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Do Velho ao Novo Mundo - Festival Terras sem Sombra

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5.º festival de música sacra do baixo alentejo<br />

J J<br />

<strong>Do</strong> <strong>Velho</strong> <strong>ao</strong> <strong>Novo</strong> <strong>Mundo</strong><br />

2009


5.º festival de música sacra do baixo alentejo<br />

J J<br />

<strong>Do</strong> <strong>Velho</strong> <strong>ao</strong> <strong>Novo</strong> <strong>Mundo</strong><br />

7<br />

7<br />

7<br />

2009


PRODUÇÃO<br />

7<br />

7<br />

7<br />

PROJECTO FINANCIADO POR<br />

DGARTES (DIRECÇÃO GERAL DAS ARTES) / MC (MINISTÉRIO DA CULTURA)<br />

PATROCÍNIO<br />

APOIOS<br />

MEDIA PARTNERS


arte das musas<br />

Rua da Páscoa, 87<br />

1250-178 Lisboa<br />

PORTUGAL<br />

Tel: +351 210995674<br />

mail@artedasmusas.com<br />

www.artedasmusas.com<br />

departamento do património<br />

histórico e artístico<br />

da diocese de beja<br />

Largo dos Prazeres, 4<br />

7800-420 Beja<br />

PORTUGAL<br />

Tel: +351 284320918<br />

Fax: +351 284824500<br />

dphadb@sapo.pt<br />

www.diocese-beja.pt<br />

festival terras <strong>sem</strong> sombra<br />

de música sacra do baixo alentejo<br />

info@terras<strong>sem</strong>sombra.com<br />

www.terras<strong>sem</strong>sombra.com


direcção<br />

Filipe Faria<br />

José António Falcão<br />

produção<br />

António Gonçalves<br />

Avelino Veloso<br />

João Diogo Pratas<br />

Patrícia Pereira<br />

Rita Santos<br />

Sara Fonseca<br />

textos<br />

Fernando Miguel Jalôto<br />

José António Falcão<br />

José Bruto da Costa<br />

fotografia*<br />

Carlos Cristóvão (n. os III e IV)<br />

Francisco Borba (n. os 5, 8 e 9)<br />

José António Falcão (n. os 1, 4 e 6)<br />

Rita Santos (n. o 7)<br />

Sara Fonseca (n. os 2 e 3)<br />

Sofi a Perestrello (n. os I, II, IV, V e VI)<br />

design & paginação<br />

Arte das Musas<br />

impressão<br />

M-2 Artes Gráfi cas, L. da<br />

depósito legal<br />

288005/09<br />

capa<br />

Salva | Trabalho português | Século XVIII (inícios)<br />

Beja, Museu Episcopal (igreja de Nossa Senhora dos Prazeres)<br />

* As demais fotografi as são da responsabilidade dos artistas e grupos convidados<br />

© Arte das Musas | Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2009


ÍNDICE<br />

abertura<br />

Jorge Barreto Xavier<br />

Director-Geral das Artes 11<br />

inovação e excelência<br />

António Cartageno<br />

Secretariado de Liturgia e Música Sacra da Diocese de Beja 13<br />

vinte e cinco anos depois<br />

José António Falcão<br />

Director do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja 15<br />

elogio do efémero<br />

Filipe Faria<br />

Director Artístico do <strong>Festival</strong> <strong>Terras</strong> <strong>sem</strong> <strong>Sombra</strong> 27<br />

programa geral<br />

5.º <strong>Festival</strong> <strong>Terras</strong> <strong>sem</strong> <strong>Sombra</strong> 29<br />

concerto de abertura . castro verde<br />

Sete Lágrimas<br />

Pedra Irregular: O Nascimento do Barroco em Portugal 35<br />

concerto ii . almodôvar<br />

Ludovice En<strong>sem</strong>ble<br />

La Dévotion du Grand Siècle: Música Sacra Francesa no Tempo de Luís XIV 57<br />

concerto iii . alvito<br />

Concerto Campestre<br />

Sileti Venti: As Paixões da Alma 73<br />

masterclass/workshop . santiago do cacém<br />

Flávia Almeida e Maria José Barriga<br />

Cravo 87


concerto iv . santiago do cacém<br />

Flávia Almeida e Maria José Barriga<br />

Frente a Frente: A Música Barroca em Duo de Teclas 87<br />

conferência . beja<br />

Manuel Pedro Ferreira<br />

<strong>Do</strong> <strong>Velho</strong> <strong>ao</strong> <strong>Novo</strong> <strong>Mundo</strong> 97<br />

concerto de encerramento . beja<br />

Coro Gulbenkian<br />

O Esplendor Luso-Brasileiro nos Finais do Século XVIII e Princípios do XIX 103<br />

I. Martírio de São Crispim e São Crispiniano | Júlio Diniz de Carvo e António de Oliveira | Ca. 1600<br />

Beja, Museu Episcopal.


“Os prazeres do ouvido enredaram-me e subjugaram-me mais tenazmente,<br />

mas Vós soltastes-me e libertastes-me. Agora, confesso-o, encontro um<br />

pouco de repouso nas melodias a que as vossas palavras dão vida, quando são<br />

cantadas com uma voz suave e bem trabalhada [...].<br />

Às vezes, parece-me que lhes atribuo mais honra do que convém, quando<br />

sinto que o meu espírito se move mais religiosa e ardentemente para a chama<br />

da piedade com aquelas letras sacras, quando assim são cantadas, do que se<br />

não fos<strong>sem</strong> cantadas assim, e que todos os afectos do meu espírito, cada um<br />

segundo a sua diversidade, têm na voz e no canto as suas próprias melodias<br />

que os desperta.<br />

[...] Às vezes [...] gostaria de afastar dos meus ouvidos e dos da própria<br />

Igreja toda a melodia das músicas suaves que acompanham o saltério de<br />

David; e parece-me mais seguro o que recordo ter ouvido dizer a respeito de<br />

Atanásio, bispo de Alexandria, o qual levava o leitor do salmo a entoá-lo com<br />

uma infl exão de voz tão pequena, que parecia mais própria de quem recita<br />

do que de quem canta. Contudo, quando me lembro das minhas lágrimas,<br />

que derramei <strong>ao</strong> ouvir os cânticos da Igreja, nos primórdios da recuperação<br />

da minha fé, e quando mesmo agora me comovo, não com o canto, mas com<br />

as coisas que se cantam, quando são cantadas com uma voz clara e uma<br />

modulação perfeitamente adequada, reconheço de novo a utilidade desta<br />

prática.<br />

Assim, fl utuo entre o perigo do prazer e a experiência do efeito salutar e<br />

inclino-me, apesar de não pronunciar uma opinião irrevogável, a aprovar o<br />

costume de cantar na igreja, a fi m de que, por meio do prazer dos ouvidos,<br />

um espírito mais fraco se eleve <strong>ao</strong> afecto da piedade. Todavia, quando me<br />

acontece que a música me comova mais do que as palavras, confesso que peco<br />

de forma a merecer castigo e, então, preferiria não ouvir cantar. Eis em que<br />

estado me encontro!”<br />

Santo Agostinho de Hipona, Confi ssões<br />

9


1. Pia de água benta | Vila Ruiva (Cuba), igreja matriz de Nossa Senhora da Expectação.


abertura<br />

Jorge Barreto Xavier<br />

Director-Geral das Artes<br />

!<br />

Honrado pelo convite que me foi dirigido no sentido de escrever algumas palavras<br />

introdutórias relativas <strong>ao</strong> <strong>Festival</strong> <strong>Terras</strong> Sem <strong>Sombra</strong>, aproveito o ensejo para me congratular<br />

pela capacidade de organização e competência dos responsáveis que têm vindo a assegurar,<br />

desde há cinco anos, a qualidade de uma iniciativa já consolidada em terras do Baixo<br />

Alentejo.<br />

Sabendo rodear-se de colaboradores de reconhecido mérito nas áreas artísticas investigadas<br />

e abordadas, nomeadamente as do riquíssimo património musical religioso, estes<br />

responsáveis têm logrado divulgar o acervo da produção musical portuguesa do passado,<br />

a par dos cruzamentos com outras culturas, em particular da região mediterrânica e dos<br />

encontros registados historicamente entre tradições diversas, tais como a cristã, a árabe e<br />

a judaica.<br />

De salientar igualmente a selecção criteriosa dos espaços históricos e patrimoniais onde<br />

decorrem os concertos programados, invariavelmente os mais apropriados à apresentação<br />

pública de obras de um repertório específi co de carácter religioso numa vasta região de<br />

confl uência de inspirações e tradições culturais.<br />

Faço, assim, votos por mais um êxito desta iniciativa ímpar no panorama musical<br />

português, esperando que constitua de novo um êxito perante as comunidades que a<br />

ele têm acorrido, fi delizando a sua presença e um interesse manifesto pelos repertórios<br />

revelados <strong>ao</strong> longo dos últimos anos.<br />

11


2. Árvore de Jessé (capela de Nossa Senhora do Rosário) | Manuel João da Fonseca | 1676<br />

Beja, igreja de Santa Maria da Feira.


inovação e excelência<br />

António Cartageno<br />

Secretariado de Liturgia e Música Sacra<br />

da Diocese de Beja<br />

!<br />

Sobre os programas dos concertos da 5.ª edição do <strong>Festival</strong> <strong>Terras</strong> <strong>sem</strong> <strong>Sombra</strong> de<br />

Música Sacra do Baixo Alentejo, que este Secretariado analisou, todos eles – quer os<br />

meramente instrumentais, quer os vocais – podem perfeitamente ser apresentados nas<br />

igrejas. Não vemos, portanto, qualquer inconveniente na sua execução dentro dos vários<br />

espaços sagrados propostos.<br />

Pelo contrário, regozijamo-nos por ver que música sacra de alto nível, porventura<br />

nunca ouvida na nossa região (e mesmo raramente ouvida em Portugal) e interpretada<br />

por agrupamentos musicais de excelência, poderá ser apreciada nas várias localidades<br />

escolhidas para este prestigiado <strong>Festival</strong>.<br />

13


3. Banco da Irmandade do Santíssimo Sacramento | Alfundão (Ferreira do Alentejo), igreja paroquial<br />

de Nossa Senhora da Conceição.


vinte e cinco anos depois<br />

1. NO ÂMAGO DO PAÍS<br />

José António Falcão<br />

Director do Departamento do Património<br />

Histórico e Artístico da Diocese de Beja<br />

!<br />

O Senhor consolará Sião,<br />

e reparará todas as suas ruínas.<br />

Transformará o seu deserto num lugar de delícias,<br />

a sua solidão num paraíso do Senhor,<br />

onde haverá gozo e alegria,<br />

cânticos de louvor e melodias de música.<br />

Isaías, 51, 3<br />

O traço que melhor permite distinguir o Alentejo é, indubitavelmente, o seu carácter.<br />

Este elemento diferenciador sente-se tanto na paisagem, nas pessoas e nos monumentos<br />

como nas pequenas coisas do quotidiano, mesmo nas palavras e nos gestos simples. Fruto<br />

de uma longa sequência de acções recíprocas entre a natureza e a história, ele acabou<br />

por moldar uma personalidade facilmente identifi cável (embora nem <strong>sem</strong>pre facilmente<br />

inteligível, sobretudo quando contemplada por olhos alheios) dentro do tecido da<br />

identidade nacional. Talvez seja em solo alentejano, mais do que em qualquer outro sítio<br />

de Portugal, que se pode contemplar o frémito profundo da alma colectiva. Não é só por<br />

obra do acaso que a região permanece, de entre todas, a mais íntegra do ponto de vista do<br />

património ambiental e cultural.<br />

Num mundo em transformação acelerada, o antigo “celeiro do país” tem-se mantido<br />

aferrado <strong>ao</strong>s seus valores. A metamorfose, todavia, parece inexorável. Hoje em dia ela não<br />

representa, como aconteceu frequentemente até agora, uma simples cedência da periferia <strong>ao</strong><br />

primado dos centros decisores. Após décadas de quase paralisia, o desenvolvimento está a<br />

bater com força – para o bem e para o mal – à porta deste território repleto de potencialidades.<br />

É importante saber acolhê-lo e orientá-lo de forma sustentável, principalmente quando<br />

o que está em causa pode representar a saída para a sobrevivência demográfi ca, ameaçada<br />

15


16<br />

por uma hemorragia que os recursos endógenos não lograram suster. Precisamos de tornar<br />

viável o futuro do Alentejo, algo difícil se rarearem as condições indispensáveis à fi xação<br />

de novos activos.<br />

Este fenómeno ocorre, porém, dentro de uma conjuntura na qual emerge com voracidade<br />

um outro paradigma civilizacional que se subordina <strong>ao</strong> diktat de factores ainda pouco<br />

tipifi cados em Portugal. Mercado global, cultura de massas, novas tecnologias, capitais<br />

voláteis, subjectivismo ético, redução ontológica do ser humano à esfera de consumidor/objecto<br />

de consumo são alguns dos altares em que a sociedade actual queima, muitas<br />

vezes em vão, o seu incenso. Tão penetrantes realidades ameaçam a permanência de um<br />

modus vivendi plurissecular, repercutindo-se implacavelmente no tecido social e económico,<br />

mas não deixam de condicionar também, de forma notória, as práticas e as manifestações<br />

culturais, <strong>sem</strong> esquecer a própria vivência da espiritualidade cristã, que em terras do Sul<br />

possui características muito próprias.<br />

Parte fundamental da personalidade alentejana, o património religioso de<strong>sem</strong>penhou<br />

– e continua a de<strong>sem</strong>penhar – um papel decisivo no universo afectivo e simbólico da nossa<br />

idiossincrasia. Muito extenso e muito variado, disperso por toda a geografi a meridional e<br />

apresentando fragilidades em diversas frentes, este conjunto de valores encontra-se sujeito<br />

a graves perigos. São já poucas as comunidades com capacidade para se ocuparem, de<br />

maneira efi caz, da sua preservação. Inúmeros locais de culto permanecem sistematicamente<br />

encerrados por falta de uso, tanto no meio rural como nas cidades e nas vilas. Todos os<br />

anos há a lamentar, devido à míngua de condições elementares de conservação, a perda de<br />

dezenas e dezenas de espécimes patrimoniais. Furtos e actos de vandalismo, intensifi cados<br />

pela crise da autoridade pública, acentuam um quadro já de si difícil.<br />

A inexistência de uma estratégia para a salvaguarda dos valores culturais religiosos, <strong>ao</strong><br />

nível da região, tem obrigado as entidades responsáveis a navegarem à bolina, <strong>sem</strong> rumo<br />

defi nido, acudindo a casos pontuais e esquecendo a leitura do conjunto. O panorama<br />

nacional não se afi gura, infelizmente, mais animador. Se é certo que existe uma vaga<br />

de sensibilização patrimonial cujos efeitos, alargados a toda a sociedade, começaram a<br />

manifestar-se também no âmbito das dioceses, a gestão dos monumentos e dos acervos da<br />

Igreja dá ainda passos balbuciantes, sucumbindo amiúde a critérios imediatistas, de escassa<br />

qualifi cação técnica. Em diversas zonas a herança religiosa continua a ser vista como um<br />

mero pretexto, não como uma causa. De um sistema baseado no funcionamento nefelibata<br />

das comissões de Arte Sacra transitou-se ultimamente para a pseudo-tecnocracia dos<br />

secretariados dos “Bens Culturais”, cuja motivação assenta recorrentemente mais num<br />

voluntarismo pouco esclarecido do que em opções sólidas, de garantida sustentabilidade<br />

a média e a longo prazo.<br />

Observada à distância, a situação do país afi gura-se, nesta perspectiva, uma manta<br />

de retalhos, quando não uma triste feira de vaidades, regida pelas leis da emulação, que<br />

incentiva a rivalidade onde devia sobressair a afi nidade. Num período em que a abertura<br />

à cultura constitui porventura o maior dos desafi os enfrentados pela Igreja, a memória<br />

histórica aguarda ainda o reconhecimento efectivo da sua dimensão pastoral. Pior ainda:<br />

corre o risco de transformar-se no reduto de um poder egoísta, ansioso de protagonismo,


quando não entregue <strong>ao</strong>s interesses de certos grupos, mas já <strong>sem</strong> efectiva capacidade<br />

para se afi rmar, dentro e fora das muralhas eclesiásticas, em termos científi cos, técnicos e<br />

artísticos. Para umas poucas dezenas de clérigos e uma mão-cheia de leigos, ser dirigente<br />

ou membro dos “Bens Culturais” pode constituir, enquanto é moda, o subir de mais um<br />

degrau no cursus honorum de carreiras acalentadas pela ambição. Durará isto? Seguramente<br />

não. À <strong>sem</strong>elhança de todas as modas, logo que o Sol brilhar noutras paragens, os amigos<br />

da oportunidade segui-lo-ão.<br />

2. A FIDELIDADE ÀS RAÍZES<br />

Há que ter a coragem de admitir que muito do que acontece na cidadela dos Bonia<br />

Culturalia se revela demasiado superfi cial e passageiro, para não dizer estéril. Em certas<br />

ocasiões termina até por <strong>sem</strong>ear a cizânia onde devia prevalecer o respeito pelo trabalho<br />

próprio e alheio, <strong>sem</strong> o qual parece impossível conseguir o fomento de sinergias que<br />

tanto se impõe. Para a cultura contemporânea é trágico, por exemplo, que a Igreja não só<br />

enfrente as maiores difi culdades para conservar adequadamente o seu património (afi nal,<br />

o sector com maior expressão no universo cultural da Europa do Sul) como permaneça<br />

alheada da dimensão evangelizadora e pedagógica que representa a verdadeira razão de ser<br />

desse conjunto de manifestações. Um património cuja voz emudeceu ou soa histriónica no<br />

momento em que se torna mais necessário escutá-la. Conhecem-se, felizmente, algumas<br />

excepções, mas são ainda poucas, muito poucas, até porque não basta fazer. É preciso saber<br />

bem o que se quer fazer e como fazê-lo.<br />

Quando a poeira, trazida pelos ventos agrestes que sopram de cima, parece cobrir a<br />

visão do horizonte, importa deixá-la assentar e ler os sinais dos tempos. Por outras palavras,<br />

devemos ser capazes de distinguir o trigo do joio. Cumpre não esquecer, a este propósito,<br />

uma lição tornada realidade por grandes investigadores alentejanos, como António Tomás<br />

Pires, João Gualberto da Cruz e Silva, Abel Viana e Túlio Espanca, para citarmos alguns<br />

nomes que se impuseram pelo esforço próprio, inteligente e sensível, em tempos ainda<br />

mais árduos do que os nossos: para quantos actuam <strong>ao</strong> serviço do património cultural,<br />

o trabalho mais signifi cativo é o que tem lugar directamente in situ, nas trincheiras da<br />

“província”, longe das luzes da ribalta, aí onde o apego <strong>ao</strong> território e às gentes que lhe dão<br />

vida representam ainda algo fi rme, estável e digno de crédito.<br />

Dentro das suas peculiares circunstâncias, a experiência do Departamento do<br />

Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja <strong>ao</strong> atingir um quarto de século de<br />

actividade ininterrupta, constitui um testemunho dessa entrega <strong>ao</strong>s valores permanentes,<br />

que brotam da tradição mas não rejeitam a aproximação à contemporaneidade e <strong>ao</strong>s seus<br />

reptos. Experiência, é importante assinalá-lo, de uma pequena equipa, constituída no<br />

essencial por voluntários, mas que se singulariza por ter cumprido, <strong>sem</strong> rupturas nem<br />

17


4. Local de implantação da ermida de São Miguel (São Teotónio, Odemira), após a demolição ilegal<br />

desta em 2004.


desvios, o rumo traçado aquando da sua fundação, em 1984. Ponderando não só o que foi<br />

feito mas também o que fi cou por realizar, com o distanciamento que a maturidade de vinte<br />

e cinco anos de presença no terreno, vêm-nos à lembrança as palavras de São Paulo na II<br />

Epístola a Timóteo (4, 7): “Combati o bom combate, terminei a corrida, permaneci fi el”.<br />

Efectivamente, se há algo que identifi ca a intervenção do “Património de Beja” isso<br />

é a fi delidade <strong>ao</strong>s grandes princípios da missão defi nida, naquela data já longínqua, pelo<br />

bispo D. Manuel Franco Falcão – estudar, proteger e valorizar a memoria ecclesiæ do<br />

Baixo Alentejo. Embora partindo do seio de uma diocese católica, a sua acção procurou<br />

<strong>sem</strong>pre fi xar o epicentro no próprio território, vislumbrando os bens culturais religiosos<br />

numa perspectiva unitária e ecuménica, capaz de suscitar o diálogo e de criar empatias<br />

independentemente das tutelas, das confi ssões ou mesmo dos credos. Como já salientámos<br />

noutras ocasiões, isso levou-o a dar grande atenção <strong>ao</strong>s vestígios do Judaísmo e do Islão e<br />

a ter igualmente em conta o magma primordial do Paganismo. Não se pode escamotear,<br />

ainda, a adesão fi rme a uma estratégia de desenvolvimento de uma região que, em especial<br />

nos meios rurais, tem sido condenada a uma certa marginalidade.<br />

Na luta contra o desconhecimento, a indiferença, o preconceito, a negligência e a<br />

cupidez – <strong>sem</strong> dúvida os grandes inimigos da herança cultural religiosa – algumas batalhas<br />

acabaram por ser perdidas, apesar de todo o empenho dos técnicos diocesanos. Uma delas<br />

teve lugar em 2000 e redundou na inútil destruição do belo tecto pintado, do tempo de<br />

D. Maria I, da igreja de Santa Margarida da Serra, em Grândola, substituído por um forro<br />

comum de pinho e depois queimado, às ordens de um pároco ignaro que não soube escutar<br />

quem o aconselhava. Outra, ainda mais severa, consistiu na demolição da capela tardo-<br />

-medieval de São Miguel, localidade do termo de São Teotónio, no concelho de Odemira,<br />

intervenção levada a cabo ilegalmente, em 2004, pela Junta de Freguesia. Como o imóvel<br />

se erguia num sítio ocupado já em tempos remotos e onde abundavam os vestígios da<br />

época romana, o seu arrasamento implicou também o fi m das estruturas arqueológicas<br />

aí existentes. Crime quase perfeito, pois fi cou <strong>sem</strong> castigo, graças à passividade das<br />

autoridades competentes, a história julgá-lo-á um dia como lamentável epifenómeno de<br />

um longo ciclo de malfeitorias cometidas por mandaretes <strong>sem</strong> rei nem roque.<br />

Embora não se esqueçam estes dossiers insepultos, cabe referir que, na maioria<br />

dos processos abertos <strong>ao</strong> longo de cinco lustros, a causa do património logrou gerar<br />

entre nós os consensos necessários para sair vitoriosa. O recurso a fundos nacionais e<br />

comunitários, através da colaboração com o Estado, os municípios e a sociedade civil,<br />

permitiu recuperar, sob a égide directa ou indirecta do Departamento, mais de uma<br />

centena de imóveis e cerca de um milhar e meio de espécimes integrados e móveis<br />

(obras de arte, fundos dos arquivos e das bibliotecas, materiais arqueológicos, etc.),<br />

incluindo as principais referências do património diocesano. As exposições efectuadas<br />

regularmente no país 1 e no estrangeiro, 2 a Rede de Museus, com sete unidades em<br />

1 Santiago do Cacém (1990-1991 e 2007), Mértola (1997), Beja (1998-1999, 2002 e 2008), Sines (1998), Lisboa<br />

(2000-2001 e 2004) e Faro (2005-2006).<br />

2 Regensburg (1999-2000), Roma (2003) e Borja – Saragoça (2008).<br />

19


5. Um aspecto da exposição No Caminho sob as Estrelas – Santiago e a Peregrinação a Compostela<br />

Santiago do Cacém, igreja matriz de Santiago Maior, 2007.


funcionamento, 3 a abertura <strong>ao</strong> público da Biblioteca e do Arquivo do Seminário de Beja, o<br />

programa de acções de formação, a mobilização de congressos internacionais e de encontros<br />

nacionais, a comemoração das Jornadas Europeias do Património e de dias temáticos, a<br />

criação da Pedra Angular – Associação dos Amigos dos Museus, Monumentos e Obras<br />

de Arte da Diocese de Beja e da Associação de Desenvolvimento Regional Portas do<br />

Território foram outros passos decisivos no caminho iniciado em 1984.<br />

3. MARTA E MARIA<br />

Tudo isto repousa num labor discreto, quase silencioso, mas indispensável,<br />

distribuído por três frentes que o actual bispo de Beja, D. António Vitalino Dantas,<br />

tem vindo a impulsionar: a revisão e a actualização do inventário dos bens históricos,<br />

artísticos e antropológicos da Diocese; a emissão de pareceres, tornados vinculativos<br />

pelo Regulamento para as Intervenções no Património Cultural da Diocese de Beja<br />

(1993); e o apoio técnico às paróquias e às outras entidades sob a tutela dos serviços<br />

episcopais. Unir a refl exão à acção é a estratégia mais adequada à nossa realidade.<br />

O estudo, a salvaguarda e a divulgação representam os vértices do triângulo que caracteriza<br />

a vivência quotidiana do Departamento.<br />

Mesmo com tantos cuidados, nada se teria conseguido, é de justiça lembrá-lo, <strong>sem</strong><br />

o apoio dos dezassete concelhos do distrito de Beja e do sector meridional do distrito<br />

de Setúbal (Grândola, Santiago do Cacém e Sines), <strong>sem</strong> o envolvimento de mais de<br />

duas centenas de colaboradores e <strong>sem</strong> um conjunto de parcerias estratégicas, formais ou<br />

informais, que vai do Ministério da Cultura até às comissões de moradores de aldeias<br />

do Alentejo profundo. A Diocese reconhece hoje, com o discreto orgulho que é próprio<br />

dos alentejanos, a forma efi ciente como as preocupações relacionadas com a salvaguarda<br />

e a valorização da herança religiosa vieram a assumir, na maioria das paróquias, lugar de<br />

relevo entre as prioridades pastorais.<br />

Concluídas algumas das intervenções mais pesadas do ponto de vista material, a<br />

estratégia diocesana passou a orientar-se crescentemente para a qualifi cação das tarefas<br />

de acolhimento dos visitantes e de desenvolvimento dos recursos locais, o que implica o<br />

assumir de novas responsabilidades em áreas como a sensibilização, a interpretação e a<br />

animação do património cultural e ambiental. Se não existir um conjunto de actividades<br />

devidamente articuladas que radique no âmago das comunidades e possa contribuir para<br />

torná-los acessíveis a um público generalizado e insufl ar-lhes vida, os nossos monumentos<br />

estarão <strong>sem</strong>pre no fi o da navalha.<br />

3 Tesouro da Colegiada de Santiago do Cacém (2002), Tesouro da Igreja Matriz de São Vicente de Cuba (2003),<br />

Tesouro da Basílica Real de Castro Verde (2004), Museu de Arte Sacra de Moura (2005), Tesouro da Igreja de<br />

Nossa Senhora das Salas (2005), Museu Episcopal de Beja (2006) e Museu do Seminário de Beja (2006).<br />

21


6. Acção de formação de voluntários no âmbito da conservação preventiva de paramentos | Beja,<br />

catedral, 2008.


Uma iniciativa que cala fundo no espírito de quantos cooperam com o Departamento<br />

nestes domínios consiste na celebração anual, a partir de 2003, do <strong>Festival</strong> <strong>Terras</strong> <strong>sem</strong><br />

<strong>Sombra</strong> de Música Sacra do Baixo Alentejo. Levado a efeito contra ventos e marés, numa<br />

etapa em que, por muitos outros pontos do país, uma visão demasiado redutora do espaço<br />

litúrgico está a erradicar pura e simplesmente os concertos das igrejas, truncando um<br />

veículo essencial de empatia com os artistas, sejam eles criadores ou intérpretes, e de<br />

abertura a legítimos anseios da sociedade, este projecto tem-se sabido afi rmar. Uma boa<br />

prova disto reside no facto de contar sistematicamente, entre naturais e forasteiros, com<br />

a “casa cheia”.<br />

A chave do <strong>Festival</strong> reside, outra vez, no apego à sua directriz de base: marcar a<br />

temporada de música clássica da região através de um ciclo coerente de concertos, de<br />

elevado nível artístico, obedecendo em cada ano a um tema-reitor, o que permite traçar,<br />

pouco a pouco uma pequena mas fecunda “história da Música”. Conferências, palestras<br />

e visitas guiadas completam, em ambiente descontraído, a programação musical. Estas<br />

acções assumem enorme peso numa região que, embora relegada a posição secundária<br />

nos circuitos da cultura ofi cial, não esconde o fascínio pela música. No entanto, poder<br />

levá-las a cabo de maneira itinerante em igrejas históricas que foram alvo de trabalhos<br />

de benefi ciação e fazem parte de um sistema de abertura regular <strong>ao</strong> público assume um<br />

signifi cado ainda mais especial, permitindo juntar à fruição de espaços com notáveis<br />

condições estéticas e acústicas uma proposta de refl exão acerca do sentido da Ars Sacra na<br />

vida hodierna, precisamente aí onde o espírito do lugar melhor o permite.<br />

No momento em que chega à sua quinta edição, o <strong>Festival</strong> <strong>Terras</strong> <strong>sem</strong> <strong>Sombra</strong>,<br />

realizado em parceria com a Arte das Musas, tornou-se já, de certo modo, um dos<br />

eixos fundamentais da acção do Departamento do Património Histórico e Artístico da<br />

Diocese de Beja. É de sublinhar a empatia alcançada com o organismo responsável pela<br />

área das artes no Ministério da Cultura, os municípios e as diversas entidades cujo apoio<br />

tem permitido concretizar uma programação de grande qualidade. A adesão generosa<br />

do público, a começar pelas populações dos nossos concelhos e a acabar nos muitos<br />

participantes vindos de longe, <strong>sem</strong> esquecer a vizinha Espanha, representa a melhor<br />

recompensa para os esforços dispendidos. Ela vem corroborar, de resto, a convicção de que<br />

este e outros aspectos do trabalho no âmbito do património religioso, constituindo uma<br />

“marca” de Beja e da sua Diocese, acabam por sê-lo igualmente do Alentejo. Desejamos<br />

veementemente que o <strong>Festival</strong>, como grande festa da música da nossa região, aberta a<br />

todos, assim continue por muitos e bons anos.<br />

Uma boa maneira de fazer o nosso voto ainda mais fi rme é lembrar o comentário de<br />

Santo Agostinho, bispo de Hipona, <strong>ao</strong> Salmo 99:<br />

“Este salmo é de confi ssão ou de louvor, pois o seu título diz: Salmo de louvor ou<br />

de confi ssão. Os versículos são poucos mas cheios de grandes mistérios. Germinem as<br />

<strong>sem</strong>entes nos vossos corações e delas nasça o trigo da seara de Deus. Este salmo de louvor<br />

exorta-nos a alegrarmo-nos no Senhor. Mas não exorta apenas uma parte da terra a cantar,<br />

ou só determinada casa ou as<strong>sem</strong>bleia de homens. Como sabe que a bênção foi <strong>sem</strong>eada<br />

em todo o mundo, a todo ele pede que se alegre.<br />

23


7. Concerto do Coro Gulbenkian | Castro Verde, Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição,<br />

2006.


