Vida de Rio
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ISBN - 978-85-65276-48-1<br />
Organizadoras<br />
Eliana Santos Junqueira Creado<br />
Aline Trigueiro<br />
Clara Crizio <strong>de</strong> Araujo Torres<br />
O Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Populações Pesqueiras e<br />
Desenvolvimento (GEPPEDES) se<br />
configura como um grupo <strong>de</strong><br />
estudos, pesquisas e extensão,<br />
vinculado à Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />
do Espírito Santo (UFES), cuja<br />
linha mestra <strong>de</strong> abordagem é a<br />
temática Ambiente e<br />
Desenvolvimento, com foco nas<br />
populações pesqueiras artesanais<br />
litorâneas. Foi criado no ano <strong>de</strong><br />
2011, e integra em sua equipe<br />
professores, colaboradores, alunos<br />
<strong>de</strong> graduação e <strong>de</strong> pós-graduação<br />
com diversas formações,<br />
atualmente sob a coor<strong>de</strong>nação <strong>de</strong><br />
Aline Trigueiro e Eliana Creado. O<br />
GEPPEDES promove diferentes<br />
tipos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s: grupos <strong>de</strong><br />
estudos, pesquisas em nível <strong>de</strong><br />
graduação e pós-graduação,<br />
minicursos e oficinas, ações <strong>de</strong><br />
extensão nas comunida<strong>de</strong>s e<br />
localida<strong>de</strong>s pesqueiras, além <strong>de</strong><br />
produção audiovisual e<br />
bibliográfica, <strong>de</strong>ntre outras<br />
ativida<strong>de</strong>s.<br />
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar:<br />
Pesca, Desenvolvimentismo<br />
e Ambientalização<br />
Este livro é fruto do trabalho<br />
<strong>de</strong>senvolvido nas localida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
Regência Augusta e Barra do<br />
Riacho pelo Programa <strong>de</strong><br />
Extensão “Áreas protegidas e<br />
gran<strong>de</strong>s projetos <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento no horizonte <strong>de</strong><br />
vivências das comunida<strong>de</strong>s locais:<br />
os impactos socioambientais e seus<br />
<strong>de</strong>sdobramentos” (2016-2017)<br />
(PROEXT/MEC/SESu),<br />
vinculado ao GEPPEDES/UFES.<br />
O Programa promoveu a<br />
realização <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s integradas<br />
<strong>de</strong> pesquisa e extensão junto às<br />
comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Barra do Riacho e<br />
Regência Augusta. Os principais<br />
pontos <strong>de</strong> atenção consistiram na<br />
análise dos impactos do<br />
<strong>de</strong>senvolvimentismo em conjunto<br />
com os processos <strong>de</strong><br />
ambientalização sofridos em ambas<br />
as localida<strong>de</strong>s, e, também, <strong>de</strong> forma<br />
inescapável, os <strong>de</strong>sdobramentos do<br />
crime-<strong>de</strong>sastre causado pela<br />
Samarco em novembro <strong>de</strong> 2015,<br />
com seus amplos reflexos<br />
socioambientais na foz do rio Doce<br />
e na costa do Espírito Santo.
Organizadoras<br />
Eliana Santos Junqueira Creado<br />
Aline Trigueiro<br />
Clara Crizio <strong>de</strong> Araujo Torres<br />
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar:<br />
Pesca, Desenvolvimentismo<br />
e Ambientalização<br />
1 a Edição<br />
PROEX-UFES<br />
Vitória<br />
2018
UNIVERSIDADE FEDERAL<br />
DO ESPÍRITO SANTO<br />
Reinaldo Centoducatte<br />
Reitor<br />
Ethel Leonor Noia Maciel<br />
Vice-Reitora<br />
Zenolia Christina Campos Figueiredo<br />
Pró-Reitora <strong>de</strong> Graduação<br />
Neyval Costa Reis Junior<br />
Pró-Reitor <strong>de</strong> Pesquisa e Pós-Graduação<br />
Angelica Espinosa Barbosa Miranda<br />
Pró-Reitora <strong>de</strong> Extensão<br />
Teresa Cristina Janes Carneiro<br />
Pró-Reitor <strong>de</strong> Administração<br />
Anilton Salles Garcia<br />
Pró-Reitor <strong>de</strong> Planejamento e<br />
Desenvolvimento Institucional<br />
Cleison Fae<br />
Pró-Reitora <strong>de</strong> Gestão <strong>de</strong> Pessoas<br />
e Assistência Estudantil<br />
Gelson Silva Junquilho<br />
Pró-Reitoria <strong>de</strong> Assuntos<br />
Estudantis e Cidadania<br />
En<strong>de</strong>reço Eletrônico: www.proex.ufes.br<br />
Conselho Editorial<br />
Breno Segatto (UFES)<br />
Brunela Vicenzi (UFES)<br />
Flávia Mayer dos Santos Souza (UFES)<br />
Gloria C. Aguilar Barreto (Universida<strong>de</strong><br />
Nacional Caaguazú)<br />
Gustavo Menen<strong>de</strong>z (Universidad Del<br />
Litoral)<br />
João Fre<strong>de</strong>rico Meyer (UNICAMP)<br />
Mariana Duran Cor<strong>de</strong>iro (UFES)<br />
Maurice Barcelos da Costa (UFES)<br />
Pat Moore (Universidad Pablo Olavi<strong>de</strong>s - ESP)<br />
Pedro Florêncio da Cunha Fortes (UFES)<br />
Regina Lúcia Monteiro Henriques (UERJ)<br />
Ubirajara <strong>de</strong> Oliveira (UFES)<br />
Renato Tannure Rotta <strong>de</strong> Almeida (IFES)<br />
Sergio Mascarello Bisch (UFES)<br />
Tânia Mara Zanotti G. Frizzera<br />
Delboni (UFES)<br />
Organização<br />
Eliana Santos Junqueira Creado<br />
Aline Trigueiro<br />
Clara Crizio <strong>de</strong> Araujo Torres<br />
Projeto Gráfico<br />
Paulo Prot<br />
Editora PROEX/UFES<br />
Av. Fernando Ferrari, n° 514,<br />
Goiabeiras<br />
CEP 29.075.910 Vitória-ES<br />
Telefones: (27) 4009-2961<br />
(27) 4009-2778<br />
Dados Internacionais <strong>de</strong> Catalogação-na-publicação (CIP)<br />
(Biblioteca Setorial do Centro <strong>de</strong> Ciências Humanas e Naturais da Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo, ES, Brasil)<br />
V651 <strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> rio e <strong>de</strong> mar : pesca, <strong>de</strong>senvolvimentismo e ambientalização /<br />
Organizadoras, Eliana Santos Junqueira Creado, Aline Trigueiro, Clara Crizio <strong>de</strong><br />
Araujo Torres. – 1. ed. – Vitória : ProEx, 2018.<br />
300 p. : il. ; 23 cm<br />
Inclui bibliografia.<br />
ISBN 978-85-65276-48-1<br />
1. Pesca. 2. Empreendimentos. 3. Desenvolvimento econômico – Aspectos<br />
ambientais. 4. Desenvolvimento econômico – Aspectos sociais. 5. Desastres ambientais.<br />
6. Barra do Riacho (Aracruz, ES). 7. Regência (Linhares, ES). I. Creado, Eliana<br />
Santos Junqueira. II. Trigueiro, Aline. III. Torres, Clara Crizio <strong>de</strong> Araujo, 1990-.<br />
CDU: 338.1(815.2)<br />
Elaborado por Saulo <strong>de</strong> Jesus Peres – CRB-6 ES-676/O
Sumário<br />
Apresentação e Agra<strong>de</strong>cimentos •5<br />
Prefácio•9<br />
Introdução•17<br />
Parte 1 - Pesca Artesanal, Áreas<br />
Protegidas e Desenvolvimento<br />
Capítulo 1. A Política Pesqueira e as Estratégias<br />
<strong>de</strong> Desenvolvimento Nacional•45<br />
Capítulo 2. Captação dos recursos hídricos para o uso industrial<br />
e impactos na pesca em Barra do Riacho, Aracruz (ES)•63<br />
Capítulo 3. Projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento: o caso da criação<br />
<strong>de</strong> duas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação em Aracruz (ES)•81<br />
Capítulo 4. O Ponto Antes do Porto: A Mídia Capixaba e<br />
a Expansão do Portocel na Barra do Riacho•105<br />
Capítulo 5. Políticas socioambientais e as comunida<strong>de</strong>s da foz<br />
do <strong>Rio</strong> Doce: antigas questões regadas com lama •129<br />
Parte 2 - Repercussões da chegada<br />
da lama na foz do rio Doce<br />
Capítulo 6. Sobre os efeitos e os <strong>de</strong>sdobramentos institucionais<br />
do <strong>de</strong>sastre da mineração na foz do <strong>Rio</strong> Doce•153<br />
Capítulo 7. A alimentação enquanto relação visceral com<br />
o pescado na vila <strong>de</strong> Regência e algumas pontuações<br />
sobre os seus <strong>de</strong>svios pós-lama da Samarco•181<br />
Capítulo 8. No “insi<strong>de</strong>” tem lama: análise a partir da perspectiva dos<br />
surfistas <strong>de</strong> Regência após o rompimento da barragem <strong>de</strong> Fundão•211<br />
Capítulo 9. Documentários na re<strong>de</strong> sobre o <strong>Rio</strong> Doce após a<br />
“lama da Samarco”: imagens e territórios em disputa•231<br />
Capítulo 10. Uma onda <strong>de</strong> lama: viagem <strong>de</strong> águas tóxicas<br />
<strong>de</strong> Bento Rodrigues ao Atlântico brasileiro•261<br />
Sobre as autoras e os autores:•294
4
Apresentação e Agra<strong>de</strong>cimentos<br />
Este livro abarca algumas reflexões e análises promovidas a partir do encaminhamento<br />
do Programa <strong>de</strong> Extensão “Áreas Protegidas e Gran<strong>de</strong>s<br />
Projetos <strong>de</strong> Desenvolvimento no Horizonte <strong>de</strong> Vivências das Comunida<strong>de</strong>s<br />
Locais: Os Impactos Socioambientais e os seus Desdobramentos”, <strong>de</strong>senvolvido<br />
entre os anos <strong>de</strong> 2016 e 2017 em duas localida<strong>de</strong>s pesqueiras do<br />
estado do Espírito Santo: Barra do Riacho e Regência Augusta, que fazem<br />
parte, respectivamente, dos municípios <strong>de</strong> Aracruz e Linhares, no litoral<br />
norte do estado.<br />
A ativida<strong>de</strong> extensionista é mais uma das ações do Grupo <strong>de</strong> Estudos e<br />
Pesquisa em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento – GEPPEDES/<br />
UFES –, que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua criação em 2011, preocupa-se em estudar e atuar<br />
conjuntamente em projetos com as populações pesqueiras. No Programa<br />
<strong>de</strong> Extensão “Áreas Protegidas e Gran<strong>de</strong>s Projetos <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />
no Horizonte <strong>de</strong> Vivências das Comunida<strong>de</strong>s Locais: Os Impactos Socioambientais<br />
e os seus Desdobramentos”, essa perspectiva ampliou-se<br />
em certa medida, pois, além dos grupos pesqueiros, foram incluídos outros<br />
grupos atingidos por consequências socioambientais negativas <strong>de</strong>flagradas<br />
pela expansão <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, algumas<br />
das quais catastróficas, e/ou pelas ações governamentais em prol da criação<br />
<strong>de</strong> áreas protegidas (unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação <strong>de</strong> proteção integral e<br />
<strong>de</strong> uso sustentável). A proposta teve como <strong>de</strong>sdobramentos dar visibilida<strong>de</strong><br />
a essas comunida<strong>de</strong>s e às suas histórias <strong>de</strong> luta, por meio <strong>de</strong> ações<br />
diretas (como <strong>de</strong> formação-extensão), produção <strong>de</strong> material audiovisual<br />
e, inicialmente, a proposta <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> ferramenta <strong>de</strong> análise <strong>de</strong> ‘impactos’<br />
socioambientais.<br />
Partilhamos, neste livro, as histórias e narrativas <strong>de</strong>stas pessoas que são<br />
<strong>de</strong>sigualmente atingidas pelas consequências <strong>de</strong> uma política econômica<br />
assentada no extrativismo <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> escala, direcionado para a exportação<br />
<strong>de</strong> commodities como o petróleo e o gás, a celulose e o minério <strong>de</strong><br />
ferro, e seus sistemas <strong>de</strong> logística (construção <strong>de</strong> portos), todos altamente<br />
promotores <strong>de</strong> danos ao ambiente e aos seus mais diversos entes. Juntamente,<br />
problematizamos os embates <strong>de</strong>correntes da implantação <strong>de</strong> uni-<br />
5
da<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação que, em gran<strong>de</strong> medida, restringem e impe<strong>de</strong>m os<br />
usos e a gestão dos recursos ambientais pelas populações locais, promovendo<br />
um tipo <strong>de</strong> ônus da conservação que acaba recaindo <strong>de</strong>sigualmente<br />
sobre uns grupos mais do que outros.<br />
Durante os <strong>de</strong>sdobramentos das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> extensão, também tivemos<br />
<strong>de</strong> imprimir esforços na discussão <strong>de</strong> um problema que afetou a todos,<br />
em diferentes escalas – local, regional, nacional e mundial: o crime-<strong>de</strong>sastre<br />
provocado pelo rompimento da barragem <strong>de</strong> rejeitos <strong>de</strong> mineração<br />
da Samarco/Vale/BHP em Mariana (MG), em novembro <strong>de</strong> 2015, e<br />
a dispersão <strong>de</strong>sses rejeitos pela bacia do <strong>Rio</strong> Doce, chegando à sua foz,<br />
<strong>de</strong>pois se espalhando pelo mar. O crime-<strong>de</strong>sastre atingiu diretamente várias<br />
comunida<strong>de</strong>s, como as <strong>de</strong> pescadores e ribeirinhos, além <strong>de</strong> outros<br />
municípios e localida<strong>de</strong>s, bem como outros profissionais e <strong>de</strong>mais habitantes<br />
humanos, além <strong>de</strong> comprometer diferentes ecossistemas. Dentre<br />
as comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pescadores e ribeirinhos, abordamos aqui Regência<br />
Augusta e Barra do Riacho. É sobre essas histórias que escrevemos.<br />
Ressaltamos, ainda, que <strong>de</strong>senvolver um projeto <strong>de</strong> extensão é sempre<br />
um <strong>de</strong>safio. Trata-se <strong>de</strong> uma ação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> e que requer<br />
<strong>de</strong>dicação, ou seja, é um trabalho que envolve a afinação <strong>de</strong> um<br />
grupo e seu empenho <strong>de</strong>ntro e fora <strong>de</strong> campo. Assim, esse trabalho não<br />
po<strong>de</strong>ria ter sido <strong>de</strong>senvolvido sem a colaboração <strong>de</strong> uma equipe <strong>de</strong> bolsistas<br />
(composta por estudantes <strong>de</strong> graduação) e, também, sem a participação<br />
<strong>de</strong> profissionais graduados, <strong>de</strong> pós-graduandos, docentes e colaboradores<br />
externos. Em or<strong>de</strong>m alfabética, agra<strong>de</strong>cemos a: Aline Trigueiro;<br />
Ana Oggioni; Bruno Curtis Weber; Bernardo Furlaneto Bragato Oakes <strong>de</strong><br />
Oliveira; Bianca <strong>de</strong> Jesús Silva; Caio Falcão Lima Neves; Camila Paganini<br />
Canal; Carolina <strong>de</strong> Oliveira e Silva Cyrino; Clara Crizio <strong>de</strong> Araujo Torres;<br />
Daniela Zanetti; Deivison Souza Cruz; Eliana Santos Junqueira Creado;<br />
Flávia Amboss Merçon Leonardo; Géssica Amâncio dos Santos; Giovana<br />
Martins Araújo; Hauley Valim; Jessica Ribeiro Latif; Jerônimo Amaral <strong>de</strong><br />
Carvalho; João Paulo Lyrio Izoton; Karyn Ruberth Ruiz; Luiz Otávio Martins<br />
Duarte; Mariana Pimenta <strong>de</strong> Alvarenga Prates; Marianna Gonçalves<br />
<strong>de</strong> Paula; Nayara Pinto Santana; Sophia Scardua; Stefan Helmreich; Ta<strong>de</strong>u<br />
Barbuto Bousada; Tamyres Batista Costa; Winifred Knox.<br />
Não obstante, o mais importante nessa empreitada foi, sem dúvida, a par-<br />
6
ticipação das comunida<strong>de</strong>s na ação extensionista. Conseguimos contar<br />
com essa acolhida em gran<strong>de</strong> medida em um momento em que essas comunida<strong>de</strong>s<br />
enfrentam inúmeras dificulda<strong>de</strong>s, fato que nos torna imensamente<br />
agra<strong>de</strong>cidos aos nossos interlocutores tanto em Barra do Riacho<br />
quanto em Regência Augusta. Foram pescadores, pescadoras, pequenos<br />
agricultores, ribeirinhos, comerciantes, profissionais liberais, pesquisadores,<br />
li<strong>de</strong>ranças formais e informais, artistas, surfistas, entre outros. A<br />
todos esses, o nosso fraterno agra<strong>de</strong>cimento!<br />
Agra<strong>de</strong>cemos, ainda, à Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo (UFES),<br />
instituição à qual os componentes do GEPPEDES estão vinculados, especialmente<br />
representada nas figuras <strong>de</strong> sua Pró-Reitoria <strong>de</strong> Extensão<br />
(PROEX/UFES), do Departamento <strong>de</strong> Ciências Sociais, do Programa <strong>de</strong><br />
Pós-Graduação em Ciências Sociais (PPGCS/UFES) e do Núcleo <strong>de</strong> Estudo,<br />
Pesquisa e Extensão em Mobilizações Sociais (Organon/UFES) – este<br />
último por ter mobilizado ativida<strong>de</strong>s no contexto pós-crime-<strong>de</strong>sastre do<br />
<strong>Rio</strong> Doce, para as quais o GEPPEDES foi convidado a participar. Nosso<br />
agra<strong>de</strong>cimento também à TV UFES, pelo apoio em algumas ativida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> filmagem e edição, e ao Grupo <strong>de</strong> Pesquisas em Cultura Audiovisual<br />
e Tecnologia (CAT), através da parceria com sua coor<strong>de</strong>nadora Daniela<br />
Zanetti, e aos alunos-bolsistas também vinculados a esse grupo.<br />
Igualmente, foi importante o apoio financeiro, angariado pelo Coletivo<br />
<strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Gente, cujo edital foi organizado pelo Greenpeace, ao projeto “Depois<br />
da Lama: impactos na foz do rio Doce”, coor<strong>de</strong>nado por Flavia Amboss<br />
Merçon Leonardo no período <strong>de</strong> 2016.<br />
Em especial, somos gratos à principal instituição financiadora, o Ministério<br />
da Educação (MEC) em parceria com o Ministério do Meio Ambiente<br />
(MMA), Edital PROEXT-2016, pela cessão dos recursos, sem os quais não<br />
teria sido possível o <strong>de</strong>senvolvimento do Programa <strong>de</strong> Extensão “Áreas<br />
Protegidas e Gran<strong>de</strong>s Projetos <strong>de</strong> Desenvolvimento no Horizonte <strong>de</strong><br />
Vivências das Comunida<strong>de</strong>s Locais: Os Impactos Socioambientais e os<br />
seus Desdobramentosİ.<br />
Equipe GEPPEDES<br />
7
8
Prefácio<br />
É em meio a um momento <strong>de</strong> graves problemas políticos e econômicos no<br />
Brasil que apresento o livro “<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> rio e <strong>de</strong> mar: pesca, <strong>de</strong>senvolvimentismo<br />
e ambientalização”. O cenário retratado por ele é <strong>de</strong>vastador, triste<br />
e, em alguns momentos, macabro, como um filme <strong>de</strong> terror, e merece ser<br />
divulgado.<br />
Em 5 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2015, ocorreu o que se chegou a <strong>de</strong>nominar o "maior<br />
<strong>de</strong>sastre ambiental no Brasil", perto <strong>de</strong> Mariana, Minas Gerais, a partir<br />
do rompimento da barragem <strong>de</strong> Fundão com rejeitos <strong>de</strong> mineração. Localizada<br />
no subdistrito <strong>de</strong> Bento Rodrigues, fruto <strong>de</strong> um empreendimento<br />
conjunto entre as maiores empresas <strong>de</strong> mineração do mundo, Samarco<br />
Mineração S.A., a brasileira Vale S.A. e a anglo-australiana BHP Billiton,<br />
a barragem se rompeu, quando então mais <strong>de</strong> 60 milhões <strong>de</strong> metros cúbicos<br />
<strong>de</strong> rejeitos <strong>de</strong> minério foram <strong>de</strong>rramados no rio Doce, cuja bacia<br />
hidrográfica abrange 230 municípios dos estados <strong>de</strong> Minas Gerais e Espírito<br />
Santo, muitos dos quais tinham seu sistema <strong>de</strong> abastecimento <strong>de</strong><br />
água relacionado à água do rio. Ao final <strong>de</strong> vários dias, a lama, que reunia<br />
toxinas em altíssima quantida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>saguou no mar do norte do Espírito<br />
Santo. Dezenove pessoas morreram e comunida<strong>de</strong>s ficaram submersas<br />
na “lama da Samarco”.<br />
O refugo <strong>de</strong> mineração <strong>de</strong>spejado no rio inviabilizou muitas vidas, matando<br />
muitos dos entes naturais que lá ainda viviam. Aos pescadores, restaram<br />
as incertezas e a proibição <strong>de</strong> pescar no mar litorâneo. A água <strong>de</strong><br />
várias cida<strong>de</strong>s ficou contaminada e proibida para o consumo. Muito se<br />
falou sobre esse aci<strong>de</strong>nte em todo o mundo, nos centros <strong>de</strong> pesquisas, pelas<br />
re<strong>de</strong>s sociais, em mídias digitais, nos jornais impressos, nas TVs. Ambientalistas<br />
e pesquisadores <strong>de</strong> vários países vieram ver <strong>de</strong> perto o gran<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sastre. Falou-se em morte do rio Doce para sempre.<br />
No entanto, muito antes da ruptura <strong>de</strong>ssa barragem, muitos problemas<br />
eram vivenciados pelas populações resi<strong>de</strong>ntes da faixa costeira no estado<br />
do Espírito Santo. Um <strong>de</strong>senvolvimentismo rentista, baseado em commodities<br />
e predatório em relação ao meio ambiente, havia se consolidado<br />
através <strong>de</strong> um planejamento da agenda pública do estado, alinhado aos<br />
9
interesses <strong>de</strong> um conglomerado <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s instituições nacionais e multinacionais.<br />
O livro, organizado por Aline Trigueiro, Eliana Santos Junqueira Creado,<br />
professoras da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo (UFES), e por<br />
Clara Crizio <strong>de</strong> Araujo Torres, apresenta mais um resultado das boas<br />
pesquisas realizadas pelo Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisa em Populações<br />
Pesqueiras e Desenvolvimento (GEPPEDES). Fundado em 2011, o grupo<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> então tem sido ativo no exercício da pesquisa e da extensão universitária,<br />
<strong>de</strong>le participando diversos alunos e professores <strong>de</strong> várias áreas das<br />
Humanida<strong>de</strong>s, como Sociologia, Antropologia, Geografia, Comunicação,<br />
<strong>de</strong>ntre outras, bem como das Ciências Naturais.<br />
Alguns <strong>de</strong>stes trabalhos anteriores po<strong>de</strong>m ser listados, como o livro “Imagens<br />
da pesca artesanal no Espírito Santo” (TRIGUEIRO e KNOX, 2013),<br />
no qual são mostradas as dificulda<strong>de</strong>s vivenciadas na pesca artesanal por<br />
pescadores <strong>de</strong> <strong>de</strong>z regiões <strong>de</strong>sse estado, os quais também propunham soluções<br />
para tais dificulda<strong>de</strong>s. No livro “Saberes, narrativas e conflitos na<br />
pesca artesanal” (KNOX e TRIGUEIRO, 2015), os artigos alertavam para<br />
diversos problemas pelos quais o litoral brasileiro, entre os estados <strong>de</strong> <strong>Rio</strong><br />
<strong>de</strong> Janeiro e Recife, tem passado. Além disso, o registro audiovisual caracterizou<br />
suas realizações, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua fundação, com a produção <strong>de</strong> vários<br />
ví<strong>de</strong>os documentários, como “Tradições à <strong>de</strong>riva” (GEPPEDES, 2012)<br />
e “(Des)Embarco: Paradoxos do cotidiano da pesca artesanal em Itapoã”<br />
(GEPPEDES, 2015). E, ainda, “Últimos dias em Regência” (CAT/GEPPE-<br />
DES, 2015), produzido <strong>de</strong>pois do <strong>de</strong>sastre em Mariana, porém antes da<br />
lama chegar em Regência, na foz do rio Doce.<br />
A experiência acumulada nas pesquisas ao longo da existência <strong>de</strong>sse grupo<br />
veio consolidar o modus operandi <strong>de</strong> investigação a partir do projeto<br />
integrado <strong>de</strong> pesquisa e extensão intitulado "Áreas protegidas e gran<strong>de</strong>s<br />
projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no horizonte <strong>de</strong> vivências das comunida<strong>de</strong>s<br />
locais: os impactos socioambientais e seus <strong>de</strong>sdobramentos", financiado<br />
pelo Ministério da Educação (Edital PROEXT 2016), que, agora, traz novos<br />
resultados e surpreen<strong>de</strong>ntes constatações. Elas evi<strong>de</strong>nciam que nos<br />
últimos anos o Espírito Santo tem sido importante palco <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>s<br />
Projetos <strong>de</strong> investimentos nacionais e internacionais. Esses projetos têm<br />
ajudado na abertura <strong>de</strong> frentes <strong>de</strong> trabalho e, talvez, no crescimento do<br />
10
PIB estadual, porém provocam enormes impactos sociais, geram conflitos<br />
<strong>de</strong> diferentes níveis e formas, <strong>de</strong>slocamentos compulsórios da população,<br />
empobrecimento e sofrimento social, além <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s impactos<br />
ambientais antes não imaginados. Em aparente paradoxo, esse processo<br />
se dá associado aos impactos trazidos, também, por políticas e iniciativas<br />
ambientais, que, na sanha <strong>de</strong> resguardar ecossistemas e biodiversida<strong>de</strong>,<br />
acabam por funcionar como mais um elemento das mudanças nas vidas<br />
<strong>de</strong> pescadores e moradores da costa espírito-santense. Eles, assim, precisam<br />
lidar com as restrições ambientais trazidas, por exemplo, pelas unida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> conservação e outras medidas correlatas ao mesmo tempo em<br />
que pagam o ônus <strong>de</strong>sigual dos impactos causados pelo <strong>de</strong>senvolvimento.<br />
O livro tem como tema central, perpassando os vários artigos, a reflexão<br />
sobre as políticas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento nacional, as políticas para o meio<br />
ambiente e a situação das populações afetadas por esse <strong>de</strong>sastre ambiental<br />
que muitos dizem sem prece<strong>de</strong>ntes no Brasil e no mundo. Concluindo<br />
que os caminhos traçados têm afetado as populações pobres, bem como<br />
várias cida<strong>de</strong>s e localida<strong>de</strong>s escolhidas para a recepção <strong>de</strong>sses gran<strong>de</strong>s<br />
investimentos, compreen<strong>de</strong>-se que as políticas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento são<br />
mo<strong>de</strong>ladas pelos propósitos <strong>de</strong> um telos (um fim), supostamente nacional,<br />
que beneficiariam ampla gama da população. Esse telos i<strong>de</strong>alizado se<br />
<strong>de</strong>sfaz no próprio percurso <strong>de</strong> sua aquisição, revelando-se contraditório<br />
e perverso, com a consolidação <strong>de</strong> interesses específicos a <strong>de</strong>terminados<br />
grupos, afetando outras políticas públicas, como as políticas ambientais<br />
e, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>sse âmbito, aquelas voltadas para a pesca artesanal. O livro<br />
procura retratar algumas questões com o que eu <strong>de</strong>nominaria "uma abordagem<br />
do Outro", implicando o olhar relacional <strong>de</strong> como as pessoas lidam<br />
com o cotidiano e, em alguns momentos emergenciais, com os recursos<br />
naturais, mostrando como esses eventos afetarão noções sociais, culturais<br />
e existenciais frente aos sujeitos sociais relativos ao mundo e à natureza.<br />
Os vários artigos aqui reunidos vêm expor essas questões sob diferentes<br />
olhares. Em um primeiro conjunto <strong>de</strong> artigos, percebe-se um questionamento<br />
sobre as políticas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento nacional frente ao prejuízo<br />
ambiental tanto quanto em relação ao restrito grupo <strong>de</strong> beneficiários,<br />
retratando a atuação <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminadas instituições mediadoras entre o<br />
Estado e a socieda<strong>de</strong>, na dimensão jurídica, e, na dimensão da linguagem,<br />
através da justiça nacional e dos meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa no<br />
11
estado do Espírito Santo. Essa seção intitula-se “Pesca Artesanal, Áreas<br />
Protegidas e Desenvolvimentoİ.<br />
Assim, no artigo A política pesqueira e as estratégias <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento nacional,<br />
<strong>de</strong> Carolina <strong>de</strong> Oliveira e Silva Cyrino e Aline Trigueiro, é possível<br />
perceber que a política pesqueira tem sido, ao longo <strong>de</strong> quase um século,<br />
voltada para a mo<strong>de</strong>rnização da ativida<strong>de</strong> pesqueira, com a intenção <strong>de</strong><br />
domesticação e civilização dos malfadados pescadores artesanais, conforme<br />
mostra a documentação levantada. Tudo isso compreendido como a<br />
adoção do telos imaginado do <strong>de</strong>senvolvimento, que espelha, na prática, a<br />
opção pelas políticas públicas <strong>de</strong> subsídio e investimento na pesca industrial<br />
em <strong>de</strong>trimento da artesanal.<br />
O artigo Captação dos recursos hídricos para o uso industrial e impactos na pesca<br />
em Barra do Riacho, Aracruz (ES), <strong>de</strong> Nayara Pinto Santana, vem exemplificar<br />
que a título da execução do <strong>de</strong>senvolvimento industrial na região<br />
<strong>de</strong> Aracruz, diversas normas e regulamentos ambientais são implacavelmente<br />
<strong>de</strong>sobe<strong>de</strong>cidos. A irregularida<strong>de</strong>, então, torna-se invisível e, ainda<br />
mais, simplesmente não fiscalizada nos termos da lei, com a participação<br />
da própria prefeitura nas obras <strong>de</strong> um canal <strong>de</strong> captação dos recursos hídricos<br />
para uso industrial, apesar dos impactos ambientais no rio e nos<br />
recursos naturais, os quais afetam a pesca artesanal assim como moradores<br />
usuários <strong>de</strong>sses mesmos recursos.<br />
O artigo Projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento: o caso da criação <strong>de</strong> duas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
conservação em Aracruz (ES), <strong>de</strong> Mariana Pimenta <strong>de</strong> Alvarenga Prates,<br />
analisa o processo <strong>de</strong> criação <strong>de</strong> duas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação no município<br />
<strong>de</strong> Aracruz (ES): a Área <strong>de</strong> Proteção Ambiental (APA) Costa das<br />
Algas e o Refúgio <strong>de</strong> <strong>Vida</strong> Silvestre (REVIS) <strong>de</strong> Santa Cruz, que durou<br />
oito anos. A análise evi<strong>de</strong>ncia que a criação somente se concretizou porque<br />
foi atrelada a outro projeto, a instalação do Estaleiro Jurong Aracruz<br />
(EJA), buscando discutir como a preservação e o <strong>de</strong>senvolvimento estão<br />
fortemente entrelaçados.<br />
O artigo O ponto antes do porto: a mídia capixaba e a expansão do Portocel na<br />
Barra do Riacho, <strong>de</strong> Bernardo Furlaneto Bragato Oakes <strong>de</strong> Oliveira, mostra<br />
como a mídia com sua função <strong>de</strong> (in)formação na socieda<strong>de</strong> vai ter um papel<br />
<strong>de</strong>cisivo na construção <strong>de</strong>sse imaginado telos do <strong>de</strong>senvolvimento. Partindo<br />
da análise do jornal A Gazeta do Espírito Santo, avalia <strong>de</strong> que modo<br />
12
esse veículo reporta à socieda<strong>de</strong> informações sobre a instalação <strong>de</strong>sse<br />
empreendimento, que será chamado <strong>de</strong> Portocel II, evi<strong>de</strong>nciando a construção<br />
<strong>de</strong> mo<strong>de</strong>los discursivos e elementos simbólicos agenciados nessa<br />
comunicação a favor do paradigma <strong>de</strong>senvolvimentista, sendo pouco problematizados<br />
os potenciais danos ambientais resultantes <strong>de</strong> tais projetos.<br />
O artigo Políticas socioambientais e as comunida<strong>de</strong>s da foz do rio Doce: antigas<br />
questões regadas com lama, <strong>de</strong> Luiz Otávio Martins Duarte, analisa o histórico<br />
das políticas e ações voltadas à implementação <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação<br />
na região da foz do rio Doce e os conflitos com a população <strong>de</strong><br />
pescadores <strong>de</strong> Regência, Areal, Entre <strong>Rio</strong>s e Povoação. Ou seja, evi<strong>de</strong>ncia<br />
essas iniciativas como parte <strong>de</strong> iniciativas anteriores <strong>de</strong> conservação, (re)<br />
colocadas, agora, oportunisticamente como parte das compensações da<br />
mineradora Samarco e suas acionistas Vale S.A. e BHP Billiton, <strong>de</strong>ntro do<br />
Termo <strong>de</strong> Transação e <strong>de</strong> Ajustamento <strong>de</strong> Conduta (TTAC) — documento<br />
elaborado <strong>de</strong>vido à chegada <strong>de</strong> rejeitos <strong>de</strong> mineração na foz no final <strong>de</strong><br />
2015.<br />
Um segundo conjunto <strong>de</strong> artigos enfoca especificamente o <strong>de</strong>sastre ambiental,<br />
as suas consequências na região e intitula-se “Repercussões da chegada<br />
da lama na foz do rio Doce”.<br />
O artigo “Nós não estamos lidando com lambaris, estamos lidando com tubarões”:<br />
sobre os efeitos e os <strong>de</strong>sdobramentos institucionais do <strong>de</strong>sastre da mineração<br />
na foz do <strong>Rio</strong> Doce, <strong>de</strong> Flávia Amboss Merçon Leonardo e João Paulo<br />
Lyrio Izoton, liga-se ao relatório Rompimento da barragem do Fundão (Samarco/Vale/BHP<br />
Billiton) e os efeitos do <strong>de</strong>sastre na foz do <strong>Rio</strong> Doce, distrito <strong>de</strong><br />
Regência e Povoação (ES) 1 . O artigo reflete sobre os problemas enfrentados<br />
no processo <strong>de</strong> gestão da crise, a partir da experiência com os atingidos<br />
e atingidas nos distritos <strong>de</strong> Regência e Povoação (ES). Medidas <strong>de</strong> reparação<br />
implementadas pela empresa, seus consultores e, posteriormente,<br />
pela Fundação Renova na foz do rio Doce, como auxílio emergencial,<br />
cadastro integrado dos atingidos, perfil do atingido, bem como inúmeras<br />
reuniões <strong>de</strong>sgastantes e pouco participativas, são <strong>de</strong>scritas criticamente.<br />
1 O relatório resultou da pesquisa “Depois da lama: os atingidos e os impactos na foz do<br />
<strong>Rio</strong> Doce”, que contou com apoio financeiro <strong>de</strong>stinado pelo edital “Mão na massa e pé na<br />
lama”, promovido pelo Greenpeace em parceria com o projeto colaborativo <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Gente.<br />
Houve o apoio do GEPPEDES, no âmbito <strong>de</strong> suas ações <strong>de</strong> extensão.<br />
13
Além disso, outras medidas são analisadas, como o pouco transparente<br />
Termo <strong>de</strong> Transação e <strong>de</strong> Ajustamento <strong>de</strong> Conduta (TTAC), assinado em<br />
março <strong>de</strong> 2016, que, por sua vez, resultou na polêmica criação da Fundação<br />
Renova, meses <strong>de</strong>pois do TTAC.<br />
O artigo A alimentação enquanto relação visceral com o pescado na vila <strong>de</strong><br />
Regência e algumas pontuações sobre os seus <strong>de</strong>svios pós-lama da Samarco,<br />
<strong>de</strong> Bianca <strong>de</strong> Jesús Silva e Clara Crizio <strong>de</strong> Araujo Torres, propõe evi<strong>de</strong>nciar<br />
os cortes da re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações sociais resultantes da obrigatorieda<strong>de</strong><br />
judicial <strong>de</strong> auxílio emergencial aos afetados pela lama tóxica e pela ruptura<br />
da barragem. A proibição da pesca e as incertezas sobre o consumo<br />
e a distribuição do pescado foram analisados e confrontados à luz das<br />
discussões feitas pelos moradores sobre os laudos técnico-científicos. A<br />
estrutura <strong>de</strong> análise montada enfoca as relações dos consumidores com<br />
o pescado a partir <strong>de</strong> uma perspectiva ontológica da alimentação. Procura,<br />
igualmente, refletir as relações que os habitantes da comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Regência Augusta constituíram com o pescado após a contaminação da<br />
água do rio e do mar, ressaltando os modos <strong>de</strong> (re)invenção dos moradores<br />
sobre as incertezas. Conclui que o processo acarretou a alteração da<br />
alimentação na vila e implicou um conflito profundo <strong>de</strong> dimensões ontológicas<br />
nas relações locais com a alimentação.<br />
O artigo No “insi<strong>de</strong>” tem lama: análise a partir da perspectiva dos surfistas <strong>de</strong><br />
Regência após o rompimento da barragem <strong>de</strong> Fundão, <strong>de</strong> Marianna Gonçalves<br />
<strong>de</strong> Paula, apresenta a situação dos surfistas também em Regência Augusta,<br />
após a chegada dos rejeitos. Foram realizadas entrevistas com alguns<br />
dos surfistas frequentadores das ondas <strong>de</strong>ssa vila, visando captar as relações<br />
que estabeleciam com a localida<strong>de</strong>, o mar e suas ondas, antes e após<br />
o aci<strong>de</strong>nte. O artigo <strong>de</strong>staca alterações na relação com as águas e ondas <strong>de</strong><br />
Regência Augusta, a importância que os surfistas dão para as características<br />
sensorialmente percebidas das águas e que indicam a presença dos<br />
rejeitos <strong>de</strong> mineração, bem como as incertezas sobre os efeitos <strong>de</strong>ssa presença<br />
na saú<strong>de</strong> humana. Registra o caráter cíclico dos surfistas na relação<br />
com esse mar alterado em seus atributos.<br />
O artigo Documentários na re<strong>de</strong> sobre o <strong>Rio</strong> Doce após a “lama da Samarco”:<br />
imagens e territórios em disputa, <strong>de</strong> Daniela Zanetti, Jéssica Latif e Gessica<br />
Amâncio, i<strong>de</strong>ntifica modos <strong>de</strong> visibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s e grupos so-<br />
14
ciais atingidos pelo rompimento das barragens. Tendo como suporte <strong>de</strong><br />
comunicação a produção audiovisual documental compartilhada em<br />
re<strong>de</strong>, apresenta a análise <strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os disponibilizados no<br />
YouTube, produzidos a partir <strong>de</strong> 2015. Os ví<strong>de</strong>os tratam especificamente<br />
das consequências ambientais, sociais e culturais geradas a partir <strong>de</strong>ssa<br />
tragédia ambiental, que tiveram como foco a maneira como esse evento<br />
afetou as comunida<strong>de</strong>s situadas às margens do <strong>Rio</strong> Doce, i<strong>de</strong>ntificando os<br />
dispositivos narrativos utilizados, e as “vozes” dos documentários, a partir<br />
do modo como distintos atores sociais se apropriam da problemática em<br />
questão e (re)elaboram seus discursos sobre o evento, salientando as dinâmicas<br />
sociais, políticas e econômicas nesses territórios.<br />
O artigo Uma onda <strong>de</strong> lama: viagem <strong>de</strong> águas tóxicas <strong>de</strong> Bento Rodrigues ao<br />
Atlântico brasileiro, é versão traduzida e expandida do artigo A wave of mud:<br />
the travel of toxic water, from Bento Rodrigues to the brazilian Atlantic, <strong>de</strong> Eliana<br />
Santos Junqueira Creado e Stefan Helmreich, que oferece uma análise<br />
antropológica e etnográfica do momento posterior ao <strong>de</strong>sastre. Explora<br />
a metáfora amplamente utilizada da onda <strong>de</strong> lama, usada em referência<br />
ao <strong>de</strong>slocamento <strong>de</strong> rejeitos <strong>de</strong> mineração, a partir <strong>de</strong> Bento Rodrigues e<br />
<strong>de</strong>scendo rio Doce. Baseia-se em testemunhos oculares, relatórios científicos,<br />
notícias, re<strong>de</strong>s sociais, documentários e, ainda, em uma peça <strong>de</strong> teatro.<br />
Os autores argumentam que a imagem da onda <strong>de</strong> lama po<strong>de</strong> ajudar a<br />
enten<strong>de</strong>r os efeitos físicos e simbólicos <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sastre e crime ambiental.<br />
Os autores tentam interlocução com autores da antropologia simbólica,<br />
da antropologia dos rios e da antropologia da ciência e da tecnologia.<br />
Espera-se que as reflexões aqui apontadas, que questionam esse telos<br />
i<strong>de</strong>alizado, apontando para o efeito <strong>de</strong>ste na natureza, somem-se a várias<br />
outras iniciativas e que, assim, possam contribuir para a transformação<br />
<strong>de</strong> paradigmas em prol da manifestação <strong>de</strong> uma nova forma <strong>de</strong> pensar<br />
e tratar o ambiente, a natureza e os seres que <strong>de</strong>la <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m e com ela<br />
interagem.<br />
Apesar das lamacentas imagens e cenários macabros retratados neste livro,<br />
finalizo esta apresentação apontando para o <strong>de</strong>sejo aqui presente <strong>de</strong><br />
um horizonte on<strong>de</strong> os diferentes atores e agentes se sintam mais fortemente<br />
imbricados no enredo e se responsabilizem por ele. Boa leitura!<br />
Winifred Knox, Natal (RN), 28.02.2018.<br />
15
Referências<br />
GEPPEDES, Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisa em Populações Pesqueiras e<br />
Desenvolvimento no ES; TRIGUEIRO, A.; KNOX, W.; IZOTON, J. P.; TE-<br />
LES, N. DVD: Tradições à <strong>de</strong>riva: pesca artesanal e <strong>de</strong>senvolvimento<br />
no ES. 2012.<br />
GEPPEDES, Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisa em Populações Pesqueiras e<br />
Desenvolvimento no ES; KNOX, Winifred; TRISTAO, M.; TRIGUEIRO,<br />
Aline. Documentário: (Des)Embarco: paradoxos do cotidiano na pesca<br />
artesanal em Itapoã. 2015.<br />
GEPPEDES/CAT. Últimos Dias em Regência. Disponível em: goo.gl/<br />
J5XeHk. Acesso em: 4 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2017.<br />
KNOX, W.; TRIGUEIRO, A. (Orgs.). Narrativas, saberes e conflitos na<br />
pesca artesanal. 1. ed. Vitória: EDUFES, 2015.<br />
TRIGUEIRO, A.; KNOX, W. Imagens da pesca artesanal no Espírito<br />
Santo. 1. ed. Vitória: GM Editora, 2013. 58p.<br />
16
Introdução<br />
Aline Trigueiro<br />
Eliana S. J. Creado<br />
Este livro envolve a história <strong>de</strong> pessoas, lugares e suas formas <strong>de</strong> (re)<br />
existir. Mais especificamente, é um convite a enten<strong>de</strong>r como se dão as<br />
experiências cotidianas <strong>de</strong> certos grupos sociais e os meios encontrados<br />
para lidar com as alterações promovidas pelas ações <strong>de</strong>senvolvimentistas<br />
e/ou pelas políticas ambientais, no momento em que estas a<strong>de</strong>ntram<br />
as diferentes esferas <strong>de</strong> produção material e simbólica da vida cotidiana.<br />
Estamos nos referindo aos grupos pescadores, mas não somente a eles,<br />
pois também po<strong>de</strong>m ser incluídos povos e comunida<strong>de</strong>s indígenas e quilombolas,<br />
pequenos agricultores e ribeirinhos, entre tantos outros grupos<br />
e pessoas que habitam lugares atingidos <strong>de</strong>sigualmente pelos <strong>de</strong>sdobramentos<br />
dos processos <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização.<br />
Os capítulos contidos neste livro sistematizam, em gran<strong>de</strong> medida, as<br />
discussões promovidas ao longo da atuação do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisa<br />
em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento (GEPPEDES-UFES)<br />
em duas comunida<strong>de</strong>s pesqueiras localizadas no litoral norte do estado<br />
do Espírito Santo: Barra do Riacho, no município <strong>de</strong> Aracruz, e Regência<br />
Augusta, no município <strong>de</strong> Linhares. As ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> extensão e os estudos<br />
foram <strong>de</strong>senvolvidos no âmbito do Programa <strong>de</strong> Extensão intitulado<br />
“Áreas Protegidas e Gran<strong>de</strong>s Projetos <strong>de</strong> Desenvolvimento no Horizonte<br />
<strong>de</strong> Vivências das Comunida<strong>de</strong>s Locaisİ: Os Impactos Socioambientais e<br />
os seus Desdobramentos, que contou com aprovação e financiamento do<br />
edital PROEXT 2016 (MEC/SESu/MMA) entre os anos <strong>de</strong> 2016 e 2017.<br />
A equipe do projeto contou com a participação <strong>de</strong> 14 bolsistas graduandos<br />
dos cursos <strong>de</strong> Ciências Sociais, Geografia, Biologia, Comunicação<br />
Social e Cinema e Audiovisual, e seis mestrandos e mestres em Ciências<br />
Sociais. Além <strong>de</strong>stes, docentes da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo<br />
(UFES) — uma da Comunicação Social e duas professoras coor<strong>de</strong>nado-<br />
17
as 1 das Ciências Sociais — e inúmeros colaboradores eventuais. Destes,<br />
tivemos parceiros <strong>de</strong> campo e <strong>de</strong> trabalhos mais pontuais, como durante<br />
a elaboração <strong>de</strong> relatórios, artigos, mapas, aplicação e sistematização <strong>de</strong><br />
questionários, revisão <strong>de</strong> textos e outras tantas ativida<strong>de</strong>s que, no tempo e<br />
no espaço, representaram importantes colaborações e experiências. 2<br />
Para que as leitoras e os leitores possam conhecer um pouco do percurso<br />
<strong>de</strong>sse longo trabalho, teceremos observações e reflexões que nortearam<br />
a elaboração do projeto <strong>de</strong> extensão, costurando-as com um pouco das<br />
histórias e, também, com alguns dos percalços que encontramos no caminho,<br />
em diálogo com os textos ora apresentados. Pensamos que cada<br />
ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pesquisa, seja acadêmica ou <strong>de</strong> extensão, acumula uma história,<br />
pois é fruto <strong>de</strong> um fazer social (e não apenas). Cada uma <strong>de</strong>las tem,<br />
portanto, um caráter singular, <strong>de</strong>senrola-se num tempo e espaço específicos<br />
e é capaz <strong>de</strong> promover ou quebrar elos. É assim que, nessa introdução,<br />
preten<strong>de</strong>mos contar algumas minúcias <strong>de</strong> nossas ativida<strong>de</strong>s engajadas <strong>de</strong><br />
extensão, na experiência <strong>de</strong> seus contatos <strong>de</strong>ntro e fora das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
campo, bem como refletir criticamente sobre o próprio projeto, que no<br />
contato com a experiência vivida precisou ser (re)inventado. Isso se dará<br />
<strong>de</strong> modo articulado à apresentação dos capítulos.<br />
O PAR DESENVOLVIMENTISMO-AMBIENTALIZAção<br />
O projeto do programa <strong>de</strong> extensão partiu, a princípio, do entendimento<br />
<strong>de</strong> que o cenário capixaba compunha tensões e problemas em duas<br />
frentes <strong>de</strong> estudo: (a) o campo econômico, via implantação e expansão <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong>s empreendimentos industriais, e (b) o campo ambiental, por meio<br />
da criação <strong>de</strong> áreas protegidas <strong>de</strong>stinadas à conservação da biodiversida<strong>de</strong>.<br />
Havia estudos sobre cada uma <strong>de</strong>ssas abordagens em separado no Espírito<br />
Santo, mas poucas pesquisas voltadas para analisar as interfaces <strong>de</strong>sses<br />
dois conjuntos <strong>de</strong> problemas e sobre como se processam em circunstâncias<br />
locais e regionais, principalmente quanto às mudanças causadas nas<br />
1 Autoras do presente texto.<br />
2 Há uma tentativa <strong>de</strong> nomeação <strong>de</strong>ssas pessoas na seção <strong>de</strong> agra<strong>de</strong>cimentos do livro, o que<br />
tem sempre os seus riscos. Observamos que não nomeamos os interlocutores <strong>de</strong> campo, para<br />
fins <strong>de</strong> garantia <strong>de</strong> anonimato. Uma escolha que também traz em si suas injustiças, mas visa<br />
a sua proteção em um contexto <strong>de</strong> conflitos e instabilida<strong>de</strong>s.<br />
18
comunida<strong>de</strong>s litorâneas, foco <strong>de</strong> estudo especial do GEPPEDES. 3<br />
Um mergulho inicial nos aspectos da história do Espírito Santo revelounos<br />
uma trajetória consolidada <strong>de</strong> investimentos voltados à implantação<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s projetos econômicos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1960, quando teve início<br />
o processo <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização da economia e a passagem <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo<br />
agrário exportador para um mo<strong>de</strong>lo industrial baseado na produção <strong>de</strong><br />
commodities também para exportação. Esses investimentos se concentraram,<br />
e ainda hoje se concentram, nas ativida<strong>de</strong>s extrativas <strong>de</strong> bens primários<br />
(minérios, petróleo e gás, celulose) e na expansão logística, com<br />
<strong>de</strong>staque para a infraestrutura portuária, perfazendo, atualmente, R$ 47,5<br />
bilhões <strong>de</strong>stinados ao setor <strong>de</strong> infraestrutura, conforme investimentos<br />
previstos para o período 2015–2020. 4 Distribuídos <strong>de</strong> forma relativamente<br />
homogênea por toda a costa do Espírito Santo, tais empreendimentos<br />
têm alterado substancialmente o conjunto do ambiente biofísico e sociocultural<br />
e, por conseguinte, a vida <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> pessoas.<br />
A análise <strong>de</strong>sse cenário se soma a um conjunto <strong>de</strong> questões que, embora<br />
aparentemente oposto, agrega-lhe significado. Imaginávamos que as<br />
mudanças trazidas pelas propostas e iniciativas <strong>de</strong>senvolvimentistas po<strong>de</strong>riam<br />
se acumular, do ponto <strong>de</strong> vista <strong>de</strong> povos e comunida<strong>de</strong>s locais,<br />
com as mudanças socioambientais que porventura fossem trazidas pela<br />
criação <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação (UC’s), em especial as <strong>de</strong> proteção integral,<br />
que legalmente impe<strong>de</strong>m a permanência <strong>de</strong> grupos sociais em seu<br />
interior por se voltarem para “o uso indireto dos seus atributos naturais”<br />
(SNUC, 2000, inciso VI, artigo 2.º). Todavia, também sabíamos que, na<br />
prática, esses usos diretos e indiretos do que a legislação chama <strong>de</strong> recursos<br />
naturais não se encontram tão separados assim, vi<strong>de</strong> o uso turístico<br />
<strong>de</strong>ssas áreas, que, a <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>r da modalida<strong>de</strong> e da escala, po<strong>de</strong> configurar-se<br />
como <strong>de</strong>letério socioambientalmente; vi<strong>de</strong>, também, a dispersão <strong>de</strong><br />
rejeitos <strong>de</strong> mineração e <strong>de</strong> outros poluentes no ambiente, que <strong>de</strong>srespeita<br />
as fronteiras territoriais estabelecidas em diferentes arenas <strong>de</strong>cisórias.<br />
No Espírito Santo, foram implementadas até agora um total <strong>de</strong> 26 UC’s,<br />
3 Essas conexões, no entanto, foram apontadas por outros autores, para outras áreas ou<br />
regiões, ou instâncias, como Barreto Filho (2000), West e colaboradores (2006), Maranhão<br />
(2017) e Ferreira e colaboradores (2007), entre outros.<br />
4 Fonte: IJSN (2016).<br />
19
excluindo-se as que se tornaram municipais e as que não saíram do papel.<br />
Desse total, 16 são <strong>de</strong> proteção integral e 10 <strong>de</strong> uso sustentável, 5 sendo<br />
imprecisos os dados sobre sua extensão territorial. 6 As categorias <strong>de</strong> manejo<br />
escolhidas <strong>de</strong>ntre as <strong>de</strong> uso sustentável foram, entre os anos <strong>de</strong> 1980 e<br />
2018, as áreas <strong>de</strong> proteção ambiental (APAs) e as florestas nacionais (FLO-<br />
NAS), duas categorias <strong>de</strong> manejo que não respaldam necessariamente os<br />
direitos dos chamados povos e comunida<strong>de</strong>s tradicionais e moradores locais,<br />
que muitas vezes são ocupantes sem o reconhecimento legal da proprieda<strong>de</strong>.<br />
Cabe lembrar que essas duas categorias não preveem conselhos<br />
<strong>de</strong>liberativos para a gestão, o que garante menor participação <strong>de</strong>cisória<br />
<strong>de</strong> seus habitantes. As UC’s fe<strong>de</strong>rais criadas entre 2010 e 2018 foram UC’s<br />
costeiras/marinhas, <strong>de</strong>monstrando ainda a tendência atual do conservacionismo<br />
nacional e internacional <strong>de</strong> enfocar os ambientes marinhos.<br />
Como em outras situações, algumas áreas foram, e ainda são, mais ou<br />
menos sacrificadas ambientalmente enquanto outras são valoradas e resguardadas<br />
por seus atributos cênicos, ecossistêmicos, pela diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
espécies ou pela diversida<strong>de</strong> genética, ou pela presença <strong>de</strong> espécies importantes<br />
para o ambientalismo. A divisão entre áreas mais ou menos resguardadas,<br />
por sua vez, po<strong>de</strong> ser vista como outra expressão <strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo<br />
<strong>de</strong> pensamento e <strong>de</strong> relacionamento com outros entes e paisagens, baseado<br />
na purificação <strong>de</strong> seres que contam como natureza e seres que contam<br />
como cultura. 7 Mo<strong>de</strong>lo que é (re)atualizado na versão <strong>de</strong> áreas cedidas<br />
para o <strong>de</strong>senvolvimento, por um lado, e <strong>de</strong> áreas que são (ou <strong>de</strong>veriam) ser<br />
contrabalanceadas através da conservação, por outro. O que também (re)<br />
aparece na i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> compensação ambiental, que se nutre do princípio do<br />
poluidor-pagador, presente também no Sistema Nacional <strong>de</strong> UC’s (SNUC,<br />
2000), após ter sido incorporada em legislação ambiental anterior.<br />
Essas alterações nas dimensões espaciais e territoriais, geradas com a criação<br />
<strong>de</strong> UC’s, imprimem mudanças significativas nas experiências <strong>de</strong> vida,<br />
nas percepções e nas formas <strong>de</strong> envolvimento das pessoas e dos grupos<br />
com o ambiente coabitado, o qual muitas vezes são obrigados a <strong>de</strong>ixar.<br />
5 Ver Bis dos Santos (2017) e o site do ISA (uc.socioambiental.org, com vários acessos em<br />
abril <strong>de</strong> 2018).<br />
6 Como o <strong>de</strong>stacado por Bis dos Santos (2017).<br />
7 Latour (2000).<br />
20
Por conseguinte, também alteram a dimensão temporal, trazendo outros<br />
acúmulos <strong>de</strong> mudanças socioambientais que serão vivenciados segundo<br />
as particularida<strong>de</strong>s locais, ou seja, a partir do modo como os processos <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimentismo-ambientalização passam a afetar a/s vida/s envolvida/s<br />
e seus ritmos (trabalho, lazer, alimentação, (auto)produção, etc.). Cabe<br />
<strong>de</strong>stacar que os polos <strong>de</strong>sse par <strong>de</strong>senvolvimentismo-ambientalização se<br />
dão em confluência, ao mesmo tempo em que os seus agentes po<strong>de</strong>m promulgá-los<br />
como in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, o que não significa afirmar que se trate<br />
<strong>de</strong> uma convivência pacífica entre os seus agentes, nem mesmo que eles<br />
reconheçam tais processos como complementares, como propomos aqui.<br />
Destarte, a costa, o oceano e o interior do Espírito Santo têm sido alvos da<br />
conjugação <strong>de</strong>sses processos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimentismo-ambientalização.<br />
No entanto, neste livro são abordadas, predominantemente, duas áreas<br />
costeiras no Espírito Santo, Barra do Riacho e Regência Augusta, locais<br />
