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De Volta à Fonte_PT

SALETTE: DE VOLTA A FONTE

SALETTE: DE VOLTA A FONTE

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Pe. ATICO FASSINI, MS<br />

SALETTE:<br />

DE VOLTA À FONTE<br />

MARCELINO RAMOS - RS


IMPRIMA-SE.<br />

Pe. ADILSON SCHIO MS<br />

Superior Provincial<br />

19 de setembro de 2011<br />

165º Aniversário da Aparição de<br />

Nossa Senhora da Salette<br />

Curitiba – Pr.


PREFÁCIO<br />

Muito interessante esse trabalho de Pe. Atico Fassini,<br />

Missionário Saletino, pelo qual o leitor é levado a um melhor<br />

conhecimento tanto das origens quanto dos primeiros passos<br />

da Congregação dos Missionários de Nossa Senhora da Salette.<br />

Com o rigor que lhe é peculiar, o autor conduz o leitor a entrar em<br />

sintonia com Dom Philibert de Bruillard e outros personagens<br />

que deram início <strong>à</strong> aventura <strong>à</strong> qual nos sentimos orgulhosos de<br />

pertencer, com o intuito de torná-la eficazmente presente no<br />

mundo atual.<br />

O Concílio Vaticano II convidou as Congregações a um<br />

esforço de apropriação criativa das fontes e carisma que lhes<br />

deram origem. O objetivo primordial desse convite era fazer com<br />

que os Religiosos assumissem o empenho da re-apropriação dos<br />

eventos, dos personagens e das circunstâncias que deram origem<br />

aos inúmeros carismas que enriqueceram a Igreja. Os carismas<br />

se tornaram meio para que a Igreja pudesse responder <strong>à</strong>s sempre<br />

novas provocações que o Espírito vai suscitando para o bem do<br />

Povo de <strong>De</strong>us. Nossa Congregação durante mais de quinze anos<br />

se engajou nesse esforço que foi concluído com a aprovação de<br />

nossas Constituições pelo Capítulo Geral de 1982. O Pe. Atico,<br />

como Conselheiro Geral e membro do referido Capítulo, deixou<br />

ali sua valiosa contribuição. Um motivo a mais para valorizar<br />

seu esforço na composição do presente estudo.<br />

Tal pesquisa se justifica, ainda, pelo fato de que, vivendo<br />

há mais de um século e meio distantes do ato fundador e dos<br />

personagens que nele intervieram, nós temos necessidade<br />

de penetrar, mais profundamente, nos sentimentos e razões<br />

que deram origem <strong>à</strong> nossa Congregação, para reler, hoje,<br />

com criatividade e ousadia, o evento Salette e o carisma da<br />

Reconciliação. Tal evento e carisma são sinais que marcam<br />

nossa Igreja e nosso mundo.<br />

A esperança do autor, por mim compartilhada plenamente,<br />

é que esta obra se transforme em instrumento para que nós<br />

3


saletinos e, de modo especial nossos formadores e formandos,<br />

naveguemos sempre mais profundamente nas riquezas de nossa<br />

origem, de nossa história e de nosso carisma. Esse texto nos<br />

ajuda a compreender que Maria, em Salette, nos dirige um<br />

convite para centrar nossa atenção em Jesus de Nazaré, visto<br />

como Homem-<strong>De</strong>us em busca de seu Povo, próximo de nós<br />

como o foi de Giraud, do povo da Salette e da região em sua<br />

fragilidade e em sua esperança. Por isso mesmo, esse Jesus é a<br />

expressão mais legítima do <strong>De</strong>us cuja presença vai crescendo<br />

junto ao ser humano, numa história compartilhada.<br />

Façamos, pois, justo e adequado uso deste maravilhoso<br />

trabalho!<br />

Pe. Isidro Augusto Perin MS,<br />

Ex-Superior Geral<br />

4


INTRODUÇÃO<br />

O extraordinário evento vivido na região de LA SALETTE,<br />

na cadeia dos Alpes franceses, a 19 de setembro de 1846,<br />

aconteceu num contexto histórico preciso. A França espelhava o<br />

conturbado Continente Europeu.<br />

O texto que segue, vê pelo retrovisor esse contexto, sem dele<br />

fazer uma leitura exaustiva. Não é fruto de pesquisa científica<br />

em documentos originais ou nos fatos originantes situados<br />

nos meados do século XIX. É apenas, fruto de busca ampla e<br />

de coleta honesta de elementos históricos presentes em obras<br />

de real valor a respeito do Fato da Salette. Fixando os olhos<br />

nesse evento, bebeu exaustivamente em fontes categorizadas,<br />

trabalho de diversos autores, especialistas na matéria. <strong>De</strong>ntre<br />

eles, destaca-se a monumental obra de Pe. Jean Stern ms, “LA<br />

SALETTE – Documents authentiques”, em três volumes, que<br />

cobrem o arco de tempo entre setembro de 1846 a novembro<br />

de 1854, período decisivo para a recepção ativa do insólito<br />

acontecimento. Com método absolutamente científico, Pe. Stern<br />

ali recolhe criticamente e numa ordem cronológica rigorosa,<br />

todos os documentos autênticos que surgiram nesse período em<br />

relação ao assunto.<br />

O texto presente encontra suporte nos três anos de vivência<br />

pastoral de seu autor junto aos peregrinos que freqüentam o local<br />

da Aparição da Salette.<br />

Um sinal concreto permanece assentado na solidez rochosa<br />

das montanhas onde o Fato da Salette aconteceu: a <strong>Fonte</strong>.<br />

Minúscula e humilde fonte. Intermitente era. Permanente se<br />

fez. Jorrando águas de vida nova. Murmúrio suave de água leve,<br />

sinal do Divino que ali chegou e ali acampou.<br />

Donde o título da presente obra: “SALETTE: DE VOLTA À<br />

FONTE”. Retorno que dessedenta e nada mais deseja!<br />

A obra tem consciência de seus limites. <strong>De</strong>spretenciosa,<br />

deseja ser fiel <strong>à</strong> história, orgânica em sua estrutura, e amorosa da<br />

causa da Salette. Sua elaboração tem o modesto intuito de ajudar<br />

5


os interessados em geral, os Leigos e as Leigas Saletinos, e os<br />

candidatos <strong>à</strong> Vida Religiosa Saletina, a que melhor conheçam<br />

o evento de 19 de setembro de 1846. Seu centro de atenção<br />

é a Aparição de Nossa Senhora em LA SALETTE, evento<br />

inspirador da Congregação dos Missionários, das Irmãs, e da<br />

Confraria dela surgidas.<br />

O tema é de parca bibliografia em língua portuguesa.<br />

Também é diminuto o conhecimento da língua francesa que<br />

veicula o principal acervo documental sobre a questão. Daí a<br />

razão dessa obra.<br />

Sirva ela a seu simples objetivo e <strong>De</strong>us será louvado!<br />

6


I P A R T E<br />

SALETTE: FATO E CONTEXTO<br />

CAPÍTULO I<br />

SITUAÇÃO HISTÓRICA DA FRANÇA<br />

A verificação passageira do contexto histórico-social da<br />

França do século XIX serve para melhor intuir o significado<br />

transcendente do Fato da Salette. Um simples mosáico de<br />

elementos indicativos permite a percepção aproximativa do que foi<br />

a Europa e, particularmente, a França, nessa época. A explanação<br />

ampla dos mesmos não cabe, porém, no quadro da presente obra.<br />

A situação francesa, nesse período, pode ser considerada<br />

sob diferentes pontos de vista:<br />

1) Situação política interna: seqüelas da Revolução Francesa<br />

de 1789; guerras napoleônicas; instabilidade do regime político;<br />

conflito entre monarquia e república; revoltas populares; Comuna<br />

de Paris; resquícios de cesaropapismo; ímpetos imperialistas...<br />

2) Situação econômica: peso do feudalismo; burguesia rural;<br />

burguesia urbana; início da era industrial; invenção da máquina<br />

a vapor; descoberta da eletricidade; construção de ferrovias;<br />

aplicações em bolsas de valores; especulação financeira;<br />

migração interna para as cidades; demasiada mão de obra urbana;<br />

restrito campo de emprego; surgimento de populações periféricas;<br />

surgimento da consciência de “povo” e de “proletariado”;<br />

produção agrícola sofrida por causa de catástrofes naturais.<br />

André-Jean Tudesq em “La France Romantique et<br />

bourgeoise, 1815-1848”, texto publicado em “Histoire de la<br />

France des origines <strong>à</strong> nos jours”, sob a direção de Georges Duby,<br />

da Academia Francesa, Larousse, 1995, afirma:<br />

- “Quanto <strong>à</strong> prosperidade, encontrou-se ela interrompida<br />

desde o outono de 1846 por uma grave crise econômica. Esta<br />

7


apresentou inicialmente o aspecto tradicional das dificuldades<br />

provocadas por más colheitas; já em 1845 a colheita de batatinhas<br />

(que, em peso, ultrapassava geralmente <strong>à</strong> do trigo) tinha sido<br />

medíocre; em 1846, as colheitas de cereais e forragens foram<br />

gravemente prejudicadas, primeiramente por um calor e sêca<br />

excessivos e, a seguir, no outono, por inundações que pesaram<br />

fortemente sobre a sorte dos cultivadores... O anúncio da crise<br />

do trigo despertou um antigo medo de escassez. O medo da falta<br />

de grãos ou a esperança de vendê-los mais caro, por causa da<br />

penúria, levaram numerosos proprietários a suspenderem suas<br />

vendas. (...) <strong>De</strong>ssa forma, a crise alimentou a crise e criou nas<br />

regiões rurais uma situação revolucionária, sem objetivo político.<br />

Os recursos populares foram assambarcados pelas compras<br />

alimentares e o preço do pão subiu tanto que, quase em toda<br />

parte, não se queria fixá-lo. Em contrapartida, o povo deixou de<br />

comprar vestimentas e outros produtos, e os trabalhadores da<br />

indústria, sobretudo a têxtil, estavam ameaçados de desemprego<br />

no momento em que o aumento do pão tornava mais urgente a<br />

necessidade de se buscarem recursos. (...) A avidez pelas ações<br />

das companhias de estradas de ferro, embora tardia, se alastrou<br />

pelas diversas camadas da burguesia, desviando para o lado da<br />

especulação os capitais até então utilizados de maneira mais<br />

sadia no comércio e na indústria. (...) A parada dos trabalhos<br />

nos canteiros de construção de ferrovias aumenta o número de<br />

desempregados e determina também a suspensão das encomendas<br />

na metalurgia. Assim se acumulam as catástrofes: desemprego,<br />

falências, bancarrotas são acompanhadas por um cortejo de<br />

miséria. (...) Uma parte da opinião burguesa responsabilizava<br />

as doutrinas socialistas pelas sublevações populares esparsas<br />

pelo país afora. (...) O termo “capitalista” entrou no vocabulário<br />

da polêmica. Muitos escândalos aconteceram em 1847. (...) O<br />

enfraquecimento da moralidade atinge todas as classes (...).<br />

As transformações econômicas iriam alterar a hierarquia de<br />

valores...” (in SCHLEWER, p.193-197).<br />

3) Situação social: sociedade dividida entre riqueza e<br />

8


pobreza, cadinho do comunismo; invenção de modernos meios<br />

de comunicação; adoção do sufrágio universal; corrupção<br />

administrativa; crimes passionais na alta sociedade.<br />

4) Situação cultural: expansão do racionalismo voltairiano<br />

e do pensamento iluminista; experiências de distintos tipos de<br />

socialismo; advento do marxismo: em 1841, na Universidade<br />

de Jena, Marx lançou a tese filosófica pela qual condenava a<br />

fé em <strong>De</strong>us como obstáculo <strong>à</strong> liberdade humana; pouco tempo<br />

depois, Feuerbach propagava a idéia de que <strong>De</strong>us é o produto da<br />

alienação do ser humano que se despoja das próprias qualidades<br />

para projetá-las neste ser imaginário; entre 1843 e 1845, em<br />

Paris, Marx descobre o mundo operário e sua fermentação social;<br />

poucos meses antes da Aparição em La Salette, Marx, com a<br />

colaboração de Engels, publica a obra “A ideologia alemã” pela<br />

qual dá ao ateismo teórico de Feuerbach um caráter prático;<br />

lança então, o materialismo dialético; em l848, Marx publica<br />

o “Manifesto Comunista”; nessa época surgem na Europa,<br />

Nietzsche, Freud, Alan Kardec, Auguste Compte...<br />

5) Situação moral e religiosa: ateísmo militante; anticlericalismo;<br />

galicanismo; indiferença religiosa; desintegração do ritmo de vida<br />

e perda dos valores morais e religiosos por causa do êxodo rural;<br />

desequilíbrio na vivência tradicional do tempo semanal e dominical;<br />

abandono da Igreja e da prática religiosa; “ethos” pessoal, familiar e<br />

social transformado.<br />

6) França, terra de santos e de heróis: a Igreja da França<br />

do séc. XIX gerou uma plêiade de eminentes personalidades,<br />

viveu intensa atividade missionária, viu a fundação de muitas<br />

Congregações Religiosas e o testemunho de vida de muitos<br />

santos e santas, e viu igualmente o surgimento de significativos<br />

movimentos sociais de caráter eclesial em benefício dos pobres.<br />

Essas circunstâncias históricas tiveram grande influxo sobre<br />

a mentalidade e a vida do povo de La Salette, através de Corps,<br />

cidade de referência na região. Indiretamente ao menos, esta<br />

situação fez parte da conversação da Bela Senhora com Melânia<br />

e Maximino, durante sua visita a “seu povo”, em La Salette.<br />

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10<br />

CAPÍTULO II<br />

UM SUBMUNDO NA FRANÇA PROFUNDA<br />

CORPS, pequena cidade assentada no vale do Rio Drac,<br />

nos Alpes do <strong>De</strong>lfinado, sudeste da França, é habitada hoje, por<br />

cerca de três mil moradores. Em meados do século XIX tinha<br />

cerca de 1.300 habitantes.<br />

Por ela passa a “Estrada de Napoleão”, importante via de<br />

comunicação entre o sudeste e o restante da França. A estrada<br />

nacional, hoje asfaltada, leva esse nome porque serviu de<br />

passagem ao Imperador Napoleão ao fugir da prisão na Ilha<br />

de Elba. Dirigia-se a Paris para retomar o poder. Em Corps,<br />

encontrou hospedagem.<br />

Pela localidade de Corps transitavam muitos viajantes que<br />

iam e vinham por esses caminhos da França em direção <strong>à</strong> Itália<br />

e a outros horizontes, e vice-versa. Passageiros em diligências<br />

puxadas por cavalos transportando correio e mercadorias,<br />

cavaleiros isolados, pedestres, portadores de todo tipo de notícias<br />

e histórias, ali encontravam pousada, alimento, bebida e alguma<br />

distração. A situação moral e religiosa da cidade era lamentável.<br />

Antes de chegar a Corps o viajante passa por GRENOBLE, o<br />

grande polo urbano da região, a cerca de 70 klms de distância de Corps.<br />

<strong>De</strong>pois, por LA MURE para chegar, por entre montes esplêndidos, a<br />

GAP, cidade de médio porte, a 50 klms depois de Corps.<br />

LA SALETTE, a pequena “sala” geograficamente plantada<br />

em meio aos Alpes, 9 klms acima de Corps, encontra-se numa<br />

altitude de cerca de 1.300 metros.<br />

A minúscula população do município de ontem e de hoje<br />

vivia e vive encaixada num estreito cenário de montes e vales.<br />

Um acanhado vale ou “garganta” (“gorge”) é a única porta de<br />

entrada que dá acesso para quem vai de Corps a esse pequeno<br />

mundo de rochedos, abismos, pradarias sumárias, florestas<br />

típicas e parca terra cultivável de La Salette. Pobre, desértico e<br />

maravilhoso mundo!


Por essa “garganta” apertada descem as águas frias do riacho<br />

Sézia que brota no entremeio aos imponentes Montes Gargas e<br />

Chamoux com 2.300 metros de altitude.<br />

Nas fraldas das montanhas, há uma extensa área de<br />

pradarias. Grandes rebanhos de ovelhas ali passam o verão, na<br />

transumância pelas pastagens alpinas. A faixa de terra chamada<br />

“Sous-les-Baisses” liga as duas montanhas ao gracioso Monte<br />

Planeau, de menor altitude.<br />

Os montes emolduram o majestoso quadro da encantadora<br />

região de La Salette. O regato Sézia, depois de banhar uma das<br />

paredes do Monte Planeau, caprichoso palco desse extraordinário<br />

“teatro romano” montanhês, molha os pés da cidadezinha de La<br />

Salette e vai regar as cercanias de Corps, desembocando, por<br />

fim, no Rio Drac. Do outro lado do Rio Drac ergue-se, soberbo<br />

em sua beleza, o Monte Obiou com 3.200 metros de altitude.<br />

Hoje, uma estrada regional de asfalto faz a ligação entre<br />

Corps e La Salette, em substituição ao que era, em meados do<br />

século XIX, um caminho carroçável, apenas, de íngreme e<br />

pedregosa subida.<br />

La Salette sempre sofreu as influências, positivas e negativas,<br />

jogadas em CORPS, ponto de encontro de pessoas, culturas e<br />

informações de todo tipo e de muitos lugares,<br />

Cerca de 700 habitantes viviam em La Salette em meados<br />

do séc. XIX. O município era formado por essa parca e sofrida<br />

população, distribuída em doze pequenas aldeias, pobres e<br />

esparsas, ocultas em baixadas e encostas, isoladas nos meandros<br />

das montanhas. O povo era composto por pequenos agricultores e<br />

pastores. Seu contato com o mundo de fora era miúdo, afunilado<br />

como as águas do regato Sézia na descida para Corps. O atraso<br />

cultural e social dessa população era subhumano.<br />

No inverno entre 1845-1846 a região saletina caiu na<br />

miséria. Uma praga desconhecida atingira todos os produtos<br />

agrícolas que formavam a cesta básica desse povo: trigo, uva,<br />

nozes, batatinhas... A penúria se alastrou pelas redondezas e por<br />

toda a França.<br />

11


A situação se agravou no inverno seguinte. Em 1846, ainda,<br />

a produção de cereais foi frustrada em razão de uma primavera<br />

demasiadamente seca e de um verão muito chuvoso. O preço<br />

dos alimentos se tornou extorsivo. O povo não tinha meios para<br />

adquirir suprimentos vindos de fora. A fome se tornou grave<br />

e generalizada. A mortalidade por inanição, sobretudo entre<br />

crianças, agravou o sofrimento dos moradores da área, e suscitou<br />

sentimentos de desespero.<br />

No início de 1847, pela França afora, explodiram movimentos<br />

populares de indignação e pilhagens. A queda na produção<br />

agrícola gerou, por sua vez, uma crise industrial e o conseqüente<br />

desemprego em todo o país. A crise econômica levou <strong>à</strong> crise<br />

demográfica. O número de casamentos e de nascimentos baixou,<br />

enquanto o índice de mortalidade se elevava.<br />

A falta de alimentos se estendeu por outros países europeus,<br />

como a Alemanha e a Bélgica. A Irlanda viveu uma verdadeira<br />

calamidade. A fome obrigou grande parte do povo irlandês a<br />

emigrar para os Estados Unidos, em 1847.<br />

O indiferentismo religioso reduziu a freqüência <strong>à</strong> Igreja,<br />

em La Salette e nas redondezas, sob a influência de Corps.<br />

A mentalidade reinante na França derramava influências<br />

perniciosas sobre esse povo interiorano. A apatia religiosa, o<br />

enfraquecimento da fé, o desprezo pela religião, a blasfêmia,<br />

o trabalho em dias santificados, o desrespeito aos que ainda<br />

freqüentavam a Igreja, a falta de observância da Quaresma, o<br />

anticlericalismo agressivo sufocavam a alma dos habitantes de<br />

La Salette e da região.<br />

A 1.800 metros de altitude, entre as alterosas montanhas do<br />

Gargas, do Chamoux e do Planeau, modesto e belo, manifestouse,<br />

porém, a misericórdia do Senhor na compaixão de Maria por<br />

esse povo sofrido e fechado sobre si mesmo.<br />

O entorno montanhês é extraordinariamente ornado de flores.<br />

Flores, muitas flores multicoloridas, enfeitam a primavera. O<br />

manto branco e espesso da neve abriga o solo contra o rigoroso<br />

frio do inverno. Marmotas, raposas, corvos e cabras selvagens<br />

12


habitam os recantos das montanhas. As estrelas estão ao alcance<br />

da mão. O silêncio é imenso e espesso nessa França profunda.<br />

O cenário da Aparição se oculta no fundo do pequeno vale<br />

por onde serpenteia o regato Sézia. Junto a ele, num largo aos<br />

pés da barranca, pastores da região haviam arranjado pedras<br />

para se assentarem nas horas de refeição e descanso.<br />

Do outro lado do riacho, no alto da barranca, uma curta e<br />

estreita faixa de terra forma uma “passarela” entre o Chamoux<br />

e o Gargas ao norte, e o Planeau ao sul. A “passarela” é ladeada<br />

por profundos abismos que abraçam o Monte Planeau.<br />

No sopé de uma das pedras, <strong>à</strong> beira do regato, uma “pequena<br />

fonte” intermitente jorrava água em tempos de chuva ou no<br />

final do inverno com o derretimento da neve. Secava, porém,<br />

no verão. Os pastores se dessedentavam em suas águas poucas,<br />

mas puras, frescas e boas.<br />

Mais acima da pequena fonte intermitente se encontrava<br />

junto ao riacho, uma poça conhecida como “fonte dos homens”.<br />

Nela os pastores apanhavam água para suas necessidades. Mais<br />

abaixo da fonte intermitente, outra poça no regato, a “fonte dos<br />

animais”, servia água para os rebanhos.<br />

Nesse aprazível, embora exíguo, local de encontro de pastores,<br />

Maximino e Melânia repousaram sobre a pastagem, <strong>à</strong> beira do<br />

regato, ao meio dia de 19 de setembro de 1846. O sol escaldante<br />

encontrava um contraponto no frescor do riacho. Convidava a um<br />

descanso de caminhadas estafantes pela montanha.<br />

<strong>De</strong> ponto de encontro de humanos, o local se tornaria ponto<br />

de encontro entre os humanos e o Divino, pela misteriosa visão<br />

que transformou a vida das duas pobres crianças pastoras e do<br />

povo humilde e abandonado desse perdido mundo montanhês.<br />

Por que Maria escolheu esse recanto ignoto, austero,<br />

escarpado, desértico, distante e silencioso, para se manifestar a<br />

duas crianças sem nenhuma significação social, numa atitude de<br />

materna comiseração por um povo faminto, desencaminhado,<br />

morador de baixadas e vales? O divino insondável envolve o<br />

que ali aconteceu.<br />

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14<br />

CAPÍTULO III<br />

SOBREVIVENTES DA BAIXADA HUMANA<br />

Ao longo da história, <strong>De</strong>us se vale dos pequenos para<br />

realizar grandes coisas. Eleitos do Senhor, dois insignificantes<br />

pastores, adolescentes ainda, mas, com identidade própria,<br />

sobreviventes da miséria humana reinante nos vales, galgaram,<br />

a 19 de setembro de 1846, as escarpadas trilhas das montanhas<br />

para testemunharem um grandioso evento no alto do Monte<br />

Planeau, em La Salette.<br />

Quem eram eles antes da Aparição?<br />

1 - PIERRE-MAXIMIN GIRAUD, apelidado de “MÉMIN”,<br />

era natural de Corps. Nasceu a 26 (ou 27 ?...) de agosto de 1835.<br />

Era o quarto filho de um pobre fabricante de carroças. O pai,<br />

Germain Giraud, era natural da região de Corps, bem como a<br />

mãe, Anne-Marie Templier. A mãe morreu a 11 de janeiro de<br />

1837, quando Maximino tinha um ano e meio de idade. Entre os<br />

irmãos havia uma menina, Angélica.<br />

Pouco tempo após a morte da esposa, Germain Giraud casou<br />

novamente. Maximino, porém, ia crescendo sem o devido afeto<br />

e a necessária atenção, apesar da pessoal simpatia e ternura.<br />

O pai passava o dia na oficina ou no bar. Não se preocupava<br />

com os filhos. Não praticava a religião. Guardava a seu modo,<br />

alguns resquícios de fé. A madrasta não tinha amor a Maximino.<br />

Tratava-o mal. O mal amado passaria fome se não fosse a<br />

solidária partilha de alimento que um seu meio-irmão, filho do<br />

pai com a madrasta, lhe prestava.<br />

O garoto Maximino vagueava pelas ruas de Corps, correndo<br />

atrás de diligências e de cavaleiros passantes. Perambulava sem<br />

preocupações, de cá e de lá, acompanhado por uma cabra e o<br />

cachorrinho Lulu, seus grandes amigos.<br />

A família mal estruturada não lhe ofereceu a afeição familiar<br />

de que precisava para seu equilíbrio de vida. Não ia <strong>à</strong> escola,


que não era obrigatória, nem <strong>à</strong> Igreja e ao Catecismo. Nem sabia<br />

rezar por completo o Pai Nosso e a Ave Maria, apesar de certo<br />

empenho do pai durante três ou quatro anos. Mandado <strong>à</strong> Missa,<br />

Maximino preferia evadir-se e brincar pelas ruas de Corps.<br />

Era analfabeto embora esperto, de bom coração, franco<br />

e tagarela. Generoso. Tinha um olhar expressivo e belo.<br />

Sem malícia. <strong>De</strong>scuidado. Irrequieto, era apelidado de<br />

“movimento perpétuo”. Medianamente inteligente. Fisicamente<br />

subdesenvolvido. Inventava historietas para justificar<br />

traquinagens e assim livrar-se de possíveis castigos por parte<br />

dos pais. Falava apenas o “patois”, o dialeto da região, embora,<br />

em suas correrias pela cidade, atrás dos viajantes que por ali<br />

passavam, tivesse aprendido algumas palavras de francês.<br />

Assim correu a vida de Maximino até seus onze anos de idade.<br />

No domingo anterior <strong>à</strong> Aparição, dia 13 de setembro de<br />

1846, Pierre Selme, morador de Ablandens, uma das aldeias que<br />

formam o Município de La Salette, desceu até Corps <strong>à</strong> procura<br />

do amigo, pai de Maximino, para lhe pedir que pusesse o garoto<br />

<strong>à</strong> sua disposição. <strong>De</strong>le precisava por uns dias, para substituir um<br />

pastor seu que estava adoentado.<br />

O pai de Maximino relutou em pôr o menino em serviço<br />

longe de casa. Receava que a irresponsabilidade do filho<br />

causasse incômodos ao patrão e ao próprio pai. O interessado<br />

Pierre Selme, porém, alegou que possuía um terreno próximo <strong>à</strong><br />

pradaria onde Maximino deveria pastorear o pequeno rebanho.<br />

Comprometeu-se, pois, a manter o garoto e o rebanho sob seu<br />

olhar, enquanto ele, Pierre, trabalharia na pequena lavoura nas<br />

proximidades. Diante do compromisso do amigo, Germain<br />

Giraud permitiu que Maximino trabalhasse como pastor, por<br />

uma semana, junto <strong>à</strong> família de Pierre Selme.<br />

Na segunda feira, dia 14 de setembro, Maximino subiu o<br />

Monte Planeau, com o patrão, para conhecer o local e a trilha<br />

que leva até lá. Nos dias seguintes Maximino passou a cuidar do<br />

rebanho na montanha.<br />

Na tarde da quinta feira, dia 17, por acaso encontrou pela<br />

15


primeira vez Melânia que pastoreava no alto do Monte Planeau.<br />

Não se conheciam, apesar de ambos serem naturais de Corps.<br />

Trocaram raras palavras.<br />

Na sexta feira, dia 18, encontraram-se novamente na montanha<br />

e se deram a conhecer melhor. Ao tomarem conhecimento de que<br />

eram conterrâneos, a conversa fluiu mais espontaneamente, apesar<br />

da timidez de Melânia. No fim do dia se despediram fazendo uma<br />

aposta sobre quem seria o primeiro a chegar com os respectivos<br />

e reduzidos rebanhos, <strong>à</strong>s pastagens do alto do monte, na manhã<br />

seguinte, sábado, dia 19 de setembro, dia da Aparição.<br />

2 - FRANÇOISE-MÉLANIE CALVAT, também conhecida<br />

pelo sobrenome de “Mathieu”, tinha quatro anos a mais que<br />

Maximino. Nasceu em Corps, a 7 de novembro de 1831. Seu pai,<br />

Pierre Calvat, serrava madeiras, mas, aceitava qualquer serviço<br />

para a sobrevivência da família. Um homem rude. Com a esposa<br />

Julie Barnaud teve dez filhos. Melânia era a quarta.<br />

A pobreza da família era tão grande que muitas vezes<br />

obrigava as crianças a mendigar pelas ruas de Corps. Melânia<br />

carregou esse peso em sua infância. O pai sempre em busca de<br />

trabalho. A mãe sobrecarregada de preocupações com os filhos.<br />

O clima familiar era pesado e tolhia o necessário equilíbrio<br />

afetivo das crianças.<br />

<strong>De</strong>sde cedo, aos sete ou oito anos de idade, Melânia era<br />

posta a serviço de famílias das redondezas: Sainte-Luce, Queten-Beaumont,<br />

La Salette... A pobreza da família, pobreza maior<br />

que a da família de Maximino, chegava <strong>à</strong> indigência. Durante<br />

a primavera e o verão, Melânia prestava serviços domésticos e<br />

pastoreava pequenos rebanhos pelas montanhas das cercanias.<br />

Com isso tinha comida e dormida garantidas. Durante o<br />

outono e o inverno vivia na casa dos pais onde tudo faltava.<br />

Uma experiência de verdadeira afeição familiar não lhe fora<br />

concedida.<br />

Não tinha condições de freqüentar nem a escola, nem o<br />

catecismo. Não sabia ler, nem escrever. Apesar do esforço da<br />

16


mãe, não aprendera a rezar por inteiro o Pai Nosso e a Ave<br />

Maria. <strong>De</strong> reduzida capacidade intelectual, falava somente o<br />

“patois”, embora soubesse também raras palavras de francês.<br />

A ignorância religiosa e cultural de Melânia antes de 1846 era<br />

inegável. Diversos são os testemunhos históricos a respeito.<br />

<strong>De</strong> mau humor, contrariava-se facilmente. Tímida e<br />

medrosa. Muito descuidada. Lenta e até preguiçosa. Seus muitos<br />

sofrimentos lhe impuseram a tendência de se concentrar sobre si<br />

mesma. Era levada <strong>à</strong> teimosia. Modesta, pura, mas, de poucos<br />

modos. Subdesenvolvida fisicamente. Tinha, porém, feições<br />

delicadas e normais.<br />

Em virtude de suas prolongadas ausências de Corps e da<br />

diferença de idade entre ambos, Melânia não conhecia Maximino,<br />

apesar de serem conterrâneos. Tinham, porém, uma característica<br />

em comum: a extrema pobreza. Pobreza de bens, de saber e de<br />

afeição. Eram, no entanto, inteiramente diferentes no caráter.<br />

Maximino era um garoto extrovertido, apesar da infância<br />

atribulada. Melânia, por causa da solidão vivida como pastora<br />

distante do aconchego familiar, era uma adolesente introvertida.<br />

Entre a primavera e o outono de 1846, Melânia estava em<br />

Ablandens, a serviço da família de Jean-Baptiste Pra, vizinha<br />

de Pierre Selme com quem esteve Maximino. Seu patrão<br />

descreveu-a como preguiçosa, desobediente, desleixada nas<br />

orações. Segundo ele, Melânia só participou das celebrações<br />

paroquiais duas vezes durante os seis meses em que ela trabalhou<br />

em Ablandens. Falava pouco e dificilmente dava resposta quando<br />

alguém lhe dirigia a palavra. Às vezes, por descuido, passava a<br />

noite dormindo sob as estrelas ou no estábulo, obrigando o patrão<br />

a procurá-la. Não se importava de apanhar chuva e permanecer<br />

vestida com a roupa molhada.<br />

Melânia tinha quinze anos de idade por ocasião da Aparição.<br />

No entanto, dada sua fragilidade, parecia não ter mais do que<br />

onze anos. Se bem conhecia o sofrimento antes do evento, o<br />

peso do privilégio que receberia como vidente da Salette lhe<br />

traria outras e muito ingratas vicissitudes na vida.<br />

17


18<br />

CAPÍTULO IV<br />

O EVENTO EXTRAORDINÁRIO<br />

Na manhã do sábado, 19 de setembro de 1846, Melania<br />

e Maximino subiram o Monte Planeau, conduzindo os<br />

respectivos rebanhos. O cãozinho Lulu e a cabra de Maximino o<br />

acompanhavam. Passaram a manhã pastoreando.<br />

Ao ouvir o sino da matriz tocando o “Angelus” do meio dia, no<br />

fundo do vale, o patrão de Maximino, Pierre Selme, que trabalhava<br />

no roçado nas proximidades, avisou as duas crianças que era hora de<br />

almoçar e de levar o rebanho a tomar água na “fonte dos animais”.<br />

As duas crianças subiram pela margem do regato, até a<br />

“fonte dos homens”, para se servirem de água potável. <strong>De</strong>pois,<br />

desceram margeando o regato, até os rústicos assentos de pedra,<br />

junto <strong>à</strong> “pequena fonte” que estava seca. Assentados, os dois<br />

almoçaram frugalmente um pedaço ressequido de pão e outro de<br />

queijo envelhecido.<br />

Em certo momento, alguns pastores da região vieram ao<br />

riacho para apaziguar a sede. <strong>De</strong>tiveram-se por alguns instantes<br />

a conversar com Melânia e Maximino.<br />

<strong>De</strong>pois do almoço, Maximino e Melânia sentiram sonolência<br />

e, contrariamente a seus hábitos, estenderam-se no gramado e<br />

cochilaram por algum tempo. Melânia foi a primeira a despertar.<br />

Preocupada, acordou Maximino dizendo-lhe:<br />

- “Maximino, vamos ver onde estão nossas vacas!”<br />

Atravessaram o Sézia num pulo, e subiram a barranca do<br />

regato. <strong>De</strong> lá puderam ver os animais a certa distância, pastando<br />

tranqüilamente no descampado, no outro lado do riacho. Serenados,<br />

desciam a barranca para apanhar as mochilas deixadas no local do<br />

almoço. Melânia caminhava na frente. Olhando para a “pequena<br />

fonte”, viu repentinamente um globo de intensa e pura luz, “como<br />

se o sol tivesse caído lá”, diriam mais tarde os videntes. O foco<br />

cintilante pairava sobre uma das pedras que lhes havia servido de<br />

mesa de refeição, junto <strong>à</strong> fonte intermitente.


O sol de final de verão brilhava intenso no céu esplêndido da<br />

meia-tarde desse dia 19 de setembro.<br />

A menina, ao ver o foco de luz, se deteve, assustada, e<br />

voltando-se para o companheiro lhe disse:<br />

- “Maximino, veja essa claridade!”<br />

- “Onde está?”, perguntou o garoto.<br />

- “Lá embaixo!”, respondeu Melânia.<br />

Foram tomados de grande susto. Melânia, apavorada, deixou<br />

cair o bastão de pastora e exclamou:<br />

- “Meu <strong>De</strong>us!”.<br />

Maximino lhe disse então:<br />

- “Pega teu cajado. Eu seguro o meu e vou bater naquilo, se<br />

nos fizer algum mal”.<br />

Imobilizados pelo medo, fixaram seu olhar no misterioso<br />

globo de luz.<br />

Mais tarde, Pe. Lagier, autor de um dos primeiros Relatórios<br />

sobre a Aparição, ao interrogar Melânia, perguntou-lhe:<br />

- “Por que você sentiu medo?”.<br />

A menina respondeu:<br />

- “Porque, vendo aquilo, lembrei que minha patrôa me havia<br />

ameaçado e repreendido mais vezes, dizendo-me que algum<br />

dia certamente veria o diabo ou qualquer outra coisa, porque<br />

quase nunca fazia minhas orações e zombava dos outros quando<br />

rezavam a <strong>De</strong>us, por exemplo, antes e depois das refeições”.<br />

- “Você pensou, então, que estava vendo o diabo?”.<br />

- “Não, não lembro bem o que pensei”.<br />

Entreabrindo-se o clarão, apareceu no dizer das duas<br />

crianças, uma “Senhora” assentada sobre a pedra da refeição,<br />

com os cotovelos apoiados sobre os joelhos e as mãos cobrindo o<br />

rosto banhado em lágrimas, numa atitude de profunda amargura.<br />

Uma “Senhora”, em atitude de “kenose”, de “esvaziamento<br />

de si”. “Kenose” assumida pelo Cristo ao se tornar um de nós<br />

(Fil.2, 6-11). “Esvaziamento de si” assumido por Maria em sua<br />

compaixão por “seu Povo”.<br />

Os pés da “Senhora” repousavam sobre o leito seco da<br />

19


“pequena fonte”. Suas vestimentas, longas e largas, do feitio<br />

das vestes usadas pelas donas de casa da região, induziram<br />

Maximino a comentar mais tarde:<br />

- “Pensamos que se tratava de uma mãe de Valjoufrey (uma<br />

localidade próxima a La Salette), que havia sido maltratada pelos<br />

filhos e que se refugiara na montanha para chorar as mágoas.<br />

Tive vontade de lhe dizer: “Não chore Senhora! Vou ajudá-la!”.<br />

A Senhora, afastando do rosto as mãos, se pôs de pé.<br />

Ocultou as mãos nas mangas do vestido. Cruzou os braços. <strong>De</strong>u<br />

alguns passos em direção <strong>à</strong>s crianças, dizendo-lhes com imenso<br />

carinho:<br />

- “Vinde, meus filhos, não tenhais medo! Aqui estou para<br />

vos anunciar uma grande novidade!”.<br />

As crianças não compreenderam o sentido dessas palavras<br />

ditas em francês. Tocadas, porém, pelo calor humano do chamado,<br />

expresso com voz tão materna e afetuosa, instantaneamente<br />

sentiram o medo se dissipar. A voz “era como que uma música”,<br />

diriam mais tarde. Uma transformação profunda se realizou em<br />

seu coração.<br />

Aproximaram-se apressadamente da “Senhora” desconhecida.<br />

Melânia se postou <strong>à</strong> direita e Maximino <strong>à</strong> esquerda da “Senhora”,<br />

sem saberem quem era Ela. Tão próximos que ninguém poderia<br />

passar entre eles e a “Senhora”.<br />

Invadidas de íntima alegria por serem carinhosamente<br />

chamadas de “meus filhos” por essa misteriosa mulher, certamente<br />

as duas crianças se sentiram gratificadas, compensadas de todas<br />

as frustrações e carências afetivas sofridas na infância.<br />

Se conhecessem o Evangelho, a beleza translúcida da “Senhora”<br />

lhes lembraria a cena da Transfiguração do Senhor (Mt 17, 1-8).<br />

As pobres crianças também não sabiam que a Escritura diz:<br />

- “Um sinal grandioso apareceu no céu: uma Mulher vestida<br />

de sol...” (Ap 12, 1s).<br />

O dia 19 de setembro de 1846, sábado, era véspera da festa<br />

litúrgica de Nossa Senhora das Dores. Festa celebrada no terceiro<br />

domingo de setembro, naquela época. A Igreja, em sua liturgia<br />

20


de Vésperas, cantava naquela tarde a antífona bíblica:<br />

- “Com que abundância de lágrimas o rosto da Virgem Mãe<br />

está inundado, e que tamanha dor transpassa seu coração...”.<br />

A misteriosa “Senhora” chorava sem cessar. Inclinando seu<br />

rosto, suas lágrimas caíam e se desfaziam na luz sem tocar o<br />

chão. Sobressaia em muito <strong>à</strong> estatura das crianças.<br />

Melânia, apesar da claridade intensa, conseguia contemplar<br />

o rosto da “Senhora” e a abundância de suas lágrimas.<br />

Maximino, de estatura menor, mais facilmente contemplava o<br />

Cristo Crucificado-Ressuscitado que se movia misteriosamente<br />

sobre o coração da “Senhora”.<br />

-“Ela chorou durante todo o tempo em que nos falou. Ah!<br />

Bem vi suas lágrimas caírem”, disse Melânia mais tarde (in<br />

JAOUEN, p.12).<br />

Como que suspensa a uns vinte centímetros do solo,<br />

a “Senhora” inspirava um ar de bondade e dignidade, de<br />

simplicidade e grandeza, de materna ternura e real majestade.<br />

Seu fulgor eclipsava o brilho do sol e impedia a formação de<br />

sombras. A luz que emanava de seu rosto era tal que Maximino<br />

mal pôde entrevê-lo. Melânia contemplou mais distintamente a<br />

extraordinária beleza dessa face banhada em lágrimas e marcada<br />

pela tristeza.<br />

A “Senhora” vestia um amplo avental. Nobre “Senhora”!<br />

Humilde “Serva”! Um manto cobria seus ombros e as pontas<br />

se entrecruzavam sobre o peito para se unirem nas costas. Uma<br />

touca brilhante, enfeitada por rosas e encimada por um diadema,<br />

reluzia sobre sua cabeça. Rosas e pérolas também ornavam a<br />

ponta do calçado. Ombros e cintura estavam envoltos com<br />

outras coroas de rosas. Uma forte corrente descia pelos ombros,<br />

paralelamente <strong>à</strong> coroa de rosas. Vestes longas e largas, brancas<br />

e cintilantes, encobriam a figura da “Senhora”. Calçava sapatos<br />

brancos enfeitados de pérolas, de rosas e com uma fivela<br />

dourada. Do pescoço lhe pendia outra corrente com uma cruz de<br />

cerca de vinte e cinco centímetros. À direita da cruz havia uma<br />

torquez entreaberta, e <strong>à</strong> esquerda, um martelo, ambos brilhantes<br />

21


como ouro, e postos a uma pequena distância da cruz. Nela o<br />

Cristo Crucificado-Ressuscitado, Vivo na Vida da Ressurreição,<br />

se movia e era a fonte de toda a Luz que envolvia a Aparição.<br />

Nenhuma sombra havia. O Cristo vivo, segundo a observação<br />

de Maximino, mas, silencioso, “Luz do mundo”, dava <strong>à</strong><br />

“mariofania” da Salette a dimensão de uma “cristofania”.<br />

O cãozinho Lulu, sem se perturbar com o que acontecia,<br />

estava tranqüilamente deitado aos pés de Maximino.<br />

Os dois videntes sentiam-se intensamente felizes durante a<br />

conversação com a “Senhora”. Maximino, sempre irrequieto,<br />

brincava com o cajado de pastor durante a Aparição, girando<br />

o chapéu sobre ele e remexendo com ele os pedriscos do<br />

solo. Nenhum, porém, tocou os pés da “Senhora”, conforme<br />

testemunhou depois.<br />

A “Senhora”, de pé, face <strong>à</strong>s crianças, começou a falar em<br />

francês, língua desconhecida dos dois pastores. Falava, com<br />

autoridade, como “Mãe”, sem revelar o próprio nome. Referiase<br />

a seu “Povo” sem designar de quem se tratava, e a seu “Filho”<br />

sem pronunciar o seu nome.<br />

<strong>De</strong> seus lábios Maximino e Melânia ouviram a seguinte<br />

Mensagem:<br />

- “Se meu povo não quer se submeter, sou forçada a deixar<br />

cair o braço de meu Filho. É tão forte e tão pesado que não posso<br />

mais sustê-lo. Há quanto tempo sofro por vós! Se quiser que<br />

meu Filho não vos abandone, estou incumbida de suplicá-lo sem<br />

cessar. E, quanto a vós, nem fazeis caso! Por mais que rezeis,<br />

por mais que façais, jamais podereis compensar a aflição que<br />

sofro por vós. <strong>De</strong>i-vos seis dias para trabalhar. Reservei-me o<br />

sétimo e não querem me concedê-lo. É isso que torna tão pesado<br />

o braço de meu Filho! E também os carroceiros não sabem jurar<br />

sem abusar do nome de meu Filho. São estas as duas coisas<br />

que tornam tão pesado o braço de meu Filho. Se a colheita se<br />

estraga é só por vossa causa. Eu vo-lo mostrei no ano passado<br />

com as batatinhas. Vós nem fizestes caso! Ao contrário, quando<br />

encontráveis batatinhas estragadas, juráveis abusando do nome<br />

22


de meu Filho. Elas continuarão assim e neste ano, para o Natal,<br />

não haverá mais”.<br />

(Nesse ponto, Melânia se voltou para Maximino, fazendo-lhe<br />

sinal de que não entendia o que a “Senhora” dizia. A “Senhora”,<br />

então, perguntou aos dois:)<br />

- “Não compreendeis meus filhos? Vou dizê-lo de outro modo”.<br />

(Repetiu, então, a seguir, no dialeto regional, o que acabava<br />

de dizer em francês. <strong>De</strong>pois prosseguiu em sua Mensagem,<br />

sempre no mesmo dialeto).<br />

- “Se tiverdes trigo, não se deve semeá-lo. Tudo que<br />

semeardes será devorado pelos insetos, e o que produzir se<br />

transformará em pó ao ser malhado. Virá uma grande fome.<br />

Antes que a fome chegue, as crianças menores de sete anos serão<br />

acometidas de tremor e morrerão nos braços das pessoas que<br />

as carregarem. Os outros farão penitência pela fome. As nozes<br />

caruncharão. As uvas apodrecerão”.<br />

(Nesse ponto, a “Senhora” interrompeu a Mensagem e<br />

disse, em segredo, uma palavra pessoal em francês, a Maximino<br />

e depois a Melânia. Nenhum dos dois ouviu o que a “Senhora”<br />

disse ao outro em particular. Ambos guardaram fielmente essa<br />

palavra pessoal em segredo por toda a vida, apesar dos graves<br />

percalços que suportaram por sua causa. <strong>De</strong>pois Ela continuou<br />

falando <strong>à</strong>s duas crianças):<br />

- “Se se converterem, as pedras e rochedos se transformarão<br />

em montões de trigo, e as batatinhas serão plantadas nos roçados.<br />

Fazeis bem vossa oração, meus filhos?”<br />

- “Não muito, Senhora!”<br />

- “Ah! Meus filhos, é preciso fazê-la bem, <strong>à</strong> noite e de manhã,<br />

dizendo ao menos um Pai Nosso e uma Ave Maria quando não<br />

puderdes fazer melhor, e, quando puderdes fazer melhor, dizei<br />

mais. Durante o verão, só algumas mulheres mais idosas vão <strong>à</strong><br />

Missa. Os outros trabalham no domingo durante o verão. Durante<br />

o inverno, quando não sabem o que fazer, só vão <strong>à</strong> Missa para<br />

zombar da religião. Durante a Quaresma vão ao açougue como<br />

cães. – Nunca vistes trigo estragado, meus filhos?”<br />

23


- “Não, Senhora!”<br />

- “Mas, tu, meu filho, tu deves tê-lo visto uma vez, em Coin,<br />

com teu pai. O dono da roça disse a teu pai que fosse ver seu<br />

trigo estragado. E então, fostes até lá, apanhastes duas ou três<br />

espigas entre as mãos e amarrotando-as, tudo caiu em pó. Ao<br />

voltardes, quando estáveis a mais ou menos meia hora longe de<br />

Corps, teu pai te deu um pedaço de pão dizendo-te: - “Toma,<br />

meu filho, come pão neste ano ainda, pois não sei quem dele<br />

comerá no ano próximo se o trigo continuar assim!”<br />

- “Ah! É verdade, Senhora, agora estou lembrado. Há pouco<br />

não lembrava isso”.<br />

(A “Senhora” encerrou a conversação, acrescentando em<br />

francês):<br />

- “Pois bem, meus filhos, transmitireis isso a todo o meu<br />

povo!”<br />

(A seguir, deu alguns passos e atravessou o regato Sézia.<br />

Sem se voltar, insistiu dizendo:)<br />

- “Vamos, meus filhos, transmiti isso a todo o meu povo!”<br />

Foram suas últimas palavras.<br />

Maximino, em sua candidez, mais tarde afirmou:<br />

- “Comíamos suas palavras e depois ficávamos muito<br />

contentes”.<br />

O profeta Ezequiel viveu semelhante experiência:<br />

- “Então (o Senhor) disse-me: ‘Filho do homem, come o<br />

que tens diante de ti, come este rolo e vai falar com a casa de<br />

Israel’. Abri a boca e ele me deu o rolo para comer. Em seguida,<br />

disse-me: ‘Filho do homem, ingere este rolo que te estou dando<br />

e sacia-te com ele’. Eu o comi. Na boca parecia-me doce como<br />

o mel” (Ez 3, 1-3).<br />

A “Senhora” se pôs a galgar lentamente a barranca, numa<br />

trilha tortuosa, o que permitiu que, mais tarde, peregrinos nela<br />

vissem o traçado do caminho para o Calvário. <strong>De</strong>sde então, a Via<br />

Sacra faz parte da peregrinação <strong>à</strong> Salette.<br />

A “Senhora” se distanciava por uma dezena de passos quando<br />

as crianças se puseram a andar atrás <strong>De</strong>la. Majestosamente Ela<br />

24


avançava de forma ereta. O único movimento que fazia era com<br />

os pés, de modo tão leve, porém, que parecia deslizar por sobre<br />

a relva, sem dobrá-la. No alto da barranca, elevou-se <strong>à</strong> altura<br />

de um metro e meio mais ou menos. Volveu seu olhar para os<br />

céus e depois para a terra, na direção do sudoeste. E desapareceu<br />

suavemente.<br />

- “<strong>De</strong>rretia-se na luz como manteiga ao fogo”, segundo a<br />

cândida expressão de Maximino.<br />

Primeiro a cabeça, depois os braços e os pés. Nos céus,<br />

depois, apenas um grande clarão. Por fim, nada mais!<br />

Melânia exclamou então:<br />

- “Talvez seja uma grande santa...”.<br />

Melânia, com essa palavra, demonstrou que não sabia<br />

quem era aquela “Senhora”. Não possuía, portanto, os dons<br />

sobrenaturais concedidos por <strong>De</strong>us desde a infância e alegados<br />

mais tarde por ela, em seus escritos (cf. CARLIER, p. 24-25,<br />

Nota 2).<br />

Maximino que, em sua ingenuidade, também desconhecia a<br />

identidade daquela “Senhora”, acrescentou:<br />

- “Se soubéssemos que era uma grande santa, teríamos<br />

pedido a Ela que nos levasse consigo!”<br />

Ao ver o calçado da “Senhora” ornado por rosas, o menino<br />

estendeu o braço para apanhar uma delas. Nada conseguiu. Tudo<br />

se desvanecera. Mais tarde, saudoso, Maximino comentou:<br />

- “Ela partiu e me deixou com todos os meus defeitos...”<br />

A grandiosa experiência mística dos dois pobres pastores<br />

havia chegado ao fim, sem saberem quem era a misteriosa<br />

“Senhora”.<br />

O extraordinário evento teria durado cerca de vinte minutos.<br />

Eram mais ou menos três horas da tarde do sábado, 19 de<br />

setembro de 1846.<br />

Outros pastores perambulavam pela região, mas de nada se<br />

aperceberam.<br />

A seguir, Melânia e Maximino buscaram as mochilas junto<br />

<strong>à</strong> fonte intermitente. Eram cerca de quatro horas da tarde. Os<br />

25


dois trocavam impressões sobre o que haviam visto e ouvido,<br />

enquanto retomavam o cuidado com os rebanhos, como se nada<br />

tivesse acontecido.<br />

Maximino comentava o incomparável esplendor que brotava da<br />

Cruz suspensa sobre o coração da “Senhora”. Lembrando que, em<br />

determinado momento da conversação, a Senhora falou a Melânia<br />

sem que Maximino ouvisse o que Ela dizia, perguntou a Melânia:<br />

- “O que é que Ela te disse quando nada dizia?”<br />

A menina respondeu:<br />

- “Ela me disse algo, mas não quero falar disso. Ela me<br />

proibiu de dizê-lo.”<br />

- “Ah! Eu estou contente, Melânia. Ela me confiou também<br />

uma coisa, mas nem eu quero te dizê-la!”, retrucou o menino (in<br />

CARLIER, p. 26).<br />

Ambos compreenderam que haviam sido agraciados com<br />

uma palavra pessoal da parte da “Senhora”.<br />

Nem a “Senhora” disse o próprio nome, nem as crianças lhe<br />

perguntaram como se chamava. Dada a beleza e majestade da<br />

“Senhora”, elas, em sua inocência, simplesmente lhe deram o<br />

nome admirável de a “BELA SENHORA”.<br />

A incomparável visão foi descrita mais tarde, por Maximino,<br />

com as seguintes palavras:<br />

- “Quando preciso falar da Bela Senhora que me apareceu<br />

sobre a Santa Montanha, experimento o embaraço que deve<br />

ter experimentado São Paulo ao voltar do terceiro Céu. Não, o<br />

olho humano jamais viu o que me foi dado ver... Ninguém se<br />

admire, pois, se aquilo a que chamamos de touca, coroa, manto,<br />

corrente, rosas, avental, veste, saia, fivela e calçado, só tinha a<br />

forma disso tudo. No lindo traje, nada havia de terreno. Somente<br />

os raios de diferentes coloridos se entrecruzavam, produzindo<br />

um magnífico conjunto que, ao descrevê-lo, empobrecemos e<br />

materializamos... Era uma luz, mas, uma luz muito diferente de<br />

qualquer outra” (in “Ma profession de foi sur l´Apparition de<br />

Notre-Dame de La Salette”).<br />

A descrição da Aparição e a narrativa da Mensagem da Bela<br />

26


Senhora foram repetidas, com total fidelidade e sem contradições,<br />

por Melânia e Maximino, juntos ou separadamente, milhares de<br />

vezes, frente a inumeráveis peregrinos. Sempre se diziam incapazes<br />

de bem traduzir em palavras, a beleza infinita da celeste visão.<br />

Pierre Selme já havia partido de seu roçado, de volta para<br />

casa. Melânia e Maximino, no final do dia, desceram a montanha<br />

para junto dos respectivos patrões, em Ablandens.<br />

O dia fora repleto de maravilhas realizadas pelo Senhor.<br />

<strong>De</strong>scera Ele novamente, não mais sobre o Monte Sinai para falar<br />

a seu povo por meio de Moisés, mas, sobre o Monte Planeau para<br />

relembrar sua Aliança com seus filhos, através da Bela Senhora.<br />

O Senhor vira a situação de seu povo esmagado, ouvira seus<br />

gemidos, e desceu para libertá-lo. Veio na pessoa da Mãe de Jesus,<br />

numa atitude de imensa compaixão face <strong>à</strong> realidade humana dos<br />

camponeses de La Salette. Maria, Mãe do Senhor, a Bela Senhora,<br />

Mãe da Reconciliação, se apresentou a esse povo atribulado e<br />

pecador, convocando-o a uma vida nova pela conversão.<br />

Num evento realista, num cenário da França mais profunda,<br />

a Bela Senhora aparece vestida ao modo das mães de família<br />

da região, falando a língua do povo, comentando os problemas<br />

vividos pelos camponeses, sinalizando, pelo episódio de Coin,<br />

sua viva presença no cotidiano do povo.<br />

<strong>De</strong>us se insere na história humana para resgatá-la. O<br />

Cristo está no meio dos seus. Maria, a Senhora da Compaixão<br />

Reconciliadora, se manifesta a seus filhos sofridos.<br />

O evento da Salette é manifestação da concreta e misteriosa<br />

inserção do Divino na vida dos humanos. Por entre os humildes<br />

passa o Caminho que é Jesus, o Senhor.<br />

27


28<br />

CAPÍTULO V<br />

ECOS DO EVENTO<br />

O evento produziu repercussões imediatas, fortes,<br />

surpreendentemente comovedoras por entre as motanhas de La<br />

Salette. Com grande rapidez, como a torrente do Sézia, desceram<br />

aos vales e se difundiram amplamente pelas planícies. O povo<br />

de toda a região foi tomado de surpresa.<br />

1. LES ABLANDENS: A SURPRESA DA COMPAIXÃO<br />

DE DEUS<br />

Pierre Selme, patrão de Maximino, ao se deparar com<br />

o menino que, no entardecer daquele extraordinário dia 19 de<br />

setembro, retornava da montanha para Ablandens, perguntoulhe<br />

porque não fora procurá-lo na lavoura durante o dia, como<br />

tinham combinado.<br />

O menino respondeu que uma Bela Senhora havia se detido<br />

com ele e Melânia por algum tempo, na montanha. E narrou o<br />

que vira e ouvira. O patrão ordenou, então, a Maximino que fosse<br />

<strong>à</strong> procura de Melânia para que ela, em sua presença, confirmasse<br />

ou não a história narrada pelo menino.<br />

Chegando <strong>à</strong> casa do vizinho Jéan-Baptiste Pra, patrão de<br />

Melânia, Maximino perguntou <strong>à</strong> mãe de Pra:<br />

- “Mãe Caron, a senhora não viu uma Bela Senhora em fogo<br />

passando pelos ares, lá acima do vale? Ela conversou muito<br />

conosco, Melânia e eu, hoje de tarde, no alto da montanha”.<br />

A vovó se mostrou reticente.<br />

Maximino insistiu:<br />

- “Se a senhora não quer acreditar em mim, chame a Melânia!”<br />

O assunto excitou a curiosidade da família Pra que<br />

rapidamente se congregou. Maximino fez, então, pela segunda<br />

vez, a narrativa da maravilhosa Aparição.<br />

Melânia nada falara ainda porque estava no estábulo,


cuidando das vacas. Procurada pela senhora Pra, retraída, se<br />

recusou a falar:<br />

- “Vi o que Maximino viu. E uma vez que ele já falou, vocês<br />

sabem o que houve!” (in CARLIER, p.29).<br />

Sob insistência, porém, entrou em casa e narrou<br />

absolutamente a mesma história contada pelo menino. Foi a<br />

primeira narrativa do acontecido feita por Melânia.<br />

A partir de então, ambos repetiam sem hesitações a Mensagem<br />

da Bela Senhora, tanto no “patois” quanto no francês. Ao fazêlo,<br />

as crianças pareciam transformadas, causando admiração aos<br />

ouvintes que bem conheciam a ignorância e simplicidade dos<br />

dois pequenos pastores.<br />

Não estava ali um dos indícios da veracidade do fato?<br />

Como poderiam as duas crianças incultas, que mal se haviam<br />

conhecido na véspera, inventar semelhante história? Não teriam<br />

tido nem engenho nem tempo suficiente para tramar tamanha<br />

fantasia. Sua ignorância religiosa era tão crassa que não tinham<br />

a mínima condição de inventar essa história tão impregnada de<br />

temas teológicos e bíblicos.<br />

A vovó Caron ouviu atentamente a narrativa, e comovida,<br />

foi a primeira a assinalar a identidade da Bela Senhora:<br />

- “Essa Bela Senhora é certamente a Santa Virgem!” (in<br />

CARLIER, p. 29).<br />

Refletindo nas palavras repetidas pelas duas crianças:<br />

- “Se meu povo não quer se submeter, sou forçada a deixar<br />

cair o braço de meu Filho”, acrescentou:<br />

- “No céu, só Ela tem um Filho que governa o mundo!...” (in<br />

CARLIER, p. 29).<br />

<strong>Volta</strong>ndo-se, então, para seu filho mais moço, Tiago, lhe<br />

disse em tom de repreensão:<br />

- “Você ouviu o que a Mãe de <strong>De</strong>us disse a esta menina?<br />

<strong>De</strong>pois disso, você ainda vai trabalhar no domingo?...”.<br />

Tiago, desculpando-se, respondeu:<br />

- “Pois sim! Vou acreditar que essa menina viu Maria<br />

Santíssima, ela que nunca reza?...” (in CARLIER, p. 29).<br />

29


Melânia, pensando nessa observação da vovó Caron e na<br />

recomendação da Bela Senhora a respeito da oração, se deteve,<br />

naquela noite, rezando por algum tempo antes de deitar, a ponto<br />

de sua patroa lhe dizer:<br />

- “Você já rezou o suficiente nessa noite, para compensar os<br />

outros dias”.<br />

Era a noite do sábado, 19 de setembro de 1846.<br />

Todos os moradores da pequena e rústica aldeia de<br />

Ablandens tomaram conhecimento do ocorrido. Um aldeão,<br />

funcionário da Prefeitura de La Salette, se apressou em levar o<br />

caso ao conhecimento do Prefeito.<br />

No dia seguinte, domingo, as duas crianças foram levadas<br />

<strong>à</strong> Igreja Paroquial, em La Salette, para relatarem ao Pároco o<br />

ocorrido no alto do Monte Planeau.<br />

30<br />

2 - LA SALETTE E CORPS NA DINÂMICA DA<br />

RECONCILIAÇÃO<br />

Pároco de La Salette, Pe. Jacques Perrin era um venerando<br />

ancião de sessenta anos de idade. Nascera em Jallieu, perto<br />

de La Tour du Pin, em 1782. Simples, bondoso, homem de<br />

oração. <strong>De</strong> saúde precária, não suportava mais o clima severo<br />

das montanhas. Tinha problemas de visão. Não estava mais em<br />

condições de servir bem a Paróquia, tanto que o Prefeito de La<br />

Salette, o Sr. Peytard, havia solicitado ao Bispo de Grenoble<br />

a substituição do Padre. A Casa Paroquial, por sua vez, estava<br />

deteriorada, num estado lamentável.<br />

Alguns dias antes da Aparição, o Pe. Jacques recebera a<br />

nomeação para outra comunidade. <strong>De</strong>pois da Aparição, a 9 de<br />

outubro de 1846 deixou a Paróquia de La Salette para assumir a<br />

de Saint-Sixte, em Saint-Geoire. Era muito estimado por Dom<br />

Philibert de Bruillard, Bispo de Grenoble. Tinha grande amor<br />

a Nossa Senhora da Salette cuja Aparição acontecera em sua<br />

Paróquia, no final de seu ministério paroquial. Venerado como<br />

santo, ele morreu na manhã de 20 de janeiro de 1848, na sacristia,


em seu genuflexório, durante a ação de graças após a Missa.<br />

No domingo, 20 de setembro, pela manhã, Melânia e<br />

Maximino, acompanhados de Pedro Selme, desceram de<br />

Ablandens até a Igreja Paroquial de La Salette. No caminho<br />

encontraram um guarda municipal que lhes perguntou para<br />

onde iam naquela hora. Conhecida a história, o guarda logo foi<br />

transmiti-la ao Prefeito que a qualificou de balela.<br />

Chegando <strong>à</strong> Casa Paroquial, as duas crianças quiseram falar<br />

com o Pe. Jacques. Naquele momento, o Pároco estava preparando o<br />

sermão para a Missa dominical. Insistindo junto <strong>à</strong> cozinheira da Casa<br />

Paroquial, as duas crianças conseguiram que ela chamasse o Padre.<br />

Ao tomar conhecimento da história, o Pároco, em lágrimas,<br />

exclamou:<br />

- “Ah! Meus filhos, vocês são felizes, vocês viram a Santa<br />

Virgem!” (in CARLIER, p.31).<br />

E anotou por escrito os principais elementos da história.<br />

Durante a Missa, comovido, comentou o acontecimento,<br />

deixando de lado o que havia preparado para o sermão. Levado<br />

pelo simples sentimento pessoal e sem ter elementos para julgar<br />

o ocorrido na véspera, fez uma declaração prematura a respeito<br />

do evento, como se fosse um fato já confirmado pela autoridade<br />

eclesiástica.<br />

Maximino se deteve na Paróquia por pouco tempo. Voltou<br />

apressadamente a Ablandens de onde, após o café da manhã,<br />

Pedro Selme o levou a Corps para confiá-lo ao pai Giraud.<br />

Melânia, porém, numa atitude de reserva, se deteve no fundo<br />

da Igreja durante a Missa. <strong>De</strong>pois voltou a Ablandens.<br />

Finda a Missa, o Conselho Municipal tinha uma reunião a<br />

fazer na Prefeitura. Havia assuntos do interesse do Município de La<br />

Salette a serem tratados. Ciente do acontecido na véspera, no alto<br />

do Monte Planeau, o Prefeito M. Peytard pôs em discussão o caso.<br />

Como os Conselheiros não haviam entendido o sermão do<br />

Pároco, Jean Moussier, morador de Ablandens e membro do<br />

Conselho Municipal, repetiu a narrativa feita pelos dois pastores<br />

na noite anterior. Ninguém acreditou.<br />

31


À tarde do dia 20 de setembro, o Prefeito, preocupado<br />

e com vinte francos no bolso, dirigiu-se a Ablandens, a cerca<br />

de um quilômetro de distância da Prefeitura, para interrogar<br />

as crianças. Só encontrou Melânia. Maximino já havia partido<br />

durante a manhã, para a casa do pai, em Corps. Pediu, então, a<br />

Melânia que lhe contasse a história, sem interrompê-la.<br />

Peytard admirava a simplicidade da menina, sua firmeza<br />

e entusiasmo ao narrar o acontecido, ela que era tão tímida e<br />

reservada. Fez-lhe algumas perguntas para forçá-la a cair em<br />

contradição. Ameaçou-a de prisão. Prometeu dar-lhe a soma de<br />

vinte francos se ela deixasse de falar desse assunto.<br />

Melânia, firme em sua atitude apesar da imensa pobreza<br />

da família, respondeu-lhe que nem mesmo uma casa cheia de<br />

dinheiro a demoveria de sua certeza. Mostrava-se inflexível. Só<br />

tinha uma resposta a dar:<br />

- “Foi-me dito que contasse, e eu contarei!”<br />

Peytard, homem de formação superior, judicioso, perspicaz,<br />

foi tomado pela surpresa. Inclinou-se a admitir a veracidade do<br />

acontecido.<br />

<strong>De</strong>pois de três horas de interrogatório, pediu a Jéan-Baptiste<br />

Pra, o patrão de Melânia, que não permitisse <strong>à</strong> pastora descer<br />

a Corps e se encontrar com Maximino, antes que ele mesmo,<br />

Prefeito, interrogasse o menino.<br />

O próprio patrão de Melânia, ainda incrédulo quanto ao fato,<br />

ficou surpreendido com a firmeza da menina, de suas respostas<br />

claras, fortes e convincentes. Vendo, porém, a atitude do Prefeito,<br />

começou a acreditar no que Melânia afirmava.<br />

Logo após a partida do Prefeito, Jéan-Baptiste Batista Pra<br />

procurou o ex-patrão de Maximino, Pierre Selme e o Conselheiro<br />

Municipal, Jean Moussier. Os três se puseram de acordo para,<br />

naquela noite de 20 de setembro, em Ablandens, ouvir o relato<br />

de Melânia.<br />

A entrevista com a pastora durou cerca de sete horas. Sua<br />

narrativa foi anotada palavra por palavra e assinada com o título de<br />

“Lettre dictée par la Sainte Vierge <strong>à</strong> deux enfants sur la Montagne de<br />

