvergne, Secretário do Bispado de Grenoble,<br />
sobre se estavam ou não dispostos a revelar o “segredo” ao<br />
Cardeal para que ele os enviasse ao Papa, como se pedia na<br />
carta. Rousselot e Auvergne supunham que <strong>De</strong> Bonald havia<br />
realmente recebido essa incumbência papal.<br />
Maximino disse a Auvergne que aceitaria revelar seu<br />
“segredo” ao Papa se o Papa o exigisse. <strong>De</strong>sconfiado, acrescentou:<br />
- “Vou ver o que ele (o Papa) vai me dizer...” (in STERN, p. 55).<br />
Melânia, muito perturbada, afirmava:<br />
- “A Santa Virgem me proibiu de dizê-lo (o segredo)!”<br />
E durante a noite, em sonhos, repetia:<br />
- “Pedem meu segredo... É preciso dizê-lo ao Papa ou ser<br />
separada da Igreja!” (in STERN, p. 55).<br />
As respostas dadas por Maximino a Pe. Auvergne, durante<br />
a entrevista no Seminário Menor de Rondeau, em Grenoble, no<br />
dia 23 de março de 1851, seguidas das respostas de Melânia<br />
dadas no mesmo dia, no Convento das Irmãs da Providência, em<br />
Corenc, são de uma firmeza e sabor sem par.<br />
Ao final da entrevista, Maximino se mostrou inclinado a<br />
revelar ao Papa seu “segredo”.<br />
Melânia, porém, se manteve em sua recusa.<br />
Três dias mais tarde, Rousselot foi a Corenc para entrevistar<br />
mais uma vez Melânia. Finalmente ela aceitou revelar seu<br />
“segredo” ao Papa, “somente ao papa, e somente quando ele o<br />
ordenar” (cf. STERN, 3, p. 34). Ela o diria de viva voz ou em<br />
carta fechada, confiada a Dom Philibert, para que ele a enviasse a<br />
Roma sem passar por Lyon (in CARLIER p. 133-136). A pastora<br />
desconfiava que o alegado pedido pontifício, mencionado por <strong>De</strong><br />
Bonald, era apenas um pretexto inventado pelo próprio Cardeal<br />
que ambicionava conhecer os “segredos” para saber se tinham<br />
relação com as pretensões de Richemont. Melânia estava certa<br />
ao desconfiar das intenções do Cardeal (cf. STERN, 3, p. 35).<br />
A intermediação do Cardeal, na questão dos “segredos”,<br />
estava descartada.<br />
97
Dom Philibert, sem demora, enviou a <strong>De</strong> Bonald cópia<br />
dessas entrevistas com Melânia e Maximino. Não se tratava<br />
ainda da revelação dos “segredos”, mas, apenas da disposição<br />
dos videntes em revelá-los ou não.<br />
Não tendo recebido nenhuma resposta do Cardeal, o Bispo<br />
de Grenoble, dois meses depois, a 4 de junho de 1851, escreveu<br />
ao Papa Pio IX para lhe explicar como havia procedido nessa<br />
questão. Disse também ao Papa que estava esperando uma<br />
resposta do Cardeal.<br />
Na carta, o Bispo acenou para a questão do “segredo”,<br />
sempre na suposição de que o Papa tivesse pedido para conhecêlo.<br />
Por isso enviou em anexo <strong>à</strong> carta, uma cópia das entrevistas<br />
com os videntes.<br />
Dom Philibert afirmou no texto:<br />
- “Este segredo, que eles sustentaram com tamanha energia<br />
durante quatro anos, de forma tal que nem as promessas nem<br />
as ameaças puderam arrancá-lo deles, tem a ver com coisas tão<br />
importantes que eles somente o confiarão ao Soberano Pontífice<br />
e a pedido expresso de Sua Santidade” (in STERN, p. 55).<br />
Por fim, se pôs <strong>à</strong> disposição do Papa para eventuais explicações.<br />
Nesse meio tempo, <strong>De</strong> Bonald, tendo recebido o texto das<br />
entrevistas enviado por Dom Philibert, a 8 de abril escreveu<br />
a Dom Gousset, Arcebispo de Reims. Como Dom Gousset se<br />
dirigia a Roma para receber o chapéu cardinalício, suplicou-lhe,<br />
por carta, que interviesse junto ao Papa a respeito da revelação<br />
dos “segredos”. Nessa correspondência o Cardeal se referiu, a seu<br />
modo, <strong>à</strong>s declarações dos dois videntes que constavam na cópia<br />
das entrevistas enviada por Dom Philibert. Retomou-as de modo<br />
incompleto e, em relação <strong>à</strong>s de Melânia, até substancialmente<br />
falso. Dizia na mesma carta:<br />
- “Como quero que tudo isso tenha um fim, porque receio<br />
que surjam ilusões ou crendices, e que a religião venha a sofrer<br />
com isso, queira, Excelência, solicitar em meu nome a Sua<br />
Santidade que me autorize a lhe transmitir esses segredos se é<br />
que vale a pena” (in STERN, 3, p. 34).<br />
98
Por que solicitar essa autorização do Papa, se o mesmo Cardeal, na<br />
carta confidencial de 21 de março a Rousselot, havia dado a entender<br />
que, como “Conselheiro do Papa”, já tinha essa incumbência?<br />
Na mesma carta a Dom Gousset, <strong>De</strong> Bonald não mencionou<br />
a recusa formal de Melânia <strong>à</strong> idéia de fazer seu “segredo” passar<br />
por suas mãos de Cardeal antes de ser enviado para Roma. Ia mais<br />
longe ainda ao reservar-se o direito de avaliar os “segredos”, e<br />
só depois transmiti-los ao Papa, “se é que vale a pena” (ib.).<br />
Em meados de junho, o Cardeal recebeu, através da<br />
Nunciatura em Paris, uma carta datada de 22 de maio de<br />
1851, escrita por Dom Fioramonti, Secretário do Papa para os<br />
Documentos Latinos. Era a resposta de Roma ao pedido do<br />
Cardeal, feito a 8 de abril, através de Dom Gousset. Nela não se<br />
mencionava nenhum desejo do Papa em conhecer os segredos.<br />
Finalmente, a 20 de junho, depois de instruções recebidas<br />
da parte do Vaticano através da Nunciatura em Paris, o Cardeal<br />
<strong>De</strong> Bonald escreveu a Dom Philibert para dizer-lhe que os<br />
documentos recebidos de Grenoble, em março, não tinham sido<br />
enviados a Roma por ele simplesmente porque não continham<br />
os “segredos”. Esquecia, porém, de dizer que na carta de 21<br />
de março, enviada a Rousselot, não solicitava os “segredos”<br />
como tais, mas perguntava apenas se os dois videntes estavam<br />
dispostos ou não a revelar os “segredos”.<br />
Na mesma correspondência de 20 de junho, o Cardeal<br />
afirmava ainda:<br />
- “Fui encarregado por Sua Santidade para lhe enviar o segredo<br />
e não outra coisa, o segredo puramente e simplesmente...”.<br />
Pedia, então, que os “segredos” lhe fossem enviados em<br />
carta aberta, sem carimbo.<br />
- “Eu mesmo colocarei meu carimbo e os enviarei ao Papa”<br />
(in STERN, p. 56).<br />
Era tarde demais. Dom Philibert, na carta de 4 de junho, já<br />
havia comunicado ao Papa as disposições dos dois videntes.<br />
Nessa história atravessada, não havia verdadeiramente uma<br />
missão pontifícia. Havia, apenas, uma pretensão cardinalícia.<br />
99
A pressão, exercida por <strong>De</strong> Bonald em nome de uma<br />
incumbência pontifícia inexistente, foi como que o “pecado<br />
original” (STERN, in “Note sur les “secrets de 1851”, polígrafo,<br />
27-01-2001, p. 20) dessa infeliz questão dos “segredos” dos dois<br />
videntes e da autobiografia de Melânia.<br />
Com o objetivo de recolher os ditos “segredos” dos videntes,<br />
Dom Philibert, a 2 de julho de 1851, enviou Dausse, pessoa de<br />
sua confiança, ao Seminário Menor em Rondeau, para buscar<br />
Maximino e conduzi-lo ao Bispado. Recomendava a Maximino<br />
que pensasse bem no que ia fazer.<br />
Chegando ao Palácio Episcopal, Maximino se acomodou junto<br />
a uma escrivaninha. O Bispo introduziu na sala o Cônego Taxis junto<br />
com Dausse para observarem o menino. <strong>De</strong>pois se retirou. Maximino<br />
pôs a mão na cabeça, refletiu por alguns instantes, mergulhou a pena<br />
no tinteiro e sem mais a sacudiu sujando o assoalho.<br />
<strong>De</strong>pois de uma repreensão, tomou novamente a caneta e<br />
começou a escrever com rapidez. Inicialmente redigiu uma<br />
espécie de preâmbulo ao texto a ser escrito. Mostrou-o a Dausse<br />
que o aprovou. <strong>Volta</strong>ndo <strong>à</strong> escrivaninha, se pôs a escrever<br />
novamente com rapidez, sem se deter. Ao final se levantou<br />
e jogou no ar a folha escrita, dizendo que, a partir daquele<br />
momento, se sentia liberado do “segredo”...<br />
As duas testemunhas juntaram o papel e viram que estava mal<br />
escrito, com muitos borrões. A folha foi queimada e Maximino<br />
foi obrigado a reescrever o texto de forma conveniente.<br />
Dom Philibert foi convidado a comparecer na sala. Pediu a<br />
Maximino que pusesse o novo escrito dentro de um envelope a<br />
ser fechado.<br />
Dausse, porém, insistiu junto ao Bispo para que antes lesse<br />
o escrito para evitar que algo de inconveniente fosse levado ao<br />
Papa. O Bispo relutou, mas, acabou lendo o texto. Maximino<br />
assinou-o, fechou-o num envelope sobre o qual foi posto o<br />
carimbo episcopal com as assinaturas das duas testemunhas.<br />
No mesmo dia 2 de julho de 1851, Dausse, a pedido do<br />
Bispo, procurou Melânia em Corenc, com o mesmo objetivo.<br />
100
Ela se negou a segui-lo e se pôs a chorar. Novas tentativas foram<br />
feitas naquele dia, sem efeito. Melânia passou aquela noite de<br />
forma agitada, falando durante o sono, em “anticristo” e “fim de<br />
mundo”.<br />
No dia seguinte, 3 de julho, na presença de Dausse e do<br />
Capelão Gérente, Melânia decidiu atender o pedido. Escreveu<br />
o texto na sala da Capelania do Convento em Corenc. As duas<br />
testemunhas puseram sua assinatura sobre o envelope e o<br />
entregaram a Dom Philibert.<br />
No entanto, algumas horas depois, Melânia, tomada de<br />
tristeza, pediu para falar com Rousselot a quem disse que faltava<br />
incluir mais uma coisa no texto.<br />
A conselho de Rousselot, Melânia escreveu novo texto, a<br />
6 de julho, na Casa das Irmãs da Providência, em presença<br />
do Pe. Auvergne e de Irmã Saint-Louis, Superiora da Casa. Só<br />
interrompeu a escrita para perguntar qual o sentido da palavra<br />
“infalivelmente” e qual a ortografia das palavras “anticristo”<br />
e “cidade depravada”. Assinou o texto. Fechou-o. As duas<br />
testemunhas puseram sua assinatura. O envelope foi confiado a<br />
Rousselot que o levou ao Bispo para ser enviado a Roma.<br />
Acredita-se que a primeira redação feita por Melânia tenha<br />
ficado entre as mãos de Dom Philibert que antes havia lido o<br />
texto de Maximino.<br />
Dom Philibert redigiu uma carta pessoal ao Papa, a ser<br />
enviada com as cartas dos videntes. Nela o Bispo pedia o parecer<br />
do Papa a respeito da Aparição e perguntava:<br />
- ”Se a resposta é favorável, o Santo Padre estaria de acordo<br />
em consentir que o Bispo de Grenoble declare num Mandamento,<br />
que ele julga que essa aparição traz todos os carateres da verdade<br />
e que os fiéis têm razão ao crer nela como verdadeira?” (in<br />
CARLIER, p. 140-141).<br />
Rousselot e Gérin, dois sacerdotes da inteira confiança<br />
de Dom Philibert, foram escolhidos para a missão de levar<br />
pessoalmente a correspondência ao Papa. Rousselot foi<br />
apresentado acima. Gérin merece uma apresentação.<br />
101
Jéan-Baptiste Gérin deu grande contribuição <strong>à</strong> causa da<br />
Salettte. Em tudo dava testemunho de santidade.<br />
Nasceu a 23 de dezembro de 1797, em Roches-de-Condrieu,<br />
no Isère. Era filho de agricultores e bons cristãos. Estudou no<br />
Seminário Maior de Grenoble. Foi ordenado sacerdote a 16 de<br />
julho de 1831, nomeado Vigário em diversas Paróquias a seguir,<br />
e em 1835, designado para o cargo de Pároco da Catedral.<br />
Levantava-se muito cedo e passava longas horas em oração<br />
e no confessionario. Era admirável seu cuidado pelos doentes e<br />
pobres, e seu zelo para com os fiéis.<br />
Juntamente com Pe. Mélin, de Corps, foi um dos primeiros a<br />
crer na Aparição da Salette. Anualmente fazia sua peregrinação <strong>à</strong><br />
Montanha bendita. Participou das solenidades do 1º Aniversário<br />
do maravilhoso evento, conforme ele mesmo narrou (cf.<br />
CARLIER, p. 238-241).<br />
Em seus últimos anos de vida foi atingido pela doença que<br />
o levaria <strong>à</strong> morte. Viveu acamado em seus últimos cinco anos,<br />
com resignação, lucidez e paciência. Tendo recebido os Santos<br />
Sacramentos, morreu na manhã de 13 de fevereiro de 1863. Seu<br />
funeral foi grandioso.<br />
A 6 de julho de 1851, os emissários de Dom Philibert,<br />
Rousselot e Gérin, partiram para Roma. Lá chegaram cinco dias<br />
depois, a 11 de julho.<br />
No dia 14 de julho, <strong>De</strong> Bonald chegou a Grenoble para ver os<br />
dois videntes. Eles relutaram em vê-lo. Recusaram-se a revelarlhe<br />
a “palavra pessoal” que ele chamava de “segredos”, uma<br />
vez que já tinham sido levados ao Papa, o que os dispensava de<br />
nova revelação. O Cardeal alegou que tinha a missão de tomar<br />
conhecimento deles e de enviá-los ao Papa. Os videntes lhe<br />
pediram provas quanto <strong>à</strong> pretendida missão.<br />
O Cardeal nada mais pôde fazer porque, em vista desse<br />
assunto, não tinha recebido nenhum mandato oficial por escrito,<br />
da parte do Papa. Surpreso, se retirou e, durante muitos anos, se<br />
tornou mais arredio ainda em relação <strong>à</strong> Salette (cf. V.H., I, p. 83).<br />
Nesse episódio houve, da parte de <strong>De</strong> Bonald, abuso de poder<br />
102
na tentativa de forçar a consciência dos videntes, e ingerência<br />
indevida num assunto da estrita alçada canônica do Bispo de<br />
Grenoble.<br />
A 18 de julho, Rousselot e Gérin foram recebidos com muita<br />
benevolência pelo Papa Pio IX a quem entregaram as cartas<br />
levadas de Grenoble. Enquanto o Papa as lia, os dois Sacerdotes<br />
ansiosos observavam sua reação. Pensavam que o Papa, a partir<br />
da leitura dos “segredos”, definisse a veracidade da Aparição.<br />
Começando pela carta de Maximino, Pio IX disse que nela<br />
estavam presentes “a candura e a simplicidade de uma criança”<br />
(in STERN, 3, p. 43).<br />
A seguir, depois de ler a carta de Melânia, comentou:<br />
- “Trata-se de flagelos que ameaçam a França. Ela não é<br />
a única culpada, a Alemanha, a Itália, toda a Europa o são e<br />
merecem castigos. Tenho menos receio de Proudhon que da<br />
indiferença religiosa e do respeito humano. Vossos soldados se<br />
põem de joelhos quando me vêem, mas só depois de olharem <strong>à</strong><br />
direita e <strong>à</strong> esquerda para ver se não estão sendo observados por<br />
alguém. Não é sem razão que a Igreja é chamada militante e vós<br />
vedes aqui seu capitão” (in STERN, 3, p. 44).<br />
O Papa acrescentou que devia reler as duas cartas com<br />
serenidade.<br />
Em Roma, Dom Fioramonti revelou a Rousselot que o<br />
Cardeal <strong>De</strong> Bonald não havia recebido nenhuma missão da parte<br />
do Papa, para obter os “segredos” dos videntes.<br />
Pio IX não tomou nenhuma posição a respeito da Aparição,<br />
a partir das cartas dos videntes. Pelo contrário, como os<br />
acontecimentos posteriores o demonstraram, a Santa Sé,<br />
segundo as leis canônicas em vigor, reconheceu o pleno poder e<br />
a ampla liberdade de decisão de Dom Philibert de Bruillard para<br />
se pronunciar definitivamente a respeito do evento. O Bispo se<br />
pronunciou, a seguir, proclamando a autenticidade da Aparição,<br />
não por causa dos “segredos”, mas, apesar deles.<br />
Alguns anos mais tarde, Dom Dépéry, Bispo de Gap, em<br />
maio de 1854, relatou um comentário que Pio IX lhe havia feito<br />
103
a respeito dos “segredos”: as cartas dos videntes enviadas a<br />
Roma, na verdade não continham nada de extraordinário, nada<br />
que se pudesse qualificar de “segredo” (in “Maximin et Mélanie:<br />
les secrets”, polígrafo, p.3).<br />
Gérin voltou a Grenoble no dia seguinte <strong>à</strong> audiência<br />
pontifícia.<br />
Rousselot se deteve em Roma durante mais cinco semanas.<br />
No dia seguinte <strong>à</strong> audiência papal, Rousselot enviou cartas a<br />
Dom Philibert, a Auvergne e a Mélin para relatar-lhes os fatos<br />
ocorridos em Roma durante sua estadia na Cidade Eterna (cf.<br />
textos in BASSETTE, p. 215-223). Na carta enviada a Dom<br />
Philibert, Rousselot, levado pelo “ardor” observado por Pio IX,<br />
afirma que o Papa “por duas vezes nos disse que a Salette lhe<br />
parecia apresentar os caracteres da verdade” (in STERN, 3, p.<br />
44).<br />
Mais tarde Rousselot ponderou:<br />
- “O segredo que levávamos devia ser a vida ou a morte de<br />
La Salette. Sua vida, se o segredo não fosse indigno Daquela que<br />
o confiou; sua morte, se esse segredo fosse nulo ou ridículo, ou<br />
contrário aos ensinamentos da fé” (in STERN, 3, p. 43). Tratavase<br />
de uma preocupação inócua de Rousselot uma vez que Pio IX<br />
não interferiu na questão da veracidade ou não da Aparição.<br />
A pergunta, no entanto, surge: se o conteúdo dos ditos<br />
“segredos” fosse falso, a Aparição também seria necessariamente<br />
falsa?<br />
- “A relação entre a Aparição de 1846 e os “segredos”<br />
levados a Roma em 1851, a priori não era tal que a insignificância<br />
ou o caráter duvidoso e até mesmo apócrifo destes, implicava<br />
necessariamente a rejeição daquela” (STERN, 3, p. 50).<br />
<strong>De</strong> toda forma, as cartas de Melânia e Maximino não<br />
haviam sido escritas no Vaticano, na presença do Papa e sim, em<br />
Grenoble, na presença de Dausse, um ingênuo que, no passado,<br />
se deleitava em contar a Maximino coisas bizarras, levando a<br />
sério as invencionices do menino. É perfeitamente admissível,<br />
portanto, a hipótese de que Maximino, com imaginação pueril<br />
104
para não revelar sua “palavra pessoal”, tenha escrito em seu<br />
texto outra coisa para agrado de Dausse.<br />
Melânia, por sua vez e pela mesma razão, teria simplesmente<br />
retomado conversas carregadas de “profetismo apocalíptico”<br />
que, como Maximino, ouvira no meio do povo. Fugia assim,<br />
também ela, da revelação da verdadeira “palavra pessoal”<br />
recebida da Bela Senhora.<br />
O certo é que os dois videntes resistiram sempre e<br />
energicamente <strong>à</strong> revelação da “palavra pessoal”. A Bela Senhora<br />
lhes pedira que guardassem para si o que somente a eles fora<br />
destinado. As respostas por eles dadas nos interrogatórios e<br />
anotadas pelos primeiros inquisidores, por sua vez nada de<br />
preciso indicam a respeito do conteúdo dos “segredos”.<br />
Tudo considerado se deve dizer que:<br />
- “Há boas razões para se pensar que os segredos ouvidos por<br />
Maximino e Melânia a 19 de setembro de 1846 dizem respeito<br />
aos próprios videntes. É, ao menos, a conclusão tirada a partir do<br />
mês seguinte (<strong>à</strong> Aparição) pelo Pe. Louis Perrin, Pároco de La<br />
Salette e retomada por outros pesquisadores antigos” (STERN,<br />
3, p. 51).<br />
Quando Rousselot voltou de Roma, a 24 de agosto de 1851,<br />
levou consigo alguns presentes do Papa para ele mesmo e para<br />
Dom Philibert. Levou consigo igualmente, a certeza de que o<br />
papa Pio IX e o Cardeal Lambruschini, Prefeito da Congregação<br />
dos Ritos e Secretário de Estado, não se opunham a que o Bispo<br />
de Grenoble desse seu julgamento a respeito do Fato da Salette,<br />
apesar da conhecida oposição do Cardeal de Lyon. Os “segredos”<br />
também não constituíam um empecilho <strong>à</strong> proclamação da<br />
veracidade da Aparição.<br />
O Cardeal Lambruschini, a quem Pio IX repassou as cartas<br />
dos videntes, confessou que conhecia a Salette há mais tempo, e<br />
que, como Bispo, nela acreditava e a respeito dela havia pregado<br />
com bons frutos em sua Diocese (in BASSETTE, p. 228).<br />
As duas cartas contendo os “segredos” de Maximino e<br />
Melânia foram guardadas nos Arquivos do Vaticano. Por longo<br />
105
tempo permaneceram fora do alcance do público. Pensava-se<br />
que estivessem perdidas.<br />
A 3 de novembro de 1874, o Pe. Giraud, Superior Geral<br />
dos Missionários de Nossa Senhora da Salette, ao ser recebido<br />
em audiência por Pio IX, mostrou interesse em saber algo dos<br />
“segredos”. O Papa lhe respondeu:<br />
- “O segredo de La Salette!... Meu filho, o que se deve pensar<br />
a respeito? Se não fizerdes penitência perecerão todos!... Eis o<br />
que se deve pensar a esse respeito!”<br />
Comentando o “ardor” que havia percebido em Rousselot<br />
e Gérin, por ocasião da entrega das cartas dos videntes, Pio IX<br />
disse ao Pe. Giraud que os “segredos” “nada significavam –<br />
coisas vagas que sempre se pode dizer. (...) Neles nada existe<br />
que possa dar provas da Aparição” (in STERN, 3, p. 48).<br />
106<br />
CAPÍTULO XI<br />
E A LUZ SE FEZ<br />
Dom Philibert, antes que Rousselot retornasse de Roma,<br />
se pôs a preparar o texto da declaração oficial a respeito da<br />
autenticidade da Aparição. Muito meditou e orou diante<br />
do Senhor. Conscienciosamente considerou os inúmeros e<br />
extraordinários frutos do evento, a firme devoção a Nossa<br />
Senhora Reconciliadora. Estava fortemente impressionado<br />
com o fluxo das multidões de peregrinos ao local da Aparição,<br />
sobretudo por ocasião de seu 1º Aniversário. Os milagres e as<br />
conversões inúmeras firmavam sua convicção pessoal a respeito<br />
da verdade da Salette.<br />
Tinha, porém, como dever seu, manter a maior prudência na<br />
decisão a ser tomada. Na plena consciência da legislação canônica,<br />
sabia de seu direito e dever de se pronunciar a respeito da graça da<br />
Aparição concedida <strong>à</strong> sua Diocese. Sabia igualmente que a Santa<br />
Sé, em assuntos dessa natureza, tem como princípio não se imiscuir
diretamente, mas, confia ao Bispo da Diocese onde o fenômeno<br />
religioso acontece, a responsabilidade de avaliar a veracidade ou<br />
não do evento e de anunciar sua decisão ao Povo de <strong>De</strong>us.<br />
A Igreja, em sua experiência pastoral histórica, havia sentido<br />
a necessidade de estabelecer orientações para a avaliação de<br />
fenômenos extraordinários. O Concílio de Trento tratou da<br />
questão, mas não concluiu o trabalho. O Papa Bento XIV, no séc.<br />
XVIII, em consonância com o Concílio de Trento, determinou,<br />
então, um conjunto de normas canônicas para esse fim, na obra<br />
intitulada “Da Beatificação e da Canonização dos Santos”. Dom<br />
Philibert bem conhecia tais orientações.<br />
Costuma-se, nessa área, distinguir três tipos de fenômenos:<br />
visões, audições e aparições.<br />
“Visões” são percepções interiores de “figuras” imateriais<br />
para além do âmbito dos sentidos.<br />
As “audições” ou “locuções” traduzem a percepção interna<br />
de “palavras” não pronunciadas por lábios corpóreos nem<br />
captadas pelo ouvido humano.<br />
Os dois fenômenos encontram seu reduto na esfera do mero<br />
“subjetivo”. Eles acontecem no mais íntimo da pessoa. Passam<br />
a fazer parte do mistério mais profundo do ser pessoal. Sua<br />
verdade não é objetivável. Sua aceitação se funda no testemunho<br />
de quem viveu tal experiência.<br />
As “aparições” autênticas são de ordem “objetiva” em<br />
relação ao vidente. O vidente faz a “experiência mística” de ver<br />
diante de si “alguém” que lhe é distinto, com quem se relaciona<br />
de alguma forma, e de quem pode receber “mensagens” de caráter<br />
“particular”. A “aparição” é uma experiência muito pessoal. No<br />
entanto, pode suscitar indicativos reais, objetiváveis, e neles<br />
sustentar-se para comprovação indireta de sua facticidade.<br />
“Visões”, “audições” e “aparições” jamais são consideradas<br />
“dogmas de fé” pela Igreja. Mesmo que de alguma forma toquem<br />
no conteúdo essencial da doutrina da Igreja, nada acrescentam<br />
ao dado revelado. A revelação divina contida nas Escrituras está<br />
encerrada. A fé pública da Igreja tem ali seu inteiro fundamento.<br />
107
Tais fenômenos, com sua “mensagem”, restringem-se ao<br />
limite da “revelação particular”. Poderão ter validade para uma<br />
“pedagogia da fé”, para a retomada da vivência cristã. Jamais,<br />
porém, acrescentarão novos dados de fé <strong>à</strong> “revelação pública”<br />
recebida e professada pela Igreja. Podem ser livremente aceitos<br />
pelos fiéis que neles percebem razões bem fundadas, sobretudo<br />
se tiverem obtido o parecer favorável da autoridade eclesiástica.<br />
São basicamente três as razões que podem expressar a<br />
autenticidade desses fenômenos:<br />
- A credibilidade do vidente. Investiga-se sua honestidade e<br />
coerência de vida, sua inocência pessoal ou eventual ignorância<br />
em matéria religiosa, sua incapacidade moral ou intelectual para<br />
construir uma história fictícia, sua tenaz fidelidade em narrar ou<br />
transmitir coerentemente e sempre o fenômeno místico por ele<br />
vivido.<br />
- A coerência entre o conteúdo da “mensagem” recebida e<br />
a Palavra de <strong>De</strong>us. Todo resquício de contradição entre ambas<br />
indicaria, com certeza, a origem não divina da experiência mística<br />
alegada pelo vidente. O fenômeno será, então, ou fruto de má<br />
intenção ou de perturbações psíquicas do pretenso “vidente”.<br />
- Os bons frutos suscitados pelo ocorrido. Toda árvore boa<br />
dá bons frutos, diz o Evangelho. Se o fenômeno místico vivido<br />
é realmente coisa do céu, dele brotarão maravilhas para a vida<br />
do Povo de <strong>De</strong>us. Elas serão um indicativo mais seguro para<br />
atestar positivamente o fenômeno. No entanto, podem surgir<br />
consequências positivas mesmo que nada de extraordinário<br />
tenha acontecido. Um apelo evangélico, p.ex., a conversão,<br />
mesmo que seja a partir de uma aparição propalada, mas, não<br />
verdadeira, pode suscitar um impacto espiritual que leva pessoas<br />
<strong>à</strong> reconciliação com <strong>De</strong>us e com o próximo. <strong>De</strong>us sabe colher,<br />
mesmo onde não plantou, segundo o Evangelho.<br />
Dom Philibert, ao investigar com rigor o Fato da Salette,<br />
percebeu com clareza a existência dessas caraterísticas tanto<br />
na vida e pessoa de Maximino e Melânia, quanto no conteúdo<br />
teológico-bíblico da Mensagem da Aparição. Podia fundar-se<br />
108
com serenidade nos extraordinários frutos surgidos do evento:<br />
conversões, reconciliação, renovação da vida de fé, concurso de<br />
imensas e devotas multidões em peregrinação ao local bendito,<br />
vida eclesial reavivada nas comunidades cristãs dentro e fora<br />
da Diocese de Grenoble, curas, a fonte milagrosa... Em tudo<br />
isso, Dom Philibert percebeu os indicativos claros e suficientes<br />
para reconhecer a verdade do Fato da Salette. A “experiência<br />
mística”, vivida pelas duas crianças na Montanha da Salette,<br />
superava o âmbito puramente pessoal ou “subjetivo” dos dois<br />
videntes, e se firmava “objetivamente”, embora indiretamente,<br />
nesses inúmeros comprovantes que envolviam o evento.<br />
Dom Philibert podia, pois, e devia se pronunciar.<br />
O texto da declaração episcopal estava maduro. O<br />
Mandamento Doutrinal podia ser publicado. O Bispo, no<br />
entanto, quis esperar que os espíritos se acalmassem, embora<br />
seus auxiliares pedissem pressa.<br />
Dom Philibert fez bom uso desse meio tempo para concluir<br />
a aquisição do terreno de cinco hectares no local da Aparição.<br />
Ali projetava a construção do Santuário.<br />
No retiro do Clero, em Grenoble, a 24 de setembro de 1851,<br />
retiro que concluiria com um Sínodo Diocesano, todos esperavam<br />
o pronunciamento episcopal. O texto do pronunciamento, na<br />
verdade, já estava pronto e assinado com a data de 19 de setembro<br />
de 1851, mas, foi publicado mais tarde, a 10 de novembro. A<br />
25 de setembro, os Padres presentes ao retiro, convictos de sua<br />
crença na Aparição e encorajados pelos resultados da viagem<br />
dos <strong>De</strong>legados do Bispo a Roma para entregar as cartas dos<br />
videntes ao Papa no mês de julho passado, pediram formalmente<br />
ao Bispo que anunciasse de público a autenticidade do evento,<br />
que construísse um Santuário no local da Aparição e convidasse<br />
os fiéis a colaborarem na obra (cf. CARLIER, p. 144).<br />
O pedido favorável trazia duzentas e quarenta assinaturas.<br />
Os contrários eram apenas dezessete. A larga maioria do Clero de<br />
Grenoble era, pois, favorável a Aparição. Uma ínfima minoria,<br />
apenas, se atrelava a dois renitentes opositores, Déléon e Cartellier.<br />
109
Mal terminado o retiro em Grenoble, entre os presentes<br />
circularam alguns textos emanados da oposição.<br />
Um escrito de Pe. Cartellier citava o incidente de Ars como<br />
argumento contra a Aparição, e ironizava a viagem de Rousselot<br />
e Gérin a Roma. Outro, francamente injurioso, foi publicado por<br />
J. Robert, pseudônimo usado pelo Pe. Déleon.<br />
Era previsível, portanto, que a aprovação da Aparição e da<br />
peregrinação da Salette, por Dom Philibert, não pusesse fim<br />
aos atos de oposição. Na verdade, poucas semanas depois do<br />
lançamento da pedra fundamental do Santuário, em maio de<br />
1852, ainda apareceram folhetos ofensivos contra a Salette e<br />
o Bispo. Logo depois, em circular de 16 de junho de 1852, o<br />
Bispo declarou suspensos os autores e difusores de semelhantes<br />
escritos, se fossem Padres.<br />
No final do verão de 1852, a situação se agravou com a<br />
publicação do livro: ”La Salette Fallavaux (Fallax-vallis) ou<br />
La vallée du Mensonge” (“O vale da mentira”), de Donnadieu,<br />
outro pseudônimo do Pe. Claude-Joseph Déléon, antigo Pároco<br />
de Villeurbanne, Paróquia dependente de Grenoble apesar de<br />
situada próxima a Lyon.<br />
Déléon, um caráter violento, não havia aceitado a<br />
transferência de sua Paróquia, algum tempo antes. Os paroquianos<br />
queixavam-se dele.<br />
Em vista do problema, Rousselot, em 1848, lhe ofereceu a<br />
direção do jornal “L´Union Dauphinoise”, de Grenoble. Atrelado<br />
ao partido bonapartista, Déléon logo fez do jornal um órgão<br />
político e lhe deu outro nome, “Voeu National”, a partir de 20 de<br />
fevereiro de 1851. O fato desgostou a administração diocesana<br />
que criou outro jornal sob o título de “L´ami de l´ordre”.<br />
Déléon ameaçava processar tanto o Bispo quanto Rousselot por<br />
tê-lo transferido. Apesar de advertido, circulava publicamente em<br />
trajes civis e mantinha junto a si uma mulher, o que causava escândalo.<br />
Para pôr fim a essa situação, Dom Philibert, a 30 de janeiro de 1852,<br />
suspendeu-o do exercício do ministério sacerdotal na Diocese.<br />
Déléon, então, passou a atacar a Aparição da Salette. No<br />
110
entanto, por meio de seu jornal, expressara alguns meses antes,<br />
simpatia pelo evento.<br />
Tratava-se de pessoa inteligente, mas apaixonada, polêmica.<br />
Sem se intimidar com a ameaça de excomunhão, em abril<br />
de 1853, quando Dom Philibert já havia deixado o cargo,<br />
aproveitou a ocasião para criar problemas para o novo Bispo de<br />
Grenoble, Dom Ginoulhiac, entronizado a 7 de maio seguinte.<br />
Publicou, então, a segunda parte de sua obra. Nela denuncia a<br />
Aparição como fantasiosa. Segundo essa fantasia, a pessoa que<br />
aparecera a Melânia e Maximino não era a Virgem Maria e sim,<br />
uma ex-religiosa da Providência, Mle. <strong>De</strong> Lamerlière, neta de<br />
um Conselheiro do Parlamento de Grenoble. <strong>De</strong> Lamerlière<br />
estaria perambulando pelas montanhas de La Salette no dia da<br />
Aparição e teria se manifestado no cenário do evento.<br />
Essa fábula, inventada por Déléon e carregada de maldade,<br />
não tinha compaixão alguma para com essa mulher de mais de<br />
50 anos de idade, doentia, excêntrica. A lenda veiculava uma<br />
série de inverossimilhanças e impossibilidades, pois, na data da<br />
Aparição, <strong>De</strong> Lamerlière nem se encontrava na região de Corps.<br />
Tinha, pois, um álibi configurado.<br />
Mais tarde o próprio Déléon cinicamente afirmou que nem<br />
ele mesmo acreditava nessa fábula. Segundo ele, tratava-se de<br />
uma brincadeira que havia recolhido num encontro de amigos,<br />
e publicara em seu jornal. Como conseqüência, a família de<br />
<strong>De</strong> Lamerlière processou Déléon (cf. STERN, 3, pgs. 79-85;<br />
CARLIER, pgs. 150-154; pgs. 163-173).<br />
Déléon, na verdade, pouco ou nada conhecia do evento da<br />
Salette. Ele mesmo o confessou em 1851.<br />
Tomando conhecimento de que o Pe. Cartellier combatia<br />
fortemente a Aparição, tornou-se amigo dele e nele encontrou<br />
um informante hábil a respeito da Salette.<br />
Déléon morreu muito idoso, reabilitado por Dom Fava,<br />
novo Bispo de Grenoble. Antes confessou que “em seu coração<br />
sempre acreditou na Salette”, mas, que a combatera para se<br />
vingar da autoridade episcopal.<br />
111
Cartellier era Pároco de Saint-Joseph, em Grenoble. Agia<br />
contra a Salette de maneira oculta. Em 1848 ainda, redigiu<br />
alguns folhetos contra as investigações de Rousselot a respeito<br />
da Aparição. No começo, segundo ele, acreditava na Aparição.<br />
Em 1847 tinha visitado o local do evento. A visita surtiu efeitos<br />
negativos.<br />
As conferências da Comissão que analisou o “Relatório<br />
Rousselot-Orcel” sobre o evento, em novembro-dezembro de<br />
1848, deram-lhe a ocasião de se tornar o chefe da oposição.<br />
Criticou severamente o processo seguido por Rousselot,<br />
atribuindo-lhe coisas que ele jamais disse ou fez. Formara-se<br />
uma caricatura a respeito do Fato da Salette. No fundo, Cartellier<br />
não queria atacar a Salette, mas, a Rousselot.<br />
Rousselot, em 1848, publicou um livro em que desmascarava<br />
os opositores. Cartellier lançou, então, um folhetim chamado<br />
“Réponse”, o primeiro da série. Queria demolir as provas<br />
recolhidas por Rousselot.<br />
<strong>De</strong>pois que os “segredos” foram levados a Roma, Cartellier<br />
pensou que era chegado o momento de enviar ao Papa o texto<br />
intitulado “Mémoire au Pape”. Nele Cartellier afirmava que a<br />
Salette fora inventada, e que causava mal entre os fiéis e entre<br />
os não crentes. Comparava a Salette como a árvore que dá<br />
maus frutos. Insultava a Rouselot e caluniava o Bispo. A obra<br />
retomava a substância dos escritos anteriores e também dos<br />
livros de Déléon.<br />
<strong>De</strong>pois de censuras, Cartellier aparentemente se retratou,<br />
o que lhe permitiu continuar <strong>à</strong> testa da Paróquia Saint-Joseph.<br />
Prosseguiu, porém, em seus ataques <strong>à</strong> Salette, mas não<br />
publicamente (cf. STERN, 3, pgs. 86-94; CARLIER, pgs. 154-<br />
156). Quando ele morreu, a 13 de julho de 1865, em Vichy,<br />
estava redigindo um novo livro contra a Aparição.<br />
Diante das controvérsias publicadas pelos jornais a respeito<br />
da Salette, Dom Philibert, a 10 de outubro de 1851, por carta<br />
proibiu novamente aos Padres de fazerem qualquer publicação<br />
sobre a Aparição sem sua autorização, reservando-se o direito<br />
112
de se pronunciar a respeito do evento (cf. V. H., I, ps. 86-87;<br />
CARLIER p. 145).<br />
Dom Philibert anunciou, então, a promulgação de seu<br />
Mandamento Doutrinal datado de 19 de setembro de 1851.<br />
Ao mesmo tempo, o Bispo Dom Philibert mantinha<br />
relacionamento com Roma, de onde recebia sempre apoio e<br />
simpatia. Sabia da opinião de Roma através de Rousselot que<br />
tinha entrevistado o Cardeal Lambruschini, Prefeito da Sagrada<br />
Congregação dos Ritos.<br />
Por sua vez, Dom Frattini, Promotor da Fé, havia examinado,<br />
a pedido do Papa, os livros de Rousselot sobre o evento da<br />
Salette:<br />
- “La vérité sur l´événement de La Salette”, de 1848;<br />
- “Nouveaux documents sur l´événement de La Salette”, de<br />
1849;<br />
- “Défense de l´événement de La Salette contre des nouvelles<br />
attaques”, de 1851.<br />
Em carta endereçada a Dom Philibert, Dom Frattini<br />
declarou que havia chegado <strong>à</strong> conclusão de que a Aparição<br />
realmente acontecera. Como Promotor da Fé observava, apenas,<br />
que era preciso uma prova legal para o fato, pois o testemunho<br />
das duas crianças não era suficiente. A prova legal consistia em<br />
algum evento miraculoso, devidamente examinado segundo a<br />
legislação canônica, e aduzido como comprovante da Aparição.<br />
Dom Philibert também recebia de Bispos da França,<br />
de Padres e fiéis de toda parte, o pedido para se pronunciar<br />
oficialmente.<br />
Para se assegurar que em nada contrariava as intenções<br />
da Santa Sé, Dom Philibert, por meio de Rousselot, enviou o<br />
projeto do texto de seu Mandamento Doutrinal ao Cardeal<br />
Lambruschini, em Roma. Antes o havia submetido <strong>à</strong> análise de<br />
uma comissão de Cônegos da Catedral e dos Vigários Gerais de<br />
Grenoble.<br />
A 7 de outubro de 1851, o texto voltou de Roma acompanhado<br />
de uma carta do Cardeal Lambruschini. Nela, entre elogios,<br />
113
se pedia uma só coisa: que, por ocasião da publicação do<br />
Mandamento Doutrinal não se cantasse nas Igrejas o TE DEUM,<br />
como o projeto previa, para não se dar ao ato uma solenidade<br />
que implicaria o nome da Igreja de Roma numa decisão da<br />
competência do Bispo Diocesano de Grenoble (cf. texto da carta<br />
do Cardeal in BASSETTE, p. 233).<br />
Dom Philibert, depois de retocar o texto em obediência<br />
<strong>à</strong>s observações feitas, publicou a 10 de novembro de 1851 o<br />
esperado Mandamento Doutrinal. O documento, porém, vinha<br />
com a data de 19 de setembro, quinto Aniversário da Aparição.<br />
O texto, apesar de longo, devia ser lido em todas as 600 igrejas<br />
ou capelas da Diocese, no dia 16 de novembro.<br />
Na primeira parte do texto, Dom Philibert explana o longo<br />
processo seguido na análise do evento da Salette. Evoca o fato da<br />
Aparição, o comportamento dos videntes, a reflexão e oração do<br />
próprio Bispo, a prudência com que ele mesmo devia agir apesar<br />
das pressões para que ele se pronunciasse, a devoção do povo a<br />
Nossa Senhora, os milagres, o fluxo extraordinário de peregrinos,<br />
a construção de capelas dedicadas a Nossa Senhora da Salette em<br />
diferentes Dioceses, o pedido para a construção de um Santuário<br />
na Montanha da Salette, a fonte milagrosa, as contradições<br />
sofridas, o envio dos “segredos” ao Papa, as orientações de Roma,<br />
os trabalhos da Comissão Episcopal. Ao assinalar os trabalhos da<br />
Comissão, Dom Philibert, em relação <strong>à</strong> convicção pessoal quanto<br />
<strong>à</strong> Aparição, declara no próprio Mandamento Doutrinal:<br />
- “Embora nossa convicção já fosse plena e sem sombras ao<br />
final das sessões da Comissão que findaram a 13 de dezembro de<br />
1847, nós não quisemos anunciar um julgamento doutrinal sobre<br />
um fato de tamanha importância” (in BASSETTE, p. 238).<br />
Ao final do documento, depois de apresentar diversos<br />
considerandos, apresenta oito artigos que compõem o coração do<br />
Mandamento Doutrinal e declaram formalmente a autenticidade<br />
da Aparição da Salette. Os três primeiros são os fundamentais:<br />
- “Tendo novamente invocado o Espírito Santo e a assistência<br />
da Virgem Imaculada, Nós declaramos o que segue:<br />
114
Artigo 1º: - Nós julgamos que a aparição da Santa Virgem a<br />
dois pastores, a 19 de setembro de 1846, sobre uma montanha da<br />
cadeia dos Alpes, situada na paróquia de La Salette, do <strong>De</strong>canato<br />
de Corps, traz em si mesma todos os caracteres da verdade, e que<br />
os fiéis têm fundamento para acreditar que é indubitável e certa.<br />
Artigo 2º: - Nós cremos que esse Fato adquire novo grau de<br />
certeza pelo imenso e espontâneo concurso dos fiéis ao local da<br />
aparição, bem como pela multidão de prodígios que se seguiram<br />
ao citado evento, e que é impossível pôr em dúvida um tão grande<br />
número deles sem violar as regras do testemunho humano.<br />
Artigo 3º: - É por isso que, para darmos testemunho de<br />
nosso vivo agradecimento a <strong>De</strong>us e <strong>à</strong> gloriosa Virgem Maria, nós<br />
autorizamos o culto de Nossa Senhora da Salette. Nós permitimos<br />
fazer pregações a seu respeito, e tirar as consequências práticas<br />
e morais que brotam desse grande Evento” (cf. íntegra do<br />
Mandamento Doutrinal, in BASSETTE, p. 234-244).<br />
Do ponto de vista teológico e canônico, a autenticidade da<br />
Aparição estava, portanto, definida pela autoridade eclesiástica<br />
competente, Dom Philibert de Bruillard, Bispo da Diocese de<br />
Grenoble a cuja jurisdição pertencia La Salette.<br />
A Igreja Local de Grenoble, e com ela o mundo cristão,<br />
acolheu com alegria o Mandamento Doutrinal. Dom Philibert<br />
recebeu a adesão multíplice de variadas procedências. Cartas<br />
de apoio de Padres e Bispos a quem tinha enviado cópias do<br />
documento, provinham de inúmeras Dioceses francesas e<br />
estrangeiras (cf. BASSETTE, ps. 248-272).<br />
O Bispo também enviou cópia ao Cardeal de Lyon. O Cardeal<br />
<strong>De</strong> Bonald, em carta resposta de 28 de novembro de 1851,<br />
protestou afirmando que a ele cabia o direito de se pronunciar<br />
oficialmente sobre o assunto, depois de discutido no Concílio<br />
Provincial de Lyon, o que não aconteceu. Em resposta, a 1º de<br />
dezembro, Dom Philibert disse-lhe que a discussão a respeito da<br />
Salette, prevista na pauta do Concílio Provincial de 1850, não<br />
fora efetuada por ordem do próprio Cardeal (cf. BASSETTE, p.<br />
246-248).<br />
115
O Mandamento Doutrinal de Dom Philibert produziu bons<br />
e abundantes frutos em toda parte. Foi traduzido em diversas<br />
línguas. O próprio OSSERVATORE ROMANO, em data de 1º<br />
de abril de 1852, publicou o texto em língua italiana.<br />
Encerrava-se assim a controvérsia, longa e difícil, a respeito<br />
da veracidade do Fato da Salette. O Fato recebeu o aval oficial<br />
da Igreja. Pela primeira vez uma Aparição obteve a declaração<br />
canônica da própria autenticidade. A devoção a Nossa Senhora<br />
da Salette como Reconciliadora se difundiu cada vez mais, com<br />
o apoio de Bispos e a adesão dos fiéis (cf. BASSETTE, pgs.<br />
289-297).<br />
No ano seguinte, 1852, Dom Philibert tomou duas outras<br />
decisões de fundamental importância para a Diocese de Grenoble<br />
e para toda a Igreja: a construção do Santuário e a fundação dos<br />
Missionários de Nossa Senhora da Salette, como adiante se verá.<br />
116<br />
CAPÍTULO XII<br />
“DEIXAI VOSSO SERVO PARTIR EM PAZ”<br />
Tendo assegurado a fundação do Santuário e dos<br />
Missionários, Dom Philibert estava determinado a buscar o<br />
repouso merecido.<br />
Antes de se afastar da Diocese de Grenoble, fez questão de<br />
indicar <strong>à</strong> Santa Sé, um substituto que garantisse a continuidade de<br />
sua obra, sobretudo em relação <strong>à</strong> Salette. O Papa lhe havia dado essa<br />
permissão. O sucessor de Dom Philibert seria Dom Ginoulhiac.<br />
O renome de Pe. Ginoulhiac havia ultrapassado os limites<br />
da Diocese de Aix-en-Provence, onde era Vigário Geral. Dom<br />
Philibert de Bruillard aprendera a estimá-lo. Sem conhecê-lo<br />
pessoalmente, achou que ele seria um grande auxílio para a causa<br />
da Salette. Sabendo de suas qualidades e disposições, enviou-lhe<br />
a 3 de junho de 1852, uma carta confidencial, para lhe propor<br />
que fosse o seu sucessor (cf. CARLIER, p. 160).