on<strong>de</strong> justamente resi<strong>de</strong>m populações ribeirinhas, indígenas, pescadoras,<br />
além <strong>de</strong> pequenos agricultores, imprensados <strong>de</strong> várias maneiras. Esse recorte<br />
empírico-analítico está presente na maior parte das discussões dos<br />
capítulos escritos neste livro, com exceção dos capítulos 1, 9 e 10, cujas<br />
abordagens seguem reflexões mais abrangentes e que, não obstante, são<br />
complementares às <strong>de</strong>mais análises.<br />
O capítulo 1, por exemplo, <strong>de</strong>vota-se ao estudo <strong>de</strong> documentos, normativas<br />
e diretrizes governamentais relativos às políticas pesqueiras<br />
no Brasil. Ao trazer uma dimensão temporal mais extensa, ajuda a<br />
refletir mais pon<strong>de</strong>radamente sobre o fato <strong>de</strong> que as ativida<strong>de</strong>s da<br />
pesca <strong>de</strong> pequena escala e os seus conhecedores-praticantes foram<br />
estigmatizados como símbolos do atraso, ao mesmo tempo em que<br />
a pesca recebeu estímulo à mo<strong>de</strong>rnização econômica e à industrialização,<br />
conforme um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> políticas públicas elaboradas <strong>de</strong><br />
cima para baixo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1920. Essa tendência foi mantida<br />
durante o período da centralização e do autoritarismo militar, a partir<br />
da década <strong>de</strong> 1960 até o final da década <strong>de</strong> 1980. Atualmente, a intervenção<br />
ou a regulação da pesca se dá com o viés da preocupação<br />
ambiental, via legislação ou via ocupação da costa, contando com a<br />
conivência e, às vezes, com o fomento estatal, mesmo que este não<br />
atue na forma <strong>de</strong> intervenção direta. Assim, no momento em que a<br />
industrialização e a exploração econômica mais rentável da costa e<br />
21
dos oceanos passaram a se dar por outras vias que não a industrialização<br />
e a mo<strong>de</strong>rnização da pesca, os pescadores se tornaram alvos<br />
<strong>de</strong> um mo<strong>de</strong>lo político pró-ambientalização, materializado nas restrições<br />
<strong>de</strong> uso ou regulamentações ambientais.<br />
Os capítulos 9 e 10, por sua vez, abordam um pouco a situação <strong>de</strong> caos<br />
<strong>de</strong>corrente do rompimento em um conjunto maior <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s no<br />
rio Doce e na costa do Espírito Santo — situação vivenciada por conta do<br />
carreamento dos rejeitos <strong>de</strong> mineração ao longo <strong>de</strong> toda a bacia, na foz<br />
e no oceano Atlântico. Os dois capítulos captam algumas das manifestações<br />
sobre o ocorrido em relatos e reuniões, como no capítulo 10, mas<br />
também em manifestações as mais diversas, como produções visuais ou<br />
artísticas, trazidas em ambos os capítulos. Na última seção <strong>de</strong>sta introdução,<br />
trataremos mais especificamente da questão da lama da Samarco e<br />
seus efeitos sobre o próprio programa <strong>de</strong> extensão; portanto, voltaremos<br />
a comentar sobre os dois capítulos mais adiante, no espaço oportuno. Por<br />
enquanto, recuperaremos um pouco das situações encontradas nas duas<br />
localida<strong>de</strong>s em que <strong>de</strong>senvolvemos a maior parte <strong>de</strong> nossas ativida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> campo, com o objetivo <strong>de</strong> apresentar as dinâmicas vivenciadas nesses<br />
dois lugares.<br />
Barra do RIACHO e REGêNCIA AUGUSTA<br />
Barra do Riacho é uma antiga vila <strong>de</strong> pescadores cercada por um gran<strong>de</strong><br />
polo industrial. Localiza-se no município <strong>de</strong> Aracruz, a cerca <strong>de</strong> 80<br />
km <strong>de</strong> Vitória, no sentido do litoral norte. Tornou-se polo industrial durante<br />
o período que compreen<strong>de</strong> a mo<strong>de</strong>rnização da economia capixaba,<br />
com a chegada dos gran<strong>de</strong>s empreendimentos industriais nas décadas<br />
<strong>de</strong> 1960/1970. Atualmente, conta com mais <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> empresas<br />
instaladas, além <strong>de</strong> seus sistemas <strong>de</strong> logística, por meio das instalações<br />
portuárias, que afetam a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida no lugar.<br />
Uma li<strong>de</strong>rança política, resi<strong>de</strong>nte na comunida<strong>de</strong>, afirmou o seguinte sobre<br />
as mudanças na vila:<br />
É um bairro hoje, um distrito [que] se transformou em bairro industrializado<br />
[...] essa reflexão que a gente tem hoje, não é a mesma<br />
que tinha lá atrás, né, na época dos meus avós, dos meus pais,<br />
22
isso aqui não era assim, né. Isso aqui era uma comunida<strong>de</strong>, assim,<br />
bem <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e autossustentável da pesca (Li<strong>de</strong>rança política<br />
local, entrevista realizada em fev. 2017).<br />
A fala do lí<strong>de</strong>r comunitário po<strong>de</strong> ser mais bem compreendida quando<br />
comparada com a representação cartográfica dos impactos <strong>de</strong> vizinhança<br />
dos empreendimentos instalados em Barra do Riacho (vi<strong>de</strong> mapa 1).<br />
Observa-se, no mapa, uma comunida<strong>de</strong> literalmente imprensada pelos<br />
processos econômicos, pelas ativida<strong>de</strong>s industriais e produtivas das empresas<br />
instaladas no local, muitas das quais localizadas a menos <strong>de</strong> dois<br />
quilômetros do núcleo urbano. Essa configuração gera uma série <strong>de</strong> problemas<br />
locais que comprometem a qualida<strong>de</strong> do ar, da água, dos rios e<br />
córregos da região, inclusive a própria ativida<strong>de</strong> da pesca. Nesse sentido,<br />
as condições e os usos das águas doces se tornaram motivo <strong>de</strong> muita preocupação<br />
dos moradores, havendo queixas principalmente com relação<br />
aos usos feitos pela indústria <strong>de</strong> celulose, na figura da Fibria, tema que é<br />
aprofundado no capítulo 2.<br />
23
Mapa 1: Impactos <strong>de</strong> Vizinhança dos Empreendimentos em Barra do Riacho.<br />
Fonte: elaboração <strong>de</strong> Jerônimo Amaral <strong>de</strong> Carvalho, a partir, também, <strong>de</strong> oficina realizada<br />
em Barra do Riacho, em nov. <strong>de</strong> 2017.<br />
24
No quadro abaixo, temos uma listagem mais <strong>de</strong>talhada dos gran<strong>de</strong>s empreendimentos<br />
localizados em Aracruz e instalados em Barra do Riacho<br />
e imediações por tipos <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sempenhadas.<br />
CoMPlexo DA celulose e sua logística:<br />
-FIBRIA (Antiga Aracruz Celulose): indústria produtora <strong>de</strong> celulose<br />
<strong>de</strong> eucalipto e papel.<br />
-CANEXUS e EVONIK DEGUSSA: indústrias químicas responsáveis<br />
pelo branqueamento da celulose;<br />
-PORTOCEL I: porto <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> da Fibria, responsável pela exportação<br />
da celulose. Está em vias <strong>de</strong> licenciamento <strong>de</strong> uma nova<br />
planta, PORTOCEL II.<br />
CoMPlexo do petróleo e gás e sua logística:<br />
-PETROBRAS: empresa responsável pela prospecção, produção e refino<br />
<strong>de</strong> petróleo e gás com ativida<strong>de</strong>s no litoral norte do estado do ES<br />
(Aracruz, Linhares e São Mateus) e com bacia produtora marítima e<br />
terrestre (campos <strong>de</strong> prospecção e gasodutos).<br />
-IMETAME: Terminal Industrial Barra do Riacho, ainda em construção,<br />
cuja ativida<strong>de</strong> se concentrará na fabricação <strong>de</strong> módulos para<br />
plataformas <strong>de</strong> petróleo, e a construção do Navio Sonda Arpoador,<br />
<strong>de</strong>stinado à perfuração e extração <strong>de</strong> petróleo.<br />
-NUTRIPETRO: Terminal Multimodal Capixaba, voltado para a ativida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> gestão portuária, comércio marítimo e soluções logísticas<br />
integradas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte, ainda em fase <strong>de</strong> licenciamento.<br />
-ESTALEIRO JURONG ARACRUZ: estaleiro para construção e reparos<br />
navais, como construção <strong>de</strong> plataformas, navios-sonda e embarcações<br />
<strong>de</strong> apoio marítimo.<br />
-TERMINAL AQUAVIÁRIO DE BARRA DO RIACHO (TABR): pertencente<br />
à empresa PETROBRAS, responsável por receber e estocar<br />
gás natural e gasolina vindos através <strong>de</strong> gasodutos da Unida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Tratamento <strong>de</strong> Gás Cacimbas (Linhares) para posteriormente serem<br />
transportados por meio <strong>de</strong> navios.<br />
Quadro 1: Gran<strong>de</strong>s empreendimentos localizados em Aracruz.<br />
Fonte: elaboração GEPPEDES, 2018.<br />
25
Não muito distante, a cerca <strong>de</strong> 120 km ao norte da capital Vitória, está Regência<br />
Augusta, situada no município <strong>de</strong> Linhares, na margem direita do<br />
rio Doce, on<strong>de</strong> ele encontra o oceano Atlântico. Uma vila <strong>de</strong> pescadores<br />
transformada em lugar <strong>de</strong> turismo, sem o mesmo perfil <strong>de</strong> polo industrial<br />
citado acima, on<strong>de</strong> resi<strong>de</strong>m cerca <strong>de</strong> mil habitantes. Essa comunida<strong>de</strong><br />
situada na foz do rio Doce foi atingida diretamente pelos rejeitos<br />
<strong>de</strong> mineração que começaram a se dispersar em função do rompimento<br />
da barragem <strong>de</strong> Fundão, Minas Gerais, em novembro <strong>de</strong> 2015. Além <strong>de</strong><br />
Regência Augusta, as comunida<strong>de</strong>s contíguas <strong>de</strong> Areal e Entre <strong>Rio</strong>s também<br />
são aqui incluídas, já que foi <strong>de</strong>ste modo que proce<strong>de</strong>mos durante os<br />
trabalhos <strong>de</strong> campo, ou seja, vendo-as em conjunto. 8 Regência Augusta,<br />
no entanto, por estar voltada para o mar, recebe especial atenção dos ambientalistas,<br />
tendo uma base do projeto TAMAR, enquanto as duas outras<br />
comunida<strong>de</strong>s, localizadas mais ao interior, compartilham seus espaços<br />
com gasodutos e oleodutos da Petrobrás, os quais ficam expostos acima<br />
do solo, configurando uma condição <strong>de</strong> vulnerabilida<strong>de</strong> e insalubrida<strong>de</strong>.<br />
8 Algumas inserções <strong>de</strong> campo também foram feitas em Povoação, na outra margem do rio<br />
Doce, em colaboração com subgrupo <strong>de</strong> pesquisa parceiro, mas não traremos o contexto <strong>de</strong><br />
Povoação na presente introdução, pois não era foco <strong>de</strong> trabalhos do programa <strong>de</strong> extensão<br />
e, por isso, também praticamente não consta em artigos da presente obra. A respeito da situação<br />
<strong>de</strong> Povoação, no que diz respeito às mudanças causadas pela chegada dos rejeitos <strong>de</strong><br />
mineração, vista <strong>de</strong> modo conjunto com Regência, sugerimos a consulta direta a Leonardo<br />
e colaboradores (2017).<br />
26
Foto 1: Indicação do Gasoduto Lagoa Parda-Vitória atravessando a vegetação<br />
<strong>de</strong> restinga da REBio Comboios, com os tonéis <strong>de</strong> armazenamento<br />
<strong>de</strong> óleo ao fundo.<br />
Fonte: autoria <strong>de</strong> Eliana Creado/GEPPEDES, set. 2017.<br />
Foto 2: Gasoduto Lagoa Parda-Vitória nas proximida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Entre <strong>Rio</strong>s.<br />
Fonte: autoria <strong>de</strong> Eliana Creado/GEPPEDES, fev. 2017.<br />
27
Foto 3: Gasoduto Lagoa Parda-Vitória passando por Areal, com crianças<br />
brincando ao lado, em plano recuado da imagem.<br />
Fonte: autoria <strong>de</strong> Eliana Creado/GEPPEDES, fev. 2017.<br />
Comparativamente, o caso <strong>de</strong> Barra do Riacho é o que apresenta maior<br />
exposição à pressão <strong>de</strong>senvolvimentista. A conjugação <strong>de</strong>senvolvimentismo-ambientalização<br />
po<strong>de</strong> ser vislumbrada na própria criação conjunta<br />
da APA Costas das Algas e do Refúgio <strong>de</strong> <strong>Vida</strong> Silvestre Santa Cruz (RE-<br />
VIS Santa Cruz), que saiu do papel após uma manobra político-econômica<br />
que permitiu, ao mesmo tempo, a liberação da licença <strong>de</strong> instalação<br />
da empresa Estaleiros Jurong S.A. A APA, uma UC <strong>de</strong> uso sustentável,<br />
engloba a REVIS no seu interior, uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conservação <strong>de</strong> proteção<br />
integral, e são ambas UC’s costeiras e marinhas. Na negociação feita,<br />
uma parte do território que seria incluído na APA acabou sendo excluída<br />
por causa do empreendimento e suas ativida<strong>de</strong>s — o que po<strong>de</strong> ser lido<br />
em <strong>de</strong>talhes no capítulo 3 <strong>de</strong>ste livro.<br />
Há previsão <strong>de</strong> expansão <strong>de</strong> mais portos na vila <strong>de</strong> Barra do Riacho e,<br />
assim como em outros empreendimentos, os meios <strong>de</strong> comunicação pos-<br />
28
suem papel relevante na divulgação e na formação <strong>de</strong> um imaginário<br />
acerca da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que é importante a sua aceitação por parte dos moradores<br />
da vila e da região, conforme apresentado e discutido no capítulo 4.<br />
A conjugação <strong>de</strong>senvolvimentismo-ambientalização também se <strong>de</strong>u em<br />
Regência Augusta, o que se exemplifica pela inclusão <strong>de</strong> medida colocada<br />
à empresa Samarco no polêmico acordo assinado entre os governos do ES<br />
e <strong>de</strong> MG, <strong>de</strong>mais órgãos governamentais e a empresa ré e suas parceiras,<br />
Vale S.A. e BHP Billiton. Entre outras medidas <strong>de</strong> “compensação” do crime-<strong>de</strong>sastre<br />
causado pela barragem em Minas Gerais, tal medida previu<br />
o apoio da empresa na criação da se<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma UC na foz do rio Doce.<br />
Provavelmente será uma APA, e não mais uma reserva <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
sustentável (RDS), como havia sido proposto inicialmente em 2002 —<br />
como analisado no capítulo 5.<br />
Regência Augusta, comparativamente à Barra do Riacho, recebe mais<br />
atenção do processo <strong>de</strong> ambientalização, consi<strong>de</strong>rando-se a sua porção<br />
territorial mais próxima do oceano, e isso também se refletiu na atenção<br />
especial dada à foz do rio Doce, quando da chegada dos rejeitos <strong>de</strong> mineração<br />
na costa do Espírito Santo — e um pouco a respeito disso po<strong>de</strong><br />
ser lido no capítulo 10. A forte relação dos moradores <strong>de</strong> Regência com<br />
as águas doces e salgadas também se expressa na importância que os peixes<br />
tinham (e ainda têm) na alimentação <strong>de</strong> seus habitantes. Assim, são<br />
muitas as incertezas trazidas pela lama da Samarco no que diz respeito aos<br />
possíveis efeitos que a ingestão <strong>de</strong> peixes po<strong>de</strong> causar na saú<strong>de</strong> humana<br />
ao longo do tempo, incertezas que passaram, então, a compor a relação<br />
com os peixes e as relações entre os próprios humanos que eram (e são)<br />
estabelecidas por trocas <strong>de</strong> peixes. Trocas estas que se davam tanto com<br />
a mediação do dinheiro quanto sem essa mediação. A nova relação instaurada<br />
com o alimento-peixe fez também com que, nas falas dos interlocutores<br />
<strong>de</strong> campo, emergissem as preocupações com as condições das<br />
águas, e, retomando aqui Lévi-Strauss, 9 os animais são realmente muito<br />
bons para pensar e engendram relações muito mais amplas do que aquelas<br />
entre humanos e animais não-humanos, como, no caso aqui, as águas.<br />
Um retrospecto sobre isso po<strong>de</strong> ser acessado no capítulo 7.<br />
Como já foi sinalizado, as duas comunida<strong>de</strong>s mais ao interior próximas<br />
9 Em especial, veja Levi-Strauss (1975) e, como boa leitura <strong>de</strong> apoio, Sztutman (2009).<br />
29
a Regência Augusta, Areal e Entre <strong>Rio</strong>s, contam com ostensiva presença<br />
<strong>de</strong> oleodutos, gasodutos e martelinhos (<strong>de</strong> bombeamento) da Petrobras<br />
e Transpetro. A presença da Petrobras na região já se dava na década <strong>de</strong><br />
1970, com o gasoduto Lagoa Parda-Vitória operando nas proximida<strong>de</strong>s da<br />
foz do rio Doce <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1984. 10 Pesquisas sísmicas e o trânsito <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s<br />
embarcações no oceano também eram, por vezes, problemas mencionados<br />
com mais ênfase, anteriormente à lama da Samarco, pelos pescadores<br />
da vila <strong>de</strong> Regência Augusta. 11<br />
Segue um relato <strong>de</strong> morador antigo sobre a chegada da Petrobras<br />
e, em seguida, um relato sobre os efeitos negativos da lama sobre o<br />
turismo na vila:<br />
Em 80. Surgiu petróleo aí. Aí fizeram aqueles tanques lá. [...] navio<br />
entrava, pegava aqui fora. Acho que era 4 quilômetros... lá da<br />
beirada. Navio encostava aí, pegava petróleo direto. Direto, direto!<br />
Aí <strong>de</strong>pois... encanalizaram direto pra lá, pra Vitória, pra on<strong>de</strong><br />
que for, né. Agora é canalizado, aí parou. Mas pegou petróleo um<br />
bocado <strong>de</strong> tempo aí, o navio. Pegava um, saía outro. Chegava um,<br />
saía outro. Agora até petróleo agora diminuiu, né. Diminuiu petróleo.<br />
Mas tá aí canalizado. Direto pra lá. Passa na Celulose, ali<br />
e vai embora. Vai pra Tubarão, aqueles cantão pra lá! (Pescador e<br />
artesão na confecção <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pesca, set. 2017)<br />
Regência vinha <strong>de</strong> uma ascendência, tanto no turismo tanto em<br />
estrutura física, a imagem em si, tudo se construindo, e, <strong>de</strong> repente,<br />
voltar pra estaca zero e refazer tudo <strong>de</strong> novo, nossa, não que a gente<br />
não tenha disposição, não me acho velho, mas, cara, tem uma<br />
hora que você fala ‘caramba’ (surfista, dono <strong>de</strong> pousada, set. 2016).<br />
Em Regência Augusta, também há a presença do projeto <strong>de</strong> conservação<br />
<strong>de</strong> tartarugas marinhas (Projeto TAMAR), oficialmente instalado na área<br />
no ano <strong>de</strong> 1982 e que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> aquela época, embora com oscilações, teve,<br />
10 Consulte, por exemplo, o site da ABEAGÁS (2018), no item Gasodutos; e também o da<br />
Petrobras (2018), no item Nossas Ativida<strong>de</strong>s.<br />
11 Vi<strong>de</strong> produções acadêmicas que discutem a situação <strong>de</strong> algumas comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pescadores<br />
artesanais no litoral do ES, incluindo Regência Augusta e Barra do Riacho, muito antes<br />
da caótica experiência do <strong>de</strong>sastre da Samarco: Trigueiro e Knox (2013); Knox e Trigueiro<br />
(2015; 2017); Bicalho e colaboradores (2014).<br />
30
entre os seus apoiadores, a Petrobras. A presença do projeto favoreceu a<br />
consolidação da criação <strong>de</strong> uma reserva biológica em Regência Augusta,<br />
a REBio <strong>de</strong> Comboios, na mesma época. Trata-se <strong>de</strong> uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conservação<br />
<strong>de</strong> proteção integral consi<strong>de</strong>rada das mais restritivas. Nela, não<br />
paradoxalmente, há um Centro <strong>de</strong> Visitantes do TAMAR e, encravado na<br />
REBio <strong>de</strong> Comboios, um terminal <strong>de</strong> óleo da Petrobras e da Transpetro.<br />
E, embora em 2012 tenha sido impetrada uma Ação Civil Pública com o<br />
objetivo <strong>de</strong> <strong>de</strong>smobilização do terminal, 12 a ação não solicitou a retirada<br />
dos oleodutos e gasodutos que trespassam a região como um todo.<br />
O turismo realizado em Regência Augusta é um turismo <strong>de</strong> natureza,<br />
<strong>de</strong> esportes aquáticos e <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s culturais na vila, o que aparece <strong>de</strong><br />
modo <strong>de</strong>stacado no capítulo 8, que versa sobre as incertezas que os rejeitos<br />
<strong>de</strong> mineração trouxeram para a prática do surfe. Esse turismo não<br />
existe em Barra do Riacho, por conta da presença mais ostensiva <strong>de</strong> empreendimentos<br />
industriais e da poluição do ar e da água por eles gerada.<br />
A <strong>de</strong>speito das diferenças, ambas as comunida<strong>de</strong>s foram afetadas, com<br />
suas respectivas particularida<strong>de</strong>s, pela chegada dos rejeitos <strong>de</strong> mineração<br />
na foz do rio Doce e nas águas oceânicas. A barragem rompida, por sua<br />
vez, liga-se a um empreendimento <strong>de</strong> mineração situado a mais <strong>de</strong> 800<br />
km da costa do Espírito Santo. A mineração, <strong>de</strong> modo menos trágico, ligava-se,<br />
já antes do corrido, à costa do Espírito Santo através do escoamento<br />
<strong>de</strong> sua produção. O rompimento permite, novamente, questionar a distinção<br />
entre usos diretos e indiretos, uma distinção cuja utilização per<strong>de</strong>u<br />
ainda mais o sentido com o crime-<strong>de</strong>sastre. 13<br />
As iniciativas <strong>de</strong> extensão e <strong>de</strong> pesquisa ganharam relevo compreen<strong>de</strong>ndo<br />
o quanto era importante mergulhar nas realida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>sses grupos<br />
humanos (e <strong>de</strong> outros entes) atingidos pela conjugação <strong>de</strong>senvolvimentismo-ambientalização.<br />
Cabe ressaltar que a proposta inicial do projeto<br />
previa, também, a inclusão <strong>de</strong> uma terceira localida<strong>de</strong>, o município <strong>de</strong><br />
Sooretama, com enfoque especial na REBio <strong>de</strong> Sooretama e nas obras<br />
12 JUSTIÇA FEDERAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA - ACP. Processo n.°<br />
000032316.2012.4.02.5004 (2012.50.04.000323-0), 1.ª Vara Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Linhares, autuado em<br />
30 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2012. Para uma análise a respeito, consultar Torres e colaboradores (2017).<br />
13 Cabe lembrar que o projeto do programa <strong>de</strong> extensão foi redigido sete meses antes do<br />
rompimento da barragem e, inclusive, previa condições <strong>de</strong> trabalho que se <strong>de</strong>sfizeram com<br />
ele ao longo dos anos <strong>de</strong> 2016 e 2017.<br />
31
<strong>de</strong> duplicação da BR-101. Essa terceira área <strong>de</strong> atuação acabou ficando <strong>de</strong><br />
fora por conta das repercussões do crime-<strong>de</strong>sastre nas localida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Regência<br />
Augusta e Barra do Riacho, pelas inúmeras consequências para<br />
essas comunida<strong>de</strong>s e também para os que atuavam com pesquisas nesses<br />
locais, como é o caso do GEPPEDES. Abordaremos o fato a seguir.<br />
A maior (e a mais imprevisível) DAS CONTINGêNCIAS<br />
A ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> extensão só existe enquanto ativida<strong>de</strong> comprometida,<br />
<strong>de</strong> construção <strong>de</strong> vínculos com as comunida<strong>de</strong>s estudadas e <strong>de</strong> produção<br />
<strong>de</strong> um respeito às suas <strong>de</strong>mandas, suas histórias e suas lutas sociais.<br />
Ela exige constantes <strong>de</strong>slocamentos, viagens, mobilização <strong>de</strong> uma equipe<br />
gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> professores e estudantes, exige coor<strong>de</strong>nação, mas requer,<br />
também, abertura para ouvir os relatos, curiosida<strong>de</strong> para buscar dados,<br />
para observar outras realida<strong>de</strong>s e seus cotidianos, conversar, ouvir os<br />
dramas das pessoas envolvidas, mas também rir e se emocionar com as<br />
suas histórias. Mobiliza nossos corpos e nossas mentes, nossos sentidos e<br />
percepções. Sem dúvida, resulta num movimento que promove o amadurecimento<br />
acadêmico, profissional e pessoal — pressentido por todos os<br />
envolvidos —, como revelam, por exemplo, as falas dos alunos e alunas<br />
que estiveram integrados ao projeto: “fazer projeto <strong>de</strong> extensão é outra<br />
coisa”, insinuando um ganho acadêmico e social que não po<strong>de</strong>ria ter sido<br />
alcançado apenas com as ativida<strong>de</strong>s em salas <strong>de</strong> aula.<br />
Porém, do mesmo modo que as experiências do mundo da vida, os percursos<br />
que movem as ações <strong>de</strong> pesquisa e <strong>de</strong> extensão também são influenciados<br />
por contingências; afinal <strong>de</strong> contas, nem tudo resulta em<br />
controle e objetivida<strong>de</strong> durante a execução <strong>de</strong> projetos. Há projetos que,<br />
quando engendrados sob certas circunstâncias e contextos, acabam por<br />
capitular uma dinâmica própria, impulsionando seus propositores para<br />
caminhos inimagináveis. Contamos aqui, sem <strong>de</strong>sprezar as diferenças <strong>de</strong><br />
vulnerabilida<strong>de</strong> existentes entre os vários atingidos pela lama da Samarco,<br />
como esse crime-<strong>de</strong>sastre repercutiu nas ações <strong>de</strong> extensão.<br />
No ínterim entre a escrita, em abril <strong>de</strong> 2015, a aprovação do projeto pelo<br />
edital acima citado, em agosto <strong>de</strong> 2015, e a cessão do financiamento, em<br />
maio <strong>de</strong> 2016, um evento trágico nos obrigou a redimensionar as nossas<br />
atuações. Em 5 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2015, fomos todos surpreendidos com a<br />
32
ocorrência <strong>de</strong> um dos piores crimes ambientais da história do Brasil, o<br />
rompimento da barragem <strong>de</strong> Fundão, em Bento Rodrigues. Esse crime<strong>de</strong>sastre<br />
resultou na contaminação <strong>de</strong> toda a bacia do rio Doce e seus<br />
afluentes, chegando à sua foz, no estado do Espírito Santo, entre os dias<br />
21 e 22 <strong>de</strong> novembro.<br />
A lama atingiu o oceano Atlântico, afetando, na faixa costeira, primeiramente<br />
as comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Povoação e Regência Augusta. Todavia, mesmo<br />
antes disso, os seus moradores já se encontravam em situação <strong>de</strong> incertezas,<br />
alternando momentos <strong>de</strong> pesca com momentos <strong>de</strong> evitação da ativida<strong>de</strong>.<br />
Em Regência Augusta, alguns agricultores, por exemplo, mesmo antes<br />
da chegada visível da lama, encerraram a irrigação <strong>de</strong> seus plantios, feita<br />
com as águas do rio Doce, sofrendo perdas. Por conta também <strong>de</strong> uma<br />
expedição feita por um navio da Marinha nas proximida<strong>de</strong>s da foz do rio<br />
Doce e imediações, entre 26 <strong>de</strong> novembro e 05 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2015, e que<br />
resultou no Levantamento Ambiental Expedito, os pescadores também<br />
cessaram suas ativida<strong>de</strong>s por medo da situação das águas e do pescado, e<br />
também por conta do monitoramento feito na região por inúmeros agentes,<br />
pois, em 4 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2015, houve a assinatura do Termo <strong>de</strong> Compromisso<br />
Socioambiental Preliminar (TCSA) do Ministério Público com a<br />
Samarco S.A. À época, a empresa foi obrigada a fazer sobrevoos diários na<br />
região para monitorar o que, no jargão técnico, é chamado <strong>de</strong> “pluma <strong>de</strong><br />
rejeitos”. Depois, a partir <strong>de</strong> 22 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2016, houve a interdição oficial<br />
da pesca, solicitada por Ação Civil Pública instaurada em Linhares: 14<br />
em virtu<strong>de</strong> das incertezas sobre o impacto da pesca na fauna estuarina<br />
e marinha, bem como sobre possível contaminação dos<br />
pescados, logo após o término do período <strong>de</strong> <strong>de</strong>feso do camarão,<br />
instituído pela Instrução Normativa IBAMA n.º 189/2008, houve<br />
proibição da pesca <strong>de</strong> qualquer natureza, ressalvada a <strong>de</strong>stinada<br />
à pesquisa científica na área compreendida entre a região <strong>de</strong><br />
Barra do Riacho, em Aracruz/ES, até Degredo/Ipiranguinha, em<br />
Linhares/ES, <strong>de</strong>ntro dos 25 (vinte e cinco) metros <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong><br />
(ACP, 28/04/2016, p. 25).<br />
Em março <strong>de</strong> 2016, houve a oficialização do acordo firmado entre po<strong>de</strong>res<br />
14 ACP 0002571-13.2016.4.02.5004, impetrada na vara fe<strong>de</strong>ral da Subseção Judiciária <strong>de</strong><br />
Linhares (ES).<br />
33
públicos e as empresas. No final do mesmo mês, a nota técnica n.º 006/2-<br />
16, elaborada pelo Centro TAMAR, funcionários da APA Costa das Algas,<br />
da REBio <strong>de</strong> Comboios e da REVIS <strong>de</strong> Santa Cruz, acusou a contaminação<br />
fora da área acima pontuada. A partir <strong>de</strong> informações <strong>de</strong> pesquisadores<br />
da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo (UFES) e da Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral do <strong>Rio</strong> Gran<strong>de</strong> (FURG), ela apontou:<br />
a contaminação, por metais pesados (na água, nos sedimentos<br />
e nos organismos) fora da área <strong>de</strong> proibição <strong>de</strong> pesca [...] <strong>de</strong>terminada<br />
pela Justiça Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Linhares-ES, como nas regiões<br />
<strong>de</strong> Barra Nova (São Mateus/ES); Banco <strong>de</strong> Abrolhos (ao norte) e<br />
Unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Conservação APA Costa das Algas e RVS <strong>de</strong> Santa<br />
Cruz (ao Sul), inclusive com risco <strong>de</strong> contaminação humana pelo<br />
consumo <strong>de</strong> pescado (ACP, 28/04/2016, p. 34). 15<br />
No final <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2018, foi criada uma Ação Civil Pública da força-tarefa<br />
dos Ministérios Públicos contra o acordo assinado entre os governos dos<br />
estados <strong>de</strong> Minas Gerais e Espírito Santo e agências governamentais voltadas<br />
para a questão ambiental e indígena, uma tentativa <strong>de</strong> evitar a judicialização<br />
das consequências do crime-<strong>de</strong>sastre. Mesmo assim, o estatuto<br />
da Fundação Renova foi assinado em junho <strong>de</strong> 2016. 16 Trata-se <strong>de</strong> uma<br />
organização à qual caberia realizar programas socioambientais e socioeconômicos<br />
para lidar com as consequências causadas pelo rompimento;<br />
no entanto, suas mantenedoras são as próprias empresas responsáveis<br />
pela barragem.<br />
Enfim, o pequeno histórico é apenas para ilustrar como, <strong>de</strong> modo repentino,<br />
o projeto <strong>de</strong> extensão também se viu mergulhado num turbilhão <strong>de</strong><br />
conflitos e ações que nos impeliu a incluir a questão da lama como um dos<br />
nossos principais problemas abordados. A chegada da lama em Regência<br />
Augusta e seus <strong>de</strong>sdobramentos posteriores, cabe mencionar, foram<br />
propalados pelos meios <strong>de</strong> comunicação <strong>de</strong> massa em todo o Brasil e no<br />
mundo — o que se vislumbra na leitura dos capítulos 9 e 10. A localida-<br />
15 Consulte, por exemplo, Marta-Almeida e colaboradores (2016) a respeito das controvérsias<br />
da extensão territorial da lama no oceano.<br />
16 Uma boa síntese sobre essas idas e vindas é a própria Ação Civil Pública, <strong>de</strong> 28 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong><br />
2016, montada pela força-tarefa dos Ministérios Públicos Fe<strong>de</strong>rais <strong>de</strong> Minas Gerais e Espírito<br />
Santo (FORÇA-TAREFA MPF, 2016).<br />
34
<strong>de</strong> foi invadida por peritos das mais variadas áreas, advogados, cientistas,<br />
políticos, ambientalistas, repórteres e, nos primeiros meses, chegaram<br />
também equipamentos como dragas, helicópteros, embarcações, filmadoras,<br />
entre outros. Tratou-se <strong>de</strong> um crime-<strong>de</strong>sastre que, <strong>de</strong> modo mais<br />
intensivo e ostensivo, no fim <strong>de</strong> 2015 e no início <strong>de</strong> 2016, abalou o cotidiano<br />
e a vida local, afetando a prática da pesca e do surfe, o comércio, o turismo<br />
e as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> lazer ligadas ao rio e ao mar, como pu<strong>de</strong>mos observar e<br />
ouvir em ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> campo.<br />
A força da situação vivida em Regência Augusta explica a presença <strong>de</strong> seis<br />
capítulos que recuperam <strong>de</strong> modo mais ou menos direto esse cenário e a<br />
presença material e simbólica da lama — os capítulos 5, 6, 7, 8, 9 e 10 —,<br />
a exemplo <strong>de</strong> outras produções associadas ao projeto <strong>de</strong> extensão, como<br />
trabalhos apresentados em eventos, monografias, um relatório e uma dissertação<br />
<strong>de</strong> mestrado. O capítulo 6, em especial, é interessante por problematizar<br />
a gestão da crise, levada a cabo inicialmente pela Samarco, seus<br />
consultores e, <strong>de</strong>pois, pela Fundação Renova, que interferiu nas relações<br />
internas à comunida<strong>de</strong>, o que acabou por dificultar a atuação do programa<br />
<strong>de</strong> extensão, por conta do estresse causado ali, assim como ocorreu<br />
em outras localida<strong>de</strong>s, como em Barra do Riacho. Ambas as comunida<strong>de</strong>s<br />
passaram a ter um excesso <strong>de</strong> reuniões, algumas das quais realizadas a<br />
portas fechadas com os representantes das empresas responsáveis pela<br />
barragem rompida. Coinci<strong>de</strong>ntemente ou não, algumas <strong>de</strong>ssas reuniões<br />
se davam, às vezes, no mesmo dia e horário que as oficinas do projeto, que<br />
eram baseadas em metodologias coletivas e participativas, nas quais buscávamos<br />
captar relatos, realizar mapas falados e matrizes <strong>de</strong> impactos,<br />
por exemplo. 17<br />
Os efeitos da chegada da lama da Samarco foram sentidos em outras<br />
localida<strong>de</strong>s também, embora com menor divulgação nos meios acadêmicos<br />
e <strong>de</strong> comunicação, em comparação com o ocorrido em Regência<br />
Augusta. Barra do Riacho foi uma das localida<strong>de</strong>s que receberam pouca<br />
visibilida<strong>de</strong>. As consequências foram problematizadas ali <strong>de</strong> modo mais<br />
intenso a partir do momento da proibição oficial das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pesca,<br />
em fevereiro <strong>de</strong> 2016, o que gerou comprometimentos na vida <strong>de</strong> <strong>de</strong>zenas<br />
<strong>de</strong> famílias que viviam direta ou indiretamente <strong>de</strong>sse ofício: pescadores,<br />
17 A respeito <strong>de</strong>ssas metodologias, consulte Faria e Neto (2006).<br />
35
comerciantes (donos <strong>de</strong> peixarias), tratadoras <strong>de</strong> peixes e os próprios consumidores,<br />
que não se sentiam mais seguros para consumir regularmente<br />
o alimento. Conforme já assinalamos alhures, Barra do Riacho, diferentemente<br />
<strong>de</strong> Regência Augusta, convive com forte presença <strong>de</strong> diversos<br />
empreendimentos industriais e químicos, muitos dos quais associados à<br />
produção e ao processamento da celulose <strong>de</strong> eucaliptos, à petroquímica e<br />
à infraestrutura portuária, e, por conta disso, a vila não recebeu a mesma<br />
atenção ambientalista dada a Regência Augusta. Tal fato coloca a questão<br />
do acúmulo <strong>de</strong> injustiças socioambientais sofridas ali ao longo do tempo<br />
e dos paradoxos do <strong>de</strong>senvolvimento e suas externalida<strong>de</strong>s, refletidos<br />
na menor preocupação com as consequências da lama sobre a comunida<strong>de</strong>,<br />
seu ar, suas águas e seus habitantes humanos e não-humanos. Os<br />
capítulos 2, 3 e 4 são aqueles que, neste livro, recuperam um pouco da<br />
conjugação <strong>de</strong>senvolvimentismo-ambientalização que se <strong>de</strong>u em Barra<br />
do Riacho ao longo do tempo.<br />
Para além das unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação, já apontadas na seção anterior, e<br />
da lama vinda pelo oceano, na localida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barra do Riacho a água doce<br />
encontra-se diretamente comprometida pelas ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> produção <strong>de</strong><br />
celulose vinculadas à empresa Fibria. Em 1999 foi construído o canal Caboclo<br />
Bernardo a partir <strong>de</strong> um <strong>de</strong>svio do rio Doce, em Linhares, até o rio<br />
Riacho, em Barra do Riacho, <strong>de</strong>svio este feito para garantir o abastecimento<br />
<strong>de</strong> água para a produção <strong>de</strong> celulose <strong>de</strong> eucaliptos da Fibria. 18 Essa<br />
alteração no corpo hídrico da região tem sido percebida como altamente<br />
danosa, pois não só <strong>de</strong>sviou rios e córregos, como teria secado nascentes<br />
e mantido a foz do rio Riacho com um problema constante <strong>de</strong> assoreamento,<br />
implicando o fechamento da boca da barra e impedindo, assim, o<br />
trânsito <strong>de</strong> barcos entre o rio e o mar. Essa questão da crise hídrica e suas<br />
consequências para a ativida<strong>de</strong> da pesca também estão profundadas no<br />
capítulo 2 do presente livro.<br />
Nas percepções e falas locais sobre a chegada da lama em Barra do Riacho,<br />
ouvimos, ainda, relatos que apontaram para o aumento da mortan-<br />
18 A presença dos eucaliptais, <strong>de</strong> oleodutos e gasodutos também po<strong>de</strong>ria ser mencionada<br />
como elemento importante em ambas as localida<strong>de</strong>s, mas, pelo momento crítico vivido<br />
nas duas comunida<strong>de</strong>s em relação às condições das águas, foram elas que receberam maior<br />
<strong>de</strong>staque junto aos interlocutores <strong>de</strong> pesquisa e, por isso, elas estão enfatizadas na presente<br />
introdução.<br />
36
da<strong>de</strong> <strong>de</strong> peixes durante esse momento pós-lama, via o próprio canal Caboclo<br />
Bernardo, mas também nos rios Riacho e Comboios. Eram fortes<br />
as <strong>de</strong>sconfianças sobre as condições das águas doces disponibilizadas aos<br />
moradores, bem como havia interpretações <strong>de</strong> que problemas <strong>de</strong> saú<strong>de</strong><br />
na localida<strong>de</strong>, como doenças gastrointestinais, doenças <strong>de</strong> pele e câncer,<br />
provinham da má qualida<strong>de</strong> dos rios. Uma audiência em junho <strong>de</strong> 2017<br />
foi realizada para tratar do assunto. 19 Igualmente, esses problemas e incertezas<br />
foram associados, em várias narrativas, à abertura das comportas<br />
do canal Caboclo Bernardo, que teria permitido o <strong>de</strong>slocamento dos rejeitos<br />
da lama até a foz do rio Riacho e à boca da barra, e aos <strong>de</strong>spejos <strong>de</strong><br />
efluentes da Fibria 20 e <strong>de</strong> outras empresas nos rios e no oceano. 21<br />
Durante a realização das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> extensão em Barra <strong>de</strong> Riacho, os<br />
moradores empenhavam-se no reconhecimento enquanto atingidos, e<br />
uma das <strong>de</strong>mandas era o recebimento do auxílio emergencial por conta<br />
da chegada da lama <strong>de</strong> rejeitos e da interdição da pesca. O pedido foi aceito<br />
pelo Comitê Interfe<strong>de</strong>rativo (CIF) apenas em 31 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2017. 22 O<br />
CIF é entida<strong>de</strong> <strong>de</strong> composição híbrida responsável pelo acompanhamento<br />
das ações da Fundação Renova relativas ao pós-rompimento. 23<br />
19 Na audiência, o profissional do SAAE teria asseverado que “qualida<strong>de</strong> da água distribuída<br />
para as comunida<strong>de</strong>s do distrito está <strong>de</strong>ntro dos padrões <strong>de</strong> potabilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>terminados<br />
pela Organização Mundial <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> (OMS)” (PMA, 2018).<br />
20 Menor preocupação foi dada à emissão <strong>de</strong> gases no ar feita tanto pela Fibria quanto por<br />
outras empresas do setor químico que prestam serviços à indústria <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> celulose<br />
e à Petrobras, embora seja preciso ressaltar que uma li<strong>de</strong>rança local apontou esse problema.<br />
21 Destacamos que Barra do Riacho não possui tratamento <strong>de</strong> esgoto, fato <strong>de</strong>stacado muitas<br />
vezes pelos moradores locais. Todos os resíduos sanitários da localida<strong>de</strong> são <strong>de</strong>spejados<br />
diretamente no rio Riacho.<br />
22 Outras foram as áreas que receberam o reconhecimento, na costa do Espírito Santo, em<br />
um total <strong>de</strong> 19, nos municípios <strong>de</strong> São Mateus, Linhares, Aracruz e Serra. Para uma listagem<br />
completa e maiores informações consulte Alves (2017).<br />
23 Segundo <strong>de</strong>finição do site do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais<br />
Renováveis (IBAMA), que presi<strong>de</strong> o CIF, este tem como “função [...] orientar e validar<br />
os atos da Fundação Renova, [...], para gerir e executar as medidas <strong>de</strong> recuperação dos danos<br />
resultantes da tragédia.” Além do IBAMA, tem na sua composição “representantes da União,<br />
dos governos <strong>de</strong> Minas Gerais e do Espírito Santo, dos municípios impactados e do Comitê<br />
da Bacia Hidrográfica do <strong>Rio</strong> Doce.” (IBAMA, 2018a). O CIF possui Câmaras Técnicas, das<br />
quais po<strong>de</strong>m participar representantes <strong>de</strong> outros órgãos ou entida<strong>de</strong>s públicos. A mediação<br />
<strong>de</strong> relações entre a Fundação Renova e os “impactados” está também entre as suas prerrogativas.<br />
O regimento interno do CIF está anexado à portaria número 18 do IBAMA, <strong>de</strong><br />
07/07/2016 (IBAMA, 2018b).<br />
37
Encontramos em Barra do Riacho uma situação <strong>de</strong> muitos e pronunciados<br />
conflitos internos, mesmo entre os pescadores, que foram agravados<br />
pela questão da lama. A localida<strong>de</strong> vive (e vivia) muitos problemas também<br />
associados ao imprensamento pelos empreendimentos industriais e<br />
pela ocupação portuária, à migração pendular <strong>de</strong> trabalhadores e ao <strong>de</strong>semprego.<br />
Eram muitas as queixas sobre prostituição, presença <strong>de</strong> tráfico<br />
e alto consumo <strong>de</strong> álcool e entorpecentes, bem como relatos <strong>de</strong> suicídios.<br />
Em Regência, as medidas pós-lama também engendraram conflitos internos<br />
e <strong>de</strong>sconfianças. A distribuição do cartão da Samarco, como é chamado<br />
o auxílio emergencial pago pela empresa, <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> incluir muitos<br />
que teriam direito imediato a seu recebimento. Os cadastros e a <strong>de</strong>finição<br />
do perfil dos atingidos aptos ao recebimento, realizados pelas empresas,<br />
seus consultores e pela Fundação Renova, somaram-se a essa situação. A<br />
impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> manter a vida como ela era antes — sem as incertezas<br />
ora presentes em ativida<strong>de</strong>s cotidianas como a pesca, o surfe, o lazer, a<br />
alimentação, e com a alteração da paisagem e dos ciclos das águas e <strong>de</strong><br />
seus seres — produziu muito sofrimento, evi<strong>de</strong>nciado em relatos que enfatizavam<br />
casos <strong>de</strong> <strong>de</strong>pressão e tristeza, havendo variações conforme os<br />
indivíduos, as ida<strong>de</strong>s, os gêneros, as condições socioeconômicas prévias<br />
e, até mesmo, conforme as posições religiosas ou espirituais.<br />
Como é possível perceber, o crime-<strong>de</strong>sastre trouxe drástico cenário às localida<strong>de</strong>s<br />
atingidas, agravando ainda mais a complexa situação <strong>de</strong> algumas<br />
<strong>de</strong>las, e foi o propulsor <strong>de</strong> danos socioambientais e emocionais àqueles<br />
que vivem das águas e dos entes do rio Doce e do oceano Atlântico. A<br />
contaminação representou e ainda representa a materialização <strong>de</strong> danos<br />
e perdas promovidos por um gran<strong>de</strong> projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento que liga<br />
Espírito Santo e Minas Gerais, a ativida<strong>de</strong> mineradora, na sua forma radical<br />
e abrupta <strong>de</strong> ignorar as histórias <strong>de</strong> vida <strong>de</strong> centenas <strong>de</strong> pessoas,<br />
enten<strong>de</strong>ndo-as apenas como externalida<strong>de</strong>s socioambientais do processo<br />
<strong>de</strong> exploração e comercialização minerária. Junto disso, as dinâmicas do<br />
espalhamento da lama, ainda em disputa, <strong>de</strong>monstram quão expansivas<br />
foram as consequências <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sastre cujos limites permanecem em (re)<br />
atualização: seja no reconhecimento oficial, científico ou jurídico <strong>de</strong> novas<br />
áreas e novos grupos <strong>de</strong> atingidos; seja na constatação <strong>de</strong> novos danos<br />
e perdas por diversos grupos <strong>de</strong> pesquisadores; seja no surgimento <strong>de</strong> novos<br />
movimentos clamando por reconhecimento enquanto atingidos.<br />
38
Por fim, as ações <strong>de</strong> extensão que realizamos nas duas localida<strong>de</strong>s nos<br />
permitiram enten<strong>de</strong>r os <strong>de</strong>sdobramentos <strong>de</strong>sse novo contexto a partir do<br />
olhar das próprias comunida<strong>de</strong>s atingidas, através <strong>de</strong> suas leituras culturais<br />
e <strong>de</strong> seus modos sensíveis <strong>de</strong> reconhecimento dos problemas. O<br />
entendimento disso nos conduziu diretamente a um uso híbrido <strong>de</strong> metodologias<br />
e técnicas, conjugando abordagens participativas, bastante utilizadas<br />
em estudos e diagnósticos rurais participativos e socioambientais,<br />
com abordagens mais usuais, mais intimistas, como o recurso a histórias<br />
<strong>de</strong> vida. O uso não exclusivo <strong>de</strong> abordagens coletivas foi essencial para<br />
lidar com o sofrimento dos atingidos, com o estresse causado pelas reuniões<br />
e pelo amplo assédio pós-chegada da lama e com as dinâmicas dos<br />
conflitos internos das comunida<strong>de</strong>s agravadas no pós-lama. 24<br />
Solicitamos, então, a leitores e a leitoras que tenham em mente todas as<br />
nuances colocadas, bem como todo o sofrimento implícito no material<br />
ora apresentado, que vai muito além das palavras que conseguimos redigir,<br />
no tempo-espaço <strong>de</strong> um programa <strong>de</strong> extensão <strong>de</strong> dois anos, realizado<br />
em duas comunida<strong>de</strong>s da costa do Espírito Santo, e muito além<br />
dos assuntos que conseguimos abordar na forma <strong>de</strong> publicação e <strong>de</strong> outros<br />
registros similares. Há muito mais do que aquilo que foi dito, escrito,<br />
filmado ou fotografado, e é preciso ressaltar essa incompletu<strong>de</strong> em um<br />
momento em que, enquanto alguns esforçam-se continuamente na busca<br />
<strong>de</strong> seus direitos, almejando uma possível restauração socioambiental,<br />
tentativas <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontaminação simbólica ocorrem.<br />
24 Observamos que também enfrentamos dificulda<strong>de</strong>s no uso <strong>de</strong> abordagens mais coletivas,<br />
por conta também <strong>de</strong> sua i<strong>de</strong>ntificação com técnicas utilizadas nas duas localida<strong>de</strong>s<br />
por empresas e ambientalistas. Mesmo assim, fizemos alguns esforços nesse sentido, e elas,<br />
apesar dos problemas, mostraram-se fundamentais na tentativa <strong>de</strong> produção conjunta <strong>de</strong><br />
conhecimento <strong>de</strong>ntro do programa <strong>de</strong> extensão. Nesse sentido, além das oficinas, <strong>de</strong>stacamos<br />
a elaboração <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os-documentários, que tiveram maior receptivida<strong>de</strong> por parte dos<br />
moradores-atingidos.<br />
39
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42
Parte 1<br />
Pesca Artesanal, Áreas<br />
Protegidas e Desenvolvimento<br />
43
44
A Política Pesqueira e as Estratégias <strong>de</strong><br />
Desenvolvimento Nacional<br />
Capítulo 1<br />
Carolina <strong>de</strong> Oliveira e Silva Cyrino<br />
Aline Trigueiro<br />
INTRODUÇÃO<br />
Vários estudos sobre pesca artesanal 1 , em especial no campo das ciências<br />
sociais, têm acentuado o i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização presente na trajetória<br />
da política pública pesqueira. Não é novida<strong>de</strong> o fato <strong>de</strong> a ativida<strong>de</strong><br />
artesanal ter sido, ao logo <strong>de</strong>sse processo, preterida em prol da indústria<br />
da pesca, e os modos <strong>de</strong> vida e trabalho dos pescadores, <strong>de</strong>svalorizados.<br />
Os estudos em questão nos estimulam a refletir sobre um aspecto ainda<br />
pouco problematizado na abordagem das políticas públicas voltadas à<br />
pesca, qual seja: as condições sócio-históricas <strong>de</strong> sua formação. Em especial,<br />
cabe ainda perguntar: quais são as repercussões <strong>de</strong>ssa política na<br />
formação <strong>de</strong> uma maneira <strong>de</strong> ver e enten<strong>de</strong>r os pescadores artesanais e<br />
seus modos <strong>de</strong> vida? Para refletir sobre esse processo, consi<strong>de</strong>ramos necessário<br />
compreen<strong>de</strong>r como a política pesqueira i<strong>de</strong>ntificou o pescador<br />
artesanal <strong>de</strong>ntro do contexto do projeto nacional-<strong>de</strong>senvolvimentista —<br />
um dos momentos-chave da política mo<strong>de</strong>rnizadora na história do Brasil<br />
— e como isso gerou repercussões na forma como essa categoria passou a<br />
ser i<strong>de</strong>ntificada <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então.<br />
Como ponto <strong>de</strong> partida, tratamos <strong>de</strong> buscar as fontes dos primeiros atos<br />
regulatórios da política pesqueira no Brasil. As pesquisas nos mostram<br />
que tais atos foram iniciados a partir do projeto <strong>de</strong> nacionalização da pesca,<br />
empreendido pela Marinha brasileira, que tinha por objetivo central<br />
regular e controlar a ativida<strong>de</strong> pesqueira no país. Essa empreitada foi<br />
iniciada em 1919 com a expedição Missão do Cruzador José Bonifácio, que<br />
percorreu todo o litoral brasileiro, criando mais <strong>de</strong> 800 colônias, a fim<br />
<strong>de</strong> conduzir os pescadores à “civilização” e ao “progresso” através da mo-<br />
1 Destaque para os trabalhos <strong>de</strong> Diegues (1983;1999); Loureiro (1985); Maldonado (1986;<br />
1994); Ramalho (2012; 2014).<br />
45
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
<strong>de</strong>rnização da sua ativida<strong>de</strong>. Essa condução, iniciada <strong>de</strong> forma tutelar e<br />
disciplinadora pela instituição naval, acionou um discurso que marcava<br />
a urgência da mo<strong>de</strong>rnização não apenas da ativida<strong>de</strong> da pesca, mas do<br />
modo <strong>de</strong> vida dos pescadores.<br />
Diante <strong>de</strong>sse fato, o presente artigo 2 está divido em duas seções. A primeira<br />
analisa a edição original da obra Missão Cruzador José Bonifácio, <strong>de</strong> autoria<br />
do capitão <strong>de</strong> Mar e Guerra da Marinha brasileira, Fre<strong>de</strong>rico Villar,<br />
publicada em 1945 pela Biblioteca Militar. E a segunda traz consi<strong>de</strong>rações<br />
sobre o Plano Nacional do Desenvolvimento da Pesca 1975–1979, publicado<br />
pela extinta Superintendência <strong>de</strong> Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE.<br />
A consulta e análise <strong>de</strong>ssas fontes nos permitem enten<strong>de</strong>r os meandros<br />
<strong>de</strong>sse processo histórico <strong>de</strong> formação da política pesqueira e o quanto<br />
ele foi — e ainda continua sendo — muito mais pautado na exclusão do<br />
pescador e <strong>de</strong> suas práticas que na sua valorização, <strong>de</strong> fato.<br />
A CONDUÇÃO DISCIPLINADORA MILITAR COMO ESTRATÉGIA<br />
DO PROJETO NACIONAL-DESENVOLVIMENTISTA<br />
Não se trata <strong>de</strong> um dado amplamente divulgado, mas os estudos mostram<br />
que a trajetória da regulação da pesca em território nacional foi<br />
marcada pela forte atuação da Marinha do Brasil. De acordo com Silva<br />
(2015), já a partir <strong>de</strong> 1912 o país vivenciava a expectativa do progresso <strong>de</strong>senvolvimentista<br />
e, nesse cenário, a pesca chamou atenção das elites econômicas,<br />
que apostaram na mo<strong>de</strong>rnização do setor através da sua industrialização.<br />
Já nessa época, as ações promovidas pela instituição militar<br />
estavam alinhadas a essa perspectiva e visavam ao controle e à expansão<br />
da ativida<strong>de</strong> pesqueira.<br />
Essas motivações direcionaram a Marinha a percorrer toda a costa do<br />
país com o projeto <strong>de</strong> “instruir” os pescadores e “sanear” suas formas <strong>de</strong><br />
vida. Esse fato nos leva à investigação e ao encontro da obra Missão do<br />
Cruzador José Bonifácio, na qual <strong>de</strong>scobrimos <strong>de</strong>scritas as impressões da<br />
Marinha sobre o pescador, constituindo-se como um tipo <strong>de</strong> marco inspirador<br />
e base para os vários atos regulatórios que a suce<strong>de</strong>ram. A Missão<br />
2 Este trabalho apresenta resultados e <strong>de</strong>sdobramentos da dissertação <strong>de</strong> Carolina<br />
Cyrino, orientada pela Prof.ª Dr.ª Aline Trigueiro, no Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação<br />
em Ciências Sociais da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo<br />
46
Capítulo 1<br />
foi realizada no período <strong>de</strong> 1919 a 1923 com o objetivo <strong>de</strong> regularizar e nacionalizar<br />
a pesca no país. A obra <strong>de</strong> 235 páginas foi publicada em 1945<br />
pela Biblioteca Militar, narrada por seu próprio comandante, o capitão <strong>de</strong><br />
Mar e Guerra Fre<strong>de</strong>rico Villar, membro do Instituto <strong>de</strong> Geografia e História<br />