Toda a terra ouviu esta voz, pois toda ela já canta <strong>ao</strong> Senhor. E aquela que ainda não<br />

canta, há-de cantar-Lhe, [...] estendendo-se a bênção a todas as nações, desde o início da<br />

Igreja, a começar por Jerusalém [...]. Cantar cânticos de júbilo quer dizer alegrar-se. Feliz o<br />

povo que sabe aclamar-Vos. [...] Corramos para esta felicidade, entendamos esta alegria, não<br />

a expres<strong>sem</strong>os <strong>sem</strong> a entender. Não cantemos só com a voz mas com o coração. A voz do<br />

coração é o entendimento.”<br />

25


8. Ruínas do convento de Nossa Senhora das Necessidades, em Tomina | Santo Aleixo da Restauração.


elogio do efémero<br />

Filipe Faria<br />

Director Artístico do <strong>Festival</strong> <strong>Terras</strong> <strong>sem</strong> <strong>Sombra</strong><br />

!<br />

A História do Homem e da sua criação artística é defi nida pelo binómio composição/interpretação.<br />

Tirando o momento de composição, mais erudito ou mais popular,<br />

mais intelectualizado ou mais improvisado, a interpretação de uma página musical escrita<br />

em códigos e gramáticas com a sua própria história é um momento único de criação<br />

artística e, no caso da arte musical, de construção de um edifício sonoro, elogio máximo<br />

do efémero, em qualquer geografi a ou tempo.<br />

Elogiando o efémero desde 2003, o <strong>Festival</strong> <strong>Terras</strong> <strong>sem</strong> <strong>Sombra</strong> promove a programação<br />

de um conjunto de concertos e actividades pedagógicas descentralizadas que se tem vindo<br />

a afi rmar como central na temporada cultural do Alentejo e do país. Produzido pela Arte<br />

das Musas em parceria com o Departamento do Património Histórico e Artístico da<br />

Diocese de Beja, conta, desde a primeira hora, com o fundamental apoio da Direcção-<br />

-Geral das Artes do Ministério da Cultura e das Câmaras Municipais dos concelhos<br />

visitados. Em 2009 o <strong>Festival</strong> conta ainda com o patrocínio da Delta Cafés e o apoio da<br />

Fundação Calouste Gulbenkian, da Associação Portas do Território, do Governo Civil de<br />

Setúbal e dos Media Partners: rádios Antena 2, Renascença, Voz da Planície e Telefonia do<br />

Alentejo e jornais Diário do Alentejo, Diário do Sul e Notícias de Beja.<br />

Sob o tema <strong>Do</strong> <strong>Velho</strong> <strong>ao</strong> <strong>Novo</strong> <strong>Mundo</strong>, esta edição programa cinco concertos, uma<br />

masterclass e uma conferência proferida pelo Prof. <strong>Do</strong>utor Manuel Pedro Ferreira, dedicados<br />

às memórias sonoras do Barroco e do Classicismo Europeu e a sua infl uência e/ou fusão com<br />

as linguagens do <strong>Novo</strong> <strong>Mundo</strong> (aqui representado pelo esplendor da composição brasileira<br />

dos séculos XVIII/XIX, interpretado pelo Coro Gulbenkian, na que é já a quarta visita <strong>ao</strong><br />

<strong>Festival</strong>). Procurando oferecer palco de carácter internacional <strong>ao</strong>s projectos profi ssionais de<br />

jovens artistas nacionais, com excepcional curricula, contamos ainda com concertos de Sete<br />

Lágrimas, Ludovice En<strong>sem</strong>ble, Concerto Campestre e Flávia Almeida Castro e Maria José<br />

Barriga cujo talento é garantia de excepcionais momentos musicais pelas terras <strong>sem</strong> sombra.<br />

Termino com um vivo agradecimento <strong>ao</strong> público pela excepcional entrega <strong>ao</strong> <strong>Festival</strong>,<br />

desde a primeira hora, e <strong>ao</strong>s músicos e apoiantes pela motivação e pelo interesse revelados,<br />

com grande generosidade, em tempos difíceis.<br />

27


9. Tangedor de cabaça | Século XIV (inícios) | Santiago do Cacém, igreja matriz de Santiago Maior.


PROGRAMA GERAL<br />

24 DE JANEIRO DE 2009 . 21H30 . CASTRO VERDE<br />

SETE LÁGRIMAS<br />

Pedra Irregular: O Nascimento do Barroco em Portugal<br />

7 DE FEVEREIRO DE 2009 . 21H30 . ALMODÔVAR<br />

LUDOVICE ENSEMBLE<br />

La Dévotion du Grand Siècle: Música Sacra Francesa no Tempo de Luís XIV<br />

28 DE FEVEREIRO DE 2009 . 21H30 . ALVITO<br />

CONCERTO CAMPESTRE<br />

Sileti Venti: As Paixões da Alma<br />

14 DE MARÇO DE 2009 . 17H30 . SANTIAGO DO CACÉM<br />

FLÁVIA ALMEIDA E MARIA JOSÉ BARRIGA<br />

MASTERCLASS/WORKSHOP Cravo<br />

14 DE MARÇO DE 2009 . 21H30 . SANTIAGO DO CACÉM<br />

FLÁVIA ALMEIDA E MARIA JOSÉ BARRIGA<br />

Frente a Frente: A Música Barroca em Duo de Teclas<br />

21 DE MARÇO DE 2009 . 17H30 . BEJA<br />

CONFERÊNCIA POR MANUEL PEDRO FERREIRA<br />

<strong>Do</strong> <strong>Velho</strong> <strong>ao</strong> <strong>Novo</strong> <strong>Mundo</strong><br />

28 DE MARÇO DE 2009 . 21H30 . BEJA<br />

CORO GULBENKIAN<br />

O Esplendor Luso-Brasileiro nos Finais do Século XVIII e Princípios do XIX<br />

29


programa


32<br />

basílica real de nossa senhora da conceição<br />

castro verde<br />

�<br />

Classifi cada como Imóvel de Interesse Público<br />

pelo Decreto n.º 45/93, de 30 de Novembro<br />

(Diário da República n.º 280, de 30 de Novembro de 1993)<br />

Após a “Reconquista”, Castro Verde foi confi ada à Ordem de Santiago, que estabeleceu<br />

aqui uma opulenta comenda. A primitiva igreja matriz, de fábrica gótica, situada numa<br />

colina suave que domina a peneplanície envolvente, constituiu um dos pólos aglutinadores<br />

da vila. Teve <strong>ao</strong> seu serviço uma colegiada, presidida por um prior com as funções de<br />

pároco. Em 1573, D. Sebastião mandou reerguer esse edifício, em lembrança de um facto<br />

decisivo para que Portugal se tornasse uma nação independente: a batalha de Ourique,<br />

travada nas elevações de São Pedro das Cabeças, a pouca distância de Castro Verde, em<br />

25 de Julho de 1139, correspondendo a vitória dos cristãos a uma promessa feita por Jesus<br />

Cristo, na véspera da peleja, <strong>ao</strong> nosso primeiro rei.<br />

O edifício actual, que ocupa sensivelmente o mesmo local dos anteriores, fi cou a dever-<br />

-se à iniciativa de D. João V, também ele sensível <strong>ao</strong> signifi cado patriótico e escatológico do<br />

milagre de Ourique. Iniciados ca. 1727, os trabalhos construtivos evoluíram <strong>sem</strong> delonga.<br />

A sua traça segue um modelo derivado da arquitectura chã da época da Restauração e<br />

que João Antunes aplicou na concepção de vários imóveis para a milícia espatária, como<br />

a igreja de Santiago, de Alcácer do Sal, ou, numa versão um pouco reduzida, a igreja<br />

matriz de Sines. Monumental, embora com volumes despojados, esta tipologia valorizou<br />

a planta longitudinal composta, formada por uma nave rectangular em que se inscrevem<br />

duas torres sineiras quadradas e a capela-mor, mais estreita, ladeada por dependências.<br />

Na frontaria, com três corpos delimitados por pilastras e empena rectilínea, avulta o portal,<br />

sobrepujado por um frontão curvo quebrado, com a insígnia da Ordem.<br />

Se a estrutura arquitectónica é tributária da tradição seiscentista, a decoração interior<br />

corresponde já à teatralidade do Barroco Pleno, oferecendo uma notável visão integradora<br />

das artes da época joanina. A nave é coberta por uma falsa abóbada guarnecida com<br />

sumptuosa teoria de grotescos que apresenta, no centro, a Aparição de Cristo a D. Afonso<br />

Henriques. Este conjunto foi levado a cabo em 1728-1731 mediante uma parceria entre<br />

o lisboeta António Pimenta Rolim, outro artista da capital, Manuel Pinto, e os pintores<br />

bejenses Manuel e José Pereira Gavião - parceria que também se terá ocupado do<br />

II. Cabeça-relicário de São Fabião | Escola aragonesa | Século XIII (fi nais) – Século XIV (inícios)<br />

Castro Verde, Tesouro da Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição.


evestimento mural de outros sectores. As paredes encontram-se revestidas de painéis<br />

azulejares, com destaque para os alusivos à vida do nosso primeiro rei e <strong>ao</strong> milagre de<br />

Ourique, enquadrados por composições características das ofi cinas lisboetas de ca. 1730.<br />

José Meco atribuiu a feitura do conjunto <strong>ao</strong> pintor P. M. P. - talvez o oratoriano P. e Manuel<br />

Pereira -, uma das principais fi guras do ciclo dos “Grandes Mestres”. O recurso <strong>ao</strong>s artistas<br />

de Lisboa revela-se igualmente na talha dos retábulos dos altares e dos púlpitos. Merecem<br />

ainda um olhar atento as pinturas murais, que desenvolvem uma sequência de emblemas<br />

referentes à monarquia e à Ordem de Santiago.<br />

O interesse de D. João V pela matriz de Castro Verde levou a conseguir para ela, em<br />

Roma, a dignidade de basílica, depois completada pelo título de real. Mas o soberano<br />

empenhou-se também em dotá-la com um importante conjunto de alfaias, entre as<br />

quais sobressai a custódia de aparato, realizada em Lisboa, <strong>ao</strong> redor de 1715. O Tesouro<br />

instalado na antiga sacristia em 2003 dá a conhecer este acervo, além de outras obrasprimas<br />

provenientes de igrejas do concelho, cabendo um lugar especial à cabeça-relicário<br />

de São Fabião, peça de origem aragonesa, oferecida pela princesa D. Vataça a Panóias<br />

(e transferida no século XVI para Casével).<br />

josé antónio falcão<br />

bibliografia fundamental: J[oão] M[iguel] dos Santos Simões, Corpus da Azulejaria Portuguesa,<br />

V, Azulejaria em Portugal no Século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979; J[oão] J[osé] Alves<br />

da Costa, O Termo de Castro Verde – Um Contributo para a sua História, I-II, Castro Verde, Câmara Municipal<br />

de Castro Verde, 1996-1998; Vítor Serrão, História da Arte em Portugal. O Barroco, Lisboa, Editorial Presença,<br />

2003; José António Falcão, Tesouro da Basílica Real de Nossa Senhora da Conceição, Castro Verde, Beja,<br />

Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de Beja, 2004.<br />

33


24 DE JANEIRO DE 2009 . 21H30<br />

basílica real de nossa senhora da conceição<br />

castro verde<br />

sete lágrimas<br />

!<br />

pedra irregular<br />

O Nascimento do Barroco em Portugal<br />

DIOGO DIAS MELGAZ (1638-1700)<br />

Salve Regina<br />

Adjuva nos (instrumental)<br />

In jejunio et fl etu<br />

CARLOS SEIXAS (1704-1742)<br />

Sicut cedrus exaltata sum Responsorium II in festo assumptionis B.M.V.<br />

ANTÓNIO TEIXEIRA (1707-1774)<br />

Sacram beati Vicentii Responsorium I in festo S. Vicentii<br />

Tanta grassabatur crudelitas Responsorium III in festo S. Vicentii (instrumental)<br />

Si jubes pater sancte Responsorium II in festo S. Vicentii<br />

FRANCISCO ANTÓNIO DE ALMEIDA (1702-1755?)<br />

Lamentatio prima in Sabbato Sancto a 4 concertata<br />

O quam suavis<br />

Si quæris miracula Responsorio a 4 concertato per la Festa de St. o Antonio<br />

Justus ut palma fl orebit Motetto a 4 concertato in commune unius martyres<br />

CARLOS SEIXAS (1704-1742)<br />

Hodie nobis cælorum Rex Responsório a 5 para o Natal<br />

35


36<br />

notas biográficas<br />

sete lágrimas<br />

Grupo Residente do <strong>Festival</strong> <strong>Terras</strong> <strong>sem</strong> <strong>Sombra</strong><br />

Filipe Faria, tenor e direcção artística<br />

Sérgio Peixoto, tenor e direcção artística<br />

Mónica Monteiro, soprano<br />

Andreia Carvalho, oboé barroco e fl auta barroca<br />

Denys Stetsenko, violino barroco<br />

Diana Vinagre, violoncelo barroco<br />

Hugo Sanches, tiorba<br />

Tiago Matias, tiorba e guitarra barroca<br />

Sérgio Silva, cravo*<br />

* instrumento gentilmente cedido por Sintra Estúdio de Ópera<br />

O Sete Lágrimas (fundado em 2000 em Lisboa sob o nome L’Antica Musica) é um<br />

consort de músicos especializados em música antiga e contemporânea que explora em cada<br />

programa a ténue fronteira entre a música erudita e as tradições seculares. É dirigido por<br />

Filipe Faria e Sérgio Peixoto.<br />

Em 2007 o grupo editou o seu primeiro CD pela etiqueta MU (murecords.com)<br />

com um projecto intitulado Lachrimæ #1. Este CD alcançou enorme sucesso na crítica<br />

da especialidade e na recepção do público. Em 2008 editou o segundo CD pela mesma


notas biográficas<br />

etiqueta, intitulado Kleine Musik [ver Notas de Imprensa abaixo], um projecto de música<br />

antiga e contemporânea dedicado a Heinrich Schütz que contemplou a encomenda de<br />

nove peças <strong>ao</strong> famoso compositor inglês Ivan Moody sobre os mesmos textos musicados<br />

por Schütz no século XVII. Em Dezembro de 2008 o grupo editou o terceiro projecto de<br />

edição discográfi ca intitulado Diaspora.pt em que explora as relações estéticas, conceptuais<br />

e linguísticas da música dos países do cinco continentes visitados pelos Descobrimentos,<br />

pela secular diáspora cultural portuguesa e pela lusofonia. Estes projectos discográfi cos<br />

têm o apoio da Direcção-Geral das Artes do Ministério da Cultura. Desde 2006 o grupo<br />

desenvolve ainda projectos de composição de música original e arranjos de música antiga<br />

para o cinema, o teatro e a televisão. A este propósito efectuou já a banda sonora original,<br />

baseada em música dos séculos XVI a XVIII, de uma série de 13 programas da estação<br />

televisiva SIC, em 2006.<br />

Sete Lágrimas estreou-se em 2000 em Lisboa, fruto de uma intensa pesquisa de<br />

cerca de um ano, com a estreia nacional e integral do Primeiro Livro de Madrigais<br />

para Duas Vozes, de Th omas Morley (1595). Este repertório encerra em si a magia do<br />

Renascimento europeu, que fazia da música e dos paradigmas clássicos uma forma de<br />

arte nova apta a comunicar com o público de um modo ainda não experimentado, e<br />

lançou o mote para os projectos futuros do grupo. Na temporada 2009/2010, este tem já<br />

agendados doze concertos e um novo projecto de edição discográfi ca intitulado Silêncio,<br />

com a parceria do Departamento do Património Histórico e Artístico da Diocese de<br />

Beja e o apoio do Direcção-Geral das Artes do Ministério da Cultura. Este projecto<br />

contempla a encomenda de seis obras (60 minutos de música) <strong>ao</strong>s compositores João<br />

Madureira, Ivan Moody e Christopher Bochmann, a sua estreia mundial, uma pequena<br />

tournée nacional e internacional e a edição discográfi ca destas obras especialmente<br />

escritas para Sete Lágrimas. Tal como os anteriores projectos discográfi cos, Silêncio é<br />

produzido pela MU/Arte das Musas. O grupo é também, desde 2006, grupo residente<br />

do <strong>Festival</strong> <strong>Terras</strong> <strong>sem</strong> <strong>Sombra</strong>, sendo agenciado pela Arte das Musas. Para 2009 ultima<br />

a preparação de um concerto no <strong>Festival</strong> Internacional de Música de Macau e uma<br />

digressão, composta por concertos e masterclasses, pela América Latina (Uruguai, Chile<br />

e Argentina), a convite da Embaixada Portuguesa no Uruguai, do Instituto Camões e<br />

do <strong>Festival</strong> Barroco do Uruguai.<br />

!<br />

37


NOTAS DE IMPRENSA<br />

CRISTINA FERNANDES Público,14.11.2008<br />

“Revelações do Barroco em Portugal<br />

Ciclo Música em São Roque<br />

Sete Lágrimas Consort<br />

«Pedra Irregular – O Nascimento do Barroco em Portugal»<br />

Lisboa, Igreja de São Pedro de Alcântara, 9 de Novembro, às 17 h.<br />

Igreja cheia<br />

notas de imprensa<br />

Vocacionado para a música antiga e contemporânea, o Sete Lágrimas Consort constitui um dos<br />

mais interessantes projectos surgidos em Portugal, nos últimos tempos, conforme se pode comprovar<br />

através de dois CD já editados (Lachrimæ #1 e Kleine Musik), <strong>ao</strong>s quais se seguirá, em breve, Diaspora.<br />

pt. Dirigidos pelos tenores Filipe Faria e Sérgio Peixoto, o grupo apresentou no ciclo Música em São<br />

Roque um criterioso programa intitulado “Pedra Irregular – O Nascimento do Barroco em Portugal”.<br />

De Diogo Dias de Melgaz, um dos últimos vultos da Escola de Évora, a António Teixeira e Francisco<br />

António de Almeida (bolseiros em Roma a expensas de D. João V), passando por Henrique Correia,<br />

Carlos Seixas e Scarlatti, foi traçado um percurso com algumas das mais belas obras escritas entre<br />

os fi nais do século XVII e os meados do século XVIII. O repertório sacro apresentado foi concebido<br />

para coro (com ou <strong>sem</strong> solistas) e baixo contínuo, mas o Sete Lágrimas interpretou-o apenas com três<br />

cantores, atribuindo algumas das restantes partes a instrumentos (oboé e violino barroco) e contando<br />

com um grupo de baixo contínuo generoso (violoncelo, duas tiorbas e cravo). Algumas obras vocais<br />

(de Melgaz, Teixeira e Almeida) foram tocadas apenas em versão instrumental e as restantes foram<br />

objecto de combinações vocais e instrumentais variadas, que permitiram acentuar os contrastes da<br />

textura musical e obter ambientes tão diversos como o intimismo contemplativo da Lamentação,<br />

de Almeida, ou a exuberância italianizante dos Responsórios, de Carlos Seixas, do Responsório Si<br />

quæris miracula ou do Motete Justus ut palma fl orebit, de Almeida. O colorido que se ganhou desta<br />

forma mostrou facetas que outras interpretações deixam na sombra. Mas se o resultado foi revelador,<br />

esta atitude é susceptível de algumas refl exões musicológicas. Várias destas peças foram certamente<br />

cantadas na Patriarcal de D. João V, que contava com um coro de italianos de alto nível e cultivava<br />

um cerimonial monumental, mas também não é impossível que tives<strong>sem</strong> sido feitas com uma voz<br />

por parte noutros locais (prática documentada em Portugal nas décadas seguintes). O uso de um<br />

conjunto vocal mais amplo seria talvez mais fi dedigno, mas os Sete Lágrimas não se defi nem como<br />

um grupo fi liado nas “interpretações historicamente informadas” no sentido convencional, embora<br />

tenham formação nessa área. Preferem apostar na experimentação e na recriação do repertório, de<br />

resto uma tendência cada vez mais comum também a nível internacional. Com timbres de cores<br />

suaves, as vozes de Filipe Faria e Sérgio Peixoto combinaram-se com elegância e bom gosto e a<br />

soprano Mónica Monteiro teve uma prestação de crescente eloquência que culminou nas páginas<br />

de Almeida, precisando apenas de aperfeiçoar alguns detalhes nas passagens mais virtuosísticas.<br />

39


40<br />

notas de imprensa<br />

A clareza de fraseados do oboé de Andreia Carvalho, num sugestivo diálogo com o violino de Denys<br />

Stetsenko, e um grupo de contínuo que nunca incorreu na monotonia completaram um trabalho de<br />

conjunto de grande consistência técnica e artística.”<br />

CRISTINA FERNANDES Público, Ípsilon, 20.06.2008<br />

“Fazer voar a Música<br />

O que têm em comum um compositor luterano do Barroco alemão e um ortodoxo grego do<br />

século XXI? No seu segundo CD o grupo Sete Lágrimas quis mostrar como as músicas de Schütz<br />

e de Ivan Moody se iluminam mutuamente.<br />

Desde que começaram a cantar juntos, há dez anos, a música de Henrich Schütz (1585-1672)<br />

tornou-se companhia para Filipe Faria e Sérgio Peixoto. Estes dois tenores do Coro Gulbenkian<br />

tinham como ambição fazer um projecto livre de algumas convenções decorrentes da formação<br />

musical clássica do conservatório. Queriam abordar a música antiga, a contemporânea e repertórios<br />

de fronteira (entre o erudito e o popular) e emancipar-se da página escrita, pois a partitura é apenas<br />

o suporte. Criaram em 2000 o grupo L’Antica Música, que tomou o nome de Sete Lágrimas em<br />

homenagem <strong>ao</strong> ciclo de sete danças Lachrimæ (Lágrimas) de Jonh <strong>Do</strong>wland (c. 1563-1626) e <strong>ao</strong><br />

espírito que percorre a sua música.<br />

No início, o percurso parecia <strong>sem</strong>elhante <strong>ao</strong> de outros grupos de música antiga. «Havia receio de<br />

arriscar num meio fechado como o português», confessam <strong>ao</strong> Ípsilon Filipe Faria e Sérgio Peixoto.<br />

«Tinhamos ideias, mas quando chegava a altura de as mostrar acabávamos a fazer a oratória de<br />

Carissimi ou outro repertório instituído». Foi há três anos que as coisas começaram a mudar. Em<br />

Março de 2007 lançaram o primeiro CD (Lachrimæ #1), na etiqueta Murecords criada pela Arte<br />

das Musas (empresa com actividade nas áreas da Cultura, Arte e Comunicação dirigida por Filipe<br />

Faria), e há <strong>sem</strong>anas colocaram no mercado o seu último trabalho (Kleine Musik), onde prestam<br />

homenagem a Schütz através do olhar contemporâneo de Ivan Moody (n. 1964), compositor<br />

britânico residente em Portugal, que convidaram a compor sobre os mesmos textos usados pelo<br />

grande compositor alemão. «Schütz era o compositor que melhor se adaptava à nossa maneira<br />

de cantar e de ver a música», conta Sérgio Peixoto. «Estudámos os Pequenos Concertos Espirituais<br />

e descobrimos <strong>sem</strong>pre coisas maravilhosas, não só a nível musical mas também interpretativo.<br />

A ilustração musical do texto não é tão imediata como em Monteverdi ou nos italianos da mesma<br />

época, mas depois de a trabalharmos em profundidade está lá tudo, é impressionante», explica Filipe<br />

Faria. «Dizemos muitas vezes: Schütz nunca nos enganou».<br />

O Italiano Extrovertido e o Intimismo Alemão<br />

Os dois tenores já tinham cantado várias obras de Ivan Moody e a ideia de o convidar a participar<br />

foi consensual. O projecto começou a ser delineado há dois anos e foi posto em prática com o apoio do<br />

Ministério da Cultura, que elogiou a sua originalidade conceptual.<br />

Também a visão de Schütz de Ivan Moody se encontra próxima da dos directores musicais<br />

do Sete Lágrimas. «A música de Schütz é uma belíssima mistura do italiano extrovertido com o


notas de imprensa<br />

intimismo alemão, que tem a ver com a escala mais reduzida dos meios que ele tinha à disposição<br />

depois da guerra dos 30 anos», diz o compositor. «Trata o texto com uma abordagem muito pessoal.<br />

Há uma profundidade teológica no pensamento de Schütz que concilia <strong>ao</strong> mesmo tempo a seriedade<br />

e o fascínio perante a criação e a alegria, coisa que só se percebe depois de entrar a fundo na sua<br />

música. Isto diz-me muito porque são coisas que também sinto – uma alegria teológica.» Ivan<br />

Moody é membro da igreja ortodoxa grega e identifi ca essa atitude com a sua fé.<br />

Além dos textos, a proposta tinha outras condicionantes como o uso de instrumentação <strong>sem</strong>elhante<br />

à escolhida para as obras de Shutz, que se destinam a vozes e baixo contínuo. «Tal como Stravinsky,<br />

acredito que as limitações podem fazer uma peça fl orir, se alguém nos dá o dinheiro e uma folha de<br />

papel em branco, <strong>sem</strong> nada de onde partir, caímos no vazio», diz Moody. «Olhei para as partituras de<br />

Schütz para absorver o ambiente e depois usei a minha linguagem.» A natureza dos meios também<br />

não foi um problema pois Moody está habituado a escrever para grupos que se dedicam à música<br />

antiga e contemporânea, como o Hilliard En<strong>sem</strong>ble ou o Taverner Consort, e também tem usado<br />

instrumentos antigos. «Já fi z peças para consort de violas da gamba, mas nunca tinha escrito para tiorba<br />

ou oboé barroco. O som destes instrumentos é fantástico. A maneira como a tiorba pode preencher o<br />

espaço harmónico como faz na música barroca foi para mim uma coisa delirante.»<br />

Abordagem Contemporânea<br />

O projecto teve ainda outra convidada: a soprano Ana Quintans. «Estávamos a actuar com o<br />

Coro Gulbenkian e de repente entra uma jovem soprano portuguesa para cantar a Missa em Dó<br />

menor, de Mozart», conta Filipe Faria. «Fizemos-lhe o convite para colaborar com o Sete Lágrimas<br />

logo nessa noite e foi aceite. Ana Quintans já não está só limitada às nossas fronteiras, é um assombro<br />

de musicalidade e de seriedade. Nunca tinha abordado este repertório, mas deixou-nos <strong>sem</strong> palavras<br />

durante a gravação.»<br />

<strong>Do</strong> ponto de vista interpretativo Filipe e Sérgio tiveram com a música de Schütz e de Ivan<br />

Moody uma atitude <strong>sem</strong>elhante: uma aproximação à partitura que parte da recriação. Por exemplo:<br />

duas das peças do compositor britânico são interpretadas no cravo embora tenham sido escritas para<br />

vozes adoptando um processo similar <strong>ao</strong> que se fazia com a música do século XVII. «A formação<br />

musical clássica incita-nos a ter respeito pela partitura mas fomos aprendendo a libertar-nos.<br />

A partitura é apenas um suporte, serve para tentar perceber o que o compositor diz mas também para<br />

descobrir o que queremos fazer com a música», refere Sérgio Peixoto. O Sete Lágrimas pretende<br />

uma abordagem contemporânea e uma ligação à identidade sonora do grupo. «Uma dúvida essencial<br />

desde o princípio era: será que isto passa como som do grupo? Mas a verdade é que isso tem vindo<br />

a ser reconhecido.»<br />

A criatividade para além da partitura e a combinação de repertórios de fronteira fervilhava há<br />

muito nas mentes dos dois cantores, mas só há poucos anos começaram a arriscar. Agrupamentos que<br />

admiram, como L’Arpeggiata de Christina Pluhar, Accordone de Marco Beasley e Guido Morini<br />

ou Les Fin’Amoureuses, serviram de incentivo. «Não é uma questão de os imitar, mas sentimos<br />

uma atitude <strong>sem</strong>elhante perante a música», explica Filipe Faria. «Convidámos, por exemplo, para<br />

o <strong>Festival</strong> <strong>Terras</strong> <strong>sem</strong> <strong>Sombra</strong> (que a Arte das Musas organiza) um coro para interpretar música<br />

sacra de carácter popular do eixo latino-mediterrânico e em Novembro vamos lançar um novo CD,<br />