Ginoulhiac acabava de publicar sua grande obra: “Histoire<br />
du dogme catholique”. Era um renomado teólogo. Tornar-se-ia<br />
intrépido defensor da causa da Aparição da Salette.<br />
O Pe. Ginoulhiac respondeu com admirável sabedoria<br />
a Dom Philibert (cf. V. H., I, pgs. 148-149). Em sua carta,<br />
manifestou mais disposição para obedecer como auxiliar do que<br />
para comandar como Bispo.<br />
A 21 de setembro, o Imperador Napoleão III passou por<br />
Grenoble. O Bispo, presente na recepção ao Imperador, fez<br />
uso da oportunidade para reforçar junto a ele, o pedido de<br />
afastamento da Diocese de Grenoble.<br />
Dom Pilibert também deixou clara sua intenção a Dom<br />
Dupanloup, numa correspondência, em dezembro de 1852:<br />
- “Apresentando minha demissão e obtendo a nomeação<br />
de um sucessor que me convém sob todos os aspectos, e<br />
particularmente quanto <strong>à</strong> fé na Aparição, preveni maiores males”<br />
(STERN, p.84).<br />
A 21 de dezembro de 1852, numa Carta Pastoral destinada<br />
ao Clero de Grenoble, o Bispo anunciou publicamente sua<br />
decisão. Nela afirmou:<br />
- “<strong>De</strong>pois de ter posto a pedra fundamental para o edifício<br />
destinado a comemorar um acontecimento divino, um orgulho<br />
para a Diocese, e depois de ter criado um corpo de missionários<br />
diocesanos que serão os guardiões do mesmo, creio que minha<br />
longa administração tenha chegado ao fim” (in STERN, p.81).<br />
A consternação foi geral na Diocese, particularmente entre<br />
os Missionários de Nossa Senhora da Salette, já presentes<br />
na Montanha. Pe. <strong>De</strong>naz lhe expôs os sentimentos deles. Em<br />
resposta, o Bispo escreveu:<br />
- “Vós sempre fostes minha consolação. Vós sereis, um dia,<br />
a glória do vosso Bispo. Perseverai em vossa vocação. Anunciai<br />
sempre pelo exemplo, e o Senhor abençoará vosso ministério”<br />
(in V. H., I, p. 119).<br />
Disse-lhes que Dom Ginoulhiac o sucederia e seria muito<br />
devotado <strong>à</strong> obra da Salette.<br />
117
A 29 de dezembro de 1852, alguns meses após o lançamento<br />
da pedra fundamental do Santuário, Dom Philibert solicitou a<br />
demissão oficial de seu cargo.<br />
A 6 de maio de 1853 se retirou para Montfleury, nas<br />
proximidades de Grenoble, junto a um Convento das Irmãs de Sacré<br />
Coeur de Jésus, fundadas por Santa Madalena Sofia Barat de quem<br />
Dom Philibert havia sido Diretor Espiritual nos tempos de Paris. O<br />
Convento havia sido fundado no dia 19 de setembro de 1846, dia<br />
da Aparição da Salette. Ali, Dom Philibert permaneceu até o fim de<br />
seus dias. Celebrava Missa todos os dias, na Capela do Convento.<br />
Após sua demissão, o Bispo recebeu uma honraria<br />
eclesiástica: foi nomeado Cônego de primeira ordem da Basílica<br />
de São <strong>De</strong>nis, perto de Paris.<br />
No dia 6 de agosto de 1856, festa da Transfiguração, dia<br />
do 30º aniversário de sua ordenação episcopal, Dom Philibert<br />
quis celebrar a data na Montanha da Salette. Tinha 91 anos de<br />
idade. Chegou ao local da Aparição a 4 de agosto, carregado de<br />
Corps até o Santuário, por robustos montanheses, numa cadeira<br />
especial. Sua visita anterior tinha acontecido quatro anos antes,<br />
por ocasião do lançamento da pedra fundamental do templo.<br />
A construção do Santuário estava em andamento. O Bispo lá<br />
passou três dias. O tempo magnífico lhe permitiu contemplar o<br />
local. Rezou junto <strong>à</strong> fonte milagrosa e percorreu o caminho feito<br />
pela Bela Senhora.<br />
A 6 de agosto, no Santuário inacabado, celebrou a missa<br />
na presença de numerosos Padres e peregrinos. Na homilia<br />
comentou as palavras do Evangelho da Transfiguração: - “É<br />
bom estarmos aqui!”.<br />
À tarde chegou um grupo de cerca de 80 soldados peregrinos<br />
que lhe pediram a bênção e orações por suas famílias, pelo<br />
Imperador e pelos camaradas mortos na Guerra da Criméia.<br />
O Bispo entoou cânticos populares e distribuiu medalhas aos<br />
soldados. Outros grupos de soldados chegaram <strong>à</strong> noite.<br />
No dia 7 de agosto, pela manhã, Dom Philibert desceu a<br />
montanha, novamente em cadeira especial.<br />
118
Na véspera havia escrito uma mensagem no álbum dos<br />
peregrinos:<br />
- “Eu, abaixo assinado, Bispo emérito de Grenoble,<br />
agradeço a Nosso Senhor e a Santa Mãe pela facilidade com<br />
que fiz essa viagem. Celebrei e preguei por três vezes em dois<br />
dias na igreja inacabada de Nossa Senhora da Salette. Tudo que<br />
vi, ouvi e experimentei confirmou a convicção que tinha desde<br />
meu primeiro Mandamento, sobre a realidade da Aparição da<br />
Santíssima Virgem em 1846, a 19 de setembro. Aos 6 de agosto<br />
de 1856, dia do aniversário de minha consagração episcopal em<br />
1826 e do 91º aniversário de minha idade. Philibert de Bruillard,<br />
Cônego de primeira ordem do Capítulo de Saint-<strong>De</strong>nis...” (in<br />
STERN, p. 90).<br />
Dom Philibert esteve em Grenoble pela última vez, a 5 de<br />
setembro de 1860, para a recepção ao Imperador Napoleão III e<br />
<strong>à</strong> Imperatriz Eugênia.<br />
A doença que o levou <strong>à</strong> morte se declarou a 15 de novembro<br />
de 1860.<br />
A 23 de novembro o Bispo pediu o Viático. O médico o assistiu<br />
durante a noite. No dia seguinte, o Cônego Rousselot, seu amigo de<br />
coração, lhe administrou a Unção dos Enfermos. Rezou o terço em<br />
substituição ao Breviário, conforme autorização de Dom Ginoulhiac.<br />
No dia seguinte, sábado, recebeu a comunhão. No começo da<br />
tarde chegou um telegrama de Roma anunciando-lhe a concessão da<br />
Bênção Apostólica pelo Papa. Em ato de louvor, recitou o TE DEUM<br />
e mandou depositar o telegrama aos pés da imagem da Santa Virgem.<br />
Naquela tarde recebeu a visita do Pe. Berlioz, um dos<br />
primeiros Missionários de Nossa Senhora da Salette. Abençoou<br />
todos os Missionários que havia fundado. O Cônego Gérin<br />
também se fez presente.<br />
Seu estado de saúde piorou. A noite de 28 para 29 de<br />
novembro foi difícil.<br />
A 13 de dezembro recebeu o Viático das mãos de Dom<br />
Ginoulhiac. Estavam presentes Rousselot, Orcel e Douillet,<br />
Padre Sacristão da Catedral.<br />
119
A 15 de dezembro Dom Philibert pediu para rezar a oração de<br />
São Bernardo a Nossa Senhora, o “MEMORARE”. Ao meio dia<br />
entregou sua alma a <strong>De</strong>us enquanto nas Paróquias de Grenoble<br />
se rezava por ele. Tinha pouco mais de 95 anos de idade. Era o<br />
dia 15 de dezembro de 1860.<br />
Acreditava-se que teria um episcopado breve. Permaneceu,<br />
porém, vinte e seis anos <strong>à</strong> frente da Diocese de Grenoble. Viveu<br />
mais oito anos em grande pobreza. <strong>De</strong>ixou apenas uma pequena<br />
quantia para as próprias exéquias.<br />
No sábado, seu corpo foi transportado, para veneração dos<br />
fieis, até a capela do Seminário Maior, em Grenoble.<br />
A 20 de dezembro foi celebrado o solene funeral na Catedral. O<br />
Bispo de Maurienne presidiu o ofício e Dom Ginoulhiac fez a homilia.<br />
No dia seguinte, Dom Ginoulhiac declarou:<br />
- “Apesar de muito ocupado, Dom Philibert jamais se fechava<br />
em seus próprios pensamentos e sentimentos. Tendo um coração<br />
verdadeiramente episcopal, algo do coração de Paulo, a respeito<br />
de quem São Crisóstomo afirmava que era o próprio Coração<br />
de Jesus Cristo, abraçava toda a Igreja em sua afeição e preces.<br />
Acompanhava os caminhos dela com uma solicitude sempre<br />
desperta, sem jamais perder a esperança” (in V. H., I, p. 123).<br />
Por diversas vezes Dom Philibert tinha manifestado o<br />
desejo de ser enterrado no Santuário da Salette. As pressões<br />
da Diocese o demoveram. Por fim, ele mesmo resolveu que<br />
seu corpo devia ser enterrado na Catedral, mas, seu coração,<br />
depois de embalsamado, seria deposto Santuário. Pe. Berlioz e<br />
Pe. Dye o levaram a La Salette, no dia 24 de maio de 1861.<br />
No dia 25 os paroquianos de La Salette subiram em procissão<br />
para acompanhar a preciosa relíquia. Foi depositada em urna<br />
especial, de mármore preto, no interior do Santuário.<br />
Dom Philibert deu ao Santuário o que de mais precioso<br />
podia dar.<br />
- “Tinha amado de tal forma essa Montanha durante a vida,<br />
que era muito justo que seu coração ali repousasse após sua<br />
morte” (in V.H., I, p. 134).<br />
120
CAPÍTULO XIII<br />
A FORTALEZA DO NOVO BISPO<br />
Dom Ginoulhiac foi um verdadeiro continuador da obra de<br />
Dom Philibert. <strong>De</strong>fendeu valorosamente o evento da Salette.<br />
Quando de sua nomeação para a Sé Episcopal de Grenoble,<br />
sua convicção a respeito da verdade da Aparição não estava<br />
inteiramente firmada ainda. Sua convicção quanto <strong>à</strong> devoção<br />
mariana surgida do evento, porém, era forte. Estava igualmente<br />
muito convicto quanto <strong>à</strong> necessidade de levar adiante a construção<br />
do Santuário bem como a organização dos Missionários de<br />
Nossa Senhora da Salette.<br />
Quanto <strong>à</strong> Aparição, como teólogo bem formado, queria<br />
antes estudar o caso pessoalmente.<br />
1 - O BISPO GINOULHIAC<br />
Ginoulhiac nasceu em Montpellier, a 3 de dezembro de<br />
1806. Entrou no Seminário da Diocese onde teve uma carreira<br />
brilhante. Tinha muito amor <strong>à</strong>s ciências e <strong>à</strong> filosofia.<br />
Logo após sua ordenação sacerdotal, a 27 de março de 1830,<br />
foi encarregado de ensinar física e matemática no Seminário.<br />
Entre 1832 e 1833, se tornou um eminente professor de Teologia.<br />
Estudou os Santos Padres da Igreja. Seu autor preferido era Santo<br />
Agostinho. Seus alunos o escutavam com alegria. Em suas aulas<br />
apareciam os germes de sua obra teológica magistral:<br />
- “Histoire du dogme catholique pendant les trois premiers<br />
siècles de l´Eglise et jusqu´au Concile de Nicée”.<br />
Dom Paulinier, que o sucedeu na Sé Episcopal de Grenoble,<br />
foi seu aluno.<br />
<strong>De</strong>z anos após a ordenação sacerdotal, Ginoulhiac foi<br />
nomeado Cônego Honorário. O Arcebispo de Aix-en-Provence,<br />
Dom Bernet, em 1839, o escolheu como Vigário Geral. Queria<br />
promover maior disciplina e melhores estudos para seu Clero.<br />
121
Ali, a par das atividades administrativas, Ginoulhiac<br />
prosseguiu em seus estudos, redigindo sua grande obra. Com<br />
ela Ginoulhiac deu início <strong>à</strong> chamada “Teologia Positiva”<br />
que produziu excelentes frutos. Estudava também a idéia de<br />
“Evolução dos Dogmas”, causa de muitas polêmicas, por ele<br />
mantida, porém, nos devidos limites teológicos. Tornou-se<br />
também eminente mestre de Vida Espiritual.<br />
A 9 de dezembro de 1852, o Pe.Ginoulhiac foi nomeado<br />
Bispo de Grenoble. A 23 de abril de 1853 tomou posse por<br />
procuração. E a 28 de abril prestou o juramento episcopal entre<br />
as mãos do Imperador, numa época em que vigoravam acordos<br />
entre a França e a Santa Sé. Recebeu a unção episcopal das mãos<br />
do Arcebispo Dom Darcimoles, em Aix-en-Provence, a 1º de<br />
maio. Dom Mazenod, Bispo de Marselha, Fundador e Superior<br />
Geral da Congregação dos Oblatos, participou da cerimônia.<br />
No mesmo dia de sua ordenação episcopal Dom Ginoulhiac<br />
assinou sua primeira Carta Pastoral enviada <strong>à</strong> Diocese de<br />
Grenoble (cf. V. H., I, pgs. 150-151). Nela se propunha dar<br />
continuidade ao que se referia ao evento da Salette e <strong>à</strong> construção<br />
do Santuário. A Aparição propriamente dita seria analisada<br />
pessoalmente por ele.<br />
O Pe. Victor Hostachy MS lhe teceu um comentário elogioso:<br />
- “Dom Ginoulhiac era um sábio, e a esse título de sábio<br />
devia ser o homem providencial da Salette, precisamente por sua<br />
ciência teológica, pela firmeza de seu caráter e segurança em sua<br />
percepção” (V. H., I, p. 152).<br />
Tomou posse da Sé Episcopal de Grenoble a 7 de maio de<br />
1853.<br />
122<br />
2 - O TEÓLOGO<br />
Uma vez entronizado como Bispo de Grenoble, Dom<br />
Ginoulhiac se defrontou com opositores da Salettte, sobretudo<br />
os Padres Cartellier e Déléon, dois ferrenhos adversários da<br />
Aparição.
Antes de seu episcopado, Dom Ginoulhiac não tinha<br />
analisado pessoalmente o evento. Tinha, porém, predisposições<br />
favoráveis a seu respeito, a partir das informações obtidas. Lera<br />
o livro de Rousselot, “Un Nouveau Sanctuaire <strong>à</strong> Marie!”, e<br />
admitia que a causa estava encerrada. Homem de vasta erudição<br />
permaneceu, no entanto, por algum tempo, sem manifestar o<br />
próprio parecer como Bispo, sobre o Fato da Salette.<br />
Face <strong>à</strong> mordaz oposição em curso, se exigia uma pronta<br />
atitude da parte de Dom Ginoulhiac.<br />
O Bispo se dedicou, então, ao estudo do “DOSSIER” sobre a<br />
Salette, formado por Dom Philibert, enriquecendo-o com novos<br />
dados. Com sua competência científica de teólogo renomado,<br />
começou a preparar a “Instrução Pastoral e Mandamento” de 4<br />
de novembro de 1854, a respeito da Salette.<br />
Pe. Cartellier já havia escrito a obra intitulada “Mémoire<br />
au Pape”, em maio de 1854. Nela rejeitava o evento da Salette<br />
e esperava que o Papa fizesse o mesmo. Nela também injuriava<br />
Dom Philibert e insultava Rousselot.<br />
Cartellier dizia que a obra fora escrita por 54 Padres e que ele<br />
mesmo fora apenas o secretário. As assinaturas, porém, tinham<br />
sido obtidas de forma fraudulenta. Se fosse verdadeiro o número<br />
de 54 assinaturas de Padres nessa obra, o grupo representaria<br />
uma parcela mínima dos cerca de 800 Padres da Diocese de<br />
Grenoble.<br />
Enquanto no Bispado de Grenoble se examinava o livro,<br />
o próprio Cartellier foi a Lyon com três Padres, para pedir ao<br />
Cardeal de Bonald sua intermediação para o envio da obra ao<br />
Papa. O Cardeal <strong>De</strong> Bonald se dispôs a fazê-lo se Dom Ginoulhiac<br />
o permitisse. <strong>De</strong> qualquer forma, a 8 de julho de 1854, o livro<br />
foi remetido diretamente ao Papa, sem que o Cardeal o tivesse<br />
lido. Mais tarde <strong>De</strong> Bonald lamentou o ocorrido. “Mémoire au<br />
Pape” chegava, portanto, a seu destinatário. O livro também foi<br />
repassado aos Bispos da França e a diversos jornais.<br />
A reação de Roma foi muito severa, exigindo a aplicação<br />
da legislação eclesiástica. Dom Ginoulhiac analisou a obra<br />
123
e elaborou sua refutação depois de interrogar pessoalmente<br />
a Cartellier. A obra foi formalmente condenada por Dom<br />
Ginoulhiac, ao final de sua Instrução Pastoral e Mandamento.<br />
Padre Geslin estava em Roma nessa época. Fazia-se de<br />
importante no ambiente eclesiástico romano, e defensor dos<br />
opositores da Salette. Recebeu o texto de Cartellier e sabendo<br />
que Rousselot também estava em Roma na ocasião, denunciou-o<br />
junto <strong>à</strong> Santa Sé, pedindo que o Tribunal da Inquisição examinasse<br />
sua doutrina e obras.<br />
Dom Fioramonte, sabendo dessas manobras, comunicou<br />
tudo a Rousselot, pedindo-lhe que elaborasse o mais brevemente<br />
possível uma “contra memória” a ser entregue ao Papa. Assim a<br />
defesa da Salette chegou ao Vaticano ao mesmo tempo em que<br />
o ataque.<br />
Nesse momento, Déléon publicou nova obra polêmica com<br />
a inclusão do texto de Cartellier: “La Salette devant le Pape, ou<br />
Rationalisme et hérésie découlant du fait de La Salette, suivi du<br />
Mémoire au Pape”. Déléon era o autor manifesto do livro. A esse<br />
texto pessoal, no entanto, Déléon anexava a obra de Cartellier. A<br />
autoridade de Papa e Bispos era demolida por ambos.<br />
O caso se tornara mais grave. Nessa obra havia afirmações<br />
temerárias, escandalosas e subversivas contra a ordem e o<br />
governo eclesiásticos. Havia difamações odiosas a Dom Philibert<br />
e falta de respeito em relação a muitos membros do Clero.<br />
Déléon foi convocado diante de um tribunal eclsiástico<br />
especial, presidido pelo próprio Bispo Dom Ginoulhiac, para<br />
um processo canônico. Quatro audiências foram realizadas. A<br />
defesa de Déléon foi extremamente fraca.<br />
A 28 de setembro de 1854, Claude Déléon foi suspenso das<br />
funções sacerdotais, com a possibilidade de recorrer da sentença<br />
no prazo de três meses. Dois dias depois, o Bispo condenou o<br />
livro de Déléon (cf. BASSETTE, pgs. 334-337).<br />
A suspensão de Déléon só foi retirada por Dom Fava, em<br />
1883.<br />
Antes de tudo disso, em 1852, acontecera um primeiro caso<br />
124
com Claude Déléon. Por causa da obra “La Salette Fallavaux<br />
(Fallax Vallis) ou La Vallée du mensonge, par Donnadieu”,<br />
Déléon recebeu um interdito episcopal. “Donnadieu” era o<br />
pseudônimo de Déléon que se manifestava como sério opositor<br />
da Salette.<br />
Em 1853, porém, Dom Ginoulhiac suspendeu esta censura<br />
a pedido de um irmão de Pe. Claude, o Pe. Marie-Félix Déléon,<br />
para possibilitar uma morte tranqüila <strong>à</strong> mãe de ambos, desgostosa<br />
por causa das atitudes do filho e sacerdote rebelde, Claude. O<br />
interdito foi suspenso na condição de que o padre assumisse novo<br />
comportamento, voltasse a usar o hábito eclesiástico, afastasse a<br />
mulher que o acompanhava, retirasse do comércio o seu livro, e<br />
pedisse desculpas a Dom Philibert.<br />
Déléon, a contra gosto, aceitou.<br />
Dom Ginoulhiac mais tarde afirmou:<br />
- “Era o mês de maio de 1853. Apenas instalado em nossa Sé,<br />
tivemos que nos ocupar da postura de Déléon. (...) Ele mesmo<br />
se apresentou em nosso Bispado. <strong>De</strong>mos-lhe uma acolhida<br />
benévola para comprometer-se a entrar em si mesmo e merecer<br />
sua reabilitação. <strong>De</strong> início nos inspirou pouca confiança. (...)<br />
Nós nos ocupamos das condições <strong>à</strong>s quais ele devia se submeter<br />
para que nos permitisse reabilitá-lo” (in V.H., I, p.161).<br />
Déléon, no entanto, recaiu no erro. Em 1855, publicou novo<br />
livro, “La conscience d´un prêtre et le pouvoir d´un évêque”,<br />
mais venenoso que o anterior, no qual atacava também o Papa.<br />
Foi novamente interditado em seu ministério sacerdotal, o que o<br />
revoltou mais ainda.<br />
Déléon morreu a 16 de novembro de 1895, aos 98 anos de<br />
idade.<br />
Cartellier, vendo-se encurralado pelo desenrolar dos<br />
acontecimentos, havia solicitado condescendência a Dom<br />
Ginoulhiac, por ato de submissão escrito a 26 de fevereiro de<br />
1854.<br />
Ao submeter-se, Cartellier se desligava de Déléon que o<br />
tratou de traidor. A submissão, porém, era pouco sincera, mas<br />
125
foi o suficiente para que Cartellier permanecesse <strong>à</strong> frente da<br />
Paróquia de Saint-Joseph. Contudo, sempre como crítico mordaz<br />
da Salette. Não escreveu mais nada, porém, a respeito do evento.<br />
Abandonou Déléon <strong>à</strong> sua triste sorte. Cartellier morreu a 13 de<br />
julho de 1865.<br />
A polêmica agressiva de Déléon e Cartellier prosseguia<br />
explorada pela imprensa. Louis Veuillot, o grande escritor, saiu<br />
em defesa de Dom Ginoulhiac.<br />
Dom Ginoulhiac, em meio a todo esse triste clima, solicitou<br />
a orientação de Roma. A resposta liberava o Bispo de Grenoble<br />
para proceder a nova investigação quanto <strong>à</strong> Aparição, se ele<br />
achasse oportuno, para dirimir de uma vez por todas as críticas<br />
ao Mandamento Doutrinal de Dom Philibert a respeito do evento,<br />
em 1851, e também a oposição exacerbada contra a Salette.<br />
Quanto <strong>à</strong> devoção a Nossa Senhora, o Papa lhe pediu que<br />
empregasse todo o zelo em difundi-la. A devoção, já conhecida,<br />
centrava-se na reconciliação.<br />
O Papa PIO IX, que havia recebido em audiência a Rousselot,<br />
estava informado sobre tudo e via com bons olhos o Fato da<br />
Salette.<br />
A 25 de agosto de 1854, através de Pe. Orcel, Dom<br />
Ginoulhiac enviou mensagem a Rousselot que estava em Roma,<br />
para que pedisse ao Papa qual a conduta que devia seguir em<br />
circunstâncias tão difíceis.<br />
Num Breve, assinado por Pio IX, a 30 de agosto de 1854,<br />
foi traçada a conduta que Dom Ginoulhiac devia seguir. Nele o<br />
Papa distinguia duas coisas: o fato da Aparição e a devoção a<br />
Maria Reconciliadora.<br />
Quanto ao Fato da Aparição, o Papa declara:<br />
- “No que se refere ao fato, que foi publicado de muitos<br />
modos, e que foi reconhecido pelo Bispo, vosso predecessor,<br />
a partir de provas e documentos que vós tendes certamente em<br />
mãos, nada se opõe, desde que achardes oportuno, a que possais<br />
examiná-lo de novo e demonstrá-lo publicamente”.<br />
Quanto <strong>à</strong> devoção a Maria Reconciliadora, Pio IX afirma:<br />
126
- “Empregai também todo o vosso zelo, Venerável Irmão,<br />
para que a piedade e a devoção filial para com a Rainha do Céu<br />
e Soberana do Mundo, que é felizmente florescente nesse local,<br />
sejam mantidas fielmente em vosso rebanho e cresçam sempre<br />
mais” (cf. BASSETTE, pgs. 330-332).<br />
Dom Ginoulhiac, a 14 de setembro, anunciou que, tendo sido<br />
encarregado pelo Papa para cuidar do assunto, daria a conhecer<br />
o resultado de sua análise logo que estivesse pronta.<br />
3 - O PRONUNCIAMENTO<br />
Finalmente, a 4 de novembro de 1854, o Bispo Dom<br />
Ginoulhiac publicou o documento fundamental a respeito da<br />
Salette, “Instruction Pastorale et Mandement”. Tão importante<br />
e capital quanto o “Mandamento Doutrinal” de Dom Philibert, a<br />
19 de setembro de 1851, por ele confirmado.<br />
Elaborado com o esmero científico de um Teólogo, e<br />
tendo em vista particularmente a obra “Memoire au Pape” de<br />
Cartellier, Dom Ginoulhiac retomou na “Instrução Pastoral e<br />
Mandamento”, um texto longo e detalhado, ponto por ponto,<br />
os documentos a respeito da Aparição, reunidos de maneira<br />
sistemática a partir do “Dossier” de Dom Philibert.<br />
O novo Bispo de Grenoble comentou as peregrinações, os<br />
milagres, a devoção a Nossa Senhora da Salette. Analisou a vida<br />
dos videntes. Examinou as diferentes objeções levantadas. Diluiu as<br />
críticas de Cartellier. Confirmou inteiramente as decisões de Dom<br />
Philibert em seu Mandamento Doutrinal a respeito da autenticidade<br />
da Aparição. As críticas <strong>à</strong> Aparição e devoção a Nossa Senhora da<br />
Salette eram, pois, definitivamente sepultadas aos olhares da Igreja.<br />
Por fim, no nº 42 da “Instruction Pastorale et Mandement”,<br />
deu um categórico testemunho a respeito do sentido da Aparição:<br />
- “La Salette, não se pode esquecer, não é uma nova doutrina,<br />
ela é uma nova graça” (cf. íntegra do “Instruction Pastorale et<br />
Mandement”, in BASSETTE, pgs. 342-386, e comentários in<br />
STERN, 3, pgs 104-108).<br />
127
Pe. STERN, comentando esse documento de Dom<br />
Ginoulhiac, afirma:<br />
- “Sua argumentação a favor da autenticidade da Aparição, a<br />
respeito da qual finalmente ele mesmo também está convicto, é mais<br />
completa que a de seu predecessor. Por outro lado, deu a entender<br />
que as palavras que circulavam no meio do povo, vistas como se<br />
fossem tiradas dos segredos confiados, a 19 de setembro de 1846,<br />
pela Virgem Maria a Maximino e Melânia, provinham, na realidade,<br />
de fonte inteiramente diferente que a do céu” (STERN, p. 85).<br />
Em relação a Melânia e seu “segredo”, a Instrução Pastoral<br />
de Dom Ginoulhac afirma que é preciso distinguir entre a<br />
Melânia da época da Aparição e a Melânia posterior.<br />
O testemunho da primeira merece confiança porque Melânia,<br />
como Maximino, era uma pessoa simples, inculta, rigorosamente<br />
incapaz de inventar a Aparição.<br />
O testemunho da segunda é diferente porque Melânia, a partir<br />
de 1854, começou a sofrer influências de todo tipo e ouviu falar<br />
de coisas que apareceriam mais tarde em seu famoso “segredo”.<br />
128<br />
4 - O DEVOTO DA SALETTE<br />
A 9 de agosto de 1853, poucos meses após sua posse<br />
como Bispo de Grenoble, Dom Ginoulhiac fez sua primeira<br />
peregrinação <strong>à</strong> Montanha da Aparição. Foi recebido pelos<br />
primeiros Missionários de Nossa Senhora da Salette, cercado<br />
pelo Clero presente e pelos numerosos peregrinos. O novo Bispo<br />
ficou muito satisfeito. Abençoou a primeira pedra da Capela<br />
construída no local da assunção da Bela Senhora.<br />
Em maio de 1854 subiu novamente a Montanha.<br />
Dom Ginoulhiac nutria uma grande devoção a Maria. Teve<br />
a graça de participar das grandiosas solenidades celebradas em<br />
Roma, a 8 de dezembro de 1854, por ocasião da proclamação<br />
do Dogma da Imaculada Conceição, pouco tempo após sua<br />
Instrução Pastoral e Mandamento, publicada a 4 de novembro<br />
do mesmo ano.
A 29 de dezembro, foi nomeado Assistente do Trono Pontifício.<br />
Em 1855, por ocasião da inauguração da Capela dos<br />
Missionários de Nossa Senhora da Salette, na cidade de Grenoble,<br />
Dom Ginoulhiac exaltou, diante de um público numeroso, o<br />
evento da Salette.<br />
A crença plena e madura de Dom Ginoulhiac no Fato da<br />
Salette foi declarada na carta, datada de 29 de agosto de 1855,<br />
por ele dirigida ao Vigário Geral de Orléans, Pe. <strong>De</strong>snoyers,<br />
citando outra carta sua dirigida ao Cardeal de Bonald:<br />
- “Quanto mais cuidadosamente estudo as circunstâncias<br />
do fato da Salette, bem como os documentos que a ele dizem<br />
respeito, mais me convenço de que:<br />
1º: todas as suposições até aqui imaginadas e as que eu<br />
mesmo pude imaginar para explicar a narrativa das crianças fora<br />
de uma intervenção sobrenatural, não têm fundamento e são<br />
inverossímeis;<br />
2º: a prova, para essa mesma intervenção, possui todas as<br />
características e a necessária e suficiente probabilidade para<br />
fundamentar uma devoção cujo objeto é santo, e cujo objetivo é<br />
louvável” (in STERN, 3, p. 354).<br />
No mesmo ano, no Santuário da Montanha, presidiu a<br />
celebração do nono aniversário da Aparição, diante de uma<br />
multidão de sete a oito mil peregrinos, atestando de novo o<br />
evento maravilhoso e declarando sua fé, ao dizer-lhes:<br />
- “<strong>Volta</strong>i a vossos lares, em vossos países, testemunhai por<br />
toda parte a verdade da Aparição de nossa boa Mãe nesse local.<br />
Proclamai lá nossa fé, que todos saibam nossa íntima convicção.<br />
(...) A missão dos pastores findou, a da Igreja começa. Eles<br />
podem se distanciar, se dispersar no mundo, se tornar infiéis a<br />
uma grande graça recebida, nem por isso a Aparição de Maria<br />
será demolida, pois ela é certa e nada de posterior a ela poderá<br />
retroagir sobre ela” (in V. H., I, pg. 204-205).<br />
Dom Ginoulhiac, ao fazer essas afirmações, tinha em mente o<br />
Mandamento Doutrinal de Dom Philibert e sabia muito bem que<br />
os dois videntes estavam tendo comportamentos extravagantes.<br />
129
Em 1856, o Bispo voltou a celebrar a Festa da Salette na<br />
Montanha.<br />
Da Montanha, a 19 de setembro de 1857, enviou uma carta<br />
a todo o Clero de Grenoble. A carta encerrava a série magistral<br />
e decisiva de pronunciamentos dos dois Bispos, Dom Philibert<br />
e Dom Ginoulhiac, em relação <strong>à</strong> Salette. Um estabeleceu a<br />
autenticidade da Aparição e da devoção a Nossa Senhora da<br />
Salette. O outro punha por terra a oposição que não pôde mais<br />
se levantar.<br />
Dom Ginoulhiac apreciava fazer peregrinações até a<br />
Montanha da Salette. A 17 de agosto de 1865 subiu a pé,<br />
acompanhado dos Padres Berthier e Archier. Entretinha-se<br />
com os Missionários que, segundo ele dizia, deviam ser “os<br />
representantes da Igreja junto a Maria”.<br />
A 6 de agosto de 1867 abençoou os sinos do Santuário.<br />
A 19 de setembro de 1869 presidiu o 23º aniversário da<br />
Aparição.<br />
A última peregrinação de Dom Ginoulhiac <strong>à</strong> Salette<br />
aconteceu num tempo muito difícil. Graves acontecimentos<br />
sacudiam a Europa. Tempo de pavor face <strong>à</strong> previsão da Guerra<br />
Franco-Alemã, em 1870. Tempo de expectativa eclesial na<br />
previsão do Concílio Ecumênico Vaticano I, também em 1870,<br />
Concílio do qual Dom Ginoulhiac participou com brilhantismo<br />
teológico.<br />
Durante seus últimos anos de episcopado em Grenoble,<br />
Dom Ginoulhiac acompanhou de perto a construção em curso<br />
do Santuário e anexos, na Santa Montanha.<br />
Dom Ginoulhiac foi Bispo de carregar muitas cruzes em sua<br />
vida episcopal. O Concílio Vaticano I seria mais uma. Preparouse<br />
seriamente para o grande evento eclesial.<br />
No Concílio fez parte da minoria de quem foi o doutor<br />
mais ouvido, e por isso, criticado. Tomou a palavra em muitas<br />
sessões gerais. <strong>De</strong>fendia suas idéias pessoais com veemência e<br />
sincera convicção. Quando se tratou da votação do dogma da<br />
Infalibilidade Pontifícia, deu o voto “non placet”. Explicou que<br />
130
pessoalmente não era contra a Infalibilidade, mas, achava que<br />
o momento não era oportuno para tal definição dogmática. No<br />
entanto, acatou serenamente a decisão desse Concílio realizado<br />
num clima de muita discussão.<br />
Na obra “História dos Concílios Ecumênicos”, p. 367-389,<br />
Giuseppe Alberigo explicita a grande polêmica existente na<br />
ocasião. Não cabe, pois, a acusação de que Dom Ginoulhiac foi<br />
um antiinfalibilista e galicano radical.<br />
Em 1870, o Bispo de Grenoble foi nomeado Arcebispo de<br />
Lyon.<br />
Em relação a essa nomeação, Pe. Victor Hostachy MS faz o<br />
seguinte comentário:<br />
- “Foi uma pequena ironia e uma malícia da Providência<br />
levar Dom Ginoulhiac, o hábil e prudente defensor da Salette,<br />
a suceder na cátedra metropolitana de Lyon, o intempestivo<br />
Cardeal <strong>De</strong> Bonald que sempre foi mais ou menos a pedra de<br />
tropeço para a Aparição de 19 de setembro de 1846. Quando da<br />
tomada de posse e instalação do novo Arcebispo, nem sequer foi<br />
pronunciado o nome do predecessor” (in V. H., I, pg. 224).<br />
O decreto da transferência de Grenoble para Lyon foi assinado<br />
em Roma, a 2 de março de 1870. Sua entronização aconteceu<br />
a 11 de agosto, sem ruído e sem publicidade. Essa discreção<br />
convinha ao caráter do Prelado. As graves circunstâncias da<br />
época também não recomendavam festividades maiores.<br />
Os horrores da guerra e as perturbações da Comuna<br />
trouxeram dias difíceis ao novo Arcebispo de Lyon. Ele não se<br />
contentava em deplorar os males. Com todas as suas forças se<br />
doou ao alívio do sofrimento de seus compatriotas oprimidos<br />
pela guerra, e <strong>à</strong> libertação dos soldados presos na Alemanha.<br />
No Santuário de Fourvière, em Lyon, Dom Ginoulhiac<br />
encontrava a mesma Virgem que tanto havia amado em Salette.<br />
Dois anos após sua entronisação na Cátedra de Lyon, em 1872,<br />
na Festa da Imaculada Conceição, lançou a pedra fundamental<br />
para a construção do novo e grandioso templo dedicado a Maria<br />
no bairro de Fourvière, em Lyon.<br />
131
Com o restabelecimento da paz na Europa, o Arcebispo se<br />
desdobrou no serviço <strong>à</strong>s comunidades de seu rebanho. Em 1873<br />
organizou e presidiu o Sínodo do Clero da Arquidiocese.<br />
Uma obra de sua simpatia, em Lyon, obra que lhe lembrava<br />
a Salette, era a Associação de Nossa Senhora Auxiliadora<br />
transformada em Terceira Ordem Regular de Nossa Senhora<br />
da Salette pelo Pe. Giraud, Superior Geral dos Missionários<br />
Saletinos. Pe. Giraud era grande amigo de Dom Ginoulhiac<br />
graças a quem os Missionários emitiram os votos religiosos<br />
seis anos após sua fundação, formando assim uma Congregação<br />
Religiosa de Direito Diocesano.<br />
As forças de Dom Ginoulhiac diminuíam gradativamente.<br />
Por recomendação de seus médicos, se transferiu de Lyon para<br />
Montpellier, sua terra natal, onde faleceu na manhã de 17 de<br />
novembro de 1875.<br />
Seu corpo foi levado a Lyon e enterrado na Catedral<br />
Primacial da França. Como Dom Philbert havia doado seu<br />
coração ao Santuário da Montanha da Salette, Dom Gonoulhiac<br />
quis doar o seu ao Santuário de Fourvière, em Lyon.<br />
132<br />
CAPÍTULO XIV<br />
OUTROS PASTORES ENVIADOS<br />
Com a transferência de Dom Ginoulhiac para Lyon, a Sé<br />
Episcopal de Grenoble foi confiada a novo Bispo.<br />
1 - DOM PAULINIER<br />
O novo Pastor Diocesano vinha do sul da França. Passou<br />
pouco tempo <strong>à</strong> frente da Diocese de Grenoble. Por isso sua obra<br />
em relação <strong>à</strong> Salette foi restrita.<br />
Participou da festa de 19 de setembro de 1870 na Montanha<br />
da Salette.