Militar do Brasil, do Instituto Oceanográfico Brasileiro e do Instituto<br />
Técnico Naval.<br />
Conforme o registro feito da trajetória da política pesqueira — encontrado<br />
no documento do Plano Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento da Pesca<br />
(SUDEPE, 1980), o qual será analisado na próxima seção —, durante esses<br />
quatro anos (1919 a 1923), os militares percorreram o litoral brasileiro<br />
cadastrando mais <strong>de</strong> 100.000 pescadores e organizando-os em colônias<br />
cooperativas com espaços para serviços <strong>de</strong> ensino e saú<strong>de</strong>, dos quais resultaram<br />
o “Serviço <strong>de</strong> Pesca e Saneamento do Litoral”, em 1923. No documento,<br />
o trabalho militar realizado é enaltecido, ao afirmar que: “É nesse<br />
trabalho pioneiro, <strong>de</strong> Fre<strong>de</strong>rico Villar, que são estabelecidas as bases <strong>de</strong>finitivas<br />
para o <strong>de</strong>senvolvimento da pesca do Brasil, e <strong>de</strong> uma orientação<br />
para uma futura ação do governo” (SUDEPE, 1980, p. 11).<br />
Seguindo na análise da obra Missão do Cruzador José Bonifácio, já nas primeiras<br />
páginas do registro, po<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar os i<strong>de</strong>ais nacionalistas<br />
que sustentam os objetivos da cruzada. Os subtítulos do documento “Os<br />
pescadores na Defesa Nacional”, A nacionalização da pesca e a Organização<br />
dos seus Serviços”, “Subsídios para a história militar no Brasil” anunciam<br />
as intenções da instituição militar naquele momento, quais sejam:<br />
<strong>de</strong>finir um papel social para os pescadores da costa do país e, com isso,<br />
transformá-los em braço da Marinha, ou seja, um reforço para a segurança<br />
naval.<br />
É válido <strong>de</strong>stacar que, no período da Missão, a Primeira Guerra Mundial<br />
(1914–1918) acabara <strong>de</strong> findar, e o mundo vivenciava as tensões pós-guerra.<br />
A Marinha brasileira se preocupava com a presença <strong>de</strong> estrangeiros 3 na<br />
costa brasileira e com o controle dos pesqueiros, o que representava, para<br />
a instituição naval, os “[...] graves perigos que isso <strong>de</strong>terminaria para a<br />
3 Segundo Villar (1942, p.25), a Missão foi resultado do que apregoava a<br />
Convenção <strong>de</strong> Haia <strong>de</strong> 1882, a partir da qual “[...] a pesca é um direito exclusivo<br />
dos filhos do país, porque o pescador é <strong>de</strong>tentor <strong>de</strong> segredos que interessam à<br />
<strong>de</strong>fesa nacional”.<br />
47
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
unida<strong>de</strong> política do país e para a <strong>de</strong>fesa nacional” (VILLAR, 1945, p. 23).<br />
Cabe reforçar que a obra que narra a Missão só foi publicada 22 anos após<br />
a sua realização, já no ano <strong>de</strong> 1945, período do primeiro governo <strong>de</strong> Getúlio<br />
Vargas. Ao analisarmos esse contexto, são esclarecidas as várias exaltações<br />
ao presi<strong>de</strong>nte Getúlio e a sua política <strong>de</strong> governo, expressas no livro<br />
que foi escrito por Villar (1945). Na avaliação do comandante militar, Vargas<br />
é louvado como um gran<strong>de</strong> lí<strong>de</strong>r que conduz a nação ao progresso. Tal<br />
importância ainda é expressa no prefácio da obra, que contém as palavras<br />
do próprio presi<strong>de</strong>nte da República respaldando a importância da Missão.<br />
Sem dúvida, o primeiro e o mais longo governo <strong>de</strong> Getúlio Vargas (iniciado<br />
em 1930 e finalizado em 1945) tem como gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>staque o projeto<br />
<strong>de</strong>senvolvimentista. Vários estudos 4 sobre o <strong>de</strong>senvolvimentismo no Brasil<br />
apontam que esse processo emergiu no contexto da crise <strong>de</strong> 1930 e da<br />
Segunda Gran<strong>de</strong> Guerra Mundial, propulsionando a legitimação da intervenção<br />
do Estado na condução do processo <strong>de</strong> industrialização.<br />
No governo Vargas, esses dois caminhos, a intervenção estatal e a industrialização,<br />
encontram-se, portanto, integrados. A narrativa do livro Missão<br />
reproduz esses interesses estatais direcionados para a área da pesca,<br />
com a institucionalização da ativida<strong>de</strong> através da sua regulação e controle<br />
e com a instrução <strong>de</strong> ações que se voltassem à expansão industrial e utilização<br />
da mão <strong>de</strong> obra dos pescadores, assim como à intervenção nos<br />
modos <strong>de</strong> vida das comunida<strong>de</strong>s pesqueiras, conforme será possível i<strong>de</strong>ntificar<br />
no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>sta análise.<br />
No documento militar ora analisado, Villar (1945) <strong>de</strong>staca a <strong>de</strong>claração<br />
do então ministro da Marinha, Almirante Gomes Pereira, a qual revela o<br />
interesse do Estado em reconhecer nos pescadores uma força naval que<br />
estaria alinhada à expansão industrial da pesca no país:<br />
O pescador é um valioso instrumento para a <strong>de</strong>fesa nacional: <strong>de</strong>senvolvendo<br />
as indústrias da pesca, criaremos entre nós esse material<br />
precioso, que nada nos custará na paz e nos será <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> utilida<strong>de</strong><br />
em caso <strong>de</strong> guerra. São reservas <strong>de</strong> homens e barcos que se articu-<br />
4 Po<strong>de</strong>mos encontrar essa indicação nos trabalhos <strong>de</strong> Silva (2004); Cepêda (2012);<br />
Draibe (1985); Furtado (1983), entre outros.<br />
48
Capítulo 1<br />
larão como mecanismo bélico do país (PEREIRA apud VILLAR,<br />
p. 22, 1945. Grifo nosso).<br />
É nesse sentido que, no período entre 1930 e 1945, encontramos elementos<br />
esclarecedores para a compreensão da articulação das instituições estatais<br />
com o pacto <strong>de</strong>senvolvimentista. Nessa discussão, Silva (2004, p.71)<br />
<strong>de</strong>staca o trabalho <strong>de</strong> Sônia Draibe, que discorre:<br />
O rápido movimento <strong>de</strong> constituição do aparelho econômico do<br />
Estado, <strong>de</strong> forma centralizada e nacionalmente articulada, entre<br />
1930 e 1945, obe<strong>de</strong>ce a um padrão cujas características nem sempre<br />
têm sido enfatizadas pela extensa literatura existente. Nessa<br />
etapa crucial <strong>de</strong> constituição do ‘capitalismo industrial’ e do<br />
Estado capitalista no Brasil, con<strong>de</strong>nsam-se, simultaneamente,<br />
num curto período histórico, as múltiplas faces <strong>de</strong> um processo<br />
<strong>de</strong> organização das estruturas <strong>de</strong> um Estado-nação e <strong>de</strong> um Estado-capitalista<br />
cuja forma incorpora, crescentemente, aparelhos<br />
regulatórios e peculiarida<strong>de</strong>s intervencionistas que estabelecem um<br />
suporte ativo ao avanço da acumulação industrial (DRAIBE apud<br />
SILVA, 2004, p.72. Grifo nosso).<br />
Chamamos a atenção para os aparelhos regulatórios e peculiarida<strong>de</strong>s intervencionistas<br />
citados no trecho acima, consi<strong>de</strong>rando que essas foram fortes<br />
características adotadas pela política pesqueira no período analisado a<br />
fim <strong>de</strong> darem apoio à mo<strong>de</strong>rnização da ativida<strong>de</strong>. Desse modo, po<strong>de</strong>mos<br />
<strong>de</strong>stacar a criação das colônias <strong>de</strong> pescadores e a sua regulação pela Marinha<br />
brasileira e, posteriormente, pelo Ministério da Agricultura, como<br />
ações que vão engendrar o controle da ativida<strong>de</strong> da pesca em todo o litoral<br />
do país, através do registro dos pescadores e da fiscalização <strong>de</strong>ssa prática.<br />
Divididas em zonas <strong>de</strong> pesca, as 800 colônias criadas pela Missão recebiam<br />
instruções <strong>de</strong> valores militares, como o patriotismo e o civismo, além dos<br />
símbolos nacionais fixados nas suas instalações. Através das colônias eram<br />
disponibilizadas escolas primárias para os filhos <strong>de</strong> pescadores e também<br />
estavam concentrados outros serviços assistenciais, como saú<strong>de</strong> e acesso à<br />
política pesqueira, o que fortaleceu a centralização das ações direcionadas<br />
aos pescadores. A<strong>de</strong>mais, no período <strong>de</strong> 1930 a 1945, foram promulgados<br />
diversos dispositivos legais que fomentaram a mo<strong>de</strong>rnização e o contro-<br />
49
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
le da ativida<strong>de</strong> pesqueira e subsidiaram o fortalecimento da indústria da<br />
pesca e a i<strong>de</strong>ntificação da ativida<strong>de</strong> artesanal como algo obsoleto.<br />
Também é possível i<strong>de</strong>ntificar o caráter intervencionista do Estado no<br />
modo <strong>de</strong> vida dos pescadores, orientando-os à adoção <strong>de</strong> novas práticas.<br />
As palavras <strong>de</strong> Getúlio Vargas que abrem o registro da Missão já anunciavam<br />
essa orientação ao <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r que o “homem brasileiro” necessitaria<br />
dos benefícios da civilização para então ser um agente do “progresso”.<br />
Com essa premissa, a Marinha brasileira foi a gran<strong>de</strong> propulsora <strong>de</strong>ssa<br />
intervenção ao se arrogar o papel <strong>de</strong> conduzir os pescadores à mo<strong>de</strong>rnização<br />
das suas ativida<strong>de</strong>s e abrir caminhos para a industrialização do setor<br />
na trajetória <strong>de</strong>senvolvimentista do país.<br />
Assim, se por um lado a Marinha passou a mapear todo o litoral a fim <strong>de</strong><br />
regular a ativida<strong>de</strong> da pesca, os recursos pesqueiros e a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
pescadores, <strong>de</strong> outro, a instituição naval passou a exercer o controle i<strong>de</strong>ológico,<br />
<strong>de</strong>finindo quem e como os pescadores <strong>de</strong>veriam ser, controlando<br />
sua reprodução social e <strong>de</strong> suas comunida<strong>de</strong>s.<br />
Avançando mais na análise da obra Missão, o comandante registra seu<br />
<strong>de</strong>scontentamento com os costumes dos pescadores ao constatar que<br />
aplicavam métodos <strong>de</strong> pesca que ele consi<strong>de</strong>rava arcaicos, como os reproduzidos<br />
pelos índios, além <strong>de</strong> utilizarem embarcações precárias: “Formam<br />
uma gran<strong>de</strong> população <strong>de</strong> mais <strong>de</strong> cem mil viventes morando - por<br />
assim dizer - sobre o oceano, em barcos primitivos, empregando os mesmos<br />
processos <strong>de</strong> pesca adotados pelos índios!” (VILLAR, 1945, p. 46).<br />
Fre<strong>de</strong>rico Villar <strong>de</strong>screve, <strong>de</strong> modo estereotipado, o que ele consi<strong>de</strong>ra<br />
como a péssima condição <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> e miséria em que os pescadores viviam<br />
e enfatiza novamente a falta <strong>de</strong> instrução, “[...] alheios às conquistas<br />
da civilização e do trabalho na proporção talvez <strong>de</strong> 90%, os chamados<br />
praianos não sabem ler nem escrever; vivem doentes, esquálidos, <strong>de</strong>molidos<br />
pelas en<strong>de</strong>mias do litoral [...]” (VILLAR, 1945, p.46).<br />
O teor <strong>de</strong>ssas palavras revela quais eram os direcionamentos or<strong>de</strong>nadores<br />
da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> diferença na socieda<strong>de</strong> brasileira da primeira meta<strong>de</strong> do<br />
século XX. Não cabiam alternativas sociais e culturais aos imperativos do<br />
progresso e da mo<strong>de</strong>rnização, representados pela lógica industrial, urbana<br />
e pela racionalida<strong>de</strong> capitalista. Ou seja, em questão estavam muito<br />
50
Capítulo 1<br />
mais o controle e a a<strong>de</strong>quação dos grupos sociais consi<strong>de</strong>rados à margem<br />
<strong>de</strong>sse processo — no caso, os pescadores — do que o reconhecimento <strong>de</strong><br />
suas histórias, suas i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, seus modos <strong>de</strong> vida como originais e valorizados.<br />
O que sustentava i<strong>de</strong>ologicamente esse processo em curso era<br />
a perspectiva <strong>de</strong> que o caminho a ser trilhado — <strong>de</strong> forma tutelada pelo<br />
Estado, via intervenção naval — em direção ao <strong>de</strong>senvolvimento era não<br />
apenas o melhor, mas o único capaz <strong>de</strong> trazer os pescadores à civilida<strong>de</strong>.<br />
De acordo com o comandante Villar, em cada localida<strong>de</strong> que a Missão<br />
atracava, os militares repetiam aos pescadores o Código <strong>de</strong> Honra do pescador<br />
brasileiro. A oração é preenchida <strong>de</strong> termos patriotas, <strong>de</strong> <strong>de</strong>fesa<br />
nacional e reverência à força militar naval. Seus versos ensinam, ainda,<br />
a importância da mudança do modo <strong>de</strong> vida primitivo para a adoção dos<br />
benefícios que a mo<strong>de</strong>rnização e a instrução técnica oceanográfica po<strong>de</strong>riam<br />
proporcionar-lhes e ao progresso <strong>de</strong> toda nação.<br />
Figura 1: Palavras <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m.<br />
Registro <strong>de</strong> imagem: CYRINO (2016). Fotografia <strong>de</strong> trecho do Código <strong>de</strong> Honra do Pescador<br />
Brasileiro (VILLAR, 1945, p.157). Acervo pessoal.<br />
Percebemos nesses imperiosos versos como os costumes tradicionais dos<br />
pescadores são suprimidos e colocados como não adaptáveis ao novo mo<strong>de</strong>lo<br />
que ora lhes era apresentado. Villar (1945) <strong>de</strong>ixa evi<strong>de</strong>nte o direcionamento<br />
que era dado aos pescadores para adotarem as técnicas mais mo<strong>de</strong>rnas<br />
<strong>de</strong> pesca que pu<strong>de</strong>ssem aten<strong>de</strong>r ao i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> expansão da indústria<br />
51
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
pesqueira. Nesse mesmo Código, exaltam-se os benefícios do uso do motor<br />
a diesel, <strong>de</strong> barcos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte, do uso da ciência como aliada na<br />
ativida<strong>de</strong> pesqueira e, obviamente, do valor patriota e militar <strong>de</strong>ssas ações.<br />
Perguntamo-nos como os pescadores teriam se manifestado diante <strong>de</strong> tais<br />
incumbências. Não encontraremos no documento qualquer menção sobre<br />
as suas falas. Todas as impressões <strong>de</strong>rivam do olhar do comandante,<br />
que narra o seu ponto <strong>de</strong> vista acerca <strong>de</strong> como são os pescadores, nativos<br />
<strong>de</strong>scobertos em um novo mundo carente <strong>de</strong> civilização, <strong>de</strong>screvendo seus<br />
corpos e hábitos e apontando como <strong>de</strong>vem ser e <strong>de</strong>senvolver o seu ofício,<br />
para que então possam estar aptos à socieda<strong>de</strong> e servirem à nação.<br />
Villar (1945) encerra a sua narrativa classificando a Missão do Cruzador José<br />
Bonifácio como o Cruzador do Bem, “[...] realizadora da obra mais genuinamente<br />
republicana realizada pela República” (VILLAR 1945, p. 231).<br />
No trabalho on<strong>de</strong> relaciona pesca, Estado e <strong>de</strong>senvolvimento nacional,<br />
Ramalho (2014) propõe uma crítica à forma como esse discurso da Marinha<br />
brasileira <strong>de</strong> oportunizar a mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong> aos pescadores estava camuflado<br />
como isca para promoção da nacionalização da pesca. Nesse sentido,<br />
esse sociólogo revela que essa empreitada “[...] transformou o pescador<br />
artesanal em personagem estratégico, submetido, como reserva militar,<br />
ao controle da Marinha, que contava com escassos braços e enfrentava<br />
a falta <strong>de</strong> quadros a ser recrutados por ela” (RAMALHO, 2014, p. 34). O<br />
autor acentua, portanto, o caráter controlador do Estado através das ações<br />
institucionais a fim <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r a interesses específicos, tanto como reserva<br />
naval quanto com relação ao domínio da ativida<strong>de</strong> da pesca e ao fomento<br />
<strong>de</strong> sua mo<strong>de</strong>rnização, que, posteriormente, <strong>de</strong>u suporte a políticas <strong>de</strong><br />
incentivo à indústria pesqueira e à segregação da ativida<strong>de</strong> artesanal.<br />
Em 1933, a regulamentação da pesca passa a ser <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> do<br />
Ministério da Agricultura. O Serviço da Pesca e Saneamento do Litoral,<br />
resultante da Missão, é extinto e substituído pelo Departamento <strong>de</strong> Indústria<br />
Animal Divisão <strong>de</strong> Caça e Pesca (VILLAR, 1945). Nesse período é<br />
promulgado o Código <strong>de</strong> Caça e Pesca (BRASIL, 2016a), atribuindo ao MA<br />
todo serviço <strong>de</strong> administração, gestão e execução dos dispositivos legais.<br />
Assim como para a Marinha brasileira, a mo<strong>de</strong>rnização e a formação técnica<br />
para a pesca também foram preocupações do Ministério da Agri-<br />
52
Capítulo 1<br />
cultura, e a Divisão <strong>de</strong> Caça e Pesca <strong>de</strong>u continuida<strong>de</strong> ao trabalho <strong>de</strong>senvolvido<br />
pela instituição naval. A influência da Marinha era exercida<br />
nas colônias enquanto a do Ministério da Agricultura, na criação e gestão<br />
<strong>de</strong> leis. Diversos dispositivos legais foram criados a fim <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>rem à<br />
<strong>de</strong>manda da tecnificação da pesca e industrialização do setor, porém, <strong>de</strong><br />
acordo com a SUDEPE (1980, p. 14), esse período <strong>de</strong> 1930 a 1960 foi marcado<br />
“[...] por graves problemas <strong>de</strong> coor<strong>de</strong>nação das ativida<strong>de</strong>s pesqueiras,<br />
em face <strong>de</strong> inúmeros órgãos atuantes e da legislação fragmentada”. Em<br />
<strong>de</strong>corrência <strong>de</strong>sses entraves, criou-se o Conselho <strong>de</strong> Desenvolvimento da<br />
Pesca – CODEPE, em 1961, a fim <strong>de</strong> reunir todas as atribuições normativas<br />
pesqueiras. Entretanto, é a SUDEPE, criada no ano seguinte, que assumirá<br />
todo o próximo período, marcado pela forte expansão da indústria<br />
pesqueira e <strong>de</strong>svalorização da ativida<strong>de</strong> artesanal.<br />
A SUDEPE E A EXPANSÃO DA INDÚSTRIA PESQUEIRA COMO<br />
APOSTA DESENVOLVIMENTISTA<br />
A Superintendência <strong>de</strong> Desenvolvimento da Pesca – SUDEPE, autarquia<br />
subordinada ao Ministério da Agricultura, criada através da Lei Delegada<br />
10, <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 1962 (BRASIL, 2016b), vai assumir um ambicioso<br />
projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento do setor, por meio da sua industrialização,<br />
incentivos fiscais e ampliação dos estoques pesqueiros. Embora tenha<br />
consi<strong>de</strong>rado positivo o trabalho da Divisão <strong>de</strong> Caça e Pesca na tecnificação<br />
do setor, a SUDEPE (1980) revelou-se <strong>de</strong>scontente com a permanência<br />
das procedências artesanais nas ativida<strong>de</strong>s pesqueiras. Segundo a instituição,<br />
isso ocorreu <strong>de</strong>vido à “[...] ausência <strong>de</strong> um mercado organizado,<br />
e também pela impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong>monstrada <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r as solicitações<br />
que o <strong>de</strong>senvolvimento urbano-industrial brasileiro requeria” (SUDEPE,<br />
1980, p. 15). A autarquia surge, então, com a missão <strong>de</strong> promover a “evolução<br />
do setor pesqueiro”.<br />
Esse recorte temporal também marca uma nova fase do projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
nacional no Brasil que, segundo o I Plano Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />
– PNP (BRASIL, 1971, p. 14), tinha como diretriz “[...] transformar<br />
o Brasil em uma nação <strong>de</strong>senvolvida, [...] através da criação <strong>de</strong> uma<br />
economia mo<strong>de</strong>rna, criativa e dinâmica”.<br />
Nessa orientação, conforme po<strong>de</strong>remos ver no <strong>de</strong>correr da análise, a SU-<br />
53
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
DEPE vai direcionar a sua priorida<strong>de</strong> para o <strong>de</strong>senvolvimento da indústria<br />
pesqueira, mas, do mesmo modo que as intervenções políticas anteriores,<br />
os benefícios não chegarão aos pequenos pescadores e suas comunida<strong>de</strong>s.<br />
Ao contrário, passou-se à exploração dos recursos pesqueiros e à <strong>de</strong>svalorização<br />
da ativida<strong>de</strong> artesanal e, consequentemente, dos pescadores. Não<br />
obstante, estaria direcionada a aten<strong>de</strong>r aos interesses estatais e grupos que<br />
se beneficiariam com a tecnificação e mo<strong>de</strong>rnização do setor pesqueiro.<br />
As ações políticas direcionadas aos pescadores não conseguiram atentar<br />
para as <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s geradas pelo próprio projeto <strong>de</strong>senvolvimentista.<br />
Por esse caráter exclu<strong>de</strong>nte e elitista é que Furtado (1983) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> a tese <strong>de</strong><br />
que a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>senvolvimento econômico é utópica:<br />
[...] a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que os povos pobres po<strong>de</strong>m algum dia <strong>de</strong>sfrutar das<br />
formas <strong>de</strong> vida dos atuais povos ricos – é simplesmente irrealizável.<br />
Sabemos agora <strong>de</strong> forma irrefutável que as economias da periferia<br />
nunca serão <strong>de</strong>senvolvidas, no sentido <strong>de</strong> similares às economias<br />
que formam o atual centro do sistema capitalista. Mas,<br />
como negar que essa i<strong>de</strong>ia tem sido <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> utilida<strong>de</strong> para mobilizar<br />
os povos da periferia e levá-los a aceitar enormes sacrifícios,<br />
para legitimar a <strong>de</strong>struição <strong>de</strong> formas <strong>de</strong> culturas arcaicas,<br />
para explicar e fazer compreen<strong>de</strong>r a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>struir o meio<br />
físico, para justificar formas <strong>de</strong> <strong>de</strong>pendência que reforçam o caráter<br />
predatório do sistema produtivo [...] Cabe, portanto, afirmar<br />
que a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômico é um simples mito<br />
(FURTADO, 1983, p. 75. Grifo nosso).<br />
Para compreen<strong>de</strong>rmos como a pesca e os pescadores artesanais são i<strong>de</strong>ntificados<br />
nesse período, analisamos o Plano Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />
da Pesca – PNDP (1980), consi<strong>de</strong>rando que o documento apresenta<br />
aspectos históricos da política pesqueira e também avalia o período <strong>de</strong><br />
gestão encampado pela SUDEPE. O relatório <strong>de</strong> 165 páginas é dividido<br />
em duas partes: “Aspectos Institucionais do Desenvolvimento da Pesca no<br />
Brasil” e “Aspectos Econômicos do Desenvolvimento da Pesca no Brasil”.<br />
Para este estudo, vamos analisar a primeira parte do documento.<br />
O período 5 <strong>de</strong> gestão da SUDEPE é atravessado pela instauração do re-<br />
5 Do final da Segunda Guerra Mundial (1945) até a primeira crise do petróleo (1973), é<br />
consi<strong>de</strong>rado o período chamado <strong>de</strong> ‘anos dourados’ da ‘era <strong>de</strong> ouro do capitalismo’, marca-<br />
54
Capítulo 1<br />
gime militar, em 1964, através do golpe <strong>de</strong>flagrado contra o governo do<br />
presi<strong>de</strong>nte João Goulart. Essa intervenção militar também <strong>de</strong>ixou suas<br />
marcas na política pesqueira e na vida dos pescadores artesanais. O Po<strong>de</strong>r<br />
Executivo passa a ter maior controle sobre a categoria através das colônias<br />
<strong>de</strong> pescadores. A política <strong>de</strong> fortes incentivos à industrialização permanece<br />
aliada, agora, ao “[...] fortalecimento <strong>de</strong> políticas autoritárias relacionadas<br />
à organização política da categoria” (RAMALHO, 2014, p. 47).<br />
O PNDP foi publicado no período da ditadura militar, sob o comando do<br />
presi<strong>de</strong>nte Ernesto Geisel. É possível perceber no registro a valorização<br />
do trabalho <strong>de</strong>senvolvido pela instituição militar naval e, em especial, da<br />
Missão do Cruzador José Bonifácio.<br />
O entendimento da SUDEPE sobre o <strong>de</strong>senvolvimento da pesca nos fornecerá<br />
importantes indicativos <strong>de</strong> como a instituição conduziu a ativida<strong>de</strong><br />
nesse período e direcionou a sua política. Para a Superintendência do<br />
Departamento <strong>de</strong> Pesca (1980), a evolução da política pesqueira está organizada<br />
em duas gran<strong>de</strong>s fases: pré-industrial ou artesanal e industrial. A<br />
primeira fase remonta a três subdivisões, que vão <strong>de</strong>s<strong>de</strong> os primeiros atos<br />
legais da pesca 6 — a exemplo da criação da Capitânia dos Portos pela Marinha<br />
do Brasil em 1846 —, passando pela fase <strong>de</strong> institucionalização da<br />
pesca — através do projeto <strong>de</strong> nacionalização — e, por fim, o período <strong>de</strong><br />
tecnificação, com a Divisão <strong>de</strong> Caça e Pesca do Ministério da Agricultura.<br />
O período que ora analisamos está incluído na segunda fase, “industrial”,<br />
subdivida em dois períodos: a consolidação da industrialização e a ampliação<br />
dos incentivos fiscais para o fomento da pesca industrial, conforme<br />
ilustra o esquema a seguir:<br />
do por profundas transformações/revoluções políticas, tecnológicas, econômicas, sociais e<br />
culturais. Essa fase também é conhecida como ‘os trinta gloriosos’ (1950-1980). Do ponto<br />
<strong>de</strong> vista econômico no contexto histórico brasileiro, <strong>de</strong>staca-se o período <strong>de</strong> intenso crescimento<br />
durante os famosos ‘50 anos em 5’ do governo <strong>de</strong> Juscelino Kubitschek (1956-1961),<br />
seguido <strong>de</strong> um período <strong>de</strong> ‘estagnação’ da economia (1963-1964) e a posterior retomada no<br />
‘milagre brasileiro’ (1968-1973) (PLEINN & FILIPPI, 2012, p. 14).<br />
6 Esse período, embora não tratado nesse artigo, também é <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> da Marinha<br />
do Brasil. Em 1846, a instituição naval militar criou a Capitânia dos Portos já com o intuito<br />
<strong>de</strong> promover o controle da pesca, embora a regulação da ativida<strong>de</strong> só viesse a se efetivar a<br />
partir da Missão, com a criação das colônias <strong>de</strong> pescadores. Nesse período, a Marinha brasileira<br />
também investiu na pesquisa sobre as formas <strong>de</strong> mo<strong>de</strong>rnização e industrialização da<br />
pesca a partir <strong>de</strong> expedições realizadas nos continentes norte-americano, europeu e asiático,<br />
conforme registrado em Villar (1911).<br />
55
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Fase Préindustrial<br />
ou<br />
artesanal<br />
1º Período<br />
até 1912<br />
2º Período<br />
1912 a 1932<br />
Surgimento dos<br />
primeiros atos<br />
legais para a pesca<br />
Institucionalização<br />
da pesca<br />
Pesca<br />
no Brasil<br />
Fase<br />
industrial<br />
3º Período<br />
1933 a 1961<br />
4º Período<br />
1962 a 1966<br />
5º Período<br />
A partir <strong>de</strong> 1967<br />
Tecnificação do<br />
setor<br />
Consolidação da<br />
industrialização do<br />
setor<br />
Amplificação dos<br />
incentivos fiscais para<br />
as indústrias <strong>de</strong> pesca<br />
Quadro 1: Divisão do <strong>de</strong>sempenho do setor pesqueiro pela SUDEPE.<br />
Fonte: Esquema organizado a partir <strong>de</strong> consulta às informações do Plano Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />
da Pesca 1975-1979, elaborado pela SUDEPE (1980).<br />
Essa divisão do <strong>de</strong>senvolvimento da pesca já <strong>de</strong>marca a ativida<strong>de</strong> artesanal<br />
como algo superável, parte <strong>de</strong> um processo evolutivo. Esse entendimento<br />
é alentado no próprio PNDP ao <strong>de</strong>screver o primeiro período<br />
da fase industrial, <strong>de</strong> 1962 a 1966, no qual o governo se preocupou com a<br />
promoção da industrialização da pesca e a mo<strong>de</strong>rnização das ativida<strong>de</strong>s<br />
pesqueiras. Vejamos:<br />
Nesse período, torna-se expressiva a preocupação governamental<br />
<strong>de</strong> promover o <strong>de</strong>senvolvimento industrial, não só através da ativação<br />
dos programas <strong>de</strong> investimentos públicos e privados, mediante<br />
o aperfeiçoamento <strong>de</strong> instrumentos clássicos e a criação <strong>de</strong> novos<br />
estímulos às empresas <strong>de</strong> capital aberto, mas também pela ativação<br />
<strong>de</strong> programas visando a mo<strong>de</strong>rnização <strong>de</strong> ramos tradicionais on<strong>de</strong><br />
prevaleciam relações <strong>de</strong> produção obsoletas e incompatíveis com as exigências<br />
atuais <strong>de</strong> aumento <strong>de</strong>produtivida<strong>de</strong>, economias <strong>de</strong> escala e<br />
racionalização administrativa (SUDEPE, 1980, p. 17. Grifo nosso).<br />
O trecho <strong>de</strong>stacado assemelha-se aos discursos proferidos pelo comandante<br />
Villar (1942; 1945) em prol da mo<strong>de</strong>rnização dos processos arcaicos<br />
<strong>de</strong> pesca. Desse modo, como sinalizamos no início <strong>de</strong>ssa análise, já é perceptível<br />
como os i<strong>de</strong>ais do projeto <strong>de</strong> nacionalização da pesca empreendi-<br />
56
Capítulo 1<br />
dos pela Marinha firmaram suas raízes na trajetória da política pesqueira.<br />
A diferença nessa fase é que ao passo que no período anterior o pescador<br />
foi conduzido à reserva naval da marinha, como vimos na primeira seção,<br />
neste, sua força <strong>de</strong> trabalho foi reservada às empresas pesqueiras, através<br />
da <strong>de</strong>svalorização da sua ativida<strong>de</strong>, apropriando-se da sua força <strong>de</strong> trabalho,<br />
meios <strong>de</strong> produção e recursos pesqueiros, transformando os pescadores<br />
artesanais em meros “coadjuvantes” do setor (RAMALHO, 2014).<br />
Essas medidas adotadas pela SUDEPE supervalorizaram a indústria pesqueira,<br />
consi<strong>de</strong>rando que os benefícios fiscais alcançavam somente as<br />
empresas, e estas concentraram seus projetos na construção e importação<br />
maciça <strong>de</strong> barcos, equipamentos e infraestrutura <strong>de</strong> terra, aumentando<br />
consi<strong>de</strong>ravelmente o controle dos meios <strong>de</strong> produção (SILVA, 2015). Desta<br />
forma, a condução <strong>de</strong>ssa política resulta no controle dos meios <strong>de</strong> produção<br />
e da força <strong>de</strong> trabalho do pescador, e não aponta para nenhum tipo <strong>de</strong><br />
valorização <strong>de</strong> seus modos <strong>de</strong> vida e i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>.<br />
Observa-se que, <strong>de</strong> um lado, com a intervenção da Marinha, entre 1919<br />
e 1932, iniciou-se o processo <strong>de</strong> estigmatização do pescador artesanal,<br />
visto como atrasado e <strong>de</strong> modos ru<strong>de</strong>s, o qual precisaria ser civilizado.<br />
Representações e imaginários sociais recheados <strong>de</strong> estereótipos sobre o<br />
pescador ganharam relevo, conforme já assinalamos. De outro lado, as<br />
ações políticas subsequentes, encampadas pelo Ministério da Agricultura<br />
e pela SUDEPE, não apenas vão intensificar esse tipo <strong>de</strong> leitura social,<br />
mas utilizá-la como justificativa para promover mo<strong>de</strong>los ainda mais elaborados<br />
<strong>de</strong> exclusão <strong>de</strong>sse grupo, <strong>de</strong>sta vez <strong>de</strong>stituindo-o <strong>de</strong> seus instrumentos<br />
<strong>de</strong> trabalho e, por conseguinte, impedindo a reprodução <strong>de</strong> suas<br />
maneiras <strong>de</strong> viver e trabalhar. O discurso em voga era <strong>de</strong> que as técnicas<br />
utilizadas pelos pescadores eram obsoletas, por isso era urgente mo<strong>de</strong>rnizá-las.<br />
Somente assim o pescador artesanal <strong>de</strong>ixaria <strong>de</strong> ser consi<strong>de</strong>rado<br />
um entrave à pesca mo<strong>de</strong>rna (industrial) e passaria a compô-la, mas <strong>de</strong><br />
um modo especial: como mão <strong>de</strong> obra a ser explorada.<br />
O projeto em curso era a criação <strong>de</strong> uma pesca empresarial-capitalista no<br />
Brasil, através do fomento a incentivos fiscais visando o retorno <strong>de</strong> recursos<br />
para o setor. Foi <strong>de</strong>ssa forma que a SUDEPE negligenciou a pesca <strong>de</strong><br />
pequeno porte, ao <strong>de</strong>cidir fazer da ativida<strong>de</strong> pesqueira uma indústria <strong>de</strong><br />
base no país (DIEGUES, 1983). De acordo com Ramalho (2014), a produ-<br />
57
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
ção empresarial-industrial procedia em consi<strong>de</strong>rável parte dos próprios<br />
pescadores artesanais, os quais, através do seu trabalho, alimentavam o<br />
sistema <strong>de</strong> compra nos portos. É nesse sentido que vai se reforçar o projeto<br />
<strong>de</strong> transformar o pescador em força braçal das empresas pesqueiras:<br />
A Su<strong>de</strong>pe cumpriu um papel importante para o capital: viabilizar<br />
a expansão da pesca enquanto um negócio mo<strong>de</strong>rno e rentável<br />
para um grupo <strong>de</strong> empresários, criando, ao mesmo tempo, uma<br />
força <strong>de</strong> trabalho [os pescadores artesanais] disponível, ora permanente,<br />
ora <strong>de</strong> reserva (RAMALHO, 2014, p. 50).<br />
No PNDP, a SUDEPE (1980) faz críticas a sua própria gestão, apontando<br />
o <strong>de</strong>spreparo da instituição no cumprimento das suas atribuições, especialmente<br />
a falta <strong>de</strong> habilida<strong>de</strong> em administrar centenas <strong>de</strong> projetos <strong>de</strong><br />
incentivos fiscais, sem um planejamento a<strong>de</strong>quado, “[...] sendo que as ativida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> revenda e financiamento se encontravam praticamente paralisadas”<br />
(SUDEPE, 1980, p. 22).<br />
Diante <strong>de</strong>sses problemas i<strong>de</strong>ntificados, a SUDEPE viu a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
reformular suas diretrizes. Em 1974 é editado o Decreto 73.632 (BRASIL,<br />
2016c), que dispôs sobre a estrutura da instituição e indicaria as suas<br />
competências. Ao analisarmos o documento, é possível verificar a forte<br />
promoção da tecnificação da pesca a fim <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r aos interesses da mo<strong>de</strong>rnização<br />
do setor, direcionamento este que, como já observamos no<br />
<strong>de</strong>correr <strong>de</strong>sse artigo, vem sendo reforçado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua implementação,<br />
com o projeto <strong>de</strong> nacionalização da pesca.<br />
Além <strong>de</strong> enfatizar a importância da qualificação para suprir a <strong>de</strong>manda<br />
da indústria <strong>de</strong> pesca, o <strong>de</strong>creto também promove a pesquisa no setor a<br />
fim <strong>de</strong> explorar novos métodos <strong>de</strong> pesca e a preservação dos recursos marinhos.<br />
Quanto à assistência aos pescadores, o dispositivo legal direciona<br />
as colônias, através do sistema <strong>de</strong> cooperativas, a fim <strong>de</strong> que eles possam<br />
gerar rendimentos que supram suas necessida<strong>de</strong>s. Esses atos mantêm o<br />
papel tutelar que as colônias <strong>de</strong> pescadores assumiram <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a sua criação<br />
na Missão do Cruzador em 1919.<br />
Observa-se que a gran<strong>de</strong> meta do governo brasileiro com a criação da SU-<br />
DEPE era promover uma pesca empresarial-capitalista no Brasil, fazendo<br />
da ativida<strong>de</strong> pesqueira uma indústria <strong>de</strong> base. Entretanto, o ousado plano<br />
58
Capítulo 1<br />
fracassou, pois, comos incentivos fiscais voltados à pesca industrial, o que<br />
se <strong>de</strong>u foi a sobrepesca, tendo como resultado a diminuição dos recursos<br />
pesqueiros (DIEGUES, 1983). Nesse cenário, o projeto <strong>de</strong>senvolvimentista<br />
já estava em crise e, <strong>de</strong>sse modo, passou-se, então, a questionar o papel do<br />
Estado como articulador do <strong>de</strong>senvolvimento capitalista nacional. Assim,<br />
a gestão conturbada por exacerbados usos <strong>de</strong> incentivos fiscais/créditos,<br />
exploração <strong>de</strong> recursos pesqueiros e sua consequente diminuição provocou<br />
a extinção da SUDEPE em 1989.<br />
CONCLUSÕES<br />
As orientações da política pesqueira na trajetória analisada <strong>de</strong>ixaram<br />
suas marcas, as quais resultam no processo crescente <strong>de</strong> vulnerabilida<strong>de</strong><br />
dos pescadores artesanais. A centralização das ações políticas nas colônias<br />
<strong>de</strong> pescadores mantém o caráter tutelar construído, não mais com<br />
a Marinha brasileira, mas no papel das colônias como intermediadoras<br />
entre o pescador e o Estado. A complexida<strong>de</strong> das normatizações, a exigibilida<strong>de</strong><br />
burocrática e a carência do conhecimento das políticas públicas<br />
também colaboram para a atual dificulda<strong>de</strong> do acesso do pescador aos<br />
seus direitos. Desse modo, verifica-se que o Estado passou não apenas<br />
a instituir regras para o exercício da ativida<strong>de</strong> pesqueira como também<br />
a produzir interpretações acerca <strong>de</strong> qual seria o papel do pescador artesanal<br />
no contexto do <strong>de</strong>senvolvimento brasileiro, as quais ainda hoje<br />
repercutem e impactam significativamente a realida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pescadores artesanais<br />
e <strong>de</strong> suas comunida<strong>de</strong>s.<br />
O discurso do artesanal como atrasado e como impedimento à mo<strong>de</strong>rnida<strong>de</strong><br />
reforçou a equivocada compreensão <strong>de</strong> uma cisão entre o tradicional<br />
e o mo<strong>de</strong>rno, além <strong>de</strong> uma visão estereotipada dos pescadores,<br />
vendo-os como uma categoria limitada, incapaz <strong>de</strong> contribuir com o <strong>de</strong>senvolvimento<br />
do país e com a construção e participação <strong>de</strong> uma política<br />
pública. Esta, por seu caráter público, não <strong>de</strong>veria priorizar interesses <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>terminados segmentos, sejam eles estatais ou privados.<br />
Com isso, o que se observa são as transformações que serão promovidas<br />
pelo avanço industrial nos territórios pesqueiros, a priorização da pesca<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong> escala e da aquicultura e a ausência <strong>de</strong> políticas públicas que,<br />
<strong>de</strong> modo eficaz, proporcionem o <strong>de</strong>senvolvimento da ativida<strong>de</strong> artesanal<br />
59
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
e garantam a reprodução dos modos <strong>de</strong> vida dos pescadores, valorizando<br />
suas memórias, suas histórias, seus corpos (e suas técnicas <strong>de</strong> trabalho) e<br />
seus anseios.<br />
60
Capítulo 1<br />
REFERênciAS<br />
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Nacional <strong>de</strong> Informação, 1971.<br />
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Acesso em: Junho <strong>de</strong> 2016a.<br />
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do Desenvolvimento da Pesca e dá outras providências. Sistema<br />
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reformulação das diretrizes da SUDEPE. Sistema <strong>de</strong> Consulta à Legislação<br />
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pesqueira na regulação da pesca artesanal (Dissertação). Mestrado<br />
em Ciências Sociais. Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Ciências Sociais da<br />
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marítimos no Brasil. São Paulo: Etnográfica, v.. III, n. 2, 1999.<br />
DIEGUES, A. C. Pescadores, camponeses e trabalhadores do mar. São<br />
Paulo: Ática, 1983.<br />
DRAIBE, S. Rumos e metamorfoses: um estudo sobre a constituição do<br />
Estado e as alternativas <strong>de</strong> industrialização no Brasil, 1930–1960. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong><br />
Janeiro: Paz e Terra, 1985.<br />
FURTADO, C. O mito do <strong>de</strong>senvolvimento econômico. <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro:<br />
Paz e Terra, 1983.<br />
LOUREIRO, V. R. Os Parceiros do mar: natureza e conflito social na pesca<br />
da Amazônia. Belém: Conselho Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento Científico<br />
e Tecnológico, CNPQ – Museu Paraense Emílio Goeldi, 1985.<br />
61
62
Capítulo 2<br />
Captação dos recursos hídricos para o uso<br />
industrial e impactos na pesca em Barra<br />
do Riacho, Aracruz (ES)<br />
Nayara Pinto Santana<br />
INTRODUÇÃO<br />
O Espírito Santo é um estado brasileiro que vem se <strong>de</strong>stacando no<br />
cenário da produção e exportação <strong>de</strong> commodities no país, e isso se dá<br />
pelas políticas governamentais <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento econômico que vem<br />
ganhando força nos últimos governos. Os reflexos <strong>de</strong>ssa manobra <strong>de</strong> implantação<br />
e implementação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s indústrias po<strong>de</strong>m ser observados<br />
na região <strong>de</strong> Barra do Riacho, on<strong>de</strong> são encontrados vários empreendimentos,<br />
os quais muitas das vezes trazem gran<strong>de</strong>s impactos para os moradores<br />
da região.<br />
A comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barra do Riacho, situada no município <strong>de</strong> Aracruz,<br />
na região norte do estado, é tradicionalmente conhecida como uma vila<br />
pesqueira, muito pela cultura da pesca que, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>de</strong> sua história,<br />
marca presença no local. Entretanto, a mesma tem sofrido mudanças<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> a chegada do eucalipto com a Aracruz Florestal, em 1967, cujo<br />
principal objetivo era, e continua sendo, o plantio <strong>de</strong> eucalipto em larga<br />
escala. Logo em seguida, houve a instalação da primeira fábrica da Aracruz<br />
Celulose, no ano <strong>de</strong> 1968 (fábrica A), objetivando a produção <strong>de</strong> celulose,<br />
mas sua operação só teve início em 1978 (FIBRIA, 2017). Em 1989,<br />
veio a segunda fábrica (B), também industrial, que contou com a criação<br />
<strong>de</strong> barragens e a <strong>de</strong>tenção <strong>de</strong> vários córregos da região. Na década seguinte,<br />
a terceira fábrica (C) foi inserida no complexo, trazendo consigo uma<br />
<strong>de</strong>manda muito gran<strong>de</strong> pela utilização <strong>de</strong> recursos hídricos e, com isso,<br />
a indústria criou o canal Caboclo Bernardo no ano <strong>de</strong> 1999. Em 2009, a<br />
Aracruz Celulose passou a ser chamada Fibria, tornando-se a lí<strong>de</strong>r mundial<br />
na produção <strong>de</strong> celulose. Além disso, Barra do Riacho possui muitas<br />
outras indústrias que estão presentes em seu entorno, as quais estão em<br />
maior ou menor grau integradas ao processo <strong>de</strong> produção, beneficiamen-<br />
63
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
to e exportação da celulose. As empresas que fazem conexão com a Fibria<br />
são: Canexus, Evonik e Portocel I, ativida<strong>de</strong> em via <strong>de</strong> expansão <strong>de</strong> sua<br />
segunda unida<strong>de</strong>, o Portocel II.<br />
Consi<strong>de</strong>rando o que foi exposto, o presente trabalho tem por objetivo<br />
visibilizar os problemas que a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barra do Riacho vem enfrentando,<br />
do ponto <strong>de</strong> vista socioambiental. Em especial, abordaremos<br />
os impactos na ativida<strong>de</strong> da pesca artesanal no período atual. Especificamente,<br />
será abordada a questão da criação do canal Caboclo Bernardo,<br />
construído no ano <strong>de</strong> 1999, interligando o rio Doce, em Linhares (ES), e<br />
o rio Riacho, em Aracruz (ES), cujo objetivo era a captação dos recursos<br />
hídricos para utilização na ativida<strong>de</strong> industrial por parte da empresa<br />
Aracruz, posteriormente Fibria. A utilização <strong>de</strong>sses recursos trouxe uma<br />
série <strong>de</strong> transtornos para a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barra do Riacho, tanto na<br />
questão do abastecimento <strong>de</strong> água quanto no setor da pesca, conforme<br />
aprofundaremos.<br />
Embora o processo <strong>de</strong> criação do canal ganhe ênfase no presente artigo,<br />
também daremos <strong>de</strong>staque para os <strong>de</strong>sdobramentos da questão hídrica<br />
na localida<strong>de</strong> estudada. Cabe dizer que a mesma empresa responsável<br />
pela criação do canal Caboclo Bernardo, a Fibria, também possui o controle<br />
e a administração <strong>de</strong> outras fontes <strong>de</strong> recursos hídricos, utilizando<br />
-as <strong>de</strong> acordo com as suas necessida<strong>de</strong>s na produção das ativida<strong>de</strong>s industriais.<br />
Outro aspecto importante que será <strong>de</strong>stacado no <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>ste<br />
artigo são os problemas gerados pela expansão do plantio <strong>de</strong> eucalipto no<br />
município <strong>de</strong> Aracruz, assim como em outras partes do estado do Espírito<br />
Santo e da Bahia, tendo em vista o abastecimento do complexo industrial<br />
<strong>de</strong> produção <strong>de</strong> celulose.<br />
ANTES DO EMPREENDIMENTO<br />
Para enten<strong>de</strong>r as principais problemáticas que a Barra do Riacho vem<br />
enfrentando durante um longo período <strong>de</strong> tempo, é preciso remeter ao<br />
passado visando enxergar o "olhar progressista" que os mentores do projeto<br />
<strong>de</strong> implantação do empreendimento em questão, a Aracruz Celulose,<br />
tinham naquele momento.<br />
Antes da chegada <strong>de</strong>sse primeiro gran<strong>de</strong> empreendimento em Aracruz,<br />
64
Capítulo 2<br />
havia uma expectativa muito gran<strong>de</strong>, principalmente por parte dos gestores<br />
públicos da época, <strong>de</strong> tornar o município um gran<strong>de</strong> produtor <strong>de</strong><br />
petróleo no estado do Espírito Santo, haja vista que, no ano <strong>de</strong> 1962, foi<br />
realizado um estudo pelos técnicos da Petrobras a mando do então prefeito<br />
da época, Primo Bitti, com o objetivo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar a presença <strong>de</strong><br />
petróleo nessa área (O CRUZEIRO, 1970 apud MANSUR, 2017).<br />
Havendo petróleo, dizia a reportagem da época, “o Espírito Santo estará<br />
numa posição <strong>de</strong> <strong>de</strong>staque como possuidor <strong>de</strong> invejável riqueza” (MAN-<br />
SUR, 2017). Isso mostra como o estado já começava a caminhar rumo ao<br />
<strong>de</strong>senvolvimento baseado na exploração <strong>de</strong>sse combustível fóssil. Alguns<br />
anos mais tar<strong>de</strong>, viriam o cultivo <strong>de</strong> eucalipto e a fabricação <strong>de</strong> celulose<br />
por meio da implantação do empreendimento Aracruz Celulose.<br />
Focava-se a promessa <strong>de</strong> um futuro promissor baseado na implantação<br />
<strong>de</strong> um gran<strong>de</strong> empreendimento que utilizasse técnicas mo<strong>de</strong>rnas <strong>de</strong> exploração<br />
do solo para o cultivo <strong>de</strong> eucalipto, sem saber então que, nos<br />
dias atuais, sofreriam com as gran<strong>de</strong>s perdas naturais, humanas, culturais<br />
por parte das comunida<strong>de</strong>s, as quais, por sinal, já habitavam o local antes<br />
mesmo da i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong>sse empreendimento existir.<br />
O plantio <strong>de</strong> eucalipto em larga escala po<strong>de</strong> trazer uma série <strong>de</strong> implicações<br />
à qualida<strong>de</strong> do solo, à disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> água e também po<strong>de</strong> trazer<br />
mudanças na rotina das comunida<strong>de</strong>s locais (SANTOS & SILVA, 2004).<br />
E isso é o que tem acontecido na comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barra do Riacho nos<br />
dias <strong>de</strong> hoje. Os danos que esse tipo <strong>de</strong> plantio po<strong>de</strong> causar aos diferentes<br />
segmentos ambiental e social já foram problematizados há tempos por<br />
estudiosos, porém mesmo assim a expansão do plantio se mantém.<br />
Para produzir celulose, é necessário que se tenha um contingente elevado<br />
<strong>de</strong> água e, atualmente, a Fibria faz um uso expressivo <strong>de</strong>sse bem para garantir<br />
a produção <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s industriais. Não obstante, a utilização<br />
<strong>de</strong>sse recurso tanto na produção <strong>de</strong> celulose quanto no plantio <strong>de</strong> eucalipto<br />
traz algumas alterações na sua qualida<strong>de</strong>, como é colocado adiante:<br />
O problema da água ao longo dos plantios homogêneos <strong>de</strong> eucalipto<br />
não é apenas quantitativo. É também qualitativo, pois o<br />
uso intenso <strong>de</strong> fertilizantes químicos e agrotóxicos pela Aracruz<br />
tem sido apontado pela vizinhança tradicional, indígena e<br />
65
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
quilombola, como fator <strong>de</strong> contaminação <strong>de</strong> seus recursos<br />
hídricos (MEIRELLES & CALAZANS, 2006, p. 21).<br />
Hoje, o que se vê é um cenário <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s transformações no local, pois,<br />
além da modificação da paisagem – resultante da monocultura extensiva<br />
do eucalipto –, esse tipo <strong>de</strong> produção ainda interfere na captação <strong>de</strong><br />
boa parte dos recursos hídricos que abastecem a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barra do<br />
Riacho. Atualmente, a localida<strong>de</strong> se encontra afetada pela má qualida<strong>de</strong><br />
da água que chega às casas. Além disso, também há a presença do mau<br />
cheiro que já se tornou característico do local, exalado pelas chaminés<br />
das fábricas e resultado dos processos oriundos da fabricação <strong>de</strong> celulose.<br />
CRIAÇÃO DO CANAL CABOCLO BERNARDO<br />
Bem antes da criação do canal Caboclo Bernardo, ainda na década <strong>de</strong><br />
1960, houve uma tentativa <strong>de</strong> fazer uma drenagem do rio Doce, localizado<br />
no município <strong>de</strong> Linhares, para o rio Riacho, no município <strong>de</strong> Aracruz. A<br />
obra foi realizada pelo Departamento Nacional <strong>de</strong> Obras e Saneamento<br />
(DNOS). Esse projeto, por sua vez, não se concretizou na época, sendo<br />
realizado apenas na década <strong>de</strong> 1990. Desta forma, a construção do canal<br />
Caboclo Bernardo representou um processo <strong>de</strong> transposição <strong>de</strong> águas do<br />
rio Doce até a Barra do Riacho no ano <strong>de</strong> 1999. O projeto tinha como finalida<strong>de</strong><br />
aten<strong>de</strong>r às <strong>de</strong>mandas pelo abastecimento hídrico das comunida<strong>de</strong>s<br />
locais e dos agricultores com a disponibilização abundante <strong>de</strong> água<br />
por meio do rio Riacho, que banha a comunida<strong>de</strong>, bem como aten<strong>de</strong>r<br />
as proprieda<strong>de</strong>s rurais que estariam próximas ao canal a ser construído.<br />
Com isso, o projeto tinha como principal objetivo:<br />
Ampliar a disponibilida<strong>de</strong> hídrica no município <strong>de</strong> Aracruz para<br />
fortalecer o seu <strong>de</strong>senvolvimento em bases sustentáveis nos planos<br />
econômico e social a partir do aporte <strong>de</strong> água do rio Doce ao<br />
subsistema hídrico na margem direita e a jusante <strong>de</strong> Linhares,<br />
aproveitando os antigos canais <strong>de</strong> drenagem do DNOS existentes<br />
na área (CENTRO DE ESTUDOS AMBIENTAIS, 1999, p. 7, apud<br />
WANDERSON, 2013, p. 100).<br />
Este, por sua vez, foi elaborado tendo os seguintes requisitos presentes<br />
no projeto:<br />
66
Capítulo 2<br />
Melhorar a distribuição da disponibilida<strong>de</strong> hídrica concentrada<br />
no rio Doce;<br />
Maximizar o aproveitamento das estruturas <strong>de</strong> drenagens existentes<br />
construídas pelo DNOS e abandonadas, para exercerem a<br />
função dupla <strong>de</strong> drenagem e adução aberta <strong>de</strong> água;<br />
Compartilhar responsabilida<strong>de</strong> entre o po<strong>de</strong>r público, comunida<strong>de</strong><br />
e iniciativa privada para encaminhar o projeto, buscar financiamento<br />
e executar obras ten<strong>de</strong>ntes a alcançar o objetivo<br />
fixado, qual seja, ampliar a disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> água nos sistemas<br />
hídricos do município <strong>de</strong> Aracruz;<br />
Desenvolver projetos que não se restrinjam a soluções técnicas<br />
<strong>de</strong> engenharia, mas que viabilizem e tratem das questões ambientais<br />
e sociais associadas com esses projetos, adotando os<br />
princípios do <strong>de</strong>senvolvimento sustentável, mesmo quando tratar<br />
<strong>de</strong> ações <strong>de</strong> emergência;<br />
Otimizar as soluções para beneficiar o maior número possível <strong>de</strong><br />
usuários, garantindo o acesso público aos mananciais e priorizando<br />
o uso da água para o abastecimento público;<br />
Consolidar soluções <strong>de</strong> emergência na linha <strong>de</strong> se implantar sistemas<br />
<strong>de</strong>finitivos <strong>de</strong> solução do problema em termos <strong>de</strong> preparar<br />
o município para atravessar secas prolongadas sem impor sofrimentos<br />
sociais e econômicos que se experimenta no momento<br />
presente;<br />
