30.01.2017 Views

Paisagem Cultural e Preservação

You also want an ePaper? Increase the reach of your titles

YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.

<strong>Paisagem</strong> cultural: uma<br />

contribuição ao debate<br />

Luiz Philippe Torelly<br />

O objetivo do presente<br />

texto é contribuir para o<br />

debate em torno do conceito<br />

de <strong>Paisagem</strong> <strong>Cultural</strong>, sua<br />

aplicabilidade como<br />

instrumento de preservação<br />

e gestão do patrimônio<br />

natural e cultural e sua<br />

relevância como dinamizador<br />

de oportunidades culturais,<br />

pedagógicas e sócioeconômicas.<br />

Em princípio, assim como<br />

qualquer cidade é<br />

histórica, qualquer<br />

paisagem é cultural. Seja<br />

ela intocada pelo homem,<br />

seja ela totalmente<br />

alterada pela ação<br />

antrópica.<br />

Ao vislumbramos uma<br />

paisagem, nossos<br />

sentidos como a visão,<br />

a audição e o olfato,<br />

são estimulados e as<br />

sensações são<br />

imediatamente<br />

processadas por nosso<br />

intelecto, que se<br />

utiliza de todo nosso<br />

aparato cognitivo, que<br />

acumulamos desde o<br />

nascimento, para<br />

atribuir valores<br />

subjetivos e objetivos<br />

e formar<br />

representações.<br />

Portanto, se todas as<br />

paisagens podem por<br />

princípio ser culturais,<br />

que paisagens devem ser<br />

objeto de proteção e de um<br />

processo de gestão, que<br />

impeçam sua<br />

descaracterização, sem<br />

restringir sua evolução?<br />

Esta perplexidade não é só<br />

nossa.<br />

A leitura do livro<br />

"<strong>Paisagem</strong> <strong>Cultural</strong> e<br />

Patrimônio", de autoria do<br />

geógrafo Rafael Winter<br />

Ribeiro, editado em 2007<br />

pelo Instituto do<br />

Patrimônio Histórico e<br />

Artístico Nacional – Iphan,<br />

nos oferece um panorama<br />

desse debate no plano<br />

internacional. As<br />

dificuldades conceituais e<br />

sobreposições com as quais


nos defrontamos, são<br />

compartilhadas por<br />

instituições e<br />

pesquisadores de vários<br />

países. O conceito é por<br />

demais abrangente, com<br />

delimitações indicativas<br />

sem contornos claramente<br />

definidos, permitindo<br />

avaliações com elevada<br />

subjetividade e sua<br />

utilização em um espectro<br />

de situações muito amplo.<br />

O Comitê do Patrimônio<br />

<strong>Cultural</strong> da Unesco destaca<br />

o caráter evolucionista da<br />

ação humana como definidor<br />

das paisagens culturais e<br />

as divide em três<br />

categorias:<br />

1) Paisagens claramente<br />

definidas;<br />

2) <strong>Paisagem</strong> evoluída<br />

organicamente;<br />

3) <strong>Paisagem</strong> cultural<br />

associativa (1).<br />

Esta taxionomia,abrange<br />

desde paisagens<br />

integralmente desenhadas<br />

pelo homem, até aquelas<br />

imateriais ou intangíveis.<br />

Alguns princípios e<br />

critérios estão presentes,<br />

em número e intensidade<br />

variável, nas diversas<br />

acepções do conceito. Quase<br />

todos têm como referências<br />

fundamentais a Convenção<br />

Relativa à Proteção do<br />

Patrimônio Mundial <strong>Cultural</strong><br />

e Natural da Unesco,<br />

aprovada em 1972 e a<br />

resolução do Comitê do<br />

Patrimônio Mundial, de<br />

1992, que reconheceu “as<br />

interações significativas<br />

entre o homem e o meio<br />

natural” como paisagens<br />

culturais.<br />

Destacamos os seguintes:<br />

1. A presença e<br />

imbricamento singular da<br />

“cultura” e da “natura”, a<br />

luz dos condicionantes<br />

ambientais, culturais,<br />

sociais e econômicos;<br />

2. O caráter evolucionista<br />

da presença humana, seus<br />

testemunhos e a sinergia<br />

entre os ambientes<br />

naturais, construídos e os<br />

modos de produção;<br />

3. A ocorrência de<br />

manifestações e<br />

representações do<br />

patrimônio material e<br />

imaterial, integrantes de<br />

um mesmo universo cultural;<br />

4. Outorga de valor a uma<br />

fração territorial e as<br />

atividades nela<br />

desenvolvidas que envolva<br />

os aspectos anteriormente<br />

citados, capaz de agregar<br />

valor econômico, gerar<br />

emprego e renda e<br />

oportunidades de fomento as<br />

cadeias produtivas;


