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CS Estevao e Joao Pedro

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“Eu só aprecio e vou na jornada fantástica ao centro da minha mente pra<br />

causar mudanças drásticas. Com meus problemas faço rimas problemáticas<br />

com a cara de cada um deles estampada em minha temática.” - Shawlin<br />

“Nostalgia”<br />

“Uma filosofia da vida; ela consiste precisamente em denunciar tudo o que nos<br />

separa da vida, todos esses valores transcendentes que se orientam contra a<br />

vida, vinculados às condições e às ilusões da nossa consciência. A vida está<br />

envenenada pelas categorias do Bem e do Mal, da falta e do mérito, do pecado<br />

e da remissão. O que perverte a vida é o ódio, inclusive o ódio contra si mesmo,<br />

a culpabilidade.” - Gilles Deleuze, Espinosa. Filosofia prática<br />

“Suponho que um tipo de esperança fantástica permeia um manifesto. Há uma<br />

insistência, sem garantias, de que a fantasia de um “outro mundo” não é<br />

escapismo mas uma ferramenta poderosa. Crítica não é futurismo nem<br />

futurologia. É sobre aqui e agora, se pudermos aprender que somos mais<br />

poderosos do que pensamos e que a máquina de guerra não é o que somos.<br />

Não há nenhuma base firme para isso, é uma espécie de ato de fé. Mas é<br />

também um ato de compreensão do que é a vida, não apenas sua própria vida,<br />

mas um tipo de sensibilidade etnográfica também. Por onde quer que você ande<br />

e observe profundamente, você percebe que as pessoas, mesmo vivendo nas<br />

piores condições, não estão acabadas, não estão destruídas. Deve-se correr o<br />

risco de perceber como a vida das pessoas não está acabada, mesmo sob as<br />

piores condições, pisoteadas e oprimidas.” Donna Haraway, entrevista Se não<br />

somos humanos, o que somos?<br />

O fim do mundo e a desconstrução do contemporâneo<br />

As histórias sobre o fim do mundo não param de ser narradas. Boa parte dessas<br />

histórias passam pelo crivo do homem. Existirá mundo-terra sem humanos? O<br />

fim do mundo é apenas o começo de uma nova humanidade? Ou ainda, o mundo<br />

a partir de agora só se fará possível sem a presença dos humanos? Todas essas<br />

perniciosas perguntas, contidas em Viveiros e Danowski (2014), não param de<br />

pipocar em minha cabeça. Essas perguntas não param de se fazerem<br />

eminentemente presentes. O calor insuportável da manhã, o barulho<br />

ensurdecedor dos automotivos, o tempo que não para de passar e não para de<br />

oprimir os sentidos e a percepção. Tudo na mais perfeita ordem humana. O<br />

ordenamento humano, entretanto, não parece ser mais (supondo que já foi) a<br />

ordem adequada para a situação. É preciso, enquanto ainda é tempo (o mais<br />

adequado a dizer seria: “é preciso, enquanto ainda existe tempo”) deslocar as<br />

percepções para a desconstrução humana do seu próprio ser. Ou melhor, para<br />

a desconstrução do homem enquanto ser “atravessado pela transcendência<br />

como se por uma flecha sobrenatural” (DANOWSKI e VIVEIROS DE<br />

CASTRO,2014, p.97). A flecha sobrenatural agora não passa de um imenso<br />

desconforto diante de todos os âmbitos da vida que se confundem e perturbam<br />

a já dilacerada mente moderna.


Sem perceber, vivemos entregues à Era da Manutenção. Nada de reconstrução,<br />

menos ainda desconstrução. Neste cenário, o desmantelamento de panoramas<br />

estáticos, purificados ontologicamente, é visto como mero ilusionismo ideológico.<br />

Assim, ideologias continuam modulando nossas práticas vitais cotidianas,<br />

determinando os meios e os fins da vida coletiva ocidentalizada, para bem além<br />

das condutas situadas localmente ao longo das institucionalizações estruturais<br />

de longo alcance - implacáveis em suas formas e também na disseminação de<br />

seu conteúdo uniforme. Enquadramentos bem moldados definem toda e<br />

qualquer possibilidade interacional possível, apontando ferozmente os caminhos<br />

a serem almejados, traçados e ignorados. Arquétipos sociocognitivos se<br />

introjetam nas interioridades presentes, e a gramática industrial determina as<br />

virtualidades cogitáveis através de suas inúmeras plataformas de assujeitamento<br />

e técnicas de submissão anímica. Somos meros operários da uniformidade,<br />

artistas da disciplinação.<br />

O mundo está a acabar. O homem, entretanto, se julga eterno. Quando digo<br />

homem, quero traçar antes um tipo ideal que classificar uma espécie – ainda que<br />

essas duas atividades taxonômicas (enquanto lógicas das classificações)<br />

tenham semelhanças. O tipo ideal do homem que trago ao escrever a palavra<br />

homem, remete a ideias centrais de megalomania, obsessão pelo poder,<br />

autodestruição incomplacente, desespero, insuportabilidade para com o tempo,<br />

forças reativas, vontades negativas e uma série de outras classificações ligadas<br />

ao Antropocentrismo e ao Logocentrismo. Estou tratando temas violentíssimos,<br />

estou falando de certo tipo de estupro cognitivo, que tende a configurar e<br />

programar boa parte das condutas modernas, humanas e inumanas. A divisão<br />

dualista entre objeto e sujeito, corpo e alma, homem e mulher, ciência e religião,<br />

em suma as categorias do pensamento dadas por Descartes e tantos outros<br />

pensadores corresponsáveis pela propagação do pensamento cientificamente<br />

moral, ou seja, a concepção de que as faculdades do pensamento são as<br />

mesmas faculdades das avaliações e julgamentos. O estupro cognitivo é o<br />

processo que coloca os valores humanos – ou a condição ontológica – como<br />

base para o surgimento do pensamento.<br />

Condenar o conhecimento ou o pensamento às condições humanas de sujeito<br />

nos parece ser uma das grandes questões desse processo. Para pensarmos,<br />

devemos nos situar como sujeitos de fala – é o que propaga toda boa<br />

propaganda em torno do desenvolvimento do cidadão de bem. Para prova de<br />

que o pensamento ou os processos do conhecimento em nada se aproximam<br />

com as condições pessoais de cada sujeito, ou melhor, que a subjetividade<br />

psicológica é aquilo que nos impede de criar uma vida superior, passa<br />

exatamente pela questão do pensamento. É que um animal, qualquer animal, é<br />

capaz de pensar e pensa efetivamente. É que a matéria do pensamento é o caos<br />

e o caos é aquilo que abriga o todo no agora. É que todo fenômeno não é se não<br />

uma nebulosa decomponível em ações emanadas de uma infinidade de agentes<br />

que são outros tantos pequenos deuses invisíveis e inumeráveis. É que todas<br />

essas questões passam por um processo cartográfico – exatamente pelas<br />

dificuldades que traz o pensamento, que são inerentes à vida, é que o<br />

pensamento é o mais alto atributo e só ele pode nos conduzir ao seu mais alto<br />

risco superior.


Ao que parece, e como diria Foucault, “o homem é uma invenção recente,<br />

prestes a acabar”. Pois o homem que aqui estamos falando, começou a surgir<br />

no ocidente, pelo ocidente. E foi na modernidade que essa expressão homem<br />

ganhou outro valor. As grandes revoluções, da luz, da razão, da indústria, da<br />

entropia, do açúcar, da cachaça, do café concederam ao planeta novas fontes<br />

de energia; essas energias, provindas dessas fontes, são esgotáveis– esgotam<br />

as mais ricas e simples biodiversidades do planeta. Falamos em biodiversidade.<br />

Estamos falando de tudo ou de nada, de qualquer forma, estamos falando de<br />

qualquer coisa. Uma cozinha apagada e esquecida, é um conjunto de<br />

biodiversidades. Uma sala confraternizada por churrasco e amigos, é outra série<br />

de tipos diversos de vida. Um jardim. Um vasto pasto seco. Um prédio<br />

abandonado. Uma cidade destruída por um tsunami de lama e dejeto. Qualquer<br />

coisa que exista, transpõe almas.<br />

Durante os séculos da Segunda Natureza nada mais se produziu além de<br />

resíduos. O biopoder, de Foucault, é uma precisão teórica diante do óbvio que é<br />

ao mesmo tempo inaceitável para o homem da consciência: a demografia, a<br />

larga escala de seres humanos na terra, é uma produção contínua de dejetos<br />

que devem propiciar e possibilitar a existência de mais e mais gente, desde que<br />

essa gente (isso é fundamental à antropologia) produza, ganhe, gaste, consuma.<br />