<strong>De</strong> Grenoble foi transferido para Besançon como Arcebispo.<br />
Dom Pauliner foi substituído por Dom Fava.<br />
2 - DOM FAVA<br />
Segundo o comentário de Pe. Victor Hostachy MS, Dom<br />
Fava:<br />
- “Completa a trindade dos grandes Bispos da Salette:<br />
1º- Dom Philibert de Bruillard foi, por assim dizer, o Pai,<br />
decretando a Aparição como “indubitável e certa”;<br />
2º- Dom Ginoulhiac, o Filho, que sofreu e combateu para<br />
lhe assegurar o triunfo;<br />
3º- Dom Fava, como o Espírito Santo a quem devotava culto<br />
especial, foi sua chama comunicativa e sopro propagador: é o<br />
Bispo missionário da Salette. (...) Os Missionários de La Salette<br />
tiveram com ele maior amplidão para se difundirem para longe,<br />
e seu Instituto, com sua benevolência episcopal, tornandose<br />
de direito pontifício, tomou uma extensão que lhe permitiu<br />
irradiar-se de Roma por sobre o mundo e “fazer passar” por<br />
toda a parte a mensagem de 19 de setembro de 1846. Dom Fava<br />
bem o mereceu. Dom Philibert de Bruillard foi seu fundador e<br />
definidor. Dom Ginoulhiac foi seu organizador e defensor. Dom<br />
Fava foi o seu eloqüente e ardoroso missionário” (V. H., I, p.<br />
245).<br />
Bruillard, Ginoulhiac e Fava formam, pois, a tríade episcopal<br />
saletina.<br />
Dom Amand-Joseph Fava nasceu em Evin-Malmaison, na<br />
Diocese de Arras, a 10 de fevereiro de 1826. Seu pai, Jean-François<br />
Fava, era agricultor. Possuía um moinho de vento para moer trigo.<br />
Passou seus últimos anos de vida rezando o terço. <strong>De</strong>voto de São<br />
José, Jean-François construiu um pequeno oratório em sua honra.<br />
Nesse oratório, Dom Fava, passados seus oitenta anos de idade, se<br />
recolhia ao final de seus passeios diários.<br />
Jean-François Fava, o pai, casou com Ernestine Lecomte<br />
com quem teve três filhos e quatro filhas. Uma delas se tornou<br />
133
Religiosa. Também tinha duas irmãs Religiosas da Providência.<br />
Com elas, o menino Amand-Joseph aprendeu as virtudes do<br />
devotamento e da abnegação. Duas sobrinhas de Amand-Joseph<br />
também eram Religiosas. Dois sobrinhos eram Padres, auxiliares<br />
de Amand-Joseph depois de ordenado Bispo.<br />
Amand-Joseph entrou no Seminário de Cambrai onde fez<br />
seus estudos seminarísticos. Um de seus irmãos foi morto na<br />
guerra da Algéria. Amand-Joseph fez a promessa de se tornar<br />
missionário na África se o corpo de seu irmão fosse encontrado.<br />
Como o irmão foi encontrado num hospital, Amand-Joseph se<br />
sentiu vinculado <strong>à</strong> sua promessa.<br />
Queria ser lazarista em Paris e partir para as missões. Por<br />
respeito a seus pais que não desejavam ver o filho tão longe<br />
deles, entrou no Seminário Diocesano.<br />
A Providência pôs no caminho de sua vida o Padre <strong>De</strong>sprez<br />
que, admirável por seu devotamento, seria depois nomeado<br />
primeiro Bispo da Ilha da Reunião, e mais tarde, eleito Cardeal.<br />
Sem tardança os dois se puseram de acordo para partirem para<br />
a missão.<br />
O Padre Fava entrou, então, no Seminário do Espírito<br />
Santo em Paris, a 27 de setembro de 1850. Teve como Diretor<br />
Espiritual o Pe. Libermann, Fundador da Congregação dos<br />
Padres do Espírito Santo.<br />
A 12 de janeiro de 1851 foi ordenado Sacerdote por Dom<br />
<strong>De</strong>sprez. A 7 de março seguinte, o novo Bispo e o neo-sacerdote<br />
embarcaram para a colônia francesa de Saint-<strong>De</strong>nis onde<br />
chegaram a 21 de maio. Ali, o Pe. Fava foi inicialmente nomeado<br />
Vigário da Catedral, depois Secretário do Bispo. Quatro anos<br />
mais tarde, a 31 de dezembro de 1855, ele foi nomeado Vigário<br />
Geral da Diocese. Como Padre, Fava cuidava dos leprosos e dos<br />
escravos libertados pelo Governo, mas, tratados como párias.<br />
Em 1857, Dom <strong>De</strong>sprez foi chamado de volta <strong>à</strong> França,<br />
para o Bispado de Limoges. Levou consigo o Pe. Fava. Fava,<br />
porém, sentia um irresistível chamado para as missões. Partiu,<br />
então, para a Ilha da Reunião, lá chegando a 23 de outubro de<br />
134
1857. Fez uma viagem missionária pela costa oriental da África:<br />
Madagascar, Moçambique, Ilhas Seichelles, Zanzibar. Voltou a<br />
Saint-<strong>De</strong>nis, na Ilha da Reunião, a 3 de outubro de 1858. Sentiu<br />
a necessidade urgente de ali anunciar o Evangelho.<br />
Com essa preocupação voltou <strong>à</strong> França, desembarcando<br />
em Marselha a 6 de outubro de 1859. Alguns dias depois foi<br />
recebido em audiência por Pio IX e pelo Cardeal Banabo,<br />
Prefeito da Propaganda Fidei. <strong>De</strong>les recebeu o título de Vice-<br />
Prefeito Apostólico de Zanzibar. Recebido por Napoleão III,<br />
dele recebeu apoio para seu projeto missionário.<br />
<strong>De</strong> volta a Saint-<strong>De</strong>nis, o Pe. Fava fez novas viagens a<br />
Zanzibar e, a 22 de dezembro de 1860, estabeleceu nesse país<br />
uma residência com dois Padres e seis Religiosas. Celebrou<br />
o Natal pela primeira vez nessas terras. Abriu em sua própria<br />
residência um abrigo para doentes nativos, uma sala para pronto<br />
socorro, um hospital para os europeus e uma pequena farmácia.<br />
Criou escolas para as crianças da cidade.<br />
Ao final de 1862 foi obrigado a deixar Zanzibar e retornar a<br />
Saint-<strong>De</strong>nis onde continuava sendo seu Vigário Geral. Na Ilha<br />
da Reunião percorria, a cavalo ou a pé, as vilas a serviço da<br />
pastoral.<br />
A Ilha de Martinica, nas Antilhas, América Central, estava,<br />
porém, sem Bispo havia mais de dez anos. Graças <strong>à</strong> influência<br />
de Dom Guibert, Bispo de Tours, o Pe. Fava foi nomeado como<br />
Bispo dessa colônia francesa.<br />
Pe. Fava deixou a Ilha da Reuinão a 8 de abril de 1871. Os<br />
grandes serviços ali prestados lhe valeram a Medalha da Legião<br />
de Honra.<br />
A Providência quis que seu Bispo Consagrante fosse<br />
Dom <strong>De</strong>sprez, Arcebispo de Toulouse. A ordenação episcopal<br />
aconteceu a 25 de julho de 1871, na Catedral de Montauban.<br />
<strong>De</strong>pois, Dom Fava fez uma visita <strong>à</strong> terra natal, Evin. Seu velho<br />
pai de 84 anos se ajoelhou diante do filho Bispo para lhe pedir a<br />
bênção. Dom Fava o soergueu e lhe disse:<br />
- “Meu pai, abençoe antes o seu filho, depois eu o abençoarei!”<br />
135
Ansioso por voltar <strong>à</strong> missão, a 4 de outubro de 1871<br />
desembarcou na Martinica onde o povo o acolheu com festa.<br />
Seu apostolado na ilha foi muito fecundo.<br />
Em 1874, esse infatigável caminheiro do Evangelho fez<br />
uma peregrinação a Jerusalém. Foi o primeiro Bispo francês a<br />
visitar os Lugares Santos depois da conquista deles por Saladin.<br />
Na volta se deteve, por alguns dias, em Roma e em Marselha.<br />
O Arcebispo de Toulouse, Dom <strong>De</strong>sprez, mais uma vez<br />
interferiu no caminho de Dom Fava para uma nova missão. Dom<br />
Fava, acometido por uma doença tropical, foi chamado de volta<br />
<strong>à</strong> França para ser Bispo de Grenoble, e nomeado para tanto, a 3<br />
de agosto de 1875.<br />
A 29 de agosto deixou a Martinica e se dirigiu a Grenoble<br />
onde tomou posse da Sé Episcopal a 18 de novembro seguinte.<br />
Foi uma grande surpresa para Grenoble ver um Bispo vir de tão<br />
longe para estar a serviço da pastoral dessa Diocese. Um Bispo<br />
missionário!<br />
Em Grenoble se pôs logo ao trabalho pastoral intenso. Por<br />
cinco vezes visitou todas as Paróquias da Diocese.<br />
La Salette não tinha ainda um acesso fácil. Dom Fava,<br />
porém, a 13 de junho de 1876 subiu a Montanha a pé, com a<br />
ajuda de um bastão. Os peregrinos presentes o receberam com<br />
alegria. Visitou o local da Aparição e o Santuário.<br />
No 30º aniversário da Aparição, a 19 de setembro de 1876,<br />
Dom Fava quis solenizar de modo especial a data. Na ocasião<br />
publicou sua primeira e admirável Carta Pastoral sobre a<br />
Salette. Em dois dias de estadia na Montanha, fez oito sermões<br />
aos peregrinos, mais a pregação da Via Sacra numa das noites<br />
ali passadas. No dia aniversário da Aparição celebrou Missa<br />
Pontifical.<br />
Diz Pe. Hostachy:<br />
- “Como apóstolo verdadeiro, apóstolo da caridade, apóstolo<br />
com a Virgem e como a Virgem, Dom Fava se prenunciava<br />
como o Bispo-Missionário por excelência de Nossa Senhora da<br />
Salette” (V. H., I, pg. 270).<br />
136
O episcopado de Dom Fava foi repleto de numerosas lutas<br />
levadas contra os inimigos da religião, particularmente contra a<br />
maçonaria (cf. V. H., I, pgs. 313 s).<br />
<strong>De</strong>ixou-se impregnar pela Mensagem de Nossa Senhora em<br />
Salette. Sua obra episcopal se tornaria como que um comentário<br />
vivo dessa Mensagem. Em suas Cartas Pastorais retomava os<br />
diferentes temas presentes nas palavras da Bela Senhora. Até<br />
o fim de suas forças, permaneceu fiel a si mesmo, ao Papa e a<br />
Nossa Senhora da Salette. Leão XIII tinha muito apreço por ele.<br />
Em 1896 foram celebradas duas festividades: o<br />
cinqüentenário da Aparição da Salette e o jubileu de prata de<br />
episcopado de Dom Fava. Os dois jubileus coincidiam com 14º<br />
Centenário do batismo de Clóvis, Rei dos Francos, em Reims.<br />
Na Carta Pastoral para a Quaresma de 1896, Dom Fava<br />
lembrou que Grenoble tivera um papel importante na conversão<br />
de Clóvis, de Santa Clotilde, sua mãe, e dos francos. Clotilde<br />
nasceu em Vienne, Diocese de Grenoble.<br />
No dia cinqüentenário da Aparição, Dom Fava, aos 70 anos<br />
de idade, foi ao Santuário da Salette. Diante de uma multidão de<br />
cinco mil peregrinos anunciou a concessão de indulgências por<br />
parte de Leão XIII aos participantes da peregrinação.<br />
Os festejos do jubileu episcopal tiveram a presença de<br />
trezentos Padres. O presente maior que Dom Fava recebeu foi o<br />
pálio episcopal remetido pelo Papa através do Cardeal Coullié,<br />
Arcebispo de Lyon. Obteve ainda de Leão XIII a concessão de<br />
indulgência plenária para todos os que visitassem a Basílica da<br />
Salette durante o ano jubilar.<br />
Durante o mês de julho de 1897 passou diversos dias no<br />
Santuário, acolhendo os peregrinos. Abençoou o grande sino da<br />
torre da Basílica, a 17 de julho. Ao grave som do sino se juntavam<br />
as vozes alegres dos seminaristas da Escola Apostólica fundada<br />
junto ao Santuário no ano da coroação da estátua de Nossa Senhora<br />
Reconciliadora, 1879. A Escola era florescente e passara a funcionar<br />
em Saint-Joseph, perto de Corps. Na cerimônia estavam presentes o<br />
Pe. Jean Berthier e o Pe. Archier, fundadores da Escola.<br />
137
Dom Fava viveu uma de suas últimas e grandes alegrias no<br />
mês de agosto de 1899, quando um grupo de Missionários de<br />
Nossa Senhora da Salette partiu em missão para Madagascar.<br />
O venerando Bispo já sentia a fadiga recaindo sobre seus<br />
ombros. Continuava, no entanto, em sua atividade pastoral. No<br />
dia 16 de outubro de 1899 abençoou a tipografia da Casa da<br />
Boa Imprensa, em Grenoble, uma das mais belas obras de seu<br />
ministério episcopal. Foi seu último ato como Bispo.<br />
No dia seguinte, a 17 de outubro, <strong>à</strong>s cinco horas da manhã,<br />
foi encontrado morto em seu apartamento, por causa de uma<br />
embolia. Tinha 73 anos de idade. Seu funeral foi impressionante.<br />
O Pe. Hostachy escreveu:<br />
- “Dom Fava concluiu excelentemente a bela trajetória de seu<br />
destino no apostolado missionário e no amor da misericordiosa<br />
Virgem Reconciliadora da Salette” (V. H., I, p. 346).<br />
138
II PARTE<br />
O NOVO MANDAMENTO<br />
1 - O Santuário<br />
CAPÍTULO I<br />
UM TEMPLO SOBRE ROCHA<br />
A 31 de janeiro de 1849, Pe. Louis Perrin, Pároco de La Salette,<br />
em carta a Dom Philibert, expressou o desejo de construir na<br />
Montanha da Salette, um Santuário servido por uma Comunidade<br />
residente no local da Aparição. Com esse intento, recolhia<br />
donativos, antecipando-se ao ato episcopal de 1852. Antes de Pe.<br />
Louis, Dom Guibert havia manifestado esse mesmo desejo.<br />
No entanto, o Bispo não estava tão apressado. A investigação<br />
do evento ainda estava em curso, e era preciso também garantir<br />
o terreno para o projeto.<br />
Por carta de 18 de abril de 1849, Dom Philibert pediu ao<br />
Pe. Louis que consultasse a Câmara Municipal de La Salette a<br />
respeito da aquisição do terreno. As negociações foram longas.<br />
A 26 de outubro de 1851, a área de cinco hectares finalmente foi<br />
adquirida em nome de Dom Philibert e registrada no Tabelionato<br />
de Corps. A 23 de março de 1852, Dom Philibert assinou ato<br />
de doação irrevogável do terreno <strong>à</strong> Diocese de Grenoble.<br />
A propriedade, no entanto, só foi delimitada a 13 de maio de<br />
1852. O terreno compreende o local da Aparição, do Santuário<br />
e hospedaria, do Cemitério e dos arredores no Monte Planeau.<br />
Tomadas todas as providências, o contexto estava preparado<br />
para as novas decisões: a construção do Santuário e a fundação<br />
dos Missionários de Nossa Senhora da Salette.<br />
Dom Philibert de Bruillard, então, a 1º de maio de 1852,<br />
publicou o novo Mandamento. Logo de início o Bispo comenta:<br />
139
- “<strong>De</strong>sde a origem do cristianismo raramente aconteceu que<br />
um Bispo tenha tido a ocasião de proclamar a verdade de uma<br />
aparição da Augusta Mãe de <strong>De</strong>us. Essa felicidade, o Céu nô-la<br />
reservou sem que nós pessoalmente a merecêssemos, como prova<br />
sensível de sua misericordiosa bondade para com nossos bem<br />
amados diocesanos. É uma missão infinitamente honrosa que nos<br />
foi dado cumprir; é um dever sagrado que tínhamos a cumprir; é<br />
um direito que nos é conferido pelos santos Cânones dos quais<br />
tivemos que fazer uso, sob pena de uma resistência culpável <strong>à</strong> voz<br />
do céu e de uma oposição lamentável aos desejos que nos eram<br />
expressos de todos os lados” (in BASSETTE, p. 275).<br />
<strong>De</strong>pois de enaltecer a graça da Aparição e assinalar a grande<br />
repercussão do Mandamento Doutrinal de 19 de setembro de<br />
1851, Dom Philibert acrescenta:<br />
- “Entretanto, caros irmãos, nós só cumprimos uma parte da<br />
grande missão que o céu nos confiou. Outra, não menos bela, não<br />
menos importante para a glória de <strong>De</strong>us, para a honra da Virgem<br />
Imaculada, para a felicidade de nossa Diocese e para o bem da<br />
França toda, nos resta cumprir. Para cumpri-la, não pouparemos<br />
nem preocupações, nem trabalho, nem sacrifícios, muito felizes<br />
por consagrar o resto de nossa longa carreira <strong>à</strong> fundação de nova<br />
peregrinação em honra Daquela que é tão justamente proclamada<br />
como Socorro dos cristãos, Refúgio dos pecadores, Consoladora<br />
dos aflitos, Saúde dos enfermos” (in BASSETTE, p. 276).<br />
Relembra, a seguir:<br />
- “A peregrinação de Nossa Senhora da Salette já existe e<br />
desde a aparição da bem aventurada Virgem Maria está em plena<br />
atividade. Até agora, é verdade, só há uma pobre capela de tábuas,<br />
sem padres especialmente encarregados de lhe prestar serviço.<br />
Todos sentiam, porém, a necessidade de se construir um templo<br />
nesse lugar privilegiado. (...) Vós o compreendestes, estimados<br />
irmãos: trata-se agora da construção de um santuário em honra<br />
de nossa augusta Mãe, sobre a montanha privilegiada que Ela se<br />
dignou honrar com sua presença, sobre a qual ecoou sua celeste voz.<br />
Esse santuário deve ser digno da Rainha do céu e um testemunho<br />
140
de nosso reconhecimento para com Ela. Digno de nossa Diocese<br />
privilegiada, da piedosa colaboração que nos encanta, e das<br />
generosas ofertas que chegam até nós. Pois, digamo-lo, não é para<br />
uma localidade mais ou menos restrita, é para o universo que nós<br />
construímos” (in BASSETTE, p. 276-277).<br />
<strong>De</strong>pois acrescenta:<br />
- “Eis-nos chegados ao belo mês de maio, esse mês<br />
consagrado de modo especial ao culto de Maria. (...) Pois bem,<br />
queridos irmãos, é esse mês que escolhemos para a bênção e<br />
lançamento da primeira pedra do Santuário de Nossa Senhora<br />
da Salette. (...) Convidamos um de nossos mais caros colegas<br />
a fazer o que nos seria tão gratificante fazermos nós mesmos,<br />
pessoalmente, se, mais do que a idade, os sofrimentos habituais<br />
no-lo permitissem. (...) Nós vos convidamos igualmente, nossos<br />
queridos e bem amados irmãos, a comparecerdes sobre a Santa<br />
Montanha, e a aumentar com vossa piedosa presença, a grandeza<br />
desse dia que deve alegrar o céu e fazer a terra estremecer de<br />
alegria” (in BASSETTE, p. 277-278).<br />
Após a publicação do Mandamento Doutrinal de Dom<br />
Philibert, o Pároco de La Salette, Pe. Perrin, logo contratou um<br />
mestre de obras para explorar a montanha em busca de pedras<br />
para o Santuário.<br />
O Bispo marcou a data da bênção e lançamento da pedra<br />
angular do Santuário para o dia 25 de maio de 1852, e convidou<br />
Dom Chartrousse, Bispo de Valence e ex-Vigário Geral de<br />
Grenoble, para presidir a cerimônia uma vez que ele mesmo,<br />
em razão da idade e do estado de saúde, teria dificuldade de se<br />
fazer presente. No entanto, apesar de seus 86 anos de idade, Dom<br />
Philibert participou da cerimônia, no alto da Montanha da Salette.<br />
Na véspera da solenidade, e durante a noite, chegavam<br />
multidões de peregrinos. Às 8hs00 de 24 de maio, Dom Philibert<br />
partiu de Grenoble. A viagem de Dom Chartousse ocorreu quase<br />
simultaneamente.<br />
Dom Philibert chegou a Corps <strong>à</strong>s 4hs00 da tarde do mesmo<br />
dia. A cidade inteira, alvoroçada, se reuniu na praça para aguardar<br />
141
a chegada do Bispo. Os componentes da Guarda Nacional<br />
sediada em Corps, a cavalo e ao toque de tambor, foram recebêlo<br />
na entrada da cidade. Foi saudado pelo Comandante.<br />
A cavalo, Dom Philibert subiu até a Paróquia de La Salette<br />
onde passou a noite. Na manhã seguinte, <strong>à</strong>s 5hs45 de 25 de<br />
maio, prosseguiu a viagem com intrepidez e a cavalo mais uma<br />
vez, até o alto da Montanha da Aparição. Pelas 8hs00 lá chegou,<br />
sendo aclamado pelos aproximadamente quinze mil peregrinos<br />
ali congregados. Essa era a primeira visita <strong>à</strong> “sua montanha<br />
querida”, como dizia. Celebrou a Missa no oratório em madeira.<br />
Meia hora após, chegou Dom Chartrousse.<br />
A cerimônia principal devia começar <strong>à</strong>s 9hs00. A chuva<br />
causou problemas. Às 10hs00, porém, Bispos e Padres presentes<br />
seguiram em procissão até o local do futuro Santuário. Um<br />
simples altar de madeira ali fora instalado. A procissão foi<br />
recebida pelo Pe. Burnoud, Superior dos Missionários.<br />
O momento mais emocionante foi quando os dois Bispos<br />
tomaram a colher de pedreiro confeccionada em prata, marcada com<br />
o brasão do Bispado de Grenoble, carregada de cimento feito com<br />
mármore escuro da Montanha, e assentaram a pedra angular, depois<br />
de solenemente abençoada pelo Bispo de Valence. A pedra foi posta<br />
na base da grande coluna do coro, no lado do Evangelho, no interior<br />
do Santuário. Numa caixa de chumbo foram postas relíquias de São<br />
Francisco de Sales e de Santa Joana de Chantal, moedas e medalhas<br />
com a data do ano de 1852, cartas de Comunidades Religiosas e um<br />
pergaminho com a ata da cerimônia, escrito em latim, assinado por<br />
Dom Philibert (cf. texto in BACCELLI, p. 237).<br />
Apesar do mau tempo, a multidão se mantinha imóvel, atenta<br />
e devota. A cerimônia, presidida por Dom Philibert, foi seguida<br />
de Missa celebrada por Dom Chartrousse. No Evangelho, o Pe.<br />
Sibillat, um dos primeiros Missionários de Nossa Senhora da<br />
Salette, fez brilhante sermão. Ao final da celebração, seguida<br />
da Bênção do Santíssimo Sacramento, começaram diferentes<br />
procissões por Paróquias, entoando cantos de louvor <strong>à</strong> Virgem<br />
Maria. A cerimônia se prolongou até o meio dia.<br />
142
Os dois Bispos partiram, após um almoço frugal. Como a<br />
chuva fria não cessava e a lama tomava conta do caminho, Dom<br />
Philibert não podia descer a Montanha a cavalo. Homens fortes<br />
de La Salette se encarregaram de levá-lo em maca improvisada,<br />
assentada sobre seus ombros, na descida até Corps.<br />
O dia foi vivido por Dom Philibert como “o coroamento de<br />
sua vida episcopal”, o mais belo de sua existência.<br />
Nesse mesmo dia 25 de maio, Dom Philibert recebeu uma<br />
carta enviada pelo Pe. Mélin, de Corps, a respeito do Pe. Viollet,<br />
ex-Pároco de Corps. Por razões pessoais, esse Padre havia sido<br />
suspenso do exercício do ministério sacerdotal. Vivia na cidade<br />
como fator de divisão. Pe. Mélin, na carta, solicitava a readmissão<br />
de Viollet ao exercício do sacerdócio. O próprio Viollet sentia a<br />
necessidade de se reconciliar com a Igreja. Dom Philibert, no<br />
mesmo dia, atendeu a solicitação de Pe. Mélin. Viollet tornou-se<br />
um homem novo. Era uma nova graça concedida a Corps, local<br />
de inúmeras conversões por causa da Aparição.<br />
Para dar fecundidade religiosa ao Santuário, Dom Philibert<br />
solicitou favores espirituais <strong>à</strong> Santa Sé: indulgências, missa<br />
votiva para a Virgem Maria, e outros. A favor da Confraria de<br />
Nossa Senhora Reconciliadora da Salette, pediu a confirmação<br />
desse nome, e sua elevação a Arquiconfraria. A Santa Sé<br />
atendeu benevolamente a esses pedidos. O Breve Pontifício de<br />
7 de setembro de 1852, pelo qual se erige a Arquiconfaria, é o<br />
documento mais antigo da Santa Sé a usar o qualificativo de<br />
Reconciliadora em relação a Nossa Senhora da Salette. Tornarse-ia<br />
o título litúrgico dessa devoção mariana. O Indulto da<br />
Santa Sé, a 2 de dezembro de 1852, autorizou a celebração da<br />
memória da Aparição no dia 19 de setembro de cada ano, em<br />
todas as igrejas da Diocese.<br />
O aniversário da Aparição de 1852 foi celebrado de forma<br />
edificante. Na véspera, <strong>à</strong> noite, inúmeros peregrinos rezaram a Via-<br />
Sacra no local da Aparição. A cada estação o Pe. Sibillat fazia uma<br />
pregação. Missas foram celebradas ininterruptamente desde a meia<br />
noite até após o meio dia. Os confessionários foram tomados pelos<br />
143
penitentes. A missa solene foi celebrada em altar campal pelo Pe.<br />
Rousselot. Mais de 10.000 pessoas estavam presentes. No sermão,<br />
Pe. Sibillat anunciou que Pio IX havia concedido privilégios<br />
especiais <strong>à</strong> celebração da Salette e que a festa da Aparição estava<br />
sendo celebrada pela primeira vez em toda a Diocese.<br />
A 29 de dezembro de 1852, Dom Philibert pediu demissão<br />
de seu cargo de Bispo de Grenoble. Dom Ginoulhiac foi seu<br />
sucessor, a partir do início de 1853. O novo Bispo nomeou uma<br />
Comissão de Obras dirigida pelo arquiteto Alfred Berruyer, para<br />
fazer as plantas e dirigir os trabalhos de construção do Santuário,<br />
uma pesada tarefa realizada a 1.800 metros de altitude. Berruyer<br />
era um arquiteto que servia <strong>à</strong> Diocese de Grenoble.<br />
Pe. Archier, depois primeiro Superior Geral dos Missionários<br />
de Nossa Senhora da Salette, foi encarregado de administrar as<br />
obras. Fora as pedras, retiradas do local, o resto do material de<br />
construção subiu a montanha em lombo de mulas, num percurso<br />
de doze quilômetros de íngremes trilhas. Nessa obra trabalharam<br />
120 operários. Os trabalhos se realizaram entre 1852 e 1865. Em<br />
setembro de 1853 o Santíssimo Sacramento foi transladado, em<br />
procissão formada pelos Padres e operários, da pobre capelinha<br />
de madeira para um novo pavilhão e mais tarde para o próprio<br />
Santuário. Em outubro de 1860 o templo já estava coberto. As<br />
naves foram abertas em 1863, e o Santuário foi franqueado ao<br />
público em 1865.<br />
O lugar da Aparição foi conservado em seu estado natural.<br />
Em 1864 foram instaladas as belíssimas estátuas que representam<br />
a Aparição, feitas em bronze e doadas pelo Conde de Penalver, da<br />
Espanha. A 24 de maio, a primeira do conjunto, a da Conversação,<br />
foi carregada no dorso de mulas até o alto da Montanha. A 8 de<br />
julho a estátua de Nossa Senhora sentada sobre uma pedra foi<br />
transportada em carroça especial, amparada por 18 homens,<br />
seguindo até o Santuário pelo novo caminho aberto pouco<br />
tempo antes nos flancos do Monte Gargas. No dia seguinte, foi<br />
transportada a Virgem da Assunção que pesa ao menos 650 quilos.<br />
Todas elas foram feitas na célebre fundição Creusot, da França.<br />
144
O Santuário, em estilo romano-bizantino, tem três naves,<br />
com quarenta e quatro metros e meio de comprimento, quinze<br />
de largura por dezoito e meio de altura. Pode acolher duas mil<br />
e quinhentas pessoas. Duas filas de colunas em pedra, com<br />
blocos de mais de quatro toneladas, sustentam a cobertura. O<br />
teto, em cobre, pode resistir <strong>à</strong>s mais fortes tempestades. Duas<br />
torres quadradas encimadas por uma cruz ladeiam a fachada<br />
do Santuário. Até 1866, havia um pequeno sino para anunciar<br />
as cerimônias, mas, a 6 de agosto Dom Ginoulhiac abençoou<br />
outros quatro sinos maiores. Mais três foram instalados, a<br />
6 de outubro de 1889. Em 1891 foram postos mais dois, e a<br />
17 de julho de 1897 foi posto o maior de todos eles, com três<br />
toneladas de peso. O altar mór data de 1866, uma obra de arte<br />
em mármore de Carrara. A estátua de Maria posta sobre ele,<br />
uma obra prima, foi talhada em mármore de Carrara também,<br />
e esculpida segundo as determinações da Sagrada Congregação<br />
dos Ritos. Os candelabros e a cruz são de bronze e em estilo<br />
gótico. Um grande pedaço da pedra sobre a qual a Bela Senhora<br />
se assentou, está conservado em fino relicário de ouro no interior<br />
da Basílica. O órgão majestoso, em madeira de carvalho, obra<br />
do artista belga J. B. Gys foi inaugurado a 19 de setembro de<br />
1880, como recordação da solene coroação da estátua da Virgem<br />
Maria. O ostensório é ornado por esmeraldas e brilhantes. O<br />
cálice, em ouro massiço, pesa dois quilos e é cravejado por<br />
cerca de trezentos diamantes. O cibório é igualmente ornado<br />
por brilhantes e pedrarias finas. Galhetas, bandeja, pálio, missal<br />
e o relicário onde se conserva o pedaço da pedra da Aparição,<br />
e muitos outros objetos sacros fazem parte do tesouro do<br />
Santuário. No presbitério, sob lápides de mármore inscrustadas<br />
na parede, se conservam religiosamente de um lado, o coração<br />
embalsamado de Maximino Giraud juntamente com o do Conde<br />
de Penalver, e do outro, o de Dom Philibert de Bruillard.<br />
<strong>De</strong>z capelas laterais foram acrescentadas em 1894, em<br />
virtude da grande afluência de peregrinos e de Sacerdotes, num<br />
tempo em que não se concelebravam Missas.<br />
145
<strong>De</strong>pois do Concílio Vaticano II, com suas novas orientações<br />
litúrgicas, o interior do Santuário sofreu adaptações: um novo<br />
altar central para permitir a concelebração das Missas foi<br />
construído, as dez capelas laterais foram suprimidas, alguns<br />
grandes e belos painéis foram pintados pelo artista ARCABAS.<br />
Mais recentemente, foi construída a Capela da Reconciliação em<br />
anexo ao Santuário.<br />
Em anexo ao Santuário ainda, edifícios para hospedagem<br />
dos peregrinos foram aos poucos construídos. Frente ao<br />
Santuário, uma capela em estilo romano, fora inicialmente<br />
erguida no local da assunção da Bela Senhora. <strong>De</strong>pois, dada a<br />
instalação das estátuas em bronze, a capela foi transportada para<br />
o interior do cemitério dos Missionários. Sobre ela havia uma<br />
estátua majestosa de Nossa Senhora que, para ser preservada dos<br />
desgastes pelo clima, foi posta no interior da capela.<br />
O local da Aparição estava protegido por uma cerca em ferro<br />
fundido. <strong>De</strong>pois, uma simples e forte corrente de ferro passou<br />
a sinalizar o local. Nele foram postas as cruzes da Via Sacra,<br />
ao longo do caminho percorrido pela Bela Senhora durante a<br />
Aparição.<br />
O Santuário foi construído sem nenhuma ajuda de poderes<br />
públicos, nem se abriu nenhuma subscrição financeira para suas<br />
obras. A construção contou exclusivamente com a imensa e<br />
espontânea generosidade de fiéis, benfeitores, Paróquias e Dioceses.<br />
146<br />
2 - O Povo de <strong>De</strong>us Peregrino<br />
A partir de 1854 as peregrinações ao local da Aparição<br />
da Salette se tornaram cada vez mais freqüentes. Muitas<br />
personalidades, eclesiásticas ou não, foram <strong>à</strong> Montanha bendita.<br />
A 24 de maio, Dom Ullathorne, Bispo de Birminghan, na<br />
Inglaterra, passou lá três dias muito felizes. Encontrando-se<br />
com Melânia, em Corps, interrogou-a longamente. <strong>De</strong>scendo a<br />
Grenoble, encontrou Maximino a quem interrogou da mesma<br />
forma. <strong>De</strong> volta <strong>à</strong> Inglaterra publicou um livro sobre a Aparição:
- “A Santa Montanha de La Salette”.<br />
Diariamente havia entre 1.500 e 2.000 peregrinos sobre<br />
a Montanha, vindos de muitos países europeus. No dia 19<br />
de setembro de 1854, mais de doze mil peregrinos subiram a<br />
Montanha da Aparição.<br />
Em 1855 o Santuário foi regularmente freqüentado.<br />
Peregrinos vieram das Índias Orientais. Mais de 600 Padres<br />
provenientes de 59 Dioceses da Europa e da Síria fizeram sua<br />
peregrinação. No dia 19 de setembro, 300 Padres, três Vigários<br />
Gerais e Dom Ginouilhac deram brilho <strong>à</strong> festividade.<br />
No ano de 1856 muitos foram <strong>à</strong> Salette para agradecer seu<br />
retorno da guerra da Criméia. Padres de 60 Dioceses da França,<br />
quatro Bispos, o Vigário Geral das Índias, um Bispo do Canadá, Dom<br />
Ginoulhiac e Dom Philibert de Bruillard fizeram sua peregrinação.<br />
Em 1857, Dom Ginouillhac presidiu a cerimônia do dia 19<br />
de setembro e abençoou a Capela da Assunção da Bela Senhora,<br />
em frente ao Santuário.<br />
Em 1858 muitos Padres vieram <strong>à</strong> Salette de todas as nações.<br />
A solenidade de 19 de setembro foi magnífica. <strong>De</strong>z mil peregrinos<br />
se fizeram presentes. Foram celebradas 90 Missas nesse dia.<br />
Na solenidade de Nossa Senhora da Salette, em 1859, as<br />
Irmãs do Bom Pastor vieram agradecer a cura de sua Superiora.<br />
A Comunidade subiu a Montanha a pés descalços, em sinal de<br />
agradecimento penitente.<br />
Ao longo do ano de 1860 foram celebradas 2.430 Missas e<br />
distribuídas 12 mil comunhões na Montanha. A 15 de dezembro<br />
faleceu Dom Philibert de Bruillard, Bispo Emérito de Grenoble.<br />
Seu coração foi solenemente deposto, a 25 de maio de 1861, no<br />
Santuário de Nossa Senhora da Salette por ele fundado na Montanha.<br />
Entre os peregrinos de 1865 se fez presente o Pe. Julien<br />
Eymard, hoje canonizado, natural de La Mure, próximo a Corps,<br />
Fundador da Congregação do Santíssimo Sacramento.<br />
Em 1867 houve um aumento sensível de peregrinos, entre<br />
os quais 712 Padres de 94 Dioceses da França e de outros paises,<br />
e dois <strong>De</strong>legados do Patriarca armênio.<br />
147
Em 1968, o Patriarca da Caldéia e um Bispo da Oceania<br />
foram <strong>à</strong> Salette.<br />
Em 1869, entre outros, havia um Bispo da Nova Zelândia.<br />
Em 1871, o movimento no Santuário foi retomado com vigor<br />
depois da guerra de 1870, e do Concílio Vaticano I. Cerca de 30<br />
mil peregrinos e 600 Padres subiram a Montanha da Salette. Foram<br />
celebradas 2350 missas e distribuídas 16 mil comunhões nesse ano.<br />
Em 1871, grandes peregrinações <strong>à</strong> Salette, organizadas<br />
e vindas de longe em trens especiais, foram semente para a<br />
1ª Peregrinação Nacional realizada em 1872, no Santuário da<br />
Salette, por ocasião do 25º Aniversário da Aparição.<br />
A idéia do evento foi do Pe. Thédenat, falecido em 1884. Em<br />
sua Paróquia em Paris, incentivava a devoção a Santa Filomena.<br />
<strong>De</strong>pois dos horrores da Comuna em 1871, Pe. Thédenat foi a<br />
Ars para rezar junto ao túmulo do Cura e diante da imagem de<br />
Santa Filomena instalada pelo Santo Cura em sua Igreja. Em<br />
Ars, refletindo sobre as calamidades correntes, lembrou-se<br />
da Mensagem da Salette e teve a idéia de congregar na Santa<br />
Montanha delegações de todas as Dioceses, Paróquias e entidades<br />
eclesiais da França, numa peregrinação verdadeiramente<br />
nacional. Os Missionários de Nossa Senhora da Salette, tomando<br />
conhecimento desse projeto através do Pe. Jean Berthier MS,<br />
incentivaram a idéia. Com o auxílio dos Padres Assuncionistas<br />
a peregrinação a Ars e Salette foi organizada para implorar de<br />
Nossa Senhora a salvação da França e a libertação do Papa Pio<br />
IX feito prisioneiro.<br />
Em 1872, a 18 de agosto, 380 peregrinos da região de<br />
Paris embarcaram para Grenoble. Ao longo do caminho,<br />
mais peregrinos se juntaram a eles. À noite de 20 de agosto,<br />
Pe. Giraud MS fez eloqüente sermão durante a Bênção do<br />
Santíssimo Sacramento, no Santuário da Salette. À luz de<br />
velas a multidão se dirigiu a seguir, ao local da Aparição onde<br />
realizou uma improvisada e comovente cerimônia. Mais de<br />
100 Padres estavam presentes. No dia 21, novos peregrinos<br />
chegaram. Uma procissão de 14 mil peregrinos fez um círculo<br />
148
em torno do local bendito, cantando, rezando e chorando. <strong>De</strong><br />
duzentos a trezentos Padres acompanharam Dom Paulinier para<br />
o interior do Santuário. Ao meio dia foi enviado um telegrama<br />
de saudações a Pio IX. A notícia foi comunicada <strong>à</strong> multidão que<br />
estava reunida no local da Aparição para ouvir a narrativa feita<br />
por Maximino Giraud. O povo exultou de alegria ovacionando<br />
Pio IX. Às 15hs30 a procissão se pôs a caminho em torno do<br />
Monte Planeau, carregando uma estátua da Virgem, e se deteve<br />
frente <strong>à</strong> fonte milagrosa. Dom Paulinier fez, então, eloqüente<br />
sermão. O dia 22 de agosto foi o da grande manifestação. Às<br />
7hs00 a procissão imensa entrou no Santuário e Dom Paulinier<br />
fez a consagração dos peregrinos a Nossa Senhora da Salette,<br />
celebrou a Missa e lhes deu a bênção. Ao final de alguns dias<br />
de fadiga e noites mal dormidas sobre o solo, mas de intensa<br />
vibração religiosa, a multidão partiu com lágrimas nos olhos.<br />
A partir de 25 de agosto, grandes grupos de peregrinos<br />
foram ao local da Aparição. Eram acolhidos na hospedaria<br />
pelos Missionários de Nossa Senhora da Salette. No dia 10 de<br />
setembro, <strong>à</strong> noite, <strong>à</strong> beira da fonte abençoada, Maximino Giraud<br />
fez mais uma vez a narrativa da Aparição. Uma Via Sacra <strong>à</strong> luz<br />
de velas foi seguida de Missa celebrada <strong>à</strong> meia noite. A seguir, o<br />
povo partiu. Nunca antes de 1872 a Montanha da Salette havia<br />
sido visitada por tantos Sacerdotes.<br />
Em 1873, o Conselho de Peregrinações organizou um mês<br />
inteiro de orações públicas e peregrinações. A 22 de julho, os<br />
cristãos da Diocese de Grenoble fizeram imponente solenidade<br />
na Santa Montanha. Pe. Giraud MS falou ao povo presente,<br />
como nunca antes falara. A 23 de julho, depois da comunhão<br />
geral e do canto do Magnificat, a multidão partiu. A 21 de agosto<br />
foi celebrado do 1º Aniversário da Peregrinação Nacional<br />
realizada em 1872. Em numerosos Santuários franceses se<br />
fez, nessa ocasião, a consagração da França <strong>à</strong> Virgem Maria.<br />
A partir de meia noite de 21 de agosto as missas foram<br />
celebradas sucessivamente por 500 Sacerdotes. Às 9hs30 se<br />
fez uma procissão em torno do Monte Planeau. Dom Paulinier<br />
149
presidiu a Missa num altar levantado no local da assunção de<br />
Nossa Senhora. O sermão coube ao Pe. Tardif de Moidrey.<br />
Dom Paulinier consagrou a França a Nossa Senhora. À noite,<br />
se realizou uma grande procissão <strong>à</strong> luz de velas. Um espetáculo<br />
incomparável de fé. Mais de três mil e trezentas Missas foram<br />
celebradas na Montanha, nesse ano, com mais de vinte e uma<br />
mil comunhões distribuídas por oitocentos Sacerdotes. O ano<br />
de 1973 foi dos mais eloqüentes para a Salette. <strong>De</strong>sde então o<br />
movimento de peregrinações não parou mais.<br />
<strong>De</strong>pois, durante mais de vinte anos, sob a competente direção<br />
dos Padres Assuncionistas, partia de Paris a “Peregrinação<br />
Nacional de Penitência” para um retiro espiritual na Salette.<br />
A 23 de setembro de 1875, Dom Fava foi nomeado Bispo<br />
de Grenoble em lugar de Dom Paulinier. Dias antes, a 18 de<br />
setembro, Dom Fava havia visitado o Santuário onde, por oito<br />
vezes dirigiu a palavra ao povo peregrino. Retornou <strong>à</strong> Montanha<br />
em 1877 e 1878 com um grupo de Bispos.<br />
O Papa Pio IX, pouco antes de morrer, havia manifestado o<br />
desejo de que, em seu pontificado, fosse realizada a cerimônia<br />
da coroação da estátua de Nossa Senhora, no Santuário. Seu<br />
desejo só foi realizado pelo sucessor, o Papa Leão XIII.<br />
A 2 de fevereiro de 1879, Dom Fava anunciou <strong>à</strong> Diocese que<br />
Leão XIII, por decreto de 19 de janeiro, concedera ao Santuário<br />
o título insigne de “Basílica Menor” e determinava a solene<br />
coroação de Nossa Senhora da Salette como “Reconciliadora<br />
dos Pecadores”, representada por uma estátua recomendada<br />
pela Congregação dos Ritos, instalada sobre o altar principal<br />
da Basílica. Leão XIII delegou o Cardeal Guibert, Arcebispo de<br />
Paris, para representá-lo na solenidade.<br />
A 19 de agosto de 1879 o Santuário foi primeiramente<br />
sagrado por Dom Paulinier, Bispo de Besançon e antigo Bispo<br />
de Grenoble, assistido por quatro outros Bispos. No dia seguinte,<br />
20 de agosto, uma grandiosa procissão carregou o real diadema<br />
a ser posto na fronte da estátua de Nossa Senhora da Salette.<br />
Com a presença de cerca de 20 mil romeiros, de 800 Sacerdotes,<br />
150
do Cardeal Guibert, de dois outros Arcebispos, de sete Bispos<br />
e um Abade, a dupla cerimônia foi oficiada com grandiosa<br />
solenidade. O Cardeal Guibert abençoou a estátua e depois a<br />
coroou. O vibrante canto do TE DEUM foi seguido pelo som<br />
maravilhoso do carrilhão de sinos. O Pe. Giraud, Missionário de<br />
Nossa Senhora da Salette, Dom Mermillod, Bispo de Genebra e<br />
Dom Fava, novo Bispo de Grenoble, fizeram sermões fortemente<br />
aplaudidos pela multidão presente.<br />
CAPÍTULO II<br />
O LEGADO DE DOM PHILIBERT:<br />
OS MISSIONÁRIOS DA MÃE DA RECONCILIAÇÃO<br />
Pelo novo Mandamento de 1º de maio de 1852, o Santuário<br />
teve decretada sua construção, e os Missionários de Nossa<br />
Senhora da Salette sua certidão de nascimento.<br />
No primeiro ponto do documento, Dom Philibert de Bruillard<br />
trata do Santuário.<br />
No início do segundo ponto acrescenta:<br />
- “No entanto, estimados irmãos, por mais importante que<br />
seja a construção de um Santuário, algo de mais importante,<br />
ainda, existe: são os Ministros da Religião destinados a darlhe<br />
atendimento, a acolher os piedosos peregrinos, a fazê-los<br />
