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A concepção de transferência de Jung - Michael Fordham (11)

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A <strong>concepção</strong> <strong>de</strong> <strong>transferência</strong> <strong>de</strong> <strong>Jung</strong><br />

<strong>Michael</strong> <strong>Fordham</strong>, Londres, 1974<br />

Tradução: Daniel Françoli Yago 1<br />

Introdução<br />

Diz-se, às vezes, que se po<strong>de</strong> “encontrar <strong>de</strong> tudo” nos escritos <strong>de</strong> <strong>Jung</strong> – afirmação que<br />

sugere que ele mesmo não conhecia os limites <strong>de</strong> sua própria mente. Não sou <strong>de</strong>sta<br />

opinião. Há variações e pequenas contradições em seus escritos sobre <strong>transferência</strong> as<br />

quais ainda hoje frequentemente <strong>de</strong>spertam controvérsia, mas, quando estudamos<br />

seus escritos como um todo, po<strong>de</strong>-se notar claramente uma consistência basilar em<br />

toda a sua obra.<br />

Contudo, existem importantes mudanças em sua visão que não po<strong>de</strong>m ser<br />

atribuídas à mera constatação dos opostos. Há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> maior conhecimento do<br />

contexto em que foram geradas, pois ora tais informações são totalmente omitidas<br />

por <strong>Jung</strong>, ora não lhes são concedidos <strong>de</strong>talhes suficientes. Devo oferecer aqui<br />

soluções provisórias, esperando que, ao longo do curso do tempo, mais informações se<br />

tornem acessíveis e sejam capazes <strong>de</strong> nos conduzir a melhores e mais confiáveis<br />

conclusões. Mas mesmo que soubéssemos todas as suas fontes <strong>de</strong> vacilação e todas as<br />

contradições que são, diga-se <strong>de</strong> passagem, próprias <strong>de</strong> todos os autores que já<br />

publicaram em <strong>de</strong>masia, ainda seria necessário ter em mente o próprio comentário<br />

que <strong>Jung</strong> fez quanto ao seu método <strong>de</strong> exposição: “... Nem tudo que eu produzo é<br />

escrito com a cabeça, mas muito vem também do coração, fato esse que pediria ao<br />

leitor benévolo não negligenciar se, ao percorrer a linha intelectual do pensamento,<br />

ele porventura se <strong>de</strong>parar com alguma forma <strong>de</strong> lacuna que não tenha sido<br />

<strong>de</strong>vidamente preenchida”. (JUNG 9, p. <strong>11</strong>8).<br />

Neste escrito, pretendo reunir muito do que já nos é familiar. Po<strong>de</strong>ria nos ser<br />

útil olhar novamente para o que já conhecemos <strong>de</strong> longa data? Claramente, penso que<br />

1 Psicólogo clínico e professor <strong>de</strong> história dos estudos <strong>de</strong> gênero. Contato: danielyago@gmail.com<br />

1


sim e esta é a razão: olhar <strong>de</strong> tempos em tempos para as fundações e a superestrutura<br />

incompleta <strong>de</strong> uma casa ainda em processo <strong>de</strong> construção exibe o que está<br />

firmemente construído e o que ainda está para ser incrementado. Dar um passo para<br />

trás e olhar o que já foi feito contribui para nos orientar quando nos ocupamos dos<br />

<strong>de</strong>talhes ou <strong>de</strong> alguma parte particular do todo – e, o mais importante, faz com que<br />

seja impossível pensarmos que a parte da estrutura é a estrutura completa.<br />

PARTE I<br />

“A teoria da psicanálise”<br />

Em “A teoria da psicanálise”, <strong>Jung</strong> começa a formular suas próprias i<strong>de</strong>ias sobre a<br />

<strong>transferência</strong>. Neste conjunto <strong>de</strong> conferências, proferidas na <strong>Fordham</strong> University em<br />

1912, ele assevera: “Graças a este sentimento pessoal, Freud pô<strong>de</strong> <strong>de</strong>scobrir no que<br />

resi<strong>de</strong> o efeito terapêutico da psicanálise” (JUNG 7, p. 190). Residia, segundo ele, na<br />

<strong>transferência</strong>. Em primeiro lugar, a análise po<strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r sem evidências <strong>de</strong> sua<br />

presença e seus efeitos terapêuticos po<strong>de</strong>m ser alcançados à medida que os pacientes<br />

revivem memórias, ab-reagem afetos traumáticos e penetram em segredos e áreas<br />

previamente reprimidas. Mas o resultado da análise nem sempre é benéfico – <strong>de</strong> fato<br />

há pacientes que continuam em busca <strong>de</strong> material histórico “sem qualquer sinal<br />

mínimo <strong>de</strong> melhora” (JUNG 7, p. 191). Nestes casos, em especial, a resposta resi<strong>de</strong> em<br />

interpretar a atitu<strong>de</strong> infantil do paciente em relação ao analista, pois “todas as<br />

fantasias sexuais que se agrupam em torno da imagem dos pais agora se agrupam em<br />

todo <strong>de</strong>le” (JUNG 7, p. 190), produzindo uma <strong>transferência</strong> erótica composta <strong>de</strong><br />

“imagens mnemônicas dos pais”.<br />

Neste estágio, a <strong>transferência</strong> é muito mais importante que a análise da história<br />

do paciente, porque o analista é, <strong>de</strong> uma só vez, assimilado ao milieu familiar e, ao<br />

mesmo tempo, permanece em exteriorida<strong>de</strong> a ele, estando relacionado ao mundo<br />

real. Nesse sentido, a <strong>transferência</strong> torna-se “<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> valor biológico para o<br />

paciente”; e é “... uma ponte que o paciente po<strong>de</strong> utilizar para se afastar da família e ir<br />

2


para o mundo real” (JUNG 7, p. 190). Então, ele continua, “este laço é um dos fatores<br />

sociais imagináveis mais valiosos” (JUNG 7, p. 199). Ele acrescenta que além da<br />

sexualida<strong>de</strong>, há também componentes morais, sociais e éticos que se tornam aliados<br />

do analista uma vez que são “purgados” <strong>de</strong> seus “componentes regressivos, <strong>de</strong> sua<br />

sexualida<strong>de</strong> infantil” (JUNG 7, p. 199).<br />

São especialmente os conteúdos infantis que po<strong>de</strong>m fazer da <strong>transferência</strong> “um<br />

po<strong>de</strong>roso entrave ao progresso do tratamento, porque os pacientes assimilam o<br />

analista ao seu pai e à sua mãe...” (JUNG 7, p. 191) e quanto mais assimilam, mais a<br />

<strong>transferência</strong> os prejudica. Portanto, é essencial que estas partes sejam, como foi dito,<br />

cortadas. Como isto po<strong>de</strong> ser feito? Além da interpretação, que faz a natureza da<br />

<strong>transferência</strong> tornar-se consciente, emerge, diz <strong>Jung</strong>, uma batalha interna ao paciente<br />

que luta contra as forças neuróticas e as <strong>de</strong>mandas infantis, ao mesmo tempo em que<br />

também mostra resistências quanto a sustentar o conflito <strong>de</strong> modo a atingir uma<br />

conclusão bem sucedida. Ele até po<strong>de</strong>rá vir a barganhar com o analista como se fosse<br />

uma criança que <strong>de</strong>seja ganhar um presente dos pais, assim como também po<strong>de</strong>rá<br />

buscar “aventuras especiais” (JUNG 7, p. 198) com ele; o analista não <strong>de</strong>ve buscar<br />

impedi-las, uma vez que elas po<strong>de</strong>m conter valor para seus pacientes. <strong>Jung</strong> é muito<br />

específico quanto a este ponto: “Devemos <strong>de</strong>ixar que o paciente e seus impulsos<br />

assumam a li<strong>de</strong>rança, mesmo quando o caminho parece ser errado. O erro é uma<br />

condição <strong>de</strong> progresso <strong>de</strong> vida tão importante quanto o acerto” (JUNG 7, p. 200).<br />

Quanto ao próprio analista, o paciente percebe as características <strong>de</strong> sua<br />

personalida<strong>de</strong> e toma-as como parte <strong>de</strong> sua própria, e estas, por sua vez, ajudam-no a<br />

construir uma ponte para a realida<strong>de</strong>. A personalida<strong>de</strong> do analista, portanto, é crucial,<br />

e ele <strong>de</strong>ve ser maduro o bastante se <strong>de</strong>seja ajudar seu paciente a rumar para a direção<br />

correta; <strong>Jung</strong> elenca características que o analista <strong>de</strong>ve superar: táticas isolacionistas,<br />

mistificação auto-erótica, <strong>de</strong>mandas infantis que quando não são reconhecidas<br />

“po<strong>de</strong>m ser i<strong>de</strong>ntificadas com <strong>de</strong>mandas paralelas do paciente” (JUNG 7, p. 199). Por<br />

essas razões, uma análise pessoal para o analista é essencial e ele se po<strong>de</strong>rá se<br />

espantar como tal ação resulta no simples <strong>de</strong>saparecimento <strong>de</strong> aparentes dificulda<strong>de</strong>s<br />

técnicas.<br />

3


Outra faceta <strong>de</strong>ste ensaio é a comparação que <strong>Jung</strong> faz da confissão e da<br />

<strong>transferência</strong> com as práticas da igreja: elas são, <strong>de</strong> acordo com ele, “... um brilhante<br />

método <strong>de</strong> orientação social e <strong>de</strong> educação” (JUNG 7, p. 192). Mas, ele continua, uma<br />

pessoa mo<strong>de</strong>rna que se tornou consciente ou inconscientemente <strong>de</strong>siludida pela igreja<br />

busca algo diferente: “[busca] governar a si mesmo e andar moralmente com os<br />

próprios pés” (JUNG 7, p. 193). Portanto, o objetivo da análise é ajudar o paciente a<br />

seguir esta direção, <strong>de</strong> forma que o melhor resultado se dá quando o paciente alcança<br />

“harmonia consigo próprio, sendo nem bom, nem mal, apenas ele mesmo em seu<br />

estado natural” (JUNG 7, p. 196). Com relação ao esforço <strong>de</strong> seguir em direção à<br />

inteireza, que implica em romper com a <strong>transferência</strong>, <strong>Jung</strong> nos recorda, “somente<br />

algumas religiões <strong>de</strong>mandam isso do indivíduo, e é isso que torna o segundo estágio da<br />

análise tão difícil” (JUNG 7, p. 197).<br />

“Alguns pontos cruciais em psicanálise”<br />

No mesmo ano (1913), enquanto proferia suas conferências, ele se correspondia com<br />

Dr. Löy, a quem dirigia cartas que continham acréscimos e amplificações dos temas já<br />

consi<strong>de</strong>rados. Talvez aqui haja mais ênfase no conteúdo social e moral da<br />

<strong>transferência</strong> e <strong>Jung</strong> conceba as fantasias sexuais mais favoravelmente como analogias<br />

relacionadas à empatia, à adaptação e a um “impulso em direção à individuação”<br />

(JUNG 8, p. 284). Novamente, aqui, o caráter aparentemente sexual da <strong>transferência</strong><br />

leva até uma ponte rumo a um maior patamar <strong>de</strong> empatia, ao valor da personalida<strong>de</strong><br />

e, <strong>de</strong>ste modo, à “estrada da liberda<strong>de</strong>”. Há alguns <strong>de</strong>talhes interessantes sobre a<br />