A vida se torna uma eterna repetição de performances, e somente ao fim do dia<br />

é que a dádiva da individualidade se faz presente em nossos fluxos operativos.<br />

Deixamos de nos entregar às obrigações para supostamente nos dedicarmos ao<br />

ócio, ignorando todas as frustrações causadas pelas funções cívicas e seus<br />

deveres existenciais. A catarse vem acompanhada de uma cegueira castrante,<br />

entorpecedora. Vivemos entorpecidos, na verdade, mas somos incapazes de<br />

admitir tal condição. Nos divertimos frustrados, e nos frustramos divertindo. A<br />

própria ideia de ócio carrega consigo uma série de pressupostos – pressupostos<br />

que substanciam expectativas e amplificam seus efeitos paranoicos. Nos<br />

culpamos pelo ócio, pela falta do ócio em nossas vidas e das proporções que tal<br />

noção pode adquirir em nossas práticas diárias. Criar expectativas em torno do<br />

ócio é suprimir por completo quaisquer potencialidades, deixar de trabalhar na<br />

estetização de nossas condutas em prol de um modelo existencial já cristalizado<br />

no imaginário coletivo contemporâneo. Se faz necessário viver o ócio<br />

despretensiosamente, mas explorando cada parcela de detalhes que nos<br />

afetam, com rigor: detalhes da vida, da morte, e da perpetuação de ambas.<br />

Melhor: esqueça o ócio, esqueça o trabalho, coloque o lazer em seu mísero<br />

lugar, e ria da seriedade transcendental que nos desorienta cronicamente.<br />

Levando em consideração toda essa condição dramática do homem, de um lado<br />

forte como o bronze, que maquina e micro computa, de outro lado, tão<br />

dispensável como o lixo, escravizado no corpo e na alma, subjugado pelos<br />

podres poderes, devemos pensar, ou melhor, devemos exercitar a capacidade<br />

de deixar o pensamento passar. Devemos nos besuntar de conceitos diversos,<br />

difusos porém pouco difundidos, diante do maremoto de símbolos que conduzem<br />

nossas vontades à alienação interobjetiva. Se nos prendemos em nossa<br />

subjetividade biográfica, individual, nos prendemos a uma certa linearidade<br />

individualista e psiquiátrica; nos sufocamos diante de um limbo de contatos:<br />

profissionais, pseudofamiliares, impessoais. Números e mais números, num


sentido estritamente quantitativo. Assumimos nossa condição numérica, de<br />

indivíduo cidadão, e constipados, tentamos nos manter otimistas.<br />

Já soltos e relaxados com esse exercício que liberta e libera o pensamento,<br />

temos a coragem de perguntar: como entender e afirmar a vida para proliferar e<br />

esparramar as mais altas potências criativas?<br />

A condição não-ontológica do pensamento<br />

Temos um problema em questão: afirmar a imanência e liberar a expressão.<br />

Esse problema, seria quase o mesmo dizer, se trata da investigação ao longo<br />

dos séculos daquilo que, poderíamos dizer, passou diante dos homens, mas não<br />

ficou. A arte, a filosofia, o pensamento, as práticas científicas do terceiro gênero<br />

do conhecimento. É que mesmo diante da vida, o homem recorrentemente<br />

apelou para o religioso, para a superstição, para as forças reativas, para as<br />

vontades negativas. Há entretanto no meio das normatizações dos sentidos e da<br />

percepção, a possibilidade de operar com categorias vindas do Fora, levar a<br />

vida como um território existencial onde sejam fecundas as possibilidades de<br />

estranhamentos.<br />

O fim do mundo está intrinsecamente ligado ao processo do homem moderno de<br />

tentar (e por vezes, conseguir?) sintetizar, domesticar e reduzir as forças da vida<br />

– biodiversidades, naturezaculturas, unwelts. Dessa forma o homem moderno<br />

promove o seu mundo, exclusivamente antrópico, destruindo os demais mundos<br />

possíveis.<br />

Mas o problema do homem moderno começou bem antes da modernidade. Foi<br />

a pedra filosófica da qual falava Nietzsche, pedra nomeada, personificada, de<br />

nome Sócrates, pedra que travou a grande engrenagem filosófica que era a<br />

Grécia antiga, com seus pensadores e gênios atemporais. O que fez Sócrates?<br />

Sócrates deslocou o nosso centro de saber para a consciência, como se a<br />

consciência fosse responsável por conduzir nossas vidas, capaz de retratar e<br />

codificar todos fenômenos vitais. A consciência, que é órgão das marcas, tem<br />

por tarefa recolher resíduos e a partir desses recolhimentos projetar<br />

significações tolas e fantasmáticas. Em um processo de enganação voluntária<br />

ou involuntária, troca-se as causas pelos efeitos, e a suposta razão logocêntrica<br />

apresenta a sua face supersticiosa. É que a crença na consciência é aquilo que<br />

torna os instrumentos da moral forças ativas no campo social. Forças ativas e<br />

efetivas, que enganam, camuflam, figuram, em uma palavra, representam as<br />

inquietudes e perturbações dos processos existenciais.<br />

Tomar a consciência como centro de saber é quase-oposto aquilo que Viveiros,<br />

pelos índios e terranos, chama atenção para “cada espécie ter um centro de<br />

consciência”. Estamos falando do já exaurido perspectivismo ameríndio, que<br />

coloca termos em problemas filosóficos há muito negligenciados. O primeiro<br />

desses termos, podemos dizer, diz respeito às questões próprias do<br />

pensamento, e a primeira dessas questões, para falarmos com Tim Ingold, é de<br />

que a pessoa humana, a condição moral da humanidade, não trata de um<br />

exclusivismo intelectual e nem necessariamente de um avanço de uma espécie<br />

em relação às outras – os homens, e os animais. Pelo contrário, o que vem se<br />

mostrando evidente, e o que Nietzsche já denunciava, é que o homem está com


o tempo cada vez mais próximo do macaco. É que, na verdade, apesar da mente<br />

humana conseguir estabelecer novas e inusitadas compreensões e percepções<br />

acerca do mundo, o pensamento não se constitui pela mente humana, ou seja,<br />

a mente humana é um meio, um mecanismo de transmissão de alguma coisa<br />

externa, forças externas que constituem o pensamento no mundo. A mente surge<br />

com outras condições objetivas. A mente surge com a linguagem. A mente surge<br />

com as ferramentas. A mente surge com o que está fora dela. Cabe investigar<br />

as condições de possibilidade que proporcionam o aparecimento da mente e dos<br />

objetos, tendo essas condições de possibilidade estado formativo igual em<br />

mentes e objetos. Para nós, isso é muito raro: dissociar o pensamento da<br />

condição humana de existência, associar o pensamento apenas a condição de<br />

existência:<br />

“Por exemplo, quando uma semente se mistura com os elementos<br />

materiais, a terra, a água, a luz, o ar, gerando uma rosa, um lírio, é um<br />

produto do pensamento. O pensamento é uma força inconsciente: que<br />

está no homem, como as estrelas estão no céu; autônoma, e condição<br />

de todos os processos criativos que existem.” (Uma nova imagem do<br />

pensamento, Claudio Ulpiano).<br />

Daí, para além da consciência, devemos saber que nosso centro de saber está<br />

em tantos e tantos lugares, nos fluxos de vida que perpassam os corpos, na<br />

perca e reencontro dos sentidos, no delírio, em suma, naquilo que Claudio<br />

Ulpiano chamou de inconsciente absoluto. Estamos falando que o pensamento<br />

é o órgão da diferença. Pois o pensamento é o que:<br />

“(…) faz a graça e a beleza da vida, é a certeza de que o crepúsculo que<br />

vimos ontem será diferente do crepúsculo que veremos amanhã. É a<br />

certeza de que nunca daremos o mesmo beijo, de que nunca sentiremos<br />

a mesma emoção. E o pensamento, assim pode ser dito, é o órgão das<br />

diferenças, como os olhos são os órgãos da luz. Então cabe colocar o<br />

pensamento como aquilo que possibilita, a cada homem, a conquista da<br />

liberdade.” (Uma nova imagem do pensamento, Claudio Ulpiano).<br />

Ciência, homogeneização e modos de vida<br />

Diante de situações extremas, de acontecimentos que transpassam qualquer<br />

razoabilidade lógica, tendemos a reforçar certos traços de nossa subjetividade<br />

psicológica em prol da preservação de uma certa nanototalidade – pequenina<br />

síntese do que nos representa em meio ao maremoto sígnico que nos arrasta<br />

aos vazios do “todo”; a personalização criou a ilusão da originalidade, do<br />

exercício da preferência pessoal. Se encarar como usina, com a mesma potência<br />

de um organismo implacável, constituído por uma série de outros e distante das<br />

delimitações topológicas que mantém cada parte do agora restrita ao<br />

cumprimento isolado de funções mecânicas, pode ser um movimento prudente.<br />

O reconhecimento da fragilidade humana, e acima de tudo, do indivíduo humano,<br />

frente aos limites impostos por sua própria “condição” de animal pensante, serve<br />

como plataforma para o deslocamento radical de perspectivas diante dos<br />

acontecimentos mundanos. Muitas vezes, ser humano não é suficiente para que<br />

sua condição seja preservada. Precisamos diluir entre o caos, fragmentar diante<br />

das camadas de vida que nos invadem, admitir a ilusão proposta pela<br />

racionalidade pura.


