18.07.2016 Views

Castel 8_PT: O PAO MULTIPLICADO

O PAO MULTIPLICADO

O PAO MULTIPLICADO

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

LA SALETTE<br />

BIBLIOTECA VIRTUAL<br />

O PÃO<br />

<strong>MULTIPLICADO</strong><br />

P. Roger <strong>Castel</strong>, ms<br />

Os Famintos Sempre nos Causam Medo<br />

1<br />

Para quem lança um olhar lúcido, e sem prevenções, sobre o mundo em que vivemos,<br />

é possível não ver, para além das fronteiras políticas, econômicas e sociais, a imensa<br />

angústia dos homens? Sobretudo daqueles a quem falta alimento cotidiano para a<br />

sobrevivência, daqueles para quem esse mesmo alimento é insuficiente. Mas também<br />

daqueles que são oprimidos, vítimas da segregação, da injustiça, do sectarismo. Daqueles a<br />

quem nossa sociedade recusa trabalho, cultura e descanso. Daqueles a quem nós mesmos<br />

recusamos respeito, ajuda, amizade.<br />

No entanto, nossas próprias aspirações, nossa fome de amar e de ser amados, não<br />

deveriam nos tornar abertos a todas as fomes dos homens: fome de pão, de verdade, de<br />

dignidade e de amor? “Amarás o teu próximo como a ti mesmo!” (Lc 10,27) Nada urge<br />

mais do que isso, mas, para tanto, é preciso uma mudança de mentalidade, uma conversão<br />

do coração. Pois os famintos sempre nos amedrontam. E é um processo difícil de passar do<br />

medo à atenção, da atenção à ajuda, da ajuda a uma verdadeira descoberta do outro.<br />

A descoberta do outro nos leva à constatação de nossa própria pobreza, e a pobreza<br />

nos leva a um apelo ao Pai.<br />

O olhar de Jesus sobre as angústias humanas nos incita não só à solidariedade e<br />

partilha, mas à comunhão fraterna: somente ela pode saciar toda fome humana, pois se<br />

origina Naquele que é o Pão da Vida e a Água Viva (Jo 6,4). Jesus nos restitui à nossa<br />

própria natureza humana, imagem e semelhança de Deus. Muito mais: Jesus nos convoca à<br />

dignidade de filhos do Pai, única fonte capaz de saciar nosso coração sedento de amor sem<br />

limites.<br />

Os discípulos muito bem perceberam esse olhar de Jesus. E muitas vezes. Foi-lhes<br />

necessário tempo e experiência da própria pobreza para medir as exigências desse olhar. E<br />

ao mesmo tempo, sua premência em resolver todas as fomes do homem. A Primeira Carta<br />

de Pedro, as de João e Tiago nos dão testemunho disso, tanto quanto a descrição da vida das<br />

comunidades em Atos dos Apóstolos. Um evento, porém, reteve a atenção dos quatro


LA SALETTE<br />

BIBLIOTECA VIRTUAL<br />

evangelistas. Relataram-no quase nos mesmos termos de tal forma pareceu-lhes<br />

significativo: a multiplicação dos pães (Mt 14 e 15; Mc 6 e 8, Lc 9 e Jo 6).<br />

Uma leitura atenta e comparada desses textos nos demonstra que Jesus que está<br />

atento a todas as fomes humanas, educando seus discípulos para essa mesma atitude de<br />

atenção, dando ao gesto de partilha um sentido sacramental e, em são João, descrevendo-se<br />

a si mesmo como o Pão da Vida.<br />

Ovelhas sem Pastor<br />

2<br />

Limitar-nos-emos ao primeiro texto de Marcos. Sigamos as pessoas envolvidas nesse<br />

acontecimento: a multidão, Jesus, os discípulos de ontem. E a nós que somos os discípulos<br />

de hoje.<br />

Uma multidão como ovelhas sem pastor. Eis o que, historicamente, era o povo da<br />

Galileia. Uma massa em que se mesclam trabalhadores de grandes propriedades, pessoas da<br />

beira do lago, e muitos biscateiros que precisavam de uma diária para sobreviver. Uma<br />

multidão dividida não só por interesses de diferentes categorias sociais, mas também pelo<br />

uso formalista da Lei religiosa. Esse uso excomungava, para fora das cidades e das vilas, os<br />

doentes e afetados por qualquer impureza legal, ou confinava-os em suas próprias casas.<br />