<strong>transferência</strong> positiva e negativa relacionadas à imago paterna – ele dá valências<br />

positivas e negativas para amor, hostilida<strong>de</strong> e rebelião: para um paciente que é uma<br />

“criança rebel<strong>de</strong>”, uma <strong>transferência</strong> positiva é uma realização enquanto que uma<br />

negativa nada mais é que a repetição <strong>de</strong> um velho padrão e um “retrocesso”; para um<br />

paciente que é uma “criança obediente”, o contrário suce<strong>de</strong>. Consequentemente, uma<br />

<strong>transferência</strong> negativa é positiva e po<strong>de</strong> favorecer a individuação. Finalmente, há<br />

também a i<strong>de</strong>ia mais especificada <strong>de</strong> que “a libido do paciente fixa-se na pessoa do<br />

4


analista na forma [não somente <strong>de</strong> sexualida<strong>de</strong>, mas também] <strong>de</strong> expectativa,<br />

esperança, interesse, confiança, amiza<strong>de</strong> e amor” (JUNG 8, p. 286).<br />

“O valor terapêutico da ab-reação”<br />

Já em 1921, as i<strong>de</strong>ias <strong>de</strong> <strong>Jung</strong> no texto “O valor terapêutico da ab-reação”<br />

prosseguiram em seu <strong>de</strong>senvolvimento e outras novas foram acrescentadas a elas. (I)<br />

“O efeito terapêutico vem dos esforços do terapeuta <strong>de</strong> entrar na psique do paciente,<br />

estabelecendo, <strong>de</strong>ste modo, um relacionamento psicologicamente adaptado” (JUNG<br />

10, p. 134). O grau <strong>de</strong> <strong>transferência</strong> varia a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da compreensão entre terapeuta<br />

e paciente: com boa compreensão, a <strong>transferência</strong> é mo<strong>de</strong>rada, com pouca<br />

compreensão, a <strong>transferência</strong> é intensa e sexualizada. A importância <strong>de</strong> uma relação<br />

real entre terapeuta e paciente é enfatizada quando ele diz que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> uma análise<br />

meticulosa “as <strong>de</strong>mandas do paciente por (...) relações humanas ainda permanecem e<br />

<strong>de</strong>vem ser concedidas, pois sem uma relação <strong>de</strong>sta natureza o paciente cai no vazio”<br />

(JUNG 10, p. 136).<br />

Ainda neste contexto, ele faz um ataque pungente à “redução exclusivista” do<br />

material do paciente às suas raízes sexuais. É um <strong>de</strong> seus ataques mais vigorosos e é<br />

difícil compreen<strong>de</strong>r por que ele o exacerbou tanto. Reduções sexuais exclusivas,<br />

segundo ele, são “... uma chocante violação do material do paciente”. Ela ignora os<br />

elementos criativos existentes no paciente e leva ao bloqueio <strong>de</strong> saídas <strong>de</strong> modo que o<br />

paciente se apega a uma “convulsiva <strong>transferência</strong> erótica somente passível <strong>de</strong> ser<br />

<strong>de</strong>sfeita quando ele corta o relacionamento com ódio” [os itálicos são meus] (JUNG 10,<br />

p. 134). “Em qualquer um dos casos, o resultado é sempre <strong>de</strong>solamento espiritual”<br />

(JUNG 10, p. 134). De maneira que a interpretação sexual se torna exclusivamente “um<br />

gran<strong>de</strong> e grosseiro disparate técnico” (JUNG 10, p. 135), “pois ela constantemente<br />

<strong>de</strong>strói todas as tentativas do paciente <strong>de</strong> construir uma relação humana normal ao<br />

remetê-la novamente aos seus elementos” (JUNG 10, p. 135).<br />

Mas, se a adaptação toma lugar, “... a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> tudo isso... terá acontecido a<br />

custo <strong>de</strong> muitos valores morais, intelectuais e estéticos cuja perda é, para o caráter do<br />

5


homem, motivo <strong>de</strong> pesar. À distância <strong>de</strong>sta gran<strong>de</strong> perda, há o perigo <strong>de</strong><br />

perpetuamente encubar o passado, <strong>de</strong> olhar esperançosamente para trás em busca <strong>de</strong><br />

coisas que não mais po<strong>de</strong>m ser remediadas agora” (JUNG 10, p. 135).<br />

Tudo isto soa com um ataque à psicanálise. Mas com qual propósito? Em 1918,<br />

Freud havia criticado a “Escola Suíça” em uma comunicação, “Linhas e avanços da<br />

terapia psicanalítica” (FREUD 4), proferida no V Congresso Internacional <strong>de</strong> Psicanalise;<br />

lá, ele grosseiramente <strong>de</strong>turpa <strong>Jung</strong>, <strong>de</strong> modo que é possível que <strong>Jung</strong> tenha feito uma<br />

retaliação; mas, se assim for, é possível que o ataque tenha falhado pois, em 1920,<br />

Freud já tinha publicado “Para além do princípio do prazer” (FREUD 5). Há mais duas<br />

alternativas: (I) que ele tenha tratado casos que tenham sido mal manejados, ou (II)<br />

que ele tenha tido experiências pessoais <strong>de</strong> dificulda<strong>de</strong> com seus próprios pacientes<br />

acerca do tema da sexualida<strong>de</strong>. Tenho certeza <strong>de</strong> que <strong>Jung</strong> tenha tido alguma razão<br />

para seu ataque, o qual parece ter se baseado em afetos consi<strong>de</strong>ráveis – que “vieram<br />

do coração”.<br />

Tendo dado sua visão do problema, que po<strong>de</strong> ainda incitar analistas, <strong>Jung</strong><br />

continuou com seus termos muito <strong>de</strong>finidos. Uma análise redutiva <strong>de</strong>vidamente<br />

conduzida é essencial, pois “o fenômeno da <strong>transferência</strong> é um atributo inevitável <strong>de</strong><br />

toda análise minuciosa...” (JUNG 10, p. 136) e o relacionamento é impossível até que<br />

todas as projeções tenham sido conscientemente reconhecidas e resolvidas.<br />

“A pedra <strong>de</strong> toque <strong>de</strong> toda análise [bem-sucedida]... Consiste na existência<br />

perene <strong>de</strong>sta relação direta entre pessoas, uma relação psicológica em que o paciente<br />

enfrenta um analista em iguais termos e com a mesma crítica implacável que ele <strong>de</strong>ve<br />

imprescindivelmente apren<strong>de</strong>r com seu analista no curso <strong>de</strong> seu tratamento”. Desta<br />

forma, ao invés <strong>de</strong> uma “submissão humanamente <strong>de</strong>gradante e escrava”, o paciente<br />

“<strong>de</strong>scobre que sua própria e única personalida<strong>de</strong> tem valor, que ele foi aceito pela<br />

pessoa que ele é, e que ele po<strong>de</strong> levar esta aceitação consigo para adaptar-se às<br />

situações da vida” (JUNG 10, p. 137). “Nossa tarefa é... Cultivar e transformar este<br />

elemento em crescimento até que ele <strong>de</strong>sempenhe seu papel na totalida<strong>de</strong> da psique”<br />

(JUNG 10, p. 138). Esta é uma clara constatação <strong>de</strong> que a <strong>transferência</strong> tem um<br />

6


objetivo a atingir e que o analista torna-se uma pessoa real tanto o quanto se torna um<br />

profissional, o recipiente <strong>de</strong> projeções a que ele é reduzido.<br />

Discussão<br />

Estes três textos po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados em conjunto. Eles cobrem as i<strong>de</strong>ias e<br />

práticas que anteriores a 1926 quando <strong>Jung</strong> escreveu o primeiro dos Dois Ensaios <strong>de</strong><br />

Psicologia Analítica 2 .<br />

O período inicial é revelador da consistência <strong>de</strong> <strong>Jung</strong>; é <strong>de</strong> fato assombroso<br />

achar o cerne <strong>de</strong> todas suas i<strong>de</strong>ias e práticas posteriores indiscutivelmente<br />

consolidadas no papel, ainda que, como veremos adiante, em uma situação específica<br />

ele se afastou da quase que excessiva importância que ele primeiramente <strong>de</strong>u à<br />

<strong>transferência</strong> como um elemento efetivo do “aqui e agora”, para usar um termo<br />

contemporâneo.<br />

É <strong>de</strong> nosso interesse constatar que ele atribui a importância da <strong>de</strong>scoberta<br />

terapêutica da <strong>transferência</strong> a Freud. Tal afirmação, creio, está sob suspeita. Embora<br />

possamos saber mais a respeito disso a partir <strong>de</strong> sua correspondência com Freud, <strong>de</strong><br />

acordo com minha leitura da literatura dos gran<strong>de</strong>s expoentes, o efeito terapêutico da<br />

psicanálise não <strong>de</strong>riva primariamente da <strong>transferência</strong>, mas do ato <strong>de</strong> tornar<br />

consciente o inconsciente, tal como consagrado na famosa epigrama, “lá on<strong>de</strong> está o<br />

id, <strong>de</strong>verá estar o ego”. Mesmo hoje a posição <strong>de</strong> alguns psicanalistas é distante<br />

daquela que <strong>Jung</strong> atribuía a Freud. Em um simpósio recente acerca <strong>de</strong>ste assunto na<br />

British Psychoanalytic Society, houve muita pouca ênfase na <strong>transferência</strong> como algo<br />

do qual a terapia <strong>de</strong>riva. A posição <strong>de</strong> <strong>Jung</strong> reflete-se menos na psicanálise clássica do<br />

que no trabalho <strong>de</strong> Little (17), Heimann (6), Strachey (21), Racker (19), Searles (20) e<br />

Milner (18); mas o espaço não me permite entrar aqui no mérito da questão.<br />

<strong>Jung</strong> seguiu com Freud quanto a reconhecer as características incestuosas,<br />

eróticas e infantis da <strong>transferência</strong>, assim como a aceitar seu fenômeno <strong>de</strong> resistência.<br />

2 Isto é, o volume 7/1 das edições brasileiras das Obras Completas <strong>de</strong> C. G. <strong>Jung</strong>, Psicologia do<br />

Inconsciente. (N. do T.)<br />

7


Sua contribuição para além da psicanálise resi<strong>de</strong> em sua ênfase da função teleológica e<br />

terapêutica da <strong>transferência</strong> na qual a real personalida<strong>de</strong> do analista se torna<br />

altamente significativa. Sua ênfase na <strong>transferência</strong> como uma situação<br />

potencialmente terapêutica e na real personalida<strong>de</strong> do analista parece ter sido sua<br />

particular contribuição. A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que uma ponte para a realida<strong>de</strong> po<strong>de</strong> ser feita com<br />

o objetivo <strong>de</strong> atingir autonomia moral quando as projeções já foram reconhecidas e<br />

resolvidas, <strong>de</strong>finida mesmo em 1913 como “um impulso rumo à individuação”, é<br />

característica e central no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> sua tese. Os sentidos sociais e<br />

religiosos, morais e éticos da <strong>transferência</strong> são também muito mais importantes para<br />