Essa ilusão proposta pela racionalidade, através da fetichização de narrativas<br />

científicas pautadas em uma espécie de pureza messiânica e reproduzidas<br />

através de metodologias desassumidamente surrealistas, condiciona os sentidos<br />

do corpo e da alma. Domesticando violentamente parcelas do espaço-tempo –<br />

que por si só, trata-se de uma imagem conceitual condicionada pela mitologia<br />

imperial moderna – acredita-se na consolidação de uma visão existencial<br />

holística, ainda que limitada a recortes dedutivos aplicados intuitivamente. Em<br />

meio a fluidez do concreto, tentativas de classificação da vida alheia sobrepõem<br />

pulsões ocasionadas por todo e qualquer tipo de estímulo, cerceando possíveis<br />

sínteses em detrimento de um suposto bem estar cósmico, encarnado<br />

sistematicamente, dia após dia, pelos paladinos da boa ciência e suas vítimas.<br />

A taxonomia das epistemes reinantes mascara a fuligem gerada pelas<br />

inevitáveis abjeções do mundo, esterilizando boa parte dos processos<br />

existenciais que resistentemente, cosubexistem. Tudo se simplifica, torna-se<br />

funcional, em função do homem, do mercado, e dos mercados humanos -<br />

implacáveis e autocentrados. A ciência pura, considerada legítima e por isso,<br />

legitimada rizomaticamente, vindo a atingir níveis moleculares da existência,<br />

baseia-se na purificação, na distinção substancial entre tipos de animais e de<br />

coisas. Porções de matérias, substâncias e formas colidem-se, se associam e<br />

se dissolvem, sendo apropriadas, apreendidas e digeridas por outras porções de<br />

matérias, substâncias e formas, a partir das mais improváveis conexões.<br />

Nosso “mundo real” surge a partir da concretude dessas narrativas da ciência, e<br />

qualquer esforço que busque transpassar a rigidez imposta por elas é visto como<br />

falácia, mera abstração. A ciência, exclusivamente, seria capaz de produzir<br />

mecanismos de interação e observação tão complexos quanto os encontros<br />

pitorescos consumados a todo momento em nossa intocada atmosfera terrestre?<br />

Certos acontecimentos, para serem evidenciados, exigem uma sensibilidade que<br />

necessariamente deve desconsiderar qualquer modelo universal de<br />

funcionamento.<br />

Se nos apegarmos a intelectualidades acadêmicas (e por consequência,<br />

academicistas), deixaremos de lado todas as possibilidades perceptivas<br />

oferecidas pelo cotidiano de um modo geral. A própria ideia de intelectualidade<br />

se torna obsoleta quando nos propomos a absorver conhecimentos viscerais,<br />

singulares; narrativas que buscam ir além da simplicidade do racional; narrativas<br />

que, acima de tudo, ousam desafiar a concretude das repetições anêmicas de<br />

cada dia. Como sensibilizar o "olhar científico" visando a produção de narrativas<br />

que nos aproximem de outras possíveis objetividades? O ilusionismo científico<br />

não se vê como uma modalidade artística. Na realidade, faz parte de sua<br />

figuração retórica a distinção estrita entre o trabalho artístico e o científico. Mais<br />

uma vez, a pureza contamina os olhares em campo, e toda a grandeza da vida<br />

se coloca abaixo de estruturas conceituais limitadas e limitantes. E assim, a<br />

ignorância se eleva a uma dimensão apoteótica – digna de uma sociedade<br />

pautada pelo chulo espetáculo, quase artística, pode se dizer..<br />

Assim, a reafirmação mecânica de pressupostos elementares dissemina<br />

exposições distorcidas, substancializando formas que necessariamente<br />

remetem a uma espécie de conteúdo matriz, fundante. Cria-se um<br />

distanciamento sistemático em relação a outras linguagens e conceitos visando<br />

a legitimação de mecanismos classificatórios específicos, dotados de alto valor


epistemológico no mercado. A ideia de evolução ainda se desenvolve no<br />

imaginário científico independentemente da propagação de movimentos<br />

involutivos, fortes o suficiente para provocarem dissonâncias em qualquer<br />

diagrama cognitivo considerado razoável e consequentemente, necessário ao<br />

atendimento de certas demandas - transcedentais por natureza, colocadas em<br />

primeira ordem pelas Empresas-Nação e seus vassalos. Criam-se relações e<br />

meta-relações de dependência, nas quais a "dureza' do pensamento - matéria<br />

abstrata, e portanto imaterial - determina sua consistência real, "empírica", e por<br />

encadeamento cognitivo, prática, no universo difuso e ainda obscuro da sublime<br />

intersubjetividade - reino das diretrizes globais e palco da ontologia regional<br />

animalesca típica do Ocidente.<br />

Guattari e Deleuze definem como "involução", "essa forma de<br />

evolução que se faz entre heterogêneos, sobretudo com a condição<br />

de que não se confunda uma involução com uma regressão. (...) a<br />

involução é criadora. Regredir é ir em direção ao menos diferenciado.<br />

Mas involuir é formar um bloco que corre seguindo sua própria linha,<br />

'entre' os termos postos em jogo e sob as relações assinaláveis". (Mil<br />

Platôs, Vol. IV, pág. 15)<br />

Pensamento que se diz duro não passa de consciência. Consciência de que<br />

realmente existe alguma maneira ideal de condução da vida - no sentido mais<br />

genérico e abrangente possível. Consciência de que as vidas se resumem a<br />

consumir traços deixados por forças lógicas sui generis, alocadas num<br />

lugarzinho especial acima de nossas cabeças e entre nossas mãos. "Nossas"<br />

quem? Eu e você? Nós e eles? Ou nenhuma das alternativas? Difícil saber, uma<br />

vez que os esforços para tal entendimento insistem em atender percepções<br />

catedráticas, cientificamente adestradas.<br />

A sacralização de certas instâncias existenciais mascara universos pulsantes<br />

que por si só, adquirem forças. Como devemos nos aproximar das fronteiras que<br />

determinam a espacialidade do racional e do "simbólico", do estrutural e do<br />

residual, sem esvaziar de sentido a riqueza de tais pulsões? Entre o positivismo<br />

messiânico e o relativismo fetichista (ou vice versa), muitos recursos foram<br />

gastos com cofee breaks e recepções, e muita energia, dispendida em prol de<br />

soluções plausíveis para tais questões. Outros mundos, Mundos<br />

cosmológicamente intocados por nossa globalização cognitiva passam a ser<br />

ouvidos atentamente, e mais uma vez, as portas da percepção acadêmica<br />

rangem diante de ventos distantes e selvagens.<br />

Academia, antropologia e vanguarda.<br />

Sem precisar levantar argumentações históricas sobre o nascimento dessa<br />

disciplina – através do imperialismo do saber científico – recorremos ao fazer<br />

atual do antropólogo diante de um mundo que já acaba, e em muitos lugares, já<br />

acabou. Para além do compromisso ético que se deve ter diante da vida, “o<br />

antropólogo” – essa espécie não tão humana assim – coloca sua<br />

responsabilidade profissional como uma bandeira indestrutível diante do tempo<br />

e do vento, sem perceber que todo e qualquer compromisso profissional não<br />

passa e nem deve passar de um compromisso com o mercado, ou com o Estado


– de preferência com os dois. A ética científica, no frigir dos ovos, é uma<br />

figuração gratuita que o sujeito deve ter diante da vida – para evocar Espinosa,<br />

a ética é uma só e ela só vem, só virá, com a força e a violência do pensamento.<br />