Esse uso criava hierarquias nas quais o prestígio jogava um papel mais determinante ainda<br />

que a riqueza.<br />

Uma multidão em que se opunham tendências políticas irredutíveis, antagonistas e<br />

rivais, muitas vezes confundidas ou comprometidas de um lado com distintas correntes<br />

religiosas (fariseus, zelotes, etc.); e de outro lado com os poderosos do dia, que disputavam<br />

aberta ou disfarçadamente o domínio do país e da opinião pública.<br />

Acrescentemos a esse rápido painel que a Galileia era, precisamente, ponto de<br />

encontro de povos: a tradição já bem diversificada ali estava mesclada, amalgamada, por<br />

vezes defrontada com o velho pano de fundo cananeu, com as correntes sino-fenícias, com a<br />

forte influência helenista e com a presença importuna e opressora da ocupação romana.<br />

Um rebanho desamparado, disperso, incoerente, atravessado de sobressaltos de louca<br />

esperança, ou entregando-se a um torpor fatalista sob a espada regrada dos impostos<br />

romanos e dos dízimos judaicos.<br />

Haveria talvez outro momento da História em que, num lugar assim tão restrito como<br />

o do Galileia, se encontre concentrada tantas divisões, tantas angústias, tantas aspirações?<br />

Além do mais, essa multidão está no deserto, o lugar em que se morre de fome, em<br />

que se vira pastor de animais selvagens; a sorte reservada a ovelhas sem pastor. Essa<br />

multidão não pode salvar-se por própria iniciativa; dispersá-la não resolve o problema. Nem<br />

calcular o que seria preciso para alimentá-la. Ela é um amontoado sem organização, sem<br />

recursos, ou melhor, com recursos tão irrisórios como cinco pães e dois peixes.


LA SALETTE<br />

BIBLIOTECA VIRTUAL<br />

“Tenho Compaixão desse Povo!”<br />

3<br />

“Chegavam a pé, de todas as cidades, para esse lugar deserto, afastado.” A<br />

Palavra de Jesus despertara, nessa multidão, uma esperança, sem dúvida muito confusa<br />

ainda, mas vital. Nem mesmo deixavam a Jesus e a seus discípulos, o tempo de se alimentar.<br />

Donde a decisão do Mestre de se retirar para lugar afastado. Vendo-O embarcar, não O<br />

perdem de vista. Contornam o lago às pressas, para reencontrá-Lo no ponto de<br />

desembarque. Chegam até antes Dele. E essa movimentação espontânea do povo evoca a<br />

palavra do próprio Jesus que retoma o texto da Lei, citado no Livro do Deuteronômio e<br />

repetido por Mateus: “Não é só de pão que o homem viverá, mas de toda Palavra que sai<br />

da boca de Deus.” (Mt 4,4)<br />

Jesus vê a multidão e “comove-se até as entranhas”. A tradução literal nos mostra o<br />

olhar perspicaz de Jesus que percebe imediatamente a que ponto e intensa, nessa multidão, a<br />

fome de salvação. Bem imaginamos a profundeza da emoção que invade Jesus, “até as<br />

entranhas”. Então, nos diz Marcos, “pôs-se Ele a ensinar muitas coisas”. Sente-se a<br />

incapacidade do redator em retransmitir a riqueza da Palavra de Cristo, essa palavra que é<br />

pão da vida. É por isso que ele não fala, como o fazem os outros evangelistas, das curas<br />

realizadas por Jesus, mas fixa nossa atenção na Palavra do Mestre. Uma Palavra distribuída<br />

em profusão.<br />

Quando os discípulos Lhe propõem despedir a multidão, Jesus se mostra então como<br />

o “verdadeiro Pastor”. Têm consciência da própria responsabilidade: “não posso deixar<br />

partir assim uma multidão que me seguiu e a cuja expectativa dei uma resposta”. Os<br />

discípulos compartem essa mesma responsabilidade. Como pretendem se furtar a ela,<br />

despedindo a multidão, o Mestre, com lucidez e generosidade, repreende-os dizendo: “Dailhes<br />