<strong>Jung</strong> do que para Freud.<br />

Prestei <strong>de</strong>masiada atenção à <strong>transferência</strong> negativa até então e gostaria <strong>de</strong><br />

tecer mais comentários adiante porque ela recebe bastante atenção nos dias atuais e<br />

seu manejo tem sido consi<strong>de</strong>ravelmente aprimorado.<br />

Há somente uma referência direta do assunto, em que <strong>Jung</strong> diz que uma<br />

<strong>transferência</strong> negativa po<strong>de</strong> ser valiosa para pacientes obedientes, etc. Há também<br />

referência para pacientes com <strong>transferência</strong> compulsiva que rompem a relação com<br />

ódio; mas ele credita tal atitu<strong>de</strong> a uma “interpretação exclusivamente sexual” e,<br />

portanto, não po<strong>de</strong> ser concebida como <strong>transferência</strong>, mas como uma resposta<br />

adaptada à situação. Outra possível indicação <strong>de</strong> <strong>transferência</strong> negativa é dada on<strong>de</strong><br />

ele diz que o analista é confrontado pelo seu paciente como um igual e o critica com a<br />

mesma cruelda<strong>de</strong> que ele “apren<strong>de</strong>u com seu analista”; mas, novamente, tal<br />

afirmação não <strong>de</strong>fine a <strong>transferência</strong> negativa, ainda que a crítica do paciente po<strong>de</strong><br />

muito bem contê-la. Assim, não parece que <strong>Jung</strong>, em seu período inicial, escrutinou as<br />

atitu<strong>de</strong>s hostis e críticas <strong>de</strong> seus pacientes no que tange à questão transferencial.<br />

PARTE II<br />

8


“Dois ensaios <strong>de</strong> psicologia analítica”<br />

Em seus Dois Ensaios (1926 e 1928), <strong>Jung</strong> começou a relacionar a <strong>transferência</strong> à<br />

individuação em maiores <strong>de</strong>talhes. De maneira mais evi<strong>de</strong>nte, ele também reforça sua<br />

posição acerca da análise redutiva, e agora há clarificação do que ele quis dizer por<br />

inconsciente pessoal; também contém nestes textos o que hoje é comumente<br />

chamada <strong>de</strong> “psicologia do objeto”: as pessoas do passado do paciente, cujas imagos<br />

são transferidas para o analista, compreen<strong>de</strong>m “pai, mãe, tio, guardião, professor,<br />

etc.”. Elas contrastam com a <strong>transferência</strong> arquetípica que ele introduz pela primeira<br />

vez neste texto e da qual ele se aproxima através da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> “energia disponível” – já<br />

abordada em 1913 – no que segue: “Suponhamos que uma paciente é ‘analisada’, isto<br />

é, ela vem, através do tratamento, a compreen<strong>de</strong>r a natureza dos pensamentos<br />

inconscientes espreitando por trás <strong>de</strong> seus sintomas e, assim, retomou posse da<br />

energia inconsciente que constituía a força daqueles sintomas. A questão então<br />

emerge: o que fazer com a suposta energia disponível? (JUNG 9, p. 61). Uma vez que<br />

as fantasias da paciente foram agora transferidas para o analista, “elas <strong>de</strong>vem ser<br />

cauterizadas, isto é, resolvidas por meio <strong>de</strong> análise redutiva e usadas a serviço do que<br />

chamam <strong>de</strong> ‘corte da <strong>transferência</strong>’. Deste modo, a energia é liberada <strong>de</strong> sua forma<br />

inservível – o que mais uma vez nos coloca diante do problema da disponibilida<strong>de</strong> [<strong>de</strong><br />

energia]” (JUNG 9, p. 62).<br />

Neste período, ele estava novamente bastante resoluto que o paciente possa<br />

tornar-se livre <strong>de</strong> sua <strong>transferência</strong> pessoal e po<strong>de</strong> realmente cessar <strong>de</strong> ser infantil. O<br />

próximo estágio da análise é aquele no qual os elementos estruturais da personalida<strong>de</strong><br />

são projetados. O caso que ele cita para ilustrar sua tese é frequentemente lembrado<br />

por nós. É o <strong>de</strong> uma paciente com traços masculinos que lhes são inconscientes. <strong>Jung</strong><br />

os i<strong>de</strong>ntifica e pergunta-se: on<strong>de</strong> que as partes masculinas <strong>de</strong>la mesma po<strong>de</strong>m ser<br />

localizadas? Decidindo que elas <strong>de</strong>vem ser projetadas, ele pergunta a sua paciente<br />

sobre como ele aparece a ela quando ela não está com ele e ela revela: “’Às vezes,<br />

você parece ser muito perigoso, sinistro, como um feiticeiro maligno ou um <strong>de</strong>mônio.<br />

Não sei como consegui tais i<strong>de</strong>ias – você não é nenhum um pouco parecido com isso’”<br />

(JUNG 9, p. 89).<br />

9


Daqui, <strong>Jung</strong> proce<strong>de</strong> à distinção entre partes humanas e não humanas da<br />

psique e à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> traçar uma linha nítida <strong>de</strong> <strong>de</strong>marcação entre ego, ou o<br />

sujeito, e o não-ego. É <strong>de</strong>sta forma que ele ganha acesso às imagens arquetípicas e<br />

po<strong>de</strong> interpretá-las com referências. Elas foram “elevadas ao plano subjetivo”, o que,<br />

com feito, significa que a <strong>transferência</strong> foi interpretada como partes do Si-mesmo,<br />

permitindo assim o uso da imaginação ativa e o processo dialético entre ego e formas<br />

arquetípicas.<br />

Gostaria <strong>de</strong> lembrá-los <strong>de</strong> um exemplo especialmente interessante presente<br />

nestes ensaios que trata da resolução da <strong>transferência</strong> arquetípica. Novamente se<br />

trata <strong>de</strong> uma mulher cuja imago transferencial torna-se “inflada”. Apesar do insight<br />

acerca do sentido pessoal da <strong>transferência</strong>, a imago paterna torna-se combinada com<br />

as imagens <strong>de</strong> salvador e <strong>de</strong> amante e não se dissolve. Os sonhos, <strong>Jung</strong> <strong>de</strong>scobre, se<br />

referiam a ele e a sua pessoa distorcidas <strong>de</strong> formas marcantes. Ora a figura possuía<br />

uma estatura <strong>de</strong> dimensões sobrenaturais, ora ela se afigurava em um ser<br />

extremamente idoso, então novamente ela se assemelhava com seu pai, mas ao<br />

mesmo tempo, ela curiosamente parecia ser confundir com a natureza, como <strong>de</strong>scrito<br />

no seguinte sonho: “seu pai (que na realida<strong>de</strong> fora <strong>de</strong> baixa estatura) estava com ela<br />

numa colina coberta <strong>de</strong> campos <strong>de</strong> trigo. Ela era muito pequena perto <strong>de</strong>le, fazendo<br />

com que o pai pareça um gigante. Ele ergueu-a do chão, segurando-a nos braços como<br />

se fosse uma criança. O vento fazia ondular os campos <strong>de</strong> trigo, balançando as espigas<br />

enquanto ele a embalava do mesmo modo em seus braços” (JUNG 9, p. 129).<br />

A análise gradualmente finda e <strong>Jung</strong> conclui que aqueles sonhos refletiam a<br />

uma mudança <strong>de</strong> ênfase das funções pessoais às transpessoais rumo ao Si-mesmo:<br />

“uma espécie <strong>de</strong> erosão subterrânea da <strong>transferência</strong> [tomou lugar]. Suas relações<br />

com um amigo começaram a aprofundar-se perceptivelmente, não obstante que ao<br />

nível da consciência ela continuasse vinculada à <strong>transferência</strong>. Foi assim que ao chegar<br />

a hora <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar-me não houve catástrofe, mas uma <strong>de</strong>spedida razoável. Tive o<br />

privilégio <strong>de</strong> ser o único espectador do processo <strong>de</strong> liberação”. “Vi”, ele continua,<br />

“como se <strong>de</strong>senvolve um núcleo normativo suprapessoal, por assim dizer, que exerce<br />

uma função diretora e como, pouco a pouco, transfere para si próprio as<br />

supervalorizações pessoais anteriores e o modo pelo qual este afluxo <strong>de</strong> energia<br />

10


exerce uma influência crescente sobre a mente consciente que lhe resistia sem o<br />

paciente notar conscientemente o que ocorria” (JUNG 9, p. 131).<br />

Encontro dificulda<strong>de</strong>s nesta apresentação, especialmente no que se refere à<br />

i<strong>de</strong>alização e às fantasias e impulsos <strong>de</strong>strutivos e hostis a ela associados que bem<br />

po<strong>de</strong>m ter minado a <strong>transferência</strong>; contudo, seja esta reflexão verda<strong>de</strong>ira ou falsa, o<br />

conceito <strong>de</strong> que há uma evolução inerente na <strong>transferência</strong> que faz com que ela siga<br />

em direção à individuação é uma adição importante a esta imagem clínica. Este dado<br />

esteve presente em suas visões iniciais, mas somente em termos <strong>de</strong> uma luta mais ou<br />

menos consciente rumo a um objetivo; aqui, a i<strong>de</strong>ia é aprofundada e enriquecida.<br />

PARTE III<br />

“Fundamentos da psicologia analítica”<br />

Os Seminários <strong>de</strong> Tavistock, proferidos em 1935 (JUNG 16), contêm, em uma palestra<br />

sobre <strong>transferência</strong>, mais material clínico do que qualquer uma <strong>de</strong> suas outras<br />

publicações e há gran<strong>de</strong> quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vinhetas ilustrativas que po<strong>de</strong>m<br />

proveitosamente ser assunto <strong>de</strong> discussão: 1 – O caso <strong>de</strong> um analista intelectual e que<br />

tinha função sentimento superior; era um tipo “sanguíneo”. A expressão <strong>de</strong> afetos <strong>de</strong><br />

<strong>Jung</strong>, diz ele, fez toda a diferença. É em relação a este caso que ele faz a melhor<br />

constatação que conheço a respeito <strong>de</strong> por que ele não fazer uso do divã: “Então, <strong>de</strong><br />

maneira a estar apto a mostrar para meus pacientes que suas reações chegavam até<br />

meu sistema, eu precisava sentar-me em oposição a eles para que eles pu<strong>de</strong>ssem ler<br />

as reações em minha face e ver que eu estava os ouvindo” (JUNG 16, p. 157); 2 – O<br />

caso em que <strong>Jung</strong> sonhou com uma mulher e contou seu sonho para o benefício <strong>de</strong><br />

seu tratamento. A propósito, o caso foi postumamente publicado em maiores <strong>de</strong>talhes<br />

e soubemos posteriormente <strong>de</strong> suas dificulda<strong>de</strong>s severas; 3 – a mulher auto erótica<br />

com quem <strong>Jung</strong> trabalhou; ele não interpretou sua <strong>transferência</strong> até o dia em que ela<br />

irrompeu com um “eu te amo”. Ele explica este comportamento, que incluía não<br />