32


La Salette-Fallavaux” (in CARLIER, p. 34). É o primeiro e valioso<br />

documento escrito sobre a Aparição, datado de 20 de setembro de<br />

1846, dia seguinte ao evento vivido pelos dois pastores no alto do<br />

Monte Planeau. É conhecido como “Relatório Pra”.<br />

Na segunda feira, dia 21, algumas pessoas de Corps subiram<br />

a montanha e constataram com imensa surpresa, que a pequena<br />

fonte intermitente, mas seca no dia 19, vertia água serenamente.<br />

<strong>De</strong>sde então nunca mais cessou de jorrar água pura, em torrente<br />

de graças, tornada permanente.<br />

Alguns dias depois, chegou o novo Pároco de La Salette, Pe.<br />

Louis-Joseph Perrin. Era homem de bom senso, de muita piedade<br />

e zelo pastoral. Havia sido Pároco em Monestier d´Ambel, na<br />

região de Corps, onde o seu irmão Pe. Jacques-Michel Perrin,<br />

capelão do Hospital Geral de Grenoble, o auxiliou por algum<br />

tempo. Apesar do mesmo sobrenome, não tinham parentesco<br />

algum com o Pároco anterior de La Salette.<br />

Pe. Louis-Joseph era natural de La Murette. Nasceu em<br />

1812. Fez seus estudos no Seminário Maior em Grenoble. Foi<br />

ordenado sacerdote aos 29 anos de idade. Tinha 34 anos quando<br />

assumiu a Paróquia de La Salette, a 28 de setembro de 1846,<br />

poucos dias após a Aparição. Já tinha conhecimento do evento,<br />

mas, queria certificar-se pessoalmente a seu respeito.<br />

Sua impressão ao chegar <strong>à</strong> Casa Paroquial foi péssima.<br />

Suportou com paciência a degradação e a pobreza geral da<br />

residência. Passou doze dias com seu antecessor, Pe. Jacques,<br />

trocando idéias sobre a Aparição.<br />

Diariamente muitas pessoas, solitárias ou em pequenos<br />

grupos, já subiam a montanha do evento extraordinário.<br />

Pe. Louis-Joseph, no entretempo, buscava informações<br />

junto a pessoas do local.<br />

<strong>De</strong>z dias após sua instalação na Paróquia, passando por<br />

Ablandens, tomou Melânia consigo e visitou a montanha da<br />

Aparição. Interrogava a menina e anotava todas as suas respostas.<br />

Três outros Padres e mais cerca de trinta pessoas se juntaram a<br />

eles, nessa visita.<br />

33


<strong>De</strong> volta da montanha, o Pe. Louis-Joseph interrogou Pedro<br />

Selme e Batista Pra a respeito das duas crianças. Aos poucos<br />

ele passou a aceitar o fato. Superou preconceitos diante da<br />

clareza dos acontecimentos, deixando-se conquistar pela Bela<br />

Senhora. À luz da Aparição, começou a trabalhar intensamente<br />

na conversão dos paroquianos de sua rebelde comunidade.<br />

A 22 de outubro de 1846, Maximino, com a ajuda de dois<br />

amigos, carregou sobre os ombros, montanha acima, a cruz<br />

instalada no local onde a Bela Senhora subiu aos céus.<br />

A 24 de outubro o Padre enviou carta a Dom Philibert<br />

dizendo-lhe que a Aparição se tornava cada vez mais aceita<br />

e que o número de peregrinos era grande e diário. Observou<br />

também que a prática religiosa crescia cada vez mais entre seus<br />

paroquianos. Concluiu o texto afirmando:<br />

- “Não encontro nada em contrário, e sim, tudo a favor da<br />

realidade”.<br />

A 17 de novembro escreveu igualmente uma carta<br />

circunstanciada ao Pe. Rousselot. Outros escritos foram por ele<br />

enviados <strong>à</strong> Cúria Diocesana.<br />

Os peregrinos provenientes de La Salette, de Corps<br />

e arredores, bem como de regiões mais distantes, subiam<br />

numerosos <strong>à</strong> montanha da Salette desde a primeira semana após<br />

a Aparição até dezembro de 1846, início do inverno.<br />

Corps teve o mérito de iniciar as peregrinações coletivas,<br />

organizadas. Em meados de novembro de 1846 o povo<br />

demonstrava sinais de conversão, encontrando o caminho de<br />

volta <strong>à</strong> Igreja. Surgiu a idéia de se fazer uma procissão para subir<br />

a montanha, já chamada de “a Montanha de Nossa Senhora, de<br />

nossa Boa Mãe”. A idéia se transformou em movimento popular<br />

espontâneo, sem a participação do Clero, sem prévia autorização<br />

episcopal.<br />

A chamada “Confraria dos Penitentes de Corps”, um grupo<br />

devocional da Paróquia, tomou a iniciativa de fazer a primeira<br />

procissão montanha acima, a 17 de novembro de 1846. Reuniu<br />

cerca de seiscentas pessoas. O Pároco, Pe. Mélin, não participou<br />

34


em virtude da proibição expressa do Bispo de Grenoble. Dom<br />

Philibert havia pedido ao Clero que guardasse toda reserva<br />

até que o evento fosse devidamente analisado pela autoridade<br />

eclesiástica competente.<br />

A ausência do Pároco, porém, foi suprida pela devoção do<br />

povo peregrino.<br />

<strong>De</strong>pois de algumas horas de penosa caminhada, os peregrinos<br />

rezaram e cantaram no alto do monte da Aparição. Na volta, ao<br />

chegarem a Corps, os “Penitentes...” não se dispersaram, mas<br />

percorreram as ruas da cidade sem levar em conta os comentários<br />

maldosos do público, de forma que até velhos impenitentes se<br />

juntavam <strong>à</strong> multidão em sinal de conversão.<br />

Milagres começaram a acontecer.<br />

A 28 de novembro uma segunda peregrinação foi realizada<br />

em ação de graça por uma cura milagrosa acontecida em Corps.<br />

Maximino e Melânia encabeçavam a procissão com cerca de mil<br />

e quinhentas pessoas. Algumas Religiosas e todo o grupamento<br />

policial de Corps se incorporaram <strong>à</strong> procissão. Moradores das<br />

vilas dos arredores aderiram ao ato. Apesar da neve que cobria<br />

a Montanha, ninguém se deixava abater. A multidão cantava e<br />

rezava o terço durante as quatro horas estafantes de caminhada.<br />

No meio do povo reunido em prece no local da Aparição,<br />

uma senhora hidrópica, levada nos braços pelo esposo e filho<br />

montanha acima, rezava pedindo a graça da saúde. Junto <strong>à</strong> fonte<br />

milagrosa, repentinamente se sentiu curada. Com grata alegria<br />

depositou, como ex-voto, nos braços do cruzeiro plantado por<br />

Maximino no local da assunção da Bela Senhora, a cruz de ouro<br />

que trazia consigo.<br />

<strong>De</strong> volta a Corps, a multidão percorreu mais uma vez as ruas<br />

da cidade até chegar <strong>à</strong> Igreja Matriz.<br />

Os dois videntes, internos do Colégio das Irmãs da Providência,<br />

em Corps, acompanhavam freqüentemente os peregrinos até o<br />

lugar da Aparição, repetindo-lhes a narrativa do evento.<br />

Seguindo o exemplo de Maximino, Melânia também quis<br />

plantar uma cruz no alto do monte. A cruz, obtida a muito custo<br />

35


por causa da pobreza do pai, foi apresentada ao Pároco para ser<br />

abençoada. Foi-lhe dada uma bênção simples para evitar que o<br />

gesto significasse o reconhecimento da verdade do evento da<br />

Salette.<br />

A 8 de dezembro de 1846, os “Penitentes de Corps” fizeram<br />

sua terceira e última peregrinação no ano. Melânia pôde, então,<br />

instalar sua cruz no ponto onde a Bela Senhora conversou com<br />

os videntes.<br />

A Mensagem da Bela Senhora era incessantemente<br />

proclamada pelos dois videntes e confirmada pelos milagres e<br />

conversões que se multiplicavam.<br />

No entanto, se a misericórdia de <strong>De</strong>us, sinalizada por curas<br />

e conversões, se manifestava no meio do povo, certos males<br />

continuavam recaindo sobre a vida da população. Calamidades<br />

sofridas antes da Aparição prosseguiam depois dela. A palavra<br />

profética da Bela Senhora se concretizava:<br />

-“As batatinhas continuarão a se estragar e, para o Natal, não<br />

haverá mais... As crianças morrerão... Os outros farão penitência<br />

pela fome...”<br />

Efetivamente, o inverno 1846 foi extremamente pesado,<br />

sobretudo para os pobres. Para o Natal não havia mais trigo<br />

nem batatinhas. O pão era muito raro e caro. Os legumes<br />

se deterioravam. Tudo sofreu grande elevação de preço em<br />

virtude da escassez, e da conseqüente especulação por parte dos<br />

mercadores que importavam os produtos de outras localidades.<br />

Os moradores da região não tinham dinheiro para suas compras.<br />

A carestia era enorme.<br />

Na primavera de 1847, homens, mulheres e crianças<br />

percorriam os campos em busca de plantas silvestres para matar<br />

a fome.<br />

Por causa da inanição, a mortalidade, sobretudo a infantil,<br />

devastava a população. A 12 de abril de 1847, Pe. Mélin, de<br />

Corps, levou ao conhecimento do Bispo de Grenoble o fato de<br />

que, de janeiro a abril daquele ano, trinta crianças e dez adultos,<br />

sobre os 1.300 habitantes da Paróquia, haviam morrido de fome.<br />

36


O Tabelionato de Corps registrou, para o ano de 1847, a<br />

cifra de noventa e nove mortes, sendo sessenta e três de crianças,<br />

dentre as quais um irmão menor de Maximino.<br />

A fome se expandiu pela França e Europa em geral. Em<br />

1847 a Irlanda viu um grande número de seus filhos deixarem<br />

o próprio país em direção aos Estados Unidos, por causa do<br />

flagelo.<br />

No entanto, os paroquianos de La Salette apoiavam o Pároco<br />

em seu fervor pela Mãe do Senhor. Na primavera de 1847<br />

instalaram junto com o Padre e com a permissão do Bispo Dom<br />

Philibert, uma grande cruz no alto do Monte Planeau para que,<br />

dos vales, se visualisasse o local da Aparição. Seria um ponto de<br />

atração para os peregrinos.<br />

A 23 de junho de 1847, a Paróquia inteira acompanhou<br />

o Pároco de La Salette em procissão até o ponto do evento<br />

extraordinário. Os homens carregavam cruzes montanha acima,<br />

para plantá-las no local bendito, em forma de Via Sacra. Ali eram<br />

depositadas flores, acendiam-se velas, rezava-se com piedade.<br />

Nesse dia, um desconhecido, rezando as orações próprias da Via<br />

Sacra, se ajoelhou por catorze vezes ao longo do caminho que a<br />

Bela Senhora havia percorrido durante a Aparição.<br />

O povo, tocado em seu coração, prosseguia as peregrinações<br />

com a presença de muitos Padres. Na segunda feira de Pentecostes<br />

de 1847, encontravam-se no local da Aparição mais de três mil<br />

peregrinos, e no dia 31 de maio do mesmo ano, cerca de seis mil<br />

pessoas fizeram sua peregrinação. Pessoas de inúmeras regiões,<br />

de todas as condições, idade e profissão se convertiam.<br />

Vendo o fervor dos fiéis, e com a devida prudência, o Padre<br />

Louis-Joseph, Pároco de La Salette, expôs ao Bispo a idéia de<br />

erigir um oratório no local do evento. Subia a montanha com<br />

frequência, acompanhando peregrinos, com discreção, uma vez<br />

que o fato ainda não fora aprovado pela autoridade eclesiástica.<br />

Na montanha dedicava-se a alguns trabalhos manuais como<br />

o arranjo da pequena fonte, muito procurada pelos visitantes.<br />

Queria facilitar o acesso <strong>à</strong> água milagrosa. Para evitar a<br />

37


degradação da fonte miraculosa e do lugar da Aparição, instalou<br />

uma proteção adequada.<br />

A pedra sobre a qual se assentara a Bela Senhora no início da<br />

Aparição, era objeto de veneração, o que induzia os peregrinos<br />

a parti-la para levar algum pedaço para casa como sagrada<br />

lembrança.<br />

Pe. Louis-Joseph teve a idéia de levar consigo o que restava<br />

da pedra bendita, para conservá-la em seu presbitério. Houve por<br />

causa disso uma disputa entre o Pe. Louis-Joseph, o Prefeito de La<br />

Salette e o Pe. Mélin que guardou a pedra em Corps. O episódio<br />

demonstrava o apego do Pároco de La Salette a tudo que se referia<br />

ao evento maravilhoso ocorrido na montanha, em sua Paróquia.<br />

O Pároco de La Salette, em meio a todos esses acontecimentos,<br />

quis organizar os magníficos festejos do 1º Aniversário da<br />

Aparição. A data de 19 de setembro de 1847 coincidia com<br />

um domingo. Seria um acontecimento grandioso. Pe. Louis-<br />

Joseph podia contar com um auxiliar, pois, havia recebido em<br />

sua paróquia a preciosa ajuda de Pe. Jacques-Michel Perrin, seu<br />

irmão mais velho em idade e sacerdócio. Fora ordenado a 9 de<br />

julho de 1836. Um Padre muito zeloso e estimado.<br />

Prevendo o movimento que a celebração do 1º Aniversário<br />

suscitaria, o Pe. Louis-Joseph, depois de consultado o Bispo,<br />

e com a ajuda do Prefeito Peytard, uma semana antes da festa<br />

levantou no local da Aparição um oratório muito simples, feito<br />

com madeira doada pelo povo de La Salette. O oratório permitiria<br />

celebrar a Missa ao abrigo do tempo.<br />

Ponderada a situação, o Bispo autorizou a celebração de<br />

missas na pequena capela, desde a aurora até o meio-dia, durante<br />

a oitava do 1º Aniversário.<br />

Três dias antes da comemoração festiva, as estradas que<br />

levam a Corps foram tomadas pelas multidões. As Igrejas<br />

estavam repletas de pessoas que buscavam o confessionário.<br />

No dia 18 de setembro a cidade de Corps não comportava mais<br />

gente. À tarde, uma chuva forte e glacial caiu. O povo passou a<br />

noite em oração.<br />

38


Naquela noite ocorreu um fato inesperado: 80 Padres, a<br />

caminho da Montanha, se refugiaram num galpão. O assoalho<br />

não suportou o peso e ruiu. Felizmente não houve feridos.<br />

Os peregrinos, <strong>à</strong> luz de tochas e velas em meio <strong>à</strong> escuridão<br />

e sem conhecer as perigosas trilhas das montanhas, se puseram<br />

a subir até o alto do monte da Aparição desde o começo da<br />

noite de 18 de setembro. Era uma multidão de mais de duas mil<br />

pessoas, sob um tempo assustador. Formava uma fila de cerca<br />

de seis quilômetros de comprimento, cantando e rezando. Os<br />

peregrinos comprimiam-se entre si para se protegerem do vento<br />

e da chuva fria.<br />

Os Padres, refugiados junto <strong>à</strong> pobre capela, entoavam cantos<br />

e preces no oratório, durante a noite.<br />

Às 2hs30 da madrugada, depois de abençoado o oratório,<br />

o Pe. Louis-Joseph e Pe. Jacques-Michel rezaram a Missa, um<br />

frente ao outro, no mesmo altar. Outros Padres se sucederam nas<br />

celebrações eucarísticas, até o meio dia. A Liturgia, nessa época,<br />

não permitia a concelebração eucarística.<br />

Chegada a manhã de 19 de setembro de 1847, o povo de<br />

peregrinos aumentava cada vez mais, apesar do mau tempo.<br />

Pelas dez horas da manhã o céu se abriu. O entusiasmo dos fiéis<br />

se reanimou. Às 11hs30 ninguém mais podia se movimentar,<br />

tal era o aperto da multidão. Para evitar o risco de sufocação em<br />

torno do oratório, as missas foram suspensas.<br />

O Pe. Sibillat, Vigário em La Tronche e, mais tarde, um dos<br />

primeiros Missionários de Nossa Senhora da Salette, tomou,<br />

então, a palavra e fez vibrante alocução ao povo presente. Pe.<br />

Gérin, Pároco da Catedral de Grenoble, fez outro sermão mais<br />

empolgado ainda.<br />

Cerca de duzentos Padres se faziam presentes <strong>à</strong> cerimônia. A<br />

multidão, dividida em dois coros separados pelo vale do riacho<br />

Sézia, local da Aparição, cantava o Magnificat, o Sub Tuum e o<br />

Te <strong>De</strong>um. Um espetáculo inolvidável. Junto <strong>à</strong> fonte milagrosa as<br />

pessoas esperavam por horas para poderem obter um pouco da<br />

água bendita.<br />

39


No meio do povo estavam Maximino e Melânia. Todos<br />

queriam vê-los, ouvi-los e abraçá-los. Por três vezes fizeram a<br />

narrativa da Aparição, em pontos diferentes do local. As pessoas<br />

devoravam suas palavras em silêncio. Algumas pessoas com voz<br />

forte repetiam no meio da multidão a narrativa dos dois videntes<br />

para que todos pudessem ouvir a Mensagem. <strong>De</strong>pois rezaram<br />

o terço com o povo presente. Por mais de uma vez correrram<br />

risco de serem sufocados pela multidão, a ponto de Giraud, o<br />

pai de Maximino, se ver obrigado a salvar o menino do perigo,<br />

levando-o <strong>à</strong> exígua sacristia onde o vidente se confessou com o<br />

Pe. Gérin. As Irmãs de Corps socorreram Melânia.<br />

Melânia era procurada, interrogada, admirada por todos.<br />

Imprudentemente alguém lhe disse:<br />

-“Veja todo esse povo! Você é a responsável por tudo isso!”<br />

Melânia deu de ombros, não levando em consideração o<br />

elogio. Essa palavra imprudente, no entanto, produziria maus<br />

efeitos nas atitudes da vidente no futuro.<br />

Pelas duas horas da tarde os peregrinos começaram a se<br />

dispersar, descendo a montanha. Concluía, pois, a incomparável<br />

peregrinação <strong>à</strong> Montanha da Salette, a 19 de setembro de<br />

1847, em celebração do 1º Aniversário da Aparição. Segundo<br />

estimativas de testemunhas oculares, entre cinqüenta e cem<br />

mil pessoas participaram da comemoração desse evento na<br />

Montanha da Salette.<br />

A respeito da comemoração, o Prefeito de La Salette,<br />

estupefato com o que presenciara, escreveu depois uma carta<br />

a Dom Villecourt, Bispo de La Rochelle, descrevendo o<br />

acontecimento.<br />

À noite desse dia 19 de setembro, o Pároco de La Salette<br />

também quis descrever o que acontecera, em carta enviada ao<br />

mesmo Bispo. A carta foi incluída no livro “Nouveau récit de<br />

l´Apparition de la Sainte Vierge sur la montagne des Alpes”,<br />

publicado por Dom Villecourt em 1847. O Bispo descreveu<br />

nessa obra suas excelentes impressões a respeito do local, dos<br />

videntes e da história da Aparição.<br />

40


Dom Villecourt foi o primeiro Bispo a visitar La Salette.<br />

Subiu a Montanha a 22 de julho de 1847. Maximino, o vidente,<br />

convidado pelo Bispo a acompanhá-lo desde Corps até o local<br />

da Aparição, cheio de contentamento bateu o sino da Igreja<br />

de La Salette durante toda a breve estadia de Dom Villecourt<br />

nesta Paróquia. Em carta posterior, o Bispo exaltou “a candura,<br />

a simplicidade e a humildade” dos paroquianos de La Salette,<br />

reflexo da vida dos dignos Sacerdotes Perrin.<br />

<strong>De</strong>sde que Dom Villecourt ouvira falar da Salette, alimentou<br />

dentro de si uma grande consideração pelo que lá ocorreu.<br />

Estudou a Aparição e a ela deu crédito plenamente. Escreveu<br />

belos textos a respeito. <strong>De</strong> retorno <strong>à</strong> sua Diocese, e passando<br />

por Lyon, o Bispo pregou publicamente sobre o evento. Ao<br />

conhecer o Pe. Louis-Joseph descreveu-o como um “homem de<br />

<strong>De</strong>us”.<br />

Dom Villecourt recebeu o chapéu cardinalício, a 17 de<br />

dezembro de 1855. Foi uma recompensa que o Papa Pio IX<br />

lhe concedeu por ter ele pedido a proclamação do Dogma da<br />

Imaculada Conceição. Pio IX sempre lhe votou uma grande<br />

estima. Em sua prolongada doença, recebeu mais vezes a visita<br />

do Papa, no quarto por ele ocupado no Seminário Francês, em<br />

Roma. Morreu a 16 de janeiro de 1867.<br />

Por sua vez, o Pe. Jacques-Michel, com a permissão do<br />

Bispo de Grenoble, recebeu a incumbência de celebrar a Missa<br />

na Montanha depois do 1º Aniversário da Aparição até a festa de<br />

Todos os Santos.<br />

O inverno começava. Não havia alojamentos. A Casa<br />

Paroquial de La Salette se encontrava em estado lastimável.<br />

Assim mesmo, os dois irmãos Padres que levavam uma vida<br />

pobre, de devotamento, alojavam peregrinos, sobretudo<br />

Sacerdotes, que se dirigiam <strong>à</strong> Montanha. Tinham um coração<br />

maior que sua pobre casa.<br />

Freqüentemente os dois irmãos subiam a Montanha.<br />

Durante uma peregrinação, o Pe. Jacques-Michel sofreu um<br />

acidente grave: a mula em que viajava se assutou com o vôo de<br />

41


um pássaro e derrubou o Padre barranco abaixo. <strong>De</strong>vido a sérias<br />

contusões na face, ficou acamado por uma semana.<br />

Dom Philibert, Bispo de Grenoble, no final do inverno, a<br />

13 de março de 1848, deu sua aprovação <strong>à</strong> Novena Perpétua em<br />

honra de Nossa Senhora.<br />

Ao final de março, os dois Padres Perrin comunicaram ao<br />

Bispo o fato da cura de uma pessoa que morava em Saint-Dizier,<br />

onde havia uma Arquiconfraria Reparadora. A existência dessa<br />

associação de devotos levou os dois Padres a organizarem em La<br />

Salette uma entidade semelhante<br />

A 1º de maio de 1848, a pedido dos Padres Perrin, o Bispo<br />

concedeu-lhes a permissão de erigirem na Paróquia de La Salette,<br />

a Confraria de Nossa Senhora das Sete Dores. Dado o fato da<br />

Aparição e da grande devoção <strong>à</strong> Bela Senhora intimamente<br />

unida <strong>à</strong> devoção a Nossa Senhora das Dores, o Pe. Louis tomou<br />

a iniciativa de mudar o nome dessa associação de devotos, para<br />

o de Confraria de Nossa Senhora Reconciliadora da Salette,<br />

tornando-se seu fundador e o primeiro a atribuir <strong>à</strong> Bela Senhora<br />

o título litúrgico “Nossa Senhora Reconciliadora”. Os fiéis da<br />

Paróquia, sem hesitação, aderiram <strong>à</strong> nova denominação (cf.<br />

BASSETTE, p. 159).<br />

O irmão de Pe. Louis, Pe. Jacques-Michel havia descoberto<br />

uma reflexão teológica sobre a “RECONCILIAÇÃO” em chave<br />

mariana, na obra “As glórias de Maria”, de Santo Afonso Maria<br />

de Liguori.<br />

O objetivo da nova Confraria era o de rezar pela conversão dos<br />

pecadores e fazer reparação das ofensas a <strong>De</strong>us. Tinha como norma<br />

a oração diária de um Pai Nosso, de uma Ave Maria e da invocação:<br />

- “Nossa Senhora da Salette, Reconciliadora dos Pecadores,<br />

rogai sem cessar por nós que recorremos a Vós!”.<br />

As inscrições no rol dos membros da Confraria foram<br />

abundantes e rápidas. Em 1850 contava com mais de 18.000<br />

inscritos. Em 1852 o número de membros chegava a 50.000.<br />

Em 22 de agosto de 1852, o Pe. Burnoud, o primeiro Superior<br />

dos Missionários de Nossa Senhora da Salette, pediu ao Bispo<br />

42


Dom Philibert que erigisse canonicamente a Confraria. Dom<br />

Philibert solicitou <strong>à</strong> Santa Sé algumas indulgências em favor<br />

da nova instituição, e a autorização para os Padres peregrinos<br />

celebrarem, na Montanha da Aparição, a Missa Votiva da Santa<br />

Virgem Maria.<br />

A favor da Confraria Nossa Senhora da Salette,<br />

RECONCILIADORA dos pecadores, o Bispo pediu <strong>à</strong> Santa Sé:<br />

- “1) A consagração desse NOME pela autoridade apostólica,<br />

ou sua mudança para outro que fosse julgado mais conveniente<br />

pelo Santo Padre;<br />

- 2) A elevação dessa piedosa associação em<br />

ARQUICONFRARIA <strong>à</strong> qual se filiariam todas as outras que se<br />

formariam a seguir...” (in STERN, p. 73).<br />

A “Arquiconfraria” foi instituída por Pio IX num Breve<br />

datado de 7 de setembro de 1852, com a concessão de diversos<br />

privilégios e indulgências.<br />

O título de “RECONCILIADORA”, aplicado <strong>à</strong> Bela Senhora,<br />

foi assumido imediatamente e com fervor pela piedade popular, e se<br />

mantém vivo na espiritualidade da Congregação dos Missionários<br />

de Nossa Senhora da Salette. A partir das intuições a respeito do<br />

Fato e da Mensagem da Aparição, a Congregação paulatinamente<br />

elaborou seu carisma congregacional <strong>à</strong> luz da Reconciliação.<br />

A dimensão mariana da Reconciliação estava praticamente<br />

esquecida pela Teologia e pela Pastoral, desde a Idade Média.<br />

Um dos últimos grandes teólogos a comentá-la foi Santo<br />

Anselmo de Cantuária (+ 1109). Numa de suas preces se referiu<br />

a Maria como “Mãe da Reconciliação”:<br />

- “Da mesma forma que o Filho de <strong>De</strong>us é a beatitude dos<br />

justos, assim também Vós, fecunda em frutos de salvação,<br />

tendes um Filho que reconcilia os pecadores. Não há outra<br />

Reconcilação senão Aquela que vossa castidade concebeu. Não<br />

há outra Justificação senão aquela que Vós, Virgem, nutristes<br />

no vosso seio. Não há outra Salvação senão Aquele que Vós,<br />

sempre Virgem, gerastes. Ó Senhora, Vós sois, então, a Mãe da<br />

Justificação e dos justificados, a Mãe da Reconciliação e dos<br />

43


econciliados, a Mãe da Salvação e dos que foram salvos. Ó<br />

bem aventurada confiança! Ó refúgio seguro! A Mãe de <strong>De</strong>us é<br />

nossa Mãe. A Mãe Daquele de Quem tudo esperamos, e a Quem<br />

somente, tememos, é nossa Mãe”.<br />

O Pe. Jaouen ms, em “La grâce de La Salette” (1846-1946),<br />

Ed. Du Cerf, Paris, 1946, p. 337, afirma:<br />

- “Um modesto cura de campanha, procurando o sentido<br />

essencial do drama que se desenrolara visivelmente sob os<br />

olhares de duas crianças, encontrou esse título que faz parte<br />

do apanágio sobrenatural de Maria e que os teólogos não<br />

desaprovam, mas a respeito do qual jamais teriam pensado em<br />

torná-lo objeto de uma devoção: sua importância lhes fugia. Era<br />

preciso que a própria Virgem, por meio de todos os momentos<br />

e símbolos de sua aparição, nos explicitasse a riqueza desse<br />

título e suas conexões sobrenaturais para que tivéssemos a idéia<br />

de nele fixarmos nosso olhar e com ele alimentar nossa vida.<br />

Milhões de almas invocaram a Virgem sob esse novo título, ou<br />

mais exatamente, perceberam com novo olhar esse mistério que<br />

ela realiza nos céus desde sempre, a reconciliação dos pecadores<br />

que todos somos” (in BASSETTE, p. 160).<br />

Outras devoções a Nossa Senhora da Salette surgiram<br />

após, como a Novena Perpétua, a oração do Lembrai-vos e as<br />

Ladainhas, segundo a dimensão reconciliadoora. Maravilhas<br />

aconteceram com a prática dessa devoção.<br />

Não contentes ainda, os irmãos Padres Perrin, além da vasta<br />

correspondência por eles mantida, decidiram lançar em 1849, o<br />

periódico “Les Annales de Notre-Dame Réconciliatrice de La<br />

Salette”, um monumento literário sólido. <strong>De</strong>pois lançaram o<br />

“Journal des Pèlerins de Notre-Dame de la Salette”. Receberam<br />

grandes elogios em carta que lhes foi enviada pelo grande<br />

escritor e polemista Louis Veuillot, a 6 de fevereiro de 1849 (cf.<br />

texto integral da carta in V. H., II, pg 58).<br />

Os anos 1848, 1849 e 1850 foram para os dois Padres de<br />

La Salette, excessivamente trabalhosos. Recebiam peregrinos<br />

de todas as partes da Europa. Na Montanha, rezavam diversas<br />

44


missas por dia, em atenção aos peregrinos. Passavam horas<br />

numa salinha, atendendo confissões. Não se preocupavam<br />

consigo mesmos. Fatigado, Pe. Jacques Michel, ao final de<br />

quatro anos em La Salette, pediu, então, transferência para La<br />

Murette, sua terra natal, para um repouso merecido. Seu estado<br />

de saúde, porém, piorou. No Domingo de Ramos, em abril de<br />

1851, pediu os Santos Sacramentos e entregou sua vida a <strong>De</strong>us.<br />

Dom Philbert declarou-o “um de seus Padres de elite”, tal era<br />

sua humildade e heroísmo.<br />

Nessa época, a construção do Santuário era cogitada. Faziase,<br />

antes, necessária a compra do terreno junto <strong>à</strong> Prefeitura<br />

Municipal de La Salette, proprietária de toda a área onde<br />

aconteceu a Aparição.<br />

Com a saúde debilitada, o Padre Louis-Joseph não tinha<br />

mais forças para levar avante os trabalhos pastorais tanto na<br />

Paróquia quanto no alto da Montanha da Aparição. Acompanhou<br />

os acontecimentos, porém, até que os Missionários de Nossa<br />

Senhora da Salette, fundados por Dom Philibert em 1852 para<br />

zelar pelo Santuário, assumissem o posto, mantendo com eles<br />

sempre ótimo relacionamento.<br />

O Pároco de La Salette compreendeu, pois, que era tempo<br />

de se retirar, depois de cinco anos e meio de prodigiosa ação<br />

pastoral em La Salette. Quando de sua partida da Paróquia,<br />

repassou aos novos Missionários todos os documentos relativos<br />

<strong>à</strong> Aparição, bem como o pedaço da pedra sobre a qual a Bela<br />

Senhora esteve assentada, pedra por ele conservada.<br />

O Pe. Louis-Joseph que, em repetidas e cansativas subidas<br />

ao Monte Planeau, acompanhava de perto o movimento dos<br />

peregrinos e a transformação religiosa da Paróquia, escreveu ao<br />

deixar La Salette:<br />

- “Percebia-se, com edificação, a cessação da blasfêmia e dos<br />

trabalhos aos domingos, nas Paróquias vizinhas a La Salette. Iase<br />

<strong>à</strong> Igreja até mesmo nos dias de trabalho, para ouvir a Palavra<br />

de <strong>De</strong>us e receber os sacramentos... Nesse primeiro ano após a<br />

Aparição, não houve uma família sequer de minha Paróquia que<br />

45


não tenha pedido a celebração de uma Missa de ação de graças<br />

em honra da Santa Virgem. Oh! Como era bom ser Pároco então.<br />

Esses foram os dias mais bonitos de minha vida!” (in CARLIER,<br />

p. 57-58).<br />

Com a consciência do dever cumprido, louvava a <strong>De</strong>us por<br />

lhe ter concedido esta graça em La Salette (in V. H., II, p. 79).<br />

A respeito dos dois videntes da Aparição, Pe. Louis-Joseph<br />

também declarou que, quando eram submetidos a interrogatórios,<br />

eles “raramente se cansavam. Interrogados quer separadamente,<br />

quer um frente ao outro, nunca se puseram em contradição entre<br />

si” (in V.H., I, p. 24). Atestou que ambos repetiam sempre a<br />

mesma história por eles ouvida uma só vez dos lábios da Bela<br />

Senhora.<br />

A 15 de abril de 1852, Pe. Burnoud, primeiro Superior dos<br />

Missionários de Nossa Senhora da Salette, e Pe. Sibillat, seu<br />

confrade, assumiram a missão junto aos peregrinos na Santa<br />

Montanha. Estavam presentes os Párocos de Corps e de La<br />

Salette.<br />

O ex-Pároco de La Salette, Pe. Louis-Joseph, em maio de<br />

1852 foi nomeado Pároco de Courtenay, na região de Morestel.<br />

Aos setenta anos de idade, depois de mais trinta anos de<br />

serviço pastoral, deixou o trabalho paroquial e se retirou para<br />

sua cidade natal, La Murette, onde viveu mais dois anos. Ali<br />

morreu no dia de Natal de 1884.<br />

Um sobrinho seu, Pe. Joseph Perrin era naquele momento<br />

o Superior da Comunidade dos Missionários de Nossa Senhora<br />

da Salette no Santuário. Pe. Joseph afirmou que o que mais<br />

admirava na vida de seu tio, Pe. Louis-Joseph, era “seu amor<br />

pelos pobres a quem tanto gostava de socorrer no exercício<br />

de seu ministério, e sua atenção pela promoção das vocações<br />

eclesiásticas e religiosas, bem como a retidão de seu espírito que<br />

o fez compreender a importância dessas duas grandes virtudes<br />

evangélicas: a caridade e o apostolado” (in V. H., II, p. 79).<br />

O Bispo de Grenoble já era Dom Fava, sucessor de Dom<br />

Philibert.<br />

46


3 - OS AGRACIADOS: RETORNO AO QUOTIDIANO<br />

<strong>De</strong>pois da Aparição os videntes voltaram a Corps, para junto<br />

dos familiares.<br />

MAXIMINO, com o ex-patrão, Pierre Selme, o cachorrinho<br />

e a cabra, retornou <strong>à</strong> casa do pai no final da missa dominical do<br />

dia 20 de setembro de 1846. Só encontrou a madrasta. O pai<br />

Giraud estava no bar.<br />

Pierre Selme contou brevemente <strong>à</strong> madrasta do vidente o<br />

que acontecera. <strong>De</strong>pois foi ao bar para se encontrar com o amigo<br />

Giraud. <strong>De</strong>screveu o fato vivido por Maximino e Melânia. Os<br />

presentes, incrédulos, deram uma zombeteira gargalhada.<br />

Maximino repetiu a narrativa do fato.<br />

A partir de então, os curiosos o envolviam como um<br />

“enxame de abelhas de que não é possível se livrar”, segundo o<br />

garoto. Incansavelmente o menino repetia a história a todos os<br />

interessados.<br />

Giraud, naquele domingo, voltou para casa tarde da noite.<br />

Acordou o menino e o fez repetir a história. Vendo a desenvoltura<br />

de Maximino, comentou:<br />

- “É muito esperta a pessoa que tão depressa te pôs na cabeça<br />

tantas coisas. Quanto a mim, a muito custo consegui, ao fim de<br />

três anos, te ensinar o Pai Nosso e a Ave Maria...” (CARLIER,<br />

p. 35).<br />

No dia seguinte os ouvintes chegavam numerosos. Giraud,<br />

irritado com a repetição constante da narrativa do fato, castigou<br />

o filho. Nem por isso os visitantes deixavam de procurar<br />

Maximino. O mais importante dentre eles era o Prefeito de La<br />

Salette.<br />

A 21 de setembro, segunda feira, o Prefeito Peytard chegou<br />

repentinamente na casa de Giraud, em Corps, para ouvir a história<br />

dos lábios de Maximino. Constatou a inteira coincidência entre a<br />

narrativa de Maximino e a de Melânia.<br />

O Prefeito, durante o encontro, disse em tom severo ao<br />

menino:<br />

47


- “Maximino, eu não queria estar em seu lugar. Você espalhou<br />

uma história que assusta as pessoas... Preferiria assassinar<br />

alguém a inventar o que você diz de acordo com Melânia”.<br />

Maximino respondeu:<br />

- “Inventando? Não se pode inventar uma coisa dessas. Nós<br />

falamos do que nossos olhos viram e nossos ouvidos ouviram”<br />

(in CARLIER, p. 35).<br />

O Prefeito Peytard foi vencido pela firmeza do garoto, mas,<br />

ordenou que, no domingo seguinte, dia 27, o menino devia se<br />

encontrar com ele, na Montanha da Aparição.<br />

No dia marcado, o Prefeito subiu o monte, acompanhado por<br />

um sargento da polícia. Melânia também compareceu. No local da<br />

Aparição, as duas crianças repetiram a narrativa tantas vezes feita<br />

ao longo daqueles poucos dias. <strong>De</strong>screveram minuciosamente o<br />

fato. Peytard fez o possível para saber de todos os detalhes da<br />

história e levar as crianças a caírem em contradição. Sentiu-se<br />

vencido e se persuadiu de que as duas crianças diziam a verdade.<br />

Durante a narrativa, o sargento que acompanhava o<br />

Prefeito, repentinamente interrompeu Maximino, chamando-o<br />

de mentiroso. Ameaçou amarrá-lo com uma corda e levá-lo <strong>à</strong><br />

cadeia, se não se retratasse. O menino não se intimidou.<br />

Mais tarde afirmou que, naquele momento, uma voz interior<br />

lhe dizia:<br />

- “Não tenhas medo, meu filho, ninguém te fará mal!” (in<br />

CARLER, p. 40).<br />

Em outra ocasião, Maximino passou por experiência<br />

semelhante quando, <strong>à</strong> beira de um precipício, um soldado de<br />

Corps o agarrou dizendo-lhe:<br />

- “Eu te jogo daqui para baixo se não confessares que tudo<br />

isso é mentira!”<br />

- “Não! Tudo o que vi e ouvi é verdade!” (in CARLIER, p. 40).<br />

Em Corps, o resultado da investigação feita pelo Prefeito<br />

Peytard causou profunda impressão. Muita gente começou a<br />

acreditar no fato, enquanto outros o ironizavam. A notícia se<br />

propagava com a maior rapidez.<br />

48


Naqueles dias, o pai de Maximino, estando em casa, pediu<br />

ao garoto que narrasse novamente o fato. O pai se irritou.<br />

Maximino então lhe disse:<br />

- “Mas, papai, a Senhora me falou também de você!” (in<br />

CARLIER, p. 36).<br />

Diante da surpresa do pai, Maximino contou a ele o episódio<br />

da “terra de Coin” que a Bela Senhora lhe havia relembrado<br />

durante a Aparição.<br />

<strong>De</strong>sse dia em diante, Giraud deixou o filho mais <strong>à</strong> vontade.<br />

Permitiu que o menino acompanhasse a madrasta, a avó, a prima<br />

Melânia Carnal de onze anos, portadora de uma doença nos olhos,<br />

e mais algumas outras pessoas, ao local do evento miraculoso.<br />

Giraud recomendou que examinassem bem a situação para se<br />

assegurarem de que a história contada não era uma impostura.<br />

<strong>De</strong> retorno, a madrasta fez uma detalhada descrição do local.<br />

Afirmou que junto <strong>à</strong> fonte milagrosa, todos haviam tomado água,<br />

e que Melânia Carnal sentira-se aliviada da doença ao lavar seus<br />

olhos na fonte.<br />

Giraud sentiu-se inclinado a acreditar no fato. Cresceu nele<br />

a esperança de, pela água milagrosa, ser curado do mal da asma<br />

crônica que o atormentava.<br />

Tendo subido ao local da Aparição, algum tempo depois,<br />

tomou da água santa e sentiu-se curado. Em sinal de gratidão,<br />

atendeu o repetido pedido de Maximino para que confeccionasse<br />

uma cruz a ser posta no lugar bendito. A cruz foi assentada a 22<br />

de outubro de 1846, no local da assunção da Bela Senhora.<br />

O pai Giraud finalmente procurou o Padre para confessar-se.<br />

Converteu-se. <strong>De</strong>sde então, participava da Missa e Comunhão<br />

todos os dias até o fim da vida. A 24 de fevereiro de 1849, morreu<br />

piedosamente.<br />

MELÂNIA só voltou de Ablandens para a casa de seus<br />

pais em Corps, tempos mais tarde, a 15 de dezembro de 1846.<br />

Não teve melhor sorte junto aos seus. Inicialmente sofreu muita<br />

repressão por causa da Aparição, sobretudo da parte do pai.<br />

A partir de então, juntamente com Maximino, foi admitida<br />

49


no Colégio das Irmãs da Providência, em Corps. As duas crianças<br />

ali permaneceram cerca de quatro anos, até setembro de 1850.<br />

Melânia tinha mais dificuldade no estudo. Mesmo depois<br />

de sete anos de escola cometia numerosos e grandes erros de<br />

ortografia. Essa era uma das deficiências de Maximino também.<br />

É o que transparece numa carta enviada por ambos a Dom<br />

Philibert, em fins de julho de 1847 (Cfr. texto in V. H., II, os.<br />

113-114).<br />

Apesar de colegas na mesma escola, Maximino e Melânia<br />

se mantinham “indiferentes entre si, sem mútua simpatia.<br />

Evitavam-se em vez de se procurar, e aproveitavam sempre a<br />

ocasião para mútuas zombarias” (in CARLIER, p.65). Ao falar<br />

da Bela Senhora, ambos se transformavam.<br />

As Irmãs do Colégio de Corps foram verdadeiras e maternais<br />

educadoras das duas crianças, procurando instruí-las e formar<br />

sua personalidade, acompanhando-as de perto para evitar que<br />

se tornassem presas de interesseiros ou “objeto de veneração”.<br />

A Superiora, Irmã Sainte-Thècle, sobretudo, cuidava para<br />

que os videntes não se envaidecessem por causa do privilégio<br />

recebido. As Irmãs insistiam na formação dos dois videntes para<br />

a humildade.<br />

A instrução e a educação dos videntes era uma tarefa<br />

difícil. O privilégio, na verdade, não havia transformado a<br />

realidade humana das duas crianças. Possuiam belas qualidades.<br />

Mantinham, porém, os mesmos defeitos que possuíam antes<br />

da Aparição. Para evitar elogios superficiais, aprenderam a<br />

se manter discretas. Falavam da Aparição apenas quando<br />

interrogadas a respeito. Suas respostas eram concisas e<br />

estritamente relacionadas <strong>à</strong>s perguntas feitas.<br />

A 8 de novembro de 1847, acompanhadas pelo Pe. Mèlin,<br />

Pároco de Corps, e pela Irmã Sainte-Thècle, Superiora do<br />

Colégio, as duas crianças compareceram diante de uma Comissão<br />

Episcopal presidida por Dom Philibert, em Grenoble. Haviam<br />

sido convocadas para prestar esclarecimentos sobre o evento de<br />

La Salette.<br />

50


Nessa oportunidade, a Irmã Sainte-Thècle revelou que<br />

Maximino tinha levado mais de um ano para aprender a servir a<br />

Missa, e que Melânia levara mais tempo ainda para aprender os<br />

atos de fé, esperança e caridade, apesar das repetições diárias. E,<br />

apreensiva, acrescentou:<br />

- “Há um mês venho receando que Melânia seja tomada de<br />

vaidade por causa da celebridade que o evento lhe propiciou” (in<br />

JAOUEN, p.98).<br />

Por que esse receio de Irmã Sainte-Thècle? Porque, na<br />

comemoração do 1º Aniversário da Aparição, alguém dissera a<br />

Melânia no alto da Montanha:<br />

- “Veja todo esse povo. Você é a responsável por tudo isso!...”<br />

A palavra imprudente trouxe as conseqüências que o futuro<br />

demonstrou. “O futuro de Melânia dependeria, desse momento<br />

em diante, da clarividência de seus guias e da resistência que<br />

ela mesma conseguiria manter face ao Tentador que acabava de<br />

assaltá-la” (in JAOUEN, p. 98).<br />

Em sua firmeza de educadora experimentada, Irmã Sainte-<br />

Thècle procurou manter a menina num caminho equilibrado.<br />

No Colégio, Melânia e Maximino continuaram vivendo em<br />

sua cândida e humilde simplicidade, sem ter consciência plena<br />

da própria celebridade em virtude da Aparição. Os dois levaram<br />

longo tempo para aprender o catecismo, de forma que, só a 7 de<br />

maio de 1848, fizeram a Primeira Comunhão. Maximino tinha<br />

13 anos de idade e Melânia, 16 e meio.<br />

Cansadas do trabalho com as duas crianças, apesar do grande<br />

amor por elas, as Irmãs da Providência pediram ao Bispo que as<br />

liberasse dessa responsabilidade. O Bispo pediu-lhes mais um<br />

ano de cuidados para com os videntes. Isso permitiu que, a 25<br />

de junho de 1850, em Corps, Melânia e Maximino recebessem a<br />

Confirmação das mãos de Dom Dépéry, Bispo de Gap.<br />

Pouco tempo depois, partiram de Corps, seguindo o próprio<br />

caminho. Nunca mais viveram próximos. Ambos, no entanto, embora<br />

distantes entre si, repetiam incessantemente a mesma história aos<br />

interessados, intrepidamente fiéis ao que viram e ouviram.<br />

51


O Espírito Santo lhes havia concedido a mesma graça da<br />

fidelidade e fortaleza dada aos Apóstolos:<br />

- “Não podemos deixar de falar!”.<br />

Dom Villecourt, Mlle. <strong>De</strong>s Brulais, Monsenhor Rousselot e<br />

Dom Dupanloup, entre outros, tiveram longas entrevistas com<br />

Melânia e Maximino quando estavam em Corps, e deixaram<br />

testemunhos memoráveis a respeito da personalidade dos dois<br />

videntes (in CARLIER, p. 63-71; JAOUEN, p. 95-103).<br />

52<br />

4 - Pe. MÉLIN: “Le Bon Papa”<br />

Pe. Pierre Mélin, Pároco de Corps, em meio a tantos e<br />

tão inusitados fatos, mantinha-se em silêncio, observando os<br />

acontecimentos e comentários relativos ao evento ocorrido na<br />

Montanha de La Salette.<br />

Apesar de jovem, com 31 anos de idade, possuía grande<br />

tato e sabedoria. <strong>De</strong>sempenhou uma nobre missão junto aos<br />

dois videntes nascidos em sua Paróquia. Mantinha-os sob seus<br />

cuidados desde que voltaram de Ablandens para junto de seus<br />

familiares em Corps. Acompanhava-os de perto, mesmo que<br />

estivessem sob o cuidado direto das Irmãs da Providência no<br />

Colégio em Corps. Mostrava-se, porém, reservado e prudente<br />

com relação <strong>à</strong> Aparição, obediente <strong>à</strong>s ordens do Bispo Diocesano.<br />

Não ignorava, no entanto, os rumores que percorriam a Paróquia.<br />

O Pe. Pierre era natural de Jallieu onde nasceu a 6 de maio<br />

de 1810. Fez seus estudos superiores no Seminário Maior de<br />

Grenoble. Como Padre, foi inicialmente professor de Filosofia e<br />

Teologia. <strong>De</strong>pois foi chamado <strong>à</strong> Catedral de Grenoble e nomeado<br />

Vigário do Pároco da Catedral, Padre Gérin. Dali foi transferido<br />

para a Paróquia de Corps.<br />

Pe. Mélin chegou a Corps a 1º de julho de 1841, como pró-<br />

Pároco em substituição ao Pe. Reynier.<br />

A população de Corps estava recheada de anticlericais. Pe. Mélin<br />

enfrentou muitos ultrajes ao chegar. Homem alto e forte, não receava,<br />

porém, as injúrias que o povo indiferente <strong>à</strong> Igreja, lhe dirigia. A cidade


era renomada por sua falta de religião e pouca educação.<br />

Segundo uma carta sua ao Bispo, em dezembro de 1847 a<br />

cidade ainda “era habitada por semi-selvagens” (in STERN, I,<br />

p. 11). Um dos focos de discórdia era a presença do Pe. Viollet,<br />

ex-Pároco de Corps, suspenso de ordens desde 1838. Vivia na<br />

cidade perturbando a comunidade e dividindo os espíritos.<br />

Segundo o Pe. Champon, um dos sucessores de Pe. Mélin<br />

em Corps, a situação religiosa e moral da cidade era péssima<br />

antes de 1846:<br />

- “O espírito de insubordinação, as blasfêmias, a profanação<br />

do domingo, a falta de qualquer mortificação, o abandono da<br />

abstinência e do jejum na Quaresma, o amor desenfreado<br />

pelos divertimentos públicos e pelos cabarés: tal era a situação<br />

moral de nossa população. Corps, como ponto de referência da<br />

região, se distinguia especialmente por todas essas desordens<br />

e caminhava <strong>à</strong> frente das comunidades dos arredores, no largo<br />

caminho do mal e da perdição. (...) Os sacramentos tinham sido<br />

abandonados a ponto de dois homens apenas, fazerem a Páscoa<br />

ou irem <strong>à</strong> Igreja uma vez por semana, muito cedo para escapar<br />

aos insultos de seus concidadãos” (in CARLIER, p. 54-55).<br />

Pe. Melin chegou para pacificar a Paróquia pobre e mal<br />

afamada. Para a sua alegria, a comunidade começou a se<br />

transformar a partir de novembro de 1846, logo após a Aparição<br />

em La Salette. Em seu zelo sacerdotal, incentivava a todos na<br />

prática da religião. Humilde, caridoso, Pe. Mélin tinha total<br />

confiança em Nossa Senhora Reconciliadora dos pecadores. Por<br />

seu intermédio, em 1852, Pe. Viollet, suspenso de ordens, foi<br />

reabilitado para as funções sacerdotais.<br />

Tudo levava o povo a retomar o caminho de <strong>De</strong>us. Até mesmo<br />

a mortalidade infantil que, em três meses, atingiu trinta e três<br />

crianças na região de Corps, e o furacão <strong>à</strong>s vésperas do Natal de<br />

1846. O fenômeno atmosférico fez estragos enormes no casario<br />

da cidade. O povo aterrorizado se reuniu em praça pública.<br />

A tranqüilidade começou a voltar quando os habitantes<br />

assustados viram entre eles Melânia e Maximino rezando pelo<br />

53


em estar da população. O fato despertou de maneira mais forte<br />

ainda na consciência do povo, a necessidade de conversão. Os<br />

confessionários, a partir de então, foram muito procurados.<br />

Naquele Natal, na Missa da Meia-Noite, cerca de quinhentas<br />

comunhões foram distribuídas. A metade delas foi para homens.<br />

Segundo Pe. Mélin, na Páscoa de 1847, contrariamente<br />

<strong>à</strong> de 1846, apenas trinta pessoas dentre as mil e quinhentas<br />

da Paróquia, haviam deixado de cumprir seu dever pascal. A<br />

conversão de Corps se tornara um fato conhecido.<br />

Em 1847, o Bispo de La Rochelle, Dom Villecourt,<br />

testemunhou essa transformação religiosa generalizada não só na<br />

Diocese de Grenoble, mas também, em outras Dioceses vizinhas.<br />

Antes da Aparição, Pe. Mélin conhecia Maximino apenas<br />

como alguém a mais na Paróquia. Jamais o vira na Igreja ou na<br />

escola. O garoto não se preocupava em encontrar-se com o Pároco.<br />

No dia 20 de setembro de 1846, dia seguinte <strong>à</strong> Aparição,<br />

quando Maximino chegou de volta a Corps, a Missa dominical<br />

estava chegando ao fim. <strong>De</strong>scuidado como era, o garoto nem<br />

pensou em procurar o Padre que, por sua vez, também não se<br />

apressou em encontrar o menino já feito objeto de admiração.<br />

Pe. Mélin mantinha-se reservado, segundo um comentário<br />

do próprio vidente:<br />

- “Padre Mélin se mostrou frio e pouco apressado. Todo o mundo<br />

corria atrás de mim, e ele permanecia em seu presbitério. É preciso<br />

dizer que eu também não pensava no Pároco. No sábado, quando o<br />

sino soava para a Missa, minha irmã (Angélica) foi lhe dizer:<br />

- “O senhor sabe que meu irmão viu a Santa Virgem?”<br />

- “Pois bem, diga-lhe que venha me ver depois da Missa” (in<br />

V. H. II, p. 93), respondeu o Padre.<br />

No sábado, dia 26 de setembro, véspera do encontro marcado<br />

do Prefeito com os videntes no alto da montanha, Melânia desceu<br />

de Ablandens a Corps, para uma visita aos familiares.<br />

Pe. Mélin quis ouvi-los separadamente e depois, em<br />

conjunto. O relato de Maximino causou menor impressão ao<br />

Pároco. Ao final da conversa Pe. Mélin perguntou aos dois:<br />

54


- “É tudo o que essa Senhora vos disse?”<br />

- “Não. Ela também nos disse alguma coisa, mas fomos<br />

proibidos de falar” (in CARLIER, p. 41).<br />

O Padre compreendeu que os dois haviam recebido uma<br />

palavra pessoal a ser guardada em segredo. Perguntou-lhes<br />

porque não tinham contado isso a ninguém. Responderam-lhe<br />

que ninguém os havia interrogado a esse respeito. Além do<br />

mais, como se tratava de segredo, não havia razão para falar,<br />

acrescentaram.<br />

<strong>De</strong>pois de recomendar-lhes que rezassem, despediu-os sem<br />

dizer nem sim, nem não a respeito do que ouvira. Maximino<br />

voltou <strong>à</strong> casa do pai, e Melânia retornou a Ablandens onde ficou<br />

até o final do ano a serviço de Jéan-Baptiste Pra, seu patrão.<br />

O Prefeito Peytard, de La Salette, já havia feito seu inquérito.<br />

O Pároco de Corps também queria fazer o seu. Em seu silêncio,<br />

Pe. Mélin procurava certificar-se do acontecido por si mesmo e<br />

não, apenas, a partir de comentários de outrem.<br />

Juntamente com Maximino e algumas outras pessoas, Pe.<br />

Mélin subiu, então, de Corps até o local da Aparição, no dia 28 de<br />

setembro de 1846. <strong>De</strong> passagem por Ablandens, Melânia juntouse<br />

ao grupo. Ao fim de quatro horas de caminhada chegaram ao<br />

Monte Planeau.<br />

O Padre logo sentiu que o “milagre impregnava a atmosfera”<br />

do alto da Montanha. Chegando lá, o grupo se pôs rezar. Alguns<br />

dentre os visitantes quiseram quebrar a pedra sobre a qual a Bela<br />

Senhora se havia sentado, para levar algum fragmento para casa,<br />

como outros visitantes anteriormente haviam feito. Pe. Mélin,<br />

porém, proibiu que o fizessem e carregou consigo o restante da<br />

pedra para conservá-la em Corps. Seria uma preciosa relíquia no<br />

caso de o evento ser confirmado como verídico.<br />

Carregou consigo também um pouco de água da fonte<br />

milagrosa para dá-la de beber a um doente, durante uma novena<br />

feita pela família, em Corps. A cura aconteceu, mas, o Padre<br />

não se apressou em proclamar o fato como milagre. Agia com<br />

sabedoria e prudência.<br />

55


<strong>De</strong>clarou, por fim, que desde esse dia sua convicção a<br />

respeito da verdade da Aparição estava firmada. Tinha razões tão<br />

convincentes que não podia mais duvidar. Aguardava, porém,<br />

algum milagre complementar que confirmasse a Aparição para<br />

poder falar publicamente a respeito.<br />

Impressionado, constatou também o fato de que as duas<br />

crianças sempre narravam a mesma história.<br />

Pe. Mélin compreendeu que devia informar o Bispo Diocesano<br />

de Grenoble, Dom Philibert, sobre tudo e com exatidão. A 4 de<br />

outubro de 1846 enviou ao Bispo a primeira carta a respeito. A<br />

resposta ao Pároco pedia reserva a respeito dos acontecimentos<br />

enquanto o próprio Bispo não fizesse um exame tão exato quanto<br />

severo do caso. <strong>De</strong>sde então, uma correspondência quase diária<br />

entre ambos foi mantida.<br />

O Pároco de Corps também estava preocupado com a vida<br />

das duas pobres crianças. Não era possível abandoná-las. Tinha<br />

profunda comiseração por ambas, as mais deserdadas de seu<br />

povo e ao mesmo tempo as mais favorecidas pelo Céu. Urgia<br />

dar-lhes instrução e formação. Dar-lhes uma vida digna. Elas<br />

estavam <strong>à</strong> mercê de todos: benfeitores e exploradores.<br />

- “Pobres, ignorantes e desprovidos de tudo, os dois<br />

pastores, logo após a Aparição estiveram <strong>à</strong> mercê de todos. Uns<br />

quiseram encarregar-se deles, com interesse sincero por eles,<br />

outros queriam ter consigo essas crianças para se jactarem ou<br />

para explorá-las, seja em proveito de partidos políticos, seja para<br />

os próprios interesses” (in V. H., II, p.108).<br />

O próprio Maximino mais tarde afirmou:<br />

- “Pessoas de Gap, vendo-nos nesse estado, nos propuseram<br />

durante uma subida <strong>à</strong> santa Montanha, de acompanhá-las, Melânia e<br />

eu, até sua cidade, pois lá cuidariam de nossas necessidades e de nossa<br />

educação. Foram os primeiros a pensar em nos instruir e nos fazer sair<br />

do estado miserável em que estávamos” (in V. H., II, p. 108).<br />

Os dois pastores estavam dispostos a aceitar o convite<br />

para irem a Gap. Pe. Mélin, no entanto, não admitia essa idéia.<br />

Formou seus planos e os expôs ao Bispo de Grenoble, em carta<br />

56


de 19 de novembro de 1846. O Bispo respondeu que também<br />

ele estava preocupado com as duas crianças. Oferecia-se até a<br />

pagar a pensão de Melânia junto <strong>à</strong>s Irmãs da Providência em<br />

Corps, e a de Maximino junto a alguma família. Pe. Mélin, por<br />

fim, conseguiu que os dois ficassem com as Irmãs. Duas delas<br />

tomariam conta das crianças: Irmã Sainte-Thècle e Irmã Sainte-<br />

Valérie. Os videntes teriam, pois, onde viver e ser alfabetizados.<br />

Dom Philisbert de Bruillard assumira a pensão dos dois no<br />

Colégio de Corps. As Irmãs, sobretudo a Superiora, Irmã Sainte-<br />

Thècle, passaram a dar-lhes acurada assistência e formação.<br />

Maximino, sendo órfão de pai e mãe, o tio dele, Templier,<br />

se tornou seu tutor. Com isso, o acompanhamento zeloso de<br />

Maximino por parte de Pe. Mélin se tornou mais difícil.<br />

O Padre, porém, continuou sendo um verdadeiro pai para<br />

o menino. Maximino o chamava efetivamente de “Le bon papa<br />

Mélin”. A Irmã Sainte-Thècle era a mãe de que precisava.<br />

Quando o menino foi infectado pela varíola, o Pároco teve<br />

receio de que ele morresse, mas, por duas vezes ouviu de Melânia<br />

uma palavra de esperança:<br />

- ”Ele não vai morrer por causa dessa doença!”.<br />

Pe. Mélin quis dar lições de latim a Maximino, com a intenção<br />

de enviá-lo ao Seminário mais tarde. Havia, porém, muito<br />

esforço a ser feito para burilar a personalidade de Maximino,<br />

corrigindo não só seus erros de ortografia, mas também seus<br />

defeitos de caráter. O próprio menino, relembrando os tempos<br />

de colégio, confessou:<br />

- “Em vez de aproveitar dos bons exemplos e lições que<br />

recebia no Convento da Providência, eu crescia não em ciência<br />

e sabedoria como Melânia, mas em ignorância e estultice” (in V.<br />

H. II, p.120).<br />

Maximino declarou também que, por causa de suas<br />

frequentes fugas do colégio, Pe. Mélin um dia lhe disse:<br />

- “Meu garoto, não posso mais cuidar de você. Volte para o<br />

lugar de onde veio! Pôs-me <strong>à</strong> porta e eu fui forçado a partir para<br />

junto de meu tio” (inV.H.,II,p.121).<br />

57


Essa atitude de Pe. Mélin foi causa de alegria para Maximino<br />

que, assim, livremente podia passear pelas cidades próximas e<br />

ser recebido com admiração em todas as partes. O tio Templier<br />

sentia-se recompensado com isso, porque poderia explorar a<br />

fama do menino e ganhar dinheiro com eventuais “espetáculos”<br />

que Maximino apresentaria manipulando o evento da Salette.<br />

Foi nesse contexto perverso que, a 22 de setembro de 1850,<br />

aconteceu a viagem de Maximino que resultou no célebre<br />

“Incidente de Ars”. O caso entristeceu muito a Pe. Mélin.<br />

Numa carta, Pe. Mélin declarou que sempre se manteve<br />

circunspeto nos detalhes que dava a respeito da Aparição, seja de<br />

viva voz, seja por escrito, sem jamais, porém, abjurar da verdade<br />

ou faltar <strong>à</strong> coragem nas próprias convicções (V. H., II, p. 154).<br />

Por causa disso passou a suportar incompreensões. Sua<br />

prudência em relação <strong>à</strong> Aparição era mal vista por alguns. Até<br />

mesmo em Grenoble encontrava opositores entre os membros<br />

do Clero.<br />

Outra fonte de problemas para ele foi o pedaço da pedra<br />

sobre a qual assentara a Bela Senhora no início da Aparição.<br />

Era o último pedaço que Pe. Mélin encontrou em sua primeira<br />

subida <strong>à</strong> Montanha da Salette. O restante havia sido levado pelos<br />

peregrinos. O Padre recolheu a pedra como relíquia do evento,<br />

mas, foi acusado de roubo. Ele mesmo declarou:<br />

- “Conservei-a religiosamente não para mim, o que poderia<br />

ter feito, mas para as duas Paróquias que deram <strong>à</strong> Aparição seus<br />

elementos primeiros de maneira providencial: La Salette, o<br />

terreno, e Corps, as crianças” (in V. H., II, p.124).<br />

Dom Philibert encerrou essa polêmica ordenando que o<br />

bloco maior da pedra fosse repassado <strong>à</strong> Paróquia de La Salette, e<br />

alguns fragmentos permanecessem em Corps. Pe. Mélin acabou<br />

repassando tudo a La Salette. Hoje, a pedra se encontra em nicho<br />

especial, no Santuário da Montanha Santa.<br />

Diante de todos esses problemas, um dia Pe. Mélin exclamou:<br />

- “Se essa oposição cessasse, eu mesmo seria obrigado<br />

a me tornar meu próprio opositor para melhor fazer brilhar a<br />

58


sobrenaturalidade desse grande Evento. Se ele é obra de <strong>De</strong>us, é<br />

preciso que sofra contradições e perseguições” (in V.H., II, p.127).<br />

Por sua vez, Maximino afirmou:<br />

- “As calúnias de que Pe. Mélin foi objeto, representam uma<br />

honra para ele, e provam que era exatamente o homem certo<br />

para as circunstâncias suscitadas pelo Evento de 19 de setembro<br />

de 1846” (in V. H., II, p. 127).<br />

Com o Mandamento Doutrinal de Dom Philibert a respeito<br />

da Aparição, a 19 de setembro de 1851, o coração de Pe. Mélin<br />

se dilatou mais ainda de pura alegria. Sentia-se inteiramente<br />

livre para falar a favor da grande graça de Maria a seu povo.<br />

Sua alegria chegou ao cúmulo quando, em maio de 1852,<br />

Dom Philibert subiu a Montanha santa para abençoar a pedra<br />

fundamental do Santuário. Nesse mesmo mês de maio, o Bispo<br />

conferiu a Pe. Mélin o título de Cônego Honorário da Catedral.<br />

A Casa Paroquial de Corps vivia repleta de peregrinos e<br />

doentes que buscavam na Montanha a cura para seus males.<br />

Muitas vezes Pe. Mélin os acompanhava ao local da Aparição.<br />

Quando fosse preciso, ele mesmo socorria os viajantes retidos<br />

na montanha por causa do mau tempo. Acompanhou o Bispo<br />

Dom Ullathorne, de Birminghan, Inglaterra, em maio de 1854.<br />

Novamente acompanhou Dom Philibert, em agosto de 1856<br />

quando, já resignatário, o Bispo queria lá celebrar seus 91 anos<br />

de idade e seus 30 anos de ordenação episcopal. Igualmente São<br />

Julião Eymard, Fundador dos Padres do Santíssimo Sacramento,<br />

natural de La Mure, sentia-se feliz em estar com o Pe. Mélin. Tais<br />

visitas eram para o Pároco de Corps um momento de repouso e<br />

consolo.<br />

Durante os 24 anos de ministério em Corps, o Pároco<br />

dedicou-se até o fundo da alma para o bem do povo e por amor<br />

a Nossa Senhora da Salette. Juntamente com o Pároco de La<br />

Salette, se empenhou de coração na aquisição do terreno para a<br />

construção do Santuário no alto da Montanha.<br />

Apesar de todas as preocupações que os videntes lhe davam,<br />

Pe. Mélin amava ternamente as duas crianças. Teve sempre<br />

59


grande interesse por elas e, depois que elas partiram de Corps,<br />

frequentemente lhes enviava cartas. Um dia ele escreveu:<br />

- “Muitas pessoas gostariam de vê-las mais místicas, ao<br />

menos mais perfeitas. A Santa Virgem, porém, deixou-as em sua<br />

própria natureza. Temos que nos contentar com isso. O que Ela<br />

pôs nelas é como uma laranja num vaso. A laranja não transforma<br />

o vaso, não o torna mais cristalino se for de simples vidro. Mas,<br />

o vaso deixa ver fielmente a laranja” (in V.H., II, p. 168).<br />

Dom Ullathorne, Bispo de Birminghan, ao visitar La Salette<br />

em 1854, deixou o seguinte testemunho a respeito do Pe. Mélin:<br />

- “Esse digno eclesiástico é um homem de espírito sólido<br />

e de extrema prudência. Poucas pessoas são tão respeitáveis. É<br />

providencial o fato de que tal Padre se tenha encontrado nesses<br />

lugares, e com tal autoridade, para acompanhar desde o começo,<br />

toda essa questão de La Salette, moderar o zelo que em torno<br />

dele se desenvolvia, e exercer uma vigilância paterna sobre os<br />

pequenos videntes” (in V.H., II, p. 91-92).<br />

Em 1865 o Pe. Mélin voltou <strong>à</strong> Catedral de Grenoble. Morreu<br />

a 19 de junho de l874.<br />

Por ocasião de seu falecimento, o periódico “Les Annales...”<br />

publicou o seguinte elogio fúnebre:<br />

- “Pe. Mélin foi um dos primeiros e mais inteligentes<br />

apóstolos do culto a Nossa Senhora da Salette” (in V.H., II, p.<br />

169).<br />

O Pároco de Corps se doou pela conversão de seu povo. A<br />

imensa torrente de conversões, em La Salette, em Corps, e pela<br />

Europa afora, nele suscitava sentimentos de profunda admiração<br />

e louvor a <strong>De</strong>us por essa graça concedida por intermédio do Fato<br />

da Salette.<br />

A torrente de águas vivas de Reconciliação se tornava a marca<br />

maior desse extraordinário acontecimento. Só <strong>De</strong>us conhece o<br />

número e a identidade dos que encontraram o caminho de vida<br />

nova nas sendas montanhosas que levam <strong>à</strong> Montanha da Salette.<br />

Ontem e hoje. Na Europa e no mundo inteiro. Entre simples e<br />

humides. Entre nobres e intelectuais.<br />

60


Na França, particularmente, no meio da multidão dos que<br />

encontraram a <strong>De</strong>us pela graça do Fato da Salette, tomou vulto<br />

significativo um considerável grupo de reconhecidos intelectuais<br />

que, direta ou indiretamente, beberam da fonte das águas de<br />

vida da Salette e, pela graça da Bela Senhora das Dôres e da<br />

Compaixão, da Solidariedade e da Solidão, da Misericórdia e da<br />

Reconciliação, abraçaram a Cruz do Cristo Morto e Ressucitado<br />

presente sobre o coração da Mãe do Senhor: Léon Bloy, escritor<br />

e polemista, o filósofo Jacques Maritain e sua esposa Raïssa,<br />

Pedro Termier, o geólogo, Van der Meer, Stanislas Fumet, Ernest<br />

Psichari, Paul Claudel, o sublime poeta, e outros mais.<br />

Duas perspectivas de espiritualidade influenciaram de<br />

certo modo, na conversão desses intelectuais: a espiritualidade<br />

da reparação dos pecados e a espiritualidade apocalíptica da<br />

regeneração universal.<br />

A segunda, particularmente, distorceu o Fato da Salette. A<br />

França, desde a revolução de 1879, sofria gravemente do mal<br />

do pessimismo derrotista, originado pelos transtornos políticos<br />

e religiosos que o país vivia. Precisava de conversão.<br />

O evento da Salette infelizmente foi utilizado, nesse<br />

contexto, como esteio para justificar o pensamento apocalíptico<br />

dos que imaginavam e realçavam supostas ameaças e castigos<br />

divinos mais do que a misericordiosa compaixão do Senhor<br />

testemunhada pela Bela Senhora.<br />

Quando Leon Bloy morreu, em 1917, o Fato da Salette se<br />

havia tornado para ele a chave de leitura de todas as desgraças<br />

históricas daquela época, e a fonte do sentido de todos os<br />

sofrimentos que a França, esquecida de <strong>De</strong>us e de Maria, vivia<br />

naquele tempo.<br />

Entre as numerosas personalidades que tiveram alguma<br />

relação com a Salette, está um brasileiro, o Professor Doutor<br />

Newton Freire-Maia, geneticista de renome, que ao final de longo<br />

percurso pelos caminhos do agnosticismo, reencontrou, como<br />

“ateu <strong>à</strong> procura de <strong>De</strong>us” conforme ele mesmo se denominava, a<br />

fé católica recebida na infância. Nesse longo e complexo processo<br />

61


espiritual, vivido, porém, na esperança de encontrar a luz, e não<br />

segundo a visão trágica da história sufocada pela escuridão, a Bela<br />

Senhora da Salette exerceu sobre Newton, maravilhoso influxo<br />

por sua graça reconciliadora, conforme ele mesmo acena em sua<br />

autobiografia “O QUE PASSOU E PERMANECE”, p. 271-278;<br />

281-282. Como cientista, Newton possuía uma firme convicção a<br />

propósito da teoria evolucionista. Tinha, pois, um espírito aberto<br />

ao novo e belo que o processo evolutivo possibilita no universo. A<br />

descoberta do pensamento teológico e científico de Pe. Teilhard de<br />

Chardin SJ, um evolucionista convicto que propôs o conceito de<br />

“evolução criadora”, deu a Newton a necessária e ampla abertura<br />

para abraçar plenamente a fé que procurava.<br />

É imensa a multidão, segundo a imagem do Apocalipse,<br />

congregada junto ao trono do Cordeiro, banhada pela<br />

transbordante misericórdia nascida no coração do Pai e<br />

derramada pela Mãe da Salette.<br />

O Santuário da Montanha de La Salette se tornou o<br />

repositório dessas maravilhas que Maria cantou em seu<br />

Magnificat, maravilhas que se multiplicam pelo braço benigno e<br />

reconciliador do Senhor, estendido sobre seu Povo.<br />

62<br />

CAPÍTULO VI<br />

ALVO DE MUITAS BUSCAS<br />

As duas crianças falavam da Aparição quando eram interrogadas.<br />

Aos curiosos por saberem do “segredo” que a Bela Senhora<br />

lhes havia confiado durante a Aparição, a “palavra pessoal”<br />

que dela carinhosamente receberam, sempre davam respostas<br />

surpreendentes. Assumiam uma intrepidez heróica e uma tenacidade<br />

insuperável diante das pressões sofridas para revelar o que era seu,<br />

exclusivamente seu. Por mais hábeis que fossem as perguntas, mais<br />

impressionantes eram as respostas. Não levavam em consideração<br />

se se tratava de amigos, parentes, Padres ou Bispos.