ouvir a Palavra de <strong>De</strong>us, a exercer para com eles o ministério da<br />
reconciliação, a administrar-lhes o augusto sacramento de nossos<br />
altares, e a ser para todos os dispensadores fiéis dos mistérios de<br />
<strong>De</strong>us (1 Cor 4, 1) e dos tesouros espirituais da Igreja.<br />
Esses padres serão chamados Missionários de Nossa<br />
Senhora da Salette. Sua criação e sua existência serão, bem como<br />
o próprio Santuário, um monumento eterno, uma lembrança<br />
perpétua da aparição misericordiosa de Maria.<br />
151
Esses padres, escolhidos dentre muitos outros, para serem<br />
os modelos e os auxiliares do clero das cidades e das campanhas,<br />
terão uma residência habitual na cidade episcopal. Residirão no<br />
alto da montanha durante o período de peregrinação, e durante o<br />
inverno evangelizarão as diferentes Paróquias da Diocese.<br />
Nós instituímos, agora, portanto, um corpo de missionários<br />
diocesanos, a quem queremos dar vigor e crescimento, com<br />
todas as nossas energias, com todos os nossos sacrifícios, e com<br />
a colaboração de nossos piedosos diocesanos, sobretudo, com a<br />
de nosso querido Clero” (in BASSETTE, p. 278).<br />
<strong>De</strong>pois acrescenta:<br />
- “Esse corpo de missionários é como que o selo com que<br />
queremos assinalar as outras obras que, pela graça de <strong>De</strong>us,<br />
nos foi dado criar. É, por assim dizer, a última página de nosso<br />
testamento, é o último legado que queremos deixar a nossos bem<br />
amados diocesanos. É uma lembrança viva que queremos deixar<br />
a todas e a cada uma de nossas Paróquias. Queremos reviver<br />
no meio de vós, estimados irmãos, por meio desses homens<br />
respeitáveis que, ao falarem de <strong>De</strong>us a vós, vos lembrarão de rezar<br />
por nós. (...) Essa sociedade de padres, destinados a se tornarem<br />
vossos eficientes auxiliares, que, em vista do futuro, fazem o<br />
sacrifício de sua própria pessoa, de sua posição vantajosa, e<br />
abraçando a vida pobre, dura, laboriosa do homem apostólico,<br />
exige vossa generosa colaboração, bem como a de vossos<br />
respeitáveis paroquianos. Eles necessariamente precisarão ter<br />
em Grenoble uma casa que lhes sirva de noviciado para formar<br />
os jovens padres, onde, no recolhimento e no estudo, se preparam<br />
para novas tarefas, e na qual poderão de forma digna, abrigar-se<br />
em sua velhice. (...) Uma das mais belas obras que podereis criar,<br />
estimados colaboradores, e isso é possível em muitas Paróquias,<br />
é a fundação que assegure uma missão para vosso rebanho, a<br />
cada oito ou dez anos. (...) A Santa Virgem apareceu em La<br />
Salette para todo o universo, quem disso pode duvidar? No<br />
entanto, Ela apareceu também, de forma especial para a Diocese<br />
de Grenoble que disso tirará duas vantagens inapreciávies: um<br />
152
novo Santuário a Maria, um corpo de Missionários Diocesanos.<br />
Essas duas obras se tornaram possíveis somente por causa da<br />
Aparição, e para sempre perpetuarão a lembrança da Aparição”<br />
(in BASSETTE, p. 279).<br />
O documento conclui com o agradecimento de Dom Philibert<br />
a todos, e pede as bênçãos de <strong>De</strong>us sobre todos.<br />
O texto é muito denso. Em sua brevidade literária, descreve<br />
um ato de grande importância histórica. O gesto de Dom<br />
Philibert é fundacional, criador de nova entidade eclesiástica.<br />
Em linguagem tipicamente pastoral, define sua origem, sua<br />
identidade e finalidade. Estabelece um nexo íntimo e essencial<br />
entre a entidade e o evento da Salette. Indica seu carisma<br />
e espiritualidade. Tem validade canônica, sem se perder na<br />
dimensão jurídica que envolve o ato.<br />
A fundação dos Missionários de Nossa Senhora da Salettte,<br />
segundo o Mandamento de 1º de maio de 1852, permite uma<br />
reflexão desdobrada em distintos pontos.<br />
1 - A Aparição da Salette: Evento Inspirador<br />
A Aparição de Nossa Senhora em La Salette alcançou, entre<br />
19 de setembro de 1846 e 1º de maio de 1852, ampla repercussão<br />
e aceitação por parte do Povo de <strong>De</strong>us. Nesse período, os<br />
Missionários de Nossa Senhora da Salette não existiam ainda.<br />
Teoricamente, portanto, o evento da Salette poderia continuar<br />
vivo e atuante sem essa instituição eclesial. Os Missionários,<br />
porém, não podem subsistir sem o Fato e a Mensagem da<br />
Aparição. Dom Philibert, em seu Mandamento, estabeleceu um<br />
nexo perene entre a Aparição e a instituição.<br />
Na Aparição não se encontra uma palavra sequer sobre a<br />
eventual fundação de uma Congregação Religiosa Missionária.<br />
A palavra final de Maria, ”Pois bem, meus filhos, transmitam<br />
tudo isso a meu povo”, tem como destinatários diretos, os dois<br />
videntes Maximino e Melânia. Indiretamente, no entanto, os<br />
destinatários são todos os cristãos tocados pelo Fato da Salette.<br />
153
Não se pode, portanto, afirmar que a Bela Senhora seja a<br />
Fundadora dos Missionários de Nossa Senhora da Salette.<br />
Sua Aparição, tanto no Fato quanto na Mensagem, é, porém,<br />
e acima de tudo, o ponto de referência originante dessa<br />
fundação congregacional. Dom Philibert intuiu e explicitou o<br />
nexo existencial entre ambas. Para sua decisão, inspirou-se na<br />
Aparição. Ela tem a dimensão de “evento inspirador”. Sem esse<br />
“evento inspirador” não existiriam os Missionários de Nossa<br />
Senhora da Salette. Não existiriam sem a imensa e admirável<br />
onda de peregrinações, de conversões e da nova devoção<br />
mariana reconciliadora, suscitadas pelo evento. Não existiriam<br />
também sem o inspirado “ato fundador” de Dom Philibert de<br />
Bruillard que lhes confiou a tarefa pastoral da Reconciliação<br />
inicialmente junto ao Santuário da Mãe da Reconciliação. A atual<br />
Congregação dos Missionários de Nossa Senhora da Salette não<br />
existiria, tampouco, sem a evolução e maturação, corresponsável<br />
e participada, do “Corpo de Missionários Diocesanos”, na fase<br />
inicial da instituição fundada por Dom Philibert que lhe deu o<br />
nome de “Missionários de Nossa Senhora da Salette”.<br />
A Congregação, hoje existente, é fruto da evolução histórica<br />
da instituição fundada por Dom Philibert que se inspirou no<br />
Fato da Salette, nele intuiu o carisma típico e o sentido do<br />
Instituto como pastoralmente necessário e urgente em vista<br />
das peregrinações ao local da Aparição. O Bispo de Grenoble<br />
conectou intimamente e para sempre os dois fatos marcantes:<br />
o evento da Aparição, de alçada divina, e a criação dos<br />
Missionários, de responsabilidade eclesial.<br />
154<br />
2 - Os precedentes da fundação<br />
O contexto mais longínquo da fundação dos Missionários<br />
compreendia o grande movimento de peregrinações <strong>à</strong> Montanha<br />
da Salette, iniciado nos primeiros dias após o evento, a correlata<br />
onda de conversões, a expansão da nova devoção cristológicomariana<br />
da Reconciliação, uma humilde capela no local bendito,
mas, sem padres para o atendimento pastoral do povo imenso, e<br />
o projetado Santuário.<br />
Havia, porém, outros dados mais próximos na linha da<br />
organização da comunidade sacerdotal a serviço do local das<br />
peregrinações.<br />
A primeira idéia a respeito da organização de eventual<br />
comunidade de Sacerdotes na Montanha da Salette parece ter<br />
sido de Pe. Burnoud, membro do Clero de Grenoble. Ao visitar<br />
o local da Aparição a 19 de setembro de 1847, 1º Aniversário da<br />
Aparição, prometeu a Nossa Senhora que, se um dia surgisse um<br />
grupo de Missionários, seria um deles.<br />
Em setembro de 1848, numa carta de Dom Guibert, Bispo<br />
de Viviers, enviada a Dom Philibert de Bruillard, a idéia retorna.<br />
Dom Guibert, Cardeal Arcebispo de Paris, presidiu em 1879,<br />
como Legado do Papa Leão XIII, a cerimônia da coroação da<br />
estátua de Nossa Senhora Reconciliadora da Salette, no Santuário<br />
da Montanha, e da elevação do Santuário <strong>à</strong> honraria de Basílica<br />
Menor. Nessa carta, Dom Guibert afirmou:<br />
- “Excelência, penso que Vossa Reverendíssima fará uma<br />
coisa agradável a <strong>De</strong>us e útil <strong>à</strong> propagação do culto da Santa<br />
Virgem, autorizando o estabelecimento, sobre a montanha santa,<br />
de uma igreja cujo atendimento seria confiado a alguma piedosa<br />
comunidade que manteria nesse lugar a devoção para com Maria,<br />
e ao mesmo tempo impediria os abusos que se infiltram algumas<br />
vezes nas peregrinações” (in STERN, “L´évêque de Grenoble<br />
qui approuva La Salette”, p. 74).<br />
A 31 de janeiro de 1849, Pe. Louis Perrin, Pároco de La<br />
Salette, expressou o mesmo desejo.<br />
Qual o sentido da palavra “comunidade” ali empregada? É<br />
difícil precisar.<br />
Há, porém, dados históricos que ajudam a compreender essa<br />
aspiração. O Pe. Charles Novel ms constatou o seguinte:<br />
- “A idéia de uma congregação religiosa ligada <strong>à</strong> Salette<br />
era então expressa de diferentes lados. M. Berlioz, Pároco de<br />
Crémieu, já tinha pensado, conforme nos faz conhecer uma carta<br />
155
de 19 de novembro de 1851, dirigida ao Bispo, que o Bispo<br />
fundaria “uma associação de padres missionários ou religiosos,<br />
imediatamente submetida <strong>à</strong> sua jurisdição, com o objetivo<br />
de trabalhar na conversão dos pecadores em sua Diocese, e<br />
também, se fosse possível, na melhoria do mundo católico, e<br />
em segundo lugar, para cantar sem cessar os louvores de <strong>De</strong>us<br />
num lugar tão venerado”. Havia padres dispostos a fazer parte<br />
dessa associação, como o Pároco de Échirolles, M. Buisson:<br />
ele aspirava por uma vida regular numa comunidade, pois o<br />
ministério lhe era pesado. O Pároco de Cordéac, H. Tabardel<br />
– uma pessoa de juizo um tanto forte – escreveu ao Bispo a<br />
26 de abril de 1852: - “Excelência, creio que seria interpretar<br />
no verdadeiro sentido a graça insigne que a Augusta Rainha do<br />
Céu fez <strong>à</strong> Diocese de Vossa Excelência, e auferir até o fundo<br />
a consequência desse importante evento, se se fundasse para<br />
sempre sobre a rocha viva da Santa Montanha uma ordem ou<br />
congregação religiosa nova, una e tríplice ao mesmo tempo: una<br />
pelos votos e fortes laços religiosos que uniriam para sempre<br />
todos os seus membros na mesma família; tríplice ao mesmo<br />
tempo, isso é, composta: 1º de Padres, 2º de Irmãos dedicados<br />
ao ensino, 3º de Irmãs dedicadas ao ensino” (in NOVEL, “Du<br />
Corps des Missionnaires...”, polígrafo, p. 8-9, 1968).<br />
Dom Philibert, por sua vez, desde 1851 havia concebido o<br />
projeto de fundar em La Salette uma comunidade de Missionários<br />
Diocesanos. No Mandamento o Bispo usa o termo “Corpo”. Por<br />
que? Que sentido lhe dava?<br />
A idéia de uma eventual Vida Religiosa para os que seriam<br />
destinados ao Santuário da Salette estava, portanto, viva, embora<br />
sem maior clareza, entre membros do Clero de Grenoble e na<br />
consciência de Dom Philibert.<br />
Que peso essa idéia teve no Mandamento episcopal? Se<br />
na letra do documento não é enfatizada, de alguma forma está<br />
presente e não se pode descartá-la da mente de Dom Philibert.<br />
<strong>De</strong>sde os primeiros dias após a Aparição, como a história<br />
revela, as multidões de peregrinos se tornavam cada vez<br />
156
mais numerosas e frequentes, exigindo uma solução pastoral<br />
apropriada. Era imperioso encontrar um caminho adequado<br />
para fazer face <strong>à</strong>s exigências das peregrinações. Com o<br />
reconhecimento da veracidade da Aparição, o movimento de<br />
peregrinos se tornou maior ainda.<br />
Duas opções se apresentavam então, ao Bispo de Grenoble:<br />
ou designar Auxiliares para colaborar com o Pároco de La Salette<br />
na pastoral dos peregrinos no alto da Montanha, ou tornar o<br />
local da Aparição pastoral e administrativamente autônomo em<br />
relação <strong>à</strong> Paróquia. Dom Philibert preferiu a segunda opção.<br />
Entre o final de 1851 e o início de 1852, antes, portanto, da<br />
publicação do Mandamento Doutrinal de 1º de maio de 1852,<br />
Rousselot apresentou a Dom Philibert um “Projet soumis <strong>à</strong><br />
Monseigneur”, com algumas sugestões na linha da segunda<br />
opção. Nesse projeto, Rousselot aconselhava o Bispo a fundar<br />
uma “comunidade de missionários diocesanos”. Segundo ele,<br />
o Santuário estaria, assim, “servido por um grupo de dez ou<br />
doze sacerdotes missionários que formariam uma Congregação<br />
diocesana inteiramente sob a dependência do Bispo e especialmente<br />
unida ao Capitulo da Catedral” (in STERN, “L´évêque...”, p. 75).<br />
Rousselot julgava que o grupo deveria ter um caráter nitidamente<br />
diocesano, pois um grupo religioso é pouco dependente do Bispo, o<br />
que não lhe parecia oportuno (in STERN ib.).<br />
Em 1852 a idéia de uma instituição sacerdotal para atender a<br />
pastoral na Montanha da Salette, tomou consistência na Diocese.<br />
Pe. Burnoud, Pároco de Corbelin, a 11 de fevereiro de 1852,<br />
numa carta ao Pe. <strong>De</strong>naz, Pároco de Saint Jéan d´Hérans, lhe<br />
anunciou o seguinte:<br />
1º - A organização de uma nova sociedade de Missionários<br />
Diocesanos sob o título de Nossa Senhora da Salette;<br />
2º - Dom Philibert o havia escolhido para ser superior da<br />
nova sociedade de apóstolos destinada a trabalhar na construção<br />
do Reino de <strong>De</strong>us, <strong>à</strong> propagação da glória da misericordiosa<br />
Maria e <strong>à</strong> salvação das almas desgarradas que o Senhor quer<br />
reconduzir ao redil;<br />
157
3º - Sua nomeação tinha acontecido havia quinze dias;<br />
4º - Estava previsto que os Missionários passariam seis meses<br />
na vila de La Salette ou sobre a Santa Montanha e seis meses em<br />
Grenoble; inicialmente eles seriam quatro Missionários e o dobro<br />
no ano seguinte; a Regra deles seria semelhante <strong>à</strong> dos Cartuxos de<br />
Lyon e sua instalação em La Salette estava prevista para o dia 1º<br />
de maio próximo (cf. NOVEL, “<strong>De</strong>s quatre...”, p. 6).<br />
Poucos dias após, a 16 de fevereiro, o Pe. M. Sibillat,<br />
Capelão da Escola Profissional de Grenoblle, escreveu ao Pe.<br />
<strong>De</strong>naz:<br />
- “O Bispo acaba de fundar uma casa de Missionários<br />
Diocesanos sob o título de Nossa Senhora da Salette. Adotou a<br />
Regra dos Cartuxos Missionários de Lyon. Quer apenas quatro<br />
Padres: Burnoud como Superior, Buisson, Pároco de Échirolles;<br />
você e eu. Um dos quatro será o Pároco da Paróquia de La<br />
Salette” (in NOVEL, “<strong>De</strong>s quatre...”, p. 7).<br />
Na mesma carta, Pe. Sibillat comenta a construção de uma<br />
hospedaria e de um Santuário. Os trabalhos de construção<br />
começariam no final de fevereiro. A idéia de um Santuário vem<br />
unida <strong>à</strong> da comunidade de Missionários.<br />
A 20 de fevereiro é a vez de Burnoud escrever a <strong>De</strong>naz:<br />
- “Nosso projeto ainda está longe de ser organizado. Não<br />
temos ainda Constituições, Regras, casa para nos abrigar. Se,<br />
porém, for obra de <strong>De</strong>us, ela se realizará” (in NOVEL, “<strong>De</strong>s<br />
quatre...”, p. 7).<br />
Por fim, a 4 de março seguinte, Burnoud escreveu novamente<br />
a <strong>De</strong>naz para lhe dizer que a Regra acabava de ser aprovada<br />
pelo Bispo. Para tanto, ele mesmo havia adaptado a Regra dos<br />
Cartuxos de Lyon, e submetido o texto <strong>à</strong> análise de Orcel.<br />
Nessa carta, Burnoud acena também para uma Pia<br />
Associação de Padres, sob a inspiração de Orcel, da qual ele<br />
mesmo fazia parte bem como os Padres <strong>De</strong>naz e Archier. Os<br />
membros dessa organização sacerdotal rezavam diariamente<br />
uns pelos outros, davam-se mútua assistência nas necessidades,<br />
reuniam-se anualmente em assembléia geral, além de observarem<br />
158
outras normas comuns. O espírito de fraternidade os unia para o<br />
exercício mais profícuo do sacerdócio.<br />
Orcel e Burnoud viam com bons olhos a união das duas<br />
instituições, de forma que o “Corpo de Missionários” se tornasse<br />
o ponto de referência da Pia Associação Sacerdotal. No entanto,<br />
os Missionários de Nossa Senhora da Salette seguiram o próprio<br />
caminho.<br />
O Bispo, a 5 de março de 1852, assinou a Regra dos Cartuxos<br />
adaptada. O texto adaptado previa:<br />
- o voto de obediência ao Bispo como primeiro superior da<br />
comunidade;<br />
- o objetivo da comunidade era o de ajudar no ministério<br />
pastoral da Diocese, donde o nome de diocesanos;<br />
- não se faria voto de pobreza, mas, se deveria prestar atenção<br />
a tudo que fosse um sinal de riqueza;<br />
- um noviciado para exercitar o candidato na vida regular,<br />
na oração, na obediência e em todos os exercícios da vida<br />
sacerdotal.<br />
No mesmo dia Dom Philibert se dirigiu a <strong>De</strong>naz para lhe<br />
dizer:<br />
- “Organizei uma instituição de Missionários Diocesanos<br />
sob o título de Nossa Senhora da Salette. Fixei sobre vós<br />
minha escolha e resolvi associar-vos a Burnoud e a Sibillat” (in<br />
NOVEL, “<strong>De</strong>s quatre...”, p. 8).<br />
Nesse dia ainda, Burnoud, Sibillat e <strong>De</strong>naz, Padres<br />
Diocesanos os três, os três primeiros Missionários de Nossa<br />
Senhora da Salette, fizeram entre as mãos do Bispo, “a promessa<br />
provisória que mais tarde será convertida em voto, de começar<br />
a viver e a trabalhar segundo o espírito da regra de nossa nova<br />
vocação de Missionários de Nossa Senhora da Salette” (in<br />
STERN, 3, p.75).<br />
A 5 de março de 1852, portanto, nasceu efetivamente o<br />
“Corpo de Missionários de Nossa Senhora da Salette”.<br />
O Mandamento de 1º de maio de 1852 foi a oficialização do<br />
ato.<br />
159
O projeto de Regra previa o voto de obediência. Não tratava<br />
do voto de castidade porque era inerente <strong>à</strong> condição sacerdotal<br />
de todos os membros da instituição. Não falava em voto de<br />
pobreza, mas, recomendava aos membros da instituição a<br />
vivência do espírito de pobreza evangélica.<br />
Dom Philibert, num retiro pregado aos membros do “Corpo<br />
de Missionários”, durante o outono de 1852, lhes propôs a<br />
profissão do voto de pobreza também. A resposta dos retirantes<br />
consta de uma carta muito gentil que dirigiram ao Bispo a 8 de<br />
novembro de 1852. A revista saletina “RECONCILIARE”, de<br />
dezembro de 1966, p.16-17, publicou o texto:<br />
- “Nós refletimos seriamente sobre a proposta que Vossa<br />
Excelência nos fez logo no início de nosso retiro. Em geral,<br />
nós estaríamos todos inclinados a fazer o voto de pobreza por<br />
duas razões: em primeiro lugar porque a pobreza voluntária é<br />
um estado mais perfeito e, por isso mesmo, mais agradável a<br />
<strong>De</strong>us; em segundo lugar, porque seria a maneira mais efetiva de<br />
conseguir estabilidade, estando a cargo de Vossa Excelência. (...)<br />
Não havia sido previsto que houvesse um voto de pobreza quando<br />
a Regra foi redigida. Se Vossa Excelência nos fizer esse favor,<br />
seria necessário rever as regras. (...) Por favor, não pense que nós<br />
estejamos tentando obstacular o cumprimento da proposição que<br />
Vossa Excelência nos fez com tanta amabilidade; ao contrário,<br />
ousamos dizer que sua realização é o mais sincero e ardente<br />
desejo do nosso coração. Nós estudamos o fato da Aparição com<br />
muitíssimo interesse e ele se manifesta divino demais para não<br />
vermos todas as esperanças e promessas que ele contém para a<br />
extensão do Reino de <strong>De</strong>us e a salvação das almas. Inclusive,<br />
acreditamos que a idéia de Vossa Excelência, idéia que nós<br />
alimentamos carinhosamente durante vários meses, certamente<br />
vem do céu cujo misericordioso plano não se realizará até que os<br />
Missionários de Nossa Senhora da Salette não se organizem de<br />
maneira estável e definitiva” (in BARRETTE, p. 14).<br />
Burnoud, Sibillat, <strong>De</strong>naz, Archier e Bonvallet concordaram<br />
com a proposta do Bispo, mas, viram-na como prematura porque<br />
160
não tinham os meios de estabilidade e autonomia de vida.<br />
Embora na carta os Padres não façam uso das expressões<br />
“Vida Religiosa” e “Comunidade Religiosa”, o espírito do texto<br />
manifesta a disposição deles para um eventual projeto nessa<br />
dimensão.<br />
A partir de todos os indícios prévios, parece suficientemente<br />
claro que a intenção de Dom Philibert era a de fundar, ao menos<br />
incoativamente, uma Congregação Religiosa. <strong>De</strong> qualquer<br />
maneira, a iniciativa a ele pertencia. Nenhum dos primeiros<br />
Missionários reivindicou para si a prerrogativa de fundador.<br />
- “A iniciativa dessa fundação pertence com certeza a Dom<br />
<strong>De</strong> Bruillard que queria uma instituição sólida e estável, e podese<br />
crer que, para assegurar esta solidez e essa estabilidade, ele<br />
pensava nos votos religiosos. A questão da Vida Religiosa, porém,<br />
não estava madura em novembro de 1852, e sem dúvida menos<br />
ainda em maio de 1852, sobretudo da parte dos Missionários”<br />
(NOVEL, “Du Corps...”, p. 11).<br />
A Vida Religiosa saletina, com suas estruturas canônicas,<br />
sua espiritualidade, carisma, vida apostólica e comunitária, tem<br />
ali sua pré-história. Era indispensável que vivesse ainda seu<br />
tempo de floração e maturação.<br />
O dia 5 de março de 1852, por força da promessa feita pelos<br />
primeiros Missionários entre as mãos de Dom Philibert, é na<br />
prática o dia do nascimento do “Corpo de Missionários de Nossa<br />
Senhora da Salette”. O Mandamento de 1º de maio de 1852 foi<br />
sua promulgação oficial. Dom Philibert não esperou, portanto,<br />
pela publicação do documento. Antes disso, tomou as primeiras<br />
medidas para organizar o “Corpo de Missionários”.<br />
Faltava ainda redigir o Mandamento. Dom Philibert, por<br />
motivos de saúde, confiou a tarefa a Rousselot. O Bispo, na<br />
redação final do documento, retomou as grandes linhas do projeto<br />
de Rousselot que previa uma associação diocesana inteiramente<br />
dependente do Bispo e unida ao Capítulo da Catedral, sendo que<br />
seus membros não seriam mais do que doze, escolhidos dentre os<br />
membros do Clero diocesano, os quais serviriam <strong>à</strong> peregrinação<br />
161
da Santa Montanha no verão e atenderiam <strong>à</strong> pregação de missões<br />
paroquiais durante o inverno.<br />
Rousselot, porém, excluía a idéia de uma Comunidade<br />
Religiosa porque ela não seria suficientemente dependente do<br />
Bispo. Contudo, a idéia de Rousselot não era necesariamente a<br />
idéia de Dom Philibert.<br />
162<br />
3 - O Ato Fundador de 1º de maio de 1852<br />
Jesus Cristo, ao anunciar o Reino, congregou junto a Si<br />
o primeiro “Corpo de Missionários”, os Apóstolos, núcleo<br />
primordial de sua Igreja. <strong>De</strong>u a seus discípulos uma Regra<br />
de Vida centrada no Mandamento Novo, deixou-lhes sinais<br />
sacramentais de sua Presença, instituiu entre eles uma liderança<br />
e os enviou a anunciar a Boa Nova, primeiramente <strong>à</strong>s “ovelhas<br />
da casa de Israel”, e depois ao mundo inteiro. Assim, Cristo<br />
fundou sua Igreja, confirmada pelo Pentecostes.<br />
Jesus não se deu, porém, o trabalho de organizar interna<br />
e externamente a Igreja, com o cenário ministerial, litúrgico,<br />
doutrinário, pastoral e jurídico que hoje nela se vê. Permitiu<br />
que ela mesma, <strong>à</strong> luz do Espírito, e em resposta <strong>à</strong>s urgências<br />
históricas, se desse a si mesma os elementos de que precisa em<br />
sua missão.<br />
<strong>De</strong>ntre as respostas eclesiais surgidas nos primeiros<br />
séculos do cristianismo, está a Vida Religiosa. Ela não provém<br />
diretamente de um gesto fundador específico de Jesus Cristo.<br />
Surgiu, sim, do próprio Evangelho enquanto lido a partir de<br />
urgências históricas, e, sob o impulso do Espírito, se concretizou<br />
em diferentes formas carismáticas, institucionais e jurídicas, ao<br />
longo dos tempos.<br />
Maria, na Aparição em Salette, atualizou a Boa Nova de seu<br />
Filho Jesus em função das necessidades de seu Povo naquele<br />
momento e naquela situação. Pediu a mesma conversão que<br />
Cristo proclamou. Manifestou o mesmo amor compassivo e<br />
reconciliador lido pelo Evangelho na Palavra e na Vida de
Jesus. Convocou o Povo a viver sua eclesialidade pela prática da<br />
religião. Não pediu, porém, nem a construção de templos, nem a<br />
constituição de movimentos pastorais ou a fundação de alguma<br />
Congregação Religiosa. Nada disso consta em sua Mensagem.<br />
A Bela Senhora não é, portanto, a Fundadora da Congregação<br />
dos Missionários da Nossa Senhora da Salette ou da Confraria a<br />
Ela dedicada. Efetivamente nada fundou. Abriu, sim, horizontes<br />
para um mundo novo, pelo caminho da conversão de seu Povo.<br />
Esse é seu programa.<br />
A história da Vida Religiosa apresenta diferentes figuras<br />
de Fundador. Cada um tem sua personalidade, a própria<br />
espiritualidade, um projeto de vida comunitária e de ação<br />
apostólica.<br />
Há os que, iluminados pelo Evangelho, fundaram um grupo de<br />
discípulos, deixando-lhes uma espiritualidade, o carisma, a missão<br />
apostólica e um projeto de vida comunitária com normas práticas<br />
definidas e consubtanciadas numa “Regra de Vida” completa.<br />
Outros, apenas, focaram certos princípios evangélicos<br />
mobilizadores de eventuais discípulos que, por sua vez,<br />
desdobraram segundo suas necessidades e possibilidades<br />
históricas, o ideário do Fundador num projeto específico de Vida<br />
Religiosa com todas as suas caraterísticas.<br />
Houve os que, perdidos em devaneios, incitaram grupos<br />
mais ou menos fanáticos, congregados em torno de um ideal<br />
distorcido, com um regulamento supostamente revelado.<br />
Houve também os que suscitaram instituições apostólicas em<br />
resposta a necessidades concretas e próprias do Povo de <strong>De</strong>us. A<br />
seus discípulos deixaram algumas luzes, apenas, e a tarefa de se<br />
organizarem na vida prática de seguimento de Cristo, sob a luz<br />
do Espírito, segundo os desígnios da Providência, confiando-se<br />
aos cuidados da Igreja a quem cabe discernir os espíritos.<br />
A esse grupo pertence Dom Philibert de Bruillard.<br />
O Bispo, inspirado pela Aparição e suas consequências,<br />
criou uma nova instituição eclesiástica e lhe deu um nome<br />
oficial: Missionários de Nossa Senhora da Salette.<br />
163
O fato de dar nome a alguém, habitualmente e por si só, define<br />
a paternidade do doador do nome ao nomeado que é reconhecido<br />
como filho. A nomeação é o primeiro ato de identificação.<br />
Por este simples fato, Dom Philibert é “Bispo e Pai” do novo<br />
Instituto, segundo a expressão de Burnoud e Sibillat no ato da<br />
Promessa, a 5 de março de 1852.<br />
Como Bispo e Pai, Dom Philibert percebia a existência de<br />
urgências pastorais em sua Diocese:<br />
- o Fato da Aparição atraia multidões ao local abençoado e<br />
suscitava inúmeras conversões e muitos milagres;<br />
- a Confraria de Nossa Senhora da Salette expandia sempre<br />
mais a devoção a Nossa Senhora como Reconciliadora;<br />
- a impossibilidade prática de o Pároco de La Salette e seu<br />
Vigário Paroquial atenderem, sozinhos, o fardo da pastoral das<br />
peregrinações;<br />
- a necessidade de se construir um templo adequado <strong>à</strong>s<br />
necessidades pastorais, no alto da Montanha;<br />
- a conveniência de se realizarem periodicamente missões<br />
populares nas Paróquias da Diocese;<br />
- a pregação de Retiros para o Clero, e demais atividades<br />
pastorais.<br />
A resposta a essas urgências não podia ser dada por um<br />
Padre apenas. Só tinha uma saída: a fundação de um “Corpo<br />
de Missionários Diocesanos” por parte do Bispo Diocesano de<br />
Grenoble. Essa foi a decisão de Dom Philibert de Bruillard.<br />
O Bispo, ao aunciar a instituição da nova sociedade<br />
presbiteral, insistiu em três caraterísticas que lhe conferiu:<br />
equipe, missionária e diocesana:<br />
- equipe: o mínimo que o Bispo imaginava para atender a<br />
essas urgências pastorais era um “corpo”, uma equipe de Padres.<br />
Um grupo. Uma comunidade. Comunidade RELIGIOSA?<br />
Talvez! E é a melhor das hipóteses, porque essa idéia já circulava<br />
no meio do Clero de Grenoble, com conhecimento do Bispo;<br />
- missionária: o ministério das peregrinações não é<br />
propriamente de tipo paroquial. Tem caraterísticas de serviço<br />
164
missionário prestado a pessoas das mais variadas proveniências<br />
e comunidades, cristãs ou não. Serviço missionário, também, em<br />
vista das desejadas missões populares nas Paróquias.<br />
- diocesana: Dom Philibert, como Bispo de Grenoble,<br />
estava preocupado com os peregrinos da Salette, sim, mas ao<br />
mesmo tempo, com o rebanho da Diocese. Precisava, portanto e<br />
ao mesmo tempo, de missionários diocesanos porque sentia as<br />
urgências de sua Diocese.<br />
A denominação “Corpo de Missionários DIOCESANOS”<br />
eventualmente podia ter, na intenção do Bispo, o sentido de<br />
“Corpo de Missionários de DIREITO diocesano”. Nesse caso,<br />
Dom Philibert estaria implicitamente pensando em alguma forma<br />
de Vida Religiosa de Direito Diocesano. O que é condizente com<br />
o contexto eclesial da fundação.<br />
Dom Philibert, em seu Mandamento de 1° de maio de 1852,<br />
ao se referir <strong>à</strong> construção do Santuário, deixou claro que não<br />
era para uma localdade mais ou menos restrita, mas, para o<br />
universo inteiro que o fazia. Mais adiante, no texto, afirma que<br />
a Santa Virgem apareceu em La Salette para o mundo inteiro<br />
e que, tanto o Santuário quanto os Missionarios, só existem<br />
por causa da Aparição e para sempre serão sua lembrança<br />
universal também. Isso implica um “Corpo de Missionários”,<br />
RELIGIOSOS de Direito Diocesano ao menos, que levem a<br />
Mensagem de Maria não só <strong>à</strong> Diocese, mas, a todo o mundo.<br />
Uma comunidade religiosa é a mediação mais adequada para o<br />
exercício de semelhante missão.<br />
Nossa Senhora, por duas vezes, aliás, pediu aos videntes<br />
que tansmitissem sua palavra a todo seu Povo. A dimensão<br />
universalista da missão ali transparece. Missão que não poderia<br />
ser a de um reduzido número de enviados presos a um quadro<br />
de montanhas, mas, de uma instituição sólida e estável, o que só<br />
pode acontecer com os laços da Vida Religiosa, conforme a idéia<br />
dos Pioneiros.<br />
Houve quem negasse a Dom Philibert a honra e o título de<br />
Fundador da Congregação dos Missionários de Nossa Senhora<br />
165
da Salette. Falta de conhecimento histórico? Receio de retirar<br />
da Bela Senhora o fundamental papel que tem nessa questão?<br />
Receio de esvaziar o consequente labor dos Pioneiros na<br />
configuração da Congregação?<br />
Dom Alexandre Caillot, Bispo de Grenoble, por ocasião do<br />
Centenário da Fundação da Congregação dos Missionários de<br />
Nossa Senhora da Salette, dá uma resposta clara a essa questão,<br />
numa carta enviada a 25 de abril de 1952 ao Pe. Joseph Imhof,<br />
Superior Geral dos Missionários Saletinos:<br />
- “Vosso fundador foi o Bispo de Grenoble, Dom Philibert de<br />
Bruillard. (...) Sem dúvida, não se tratava, para Dom <strong>De</strong> Bruillard<br />
(...) de estabelecer em sua Diocese monges contemplativos, e<br />
sim, Padres Missionários, isto é, encarregados de uma missão<br />
especial (...) claramente indicada pelo nome que ele lhes<br />
deu. (...) Assim haverá um Corpo de Padres “Missionários<br />
Diocesanos”. Entretanto, essa denominação não designava,<br />
nem podia designar ainda, aquilo a que se chama em termos<br />
estritamente canônicos, uma “Congregação”. Isso não tardaria<br />
muito a chegar” (in NOVEL, “<strong>De</strong>s quatres...”, p. 15).<br />
Dom Philibert fundou o Corpo de Missionários Diocesanos.<br />
A instituição, aos poucos e com muito sofrimento, se organizou<br />
mais adequadamente, cresceu, evoluiu e se tornou Congregação<br />
Religiosa, de Direito Diocesano primeiramente e depois, de<br />
Direito Pontifício, quando o Bispo não estava mais <strong>à</strong> testa da<br />
Diocese de Grenoble, embora, sempre tivesse tido carinhoso<br />
relacionamento com a Congregação (cf. STERN, ib. 79).<br />
Nenhum “corpo animado” nasce grande, com todas as<br />
energias a postos, com as capacidades plenamente desenvolvidas.<br />
Cresce e amadurece aos poucos. Torna-se adulto de acordo<br />
com as condições internas e externas. O “ser que o anima”, no<br />
entanto, é o mesmo. A paternidade também é uma só.<br />
O grão de trigo difere, em sua forma, da planta que dele nasce.<br />
No entanto, a vida que passa de um para a outra é idêntica a si mesma.<br />
Ao exemplo de um velho e sábio agricultor, conhecedor do<br />
terreno e do tempo, esperançoso na vitalidade da semente, Dom<br />
166
Philibert plantou e pacientemente contemplou o surgimento da<br />
vida misteriosamente guardada no recôndito do grão semeado.<br />
O chão do plantio que Dom Philibert lavrou, estava<br />
impregnado do húmus necessário para o desabrochamento do<br />
grão semeado, húmus de solo missionário, mesclado de algum<br />
modo, com o de Vida Religiosa.<br />
Dom Philibert lançou a semente de uma realidade eclesial<br />
nova, minúscula e humilde. A semente evoluiu para uma<br />
instituição aberta ao mundo, cuja floração o Bispo-Pai chegou a<br />
conhecer no final de seus anos, quando o “Corpo de Missionarios<br />
Diocesanos” se havia tornado Congregação Religiosa de Direito<br />
Diocesano, a 2 de fevereiro de 1858. Dois anos após, Dom<br />
Philibert faleceu. Era o dia 15 de dezembro de 1860.<br />
Dom Philibert deu ao “Corpo de Missionários Diocesanos”<br />
a Regra dos Cartuxos de Lyon adaptada, despretencioso sinal de<br />
Vida Religiosa incipiente. Não podia fazer mais. Em sua idade<br />
avançada, <strong>à</strong>s vésperas de sua renúncia ao governo da Diocese<br />
e na precariedade de sua saúde, era tudo o que podia fazer. Seu<br />
gesto, apesar da reduzida formalidade canônica, foi carismático<br />
em sua inspiração. Dom Philibert semeou o grão que, de acordo<br />
com as potencialidades do solo e do amoroso beneplácito de<br />
<strong>De</strong>us e da Mãe da Reconciliação, evoluiu até seu florescimento<br />
e frutificação.<br />
A vida que a semente do “Corpo de Missionários” trazia<br />
em si, um dia desabrochou na Congregação Religiosa com a<br />
qual o Bispo certamente sonhou e com a qual sempre manteve<br />
laços de arraigada afeição, testemunhada por uma visita, apesar<br />
da doença e da idade, <strong>à</strong> sua “Montanha querida” como Bispo<br />
Emérito, e pelo dom de seu coração de Pai e Pastor ao Santuário<br />
da Santa Montanha, onde foi deposto.<br />
Os Missionários de Nossa Senhora da Salette tradicionalmente<br />
viram nele seu Fundador (Stern, ib. p. 79).<br />
Dom Philibert inegavelmente está na origem dos<br />
“Missionários de Nossa Senhora da Salette” com toda sua<br />
história típica. Como Bispo tinha, naquele momento, uma<br />
167
dupla responsabilidade: examinar canonicamente o Fato da<br />
Aparição e garantir sua fecundidade espiritual. A fundação dos<br />
Missionários de Nossa Senhora da Salette provém da segunda<br />
responsabilidade episcopal.<br />
Nesse objetivo congregou o grupo de Padres que, de<br />
imediato, serviriam o local das peregrinações saletinas, dariam<br />
sua colaboração <strong>à</strong> pastoral paroquial na Diocese, e divulgariam<br />
a devoção <strong>à</strong> Mãe da Reconciliação.<br />
No entanto, em seu Mandamento, o Bispo dera a entender<br />
suficientemente que a irradiação da Aparição ultrapassava os<br />
limites da Diocese, o que era testemunhado pela numerosa<br />
presença de peregrinos de outros países na Montanha da Salette.<br />
Subentende-se que o Instituto Diocesano por ele fundado, poderia<br />
eventualmente se expandir para além dos limites da Igreja Local,<br />
sem mudar de natureza e com nova forma de existência. Fizera<br />
isso como Bispo de Grenoble, o que implicava que seu Sucessor<br />
deveria seguir a mesma linha. Não haveria lugar para mudanças<br />
de orientação do grupo, mas, somente para o desenvolvimento e<br />
amadurecimento de sua organização.<br />
À luz dos estudos de Pe. Victor Hostachy ms, de Pe. Charles<br />
Novel ms, de Pe. Eugène Barrette MS, de Pe. Jéan Stern ms e<br />
outros, a respeito da história da Congregação, deve-se dizer que<br />
Dom Philibert é verdadeiramente o Fundador da Congregação<br />
dos Missionários de Nossa Senhora da Salette.<br />
Não há razão, portanto, para que os Missionários Saletinos se<br />
sintam “filhos” sem “pai”, ou uma “fraternidade” sem a correlata<br />
“paternidade”. Nem por isso perdem seu valor o influxo da Bela<br />
Senhora e o sofrido esforço dos Pioneiros no “caos inicial” da<br />
gênese da nova Congregação Religiosa.<br />
Os pioneiros nunca se arrogaram o título de fundadores. A<br />
história nos revela que a organização prática da Vida Religiosa<br />
como tal, comunitária e missionária, inspirada no evento da<br />
Salette, contou, sim, com a paulatina e efetiva colaboração dos<br />
primeiros missionários. Eles exerceram papel insubstituível,<br />
mas, papel secundário no sentido de que, uma vez lançados na<br />
168
existência por Dom Philibert, assumiram a responsabilidade de<br />
organizar a própria vida.<br />
A tarefa não foi fácil e não aconteceu sem a interferência<br />
necessária da parte da Igreja, através dos Bispos Diocesanos<br />
envolvidos nesse processo histórico, inicialmente Dom Philibert,<br />
depois Dom Ginoulhiac e por fim Dom Fava.<br />
O “Fundador” da Congregação é o Bispo de Grenoble, Dom<br />
Philibert de Bruillard. Considerados todos os indícios presentes<br />
nas origens da instituição, os Missionários Saletinos encontram,<br />
em Dom Philibert de Bruillard, a “paternidade” que lhes garante<br />
sua identidade.<br />
O Mandamento episcopal é a certidão de nascimento do<br />
“Corpo de Missionários” batizado com o nome de “Missionários<br />
de Nossa Senhora da Salette”. <strong>De</strong>pois de ter sido dado <strong>à</strong> luz,<br />
o Instituto aprendeu a andar com o próprio esforço sem<br />
dispensar o apoio necessário. O que apareceu depois, já estava<br />
implicitamente no começo.<br />
Levado em conta o contexto, pode-se admitir que o desejo<br />
de Dom Philibert era ter, em sua Diocese, uma Congregação<br />
Religiosa canonicamente instituida e difundida pelo mundo<br />
afora um dia. Não seria essa sua intenção ao aplicar uma Regra<br />
ao grupo, um “Projeto de Regra” como consta do cabeçalho do<br />
texto?<br />
O Bispo Philibert, portanto, “visava mais longe que a<br />
fundação de um simples corpo de missionários diocesanos. Sua<br />
intenção profunda tendia efetivamente para a fundação de uma<br />
verdadeira congregação religiosa, a dos Missionários de Nossa<br />
Senhora da Salette” (in NOVEL, “<strong>De</strong>s quatres...”, p. 13).<br />
Dom Philibert conhecia de perto o que era a Vida Religiosa.<br />
Havia sido Diretor Espiritual de uma Fundadora de Congregação,<br />
Santa Madalena Sofia Barat, das Irmãs do Sacré Coeur de<br />
Jésus, presentes também na Diocese de Grenoble. Havia outras<br />