vós mesmos de comer”. Jesus leva em conta a evidência de que o homem é indivisível,<br />

e que deve ser salvo todo, por inteiro. Um dos testemunhas e atores do evento saberá<br />

relembrar isso com clareza, às primeiras comunidades cristãs: “Se um irmão ou irmã nada<br />

tem com que se vestir, se nada tem para comer todos os dias, não lhe digais: ‘Ide em paz,<br />

aquecei-vos e bom apetite.’ Dai-lhes vós mesmos com que viver.” (Tg 2,14) A atitude foi<br />

bem compreendida por Tiago: é preciso utilizar todos os meios possíveis quando se trata de<br />

salvar o homem, de salvar o homem todo. A emoção e a informação não bastam. Só tem<br />

valor se nos fizerem passar a gestos.<br />

O Pão partido<br />

Passar à ação é, antes de tudo, organizar-se. Dessa confusão disparatada que é a<br />

multidão faminta, os discípulos vão organizar um povo, um conjunto coerente de grupos<br />

humanos. “Jesus ordenou aos discípulos que mandassem assentar todo o mundo, em<br />

grupos, sobre a relva. Eles se espalharam em grupos de cinquenta e de cem.” Só então,


LA SALETTE<br />

BIBLIOTECA VIRTUAL<br />

isto é, após o comprometimento dos discípulos e o consentimento da multidão, Jesus<br />

intervém. Deus não nos salva sem nós.<br />

4<br />

Em vez de chamar nossa atenção sobre o aspecto extraordinário da multiplicação dos<br />

pães, os evangelistas, e Marcos em particular, preferem nos fazer descobrir o sentido<br />

profundo do evento: todas as fomes humanas são saciadas desde que comunguemos, com<br />

todas as nossas forças, do gesto de Jesus ao romper e repartir o pão. Não é preciso ser um<br />

especialista para se reconhecer, nas palavras empregadas, as mesmas da Ceia da Quinta-<br />

Feira Santa e de nossas preces eucarísticas.<br />

O gesto de Jesus evoca a partilha, evoca, sobretudo, o dom da vida a serviço dos<br />

outros. Remetendo-nos ao pão partido, ao corpo entregue e ao sangue derramado, o escritor<br />

sagrado nos mostra que não basta dar aos homens famintos a palavra e o pão. Esse dom da<br />

palavra e do pão deve proceder de uma vida inteiramente entregue ao serviço de nossos<br />

irmãos.<br />

E, segundo uma fórmula de são Vicente de Paula às religiosas que fundara, só o<br />

movimento do coração que se doa, pode fazer “perdoar” o dom da palavra e do pão. O<br />

outro não se sente mais ajudado ou assistido, mas reconhecido e amado. Tal é a Eucaristia,<br />

na qual Jesus nos significa sua presença. A palavra, o pão partido, partilhado, distribuído, a<br />

comunhão fraterna são ao mesmo tempo Dom do Cristo, e, para nós,<br />

RECONHECIMENTO de sua ternura para com todos, COMUNHÃO de todo um povo<br />

nesse reconhecimento e EXIGÊNCIA de fraternidade universal, pois todos são chamados à<br />

mesma partilha. Então, e a Paixão de Jesus no-lo revela, se doamos nossa vida, ao mesmo<br />

tempo que o pão, todas as fomes dos homens serão saciadas: a fome de alimento para o<br />

corpo e o espírito, a fome de dignidade e justiça, a fome de amar e de ser amado<br />

Ao lado dos Discípulos<br />

Isto é, do nosso lado, pois nós nos assemelhamos a eles. Suas reações, frente aos<br />

acontecimentos, são muitas às vezes as nossas; somos lentos para compreender, egoístas,<br />

reticentes, pouco inclinados a assumir nossas responsabilidades e assumi-las até o fim.<br />