A ética é a composição de modos de vida, é uma relação entre os corpos, e o<br />

corpo do antropólogo não precede nenhuma presença sublime ou nenhum<br />

voluntarismo benigno com a ciência, com o saber ou com o mundo. O<br />

antropólogo, ao contrário, pode produzir bons e maus encontros. Dessa forma,<br />

deve nos soar bastante estranho quando um antropólogo, para argumentar com<br />

seus alunos, evoca “a defesa da sua profissão”. Ora, que profissão? A<br />

imperialista? A que colonizou e coloniza povos e mais povos? O braço do<br />

estado? Pode se argumentar, em contrapartida, que a antropologia está<br />

preocupada com o ambiente, com os povos indígenas, que os antropólogos<br />

incomodam a bancada ruralista e etc. No fim, quer se fazer da antropologia uma<br />

vanguarda – que é bem verdade, ela sempre foi. Mas essa ideia de vanguarda,<br />

diante do fim do mundo e dos homens, nos parece um tanto quanto ultrapassada.<br />

Vanguarda de um mundo prestes a acabar, e que, novamente, já acabou.<br />

Retomando a inquietação mencionada a princípio: a ciência (em especial as<br />

ciências humanas), além de produzir cargos e identidades, é capaz de produzir<br />

singularidades? Novas percepções existenciais sobre o outro e sobretudo, sobre<br />

si mesma? Até que ponto, de fato, seremos capazes de romper com a rigidez<br />

abstrata das inúmeras razões seriais que ainda nos mantém dentro de sua<br />

estrutura? Enquanto alunos de graduação, somos produzidos em série.<br />

Rigorosamente adestrados a não pensar. Produzimos consciência, e não<br />

pensamento - sobretudo, má-consciência de nosso devido lugar (ou falta de<br />

lugar) no mercado de trabalho, estrutura cosmológica ordenadora de nossos<br />

tempos e espaços.<br />

As fronteiras que delimitam os campos de atuação científica se abalam, e as<br />

identidades doutorais, engrenagens desta usina taxonômica, resistem<br />

bravamente. Novos nichos de consumo acadêmico emergem, convergindo à<br />

construção de panoramas paradisíacos aparentemente mais dinâmicos e menos<br />

majoritários, moldando novas formas para velhas substâncias - como por<br />

exemplo, a crença numa democracia radical, supostamente inclusiva, capaz de<br />

valorizar a riqueza de epistemes sistematicamente massacradas pela própria<br />

ideia de democracia; ou numa espécie de vanguardismo ascético, respeitoso,<br />

condicionado às ontologias que direcionam as carreiras das ilustres personas<br />

em jogo. Potências molares ainda tentam ditar a tonalidade da dimensão<br />

molecular, que fervilha a todo instante nos corpos e nas coisas, especialmente<br />

o corpo científico e seus fatos sociais – meras coisas.<br />

Diante da vida qualquer integrante universitário é um escandaloso calouro:<br />

"A nossa universidade não é uma universidade para produzir<br />

pensamento. A única coisa que se produz na universidade é<br />

obediência. Se ensina o estudante a obedecer. (...) A loucura e a<br />

literatura, a loucura e a arte, a loucura e a filosofia não param de ser<br />

perseguidas pelas forças repressivas do campo social, psiquiatria e<br />

etc... Porque é exatamente isso. Para produzir esse mundo novo é<br />

preciso correr um risco muito grande. Correr um risco de<br />

pensamento.(...) Ir além de todos os limites que nos foram dados por<br />

Kant, para o pensamento. Transgredir é muito mais do que


transgredir, é produzir exatamente um novo. Produzir<br />

impossibilidades!" - Claudio Ulpiano<br />

Devir-fungos, devir-Brisa, devir-Anna Tsing<br />

Escrevo e sou obrigado a recordar um pouco da minha história pessoal. Li o texto<br />

da Anna Tsing e me encantei. Dias depois, começo uma carta para uma amiga<br />

do café, digo, da cafeteria onde estou prestes a me despedir. (Vira o Viveiros de<br />

Castro em pessoa, no Campus da UFMG, e finalmente percebi a importância de<br />

um grande pensador). Começo a carta e já no quarto parágrafo lanço, fulminante:<br />

“no Brasil café é escravidão”. Não demora muito e num desses momentos de<br />

relapsos definitivos volto a Anna Tsing, à revolução dos fungos, as espécies<br />

domesticadas e escravizadas.<br />

Penso por um momento e chega na ideia a liberdade. Me despeço. Decido<br />

escrever. O café e o sistema mundial – algo assim, identificando os pontos fortes<br />

do café, ou melhor, a percepção do café diante da sua escravidão e da<br />

escravidão do ocidente. Não sei se é necessário dizer, e se digo quero dizer por<br />

todos malditos da terra, mas o mundo-ocidente é o pai-provedor da escravidão<br />

e o conceito de homem é uma prisão ontológica.<br />

Recordo os fungos. Aquela aula que passou, sobre a Anna Tsing, ministrada por<br />

aquela menina, aquela professora Brisa. Na aula, no texto e na alma, alguma<br />

coisa ficou, fora produzida alguma modificação. Devir-cogumelo. As drogas, não<br />

tão drogas assim, e a percepção. É a revolução dos fungos que por contágio me<br />

contaminara.<br />

Já não me sinto mais. Entro em uma daquelas viagens sem volta, rumo ao<br />

inesperado, rumo ao percurso, sem teleologia, sem destino final. Duas mulheres,<br />

Anna e Brisa, uma revolução já feita, sendo feita, a natureza é aquilo que sempre<br />

se faz. A revolução dos fungos no fundo de cada caminhada, de cada momento<br />

de sutil contemplação.<br />

Uma aula é para produzir modificação. Não há razões epistémicas sem preceitos<br />

éticos. E o pensamento, como os fungos, promovem ações em cadeia,<br />

rizomáticas, uma rede vivente e móvel, ações mais clandestinas e mais alegres.<br />

E diante das palavras que já não sei vinda de onde, da Anna, da Brisa ou dos<br />

fungos, crio e percebo, percebo e crio novas relações significativas – novas<br />

relações de amor.<br />

É pelos fungos que percebo que a ciência pode ser uma grande via de<br />

transposição estética. Eu permaneço calado. O silêncio é a expressão mais<br />

verdadeira e efetiva das coisas inomináveis. Guardo tudo para a escrita. Não<br />

opino. Na hora certa me veem as palavras. Abandono toda carcaça do homem<br />

ocidental. Esqueço minha subjetividade psicológica. Estou sempre pronto para<br />

novas e inusitadas experimentações estéticas. Estou apto a ser participado pelas<br />

coisas. Já começo o trabalho.<br />

Antes uma garrafa de vinho e dois baseados. Podia ser pelo contrário: duas<br />

cartelas de LSD e 15g de cogumelos. A faculdade, os estudos, as drogas,a<br />

música, não param de se encontrar. E em cada encontro um suspense. Não há<br />

zona ontológica segura e é preciso dizer, contra o que escrevemos,não há


segurança ontológica. É preciso mudar de ideia. É preciso rir com os conceitos.<br />

É preciso transitar entre sistemas conceituais. Não existem ideias que não sejam<br />

imortais. E as ideias, os conceitos, as memórias devem ser irrestritamente<br />

usados, abusados, torcidos. Sem que o uso, o abuso e a torção se tornem formas<br />

tirânicas de distinção e prestígio.<br />

Pelo contrário. As palavras em seus usos descompromissados, usos<br />

desvairados, pervertidos. É preciso liberar o delírio de direito para chegar à<br />

expressão de fato.<br />

A rua, o rap e outros encontros<br />

O mano cavernoso catador eficaz. A besteira nunca é muda nem cega. É preciso<br />

despertar devires-feras. Penso em Racionais Mc’s, Sabotage, Ponto de<br />

equilíbrio. Não chego a nenhum lugar. Em lugar nenhum posso desenvolver meu<br />

raciocínio sem ser atingido por técnicas de controle. As palavras são ainda os<br />

principais instrumentos de controle. Contudo, as ideias nunca morrem.<br />

E o que tem o velho Badu a ver com devires-leopardos na África Negra? A<br />

criminalização de práticas de resistência, a prática de ideias ancestrais. De<br />

qualquer modo é preciso criar novos devires. E devemos mudar as palavras.<br />

Devenir-malandro, princípios das máquinas de guerra que são necessariamente<br />

ex-an-teriores ao estado.<br />

Como respirar os ambientes tóxicos, tão fétidos quanto Édipo, quanto a paranoia<br />

dos complexos de registro e classificação? Olho debaixo da cama, o olhar<br />

percorre o horizonte de uma cidade grande. A percepção quer imobilizar. Não a<br />

percepção – mas os modos operativos do perceber. Escuto um rap, e a música<br />

aqui escrita não tem valor referencial. Eu escuto um gênero musical e é a música<br />

que passa. Escutar já-é agir. Há processos de resistência, há encontros de<br />

forças entre os corpos. E o ato de resistência é o que possibilita a obra de arte.<br />

