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Capítulo I<br />
O movimento agitado dos policiais <strong>de</strong>stoava com a chuva mansa que caía sobre eles. O<br />
alvoroço não era para menos, visto a magnitu<strong>de</strong> do horror acontecido naquela casa.<br />
Um <strong>caso</strong> tão espantoso que fez necessária a presença do inspetor <strong>de</strong> polícia <strong>Charles</strong><br />
<strong>Lacomb</strong>. Este, que mesmo sendo tirado do conforto <strong>de</strong> sua casa no meio da noite e<br />
viajando por volta <strong>de</strong> duas horas na chuva até chegar à pequena cida<strong>de</strong> portuária,<br />
ainda se mostrava bastante disposto e atencioso com o <strong>caso</strong>.<br />
Chegara não fazia muito e já haviam lhe passado as sórdidas informações a respeito do<br />
terror que ocorrera no interior do sobrado. Os policiais todos estavam em frente a<br />
velha casa, poucos atreviam-se a chegar perto da porta. A maioria preferia distância<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ver o estado das coisas em seu interior.<br />
<strong>Lacomb</strong> pediu que dois lhe acompanhassem para que pu<strong>de</strong>sse fazer uma vistoria mais<br />
<strong>de</strong>talhada e assim colher informações que talvez viessem a ser importantes para um<br />
posterior <strong>de</strong>sfecho. Um <strong>de</strong>les era um policial novo no <strong>de</strong>partamento que pouco mais<br />
fazia além <strong>de</strong> estampar agonia e medo no seu rosto. O outro, porém, era o professor<br />
Henry Phillips, docente da universida<strong>de</strong> local e doutor em simbologia religiosa.<br />
Phillips espantou-se com a ligação do comissário <strong>de</strong> polícia no meio da noite, não era<br />
costume ele envolver-se com a instituição. Mas a situação faziam necessários os<br />
conhecimentos do professor para uma melhor compreensão do que se passava.<br />
O inspetor então a<strong>de</strong>ntrou no sobrado acompanhado pelos dois. Logo no hall <strong>de</strong><br />
entrada já foram recepcionados com roupas rasgadas ao chão e algumas marcas sem<br />
muita coerência nas pare<strong>de</strong>s, como se alguém, ou alguma coisa, tivesse cravado suas<br />
unhas e arranhado a pare<strong>de</strong> em sentidos incoerentes sem propósito algum.<br />
No próximo cômodo, a sala <strong>de</strong> estar, as coisas pareciam piorar. Além das roupas<br />
jogadas e marcas sem nexo, agora também estavam presentes algumas <strong>de</strong>lgadas tiras<br />
avermelhadas manchando as mesas e sofás, como se estivessem falando que alguém<br />
com as mãos sujas <strong>de</strong> sangue havia passado por ali.<br />
Ao fundo da sala era possível enxergar a cozinha, toda bagunçada, como esperado. O<br />
policial novato informou que lá nada havia sido encontrado, apenas tralhas jogadas ao<br />
chão, como porcelanas e talheres. O grupo então <strong>de</strong>cidiu partir para o segundo andar.<br />
Como uma terrível ironia, a parte da casa mais próxima do céu, mostrava-se mais<br />
semelhante ao inferno que qualquer outra coisa que aqueles três já podiam ter<br />
imaginado no pior dos seus pesa<strong>de</strong>los. Não só manchas <strong>de</strong> sangue estavam lá. Agora<br />
era possível saber <strong>de</strong> on<strong>de</strong> o sangue vinha.
No centro do quarto estava o corpo da jovem assassinada por sabe-se lá quem. Uma<br />
pequena ruiva. O policial que os acompanhava não havia entrado no cômodo ainda e<br />
ao ver a jovem nua e atirada no meio do quarto pôs-se a vomitar. Em volta <strong>de</strong>la havia<br />
um gran<strong>de</strong> círculo feito com símbolos jamais vistos por <strong>Lacomb</strong>. Toda sua experiência<br />
em <strong>caso</strong>s <strong>de</strong> cultismo não lhe valiam <strong>de</strong> nada ali. Como se já não fosse horror<br />
suficiente, dois corpos masculinos <strong>de</strong>itavam-se no canto do quarto. Provavelmente<br />
<strong>de</strong>sfalecidos durante o ritual, em razão das diversas mutilações em seus corpos.<br />
Mas diferentemente do inspetor, Henry Phillips não estranhou tanto os símbolos no<br />
chão, tampouco a cena toda. Buscou em suas memórias informações relacionadas<br />
aquela <strong>de</strong>sor<strong>de</strong>m que se mostrava em sua frente. Conseguiu lembrar <strong>de</strong> um <strong>caso</strong><br />
ocorrido em uma cida<strong>de</strong> próxima on<strong>de</strong> uma jovem também havia sido vítima <strong>de</strong> algum<br />
culto <strong>de</strong>moníaco. Nas fotos que tinham sido tiradas da cena, havia algumas marcas no<br />
chão semelhantes as que estavam diante <strong>de</strong>le.<br />
Informou ao inspetor a respeito disso, mas <strong>Lacomb</strong> não teve tanto sucesso em<br />
recordar o <strong>caso</strong> <strong>de</strong>scrito por Phillips. Muito provavelmente não fora ele o investigador<br />
na situação, o que não era <strong>de</strong> se admirar. Nos últimos anos os <strong>caso</strong>s <strong>de</strong> assassinatos<br />
com motivações religiosas estavam crescendo em número e nem sempre o requisitado<br />
<strong>Charles</strong> <strong>Lacomb</strong> estava disponível para aten<strong>de</strong>r a todos.<br />