5. Notabilidade das obras<br />

do homem ou da conjugação<br />

destas com a natureza;<br />

6. Gestão pactuada e<br />

compartilhada entre o poder<br />

público, a sociedade civil<br />

e a iniciativa privada;<br />

7. Plano de manejo ou<br />

preservação, integrado ao<br />

plano diretor do<br />

município(s) onde se<br />

localiza a paisagem;<br />

8. Ações educativas<br />

permanentes e forte coesão<br />

social;<br />

9. Sentido de<br />

identidade e<br />

pertencimento da<br />

população que habita ou<br />

trabalha no território<br />

abrangido pela<br />

paisagem.<br />

A definição de paisagem<br />

contida nos dicionários –<br />

“extensão de território que<br />

o olhar alcança num lance”<br />

(Dicionário Houaiss) –,<br />

embora seja limitada, e se<br />

aplique apenas a uma<br />

parcela do universo de<br />

possíveis paisagens<br />

culturais, nos chama a<br />

atenção para a necessidade<br />

de uma delimitação<br />

geográfica, que não se<br />

confunda com outros<br />

conceitos, como o de<br />

região, território e lugar<br />

e evite conflito ou<br />

sobreposição com outras<br />

divisões administrativas.<br />

É importante destacar o<br />

caráter dialético e<br />

evolutivo, que a paisagem<br />

cultural pode exibir. Daí o<br />

grande número de arranjos e<br />

possibilidades, que<br />

dependerão<br />

fundamentalmente, da<br />

intensidade e qualidade da<br />

intervenção humana e das<br />

manifestações e<br />

representações dela<br />

decorrentes. É fundamental,<br />

portanto, estabelecer com<br />

objetividade as situações<br />

as quais ele se aplica.<br />

Em muitos casos,<br />

especialmente de<br />

ecossistemas naturais de<br />

grande extensão, ou no<br />

extremo oposto, de<br />

conjuntos arquitetônicos e<br />

paisagísticos, monumentos e<br />

sítios arqueológicos, onde<br />

a interveniência das<br />

atividades econômicas sejam<br />

reduzidas, bem como<br />

limitada a extensão<br />

territorial, é possível um<br />

processo de gestão menos<br />

complexo, centralizado em<br />

um ente público ou privado,<br />

com a assistência de<br />

instâncias participativas<br />

locais.