Aten<strong>de</strong>r, sempre que possível, às <strong>de</strong>mandas das ativida<strong>de</strong>s do<br />
campo <strong>de</strong> modo a contribuir para fixar o homem no campo, reduzindo<br />
o êxodo rural;<br />
Manter a produção industrial e garantir o suprimento da <strong>de</strong>manda<br />
para atendimento das indústrias existentes e com pretensões a<br />
se instalarem no município (CENTRO DE ESTUDOS AMBIEN-<br />
TAIS, 1999, p. 6-7, apud RABELLO, 2012, p. 100).<br />
Para tanto, o que se observa é que a construção do canal Caboclo Bernardo<br />
possui uma especificida<strong>de</strong> maior do que está exposto em documentos,<br />
os quais, conforme citado acima, <strong>de</strong>stacam que a transposição do canal<br />
serviria, principalmente, para aten<strong>de</strong>r às <strong>de</strong>mandas das comunida<strong>de</strong>s e,<br />
em última instância, para o abastecimento industrial. Mas o que suce<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> fato é diferente do que foi apresentado no projeto. Isso porque a Fibria,<br />
67
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
no contexto <strong>de</strong> expansão do complexo industrial <strong>de</strong> Barra do Riacho, tinha<br />
como objetivo criar uma terceira fábrica para a produção <strong>de</strong> celulose<br />
(fábrica C); esta, por sua vez, foi inaugurada no ano <strong>de</strong> 2003 (MEIRELLES<br />
& CALAZANS, 2006, p. 39). Para que isso fosse possível, a Fibria, necessariamente,<br />
precisaria ter um maior controle dos recursos hídricos locais,<br />
o suficiente para dar seguimento ao processo <strong>de</strong> produção industrial. Por<br />
essa razão, antes mesmo da expansão do complexo ser colocado em prática,<br />
com a construção da terceira fábrica (C), era preciso haver uma garantia<br />
<strong>de</strong> abastecimento hídrico. Ou seja, a construção do canal Caboclo<br />
Bernardo representava essa garantia, constava como parte dos planos <strong>de</strong><br />
expansão da própria empresa.<br />
Desta forma, diante da <strong>de</strong>manda por abastecimento <strong>de</strong> água, a Fibria<br />
atuará diretamente na obra <strong>de</strong> transposição do canal Caboclo Bernardo, e<br />
isso acabou por gerar uma série <strong>de</strong> transtornos para a comunida<strong>de</strong>, pois o<br />
processo <strong>de</strong> captação dos recursos hídricos vindos do rio Doce interferiu<br />
na hidrodinâmica do rio Riacho e, consequentemente, na comunida<strong>de</strong><br />
como um todo.<br />
Ao <strong>de</strong>stacar o empenho da Fibria pela retomada da obra <strong>de</strong> criação do<br />
canal, fica evi<strong>de</strong>nte o gran<strong>de</strong> interesse da empresa em executá-la, sobretudo<br />
para garantir o seu próprio abastecimento, dada a importância do<br />
canal para a indústria no âmbito da produção. Observa-se que, caso a Fibria<br />
não tivesse como garantia o abastecimento <strong>de</strong> água advindo do canal<br />
Caboclo Bernardo, ela po<strong>de</strong>ria ficar sem o abastecimento <strong>de</strong> sua terceira<br />
fábrica, causando uma interrupção na produção <strong>de</strong> celulose.<br />
Um ano após sua construção, no ano 2000, o projeto da estruturação do<br />
canal Caboclo Bernardo ganhou um prêmio nacional concedido pela<br />
Confe<strong>de</strong>ração da Indústria (CNI). O projeto foi reconhecido no país como<br />
um exemplo <strong>de</strong> obra na área ambiental, em que venceu na categoria <strong>de</strong><br />
Proteção <strong>de</strong> Recursos Hídricos (ARACRUZ CELULOSE S.A., 2000, p. 6).<br />
Apesar do prêmio ter sido concedido à antiga Aracruz Celulose, cabe ressaltar<br />
que a execução do projeto contou com as contribuições das prefeituras<br />
<strong>de</strong> Aracruz e <strong>de</strong> Linhares e, também, com investimento do Governo do<br />
Estado. Além <strong>de</strong>ste prêmio, o canal também foi contemplado pela Fin<strong>de</strong>s<br />
(Fe<strong>de</strong>ração das Indústrias do Espírito Santo) no mesmo ano, com o Prêmio<br />
Fin<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Meio Ambiente (ARACRUZ CELULOSE S.A., 2000, p. 7).<br />
68
Capítulo 2<br />
O prêmio em questão traz a i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> que o canal foi criado para beneficiar<br />
a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barra do Riacho, com a justificativa <strong>de</strong> que haveria a melhora<br />
da qualida<strong>de</strong> da água <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> pronto o canal. Entretanto, o que não<br />
se fala, ou o que não foi mostrado a princípio, era aquilo que já foi previamente<br />
exposto, que o canal serviria para o abastecimento <strong>de</strong> uso exclusivo<br />
da Fibria, a fim <strong>de</strong> garantir a sua produção industrial, <strong>de</strong>ixando <strong>de</strong> lado, ou<br />
sendo omisso, no âmbito do abastecimento das comunida<strong>de</strong>s locais.<br />
A ação do po<strong>de</strong>r público por parte das prefeituras <strong>de</strong> Aracruz e <strong>de</strong> Linhares<br />
e do Governo do Estado, com a Aracruz Celulose (atual Fibria),<br />
<strong>de</strong>monstra ter havido uma forte aliança no <strong>de</strong>sempenho e na execução<br />
do projeto <strong>de</strong> criação do canal. Para a sua realização, foi necessário investimento<br />
financeiro, e esse investimento contou com recurso público,<br />
consi<strong>de</strong>rando a presença da esfera pública por parte das prefeituras e do<br />
governo estadual na realização do projeto.<br />
CAPTAÇÃO DE RECURSOS HÍDRICOS<br />
A captação <strong>de</strong> água feita pela empresa, através não só do canal Caboclo<br />
Bernardo, mas também <strong>de</strong> outros <strong>de</strong>svios, traz várias implicações,<br />
sobretudo para a comunida<strong>de</strong> pesqueira <strong>de</strong> Barra do Riacho, uma vez<br />
que, após a criação do canal, a própria empresa ficou responsável por<br />
administrá-lo com a abertura e o fechamento das comportas que ficam<br />
próximas à empresa. Com isso, a vazão hídrica para o rio Riacho passou<br />
a ocorrer <strong>de</strong> maneira controlada e muito lenta, o que gera o fechamento<br />
recorrente da Boca da Barra, na foz do rio Riacho.<br />
Além <strong>de</strong>sse canal, a empresa também faz uso <strong>de</strong> outros canais que levam<br />
água até a indústria, com o mesmo objetivo <strong>de</strong> fazer uso <strong>de</strong>sses recursos<br />
hídricos em sua produção, trazendo transtornos quanto à disponibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> água para a comunida<strong>de</strong> e também impactando o setor da pesca. Outro<br />
exemplo que po<strong>de</strong> ser colocado em questão é o caso do rio Gimuhuna,<br />
cujo fluxo <strong>de</strong> vazão foi alterado — como dizem os moradores locais, “é o<br />
rio que corre ao contrário” — por um sistema <strong>de</strong> bombeamento <strong>de</strong> sucção<br />
da água, administrado pela Fibria, a fim <strong>de</strong> controlar o fluxo <strong>de</strong> água<br />
em seus reservatórios para utilização no processo industrial. Segundo um<br />
morador <strong>de</strong> Barra do Riacho, em entrevista <strong>de</strong> campo, esse processo ocorre<br />
da seguinte forma:<br />
69
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
[...] eles colocam as comportas, tá? Artificial. Proibindo o seguimento<br />
da água, né. E aí, por escavação, né, ele faz tipo um canal<br />
por gravida<strong>de</strong>. E lá na frente, na Mãe Boa, tem a bomba <strong>de</strong> sucção<br />
que joga a água nessa barragem principal <strong>de</strong>la. [...] Para que...<br />
uma segurança, né, <strong>de</strong> segurança do negócio <strong>de</strong>la, né... pra ela,<br />
puxa água <strong>de</strong> lá, ou, retorna, ou guarda a água lá, naquela barragem<br />
lá. Então ela faz esse controle, né [...].<br />
[Ativista ambiental e morador da região, em entrevista realizada em<br />
26 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2017 pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento no Espírito Santo].<br />
Importante <strong>de</strong>stacar, ainda, que essa prática <strong>de</strong> sucção da água do rio<br />
através do <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> água pela presença das comportas traz problemas<br />
para a comunida<strong>de</strong>, sobretudo na área da pesca, pois há interferência no<br />
fluxo <strong>de</strong> água, impedindo que ela <strong>de</strong>semboque no rio Riacho, como <strong>de</strong>veria.<br />
Por conta disso, os peixes não <strong>de</strong>scem rio abaixo e acabam morrendo<br />
na meta<strong>de</strong> do caminho, justamente on<strong>de</strong> estão localizadas as comportas<br />
controladas pela Fibria. Abaixo, as imagens das comportas:<br />
Figuras 1 e 2: Fotos tiradas durante trabalho <strong>de</strong> campo realizado no dia 26<br />
<strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2017. Da esquerda para a direita, a primeira imagem mostra<br />
uma das quatro comportas existentes no local aberta, e a segunda mostra<br />
outra comporta fechada.<br />
Fonte: autoria própria.<br />
Com base nas imagens, observa-se o mecanismo criado para manter o<br />
controle da vazão do fluxo <strong>de</strong> água no rio Riacho. Nesse local, existem<br />
quatro comportas, sendo estas administradas pela Fibria, e a empresa as<br />
70
Capítulo 2<br />
abre e fecha <strong>de</strong> acordo com suas necessida<strong>de</strong>s. Em épocas <strong>de</strong> chuva, é<br />
mais provável que elas permaneçam abertas, pois a disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
água é maior. Já nos dias mais secos, aumenta a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> que a<br />
empresa as feche, priorizando o abastecimento <strong>de</strong> água para a indústria.<br />
Atualmente, a Fibria produz cerca <strong>de</strong> 2,3 milhões <strong>de</strong> toneladas <strong>de</strong> celulose<br />
branqueada <strong>de</strong> eucalipto por ano, e isso somente para o abastecimento do<br />
complexo industrial que está localizado no município <strong>de</strong> Aracruz, segundo<br />
documento disponibilizado pela própria empresa (FIBRIA, 2016, p. 5).<br />
Desta forma, para garantir toda essa produção, a indústria possui uma<br />
<strong>de</strong>manda muito gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> volume <strong>de</strong> água. Por dia, ela consome cerca <strong>de</strong><br />
250 mil m³ <strong>de</strong> água.<br />
[...] se fosse água captada, tratada e distribuída pela CESAN<br />
(Companhia Estadual <strong>de</strong> Saneamento), pelo volume industrial, a<br />
conta <strong>de</strong> água da Aracruz Celulose seria <strong>de</strong> um valor semelhante<br />
a R$ 16 milhões mensais! (FASE, 2006, p. 39).<br />
Diante das informações mencionadas, é possível ter uma noção do volume<br />
<strong>de</strong> água que é necessário no processo <strong>de</strong> produção da celulose e como<br />
essa ativida<strong>de</strong> gera impactos na vida das pessoas da comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barra<br />
do Riacho e adjacências, sobretudo consi<strong>de</strong>rando que se trata <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong><br />
pesqueira, que vive dos recursos do rio e do mar.<br />
Outro fator importante a ser mencionado é em relação à localização geográfica<br />
da indústria, ou seja, o local on<strong>de</strong> ela se estabeleceu. Cabe ressaltar<br />
que a Aracruz Celulose/Fibria se instalou justamente numa área on<strong>de</strong><br />
há uma gran<strong>de</strong> disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> recursos hídricos. Um lugar estratégico<br />
que foi e ainda é fundamental para manter e garantir a produção do<br />
complexo industrial. O mapa a seguir (figura 3) representa a configuração<br />
dos <strong>de</strong>svios <strong>de</strong> recursos hídricos que abastecem a indústria <strong>de</strong> celulose.<br />
Nele se observa, também, a proporção da bacia hidrográfica do rio Doce,<br />
o qual possui uma função fundamental no que se refere ao <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> recursos<br />
hídricos por meio do canal Caboclo Bernardo.<br />
71
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Figura 3: Mapa com <strong>de</strong>staque para a transposição do rio Doce, apontando,<br />
também, as áreas <strong>de</strong> bacias comprometidas (em cor) pela captação <strong>de</strong><br />
água da indústria <strong>de</strong> celulose.<br />
Fonte: COELHO, 2007, p. 186.<br />
O mapa contém a representação cartográfica da transposição do rio Doce<br />
para o rio Riacho, <strong>de</strong>stacando as áreas comprometidas da bacia do rio Riacho<br />
e da sub-bacia do rio Gimuhuna pela administração dos recursos hídricos<br />
da indústria <strong>de</strong> celulose. Nele, é possível ver que alguns cursos d’água<br />
foram extintos <strong>de</strong>vido à construção <strong>de</strong> barragens, haja vista que eles ficam<br />
próximos um aos outros. Logo se percebe que a gestão <strong>de</strong>ssa empresa quanto<br />
aos recursos hídricos acaba por gerar variadas alterações e que, muitas vezes,<br />
po<strong>de</strong>m ser irreversíveis ao meio ambiente. Além disso, é possível localizar<br />
on<strong>de</strong> a empresa está instalada, e os arruamentos nas cores mais escuras.<br />
IMPACTOS NA PESCA E NA COMUNIDADE<br />
A ação <strong>de</strong> captação dos recursos hídricos pela Fibria através do canal<br />
Caboclo Bernardo trouxe uma série <strong>de</strong> problemas para a comunida<strong>de</strong><br />
pesqueira <strong>de</strong> Barra do Riacho, consi<strong>de</strong>rando que a empresa se apropria<br />
72
Capítulo 2<br />
da água que <strong>de</strong>veria passar pelo rio Riacho e <strong>de</strong>sembocar no mar, aprisionando-a<br />
em suas comportas. Esse processo gera o fechamento da boca da<br />
barra, a foz do rio, quase cotidianamente, o que prejudica diretamente os<br />
pescadores, impedindo que eles possam sair <strong>de</strong> barco para o alto-mar na<br />
busca <strong>de</strong> realização das suas ativida<strong>de</strong>s.<br />
Existem casos em que o pescador, ao sair para pescar em alto-mar, encontra<br />
a boca da barra aberta; entretanto, ao voltar <strong>de</strong> suas ativida<strong>de</strong>s,<br />
ela está fechada. Esse processo <strong>de</strong> obstrução da foz impe<strong>de</strong> que os barcos<br />
retornem ao seu local <strong>de</strong> origem ao final da pesca. O assoreamento da foz<br />
é provocado pela diminuição do fluxo <strong>de</strong> água que <strong>de</strong>veria dar flui<strong>de</strong>z ao<br />
rio Riacho constantemente, mas o controle realizado pela Fibria impe<strong>de</strong><br />
que isso aconteça. Todavia, esse não é o único problema que a comunida<strong>de</strong><br />
vem enfrentando <strong>de</strong>vido ao controle dos recursos hídricos da região.<br />
Uma das gran<strong>de</strong>s consequências que esse processo <strong>de</strong> captação <strong>de</strong> recursos<br />
hídricos provocou para a comunida<strong>de</strong> nos últimos anos, segundo os<br />
pescadores entrevistados, foi a extinção <strong>de</strong> várias espécies <strong>de</strong> pescado <strong>de</strong>vido<br />
à alteração no fluxo <strong>de</strong> água. O rio Riacho possuía, anteriormente,<br />
uma diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> espécies <strong>de</strong> peixes que fazia parte da alimentação <strong>de</strong><br />
boa parte dos moradores da comunida<strong>de</strong>, bem como era fonte <strong>de</strong> renda<br />
para eles. A seguir, o relato <strong>de</strong> alguns dos pescadores, obtidos através <strong>de</strong><br />
entrevistas realizadas pelo Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Populações<br />
Pesqueiras e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES):<br />
Peixe não tem mais, peixe quando vem é <strong>de</strong> fora daqui, porque a<br />
gente não tem mais peixe, então você vai aqui no rio, aqui em baixo<br />
tem um rio... você vai aqui e você não vê peixe, antes você via<br />
peixe batendo aí, tainha... aquele outro peixe lá... Caçari. É o que<br />
mais tinha aqui em baixo, e agora você não acha mais nenhum, e<br />
o Caçari é o peixe mais resistente que tinha aqui.<br />
[Relato <strong>de</strong> uma pescadora <strong>de</strong> Barra do Riacho, em entrevista realizada<br />
no dia 9 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2016].<br />
[...] eu comecei a pescar com o meu tio, com outras pessoas que já<br />
faleceram, agora que ele até viveu logo, porque já foram embora. E<br />
pra não per<strong>de</strong>r o lugar eu dormia na praia lá até amanhecer o dia.<br />
E eu vinha do sertão né, trabalhava na roça, então eu vinha pra<br />
73
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
po<strong>de</strong>r não per<strong>de</strong>r o lugar e pescar com eles. Eu era tão pequeno<br />
que eu pescava assim, o mestre na frente, eu pescava assim, em<br />
cima dum paneiro (risos), eu pescava ali. Eu era pequenininho.<br />
[Pescador antigo <strong>de</strong> Barra do Riacho, em entrevista realizada no<br />
dia 20 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2017].<br />
[...] eu pescava... um monte <strong>de</strong> peixe que <strong>de</strong>sapareceram nessa<br />
época agora, agora <strong>de</strong>sapareceu aí a pescada, o roncador, xixarro,<br />
alaruja, pescadinha alaruja, peroá... sumiu tudo [...].<br />
[Pescador antigo <strong>de</strong> Barra do Riacho, em entrevista realizada no<br />
dia 20 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2017].<br />
[...] muito peixe, minha filha, era comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> pescador mesmo!<br />
Que agora não tem mais tanto pescador, né?! Que os filhos <strong>de</strong><br />
pescadores não exercitam mais a profissão, né. Mas era um lugar<br />
<strong>de</strong> muita fartura, não havia dinheiro, que naquele tempo não tinha<br />
dinheiro, mas tinha muita fartura <strong>de</strong> peixe, muito peixe. Meu<br />
pai criou toda nossa família e os filhos <strong>de</strong>le, pescando [...] pescador.<br />
Pescava em canoa. Era uma coisa linda essa Barra do Riacho.<br />
[Pescador antigo <strong>de</strong> Barra do Riacho, em entrevista realizada no<br />
dia 20 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2017].<br />
[...] quando essa empresa veio aqui, a Celulose Aracruz, eu trabalhava<br />
aí, fazia pesquisa no mar, com Dr. [nome omitido], as vezes<br />
vocês até conhecem, né. Ele não tinha lancha e eu trabalhava com<br />
ele, né. Fazia pesquisa quase toda semana com ele aí. Ganhava<br />
muito dinheiro com isso. Tá? Mas agora, a pescaria tá muito fraca,<br />
acabou muitos pescadores, né? E o rio secou, que não era um rio<br />
assim, era um rio lindo que nós tínhamos aqui! No mês <strong>de</strong> abril<br />
até o mês <strong>de</strong> agosto ninguém pescava quase, no mar, só pescando<br />
robalo neste rio [...].<br />
[Relatos <strong>de</strong> segundo pescador antigo <strong>de</strong> Barra do Riacho, em entrevista<br />
realizada no dia 20 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2017].<br />
Mesmo cercada por gran<strong>de</strong>s empreendimentos, Barra do Riacho ainda é<br />
uma vila tradicionalmente pesqueira, on<strong>de</strong> muitos dos que vivem ali sustentam<br />
suas famílias através da venda e do consumo do peixe e <strong>de</strong> outras<br />
74
Capítulo 2<br />
iguarias do mar, como camarão, por exemplo. Mas, <strong>de</strong>pois que a Fibria<br />
passou a interferir na hidrodinâmica do rio Riacho, tudo mudou e trouxe<br />
consigo uma série <strong>de</strong> problemas que os moradores da região, sobretudo<br />
pescadores, enfrentam diante da situação abordada.<br />
Apesar da pesca ser um dos setores mais atingidos a partir <strong>de</strong>sse evento,<br />
ela não é a única a sofrer impactos, pois com a escassez do peixe muitos<br />
ficaram sem ter o que fazer na região. O trabalho nas indústrias não é tão<br />
acessível para os moradores, principalmente para aqueles que vivem da<br />
pesca. Em muitos casos, os moradores não possuem instrução <strong>de</strong> ensino<br />
formal para serem inseridos em <strong>de</strong>terminados cargos <strong>de</strong>ntro das empresas,<br />
e isso se torna um gran<strong>de</strong> problema social.<br />
Cabe ressaltar que, além das empresas locais, há ainda a questão dos impactos<br />
provenientes do vazamento dos rejeitos <strong>de</strong> mineração da barragem<br />
<strong>de</strong> Fundão — em Mariana (MG), ocorrido em novembro <strong>de</strong> 2015 —,<br />
na costa do Espírito Santo. Barra do Riacho se enquadra no grupo das<br />
comunida<strong>de</strong>s que foram atingidas e, por conta disso, a pesca se encontra<br />
proibida <strong>de</strong>s<strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2016.<br />
Outra problemática existente relatada por um morador do local é em relação<br />
à disponibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> água potável para o abastecimento da população,<br />
pois, apesar <strong>de</strong> Barra do Riacho estar localizada em uma área que é<br />
rica em recursos hídricos naturais, ela passa por gran<strong>de</strong>s dificulda<strong>de</strong>s no<br />
que se refere ao seu abastecimento em boas condições para o consumo<br />
humano. A água que abastece a comunida<strong>de</strong> é oriunda do córrego Santa<br />
Joana que, durante muitos anos, foi margeado pelo lixo industrial produzido<br />
pela Fibria e que, mesmo <strong>de</strong>sativado nos atuais dias, ainda traz um<br />
efeito negativo para a comunida<strong>de</strong>.<br />
Muitos moradores nos contaram que consomem água mineral, ou seja,<br />
compram-na para o consumo próprio, pois, como a água que é utilizada<br />
para abastecer o local é advinda do córrego Santa Joana, muitos têm receio<br />
<strong>de</strong> utilizá-la. No entanto, nem todos que resi<strong>de</strong>m no local possuem<br />
condições financeiras para arcar com esse custo mensal. Por essa razão,<br />
alguns moradores acabam utilizando a água <strong>de</strong>sse córrego mesmo assim.<br />
Mas, segundo alguns entrevistados, o gran<strong>de</strong> problema é que essa água<br />
po<strong>de</strong> estar relacionada com o aumento dos casos <strong>de</strong> câncer na comunida<strong>de</strong><br />
— trata-se <strong>de</strong> uma suspeita local —, embora não exista nenhuma<br />
75
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
pesquisa científica que comprove tal afirmação, ainda.<br />
Além do córrego Santa Joana, o <strong>de</strong>svio do canal Caboclo Bernardo também<br />
traz dificulda<strong>de</strong>s para a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barra do Riacho, visto que,<br />
caso a transposição do rio Doce terminasse na foz do rio Riacho, a população<br />
não teria tantos problemas em relação à pesca e à disponibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> água, a qual seria disponibilizada em condições dignas <strong>de</strong> serem utilizadas<br />
por toda a população. Segundo o relato <strong>de</strong> um morador, a construção<br />
do canal só trouxe problemas para a comunida<strong>de</strong>.<br />
[...] na verda<strong>de</strong>, não veio benefício para a localida<strong>de</strong>, muito pelo<br />
contrário, só trouxe problema! E traz problema até hoje! Até mesmo<br />
dos interesses, que essa empresa hoje, ela centraliza, são 35<br />
córregos... são 35 córregos e 4 rios, né, por intermédio <strong>de</strong> barragem,<br />
bomba <strong>de</strong> sucção e comportas que ficam... essas comportas<br />
ficam no rio Riacho, né, a quatro quilômetros da foz, né. E aí, todas<br />
essas águas que <strong>de</strong>saguam no rio Riacho <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> ir pra sua<br />
foz! E isso trazendo transtorno, aqui no final, para a comunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Barra do Riacho, a comunida<strong>de</strong> pesqueira e também para o<br />
meio ambiente, que ali tem um berçário, tem um mangue. E <strong>de</strong>ixou,<br />
houve um <strong>de</strong>sequilíbrio né, total, que dá os assoreamentos,<br />
né, <strong>de</strong>vido a perca <strong>de</strong> volume do pulso <strong>de</strong> água, né [...].<br />
[Ativista ambiental e morador da localida<strong>de</strong>, em entrevista realizada<br />
no dia 16 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2017 pela equipe do GEPPEDES].<br />
A fala do entrevistado reforça o que já foi apresentado anteriormente em<br />
relação à quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> água que é necessária para que a produção <strong>de</strong> celulose<br />
ocorra com êxito. São 35 córregos e quatro rios, ou seja, a apropriação<br />
<strong>de</strong>sses recursos se dá <strong>de</strong> maneira extremamente intensa no local. Além<br />
disso, os efeitos negativos ao meio ambiente também são <strong>de</strong>stacados pelo<br />
entrevistado, pois, <strong>de</strong> fato, essa tem sido uma <strong>de</strong>manda expressiva para os<br />
moradores, e eles questionam muito a respeito da poluição do rio, visto<br />
que a questão ambiental está relacionada diretamente com a pesca.<br />
Um último aspecto a ser apresentado e que interfere diretamente na<br />
questão hídrica diz respeito à plantação <strong>de</strong> eucalipto na região, visto que,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, essa cultura plantada no município começou a <strong>de</strong>sconfigurar<br />
<strong>de</strong> maneira muito significativa a paisagem da região. Consequente-<br />
76
Capítulo 2<br />
mente, a questão da água passou a ser um problema, dado que esse tipo<br />
<strong>de</strong> monocultura possui uma <strong>de</strong>manda gran<strong>de</strong> <strong>de</strong> água para seu <strong>de</strong>senvolvimento,<br />
conforme já abordado.<br />
A Fibria possui um equivalente <strong>de</strong> 197 mil hectares <strong>de</strong> plantios <strong>de</strong> eucalipto<br />
nos estados do Espírito Santo, Bahia e Minas Gerais. Estes, por sua vez,<br />
abastecem o complexo industrial <strong>de</strong> Aracruz, sendo 99 mil só no estado<br />
da Bahia (FIBRIA, 2017). Desta maneira, é plausível i<strong>de</strong>alizar o quanto<br />
a proporção <strong>de</strong>sse plantio é significante e expressiva nessa região e nas<br />
<strong>de</strong>mais mencionadas, e com a mesma <strong>de</strong>manda por um contingente significativo<br />
<strong>de</strong> recursos hídricos.<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
O presente artigo apresentou o processo <strong>de</strong> implantação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s<br />
empreendimentos em Barra do Riacho, no município <strong>de</strong> Aracruz, e alguns<br />
<strong>de</strong> seus impactos socioambientais, sobretudo a indústria Aracruz<br />
Celulose (atual Fibria). Foi visto que sua presença traz uma série <strong>de</strong> implicações<br />
para a comunida<strong>de</strong> diante da apropriação dos recursos hídricos do<br />
local. O objetivo foi visibilizar os problemas que a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barra<br />
do Riacho vem enfrentando, do ponto <strong>de</strong> vista socioambiental, bem como<br />
reiterar a manipulação que a empresa possui dos recursos hídricos que<br />
fluem na região através do controle das comportas que foram construídas<br />
com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> barrar o fluxo <strong>de</strong> água que <strong>de</strong>sembocaria no rio Riacho,<br />
afetando a comunida<strong>de</strong> como um todo, sobretudo a pesca.<br />
A razão do trabalho também se <strong>de</strong>u para mostrar os processos <strong>de</strong> construção<br />
do canal Caboclo Bernardo no ano <strong>de</strong> 1999, em que ele passou por<br />
um <strong>de</strong>svio <strong>de</strong> funcionalida<strong>de</strong> quanto à razão matriz <strong>de</strong> sua existência: da<br />
garantia do abastecimento público ao fornecimento <strong>de</strong> água para as indústrias.<br />
Depois que a Fibria tomou responsabilida<strong>de</strong> pela execução da<br />
obra, os recursos hídricos provenientes do rio Doce serviram para o abastecimento<br />
da terceira fábrica (unida<strong>de</strong> C).<br />
Essa ação mostra como o po<strong>de</strong>r econômico possui força no âmbito <strong>de</strong><br />
abastecimento <strong>de</strong> recursos hídricos, contrapondo-se, sobretudo, às <strong>de</strong>mandas<br />
da comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barra do Riacho e das pessoas que ali resi<strong>de</strong>m<br />
e <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do abastecimento <strong>de</strong> água tanto quanto a indústria. Destaca-<br />
77
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
se, também, o volume <strong>de</strong> água que abastece a indústria no âmbito <strong>de</strong> sua<br />
produção, pois são necessários cerca <strong>de</strong> 250 mil m³ para a produção diária<br />
<strong>de</strong> celulose, processo que traz indignação para quem precisa da água e<br />
não tem acesso a ela como <strong>de</strong>veria.<br />
Constata-se, ainda, que o processo <strong>de</strong> captação dos recursos hídricos e<br />
do plantio <strong>de</strong> eucalipto em diversas áreas por parte da Fibria foi resultado<br />
<strong>de</strong> uma série <strong>de</strong> alterações que ocorreram no espaço e na cultura,<br />
sobretudo na pesca, causando transformações nas características físicas,<br />
sociais e econômicas do local, <strong>de</strong> modo conjugado com outras causas e<br />
fatores aqui não tratados. E isso tudo acabou por alterar as dinâmicas da<br />
comunida<strong>de</strong>, trazendo expressivas consequências no modo <strong>de</strong> vida que<br />
tradicionalmente é composto pela pesca.<br />
Em suma, foi possível evi<strong>de</strong>nciar os danos que uma indústria <strong>de</strong>sse segmento<br />
po<strong>de</strong> causar à vida e ao cotidiano das pessoas que moram no seu<br />
entorno. Ficou patente, na investigação, a presença do po<strong>de</strong>r público no<br />
auxílio dado à execução da obra do canal Caboclo Bernardo. Ao final, o<br />
abastecimento <strong>de</strong> água beneficiou exclusivamente a indústria e não mais<br />
as comunida<strong>de</strong>s, o que resulta em muitos impactos na comunida<strong>de</strong>, como<br />
foi exposto no <strong>de</strong>correr do artigo.<br />
78
Capítulo 2<br />
REFERênciAS<br />
ARACRUZ CELULOSE S.A. Canal Caboclo Bernardo: Projeto conquista<br />
prêmio em nível nacional e estadual. Jornal da Aracruz. Aracruz, maio<br />
<strong>de</strong> 2000, p. 6-7.<br />
COELHO, A. L. N. Alterações hidrogeomorfológicas no médio-baixo<br />
rio Doce/ES. (Tese). Doutorado em Geografia, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral Fluminense:<br />
Niterói, 2007.<br />
FIBRIA. Institucional – Histórico. Disponível em: . Acesso em: 27 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2017.<br />
FIBRIA. Resumo público do Plano <strong>de</strong> Manejo Florestal. FIBRIA - Unida<strong>de</strong><br />
Aracruz. Regiões dos Estados do Espírito Santo, da Bahia e <strong>de</strong> Minas<br />
Gerais. 8ª ed. Outubro <strong>de</strong> 2016.<br />
MANSUR, R. ARACRUZ, os primeiros passos do plantio comercial do<br />
eucalipto - O CRUZEIRO, 1970. In: VITRINE CAPIXABA, 24 <strong>de</strong> maio<br />
<strong>de</strong> 2017. Disponível em: . Acesso em: 1 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong><br />
2017.<br />
MEIRELLES, D. & CALAZANS, M. H2O para Celulose X Água para todas<br />
as línguas: o conflito ambiental no entorno da Aracruz Celulose S.A.<br />
Fe<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> Órgãos para Assistência Social e Educacional - FASE, Espírito<br />
Santo, 2006.<br />
REBELLO, W. S. O papel dos canais do DNOS nas várzeas do Riacho<br />
(ES): Estudo <strong>de</strong> caso sobre a constituição técnico-científica da configuração<br />
territorial capixaba. (Dissertação). Mestrado em Geografia, Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo: Vitória, 2012.<br />
SANTOS, C. S. & SILVA, J. L. C. Os impactos do plantio <strong>de</strong> eucalipto e da<br />
produção <strong>de</strong> celulose em comunida<strong>de</strong>s tradicionais no extremo sul baiano.<br />
In: Anais. II Encontro da Associação Nacional <strong>de</strong> Pós-Graduação e<br />
Pesquisa em Ambiente e Socieda<strong>de</strong> (ANPPAS). Indaiatuba, São Paulo, 26<br />
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Acesso em: 2 <strong>de</strong><br />
outubro <strong>de</strong> 2017.<br />
TRIGUEIRO, A. & KNOX, W. Imagens da pesca artesanal no Espírito<br />
Santo. Vitória: GM, 2013.<br />
79
80
Capítulo 3<br />
Projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento: o caso da<br />
criação <strong>de</strong> duas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação<br />
em Aracruz (ES)<br />
Mariana Pimenta <strong>de</strong> Alvarenga Prates<br />
INTRODUção<br />
O presente artigo analisa o processo que culminou com a criação <strong>de</strong><br />
duas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação (UC) no município <strong>de</strong> Aracruz (ES): a Área<br />
<strong>de</strong> Proteção Ambiental (APA) Costa das Algas e o Refúgio <strong>de</strong> <strong>Vida</strong> Silvestre<br />
(REVIS) <strong>de</strong> Santa Cruz. O contexto da investigação é a localida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Barra do Riacho, uma comunida<strong>de</strong> originalmente formada por pescadores<br />
artesanais, hoje cercada por gran<strong>de</strong>s empreendimentos. Entre o início<br />
da proposta e a criação das unida<strong>de</strong>s, o processo durou oito anos, <strong>de</strong> 2002<br />
a 2010, e somente se concretizou porque foi atrelado a outro projeto: a instalação<br />
do Estaleiro Jurong Aracruz (EJA), um gran<strong>de</strong> empreendimento.<br />
Desse modo, o objetivo do presente artigo é mostrar como a chegada <strong>de</strong>sse<br />
megaempreendimento foi o impulso necessário para que as duas unida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> conservação saíssem do papel. Buscarei discutir, com isso, como<br />
a preservação e o <strong>de</strong>senvolvimento po<strong>de</strong>m estar fortemente entrelaçados.<br />
Barra do Riacho é um bairro litorâneo do município <strong>de</strong> Aracruz (ES) e<br />
sua população aproximada, segundo o senso do IBGE <strong>de</strong> 2010, é <strong>de</strong> 6.000<br />
habitantes, embora os moradores entrevistados tenham dito que a população<br />
já chega a quase 10.000. Atualmente, representa um dos maiores<br />
polos industriais do Espírito Santo, com a presença <strong>de</strong> algumas das<br />
principais empresas do estado, como, por exemplo, Fibria, Evonik Degussa,<br />
Canexus, Portocel, Imetame, Jurong, Petrobras, Nutripetro e outras <strong>de</strong><br />
proporções menores. Antes da chegada <strong>de</strong>ssas empresas, a Barra era uma<br />
vila pesqueira, e até hoje gran<strong>de</strong> parte da comunida<strong>de</strong> ainda <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da<br />
ativida<strong>de</strong> da pesca. O tipo <strong>de</strong> pesca praticado é a pesca artesanal e em<br />
pequena escala, porém essa prática vem se alterando <strong>de</strong>vido aos impactos<br />
gerados pelos empreendimentos ao redor e à presença maciça <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s<br />
embarcações <strong>de</strong> pesca, que contribuem para a escassez <strong>de</strong> peixes.<br />
81
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Na primeira parte do texto, apresento como se <strong>de</strong>u o processo <strong>de</strong> criação<br />
da proposta <strong>de</strong> preservação <strong>de</strong> parte da área costeira do bioma marinho<br />
entre as localida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Nova Almeida, no município da Serra, e Barra do<br />
Riacho, em Aracruz. Cabe ressaltar que, mesmo com o projeto pronto, as<br />
unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação só pu<strong>de</strong>ram ser efetivamente criadas quase <strong>de</strong>z<br />
anos <strong>de</strong>pois, com a pretensão do governo <strong>de</strong> Paulo Hartung <strong>de</strong> permitir a<br />
instalação <strong>de</strong> um estaleiro na região. Para tanto, a segunda parte do artigo<br />
discute como foi o processo <strong>de</strong> instalação do Estaleiro Jurong Aracruz<br />
(EJA) na Barra do Sahy, área contígua à área pretendida para preservação.<br />
Na terceira parte, analiso os entrecruzamentos da chegada do EJA<br />
e do projeto <strong>de</strong> criação da APA Costa das Algas e REVIS <strong>de</strong> Santa Cruz,<br />
e como, neste caso, a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong> produzir impactos, o empreendimento<br />
esteve diretamente relacionado com as unida<strong>de</strong>s, as quais, cabe ressaltar,<br />
ainda não têm um plano <strong>de</strong> manejo. Segundo dados coletados, os dois<br />
projetos teriam se concretizado sob a justificativa da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um<br />
convívio harmônico entre ambos, a partir do discurso do <strong>de</strong>senvolvimento<br />
sustentável.<br />
Para o presente trabalho, utilizei as entrevistas realizadas em conjunto<br />
com o programa <strong>de</strong> extensão do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisa em Populações<br />
Pesqueiras e Desenvolvimento no Espiríto Santo (GEPPEDES) com<br />
alguns pescadores e outros moradores <strong>de</strong> Barra do Riacho e com os gestores<br />
ambientais do Instituto Chico Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Conservação da Biodiversida<strong>de</strong><br />
(ICMBio), responsáveis pelas duas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação. Além<br />
do material das entrevistas, analisei os documentos dos projetos das duas<br />
UC’s e do EJA e pesquisei trabalhos já realizados na área por meio <strong>de</strong><br />
revisão bibliográfica.<br />
PROCESSO <strong>de</strong> criação DA APA COSTA DAS ALGAS e REVIS <strong>de</strong><br />
SANTA CRUZ<br />
O município <strong>de</strong> Aracruz, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a década <strong>de</strong> 1960, tem se <strong>de</strong>stacado<br />
como um palco importante para os projetos <strong>de</strong>senvolvimentistas do estado,<br />
em especial a ca<strong>de</strong>ia da produção da celulose, que inclui: a) a fábrica<br />
da Fibria; b) o Portocel I, um dos maiores portos exportadores <strong>de</strong>ssa<br />
commodity, em fase <strong>de</strong> expansão; e c) duas empresas produtoras <strong>de</strong><br />
químicos para o branqueamento da celulose, Evonik Degusa e Canexus.<br />
82
Capítulo 3<br />
Além <strong>de</strong>sse polo <strong>de</strong> produção <strong>de</strong> celulose, há ainda a ca<strong>de</strong>ia do petróleo,<br />
com <strong>de</strong>staques para os empreendimentos: Petrobras, Nutripetro, Jurong<br />
e Imetame. Todos esses empreendimentos encontram-se nas imediações<br />
ou inseridos na localida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barra do Riacho.<br />
Observa-se, portanto, que Barra do Riacho reúne no seu território dois<br />
contextos pensados, em princípio, como antagônicos: os investimentos<br />
em gran<strong>de</strong>s projetos econômicos e um valoroso ecossistema, que em parte<br />
se encontra incluído na política <strong>de</strong> áreas protegidas: a Área <strong>de</strong> Proteção<br />
Ambiental (APA) Costa das Algas e o Refúgio <strong>de</strong> <strong>Vida</strong> Silvestre (REVIS)<br />
<strong>de</strong> Santa Cruz, conforme abordaremos adiante.<br />
A criação <strong>de</strong>ssas duas áreas protegidas tem uma história que merece ser<br />
contada, e será esse o nosso compromisso nesta parte do artigo.<br />
A faixa central do litoral do Espírito Santo apresenta um mosaico <strong>de</strong><br />
ecossistemas único no Brasil, e a região costeira <strong>de</strong> Aracruz está no meio<br />
<strong>de</strong>sse mosaico (TAVARES, 2013). Não é <strong>de</strong> espantar que a região costeira<br />
e marinha que vai <strong>de</strong> Barra do Sahy até Carapebus, na Serra, seja classificada<br />
como <strong>de</strong> importância biológica extremamente alta, além <strong>de</strong> estar<br />
incluída no “Mapa das Áreas Prioritárias para a Conservação, Utilização<br />
Sustentável e Repartição <strong>de</strong> Benefícios da Biodiversida<strong>de</strong> Brasileira”, publicado<br />
pelo Ministério do Meio Ambiente em 2003 e que serve <strong>de</strong> indicativo<br />
para as áreas prioritárias para a criação <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação<br />
(IBAMA, 2006).<br />
83
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Figura 1: Áreas Prioritárias para a Conservação Costeira e Marinha do<br />
Brasil – Plantas Marinhas.<br />
Fonte: Elaboração <strong>de</strong> Jerônimo Amaral <strong>de</strong> Carvalho.<br />
De acordo com o “Relatório final da proposta <strong>de</strong> criação das unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong><br />
conservação Área <strong>de</strong> Proteção Ambiental Costa das Algas e Refúgio <strong>de</strong><br />
<strong>Vida</strong> Silvestre <strong>de</strong> Santa Cruz”, produzido pelo Instituto Brasileiro do Meio<br />
Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (IBAMA), o Ministério do<br />
Meio Ambiente (MMA) publicou, em um documento <strong>de</strong> 2002, que as macroalgas<br />
bênticas, cianobactérias e angiospermas, que ocorrem na região<br />
proposta para as UC’s, constituem um elo fundamental dos ecossistemas<br />
costeiros. E, ainda, segundo o relatório temático sobre plantas marinhas:<br />
[...] embora a flora da Bahia e a do Espírito Santo não estejam<br />
muito bem estudadas, esta última região, e sua extensão até a região<br />
norte <strong>de</strong> Búzios (RJ), parece reunir peculiarida<strong>de</strong>s distintivas<br />
no que diz respeito à ocorrência <strong>de</strong> algas bênticas. Uma característica<br />
marcante <strong>de</strong>sta região é a presença <strong>de</strong> uma vasta área coberta<br />
por fundos <strong>de</strong> algas calcárias do tipo mäerl, ou rodolitos, a<br />
qual se esten<strong>de</strong> a várias <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> metros <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>, mas<br />
que chega a aflorar nas marés baixas, sobretudo na costa nor<strong>de</strong>s-<br />
84
Capítulo 3<br />
te. Estes fundos, cujo teor em carbonatos é superior a 90%, são<br />
ainda estruturados por artículos <strong>de</strong> Halimeda, além <strong>de</strong> fragmentos<br />
<strong>de</strong> outras algas ver<strong>de</strong>s como Udotea e Penicillus. Este ambiente<br />
abriga uma diversificada flora <strong>de</strong> macroalgas bênticas ainda<br />
muito pouco estudada. Um outro aspecto biogeográfico digno <strong>de</strong><br />
nota é a ocorrência <strong>de</strong> um banco <strong>de</strong> algas pardas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s dimensões<br />
(kelps) que abriga duas espécies endêmicas do gênero<br />
Laminaria (Joly & Oliveira, 1964 apud IBAMA, 2006, s.p.).<br />
No entanto, o relatório também <strong>de</strong>staca que, em relação à pressão antrópica,<br />
a região costeira e marinha dos municípios <strong>de</strong> Aracruz, Fundão<br />
e Serra é classificada como <strong>de</strong> alto nível pelo mapa <strong>de</strong> ações antrópicas<br />
do documento acima citado. Isto ocorre <strong>de</strong>vido à cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Aracruz também<br />
ser palco importante para projetos <strong>de</strong>senvolvimentistas do estado<br />
do Espírito Santo, principalmente nas modalida<strong>de</strong>s portuária, industrial<br />
e <strong>de</strong> exploração <strong>de</strong> petróleo e gás. Barra do Riacho engloba os dois contextos,<br />
<strong>de</strong> área prioritária para conservação e <strong>de</strong> área <strong>de</strong>dicada à expansão<br />
econômica. Portanto, para preservar os estoques marinhos da região<br />
dos impactos recorrentes das empresas, ambientalistas locais passaram<br />
a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r, no início dos anos 2000, a criação <strong>de</strong> uma área <strong>de</strong> proteção<br />
marinha. Em 2002, um primeiro pedido formal para a criação <strong>de</strong> uma<br />
UC se concretizaria com a ameaça da instalação <strong>de</strong> uma nova empresa,<br />
a Thotham Mineração Marítima Ltda., que pretendia explorar as algas<br />
calcárias em larga escala no litoral <strong>de</strong> Santa Cruz (SANTOS, 2007).<br />
A primeira proposta <strong>de</strong> UC voltada para a área foi a <strong>de</strong> um Parque Nacional<br />
Marinho (PARNA). O pedido solicitando a criação do PARNA <strong>de</strong> Santa<br />
Cruz foi protocolado em 27 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2002 na Gerência Executiva<br />
do IBAMA no Espírito Santo (IBAMA, 2007). De acordo com um dos entrevistados<br />
1 , as comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Santa Cruz, Barra do Sahy e Barra do Riacho<br />
tiveram um papel relevante na solicitação do pedido para a criação da<br />
UC. No relatório analisado, consta que, além da intenção <strong>de</strong> se preservar<br />
as características biológicas locais, outro ponto importante para a criação<br />
<strong>de</strong> uma UC era garantir que os usos dos recursos da área fossem restritos<br />
à ativida<strong>de</strong> pesqueira <strong>de</strong> pequena escala, própria das comunida<strong>de</strong>s que<br />
1 Entrevista realizada pelo GEPPEDES, em junho <strong>de</strong> 2017, com morador <strong>de</strong> Barra do<br />
Riacho (ES).<br />
85
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
ro<strong>de</strong>iam a costa dos municípios <strong>de</strong> Aracruz, Fundão e Serra. O objetivo<br />
era acabar com o conflito que as comunida<strong>de</strong>s pesqueiras locais tinham,<br />
e ainda têm, com gran<strong>de</strong>s barcos <strong>de</strong> pesca mecanizados e <strong>de</strong> larga escala,<br />
provenientes <strong>de</strong> outras regiões do Espírito Santo e <strong>de</strong> outros estados.<br />
Figura 2: Área da proposta do PARNA <strong>de</strong> Santa Cruz.<br />
Fonte: IBAMA, 2006.<br />
No dia 4 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2003, a proposta para criação do PARNA foi colocada<br />
em consulta pública no site do IBAMA, o que gerou uma manifestação<br />
contrária a ela por parte dos setores empresarial e pesqueiro da região. A<br />
Fe<strong>de</strong>ração das Indústrias do Espírito Santo (FINDES) solicitou ao IBA-<br />
MA, ao MMA e ao Governo do Estado que a proposta fosse reavaliada,<br />
visto que po<strong>de</strong>ria prejudicar as ativida<strong>de</strong>s industriais da região <strong>de</strong> Barra<br />
do Riacho, principalmente as ativida<strong>de</strong>s portuárias, petrolíferas marinhas<br />
e da Aracruz Celulose S.A., atual Fibria. Além da FINDES, outra reação<br />
contrária veio da Colônia <strong>de</strong> Pescadores <strong>de</strong> Barra do Riacho – Z7, embora<br />
ela, no começo, fosse também proponente da criação do parque (IBAMA,<br />
2006). O motivo pelo qual, em um segundo momento, os pescadores da<br />
região não foram favoráveis à proposta é que a área do PARNA estaria<br />
fechada não só para barcos gran<strong>de</strong>s <strong>de</strong> fora como também para os barcos<br />
artesanais locais, uma vez que, segundo o Sistema Nacional <strong>de</strong> Unida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> Conservação (SNUC), um Parque Nacional faz parte da categoria <strong>de</strong><br />
proteção integral e, portanto, é permitido apenas o uso indireto dos recursos<br />
naturais (SANTOS, 2007). De acordo com o Artigo 11 do SNUC,<br />
O Parque Nacional tem como objetivo básico a preservação <strong>de</strong><br />
ecossistemas naturais <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> relevância ecológica e beleza<br />
86
Capítulo 3<br />
cênica, possibilitando a realização <strong>de</strong> pesquisas científicas e o<br />
<strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> educação e interpretação ambiental,<br />
<strong>de</strong> recreação em contato com a natureza e <strong>de</strong> turismo<br />
ecológico (SNUC, 2000, p. 22-23).<br />
Segundo consta no relatório, o parecer contrário ao parque obtido<br />
pela consulta pública resultou numa reunião entre a coor<strong>de</strong>nação da<br />
Diretoria <strong>de</strong> Ecossistemas do IBAMA/ES, representantes das instituições<br />
proponentes, das indústrias, da Prefeitura <strong>de</strong> Aracruz e da Colônia <strong>de</strong><br />
Pescadores <strong>de</strong> Barra do Riacho – Z7. A reunião <strong>de</strong>terminou a realização<br />
<strong>de</strong> novos estudos e avaliações para a proposta <strong>de</strong> criação da UC no lugar<br />
<strong>de</strong> um PARNA, ou seja, outra categoria <strong>de</strong> UC, e também formou uma<br />
comissão <strong>de</strong> acompanhamento composta por representantes dos órgãos<br />
públicos, do setor produtivo e da socieda<strong>de</strong> civil (IBAMA, 2006).<br />
Ainda em relação a manifestações contrárias à criação do parque, em 21<br />
<strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2003, a ONG empresarial Movimento Espírito Santo em<br />
Ação (MESAção) entregou ao gerente executivo do IBAMA/ES uma correspondência<br />
manifestando a preocupação do setor empresarial do estado<br />
em relação à criação do PARNA Marinho <strong>de</strong> Santa Cruz.<br />
Segundo a <strong>de</strong>claração do MESAção, a criação <strong>de</strong> UC’s é um mecanismo<br />
que só se justifica quando há risco <strong>de</strong> <strong>de</strong>gradação ambiental, o que não<br />
seria o caso da região e que, sem trazer ganhos ambientais, a criação do<br />
Parque <strong>de</strong> Santa Cruz traria restrições ao uso econômico da região do entorno<br />
e prejuízos para a socieda<strong>de</strong> (IBAMA, 2006).<br />
O MESAção ainda alegou que dados técnicos <strong>de</strong>monstraram que não há<br />
nenhuma área <strong>de</strong>gradada na região em que o parque pretendia se instalar;<br />
no entanto, esses dados nunca foram apresentados pela ONG (IBA-<br />
MA, 2006).<br />
Consi<strong>de</strong>rando os pareceres contrários, tanto do setor empresarial quanto<br />
do setor pesqueiro, os estudos e as avaliações da área para criação da UC<br />
incluíram um levantamento sobre os impactos da ação antrópica na região,<br />
como, por exemplo, o tráfego naval sobre a área proposta e um diagnóstico<br />
da ativida<strong>de</strong> pesqueira nas comunida<strong>de</strong>s locais. Analisando os estudos,<br />
percebe-se que três fatores ganharam relevo: primeiro, a área realmente<br />
possui importantes características dignas <strong>de</strong> preservação; segundo, <strong>de</strong>ntro<br />
87
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
da área se encontram importantes pontos <strong>de</strong> pesca para as comunida<strong>de</strong>s<br />
artesanais vizinhas; e, por fim, existe uma forte presença <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s empresas<br />
próximas e até mesmo <strong>de</strong>ntro da área proposta para zona <strong>de</strong> amortecimento.<br />
O primeiro ponto mostra que uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conservação era<br />
necessária na região; contudo, a categoria que havia sido escolhida, a <strong>de</strong><br />
Parque Nacional, não se harmonizava com as ativida<strong>de</strong>s antrópicas presentes<br />
(IBAMA, 2006). Outro ponto relevante que inviabilizou a proposta<br />
do parque, segundo o relatório do IBAMA (2006), é que a maior parte da<br />
área se situa em mar aberto e as condições <strong>de</strong> transparência da água não<br />
favorecem o turismo <strong>de</strong> mergulho, o que acaba sendo um ponto forte <strong>de</strong><br />
outros PARNA’s Marinhos, como o <strong>de</strong> Fernando <strong>de</strong> Noronha e Abrolhos.<br />
Portanto, iniciou-se um processo <strong>de</strong> busca por outra categoria, ou categorias,<br />
<strong>de</strong> UC que aten<strong>de</strong>sse às <strong>de</strong>mandas da localida<strong>de</strong>, e a proposta mais<br />
viável era a <strong>de</strong> uma Área <strong>de</strong> Proteção Ambiental (APA) e <strong>de</strong> um Refúgio <strong>de</strong><br />
<strong>Vida</strong> Silvestre (REVIS). Em entrevista concedida pelos gestores das UC’s 2 ,<br />
um <strong>de</strong>les contou que “[...] viu-se que com o Parque Nacional realmente ia<br />
ser bastante complexo, porque Parque Nacional você não po<strong>de</strong> ter nenhuma<br />
ativida<strong>de</strong> extrativa [...], só mesmo ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uso indireto, turismo,<br />
visitação, pesquisa”. Então, a segunda proposta <strong>de</strong> área protegida foi dividir<br />
o território em duas unida<strong>de</strong>s, o REVIS <strong>de</strong> Santa Cruz e a APA Costa<br />
das Algas. Esta última era o mo<strong>de</strong>lo mais <strong>de</strong>fendido pelas comunida<strong>de</strong>s<br />
pesqueiras, além da categoria <strong>de</strong> Reserva Extrativista (SANTOS, 2007).<br />
O objetivo da escolha das duas categorias era aten<strong>de</strong>r tanto os anseios<br />
por uma proteção integral da área <strong>de</strong> fundo marinho quanto por um uso<br />
sustentável dos recursos naturais, <strong>de</strong> acordo com os gestores do ICMBio.<br />
A escolha <strong>de</strong>ssas categorias consi<strong>de</strong>rou alguns elementos importantes,<br />
como: a priorida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se conservar a região marinha e costeira entre o<br />
litoral norte da Serra e Barra do Riacho; a importância da região para as<br />
ativida<strong>de</strong>s pesqueiras <strong>de</strong> pequena escala e <strong>de</strong> subsistência; a valorização<br />
do uso turístico da região; a presença <strong>de</strong> polos industriais e portuários e<br />
sua “importância econômica e estratégica” (IBAMA, 2006, s.p.).<br />
Em relação à criação do Refúgio <strong>de</strong> <strong>Vida</strong> Silvestre <strong>de</strong> Santa Cruz, uma UC<br />
<strong>de</strong> uso integral se justificou:<br />
2 Entrevista realizada pelo GEPPEDES, em agosto <strong>de</strong> 2016.<br />
88
Capítulo 3<br />
[...] face à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> proteção <strong>de</strong> uma porção da área i<strong>de</strong>ntificada<br />
como <strong>de</strong> alta biodiversida<strong>de</strong> e extrema importância para<br />
a conservação, que possa contribuir para a recomposição dos recursos<br />
biológicos, proporcionando sítios <strong>de</strong>monstrativos da biodiversida<strong>de</strong><br />
natural da região (IBAMA, 2006, s. p.).<br />
A área <strong>de</strong> uso integral também seria importante para que os estoques,<br />