O professor se comprometeu com <strong>Lacomb</strong> <strong>de</strong> fazer algumas pesquisas na biblioteca da<br />
universida<strong>de</strong> para reunir informações que pu<strong>de</strong>ssem ajudar o inspetor <strong>de</strong> polícia a<br />
chegar a uma conclusão a respeito daquela terrível apresentação <strong>de</strong> loucura. Antes <strong>de</strong><br />
retirarem-se do quarto, Phillips sacou da bolsa que carregava uma pequena ca<strong>de</strong>rneta<br />
<strong>de</strong> anotações e tracejou no papel alguns dos símbolos que apareciam no chão do<br />
sobrado.<br />
<strong>Lacomb</strong> parecia sentir algo diferente no ambiente, como uma energia ou sensação <strong>de</strong><br />
peso, mas muito cético como era, convenceu-se <strong>de</strong> que era apenas o choque <strong>de</strong> ver a<br />
moça <strong>de</strong>snuda e atirada <strong>de</strong> qualquer forma no chão. Afinal, não há quem se acostume<br />
com a morte. Juntou-se aos outros dois que lhe acompanhavam e saíram da casa.<br />
O comissário <strong>de</strong> polícia os esperava abatido a alguns metros da porta, junto com a<br />
maioria dos outros policiais. Passou algum sermão qualquer ao novato que passara<br />
mal no quarto, apenas para não fugir do protocolo, já que também estava perplexo<br />
com a ocasião toda. Explicou para o inspetor que os vizinhos assustaram-se com os<br />
gritos e vindos da casa e resolveram por chamar a polícia.<br />
Após dar as informações a <strong>Lacomb</strong>, avisou que iria retirar sua equipe, com a exceção<br />
<strong>de</strong> dois policiais que fariam a guarda do local. Informou ao professor Phillips que<br />
po<strong>de</strong>ria retirar-se para suas tarefas. Convidou o inspetor a tomar um café na <strong>de</strong>legacia.<br />
Este, no entanto, recusou o convite e avisou que faria uma inspeção na rua do<br />
acontecido na esperança <strong>de</strong> surgirem pistas a respeito do culto.
Assim como disse que faria, <strong>Lacomb</strong> saiu em busca <strong>de</strong> informações. Vasculhou a rua do<br />
acontecido <strong>de</strong> forma meticulosa em procura <strong>de</strong> um <strong>de</strong>sleixo dos assassinos. A rua era<br />
repleta <strong>de</strong> árvores em frente às casas, porém estavam todas castigadas pelo rigoroso<br />
inverno que assolava a cida<strong>de</strong>zinha. Todo o cenário exterior parecia complementar o<br />
horror que ocorrera <strong>de</strong>ntro da casa.<br />
O inspetor então procurou por pegadas, símbolos, estatuetas ou qualquer outro objeto<br />
que pu<strong>de</strong>sse ter sido <strong>de</strong>rrubado durante a fuga. Porém, infelizmente, toda procura foi<br />
em vão. Não havia sequer uma planta amassada, uma pedra fora do lugar. Estava tudo<br />
minuciosamente colocado em seu <strong>de</strong>vido lugar. Parecia ter sido tudo cuidado <strong>de</strong> uma<br />
forma tão rigorosa quanto insana.<br />
Não encontrando nada nos arredores da casa, <strong>Lacomb</strong> julgou oportuno procurar apoio<br />
dos vizinhos. Estes muito provavelmente teriam algo a acrescentar ao <strong>caso</strong>, tendo em<br />
vista que o motivo <strong>de</strong> chamarem as autorida<strong>de</strong>s era o som estri<strong>de</strong>nte dos gritos vindos<br />
da construção. Era quase impossível que ninguém tivesse alguma coisa para contar.<br />
Partiu então para as casas ao redor da cena do crime. Bateu <strong>de</strong> porta em porta<br />
questionando os vizinhos a respeito <strong>de</strong> qualquer informação que pu<strong>de</strong>sse lhe ajudar a<br />
direcionar sua busca. Porém, as três primeiras casas que o inspetor escolheu não<br />
pu<strong>de</strong>ram lhe ajudar. Duas das casas não quiseram se envolver com o <strong>caso</strong> e a última<br />
estava vazia.<br />
Porém, na quarta residência <strong>Lacomb</strong> foi recebido por um homem assustado que<br />
aparentava ter uns quarenta anos. O inspetor foi convidado a entrar e, junto do<br />
anfitrião, foi até a sala <strong>de</strong> estar. No ambiente estavam as outras duas resi<strong>de</strong>ntes da<br />
casa, a esposa e a filha do casal.<br />
A menina não tinha mais que seis anos. Estava sentada ao lado da mesa <strong>de</strong> centro<br />
<strong>de</strong>senhando nos papéis que apoiava na mesa. Qualquer um que olhasse po<strong>de</strong>ria notar<br />
que não passavam <strong>de</strong> rabiscos os <strong>de</strong>senhos da menina Uma tentativa <strong>de</strong> <strong>de</strong>senho, na<br />
verda<strong>de</strong>. Mas quando o inspetor fitou as folhas sobre a mesa uma estranha sensação<br />
encheu seu peito. Sentia como se estivesse sendo obrigado por alguma coisa a olhar<br />
aqueles traços sem sentido da menina. O transe só foi interrompido quando o pai da<br />
criança o convidou a sentar na poltrona e questionou curioso:<br />
— O que foi afinal que aconteceu naquela casa?<br />
— Ainda estamos avaliando o ocorrido. Não posso falar muito a respeito. – Respon<strong>de</strong>u<br />
<strong>Lacomb</strong> sentando-se em uma poltrona <strong>de</strong> frente para o homem. – Espero que<br />
compreenda.<br />
— Claro. É que não há como não preocupar-se com todo esse alvoroço logo cedo.