Comunidades Religiosas na Diocese, particularmente o Mosteiro<br />
de Vida Religiosa Contemplativa, “La Grande Chartreuse”, que<br />
São Bruno fundou na Sé Episcopal de Grenoble.<br />
169
Pe. Louis Carlier ms, Pe. Victor Hostachy ms, Pe. Charles<br />
Novel ms e Pe. Jean Stern MS afirmam que o Bispo tinha especial<br />
abertura para a Vida Religiosa na perspectiva de La Salette. Pe.<br />
Gian Matteo Roggio ms, teólogo saletino italiano, confirma o<br />
desejo do Bispo, dizendo que Dom Philibert é realmente e em<br />
sentido pleno, o Fundador da Congregação:<br />
- “Dom <strong>De</strong> Bruillard pensou, quis e fundou uma comunidade<br />
de sacerdotes que levasse adiante a memória e a profecia da<br />
Aparição: é evidente, pois, que em seu pensamento e em suas<br />
intenções a memória e a profecia da Aparição não estão presas<br />
aos videntes. É precisamente esse fato que o leva <strong>à</strong> fundação dos<br />
Missionários de Nossa Senhora da Salette: eles não nascem para<br />
serem “suplentes qualificados” dos videntes, particularmente de<br />
Melânia, mas nascem em razão da peculiaridade do evento e de<br />
seu caráter geneticamente eclesial, que atinge singularmente a<br />
pessoa das crianças. Como fundador, Dom <strong>De</strong> Bruillard é aquele<br />
que recebe “uma dúplice graça”: a primeira o torna capaz de criar<br />
uma família evangélica na Igreja; a segunda o orienta na linha de<br />
um determinado gênero de vida e de um serviço na comunidade.<br />
A primeira cabe a eles (os membros do grupo) como pessoas;<br />
a segunda eles a compartilharão com os membros do próprio<br />
grupo e, por isso mesmo, constituirá o carisma do instituto” (in<br />
ROGGIO, p. 12, polígrafo).<br />
Pe. Roggio acrescenta:<br />
- “Dom <strong>De</strong> Bruilard recebeu o dom pessoal de criar uma<br />
família evangélica na Igreja: o coração de sua inspiração é o<br />
homem apostólico, o homem assinalado pelo apostolado. Em<br />
suas intenções, publicamente perceptíveis no Mandamento de<br />
maio de 1852, o Missionário de Nossa Senhora da Salette é<br />
principalmente (e essencialmente) um apóstolo, plenamente e<br />
voluntariamente inserido na vida apostólica. É esta insistência<br />
substancial e essencial sobre a vida apostólica que o leva a dar<br />
vida a uma comunidade evangélica. (...) Dom <strong>De</strong> Bruillard<br />
também recebeu o dom da orientação na linha de um determinado<br />
gênero de vida e a um serviço na comunidade. Esse gênero de<br />
170
vida e o serviço na comunidade vêm condensados na Aparição.<br />
É a Aparição que determina o gênero de vida e o serviço na<br />
comunidade. A Aparição é o carisma próprio daquilo que a<br />
Congregação se tornará a seguir” (ROGGIO, p. 12-13).<br />
Muito tempo antes, Pe. Novel, em sua competência de<br />
teólogo, afirmava:<br />
- “No caso de Dom Philibert de Bruillard é preciso distinguir:<br />
a) <strong>De</strong> uma parte, entre o carisma de Bispo e o carisma de<br />
fundador;<br />
b) <strong>De</strong> outra, entre o carisma de fundador e o de doutor.<br />
Por seu carisma de Bispo, Dom Philibert de Bruillard<br />
tem a graça de discernir e definir os carismas, reconhecer a<br />
autenticidade da Aparição de La Salette, revelação privada,<br />
graça de ordem carismática.<br />
Por outro lado se ele possui o carisma de fundador, não<br />
parece ter o carisma de doutor.<br />
O carisma de doutor tem por objeto a manifestação pelo<br />
exemplo, pela palavra, pelo escrito, de uma ilustração espiritual<br />
recebida através de um dom especialmente intenso da graça,<br />
enquanto que o carisma de fundação tem por objeto próprio a<br />
reunião de uma comunidade sobre a base de um ideal entrevisto.<br />
Note-se que não há carisma de fundação sem carisma de ensino,<br />
mesmo que este seja dado a alguém distinto do fundador: uma<br />
fundação no quadro da Vida Religiosa não pode se desenvolver<br />
a não ser <strong>à</strong> luz de uma compreensão e expressão renovada do<br />
Evangelho. Para esclarecer isso: o Pe. <strong>De</strong> Foucauld não fundou<br />
nenhuma Congregação, mas, hoje há Congregações que vivem<br />
de seu espírito.<br />
A originalidade de nosso caso está nisso: Dom Philibert<br />
de Bruillard recebeu o carisma de fundador: ele fundou os<br />
Missionários de Nossa Senhora da Salette, mas, não lhes deixou<br />
nenhuma Regra a não ser um projeto provisório, nem mesmo<br />
algum escrito onde buscaríamos nosso espírito. No entanto, seu<br />
carisma de Bispo e seu carisma de fundador se unem no fato<br />
de nos indicar onde devemos buscar nosso espírito, isto é, na<br />
171
Mensagem de Nossa Senhora da Salette, como ele quer sinalizar<br />
pelo nome que nos deu. (...) Enquanto nosso Bispo Fundador,<br />
ele nos indica a “Mensagem” de Nossa Senhora da Salette<br />
como fonte de nossa espiritualidade. (...) Cabe a nós conservar<br />
a memória de nosso Bispo Fundador e agradecer ao Senhor e a<br />
sua Mãe, Nossa Senhora Reconciliadora, a Rainha dos Profetas<br />
e dos Apóstolos, por nos tê-lo dado como acabamos de o ver:<br />
fiel <strong>à</strong> sua missão de Bispo, atento aos sinais da Providência, um<br />
coração de apóstolo e de espírito marial” (in NOVEL, “<strong>De</strong>s<br />
quatre...”, p. 2-3.4.5).<br />
“Se Dom Philibert de Bruillard foi o fundador e definidor dos<br />
Missionários de Nossa Senhora da Salette, se Dom Ginoulhiac<br />
foi seu construtor e defensor, Dom Fava permanecerá como seu<br />
eloqüente e ardente missionário” (V. H., I, pg. 245).<br />
É a “trindade episcopal saletina”: Dom Philibert, o “pai”<br />
fundador dos Missionários de Nossa Senhora da Salette; Dom<br />
Ginoulhiac, o “filho” estruturador da Congregação; Dom Fava,<br />
o “espírito animador” de sua vida missionária.<br />
“Como conclusão, o ato feito por Dom <strong>De</strong> Bruillard teve<br />
consequências imprevisíveis, mas, é certamente o ato pelo qual<br />
Dom <strong>De</strong> Bruillard nos fundou” (NOVEL, “<strong>De</strong>s quatre...”, p. 14).<br />
“Ele deixou a lembrança de um Bispo caridoso, apostólico,<br />
devotado a seu Clero e <strong>à</strong>s Comunidades Religiosas, de alma<br />
com devoção mariana profunda e verdadeira” (NOVEL, “<strong>De</strong>s<br />
quatre...”, p. 2).<br />
Em virtude de sua idade avançada, Dom Philibert deixou o<br />
governo da Diocese de Grenoble em 1853. Dom Ginoulhiac o<br />
sucedeu.<br />
172<br />
4 - Os Pioneiros<br />
Dom Philibert, antes mesmo de determinar a construção do<br />
Santuário, havia escolhido os três primeiros Padres da Diocese<br />
de Grenoble que iriam compor o “Corpo de Missionários<br />
Diocesanos de Nossa Senhora da Salettte”: Burnoud, Sibillat e
<strong>De</strong>naz. Os três se dedicariam ao ministério no Santuário durante<br />
o verão, e nas Paróquias durante o inverno. Haviam-se escolhido<br />
entre si, com a concordância do Bispo, para serem os Pioneiros.<br />
Segundo testemunhos escritos de Dom Philibert, havia outros<br />
Padres dispostos a entrarem na nova sociedade missionária.<br />
Inseriram-se efetivamente no grupo, Pe. Bonvallet e Pe. Archier,<br />
em 1852. Em 1853 entrou Richard. Em 1854, Chavrier, Berlioz<br />
e Albertin. Em 1856, Bossan, e em 1857, Buissson e Petit. Todos<br />
eles Padres Diocesanos. Somente seis dentre eles, professaram<br />
os votos religiosos a 2 de fevereiro de 1858, na passagem para a<br />
Congregação Religiosa de Direito Diocesano: Archier, Berlioz,<br />
Albertin, Buisson, Petit e Bossan. Em novembro de 1858 chegou<br />
Pe. Giraud. Pe. Henri Berthier entrou em setembro de 1864, e,<br />
em setembro de 1865, seu irmão, Pe. Jéan Berthier, Fundador<br />
dos Missionários da Sagrada Família.<br />
Entre os primeiros, Sibillat se revelava um orador atraente e<br />
espirituoso. Bonvallet, dotado de bela voz, preparava os grupos<br />
de canto. Archier e <strong>De</strong>naz, acolhedores, atraiam longas filas de<br />
penitentes junto ao confessionário.<br />
Burnoud foi o primeiro Superior da incipiente comunidade.<br />
Pe. Pierre Archier, ex-Pároco de Verna, foi Superior entre 1856<br />
e 1865, e de novo entre 1876 e 1891. No segundo mandato de<br />
Pe. Archier como Superior Geral, o “Corpo de Missionários” de<br />
Direito Diocesano se tornou Congregação de Direito Pontifício.<br />
Quando Dom Philibert foi <strong>à</strong> Montanha da Salette, a 25 de<br />
maio de 1852, para a bênção e lançamento da pedra angular do<br />
Santuário, os três pioneiros estavam lá para acolhê-lo.<br />
No mês de outubro, durante um retiro dos três Missionarios,<br />
Dom Philibert, retomando intuições anteriores, propôs que todos<br />
os membros do Instituto se comprometessem a emitir o voto de<br />
pobreza. Assim completariam o quadro dos votos, uma vez que,<br />
como sacerdotes, já haviam feito os de castidade e de obediência.<br />
Em outubro ainda, Burnoud, como Superior, sugeriu ao<br />
Bispo que os Missionarios trouxessem sobre o peito uma Cruz,<br />
sinal distintivo dos filhos de Nossa Senhora da Salette. Dom<br />
173
Philibert inicialmente se mostrou reticente. Finalmente, a Cruz<br />
sugerida foi adotada.<br />
A 8 de novembro de 1852, numa carta assinada por todos<br />
os membros do grupo de Missionários, constava a resposta<br />
dos Padres ao pedido do Bispo quanto ao voto de pobreza.<br />
Observavam eles, porém, que o voto de pobreza supõe que a<br />
comunidade, <strong>à</strong> qual tudo se entrega, tenha condições materiais<br />
para atender as necessidades do grupo:<br />
- “Cremos que o pensamento de Vossa Excelência, pensamento<br />
que alimentamos com amor há alguns mêses, vem certamente do<br />
Céu; do Céu cujos desígnios de misericórdia se realizarão quando<br />
os Missionários de Nossa Senhora da Salette estiverem organizados<br />
de maneira sólida e durável” (in STERN, “L´Évêque...”, p. 79).<br />
A idéia relativa a uma organização sólida e estável da<br />
comunidade supunha o voto de pobreza.<br />
Os três pioneiros cultivavam a mútua estima.<br />
Em 1852, no alto da Montanha tinham como moradia, além<br />
da pequena e pobre capela, três cabanas, todas em madeira.<br />
As cabanas rústicas, uma para cada um, lhes servia de quarto,<br />
cozinha, e sala para acolher peregrinos. A neve se infiltrava pelas<br />
frestas. O vento gelado buscava abrigo nessas pobres moradas.<br />
Pe. Sibillat, dono de espírito jocoso, dizia:<br />
- “Quando, através das tábuas mal unidas de meu quarto,<br />
no silêncio desses lugares solitários, vejo uma estrela magnífica<br />
brilhando no firmamento, digo a mim mesmo com alegria: é o<br />
olhar de minha Mãe que vela sobre mim. Jamais trocaria essa<br />
minha cabana simpática por um palácio” (in JAOUEN, “Les<br />
Missionnaires...”, p. 29).<br />
Assim viveram os primeiros meses, de 25 de maio de 1852<br />
até o começo do inverno, quando desceram <strong>à</strong> Casa Paroquial<br />
de La Salette, para usufruírem de um ambiente mais cômodo e<br />
adequado para o intenso frio. Na primavera seguinte retomaram<br />
seu posto no alto da Montanha.<br />
A construção do Santuário progredia com rapidez, sob os<br />
cuidados da equipe. Com o Santuário, era erguida, em anexo,<br />
174
uma sólida hospedaria em pedra, para abrigar mais comodamente<br />
os Missionários. Os peregrinos também ali encontravam um<br />
lugar para se hospedar. O local da Aparição não ficaria mais<br />
abandonado durante o inverno.<br />
O início foi muito difícil material e comunitariamente.<br />
Os Missionários eram excelentes pessoas, zelosos sacerdotes<br />
e encantados pela Salette. Como Padres diocesanos não<br />
tinham experiência de vida comunitária. Carregavam grandes<br />
dificuldades nessa dimensão da vida. Cada um tinha seus ideais<br />
sem a prática de vivê-los em comum. Todos eram personalidades<br />
fortes, com diferentes modos de conceber um projeto de vida<br />
comunitária. <strong>De</strong>sejavam igualmente maior autonomia em relação<br />
<strong>à</strong> Diocese, e maior estabilidade de vida para melhor desempenho<br />
da missão que lhes havia sido confiada. A vida era complicada.<br />
Sonhavam, porém, em ser Religiosos.<br />
Ocupavam-se das obras de construção do Santuário e da<br />
pastoral junto aos peregrinos. O trabalho, no entanto, exigia não<br />
só a presença de Padres, mas, também de auxiliares leigos, tanto<br />
homens quanto mulheres. Em vista disso, Burnoud chamou sua<br />
mãe e sua irmã, e <strong>De</strong>naz, seu irmão e sua cunhada, para ajudálos<br />
nas tarefas diárias.<br />
Alguns moços e moças foram admitidos como funcionários<br />
e eventuais candidatos <strong>à</strong> Vida Religiosa. Esse grupo heterogêneo<br />
colaborava com os Missionarios, mas, representava um foco de<br />
problemas para a vida comum. A necessidade de se organizar a<br />
comunidade, mediante um regulamento, se tornou urgente.<br />
Burnoud, pessoa competente e com temperamento de chefe,<br />
alimentava grandes projetos. Projetava a Salette em dimensões<br />
mundiais. Segundo seu modo de pensar, os Missionários não<br />
podiam se enfeixar em âmbito diocesano apenas. Cedo pensou<br />
erigir com eles um verdadeiro Instituto Religioso, sólido e estável.<br />
Sendo Bispo de Grenoble Dom Ginoulhiac, Burnoud se<br />
dirigiu a ele em carta sem assinatura, a 15 de outubro de 1852.<br />
Muitas questões foram por ele expostas ao Bispo. Em algumas<br />
Burnoud perguntava ao Bispo a respeito da conveniência:<br />
175
- de professar o voto de pobreza, além da obediência prevista<br />
na Regra;<br />
- de reservar a pastoral do Santuário aos Missionários<br />
Diocesanos;<br />
- de se ter um Religioso na qualidade de Mestre de Noviços<br />
capacitado para propiciar uma formação aos Missionários, na<br />
linha das virtudes religiosas;<br />
- de definir, na Regra, de maneira explícita, as atribuições do<br />
Superior (cf. texto in NOVEL, “Du Corps...”, p. 16-17).<br />
Em carta enviada ao Bispo, a 8 de novembro de 1852,<br />
Burnoud explanou a vontade de os pioneiros viverem a Vida<br />
Religiosa. Em resposta, o Bispo pediu mais tempo. Recém<br />
chegado <strong>à</strong> Diocese, Dom Ginoulhiac sentia a necessidade de<br />
observar e refletir. Precisava também de tempo para preparar<br />
uma resposta aos opositores da Salette, por um texto que foi<br />
publicado mais tarde, a Instrução Pastoral e Mandamento de 4<br />
de novembro de 1854.<br />
Burnoud apresentou a Dom Ginoulhiac um projeto de Regra.<br />
No entanto, o Bispo se mostrou muito reticente a respeito, pois,<br />
nem todos os Missionários concordavam com o projeto, além de<br />
ele ter sido formulado sob a influência de uma “visionária” da<br />
região, Rosalie Pradell, conhecida como “La Solitaire”. Dizia-se<br />
que a Regra era fruto de revelações supostamente feitas a ela por<br />
Nossa Senhora.<br />
Além do mais, havia tensões no grupo em virtude da<br />
presença de uma irmã de Burnoud, que considerava os outros<br />
Missionários como funcionários subalternos a ela. Por isso era<br />
apelidada de “La Grande Supérieure”. Os Missionários queriam<br />
que ela fosse afastada do grupo da Montanha.<br />
Burnoud relutou afirmando que só continuaria no Santuário<br />
se sua Regra fosse aprovada, se sua irmã permanecesse na<br />
Montanha e se Pe. Sibillat fosse transferido. Contudo, em<br />
setembro de 1855, o Bispo afastou Burnoud do Santuário e o<br />
enviou a uma Paróquia.<br />
Chavrier substituiu Burnoud como Superior. Seu mandato,<br />
176
porém, durou apenas seis meses. Queria que o “Corpo de<br />
Missionários” se tornasse uma Congregação Religiosa com<br />
Regra diferente da atribuída a “La Solitaire”. A Regra proposta<br />
por ele provinha de outra “visionária”, Adèle Chevalier,<br />
postulante das Irmãs da Providência. Segundo essa “visionária”,<br />
a Regra lhe tinha sido revelada pela Santíssima Virgem. As Irmãs<br />
da Providência trabalharam no Santuário entre 1855 e 1872.<br />
Ao saber do caso, Dom Ginoulhiac perdeu a confiança em<br />
Chavrier também, e retardou mais ainda a organização do grupo<br />
como Comunidade Religiosa.<br />
Uma Regra não pode servir apenas para evitar problemas<br />
na comunidade. <strong>De</strong>ve, sobretudo, ser o ponto de encontro para<br />
objetivos definidos e para um espírito comum. Ora, nesse ponto,<br />
a falta de acordo entre os pioneiros, membros dessa comunidade<br />
experimental, era profunda. Havia os que desejavam concretizar<br />
um projeto comunitário mais vasto que compreenderia não<br />
somente Padres, mas também Irmãs e Irmãos dedicados ao<br />
ensino. Havia os que esperavam da parte do Bispo a aprovação<br />
de uma Regra “inspirada” que favorecesse uma novidade radical<br />
supostamente revelada.<br />
A par dessa situação confusa, a única luz surgiu de membros<br />
humildes a quem <strong>De</strong>us reservava a realização de seus desígnios:<br />
Archier e <strong>De</strong>naz. Os dois não se enganavam na percepção da<br />
vontade divina. Impregnados de bom senso, sonhavam com a<br />
Vida Religiosa, como a maior parte do grupo.<br />
A 4 de agosto de 1855, Pe. <strong>De</strong>naz se dirigiu a Dom<br />
Ginoulhiac, traçando claramente o caminho a ser seguido. O<br />
texto da carta diz:<br />
- “Chegado ao último dia de minha novena e prevendo que<br />
as ocupações de amanhã poderiam me tirar o tempo para lhe<br />
prestar conta do resultado naquilo que me compete, venho depor<br />
meus anseios aos pés de Vossa Excelência. A Vida Religiosa<br />
com os três votos, inicialmente temporários, mas, na esperança<br />
de depois desse tempo, torná-los perpétuos, intenção e tendência<br />
estas formuladas em Constituições como condição de admissão<br />
177
aos votos temporários, tal é minha opção e meu voto. Os motivos<br />
que me induzem a tanto, são:<br />
1º - Estou persuadido de que Nossa Senhora da Salette quer<br />
uma Congregação que esteja em relação com a importância e<br />
a extensão da obra cujos fundamentos Ela mesma veio lançar<br />
sobre a Montanha de La Salette, a 19 de setembro de 1846. E,<br />
por conseguinte, Ela quer uma Congregação que tenha em si<br />
mesma as condições de vida e duração que possam estendê-la<br />
para além dos limites da Diocese que é seu berço e centro; que<br />
possa ter sucursais em todos os lugares, uma vez que o Santuário<br />
principal é reproduzido em todas as partes por capelas locais<br />
erigidas sob o mesmo nome e em memória da mesma Aparição.<br />
2º - A Congregação de Nossa Senhora da Salette não<br />
pode oferecer essas condições de duração e de extensão sem o<br />
fundamento dos votos de obediência, de pobreza, etc.<br />
3º - O objetivo da divina Mensageira deve ser o de contrapor<br />
aos males da sociedade um remédio específico. Ora, salvo<br />
engano, os males que arruínam a sociedade são: a cupidês, a<br />
sensualidade, a impaciência em relação a toda e qualquer<br />
dominação. Os Missionários de Nossa Senhora da Salette<br />
devem, portanto, lhes contrapor o despojamento voluntário, a<br />
vida mortificada e penitente, a obediência absoluta, virtudes<br />
que não podem subsistir em sua perfeição sem os três votos de<br />
pobreza, castidade e obediência. Excelência, tais são os motivos<br />
que determinam minha opção. Os meios de subsistência dessa<br />
Congregação se encontram na própria obra. Sua Excelência<br />
pode por decisão pessoal garantir tais recursos para a duração<br />
dos votos temporários, e, com a expiração de tais votos, o<br />
Soberano Pontífice que receberá os votos perpétuos, sancionará<br />
a concessão perpétua das rendas da peregrinação e da obra. O<br />
Bispado poderá conservar a nua propriedade dos imóveis. As<br />
Religiosas de La Salette terão um só e mesmo interesse que os<br />
Missionários. A coabitação e a harmonia não poderão subsistir<br />
em outras condições. Digne-se, Excelência, acolher essa<br />
expressão simples e sincera do desejo e opiniões que ouso lhe<br />
178
fazer, Sr. Bispo, como o menor e o mais inútil, mas, um dos mais<br />
reconhecidos e dos mais submissos de seus filhos em Cristo e<br />
Maria. - Assina: Pe. <strong>De</strong>naz, Padre”.<br />
Em maio de 1856, o Bispo decidiu nomear Pe. Archier como<br />
Superior:<br />
- “Aceite a função que lhe confiamos, disse-lhe o Bispo;<br />
quanto menos de humano houver na direção, mais haverá de<br />
<strong>De</strong>us” (in JAOUEN, “Les Missionnaires...”, p. 39).<br />
A escolha de Pe. Archier como Superior não foi bem aceita.<br />
A comunidade o via como demasiadamente submisso ao Bispo.<br />
Archier pediu afastamento do cargo. Orcel, o Vigário Geral, o<br />
incentivou a permanecer na função. Humildemente, Archier se<br />
submeteu e durante vinte e dois anos, em dois períodos distintos,<br />
exerceu o cargo de Superior Geral com grande dedicação, o que<br />
permitiu o florescimento da Congregação.<br />
Pe. Archier, homem realista, humilde e tenaz, fiel <strong>à</strong> autoridade<br />
diocesana, recolheu as opiniões dos confrades em relação <strong>à</strong><br />
Regra, e as transmitiu ao Bispo. Por falta de acordo entre os<br />
membros da comunidade, o próprio Pe. Archier pediu ao Bispo<br />
que legislasse, definindo uma Regra para os Missionários. Era o<br />
caminho de superação do conflito.<br />
Pe. Orcel, Vigário Geral da Diocese, foi encarregado<br />
de redigir uma Regra provisória. O texto foi aprovado por<br />
Dom Ginoulhiac, para ser aplicado a partir de 2 de fevereiro<br />
de 1858. A Regra, outorgada pelo Bispo, se tornaria valioso<br />
instrumento para a abertura de novos horizontes para o “Corpo<br />
de Missionários Diocesanos”.<br />
A obra de organização interna do grupo passou, portanto,<br />
para as mãos de Dom Ginoulhiac, o estruturador da Congregação<br />
dos Missionários de Nossa Senhora da Salette. Dom Philibert<br />
lhes deu existência. Dom Ginoulhiac os estabeleceu como<br />
Comunidade Religiosa.<br />
Durante o retiro dos Missionários, em fevereiro de 1857, Dom<br />
Ginoulhiac lhes apresentou alguns elementos da Regra que estava<br />
sendo preparada. Em abril enviou cópia do texto ao Pe. Archier<br />
179
para que o grupo o analisasse. A reação foi negativa. O Bispo,<br />
contudo, permaneceu firme em sua decisão de resolver a questão.<br />
A 8 de novembro de 1857 Dom Ginoulhiac enviou uma carta<br />
ao Pe. Archier convocando os Missionários a que optassem, uma<br />
vez por todas, entre deixar o grupo ou emitir os votos religiosos<br />
e constituir uma Congregação de Direito Diocesano. A decisão<br />
seria formalizada a 2 de fevereiro seguinte, com a consituição da<br />
comunidade segundo o previsto na Regra outorgada. O texto da<br />
carta do Bispo é longo, claro e paternalmente exigente:<br />
- “Meu caríssimo Padre<br />
Dado que, provavelmente, não estarei em Grenoble por<br />
ocasião de vosso retiro, creio que é bom enviar-vos algumas<br />
palavras que tereis a bondade de comunicar a vossos Padres.<br />
Expressar-me-ei com simplicidade e com confiança muito<br />
paterna, pois, se todos os Padres de minha Diocese me são<br />
singularmente amados, os Padres de Nossa Senhora da Salette<br />
têm um dos primeiros lugares em meu coração. Nem sempre<br />
se compreendeu isso, e talvez não se compreenda totalmente<br />
ainda. Convencer-se-ão, enfim plenamente, menos por minhas<br />
palavras do que por minha conduta. É este sentimento que ditou<br />
minha proposição que foi aceita ao menos pela maioria, e que se<br />
tornou uma disposição dos estatutos que vos entreguei, a saber,<br />
que a obra dos Missionários de Grenoble estava unida <strong>à</strong> obra do<br />
Santuário. (...) <strong>De</strong>ssa forma, peço a todos os vossos Padres que<br />
tenham como irrevogáveis as medidas tomadas em conseqüência.<br />
Faço muita questão de que se chegue a emitir votos temporários.<br />
A emissão de votos, mesmo que seja por um ano, constitui<br />
definitivamente a comunidade. Esses votos deverão ser emitidos<br />
o mais tardar a 2 de fevereiro. (...) No mesmo dia da emissão<br />
dos votos, a comunidade deverá ser constituída conforme as<br />
prescrições da Regra. (...) Tudo me parece compreendido, meu<br />
caro Padre, naquilo que acabo de dizer. Vós não ignorais que há<br />
comunidades religiosas que se sentiriam felizes em assumir a<br />
obra de La Salette. Não creio que esta seja a vontade de <strong>De</strong>us, que<br />
seja a intenção de Maria. Nem é aquilo que eu quero. É preciso<br />
180
que a obra de La Salette brote das entranhas da Diocese e do Clero<br />
de Grenoble. (...) Conheço todos os vossos Padres, e amo-os a<br />
todos. Posso não aprovar as idéias particulares de alguns, apesar<br />
disso gozam de minha inteira confiança. Reconheço neles, com<br />
certeza, um espírito bom demais para não compreenderem, para<br />
não quererem que a obra de La Salette seja dirigida, governada<br />
pela autoridade estabelecida nessa Igreja. (...) Estou convosco e<br />
com todos os vossos Padres e convosco a todos abençôo. Bispo<br />
de Grenoble” (in NOVEL, “<strong>De</strong>s quatre... II – Edification de La<br />
Communauté”, p. 7-8).<br />
A 27 de janeiro de 1858, os Missionários se reuniram para o<br />
retiro. Orcel lhes fez uma consideração sobre os votos. Os votos<br />
foram assumidos para o período do ano de Noviciado, e ao final<br />
desse tempo, emitidos no sentido pleno da Regra.<br />
A 2 de fevereiro de 1858, seis Missionários emitiram, entre<br />
as mãos de Dom Ginoulhiac, os votos religiosos para o tempo de<br />
Noviciado: Archier, Berlioz, Albertin, Buisson, Petit e Bossan.<br />
Chavrier e Sibillat não deram esse passo. Pe. <strong>De</strong>naz não chegou a<br />
ver a realização de seu sonho, pois, havia morrido em abril de 1857.<br />
O Registro de Profissões Religiosas é sóbrio no relato do evento:<br />
- “No dia 2 de fevereiro de 1858, festa da Purificação da Santa<br />
Virgem e da Apresentação de Nosso Senhor no Templo, os Padres<br />
Archier, Berlioz, Albertin, Bossan, Buisson e Petit, Missionários<br />
de Nossa Senhora da Salette, abaixo assinados, apresentaram-se no<br />
Palácio Episcopal do Bispo de Grenoble, <strong>à</strong> uma hora da tarde. Foram<br />
introduzidos na capela particular de Sua Excelência, onde, após a<br />
oração do VENI CREATOR e uma alocução tão tocante quanto<br />
paterna de seu venerável Bispo, na presença dos Monsenhores<br />
Orcel, Chambon e Rousselot, Vigários Gerais, emitiram entre as<br />
mãos de Sua Excelência, por um ano, os três votos ordinários de<br />
religião, conforme a Regra dada e definitivamente promulgada por<br />
Sua Excelência. <strong>De</strong>pois da cerimônia, Sua Excelência se dignou<br />
receber em seu gabinete particular os mesmos Missionários,<br />
para proceder <strong>à</strong> organização da comunidade e <strong>à</strong> nomeação dos<br />
dignitários. <strong>De</strong>pois de ter solicitado, pelo parecer em escrutínio<br />
181
secreto, os votos dos membros abaixo assinados, Sua Excelência<br />
nomeou por um ano o Revdº. Pe. Archier como Superior da citada<br />
comunidade. <strong>De</strong>pois de dois outros escrutínios sucessivos, foram<br />
nomeados por Sua Excelência o Revdº Pe. Berlioz assistente, e o<br />
Revdº Pe. Buisson ecônomo para o presente ano (in JAOUEN,<br />
“Les Missionnaires...”, p.40-41)<br />
Pe. Jaouen comenta:<br />
- “Página modesta, mas, decisiva para o futuro. (...)<br />
Estariam resolvidas todas as dificuldades, amainadas todas as<br />
divergências? A Regra outorgada pelo Bispado a esses neófitos<br />
da Vida Religiosa é sumária: a respeito do objetivo e do espírito<br />
do Instituto principalmente, o campo permanece aberto a<br />
discussões. Durante alguns anos ainda, a pequena comunidade<br />
viverá dividida entre duas tendências: uns contemplam a Virgem<br />
em lágrimas, solitária na presença de <strong>De</strong>us, e gostariam de unir<br />
<strong>à</strong> austeridade da Trapa a salmódia de todas as horas canônicas;<br />
outros escutam a Virgem missionária e, no pretexto de dispor as<br />
próprias forças em busca das almas, se acomodariam numa forma<br />
de vida bastante ampla. As duas teses não são incompatíveis; a<br />
experiência mostrará mais tarde o que se podia reter de uma e<br />
de outra para fundi-las num mesmo espírito. Na espera disso,<br />
elas se confrontam em mil detalhes da vida cotidiana e, como<br />
acontece quando o amor próprio se infiltra, os homens se ferem<br />
através de suas idéias. É tempo para um sábio se levantar e fazer<br />
a experiência da caminhada (JAOUEN, “Les Missionnaires...”,<br />
p. 41-42). O sábio, na verdade, já estava entre eles, sem que o<br />
percebessem: Pe. Sylvain Marie Giraud.<br />
Com a profissão religiosa, os Missionários de Nossa Senhora<br />
da Salette passaram definitivamente da situação canônica de<br />
“Corpo de Missionários Diocesanos” para a de Congregação<br />
Religiosa de Direito Diocesano em 1858, e de Direito Pontifício<br />
em 1879. Para a história da Congregação, posterior a 1858,<br />
veja-se “Uma pesquisa nas origens e na evolução do carisma<br />
dos Missionários de Nossa Senhora da Salette”, de Pe. Eugène<br />
G. Barrette MS.<br />
182
Inspirada no Fato e Mensagem da Aparição da Bela Senhora,<br />
a Congregação em sua configuração atual, é, pois, o resultado da<br />
evolução interna dos pioneiros e de seus sucessores, a quem,<br />
desde as origens, Dom Philibert denominou “Missionários de<br />
Nossa Senhora da Salette”, evolução vivida com o impulso<br />
inicial dos Bispos de Grenoble: Dom Philibert, o fundador<br />
(1826-1852), Dom Ginouilhac, o legislador (1853-1870), e Dom<br />
Fava, o animador missionário (1875-1899).<br />
5 - O Carisma<br />
Segundo a teologia paulina, são muitos os “carismas” ou<br />
“dons de amor”, na etimologia da palavra, que <strong>De</strong>us, em sua<br />
bondosa e infinita liberdade, concede a pessoas ou instituições<br />
para o bem de todo o seu Povo.<br />
O carisma da Reconciliação é objeto de especial consideração<br />
por parte de Paulo, num contexto eclesial dele necessitado. Disso<br />
dá testemunho na 2ª Carta aos Coríntios 5, 17-21, e em outros<br />
textos.<br />
O carisma concedido a uma instituição eclesial é o benévolo<br />
e divino sopro de vida que a anima e dá sentido <strong>à</strong> missão para<br />
a qual é convocada. Vocação, carisma, consagração e missão<br />
formam o conjunto que dá especificidade a uma Congregação<br />
fundada para dar testemunho do amor de <strong>De</strong>us para com seu<br />
Povo.<br />
O evento extraordinário de 19 de setembro de 1846 é o<br />
núcleo inspirador da intuição espiritual e pastoral de Dom<br />
Philibert de Bruillard, ao decidir a construção de um Santuário<br />
e a criação dos Missionários de Nossa Senhora da Salette. É<br />
idêntica a corrente vital que corre nas veias dos dois eventos.<br />
As raízes mais profundas e fortes do Carisma e da Missão<br />
da Congregação dos Missionários de Nossa Senhora da Salette<br />
se encontram, pois, no solo fértil do Fato e da Mensagem da<br />
Aparição da Bela Senhora, reflexo da Mensagem do Evangelho<br />
e fonte de sua identidade fundacional.<br />
183
A Congregação recebeu esse dom amoroso do Pai por meio<br />
da Maria. Em Salette, Ela acena para o mistério da Reconciliação<br />
que <strong>De</strong>us realiza com seu Povo disperso, convocado <strong>à</strong> conversão.<br />
A Reconciliação, categoria teológica e pastoral, esquecida<br />
pela prática eclesial desde a Idade Média, foi reavivada a partir<br />
do extraordinário movimento de peregrinações e conversões<br />
que a Aparição em La Salette propiciou. Esse mistério divino foi<br />
decisivo para as subseqüentes atitudes do Bispo de Grenoble. O<br />
carisma da Reconciliação se tornou o cerne vital da Congregação<br />
Saletina.<br />
Em sua imensa riqueza sobrenatural, a Aparição desde<br />
o início foi lida como renovada manifestação da infinita<br />
misericórdia de <strong>De</strong>us através da compaixão da Virgem Mãe<br />
Maria face ao pecado e sofrimento de seu Povo. Misericórdia e<br />
compaixão que clamam pela conversão do Povo, e esperam que<br />
ele se deixe reconciliar com <strong>De</strong>us.<br />
As atitudes de Maria durante a Aparição, bem como a<br />
sua evangélica Mensagem, são reveladoras desse mistério<br />
de misericórdia e compaixão: seu materno chamado para os<br />
filhos estarem junto <strong>à</strong> Mãe, a compassiva solidariedade face<br />
aos sofrimentos do povo, a convocação para uma confiante<br />
submissão ao Filho Jesus, a denúncia dos males praticados, a<br />
certeza da misteriosa e amorosa presença de <strong>De</strong>us junto a seus<br />
filhos, o anúncio de nova realidade humana construida pela<br />
conversão, o envio para a transmissão da “grande nova”.<br />
Maria, em Salette, apresenta a seu Povo um vasto programa<br />
de vida cristã, com acento na conversão-reconciliação. É o<br />
programa do próprio Cristo em seu Evangelho. Esse núcleo<br />
indicativo da vida nova que <strong>De</strong>us deseja promover e que Maria<br />
vem relembrar a seu Povo foi o impulso para as multidões se<br />
dirigirem ao local da Aparição e ao confessionário do perdão.<br />
A impressionante onda de conversões, como imediata reação<br />
do Povo de <strong>De</strong>us ao evento da Aparição, levou o Pároco de La<br />
Salette e seu Vigário Paroquial a perceber que a Reconciliação<br />
era a caraterística teológica e pastoral essencial do evento, e a<br />
184
instituir, logo após, em 1848, a Confraria de Nossa Senhora da<br />
Salette que invoca Maria como Reconciliadora dos pecadores.<br />
Essa é a graça de que fala Dom Ginoulhiac, em sua Instrução<br />
Pastoral e Mandamento de 1854, ao afirmar:<br />
- “A Salette, é preciso não esquecer, não é uma nova doutrina,<br />
ela é uma nova graça!” (in BASSETTE, p. 373).<br />
A graça da Reconciliação. Graça concedida a todo o Povo de<br />
<strong>De</strong>us. A “grande nova” de Maria em sua Aparição em La Salette.<br />
O carisma dos Missionários ali estava embutido. Dom<br />
Philibert o intuiu, implicitamente o assumiu e aplicou a seu<br />
Corpo de Missionários Diocesanos. O texto do Mandamento<br />
episcopal de 1º de maio de 1852 que os constituiu, é o indicativo.<br />
Lendo o evento da Salette com olhar de Pastor, e<br />
impressionado com as numerosas peregrinações e confissões<br />
que transformavam a vida do povo da região, o Bispo decidiu<br />
anunciar a construção do Santuário na Montanha bendita, para<br />
acolher o povo em busca de <strong>De</strong>us por meio da Mãe da Compaixão<br />
reconciliadora. <strong>De</strong>cidiu igualmente anunciar, de maneira solene,<br />
algo mais importante ainda conforme dizia: a constituição dos<br />
Ministros do Santuário, denominados Missionários de Nossa<br />
Senhora da Salette.<br />
Na mente do Bispo, a origem e existência do Santuário e dos<br />
Missionários estão intimamente ligadas ao Fato da Aparição:<br />
- “Sua criação e sua existência (dos Missionários) serão,<br />
como o próprio Santuário, um monumento eterno, uma lembrança<br />
perpétua da Aparição misericordiosa de Maria. (...) Essas duas<br />
obras só se tornaram possíveis em virtude da Aparição, e para<br />
sempre perpetuarão a lembrança da Aparição” (in BASSETTE,<br />
Mandamento de 1º de maio de 1852, p. 275-280).<br />
A ampla finalidade do Instituto Missionário é declarada no<br />
mesmo Mandamento:<br />
- “São ministros da religião destinados a servi-lo (o Santuário),<br />
a acolher os piedosos peregrinos, a anunciar-lhes a palavra de<br />
<strong>De</strong>us, a exercer para com eles o ministério da reconciliação,<br />
a lhes administrar o augusto sacramento dos nossos altares,<br />
185
e a ser para todos os fiéis os dispensadores dos mistérios de<br />
<strong>De</strong>us (1 Cor 4,1) e dos tesouros espirituais da Igreja(...) Esses<br />
Padres, escolhidos entre muitos outros, para serem modelo e<br />
auxiliares do Clero das vilas e campanhas (...) estarão sediados<br />
na montanha durante a estação de peregrinações, e durante o<br />
inverno evangelizarão as diferentes paróquias da Diocese...”<br />
(id. ib).<br />
As sementes da vida apostólica foram semeadas juntamente<br />
com as da vida comunitária, todas vivificadas pela graça da<br />
Aparição da Mãe da Reconciliação, como A intitulava Santo<br />
Anselmo de Cantuária. Aberto pelo Bispo, o panorama de vida<br />
espiritual e de ação pastoral a ser vivido pelos Missionários, é<br />
extenso.<br />
Três fios tecem a existência dos Missionários de Nossa<br />
Senhora da Salette:<br />
- Maria, Reconciliação e Missão.<br />
Suas grandes linhas carismáticas são:<br />
- espiritualidade mariana, reconciliadora e missionária.<br />
- Espiritualidade mariana: os Missionários serão uma<br />
“perpétua lembrança da Aparição misericordiosa de Maria”.<br />
Em sua decisão, o Bispo criou um nexo inquebrantável entre<br />
o sentido da equipe e o evento da Salette. Estabeleceu a figura<br />
de testemunhas da Aparição, de anunciadores da Mensagem<br />
da Bela Senhora, de pessoas impregnadas de espiritualidade<br />
mariana e reconciliadora.<br />
Em sua profunda devoção a Maria, Dom Philibert<br />
encontrou na Aparição o caminho para repassar a caraterística<br />
do espírito marial <strong>à</strong> instituição missionária que estava criando.<br />
É uma caraterística essencial da Instituição. Trata-se de uma<br />
comunidade missionária mariana.<br />
Maria é a primeira Missionária ao anunciar a Elisabete a<br />
chegada do Messias Salvador. Ela evangeliza ao solicitar aos<br />
serventes das Bodas de Caná que fizessem tudo o que seu Filho<br />
lhes diria. Ela é a Discípula-ouvinte da Palavra de seu Filho,<br />
na companhia dos discípulos de Jesus que, com Ele, descem<br />
186
a Cafarnaum, depois das Bodas de Caná. Ela é a Mãe da<br />
Comunidade-Igreja dos discípulos que Jesus, no alto da Cruz,<br />
lhe confia como filhos.<br />
- Espiritualidade reconciliadora: o mistério e o ministério<br />
da Reconciliação é outra caraterística essencial, assinalada<br />
no Mandamento. Em Salette, Maria retoma a “Grande Nova<br />
da Reconciliação” anunciada por seu Filho, e pede que seja<br />
transmitida a todo seu Povo. É o selo impresso por Dom Philibert<br />
sobre a face da comunidade por ele fundada.<br />
O serviço permanente ao Santuário confiado aos Missionários<br />
exigia a vivência do mistério da Reconciliação pelo exercício<br />
intenso e generoso do ministério da Reconciliação, entre outras<br />
atividades pastorais. Dom Philibert tinha consciência disso.<br />
A Reconciliação se tornou o núcleo do carisma da<br />
instituição missionária e mariana saletina. Nisso os Missionários<br />
paulatinamente concentraram sua espiritualidade.<br />
Se a dimensão mariana desse carisma sempre foi perceptível,<br />
a dimensão reconciliadora como hoje é entendida, percorreu um<br />
caminho mais longo para se tornar evidente. Estava implícita,<br />
porém, na prática pastoral dos Missionários.<br />
Na época, a Reconciliação era entendida de maneira mais<br />
restrita, como Sacramento da Penitência ou “Confissão”,<br />
caminho de conversão do pecador, a ser vivenciada na prática<br />
da oração, da reparação e da expiação. Na época, “expiação”<br />
e “reparação” eram parte da concepção teológica e espiritual<br />
rigorista da vida cristã, concepção que via em <strong>De</strong>us a figura de<br />
uma “Divindade irada” a ser “aplacada” para evitar “castigos”<br />
por causa do pecado humano. É a concepção de muitos que ainda<br />
lêem com esse olhar as palavras de Maria em Salette quando fala<br />
do “braço de meu Filho”.<br />
- Espiritualidade missionária, assumida e vivida na missão<br />