principalmente os pesqueiros, tivessem um espaço <strong>de</strong> recuperação para<br />
serem posteriormente explorados sustentavelmente na área da APA pelos<br />
pescadores artesanais da região. A proposta inicial para a área do REVIS<br />
abrangia, aproximadamente, 427 km² ou 42.726 hectares. Outro aspecto<br />
da categoria <strong>de</strong> REVIS que foi vantajoso para a região, na visão do IBA-<br />
MA, é que ela po<strong>de</strong> ser constituída por áreas particulares, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que os<br />
seus proprietários respeitem o manejo apropriado para esse tipo <strong>de</strong> UC.<br />
Caso contrário, a área po<strong>de</strong> ser <strong>de</strong>sapropriada (IBAMA, 2006).<br />
Quanto à criação <strong>de</strong> uma APA, UC do grupo <strong>de</strong> uso sustentável, o relatório<br />
do IBAMA (2006) <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que esta oferece oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> gestão e<br />
controle dos usos <strong>de</strong> uma região, estabelecendo normatizações e zoneamentos<br />
que orientam as formas <strong>de</strong> acesso aos recursos naturais, garantindo<br />
a conservação da biodiversida<strong>de</strong> e os benefícios sociais do uso sustentável<br />
dos recursos.<br />
Desta forma, intentou-se, oficialmente, que a ativida<strong>de</strong> pesqueira praticada<br />
na região não fosse afetada, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ocorresse <strong>de</strong> maneira sustentável,<br />
ou seja, em pequenas escalas. A configuração da área em APA<br />
também era vantajosa para o setor industrial, uma vez que ela não precisa<br />
<strong>de</strong> zona <strong>de</strong> amortecimento, po<strong>de</strong>ndo estar próxima a empreendimentos<br />
locais. A área da proposta inicial para a APA abrangia, aproximadamente,<br />
1.023 km² ou 102.380 hectares (IBAMA, 2006).<br />
A consulta pública para criação das UC’s foi realizada no dia 5 <strong>de</strong> outubro<br />
2005, no SESC Praia Formosa em Santa Cruz, Aracruz (ES). Segundo o<br />
IBAMA (2006), cerca <strong>de</strong> 650 pessoas compareceram, sendo que gran<strong>de</strong><br />
parte era <strong>de</strong> pescadores e moradores das comunida<strong>de</strong>s vizinhas. Não houve<br />
divergências em relação à criação da APA, porém a criação do REVIS<br />
incomodou um pouco, principalmente quanto à área que ele iria abarcar<br />
(SANTOS, 2007). Portanto, duas outras propostas <strong>de</strong> área foram feitas a<br />
fim <strong>de</strong> a<strong>de</strong>quar, o melhor possível, as <strong>de</strong>mandas das comunida<strong>de</strong>s.<br />
89
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Figura 3: Limites propostos para a criação do Refúgio Silvestre <strong>de</strong> Santa<br />
Cruz e Área <strong>de</strong> Proteção Ambiental Costa das Algas.<br />
Fonte: Elaborado por Jerônimo Amaral <strong>de</strong> Carvalho.<br />
Na proposta final, a área do REVIS ficou em, aproximadamente, 289 km² ou<br />
28.895 hectares (no mapa sinalizada pela cor vermelha). Já a área da APA foi<br />
para, aproximadamente, 1.162,15 km² ou 116.215 hectares (no mapa sinalizada<br />
pela cor azul). Os objetivos da criação do Refúgio <strong>de</strong> <strong>Vida</strong> Silvestre eram:<br />
I - proteger a diversida<strong>de</strong> biológica e os ambientes naturais, principalmente<br />
os fundos colonizados por algas e fauna associada,<br />
as espécies resi<strong>de</strong>ntes e migratórias que utilizam a área para alimentação,<br />
reprodução e abrigo, os manguezais e vegetação costeira<br />
e as formações sedimentares bioclásticas e litoclásticas;<br />
II - or<strong>de</strong>nar o uso e a ocupação da orla marítima para proteger<br />
e recuperar os manguezais e as formações vegetacionais da faixa<br />
costeira e valorizar o uso turístico, recreacional e educativo da orla;<br />
III – contribuir para a recuperação dos recursos biológicos e para<br />
a sustentabilida<strong>de</strong> das ativida<strong>de</strong>s pesqueiras e extrativistas <strong>de</strong><br />
subsistência e <strong>de</strong> pequena escala praticadas pelas comunida<strong>de</strong>s<br />
90
Capítulo 3<br />
costeiras da região, no entorno da Unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Conservação (IBA-<br />
MA, 2006, s.p.).<br />
E os objetivos da criação da Área <strong>de</strong> Proteção Ambiental Costa das Algas<br />
eram:<br />
I - proteger a diversida<strong>de</strong> biológica e os ambientes naturais, principalmente<br />
osfundos colonizados por algas e fauna associada, as<br />
espécies resi<strong>de</strong>ntes e migratórias que utilizam a área para alimentação,<br />
reprodução e abrigo, os manguezais e vegetação costeira e<br />
as formações sedimentares bioclásticas e litoclásticas;<br />
II – efetuar a gestão do uso dos recursos pesqueiros e organismos<br />
marinhos, buscando garantir a conservação da biodiversida<strong>de</strong>, o<br />
uso sustentável dos recursos naturais e a valorização das ativida<strong>de</strong>s<br />
pesqueiras e extrativistas <strong>de</strong> subsistência e <strong>de</strong> pequena escala<br />
praticadas pelas comunida<strong>de</strong>s da região;<br />
III - orientar o uso e a ocupação da orla marítima visando à proteção<br />
e recuperação das formações vegetacionais da faixa costeira e<br />
a proteção e valorização das paisagens naturais e belezas cênicas<br />
(IBAMA, 2006, s.p.).<br />
Portanto, a criação das unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação não só ajudaria no empenho<br />
<strong>de</strong> ambientalistas em proteger a área da exploração do setor empresarial<br />
como também contribuiria para a causa dos pescadores artesanais<br />
em restringir a área <strong>de</strong> pesca apenas para as modalida<strong>de</strong>s tradicionais,<br />
impedindo a pesca <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> escala e mecanizada por parte <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s<br />
embarcações provenientes do sul e norte do Espírito Santo, e também <strong>de</strong><br />
outros estados. No entanto, mesmo <strong>de</strong>pois do entendimento <strong>de</strong> ambos<br />
os lados, pescadores e órgãos ambientais, o processo só foi apoiado e viabilizado<br />
pelo governo estadual após mudanças feitas para que ele ficasse<br />
compatível com a intenção do empreendimento do Estaleiro Jurong<br />
Aracruz (EJA), que previa a construção <strong>de</strong> plataformas para exploração<br />
<strong>de</strong> petróleo e gás, entre Barra do Riacho e Barra do Sahy, tal como abordaremos<br />
adiante.<br />
91
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
PROCESSO <strong>de</strong> INSTALAção do ESTALEIRO JURONG ARACRUZ<br />
De acordo com o Instituto Jones dos Santos Neves (IJSN, 2006), entre<br />
os anos 2006 e 2011, o Espírito Santo recebeu em investimentos cerca <strong>de</strong><br />
R$ 46 bilhões, e o município <strong>de</strong> Aracruz, localizado no Polo Linhares, estava<br />
entre as localida<strong>de</strong>s com maior expectativa <strong>de</strong> potencial econômico.<br />
Um dos investimentos para a área girava em torno da expansão do setor<br />
petroquímico, e foi com esse intuito que o Governo do Estado arquitetou,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2004, o projeto <strong>de</strong> construção <strong>de</strong> um estaleiro em Barra do Riacho<br />
(VIEIRA, 2012). O objetivo era a “instalação <strong>de</strong> um estaleiro <strong>de</strong>stinado<br />
para a construção e reparo naval. O foco principal [seria] o fornecimento<br />
<strong>de</strong> sondas <strong>de</strong> perfuração e navios plataforma FPSO para os campos do<br />
Pré-sal” (CTA, 2009, s.p.).<br />
O estaleiro construído pertence à Jurong do Brasil Ltda., que faz parte do<br />
Grupo SembCorpMarine Ltda., localizado em Cingapura, na Ásia. A empresa<br />
é responsável pela construção e operação <strong>de</strong> estaleiros em diversos<br />
países, como China, Índia, Estados Unidos e Indonésia. A Jurong do Brasil<br />
Ltda. fornece e transforma plataformas para a Petrobras <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 1996.<br />
Atualmente, 40% da produção offshore, ou seja, em alto-mar, da Petrobras<br />
é realizada pela Jurong.<br />
Segundo Luiz Henrique Vieira (2012), quase não houve participação das<br />
comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Barra do Riacho e Barra do Sahy, vizinhas ao empreendimento,<br />
<strong>de</strong>vido à falta <strong>de</strong> reuniões e audiências públicas nas localida<strong>de</strong>s.<br />
Em relação à visão geral que a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barra do Riacho tem da<br />
empresa, esta não é nem um pouco favorável. Para os moradores, a Jurong<br />
não trouxe nenhum benefício, as condicionantes ainda não foram cumpridas<br />
e as oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> emprego que haviam sido prometidas para<br />
a população nunca chegaram. Mesmo com manifestações contrárias ao<br />
projeto, o Estaleiro Jurong Aracruz ganhou o processo licitatório da Petrobras,<br />
assim dando início aos trâmites para sua instalação (VIEIRA, 2012).<br />
Segundo Vieira (2012), e também consi<strong>de</strong>rando o relato <strong>de</strong> um morador<br />
<strong>de</strong> Barra do Riacho 3 , o processo <strong>de</strong> licenciamento da Jurong, conduzido<br />
pela empresa Serviços em Meio Ambiente e Engenharia – CTA, foi avaliado<br />
pelo corpo técnico do Instituto Estadual <strong>de</strong> Meio Ambiente e Recursos<br />
3 Entrevista realizada pelo GEPPEDES, em junho <strong>de</strong> 2017.<br />
92
Capítulo 3<br />
Hídricos (IEMA) como inviável para a área pretendida, visto que po<strong>de</strong>ria<br />
<strong>de</strong>gradar a riqueza marinha local, importante por abrigar vegetação litorânea<br />
e estruturas rochosas que são pontos <strong>de</strong> reprodução e alimentação<br />
<strong>de</strong> espécies endêmicas como, por exemplo, o camarão rosa. Contudo, o<br />
processo foi aprovado como utilida<strong>de</strong> pública, indo contra o consenso da<br />
equipe técnica responsável.<br />
A área aproximada em que o empreendimento está hoje instalado é <strong>de</strong><br />
852.000 m², a 1,1 km ao sul do porto <strong>de</strong> Barra do Riacho, o Portocel, e ao<br />
norte da comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barra do Sahy, abrangendo uma distância <strong>de</strong><br />
1.550 m <strong>de</strong> linha <strong>de</strong> costa. A área é limitada pelo Oceano Atlântico a leste<br />
e pela rodovia ES-010 a oeste, chamada, na região, <strong>de</strong> Praia da Água Boa.<br />
Figura 4: Região on<strong>de</strong> foi instalado o Estaleiro Jurong Aracruz.<br />
Fonte: CTA, 2009.<br />
Dentre as razões para a construção <strong>de</strong> um estaleiro no Espírito Santo,<br />
93
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
constam no Relatório <strong>de</strong> Impactos Ambientais (RIMA) do EJA:<br />
Posição estratégica para aten<strong>de</strong>r aos campos <strong>de</strong> produção das bacias<br />
<strong>de</strong> Santos, Campos e Espírito Santo;<br />
Apoio político para instalação do estaleiro;<br />
Boa comunicação com as autorida<strong>de</strong>s ambientais;<br />
Transparência nas relações governamentais institucionais;<br />
Transferência da titularida<strong>de</strong> da terra;<br />
Logística (CTA, 2009, s.p., grifo nosso).<br />
Através do “apoio político” e da “boa comunicação com as autorida<strong>de</strong>s ambientais”,<br />
no dia 7 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2010, a Jurong adquiriu a Licença Prévia<br />
(LP) e, posteriormente, a Licença <strong>de</strong> Instalação (LI) do IEMA com 99 condicionantes,<br />
<strong>de</strong>ntre elas execução <strong>de</strong> plano <strong>de</strong> capacitação da mão <strong>de</strong> obra<br />
local para instalação e operação, execução <strong>de</strong> Programa <strong>de</strong> Educação Ambiental<br />
e Comunicação Ambiental para as UC’s APA e REVIS (ICMBio),<br />
elaboração do plano <strong>de</strong> bacias para aquela região e para enquadramento<br />
dos recursos hídricos, execução <strong>de</strong> resgate da vegetação nativa na área <strong>de</strong><br />
influência do empreendimento, execução <strong>de</strong> programa <strong>de</strong> resgate da fauna<br />
continental na área <strong>de</strong> influência do empreendimento e execução <strong>de</strong><br />
programa <strong>de</strong> gerenciamento <strong>de</strong> resíduos sólidos (COPALA-EJA, 2013).<br />
Durante todo o processo <strong>de</strong> liberação e instalação do empreendimento,<br />
diversos órgãos se manifestaram contra a presença do estaleiro, entre estes<br />
a Fe<strong>de</strong>ração <strong>de</strong> Pesca do Espírito Santo, o Ministério Público Fe<strong>de</strong>ral do<br />
Espírito Santo (MPF/ES) e a Or<strong>de</strong>m dos Advogados do Brasil (OAB), além<br />
dos pescadores e técnicos do IEMA já citados (VIEIRA, 2012). As <strong>de</strong>núncias<br />
protocoladas por esses órgãos foram negadas, e o EJA conseguiu, via jogos<br />
<strong>de</strong> forças políticas, a aprovação <strong>de</strong> todas as licenças e iniciou sua construção<br />
no litoral <strong>de</strong> Aracruz, abrangendo 1.550 metros da linha da costa.<br />
94
Capítulo 3<br />
Figura 6: Layout final do empreendimento<br />
Fonte: CTA, 2009.<br />
No entanto, o empreendimento em questão se encontrava na área proposta<br />
para a criação da unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conservação APA Costa das Algas e <strong>de</strong>ntro<br />
dos limites do REVIS <strong>de</strong> Santa Cruz (7,2 km). Um pedaço da APA que estava<br />
numa das extremida<strong>de</strong>s da área <strong>de</strong> construção do estaleiro virou uma<br />
“chave <strong>de</strong> troca”, como disse um morador entrevistado 4 , para a proposta<br />
das UC’s sair do papel. Em contrapartida, a área chamada <strong>de</strong> “laminha<br />
do camarão rosa” ficou <strong>de</strong>ntro da área <strong>de</strong> influência direta da Jurong e foi<br />
diretamente impactada pela construção do estaleiro. Segundo alguns dos<br />
pescadores entrevistados 5 , o local era abundante em camarões rosa, que<br />
são utilizados como isca pela maioria dos pescadores da região. Assim,<br />
um rico pesqueiro <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> existir com o empreendimento.<br />
De acordo com o RIMA, 198 espécies seriam afetadas pela sua operação,<br />
<strong>de</strong>ntre elas: 25 espécies <strong>de</strong> cetáceos, 5 espécies <strong>de</strong> tartarugas, 39 espécies<br />
<strong>de</strong> peixes marinhos, 19 espécies <strong>de</strong> peixes <strong>de</strong> água doce, 91 espécies <strong>de</strong><br />
aves, além <strong>de</strong> plânctons, bentos e insetos. Outro impacto negativo ao meio<br />
ambiente seria a dragagem <strong>de</strong> uma área <strong>de</strong> 3.500 m² que, para receber as<br />
4 Entrevista realizada pelo GEPPEDES, em junho <strong>de</strong> 2017.<br />
5 Entrevistas realizadas pelo GEPPEDES, em setembro <strong>de</strong> 2016 e fevereiro <strong>de</strong> 2017.<br />
95
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
embarcações, teve <strong>de</strong> ser dragada <strong>de</strong>vido à baixa profundida<strong>de</strong> da água<br />
do mar. Os sedimentos foram <strong>de</strong>spejados em mar mais profundo, embora<br />
a empresa tenha se comprometido em <strong>de</strong>scartar os resíduos da dragagem<br />
em camadas para propiciar a formação <strong>de</strong> corais (VIEIRA, 2012).<br />
COMBINANDO DESENVOLVIMENTO ECONôMICO e<br />
CONSERVAção AMBIENTAL?<br />
A criação das duas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação, APA Costa das Algas<br />
e REVIS <strong>de</strong> Santa Cruz, foi <strong>de</strong>cretada no dia 17 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2010 e no<br />
dia 7 <strong>de</strong> novembro do mesmo ano a Jurong obteve a Licença Prévia (LP)<br />
e, posteriormente, a Licença <strong>de</strong> Instalação (LI) do IEMA. Não é mistério<br />
que uma ocasião <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>u da outra. Tanto os analistas do ICMBio<br />
quanto um entrevistado da Barra do Riacho 6 , sendo que o último esteve<br />
bem presente em todo o processo da chegada da empresa na região, reconheceram<br />
que a criação das UC’s foi viabilizada através do pedido <strong>de</strong><br />
licenciamento da Jurong.<br />
Segundo Lúcia da Costa Ferreira, “a escolha e instituição <strong>de</strong> <strong>de</strong>terminada<br />
área protegida provoca sempre uma crise” (2003, p. 47) e, <strong>de</strong>ssa forma, o<br />
processo das UC’s só caminhou porque o Governo do Estado almejava o<br />
estaleiro em terras capixabas. A criação da APA e do REVIS ficou <strong>de</strong>tida<br />
durante a resistência do setor industrial e político <strong>de</strong> 2005, quando a proposta<br />
já estava pronta e discutida em audiência pública, até 2010, quando<br />
sua criação se tornou interessante para os mesmos setores que estavam<br />
impedindo o avanço do processo. Em troca do ajuste da área proposta<br />
para a APA, houve o apoio dos setores industrial e político do estado, e a<br />
negociação girou em torno <strong>de</strong> uma área que também estava na proposta<br />
do território da Jurong, qual seja, a área famosa entre os pescadores locais<br />
por abrigar um pesqueiro <strong>de</strong> camarão rosa. A negociação pela retirada da<br />
parte da APA se concluiu e as duas UC’s foram criadas, contribuindo com<br />
a instalação da Jurong na localida<strong>de</strong>. Como diz Ferreira, “o processo que<br />
envolve a seleção, implantação e gestão <strong>de</strong> áreas protegidas geralmente<br />
está baseado em critérios ecológicos e econômicos, o que não garante o<br />
sucesso dos resultados da conservação” (FERREIRA, 2003, p. 47).<br />
6 Entrevistas realizadas pelo GEPPEDES, em agosto <strong>de</strong> 2016 e junho <strong>de</strong> 2017.<br />
96
Capítulo 3<br />
Figura 7: Mapa final da APA e do REVIS<br />
Fonte: https://marsemfim.com.br/reserva-biologica-dos-comboios-e-apa-costa-das-algas-es<br />
(último acesso em: 17 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2017).<br />
A partir da análise do relatório do IBAMA e da entrevista com os analistas<br />
do ICMBio, gestores das duas UC’s, percebe-se que a presença das<br />
duas áreas protegidas não tem a intenção <strong>de</strong> se contrapor à presença dos<br />
megaempreendimentos ao redor. A criação das unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação<br />
não tinha o caráter antagônico à ativida<strong>de</strong> industrial praticada em<br />
Aracruz. O seu <strong>de</strong>safio, segundo o relato <strong>de</strong> integrantes do ICMBio, é a<br />
convivência entre os dois setores, preservacionista e <strong>de</strong>senvolvimentista,<br />
seguindo uma lógica <strong>de</strong> que é possível existir esse convívio, como se<br />
houvesse esperança que uma ativida<strong>de</strong> ambientalista pu<strong>de</strong>sse reformar a<br />
lógica <strong>de</strong>senvolvimentista.<br />
Essa aliança entre preservação e <strong>de</strong>senvolvimento caracteriza o que Gustavo<br />
Lins Ribeiro (1991) fala sobre a penetração do ambientalismo, com suas<br />
características utópicas, no mundo <strong>de</strong>senvolvimentista, trazendo à tona a<br />
concepção <strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento sustentável. Segundo o autor, não é por<br />
acaso que uma “<strong>de</strong>finição <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sustentável aproxime-se tão<br />
97
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
fortemente <strong>de</strong> uma perspectiva harmônica e não conflitiva dos processos<br />
econômicos, políticos e sociais envolvidos no drama <strong>de</strong>senvolvimentista”<br />
(RIBEIRO, 1991, p. 77). E, como já colocado, os documentos analisados mostram<br />
bem como po<strong>de</strong> se dar essa harmonia entre, por exemplo, uma unida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> conservação e um megaempreendimento. Essa harmonia, contudo,<br />
é uma construção discursiva, não é uma realida<strong>de</strong>, e o autor faz críticas<br />
à forma como esse discurso <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sustentável é acionado.<br />
É importante ressaltar que as próprias UC’s são colocadas como projetos<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. Por exemplo, o momento em que mais se criou UC’s<br />
no país coinci<strong>de</strong> com a época em que a expansão agrícola chegou até a<br />
região norte, na Amazônia (BARRETO, 1997). Sendo assim, foi justamente<br />
com a chegada <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento que se <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou,<br />
também, a implantação <strong>de</strong> políticas <strong>de</strong> conservação das áreas. Estas, que<br />
mesmo com sua alta biodiversida<strong>de</strong>, são <strong>de</strong>stinadas para múltiplos usos,<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua substituição por economias comunitárias locais até a expansão<br />
industrial (FERREIRA, 2003).<br />
Entre os fatores relevantes para a escolha <strong>de</strong> uma categoria <strong>de</strong> UC, citados<br />
no relatório do IBAMA, constam, para além da presença <strong>de</strong> empreendimentos<br />
na localida<strong>de</strong>, as perspectivas <strong>de</strong> novos projetos, tornando a área<br />
<strong>de</strong> “gran<strong>de</strong> valor econômico e estratégico para o estado e para o país”<br />
(IBAMA, 2006, s.p.). E, no mesmo texto, é colocado como um dos objetivos<br />
gerais para a criação <strong>de</strong> uma UC a importância <strong>de</strong> proteger a biodiversida<strong>de</strong><br />
local <strong>de</strong> possível <strong>de</strong>gradação ambiental. Surge, então, uma pergunta:<br />
como garantir que os dois cenários, uma área <strong>de</strong> relevância para preservação<br />
da natureza e a inclusão da mesma área no mapa <strong>de</strong> expansão<br />
econômica do estado, estejam <strong>de</strong> fato convivendo harmonicamente, sem<br />
que impactos diretos recaiam sobre as UC’s?<br />
Essa é uma pergunta que só po<strong>de</strong>ria ser respondida a partir da elaboração<br />
<strong>de</strong> estudos para saber como o ambiente que visa a preservação realmente<br />
está; no entanto, ainda não foram feitos estudos por parte do ICMBio da<br />
área em questão, existindo apenas os monitoramentos que cada empresa<br />
<strong>de</strong>ve fazer, mas que acabam sendo <strong>de</strong>sarticulados e falhos. Portanto,<br />
resta-nos tentar respon<strong>de</strong>r à pergunta <strong>de</strong> acordo com a experiência geral<br />
<strong>de</strong>sse tipo <strong>de</strong> acontecimento, <strong>de</strong> como funciona a relação <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong><br />
projeto <strong>de</strong>senvolvimentista com o ambiente em que está inserido. O <strong>de</strong>-<br />
98
Capítulo 3<br />
senvolvimento sustentável volta como uma alternativa para esse tipo <strong>de</strong><br />
relação. Ribeiro trata do <strong>de</strong>senvolvimento sustentável como o:<br />
[...] estabelecimento <strong>de</strong> um campo <strong>de</strong> negociações, uma tentativa<br />
<strong>de</strong> encontrar um terreno comum entre ambientalistas, os novos<br />
interlocutores neste cenário, os agentes sociais que são (ou eram)<br />
consi<strong>de</strong>rados os maiores <strong>de</strong>gradadores da natureza, os empresários,<br />
sobretudo aqueles vinculados à indústria, motor do mo<strong>de</strong>lo<br />
<strong>de</strong> expansão e crescimento da economia capitalista (RIBEIRO,<br />
1991, p. 84-85).<br />
Ribeiro mostra como o <strong>de</strong>senvolvimento sustentável “resultou do confronto/aprendizagem<br />
mútua entre empresários e ambientalistas” (1991, p.<br />
85), lembrando que, até pouco tempo atrás, a proteção ambiental se restringia<br />
a ser <strong>de</strong>fensiva e <strong>de</strong>stinada a contrapor-se à cultura dos negócios e<br />
incentivos a empreendimentos. Com isso, o conceito <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
sustentável se constitui sobre uma cooperação entre esses dois lados que<br />
até então eram opostos, e que hoje um acaba <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ndo do outro. O<br />
próprio RIMA da Jurong traz, em seu início, uma fala sobre a importância<br />
<strong>de</strong> um <strong>de</strong>senvolvimento sustentável: “a <strong>de</strong>fesa do meio ambiente apresenta-se<br />
como princípio orientador e inseparável da ativida<strong>de</strong> econômica na<br />
Constituição Brasileira. Desse modo, ativida<strong>de</strong>s tanto da iniciativa púbica<br />
ou privada que violem a proteção ambiental, não serão permitidas” (CTA,<br />
2009, s.p.).<br />
A conservação e o <strong>de</strong>senvolvimento sustentável estão ligados a conflitos<br />
<strong>de</strong> interesses presentes em projetos específicos. Dentro <strong>de</strong> uma composição<br />
<strong>de</strong> arenas, tais como John Hanning (2009) fala, a arena ambiental,<br />
que coor<strong>de</strong>na o funcionamento do meio ambiente e seus recursos, está<br />
no meio da interação <strong>de</strong> diversas outras arenas, as quais também constituem<br />
seus próprios conflitos (FERREIRA, 2003). No fim, o sucesso da conservação<br />
da biodiversida<strong>de</strong> <strong>de</strong>pen<strong>de</strong> da ação social e política dos atores<br />
responsáveis pelo processo, e mais justamente dos conflitos que surgem.<br />
Cabe ressaltar que algumas das razões para o estaleiro se instalar na região<br />
<strong>de</strong> Barra do Riacho foram o “apoio político” e a “boa comunicação<br />
com as autorida<strong>de</strong>s ambientais” (CTA, 2009, s.p.). Assim, é possível i<strong>de</strong>ntificar<br />
que se pensava, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início, em unir os dois setores, ambiental<br />
99
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
e produtivo, e lançar mão <strong>de</strong> um discurso sustentável para se garantir os<br />
dois empreendimentos, UC’s e EJA, na região.<br />
CONSIDERAções FINAIS<br />
O caso narrado no presente artigo caracteriza bem a afirmativa <strong>de</strong> que<br />
certas correntes ambientalistas e os projetos <strong>de</strong>senvolvimentistas ten<strong>de</strong>m<br />
a trabalhar juntos em busca <strong>de</strong> um i<strong>de</strong>al <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento sustentável.<br />
Como exemplo disso, a proposta das duas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação, APA<br />
Costa das Algas e REVIS <strong>de</strong> Santa Cruz, teve que se a<strong>de</strong>quar à chegada da<br />
Jurong para obter apoio para sua criação, visto que o estaleiro era a chave<br />
para o governo também manifestar a sua aprovação em relação à proposta.<br />
Com isso, Barretto trata as unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação como objetos não<br />
acabados, justamente por serem “construídos por uma combinação <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>finições jurídicas, pressões setoriais, interpretações científicas, planos<br />
governamentais, etc” (PETI/CEDI apud BARETTO, 1997, p. 9). A questão<br />
que fica é se, ao final <strong>de</strong> tudo isso, a realida<strong>de</strong> contempla a expectativa e,<br />
além disso, <strong>de</strong>ntre humanos e não humanos que habitam a área, quem<br />
acaba saindo prejudicado?<br />
Cabe dizer, com o auxílio <strong>de</strong> Ribeiro, que o <strong>de</strong>senvolvimento sustentável<br />
se configura apenas em utopia, ao tentar: manipular o futuro; suspen<strong>de</strong>r<br />
conflitos e corrigir <strong>de</strong>ficiências a partir <strong>de</strong> soluções inviáveis; tratar a humanida<strong>de</strong><br />
como uma só e como tendo um mesmo <strong>de</strong>stino universal; e<br />
construir uma visão holística da realida<strong>de</strong> (RIBEIRO, 1991).<br />
Vemos que ambos os projetos se concretizaram e vivem transmitindo uma<br />
ilusão <strong>de</strong> bom convívio. A construção da Jurong nas imediações da Barra<br />
do Riacho, mesmo trazendo impactos negativos, se efetivou, e ela ainda<br />
não colocou em prática todas as medidas compensatórias previstas em<br />
sua instalação. Assim como as duas UC’s também se tornaram realida<strong>de</strong>,<br />
porém no entorno <strong>de</strong> diversos empreendimentos que po<strong>de</strong>m estar gerando<br />
impactos negativos ao ambiente que pretensamente seria protegido.<br />
No final, restam agentes humanos que, envolvidos por todas essas questões,<br />
acabam recebendo impactos <strong>de</strong> ambos os lados, como as comunida<strong>de</strong>s vizinhas<br />
aos dois projetos, em especial a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barra do Riacho.<br />
A população <strong>de</strong> pescadores, especialmente, sai prejudicada por receber, a<br />
100
Capítulo 3<br />
partir <strong>de</strong> instâncias <strong>de</strong>cisórias outras, um empreendimento ao qual se manifesta<br />
contrária, pelo menos nos relatos que foram ouvidos em pesquisa<br />
<strong>de</strong> campo, e duas unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação que, em busca <strong>de</strong> aten<strong>de</strong>r reivindicações<br />
passadas, não dá conta <strong>de</strong> retribuir o que era esperado, como,<br />
por exemplo, que a área fosse restrita a gran<strong>de</strong>s embarcações <strong>de</strong> pesca mecanizadas,<br />
as quais promovem, pela sobrepesca, a escassez <strong>de</strong> peixes.<br />
101
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Referências<br />
BARRETTO, H. T. Da nação ao planeta através da natureza. Uma tentativa<br />
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SNUC, Sistema Nacional <strong>de</strong> Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Conservação. Texto da Lei<br />
102
Capítulo 3<br />
9.985 <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2000 e vetos da presidência da República ao<br />
PL aprovado pelo congresso Nacional. São Paulo: Conselho Nacional da<br />
Reserva da Biosfera da Mata Atlântica, 2ª ed. ampliada, 2000.<br />
TAVARES, M. N. Mapeando e valorizando o conhecimento ecológico<br />
tradicional na gestão <strong>de</strong> áreas marinhas protegidas. (Dissertação) Mestrado<br />
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– Aracruz – ES. (Trabalho <strong>de</strong> Conclusão <strong>de</strong> Curso) Bacharelado em Geografia<br />
pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo. Vitória, ES. 2012.<br />
103
104
O Ponto Antes do Porto: A Mídia<br />
Capixaba e a Expansão do Portocel na<br />
Barra do Riacho<br />
Capítulo 4<br />
Bernardo Furlaneto Bragato Oakes <strong>de</strong> Oliveira<br />
INTRODUÇÃO<br />
Inegavelmente, a mídia <strong>de</strong>sempenha o fundamental papel <strong>de</strong> comunicadora<br />
social e contribui para a formação <strong>de</strong> múltiplos discursos que permeiam<br />
a socieda<strong>de</strong>. No entanto, a própria comunicação midiática é recheada<br />
<strong>de</strong> costumes e técnicas que impactam <strong>de</strong> modo diverso a informação e<br />
a absorção do fato pela socieda<strong>de</strong>. No presente artigo, parto da análise da<br />
notificação da mídia popular, representada majoritariamente pelo jornal A<br />
Gazeta do Espírito Santo, no que tange à expansão do Portocel, único porto<br />
especializado no embarque <strong>de</strong> celulose do mundo e <strong>de</strong>staque mundial em<br />
eficiência, localizado no município <strong>de</strong> Aracruz (ES). O objetivo <strong>de</strong>ste artigo<br />
é avaliar <strong>de</strong> que modo esse veículo <strong>de</strong> comunicação reporta à socieda<strong>de</strong><br />
informações sobre a instalação <strong>de</strong>sse empreendimento, que será chamado<br />
<strong>de</strong> Portocel II. Especificamente, interessa-nos saber quais mo<strong>de</strong>los discursivos<br />
e elementos simbólicos são agenciados nessa comunicação, consi<strong>de</strong>rando<br />
que há a prepon<strong>de</strong>rância <strong>de</strong> um paradigma <strong>de</strong>senvolvimentista enraizado<br />
no jornalismo <strong>de</strong> massa, o qual pouco problematiza os potenciais<br />
danos ambientais que possam ser resultantes <strong>de</strong> tais projetos. Cabe ressaltar,<br />
aqui, que o porto em questão será instalado na localida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Barra do<br />
Riacho, antiga vila <strong>de</strong> pescadores artesanais, o que complexifica ainda mais<br />
a questão dos danos ambientais e prejuízos à ativida<strong>de</strong> pesqueira.<br />
A RELAÇÃO MÍDIA E MEIO AMBIENTE<br />
Para garantir visibilida<strong>de</strong> e inclusão da questão ambiental na agenda<br />
pública, é crucial a cobertura midiática <strong>de</strong> eventos e processos relacionados.<br />
Não se trata apenas da cobertura das mídias centradas ou próximas<br />
da temática ambiental, como o jornalismo ambiental e o jornalismo<br />
105
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
cívico 1 , mas também dos ditos veículos <strong>de</strong> massa, visto que estes atuam<br />
como comunicadores essenciais <strong>de</strong> fatos e eventos remotos ou locais,<br />
bem como construtores <strong>de</strong> processos <strong>de</strong> informações <strong>de</strong>sempenhados<br />
por reportagens, informativos, editoriais, etc. Porém a construção midiática<br />
<strong>de</strong> fatos e eventos relacionados à temática ambiental peca na compreensão<br />
<strong>de</strong>ssa dinâmica e, consequentemente, promove o afastamento<br />
das nuanças e contextos múltiplos da disputa. Há <strong>de</strong> se consi<strong>de</strong>rar que<br />
esse afastamento não acontece por mera ingenuida<strong>de</strong> da esfera da mídia;<br />
na verda<strong>de</strong>, gran<strong>de</strong>s veículos <strong>de</strong> comunicação geralmente são capitaneados<br />
pelo mesmo paradigma <strong>de</strong>senvolvimentista presente na relação entre<br />
meio ambiente e <strong>de</strong>senvolvimento. Esse é necessariamente o primeiro<br />
fator do afastamento previamente enunciado: a pauta ambiental goza <strong>de</strong><br />
quase nenhuma autonomia na gran<strong>de</strong> mídia, uma vez que as discussões<br />
ambientais estão sempre atreladas a outras questões, em maior parte<br />
<strong>de</strong> or<strong>de</strong>m econômica. John Hannigan (2009) sustenta essa afirmação ao<br />
analisar notícias <strong>de</strong> eventos ambientais relacionadas majoritariamente<br />
ao ca<strong>de</strong>rno econômico no jornalismo americano. No presente artigo, não<br />
será analisado somente o ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> economia; na verda<strong>de</strong>, a análise não<br />
parte das divisões dispostas pelas estruturas do jornal e sim <strong>de</strong> notícias<br />
com temáticas relacionadas à Barra do Riacho e ao Portocel, e <strong>de</strong> como<br />
naturalmente essa temática é distribuída em gran<strong>de</strong> parte apenas no ca<strong>de</strong>rno<br />
<strong>de</strong> economia pelos gran<strong>de</strong>s veículos <strong>de</strong> comunicação.<br />
Figura 1: Manchete do jornal A Tribuna.<br />
Fonte: A Tribuna, julho <strong>de</strong> 2013.<br />
1 Segundo Beatriz Dorneles (2008), o jornalismo cívico se trata do jornalismo construído<br />
pela comunida<strong>de</strong> local, geralmente sem o financiamento <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong> corporação e apresentando<br />
informações e posicionamentos importantes para a comunida<strong>de</strong> ali fixada.<br />
106
Capítulo 4<br />
Na figura 1, a relação entre os termos “meio ambiente”, “futuro sustentável”<br />
e “i<strong>de</strong>ias inovadoras” reforça a situação da discussão ambiental nos<br />
gran<strong>de</strong>s veículos <strong>de</strong> comunicação. A matéria em questão apresenta uma<br />
série <strong>de</strong> projetos para resolver problemas <strong>de</strong> or<strong>de</strong>m ambiental causados<br />
por <strong>de</strong>scartes <strong>de</strong> outras indústrias. A questão a ser pontuada é que em<br />
nenhum momento é problematizado o impacto <strong>de</strong>sses <strong>de</strong>scartes sobre o<br />
ambiente e a comunida<strong>de</strong>. Além disso, as soluções são apresentadas enquanto<br />
empreendimentos (“empreen<strong>de</strong>dorismo ver<strong>de</strong>”) que visam à criação<br />
<strong>de</strong> um novo produto <strong>de</strong>stinado à produção, como po<strong>de</strong> ser visto nas<br />
figuras 2 e 3. Ora, se o problema ambiental é causado pelos <strong>de</strong>scartes residuais<br />
<strong>de</strong> indústrias, a solução mais plausível não seria cobrar da empresa<br />
um manejo não agressivo do <strong>de</strong>scarte no meio ambiente? Ou mesmo pensar<br />
em uma solução com a comunida<strong>de</strong> que proponha a recuperação dos<br />
danos causados a essa área?<br />
Figuras 2 e 3: Manchetes do jornal A Tribuna.<br />
Fonte: A Tribuna, julho <strong>de</strong> 2013.<br />
Fora a resolução do problema ambiental completamente enviesada pelo<br />
olhar econômico, é notável como a própria estruturação e o discurso da<br />
notícia <strong>de</strong>monstram uma inclinação ao corporativismo, muito porque um<br />
gran<strong>de</strong> veículo <strong>de</strong> informação, por si só, representa uma corporação. Renato<br />
Bittencourt explica:<br />
Afinal, a comunicação social é um po<strong>de</strong>r empresarial, i<strong>de</strong>ológico,<br />
107
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
econômico e político <strong>de</strong> primeiro nível na socieda<strong>de</strong> capitalista,<br />
e todas as organizações corporativas necessariamente se utilizam<br />
dos seus mecanismos em prol da participação hegemônica na<br />
formação da opinião pública (BITTENCOURT, 2012, p. 34).<br />
Dessa forma são tratadas as questões ambientais nos jornais que circulam<br />
facilmente na socieda<strong>de</strong>. A prática <strong>de</strong> não tratar o meio ambiente <strong>de</strong><br />
modo autônomo fomenta a ação ostensiva da mídia jornalística ao conectar<br />
a temática ambiental principalmente à or<strong>de</strong>m econômica, o que<br />
Bueno (2007) sumariza ao enunciar a transposição da pauta ambiental<br />
para outros ca<strong>de</strong>rnos jornalísticos:<br />
A redução da cobertura ambiental a um olhar (econômico, científico,<br />
político, etc.) tem sido um terreno fértil para leituras particulares<br />
e negativamente comprometidas sobre a questão ambiental<br />
e inclusive para a legitimação <strong>de</strong> conceitos absolutamente ina<strong>de</strong>quados.<br />
Por este motivo, é fácil encontrar nos ca<strong>de</strong>rnos <strong>de</strong> economia<br />
expressões como <strong>de</strong>fensivos agrícolas no lugar <strong>de</strong> agrotóxicos<br />
(BUENO, 2007, p. 37).<br />
A avaliação <strong>de</strong> conflitos ambientais como eventos naturais inevitáveis<br />
(por vezes, colaterais) do próprio processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento causa a<br />
impressão <strong>de</strong> que a relação conflitiva é controlada e resolvida por esse<br />
mesmo processo sem alterações drásticas nos contextos sociais e ambientais<br />
anteriores. Esse tipo <strong>de</strong> entendimento gera um efeito perverso pois<br />
legitima o <strong>de</strong>senvolvimento econômico sem problematizar seus efeitos<br />
negativos, além <strong>de</strong> reforçar um entendimento disjuntivo acerca da relação<br />
natureza e socieda<strong>de</strong>. Enrique Leff (2003), apesar <strong>de</strong> não tratar diretamente<br />
da arena midiática em sua crítica ao paradigma <strong>de</strong>senvolvimentista,<br />
aponta como a racionalida<strong>de</strong> vigente na socieda<strong>de</strong> se orienta pelo<br />
paradigma do <strong>de</strong>senvolvimento:<br />
[...] No entanto, a racionalida<strong>de</strong> científica do iluminismo construiu<br />
um projeto i<strong>de</strong>ológico que pretendia emancipar o homem das leis<br />
-limite da natureza. Dessa maneira, a razão cartesiana e a física<br />
newtoniana mo<strong>de</strong>laram uma racionalida<strong>de</strong> econômica baseada<br />
em um mo<strong>de</strong>lo mecanicista, ignorando as condições ecológicas<br />
que impõem limites e potenciais à produção (LEFF, 2003, p. 224).<br />
108
Capítulo 4<br />
Um segundo fator que turva a dinâmica do conflito ambiental e advém<br />
da divisão do tema em diversas pautas, incluindo o ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> meio ambiente<br />
em que a temática po<strong>de</strong>ria ser tratada mais plenamente, mas como<br />
anteriormente proposto sofre a intrusão <strong>de</strong> outras pautas, no exemplo<br />
da matéria publicada pela A Tribuna, a associação da sustentabilida<strong>de</strong><br />
econômica automaticamente a uma situação crítica ao meio ambiente<br />
impossibilitou uma abordagem mais ampla <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>rando múltiplos<br />
fatores como a situação da fauna na região ou os impactos causados a comunida<strong>de</strong><br />
local. Essa segmentação e redução do tema “meio ambiente” é<br />
a dita “síndrome do zoom ou do olhar vesgo” por Bueno:<br />
A primeira <strong>de</strong>las – a síndrome do zoom ou do olhar vesgo – tem<br />
a ver com o fechamento do foco da cobertura, a fragmentação<br />
que retira das notícias e reportagens ambientais a sua perspectiva<br />
inter e multidisciplinar. Esta síndrome é favorecida pelo processo<br />
acelerado <strong>de</strong> segmentação jornalística, concretamente a divisão<br />
<strong>de</strong> veículos em ca<strong>de</strong>rnos e editorias (BUENO, 2007, p. 37).<br />
Amplamente, o sentido <strong>de</strong> “ambiente” engloba não só noções territoriais<br />
e biológicas <strong>de</strong> existência como também uma série <strong>de</strong> relações e construtos<br />
históricos sociais que permeiam a temática. Dessa maneira, a segmentação<br />
provocada pela mídia fornece novamente um afastamento entre os<br />
componentes da questão ambiental. Por exemplo, ao tratar <strong>de</strong> temas mais<br />
leves e graduais como a conservação <strong>de</strong> espécies nativas, o trabalho da<br />
mídia ten<strong>de</strong> a ser mais lúdico e divertido para o público, como o programa<br />
“Um Pé <strong>de</strong> Quê?”, em que a carismática apresentadora Regina Casé<br />
percorria o Brasil mostrando diversas árvores (algumas em extinção) e a<br />
relação cultural que <strong>de</strong>terminados grupos sociais <strong>de</strong>preendiam da planta.<br />
Em contraste, ao noticiar um <strong>de</strong>sastre <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s proporções, a mídia<br />
foca <strong>de</strong>sastres pessoais ou atos individuais que, apesar <strong>de</strong> relacionados<br />
ao ambiente, não tratam da elucidação do contexto. Este foi o caso da reportagem<br />
do G1, portal <strong>de</strong> notícias da Re<strong>de</strong> Globo, sobre os 25 anos da<br />
tragédia em Goiânia com o césio 137 2 : o foco principal é no ressentimento<br />
da mãe da primeira vítima e nos <strong>de</strong>sdobramentos após o inci<strong>de</strong>nte, sem a<br />
2 Disponível em: http://g1.globo.com/goias/noticia/2012/09/mae-da-menina-simbolo-datragedia-com-o-cesio-137-diz-se-sentir-culpada.html<br />
(último acesso em 7 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong><br />
2018).<br />
109
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
reportagem sequer questionar porque o equipamento que continha césio<br />
fora abandonado em uma área completamente inapropriada e exposta<br />
à população. Em nenhum dos casos as causas dos eventos e soluções<br />
possíveis foram exploradas e, quando são, geralmente repetem o sensacionalismo<br />
imediatista corriqueiro <strong>de</strong>sse mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> jornalismo. A separação<br />
do termo “meio ambiente” em mini temas também promove a <strong>de</strong>sconexão<br />
do próprio termo: por vezes a mídia trata <strong>de</strong> assuntos profundamente<br />
enraizados na questão ambiental sem sequer <strong>de</strong>linear a temática.<br />
O terceiro fator é a manipulação da mídia na construção <strong>de</strong> processos<br />
e eventos ligados ao conflito ambiental, que Hannigan (2009) chama <strong>de</strong><br />
manufaturação <strong>de</strong> notícias. Muito se <strong>de</strong>ve à unilateralida<strong>de</strong> <strong>de</strong> fontes<br />
jornalísticas, geralmente ligadas ao empresariado e ao po<strong>de</strong>r público, e<br />
raras são as oportunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s locais e ativistas do campo<br />
ambiental serem igualmente ouvidos e terem a oportunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> <strong>de</strong>bater.<br />
Ainda nesse plano, outra estratégia <strong>de</strong> manipulação utilizada pela mídia<br />
é a fi<strong>de</strong>lida<strong>de</strong> incorruptível ao discurso científico ao se tratar da temática<br />
ambiental. Dessa forma, dados científicos <strong>de</strong> difícil acesso e entendimento<br />
para a maior parte da população são utilizados aos montes como forma<br />
<strong>de</strong> passar credibilida<strong>de</strong> na notícia.<br />
Em paralelo, é válido notar, também, as múltiplas lentes da construção do<br />
próprio campo jornalístico e a operação para inclusão ou exclusão <strong>de</strong> características<br />
que componham o fato, <strong>de</strong>sse modo <strong>de</strong>lineando certas nuanças<br />
específicas no contexto. Pierre Bourdieu (1997) é quem postula o termo<br />
campo social, um espaço permeado <strong>de</strong> estruturas simbólicas e disputas entre<br />
forças conflitantes em atuação com outros campos, relativamente construindo<br />
a socieda<strong>de</strong>. Entre eles, o campo jornalístico como um potencial<br />
construtor <strong>de</strong> relações significativamente impactantes em outros campos<br />
sociais, principalmente por se tratar <strong>de</strong> um campo produtor <strong>de</strong> discursos.<br />
A operação do campo jornalístico observada por Bourdieu (1997) quase<br />
sempre parte da segmentação do próprio processo <strong>de</strong> notícia e retirada <strong>de</strong><br />
autonomia do jornalista autor em prol do recorte econômico característico<br />
ao qual a empresa jornalística se associa, ferindo inclusive o princípio da<br />
neutralida<strong>de</strong> do trabalho jornalístico. Sob a luz <strong>de</strong> Bourdieu, a neutralida<strong>de</strong><br />
não existe. Ao consi<strong>de</strong>rar-se o processo jornalístico enquanto uma produção<br />
simbólica, a neutralida<strong>de</strong> é automaticamente comprometida pois<br />
apresenta uma carga <strong>de</strong> valores próprios do veículo <strong>de</strong> mídia que passa<br />
110
Capítulo 4<br />
<strong>de</strong>spercebida à socieda<strong>de</strong> ao atuar <strong>de</strong> maneira imperativa na informação<br />
e ao se relacionar com outros campos imperativos na socieda<strong>de</strong>, como estado<br />
e economia. Nesse sentido, Dorneles postula que o jornalismo cívico<br />
não <strong>de</strong>ve ser produzido pela falácia da neutralida<strong>de</strong> mantida pelas gran<strong>de</strong>s<br />
corporações e que atue junto à comunida<strong>de</strong> na produção <strong>de</strong> um discurso<br />
que atenda às <strong>de</strong>mandas e necessida<strong>de</strong>s propostas. Dessa forma, a construção<br />
<strong>de</strong> um jornalismo cívico e ambiental que conteste a razão "neutra"<br />
do processo <strong>de</strong> notícia é o caminho para um processo <strong>de</strong> informação mais<br />
horizontal que possa <strong>de</strong>bater a temática ambiental amplamente.<br />
O CASO DA BARRA<br />
Barra do Riacho é um bairro do município <strong>de</strong> Aracruz (ES) e era, inicialmente,<br />
uma pequena vila <strong>de</strong> pescadores. Atualmente, tem cerca <strong>de</strong><br />
6.000 habitantes 3 e também é se<strong>de</strong> <strong>de</strong> um dos maiores complexos <strong>de</strong> produção<br />
e exportação <strong>de</strong> celulose do mundo. O bairro conta com muitos<br />
empreendimentos ligados ao beneficiamento e processos secundários da<br />
celulose, além das gigantes Fibria e CENIBRA (Celulose Nipo-Brasileira),<br />
donas do maior porto <strong>de</strong> exportação <strong>de</strong> celulose do mundo: o Portocel.<br />
Criado em 1976, poucos anos após a instalação da Aracruz Celulose (atual<br />
Fibria) na região, o Portocel ocupa parte consi<strong>de</strong>rável do território marítimo<br />
da Barra, sendo o único porto especializado no embarque <strong>de</strong> celulose<br />
no Brasil, capaz <strong>de</strong> embarcar anualmente 7,5 milhões <strong>de</strong> toneladas<br />
do material, além <strong>de</strong> <strong>de</strong>ter os recor<strong>de</strong>s <strong>de</strong> embarque mais rápido e maior<br />
capacida<strong>de</strong> <strong>de</strong> embarque diário <strong>de</strong> celulose. 4 Em campo, em contato com<br />
pescadores mais antigos, a instalação do Portocel marca o começo do <strong>de</strong>clínio<br />
da diversida<strong>de</strong> pesqueira na área, fato enunciado por um pescador<br />
durante a consulta pública pela expansão do Portocel na Barra do Riacho.<br />
[...] O Sr. Marinaldo Miranda Gonçalves, da Associação <strong>de</strong> Pescadores,<br />
questiona porque já não foram parceiros quando do projeto<br />
da Portocel I. Fala dos impactos da Portocel I para os pescadores.<br />
Que retira 1,5 milhão/m² do berçário <strong>de</strong> reprodução, 400<br />
empregos dos pescadores. Não tem vantagem para o pescador;<br />
3 Dados do último censo realizado em 2010 pelo IBGE.<br />
4 Fonte: http://www.portocel.com.br/pt/informacoes.htm (último acesso em 7 <strong>de</strong> fevereiro<br />
<strong>de</strong> 2018).<br />
111
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
que terá aumento da área <strong>de</strong> fun<strong>de</strong>io<br />
[Ata da Consulta Pública do Termo <strong>de</strong> Referência da Expansão<br />
da Portocel II ocorrida em 8 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2016 em Barra do<br />
Riacho, Aracruz/ES (IEMA, 2016, p. 9)].<br />
Antes <strong>de</strong> me aprofundar na relação entra a mídia e o projeto <strong>de</strong> expansão do<br />
Portocel, é importante a compreensão da situação socioeconômica da Barra<br />
do Riacho, assim como a ocorrência dos conflitos ligados ao ambiente.<br />
A comunida<strong>de</strong> local da Barra do Riacho atualmente vive circundada por<br />
um complexo <strong>de</strong> várias empresas (gigantes multinacionais como a alemã<br />
Evonik e a norte-americana Canexus). No começo <strong>de</strong> 2016, a comunida<strong>de</strong><br />
foi atingida pelos resíduos da lama da barragem rompida em Mariana<br />
(MG), um <strong>de</strong>sastre premeditado causado em gran<strong>de</strong> parte por irresponsabilida<strong>de</strong><br />
do tríplice empresarial Samarco/Vale/BHP. Esse <strong>de</strong>sastre foi<br />
amplamente coberto pela mídia brasileira e, por se tratar <strong>de</strong> um impacto<br />
ambiental gigantesco, teve abordagens múltiplas. De certa forma, o meio<br />
ambiente chegou a entrar em pauta nos jornais, sendo discutido o enorme<br />
impacto nas cida<strong>de</strong>s da redon<strong>de</strong>za, a falta <strong>de</strong> preparo das empresas para<br />
lidar com situações como essa e os danos diversos nas comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
do <strong>Rio</strong> Doce. Entretanto, após esse movimento inicial, a discussão<br />
proposta pelos gran<strong>de</strong>s veículos <strong>de</strong> comunicação logo partiu para o<br />
prejuízo financeiro causado pelo evento e para o processo <strong>de</strong> retomada do<br />
funcionamento da Samarco, que ainda corre na Justiça. Ainda que na comunida<strong>de</strong><br />
seja questionada a presença da lama no rio que margeia a cida<strong>de</strong><br />
e no mar à frente, a pesca (principal ativida<strong>de</strong> econômica da população<br />
local) permanece proibida, o índice <strong>de</strong> <strong>de</strong>semprego disparou e indicadores<br />
<strong>de</strong> vulnerabilida<strong>de</strong> social, que já se faziam presentes na região, também<br />
aumentaram, como o uso abusivo <strong>de</strong> álcool e drogas, abandono <strong>de</strong> menores<br />
e prostituição. Como se não bastasse, o espaço da Barra continua sendo<br />
<strong>de</strong>gradado diariamente pelas empresas da região e o po<strong>de</strong>r público é ausente.<br />
Na verda<strong>de</strong>, a situação da Barra do Riacho representa uma série <strong>de</strong><br />
disputas simbólicas e literais promovidas pela diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong> grupos exógenos<br />
e locais por todo um conjunto <strong>de</strong> espaço, tradição, história, recursos<br />
naturais vastos e empreendimento. Sendo notável, também, a multiplicida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> atores relacionados ao meio ambiente, gran<strong>de</strong>s projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
e a consequente disputa para conciliar essas duas esferas.<br />
112
Capítulo 4<br />
Diferentemente da situação financeira e socialmente dificultosa da comunida<strong>de</strong><br />
local, as empresas da região continuam com arrecadações e<br />
produções vertiginosas, representando gran<strong>de</strong> parte do PIB capixaba. A<br />
Fibria é mundialmente reconhecida e tem status <strong>de</strong> empresa mo<strong>de</strong>lo na<br />
produção e beneficiamento <strong>de</strong> celulose. O Portocel atualmente tem status<br />
<strong>de</strong> porto <strong>de</strong> exportação mo<strong>de</strong>lo e preten<strong>de</strong> se tornar o maior porto<br />
<strong>de</strong> exportação <strong>de</strong> celulose do mundo, além <strong>de</strong> já ser o porto com maior<br />
velocida<strong>de</strong> <strong>de</strong> embarque e exportação <strong>de</strong>sse produto.<br />
O processo <strong>de</strong> expansão do Portocel junto ao Instituto Estadual <strong>de</strong> Meio<br />
Ambiente e Recursos Hídricos do Meio Ambiente (IEMA) está em fase<br />
<strong>de</strong> licenciamento ambiental <strong>de</strong>s<strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2016. A partir <strong>de</strong>ssa data, analisei,<br />
em um período <strong>de</strong> 14 meses – <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2016 a junho <strong>de</strong> 2017 –, as<br />
publicações relacionadas à expansão do Portocel pelo jornal A Gazeta,<br />
pelo portal <strong>de</strong> notícia Gazeta Online e pelo portal <strong>de</strong> notícia da rádio CBN<br />