Diaspora.pt. Aí a loucura será total.”<br />

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42<br />

notas de imprensa<br />

<strong>Novo</strong>s Projectos<br />

Sérgio e Filipe gostavam que esse novo projecto «viesse mudar a mentalidade fechada que existe<br />

em Portugal». «Temos intérpretes muito bons que fazem música antiga de acordo com as práticas<br />

de execução históricas e gostamos muito de ouvir, mas não é essa a nossa intenção», diz Filipe. Em<br />

Diaspora.pt evocam-se repertórios infl uenciados pela música portuguesa no mundo. «Começamos<br />

em Portugal com Vilancicos de Negro (género coral que utiliza várias línguas e dialectos de infl uência<br />

mestiça), passamos por Cabo Verde com a morna, por Goa, Macau, Timor, o México e o Brasil. A<br />

ideia da diáspora tem ramifi cações: o português que saiu para a América do Sul no século XVI e<br />

que compôs baseado nas tradições orais que recolheu, mas também os músicos que em Portugal<br />

se inspiraram em fórmulas novas que ouviam interpretar <strong>ao</strong>s escravos africanos», explica Sérgio.<br />

«Teremos também músicos convidados, como o fadista António Zambujo.» Filipe acrescenta que<br />

«não é um projecto musicológico, mas totalmente estético e conceptual» que implicou meses de<br />

trabalho sobre as partituras: «recriámos do primeiro <strong>ao</strong> último compasso todas as peças.»<br />

O objectivo foi criar uma abordagem pessoal do Sete Lágrimas e não uma aproximação<br />

idiomática a cada um dos géneros. «Não queríamos imitar, mas recriar. Nos ensaios usámos adjectivos<br />

e metáforas para transmitir as nossas ideias <strong>ao</strong>s músicos. Lembro-me <strong>sem</strong>pre do Maestro Frans<br />

Bruggen que nos dirigiu tantas vezes no Coro Gulbenkian. Ele faz poucos gestos quando dirige,<br />

mas quando ensaia usa adjectivos que fazem voar a música de Bach, nós tentámos fazer voar estas<br />

músicas», diz Filipe Faria.<br />

À Diaspora.pt vai seguir-se outro CD em 2009, Silêncio. «São três olhares de compositores<br />

sobre a Bíblia: o de Ivan Moody que é ortodoxo grego, o de [ João Madureira] que é católico e<br />

o de Christopher Bochmann que é anglicano protestante. Cada compositor fará música sobre a<br />

herança erudita e popular da sua própria linguagem e experiência», conta Filipe Faria. «Será mais<br />

uma aventura que promete quebrar fronteiras».”<br />

M. A. G. JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, 13-26.08.2008<br />

“A Grande Música<br />

O maior compositor alemão do Barroco intermédio, Heinrich Schütz, os seus Pequenos Concertos<br />

Espirituais (Kleine Geistliche Konzerte), a revisitação dessas peças por um compositor britânico<br />

contemporâneo há muito fi xado em Portugal, Ivan Moody, e o projecto, bem amadurecido, dos<br />

tenores Filipe Faria e Sérgio Peixoto, Sete Lágrimas. O conjunto dá origem a um dos mais belos<br />

discos de edição nacional, surgidos nos últimos anos. O grupo Sete Lágrimas nasceu há cerca de<br />

uma década como o nome L’Antica Musica. Formado por dois cantores do Coro Gulbenkian, surgiu<br />

com o objectivo de ultrapassar barreiras mais ou menos convencionadas entre diferentes repertórios,<br />

fos<strong>sem</strong> de música antiga ou contemporânea, ou mesmo testemunho de diferentes “diásporas”, como<br />

futuros projectos discográfi cos o atestam. Sucederam-se assim anos de trabalho e de concertos, até<br />

<strong>ao</strong> momento em que editaram o primeiro disco, Lachrimæ # 1. Foi em 2007, quando Filipe Faria e<br />

Sérgio Peixoto já tinham adoptado a designação Sete Lágrimas, a partir das sete variações Lachrimæ,<br />

de John <strong>Do</strong>wnland, sobre Flow my Tears. O programa do primeiro disco demonstrava a atitude<br />

III. Trânsito de São José | Corrado Giaquinto | Século XVIII (meados)<br />

Santiago do Cacém, colecção particular (em depósito no Museu de Arte Sacra).


notas de imprensa<br />

única do agrupamento. Obras de Giovanni Martini, Corelli e Schütz, a par de salmos protestantes<br />

franceses, com quase dois séculos de distância entre si, cruzavam universos e modos de vida, cuja<br />

soma parecia revelar um sentir comum – uma dor que não podia deixar de ser comum –, no confronto<br />

que dividia a Europa entre os diferentes credos. O novo disco impõe mais uma vez o «desassossego».<br />

<strong>Do</strong>s cerca de 50 Pequenos Concertos Espirituais de Heinrich Schütz, incluídos nos volumes de 1636<br />

e 1639, nove deles são revisitados pelo compositor contemporâneo Ivan Moody, que não só conhece<br />

as características muito próprias da música antiga, como sabe da convicção necessária para compr<br />

música sacra - nenhuma simulação é possível, perante si mesmo e muito menos perante a verdade<br />

de Schütz. Os Pequenos Concertos Espirituais surgiram em plena Guerra dos 30 anos. Usam<br />

várias fontes, do Antigo Testamento a Santo Agostinho. Os textos (e os instrumentos de época)<br />

são retomados por Ivan Moody, como num «jogo de espelhos», conforme confessa na apresentação<br />

do CD: «refl ectir como num espelho era ideia central deste projecto, devendo estar presente que<br />

todos os espelhos distorcem». E essa é a grande lição deste disco, o que o transforma em algo único<br />

e magnifíco. O idioma do britânico ortodoxo - facto bem patente na sua obra sacra - em tudo difere,<br />

como é óbvio, da expressão do genial compositor luterano seiscentista. No entanto, parafraseando<br />

Moody e a sua citação de São Paulo <strong>ao</strong>s Coríntios, que «ponto de chegada» poderá ser mais rico «do<br />

que o esforço de refl ectir e complementar um Mestre, como através de um espelho, em enigma?» As<br />

vozes de Sérgio Peixoto, Filipe Faria e, em particular, da soprano Ana Quintans materializam as<br />

melhores respostas, acompanhadas por Inês Moz Caldas (fl auta de bisel), Pedro Castro (fl auta e<br />

oboé barroco), Kenneth Frazer (viola da gamba), Duncan Fox (violone) e Hugo Sanchez (tiorba).<br />

Juntos fazem com que a música corra, expressiva, exigente, atenta <strong>ao</strong> pormenor, à eloquência imposta<br />

pelo mestre e pelo próprio enigma.”<br />

CRISTINA FERNANDES Público, Ípsilon, 20.06.2008<br />

“Jogo de Espelhos<br />

O segundo CD do agrupamento Sete Lágrimas combina a espiritualidade do barroco alemão<br />

com o olhar contemporâneo. Kleine Musik, Sete Lágrimas Consort, Filipe Faria e Sérgio Peixoto<br />

(tenores, cravo e direcção), Ana Quintans (soprano), Murecords MU0102<br />

Depois de uma estreia discográfi ca auspiciosa com Lachrimæ #1, o agrupamento Sete<br />

Lágrimas acaba de lançar mais uma gravação de grande consistência artística e conceptual. Kleine<br />

Musik combina uma selecção de peças extraídas dos Pequenos Concertos Espirituais, de Henrich<br />

Schütz (1575-1672), com obras compostas para o grupo sobre os mesmos textos por Ivan Moody<br />

(n. 1964), num deliberado jogo de espelhos. A combinação entre música antiga e contemporânea pode<br />

encontrar-se em vários projectos discográfi cos internacionais, mas tem sido bastante rara no contexto<br />

português. Kleine Musik não é apenas uma conjugação de universos cuidadosamente estudada, onde<br />

a música de Schütz serve de inspiração <strong>ao</strong> olhar contemporâneo de Ivan Moody através de um<br />

refl exo de processos criativos que usam diferentes linguagens. É também uma justa homenagem a<br />

Schütz, um dos maiores compositores da história da música, que tem estado quase <strong>sem</strong>pre ausente<br />

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44<br />

notas de imprensa<br />

dos programas de concerto em Portugal, mas que faz parte do repertório do Sete Lágrimas desde o<br />

início da sua actividade. Se os pequenos trechos do compositor alemão incluídos no primeiro CD<br />

se encontravam entre as interpretações mais conseguidas dos tenores Filipe Faria e Sérgio Peixoto,<br />

neste segundo trabalho confi rma-se a sua afi nidade com a estética do compositor alemão e com a<br />

sua expressividade profunda e intimista. As suas vozes fundem-se bem <strong>ao</strong> nível do timbre e nota-se<br />

uma sintonia cuidada dos fraseados e das intenções retóricas, bem como uma cumplicidade efi caz<br />

com a componente instrumental, a cargo de intérpretes experientes no âmbito da música antiga.<br />

As faixas mais impressionantes do disco devem-se, porém, à interpretação de Ana Quintans, pelo<br />

seu elevado nível técnico, pelo brilho vocal e pela força emocional. A soprano, que tem feito carreira<br />

internacional no repertório barroco, soube também adaptar-se <strong>ao</strong> universo menos familiar de Ivan<br />

Moody – ouça-se, por exemplo, O Misericordissime Jesu, na faixa 12. Este compositor britânico, a<br />

residir em Portugal há vários anos, tem escrito outras obras com instrumentos antigos, conhecendo<br />

bem os seus recursos e especifi cidades. A sua estética não procura o radicalismo, nem tem a obsessão<br />

da vanguarda. Mostra antes um certo despojamento, mesmo quando os processos de composição são<br />

mais intrincados, e a captação de uma atmosfera onde a espiritualidade é um elemento bem presente.<br />

A transição entre o antigo e o novo pode ser uma tarefa arriscada mas neste caso é conseguida de<br />

forma convincente, tanto pelo conteúdo musical como pela coerência interpretativa.”<br />

BERNARDO MARIANO Diário de Notícias, 14.07.2008<br />

“O Sete Lágrimas, do[s] tenor[es] Filipe Faria e [...] Sérgio Peixoto, editou o CD Kleine Musik,<br />

projecto que cruza Heinrich Schütz (1585-1672) e Ivan Moody (n. 1964), compositor britânico<br />

residente em Portugal e que consistiu em cantar nove Kleine Geistliche Konzerte de Schütz e pedir<br />

a Moody que musicasse os mesmos textos (encomenda do Sete Lágrimas), procurando intersecções<br />

(refl exos em espelhos deformantes) de passado e presente e abrindo-se às confl uências entre o<br />

Luteranismo «temperado» pela Itália de Schütz e do Modernismo eivado da música das igrejas<br />

orientais do próprio Moody. O resultado aí está, com a estreia absoluta das noves pequenas obras de<br />

Moody, sendo que duas delas são para cravo solo. O Sete Lágrimas conta, para lá do par de vozes<br />

citadas, com o concurso do soprano Ana Quintans e de um quinteto instrumental de bisel, oboé,<br />

gamba, violone e tiorba. Desafi o ganho, na medida em que o acerto, beleza e propriedade das vozes,<br />

o ambiente das linhas instrumentais por trás e o contraste estabelecido entre as linguagens barroca<br />

e moderna funciona muito bem. Boa dicção do alemão [...]. Som excelente.”<br />

CRISTINA FERNANDES Público, 21.12.2007<br />

“Movimentos da Música Antiga<br />

O panorama começa a movimentar-se em Portugal, multiplicando-se com novas iniciativas. [...]<br />

o panorama da música antiga em Portugal começa a movimentar-se e a multiplicar-se em novas


notas de imprensa<br />

iniciativas. A maior parte deve-se à existência de uma nova geração de jovens intérpretes que se<br />

têm especializado no estrangeiro [...] mas não só. [...] O Sete Lágrimas Consort lançou o seu<br />

primeiro disco (Lachrimæ #1) na sua própria editora e tem sido responsável pela direcção artística do<br />

<strong>Festival</strong> <strong>Terras</strong> <strong>sem</strong> <strong>Sombra</strong> no Baixo Alentejo, importante foco de divulgação de jovens intérpretes<br />

portugueses nesta área [...].”<br />

JEAN-LUC BRESSON Le Jouer de Luth - Société Française de Luth, 2007<br />

“Le titre annonce d’emblée un climat poétique sans équivoque: «Larmes». Cet enregistrement<br />

regroupe en eff et des pièces vocales et instrumentales présentant un lien direct avec ce théme. La<br />

composition de l’en<strong>sem</strong>ble fait alterner de lentes polyphonies aux profondeurs abyssales et quelques<br />

pièces plus enjouées que l’on trouve en particulier dans deux suites de Corelli (Sonata da Chiesa<br />

n.º 7 et Sonata da Chiesa n.º 6). Les œuvres réunies ici sont issues des répertoires français, italien<br />

et allemand. On y trouve des pièces de Giovanni Battista Martini (1706-1784), d’Archangello<br />

Corelli (1653-1713) et d’Heinrich Schütz (1585-1672). L’atmosphére qui domine évoque une<br />

poignante méditation déclinée selon diff érents modes, d’une œuvre à l’autre. Dès les primières<br />

secondes, l’auditeur est saisi apr le climat emprunt de spiritualité qui domine l’en<strong>sem</strong>ble. Il est<br />

invité à emprunter les voies d’une temporalité tournée vers l’interieur. Le temps s’écoule en longues<br />

plages sensibles. La pochette de ce disque montre la photographie d’un visage, surexposée au point<br />

de confi ner à la plus parfaite blancheur. L’image conduit vers le blanc comme la méditation conduit<br />

vers le silence, ce silence qui émane des «limbes insondés de la tristesse» selon l’expression chére à<br />

Baudelaire. Si dans cet enregistrement la voix joue un rôle essentiel comme céhicule de l’émotion<br />

diff usée, elle est sotenue par de beaux accompagnements.”<br />

PEDRO BOLÉO Público, 01.06.2007<br />

“De chorar por mais<br />

Duas boas notícias: a primeira é a estreia em disco de um projecto musical já com alguns anos<br />

actividade chamado Sete Lágrimas, um grupo que deu os primeiros passos em 2000, ainda com o<br />

nome L’Antica Musica. a segunda boa notícia é que, no mesmo gesto, surgiu uma nova editora a<br />

Mu Records. Este disco é sinal de uma capacidade de iniciativa de jovens músicos (neste caso dois<br />

tenores do Coro Gulbenkian) que deve ser saudada. Ainda por cima quando o disco Lachrimæ #1 é<br />

resultado de um trabalho musical cuidado, com algumas boas escolhas entre o repertório da música<br />

renascentista e barroca. As vozes de Filipe Faria e Sérgio Peixoto seguram com muita sensibilidade<br />

as linhas das polifonias de autores anónimos do século XVI e de peças de Giovanni Battista<br />

Martini (1706-1784). O conjunto instrumental cumpre bem a sua função, acompanhando as<br />

vozes, participando activamente na polifonia ou interpretando Sonatas e Corelli de fi nais do século<br />

XVII. Fica a sensação de que podia ir ainda mais longe na exploração tímbrica dos instrumentos e<br />

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46<br />

notas de imprensa<br />

dar mais energia <strong>ao</strong> conjunto (mesmo se é um tom melancólico o que se procura em certas peças).<br />

Mas o resultado fi nal é, <strong>sem</strong> dúvida, de muita qualidade.”<br />

BERNARDO MARIANO Diário de Notícias, 06.04.2007<br />

“O disco é o primeiro da portuguesa Mu Records. Nele, o en<strong>sem</strong>ble Sete Lágrimas [...] interpreta<br />

três motetes do católico Martini, quatro Kleine geistliche Konzerte, do luterano Schütz, duas Sonate<br />

da Chiesa do op. 3 de Corelli e três cânticos protestantes franceses (dois da calvinista Genebra).<br />

Combinação interessante de obras [...] e interpretações de bom nível, sobretudo nas peças francesas<br />

e nos motetes.”<br />

IVAN MOODY COMPOSITOR E MAESTRO<br />

“Melancholy, as <strong>Do</strong>wland knew, may include an element of joy – a secular counterpart to the<br />

Greek word harmolipi, describing a spiritual state that consists precisely in experiencing «joy in<br />

sorrow». Tears, therefore, able to betray both sadness and joy, are a natural expression of this state;<br />

and seven of them (Sete Lágrimas – Seven Tears) recall the seven sorrows and seven joys of the<br />

Virgin, the seven last words from the Cross, and – why not? – the seven hills upon which both<br />

Rome and Lisbon are said to be founded. Th e tears encapsulated in the music recorded by this<br />

en<strong>sem</strong>ble, centred around two young Portuguese tenors, were real enough, and refl ect not only<br />

the tragic aspects of the life of Christ on earth, but also years of religious persecution. In other<br />

words, the tears are human. Th e beauty and refi nement of the performances and the elegance of the<br />

recorded sound, as well as, most importantly, the sense of an internal tempo, paradoxically serve to<br />

record human weakness with something very close to perfection.”<br />

MANUEL PEDRO FERREIRA MUSICÓLOGO E CRÍTICO MUSICAL<br />

“Neste seu primeiro CD, o grupo Sete Lágrimas oferece-nos uma confi rmação da maturidade<br />

artística que a interpretação de música antiga alcançou em Portugal. Exemplo de sensibilidade e<br />

bom gosto, faz-nos esquecer que na sua base estão raras competências técnicas, adquiridas durante<br />

anos de esforçada aprendizagem. De facto, a música fl ui, judiciosamente equilibrada e fraseada,<br />

<strong>sem</strong> que os detalhes deixem de ser transparentes, oferecendo-se à degustação do ouvinte. As vozes<br />

fundem-se admiravelmente e os instrumentos revelam um entendimento plenamente partilhado.<br />

A proposta de repertório é, de alguma forma, ousada, não apenas por justapor melodias sobre<br />

traduções francesas dos Salmos, de Marot, cantadas em estilo de discante, a peças de Heinrich<br />

Schütz e belos, embora pouco conhecidos, responsórios do célebre padre Martini, mas também


notas de imprensa<br />

porque os tempos distendidos, convidando à contemplação, contrariam a pressa inconsequente dos<br />

tempos que correm. No livrete que acompanha o disco, lê-se que <strong>Do</strong>wland reivindica as Lágrimas<br />

como expressão não só de tristeza, mas também de alegria interior. É esta alegria que, lentamente,<br />

vai escorrendo deste disco, para ouvidos que a saibam recolher e ecoar.”<br />

JORGE MATTA MUSICÓLOGO E MAESTRO<br />

”Afi nação, fusão, sensibilidade contida, um hino <strong>ao</strong> bom gosto, um belo trabalho do grupo Sete<br />

Lágrimas. Apetece sentar, baixar a luz e, simplesmente, ouvir! Bravo!”<br />

FERNANDO ELDORO MAESTRO<br />

“Gratifi cante revelação de dois jovens cantores portugueses que decidiram apaixonar-se pela<br />

música vocal dos séculos XVI e XVII e transformá-la num acto milagroso.”<br />

CRISTINA FERNANDES MUSICÓLOGA E CRÍTICA MUSICAL<br />

“Sob o sugestivo título Lachrimæ #1, o programa do primeiro CD do Sete Lágrimas Consort<br />

percorre um período temporal que se estende dos fi nais do século XVI <strong>ao</strong> século XVIII onde se<br />

cruzam várias tradições e estilos musicais (francês, italiano, germânico) e a expressão ritual de vários<br />

credos religiosos (catolicismo, protestantismo) unidos por fi os condutores evidentes ou subtis.<br />

O tema das lágrimas como expressão da dor, do sofrimento íntimo ou colectivo, da melancolia, da<br />

fé ou da intolerância religiosa estão implícitos em quase todas as épocas no contexto de criação de<br />

várias peças musicais ou no seu próprio conteúdo, atingindo uma expressão particularmente rica e<br />

tocante no período barroco. Por outro lado, a voz que canta (mas também chora) é um elemento<br />

primordial intrínseco à própria natureza da música, que é aqui entendida de forma abrangente<br />

estendendo-se à aspiração que conduziu compositores e intérpretes da época barroca a tentar igualar<br />

a eloquência da voz humana na música instrumental.”<br />

!<br />

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48<br />

notas <strong>ao</strong> programa<br />

pedra irregular<br />

O Nascimento do Barroco em Portugal<br />

A utilização da palavra “barroco” e a sua aplicação a determinadas formas culturais<br />

correspondem a um fenómeno recente. Os artistas dos séculos XVII e XVIII ignoravam-<br />

-na, o que vale por dizer que, a título de exemplo, nenhum escritor da época fazia prosa para<br />

que ela fosse “barroca”. A noção de estilo, e de estilo barroco, tal como hoje a entendemos,<br />

era-lhes totalmente desconhecida.<br />

É sobejamente conhecida a origem portuguesa desta palavra. O termo “barroco” surge,<br />

pela primeira vez, no insigne Colóquios dos Simples (1563), de Garcia da Orta [1501-1568],<br />

referenciando “huns barrocos mal afeiçoados e não redondos”. O mesmo termo seria<br />

retomado por Rafael Bluteau [1638-1734], no seu Vocabulario (1712), para designar<br />

“pérola tosca, e desigual, que nem he comprida, nem redonda”.<br />

Contudo, enquanto conceito, na acepção historicista, o termo “Barroco” foi inventado<br />

pela historiografi a alemã oitocentista, num momento em que se procurava introduzir<br />

paradigmas explicativos nas caóticas narrativas sobre arte. Embora tendo no seu horizonte<br />

a arte italiana, Heinrich Wölffl in [1864-1945], com a obra Renaissance und Barock (1888),<br />

opôs as qualidades da arte do Renascimento – primado da linha, do desenho, do plano,<br />

da forma fechada, da unidade, da claridade absoluta – às do Barroco – primado da cor,<br />

da profundidade, da forma aberta, da pluralidade, da claridade relativa. Curiosamente,<br />

o historiador alemão falava, sobretudo, de Maneirismo, detendo-se em Gian Lorenzo<br />

Bernini [1598-1680], artista “escabroso”, não avançando para além dele.<br />

Na historiografi a portuguesa, a designação “Barroco” para classifi car determinada<br />

época e determinado estilo tornou-se quase ambígua, em virtude das muitas e, dir-se-ia,<br />

desvairadas acepções que à palavra foram atribuídas. De “barroco”, sinónimo de bizarro, de<br />

“barroco” esquema escolástico de silogismo falso, de “barroco”, termo corrente na crítica de<br />

artes plásticas, sinal de mau gosto e coisa absurda, passou-se a “Barroco”, etiqueta histórica<br />

e estética, que se dava como equivalente ou substituto de “Seiscentismo”.<br />

Importa abordarmos o Barroco tendo em conta as circunstâncias em que os seus<br />

criadores actuaram, no conhecimento das convicções teóricas da época e dentro dos variados<br />

domínios, o estabelecimento dos conceitos essenciais que norteavam as actividades criativas,<br />

fazendo uma arqueologia das teorias que orientavam as múltiplas expressões artísticas.<br />

O Barroco português pode ser contextualizado segundo determinados vectores: o<br />

pensamento e os valores tridentinos, as referências do classicismo (mais mitigadas no<br />

século XVII, mais actuantes no XVIII), a restauração da independência depois de 1640 e a<br />

riqueza trazida <strong>ao</strong> reino pelo ouro e pelos diamantes brasileiros. Sob estas grandes referências<br />

históricas, a cultura barroca legou-nos um espólio multifacetado, ora concordante, ora


notas <strong>ao</strong> programa<br />

contrastante, que pode ser equacionado segundo alguns valores comuns: a manutenção<br />

do primado da estética da imitação; a reafi rmação da existência de cânones a regerem as<br />

várias expressões artísticas; a valorização do gosto pelo lúdico e burlesco, patente em muita<br />

da poesia da época; a explosão duma espiritualidade que parece rejeitar o mundo, como na<br />

pintura de Josefa de Óbidos [1630-1684] ou na prosa de Fr. António da Chagas [1631-<br />

-1682]; o aproveitamento das potencialidades da Retórica, seja na construção literária,<br />

no sermão ou na própria arquitectura, que aproximam os sermões do P. e António Vieira<br />

[1608-1697] do signifi cado icónico do convento de Mafra; o interesse pela matéria e a<br />

necessidade de a mascarar com texturas sedutoras; a polifonia das várias artes, de que são<br />

exemplos maiores as igrejas forradas a talha e azulejo, artes destinadas a enquadrar a música<br />

e a palavra do pregador; uma moralização permanente, seja na vigilância dispensada <strong>ao</strong>s<br />

temas de pintura ou na moralizante prosa do P. e Manuel Bernardes [1644-1710].<br />

No que diz respeito à música, e seguindo a terminologia avançada por Rui Vieira Nery,<br />

o período barroco deverá ser dividido em dois momentos assaz diferentes: um primeiro,<br />

autóctone, na segunda metade do século XVII; e um outro, joanino, marcadamente<br />

romanizante, <strong>ao</strong> longo da primeira metade do século XVIII.<br />

Nascido em Cuba, no coração do Alentejo, em 1638, Diogo Dias Melgaz é um digno<br />

representante deste primeiro período, contendo a sua literatura musical os princípios<br />

compositivos que nortearam a generalidade da produção musical portuguesa da segunda<br />

metade do século XVII. Tendo sido admitido no Colégio dos Moços do Coro da Sé de<br />

Évora, em 1647, Melgaz teve uma carreira fulgurante nesta instituição. Nomeado reitor<br />

em 1662, tornou-se mestre da claustra em 1664 e ascendeu <strong>ao</strong> lugar de mestre de capela<br />

em 1680, cargo que ocupou durante dezanove anos. A sua música é marcada, no dizer<br />

de Gerhard <strong>Do</strong>derer, por um colorido tonal “moderno”, em oposição <strong>ao</strong> modelo modal<br />

tradicional, numa sequência dos efeitos expressivos do discurso melódico, mais por razões<br />

de natureza textual do que por considerações de ordem puramente musical.<br />

Das obras de Dias Melgaz hoje em concerto merece particular referência Salve Regina.<br />

Alternando entre uma lógica de construção tendencialmente vertical (afastando-se da<br />

dualidade tenor/soprano de quinhentos para uma nova dualidade, baixo/soprano) e um<br />

universo diferente, mais contrapontístico, com entradas sucessivas das vozes, Melgaz<br />

recorre a um cromatismo intenso das linhas melódicas, resultando numa paleta variada de<br />

harmonias expressivas tão apropriadas <strong>ao</strong> pathos contido no texto sacro.<br />

O segundo período do barroco musical português corresponde, grosso modo, à primeira<br />

metade do século XVIII. Marcado pelo esforço continuado de modernização<br />

estruturante das artes, encetado por D. João V [1689-1750], não pode ser dissociado de<br />

três medidas régias que iriam infl uenciar a vida musical portuguesa até <strong>ao</strong> dealbar do século<br />

XIX: a criação de uma estrutura de ensino da mais alta qualidade, adequada à competente<br />

formação de músicos portugueses, o Seminário da Patriarcal, fundado por Alvará Régio<br />

de 9 de Abril de 1713; e o envio de bolseiros régios para Roma, a fi m de se aperfeiçoarem<br />

na sua arte; e a incorporação maciça de cantores e instrumentistas estrangeiros.<br />

A contratação de <strong>Do</strong>menico Scarlatti [1685-1757] para o cargo de compositor régio,<br />

em 1719, deve ser entendida no contexto anteriormente descrito. Por um lado, o prestígio<br />

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50<br />

notas <strong>ao</strong> programa<br />

internacional do soberano estava em causa (Scarlatti era o mestre da Cappella Giullia, a<br />

Capela Pontifícia), mas, por outro, assegurava-se a colaboração de um jovem compositor,<br />

conhecedor da linguagem musical italiana e, concretamente, romana, inserindo-se, assim,<br />

nos desígnios joaninos. Sobre a permanência de Scarlatti em Portugal, envolta numa certa<br />

penumbra, mas parcialmente descortinada com sagacidade por João Pedro d’Alvarenga,<br />

sabemos que chegou a Lisboa em Novembro de 1719, para ser “il Capo, e direttore di<br />

tutta la […] musica della Patriarcale”. Como compositor régio, e controlando o aparelho<br />

da produção musical da corte joanina, Scarlatti foi, se não o responsável pela introdução<br />

na Patriarcal do repertório polifónico romano e de obras exclusivas da Cappella Giulia<br />

(o Miserere de Allegri, por exemplo), o garante da sua correcta interpretação.<br />

A adopção de modelos composicionais e práticas musicais de origem italiana pela<br />

Capela Real permitiram o afastamento de modelos eminentemente ibéricos (como o<br />

vilancico religioso, banido do culto em todas as igrejas do país por ordem régia de 1723).<br />

É no seio desta mudança, no contexto da música sacra em Portugal, que se detectam dois<br />

modelos dominantes: o stile pieno, que seguia o idioma contrapontístico de Palestrina,<br />

embora a combinação das linhas polifónicas de igual peso cedesse o lugar a um processo<br />

gradual de escrita baseado em progressões harmónicas, valorizando o movimento melódico<br />

e texturas homofónicas, em detrimento do contraponto; e o stile concertato, que absorvera o<br />

virtuosismo vocal da música dramática.<br />

Foi ainda neste peculiar contexto que emergiu a obra de dois bolseiros do Magnânimo,<br />