do grupo.<br />
Essas dimensões do carisma foram expressas de maneira<br />
variada nas sucessivas Regras de Vida estabelecidas pela<br />
Congregação.<br />
187
O Mandamento de 1º de maio de 1852 indicava as grandes<br />
linhas para a espiritualidade e a vida pastoral dos Missionarios.<br />
<strong>De</strong>pois do Mandamento, o Bispo lhes deu a Regra dos<br />
Cartuxos de Lyon. A Regra declarava Nossa Senhora da Salette<br />
como Padroeira da comunidade. Previa o voto de obediência<br />
ao Bispo, por três anos seguidos de votos perpétuos. Indicava<br />
uma série de atividades pastorais. <strong>De</strong>finia normas de governo.<br />
Normatizava a admissão de candidatos ao Noviciado. <strong>De</strong>finia<br />
certos exercícios espirituais. <strong>De</strong>terminava normas para a<br />
demissão de membros da comunidade. Embora os membros<br />
não fizessem voto de pobreza, eram incitados a viverem na<br />
simplicidade e pobreza convenientes a pessoas apostólicas. Pelos<br />
votos perpétuos eles se tornavam irrevogavelmente membros da<br />
sociedade de Missionários que vivem em comunidade.<br />
A primeira Regra, porém, logo demonstrou sua insuficiência.<br />
O Mandamento de Dom Philibert, embora mais breve, é mais rico<br />
na perspectiva teológica para a vida de uma comunidade apostólica.<br />
A segunda Regra, de 2 de fevereiro de 1858, aplicada por<br />
Dom Ginoulhiac, continha mais elementos para a estruturação<br />
da vida comunitária religiosa. Era provisória também. Precisava<br />
de maiores explicitações.<br />
Por ela Dom Ginoulhiac manifesta que “está consciente<br />
quanto <strong>à</strong> intenção de seu predecessor e quer que ela seja levada<br />
<strong>à</strong> frente sem alteração” (ROGGIO, p. 13).<br />
Nela constam os elementos básicos para a organização interna<br />
da Comunidade, para admissão e formação dos candidatos, para<br />
a profissão e vivência dos três votos, para a vida de oração,<br />
para a função de Superior, do Assistente e do Ecônomo. Vinha<br />
acompanhada por um “Costumeiro”, um conjunto de normas<br />
para a vida prática, diária, semanal e mensal da Comunidade.<br />
Além desses elementos, a grande novidade da Regra de<br />
1858 está na descrição do “espírito” próprio dos Missionários de<br />
Nossa Senhora da Salette. Contém elementos valiosos para sua<br />
espiritualidade e carisma. Tais elementos foram mantidos desde<br />
então nos textos constitucionais da Congregação. O texto afirma:<br />
188
- “O espírito próprio dessa Comunidade, tirado das palavras<br />
e atitudes da Santa Virgem, aparecendo sobre essa montanha<br />
venerada, deve ser um espírito de oração, de zelo e de expiação”<br />
(in “Règles provisoires pour les Missionnaires Diocesains de<br />
Notre Dame de La Salette, 2 février 1858).<br />
Segundo o texto da Regra, as três dimensões desse “espírito”<br />
– oração, zelo e expiação - acenam para a conversão dos<br />
pecadores, para a reconciliação, portanto.<br />
Um dado novo é assumido pela Regra ao falar do “zelo” no<br />
combate “aos males presentes na sociedade cristã”, segundo o<br />
pensamento de Pe. <strong>De</strong>naz: o ter, o poder e o prazer.<br />
Essa regra foi complementada a 8 de fevereiro de 1862<br />
para regulamentar a admissão, formação e missão de candidatos<br />
<strong>à</strong> categoria de Irmãos dentro da Congregação que até então<br />
era exclusivamente sacerdotal. No texto complementar, os<br />
candidatos a Irmão deviam ser formados no mesmo “espírito de<br />
caridade, de oração, de zelo e de expiação”.<br />
Mais tarde, num projeto de Regra que Pe. Giraud, a<br />
título pessoal, elaborou em 1872, e que serviu de base para<br />
discussões no Capítulo Geral de 1876, se afirma que o espírito<br />
da Congregação “é principalmente um espírito de expiação em<br />
favor dos pobres pecadores”.<br />
O Capítulo Geral de 1876 pôs mais uma vez a Congregação<br />
em relação direta com a Aparição da Salette. Apostólica em sua<br />
finalidade, a Congregação se doa, em suas atividades, <strong>à</strong> conversão<br />
dos pecadores, combatendo, em sua missão, as desordens, objeto<br />
das queixas de Maria. Nossa Senhora, sentada e chorando,<br />
inspira aos Missionários um sentimento inconsolável por causa<br />
das ofensas a <strong>De</strong>us, e viva compaixão pelos pobres pecadores.<br />
Nossa Senhora, de pé e falando com os pastores, encoraja os<br />
Missionários a doarem-se com zelo apostólico por causa dos<br />
pecados e desordens na humanidade. Esse espírito fará com que<br />
os Missionários da Salette se entreguem a obras de expiação e<br />
reparação, em vista da conversão dos pecadores, da renovação<br />
da terra e do combate aos males pesentes entre os homens.<br />
189
As Constituições adotadas em 1880 declaram:<br />
- “O espírito da Congregação é apostólico em seu objetivo.<br />
Os Missionários se aplicarão, sobretudo, ao combate contra os<br />
grandes males da época; a fazer conhecer Jesus Cristo Crucificado<br />
e a Mãe das Dores; buscarão na união com Eles, pela penitência<br />
e pela oração, o espírito de reparação e a força para levar adiante<br />
os estudos e trabalhos do ministério”.<br />
Pequenas variantes de caráter literário aparecem nos textos<br />
constitucionais posteriormente assumidos pela Congregação.<br />
O conteúdo, porém, permaneceu idêntico, no contexto da<br />
espiritualidade e missão da Reconciliação.<br />
O carisma da Reconciliação paulatinamente percorreu seu<br />
caminho em busca de maior compreensão. Nesse caminho<br />
sobreveio o influxo teológico, bíblico e pastoral do Concílio<br />
Vaticano II que permitiu aos Missionários de Nossa Senhora da<br />
Salette aprofundar o sentido da ação reconciliadora de Cristo<br />
por eles assumida como carisma congregacional. A pesquisa nas<br />
origens da Congregação e nos documentos conciliares permitiu<br />
melhor compreensão da Igreja e do Mundo. Os documentos<br />
Lumen Gentium, Gaudium et Spes, <strong>De</strong>i Verbum, e Ad Gentes<br />
exerceram forte impacto. O sentido da Reconciliação dali surgiu<br />
em toda sua grandeza e complexidade.<br />
A Regra de Vida atual, aprovada pelo Capítulo Geral de 1982,<br />
no nº 4 da 1ª Parte, assim expressa o espírito da Congregação:<br />
- “Animados pelo Espírito Santo que levou o Filho de <strong>De</strong>us<br />
a viver nossa condição humana e a morrer sobre a cruz para<br />
reconciliar o mundo com seu Pai, nós, <strong>à</strong> luz da Aparição de<br />
Nossa Senhora da Salette, queremos ser servidores devotados<br />
do Cristo e da Igreja em vista do cumprimento do mistério da<br />
Reconciliação”.<br />
Contemporaneamente <strong>à</strong> elaboração da atual Regra de Vida,<br />
realizavam-se na América Latina as Conferências Episcopais<br />
de Medellin, em 1968, e de Puebla, em 1979. A Teologia da<br />
Libertação e a Pastoral Latinoamericana das Comunidades de<br />
Base seguiam seu curso na época.<br />
190
Sob a influência desses eventos eclesiais, a Província dos<br />
Missionários de Nossa Senhora da Salette, no Brasil, intuiu<br />
maior extensão no conceito de Reconciliação ao entendê-la na<br />
dimensão libertadora.<br />
A Reconciliação Libertadora leva em conta as fraturas<br />
pessoais tanto quanto as familiares e sociais para que pessoas<br />
e comunidades humanas sejam libertadas de toda divisão,<br />
injustiça e opressão. Onde fraturas humanas se apresentam, a<br />
Reconciliação se faz exigência do Reino de <strong>De</strong>us. O Êxodo e<br />
as Cartas de Paulo aos Coríntios e Efésios conduzem a essa<br />
compreensão da Reconciliação.<br />
A expressão “Reconciliação Libertadora” teve uso corrente<br />
como princípio de ação pastoral. “Reconciliados para Reconciliar”<br />
é um princípio de vivência espiritual. Quer significar que os<br />
Missionários são endereço do Mistério da Reconciliação ao<br />
mesmo tempo em que atuam no Ministério da Reconciliação.<br />
Essa visão do carisma da Reconciliação encontrou eco no<br />
texto da Regra de Vida em uso atualmente pela Congregação.<br />
Cristo, Maria, Igreja, Salette, Congregação e Mundo<br />
implicam-se mutuamente no Mistério da Reconciliação. Esse<br />
mistério ultrapassa as grades canônicas do confessionário. Exige<br />
um Ministério de Reconciliação de que fala Paulo em 2 Cor 5,<br />
17-21, e que vai além da esfera litúrgico-sacramental.<br />
A vida humana com seus conflitos e o mundo com seus<br />
dramas precisam de “embaixadores” da Reconciliação que, em<br />
nome de Cristo, clamem pela palavra e pelo testemunho:<br />
- “<strong>De</strong>ixai-vos reconciliar com <strong>De</strong>us!”<br />
Esse é o “dom-carisma” que o Pai, pelo Cristo, confiou <strong>à</strong> Igreja e<br />
por ela <strong>à</strong> Congregação dos Missionários de Nossa Senhora da Salette.<br />
6 - A MISSÃO<br />
O Mandamento de 1º de maio de 1852 delegou aos<br />
Missionários a tarefa de servir os peregrinos junto ao Santuário,<br />
como pregadores da Palavra do Senhor, anunciadores da<br />
191
Mensagem da Bela Senhora, ministros da Reconciliação e da<br />
Eucaristia, dispensadores fiéis dos mistérios de <strong>De</strong>us, modelos<br />
do Clero e seus auxiliares pela pregação de missões e retiros<br />
nas Paróquias da Igreja Local. Santuário e Missionários nascem<br />
juntos. São irmãos gêmeos para sempre. O Santuário é o campo<br />
primeiro da ação pastoral dos Missionários. O programa que o<br />
Bispo lhes deixou, é de largo espectro.<br />
O Santuário deveria ser digno da Rainha do Céu como<br />
testemunho de gratidão para com Ela, e ser digno da Diocese de<br />
Grenoble. Contudo, ele não seria construido para uma localidade<br />
apenas, mas, para o universo inteiro.<br />
A missão, confiada pelo Bispo <strong>à</strong> equipe, requeria a pobreza<br />
de vida do homem apostólico:<br />
- “Segundo sua intenção, os missionários deviam ser homens<br />
capazes de abraçar a vida pobre dos apóstolos e de pessoas<br />
convictas de que a graça da Aparição deveria dar a possibilidade<br />
de enfrentar o transcorrer do tempo e de estar próxima, e de se<br />
aproximar também das futuras gerações” (ROGGIO, p. 7).<br />
Inspirado na Aparição, Pe. <strong>De</strong>naz, um dos Pioneiros, em<br />
carta a Dom Ginoulhiac a 4 de agosto de 1855, assinalou mais<br />
um aspecto para a missão pastoral da equipe:<br />
- “O objetivo da divina Mensageira deve ser o de opor aos<br />
males da sociedade um remédio específico” (JAOUEN, “Les<br />
Missionnaires...”, 38): cupidês, sensualidade e dominação.<br />
A intuição de <strong>De</strong>naz abriu mais uma porta pastoral, para<br />
uma pastoral sem fronteiras. Os Missionários eram convidados<br />
a sair por ela e se dirigir a um mundo fraturado pelo pecado e<br />
necessitado de conversão na Reconciliação. Era peciso descer<br />
da montanha da contemplação e se confrontar com os males<br />
de todo tipo que inundam a baixada humana. Por esse vasto<br />
Ministério de Reconciliação se daria sequência ao cumprimento<br />
do Mistério de Reconciliação, na ótica de São Paulo.<br />
- “É um corpo de missionários diocesanos que desde já<br />
instituimos”, afirmou o Bispo. Embora assinalasse que a Bela<br />
Senhora tinha aparecido para o mundo, e não só para a Diocese<br />
192
de Grenoble, o Bispo visava, em primeiro lugar, as necessidades<br />
de seu rebanho diocesano. A dimensão universal da equipe<br />
apareceria depois, na medida em que as circunstâncias eclesiais<br />
concretas exigiriam e possibilitariam a ampliação do projeto<br />
saletino.<br />
Tornando-se Congregação Religiosa de Direito Pontifício,<br />
o grupo conservou sempre a orientação missionária impressa<br />
desde as origens, ultrapassando os limites da Diocese de<br />
Grenoble para exercer a missão na amplidão universal.<br />
A Regra de 1852 assinalava como objetivo primeiro e principal<br />
dos Missionários as missões e retiros, o serviço ao Santuário, a<br />
direção de Seminários Menores, e o ensino <strong>à</strong> juventude.<br />
A Regra de 1858 determinava mais uma vez o serviço ao<br />
Santuário, a evangelização na Diocese de Grenoble, e a missão<br />
em outros locais, conforme as indicações da Providência.<br />
Para a Regra de 1876, a missão da Congregação é a conversão<br />
dos pecadores, o serviço <strong>à</strong> peregrinação da Santa Montanha e<br />
outros Santuários menores dedicados a Nossa Senhora da Salette,<br />
os retiros e as missões paroquiais quando seriam combatidos os<br />
males nelas existentes. A abertura de uma Escola Apostólica na<br />
Diocese de Genoble também se tornou necessária.<br />
O encargo direto de Paróquias foi assumido, bem como a<br />
missão “ad gentes” na Noruega, em 1879, e em outros países, a<br />
seguir.<br />
Essas indicações para a missão da Congregação se mantiveram<br />
ao longo dos tempos, com variações literárias apenas.<br />
No nº 23 da atual Regra de Vida da Congregação, aprovada<br />
pelo Capítulo Geral de 1982, se diz:<br />
- “Inspirando-nos na Mensagem de Nossa Senhora da<br />
Salette, empenhamos nossos esforços:<br />
- na reconciliação dos pecadores e na libertação de todos os<br />
homens na submissão <strong>à</strong> vontade do Pai;<br />
- no despertar e no aprofundamento da fé no Povo de <strong>De</strong>us,<br />
para que todas as realidades humanas sejam iluminadas pela luz<br />
do Evangelho;<br />
193
- no anúncio da Boa Nova onde ela não é conhecida ainda;<br />
- na mútua compreensão e aproximação das diferentes<br />
religiões, na caridade e na verdade;<br />
- na luta contra os males que, hoje, comprometem o desígnio<br />
salvífico de <strong>De</strong>us e a dignidade da pessoa humana.<br />
Nesses diferentes engajamentos apostólicos, destacamos o<br />
incomparável papel que Maria teve na história da salvação, e<br />
que, hoje ainda, é o seu na vida da Igreja”.<br />
Nesse caminho congregacional, iluminado pelo Espírito<br />
de Cristo e pelo testemunho da Virgem Maria, as Irmãs e a<br />
Arquiconfraria se unem aos Missionários de Nossa Senhora<br />
da Salette, na realização da missão que brota do Evangelho da<br />
Reconciliação e da Mensagem da Bela Senhora. Muitos Leigos<br />
Saletinos também se associam, hoje, a esse projeto de vida<br />
inspirado pela Mãe da Reconciliação:<br />
“Pois bem, meus filhos, transmitam isso a todo o meu Povo!”<br />
194
APÊNDICE<br />
CAPÍTULO I<br />
O PERCURSO DE VIDA DOS VIDENTES<br />
A missão dos dois pastores, como privilegiados videntes<br />
da Aparição da Bela Senhora, concluiu com a publicação do<br />
Mandamento Doutrinal de Dom Philibert de Bruillard, a 19<br />
de setembro de 1851. Começava, então, a missão da Igreja,<br />
na expresão de Dom Ginoulhiac em sua Instrução Pastoral<br />
e Mandamento de 4 de novembro de 1854, ao confirmar<br />
plenamente a decisão de Dom Philibert.<br />
No II parágrafo da Instrução Pastoral e Mandamento, Dom<br />
Ginoulhiac, fazendo a distinção entre o Fato da Salette e a vida<br />
dos videntes, afirmou:<br />
- “Se o caráter moral dos dois pastores, tal como era a 19 de<br />
setembro de 1846, pouco importa <strong>à</strong> realidade do Fato da Salette,<br />
o que eles se tornaram depois importa muito menos ainda” (in<br />
BASSETTE, p. 355).<br />
Uma vez reconhecida a autenticidade da Aparição por parte<br />
da Igreja, a missão dos videntes se tornou responsabilidade da<br />
própria Igreja.<br />
Importa saber, no entanto, como os videntes conviveram<br />
com as seqüelas do evento. Conhecer a vida de Maximino e<br />
de Melânia posteriormente <strong>à</strong> Aparição é, sem dúvida, razão de<br />
surpresa e admiração.<br />
A partir do final de 1850, ao deixarem o Colégio de Corps, os<br />
videntes seguiram o próprio caminho. Distantes, a vida de ambos<br />
se tornou errante, transumante, como a permanente transumância<br />
dos rebanhos que vagueiam pelas montanhas em busca de<br />
pastagem. Na inconstância permanente de sua vida, sem dúvida<br />
procuravam a paz amorosa que haviam vivido, por uns momentos,<br />
na presença da Bela Senhora, na solidão da Montanha da Salette.<br />
195
É de se perguntar por que Maximino e Melânia não foram<br />
canonizados ainda. Considerado seu percurso de vida, pode-se<br />
dizer que, se não foram postos ainda sobre os altares, certamente<br />
ambos vivem entre os braços eternamente carinhosos da Bela<br />
Senhora, no profundo do coração de <strong>De</strong>us.<br />
A “palavra pessoal”, recebida por eles durante a Aparição,<br />
foi firmemente guardada em seu coração, por toda a vida, apesar<br />
das tribulações vividas. A ternura materna da Bela Senhora ficou<br />
eternamente impressa em seu viver.<br />
A “mensagem pública” da Bela Senhora para o bem do Povo<br />
de <strong>De</strong>us, porém, foi comunicada <strong>à</strong> Igreja, por ela foi aceita e a<br />
ela pertence. É mensagem de conversão, de reconciliação, de<br />
vida nova em Cristo. É mensagem que retoma o que está no<br />
coração do Evangelho do Filho da Bela Senhora. Seu anúncio é<br />
tarefa da Igreja, a missionária do Senhor.<br />
196<br />
1 - MAXIMINO: inconstância de vida na fidelidade <strong>à</strong><br />
Bela Senhora<br />
Maximino, apesar de sua pouca eficiência, punha-se a<br />
serviço do “bon papa Pe. Mélin”. O Pároco de Corps sempre<br />
teve grande carinho por ele e por Melânia.<br />
Padre Mélin incentivou e ajudou Maximino quando, depois<br />
do Incidente de Ars, o menino entrou no Seminário de Rondeau,<br />
perto de Grenoble. Para tanto, a permissão do tio Templier havia<br />
sido solicitada por sugestão de Dom Philibert, a 1º de outubro<br />
de 1850.<br />
Como seminarista, o garoto gostava de passar férias em<br />
Corps onde era bem cuidado pelas Irmãs. Frequentemente subia<br />
ao alto do Monte da Aparição, em companhia de Pe. Mélin e de<br />
grupos de peregrinos.<br />
A 28 de outubro de 1850, estando no Seminário, Maximino<br />
enviou ao Pároco uma carta muito singular:<br />
- “Agradeço-lhe imensamente pelos muitos bens que de<br />
vós recebi nesses quatro anos. Vós me servistes de pai, vós
me cuidáveis mais que meu pai, vós me dáveis a instrução que<br />
meu pai não podia me dar e eu não passava de um ingrato para<br />
convosco. <strong>De</strong>sobedeci a vós até o último ponto. Eu vos irritei,<br />
e dou testemunho do meu reconhecimento de minha ingratidão:<br />
oh miserável! É como se diz: a ingratidão é um vício revoltante:<br />
tende piedade de um pobre ingrato para convosco, dirigilhe<br />
algumas palavras de consolo. Pareceu que perdia vossos<br />
benefícios, mas não. <strong>De</strong>us vos recompensará: Ele vos promete<br />
uma coroa eterna por causa de vossa paciência para comigo e<br />
para com meu tio. <strong>De</strong>us vos recompensará por todas as vossas<br />
boas obras a meu favor. Rezarei bastante por vós: vós rezareis por<br />
mim para que possa fazer bem meus estudos. Se demorei tanto<br />
em vos escrever é porque tinha medo de vós como o pai Adão<br />
tinha medo de <strong>De</strong>us depois de seu pecado: dignai-vos perdoar<br />
um ingrato, um pobre pastor das Montanhas. Permiti-me, peçovos<br />
que vos chame de meu pai porque vós sois mais do que<br />
meu pai e eu sempre vos desobedeci: infeliz que sou! Perdoaime,<br />
vos peço... Quanto a minha atividade, vos comunicarei mais<br />
tarde...” (in V. H., II, p. 162-163).<br />
Durante as férias de 1851, Maximino foi <strong>à</strong> Grande Chartreuse<br />
para um retiro de oito dias. No retorno, entrou no Seminário<br />
de Côte Saint-André. Achava-se que ali seria menos procurado<br />
pelos curiosos.<br />
No Seminário, porém, como Dom Ginoulhiac observaria<br />
mais tarde em sua Instrução Pastoral e Mandamento, Maximino<br />
se pôs a brincar de “profeta”, inventando “predições” que<br />
nada tinham a ver com a Aparição, mas, atemorizavam os<br />
colegas e faziam-no rir. Achava graça das pessoas quando o<br />
levavam demasiadamente a sério. Esse tipo de comportamento<br />
vivido entre 1851 e 1853, no Seminário, motivou sua saída<br />
da instituição. Era o comportamento demonstrado, antes, por<br />
ocasião de sua visita a Ars, em 1850, e posteriormente, na<br />
redação de seu “segredo” enviado ao Papa Pio IX, em 1851. Um<br />
defeito quase incontrolável. Isso, no entanto, não impediu que<br />
Maximino levasse uma vida de excelente cristão.<br />
197
A infância de Maximino não foi tão infeliz quanto a de<br />
Melânia. Sofreu muito, porém, nos seus primeiros anos de<br />
vida, pela perda da mãe. Carregava consigo, portanto, sérios<br />
problemas afetivos. <strong>De</strong>sde criança foi obrigado a suportar um<br />
peso que sempre o acompanhou na forma de uma instabilidade<br />
psicomotora constitucional.<br />
Outro fator que pesou na origem de sua instabilidade<br />
congênita, o mesmo, aliás, que atingiu Melânia, foi o contato<br />
que teve com pessoas curiosas, aduladoras e muitas vezes de<br />
psiquismo perturbado. O risco de que certas amizades trariam<br />
conseqüências infelizes para o equilíbrio dos dois videntes, era<br />
real. Faltava-lhes certamente uma orientação sólida e constante<br />
da parte de um Diretor Espiritual.<br />
Entre essas pessoas estava o conhecido engenheiro Dausse,<br />
muito próximo dos dois videntes. Dausse tinha tido sérios<br />
problemas de família. Sua esposa o abandonara, o que o levou<br />
a procurar consolo na religião, vivida na forma de certa mística<br />
desequilibrada. Encontrou-se muitas vezes com Melânia e<br />
Maximino. Ele os havia conduzido <strong>à</strong> Grande Chartreuse. Levou<br />
Melânia a Corenc e Maximino a Lyon depois do “Incidente de<br />
Ars”. Esteve presente quando da redação, pelos videntes, das<br />
cartas com os “segredos” levados a Roma. Dausse era pesssoa<br />
piedosa, mas, ingênua e interessada por “profecias” em geral e<br />
pelas “predições” inventadas por Maximino.<br />
Aos vinte anos de idade, Maximino conseguiu concluir<br />
seus estudos clássicos. Em 1856, entrou no Seminário Maior<br />
de Landes, aos cuidados dos Padres Jesuítas. Nem mesmo os<br />
Jesuítas foram capazes de “injetar juízo e saber na pobre cabeça<br />
de menino grande, sempre estulto e pouco apto a receber uma<br />
instrução sólida” (in CARLIER, p. 192).<br />
O próprio Maximino, em carta <strong>à</strong> Irmã Sainte-Thècle,<br />
afirmou:<br />
- “Eu acreditava, em minha boa fé, que aos vinte anos de<br />
idade não seria mais uma criança, mas, todos os dias faço a<br />
experiência do contrário” (in CARLIER, p. 193).<br />
198
Admirável candura e humildade! Moço transparente e<br />
honesto, mas nada brilhante em seus estudos. A irresponsabilidade<br />
o impedia de alcançar sucesso, apesar dos bons conselhos que<br />
sempre recebia de Pe. Mélin.<br />
Ao final de dois anos de estudos filosóficos, externou certa<br />
hesitação. Não sabia que caminho de vida seguir. <strong>De</strong>ixou o<br />
Seminário. Foi a Paris onde conseguiu trabalho no Hospital de<br />
Vésinet, desde o verão de 1859 até janeiro de 1860.<br />
No entanto, já pressentindo as grandes dificuldades de vida que<br />
sobreviriam a seguir, afirmou numa carta a 5 de janeiro de 1860:<br />
- “Muitas pessoas do Ministério do Interior me criticam:<br />
minha conduta é irrepreensível, mas, me falta a capacidade” (in<br />
V.H., II, p.165).<br />
Os tempos difíceis vieram. Viveu durante cerca de quatro<br />
mêses nas calçadas de Paris, sem amigos. Caiu na miséria e na<br />
doença. Chorou muitas vezes junto ao altar da Santa Virgem,<br />
em Saint-Sulpice. Numa de suas primeiras cartas <strong>à</strong> Irmã Sainte-<br />
Thècle, em Corps, declarou que estava comendo o pão que o<br />
diabo amassou.<br />
Com a ajuda de amigos conseguiu entrar no Colégio de<br />
Tonnerre onde passou um ano e meio aperfeiçoando a formação.<br />
Em Paris freqüentava a casa de Pe. Julião Eymard, seu compatriota<br />
e futuro santo. Recebeu ajuda do casal Jourdain, uma família<br />
honesta e generosa que o tratava como filho e lhe deu condições<br />
de estudar medicina.<br />
Pe. Julião chegou a declarar que:<br />
- “Sem a senhora Jourdain que o acolheu em sua casa, o<br />
pobre Maximino seria como a lama das ruas de Paris” (in<br />
STERN, 3, p. 135).<br />
A 1º de janeiro de 1862, Maximino descreveu ao Pe. Mélin<br />
sua alegria por estudar medicina. Queixava-se, porém, de que<br />
o Padre não respondia <strong>à</strong>s suas cartas. O Padre finalmente lhe<br />
respondeu a 10 de maio de 1863, pedindo excusas.<br />
Maximino passou a sonhar em voltar <strong>à</strong> terra natal, mas, antes<br />
queria que Pe. Mélin o visitasse em Paris. O Padre não pôde<br />
199
atender o convite. Maximino lhe escreveu dizendo que, então,<br />
queria voltar a Corps e que desejava lá comprar uma casa para<br />
trabalhar como médico e farmacêutico. O dinheiro para tanto,<br />
segundo ele imaginava, viria da venda de um terreno pertencente<br />
<strong>à</strong> senhora Jourdain, próximo a Paris.<br />
O entusiasmo não durou muito. A 17 de outubro de 1864,<br />
desencorajado, escreveu novamente a Pe. Mélin dizendo-lhe<br />
que estava endividado, que era pobre e que o casal Jourdain não<br />
era rico o suficiente para continuar a ajudá-lo. Queixava-se de<br />
que os estudos de medicina eram muito longos e receava não ter<br />
clientela alguma depois de formado. Logo abandonou o curso.<br />
Em 1865, o pobre frustrado, em viagem pela Itália, chegou<br />
a Roma onde, por intermédio do Cardeal Villecourt, seu grande<br />
amigo, tornou-se guarda pontifício por seis mêses. Voltou a<br />
Corps em 1866. Em 1870, durante a Guerra, foi mobilizado para<br />
servir no Forte Militar de Barrauz, próximo a Grenoble. Dali,<br />
mensalmente procurava o Pe. Berthier ms para se confessar. A<br />
1º de março de 1875, em Corps, viveu seu último sonho: tornarse<br />
Missionário de Nossa Senhora da Salette. Sonho que, como<br />
os outros, certamente não se teria concretizado se Maximino<br />
tivesse sobrevivido.<br />
Em Corps, a muito custo ganhava a vida como comerciante<br />
de objetos religiosos e de uma bebida alcoólica chamada “Licor<br />
Saletino”, fruto de precária sociedade com um amigo que o<br />
explorou. Maximino se endividou mais uma vez. Pedia ajuda aos<br />
Missionários da Salette e ao casal Jourdain que acabou na falência.<br />
Pe. Mélin não estava mais em Corps. Teria sofrido demais se<br />
tivesse acompanhado de perto toda essa difícil trajetória de vida<br />
de Maximino.<br />
Maximino, porém, guardava em seu coração um terno e<br />
profundo amor <strong>à</strong> Bela Senhora. Diariamente rezava o terço em<br />
sua honra. Jamais esqueceu o maravilhoso evento da Aparição.<br />
Repetia sempre, com inteira fidelidade, a narrativa da Aparição.<br />
Pe. Archier MS, que o conheceu a fundo, deu um belo<br />
testemunho a seu respeito:<br />
200
- “Teve-se a ousadia de dizer que Maximino não era piedoso.<br />
Nada de mais injusto e falso!” (in CARLIER, p. 199).<br />
Seus costumes eram moralmente irrepreensíveis. Não era<br />
Padre nem Religioso. Não quis se casar. A um amigo que o<br />
criticava por isso, respondeu:<br />
- “<strong>De</strong>pois que vi a Santa Virgem, não posso me apegar a<br />
nenhuma outra pessoa sobre a terra!” (in CARLIER, p. 201).<br />
Seus falsos amigos, com a intenção de lhe arrancar o<br />
“segredo”, davam-lhe, <strong>à</strong>s vezes, bebidas misturadas com<br />
substâncias entorpecentes. Maximino, então, se excedia um<br />
pouco, mas, sem jamais perder o controle de si. Foi seu principal<br />
defeito. Esforçava-se, no entanto, por corrigí-lo.<br />
Ele mesmo reconhecia que não era modelo de vida. Ainda<br />
em setembro de 1861, na Montanha da Salette, ao fazer mais<br />
uma vez a narrativa da Aparição, indicando o ponto onde a Bela<br />
Senhora estava no final da visão, disse:<br />
- “Chegada a esse ponto, ela se elevou e desapareceu, e me<br />
deixou com todos os meus defeitos” (in STERN, vol. 3, p. 24);<br />
O término de sua vida foi muito edificante. Um ano antes<br />
da morte, contraíu uma doença grave. Durante a enfermidade<br />
intercedia sem cessar <strong>à</strong> Bela Senhora por sua cura. Confessavase<br />
e comungava freqüentemente.<br />
No começo de novembro de 1874 a doença amainou e<br />
permitiu que Maximino fizesse sua última peregrinação ao<br />
Santuário da Aparição. Comungou e fez, pela última vez, a<br />
narrativa da Aparição <strong>à</strong>s Religiosas da Salette que tinham<br />
substituído as Irmãs da Providência no serviço aos peregrinos<br />
junto ao Santuário.<br />
A 1º de março de 1875 recebeu a visita de seu confessor.<br />
Recebeu os Santos Sacramentos. Ao comungar, pediu um pouco<br />
de água da Salette. O Pão Eucarístico foi seu último alimento e<br />
a água da Salette sua última bebida.<br />
Logo após a partida do Padre que o atendeu, deu o último<br />
suspiro. Asma, palpitações cardíacas e inflamação das pernas o<br />
levaram <strong>à</strong> morte.<br />
201
Seu coração, depois de embalsamado, foi deposto em urna<br />
especial no interior do Santuário da Salette, conforme seu desejo.<br />
Tal era seu amor pela Bela Senhora!<br />
Seu corpo foi sepultado no cemitério paroquial de Corps. A<br />
população da cidade, muitos Padres das redondezas e um grande<br />
número de pessoas vindas de outras regiões, apesar da neve,<br />
participaram do funeral. As despezas do enterro foram assumidas<br />
pelo Santuário, com a permissão do Bispo de Grenoble, Dom Fava.<br />
Maximino viveu e morreu pobremente, mas, profundamente<br />
amoroso da Bela Senhora. Se não era isento de defeitos, deu<br />
provas de excelentes qualidades. Muito estimado por seus<br />
compatriotas. Ao narrar o evento extraordinário de que fora<br />
privilegiada testemunha, assumia uma postura grave, de clareza,<br />
prontidão, dignidade e calma. Seu exterior era amável, puro,<br />
de boas maneiras. Não tinha receio de defender a Aparição e<br />
defender-se dos contraditores. Não o fez somente por palavras,<br />
mas, também por escrito. Em 1866 havia publicado o texto “Ma<br />
profession de foi sur l´Apparition de Notre-Dame de La Salette”,<br />
um opúsculo de 72 páginas. Nele fez uma tocante e piedosa<br />
dedicação <strong>à</strong> Bela Senhora, declarando que estava disposto a dar<br />
a vida em defesa da Aparição (cf. CARLIER p. 206-214).<br />
Em seu testamento deixou um maravilhoso testemunho de<br />
sua fé e amor:<br />
- “Em nome do Pai, e do Filho, e do Santo Espírito. Amém.<br />
Creio em tudo que ensina a santa Igreja apostólica e romana,<br />
em todos os dogmas definidos por nosso Santo Padre, o Papa, o<br />
augusto e infalível Pio IX. Creio firmemente, mesmo ao preço<br />
de meu sangue, na célebre Aparição da Santíssima Virgem,<br />
sobre a Santa Montanha de La Salette, a 19 de setembro de<br />
1846, Aparição que defendi por palavras, por escritos e por<br />
sofrimentos. <strong>De</strong>pois de minha morte que ninguém venha a<br />
afirmar que me ouviu desmentir o grande acontecimento de<br />
La Salette, pois estaria mentindo para si mesmo ao mentir para<br />
o universo. Com esses sentimentos dou meu coração a Nossa<br />
Senhora de La Salette” (in CARLIER, p.214-215).<br />
202
2 - MELÂNIA: vida virtuosa em trajetória tortuosa<br />
Após a Aparição, Melânia teve um percurso de vida<br />
dolorosamente complicado. Tornava-se adulta e não podia mais<br />
permanecer no colégio das Irmãs da Providência, em Corps,<br />
onde passou quatro anos, como colega de Maximino.<br />
A 1º de outubro de 1850, Don Philibert afirmou numa carta:<br />
- “Quanto a Melânia, já é mais do que tempo de sair de Corps.<br />
Mandei um aviso <strong>à</strong> Madre Superiora de Corenc. É preciso então,<br />
que se tenha o consentimento de seus pais” (in V. H., II, p. 160).<br />
Pe. Mélin não mediu esforços para convencê-la a partir, pois<br />
ela receava o afastamento de seu ambiente. Era demasiado tímida.<br />
Finalmente aceitou ir para Corenc, perto de Grenoble, onde foi<br />
bem recebida como postulante, pelas Irmãs da Providência. Era<br />
o fim do verão de 1850.<br />
Em carta a Pe. Mélin, a 19 de outubro, expressou seu contentamento:<br />
- “Pe. Mélin, apresso-me em lhe escrever para comunicarlhe<br />
a felicidade que tenho de estar em Corenc com as boas<br />
Religiosas” (in V. H., II, p. 160).<br />
Um ano mais tarde, a 29 de setembro de 1851, ao final<br />
do tempo de Postulado, escreveu novamente a Pe. Mélin<br />
expressando sua alegria porque em breve ia receber o hábito<br />
religioso com o nome de Irmã Maria da Cruz.<br />
Como noviça recebeu o encargo de cuidar de um grupo de<br />
crianças da Escola das Irmãs. <strong>De</strong>sempenhou a contento essa<br />
tarefa. Com as crianças era severa e pessoalmente melancólica.<br />
Ali, despontava a intenção de trabalhar em país de missão.<br />
Melânia manifestava-se, porém, teimosa, apegada <strong>à</strong>s próprias<br />
idéias, excêntrica, singular, apesar de piedosa, pura, mortificada<br />
e ajuizada. Nunca demonstrava alegria. Preferia estar sozinha,<br />
parecendo <strong>à</strong>s vezes ausente da realidade.<br />
Suas Superioras tiveram a sabedoria de querer formá-la<br />
mais fortemente para a humildade. Estavam muito preocupadas<br />
com suas tendências para uma autoimagem inflada.<br />
A 1º de maio de 1854, as Irmãs enviaram Melânia, agora Irmã<br />
203
Maria da Cruz, a Corps, uma Comunidade menos importante.<br />
Foi bem acolhida, mas, logo a decepção se apresentou. Ali não<br />
era mais nem aluna nem professora. Algumas pessoas do local<br />
a olhavam com certo menosprezo, lembrando as condições<br />
em que ela vivera durante a infância na cidade. Outras melhor<br />
intencionadas procuravam ajudá-la com seus conselhos.<br />
Melânia não sabia o que fazer. Trabalhou na escola paroquial<br />
atendida pelas Irmãs, por cerca de quatro meses. Causou muitas<br />
dificuldades ao Pároco, Pe. Mélin, em virtude de seu caráter.<br />
Nesse tempo, Melânia foi acometida de um mal no estômago.<br />
Foi a Vienne onde esteve sob os cuidados das Irmãs de São<br />
Vicente de Paula. Não se ambientou ali e pediu para voltar a<br />
Corenc. Antes fez uma viagem <strong>à</strong> Montanha da Salette onde pôde<br />
se restabelecer.<br />
Estando em Corenc, Melânia soube que não tinha sido<br />
admitida <strong>à</strong> Profissão Religiosa. Suportou muito mal a notícia.<br />
O motivo foi exposto, mais tarde, por Dom Ginoulhiac, na<br />
Instrução Pastoral e Mandamento:<br />
- “Quanto a Melânia, se ela não foi inteiramente submetida<br />
<strong>à</strong>s mesmas provações (que Maximino), suportou outras,<br />
suficientes para inflamar imaginações mais calmas e pôr em<br />
risco as virtudes mais provadas. <strong>De</strong>pois do dia 19 de setembro<br />
de 1846, ela foi, por parte de grande número de pessoas, mesmo<br />
dentre as mais respeitáveis e distintas, transformada em objeto<br />
de delicadas atenções, de atitudes ternas e respeitosas que mais<br />
pareciam uma espécie de culto, de tal forma que se, durante<br />
alguns anos, ela não se deixou envolver, não seria estranho que<br />
não se deixasse levar, por fim, pelo apego <strong>à</strong>s próprias idéias, o<br />
que é um dos maiores perigos que correm as almas favorecidas<br />
por dons extraordinários. Esse apego ao próprio juízo e a<br />
certas singularidades que são suas conseqüências naturais,<br />
chamou nossa atenção desde que fomos informados a respeito<br />
e, embora a Comunidade tenha reconhecido sua piedade e seu<br />
zelo na instrução religiosa das crianças, nós cremos que era de<br />
nosso dever não admiti-la aos votos anuais, para formá-la mais<br />
204
eficazmente na prática da humildade e da simplicidade cristãs,<br />
que são a proteção necessária e mais segura contra as ilusões da<br />
vida interior” (in CARLIER, p. 181).<br />
A recusa <strong>à</strong> Profissão Religiosa gerou em Melânia uma<br />
forte rejeição contra Dom Ginoulhiac. As conseqüências desse<br />
ressentimento apareceriam mais tarde.<br />
No mês de setembro de 1854, o Bispo Dom Charles Newsham,<br />
Superior do Seminário Maior de Ushaw, na Inglaterra, foi a La<br />
Salette para a celebração do oitavo aniversário da Aparição.<br />
Encontrou-se com Melânia que lhe pareceu fraca e sofrida.<br />
Imaginou que a mudança de clima e um repouso pudessem lhe<br />
fazer bem.<br />
Numa carta a Dom Ginoulhiac, Dom Newsham se dispôs a<br />
levá-la <strong>à</strong> Inglaterra por alguns mêses. Dom Ginoulhiac permitiulhe<br />
que a levasse consigo, com “a condição de que ela mesma<br />
consentisse” (cf. STERN, 3, p. 350).<br />
Melânia aceitou a proposta. Assim podia afastar-se do<br />
assédio dos curiosos em Corps e, ao mesmo tempo, estar longe<br />
de Dom Ginoulhiac por quem não tinha simpatia alguma. Teria<br />
também a oportunidade de aprender o inglês como desejava.<br />
Partiu em setembro, o que significou um alívio para Pe. Mélin.<br />
A saída da França para a Inglaterra não foi, portanto, um<br />
exílio imposto a Melânia, uma expatriação determinada por<br />
Dom Ginoulhiac. Mesmo porque não caberia ao Bispo tomar<br />
semelhante atitude. Seria da alçada das autoridades francesas. A<br />
calúnia é perversa, sem fundamento histórico algum. Melânia foi<br />
devidamente consultada. Aceitou espontaneamente a proposta.<br />
E partiu na plena liberdade, acompanhada por Dom Newsham.<br />
Na Inglaterra, Dom Newsham não tinha condições de<br />
mantê-la junto a si. Confiou Melânia, como pensionista, <strong>à</strong>s<br />
Irmãs Carmelitas do Convento em Darlington, no Condado de<br />
Durham. Ali estaria livre para ir e vir.<br />
Melânia se deixou cativar pelo estilo de vida das Carmelitas.<br />
Pediu e obteve o favor de participar da vida da comunidade. A 25<br />
de fevereiro de 1855 recebeu o hábito do Carmelo em cerimônia<br />
205
de grande pompa. Diversos Bispos e membros da nobreza<br />
inglesa estavam presentes. A solenidade do ato, por certo, foi<br />
motivo de satisfação para Melânia.<br />
Findo o noviciado no Carmelo, professou os votos religiosos<br />
a 24 de fevereiro de 1856. Pouco tempo depois, no entanto, se<br />
compreendeu que a admissão aos votos fora um ato precipitado.<br />
Sinais inquietantes apareceram no comportamento de Melânia.<br />
Em julho de 1860 ela recebeu a visita de sua irmã Maria.<br />
A família estava em má situação. Melânia se desesperou. Quis<br />
voltar para França a todo custo.<br />
O Padre Mélin foi um dos primeiros a serem advertidos a<br />
esse respeito. A Priora do Carmelo o avisara dizendo-lhe:<br />
- “Ela quis se retirar para junto de sua mãe, pobre Irmã Maria<br />
da Cruz que durante cerca de dez anos foi objeto de meus cuidados<br />
mais carinhosos e que ela desapontou tão cruelmente... É um<br />
grande consolo para mim o fato de perceber em sua excelente<br />
carta que cuidará do futuro dessa querida filha. Obrigada mil<br />
vezes por essa caridade que o Senhor recompensará, estou disso<br />
convencida, e espero que ela siga seus sábios conselhos” (in V.<br />
H., II, p. 161).<br />
<strong>De</strong>pois de ter vivido esses anos de Mosteiro, Melânia, em<br />
setembro de 1860 partiu de Darlington para Marselha onde<br />
habitava sua mãe. Foi accolhida como pensionista pelas Irmãs<br />
da Compaixão, Congregação fundada pelo jesuíta Pe. Barthès.<br />
Passou cerca de um mês na Casa São Barnabé, próxima <strong>à</strong> Casa<br />
Mãe dessa mesma Congregação.<br />
Vestindo amplo hábito preto e uma touca da mesma cor,<br />
vivia isolada, caminhando sozinha pelos jardins. Respondia<br />
apenas com sinais quando chamada para as refeições. Logo<br />