<strong>11</strong>


interpretar a <strong>transferência</strong>, dizendo: “Você precisa acompanhar o processo e rebaixar<br />

sua consciência e sentir junto da situação... Caso contrário, ele [o paciente] também<br />

sentirá algo <strong>de</strong> estranho e sentirá posteriormente o mais terrível dos ressentimentos”<br />

(JUNG 16, p. 170). Este <strong>de</strong>ve ser o tipo <strong>de</strong> caso a que ele se referia em sua<br />

generalização anterior.<br />

Segue então uma lista <strong>de</strong> causas da <strong>transferência</strong> que é novamente tomada por<br />

essencialmente erótica: a – o processo da projeção, b – a análise em si mesma, c –<br />

provocações do analista, “... ao insinuar coisas erradas, ao <strong>de</strong>spertar expectativas, ao<br />

fazer promessas <strong>de</strong> modo velado...” (JUNG 16, p. 170). Quanto a este contexto, ele<br />

comenta: “Um analista não tem permissão para ser muito amigável... [Deve] <strong>de</strong>ixar as<br />

pessoas on<strong>de</strong> elas estão” (JUNG 16, p. 170).<br />

Nesta conferência, ele introduz pela primeira vez a importante i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que<br />

emoções são contagiosas, sendo in<strong>de</strong>sejável que o analista resista a elas: ele não po<strong>de</strong><br />

falhar em ser afetado e é melhor que aceite este fato. Gran<strong>de</strong> parte do contágio toma<br />

lugar “quando os conteúdos que o paciente projeta no analista são idênticos com os<br />

seus próprios conteúdos inconscientes” (JUNG 16, p. 157). Os efeitos <strong>de</strong>safortunados<br />

da <strong>transferência</strong>, ele diz, não são somente recaem sobre o paciente, mas também<br />

sobre o analista que, sob a influência da projeção, po<strong>de</strong> infectar-se – <strong>de</strong>s<strong>de</strong> adoecer<br />

perante uma psicose induzida ou até mesmo <strong>de</strong>senvolver uma doença física.<br />

<strong>Jung</strong> retorna mais <strong>de</strong> uma vez à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que <strong>de</strong>ve haver <strong>transferência</strong> para que<br />

o paciente seja curado. Ele parece ser contra esta visão, mas particularmente ataca a<br />

compulsão implicava na palavra “<strong>de</strong>ve”. Assim fazendo, ele chega à curiosa<br />

constatação <strong>de</strong> que “a <strong>transferência</strong> é sempre um obstáculo; nunca uma vantagem.<br />

Cura-se apesar da <strong>transferência</strong>, e não por causa <strong>de</strong>la” (JUNG 16, p. 169). Do modo<br />

como compreendo, esta é uma constatação típica da função sentimento,<br />

aparentemente invertendo suas visões anteriores e posteriores acerca <strong>de</strong>sta questão,<br />

e o que ele diz é ainda mais contraditório tendo em vista o caso da mulher autoerótica<br />

que ele cita logo antes. Mas ele segue: a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> tudo isso, a <strong>transferência</strong><br />

é um fato com o qual temos <strong>de</strong> lidar e existem tratamentos para ela: a – análise<br />

12


edutiva, b – discriminação entre conteúdos pessoais e impessoais que levam a c –<br />

objetivação das imagens impessoais, o processo que foi apresentado nos Dois ensaios.<br />

A ambivalência <strong>de</strong> <strong>Jung</strong> sobre a <strong>transferência</strong> adquire gran<strong>de</strong> clareza nesta<br />

conferência e há ecos <strong>de</strong>la quando ele diz em “Psicologia da <strong>transferência</strong>” que ele<br />

prefere uma leve <strong>transferência</strong> ou mesmo casos em que ela não é aparente.<br />

Por que <strong>Jung</strong> tornou-se tão crítico e contraditório sobre a análise da<br />

<strong>transferência</strong>? Po<strong>de</strong> ser parcialmente porque ele estava falando para psicoterapeutas<br />

que estavam divididos quanto a esta questão. Na Tavistock Clinic, em Hadfield, um<br />

membro muito influente consi<strong>de</strong>rava a <strong>transferência</strong> irrelevante embora houvesse<br />

outros, especialmente Bion, que contestavam sua visão. Inclusive, quando ele se refere<br />

à <strong>transferência</strong>, a plateia po<strong>de</strong>ria estar pensando em análise como um modo <strong>de</strong> tornar<br />

conscientes conteúdos inconscientes, o que, segundo <strong>Jung</strong>, implicaria em omitir por<br />

completo os elementos da <strong>transferência</strong> arquetípica em curso que conduzem o sujeito<br />

à individuação.<br />

Outro fator que contribui po<strong>de</strong> ter sido que sua discussão sobre a <strong>transferência</strong><br />

tivesse sido requisitada por membros do seminário quando <strong>Jung</strong> estava no meio do<br />

<strong>de</strong>senvolvimento da amplificação <strong>de</strong> um sonho arquetípico. Ele parece ter aceitado o<br />

pedido com tranquilida<strong>de</strong>, mas penso ser difícil acreditar que ele não se irritou ou se<br />

<strong>de</strong>sapontou com a recepção recebida, tendo em vista sua celebrada perícia em lidar<br />

com materiais arquetípicos. Uma afirmação exagerada bem po<strong>de</strong>ria ter sido<br />

compreendida como uma indireta por aqueles que sumariamente rejeitam esta parte<br />

vital <strong>de</strong> seu trabalho: “Tanto melhor se não houver <strong>transferência</strong>. Seu material é<br />

exatamente o mesmo. Não é a <strong>transferência</strong> que possibilita o paciente externalizar seu<br />

material; você tem todo o material que po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>sejar dos sonhos. Os sonhos<br />

externalizam tudo que é necessário” (JUNG 16, p. 170). Tenha este petardo sido<br />

disparado pelo calor do momento ou <strong>de</strong>liberadamente, <strong>Jung</strong> aqui não faz caso contra a<br />

<strong>transferência</strong> <strong>de</strong> modo tão intenso quanto soam suas palavras, pois não é<br />

essencialmente o material que é importante, mas sua distribuição: sua relação com o<br />

analista é o ponto em questão e somente secundariamente é “o material”.<br />

13


Enquanto que existem características insatisfatórias na abordagem crítica da<br />

<strong>transferência</strong> nestas palestras <strong>de</strong> <strong>Jung</strong>, no entanto, se tomadas em conjunto com duas<br />

outras comunicações (“Os princípios da psicoterapia prática” e “O que é<br />

psicoterapia?”), o resultado é revelador. No primeiro texto, ele subdivi<strong>de</strong> a terapia<br />

entre métodos <strong>de</strong> influência e “... O terapeuta não mais é agente do tratamento, mas<br />

um passageiro companheiro do paciente um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento individual”<br />

(JUNG <strong>11</strong>, p. 8). Essa distinção é relacionada à própria ação prática, pois ele escreve:<br />

“Todos os métodos <strong>de</strong> influência, incluindo o analítico, requerem que o paciente seja<br />

visto com a maior frequência possível. Contento-me com o máximo <strong>de</strong> quatro<br />

consultas por semana. Mas, como regra, contento-me com duas sessões e, uma vez<br />

que o paciente tenha sido adiante, reduzo a uma sessão” (JUNG 12, pp. 26-7). Aqui, ele<br />

<strong>de</strong>fine um objetivo ao reduzir entrevistas: servem para que o paciente “se libere da<br />

autorida<strong>de</strong> médica o mais rápido possível” (JUNG 12, p. 27). Este padrão <strong>de</strong> terapia,<br />

<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte do <strong>de</strong>senvolvimento da dialética interna entre ego e arquétipo, dominou<br />

muito da psicoterapia conduzida por analistas junguianos.<br />

Neste método, o paciente e o analista trabalham juntos no material atribuindo<br />

sentido principalmente para sonhos através <strong>de</strong> imaginação ativa. Foi provavelmente<br />

esta i<strong>de</strong>ia que fez <strong>Jung</strong> enfatizar a importância <strong>de</strong> nada fazer para sublinhar,<br />

externalizar ou, ainda pior, provocar a <strong>transferência</strong>. Seguindo esta linha <strong>de</strong><br />

pensamento, o efeito terapêutico viria não da <strong>transferência</strong>, mas da apreciação<br />

adquirida das qualida<strong>de</strong>s pessoais do terapeuta, <strong>de</strong> sua introjeção e i<strong>de</strong>ntificação<br />

como modo <strong>de</strong> construir uma ponte para a realida<strong>de</strong>. Deve-se também acrescentar a<br />

evolução arquetípica a esta avaliação, representada pela <strong>transferência</strong>, que conduz o<br />

paciente para uma maior individuação.<br />

PARTE IV<br />

14


“A psicologia da <strong>transferência</strong>”<br />

“A psicologia da <strong>transferência</strong>” é um texto difícil <strong>de</strong> ser compreendido e a Parte Dois<br />

faz <strong>de</strong>mandas consi<strong>de</strong>ráveis do leitor: é essencial algum conhecimento <strong>de</strong> alquimia,<br />

assim como <strong>de</strong> doutrinas cristãs e gnósticas. Sua forte orientação histórica, ainda que<br />

fascinante em si mesma, não coteja o trabalho analítico cotidiano e frequentemente<br />

<strong>de</strong>ixa o leitor encalhado em um mundo simbólico que precisa ser traduzido se se<br />

<strong>de</strong>seja trazer seu sentido para mais <strong>de</strong> alguns poucos pacientes. A<strong>de</strong>mais, o texto<br />

também contém uma complexida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pontos <strong>de</strong> visita genéticos, sociais e clínicos<br />

(assim como históricos) que se interlaçam <strong>de</strong> forma a criar dificulda<strong>de</strong>s para o leitor<br />

que busca i<strong>de</strong>ias clinicamente orientadas com as quais organizar a observação <strong>de</strong><br />

pacientes em análise. <strong>Jung</strong> <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>-se <strong>de</strong>sta reprovação dizendo que este não é um<br />

volume para iniciantes, mas para aqueles que já foram “<strong>de</strong>vidamente instruídos”, o<br />

que quer dizer, no modo como entendo, instruídos no manejo e na interpretação da<br />

<strong>transferência</strong> – pois a interpretação é essencial. Contudo, on<strong>de</strong> que tais instruções<br />

po<strong>de</strong>m ser obtidas, extremamente <strong>de</strong>talhadas como <strong>de</strong>vem ser, senão neste trabalho?<br />

A <strong>de</strong>speito <strong>de</strong>stas dificulda<strong>de</strong>s, a tese geral é clara: a <strong>transferência</strong> po<strong>de</strong> revelar<br />

todos os estágios do processo <strong>de</strong> individuação: os alquimistas projetavam sobre a<br />

matéria, o paciente projeta sobre o analista que, através da experiência <strong>de</strong> sua própria<br />

individuação, torna-se envolvido com a dialética emocional do paciente.<br />

Em geral, a prática <strong>de</strong> <strong>Jung</strong> permanece a mesma: <strong>de</strong>ve-se fazer redução<br />

analítica das projeções <strong>de</strong> maneira que a real relação com o analista possa emergir à<br />

medida que a auto realização do paciente aumenta.<br />

Novamente, há o pressuposto <strong>de</strong> que haja um estágio preliminar <strong>de</strong> confissão e<br />

análise <strong>de</strong> insights antes que o conteúdo inconsciente seja constelado e a <strong>transferência</strong><br />

comece. <strong>Jung</strong> sugere que muitos feitos po<strong>de</strong>m ser realizados <strong>de</strong>ste modo, e até<br />

mesmo uma quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> objetivos preliminares po<strong>de</strong>m ser atingidos; nós lemos que<br />

existem aqueles que pensam que os atingiram “uma vez que os conteúdos<br />

inconscientes foram trazidos à consciência e teoricamente avaliados” (JUNG 15, p.<br />