Preferimos devolve-las a Deus ou atribuí-las aos outros. “Despede-os, para que vão<br />

comprar para si algo para comer.” Essa vontade de se separar dos outros, de remetê-los ao<br />

que nos parece ser um problema deles, essa propensão em preconizar soluções fáceis,<br />

pretensamente razoáveis, é recusada por Jesus. Pela boa razão de que, com efeito, o lugar é<br />

deserto, já é tarde, cidades e vilas estão longe. Na segunda narrativa de Marcos, Capítulo 8,<br />

versículo 3, Jesus toma até mesmo seu tempo para explicar: “Se os despedir para suas<br />

casas em jejum, desfalecerão pelo caminho.”<br />

Quando os discípulos dizem a Jesus: “Veja lá... ou Despede-os...” eles descarregam<br />

sobre Ele ou sobre a multidão, a responsabilidade deles. Eis precisamente o tipo de oração


LA SALETTE<br />

BIBLIOTECA VIRTUAL<br />

5<br />

que, com certeza, não será ouvida, pois exprime nossa recusa em nos engajar, nossa vontade<br />

de fugir. “Dai-lhes vós mesmos de comer!” É suficientemente claro? Ao apelo de Jesus,<br />

como reagem os discípulos? Põem-se a refletir, a calcular. Será preciso um dinheiro enorme<br />

para comprar algo de comer para todo esse povo. A enormidade do problema aparentemente<br />

nos dispensa de procurar-lhe uma solução. Não é essa ainda, nossa atitude, quando falamos<br />

do problema da fome? De uma dura realidade fazemos um problema. Ele ultrapassa, sem<br />

dúvida, os limites daquilo que podemos empreender. Da mesma forma se trata de uma<br />

urgência, a Urgência de Amar.<br />

Será preciso entrar na atualidade?<br />

Uma segunda vez, Jesus, com agudo senso de realidade, engaja os discípulos na ação:<br />

“Quantos pães tendes?” E como da falta de reserva e de informação, ninguém está apto a<br />

responder, Jesus acrescenta: “Ide ver!” As estatísticas e previsões são, sem dúvida, úteis.<br />

Mas não é com elas que se nutre a multidão. Feita a verificação, sabe-se que há só cinco<br />

pães e dois peixes. Como alguém observou, tudo teria podido terminar aqui, se o jovem de<br />

que fala João, tivesse recusado dar o POUCO que possuía. Tudo podia ter acabado mal.<br />

Uma terceira vez Jesus se dirige aos discípulos que, sem dúvida, achavam que tudo<br />

estava terminado: “Ele lhes ordenou que se instalassem todos por grupos sobre a relva.<br />

Eles se espalharam em grupos de cinquenta e de cem.” Ajudar a multidão a se organizar, a<br />

formar grupos, precisamente quando nada parece resolvido: eis um ato de fé,<br />

particularmente difícil, pedido por Jesus a seus discípulos. Eles se puseram à obra sem<br />

compreender e sem outra referência afora a palavra de Jesus. A própria multidão deve ter<br />

consentido nisso, cada qual perguntando de que serviria tudo isso. Mas a partir desse ato de<br />

fé, essa confusão se torna um povo, reunido pelos discípulos, sob a palavra de Jesus, em<br />

grupos coerentes e de talhe humano. É então, e somente então que, para esse povo, com<br />

alguns pães irrisórios, mas oferecidos, Deus, em Jesus Cristo, pode cumprir maravilhas.<br />

Aqui ainda, os discípulos devem intervir na distribuição do pão e dos peixes, na coleta das<br />

sobras. Advinha-se aqui toda a riqueza que as primeiras comunidades cristãs puderam<br />

perceber no sinal do pão que se multiplica.<br />

E nós, hoje?<br />

Então, e somente então, tudo se torna alimento: pão para o corpo, Palavra de Deus<br />

para o espírito, fé para a vida, o Cristo partido e partilhado para a unidade do povo. Homens<br />

novos podem então celebrar uma Eucaristia ao Deus que quer um mundo novo, construído<br />

sobre uma fé total em Jesus Cristo, sobre um dinamismo que elimina todo egoísmo e não<br />

teme obstáculo algum, sobre uma fraternidade na qual todo homem tem direito à partilha.<br />

Nessa partilha, sua dignidade é reconhecida, sua sede de justiça é saciada e sua fome<br />

satisfeita.<br />

“Os pobres comerão e serão saciados...” (Sl 21,27)<br />

“E se recolheram os pedaços que encheram doze cestos, e também o que sobrava<br />

dos peixes...” (Mc 6,43). O suficiente ainda para alimentar um povo!

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!