foi tida como misteriosa. O Padre lhe havia pedido que não se<br />
desse a conhecer. Sabia-se apenas que era uma ex-carmelita de<br />
Darlignton.<br />
Em 1861 Melânia, usando o hábito das Irmãs da Compaixão,<br />
foi levada por elas a Cefalônica, nas Ilhas Iônicas da Grécia.<br />
Em 1863 voltou a Marselha onde passou alguns mêses<br />
206
no Carmelo. <strong>De</strong>pois voltou para as Irmãs da Compaixão. Em<br />
outubro de 1864 a Superiora Geral delas admitiu-a ao Noviciado.<br />
Ao final de alguns meses de provação, recebeu o hábito sob o<br />
nome de Irmã Victor, com o compromisso formal de não se dar<br />
a conhecer a ninguém como vidente da Salette, nem dentro nem<br />
fora da Comunidade, sob pena de exclusão definitiva.<br />
Nessa época diversos Bispos italianos viviam exilados<br />
em Marselha, em virtude da situação político-religiosa da<br />
Itália. Entre eles estava Dom Petagna, Bispo de Castellamare<br />
di Stabia, perto de Nápoles. Durante sua estadia em Marselha<br />
dava assistência espiritual <strong>à</strong>s Irmãs da Compaixão. Melânia quis<br />
aproveitar a oportunidade para sair de Marselha. Foi desligada<br />
da Congregação das Irmãs da Compaixão e da Diocese, em abril<br />
de 1867.<br />
A vidente apressou-se em pedir a proteção de Dom Petagna.<br />
O Bispo paternalmente a acolheu em Castellammare di Stabia.<br />
A Madre da Apresentação (Zénaïde Beillon), compadecida por<br />
aquela “pobrezinha” como era chamada, conseguiu da parte do<br />
Bispo de Marselha, Dom Place, a permissão de acompanhá-la<br />
pessoalmente, alegando que o Padre Barthès havia confiado<br />
Melânia a seus cuidados. Antes de ir <strong>à</strong> Itália, porém, Melânia<br />
esteve na Montanha da Salette de 15 a 18 de abril de 1867.<br />
Os primeiros tempos em Castellamare foram duros. As duas<br />
companheiras nada tinham a fazer. Receberam ajuda do Pe.<br />
Giraud, Superior dos Missionários de Nossa Senhora da Salette.<br />
<strong>De</strong> Nápoles, Melânia enviou, a 11 de junho de 1867, uma carta<br />
ao Pe. Giraud dizendo-lhe:<br />
- “Venho agradecer-vos todas as vossas bondades. (...) Terei<br />
como dever muito bom o de rezar por vós, meu Reverendo<br />
Padre, pelos bons Padres da Santa Montanha, bem como pelas<br />
Religiosas, pois que todos se tornaram a língua ou a boca de<br />
Maria para repetir o que a toda bela e boa Mãe disse a seus dois<br />
pequenos nadas” (in CARLIER, p. 186-187).<br />
Como, em 1869, a situação de vida ainda continuava difícil,<br />
Melânia se pôs a dar lições de francês a algumas crianças alojadas<br />
207
na casa de uma senhora. Em troca, Melânia recebia acolhida. A<br />
dificuldade aumentou com a doença que atingiu a companheira,<br />
Madre da Apresentação.<br />
Em 1884 Melânia voltou <strong>à</strong> França. <strong>De</strong>pois de alguns meses<br />
passados em Corps, foi residir em Cannes para cuidar da mãe. Pe.<br />
Giraud, compadecido, continuava a lhe enviar ajuda financeira.<br />
Ela agradecia gentilmente. Isso contradiz certas alegações<br />
de origem inescrupulosa, segundo as quais os Missionários<br />
de Nossa Senhora da Salette nunca teriam prestado socorro a<br />
Melânia e aos seus familiares (cf. CARLIER p. 187-188).<br />
<strong>De</strong>pois da morte da mãe, a 1º de dezembro de 1889, Melânia<br />
voltou a morar em Marselha. No bairro de Montolivet ela<br />
introduziu a devoção a Nossa Senhora da Salette, o que levou<br />
o Pároco a descobrir que Melânia era a vidente da Aparição.<br />
Ao saber disso, o Vigário Geral da Diocese a transferiu para o<br />
bairro de Le Cannet, onde também foi reconhecida. Por decisão<br />
superior Melânia recebeu, então, a ordem de deixar Marselha.<br />
Nesse período tratou de fundar, com a colaboração do<br />
Cônego <strong>De</strong> Brandt, uma Congregação intitulada “Apóstolos dos<br />
Últimos Tempos”. O Bispo de Autun, Dom Perraud, com o apoio<br />
da Santa Sé, se opôs <strong>à</strong> idéia. Melânia, contrariada, abandonou o<br />
projeto ao final de muitas dificuldades.<br />
Em 1892 Melânia voltou <strong>à</strong> Itália e se estabeleceu em<br />
Galatina, perto de Lecce, sede episcopal de Dom Zola.<br />
Em setembro de 1897 se transferiu para Messina, na Itália<br />
sempre, a pedido do Bispo dessa Diocese, Dom Annibale Di<br />
Francia, hoje canonisado. Di Francia lhe pedia ajuda para a<br />
fundação da Congregação das Irmãs do Divino Zelo.<br />
No ano seguinte Melânia deixou a Sicília e foi ao Piemonte.<br />
Em junho de 1899 se transferiu para Allier, na França, a<br />
convite do Pe. Combe.<br />
Aproximando-se o final de sua vida, em 1902, Melânia<br />
esteve pela última vez em La Salette. Nessa visita, depois de<br />
uma narrativa da Aparição, idêntica <strong>à</strong> que havia feito a 19 de<br />
setembro de 1846 em Ablandens, deu a entender que tomava<br />
208
distância de toda a confusa história em que se envolveu, dizendo:<br />
-“Já não sei o que é meu e o que é de outros, mas o que se<br />
passou a 19 de setembro de 1846 é como acabo de vos contar”<br />
(in STERN, “Que sont devenus les enfants?”, polígrafo).<br />
Na Montanha da Salette, Melânia deu, nessa ocasião, tanto<br />
aos Missionários quanto aos peregrinos, um testemunho de vida<br />
edificante por sua simplicidade, mortificação e devoção. Por<br />
onde passava, aliás, deixava a impressão de grande virtude e<br />
terna piedade. Sempre foi pessoa de intensa vida de penitência,<br />
oração e contemplação. Jamais vacilou em seu testemunho a<br />
respeito da Aparição, apesar do “segredo” por ela divulgado.<br />
Em junho de 1903 voltou novamente para a Itália,<br />
estabelecendo-se em Altamura, Província de Bari, onde, com a<br />
recomendação de Dom Cechini, Bispo da Diocese, se hospedou<br />
gratuitamente, por três meses, junto a uma generosa família cristã.<br />
Melânia morava sozinha numa pequena casa posta a sua<br />
disposição. Diariamente freqüentava a missa em Altamura.<br />
<strong>De</strong>pois voltava para seu modesto alojamento.<br />
No dia 15 de dezembro de 1904 não compareceu <strong>à</strong> missa.<br />
Dom Cecchini pediu a sua doméstica que fosse ver o<br />
que acontecia. A porta da casa de Melânia estava fechada. A<br />
autoridade competente foi chamada, entrou na casa e encontrou<br />
Melânia morta. Havia morrido durante a noite.<br />
A família que a havia acolhido, quiz que fosse sepultada<br />
na tumba familiar. Dom Cecchini, porém, com os Cônegos da<br />
Catedral e uma grande multidão, levaram Melânia a sua última<br />
morada na Casa das Irmãs do Divino Zelo em Altamura.<br />
Dom Fava, Bispo de Grenoble, deixou, a respeito da vidente<br />
da Salette, a seguinte declaração:<br />
- “Melânia, a quem interroguei em Castellamare há dois<br />
mêses, assinaria com seu próprio sangue a narrativa (do Fato da<br />
Salette) que ela fez e sempre manteve” (in CARLIER p. 189).<br />
Melânia, apesar de todas as limitações pessoais, era<br />
uma pessoa de grande espiritualidade. O maior problema de<br />
sua vida, porém, não foram tanto suas limitações pessoais<br />
209
quanto as pressões psicológicas malsãs e as manipulações<br />
ideológico-religiosas perversas que a envolveram, gerando<br />
confusas controvérsias. Sua história pessoal teria suscitado<br />
outras repercussões na Igreja se tivesse tido uma sábia e firme<br />
orientação espiritual.<br />
O acompanhamento pessoal recebido por Maximino e<br />
Melânia, após a Aparição, foi deficiente. Dada a vida errante<br />
que ambos tiveram, não foram suficientemente protegidos<br />
contra a influência de pessoas, algumas talvez de boa vontade,<br />
outras muito ingênuas em suas crendices, outras malévolas,<br />
outras ainda atraídas doentiamente pelo “extraordinário”, pelo<br />
“secreto” e exótico.<br />
Pio IX, a 13-8-1853, num projeto de Carta a ser enviada a um<br />
Bispo da região da Toscana onde a Virgem teria aparecido a uma<br />
moça, naquela época, anotou uma observação judiciosa segundo<br />
a qual se exige bom e sábio discernimento face <strong>à</strong>s circunstâncias<br />
que envolvem esse tipo de eventos:<br />
- “Pense nas pessoas que detêm em mãos a educação dos<br />
adolescentes e <strong>à</strong>s quais são confiados seus espíritos frágeis!”<br />
(STERN, p. 63).<br />
Certamente o Papa, ao fazer essa anotação, tinha em mente<br />
o caso dos videntes da Salette que, naquele momento, já estavam<br />
expostos a todo tipo de influência.<br />
A causa do Fato da Salette e a imagem da Congregação dos<br />
Missionários de Nossa Senhora da Salette sentiram e continuam<br />
sentindo as conseqüências negativas dessa história infeliz.<br />
Não é de se estranhar que “o céu tenha escolhido para a Salette,<br />
mensageiros tão primitivos, tão frágeis e também decepcionantes.<br />
Maximino e Melânia foram escolhidos como membros e<br />
representantes do povo dos pequeninos, e não porque teriam sido<br />
crianças-prodígio. <strong>De</strong> resto, ao longo de toda a história, <strong>De</strong>us escolheu<br />
para si mensageiros e representantes frágeis. Entre eles, alguns se<br />
mostraram perfeitos ou quase, outros manifestaram fraquezas, outros<br />
enfim mereceram a sentença que atinge o mau servidor. Todos,<br />
porém, foram instrumentos nas mãos de <strong>De</strong>us” (STERN, 3, p. 137).<br />
210
<strong>De</strong>us, pela mediação de seu Filho Jesus e pela inspiração do<br />
Santo Espírito, continua realizando as maravilhas cantadas pela<br />
Virgem Mãe, a “Pobre de Javé” por excelência. A Aparição da<br />
Bela Senhora será, para sempre, a manifestação da misericordiosa<br />
e reconciliadora compaixão de <strong>De</strong>us por seu Povo.<br />
CAPÍTULO II<br />
UMA ESPINHOSA QUESTÃO<br />
Em 1851, a pedido de Dom Philibert de Bruillard, e em<br />
virtude de certas circunstâncias, Maximino e Melânia puseram<br />
por escrito o suposto “segredo” que, separadamente, teriam<br />
recebido da Bela Senhora durante a Aparição.<br />
Os dois videntes sempre, tenaz e firmemente, por toda a<br />
vida, se recusaram revelá-lo não só ao público em geral, mas<br />
também entre si. A muito contra gosto eles aceitaram pô-lo por<br />
escrito e enviá-lo ao Papa, na suposição de que Pio IX o havia<br />
solicitado, o que não correspondia <strong>à</strong> verdade.<br />
No entanto, sempre houve suspeitas de que nenhum dos<br />
dois videntes tenha expressado verdadeiramente, naquela<br />
oportunidade, o que cada um deles guardava com extremo<br />
cuidado em seu coração. O que havia sido escrito era considerado<br />
por muitos como uma simples e inocente escapatória de<br />
adolescentes incomodados, que não queriam, de forma alguma,<br />
revelar o que a Bela Senhora lhes pediu para não revelar.<br />
As duas cartas enviadas ao Papa foram guardadas nos<br />
Arquivos do Vaticano. Inacessíveis, só muitos anos depois,<br />
foram descobertas. Se elas foram motivo de polêmica antes de<br />
serem encontradas, continuam sendo depois. Um complexo e<br />
fantasioso percurso envolve os “segredos” dos dois videntes,<br />
sobretudo o de Melânia, até nossos dias.<br />
Maximino procurou se evadir, o mais depressa possível, dos<br />
curiosos, contando-lhes “profecias” de brinquedo, para rir-se<br />
211
deles a seguir. As “profecias” tinham a ver com as predições<br />
apocalípticas que invadiam o ambiente social de então.<br />
Quanto a Melânia, seu “segredo” teve uma história muito<br />
mais complexa, ao longo de duas fases redacionais:<br />
- Uma, quando o “segredo” foi escrito por ela em Grenoble,<br />
na carta enviada ao Papa Pio IX, em julho de 1851, na suposição<br />
de que se tratava verdadeiramente da “palavra pessoal” revelada<br />
a Melânia, na Aparição.<br />
- Outra, quando o “segredo”, a partir de 1851, foi escrito<br />
e publicado espontaneamente por Melânia, por mais vezes, em<br />
diferentes versões e sob pesadas influências, afirmando que ela<br />
o tinha recebido da Bela Senhora.<br />
O “segredo” da segunda fase vem carregado de catástrofes,<br />
destruição e morte. Coisa que não é do <strong>De</strong>us do Evangelho,<br />
um <strong>De</strong>us que salva. O comentário de Pe. STERN, competente<br />
pesquisador da história da Salette, é contundente a esse respeito:<br />
- “O que se sabe de Melânia e dos contatos que ela teve<br />
durante os anos cinqüenta, nos obriga a recusarmos a atribuição<br />
de qualquer caráter sobrenatural ao seu muito famoso “segredo”<br />
(STERN, 3, p.125).<br />
Há reais explicações para que se recuse um caráter<br />
sobrenatural ao que Melânia nele afirma. Os traumas que<br />
Melânia sofreu, têm real influxo sobre seu “segredo”: abuso de<br />
autoridade por parte de certos inquisidores, atitudes de adulação<br />
por parte de admiradores indiscretos e, sobretudo, as dolorosas<br />
carências de ordem familiar. Melânia conheceu a miséria em<br />
diferentes dimensões. A tentação da vaidade por ser admirada<br />
como testemunha da Aparição, também a invadia.<br />
A partir de 1852 particularmente, a tendência de Melânia<br />
em assumir traços de personagem extraordinária se intensificou<br />
em função de algumas circunstâncias concretas. Havia os que<br />
punham por escrito tudo que ela dizia, como se se tratasse de<br />
oráculos, e lhe demonstravam real veneração.<br />
Moça introvertida com graves frustrações afetivas como<br />
criança, ela começou a elaborar uma releitura do passado<br />
212
<strong>à</strong> semelhança de um romance autobiográfico. Não é a Bela<br />
Senhora quem estava no centro de atenção dessa releitura, e<br />
sim ela mesma, Melânia. Seu amor próprio ferido se deixava<br />
entrever.<br />
Há uma autobiografia de Melânia, intitulada “Abrégé<br />
de la vie de Mélanie”, datada de 3 de setembro de 1852. É<br />
surpreendente o fato de que ela suspenda a redação desse<br />
manuscrito autobiográfico no meio de uma frase, antes de começar<br />
a tratar de seu tempo de pastora em Ablandens, portanto antes<br />
da Aparição de 19 de setembro de 1846. Melânia demonstrava<br />
dificuldade em distinguir as lembranças reais da Aparição dos<br />
sonhos por ela imaginados, o personagem verdadeiro que fora,<br />
do imaginário que se formara.<br />
Os devaneios que a habitavam, serviam a seus aduladores<br />
interesseiros para exaltá-la como dotada de perfeita santidade.<br />
Tiravam proveito de sua simplicidade. A própria Melânia passou<br />
a nutrir a ilusão de que, desde criança, teria tido revelações<br />
sobrenaturais, encontros com anjos, com a Virgem Maria, com o<br />
Menino Jesus, êxtases e até mesmo a graça da ciência teológica<br />
infusa. Fantasias de adolescente nascidas de frustrações, frutos<br />
de uma infância pesadamente sofrida. Seqüelas de mecanismos<br />
psicológicos do subconsciente que a levavam a imaginar a<br />
infância feliz que desejava ter vivido e que jamais viveu.<br />
Na verdade, ninguém dentre os que, logo após a Aparição,<br />
conheceram e analisaram sua pessoa e vida, nela perceberam<br />
traços de supostas experiências místicas em sua infância remota,<br />
nem a prudente Madre Sainte-Thècle que conviveu com Melânia<br />
durante quatro anos no Colégio das Irmãs da Providência,<br />
em Corps, nem o judicioso Pe. Mélin, Pároco de Corps que a<br />
acompanhava de perto, nem a zelosa Mlle. <strong>De</strong> Brulais, nem o<br />
habilidoso Pe. Lagier, nem o consciencioso Pe. M. Rousselot,<br />
que a interrogaram e a observaram de perto, ninguém deu<br />
testemunho a respeito da veracidade desse imaginário a respeito<br />
do passado da menina. Menos ainda Jean Baptiste Pra, seu<br />
patrão, que a conhecia de perto antes ainda da Aparição.<br />
213
A verdade do real passado de Melânia foi atestada pela<br />
investigação oficial dos Bispos de Grenoble, Dom Philibert e<br />
Dom Ginoulhiac, e pelas Irmãs da Providência de Corps. Esse<br />
passado não impediu, porém, que ela tivesse se tornado uma<br />
pessoa de muita oração e penitência em seus anos maduros.<br />
Em agosto de 1853, retalhos do “segredo” da vidente vieram<br />
<strong>à</strong> tona. Seu conteúdo prenuncia as edições dos anos setenta, mas<br />
é bem mais reduzido. <strong>De</strong>sde esse tempo Melânia fazia distinção<br />
entre o texto do “segredo” enviado ao Papa, em 1851, e o que<br />
guardou no recôndito da alma. Ela mesma declarou, num escrito<br />
autobiográfico composto em 1853, na Grande Chartreuse:<br />
- “A Santa Virgem deu <strong>à</strong> selvagem dois segredos: um foi<br />
enviado ao Papa e o outro a selvagem dele jamais falou” (in<br />
STERN, III, p.118).<br />
É surpreendente o apelativo “selvagem” que Melânia, nesse<br />
texto, aplica a si mesma, levando-se em conta a auto-imagem<br />
inflada que a impregnava... Insistia teimosamente, porém, no<br />
“segredo” propagado. Diante das recusas em aceitá-lo, afirmava:<br />
- “Não se quer saber da verdade, só se quer permanecer nas<br />
trevas para se escapar mais facilmente” (in STERN, 3, p. 132).<br />
O texto de 1853 permaneceu desconhecido durante muto<br />
tempo.<br />
<strong>De</strong>sde 1854, o Cônego <strong>De</strong> Brandt, da Diocese de Amiens,<br />
ardoroso partidário de visões e revelações, deixou-se encantar<br />
pelo “segredo” de Melânia. Segundo ele, o “segredo” confirmava<br />
seu próprio projeto de fundar uma Congregação. Seu Bispo, no<br />
entanto, se opunha a suas idéias. Mais tarde, na Bélgica, ele se<br />
tornou um dos principais correspondentes de Melânia.<br />
Antes de novembro de 1854 Melânia redigiu uma Regra<br />
para uma imaginada Congregação Religiosa. Era o tempo da<br />
construção do Santuário. Nessa época, os primeiros Missionários<br />
de Nossa Senhora da Salette já estavam na Montanha a serviço<br />
dos peregrinos. Como Padres Diocesanos que eram, desejavam,<br />
no entanto, assumir a Vida Consagrada. Tinham uma Regra<br />
precária e provisória. Procuravam seu verdadeiro caminho.<br />
214
Melânia, por sua vez, já havia feito um Noviciado e possuia<br />
algum conhecimento em matéria de Vida Religiosa. Apesar da<br />
insuficiente capacidade para redigir uma Regra de Vida, queria ter<br />
a honra de ser considerada Fundadora da Comunidade Religiosa<br />
do Santuário. Sem apelar para intervenções sobrenaturais, mas,<br />
apenas com sua parca experiência de Vida Religiosa, Melânia<br />
redigiu uma Regra sumária (cf. STERN, 3, p. 224-227). Nela,<br />
Melânia se atribuia o poder de admitir postulantes, de fazer<br />
observar rigorosamente o prescrito, e até de proibir eventualmente<br />
as Religiosas de receberem a comunhão. Nessa Regra, porém,<br />
não se fala ainda dos “Apóstolos dos Últimos Tempos”.<br />
No começo de 1855, depois da recusa de ser admitida<br />
aos votos, Melânia comunicou a um padre, amigo seu,<br />
provavelmente o Pe. Faure, que ela tinha a missão de fazer<br />
revelações contra o Clero e os Conventos. A 4 de fevereiro de<br />
1855, sendo noviça carmelita na Inglaterra, e referindo-se a Dom<br />
Ginoulhiac, afirmou que “não estava mais sob a autoridade de<br />
sua Excelência” (in STERN, 3, p. 115). Sentia-se, pois, liberada<br />
para fazer revelações.<br />
Em 1857 apareceu o tema dos “Apóstolos dos Últimos<br />
Tempos” aplicado por Melânia ao contexto saletino. Mais tarde,<br />
após a Guerra de 1870, o Cônego <strong>De</strong> Brandt quis fundar, com a<br />
ajuda de Melânia, o grupo dos “Apóstolos dos Últimos Tempos”,<br />
imaginado por São Luis Grignion de Montfort. Enviado <strong>à</strong> Santa<br />
Sé para sua avaliação, o projeto foi rejeitado.<br />
O mesmo tema fez parte do “segredo” revelado por Melânia<br />
em 1858. Adèle Chevalier, uma autodenominada mística, fez<br />
uso dele na redação de pretensa Regra para os Missionários<br />
e as Religiosas do Santuário. O Bispado de Grenoble reagiu<br />
firmemente. A Regra não foi aplicada aos Missionários, e<br />
as Religiosas da Salette foram fundadas em 1869, em bases<br />
totalmente diferentes.<br />
Por esse tempo, Amédée Nicolas, um advogado de<br />
Marselha, correspondente de Melânia, estivera implicado no<br />
“caso Lamerlière”. Publicou um livro sobre a Salette. Após uma<br />
215
peregrinação <strong>à</strong> Montanha da Aparição, em 1851, e novamente<br />
em 1856, começou a “profetizar” a respeito de Roma, do Papa,<br />
da França, do nascimento de um monstro. Compôs também<br />
um comentário sobre o Apocalipse. Segundo seus cálculos, o<br />
“Anticristo” nasceria no mesmo mês e ano da publicação do<br />
“segredo” de Melânia, por ele marcada para 1858.<br />
O comentário de Nicolas sobre o Apocalipse foi efetivamente<br />
publicado em 1858, sob o título de “Conjectures sur les âges de<br />
l´Église et les derniers temps... mises em concordance avec les<br />
révélations de la Soeur de La Nativité...”, Lyon, 1858.<br />
Não estaria aqui a explicação para se exigir de Melânia<br />
que publicasse o “segredo” somente naquele ano? Exigência<br />
inexplicável uma vez que a “Mensagem pública” da Aparição<br />
fora proclamada pelos dois videntes em Ablandens, na noite<br />
mesma do dia 19 de setembro de 1846.<br />
Nessa obra de Nicolas são evocados temas presentes nas<br />
“predições” da “visionária” Soeur de La Nativité, e também no<br />
“segredo” de Melânia: os pecados dos Padres que arruínam a<br />
Igreja, as cidades destruídas, o combate entre o céu e as trevas...<br />
Mais tarde, nos anos sessenta, quando Melânia voltou da<br />
Itália para Marselha, Nicolas a acolheu em sua propriedade.<br />
<strong>De</strong>sde que Melânia publicou seu “segredo” em 1858, ele se fez<br />
seu ardente defensor, clamando contra os Bispos. O ressentimento<br />
de Melânia contra Dom Ginoulhiac pode estar aqui subtilmente<br />
incluso.<br />
Melânia, portanto, desde cedo teve contato muito próximo<br />
com esse tipo de “profetismo”. Ela conheceu certos personagens<br />
como Houzelot, o Pe. Faure e o engenheiro Dausse, e outros<br />
fanáticos por “profecias”. Faziam parte de seu círculo de<br />
Grenoble, desde quando ela se transferiu para lá, em outubro<br />
de 1850. Na época, ouviu falar de catástrofes anunciadas por<br />
“profetas do pessimismo”.<br />
O advogado Girard Brayer, de Grenoble, o advogado<br />
Amédée Nicolas, de Marselha, e Verrier, três adeptos de Melânia,<br />
também eram adeptos do falso barão Richemont, falecido em<br />
216
1853. Segundo eles, Richemont ressuscitaria para trazer a<br />
paz <strong>à</strong> França. Haviam feito muita pressão sobre os videntes e<br />
fornecido a Melânia documentos que falavam da ruína de Paris,<br />
do nascimento do “Anticristo” filho de uma Religiosa e de um<br />
Bispo, do Clero e Conventos corruptos...<br />
O advogado Girard, numa conversa com Melânia, lhe<br />
afirmou que “estava convicto de que essas predições têm real<br />
conexão com o vosso segredo”.<br />
Ao que Melânia respondeu: - “Também acredito!”.<br />
<strong>De</strong>sde os anos 1870, os dois advogados, Brayer e Nicolas,<br />
foram particularmente ativos na difusão do chamado “segredo”<br />
de Melânia.<br />
A partir de 1871, cópias de um texto do “segredo” escrito por<br />
Melânia, em Marselha, circulavam pela imprensa. Curiosamente,<br />
numa carta enviada a Girard a 7 de janeiro de 1873, a própria<br />
Melânia, referindo-se ao texto, confirmou o comentário do<br />
jesuíta Pe. Calage a respeito:<br />
- “São coisas tiradas do Apocalipse, <strong>à</strong>s quais não era preciso<br />
dar crédito” (in STERN, 3, p. 118).<br />
Em 1878, Dom Fava, Bispo de Grenoble, foi a Roma para<br />
pedir a coroação da estátua de Nossa Senhora da Salette e o título<br />
de Basílica para o Santuário da Santa Montanha. Visitou Melânia<br />
em Castellamare di Stabia, perto de Nápoles, onde ela habitava<br />
havia cerca de doze anos. Era o dia 23 de novembro. Dom Petagna,<br />
Bispo da Diocese e protetor de Melânia, tinha escrito a Dom Fava<br />
a respeito dos “Apóstolos dos Últimos Tempos”. No encontro, a<br />
conversação girou sobre o projeto de Melânia, a fundação dessa<br />
Ordem, com uma Regra que a Virgem teria dado a ela a 19 de<br />
setembro de 1846. A “Mensagem pública” e o “segredo” também<br />
faziam parte do diálogo entre Dom Fava e Melânia.<br />
Um mês depois, Melânia foi a Roma para ser recebida em<br />
audiência por Leão XIII. Lá permaneceu até maio de 1879.<br />
Segundo ela e seus admiradores, era chegado o momento de<br />
publicar o famoso “segredo”. Entre os admiradores havia alguns<br />
Bispos italianos.<br />
217
O opúsculo com o “segredo” em sua versão longa e final foi<br />
impresso em Lecce, no sul da Itália, em 1879. Dom Zola, Bispo<br />
da Diocese, acompanhou de perto sua impressão, autorizou a<br />
Cúria a lhe dar o “imprimatur”, e a 25 de novembro, enviou uma<br />
centena de exemplares ao Cônego <strong>De</strong> Brandt.<br />
O opúsculo contém a narrativa da Aparição. O “segredo”<br />
foi ali inserido e ocupa cerca de onze páginas, ou seja, três vezes<br />
mais que a “Mensagem pública” da Bela Senhora. O texto se refere<br />
a metrópoles depravadas, a nações e chefes de povos, ao Papa, ao<br />
Imperador, lança impropérios contra o Clero, anuncia diferentes<br />
desgraças, prediz o nascimento do “Anticristo” que seria filho<br />
de um Bispo e de uma Religiosa hebréia e dirige forte apelo aos<br />
“Apóstolos dos Últimos Tempos” para transformar o mundo.<br />
O texto é tão carregado de apocalipticismo, de anticlericalismo<br />
e de racismo, que não é possível atribuí-lo a Nossa Senhora.<br />
Trata-se de um pasticho apocalíptico extremamente confuso (in<br />
STERN, 3, p. 120).<br />
Muitos Bispos reagiram contra o opúsculo. O antiromanismo<br />
do texto, porém, motivou o Bispo Lefèbvre a usar da Salette para<br />
justificar sua revolta contra o Papa, em 1988 (cf. IL TEMPO,<br />
Roma, 1º de julho de 1988; cf. Nota 5, in STERN, 3, p. 110).<br />
Em fevereiro de 1880, o Cardeal Caterini, Secretário da<br />
Santa Inquisição, pediu explicações a Dom Zola a respeito do<br />
“imprimatur” que havia concedido ao opúsculo. O Bispo lhe<br />
respondeu afirmando que conhecia Melânia de longa data e<br />
admirava suas virtudes.<br />
A Santa Sé, porém, continuou firme em sua posição. Os<br />
Cardeais da Inquisição, descontentes com o caso e apoiados<br />
pelo Papa, pressionaram novamente Dom Zola. Em junho do<br />
mesmo ano de 1880, o Cardeal Caterini escreveu novamente<br />
a Dom Zola, recomendando-lhe que não se ocupasse mais de<br />
Melânia e que ela fosse proibida de escrever sobre tais assuntos.<br />
Pediu também que o opúsculo, que em nada agradara a Santa<br />
Sé, fosse retirado da mão dos fiéis. E comunicou o caso ao Pe.<br />
Archier, Superior Geral dos Missionários de Nossa Senhora da<br />
218
Salette, e aos Missionários responsáveis pelo Santuário da Santa<br />
Montanha.<br />
Na carta ao Superior Geral, o Cardeal Caterini, em nome da<br />
Sagrada Congregação do Santo Ofício, declara a respeito desse<br />
texto de Melânia:<br />
- “A Santa Sé viu com desprazer a publicação desse opúsculo<br />
e quer que os exemplares, lá onde tiverem sido divulgados, sejam<br />
retirados das mãos dos fiéis” (in CARLIER, p. 188).<br />
Em drástica medida do Santo Ofício, o processo de<br />
beatificação de Dom Zola foi interrompido porque daria ocasião<br />
para se falar do “famoso segredo da Salette”. Essa decisão foi<br />
comunicada ao Bispo de Lecce sucessor de Dom Zola, em carta<br />
de 4 de junho de 1936. Em 1951 o Santo Ofício suspendeu<br />
definitivamente o andamento do processo. Essa medida foi<br />
confirmada em 1985 sob o Papa João Paulo II (cf. Jean Stern ms,<br />
“L´affaire des “secrets”, Nota 21, p. 7, polígrafo, La Salette, 16<br />
de julho de 2002). Dom Zola foi um santo Bispo. Sua santidade,<br />
porém, não evitou a imprudência cometida.<br />
A celebridade que a Aparição proporcionou a Melânia dera<br />
lugar a uma espécie de culto em relação a ela. Culto que Dom<br />
Ginoulhiac denunciou em sua Instrução Pastoral e Mandamento,<br />
porque suscitava na vidente uma autoimagem inflada, razão de<br />
sua recusa <strong>à</strong> Profissão Religiosa junto <strong>à</strong>s Irmãs da Providência.<br />
A corrente misticista que a envolvia, nela via, porém, uma santa<br />
favorecida por graças extraordinárias desde sua mais tenra<br />
infância, mas, “nada disso se encontra na Melânia criança, e em<br />
seus primeiros anos após a Aparição” (STERN, 3, p. 132).<br />
Por sua vez, Amédée Nicolas e seus sequazes, apaixonados<br />
pelo “segredo” de Melânia, reagiram ante essas medidas da<br />
Santa Sé. <strong>De</strong>sencadearam pela França afora, uma guerra contra<br />
as intervenções da autoridade eclesiástica. O “movimento<br />
melanista”, que tem suas origens nos anos imediatamente<br />
posteriores a 1851, se exacerbou.<br />
Em 1901 e novamente em 1907, porém, foram postas no<br />
“INDEX” duas outras publicações sobre o “segredo de Melânia”,<br />
219
atribuídas ao Pe. Émile Combe, Pároco de Diou, no Allier, França.<br />
Ele havia hospedado Melânia entre 1899 e junho de 1904.<br />
Em 1915, nova interdição, de caráter geral, foi exarada pela<br />
Santa Sé (in ACTA APOSTOLICAE SEDIS, 7, 1915, p. 594).<br />
Em 1923 ainda, foi expedida nova condenação e nova<br />
inclusão do opúsculo do “segredo de Melânia” no INDEX.<br />
Apesar dos interditos, um grupo combativo continuou a<br />
dar suporte <strong>à</strong> divulgação do “segredo”. <strong>De</strong>sse grupo, além dos<br />
já conhecidos, faziam parte A. Peladan, A. Parent, carmelita<br />
suspenso de ordens, H. Rigaux, Pároco em Argoeuves, fanático<br />
por Nostradamus. Todos apaixonados por segredos. Entre eles o<br />
Pe. Combe e Leon Bloy.<br />
Pode-se dizer que “há uma espécie de conaturalidade entre<br />
o “segredo” e as preocupações milenaristas, cronologisantes e<br />
político-religiosas desse pequeno mundo de que o próprio Léon<br />
Bloy fez parte” (cf. STERN, 3, p. 123).<br />
Léon Bloy e Combe precisam de uma apresentação.<br />
1º. Léon Bloy era um escritor impetuoso, patético, brilhante,<br />
genioso e genial. Foi um entusiasta da Salette, de Melânia e de<br />
seu “segredo”. Escreveu livros com muitas páginas sublimes e<br />
outras temperadas por fortes sabores apocalípticos em torno dessa<br />
questão: - “Symbolisme de l´Apparition” e “Celle qui pleure”.<br />
Antes dele, Melânia havia redigido textos autobiográficos.<br />
Em 1897, enquanto residia na Sicília, Melânia, a pedido<br />
de Dom Annibale Di Francia, redigiu sua autobiografia em<br />
italiano, traduzida por ela mesma para o francês, e completada,<br />
estando próxima ao Pe. Combe, durante sua estadia em Allier,<br />
na França. Combe a repassou a Léon Bloy que a publicou em<br />
1912, oito anos após a morte de Melânia, sob o título “Vie de<br />
Mélanie bergère de La Salette. Écrite par elle-même en 1900.<br />
Son enfance (1831-1846)” (cf. STERN, 3, pg 222). Esse texto<br />
não é invenção de Bloy. Foi retomado por ele.<br />
A vidente Melânia nele descreve experiências místicas<br />
que teria vivido na infância, coisas que uma criança bem pode<br />
sonhar. É impossível admitir que essas considerações místicas,<br />
220
expostas nessa autobiografia, tenham base em reais experiências<br />
extraordinárias vividas na infância pela vidente. Não seriam<br />
elas retroprojeções e sonhos a respeito de um personagem que<br />
Melânia teria gostado de ter sido e não foi? Nem é possível<br />
atribuir criteriosamente um caráter sobrenatural ao “segredo”<br />
por ela formulado e instrumentalizado por outros.<br />
Léon Bloy, porém, lia e entendia o Fato da Salette <strong>à</strong> luz da<br />
vida e do “segredo” de Melânia. O Padre Simão Baccelli MS,<br />
na obra “CONHEÇAM LA SALETTE”, Edições Paulinas, São<br />
Paulo, 1952, traz páginas esclarecedoras sobre essa questão.<br />
O Pe. Simão conheceu pessoalmente Melânia, já idosa, na<br />
Montanha da Salette.<br />
Segundo Bloy, a Aparição da Salette não passava de um<br />
episódio na infância de Melânia a quem considerava como uma<br />
santa estigmatizada, privilegiada por Jesus de cujas mãos ela<br />
teria recebido frequentemente a comunhão.<br />
Trata-se de visão radicalmente contrastante com o que a<br />
história relata a respeito da infância de Melânia.<br />
Leon Bloy visitou a Montanha da Salette pela primeira vez,<br />
a 29 de agosto de 1879. Estava acompanhado pelo Pe. René<br />
Tardif de Moidrey, igualmente patético e genial, um pregador<br />
milenarista, “pai espiritual” de Bloy. Pe. René morreu a 28 de<br />
setembro de 1879, na Montanha, onde foi sepultado no cemitério<br />
dos Missionários Saletinos.<br />
O choque foi terrível para Bloy que ali fez a dura experiência<br />
da fé. Nada, porém, naquela ocasião, o indispôs contra os<br />
Missionários que atuavam no Santuário da Salette.<br />
Leon Bloy foi uma segunda vez <strong>à</strong> Salette e lá permaneceu<br />
entre 17 de setembro e 14 de outubro de 1880. Estava<br />
acompanhado por Anne-Marie Roulet a quem apresentava como<br />
parenta sua. Era uma ex-prostituta convertida por ele, detentora<br />
de “segredos”, uma visionária que acabou imersa na loucura. O<br />
entusiasmo exacerbado de Bloy por Melânia se deve <strong>à</strong> analogia<br />
entre o “segredo” dela e o de Anne-Marie Roulet, e <strong>à</strong>s críticas<br />
contra o Clero que eles veiculam.<br />
221
O comportamento de Bloy e de Anne-Marie na Montanha<br />
da Salette levantava suspeições, causando preocupações aos<br />
Missionários.<br />
Pe. Perrin, Superior do Santuário, avisou Bloy e sua<br />
companheira que era chegado o momento de acertarem a conta<br />
da hospedagem e de partirem, pois, o Santuário e a hospedaria<br />
seriam fechados por causa do inverno já próximo.<br />
Bloy se retirou do Santuário, indignado e trovejante.<br />
Por causa desse episódio, os Missionários se tornaram, para<br />
Bloy, vulgares estalajadeiros, avaros exploradores. Carregou<br />
consigo, pelos anos afora, o ressentimento originado nesse fato.<br />
Mais tarde Bloy acusou os Missionários de roubarem o<br />
“tesouro sacro” do Santuário. Na verdade, em 1901, o Governo<br />
anticlerical proibira a existência de Comunidades Religiosas na<br />
França. Os Missionários se viram obrigados a deixar o Santuário.<br />
Partiram para o exílio. Receosos de que o “tesouro sacro” do<br />
Santuário fosse sequestrado pelo Governo, quiseram pô-lo a<br />
salvo, levando-o consigo. O caso propiciou a Bloy a ocasião<br />
de se vingar dos Missionários, acusando-os de roubo. Mais<br />
tarde, quando a tranqüilidade político-religiosa da França foi<br />
reinstalada, os objetos sagrados foram devolvidos. A questão do<br />
“tesouro sacro” do Santuário, que havia sido denunciada junto <strong>à</strong><br />
Santa Sé, foi por ela examinada e julgada. O Vaticano deu plena<br />
razão aos Missionários.<br />
Bloy estava indignado também contra Dom Ginoulhiac<br />
porque não tinha admitido Melânia aos votos religiosos.<br />
Em 1906, Bloy retornou pela terceira vez ao Santuário<br />
da Salette. Os Missionários já não estavam lá, em virtude da<br />
interdição das Comunidades Religiosas na França. Haviam<br />
partido para o exílio. Um grupo de Padres da Diocese de<br />
Grenoble assumiu, então, o serviço pastoral no Santuário. Os<br />
Missionários voltaram no fim da 2ª Guerra Mundial.<br />
Preocupado com o fim dos tempos e seus terríveis cataclismas,<br />
fim iminente segundo suas extravagantes interpretações da<br />
Bíblia, Bloy fazia, a seu modo, na perspectiva apocalipticista,<br />
222
a exegese do “segredo” e da autobiografia de Melânia. Para ele,<br />
a confirmação do “segredo” era a I Guerra Mundial que estava<br />
acontecendo.<br />
Leon Bloy morreu em 1917, em plena Guerra.<br />
Pode-se dizer que a Salette, para Bloy, “é o SINAL maior,<br />
a matriz interpretativa de toda a trajetória da história. Os<br />
acontecimentos são avaliados e calculados em relação <strong>à</strong> Salette<br />
que, por isso mesmo, se torna a Chave da história humana”<br />
(ANGELIER, p. 189).<br />
2º. Pe. Émile Combe nasceu em 1845 e morreu em 1927.<br />
Trabalhava em Vichy, na França. Era um caráter forte e crítico,<br />
de mentalidade apocalíptica e monarquista.<br />
Em 1894, antes de acolher em sua Paróquia a vidente Melânia<br />
já idosa, publicou uma obra intitulada “Le grand coup avec sa<br />
date probable. Étude sur le secret de La Salette comparé aux<br />
Prophéties de l´Écriture et <strong>à</strong> d´autres prophéties authentiques”.<br />
Nessa obra, Combe predisse que o grande castigo do mundo<br />
e o triunfo universal da Igreja aconteceriam a 19 de setembro de<br />
1896, precisamente no Cinquentenário da Aparição.<br />
O “segredo” de Melânia foi necessariamente retomado<br />
nessa obra de Combe que interpretava os acontecimentos ao<br />
seu belprazer, na ótica apocalíptica a que o “segredo” se presta.<br />
A 15 de junho de 1901 a obra foi posta no INDEX dos livros<br />
proibidos pela Santa Sé.<br />
Melânia chegou a Diou no dia 20 de maio de 1899. Combe,<br />
o Pároco, procurou manter sob discreção sua identidade. Quis<br />
alojá-la em Vichy para estar próximo a ela. Não conseguiu,<br />
porém, realizar esse intento. Melânia voltou, então, para a Itália.<br />
Um mês depois, ela retornou e se abrigou numa pequena casa<br />
na Paróquia de Saint-Pourçain-sur-Sioule cujo Pároco era amigo<br />
de Combe. Ali permaneceu até abril de 1900. A seguir, ela foi a<br />
Diou para dar assistência ao pai de Combe, em final de vida.<br />
Em setembro de 1900, Combe acompanhou Melânia numa<br />
viagem a La Salette. <strong>De</strong>pois publicou uma pequena brochura<br />
sob o título: “Le secret de Mélanie et la crise actuelle”.<br />
223
Em novembro de 1900 Melânia redigiu a autobiografia<br />
publicada por Bloy.<br />
Por fim, Melânia voltou <strong>à</strong> Itália onde faleceu em 1904.<br />
Em seu “Journal”, Combe se propôs defender a vidente da<br />
Salette contra as calúnias de que dizia ser vítima, e servir de<br />
testemunha num eventual processo para a sua beatificação.<br />
As últimas páginas do “Journal” de Combe estavam<br />
repletas de críticas <strong>à</strong> Igreja porque ela se opunha <strong>à</strong> publicação<br />
do “segredo” de Melânia. Segundo Combe, a Igreja devia se<br />
converter desse pecado que só o castigo divino podia redimir.<br />
No “Journal”, Combe traçou um itinerário espiritual de<br />
Melânia. Nele a Aparição da Salette fica em segundo plano, sem<br />
importância. A predominância é atribuida a Melânia e ao seu<br />
“segredo”.<br />
<strong>De</strong>pois de 1851, Melânia pode ter sido enganada ou por<br />
falhas pessoais de memória, ou por uma imaginação distorcida.<br />
A vidente foi, sem dúvida, também influenciada por pessoas<br />
exaltadas e de discernimento pouco seguro, com as quais ela<br />
teve notoriamente contacto.<br />
O período estava impregnado de “profetismo” esotérico<br />
recorrente no século XIX, sobretudo na França que vivia duras<br />
turbulências desde a Revolução de 1789. O clima era propício ao<br />
surgimento de “profecias” de teor apocalíptico, fruto e causa de<br />
terror. A Revolução de 1848 ou Comuna de Paris, e a derrota na<br />
Guerra franco-alemã de 1870, levaram muitas pessoas a tomar a<br />
sério “profecias” de nenhuma seriedade.<br />
Os tempos eram complexos e permitiam o surgimento<br />
do anúncio de desgraças. Com ele, muitos “erros do século”<br />
apareceram e foram condenados pelo SYLLABUS de Pio IX.<br />
O Apocalipse de São João era usado de maneira distorcida. A<br />
espera do fim dos tempos se articulava com a regeneração da<br />
fé para expiação dos crimes cometidos. A imagem de um <strong>De</strong>us<br />
vingador justificava os clamores apocalípticos.<br />