278). Seja como for, o estopim da <strong>transferência</strong> arquetípica se dá no inconsciente. Ele<br />

po<strong>de</strong> não ser reconhecido em absoluto no começo e somente aparecer em sonhos<br />

15


anunciando seu início. <strong>Jung</strong> dá exemplos ilustrativos <strong>de</strong> seus importantes conteúdos:<br />

“Inicia-se um incêndio no porão, ou um ladrão inva<strong>de</strong> a casa, ou... o pai do paciente<br />

morre ou [um sonho] po<strong>de</strong> retratar uma situação erótica ou alguma outra situação<br />

ambígua” (JUNG 15, p. 183).<br />

<strong>Jung</strong> então <strong>de</strong>screve o caso <strong>de</strong> uma senhora idosa cujos sonhos a conduziam <strong>de</strong><br />

volta a uma pintura que ela fez; havia nela analogias às pinturas alquímicas <strong>de</strong> uma<br />

série a ser discutida no texto 3 . Nele, há uma mulher-serpente com uma serpente que<br />

se elevava <strong>de</strong> seu genital (figura essa a ser equivalida à fonte na imagem das séries<br />

alquímicas), uma estrela dourada <strong>de</strong> cinco pontas, um pássaro voando baixo com um<br />

graveto em seu bico com cinco flores, quatro organizadas como um quaternio e a<br />

quinta, a mais alta <strong>de</strong> todas, é dourada – <strong>Jung</strong> diz “é obviamente uma estrutura<br />

mandálica” (JUNG 15, p. 185).<br />

Parece que foi necessário muito trabalho com as resistências antes que a<br />

<strong>transferência</strong> emergisse. Como foi este processo? Aqui, a referência da <strong>de</strong>scrição nos<br />

conta: “O analista, ao voluntaria e conscientemente tomar conta dos sofrimentos<br />

psíquicos do paciente, expõe a si mesmo aos conteúdos avassaladores do inconsciente<br />

e, portanto, a suas ações indutivas... [<strong>de</strong> forma que] o analista e o paciente acham-se<br />

em uma relação fundada na mútua inconsciência” (JUNG 15, pp. 175-6). Um<br />

abaissement (estado “crepuscular”) ocorre até que “se <strong>de</strong>scubra estar em um caos<br />

impenetrável que, <strong>de</strong> fato, é um dos sinônimos para a misteriosa prima materia”<br />

(JUNG 15, p. 187). O analista se torna tão confuso e <strong>de</strong>sorientado quanto o paciente;<br />

felizmente, não tanto assim, pois “... a todo o momento o saber do analista, tal qual<br />

uma luz tremeluzente, projeta uma luz turva sobre a escuridão” (JUNG 15, p. 198).<br />

Qualida<strong>de</strong>s éticas, paciência, tolerância, coragem e fé são essenciais e “o analista<br />

precisa atingir os limites <strong>de</strong> suas possibilida<strong>de</strong>s subjetivas, do contrário o paciente não<br />

será capaz <strong>de</strong> fazer o mesmo” (JUNG 15, p. 199), pois “... às vezes, o paciente tem<br />

apoiar-se no analista como seu último vestígio remanescente <strong>de</strong> realida<strong>de</strong>” (JUNG 15,<br />

p. 199), em face aos seus “afetos e fantasias autoeróticas” (JUNG 15, p. 268).<br />

3 N. do T. – Rosarium Philosophorum.<br />

16


As figuras alquímicas e o texto se <strong>de</strong>senvolvem em uma sequência bastante<br />

or<strong>de</strong>nada, enfatizando tanto alquimistas, com relação a opus, quanto <strong>Jung</strong>, com<br />

referência à progressão da <strong>transferência</strong>, ambos partindo <strong>de</strong> estágios que não são<br />

padronizados e que variam <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> vastos limites. Por conveniência, seguirei a<br />

or<strong>de</strong>m que <strong>Jung</strong> estipulou.<br />

Depois <strong>de</strong> um tipo <strong>de</strong> constatação preliminar (figura I), há o encontro humano;<br />

ele segue uma forma convencional, presumivelmente <strong>de</strong>ntro da fórmula analistapaciente<br />

ou <strong>de</strong> alguma outra equivalente (figura II). Isto leva à análise do inconsciente<br />

pessoal e seus conteúdos incestuosos. Novamente, há aqui uma avaliação muito<br />

positiva da <strong>transferência</strong>: “[ela]... dá ao paciente a oportunida<strong>de</strong> impagável <strong>de</strong><br />

recolher suas projeções, <strong>de</strong> tomar proveito <strong>de</strong> suas perdas e integrar sua<br />

personalida<strong>de</strong>” (JUNG 15, p. 218).<br />

Há muitas consi<strong>de</strong>rações neste estágio sobre o incesto que <strong>Jung</strong> concebe pela<br />

primeira vez, seguindo Layard, como um verda<strong>de</strong>iro instinto que mistura semelhante<br />

com semelhante, constituindo-se, assim, a prima materia da individuação. Em<br />

acréscimo à i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que <strong>transferência</strong> nada mais é que projeção, “ela divi<strong>de</strong> tanto<br />

quanto po<strong>de</strong> conectar. Mas a experiência ensina que há uma conexão que a<br />

<strong>transferência</strong> não consegue romper com o corte da projeção. Isto acontece porque há<br />

um fator instintivo extremamente importante por trás <strong>de</strong>la: a libido do parentesco...<br />

[que] <strong>de</strong>seja a conexão humana. Este é o cerne <strong>de</strong> todo fenômeno transferencial... o<br />

relacionamento com o Si-mesmo é também o relacionamento com o próximo, e<br />

ninguém po<strong>de</strong> relacionar-se com o próximo sem que esteja em relacionamento consigo<br />

mesmo”. (JUNG 15, p. 233) (os itálicos são meus). E, novamente, o fim não está à vista<br />

diante do rompimento da projeção, pois ainda que a conexão, sendo ela baseada no<br />

amor ou no ódio, possa <strong>de</strong>sabar, seu problema seria somente postergado, pois “por<br />

trás <strong>de</strong>le, está o impulso incansável da individuação” (JUNG 15, p. 234).<br />

Segue um diagrama da inter-relação entre analista e paciente quando animus e<br />

anima se tornam conscientes. Ele constitui, até on<strong>de</strong> sei, a primeira afirmação com<br />

<strong>de</strong>talhes vindas <strong>de</strong> uma fonte que dá valor ao constructo<br />

<strong>transferência</strong>/contra<strong>transferência</strong> juntamente da real relação entre analista e<br />

17


paciente. Antes <strong>de</strong>le, há alguns exemplos específicos e também afirmações gerais<br />

sobre contágio psíquico dados nas Conferências <strong>de</strong> Tavistock – aqui há um relato<br />

bastante claro que po<strong>de</strong>ria ser esmiuçado em maiores <strong>de</strong>talhes se necessário.<br />

No parágrafo 423 (JUNG 15, p. 221), ele prenuncia as partes componentes no<br />

modo a seguir: existem,<br />

(a) Uma relação pessoal <strong>de</strong>scomplicada;<br />

(b) Uma relação do homem com sua anima e da mulher com seu animus;<br />

(c) Uma relação da anima com animus e vice versa;<br />

(d) Uma relação do animus da mulher com o homem (que ocorre quando a<br />

mulher é idêntica ao seu animus) e da anima do homem com a mulher (que<br />

acontece quando o homem é idêntico à sua anima).<br />

<strong>Jung</strong> compara este padrão, baseado no quaternio, em alguma medida, a dois<br />

contos <strong>de</strong> fada (um islandês, outro russo), à união mística cristã, à alquimia, ao padrão<br />

incestuoso da mitologia pagã, aos sistemas <strong>de</strong> casamento entre primos das<br />

comunida<strong>de</strong>s primitivas e, finalmente, à <strong>de</strong>sorganização <strong>de</strong> nosso sistema <strong>de</strong><br />

casamento exogâmico do momento presente, resultado da libertação <strong>de</strong> nossa<br />

tendência incestuosa endógena <strong>de</strong> seu confinamento na vida religiosa. Porque ela une<br />

semelhante a semelhante, ela resi<strong>de</strong> nas raízes da coletivida<strong>de</strong> (psicologia da relação<br />

massa-homem) que ten<strong>de</strong> a expelir salvadores e lí<strong>de</strong>res para expressar e explorar a<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> do grupo.<br />

Tudo isto é parte <strong>de</strong> uma teoria social da <strong>transferência</strong> à qual ele acrescenta as<br />

dimensões históricas ao relacionar a doutrina do anthropos gnóstico, através do<br />

neoplatonismo e da alquimia, com a situação <strong>de</strong> <strong>transferência</strong> e a individuação.<br />

Portanto, <strong>transferência</strong> “... é vitalmente importante não somente para o indivíduo,<br />

mas também para a socieda<strong>de</strong> e, <strong>de</strong> fato, para o progresso moral e espiritual da<br />

humanida<strong>de</strong>” (JUNG 15, p. 234).<br />

Na figura III, o casal real está nu. Isto expressa um estado <strong>de</strong> arte que emerge<br />

quando a persona provou ser um continente ina<strong>de</strong>quado <strong>de</strong> afetos que tornaria<br />

necessária uma confrontação nua. Dessa forma, a sombra emerge e a honestida<strong>de</strong> e<br />

18


veracida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ambos os parceiros na empreitada são completamente submetidos a<br />

teste.<br />

Figura IV. O par <strong>de</strong>sce ao banho (o inconsciente) e a “jornada pelo mar<br />

noturno” principia, levando-os à figura V, a coniunctio propriamente resultante da<br />

assimilação ao inconsciente. <strong>Jung</strong> renova seus apelos por paciência: “... embora o<br />

paciente esteja – do ponto <strong>de</strong> vista racional – equipado com a compreensão necessária<br />

e nem ele, nem seu analista, possam ser acusados <strong>de</strong> qualquer negligência técnica ou<br />

<strong>de</strong>scuido” (JUNG 15, p. 253), a <strong>transferência</strong> não po<strong>de</strong> ser rompida. Então, “acima <strong>de</strong><br />

tudo, <strong>de</strong>ve-se ter abstinência e paciência, pois frequentemente o tempo é capaz <strong>de</strong><br />

fazer mais que a própria arte” (JUNG 15, p. 245). A<strong>de</strong>mais, o analista não <strong>de</strong>ve assumir<br />

que ele sabe: razoabilida<strong>de</strong> não funcionará mais porque ela ten<strong>de</strong> a romper a<br />

<strong>transferência</strong> e tal atitu<strong>de</strong> não é indicada. Há aqui uma advertência quanto a tomar<br />

por “pornografia” o franco erotismo da figura. Estou inclinado aqui a acreditar que<br />