Um determinado senhor disse a Maximino:<br />

- “Você se pôs de acordo com Melânia para contar essa<br />

história e ganhar dinheiro com isso!”.<br />

Maximino lhe respondeu:<br />

- “Pois bem, já que o senhor afirma isso, diga então, quanto<br />

dinheiro recebemos?”.<br />

Diante da surpresa de alguns por causa das prontas e<br />

inteligentes respostas a perguntas feitas, Maximino explicou:<br />

- “As respostas surgem espontaneamente na hora, e sempre<br />

de acordo com as perguntas feitas” (in CARLIER, p. 75).<br />

O Pe. Arbaud dizia:<br />

- “As respostas de Melânia e de Maximino são tão<br />

espirituosas, tão incisivas, tão naturais que me parecem mais<br />

extraordinárias que o próprio Evento...” (in CARLIER, p. 75).<br />

Quando um sacerdote perguntou a Melânia se ela contaria<br />

seu “segredo” ao Padre, quando faria sua Primeira Comunhão,<br />

ela respondeu:<br />

- “Meu segredo não é pecado!” (in CARLIER, p. 76).<br />

Perguntaram-lhe ainda:<br />

- “Como você pode guardar toda essa história que você<br />

ouviu só uma vez? Eu a ouvi por três vezes de sua parte e não<br />

sou capaz de repeti-la”.<br />

Melânia respondeu:<br />

- “Se a Santa Virgem lha tivesse dito, o senhor a saberia” (in<br />

CARLIER, p. 77).<br />

Disseram-lhe:<br />

- “Enfim, você pode ter-se enganado!...”.<br />

A resposta veio rápida:<br />

- “E a FONTE, senhor, por que está lá?” (in CARLIER, p. 78).<br />

Um professor de Seminário disse a Melânia que o<br />

personagem que ela havia visto talvez fosse o demônio. A<br />

resposta foi imediata e contundente:<br />

- “Senhor, o demônio não carrega cruz!” (in CARLIER, p. 78).<br />

Um Padre de Gap objetou a Maximino que a “Senhora”<br />

desapareceu numa nuvem. Maximino afirmou:<br />

63


- “Não havia nuvem alguma!”.<br />

- “Mas é fácil envolver-se numa nuvem e desaparecer...”<br />

- “Senhor, queira, então, envolver-se numa nuvem e<br />

desaparecer...” (in CARLIER, p. 78).<br />

A 22 de maio de 1847, as duas crianças foram convocadas<br />

pelo Tribunal de Grenoble para comparecer perante o Juiz de<br />

Paz, em Corps. Era preciso explicar os fatos que após a Aparição<br />

estavam perturbando a paz da população.<br />

Não era permitida a presença de outras pessoas na sessão.<br />

Os dois videntes, porém, saíram-se muito bem, apesar das<br />

ameaças e dos severos interrogatórios, tanto em conjunto quanto<br />

em separado.<br />

O silêncio do Pároco, Pe. Mélin, que não compareceu ao<br />

processo, serviu para que as próprias crianças se defendessem e<br />

deixassem a verdade vir <strong>à</strong> tona.<br />

Ao mesmo tempo em que circulavam na imprensa críticas<br />

mordazes contra a Aparição, como faziam o jornal “Le Patriote<br />

des Alpes”, de Grenoble, “Le siècle” e “L´Univers” de Paris,<br />

apareciam também opiniões mais precavidas, bem como relatórios<br />

sobre investigações sérias a respeito dos acontecimentos, sobre<br />

interrogatórios rigorosos feitos aos dois videntes, e sobre as<br />

repercussões do “Fato da Salette” como já era denominado.<br />

Antes mesmo do pronunciamento oficial do Bispo de<br />

Grenoble, Dom Philibert de Bruillard, a 19 de setembro de<br />

1851, declarando a autenticidade da Aparição, diversas pessoas,<br />

logo após o evento, haviam tomado a iniciativa de fazerem,<br />

isoladamente e por conta própria, investigações sobre os<br />

acontecimentos de La Salette.<br />

São vários os relatórios particulares. Entre os mais valiosos<br />

estão:<br />

1. Relatório Jéan-Baptiste Pra: é o primeiro escrito sobre<br />

a Aparição, datado do anoitecer do dia seguinte <strong>à</strong> mesma, 20<br />

de setembro de 1846, feito a partir da narrativa de Melânia em<br />

Ablandens, e assinado por Jéan-Baptiste Pra, Pierre Selme e<br />

Jéan Moussier.<br />

64


2. Relatório de José Laurent, de Corps, em dezembro de 1846.<br />

. Notas do Pe. François Lagier, Pároco de Saint-Oierre-de-<br />

Cherennes, nascido em Corps em 1806. Sua presença em Corps,<br />

durante o inverno de 1846-1847, foi de valor inestimável. Chegou<br />

incrédulo a respeito da Aparição, e partiu convicto a respeito,<br />

deixando escritas as certezas por ele adquiridas nesse tempo,<br />

ao final de três longas entrevistas com os dois videntes, entre<br />

fevereiro e março de 1847. Era um investigador competente.<br />

Seus questionamentos foram insistentes e penetrantes. Conhecia<br />

muito bem o “patois” de Corps e, por isso, entendia-se muito<br />

espontaneamente com as duas crianças (in BASSETTE, p. 37s).<br />

4. Relatório F. Long, Tabelião e Juiz em Corps, elaborado<br />

em 1847.<br />

5. Relatório Pe. Lambert, de 29 de maio de 1847. Pe.<br />

Lambert era Vigário em Nîmes. Passou seis dias em La Salette<br />

entrevistando Melânia e Maximino, na presença de seis<br />

testemunhas.<br />

6. Notas de Mlle. <strong>De</strong>s Brulais, Diretora de um pensionato<br />

em Nantes. Foi a La Salette a 10 de setembro de 1847 e para lá<br />

voltou por mais vezes durante os sete anos seguintes, passando<br />

meses em Corps, ouvindo e interrogando Maximino e Melânia.<br />

O resultado de suas entrevistas, feitas com fina sensibilidade<br />

feminina e competente psicologia de professora, deixou uma<br />

obra intitulada “L´Echo de la Sainte Montagne”, publicado em<br />

1852 (in JAOUEN, p. 96).<br />

7. Relatório Villecourt, Bispo de La Rochelle, em 1847 (in<br />

CARLIER, p. 58).<br />

8. Relatório de Pe. Rousselot, de 1848, resultado da pesquisa<br />

oficial feita por Rousselot-Orcel, a pedido do Bispo de Grenoble<br />

(in BASSETTE, p. 72s).<br />

9. Documento de Mons. Dupanloup. Trata-se da<br />

correspondência a um amigo, datada de 11 de junho de 1848.<br />

Nela Dupanloup, Bispo de Orléans, Padre Conciliar do Vaticanio<br />

I em 1870, e um dos mais respeitados educadores do séc. XIX,<br />

na França, relatou os encontros com Maximino e Melânia. A<br />

65


entrevista com Maximino se prolongou por quatorze horas. O<br />

diálogo exigente e inteligente com o menino é de uma dignidade<br />

e inspiração extraordinária. <strong>De</strong> começo mal impressionado<br />

com a rudeza dos videntes, Dupanloup terminou mostrandose<br />

vencido pela candura, transparência, firmeza e veracidade<br />

das duas crianças. Trata-se de documento de grande valor para<br />

firmar a crença na verdade do Fato da Salette (in BACCELLI, p.<br />

54-60; BASSETTE, p. 160s; CARLIER, p. 79-81).<br />

Muitas outras investigações foram realizadas junto aos dois<br />

videntes.<br />

66<br />

CAPÍTULO VII<br />

GRENOBLE: A PALAVRA DA IGREJA<br />

O governo da Diocese de Grenoble, a que pertence LA<br />

SALETTE, exerceu insubstituível papel na afirmação da<br />

Aparição de 19 de setembro de 1846. A Diocese era dirigida por<br />

Dom Philibert de Bruillard.<br />

1 - Um modelo de Bispo<br />

Dom PHILIBERT DE BRUILLARD, Bispo de Grenoble<br />

e Fundador dos Missionários de Nossa Senhora da Salette, era<br />

um Pastor de espírito vivaz, penetrante, e de atividade intensa.<br />

<strong>De</strong> atitudes aristocráticas, tinha um bom coração e uma forte<br />

espiritualidade mariana. Era um octogenário por ocasião da<br />

Aparição. Viu surgirem e desaparecerem diversos governos<br />

francêses. Nasceu sob o “Ancien Regime”, a monarquia real, e<br />

morreu sob o 2º Império. Durante a Revolução Francesa teria dado<br />

a absolvição final ao Rei Luis XVI ao ser condenado <strong>à</strong> morte.<br />

Durante seu episcopado em Grenoble, a Bela Senhora<br />

apareceu nas montanhas de La Salette. Foi justamente chamado<br />

“o primeiro Bispo de Nossa Senhora dos Alpes”.


“Ele viu as tempestades se dissiparem, e se estabelecer,<br />

enfim, de forma pacífica, a verdade a respeito da Aparição<br />

extraordinária de Maria aos pequenos pastores. Hoje, graças<br />

a ele, a Salette parece para sempre firmada” (in “Journal<br />

Réligieux”, de Muret, março de 1861, pg. 162: “Monseigneur<br />

Philibert de Bruillard”).<br />

Segundo o estudo biográfico a respeito de Dom Philibert,<br />

apresentado por Jacques-Olivier Boudon no Colóquio<br />

organizado pelo Institut Catholique de Paris, em setembro de<br />

1996, por ocasião do 150º Aniversário da Aparição em Salette,<br />

e publicado na coletânea “La Salette, Apocalypse, Pèlerinage et<br />

Littérature” (1856-1996), sob o título “L´évêque de La Salette,<br />

Mgr. <strong>De</strong> Bruillard”, ps. 49-62, o Bispo, em sua visão teológica,<br />

acentuava “uma religião severa, marcada pela austeridade”.<br />

Segundo Boudon, Nossa Senhora da Salette, para Dom Philibert,<br />

“é certamente uma mediadora, mas de um <strong>De</strong>us que continua<br />

como <strong>De</strong>us do castigo... O Bispo de Grenoble não esquece que<br />

a mensagem passada em La Salette é uma advertência, isto é,<br />

uma ameaça”.<br />

Boudon afirma, ainda, que coube a Dom Ginoulhiac,<br />

sucessor de Dom Philibert, “privilegiar essa aparição marial mais<br />

do que sua mensagem a ser transmitida, donde o surgimento de<br />

uma peregrinação em que predomina a esperança mais do que o<br />

medo” (id. ib.).<br />

Consequentemente, na Instrução Pastoral e Mandamento de<br />

4 de novembro de 1854, Dom Ginoulhiac afirma que a Salette<br />

“não é uma nova doutrina... mas uma nova graça”. Significa que<br />

os elementos doutrinais contidos na Mensagem são os mesmos<br />

que a Tradição da Igreja sempre ensinou, mas, que a Aparição é<br />

de fato, um novo gesto da bondade de <strong>De</strong>us.<br />

Uma velha lenda diz que Philibert seria filho natural do Rei<br />

Luis XV. Segundo o Pe. Jean Stern, conceituado estudioso do Fato<br />

da Salette, Louis Bassette, em sua obra “Les origines familiales<br />

de Monseigneur Philibert de Bruillard”, publicada em 1975 e<br />

assentada sobre importante documentação, desautorisa essa lenda.<br />

67


Philibert nasceu em Dijon, a 12 de setembro de 1765. Era o<br />

sexto dentre os oito filhos do agricultor Antoine Braillard com<br />

Étiennette Muzelier. Foi batizado no mesmo dia do nascimento,<br />

com o nome de Philibert Brailliard. O pai faleceu a 3 de março<br />

de 1770, aos quarenta e cinco anos de idade, depois de perder<br />

quatro filhos. Viúva aos trinta e quatro anos, a mãe se dedicou<br />

aos outros quatro filhos órfãos de pai. Philibert tinha então quatro<br />

anos e meio de idade.<br />

O passado de Philibert tem, no entanto, algo que se perde no<br />

tempo. Com cinco anos de idade foi levado a Paris. Lá entrou no<br />

Colégio de Navarre, fundado em 1304, pela Rainha Jeanne de<br />

Navarre, esposa de Felipe o Belo, para acolher crianças pobres.<br />

Aos onze anos de idade, o menino Philibert fez a Primeira<br />

Comunhão e recebeu a Crisma. Entrou, depois, no Seminário.<br />

Como e porque Philibert teria mudado o sobrenome de<br />

“Braillard”, sobrenome do pai, para Brailliard, adotado no<br />

Batismo, e finalmente, para o de “Bruillard”, adotado mais tarde?<br />

Na época a grafia de nomes próprios era variável. Como o<br />

sobrenome “Braillard”, e depois, Brailliard, não assentava bem<br />

porque lembrava o ato de “vociferar” (em língua francêsa),<br />

Philibert mudou a primeira vogal de “a” para “u”, o que já tinha<br />

acontecido com a mãe que se chamava “Étiennette Muzelier<br />

Bruillard”. Assim mesmo, a grafia deste sobrenome tardou a se<br />

fixar, pois como Padre, Philibert ainda fez uso da grafia “Bruyarre”.<br />

Em 1780 decidiu entrar no Seminário Maior, chamado<br />

“Comunidade de Laon”, na Rua Montagne Sainte-Geneviève,<br />

em Paris. Os Padres Sulpicianos dirigiam a instituição. Foi<br />

colega do futuro Bispo de Chartres, Dom Frayssinous que, de<br />

1824 a 1827, foi também Ministro de Assuntos Eclesiásticos e<br />

da Instrução Pública, junto ao Governo Francês.<br />

No Colégio, a formação intelectual e espiritual era muito<br />

exigente. Parece que a espiritualidade se voltava mais para o<br />

“aniquilamento” na visão de <strong>De</strong> Bérulle, fundador da famosa<br />

Escola Francesa de Espiritualidade. Em 1790, Philibert obteve o<br />

Bacharelado e a Licença em Teologia, provavelmente na Sorbonne.<br />

68


Antes, a 19 de setembro de 1789, o seminarista Philibert,<br />

ligado <strong>à</strong> sua Diocese de origem, Dijon, foi ordenado Sacerdote<br />

na Capela do Arcebispado de Paris. Como jovem Padre foi<br />

“Repetidor” de Filosofia e Teologia junto aos alunos do<br />

Seminário, em Paris. Durante o “período do terror” da Revolução<br />

Francesa, foi nomeado “Capelão da guilhotina”. Como tal dava<br />

assistência religiosa aos condenados <strong>à</strong> morte durante os anos da<br />

guerra civil.<br />

Alguns dos Sacerdotes, colegas seus de Seminário, foram<br />

mortos por agentes da Revolução Francesa de 1789. Em 1793 foi<br />

encarregado de se posicionar junto <strong>à</strong> rua por onde passavam as<br />

viaturas que levavam os condenados <strong>à</strong> guilhotina, para ministrarlhes<br />

discretamente a absolvição suprema. Entre os condenados<br />

se incluía o Rei Luis XVI.<br />

A vida do Pe. Philibert foi repleta de devotamento e riscos.<br />

Mesmo no período de Terror, percorria a cidade para confessar os<br />

doentes e levar o Viático aos moribundos. Para livrar-se da prisão,<br />

em determinado momento, buscou refúgio junto a amigos.<br />

Durante o verão de 1793, o Terror se intensificou. A<br />

prudência levou o Padre a mudar de identidade. Por duas vezes os<br />

revolucionários investigaram sua moradia. Recebeu a polícia com<br />

tanta polidez que os guardas deixaram-no em paz. Incorporado <strong>à</strong><br />

Guarda Nacional, o uniforme militar facilitava, de certa forma,<br />

seu ministério sacerdotal. Doava-se inteiramente a si mesmo em<br />

seu trabalho pastoral, e doava o que possuía. Precisou tornar-se<br />

professor de latim, francês, música e aritmética para sobreviver.<br />

Sempre sob o olhar vigilante do poder revolucionário. Apesar<br />

disso, discretamente acompanhava as carretas dos condenados ao<br />

cadafalso. Teve a felicidade de reconciliar inúmeras pessoas com<br />

<strong>De</strong>us nesse momento supremo. No meio dessas cenas de horror,<br />

entregava-se <strong>à</strong>s mãos de Maria Santíssima. Sua vida de jovem<br />

Sacerdote foi muito sofrida, mas, de devotamento incansável.<br />

Muitas Religiosas, expulsas de seus Conventos, foram<br />

obrigadas a fundar pequenas escolas para sobreviverem. As<br />

escolas se tornaram, a partir de 1815, berço de novas Comunidades<br />

69


Religiosas. Pe. Philibert foi nomeado Capelão de muitas delas. Nesse<br />

ministério teve, em 1790, a graça de se tornar Diretor Espiritual<br />

daquela que, um dia, seria invocada como Santa Madalena Sofia<br />

Barat, Fundadora das “Irmãs do Sacré-Coeur de Jésus”.<br />

Mais tarde, ao fim de sua vida, depois de seu afastamento da<br />

Diocese, Dom Philibert seria acolhido numa Comunidade dessa<br />

mesma Congregação, em Montffleury, perto de Grenoble.<br />

Providencialmente, Pe. Philibert teve contacto com muitos<br />

santos e mártires da Revolução Francesa.<br />

Quando os dias terríveis da Revolução acabaram, o culto<br />

religioso foi restabelecido conforme a Concordata de 15 de julho<br />

de 1801, entre Napoleão e o Papa Pio VII.<br />

Padre Philibert serviu, então, com grande zelo pastoral<br />

<strong>à</strong> Paróquia de Saint-Sulpice. Em 1803 foi nomeado Cônego<br />

Honorário da Metrópole. Como tal assistiu a coroação de<br />

Napoleão na Igreja de Notre-Dame, a 2 de dezembro de 1803.<br />

O novo clima de relações entre o Imperador e a Santa Sé não<br />

impediu que a ambição pelo poder levasse Napoleão a invadir os<br />

Estados Pontifícios, a prender o Papa e deportá-lo para a França.<br />

O Pe. Bruillard era um pregador memorável. Em 1810 assumiu<br />

a Paróquia de Saint-Nicolas-du-Chardonet, onde trabalhou durante<br />

dez anos. <strong>De</strong>pois passou por outras Paróquias em Paris.<br />

Era considerado como candidato ao Episcopado. Sem nunca<br />

ter cobiçado essa missão, e mantendo-se sempre no humilde<br />

e serviçal pastoreio sacerdotal, o Pe. Philibert, aos 60 anos de<br />

idade, foi nomeado Bispo de Grenoble, a 28 de dezembro de<br />

1825, com a anuência do Rei Carlos X.<br />

Dom Frayssinous, Ministro dos Assuntos Eclesiásticos,<br />

exerceu uma influência decisiva na nomeação de Pe. Philibert para<br />

o episcopado. A Concordata previa que, na França, a escolha de<br />

Bispos era feita pelo Rei, e sua instituição canônica cabia ao Papa.<br />

A ordenação episcopal do Pe. Philibert aconteceu a 6 de<br />

agosto de 1826. A 11 de agosto Dom Philibert prestou juramento<br />

entre as mãos do Rei Carlos X.<br />

Antes de partir de sua Paróquia, em Paris, o novo Bispo,<br />

70


Dom Philibert, participou de diversas solenidades oficiais.<br />

<strong>De</strong>spediu-se da Capital da França deixando a lembrança de um<br />

sacerdote modelar, muito caridoso e bondoso.<br />

<strong>De</strong> Paris havia enviado a Grenoble uma Carta Pastoral datada<br />

do dia de sua ordenação episcopal. Nessa Carta o Bispo utilizou,<br />

pela primeira vez, a assinatura que conservou pelo restante de<br />

sua vida: “Philibert DE Bruillard”.<br />

O “DE” era designativo de nobreza, uma vez que os Bispos,<br />

pela legislação civil em vigor, recebiam o título de “Barão”.<br />

Nessa carta declarou que tomava como modelo a São Francisco<br />

de Sales em sua doçura de coração, mas sem deixar de lado a<br />

firmeza necessária que o episcopado exige.<br />

Chegando a Grenoble, recebeu calorosa acolhida, a 21 de<br />

agosto de 1826. A 25 de agosto, da cátedra, pediu a todos que<br />

excusassem sua “confusão de idéias” (V. H, II, p. 48), fruto da<br />

fadiga da longa viagem e das emoções vividas.<br />

Contemplando uma estátua da Virgem Maria afirmou:<br />

- “Creio que posso testemunhar – e com muita alegria – que<br />

faço parte do número de seus filhos; espero que Ela não deixe de<br />

ser minha Mãe para sempre” (V. H. II, p. 49).<br />

A Diocese de Grenoble contava com cerca de meio milhão<br />

de habitantes, em sua maioria agricultores e criadores de gado.<br />

Tinha 509 Paróquias e 519 Padres.<br />

A cidade de Grenoble, fundada pelo Imperador romano<br />

Graciano, no século IV, tinha cerca de 80 mil habitantes. A maior<br />

parte deles residia dentro das muralhas da cidade. Grandes<br />

intelectuais fazem parte de sua história, inclusive o romancista<br />

Stendhal e o arqueólogo Champollion.<br />

Um ano após a chegada de Dom Philibert, o clima de<br />

Grenoble lhe causou sofrimentos, o que, por algum tempo, o<br />

obrigou a se retirar para Marselha. Pensou, até, em apresentar<br />

sua demissão, mas, as pressões levaram-no a desistir da idéia.<br />

Retomou com firmeza o trabalho episcopal e assim, por mais de<br />

um quarto de século, foi o Bom Pastor da Diocese de Grenoble,<br />

sem mais levar em conta as próprias fragilidades.<br />

71


Visitava com regularidade e zelosamente todas as Paróquias<br />

da Diocese. Empregou todos os seus recursos financeiros pessoais<br />

na ajuda aos pobres, na restauração de Igrejas, na fundação de<br />

pias instituições e na reforma da Catedral. Recebeu a Cruz de<br />

Cavaleiro e a de Oficial da Legião de Honra. Em 1828 reuniu um<br />

Sínodo Diocesano, instituiu um sistema de visitas pastorais <strong>à</strong>s<br />

Paróquias e incentivou as Missões Paroquiais. Preocupou-se com<br />

a formação de seus Padres. As Congregações Religiosas, pouco<br />

numerosas antes, cresceram sensivelmente na Diocese. Tomou<br />

cuidado para evitar amarras com o poder político. Acolheu<br />

devidamente o Príncipe Presidente na Catedral de Grenoble, a<br />

22 de setembro de 1852. Substitui o “Catecismo Imperial” pelo<br />

“Catecismo Diocesano”. Por ocasião de grandes calamidades<br />

naturais na região, incentivou o povo <strong>à</strong> solidariedade para com a<br />

população sofredora.<br />

Apesar de influenciado pelo galicanismo, manteve muita<br />

lealdade ao Papa. Sua espiritualidade cristocêntrica foi marcada<br />

por forte acento mariano, o que equilibrou sua tendência rigorista.<br />

Isso o predispôs a ver com muita simpatia o evento da Salette.<br />

A grande recompensa de sua vida foi a Aparição de Maria<br />

em La Salette. Mais do que ninguém foi o escolhido pela Virgem<br />

Mãe para dar sua chancela definitiva ao grandioso evento de<br />

19 de setembro de 1846, o evento mais extraordinário que<br />

experimentou em sua longa vida.<br />

72<br />

2 - Primeiras informações<br />

Era preciso levar o Fato da Salette ao conhecimento pleno e<br />

preciso de Dom Philibert. Ao Pe. Mélin, como <strong>De</strong>cano da região<br />

de Corps, incumbia a tarefa de informar o Bispo Diocesano.<br />

A partir de 4 de outubro de 1846, quinze dias após a<br />

Aparição e seis dias após sua chegada a Corps como Pároco,<br />

Pe. Mélin começou a enviar informações ao Bispo. Na primeira<br />

correspondência, relatou que havia interrogado as crianças,<br />

juntas e separadamente, e que elas sempre diziam a mesma


coisa apesar das ameaças ou promessas. Acrescentou que, por<br />

isso mesmo, logo entendeu que não se tratava de fantasia da<br />

parte delas.<br />

Informou também ao Bispo que a primeira idéia do povo<br />

da região era a de construir um oratório no local da Aparição,<br />

e que a pedra sobre a qual a Bela Senhora havia sentado, fora<br />

feita em pedaços levados como lembrança pelos visitantes. A<br />

própria relva do trajeto pelo qual a Bela Senhora andou, havia<br />

sido cortada e, aos punhados, levada pelos visitantes como algo<br />

sagrado. Pe. Mélin dizia, ainda, que o povo interpretava o evento<br />

como uma aparição da Virgem Maria. Finalizando a carta, Pe.<br />

Mélin afirmou:<br />

- “Minha convicção pessoal, depois de tudo que pude<br />

recolher como prova, não difere da dos fiéis. Creio que essa<br />

advertência é um grande dom dos céus. Não preciso de outros<br />

prodígios para crer. Meu desejo muito sincero é que o Bom<br />

<strong>De</strong>us, em sua misericórdia, realize alguma nova maravilha para<br />

confirmar a primeira” (in V. H., I, p. 100).<br />

A 4 de novembro de 1846, Pe. Mélin, em nova carta ao<br />

Bispo, comunicou-lhe que, até aquele dia, mais de duas mil<br />

pessoas haviam subido ao monte da Aparição, e que o povo,<br />

incentivado pelas maravilhas que aconteciam, queria construir<br />

uma capela no lugar da Aparição.<br />

Não se haviam passado três semanas ainda depois da Aparição,<br />

que ela já era difundida de maneira distorcida, acompanhada de<br />

caricaturas horríveis e de cantilenas impregnadas de ofensiva ironia.<br />

Para impedir que essas falsidades desviassem a fé do povo,<br />

bem como para dar uma resposta aos Padres que solicitavam<br />

uma orientação a propósito do fato, Dom Philibert de Bruillard,<br />

a 9 de outubro de 1846, enviou ao Clero da Diocese uma Circular<br />

pela qual ordenava a observância da norma que ele mesmo havia<br />

anteriormente publicado, com os seguintes dizeres:<br />

- “Proibimos, sob pena de suspensão ipso facto, declarar,<br />

imprimir ou publicar algum novo milagre, sob qualquer pretexto<br />

de notoriedade que ele possa ter, a não ser em virtude da autoridade<br />

73


da Santa Sé ou da nossa, depois de um exame que deverá ser exato e<br />

severo. Ora, não nos pronunciamos a respeito dos acontecimentos<br />

de que se trata. A sabedoria e o dever vos obrigam, pois, <strong>à</strong> maior<br />

reserva e, sobretudo, a um silêncio absoluto em relação a esse<br />

assunto, na tribuna sagrada” (in STERN, 1, p.57).<br />

Acrescentou, ao final, que nem as imagens nem as cantilenas<br />

em questão, haviam sido aprovadas por ele, antes o contrariavam<br />

grandemente, e que, severa e formalmente, as reprovava.<br />

Em fevereiro de 1847, Pe. Mélin recebeu um texto intitulado<br />

“Addition”. Tratava-se de um “Acréscimo” <strong>à</strong> Mensagem da<br />

Salette, enviado pelo Pe. Léopold Baillard. O texto descrevia<br />

os pecados que provocavam a cólera de <strong>De</strong>us, as catástrofes<br />

que atingiriam algumas grandes cidades da França, bem como<br />

os Ministros do Senhor que não cumpriam com seu dever.<br />

Alarmado, Pe. Mélin enviou o texto a Dom Philibert.<br />

Em resposta a 3 de março de 1847, o Bispo afirmava que<br />

no texto do “Addition” havia algumas coisas que lembravam,<br />

sim, o Fato da Salette. Acrescentava, porém, que era preciso ter<br />

cuidado com as afirmações do texto porque podiam ser mero<br />

fruto de desequilíbrio psíquico.<br />

Na verdade, Pe. Léopold e seus dois irmãos, também<br />

Sacerdotes, pouco mais tarde deixaram o ministério e se<br />

juntaram <strong>à</strong> seita de Vintras, bastante difundida na França no séc.<br />

XIX. Os adeptos da seita haviam caído na “mariolatria”, pois<br />

consideravam Maria como a 4ª Pessoa da Santíssima Trindade.<br />

O texto chamado “Addition” favoreceu, segundo Pe. Jean Stern,<br />

o surgimento da questão dos “Segredos da Salette” (STERN, p. 33).<br />

Reticências e recriminações a respeito da Aparição chegavam<br />

a Dom Philibert, até mesmo da parte do Governo Francês. O<br />

Tribunal de Grenoble fez suas investigações. O Ministro da<br />

Justiça e dos Cultos queixava-se a propósito do Fato da Salette e<br />

ameaçava seus seguidores.<br />

A 12 de junho de 1847, em carta a Dom Philibert, o Ministro<br />

denunciava a distribuição de gravuras da pretensa aparição, e<br />

de folhetos contendo o prenúncio de uma grande fome e de<br />

74


assustadora mortalidade infantil. Assinalava também o pedido<br />

da Bela Senhora para que os agricultores não semeassem trigo,<br />

pois uma praga agrícola o prejudicaria ao ser debulhado. Ora,<br />

semelhante palavra, segundo o Ministro, só poderia trazer<br />

funesto resultado para a economia rural do país e comprometer<br />

a tranqüilidade pública.<br />

O Bispo quis tranqüilizar o Ministro dizendo-lhe que<br />

semelhantes publicações não eram suas, nem tinham sua<br />

aprovação, uma vez que o fato de La Salette não havia sido<br />

devidamente analisado pela autoridade eclesiástica.<br />

Nesse entretempo, Pe. Mélin mantinha o Bispo<br />

constantemente informado. A 12 de outubro desse mesmo ano,<br />

escreveu a ele dizendo-lhe que o evento da Salette preocupava<br />

a todos e continuava realizando maravilhas, i.e., que o povo<br />

participava intensamente dos ofícios religiosos na Paróquia de<br />

Corps, que havia deixado de trabalhar nos domingos, e que<br />

um grande número de visitantes subia a montanha da Aparição,<br />

rezando ao longo do trajeto.<br />

A 4 de novembro de 1847, em nova carta ao Bispo, o<br />

Pe. Mélin afirmava que a Aparição assumia cada vez maior<br />

consistência, que ele mesmo recebia grande quantidade de<br />

correspondências, e que numerosos visitantes, provenientes de<br />

muitos lugares, tomavam conta da Casa Paroquial em Corps.<br />

Segundo a informação, cerca de quatrocentas pessoas haviam<br />

interrogado as duas crianças, e mais de duas mil haviam visitado<br />

a Montanha. Concluía a carta afirmando:<br />

- “<strong>De</strong>sejo ardentemente que esse fato seja confirmado! Ele<br />

me é pesado, me atormenta. Já não posso mais duvidar!” (in V.<br />

H., I, p. 101).<br />

A atitude do Bispo face ao evento da Salette, no entanto, não<br />

era nem de incredulidade, nem de hostilidade, mas de prudência<br />

e sabedoria. O Bispo queria refletir, informar-se, rezar e aguardar<br />

os fatos antes de se pronunciar.<br />

Três meses após o Fato da Salette, o Bispo Dom Philibert já<br />

possuía volumoso dossiê a esse respeito.<br />

75


76<br />

CAPÍTULO VIII<br />

À PROCURA DO SENTIDO<br />

Era chegado o momento de se fazer a investigação canônica<br />

necessária para averiguar a verdade do evento da Salette e seu<br />

sentido para a Igreja.<br />

1 - A investigação inicial<br />

Dom Philibert recebia informações de todos os lados e de<br />

todo tipo.<br />

Além dos interrogatórios e análises feitos por particulares, o<br />

Bispo solicitou a algumas pessoas que, em seu nome, visitassem a<br />

montanha da Salette, interrogassem os videntes e investigassem os<br />

fatos relativos <strong>à</strong> Aparição, de maneira a se obter uma informação<br />

segura.<br />

Nos meses de fevereiro e maio de 1847, os dois Sacerdotes<br />

Lagier e Lambert, conhecedores do “patois” da região de Corps,<br />

haviam interrogado sistematicamente, mas a titulo privado, os<br />

dois videntes, Melânia e Maximino.<br />

A seguir, em junho, o Pe. Nicolas Bez publicou uma<br />

obra feita com seriedade e a partir de investigações no local:<br />

“Pèlerinage <strong>à</strong> La Salette, ou Examen critique de l´apparition de<br />

la Sainte Vierge <strong>à</strong> deux bergers Mélanie Mathieu et Maximin<br />

Giraud”. Dom Philibert recebeu o livro. Tinha assim, em mãos,<br />

o texto integral da Mensagem da Bela Senhora.<br />

Tendo em vista as repercussões causadas pelo Fato da<br />

Salette, a profunda devoção popular e mariana, a expansão<br />

da Confraria de Nossa Senhora Reconciliadora da Salette, os<br />

muitos milagres e conversões, a convicção favorável ao Fato<br />

por parte de numerosos Sacerdotes e leigos, e as peregrinações<br />

imensas e freqüentes até a Montanha da Salette, o Bispo se<br />

tornara particularmente devoto de Nossa Senhora da Salette e<br />

se alegrava com a expansão dessa devoção. Não impedia que os


Padres visitassem o local da Aparição, nem que dela falassem<br />

em particular.<br />

Conhecedor, porém, das normas eclesiásticas em vigor,<br />

e reservando-se o direito que elas lhe atribuíam, assumiu a<br />

responsabilidade de analisar o caso e de se pronunciar a respeito<br />

em momento oportuno.<br />

O Pe. Auvergne, Cônego e Secretário da Diocese, era o<br />

guardião do “Dossier de La Salette” formado no final de 1846. O<br />

dossiê estava devidamente conservado no Bispado de Grenoble.<br />

Dom Philibert convocou, então, uma primeira Comissão<br />

Oficial, formada por dois grupos de eclesiásticos diocesanos, o<br />

dos Cônegos da Catedral de Grenoble e o dos Professores do<br />

Seminário Maior da Diocese. Foram encarregados de analisar o<br />

“Dossier de La Salette” existente.<br />

A 15 de dezembro de 1846 a Comissão apresentou a Dom<br />

Philibert o seu parecer. Havia constatado não só a realidade de<br />

um fato grandioso em La Salette, mas também, seus resultados<br />

extraordinários no meio do povo. Mantinha-se, porém, muita<br />

circunspeção.<br />

Algum tempo depois desse primeiro estudo, o Bispo encaminhou<br />

o processo canônico de investigação dos acontecimentos e da<br />

respectiva análise. A 19 de julho de 1847, nomeou, oficialmente<br />

e com plenos poderes como “Comissários <strong>De</strong>legados”, a M.<br />

Rousselot, Vigário Geral Honorário, Cônego da Catedral e Professor<br />

do Seminário Maior de Grenoble, e M. Orcel, Superior do mesmo<br />

Seminário. Quem eram os dois eminentes “Comissários”?<br />

a) Pierre-Joseph Rousselot nasceu a 12 de abril de 1785, em<br />

Doubs, filho de pais muito religiosos e estimados em sua terra.<br />

Atingido pela varíola aos três anos de idade, carregou no rosto as<br />

marcas da doença pelo resto da vida. Na infância se divertia com<br />

as vibrações dos tambores e evoluções da Guarda da Revolução.<br />

Fez seus primeiros estudos em escolas de Barboux, sua região<br />

natal. Tanto em Barboux, quanto em Paris, republicanos e<br />

regalistas se combatiam entre si. A Guarda Nacional perseguia<br />

os católicos. Muitos dentre eles se refugiavam na Suissa.<br />

77


O pai de Pierre-Joseph teve que fazer o mesmo. O menino<br />

tinha sete anos então. Na Suissa, Pierre Joseph foi internado na<br />

Abadia Trapista de Val-Sainte, em junho de 1793. Apesar de<br />

sua pouca idade, convivia com velhos monges e com eles se<br />

levantava <strong>à</strong>s três horas da manhã para participar do Ofício da<br />

Comunidade. Em pouco tempo se habituou ao regime claustral.<br />

No Mosteiro fez sua Primeira Comunhão e recebeu a Crisma.<br />

A Revolução Francesa, porém, causava problemas também<br />

na Suissa. O Abade de Val-Sainte pediu ao Czar da Rússia que<br />

lhe permitisse instalar seu Mosteiro em território russo, em<br />

região adequada <strong>à</strong> vida monástica.<br />

Além dos Monges, foram transferidos para a Rússia<br />

também 60 meninos e 40 meninas. Ao todo, 244 pessoas. A<br />

partida aconteceu a 17 de janeiro de 1798. Ao longo do caminho<br />

mantinha-se o regime de vida monacal.<br />

Em 1800 chegaram ao território russo, na região da Ucrânia.<br />

Como o Czar acabava de restabelecer relações com a França<br />

de Napoleão, o grupo foi mal recebido e logo tiveram que<br />

tomar o caminho de volta. Passaram por Dantzig. Chegaram a<br />

Hambourg, na Alemanha, onde permaneceram até 1801, quando<br />

os Monges foram forçados a deixar o território alemão.<br />

Finalmente, tendo a Suissa recuperado a tranqüilidade<br />

política, os Monges voltaram a Val-Sainte de onde haviam<br />

saído. Rousselot se encontrava entre eles. Entre 1803 e 1805,<br />

Rousselot que já era Irmão Plácido, seu nome de Monge trapista,<br />

fez os cursos de Filosofia e Teologia em Fribourg. <strong>De</strong>pois voltou<br />

a Val-Sainte como professor dos jovens estudantes.<br />

Teve, porém, que se evadir das tropas napoleônicas que<br />

buscavam, em países vizinhos, os jovens franceses para obrigálos<br />

a fazer o serviço militar na França. Rousselot refugiou-se na<br />

Itália. Por não possuir passaporte, foi preso. <strong>De</strong>pois de três dias<br />

de detenção, foi liberado.<br />

Sendo procurado ainda, decidiu buscar segurança no<br />

Mosteiro de Briançon. Com medo de ser descoberto, foi a Paris,<br />

em março de 1810, para regularizar definitivamente sua situação<br />

78


diante do Governo napoleônico. Passando por Grenoble e Lyon,<br />

chegou a Paris a 25 de janeiro de 1811.<br />

Com medo de se apresentar, decidiu fugir para alguma<br />

ilha distante. Chegando a Bordeaux, e sendo reconhecido, seu<br />

passaporte foi carimbado como desertor. Conseguiu evadir-se<br />

para buscar refúgio em Briançon.<br />

Passando por Bourg-d´Oisans foi acolhido pelo Pároco que,<br />

vendo suas qualidades, quis logo encaminhar sua ordenação<br />

sacerdotal.<br />

Aos 26 anos de idade foi recebido como professor<br />

do Seminário Menor de Côte-Saint-André, na Diocese de<br />

Grenooble. Estava sobrecarregado de fadigas por causa de<br />

suas longas andanças. Logo foi alvo de simpatia geral por sua<br />

bondade e sabedoria.<br />

Foi ordenado sacerdote a 19 de setembro de 1813, e<br />

imediatamente nomeado professor de Teologia Dogmática no<br />

Seminário Maior de Grenoble, função que exerceu durante<br />

cinqüenta e três anos. Com outros anos de professor em outros<br />

locais, somou sessenta e dois anos de ensino. <strong>De</strong> 1813 a 1831<br />

ensinou Dogma. <strong>De</strong> 1832 a 1856, lecionou Moral. Como<br />

professor, combateu o jansenismo, os exageros galicanistas e os<br />

ultramontanistas. Era notável por sua sabedoria, previdência e<br />

moderação.<br />

<strong>De</strong>ixando de lado o magistério, foi nomeado Diretor<br />

Espiritual. Lecionava ainda cursos especiais para os futuros<br />

sacerdotes. Foi professor até sua morte. Cerca de três mil<br />

sacerdotes da Diocese de Grenoble foram alunos seus. Foi<br />

nomeado Cônego e depois Vigário Geral da Diocese. Sua vida,<br />

porém, foi iluminada, sobretudo, pelo Fato da Salette. Estudou o<br />

Fato sem precipitação. A Bela Senhora o havia escolhido como<br />

um de seus grandes defensores. Morreu em 12 de agosto de<br />

1865.<br />

Em 1848, publicou o livro “La vérité sur l´événement de<br />

La Salette” que contém o Relatório Rousselot, e em 1850, o<br />

“Nouveaux documents sur l´événement de La Salette”. Os dois<br />

79


textos foram publicados com a aprovação de Dom Philibert.<br />

Antes, ao final de 1847, haviam sido objeto de estudo por parte<br />

da Comissão Episcopal que analisou o evento da Salette.<br />

b) Jacques-Philippe Orcel nasceu a 1º de maio de 1805. Foi<br />

ordenado sacerdote a 18 de julho de 1830. Em 1837 foi nomeado<br />

Superior do Seminário Maior de Grenoble, e mais tarde, Vigário<br />

Geral da Diocese. Quando de sua nomeação como Comissário<br />

<strong>De</strong>legado, ainda não acreditava na realidade da Aparição.<br />

80<br />

2 - A análise conclusiva<br />

Em carta enviada a Pe. Mélin a 28 de agosto de 1847, Dom<br />

Philibert havia autorizado a celebração de Missa na Montanha,<br />

no 1º Aniversário da Aparição. Na carta, o Bispo observava<br />

que a autorização não significava “uma decisão doutrinal”.<br />

Igualmente não via inconvenientes em se publicar a obra de<br />

Dom Villecourt, Bispo de La Rochelle, sobre sua peregrinação <strong>à</strong><br />

Salette. Dom Philibert viu nesse texto, um preliminar favorável<br />

ao julgamento doutrinal sobre o evento O clima favorecia a<br />

investigação canônica.<br />

Rousselot e Orcel partiram de Grenoble a 27 de julho<br />

de 1847. Percorreram nove Dioceses da França para colher<br />

informações.<br />

A 25 de agosto chegaram a Corps onde interrogaram os dois<br />

videntes. Com eles visitaram o local da Aparição, acompanhados<br />

por Pe. Mélin, Pe. Perrin e Pe. Paquet, por mais alguns Padres<br />

da Diocese de Fréjus e de Gap, e por trinta e quatro outros<br />

peregrinos.<br />

<strong>De</strong> volta a Grenoble, Rousselot elaborou um relatório<br />

sobre o trabalho feito com o Pe. Orcel. A 15 de outubro<br />

o Relatório estava concluído. Nele Rousselot expunha as<br />

próprias impressões, favoráveis <strong>à</strong> Aparição, e as impressões<br />

de eclesiásticos e leigos que pediam o julgamento doutrinal.<br />

Rousselot havia sido conquistado. Queria agora conquistar o<br />

Bispo a favor da veracidade do Fato da Salette. Rousselot se


tornou o melhor artífice do célebre Mandamento Doutrinal de<br />

19 de setembro de 1851.<br />

O Bispo leu o texto do relatório de Rousselot. Fez algumas<br />

observações, e achou que era chegado o momento de convocar<br />

uma Comissão para examinar o caso.<br />

Esta segunda Comissão de análise canônica do evento da<br />

Salette era composta por dezesseis membros: dois Vigários<br />

Gerais, o Superior do Seminário Maior, oito Cônegos da Catedral<br />

e mais cinco Párocos na cidade de Grenoble. Entre eles estavam<br />

Rousselot, Orcel, Bouvier, <strong>De</strong>smoulins, Bois, Michon, Henry,<br />

Petit, Revol, Gay, Rivaux, Michallet, Albertin e Cartellier.<br />

A Comissão, sob a presidência de Dom Philibert, começou<br />

seus trabalhos a 8 de novembro de 1847.<br />

A 15 de novembro, na segunda sessão, também estavam<br />

presentes Pe. Mélin, Maximino e Melânia. A terceira sessão<br />

aconteceu a 16 de novembro. Na quarta, no dia 17, se fez presente<br />

o Pe. Perrin, Pároco de La Salette.<br />

Na quinta sessão, a 22 de novembro, o Bispo chamou a<br />

atenção da Comissão para que não continuasse a perder tempo<br />

com a discussão de elementos estranhos <strong>à</strong> Aparição. A sexta<br />

reunião aconteceu a 6 de dezembro.<br />

Faltava discutir as objeções ao fato da Salette. Eram doze as<br />

objeções. O assunto foi debatido pela Comissão em suas duas<br />

últimas sessões, a 13 de dezembro de 1847.<br />

Ao final, Dom Philibert pediu a cada um que respondesse <strong>à</strong><br />

pergunta:<br />

- “O fato é real, ou as crianças teriam enganado ou teriam<br />

sido enganadas?” (in STERN, p. 41).<br />

A grande maioria, isto é, doze sobre dezesseis membros<br />

da Comissão, se pronunciaram favoravelmente a respeito da<br />

veracidade do evento e sobre a credibilidade dos videntes. Três<br />

membros achavam que as provas a respeito do evento eram<br />

insuficientes. O Pe. Cartellier se pronunciou contra o fato.<br />

Contudo, não era chegado, ainda, o momento de o Bispo<br />

Dom Philibert se pronunciar. Importava esperar por informações<br />

81


mais completas e decisivas. O parecer da Comissão teria, no<br />

entanto, seu peso no Mandamento Doutrinal que seria exarado<br />

anos mais tarde.<br />

Dom Philibert, porém, antes do final dos trabalhos da<br />

Comissão, enviou <strong>à</strong> Diocese uma Carta Pastoral sobre a<br />

profanação do Dia do Senhor e sobre a blasfêmia, assuntos<br />

presentes na Mensagem de Bela Senhora, mas, sem referências<br />

<strong>à</strong> Aparição.<br />

Findos os trabalhos da Comissão, no início de 1848,<br />

Rousselot elaborou um projeto de Julgamento Doutrinal sobre o<br />

evento. O Bispo o analisou e acrescentou algumas observações.<br />

O texto, porém, não foi publicado porque, durante os trabalhos<br />

da Comissão, o Cardeal <strong>De</strong> Bonald, Arcebispo de Lyon, havia<br />

remetido a Dom Philibert três cartas em novembro de 1847,<br />

e uma em janeiro de 1848. O Cardeal pedia que não fosse<br />

reconhecida a autenticidade da Aparição. <strong>De</strong> Bonald tinha em<br />

conta a oposição de Pe. Cartellier e as polêmicas a respeito de<br />

aparições que os jornais da época divulgavam.<br />

Mais tarde, o Cardeal de Bonald manifestou sua contrariedade<br />

em relação <strong>à</strong> Salette em outras ocasiões, como a do Concílio<br />

Provincial de LYON, a 30 de junho de 1850.<br />

Pe. Cartelier, aguerrido opositor da Salette, pensava que<br />

no Concílio o Fato da Salette seria definitivamente eliminado.<br />

Antes dessa reunião episcopal, havia elaborado um manuscrito<br />

contra a Aparição.<br />

Dom Philibert queria que o assunto fosse tratado no Concílio.<br />

O Cardeal, porém, impediu a análise do evento da Salette nesse<br />

conclave. Por que razões?<br />

O Bispo de Grenoble, Diocese sujeita <strong>à</strong> Arquidiocese de Lyon,<br />

tinha, porém, a certeza de que a intervenção do Metropolita não<br />

era razão suficiente para impedir que ele mesmo, Dom Philibert, se<br />

pronunciasse a respeito da Aparição. A legislação canônica garantia<br />

como unicamente seu o direito de se pronunciar a propósito.<br />

Na verdade, o Bispo acreditava na realidade da Aparição e<br />

achava como dever seu proteger e favorecer a devoção a Nossa<br />

82


Senhora da Salette. Em carta de 11 de janeiro de 1848, Dom<br />

Philibert tinha deixado claro esse assunto.<br />

O Bispo, naquele momento, se absteve de fazer um<br />

pronunciamento sobre o Fato da Salette, provavelmente<br />

devido <strong>à</strong> situação política provocada em Paris, pela derrubada<br />

da Monarquia e instalação da Segunda República na França.<br />

O pronunciamento poderia suscitar imaginações exaltadas em<br />

relação <strong>à</strong> Aparição.<br />

Em agosto de 1848 foi publicado o livro de Rousselot, “La<br />

vérité sur l´événement de La Salette du 19 septembre 1846”.<br />

Nele foi reproduzido o Relatório apresentado <strong>à</strong> Comissão<br />

Episcopal, no final de 1847. Dom Philibert havia autorizado a<br />

publicação da obra e, no prefácio, revelou como seu o parecer<br />

emitido pela Comissão. A conseqüência imediata foi que o<br />

Clero da Diocese se sentiu liberado para visitar a Montanha da<br />

Aparição e acompanhar os peregrinos que se dirigiam ao local.<br />

Rousselot enviou o livro ao Papa Pio IX. A 20 de setembro<br />

de 1848, em carta enviada a Rousselot, Pio IX agradeceu o envio<br />

da obra, e se disse feliz em saber que muitos peregrinos iam <strong>à</strong><br />

Salette para venerar a Virgem Maria.<br />

A obra de Rousselot causou grande impressão no público<br />

cristão.<br />

Muitos Bispos passaram a pedir a Dom Philibert que se<br />

pronunciasse a respeito da Aparição. Entre eles, Dom Guibert,<br />

Bispo de Viviers, recomendou a Dom Philibert que confiasse<br />

o cuidado do futuro Santuário a uma Comunidade. Mais tarde,<br />

Dom Guibert foi eleito Cardeal de Paris e, em agosto de 1879,<br />

foi enviado a La Salette, como <strong>De</strong>legado do Papa LEÃO XIII,<br />

para a coroação da estátua de Nossa Senhora, na Basílica da<br />

Montanha.<br />

83


84<br />

CAPÍTULO IX<br />

O DESPONTAR DA DECISÃO EPISCOPAL<br />

Em fevereiro de 1848 foi desencadeada a Revolução de<br />

Paris. O fato ocasionou o surgimento de uma onda muito grande<br />

de religiosidade, expressa também em relação <strong>à</strong> Aparição da<br />

Salette. Na Montanha da Aparição os peregrinos chegavam de<br />

todos os países da Europa.<br />

A 8 de setembro desse mesmo ano, com a permissão de Dom<br />

Philibert, os Párocos da região de Corps puderam conduzir seus<br />

paroquianos <strong>à</strong> Santa Montanha. Foi um espetáculo comovente. O<br />

Aniversário da Aparição foi solene. Ao menos 8.000 pessoas se<br />

encontravam na Montanha bendita. O Bispo se fizera representar<br />

pelo Pe. Rousselot, Vigário Geral da Diocese. Maximino e<br />

Melânia estavam presentes em meio <strong>à</strong> multidão.<br />

Nesse tempo Dom Philibert pensou que era chegado o<br />

momento de se adquirir o terreno para o futuro Santuário que ele<br />

tinha em mente. A capela existente na Montanha era provisória.<br />

Ao mesmo tempo, num contexto político exacerbado, certas<br />

pessoas sonhavam com o retorno da Monarquia para restabelecer a<br />

ordem na França. Outras acreditavam que os “segredos” confiados<br />

pela Bela Senhora aos dois videntes poderiam indicar o rumo a<br />

seguir para o futuro do país. Poderiam também confirmar os próprios<br />

sonhos de participar de uma nova ordem política na França. Essa<br />

mentalidade se manifestou de modo exaltado em 1850.<br />

Efetivamente, desde abril de 1847, um senhor chamado<br />

Houzelot, comerciante de objetos religiosos e caçador de<br />

relíquias, residente em Paris, esteve mais vezes em Corps, para<br />

ver Melânia e Maximino. Queria conhecer a identidade do<br />

herdeiro do trono da França. Os “segredos da Salette”, assunto de<br />

curiosidade pública, poderiam, segundo ele, conter informações<br />

importantes a respeito.<br />

O projeto de Houzelot era envolver os videntes com os<br />

partidários do falso barão de Richemont, um aventureiro


impostor que se fazia passar por filho de Luis XVI. O falsário<br />

pretendia ser o herdeiro do trono da França, com o nome de<br />

Luis XVII. Richemont havia conquistado a simpatia de muitas<br />

pessoas crédulas, inclusive de alguns eclesiásticos.<br />

Houzelot era fanático por fenômenos religiosos<br />

extraordinários, ávido por conhecer os “segredos da Salette” e<br />

a verdade propalada pela opinião pública, sobre acontecimentos<br />

sinistros que algumas grandes cidades da França iriam viver:<br />

Paris seria incendiada, Marselha seria submersa pelo mar, o<br />

anticristo apareceria, o apocalipse aconteceria em breve...<br />

Em outubro de 1849, Melânia, por ocasião de uma viagem<br />

<strong>à</strong> “Grande Chartreuse”, aconselhou o engenheiro Dausse,<br />

na presença de Maximino, que não fosse a Paris para não se<br />

tornar uma das vítimas da destruição da capital, prevista por<br />

“visionários”. Dausse, pessoa conhecida e respeitada, concluiu<br />

que Melânia estava se referindo a seu “segredo”.<br />

Essas pretensas profecias eram, portanto, bem conhecidas<br />

dos dois jovens videntes, Melânia e Maximino. O povo todo<br />

falava disso.<br />

Em Corps, <strong>à</strong> influência da curiosidade doentia de Houzelot<br />

se juntou a mórbida presença de Antoine Gay, ex-trapista,<br />

conhecido como possesso do demônio.<br />

Certo dia, Gay subiu a Montanha da Salette, aos urros<br />

e se debatendo. Falava em nome do “demônio Isacarron”.<br />

Congratulava-se com Melânia por ela ter visto Nossa Senhora<br />

(cf. STERN, 3, p. 7-8).<br />

Quanto a Maximino, órfão de pai e mãe, estava sob a tutela<br />

do tio Templier. Maximino não gostava do tutor. Um dia o<br />

menino perguntou a “Isacarron”, possuidor de Gay, quem era<br />

seu maior inimigo. O “demônio” respondeu que era Templier de<br />

quem Maximino devia afastar-se e entrar na Comunidade dos<br />

Maristas de Pe. Colin, em Lyon.<br />

A essas nefastas pressões sobre Maximino, somou-se a de<br />

Paul Bonnefous, originário de Aveyron. Bonnefous, além de<br />

mesclar política e mística em seus discursos, dizia ter recebido<br />

85


do céu a missão de fazer com que Maximino entrasse de fato na<br />

Comunidade Marista de Pe. Colin.<br />

Entrou também em cena o Pe. Joseph Faure que, desde<br />

agosto de 1850, freqüentava a Montanha. Ele havia sido<br />

afastado da Paróquia porque seguia Victorine Sauvet, uma<br />

pseudo-miraculada que se dizia possuída pelo demônio. Faure<br />

se interessava por fenômenos extraordinários, profecias e forças<br />

ocultas. Tinha interesse em conhecer os “segredos da Salette”<br />

As relações humanas, no entorno de Maximino, estavam,<br />

portanto, impregnadas de influências malsãs. Isso o deixava<br />

inquieto. Nesse contexto acontece o “Incidente de Ars”.<br />

86<br />

1 - “O INCIDENTE DE ARS”<br />

A partida de Maximino de Corps para Lyon, na suposição<br />

de que lá entraria na Comunidade Marista, aconteceu a 22 de<br />

setembro de 1850.<br />

Conforme o Pe. Mélin, o possesso Gay tinha revelado que<br />

Maximino devia ir a Ars para que o Santo Cura o ajudasse a<br />

discernir sua vocação.<br />

O tio Templier, tutor de Maximino, consentiu com a idéia,<br />

apesar da oposição de Pe.Mélin. Templier pensava manipular o<br />

menino para ganhar dinheiro, demonstrando sua notoriedade de<br />

vidente da Salette.<br />

Maximino foi conduzido a Lyon e Ars por um benfeitor<br />

seu, Brayer, e por Verrier, amigo de Houzelot. Verrier estava<br />

interessado nos intentos de Richemont.<br />

Maximino, na verdade, queria fazer um passeio. Pouco lhe<br />

interessava uma entrevista com o Cura d´Ars sobre sua vocação.<br />

Passando por Grenoble, o Bispo Dom Philibert tomou<br />

conhecimento da viagem de Maximino. <strong>De</strong>saprovou-a<br />

formalmente. Com certeza intuia os riscos que a envolviam.<br />

Ordenou que Maximino se hospedasse na Escola dos Irmãos<br />

das Escolas Cristãs, em Grenoble, para entrar mais tarde, no<br />

Seminário Menor da Diocese.


O adolescente e seus acompanhantes recusaram a ordem de<br />

Dom Philibert.<br />

Maximino queria a todo o custo prosseguir em sua viagem a<br />

Ars. Apreciava conhecer lugares novos. Maximino tinha quinze<br />

anos e desejava livar-se de seu tutor. Em Corps sofria muitas<br />

pressões por causa do “segredo”,<br />

Queria fugir desse ambiente demasiadamente opressivo.<br />

Uma viagem serviria de distração.<br />

A 23 de setembro, o grupo tomou o caminho de Grenoble<br />

para Ars. Maximino levou consigo sua irmã Angélica que residia<br />

em Grenoble. Angélica era maior de idade. Teria, portanto, o<br />

direito de tutelar o menino em lugar de Templier.<br />

A 24 de setembro, no fim da tarde, o grupo chegou a<br />

Ars. Levava uma carta de apresentação para o Cura D´Ars,<br />

carta escrita pelo Pe. Nicod, de Lyon. Nicod era partidário de<br />

Richemont, por isso vivia em conflito com o Cardeal <strong>De</strong> Bonald.<br />

Ao chegarem a Ars procuraram sem demora o Santo Cura.<br />

Ele se encontrava no confessionário. O Pe. Raymond, Vigário<br />

Paroquial, recebeu o grupo. Ao ler a carta de Nicod percebeu a<br />

ligação do grupo com Richemont e sua mórbida ideologia ávida<br />

de mistérios.<br />

Ao ver Maximino com o grupo, Pe. Raymond supôs que o<br />

evento da Salette estivesse servindo de montagem para justificar<br />

as pretensões de Richemont. Ora, tanto o Pe. Raymond quanto<br />

o Cardeal de Lyon detestavam toda e qualquer mistificação<br />

em torno do falso barão. Pe. Raymond, então, levado pela ira,<br />

tratou Maximino com aspereza e desdém, como a um impostor<br />

e mentiroso, não lhe permitindo sequer uma palavra em defesa<br />

própria. Como se dizia que o Santo Cura tinha o dom de ler as<br />

consciências, o Vigário Paroquial desafiou Maximino, com suas<br />

histórias sobre a Salette, a enganar o Santo Cura.<br />

Era, pois, de se esperar que o adolescente, gratuitamente<br />

agredido, ruminasse em seu coração uma revolta com<br />

conseqüências inesperadas. Sua vivacidade o levou a arquitetar<br />

uma atitude <strong>à</strong> altura do tratamento recebido.<br />

87


Exasperado, Maximino respondeu a Raymond que o tratava<br />

de mentiroso:<br />

- “Admitamos que eu tenha mentido. Que é que isso pode<br />

me causar?” (in BASSETTE, p. 190).<br />

Raymond se fixou nessa meia palavra do jovem, tomando-a<br />

para seu próprio interesse, como se fosse um desmentido<br />

da Aparição. Para ele, a resposta de Maximino significava<br />

consequentemente o total esvaziamento das pretensões de<br />

Richemont e de seus sequazes.<br />

Pe. Raymond preveniu o Cura quanto a essa palavra de Maximino.<br />

O Cura, que confiava plenamente em seu Vigário, ficou desorientado.<br />

Acreditava no Fato da Salette. Alimentava grande devoção pela Bela<br />

Senhora. Abençoava e distribuía a seus fiéis, imagens da Salette.<br />

A indigna atitude de Raymond talvez se explique pelo fato<br />

de ele ter visitado La Salette em junho de 1849. <strong>De</strong> lá voltou mal<br />

impressionado com o nível de vida do povo de Corps e com a<br />

rudeza dos videntes. Tornou-se um cético em relação <strong>à</strong> Aparição.<br />

Raymond devia também ter problemas de fundo psicológico.<br />

Adolescente, vivera momentos difíceis por causa de conflitos de<br />

religião entre católicos e fanáticos imbuídos de idéias sectárias e<br />

ocultistas. Possuía um caráter dado a ímpetos de violência.<br />

Raymond, por ocasião dessa visita de Maximino a Ars, teve<br />

duas entrevistas com o grupo que acompanhava o adolescente.<br />

Diante de todos revelou suas objeções contra o Fato da Salette,<br />

negando a sinceridade dos videntes Maximino e Melânia.<br />

Maximino teve dois encontros com o Cura D´Ars.<br />

No primeiro encontro, a conversa entre os dois durou<br />

algum tempo. Aconteceu atrás do altar da Igreja de Ars, junto ao<br />

confessionário, na manhã de 25 de setembro. O jovem desejava<br />

confessar-se. Mais tarde, no entanto, Maximino explicou que não<br />

houve propriamente uma confissão. Só afirmou ao Cura que havia<br />

desobedecido a proibição de Dom Philibert de se dirigir a Ars. O<br />

Cura, então, não continuou a ouvi-lo e o mandou confessar-se em<br />

Grenoble. O jovem, no final do encontro, demonstrava satisfação.<br />

O segundo encontro aconteceu no confessionário da<br />

88


Igreja, na mesma manhã. Ao tocar no assunto de sua vocação,<br />

Maximino recebeu da parte do Cura, a ordem de voltar <strong>à</strong> Diocese<br />

de Grenoble e lá resolver o caso.<br />

Nesse encontro com Maximino, a fé do Cura a respeito da<br />

Aparição da Salette caiu por terra. O que aconteceu? Que é que<br />

Maximino lhe teria afirmado? É difícil saber com precisão. A<br />

conversa entre os dois não foi fácil.<br />

O Cura perguntou a Maximino se havia visto Nossa Senhora.<br />

O jovem respondeu que havia visto uma “Senhora”, mas,<br />

não sabia se era a Santíssima Virgem.<br />

Maximino, em sua impulsividade juvenil, talvez quisesse<br />

testar a afirmação de Pe. Raymond a respeito do dom de ler as<br />

consciências por parte do Cura.<br />

Numa atitude pueril própria do irrequieto menino, mas,<br />

certamente carregada de ressentimentos por causa das atitudes de<br />

Pe. Raymond na véspera, Maximino deu ao Cura uma resposta<br />

dúbia nessa conversa de vinte minutos.<br />

O Cura não compreendeu a palavra do vidente. Guardou<br />

dúvidas quanto ao seu sentido. Pensou que o menino se havia<br />

desmentido sobre a Aparição.<br />

Durante o almoço daquele dia 25 de setembro, o Cura<br />

comentou com Raymond a suposta retratação de Maximino.<br />

Raymond imediatamente anunciou a novidade aos quatro cantos<br />

da Paróquia. A indiscrição de Raymond, porém, entristeceu o<br />

Pároco. Muitas pessoas foram induzidas ao erro, pensando que<br />

o Cura houvesse assumido posição contrária <strong>à</strong> Salette.<br />

Na tarde daquele dia, o grupo de Maximino partiu de Ars<br />

para Lyon.<br />

Na manhã seguinte, o Cura deixou de abençoar as medalhas<br />

de Nossa Senhora da Salette. Não quis mais falar sobre o assunto.<br />

2 - SUPERADO O EQUÍVOCO<br />

<strong>De</strong> volta a Lyon, Maximino encontrou o Pe. Nicod. Com<br />

ele estavam o desequilibrado Gay, o falsário Richemont e outras<br />

89


pessoas. Richemont não se deu a conhecer. Maximino, que havia<br />

visto um retrato dele no Colégio de Corps, reconheceu o falso barão.<br />

O encontro suscitou reações em Maximino. O jovem pediu<br />

para se retirar. Queria pôr-se mais <strong>à</strong> vontade. A partir de então,<br />

sentiu-se induzido a inventar “profecias” para tirar proveito dos<br />

circunstantes e compensar as pressões sofridas.<br />

Em Lyon, Maximino também encontrou seu amigo Pe.<br />

Bez. Com ele, em maio de 1847, havia visitado a Montanha da<br />

Salette. A alegria do reencontro foi grande para o jovem.<br />

Pe. Bez pediu-lhe que permanecesse em Lyon e entrasse na<br />

Comunidade dos Maristas. Consultado, Pe. Colin, o fundador da<br />

Comunidade, aprovou a idéia. Maximino foi apresentado a ele,<br />

não como vidente da Salette, mas como sobrinho do Pe. Bez, sob<br />

o pseudônimo de Joseph Bez. O anonimato lhe era conveniente<br />

para evitar problemas maiores por causa da Aparição.<br />

Sabendo do ocorrido em Ars, Pe. Gérin, Cura da Catedral de<br />

Grenoble, a 12 de outubro procurou o Cura, seu grande amigo,<br />

para obter informações diretas sobre o incidente. No final do<br />

mês, Gérin levou as informações a Dom Philibert, comentando<br />

o descrédito do Cura em relação <strong>à</strong> Aparição.<br />

A 22 de outubro de 1850, Maximino, a pedido de Dom<br />

Philibert, foi levado de Lyon a Grenoble pelo engenheiro Dausse.<br />

No dia seguinte, Maximino entrou no Seminário de Rondeau,<br />

próximo a Grenoble. Podia assim, ser interrogado diretamente<br />

sobre o caso de Ars.<br />

A 2 de novembro, em carta levada por Rousselot e Mélin ao<br />

Cura d´Ars, Maximino declarou:<br />

- “Nem na sacristia, nem atrás do altar da Igreja de Ars, o<br />

Cura me perguntou nem sobre a Aparição de La Salette, nem<br />

sobre o meu segredo... Em nenhuma resposta ao Cura D´Ars ou<br />

ao Pe. Raymond, seu Vigário, nada afirmei que fosse contrário<br />

ao que disse a milhares de outras pessoas, desde o dia 19 de<br />

setembro de 1846... Nem jamais disse que o segredo dizia<br />

respeito ao pretenso Luis XVII...” (in CARLIER, p.126-127).<br />

No Bispado de Grenoble, diante de uma Comissão de Padres<br />

90


e leigos, no mesmo dia 2 de novembro, o jovem Maximino<br />

negou “que se tivesse desmentido em Ars”, mas afirmou que<br />

“não compreendendo distintamente o Cura, respondera com<br />

SIM e NÃO ao acaso” (in STERN, 3, p. 20).<br />

O vidente, a 6 de novembro, redigiu nova carta pela<br />

qual autorizava o Cura a relatar a Rousselot e Mélin, o que<br />

tinha acontecido. Ambos, levando a carta, foram a Ars a 8 de<br />

novembro, e ouviram a mesma afirmação que o Pároco fizera<br />

antes, a Gérin.<br />

A partir das explicações dadas pelo Cura, Rousselot e Mélin<br />

concluíram que ele, tendo sido alertado desfavoravelmente por<br />

Raymond, pensou que Maximino tivesse desmentido a Aparição<br />

da Salette, na conversa com o Vigário Paroquial na chegada a<br />

Ars.<br />

<strong>De</strong> retorno a Grenoble, Rousselot e Mélin comunicaram<br />

tudo a Dom Philibert. O Bispo ficou muito intrigado com o<br />

caso. Perguntava-se por que o Cura D´Ars não tinha sido mais<br />

perspicaz e circunspecto nessa história infeliz.<br />

Dom Philibert sentiu, então, que era dever seu proclamar<br />

a própria convicção a respeito do Fato da Salette. Tinha plena<br />

consciência de que cabia a ele, como Bispo de Grenoble,<br />

responsável pela região da Salette, e a mais ninguém, nem<br />

mesmo ao Cura D´Ars, definir a veracidade ou não do evento<br />

miraculoso. A opinião do Cura, que perturbava a crença dos fiéis<br />

em relação <strong>à</strong> Salette, não podia sobrepor-se <strong>à</strong> decisão do Bispo<br />

Diocesano.<br />

Duas semanas depois, o Bispo enviou carta ao Cura d´Ars<br />

referindo-se <strong>à</strong>s afirmações que ele havia feito a Mélin e Rousselot.<br />

Uma declaração assinada por Maximino acompanhou a carta de<br />

Dom Philibert. O Bispo deu testemunho de que a declaração do<br />

vidente possuia todas as caraterísticas da sinceridade, e de que<br />

houvera simplesmente um “mal-entendido” por parte do Cura.<br />

A 21 de novembro, Maximino, já no Seminário Menor da<br />

Diocese de Grenoble, escreveu nova carta ao Cura para dizer-lhe<br />

que o relato de Rousselot e Mélin lhe dava a prova de que ele,<br />

91


Maximino, não se fizera entender pelo Cura e que houvera um malentendido<br />

completo da parte dele. Nessa carta o jovem repetia:<br />

- “Não lhe disse, senhor Cura, e nunca disse com seriedade<br />

a ninguém, que nada vi, e que teria mentido ao fazer a minha<br />

conhecida narrativa, e ter persistido durante três anos nessa<br />

mentira vendo os efeitos. Disse-lhe apenas, senhor Cura, ao sair<br />

da sacristia e na porta, que vi alguma coisa e que não sabia se<br />

era a Santa Virgem ou outra senhora. Nesse momento o senhor<br />

se dirigiu para o meio do povo e nossa conversa terminou... Faço<br />

e escrevo essa declaração com minha alma e consciência...” (in<br />

CARLIER, p. 127).<br />

A tese do mal-entendido por parte do Santo Cura ganhou<br />

corpo na época. Não se pode descartar, porém, no surgimento<br />

do caso, uma possível e imprudente atitude de malícia juvenil,<br />

como gesto de “vingança” de um adolescente mal tratado pelo<br />

Pe. Raymond naquela visita a Ars.<br />

Num interrogatório feito a Maximino pelo Pe. Auvergne,<br />

Secretário do Bispado de Grenoble, o vidente confirmou que o<br />

Cura d´Ars, naquela ocasião, o tomou pela mão e o conduziu <strong>à</strong><br />

porta da sacristia e lhe perguntou:<br />

- “Você viu a Santa Virgem?<br />

- Não, eu não disse que foi a Santa Virgem. E o Padre saiu”<br />

(in BASSETTE, p 198).<br />

Na verdade, em suas narrativas da Aparição, as crianças<br />

sempre falavam em “Bela Senhora” e não em “Nossa Senhora”.<br />

Essa singela denominação de “Bela Senhora” brotou da<br />

imaginação infantil dos dois videntes. Quem identificou a “Bela<br />

Senhora” como sendo Maria, a Mãe do Senhor, foi a avó Caron,<br />

quando da primeira narrativa da Aparição, feita em Ablandens<br />

na noite de 19 de setembro de 1846.<br />

O aparente desmentido de Maximino foi, então, uma simples<br />

artimanha de adolescente acuado, somada <strong>à</strong>s dificuldades do<br />

Cura d´Ars.<br />

O grande vilão desse episódio infeliz foi, na verdade, o Pe.<br />

Raymond.<br />

92


A 5 de dezembro de 1850, o Cura d´Ars escreveu a Dom<br />

Philibert para dizer-lhe que havia sofrido por causa da conversa<br />

com Maximino. E acrescentou:<br />

- “Em fim de contas, Excelência, a ferida não é tão grande,<br />

e se esse fato (a Aparição) é obra de <strong>De</strong>us, o homem não o<br />

destruirá” (in CARLIER, p. 128).<br />

A carta do Cura d´Ars indica uma inflexão de pensamento.<br />

Manifesta que ele se abstinha, provisoriamente, de qualquer<br />

posição definitiva. Havia um discernimento a ser feito.<br />

O caminho estava aberto. O problema estava na interpretação<br />

do ocorrido entre o Cura e Maximino e não na definição da<br />

realidade ou falsidade do evento de La Salette.<br />

A explicação dada pelo Cura nessa carta, porém, não satisfez<br />

inteiramente a Dom Philibert. O Bispo pensava fazer uma<br />

acareação entre ele e Maximino. <strong>De</strong>sistiu por recomendação de<br />

Dom <strong>De</strong>vie, Bispo de Belley, a que Ars pertencia.<br />

Dom Phlibert, então, recolheu todos os documentos relativos<br />

ao caso, os enviou a Dom <strong>De</strong>vie, e se entreteve a respeito com<br />