Esse modo de pensar havia sido condenado pela Igreja.<br />
O CONCÍLIO de LATRÃO, na Constituição “Munus<br />
224
Praedicationis”, de 19 de dezembro de 1516, condenava, como<br />
lembra Marc Venard, “as pregações escatológicas que juntavam<br />
multidões naquela época, no começo do séc. XVI, uma obra de<br />
homens ‘que acenam com terrores e ameaças, anunciando como<br />
iminentes muitos males... e que esses males já estão presentes’,<br />
e que tentam confirmar suas afirmações com falsos milagres. O<br />
Concílio proíbe-os de ‘afirmar com segurança a época fixada<br />
para os males futuros, ou para a vinda do anticristo, ou o dia<br />
preciso do juízo” (in ALBERIGO, p. 322).<br />
Essa mesma reprovação foi retomada pela Igreja, no século<br />
XX. A 11 de outubro de 1962, na sessão solene de abertura do<br />
CONCÍLIO VATICANO II, reunido na Basílica Vaticana, o Papa<br />
JOÃO XXIII, na Alocução Inaugural, afirmou que é preciso<br />
discernir os sinais dos tempos, superando as “insinuações<br />
de almas que, embora ardentes de zelo, carecem do senso de<br />
discernimento e de medida, e só vêem nos tempos modernos<br />
prevaricação e ruína, o que as leva a dizer que a nossa época é<br />
pior, comparada com os tempos passados”. E acrescentou que<br />
se via obrigado a “discordar desses profetas da desgraça, que<br />
anunciam eventos sempre infelizes, como se fosse iminente o<br />
fim do mundo” (in ALBERIGO, p. 400).<br />
O caso de Melânia, portanto, não foi um fenômeno isolado.<br />
Em seu tempo, “é esse “capital profético” de que igualmente<br />
dispõe Melânia, a pastora da Salette, que se transforma em<br />
pitonisa, em profetiza a favor das turbulências que rasgam<br />
a França dos anos 1870. Ela se declara portadora de “visões”<br />
sobre o futuro doloroso de seu país, as quais lhe teriam sido<br />
transmitidas pela Virgem, quando da Aparição de 19 de setembro<br />
de 1846. O “segredo” de Melânia tende assim a se transformar<br />
numa profecia que anuncia a iminência do fim dos tempos. A<br />
recepção da mensagem marial, assim transformada, desenha<br />
uma nova face da vidente de La Salette” (in ANGELIER, p. 70).<br />
Nessa perspectiva, Melânia assenta seu “segredo” sobre três<br />
elementos básicos: um anticlericalismo acentuado, a esperança<br />
de uma conversão massiça dos fiéis para escapar do Apocalipse<br />
225
anunciado, e a presevação de uma elite na fé, os “verdadeiros<br />
discípulos do <strong>De</strong>us vivo”, “os verdadeiros imitadores de Cristo”,<br />
“os apóstolos dos últimos tempos”.<br />
No cadinho desse misticismo recheado de esoterismo, de<br />
milenarismo e apocalipticismo, se formou em torno de Melânia<br />
e de seu “segredo” o chamado “movimento melanista”. Pessoas<br />
impregnadas desse modo de pensar induziram Melânia a transitar<br />
por esse caminho.<br />
Muitos foram e são os inconvenientes teológicos e pastorais<br />
suscitados por esse movimento. Incompreensões e distorções<br />
surgiram a respeito do Fato da Salette, da Congregação dos<br />
Missionários de Nossa Senhora da Salette e de seu generoso<br />
trabalho pastoral junto ao Santuário da Montanha da Aparição.<br />
Prefere-se dar crédito a forjadas “profecias” mais que ao Fato<br />
e <strong>à</strong> Mensagem da Aparição, densos do mistério do Amor<br />
Compassivo do Senhor por seu Povo convocado <strong>à</strong> conversão.<br />
Nessa longa, confusa e triste história, Melânia, apesar de<br />
sua profunda afeição <strong>à</strong> Bela Senhora e da busca de santidade<br />
por uma vida de oração e penitência, mas também, em sua parca<br />
percepção, simplicidade de formação e sobrecarga de traumas,<br />
foi envolvida por tramas ideológicas variadas que prejudicaram<br />
sua imagem. Induzida a tanto, reprojetou uma ilusória autoimagem,<br />
fazendo de si o que não tinha sido no passado prévio<br />
<strong>à</strong> Aparição. Ofereceu, talvez inconscientemente, razões para o<br />
“melanismo” que se construiu.<br />
A santidade não elimina certas limitações pessoais. Santo<br />
algum esteve isento delas. Com elas, nelas e por causa delas<br />
saíram em busca da perfeição. Melânia não fugiu a essa realidade.<br />
Teve suas qualidades mescladas a suas imperfeições. Nesse<br />
quadro viveu sofridamente em seu afã de santificação. A Mãe da<br />
Reconciliação da Salette, compadecida de seu Povo, reservou,<br />
sem dúvida, amorosa compaixão por Melânia, a escolhida para<br />
ser testemunha de sua Aparição.<br />
Melânia e Maximino, como membros do “Povo dos<br />
Pobres de Javé”, são bem-amados pelo Senhor e, depois de<br />
226
tanto sofrimento, foram por certo recebidos em sua eterna bem<br />
aventurança e no aconchego celestial da Bela Senhora. No<br />
término da vida novamente ouviram, sem dúvida, seu maternal<br />
convite: “Vinde, meus filhos, não tenhais medo!”.<br />
CAPÍTULO III<br />
OS “SEGREDOS”: A DESCOBERTA DO NADA<br />
A descoberta das cartas manuscritas contendo os “segredos”<br />
de Melânia e Maximino, enviadas ao Papa Pio IX em 1851,<br />
permitiu nova ênfase ao “movimento melanista”. No entanto,<br />
uma análise criteriosa permite entender sobre que bases os dois<br />
textos estão assentados. Somem-se a eles as “revelações” de<br />
Melânia, posteriores a 1851. Bases de areia movediça.<br />
Considerado o longo e perturbado contexto histórico em<br />
que essa questão surgiu, os dois manuscritos confirmam o que<br />
se presumia. Seu conteúdo não pode corresponder efetivamente<br />
<strong>à</strong> “palavra pessoal” dada pela Bela Senhora a cada um dos<br />
videntes. Só pode ser fruto de projeções pessoais ocasionadas<br />
pelas circunstâncias conhecidas. A “descoberta” dos “segredos”<br />
é, pois, a “descoberta do nada”. Nada de novo acrescentam ao<br />
presumido.<br />
Sabia-se que um dossiê consagrado <strong>à</strong> Salette fora constituído<br />
pela Santa Sé a partir de 1880, quando da ruidosa polêmica<br />
levantada pela publicação das “revelações” de Melânia, com o<br />
“imprimatur” concedido por Dom Zola, em 1879.<br />
As duas cartas, a de Maximino e a de Melânia, redigidas em<br />
Grenoble em 1851 e enviadas ao Papa Pio IX, se encontravam<br />
nesse dossiê.<br />
O francês Pe. Michel Corteville, um melanista convicto, filho<br />
de outro conhecido melanista, Fernand Corteville, preparava nos<br />
anos finais do século XX, um doutorado sobre o tema da Salette,<br />
na ótica do “segredo de Melânia”.<br />
227
Esse tema permanecia ainda inacessível. Seu tratamento<br />
sofria sérias restrições por parte da Santa Sé, como o demonstra<br />
uma Nota, enviada a Fernand Corteville, pai de Pe. Michel, a<br />
13 de outubro de 1977. A Nota continha uma advertência sobre<br />
a exploração publicitária dessa questão. Nela a Congregação<br />
para a Doutrina da Fé declarou que sua prática continuava a<br />
se inspirar no <strong>De</strong>creto do Santo Ofício de 21 de dezembro de<br />
1915, segundo o qual a posição da Santa Sé era explicitamente<br />
negativa quanto ao “segredo” e previa sanções canônicas aos<br />
relapsos. Sabia-se, evidentemente, que a partir de 1880, a Santa<br />
Sé havia incluido no “INDEX DOS LIVROS PROIBIDOS”,<br />
obras que tratavam do “segredo”.<br />
Na tarefa assumida, Pe. Michel não deve ter levado em conta<br />
as medidas da Santa Sé a respeito dessa questão, particularmente<br />
a Carta datada de 28 de fevereiro de 1983, assinada por Dom E.<br />
Martinez e enviada pela Secretaria de Estado do Vaticano a Dom<br />
Matagrin, Bispo de Grenoble. Nela se afirma:<br />
- “Excelência, em novembro de 1982, Vós manifestastes <strong>à</strong><br />
Secretaria do Estado vosso embaraço muito compreensível diante<br />
das propostas sustentadas pelo Sr. F. Corteville. Por outro lado,<br />
naquilo que diz respeito ao “Segredo da Salete”, a Congregação<br />
para a Doutrna da Fé já teve ocasião de responder diretamete<br />
ao próprio Sr. Corteville – depois de reiteradas insistências da<br />
parte dele – na forma de breve nota que lhe foi comunicada a 13<br />
de outubro de 1977 e cujo essencial aqui está: “Nessa questão,<br />
a prática da Sagrada Congregação continua a se inspirar no<br />
<strong>De</strong>creto do Santo Ofício da data de 21 de dezembro de 1915:<br />
´<strong>De</strong> sic dicto Secret de La Salette, Sanctum Officium mandat<br />
omnibus fidelibus cujusque regionis ne sub quovis praetextu vel<br />
quavis forma disserant aut pretractent´”. A Congregação estima<br />
que é oportuno que se mantenha essa medida, para evitar tanto<br />
quanto possível a difusão de toda uma literatura contestável<br />
sobre o suposto “Secret”. Isso de nenhuma forma significa que<br />
ela queira jogar suspeitas sobre o culto votado <strong>à</strong> Bemaventurada<br />
Virgem Maria sob o título de Nossa Senhora da Salette, na<br />
228
linha da Exortação Apostólica MARIALIS CULTUS do Papa<br />
Paulo VI. Seria, por outro lado, inadmissível que se venha a<br />
semear perturbações no Santuário de La Salette nas cerimônias<br />
que ali se realizam sob a responsabilidade do Reitor e em<br />
pleno acordo com o Ordinário do Lugar, o Bispo de Grenoble.<br />
Aceitai, Excelência, a certeza de meu fraterno devotamento” (cf.<br />
fotocópia do original assinado por Dom E. Martinez).<br />
Entre 1997 e 1998, porém, sob o pontificado de João Paulo<br />
II, os arquivos do Santo Ofício foram abertos a pesquisadores e<br />
historiadores.<br />
Ao saber que a Congregação para a Doutrina da Fé havia<br />
aberto os arquivos para a pesquisa, Pe. Michel teve acesso ao<br />
dossiê da Salette, a 2 de outubro de 1999. Para sua volumosa<br />
tese acadêmica, valeu-se então, das duas cartas dos videntes<br />
ali encontradas, sobretudo da de Melâna e de suas sucessivas<br />
redações do “segredo”, bem como de sua famosa autobiografia.<br />
A obra acadêmica foi publicada em co-autoria entre Pe.<br />
Michel Corteville e Pe. René Laurentin, sob o título de “Un an<br />
après la révélation du troisième secret de Fátima. Découverte du<br />
secret de La Salette”, Ed. Fayard, 2002.<br />
Trata-se de trabalho ingente sobre fundamentos vãos. No<br />
livro se dá a maior importância ao “segredo” de Melânia em suas<br />
diferentes redações. Nisso consiste o ponto focal dos autores.<br />
No universo melanista, “o texto dos autores pode bem ser<br />
considerado a obra prima atual... Em verdade, esse livro não<br />
ajuda a ninguém, porque, embora trazendo documentos novos<br />
até agora não consultáveis, em primeiro lugar as duas redações<br />
(de 1851 e de 1854) dos segredos das crianças, insere-os num<br />
sistema de pensamento que os deformou já no ponto de partida”<br />
(ROGGIO, p. 19).<br />
Roggio faz uma análise severa dessa obra. <strong>De</strong>svenda seu erro<br />
metodológico, a falsidade histórica e a distorção teológica na<br />
abordagem do evento. Nela percebe a real intenção dos autores:<br />
- “A tese de fundo sustentada pelos autores é que o evento<br />
de La Salette encontra sua explicação autêntica nos segredos<br />
229
confiados pela Virgem a Maximino e Melânia. (...) <strong>De</strong>ntre os<br />
segredos sobressai o de Melânia que, por isso, se torna o ponto<br />
focal de todo o tratado. (...) Essa postura, que situa no segredo de<br />
Melânia o núcleo central, (...) pode ser razoavelmente sustentada<br />
somente a partir da afirmação positiva da santidade dos videntes:<br />
na verdade, só a real santidade de Maximino e Melânia pode<br />
garantir que tudo quanto vem revelado nos segredos é verdadeiro<br />
e, portanto, digno de fé. (...) Julgar o evento de La Salette significa<br />
julgar a santidade de Maximino e de Melânia, pressuposta e<br />
tornada visível nos segredos. (...) Acolher La Salette significa, de<br />
fato, acolher Melânia: ela, com Maximino em posição subalterna,<br />
é o verdadeiro sinal da Aparição, a verdadeira graça concedida <strong>à</strong><br />
Igreja” (ROGGIO, p. 1).<br />
Roggio, em seu texto, exemplifica:<br />
- “São desconcertantes as confusões e as imprecisões que<br />
os autores cometem ao nível da metodologia teológica e da<br />
apresentação histórica. (...) Por mais vezes os autores repetem<br />
abertamente que foi a leitura dos segredos, seja por parte do<br />
Bispo de Grenoble, <strong>De</strong> Bruillard, seja por parte de Pio IX, que<br />
deu o impulso decisivo e inapelável para a decisão de aprovar<br />
oficialmente tudo que aconteceu a 19 de setembro de 1846.<br />
(...) Isso é historicamente e teologicamente falso. Dom <strong>De</strong><br />
Bruillard escreve textualmente no decreto de aprovação de 19-<br />
09-1851: ´A nossa convicção (relativamete <strong>à</strong> Aparição) já era<br />
plena e indubitável ao final das sessões da Comissão, a 13-12-<br />
1847´. A redação dos segredos e sua leitura por parte de Dom<br />
<strong>De</strong> Bruillard acontece, porém, entre 3 e 6 de julho de 1851.<br />
Quanto <strong>à</strong> posição da Sé Apostólica, ela não fez nada mais que<br />
confirmar a possibilidade de, por parte de Dom <strong>De</strong> Bruillard,<br />
emitir um julgamento autônomo em relação a seu metropolita,<br />
o Arcebispo de Lyon, o Cardeal <strong>De</strong> Bonald, jamais convencido<br />
da autenticidade da Aparição. Por outro lado, se realmente os<br />
segredos, como sustentam os autores, ´referem-se aos temas<br />
essenciais da profecia de La Salette´, dever-se-ia encontrar seu<br />
reflexo no decreto de aprovação assinado por Dom <strong>De</strong> Bruillard.<br />
230
Nada disso aparece. O decreto não concede aos segredos um lugar<br />
ou uma dignidade particular: eles não estão acima da Aparição.<br />
(...) Os objetivos da Aparição não provêm dos segredos. (...) O<br />
que aqui é considerado em perspectiva apostólica e espiritual<br />
é a mensagem pública simplesmente: se é isso que determina<br />
não ´uma´, mas, ´a´ resposta da Igreja no evento, então significa<br />
que é a mensagem pública que é seu centro e a chave de leitura<br />
hermenêutica. Os autores são, pois, novamente desmentidos<br />
pelo decreto de aprovação uma vez que a autenticidade da<br />
aparição não promana e não provém dos segredos. (...) Os<br />
autores estão de tal forma presos por sua tese que não se dão<br />
conta de como o decreto apresenta invariavelmente a aparição<br />
como uma totalidade: ´Nós julgamos que a aparição (...) traz<br />
em si mesma todos os carateres da verdade´. Isso quer dizer<br />
que uma correta hermenêutica teológica do evento deve partir<br />
precisamente desta visão holística. É o que os autores não<br />
fazem. Por isso mesmo caem num concordismo obsessivo e<br />
continuado (...) que somente serve para justificar teses que não<br />
estão presentes na resposta oficial da Igreja em relação ao que<br />
ocorreu a 19 de setembro de 1846. (...) Por isso, percebe-se<br />
uma dupla inversão: os segredos (que são uma parte da aparição)<br />
se tornam a chave de explicação para aquilo que não é segredo<br />
(o discurso público, verdadeira caraterística típica do evento);<br />
os videntes (que também são uma parte da aparição) se tornam<br />
a garantia de sua verdade quando, efetivamente, isso se apóia<br />
no reconhecimento de sua incapacidade de enganar e de sua<br />
capacidade de não serem enganados, ou seja, de não serem os<br />
produtores do evento” (ROGGIO, p. 1-3).<br />
Outras deturpações por parte dos autores são detectadas por<br />
Roggio, no tocante <strong>à</strong> posição de Dom Ginoulhiac, sucessor de<br />
Dom <strong>De</strong> Bruillard, com relação <strong>à</strong> Aparição e aos videntes.<br />
O que a eles interessa é forçar a aceitação do propalado<br />
“profetismo” de Melânia, mais do que anunciar o apelo da Palavra<br />
de <strong>De</strong>us que passa pela Aparição. Trabalham na expectativa de<br />
se alcançar a canonização da vidente. Contudo, a despeito das<br />
231
inegáveis virtudes de Melânia, sua figura histórica é envolta de<br />
confusão em virtude das limitações pessoais e da manipulação<br />
de que foi vítima.<br />
Quanto ao “segredo” fabricado por Melânia, instigada<br />
por outrem, concluiu nessa triste desfiguração do evento da<br />
Salette. Quanto, porém, <strong>à</strong> “palavra pessoal” que a Bela Senhora<br />
confiou aos dois pastores separadamente, durante a Aparição,<br />
com certeza absoluta ela permaneceu no secreto do coração dos<br />
videntes.<br />
A descoberta do “segredo” em Roma é, pois, a descoberta<br />
do sem sentido. A descoberta do nada.<br />
Infelizmente, Pe. René Laurentin, mariólogo de renome em<br />
seu tempo, por razões que <strong>De</strong>us conhece, se deixou envolver<br />
por uma mentalidade escatologista, e abandonou seu criterioso<br />
método teológico na análise de Aparições. Seu método teve<br />
sucesso na análise de Lourdes. Em matéria de pesquisa histórica<br />
a respeito dessa Aparição, analisou todos os documentos em<br />
sua ordem cronológica. Não seguiu, porém, o mesmo caminho<br />
em relação <strong>à</strong> Salette, como o demonstra essa obra conjunta. O<br />
método agora seguido foi o de explorar a documentação em<br />
função de uma tese a ser demonstrada... A tese estava definida<br />
em prejuízo da verdade histórica, obnubilada pela manipulação<br />
dos documentos.<br />
Contrariamente a essa postura metodológica estranha de<br />
Laurentin nessa obra conjunta, o Pe. Jean Stern MS analisou a<br />
fundo e longamente o Fato da Salette, fazendo uso do método<br />
científico aplicado pelo próprio Laurentin em 1958, em seus<br />
estudos sobre as Aparições de Lourdes. Documentos, fatos e datas<br />
a respeito da Salette, todos e numa ordem cronológica e segundo<br />
uma postura crítica, foram publicados pelo Pe. JÉAN STERN<br />
MS em três volumes: “La Salette - Documents Authentiques:<br />
Dossier Chronologique Intégral” (cf. bibliografia).<br />
Os “segredos” de Maximino e de Melânia encontrados nos<br />
arquivos da Santa Sé, respectivamente datados de 3 e 6 julho de<br />
1851, trazem a assinatura dos videntes e, sobre os envelopes,<br />
232
a assinatura dos testemunhas do ato de redação em Grenoble.<br />
O público tomou amplo conhecimento deles pela imprensa. O<br />
sensacionalismo da “mídia” não deixou de se manifestar.<br />
1) O texto manuscrito de Maximino, em sua redação<br />
original, com os erros de ortografia e composição, é o seguinte:<br />
- “A 19 de setembro de 1846 nós vimos uma bela Senhora.<br />
Nós jamais dissemos que essa senhora era a Santa Virgem<br />
mas nós sempre dissemos que era um bela Senhora. Não sei<br />
se é a santa Virgem ou uma outra pessoa hoje eu creio que é<br />
a santa virgem Eis o que essa Senhora me disse:- “Se meu<br />
povo continua, aquilo que vou dizer-vos virá mais cedo, se ele<br />
muda um pouco isso acontecerá um pouco mais tarde. A frança<br />
corrompeu o universo um dia ela será punida a fé se apagará<br />
na frança três partes da frança não praticarão mais a religião ou<br />
quase nada a outra parte a praticará sem praticá-la bem, pois<br />
depois as nações se converterão a fé se reacenderá por toda<br />
parte. Uma grande região no norte da Europa hoje protestante<br />
se converterá com o apoio dessa região todas as outras regiões<br />
do mundo se converterão, antes que tudo isso aconteça grandes<br />
perturbações acontecerão na igreja e por toda a parte depois o<br />
nosso Santo padre o papa será perseguido seu sucessor será um<br />
pontífice que ninguém espera depois uma grande paz virá mas<br />
ela não durará muito tempo um monstro virá perturbá-la tudo o<br />
que vos disse aqui acontecerá no outro século Mais nos dois mil<br />
anos”. Maximino Giraud (ela me disse de o dizer algum tempo<br />
antes) Meu Muito Santo Padre vossa santa bênção a uma de<br />
vossas ovelhas Maximino Giraud, 3 de julho de 1851 Grenoble”.<br />
O texto de Maximino, descoberto no Vaticano, é quase idêntico<br />
ao “segredo” que ele comunicou a Dausse, em 11 de agosto de 1851,<br />
depois de ter enviado seu manuscrito ao Papa Pio IX. Mais tarde,<br />
em 1853, Maximino passou seu “segredo” também a um colega.<br />
O texto é um conjunto de mistificações sem nexo, usadas<br />
por Maximino, um adolescente de temperamento irrequieto e<br />
vivaz, para saciar a curiosidade de seus inquisidores. Seu teor,<br />
233
composto por invenções de caráter apocalíptico e sem incidência<br />
prática para a vida de fé, não corresponde <strong>à</strong> Mensagem da<br />
Aparição, impregnada de apelos <strong>à</strong> conversão e reconciliação.<br />
O conteúdo do “segredo” de Maximino, feito de elementos<br />
que suscitam medo, contradiz o que ele mesmo afirmou <strong>à</strong><br />
Mme. <strong>De</strong> Monteynard, dez dias após a Aparição, quando ela<br />
lhe perguntou se a “palavra pessoal” por ele recebida da Bela<br />
Senhora, falava de coisas felizes ou infelizes.<br />
- “A essa pergunta, afirma ela, o rosto do menino tomou uma<br />
expressão inefável e ele respondeu em voz baixa e sorrindo:<br />
- Ah! É uma felicidade!” (STERN, p.63).<br />
O Pe. Mélin, em carta a Rousselot, também afirmou que a<br />
“palavra pessoal” “parece suscitar-lhe uma grande alegria” (id. ib.).<br />
Esses testemunhos indicam a necessidade de se fazer uma<br />
distinção entre o verdadeiro “segredo”, i.e., a “palavra pessoal”<br />
dita pela Bela Senhora durante a Aparição e conservada no<br />
silêncio do coração por Maximino, e o “segredo” imaginário<br />
posto por escrito e enviado ao Papa pelo adolescente.<br />
2) O texto manuscrito de Melânia, em sua redação original e<br />
com suas idiosincrasias, é o seguinte:<br />
- “J. M. J. Segredo que a Santa Virgem me deu sobre a<br />
Montanha de La Salette a 19 de setembro de 1846.<br />
Segredo, Melânia, vou dizer-vos alguma coisa que não<br />
direis a ninguém.<br />
O tempo da cólera de <strong>De</strong>us chegou; se quando tiverdes dito<br />
aos povos o que eu há pouco vos disse, e aquilo que eu vos<br />
direi de dizer também; se depois disso eles não se converterem,<br />
que não se fizer penitência e se não se parar de trabalhar no<br />
Domingo, e se se continua a blasfemar o Santo Nome de <strong>De</strong>us,<br />
numa palavra, se a face da terra não muda, <strong>De</strong>us vai se vingar<br />
contra o povo ingrato, e escravo do demônio, meu Filho vai<br />
fazer explodir seu poder.<br />
Paris essa cidade corrompida por todas sortes de crimes<br />
perecerá infalivelmente Marselha será destruída em pouco<br />
234
tempo, quando essas coisas acontecerem: a desordem será<br />
completa sobre a terra; o mundo se entregará a suas paixões<br />
ímpias.<br />
O Papa será perseguido por todas as partes se atirará sobre<br />
ele, se quererá Metê-lo <strong>à</strong> Morte, mas não se lhe poderá nada, o<br />
Vigário de <strong>De</strong>us triunfará ainda essa vez.<br />
Os padres e as religiosas, e os verdadeiros servidores de<br />
meu Filho serão perseguidos e muitos morrerão pela fé de Jesus<br />
Cristo.<br />
Uma fome reinará ao mesmo tempo.<br />
<strong>De</strong>pois que todas essas coisas tiverem chegado muitas das<br />
pessoas reconhecerão a mão de <strong>De</strong>us sobre elas, se converterão<br />
e farão penitência de seus pecados.<br />
Um grande rei subirá sobre o trono e reinará durante alguns<br />
anos. A religião reflorescerá e se estenderá por toda a terra e a<br />
fertilidade será grande, o mundo contente por não lhe faltar nada<br />
recomeçará suas desordens, e abandonará deus, se entregará a<br />
suas paixões criminosas.<br />
Os ministros de <strong>De</strong>us, e as Esposas de Jesus Cristo há os<br />
que se entregarão <strong>à</strong> desordem, e é o que haverá de terrível, enfim<br />
um inferno reinará sobre a terra; será então que o antecristo<br />
nascerá de uma religiosa, mas desgraça para ela; muitas pessoas<br />
acreditarão nele porque ele se dirá o vindo do céu, desgraça para<br />
aqueles que o crerão, o tempo não está longe não passará duas<br />
vezes 50 anos<br />
Minha filha vós não direis nada do que acabo de vos dizer<br />
não o direis a ninguém, vós não direis se vós deveis dizê-lo um<br />
dia, vós não direis o que diz respeito a isso, enfim vós não direis<br />
nada até que vos diga de o dizer!!!<br />
Peço a Nosso Santo Padre o Papa de me dar sua santa bênção.<br />
Melânia Mathieu Pastora de La Salette<br />
Grenoble 6 de julho de 1851 J. M. J. +<br />
“ (in STERN, Jean, ms: “Note sur les “secrets”<br />
de 1851”, polígrafo, 27-01-2001)<br />
235
O texto de Melânia, enviado ao Papa em 1851 e encontrado<br />
no Vaticano, é mais curto que o texto do “segredo” por ela<br />
publicado em 1879, mas a temática é igual: o anticristo, os<br />
maus padres, a destruição de Paris e Marselha... Nada de<br />
fundamentalmente novo, portanto.<br />
A vidente se refere a certas categorias de pessoas e não<br />
simplesmente ao povo em geral, como o faz a Mensagem pública<br />
da Aparição. É surpreendente, porém, o fato de que tenham<br />
sido reveladas tais coisas <strong>à</strong> adolescente Melânia em 1846. É<br />
impossível evitar o ceticismo nessa questão.<br />
Apesar das poucas convergências entre o “segredo de<br />
Melânia” e a Mensagem da Salette, as divergências entre ambos<br />
são muito grandes. Com as sucessivas publicações que dela<br />
recebeu, desde os poucos elementos redacionais em 1853 até a<br />
redação completa em 1879, o “segredo de Melânia” se tornou o<br />
foco de grandes incompreensões em relação <strong>à</strong> Salette.<br />
Nos textos de Maximino e de Melânia há curiosidades malsãs<br />
que atraem. Ambos, através de certos personagens que os rodeavam<br />
com diferentes intenções, tiveram contato com o “profetismo”,<br />
através de narrativas apocalípticas, relacionadas a desgraças e ao<br />
fim do mundo, coisas que invadem a cabeça do povo há séculos.<br />
Alguns temas acenados nas duas cartas eram conhecidos<br />
na época: o anticristo; o fim do mundo; a destruição de Paris<br />
e Marselha; a conversão de uma região protestante do norte<br />
europeu que já tinha acontecido com o Movimento de Oxford,<br />
na Inglaterra; o atentado contra o Papa, o que era sabido uma vez<br />
que, em 1848, em Roma, durante uma revolução, um colaborador<br />
próximo ao Papa foi assassinado; e outras “profecias” populares,<br />
surgidas após a Revolução de 1848.<br />
No entanto, com a publicação das cartas dos videntes<br />
encontradas no Vaticano, o melanismo viveu um substancial<br />
surto de euforia.<br />
Essa complicada história exige, portanto, precaução na<br />
interpretação das “revelações” de Maximino e, particularmente,<br />
de Melânia.<br />
236
STERN, o grande pesquisador do evento Salette, escreve:<br />
- “Pode-se dizer que Maximino e Melânia viveram uma<br />
experiência religiosa profunda na montanha, a 19 de setembro<br />
de 1846. Esse evento marcou profundamente a vida deles. Eles<br />
tudo fizeram para permanecerem fiéis <strong>à</strong> Mensagem que Maria<br />
lhes entregou. Em relação aos segredos diria que fazem parte de<br />
sua experiência religiosa, a partir da Aparição. Uma experiência<br />
que continuaram lendo a partir do evento como tal e do círculo<br />
de pessoas que os submeteu a toda espécie de pressões e<br />
manipulações religiosas e políticas. Não esqueçamos que as<br />
crianças resistiram até onde suas forças lhes permitiram fazê-lo.<br />
Elas escreveram-nos, seduzidas por mentiras, ameaças… Nada<br />
há de estranho se incluiram na redação dos segredos toda espécie<br />
de predições apocalípticas que corriam por toda parte nessa<br />
época. Nada há de estranho se, ouvindo essas coisas, elas as<br />
incorporaram a suas experiências humanas, sociais e religiosas”<br />
(STERN, in “Maximin et Mélanie: les secrets”, polígrafo, p.5).<br />
Diante de tudo isso, a pergunta surge: se os videntes foram<br />
influenciados quanto <strong>à</strong> montagem do “segredo”, não o teriam<br />
sido também quanto <strong>à</strong> Mensagem da Aparição?<br />
Um judicioso discernimento dirá que, entre o que os videntes<br />
experimentaram a partir de 1847-1848, quando Maximino e<br />
Melânia começaram a sofrer grandes pressões para expressarem<br />
os “segredos”, e o que os videntes eram antes da Aparição, há<br />
uma enorme diferença.<br />
A Mensagem da Bela Senhora foi confiada aos dois videntes<br />
em sua situação pessoal de natural simplicidade, e mantida em<br />
sua integridade. O “segredo” ou “palavra pessoal”, também<br />
recebida durante o evento, foi objeto de especulações e distorções<br />
posteriores ao evento.<br />
Além disso, o “segredo” de Melânia, publicado em diversas<br />
redações posteriormente a 1851, sofreu reais acréscimos por<br />
parte da vidente, o que não aconteceu com a Mensagem que<br />
sempre permaneceu a mesma, narrada sempre com a mesma<br />
fidelidade, tanto por Melânia quanto por Maximino.<br />
237
Tudo considerado, conclui-se que é impossível reconhecer<br />
uma origem sobrenatural dos “segredos” dos dois videntes,<br />
tais como foram enviados ao Papa, menos ainda do posterior<br />
“segredo de Melânia”.<br />
Quanto <strong>à</strong> “palavra pessoal” da Bela Senhora, certamente<br />
nunca foi transcrita em papel algum. Permaneceu, sim, no mais<br />
profundo do coração de Melânia e de Maximino.<br />
A diferença entre os “segredos” e a Mensagem também<br />
está na dimensão teológica: nos dois “segredos” apenas se<br />
acena para o nome de Jesus Cristo, mas nunca Ele é descrito<br />
como o Salvador. Ora, na Mensagem, o Filho da Bela Senhora é<br />
apresentado como o Reconciliador, a Chave de leitura do Evento<br />
da Salette.<br />
238
CONCLUSÃO<br />
Na limpidez de seu coração, segundo a bem-aventurança,<br />
Maximino e Melânia contemplaram a Bela Senhora. Sendo<br />
pobres, receberam o tesouro do Reino. Mansos, humildes,<br />
famintos e sedentos de justiça e paz, herdaram o Povo de<br />
<strong>De</strong>us como terreno para a semeadura da Palavra evangélica<br />
da Reconciliação anunciada pela Bela Senhora. Como filhos<br />
carentes e aflitos, viveram fiéis ao materno e compassivo amor da<br />
Virgem Mãe que os chamou junto a si na Aparição. Perseguidos,<br />
incompreendidos, manipulados e explorados, alcançaram a<br />
misericórdia infinita do Pai que ampara os fracos. Cumpriram<br />
sua missão.<br />
Bruillard, Ginoulhiac, Fava e os Missionários assumiram<br />
a continuidade eclesial da tarefa de transmitir a todo o povo a<br />
Mensagem da Mãe Maria confiada a Melânia e Maximino.<br />
O Ministério da Reconciliação, envolto pelo Mistério da<br />
Reconciliação anunciado pela Bela Senhora, prossegue em seu<br />
caminho. Os percalços nele encontrados, não impediram a ação<br />
de <strong>De</strong>us na história do evento da Salette:<br />
- o Fato da Salette foi definitivamente declarado como<br />
autêntico pela Igreja, não por causa dos “segredos”, mas, apesar<br />
deles;<br />
- a Mensagem da Bela Senhora é publicamente anunciada<br />
como a única palavra evangelizadora da Virgem Mãe na Aparição;<br />
- a vida de Maximino e de Melânia, antes ou depois da<br />
Aparição, não interfere no significado e valor do Fato da Salette;<br />
- a Mensagem pública da Aparição é efetivamente distinta<br />
da “palavra pessoal” dada pela Bela Senhora aos videntes;<br />
- a “palavra pessoal” foi fielmente guardada por Maximino<br />
e Melânia no secreto de seus corações, apesar das pressões<br />
sofridas;<br />
- a recusa formal e constante para não revelar a “palavra<br />
pessoal”, impede a comprovação da identidade entre a mesma e<br />
os “segredos” enviados ao Papa;<br />
239
- considerados o conteúdo e as circunstâncias históricas dessa<br />
questão, deve-se admitir que as cartas dos videntes, enviadas ao<br />
Papa, são fruto de imaginação conturbada por pressões externas;<br />
- o fato de se atribuir o conteúdo dessas cartas <strong>à</strong> Bela Senhora<br />
é uma falta de consideração para com a santidade da Mãe de<br />
<strong>De</strong>us;<br />
- o “segredo” de Melânia divulgado em formas sucessivas,<br />
variadas e em contextos controversos, independe do Fato da<br />
Salette;<br />
- a devoção <strong>à</strong> Mãe da Reconciliação, nascida do Fato da<br />
Aparição, foi abençoada pela Igreja e impregna a espiritualidade<br />
do Povo de <strong>De</strong>us;<br />
- o Santuário da Montanha da Salette, definido como Basílica<br />
Menor pela Santa Sé, é centro de peregrinações oriundas do<br />
mundo inteiro;<br />
- as Congregações dos Missionários e das Irmãs de Nossa<br />
Senhora da Salette, a Arquiconfraria e os Leigos Saletinos<br />
prosseguem no ministério da reconciliação, segundo o Evangelho<br />
e <strong>à</strong> luz da Mensagem da Aparição de 19 de setembro de 1846.<br />
A Bela Senhora, Mãe da Reconciliação, não cessa de suplicar<br />
ao Filho Crucificado-Ressuscitado por seu Povo, e de proclamar<br />
que a torrente da Vida nova, simbolizada na fonte milagrosa da<br />
Salette, jamais se esgotará.<br />
240
BIBLIOGRAFIA<br />
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Augustin, 2002, Suissa.<br />
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- (SCHLEWER) “Salette, opção de vida”, Marcel Schlewer ms,<br />
tradução de Pe. Atico Fassini ms, Gráfica Editora Pe. Berthier,<br />
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- (FASSINI) “História da Salette”, Pe. Atico Fassini ms,<br />
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- (BACCELLI) “Conheçam La Salette”, Pe. Dr. Simão Baccelli<br />
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241
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Salette”, Pe. Charles Novel ms, polígrafo, s/d.<br />
- (JAOUEN), “Les Missionnaires de Notre-Dame de La<br />
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- (BARRETTE), “Uma pesquisa nas origens e na evolução do<br />
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G. Barrette ms, 1976, traduçãode Pe. Antônio Nichelle MS,<br />
polígrafo.<br />
242
ÍNDICE<br />
Prefácio.......................................................................................................... 3<br />
Introdução...................................................................................................... 5<br />
I Parte: Salette: Fato e Contexto.................................................................... 7<br />
Capítulo I: Situação histórica da França........................................................ 7<br />
Capítulo II: Um submundo na França profunda.......................................... 10<br />
Capítulo III: Sobreviventes da baixada humana.......................................... 14<br />
1 - Pierre-Maximin Giraud............................................................... 14<br />
2 - Françoise-Mélanie Calvat........................................................... 16<br />
Capítulo IV: O Evento extraordinário.......................................................... 18<br />
Capítulo V: Ecos do Evento......................................................................... 28<br />
l - Les Ablandens: a surpresa da compaixão de <strong>De</strong>us....................... 28<br />
2 - La Salette e Corps na dinâmica da Reconciliação....................... 30<br />
3 - Os agraciados: retorno ao quotidiano......................................... 47<br />
4 - Padre Mélin: “Le bon papa”........................................................ 52<br />
Capítulo VI: Alvo de muitas buscas............................................................. 62<br />
Capítulo VII: Grenoble, a palavra da Igreja................................................. 66<br />
1 - Um modelo de Bispo................................................................... 66<br />
2 - Primeiras informações................................................................. 72<br />
Capítulo VIII: À procura do sentido............................................................ 76<br />
1 - A investigação inicial.................................................................. 76<br />
2 - A análise conclusiva.................................................................... 80<br />
Capítulo IX: O despontar da decisão episcopal........................................... 84<br />
1 - O “Incidente de Ars”................................................................... 86<br />
2 - Superado o equívoco................................................................... 89<br />
Capítulo X: Os “segredos” em Roma.......................................................... 95<br />
Capítulo XI: E a luz se fez......................................................................... 106<br />
Capítulo XII: “<strong>De</strong>ixai vosso servo partir em paz”..................................... 116<br />
Capítulo XIII: A fortaleza do novo Bispo.................................................. 121<br />
1 - O Bispo Ginoulhiac................................................................... 121<br />
2 - O Teólogo.................................................................................. 122<br />
3 - O pronunciamento..................................................................... 127<br />
4 - O devoto da Salette................................................................... 128<br />
243
Capítulo XIV: Outros Pastores enviados................................................... 132<br />
1 - Dom Paulinier........................................................................... 132<br />
2 - Dom Fava.................................................................................. 133<br />
II PARTE : O novo Mandamento............................................................... 139<br />
Capítulo I: Um templo sobre a rocha......................................................... 139<br />
1 - O Santuário................................................................................ 139<br />
2 - O Povo de <strong>De</strong>us peregrino........................................................ 146<br />
Capítulo II: O legado de Dom Philibert:<br />
os Missionários da Mãe da Reconciliação................................................. 151<br />
1 - A Aparição da Salette: Evento inspirador.................................. 153<br />
2 - Os precedentes da fundação...................................................... 154<br />
3 - O ato fundador de 1º de maio de 1852...................................... 162<br />
4 - Os pioneiros.............................................................................. 172<br />
5 - O carisma................................................................................... 183<br />
6 - A missão.................................................................................... 191<br />
APÊNDICE................................................................................................ 195<br />
Capítulo I: O percurso de vida dos videntes.............................................. 195<br />
1 - Maximino: inconstância de vida na<br />
fidelidade <strong>à</strong> Bela Senhora.......................................................... 196<br />
2 - Melânia: vida virtuosa em trajetória tortuosa............................ 203<br />
Capítulo II: Uma espinhosa questão.......................................................... 211<br />
Capítulo III: Os “segredos”: a descoberta do nada.................................... 227<br />
Conclusão................................................................................................... 239<br />
Bibliografia................................................................................................ 241<br />
Índice.......................................................................................................... 243<br />
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