Vitória, todos geridos pela maior empresa <strong>de</strong> comunicação do estado, a<br />
Re<strong>de</strong> Gazeta (afiliada à Re<strong>de</strong> Globo).<br />
A análise do discurso midiático parte da análise da própria estrutura da<br />
notícia, através <strong>de</strong> um apanhado geral das categorias apontadas no começo<br />
do artigo a respeito das ferramentas utilizadas pelos gran<strong>de</strong>s veículos<br />
<strong>de</strong> comunicação ao comunicar um fato que seja relacionado ao meio ambiente.<br />
Essa análise também parte da <strong>de</strong>vida aproximação com as preocupações<br />
narradas pelos moradores locais em uma consulta pública realizada<br />
pelo IEMA para tratar da construção do Portocel II. Por fim, apresento<br />
algumas matérias do portal Século Diário, jornal <strong>de</strong> menor influência no<br />
estado que tem uma linha editorial mais comunitária, a respeito da região<br />
da Barra do Riacho sob a luz do jornalismo cívico proposto por Dorneles.<br />
113
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
MANCHETE CADERNO DATA<br />
Fibria anuncia obra <strong>de</strong> R$ 80 milhões em<br />
porto<br />
Operador <strong>de</strong> máquina cai <strong>de</strong> píer na Portocel<br />
em Aracruz<br />
Co<strong>de</strong>sa prevê complexo portuário a partir<br />
<strong>de</strong> Portocel<br />
Porto <strong>de</strong> águas profundas: Barra do Riacho<br />
vai passar por gran<strong>de</strong> expansão a partir <strong>de</strong><br />
2017<br />
Fibria investe R$ 54 milhões em transporte<br />
<strong>de</strong> ma<strong>de</strong>iras e gera empregos no Estado<br />
19 áreas no Estado entraram na lista dos<br />
atingidos pela Samarco<br />
Investimentos garantem o crescimento<br />
econômico do Estado<br />
Ampliação <strong>de</strong> Barra do Riacho <strong>de</strong>ve gerar<br />
até 17 mil empregos<br />
Concessão <strong>de</strong> Barra do Riacho tem aval <strong>de</strong><br />
Temer e sai em 2018<br />
Novo mo<strong>de</strong>lo vai tornar Barra do Riacho<br />
uma das áreas portuárias mais importantes<br />
do país<br />
Economia 17/06/2016<br />
Cida<strong>de</strong>s 10/10/2016<br />
Economia 26/10/2016<br />
Entrevista 22/12/2016<br />
Economia 28/03/2017<br />
Cida<strong>de</strong>s 31/03/2017<br />
Especial 13/04/2017<br />
Economia 17/04/2017<br />
Economia 19/04/2017<br />
Entrevista 20/04/2017<br />
Do Espírito Santo para o mercado mundial Especial 25/04/2017<br />
Famílias interditam ferrovia da Vale em<br />
protesto contra a Samarco<br />
Tabela 1: Manchetes analisadas.<br />
Fonte: Elaboração do autor.<br />
Cida<strong>de</strong>s 25/04/2017<br />
114
Capítulo 4<br />
Na tabela estão presentes as manchetes e as datas das notícias analisadas.<br />
Várias <strong>de</strong>ssas publicações tratavam diretamente da expansão do Portocel,<br />
referenciado como Porto da Barra do Riacho, justamente para trazer<br />
o perfil da empresa próximo à comunida<strong>de</strong>. Elas tratavam, também, das<br />
verbas e esforços empreendidos pela iniciativa privada para a construção<br />
<strong>de</strong> uma obra tão gran<strong>de</strong>, assim como os benefícios à economia do estado<br />
e da região e os inúmeros empregos que serão criados com a expansão.<br />
Inclusive, em mais <strong>de</strong> uma matéria se fala da iniciativa da CODESA<br />
(Companhia <strong>de</strong> Docas do Espírito Santo) em manter uma parceria com a<br />
Fibria/Portocel para futuramente transformar a região em um complexo<br />
portuário sem igual. A proximida<strong>de</strong> das temáticas centrais das matérias<br />
não são mera coincidência, como é possível notar na tabela em que mais<br />
<strong>de</strong> uma notícia trata do investimento realizado para expansão do porto.<br />
Além disso, todas as matérias que tratam essencialmente do Portocel<br />
II fazem parte do ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> economia, e ainda foram publicados dois<br />
especiais intitulados “estado <strong>de</strong> valor”, que anunciam gran<strong>de</strong>s projetos<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no estado e as consequências positivas das instalações.<br />
Nesses especiais, são discutidos exclusivamente sob a perspectiva<br />
econômica temas relevantes no contexto ambiental, como o abastecimento<br />
<strong>de</strong> água à população e a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> novas formas <strong>de</strong> produção <strong>de</strong><br />
energia elétrica. Dessa forma, o jornalismo corporativista trata <strong>de</strong> criar<br />
uma agenda <strong>de</strong> notícias que reforça a impressão <strong>de</strong> que o processo <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento é constante e gradual, além <strong>de</strong> acalentar a perspectiva<br />
<strong>de</strong> melhoras socioeconômicas na região, sem sequer apontar um contraponto<br />
a respeito dos impactos socioambientais <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong>sse projeto.<br />
Isso faz valer ambas as observações propostas por Bueno (2007) a respeito<br />
da separação da temática ambiental em diversas áreas e da anexação <strong>de</strong><br />
temas secundários, impossibilitando a ampla discussão do impacto real<br />
ao meio ambiente e comunida<strong>de</strong>. Nesse caso, isso ocorre <strong>de</strong> forma ainda<br />
mais contun<strong>de</strong>nte, pois nenhuma matéria, nem mesmo a que trata da inclusão<br />
da Barra do Riacho entre as comunida<strong>de</strong>s atingidas pela lama da<br />
barragem <strong>de</strong> Mariana (MG), aparece no ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Meio Ambiente.<br />
O conceito <strong>de</strong> “manufaturação <strong>de</strong> notícias” proposto por Hannigan (2009)<br />
é imperativo nessa situação, uma vez que, nas matérias, em nenhum momento<br />
são mencionadas as preocupações apontadas na consulta pública<br />
realizada pelo IEMA, como o apagamento <strong>de</strong> uma faixa da praia, a cons-<br />
115
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
trução do empreendimento sob pesqueiros <strong>de</strong> espécies nativas da região<br />
e qual será o retorno real à comunida<strong>de</strong> local. Além disso, as informações<br />
são apresentadas <strong>de</strong> modo genérico. Por exemplo, na reportagem a respeito<br />
da criação <strong>de</strong> 17 mil empregos não há especificações a respeito <strong>de</strong> quais<br />
empregos serão criados e quantos serão voltados para comunida<strong>de</strong> (uma<br />
<strong>de</strong>manda apresentada <strong>de</strong> forma incisiva na consulta pública). Já na matéria<br />
que apresenta a parceria entre CODESA e Portocel, a notícia apresenta a capacida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sse porto suportar barcos com tamanho muito superior ao que<br />
suporta hoje, mas não especifica os danos colaterais da navegação <strong>de</strong> embarcações<br />
tão gran<strong>de</strong>s na região. Portanto, a agenda <strong>de</strong> notícias criada pelo<br />
Jornal A Gazeta trata <strong>de</strong> estabelecer conexões com a comunida<strong>de</strong> para futura<br />
aceitação do projeto na região em disputa através do chavão da criação<br />
<strong>de</strong> empregos e prosperida<strong>de</strong> econômica; no entanto, não garante qualquer<br />
retorno real para a comunida<strong>de</strong>. Na questão da expansão do Portocel tratar<br />
o possível <strong>de</strong>senvolvimento econômico da região como principal efeito<br />
do processo <strong>de</strong> expansão, compreen<strong>de</strong>ndo a difícil situação econômica <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong> parte dos moradores da Barra do Riacho, é uma estratégia óbvia<br />
adotada não só pela mídia como pelo próprio empresariado na divulgação<br />
do empreendimento. Durante consulta pública em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2016, mediada<br />
pelo IEMA com intuito <strong>de</strong> apresentar o projeto à comunida<strong>de</strong> local,<br />
o representante da empresa reforçou ostensivamente os benefícios que a<br />
expansão do porto trará à região, novamente focando a criação <strong>de</strong> empregos<br />
e o cumprimento das medidas mitigadoras obrigatórias.<br />
Hoje tem 260 empregos, 109 indiretos, total <strong>de</strong> 750. Com a implantação<br />
do empreendimento: serão, na fase <strong>de</strong> mão <strong>de</strong> obra,<br />
serão 850 empregos diretos, e indiretos 3.400, na operação, 389<br />
diretos, 300 indiretos, 480 TPA’s. Total <strong>de</strong> 1.169 empregos.<br />
[Patrícia Dutra, Representante do Portocel, Ata da Consulta Pública<br />
do Termo <strong>de</strong> Referência da Expansão da Portocel II ocorrida<br />
em 8 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2016 em Barra do Riacho, Aracruz/ES<br />
(IEMA, 2016, p. 2)].<br />
A semelhança entre o discurso empregado pela empresa e o material<br />
jornalístico analisado possibilita a compreensão do paradigma <strong>de</strong>senvolvimentista<br />
sustentado na racionalida<strong>de</strong> econômica proposto por Leff<br />
(2003). Além disso, traz Bittencourt (2012) novamente para discussão, pro-<br />
116
Capítulo 4<br />
vando a ligação corporativista entre a mídia e gran<strong>de</strong>s empresas, visto que<br />
ambas possuem interesses em manter a hegemonia do empresariado sobre<br />
a socieda<strong>de</strong>, indo além como uma ferramenta <strong>de</strong> controle da informação,<br />
como um mecanismo <strong>de</strong> reprodução <strong>de</strong> uma i<strong>de</strong>ologia dominante.<br />
Qualquer uso dos dispositivos midiáticos pressupõe, portanto,<br />
manipulação, pois os procedimentos mais elementares da produção<br />
comunicativa, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a escolha do suporte midiático, passando<br />
pela gravação, pelo processo <strong>de</strong> corte, <strong>de</strong> mixagem e mesmo os<br />
pontos estratégicos <strong>de</strong> distribuição pública, são intervenções particulares<br />
nos materiais disponíveis (BITTENCOURT, 2012, p. 39).<br />
A utilização seletiva <strong>de</strong> técnicas jornalísticas para reprodução i<strong>de</strong>ológica<br />
se relaciona com a maneira subjetiva que Bourdieu (1997) aponta como<br />
a impossibilida<strong>de</strong> prática <strong>de</strong> um jornalismo neutro. Ele salienta a ação<br />
imperativa da mídia no controle informacional sobre a socieda<strong>de</strong>, sendo,<br />
<strong>de</strong>ssa forma, i<strong>de</strong>ntificáveis, na estruturação do jornal e das notícias,<br />
os mecanismos que agem para a situação <strong>de</strong> reprodução i<strong>de</strong>ológica. Bittencourt<br />
(2012) postula que a objetivida<strong>de</strong> é usada como mecanismo <strong>de</strong><br />
reprodução i<strong>de</strong>ológica ao selecionar fatos arbitrariamente enquanto continua<br />
a propor as bases da mídia juntamente com a neutralida<strong>de</strong>.<br />
A notícia midiática nada mais é que uma construção “intelectual”<br />
como qualquer outra, <strong>de</strong> uma sucessão <strong>de</strong> escolhas i<strong>de</strong>ológicas,<br />
arbitrárias e afetivas, <strong>de</strong> um conteúdo <strong>de</strong> editoriais mascarados<br />
muitas vezes pela postulada objetivida<strong>de</strong> jornalística (BITTEN-<br />
COURT, 2012, p. 35).<br />
Por exemplo, na análise proposta, a ausência <strong>de</strong> matérias próprias do ca<strong>de</strong>rno<br />
<strong>de</strong> meio ambiente <strong>de</strong>monstra a operação realizada para produzir o<br />
sentido sobre a socieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> que um gran<strong>de</strong> projeto <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
não se relaciona com a situação ambiental. Além disso, a insistência na<br />
justificativa socioeconômica para a implantação do Portocel II tem por<br />
função reforçar o i<strong>de</strong>al do <strong>de</strong>senvolvimento necessário para o crescimento<br />
da região e do estado, invocando um sentido que reforça o paradigma<br />
<strong>de</strong>senvolvimentista <strong>de</strong> maneira que a socieda<strong>de</strong> o assimile sem percebê<br />
-lo, ocultando fatos que possam produzir sentidos diferentes dos consi<strong>de</strong>rados<br />
pela produção jornalística.<br />
117
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
No entanto, os membros da comunida<strong>de</strong> presentes na consulta pública<br />
levantaram, em diversos momentos da audiência, questionamentos a respeito<br />
do retorno <strong>de</strong>sses empregos à comunida<strong>de</strong> local e exprimiram sua<br />
<strong>de</strong>scrença no cumprimento integral das propostas colocadas pelo empreendimento,<br />
fornecendo uma ilustração <strong>de</strong> como a comunida<strong>de</strong> reage<br />
à implantação <strong>de</strong>sse projeto.<br />
[...] O Sr. Israel Azeredo, diz que <strong>de</strong>pois dos 37 anos, está na hora<br />
do porto dar retorno para a comunida<strong>de</strong>. Pe<strong>de</strong> atenção aos problemas<br />
da comunida<strong>de</strong> que está carente em muitos aspectos.<br />
Que <strong>de</strong>seja o crescimento da comunida<strong>de</strong>, que ninguém está<br />
acreditando nos empreendimentos. Que aqui se trata <strong>de</strong> uma comunida<strong>de</strong><br />
tradicional. Que chegou a hora <strong>de</strong> fazer diferente, que<br />
se construa uma estação <strong>de</strong> tratamento <strong>de</strong> esgoto. Que prestem<br />
atenção à comunida<strong>de</strong> e que precisam <strong>de</strong> emprego.<br />
[Ata da Consulta Pública do Termo <strong>de</strong> Referência da Expansão<br />
da Portocel II ocorrida em 8 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2016 em Barra do<br />
Riacho, Aracruz/ES (IEMA, 2016, p. 8)].<br />
[...] Que a comunida<strong>de</strong> não quer o projeto nos mol<strong>de</strong>s dos projetos<br />
anteriores. Que a lógica para contratação <strong>de</strong> mão <strong>de</strong> obra<br />
<strong>de</strong>ve ser revista. Espera que a maioria dos empregos seja para os<br />
moradores <strong>de</strong> Barra do Riacho.<br />
[Major Walace Ribeiro Vieira, representante da Polícia Militar.<br />
Trecho em relação à fala <strong>de</strong> morador da Barra do Riacho. Ata da<br />
Consulta Pública do Termo <strong>de</strong> Referência da Expansão da Portocel<br />
II ocorrida em 8 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2016 em Barra do Riacho,<br />
Aracruz/ES (IEMA, 2016, p. 4)].<br />
A ausência da cobertura <strong>de</strong>ssa consulta pública também <strong>de</strong>monstra<br />
como a construção do processo jornalístico se afasta da comunida<strong>de</strong> em<br />
questão, novamente evi<strong>de</strong>nciando a manufaturação da notícia bem como<br />
o intenso corporativismo. De fato, nenhuma fala apresenta ser extremamente<br />
contrária ao empreendimento, mas elas levantam questionamentos<br />
pertinentes que <strong>de</strong>safiam a i<strong>de</strong>ologia a ser reproduzida e a suposta<br />
objetivida<strong>de</strong>, além <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar que a comunida<strong>de</strong> não aceita passivamente<br />
todas as investidas das gran<strong>de</strong>s empresas. Um fato interessante é<br />
118
Capítulo 4<br />
que a reportagem publicada no dia 25/04/2017 traz a notícia da interdição<br />
da ferrovia da Vale por moradores da Barra do Riacho, os quais solicitam<br />
a distribuição ampla do auxílio que está sendo pago pela Samarco por<br />
conta do ocorrido da lama e reclamam da proibição da pesca que ainda<br />
persiste no munícipio <strong>de</strong> Aracruz. É a única reportagem em que a comunida<strong>de</strong><br />
local é ouvida (além da previamente citada inclusão da Barra enquanto<br />
comunida<strong>de</strong> atingida) e, mesmo assim, o maior espaço na notícia<br />
é coberto pela réplica da Samarco em relação às reclamações.<br />
Figuras 4: Manchete do jornal A Gazeta.<br />
Fonte: A Gazeta, outubro <strong>de</strong> 2016.<br />
“Quando a economia vai para a frente,<br />
gera empregos, renda e oportunida<strong>de</strong>s<br />
para socieda<strong>de</strong>. Quando a economia<br />
encolhe, afeta a vida <strong>de</strong> todos”.<br />
Figura 5: Trecho <strong>de</strong> notícia do jornal A Gazeta (Paulo Hartung, Governador<br />
do Espírito Santo).<br />
Fonte: A Gazeta, outubro <strong>de</strong> 2016.<br />
Outra observação notável a partir da análise jornalística proposta é a parceria<br />
intensiva entre po<strong>de</strong>r público e iniciativa privada, reforçando o pressuposto<br />
<strong>de</strong> que ambos seguem a mesma lógica <strong>de</strong>senvolvimentista. Além<br />
disso, a fala <strong>de</strong> representantes das esferas públicas dando anuência para<br />
a ação <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s empreendimentos é usada como forma <strong>de</strong> dar credibi-<br />
119
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
lida<strong>de</strong> à notícia pela mídia. Entre as reportagens, ressalta-se a entrevista<br />
com o atual presi<strong>de</strong>nte da CODESA, que <strong>de</strong>senvolve, a partir da expansão<br />
do Portocel, a criação <strong>de</strong> um complexo portuário que tornaria o Espírito<br />
Santo referência mundial sem fazer qualquer ressalva a respeito <strong>de</strong> danos<br />
ambientais e sociais, como a <strong>de</strong>sapropriação e reapropriação privada <strong>de</strong><br />
terras e territórios marítimos. Há, também, falas positivas do governador<br />
do estado a respeito da criação do complexo portuário, e até mesmo uma<br />
matéria ressaltando a posição assertiva do presi<strong>de</strong>nte da República em relação<br />
à expansão do Portocel, <strong>de</strong>monstrando como é importante a fala positiva<br />
<strong>de</strong> uma autorida<strong>de</strong> da esfera pública para a reprodução da i<strong>de</strong>ologia<br />
proposta. Por fim, é assustadora a ausência <strong>de</strong> informações a respeito dos<br />
danos ambientais que serão causados a partir da ampliação do Portocel.<br />
Nenhuma das matérias direcionadas à ampliação do porto tratam dos<br />
laudos requeridos pelo IEMA, nem da consulta pública realizada com intuito<br />
<strong>de</strong> discutir o planejamento do projeto junto à comunida<strong>de</strong> e, entre<br />
outras coisas, os eventuais danos ao ambiente geográfico e geopolítico.<br />
A evidência <strong>de</strong> uma agenda jornalística que inclui gran<strong>de</strong>s projetos <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>senvolvimento exclusivamente no ca<strong>de</strong>rno econômico comprova a necessida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> um jornalismo contra-hegemônico que não se apoie na tradição<br />
da neutralida<strong>de</strong> e objetivida<strong>de</strong>. Retomando Bourdieu (1997), a experiência<br />
<strong>de</strong> romper com a tradição jornalística <strong>de</strong> neutralida<strong>de</strong> no campo<br />
jornalístico reescreve, inclusive, as características do campo jornalístico.<br />
Como evi<strong>de</strong>ncia Dornelles (2008), a importância <strong>de</strong> um jornalismo que<br />
atue em conjunto com a comunida<strong>de</strong> existe principalmente por conta <strong>de</strong><br />
uma comunicação menos objetiva dos fatos e mais focada na construção<br />
<strong>de</strong> processos sociais e na relação dos grupos ali presentes. Esse tipo <strong>de</strong><br />
jornalismo, além <strong>de</strong> humanizar as relações <strong>de</strong>correntes do fato, também<br />
<strong>de</strong>sconstrói a tradição da neutralida<strong>de</strong>, uma vez que esta é usada como<br />
máscara das gran<strong>de</strong>s corporações para operarem o controle informacional<br />
sobre a socieda<strong>de</strong> sem serem rechaçadas (ou sequer percebidas). Dornelles<br />
<strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que essa forma <strong>de</strong> jornalismo, o jornalismo-cívico, seja<br />
também um jornalismo militante que <strong>de</strong>safie as noções hegemônicas<br />
propostas pelas gran<strong>de</strong>s corporações midiáticas. Posição esta que dialoga<br />
com a seguinte afirmação <strong>de</strong> Bittencourt:<br />
Cabe então aos intérpretes críticos da teoria da comunicação que<br />
120
Capítulo 4<br />
se apresentem publicamente como indivíduos cônscios <strong>de</strong> seu<br />
compromisso intelectual com a socieda<strong>de</strong> e <strong>de</strong>monstrem a série<br />
<strong>de</strong> lugares comuns que constituem o universo normativo das práticas<br />
jornalísticas, como forma <strong>de</strong> estimularem da coletivida<strong>de</strong><br />
social o <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> uma consciência seletiva e crítica<br />
acerca daquilo que é assimilado diariamente na <strong>de</strong>dicação passiva<br />
do culto aos “fatos jornalísticos” (BITTENCOURT, 2012, p. 40).<br />
O jornal Século Diário trabalha no estado do Espírito Santo construindo<br />
um jornalismo mais horizontal que atue junto à comunida<strong>de</strong>. A seguir,<br />
alguns exemplos <strong>de</strong> matérias publicadas pelo Século Diário que contêm<br />
uma diversificação da perspectiva ambiental e empreen<strong>de</strong>dora na Barra<br />
do Riacho no mesmo período proposto para a análise do jornal A Gazeta.<br />
Figuras 6 e 7: Manchetes do jornal O Século Diário.<br />
Fonte: O Século Diário, 5 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2016.<br />
Os recortes das manchetes já atentam para a aproximação do processo<br />
jornalístico com a comunida<strong>de</strong> local, realocando a possibilida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>bate<br />
<strong>de</strong>senvolvimentista para discutir como os empreendimentos da região<br />
afetam a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida, segurança e saú<strong>de</strong> dos moradores. Elas<br />
exprimem uma visão que complexifica a relação entre comunida<strong>de</strong> e<br />
empreendimento, uma vez que um é posto em conflito com outro. Justificativas<br />
são apontadas, assim como soluções avaliando questões como a<br />
alteração no modo <strong>de</strong> vida local e impacto no ambiente da região em vez<br />
<strong>de</strong> focar quase exclusivamente o <strong>de</strong>senvolvimento econômico advindo do<br />
empreendimento.<br />
121
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Ao tratar tão somente da ampliação do Portocel, o jornal Século Diário<br />
rompe, logo <strong>de</strong> início, com a tradição da neutralida<strong>de</strong> ao levantar questionamentos<br />
sobre o real benefício que as obras <strong>de</strong>correntes da ampliação<br />
trariam à comunida<strong>de</strong> local. Além <strong>de</strong> apresentar uma abordagem incisiva<br />
em relação aos problemas enfrentados na Barra do Riacho, nessa abordagem<br />
o foco não é compreen<strong>de</strong>r apenas a implantação do gran<strong>de</strong> projeto<br />
como um processo <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento, mas também todas as relações<br />
<strong>de</strong>correntes <strong>de</strong>ssa situação, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> as medidas que antece<strong>de</strong>m o processo<br />
<strong>de</strong> licitação até a realização das compensações na comunida<strong>de</strong>.<br />
Finalmente, o jornalismo cívico, construído <strong>de</strong> acordo com a <strong>de</strong>manda<br />
e participação da comunida<strong>de</strong> local, além <strong>de</strong> não estar circunscrito nas<br />
tradições da mídia corporativa <strong>de</strong> neutralida<strong>de</strong> e objetivida<strong>de</strong> enquanto<br />
disfarces para um discurso hegemônico e dominador, funciona para humanizar<br />
as relações presentes no processo midiático. Ao tratar pessoas,<br />
comunida<strong>de</strong>s e ambiente <strong>de</strong> forma tão superficial, gran<strong>de</strong>s veículos <strong>de</strong><br />
comunicação contribuem para uma maior instabilida<strong>de</strong> social.<br />
CONCLUSÃO<br />
Bittencourt (2012) escreve: “Quem <strong>de</strong>tém os aparatos comunicativos<br />
<strong>de</strong>tém o po<strong>de</strong>r i<strong>de</strong>ológico sobre a esfera social”. Essa afirmação sumariza<br />
perfeitamente a análise proposta neste artigo. Se há um processo <strong>de</strong> expansão<br />
<strong>de</strong> um dos já maiores portos <strong>de</strong> exportação do Brasil em uma área<br />
em que potenciais danos ambientais serão causados e refletirão <strong>de</strong> forma<br />
impactante na comunida<strong>de</strong> local e se esse processo ocorre <strong>de</strong> forma natural<br />
e bem aceita pela socieda<strong>de</strong> capixaba é muito por conta <strong>de</strong> sua mídia<br />
corporativista.<br />
Obviamente, a construção <strong>de</strong> um processo jornalístico que exclui a comunida<strong>de</strong><br />
do diálogo e enaltece as ações <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento<br />
é extremamente danosa para as populações que irão conviver com<br />
tais empreendimentos nas suas vidas cotidianas. A ação, novamente, imperativa<br />
dos gran<strong>de</strong>s veículos <strong>de</strong> mídia não apenas fornece uma sustentação<br />
para gran<strong>de</strong>s projetos serem instalados, mas também exclui possibilida<strong>de</strong>s<br />
menos paradigmáticas <strong>de</strong> <strong>de</strong>bate com a comunida<strong>de</strong> local. No caso<br />
da Barra do Riacho e da expansão do Portocel, torna-se evi<strong>de</strong>nte uma discrepância<br />
entre o discurso <strong>de</strong> prosperida<strong>de</strong> econômica apresentada pelos<br />
122
Capítulo 4<br />
empreendimentos da região e a situação econômica local. Além disso, as<br />
disputas entre comunida<strong>de</strong> local e empresa são importantes <strong>de</strong>mais para<br />
serem <strong>de</strong>sconsi<strong>de</strong>radas do processo jornalístico, uma vez que apresentam<br />
questões essenciais para o <strong>de</strong>bate na socieda<strong>de</strong>, por exemplo a respeito <strong>de</strong><br />
como tais empreendimentos agem em comunida<strong>de</strong>s locais e <strong>de</strong> como se<br />
dá a <strong>de</strong>terioração ambiental dos recursos <strong>de</strong>sses espaços.<br />
A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um jornalismo cívico, portanto, aparece <strong>de</strong> maneira<br />
contun<strong>de</strong>nte. No entanto, a dominação i<strong>de</strong>ológica realizada pela produção<br />
<strong>de</strong> sentido da mídia corporativa, sustentada no paradigma <strong>de</strong>senvolvimentista,<br />
atua na construção <strong>de</strong>ssa mídia alternativa. Por exemplo, a<br />
tradição <strong>de</strong> neutralida<strong>de</strong> em que os gran<strong>de</strong>s veículos <strong>de</strong> comunicação se<br />
apoiam serve como um falso parâmetro para <strong>de</strong>sacreditar o jornalismo<br />
cívico enquanto um jornalismo passível. A transformação a ser realizada<br />
não resi<strong>de</strong> apenas nas fundações i<strong>de</strong>ológicas da mídia, mostra-se evi<strong>de</strong>nte<br />
a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma mudança nos próprios eixos da socieda<strong>de</strong> e que,<br />
através <strong>de</strong>ssa mudança, o meio ambiente não seja tratado em segundo<br />
plano como totalmente passivo à operação imperativa da humanida<strong>de</strong>.<br />
123
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
REFERênciAS<br />
BITTENCOURT, R. N. Os discursos i<strong>de</strong>ológicos das corporações<br />
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BUENO, W. C. Jornalismo Ambiental: explorando além do conceito. In:<br />
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Consulta Pública do Termo <strong>de</strong> Referência da Expansão da Portocel II,<br />
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LEFF, E. Racionalida<strong>de</strong> Ambiental: a reapropriação social da natureza.<br />
<strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro: Civilização Brasileira, 2006.<br />
REPORTAgenS<br />
A GAZETA. (SEIXAS, B.) Fibria anuncia obra <strong>de</strong> R$ 80 milhões<br />
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124
Capítulo 4<br />
A GAZETA. Co<strong>de</strong>sa prevê complexo portuário a partir <strong>de</strong> Portocel.<br />
A Gazeta, Vitória/ES, 26 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2016. Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Economia:<br />
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A GAZETA. Fibria investe R$ 54 milhões em transporte <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>iras<br />
e gera empregos no Estado. Gazeta Online, Ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> Economia:<br />
Terminal marítimo, 28 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2017. Disponível em: .<br />
Acesso em: 01/12/2017.<br />
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01/12/2017.<br />
126
127<br />
Capítulo 4
128
Capítulo 5<br />
Políticas socioambientais e as<br />
comunida<strong>de</strong>s da foz do <strong>Rio</strong> Doce: antigas<br />
questões regadas com lama<br />
Luiz Otávio Martins Duarte<br />
INTRODUÇÃO<br />
O presente artigo preten<strong>de</strong> analisar o histórico das políticas e ações<br />
voltadas à implementação <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação na região da foz<br />
do <strong>Rio</strong> Doce e os conflitos com a população <strong>de</strong> pescadores <strong>de</strong> Regência<br />
Augusta (Vila, Areal e Entre <strong>Rio</strong>s) e Povoação em <strong>de</strong>trimento das ações<br />
dos órgãos ambientais executivos. Além disso, existem os burburinhos<br />
relacionados ao processo <strong>de</strong> instalação da APA na foz do <strong>Rio</strong> Doce, como<br />
parte <strong>de</strong> iniciativas (re)colocadas contra a mineradora Samarco e suas<br />
acionistas Vale e BHP, a exemplo do Termo <strong>de</strong> Transação e <strong>de</strong> Ajustamento<br />
<strong>de</strong> Conduta (TTAC) em virtu<strong>de</strong> do rompimento da barragem <strong>de</strong> rejeitos<br />
<strong>de</strong> mineração ocorrido no final <strong>de</strong> 2015. Este artigo integra e valoriza<br />
os relatos dos moradores da região e tenta, <strong>de</strong> alguma forma, exprimir<br />
suas insatisfações e angústias diante dos conflitos gerados pela combinação<br />
<strong>de</strong> elementos externos e internos às comunida<strong>de</strong>s atingidas.<br />
A metodologia para elaboração <strong>de</strong>ste artigo contou com levantamento <strong>de</strong><br />
dados bibliográficos relacionados à região, às populações <strong>de</strong> pescadores<br />
e às unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação. Também foram consultados os processos<br />
relacionados à unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conservação (UC) instalada e as propostas subsequentes.<br />
Esta pesquisa consi<strong>de</strong>rou e converteu os relatos dos moradores<br />
e pescadores da região da oralida<strong>de</strong> para a escrita a partir dos dados coletados<br />
através <strong>de</strong> entrevistas ocorridas durante as saídas <strong>de</strong> campo nos anos<br />
<strong>de</strong> 2016 e 2017. Junto do grupo <strong>de</strong> projeto integrado <strong>de</strong> pesquisa e extensão,<br />
foi realizada, por exemplo, a oficina intitulada “Áreas protegidas e gran<strong>de</strong>s<br />
projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no horizonte <strong>de</strong> vivências das comunida<strong>de</strong>s<br />
locais - Regência Augusta”, que especificamente trabalhou com a dinâmica<br />
<strong>de</strong> construção coletiva <strong>de</strong> um “mapa falado” da região. Deu-se, também,<br />
a participação na pesquisa “Rompimento da barragem do Fundão<br />
129
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
(SAMARCO/VALE/BHP BILLITON) e os efeitos do <strong>de</strong>sastre na foz do <strong>Rio</strong><br />
Doce, distritos <strong>de</strong> Regência e Povoação, Linhares (ES)”, que durou <strong>de</strong> maio<br />
<strong>de</strong> 2016 a fevereiro <strong>de</strong> 2017 e foi <strong>de</strong> extrema contribuição. Essa pesquisa, em<br />
específico, consistiu-se em uma etapa quantitativa com aplicação do questionário<br />
“Pesquisa social, econômica e cultural <strong>de</strong> moradores da foz do <strong>Rio</strong><br />
Doce e o rompimento da barragem <strong>de</strong> Fundão” e uma etapa qualitativa<br />
que reuniu entrevistas <strong>de</strong> vários atores da região. Este artigo é o resultado<br />
<strong>de</strong> dois anos <strong>de</strong> trabalho no projeto do Edital PROEXT/2016, <strong>de</strong>nominado<br />
“Áreas protegidas e gran<strong>de</strong>s projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no horizonte<br />
<strong>de</strong> vivências das comunida<strong>de</strong>s locais: os impactos socioambientais e seus<br />
<strong>de</strong>sdobramentos”, executado pelo Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisa em Populações<br />
Pesqueiras e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES).<br />
AS COMUNIDADES DA FOZ DO RIO DOCE E OS<br />
DESDOBRAMENTOS DOS PROCESSOS DE INSTALAÇÃO DE<br />
UNIDADES DE CONSERVAÇÃO<br />
As populações pesqueiras artesanais não enxergam a prática da pesca<br />
apenas como profissão, “a pesca artesanal faz parte do cotidiano <strong>de</strong> diversas<br />
vilas pesqueiras, não só como fonte <strong>de</strong> alimento, mas também como modo<br />
<strong>de</strong> vida, fornecendo i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> a essas comunida<strong>de</strong>s” (BICALHO, 2012, p.<br />
29). É notório no modo <strong>de</strong> viver das comunida<strong>de</strong>s pesqueiras tradicionais<br />
como os conhecimentos da natureza possibilitam uma vivência que valoriza<br />
a cultura passada <strong>de</strong> geração em geração, além <strong>de</strong> reforçar as técnicas <strong>de</strong>senvolvidas<br />
conforme as possibilida<strong>de</strong>s da região. Originalmente, as atuais<br />
populações que têm na pesca a ativida<strong>de</strong> principal <strong>de</strong> trabalho e renda nem<br />
sempre <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ram majoritariamente <strong>de</strong>ssa prática, pois, ao longo do<br />
tempo, tais populações sofreram com a perda <strong>de</strong> seus territórios on<strong>de</strong> agricultura<br />
e práticas <strong>de</strong> coletas também eram <strong>de</strong>senvolvidas. Assim, no Brasil,<br />
segundo Diegues, “até a década <strong>de</strong> 30 [...] com exceção dos gran<strong>de</strong>s centros<br />
urbanos, os pescadores espalhados pelas inúmeras comunida<strong>de</strong>s ao longo<br />
do litoral combinavam a agricultura e a pesca” (DIEGUES, 1983, p. 2).<br />
No caso <strong>de</strong> Regência Augusta 1 , distrito <strong>de</strong> Linhares, ela está “[...] locali-<br />
1 “A vila <strong>de</strong> Povoação situa-se no município <strong>de</strong> Linhares (19°33’45"S; 39°48’45"W), a 36 km<br />
da se<strong>de</strong> do município e a 160 km ao norte <strong>de</strong> Vitória, capital do estado do Espírito Santo. A<br />
vila, <strong>de</strong> 29 ha <strong>de</strong> área e cerca <strong>de</strong> 1.300 habitantes, localiza-se na margem norte do <strong>Rio</strong> Doce,<br />
a 10 km <strong>de</strong> sua foz e a 1 km do mar” (PINHEIRO & JOYEUX, 2007).<br />
130
Capítulo 5<br />
zada a cerca <strong>de</strong> 120 km ao norte <strong>de</strong> Vitória, capital do Espírito Santo. Situada<br />
a 7 km da Reserva Biológica <strong>de</strong> Comboios, cercada pelo <strong>Rio</strong> Doce<br />
e o Oceano Atlântico, essa pequena vila ocupa uma área <strong>de</strong> cerca <strong>de</strong> 40<br />
hectares” (BICALHO, 2012, p. 24). E a “[...] formação étnica <strong>de</strong>sse grupo se<br />
constitui pela miscigenação entre índios moradores da barra Sul do <strong>Rio</strong><br />
Doce e negros vindos <strong>de</strong> São Mateus, município localizado mais ao norte<br />
do Espírito Santo” (ZUNTI, 1941, apud AMBOSS, 2014, p. 72). A existência<br />
<strong>de</strong>ssas populações é ameaçada constantemente pelo processo <strong>de</strong> cercamento,<br />
on<strong>de</strong> os atores responsáveis vão <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s proprietários <strong>de</strong> terras<br />
a empresas <strong>de</strong> caráter público ou privado que se instalam na localida<strong>de</strong>.<br />
Além disso, há a criação <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação na região, temática<br />
a ser abordada neste artigo. A primeira <strong>de</strong>las é a Reserva Biológica <strong>de</strong><br />
Comboios (REBio Comboios), criada por <strong>de</strong>creto em 1984. Também merece<br />
<strong>de</strong>staque o fato <strong>de</strong> que a localida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Regência e as comunida<strong>de</strong>s<br />
da foz do <strong>Rio</strong> Doce têm seus territórios constantemente cogitados como<br />
área <strong>de</strong> interesse para a instalação <strong>de</strong> outras Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Conservação,<br />
as quais levam em conta as características naturais tidas como relevantes<br />
para a preservação, bem como <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s empreendimentos, como um<br />
complexo portuário. (TORRES et al., 2014).<br />
Quando se trata <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação, conhecer o tipo <strong>de</strong> categoria<br />
solicitada na proposta <strong>de</strong> criação é fundamental para enten<strong>de</strong>r as possibilida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> manejo.<br />
A implantação do Sistema Nacional <strong>de</strong> Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Conservação<br />
(SNUC), em 2000, sinaliza a consolidação da política nacional<br />
<strong>de</strong> gestão territorial <strong>de</strong> espaços naturais. O SNUC organiza<br />
e estrutura algumas das áreas geográficas ambientalmente mais<br />
valiosas do país, [...]. Ele ainda estabelece critérios e regras para<br />
o manejo <strong>de</strong> áreas protegidas nas diferentes escalas da fe<strong>de</strong>ração<br />
(MARTINS, 2012, s.p.).<br />
No caso da Reserva Biológica <strong>de</strong> Comboios, por se tratar <strong>de</strong> uma Reserva<br />
Biológica e se enquadrar no grupo <strong>de</strong> Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Proteção Integral, o<br />
uso <strong>de</strong> seus 833,23 hectares, entre áreas costeiras e marinhas, é <strong>de</strong>stinado<br />
acima <strong>de</strong> tudo “ao exercício da pesquisa científica”, segundo o Plano<br />
<strong>de</strong> Manejo da Reserva Biológica <strong>de</strong> Comboios - Fase 1, <strong>de</strong> 1997 (IBAMA,<br />
131
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
1997, s.p.). Por tal motivo, os conflitos com a população do entorno foram<br />
<strong>de</strong> difícil mediação, consi<strong>de</strong>rando que, na maioria dos casos, as próprias<br />
limitações legais da categoria dificultam a redução dos conflitos e impactos,<br />
prevalecendo os interesses sobre os fatores bióticos e relativizando os<br />
aspectos culturais e históricos.<br />
No processo <strong>de</strong> instalação da REBio Comboios, um jornal local relata que<br />
“das 300 famílias moradoras da reserva, a maioria fica em Regência e se<br />
<strong>de</strong>dica exclusivamente à pesca”, mas também que “verificaram a presença<br />
<strong>de</strong> 60 famílias que vivem da produção <strong>de</strong> mandioca”. O veículo ainda expõe<br />
que “a maioria <strong>de</strong>ssas famílias, pelo menos nas pessoas <strong>de</strong> seus antepassados,<br />
já habitava a reserva que foi criada em 1953” 2 e que “pela segunda<br />
vez em sua história, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que o Caboclo Bernardo salvou a tripulação<br />
do Imperial Marinheiro no século passado, um fato agita a população, e<br />
se faz um abaixo-assinado, palavra que os caboclos nunca ouviram falar” 3 .<br />
No ano <strong>de</strong> 2002, foi apresentado o Plano <strong>de</strong> Desenvolvimento Integrado e<br />
Sustentável (PDIS) para as comunida<strong>de</strong>s do entorno da Reserva Biológica<br />
<strong>de</strong> Comboios 4 . No documento, <strong>de</strong>staca-se o interesse em “reunir [...] as propostas<br />
que contribuirão para a conservação da Reserva Biológica e para a<br />
melhoria da qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida das comunida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Regência, Povoação,<br />
Areal e Comboios” (PDIS, 2002, p. 6). Entre as possibilida<strong>de</strong>s do grupo <strong>de</strong><br />
Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Uso Sustentável, a proposta solicitava o enquadramento da foz<br />
do <strong>Rio</strong> Doce como Reserva <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável (RDS) que, <strong>de</strong><br />
acordo com o art. 7º, inciso II, da Lei n.º 9.985/2000 5 , o “objetivo básico das<br />
Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Uso Sustentável é compatibilizar a conservação da natureza<br />
com o uso sustentável <strong>de</strong> parcela dos seus recursos naturais e a <strong>de</strong>finição <strong>de</strong><br />
interesses e possibilida<strong>de</strong>s das ações a serem tomadas na região”. Em 2007,<br />
2 A Tribuna, Vitória, ES, 07/04/1978, p. 7.<br />
3 A Tribuna, Vitória, ES, 16/04/1979, p. 7, c. 1-6.<br />
4 Elaborado por: Fundação Centro Brasileiro <strong>de</strong> Proteção e Pesquisa das Tartarugas Marinhas<br />
com parceria do IBAMA - Reserva Biológica <strong>de</strong> Comboios; Associação <strong>de</strong> Moradores<br />
<strong>de</strong> Regência; Associação dos Moradores e Amigos <strong>de</strong> Povoação; Associação dos Pescadores<br />
<strong>de</strong> Regência; Prefeitura Municipal <strong>de</strong> Linhares; Associação Indígena Tupiniquim <strong>de</strong> Comboios<br />
e Fundação Nacional do Índio.<br />
5 Lei n. o 9.985, <strong>de</strong> 18 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2000. Regulamenta o art. 225, § 1o, incisos I, II, III e VII da<br />
Constituição Fe<strong>de</strong>ral, institui o Sistema Nacional <strong>de</strong> Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Conservação da Natureza<br />
(SNUC) e dá outras providências. Publicado no Diário Oficial da União n.º 138, <strong>de</strong> 19 <strong>de</strong><br />
julho <strong>de</strong> 2000, seção 1, a partir da p. 45.<br />
132
Capítulo 5<br />
cinco anos após a apresentação do PDIS Comboios, é protocolada a solicitação<br />
<strong>de</strong> abertura <strong>de</strong> processo para estudos e criação <strong>de</strong> Unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Conservação,<br />
a Reserva <strong>de</strong> Desenvolvimento Sustentável na Foz do <strong>Rio</strong> Doce (RDS<br />
Foz do <strong>Rio</strong> Doce). Esse processo tem sua base no PDIS Comboios, elaborado<br />
pela Fundação Pró-Tamar em 2002 com recursos do Fundo Nacional do<br />
Meio Ambiente (FNMA), em que mais uma vez é ressaltado seu objetivo <strong>de</strong><br />
“garantir a conservação dos ecossistemas e o acesso das populações tradicionais<br />
locais aos recursos naturais indispensáveis à sobrevivência” 6 .<br />
Apesar dos métodos e objetivos <strong>de</strong>finidos no processo protocolado, e da<br />
quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> associações citadas como participantes na proposição da<br />
RDS Foz do <strong>Rio</strong> Doce, é possível notar, na comunida<strong>de</strong>, que há uma parcela<br />
da população que relata insatisfação com essa proposta, conforme verificamos<br />
em pesquisa <strong>de</strong> campo. Isso acontece por motivos como: (1) crise<br />
na representativida<strong>de</strong> das associações locais. A esse respeito, são relatadas<br />
<strong>de</strong>cisões hierarquizadas e com interesses políticos que muitas vezes<br />
divergem dos interesses comuns, como na fala do morador que relata:<br />
Quando nós formamos a associação dos pescadores nós não<br />
queríamos vínculo com o IBAMA, nós queríamos, assim, que a lei do<br />
IBAMA estivesse <strong>de</strong>ntro do estatuto, mas nós queríamos nós mesmos<br />
gerarmos o estatuto, fazer tudo conforme, direitinho. Fizemos tudo!<br />
Sabe o que aconteceu? Nosso [...] [omissão <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação] 7 foi lá e<br />
mandou [o agente ambiental] fazer outro edital e registrou o que o<br />
[agente ambiental] fez e não o que nós pedimos .<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em Povoação, em setembro <strong>de</strong> 2016].<br />
(2) <strong>de</strong>sconfiança quanto aos atores mediadores do processo, sendo que<br />
alguns moradores relatam insatisfação quanto à postura dos representantes<br />
do Instituto Chico Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Conservação da Biodiversida<strong>de</strong> (ICM-<br />
Bio), como na fala do morador:<br />
6 BRASIL. ICMBio/MMA. Processo 02009.002052/2007-41, p. 16/07.<br />
7 Algumas referências a pessoas foram retiradas <strong>de</strong> modo a tentar garantir o anonimato <strong>de</strong><br />
interlocutores consi<strong>de</strong>rando que, no cenário <strong>de</strong> pós-rompimento da barragem <strong>de</strong> Fundão em<br />
Mariana (MG), isso contribuiu para que alguns conflitos ficassem mais acirrados.<br />
133
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Fulano <strong>de</strong> tal, já não tem uma imagem boa durante a socieda<strong>de</strong>,<br />
aí então: ‘quem é que tá representando? Ah, é fulano aí pronto,’ já<br />
associa à unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conservação ao mau caráter daquela pessoa,<br />
então simplesmente eles não aceitam! Enten<strong>de</strong>?<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em Areal, em agosto <strong>de</strong> 2016].<br />
(3) receio <strong>de</strong> per<strong>de</strong>r as características culturais:<br />
Eu por ser pescador questiono muito o IBAMA a forma que eles<br />
age[m] porque eu acho assim, que tem que preservar, eu concordo<br />
em preservar, absolutamente, sou a favor <strong>de</strong> preservar, mas<br />
mudar a cultura da gente, mudar o sangue, num sou a favor não,<br />
porque o que eu sei, o que eu sigo e aprendi com papai.<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em Regência Augusta, em novembro <strong>de</strong> 2015].<br />
(4) reflexo do próprio processo <strong>de</strong> criação da REBio Comboios, que serve<br />
<strong>de</strong> referência avaliativa para a população e está expresso no relato <strong>de</strong> um<br />
morador que po<strong>de</strong> ser afetado pela UC a ser criada na foz do <strong>Rio</strong> Doce:<br />
Vai fazer igual àquela dali do [...] Comboio ali... [vo]cê num po<strong>de</strong><br />
tirar um caju ali <strong>de</strong>ntro... e aqui, [...] vão supor, [vo]cê “pranta” um<br />
pé <strong>de</strong> cebola, daqui a pouco [vo]cê num po<strong>de</strong> colher ele, [vo]cê<br />
vai viver <strong>de</strong> que jeito? Né? Praticamente, a “prantação”... a pesca<br />
que [vo]cê tem no rio [vo]cê num... que [vo]cê tinha no <strong>Rio</strong>, [vo]cê<br />
num tem mais... enten<strong>de</strong>u?<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em Entre <strong>Rio</strong>s, em novembro <strong>de</strong> 2016].<br />
A criação da RDS Foz do <strong>Rio</strong> Doce, mesmo com todas as ações e esforços,<br />
até o encerramento <strong>de</strong>ste artigo não havia sido efetivada. Mas, mesmo<br />
assim, é motivo <strong>de</strong> preocupação para alguns, inclusive por se tratar <strong>de</strong> um<br />
projeto antigo, embora reformulado no contexto dos efeitos trazidos pela<br />
chegada dos rejeitos <strong>de</strong> mineração na foz do <strong>Rio</strong> Doce.<br />
134
Capítulo 5<br />
Outro fato a se <strong>de</strong>stacar no SNUC é a Zona <strong>de</strong> Amortecimento (ZA), entendida,<br />
segundo o art. 2º, da Lei n.º 9.985/2000, como “o entorno <strong>de</strong> uma<br />
unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conservação, on<strong>de</strong> as ativida<strong>de</strong>s humanas estão sujeitas a<br />
normas e restrições específicas, com o propósito <strong>de</strong> minimizar os impactos<br />
negativos sobre a unida<strong>de</strong>”. A ZA da REBio <strong>de</strong> Comboios foi criada<br />
através da portaria 49/2015 8 , ampliando a área <strong>de</strong> influência e, por conseguinte,<br />
as limitações <strong>de</strong> certas ativida<strong>de</strong>s consi<strong>de</strong>radas nocivas ao meio<br />
biótico. Abaixo, no mapa “As comunida<strong>de</strong>s da foz do rio Doce (ES) e os<br />
processos relacionados a Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Conservação da Natureza”, po<strong>de</strong>m<br />
ser visualizadas a área da REBio Comboios, a zona <strong>de</strong> amortecimento da<br />
respectiva unida<strong>de</strong>, a proposta <strong>de</strong> RDS e as comunida<strong>de</strong>s da região.<br />
A <strong>de</strong>limitação da zona <strong>de</strong> amortecimento da REBio Comboios e as normas<br />
a serem implantadas configuram mudanças nas possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> construção<br />
e ocupação do solo, nas culturas agrícolas praticadas e na ativida<strong>de</strong><br />
pesqueira. Ao analisar as normas contidas no anexo 1 da portaria nº. 49 <strong>de</strong> 9<br />
<strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2015, referente à ZA da REBio Comboios, é possível perceber<br />
que elas favorecem as questões ligadas à conservação da biodiversida<strong>de</strong><br />
ao mesmo tempo em que po<strong>de</strong>m resultar no aumento das atribuições<br />
executivas dos órgãos gestores perante a comunida<strong>de</strong>. É compreensível<br />
que a ZA <strong>de</strong> um Reserva Biológica atribua normas relacionadas às<br />
condições e possibilida<strong>de</strong>s da categoria, porém é necessário:<br />
Compreen<strong>de</strong>r a dinâmica entre a imposição <strong>de</strong> regras estatais em<br />
locais que já tinham or<strong>de</strong>namentos jurídicos específicos e relativamente<br />
auto-regulados é importante para compreen<strong>de</strong>r como funciona<br />
a autonomia <strong>de</strong>stas diferentes esferas <strong>de</strong> regulação e o impacto<br />
que elas têm umas nas outras. A importância <strong>de</strong>sta análise<br />
está no fato <strong>de</strong> que todas estas questões têm impacto tanto na conservação<br />
da biodiversida<strong>de</strong> quanto nas dinâmicas socioculturais<br />
dos referidos grupos (BRANDON, 1998 apud MILANO, 2001, s.p.).<br />
8 Portaria n.° 49, <strong>de</strong> 9 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2015. Estabelece os limites da zona <strong>de</strong> amortecimento da<br />
Reserva Biológica <strong>de</strong> Comboios, estado do Espírito Santo (Processo n.º 02070.001098/2014-<br />
28). Publicado no Diário Oficial da União, n.º 195, <strong>de</strong> 13 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2015, seção 1, p. 61.<br />
135
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Figura 1: Comunida<strong>de</strong>s na foz do rio Doce, TI <strong>de</strong> Comboios e ReBio <strong>de</strong><br />
Comboios.<br />
Fonte: Ortofoto-Mosaico do Estado do Espírito Santo, Levantamento 2007, IEMA. Geobases<br />
ES. Elaboração <strong>de</strong> Jerônimo Amaral <strong>de</strong> Carvalho.<br />
136
Capítulo 5<br />
SAMARCO/VALE/BHP FUNDAÇÃO RENOVA: REPARAR,<br />
RESTAURAR e RECONSTRUIR?<br />
A barragem <strong>de</strong> rejeitos <strong>de</strong> Fundão, da mineradora Samarco, que<br />
pertence à Vale e à empresa anglo-australiana BHP Billiton, localizada<br />
em Mariana (MG), rompeu no dia 5 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong><br />
2015. A onda atingiu a barragem <strong>de</strong> Santarém, situada à jusante<br />
e galgou-a, alcançando as povoações <strong>de</strong> Bento Rodrigues e Barra<br />
Longa nas margens no rio Gualaxo do Norte; passou pelo rio do<br />
Carmo, atingiu o rio Doce e, após 16 dias percorrendo aproximadamente<br />
660 km, alcançou o mar em 21 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2016, em<br />
Regência, Município <strong>de</strong> Linhares (ES) (ANA, 2015, s.p.).<br />
É preciso consi<strong>de</strong>rar que:<br />
Em função dos impactos na calha principal do <strong>Rio</strong> Doce, po<strong>de</strong>-se<br />
<strong>de</strong>stacar o prejuízo na agricultura <strong>de</strong> pequena proprieda<strong>de</strong> familiar.<br />
Isto acontece, pois, os produtores rurais nos municípios no<br />
entorno da bacia hidrográfica do <strong>Rio</strong> Doce encontram dificulda<strong>de</strong>s<br />
para manter a produção agrícola e pecuária <strong>de</strong>vido à qualida<strong>de</strong><br />
da água do rio (TORRES et al., 2017, p. 4).<br />
A partir do <strong>de</strong>sastre, surgiram inúmeros processos e implicações jurídicas<br />
para <strong>de</strong>terminar as ações que a mineradora Samarco e suas acionistas<br />
Vale S.A. e BHP Billiton <strong>de</strong>veriam tomar a respeito dos impactos socioambientais.<br />
Sendo assim,<br />
Neste contexto <strong>de</strong> disputa judicial em torno da valida<strong>de</strong> do acordo,<br />
surgiu a Fundação Renova com o objetivo <strong>de</strong> implantar e gerir<br />
os programas <strong>de</strong> reparação, restauração e reconstrução das<br />
regiões afetadas pelo rompimento da barragem <strong>de</strong> Fundão. Os<br />
programas, previstos no TTAC, estão reunidos em dois módulos,<br />
sendo um socioambiental e o outro socioeconômico (LEONAR-<br />
DO et al., 2017, p. 94).<br />
Dentro do módulo socioambiental, há um item específico que tratou da<br />
criação <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação, fato que reacen<strong>de</strong>u a angústia e a<br />
preocupação dos moradores da vila, que além <strong>de</strong> sofrerem os impactos relacionados<br />
diretamente ao processo <strong>de</strong> contaminação do rio e do mar, são<br />
137
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
atingidos e impactados pelas próprias medidas propostas para atenuação<br />
dos danos. De maneira geral, os mecanismos formais <strong>de</strong> participação popular<br />
nas tomadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões existem, porém é necessário questionar,<br />
Qual a efetivida<strong>de</strong> <strong>de</strong> um enorme arsenal <strong>de</strong> ações constitucionais<br />
e instrumentos <strong>de</strong> participação formal, por exemplo, diante<br />
<strong>de</strong> situações <strong>de</strong> acracia política (não po<strong>de</strong>r participar da ação<br />
cidadã) [...] [relacionada] [...] ao baixo grau <strong>de</strong> escolarização 9 dos<br />