Dom Chartrousse, Bispo de Valence, e com Dom Guibert, Bispo<br />

de Viviers e futuro Cardeal Arcebispo de Paris.<br />

O Cura D´Ars foi interrogado. A conclusão está numa carta<br />

enviada por Dom <strong>De</strong>vie a Dom Philibert, a 15 de janeiro de<br />

1851, na qual se diz:<br />

- “Nós sempre entendemos como certo que as crianças não<br />

se puseram de acordo para enganar o público, e que elas viram<br />

realmente um personagem que lhes falou. Seria a Santa Virgem?<br />

Tudo leva a crer, mas isso não pode ser constatado a não ser por<br />

milagres diferentes da Aparição” (in CARLIER, p. 128).<br />

A solução persuadiu o Cura de que não havia compreendido<br />

Maximino.<br />

O Cura d´Ars passou alguns anos de muito sofrimento por<br />

causa desse incidente. <strong>De</strong>pois do Mandamento Doutrinal de 19<br />

de setembro de 1851, exarado por Dom Philibert, ele começou a<br />

afirmar que se podia crer na Aparição, uma vez que a autoridade<br />

eclesiástica se pronunciara afirmativamente em relação ao fato.<br />

93


O Cura d´Ars reencontrou a plena fé na Aparição em 1858,<br />

após ter obtido três sinais que pedia a <strong>De</strong>us: a paz interior<br />

perturbada por um fato recente; a visita de um determinado<br />

Padre da Diocese de Grenoble; e enfim, uma graça temporal.<br />

A 12 de outubro de 1858, menos de um ano antes de sua<br />

morte ocorrida a 4 de agosto de 1859, o Cura disse ao Pe. Gérin:<br />

- “Sofri mais do que se possa imaginar: para lhe dar uma<br />

idéia, imagine um homem no deserto em meio a um terrível<br />

turbilhão de areia e pó, não sabendo para que lado se voltar.<br />

Enfim, em meio a tanta agitação e sofrimento, disse-me a mim<br />

mesmo fortemente: “CREDO”, e no mesmo instante reencontrei<br />

a paz, o descanso que havia perdido inteiramente... Agora<br />

me seria impossível não crer na Salette. Pedi sinais para crer<br />

na Salette e os obtive. Pode-se e deve-se crer na Salette” (in<br />

CARLIER, p. 129-130).<br />

A 21 de julho de 1861, Dom Langalerie, Bispo de Belley, em<br />

visita ao Santuário da Salette, afirmou ao Pe. Mélin em relação<br />

ao Cura D´Ars:<br />

- “Era seu Bispo e seu amigo, morreu nos meus braços<br />

declarando-me sua fé na Aparição da Salette. Ele me ouve dos<br />

céus e não me desmentirá” (in BASSETTE, p.202).<br />

A trama do chamado “Incidente de Ars” foi tecida com<br />

diferentes fios:<br />

- a imprudência infantil de Maximino no uso de eventual<br />

jogo de palavras;<br />

- a pressão psicológica exercida sobre Maximino, através<br />

de falsas “profecias apocalípticas” sobre ele impingidas, e pelo<br />

jogo sujo de Richemont;<br />

- a manipulação interesseira do tio e tutor Templier no intento<br />

de explorar a celebridade do adolescente e seu “segredo”;<br />

- a rispidez irresponsável do Pe. Raymond contra Maximino<br />

em Ars.<br />

- a possível tentativa de Maximino em comprovar o<br />

propalado dom de leitura das consciências por parte do Cura;<br />

- o confuso diálogo entre Maximino e o Cura.<br />

94


O episódio, com suas conseqüências negativas, não teria<br />

acontecido se a ordem de Dom Philibert, ao proibir a viagem de<br />

Maximino a Ars, tivesse sido obedecida.<br />

CAPÍTULO X<br />

OS “SEGREDOS” EM ROMA<br />

No início de 1851, a imprensa mantinha acesa a polêmica<br />

em torno do Fato da Salette. Dom Philibert sentia cada vez mais<br />

a responsabilidade de se pronunciar a respeito da veracidade da<br />

Aparição. No seio do episcopado francês havia Bispos favoráveis<br />

<strong>à</strong> verdade do evento. Havia, porém, dois que se opunham <strong>à</strong><br />

Salette: Dom <strong>De</strong>péry, Bispo de Gap, e Dom <strong>De</strong> Bonald, Cardeal<br />

Arcebispo de Lyon.<br />

Dom <strong>De</strong>péry se viu numa posição dúbia e até contrária a<br />

respeito de La Salette. Envolvido por alguns escritos do Pe.<br />

Nicod, Pároco em Lyon, que se havia declarado publicamente a<br />

favor do pseudobarão de Richemont, Dom <strong>De</strong>péry fez afirmações<br />

contraditórias acerca da Aparição.<br />

Em carta a Dom Garibaldi, Núncio Apostólico em Paris,<br />

no começo de fevereiro de 1851, dizia que não havia provas a<br />

favor da Aparição, que os milagres propalados eram falsos, que<br />

Maximino havia desmentido o fato perante o Cura D´Ars, que<br />

havia sido divulgado um “Ofício Litúrgico de La Salette” - Ofício<br />

esse jamais aprovado por Dom Philibert, aliás, - e sobretudo,<br />

que Dom Philibert, com 86 anos de idade, humanamente falando<br />

não tinha a capacidade intelectual necessária para dar um juízo<br />

válido a respeito da Aparição. Em vista de tudo isso, Dom<br />

<strong>De</strong>péry sugeriu ao Núncio que Roma tivesse prudência no caso.<br />

Por sua vez, também no início de 1851, o Cardeal <strong>De</strong><br />

Bonald expressava posições rígidas contra Richemont e contra<br />

a Salette. Os partidários do falso barão eram muitos em Lyon.<br />

Entre eles, estava o Pe. Nicod que acabava de publicar um livro<br />

95


segundo o qual Richemont seria o salvador da pátria arruinada<br />

pela revolução de 1789. O Cardeal condenou o livro.<br />

Maximino, na viagem para Ars, tivera contacto com o Pe.<br />

Nicod e Richemont. Além disso, as informações distorcidas<br />

enviadas pelo Pe. Raymond a <strong>De</strong> Bonald a respeito do incidente<br />

entre Maximino e o Cura d´Ars, acirraram a posição do Cardeal<br />

contra a Salette. O Cardeal suspeitava erradamente que Salette<br />

era uma montagem mistificadora para justificar as pretensões do<br />

falso barão de Richemont.<br />

Somava-se a tudo isso, a má vontade dos vendedores de<br />

objetos religiosos junto ao Santuário de Fourvière, em Lyon, que<br />

temiam a possível concorrência da Salette como prejudicial para<br />

seus negócios, e instigavam o Cardeal contra a Salette.<br />

<strong>De</strong> Bonald pensou que, como Arcebispo a quem a Diocese de<br />

Grenoble estava sujeita, devia intervir no caso da Salette. Além<br />

da alegada trama entre Richemont e Salette, aduzia igualmente,<br />

como razão para sua intervenção, a idade avançada de Dom<br />

Philibert. Tudo isso o levava a crer que devia dar especial<br />

atenção <strong>à</strong> questão.<br />

O que ele, <strong>De</strong> Bonald, poderia fazer nesse caso? Como<br />

Cardeal, em sua condição de “Conselheiro do Papa”, enviou,<br />

a 21 de março de 1851, uma carta confidencial a Rousselot, em<br />

Grenoble, perguntando-lhe:<br />

- “Se Marcelino e sua irmã (!...) estariam dispostos a lhe<br />

confiar seu famoso segredo para transmiti-lo a Sua Santidade” (<br />

in STERN p. 54).<br />

Na carta, o Cardeal demonstrava que não sabia nem o nome<br />

certo de Maximino a quem chamava de “Marcelino”, nem que<br />

Melânia não era sua “irmã”, pois, nenhum parentesco entre<br />

ambos havia...<br />

O assunto chegou aos ouvidos de Dom Philibert. Percebeu<br />

que o Cardeal estava extrapolando de seus poderes. Reagiu.<br />

Apressou-se em tomar em mãos o assunto porque receava<br />

maiores pressões sobre os dois videntes por parte do Cardeal,<br />

uma vez que ele pretendia vê-los em Grenoble, em breve.<br />

96


Sem perda de tempo, os videntes foram consultados por<br />

Rousselot e Auvergne, Secretário do Bispado de Grenoble,<br />

sobre se estavam ou não dispostos a revelar o “segredo” ao<br />

Cardeal para que ele os enviasse ao Papa, como se pedia na<br />

carta. Rousselot e Auvergne supunham que <strong>De</strong> Bonald havia<br />

realmente recebido essa incumbência papal.<br />

Maximino disse a Auvergne que aceitaria revelar seu<br />

“segredo” ao Papa se o Papa o exigisse. <strong>De</strong>sconfiado, acrescentou:<br />

- “Vou ver o que ele (o Papa) vai me dizer...” (in STERN, p. 55).<br />

Melânia, muito perturbada, afirmava:<br />

- “A Santa Virgem me proibiu de dizê-lo (o segredo)!”<br />

E durante a noite, em sonhos, repetia:<br />

- “Pedem meu segredo... É preciso dizê-lo ao Papa ou ser<br />

separada da Igreja!” (in STERN, p. 55).<br />

As respostas dadas por Maximino a Pe. Auvergne, durante<br />

a entrevista no Seminário Menor de Rondeau, em Grenoble, no<br />

dia 23 de março de 1851, seguidas das respostas de Melânia<br />

dadas no mesmo dia, no Convento das Irmãs da Providência, em<br />

Corenc, são de uma firmeza e sabor sem par.<br />

Ao final da entrevista, Maximino se mostrou inclinado a<br />

revelar ao Papa seu “segredo”.<br />

Melânia, porém, se manteve em sua recusa.<br />

Três dias mais tarde, Rousselot foi a Corenc para entrevistar<br />

mais uma vez Melânia. Finalmente ela aceitou revelar seu<br />

“segredo” ao Papa, “somente ao papa, e somente quando ele o<br />

ordenar” (cf. STERN, 3, p. 34). Ela o diria de viva voz ou em<br />

carta fechada, confiada a Dom Philibert, para que ele a enviasse a<br />

Roma sem passar por Lyon (in CARLIER p. 133-136). A pastora<br />

desconfiava que o alegado pedido pontifício, mencionado por <strong>De</strong><br />

Bonald, era apenas um pretexto inventado pelo próprio Cardeal<br />

que ambicionava conhecer os “segredos” para saber se tinham<br />

relação com as pretensões de Richemont. Melânia estava certa<br />

ao desconfiar das intenções do Cardeal (cf. STERN, 3, p. 35).<br />

A intermediação do Cardeal, na questão dos “segredos”,<br />

estava descartada.<br />

97


Dom Philibert, sem demora, enviou a <strong>De</strong> Bonald cópia<br />

dessas entrevistas com Melânia e Maximino. Não se tratava<br />

ainda da revelação dos “segredos”, mas, apenas da disposição<br />

dos videntes em revelá-los ou não.<br />

Não tendo recebido nenhuma resposta do Cardeal, o Bispo<br />

de Grenoble, dois meses depois, a 4 de junho de 1851, escreveu<br />

ao Papa Pio IX para lhe explicar como havia procedido nessa<br />

questão. Disse também ao Papa que estava esperando uma<br />

resposta do Cardeal.<br />

Na carta, o Bispo acenou para a questão do “segredo”,<br />

sempre na suposição de que o Papa tivesse pedido para conhecêlo.<br />

Por isso enviou em anexo <strong>à</strong> carta, uma cópia das entrevistas<br />

com os videntes.<br />

Dom Philibert afirmou no texto:<br />

- “Este segredo, que eles sustentaram com tamanha energia<br />

durante quatro anos, de forma tal que nem as promessas nem<br />

as ameaças puderam arrancá-lo deles, tem a ver com coisas tão<br />

importantes que eles somente o confiarão ao Soberano Pontífice<br />

e a pedido expresso de Sua Santidade” (in STERN, p. 55).<br />

Por fim, se pôs <strong>à</strong> disposição do Papa para eventuais explicações.<br />

Nesse meio tempo, <strong>De</strong> Bonald, tendo recebido o texto das<br />

entrevistas enviado por Dom Philibert, a 8 de abril escreveu<br />

a Dom Gousset, Arcebispo de Reims. Como Dom Gousset se<br />

dirigia a Roma para receber o chapéu cardinalício, suplicou-lhe,<br />

por carta, que interviesse junto ao Papa a respeito da revelação<br />

dos “segredos”. Nessa correspondência o Cardeal se referiu, a seu<br />

modo, <strong>à</strong>s declarações dos dois videntes que constavam na cópia<br />

das entrevistas enviada por Dom Philibert. Retomou-as de modo<br />

incompleto e, em relação <strong>à</strong>s de Melânia, até substancialmente<br />

falso. Dizia na mesma carta:<br />

- “Como quero que tudo isso tenha um fim, porque receio<br />

que surjam ilusões ou crendices, e que a religião venha a sofrer<br />

com isso, queira, Excelência, solicitar em meu nome a Sua<br />

Santidade que me autorize a lhe transmitir esses segredos se é<br />

que vale a pena” (in STERN, 3, p. 34).<br />

98


Por que solicitar essa autorização do Papa, se o mesmo Cardeal, na<br />

carta confidencial de 21 de março a Rousselot, havia dado a entender<br />

que, como “Conselheiro do Papa”, já tinha essa incumbência?<br />

Na mesma carta a Dom Gousset, <strong>De</strong> Bonald não mencionou<br />

a recusa formal de Melânia <strong>à</strong> idéia de fazer seu “segredo” passar<br />

por suas mãos de Cardeal antes de ser enviado para Roma. Ia mais<br />

longe ainda ao reservar-se o direito de avaliar os “segredos”, e<br />

só depois transmiti-los ao Papa, “se é que vale a pena” (ib.).<br />

Em meados de junho, o Cardeal recebeu, através da<br />

Nunciatura em Paris, uma carta datada de 22 de maio de<br />

1851, escrita por Dom Fioramonti, Secretário do Papa para os<br />

Documentos Latinos. Era a resposta de Roma ao pedido do<br />

Cardeal, feito a 8 de abril, através de Dom Gousset. Nela não se<br />

mencionava nenhum desejo do Papa em conhecer os segredos.<br />

Finalmente, a 20 de junho, depois de instruções recebidas<br />

da parte do Vaticano através da Nunciatura em Paris, o Cardeal<br />

<strong>De</strong> Bonald escreveu a Dom Philibert para dizer-lhe que os<br />

documentos recebidos de Grenoble, em março, não tinham sido<br />

enviados a Roma por ele simplesmente porque não continham<br />

os “segredos”. Esquecia, porém, de dizer que na carta de 21<br />

de março, enviada a Rousselot, não solicitava os “segredos”<br />

como tais, mas perguntava apenas se os dois videntes estavam<br />

dispostos ou não a revelar os “segredos”.<br />

Na mesma correspondência de 20 de junho, o Cardeal<br />

afirmava ainda:<br />

- “Fui encarregado por Sua Santidade para lhe enviar o segredo<br />

e não outra coisa, o segredo puramente e simplesmente...”.<br />

Pedia, então, que os “segredos” lhe fossem enviados em<br />

carta aberta, sem carimbo.<br />

- “Eu mesmo colocarei meu carimbo e os enviarei ao Papa”<br />

(in STERN, p. 56).<br />

Era tarde demais. Dom Philibert, na carta de 4 de junho, já<br />

havia comunicado ao Papa as disposições dos dois videntes.<br />

Nessa história atravessada, não havia verdadeiramente uma<br />

missão pontifícia. Havia, apenas, uma pretensão cardinalícia.<br />

99


A pressão, exercida por <strong>De</strong> Bonald em nome de uma<br />

incumbência pontifícia inexistente, foi como que o “pecado<br />

original” (STERN, in “Note sur les “secrets de 1851”, polígrafo,<br />

27-01-2001, p. 20) dessa infeliz questão dos “segredos” dos dois<br />

videntes e da autobiografia de Melânia.<br />

Com o objetivo de recolher os ditos “segredos” dos videntes,<br />

Dom Philibert, a 2 de julho de 1851, enviou Dausse, pessoa de<br />

sua confiança, ao Seminário Menor em Rondeau, para buscar<br />

Maximino e conduzi-lo ao Bispado. Recomendava a Maximino<br />

que pensasse bem no que ia fazer.<br />

Chegando ao Palácio Episcopal, Maximino se acomodou junto<br />

a uma escrivaninha. O Bispo introduziu na sala o Cônego Taxis junto<br />

com Dausse para observarem o menino. <strong>De</strong>pois se retirou. Maximino<br />

pôs a mão na cabeça, refletiu por alguns instantes, mergulhou a pena<br />

no tinteiro e sem mais a sacudiu sujando o assoalho.<br />

<strong>De</strong>pois de uma repreensão, tomou novamente a caneta e<br />

começou a escrever com rapidez. Inicialmente redigiu uma<br />

espécie de preâmbulo ao texto a ser escrito. Mostrou-o a Dausse<br />

que o aprovou. <strong>Volta</strong>ndo <strong>à</strong> escrivaninha, se pôs a escrever<br />

novamente com rapidez, sem se deter. Ao final se levantou<br />

e jogou no ar a folha escrita, dizendo que, a partir daquele<br />

momento, se sentia liberado do “segredo”...<br />

As duas testemunhas juntaram o papel e viram que estava mal<br />

escrito, com muitos borrões. A folha foi queimada e Maximino<br />

foi obrigado a reescrever o texto de forma conveniente.<br />

Dom Philibert foi convidado a comparecer na sala. Pediu a<br />

Maximino que pusesse o novo escrito dentro de um envelope a<br />

ser fechado.<br />

Dausse, porém, insistiu junto ao Bispo para que antes lesse<br />

o escrito para evitar que algo de inconveniente fosse levado ao<br />

Papa. O Bispo relutou, mas, acabou lendo o texto. Maximino<br />

assinou-o, fechou-o num envelope sobre o qual foi posto o<br />

carimbo episcopal com as assinaturas das duas testemunhas.<br />

No mesmo dia 2 de julho de 1851, Dausse, a pedido do<br />

Bispo, procurou Melânia em Corenc, com o mesmo objetivo.<br />

100


Ela se negou a segui-lo e se pôs a chorar. Novas tentativas foram<br />

feitas naquele dia, sem efeito. Melânia passou aquela noite de<br />

forma agitada, falando durante o sono, em “anticristo” e “fim de<br />

mundo”.<br />

No dia seguinte, 3 de julho, na presença de Dausse e do<br />

Capelão Gérente, Melânia decidiu atender o pedido. Escreveu<br />

o texto na sala da Capelania do Convento em Corenc. As duas<br />

testemunhas puseram sua assinatura sobre o envelope e o<br />

entregaram a Dom Philibert.<br />

No entanto, algumas horas depois, Melânia, tomada de<br />

tristeza, pediu para falar com Rousselot a quem disse que faltava<br />

incluir mais uma coisa no texto.<br />

A conselho de Rousselot, Melânia escreveu novo texto, a<br />

6 de julho, na Casa das Irmãs da Providência, em presença<br />

do Pe. Auvergne e de Irmã Saint-Louis, Superiora da Casa. Só<br />

interrompeu a escrita para perguntar qual o sentido da palavra<br />

“infalivelmente” e qual a ortografia das palavras “anticristo”<br />

e “cidade depravada”. Assinou o texto. Fechou-o. As duas<br />

testemunhas puseram sua assinatura. O envelope foi confiado a<br />

Rousselot que o levou ao Bispo para ser enviado a Roma.<br />

Acredita-se que a primeira redação feita por Melânia tenha<br />

ficado entre as mãos de Dom Philibert que antes havia lido o<br />

texto de Maximino.<br />

Dom Philibert redigiu uma carta pessoal ao Papa, a ser<br />

enviada com as cartas dos videntes. Nela o Bispo pedia o parecer<br />

do Papa a respeito da Aparição e perguntava:<br />

- ”Se a resposta é favorável, o Santo Padre estaria de acordo<br />

em consentir que o Bispo de Grenoble declare num Mandamento,<br />

que ele julga que essa aparição traz todos os carateres da verdade<br />

e que os fiéis têm razão ao crer nela como verdadeira?” (in<br />

CARLIER, p. 140-141).<br />

Rousselot e Gérin, dois sacerdotes da inteira confiança<br />

de Dom Philibert, foram escolhidos para a missão de levar<br />

pessoalmente a correspondência ao Papa. Rousselot foi<br />

apresentado acima. Gérin merece uma apresentação.<br />

101


Jéan-Baptiste Gérin deu grande contribuição <strong>à</strong> causa da<br />

Salettte. Em tudo dava testemunho de santidade.<br />

Nasceu a 23 de dezembro de 1797, em Roches-de-Condrieu,<br />

no Isère. Era filho de agricultores e bons cristãos. Estudou no<br />

Seminário Maior de Grenoble. Foi ordenado sacerdote a 16 de<br />

julho de 1831, nomeado Vigário em diversas Paróquias a seguir,<br />

e em 1835, designado para o cargo de Pároco da Catedral.<br />

Levantava-se muito cedo e passava longas horas em oração<br />

e no confessionario. Era admirável seu cuidado pelos doentes e<br />

pobres, e seu zelo para com os fiéis.<br />

Juntamente com Pe. Mélin, de Corps, foi um dos primeiros a<br />

crer na Aparição da Salette. Anualmente fazia sua peregrinação <strong>à</strong><br />

Montanha bendita. Participou das solenidades do 1º Aniversário<br />

do maravilhoso evento, conforme ele mesmo narrou (cf.<br />

CARLIER, p. 238-241).<br />

Em seus últimos anos de vida foi atingido pela doença que<br />

o levaria <strong>à</strong> morte. Viveu acamado em seus últimos cinco anos,<br />

com resignação, lucidez e paciência. Tendo recebido os Santos<br />

Sacramentos, morreu na manhã de 13 de fevereiro de 1863. Seu<br />

funeral foi grandioso.<br />

A 6 de julho de 1851, os emissários de Dom Philibert,<br />

Rousselot e Gérin, partiram para Roma. Lá chegaram cinco dias<br />

depois, a 11 de julho.<br />

No dia 14 de julho, <strong>De</strong> Bonald chegou a Grenoble para ver os<br />

dois videntes. Eles relutaram em vê-lo. Recusaram-se a revelarlhe<br />

a “palavra pessoal” que ele chamava de “segredos”, uma<br />

vez que já tinham sido levados ao Papa, o que os dispensava de<br />

nova revelação. O Cardeal alegou que tinha a missão de tomar<br />

conhecimento deles e de enviá-los ao Papa. Os videntes lhe<br />

pediram provas quanto <strong>à</strong> pretendida missão.<br />

O Cardeal nada mais pôde fazer porque, em vista desse<br />

assunto, não tinha recebido nenhum mandato oficial por escrito,<br />

da parte do Papa. Surpreso, se retirou e, durante muitos anos, se<br />

tornou mais arredio ainda em relação <strong>à</strong> Salette (cf. V.H., I, p. 83).<br />

Nesse episódio houve, da parte de <strong>De</strong> Bonald, abuso de poder<br />

102


na tentativa de forçar a consciência dos videntes, e ingerência<br />

indevida num assunto da estrita alçada canônica do Bispo de<br />

Grenoble.<br />

A 18 de julho, Rousselot e Gérin foram recebidos com muita<br />

benevolência pelo Papa Pio IX a quem entregaram as cartas<br />

levadas de Grenoble. Enquanto o Papa as lia, os dois Sacerdotes<br />

ansiosos observavam sua reação. Pensavam que o Papa, a partir<br />

da leitura dos “segredos”, definisse a veracidade da Aparição.<br />

Começando pela carta de Maximino, Pio IX disse que nela<br />

estavam presentes “a candura e a simplicidade de uma criança”<br />

(in STERN, 3, p. 43).<br />

A seguir, depois de ler a carta de Melânia, comentou:<br />

- “Trata-se de flagelos que ameaçam a França. Ela não é<br />

a única culpada, a Alemanha, a Itália, toda a Europa o são e<br />

merecem castigos. Tenho menos receio de Proudhon que da<br />

indiferença religiosa e do respeito humano. Vossos soldados se<br />

põem de joelhos quando me vêem, mas só depois de olharem <strong>à</strong><br />

direita e <strong>à</strong> esquerda para ver se não estão sendo observados por<br />

alguém. Não é sem razão que a Igreja é chamada militante e vós<br />

vedes aqui seu capitão” (in STERN, 3, p. 44).<br />

O Papa acrescentou que devia reler as duas cartas com<br />

serenidade.<br />

Em Roma, Dom Fioramonti revelou a Rousselot que o<br />

Cardeal <strong>De</strong> Bonald não havia recebido nenhuma missão da parte<br />

do Papa, para obter os “segredos” dos videntes.<br />

Pio IX não tomou nenhuma posição a respeito da Aparição,<br />

a partir das cartas dos videntes. Pelo contrário, como os<br />

acontecimentos posteriores o demonstraram, a Santa Sé,<br />

segundo as leis canônicas em vigor, reconheceu o pleno poder e<br />

a ampla liberdade de decisão de Dom Philibert de Bruillard para<br />

se pronunciar definitivamente a respeito do evento. O Bispo se<br />

pronunciou, a seguir, proclamando a autenticidade da Aparição,<br />

não por causa dos “segredos”, mas, apesar deles.<br />

Alguns anos mais tarde, Dom Dépéry, Bispo de Gap, em<br />

maio de 1854, relatou um comentário que Pio IX lhe havia feito<br />

103


a respeito dos “segredos”: as cartas dos videntes enviadas a<br />

Roma, na verdade não continham nada de extraordinário, nada<br />

que se pudesse qualificar de “segredo” (in “Maximin et Mélanie:<br />

les secrets”, polígrafo, p.3).<br />

Gérin voltou a Grenoble no dia seguinte <strong>à</strong> audiência<br />

pontifícia.<br />

Rousselot se deteve em Roma durante mais cinco semanas.<br />

No dia seguinte <strong>à</strong> audiência papal, Rousselot enviou cartas a<br />

Dom Philibert, a Auvergne e a Mélin para relatar-lhes os fatos<br />

ocorridos em Roma durante sua estadia na Cidade Eterna (cf.<br />

textos in BASSETTE, p. 215-223). Na carta enviada a Dom<br />

Philibert, Rousselot, levado pelo “ardor” observado por Pio IX,<br />

afirma que o Papa “por duas vezes nos disse que a Salette lhe<br />

parecia apresentar os caracteres da verdade” (in STERN, 3, p.<br />

44).<br />

Mais tarde Rousselot ponderou:<br />

- “O segredo que levávamos devia ser a vida ou a morte de<br />

La Salette. Sua vida, se o segredo não fosse indigno Daquela que<br />

o confiou; sua morte, se esse segredo fosse nulo ou ridículo, ou<br />

contrário aos ensinamentos da fé” (in STERN, 3, p. 43). Tratavase<br />

de uma preocupação inócua de Rousselot uma vez que Pio IX<br />

não interferiu na questão da veracidade ou não da Aparição.<br />

A pergunta, no entanto, surge: se o conteúdo dos ditos<br />

“segredos” fosse falso, a Aparição também seria necessariamente<br />

falsa?<br />

- “A relação entre a Aparição de 1846 e os “segredos”<br />

levados a Roma em 1851, a priori não era tal que a insignificância<br />

ou o caráter duvidoso e até mesmo apócrifo destes, implicava<br />

necessariamente a rejeição daquela” (STERN, 3, p. 50).<br />

<strong>De</strong> toda forma, as cartas de Melânia e Maximino não<br />

haviam sido escritas no Vaticano, na presença do Papa e sim, em<br />

Grenoble, na presença de Dausse, um ingênuo que, no passado,<br />

se deleitava em contar a Maximino coisas bizarras, levando a<br />

sério as invencionices do menino. É perfeitamente admissível,<br />

portanto, a hipótese de que Maximino, com imaginação pueril<br />

104


para não revelar sua “palavra pessoal”, tenha escrito em seu<br />

texto outra coisa para agrado de Dausse.<br />

Melânia, por sua vez e pela mesma razão, teria simplesmente<br />

retomado conversas carregadas de “profetismo apocalíptico”<br />

que, como Maximino, ouvira no meio do povo. Fugia assim,<br />

também ela, da revelação da verdadeira “palavra pessoal”<br />

recebida da Bela Senhora.<br />

O certo é que os dois videntes resistiram sempre e<br />

energicamente <strong>à</strong> revelação da “palavra pessoal”. A Bela Senhora<br />

lhes pedira que guardassem para si o que somente a eles fora<br />

destinado. As respostas por eles dadas nos interrogatórios e<br />

anotadas pelos primeiros inquisidores, por sua vez nada de<br />

preciso indicam a respeito do conteúdo dos “segredos”.<br />

Tudo considerado se deve dizer que:<br />

- “Há boas razões para se pensar que os segredos ouvidos por<br />

Maximino e Melânia a 19 de setembro de 1846 dizem respeito<br />

aos próprios videntes. É, ao menos, a conclusão tirada a partir do<br />

mês seguinte (<strong>à</strong> Aparição) pelo Pe. Louis Perrin, Pároco de La<br />

Salette e retomada por outros pesquisadores antigos” (STERN,<br />

3, p. 51).<br />

Quando Rousselot voltou de Roma, a 24 de agosto de 1851,<br />

levou consigo alguns presentes do Papa para ele mesmo e para<br />

Dom Philibert. Levou consigo igualmente, a certeza de que o<br />

papa Pio IX e o Cardeal Lambruschini, Prefeito da Congregação<br />

dos Ritos e Secretário de Estado, não se opunham a que o Bispo<br />

de Grenoble desse seu julgamento a respeito do Fato da Salette,<br />

apesar da conhecida oposição do Cardeal de Lyon. Os “segredos”<br />

também não constituíam um empecilho <strong>à</strong> proclamação da<br />

veracidade da Aparição.<br />

O Cardeal Lambruschini, a quem Pio IX repassou as cartas<br />

dos videntes, confessou que conhecia a Salette há mais tempo, e<br />

que, como Bispo, nela acreditava e a respeito dela havia pregado<br />

com bons frutos em sua Diocese (in BASSETTE, p. 228).<br />

As duas cartas contendo os “segredos” de Maximino e<br />

Melânia foram guardadas nos Arquivos do Vaticano. Por longo<br />

105


tempo permaneceram fora do alcance do público. Pensava-se<br />

que estivessem perdidas.<br />

A 3 de novembro de 1874, o Pe. Giraud, Superior Geral<br />

dos Missionários de Nossa Senhora da Salette, ao ser recebido<br />

em audiência por Pio IX, mostrou interesse em saber algo dos<br />

“segredos”. O Papa lhe respondeu:<br />

- “O segredo de La Salette!... Meu filho, o que se deve pensar<br />

a respeito? Se não fizerdes penitência perecerão todos!... Eis o<br />

que se deve pensar a esse respeito!”<br />

Comentando o “ardor” que havia percebido em Rousselot<br />

e Gérin, por ocasião da entrega das cartas dos videntes, Pio IX<br />

disse ao Pe. Giraud que os “segredos” “nada significavam –<br />

coisas vagas que sempre se pode dizer. (...) Neles nada existe<br />

que possa dar provas da Aparição” (in STERN, 3, p. 48).<br />

106<br />

CAPÍTULO XI<br />

E A LUZ SE FEZ<br />

Dom Philibert, antes que Rousselot retornasse de Roma,<br />

se pôs a preparar o texto da declaração oficial a respeito da<br />

autenticidade da Aparição. Muito meditou e orou diante<br />

do Senhor. Conscienciosamente considerou os inúmeros e<br />

extraordinários frutos do evento, a firme devoção a Nossa<br />

Senhora Reconciliadora. Estava fortemente impressionado<br />

com o fluxo das multidões de peregrinos ao local da Aparição,<br />

sobretudo por ocasião de seu 1º Aniversário. Os milagres e as<br />

conversões inúmeras firmavam sua convicção pessoal a respeito<br />

da verdade da Salette.<br />

Tinha, porém, como dever seu, manter a maior prudência na<br />

decisão a ser tomada. Na plena consciência da legislação canônica,<br />

sabia de seu direito e dever de se pronunciar a respeito da graça da<br />

Aparição concedida <strong>à</strong> sua Diocese. Sabia igualmente que a Santa<br />

Sé, em assuntos dessa natureza, tem como princípio não se imiscuir


diretamente, mas, confia ao Bispo da Diocese onde o fenômeno<br />

religioso acontece, a responsabilidade de avaliar a veracidade ou<br />

não do evento e de anunciar sua decisão ao Povo de <strong>De</strong>us.<br />

A Igreja, em sua experiência pastoral histórica, havia sentido<br />

a necessidade de estabelecer orientações para a avaliação de<br />

fenômenos extraordinários. O Concílio de Trento tratou da<br />

questão, mas não concluiu o trabalho. O Papa Bento XIV, no séc.<br />

XVIII, em consonância com o Concílio de Trento, determinou,<br />

então, um conjunto de normas canônicas para esse fim, na obra<br />

intitulada “Da Beatificação e da Canonização dos Santos”. Dom<br />

Philibert bem conhecia tais orientações.<br />

Costuma-se, nessa área, distinguir três tipos de fenômenos:<br />

visões, audições e aparições.<br />

“Visões” são percepções interiores de “figuras” imateriais<br />

para além do âmbito dos sentidos.<br />

As “audições” ou “locuções” traduzem a percepção interna<br />

de “palavras” não pronunciadas por lábios corpóreos nem<br />

captadas pelo ouvido humano.<br />

Os dois fenômenos encontram seu reduto na esfera do mero<br />

“subjetivo”. Eles acontecem no mais íntimo da pessoa. Passam<br />

a fazer parte do mistério mais profundo do ser pessoal. Sua<br />

verdade não é objetivável. Sua aceitação se funda no testemunho<br />

de quem viveu tal experiência.<br />

As “aparições” autênticas são de ordem “objetiva” em<br />

relação ao vidente. O vidente faz a “experiência mística” de ver<br />

diante de si “alguém” que lhe é distinto, com quem se relaciona<br />

de alguma forma, e de quem pode receber “mensagens” de caráter<br />

“particular”. A “aparição” é uma experiência muito pessoal. No<br />

entanto, pode suscitar indicativos reais, objetiváveis, e neles<br />

sustentar-se para comprovação indireta de sua facticidade.<br />

“Visões”, “audições” e “aparições” jamais são consideradas<br />

“dogmas de fé” pela Igreja. Mesmo que de alguma forma toquem<br />

no conteúdo essencial da doutrina da Igreja, nada acrescentam<br />

ao dado revelado. A revelação divina contida nas Escrituras está<br />

encerrada. A fé pública da Igreja tem ali seu inteiro fundamento.<br />

107


Tais fenômenos, com sua “mensagem”, restringem-se ao<br />

limite da “revelação particular”. Poderão ter validade para uma<br />

“pedagogia da fé”, para a retomada da vivência cristã. Jamais,<br />

porém, acrescentarão novos dados de fé <strong>à</strong> “revelação pública”<br />

recebida e professada pela Igreja. Podem ser livremente aceitos<br />

pelos fiéis que neles percebem razões bem fundadas, sobretudo<br />

se tiverem obtido o parecer favorável da autoridade eclesiástica.<br />

São basicamente três as razões que podem expressar a<br />

autenticidade desses fenômenos:<br />

- A credibilidade do vidente. Investiga-se sua honestidade e<br />

coerência de vida, sua inocência pessoal ou eventual ignorância<br />

em matéria religiosa, sua incapacidade moral ou intelectual para<br />

construir uma história fictícia, sua tenaz fidelidade em narrar ou<br />

transmitir coerentemente e sempre o fenômeno místico por ele<br />

vivido.<br />

- A coerência entre o conteúdo da “mensagem” recebida e<br />

a Palavra de <strong>De</strong>us. Todo resquício de contradição entre ambas<br />

indicaria, com certeza, a origem não divina da experiência mística<br />

alegada pelo vidente. O fenômeno será, então, ou fruto de má<br />

intenção ou de perturbações psíquicas do pretenso “vidente”.<br />

- Os bons frutos suscitados pelo ocorrido. Toda árvore boa<br />

dá bons frutos, diz o Evangelho. Se o fenômeno místico vivido<br />

é realmente coisa do céu, dele brotarão maravilhas para a vida<br />

do Povo de <strong>De</strong>us. Elas serão um indicativo mais seguro para<br />

atestar positivamente o fenômeno. No entanto, podem surgir<br />

consequências positivas mesmo que nada de extraordinário<br />

tenha acontecido. Um apelo evangélico, p.ex., a conversão,<br />

mesmo que seja a partir de uma aparição propalada, mas, não<br />

verdadeira, pode suscitar um impacto espiritual que leva pessoas<br />

<strong>à</strong> reconciliação com <strong>De</strong>us e com o próximo. <strong>De</strong>us sabe colher,<br />

mesmo onde não plantou, segundo o Evangelho.<br />

Dom Philibert, ao investigar com rigor o Fato da Salette,<br />

percebeu com clareza a existência dessas caraterísticas tanto<br />

na vida e pessoa de Maximino e Melânia, quanto no conteúdo<br />

teológico-bíblico da Mensagem da Aparição. Podia fundar-se<br />

108


com serenidade nos extraordinários frutos surgidos do evento:<br />

conversões, reconciliação, renovação da vida de fé, concurso de<br />

imensas e devotas multidões em peregrinação ao local bendito,<br />

vida eclesial reavivada nas comunidades cristãs dentro e fora<br />

da Diocese de Grenoble, curas, a fonte milagrosa... Em tudo<br />

isso, Dom Philibert percebeu os indicativos claros e suficientes<br />

para reconhecer a verdade do Fato da Salette. A “experiência<br />

mística”, vivida pelas duas crianças na Montanha da Salette,<br />

superava o âmbito puramente pessoal ou “subjetivo” dos dois<br />

videntes, e se firmava “objetivamente”, embora indiretamente,<br />

nesses inúmeros comprovantes que envolviam o evento.<br />

Dom Philibert podia, pois, e devia se pronunciar.<br />

O texto da declaração episcopal estava maduro. O<br />

Mandamento Doutrinal podia ser publicado. O Bispo, no<br />

entanto, quis esperar que os espíritos se acalmassem, embora<br />

seus auxiliares pedissem pressa.<br />

Dom Philibert fez bom uso desse meio tempo para concluir<br />

a aquisição do terreno de cinco hectares no local da Aparição.<br />

Ali projetava a construção do Santuário.<br />

No retiro do Clero, em Grenoble, a 24 de setembro de 1851,<br />

retiro que concluiria com um Sínodo Diocesano, todos esperavam<br />

o pronunciamento episcopal. O texto do pronunciamento, na<br />

verdade, já estava pronto e assinado com a data de 19 de setembro<br />

de 1851, mas, foi publicado mais tarde, a 10 de novembro. A<br />

25 de setembro, os Padres presentes ao retiro, convictos de sua<br />

crença na Aparição e encorajados pelos resultados da viagem<br />

dos <strong>De</strong>legados do Bispo a Roma para entregar as cartas dos<br />

videntes ao Papa no mês de julho passado, pediram formalmente<br />

ao Bispo que anunciasse de público a autenticidade do evento,<br />

que construísse um Santuário no local da Aparição e convidasse<br />

os fiéis a colaborarem na obra (cf. CARLIER, p. 144).<br />

O pedido favorável trazia duzentas e quarenta assinaturas.<br />

Os contrários eram apenas dezessete. A larga maioria do Clero de<br />

Grenoble era, pois, favorável a Aparição. Uma ínfima minoria,<br />

apenas, se atrelava a dois renitentes opositores, Déléon e Cartellier.<br />

109


Mal terminado o retiro em Grenoble, entre os presentes<br />

circularam alguns textos emanados da oposição.<br />

Um escrito de Pe. Cartellier citava o incidente de Ars como<br />

argumento contra a Aparição, e ironizava a viagem de Rousselot<br />

e Gérin a Roma. Outro, francamente injurioso, foi publicado por<br />

J. Robert, pseudônimo usado pelo Pe. Déleon.<br />

Era previsível, portanto, que a aprovação da Aparição e da<br />

peregrinação da Salette, por Dom Philibert, não pusesse fim<br />

aos atos de oposição. Na verdade, poucas semanas depois do<br />

lançamento da pedra fundamental do Santuário, em maio de<br />

1852, ainda apareceram folhetos ofensivos contra a Salette e<br />

o Bispo. Logo depois, em circular de 16 de junho de 1852, o<br />

Bispo declarou suspensos os autores e difusores de semelhantes<br />

escritos, se fossem Padres.<br />

No final do verão de 1852, a situação se agravou com a<br />

publicação do livro: ”La Salette Fallavaux (Fallax-vallis) ou<br />

La vallée du Mensonge” (“O vale da mentira”), de Donnadieu,<br />

outro pseudônimo do Pe. Claude-Joseph Déléon, antigo Pároco<br />

de Villeurbanne, Paróquia dependente de Grenoble apesar de<br />

situada próxima a Lyon.<br />

Déléon, um caráter violento, não havia aceitado a<br />

transferência de sua Paróquia, algum tempo antes. Os paroquianos<br />

queixavam-se dele.<br />

Em vista do problema, Rousselot, em 1848, lhe ofereceu a<br />

direção do jornal “L´Union Dauphinoise”, de Grenoble. Atrelado<br />

ao partido bonapartista, Déléon logo fez do jornal um órgão<br />

político e lhe deu outro nome, “Voeu National”, a partir de 20 de<br />

fevereiro de 1851. O fato desgostou a administração diocesana<br />

que criou outro jornal sob o título de “L´ami de l´ordre”.<br />

Déléon ameaçava processar tanto o Bispo quanto Rousselot por<br />

tê-lo transferido. Apesar de advertido, circulava publicamente em<br />

trajes civis e mantinha junto a si uma mulher, o que causava escândalo.<br />

Para pôr fim a essa situação, Dom Philibert, a 30 de janeiro de 1852,<br />

suspendeu-o do exercício do ministério sacerdotal na Diocese.<br />

Déléon, então, passou a atacar a Aparição da Salette. No<br />

110


entanto, por meio de seu jornal, expressara alguns meses antes,<br />

simpatia pelo evento.<br />

Tratava-se de pessoa inteligente, mas apaixonada, polêmica.<br />

Sem se intimidar com a ameaça de excomunhão, em abril<br />

de 1853, quando Dom Philibert já havia deixado o cargo,<br />

aproveitou a ocasião para criar problemas para o novo Bispo de<br />

Grenoble, Dom Ginoulhiac, entronizado a 7 de maio seguinte.<br />

Publicou, então, a segunda parte de sua obra. Nela denuncia a<br />

Aparição como fantasiosa. Segundo essa fantasia, a pessoa que<br />

aparecera a Melânia e Maximino não era a Virgem Maria e sim,<br />

uma ex-religiosa da Providência, Mle. <strong>De</strong> Lamerlière, neta de<br />

um Conselheiro do Parlamento de Grenoble. <strong>De</strong> Lamerlière<br />

estaria perambulando pelas montanhas de La Salette no dia da<br />

Aparição e teria se manifestado no cenário do evento.<br />

Essa fábula, inventada por Déléon e carregada de maldade,<br />

não tinha compaixão alguma para com essa mulher de mais de<br />

50 anos de idade, doentia, excêntrica. A lenda veiculava uma<br />

série de inverossimilhanças e impossibilidades, pois, na data da<br />

Aparição, <strong>De</strong> Lamerlière nem se encontrava na região de Corps.<br />

Tinha, pois, um álibi configurado.<br />

Mais tarde o próprio Déléon cinicamente afirmou que nem<br />

ele mesmo acreditava nessa fábula. Segundo ele, tratava-se de<br />

uma brincadeira que havia recolhido num encontro de amigos,<br />

e publicara em seu jornal. Como conseqüência, a família de<br />

<strong>De</strong> Lamerlière processou Déléon (cf. STERN, 3, pgs. 79-85;<br />

CARLIER, pgs. 150-154; pgs. 163-173).<br />

Déléon, na verdade, pouco ou nada conhecia do evento da<br />

Salette. Ele mesmo o confessou em 1851.<br />

Tomando conhecimento de que o Pe. Cartellier combatia<br />

fortemente a Aparição, tornou-se amigo dele e nele encontrou<br />

um informante hábil a respeito da Salette.<br />

Déléon morreu muito idoso, reabilitado por Dom Fava,<br />

novo Bispo de Grenoble. Antes confessou que “em seu coração<br />

sempre acreditou na Salette”, mas, que a combatera para se<br />

vingar da autoridade episcopal.<br />

111


Cartellier era Pároco de Saint-Joseph, em Grenoble. Agia<br />

contra a Salette de maneira oculta. Em 1848 ainda, redigiu<br />

alguns folhetos contra as investigações de Rousselot a respeito<br />

da Aparição. No começo, segundo ele, acreditava na Aparição.<br />

Em 1847 tinha visitado o local do evento. A visita surtiu efeitos<br />

negativos.<br />

As conferências da Comissão que analisou o “Relatório<br />

Rousselot-Orcel” sobre o evento, em novembro-dezembro de<br />

1848, deram-lhe a ocasião de se tornar o chefe da oposição.<br />

Criticou severamente o processo seguido por Rousselot,<br />

atribuindo-lhe coisas que ele jamais disse ou fez. Formara-se<br />

uma caricatura a respeito do Fato da Salette. No fundo, Cartellier<br />

não queria atacar a Salette, mas, a Rousselot.<br />

Rousselot, em 1848, publicou um livro em que desmascarava<br />

os opositores. Cartellier lançou, então, um folhetim chamado<br />

“Réponse”, o primeiro da série. Queria demolir as provas<br />

recolhidas por Rousselot.<br />

<strong>De</strong>pois que os “segredos” foram levados a Roma, Cartellier<br />

pensou que era chegado o momento de enviar ao Papa o texto<br />

intitulado “Mémoire au Pape”. Nele Cartellier afirmava que a<br />

Salette fora inventada, e que causava mal entre os fiéis e entre<br />

os não crentes. Comparava a Salette como a árvore que dá<br />

maus frutos. Insultava a Rouselot e caluniava o Bispo. A obra<br />

retomava a substância dos escritos anteriores e também dos<br />

livros de Déléon.<br />

<strong>De</strong>pois de censuras, Cartellier aparentemente se retratou,<br />

o que lhe permitiu continuar <strong>à</strong> testa da Paróquia Saint-Joseph.<br />

Prosseguiu, porém, em seus ataques <strong>à</strong> Salette, mas não<br />

publicamente (cf. STERN, 3, pgs. 86-94; CARLIER, pgs. 154-<br />

156). Quando ele morreu, a 13 de julho de 1865, em Vichy,<br />

estava redigindo um novo livro contra a Aparição.<br />

Diante das controvérsias publicadas pelos jornais a respeito<br />

da Salette, Dom Philibert, a 10 de outubro de 1851, por carta<br />

proibiu novamente aos Padres de fazerem qualquer publicação<br />

sobre a Aparição sem sua autorização, reservando-se o direito<br />

112


de se pronunciar a respeito do evento (cf. V. H., I, ps. 86-87;<br />

CARLIER p. 145).<br />

Dom Philibert anunciou, então, a promulgação de seu<br />

Mandamento Doutrinal datado de 19 de setembro de 1851.<br />

Ao mesmo tempo, o Bispo Dom Philibert mantinha<br />

relacionamento com Roma, de onde recebia sempre apoio e<br />

simpatia. Sabia da opinião de Roma através de Rousselot que<br />

tinha entrevistado o Cardeal Lambruschini, Prefeito da Sagrada<br />

Congregação dos Ritos.<br />

Por sua vez, Dom Frattini, Promotor da Fé, havia examinado,<br />

a pedido do Papa, os livros de Rousselot sobre o evento da<br />

Salette:<br />

- “La vérité sur l´événement de La Salette”, de 1848;<br />

- “Nouveaux documents sur l´événement de La Salette”, de<br />

1849;<br />

- “Défense de l´événement de La Salette contre des nouvelles<br />

attaques”, de 1851.<br />

Em carta endereçada a Dom Philibert, Dom Frattini<br />

declarou que havia chegado <strong>à</strong> conclusão de que a Aparição<br />

realmente acontecera. Como Promotor da Fé observava, apenas,<br />

que era preciso uma prova legal para o fato, pois o testemunho<br />

das duas crianças não era suficiente. A prova legal consistia em<br />

algum evento miraculoso, devidamente examinado segundo a<br />

legislação canônica, e aduzido como comprovante da Aparição.<br />

Dom Philibert também recebia de Bispos da França,<br />

de Padres e fiéis de toda parte, o pedido para se pronunciar<br />

oficialmente.<br />

Para se assegurar que em nada contrariava as intenções<br />

da Santa Sé, Dom Philibert, por meio de Rousselot, enviou o<br />

projeto do texto de seu Mandamento Doutrinal ao Cardeal<br />

Lambruschini, em Roma. Antes o havia submetido <strong>à</strong> análise de<br />

uma comissão de Cônegos da Catedral e dos Vigários Gerais de<br />

Grenoble.<br />

A 7 de outubro de 1851, o texto voltou de Roma acompanhado<br />

de uma carta do Cardeal Lambruschini. Nela, entre elogios,<br />

113


se pedia uma só coisa: que, por ocasião da publicação do<br />

Mandamento Doutrinal não se cantasse nas Igrejas o TE DEUM,<br />

como o projeto previa, para não se dar ao ato uma solenidade<br />

que implicaria o nome da Igreja de Roma numa decisão da<br />

competência do Bispo Diocesano de Grenoble (cf. texto da carta<br />

do Cardeal in BASSETTE, p. 233).<br />

Dom Philibert, depois de retocar o texto em obediência<br />

<strong>à</strong>s observações feitas, publicou a 10 de novembro de 1851 o<br />

esperado Mandamento Doutrinal. O documento, porém, vinha<br />

com a data de 19 de setembro, quinto Aniversário da Aparição.<br />

O texto, apesar de longo, devia ser lido em todas as 600 igrejas<br />

ou capelas da Diocese, no dia 16 de novembro.<br />

Na primeira parte do texto, Dom Philibert explana o longo<br />

processo seguido na análise do evento da Salette. Evoca o fato da<br />

Aparição, o comportamento dos videntes, a reflexão e oração do<br />

próprio Bispo, a prudência com que ele mesmo devia agir apesar<br />

das pressões para que ele se pronunciasse, a devoção do povo a<br />

Nossa Senhora, os milagres, o fluxo extraordinário de peregrinos,<br />

a construção de capelas dedicadas a Nossa Senhora da Salette em<br />

diferentes Dioceses, o pedido para a construção de um Santuário<br />

na Montanha da Salette, a fonte milagrosa, as contradições<br />

sofridas, o envio dos “segredos” ao Papa, as orientações de Roma,<br />

os trabalhos da Comissão Episcopal. Ao assinalar os trabalhos da<br />

Comissão, Dom Philibert, em relação <strong>à</strong> convicção pessoal quanto<br />

<strong>à</strong> Aparição, declara no próprio Mandamento Doutrinal:<br />

- “Embora nossa convicção já fosse plena e sem sombras ao<br />

final das sessões da Comissão que findaram a 13 de dezembro de<br />

1847, nós não quisemos anunciar um julgamento doutrinal sobre<br />

um fato de tamanha importância” (in BASSETTE, p. 238).<br />

Ao final do documento, depois de apresentar diversos<br />

considerandos, apresenta oito artigos que compõem o coração do<br />

Mandamento Doutrinal e declaram formalmente a autenticidade<br />

da Aparição da Salette. Os três primeiros são os fundamentais:<br />

- “Tendo novamente invocado o Espírito Santo e a assistência<br />

da Virgem Imaculada, Nós declaramos o que segue:<br />

114


Artigo 1º: - Nós julgamos que a aparição da Santa Virgem a<br />

dois pastores, a 19 de setembro de 1846, sobre uma montanha da<br />

cadeia dos Alpes, situada na paróquia de La Salette, do <strong>De</strong>canato<br />

de Corps, traz em si mesma todos os caracteres da verdade, e que<br />

os fiéis têm fundamento para acreditar que é indubitável e certa.<br />

Artigo 2º: - Nós cremos que esse Fato adquire novo grau de<br />

certeza pelo imenso e espontâneo concurso dos fiéis ao local da<br />

aparição, bem como pela multidão de prodígios que se seguiram<br />

ao citado evento, e que é impossível pôr em dúvida um tão grande<br />

número deles sem violar as regras do testemunho humano.<br />

Artigo 3º: - É por isso que, para darmos testemunho de<br />

nosso vivo agradecimento a <strong>De</strong>us e <strong>à</strong> gloriosa Virgem Maria, nós<br />

autorizamos o culto de Nossa Senhora da Salette. Nós permitimos<br />

fazer pregações a seu respeito, e tirar as consequências práticas<br />

e morais que brotam desse grande Evento” (cf. íntegra do<br />

Mandamento Doutrinal, in BASSETTE, p. 234-244).<br />

Do ponto de vista teológico e canônico, a autenticidade da<br />

Aparição estava, portanto, definida pela autoridade eclesiástica<br />

competente, Dom Philibert de Bruillard, Bispo da Diocese de<br />

Grenoble a cuja jurisdição pertencia La Salette.<br />

A Igreja Local de Grenoble, e com ela o mundo cristão,<br />

acolheu com alegria o Mandamento Doutrinal. Dom Philibert<br />

recebeu a adesão multíplice de variadas procedências. Cartas<br />

de apoio de Padres e Bispos a quem tinha enviado cópias do<br />

documento, provinham de inúmeras Dioceses francesas e<br />

estrangeiras (cf. BASSETTE, ps. 248-272).<br />

O Bispo também enviou cópia ao Cardeal de Lyon. O Cardeal<br />

<strong>De</strong> Bonald, em carta resposta de 28 de novembro de 1851,<br />

protestou afirmando que a ele cabia o direito de se pronunciar<br />

oficialmente sobre o assunto, depois de discutido no Concílio<br />

Provincial de Lyon, o que não aconteceu. Em resposta, a 1º de<br />

dezembro, Dom Philibert disse-lhe que a discussão a respeito da<br />

Salette, prevista na pauta do Concílio Provincial de 1850, não<br />

fora efetuada por ordem do próprio Cardeal (cf. BASSETTE, p.<br />

246-248).<br />

115


O Mandamento Doutrinal de Dom Philibert produziu bons<br />

e abundantes frutos em toda parte. Foi traduzido em diversas<br />

línguas. O próprio OSSERVATORE ROMANO, em data de 1º<br />

de abril de 1852, publicou o texto em língua italiana.<br />

Encerrava-se assim a controvérsia, longa e difícil, a respeito<br />

da veracidade do Fato da Salette. O Fato recebeu o aval oficial<br />

da Igreja. Pela primeira vez uma Aparição obteve a declaração<br />

canônica da própria autenticidade. A devoção a Nossa Senhora<br />

da Salette como Reconciliadora se difundiu cada vez mais, com<br />

o apoio de Bispos e a adesão dos fiéis (cf. BASSETTE, pgs.<br />

289-297).<br />

No ano seguinte, 1852, Dom Philibert tomou duas outras<br />

decisões de fundamental importância para a Diocese de Grenoble<br />

e para toda a Igreja: a construção do Santuário e a fundação dos<br />

Missionários de Nossa Senhora da Salette, como adiante se verá.<br />

116<br />

CAPÍTULO XII<br />

“DEIXAI VOSSO SERVO PARTIR EM PAZ”<br />

Tendo assegurado a fundação do Santuário e dos<br />

Missionários, Dom Philibert estava determinado a buscar o<br />

repouso merecido.<br />

Antes de se afastar da Diocese de Grenoble, fez questão de<br />

indicar <strong>à</strong> Santa Sé, um substituto que garantisse a continuidade de<br />

sua obra, sobretudo em relação <strong>à</strong> Salette. O Papa lhe havia dado essa<br />

permissão. O sucessor de Dom Philibert seria Dom Ginoulhiac.<br />

O renome de Pe. Ginoulhiac havia ultrapassado os limites<br />

da Diocese de Aix-en-Provence, onde era Vigário Geral. Dom<br />

Philibert de Bruillard aprendera a estimá-lo. Sem conhecê-lo<br />

pessoalmente, achou que ele seria um grande auxílio para a causa<br />

da Salette. Sabendo de suas qualidades e disposições, enviou-lhe<br />

a 3 de junho de 1852, uma carta confidencial, para lhe propor<br />

que fosse o seu sucessor (cf. CARLIER, p. 160).


Ginoulhiac acabava de publicar sua grande obra: “Histoire<br />

du dogme catholique”. Era um renomado teólogo. Tornar-se-ia<br />

intrépido defensor da causa da Aparição da Salette.<br />

O Pe. Ginoulhiac respondeu com admirável sabedoria<br />

a Dom Philibert (cf. V. H., I, pgs. 148-149). Em sua carta,<br />

manifestou mais disposição para obedecer como auxiliar do que<br />

para comandar como Bispo.<br />

A 21 de setembro, o Imperador Napoleão III passou por<br />

Grenoble. O Bispo, presente na recepção ao Imperador, fez<br />

uso da oportunidade para reforçar junto a ele, o pedido de<br />

afastamento da Diocese de Grenoble.<br />

Dom Pilibert também deixou clara sua intenção a Dom<br />

Dupanloup, numa correspondência, em dezembro de 1852:<br />

- “Apresentando minha demissão e obtendo a nomeação<br />

de um sucessor que me convém sob todos os aspectos, e<br />

particularmente quanto <strong>à</strong> fé na Aparição, preveni maiores males”<br />

(STERN, p.84).<br />

A 21 de dezembro de 1852, numa Carta Pastoral destinada<br />

ao Clero de Grenoble, o Bispo anunciou publicamente sua<br />

decisão. Nela afirmou:<br />

- “<strong>De</strong>pois de ter posto a pedra fundamental para o edifício<br />

destinado a comemorar um acontecimento divino, um orgulho<br />

para a Diocese, e depois de ter criado um corpo de missionários<br />

diocesanos que serão os guardiões do mesmo, creio que minha<br />

longa administração tenha chegado ao fim” (in STERN, p.81).<br />

A consternação foi geral na Diocese, particularmente entre<br />

os Missionários de Nossa Senhora da Salette, já presentes<br />

na Montanha. Pe. <strong>De</strong>naz lhe expôs os sentimentos deles. Em<br />

resposta, o Bispo escreveu:<br />

- “Vós sempre fostes minha consolação. Vós sereis, um dia,<br />

a glória do vosso Bispo. Perseverai em vossa vocação. Anunciai<br />

sempre pelo exemplo, e o Senhor abençoará vosso ministério”<br />

(in V. H., I, p. 119).<br />

Disse-lhes que Dom Ginoulhiac o sucederia e seria muito<br />

devotado <strong>à</strong> obra da Salette.<br />

117


A 29 de dezembro de 1852, alguns meses após o lançamento<br />

da pedra fundamental do Santuário, Dom Philibert solicitou a<br />

demissão oficial de seu cargo.<br />

A 6 de maio de 1853 se retirou para Montfleury, nas<br />

proximidades de Grenoble, junto a um Convento das Irmãs de Sacré<br />

Coeur de Jésus, fundadas por Santa Madalena Sofia Barat de quem<br />

Dom Philibert havia sido Diretor Espiritual nos tempos de Paris. O<br />

Convento havia sido fundado no dia 19 de setembro de 1846, dia<br />

da Aparição da Salette. Ali, Dom Philibert permaneceu até o fim de<br />

seus dias. Celebrava Missa todos os dias, na Capela do Convento.<br />

Após sua demissão, o Bispo recebeu uma honraria<br />

eclesiástica: foi nomeado Cônego de primeira ordem da Basílica<br />

de São <strong>De</strong>nis, perto de Paris.<br />

No dia 6 de agosto de 1856, festa da Transfiguração, dia<br />

do 30º aniversário de sua ordenação episcopal, Dom Philibert<br />

quis celebrar a data na Montanha da Salette. Tinha 91 anos de<br />

idade. Chegou ao local da Aparição a 4 de agosto, carregado de<br />

Corps até o Santuário, por robustos montanheses, numa cadeira<br />

especial. Sua visita anterior tinha acontecido quatro anos antes,<br />

por ocasião do lançamento da pedra fundamental do templo.<br />

A construção do Santuário estava em andamento. O Bispo lá<br />

passou três dias. O tempo magnífico lhe permitiu contemplar o<br />

local. Rezou junto <strong>à</strong> fonte milagrosa e percorreu o caminho feito<br />

pela Bela Senhora.<br />

A 6 de agosto, no Santuário inacabado, celebrou a missa<br />

na presença de numerosos Padres e peregrinos. Na homilia<br />

comentou as palavras do Evangelho da Transfiguração: - “É<br />

bom estarmos aqui!”.<br />

À tarde chegou um grupo de cerca de 80 soldados peregrinos<br />

que lhe pediram a bênção e orações por suas famílias, pelo<br />

Imperador e pelos camaradas mortos na Guerra da Criméia.<br />

O Bispo entoou cânticos populares e distribuiu medalhas aos<br />

soldados. Outros grupos de soldados chegaram <strong>à</strong> noite.<br />

No dia 7 de agosto, pela manhã, Dom Philibert desceu a<br />

montanha, novamente em cadeira especial.<br />

118


Na véspera havia escrito uma mensagem no álbum dos<br />

peregrinos:<br />

- “Eu, abaixo assinado, Bispo emérito de Grenoble,<br />

agradeço a Nosso Senhor e a Santa Mãe pela facilidade com<br />

que fiz essa viagem. Celebrei e preguei por três vezes em dois<br />

dias na igreja inacabada de Nossa Senhora da Salette. Tudo que<br />

vi, ouvi e experimentei confirmou a convicção que tinha desde<br />

meu primeiro Mandamento, sobre a realidade da Aparição da<br />

Santíssima Virgem em 1846, a 19 de setembro. Aos 6 de agosto<br />

de 1856, dia do aniversário de minha consagração episcopal em<br />

1826 e do 91º aniversário de minha idade. Philibert de Bruillard,<br />

Cônego de primeira ordem do Capítulo de Saint-<strong>De</strong>nis...” (in<br />

STERN, p. 90).<br />

Dom Philibert esteve em Grenoble pela última vez, a 5 de<br />

setembro de 1860, para a recepção ao Imperador Napoleão III e<br />

<strong>à</strong> Imperatriz Eugênia.<br />

A doença que o levou <strong>à</strong> morte se declarou a 15 de novembro<br />

de 1860.<br />

A 23 de novembro o Bispo pediu o Viático. O médico o assistiu<br />

durante a noite. No dia seguinte, o Cônego Rousselot, seu amigo de<br />

coração, lhe administrou a Unção dos Enfermos. Rezou o terço em<br />

substituição ao Breviário, conforme autorização de Dom Ginoulhiac.<br />

No dia seguinte, sábado, recebeu a comunhão. No começo da<br />

tarde chegou um telegrama de Roma anunciando-lhe a concessão da<br />

Bênção Apostólica pelo Papa. Em ato de louvor, recitou o TE DEUM<br />

e mandou depositar o telegrama aos pés da imagem da Santa Virgem.<br />

Naquela tarde recebeu a visita do Pe. Berlioz, um dos<br />

primeiros Missionários de Nossa Senhora da Salette. Abençoou<br />

todos os Missionários que havia fundado. O Cônego Gérin<br />

também se fez presente.<br />

Seu estado de saúde piorou. A noite de 28 para 29 de<br />

novembro foi difícil.<br />

A 13 de dezembro recebeu o Viático das mãos de Dom<br />

Ginoulhiac. Estavam presentes Rousselot, Orcel e Douillet,<br />

Padre Sacristão da Catedral.<br />

119


A 15 de dezembro Dom Philibert pediu para rezar a oração de<br />

São Bernardo a Nossa Senhora, o “MEMORARE”. Ao meio dia<br />

entregou sua alma a <strong>De</strong>us enquanto nas Paróquias de Grenoble<br />

se rezava por ele. Tinha pouco mais de 95 anos de idade. Era o<br />

dia 15 de dezembro de 1860.<br />

Acreditava-se que teria um episcopado breve. Permaneceu,<br />

porém, vinte e seis anos <strong>à</strong> frente da Diocese de Grenoble. Viveu<br />

mais oito anos em grande pobreza. <strong>De</strong>ixou apenas uma pequena<br />

quantia para as próprias exéquias.<br />

No sábado, seu corpo foi transportado, para veneração dos<br />

fieis, até a capela do Seminário Maior, em Grenoble.<br />

A 20 de dezembro foi celebrado o solene funeral na Catedral. O<br />

Bispo de Maurienne presidiu o ofício e Dom Ginoulhiac fez a homilia.<br />

No dia seguinte, Dom Ginoulhiac declarou:<br />

- “Apesar de muito ocupado, Dom Philibert jamais se fechava<br />

em seus próprios pensamentos e sentimentos. Tendo um coração<br />

verdadeiramente episcopal, algo do coração de Paulo, a respeito<br />

de quem São Crisóstomo afirmava que era o próprio Coração<br />

de Jesus Cristo, abraçava toda a Igreja em sua afeição e preces.<br />

Acompanhava os caminhos dela com uma solicitude sempre<br />

desperta, sem jamais perder a esperança” (in V. H., I, p. 123).<br />

Por diversas vezes Dom Philibert tinha manifestado o<br />

desejo de ser enterrado no Santuário da Salette. As pressões<br />

da Diocese o demoveram. Por fim, ele mesmo resolveu que<br />

seu corpo devia ser enterrado na Catedral, mas, seu coração,<br />

depois de embalsamado, seria deposto Santuário. Pe. Berlioz e<br />

Pe. Dye o levaram a La Salette, no dia 24 de maio de 1861.<br />

No dia 25 os paroquianos de La Salette subiram em procissão<br />

para acompanhar a preciosa relíquia. Foi depositada em urna<br />

especial, de mármore preto, no interior do Santuário.<br />

Dom Philibert deu ao Santuário o que de mais precioso<br />

podia dar.<br />

- “Tinha amado de tal forma essa Montanha durante a vida,<br />

que era muito justo que seu coração ali repousasse após sua<br />

morte” (in V.H., I, p. 134).<br />

120


CAPÍTULO XIII<br />

A FORTALEZA DO NOVO BISPO<br />

Dom Ginoulhiac foi um verdadeiro continuador da obra de<br />

Dom Philibert. <strong>De</strong>fendeu valorosamente o evento da Salette.<br />

Quando de sua nomeação para a Sé Episcopal de Grenoble,<br />

sua convicção a respeito da verdade da Aparição não estava<br />

inteiramente firmada ainda. Sua convicção quanto <strong>à</strong> devoção<br />

mariana surgida do evento, porém, era forte. Estava igualmente<br />

muito convicto quanto <strong>à</strong> necessidade de levar adiante a construção<br />

do Santuário bem como a organização dos Missionários de<br />

Nossa Senhora da Salette.<br />

Quanto <strong>à</strong> Aparição, como teólogo bem formado, queria<br />

antes estudar o caso pessoalmente.<br />

1 - O BISPO GINOULHIAC<br />

Ginoulhiac nasceu em Montpellier, a 3 de dezembro de<br />

1806. Entrou no Seminário da Diocese onde teve uma carreira<br />

brilhante. Tinha muito amor <strong>à</strong>s ciências e <strong>à</strong> filosofia.<br />

Logo após sua ordenação sacerdotal, a 27 de março de 1830,<br />

foi encarregado de ensinar física e matemática no Seminário.<br />

Entre 1832 e 1833, se tornou um eminente professor de Teologia.<br />

Estudou os Santos Padres da Igreja. Seu autor preferido era Santo<br />

Agostinho. Seus alunos o escutavam com alegria. Em suas aulas<br />

apareciam os germes de sua obra teológica magistral:<br />

- “Histoire du dogme catholique pendant les trois premiers<br />

siècles de l´Eglise et jusqu´au Concile de Nicée”.<br />

Dom Paulinier, que o sucedeu na Sé Episcopal de Grenoble,<br />

foi seu aluno.<br />

<strong>De</strong>z anos após a ordenação sacerdotal, Ginoulhiac foi<br />

nomeado Cônego Honorário. O Arcebispo de Aix-en-Provence,<br />

Dom Bernet, em 1839, o escolheu como Vigário Geral. Queria<br />

promover maior disciplina e melhores estudos para seu Clero.<br />

121


Ali, a par das atividades administrativas, Ginoulhiac<br />

prosseguiu em seus estudos, redigindo sua grande obra. Com<br />

ela Ginoulhiac deu início <strong>à</strong> chamada “Teologia Positiva”<br />

que produziu excelentes frutos. Estudava também a idéia de<br />

“Evolução dos Dogmas”, causa de muitas polêmicas, por ele<br />

mantida, porém, nos devidos limites teológicos. Tornou-se<br />

também eminente mestre de Vida Espiritual.<br />

A 9 de dezembro de 1852, o Pe.Ginoulhiac foi nomeado<br />

Bispo de Grenoble. A 23 de abril de 1853 tomou posse por<br />

procuração. E a 28 de abril prestou o juramento episcopal entre<br />

as mãos do Imperador, numa época em que vigoravam acordos<br />

entre a França e a Santa Sé. Recebeu a unção episcopal das mãos<br />

do Arcebispo Dom Darcimoles, em Aix-en-Provence, a 1º de<br />

maio. Dom Mazenod, Bispo de Marselha, Fundador e Superior<br />

Geral da Congregação dos Oblatos, participou da cerimônia.<br />

No mesmo dia de sua ordenação episcopal Dom Ginoulhiac<br />

assinou sua primeira Carta Pastoral enviada <strong>à</strong> Diocese de<br />

Grenoble (cf. V. H., I, pgs. 150-151). Nela se propunha dar<br />

continuidade ao que se referia ao evento da Salette e <strong>à</strong> construção<br />

do Santuário. A Aparição propriamente dita seria analisada<br />

pessoalmente por ele.<br />

O Pe. Victor Hostachy MS lhe teceu um comentário elogioso:<br />

- “Dom Ginoulhiac era um sábio, e a esse título de sábio<br />

devia ser o homem providencial da Salette, precisamente por sua<br />

ciência teológica, pela firmeza de seu caráter e segurança em sua<br />

percepção” (V. H., I, p. 152).<br />

Tomou posse da Sé Episcopal de Grenoble a 7 de maio de<br />

1853.<br />

122<br />

2 - O TEÓLOGO<br />

Uma vez entronizado como Bispo de Grenoble, Dom<br />

Ginoulhiac se defrontou com opositores da Salettte, sobretudo<br />

os Padres Cartellier e Déléon, dois ferrenhos adversários da<br />

Aparição.