Mas os corpos são composições e decomposições moleculares. O que importa<br />

as formas?<br />

A malandragem exige postura. E a ética do malandro passa por intermináveis<br />

agenciamentos. Está aí o segredo da ética que sempre-exige uma episteme.<br />

Existem modos de vida que perpassam por inusitados campos de conhecimento.<br />

Esses campos de conhecimento específicos, inesperados, partem rumo à<br />

loucura, em direção ao Fora. A rua deve ser encarada mais como um campo de<br />

conhecimento que um campo de reconhecimento, pois a rua, o devenir-malandro<br />

e todos os outros devenires envolvidos – devenir-travesti, devenir-futebol,<br />

devenir-pobreza – pressupõem uma série de encontros improváveis, choques<br />

perigosos entre corpos e valores, que em cada encontro devêm ainda outras<br />

relações.<br />

A rua não diferencia natureza de cultura. E nisso, Donna Haraway conosco<br />

devêm. Pois a naturezacultura vivida em todas as ruas passadas e presentes,<br />

ruas que seguem caminhos próprios como as trilhas de um perdido andarilho<br />

sobrepõem os modelos fechados dos palacetes que as compõe. Nenhuma rua<br />

é endereço. A rua é por princípio, ainda que princípio aqui não tenha valor<br />

cronológico, aquilo onde nada está e onde tudo se passa.


Escrita e etnografia<br />

As palavras tem poder. Esse poder das palavras, não está em um campo de<br />

significação ou em um campo de reconhecimento específico. Pelo contrário, o<br />

poder das palavras está em transpassar campos de reconhecimento. É como se<br />

as palavras tivessem o destino de expressar o inexprimível e é como se o<br />

inexprimível tivesse, por acaso, encontro com as palavras. As palavras só<br />

servem enquanto instrumentos cognitivos daquilo que escapa a própria<br />

cognição. O inusitado, o esquizo, o novo, a diferença.<br />

Mas não são as palavras ou as coisas que devem, por princípio, expressar o<br />

novo. A novidade, os processos de criação passam por qualquer campo da vida.<br />

O que expressa, o que confunde, não são os sentidos explícitos. Devemos ter a<br />

coragem do passo adiante: nada é explícito, pois tudo vem a ser. A vida é um<br />

campo abstrato de forças.<br />

Rachar coisas, rachar palavras. Destituir formas molares para compreender e<br />

acompanhar fenômenos micromoleculares. Desacelerar partículas. Cambalear a<br />

percepção. Todos esses processos que aqui escrevo, que aqui expresso, não<br />

possuem níveis hierárquicos de ordenamento, nem via certa de compreensão.<br />

Tudo aqui se passa por intensos processos. Processos do pensamento e suas<br />

vertigens. Vertigens do pensamento, pensamento sem imagem: a nova imagem<br />

do pensamento.<br />

Sento em frente essa máquina. Suficientemente chapado, vou escrevendo. O<br />

surgimento da escrita, recorrentemente relacionada ao aparecimento do Estado,<br />

exige outras práticas e outras crenças. Escrever não é marcar território. Escrever<br />

é desterritorializar. Escrever não determina funções. Escrever processa e<br />

transforma funcionamentos. Escrever não delimita conceitos. Escrever é criar<br />

conceito, é operar sem limites, sem programas fechados. Acontece que<br />

escrever, se tido como ação intencionalmente humana (processo logocêntrico?)<br />

será sempre fantasma, castração e édipo.<br />

Entretanto sonhamos com outra escrita. A escrita dos bruxos, dos poetas<br />

malditos, dos malandros do samba e de todas as músicas. A escrita sem registro<br />

e sem identificação. A escrita para todos e para ninguém. A escrita que se faz<br />

processo e produção. A escrita inumana, fruto do pensamento constante,<br />

rigoroso, tão natural quanto o impossível. Pois a possibilidade do sobrenatural,<br />

ou melhor, a possibilidade de escrever fora dos sentidos, escrever pelo Fora,<br />

parece ser o único caminho possível. A experiência da escrita enquanto aquilo<br />

que testemunha a favor da vida, tratar a escrita como um fluxo, não como um<br />

código. Escrita-viagem.<br />

Escrever é um contágio de fluxos. Fluxos de esperma, fluxos de merda, fluxos<br />

de álcool, droga e música. Sem necessidade de que merda, álcool e música<br />

sejam os temas da escrita. Por uma escrita sem tema e sem assunto. Pelo<br />

deslocamento dos conceitos. Pela dessignificação das palavras. A escrita<br />

atravessa prédios, transpassa coisas, ultrapassa os grandes e pequenos<br />

sistemas mundiais. A escrita é aquilo que se pode chamar de etnografia da<br />

imanência. Expressar com urgência todo e qualquer tipo de acontecimento, de<br />

encontro de corpos.


É que há duas maneiras de ler um texto. Podemos considerá-lo como uma caixa<br />

que remete a um dentro, e então vamos buscar seu significado, e aí, se formos<br />

ainda mais perversos ou corrompidos, partimos em busca do significante. E<br />

trataremos o texto seguinte como uma caixa contida na precedente, ou<br />

contendo-a por sua vez. E comentaremos, interpretaremos, pediremos<br />

explicações, escreveremos o texto do texto, ao infinito. Ou a outra maneira:<br />

consideramos um texto como uma pequena máquina a-significante; o único<br />

problema é: “isso funciona, e como é que funciona?” Como isso funciona para<br />

você? Se não funciona, se nada se passa, pegue outro texto<br />

É aí nossa crítica a antropologia enquanto prática científica. É que a antropologia<br />

ou os antropólogos – no masculino mesmo; os dois (antropólogos e antropologia)<br />

não param de se confundir – reivindica para si um mérito que é propriamente da<br />

escrita. As pesquisas, os registros etnográficos e, enfim e ao cabo, o texto<br />

antropológico no que tem de belo e expressivo não é, não deve ser, seu sistema<br />

fechado de conceitos ou de linhas conceituas, nem suas temáticas acerca da<br />

cosmologia, do parentesco ou dos mitos. Essa coisa do leitor antropólogo<br />

(sociólogo, psicólogo, e assim por diante), da necessidade de uma certa<br />

fidelização legitimadora a partir da linearidade e da “coesão”, é tão irritante... O<br />

que a antropologia, ao nosso ver, tem de maior, está exatamente na sua<br />

capacidade de expressar e exprimir ideias novas aos não iniciados da disciplina,<br />

através da sua literatura antropológica – e em todo caso, literatura etnográfica.<br />

A aventura antropológica, que não é nem colonialista e nem imperialista, deve<br />

ser necessariamente a aventura do pensamento. Pois o risco maior da<br />

antropologia é o risco que temos em todos âmbitos da existência – o risco do<br />

pensamento, o mais alto atributo da vida.<br />

Por isso, se escrevo sobre o rap, sobre drogas, sobre aulas passadas, é porque<br />

entendo que devo entender a importância - não do registro enquanto prática<br />

conceitual – da percepção imanente, como aquilo que deve ser afirmado para<br />

que a expressão possa passar. É como se escrever ligasse, entrasse em<br />

processo, com aquilo que percebo, que vejo, que sinto. Pois aquilo que vejo, que<br />

percebo, que sinto, não tem nenhum valor subjetivo, pelo menos não de uma<br />

subjetividade psicológica. O que há de valor nesses perceptos está naquilo que<br />

não está contido em nada. Parece ser esse o funcionamento da imanência:<br />

aquilo que não se prende e nem se contêm. Se estamos falando em<br />

processamentos, fluxos, devires, é porque nos parece que uma prática científica,<br />

artística e filosófica presentemente potente deve levar por princípio as condições<br />

efetivas da existência - caso contrário, estaremos caindo em preceitos<br />

moralmente valorativos, que negam a vida, que propagam o ódio contra-si e<br />

contra o mundo.<br />

A cidade e as coisas<br />

Recolocar-se no mundo de outras maneiras, recolocar-se diante das coisas, é<br />

liberar a multiplicidade das carapuças ontológicas. Recolocar-se diante das<br />

coisas é recolocar-se diante da cidade, é uma forma de deixá-las mais humanas.<br />

Deixá-las quem? A cidade, as coisas ou os homens?