requerentes; ao formalismo administrativo e a ausência da prática<br />
<strong>de</strong> conversão <strong>de</strong> solicitações orais em solicitações formalizadas;<br />
à falta <strong>de</strong> esclarecimento dos direitos e <strong>de</strong>veres das partes<br />
nos processos administrativos; à complexida<strong>de</strong> e prolixida<strong>de</strong> excessiva<br />
das normas administrativas, além dos graves problemas<br />
<strong>de</strong> or<strong>de</strong>m política e econômica própria <strong>de</strong> países emergentes<br />
(MODESTO, 2002, p. 4).<br />
As populações das comunida<strong>de</strong>s da foz do <strong>Rio</strong> Doce aparentam estar<br />
saturadas dos mecanismos relacionados à atuação metodológica que a<br />
empresa Samarco e a Fundação Renova têm realizado na comunida<strong>de</strong>.<br />
Nesse sentido, mesmo diante do cenário <strong>de</strong> um evento trágico como o<br />
ocorrido, para implementação <strong>de</strong> uma UC, é preciso reconhecer e aplicar<br />
as diretrizes do SNUC, como aquelas que visam assegurar a participação<br />
efetiva das populações locais na criação, implantação e gestão das unida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> conservação. Apesar <strong>de</strong> haver uma <strong>de</strong>cisão judicial que exige<br />
ações pontuais reparatórias e compensatórias relacionadas a unida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> conservação, não <strong>de</strong>vem ser ignorados os processos legais <strong>de</strong> participação<br />
da comunida<strong>de</strong>, as <strong>de</strong>ficiências estruturais do próprio processo e,<br />
sobretudo, que existam maiores investimentos em educação ambiental e<br />
comprometimento com o compartilhamento das informações pelos órgãos<br />
responsáveis.<br />
Segundo o acordo assinado 10 , <strong>de</strong>verá ser instalada na região da foz do <strong>Rio</strong> Doce<br />
9 Sobre a escolarida<strong>de</strong> em Regência: Não Estudou: 5,1%; Fund. Incompleto: 37,7%; Fund.<br />
Completo 5,7; E. Médio incompleto 10,9%. Esses dados totalizam 59,4% da população com<br />
alfabetização incompleta e/ou <strong>de</strong>ficitária. Em Povoação: Não Estudou: 2,7%; Fund. Incompleto:<br />
42,4%; Fund. Completo 9,4%; E. Médio Incompleto 12,4%. Esses dados totalizam 66,9% da<br />
população com alfabetização incompleta e/ou <strong>de</strong>ficitária (Fonte: LEONARDO et al., 2017).<br />
10 Entre Fundação Renova, Samarco e suas acionistas, Vale e BHP Billiton, o Governo Fe<strong>de</strong>ral,<br />
os Estados <strong>de</strong> Minas Gerais e do Espírito Santo, o Instituto Brasileiro do Meio Ambien-<br />
138
Capítulo 5<br />
uma Área <strong>de</strong> Proteção Ambiental, que <strong>de</strong>ve pertencer à categoria do grupo<br />
das unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> uso sustentável, como uma APA, que, segundo o SNUC,<br />
É uma área em geral extensa, com um certo grau <strong>de</strong> ocupação<br />
humana, dotada <strong>de</strong> atributos abióticos, bióticos, estéticos ou culturais<br />
especialmente importantes para a qualida<strong>de</strong> <strong>de</strong> vida e o<br />
bem-estar das populações humanas, e tem como objetivos básicos<br />
proteger a diversida<strong>de</strong> biológica, disciplinar o processo <strong>de</strong><br />
ocupação e assegurar a sustentabilida<strong>de</strong> do uso dos recursos naturais<br />
(BRASIL. MMA/ICMBio. Art. 15 da Lei n.º 9.985/2000).<br />
Segundo o art. 16, inciso II, da Lei n.º 9.985/2000, a APA <strong>de</strong>ve ser composta<br />
por “um Conselho presidido pelo órgão responsável por sua administração<br />
e constituído por representantes dos órgãos públicos, <strong>de</strong> organizações<br />
da socieda<strong>de</strong> civil e da população resi<strong>de</strong>nte”. No caso específico, o TTAC<br />
<strong>de</strong>termina, na seção VII: Gestão e uso sustentável da terra na cláusula 181,<br />
que “A FUNDAÇÃO <strong>de</strong>verá custear ações referentes à consolidação [...],<br />
da Área <strong>de</strong> Proteção Ambiental na Foz do <strong>Rio</strong> Doce, com área estimada <strong>de</strong><br />
43.400 ha, que será criada pelo PODER PÚBLICO”.<br />
Interessante lembrar que a mudança <strong>de</strong> uma categoria <strong>de</strong> manejo <strong>de</strong> UC<br />
não é inocente e, no que diz respeito às APAs, sua a efetivida<strong>de</strong> é motivo<br />
<strong>de</strong> controvérsia nos círculos conservacionistas. Conforme registra Bensusan,<br />
que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> o embasamento teórico da categoria:<br />
De uma maneira geral “as áreas <strong>de</strong> proteção ambiental” (Apas)<br />
não possuem boa reputação como importantes para a conservação<br />
da biodiversida<strong>de</strong>; essa má fama, entretanto, está mais relacionada<br />
ao seu baixo grau <strong>de</strong> implementação e, consequentemente,<br />
à sua ineficiência, do que com as diretrizes teóricas que<br />
regem essa modalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> área protegida. Ou seja, há inúmeras<br />
“Apas <strong>de</strong> papel” (BENSUSAN, 2006, p. 30).<br />
te e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), o Instituto Chico Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Conservação da<br />
Biodiversida<strong>de</strong> (ICMBio), a Agência Nacional <strong>de</strong> Águas (ANA), o Departamento Nacional<br />
<strong>de</strong> Produção Mineral (DNPM), a Fundação Nacional do Índio (Funai), o Instituto Estadual<br />
<strong>de</strong> Florestas (IEF), o Instituto Mineiro <strong>de</strong> Gestão das Águas (IGAM), a Fundação Estadual<br />
<strong>de</strong> Meio Ambiente (FEAM), o Instituto Estadual <strong>de</strong> Meio Ambiente e Recursos Hídricos<br />
(IEMA), o Instituto <strong>de</strong> Defesa Agropecuária e Florestal do Espírito Santo (IDAF) e a Agência<br />
Estadual <strong>de</strong> Recursos Hídricos (AGERH).<br />
139
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Diante <strong>de</strong> tais fatos, ressurge, na comunida<strong>de</strong>, o interesse e a preocupação<br />
com os rumores a respeito da possível instalação <strong>de</strong> outra unida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
conservação, tratada entre a população, <strong>de</strong> modo mais indistinto, como<br />
reserva. Consi<strong>de</strong>rando que a comunida<strong>de</strong> alega falta <strong>de</strong> informação e esclarecimentos<br />
sobre o assunto, e isso está alinhado aos processos jurídicos<br />
que tramitam no contexto pós-rompimento, é quase inevitável o surgimento<br />
da insegurança ao levar em conta as experiências das relações<br />
prévias com agentes dos órgãos gestores e suas ações na comunida<strong>de</strong>. Um<br />
exemplo aparece no relato da moradora que afirma que “[...] a última fala<br />
<strong>de</strong>le [do agente ambiental] foi o seguinte: queira vocês ou não, essa reserva<br />
vai sair, está no acordo, tá? Então queira[mos] nós ou não essa reserva<br />
vai sair, porque já está no acordo” [Entrevista realizada pela equipe do<br />
Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Pesca e Desenvolvimento no Espírito<br />
Santo (GEPPEDES) Regência Augusta, novembro <strong>de</strong> 2016].<br />
As comunida<strong>de</strong>s da foz do <strong>Rio</strong> Doce são distritos rurais com uma população<br />
reduzida, isto é, comunida<strong>de</strong>s on<strong>de</strong> “todos se conhecem”. Diante disso,<br />
a imagem do ICMBio/TAMAR é vista <strong>de</strong> forma negativa por uma parcela<br />
da população que personifica as ações <strong>de</strong> agentes que atuam diretamente<br />
com a comunida<strong>de</strong>, em especial dos sujeitos atuantes na gestão da UC já<br />
consolidada (REBio Comboios), e que são os articuladores das propostas<br />
subsequentes. São associados ao ICMBio/IBAMA/TAMAR fatos como:<br />
(1) a proibição da pesca (no rio e no mar / antes e <strong>de</strong>pois da lama):<br />
Eu sempre questionei isso e num acho certo, o material que eu<br />
tenho lá eu compro e pago, eu pago imposto pelo material que eu<br />
tenho, aceito sim uma conversa, mudar, botar menas re<strong>de</strong>, mudar<br />
a malha, concordo né, que eu posso tá errado, mas não chegar e<br />
me proibir <strong>de</strong> pescar ou parar um mês, digo assim eu concordo<br />
em relação a ter uma conversa, não chegar e proibir você <strong>de</strong> fazer<br />
uma coisa que você apren<strong>de</strong>u <strong>de</strong>s<strong>de</strong> criança enten<strong>de</strong>u?<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em Regência Augusta, em novembro <strong>de</strong> 2015].<br />
(2) as restrições das práticas <strong>de</strong> extrativismo diretamente ligadas à dieta<br />
da população e as possíveis mudanças na saú<strong>de</strong>, como trata um morador<br />
140
Capítulo 5<br />
ao afirmar que:<br />
O mais preocupante mesmo disso tudo que eu já li sobre Regência<br />
é a questão um pouco mais a longo prazo, porque se você,<br />
igual a gente vem aqui, já tinha uma questão <strong>de</strong>, quando ele, o<br />
Tamar chegou aqui tirou a questão [...] da tartaruga da alimentação,<br />
como os ovos, a proteína, isso prejudicou muito os nativos<br />
caboclos, agora com a retirada do peixe da dieta, você tem uma<br />
tendência muito gran<strong>de</strong> ao que, agora eles vão começar ao que, a<br />
consumir o que, a industrialização?<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em Regência Augusta, em novembro <strong>de</strong> 2015].<br />
(3) a proibição do acesso da população às áreas abarcadas pela Reserva<br />
Biológica:<br />
Eles estão pensando na gente? Não estão. Poxa, a lagoa ali, 70%<br />
<strong>de</strong>la ali, [...] 70% <strong>de</strong>la pertence à Reserva dos Comboios não po<strong>de</strong><br />
fazer uma encanação daqui quatro quilômetros e meio. - E ali tem<br />
peixe tá? - Água quase mineral ali, água doce. São coisas assim…<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em Regência Augusta, em novembro <strong>de</strong> 2016].<br />
(4) a possível perda <strong>de</strong> suas proprieda<strong>de</strong>s ou a possível restrição <strong>de</strong> práticas:<br />
Então agora eles fizeram as... as daneiras <strong>de</strong>les aí e tá querendo<br />
fazer o proveito pra po<strong>de</strong>r fazer uma reserva ou alguma coisa assim,<br />
mas a gente tem que saber o que que a gente vai... como a<br />
gente vai viver <strong>de</strong>ntro daquela reserva... né? Se a gente tem possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> tá ali pra morar... pra morar ali pra viver ali <strong>de</strong>ntro, se<br />
não eles também tem que arcar com as consequência que eles fizeram<br />
pra po<strong>de</strong>r a gente saber on<strong>de</strong> a gente vai morar né? E num<br />
é assim, tocar igual toca bicho que nem os bicho po<strong>de</strong> sair do<br />
local também que tá.<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesqui-<br />
141
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
sas em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em Entre <strong>Rio</strong>s, em novembro <strong>de</strong> 2016].<br />
Apesar da UC proposta no acordo estar enquadrada na categoria APA, ou<br />
seja, entre as Unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Uso Sustentável, cujas diretrizes presentes no<br />
SNUC asseguram a participação efetiva das populações locais no processo<br />
<strong>de</strong> criação e gestão da UC, é necessário compreen<strong>de</strong>r que:<br />
Na realida<strong>de</strong>, se a socieda<strong>de</strong> brasileira, em geral, não está informada,<br />
conscientizada e convencida da importância <strong>de</strong>ssas unida<strong>de</strong>s<br />
é porque, em medida significativa, elas não são concebidas e<br />
manejadas com o propósito, claro, evi<strong>de</strong>nte e inequívoco, <strong>de</strong> contribuir<br />
para promoção social, cultural, e econômica da população,<br />
especialmente das comunida<strong>de</strong>s do entorno <strong>de</strong>ssas áreas. As<br />
unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação não têm suficiente visibilida<strong>de</strong> social,<br />
passam <strong>de</strong>spercebidas para a maior parte das pessoas ou são encaradas<br />
como uma verda<strong>de</strong>ira ameaça por aquelas comunida<strong>de</strong>s<br />
diretamente afetadas (MERCADANTE, 2001, s.p.).<br />
É possível notar que existe um ruído na comunicação, como relata o morador<br />
<strong>de</strong> Areal quando diz que:<br />
O problema é que não tem relação, unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conservação, eles<br />
simplesmente implantaram essa i<strong>de</strong>ia em Regência e a gente ficou<br />
sabendo através <strong>de</strong> terceiros! Nenhum representante chegou aqui<br />
pra po<strong>de</strong>r dizer “ah, vai chegar tal dia a unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conservação,<br />
vai ser assim, [...] ou seja, vocês achariam bom ou ruim? Ninguém<br />
perguntou! Enten<strong>de</strong>u? A gente ficou sabendo através <strong>de</strong> terceiros!<br />
Então se a gente quiser ficar sabendo <strong>de</strong> alguma informação, nós<br />
que tínhamos que ir procurar saber. Agora a gente... às vezes até eu<br />
entro em conflito, não sei se aquela informação é correta ou se não<br />
é, enten<strong>de</strong>u? Simplesmente a gente tá acreditando no que vê e simplesmente<br />
não quer! Enten<strong>de</strong>u? [Entrevista realizada pela equipe<br />
do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Pesca e Desenvolvimento no<br />
Espírito Santo (GEPPEDES) em Areal, em novembro <strong>de</strong> 2016].<br />
Pelo trecho acima, nota-se, também, a questão <strong>de</strong> quem são consi<strong>de</strong>rados<br />
os moradores da foz, pois a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Areal situa-se mais ao norte<br />
142
Capítulo 5<br />
<strong>de</strong> Regência, e ouvimos relatos <strong>de</strong> moradores queixando-se <strong>de</strong> que não<br />
estão incluídos em alguns processos <strong>de</strong>cisórios que consi<strong>de</strong>ram apenas o<br />
núcleo da vila <strong>de</strong> Regência.<br />
Não é simples propor com exatidão a visão que as comunida<strong>de</strong>s têm sobre<br />
os órgãos ambientais e projetos instalados na região. O próprio Plano<br />
<strong>de</strong> Manejo da REBio Comboios sugere que:<br />
No contexto <strong>de</strong>ssa população, a reação à Reserva, então, confun<strong>de</strong>-se<br />
com sua reação frente às realizações e censuras feitas pelo<br />
TAMAR. A proibição total da captura à tartaruga, a fiscalização<br />
da pesca em <strong>de</strong>terminados pontos da Zona <strong>de</strong> Transição e períodos<br />
<strong>de</strong> reprodução, entre outros, afeta negativamente a imagem<br />
da Reserva (IBAMA, 1997, s.p.).<br />
É importante ressaltar que não há intenção <strong>de</strong> quantificar ou emitir<br />
qualquer juízo <strong>de</strong> valor perante os órgãos citados, mas, antes, tem-se o<br />
intuito <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r os impactos que as comunida<strong>de</strong>s da região relatam<br />
sofrer perante as ações <strong>de</strong>sses órgãos. Em relato, um morador <strong>de</strong> Regência<br />
afirma que:<br />
Antes as pessoas não precisavam <strong>de</strong> órgãos pra po<strong>de</strong>r sobreviver,<br />
simplesmente eles viviam da agricultura familiar, <strong>de</strong>les mesmos.<br />
Colhiam e plantavam, enten<strong>de</strong>u? Fazia parte da conduta <strong>de</strong>les<br />
saírem cedo, caçar, pescar, hoje a pessoa é privada <strong>de</strong> tudo, agora<br />
a pessoa não po<strong>de</strong> nem tomar um banho numa lagoa! Enten<strong>de</strong>u?<br />
Vocês acham que isso, na cabeça <strong>de</strong> umas pessoas mais velhas seria<br />
bom? Ah, chegar uma unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> conservação, você não po<strong>de</strong><br />
cortar nem o ganho do... seu lote porque se não, você vai acabar<br />
sendo punido!<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em Areal, em novembro <strong>de</strong> 2016].<br />
Dentro do contexto apresentado, é possível perceber que as comunida<strong>de</strong>s<br />
têm sido historicamente restringidas <strong>de</strong> suas práticas. Assim, reclamam<br />
do aumento da fiscalização e da escassez <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s ligadas à educação<br />
ambiental por parte do ICMBio/IBAMA/TAMAR, afirmando que a<br />
143
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
atuação <strong>de</strong>sses órgãos se resume à preocupação com a biodiversida<strong>de</strong>. E,<br />
perante a atual situação, com os impactos sociais e ambientais pós-rompimento<br />
da barragem da Samarco, aumentam os questionamentos sobre a<br />
falta <strong>de</strong> importância da comunida<strong>de</strong> nos processos <strong>de</strong>cisórios. Além disso,<br />
há uma insatisfação relacionada à injustiça das escalas <strong>de</strong> fiscalização<br />
e influência dos órgãos ambientais e do Po<strong>de</strong>r Judiciário, a qual é expressa<br />
na fala <strong>de</strong> uma pescadora <strong>de</strong> Povoação, outra comunida<strong>de</strong> situada na<br />
margem esquerda da foz do <strong>Rio</strong> Doce:<br />
Eu falo, eu vejo, [...] que o po<strong>de</strong>r aquisitivo fala mais alto que o<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> ser, ser humano. Talvez, se nós tivéssemos matado uma<br />
caça, talvez se nós tivéssemos <strong>de</strong>smatado a reserva ou tirado o guriri<br />
11 da beira da praia, talvez nós estaríamos tudo atrás da ca<strong>de</strong>ia,<br />
mas eles têm po<strong>de</strong>r. [Entrevista realizada pela equipe do Grupo<br />
<strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Pesca e Desenvolvimento no Espírito<br />
Santo (GEPPEDES) em Povoação, em setembro <strong>de</strong> 2016].<br />
À GUISA <strong>de</strong> CONCLUSão<br />
Aparentemente, os conflitos relacionados acima não parecem se restringir<br />
à região das comunida<strong>de</strong>s da foz do <strong>Rio</strong> Doce, pois, <strong>de</strong> uma maneira<br />
geral, no próprio processo <strong>de</strong> criação do SNUC, fica evi<strong>de</strong>nte que<br />
existem composições <strong>de</strong> forças i<strong>de</strong>ológicas que influenciaram os <strong>de</strong>bates<br />
<strong>de</strong> criação <strong>de</strong>sse sistema e que interferem nas diversas instâncias dos<br />
órgãos ambientais e nas políticas públicas relacionadas ao ambiente.<br />
Na literatura, geralmente são <strong>de</strong>stacadas divergências <strong>de</strong> posições entre:<br />
os preservacionistas, que no atual mo<strong>de</strong>lo ten<strong>de</strong>m a <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r a criação<br />
<strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> proteção integral, as quais têm o objetivo <strong>de</strong> preservar a<br />
natureza, com os seus recursos sendo usados somente <strong>de</strong> forma indireta<br />
como, por exemplo, em pesquisas; e os conservacionistas e socioambientalistas,<br />
que propõem um mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> reserva on<strong>de</strong> haja coabitação entre<br />
as comunida<strong>de</strong>s tradicionais <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>terminada região e o uso regulado<br />
e sustentável dos recursos naturais, conciliando <strong>de</strong>senvolvimento humano<br />
com proteção da natureza.<br />
11 Palmeira Allagoptera arenaria, natural da restinga e conhecida popularmente como Guriri,<br />
Purunã, Paissandu, Coco da Praia, Caxandó.<br />
144
Capítulo 5<br />
Segundo Diegues:<br />
Não é por acaso que dirigentes do ICMBio, hoje (2015) voltam à<br />
carga afirmando que o melhor lugar institucional para as unida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> uso sustentável é o INCRA ou o Ministério do Desenvolvimento<br />
Agrário e não o Ministério do Meio-Ambiente. Essas<br />
afirmações são um grave retrocesso ao que foi conseguido por<br />
Movimentos Sociais, durante décadas <strong>de</strong> oposição à uma política<br />
preservacionista autoritária e pouco eficaz (DIEGUES, 2015, s.p.).<br />
Nesse sentido, cabe lembrar que “a <strong>de</strong>struição da vida selvagem e florestas<br />
hoje têm relativamente pouco a ver com as espécies em si, mas é <strong>de</strong>corrência<br />
das relações entre a população e a natureza e das relações entre<br />
as pessoas” (DIEGUES, 1998, p. 150).<br />
De uma maneira geral, no intuito <strong>de</strong> estimular a reflexão do leitor, e na<br />
tentativa <strong>de</strong> nos aproximarmos da perspectiva da população quanto à<br />
instalação <strong>de</strong> unida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> conservação, transcrevo um trecho <strong>de</strong> uma entrevista<br />
realizada com um casal <strong>de</strong> moradores <strong>de</strong> Regência:<br />
Entrevistador: Você acha que essa reserva vai, vai fazer o que<br />
aqui?<br />
Interlocutores: Vai... morrer, como a minha terrinha morreu, Barra<br />
<strong>de</strong> Caravelas.<br />
E: Você é <strong>de</strong> Caravelas?<br />
I: Sou. Como Caravelas morreu, como Canavieiras morreu, tá?<br />
E: Morreu como?<br />
I: A pessoa em si vai se reprimindo diante da situação, porque<br />
não po<strong>de</strong> isso, não po<strong>de</strong> aquilo, não tem isso, não tem aquilo. O<br />
comércio morto, não tem... não tem gente, não tem. Não tem turismo,<br />
não tem... não tem visitante, então não tem nada, tá. Quem<br />
vive <strong>de</strong> pesca vai ser limitado a pescar. De que que o povo vai<br />
viver aqui em Regência? Me fala? Vai ter muita gente indo embora,<br />
Regência vai ser abandonada, no meu ver, enten<strong>de</strong>u?! Vai ter<br />
muita gente indo embora.<br />
145
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em Regência Augusta, em novembro <strong>de</strong> 2016].<br />
146
Capítulo 5<br />
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148
Capítulo 5<br />
MMA, MINISTÉRIO DO MEIO AMBIENTE, ICMBio. Criação <strong>de</strong> Unida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Conservação: Pedido <strong>de</strong> Criação da Unida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Conservação<br />
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149
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
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150
Parte 2<br />
Repercussões da chegada da<br />
lama na foz do rio Doce<br />
151
152
Capítulo 6<br />
“Nós não estamos lidando com lambaris,<br />
estamos lidando com tubarões”<br />
Sobre os efeitos e os <strong>de</strong>sdobramentos<br />
institucionais do <strong>de</strong>sastre da mineração na<br />
foz do <strong>Rio</strong> Doce 1<br />
Flávia Amboss Merçon Leonardo<br />
João Paulo Lyrio Izoton<br />
INTRODUção<br />
Primeira coisa, nós não estamos lidando com lambari, nós não<br />
estamos lidando com peixe pequeno, estamos lidando com tubarões<br />
e eles são estruturados pra isso, eles têm psicólogos, eles têm<br />
sociólogos, eles têm pra cada área específica eles têm uma pessoa<br />
<strong>de</strong>terminada. E pra comunida<strong>de</strong> eles têm o que? Eles têm duas<br />
pessoas que vêm na comunida<strong>de</strong> fazer uma parte social. Qual é<br />
a parte social que ela faz? Você vai lá, relata o que aconteceu, aí<br />
você fala <strong>de</strong> fulano, <strong>de</strong> ciclano, ele anota e fala: “ah, vou enviar<br />
pra empresa”. Isso não é social, não é. Se ela causou danos, eu<br />
quero saber o que ela tem pra oferecer além do subsídio, o que<br />
ela tem? Ela tem que oferecer pra nós direitos <strong>de</strong> ir e vir, comunicação<br />
direta, saú<strong>de</strong> em primeiro lugar, ela tem que fornecer... eu<br />
não tô preocupada que ela vai fazer os esgotos, não, porque há<br />
muitos anos que já vem vazando essa lama e nós sabíamos. Há<br />
muitos anos! Por que o troço não rompeu da noite pro dia. Segundo<br />
os técnicos, aquilo ali já vinha rompendo há tempos, enten<strong>de</strong>u?<br />
Então eles sabem da existência do problema, não estalou<br />
1 Este artigo foi produzido a partir do relatório <strong>de</strong> pesquisa “Rompimento da barragem do<br />
Fundão (SAMARCO/VALE/BHP BILLITON) e os efeitos do <strong>de</strong>sastre na foz do <strong>Rio</strong> Doce,<br />
distritos <strong>de</strong> Regência e Povoação, Linhares (ES)” <strong>de</strong> autoria <strong>de</strong> Flávia Amboss Merçon Leonardo,<br />
João Paulo Lyrio Izoton, Hauley Valim, Eliana Santos Junqueira Creado, Aline Trigueiro,<br />
Bianca Silva, Luiz Duarte e Nayara Santana (2017).<br />
153
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
raio e quebrou aquilo ali, aquilo ali já vinha rompendo [Regiane,<br />
moradora <strong>de</strong> Povoação, pescadora, dona do lar e comerciante, entrevista<br />
realizada em 25/09/2016]. 2<br />
O relato acima foi extraído da conversa com Regiane, moradora <strong>de</strong> Povoação,<br />
distrito litorâneo do município <strong>de</strong> Linhares, estado do Espírito<br />
Santo. Localizado na margem norte da foz do <strong>Rio</strong> Doce, o local <strong>de</strong> moradia<br />
e trabalho <strong>de</strong> Regiane e sua família foi atingido em novembro <strong>de</strong><br />
2015 pela lama da Samarco – nome popular para aquilo que o jargão científico<br />
chama <strong>de</strong> “rejeitos minerários” formados por partículas <strong>de</strong> solo e<br />
minério <strong>de</strong> ferro combinados com arsênio, chumbo, mercúrio, manganês,<br />
cádmio, cobre e zinco. A “lama da Samarco”, ou esse montante <strong>de</strong> “rejeitos”,<br />
foi <strong>de</strong>spejada no ambiente em <strong>de</strong>corrência do rompimento <strong>de</strong> uma<br />
barragem localizada em Mariana, no estado <strong>de</strong> Minas Gerais. A estrutura<br />
era operada pela empresa Samarco Mineração S.A., que, por sua vez, é<br />
controlada <strong>de</strong> forma paritária por duas gigantes da mineração mundial, a<br />
saber, a Vale S.A. e a BHP Billiton.<br />
Na ocasião do rompimento, 50 milhões <strong>de</strong> metros cúbicos <strong>de</strong> rejeitos minerários<br />
foram <strong>de</strong>spejados no ambiente e carreados pelo <strong>Rio</strong> Doce em<br />
direção ao oceano Atlântico, percorrendo mais <strong>de</strong> 800 km até a foz do rio<br />
no município <strong>de</strong> Linhares, no estado do Espírito Santo. Além das milhares<br />
<strong>de</strong> toneladas <strong>de</strong> peixes e outros animais mortos, 19 pessoas, compostas<br />
em sua maioria por trabalhadores terceirizados da empresa, também<br />
morreram em <strong>de</strong>corrência direta e imediata do rompimento da barragem.<br />
Centenas <strong>de</strong> moradias foram <strong>de</strong>struídas nos municípios <strong>de</strong> Mariana<br />
e Barra Longa (no estado <strong>de</strong> Minas Gerais). Além <strong>de</strong>sses danos diretos e<br />
imediatos, a <strong>de</strong>scida da “lama da Samarco” pela calha do <strong>Rio</strong> Doce espraiou<br />
prejuízos nas ativida<strong>de</strong>s produtivas <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s urbanas e rurais<br />
espalhadas pelas margens do rio, além <strong>de</strong> crises <strong>de</strong> abastecimento <strong>de</strong><br />
água e produção <strong>de</strong> alimentos, atingindo, portanto, milhões <strong>de</strong> pessoas<br />
que <strong>de</strong>pendiam direta ou indiretamente do <strong>Rio</strong> Doce.<br />
Des<strong>de</strong> então, o enredo que se <strong>de</strong>sdobra no Vale do <strong>Rio</strong> Doce coloca frente<br />
a frente a Samarco e suas controladoras – que trazem consigo todo o<br />
histórico <strong>de</strong> apoio e incentivos estatais <strong>de</strong>s<strong>de</strong> sua criação – e o conjunto<br />
2 Diante <strong>de</strong> um contexto <strong>de</strong> crise, conflitos e assédios, optamos por manter o anonimato<br />
dos nossos interlocutores. Sendo assim, todos os nomes utilizados neste artigo são fictícios.<br />
154
Capítulo 6<br />
<strong>de</strong> coletivida<strong>de</strong>s que possuem modos <strong>de</strong> vida e trabalho atrelados ao convívio<br />
com o <strong>Rio</strong> Doce. São comunida<strong>de</strong>s urbanas e rurais, agricultores,<br />
ribeirinhos, pescadores, indígenas e quilombolas que viviam do rio e com<br />
o rio, e que foram drasticamente afetadas (FERREIRA, 2016). Foi assim<br />
que Regiane e sua família – mesmo morando na foz do <strong>Rio</strong> Doce, distante<br />
mais <strong>de</strong> 800 quilômetros da barragem que rompeu em Mariana, Minas<br />
Gerais – passaram a conviver com as alterações sociais, econômicas, culturais<br />
e afetivas <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong>sse <strong>de</strong>sastre ambiental.<br />
A conversa com Regiane foi realizada <strong>de</strong>z meses após o rompimento da<br />
barragem, no contexto da realização da primeira audiência pública sobre<br />
o <strong>de</strong>sastre no distrito em que ela mora. O evento teve a participação da<br />
equipe da <strong>de</strong>fensoria pública (fe<strong>de</strong>ral e do Espírito Santo), representantes<br />
da Fundação Renova (instituição privada criada pelas empresas no âmbito<br />
do Termo <strong>de</strong> Transação e <strong>de</strong> Ajustamento <strong>de</strong> Conduta - TTAC), moradores<br />
<strong>de</strong> Povoação, pesquisadores envolvidos com o tema e representantes<br />
do Movimento dos Atingidos por Barragem (MAB). A audiência<br />
organizada pela equipe da <strong>de</strong>fensoria pública foi um espaço importante<br />
para ouvir as dúvidas da comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Povoação acerca das ações institucionais<br />
que vinham sendo realizadas em <strong>de</strong>corrência do <strong>de</strong>sastre. Não<br />
tardou e a situação evi<strong>de</strong>nciou problemas <strong>de</strong>correntes do distanciamento<br />
e do <strong>de</strong>sconhecimento das populações afetadas sobre as <strong>de</strong>cisões acordadas<br />
entre a empresa e o Estado.<br />
Na ocasião, os que falavam em nome da Fundação Renova discorreram<br />
sobre o cartão <strong>de</strong> subsistência 3 fornecido pela Samarco Mineração S.A, a<br />
homologação do TTAC 4 – que estabelece a criação da Fundação Renova<br />
3 Termo utilizado pelos representantes da Fundação Renova durante a audiência pública<br />
mencionada para se referir ao auxílio emergencial (também chamado por outros sujeitos<br />
como benefício, subsídio ou cartão <strong>de</strong> subsistência). O auxílio emergencial foi previsto<br />
a partir do Termo <strong>de</strong> Compromisso Sócio Ambiental (TCSA), assinado no final do ano <strong>de</strong><br />
2015, e correspon<strong>de</strong> ao pagamento <strong>de</strong> um salário mínimo mensal por cada pessoa que teve<br />
suas ativida<strong>de</strong>s laborais comprometidas em <strong>de</strong>corrência do <strong>de</strong>rrame <strong>de</strong> rejeitos, acrescido <strong>de</strong><br />
20% por <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte e mais o valor relativo a uma cesta básica. O recebimento <strong>de</strong>sse auxílio<br />
ocorre a partir <strong>de</strong> um cartão coorporativo fornecido pela empresa.<br />
4 Na terceira sessão, discorreremos sobre o Temo <strong>de</strong> Transação e Ajustamento <strong>de</strong> Conduta.<br />
Por ora, ressaltamos que o TTAC foi assinado em março <strong>de</strong> 2016, homologado em maio <strong>de</strong><br />
2016 e suspenso no dia 17 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2016 pela 5ª Turma do Tribunal Regional Fe<strong>de</strong>ral<br />
da 1ª Região (TRF1). Entretanto, nos distritos pesquisados, até a data do último campo para<br />
a produção do relatório que baseou este artigo (março/2017), a Fundação Renova – criada a<br />
155
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
–, a realização do cadastro integrado e sobre o Programa <strong>de</strong> In<strong>de</strong>nização Mediada<br />
(PIM) que seria iniciado em breve pela Fundação. Entretanto, como<br />
muitos moradores <strong>de</strong> Povoação durante a audiência, e na nossa conversa<br />
posterior, Regiane também se mostrou bastante indignada com o conjunto<br />
<strong>de</strong> ações praticadas pela mineradora, que, segundo ela, tem “contribuído<br />
para <strong>de</strong>sarticular todas as comunida<strong>de</strong>s” (Anotações do ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong><br />
campo, setembro <strong>de</strong> 2016).<br />
É nesse contexto que o auxílio emergencial fornecido pelas empresas,<br />
que aparece na fala da Regiane como subsídio, tem sido uma constante<br />
fonte <strong>de</strong> reclamações e um exemplo do <strong>de</strong>scontentamento geral com as<br />
ações <strong>de</strong> reparação da empresa. Esse <strong>de</strong>scontentamento se manifesta,<br />
por exemplo, nas reclamações acerca do valor recebido através do cartão,<br />
muitas vezes insuficiente para a manutenção do mesmo padrão <strong>de</strong> consumo<br />
familiar antes da lama. Tão ou mais criticada é a opacida<strong>de</strong> ou falta <strong>de</strong><br />
clareza acerca do perfil que a empresa usa para enquadrar os atingidos. 5 A<br />
necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> enquadrar-se nesse perfil, e só a partir disso receber esse<br />
auxílio emergencial, acaba se tornando fonte <strong>de</strong> mais <strong>de</strong>sconforto, constrangimentos<br />
e danos à vida social da população atingida.<br />
As críticas ao programa auxílio emergencial também estão ligadas ao outro<br />
programa apresentado pela empresa na audiência em Povoação, o cadastro<br />
integrado. É a partir <strong>de</strong>sse cadastro integrado que os atingidos serão<br />
novamente classificados por perfis e, a partir <strong>de</strong>sses perfis, a Fundação Renova<br />
enquadra os atingidos nos mais <strong>de</strong> quarenta programas que diz ter.<br />
A elaboração <strong>de</strong>sses programas também é fonte <strong>de</strong> <strong>de</strong>scontentamento e<br />
envolve, ao menos na região estudada, críticas sobre falta <strong>de</strong> transparência<br />
e participação da comunida<strong>de</strong> nas reuniões da qual resultam. Dando<br />
sequência ao raciocínio, compreen<strong>de</strong>mos que a utilização do cadastro inpartir<br />
do instrumento jurídico em <strong>de</strong>staque – continuava atuando. Dito isso, ressaltamos que,<br />
no momento da escrita do artigo, já era possível acompanhar uma nova etapa <strong>de</strong> negociação<br />
e construção <strong>de</strong> novo acordo para esse caso. No entanto, optamos pela cautela e, <strong>de</strong>ssa forma,<br />
por recortar nossas reflexões aqui apresentadas, restringindo nossas análises no trabalho<br />
<strong>de</strong> campo realizado na região da foz do <strong>Rio</strong> Doce até março <strong>de</strong> 2017.<br />
5 Apesar do TCSA <strong>de</strong>finir a partir da auto<strong>de</strong>claração o imediato recebimento do auxílio<br />
emergencial para aqueles moradores que tiveram suas ativida<strong>de</strong>s laborais prejudicadas pelo<br />
rompimento da barragem, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final <strong>de</strong> 2015 algumas empresas foram contratadas pela<br />
Samarco Mineração para fazer o cadastro dos moradores e diagnóstico socioeconômico com<br />
a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar os perfis dos impactados, atribuindo, ou não, o direito ao recebimento<br />
do auxílio emergencial.<br />
156
Capítulo 6<br />
tegrado como instrumento para <strong>de</strong>finições <strong>de</strong> populações atingidas e da<br />
mensuração <strong>de</strong> impactos atribui terminologias e padronizações das vítimas<br />
que são muitas vezes exteriores e/ou limitadores da realida<strong>de</strong> vivenciadas<br />
por elas (ZHOURI et al., 2017; APPADURAI, 2004).<br />
As reclamações em <strong>de</strong>staque tornam evi<strong>de</strong>nte o protagonismo e a autonomia<br />
da empresa no estabelecimento <strong>de</strong> relações com a população<br />
atingida, das <strong>de</strong>finições do efeito do <strong>de</strong>sastre e até mesmo <strong>de</strong> <strong>de</strong>finição<br />
<strong>de</strong> quem é ou não atingido pelo rompimento da barragem. Esse tipo <strong>de</strong><br />
reclamação não é exclusivo da interlocutora em <strong>de</strong>staque; ao contrário<br />
disso, o que temos escutado e presenciado ao longo do trabalho <strong>de</strong> campo,<br />
realizado <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o final <strong>de</strong> 2015 na região da foz do <strong>Rio</strong> Doce, sobretudo<br />
nos distritos <strong>de</strong> Regência e Povoação, são aflições dos moradores sobre<br />
o futuro (profissional, familiar e sociocultural), incertezas em relação à<br />
qualida<strong>de</strong> da água e alimento na região e questionamentos acerca do tratamento<br />
institucional que tem sido <strong>de</strong>dicado à gestão da crise.<br />
No que tange ao tratamento institucional, torna-se importante ressaltar<br />
que nos últimos anos a gestão <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastres “tem se <strong>de</strong>slocado do eixo da<br />
investigação <strong>de</strong> possíveis crimes ou infrações legais [...] para o eixo do<br />
tratamento administrativo <strong>de</strong> conflitos socioambientais” (ZHOURI et al.,<br />
2016, p. 46). Nessa perspectiva analítica, Acselrad e Bezerra (2010) apontam<br />
para um “mo<strong>de</strong>lo <strong>de</strong> harmonização” como um processo <strong>de</strong> difusão<br />
<strong>de</strong> técnicas para “resolução <strong>de</strong> conflitos ambientais” na América Latina.<br />
Nesse mo<strong>de</strong>lo em <strong>de</strong>staque, a dimensão política tem sido retirada dos <strong>de</strong>bates<br />
travados nas arenas públicas, “<strong>de</strong>stinando os conflitos a um tratamento<br />
<strong>de</strong>spolitizado voltado ao acordo direto – via <strong>de</strong> regra por meio <strong>de</strong><br />
compensações – entre os agentes neles diretamente envolvidos” (ACSEL-<br />
RAD; BEZZERA, 2010, p. 35).<br />
No caso analisado, enquanto muitos atingidos na foz do <strong>Rio</strong> Doce cobram<br />
soluções para os problemas vivenciados com o <strong>de</strong>sastre e reivindicam a<br />
responsabilização daqueles que permitiram o rompimento da barragem,<br />
alguns dispositivos específicos, como mesas <strong>de</strong> negociações e assinaturas<br />
<strong>de</strong> Termos <strong>de</strong> Ajustamentos <strong>de</strong> Conduta (TAC), estão sendo acionados<br />
em <strong>de</strong>trimento dos interesses e da participação dos atingidos e apoiadores<br />
(ZHOURI et al., 2017). Sendo assim, a assinatura e homologação do<br />
TTAC – que criou, em 2016, uma fundação <strong>de</strong> direito privado para geren-<br />
157
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
ciar a crise, a Fundação Renova – torna-se um exemplo emblemático.<br />
Dessa forma, compreen<strong>de</strong>mos que há uma ausência não só <strong>de</strong> informação,<br />
mas principalmente <strong>de</strong> participação das populações atingidas na região<br />
da foz do <strong>Rio</strong> Doce nos processos <strong>de</strong> negociação e <strong>de</strong>cisões sobre reparações<br />
e in<strong>de</strong>nizações. Com isso, assim como Zhouri e colaboradores (2016;<br />
2017) vêm analisando no estado <strong>de</strong> Minas Gerais, a falta <strong>de</strong> autonomia nas<br />
tomadas <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões sobre a reparação e a insegurança no que tange ao<br />
futuro das vítimas também contribuem para o agravamento do sofrimento<br />
social na região da foz do <strong>Rio</strong> Doce no estado do Espírito Santo.<br />
Para finalizar a introdução, salientamos que este artigo é fruto do relatório<br />
“Rompimento da barragem do Fundão (Samarco/Vale/BHP Billiton)<br />
e os efeitos do <strong>de</strong>sastre na foz do <strong>Rio</strong> Doce, distrito <strong>de</strong> Regência e Povoação<br />
(ES)” (LEONARDO et al., 2017). 6 Ele tem o objetivo <strong>de</strong> proporcionar<br />
reflexões sobre o <strong>de</strong>sastre da mineração no Vale do <strong>Rio</strong> Doce, sobretudo<br />
dialogar a respeito dos problemas enfrentados no processo <strong>de</strong> gestão da<br />
crise, a partir da experiência com os atingidos e atingidas nos distritos<br />
<strong>de</strong> Regência e Povoação (ES). Dito isso, torna-se importante ressaltar que<br />
as reflexões aqui apresentadas são resultado <strong>de</strong> um processo <strong>de</strong> pesquisa<br />
colaborativo que envolve, além dos autores, o Grupo <strong>de</strong> Pesquisa em Populações<br />
Pesqueiras e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES) e<br />
os atingidos e as atingidas com quem convivemos <strong>de</strong>s<strong>de</strong> período anterior<br />
ao <strong>de</strong>sastre e, <strong>de</strong>ssa forma, compartilhamos experiências e reflexões.<br />
Da CHEGADA DA lama: EFEITOS VIVENCIADOS e ações<br />
EMERGENCIAIS<br />
O percurso da lama da Samarco, da barragem que a originou à<br />
6 O relatório é resultado da pesquisa “Depois da lama: os atingidos e os impactos na foz<br />
do <strong>Rio</strong> Doce”, realizada com os atingidos e atingidas pelo rompimento da barragem<br />
<strong>de</strong> Fundão na região da foz do <strong>Rio</strong> Doce, nos distritos <strong>de</strong> Regência e Povoação (ES).<br />
A pesquisa em <strong>de</strong>staque foi contemplada pelo edital público “Mão na massa e pé na<br />
lama”, promovido pelo Greenpeace em parceria com o projeto colaborativo <strong>Rio</strong> <strong>de</strong><br />
Gente, para pesquisas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes sobre o <strong>de</strong>sastre no <strong>Rio</strong> Doce, e foi realizada em<br />
parceria com o Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisa em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento<br />
no Espírito Santo (GEPPEDES), vinculado ao <strong>de</strong>partamento <strong>de</strong> Ciências Sociais<br />
da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo (UFES), no âmbito das ações <strong>de</strong> extensão. A<br />
pesquisa em <strong>de</strong>staque foi coor<strong>de</strong>nada por Flávia Amboss Merçon Leonardo, João Paulo<br />
Lyrio Izoton e Hauley Valim.<br />
158
Capítulo 6<br />
foz do <strong>Rio</strong> Doce, durou 15 dias. Ela chegou ao município <strong>de</strong> Linhares<br />
no dia 20 <strong>de</strong> novembro, chegando à Povoação, Regência e<br />
ao mar no dia 21 daquele mês. Esses 15 dias foram marcados por<br />
muita ansieda<strong>de</strong> e expectativa na região, levando a alterações no<br />
cotidiano das localida<strong>de</strong>s afetadas. Reforçada pela falta <strong>de</strong> informações<br />
dos órgãos oficiais ou <strong>de</strong> um canal <strong>de</strong> comunicação direto<br />
com as comunida<strong>de</strong>s, a insegurança acerca do que estava por<br />
vir começou a afetar as relações <strong>de</strong> trabalho, <strong>de</strong> convívio familiar<br />
e social <strong>de</strong>s<strong>de</strong> antes da chegada da lama. “A preocupação está tão<br />
gran<strong>de</strong> que as pessoas estão <strong>de</strong>ixando até <strong>de</strong> viver para ficarem focadas<br />
nessa questão. Porque o prejuízo vai ser muito gran<strong>de</strong>. [...] A gente não<br />
está sabendo como lidar com a situação. [...] E a comunida<strong>de</strong> toda está<br />
sensibilizada. A questão emocional, então, abala muito porque a gente<br />
cresceu aqui”, expôs Sandra (funcionária pública e comerciante,<br />
em entrevista realizada no dia 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2015).<br />
Conforme já apresentado em outros trabalhos (CREADO et al., 2016;<br />
LEONARDO et al., 2017), várias ativida<strong>de</strong>s foram, então, suspensas ou<br />
aceleradas em função do anúncio do <strong>de</strong>sastre na foz do <strong>Rio</strong> Doce. As ativida<strong>de</strong>s<br />
realizadas no rio e aquelas que <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m do rio, como foi o<br />
caso da pesca artesanal e da agricultura, foram interrompidas tão logo<br />
foi anunciado o <strong>de</strong>sastre. Com receio <strong>de</strong> que o abastecimento <strong>de</strong> água<br />
fosse interrompido, ocorreram profusas tentativas <strong>de</strong> abertura <strong>de</strong> poços<br />
artesianos no distrito <strong>de</strong> Regência. O receio da contaminação fez com que<br />
vários turistas cancelassem reservas nos meses <strong>de</strong> novembro e <strong>de</strong>zembro<br />
em diferentes estabelecimentos comerciais. O Projeto Tartarugas Marinhas<br />
(Projeto Tamar) fez um trabalho intensivo <strong>de</strong> transferência dos ovos<br />
<strong>de</strong> tartarugas. E a Prefeitura <strong>de</strong> Linhares, através da Secretaria Municipal<br />
<strong>de</strong> Meio Ambiente, com apoio do Projeto Tamar, autorizou a abertura da<br />
foz do <strong>Rio</strong> Doce em espaço ambientalmente sensível. Tudo isso era o prenúncio<br />
da chegada dos rejeitos à foz do <strong>Rio</strong> Doce.<br />
Na ocasião do rompimento, já residíamos em Regência há nove meses<br />
e foi possível acompanhar in loco as primeiras alterações <strong>de</strong>correntes do<br />
<strong>de</strong>sastre. Um ponto que nos chamou a atenção, no que tange às alterações<br />
das dinâmicas locais, foi a presença <strong>de</strong> funcionários da Samarco e empre-<br />
159
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
sas contratadas na região, como foi ocaso da OceanPact 7 . A empresa em<br />
<strong>de</strong>staque se tornou responsável pela instalação <strong>de</strong> barreiras no <strong>Rio</strong> Doce,<br />
na tentativa <strong>de</strong> minimizar o estrago causado no rio pela mineradora.<br />
A ação <strong>de</strong> mitigação foi prevista a partir do Termo e Compromisso Socioambiental<br />
Preliminar (TCSA), proposto pelo Ministério Público Fe<strong>de</strong>ral<br />
do Espírito Santo (MPF/ES) e pelo Ministério Público do Trabalho<br />
(MPT) em face da Samarco Mineração S.A. A mão <strong>de</strong> obra para a realização<br />
<strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mitigação <strong>de</strong>veria ser majoritariamente local.<br />
Logo, alguns dias antes da chegada da lama ao município <strong>de</strong> Linhares, alguns<br />
pescadores foram contratados informalmente pela OceanPact para<br />
fazer o trabalho <strong>de</strong> prevenção, mitigação e monitoramento da pluma <strong>de</strong><br />
rejeitos. “A Samarco veio falando que ia contratar essa empresa, lançar aquelas<br />
boias, né. Porque também não serviu <strong>de</strong> nada. Pra lançar [as boias] no rio, pra<br />
evitar a contaminação dos manguezais, né” (Geraldo, pescador artesanal, em<br />
entrevista realizada no dia 17 <strong>de</strong> janeiro <strong>de</strong> 2017).<br />
Observamos que a maior parte dos moradores contratados eram homens<br />
e, através <strong>de</strong> relatos, i<strong>de</strong>ntificamos também que havia uma preferência<br />
por pescadores filiados à associação <strong>de</strong> pesca local. Essa ação gerou <strong>de</strong>scontentamento<br />
naqueles pescadores e outros moradores que não foram<br />
contratados e que também vivenciavam os efeitos imediatos da proibição<br />
da pesca e da impossibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> utilizar a água do rio e do mar (Anotações<br />
no ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> campo, 31/01/2017). As barreiras, normalmente usadas<br />
para conter vazamentos <strong>de</strong> óleo, não serviram para barrar o contato da<br />
pluma <strong>de</strong> minério com a vegetação na foz do <strong>Rio</strong> Doce.<br />
A chegada da lama foi antecedida por vários protestos <strong>de</strong> moradores contra<br />
a Samarco e a nova situação vivenciada. Através <strong>de</strong> faixas como “SOS<br />
<strong>Rio</strong> Doce”, “Somos Regência”, “Samarco, cadê o respeito?”, “Quanto vale<br />
o <strong>Rio</strong> Doce?”, os moradores externalizaram suas angústias, preocupações<br />
e indignações. Por vezes, e <strong>de</strong> modo semelhante às narrativas populares<br />
<strong>de</strong> mineradores e trabalhadores canavieiros na América do Sul, que remetem<br />
à figura do diabo enquanto fetichização do mal no contexto <strong>de</strong><br />
exploração e imposição cultural a que são submetidos com a ativida<strong>de</strong> da<br />
7 A OceanPact é uma empresa brasileira especializada no gerenciamento e resposta a emergências<br />
nos ambientes marinho e costeiro. Fonte: http://www.oceanpact.com/quem-somos/<br />
sobre-a-oceanpact (acessado em 8 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2018).<br />
160
Capítulo 6<br />
mineração (TAUSSIG, 2010), a relação entre a lama da Samarco e a imagem<br />
da morte foi (e ainda é) acionada pelos moradores em Regência. João<br />
– pescador artesanal e morador <strong>de</strong> Regência – expôs, com bastante preocupação,<br />
“isso aí é a morte do <strong>Rio</strong> Doce!” E vai matar quem tá para baixo também,<br />
na boca do <strong>Rio</strong>. A morte tá chegando e por enquanto não apareceu ninguém<br />
para nos socorrer” (em entrevista realizada no dia 15 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2015).<br />
No dia 21 <strong>de</strong> novembro, quando os rejeitos chegaram à foz do <strong>Rio</strong> Doce,<br />
não foi diferente e houve protesto no porto dos pescadores e na praia <strong>de</strong><br />
Regência. No porto, localizado na beira do <strong>Rio</strong> Doce, a comoção e o choro<br />
guardado tomaram conta dos moradores que esperavam e viram a lama<br />
chegar. No local, um ato simulando o velório do <strong>Rio</strong> Doce foi realizado<br />
e a alegoria da morte reapareceu, <strong>de</strong>sta vez com um morador vestindo<br />
seu capuz preto e segurando uma foice, em cuja lâmina se lia o nome da<br />
empresa Samarco. No mesmo dia, um ato realizado na praia teve a intervenção<br />
da Polícia Militar quando os moradores tentaram impedir que a<br />
vegetação <strong>de</strong> restinga fosse retirada da praia no intuito <strong>de</strong> levar uma draga<br />
até a foz do rio. Contudo, ao final do dia, contrariando os moradores e<br />
com o apoio da polícia, a draga passou pela vegetação e foi usada em mais<br />
uma tentativa <strong>de</strong> abrir a foz sul que, no momento da chegada da lama,<br />
ainda se encontrava fechada, apesar das inúmeras tentativas <strong>de</strong> abertura.<br />
Com a chegada da lama, a coloração da água do rio e do mar mudou.<br />
Muitos animais foram encontrados mortos na região da foz do <strong>Rio</strong> Doce;<br />
entre eles, várias espécies <strong>de</strong> peixes, aves e cobras foram retiradas sem<br />
vida (ORGANON, 2015; LEONARDO et al., 2017). Diante das inúmeras<br />
cobranças e da preocupação sobre a composição química dos rejeitos, a<br />
Samarco informou, por meio <strong>de</strong> nota, que “o rejeito é inerte. Ele é composto,<br />
em sua maior parte, por sílica (areia) proveniente do beneficiamento<br />
do minério <strong>de</strong> ferro e não apresenta nenhum elemento químico que<br />
seja danoso à saú<strong>de</strong>” (SAMARCO MINERAÇÃO, 2015a, apud POEMAS,<br />
2016, p. 147). Contudo, pesquisadores alertaram que, mesmo em pequenas<br />
quantida<strong>de</strong>s, “muitos dos metais e substâncias químicas potencialmente<br />
presentes no rejeito po<strong>de</strong>m causar prejuízos à saú<strong>de</strong> humana ou ao meio<br />
ambiente” (POEMAS, 2016, p. 147). Mesmo assim, a empresa não divulgou,<br />
em um primeiro momento, as análises da água e dos possíveis sedi-<br />
161
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
mentos presentes no rio. 8<br />
Neste contexto <strong>de</strong> incertezas acerca da composição química dos rejeitos<br />
e da possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contaminação da água, uma corrida por coletas e<br />
análises foi realizada por um conjunto heterogêneo <strong>de</strong> instituições e pesquisadores.<br />
Diariamente era possível observar grupos distintos <strong>de</strong> pesquisadores<br />
fazendo coleta na foz do <strong>Rio</strong> Doce. Sendo assim, amostras <strong>de</strong><br />
água também foram coletadas e analisadas a pedido do Serviço Autônomo<br />
<strong>de</strong> Água e Esgoto (SAAE) dos municípios <strong>de</strong> Governador Valadares<br />
(MG)9 e Baixo Guandu (ES)10 alguns dias após o rompimento. Ambas as<br />
análises apontaram a presença <strong>de</strong> metais pesados na lama <strong>de</strong> rejeitos: o<br />
primeiro laudo apontou uma quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ferro, manganês e alumínio<br />
muito acima do tolerável para o tratamento da água. O segundo laudo<br />
atestou a presença <strong>de</strong> arsênio, chumbo, cromo, zinco, bário e manganês,<br />
entre outros metais, em níveis muito acima do recomendável (TOMMASI<br />
ANALITICA, 2015 apud ORGANON, 2015).<br />
Com a chegada dos rejeitos à foz do <strong>Rio</strong> Doce, tornou-se impossível captar<br />
água do rio. Em Linhares, três barragens foram construídas para conter a<br />
lama e preservar outros rios e lagoas dos rejeitos minerários (ORGANON,<br />
2015). Como o Ministério Público <strong>de</strong>terminou que a Samarco garantisse<br />
o abastecimento <strong>de</strong> água em todos os municípios afetados através do<br />
TCSA, em Regência (que já vinha sendo abastecida por carros-pipa <strong>de</strong>vido<br />
à crise hídrica) a <strong>de</strong>sconfiança acerca da origem e potabilida<strong>de</strong> da<br />
água aumentou a partir do reconhecimento da dificulda<strong>de</strong> em abastecer<br />
com outros recursos que não o <strong>Rio</strong> Doce não só a vila, mas, a partir <strong>de</strong><br />
então, todo o município <strong>de</strong> Linhares. “Esta água que vem do caminhão<br />
até a nossa casa está salobra e com gosto ruim. Eu estou bebendo esta<br />
água [mostra uma garrafa <strong>de</strong> água com coloração amarelada] porque não<br />
8 Situações semelhantes foram evi<strong>de</strong>nciadas em outros <strong>de</strong>sastres mundiais, a saber: na tragédia<br />
<strong>de</strong> Bhopal (DAS, 1995), o caso dos “agente naranja” no contexto da Guerra do Vietnam<br />
(DAS, 1995) e o <strong>de</strong>sastre nuclear em Tchernóbil (ALEKSIEVITCH, 2016). Os três casos em<br />
<strong>de</strong>staque evi<strong>de</strong>nciam um procedimento semelhante das empresas ou do Estado que, assim<br />
como no caso do <strong>de</strong>sastre no <strong>Rio</strong> Doce, negaram inicialmente possíveis potenciais <strong>de</strong> contaminação.<br />
9 Fonte: http://noticias.r7.com/minas-gerais/lama-contaminada-tem-concentracao-<strong>de</strong>metais-ate-1300000-acima-do-normal-12112015<br />