Francisco António de Almeida e António Teixeira, os quais, tal como Carlos Seixas, se<br />

mostraram dignos ilustradores do universo musical joanino.<br />

Nascido em Lisboa, em 1707, António Teixeira seguiu para Itália, na qualidade de<br />

bolseiro, com apenas 10 anos, tendo permanecido em Roma até Junho de 1728. Ao<br />

regressar a Lisboa foi apontado como cantor da Capela Real e examinador ofi cial de<br />

cantochão da diocese de Lisboa. Presume-se que tenha morrido ca. 1759.<br />

Os seus responsórios do Ofício de Matinas para a festividade de São Vicente, escritos para<br />

4 vozes e baixo contínuo, apresentam a mesma estrutura formal, dividida em quatro partes<br />

(à excepção do terceiro, com cinco partes): uma secção inicial, de carácter introdutório, de<br />

escrita fundamentalmente vertical, na relativa menor, conduz à presa, a segunda secção, um<br />

fugato, de discurso musical imitativo, na tónica, modelando à relativa maior, que funciona<br />

como um refrão; segue-se o verso, para duas vozes solistas, na relativa maior, que conduz<br />

à repetição da presa.<br />

José António Carlos de Seixas foi um dos mais notáveis compositores portugueses da<br />

primeira metade do século XVIII. Apesar de nunca ter saído de Portugal, <strong>ao</strong> contrário de<br />

alguns dos seus contemporâneos, como Francisco de Almeida ou António Teixeira, teve<br />

oportunidade de familiarizar-se com as novas correntes musicais, essencialmente, através<br />

do contacto com os diversos músicos da Capela Real.<br />

Nascido em Coimbra em 1704, de<strong>sem</strong>penhou as funções de organista da Sé de Coimbra,<br />

por morte do pai, antigo titular, entre 1718 e ca. 1722, ano em que se mudou para Lisboa,<br />

onde viria ocupar cargo <strong>sem</strong>elhante, desta feita, na Capela Real. Professor de cravo, fi cou<br />

famoso pelas sonatas para instrumento de tecla que, a acreditar nos testemunhos da época,


notas <strong>ao</strong> programa<br />

ultrapassavam as 700. Nobilitado com a Ordem de Cristo, honra inaudita entre músicos<br />

deste período, morreu em Lisboa em 1742.<br />

Infelizmente, a sua obra musical é inconstante. Se, por um lado, temos a graciosidade<br />

do responsório Hodie Nobis, num virtuosismo musical que acentua a prosódia do texto,<br />

por outro deparamo-nos com a simplicidade do discurso de outras obras como, por<br />

exemplo, a antífona Verbum Carum.<br />

Quanto a Francisco António de Almeida, José Mazza, no Diccionario Biographico de<br />

Musicos (ca. 1780), chama-lhe “organista da Patriarcal e famoso compositor”. Por outras<br />

fontes da época é tratado apenas por Francisco António e citado como compositor de<br />

música para as populares representações de Presépios que se faziam na Mouraria. Sabe-<br />

-se que, tendo nascido ca. 1702, foi enviado para Roma em 1716/1717, onde permaneceu<br />

por alguns anos. Da sua passagem por Roma fi cou um retrato caricatural do famoso Pier<br />

Leone Ghezzi [1674-1755], que se encontra na Biblioteca Apostólica Vaticana com a<br />

seguinte legenda: “Signor Francesco Portoghese il quale è venuto in Roma per studiare, e<br />

presentemente è un bravissimo compositore di Concerti, e di musica da Chiesa “.<br />

Deduz-se que tenha regressado a Lisboa dois meses antes de António Teixeira, em<br />

Abril de 1728, pois a 22 do dito mês executou-se no palácio do cardeal D. João da Mota<br />

[1691-1747], Secretário de Estado do Reino, a serenata Il Trionfo della Virtù, com libreto<br />

de D. Luca Giovine e música de sua autoria. Seguiu-se o scherzo pastorale Il Trionfo d’Amore,<br />

a 27 de Dezembro de 1729, no Paço da Ribeira. Nos anos ulteriores compôs Gl’incanti<br />

d’Alcina, cantada a 27 de Dezembro de 1730, no Paço da Ribeira (27 de Dezembro era a<br />

festa onomástica de D. João V), La Spinalba ovvero il Vecchio Mato, no Carnaval de 1739, e<br />

L’Ippolito, uma serenata, cantada no Teatro do Forte do Paço da Ribeira a 4 de Dezembro<br />

de 1752. Presume-se que tenha morrido no terramoto de 1755.<br />

Almeida foi, <strong>sem</strong> margem de dúvidas, o maior compositor português da primeira<br />

metade do século XVIII, pela fl uidez e requinte do discurso musical, e aquele que melhor<br />

incorporou na sua obra o idioma musical romano em todo o seu esplendor. A harmonia do<br />

contraponto, bem como a beleza das linhas vocais apontam, em certa medida, para além<br />

do Barroco, num exercício de genialidade musical, raro entre nós.<br />

josé bruto da costa<br />

51


52<br />

textos<br />

salve regina<br />

Salve, Regina, Mater misericordiæ,<br />

vita, dulcedo, et spes nostra, salve.<br />

ad te clamamus<br />

exsules fi lii Evæ,<br />

ad te suspiramus, gementes et fl entes<br />

in hac lacrimarum valle.<br />

Eia, ergo, advocata nostra, illos tuos<br />

misericordes oculos ad nos converte;<br />

et Iesum, benedictum fructum ventris tui,<br />

nobis post hoc exsilium ostende.<br />

O clemens, O pia, O dulcis Virgo Maria.<br />

in jejunio et fletu<br />

In jejunio et fl etu orabant sacerdotes: Parce,<br />

<strong>Do</strong>mine, parce populo tuo, et ne des hereditatem<br />

tuam in perditionem.<br />

in festo assumptionis b.m.v<br />

responsorium ii<br />

Sicut cedrus exaltata sumi n Líbano, et sicut<br />

cypressus in monte Sion, quasi myrrha electa.<br />

Dedit suavitatem odoris.<br />

Et sicut cinnamomum et balasamum aromzans.<br />

in festo s. vincentii. responsorium i<br />

Sacram beati Vincentii martyris solemnitatem<br />

devote celebremus, cum invictus Christi athleta<br />

insignem victoriæ palmam intulit cælo.<br />

Et bravium salutis æternæ comprehendens corona<br />

justitiæ recepit.<br />

Bonum certamen certavit, cursum consummavit<br />

fi dem servavit.<br />

in festo s. vincentii. responsorium ii<br />

Si jubes Pater sancte, responsis judicem æggrediar:<br />

jam tibi fi li, divini verbi curam commiseram.<br />

Nunc quoque profi de qua astamus, responsa<br />

committo.<br />

Magnam jam pridem cum laude, et crediti mihi<br />

populi utilitate, meo munere fungebatis.<br />

lamentatio prima in sabbato sancto.<br />

a 4 concertata<br />

De lamentatione Jeremiæ Prophetæ.<br />

Heth.<br />

Misericordiæ <strong>Do</strong>mini quia non sumus consupti;<br />

quia non defecerunt miserationes ejus.<br />

Heth.<br />

Non vidiluculo, multa est fi des tua.<br />

Heth.<br />

Pars mea <strong>Do</strong>minus, dixit anima mea: propterea<br />

exspectabo eum.<br />

Teth.<br />

Bonus est <strong>Do</strong>minus sperantibus in eum, animæ<br />

querenti ilum.<br />

Teth.<br />

Bonum est præstolari cum silentio salutare Dei.<br />

Teth.<br />

Bonum est viro cum portaverit jugum ab<br />

adolescentia sua.<br />

Jod.<br />

Sedebit solitarius, et tacebit: quia levavit super se.<br />

Jod.<br />

Ponet in pulvere ossum, si forte spes.<br />

Jod.<br />

Dabit percutienti se maxilam, saturabitur<br />

opprobriis.<br />

Jerusalem convertere ad <strong>Do</strong>minum Deum tuum.


o quam suavis<br />

O quam suavis est, <strong>Do</strong>mine, Spiritus tuus, qui ut<br />

dulcedinem tuam in fi lios demonstrares, pane suavissimo<br />

de caelo praestito, esurientes reples bonis,<br />

fastidiosos divites dimittens inanes<br />

responsorio a 4 concertato<br />

per la festa de st.º antonio<br />

Si quæris miracula, mors, error, calamitas, dæmon<br />

lepra fugiunt: ægri surgunt sani.<br />

Cedunt mare vincula membra, resque perditas,<br />

petunt et accipiunt juvenes et cani.<br />

Pereunt pericula, sessat et necessitas: narrent hi qui<br />

sentiunt, dicant paduani.<br />

Gloria Patri et Filio, et Spiritui Sancto.<br />

motetto a 4 concertato<br />

in commune unius martyris<br />

Justus ut palma fl orebit, sicut cedrus quæ in<br />

Libano est, multiplicabitur.<br />

responsório a 5 para o natal<br />

Hodie nobis cælorum Rex de Virgine nasci<br />

dignatus est.<br />

Ut hominem perditum ad celestia regna revocaret:<br />

Gaudet exercitus angelorum: quia salus æterna<br />

humano generi apparuit.<br />

Glória in excelsis Deo, et in terra pax hominibus,<br />

bonæ voluntatis. Glória Patri, et Filio et Spiritui<br />

Sancto.<br />

textos<br />

53


54<br />

igreja matriz de santo ildefonso<br />

almodôvar<br />

�<br />

A escolha de Santo Ildefonso (monge e abade do mosteiro beneditino de Toledo,<br />

e depois bispo da mesma cidade, que viveu no século VII) como orago da paróquia<br />

de Almodôvar constitui um interessante refl exo da presença, no Baixo Alentejo, da<br />

espiritualidade monástico-militar, difundida pelos freires da Ordem de Avis, que seguia a<br />

Regra de São Bento. Porém, a primitiva igreja matriz da vila, pertencente em tempos <strong>ao</strong><br />

padroado real, foi doada por D. Dinis, no ano de 1297, à Ordem de Santiago. Esta teve<br />

aqui uma das suas colegiadas, formada por um prior e três benefi ciados. Embora seguindo<br />

outra linhagem religiosa, de regra agostiniana, os freires espatários preservaram a devoção<br />

a Santo Ildefonso.<br />

O edifício actual, traçado em 1592 pelo arquitecto Nicolau de Frias, constitui um<br />

exemplo muito harmonioso da tipologia de “igreja-salão” (hallenkirche), com três naves<br />

de quatro tramos cobertas por abóbadas, revelando grande sentido de unidade espacial<br />

e excelente acústica. Na verdade, a coerência da planimetria, o ritmo da composição dos<br />

alçados e o destaque outorgado <strong>ao</strong> tratamento dos pormenores, como as seis colunas<br />

toscanas em que assentam as arcarias de vulto perfeito, são bem reveladores do sentido<br />

de depuração classicizante atingida, em fi nais do século XVI, por este modelo, fi el à<br />

austeridade preconizada pela Contra-Reforma.<br />

D. João V determinou uma remodelação parcial do monumento, obra descrita pelo<br />

P. e Luís Cardoso no Diccionario Geografi co (1747): “porque a capela-mor se achava<br />

arruinada, e por sua pequenhez fi ca imperfeito o edifício da igreja, que é o maior templo<br />

desta comarca, foi Sua Majestade servido mandar pelo Tribunal da Mesa da Consciência,<br />

e Ordens, se derrubasse, e fi zesse regular <strong>ao</strong> restante da igreja, e se acrescentasse tribuna,<br />

que de presente se anda fazendo”. Estas obras vieram a ser completadas com a encomenda,<br />

à ofi cina do mestre eborense Sebastião de Abreu do Ó, dos sumptuosos altares de talha<br />

dourada e policromada da nave, cuja riqueza denota a pujança das diversas confrarias e<br />

irmandades da matriz.<br />

Nos séculos XIX e XX realizaram-se outras intervenções de vulto que modifi caram<br />

substancialmente a fábrica maneirista, a última das quais ocorreu já na década de<br />

IV. Nossa Senhora da Conceição (pormenor) | Escola portuguesa | Ca. 1720<br />

Almodôvar, igreja do convento de Nossa Senhora da Conceição.


1950. Data de então o painel mural do pintor Severo Portela Jr. [1898-1985], artista<br />

profundamente ligado a Almodôvar, fi gurando o Baptismo de Cristo no Jordão, que<br />

ornamenta o baptistério renovado.<br />

A paróquia de Santo Ildefonso conserva na sua igreja um importante acervo de alfaias<br />

litúrgicas, em parte oriundo do antigo convento de Nossa Senhora da Conceição da<br />

mesma vila, que pertenceu à Ordem Terceira de São Francisco.<br />

josé antónio falcão<br />

bibliografia fundamental: Luiz Cardoso, Diccionario Geografi co, ou Noticia Historica de todas as<br />

Cidades, Villas, Lugares, e Aldeas, Rios, Ribeiras, e Serras dos Reynos de Portugal, e Algarve, com todas as Cousas<br />

Raras, que nelles se encontraõ, assim Antigas, como Modernas, I, Lisboa, Na Regia Offi cina Sylviana, e da Academia<br />

Real, 1747; José Maria Afonso Coelho, Foral de Almodôvar, 4.ª ed., Almodôvar, Câmara Municipal de<br />

Almodôvar, 2004; Vítor Serrão, História da Arte em Portugal. O Renascimento e o Maneirismo (1500-1620),<br />

Lisboa, Editorial Presença, 2002.<br />

55


7 DE FEVEREIRO DE 2009 . 21H30<br />

igreja matriz de santo ildefonso<br />

almodôvar<br />

ludovice en<strong>sem</strong>ble<br />

!<br />

la dévotion du grand siècle<br />

Música Sacra Francesa no Tempo de Luís XIV<br />

FRANÇOIS COUPERIN (1668-1733)<br />

5 ème couplet du Gloria in Excelsis<br />

[accommodé pour une fl ûte allemande, un violon, la basse de viole et la basse continue]<br />

MARC-ANTOINE CHARPENTIER (1643-1704)<br />

Troisième Leçon de Ténèbres du mercredi saint pour une basse, H. 141<br />

FRANÇOIS COUPERIN<br />

6 ème couplet du Gloria in Excelsis<br />

MARC-ANTOINE CHARPENTIER<br />

Troisième Leçon de Ténèbres du mercredi saint pour une basse, H. 142<br />

FRANÇOIS COUPERIN<br />

7 ème couplet du Gloria in Excelsis<br />

MARC-ANTOINE CHARPENTIER<br />

Troisième Leçon de Ténèbres du vendredi saint pour une basse, H. 143<br />

LOUIS COUPERIN (ca. 1626-1661)<br />

Fantasie de Violes – Simphonie – Simphonie<br />

57


58<br />

NICOLAS BERNIER (1665-1734)<br />

Motet pour tous les Temps à voix veule avec symphonie<br />

“Venite, exultemus domino” (Psaume 94)<br />

MARC-ANTOINE CHARPENTIER<br />

Prélude, Menuet & Passepied devant l’Ouverture H.520 – Sarabande pour la Paix H.487–<br />

Simphonie à 3 fl utes ou violons H.529 – Trio de Mr. Charpentier H.548b<br />

ANDRÉ CAMPRA (1660-1744)<br />

III Motet a voix seule et deux dessus […] “Laudate <strong>Do</strong>minum de Cælis” (Psaume 148)<br />

!


ludovice en<strong>sem</strong>ble<br />

Hugo Oliveira, basse-taille<br />

Joana Amorim, fl ûte traversière<br />

Bojan Cicic, dessus de violon<br />

Romina Lischka, basse de viole<br />

Fernando Miguel Jalôto, orgue<br />

notas biográficas<br />

O Ludovice En<strong>sem</strong>ble é um grupo de Música de Câmara especializado na interpretação<br />

de Música Antiga. Sedeado em Portugal, conta com a colaboração de artistas de várias<br />

nacionalidades, dotados de formação específi ca em “Práticas Históricas de Interpretação”.<br />

O nome do en<strong>sem</strong>ble é uma homenagem <strong>ao</strong> arquitecto e ourives alemão Johann Friedrich<br />

Ludwig [1673-1752], arquitecto-mor d’el-rei D. João V, um dos elementos centrais<br />

na reforma artística, cultural e social efectuada por este monarca para a “europeização”<br />

da corte portuguesa. Criado em 2004 por Fernando Miguel Jalôto e Joana Amorim, o<br />

Ludovice En<strong>sem</strong>ble tem como objectivo interpretar e divulgar repertório de câmara dos<br />

séculos XVII e XVIII.<br />

PRINCIPAIS CONCERTOS E ESPECTÁCULOS.<br />

2008: “L’Apothéose de Corelli: A infl uência de Corelli na Música Europeia do Início<br />

do Século XVIII” – <strong>Festival</strong> Música em Leiria; “La Dévotion du Grand Siècle: Música<br />

Sacra Francesa no Tempo de Louis XIV”, Solista: Hugo Oliveira (barítono) – <strong>Festival</strong><br />

Internacional de Música de Alcobaça “Cistermúsica”. 2007: “Sonates et Concerts, et Autres<br />

Airs à Danser et à Jouer, pour les Flûtes, Violes et Violons”, Solista: Akiko Veaux (Dança<br />

Barroca) – <strong>Festival</strong> “Encontros do Espírito Santo” (Universidade de Évora); “Musica Lætitiæ<br />

Comes Medicina <strong>Do</strong>lorum: Música e Medicina no Antigo Regime” – Auditório do Hospital<br />

Geral de Santo António, Porto; Cantatas e Concerts de J.-Ph. Rameau, Solista: Hugo Oliveira<br />

59


60<br />

notas biográficas<br />

(barítono) – Museu da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa) e Universidade de Évora.<br />

2006: Suites, Concerts e Sonatas do Barroco Francês – Encontros de Música Antiga de<br />

Loulé; Cantatas e Concerts de J. B. Stuck e de J.-Ph. Rameau; Solista: Orlanda Velez Isidro<br />

(soprano) – Folle-Journée/Festa da Música, Centro Cultural de Belém. 2005: “À la Venue<br />

de Noël… Advento e Natal na França do século XVIII”, Solista: Hugo Oliveira (barítono) –<br />

Ciclo de Música Sacra de Viana do Castelo; Cantatas de A. Campra e K. Van Blankenburg,<br />

Solista: Hugo Oliveira (barítono) – Museu da Fundação Calouste Gulbenkian (Lisboa).<br />

“Une Fête Galante”, inspirado na obra de Antoine Watteau, Solista: Orlanda Velez Isidro<br />

(soprano) – <strong>Festival</strong> Internacional de Música de Mafra.<br />

HUGO OLIVEIRA Barítono<br />

Nascido em Lisboa (1977), Hugo Oliveira iniciou a sua formação musical com seis<br />

anos no Instituto Gregoriano de Lisboa. É licenciado em Canto pela Escola Superior<br />

de Música de Lisboa, tendo estudado com Helena Pina Manique e Luís Madureira.<br />

Enquanto bolseiro da Fundação Calouste Gulbenkian prosseguiu os estudos no Real<br />

Conservatório de Haia (Holanda), onde foi aluno de Jill Feldman e Michael Chance.<br />

Para além da especialização no repertório barroco, estende a sua fl exibilidade como cantor<br />

<strong>ao</strong> repertório clássico/romântico e contemporâneo. A convite do grupo inglês Hilliard<br />

En<strong>sem</strong>ble estreou-se como solista, em 1997, na obra Passio, de Arvo Pärt ( Jesus). Tem<br />

colaborado com a Orquestra Sinfónica de Londres, a Orquestra Filarmónica da Radio<br />

(Holanda), a Orquestra Gulbenkian, Les Concerts des Nations, o Schöenberg En<strong>sem</strong>ble,<br />

a Orquestra Sinfónica de Düsseldorf, a Ebony Band, o Remix En<strong>sem</strong>ble e o Ricercar<br />

Consort, entre outras formações. Apresentou-se em algumas das mais importantes salas<br />

nacionais e europeias (Amesterdão, Londres, Paris, Madrid, Barcelona) e em vários<br />

festivais em Espanha, França, Inglaterra, Holanda, Bélgica e Alemanha.<br />

Entre outros maestros, cantou sob a direcção de Michel Corboz, Jordi Saval, Jaap<br />

van Zweden, Marcus Creed, Gennadi Rozhdestvensky, Laurence Cummings, Christina<br />

Pluhar, Stefan Asbury, Reinbert de Leeuw, François Xavier Roth, Martin Andrè, Pierre-<br />

-André Valade, Werner Herbers, Nigel North e Richard Gwilt. Dentro do vasto repertório<br />

interpretado destacam-se obras como Paixão segundo São Mateus, Paixão segundo São João,<br />

Paixão segundo São Marcos e Oratória de Natal, de J. S. Bach, Vespro della Beata Vergine, de C.<br />

Monteverdi, Invitatórios e Responsórios de Natal, de Casanoves, Paixão segundo São Mateus,<br />

de Schütz, Messias, Nisi <strong>Do</strong>minus e Dixit <strong>Do</strong>minus, de Händel, Christus e Lauda Sion, de<br />

Mendelssohn-Bartholdy, Missa Nelson, de Haydn, Requiem, Missa em Dó maior e Missa da<br />

Coroação, de W. A. Mozart, Requiem, de Durufl é e Fauré, Requiem, de Brahms, Petite Messe<br />

Solennelle, de Rossini, Pulcinella, de Igor Stravinsky, Die Legende von der Heiligen Elisabeth,<br />

de Liszt, Missa das Crianças, de J. Rutter, e Jetzt immer Schnee, de Gubaidulina. Interpretou<br />

também, em estreia absoluta, a Cantata Verbum Caro, de Nuno Corte-Real.<br />

No domínio da Ópera interpretou As Bodas de Fígaro (Fígaro), de Mozart, Th e Triumph<br />

of Time and Truth (Tempo), de Händel, Venus e Adonis (Adónis), de John Blow (Adónis),


notas biográficas<br />

Les Malheurs d’Orphée, de D. Milhaud (Orphée), Melodias Estranhas, de António Chagas<br />

Rosa (Damião de Góis) e comédia madrigalesca La barca di Venetia per Padova, de A.<br />

Banchieri, sob a direcção de Gabriel Garrido. Enquanto membro do Estúdio de Ópera<br />

do Porto – Casa da Música participou em produções como Joaz (Azaria e Jojada), de<br />

Benedetto Marcello, L’Ivrogne Corrigé (Lucas), de Gluck, e Frankenstein!, de Heinz-<br />

-Karl Gruber (coreografi a de Paulo Ribeiro). No âmbito do projecto Académie Baroque<br />

Européenne de Ambronay (2004) colaborou na ópera Les Arts Florissants (La Discorde),<br />

de Marc-Antoine Charpentier, dirigida por Christophe Rousset.<br />

FERNANDO MIGUEL JALÔTO Cravo e Direcção Musical<br />

Fernando Miguel Jalôto estudou Cravo no Conservatório de Música do Porto e no<br />

Departamento de Música Antiga e Práticas Históricas de Interpretação do Conservatório<br />

Real da Haia (Países Baixos). Completou a Licenciatura (2002) e o Master Degree (2005)<br />

sob a orientação de Jacques Ogg. Frequentou Master-Classes com Gustav Leonhardt, Ilton<br />

Wjuniski, Laurence Cummings e Ketil Haugsand. Estudou órgão barroco e clavicórdio.<br />

Foi bolseiro do Centro Nacional de Cultura. É Mestre em Música pela Universidade de<br />

Aveiro (2006).<br />

Enquanto aluno do Conservatório Real tocou sob a direcção de J. ter Linden, E.<br />

Wallfi sh, T. Koopman, Ch. Pluhar. É membro da Orquestra Barroca Divino Sospiro desde<br />

2005. Com este agrupamento apresenta-se regularmente sob a direcção de E. Onofri, R.<br />

Alessandrini, Ch. Pluhar, A. Bernardini e V. Ghielmi. É frequentemente convidado por<br />

esta orquestra para se apresentar como solista – Concertos de Carlos Seixas; J. S. Bach;<br />

J. Ch. Bach/W. A. Mozart – nomeadamente nos festivais de Île-de-France, Ambronay<br />

e “La Folle Journée” (França); no <strong>Festival</strong> Internacional de Varna (Bulgária); no<br />

“Febrero Lírico” do Real Coliseo de San Lorenzo del Escorial (Espanha); nos festivais<br />

internacionais de Mafra e Leiria; na Festa da Música no Centro Cultural de Belém; nos<br />

Encontros de Música Antiga de Loulé; e em várias residências no Centro Cultural de<br />

Belém.<br />

Apresentou-se com a Lyra Baroque Orchestra (Minnesota) e a Real Escolania<br />

de San Lourenço d’El Escorial, sob a direcção de Jacques Ogg, tendo gravado com<br />

estes agrupamentos um CD para a editora espanhola Glossa; e com a Orquestra da<br />

Radiotelevisão Norueguesa, sob a direcção de R. Goodman. Participou, sob a direcção de<br />

C. Rousset, numa produção de duas óperas de Marc-Antoine Charpentier pela Académie<br />

Baroque Européenne de Ambronay, incluindo 12 récitas em alguns dos principais teatros<br />

de ópera de França e Espanha, a gravação de um DVD para a editora Armide e gravações<br />

integrais <strong>ao</strong> vivo para os canais de televisão ARTE e Mezzo. Sob a direcção de Wim<br />

Becu tocou em 2006 as Musikalische Exequien, de Schütz, em três concertos na Bélgica<br />

e, em 2008, as Vespro della Beata Vergine, de Monteverdi, em concertos na Bélgica e na<br />

Holanda. Em 2007 e 2008 apresentou-se como solista com a Orquestra Barroca da Casa<br />

da Música (Porto), dirigida por L. Cummings, trabalhando ainda com este agrupamento<br />

61


62<br />

notas biográficas<br />

sob a direcção de F. Biondi e H. Christophers. Participou recentemente numa produção da<br />

ópera As Bodas de Fígaro com a Orquestra Camerata Academica Salzburg, sob a direcção<br />

de M. Brabbins.<br />

É co-fundador do Ludovice En<strong>sem</strong>ble, de<strong>sem</strong>penhando as funções de director artístico.<br />

Este agrupamento apresentou-se na Festa da Música (CCB), nos Festivais Internacionais<br />

de Mafra, Leiria, Alcobaça e Loulé, e concertos em Évora (Universidade e Biblioteca),<br />

Museu Calouste Gulbenkian (Lisboa), Porto e Viana do Castelo.<br />

!


la dévotion du grand siècle<br />

Música Sacra Francesa no Tempo de Luís XIV<br />

notas <strong>ao</strong> programa<br />

O Petit Motet é uma forma musical francesa que conheceu o seu apogeu entre<br />

1670 e 1730, aproximadamente. Desenvolveu-se a partir do Motetto Concertato italiano<br />

seiscentista e da aplicação à música sacra dos princípios da monodia acompanhada e da<br />

Seconda Prattica, praticados no Norte de Itália <strong>ao</strong> redor de 1600. Os grandes cultores do<br />

Petit Motet foram os compositores mais progressistas, que procuravam revitalizar com<br />

a música francesa, <strong>sem</strong> no entanto a desvirtuar das suas qualidades. Para conseguir tal<br />

renovação, acreditavam que se devia procurar atingir um subtil equilíbrio entre as novas<br />

tendências assimiladas a partir da música italiana – tendo como modelos as obras de Rossi,<br />

Carissimi, Stradela e Corelli – e o estilo francês, tal como este fora codifi cado por Jean-<br />

-Baptiste Lully em meados do século XVII.<br />

Todos os compositores representados no programa que comentamos participaram<br />

activamente neste movimento de “reunião dos gostos” (Goûtes-Réunis): Marc-Antoine<br />

Charpentier estudou em Roma; Bernier e Campra dedicaram-se sobretudo à reforma<br />

da música vocal – dramática, sacra e de câmara; François Couperin escreveu as primeiras<br />

sonatas “a tré” em França; Louis Couperin, pertencente a uma geração anterior, havia dado<br />

já o mote a este ideal, <strong>ao</strong> estabelecer contacto (e deixar-se fortemente infl uenciar) com<br />

Johann Jakob Froberger, cravista da corte imperial de Viena e antigo aluno de Girolamo<br />

Frescobaldi em Roma.<br />

O Petit Motet é escrito normalmente para 1 ou 2 vozes com acompanhamento de<br />

baixo contínuo; a esta formação são adicionados com alguma frequência dois dessus<br />

instrumentais (violons ou fl ûtes). Caracteriza-se, pot conseguinte, pelo pequeno efectivo<br />

vocal e instrumental, mas também pela sua concisão formal, duração breve e predilecção por<br />

textos litúrgicos ou devocionais de carácter predominantemente meditativo, contemplativo<br />

ou plangente. A escrita vocal e instrumental empregue raramente assume um carácter<br />

virtuoso e extrovertido, preferindo antes uma evocação sensível dos sentimentos mais<br />

íntimos e delicados. O Petit Motet é assim a forma musical mais adequada à expressão de<br />

uma devoção e piedade intensas, mas muito pessoais, refl ectindo uma relação emocional e<br />

individual com Deus. Não deixa, contudo, de possuir uma extr<strong>ao</strong>rdinária capacidade de<br />

resposta a diferentes necessidades litúrgicas, devocionais ou mesmo de “entretenimento<br />

espiritual”.<br />

Na Liturgia Galicana, por infl uência da prática levada a cabo na Capela Real de<br />

Versalhes, mas encontrando variantes particulares nas várias catedrais, paróquias,<br />

colegiadas e conventos, o Petit Motet encontrava lugar durante a Eucaristia, em particular<br />

na Consagração e na Elevação das Espécies, sendo por isso conhecido como Elévation.<br />

63


64<br />

notas <strong>ao</strong> programa<br />

Estas obras de carácter eucarístico eram vulgarmente utilizadas nas adorações diárias do<br />