<strong>Jung</strong> estava pensando nos perigos da interpretação sexual, assim como da<br />

<strong>transferência</strong> erótica, na qual todo insight é varrido para longe pelo excitamento<br />

sexual do paciente. Com isso em mente, sua insistência aparentemente excessiva<br />

acerca do mistério e da natureza simbólica do material torna-se compreensível.<br />

Figura VI, “Morte”. Aqui, a assimilação dos conteúdos inconscientes levou à<br />

morte do ego; uma vez que a morte do ego (do velho i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> personalida<strong>de</strong>?) abre<br />

espaço para o Si-mesmo, a sequência morte-renascimento dos alquimistas também<br />

não se faz mais presente. Há uma fusão entre o rei e a rainha (ego e anima), <strong>de</strong> modo<br />

que um hermafrodita se forma. Po<strong>de</strong>-se inferir que há, neste momento, uma<br />

tendência para fusão inconsciente entre analista e paciente através da conjunção<br />

animus-anima, mas não há muito mais o que extrair da natureza da própria<br />

<strong>transferência</strong>; <strong>de</strong> fato, parece ser a real personalida<strong>de</strong> e experiência do analista o mais<br />

importante neste momento.<br />

Figura VII, “A ascensão da alma”. Mais <strong>de</strong>sintegração toma lugar, a consciência<br />

do ego ruiu. A alma está perdida e ascen<strong>de</strong> aos céus. Novamente, paciência, coragem e<br />

fé são requeridas e a abordagem <strong>de</strong>ve ser “... plástica e simbólica, sendo o próprio<br />

resultado da experiência pessoal com conteúdos inconscientes” (JUNG 15, p. 270).<br />

19


<strong>Jung</strong> continua: “A terapia foca no fortalecimento da mente consciente, e sempre que<br />

possível tento <strong>de</strong>spertar o paciente para a ativida<strong>de</strong> mental para fazê-lo assujeitar a<br />

massa confusa <strong>de</strong> sua mente utilizando sua própria compreensão, <strong>de</strong> modo que ele<br />

possa alcançar um ponto privilegiado au-<strong>de</strong>ssus <strong>de</strong> la mêlée [acima da batalha]” (JUNG<br />

15, pp. 270-1). Novamente, <strong>Jung</strong> evoca o otimismo dos alquimistas e acrescenta que:<br />

“neste ponto, não palatável como é o temperamento científico, a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> mistério<br />

força-se sobre a mente do inquiridor, não como um manto <strong>de</strong> ignorância, mas como<br />

uma admissão <strong>de</strong> sua inabilida<strong>de</strong> para traduzir o que ele sabe para o discurso cotidiano<br />

do intelecto” (JUNG 15, p. 272).<br />

Figura VIII, “Purificação” – o estágio <strong>de</strong> embranquecimento. A evocação<br />

“embranqueça os lados e marque os livros para que seus corações não se rasguem”<br />

leva <strong>Jung</strong> a aplicar a teoria dos tipos ao estado <strong>de</strong> arte: o intelecto (função<br />

pensamento) não é mais efetivo e <strong>de</strong> fato é um obstáculo positivo; aqui os<br />

sentimentos primitivos ligados ao afeto (seriam a função inferior?) se tornam o foco <strong>de</strong><br />

atenção e envolvimento. Po<strong>de</strong> haver também uma cisão ainda maior, <strong>de</strong> maneira que<br />

uma condição esquizofrênica emerge no que po<strong>de</strong>ria implicar a emergência <strong>de</strong> um tipo<br />

ilusório <strong>de</strong> <strong>transferência</strong> em que o insight é impossível; no entanto, este estado<br />

também po<strong>de</strong> resultar <strong>de</strong> uma relação mais significativa na qual a real pessoa do<br />

analista, que estava lá antes, é claro, torna-se mais importante à medida que o Simesmo<br />

gradualmente se cristaliza. Assim, é nesta área que as reações afetivas do<br />

analista se tornam mais e mais importantes.<br />

Figuras IX e X, “O retorno da alma” e o “Novo nascimento”. Não há, creio eu,<br />

nada nestas duas seções que li<strong>de</strong> diretamente com o tema da <strong>transferência</strong> como<br />

projeção. O retorno da alma vivifica o corpo e <strong>de</strong>sta conjunção o Si-mesmo é formado.<br />

<strong>Jung</strong> aqui se expressa quase que totalmente em linguagem simbólica na medida em<br />

que ele atingiu um estágio no qual o Si-mesmo vem a ser nele próprio. É à luz <strong>de</strong>stas<br />

consi<strong>de</strong>rações que leio a carta <strong>de</strong> John Pordage para Jane Lea<strong>de</strong> e o poema sobre o<br />

hermafrodita. Creio ser bastante espantoso o que <strong>Jung</strong> pontua no final: “Nunca cruzei<br />

com a imagem do hermafrodita representando uma personificação do objetivo, mas<br />

sim, um símbolo do estado inicial, expressando i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> com a anima ou o animus”<br />

(JUNG 15, p. 319). Ficaria implicado então que há algo <strong>de</strong> errado com a sequência<br />

20


alquímica, se observada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ponto <strong>de</strong> vista da individuação. Particularmente, não<br />

estou convencido <strong>de</strong> que a ignorância do alquimista do fenômeno da projeção tenha<br />

contribuído para tanto.<br />

PARTE V<br />

Uma aplicação clínica<br />

Estas consi<strong>de</strong>rações completam minha revisão das pesquisas <strong>de</strong> <strong>Jung</strong>. É notável a<br />

existência <strong>de</strong> uma evolução consistente e coerente em seu quadro geral e <strong>Jung</strong> é<br />

muito claro que, com as <strong>de</strong>vidas modificações, o material simbólico po<strong>de</strong> ser<br />

compreendido também como material clínico. Tendo isto em vista, ele cita em sua<br />

“Introdução” uma paciente que pinta um quadro contendo analogias com as imagens<br />

nas séries do Rosarium Philosophorum. Presumivelmente, a <strong>transferência</strong> da paciente<br />

teria passado pelos estágios posteriores que <strong>Jung</strong> subsequentemente elabora. Assim,<br />

não seria possível que nós fizéssemos traduções clínicas subsequentes? Eu acredito<br />

que sim, e o exemplo sobre como os símbolos po<strong>de</strong>m ser lido em termos clínicos<br />

ilustra a seguir o que po<strong>de</strong> ser feito.<br />

Po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar a junção da figura VI (“Morte”) com a figura VII (“A<br />

ascensão da alma”) <strong>de</strong> dois modos. (1) A “Morte” po<strong>de</strong> ser projetada. No caso <strong>de</strong> um<br />

analista homem, sua paciente mulher era i<strong>de</strong>ntificada com seu animus. Isto implica<br />

que a paciente fosse dotada <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong>s do espírito e se <strong>de</strong>sligaria do analista inútil<br />

(morto). Ela, à moda do animus, tem a solução e ou se afasta <strong>de</strong> seu analista inútil por<br />

meio <strong>de</strong> um corte <strong>de</strong>strutivo ou procura trazê-lo à vida ao abraça-lo com suas opiniões<br />

supostamente vivificantes. (2) Alternativamente, se a paciente se sente morta (isto é,<br />

<strong>de</strong>primida), então o analista torna-se imbuído com o animus <strong>de</strong>la, <strong>de</strong> modo que ela<br />

sente que ele não dá atenção para ela, mas simplesmente oferece interpretações<br />

sentidas como abstratas, intelectuais e remotas; não obstante, a esperança da vida<br />

21


está, inconscientemente, contida nele. Parcialmente através da introjeção da projeção,<br />

o analista não se <strong>de</strong>sespera, mas sente a necessida<strong>de</strong> da paciente usá-lo <strong>de</strong>ste modo.<br />

PARTE VI: DISCUSSÃO<br />

A característica mais impressionante das pesquisas <strong>de</strong> <strong>Jung</strong> a respeito da <strong>transferência</strong><br />

é sua constante <strong>de</strong>fesa do paciente enquanto que uma pessoa em necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />

relação. Isto se aplica ao fim da obra, pois “por mais que torçamos e reviremos a<br />

questão, ela sempre permanece como um conflito interno e externo” (JUNG 15, p.<br />

304). Portanto, a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> relação <strong>de</strong>ve ser consi<strong>de</strong>rada como básica para todo<br />

o resto, ainda que, naturalmente, a questão não pare por aí. Desse modo, <strong>Jung</strong><br />

consistentemente inclui o analista na construção psicoterapêutica e, assim, <strong>de</strong>sbravou<br />

pioneiramente a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que a pessoa é, em aspectos essenciais, um “sistema aberto”.<br />

Entretanto, também existe, em sua exposição, um “analista” que parece estar<br />

<strong>de</strong>masiadamente perdido ou consistentemente perplexo pelas situações nas quais ele<br />

se acha – ele parece ser o exponente <strong>de</strong> uma obsessão por sistemas fechados. Ele<br />

assume que o paciente, estando “doente”, busca tratamento e que é seu trabalho<br />

provê-lo através da aplicação <strong>de</strong> um remédio. Ele mesmo não <strong>de</strong>veria tomar parte no<br />

tratamento e <strong>de</strong>liberadamente tenta manter-se a distância. Esta abordagem “médica”<br />

era aplicada nos dias primevos da psicoterapia e persiste ainda hoje mais claramente<br />

na terapia comportamental. Era este tipo <strong>de</strong> tratamento que <strong>Jung</strong> criticava, senão<br />

explicitamente, ao menos através <strong>de</strong> implicações.<br />

No que se refere às concepções <strong>de</strong> <strong>Jung</strong>, <strong>de</strong>staca-se a importância da<br />

personalida<strong>de</strong> real do analista ser um instrumento disponível para o paciente curar a si<br />

mesmo. <strong>Jung</strong> foi o pioneiro mais consistente e enérgico, senão o único pioneiro, <strong>de</strong>ste<br />

conceito seminal. Nele, ele <strong>de</strong>monstra sua capacida<strong>de</strong> penetrante <strong>de</strong> agarrar e<br />

permanecer com o essencial e assim abrir caminho para elaborações mais <strong>de</strong>talhadas.<br />

22


O que mais foi aprendido sobre “a real personalida<strong>de</strong> do analista” e o que isto<br />

significa em <strong>de</strong>talhes quando <strong>Jung</strong> a consi<strong>de</strong>ra como a ponte do paciente para a<br />

realida<strong>de</strong>? Muito se revela nesta breve afirmação se a comparamos com o papel que o<br />

“analista” arroga para si. Na melhor das hipóteses, ela constitui somente uma<br />

expressão muito indireta <strong>de</strong> seu Si-mesmo real, enquanto que na pior das hipóteses<br />

po<strong>de</strong> ser uma persona <strong>de</strong>fensiva ou um falso self do qual ele se utiliza para enganar<br />

seu paciente. Seria ir longe <strong>de</strong>mais afirmar que o mo<strong>de</strong>lo que <strong>Jung</strong> coloca diante <strong>de</strong><br />

nós é o <strong>de</strong> um analista que sempre expressa um aspecto <strong>de</strong> seu Si-mesmo em tudo o<br />

que ele faz com seu paciente? Como um mo<strong>de</strong>lo, um i<strong>de</strong>al, ele parece aceitável para<br />

mim, mas não como algo a ser totalmente alcançado, ainda que os analistas não<br />