Antes de seu episcopado, Dom Ginoulhiac não tinha<br />

analisado pessoalmente o evento. Tinha, porém, predisposições<br />

favoráveis a seu respeito, a partir das informações obtidas. Lera<br />

o livro de Rousselot, “Un Nouveau Sanctuaire <strong>à</strong> Marie!”, e<br />

admitia que a causa estava encerrada. Homem de vasta erudição<br />

permaneceu, no entanto, por algum tempo, sem manifestar o<br />

próprio parecer como Bispo, sobre o Fato da Salette.<br />

Face <strong>à</strong> mordaz oposição em curso, se exigia uma pronta<br />

atitude da parte de Dom Ginoulhiac.<br />

O Bispo se dedicou, então, ao estudo do “DOSSIER” sobre a<br />

Salette, formado por Dom Philibert, enriquecendo-o com novos<br />

dados. Com sua competência científica de teólogo renomado,<br />

começou a preparar a “Instrução Pastoral e Mandamento” de 4<br />

de novembro de 1854, a respeito da Salette.<br />

Pe. Cartellier já havia escrito a obra intitulada “Mémoire<br />

au Pape”, em maio de 1854. Nela rejeitava o evento da Salette<br />

e esperava que o Papa fizesse o mesmo. Nela também injuriava<br />

Dom Philibert e insultava Rousselot.<br />

Cartellier dizia que a obra fora escrita por 54 Padres e que ele<br />

mesmo fora apenas o secretário. As assinaturas, porém, tinham<br />

sido obtidas de forma fraudulenta. Se fosse verdadeiro o número<br />

de 54 assinaturas de Padres nessa obra, o grupo representaria<br />

uma parcela mínima dos cerca de 800 Padres da Diocese de<br />

Grenoble.<br />

Enquanto no Bispado de Grenoble se examinava o livro,<br />

o próprio Cartellier foi a Lyon com três Padres, para pedir ao<br />

Cardeal de Bonald sua intermediação para o envio da obra ao<br />

Papa. O Cardeal <strong>De</strong> Bonald se dispôs a fazê-lo se Dom Ginoulhiac<br />

o permitisse. <strong>De</strong> qualquer forma, a 8 de julho de 1854, o livro<br />

foi remetido diretamente ao Papa, sem que o Cardeal o tivesse<br />

lido. Mais tarde <strong>De</strong> Bonald lamentou o ocorrido. “Mémoire au<br />

Pape” chegava, portanto, a seu destinatário. O livro também foi<br />

repassado aos Bispos da França e a diversos jornais.<br />

A reação de Roma foi muito severa, exigindo a aplicação<br />

da legislação eclesiástica. Dom Ginoulhiac analisou a obra<br />

123


e elaborou sua refutação depois de interrogar pessoalmente<br />

a Cartellier. A obra foi formalmente condenada por Dom<br />

Ginoulhiac, ao final de sua Instrução Pastoral e Mandamento.<br />

Padre Geslin estava em Roma nessa época. Fazia-se de<br />

importante no ambiente eclesiástico romano, e defensor dos<br />

opositores da Salette. Recebeu o texto de Cartellier e sabendo<br />

que Rousselot também estava em Roma na ocasião, denunciou-o<br />

junto <strong>à</strong> Santa Sé, pedindo que o Tribunal da Inquisição examinasse<br />

sua doutrina e obras.<br />

Dom Fioramonte, sabendo dessas manobras, comunicou<br />

tudo a Rousselot, pedindo-lhe que elaborasse o mais brevemente<br />

possível uma “contra memória” a ser entregue ao Papa. Assim a<br />

defesa da Salette chegou ao Vaticano ao mesmo tempo em que<br />

o ataque.<br />

Nesse momento, Déléon publicou nova obra polêmica com<br />

a inclusão do texto de Cartellier: “La Salette devant le Pape, ou<br />

Rationalisme et hérésie découlant du fait de La Salette, suivi du<br />

Mémoire au Pape”. Déléon era o autor manifesto do livro. A esse<br />

texto pessoal, no entanto, Déléon anexava a obra de Cartellier. A<br />

autoridade de Papa e Bispos era demolida por ambos.<br />

O caso se tornara mais grave. Nessa obra havia afirmações<br />

temerárias, escandalosas e subversivas contra a ordem e o<br />

governo eclesiásticos. Havia difamações odiosas a Dom Philibert<br />

e falta de respeito em relação a muitos membros do Clero.<br />

Déléon foi convocado diante de um tribunal eclsiástico<br />

especial, presidido pelo próprio Bispo Dom Ginoulhiac, para<br />

um processo canônico. Quatro audiências foram realizadas. A<br />

defesa de Déléon foi extremamente fraca.<br />

A 28 de setembro de 1854, Claude Déléon foi suspenso das<br />

funções sacerdotais, com a possibilidade de recorrer da sentença<br />

no prazo de três meses. Dois dias depois, o Bispo condenou o<br />

livro de Déléon (cf. BASSETTE, pgs. 334-337).<br />

A suspensão de Déléon só foi retirada por Dom Fava, em<br />

1883.<br />

Antes de tudo disso, em 1852, acontecera um primeiro caso<br />

124


com Claude Déléon. Por causa da obra “La Salette Fallavaux<br />

(Fallax Vallis) ou La Vallée du mensonge, par Donnadieu”,<br />

Déléon recebeu um interdito episcopal. “Donnadieu” era o<br />

pseudônimo de Déléon que se manifestava como sério opositor<br />

da Salette.<br />

Em 1853, porém, Dom Ginoulhiac suspendeu esta censura<br />

a pedido de um irmão de Pe. Claude, o Pe. Marie-Félix Déléon,<br />

para possibilitar uma morte tranqüila <strong>à</strong> mãe de ambos, desgostosa<br />

por causa das atitudes do filho e sacerdote rebelde, Claude. O<br />

interdito foi suspenso na condição de que o padre assumisse novo<br />

comportamento, voltasse a usar o hábito eclesiástico, afastasse a<br />

mulher que o acompanhava, retirasse do comércio o seu livro, e<br />

pedisse desculpas a Dom Philibert.<br />

Déléon, a contra gosto, aceitou.<br />

Dom Ginoulhiac mais tarde afirmou:<br />

- “Era o mês de maio de 1853. Apenas instalado em nossa Sé,<br />

tivemos que nos ocupar da postura de Déléon. (...) Ele mesmo<br />

se apresentou em nosso Bispado. <strong>De</strong>mos-lhe uma acolhida<br />

benévola para comprometer-se a entrar em si mesmo e merecer<br />

sua reabilitação. <strong>De</strong> início nos inspirou pouca confiança. (...)<br />

Nós nos ocupamos das condições <strong>à</strong>s quais ele devia se submeter<br />

para que nos permitisse reabilitá-lo” (in V.H., I, p.161).<br />

Déléon, no entanto, recaiu no erro. Em 1855, publicou novo<br />

livro, “La conscience d´un prêtre et le pouvoir d´un évêque”,<br />

mais venenoso que o anterior, no qual atacava também o Papa.<br />

Foi novamente interditado em seu ministério sacerdotal, o que o<br />

revoltou mais ainda.<br />

Déléon morreu a 16 de novembro de 1895, aos 98 anos de<br />

idade.<br />

Cartellier, vendo-se encurralado pelo desenrolar dos<br />

acontecimentos, havia solicitado condescendência a Dom<br />

Ginoulhiac, por ato de submissão escrito a 26 de fevereiro de<br />

1854.<br />

Ao submeter-se, Cartellier se desligava de Déléon que o<br />

tratou de traidor. A submissão, porém, era pouco sincera, mas<br />

125


foi o suficiente para que Cartellier permanecesse <strong>à</strong> frente da<br />

Paróquia de Saint-Joseph. Contudo, sempre como crítico mordaz<br />

da Salette. Não escreveu mais nada, porém, a respeito do evento.<br />

Abandonou Déléon <strong>à</strong> sua triste sorte. Cartellier morreu a 13 de<br />

julho de 1865.<br />

A polêmica agressiva de Déléon e Cartellier prosseguia<br />

explorada pela imprensa. Louis Veuillot, o grande escritor, saiu<br />

em defesa de Dom Ginoulhiac.<br />

Dom Ginoulhiac, em meio a todo esse triste clima, solicitou<br />

a orientação de Roma. A resposta liberava o Bispo de Grenoble<br />

para proceder a nova investigação quanto <strong>à</strong> Aparição, se ele<br />

achasse oportuno, para dirimir de uma vez por todas as críticas<br />

ao Mandamento Doutrinal de Dom Philibert a respeito do evento,<br />

em 1851, e também a oposição exacerbada contra a Salette.<br />

Quanto <strong>à</strong> devoção a Nossa Senhora, o Papa lhe pediu que<br />

empregasse todo o zelo em difundi-la. A devoção, já conhecida,<br />

centrava-se na reconciliação.<br />

O Papa PIO IX, que havia recebido em audiência a Rousselot,<br />

estava informado sobre tudo e via com bons olhos o Fato da<br />

Salette.<br />

A 25 de agosto de 1854, através de Pe. Orcel, Dom<br />

Ginoulhiac enviou mensagem a Rousselot que estava em Roma,<br />

para que pedisse ao Papa qual a conduta que devia seguir em<br />

circunstâncias tão difíceis.<br />

Num Breve, assinado por Pio IX, a 30 de agosto de 1854,<br />

foi traçada a conduta que Dom Ginoulhiac devia seguir. Nele o<br />

Papa distinguia duas coisas: o fato da Aparição e a devoção a<br />

Maria Reconciliadora.<br />

Quanto ao Fato da Aparição, o Papa declara:<br />

- “No que se refere ao fato, que foi publicado de muitos<br />

modos, e que foi reconhecido pelo Bispo, vosso predecessor,<br />

a partir de provas e documentos que vós tendes certamente em<br />

mãos, nada se opõe, desde que achardes oportuno, a que possais<br />

examiná-lo de novo e demonstrá-lo publicamente”.<br />

Quanto <strong>à</strong> devoção a Maria Reconciliadora, Pio IX afirma:<br />

126


- “Empregai também todo o vosso zelo, Venerável Irmão,<br />

para que a piedade e a devoção filial para com a Rainha do Céu<br />

e Soberana do Mundo, que é felizmente florescente nesse local,<br />

sejam mantidas fielmente em vosso rebanho e cresçam sempre<br />

mais” (cf. BASSETTE, pgs. 330-332).<br />

Dom Ginoulhiac, a 14 de setembro, anunciou que, tendo sido<br />

encarregado pelo Papa para cuidar do assunto, daria a conhecer<br />

o resultado de sua análise logo que estivesse pronta.<br />

3 - O PRONUNCIAMENTO<br />

Finalmente, a 4 de novembro de 1854, o Bispo Dom<br />

Ginoulhiac publicou o documento fundamental a respeito da<br />

Salette, “Instruction Pastorale et Mandement”. Tão importante<br />

e capital quanto o “Mandamento Doutrinal” de Dom Philibert, a<br />

19 de setembro de 1851, por ele confirmado.<br />

Elaborado com o esmero científico de um Teólogo, e<br />

tendo em vista particularmente a obra “Memoire au Pape” de<br />

Cartellier, Dom Ginoulhiac retomou na “Instrução Pastoral e<br />

Mandamento”, um texto longo e detalhado, ponto por ponto,<br />

os documentos a respeito da Aparição, reunidos de maneira<br />

sistemática a partir do “Dossier” de Dom Philibert.<br />

O novo Bispo de Grenoble comentou as peregrinações, os<br />

milagres, a devoção a Nossa Senhora da Salette. Analisou a vida<br />

dos videntes. Examinou as diferentes objeções levantadas. Diluiu as<br />

críticas de Cartellier. Confirmou inteiramente as decisões de Dom<br />

Philibert em seu Mandamento Doutrinal a respeito da autenticidade<br />

da Aparição. As críticas <strong>à</strong> Aparição e devoção a Nossa Senhora da<br />

Salette eram, pois, definitivamente sepultadas aos olhares da Igreja.<br />

Por fim, no nº 42 da “Instruction Pastorale et Mandement”,<br />

deu um categórico testemunho a respeito do sentido da Aparição:<br />

- “La Salette, não se pode esquecer, não é uma nova doutrina,<br />

ela é uma nova graça” (cf. íntegra do “Instruction Pastorale et<br />

Mandement”, in BASSETTE, pgs. 342-386, e comentários in<br />

STERN, 3, pgs 104-108).<br />

127


Pe. STERN, comentando esse documento de Dom<br />

Ginoulhiac, afirma:<br />

- “Sua argumentação a favor da autenticidade da Aparição, a<br />

respeito da qual finalmente ele mesmo também está convicto, é mais<br />

completa que a de seu predecessor. Por outro lado, deu a entender<br />

que as palavras que circulavam no meio do povo, vistas como se<br />

fossem tiradas dos segredos confiados, a 19 de setembro de 1846,<br />

pela Virgem Maria a Maximino e Melânia, provinham, na realidade,<br />

de fonte inteiramente diferente que a do céu” (STERN, p. 85).<br />

Em relação a Melânia e seu “segredo”, a Instrução Pastoral<br />

de Dom Ginoulhac afirma que é preciso distinguir entre a<br />

Melânia da época da Aparição e a Melânia posterior.<br />

O testemunho da primeira merece confiança porque Melânia,<br />

como Maximino, era uma pessoa simples, inculta, rigorosamente<br />

incapaz de inventar a Aparição.<br />

O testemunho da segunda é diferente porque Melânia, a partir<br />

de 1854, começou a sofrer influências de todo tipo e ouviu falar<br />

de coisas que apareceriam mais tarde em seu famoso “segredo”.<br />

128<br />

4 - O DEVOTO DA SALETTE<br />

A 9 de agosto de 1853, poucos meses após sua posse<br />

como Bispo de Grenoble, Dom Ginoulhiac fez sua primeira<br />

peregrinação <strong>à</strong> Montanha da Aparição. Foi recebido pelos<br />

primeiros Missionários de Nossa Senhora da Salette, cercado<br />

pelo Clero presente e pelos numerosos peregrinos. O novo Bispo<br />

ficou muito satisfeito. Abençoou a primeira pedra da Capela<br />

construída no local da assunção da Bela Senhora.<br />

Em maio de 1854 subiu novamente a Montanha.<br />

Dom Ginoulhiac nutria uma grande devoção a Maria. Teve<br />

a graça de participar das grandiosas solenidades celebradas em<br />

Roma, a 8 de dezembro de 1854, por ocasião da proclamação<br />

do Dogma da Imaculada Conceição, pouco tempo após sua<br />

Instrução Pastoral e Mandamento, publicada a 4 de novembro<br />

do mesmo ano.


A 29 de dezembro, foi nomeado Assistente do Trono Pontifício.<br />

Em 1855, por ocasião da inauguração da Capela dos<br />

Missionários de Nossa Senhora da Salette, na cidade de Grenoble,<br />

Dom Ginoulhiac exaltou, diante de um público numeroso, o<br />

evento da Salette.<br />

A crença plena e madura de Dom Ginoulhiac no Fato da<br />

Salette foi declarada na carta, datada de 29 de agosto de 1855,<br />

por ele dirigida ao Vigário Geral de Orléans, Pe. <strong>De</strong>snoyers,<br />

citando outra carta sua dirigida ao Cardeal de Bonald:<br />

- “Quanto mais cuidadosamente estudo as circunstâncias<br />

do fato da Salette, bem como os documentos que a ele dizem<br />

respeito, mais me convenço de que:<br />

1º: todas as suposições até aqui imaginadas e as que eu<br />

mesmo pude imaginar para explicar a narrativa das crianças fora<br />

de uma intervenção sobrenatural, não têm fundamento e são<br />

inverossímeis;<br />

2º: a prova, para essa mesma intervenção, possui todas as<br />

características e a necessária e suficiente probabilidade para<br />

fundamentar uma devoção cujo objeto é santo, e cujo objetivo é<br />

louvável” (in STERN, 3, p. 354).<br />

No mesmo ano, no Santuário da Montanha, presidiu a<br />

celebração do nono aniversário da Aparição, diante de uma<br />

multidão de sete a oito mil peregrinos, atestando de novo o<br />

evento maravilhoso e declarando sua fé, ao dizer-lhes:<br />

- “<strong>Volta</strong>i a vossos lares, em vossos países, testemunhai por<br />

toda parte a verdade da Aparição de nossa boa Mãe nesse local.<br />

Proclamai lá nossa fé, que todos saibam nossa íntima convicção.<br />

(...) A missão dos pastores findou, a da Igreja começa. Eles<br />

podem se distanciar, se dispersar no mundo, se tornar infiéis a<br />

uma grande graça recebida, nem por isso a Aparição de Maria<br />

será demolida, pois ela é certa e nada de posterior a ela poderá<br />

retroagir sobre ela” (in V. H., I, pg. 204-205).<br />

Dom Ginoulhiac, ao fazer essas afirmações, tinha em mente o<br />

Mandamento Doutrinal de Dom Philibert e sabia muito bem que<br />

os dois videntes estavam tendo comportamentos extravagantes.<br />

129


Em 1856, o Bispo voltou a celebrar a Festa da Salette na<br />

Montanha.<br />

Da Montanha, a 19 de setembro de 1857, enviou uma carta<br />

a todo o Clero de Grenoble. A carta encerrava a série magistral<br />

e decisiva de pronunciamentos dos dois Bispos, Dom Philibert<br />

e Dom Ginoulhiac, em relação <strong>à</strong> Salette. Um estabeleceu a<br />

autenticidade da Aparição e da devoção a Nossa Senhora da<br />

Salette. O outro punha por terra a oposição que não pôde mais<br />

se levantar.<br />

Dom Ginoulhiac apreciava fazer peregrinações até a<br />

Montanha da Salette. A 17 de agosto de 1865 subiu a pé,<br />

acompanhado dos Padres Berthier e Archier. Entretinha-se<br />

com os Missionários que, segundo ele dizia, deviam ser “os<br />

representantes da Igreja junto a Maria”.<br />

A 6 de agosto de 1867 abençoou os sinos do Santuário.<br />

A 19 de setembro de 1869 presidiu o 23º aniversário da<br />

Aparição.<br />

A última peregrinação de Dom Ginoulhiac <strong>à</strong> Salette<br />

aconteceu num tempo muito difícil. Graves acontecimentos<br />

sacudiam a Europa. Tempo de pavor face <strong>à</strong> previsão da Guerra<br />

Franco-Alemã, em 1870. Tempo de expectativa eclesial na<br />

previsão do Concílio Ecumênico Vaticano I, também em 1870,<br />

Concílio do qual Dom Ginoulhiac participou com brilhantismo<br />

teológico.<br />

Durante seus últimos anos de episcopado em Grenoble,<br />

Dom Ginoulhiac acompanhou de perto a construção em curso<br />

do Santuário e anexos, na Santa Montanha.<br />

Dom Ginoulhiac foi Bispo de carregar muitas cruzes em sua<br />

vida episcopal. O Concílio Vaticano I seria mais uma. Preparouse<br />

seriamente para o grande evento eclesial.<br />

No Concílio fez parte da minoria de quem foi o doutor<br />

mais ouvido, e por isso, criticado. Tomou a palavra em muitas<br />

sessões gerais. <strong>De</strong>fendia suas idéias pessoais com veemência e<br />

sincera convicção. Quando se tratou da votação do dogma da<br />

Infalibilidade Pontifícia, deu o voto “non placet”. Explicou que<br />

130


pessoalmente não era contra a Infalibilidade, mas, achava que<br />

o momento não era oportuno para tal definição dogmática. No<br />

entanto, acatou serenamente a decisão desse Concílio realizado<br />

num clima de muita discussão.<br />

Na obra “História dos Concílios Ecumênicos”, p. 367-389,<br />

Giuseppe Alberigo explicita a grande polêmica existente na<br />

ocasião. Não cabe, pois, a acusação de que Dom Ginoulhiac foi<br />

um antiinfalibilista e galicano radical.<br />

Em 1870, o Bispo de Grenoble foi nomeado Arcebispo de<br />

Lyon.<br />

Em relação a essa nomeação, Pe. Victor Hostachy MS faz o<br />

seguinte comentário:<br />

- “Foi uma pequena ironia e uma malícia da Providência<br />

levar Dom Ginoulhiac, o hábil e prudente defensor da Salette,<br />

a suceder na cátedra metropolitana de Lyon, o intempestivo<br />

Cardeal <strong>De</strong> Bonald que sempre foi mais ou menos a pedra de<br />

tropeço para a Aparição de 19 de setembro de 1846. Quando da<br />

tomada de posse e instalação do novo Arcebispo, nem sequer foi<br />

pronunciado o nome do predecessor” (in V. H., I, pg. 224).<br />

O decreto da transferência de Grenoble para Lyon foi assinado<br />

em Roma, a 2 de março de 1870. Sua entronização aconteceu<br />

a 11 de agosto, sem ruído e sem publicidade. Essa discreção<br />

convinha ao caráter do Prelado. As graves circunstâncias da<br />

época também não recomendavam festividades maiores.<br />

Os horrores da guerra e as perturbações da Comuna<br />

trouxeram dias difíceis ao novo Arcebispo de Lyon. Ele não se<br />

contentava em deplorar os males. Com todas as suas forças se<br />

doou ao alívio do sofrimento de seus compatriotas oprimidos<br />

pela guerra, e <strong>à</strong> libertação dos soldados presos na Alemanha.<br />

No Santuário de Fourvière, em Lyon, Dom Ginoulhiac<br />

encontrava a mesma Virgem que tanto havia amado em Salette.<br />

Dois anos após sua entronisação na Cátedra de Lyon, em 1872,<br />

na Festa da Imaculada Conceição, lançou a pedra fundamental<br />

para a construção do novo e grandioso templo dedicado a Maria<br />

no bairro de Fourvière, em Lyon.<br />

131


Com o restabelecimento da paz na Europa, o Arcebispo se<br />

desdobrou no serviço <strong>à</strong>s comunidades de seu rebanho. Em 1873<br />

organizou e presidiu o Sínodo do Clero da Arquidiocese.<br />

Uma obra de sua simpatia, em Lyon, obra que lhe lembrava<br />

a Salette, era a Associação de Nossa Senhora Auxiliadora<br />

transformada em Terceira Ordem Regular de Nossa Senhora<br />

da Salette pelo Pe. Giraud, Superior Geral dos Missionários<br />

Saletinos. Pe. Giraud era grande amigo de Dom Ginoulhiac<br />

graças a quem os Missionários emitiram os votos religiosos<br />

seis anos após sua fundação, formando assim uma Congregação<br />

Religiosa de Direito Diocesano.<br />

As forças de Dom Ginoulhiac diminuíam gradativamente.<br />

Por recomendação de seus médicos, se transferiu de Lyon para<br />

Montpellier, sua terra natal, onde faleceu na manhã de 17 de<br />

novembro de 1875.<br />

Seu corpo foi levado a Lyon e enterrado na Catedral<br />

Primacial da França. Como Dom Philbert havia doado seu<br />

coração ao Santuário da Montanha da Salette, Dom Gonoulhiac<br />

quis doar o seu ao Santuário de Fourvière, em Lyon.<br />

132<br />

CAPÍTULO XIV<br />

OUTROS PASTORES ENVIADOS<br />

Com a transferência de Dom Ginoulhiac para Lyon, a Sé<br />

Episcopal de Grenoble foi confiada a novo Bispo.<br />

1 - DOM PAULINIER<br />

O novo Pastor Diocesano vinha do sul da França. Passou<br />

pouco tempo <strong>à</strong> frente da Diocese de Grenoble. Por isso sua obra<br />

em relação <strong>à</strong> Salette foi restrita.<br />

Participou da festa de 19 de setembro de 1870 na Montanha<br />

da Salette.


<strong>De</strong> Grenoble foi transferido para Besançon como Arcebispo.<br />

Dom Pauliner foi substituído por Dom Fava.<br />

2 - DOM FAVA<br />

Segundo o comentário de Pe. Victor Hostachy MS, Dom<br />

Fava:<br />

- “Completa a trindade dos grandes Bispos da Salette:<br />

1º- Dom Philibert de Bruillard foi, por assim dizer, o Pai,<br />

decretando a Aparição como “indubitável e certa”;<br />

2º- Dom Ginoulhiac, o Filho, que sofreu e combateu para<br />

lhe assegurar o triunfo;<br />

3º- Dom Fava, como o Espírito Santo a quem devotava culto<br />

especial, foi sua chama comunicativa e sopro propagador: é o<br />

Bispo missionário da Salette. (...) Os Missionários de La Salette<br />

tiveram com ele maior amplidão para se difundirem para longe,<br />

e seu Instituto, com sua benevolência episcopal, tornandose<br />

de direito pontifício, tomou uma extensão que lhe permitiu<br />

irradiar-se de Roma por sobre o mundo e “fazer passar” por<br />

toda a parte a mensagem de 19 de setembro de 1846. Dom Fava<br />

bem o mereceu. Dom Philibert de Bruillard foi seu fundador e<br />

definidor. Dom Ginoulhiac foi seu organizador e defensor. Dom<br />

Fava foi o seu eloqüente e ardoroso missionário” (V. H., I, p.<br />

245).<br />

Bruillard, Ginoulhiac e Fava formam, pois, a tríade episcopal<br />

saletina.<br />

Dom Amand-Joseph Fava nasceu em Evin-Malmaison, na<br />

Diocese de Arras, a 10 de fevereiro de 1826. Seu pai, Jean-François<br />

Fava, era agricultor. Possuía um moinho de vento para moer trigo.<br />

Passou seus últimos anos de vida rezando o terço. <strong>De</strong>voto de São<br />

José, Jean-François construiu um pequeno oratório em sua honra.<br />

Nesse oratório, Dom Fava, passados seus oitenta anos de idade, se<br />

recolhia ao final de seus passeios diários.<br />

Jean-François Fava, o pai, casou com Ernestine Lecomte<br />

com quem teve três filhos e quatro filhas. Uma delas se tornou<br />

133


Religiosa. Também tinha duas irmãs Religiosas da Providência.<br />

Com elas, o menino Amand-Joseph aprendeu as virtudes do<br />

devotamento e da abnegação. Duas sobrinhas de Amand-Joseph<br />

também eram Religiosas. Dois sobrinhos eram Padres, auxiliares<br />

de Amand-Joseph depois de ordenado Bispo.<br />

Amand-Joseph entrou no Seminário de Cambrai onde fez<br />

seus estudos seminarísticos. Um de seus irmãos foi morto na<br />

guerra da Algéria. Amand-Joseph fez a promessa de se tornar<br />

missionário na África se o corpo de seu irmão fosse encontrado.<br />

Como o irmão foi encontrado num hospital, Amand-Joseph se<br />

sentiu vinculado <strong>à</strong> sua promessa.<br />

Queria ser lazarista em Paris e partir para as missões. Por<br />

respeito a seus pais que não desejavam ver o filho tão longe<br />

deles, entrou no Seminário Diocesano.<br />

A Providência pôs no caminho de sua vida o Padre <strong>De</strong>sprez<br />

que, admirável por seu devotamento, seria depois nomeado<br />

primeiro Bispo da Ilha da Reunião, e mais tarde, eleito Cardeal.<br />

Sem tardança os dois se puseram de acordo para partirem para<br />

a missão.<br />

O Padre Fava entrou, então, no Seminário do Espírito<br />

Santo em Paris, a 27 de setembro de 1850. Teve como Diretor<br />

Espiritual o Pe. Libermann, Fundador da Congregação dos<br />

Padres do Espírito Santo.<br />

A 12 de janeiro de 1851 foi ordenado Sacerdote por Dom<br />

<strong>De</strong>sprez. A 7 de março seguinte, o novo Bispo e o neo-sacerdote<br />

embarcaram para a colônia francesa de Saint-<strong>De</strong>nis onde<br />

chegaram a 21 de maio. Ali, o Pe. Fava foi inicialmente nomeado<br />

Vigário da Catedral, depois Secretário do Bispo. Quatro anos<br />

mais tarde, a 31 de dezembro de 1855, ele foi nomeado Vigário<br />

Geral da Diocese. Como Padre, Fava cuidava dos leprosos e dos<br />

escravos libertados pelo Governo, mas, tratados como párias.<br />

Em 1857, Dom <strong>De</strong>sprez foi chamado de volta <strong>à</strong> França,<br />

para o Bispado de Limoges. Levou consigo o Pe. Fava. Fava,<br />

porém, sentia um irresistível chamado para as missões. Partiu,<br />

então, para a Ilha da Reunião, lá chegando a 23 de outubro de<br />

134


1857. Fez uma viagem missionária pela costa oriental da África:<br />

Madagascar, Moçambique, Ilhas Seichelles, Zanzibar. Voltou a<br />

Saint-<strong>De</strong>nis, na Ilha da Reunião, a 3 de outubro de 1858. Sentiu<br />

a necessidade urgente de ali anunciar o Evangelho.<br />

Com essa preocupação voltou <strong>à</strong> França, desembarcando<br />

em Marselha a 6 de outubro de 1859. Alguns dias depois foi<br />

recebido em audiência por Pio IX e pelo Cardeal Banabo,<br />

Prefeito da Propaganda Fidei. <strong>De</strong>les recebeu o título de Vice-<br />

Prefeito Apostólico de Zanzibar. Recebido por Napoleão III,<br />

dele recebeu apoio para seu projeto missionário.<br />

<strong>De</strong> volta a Saint-<strong>De</strong>nis, o Pe. Fava fez novas viagens a<br />

Zanzibar e, a 22 de dezembro de 1860, estabeleceu nesse país<br />

uma residência com dois Padres e seis Religiosas. Celebrou<br />

o Natal pela primeira vez nessas terras. Abriu em sua própria<br />

residência um abrigo para doentes nativos, uma sala para pronto<br />

socorro, um hospital para os europeus e uma pequena farmácia.<br />

Criou escolas para as crianças da cidade.<br />

Ao final de 1862 foi obrigado a deixar Zanzibar e retornar a<br />

Saint-<strong>De</strong>nis onde continuava sendo seu Vigário Geral. Na Ilha<br />

da Reunião percorria, a cavalo ou a pé, as vilas a serviço da<br />

pastoral.<br />

A Ilha de Martinica, nas Antilhas, América Central, estava,<br />

porém, sem Bispo havia mais de dez anos. Graças <strong>à</strong> influência<br />

de Dom Guibert, Bispo de Tours, o Pe. Fava foi nomeado como<br />

Bispo dessa colônia francesa.<br />

Pe. Fava deixou a Ilha da Reuinão a 8 de abril de 1871. Os<br />

grandes serviços ali prestados lhe valeram a Medalha da Legião<br />

de Honra.<br />

A Providência quis que seu Bispo Consagrante fosse<br />

Dom <strong>De</strong>sprez, Arcebispo de Toulouse. A ordenação episcopal<br />

aconteceu a 25 de julho de 1871, na Catedral de Montauban.<br />

<strong>De</strong>pois, Dom Fava fez uma visita <strong>à</strong> terra natal, Evin. Seu velho<br />

pai de 84 anos se ajoelhou diante do filho Bispo para lhe pedir a<br />

bênção. Dom Fava o soergueu e lhe disse:<br />

- “Meu pai, abençoe antes o seu filho, depois eu o abençoarei!”<br />

135


Ansioso por voltar <strong>à</strong> missão, a 4 de outubro de 1871<br />

desembarcou na Martinica onde o povo o acolheu com festa.<br />

Seu apostolado na ilha foi muito fecundo.<br />

Em 1874, esse infatigável caminheiro do Evangelho fez<br />

uma peregrinação a Jerusalém. Foi o primeiro Bispo francês a<br />

visitar os Lugares Santos depois da conquista deles por Saladin.<br />

Na volta se deteve, por alguns dias, em Roma e em Marselha.<br />

O Arcebispo de Toulouse, Dom <strong>De</strong>sprez, mais uma vez<br />

interferiu no caminho de Dom Fava para uma nova missão. Dom<br />

Fava, acometido por uma doença tropical, foi chamado de volta<br />

<strong>à</strong> França para ser Bispo de Grenoble, e nomeado para tanto, a 3<br />

de agosto de 1875.<br />

A 29 de agosto deixou a Martinica e se dirigiu a Grenoble<br />

onde tomou posse da Sé Episcopal a 18 de novembro seguinte.<br />

Foi uma grande surpresa para Grenoble ver um Bispo vir de tão<br />

longe para estar a serviço da pastoral dessa Diocese. Um Bispo<br />

missionário!<br />

Em Grenoble se pôs logo ao trabalho pastoral intenso. Por<br />

cinco vezes visitou todas as Paróquias da Diocese.<br />

La Salette não tinha ainda um acesso fácil. Dom Fava,<br />

porém, a 13 de junho de 1876 subiu a Montanha a pé, com a<br />

ajuda de um bastão. Os peregrinos presentes o receberam com<br />

alegria. Visitou o local da Aparição e o Santuário.<br />

No 30º aniversário da Aparição, a 19 de setembro de 1876,<br />

Dom Fava quis solenizar de modo especial a data. Na ocasião<br />

publicou sua primeira e admirável Carta Pastoral sobre a<br />

Salette. Em dois dias de estadia na Montanha, fez oito sermões<br />

aos peregrinos, mais a pregação da Via Sacra numa das noites<br />

ali passadas. No dia aniversário da Aparição celebrou Missa<br />

Pontifical.<br />

Diz Pe. Hostachy:<br />

- “Como apóstolo verdadeiro, apóstolo da caridade, apóstolo<br />

com a Virgem e como a Virgem, Dom Fava se prenunciava<br />

como o Bispo-Missionário por excelência de Nossa Senhora da<br />

Salette” (V. H., I, pg. 270).<br />

136


O episcopado de Dom Fava foi repleto de numerosas lutas<br />

levadas contra os inimigos da religião, particularmente contra a<br />

maçonaria (cf. V. H., I, pgs. 313 s).<br />

<strong>De</strong>ixou-se impregnar pela Mensagem de Nossa Senhora em<br />

Salette. Sua obra episcopal se tornaria como que um comentário<br />

vivo dessa Mensagem. Em suas Cartas Pastorais retomava os<br />

diferentes temas presentes nas palavras da Bela Senhora. Até<br />

o fim de suas forças, permaneceu fiel a si mesmo, ao Papa e a<br />

Nossa Senhora da Salette. Leão XIII tinha muito apreço por ele.<br />

Em 1896 foram celebradas duas festividades: o<br />

cinqüentenário da Aparição da Salette e o jubileu de prata de<br />

episcopado de Dom Fava. Os dois jubileus coincidiam com 14º<br />

Centenário do batismo de Clóvis, Rei dos Francos, em Reims.<br />

Na Carta Pastoral para a Quaresma de 1896, Dom Fava<br />

lembrou que Grenoble tivera um papel importante na conversão<br />

de Clóvis, de Santa Clotilde, sua mãe, e dos francos. Clotilde<br />

nasceu em Vienne, Diocese de Grenoble.<br />

No dia cinqüentenário da Aparição, Dom Fava, aos 70 anos<br />

de idade, foi ao Santuário da Salette. Diante de uma multidão de<br />

cinco mil peregrinos anunciou a concessão de indulgências por<br />

parte de Leão XIII aos participantes da peregrinação.<br />

Os festejos do jubileu episcopal tiveram a presença de<br />

trezentos Padres. O presente maior que Dom Fava recebeu foi o<br />

pálio episcopal remetido pelo Papa através do Cardeal Coullié,<br />

Arcebispo de Lyon. Obteve ainda de Leão XIII a concessão de<br />

indulgência plenária para todos os que visitassem a Basílica da<br />

Salette durante o ano jubilar.<br />

Durante o mês de julho de 1897 passou diversos dias no<br />

Santuário, acolhendo os peregrinos. Abençoou o grande sino da<br />

torre da Basílica, a 17 de julho. Ao grave som do sino se juntavam<br />

as vozes alegres dos seminaristas da Escola Apostólica fundada<br />

junto ao Santuário no ano da coroação da estátua de Nossa Senhora<br />

Reconciliadora, 1879. A Escola era florescente e passara a funcionar<br />

em Saint-Joseph, perto de Corps. Na cerimônia estavam presentes o<br />

Pe. Jean Berthier e o Pe. Archier, fundadores da Escola.<br />

137


Dom Fava viveu uma de suas últimas e grandes alegrias no<br />

mês de agosto de 1899, quando um grupo de Missionários de<br />

Nossa Senhora da Salette partiu em missão para Madagascar.<br />

O venerando Bispo já sentia a fadiga recaindo sobre seus<br />

ombros. Continuava, no entanto, em sua atividade pastoral. No<br />

dia 16 de outubro de 1899 abençoou a tipografia da Casa da<br />

Boa Imprensa, em Grenoble, uma das mais belas obras de seu<br />

ministério episcopal. Foi seu último ato como Bispo.<br />

No dia seguinte, a 17 de outubro, <strong>à</strong>s cinco horas da manhã,<br />

foi encontrado morto em seu apartamento, por causa de uma<br />

embolia. Tinha 73 anos de idade. Seu funeral foi impressionante.<br />

O Pe. Hostachy escreveu:<br />

- “Dom Fava concluiu excelentemente a bela trajetória de seu<br />

destino no apostolado missionário e no amor da misericordiosa<br />

Virgem Reconciliadora da Salette” (V. H., I, p. 346).<br />

138


II PARTE<br />

O NOVO MANDAMENTO<br />

1 - O Santuário<br />

CAPÍTULO I<br />

UM TEMPLO SOBRE ROCHA<br />

A 31 de janeiro de 1849, Pe. Louis Perrin, Pároco de La Salette,<br />

em carta a Dom Philibert, expressou o desejo de construir na<br />

Montanha da Salette, um Santuário servido por uma Comunidade<br />

residente no local da Aparição. Com esse intento, recolhia<br />

donativos, antecipando-se ao ato episcopal de 1852. Antes de Pe.<br />

Louis, Dom Guibert havia manifestado esse mesmo desejo.<br />

No entanto, o Bispo não estava tão apressado. A investigação<br />

do evento ainda estava em curso, e era preciso também garantir<br />

o terreno para o projeto.<br />

Por carta de 18 de abril de 1849, Dom Philibert pediu ao<br />

Pe. Louis que consultasse a Câmara Municipal de La Salette a<br />

respeito da aquisição do terreno. As negociações foram longas.<br />

A 26 de outubro de 1851, a área de cinco hectares finalmente foi<br />

adquirida em nome de Dom Philibert e registrada no Tabelionato<br />

de Corps. A 23 de março de 1852, Dom Philibert assinou ato<br />

de doação irrevogável do terreno <strong>à</strong> Diocese de Grenoble.<br />

A propriedade, no entanto, só foi delimitada a 13 de maio de<br />

1852. O terreno compreende o local da Aparição, do Santuário<br />

e hospedaria, do Cemitério e dos arredores no Monte Planeau.<br />

Tomadas todas as providências, o contexto estava preparado<br />

para as novas decisões: a construção do Santuário e a fundação<br />

dos Missionários de Nossa Senhora da Salette.<br />

Dom Philibert de Bruillard, então, a 1º de maio de 1852,<br />

publicou o novo Mandamento. Logo de início o Bispo comenta:<br />

139


- “<strong>De</strong>sde a origem do cristianismo raramente aconteceu que<br />

um Bispo tenha tido a ocasião de proclamar a verdade de uma<br />

aparição da Augusta Mãe de <strong>De</strong>us. Essa felicidade, o Céu nô-la<br />

reservou sem que nós pessoalmente a merecêssemos, como prova<br />

sensível de sua misericordiosa bondade para com nossos bem<br />

amados diocesanos. É uma missão infinitamente honrosa que nos<br />

foi dado cumprir; é um dever sagrado que tínhamos a cumprir; é<br />

um direito que nos é conferido pelos santos Cânones dos quais<br />

tivemos que fazer uso, sob pena de uma resistência culpável <strong>à</strong> voz<br />

do céu e de uma oposição lamentável aos desejos que nos eram<br />

expressos de todos os lados” (in BASSETTE, p. 275).<br />

<strong>De</strong>pois de enaltecer a graça da Aparição e assinalar a grande<br />

repercussão do Mandamento Doutrinal de 19 de setembro de<br />

1851, Dom Philibert acrescenta:<br />

- “Entretanto, caros irmãos, nós só cumprimos uma parte da<br />

grande missão que o céu nos confiou. Outra, não menos bela, não<br />

menos importante para a glória de <strong>De</strong>us, para a honra da Virgem<br />

Imaculada, para a felicidade de nossa Diocese e para o bem da<br />

França toda, nos resta cumprir. Para cumpri-la, não pouparemos<br />

nem preocupações, nem trabalho, nem sacrifícios, muito felizes<br />

por consagrar o resto de nossa longa carreira <strong>à</strong> fundação de nova<br />

peregrinação em honra Daquela que é tão justamente proclamada<br />

como Socorro dos cristãos, Refúgio dos pecadores, Consoladora<br />

dos aflitos, Saúde dos enfermos” (in BASSETTE, p. 276).<br />

Relembra, a seguir:<br />

- “A peregrinação de Nossa Senhora da Salette já existe e<br />

desde a aparição da bem aventurada Virgem Maria está em plena<br />

atividade. Até agora, é verdade, só há uma pobre capela de tábuas,<br />

sem padres especialmente encarregados de lhe prestar serviço.<br />

Todos sentiam, porém, a necessidade de se construir um templo<br />

nesse lugar privilegiado. (...) Vós o compreendestes, estimados<br />

irmãos: trata-se agora da construção de um santuário em honra<br />

de nossa augusta Mãe, sobre a montanha privilegiada que Ela se<br />

dignou honrar com sua presença, sobre a qual ecoou sua celeste voz.<br />

Esse santuário deve ser digno da Rainha do céu e um testemunho<br />

140


de nosso reconhecimento para com Ela. Digno de nossa Diocese<br />

privilegiada, da piedosa colaboração que nos encanta, e das<br />

generosas ofertas que chegam até nós. Pois, digamo-lo, não é para<br />

uma localidade mais ou menos restrita, é para o universo que nós<br />

construímos” (in BASSETTE, p. 276-277).<br />

<strong>De</strong>pois acrescenta:<br />

- “Eis-nos chegados ao belo mês de maio, esse mês<br />

consagrado de modo especial ao culto de Maria. (...) Pois bem,<br />

queridos irmãos, é esse mês que escolhemos para a bênção e<br />

lançamento da primeira pedra do Santuário de Nossa Senhora<br />

da Salette. (...) Convidamos um de nossos mais caros colegas<br />

a fazer o que nos seria tão gratificante fazermos nós mesmos,<br />

pessoalmente, se, mais do que a idade, os sofrimentos habituais<br />

no-lo permitissem. (...) Nós vos convidamos igualmente, nossos<br />

queridos e bem amados irmãos, a comparecerdes sobre a Santa<br />

Montanha, e a aumentar com vossa piedosa presença, a grandeza<br />

desse dia que deve alegrar o céu e fazer a terra estremecer de<br />

alegria” (in BASSETTE, p. 277-278).<br />

Após a publicação do Mandamento Doutrinal de Dom<br />

Philibert, o Pároco de La Salette, Pe. Perrin, logo contratou um<br />

mestre de obras para explorar a montanha em busca de pedras<br />

para o Santuário.<br />

O Bispo marcou a data da bênção e lançamento da pedra<br />

angular do Santuário para o dia 25 de maio de 1852, e convidou<br />

Dom Chartrousse, Bispo de Valence e ex-Vigário Geral de<br />

Grenoble, para presidir a cerimônia uma vez que ele mesmo,<br />

em razão da idade e do estado de saúde, teria dificuldade de se<br />

fazer presente. No entanto, apesar de seus 86 anos de idade, Dom<br />

Philibert participou da cerimônia, no alto da Montanha da Salette.<br />

Na véspera da solenidade, e durante a noite, chegavam<br />

multidões de peregrinos. Às 8hs00 de 24 de maio, Dom Philibert<br />

partiu de Grenoble. A viagem de Dom Chartousse ocorreu quase<br />

simultaneamente.<br />

Dom Philibert chegou a Corps <strong>à</strong>s 4hs00 da tarde do mesmo<br />

dia. A cidade inteira, alvoroçada, se reuniu na praça para aguardar<br />

141


a chegada do Bispo. Os componentes da Guarda Nacional<br />

sediada em Corps, a cavalo e ao toque de tambor, foram recebêlo<br />

na entrada da cidade. Foi saudado pelo Comandante.<br />

A cavalo, Dom Philibert subiu até a Paróquia de La Salette<br />

onde passou a noite. Na manhã seguinte, <strong>à</strong>s 5hs45 de 25 de<br />

maio, prosseguiu a viagem com intrepidez e a cavalo mais uma<br />

vez, até o alto da Montanha da Aparição. Pelas 8hs00 lá chegou,<br />

sendo aclamado pelos aproximadamente quinze mil peregrinos<br />

ali congregados. Essa era a primeira visita <strong>à</strong> “sua montanha<br />

querida”, como dizia. Celebrou a Missa no oratório em madeira.<br />

Meia hora após, chegou Dom Chartrousse.<br />

A cerimônia principal devia começar <strong>à</strong>s 9hs00. A chuva<br />

causou problemas. Às 10hs00, porém, Bispos e Padres presentes<br />

seguiram em procissão até o local do futuro Santuário. Um<br />

simples altar de madeira ali fora instalado. A procissão foi<br />

recebida pelo Pe. Burnoud, Superior dos Missionários.<br />

O momento mais emocionante foi quando os dois Bispos<br />

tomaram a colher de pedreiro confeccionada em prata, marcada com<br />

o brasão do Bispado de Grenoble, carregada de cimento feito com<br />

mármore escuro da Montanha, e assentaram a pedra angular, depois<br />

de solenemente abençoada pelo Bispo de Valence. A pedra foi posta<br />

na base da grande coluna do coro, no lado do Evangelho, no interior<br />

do Santuário. Numa caixa de chumbo foram postas relíquias de São<br />

Francisco de Sales e de Santa Joana de Chantal, moedas e medalhas<br />

com a data do ano de 1852, cartas de Comunidades Religiosas e um<br />

pergaminho com a ata da cerimônia, escrito em latim, assinado por<br />

Dom Philibert (cf. texto in BACCELLI, p. 237).<br />

Apesar do mau tempo, a multidão se mantinha imóvel, atenta<br />

e devota. A cerimônia, presidida por Dom Philibert, foi seguida<br />

de Missa celebrada por Dom Chartrousse. No Evangelho, o Pe.<br />

Sibillat, um dos primeiros Missionários de Nossa Senhora da<br />

Salette, fez brilhante sermão. Ao final da celebração, seguida<br />

da Bênção do Santíssimo Sacramento, começaram diferentes<br />

procissões por Paróquias, entoando cantos de louvor <strong>à</strong> Virgem<br />

Maria. A cerimônia se prolongou até o meio dia.<br />

142


Os dois Bispos partiram, após um almoço frugal. Como a<br />

chuva fria não cessava e a lama tomava conta do caminho, Dom<br />

Philibert não podia descer a Montanha a cavalo. Homens fortes<br />

de La Salette se encarregaram de levá-lo em maca improvisada,<br />

assentada sobre seus ombros, na descida até Corps.<br />

O dia foi vivido por Dom Philibert como “o coroamento de<br />

sua vida episcopal”, o mais belo de sua existência.<br />

Nesse mesmo dia 25 de maio, Dom Philibert recebeu uma<br />

carta enviada pelo Pe. Mélin, de Corps, a respeito do Pe. Viollet,<br />

ex-Pároco de Corps. Por razões pessoais, esse Padre havia sido<br />

suspenso do exercício do ministério sacerdotal. Vivia na cidade<br />

como fator de divisão. Pe. Mélin, na carta, solicitava a readmissão<br />

de Viollet ao exercício do sacerdócio. O próprio Viollet sentia a<br />

necessidade de se reconciliar com a Igreja. Dom Philibert, no<br />

mesmo dia, atendeu a solicitação de Pe. Mélin. Viollet tornou-se<br />

um homem novo. Era uma nova graça concedida a Corps, local<br />

de inúmeras conversões por causa da Aparição.<br />

Para dar fecundidade religiosa ao Santuário, Dom Philibert<br />

solicitou favores espirituais <strong>à</strong> Santa Sé: indulgências, missa<br />

votiva para a Virgem Maria, e outros. A favor da Confraria de<br />

Nossa Senhora Reconciliadora da Salette, pediu a confirmação<br />

desse nome, e sua elevação a Arquiconfraria. A Santa Sé<br />

atendeu benevolamente a esses pedidos. O Breve Pontifício de<br />

7 de setembro de 1852, pelo qual se erige a Arquiconfaria, é o<br />

documento mais antigo da Santa Sé a usar o qualificativo de<br />

Reconciliadora em relação a Nossa Senhora da Salette. Tornarse-ia<br />

o título litúrgico dessa devoção mariana. O Indulto da<br />

Santa Sé, a 2 de dezembro de 1852, autorizou a celebração da<br />

memória da Aparição no dia 19 de setembro de cada ano, em<br />

todas as igrejas da Diocese.<br />

O aniversário da Aparição de 1852 foi celebrado de forma<br />

edificante. Na véspera, <strong>à</strong> noite, inúmeros peregrinos rezaram a Via-<br />

Sacra no local da Aparição. A cada estação o Pe. Sibillat fazia uma<br />

pregação. Missas foram celebradas ininterruptamente desde a meia<br />

noite até após o meio dia. Os confessionários foram tomados pelos<br />

143


penitentes. A missa solene foi celebrada em altar campal pelo Pe.<br />

Rousselot. Mais de 10.000 pessoas estavam presentes. No sermão,<br />

Pe. Sibillat anunciou que Pio IX havia concedido privilégios<br />

especiais <strong>à</strong> celebração da Salette e que a festa da Aparição estava<br />

sendo celebrada pela primeira vez em toda a Diocese.<br />

A 29 de dezembro de 1852, Dom Philibert pediu demissão<br />

de seu cargo de Bispo de Grenoble. Dom Ginoulhiac foi seu<br />

sucessor, a partir do início de 1853. O novo Bispo nomeou uma<br />

Comissão de Obras dirigida pelo arquiteto Alfred Berruyer, para<br />

fazer as plantas e dirigir os trabalhos de construção do Santuário,<br />

uma pesada tarefa realizada a 1.800 metros de altitude. Berruyer<br />

era um arquiteto que servia <strong>à</strong> Diocese de Grenoble.<br />

Pe. Archier, depois primeiro Superior Geral dos Missionários<br />

de Nossa Senhora da Salette, foi encarregado de administrar as<br />

obras. Fora as pedras, retiradas do local, o resto do material de<br />

construção subiu a montanha em lombo de mulas, num percurso<br />

de doze quilômetros de íngremes trilhas. Nessa obra trabalharam<br />

120 operários. Os trabalhos se realizaram entre 1852 e 1865. Em<br />

setembro de 1853 o Santíssimo Sacramento foi transladado, em<br />

procissão formada pelos Padres e operários, da pobre capelinha<br />

de madeira para um novo pavilhão e mais tarde para o próprio<br />

Santuário. Em outubro de 1860 o templo já estava coberto. As<br />

naves foram abertas em 1863, e o Santuário foi franqueado ao<br />

público em 1865.<br />

O lugar da Aparição foi conservado em seu estado natural.<br />

Em 1864 foram instaladas as belíssimas estátuas que representam<br />

a Aparição, feitas em bronze e doadas pelo Conde de Penalver, da<br />

Espanha. A 24 de maio, a primeira do conjunto, a da Conversação,<br />

foi carregada no dorso de mulas até o alto da Montanha. A 8 de<br />

julho a estátua de Nossa Senhora sentada sobre uma pedra foi<br />

transportada em carroça especial, amparada por 18 homens,<br />

seguindo até o Santuário pelo novo caminho aberto pouco<br />

tempo antes nos flancos do Monte Gargas. No dia seguinte, foi<br />

transportada a Virgem da Assunção que pesa ao menos 650 quilos.<br />

Todas elas foram feitas na célebre fundição Creusot, da França.<br />

144


O Santuário, em estilo romano-bizantino, tem três naves,<br />

com quarenta e quatro metros e meio de comprimento, quinze<br />

de largura por dezoito e meio de altura. Pode acolher duas mil<br />

e quinhentas pessoas. Duas filas de colunas em pedra, com<br />

blocos de mais de quatro toneladas, sustentam a cobertura. O<br />

teto, em cobre, pode resistir <strong>à</strong>s mais fortes tempestades. Duas<br />

torres quadradas encimadas por uma cruz ladeiam a fachada<br />

do Santuário. Até 1866, havia um pequeno sino para anunciar<br />

as cerimônias, mas, a 6 de agosto Dom Ginoulhiac abençoou<br />

outros quatro sinos maiores. Mais três foram instalados, a<br />

6 de outubro de 1889. Em 1891 foram postos mais dois, e a<br />

17 de julho de 1897 foi posto o maior de todos eles, com três<br />

toneladas de peso. O altar mór data de 1866, uma obra de arte<br />

em mármore de Carrara. A estátua de Maria posta sobre ele,<br />

uma obra prima, foi talhada em mármore de Carrara também,<br />

e esculpida segundo as determinações da Sagrada Congregação<br />

dos Ritos. Os candelabros e a cruz são de bronze e em estilo<br />

gótico. Um grande pedaço da pedra sobre a qual a Bela Senhora<br />

se assentou, está conservado em fino relicário de ouro no interior<br />

da Basílica. O órgão majestoso, em madeira de carvalho, obra<br />

do artista belga J. B. Gys foi inaugurado a 19 de setembro de<br />

1880, como recordação da solene coroação da estátua da Virgem<br />

Maria. O ostensório é ornado por esmeraldas e brilhantes. O<br />

cálice, em ouro massiço, pesa dois quilos e é cravejado por<br />

cerca de trezentos diamantes. O cibório é igualmente ornado<br />

por brilhantes e pedrarias finas. Galhetas, bandeja, pálio, missal<br />

e o relicário onde se conserva o pedaço da pedra da Aparição,<br />

e muitos outros objetos sacros fazem parte do tesouro do<br />

Santuário. No presbitério, sob lápides de mármore inscrustadas<br />

na parede, se conservam religiosamente de um lado, o coração<br />

embalsamado de Maximino Giraud juntamente com o do Conde<br />

de Penalver, e do outro, o de Dom Philibert de Bruillard.<br />

<strong>De</strong>z capelas laterais foram acrescentadas em 1894, em<br />

virtude da grande afluência de peregrinos e de Sacerdotes, num<br />

tempo em que não se concelebravam Missas.<br />

145


<strong>De</strong>pois do Concílio Vaticano II, com suas novas orientações<br />

litúrgicas, o interior do Santuário sofreu adaptações: um novo<br />

altar central para permitir a concelebração das Missas foi<br />

construído, as dez capelas laterais foram suprimidas, alguns<br />

grandes e belos painéis foram pintados pelo artista ARCABAS.<br />

Mais recentemente, foi construída a Capela da Reconciliação em<br />

anexo ao Santuário.<br />

Em anexo ao Santuário ainda, edifícios para hospedagem<br />

dos peregrinos foram aos poucos construídos. Frente ao<br />

Santuário, uma capela em estilo romano, fora inicialmente<br />

erguida no local da assunção da Bela Senhora. <strong>De</strong>pois, dada a<br />

instalação das estátuas em bronze, a capela foi transportada para<br />

o interior do cemitério dos Missionários. Sobre ela havia uma<br />

estátua majestosa de Nossa Senhora que, para ser preservada dos<br />

desgastes pelo clima, foi posta no interior da capela.<br />

O local da Aparição estava protegido por uma cerca em ferro<br />

fundido. <strong>De</strong>pois, uma simples e forte corrente de ferro passou<br />

a sinalizar o local. Nele foram postas as cruzes da Via Sacra,<br />

ao longo do caminho percorrido pela Bela Senhora durante a<br />

Aparição.<br />

O Santuário foi construído sem nenhuma ajuda de poderes<br />

públicos, nem se abriu nenhuma subscrição financeira para suas<br />

obras. A construção contou exclusivamente com a imensa e<br />

espontânea generosidade de fiéis, benfeitores, Paróquias e Dioceses.<br />

146<br />

2 - O Povo de <strong>De</strong>us Peregrino<br />

A partir de 1854 as peregrinações ao local da Aparição<br />

da Salette se tornaram cada vez mais freqüentes. Muitas<br />

personalidades, eclesiásticas ou não, foram <strong>à</strong> Montanha bendita.<br />

A 24 de maio, Dom Ullathorne, Bispo de Birminghan, na<br />

Inglaterra, passou lá três dias muito felizes. Encontrando-se<br />

com Melânia, em Corps, interrogou-a longamente. <strong>De</strong>scendo a<br />

Grenoble, encontrou Maximino a quem interrogou da mesma<br />

forma. <strong>De</strong> volta <strong>à</strong> Inglaterra publicou um livro sobre a Aparição:


- “A Santa Montanha de La Salette”.<br />

Diariamente havia entre 1.500 e 2.000 peregrinos sobre<br />

a Montanha, vindos de muitos países europeus. No dia 19<br />

de setembro de 1854, mais de doze mil peregrinos subiram a<br />

Montanha da Aparição.<br />

Em 1855 o Santuário foi regularmente freqüentado.<br />

Peregrinos vieram das Índias Orientais. Mais de 600 Padres<br />

provenientes de 59 Dioceses da Europa e da Síria fizeram sua<br />

peregrinação. No dia 19 de setembro, 300 Padres, três Vigários<br />

Gerais e Dom Ginouilhac deram brilho <strong>à</strong> festividade.<br />

No ano de 1856 muitos foram <strong>à</strong> Salette para agradecer seu<br />

retorno da guerra da Criméia. Padres de 60 Dioceses da França,<br />

quatro Bispos, o Vigário Geral das Índias, um Bispo do Canadá, Dom<br />

Ginoulhiac e Dom Philibert de Bruillard fizeram sua peregrinação.<br />

Em 1857, Dom Ginouillhac presidiu a cerimônia do dia 19<br />

de setembro e abençoou a Capela da Assunção da Bela Senhora,<br />

em frente ao Santuário.<br />

Em 1858 muitos Padres vieram <strong>à</strong> Salette de todas as nações.<br />

A solenidade de 19 de setembro foi magnífica. <strong>De</strong>z mil peregrinos<br />

se fizeram presentes. Foram celebradas 90 Missas nesse dia.<br />

Na solenidade de Nossa Senhora da Salette, em 1859, as<br />

Irmãs do Bom Pastor vieram agradecer a cura de sua Superiora.<br />

A Comunidade subiu a Montanha a pés descalços, em sinal de<br />

agradecimento penitente.<br />

Ao longo do ano de 1860 foram celebradas 2.430 Missas e<br />

distribuídas 12 mil comunhões na Montanha. A 15 de dezembro<br />

faleceu Dom Philibert de Bruillard, Bispo Emérito de Grenoble.<br />

Seu coração foi solenemente deposto, a 25 de maio de 1861, no<br />

Santuário de Nossa Senhora da Salette por ele fundado na Montanha.<br />

Entre os peregrinos de 1865 se fez presente o Pe. Julien<br />

Eymard, hoje canonizado, natural de La Mure, próximo a Corps,<br />

Fundador da Congregação do Santíssimo Sacramento.<br />

Em 1867 houve um aumento sensível de peregrinos, entre<br />

os quais 712 Padres de 94 Dioceses da França e de outros paises,<br />

e dois <strong>De</strong>legados do Patriarca armênio.<br />

147


Em 1968, o Patriarca da Caldéia e um Bispo da Oceania<br />

foram <strong>à</strong> Salette.<br />

Em 1869, entre outros, havia um Bispo da Nova Zelândia.<br />

Em 1871, o movimento no Santuário foi retomado com vigor<br />

depois da guerra de 1870, e do Concílio Vaticano I. Cerca de 30<br />

mil peregrinos e 600 Padres subiram a Montanha da Salette. Foram<br />

celebradas 2350 missas e distribuídas 16 mil comunhões nesse ano.<br />

Em 1871, grandes peregrinações <strong>à</strong> Salette, organizadas<br />

e vindas de longe em trens especiais, foram semente para a<br />

1ª Peregrinação Nacional realizada em 1872, no Santuário da<br />

Salette, por ocasião do 25º Aniversário da Aparição.<br />

A idéia do evento foi do Pe. Thédenat, falecido em 1884. Em<br />

sua Paróquia em Paris, incentivava a devoção a Santa Filomena.<br />

<strong>De</strong>pois dos horrores da Comuna em 1871, Pe. Thédenat foi a<br />

Ars para rezar junto ao túmulo do Cura e diante da imagem de<br />

Santa Filomena instalada pelo Santo Cura em sua Igreja. Em<br />

Ars, refletindo sobre as calamidades correntes, lembrou-se<br />

da Mensagem da Salette e teve a idéia de congregar na Santa<br />

Montanha delegações de todas as Dioceses, Paróquias e entidades<br />

eclesiais da França, numa peregrinação verdadeiramente<br />

nacional. Os Missionários de Nossa Senhora da Salette, tomando<br />

conhecimento desse projeto através do Pe. Jean Berthier MS,<br />

incentivaram a idéia. Com o auxílio dos Padres Assuncionistas<br />

a peregrinação a Ars e Salette foi organizada para implorar de<br />

Nossa Senhora a salvação da França e a libertação do Papa Pio<br />

IX feito prisioneiro.<br />

Em 1872, a 18 de agosto, 380 peregrinos da região de<br />

Paris embarcaram para Grenoble. Ao longo do caminho,<br />

mais peregrinos se juntaram a eles. À noite de 20 de agosto,<br />

Pe. Giraud MS fez eloqüente sermão durante a Bênção do<br />

Santíssimo Sacramento, no Santuário da Salette. À luz de<br />

velas a multidão se dirigiu a seguir, ao local da Aparição onde<br />

realizou uma improvisada e comovente cerimônia. Mais de<br />

100 Padres estavam presentes. No dia 21, novos peregrinos<br />

chegaram. Uma procissão de 14 mil peregrinos fez um círculo<br />

148


em torno do local bendito, cantando, rezando e chorando. <strong>De</strong><br />

duzentos a trezentos Padres acompanharam Dom Paulinier para<br />

o interior do Santuário. Ao meio dia foi enviado um telegrama<br />

de saudações a Pio IX. A notícia foi comunicada <strong>à</strong> multidão que<br />

estava reunida no local da Aparição para ouvir a narrativa feita<br />

por Maximino Giraud. O povo exultou de alegria ovacionando<br />

Pio IX. Às 15hs30 a procissão se pôs a caminho em torno do<br />

Monte Planeau, carregando uma estátua da Virgem, e se deteve<br />

frente <strong>à</strong> fonte milagrosa. Dom Paulinier fez, então, eloqüente<br />

sermão. O dia 22 de agosto foi o da grande manifestação. Às<br />

7hs00 a procissão imensa entrou no Santuário e Dom Paulinier<br />

fez a consagração dos peregrinos a Nossa Senhora da Salette,<br />

celebrou a Missa e lhes deu a bênção. Ao final de alguns dias<br />

de fadiga e noites mal dormidas sobre o solo, mas de intensa<br />

vibração religiosa, a multidão partiu com lágrimas nos olhos.<br />

A partir de 25 de agosto, grandes grupos de peregrinos<br />

foram ao local da Aparição. Eram acolhidos na hospedaria<br />

pelos Missionários de Nossa Senhora da Salette. No dia 10 de<br />

setembro, <strong>à</strong> noite, <strong>à</strong> beira da fonte abençoada, Maximino Giraud<br />

fez mais uma vez a narrativa da Aparição. Uma Via Sacra <strong>à</strong> luz<br />

de velas foi seguida de Missa celebrada <strong>à</strong> meia noite. A seguir, o<br />

povo partiu. Nunca antes de 1872 a Montanha da Salette havia<br />

sido visitada por tantos Sacerdotes.<br />

Em 1873, o Conselho de Peregrinações organizou um mês<br />

inteiro de orações públicas e peregrinações. A 22 de julho, os<br />

cristãos da Diocese de Grenoble fizeram imponente solenidade<br />

na Santa Montanha. Pe. Giraud MS falou ao povo presente,<br />

como nunca antes falara. A 23 de julho, depois da comunhão<br />

geral e do canto do Magnificat, a multidão partiu. A 21 de agosto<br />

foi celebrado do 1º Aniversário da Peregrinação Nacional<br />

realizada em 1872. Em numerosos Santuários franceses se<br />

fez, nessa ocasião, a consagração da França <strong>à</strong> Virgem Maria.<br />

A partir de meia noite de 21 de agosto as missas foram<br />

celebradas sucessivamente por 500 Sacerdotes. Às 9hs30 se<br />

fez uma procissão em torno do Monte Planeau. Dom Paulinier<br />

149


presidiu a Missa num altar levantado no local da assunção de<br />

Nossa Senhora. O sermão coube ao Pe. Tardif de Moidrey.<br />

Dom Paulinier consagrou a França a Nossa Senhora. À noite,<br />

se realizou uma grande procissão <strong>à</strong> luz de velas. Um espetáculo<br />

incomparável de fé. Mais de três mil e trezentas Missas foram<br />

celebradas na Montanha, nesse ano, com mais de vinte e uma<br />

mil comunhões distribuídas por oitocentos Sacerdotes. O ano<br />

de 1973 foi dos mais eloqüentes para a Salette. <strong>De</strong>sde então o<br />

movimento de peregrinações não parou mais.<br />

<strong>De</strong>pois, durante mais de vinte anos, sob a competente direção<br />

dos Padres Assuncionistas, partia de Paris a “Peregrinação<br />

Nacional de Penitência” para um retiro espiritual na Salette.<br />

A 23 de setembro de 1875, Dom Fava foi nomeado Bispo<br />

de Grenoble em lugar de Dom Paulinier. Dias antes, a 18 de<br />

setembro, Dom Fava havia visitado o Santuário onde, por oito<br />

vezes dirigiu a palavra ao povo peregrino. Retornou <strong>à</strong> Montanha<br />

em 1877 e 1878 com um grupo de Bispos.<br />

O Papa Pio IX, pouco antes de morrer, havia manifestado o<br />

desejo de que, em seu pontificado, fosse realizada a cerimônia<br />

da coroação da estátua de Nossa Senhora, no Santuário. Seu<br />

desejo só foi realizado pelo sucessor, o Papa Leão XIII.<br />

A 2 de fevereiro de 1879, Dom Fava anunciou <strong>à</strong> Diocese que<br />

Leão XIII, por decreto de 19 de janeiro, concedera ao Santuário<br />

o título insigne de “Basílica Menor” e determinava a solene<br />

coroação de Nossa Senhora da Salette como “Reconciliadora<br />

dos Pecadores”, representada por uma estátua recomendada<br />

pela Congregação dos Ritos, instalada sobre o altar principal<br />

da Basílica. Leão XIII delegou o Cardeal Guibert, Arcebispo de<br />

Paris, para representá-lo na solenidade.<br />

A 19 de agosto de 1879 o Santuário foi primeiramente<br />

sagrado por Dom Paulinier, Bispo de Besançon e antigo Bispo<br />

de Grenoble, assistido por quatro outros Bispos. No dia seguinte,<br />

20 de agosto, uma grandiosa procissão carregou o real diadema<br />

a ser posto na fronte da estátua de Nossa Senhora da Salette.<br />

Com a presença de cerca de 20 mil romeiros, de 800 Sacerdotes,<br />

150


do Cardeal Guibert, de dois outros Arcebispos, de sete Bispos<br />

e um Abade, a dupla cerimônia foi oficiada com grandiosa<br />

solenidade. O Cardeal Guibert abençoou a estátua e depois a<br />

coroou. O vibrante canto do TE DEUM foi seguido pelo som<br />

maravilhoso do carrilhão de sinos. O Pe. Giraud, Missionário de<br />

Nossa Senhora da Salette, Dom Mermillod, Bispo de Genebra e<br />

Dom Fava, novo Bispo de Grenoble, fizeram sermões fortemente<br />

aplaudidos pela multidão presente.<br />

CAPÍTULO II<br />

O LEGADO DE DOM PHILIBERT:<br />

OS MISSIONÁRIOS DA MÃE DA RECONCILIAÇÃO<br />

Pelo novo Mandamento de 1º de maio de 1852, o Santuário<br />

teve decretada sua construção, e os Missionários de Nossa<br />

Senhora da Salette sua certidão de nascimento.<br />

No primeiro ponto do documento, Dom Philibert de Bruillard<br />

trata do Santuário.<br />

No início do segundo ponto acrescenta:<br />

- “No entanto, estimados irmãos, por mais importante que<br />

seja a construção de um Santuário, algo de mais importante,<br />

ainda, existe: são os Ministros da Religião destinados a darlhe<br />

atendimento, a acolher os piedosos peregrinos, a fazê-los<br />

ouvir a Palavra de <strong>De</strong>us, a exercer para com eles o ministério da<br />

reconciliação, a administrar-lhes o augusto sacramento de nossos<br />

altares, e a ser para todos os dispensadores fiéis dos mistérios de<br />

<strong>De</strong>us (1 Cor 4, 1) e dos tesouros espirituais da Igreja.<br />

Esses padres serão chamados Missionários de Nossa<br />

Senhora da Salette. Sua criação e sua existência serão, bem como<br />

o próprio Santuário, um monumento eterno, uma lembrança<br />

perpétua da aparição misericordiosa de Maria.<br />

151


Esses padres, escolhidos dentre muitos outros, para serem<br />

os modelos e os auxiliares do clero das cidades e das campanhas,<br />

terão uma residência habitual na cidade episcopal. Residirão no<br />

alto da montanha durante o período de peregrinação, e durante o<br />

inverno evangelizarão as diferentes Paróquias da Diocese.<br />

Nós instituímos, agora, portanto, um corpo de missionários<br />

diocesanos, a quem queremos dar vigor e crescimento, com<br />

todas as nossas energias, com todos os nossos sacrifícios, e com<br />

a colaboração de nossos piedosos diocesanos, sobretudo, com a<br />

de nosso querido Clero” (in BASSETTE, p. 278).<br />

<strong>De</strong>pois acrescenta:<br />

- “Esse corpo de missionários é como que o selo com que<br />

queremos assinalar as outras obras que, pela graça de <strong>De</strong>us,<br />

nos foi dado criar. É, por assim dizer, a última página de nosso<br />

testamento, é o último legado que queremos deixar a nossos bem<br />

amados diocesanos. É uma lembrança viva que queremos deixar<br />

a todas e a cada uma de nossas Paróquias. Queremos reviver<br />

no meio de vós, estimados irmãos, por meio desses homens<br />

respeitáveis que, ao falarem de <strong>De</strong>us a vós, vos lembrarão de rezar<br />

por nós. (...) Essa sociedade de padres, destinados a se tornarem<br />

vossos eficientes auxiliares, que, em vista do futuro, fazem o<br />

sacrifício de sua própria pessoa, de sua posição vantajosa, e<br />

abraçando a vida pobre, dura, laboriosa do homem apostólico,<br />

exige vossa generosa colaboração, bem como a de vossos<br />

respeitáveis paroquianos. Eles necessariamente precisarão ter<br />

em Grenoble uma casa que lhes sirva de noviciado para formar<br />

os jovens padres, onde, no recolhimento e no estudo, se preparam<br />

para novas tarefas, e na qual poderão de forma digna, abrigar-se<br />

em sua velhice. (...) Uma das mais belas obras que podereis criar,<br />

estimados colaboradores, e isso é possível em muitas Paróquias,<br />

é a fundação que assegure uma missão para vosso rebanho, a<br />

cada oito ou dez anos. (...) A Santa Virgem apareceu em La<br />

Salette para todo o universo, quem disso pode duvidar? No<br />

entanto, Ela apareceu também, de forma especial para a Diocese<br />

de Grenoble que disso tirará duas vantagens inapreciávies: um<br />

152


novo Santuário a Maria, um corpo de Missionários Diocesanos.<br />

Essas duas obras se tornaram possíveis somente por causa da<br />

Aparição, e para sempre perpetuarão a lembrança da Aparição”<br />

(in BASSETTE, p. 279).<br />

O documento conclui com o agradecimento de Dom Philibert<br />

a todos, e pede as bênçãos de <strong>De</strong>us sobre todos.<br />

O texto é muito denso. Em sua brevidade literária, descreve<br />

um ato de grande importância histórica. O gesto de Dom<br />

Philibert é fundacional, criador de nova entidade eclesiástica.<br />

Em linguagem tipicamente pastoral, define sua origem, sua<br />

identidade e finalidade. Estabelece um nexo íntimo e essencial<br />

entre a entidade e o evento da Salette. Indica seu carisma<br />

e espiritualidade. Tem validade canônica, sem se perder na<br />

dimensão jurídica que envolve o ato.<br />

A fundação dos Missionários de Nossa Senhora da Salettte,<br />

segundo o Mandamento de 1º de maio de 1852, permite uma<br />

reflexão desdobrada em distintos pontos.<br />

1 - A Aparição da Salette: Evento Inspirador<br />

A Aparição de Nossa Senhora em La Salette alcançou, entre<br />

19 de setembro de 1846 e 1º de maio de 1852, ampla repercussão<br />

e aceitação por parte do Povo de <strong>De</strong>us. Nesse período, os<br />

Missionários de Nossa Senhora da Salette não existiam ainda.<br />

Teoricamente, portanto, o evento da Salette poderia continuar<br />

vivo e atuante sem essa instituição eclesial. Os Missionários,<br />

porém, não podem subsistir sem o Fato e a Mensagem da<br />

Aparição. Dom Philibert, em seu Mandamento, estabeleceu um<br />

nexo perene entre a Aparição e a instituição.<br />

Na Aparição não se encontra uma palavra sequer sobre a<br />

eventual fundação de uma Congregação Religiosa Missionária.<br />

A palavra final de Maria, ”Pois bem, meus filhos, transmitam<br />

tudo isso a meu povo”, tem como destinatários diretos, os dois<br />

videntes Maximino e Melânia. Indiretamente, no entanto, os<br />

destinatários são todos os cristãos tocados pelo Fato da Salette.<br />

153


Não se pode, portanto, afirmar que a Bela Senhora seja a<br />

Fundadora dos Missionários de Nossa Senhora da Salette.<br />

Sua Aparição, tanto no Fato quanto na Mensagem, é, porém,<br />

e acima de tudo, o ponto de referência originante dessa<br />

fundação congregacional. Dom Philibert intuiu e explicitou o<br />

nexo existencial entre ambas. Para sua decisão, inspirou-se na<br />

Aparição. Ela tem a dimensão de “evento inspirador”. Sem esse<br />

“evento inspirador” não existiriam os Missionários de Nossa<br />

Senhora da Salette. Não existiriam sem a imensa e admirável<br />

onda de peregrinações, de conversões e da nova devoção<br />

mariana reconciliadora, suscitadas pelo evento. Não existiriam<br />

também sem o inspirado “ato fundador” de Dom Philibert de<br />

Bruillard que lhes confiou a tarefa pastoral da Reconciliação<br />

inicialmente junto ao Santuário da Mãe da Reconciliação. A atual<br />

Congregação dos Missionários de Nossa Senhora da Salette não<br />

existiria, tampouco, sem a evolução e maturação, corresponsável<br />

e participada, do “Corpo de Missionários Diocesanos”, na fase<br />

inicial da instituição fundada por Dom Philibert que lhe deu o<br />

nome de “Missionários de Nossa Senhora da Salette”.<br />

A Congregação, hoje existente, é fruto da evolução histórica<br />

da instituição fundada por Dom Philibert que se inspirou no<br />

Fato da Salette, nele intuiu o carisma típico e o sentido do<br />

Instituto como pastoralmente necessário e urgente em vista<br />

das peregrinações ao local da Aparição. O Bispo de Grenoble<br />

conectou intimamente e para sempre os dois fatos marcantes:<br />

o evento da Aparição, de alçada divina, e a criação dos<br />

Missionários, de responsabilidade eclesial.<br />

154<br />

2 - Os precedentes da fundação<br />

O contexto mais longínquo da fundação dos Missionários<br />

compreendia o grande movimento de peregrinações <strong>à</strong> Montanha<br />

da Salette, iniciado nos primeiros dias após o evento, a correlata<br />

onda de conversões, a expansão da nova devoção cristológicomariana<br />

da Reconciliação, uma humilde capela no local bendito,


mas, sem padres para o atendimento pastoral do povo imenso, e<br />

o projetado Santuário.<br />

Havia, porém, outros dados mais próximos na linha da<br />

organização da comunidade sacerdotal a serviço do local das<br />

peregrinações.<br />

A primeira idéia a respeito da organização de eventual<br />

comunidade de Sacerdotes na Montanha da Salette parece ter<br />

sido de Pe. Burnoud, membro do Clero de Grenoble. Ao visitar<br />

o local da Aparição a 19 de setembro de 1847, 1º Aniversário da<br />

Aparição, prometeu a Nossa Senhora que, se um dia surgisse um<br />

grupo de Missionários, seria um deles.<br />

Em setembro de 1848, numa carta de Dom Guibert, Bispo<br />

de Viviers, enviada a Dom Philibert de Bruillard, a idéia retorna.<br />

Dom Guibert, Cardeal Arcebispo de Paris, presidiu em 1879,<br />

como Legado do Papa Leão XIII, a cerimônia da coroação da<br />

estátua de Nossa Senhora Reconciliadora da Salette, no Santuário<br />

da Montanha, e da elevação do Santuário <strong>à</strong> honraria de Basílica<br />