Santíssimo Sacramento, na devoção das Quarenta Horas e nas festividades do Corpus<br />

Christi. Os Petits Motets podiam ser escritos sobre um texto litúrgico (como a antífona<br />

O Salutaris Hostia), mas com mais frequência eram compostos sobre poesias neo-latinas<br />

não litúrgicas.<br />

A “Prière pour le Roy” ou <strong>Do</strong>minum Salvum costumava ser escrita sob a forma de<br />

Petit Motet. Existe ainda um número substancial de Petits Motets com textos bíblicos ou<br />

litúrgicos: os salmos, as quatro antífonas marianas, os cânticos bíblicos neo-testamentários<br />

(Magnifi cat, Nunc Dimitis, Benedictus) e, especialmente, as Lamentações de Jeremias (Leçons<br />

de Ténèbres). Todos eles permitiam uma aplicação muito vasta em diversos contextos, embora<br />

a sua principal utilização ocorresse na Recitação das Horas Litúrgicas. Nas comunidades<br />

paroquiais mais pequenas, tal como nos conventos e nos mosteiros, o uso de um ou dois<br />

Petits Motets dava particular brilho à oração de Vésperas, contrastando com o Cantochão<br />

medido e harmonizado em Faux-Bourdon (segundo a prática francesa da época) ou com<br />

a música de órgão. Nas catedrais e capelas principescas o Petit Motet assumia sobretudo o<br />

papel de alternativa íntima, recatada e quase sensual à grandiloquência e espectacularidade<br />

dos Grands Motets com solos, coros e faustosos acompanhamentos instrumentais.<br />

Nas Horas menos solenes, como as Completas e as Matinas, o Petit Motet era ainda<br />

mais largamente utilizado. Durante a Semana Santa verifi cava-se em França um fenómeno<br />

muito peculiar, motivado – de forma paradoxal – simultaneamente pela devoção e pelo<br />

mundanismo, pela piedade e pela coquetterie. Toda a população acorria em massa às<br />

principais casas religiosas, desde a família real até <strong>ao</strong>s mais humildes súbditos, para ouvir<br />

cantar as Matinas do Tríduo, também conhecidas como Trevas (Ténèbres), frequentemente<br />

executadas pelos melhores cantores da Académie Royal de Musique (Ópera de Paris). Estas<br />

cerimónias decorriam inicialmente nas primeiras horas da madrugada de Quinta-Feira,<br />

Sexta-Feira e Sábado Santos; todavia, para permitir a assistência de um maior número<br />

de fi éis, há muito que a Igreja permitira a sua celebração antecipada, <strong>ao</strong> entardecer do<br />

dia anterior.<br />

As Matinas do Tríduo consistiam numa sucessão de nove leituras intercaladas com<br />

salmos e responsórios; em cada dia três das leituras (lições) eram extraídas do Livro das<br />

Lamentações, atribuído <strong>ao</strong> profeta Jeremias, versando sobre a destruição de Jerusalém e do<br />

Templo, aquando da deportação para a Babilónia. As cinco Lamentações constituem uma<br />

das maiores obras poéticas da Bíblia, escritas num estilo intenso, dramático, apaixonado,<br />

pleno de contrastes e imagens fortes, alternando súplicas, lamentos, momentos de raiva,<br />

ira, submissão e desespero – uma combinação bem <strong>ao</strong> agrado do gosto seiscentista.<br />

Com excepção da última, cada versículo das primeiras quatro Lamentações iniciava-se<br />

ordenadamente por uma das letras do alfabeto hebreu. Estas letras foram mantidas por<br />

São Jerónimo na tradução integral da Bíblia para Latim (Vulgata). Desde a Idade Média<br />

que cada letra era ornada por uma longa entoação, o que deu origem <strong>ao</strong>s elaborados<br />

melismas que caracterizam a maior parte da Leçons de Ténèbres. As nove lições podiam ser<br />

cantadas, mas era mais comum musicar-se apenas a última lição de cada dia. O canto das<br />

Leçons de Ténèbres, porém, era apenas uma parte – ainda que essencial – de um elaborado


notas <strong>ao</strong> programa<br />

cerimonial cénico, que envolvia a extinção progressiva das nove luzes de um candelabro<br />

específi co, bem como outros gestos e rituais plenos de simbolismo.<br />

A partir de 1700, começaram a ser publicados com regularidade volumes de Petits<br />

Motets destinados a suprir a música para diferentes utilizações litúrgicas nas diferentes<br />

comunidades (catedrais, capelas, conventos, paróquias, etc.). A intensa eloquência dos<br />

textos, aliados a uma escrita musical extremamente cuidada e sensível e à modernidade<br />

do estilo, contribuíram para a sua grande dis<strong>sem</strong>inação. Assim, um uso complementar<br />

dos Petits Motets foi a recreação privada e edifi cante, sobretudo em convívios e encontros<br />

realizados em conventos ou em casas de famílias mais devotas. Assumiam assim uma<br />

função muito próxima das Cantatas profanas – elas mesmo por vezes dotadas de uma<br />

moral edifi cante – e musicalmente os estilos tendiam a aproximar-se (até porque, como<br />

vimos, os compositores de ambos os géneros eram os mesmos).<br />

As Leçons de Ténèbres de Marc-Antoine Charpentier hoje apresentadas são um dos ciclos<br />

menos conhecidos deste compositor. O autor escreveu nove séries. Este ciclo encontra-<br />

-se redigido num estilo sóbrio e despojado, predominantemente silábico e declamativo,<br />

e dispensa quase por completo a ornamentação das letras hebraicas. A atenção foca-se<br />

sobretudo no conteúdo dramático do texto e na interligação entre as melodias vocais e os<br />

breves interlúdios instrumentais. Foi provavelmente escrito para os Jesuítas do Colégio<br />

parisiense Louis-le-Grand ou para a Sainte-Chapelle, onde Charpentier foi mestre de<br />

capela. Nicolas Bernier sucedeu-lhe nesse posto, que acumulava com outras funções como<br />

mestre-capela de várias instituições religiosas, entre elas a grande e rica paróquia de Saint-<br />

-German-l’Auxerois. O salmo 94 constitui parte essencial do Invitatório, a primeira<br />

oração do dia. Antecedendo as Matinas, era recitado (ou cantado) todos os dias do ano,<br />

com excepção dos tempos penitenciais. André Campra foi mestre-capela da catedral de<br />

Nôtre Dame de Paris, ainda que se tenha distinguido sobretudo no campo da música<br />

operática. O jubiloso salmo 148 curiosamente não inclui o “Aleluia” inicial, talvez para<br />

permitir a sua utilização no maior número possível de ocasiões, e não num tempo ou<br />

cerimonial litúrgico particular.<br />

Parte das obras instrumentais são extraídas maioritariamente das Missas de Órgão<br />

de François Couperin. Encontramo-las aqui numa versão instrumental que corresponde<br />

não só às sugestões referidas nos prefácios de várias colecções de obras organísticas do<br />

período mas também <strong>ao</strong> exemplo de Charpentier, que legou uma esplendorosa Messe pour<br />

les Instruments au lieu des Orgues. Estas versões instrumentais têm a virtude de revelarem a<br />

escrita colorida de Couperin, profundamente infl uenciada pelos trios italianos: as Missas<br />

de Órgão são contemporâneas das suas primeiras sonatas em trio, representando primeiros<br />

“ensaios” neste campo, mas evidenciam, no entanto, outras “experiências”, como o uso de<br />

uma voz solística no registo médio, equilibrando a textura e possibilitando um tratamento<br />

contrapontístico mais complexo. O mesmo tipo de escrita surge já nas Fantasias – genuinamente<br />

escritas para conjuntos instrumentais – do tio de François, Louis, organista em<br />

Saint-Gervais de Paris e gambista na corte. Finalmente, de Charpentier apreciamos<br />

uma série de pequenas peças em trio com proveniências várias e nem <strong>sem</strong>pre claras,<br />

umas profanas e outras sacras (como a H.529), agora combinadas de forma a evocarem<br />

65


66<br />

notas <strong>ao</strong> programa<br />

as Symphonies de Mr. Charpentier, copiadas no atelier do copista régio Philidor e hoje<br />

irremediavelmente perdidas.<br />

!<br />

fernando miguel jalôto


Troisième Leçon du mercredi saint<br />

JOD Manum suam misit hostis ad omnia<br />

desiderabilia ejus quia vidit gentes ingressas<br />

sanctuarium suum de quibus præceperas ne intrarent<br />

in ecclesiam tuam.<br />

CAPH Omnis populus ejus gemens et quærens<br />

panem; dederunt pretiosa quæque pro cibo ad<br />

refocilandam animam; vide <strong>Do</strong>mine considera<br />

quoniam facta sum vilis.<br />

LAMED O vos omnes qui transitis per viam<br />

adtendite et videte si est dolor sicut dolor meus<br />

quoniam vindemiavit me ut locutus est <strong>Do</strong>minus<br />

in die iræ furoris sui.<br />

MEM De excelso misit ignem in ossibus meis et<br />

erudivit me expandit rete pedibus meis convertit<br />

me retrorsum posuit me desolatam tota die mærore<br />

confectam.<br />

NUN Vigilavit jugum iniquitatum mearum in<br />

manu ejus convolutæ sunt et inpositæ collo meo<br />

infi rmata est virtus mea dedit me <strong>Do</strong>minus in<br />

manu de qua non potero surgere.<br />

Jerusalem convertere ad <strong>Do</strong>minum Deum tuum.<br />

troisième leçon du jeudi saint.<br />

ALEPH Ego vir videns paupertatem meam in<br />

virga indignationis ejus;<br />

Me minavit et adduxit in tenebris et non in lucem;<br />

Tantum in me vertit et convertit manum suam tota<br />

die.<br />

BETH Vetustam fecit pellem meam et carnem<br />

meam contrivit ossa mea;<br />

Ædifi cavit in gyro meo et circumdedit me felle et<br />

labore;<br />

In tenebrosis conlocavit me quasi mortuos<br />

<strong>sem</strong>piternos.<br />

GHIMEL Circumædifi cavit adversum me ut non<br />

egrediar adgravavit conpedem meam;<br />

Sed et cum clamavero et rogavero exclusit orationem<br />

meam;<br />

textos<br />

Conclusit vias meas lapidibus quadris <strong>sem</strong>itas meas<br />

subvertit.<br />

Jerusalem convertere ad <strong>Do</strong>minum Deum tuum.<br />

troisième leçon du vendredi saint.<br />

Incipit oratio Jeremiæ prophetæ:<br />

Recordare <strong>Do</strong>mine quid acciderit nobis intuere et<br />

respice obprobrium nostrum;<br />

Hereditas nostra versa est ad alienos domus nostræ<br />

ad extraneos;<br />

Pupilli facti sumus absque patre matres nostræ<br />

quasi viduæ;<br />

Aquam nostram pecunia bibimus ligna nostra<br />

pretio conparavimus;<br />

Cervicibus minabamur lassis non dabatur requies;<br />

Ægypto dedimus manum et Assyriis ut saturaremur<br />

pane;<br />

Patres nostri peccaverunt et non sunt et nos<br />

iniquitates eorum portavimus;<br />

Servi dominati sunt nostri non fuit qui redimeret<br />

de manu eorum;<br />

In animabus nostris adferebamus panem nobis a<br />

facie gladii in deserto;<br />

Pellis nostra quasi clibanus exusta est a facie<br />

tempestatum famis;<br />

Mulieres in Sion humiliaverunt virgines in<br />

civitatibus Juda.<br />

Jerusalem convertere ad <strong>Do</strong>minum Deum tuum.<br />

psaume 94 (vulgata)<br />

Venite exultemus <strong>Do</strong>mino jubilemus Deo salutari<br />

nostro;<br />

Præoccupemus faciem ejus in confessione et in<br />

psalmis jubilemus ei;<br />

Quoniam Deus magnus <strong>Do</strong>minus et rex magnus<br />

super omnes deos;<br />

Quia in manu ejus fi nes terræ et altitudines<br />

montium ipsius sunt;<br />

67


68<br />

textos<br />

Quoniam ipsius est mare et ipse fecit illud et siccam<br />

manus ejus formaverunt;<br />

Venite adoremus et procidamus et ploremus ante<br />

<strong>Do</strong>minum qui fecit nos;<br />

Quia ipse est Deus noster et nos populus pascuæ ejus<br />

et oves manus ejus;<br />

Hodie si vocem ejus audieritis nolite obdurare corda<br />

vestra;<br />

Sicut in irritatione secundum diem temptationis<br />

in deserto ubi temptaverunt me patres vestri<br />

probaverunt me et viderunt opera mea;<br />

Quadraginta annis off ensus fui generationi illi et<br />

dixi <strong>sem</strong>per errant corde;<br />

Et isti non cognoverunt vias meas ut juravi in ira<br />

mea si intrabunt in requiem meam<br />

psaume 148 (vulgata)<br />

Laudate <strong>Do</strong>minum de cælis laudate eum in excelsis;<br />

Laudate eum omnes angeli ejus laudate eum omnes<br />

virtutes ejus;<br />

Laudate eum sol et luna laudate eum omnes stellæ<br />

et lumen;<br />

Laudate eum cæli cælorum et aqua quæ super cælum<br />

est;<br />

Laudent nomen <strong>Do</strong>mini quia ipse dixit et facta<br />

sunt ipse mandavit et creata sunt;<br />

Statuit ea in sæculum et in sæculum sæculi<br />

præceptum posuit et non præteribit;<br />

Laudate <strong>Do</strong>minum de terra dracones et omnes<br />

abyssi;<br />

Ignis grando nix glacies spiritus procellarum quæ<br />

faciunt verbum ejus;<br />

Montes et omnes colles ligna fructifera et omnes cedri;<br />

Bestiæ et universa pecora serpentes et volucres<br />

pinnatæ;<br />

Reges terræ et omnes populi principes et omnes<br />

judices terræ;<br />

Juvenes et virgines senes cum junioribus laudent<br />

nomen <strong>Do</strong>mini;<br />

Quia exaltatum est nomen ejus solius;<br />

Confessio ejus super cælum et terram et exaltabit<br />

cornu populi sui hymnus omnibus sanctis ejus fi liis<br />

Israël populo ad propinquanti sibi.


igreja matriz de nossa senhora da assunção<br />

alvito<br />

�<br />

Classifi cada como Monumento Nacional pelo Decreto n.º 29 904<br />

(Diário do Governo de 16 de Maio de 1939)<br />

A génese da igreja matriz de Alvito está associada a um acordo sobre a cobrança dos<br />

respectivos dízimos que foi celebrado, em 7 de Março de 1262, entre D. Martinho I, bispo<br />

de Évora, e o donatário da vila, Estêvão Anes, chanceler-mor e colaço (irmão de leite)<br />

de D. Afonso III – e também genro do monarca, visto ter casado com uma sua fi lha<br />

ilegítima, D. Maria Afonso. Mais tarde, em cédula testamentária de 1279, o fundador<br />

legou o padroado da igreja <strong>ao</strong> convento da Santíssima Trindade, de Santarém, o que<br />

motivaria novo ajuste com a diocese de Évora, subscrito pelo bispo D. Durando. No ano<br />

seguinte estava em funções, como prior de Alvito, Fr. João Navarro, senhor desta igreja<br />

e das de Vila Nova, Benalvergue e Oriola. A invocação primitiva da paróquia foi a de<br />

Santa Maria, festejada no dia 15 de Agosto.<br />

De meados do século XV em diante, a povoação conheceu um surto de progresso que<br />

veio a culminar, em 1481, com a autorização dada por D. João II <strong>ao</strong> barão de Alvito, o<br />

<strong>Do</strong>utor João Fernandes da Silveira, chanceler-mor e regedor das justiças, e à sua segunda<br />

mulher, D. Maria de Sousa Lobo, senhora da terra, para edifi carem o castelo. Terá sido<br />

pelo mesmo período que se iniciou a reconstrução da igreja matriz, certamente com o<br />

contributo decisivo do mecenato dos barões, a quem os trinitários permitiram erguer o<br />

panteão familiar no cruzeiro, em posição de destaque. A capela do lado do Evangelho<br />

ostenta, na chave, as armas dos Lobos da Silveira, enquanto a chave da que lhe fi ca<br />

fronteira tem as armas dos Costas e dos Teixeiras. Supõe-se que as arcas ferais existentes<br />

nestas capelas pertenceram, respectivamente, <strong>ao</strong>s fundadores e a D. Fernando Afonso e<br />

D. Catarina Teixeira, os pais de João Fernandes da Silveira. Após o arranque inicial, as<br />

obras pararam alguns anos, devido a um litígio entre o bispo de Évora e a Ordem da<br />

Santíssima Trindade acerca da plena jurisdição paroquial, recaindo sobre o edifício uma<br />

ordem de demolição, que não chegou a ser cumprida. Foi já numa fase adiantada do<br />

século XVI, durante o priorado de Fr. Jorge de Pombal, que se concluíram os trabalhos,<br />

orientados pelo mestre de pedraria João Mateus.<br />

O risco do edifício, atribuído a João de Arruda, mas que pode ter sido feito por um<br />

dos seus fi lhos, Diogo e Francisco de Arruda, mestres das obras da comarca do Alentejo,<br />

69


70<br />

corresponde a uma requintada modalidade da arquitectura manuelina que ganhou<br />

protagonismo no Alentejo central e tem como principal paralelo a igreja matriz da limítrofe<br />

vila de Viana. Esta tipologia individualiza-se pela sólida imponência das três naves de<br />

distintas alturas, cada uma com quatro tramos integralmente revestidos por abóbadas<br />

de nervuras em estrela, partindo de arcos quebrados que se apoiam em meias-colunas<br />

e pilares octogonais seccionados por anéis e descarregam em mísulas tronco-cónicas.<br />

Nos capitéis e nos anéis prepondera uma elaborada decoração vegetalista, enquanto nos<br />

fechos avultam os elementos heráldicos, de acordo com a sintaxe característica do Gótico<br />

Final. O coro alto, assente num arco rebaixado e enquadrado por grelhas de tijoleira,<br />

resulta de um acrescento tardio, mas é fi el <strong>ao</strong> espírito do lugar. No exterior sobressaem os<br />

gigantes coroados por pináculos cónicos, intervalados por arcobotantes e fi adas de merlões<br />

chanfrados. Em pontos estratégicos distribuem-se gárgulas de feição antropomórfi ca ou<br />

com animais fabulosos, <strong>ao</strong> passo que outras mimetizam bocas de peças de artilharia, <strong>ao</strong><br />

gosto do Renascimento.<br />

Tudo isto defi ne uma sequência de ritmos e assimetrias que imprime singular movimentação<br />

<strong>ao</strong> poderoso conjunto, tornando bem explícito o diálogo do derradeiro Gótico<br />

com a estética mudéjar, fortemente cultivada entre nós a partir dos meados do século XV,<br />

que teve em D. Manuel um grande apreciador. O portal, de feição tardo-renascentista,<br />

data já dos primórdios do reinado de D. João III, marcando a viragem para a estética<br />

do Classicismo. A plástica renascentista esteve também presente no ciclo de pinturas<br />

murais que ornamentaram o edifício, hoje destruídas ou ocultas sob grossas camadas<br />

de cal. Cumpre destacar, entre os sectores preservados, o painel existente na capela<br />

lateral, do lado do Evangelho, que fi gura Santiago Maior ladeado por São Sebastião<br />

e Santo André, brilhante composição na técnica a secco, dos fi nais de Quatrocentos.<br />

O realce conferido <strong>ao</strong> apóstolo das Espanhas evoca a passagem, por Alvito, de um segmento<br />

do Caminho de Santiago que entrava no nosso país pelo termo de Serpa – e através do<br />

qual circulavam, em direcção a Compostela, os peregrinos vindos da Andaluzia. A própria<br />

existência de um importante hospital medievo, dedicado primeiro <strong>ao</strong> Espírito Santo e<br />

depois a Nossa Senhora das Candeias, aponta no mesmo sentido.<br />

Uma vez concluída a fábrica de raiz manuelina, sucessivas campanhas de obras<br />

contribuíram para enriquecê-la. De 1553 e 1559 procedeu-se à reconstrução da capela-<br />

-mor e da sacristia, por ordem do cardeal infante D. Henrique, arcebispo de Évora.<br />

Nos inícios do século XVII introduziram-se os azulejos de caixilho azul e branco da<br />

capela-mor e os retábulos das capelas laterais. À volta de 1647, data inscrita no fecho do<br />

arco da capela do Rosário, efectuou-se a aplicação do vasto ciclo de azulejos de padrão<br />

de tapete, pontuado por painéis fi gurativos que aludem a devoções típicas da época da<br />

Contra-Reforma: o Santíssimo Sacramento, Nossa Senhora do Rosário, Santo António,<br />

São Sebastião, Nossa Senhora da Conceição, São Miguel e os fundadores da Ordem da<br />

Trindade, São João da Mata e São Félix de Valois. O retábulo da capela-mor, notável<br />

desinência da talha de “estilo nacional”, foi construído entre 1691 e 1703, benefi ciando de<br />

uma avultada esmola do arcebispo D. Fr. Luís da Silva Telles, grande mecenas das igrejas<br />

da sua arquidiocese. Pouco depois remodelaram-se os pavimentos, com a colocação de<br />

V. São Miguel a vencer o Demónio | Escola de Gand | Século XVIII (primeira metade)<br />

Alvito, igreja matriz de Nossa Senhora da Assunção.


ladrilhos de mármore branco e negro e de um estradado na nave central. Em data muito<br />

ulterior acrescentaram-se as duas capelas laterais mais afastadas do transepto.<br />

A igreja matriz de Alvito possui um precioso núcleo de obras de arte móveis,<br />

entre pinturas, esculturas e espécimes de artes decorativas, em particular ourivesaria e<br />

têxteis, incluindo alfaias provenientes de casas religiosas do concelho, como o convento<br />

franciscano de Nossa Senhora dos Mártires.<br />

josé antónio falcão<br />

Bibliografia fundamental: Luiz de Pina Manique, A Arte Manuelina na Arquitectura de Alvito:<br />

Impressões e Apontamentos, Lisboa, [edição do autor], 1949 (2.ª ed., Alvito, Câmara Municipal de Alvito, 1983);<br />

José Custódio Vieira da Silva, O Tardo-Gótico em Portugal: A Arquitectura no Alentejo, Lisboa, Livros Horizonte,<br />

1989; J[oão] M[iguel] dos Santos Simões, Corpus da Azulejaria Portuguesa, IV, Azulejaria em Portugal<br />

no Século XVII, 2, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997; Túlio Espanca, Inventário Artístico<br />

de Portugal, XII, Distrito de Beja. Concelhos de Alvito, Beja, Cuba, Ferreira do Alentejo e Vidigueira, 1-2, Lisboa,<br />

Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; Catarina Valença Gonçalves, A Pintura Mural no Concelho de<br />

Alvito (Séculos XVI a XVIII), Alvito, Câmara Municipal de Alvito, 1999; Hermínia Vasconcelos Vilar,<br />

As Dimensões de Um Poder. A Diocese de Évora na Idade Média, Lisboa, Editorial Estampa, 1999.<br />

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28 DE FEVEREIRO DE 2009 . 21H30<br />

igreja matriz de nossa senhora da assunção<br />

alvito<br />

concerto campestre<br />

!<br />

sileti venti<br />

Os Mestres do Barroco<br />

ANTONIO VIVALDI (1678-1741)<br />

Concerto em Fá Maior RV455<br />

allegro giusto – grave – allegro<br />

CARLOS SEIXAS (1704-1742)<br />

Concerto em lá M<br />

allegro – adagio – allegro/giga<br />

GEORG PHILIPP TELEMANN (1681-1767)<br />

Duplo concerto em lá menor TWV 52:a1<br />

grave – allegro – dolce – allegro<br />

GEORG FRIEDRICH HÄNDEL (1685-1759 )<br />

Silete venti HWV 242<br />

Symphonia: Silete venti<br />

Aria: Dulcis amor, Jesu care<br />

Accompagnato: O fortunata anima<br />

Aria: Date serta, date fl ores<br />

Presto: Aleluia<br />

73


74<br />

notas biográficas<br />

concerto campestre<br />

Joana Seara, soprano<br />

Pedro Castro, oboé barroco, fl auta de bisel e direcção artística<br />

Denys Stetsenko, violino barroco<br />

Reyes Galliardo, violino barroco<br />

Raquel Massadas, viola barroca<br />

Sofi a Diniz, viola da gamba<br />

Duncan Fox, violone<br />

Flávia Almeida Castro, cravo<br />

Com o nome inspirado no famoso quadro de Giorgone, o Concerto Campestre<br />

é um grupo de música de câmara que se dedica à interpretação de música europeia<br />

desde o Renascimento <strong>ao</strong> Barroco, também chamada “musica antiga”. É constituído<br />

por jovens profi ssionais especialistas nos instrumentos da época, tais como o cravo, o<br />

oboé barroco, a viola da gamba e o violoncelo barroco. Os seus elementos são formados<br />

nas principais escolas europeias e trabalham em vários grupos da especialidade, entre os<br />

quais o Ricercar Consort, Al Ayre Español, Les Talens Liryques e a Orquestra Barroca<br />

Divino Sospiro.


notas biográficas<br />

O grupo está sediado em Lisboa e tem a direcção artística de Pedro Castro. A sua<br />

constituição é versátil e varia conforme os programas que são apresentados, tendo realizado<br />

já projectos desde um trio de câmara até um conjunto de dez músicos e cantores na<br />

execução de cantatas e concertos de J. S. Bach, Telemann e Seixas. Apresentou-se na Festa<br />

da Música no Centro Cultural de Belém, nos Encontros de Música Antiga de Loulé, no<br />

átrio do Museu Gulbenkian, na “Festa no Chiado”, nas “Festas de Lisboa” e nos Encontros<br />

de Música Antiga de Tomar.<br />

JOANA SEARA Soprano<br />

Joana Seara iniciou os estudos musicais e de canto na Academia de Música de Santa<br />

Cecília e no Conservatório Nacional de Lisboa, sob a orientação de Elsa Saque. Foi membro<br />

e solista do Coro Gulbenkian durante seis anos e participou em inúmeros concertos, em<br />

Portugal e no estrangeiro, sob a direcção de Michel Corboz, Frans Brüggen, Fernando<br />

Eldoro, Jorge Matta, Michael Zilm, Claudio Abbado e Richard Hickox. Decidiu-se pelo<br />

canto solístico, tirando a Licenciatura, Mestrado em Performance e o Curso de Ópera na<br />

Guildhall School of Music and Drama, em Londres, com Laura Sarti. Participou também<br />

em cursos e masterclasses de aperfeiçoamento orientados por Th omas Hampson, Th omas<br />

Allen, Felicity Lott, Christa Ludwig, Jill Feldman, Emma Kirkby, Graham Clark e Paul<br />

Kiesgen.<br />

Enquanto estudante foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian, da Wingate<br />

Foundation, do E. M. Behrens Charitable Trust e da Worshipful Company of Barbers.<br />

Entre os prémios que recebeu incluem-se o Worshipful Company of Glass Sellers Music<br />

Prize 2005 e o Sybil Tutton Award. Foi fi nalista na Händel Singing Competition 2007.<br />

Trabalhou como solista para companhias como a English National Opera, a Glyndebourne<br />

<strong>Festival</strong> Opera, a Castleward Opera, a New European Opera, a Bampton Classical Opera,<br />

a Independent Opera at Sadlers Wells, a Opera Restor’d e a British Youth Opera.<br />

Os seus papéis incluem Galatea (Acis and Galatea), Gretel (Hänsel und Gretel ),<br />

Damigella (Th e Coronation of Poppea), Despina, Zerlina, Juliet (Romeo and Juliet, de<br />

Benda), Margery (Th e Dragon of Wantley, de Lampe), Vespina (La Spinalba), <strong>Do</strong>rinda<br />

(Orlando de Händel) e Nannetta (Falstaff ), sob a direcção de maestros como Laurence<br />

Cummings, Gary Cooper, P<strong>ao</strong>lo Olmi, Peter Tomek, Paul McGrath, Nicholas Kok e<br />

Mathew Halls e Marcos Magalhães.<br />

Em concertos e recitais tem-se apresentado como solista na interpretação de grandes<br />

obras como a Sinfonia n.º 2, de Mahler, a Sea Symphony, de Vaughan William, e o Messias,<br />

de Händel, e, mais recentemente, na Paixão segundo São João, de Bach, com o King’s<br />

Consort, sob a direcção de Mathew Halls. Apresentou-se no <strong>Festival</strong> Händel de 2008 e<br />

no <strong>Festival</strong> de Lieder de Oxford de 2006 com os pianistas Bernard Robertson e Sholto<br />

Kynoch. Actua regularmente com o En<strong>sem</strong>ble Barroco do Chiado, sob a direcção de<br />

Marcos Magalhães, e com a Orquestra Barroca Divino Sospiro, sob a direcção de Enrico<br />

Onofri, com quem participou em concertos para os festivais barrocos de Île-de-France,<br />

75


76<br />

notas biográficas<br />

Ambronay e Mafra. Futuras apresentações incluem Galatea em Acis and Galatea em Londres,<br />

Paris e Nantes, Vespina na reposição da produção do Centro Cultural de La Spinalba,<br />

Gretel para a Opera Holland Park, confi dente de Dircée em Medée e Clotilde em Norma,<br />

na Fundação Gulbenkian.<br />

PEDRO CASTRO Oboé barroco, fl auta e coordenação artística<br />

Pedro Castro nasceu em 1977 no Porto. Diplomado pela Escola Superior de Música<br />

de Lisboa, sob a orientação de Pedro Couto Soares, e pelo Conservatório Real de Haia<br />

na Holanda, sob a orientação de Sebastian Marq (fl auta) e Ku Ebbinge (oboé barroco).<br />