Mas deixar as coisas mais humanas, de que modo podemos compreender este<br />

fenômeno? Entre o calor insuportável da manhã, o barulho ensurdecedor dos<br />

automotivos, o tempo que não para de passar e não para de oprimir os sentidos<br />

e a percepção, devemos propor outras técnicas de neutralização da tolice. O<br />

silêncio, para compormos com Le Breton, é uma das vias técnicas que agora se<br />

fazem iminentes. A caminhada contemplativa, “flanear”, cada caminhada é<br />

literalmente seguir e multiplicar os interlocutores e sensibilidades.<br />

A alegria para se fazer presente, nas cidades, nos espaços massacrados pela<br />

força econômica – a invisível mão que bate, a mão invisível do mercado –<br />

procura e alcança o impossível, pensa o impensável. Outra palavra sobre o<br />

pensamento. O pensamento, aquilo onde nada está e onde tudo se passa, não<br />

é feito por preceitos da riqueza capital, seja ela econômica ou cultural. Escuto<br />

Sabotage e em suas palavras percebo um grande pensador. Um pensador está<br />

entre todas as coisas. E podemos dizer que existe um perspectivismo urbano,<br />

onde os diferentes pontos de vista produzem verdadeiros campos de batalha,<br />

sangrentos e viscerais.<br />

O Estado é pensado como um campo neutro de forças. Na verdade o Estado é<br />

aquilo que compõe as forças políticas vigentes. Olho para a Serra, a favela ao<br />

lado de onde escrevo esse texto. Vejo uma indústria do tráfico. Por um segundo,<br />

enxergo a presença do Estado, compondo os campos de possibilidade para a<br />

proliferação da selvageria moralista que alimenta e injeta a hipocrisia do tráfico.<br />

O estado não intervém, pois é o estado que permite e propaga a escravidão dos<br />

povos pelos meios de consumo na sociedade de mercado. É o estado junto ao<br />

mercado – para Viveiros e Danowski, é o planeta Mercadoria – que induz a<br />

produção sem sentido (hobby) e traça os caminhos do consumo sem<br />

necessidade (turismo).<br />

Diluir sujeitos humanos, queimar registros em série<br />

Suicídio identitário. Predação do self. Integração molecular aos acontecimentos.<br />

Dopamina, canabinóides, gasolina, carbono, água, globo ocular, braços, pernas,<br />

pedais, sinais de trânsito. Tudo isso integrado em torno de um agenciamento<br />

que me distancia por completo da condição de cidadão, tendo em vista o fato de<br />

eu estar transgredindo uma série de diretrizes instituídas pelo Estado, por<br />

homens do Estado, e no fim, simplesmente por homens, visando um movimento<br />

de transformação em algo mais. Transformação em máquina, integrada a uma<br />

série de elementos difusos que juntos, me fazem flutuar pelo asfalto gorduroso<br />

e quebradiço. Máquinas associando-se a máquinas e mais máquinas.<br />

Em meio a um oceano de mutantes amorfos e inquietos, me torno outras coisas.<br />

Minha identidade social se funde a novas formas de vida, dissolvendo pouco a<br />

pouco as malhas biográficas que me mantém fiel a certa idealização vital. Pobre<br />

“eu”, completamente à mercê dos outros... Outros quem? São tantos, mas<br />

tantos, que variam completamente dependendo da perspectiva adotada. Posso<br />

estar à mercê da polícia e de seus mecanismos de vigilância e arrecadação de<br />

impostos, do governo, dos Estados Unidos, do Brasil, mas também à mercê de<br />

infindáveis microorganismos, bactérias de todos os tipos, insetos, roedores,<br />

plantas, circuitos, parafusos, logaritmos frios e engrenagens que sutilmente,<br />

sobrepõem minhas percepções causando distinções elementares.


Se existem forças transcendentais como a mão do mercado ou a mão de algum<br />

outro deus, elas certamente se encontram entre esses “outros”, manifestandose<br />

a partir das materialidades e dos corpos celulares que se emaranham<br />

desordenadamente nos tempos e nos espaços. A partir dos corpos, da<br />

observação atenta dos corpos e seus movimentos, somos capazes até de<br />

enxergar espíritos. Espíritos mundanos, mundos espirituais.<br />

Os sujeitos, entre sete bilhões, são numerados em série, sou um número entre<br />

tantos outros. Eu não me enxergo como a, ou como b. A letra poderia ter a<br />

possibilidade das singularidades. Mas sou dotado número, em série, no meio de<br />

tantos outros infinitesimais. Meu modelo individualizador, a verdade que posso<br />

ser, vem de um regime, regime das verdades. Sou, portanto, duplo. Específicojá-produto-mercadoria<br />

e múltiplo: ponto entre bilhões. Deixo me enxergar como<br />

um ser de expressões plurais e subjetivas e passo a me ver como parte de<br />

produção em massa de valores e estilos de vida, sentimentos e interaçõessócias<br />

já planejadas, previstas e vividas por tantos outros, vivências já prémoldadas.<br />

Assim abandono minha própria singularidade e me enquadro numa<br />

fórmula de sentimentos; me perco no limbo de generalizações onde ter meu<br />

próprio eu seria como voar perto demais do sol. Esse voo próximo ao sol poderia<br />

me destruir, assim como fodeu Ícaro, e infelizmente, ainda estamos muito<br />

apegados a moral desta fábula.. Jamais contemplamos o breve momento de<br />

liberdade que nosso amigo teve voando rumo ao sol (sendo um indivíduo longe<br />

de si mesmo, na loucura e no fracasso).<br />

Imanência, estilo e expressão<br />

Continuemos. Nosso desejo de expressão não pode parar. Sem um intuito dos<br />

perfumes acadêmicos, sem vontade de criar um texto que propague e explore a<br />

insistente masturbação acadêmica, em contraponto, exercitamos o pensamento<br />

como se fosse uma punheta. O texto precisa criar seu platô. Mas o platô se faz<br />

imanência. Se disserem que nós estamos desviando, “fazendo filosofia no curso<br />

errado”, podemos dizer que entendemos, que aprendemos que a antropologia é<br />

filosofia com gente dentro. Podemos dizer, somos essa gente. Qualquer um é. A<br />

gata do meu amigo Charles, também é essa gente. O crackudo do meu bairro, o<br />

cachorro da rua, qualquer coisa que se faz presente se faz gente.<br />

Falamos de imanência como palavra central, pois a imanência não é um conceito<br />

fechado, da qual devemos atribuir um referencial bibliográfico para nos<br />

inteirarmos do debate acadêmico ou a qualquer outro círculo (circo) de debates.<br />

Não nos interessa “o debate acadêmico”. É preciso erguer um novo conceito: o<br />

conceito da diferença ao invés de diferença conceitual. Nunca estaremos<br />

fechados, adestrados em uma carteira, disciplinados dentro de uma disciplina.<br />

Não é esse nosso propósito.<br />

Corremos o risco da repetição e do texto – essa maravilhosa experimentação<br />

que fomenta as mais criativas linhas de encantamento – se tornar chato,<br />

repetitivo. A verdade é que quando se escreve tenta-se modificar tudo o que se<br />

pensa e se encontrar novamente, ao final, diferente do que era ao começo. Então<br />

se percebe que se tem mudado relativamente pouco. Talvez se tenha mudado<br />

de perspectiva, se tenha girado em torno do problema, que é sempre o mesmo,<br />

digamos, as relações entre o sujeito, a verdade e a constituição da experiência.