Menor. Nessa carta, Dom Guibert afirmou:<br />

- “Excelência, penso que Vossa Reverendíssima fará uma<br />

coisa agradável a <strong>De</strong>us e útil <strong>à</strong> propagação do culto da Santa<br />

Virgem, autorizando o estabelecimento, sobre a montanha santa,<br />

de uma igreja cujo atendimento seria confiado a alguma piedosa<br />

comunidade que manteria nesse lugar a devoção para com Maria,<br />

e ao mesmo tempo impediria os abusos que se infiltram algumas<br />

vezes nas peregrinações” (in STERN, “L´évêque de Grenoble<br />

qui approuva La Salette”, p. 74).<br />

A 31 de janeiro de 1849, Pe. Louis Perrin, Pároco de La<br />

Salette, expressou o mesmo desejo.<br />

Qual o sentido da palavra “comunidade” ali empregada? É<br />

difícil precisar.<br />

Há, porém, dados históricos que ajudam a compreender essa<br />

aspiração. O Pe. Charles Novel ms constatou o seguinte:<br />

- “A idéia de uma congregação religiosa ligada <strong>à</strong> Salette<br />

era então expressa de diferentes lados. M. Berlioz, Pároco de<br />

Crémieu, já tinha pensado, conforme nos faz conhecer uma carta<br />

155


de 19 de novembro de 1851, dirigida ao Bispo, que o Bispo<br />

fundaria “uma associação de padres missionários ou religiosos,<br />

imediatamente submetida <strong>à</strong> sua jurisdição, com o objetivo<br />

de trabalhar na conversão dos pecadores em sua Diocese, e<br />

também, se fosse possível, na melhoria do mundo católico, e<br />

em segundo lugar, para cantar sem cessar os louvores de <strong>De</strong>us<br />

num lugar tão venerado”. Havia padres dispostos a fazer parte<br />

dessa associação, como o Pároco de Échirolles, M. Buisson:<br />

ele aspirava por uma vida regular numa comunidade, pois o<br />

ministério lhe era pesado. O Pároco de Cordéac, H. Tabardel<br />

– uma pessoa de juizo um tanto forte – escreveu ao Bispo a<br />

26 de abril de 1852: - “Excelência, creio que seria interpretar<br />

no verdadeiro sentido a graça insigne que a Augusta Rainha do<br />

Céu fez <strong>à</strong> Diocese de Vossa Excelência, e auferir até o fundo<br />

a consequência desse importante evento, se se fundasse para<br />

sempre sobre a rocha viva da Santa Montanha uma ordem ou<br />

congregação religiosa nova, una e tríplice ao mesmo tempo: una<br />

pelos votos e fortes laços religiosos que uniriam para sempre<br />

todos os seus membros na mesma família; tríplice ao mesmo<br />

tempo, isso é, composta: 1º de Padres, 2º de Irmãos dedicados<br />

ao ensino, 3º de Irmãs dedicadas ao ensino” (in NOVEL, “Du<br />

Corps des Missionnaires...”, polígrafo, p. 8-9, 1968).<br />

Dom Philibert, por sua vez, desde 1851 havia concebido o<br />

projeto de fundar em La Salette uma comunidade de Missionários<br />

Diocesanos. No Mandamento o Bispo usa o termo “Corpo”. Por<br />

que? Que sentido lhe dava?<br />

A idéia de uma eventual Vida Religiosa para os que seriam<br />

destinados ao Santuário da Salette estava, portanto, viva, embora<br />

sem maior clareza, entre membros do Clero de Grenoble e na<br />

consciência de Dom Philibert.<br />

Que peso essa idéia teve no Mandamento episcopal? Se<br />

na letra do documento não é enfatizada, de alguma forma está<br />

presente e não se pode descartá-la da mente de Dom Philibert.<br />

<strong>De</strong>sde os primeiros dias após a Aparição, como a história<br />

revela, as multidões de peregrinos se tornavam cada vez<br />

156


mais numerosas e frequentes, exigindo uma solução pastoral<br />

apropriada. Era imperioso encontrar um caminho adequado<br />

para fazer face <strong>à</strong>s exigências das peregrinações. Com o<br />

reconhecimento da veracidade da Aparição, o movimento de<br />

peregrinos se tornou maior ainda.<br />

Duas opções se apresentavam então, ao Bispo de Grenoble:<br />

ou designar Auxiliares para colaborar com o Pároco de La Salette<br />

na pastoral dos peregrinos no alto da Montanha, ou tornar o<br />

local da Aparição pastoral e administrativamente autônomo em<br />

relação <strong>à</strong> Paróquia. Dom Philibert preferiu a segunda opção.<br />

Entre o final de 1851 e o início de 1852, antes, portanto, da<br />

publicação do Mandamento Doutrinal de 1º de maio de 1852,<br />

Rousselot apresentou a Dom Philibert um “Projet soumis <strong>à</strong><br />

Monseigneur”, com algumas sugestões na linha da segunda<br />

opção. Nesse projeto, Rousselot aconselhava o Bispo a fundar<br />

uma “comunidade de missionários diocesanos”. Segundo ele,<br />

o Santuário estaria, assim, “servido por um grupo de dez ou<br />

doze sacerdotes missionários que formariam uma Congregação<br />

diocesana inteiramente sob a dependência do Bispo e especialmente<br />

unida ao Capitulo da Catedral” (in STERN, “L´évêque...”, p. 75).<br />

Rousselot julgava que o grupo deveria ter um caráter nitidamente<br />

diocesano, pois um grupo religioso é pouco dependente do Bispo, o<br />

que não lhe parecia oportuno (in STERN ib.).<br />

Em 1852 a idéia de uma instituição sacerdotal para atender a<br />

pastoral na Montanha da Salette, tomou consistência na Diocese.<br />

Pe. Burnoud, Pároco de Corbelin, a 11 de fevereiro de 1852,<br />

numa carta ao Pe. <strong>De</strong>naz, Pároco de Saint Jéan d´Hérans, lhe<br />

anunciou o seguinte:<br />

1º - A organização de uma nova sociedade de Missionários<br />

Diocesanos sob o título de Nossa Senhora da Salette;<br />

2º - Dom Philibert o havia escolhido para ser superior da<br />

nova sociedade de apóstolos destinada a trabalhar na construção<br />

do Reino de <strong>De</strong>us, <strong>à</strong> propagação da glória da misericordiosa<br />

Maria e <strong>à</strong> salvação das almas desgarradas que o Senhor quer<br />

reconduzir ao redil;<br />

157


3º - Sua nomeação tinha acontecido havia quinze dias;<br />

4º - Estava previsto que os Missionários passariam seis meses<br />

na vila de La Salette ou sobre a Santa Montanha e seis meses em<br />

Grenoble; inicialmente eles seriam quatro Missionários e o dobro<br />

no ano seguinte; a Regra deles seria semelhante <strong>à</strong> dos Cartuxos de<br />

Lyon e sua instalação em La Salette estava prevista para o dia 1º<br />

de maio próximo (cf. NOVEL, “<strong>De</strong>s quatre...”, p. 6).<br />

Poucos dias após, a 16 de fevereiro, o Pe. M. Sibillat,<br />

Capelão da Escola Profissional de Grenoblle, escreveu ao Pe.<br />

<strong>De</strong>naz:<br />

- “O Bispo acaba de fundar uma casa de Missionários<br />

Diocesanos sob o título de Nossa Senhora da Salette. Adotou a<br />

Regra dos Cartuxos Missionários de Lyon. Quer apenas quatro<br />

Padres: Burnoud como Superior, Buisson, Pároco de Échirolles;<br />

você e eu. Um dos quatro será o Pároco da Paróquia de La<br />

Salette” (in NOVEL, “<strong>De</strong>s quatre...”, p. 7).<br />

Na mesma carta, Pe. Sibillat comenta a construção de uma<br />

hospedaria e de um Santuário. Os trabalhos de construção<br />

começariam no final de fevereiro. A idéia de um Santuário vem<br />

unida <strong>à</strong> da comunidade de Missionários.<br />

A 20 de fevereiro é a vez de Burnoud escrever a <strong>De</strong>naz:<br />

- “Nosso projeto ainda está longe de ser organizado. Não<br />

temos ainda Constituições, Regras, casa para nos abrigar. Se,<br />

porém, for obra de <strong>De</strong>us, ela se realizará” (in NOVEL, “<strong>De</strong>s<br />

quatre...”, p. 7).<br />

Por fim, a 4 de março seguinte, Burnoud escreveu novamente<br />

a <strong>De</strong>naz para lhe dizer que a Regra acabava de ser aprovada<br />

pelo Bispo. Para tanto, ele mesmo havia adaptado a Regra dos<br />

Cartuxos de Lyon, e submetido o texto <strong>à</strong> análise de Orcel.<br />

Nessa carta, Burnoud acena também para uma Pia<br />

Associação de Padres, sob a inspiração de Orcel, da qual ele<br />

mesmo fazia parte bem como os Padres <strong>De</strong>naz e Archier. Os<br />

membros dessa organização sacerdotal rezavam diariamente<br />

uns pelos outros, davam-se mútua assistência nas necessidades,<br />

reuniam-se anualmente em assembléia geral, além de observarem<br />

158


outras normas comuns. O espírito de fraternidade os unia para o<br />

exercício mais profícuo do sacerdócio.<br />

Orcel e Burnoud viam com bons olhos a união das duas<br />

instituições, de forma que o “Corpo de Missionários” se tornasse<br />

o ponto de referência da Pia Associação Sacerdotal. No entanto,<br />

os Missionários de Nossa Senhora da Salette seguiram o próprio<br />

caminho.<br />

O Bispo, a 5 de março de 1852, assinou a Regra dos Cartuxos<br />

adaptada. O texto adaptado previa:<br />

- o voto de obediência ao Bispo como primeiro superior da<br />

comunidade;<br />

- o objetivo da comunidade era o de ajudar no ministério<br />

pastoral da Diocese, donde o nome de diocesanos;<br />

- não se faria voto de pobreza, mas, se deveria prestar atenção<br />

a tudo que fosse um sinal de riqueza;<br />

- um noviciado para exercitar o candidato na vida regular,<br />

na oração, na obediência e em todos os exercícios da vida<br />

sacerdotal.<br />

No mesmo dia Dom Philibert se dirigiu a <strong>De</strong>naz para lhe<br />

dizer:<br />

- “Organizei uma instituição de Missionários Diocesanos<br />

sob o título de Nossa Senhora da Salette. Fixei sobre vós<br />

minha escolha e resolvi associar-vos a Burnoud e a Sibillat” (in<br />

NOVEL, “<strong>De</strong>s quatre...”, p. 8).<br />

Nesse dia ainda, Burnoud, Sibillat e <strong>De</strong>naz, Padres<br />

Diocesanos os três, os três primeiros Missionários de Nossa<br />

Senhora da Salette, fizeram entre as mãos do Bispo, “a promessa<br />

provisória que mais tarde será convertida em voto, de começar<br />

a viver e a trabalhar segundo o espírito da regra de nossa nova<br />

vocação de Missionários de Nossa Senhora da Salette” (in<br />

STERN, 3, p.75).<br />

A 5 de março de 1852, portanto, nasceu efetivamente o<br />

“Corpo de Missionários de Nossa Senhora da Salette”.<br />

O Mandamento de 1º de maio de 1852 foi a oficialização do<br />

ato.<br />

159


O projeto de Regra previa o voto de obediência. Não tratava<br />

do voto de castidade porque era inerente <strong>à</strong> condição sacerdotal<br />

de todos os membros da instituição. Não falava em voto de<br />

pobreza, mas, recomendava aos membros da instituição a<br />

vivência do espírito de pobreza evangélica.<br />

Dom Philibert, num retiro pregado aos membros do “Corpo<br />

de Missionários”, durante o outono de 1852, lhes propôs a<br />

profissão do voto de pobreza também. A resposta dos retirantes<br />

consta de uma carta muito gentil que dirigiram ao Bispo a 8 de<br />

novembro de 1852. A revista saletina “RECONCILIARE”, de<br />

dezembro de 1966, p.16-17, publicou o texto:<br />

- “Nós refletimos seriamente sobre a proposta que Vossa<br />

Excelência nos fez logo no início de nosso retiro. Em geral,<br />

nós estaríamos todos inclinados a fazer o voto de pobreza por<br />

duas razões: em primeiro lugar porque a pobreza voluntária é<br />

um estado mais perfeito e, por isso mesmo, mais agradável a<br />

<strong>De</strong>us; em segundo lugar, porque seria a maneira mais efetiva de<br />

conseguir estabilidade, estando a cargo de Vossa Excelência. (...)<br />

Não havia sido previsto que houvesse um voto de pobreza quando<br />

a Regra foi redigida. Se Vossa Excelência nos fizer esse favor,<br />

seria necessário rever as regras. (...) Por favor, não pense que nós<br />

estejamos tentando obstacular o cumprimento da proposição que<br />

Vossa Excelência nos fez com tanta amabilidade; ao contrário,<br />

ousamos dizer que sua realização é o mais sincero e ardente<br />

desejo do nosso coração. Nós estudamos o fato da Aparição com<br />

muitíssimo interesse e ele se manifesta divino demais para não<br />

vermos todas as esperanças e promessas que ele contém para a<br />

extensão do Reino de <strong>De</strong>us e a salvação das almas. Inclusive,<br />

acreditamos que a idéia de Vossa Excelência, idéia que nós<br />

alimentamos carinhosamente durante vários meses, certamente<br />

vem do céu cujo misericordioso plano não se realizará até que os<br />

Missionários de Nossa Senhora da Salette não se organizem de<br />

maneira estável e definitiva” (in BARRETTE, p. 14).<br />

Burnoud, Sibillat, <strong>De</strong>naz, Archier e Bonvallet concordaram<br />

com a proposta do Bispo, mas, viram-na como prematura porque<br />

160


não tinham os meios de estabilidade e autonomia de vida.<br />

Embora na carta os Padres não façam uso das expressões<br />

“Vida Religiosa” e “Comunidade Religiosa”, o espírito do texto<br />

manifesta a disposição deles para um eventual projeto nessa<br />

dimensão.<br />

A partir de todos os indícios prévios, parece suficientemente<br />

claro que a intenção de Dom Philibert era a de fundar, ao menos<br />

incoativamente, uma Congregação Religiosa. <strong>De</strong> qualquer<br />

maneira, a iniciativa a ele pertencia. Nenhum dos primeiros<br />

Missionários reivindicou para si a prerrogativa de fundador.<br />

- “A iniciativa dessa fundação pertence com certeza a Dom<br />

<strong>De</strong> Bruillard que queria uma instituição sólida e estável, e podese<br />

crer que, para assegurar esta solidez e essa estabilidade, ele<br />

pensava nos votos religiosos. A questão da Vida Religiosa, porém,<br />

não estava madura em novembro de 1852, e sem dúvida menos<br />

ainda em maio de 1852, sobretudo da parte dos Missionários”<br />

(NOVEL, “Du Corps...”, p. 11).<br />

A Vida Religiosa saletina, com suas estruturas canônicas,<br />

sua espiritualidade, carisma, vida apostólica e comunitária, tem<br />

ali sua pré-história. Era indispensável que vivesse ainda seu<br />

tempo de floração e maturação.<br />

O dia 5 de março de 1852, por força da promessa feita pelos<br />

primeiros Missionários entre as mãos de Dom Philibert, é na<br />

prática o dia do nascimento do “Corpo de Missionários de Nossa<br />

Senhora da Salette”. O Mandamento de 1º de maio de 1852 foi<br />

sua promulgação oficial. Dom Philibert não esperou, portanto,<br />

pela publicação do documento. Antes disso, tomou as primeiras<br />

medidas para organizar o “Corpo de Missionários”.<br />

Faltava ainda redigir o Mandamento. Dom Philibert, por<br />

motivos de saúde, confiou a tarefa a Rousselot. O Bispo, na<br />

redação final do documento, retomou as grandes linhas do projeto<br />

de Rousselot que previa uma associação diocesana inteiramente<br />

dependente do Bispo e unida ao Capítulo da Catedral, sendo que<br />

seus membros não seriam mais do que doze, escolhidos dentre os<br />

membros do Clero diocesano, os quais serviriam <strong>à</strong> peregrinação<br />

161


da Santa Montanha no verão e atenderiam <strong>à</strong> pregação de missões<br />

paroquiais durante o inverno.<br />

Rousselot, porém, excluía a idéia de uma Comunidade<br />

Religiosa porque ela não seria suficientemente dependente do<br />

Bispo. Contudo, a idéia de Rousselot não era necesariamente a<br />

idéia de Dom Philibert.<br />

162<br />

3 - O Ato Fundador de 1º de maio de 1852<br />

Jesus Cristo, ao anunciar o Reino, congregou junto a Si<br />

o primeiro “Corpo de Missionários”, os Apóstolos, núcleo<br />

primordial de sua Igreja. <strong>De</strong>u a seus discípulos uma Regra<br />

de Vida centrada no Mandamento Novo, deixou-lhes sinais<br />

sacramentais de sua Presença, instituiu entre eles uma liderança<br />

e os enviou a anunciar a Boa Nova, primeiramente <strong>à</strong>s “ovelhas<br />

da casa de Israel”, e depois ao mundo inteiro. Assim, Cristo<br />

fundou sua Igreja, confirmada pelo Pentecostes.<br />

Jesus não se deu, porém, o trabalho de organizar interna<br />

e externamente a Igreja, com o cenário ministerial, litúrgico,<br />

doutrinário, pastoral e jurídico que hoje nela se vê. Permitiu<br />

que ela mesma, <strong>à</strong> luz do Espírito, e em resposta <strong>à</strong>s urgências<br />

históricas, se desse a si mesma os elementos de que precisa em<br />

sua missão.<br />

<strong>De</strong>ntre as respostas eclesiais surgidas nos primeiros<br />

séculos do cristianismo, está a Vida Religiosa. Ela não provém<br />

diretamente de um gesto fundador específico de Jesus Cristo.<br />

Surgiu, sim, do próprio Evangelho enquanto lido a partir de<br />

urgências históricas, e, sob o impulso do Espírito, se concretizou<br />

em diferentes formas carismáticas, institucionais e jurídicas, ao<br />

longo dos tempos.<br />

Maria, na Aparição em Salette, atualizou a Boa Nova de seu<br />

Filho Jesus em função das necessidades de seu Povo naquele<br />

momento e naquela situação. Pediu a mesma conversão que<br />

Cristo proclamou. Manifestou o mesmo amor compassivo e<br />

reconciliador lido pelo Evangelho na Palavra e na Vida de


Jesus. Convocou o Povo a viver sua eclesialidade pela prática da<br />

religião. Não pediu, porém, nem a construção de templos, nem a<br />

constituição de movimentos pastorais ou a fundação de alguma<br />

Congregação Religiosa. Nada disso consta em sua Mensagem.<br />

A Bela Senhora não é, portanto, a Fundadora da Congregação<br />

dos Missionários da Nossa Senhora da Salette ou da Confraria a<br />

Ela dedicada. Efetivamente nada fundou. Abriu, sim, horizontes<br />

para um mundo novo, pelo caminho da conversão de seu Povo.<br />

Esse é seu programa.<br />

A história da Vida Religiosa apresenta diferentes figuras<br />

de Fundador. Cada um tem sua personalidade, a própria<br />

espiritualidade, um projeto de vida comunitária e de ação<br />

apostólica.<br />

Há os que, iluminados pelo Evangelho, fundaram um grupo de<br />

discípulos, deixando-lhes uma espiritualidade, o carisma, a missão<br />

apostólica e um projeto de vida comunitária com normas práticas<br />

definidas e consubtanciadas numa “Regra de Vida” completa.<br />

Outros, apenas, focaram certos princípios evangélicos<br />

mobilizadores de eventuais discípulos que, por sua vez,<br />

desdobraram segundo suas necessidades e possibilidades<br />

históricas, o ideário do Fundador num projeto específico de Vida<br />

Religiosa com todas as suas caraterísticas.<br />

Houve os que, perdidos em devaneios, incitaram grupos<br />

mais ou menos fanáticos, congregados em torno de um ideal<br />

distorcido, com um regulamento supostamente revelado.<br />

Houve também os que suscitaram instituições apostólicas em<br />

resposta a necessidades concretas e próprias do Povo de <strong>De</strong>us. A<br />

seus discípulos deixaram algumas luzes, apenas, e a tarefa de se<br />

organizarem na vida prática de seguimento de Cristo, sob a luz<br />

do Espírito, segundo os desígnios da Providência, confiando-se<br />

aos cuidados da Igreja a quem cabe discernir os espíritos.<br />

A esse grupo pertence Dom Philibert de Bruillard.<br />

O Bispo, inspirado pela Aparição e suas consequências,<br />

criou uma nova instituição eclesiástica e lhe deu um nome<br />

oficial: Missionários de Nossa Senhora da Salette.<br />

163


O fato de dar nome a alguém, habitualmente e por si só, define<br />

a paternidade do doador do nome ao nomeado que é reconhecido<br />

como filho. A nomeação é o primeiro ato de identificação.<br />

Por este simples fato, Dom Philibert é “Bispo e Pai” do novo<br />

Instituto, segundo a expressão de Burnoud e Sibillat no ato da<br />

Promessa, a 5 de março de 1852.<br />

Como Bispo e Pai, Dom Philibert percebia a existência de<br />

urgências pastorais em sua Diocese:<br />

- o Fato da Aparição atraia multidões ao local abençoado e<br />

suscitava inúmeras conversões e muitos milagres;<br />

- a Confraria de Nossa Senhora da Salette expandia sempre<br />

mais a devoção a Nossa Senhora como Reconciliadora;<br />

- a impossibilidade prática de o Pároco de La Salette e seu<br />

Vigário Paroquial atenderem, sozinhos, o fardo da pastoral das<br />

peregrinações;<br />

- a necessidade de se construir um templo adequado <strong>à</strong>s<br />

necessidades pastorais, no alto da Montanha;<br />

- a conveniência de se realizarem periodicamente missões<br />

populares nas Paróquias da Diocese;<br />

- a pregação de Retiros para o Clero, e demais atividades<br />

pastorais.<br />

A resposta a essas urgências não podia ser dada por um<br />

Padre apenas. Só tinha uma saída: a fundação de um “Corpo<br />

de Missionários Diocesanos” por parte do Bispo Diocesano de<br />

Grenoble. Essa foi a decisão de Dom Philibert de Bruillard.<br />

O Bispo, ao aunciar a instituição da nova sociedade<br />

presbiteral, insistiu em três caraterísticas que lhe conferiu:<br />

equipe, missionária e diocesana:<br />

- equipe: o mínimo que o Bispo imaginava para atender a<br />

essas urgências pastorais era um “corpo”, uma equipe de Padres.<br />

Um grupo. Uma comunidade. Comunidade RELIGIOSA?<br />

Talvez! E é a melhor das hipóteses, porque essa idéia já circulava<br />

no meio do Clero de Grenoble, com conhecimento do Bispo;<br />

- missionária: o ministério das peregrinações não é<br />

propriamente de tipo paroquial. Tem caraterísticas de serviço<br />

164


missionário prestado a pessoas das mais variadas proveniências<br />

e comunidades, cristãs ou não. Serviço missionário, também, em<br />

vista das desejadas missões populares nas Paróquias.<br />

- diocesana: Dom Philibert, como Bispo de Grenoble,<br />

estava preocupado com os peregrinos da Salette, sim, mas ao<br />

mesmo tempo, com o rebanho da Diocese. Precisava, portanto e<br />

ao mesmo tempo, de missionários diocesanos porque sentia as<br />

urgências de sua Diocese.<br />

A denominação “Corpo de Missionários DIOCESANOS”<br />

eventualmente podia ter, na intenção do Bispo, o sentido de<br />

“Corpo de Missionários de DIREITO diocesano”. Nesse caso,<br />

Dom Philibert estaria implicitamente pensando em alguma forma<br />

de Vida Religiosa de Direito Diocesano. O que é condizente com<br />

o contexto eclesial da fundação.<br />

Dom Philibert, em seu Mandamento de 1° de maio de 1852,<br />

ao se referir <strong>à</strong> construção do Santuário, deixou claro que não<br />

era para uma localdade mais ou menos restrita, mas, para o<br />

universo inteiro que o fazia. Mais adiante, no texto, afirma que<br />

a Santa Virgem apareceu em La Salette para o mundo inteiro<br />

e que, tanto o Santuário quanto os Missionarios, só existem<br />

por causa da Aparição e para sempre serão sua lembrança<br />

universal também. Isso implica um “Corpo de Missionários”,<br />

RELIGIOSOS de Direito Diocesano ao menos, que levem a<br />

Mensagem de Maria não só <strong>à</strong> Diocese, mas, a todo o mundo.<br />

Uma comunidade religiosa é a mediação mais adequada para o<br />

exercício de semelhante missão.<br />

Nossa Senhora, por duas vezes, aliás, pediu aos videntes<br />

que tansmitissem sua palavra a todo seu Povo. A dimensão<br />

universalista da missão ali transparece. Missão que não poderia<br />

ser a de um reduzido número de enviados presos a um quadro<br />

de montanhas, mas, de uma instituição sólida e estável, o que só<br />

pode acontecer com os laços da Vida Religiosa, conforme a idéia<br />

dos Pioneiros.<br />

Houve quem negasse a Dom Philibert a honra e o título de<br />

Fundador da Congregação dos Missionários de Nossa Senhora<br />

165


da Salette. Falta de conhecimento histórico? Receio de retirar<br />

da Bela Senhora o fundamental papel que tem nessa questão?<br />

Receio de esvaziar o consequente labor dos Pioneiros na<br />

configuração da Congregação?<br />

Dom Alexandre Caillot, Bispo de Grenoble, por ocasião do<br />

Centenário da Fundação da Congregação dos Missionários de<br />

Nossa Senhora da Salette, dá uma resposta clara a essa questão,<br />

numa carta enviada a 25 de abril de 1952 ao Pe. Joseph Imhof,<br />

Superior Geral dos Missionários Saletinos:<br />

- “Vosso fundador foi o Bispo de Grenoble, Dom Philibert de<br />

Bruillard. (...) Sem dúvida, não se tratava, para Dom <strong>De</strong> Bruillard<br />

(...) de estabelecer em sua Diocese monges contemplativos, e<br />

sim, Padres Missionários, isto é, encarregados de uma missão<br />

especial (...) claramente indicada pelo nome que ele lhes<br />

deu. (...) Assim haverá um Corpo de Padres “Missionários<br />

Diocesanos”. Entretanto, essa denominação não designava,<br />

nem podia designar ainda, aquilo a que se chama em termos<br />

estritamente canônicos, uma “Congregação”. Isso não tardaria<br />

muito a chegar” (in NOVEL, “<strong>De</strong>s quatres...”, p. 15).<br />

Dom Philibert fundou o Corpo de Missionários Diocesanos.<br />

A instituição, aos poucos e com muito sofrimento, se organizou<br />

mais adequadamente, cresceu, evoluiu e se tornou Congregação<br />

Religiosa, de Direito Diocesano primeiramente e depois, de<br />

Direito Pontifício, quando o Bispo não estava mais <strong>à</strong> testa da<br />

Diocese de Grenoble, embora, sempre tivesse tido carinhoso<br />

relacionamento com a Congregação (cf. STERN, ib. 79).<br />

Nenhum “corpo animado” nasce grande, com todas as<br />

energias a postos, com as capacidades plenamente desenvolvidas.<br />

Cresce e amadurece aos poucos. Torna-se adulto de acordo<br />

com as condições internas e externas. O “ser que o anima”, no<br />

entanto, é o mesmo. A paternidade também é uma só.<br />

O grão de trigo difere, em sua forma, da planta que dele nasce.<br />

No entanto, a vida que passa de um para a outra é idêntica a si mesma.<br />

Ao exemplo de um velho e sábio agricultor, conhecedor do<br />

terreno e do tempo, esperançoso na vitalidade da semente, Dom<br />

166


Philibert plantou e pacientemente contemplou o surgimento da<br />

vida misteriosamente guardada no recôndito do grão semeado.<br />

O chão do plantio que Dom Philibert lavrou, estava<br />

impregnado do húmus necessário para o desabrochamento do<br />

grão semeado, húmus de solo missionário, mesclado de algum<br />

modo, com o de Vida Religiosa.<br />

Dom Philibert lançou a semente de uma realidade eclesial<br />

nova, minúscula e humilde. A semente evoluiu para uma<br />

instituição aberta ao mundo, cuja floração o Bispo-Pai chegou a<br />

conhecer no final de seus anos, quando o “Corpo de Missionarios<br />

Diocesanos” se havia tornado Congregação Religiosa de Direito<br />

Diocesano, a 2 de fevereiro de 1858. Dois anos após, Dom<br />

Philibert faleceu. Era o dia 15 de dezembro de 1860.<br />

Dom Philibert deu ao “Corpo de Missionários Diocesanos”<br />

a Regra dos Cartuxos de Lyon adaptada, despretencioso sinal de<br />

Vida Religiosa incipiente. Não podia fazer mais. Em sua idade<br />

avançada, <strong>à</strong>s vésperas de sua renúncia ao governo da Diocese<br />

e na precariedade de sua saúde, era tudo o que podia fazer. Seu<br />

gesto, apesar da reduzida formalidade canônica, foi carismático<br />

em sua inspiração. Dom Philibert semeou o grão que, de acordo<br />

com as potencialidades do solo e do amoroso beneplácito de<br />

<strong>De</strong>us e da Mãe da Reconciliação, evoluiu até seu florescimento<br />

e frutificação.<br />

A vida que a semente do “Corpo de Missionários” trazia<br />

em si, um dia desabrochou na Congregação Religiosa com a<br />

qual o Bispo certamente sonhou e com a qual sempre manteve<br />

laços de arraigada afeição, testemunhada por uma visita, apesar<br />

da doença e da idade, <strong>à</strong> sua “Montanha querida” como Bispo<br />

Emérito, e pelo dom de seu coração de Pai e Pastor ao Santuário<br />

da Santa Montanha, onde foi deposto.<br />

Os Missionários de Nossa Senhora da Salette tradicionalmente<br />

viram nele seu Fundador (Stern, ib. p. 79).<br />

Dom Philibert inegavelmente está na origem dos<br />

“Missionários de Nossa Senhora da Salette” com toda sua<br />

história típica. Como Bispo tinha, naquele momento, uma<br />

167


dupla responsabilidade: examinar canonicamente o Fato da<br />

Aparição e garantir sua fecundidade espiritual. A fundação dos<br />

Missionários de Nossa Senhora da Salette provém da segunda<br />

responsabilidade episcopal.<br />

Nesse objetivo congregou o grupo de Padres que, de<br />

imediato, serviriam o local das peregrinações saletinas, dariam<br />

sua colaboração <strong>à</strong> pastoral paroquial na Diocese, e divulgariam<br />

a devoção <strong>à</strong> Mãe da Reconciliação.<br />

No entanto, em seu Mandamento, o Bispo dera a entender<br />

suficientemente que a irradiação da Aparição ultrapassava os<br />

limites da Diocese, o que era testemunhado pela numerosa<br />

presença de peregrinos de outros países na Montanha da Salette.<br />

Subentende-se que o Instituto Diocesano por ele fundado, poderia<br />

eventualmente se expandir para além dos limites da Igreja Local,<br />

sem mudar de natureza e com nova forma de existência. Fizera<br />

isso como Bispo de Grenoble, o que implicava que seu Sucessor<br />

deveria seguir a mesma linha. Não haveria lugar para mudanças<br />

de orientação do grupo, mas, somente para o desenvolvimento e<br />

amadurecimento de sua organização.<br />

À luz dos estudos de Pe. Victor Hostachy ms, de Pe. Charles<br />

Novel ms, de Pe. Eugène Barrette MS, de Pe. Jéan Stern ms e<br />

outros, a respeito da história da Congregação, deve-se dizer que<br />

Dom Philibert é verdadeiramente o Fundador da Congregação<br />

dos Missionários de Nossa Senhora da Salette.<br />

Não há razão, portanto, para que os Missionários Saletinos se<br />

sintam “filhos” sem “pai”, ou uma “fraternidade” sem a correlata<br />

“paternidade”. Nem por isso perdem seu valor o influxo da Bela<br />

Senhora e o sofrido esforço dos Pioneiros no “caos inicial” da<br />

gênese da nova Congregação Religiosa.<br />

Os pioneiros nunca se arrogaram o título de fundadores. A<br />

história nos revela que a organização prática da Vida Religiosa<br />

como tal, comunitária e missionária, inspirada no evento da<br />

Salette, contou, sim, com a paulatina e efetiva colaboração dos<br />

primeiros missionários. Eles exerceram papel insubstituível,<br />

mas, papel secundário no sentido de que, uma vez lançados na<br />

168


existência por Dom Philibert, assumiram a responsabilidade de<br />

organizar a própria vida.<br />

A tarefa não foi fácil e não aconteceu sem a interferência<br />

necessária da parte da Igreja, através dos Bispos Diocesanos<br />

envolvidos nesse processo histórico, inicialmente Dom Philibert,<br />

depois Dom Ginoulhiac e por fim Dom Fava.<br />

O “Fundador” da Congregação é o Bispo de Grenoble, Dom<br />

Philibert de Bruillard. Considerados todos os indícios presentes<br />

nas origens da instituição, os Missionários Saletinos encontram,<br />

em Dom Philibert de Bruillard, a “paternidade” que lhes garante<br />

sua identidade.<br />

O Mandamento episcopal é a certidão de nascimento do<br />

“Corpo de Missionários” batizado com o nome de “Missionários<br />

de Nossa Senhora da Salette”. <strong>De</strong>pois de ter sido dado <strong>à</strong> luz,<br />

o Instituto aprendeu a andar com o próprio esforço sem<br />

dispensar o apoio necessário. O que apareceu depois, já estava<br />

implicitamente no começo.<br />

Levado em conta o contexto, pode-se admitir que o desejo<br />

de Dom Philibert era ter, em sua Diocese, uma Congregação<br />

Religiosa canonicamente instituida e difundida pelo mundo<br />

afora um dia. Não seria essa sua intenção ao aplicar uma Regra<br />

ao grupo, um “Projeto de Regra” como consta do cabeçalho do<br />

texto?<br />

O Bispo Philibert, portanto, “visava mais longe que a<br />

fundação de um simples corpo de missionários diocesanos. Sua<br />

intenção profunda tendia efetivamente para a fundação de uma<br />

verdadeira congregação religiosa, a dos Missionários de Nossa<br />

Senhora da Salette” (in NOVEL, “<strong>De</strong>s quatres...”, p. 13).<br />

Dom Philibert conhecia de perto o que era a Vida Religiosa.<br />

Havia sido Diretor Espiritual de uma Fundadora de Congregação,<br />

Santa Madalena Sofia Barat, das Irmãs do Sacré Coeur de<br />

Jésus, presentes também na Diocese de Grenoble. Havia outras<br />

Comunidades Religiosas na Diocese, particularmente o Mosteiro<br />

de Vida Religiosa Contemplativa, “La Grande Chartreuse”, que<br />

São Bruno fundou na Sé Episcopal de Grenoble.<br />

169


Pe. Louis Carlier ms, Pe. Victor Hostachy ms, Pe. Charles<br />

Novel ms e Pe. Jean Stern MS afirmam que o Bispo tinha especial<br />

abertura para a Vida Religiosa na perspectiva de La Salette. Pe.<br />

Gian Matteo Roggio ms, teólogo saletino italiano, confirma o<br />

desejo do Bispo, dizendo que Dom Philibert é realmente e em<br />

sentido pleno, o Fundador da Congregação:<br />

- “Dom <strong>De</strong> Bruillard pensou, quis e fundou uma comunidade<br />

de sacerdotes que levasse adiante a memória e a profecia da<br />

Aparição: é evidente, pois, que em seu pensamento e em suas<br />

intenções a memória e a profecia da Aparição não estão presas<br />

aos videntes. É precisamente esse fato que o leva <strong>à</strong> fundação dos<br />

Missionários de Nossa Senhora da Salette: eles não nascem para<br />

serem “suplentes qualificados” dos videntes, particularmente de<br />

Melânia, mas nascem em razão da peculiaridade do evento e de<br />

seu caráter geneticamente eclesial, que atinge singularmente a<br />

pessoa das crianças. Como fundador, Dom <strong>De</strong> Bruillard é aquele<br />

que recebe “uma dúplice graça”: a primeira o torna capaz de criar<br />

uma família evangélica na Igreja; a segunda o orienta na linha de<br />

um determinado gênero de vida e de um serviço na comunidade.<br />

A primeira cabe a eles (os membros do grupo) como pessoas;<br />

a segunda eles a compartilharão com os membros do próprio<br />

grupo e, por isso mesmo, constituirá o carisma do instituto” (in<br />

ROGGIO, p. 12, polígrafo).<br />

Pe. Roggio acrescenta:<br />

- “Dom <strong>De</strong> Bruilard recebeu o dom pessoal de criar uma<br />

família evangélica na Igreja: o coração de sua inspiração é o<br />

homem apostólico, o homem assinalado pelo apostolado. Em<br />

suas intenções, publicamente perceptíveis no Mandamento de<br />

maio de 1852, o Missionário de Nossa Senhora da Salette é<br />

principalmente (e essencialmente) um apóstolo, plenamente e<br />

voluntariamente inserido na vida apostólica. É esta insistência<br />

substancial e essencial sobre a vida apostólica que o leva a dar<br />

vida a uma comunidade evangélica. (...) Dom <strong>De</strong> Bruillard<br />

também recebeu o dom da orientação na linha de um determinado<br />

gênero de vida e a um serviço na comunidade. Esse gênero de<br />

170


vida e o serviço na comunidade vêm condensados na Aparição.<br />

É a Aparição que determina o gênero de vida e o serviço na<br />

comunidade. A Aparição é o carisma próprio daquilo que a<br />

Congregação se tornará a seguir” (ROGGIO, p. 12-13).<br />

Muito tempo antes, Pe. Novel, em sua competência de<br />

teólogo, afirmava:<br />

- “No caso de Dom Philibert de Bruillard é preciso distinguir:<br />

a) <strong>De</strong> uma parte, entre o carisma de Bispo e o carisma de<br />

fundador;<br />

b) <strong>De</strong> outra, entre o carisma de fundador e o de doutor.<br />

Por seu carisma de Bispo, Dom Philibert de Bruillard<br />

tem a graça de discernir e definir os carismas, reconhecer a<br />

autenticidade da Aparição de La Salette, revelação privada,<br />

graça de ordem carismática.<br />

Por outro lado se ele possui o carisma de fundador, não<br />

parece ter o carisma de doutor.<br />

O carisma de doutor tem por objeto a manifestação pelo<br />

exemplo, pela palavra, pelo escrito, de uma ilustração espiritual<br />

recebida através de um dom especialmente intenso da graça,<br />

enquanto que o carisma de fundação tem por objeto próprio a<br />

reunião de uma comunidade sobre a base de um ideal entrevisto.<br />

Note-se que não há carisma de fundação sem carisma de ensino,<br />

mesmo que este seja dado a alguém distinto do fundador: uma<br />

fundação no quadro da Vida Religiosa não pode se desenvolver<br />

a não ser <strong>à</strong> luz de uma compreensão e expressão renovada do<br />

Evangelho. Para esclarecer isso: o Pe. <strong>De</strong> Foucauld não fundou<br />

nenhuma Congregação, mas, hoje há Congregações que vivem<br />

de seu espírito.<br />

A originalidade de nosso caso está nisso: Dom Philibert<br />

de Bruillard recebeu o carisma de fundador: ele fundou os<br />

Missionários de Nossa Senhora da Salette, mas, não lhes deixou<br />

nenhuma Regra a não ser um projeto provisório, nem mesmo<br />

algum escrito onde buscaríamos nosso espírito. No entanto, seu<br />

carisma de Bispo e seu carisma de fundador se unem no fato<br />

de nos indicar onde devemos buscar nosso espírito, isto é, na<br />

171


Mensagem de Nossa Senhora da Salette, como ele quer sinalizar<br />

pelo nome que nos deu. (...) Enquanto nosso Bispo Fundador,<br />

ele nos indica a “Mensagem” de Nossa Senhora da Salette<br />

como fonte de nossa espiritualidade. (...) Cabe a nós conservar<br />

a memória de nosso Bispo Fundador e agradecer ao Senhor e a<br />

sua Mãe, Nossa Senhora Reconciliadora, a Rainha dos Profetas<br />

e dos Apóstolos, por nos tê-lo dado como acabamos de o ver:<br />

fiel <strong>à</strong> sua missão de Bispo, atento aos sinais da Providência, um<br />

coração de apóstolo e de espírito marial” (in NOVEL, “<strong>De</strong>s<br />

quatre...”, p. 2-3.4.5).<br />

“Se Dom Philibert de Bruillard foi o fundador e definidor dos<br />

Missionários de Nossa Senhora da Salette, se Dom Ginoulhiac<br />

foi seu construtor e defensor, Dom Fava permanecerá como seu<br />

eloqüente e ardente missionário” (V. H., I, pg. 245).<br />

É a “trindade episcopal saletina”: Dom Philibert, o “pai”<br />

fundador dos Missionários de Nossa Senhora da Salette; Dom<br />

Ginoulhiac, o “filho” estruturador da Congregação; Dom Fava,<br />

o “espírito animador” de sua vida missionária.<br />

“Como conclusão, o ato feito por Dom <strong>De</strong> Bruillard teve<br />

consequências imprevisíveis, mas, é certamente o ato pelo qual<br />

Dom <strong>De</strong> Bruillard nos fundou” (NOVEL, “<strong>De</strong>s quatre...”, p. 14).<br />

“Ele deixou a lembrança de um Bispo caridoso, apostólico,<br />

devotado a seu Clero e <strong>à</strong>s Comunidades Religiosas, de alma<br />

com devoção mariana profunda e verdadeira” (NOVEL, “<strong>De</strong>s<br />

quatre...”, p. 2).<br />

Em virtude de sua idade avançada, Dom Philibert deixou o<br />

governo da Diocese de Grenoble em 1853. Dom Ginoulhiac o<br />

sucedeu.<br />

172<br />

4 - Os Pioneiros<br />

Dom Philibert, antes mesmo de determinar a construção do<br />

Santuário, havia escolhido os três primeiros Padres da Diocese<br />

de Grenoble que iriam compor o “Corpo de Missionários<br />

Diocesanos de Nossa Senhora da Salettte”: Burnoud, Sibillat e


<strong>De</strong>naz. Os três se dedicariam ao ministério no Santuário durante<br />

o verão, e nas Paróquias durante o inverno. Haviam-se escolhido<br />

entre si, com a concordância do Bispo, para serem os Pioneiros.<br />

Segundo testemunhos escritos de Dom Philibert, havia outros<br />

Padres dispostos a entrarem na nova sociedade missionária.<br />

Inseriram-se efetivamente no grupo, Pe. Bonvallet e Pe. Archier,<br />

em 1852. Em 1853 entrou Richard. Em 1854, Chavrier, Berlioz<br />

e Albertin. Em 1856, Bossan, e em 1857, Buissson e Petit. Todos<br />

eles Padres Diocesanos. Somente seis dentre eles, professaram<br />

os votos religiosos a 2 de fevereiro de 1858, na passagem para a<br />

Congregação Religiosa de Direito Diocesano: Archier, Berlioz,<br />

Albertin, Buisson, Petit e Bossan. Em novembro de 1858 chegou<br />

Pe. Giraud. Pe. Henri Berthier entrou em setembro de 1864, e,<br />

em setembro de 1865, seu irmão, Pe. Jéan Berthier, Fundador<br />

dos Missionários da Sagrada Família.<br />

Entre os primeiros, Sibillat se revelava um orador atraente e<br />

espirituoso. Bonvallet, dotado de bela voz, preparava os grupos<br />

de canto. Archier e <strong>De</strong>naz, acolhedores, atraiam longas filas de<br />

penitentes junto ao confessionário.<br />

Burnoud foi o primeiro Superior da incipiente comunidade.<br />

Pe. Pierre Archier, ex-Pároco de Verna, foi Superior entre 1856<br />

e 1865, e de novo entre 1876 e 1891. No segundo mandato de<br />

Pe. Archier como Superior Geral, o “Corpo de Missionários” de<br />

Direito Diocesano se tornou Congregação de Direito Pontifício.<br />

Quando Dom Philibert foi <strong>à</strong> Montanha da Salette, a 25 de<br />

maio de 1852, para a bênção e lançamento da pedra angular do<br />

Santuário, os três pioneiros estavam lá para acolhê-lo.<br />

No mês de outubro, durante um retiro dos três Missionarios,<br />

Dom Philibert, retomando intuições anteriores, propôs que todos<br />

os membros do Instituto se comprometessem a emitir o voto de<br />

pobreza. Assim completariam o quadro dos votos, uma vez que,<br />

como sacerdotes, já haviam feito os de castidade e de obediência.<br />

Em outubro ainda, Burnoud, como Superior, sugeriu ao<br />

Bispo que os Missionarios trouxessem sobre o peito uma Cruz,<br />

sinal distintivo dos filhos de Nossa Senhora da Salette. Dom<br />

173


Philibert inicialmente se mostrou reticente. Finalmente, a Cruz<br />

sugerida foi adotada.<br />

A 8 de novembro de 1852, numa carta assinada por todos<br />

os membros do grupo de Missionários, constava a resposta<br />

dos Padres ao pedido do Bispo quanto ao voto de pobreza.<br />

Observavam eles, porém, que o voto de pobreza supõe que a<br />

comunidade, <strong>à</strong> qual tudo se entrega, tenha condições materiais<br />

para atender as necessidades do grupo:<br />

- “Cremos que o pensamento de Vossa Excelência, pensamento<br />

que alimentamos com amor há alguns mêses, vem certamente do<br />

Céu; do Céu cujos desígnios de misericórdia se realizarão quando<br />

os Missionários de Nossa Senhora da Salette estiverem organizados<br />

de maneira sólida e durável” (in STERN, “L´Évêque...”, p. 79).<br />

A idéia relativa a uma organização sólida e estável da<br />

comunidade supunha o voto de pobreza.<br />

Os três pioneiros cultivavam a mútua estima.<br />

Em 1852, no alto da Montanha tinham como moradia, além<br />

da pequena e pobre capela, três cabanas, todas em madeira.<br />

As cabanas rústicas, uma para cada um, lhes servia de quarto,<br />

cozinha, e sala para acolher peregrinos. A neve se infiltrava pelas<br />

frestas. O vento gelado buscava abrigo nessas pobres moradas.<br />

Pe. Sibillat, dono de espírito jocoso, dizia:<br />

- “Quando, através das tábuas mal unidas de meu quarto,<br />

no silêncio desses lugares solitários, vejo uma estrela magnífica<br />

brilhando no firmamento, digo a mim mesmo com alegria: é o<br />

olhar de minha Mãe que vela sobre mim. Jamais trocaria essa<br />

minha cabana simpática por um palácio” (in JAOUEN, “Les<br />

Missionnaires...”, p. 29).<br />

Assim viveram os primeiros meses, de 25 de maio de 1852<br />

até o começo do inverno, quando desceram <strong>à</strong> Casa Paroquial<br />

de La Salette, para usufruírem de um ambiente mais cômodo e<br />

adequado para o intenso frio. Na primavera seguinte retomaram<br />

seu posto no alto da Montanha.<br />

A construção do Santuário progredia com rapidez, sob os<br />

cuidados da equipe. Com o Santuário, era erguida, em anexo,<br />

174


uma sólida hospedaria em pedra, para abrigar mais comodamente<br />

os Missionários. Os peregrinos também ali encontravam um<br />

lugar para se hospedar. O local da Aparição não ficaria mais<br />

abandonado durante o inverno.<br />

O início foi muito difícil material e comunitariamente.<br />

Os Missionários eram excelentes pessoas, zelosos sacerdotes<br />

e encantados pela Salette. Como Padres diocesanos não<br />

tinham experiência de vida comunitária. Carregavam grandes<br />

dificuldades nessa dimensão da vida. Cada um tinha seus ideais<br />

sem a prática de vivê-los em comum. Todos eram personalidades<br />

fortes, com diferentes modos de conceber um projeto de vida<br />

comunitária. <strong>De</strong>sejavam igualmente maior autonomia em relação<br />

<strong>à</strong> Diocese, e maior estabilidade de vida para melhor desempenho<br />

da missão que lhes havia sido confiada. A vida era complicada.<br />

Sonhavam, porém, em ser Religiosos.<br />

Ocupavam-se das obras de construção do Santuário e da<br />

pastoral junto aos peregrinos. O trabalho, no entanto, exigia não<br />

só a presença de Padres, mas, também de auxiliares leigos, tanto<br />

homens quanto mulheres. Em vista disso, Burnoud chamou sua<br />

mãe e sua irmã, e <strong>De</strong>naz, seu irmão e sua cunhada, para ajudálos<br />

nas tarefas diárias.<br />

Alguns moços e moças foram admitidos como funcionários<br />

e eventuais candidatos <strong>à</strong> Vida Religiosa. Esse grupo heterogêneo<br />

colaborava com os Missionarios, mas, representava um foco de<br />

problemas para a vida comum. A necessidade de se organizar a<br />

comunidade, mediante um regulamento, se tornou urgente.<br />

Burnoud, pessoa competente e com temperamento de chefe,<br />

alimentava grandes projetos. Projetava a Salette em dimensões<br />

mundiais. Segundo seu modo de pensar, os Missionários não<br />

podiam se enfeixar em âmbito diocesano apenas. Cedo pensou<br />

erigir com eles um verdadeiro Instituto Religioso, sólido e estável.<br />

Sendo Bispo de Grenoble Dom Ginoulhiac, Burnoud se<br />

dirigiu a ele em carta sem assinatura, a 15 de outubro de 1852.<br />

Muitas questões foram por ele expostas ao Bispo. Em algumas<br />

Burnoud perguntava ao Bispo a respeito da conveniência:<br />

175


- de professar o voto de pobreza, além da obediência prevista<br />

na Regra;<br />

- de reservar a pastoral do Santuário aos Missionários<br />

Diocesanos;<br />

- de se ter um Religioso na qualidade de Mestre de Noviços<br />

capacitado para propiciar uma formação aos Missionários, na<br />

linha das virtudes religiosas;<br />

- de definir, na Regra, de maneira explícita, as atribuições do<br />

Superior (cf. texto in NOVEL, “Du Corps...”, p. 16-17).<br />

Em carta enviada ao Bispo, a 8 de novembro de 1852,<br />

Burnoud explanou a vontade de os pioneiros viverem a Vida<br />

Religiosa. Em resposta, o Bispo pediu mais tempo. Recém<br />

chegado <strong>à</strong> Diocese, Dom Ginoulhiac sentia a necessidade de<br />

observar e refletir. Precisava também de tempo para preparar<br />

uma resposta aos opositores da Salette, por um texto que foi<br />

publicado mais tarde, a Instrução Pastoral e Mandamento de 4<br />

de novembro de 1854.<br />

Burnoud apresentou a Dom Ginoulhiac um projeto de Regra.<br />

No entanto, o Bispo se mostrou muito reticente a respeito, pois,<br />

nem todos os Missionários concordavam com o projeto, além de<br />

ele ter sido formulado sob a influência de uma “visionária” da<br />

região, Rosalie Pradell, conhecida como “La Solitaire”. Dizia-se<br />

que a Regra era fruto de revelações supostamente feitas a ela por<br />

Nossa Senhora.<br />

Além do mais, havia tensões no grupo em virtude da<br />

presença de uma irmã de Burnoud, que considerava os outros<br />

Missionários como funcionários subalternos a ela. Por isso era<br />

apelidada de “La Grande Supérieure”. Os Missionários queriam<br />

que ela fosse afastada do grupo da Montanha.<br />

Burnoud relutou afirmando que só continuaria no Santuário<br />

se sua Regra fosse aprovada, se sua irmã permanecesse na<br />

Montanha e se Pe. Sibillat fosse transferido. Contudo, em<br />

setembro de 1855, o Bispo afastou Burnoud do Santuário e o<br />

enviou a uma Paróquia.<br />

Chavrier substituiu Burnoud como Superior. Seu mandato,<br />

176


porém, durou apenas seis meses. Queria que o “Corpo de<br />

Missionários” se tornasse uma Congregação Religiosa com<br />

Regra diferente da atribuída a “La Solitaire”. A Regra proposta<br />

por ele provinha de outra “visionária”, Adèle Chevalier,<br />

postulante das Irmãs da Providência. Segundo essa “visionária”,<br />

a Regra lhe tinha sido revelada pela Santíssima Virgem. As Irmãs<br />

da Providência trabalharam no Santuário entre 1855 e 1872.<br />

Ao saber do caso, Dom Ginoulhiac perdeu a confiança em<br />

Chavrier também, e retardou mais ainda a organização do grupo<br />

como Comunidade Religiosa.<br />

Uma Regra não pode servir apenas para evitar problemas<br />

na comunidade. <strong>De</strong>ve, sobretudo, ser o ponto de encontro para<br />

objetivos definidos e para um espírito comum. Ora, nesse ponto,<br />

a falta de acordo entre os pioneiros, membros dessa comunidade<br />

experimental, era profunda. Havia os que desejavam concretizar<br />

um projeto comunitário mais vasto que compreenderia não<br />

somente Padres, mas também Irmãs e Irmãos dedicados ao<br />

ensino. Havia os que esperavam da parte do Bispo a aprovação<br />

de uma Regra “inspirada” que favorecesse uma novidade radical<br />

supostamente revelada.<br />

A par dessa situação confusa, a única luz surgiu de membros<br />

humildes a quem <strong>De</strong>us reservava a realização de seus desígnios:<br />

Archier e <strong>De</strong>naz. Os dois não se enganavam na percepção da<br />

vontade divina. Impregnados de bom senso, sonhavam com a<br />

Vida Religiosa, como a maior parte do grupo.<br />

A 4 de agosto de 1855, Pe. <strong>De</strong>naz se dirigiu a Dom<br />

Ginoulhiac, traçando claramente o caminho a ser seguido. O<br />

texto da carta diz:<br />

- “Chegado ao último dia de minha novena e prevendo que<br />

as ocupações de amanhã poderiam me tirar o tempo para lhe<br />

prestar conta do resultado naquilo que me compete, venho depor<br />

meus anseios aos pés de Vossa Excelência. A Vida Religiosa<br />

com os três votos, inicialmente temporários, mas, na esperança<br />

de depois desse tempo, torná-los perpétuos, intenção e tendência<br />

estas formuladas em Constituições como condição de admissão<br />

177


aos votos temporários, tal é minha opção e meu voto. Os motivos<br />

que me induzem a tanto, são:<br />

1º - Estou persuadido de que Nossa Senhora da Salette quer<br />

uma Congregação que esteja em relação com a importância e<br />

a extensão da obra cujos fundamentos Ela mesma veio lançar<br />

sobre a Montanha de La Salette, a 19 de setembro de 1846. E,<br />

por conseguinte, Ela quer uma Congregação que tenha em si<br />

mesma as condições de vida e duração que possam estendê-la<br />

para além dos limites da Diocese que é seu berço e centro; que<br />

possa ter sucursais em todos os lugares, uma vez que o Santuário<br />

principal é reproduzido em todas as partes por capelas locais<br />

erigidas sob o mesmo nome e em memória da mesma Aparição.<br />

2º - A Congregação de Nossa Senhora da Salette não<br />

pode oferecer essas condições de duração e de extensão sem o<br />

fundamento dos votos de obediência, de pobreza, etc.<br />

3º - O objetivo da divina Mensageira deve ser o de contrapor<br />

aos males da sociedade um remédio específico. Ora, salvo<br />

engano, os males que arruínam a sociedade são: a cupidês, a<br />

sensualidade, a impaciência em relação a toda e qualquer<br />

dominação. Os Missionários de Nossa Senhora da Salette<br />

devem, portanto, lhes contrapor o despojamento voluntário, a<br />

vida mortificada e penitente, a obediência absoluta, virtudes<br />

que não podem subsistir em sua perfeição sem os três votos de<br />

pobreza, castidade e obediência. Excelência, tais são os motivos<br />

que determinam minha opção. Os meios de subsistência dessa<br />

Congregação se encontram na própria obra. Sua Excelência<br />

pode por decisão pessoal garantir tais recursos para a duração<br />

dos votos temporários, e, com a expiração de tais votos, o<br />

Soberano Pontífice que receberá os votos perpétuos, sancionará<br />

a concessão perpétua das rendas da peregrinação e da obra. O<br />

Bispado poderá conservar a nua propriedade dos imóveis. As<br />

Religiosas de La Salette terão um só e mesmo interesse que os<br />

Missionários. A coabitação e a harmonia não poderão subsistir<br />

em outras condições. Digne-se, Excelência, acolher essa<br />

expressão simples e sincera do desejo e opiniões que ouso lhe<br />

178


fazer, Sr. Bispo, como o menor e o mais inútil, mas, um dos mais<br />

reconhecidos e dos mais submissos de seus filhos em Cristo e<br />

Maria. - Assina: Pe. <strong>De</strong>naz, Padre”.<br />

Em maio de 1856, o Bispo decidiu nomear Pe. Archier como<br />

Superior:<br />

- “Aceite a função que lhe confiamos, disse-lhe o Bispo;<br />

quanto menos de humano houver na direção, mais haverá de<br />

<strong>De</strong>us” (in JAOUEN, “Les Missionnaires...”, p. 39).<br />

A escolha de Pe. Archier como Superior não foi bem aceita.<br />

A comunidade o via como demasiadamente submisso ao Bispo.<br />

Archier pediu afastamento do cargo. Orcel, o Vigário Geral, o<br />

incentivou a permanecer na função. Humildemente, Archier se<br />

submeteu e durante vinte e dois anos, em dois períodos distintos,<br />

exerceu o cargo de Superior Geral com grande dedicação, o que<br />

permitiu o florescimento da Congregação.<br />

Pe. Archier, homem realista, humilde e tenaz, fiel <strong>à</strong> autoridade<br />

diocesana, recolheu as opiniões dos confrades em relação <strong>à</strong><br />

Regra, e as transmitiu ao Bispo. Por falta de acordo entre os<br />

membros da comunidade, o próprio Pe. Archier pediu ao Bispo<br />

que legislasse, definindo uma Regra para os Missionários. Era o<br />

caminho de superação do conflito.<br />

Pe. Orcel, Vigário Geral da Diocese, foi encarregado<br />

de redigir uma Regra provisória. O texto foi aprovado por<br />

Dom Ginoulhiac, para ser aplicado a partir de 2 de fevereiro<br />

de 1858. A Regra, outorgada pelo Bispo, se tornaria valioso<br />

instrumento para a abertura de novos horizontes para o “Corpo<br />

de Missionários Diocesanos”.<br />

A obra de organização interna do grupo passou, portanto,<br />

para as mãos de Dom Ginoulhiac, o estruturador da Congregação<br />

dos Missionários de Nossa Senhora da Salette. Dom Philibert<br />

lhes deu existência. Dom Ginoulhiac os estabeleceu como<br />

Comunidade Religiosa.<br />

Durante o retiro dos Missionários, em fevereiro de 1857, Dom<br />

Ginoulhiac lhes apresentou alguns elementos da Regra que estava<br />

sendo preparada. Em abril enviou cópia do texto ao Pe. Archier<br />

179


para que o grupo o analisasse. A reação foi negativa. O Bispo,<br />

contudo, permaneceu firme em sua decisão de resolver a questão.<br />

A 8 de novembro de 1857 Dom Ginoulhiac enviou uma carta<br />

ao Pe. Archier convocando os Missionários a que optassem, uma<br />

vez por todas, entre deixar o grupo ou emitir os votos religiosos<br />

e constituir uma Congregação de Direito Diocesano. A decisão<br />

seria formalizada a 2 de fevereiro seguinte, com a consituição da<br />

comunidade segundo o previsto na Regra outorgada. O texto da<br />

carta do Bispo é longo, claro e paternalmente exigente:<br />

- “Meu caríssimo Padre<br />

Dado que, provavelmente, não estarei em Grenoble por<br />

ocasião de vosso retiro, creio que é bom enviar-vos algumas<br />

palavras que tereis a bondade de comunicar a vossos Padres.<br />

Expressar-me-ei com simplicidade e com confiança muito<br />

paterna, pois, se todos os Padres de minha Diocese me são<br />

singularmente amados, os Padres de Nossa Senhora da Salette<br />

têm um dos primeiros lugares em meu coração. Nem sempre<br />

se compreendeu isso, e talvez não se compreenda totalmente<br />

ainda. Convencer-se-ão, enfim plenamente, menos por minhas<br />

palavras do que por minha conduta. É este sentimento que ditou<br />

minha proposição que foi aceita ao menos pela maioria, e que se<br />

tornou uma disposição dos estatutos que vos entreguei, a saber,<br />

que a obra dos Missionários de Grenoble estava unida <strong>à</strong> obra do<br />

Santuário. (...) <strong>De</strong>ssa forma, peço a todos os vossos Padres que<br />

tenham como irrevogáveis as medidas tomadas em conseqüência.<br />

Faço muita questão de que se chegue a emitir votos temporários.<br />

A emissão de votos, mesmo que seja por um ano, constitui<br />

definitivamente a comunidade. Esses votos deverão ser emitidos<br />

o mais tardar a 2 de fevereiro. (...) No mesmo dia da emissão<br />

dos votos, a comunidade deverá ser constituída conforme as<br />

prescrições da Regra. (...) Tudo me parece compreendido, meu<br />

caro Padre, naquilo que acabo de dizer. Vós não ignorais que há<br />

comunidades religiosas que se sentiriam felizes em assumir a<br />

obra de La Salette. Não creio que esta seja a vontade de <strong>De</strong>us, que<br />

seja a intenção de Maria. Nem é aquilo que eu quero. É preciso<br />

180


que a obra de La Salette brote das entranhas da Diocese e do Clero<br />

de Grenoble. (...) Conheço todos os vossos Padres, e amo-os a<br />

todos. Posso não aprovar as idéias particulares de alguns, apesar<br />

disso gozam de minha inteira confiança. Reconheço neles, com<br />

certeza, um espírito bom demais para não compreenderem, para<br />

não quererem que a obra de La Salette seja dirigida, governada<br />

pela autoridade estabelecida nessa Igreja. (...) Estou convosco e<br />

com todos os vossos Padres e convosco a todos abençôo. Bispo<br />

de Grenoble” (in NOVEL, “<strong>De</strong>s quatre... II – Edification de La<br />

Communauté”, p. 7-8).<br />

A 27 de janeiro de 1858, os Missionários se reuniram para o<br />

retiro. Orcel lhes fez uma consideração sobre os votos. Os votos<br />

foram assumidos para o período do ano de Noviciado, e ao final<br />

desse tempo, emitidos no sentido pleno da Regra.<br />

A 2 de fevereiro de 1858, seis Missionários emitiram, entre<br />

as mãos de Dom Ginoulhiac, os votos religiosos para o tempo de<br />

Noviciado: Archier, Berlioz, Albertin, Buisson, Petit e Bossan.<br />

Chavrier e Sibillat não deram esse passo. Pe. <strong>De</strong>naz não chegou a<br />

ver a realização de seu sonho, pois, havia morrido em abril de 1857.<br />

O Registro de Profissões Religiosas é sóbrio no relato do evento:<br />

- “No dia 2 de fevereiro de 1858, festa da Purificação da Santa<br />

Virgem e da Apresentação de Nosso Senhor no Templo, os Padres<br />

Archier, Berlioz, Albertin, Bossan, Buisson e Petit, Missionários<br />

de Nossa Senhora da Salette, abaixo assinados, apresentaram-se no<br />

Palácio Episcopal do Bispo de Grenoble, <strong>à</strong> uma hora da tarde. Foram<br />

introduzidos na capela particular de Sua Excelência, onde, após a<br />

oração do VENI CREATOR e uma alocução tão tocante quanto<br />

paterna de seu venerável Bispo, na presença dos Monsenhores<br />

Orcel, Chambon e Rousselot, Vigários Gerais, emitiram entre as<br />

mãos de Sua Excelência, por um ano, os três votos ordinários de<br />

religião, conforme a Regra dada e definitivamente promulgada por<br />

Sua Excelência. <strong>De</strong>pois da cerimônia, Sua Excelência se dignou<br />

receber em seu gabinete particular os mesmos Missionários,<br />

para proceder <strong>à</strong> organização da comunidade e <strong>à</strong> nomeação dos<br />

dignitários. <strong>De</strong>pois de ter solicitado, pelo parecer em escrutínio<br />

181


secreto, os votos dos membros abaixo assinados, Sua Excelência<br />

nomeou por um ano o Revdº. Pe. Archier como Superior da citada<br />

comunidade. <strong>De</strong>pois de dois outros escrutínios sucessivos, foram<br />

nomeados por Sua Excelência o Revdº Pe. Berlioz assistente, e o<br />

Revdº Pe. Buisson ecônomo para o presente ano (in JAOUEN,<br />

“Les Missionnaires...”, p.40-41)<br />

Pe. Jaouen comenta:<br />

- “Página modesta, mas, decisiva para o futuro. (...)<br />

Estariam resolvidas todas as dificuldades, amainadas todas as<br />

divergências? A Regra outorgada pelo Bispado a esses neófitos<br />

da Vida Religiosa é sumária: a respeito do objetivo e do espírito<br />

do Instituto principalmente, o campo permanece aberto a<br />

discussões. Durante alguns anos ainda, a pequena comunidade<br />

viverá dividida entre duas tendências: uns contemplam a Virgem<br />

em lágrimas, solitária na presença de <strong>De</strong>us, e gostariam de unir<br />