Já nas situações que se<br />

caracterizam por forte<br />

dinamismo, dos agentes<br />

econômicos e sociais, é<br />

recomendável a adoção de<br />

critérios de elegibilidade<br />

para a escolha. É o caso<br />

das paisagens urbanas e<br />

rurais, em que estejam<br />

presentes tanto à<br />

necessidade de proteção e<br />

preservação, como<br />

simultaneamente a de<br />

dinamizar a economia.<br />

Nestes casos, especialmente<br />

das paisagens urbanas de<br />

caráter metropolitano, que<br />

abrigam grandes populações,<br />

a existência de coesão<br />

social e de um pacto de<br />

gestão, entre os diversos<br />

agentes envolvidos, são<br />

essenciais para o êxito da<br />

aplicabilidade do<br />

instrumento. Seja do ponto<br />

de vista da preservação,<br />

seja do ponto de vista do<br />

desenvolvimento sócioeconômico<br />

e principalmente<br />

da explicitação do<br />

“espírito do lugar”,<br />

dimensão imaterial que<br />

caracteriza as<br />

manifestações culturais e<br />

comportamentos arquetípicos<br />

de uma comunidade.<br />

A instituição da “<strong>Paisagem</strong><br />

<strong>Cultural</strong>” poderá ser um<br />

importante avanço na gestão<br />

do patrimônio natural e<br />

cultural. Sua<br />

aplicabilidade irá depender<br />

de diversas variáveis, mas<br />

principalmente de políticas<br />

públicas que promovam<br />

modelos de desenvolvimento<br />

e regulação, compatíveis<br />

com a proteção das<br />

manifestações locais, dos<br />

saberes e fazeres, dos<br />

modos de produção, de<br />

ocupação e fracionamento do<br />

solo e do incremento de<br />

suas potencialidades<br />

econômicas, tais como o<br />

turismo, a manufatura e o<br />

artesanato, produtos<br />

alimentícios “in natura” ou<br />

transformados. O<br />

reconhecimento e chancela<br />

de produtos ou modos de<br />

preparo, por sua qualidade<br />

e especificidades, pelo<br />

poder público ou<br />

associações de produtores,<br />

constituem-se em medidas<br />

que agregam valor e abrem<br />

novos mercados e<br />

possibilidades de<br />

investimento. As regiões<br />

vinícolas do Rio Grande do<br />

Sul, e mais recentemente o<br />

queijo de Minas, produzido<br />

artesanalmente, são<br />

exemplos desta estratégia.<br />

Proteção e preservação,<br />

dadas à complexidade da<br />

sociedade contemporânea e


os conflitos potenciais e<br />

muitas vezes abertos, de<br />

interesses de diferentes<br />

grupos sociais e<br />

econômicos, se tornam menos<br />

eficazes se amparadas<br />

apenas em dispositivos<br />

legais e administrativos. O<br />

tombamento instituído pelo<br />

Decreto-Lei nº25, de 1937,<br />

e os instrumentos de<br />

jurídicos, urbanísticos e<br />

tributários, criados pelo<br />

Estatuto da Cidade, são<br />

importantes, mas não são<br />

suficientes. Da mesma<br />

forma, medidas meramente<br />

restritivas, não mais são<br />

obstáculos para as fortes<br />

pressões econômicas e<br />

sociais, as quais muitas<br />

áreas de grande interesse<br />

cultural e natural estão<br />

sujeitas.<br />

Não existem formulas<br />

mágicas, mas se sabe que<br />

alguns ingredientes são<br />

relevantes. Participação,<br />

gestão pactuada, ação<br />

articulada das instâncias<br />

governamentais, políticas<br />

públicas de incentivo e<br />

regulamentação,<br />

investimentos continuados,<br />

geração de emprego, renda e<br />

oportunidades econômicas,<br />

ações educativas<br />

permanentes, são alguns<br />

deles, voltados para<br />

fomentar o desenvolvimento.<br />

Neste momento em que se<br />

intensifica o debate sobre<br />

o tema, e o conceito começa<br />

a despertar o interesse de<br />

alguns segmentos<br />

importantes, há um<br />

determinante crucial: a<br />

indicação e seleção dos<br />

sítios. Não parece ser<br />

suficiente à escolha, no<br />

caso brasileiro,<br />

exclusivamente pelas<br />

“interações significativas<br />

entre o homem e o meio<br />

natural”, como estabelece a<br />

Convenção da Unesco.<br />

A aplicação bem sucedida do<br />

conceito de paisagem<br />

cultural no Brasil, como<br />

instrumento de gestão e<br />

planejamento, onde há forte<br />

tradição de controles e<br />

exigências burocráticas e<br />

lentidão nos processos de<br />

tomada de decisões,<br />

ocorrerá na proporção em<br />

que os ingredientes acima,<br />

estiverem presentes e<br />

houver motivação, coesão e<br />

participação social. A<br />

subjetividade e a<br />

indefinição conceitual, a<br />

exemplo de outros programas<br />

e projetos governamentais,<br />

ampliam consideravelmente<br />

as possibilidades de<br />

inadequação ou de chancela<br />

meramente adjetiva, de uma


ideia que desperta<br />

entusiasmo por sua inegável<br />

potencialidade.<br />

notas<br />

1<br />

Cf. RIBEIRO, Rafael<br />

Winter. <strong>Paisagem</strong> cultural e<br />

patrimônio. Brasília,<br />

Iphan, 2007.<br />

sobre o autor<br />

Luiz Philippe Peres<br />

Torelly, Arquiteto e<br />

Urbanista, Coordenador<br />

Geral de Promoção do<br />

Patrimônio <strong>Cultural</strong> do<br />

Instituto do Patrimônio<br />

Histórico e Artístico<br />

Nacional

Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!