Mas é que o rigor do pensamento exige um movimento de despersonalização,<br />

uma prática inumana que vá ao caos, que difira muito pouco do caos, implicando<br />

uma espécie de experimentação tateante, recorrendo a meios pouco<br />

confessáveis, pouco racionais e razoáveis. E quando vamos ao caos – não<br />

queremos referenciar conceitos, idolatrar pensadores. Falamos de Guattarri e<br />

Deleuze com muita naturalidade. Pensamos com eles. E o fato deles serem<br />

filósofos, franceses, homens brancos e assim por diante em nada influencia a<br />

composição, a associação de forças que traçamos com seus pensamentos. Os<br />

pensadores só existem enquanto plataforma para o pensamento, para fazer o<br />

pensamento passar.<br />

Trata-se de uma diferença estética entre modos de pensar.<br />

Nos parece muito estranho ter que escrever como alguém que deve no seu texto,<br />

escalar furgões burocráticos. Como se dissessem: “não vá por aqui, não seja<br />

pedante, nós não buscamos singularidades múltiplas, buscamos<br />

reconhecimento social nos campos acadêmicos, vocês também devem continuar<br />

essa trilha”; ou: “você não vai se atrever a falar em seu nome enquanto não tiver<br />

lido isto e aquilo, e aquilo sobre isto, e isto sobre aquilo.” Acontece que não<br />

queremos utilizar de nenhum tribunal da Razão, nem usarmos comedidamente<br />

as faculdades. Essas práticas, assim como a enxergamos, estimulam uma<br />

submissão tanto mais hipócrita quanto mais nos confere título de legisladores.<br />

Pensamento e possibilidades de vida<br />

Bem, seria um pouco estranho mudarmos o tom e em um novo movimento de<br />

escrita, propormos outras ideias. Lemos e escrevemos, eu e o Estevão, o João<br />

e eu, já de algum tempo com o intuito de estranhar. Na verdade, a literatura, o<br />

ordenamento das palavras em formas textuais, exprimem uma necessidade<br />

grande de causar estranhamentos, que seria o mesmo dizer, causar<br />

modificações nos sujeitos, tirando o sujeito do lugar consciente em que os seus<br />

hábitos são tomados enquanto sua própria natureza.<br />

Nesse intuito, viemos levando de dois ou três anos para cá, todas as<br />

experiências com literatura, seja ela filosófica, sociológica, antropológica,<br />

jornalística, literária e assim por diante, como experiências de extremo risco e de<br />

contínua transformação. É quando nos demos conta de que a vida é uma coisa<br />

muito bonita, mesmo sobrecarregada de paixões, ilusões, formalismos,<br />

opressões. É que, em verdade, a beleza da vida está em sua capacidade de<br />

estranhar, em um dos seus princípios fundantes, a diferença.<br />

Decidimos então tomar por princípio, valores dos mais inusitados. Nossas<br />

relações com as drogas, por exemplo, é algo de inusitado e é parte constituinte<br />

desse texto. Não por usarmos droga e isso causar algum sentimento de<br />

pertencimento e identidade. Menos ainda por ser parte constituinte dos nossos<br />

hábitos. Pelo contrário: é aquilo que não conhecemos nas drogas, ou seja, a<br />

capacidade de modificar percepções, que mais nos parece raro. É porque com<br />

as drogas entramos em processo análogos com uma multiversidade de guetos,<br />

gentes malditas, coisas esquecidas-dilaceradas, crenças místicas<br />

inconscientes-produtivas... É que tentam separar o indiscernível ou fixar o que


pertence a cada um de nós. Mas visto que cada um, como todo mundo, já é<br />

muitos, isso dá muita gente. E as drogas nos faz, cada um a seu modo, proliferar.<br />

Percebemos que é na literatura que nosso campo de visão se espalha. Se a<br />

literatura é de cunho antropológico, científico, filosófico, literário, novamente, isso<br />

não tem nenhuma importância. Chamamos atenção para o 3º gênero do<br />

conhecimento, aquilo que considera a possibilidade das forças da vida provirem<br />

e provocarem campos de possibilidades outros, novas composições,<br />

associações com a natureza. Estamos chamando atenção para o terceiro gênero<br />

do conhecimento, o que daria na mesma dizer, estamos convocando a presença<br />

do pensamento.<br />

Quando falamos em terceiro gênero do conhecimento, estamos nos associando<br />

explicitamente a Espinosa. É que Espinosa teve a força e a coragem de avaliar<br />

a constituição dos afetos para compreender o funcionamento das forças que<br />

constituem o campo abstrato da vida. E avaliando esses fenômenos, foi o<br />

primeiro entre os pensadores a perceber a importância das singularidades das<br />

coisas, dos encontros, dos acontecimentos. Nessas singularidades estão<br />

contidas as capacidades de transformação que são inerentes aos fluxos da vida.<br />

Para existir o 3º gênero do conhecimento, é preciso que exista o primeiro e o<br />

segundo. O primeiro gênero do conhecimento é quando o sujeito humano<br />

adquire a capacidade de se conscientizar. Esse termo, nada amável, indica o<br />

surgimento da organização consciente da memória, em que a memória guarda<br />

e significa marcas, passa a constituir a compreensão do sujeito humano diante<br />

dos acontecimentos da vida. A consciência, portanto, produz fantasmas<br />

passados para interpretar acontecimento presentes, drenando a possibilidade<br />

latente de outros futuros, outros presentes e outros passados – que, pela mente,<br />

podem tornar-se passados presentes.<br />

No 2º gênero do conhecimento, já não é mais a consciência que analisa e<br />

interpreta os fenômenos da vida. Está nascendo uma possibilidade de prática<br />

científica. O sujeito humano passa agora a enxergar relações entre sua mente e<br />

aquilo que está fora. Há a organização da linguagem que constitui o estado<br />

social. Há um raciocínio estrutural que formata, engendra, faz funcionar e<br />

organiza o campo social. Há, em suma, a composição de relações entre<br />

cognição e mundo-fora.<br />

Entretanto, como Espinosa vai nos mostrar, esses dois gêneros tendem a forças<br />

reativas e as vontades negativas. Essas associações humanas, essas<br />

composições do homem entre sua mente e imanência existencial tenderão a cair<br />

em um campo de tolice e superstição. Espinosa é de extrema violência. As<br />

relações humanas, inclusive as relações humanas com sua capacidade de<br />

perceber e criar relações, são insuficientes para uma compreensão completa<br />

com a Natureza.<br />

É porque, Espinosa vem denunciar, que o homem ao imaginar, projetar, sonhar<br />

ou refletir, esquece que sonhar, imaginar, projetar e refletir são efeitos de<br />

processos da Natureza. Que as coisas do espírito são fenômenos naturais. No<br />

sonho, por exemplo, o homem descansa sua mente, repousa naquilo que irá<br />

esquecer, e enquanto repousa uma série de substâncias vivas compõe seu sono<br />

e seu sonho – e o que chega na mente humana são processos efetuantes dessas<br />

composições. Sendo efeito das composições, o pensamento perde sua


capacidade transcendente, ou seja, ele não se faz e não é algo a priori, exterior<br />

a natureza, deslocado dos anatomos vivos.<br />

Coube então à Espinosa investigar quais seriam as possibilidades para o<br />

homem. Tendo a qualidade de corpo, àquilo que tem ação (capacidade de agir<br />

e causar acontecimentos) e paixão (propriedade de receber e sofrer ações), o<br />

sujeito humano estaria, como todos os outros corpos, constrangido por forças<br />

que vêm de fora. Ou seja, o sujeito humano teria uma causa passiva.<br />

Entretanto o que se passa no sujeito humano não é a expressão latente da<br />

natureza. Ou seja, a Natureza ou Deus, é causa ativa, ela afirma constituindo<br />

forças, fazendo associações, causando modificações constantes. Há uma<br />

grande questão aí, que está presente em todo nosso trabalho; há alguma coisa<br />

na Natureza que tem por funcionamento afirmar à vida, testemunhar o belo,<br />

enaltecer a grandeza das multiplicidades e das possibilidades intensivas nos<br />

campos existenciais.<br />

O que Espinosa está dizendo é que, apesar da constituição humana diante dos<br />

séculos ter por fundamento o enaltecimento de efeitos como causas, é possível<br />

para o homem abandonar esse campo da tolice e passar a compreender os<br />

processos da vida. O que ele está dizendo é que o homem tem a possibilidade<br />

do pensamento, e que o pensamento é aquilo que se passa no homem e não é<br />

um atributo humano. O que ele está elucidando é que o pensamento se constitui<br />

no homem como as forças ativas se constituem na natureza; há uma similaridade<br />

nesses agenciamentos e essa similaridade é o que permite ao homem produzir<br />

uma vida nova.<br />

Para que o pensamento possa passar, Espinosa vem nos dizer, há de ter um<br />

desligamento dos processos cognitivos regidos pela consciência. Ou, para falar<br />

com Bateson, é preciso conhecer os processos comunicativos que formam<br />

duplos vínculos, capazes de gerar vínculos esquizofrênicos entre os humanos e<br />

outros animais e entre os humanos e as coisas. Existiria, segundo Bateson,<br />

planos múltiplos de aprendizagem e determinação de tipos lógicos de sinais. E<br />

para que esses sinais não se tornem palco da comunicação esquizofrênica e em<br />

todo caso, paranoica, é preciso entender – ainda que entender aqui não passe<br />

por tipos lógicos determinantes de expressão – os processamentos que<br />

constituem esses tipos lógicos de sinais e os planos múltiplos de aprendizagem.<br />