No âmbito do Mestrado em Artes Musicais na Universidade Nova de Lisboa realizou<br />

a tese Serenata L’Angelica – Um Estudo Performativo. Foi bolseiro do Centro Nacional<br />

de Cultura. A sua actividade profi ssional passa pelos seguintes agrupamentos: Al Ayre<br />

Español, Le Talens Liryques, Orquestra Barroca Divino Sospiro, Orquestra Barroca<br />

Capela Real, Orquestra Barroca de Sevilha, Flores de Música, Sete Lágrimas, Quarteto<br />

Arabesco, A Imagem da Melancolia e Músicos do Tejo. Tem assim oportunidade de<br />

trabalhar sob a direcção de Eduardo Lopez Banzo, Enrico Onofri, Christophe Rousset,<br />

Alfredo Bernardini e Monica Hugget, entre outros importantes nomes do meio da<br />

interpretação histórica.<br />

Como solista, além da actividade em música de câmara, apresentou-se também com<br />

a Orquestra Capela Real no Concerto para Oboé, de A. Marcello, no Duplo Concerto para<br />

Violino e Oboé, de J. S. Bach, e com a Orquestra Barroca Divino Sospiro com o Concerto<br />

para Oboé d’Amore, do mesmo compositor. No oboé clássico e com o Quarteto Arabesco<br />

apresentou-se com o Quarteto, de Mozart, ícone do repertório virtuosístico do classicismo.<br />

Ensina oboé barroco, fl auta de bisel e música de câmara na Academia de Música de Santa<br />

Cecília, na Escola Superior de Música de Lisboa e na Escola Superior de Música e Artes<br />

do Espectáculo. É coordenador artístico do Concerto Campestre.<br />

SOFIA DINIZ Viola da gamba<br />

Sofi a Diniz nasceu em Lisboa em 1977. Tendo desde cedo uma formação na área<br />

da dança e da música nas escolas do Conservatório Nacional, optou pelo curso de<br />

violoncelo e em 1998 concluiu o bacharelato na Escola Superior de Música de Lisboa.<br />

Foi nos cursos da Academía de Música Antiga de Lisboa que surgiu o seu interesse pela<br />

interpretação histórica em instrumentos originais e a sua motivação para especializar-<br />

-se nesta área. Como bolseira do Centro Nacional de Cultura de Lisboa e, mais tarde,<br />

do programa Nuffi c-Huygens do Reino dos Países Baixos, estudou violoncelo barroco e<br />

viola da gamba com Rainer Zipperling em Colónia e com Wieland Kuijken e Philippe<br />

Pierlot em Haia e Bruxelas. Toca violoncelo e viola da gamba com vários grupos de<br />

câmara e orquestras como o Concerto Campestre, a Orquestra Barroca Capela Real,


notas biográficas<br />

o Ludovice En<strong>sem</strong>ble, o Ricercar Consort, Th e Spirit of Gambo, Il Fondamento e o<br />

Colegium Vocale Gent, actuando em variados festivais, como o <strong>Festival</strong> de Música de<br />

Mafra, o Bach <strong>Festival</strong> en Vallée Mosane (Bélgica), as Folles Journées (França) ou o<br />

Holland <strong>Festival</strong> Oude Musik Utrecht (Países Baixos). Em 2005 foi convidada para um<br />

recital como “Solista Jovem Talento” no <strong>Festival</strong> Bach em Liége e em 2006 no <strong>Festival</strong><br />

Printemps Baroque em Bruxelas. Para além da sua actividade concertante participou<br />

em gravações com o Ricercar Consort, sob a direcção de Philippe Pierlot, e o Colegium<br />

Vocale Gent, sob a direcção de Philippe Herreweghe.<br />

FLÁVIA ALMEIDA CASTRO Cravo<br />

Nasceu em 1978 em Lisboa. Após ter iniciado os estudos musicais na mesma cidade,<br />

diplomou-se em cravo na Escola Superior de Artes de Utrecht, Países Baixos, sob a<br />

orientação de Siebe Henstra, e na Escola Superior de Música de Lisboa, sob a orientação<br />

de Cremilde Rosado Fernandes. Estudou também com Jacques Ogg no Conservatório<br />

Real de Haia. É membro do Concerto Campestre e do L’anche Lyrique. Trabalhou<br />

igualmente com a Orquestra Barroca Capela Real, a Orquestra Barroca Divino Sospiro,<br />

a Orquestra Metropolitana de Lisboa e a Orquestra do Algarve, tendo sido dirigida<br />

por Wieland Kuijken, Jean-Marc Burfi n, Álvaro Cassuto, Terry Fischer e Christina<br />

Pluhar. Foi bolseira do Centro Nacional de Cultura. Actualmente é professora de<br />

cravo no Instituto Gregoriano de Lisboa e na Academia de Santa Cecília e professora<br />

acompanhadora na Escola Superior de Música de Lisboa.<br />

!<br />

77


78<br />

notas <strong>ao</strong> programa<br />

sileti venti<br />

Os Mestres do Barroco<br />

Desde tempos imemoriais que o Homem associou a Música à emoção, às paixões ou<br />

estados de alma. Primeiro Platão [ca. 427-347 a. C.], depois Aristóteles [384-322 a. C.],<br />

trataram das qualidades e dos efeitos morais exercidos pela música sobre a vontade, o carácter<br />

e a conduta dos seres humanos. Durante o período renascentista, os teóricos musicais<br />

centraram o papel da música como extensão de um texto, como elemento da retórica,<br />

persuasivo, acoplando o aspecto emocional do discurso. Já no Barroco, o pensamento<br />

teórico foi marcado por René Descartes [1596-1650] e pelo seu célebre tratado, escrito<br />

em 1649, Les Passions de l’Âme (As Paixões da Alma). Seguindo o pensamento cognitivo dos<br />

gregos, este fi lósofo afi rmava que, apesar da experiência e dos sentidos serem a fonte das<br />

ideias de objectos sensíveis, de nada serviriam se não fora a capacidade da mente em as<br />

perceber e as transformar em pensamentos.<br />

Assim, enquanto linguagem artística, a música barroca caracterizou-se por conter<br />

um núcleo central e motivador, a ideia de pathos, um afecto extremo que determinava<br />

e unifi cava o estilo de uma obra. Esse dinamismo refl ectia um Homem que não estava<br />

perdido, <strong>ao</strong> contrário do que acontecia no Maneirismo. As tensões eram resolvidas,<br />

incitando à piedade e <strong>ao</strong> terror, o que acabava por exercer um profundo efeito catártico.<br />

O pathos daria origem a uma arte eminentemente retórica que tendia a exagerar tudo o<br />

que se diz: era a arte das hipérboles e a ostentação das antíteses. Esta preocupação de<br />

humanizar a música, tendência que já vinha do Renascimento, deu origem à chamada<br />

teoria degli aff etti (teoria dos afectos), consagrando a música como veículo ideal para<br />

explicar as paixões e os seus movimentos. O catalisador deste movimento de afectos<br />

seria a retórica, enquanto persuasão, mobilização afectiva da vontade de quem ouve.<br />

O concerto de hoje reúne um conjunto de obras obras bem exemplifi cativas do<br />

que assinalamos, funcionando como síntese dos principais idiomas da música barroca,<br />

concretamente, da música concertante e da sua estrutura base radicada no princípio do<br />

ritornello, tema tocado pelo tutti instrumental, intercalado por passagens do/s instrumento/s<br />

solista/s (estrutura musical básica sintetizada pela fórmula tutti-solo-tutti-solo-tutti),<br />

dividida em três andamentos (rápido-lento-rápido), fortemente contrastantes, em que o<br />

virtuosismo técnico dos andamentos balizantes dá lugar a um forte lirismo do andamento<br />

intermédio.<br />

Conhecido como il prete rosso pela farta cabeleira natural ruiva, Antonio Vivaldi [1678-<br />

-1741] notabilizou-se graças à sua música instrumental, <strong>ao</strong> tempo conhecida e cultivada<br />

em toda a Europa. Nascido em Veneza, em 1678, começou por estudar música e violino<br />

com o pai, Giovanni Battista, mas como sofria de um aperto de peito (provavelmente asma),<br />

optou pela carreira eclesiástica em detrimento da musical. Nesta época era comum os<br />

violinistas também tocarem oboé, instrumento inacessível <strong>ao</strong> compositor dada à doença


notas <strong>ao</strong> programa<br />

de que sofria. Em 1703, ano em que foi ordenado sacerdote, entrou <strong>ao</strong> serviço do Ospedale<br />

della Pietà, orfanato feminino, como maestro di violino. Dispensado das obrigações<br />

eclesiásticas em 1704, viria a ser nomeado maestro dei concerti (director musical) do<br />

Ospedale em 1713, altura em que a orquestra e o coro desta instituição representavam<br />

já uma atracção de Veneza. Tal era a importância de Vivaldi que, apesar das viagens, das<br />

óperas, das encomendas régias vindas dos quatro cantos da Europa, a direcção do Ospedale<br />

della Pietà mantinha-lhe o soldo com a contrapartida de escrever dois concertos por mês e<br />

ensaiar a orquestra cinco vezes por ano. Já no fi nal da vida, Vivaldi mudou-se para Viena,<br />

procurando a protecção do imperador Carlos IV [1685-1740], grande apreciador da sua<br />

música. Contudo, a morte do soberano e a ausência de encomendas conduziram-no a uma<br />

situação fi nanceira preocupante. Viria a morrer de uma infecção interna em 1741.<br />

<strong>Do</strong>s cerca de 600 concerti que Vivaldi escreveu, pelo menos 20 são para oboé e orquestra<br />

de cordas. Não se conhecendo a data de composição do concerto RV455, o manuscrito<br />

contém a interessante anotação Sassonia, provavelmente uma alusão à Hofkapelle (orquestra<br />

da corte) de Dresden, considerada então como a melhor da Europa, dirigida por Johann<br />

Georg Pisendel [1687-1755], violinista, compositor e admirador da obra de Vivaldi.<br />

O concerto para cravo e orquestra de Carlos de Seixas é a obra concertante mais<br />

emblemática do Barroco musical português e um dos primeiros no seu género, na Europa<br />

barroca.<br />

Nascido em Coimbra, na freguesia de São Cristóvão, em 1704, fi lho de Francisco Vaz,<br />

organista da Sé Nova, e de Marcelina Nunes, José António Carlos de Seixas aprendeu<br />

música com o pai, acabando por suceder-lhe no cargo em 1718. Entre 1720 e 1722 passou<br />

a Lisboa, ensinando cravo em diversas casas nobres. Pela mesma altura obteve a nomeação<br />

para o lugar de organista da igreja patriarcal, cargo que ocuparia até <strong>ao</strong> fi m da vida. Fica,<br />

no entanto, a dúvida se esta era a capela real, <strong>ao</strong> tempo sediada numa dependência do Paço<br />

da Ribeira, ou a basílica de Santa Maria Maior, vulgo Sé.<br />

Diz-nos Diogo Barbosa Machado que, residindo o músico na freguesia de São Nicolau,<br />

casou-se, “attrahido de um sincero aff ecto”, com D. Maria Joana Tomásia da Silva, em 1731,<br />

de quem teve dois fi lhos e três fi lhas. Segundo o 4.º conde de Ericeira, “Os Viscondes de<br />

Barbacena derão <strong>ao</strong> Muzico Joseph Antonio p.ª o seu casamento presentes que se affi rma<br />

valerem 3 mil cruzados; por que este muzico não leva dinheiro pellas liçoens que dá à<br />

Senhora Viscondeça, e a suas fi lhas”. Com o intuito de vir a ser nobilitado, adquiriu, em<br />

1738, a propriedade de um ofício de contador da Ordem de Santiago, obtendo o hábito<br />

da Ordem de Cristo, depois de um longo processo de habilitação, que durou perto de dez<br />

anos, pelo facto de ter um avô carniceiro e outro alfaiate, e das avós serem mulheres de<br />

segunda condição.<br />

Carlos de Seixas faleceu em Lisboa, na sua casa por detrás da igreja de Santo António,<br />

tendo sido sepultado nos covais da Irmandade do Santíssimo Sacramento da catedral.<br />

Segundo Barbosa Machado, “enfermando de um Reumatismo, que degenerou em Febre<br />

maligna se dispoz catholicamente para a morte recebendo todos os Sacramentos, e<br />

recitando a Ladainha de Nossa Senhora espirou a 25 de Agosto de 1742, quando contava<br />

trinta e oito annos, dous mezes, e quatorze dias de idade”.<br />

79


80<br />

notas <strong>ao</strong> programa<br />

Ao contrário dos bolseiros régios, enviados para Roma, Seixas nunca saiu de Portugal.<br />

Todavia, é evidente que se familiarizou com as correntes musicais mais em voga na época,<br />

verosimilmente através do contacto com os diversos músicos estrangeiros da capela real. Como<br />

autor de obras para tecla, ocupa um lugar cimeiro e isolado, no tempo e na importância, entre<br />

os nossos compositores do século XVIII, não deixando qualquer dúvida sobre a profunda<br />

originalidade criativa deste autor e, por extensão, da escola cravística portuguesa coeva.<br />

O concerto para cravo, em Lá, apresenta, em termos gerais, uma concepção melódica<br />

e harmónica muito simples, em oposição à pujança rítmica de todo o discurso musical.<br />

A elegância grave do primeiro andamento contrasta com a exiguidade dolente do segundo,<br />

onde, supostamente, o solista deverá improvisar uma passagem, antecedida por uma<br />

intervenção orquestral de grande dramaticidade. O andamento fi nal, uma giga (dança<br />

barroca), remete-nos para o universo musical francês, caracterizando-se pela jovialidade<br />

do tema e pela simplicidade virtuosística. Porém, não será descabido afi rmar que, mais<br />

do que barroco, o idioma musical desta peça insere-se no “estilo galante”, próximo da<br />

linguagem de Giovanni Battista Pergolesi [1710-1736].<br />

A segunda parte do concerto reúne obras de dois grandes amigos, de infâncias<br />

<strong>sem</strong>elhantes, pretensos advogados, que desistiram da sua formação jurídica em prol de<br />

uma vida dedicada à música: Georg Philipp Telemann e Georg Friedrich Händel.<br />

Tido como o principal compositor alemão da primeira metade do século XVIII, e o<br />

mais fecundo de todos os tempos, Telemann nasceu em 1681 na cidade de Magdeburg,<br />

na Saxónia. O seu talento musical era reprovado pela família, com fortes ligações à Igreja<br />

Luterana, pelo que foi enviado para o colégio de Zellerfeld, mais tarde para o de Hildesheim<br />

e, fi nalmente, em 1701, para a Universidade de Leipzig, com o objectivo de estudar Leis.<br />

Nesta cidade, contudo, viu o seu talento incentivado. Em 1702 fundou o Collegium Musicum<br />

e em 1703 foi nomeado director da Casa da Ópera de Leipzig. Depois de dois anos como<br />

kapellmeister (mestre de capela) da cosmopolita corte do conde Erdmann II em Sorau, entre<br />

1705 e 1707, o que lhe permitiu conhecer os estilos musicais francês e italiano, obteve o<br />

lugar de konzertmeister (director musical) e kantor da corte dos duques de Saxe-Eisenach.<br />

Em 1712 seguiu para Frankfurt para ocupar o cargo de director musices da cidade e kapellmeister<br />

das igrejas de São Paulo e Santa Catarina. No ano de 1721 obteve a nomeação como director<br />

musices de Hamburgo, o que implicava a direcção musical das cinco principais igrejas da<br />

cidade, posição de que abdicou em 1762, por começar a fi car cego. A partir de 1740 focou<br />

a actividade na escrita de tratados, versando a educação e a teoria musical, bem como numa<br />

aparente tutela sobre compositores mais jovens, como Carl Philipp Emanuel Bach [1714-<br />

-1788], seu afi lhado. Faleceu com a provecta idade de 85 anos, em 1767.<br />

Adepto de um estilo musical mais rígido do que o italiano, livre de virtuosismos<br />

extemporâneos, Telemann desenvolveu uma escrita baseada na riqueza dos conteúdos<br />

temáticos, nos contrastes dinâmicos e na conjugação de instrumentos de natureza tímbrica<br />

diferente, fugindo <strong>ao</strong>s cânones da época. No que diz respeito à sua produção de obras<br />

concertantes, aproximou-se do modelo da ouverture francesa, adoptando como assinatura<br />

musical a sucessão de quatro andamentos (lento-rápido-lento-rápido), em detrimento dos<br />

três da tradição italiana.


notas <strong>ao</strong> programa<br />

O duplo concerto em lá menor, para fl auta e viola da gamba, TWV52:a1, insere-se no<br />

modelo anteriormente referido. <strong>Do</strong>s seus quatro andamentos realçamos o último, pelo<br />

espírito e pelo carácter próximo da música tradicional da Polónia, cujo idioma Telemann<br />

muito apreciava desde os tempos em que permanecera em Sorau (actualmente Zary, em<br />

território polaco).<br />

Igualmente prolífero mas não tão famoso, à época, como o seu amigo, Georg Friedrich<br />

Händel nasceu em 1685, na cidade de Halle, na Saxónia, sendo fi lho de Georg Händel,<br />

barbeiro-cirurgião e gentil-homem da câmara dos duques de Saxe-Weissenfels. Os dotes<br />

musicais de Händel revelaram-se desde os primeiros anos, para desespero do pai, que o<br />

destinara a uma carreira como advogado. Todavia, em 1692, iniciou os estudos com Friedrich<br />

Wilhelm Zachow [1663-1712], organista em Halle, depois do soberano ter repreendido<br />

publicamente o cirurgião por este negar <strong>ao</strong> fi lho qualquer contacto com a música. Em 1702<br />

inscreveu-se na Universidade de Halle, no intuito de estudar Leis, seguindo o desejo do<br />

pai, entretanto falecido. Nesse mesmo ano foi nomeado organista temporário da catedral da<br />

cidade. A esta “distracção” musical juntar-se-ia outra: a recente amizade com um estudante,<br />

também ele relutante na carreira universitária, Georg Philipp Telemann…<br />

Entre 1703 e 1710 o jovem Händel viajou por Hamburgo, Florença, Roma e Veneza,<br />

um período rico em aprendizagem musical, em contacto directo com os expoentes<br />

máximos da música italiana, até aceitar o cargo de kappelmeister dos príncipes-eleitores<br />

de Hanôver. Em 1712 instalou-se defi nitivamente em Londres, cidade onde obteve<br />

grandes sucessos no domínio da ópera “italiana”, compondo para a Royal Opera House e<br />

para o King’s Th eatre, do qual foi gestor, entre 1729 e 1734. Três anos depois sofreu uma<br />

trombose, que o deixou temporariamente paralisado e esteve na origem da sua cegueira.<br />

No seguimento de desaires fi nanceiros e da pouca aceitação do público inglês em relação<br />

às suas óperas, em 1741 focou-se na composição de oratórias, género musical que lhe<br />

granjearia fama imediata e a posteridade do seu nome. Cegando completamente, em 1753,<br />

e sendo incapaz de ditar uma nota, o compositor permaneceu submerso numa profunda<br />

melancolia até à morte, ocorrida em 1759.<br />

Uma das suas obras mais conhecidas, o motete Silete venti (Silêncio, ó Ventos) é, na<br />

realidade, um reaproveitamento de diversas composições anteriores, prática comum entre<br />

os mestres barrocos, muitas vezes sinal da exiguidade de tempo para compor e dita pastiche<br />

(imitação). Perante a falta de dados concretos que possam datar o ano em que Händel<br />

compôs este motete, é comummente aceite situar a sua escrita entre 1724 e 1730.<br />

Dividido em seis andamentos, Silete venti começa com uma ouverture, à francesa,<br />

incluindo um primeiro momento lento, de ritmo pontuado e harmonia cheia, seguido<br />

de outro, rápido, breve fugato, à imagem de dezenas de outras aberturas händelianas.<br />

O efeito expressivo da admoestação do soprano, que interrompe o contraponto instrumental,<br />

mostra-nos que a abertura era, independentemente dos seus contornos melódicos e da sua<br />

efi cácia musical, a descrição de uma tempestade.<br />

A parte central desta obra estrutura-se em dois blocos idênticos de recitativo-ária, o<br />

primeiro terminando com a ária Dulcis Jesus e o segundo com a ária Date serta. Ambos os<br />

casos são árias da capo (uma secção inicial é sucedida por uma outra, fortemente contrastante<br />

81


82<br />

notas <strong>ao</strong> programa<br />

antes da repetição da primeira, estrutura musical sintetizada pela fórmula ABA), em que<br />

a fi guração do baixo contínuo assegura o pano de fundo da acção musical, deixando em<br />

primeiro plano a virtuosidade e lirismo vocal e os acompanhamentos descritivos do tecido<br />

orquestral.<br />

O motete termina com um pequeno mas exuberante Alleluia, conjugando a virtuosidade<br />

vocal com a simplicidade da escrita instrumental, numa despreocupada giga.<br />

!<br />

josé bruto da costa


silete venti<br />

Silete Venti, nolite murmurare frondes,<br />

quia anima dulcedine requiescit.<br />

Dulcis amor, Jesu care, quis non cupit te amare; veni, transfi ge me<br />

Si tu feris, non sunt clades: tuæ plagæ sunt suaves, quia totur vivo in te.<br />

O fortunata anima, o jucundissimus triumphus, o felicissima lætitia.<br />

Date serta, date fl ores; me coronent vestri honores; date palmas nobiles.<br />

Surgent venti et beatæ spirent almæ fortunatæ auras cœli fulgidas.<br />

Alleluia<br />

!<br />

textos<br />

83


84<br />

igreja matriz de santiago maior<br />

santiago do cacém<br />

�<br />

Classifi cada como Monumento Nacional pelo Decreto de 16 de Junho de 1910 e<br />

pelo Decreto n.º 8518, de 30 de Novembro de 1922<br />

Segundo a tradição, a primeira igreja a ser erguida em Santiago do Cacém após a<br />

“Reconquista” fi cava no interior do castelo, onde existiu uma mesquita. Ao tomarem a<br />

terra, <strong>ao</strong> redor de 1217, os monges-guerreiros espatários deram-lhe a invocação do seu<br />

patrono, o apóstolo Santiago Maior, evangelizador das Espanhas, juntando-lhe mais tarde<br />

o topónimo árabe. O antigo edifício tornara-se pequeno quando a vila extravasou os limites<br />

da cerca amuralhada, o que levou à construção do actual, no primeiro terço do século XIV,<br />

sob os auspícios da princesa bizantina D. Vataça, neta do imperador Teodoro II Lascaris<br />

e aia da rainha D. Isabel, esposa de D. Dinis. <strong>Do</strong>natária de Santiago do Cacém e Panóias,<br />

em virtude de um escambo efectuado com a Ordem de Santiago, em 1310, a nobre<br />

senhora dotou as igrejas destes domínios com relíquias insignes. À matriz de Santiago<br />

couberam vários fragmentos do Santo Lenho, provavelmente oriundos de Niceia. Para o<br />

altar-mor do mesmo edifício encomendou o retábulo de Santiago combatendo os Mouros,<br />

obra-prima da escultura do tempo de D. Dinis, cuja autoria é atribuída a Telo Garcia, um<br />

dos mestres da catedral de Lisboa.<br />

Apesar de ter sofrido diversas campanhas de obras de vulto (em 1530, em 1704 e,<br />

principalmente, entre 1796 e 1830, na sequência dos danos provocados pelo terramoto de<br />

1755), o monumento conserva o essencial da sua fábrica gótica, com três naves separadas<br />

por pilares de secção octogonal. Desapareceu o portal principal, mas perdurou um dos<br />

portais laterais – a Porta do Sol –, de arco ogival com arquivoltas reentrantes. Ao longo<br />

dos capitéis e das impostas corre uma densa carga ornamental vegetalista e zoomórfi ca,<br />

sistema a que corresponde, no interior da igreja, a decoração que guarnece os capitéis e<br />

anima o perfi l das arcadas em ogiva, com a introdução de fi guras humanas, refl ectindo a<br />

dominância naturalista da arte da época.<br />

O corpo da capela-mor, enquadrado por duas capelas e iluminado por esguias frestas,<br />

defi ne uma cabeceira escalonada que apresenta no exterior, de cada lado, um arcosólio.<br />

Esta solução construtiva é pouco comum no Sul do país. O uso de pilares octogonais e<br />

a peculiar morfologia da cabeceira conferem à matriz de Santiago do Cacém um lugar<br />

próprio na austera arquitectura das ordens militares que atingiu a culminação em fi nais<br />

VI. Baptismo de Cristo (pormenor) | Trabalho escocês | Século XV (primeira metade)<br />

Santiago do Cacém, colecção particular (em depósito no Museu de Arte Sacra).


do reinado dionisíaco, quando se transfi guraram quase totalmente, sob o impulso de<br />

correntes oriundas de além-fronteiras, as tipologias herdadas do período da segunda<br />

metade da era ducentista.<br />

A poderosa colegiada que funcionou na igreja até 1834, formada por um prior – o<br />

qual acumulava frequentemente o cargo pastoral com a função de juiz da Ordem –,<br />

seis (oito, no século XVII) benefi ciados e um prioste, todos freires espatários, assumiu<br />

decisiva infl uência na vida da povoação, tal como as importantes confrarias e irmandades<br />

agrupadas em seu torno. Estas instituições geraram um vasto e diversifi cado património<br />

artístico, patente <strong>ao</strong> público no museu – o Tesouro da Colegiada de Santiago – que foi<br />

instalado, em 2002, no próprio monumento.<br />

josé antónio falcão<br />

bibliografia fundamental: Bernardo Falcão, Memorias sobre a Antiga Mirobriga (Lisboa, Biblioteca<br />

dos Herdeiros do Prof. <strong>Do</strong>utor Eng.º Manuel António Falcão Beja da Costa, L.º Ms. s. n.º); António<br />

de Macedo e Silva, Annaes do Municipio de Sanct-Yago de Cas<strong>sem</strong> desde Remotas Eras até <strong>ao</strong> Anno de 1853, Beja,<br />

Typographia de Sousa Porto & Vaz, 1866; id., Annaes do Municipio de Sant’Iago de Cacem, 2.ª ed., Lisboa, Imprensa<br />

Nacional, 1869; José António Falcão & Jorge M. Rodrigues Ferreira, “Marcas Lapidares da Igreja Matriz de<br />

Santiago do Cacém – I”, em Anais da Real Sociedade Arqueológica Lusitana, 2.ª Série, I, Santiago do Cacém, 1987;<br />

José António Falcão & Fernando António Baptista Pereira, O Alto-Relevo de Santiago combatendo os<br />

Mouros da Igreja Matriz de Santiago do Cacém, Beja – Santiago do Cacém, Departamento do Património Histórico<br />

e Artístico da Diocese de Beja – Câmara Municipal de Santiago do Cacém, 2001.<br />

85


14 DE MARÇO DE 2009<br />

igreja matriz de santiago maior<br />

SANTIAGO DO CACÉM<br />

17H30<br />

masterclass/workshop de cravo<br />

21H30<br />

concerto<br />

flávia almeida castro<br />

maria josé barriga<br />

!<br />

frente a frente<br />

A Música Barroca em Duo de Teclas<br />

JOHANN LUDWIG KREBS (1713-1780)<br />

Concerto em Lá m<br />

allegro – allegro – aff etuoso<br />

Cravo I – Flávia Almeida Castro<br />

Cravo II – Maria José Barriga<br />

JOHANN SEBASTIAN BACH (1685-1750)<br />

Concerto em Dó M BWV 1061a<br />

allegro – adagio ovvero largo – fuga<br />

Cravo I – Flávia Almeida Castro<br />

Cravo II – Maria José Barriga<br />

87


88<br />

ANTONIO SOLER (1729-1783)<br />

3.º Concierto em sol M<br />

andantino – minué<br />

Cravo I – Maria José Barriga<br />

Cravo II – Flávia Almeida Castro<br />

FRANÇOIS COUPERIN (1669-1733)<br />

Les Folies Françaises (XIII ème Ordre)<br />

Cravo Solo<br />

WOLFGANG AMADEUS MOZART (1756-1791)<br />

Sonata em Dó M a 4 mãos KV 19d<br />

allegro – rondeau<br />

Cravo a 4 mãos<br />

JOHANN SEBASTIAN BACH (1685-1750)<br />

Concerto III em Dó m BWV 1062<br />

allegro – adagio – allegro<br />

Cravo I – Maria José Barriga<br />

Cravo II – Flávia Almeida Castro


notas biográficas<br />

O duo de teclas de Flávia Almeida Castro e Maria José Barriga foi formado com<br />

o intuito de divulgar um dos instrumentos musicais mais relevantes da prática musical<br />

dos séculos XVI, XVII e XVIII e do seu repertório solístico, em especial o composto<br />

para dois cravos a solo. No contexto deste repertório salientam-se compositores alemâes<br />

como J. S. Bach e os seus fi lhos, Carl Philipp Emanuel Bach e Wilhelm Friedemann<br />

Bach, franceses como Armand Louis Couperin, François Couperin, Gaspar Le Roux, o<br />

espanhol Antonio Soler ou ainda W. A. Mozart. Uma viagem musical pelo repertório de<br />

tecla de três séculos foi a aposta deste duo.<br />

FLÁVIA ALMEIDA CASTRO<br />

Nasceu em Lisboa em 1978. Após ter iniciado os estudos musicais na mesma cidade,<br />

diplomou-se em cravo na Escola Superior de Artes de Utrecht, Países Baixos, sob a<br />

orientação de Siebe Henstra, e na Escola Superior de Música de Lisboa, sob a orientação de<br />