<strong>de</strong>vam ficar muito aquém <strong>de</strong>ste i<strong>de</strong>al.<br />

Fiz uma tentativa <strong>de</strong> aplicar este mo<strong>de</strong>lo em <strong>de</strong>talhes em outro texto<br />

(FORDHAM 2), ao relacionar com o conceito <strong>de</strong> técnica com o conhecimento pessoal e<br />

arquetípico do analista que formaria a base na qual se fazem comunicações no curso<br />

<strong>de</strong> uma terapia analítica.<br />

Mas para retornar para a exposição <strong>de</strong> <strong>Jung</strong>, há partes que necessitam <strong>de</strong><br />

esclarecimento posterior, especialmente quanto aos estados <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> nos quais o<br />

terapeuta po<strong>de</strong> eventualmente se achar. Concorda-se hoje facilmente com a opinião<br />

<strong>de</strong> que qualquer paciente analítico po<strong>de</strong> vir a assumir sentidos e imagens distintos<br />

para seu analista e hoje é tido como axiomático que o analista terá <strong>de</strong> mudar ou<br />

aprimorar-se se ele <strong>de</strong>seja que a análise progrida; mas não se po<strong>de</strong> aceitar facilmente<br />

a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que um analista se enre<strong>de</strong> no processo inconsciente projetado sobre ele por<br />

meio do material persistentemente <strong>de</strong>sconcertante <strong>de</strong> um paciente e das<br />

contraprojeções por ele evocadas. Eu acredito que esta tese necessita maior<br />

clarificação.<br />

<strong>Jung</strong> <strong>de</strong>ixou para trás uma conferência (proferida em 1937) que foi publicada<br />

postumamente como “As realida<strong>de</strong>s da psicoterapia prática”. Nela, ele reconta as<br />

dificulda<strong>de</strong>s que enfrentou com uma <strong>de</strong> suas pacientes. Ele não compreendia seus<br />

sonhos, ela tornou-se fisicamente doente e ele se <strong>de</strong>sesperou ao ajudá-la; ele não<br />

conseguia compreen<strong>de</strong>r a estrutura e o significado dos sintomas, que o levou a dizer:<br />

23


“Todo o caso me preocupava tanto que eu contei para a paciente que não havia mais<br />

sentido em vir me procurar por um tratamento” (JUNG 13, p. 334). Contudo, este foi<br />

um caso especial, pois foi esta paciente que levou <strong>Jung</strong> a estudar Kundalini Yoga.<br />

Assim, a confusão do analista po<strong>de</strong> frequentemente ser uma indicação <strong>de</strong> que<br />

ele trabalha em uma área com a qual ele não está familiarizado e não uma condição<br />

que <strong>de</strong>vesse ser entendida como mais ou menos inevitável durante a análise do<br />

fenômeno transferencial. Em outras palavras, <strong>de</strong>vemos consi<strong>de</strong>rar a confusão como<br />

uma característica da pesquisa analítica ao invés da condução ordinária do trabalho<br />

analítico.<br />

Minha experiência se aproxima da <strong>de</strong> <strong>Jung</strong> quando observo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> este ponto<br />

<strong>de</strong> vista. Foi a <strong>transferência</strong> ilusória que proporcionou minhas primeiras dificulda<strong>de</strong>s,<br />

semelhantes às <strong>de</strong> <strong>Jung</strong>, e <strong>de</strong>vo admitir que tendo seguindo este caminho uma vez,<br />

nunca mais o repeti e não consigo acreditar que o próprio <strong>Jung</strong> o fez quando tratava<br />

um caso do tipo <strong>de</strong>scrito. Estou muito certo <strong>de</strong> que meu caso <strong>de</strong>veu-se a uma<br />

autoanálise já em curso ao mesmo tempo em que me tornava familiar com o estado<br />

da paciente e dos conteúdos essencialmente infantis presentes nele. Que suas<br />

<strong>transferência</strong>s – como outras do mesmo tipo – contivessem elementos estruturais <strong>de</strong><br />

sua personalida<strong>de</strong> estava claro, pois o material arquetípico frequentemente estava em<br />

evidência. Conclui que sua distorção no processo sintético po<strong>de</strong>ria oportunamente dar<br />

ensejo ao estudo <strong>de</strong> infância.<br />

A insistência <strong>de</strong> <strong>Jung</strong> no erro da interpretação “exclusiva” das raízes sexuais da<br />

<strong>transferência</strong> é relevante neste contexto porque ele po<strong>de</strong> ter contribuído para os<br />

estados confusionais. Esta técnica, se é que alguma vez ela já foi usada em <strong>de</strong>masia,<br />

não mais <strong>de</strong>veria ainda inspirar ataques porque ninguém mais acredita que as pulsões<br />

sexuais resi<strong>de</strong>m sozinhas na raiz das <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns mentais; então, este tópico po<strong>de</strong>ria ser<br />

reexaminado. <strong>Jung</strong> não quis dizer – como algumas vezes se diz – que os impulsos<br />

sexuais na <strong>transferência</strong> erótica <strong>de</strong>vessem ser ignorados ao ponto <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar o paciente<br />

ansioso, culpado ou envergonhado sem que o analista perceba; <strong>de</strong> fato, seja lá o que<br />

possa ser inferido a partir <strong>de</strong> seus escritos, a informação que reuni <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong> seus<br />

pacientes convenceu-me <strong>de</strong> que esta crítica está <strong>de</strong>sprovida <strong>de</strong> fundamentação. Então,<br />

24


o que <strong>de</strong>vemos fazer <strong>de</strong> sua observação – porque assim me parece – <strong>de</strong> que pacientes<br />

cuja sexualida<strong>de</strong> é analisada po<strong>de</strong>m <strong>de</strong>senvolver os mais terríveis ressentimentos e<br />

romper com a análise: isto seria <strong>de</strong>vido a um gran<strong>de</strong> erro técnico? É evi<strong>de</strong>nte que<br />

quando ele usa a palavra “exclusivo”, ele quer dizer que a <strong>transferência</strong> arquetípica<br />

não foi contemplada, mas ao mesmo tempo ele não dá qualquer indicação <strong>de</strong> inveja,<br />

ciúme e possessão que possa ser digna <strong>de</strong> nota. Se estes componentes da sexualida<strong>de</strong><br />

não forem contemplados, os afetos agressivos e frequentemente <strong>de</strong>strutivos que são<br />

liberados acabam por não ser interpretados, o paciente <strong>de</strong> fato se torna confuso e<br />

<strong>de</strong>sorientado e rompe com a análise ao modo como <strong>Jung</strong> <strong>de</strong>screve. Em outras<br />

palavras, não teria <strong>Jung</strong> sido conduzido por estes afetos somente para reagir contra<br />

eles? Acredito que este tenha sido o caso.<br />

Contudo, <strong>Jung</strong> foi correto em um aspecto muito importante. Não é a<br />

sexualida<strong>de</strong> enquanto <strong>de</strong>scarga física, orgásmica entre dois adultos que seja o ponto,<br />

mas, ao invés, a necessida<strong>de</strong> incestuosa <strong>de</strong> intimida<strong>de</strong> corporal e espiritual, irrealizável<br />

por adultos por meio da carne, porque ela somente po<strong>de</strong> ocorrer entre mãe e filho.<br />

<strong>Jung</strong> claramente sabia alguma coisa <strong>de</strong> tudo isso, pois os textos alquímicos<br />

contêm referências à mescla <strong>de</strong> amor e ódio (dos elementos); entretanto, estes são<br />

concebidos como opostos que po<strong>de</strong>m ser transcendidos, e não fui capaz <strong>de</strong> achar se<br />

ele discorre sobre formas mais intensas <strong>de</strong> <strong>transferência</strong> negativa em algum momento<br />

<strong>de</strong> sua obra. Na “Psicologia da <strong>transferência</strong>” ele faz, no entanto, uma afirmação clara<br />

<strong>de</strong> que a <strong>transferência</strong> po<strong>de</strong> tanto ser negativa quanto positiva, <strong>de</strong> modo que o<br />

princípio po<strong>de</strong> ser reconhecido, mas o que ele quer dizer por negativo é amplamente<br />

relegado à imaginação (JUNG 15, p. 165).<br />

<strong>Jung</strong> parece hesitante e, em algumas vezes, até apologético quanto a esta área<br />

da i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> entre paciente e analista. É quase como se ele estivesse parcialmente<br />

aliado às formas racionalistas <strong>de</strong> terapia baseadas no mo<strong>de</strong>lo médico que ele criticava.<br />

Ainda assim, ele diz em 1935: “Em contraposição a estas visões” – ou seja, aquelas <strong>de</strong><br />

Freud e <strong>de</strong> Adler – “que claramente resi<strong>de</strong>m em pressupostos médicos datados,<br />

sublinhei a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma individualização mais extensiva do método <strong>de</strong><br />

tratamento e <strong>de</strong> uma irracionalização <strong>de</strong> seus objetivos – especialmente o último, que<br />

25


po<strong>de</strong>ria garantir a maior <strong>de</strong> todas as liberda<strong>de</strong>s possíveis do preconceito” (JUNG <strong>11</strong>, p.<br />

26).<br />

Se um analista <strong>de</strong>scobre-se no mesmo estado <strong>de</strong> confusão que ele constata ser<br />

o <strong>de</strong> seu paciente, pressupostos racionais, que formam a base sobre a qual os sistemas<br />

conscientes parcialmente resi<strong>de</strong>m, claramente seriam <strong>de</strong> pouquíssimo uso. Entretanto,<br />

a confusão não po<strong>de</strong> ser concebida ou experienciada sem uma <strong>concepção</strong> ou uma<br />

experiência <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m ou razão e, se isto ainda for mantido como um objetivo mesmo<br />

quando não mais apropriado, então os jogos contraditórios dos afetos inconscientes<br />

que rapidamente se alteram, quando dispostos em oposições, se parecerão com<br />

<strong>de</strong>sor<strong>de</strong>ns e o analista que se apoia em um sistema racional rapidamente será<br />

arrastado para eles em sua confusão. É claro, alguma consistência <strong>de</strong>ve ser mantida e<br />

<strong>Jung</strong> confiava em virtu<strong>de</strong>s éticas e na consciência.<br />

Sem negar a importância <strong>de</strong>stes valores e especialmente da ética que, a meu<br />

ver, ele repetidamente invoca, é importante lembrar que eles po<strong>de</strong>m se tornar<br />

<strong>de</strong>fensivos e conduzir à negligência dos conteúdos afetivos que os <strong>de</strong>stacam. Em<br />

outras palavras, eles po<strong>de</strong>m cegar o analista com a contra<strong>transferência</strong> que o paciente<br />

evoca. Para prevenir seu uso <strong>de</strong>fensivo, requerimentos éticos po<strong>de</strong>m ser<br />

proveitosamente colocados para se relacionarem com a parte infantil do paciente que<br />

evoca o amor maternal do analista – mas, <strong>de</strong>ve-se acrescentar, também com toda a<br />

sua sombra. Ao fazer investigações nesta posição, muito pô<strong>de</strong> ser aprendido na<br />

medida em que não somente o cuidado amoroso, mas também a raiva, a irritação, a<br />