<strong>à</strong> austeridade da Trapa a salmódia de todas as horas canônicas;<br />

outros escutam a Virgem missionária e, no pretexto de dispor as<br />

próprias forças em busca das almas, se acomodariam numa forma<br />

de vida bastante ampla. As duas teses não são incompatíveis; a<br />

experiência mostrará mais tarde o que se podia reter de uma e<br />

de outra para fundi-las num mesmo espírito. Na espera disso,<br />

elas se confrontam em mil detalhes da vida cotidiana e, como<br />

acontece quando o amor próprio se infiltra, os homens se ferem<br />

através de suas idéias. É tempo para um sábio se levantar e fazer<br />

a experiência da caminhada (JAOUEN, “Les Missionnaires...”,<br />

p. 41-42). O sábio, na verdade, já estava entre eles, sem que o<br />

percebessem: Pe. Sylvain Marie Giraud.<br />

Com a profissão religiosa, os Missionários de Nossa Senhora<br />

da Salette passaram definitivamente da situação canônica de<br />

“Corpo de Missionários Diocesanos” para a de Congregação<br />

Religiosa de Direito Diocesano em 1858, e de Direito Pontifício<br />

em 1879. Para a história da Congregação, posterior a 1858,<br />

veja-se “Uma pesquisa nas origens e na evolução do carisma<br />

dos Missionários de Nossa Senhora da Salette”, de Pe. Eugène<br />

G. Barrette MS.<br />

182


Inspirada no Fato e Mensagem da Aparição da Bela Senhora,<br />

a Congregação em sua configuração atual, é, pois, o resultado da<br />

evolução interna dos pioneiros e de seus sucessores, a quem,<br />

desde as origens, Dom Philibert denominou “Missionários de<br />

Nossa Senhora da Salette”, evolução vivida com o impulso<br />

inicial dos Bispos de Grenoble: Dom Philibert, o fundador<br />

(1826-1852), Dom Ginouilhac, o legislador (1853-1870), e Dom<br />

Fava, o animador missionário (1875-1899).<br />

5 - O Carisma<br />

Segundo a teologia paulina, são muitos os “carismas” ou<br />

“dons de amor”, na etimologia da palavra, que <strong>De</strong>us, em sua<br />

bondosa e infinita liberdade, concede a pessoas ou instituições<br />

para o bem de todo o seu Povo.<br />

O carisma da Reconciliação é objeto de especial consideração<br />

por parte de Paulo, num contexto eclesial dele necessitado. Disso<br />

dá testemunho na 2ª Carta aos Coríntios 5, 17-21, e em outros<br />

textos.<br />

O carisma concedido a uma instituição eclesial é o benévolo<br />

e divino sopro de vida que a anima e dá sentido <strong>à</strong> missão para<br />

a qual é convocada. Vocação, carisma, consagração e missão<br />

formam o conjunto que dá especificidade a uma Congregação<br />

fundada para dar testemunho do amor de <strong>De</strong>us para com seu<br />

Povo.<br />

O evento extraordinário de 19 de setembro de 1846 é o<br />

núcleo inspirador da intuição espiritual e pastoral de Dom<br />

Philibert de Bruillard, ao decidir a construção de um Santuário<br />

e a criação dos Missionários de Nossa Senhora da Salette. É<br />

idêntica a corrente vital que corre nas veias dos dois eventos.<br />

As raízes mais profundas e fortes do Carisma e da Missão<br />

da Congregação dos Missionários de Nossa Senhora da Salette<br />

se encontram, pois, no solo fértil do Fato e da Mensagem da<br />

Aparição da Bela Senhora, reflexo da Mensagem do Evangelho<br />

e fonte de sua identidade fundacional.<br />

183


A Congregação recebeu esse dom amoroso do Pai por meio<br />

da Maria. Em Salette, Ela acena para o mistério da Reconciliação<br />

que <strong>De</strong>us realiza com seu Povo disperso, convocado <strong>à</strong> conversão.<br />

A Reconciliação, categoria teológica e pastoral, esquecida<br />

pela prática eclesial desde a Idade Média, foi reavivada a partir<br />

do extraordinário movimento de peregrinações e conversões<br />

que a Aparição em La Salette propiciou. Esse mistério divino foi<br />

decisivo para as subseqüentes atitudes do Bispo de Grenoble. O<br />

carisma da Reconciliação se tornou o cerne vital da Congregação<br />

Saletina.<br />

Em sua imensa riqueza sobrenatural, a Aparição desde<br />

o início foi lida como renovada manifestação da infinita<br />

misericórdia de <strong>De</strong>us através da compaixão da Virgem Mãe<br />

Maria face ao pecado e sofrimento de seu Povo. Misericórdia e<br />

compaixão que clamam pela conversão do Povo, e esperam que<br />

ele se deixe reconciliar com <strong>De</strong>us.<br />

As atitudes de Maria durante a Aparição, bem como a<br />

sua evangélica Mensagem, são reveladoras desse mistério<br />

de misericórdia e compaixão: seu materno chamado para os<br />

filhos estarem junto <strong>à</strong> Mãe, a compassiva solidariedade face<br />

aos sofrimentos do povo, a convocação para uma confiante<br />

submissão ao Filho Jesus, a denúncia dos males praticados, a<br />

certeza da misteriosa e amorosa presença de <strong>De</strong>us junto a seus<br />

filhos, o anúncio de nova realidade humana construida pela<br />

conversão, o envio para a transmissão da “grande nova”.<br />

Maria, em Salette, apresenta a seu Povo um vasto programa<br />

de vida cristã, com acento na conversão-reconciliação. É o<br />

programa do próprio Cristo em seu Evangelho. Esse núcleo<br />

indicativo da vida nova que <strong>De</strong>us deseja promover e que Maria<br />

vem relembrar a seu Povo foi o impulso para as multidões se<br />

dirigirem ao local da Aparição e ao confessionário do perdão.<br />

A impressionante onda de conversões, como imediata reação<br />

do Povo de <strong>De</strong>us ao evento da Aparição, levou o Pároco de La<br />

Salette e seu Vigário Paroquial a perceber que a Reconciliação<br />

era a caraterística teológica e pastoral essencial do evento, e a<br />

184


instituir, logo após, em 1848, a Confraria de Nossa Senhora da<br />

Salette que invoca Maria como Reconciliadora dos pecadores.<br />

Essa é a graça de que fala Dom Ginoulhiac, em sua Instrução<br />

Pastoral e Mandamento de 1854, ao afirmar:<br />

- “A Salette, é preciso não esquecer, não é uma nova doutrina,<br />

ela é uma nova graça!” (in BASSETTE, p. 373).<br />

A graça da Reconciliação. Graça concedida a todo o Povo de<br />

<strong>De</strong>us. A “grande nova” de Maria em sua Aparição em La Salette.<br />

O carisma dos Missionários ali estava embutido. Dom<br />

Philibert o intuiu, implicitamente o assumiu e aplicou a seu<br />

Corpo de Missionários Diocesanos. O texto do Mandamento<br />

episcopal de 1º de maio de 1852 que os constituiu, é o indicativo.<br />

Lendo o evento da Salette com olhar de Pastor, e<br />

impressionado com as numerosas peregrinações e confissões<br />

que transformavam a vida do povo da região, o Bispo decidiu<br />

anunciar a construção do Santuário na Montanha bendita, para<br />

acolher o povo em busca de <strong>De</strong>us por meio da Mãe da Compaixão<br />

reconciliadora. <strong>De</strong>cidiu igualmente anunciar, de maneira solene,<br />

algo mais importante ainda conforme dizia: a constituição dos<br />

Ministros do Santuário, denominados Missionários de Nossa<br />

Senhora da Salette.<br />

Na mente do Bispo, a origem e existência do Santuário e dos<br />

Missionários estão intimamente ligadas ao Fato da Aparição:<br />

- “Sua criação e sua existência (dos Missionários) serão,<br />

como o próprio Santuário, um monumento eterno, uma lembrança<br />

perpétua da Aparição misericordiosa de Maria. (...) Essas duas<br />

obras só se tornaram possíveis em virtude da Aparição, e para<br />

sempre perpetuarão a lembrança da Aparição” (in BASSETTE,<br />

Mandamento de 1º de maio de 1852, p. 275-280).<br />

A ampla finalidade do Instituto Missionário é declarada no<br />

mesmo Mandamento:<br />

- “São ministros da religião destinados a servi-lo (o Santuário),<br />

a acolher os piedosos peregrinos, a anunciar-lhes a palavra de<br />

<strong>De</strong>us, a exercer para com eles o ministério da reconciliação,<br />

a lhes administrar o augusto sacramento dos nossos altares,<br />

185


e a ser para todos os fiéis os dispensadores dos mistérios de<br />

<strong>De</strong>us (1 Cor 4,1) e dos tesouros espirituais da Igreja(...) Esses<br />

Padres, escolhidos entre muitos outros, para serem modelo e<br />

auxiliares do Clero das vilas e campanhas (...) estarão sediados<br />

na montanha durante a estação de peregrinações, e durante o<br />

inverno evangelizarão as diferentes paróquias da Diocese...”<br />

(id. ib).<br />

As sementes da vida apostólica foram semeadas juntamente<br />

com as da vida comunitária, todas vivificadas pela graça da<br />

Aparição da Mãe da Reconciliação, como A intitulava Santo<br />

Anselmo de Cantuária. Aberto pelo Bispo, o panorama de vida<br />

espiritual e de ação pastoral a ser vivido pelos Missionários, é<br />

extenso.<br />

Três fios tecem a existência dos Missionários de Nossa<br />

Senhora da Salette:<br />

- Maria, Reconciliação e Missão.<br />

Suas grandes linhas carismáticas são:<br />

- espiritualidade mariana, reconciliadora e missionária.<br />

- Espiritualidade mariana: os Missionários serão uma<br />

“perpétua lembrança da Aparição misericordiosa de Maria”.<br />

Em sua decisão, o Bispo criou um nexo inquebrantável entre<br />

o sentido da equipe e o evento da Salette. Estabeleceu a figura<br />

de testemunhas da Aparição, de anunciadores da Mensagem<br />

da Bela Senhora, de pessoas impregnadas de espiritualidade<br />

mariana e reconciliadora.<br />

Em sua profunda devoção a Maria, Dom Philibert<br />

encontrou na Aparição o caminho para repassar a caraterística<br />

do espírito marial <strong>à</strong> instituição missionária que estava criando.<br />

É uma caraterística essencial da Instituição. Trata-se de uma<br />

comunidade missionária mariana.<br />

Maria é a primeira Missionária ao anunciar a Elisabete a<br />

chegada do Messias Salvador. Ela evangeliza ao solicitar aos<br />

serventes das Bodas de Caná que fizessem tudo o que seu Filho<br />

lhes diria. Ela é a Discípula-ouvinte da Palavra de seu Filho,<br />

na companhia dos discípulos de Jesus que, com Ele, descem<br />

186


a Cafarnaum, depois das Bodas de Caná. Ela é a Mãe da<br />

Comunidade-Igreja dos discípulos que Jesus, no alto da Cruz,<br />

lhe confia como filhos.<br />

- Espiritualidade reconciliadora: o mistério e o ministério<br />

da Reconciliação é outra caraterística essencial, assinalada<br />

no Mandamento. Em Salette, Maria retoma a “Grande Nova<br />

da Reconciliação” anunciada por seu Filho, e pede que seja<br />

transmitida a todo seu Povo. É o selo impresso por Dom Philibert<br />

sobre a face da comunidade por ele fundada.<br />

O serviço permanente ao Santuário confiado aos Missionários<br />

exigia a vivência do mistério da Reconciliação pelo exercício<br />

intenso e generoso do ministério da Reconciliação, entre outras<br />

atividades pastorais. Dom Philibert tinha consciência disso.<br />

A Reconciliação se tornou o núcleo do carisma da<br />

instituição missionária e mariana saletina. Nisso os Missionários<br />

paulatinamente concentraram sua espiritualidade.<br />

Se a dimensão mariana desse carisma sempre foi perceptível,<br />

a dimensão reconciliadora como hoje é entendida, percorreu um<br />

caminho mais longo para se tornar evidente. Estava implícita,<br />

porém, na prática pastoral dos Missionários.<br />

Na época, a Reconciliação era entendida de maneira mais<br />

restrita, como Sacramento da Penitência ou “Confissão”,<br />

caminho de conversão do pecador, a ser vivenciada na prática<br />

da oração, da reparação e da expiação. Na época, “expiação”<br />

e “reparação” eram parte da concepção teológica e espiritual<br />

rigorista da vida cristã, concepção que via em <strong>De</strong>us a figura de<br />

uma “Divindade irada” a ser “aplacada” para evitar “castigos”<br />

por causa do pecado humano. É a concepção de muitos que ainda<br />

lêem com esse olhar as palavras de Maria em Salette quando fala<br />

do “braço de meu Filho”.<br />

- Espiritualidade missionária, assumida e vivida na missão<br />

do grupo.<br />

Essas dimensões do carisma foram expressas de maneira<br />

variada nas sucessivas Regras de Vida estabelecidas pela<br />

Congregação.<br />

187


O Mandamento de 1º de maio de 1852 indicava as grandes<br />

linhas para a espiritualidade e a vida pastoral dos Missionarios.<br />

<strong>De</strong>pois do Mandamento, o Bispo lhes deu a Regra dos<br />

Cartuxos de Lyon. A Regra declarava Nossa Senhora da Salette<br />

como Padroeira da comunidade. Previa o voto de obediência<br />

ao Bispo, por três anos seguidos de votos perpétuos. Indicava<br />

uma série de atividades pastorais. <strong>De</strong>finia normas de governo.<br />

Normatizava a admissão de candidatos ao Noviciado. <strong>De</strong>finia<br />

certos exercícios espirituais. <strong>De</strong>terminava normas para a<br />

demissão de membros da comunidade. Embora os membros<br />

não fizessem voto de pobreza, eram incitados a viverem na<br />

simplicidade e pobreza convenientes a pessoas apostólicas. Pelos<br />

votos perpétuos eles se tornavam irrevogavelmente membros da<br />

sociedade de Missionários que vivem em comunidade.<br />

A primeira Regra, porém, logo demonstrou sua insuficiência.<br />

O Mandamento de Dom Philibert, embora mais breve, é mais rico<br />

na perspectiva teológica para a vida de uma comunidade apostólica.<br />

A segunda Regra, de 2 de fevereiro de 1858, aplicada por<br />

Dom Ginoulhiac, continha mais elementos para a estruturação<br />

da vida comunitária religiosa. Era provisória também. Precisava<br />

de maiores explicitações.<br />

Por ela Dom Ginoulhiac manifesta que “está consciente<br />

quanto <strong>à</strong> intenção de seu predecessor e quer que ela seja levada<br />

<strong>à</strong> frente sem alteração” (ROGGIO, p. 13).<br />

Nela constam os elementos básicos para a organização interna<br />

da Comunidade, para admissão e formação dos candidatos, para<br />

a profissão e vivência dos três votos, para a vida de oração,<br />

para a função de Superior, do Assistente e do Ecônomo. Vinha<br />

acompanhada por um “Costumeiro”, um conjunto de normas<br />

para a vida prática, diária, semanal e mensal da Comunidade.<br />

Além desses elementos, a grande novidade da Regra de<br />

1858 está na descrição do “espírito” próprio dos Missionários de<br />

Nossa Senhora da Salette. Contém elementos valiosos para sua<br />

espiritualidade e carisma. Tais elementos foram mantidos desde<br />

então nos textos constitucionais da Congregação. O texto afirma:<br />

188


- “O espírito próprio dessa Comunidade, tirado das palavras<br />

e atitudes da Santa Virgem, aparecendo sobre essa montanha<br />

venerada, deve ser um espírito de oração, de zelo e de expiação”<br />

(in “Règles provisoires pour les Missionnaires Diocesains de<br />

Notre Dame de La Salette, 2 février 1858).<br />

Segundo o texto da Regra, as três dimensões desse “espírito”<br />

– oração, zelo e expiação - acenam para a conversão dos<br />

pecadores, para a reconciliação, portanto.<br />

Um dado novo é assumido pela Regra ao falar do “zelo” no<br />

combate “aos males presentes na sociedade cristã”, segundo o<br />

pensamento de Pe. <strong>De</strong>naz: o ter, o poder e o prazer.<br />

Essa regra foi complementada a 8 de fevereiro de 1862<br />

para regulamentar a admissão, formação e missão de candidatos<br />

<strong>à</strong> categoria de Irmãos dentro da Congregação que até então<br />

era exclusivamente sacerdotal. No texto complementar, os<br />

candidatos a Irmão deviam ser formados no mesmo “espírito de<br />

caridade, de oração, de zelo e de expiação”.<br />

Mais tarde, num projeto de Regra que Pe. Giraud, a<br />

título pessoal, elaborou em 1872, e que serviu de base para<br />

discussões no Capítulo Geral de 1876, se afirma que o espírito<br />

da Congregação “é principalmente um espírito de expiação em<br />

favor dos pobres pecadores”.<br />

O Capítulo Geral de 1876 pôs mais uma vez a Congregação<br />

em relação direta com a Aparição da Salette. Apostólica em sua<br />

finalidade, a Congregação se doa, em suas atividades, <strong>à</strong> conversão<br />

dos pecadores, combatendo, em sua missão, as desordens, objeto<br />

das queixas de Maria. Nossa Senhora, sentada e chorando,<br />

inspira aos Missionários um sentimento inconsolável por causa<br />

das ofensas a <strong>De</strong>us, e viva compaixão pelos pobres pecadores.<br />

Nossa Senhora, de pé e falando com os pastores, encoraja os<br />

Missionários a doarem-se com zelo apostólico por causa dos<br />

pecados e desordens na humanidade. Esse espírito fará com que<br />

os Missionários da Salette se entreguem a obras de expiação e<br />

reparação, em vista da conversão dos pecadores, da renovação<br />

da terra e do combate aos males pesentes entre os homens.<br />

189


As Constituições adotadas em 1880 declaram:<br />

- “O espírito da Congregação é apostólico em seu objetivo.<br />

Os Missionários se aplicarão, sobretudo, ao combate contra os<br />

grandes males da época; a fazer conhecer Jesus Cristo Crucificado<br />

e a Mãe das Dores; buscarão na união com Eles, pela penitência<br />

e pela oração, o espírito de reparação e a força para levar adiante<br />

os estudos e trabalhos do ministério”.<br />

Pequenas variantes de caráter literário aparecem nos textos<br />

constitucionais posteriormente assumidos pela Congregação.<br />

O conteúdo, porém, permaneceu idêntico, no contexto da<br />

espiritualidade e missão da Reconciliação.<br />

O carisma da Reconciliação paulatinamente percorreu seu<br />

caminho em busca de maior compreensão. Nesse caminho<br />

sobreveio o influxo teológico, bíblico e pastoral do Concílio<br />

Vaticano II que permitiu aos Missionários de Nossa Senhora da<br />

Salette aprofundar o sentido da ação reconciliadora de Cristo<br />

por eles assumida como carisma congregacional. A pesquisa nas<br />

origens da Congregação e nos documentos conciliares permitiu<br />

melhor compreensão da Igreja e do Mundo. Os documentos<br />

Lumen Gentium, Gaudium et Spes, <strong>De</strong>i Verbum, e Ad Gentes<br />

exerceram forte impacto. O sentido da Reconciliação dali surgiu<br />

em toda sua grandeza e complexidade.<br />

A Regra de Vida atual, aprovada pelo Capítulo Geral de 1982,<br />

no nº 4 da 1ª Parte, assim expressa o espírito da Congregação:<br />

- “Animados pelo Espírito Santo que levou o Filho de <strong>De</strong>us<br />

a viver nossa condição humana e a morrer sobre a cruz para<br />

reconciliar o mundo com seu Pai, nós, <strong>à</strong> luz da Aparição de<br />

Nossa Senhora da Salette, queremos ser servidores devotados<br />

do Cristo e da Igreja em vista do cumprimento do mistério da<br />

Reconciliação”.<br />

Contemporaneamente <strong>à</strong> elaboração da atual Regra de Vida,<br />

realizavam-se na América Latina as Conferências Episcopais<br />

de Medellin, em 1968, e de Puebla, em 1979. A Teologia da<br />

Libertação e a Pastoral Latinoamericana das Comunidades de<br />

Base seguiam seu curso na época.<br />

190


Sob a influência desses eventos eclesiais, a Província dos<br />

Missionários de Nossa Senhora da Salette, no Brasil, intuiu<br />

maior extensão no conceito de Reconciliação ao entendê-la na<br />

dimensão libertadora.<br />

A Reconciliação Libertadora leva em conta as fraturas<br />

pessoais tanto quanto as familiares e sociais para que pessoas<br />

e comunidades humanas sejam libertadas de toda divisão,<br />

injustiça e opressão. Onde fraturas humanas se apresentam, a<br />

Reconciliação se faz exigência do Reino de <strong>De</strong>us. O Êxodo e<br />

as Cartas de Paulo aos Coríntios e Efésios conduzem a essa<br />

compreensão da Reconciliação.<br />

A expressão “Reconciliação Libertadora” teve uso corrente<br />

como princípio de ação pastoral. “Reconciliados para Reconciliar”<br />

é um princípio de vivência espiritual. Quer significar que os<br />

Missionários são endereço do Mistério da Reconciliação ao<br />

mesmo tempo em que atuam no Ministério da Reconciliação.<br />

Essa visão do carisma da Reconciliação encontrou eco no<br />

texto da Regra de Vida em uso atualmente pela Congregação.<br />

Cristo, Maria, Igreja, Salette, Congregação e Mundo<br />

implicam-se mutuamente no Mistério da Reconciliação. Esse<br />

mistério ultrapassa as grades canônicas do confessionário. Exige<br />

um Ministério de Reconciliação de que fala Paulo em 2 Cor 5,<br />

17-21, e que vai além da esfera litúrgico-sacramental.<br />

A vida humana com seus conflitos e o mundo com seus<br />

dramas precisam de “embaixadores” da Reconciliação que, em<br />

nome de Cristo, clamem pela palavra e pelo testemunho:<br />

- “<strong>De</strong>ixai-vos reconciliar com <strong>De</strong>us!”<br />

Esse é o “dom-carisma” que o Pai, pelo Cristo, confiou <strong>à</strong> Igreja e<br />

por ela <strong>à</strong> Congregação dos Missionários de Nossa Senhora da Salette.<br />

6 - A MISSÃO<br />

O Mandamento de 1º de maio de 1852 delegou aos<br />

Missionários a tarefa de servir os peregrinos junto ao Santuário,<br />

como pregadores da Palavra do Senhor, anunciadores da<br />

191


Mensagem da Bela Senhora, ministros da Reconciliação e da<br />

Eucaristia, dispensadores fiéis dos mistérios de <strong>De</strong>us, modelos<br />

do Clero e seus auxiliares pela pregação de missões e retiros<br />

nas Paróquias da Igreja Local. Santuário e Missionários nascem<br />

juntos. São irmãos gêmeos para sempre. O Santuário é o campo<br />

primeiro da ação pastoral dos Missionários. O programa que o<br />

Bispo lhes deixou, é de largo espectro.<br />

O Santuário deveria ser digno da Rainha do Céu como<br />

testemunho de gratidão para com Ela, e ser digno da Diocese de<br />

Grenoble. Contudo, ele não seria construido para uma localidade<br />

apenas, mas, para o universo inteiro.<br />

A missão, confiada pelo Bispo <strong>à</strong> equipe, requeria a pobreza<br />

de vida do homem apostólico:<br />

- “Segundo sua intenção, os missionários deviam ser homens<br />

capazes de abraçar a vida pobre dos apóstolos e de pessoas<br />

convictas de que a graça da Aparição deveria dar a possibilidade<br />

de enfrentar o transcorrer do tempo e de estar próxima, e de se<br />

aproximar também das futuras gerações” (ROGGIO, p. 7).<br />

Inspirado na Aparição, Pe. <strong>De</strong>naz, um dos Pioneiros, em<br />

carta a Dom Ginoulhiac a 4 de agosto de 1855, assinalou mais<br />

um aspecto para a missão pastoral da equipe:<br />

- “O objetivo da divina Mensageira deve ser o de opor aos<br />

males da sociedade um remédio específico” (JAOUEN, “Les<br />

Missionnaires...”, 38): cupidês, sensualidade e dominação.<br />

A intuição de <strong>De</strong>naz abriu mais uma porta pastoral, para<br />

uma pastoral sem fronteiras. Os Missionários eram convidados<br />

a sair por ela e se dirigir a um mundo fraturado pelo pecado e<br />

necessitado de conversão na Reconciliação. Era peciso descer<br />

da montanha da contemplação e se confrontar com os males<br />

de todo tipo que inundam a baixada humana. Por esse vasto<br />

Ministério de Reconciliação se daria sequência ao cumprimento<br />

do Mistério de Reconciliação, na ótica de São Paulo.<br />

- “É um corpo de missionários diocesanos que desde já<br />

instituimos”, afirmou o Bispo. Embora assinalasse que a Bela<br />

Senhora tinha aparecido para o mundo, e não só para a Diocese<br />

192


de Grenoble, o Bispo visava, em primeiro lugar, as necessidades<br />

de seu rebanho diocesano. A dimensão universal da equipe<br />

apareceria depois, na medida em que as circunstâncias eclesiais<br />

concretas exigiriam e possibilitariam a ampliação do projeto<br />

saletino.<br />

Tornando-se Congregação Religiosa de Direito Pontifício,<br />

o grupo conservou sempre a orientação missionária impressa<br />

desde as origens, ultrapassando os limites da Diocese de<br />

Grenoble para exercer a missão na amplidão universal.<br />

A Regra de 1852 assinalava como objetivo primeiro e principal<br />

dos Missionários as missões e retiros, o serviço ao Santuário, a<br />

direção de Seminários Menores, e o ensino <strong>à</strong> juventude.<br />

A Regra de 1858 determinava mais uma vez o serviço ao<br />

Santuário, a evangelização na Diocese de Grenoble, e a missão<br />

em outros locais, conforme as indicações da Providência.<br />

Para a Regra de 1876, a missão da Congregação é a conversão<br />

dos pecadores, o serviço <strong>à</strong> peregrinação da Santa Montanha e<br />

outros Santuários menores dedicados a Nossa Senhora da Salette,<br />

os retiros e as missões paroquiais quando seriam combatidos os<br />

males nelas existentes. A abertura de uma Escola Apostólica na<br />

Diocese de Genoble também se tornou necessária.<br />

O encargo direto de Paróquias foi assumido, bem como a<br />

missão “ad gentes” na Noruega, em 1879, e em outros países, a<br />

seguir.<br />

Essas indicações para a missão da Congregação se mantiveram<br />

ao longo dos tempos, com variações literárias apenas.<br />

No nº 23 da atual Regra de Vida da Congregação, aprovada<br />

pelo Capítulo Geral de 1982, se diz:<br />

- “Inspirando-nos na Mensagem de Nossa Senhora da<br />

Salette, empenhamos nossos esforços:<br />

- na reconciliação dos pecadores e na libertação de todos os<br />

homens na submissão <strong>à</strong> vontade do Pai;<br />

- no despertar e no aprofundamento da fé no Povo de <strong>De</strong>us,<br />

para que todas as realidades humanas sejam iluminadas pela luz<br />

do Evangelho;<br />

193


- no anúncio da Boa Nova onde ela não é conhecida ainda;<br />

- na mútua compreensão e aproximação das diferentes<br />

religiões, na caridade e na verdade;<br />

- na luta contra os males que, hoje, comprometem o desígnio<br />

salvífico de <strong>De</strong>us e a dignidade da pessoa humana.<br />

Nesses diferentes engajamentos apostólicos, destacamos o<br />

incomparável papel que Maria teve na história da salvação, e<br />

que, hoje ainda, é o seu na vida da Igreja”.<br />

Nesse caminho congregacional, iluminado pelo Espírito<br />

de Cristo e pelo testemunho da Virgem Maria, as Irmãs e a<br />

Arquiconfraria se unem aos Missionários de Nossa Senhora<br />

da Salette, na realização da missão que brota do Evangelho da<br />

Reconciliação e da Mensagem da Bela Senhora. Muitos Leigos<br />

Saletinos também se associam, hoje, a esse projeto de vida<br />

inspirado pela Mãe da Reconciliação:<br />

“Pois bem, meus filhos, transmitam isso a todo o meu Povo!”<br />

194


APÊNDICE<br />

CAPÍTULO I<br />

O PERCURSO DE VIDA DOS VIDENTES<br />

A missão dos dois pastores, como privilegiados videntes<br />

da Aparição da Bela Senhora, concluiu com a publicação do<br />

Mandamento Doutrinal de Dom Philibert de Bruillard, a 19<br />

de setembro de 1851. Começava, então, a missão da Igreja,<br />

na expresão de Dom Ginoulhiac em sua Instrução Pastoral<br />

e Mandamento de 4 de novembro de 1854, ao confirmar<br />

plenamente a decisão de Dom Philibert.<br />

No II parágrafo da Instrução Pastoral e Mandamento, Dom<br />

Ginoulhiac, fazendo a distinção entre o Fato da Salette e a vida<br />

dos videntes, afirmou:<br />

- “Se o caráter moral dos dois pastores, tal como era a 19 de<br />

setembro de 1846, pouco importa <strong>à</strong> realidade do Fato da Salette,<br />

o que eles se tornaram depois importa muito menos ainda” (in<br />

BASSETTE, p. 355).<br />

Uma vez reconhecida a autenticidade da Aparição por parte<br />

da Igreja, a missão dos videntes se tornou responsabilidade da<br />

própria Igreja.<br />

Importa saber, no entanto, como os videntes conviveram<br />

com as seqüelas do evento. Conhecer a vida de Maximino e<br />

de Melânia posteriormente <strong>à</strong> Aparição é, sem dúvida, razão de<br />

surpresa e admiração.<br />

A partir do final de 1850, ao deixarem o Colégio de Corps, os<br />

videntes seguiram o próprio caminho. Distantes, a vida de ambos<br />

se tornou errante, transumante, como a permanente transumância<br />

dos rebanhos que vagueiam pelas montanhas em busca de<br />

pastagem. Na inconstância permanente de sua vida, sem dúvida<br />

procuravam a paz amorosa que haviam vivido, por uns momentos,<br />

na presença da Bela Senhora, na solidão da Montanha da Salette.<br />

195


É de se perguntar por que Maximino e Melânia não foram<br />

canonizados ainda. Considerado seu percurso de vida, pode-se<br />

dizer que, se não foram postos ainda sobre os altares, certamente<br />

ambos vivem entre os braços eternamente carinhosos da Bela<br />

Senhora, no profundo do coração de <strong>De</strong>us.<br />

A “palavra pessoal”, recebida por eles durante a Aparição,<br />

foi firmemente guardada em seu coração, por toda a vida, apesar<br />

das tribulações vividas. A ternura materna da Bela Senhora ficou<br />

eternamente impressa em seu viver.<br />

A “mensagem pública” da Bela Senhora para o bem do Povo<br />

de <strong>De</strong>us, porém, foi comunicada <strong>à</strong> Igreja, por ela foi aceita e a<br />

ela pertence. É mensagem de conversão, de reconciliação, de<br />

vida nova em Cristo. É mensagem que retoma o que está no<br />

coração do Evangelho do Filho da Bela Senhora. Seu anúncio é<br />

tarefa da Igreja, a missionária do Senhor.<br />

196<br />

1 - MAXIMINO: inconstância de vida na fidelidade <strong>à</strong><br />

Bela Senhora<br />

Maximino, apesar de sua pouca eficiência, punha-se a<br />

serviço do “bon papa Pe. Mélin”. O Pároco de Corps sempre<br />

teve grande carinho por ele e por Melânia.<br />

Padre Mélin incentivou e ajudou Maximino quando, depois<br />

do Incidente de Ars, o menino entrou no Seminário de Rondeau,<br />

perto de Grenoble. Para tanto, a permissão do tio Templier havia<br />

sido solicitada por sugestão de Dom Philibert, a 1º de outubro<br />

de 1850.<br />

Como seminarista, o garoto gostava de passar férias em<br />

Corps onde era bem cuidado pelas Irmãs. Frequentemente subia<br />

ao alto do Monte da Aparição, em companhia de Pe. Mélin e de<br />

grupos de peregrinos.<br />

A 28 de outubro de 1850, estando no Seminário, Maximino<br />

enviou ao Pároco uma carta muito singular:<br />

- “Agradeço-lhe imensamente pelos muitos bens que de<br />

vós recebi nesses quatro anos. Vós me servistes de pai, vós


me cuidáveis mais que meu pai, vós me dáveis a instrução que<br />

meu pai não podia me dar e eu não passava de um ingrato para<br />

convosco. <strong>De</strong>sobedeci a vós até o último ponto. Eu vos irritei,<br />

e dou testemunho do meu reconhecimento de minha ingratidão:<br />

oh miserável! É como se diz: a ingratidão é um vício revoltante:<br />

tende piedade de um pobre ingrato para convosco, dirigilhe<br />

algumas palavras de consolo. Pareceu que perdia vossos<br />

benefícios, mas não. <strong>De</strong>us vos recompensará: Ele vos promete<br />

uma coroa eterna por causa de vossa paciência para comigo e<br />

para com meu tio. <strong>De</strong>us vos recompensará por todas as vossas<br />

boas obras a meu favor. Rezarei bastante por vós: vós rezareis por<br />

mim para que possa fazer bem meus estudos. Se demorei tanto<br />

em vos escrever é porque tinha medo de vós como o pai Adão<br />

tinha medo de <strong>De</strong>us depois de seu pecado: dignai-vos perdoar<br />

um ingrato, um pobre pastor das Montanhas. Permiti-me, peçovos<br />

que vos chame de meu pai porque vós sois mais do que<br />

meu pai e eu sempre vos desobedeci: infeliz que sou! Perdoaime,<br />

vos peço... Quanto a minha atividade, vos comunicarei mais<br />

tarde...” (in V. H., II, p. 162-163).<br />

Durante as férias de 1851, Maximino foi <strong>à</strong> Grande Chartreuse<br />

para um retiro de oito dias. No retorno, entrou no Seminário<br />

de Côte Saint-André. Achava-se que ali seria menos procurado<br />

pelos curiosos.<br />

No Seminário, porém, como Dom Ginoulhiac observaria<br />

mais tarde em sua Instrução Pastoral e Mandamento, Maximino<br />

se pôs a brincar de “profeta”, inventando “predições” que<br />

nada tinham a ver com a Aparição, mas, atemorizavam os<br />

colegas e faziam-no rir. Achava graça das pessoas quando o<br />

levavam demasiadamente a sério. Esse tipo de comportamento<br />

vivido entre 1851 e 1853, no Seminário, motivou sua saída<br />

da instituição. Era o comportamento demonstrado, antes, por<br />

ocasião de sua visita a Ars, em 1850, e posteriormente, na<br />

redação de seu “segredo” enviado ao Papa Pio IX, em 1851. Um<br />

defeito quase incontrolável. Isso, no entanto, não impediu que<br />

Maximino levasse uma vida de excelente cristão.<br />

197


A infância de Maximino não foi tão infeliz quanto a de<br />

Melânia. Sofreu muito, porém, nos seus primeiros anos de<br />

vida, pela perda da mãe. Carregava consigo, portanto, sérios<br />

problemas afetivos. <strong>De</strong>sde criança foi obrigado a suportar um<br />

peso que sempre o acompanhou na forma de uma instabilidade<br />

psicomotora constitucional.<br />

Outro fator que pesou na origem de sua instabilidade<br />

congênita, o mesmo, aliás, que atingiu Melânia, foi o contato<br />

que teve com pessoas curiosas, aduladoras e muitas vezes de<br />

psiquismo perturbado. O risco de que certas amizades trariam<br />

conseqüências infelizes para o equilíbrio dos dois videntes, era<br />

real. Faltava-lhes certamente uma orientação sólida e constante<br />

da parte de um Diretor Espiritual.<br />

Entre essas pessoas estava o conhecido engenheiro Dausse,<br />

muito próximo dos dois videntes. Dausse tinha tido sérios<br />

problemas de família. Sua esposa o abandonara, o que o levou<br />

a procurar consolo na religião, vivida na forma de certa mística<br />

desequilibrada. Encontrou-se muitas vezes com Melânia e<br />

Maximino. Ele os havia conduzido <strong>à</strong> Grande Chartreuse. Levou<br />

Melânia a Corenc e Maximino a Lyon depois do “Incidente de<br />

Ars”. Esteve presente quando da redação, pelos videntes, das<br />

cartas com os “segredos” levados a Roma. Dausse era pesssoa<br />

piedosa, mas, ingênua e interessada por “profecias” em geral e<br />

pelas “predições” inventadas por Maximino.<br />

Aos vinte anos de idade, Maximino conseguiu concluir<br />

seus estudos clássicos. Em 1856, entrou no Seminário Maior<br />

de Landes, aos cuidados dos Padres Jesuítas. Nem mesmo os<br />

Jesuítas foram capazes de “injetar juízo e saber na pobre cabeça<br />

de menino grande, sempre estulto e pouco apto a receber uma<br />

instrução sólida” (in CARLIER, p. 192).<br />

O próprio Maximino, em carta <strong>à</strong> Irmã Sainte-Thècle,<br />

afirmou:<br />

- “Eu acreditava, em minha boa fé, que aos vinte anos de<br />

idade não seria mais uma criança, mas, todos os dias faço a<br />

experiência do contrário” (in CARLIER, p. 193).<br />

198


Admirável candura e humildade! Moço transparente e<br />

honesto, mas nada brilhante em seus estudos. A irresponsabilidade<br />

o impedia de alcançar sucesso, apesar dos bons conselhos que<br />

sempre recebia de Pe. Mélin.<br />

Ao final de dois anos de estudos filosóficos, externou certa<br />

hesitação. Não sabia que caminho de vida seguir. <strong>De</strong>ixou o<br />

Seminário. Foi a Paris onde conseguiu trabalho no Hospital de<br />

Vésinet, desde o verão de 1859 até janeiro de 1860.<br />

No entanto, já pressentindo as grandes dificuldades de vida que<br />

sobreviriam a seguir, afirmou numa carta a 5 de janeiro de 1860:<br />

- “Muitas pessoas do Ministério do Interior me criticam:<br />

minha conduta é irrepreensível, mas, me falta a capacidade” (in<br />

V.H., II, p.165).<br />

Os tempos difíceis vieram. Viveu durante cerca de quatro<br />

mêses nas calçadas de Paris, sem amigos. Caiu na miséria e na<br />

doença. Chorou muitas vezes junto ao altar da Santa Virgem,<br />

em Saint-Sulpice. Numa de suas primeiras cartas <strong>à</strong> Irmã Sainte-<br />

Thècle, em Corps, declarou que estava comendo o pão que o<br />

diabo amassou.<br />

Com a ajuda de amigos conseguiu entrar no Colégio de<br />

Tonnerre onde passou um ano e meio aperfeiçoando a formação.<br />

Em Paris freqüentava a casa de Pe. Julião Eymard, seu compatriota<br />

e futuro santo. Recebeu ajuda do casal Jourdain, uma família<br />

honesta e generosa que o tratava como filho e lhe deu condições<br />

de estudar medicina.<br />

Pe. Julião chegou a declarar que:<br />

- “Sem a senhora Jourdain que o acolheu em sua casa, o<br />

pobre Maximino seria como a lama das ruas de Paris” (in<br />

STERN, 3, p. 135).<br />

A 1º de janeiro de 1862, Maximino descreveu ao Pe. Mélin<br />

sua alegria por estudar medicina. Queixava-se, porém, de que<br />

o Padre não respondia <strong>à</strong>s suas cartas. O Padre finalmente lhe<br />

respondeu a 10 de maio de 1863, pedindo excusas.<br />

Maximino passou a sonhar em voltar <strong>à</strong> terra natal, mas, antes<br />

queria que Pe. Mélin o visitasse em Paris. O Padre não pôde<br />

199


atender o convite. Maximino lhe escreveu dizendo que, então,<br />

queria voltar a Corps e que desejava lá comprar uma casa para<br />

trabalhar como médico e farmacêutico. O dinheiro para tanto,<br />

segundo ele imaginava, viria da venda de um terreno pertencente<br />

<strong>à</strong> senhora Jourdain, próximo a Paris.<br />

O entusiasmo não durou muito. A 17 de outubro de 1864,<br />

desencorajado, escreveu novamente a Pe. Mélin dizendo-lhe<br />

que estava endividado, que era pobre e que o casal Jourdain não<br />

era rico o suficiente para continuar a ajudá-lo. Queixava-se de<br />

que os estudos de medicina eram muito longos e receava não ter<br />

clientela alguma depois de formado. Logo abandonou o curso.<br />

Em 1865, o pobre frustrado, em viagem pela Itália, chegou<br />

a Roma onde, por intermédio do Cardeal Villecourt, seu grande<br />

amigo, tornou-se guarda pontifício por seis mêses. Voltou a<br />

Corps em 1866. Em 1870, durante a Guerra, foi mobilizado para<br />

servir no Forte Militar de Barrauz, próximo a Grenoble. Dali,<br />

mensalmente procurava o Pe. Berthier ms para se confessar. A<br />

1º de março de 1875, em Corps, viveu seu último sonho: tornarse<br />

Missionário de Nossa Senhora da Salette. Sonho que, como<br />

os outros, certamente não se teria concretizado se Maximino<br />

tivesse sobrevivido.<br />

Em Corps, a muito custo ganhava a vida como comerciante<br />

de objetos religiosos e de uma bebida alcoólica chamada “Licor<br />

Saletino”, fruto de precária sociedade com um amigo que o<br />

explorou. Maximino se endividou mais uma vez. Pedia ajuda aos<br />

Missionários da Salette e ao casal Jourdain que acabou na falência.<br />

Pe. Mélin não estava mais em Corps. Teria sofrido demais se<br />

tivesse acompanhado de perto toda essa difícil trajetória de vida<br />

de Maximino.<br />

Maximino, porém, guardava em seu coração um terno e<br />

profundo amor <strong>à</strong> Bela Senhora. Diariamente rezava o terço em<br />

sua honra. Jamais esqueceu o maravilhoso evento da Aparição.<br />

Repetia sempre, com inteira fidelidade, a narrativa da Aparição.<br />

Pe. Archier MS, que o conheceu a fundo, deu um belo<br />

testemunho a seu respeito:<br />

200


- “Teve-se a ousadia de dizer que Maximino não era piedoso.<br />

Nada de mais injusto e falso!” (in CARLIER, p. 199).<br />

Seus costumes eram moralmente irrepreensíveis. Não era<br />

Padre nem Religioso. Não quis se casar. A um amigo que o<br />

criticava por isso, respondeu:<br />

- “<strong>De</strong>pois que vi a Santa Virgem, não posso me apegar a<br />

nenhuma outra pessoa sobre a terra!” (in CARLIER, p. 201).<br />

Seus falsos amigos, com a intenção de lhe arrancar o<br />

“segredo”, davam-lhe, <strong>à</strong>s vezes, bebidas misturadas com<br />

substâncias entorpecentes. Maximino, então, se excedia um<br />

pouco, mas, sem jamais perder o controle de si. Foi seu principal<br />

defeito. Esforçava-se, no entanto, por corrigí-lo.<br />

Ele mesmo reconhecia que não era modelo de vida. Ainda<br />

em setembro de 1861, na Montanha da Salette, ao fazer mais<br />

uma vez a narrativa da Aparição, indicando o ponto onde a Bela<br />

Senhora estava no final da visão, disse:<br />

- “Chegada a esse ponto, ela se elevou e desapareceu, e me<br />

deixou com todos os meus defeitos” (in STERN, vol. 3, p. 24);<br />

O término de sua vida foi muito edificante. Um ano antes<br />

da morte, contraíu uma doença grave. Durante a enfermidade<br />

intercedia sem cessar <strong>à</strong> Bela Senhora por sua cura. Confessavase<br />

e comungava freqüentemente.<br />

No começo de novembro de 1874 a doença amainou e<br />

permitiu que Maximino fizesse sua última peregrinação ao<br />

Santuário da Aparição. Comungou e fez, pela última vez, a<br />

narrativa da Aparição <strong>à</strong>s Religiosas da Salette que tinham<br />

substituído as Irmãs da Providência no serviço aos peregrinos<br />

junto ao Santuário.<br />

A 1º de março de 1875 recebeu a visita de seu confessor.<br />

Recebeu os Santos Sacramentos. Ao comungar, pediu um pouco<br />

de água da Salette. O Pão Eucarístico foi seu último alimento e<br />

a água da Salette sua última bebida.<br />

Logo após a partida do Padre que o atendeu, deu o último<br />

suspiro. Asma, palpitações cardíacas e inflamação das pernas o<br />

levaram <strong>à</strong> morte.<br />

201


Seu coração, depois de embalsamado, foi deposto em urna<br />

especial no interior do Santuário da Salette, conforme seu desejo.<br />

Tal era seu amor pela Bela Senhora!<br />

Seu corpo foi sepultado no cemitério paroquial de Corps. A<br />

população da cidade, muitos Padres das redondezas e um grande<br />

número de pessoas vindas de outras regiões, apesar da neve,<br />

participaram do funeral. As despezas do enterro foram assumidas<br />

pelo Santuário, com a permissão do Bispo de Grenoble, Dom Fava.<br />

Maximino viveu e morreu pobremente, mas, profundamente<br />

amoroso da Bela Senhora. Se não era isento de defeitos, deu<br />

provas de excelentes qualidades. Muito estimado por seus<br />

compatriotas. Ao narrar o evento extraordinário de que fora<br />

privilegiada testemunha, assumia uma postura grave, de clareza,<br />

prontidão, dignidade e calma. Seu exterior era amável, puro,<br />

de boas maneiras. Não tinha receio de defender a Aparição e<br />

defender-se dos contraditores. Não o fez somente por palavras,<br />

mas, também por escrito. Em 1866 havia publicado o texto “Ma<br />

profession de foi sur l´Apparition de Notre-Dame de La Salette”,<br />

um opúsculo de 72 páginas. Nele fez uma tocante e piedosa<br />

dedicação <strong>à</strong> Bela Senhora, declarando que estava disposto a dar<br />

a vida em defesa da Aparição (cf. CARLIER p. 206-214).<br />

Em seu testamento deixou um maravilhoso testemunho de<br />

sua fé e amor:<br />

- “Em nome do Pai, e do Filho, e do Santo Espírito. Amém.<br />

Creio em tudo que ensina a santa Igreja apostólica e romana,<br />

em todos os dogmas definidos por nosso Santo Padre, o Papa, o<br />

augusto e infalível Pio IX. Creio firmemente, mesmo ao preço<br />

de meu sangue, na célebre Aparição da Santíssima Virgem,<br />

sobre a Santa Montanha de La Salette, a 19 de setembro de<br />

1846, Aparição que defendi por palavras, por escritos e por<br />

sofrimentos. <strong>De</strong>pois de minha morte que ninguém venha a<br />

afirmar que me ouviu desmentir o grande acontecimento de<br />

La Salette, pois estaria mentindo para si mesmo ao mentir para<br />

o universo. Com esses sentimentos dou meu coração a Nossa<br />

Senhora de La Salette” (in CARLIER, p.214-215).<br />

202


2 - MELÂNIA: vida virtuosa em trajetória tortuosa<br />

Após a Aparição, Melânia teve um percurso de vida<br />

dolorosamente complicado. Tornava-se adulta e não podia mais<br />

permanecer no colégio das Irmãs da Providência, em Corps,<br />

onde passou quatro anos, como colega de Maximino.<br />

A 1º de outubro de 1850, Don Philibert afirmou numa carta:<br />

- “Quanto a Melânia, já é mais do que tempo de sair de Corps.<br />

Mandei um aviso <strong>à</strong> Madre Superiora de Corenc. É preciso então,<br />

que se tenha o consentimento de seus pais” (in V. H., II, p. 160).<br />

Pe. Mélin não mediu esforços para convencê-la a partir, pois<br />

ela receava o afastamento de seu ambiente. Era demasiado tímida.<br />

Finalmente aceitou ir para Corenc, perto de Grenoble, onde foi<br />

bem recebida como postulante, pelas Irmãs da Providência. Era<br />

o fim do verão de 1850.<br />

Em carta a Pe. Mélin, a 19 de outubro, expressou seu contentamento:<br />

- “Pe. Mélin, apresso-me em lhe escrever para comunicarlhe<br />

a felicidade que tenho de estar em Corenc com as boas<br />

Religiosas” (in V. H., II, p. 160).<br />

Um ano mais tarde, a 29 de setembro de 1851, ao final<br />

do tempo de Postulado, escreveu novamente a Pe. Mélin<br />

expressando sua alegria porque em breve ia receber o hábito<br />

religioso com o nome de Irmã Maria da Cruz.<br />

Como noviça recebeu o encargo de cuidar de um grupo de<br />

crianças da Escola das Irmãs. <strong>De</strong>sempenhou a contento essa<br />

tarefa. Com as crianças era severa e pessoalmente melancólica.<br />

Ali, despontava a intenção de trabalhar em país de missão.<br />

Melânia manifestava-se, porém, teimosa, apegada <strong>à</strong>s próprias<br />

idéias, excêntrica, singular, apesar de piedosa, pura, mortificada<br />

e ajuizada. Nunca demonstrava alegria. Preferia estar sozinha,<br />

parecendo <strong>à</strong>s vezes ausente da realidade.<br />

Suas Superioras tiveram a sabedoria de querer formá-la<br />

mais fortemente para a humildade. Estavam muito preocupadas<br />

com suas tendências para uma autoimagem inflada.<br />

A 1º de maio de 1854, as Irmãs enviaram Melânia, agora Irmã<br />

203


Maria da Cruz, a Corps, uma Comunidade menos importante.<br />

Foi bem acolhida, mas, logo a decepção se apresentou. Ali não<br />

era mais nem aluna nem professora. Algumas pessoas do local<br />

a olhavam com certo menosprezo, lembrando as condições<br />

em que ela vivera durante a infância na cidade. Outras melhor<br />

intencionadas procuravam ajudá-la com seus conselhos.<br />

Melânia não sabia o que fazer. Trabalhou na escola paroquial<br />

atendida pelas Irmãs, por cerca de quatro meses. Causou muitas<br />

dificuldades ao Pároco, Pe. Mélin, em virtude de seu caráter.<br />

Nesse tempo, Melânia foi acometida de um mal no estômago.<br />

Foi a Vienne onde esteve sob os cuidados das Irmãs de São<br />

Vicente de Paula. Não se ambientou ali e pediu para voltar a<br />

Corenc. Antes fez uma viagem <strong>à</strong> Montanha da Salette onde pôde<br />

se restabelecer.<br />

Estando em Corenc, Melânia soube que não tinha sido<br />

admitida <strong>à</strong> Profissão Religiosa. Suportou muito mal a notícia.<br />

O motivo foi exposto, mais tarde, por Dom Ginoulhiac, na<br />

Instrução Pastoral e Mandamento:<br />

- “Quanto a Melânia, se ela não foi inteiramente submetida<br />

<strong>à</strong>s mesmas provações (que Maximino), suportou outras,<br />

suficientes para inflamar imaginações mais calmas e pôr em<br />

risco as virtudes mais provadas. <strong>De</strong>pois do dia 19 de setembro<br />

de 1846, ela foi, por parte de grande número de pessoas, mesmo<br />

dentre as mais respeitáveis e distintas, transformada em objeto<br />

de delicadas atenções, de atitudes ternas e respeitosas que mais<br />

pareciam uma espécie de culto, de tal forma que se, durante<br />

alguns anos, ela não se deixou envolver, não seria estranho que<br />

não se deixasse levar, por fim, pelo apego <strong>à</strong>s próprias idéias, o<br />

que é um dos maiores perigos que correm as almas favorecidas<br />

por dons extraordinários. Esse apego ao próprio juízo e a<br />

certas singularidades que são suas conseqüências naturais,<br />

chamou nossa atenção desde que fomos informados a respeito<br />

e, embora a Comunidade tenha reconhecido sua piedade e seu<br />

zelo na instrução religiosa das crianças, nós cremos que era de<br />

nosso dever não admiti-la aos votos anuais, para formá-la mais<br />

204


eficazmente na prática da humildade e da simplicidade cristãs,<br />

que são a proteção necessária e mais segura contra as ilusões da<br />

vida interior” (in CARLIER, p. 181).<br />

A recusa <strong>à</strong> Profissão Religiosa gerou em Melânia uma<br />

forte rejeição contra Dom Ginoulhiac. As conseqüências desse<br />

ressentimento apareceriam mais tarde.<br />

No mês de setembro de 1854, o Bispo Dom Charles Newsham,<br />

Superior do Seminário Maior de Ushaw, na Inglaterra, foi a La<br />

Salette para a celebração do oitavo aniversário da Aparição.<br />

Encontrou-se com Melânia que lhe pareceu fraca e sofrida.<br />

Imaginou que a mudança de clima e um repouso pudessem lhe<br />

fazer bem.<br />

Numa carta a Dom Ginoulhiac, Dom Newsham se dispôs a<br />

levá-la <strong>à</strong> Inglaterra por alguns mêses. Dom Ginoulhiac permitiulhe<br />

que a levasse consigo, com “a condição de que ela mesma<br />

consentisse” (cf. STERN, 3, p. 350).<br />

Melânia aceitou a proposta. Assim podia afastar-se do<br />

assédio dos curiosos em Corps e, ao mesmo tempo, estar longe<br />

de Dom Ginoulhiac por quem não tinha simpatia alguma. Teria<br />

também a oportunidade de aprender o inglês como desejava.<br />

Partiu em setembro, o que significou um alívio para Pe. Mélin.<br />

A saída da França para a Inglaterra não foi, portanto, um<br />

exílio imposto a Melânia, uma expatriação determinada por<br />

Dom Ginoulhiac. Mesmo porque não caberia ao Bispo tomar<br />

semelhante atitude. Seria da alçada das autoridades francesas. A<br />

calúnia é perversa, sem fundamento histórico algum. Melânia foi<br />

devidamente consultada. Aceitou espontaneamente a proposta.<br />

E partiu na plena liberdade, acompanhada por Dom Newsham.<br />

Na Inglaterra, Dom Newsham não tinha condições de<br />

mantê-la junto a si. Confiou Melânia, como pensionista, <strong>à</strong>s<br />

Irmãs Carmelitas do Convento em Darlington, no Condado de<br />

Durham. Ali estaria livre para ir e vir.<br />

Melânia se deixou cativar pelo estilo de vida das Carmelitas.<br />

Pediu e obteve o favor de participar da vida da comunidade. A 25<br />

de fevereiro de 1855 recebeu o hábito do Carmelo em cerimônia<br />

205


de grande pompa. Diversos Bispos e membros da nobreza<br />

inglesa estavam presentes. A solenidade do ato, por certo, foi<br />

motivo de satisfação para Melânia.<br />

Findo o noviciado no Carmelo, professou os votos religiosos<br />

a 24 de fevereiro de 1856. Pouco tempo depois, no entanto, se<br />

compreendeu que a admissão aos votos fora um ato precipitado.<br />

Sinais inquietantes apareceram no comportamento de Melânia.<br />

Em julho de 1860 ela recebeu a visita de sua irmã Maria.<br />

A família estava em má situação. Melânia se desesperou. Quis<br />

voltar para França a todo custo.<br />

O Padre Mélin foi um dos primeiros a serem advertidos a<br />

esse respeito. A Priora do Carmelo o avisara dizendo-lhe:<br />

- “Ela quis se retirar para junto de sua mãe, pobre Irmã Maria<br />

da Cruz que durante cerca de dez anos foi objeto de meus cuidados<br />

mais carinhosos e que ela desapontou tão cruelmente... É um<br />

grande consolo para mim o fato de perceber em sua excelente<br />

carta que cuidará do futuro dessa querida filha. Obrigada mil<br />

vezes por essa caridade que o Senhor recompensará, estou disso<br />

convencida, e espero que ela siga seus sábios conselhos” (in V.<br />

H., II, p. 161).<br />

<strong>De</strong>pois de ter vivido esses anos de Mosteiro, Melânia, em<br />

setembro de 1860 partiu de Darlington para Marselha onde<br />

habitava sua mãe. Foi accolhida como pensionista pelas Irmãs<br />

da Compaixão, Congregação fundada pelo jesuíta Pe. Barthès.<br />

Passou cerca de um mês na Casa São Barnabé, próxima <strong>à</strong> Casa<br />

Mãe dessa mesma Congregação.<br />

Vestindo amplo hábito preto e uma touca da mesma cor,<br />

vivia isolada, caminhando sozinha pelos jardins. Respondia<br />

apenas com sinais quando chamada para as refeições. Logo<br />

foi tida como misteriosa. O Padre lhe havia pedido que não se<br />

desse a conhecer. Sabia-se apenas que era uma ex-carmelita de<br />

Darlignton.<br />

Em 1861 Melânia, usando o hábito das Irmãs da Compaixão,<br />

foi levada por elas a Cefalônica, nas Ilhas Iônicas da Grécia.<br />

Em 1863 voltou a Marselha onde passou alguns mêses<br />

206


no Carmelo. <strong>De</strong>pois voltou para as Irmãs da Compaixão. Em<br />

outubro de 1864 a Superiora Geral delas admitiu-a ao Noviciado.<br />

Ao final de alguns meses de provação, recebeu o hábito sob o<br />

nome de Irmã Victor, com o compromisso formal de não se dar<br />

a conhecer a ninguém como vidente da Salette, nem dentro nem<br />

fora da Comunidade, sob pena de exclusão definitiva.<br />

Nessa época diversos Bispos italianos viviam exilados<br />

em Marselha, em virtude da situação político-religiosa da<br />

Itália. Entre eles estava Dom Petagna, Bispo de Castellamare<br />

di Stabia, perto de Nápoles. Durante sua estadia em Marselha<br />

dava assistência espiritual <strong>à</strong>s Irmãs da Compaixão. Melânia quis<br />

aproveitar a oportunidade para sair de Marselha. Foi desligada<br />

da Congregação das Irmãs da Compaixão e da Diocese, em abril<br />

de 1867.<br />

A vidente apressou-se em pedir a proteção de Dom Petagna.<br />

O Bispo paternalmente a acolheu em Castellammare di Stabia.<br />

A Madre da Apresentação (Zénaïde Beillon), compadecida por<br />

aquela “pobrezinha” como era chamada, conseguiu da parte do<br />

Bispo de Marselha, Dom Place, a permissão de acompanhá-la<br />

pessoalmente, alegando que o Padre Barthès havia confiado<br />

Melânia a seus cuidados. Antes de ir <strong>à</strong> Itália, porém, Melânia<br />

esteve na Montanha da Salette de 15 a 18 de abril de 1867.<br />

Os primeiros tempos em Castellamare foram duros. As duas<br />

companheiras nada tinham a fazer. Receberam ajuda do Pe.<br />

Giraud, Superior dos Missionários de Nossa Senhora da Salette.<br />

<strong>De</strong> Nápoles, Melânia enviou, a 11 de junho de 1867, uma carta<br />

ao Pe. Giraud dizendo-lhe:<br />

- “Venho agradecer-vos todas as vossas bondades. (...) Terei<br />

como dever muito bom o de rezar por vós, meu Reverendo<br />

Padre, pelos bons Padres da Santa Montanha, bem como pelas<br />

Religiosas, pois que todos se tornaram a língua ou a boca de<br />

Maria para repetir o que a toda bela e boa Mãe disse a seus dois<br />

pequenos nadas” (in CARLIER, p. 186-187).<br />

Como, em 1869, a situação de vida ainda continuava difícil,<br />

Melânia se pôs a dar lições de francês a algumas crianças alojadas<br />

207


na casa de uma senhora. Em troca, Melânia recebia acolhida. A<br />

dificuldade aumentou com a doença que atingiu a companheira,<br />

Madre da Apresentação.<br />

Em 1884 Melânia voltou <strong>à</strong> França. <strong>De</strong>pois de alguns meses<br />

passados em Corps, foi residir em Cannes para cuidar da mãe. Pe.<br />

Giraud, compadecido, continuava a lhe enviar ajuda financeira.<br />

Ela agradecia gentilmente. Isso contradiz certas alegações<br />

de origem inescrupulosa, segundo as quais os Missionários<br />

de Nossa Senhora da Salette nunca teriam prestado socorro a<br />

Melânia e aos seus familiares (cf. CARLIER p. 187-188).<br />

<strong>De</strong>pois da morte da mãe, a 1º de dezembro de 1889, Melânia<br />

voltou a morar em Marselha. No bairro de Montolivet ela<br />

introduziu a devoção a Nossa Senhora da Salette, o que levou<br />

o Pároco a descobrir que Melânia era a vidente da Aparição.<br />

Ao saber disso, o Vigário Geral da Diocese a transferiu para o<br />

bairro de Le Cannet, onde também foi reconhecida. Por decisão<br />

superior Melânia recebeu, então, a ordem de deixar Marselha.<br />

Nesse período tratou de fundar, com a colaboração do<br />

Cônego <strong>De</strong> Brandt, uma Congregação intitulada “Apóstolos dos<br />

Últimos Tempos”. O Bispo de Autun, Dom Perraud, com o apoio<br />

da Santa Sé, se opôs <strong>à</strong> idéia. Melânia, contrariada, abandonou o<br />

projeto ao final de muitas dificuldades.<br />

Em 1892 Melânia voltou <strong>à</strong> Itália e se estabeleceu em<br />

Galatina, perto de Lecce, sede episcopal de Dom Zola.<br />

Em setembro de 1897 se transferiu para Messina, na Itália<br />

sempre, a pedido do Bispo dessa Diocese, Dom Annibale Di<br />

Francia, hoje canonisado. Di Francia lhe pedia ajuda para a<br />

fundação da Congregação das Irmãs do Divino Zelo.<br />

No ano seguinte Melânia deixou a Sicília e foi ao Piemonte.<br />

Em junho de 1899 se transferiu para Allier, na França, a<br />

convite do Pe. Combe.<br />

Aproximando-se o final de sua vida, em 1902, Melânia<br />

esteve pela última vez em La Salette. Nessa visita, depois de<br />

uma narrativa da Aparição, idêntica <strong>à</strong> que havia feito a 19 de<br />

setembro de 1846 em Ablandens, deu a entender que tomava<br />

208


distância de toda a confusa história em que se envolveu, dizendo:<br />

-“Já não sei o que é meu e o que é de outros, mas o que se<br />

passou a 19 de setembro de 1846 é como acabo de vos contar”<br />

(in STERN, “Que sont devenus les enfants?”, polígrafo).<br />

Na Montanha da Salette, Melânia deu, nessa ocasião, tanto<br />

aos Missionários quanto aos peregrinos, um testemunho de vida<br />

edificante por sua simplicidade, mortificação e devoção. Por<br />

onde passava, aliás, deixava a impressão de grande virtude e<br />

terna piedade. Sempre foi pessoa de intensa vida de penitência,<br />

oração e contemplação. Jamais vacilou em seu testemunho a<br />

respeito da Aparição, apesar do “segredo” por ela divulgado.<br />

Em junho de 1903 voltou novamente para a Itália,<br />

estabelecendo-se em Altamura, Província de Bari, onde, com a<br />

recomendação de Dom Cechini, Bispo da Diocese, se hospedou<br />

gratuitamente, por três meses, junto a uma generosa família cristã.<br />

Melânia morava sozinha numa pequena casa posta a sua<br />

disposição. Diariamente freqüentava a missa em Altamura.<br />

<strong>De</strong>pois voltava para seu modesto alojamento.<br />

No dia 15 de dezembro de 1904 não compareceu <strong>à</strong> missa.<br />

Dom Cecchini pediu a sua doméstica que fosse ver o<br />

que acontecia. A porta da casa de Melânia estava fechada. A<br />

autoridade competente foi chamada, entrou na casa e encontrou<br />

Melânia morta. Havia morrido durante a noite.<br />

A família que a havia acolhido, quiz que fosse sepultada<br />

na tumba familiar. Dom Cecchini, porém, com os Cônegos da<br />

Catedral e uma grande multidão, levaram Melânia a sua última<br />

morada na Casa das Irmãs do Divino Zelo em Altamura.<br />

Dom Fava, Bispo de Grenoble, deixou, a respeito da vidente<br />

da Salette, a seguinte declaração:<br />

- “Melânia, a quem interroguei em Castellamare há dois<br />

mêses, assinaria com seu próprio sangue a narrativa (do Fato da<br />

Salette) que ela fez e sempre manteve” (in CARLIER p. 189).<br />

Melânia, apesar de todas as limitações pessoais, era<br />

uma pessoa de grande espiritualidade. O maior problema de<br />

sua vida, porém, não foram tanto suas limitações pessoais<br />

209


quanto as pressões psicológicas malsãs e as manipulações<br />

ideológico-religiosas perversas que a envolveram, gerando<br />

confusas controvérsias. Sua história pessoal teria suscitado<br />

outras repercussões na Igreja se tivesse tido uma sábia e firme<br />

orientação espiritual.<br />

O acompanhamento pessoal recebido por Maximino e<br />

Melânia, após a Aparição, foi deficiente. Dada a vida errante<br />

que ambos tiveram, não foram suficientemente protegidos<br />

contra a influência de pessoas, algumas talvez de boa vontade,<br />

outras muito ingênuas em suas crendices, outras malévolas,<br />

outras ainda atraídas doentiamente pelo “extraordinário”, pelo<br />

“secreto” e exótico.<br />

Pio IX, a 13-8-1853, num projeto de Carta a ser enviada a um<br />

Bispo da região da Toscana onde a Virgem teria aparecido a uma<br />

moça, naquela época, anotou uma observação judiciosa segundo<br />

a qual se exige bom e sábio discernimento face <strong>à</strong>s circunstâncias<br />

que envolvem esse tipo de eventos:<br />

- “Pense nas pessoas que detêm em mãos a educação dos<br />

adolescentes e <strong>à</strong>s quais são confiados seus espíritos frágeis!”<br />

(STERN, p. 63).<br />

Certamente o Papa, ao fazer essa anotação, tinha em mente<br />

o caso dos videntes da Salette que, naquele momento, já estavam<br />

expostos a todo tipo de influência.<br />

A causa do Fato da Salette e a imagem da Congregação dos<br />

Missionários de Nossa Senhora da Salette sentiram e continuam<br />

sentindo as conseqüências negativas dessa história infeliz.<br />

Não é de se estranhar que “o céu tenha escolhido para a Salette,<br />

mensageiros tão primitivos, tão frágeis e também decepcionantes.<br />

Maximino e Melânia foram escolhidos como membros e<br />

representantes do povo dos pequeninos, e não porque teriam sido<br />

crianças-prodígio. <strong>De</strong> resto, ao longo de toda a história, <strong>De</strong>us escolheu<br />

para si mensageiros e representantes frágeis. Entre eles, alguns se<br />

mostraram perfeitos ou quase, outros manifestaram fraquezas, outros<br />

enfim mereceram a sentença que atinge o mau servidor. Todos,<br />

porém, foram instrumentos nas mãos de <strong>De</strong>us” (STERN, 3, p. 137).<br />

210


<strong>De</strong>us, pela mediação de seu Filho Jesus e pela inspiração do<br />

Santo Espírito, continua realizando as maravilhas cantadas pela<br />

Virgem Mãe, a “Pobre de Javé” por excelência. A Aparição da<br />

Bela Senhora será, para sempre, a manifestação da misericordiosa<br />

e reconciliadora compaixão de <strong>De</strong>us por seu Povo.<br />

CAPÍTULO II<br />

UMA ESPINHOSA QUESTÃO<br />

Em 1851, a pedido de Dom Philibert de Bruillard, e em<br />

virtude de certas circunstâncias, Maximino e Melânia puseram<br />

por escrito o suposto “segredo” que, separadamente, teriam<br />

recebido da Bela Senhora durante a Aparição.<br />

Os dois videntes sempre, tenaz e firmemente, por toda a<br />

vida, se recusaram revelá-lo não só ao público em geral, mas<br />

também entre si. A muito contra gosto eles aceitaram pô-lo por<br />

escrito e enviá-lo ao Papa, na suposição de que Pio IX o havia<br />

solicitado, o que não correspondia <strong>à</strong> verdade.<br />

No entanto, sempre houve suspeitas de que nenhum dos<br />

dois videntes tenha expressado verdadeiramente, naquela<br />

oportunidade, o que cada um deles guardava com extremo<br />

cuidado em seu coração. O que havia sido escrito era considerado<br />

por muitos como uma simples e inocente escapatória de<br />

adolescentes incomodados, que não queriam, de forma alguma,<br />

revelar o que a Bela Senhora lhes pediu para não revelar.<br />

As duas cartas enviadas ao Papa foram guardadas nos<br />

Arquivos do Vaticano. Inacessíveis, só muitos anos depois,<br />

foram descobertas. Se elas foram motivo de polêmica antes de<br />

serem encontradas, continuam sendo depois. Um complexo e<br />

fantasioso percurso envolve os “segredos” dos dois videntes,<br />

sobretudo o de Melânia, até nossos dias.<br />

Maximino procurou se evadir, o mais depressa possível, dos<br />

curiosos, contando-lhes “profecias” de brinquedo, para rir-se<br />

211


deles a seguir. As “profecias” tinham a ver com as predições<br />

apocalípticas que invadiam o ambiente social de então.<br />

Quanto a Melânia, seu “segredo” teve uma história muito<br />

mais complexa, ao longo de duas fases redacionais:<br />

- Uma, quando o “segredo” foi escrito por ela em Grenoble,<br />

na carta enviada ao Papa Pio IX, em julho de 1851, na suposição<br />

de que se tratava verdadeiramente da “palavra pessoal” revelada<br />

a Melânia, na Aparição.<br />

- Outra, quando o “segredo”, a partir de 1851, foi escrito<br />

e publicado espontaneamente por Melânia, por mais vezes, em<br />

diferentes versões e sob pesadas influências, afirmando que ela<br />

o tinha recebido da Bela Senhora.<br />

O “segredo” da segunda fase vem carregado de catástrofes,<br />

destruição e morte. Coisa que não é do <strong>De</strong>us do Evangelho,<br />

um <strong>De</strong>us que salva. O comentário de Pe. STERN, competente<br />

pesquisador da história da Salette, é contundente a esse respeito:<br />

- “O que se sabe de Melânia e dos contatos que ela teve<br />

durante os anos cinqüenta, nos obriga a recusarmos a atribuição<br />

de qualquer caráter sobrenatural ao seu muito famoso “segredo”<br />

(STERN, 3, p.125).<br />

Há reais explicações para que se recuse um caráter<br />

sobrenatural ao que Melânia nele afirma. Os traumas que<br />

Melânia sofreu, têm real influxo sobre seu “segredo”: abuso de<br />

autoridade por parte de certos inquisidores, atitudes de adulação<br />

por parte de admiradores indiscretos e, sobretudo, as dolorosas<br />

carências de ordem familiar. Melânia conheceu a miséria em<br />

diferentes dimensões. A tentação da vaidade por ser admirada<br />

como testemunha da Aparição, também a invadia.<br />

A partir de 1852 particularmente, a tendência de Melânia<br />

em assumir traços de personagem extraordinária se intensificou<br />

em função de algumas circunstâncias concretas. Havia os que<br />

punham por escrito tudo que ela dizia, como se se tratasse de<br />

oráculos, e lhe demonstravam real veneração.<br />

Moça introvertida com graves frustrações afetivas como<br />

criança, ela começou a elaborar uma releitura do passado<br />

212


<strong>à</strong> semelhança de um romance autobiográfico. Não é a Bela<br />

Senhora quem estava no centro de atenção dessa releitura, e<br />

sim ela mesma, Melânia. Seu amor próprio ferido se deixava<br />

entrever.<br />

Há uma autobiografia de Melânia, intitulada “Abrégé<br />

de la vie de Mélanie”, datada de 3 de setembro de 1852. É<br />

surpreendente o fato de que ela suspenda a redação desse<br />

manuscrito autobiográfico no meio de uma frase, antes de começar<br />

a tratar de seu tempo de pastora em Ablandens, portanto antes<br />

da Aparição de 19 de setembro de 1846. Melânia demonstrava<br />

dificuldade em distinguir as lembranças reais da Aparição dos<br />

sonhos por ela imaginados, o personagem verdadeiro que fora,<br />

do imaginário que se formara.<br />

Os devaneios que a habitavam, serviam a seus aduladores<br />

interesseiros para exaltá-la como dotada de perfeita santidade.<br />

Tiravam proveito de sua simplicidade. A própria Melânia passou<br />

a nutrir a ilusão de que, desde criança, teria tido revelações<br />

sobrenaturais, encontros com anjos, com a Virgem Maria, com o<br />

Menino Jesus, êxtases e até mesmo a graça da ciência teológica<br />

infusa. Fantasias de adolescente nascidas de frustrações, frutos<br />

de uma infância pesadamente sofrida. Seqüelas de mecanismos<br />

psicológicos do subconsciente que a levavam a imaginar a<br />

infância feliz que desejava ter vivido e que jamais viveu.<br />

Na verdade, ninguém dentre os que, logo após a Aparição,<br />

conheceram e analisaram sua pessoa e vida, nela perceberam<br />

traços de supostas experiências místicas em sua infância remota,<br />

nem a prudente Madre Sainte-Thècle que conviveu com Melânia<br />

durante quatro anos no Colégio das Irmãs da Providência,<br />

em Corps, nem o judicioso Pe. Mélin, Pároco de Corps que a<br />

acompanhava de perto, nem a zelosa Mlle. <strong>De</strong> Brulais, nem o<br />

habilidoso Pe. Lagier, nem o consciencioso Pe. M. Rousselot,<br />

que a interrogaram e a observaram de perto, ninguém deu<br />

testemunho a respeito da veracidade desse imaginário a respeito<br />

do passado da menina. Menos ainda Jean Baptiste Pra, seu<br />

patrão, que a conhecia de perto antes ainda da Aparição.<br />

213


A verdade do real passado de Melânia foi atestada pela<br />

investigação oficial dos Bispos de Grenoble, Dom Philibert e<br />

Dom Ginoulhiac, e pelas Irmãs da Providência de Corps. Esse<br />

passado não impediu, porém, que ela tivesse se tornado uma<br />

pessoa de muita oração e penitência em seus anos maduros.<br />

Em agosto de 1853, retalhos do “segredo” da vidente vieram<br />

<strong>à</strong> tona. Seu conteúdo prenuncia as edições dos anos setenta, mas<br />