Cremilde Rosado Fernandes. Estudou também com Jacques Ogg no Conservatório Real<br />

de Haia. É membro do Concerto Campestre e do L’anche Lyrique. Trabalhou também<br />

com a Orquestra Barroca Capela Real, a Orquestra Barroca Divino Sospiro, a Orquestra<br />

Metropolitana de Lisboa e a Orquestra do Algarve, sendo dirigida por Wieland Kuijken,<br />

Jean-Marc Burfi n, Álvaro Cassuto, Terry Fischer e Christina Pluhar. Foi bolseira do<br />

Centro Nacional de Cultura. Actualmente é professora de cravo no Instituto Gregoriano<br />

de Lisboa e na Academia de Santa Cecília e professora acompanhadora na Escola Superior<br />

de Música de Lisboa.<br />

MARIA JOSÉ BARRIGA<br />

Nasceu em Beja em 1964. Iniciou os estudos de música em Piano e posteriormente<br />

em Cravo. Em 1987 concluiu o Curso de Cravo do Conservatório Nacional de Lisboa, na<br />

classe da Prof.ª Cremilde Rosado Fernandes, e a Licenciatura em Línguas e Literaturas<br />

Modernas. Nesse mesmo ano ingressou na classe do Prof. Ton Koopman (Países Baixos),<br />

tendo terminado o Curso Superior de Cravo no Conservatório Real de Haia em 1992.<br />

Foi bolseira da Fundação Calouste Gulbenkian. É Mestre em Ciências Musicais<br />

(Etnomusicologia) e investigadora do Instituto de Etnomusicologia da Universidade<br />

Nova de Lisboa, no domínio das práticas repentistas na música tradicional portuguesa.<br />

Participou em diversos cursos de Música Antiga, nos quais trabalhou com cravistas como<br />

Glenn Wilson, Robert Wooley, Ketil Haugsand, Bob Van Asperen e Ton Koopman.<br />

Actualmente é docente na Academia de Música de Santa Cecília e no Instituto Piaget de<br />

Almada.<br />

89


90<br />

notas <strong>ao</strong> programa<br />

frente a frente<br />

A Música Barroca em Duo de Teclas<br />

Curt Sachs [1881-1959] terá sido um dos primeiros estudiosos a falar de música<br />

barroca. Contudo, já vários autores, nos fi nais do século XVIII, haviam utilizado este<br />

termo para referenciar composições que, <strong>ao</strong>s seus ouvidos classicistas, lhes soavam<br />

complicadas, excessivamente ornamentadas e harmonicamente pouco coerentes. Faltavam<br />

as potencialidades contrastantes da dinâmica musical, do jogo de claro-escuro, dos forte-<br />

-piano, de uma sinceridade menos tipifi cada e musicalmente mais genuína.<br />

Instrumento omnipresente neste período, o cravo assume a posição de veículo directo<br />

do idioma barroco, presença assídua em todas as cortes e em inúmeras casas europeias<br />

de então, aliando a simplicidade da sua morfologia a uma sonoridade requintada e<br />

harmonicamente completa. Não é, pois, de estranhar que este gosto, este sentido estético,<br />

levasse muitos compositores a escreverem páginas de música excepcionais para o cravo.<br />

É de notar, contudo, as diferenças de construção (e das sonoridades daí advindas)<br />

dos cravos do Norte da Europa, mais robustos, em relação <strong>ao</strong>s do Sul, mais brilhantes,<br />

com implicações objectivas na escrita musical. Assim, e mesmo tendo em conta os estilos<br />

“regionais”, encontramos uma literatura cravística mais complexa, um tecido harmónico<br />

mais cheio, nos compositores alemães, em oposição <strong>ao</strong> lirismo e à vocalidade dos franceses<br />

e italianos. No concerto de hoje serão utilizadas duas cópias: um cravo alemão, com a sua<br />

forma típica de cauda arredondada e dois manuais, e um outro franco-fl amengo.<br />

Um dos compositores que melhor explorou a totalidade das capacidades interpretativas<br />

do cravo foi Johann Sebastian Bach [1685-1750], num legado musical que incorpora as<br />

principais directrizes do estilo italiano, francês e alemão. O ano de 1735 foi particularmente<br />

fértil neste campo, coincidindo, em parte, com a intensa actividade que o artista desenvolveu<br />

com o Collegium Musicum, orquestra fundada em Leipzig, no ano de 1702, por Georg<br />

Philipp Telemann [1681-1767]. O concerto para dois cravos BWV1061a, em dó maior, é<br />

uma versão, <strong>sem</strong> acompanhamento de orquestra, do concerto BWV1060, que constitui, por<br />

sua vez, transcrição de um outro, actualmente perdido, escrito para oboé, violino e orquestra.<br />

Já o concerto BWV1062, em dó menor, também datado de 1735, é uma transcrição do<br />

concerto em ré menor para dois violinos e orquestra, BWV 1043, escrito em 1717 para a<br />

corte de Köthen, da qual o compositor era Kappelmeister (mestre de capela).<br />

Nascido em Weimar, em 1713, Johann Ludwig Krebs gozou do privilégio de ter tido<br />

como professor de órgão J. S. Bach. Ao talento inato do jovem músico juntava-se o facto<br />

de seu pai, Tobias Krebs [1690-1762], ser, também ele, um organista famoso e amigo do<br />

compositor. A relação entre mestre e pupilo deveria ser excelente, a julgar pelo famoso<br />

comentário apócrifo: “o único caranguejo [Krebs] do meu ribeiro [Bach]”. Sendo nomeado


notas <strong>ao</strong> programa<br />

organista da corte de Gotha-Altenburg, em 1755, Johann Krebs manteve-se neste posto<br />

até à morte, em 1780.<br />

O que sobreviveu do legado musical deste mestre, essencialmente prelúdios e fugas,<br />

concertos para cravo e trio-sonatas, demonstram o seu talento, o seu poder inventivo,<br />

excelente no contraponto, mas demasiado complexo para a época em que esteve activo, o<br />

período Galante, que defendia a claridade e a simplicidade do discurso musical.<br />

Também ele um virtuoso, Antonio Soler nasceu em Gerona, na Catalunha, em 1729.<br />

Menino de coro no mosteiro de Montserrat, foi maestro di capilla da catedral de Lérida<br />

e em 1752 entrou no mosteiro de São Lourenço do Escurial, sendo nomeado mestre de<br />

capela em 1757, cargo que ocupou até à morte (1783). A sua virtuosidade <strong>ao</strong> órgão e <strong>ao</strong><br />

cravo valeu-lhe a protecção de D. Maria Bárbara de Bragança [1711-1758], rainha de<br />

Espanha, tendo estudado com <strong>Do</strong>menico Scarlatti [1685-1757] e José de Nebra [1702-<br />

-1768], vice-mestre da capela real.<br />

A vastíssima produção de Soler, na qual a literatura para tecla ocupa um lugar de<br />

destaque, acusa um conhecimento profundo da realidade musical da época, com infl uências<br />

do lirismo italiano ou, inclusivamente, dos tiques do Sturm und Drang alemão. Mais<br />

preocupado com os efeitos harmónicos, as fi gurações virtuosas e a inclusão de motivos do<br />

folclore espanhol do que com o equilíbrio da forma, este compositor representa, a par de<br />

Carlos Seixas, a verdadeira essência do gosto ibérico do século XVIII, nas suas variadas<br />

idiossincrasias.<br />

Nascido no seio de uma família de músicos, em 1668, François Couperin iniciou os<br />

estudos musicais com o pai, Charles Couperin, tendo-lhe sucedido no cargo de organista<br />

da igreja de Saint-Gervais, de Paris, em 1685. Figura destacada da corte de Luís XIV<br />

[1638-1715], foi nomeado organiste du Roi em 1693. Luís XV (1710-1774) ascendeu-o<br />

em 1717 às funções de ordinaire de la musique de la chambre du Roi. Este cargo tinha<br />

como principal função organizar um concerto <strong>sem</strong>anal, quase <strong>sem</strong>pre <strong>ao</strong>s domingos, onde<br />

participavam, regularmente, os instrumentistas virtuosos da corte francesa.<br />

Tendo morrido em Paris, em 1733, Couperin fi cou para a posteridade como um mestre<br />

da l’art de touchér le clavecin (“d’arte de tocar cravo”, nome de um tratado fundamental para<br />

o conhecimento da técnica interpretativa do período barroco, escrito pelo compositor).<br />

A obra Les folies françoises deverá ser lida num contexto estético complexo em que os<br />

principais compositores franceses desta época se envolveram, <strong>ao</strong> nível da linguagem<br />

musical e dos jogos harmónicos. Resumindo-se a um tema e sucessivas variações, importa<br />

notar o afrancesamento da Folia, dança de origem ibérica e muito cultivada no período<br />

barroco por italianos, como Arcangelo Corelli [1653-1713], referência inequívoca nesta<br />

obra de Couperin.<br />

Apesar de associarmos a fi gura de Wolfgang Amadeus Mozart <strong>ao</strong> piano, e à sua<br />

produção para este novíssimo instrumento, o facto é que muitas das primeiras composições<br />

deste menino dotado, nascido na cidade de Salzburg em 1756, foram idealizadas para o<br />

cravo. Tendo aprendido música com o pai, Leopold [1719-1787], tornou-se um fenómeno<br />

musical, para a época, estrondoso, passeado pelas principais cortes europeias e coberto de<br />

honrarias.<br />

91


92<br />

notas <strong>ao</strong> programa<br />

A sonata em dó maior, kv.19d, foi escrita, provavelmente, para uma das muitas exibições<br />

públicas que Wolfgang Amadeus fez com o pai e a irmã, Maria Anna [1751-1829]. Contudo,<br />

até há alguns anos, julgava-se que as difi culdades de cruzamento e duplicação de<br />

vozes desta obra eram fruto da inexperiência do então menino compositor. São recentes<br />

as investigações que identifi caram o construtor e as características do instrumento em que<br />

as duas crianças se apresentavam, um cravo de dois manuais (teclados), transformando os<br />

aparentes erros de composição numa forma musical coerente.<br />

!<br />

josé bruto da costa


igreja de nossa senhora dos prazeres<br />

beja<br />

�<br />

Classifi cada como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 129/77<br />

(Diário do Governo de 29 de Setembro de 1977)<br />

Longamente meditado pelas autoridades concelhias, o propósito de facilitar o acesso<br />

à principal praça de Beja levou à abertura, em fi nais do século XVI (ou já em inícios<br />

do seguinte), de uma porta na muralha medieval, perto da Corredoura. Foi junto a este<br />

postigo que se construiu, poucas décadas mais tarde, encostada <strong>ao</strong> pano da fortaleza,<br />

a igreja de Nossa Senhora dos Prazeres. A escolha do sítio, contíguo à velha ermida<br />

de Santo Estêvão, cujo adro passou a partilhar, explica-se não só por ser um dos mais<br />

frequentados da urbe mas também pelo costume, usual em terras do Sul, de se assinalar<br />

a protecção simbólica de cada uma das principais entradas das povoações com a presença<br />

de uma capela. O título escolhido, por seu turno, refl ecte uma devoção muito patente<br />

entre nós na época pós-tridentina, quando o culto da Virgem atingiu o clímax.<br />

De facto, a veneração tributada a Nossa Senhora dos Prazeres constitui um refl exo<br />

do intensifi car da piedade mariana em fi nais da Idade Média e, à <strong>sem</strong>elhança da<br />

elaboração dos Mistérios <strong>Do</strong>lorosos e Gozosos do Rosário, assenta no paralelismo entre<br />

as Sete <strong>Do</strong>res e as Sete Alegrias da Mãe de Deus, tendo alcançado notáveis ressonâncias<br />

litúrgicas e devocionais. Conheceu depois signifi cativo acréscimo em meados do século<br />

XVI, devido a um acontecimento milagroso que provocou grande comoção. Junto<br />

à fonte de certa quinta do vale de Alcântara, no termo de Lisboa, foi encontrada<br />

uma imagem de Maria que comunicou virtudes curativas às águas deste manancial.<br />

Na mesma ocasião, a própria Virgem apareceu a uma menina, indicando-lhe que dissesse<br />

<strong>ao</strong>s pais e <strong>ao</strong>s vizinhos para erguerem aí uma capela em Sua honra. Construída a ermida<br />

e posta no altar a dita imagem, começaram os milagres, atraindo <strong>ao</strong> local inúmeros fi éis.<br />

O fenómeno despertou um intenso surto devocional e em vários pontos de país foram<br />

construídas igrejas e capelas sob a mesma invocação.<br />

Referência cimeira de tão impressionante série de fundações, o monumento levantado<br />

em Beja espelha a implantação local de um culto de vasta repercussão. São pouco conhecidas<br />

as circunstâncias que rodearam a sua erecção, talvez nascida da iniciativa de particulares.<br />

Em 1672 o grosso da obra já se encontrava concluído, a ajuizar pela data inscrita na<br />

verga do portal. <strong>Do</strong> ponto de vista tipológico, o edifício segue um modelo característico<br />

93


94<br />

da arte maneirista portuguesa, com planta longitudinal, de uma só nave, coberta por<br />

abóbada de berço, capela-mor mais estreita e mais baixa, com paredes perpendiculares<br />

<strong>ao</strong> arco cruzeiro e abside <strong>sem</strong>icircular, rematada por cúpula e lanternim, e sacristia<br />

quadrangular adossada, também coberta por abóbada. À circunspecção dos alçados<br />

exteriores, própria da arquitectura chã, que dominava o panorama nacional, corresponde<br />

um interior de sumptuosa cenografi a, verdadeira obra de arte total (gesamtkunstwerk).<br />

A azulejaria, a escultura e a pintura afl uem aqui, mediante um sistema deveras coerente,<br />

em termos teológicos e plásticos, na criação de um “teatro sagrado” que permite antever<br />

as glórias do Céu.<br />

Iniciado, quanto <strong>ao</strong> essencial, à volta de 1680, este ciclo decorativo alongou-se, pelo<br />

que as fontes escritas mostram, durante mais de duas décadas, pondo em realce a crescente<br />

infl uência, dentro dos círculos bejenses, da Irmandade de Nossa Senhora dos Prazeres.<br />

Tiveram nisso papel destacado duas fi guras notáveis da sociedade local, Manuel Álvares<br />

Azeitado, opulento e prestigiado mercador, que ocupou prestigiosos cargos públicos, com<br />

realce para a vereação da Câmara, e o P. e Manuel Ledo Gago. O seu de<strong>sem</strong>penho, <strong>ao</strong><br />

longo de sucessivos mandatos, respectivamente como reitor e como escrivão da confraria,<br />

foi decisivo para a fazer brilhar, trazendo-lhe outrossim desafogo económico, graças à<br />

multiplicação das esmolas dos fi éis e à obtenção de alguns legados pios. Devido a este<br />

fl orescimento, o santuário dos Prazeres tornou-se um dos principais centros de piedade da<br />

grei pacense na época barroca, como o atestam as importantes ofertas votivas que recebeu,<br />

incluindo um notável núcleo de exemplares de joalharia. Alguns deles ornamentam,<br />

rotativamente, a imagem seiscentista da Virgem, escultura “de vestir” que a devoção da<br />

nobreza da cidade dotou com rico enxoval.<br />

Formando uma oval irregular <strong>ao</strong> gosto seiscentista, a capela-mor recebeu modifi cações<br />

de vulto para a sagração do novo altar, em 12 de Abril de 1779, por D. Fr. Manuel<br />

do Cenáculo Villas Boas, primeiro bispo de Beja após a refundação da diocese (1770).<br />

Devoto de Nossa Senhora dos Prazeres, o insigne prelado contribuiu para reforçar a<br />

notoriedade de que gozava a igreja. Vincula-se <strong>ao</strong> seu mecenato a oferta da cadeira e<br />

do par de credências pertencentes <strong>ao</strong> acervo da Irmandade, valiosos testemunhos do<br />

mobiliário meridional da segunda metade do século XVIII. Por esta data as celebrações<br />

já ultrapassavam, em esplendor e em repercussão pública, as do santuário “rival”, Nossa<br />

Senhora <strong>ao</strong> Pé da Cruz, sito no bairro dos Pelames, então ainda periférico, e cujas raízes<br />

ascendem <strong>ao</strong> crepúsculo da Idade Média.<br />

Na sacristia continua a preponderar a fi sionomia das campanhas de obras dos fi nais<br />

de Seiscentos, destacando-se o arcaz-altar, de talha dourada e acharoada, e o lavabo,<br />

de pedra de Trigaches, com registos em forma de carrancas. Das pinturas murais que<br />

guarneciam primordialmente este espaço restam alguns vestígios, como um medalhão<br />

com a fi gura de São João Evangelista e um trecho de revestimento de um arco que imita<br />

azulejos de “fi gura avulsa”.<br />

Com o advento do Liberalismo, a Irmandade viu-se esbulhada de grande parte<br />

dos capitais e bens de raiz que lhe pertenciam, devido à legislação desamortizadora.<br />

Logrou, no entanto, vencer <strong>sem</strong> problemas de maior esta conjuntura de aperto, mercê da<br />

VII. São Francisco de Assis em Oração (pormenor) | Gabriel del Barco | 1693<br />

Beja, igreja de Nossa Senhora dos Prazeres.


protecção de famílias gradas. Tal como sucedera na época barroca, a igreja dos Prazeres<br />

foi um lugar-chave da Beja romântica, frequentado pela aristocracia e pela burguesia<br />

chic. O seu espólio enriqueceu-se com alfaias oriundas de casas religiosas extintas.<br />

Ao convento de Nossa Senhora da Conceição pertenceu o Cristo em Oração no Horto,<br />

obra de marcado pendor bidimensional, típico da produção dos entalhadores regionais<br />

na segunda metade do século XVII. Particular interesse iconográfi co possui o Senhor<br />

do Triunfo, escultura do primeiro quartel do século XVIII que evoca a Ressurreição<br />

de Jesus e a Sua vitória sobre a Morte, simbolizada por uma caveira em hipertrofi a.<br />

A imagem de São Sebastião, santo muito venerado no Alentejo como protector das<br />

doenças, remonta também <strong>ao</strong> período barroco e destaca-se pelo ambíguo naturalismo da<br />

fi gura – tendência que é exaltada, no tratamento da árvore a que está preso, graças a um<br />

gosto ornamental arcaizante.<br />

Ostentando na frontaria um fecho de abóbada da época manuelina, o edifício anexo<br />

à igreja albergava a casa do despacho e outras dependências da Irmandade de Nossa<br />

Senhora dos Prazeres. Mais tarde serviu de residência do capelão. Hoje tem um uso<br />

museológico e constitui o núcleo primordial do renascido Museu Episcopal. Este nome<br />

invoca a memória da instituição fundada em 1892 por Mons. Amadeu Ruas, sob a égide<br />

do bispo D. António Xavier de Sousa Monteiro, para evitar a dispersão das obras de<br />

arte pertencentes <strong>ao</strong>s últimos conventos e mosteiros femininos de Beja que se foram<br />

extinguindo, em penosa agonia, <strong>ao</strong> longo da segunda metade do século XIX. O Museu<br />

Episcopal desapareceu com o advento da República e o respectivo acervo acabaria por<br />

ser parcialmente integrado no Museu Regional, mas o ideal que esteve na sua génese –<br />

preservar, estudar e divulgar o património religioso pacense – continua vivo.<br />

josé antónio falcão<br />

bibliografia fundamental: J[oão] M[iguel] dos Santos Simões, Corpus da Azulejaria Portuguesa, IV,<br />

Azulejaria em Portugal no Século XVII, 2, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997; id., Corpus da<br />

Azulejaria Portuguesa, V, Azulejaria em Portugal no Século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1979;<br />

Túlio Espanca, Inventário Artístico de Portugal, XII, Distrito de Beja. Concelhos de Alvito, Beja, Cuba, Ferreira<br />

do Alentejo e Vidigueira, 1-2, Lisboa, Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; Vítor Serrão, “O Conceito de<br />

Totalidade nos Espaços do Barroco Nacional: A Obra da Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres em Beja (1672-<br />

-1698)”, em Revista da Faculdade de Letras, 5.ª Série, XXI-XXII, Lisboa, 1996-1997; id., Francisco Lameira<br />

& José António Falcão, A Igreja de Nossa Senhora dos Prazeres em Beja. Arte e História de um Espaço Barroco<br />

(1672-1698), Lisboa, Alêtheia Editores, 2007.<br />

95


21 DE MARÇO DE 2009 . 17H30<br />

igreja de nossa senhora dos prazeres<br />

beja<br />

manuel pedro ferreira<br />

universidade nova de lisboa<br />

!<br />

do velho <strong>ao</strong> novo mundo<br />

Conferência<br />

Manuel Pedro Ferreira (n. 1959) doutorou-se em Musicologia na Universidade<br />

de Princeton (Estados Unidos da América) com uma tese sobre o canto na abadia de<br />

Cluny; é actualmente Professor Associado na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas<br />

da Universidade Nova de Lisboa, onde lecciona sobre a música da Idade Média e do<br />

Renascimento, coordena o Departamento de Ciências Musicais e é director executivo<br />

do Centro de Estudos de Sociologia e Estética Musical. Tem-se dedicado também à<br />

crítica musical e à interpretação (dirige desde 1995 o grupo Vozes Alfonsinas, com o<br />

qual se apresentou em todo o país e no estrangeiro, gravando vários discos compactos).<br />

97


98<br />

Tem estado activo como compositor, desde 1988, de forma intermitente, privilegiando a<br />

voz e a música de câmara.<br />

Como musicólogo, publicou mais de setenta artigos de investigação, que versam<br />

temas que vão da monodia medieval à obra de compositores contemporâneos; é<br />

também colaborador de vários dicionários especializados internacionais. Foi responsável<br />

pela publicação fac-similada do Cancioneiro de Elvas (1989) e do manuscrito 714 da<br />

Biblioteca Pública Municipal do Porto (2001); recebeu o Prémio de Ensaísmo Musical<br />

do Conselho Português da Música pelo seu livro O Som de Martin Codax (Lisboa, 1986).<br />

Os seus últimos livros publicados são Cantus Coronatus — Sete Cantigas d’Amor d’El-<br />

-Rei <strong>Do</strong>m Dinis (Kassel, 2005), Dez Compositores Portugueses (Lisboa, 2007) e Antologia<br />

de Música em Portugal na Idade Média e no Renascimento (Lisboa, 2008). Estão no prelo<br />

outros títulos, entre os quais uma colectânea de ensaios musicológicos, em dois volumes,<br />

a publicar na Imprensa Nacional, sob o título Aspectos da Música Medieval no Ocidente<br />

Peninsular.<br />

!<br />

VIII. Estante de altar (pormenor) | Trabalho português | Século XVIII (meados)<br />

Beja, igreja de Santa Maria da Feira.


igreja de santa maria da feira<br />

beja<br />

�<br />

Classifi cada como Imóvel de Interesse Público pelo Decreto n.º 42 255<br />

(Diário do Governo n.º 105, de 8 de Maio de 1959)<br />

A igreja de Santa Maria da Feira, matriz de Beja, ocupa um sítio emblemático no centro<br />

histórico da cidade, que pertencera antes – de acordo com a tradição, corroborada por<br />

explícitos achados arqueológicos – à primitiva catedral, cujas fundações devem ascender<br />

<strong>ao</strong> século VI. Outros relatos afi rmam ter sido adaptada a mesquita na época do domínio<br />

islâmico, o que pressupõe a sua reconciliação com o culto cristão, após a “reconquista”<br />

da cidade, só tornada defi nitiva em 1232 ou 1234 (e só verdadeiramente segura após a<br />

expugnação de Mértola, em 1238). Aliás, não falta quem veja na torre do solar que lhe fi ca<br />

fronteiro, a Casa da Torrinha, a reminiscência da velha almádena, de cujo cimo, nas horas<br />

costumeiras, um religioso muçulmano chamava os crentes à oração. Túlio Espanca datou<br />

esta torre já do século XIX, mas está ainda por averiguar com rigor científi co se não terá<br />

resultado da transformação de uma estrutura medieval.<br />

D. Afonso III autorizou em 1259 a feitura de uma nova igreja, sob a invocação<br />

de Santa Maria, algo importante para o repovoamento de uma terra que, tomada e<br />

perdida várias vezes pelas hostes portuguesas, sofrera grandes prejuízos. Aquele título<br />

correspondia a uma escolha usual numa época de profunda devoção à Virgem, sendo<br />

o mais preferido para a dedicação de antigas mesquitas. João Moniz, o seu primeiro<br />

prior, contribuiu decisivamente para o arranque da obra. No rossio vizinho começou a<br />

realizar-se em 1261, com licença régia, a feira de Beja, a qual acabaria por fi car associada<br />

<strong>ao</strong> título da igreja.<br />

Esta foi entregue pelo mesmo monarca, em 1259, à ordem militar dos freires de<br />

Évora ou de Avis, que aí instalou uma colegiada. Seguidamente tornar-se-ia também<br />

a sede da respectiva comenda em Beja. Os limites da paróquia alargavam-se a uma<br />

vasta faixa rural em que abundavam as terras férteis, incluindo Cuba e Selmes (hoje no<br />

concelho de Vidigueira). Quanto <strong>ao</strong> âmbito urbano, muitos dos seus fregueses estiveram<br />

tradicionalmente vinculados <strong>ao</strong>s mesteres e <strong>ao</strong> comércio.<br />

Um aspecto digno de referência na história de Santa Maria da Feira é o facto de ter sido<br />

a igreja escolhida por D. João II, em 1495, para se efectuar a cerimónia do solene baptismo<br />

de Caçuta, o embaixador do potentado do Congo – manicongo – e dos demais membros<br />

99


100<br />

da sua comitiva. Garcia de Resende narrou assim estes acontecimentos na Chronica [...] do<br />

Christianissimo <strong>Do</strong>m Joam o Segundo (1545):<br />

“El-Rei do Congo mandou a El-Rei por seu embaixador Caçuta, homem muito<br />

importante que depois de ser cristão teve o nome de D. João da Silva, e alguns moços [...].<br />

El-Rei D. João [...] estando em Beja, levou o embaixador Caçuta à pia baptismal para o<br />

fazer cristão e assim <strong>ao</strong>s moços que com ele vieram, e a Rainha foi a madrinha, vestindo-<br />

-se ela e El-Rei de festa.”<br />

Favorecida pelos monarcas, pelos bispos de Évora e pelos prelados de Avis, a matriz<br />

de Beja possuiu desde cedo uma fábrica abastada, a que se juntaram outros patrimónios.<br />

De entre os seus muitos rendimentos sobressaíam os provenientes de capelas de missas.<br />

No tempo em que o cardeal infante D. Afonso deteve a cátedra eborense, estas capelas<br />

ultrapassavam a trintena e estavam vinculadas a bens que, além de cobrirem boa parte do<br />

território alentejano, se estendiam até Sintra. Existiam ainda mais de vinte propriedades<br />

foreiras, tanto urbanas como rústicas, além dos próprios do comendador, do prior e dos<br />

benefi ciados. Um inventário realizado na segunda metade do século XVIII mostra que,<br />

apesar de sucessivas incorporações de capelas no erário régio, havia ainda um património<br />

impressionante. Ao grémio dos benefi ciados de Santa Maria pertencia então Luís<br />

António Verney, autor d’O Verdadeiro Método de Estudar [1746-1747]; retirado em Roma,<br />

a colegiada fazia-lhe chegar os estipêndios correspondentes <strong>ao</strong> seu cargo.<br />

Grandes transformações alteraram a fi sionomia do monumento <strong>ao</strong> longo dos tempos<br />

e deram-lhe o aspecto híbrido que hoje ostenta. Da estrutura medieva, com três naves,<br />

permanece a cabeceira de abside poligonal, rodeada por absidíolos. Os seus cinco panos,<br />

divididos por contrafortes escalonados, são rasgados por esguias janelas bífores de verga<br />

em arco quebrado e lunetas quadrifoliadas. Embora se tenha perdido a cortina de ameias<br />

que fechava o conjunto, persiste quase íntegra a sequência de modilhões e gárgulas<br />

zoo-antropomórfi cas. Remontando à transição do século XIII para o XIV, este sector<br />

constitui um notável testemunho da delicada elegância então atingida pela arquitectura<br />

gótica no Sul.<br />

Nos fi nais do século XV procedeu-se à construção da galilé, o que permitiu uma<br />

articulação mais funcional com o terreiro envolvente, lídimo coração da vila-cidade.<br />

Rasgado por arcos quebrados, separados por botaréus cilindricos, sobrepujados por cones<br />

envoltos por merlões chanfrados, este nártex resolve-se internamente numa abóbada<br />

de cruzamento de ogivas, com três tramos, cujas nervuras arrancam de mísulas de<br />

ornamentação vegetalista. Trata-se de uma solução típica do Tardo-Gótico alentejano em<br />

que avulta a infl uência da arte mudéjar.<br />

O corpo central do edifício, por seu turno, foi refeito na segunda metade do século XVI,<br />

correspondendo à tipologia de “igreja-salão” largamente utilizada no Alentejo durante a<br />

época da Contra-Reforma, com três naves, de igual altura, formadas por quatro tramos de<br />

abóbadas nervuradas, assentes em colunas de fuste cilíndrico e capitéis toscanos. Seguiu-<br />

-se nisto o austero modelo maneirista da igreja de Santo Antão de Évora, traçado por<br />

Miguel de Arruda em 1548. Datam do mesmo período as duas sacristias, de planta em<br />

quadrilátero, cobertas por abóbadas de cúpulas assentes em trompas. Ciclos de pinturas


parietais quinhentistas e seiscentistas, de que persistem ainda vestígios, remataram o<br />

espaço interior, dando outra vibração à sua harmoniosa severidade.<br />

Uma associação estratégica entre a munifi cência da colegiada, o mecenato de famílias<br />

do patriciado local e a intervenção de irmandades (que gozavam de prestígio e recursos<br />

apreciáveis) tornaram Santa Maria uma das igrejas mais opulentas de Beja, centro de<br />

intensa actividade litúrgica e devocional. É particularmente notável a sequência de<br />

retábulos dos séculos XVII, XVIII e XIX. <strong>Do</strong> lado do Evangelho avulta a capela de Nossa<br />