<strong>de</strong>pressão, o <strong>de</strong>sespero e a <strong>de</strong>sesperança po<strong>de</strong>m partilhar na experiência <strong>de</strong> analisar<br />

pacientes que <strong>de</strong>monstram elementos psicóticos em seu Si-mesmo. Se a análise não<br />

superar estes sentimentos, eles po<strong>de</strong>m ser compreendidos como indicadores <strong>de</strong><br />

contra<strong>transferência</strong> e, como tais, são naturais a qualquer análise radical. A ética<br />

analítica não <strong>de</strong>ve então sustentar os elementos benignos da contra<strong>transferência</strong> – ele<br />

<strong>de</strong>ve estar certo <strong>de</strong>les como um resultado da análise –, mas compreendê-los em<br />

conjunção com suas sombras e interpretá-los no tempo em que o paciente po<strong>de</strong> se<br />

servir <strong>de</strong> suas informações.<br />

26


Há ainda outro elemento que po<strong>de</strong> ser acrescido às partes sustentadoras da<br />

análise: a confiabilida<strong>de</strong> física do analista, seu ser fisicamente presente e provedor <strong>de</strong><br />

um período <strong>de</strong> tempo regular e frequente para um encontro em um lugar que não se<br />

altera, que é caloroso e suficientemente confortável. Deste modo, ele fornece um<br />

enquadre – uma situação sustentadora – <strong>de</strong>ntro da qual seu inconsciente po<strong>de</strong><br />

seguramente achar sua expressão – sob a orientação <strong>de</strong> um sofisticado ego –<br />

juntamente com a expressão do paciente. A analogia alquímica para esta cena é o vaso<br />

ou a retorta – a metáfora que po<strong>de</strong> ser acrescida a ela é a da mãe e do bebê. É neste<br />

ponto em que o sujeito da entrevista frequentemente se torna importante e também a<br />

razão por que <strong>Jung</strong> tão brevemente a reduzia a encontros entre analista e paciente.<br />

Convenci-me <strong>de</strong> que sua prática, tal como ele a <strong>de</strong>screve em 1935, não po<strong>de</strong><br />

ser generalizada e precisa ser analisada em relação à sua própria experiência. Ainda<br />

que sua prática terapêutica tenha sido modificada pela psicanálise, há fortes analogias<br />

<strong>de</strong> sua exposição à sua própria <strong>de</strong>scoberta da individuação. <strong>Jung</strong>, por força das<br />

circunstâncias, foi jogado <strong>de</strong> volta a si mesmo e encontrou os mitos, entre os quais os<br />

alquímicos seriam os mais importantes, um tipo <strong>de</strong> “analista” que ele po<strong>de</strong>ria<br />

suplantar ao traduzir alquimia em psicologia. É mais provável, contudo, que ele sentiu<br />

a falta <strong>de</strong> uma pessoa real com quem trabalhar e que o sentimento <strong>de</strong> que o valor do<br />

pessoal estava ameaçado pela “autorida<strong>de</strong> médica” bem po<strong>de</strong> ter sido uma dificulda<strong>de</strong><br />

em seu caminho. De qualquer modo, ele precisava <strong>de</strong> alguém que não estava<br />

disponível; <strong>de</strong> fato, é óbvio que nenhum analista ou terapeuta sabia naquela altura,<br />

talvez nem sequer hoje soubesse como ajudar pessoas como ele.<br />

Não estou nem um pouco convencido do argumento <strong>de</strong> <strong>Jung</strong> <strong>de</strong> que a<br />

autorida<strong>de</strong> da pessoa é diminuída por ela não estar prontamente disponível; <strong>de</strong> fato,<br />

po<strong>de</strong>-se argumentar que é característico <strong>de</strong> pessoas <strong>de</strong> autorida<strong>de</strong> a falta <strong>de</strong> contato<br />

pessoal próximo e que isso contribui para impressão não realista das outras pessoas.<br />

Em todo caso, simplesmente também não é verda<strong>de</strong> que a autorida<strong>de</strong> do analista seja<br />

aprimorada por entrevistas frequentes; pelo contrário, é através do trabalho<br />

<strong>de</strong>talhado que sua verda<strong>de</strong>ira autorida<strong>de</strong> emerge e que nutre a real relação entre<br />

paciente e analista.<br />

27


Muito do meu próprio trabalho tem sido elucidar a <strong>transferência</strong> e <strong>de</strong>scobrir<br />

suas raízes ao longo dos vários momentos da infância <strong>de</strong> um modo que seja<br />

congruente com as formulações <strong>de</strong> <strong>Jung</strong> (FORDHAM, 1). Já aqui fiz referência a alguns<br />

textos e gostaria <strong>de</strong> aproveitar a oportunida<strong>de</strong> para levar minhas i<strong>de</strong>ias um pouco mais<br />

adiante. Em seu trabalho inicial, <strong>Jung</strong> concordou com Freud acerca da natureza infantil<br />

da <strong>transferência</strong>, e ele nunca completamente se afastou <strong>de</strong>sta visão, embora insistisse<br />

que ela estava incompleta.<br />

Todavia, quando ele proficuamente seguiu por suas veredas sociais, históricas e<br />

religiosas e usou a alquimia como um idioma por meio do qual expressar suas i<strong>de</strong>ias,<br />

as raízes infantis da experiência do paciente se tornaram obscurecidas. Em minha<br />

visão, qualquer analista precisa conhecê-las e saber <strong>de</strong>tectá-las. Assim, torna-se<br />

relevante consi<strong>de</strong>rar se o meio sistematizado e complexo que <strong>Jung</strong> utilizou era<br />

também um veículo <strong>de</strong> representação dos estados da primeira infância. Ao aproximarme<br />

do sujeito através <strong>de</strong>ste ponto <strong>de</strong> vista, <strong>de</strong>vo assim fazer em pleno conhecimento<br />

que o trabalho do alquimista estava muito à parte da expressão da fantasia infantil.<br />

Segundo <strong>Jung</strong>, o inconsciente pessoal, quando experienciado na <strong>transferência</strong>,<br />

é feito <strong>de</strong> pessoas – pai, mãe, irmão, irmã e por aí segue. Nesta região, as projeções<br />

po<strong>de</strong>m ser interpretadas e reduzidas porque há uma pessoa lá que po<strong>de</strong> organizar e<br />

livrar-se do passado, sobretudo, através do insight. Este procedimento po<strong>de</strong> ser<br />

empregado quando há uma neurose <strong>de</strong> <strong>transferência</strong>. Posteriores regressões po<strong>de</strong>m,<br />

contudo, ser necessárias e levam a psicose <strong>de</strong> <strong>transferência</strong> na qual o Si-mesmo não<br />

po<strong>de</strong> ser assumido: ela tem <strong>de</strong> ser <strong>de</strong>scoberta e <strong>de</strong> receber uma forma porque a<br />

autorrepresentação no ego não foi ainda adquirida. O material <strong>de</strong> <strong>Jung</strong> mostra muitas<br />

facetas dos estados infantis <strong>de</strong>sta região e suas interpretações do quaternio como<br />

representando a prima materia na qual os elementos do Si-mesmo não estão<br />

integrados é um <strong>de</strong>les: ela representa a <strong>de</strong>sintegração do Si-mesmo resultando na<br />

i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> <strong>de</strong> sujeito e objeto tal como achamos na infância e na alquimia. Mas na<br />

regressão, a cisão do ego toma o lugar e mascara a <strong>de</strong>sintegração. É sobre o processo<br />

<strong>de</strong> cisão que a ênfase <strong>de</strong> <strong>Jung</strong> recai ao mostrar que ele conduz a estados <strong>de</strong> integração<br />

e à formação do hermafrodita – um símbolo do Si-mesmo. Esta sequência correspon<strong>de</strong><br />

à teoria das sequências recorrentes da <strong>de</strong>sintegração seguida por integração que<br />

28


subjazem à formação e ao crescimento do ego (FORDHAM, 3). Aqui a nota <strong>de</strong> <strong>Jung</strong><br />

sobre a figura referindo-se ao estado inicial é relevante. Não é tão confuso quanto<br />

parece se nos referirmos ao Mysterium, pois nele apren<strong>de</strong>mos que os alquimistas<br />

buscavam a união da unio mentalis com a unus mundus (o estado primário e o Simesmo<br />

primário) como o produto final <strong>de</strong> seu trabalho. Minha própria experiência <strong>de</strong><br />

análise total, <strong>de</strong>positada sobre o conceito <strong>de</strong> valor na regressão, <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> <strong>de</strong> alcançar<br />

o estado inicial <strong>de</strong> totalida<strong>de</strong> através <strong>de</strong> representações – o Si-mesmo primário –, a<br />

partir do qual a maturação po<strong>de</strong> proce<strong>de</strong>r.<br />

Seguir esta linha <strong>de</strong> pensamento leva à reavaliação <strong>de</strong> muitas das i<strong>de</strong>ias sobre<br />

os componentes infantis do Si-mesmo. <strong>Jung</strong> frequentemente escreve como se elas<br />

pu<strong>de</strong>ssem ser suplantadas – “purgadas” é a palavra que ele usa em mais <strong>de</strong> uma vez. A<br />

respeito disso, sou cético; mas seria necessário escrever um texto unicamente para<br />

rever o que <strong>Jung</strong> entendia por “infantil”. Então, permitam-me simplesmente constatar<br />

aqui que eu acredito que a totalida<strong>de</strong> do assunto é merecedora <strong>de</strong> um estudo futuro,<br />

já iniciado por mim, no qual a totalida<strong>de</strong> da criança é levada em consi<strong>de</strong>ração,<br />

estimada e relacionada ao seu Si-mesmo primário e crescimento potencial, muito ao<br />

modo com que <strong>Jung</strong> aborda o problema em seu ensaio “A psicologia do arquétipo da<br />

criança” (JUNG 14).<br />

Neste texto, fiz uma avaliação crítica do trabalho <strong>de</strong> <strong>Jung</strong> acerca da<br />

<strong>transferência</strong> munido da crença <strong>de</strong> que o tempo está maduro para este estudo. Não<br />

me restam dúvidas <strong>de</strong> que as conquistas <strong>de</strong> <strong>Jung</strong> serviram para fornecer uma base<br />

para nosso trabalho cotidiano em um vasto espectro <strong>de</strong> práticas psicoterapêuticas,<br />

sejam elas analíticas ou não. Nosso débito a ele não po<strong>de</strong>ria ser pago a menos que<br />

mostrássemos que estudamos sua obra, usamos proveitosamente da crítica,<br />

construímos sobre o que ele nos legou, <strong>de</strong>scobrimos aspectos que não foram<br />

totalmente <strong>de</strong>senvolvidos e os levamos adiante carregando suas investigações com o<br />

espírito científico ao qual ele fielmente se comprometeu.<br />

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21. STRACHEY, J. (1934). “The nature of the therapeutic action of psychoanalysis”<br />

in Int. J. Psycho-Anal., 15, pp. 127-59.<br />

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