é bem mais reduzido. <strong>De</strong>sde esse tempo Melânia fazia distinção<br />

entre o texto do “segredo” enviado ao Papa, em 1851, e o que<br />

guardou no recôndito da alma. Ela mesma declarou, num escrito<br />

autobiográfico composto em 1853, na Grande Chartreuse:<br />

- “A Santa Virgem deu <strong>à</strong> selvagem dois segredos: um foi<br />

enviado ao Papa e o outro a selvagem dele jamais falou” (in<br />

STERN, III, p.118).<br />

É surpreendente o apelativo “selvagem” que Melânia, nesse<br />

texto, aplica a si mesma, levando-se em conta a auto-imagem<br />

inflada que a impregnava... Insistia teimosamente, porém, no<br />

“segredo” propagado. Diante das recusas em aceitá-lo, afirmava:<br />

- “Não se quer saber da verdade, só se quer permanecer nas<br />

trevas para se escapar mais facilmente” (in STERN, 3, p. 132).<br />

O texto de 1853 permaneceu desconhecido durante muto<br />

tempo.<br />

<strong>De</strong>sde 1854, o Cônego <strong>De</strong> Brandt, da Diocese de Amiens,<br />

ardoroso partidário de visões e revelações, deixou-se encantar<br />

pelo “segredo” de Melânia. Segundo ele, o “segredo” confirmava<br />

seu próprio projeto de fundar uma Congregação. Seu Bispo, no<br />

entanto, se opunha a suas idéias. Mais tarde, na Bélgica, ele se<br />

tornou um dos principais correspondentes de Melânia.<br />

Antes de novembro de 1854 Melânia redigiu uma Regra<br />

para uma imaginada Congregação Religiosa. Era o tempo da<br />

construção do Santuário. Nessa época, os primeiros Missionários<br />

de Nossa Senhora da Salette já estavam na Montanha a serviço<br />

dos peregrinos. Como Padres Diocesanos que eram, desejavam,<br />

no entanto, assumir a Vida Consagrada. Tinham uma Regra<br />

precária e provisória. Procuravam seu verdadeiro caminho.<br />

214


Melânia, por sua vez, já havia feito um Noviciado e possuia<br />

algum conhecimento em matéria de Vida Religiosa. Apesar da<br />

insuficiente capacidade para redigir uma Regra de Vida, queria ter<br />

a honra de ser considerada Fundadora da Comunidade Religiosa<br />

do Santuário. Sem apelar para intervenções sobrenaturais, mas,<br />

apenas com sua parca experiência de Vida Religiosa, Melânia<br />

redigiu uma Regra sumária (cf. STERN, 3, p. 224-227). Nela,<br />

Melânia se atribuia o poder de admitir postulantes, de fazer<br />

observar rigorosamente o prescrito, e até de proibir eventualmente<br />

as Religiosas de receberem a comunhão. Nessa Regra, porém,<br />

não se fala ainda dos “Apóstolos dos Últimos Tempos”.<br />

No começo de 1855, depois da recusa de ser admitida<br />

aos votos, Melânia comunicou a um padre, amigo seu,<br />

provavelmente o Pe. Faure, que ela tinha a missão de fazer<br />

revelações contra o Clero e os Conventos. A 4 de fevereiro de<br />

1855, sendo noviça carmelita na Inglaterra, e referindo-se a Dom<br />

Ginoulhiac, afirmou que “não estava mais sob a autoridade de<br />

sua Excelência” (in STERN, 3, p. 115). Sentia-se, pois, liberada<br />

para fazer revelações.<br />

Em 1857 apareceu o tema dos “Apóstolos dos Últimos<br />

Tempos” aplicado por Melânia ao contexto saletino. Mais tarde,<br />

após a Guerra de 1870, o Cônego <strong>De</strong> Brandt quis fundar, com a<br />

ajuda de Melânia, o grupo dos “Apóstolos dos Últimos Tempos”,<br />

imaginado por São Luis Grignion de Montfort. Enviado <strong>à</strong> Santa<br />

Sé para sua avaliação, o projeto foi rejeitado.<br />

O mesmo tema fez parte do “segredo” revelado por Melânia<br />

em 1858. Adèle Chevalier, uma autodenominada mística, fez<br />

uso dele na redação de pretensa Regra para os Missionários<br />

e as Religiosas do Santuário. O Bispado de Grenoble reagiu<br />

firmemente. A Regra não foi aplicada aos Missionários, e<br />

as Religiosas da Salette foram fundadas em 1869, em bases<br />

totalmente diferentes.<br />

Por esse tempo, Amédée Nicolas, um advogado de<br />

Marselha, correspondente de Melânia, estivera implicado no<br />

“caso Lamerlière”. Publicou um livro sobre a Salette. Após uma<br />

215


peregrinação <strong>à</strong> Montanha da Aparição, em 1851, e novamente<br />

em 1856, começou a “profetizar” a respeito de Roma, do Papa,<br />

da França, do nascimento de um monstro. Compôs também<br />

um comentário sobre o Apocalipse. Segundo seus cálculos, o<br />

“Anticristo” nasceria no mesmo mês e ano da publicação do<br />

“segredo” de Melânia, por ele marcada para 1858.<br />

O comentário de Nicolas sobre o Apocalipse foi efetivamente<br />

publicado em 1858, sob o título de “Conjectures sur les âges de<br />

l´Église et les derniers temps... mises em concordance avec les<br />

révélations de la Soeur de La Nativité...”, Lyon, 1858.<br />

Não estaria aqui a explicação para se exigir de Melânia<br />

que publicasse o “segredo” somente naquele ano? Exigência<br />

inexplicável uma vez que a “Mensagem pública” da Aparição<br />

fora proclamada pelos dois videntes em Ablandens, na noite<br />

mesma do dia 19 de setembro de 1846.<br />

Nessa obra de Nicolas são evocados temas presentes nas<br />

“predições” da “visionária” Soeur de La Nativité, e também no<br />

“segredo” de Melânia: os pecados dos Padres que arruínam a<br />

Igreja, as cidades destruídas, o combate entre o céu e as trevas...<br />

Mais tarde, nos anos sessenta, quando Melânia voltou da<br />

Itália para Marselha, Nicolas a acolheu em sua propriedade.<br />

<strong>De</strong>sde que Melânia publicou seu “segredo” em 1858, ele se fez<br />

seu ardente defensor, clamando contra os Bispos. O ressentimento<br />

de Melânia contra Dom Ginoulhiac pode estar aqui subtilmente<br />

incluso.<br />

Melânia, portanto, desde cedo teve contato muito próximo<br />

com esse tipo de “profetismo”. Ela conheceu certos personagens<br />

como Houzelot, o Pe. Faure e o engenheiro Dausse, e outros<br />

fanáticos por “profecias”. Faziam parte de seu círculo de<br />

Grenoble, desde quando ela se transferiu para lá, em outubro<br />

de 1850. Na época, ouviu falar de catástrofes anunciadas por<br />

“profetas do pessimismo”.<br />

O advogado Girard Brayer, de Grenoble, o advogado<br />

Amédée Nicolas, de Marselha, e Verrier, três adeptos de Melânia,<br />

também eram adeptos do falso barão Richemont, falecido em<br />

216


1853. Segundo eles, Richemont ressuscitaria para trazer a<br />

paz <strong>à</strong> França. Haviam feito muita pressão sobre os videntes e<br />

fornecido a Melânia documentos que falavam da ruína de Paris,<br />

do nascimento do “Anticristo” filho de uma Religiosa e de um<br />

Bispo, do Clero e Conventos corruptos...<br />

O advogado Girard, numa conversa com Melânia, lhe<br />

afirmou que “estava convicto de que essas predições têm real<br />

conexão com o vosso segredo”.<br />

Ao que Melânia respondeu: - “Também acredito!”.<br />

<strong>De</strong>sde os anos 1870, os dois advogados, Brayer e Nicolas,<br />

foram particularmente ativos na difusão do chamado “segredo”<br />

de Melânia.<br />

A partir de 1871, cópias de um texto do “segredo” escrito por<br />

Melânia, em Marselha, circulavam pela imprensa. Curiosamente,<br />

numa carta enviada a Girard a 7 de janeiro de 1873, a própria<br />

Melânia, referindo-se ao texto, confirmou o comentário do<br />

jesuíta Pe. Calage a respeito:<br />

- “São coisas tiradas do Apocalipse, <strong>à</strong>s quais não era preciso<br />

dar crédito” (in STERN, 3, p. 118).<br />

Em 1878, Dom Fava, Bispo de Grenoble, foi a Roma para<br />

pedir a coroação da estátua de Nossa Senhora da Salette e o título<br />

de Basílica para o Santuário da Santa Montanha. Visitou Melânia<br />

em Castellamare di Stabia, perto de Nápoles, onde ela habitava<br />

havia cerca de doze anos. Era o dia 23 de novembro. Dom Petagna,<br />

Bispo da Diocese e protetor de Melânia, tinha escrito a Dom Fava<br />

a respeito dos “Apóstolos dos Últimos Tempos”. No encontro, a<br />

conversação girou sobre o projeto de Melânia, a fundação dessa<br />

Ordem, com uma Regra que a Virgem teria dado a ela a 19 de<br />

setembro de 1846. A “Mensagem pública” e o “segredo” também<br />

faziam parte do diálogo entre Dom Fava e Melânia.<br />

Um mês depois, Melânia foi a Roma para ser recebida em<br />

audiência por Leão XIII. Lá permaneceu até maio de 1879.<br />

Segundo ela e seus admiradores, era chegado o momento de<br />

publicar o famoso “segredo”. Entre os admiradores havia alguns<br />

Bispos italianos.<br />

217


O opúsculo com o “segredo” em sua versão longa e final foi<br />

impresso em Lecce, no sul da Itália, em 1879. Dom Zola, Bispo<br />

da Diocese, acompanhou de perto sua impressão, autorizou a<br />

Cúria a lhe dar o “imprimatur”, e a 25 de novembro, enviou uma<br />

centena de exemplares ao Cônego <strong>De</strong> Brandt.<br />

O opúsculo contém a narrativa da Aparição. O “segredo”<br />

foi ali inserido e ocupa cerca de onze páginas, ou seja, três vezes<br />

mais que a “Mensagem pública” da Bela Senhora. O texto se refere<br />

a metrópoles depravadas, a nações e chefes de povos, ao Papa, ao<br />

Imperador, lança impropérios contra o Clero, anuncia diferentes<br />

desgraças, prediz o nascimento do “Anticristo” que seria filho<br />

de um Bispo e de uma Religiosa hebréia e dirige forte apelo aos<br />

“Apóstolos dos Últimos Tempos” para transformar o mundo.<br />

O texto é tão carregado de apocalipticismo, de anticlericalismo<br />

e de racismo, que não é possível atribuí-lo a Nossa Senhora.<br />

Trata-se de um pasticho apocalíptico extremamente confuso (in<br />

STERN, 3, p. 120).<br />

Muitos Bispos reagiram contra o opúsculo. O antiromanismo<br />

do texto, porém, motivou o Bispo Lefèbvre a usar da Salette para<br />

justificar sua revolta contra o Papa, em 1988 (cf. IL TEMPO,<br />

Roma, 1º de julho de 1988; cf. Nota 5, in STERN, 3, p. 110).<br />

Em fevereiro de 1880, o Cardeal Caterini, Secretário da<br />

Santa Inquisição, pediu explicações a Dom Zola a respeito do<br />

“imprimatur” que havia concedido ao opúsculo. O Bispo lhe<br />

respondeu afirmando que conhecia Melânia de longa data e<br />

admirava suas virtudes.<br />

A Santa Sé, porém, continuou firme em sua posição. Os<br />

Cardeais da Inquisição, descontentes com o caso e apoiados<br />

pelo Papa, pressionaram novamente Dom Zola. Em junho do<br />

mesmo ano de 1880, o Cardeal Caterini escreveu novamente<br />

a Dom Zola, recomendando-lhe que não se ocupasse mais de<br />

Melânia e que ela fosse proibida de escrever sobre tais assuntos.<br />

Pediu também que o opúsculo, que em nada agradara a Santa<br />

Sé, fosse retirado da mão dos fiéis. E comunicou o caso ao Pe.<br />

Archier, Superior Geral dos Missionários de Nossa Senhora da<br />

218


Salette, e aos Missionários responsáveis pelo Santuário da Santa<br />

Montanha.<br />

Na carta ao Superior Geral, o Cardeal Caterini, em nome da<br />

Sagrada Congregação do Santo Ofício, declara a respeito desse<br />

texto de Melânia:<br />

- “A Santa Sé viu com desprazer a publicação desse opúsculo<br />

e quer que os exemplares, lá onde tiverem sido divulgados, sejam<br />

retirados das mãos dos fiéis” (in CARLIER, p. 188).<br />

Em drástica medida do Santo Ofício, o processo de<br />

beatificação de Dom Zola foi interrompido porque daria ocasião<br />

para se falar do “famoso segredo da Salette”. Essa decisão foi<br />

comunicada ao Bispo de Lecce sucessor de Dom Zola, em carta<br />

de 4 de junho de 1936. Em 1951 o Santo Ofício suspendeu<br />

definitivamente o andamento do processo. Essa medida foi<br />

confirmada em 1985 sob o Papa João Paulo II (cf. Jean Stern ms,<br />

“L´affaire des “secrets”, Nota 21, p. 7, polígrafo, La Salette, 16<br />

de julho de 2002). Dom Zola foi um santo Bispo. Sua santidade,<br />

porém, não evitou a imprudência cometida.<br />

A celebridade que a Aparição proporcionou a Melânia dera<br />

lugar a uma espécie de culto em relação a ela. Culto que Dom<br />

Ginoulhiac denunciou em sua Instrução Pastoral e Mandamento,<br />

porque suscitava na vidente uma autoimagem inflada, razão de<br />

sua recusa <strong>à</strong> Profissão Religiosa junto <strong>à</strong>s Irmãs da Providência.<br />

A corrente misticista que a envolvia, nela via, porém, uma santa<br />

favorecida por graças extraordinárias desde sua mais tenra<br />

infância, mas, “nada disso se encontra na Melânia criança, e em<br />

seus primeiros anos após a Aparição” (STERN, 3, p. 132).<br />

Por sua vez, Amédée Nicolas e seus sequazes, apaixonados<br />

pelo “segredo” de Melânia, reagiram ante essas medidas da<br />

Santa Sé. <strong>De</strong>sencadearam pela França afora, uma guerra contra<br />

as intervenções da autoridade eclesiástica. O “movimento<br />

melanista”, que tem suas origens nos anos imediatamente<br />

posteriores a 1851, se exacerbou.<br />

Em 1901 e novamente em 1907, porém, foram postas no<br />

“INDEX” duas outras publicações sobre o “segredo de Melânia”,<br />

219


atribuídas ao Pe. Émile Combe, Pároco de Diou, no Allier, França.<br />

Ele havia hospedado Melânia entre 1899 e junho de 1904.<br />

Em 1915, nova interdição, de caráter geral, foi exarada pela<br />

Santa Sé (in ACTA APOSTOLICAE SEDIS, 7, 1915, p. 594).<br />

Em 1923 ainda, foi expedida nova condenação e nova<br />

inclusão do opúsculo do “segredo de Melânia” no INDEX.<br />

Apesar dos interditos, um grupo combativo continuou a<br />

dar suporte <strong>à</strong> divulgação do “segredo”. <strong>De</strong>sse grupo, além dos<br />

já conhecidos, faziam parte A. Peladan, A. Parent, carmelita<br />

suspenso de ordens, H. Rigaux, Pároco em Argoeuves, fanático<br />

por Nostradamus. Todos apaixonados por segredos. Entre eles o<br />

Pe. Combe e Leon Bloy.<br />

Pode-se dizer que “há uma espécie de conaturalidade entre<br />

o “segredo” e as preocupações milenaristas, cronologisantes e<br />

político-religiosas desse pequeno mundo de que o próprio Léon<br />

Bloy fez parte” (cf. STERN, 3, p. 123).<br />

Léon Bloy e Combe precisam de uma apresentação.<br />

1º. Léon Bloy era um escritor impetuoso, patético, brilhante,<br />

genioso e genial. Foi um entusiasta da Salette, de Melânia e de<br />

seu “segredo”. Escreveu livros com muitas páginas sublimes e<br />

outras temperadas por fortes sabores apocalípticos em torno dessa<br />

questão: - “Symbolisme de l´Apparition” e “Celle qui pleure”.<br />

Antes dele, Melânia havia redigido textos autobiográficos.<br />

Em 1897, enquanto residia na Sicília, Melânia, a pedido<br />

de Dom Annibale Di Francia, redigiu sua autobiografia em<br />

italiano, traduzida por ela mesma para o francês, e completada,<br />

estando próxima ao Pe. Combe, durante sua estadia em Allier,<br />

na França. Combe a repassou a Léon Bloy que a publicou em<br />

1912, oito anos após a morte de Melânia, sob o título “Vie de<br />

Mélanie bergère de La Salette. Écrite par elle-même en 1900.<br />

Son enfance (1831-1846)” (cf. STERN, 3, pg 222). Esse texto<br />

não é invenção de Bloy. Foi retomado por ele.<br />

A vidente Melânia nele descreve experiências místicas<br />

que teria vivido na infância, coisas que uma criança bem pode<br />

sonhar. É impossível admitir que essas considerações místicas,<br />

220


expostas nessa autobiografia, tenham base em reais experiências<br />

extraordinárias vividas na infância pela vidente. Não seriam<br />

elas retroprojeções e sonhos a respeito de um personagem que<br />

Melânia teria gostado de ter sido e não foi? Nem é possível<br />

atribuir criteriosamente um caráter sobrenatural ao “segredo”<br />

por ela formulado e instrumentalizado por outros.<br />

Léon Bloy, porém, lia e entendia o Fato da Salette <strong>à</strong> luz da<br />

vida e do “segredo” de Melânia. O Padre Simão Baccelli MS,<br />

na obra “CONHEÇAM LA SALETTE”, Edições Paulinas, São<br />

Paulo, 1952, traz páginas esclarecedoras sobre essa questão.<br />

O Pe. Simão conheceu pessoalmente Melânia, já idosa, na<br />

Montanha da Salette.<br />

Segundo Bloy, a Aparição da Salette não passava de um<br />

episódio na infância de Melânia a quem considerava como uma<br />

santa estigmatizada, privilegiada por Jesus de cujas mãos ela<br />

teria recebido frequentemente a comunhão.<br />

Trata-se de visão radicalmente contrastante com o que a<br />

história relata a respeito da infância de Melânia.<br />

Leon Bloy visitou a Montanha da Salette pela primeira vez,<br />

a 29 de agosto de 1879. Estava acompanhado pelo Pe. René<br />

Tardif de Moidrey, igualmente patético e genial, um pregador<br />

milenarista, “pai espiritual” de Bloy. Pe. René morreu a 28 de<br />

setembro de 1879, na Montanha, onde foi sepultado no cemitério<br />

dos Missionários Saletinos.<br />

O choque foi terrível para Bloy que ali fez a dura experiência<br />

da fé. Nada, porém, naquela ocasião, o indispôs contra os<br />

Missionários que atuavam no Santuário da Salette.<br />

Leon Bloy foi uma segunda vez <strong>à</strong> Salette e lá permaneceu<br />

entre 17 de setembro e 14 de outubro de 1880. Estava<br />

acompanhado por Anne-Marie Roulet a quem apresentava como<br />

parenta sua. Era uma ex-prostituta convertida por ele, detentora<br />

de “segredos”, uma visionária que acabou imersa na loucura. O<br />

entusiasmo exacerbado de Bloy por Melânia se deve <strong>à</strong> analogia<br />

entre o “segredo” dela e o de Anne-Marie Roulet, e <strong>à</strong>s críticas<br />

contra o Clero que eles veiculam.<br />

221


O comportamento de Bloy e de Anne-Marie na Montanha<br />

da Salette levantava suspeições, causando preocupações aos<br />

Missionários.<br />

Pe. Perrin, Superior do Santuário, avisou Bloy e sua<br />

companheira que era chegado o momento de acertarem a conta<br />

da hospedagem e de partirem, pois, o Santuário e a hospedaria<br />

seriam fechados por causa do inverno já próximo.<br />

Bloy se retirou do Santuário, indignado e trovejante.<br />

Por causa desse episódio, os Missionários se tornaram, para<br />

Bloy, vulgares estalajadeiros, avaros exploradores. Carregou<br />

consigo, pelos anos afora, o ressentimento originado nesse fato.<br />

Mais tarde Bloy acusou os Missionários de roubarem o<br />

“tesouro sacro” do Santuário. Na verdade, em 1901, o Governo<br />

anticlerical proibira a existência de Comunidades Religiosas na<br />

França. Os Missionários se viram obrigados a deixar o Santuário.<br />

Partiram para o exílio. Receosos de que o “tesouro sacro” do<br />

Santuário fosse sequestrado pelo Governo, quiseram pô-lo a<br />

salvo, levando-o consigo. O caso propiciou a Bloy a ocasião<br />

de se vingar dos Missionários, acusando-os de roubo. Mais<br />

tarde, quando a tranqüilidade político-religiosa da França foi<br />

reinstalada, os objetos sagrados foram devolvidos. A questão do<br />

“tesouro sacro” do Santuário, que havia sido denunciada junto <strong>à</strong><br />

Santa Sé, foi por ela examinada e julgada. O Vaticano deu plena<br />

razão aos Missionários.<br />

Bloy estava indignado também contra Dom Ginoulhiac<br />

porque não tinha admitido Melânia aos votos religiosos.<br />

Em 1906, Bloy retornou pela terceira vez ao Santuário<br />

da Salette. Os Missionários já não estavam lá, em virtude da<br />

interdição das Comunidades Religiosas na França. Haviam<br />

partido para o exílio. Um grupo de Padres da Diocese de<br />

Grenoble assumiu, então, o serviço pastoral no Santuário. Os<br />

Missionários voltaram no fim da 2ª Guerra Mundial.<br />

Preocupado com o fim dos tempos e seus terríveis cataclismas,<br />

fim iminente segundo suas extravagantes interpretações da<br />

Bíblia, Bloy fazia, a seu modo, na perspectiva apocalipticista,<br />

222


a exegese do “segredo” e da autobiografia de Melânia. Para ele,<br />

a confirmação do “segredo” era a I Guerra Mundial que estava<br />

acontecendo.<br />

Leon Bloy morreu em 1917, em plena Guerra.<br />

Pode-se dizer que a Salette, para Bloy, “é o SINAL maior,<br />

a matriz interpretativa de toda a trajetória da história. Os<br />

acontecimentos são avaliados e calculados em relação <strong>à</strong> Salette<br />

que, por isso mesmo, se torna a Chave da história humana”<br />

(ANGELIER, p. 189).<br />

2º. Pe. Émile Combe nasceu em 1845 e morreu em 1927.<br />

Trabalhava em Vichy, na França. Era um caráter forte e crítico,<br />

de mentalidade apocalíptica e monarquista.<br />

Em 1894, antes de acolher em sua Paróquia a vidente Melânia<br />

já idosa, publicou uma obra intitulada “Le grand coup avec sa<br />

date probable. Étude sur le secret de La Salette comparé aux<br />

Prophéties de l´Écriture et <strong>à</strong> d´autres prophéties authentiques”.<br />

Nessa obra, Combe predisse que o grande castigo do mundo<br />

e o triunfo universal da Igreja aconteceriam a 19 de setembro de<br />

1896, precisamente no Cinquentenário da Aparição.<br />

O “segredo” de Melânia foi necessariamente retomado<br />

nessa obra de Combe que interpretava os acontecimentos ao<br />

seu belprazer, na ótica apocalíptica a que o “segredo” se presta.<br />

A 15 de junho de 1901 a obra foi posta no INDEX dos livros<br />

proibidos pela Santa Sé.<br />

Melânia chegou a Diou no dia 20 de maio de 1899. Combe,<br />

o Pároco, procurou manter sob discreção sua identidade. Quis<br />

alojá-la em Vichy para estar próximo a ela. Não conseguiu,<br />

porém, realizar esse intento. Melânia voltou, então, para a Itália.<br />

Um mês depois, ela retornou e se abrigou numa pequena casa<br />

na Paróquia de Saint-Pourçain-sur-Sioule cujo Pároco era amigo<br />

de Combe. Ali permaneceu até abril de 1900. A seguir, ela foi a<br />

Diou para dar assistência ao pai de Combe, em final de vida.<br />

Em setembro de 1900, Combe acompanhou Melânia numa<br />

viagem a La Salette. <strong>De</strong>pois publicou uma pequena brochura<br />

sob o título: “Le secret de Mélanie et la crise actuelle”.<br />

223


Em novembro de 1900 Melânia redigiu a autobiografia<br />

publicada por Bloy.<br />

Por fim, Melânia voltou <strong>à</strong> Itália onde faleceu em 1904.<br />

Em seu “Journal”, Combe se propôs defender a vidente da<br />

Salette contra as calúnias de que dizia ser vítima, e servir de<br />

testemunha num eventual processo para a sua beatificação.<br />

As últimas páginas do “Journal” de Combe estavam<br />

repletas de críticas <strong>à</strong> Igreja porque ela se opunha <strong>à</strong> publicação<br />

do “segredo” de Melânia. Segundo Combe, a Igreja devia se<br />

converter desse pecado que só o castigo divino podia redimir.<br />

No “Journal”, Combe traçou um itinerário espiritual de<br />

Melânia. Nele a Aparição da Salette fica em segundo plano, sem<br />

importância. A predominância é atribuida a Melânia e ao seu<br />

“segredo”.<br />

<strong>De</strong>pois de 1851, Melânia pode ter sido enganada ou por<br />

falhas pessoais de memória, ou por uma imaginação distorcida.<br />

A vidente foi, sem dúvida, também influenciada por pessoas<br />

exaltadas e de discernimento pouco seguro, com as quais ela<br />

teve notoriamente contacto.<br />

O período estava impregnado de “profetismo” esotérico<br />

recorrente no século XIX, sobretudo na França que vivia duras<br />

turbulências desde a Revolução de 1789. O clima era propício ao<br />

surgimento de “profecias” de teor apocalíptico, fruto e causa de<br />

terror. A Revolução de 1848 ou Comuna de Paris, e a derrota na<br />

Guerra franco-alemã de 1870, levaram muitas pessoas a tomar a<br />

sério “profecias” de nenhuma seriedade.<br />

Os tempos eram complexos e permitiam o surgimento<br />

do anúncio de desgraças. Com ele, muitos “erros do século”<br />

apareceram e foram condenados pelo SYLLABUS de Pio IX.<br />

O Apocalipse de São João era usado de maneira distorcida. A<br />

espera do fim dos tempos se articulava com a regeneração da<br />

fé para expiação dos crimes cometidos. A imagem de um <strong>De</strong>us<br />

vingador justificava os clamores apocalípticos.<br />

Esse modo de pensar havia sido condenado pela Igreja.<br />

O CONCÍLIO de LATRÃO, na Constituição “Munus<br />

224


Praedicationis”, de 19 de dezembro de 1516, condenava, como<br />

lembra Marc Venard, “as pregações escatológicas que juntavam<br />

multidões naquela época, no começo do séc. XVI, uma obra de<br />

homens ‘que acenam com terrores e ameaças, anunciando como<br />

iminentes muitos males... e que esses males já estão presentes’,<br />

e que tentam confirmar suas afirmações com falsos milagres. O<br />

Concílio proíbe-os de ‘afirmar com segurança a época fixada<br />

para os males futuros, ou para a vinda do anticristo, ou o dia<br />

preciso do juízo” (in ALBERIGO, p. 322).<br />

Essa mesma reprovação foi retomada pela Igreja, no século<br />

XX. A 11 de outubro de 1962, na sessão solene de abertura do<br />

CONCÍLIO VATICANO II, reunido na Basílica Vaticana, o Papa<br />

JOÃO XXIII, na Alocução Inaugural, afirmou que é preciso<br />

discernir os sinais dos tempos, superando as “insinuações<br />

de almas que, embora ardentes de zelo, carecem do senso de<br />

discernimento e de medida, e só vêem nos tempos modernos<br />

prevaricação e ruína, o que as leva a dizer que a nossa época é<br />

pior, comparada com os tempos passados”. E acrescentou que<br />

se via obrigado a “discordar desses profetas da desgraça, que<br />

anunciam eventos sempre infelizes, como se fosse iminente o<br />

fim do mundo” (in ALBERIGO, p. 400).<br />

O caso de Melânia, portanto, não foi um fenômeno isolado.<br />

Em seu tempo, “é esse “capital profético” de que igualmente<br />

dispõe Melânia, a pastora da Salette, que se transforma em<br />

pitonisa, em profetiza a favor das turbulências que rasgam<br />

a França dos anos 1870. Ela se declara portadora de “visões”<br />

sobre o futuro doloroso de seu país, as quais lhe teriam sido<br />

transmitidas pela Virgem, quando da Aparição de 19 de setembro<br />

de 1846. O “segredo” de Melânia tende assim a se transformar<br />

numa profecia que anuncia a iminência do fim dos tempos. A<br />

recepção da mensagem marial, assim transformada, desenha<br />

uma nova face da vidente de La Salette” (in ANGELIER, p. 70).<br />

Nessa perspectiva, Melânia assenta seu “segredo” sobre três<br />

elementos básicos: um anticlericalismo acentuado, a esperança<br />

de uma conversão massiça dos fiéis para escapar do Apocalipse<br />

225


anunciado, e a presevação de uma elite na fé, os “verdadeiros<br />

discípulos do <strong>De</strong>us vivo”, “os verdadeiros imitadores de Cristo”,<br />

“os apóstolos dos últimos tempos”.<br />

No cadinho desse misticismo recheado de esoterismo, de<br />

milenarismo e apocalipticismo, se formou em torno de Melânia<br />

e de seu “segredo” o chamado “movimento melanista”. Pessoas<br />

impregnadas desse modo de pensar induziram Melânia a transitar<br />

por esse caminho.<br />

Muitos foram e são os inconvenientes teológicos e pastorais<br />

suscitados por esse movimento. Incompreensões e distorções<br />

surgiram a respeito do Fato da Salette, da Congregação dos<br />

Missionários de Nossa Senhora da Salette e de seu generoso<br />

trabalho pastoral junto ao Santuário da Montanha da Aparição.<br />

Prefere-se dar crédito a forjadas “profecias” mais que ao Fato<br />

e <strong>à</strong> Mensagem da Aparição, densos do mistério do Amor<br />

Compassivo do Senhor por seu Povo convocado <strong>à</strong> conversão.<br />

Nessa longa, confusa e triste história, Melânia, apesar de<br />

sua profunda afeição <strong>à</strong> Bela Senhora e da busca de santidade<br />

por uma vida de oração e penitência, mas também, em sua parca<br />

percepção, simplicidade de formação e sobrecarga de traumas,<br />

foi envolvida por tramas ideológicas variadas que prejudicaram<br />

sua imagem. Induzida a tanto, reprojetou uma ilusória autoimagem,<br />

fazendo de si o que não tinha sido no passado prévio<br />

<strong>à</strong> Aparição. Ofereceu, talvez inconscientemente, razões para o<br />

“melanismo” que se construiu.<br />

A santidade não elimina certas limitações pessoais. Santo<br />

algum esteve isento delas. Com elas, nelas e por causa delas<br />

saíram em busca da perfeição. Melânia não fugiu a essa realidade.<br />

Teve suas qualidades mescladas a suas imperfeições. Nesse<br />

quadro viveu sofridamente em seu afã de santificação. A Mãe da<br />

Reconciliação da Salette, compadecida de seu Povo, reservou,<br />

sem dúvida, amorosa compaixão por Melânia, a escolhida para<br />

ser testemunha de sua Aparição.<br />

Melânia e Maximino, como membros do “Povo dos<br />

Pobres de Javé”, são bem-amados pelo Senhor e, depois de<br />

226


tanto sofrimento, foram por certo recebidos em sua eterna bem<br />

aventurança e no aconchego celestial da Bela Senhora. No<br />

término da vida novamente ouviram, sem dúvida, seu maternal<br />

convite: “Vinde, meus filhos, não tenhais medo!”.<br />

CAPÍTULO III<br />

OS “SEGREDOS”: A DESCOBERTA DO NADA<br />

A descoberta das cartas manuscritas contendo os “segredos”<br />

de Melânia e Maximino, enviadas ao Papa Pio IX em 1851,<br />

permitiu nova ênfase ao “movimento melanista”. No entanto,<br />

uma análise criteriosa permite entender sobre que bases os dois<br />

textos estão assentados. Somem-se a eles as “revelações” de<br />

Melânia, posteriores a 1851. Bases de areia movediça.<br />

Considerado o longo e perturbado contexto histórico em<br />

que essa questão surgiu, os dois manuscritos confirmam o que<br />

se presumia. Seu conteúdo não pode corresponder efetivamente<br />

<strong>à</strong> “palavra pessoal” dada pela Bela Senhora a cada um dos<br />

videntes. Só pode ser fruto de projeções pessoais ocasionadas<br />

pelas circunstâncias conhecidas. A “descoberta” dos “segredos”<br />

é, pois, a “descoberta do nada”. Nada de novo acrescentam ao<br />

presumido.<br />

Sabia-se que um dossiê consagrado <strong>à</strong> Salette fora constituído<br />

pela Santa Sé a partir de 1880, quando da ruidosa polêmica<br />

levantada pela publicação das “revelações” de Melânia, com o<br />

“imprimatur” concedido por Dom Zola, em 1879.<br />

As duas cartas, a de Maximino e a de Melânia, redigidas em<br />

Grenoble em 1851 e enviadas ao Papa Pio IX, se encontravam<br />

nesse dossiê.<br />

O francês Pe. Michel Corteville, um melanista convicto, filho<br />

de outro conhecido melanista, Fernand Corteville, preparava nos<br />

anos finais do século XX, um doutorado sobre o tema da Salette,<br />

na ótica do “segredo de Melânia”.<br />

227


Esse tema permanecia ainda inacessível. Seu tratamento<br />

sofria sérias restrições por parte da Santa Sé, como o demonstra<br />

uma Nota, enviada a Fernand Corteville, pai de Pe. Michel, a<br />

13 de outubro de 1977. A Nota continha uma advertência sobre<br />

a exploração publicitária dessa questão. Nela a Congregação<br />

para a Doutrina da Fé declarou que sua prática continuava a<br />

se inspirar no <strong>De</strong>creto do Santo Ofício de 21 de dezembro de<br />

1915, segundo o qual a posição da Santa Sé era explicitamente<br />

negativa quanto ao “segredo” e previa sanções canônicas aos<br />

relapsos. Sabia-se, evidentemente, que a partir de 1880, a Santa<br />

Sé havia incluido no “INDEX DOS LIVROS PROIBIDOS”,<br />

obras que tratavam do “segredo”.<br />

Na tarefa assumida, Pe. Michel não deve ter levado em conta<br />

as medidas da Santa Sé a respeito dessa questão, particularmente<br />

a Carta datada de 28 de fevereiro de 1983, assinada por Dom E.<br />

Martinez e enviada pela Secretaria de Estado do Vaticano a Dom<br />

Matagrin, Bispo de Grenoble. Nela se afirma:<br />

- “Excelência, em novembro de 1982, Vós manifestastes <strong>à</strong><br />

Secretaria do Estado vosso embaraço muito compreensível diante<br />

das propostas sustentadas pelo Sr. F. Corteville. Por outro lado,<br />

naquilo que diz respeito ao “Segredo da Salete”, a Congregação<br />

para a Doutrna da Fé já teve ocasião de responder diretamete<br />

ao próprio Sr. Corteville – depois de reiteradas insistências da<br />

parte dele – na forma de breve nota que lhe foi comunicada a 13<br />

de outubro de 1977 e cujo essencial aqui está: “Nessa questão,<br />

a prática da Sagrada Congregação continua a se inspirar no<br />

<strong>De</strong>creto do Santo Ofício da data de 21 de dezembro de 1915:<br />

´<strong>De</strong> sic dicto Secret de La Salette, Sanctum Officium mandat<br />

omnibus fidelibus cujusque regionis ne sub quovis praetextu vel<br />

quavis forma disserant aut pretractent´”. A Congregação estima<br />

que é oportuno que se mantenha essa medida, para evitar tanto<br />

quanto possível a difusão de toda uma literatura contestável<br />

sobre o suposto “Secret”. Isso de nenhuma forma significa que<br />

ela queira jogar suspeitas sobre o culto votado <strong>à</strong> Bemaventurada<br />

Virgem Maria sob o título de Nossa Senhora da Salette, na<br />

228


linha da Exortação Apostólica MARIALIS CULTUS do Papa<br />

Paulo VI. Seria, por outro lado, inadmissível que se venha a<br />

semear perturbações no Santuário de La Salette nas cerimônias<br />

que ali se realizam sob a responsabilidade do Reitor e em<br />

pleno acordo com o Ordinário do Lugar, o Bispo de Grenoble.<br />

Aceitai, Excelência, a certeza de meu fraterno devotamento” (cf.<br />

fotocópia do original assinado por Dom E. Martinez).<br />

Entre 1997 e 1998, porém, sob o pontificado de João Paulo<br />

II, os arquivos do Santo Ofício foram abertos a pesquisadores e<br />

historiadores.<br />

Ao saber que a Congregação para a Doutrina da Fé havia<br />

aberto os arquivos para a pesquisa, Pe. Michel teve acesso ao<br />

dossiê da Salette, a 2 de outubro de 1999. Para sua volumosa<br />

tese acadêmica, valeu-se então, das duas cartas dos videntes<br />

ali encontradas, sobretudo da de Melâna e de suas sucessivas<br />

redações do “segredo”, bem como de sua famosa autobiografia.<br />

A obra acadêmica foi publicada em co-autoria entre Pe.<br />

Michel Corteville e Pe. René Laurentin, sob o título de “Un an<br />

après la révélation du troisième secret de Fátima. Découverte du<br />

secret de La Salette”, Ed. Fayard, 2002.<br />

Trata-se de trabalho ingente sobre fundamentos vãos. No<br />

livro se dá a maior importância ao “segredo” de Melânia em suas<br />

diferentes redações. Nisso consiste o ponto focal dos autores.<br />

No universo melanista, “o texto dos autores pode bem ser<br />

considerado a obra prima atual... Em verdade, esse livro não<br />

ajuda a ninguém, porque, embora trazendo documentos novos<br />

até agora não consultáveis, em primeiro lugar as duas redações<br />

(de 1851 e de 1854) dos segredos das crianças, insere-os num<br />

sistema de pensamento que os deformou já no ponto de partida”<br />

(ROGGIO, p. 19).<br />

Roggio faz uma análise severa dessa obra. <strong>De</strong>svenda seu erro<br />

metodológico, a falsidade histórica e a distorção teológica na<br />

abordagem do evento. Nela percebe a real intenção dos autores:<br />

- “A tese de fundo sustentada pelos autores é que o evento<br />

de La Salette encontra sua explicação autêntica nos segredos<br />

229


confiados pela Virgem a Maximino e Melânia. (...) <strong>De</strong>ntre os<br />

segredos sobressai o de Melânia que, por isso, se torna o ponto<br />

focal de todo o tratado. (...) Essa postura, que situa no segredo de<br />

Melânia o núcleo central, (...) pode ser razoavelmente sustentada<br />

somente a partir da afirmação positiva da santidade dos videntes:<br />

na verdade, só a real santidade de Maximino e Melânia pode<br />

garantir que tudo quanto vem revelado nos segredos é verdadeiro<br />

e, portanto, digno de fé. (...) Julgar o evento de La Salette significa<br />

julgar a santidade de Maximino e de Melânia, pressuposta e<br />

tornada visível nos segredos. (...) Acolher La Salette significa, de<br />

fato, acolher Melânia: ela, com Maximino em posição subalterna,<br />

é o verdadeiro sinal da Aparição, a verdadeira graça concedida <strong>à</strong><br />

Igreja” (ROGGIO, p. 1).<br />

Roggio, em seu texto, exemplifica:<br />

- “São desconcertantes as confusões e as imprecisões que<br />

os autores cometem ao nível da metodologia teológica e da<br />

apresentação histórica. (...) Por mais vezes os autores repetem<br />

abertamente que foi a leitura dos segredos, seja por parte do<br />

Bispo de Grenoble, <strong>De</strong> Bruillard, seja por parte de Pio IX, que<br />

deu o impulso decisivo e inapelável para a decisão de aprovar<br />

oficialmente tudo que aconteceu a 19 de setembro de 1846.<br />

(...) Isso é historicamente e teologicamente falso. Dom <strong>De</strong><br />

Bruillard escreve textualmente no decreto de aprovação de 19-<br />

09-1851: ´A nossa convicção (relativamete <strong>à</strong> Aparição) já era<br />

plena e indubitável ao final das sessões da Comissão, a 13-12-<br />

1847´. A redação dos segredos e sua leitura por parte de Dom<br />

<strong>De</strong> Bruillard acontece, porém, entre 3 e 6 de julho de 1851.<br />

Quanto <strong>à</strong> posição da Sé Apostólica, ela não fez nada mais que<br />

confirmar a possibilidade de, por parte de Dom <strong>De</strong> Bruillard,<br />

emitir um julgamento autônomo em relação a seu metropolita,<br />

o Arcebispo de Lyon, o Cardeal <strong>De</strong> Bonald, jamais convencido<br />

da autenticidade da Aparição. Por outro lado, se realmente os<br />

segredos, como sustentam os autores, ´referem-se aos temas<br />

essenciais da profecia de La Salette´, dever-se-ia encontrar seu<br />

reflexo no decreto de aprovação assinado por Dom <strong>De</strong> Bruillard.<br />

230


Nada disso aparece. O decreto não concede aos segredos um lugar<br />

ou uma dignidade particular: eles não estão acima da Aparição.<br />

(...) Os objetivos da Aparição não provêm dos segredos. (...) O<br />

que aqui é considerado em perspectiva apostólica e espiritual<br />

é a mensagem pública simplesmente: se é isso que determina<br />

não ´uma´, mas, ´a´ resposta da Igreja no evento, então significa<br />

que é a mensagem pública que é seu centro e a chave de leitura<br />

hermenêutica. Os autores são, pois, novamente desmentidos<br />

pelo decreto de aprovação uma vez que a autenticidade da<br />

aparição não promana e não provém dos segredos. (...) Os<br />

autores estão de tal forma presos por sua tese que não se dão<br />

conta de como o decreto apresenta invariavelmente a aparição<br />

como uma totalidade: ´Nós julgamos que a aparição (...) traz<br />

em si mesma todos os carateres da verdade´. Isso quer dizer<br />

que uma correta hermenêutica teológica do evento deve partir<br />

precisamente desta visão holística. É o que os autores não<br />

fazem. Por isso mesmo caem num concordismo obsessivo e<br />

continuado (...) que somente serve para justificar teses que não<br />

estão presentes na resposta oficial da Igreja em relação ao que<br />

ocorreu a 19 de setembro de 1846. (...) Por isso, percebe-se<br />

uma dupla inversão: os segredos (que são uma parte da aparição)<br />

se tornam a chave de explicação para aquilo que não é segredo<br />

(o discurso público, verdadeira caraterística típica do evento);<br />

os videntes (que também são uma parte da aparição) se tornam<br />

a garantia de sua verdade quando, efetivamente, isso se apóia<br />

no reconhecimento de sua incapacidade de enganar e de sua<br />

capacidade de não serem enganados, ou seja, de não serem os<br />

produtores do evento” (ROGGIO, p. 1-3).<br />

Outras deturpações por parte dos autores são detectadas por<br />

Roggio, no tocante <strong>à</strong> posição de Dom Ginoulhiac, sucessor de<br />

Dom <strong>De</strong> Bruillard, com relação <strong>à</strong> Aparição e aos videntes.<br />

O que a eles interessa é forçar a aceitação do propalado<br />

“profetismo” de Melânia, mais do que anunciar o apelo da Palavra<br />

de <strong>De</strong>us que passa pela Aparição. Trabalham na expectativa de<br />

se alcançar a canonização da vidente. Contudo, a despeito das<br />

231


inegáveis virtudes de Melânia, sua figura histórica é envolta de<br />

confusão em virtude das limitações pessoais e da manipulação<br />

de que foi vítima.<br />

Quanto ao “segredo” fabricado por Melânia, instigada<br />

por outrem, concluiu nessa triste desfiguração do evento da<br />

Salette. Quanto, porém, <strong>à</strong> “palavra pessoal” que a Bela Senhora<br />

confiou aos dois pastores separadamente, durante a Aparição,<br />

com certeza absoluta ela permaneceu no secreto do coração dos<br />

videntes.<br />

A descoberta do “segredo” em Roma é, pois, a descoberta<br />

do sem sentido. A descoberta do nada.<br />

Infelizmente, Pe. René Laurentin, mariólogo de renome em<br />

seu tempo, por razões que <strong>De</strong>us conhece, se deixou envolver<br />

por uma mentalidade escatologista, e abandonou seu criterioso<br />

método teológico na análise de Aparições. Seu método teve<br />

sucesso na análise de Lourdes. Em matéria de pesquisa histórica<br />

a respeito dessa Aparição, analisou todos os documentos em<br />

sua ordem cronológica. Não seguiu, porém, o mesmo caminho<br />

em relação <strong>à</strong> Salette, como o demonstra essa obra conjunta. O<br />

método agora seguido foi o de explorar a documentação em<br />

função de uma tese a ser demonstrada... A tese estava definida<br />

em prejuízo da verdade histórica, obnubilada pela manipulação<br />

dos documentos.<br />

Contrariamente a essa postura metodológica estranha de<br />

Laurentin nessa obra conjunta, o Pe. Jean Stern MS analisou a<br />

fundo e longamente o Fato da Salette, fazendo uso do método<br />

científico aplicado pelo próprio Laurentin em 1958, em seus<br />

estudos sobre as Aparições de Lourdes. Documentos, fatos e datas<br />

a respeito da Salette, todos e numa ordem cronológica e segundo<br />

uma postura crítica, foram publicados pelo Pe. JÉAN STERN<br />

MS em três volumes: “La Salette - Documents Authentiques:<br />

Dossier Chronologique Intégral” (cf. bibliografia).<br />

Os “segredos” de Maximino e de Melânia encontrados nos<br />

arquivos da Santa Sé, respectivamente datados de 3 e 6 julho de<br />

1851, trazem a assinatura dos videntes e, sobre os envelopes,<br />

232


a assinatura dos testemunhas do ato de redação em Grenoble.<br />

O público tomou amplo conhecimento deles pela imprensa. O<br />

sensacionalismo da “mídia” não deixou de se manifestar.<br />

1) O texto manuscrito de Maximino, em sua redação<br />

original, com os erros de ortografia e composição, é o seguinte:<br />

- “A 19 de setembro de 1846 nós vimos uma bela Senhora.<br />

Nós jamais dissemos que essa senhora era a Santa Virgem<br />

mas nós sempre dissemos que era um bela Senhora. Não sei<br />

se é a santa Virgem ou uma outra pessoa hoje eu creio que é<br />

a santa virgem Eis o que essa Senhora me disse:- “Se meu<br />

povo continua, aquilo que vou dizer-vos virá mais cedo, se ele<br />

muda um pouco isso acontecerá um pouco mais tarde. A frança<br />

corrompeu o universo um dia ela será punida a fé se apagará<br />

na frança três partes da frança não praticarão mais a religião ou<br />

quase nada a outra parte a praticará sem praticá-la bem, pois<br />

depois as nações se converterão a fé se reacenderá por toda<br />

parte. Uma grande região no norte da Europa hoje protestante<br />

se converterá com o apoio dessa região todas as outras regiões<br />

do mundo se converterão, antes que tudo isso aconteça grandes<br />

perturbações acontecerão na igreja e por toda a parte depois o<br />

nosso Santo padre o papa será perseguido seu sucessor será um<br />

pontífice que ninguém espera depois uma grande paz virá mas<br />

ela não durará muito tempo um monstro virá perturbá-la tudo o<br />

que vos disse aqui acontecerá no outro século Mais nos dois mil<br />

anos”. Maximino Giraud (ela me disse de o dizer algum tempo<br />

antes) Meu Muito Santo Padre vossa santa bênção a uma de<br />

vossas ovelhas Maximino Giraud, 3 de julho de 1851 Grenoble”.<br />

O texto de Maximino, descoberto no Vaticano, é quase idêntico<br />

ao “segredo” que ele comunicou a Dausse, em 11 de agosto de 1851,<br />

depois de ter enviado seu manuscrito ao Papa Pio IX. Mais tarde,<br />

em 1853, Maximino passou seu “segredo” também a um colega.<br />

O texto é um conjunto de mistificações sem nexo, usadas<br />

por Maximino, um adolescente de temperamento irrequieto e<br />

vivaz, para saciar a curiosidade de seus inquisidores. Seu teor,<br />

233


composto por invenções de caráter apocalíptico e sem incidência<br />

prática para a vida de fé, não corresponde <strong>à</strong> Mensagem da<br />

Aparição, impregnada de apelos <strong>à</strong> conversão e reconciliação.<br />

O conteúdo do “segredo” de Maximino, feito de elementos<br />

que suscitam medo, contradiz o que ele mesmo afirmou <strong>à</strong><br />

Mme. <strong>De</strong> Monteynard, dez dias após a Aparição, quando ela<br />

lhe perguntou se a “palavra pessoal” por ele recebida da Bela<br />

Senhora, falava de coisas felizes ou infelizes.<br />

- “A essa pergunta, afirma ela, o rosto do menino tomou uma<br />

expressão inefável e ele respondeu em voz baixa e sorrindo:<br />

- Ah! É uma felicidade!” (STERN, p.63).<br />

O Pe. Mélin, em carta a Rousselot, também afirmou que a<br />

“palavra pessoal” “parece suscitar-lhe uma grande alegria” (id. ib.).<br />

Esses testemunhos indicam a necessidade de se fazer uma<br />

distinção entre o verdadeiro “segredo”, i.e., a “palavra pessoal”<br />

dita pela Bela Senhora durante a Aparição e conservada no<br />

silêncio do coração por Maximino, e o “segredo” imaginário<br />

posto por escrito e enviado ao Papa pelo adolescente.<br />

2) O texto manuscrito de Melânia, em sua redação original e<br />

com suas idiosincrasias, é o seguinte:<br />

- “J. M. J. Segredo que a Santa Virgem me deu sobre a<br />

Montanha de La Salette a 19 de setembro de 1846.<br />

Segredo, Melânia, vou dizer-vos alguma coisa que não<br />

direis a ninguém.<br />

O tempo da cólera de <strong>De</strong>us chegou; se quando tiverdes dito<br />

aos povos o que eu há pouco vos disse, e aquilo que eu vos<br />

direi de dizer também; se depois disso eles não se converterem,<br />

que não se fizer penitência e se não se parar de trabalhar no<br />

Domingo, e se se continua a blasfemar o Santo Nome de <strong>De</strong>us,<br />

numa palavra, se a face da terra não muda, <strong>De</strong>us vai se vingar<br />

contra o povo ingrato, e escravo do demônio, meu Filho vai<br />

fazer explodir seu poder.<br />

Paris essa cidade corrompida por todas sortes de crimes<br />

perecerá infalivelmente Marselha será destruída em pouco<br />

234


tempo, quando essas coisas acontecerem: a desordem será<br />

completa sobre a terra; o mundo se entregará a suas paixões<br />

ímpias.<br />

O Papa será perseguido por todas as partes se atirará sobre<br />

ele, se quererá Metê-lo <strong>à</strong> Morte, mas não se lhe poderá nada, o<br />

Vigário de <strong>De</strong>us triunfará ainda essa vez.<br />

Os padres e as religiosas, e os verdadeiros servidores de<br />

meu Filho serão perseguidos e muitos morrerão pela fé de Jesus<br />

Cristo.<br />

Uma fome reinará ao mesmo tempo.<br />

<strong>De</strong>pois que todas essas coisas tiverem chegado muitas das<br />

pessoas reconhecerão a mão de <strong>De</strong>us sobre elas, se converterão<br />

e farão penitência de seus pecados.<br />

Um grande rei subirá sobre o trono e reinará durante alguns<br />

anos. A religião reflorescerá e se estenderá por toda a terra e a<br />

fertilidade será grande, o mundo contente por não lhe faltar nada<br />

recomeçará suas desordens, e abandonará deus, se entregará a<br />

suas paixões criminosas.<br />

Os ministros de <strong>De</strong>us, e as Esposas de Jesus Cristo há os<br />

que se entregarão <strong>à</strong> desordem, e é o que haverá de terrível, enfim<br />

um inferno reinará sobre a terra; será então que o antecristo<br />

nascerá de uma religiosa, mas desgraça para ela; muitas pessoas<br />

acreditarão nele porque ele se dirá o vindo do céu, desgraça para<br />

aqueles que o crerão, o tempo não está longe não passará duas<br />

vezes 50 anos<br />

Minha filha vós não direis nada do que acabo de vos dizer<br />

não o direis a ninguém, vós não direis se vós deveis dizê-lo um<br />

dia, vós não direis o que diz respeito a isso, enfim vós não direis<br />

nada até que vos diga de o dizer!!!<br />

Peço a Nosso Santo Padre o Papa de me dar sua santa bênção.<br />

Melânia Mathieu Pastora de La Salette<br />

Grenoble 6 de julho de 1851 J. M. J. +<br />

“ (in STERN, Jean, ms: “Note sur les “secrets”<br />

de 1851”, polígrafo, 27-01-2001)<br />

235


O texto de Melânia, enviado ao Papa em 1851 e encontrado<br />

no Vaticano, é mais curto que o texto do “segredo” por ela<br />

publicado em 1879, mas a temática é igual: o anticristo, os<br />

maus padres, a destruição de Paris e Marselha... Nada de<br />

fundamentalmente novo, portanto.<br />

A vidente se refere a certas categorias de pessoas e não<br />

simplesmente ao povo em geral, como o faz a Mensagem pública<br />

da Aparição. É surpreendente, porém, o fato de que tenham<br />

sido reveladas tais coisas <strong>à</strong> adolescente Melânia em 1846. É<br />

impossível evitar o ceticismo nessa questão.<br />

Apesar das poucas convergências entre o “segredo de<br />

Melânia” e a Mensagem da Salette, as divergências entre ambos<br />

são muito grandes. Com as sucessivas publicações que dela<br />

recebeu, desde os poucos elementos redacionais em 1853 até a<br />

redação completa em 1879, o “segredo de Melânia” se tornou o<br />

foco de grandes incompreensões em relação <strong>à</strong> Salette.<br />

Nos textos de Maximino e de Melânia há curiosidades malsãs<br />

que atraem. Ambos, através de certos personagens que os rodeavam<br />

com diferentes intenções, tiveram contato com o “profetismo”,<br />

através de narrativas apocalípticas, relacionadas a desgraças e ao<br />

fim do mundo, coisas que invadem a cabeça do povo há séculos.<br />

Alguns temas acenados nas duas cartas eram conhecidos<br />

na época: o anticristo; o fim do mundo; a destruição de Paris<br />

e Marselha; a conversão de uma região protestante do norte<br />

europeu que já tinha acontecido com o Movimento de Oxford,<br />

na Inglaterra; o atentado contra o Papa, o que era sabido uma vez<br />

que, em 1848, em Roma, durante uma revolução, um colaborador<br />

próximo ao Papa foi assassinado; e outras “profecias” populares,<br />

surgidas após a Revolução de 1848.<br />

No entanto, com a publicação das cartas dos videntes<br />

encontradas no Vaticano, o melanismo viveu um substancial<br />

surto de euforia.<br />

Essa complicada história exige, portanto, precaução na<br />

interpretação das “revelações” de Maximino e, particularmente,<br />

de Melânia.<br />

236


STERN, o grande pesquisador do evento Salette, escreve:<br />

- “Pode-se dizer que Maximino e Melânia viveram uma<br />

experiência religiosa profunda na montanha, a 19 de setembro<br />

de 1846. Esse evento marcou profundamente a vida deles. Eles<br />

tudo fizeram para permanecerem fiéis <strong>à</strong> Mensagem que Maria<br />

lhes entregou. Em relação aos segredos diria que fazem parte de<br />

sua experiência religiosa, a partir da Aparição. Uma experiência<br />

que continuaram lendo a partir do evento como tal e do círculo<br />

de pessoas que os submeteu a toda espécie de pressões e<br />

manipulações religiosas e políticas. Não esqueçamos que as<br />

crianças resistiram até onde suas forças lhes permitiram fazê-lo.<br />

Elas escreveram-nos, seduzidas por mentiras, ameaças… Nada<br />

há de estranho se incluiram na redação dos segredos toda espécie<br />

de predições apocalípticas que corriam por toda parte nessa<br />

época. Nada há de estranho se, ouvindo essas coisas, elas as<br />

incorporaram a suas experiências humanas, sociais e religiosas”<br />

(STERN, in “Maximin et Mélanie: les secrets”, polígrafo, p.5).<br />

Diante de tudo isso, a pergunta surge: se os videntes foram<br />

influenciados quanto <strong>à</strong> montagem do “segredo”, não o teriam<br />

sido também quanto <strong>à</strong> Mensagem da Aparição?<br />

Um judicioso discernimento dirá que, entre o que os videntes<br />

experimentaram a partir de 1847-1848, quando Maximino e<br />

Melânia começaram a sofrer grandes pressões para expressarem<br />

os “segredos”, e o que os videntes eram antes da Aparição, há<br />

uma enorme diferença.<br />

A Mensagem da Bela Senhora foi confiada aos dois videntes<br />

em sua situação pessoal de natural simplicidade, e mantida em<br />

sua integridade. O “segredo” ou “palavra pessoal”, também<br />

recebida durante o evento, foi objeto de especulações e distorções<br />

posteriores ao evento.<br />

Além disso, o “segredo” de Melânia, publicado em diversas<br />

redações posteriormente a 1851, sofreu reais acréscimos por<br />

parte da vidente, o que não aconteceu com a Mensagem que<br />

sempre permaneceu a mesma, narrada sempre com a mesma<br />

fidelidade, tanto por Melânia quanto por Maximino.<br />

237


Tudo considerado, conclui-se que é impossível reconhecer<br />

uma origem sobrenatural dos “segredos” dos dois videntes,<br />

tais como foram enviados ao Papa, menos ainda do posterior<br />

“segredo de Melânia”.<br />

Quanto <strong>à</strong> “palavra pessoal” da Bela Senhora, certamente<br />

nunca foi transcrita em papel algum. Permaneceu, sim, no mais<br />

profundo do coração de Melânia e de Maximino.<br />

A diferença entre os “segredos” e a Mensagem também<br />

está na dimensão teológica: nos dois “segredos” apenas se<br />

acena para o nome de Jesus Cristo, mas nunca Ele é descrito<br />

como o Salvador. Ora, na Mensagem, o Filho da Bela Senhora é<br />

apresentado como o Reconciliador, a Chave de leitura do Evento<br />

da Salette.<br />

238


CONCLUSÃO<br />

Na limpidez de seu coração, segundo a bem-aventurança,<br />

Maximino e Melânia contemplaram a Bela Senhora. Sendo<br />

pobres, receberam o tesouro do Reino. Mansos, humildes,<br />

famintos e sedentos de justiça e paz, herdaram o Povo de<br />

<strong>De</strong>us como terreno para a semeadura da Palavra evangélica<br />

da Reconciliação anunciada pela Bela Senhora. Como filhos<br />

carentes e aflitos, viveram fiéis ao materno e compassivo amor da<br />

Virgem Mãe que os chamou junto a si na Aparição. Perseguidos,<br />

incompreendidos, manipulados e explorados, alcançaram a<br />

misericórdia infinita do Pai que ampara os fracos. Cumpriram<br />

sua missão.<br />

Bruillard, Ginoulhiac, Fava e os Missionários assumiram<br />

a continuidade eclesial da tarefa de transmitir a todo o povo a<br />

Mensagem da Mãe Maria confiada a Melânia e Maximino.<br />

O Ministério da Reconciliação, envolto pelo Mistério da<br />

Reconciliação anunciado pela Bela Senhora, prossegue em seu<br />

caminho. Os percalços nele encontrados, não impediram a ação<br />

de <strong>De</strong>us na história do evento da Salette:<br />

- o Fato da Salette foi definitivamente declarado como<br />

autêntico pela Igreja, não por causa dos “segredos”, mas, apesar<br />

deles;<br />

- a Mensagem da Bela Senhora é publicamente anunciada<br />

como a única palavra evangelizadora da Virgem Mãe na Aparição;<br />

- a vida de Maximino e de Melânia, antes ou depois da<br />

Aparição, não interfere no significado e valor do Fato da Salette;<br />

- a Mensagem pública da Aparição é efetivamente distinta<br />

da “palavra pessoal” dada pela Bela Senhora aos videntes;<br />

- a “palavra pessoal” foi fielmente guardada por Maximino<br />

e Melânia no secreto de seus corações, apesar das pressões<br />

sofridas;<br />

- a recusa formal e constante para não revelar a “palavra<br />

pessoal”, impede a comprovação da identidade entre a mesma e<br />

os “segredos” enviados ao Papa;<br />

239


- considerados o conteúdo e as circunstâncias históricas dessa<br />

questão, deve-se admitir que as cartas dos videntes, enviadas ao<br />

Papa, são fruto de imaginação conturbada por pressões externas;<br />

- o fato de se atribuir o conteúdo dessas cartas <strong>à</strong> Bela Senhora<br />

é uma falta de consideração para com a santidade da Mãe de<br />

<strong>De</strong>us;<br />

- o “segredo” de Melânia divulgado em formas sucessivas,<br />

variadas e em contextos controversos, independe do Fato da<br />

Salette;<br />

- a devoção <strong>à</strong> Mãe da Reconciliação, nascida do Fato da<br />

Aparição, foi abençoada pela Igreja e impregna a espiritualidade<br />

do Povo de <strong>De</strong>us;<br />

- o Santuário da Montanha da Salette, definido como Basílica<br />

Menor pela Santa Sé, é centro de peregrinações oriundas do<br />

mundo inteiro;<br />

- as Congregações dos Missionários e das Irmãs de Nossa<br />

Senhora da Salette, a Arquiconfraria e os Leigos Saletinos<br />

prosseguem no ministério da reconciliação, segundo o Evangelho<br />

e <strong>à</strong> luz da Mensagem da Aparição de 19 de setembro de 1846.<br />

A Bela Senhora, Mãe da Reconciliação, não cessa de suplicar<br />

ao Filho Crucificado-Ressuscitado por seu Povo, e de proclamar<br />

que a torrente da Vida nova, simbolizada na fonte milagrosa da<br />

Salette, jamais se esgotará.<br />

240


BIBLIOGRAFIA<br />

- (MARTINI) “Les larmes de Marie”, C. M. Martini, Ed. Saint-<br />

Augustin, 2002, Suissa.<br />

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Martini, Gene Barrette e Franco Brovelli, tradução de Pe. Atico<br />

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- (SCHLEWER) “Salette, opção de vida”, Marcel Schlewer ms,<br />

tradução de Pe. Atico Fassini ms, Gráfica Editora Pe. Berthier,<br />

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- (FASSINI) “História da Salette”, Pe. Atico Fassini ms,<br />

2ª edição, Gráfica Editora Pe. Berthier, Passo Fundo, 2008<br />

- (BACCELLI) “Conheçam La Salette”, Pe. Dr. Simão Baccelli<br />

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- (TOCHON) “La Salette dans la France de 1846”, Maurice<br />

Tochon, Ed.de Paris,2006.<br />

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- (STERN) “La Salette, Documents authentiques, septembre<br />

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Brouwer, Paris, 1980; - “La Salette, Documents authentiques,<br />

fin mars 1847-avril 1849”, vol. 2, Les Éditions du Cerf,<br />

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- (V.H. I) “La galerie des portraits de La Salette” (Bispos Dom<br />

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241


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- Comentários a respeito da Aparição e sua Mensagem:<br />

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de Pe. Atico Fassini ms, Gráfica Editora Pe. Berthier, Passo<br />

Fundo, RS, 1999.<br />

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- (TROCHU), “O Santo Cura D´Ars”, Francis Trochu, Líthera<br />

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- (ALBERIGO), “História dos Concílios Ecumênicos”,<br />

Giuseppe Alberigo e outros, Ed. Paulus, 2005.<br />

- (NOVEL), “Du Corps des Missionnaires Diocesains <strong>à</strong><br />

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La Salette”, Pe. Charles Novel ms, polígrafo, 1968.<br />

- (NOVEL), “<strong>De</strong>s quatre conférences sur l´histoire de La<br />

Congrégation des Missionnaires de Notre-Dame de La<br />

Salette”, Pe. Charles Novel ms, polígrafo, s/d.<br />

- (JAOUEN), “Les Missionnaires de Notre-Dame de La<br />

Salette”, Jéan Jaouen, Grasset Éditeur, 1953.<br />

- (BARRETTE), “Uma pesquisa nas origens e na evolução do<br />

carisma dos Missionários de Nossa Senhora da Salette”, Eugène<br />

G. Barrette ms, 1976, traduçãode Pe. Antônio Nichelle MS,<br />

polígrafo.<br />

242


ÍNDICE<br />

Prefácio.......................................................................................................... 3<br />

Introdução...................................................................................................... 5<br />

I Parte: Salette: Fato e Contexto.................................................................... 7<br />

Capítulo I: Situação histórica da França........................................................ 7<br />

Capítulo II: Um submundo na França profunda.......................................... 10<br />

Capítulo III: Sobreviventes da baixada humana.......................................... 14<br />

1 - Pierre-Maximin Giraud............................................................... 14<br />

2 - Françoise-Mélanie Calvat........................................................... 16<br />

Capítulo IV: O Evento extraordinário.......................................................... 18<br />

Capítulo V: Ecos do Evento......................................................................... 28<br />

l - Les Ablandens: a surpresa da compaixão de <strong>De</strong>us....................... 28<br />

2 - La Salette e Corps na dinâmica da Reconciliação....................... 30<br />

3 - Os agraciados: retorno ao quotidiano......................................... 47<br />

4 - Padre Mélin: “Le bon papa”........................................................ 52<br />

Capítulo VI: Alvo de muitas buscas............................................................. 62<br />

Capítulo VII: Grenoble, a palavra da Igreja................................................. 66<br />

1 - Um modelo de Bispo................................................................... 66<br />

2 - Primeiras informações................................................................. 72<br />

Capítulo VIII: À procura do sentido............................................................ 76<br />

1 - A investigação inicial.................................................................. 76<br />

2 - A análise conclusiva.................................................................... 80<br />

Capítulo IX: O despontar da decisão episcopal........................................... 84<br />

1 - O “Incidente de Ars”................................................................... 86<br />

2 - Superado o equívoco................................................................... 89<br />

Capítulo X: Os “segredos” em Roma.......................................................... 95<br />

Capítulo XI: E a luz se fez......................................................................... 106<br />

Capítulo XII: “<strong>De</strong>ixai vosso servo partir em paz”..................................... 116<br />

Capítulo XIII: A fortaleza do novo Bispo.................................................. 121<br />

1 - O Bispo Ginoulhiac................................................................... 121<br />

2 - O Teólogo.................................................................................. 122<br />

3 - O pronunciamento..................................................................... 127<br />

4 - O devoto da Salette................................................................... 128<br />

243


Capítulo XIV: Outros Pastores enviados................................................... 132<br />

1 - Dom Paulinier........................................................................... 132<br />

2 - Dom Fava.................................................................................. 133<br />

II PARTE : O novo Mandamento............................................................... 139<br />

Capítulo I: Um templo sobre a rocha......................................................... 139<br />

1 - O Santuário................................................................................ 139<br />

2 - O Povo de <strong>De</strong>us peregrino........................................................ 146<br />

Capítulo II: O legado de Dom Philibert:<br />

os Missionários da Mãe da Reconciliação................................................. 151<br />

1 - A Aparição da Salette: Evento inspirador.................................. 153<br />

2 - Os precedentes da fundação...................................................... 154<br />

3 - O ato fundador de 1º de maio de 1852...................................... 162<br />

4 - Os pioneiros.............................................................................. 172<br />

5 - O carisma................................................................................... 183<br />

6 - A missão.................................................................................... 191<br />

APÊNDICE................................................................................................ 195<br />

Capítulo I: O percurso de vida dos videntes.............................................. 195<br />

1 - Maximino: inconstância de vida na<br />

fidelidade <strong>à</strong> Bela Senhora.......................................................... 196<br />

2 - Melânia: vida virtuosa em trajetória tortuosa............................ 203<br />

Capítulo II: Uma espinhosa questão.......................................................... 211<br />

Capítulo III: Os “segredos”: a descoberta do nada.................................... 227<br />

Conclusão................................................................................................... 239<br />

Bibliografia................................................................................................ 241<br />

Índice.......................................................................................................... 243<br />

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