Senhora do Rosário, cuja estrutura escultórica, característica da talha de “estilo nacional”,<br />

foi encomendada em 1676 <strong>ao</strong> mestre lisboeta Manuel João da Fonseca. No seu vão central<br />

ergue-se uma extr<strong>ao</strong>rdinária Árvore de Jessé, alusiva à genealogia de Cristo, enquanto os<br />

painéis das ilhargas e da predela são preenchidos por símbolos das Litanias da Virgem.<br />

<strong>Do</strong> lado da Epístola o realce pertence à capela de Nossa Senhora da Coroa e das Almas,<br />

de grande veneração bejense. Sobressai aqui a sumptuosa máquina retabular construída<br />

nos fi nais do reinado de D. Pedro II e que integra a imagem do arcanjo São Miguel em<br />

glória, acolitado por anjos.<br />

Atribuiu-se <strong>ao</strong> terramoto de 1755, além de outros danos no monumento, o desequilíbrio<br />

das colunas dos primeiros tramos. Terá sido o intuito de corrigir os seus efeitos que levou a<br />

uma nova campanha de obras na década de 1790, com a remodelação da capela-mor e das<br />

capelas colaterais. A da parte do Evangelho, consagrada a São Crispim e São Crispiniano<br />

e pertencente à Confraria dos Sapateiros, foi demolida nesta ocasião. A do Santíssimo<br />

Sacramento, na banda oposta, ganhou maior amplitude, tendo a abóbada revestida por<br />

estuques e acolhendo um retábulo de mármore branco e róseo em que se inscreve o painel da<br />

Última Ceia, de Pedro Alexandrino de Carvalho, o mais conhecido pintor lisboeta da época.<br />

Sagrado em 1792, o altar recebeu os privilégios de indulgência plenária por concessões de<br />

Pio VII em 1800 e 1803. Os trabalhos no edifício, todavia, prolongaram-se até 1794.<br />

Embora grande parte do tesouro paroquial se tenha disperso, a igreja conserva ainda<br />

espécimes artísticos de muito interesse. Merece especial atenção o painel a óleo sobre<br />

madeira que representa a Descida da Cruz, da autoria de um mestre do círculo do pintor<br />

eborense Francisco João, obra datada do último quartel da era quinhentista. <strong>Do</strong> faustoso<br />

aparato litúrgico da antiga colegiada perdurou um precioso núcleo de artes decorativas,<br />

incluindo espécimes de paramentaria, ourivesaria e mobiliário dos séculos XVI a XIX.<br />

A meio da fachada virada a Poente está adossado o campanário, edifício de raiz<br />

medieval que sofreu ampliações nas centúrias de Seiscentos e Setecentos. Tendo em<br />

conta a sua implantação e a sua estrutura, já se vislumbrou nela outra alternativa para a<br />

continuidade do minarete. Possui dois coroamentos diferentes, destinados <strong>ao</strong>s sinos da<br />

paróquia e do concelho – o que evidencia a convergência, em ponto estratégico, perto das<br />

antigas casas da Câmara, dos poderes eclesiástico e civil, acabando este, mercê das obras<br />

realizadas em 1760-1763, por ter maior destaque. A face orientada para o Largo de Santa<br />

Maria ostenta, entre outras peças escultóricas dignas de atenção, a cabeça de um touro da<br />

época romana, insígnia da antiga Pax Iulia, e as armas medievais de Beja. Uma inscrição<br />

liga a sua presença <strong>ao</strong> passado glorioso da cidade: COLONIA / PAZ JVLIA / FESCE NO ANO<br />

DE 1763 / SENDO JVIZ DE FORA / O D. or ANT. o JORGE DE CARV. o<br />

101


102<br />

Em inícios do século XVIII, a irmandade de Nossa Senhora do Rosário aproveitou<br />

o espaço que separava a igreja da torre sineira para erguer a respectiva casa consistorial,<br />

incluindo uma capela destinada <strong>ao</strong>s irmãos. Poucos anos depois juntou-se à frontaria do<br />

edifício uma das estações da Via Sacra, pertencente à Irmandade do Senhor Jesus dos<br />

Passos. Retirado à posse da confraria durante a I República, o edifício do consistório foi<br />

entregue à Caixa Geral de Depósitos para nele instalar o seu balcão em Beja. Em 1922-<br />

-1923 construiu-se um novo imóvel de linhas eclécticas, interessante compromisso entre o<br />

Revivalismo e Modernismo, sob projecto do Arqt.º Porfírio Pardal Monteiro [1897-1957].<br />

A intervenção preservou a estrutura da capela e o ciclo de azulejaria nela existente, notável<br />

conjunto do terceiro quartel do século XVIII que põe em diálogo momentos culminantes<br />

da vida de Maria e de Cristo.<br />

Menos sorte teve a pequena capela de Nossa Senhora da Luz, já referida em fontes<br />

escritas de 1680, que fi cava encaixada num dos contrafortes da cabeceira da igreja. De planta<br />

circular, à <strong>sem</strong>elhança das coevas capelas do Calvário, foi demolida pela Direcção-Geral<br />

dos Edifícios e Monumentos Nacionais, em 1970, com o pretexto de que prejudicava a<br />

leitura da estrutura medieval.<br />

josé antónio falcão<br />

bibliografia fundamental: J[oão] M[iguel] dos Santos Simões, Corpus da Azulejaria Portuguesa,<br />

IV, Azulejaria em Portugal no Século XVII, 2, 2.ª ed., Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1997; id., Corpus<br />

da Azulejaria Portuguesa, V, Azulejaria em Portugal no Século XVIII, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian,<br />

1979; Jacques Marcadé, Frei Manuel do Cenáculo Vilas Boas – Évêque de Beja, Archevêque d’Evora (1770-1814),<br />

Paris, Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian, 1978; Túlio Espanca, Inventário Artístico<br />

de Portugal, XII, Distrito de Beja. Concelhos de Alvito, Beja, Cuba, Ferreira do Alentejo e Vidigueira, 1-2, Lisboa,<br />

Academia Nacional de Belas-Artes, 1992; Leonel Borrela, “A Igreja de Santa Maria. I-III”, em Diário do<br />

Alentejo, Beja, 25 de Agosto e 1 e 8 de Setembro de 1995; Hermína Vasconcelos Vilar, As Dimensões de Um<br />

Poder. A Diocese de Évora na Idade Média, Lisboa, Editorial Estampa, 1999; [Manuel Lourenço] Casteleiro<br />

de Goes, Beja. XX Séculos de História de Uma Cidade, I-II, Beja, Câmara Municipal de Beja, 1998 [1999].


28 DE MARÇO DE 2009 . 21H30<br />

igreja de santa maria da feira<br />

beja<br />

coro gulbenkian<br />

!<br />

o esplendor luso-brasileiro<br />

nos finais do século xviii<br />

e princípios do xix<br />

LUÍS ÁLVARES PINTO (1719-1789)<br />

Divertimentos Harmónicos, 1776, para 3 e 4 vozes<br />

Beata Virgo<br />

Benedicta tu in mulieribus<br />

Quæ est ista<br />

Effi cieris gravida<br />

Oh! Pulchra es, et decora<br />

JOSÉ MAURÍCIO NUNES GARCIA (1767-1830)<br />

Miserere para Quarta-Feira de Trevas, 1798<br />

para 4 vozes concertantes e baixo contínuo<br />

Missa dos Defuntos a 4 vozes de Capella, 1809<br />

para 4 vozes concertantes e baixo contínuo<br />

ANDRÉ DA SILVA GOMES (1752-1844)<br />

Laudate Pueri<br />

para 4 vozes concertantes e baixo contínuo<br />

Popule meus<br />

para 4 vozes<br />

Ofertório da Missa do <strong>Do</strong>mingo de Paixão<br />

para 4 vozes concertantes e baixo contínuo<br />

Ofertório do 4.º <strong>Do</strong>mingo de Quaresma<br />

para 8 vozes concertantes e baixo contínuo<br />

103


104<br />

notas biográficas<br />

coro gulbenkian<br />

Jorge Matta, direcção<br />

Nicholas Macnair, cravo<br />

Michel Corboz, maestro titular<br />

Fernando Eldoro, maestro adjunto<br />

Jorge Matta, maestro assistente<br />

Caroline Bart Mascarenhas, coordenadora<br />

Rebeca Cantos, secretária/arquivista<br />

Fundado em 1964, o Coro Gulbenkian conta presentemente com uma formação<br />

sinfónica de cerca de 100 cantores, actuando também em grupos vocais reduzidos,<br />

conforme a natureza das obras a executar. Assim, tanto pode apresentar-se como grupo a<br />

cappella, o que tem acontecido regularmente para a interpretação de polifonia portuguesa<br />

dos séculos XVI e XVII, como colaborar com a Orquestra Gulbenkian para a execução de<br />

obras coral-sinfónicas do repertório clássico e romântico. Na música do século XX, campo<br />

em que é particularmente conhecido, tem interpretado – e frequentemente estreado –<br />

inúmeras obras contemporâneas de compositores portugueses e estrangeiros. Tem sido<br />

igualmente convidado a colaborar com as mais prestigiadas orquestras mundiais para<br />

execução de grandes obras como A Criação do <strong>Mundo</strong>, de Haydn, e a Nona Sinfonia, de<br />

Beethoven (Orquestra do Século XVIII/Frans Brüggen), a Missa Solemnis, de Beethoven<br />

(Orquestra Sinfónica de Baden-Baden/Michael Gielen), as Segunda, Terceira e Oitava<br />

Sinfonias, de Mahler (Filarmónica de Berlim/Claudio Abbado; Filarmónica de Londres/Franz<br />

Welser-Möst; Sinfónica de Viena/Rafael Frübeck de Burgos; Filarmónica<br />

Checa/Gerd Albrecht), A Danação de Fausto, de Berlioz (Filarmónica de Estrasburgo/


notas biográficas<br />

Th eodor Guschlbauer e Concertgebouw de Amesterdão/Colin Davis), ou Daphnis et<br />

Chloeé, de Ravel (Filarmónica de Montecarlo/Emmanuel Krivine).<br />

Para além da sua apresentação na temporada de concertos da Fundação, em Lisboa,<br />

e das suas digressões pelo país, o Coro Gulbenkian tem actuado em numerosas cidades<br />

de Espanha, França, Itália, Hungria, Canadá, Iraque, Índia, Macau e Japão. Em 1991<br />

apresentou-se em várias cidades da Bélgica, no quadro do <strong>Festival</strong> Europalia, e deslocou-<br />

-se a Israel para uma série de actuações com a Orquestra de Câmara de Israel (Telavive,<br />

Carmiel, Haifa e Jerusalém). Em 1992, uma digressão em várias cidades da Holanda<br />

e da Alemanha, com a Orquestra do Século XVIII, deu origem à gravação <strong>ao</strong> vivo da<br />

Nona Sinfonia, de Beethoven, que foi incluída na edição integral das sinfonias que<br />

Frans Brüggen realizou para a Philips. Em 1993 o Coro Gulbenkian teve a honra de<br />

acompanhar o então Presidente da República, <strong>Do</strong>utor Mário Soares, numa visita ofi cial<br />

<strong>ao</strong> Reino Unido. Deslocou-se em seguida <strong>ao</strong> Brasil e recebeu o convite de S. A. R. o Príncipe<br />

Rainier do Mónaco para a realização de um concerto com a Orquestra Filarmónica de<br />

Montecarlo. Nesse mesmo ano, actuou ainda em Lyon, Estrasburgo e Mulhouse, com a<br />

Orquestra Nacional de Lyon (A Transfi guração, de Messiaen). Em 1994 deslocou-se a<br />

Budapeste com a Orquestra Gulbenkian e efectuou uma segunda digressão com Frans<br />

Brüggen e com a Orquestra do Século XVIII, actuando em Itália, França, Holanda e<br />

Portugal (A Criação, de Haydn). No ano seguinte, apresentou-se na Índia em quatro<br />

concertos a cappella, realizando uma digressão <strong>ao</strong> Brasil, Argentina e Uruguai, com a<br />

Orquestra Gulbenkian, sob a direcção de Michel Corboz (Elias, de Mendelssohn).<br />

Ainda em 1995, nove concertos com a Orquestra do Século XVIII (Nona Sinfonia, de<br />

Beethoven) levaram o Coro Gulbenkian a oito cidades do Japão. Em Junho de 1997<br />

apresentou-se com esta mesma orquestra, dirigida por Frans Brüggen, em concertos<br />

realizados em diversas cidades europeias, incluindo uma participação no <strong>Festival</strong> Eurotop<br />

de Amesterdão (Sonho de Uma Noite de Verão, de Mendelssohn).<br />

Em Novembro do mesmo ano teve o privilégio de acompanhar o Presidente da<br />

República, Dr. Jorge Sampaio, na visita ofi cial à Holanda, a convite de S. M. a Rainha<br />

Beatriz da Holanda, tendo actuado em Leiden. Na temporada de 1998-1999 apresentou-se,<br />

entre outros, no <strong>Festival</strong> Veneto (com a Orquestra I Solisti Veneti) em Pádua e em Verona.<br />

Em 2000 realizou uma digressão com a Orquestra do Século XVIII e Frans Brüggen,<br />

actuando em Londres e em várias cidades da Holanda, da Alemanha e do Japão. No ano<br />

seguinte, colaborou com a Orquestra Sinfónica do Norte da Alemanha na apresentação da<br />

Missa Solemnis, de Beethoven, em Lisboa e Madrid. Já em 2002, a actividade internacional<br />

compreendeu concertos na Dinamarca, Malta, Japão (de novo com a Orquestra do Século<br />

XVIII) e Espanha (<strong>Festival</strong> Internacional de Música de Granada). O Coro Gulbenkian<br />

tem gravado para as editoras Philips, Archiv-Deutsche Grammophon, Erato, Cascavelle,<br />

Musifrance, FNAC Music e Aria-Music, interpretando um repertório diversifi cado<br />

que inclui música portuguesa do século XVI <strong>ao</strong> século XX. Algumas destas gravações<br />

receberam prémios internacionais, tais como o Prémio Berlioz, da Academia Nacional<br />

Francesa do Disco Lírico, o Grande Prémio Internacional do Disco, da Academia Charles<br />

Cros, ou o Orfeu de Ouro, entre outros. Desde 1969, Michel Corboz é o Maestro Titular<br />

105


106<br />

notas biográficas<br />

do Coro, sendo as funções de Maestro Adjunto de<strong>sem</strong>penhadas por Fernando Eldoro e<br />

as de Maestro Assistente por Jorge Matta.<br />

JORGE MATTA<br />

Maestro assistente do Coro Gulbenkian, desde 1976, é doutorado em Musicologia<br />

Histórica pela Universidade Nova de Lisboa, onde ensina no Departamento de Ciências<br />

Musicais. Destacado investigador, editor e intérprete de música portuguesa, tem realizado<br />

inúmeras primeiras audições modernas e estreias absolutas de obras vocais e instrumentais<br />

de compositores portugueses. Gravou várias séries de programas de televisão e representou<br />

Portugal na Eurovisão e na <strong>Mundo</strong>visão, em 1986. Dirigiu a Orquestra Sinfónica da<br />

Radiodifusão Portuguesa, a Orquestra Metropolitana de Lisboa, a Orquestra de Câmara<br />

de Macau, a Orquestra de Câmara de Lisboa, a Orquestra de Câmara Sousa Carvalho,<br />

a Orquestra Musicatlântico, a Orquestra de Câmara de Cascais e Oeiras, o Collegium<br />

Instrumentale de Bruges, o Coro da Radiodifusão da Baviera, e participou nos Festivais<br />

Internacionais de Pamplona, Palência e Badajoz (Espanha), Rotemburgo e Munique<br />

(Alemanha), Bruxelas (Europália 91) e Israel (1998). A sua discografi a inclui discos com<br />

o Coro Gulbenkian, com o grupo Cantus Firmus e com a Orquestra de Câmara de<br />

Lisboa – “Música Portuguesa do Século XVIII”, que mereceu, entre outros, um prémio<br />

da Academia Francesa do Disco. Em 2000/2001 foi director do Teatro Nacional de São<br />

Carlos. É, desde 2001, presidente da Comissão de Acompanhamento das Orquestras<br />

Regionais.


o esplendor luso-brasileiro<br />

Nos Finais do Século XVIII e Princípios do XIX<br />

notas <strong>ao</strong> programa<br />

Notável conhecedor da realidade colonial portuguesa, Charles Ralph Boxer [1904-<br />

-2000] afi rmava que a mestiçagem fora uma “consequência inevitável da instalação e da<br />

manutenção do império português”, sendo o mulatismo o resultado mais “forte e visível”<br />

desse processo. Se tivermos em conta que a maioria dos músicos activos no Brasil durante<br />

o século XVIII, e mesmo durante o século XIX, eram mestiços, ocorre-nos questionar,<br />

obviamente, a razão de tal facto, estando a resposta na própria ordem social da época.<br />

Sendo a maioria homens-livres, os mulatos procuravam exercer funções não de<strong>sem</strong>penhadas<br />

por negros ou brancos, numa tentativa de favorecerem a mobilidade vertical nas relações<br />

sociais.<br />

Salientou Maurício Monteiro que, em 1804, os músicos da capitania de Minas Gerais<br />

– <strong>ao</strong> tempo a mais rica e desenvolvida do vice-reino do Brasil – representavam 41% de<br />

todos os profi ssionais liberais listados no sector terciário. Dedicando-se exclusivamente<br />

à música ou desenvolvendo actividades económicas paralelas, os mulatos procuravam<br />

a possibilidade de ascensão social e distinção no seio de uma sociedade que lhes era, à<br />

partida, hostil. Segundo Harry Crowl, o denominativo “pardo” foi criado pelos portugueses<br />

para impedir uma distinção social entre negros forros, mulatos ou mesmo brancos nativos<br />

<strong>sem</strong> posses. Contudo, a Igreja, com as suas irmandades e confrarias, e o Estado, com<br />

os senados camarários, o exército ou mesmo o aparelho judicial, constituíram-se como<br />

verdadeiras máquinas aglutinadoras de pretensões sociais, tornando-se a música o grande<br />

denominador comum nesse ambiente de sincretismo, paradigma do Brasil colonial. Não é,<br />

pois, de estranhar que os maiores vultos da música brasileira setecentista sejam mulatos e<br />

o seu percurso musical muito <strong>sem</strong>elhante.<br />

Apelidado por José Mazza, no Diccionario Biographico de Musicos (ca. 1780), de “homem<br />

pardo”, Luís Álvares Pinto nasceu no Recife, na capitania do Pernambuco, em 1719.<br />

Mazza acrescenta que, <strong>ao</strong> redor de 1740, passou a Lisboa para “aprender contraponto com<br />

o celebre Henrique da Silva [Negrão], tem composto infi nitas obras com muito acerto<br />

principalmente eclesiásticas; compôs (ultimat. e humas exequias) à morte do Senhor Rey<br />

D. José o primeiro a quatro coros, e ainda em composições profanas tem escrito com<br />

muito aserto”.<br />

De volta a Pernambuco, em 1761, publicou, no ano seguinte, a segunda obra teórica<br />

sobre música escrita no Brasil, Arte de Solfejar (a primeira é da autoria do P. e Caetano de<br />

Melo Jesus [1759-1760]). A sua veia de escritor manifestou-se na comédia Amor mal<br />

correspondido (da qual subsistem alguns trechos), levada à cena na Casa da Ópera de<br />

Recife, em 1780, e ainda em três obras didácticas hoje perdidas: Dicionario Pueril (1784),<br />

Arte Pequena para se aprender Música e Arte Grande de Solfejar.<br />

Em 1762, Álvares Pinto foi eleito mordomo da Irmandade de Nossa Senhora do<br />

Livramento, em Recife, e, em 1766, nomeado capitão do Regimento de Milícias. Acumu-<br />

107


108<br />

notas <strong>ao</strong> programa<br />

lando tais funções com as de mestre de capela da igreja da Irmandade de Nossa Senhora<br />

do Livramento e da igreja de São Pedro dos Clérigos, desde 1778 (cargo em que viria<br />

a ser confi rmado apenas em 1782), foi nesta última igreja que promoveu a fundação da<br />

Irmandade de Santa Cecília (ca. 1788), à imagem da existente em Lisboa, tendo sido o seu<br />

primeiro juiz. Morreu em Recife no ano de 1789.<br />

Datados de 1776, os Divertimentos Harmónicos resumem-se a cinco momentos musicais<br />

(a 3 [os dois primeiros] e a 4 vozes [os três restantes]), de temática mariana, em que as<br />

virtudes de Nossa Senhora são exaltadas, como mãe do Salvador e fi lha de Jerusalém.<br />

Próprios para o período litúrgico do advento, os Divertimentos apresentam uma construção<br />

musical <strong>sem</strong>elhante, com a entrada das vozes em imitação sucessiva, residindo o seu<br />

principal interesse nos jogos “harmónicos”. São as dissonâncias, as progressões harmónicas<br />

e os contornos intervalares das melodias que conferem enorme graciosidade a esta pequena<br />

obra musical.<br />

Como outra face de um mesmo espelho temos o português André da Silva Gomes,<br />

nascido em Lisboa em 1752. Aluno, provavelmente no Seminário da Patriarcal, do “sabio e<br />

experimentado Mestre” José Joaquim dos Santos [1747-ca. 1801], segundo as palavras do<br />

próprio compositor, Silva Gomes tomou parte na comitiva do 3.º bispo de São Paulo, D.<br />

Fr. Manuel da Ressurreição [1718-1789], a convite do prelado, para ir ocupar as funções<br />

de mestre de capela da Sé paulistana, em fi nais de 1773.<br />

Apesar de elevada à condição de cidade em 1711, São Paulo era, à época, uma vila de<br />

poucos recursos, contando, no censo de 1778, com 5103 habitantes. O aparelho musical<br />

da Sé resumia-se a um órgão, oferta de D. João V [1689-1750] em 1746, cujo titular era<br />

Inácio Xavier de Carvalho, e a “quatro moços do Coro”, sendo a voz de baixo assegurada<br />

pelo organista ou pelo próprio mestre de capela.<br />

André da Silva Gomes substituiu-se <strong>ao</strong> Cabido, <strong>sem</strong>pre com faltas crónicas de<br />

dinheiro, na tentativa de inverter esta situação. Ensinou música gratuitamente a dezenas<br />

de crianças (casado com a viúva Maria Garcia de Jesus, em 1775, não havendo fi lhos desta<br />

união adoptou dezasseis crianças) e procurou, através do seu salário de mestre de capela<br />

e das gratifi cações como mestre de música das festas da Ordem Terceira do Carmo, da<br />

Irmandade do Santíssimo Sacramento (onde viria a ingressar como irmão em 1813) e do<br />

Senado da Câmara, contratar mais cantores e instrumentistas.<br />

A obra de Silva Gomes não pode, nem deve, ser desassociada da rivalidade civil-<br />

-eclesiástica existente em São Paulo, concretamente no entendimento estético-musical<br />

diferenciado entre os sucessivos prelados, adeptos de um “stilo antico”, e os governadores,<br />

“a italiana”. Como refl exo evidente deste facto, e estando economicamente dependente de<br />

ambos, acabou por desenvolver um corpus musical híbrido, mais <strong>ao</strong> sabor das encomendas<br />

do que de uma linguagem individual.<br />

Consequência provável destas contingências estéticas, André da Silva Gomes nunca<br />

encarou a sua função de mestre de capela como a única possibilidade de exercício<br />

profi ssional, procurando complementar os rendimentos com o exercício de outras<br />

actividades ou cargos. Assim, pleiteou e obteve as provisões de capitão de milícias (1789)<br />

e depois de tenente-coronel (1797), a provisão da serventia do ofício de escrivão da


notas <strong>ao</strong> programa<br />

Intendência e Conferência da Real Casa de Fundição de São Paulo, a de proprietário do<br />

ofício de escrivão de Órfãos e, por fi m, de professor régio de Gramática Latina (1803).<br />

Faleceu em 1844, com a provecta idade de 92 anos.<br />

Das obras hoje em concerto merecem particular atenção os dois ofertórios quaresmais<br />

Confi tebor tibi <strong>Do</strong>mine e Laudate <strong>Do</strong>minum, bem como o salmo vespertino Laudate Pueri.<br />

Em ambos é notório o estilo galante napolitano de David Perez [1711-1788] e Sousa<br />

Carvalho [1745-ca. 1800], fazendo uso de uma estrutura que consiste na alternância das<br />

intervenções corais e de solos virtuosos, em jeito de ritornelo musical. Muito interessante<br />

é a confi guração melódico-ritmica do acompanhamento do órgão nas passagens solísticas<br />

dos ofertórios, em jeito de baixo de Alberti, próxima das sonatas para tecla de António<br />

Pedro Avondano [1714-1782].<br />

Diametralmente oposto, o responsório de Sexta-Feira Santa, Popule meus, de estrutura<br />

homofónica e fundamentalmente silábica, desenvolve-se mais em termos harmónicos do<br />

que melódicos, numa procura da acentuação do pathos do texto lamentativo.<br />

Quando, a 22 de Janeiro de 1808, a esquadra portuguesa aportou em São Salvador,<br />

<strong>ao</strong> fi m de 54 conturbadíssimos dias de viagem, uma página da História de Portugal foi<br />

virada. Seguindo um antiquíssimo plano, gizado nos tempos da Restauração, em 1641,<br />

para garantir a autonomia do império português no caso de invasão da metrópole, o então<br />

ainda príncipe regente, D. João de Bragança [1767-1826], ordenara o embarque imediato<br />

da corte e do erário público para a distante colónia do Brasil. É o próprio general Junot<br />

quem, nas suas quase diárias missivas <strong>ao</strong> imperador Bonaparte, informa que, <strong>ao</strong> chegar a<br />

Lisboa, se precipitou para o Alto de Santo Amaro na esperança de ainda avistar a esquadra<br />

na barra do Tejo. Mas já se haviam feito <strong>ao</strong> vento os navios, tacticamente fora do alcance<br />

dos canhões do forte de São Julião da Barra. Ficaria para a história, e enraizado na cultura<br />

popular, o dito “fi cou a ver navios!”<br />

Instalada na cidade do Rio de Janeiro, em Março de 1808, a corte portuguesa recriou-<br />

-se nos trópicos. Um dos homens que mais contribuiu para o amenizar de toda esta<br />

mudança foi o então mestre de capela da sé do Rio de Janeiro, P. e José Maurício Nunes<br />

Garcia. Este mulato (fi lho de um alfaiate branco e de uma fi lha de escravos forros) –<br />

“defeito vísivel” que muitos na corte gostavam de fazer notar – rapidamente caiu nas<br />

graças do príncipe regente. Nomeado mestre da Capela Real, a 26 de Novembro de<br />

1808, com direito a “ração de creado particular”, o que, na prática, o equiparava a todos<br />

os servidores da Casa Real, foi-lhe concedido, no ano seguinte, o hábito da Ordem de<br />

Cristo, processo moroso concluído apenas em 1810, depois de uma série de intrigas<br />

cortesãs que obrigaram à intervenção directa de D. João. A chegada, em 1811, de Marcos<br />

Portugal [1762-1830], afastaria defi nitivamente Nunes Garcia da esfera da Capela Real.<br />

Desde esta data, a Ordem Terceira do Carmo e a Irmandade de Santa Cecília foram<br />

as principais instituições a encomendarem-lhe composições. Retirado da lista da Casa<br />

Real em 1821, por arbítrio do então regente D. Pedro [1798-1834], o músico apelaria,<br />

num tom pungente: “há sette mezzes que o S[u]pp[licant]e sofre nas necessidades por<br />

esta Causa”. Não obtendo resposta e escasseando as encomendas, fi nou-se em 1830,<br />

num estado de extrema miséria.<br />

109


110<br />

notas <strong>ao</strong> programa<br />

As duas obras em audição datam de períodos diferentes da vida de Nunes Garcia.<br />

O Miserere, para Quarta-Feira de Trevas, foi escrito em 1798, poucos meses antes da<br />

nomeação como mestre de capela da sé do Rio de Janeiro, onde, na infância, exercera<br />

as funções de moço de coro. Sendo uma das raras obras do compositor que pressupõe<br />

a alternância com o cantochão, desenvolve-se em onze partes, contrastantes entre si,<br />

alternando solos com tuttis, numa textura marcadamente silábica.<br />

Quanto à Missa dos Defuntos, foi composta em 1809, com destino à Capela Real,<br />

provavelmente para a solenidade dos Fiéis Defuntos. O essencial da linguagem musical de<br />

José Maurício Nunes Garcia permanece – uníssonos, harmonias rebuscadas, alternâncias<br />

constantes entre tonalidades maiores e menores, progressões suspensivas –, mas nota-se um<br />

refi namento a que não foi por certo alheio o facto de nesse mesmo ano ter sido nomeado<br />

arquivista da biblioteca musical do palácio de Queluz, também ela empacotada e remetida<br />

para o Brasil. Exemplo disso são os andamentos ternários, galantes, <strong>ao</strong> gosto napolitano,<br />

tão grato <strong>ao</strong> gosto da real pessoa, como é o caso do Gradual, de fugattos, na conclusão do<br />

Off ertorio ou ainda nos arcaizantes versos a duo, como o Hostias, ou o Requiem æternam na<br />

Communio.<br />

!<br />

josé bruto da costa

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