Bateson é um pensador do terceiro gênero do conhecimento, ele investiga os<br />

processos constituintes da vida para afirmá-los, para potencializar a<br />

compreensão e para usar da compreensão como máquina-latente para a<br />

construção de novos mundos possíveis.<br />

Nesses novos mundos possíveis, a consciência passa por um processo de<br />

desqualificação. A consciência, àquilo que coleta e guarda marcas, deixará de<br />

ser o centro dos nossos saberes. O que está acontecendo aqui é o abandono de<br />

uma segurança do ser em si próprio, ou seja, o sujeito humano pensante é<br />

aquele que presta seu corpo há um campo difuso de batalha; ele não tem órgãos,<br />

é constituído de forças; seu corpo é um campo de experimentação. Sua história<br />

pessoal, suas marcas infantis, seus campos fantasmáticos de significações, tudo<br />

isso se rompe enquanto zona fundante do ser e é isso que será inevitavelmente<br />

seu grande desafio: se dissociar dos imperativos categóricos que fundam a<br />

condição ontológica humana.


Então, para Espinosa, os acontecimentos humanos tem o mesmo tipo de<br />

particularidade na Natureza. Os humanos são regidos, movimentados por afetos<br />

que ele não conhece e pela prática da consciência jamais irá conhece-los. O que<br />

caberia, como redenção e libertação às prisões ontológicas, seria a composição<br />

do homem com forças inconscientes, forças da natureza, forças do pensamento.<br />

Então, o pensamento deixa de ser ação referenciada no ser para ser aquilo que<br />

está fora do ser e que só se faz no ser enquanto passagem, fluxo, devir. Há uma<br />

grande violência aqui. A violência do destronamento. A corrosão da condição<br />

ontológica.<br />

Essa violência, essa explosão, ainda não é tudo. Vêm a possibilidade das<br />

associações com o Fora, com as forças inumanas do pensamento, com o caos.<br />

O pensamento passa por uma enorme zona de risco, surge a cartografia do<br />

perigo e o risco superior da vida começa a ser traçado. Deslocado de si e tomado<br />

pelas forças dos ventos contrários, o sujeito passa a ser orientado por estímulos<br />

a-significantes. Seus agenciamentos só se fazem para potencializar as forças da<br />

vida. Não há niilismo. Não há vontades negativas. Ou melhor, há, elas estão<br />

sempre presentes.<br />

Mas essas forças reativas sempre presentes, por serem reativas, tem por<br />

princípio obedecer e sucumbir diante da rigorosidade, da dificuldade e do<br />

encantamento das forças produtivas da Natureza. Os efeitos são analisados já<br />

nas causas, por já estarem presente nas causas. As causas são ativas e<br />

constituem possibilidades múltiplas de ação. O corpo é àquilo que afirma e<br />

manifesta a grandeza da vida – não àquilo que enlaça o homem à morte, campo<br />

minado de ideias, preceitos negativos, moralmente valorativos.<br />

O que o 3º gênero vai nos trazer é um vínculo secreto constituído pela crítica do<br />

negativo, pela cultura da alegria, o ódio à interioridade, a exterioridade das forças<br />

e das relações, a denúncia do poder. O 3º gênero é aquilo que vai fazer passar<br />

alguma coisa de muito bonito, que é a própria possibilidade da diferença como<br />

princípio imanente da vida. O 3º gênero é aquilo que constitui o pensamento<br />

como força associativa entre homem e natureza e que por isso mesmo é capaz<br />

de fazer do homem outra coisa.<br />

É que, quando Espinosa vem denunciar o homem no século XVII, ele já<br />

percebera que a relação utilitária do homem com o meio iria nos levar a um limiar<br />

bastante excludente. A impossibilidade da conservação térmica do planeta, entre<br />

outras coisas, indica que as composições orgânicas da vida na terra estão a um<br />

fio do desaparecimento. Mas a vida para Espinosa, pelo terceiro gênero do<br />

conhecimento, não é corpo, nem função, nem matéria. Com algum risco,<br />

podemos dizer que a vida é funcionamento, gerúndio, imanência, acontecimento.<br />

De qualquer forma, a vida não é aquilo que é, mas aquilo que passa e faz passar.<br />

E já que a vida é aquilo que passa e faz passar, podemos dizer que a vida ainda<br />

não se faz presente, ou seja, que talvez a vida ainda não tenha começado<br />

nesse planeta. Em tempos de fim do mundo, Espinosa nos parece uma<br />

belíssima linha de fuga que faz surgir e proliferar novos tipos de vida.<br />

Conjugações e possibilidades de leitura


Não somos simpáticos à construção de uma ciência que se contente em ser<br />

meramente prescritiva - valorizamos a descrição dos acontecimentos.<br />

Acreditamos em uma descrição densa, que busque contemplar o máximo de<br />

elementos possíveis, imagináveis, impossíveis e inimagináveis. Obviamente,<br />

nos desapegando de visões existenciais-analíticas que se consolidaram<br />

elegendo um certo tipo de “ser” humano enquanto centro gravitacional de suas<br />

análises, realocando tal substância ferozmente em meio a uma amalgama de<br />

significações, significados, símbolos, matérias e ouras substâncias. Acreditamos<br />

numa narrativa que seja complexa, mas que simplifique ou expresse a densidade<br />

dos acontecimentos; é o caminho mais viável para a produção de uma ciência<br />

que se proponha a considerar a necessidade da imanência. A transcendência<br />

metodológica afasta as narrativas da fluidez dos acontecimentos, das<br />

associações que corriqueiramente são consumadas e se destroem. Nosso texto<br />

é uma substância reticular, vívida, móvel, pulsante, porosa, na qual se pode<br />

entrar e sair por qualquer lado, e o que for absorvido dessa substância já é válido<br />

para que o pensamento continue a passar. Não há ordem no texto para sua<br />

apreciação. Em qualquer momento, frase, parágrafo, é possível é extrair algo.<br />

Se todas essas ambições são e serão alcançadas, não podemos dizer. O que<br />

dizemos é o que fizemos, e escrevemos a todo momento com esses intuitos em<br />

mente.<br />

Existem modos de leitura que não se compatibilizam com bons comportamentos.<br />

Existem leitores que se recusam a participar de clubes de literatura subversiva.<br />

Acreditamos, por conveniência ou inconveniência da nossa parte, que esses<br />

modos são os mais adequados e criativos. É claro, cada um deve criar suas<br />

maneiras de se comportar diante de um texto, de uma pessoa, de um conceito,<br />

de um animal. Nós acreditamos que o texto é um organismo vivo, cheio de<br />

átomos, mônadas, partículas que transmitem ideias, palavras, conceitos, que<br />

geram incessantes modificações. O texto, em suma, é uma prática: ele nunca se<br />

faz pronto.<br />

*<br />

Sobre as questões do pensamento colocadas no trabalho, indicamos esse<br />

belíssimo texto de Claúdio Ulpiano, profundo estudioso de Guatarri e Deleuze:<br />

http://claudioulpiano.org.br/ulpiano-filosofo/intimos/uma-nova-imagemdopensamento-claudio-ulpiano/<br />

Para um estudo mais delicado dos seus pensamentos através das suas aulas:<br />

https://acervoclaudioulpiano.com/<br />

Para o detalhamento do terceiro gênero do conhecimento e das coisas do<br />

espírito:<br />

https://www.youtube.com/watch?v=oBDEZSx6xVs<br />

Para curtir um som, enquanto se lê:


https://www.youtube.com/watch?v=2tn28G0sU9E<br />

https://www.youtube.com/watch?v=b-K2Ik-eLwM<br />

Para uma breve compreensão do que é o rap, indicamos Helião:<br />

https://www.youtube.com/watch?v=Icbb6Hg0G0I<br />

Para a história a importância do Rap no século XXI, e suas conseqüências<br />

econômicas, culturais e artistícas:<br />

https://www.youtube.com/watch?v=M3-yW6G_6AY<br />

Para a confecção de utensílio que pode assessorar toda leitura do texto:<br />

https://www.youtube.com/watch?v=4oJ9MHgW8DQ

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