<strong>Lacomb</strong> não podia espalhar muitas informações a respeito do <strong>caso</strong>. Seria uma tragédia<br />
se a população entrasse em pânico. Coisa que provavelmente ocorreria no <strong>caso</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>scobrirem <strong>de</strong>talhes do crime. Uma histeria coletiva não contribuiria para a resolução<br />
do acontecido.<br />
— Desculpe, mas como o senhor disse que era seu nome mesmo o seu nome, senhor?<br />
– Questionou o inspetor.<br />
— Leonard Allen. – Continuou apresentando sua família. – Estas são minha esposa<br />
Meredith e minha filha Emma.<br />
<strong>Lacomb</strong> cumprimentou as moças fazendo um gesto com a cabeça e continuou<br />
indagando Leonard.<br />
— O senhor tem algo a comentar sobre a casa no final da rua?<br />
— É o inferno na terra! – Exaltou-se na resposta. – Não dão paz para quem mora perto.<br />
Todas as noites são gemidos e gritos que saem daquele antro <strong>de</strong> loucuras. Nesta<br />
última noite as coisas pioraram ainda mais. Parecia que estavam fora <strong>de</strong> controle.<br />
— Estavam? – Indagou o inspetor. – Havia mais <strong>de</strong> uma pessoa frequentando a casa?<br />
O senhor sabe quem por a<strong>caso</strong> costumava visitar o local?<br />
Leonard e a esposa entreolharam-se. Os dois mantinham uma expressão preocupada<br />
na face. O homem hesitou em respon<strong>de</strong>r o questionamento do inspetor e então<br />
Meredith tomou a frente:<br />
— Os Yurika. São todos feiticeiros naquela família e fazem rituais na casa. Des<strong>de</strong> que<br />
nossa filha brincou com a pequena <strong>de</strong>les ela vem tendo pesa<strong>de</strong>los.<br />
— E quem são os Yurika? – Perguntou <strong>Lacomb</strong>.<br />
— São os antigos resi<strong>de</strong>ntes da casa. Mas há muito já mudaram para uma casa<br />
afastada na colina que fica ao sul da cida<strong>de</strong>. Moram lá isolados do resto. – Esclareceu<br />
Leonard. – Poucas vezes aparecem na cida<strong>de</strong> para fazer compras. Uma das vezes<br />
passaram para olhar a casa antiga <strong>de</strong>les. Emma estava na rua brincando e a filha <strong>de</strong>les<br />
acabou juntando-se a ela. Mas os pesa<strong>de</strong>los são coisas normais <strong>de</strong> criança, minha<br />
mulher que se preocupa <strong>de</strong>mais.<br />
O inspetor sabia que frente ao tamanho da cida<strong>de</strong> era esperado que começassem a<br />
surgir boatos semelhantes ao <strong>de</strong> Meredith. A cida<strong>de</strong> era pequena e não oferecia<br />
muitas opções <strong>de</strong> lazer para as pessoas. Não restava muito aos habitantes além <strong>de</strong><br />
conversar.<br />
O anfitrião acompanhou <strong>Lacomb</strong> até o local on<strong>de</strong> estavam seu sobretudo e chapéu. O<br />
inspetor <strong>de</strong>spediu-se da família Allen e dirigiu-se até a porta <strong>de</strong> saída. Não conseguira
nenhuma informação escandalosa, mas também não esperava uma. Nenhum <strong>caso</strong><br />
resolvia-se sozinho. Ainda precisaria pesquisar mais a respeito da misteriosa família<br />
que vive isolada na colina. Sabia que sua investigação estava apenas começando.