(acessado em 9 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2017).<br />
10 Fonte: http://noticias.r7.com/minas-gerais/laudo-comprova-alta-concentracao-<strong>de</strong>-metais-pesados-em-lama-<strong>de</strong>-barragens-13112015<br />
(acessado em 9 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2017).<br />
162
Capítulo 6<br />
tenho dinheiro para comprar outra, mas estou cismada com esta água”,<br />
disse dona Iracema, durante reunião do Fórum Capixaba em Defesa do<br />
<strong>Rio</strong> Doce, ocorrida em Regência (Anotações do ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> campo, dia<br />
13/02/2016).<br />
De maneira geral, as reclamações a respeito da água fornecida pelo SAAE<br />
<strong>de</strong> Linhares envolviam o gosto <strong>de</strong> ferrugem, cheiro ruim, cor amarelada,<br />
bolhas marrons, oleosida<strong>de</strong> e bastante sujeira. A falta <strong>de</strong> água também<br />
passou a ser corriqueira. Esses fatores levaram os moradores <strong>de</strong> Regência<br />
e Povoação que tinham condições financeiras a se valer da água mineral<br />
não só para o consumo, mas também para ativida<strong>de</strong>s rotineiras, como a<br />
preparação <strong>de</strong> alimentos ou mesmo a higiene pessoal. “A água realmente<br />
é cara quando você usa para cozinhar, para tudo, fazer o básico, né: fazer<br />
um café, um arroz, lavar um feijão, lavar um arroz. Pelo menos para a gente<br />
se alimentar e consumir a gente tá procurando usar a água mineral. Eu<br />
não tenho coragem. Eu não tenho segurança. Tenho medo na verda<strong>de</strong>!”<br />
(Adriana, comerciante, moradora <strong>de</strong> Regência, em conversa no mês <strong>de</strong><br />
fevereiro <strong>de</strong> 2016).<br />
A contaminação da água trouxe consigo efeitos adversos para outra ativida<strong>de</strong><br />
importante na região, a agricultura. Tanto Regência quanto Povoação,<br />
embora a última com um ligeiro <strong>de</strong>staque, têm na agricultura<br />
uma importante ativida<strong>de</strong> econômica. A tradicional cabruca, plantação<br />
<strong>de</strong> cacau sombreada por árvores nativas da Mata Atlântica, espalha-se<br />
por ambas as margens do rio. Além disso, as ilhas formadas com o passar<br />
dos anos <strong>de</strong> assoreamento são profícuas não só na produção cacaueira,<br />
mas também <strong>de</strong> hortaliças, banana, milho, feijão, abóbora, entre outros<br />
alimentos. Diante do anúncio da chegada da lama, muita gente tirou as<br />
bombas <strong>de</strong> irrigação somente para pô-las <strong>de</strong> volta à medida que funcionários<br />
da Fundação Renova (a partir da assinatura do TTAC) visitavam as<br />
comunida<strong>de</strong>s informando que a água era própria para irrigação e <strong>de</strong>sse<strong>de</strong>ntação<br />
animal (Anotações do ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> campo, dia 29/11/2016).<br />
Apesar disto, a produção agrícola da região caiu muito e não só a das culturas<br />
irrigadas, que ficaram sem ver água por bastante tempo. Muitos agricultores<br />
afirmam que os lugares on<strong>de</strong> a lama bateu, seja nas margens do<br />
rio ou das ilhas que têm contato constante com a água, ou naqueles que<br />
foram inundados com a ligeira cheia ocorrida no verão <strong>de</strong> 2016 para 2017,<br />
163
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
as plantas secaram e morreram. “Depois da enchente a planta não <strong>de</strong>senvolve,<br />
ela não cresce mais como antes”, pois o solo que era fértil “ficou seco<br />
<strong>de</strong>pois que a lama passou”, disse Nicolau em conversa no dia 29/11/2016.<br />
Para além dos relatos que se repetiram tanto em Regência quanto em Povoação,<br />
a observância do estado das plantações e da vegetação nativa na<br />
região da foz do <strong>Rio</strong> Doce atesta que algo fora do normal ocorre.<br />
Figuras 1 e 2: Vegetação próxima ao porto <strong>de</strong> Regência.<br />
Fonte: Acervo do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento<br />
no Espírito Santo (GEPPEDES), 2016-2017.<br />
A <strong>de</strong>scrição que obtivemos confere com a realida<strong>de</strong> observada <strong>de</strong> que a<br />
164
Capítulo 6<br />
lama, on<strong>de</strong> solidifica, cria uma camada grossa que poucas espécies conseguem<br />
transpor. E mesmo aquelas que a transpõem têm dificulda<strong>de</strong>s<br />
em se sustentar até chegar à fase produtiva. À base <strong>de</strong> muito esterco e<br />
irrigação ainda é possível manter algumas culturas, mas também advém<br />
da incerteza das condições da água uma gran<strong>de</strong> <strong>de</strong>sconfiança dos consumidores<br />
acerca dos produtos da região. Há, portanto, uma dificulda<strong>de</strong><br />
na comercialização da produção agropecuária que, quando ocorre, ainda<br />
está sujeita a preços abaixo do valor do mercado.<br />
Os prejuízos na pesca foram similares. O verão que se seguiu ao <strong>de</strong>sastre<br />
foi ainda mais catastrófico na medida em que, na época mais piscosa do<br />
ano, a ativida<strong>de</strong> sofreu interdição. A proibição do acesso às tradicionais<br />
guaibiras, carapebas, manjubas e pescadinhas afetou não apenas a renda,<br />
mas também a alimentação dos núcleos familiares. Mesmo o pescado<br />
que foi capturado antes da lama e estocado nos freezers não teve saída ou<br />
foi vendido a preço muito baixo.<br />
Da mesma forma, até hoje os peixes das lagoas não contaminadas em Linhares<br />
não recuperaram seu valor <strong>de</strong> venda. Para os pescadores do mar,<br />
a pesca está interditada até on<strong>de</strong> a plataforma continental alcança 25<br />
metros <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>. Na prática, essa proibição não só inviabiliza o<br />
arrasto <strong>de</strong> camarão, mas também a prática daqueles pescadores que, mesmo<br />
indo ao mar, faziam-no em barcos sem a autonomia necessária para<br />
alcançar essa distância da costa. Com a ativida<strong>de</strong> parada, os petrechos<br />
<strong>de</strong> quem segue a proibição estão encostados e, com isso, o material vai se<br />
<strong>de</strong>teriorando. São botes, barcos, remos, re<strong>de</strong>s, entre outras ferramentas<br />
<strong>de</strong> trabalho que estão se <strong>de</strong>teriorando com falta <strong>de</strong> uso e manutenção,<br />
gerando ainda mais prejuízos para a ativida<strong>de</strong> pesqueira.<br />
Quanto ao auxílio emergencial e ao Termo <strong>de</strong> Compromisso Sócio Ambiental<br />
(TCSA) – que <strong>de</strong>finiu os termos da concessão por parte da Samarco<br />
aos atingidos que tinham suas ativida<strong>de</strong>s laborais relacionadas com o<br />
<strong>Rio</strong> Doce –, o documento <strong>de</strong>mandava apenas uma <strong>de</strong>claração da ativida<strong>de</strong><br />
praticada e do seu impedimento. Para cumprir esse ponto do TCSA,<br />
a Samarco contratou inicialmente duas empresas: a Gol<strong>de</strong>r Associates,<br />
para realizar um diagnóstico dos impactos socioeconômicos, e a Praxis,<br />
para realizar a etapa <strong>de</strong> cadastramento <strong>de</strong> famílias diretamente impacta-<br />
165
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
das, como pequenos agricultores, pescadores e areieiros. 11<br />
A atuação da empresa Praxis, à época e ainda hoje, é motivo <strong>de</strong> reclamação<br />
nos relatos dos atingidos na região. Além dos que afirmam não terem<br />
sido entrevistados pelos pesquisadores da empresa, há aqueles que, mesmo<br />
tendo sido, não obtiveram o direito ao auxílio. Logo, é <strong>de</strong>s<strong>de</strong> esse período<br />
inicial <strong>de</strong> atuação que se instaurou a confusão em torno dos critérios levados<br />
em conta para a elaboração, por parte dos diversos corpos técnicos<br />
responsáveis pelo levantamento <strong>de</strong> dados da população para a Samarco,<br />
do perfil do atingido que <strong>de</strong>veria ou não receber o auxílio emergencial. Com<br />
a falta <strong>de</strong> transparência nesse critério, e a frequente mudança do corpo<br />
técnico responsável em campo, a participação da população nesse e nos<br />
processos posteriores se <strong>de</strong>u quase às cegas.<br />
Em campo, pu<strong>de</strong>mos confirmar que o recebimento imediato do auxílio<br />
emergencial no distrito <strong>de</strong> Regência aconteceu apenas para alguns dos pescadores,<br />
sobretudo aqueles filiados à associação local <strong>de</strong> pesca. A <strong>de</strong>speito<br />
do previsto no TCSA, <strong>de</strong> que bastaria a auto<strong>de</strong>claração confirmada pela<br />
assinatura <strong>de</strong> duas testemunhas, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o início <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro já havia conversas<br />
a respeito <strong>de</strong> como <strong>de</strong>veria se respon<strong>de</strong>r ao tal cadastro para a obtenção<br />
do auxílio. No que tange à origem <strong>de</strong>sses rumores, a concessão do<br />
auxílio mediante as respostas certas ao cadastro por si só já representa um<br />
<strong>de</strong>scumprimento do previsto no termo firmado com o Ministério Público.<br />
Isto para não entrar no mérito do registro <strong>de</strong> imagens das residências,<br />
petrechos <strong>de</strong> pesca e <strong>de</strong>mais ferramentas <strong>de</strong> trabalho que também eram<br />
anexadas ao “perfil” do entrevistado e, portanto, po<strong>de</strong>riam levar ao recebimento<br />
– ou não – do auxílio emergencial.<br />
Nesse contexto <strong>de</strong> cadastros e comprovações <strong>de</strong> perdas e danos, aquelas<br />
pessoas envolvidas em ativida<strong>de</strong>s tradicionais na região, como a pesca e a<br />
agricultura, viram-se às voltas com a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comprovar sua renda<br />
pretérita, assim como suas perdas em <strong>de</strong>corrência da interdição do uso do<br />
<strong>Rio</strong> Doce e <strong>de</strong> sua área <strong>de</strong> influência no mar. A<strong>de</strong>mais, todo o montante da<br />
população que não se enquadra nessa categoria <strong>de</strong> populações tradicionais,<br />
mas que também apresenta modos <strong>de</strong> vida e trabalhos concatenados<br />
11 Nota da Samarco enviada à reportagem da BBC no dia 01/12/2015. Fonte: www.bbc.<br />
com/portuguese/noticias/2015/12/151130_pescador_foto_choro_entrevista_rs (acessado<br />
em 23 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2017).<br />
166
Capítulo 6<br />
ao rio e ao mar, relatou dificulda<strong>de</strong>s ainda maiores para conseguir o auxílio<br />
emergencial garantido pelo TCSA. Um exemplo emblemático é a situação<br />
dos comerciantes que viviam diretamente do turismo no distrito <strong>de</strong><br />
Regência e que só foram receber o auxílio emergencial em meados <strong>de</strong> 2016,<br />
após uma série <strong>de</strong> manifestações ocorridas na vila <strong>de</strong> Regência. Mesmo<br />
assim, alguns comerciantes encontraram (e ainda encontram) dificulda<strong>de</strong>s<br />
para receber o auxílio emergencial, buscando inclusive o caminho da<br />
judicialização do caso. Em Povoação, o pagamento do auxílio emergencial<br />
para comerciantes não tinha sido iniciado durante o período do trabalho<br />
<strong>de</strong> campo para a produção do relatório (LEONARDO et al., 2017).<br />
Diante do exposto, ressaltamos que a falta <strong>de</strong> transparência acerca dos<br />
critérios adotados para a elaboração do perfil através do cadastro da Samarco<br />
(realizado inicialmente pela empresa Praxis) já era observada na<br />
região estudada antes da criação da Fundação Renova e da elaboração<br />
do programa cadastro integrado, ou seja, entre o final <strong>de</strong> 2015 e meados <strong>de</strong><br />
2016. Nesse ínterim, uma série <strong>de</strong> reuniões, coor<strong>de</strong>nadas por funcionários<br />
da Samarco ou suas terceirizadas (inicialmente OceanPact, Gol<strong>de</strong>r Associates,<br />
Praxis e Dialog), proporcionaram o contato direto <strong>de</strong> seus consultores<br />
com as comunida<strong>de</strong>s sem nenhum tipo <strong>de</strong> mediação do po<strong>de</strong>r<br />
público. As reuniões tinham a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> elaborar projetos que posteriormente<br />
seriam aplicados às regiões afetadas. A não participação da comunida<strong>de</strong><br />
foi a tônica <strong>de</strong>sse processo, privilegiando os representantes <strong>de</strong><br />
associações estabelecidas na participação <strong>de</strong>ssa discussão, o que resultou<br />
em programas que a maioria <strong>de</strong>sconhece ou ainda associa às experiências<br />
anteriores já <strong>de</strong>senvolvidas na região por outras entida<strong>de</strong>s, como o<br />
projeto ECOCIDADANIA, levado à cabo pela Agência <strong>de</strong> Sustentabilida<strong>de</strong><br />
Comunitária da Planície Costeira do <strong>Rio</strong> Doce (ASCORD), e o Projeto<br />
Tamar, com o aporte financeiro da PETROBRAS.<br />
Neste sentido, a dinâmica que a Samarco imprimiu a esse processo privilegiou<br />
a participação daqueles que já possuíam experiência pretérita nas<br />
formas <strong>de</strong>lineadas pela empresa para relacionar-se com os atingidos da<br />
região. As habilida<strong>de</strong>s requeridas para a participação qualificada nesse<br />
processo <strong>de</strong> reuniões – transformar seus anseios em projetos, negociar<br />
com os representantes da empresa e até se fazer enten<strong>de</strong>r por eles –, convém<br />
lembrar, eram e ainda são pouco disponíveis em um contexto on<strong>de</strong><br />
pelo menos 50% da população se <strong>de</strong>clarara como não letrada e/ou com<br />
167
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
baixa escolarização (LEONARDO et al., 2017). Também consi<strong>de</strong>ramos relevante<br />
o período <strong>de</strong> tensão e angústia <strong>de</strong>correntes da proximida<strong>de</strong> do<br />
evento, que provoca, no mínimo, <strong>de</strong>sconforto em participar e planejar<br />
ações futuras em um cenário <strong>de</strong> total incerteza e tristeza <strong>de</strong>correntes das<br />
alterações provocadas pelo <strong>de</strong>rrame <strong>de</strong> rejeitos.<br />
RENOVANDO o DESASTRE: ACORDO sem PARTICIPAção<br />
popular e a EMERGêNCIA DA FUNDAção RENOVA<br />
É nesse contexto <strong>de</strong> incertezas acerca da qualida<strong>de</strong> da água e com muita<br />
insatisfação em torno da distribuição do auxílio emergencial por parte<br />
da Samarco na região da foz do <strong>Rio</strong> Doce que, em março <strong>de</strong> 2016, foi assinado<br />
o TTAC pela União, pelos governos dos estados <strong>de</strong> Minas Gerais e<br />
Espírito Santo (com os órgãos associados) 12 e pela Samarco Mineração S/A<br />
e suas acionistas. De maneira geral, o TTAC encerrou diversas Ações Civis<br />
Públicas (ACPs) 13 já movidas contra as empresas rés e <strong>de</strong>terminou que<br />
essas empresas respon<strong>de</strong>rão às medidas <strong>de</strong> reparação através <strong>de</strong> recursos<br />
administrados por uma fundação <strong>de</strong> direito privado sem fins lucrativos.<br />
De acordo com Dornelas e colaboradoras (2016), diversos aspectos causam<br />
preocupação quanto à reparação efetiva do dano realizada via TTAC, entre<br />
eles: (1) total controle das empresas rés na execução das medidas reparatórias,<br />
in<strong>de</strong>nizatórias, <strong>de</strong> mitigação e recuperação socioambiental; (2)<br />
controle dos atos <strong>de</strong>cisórios e dos critérios <strong>de</strong> estabelecimento <strong>de</strong> áreas e<br />
pessoas atingidas pela empresa; (3) <strong>de</strong>finição pela empresa dos parâmetros<br />
das in<strong>de</strong>nizações a serem pagas; (4) estabelecimento <strong>de</strong> um teto no valor<br />
<strong>de</strong> R$ 20 bilhões sem nenhum estudo pericial dos danos necessários à<br />
reparação, compensação e mitigação nas dimensões socioambiental e so-<br />
12 O instrumento jurídico foi assinado pela Samarco, com o apoio <strong>de</strong> suas acionistas –<br />
VALE e BHP Billiton, com o governo fe<strong>de</strong>ral, os estados <strong>de</strong> Minas Gerais e do Espírito Santo,<br />
o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Renováveis (IBAMA), o Instituto<br />
Chico Men<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Conservação da Biodiversida<strong>de</strong> (ICMBio), a Agência Nacional das Águas<br />
(ANA), o Departamento Nacional <strong>de</strong> Produção Mineral (DNPM), a Fundação Nacional do<br />
Índio (FUNAI), o Instituto Estadual <strong>de</strong> Florestas (IEF), o Instituto Mineiro <strong>de</strong> Gestão das<br />
Águas (IGAN), a Fundação Estadual <strong>de</strong> Meio Ambiente (FEAM), o Instituto Estadual <strong>de</strong><br />
Meio Ambiente e Recursos Hídricos (IEMA), o Instituto <strong>de</strong> Defesa Agropecuária e Florestal<br />
do Espírito Santo (IDAF) e a Agência Estadual <strong>de</strong> Recursos Hídricos (AGERH).<br />
13 Entre elas, a Ação Civil Pública movida pelo governo fe<strong>de</strong>ral, pelo governo dos estados<br />
e pelo Ministério Público.<br />
168
Capítulo 6<br />
cioeconômica; (5) ausência <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> do po<strong>de</strong>r público em relação<br />
ao <strong>de</strong>sastre; (6) exclusão do Ministério Público e da Defensoria Pública<br />
no processo <strong>de</strong> construção do acordo; (7) total ausência <strong>de</strong> participação das<br />
populações atingidas e da consulta prévia, livre e informada aos povos e<br />
comunida<strong>de</strong>s tradicionais conforme garantido na Convenção 169 da Organização<br />
Internacional do Trabalho (OIT) (DORNELAS et al., 2016).<br />
Sendo assim, a assinatura do TTAC foi amplamente criticada pelo Ministério<br />
Público Estadual e Fe<strong>de</strong>ral, como através <strong>de</strong> nota emitida em<br />
02/03/2016 pela Defensoria Pública Estadual e também pelos movimentos<br />
sociais, com <strong>de</strong>staque para o Movimento dos Atingidos por Barragens<br />
(MAB), o Fórum Capixaba em Defesa do <strong>Rio</strong> Doce e organizações não governamentais<br />
como a Justiça Global. A <strong>de</strong>speito dos questionamentos, o<br />
documento foi homologado em 5 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2016. No mesmo dia, acontecia,<br />
na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mariana (MG), um evento sobre o balanço <strong>de</strong> seis meses<br />
do <strong>de</strong>sastre. A notícia foi recebida com surpresa e foi muito questionada<br />
pelos presentes. Na ocasião, também foi assinada uma nota <strong>de</strong> repúdio ao<br />
acordo celebrado entre o Estado e as empresas.<br />
Cinco dias após a homologação, a Samarco realizou uma reunião na Associação<br />
<strong>de</strong> Moradores <strong>de</strong> Regência para apresentar o acordo firmado<br />
entre as mineradoras e o governo fe<strong>de</strong>ral. A reunião – uma das poucas<br />
a acontecer “<strong>de</strong> portas abertas” – contou com ampla participação da comunida<strong>de</strong><br />
atingida, não sendo, <strong>de</strong>ssa vez, limitada aos representantes das<br />
associações locais. A tônica das intervenções na reunião, porém, <strong>de</strong>monstrava<br />
um misto <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinformação e <strong>de</strong>scrédito. Por parte dos moradores,<br />
foi questionada a representativida<strong>de</strong> do Comitê Interfe<strong>de</strong>rativo (CIF), a<br />
<strong>de</strong>mora na execução <strong>de</strong> ações <strong>de</strong> reparação, inclusive do auxílio emergencial,<br />
e a falta <strong>de</strong> esclarecimento acerca das condições da água distribuída<br />
na vila, assim como da terra que teve contato com a lama durante a cheia<br />
do verão (Anotações do ca<strong>de</strong>rno <strong>de</strong> campo, dia 10/05/2016).<br />
Em 30 <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2016, o Superior Tribunal <strong>de</strong> Justiça (STJ) comunicou<br />
a suspensão do acordo a pedido do MPF, iniciando, portanto, uma disputa<br />
judicial em torno da valida<strong>de</strong> do acordo (DORNELAS et al., 2016).<br />
Em nota, a Samarco Mineração S.A. respon<strong>de</strong>u que “a <strong>de</strong>cisão não afeta<br />
as obrigações contidas no acordo, que continuaram sendo integralmente cumpridas,<br />
inclusive no que diz respeito à instituição da fundação <strong>de</strong> direito privado<br />
169
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
prevista no documento.” 14 Em campo, verificamos que, com a homologação<br />
do acordo (e, mesmo após, com a sua suspensão), a Fundação Renova passou<br />
a atuar livremente nos territórios atingidos no lugar das empresas.<br />
A Fundação teria, portanto, o objetivo <strong>de</strong> implantar e gerir os programas<br />
<strong>de</strong> reparação, restauração e reconstrução das regiões afetadas pelo rompimento<br />
da barragem <strong>de</strong> Fundão, conforme previsto no TTAC. Os programas<br />
estão reunidos em dois módulos, sendo um socioambiental e o outro<br />
socioeconômico. No relatório <strong>de</strong> pesquisa e neste artigo, priorizamos as<br />
análises dos aspectos socioeconômicos no gerenciamento da crise, sobretudo<br />
as ações referentes ao cadastro integrado 15 , que, na época do trabalho<br />
<strong>de</strong> campo, era uma ação em andamento nos territórios estudados e que<br />
tivemos a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> acompanhar junto <strong>de</strong> uma família atingida,<br />
além <strong>de</strong> ter sido assunto recorrente com vários interlocutores na região.<br />
Na ocasião em que acompanhamos a aplicação <strong>de</strong>sse cadastro junto a<br />
essa família ribeirinha – que entrou em contato conosco por estar receosa<br />
quanto à assinatura do termo <strong>de</strong> consentimento <strong>de</strong> pesquisa –, o entrevistado,<br />
que não sabia ler, enfatizou que não recebeu nenhum tipo <strong>de</strong> assessoria<br />
ou esclarecimento acerca <strong>de</strong> como proce<strong>de</strong>r diante do cadastro.<br />
Inclusive, não sabia se era necessário respon<strong>de</strong>r todas as perguntas realizadas<br />
ou se po<strong>de</strong>ria simplesmente não as respon<strong>de</strong>r.<br />
Na ocasião, além do longo tempo <strong>de</strong>stinado à aplicação do instrumento<br />
quantitativo, da realização <strong>de</strong> perguntas um tanto quanto dúbias sobre a<br />
produção rural e ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> pesca, chamou-nos atenção, ainda, a quantida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> documentos solicitados pela equipe da Synergia 16 à família em<br />
<strong>de</strong>staque. Em cima da mesa da sala do casal <strong>de</strong> ribeirinhos, era possível<br />
visualizar documentos pessoais <strong>de</strong> cada membro da família (certidões <strong>de</strong><br />
nascimento, i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s, CPF) e comprovante <strong>de</strong> residência. Além disso,<br />
14 Fonte: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2016-07/stj-suspen<strong>de</strong>-acordo-dasamarco<br />
(acessado em 4 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2017).<br />
15 Instrumento vinculado ao Programa <strong>de</strong> Levantamento e Cadastro dos Impactados<br />
(PLCI), <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> das empresas Samarco Mineração e Synergia Consultoria Socioambiental.<br />
16 Fundada em 2007, a empresa opera em mais <strong>de</strong> 150 municípios brasileiros e na África.<br />
Com se<strong>de</strong> em São Paulo, a empresa possui filial no <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro e sucursal em Moçambique.<br />
Entre os principais clientes da empresa estão alguns empreen<strong>de</strong>dores do setor da mineração,<br />
como Vale, Samarco, Manabi, Anglo América. Fonte: http://www.synergiaconsultoria.<br />
com.br (acessado em 8 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2018).<br />
170
Capítulo 6<br />
contas <strong>de</strong> energia, <strong>de</strong> água, <strong>de</strong> material <strong>de</strong> construção, receituários médicos,<br />
exames e mesmo caixas <strong>de</strong> remédios eram solicitados pelos entrevistadores<br />
da Synergia às vítimas do <strong>de</strong>sastre.<br />
A situação que presenciamos foi angustiante também para nós pesquisadores<br />
e amigos do casal, pois evi<strong>de</strong>nciava o <strong>de</strong>slocamento das responsabilida<strong>de</strong>s<br />
sobre o <strong>de</strong>sastre, que, naquele momento, pareciam recair sobre o<br />
casal <strong>de</strong> ribeirinhos, como se estes estivessem tentando ludibriar as empresas.<br />
Dessa forma, o casal – a esposa um pouco mais do que o marido<br />
– <strong>de</strong>monstrava claramente certo nervosismo ao respon<strong>de</strong>r as perguntas,<br />
lidas através <strong>de</strong> um tablet pela funcionária da Synergia. As perguntas objetivas,<br />
centradas em um ligeiro sim ou não, evi<strong>de</strong>nciavam a simplificação<br />
da complexa realida<strong>de</strong> vivida pelo casal, acarretando, por vezes, a dificulda<strong>de</strong><br />
em respondê-las.<br />
Houve um momento ainda mais tenso na aplicação do cadastro, quando<br />
a dona <strong>de</strong> casa não achava um documento específico pedido pela funcionária<br />
da Synergia. Um tanto nervosa, a dona <strong>de</strong> casa respon<strong>de</strong>u: “Eu<br />
tenho isso. Eu tenho. Só que eu não tô achando agora. Eu sei que eu tenho. Nós<br />
juntamos tudo isso <strong>de</strong>pois da lama.” A resposta da dona <strong>de</strong> casa ao fato <strong>de</strong><br />
não achar a documentação solicitada pela funcionária, o medo <strong>de</strong> não<br />
conseguir a reparação do dano e o fato <strong>de</strong>la afirmar que após a lama teve<br />
que organizar um conjunto <strong>de</strong> documentos e outros materiais burocráticos<br />
evi<strong>de</strong>nciam uma ampliação na perspectiva temporal do <strong>de</strong>sastre.<br />
A dor e o sofrimento daqueles que vivenciam diariamente os efeitos e<br />
as alterações <strong>de</strong>correntes do evento traumático confirmam, portanto, que<br />
o aspecto temporal do <strong>de</strong>sastre não se limita ao dia do evento traumático<br />
(SOROKIN, 1942 apud VALENCIO, 2014); ao contrário, ele se espraia<br />
na nova rotina das vítimas, ampliando o sofrimento. Sendo assim, compreen<strong>de</strong>mos<br />
os <strong>de</strong>sastres como “acontecimentos coletivos trágicos nos<br />
quais há perda e danos súbitos e involuntários que <strong>de</strong>sorganizam, <strong>de</strong> forma<br />
multidimensional e severa, as rotinas <strong>de</strong> vida (por vezes, o modo <strong>de</strong><br />
vida) <strong>de</strong> uma dada coletivida<strong>de</strong> (ZHOURI et al., 2016, p. 50).<br />
A nova rotina, além da interdição <strong>de</strong> ativida<strong>de</strong>s tradicionais e corriqueiras<br />
na região – tais como pescar, plantar, tomar banho no rio, surfar, comer<br />
peixe –, inclui também apren<strong>de</strong>r todo um conjunto <strong>de</strong> práticas e saberes<br />
advindo <strong>de</strong> outras or<strong>de</strong>ns do conhecimento. Nesse sentido, novas habili-<br />
171
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
da<strong>de</strong>s são requeridas dos interlocutores com que trabalhamos: participar<br />
<strong>de</strong> extensas e constantes reuniões, elaborar projetos, controlar mensalmente<br />
as novas <strong>de</strong>spesas, organizar documentos, respon<strong>de</strong>r instrumentos<br />
quantitativos <strong>de</strong> pesquisa. Esses são, portanto, exemplos <strong>de</strong> como o<br />
<strong>de</strong>sastre é um processo que continua em curso na vida dos atingidos,<br />
não se limitando, portanto, ao dia do rompimento da barragem. Zhouri<br />
e colaboradores (2017) analisaram aspecto semelhante com as vítimas do<br />
<strong>de</strong>sastre em Mariana (MG), ressaltando a difícil e dolorosa tarefa <strong>de</strong> tornar-se<br />
atingido. Dessa forma, compreen<strong>de</strong>mos que, para além dos efeitos<br />
ocasionados pela lama no rio e no mar, a forma como tem se dado o gerenciamento<br />
<strong>de</strong>ssa crise, a partir <strong>de</strong> um distanciamento das <strong>de</strong>cisões por<br />
parte dos atingidos e <strong>de</strong> uma autonomia das empresas para lidar com a<br />
situação, proporciona uma ampliação do sofrimento nos territórios estudados.<br />
O protagonismo da Fundação Renova em caracterizar e mensurar<br />
o dano ocorre a <strong>de</strong>speito dos interesses das populações atingidas.<br />
Retomando as análises sobre o cadastro, salientamos que o instrumento<br />
é apontado pela Fundação Renova como um procedimento necessário<br />
para mapear os atingidos e os danos materiais sofridos em <strong>de</strong>corrência<br />
do <strong>de</strong>sastre. A ação do cadastro integrado consiste em visitas domiciliares<br />
em que uma equipe <strong>de</strong> funcionários da Synergia – geralmente uma dupla<br />
– visita as famílias atingidas e aplica o cadastro, na forma <strong>de</strong> um extenso<br />
e cansativo instrumento quantitativo. De acordo com o Grupo <strong>de</strong> Temáticas<br />
Ambientais (GESTA/UFMG), que fez uma análise do instrumento<br />
em <strong>de</strong>staque, o tempo <strong>de</strong> aplicação do cadastro é extenso e a terminologia<br />
utilizada <strong>de</strong>stoa do léxico da população regional, o “que obstrui a<br />
participação plena dos atingidos no processo” (GESTA/UFMG, 2016) <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>finição e mensuração do dano sofrido.<br />
Tanto essa análise da aplicação do questionário em Minas Gerais quanto<br />
a experiência <strong>de</strong> acompanhar a aplicação do questionário com a família<br />
ribeirinha na foz do <strong>Rio</strong> Doce reforçam o entendimento <strong>de</strong> que o instrumento<br />
metodológico cadastro integrado aumenta a sensação <strong>de</strong> distanciamento<br />
e <strong>de</strong>sconfiança entre os atingidos e a empresa. Esse distanciamento<br />
é reforçado quando levamos em conta a individualização da discussão<br />
dos danos. Como eles são, muitas vezes, coletivos, talvez a discussão pu<strong>de</strong>sse<br />
resultar em mais eficiência nas ações <strong>de</strong> reparação, se os danos fossem<br />
discutidos <strong>de</strong> forma clara, transparente, não individualizada, hori-<br />
172
Capítulo 6<br />
zontal e coletivamente. Essa reflexão é reforçada quando pensamos que o<br />
procedimento exclusivamente quantitativo “é incapaz <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar prejuízos<br />
que <strong>de</strong>correm das dinâmicas <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>adas a partir do <strong>de</strong>sastre”<br />
(GESTA/UFMG, 2016, p. 12).<br />
Como já é reconhecido em estudos sobre o tema (SOROKIN, 1942; VA-<br />
LÊNCIO, 2014a, 2014b), os processos que se <strong>de</strong>sdobram com o <strong>de</strong>sastre<br />
possuem uma cronologia específica que quase sempre vai além do dia e<br />
do momento exato do rompimento da barragem, contrapondo-se, portanto,<br />
à fixação do marco temporal “na data do evento”, conforme aparece<br />
no cadastro. A<strong>de</strong>mais, a complexida<strong>de</strong> das afetações tampouco será i<strong>de</strong>ntificada<br />
a partir <strong>de</strong> um cadastro que prioriza a quantificação e a monetarização<br />
dos danos sofridos em <strong>de</strong>trimento dos sentimentos e das narrativas<br />
dos atingidos (GESTA/UFMG, 2016), ocasionando, muitas vezes, uma<br />
simplificação da realida<strong>de</strong> vivida pelos atingidos.<br />
Diante do exposto, enten<strong>de</strong>mos que a racionalida<strong>de</strong> que operou por trás<br />
da criação da Fundação Renova, instituída pelas mineradoras Vale e BHP<br />
Billiton e com o respaldo do Governo Fe<strong>de</strong>ral e instituições estaduais,<br />
partiu da perspectiva da solução do problema da Samarco e não da realida<strong>de</strong><br />
vivida nos territórios afetados pelo crime cometido pelas empresas<br />
em questão. Sendo assim, não é surpresa que a atuação da Fundação Renova<br />
contribua para o aumento da confusão, <strong>de</strong>sconfiança e preocupação<br />
das vítimas da lama com o <strong>de</strong>rrame dos rejeitos. A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> negociar<br />
com a fundação <strong>de</strong> direito privado é constantemente questionada nos<br />
territórios. Será que só serão in<strong>de</strong>nizados os que aceitarem os acordos do<br />
Plano <strong>de</strong> In<strong>de</strong>nização Mediada (PIM) no balcão in<strong>de</strong>nizatório cujos termos<br />
têm <strong>de</strong>spertado mais insatisfação que acalento após dois anos do crime?<br />
Existirão meios <strong>de</strong> reparação dos danos que estejam fora da governança<br />
das empresas nos territórios <strong>de</strong> vida, trabalho e socialização dos atingidos?<br />
Tais dúvidas evi<strong>de</strong>nciam o distanciamento das populações atingidas<br />
com o processo <strong>de</strong> gestão da crise e, sobretudo, com os acordos reiteradamente<br />
assinados entre o Estado brasileiro e as empresas mineradoras.<br />
Esse distanciamento nos remete à situação <strong>de</strong> margens e violência (DAS &<br />
POOLE, 2008) aos quais as vítimas estão submetidas no contexto do <strong>de</strong>sastre<br />
analisado: os direitos são reiteradamente negados, ora pela atuação<br />
das empresas, ora pela atuação (ou omissão) do Estado.<br />
173
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Sobre os direitos negados, po<strong>de</strong>mos avançar, por exemplo, na questão dos<br />
pescadores e ribeirinhos, já reconhecidos por tratados nacionais e internacionais<br />
como populações tradicionais e que, como tais, <strong>de</strong>veriam ser<br />
consultadas nos seus próprios termos acerca do planejamento sobre a utilização<br />
ou o comprometimento do ambiente no qual vivem e dos recursos<br />
dos quais <strong>de</strong>pen<strong>de</strong>m. Neste sentido, instrumentos jurídicos como a Convenção<br />
169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) e o Decreto<br />
6.040 do governo fe<strong>de</strong>ral sobre a Política Nacional <strong>de</strong> Desenvolvimento<br />
Sustentável dos Povos e Comunida<strong>de</strong>s Tradicionais vêm sendo ignorados<br />
pelas empresas, órgãos ambientais e pela Fundação Renova no processo<br />
<strong>de</strong> reparação dos danos causados à população na foz do <strong>Rio</strong> Doce.<br />
A falta <strong>de</strong> clareza em torno das negociações sobre a proibição da pesca e<br />
a in<strong>de</strong>nização oferecida aos pescadores é exemplo disso. Mais uma vez se<br />
<strong>de</strong>stacam atores com o domínio das habilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> negociação, fala e representação<br />
jurídica (e às vezes científica) no contexto em que vêm sendo<br />
discutidas essas questões, no lugar <strong>de</strong> se pensar questões e métodos que<br />
propiciem a participação daqueles pescadores e ribeirinhos que, pertencentes<br />
às comunida<strong>de</strong>s tradicionais, têm garantido constitucionalmente<br />
o direito <strong>de</strong> serem consultados em seus próprios termos, gozando tanto<br />
do conhecimento prévio da situação antes da tomada <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisão quanto<br />
da sua autonomia.<br />
Ainda sobre a pesca, convém lembrar que ela continua proibida por tempo<br />
in<strong>de</strong>terminado até o limite dos 25 metros <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>, inviabilizando<br />
a maior parte da ativida<strong>de</strong> tal como ela é costumeiramente praticada na região.<br />
A <strong>de</strong>speito da Fundação Renova afirmar que não existem dados conclusivos<br />
acerca da contaminação da água do mar, a proibição da pesca foi<br />
<strong>de</strong>cretada pelo órgão ambiental como uma medida <strong>de</strong> precaução diante<br />
dos possíveis efeitos negativos que os rejeitos minerários provenientes do<br />
<strong>de</strong>rrame da barragem possam causar sobre o ambiente e a saú<strong>de</strong> humana.<br />
Isto posto, torna-se evi<strong>de</strong>nte que ainda não há certezas sobre os danos ambientais<br />
<strong>de</strong>correntes do <strong>de</strong>sastre e <strong>de</strong> como isso afeta (e como continuará<br />
afetando) a vida daqueles que se relacionam com o rio e o mar.<br />
CONSIDERAções FINAIS<br />
A partir do exposto, reforçamos a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> compreen<strong>de</strong>r esse<br />
174
Capítulo 6<br />
evento como um processo não estanque, cujos efeitos seguem em curso e<br />
se ampliando com o passar do tempo (VALÊNCIO, 2014a; 2014b; ZHOURI<br />
et al., 2016; 2017; CREADO et al., 2016). Passados dois anos, seus efeitos são<br />
múltiplos e se sobrepõem, tendo em vista que mesmo os arranjos institucionais<br />
para a gerência do <strong>de</strong>sastre – até mesmo com ações prescritas pelo<br />
MPF para a reparação dos danos aos atingidos – trazem consigo novos<br />
problemas. Foi assim na distribuição do auxílio emergencial, foi assim com<br />
o cadastro integrado e tem sido assim com o balcão in<strong>de</strong>nizatório – os únicos<br />
três programas da Fundação Renova com os quais os interlocutores que<br />
estabelecemos relações nesta pesquisa tiveram contato.<br />
Das (1995) aborda questões interessantes sobre a apropriação judicial e<br />
burocrática do sofrimento em contextos <strong>de</strong> contaminação industrial. Segundo<br />
a autora, enquanto a empresa norte-americana Union Carbi<strong>de</strong>,<br />
responsável pelo <strong>de</strong>sastre em Bhopal na Índia, não forneceu sequer as<br />
informações sobre a composição dos componentes químicos que vazaram<br />
na fábrica <strong>de</strong> pesticidas, as vítimas do <strong>de</strong>sastre tiveram que transformar<br />
todo o sofrimento <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ado com o <strong>de</strong>sastre em uma linguagem científica<br />
para pleitear o reconhecimento judicial. Aspectos parecidos vêm<br />
ocorrendo com os moradores afetados na foz do <strong>Rio</strong> Doce, que precisam<br />
juntar e organizar provas que confirmem para as empresas responsáveis<br />
pelo rompimento da barragem que sofreram algum tipo <strong>de</strong> dano.<br />
Neste sentido, po<strong>de</strong>mos afirmar que o protagonismo das empresas no<br />
processo <strong>de</strong> gestão <strong>de</strong> crise em <strong>de</strong>trimento da participação dos atingidos<br />
reforça o sofrimento social nos territórios. Depois da chegada da lama, o<br />
conhecimento adquirido pelos ribeirinhos, pescadores e <strong>de</strong>mais habitantes<br />
da foz do <strong>Rio</strong> Doce em suas trajetórias <strong>de</strong> vida na região tem se tornado<br />
obsoleto frente à necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> se movimentar em um ambiente<br />
legal-jurídico que é estranho para a maioria <strong>de</strong>les.<br />
A exigência <strong>de</strong>ssas novas habilida<strong>de</strong>s requeridas para “tornar-se atingido”,<br />
como a <strong>de</strong> construir uma narrativa – <strong>de</strong> preferência alicerçada em fotos,<br />
recibos e documentos – que comprove o dano sofrido, é um exemplo típico<br />
das dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas nesses tipos <strong>de</strong> circunstâncias, tendo<br />
sido discutidas e <strong>de</strong>nunciadas em outras situações (DAS, 1995; AYUERO<br />
& SWISTUN, 2007; SILVA, 2010; OLIVEIRA, 2014; ZHOURI et al., 2017).<br />
Se, por um lado, o passar do tempo conta a favor da empresa, por outro, a<br />
175
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
ausência <strong>de</strong> respostas claras e ações efetivas por parte da Fundação Renova<br />
e do Estado tem reforçado a necessida<strong>de</strong> da auto-organização dos atingidos.<br />
Neste sentido, a própria chegada do Movimento <strong>de</strong> Atingidos por<br />
Barragem (MAB) ao Espírito Santo junto com a lama é um aspecto que<br />
merece <strong>de</strong>staque. Mais recentemente, os atingidos têm se organizado em<br />
comissões <strong>de</strong> atingidos, a exemplo do que parece ter ocorrido em Mariana<br />
e Barra Longa, no intuito <strong>de</strong> construir uma proposta <strong>de</strong> assessoria técnica<br />
in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte em um processo que tem sido acompanhado pelo MPF.<br />
A iniciativa soa como uma resposta à <strong>de</strong>mora da Fundação Renova e dos<br />
órgãos estatais competentes <strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r questões básicas como se há<br />
contaminação do solo, da água, dos peixes e <strong>de</strong> produtos agropecuários<br />
da região. Mais do que sanar as dúvidas acerca <strong>de</strong>sses aspectos cotidianos,<br />
a intenção é construir, ainda que tardiamente, as ferramentas necessárias<br />
para que o diálogo entre os atingidos e a Samarco possa se dar <strong>de</strong><br />
forma menos <strong>de</strong>sigual.<br />
Se, por um lado, a maioria dos atingidos pelo crime não possui sequer um<br />
advogado, por outro, a criação da fundação <strong>de</strong> direito privado – à revelia<br />
dos atingidos e com a objeção dos Ministérios Públicos e Defensorias<br />
Públicas – com o aporte financeiro das mineradoras evi<strong>de</strong>ncia a assimetria<br />
<strong>de</strong>ssa relação. Ao passo que as últimas agenciam re<strong>de</strong>s técnicas, órgãos<br />
estatais (<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os <strong>de</strong> controle ambiental às agências <strong>de</strong> fomento <strong>de</strong><br />
pesquisa) e uma vasta re<strong>de</strong> <strong>de</strong> funcionários e pesquisadores, os atingidos<br />
nesse processo <strong>de</strong> auto-organização têm contado com o apoio da Igreja<br />
Católica e <strong>de</strong> organizações como o Fórum em Defesa do <strong>Rio</strong> Doce, o próprio<br />
MAB, alguns coletivos e grupos <strong>de</strong> pesquisa e extensão universitários<br />
– além do acompanhamento nos limites das possibilida<strong>de</strong>s do MPF e da<br />
Defensoria Pública do Espírito Santo.<br />
Neste sentido, consi<strong>de</strong>ramos a iniciativa das comissões <strong>de</strong> atingidos e a disputa<br />
por assessoria técnica como um input positivo no sistema que tem se<br />
<strong>de</strong>lineado com a gestão do <strong>de</strong>sastre, po<strong>de</strong>ndo seu resultado fazer pen<strong>de</strong>r<br />
um pouco mais a balança para o lado dos atingidos na sua emergência<br />
como atores coletivos nos processos <strong>de</strong> negociação com a empresa. A título<br />
<strong>de</strong> conclusão, realçamos a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> iniciativas in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes<br />
<strong>de</strong> informação, formação e assessoria aos atingidos, para que possam<br />
participar do processo <strong>de</strong> planejamento ao qual estão expostos – mesmo<br />
176
Capítulo 6<br />
<strong>de</strong>ntro dos programas da Fundação Renova como a in<strong>de</strong>nização mediada,<br />
por exemplo – municiando-os <strong>de</strong> ferramentas que lhes possibilitem um<br />
papel mais ativo na <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong> seus interesses e direitos.<br />
177
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
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resistir. Belo Horizonte: EDUFMG, 2014b.<br />
ZHOURI, A. et al. O Desastre <strong>de</strong> Mariana: Colonialida<strong>de</strong> e Sofrimento<br />
social. In: ZHOURI, A.; BOLADOS, P.; CASTRO, E. (Orgs.) Mineração na<br />
América do Sul: Neoextrativismo e lutas territoriais. São Paulo: Annablume,<br />
2016.<br />
ZHOURI, A. et al. The <strong>Rio</strong> Doce Mining Disaster in Brazil: between policies<br />
of reparations and the politics of affectations. In: Vibrant. v. 14, n. 2,<br />
agosto <strong>de</strong> 2017, p. 1-21. Disponível em: <br />
179
180
Capítulo 7<br />
A alimentação enquanto relação visceral<br />
com o pescado na vila <strong>de</strong> Regência e<br />
algumas pontuações sobre os seus <strong>de</strong>svios<br />
pós-lama da Samarco<br />
Bianca <strong>de</strong> Jesús Silva<br />
Clara Crizio <strong>de</strong> Araujo Torres<br />
INTRODUção<br />
A presente proposta se concentrou em evi<strong>de</strong>nciar os cortes <strong>de</strong> re<strong>de</strong><br />
(STRATHERN, 2011) que foram observados a partir da obrigatorieda<strong>de</strong><br />
judicial <strong>de</strong> auxílio emergencial aos afetados pelo crime socioambiental<br />
da ruptura da barragem <strong>de</strong> rejeitos <strong>de</strong> mineração da empresa Samarco<br />
S.A., ocorrido no dia 5 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2015. Analisaremos os processos<br />
<strong>de</strong> liberação e proibição da pesca, bem como as incertezas sobre o consumo<br />
e distribuição do pescado, junto às discussões sobre os laudos técnicocientíficos<br />
enquanto relacionados ao corte <strong>de</strong> re<strong>de</strong> <strong>de</strong> que estamos tratando.<br />
Buscamos, a partir <strong>de</strong>ssa estrutura <strong>de</strong> análise, indicar as relações <strong>de</strong><br />
nossos interlocutores com o pescado após o rompimento da barragem <strong>de</strong><br />
rejeitos <strong>de</strong> mineração da Samarco, atribuindo também importância para<br />
se pensar o <strong>de</strong>sastre sobre a perspectiva ontológica (ALMEIDA, 2003) da<br />
alimentação na comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Regência Augusta, e aos seus modos <strong>de</strong><br />
inventar (WAGNER, 2010) sobre as incertezas com relação ao pescado.<br />
Nas nossas discussões, as reflexões sobre a alimentação passaram a ter um<br />
<strong>de</strong>staque durante as saídas <strong>de</strong> campo e o acompanhamento das notícias<br />
sobre o rompimento da barragem <strong>de</strong> rejeitos <strong>de</strong> mineração, que <strong>de</strong>spejou<br />
milhões <strong>de</strong> metros cúbicos do conteúdo antes retido: “[...] aquilo que convencionou-se<br />
chamar localmente <strong>de</strong> “lama da Samarco” – formada por<br />
partículas <strong>de</strong> solo e minérios <strong>de</strong> ferro combinados com arsênio, chumbo,<br />
mercúrio, manganês, cádmio, cobre e zinco – <strong>de</strong>sceu pelo Vale do <strong>Rio</strong><br />
Doce atingindo toda a sua população (JUSTIÇA GLOBAL, 2015)” (apud<br />
LEONARDO et al., 2017, p. 25). As observações surgiram <strong>de</strong>vido ao que fi-<br />
181
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
cou ressaltado entre as primeiras imagens sobre a chegada dos rejeitos no<br />
rio Doce, nas quais estão presentes vários animais mortos, em sua maioria<br />
peixes. A partir das inquietações provocadas pelas imagens citadas,<br />
passamos a observar <strong>de</strong> modo mais sistemático a questão nos trabalhos<br />
<strong>de</strong> campo durante as saídas realizadas entre <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2015 e maio <strong>de</strong><br />
2017. Estávamos em frentes <strong>de</strong> trabalho 1 que não eram específicas sobre<br />
a alimentação, a pesca ou o consumo do pescado, mas, ao trabalharmos<br />
a noção <strong>de</strong> evento crítico apresentada por Veena Das (1995) e a partir da<br />
perspectiva sobre o fazer etnográfico <strong>de</strong> Strathern (2014), i<strong>de</strong>ntificamos,<br />
durante as experiências <strong>de</strong> campo, uma relevância sobre a temática que<br />
se fez presente em gran<strong>de</strong> parte das ativida<strong>de</strong>s que realizamos em Regência<br />
Augusta, vila que está localizada na foz do rio Doce, on<strong>de</strong> este se<br />
encontra com o mar, no município <strong>de</strong> Linhares (ES).<br />
A discussão sobre a alimentação e a centralida<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssa ativida<strong>de</strong> esteve<br />
presente em vários trabalhos antropológicos, como, para citar alguns exemplos,<br />
na apresentação dos primeiros mitos trabalhados no volume 1 das<br />
mitológicas “O cru e o cozido” <strong>de</strong> Lévi-Strauss (1991); em Viveiros <strong>de</strong> Castro<br />
(2002), na discussão sobre o perspectivismo ameríndio, colocando em<br />
evidência a importância das relações <strong>de</strong> predação nessas ontologias; e nas<br />
colocações <strong>de</strong> Strathern (2006) sobre o cará e o inhame e a importância <strong>de</strong>ssas<br />
raízes na alimentação nas terras altas ocupadas por povos da Melanésia.<br />
Desse modo, buscamos refletir sobre as posturas em relação à construção<br />
das práticas <strong>de</strong> conhecimento (STRATHERN, 2014) presentes nas questões<br />
sobre os <strong>de</strong>sdobramentos da alimentação em <strong>de</strong>terminados contextos simbólicos,<br />
bem como sobre a alteração das relações viscerais e emocionais<br />
(TADDEI, 2014a; 2014b) dos regencianos com relação ao pescado.<br />
1 Os trabalhos foram <strong>de</strong>senvolvidos no âmbito do período <strong>de</strong> execução do Programa <strong>de</strong> Extensão<br />
intitulado “Áreas protegidas e gran<strong>de</strong>s projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no horizonte <strong>de</strong><br />
vivências das comunida<strong>de</strong>s locais: os impactos socioambientais e os seus <strong>de</strong>sdobramentos”,<br />
financiado pelo PROEXT/MEC, ao longo do biênio 2016-2017. Também foram cruciais as<br />
ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong>senvolvidas ao longo do segundo semestre <strong>de</strong> 2016, com a execução da pesquisa<br />
intitulada “Depois da Lama: os atingidos e os impactos na Foz do <strong>Rio</strong> Doce”, aprovada no<br />
edital aberto para a seleção e contratação <strong>de</strong> estudos sobre avaliação dos danos causados pelo<br />
rompimento <strong>de</strong> barragens <strong>de</strong> rejeitos <strong>de</strong> mineração e seus impactos ao longo da bacia do <strong>Rio</strong><br />
Doce (Fundo <strong>de</strong> doação: coletivo <strong>de</strong> artistas #SouMinasGerais e #<strong>Rio</strong><strong>de</strong>Gente. Gestão e implementação:<br />
Greenpeace-Brasil). As pesquisas supracitadas foram coor<strong>de</strong>nadas por Aline<br />
Trigueiro Vicente e Flávia Amboss Merçon Leonardo, respectivamente. Ambas as pesquisas<br />
são vinculadas ao Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento<br />
no Espírito Santo (GEPPEDES).<br />
182
Capítulo 7<br />
As questões que concernem à pesca e ao consumo do pescado se mostraram<br />
– e ainda se mostram – relevantes nas falas durante as entrevistas,<br />
principalmente durante a aplicação <strong>de</strong> questionários que foi realizada<br />
para a pesquisa sobre os efeitos do <strong>de</strong>sastre na região da foz do rio Doce<br />
(LEONARDO et al., 2017). Durante essa etapa da pesquisa, passamos em<br />
várias casas conversando com os atingidos sobre a <strong>de</strong>corrência do rompimento<br />
da barragem <strong>de</strong> rejeitos <strong>de</strong> mineração e da chegada da lama na<br />
vila, tendo-se em vista a matriz trabalhada pela empresa responsável, no<br />
sentido <strong>de</strong> buscar enten<strong>de</strong>r o que estava sendo observado como <strong>de</strong>sdobramento<br />
do <strong>de</strong>sastre pelas pessoas da região da foz do rio Doce. Essa experiência<br />
foi uma importante iniciativa <strong>de</strong> pesquisa para o que se encontra<br />
aqui exposto, no sentido <strong>de</strong> concentrar e discutir sobre a alimentação<br />
da comunida<strong>de</strong> atingida, que, no nosso caso, se atém à região da foz, com<br />
alguns extrapolamentos. 2<br />
Foi durante esses contatos nas aplicações dos questionários que passamos<br />
a i<strong>de</strong>ntificar uma postura mais acentuada em relação às questões<br />
que versam sobre o consumo do peixe – uma vez que o questionário também<br />
buscava compreen<strong>de</strong>r aspectos sobre alteração na rotina familiar,<br />
as condições da água, as formas <strong>de</strong> lazer, a fonte <strong>de</strong> renda das famílias,<br />
quantas pessoas por domicílio, ida<strong>de</strong> e gênero dos atingidos e também<br />
noções sobre a vivência nas comunida<strong>de</strong>s. Apesar do amplo espectro <strong>de</strong><br />
questões em <strong>de</strong>staque, os moradores se mostraram mais sensíveis ao falarmos<br />
sobre o pescado do que sobre a água, por exemplo – questão que<br />
se supunha que fosse tomada como a <strong>de</strong> maior relevância até então. Observamos,<br />
também, que as percepções sobre a contaminação da água frequentemente<br />
emergiram nas conversas sobre alimentação, no consumo<br />
dos peixes e modos <strong>de</strong> preparo, <strong>de</strong>vido à incorporação da água mineral<br />
em alguns processos <strong>de</strong> cozimento. Dessas observações, po<strong>de</strong>mos indicar<br />
alguns elementos que nortearam a construção da proposta do presente<br />
texto. Como po<strong>de</strong>mos observar no relatório intitulado “Rompimento da<br />
barragem <strong>de</strong> Fundão (SAMARCO/VALE/BHP BILLITON) e os efeitos do<br />
<strong>de</strong>sastre na foz do <strong>Rio</strong> Doce, distritos <strong>de</strong> Regência e Povoação, Linhares<br />
2 Apesar do contexto aqui retratado estar restrito à Regência, o relatório da pesquisa que<br />
embasou gran<strong>de</strong> parte da presente discussão abrangeu também a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Povoação.<br />
Assim, em diversos aspectos, as observações aqui proferidas po<strong>de</strong>rão ser estendidas àquela<br />
outra localida<strong>de</strong>.<br />
183
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
(ES)” (LEONARDO et al., 2017), que concentra parte do material citado<br />
aqui, a questão sobre a qualida<strong>de</strong> da água mostrou uma pequena diferença,<br />
no sentido <strong>de</strong> que não encontramos um consenso sobre ela <strong>de</strong> modo<br />
evi<strong>de</strong>nte na etapa <strong>de</strong> análises quantitativas da pesquisa. Por outro lado, ao<br />
observar as questões sobre o pescado, po<strong>de</strong>mos apontar para um processo<br />
mais coeso, e quase unânime, nas respostas dos participantes.<br />
Destarte, gostaríamos <strong>de</strong> pontuar <strong>de</strong> que modo essa associação nos foi<br />
introduzida e analisada pelos atingidos durante as investigações e trabalhos<br />
<strong>de</strong> campo. Indicamos essa como uma questão central e, a partir <strong>de</strong>la,<br />
abriremos <strong>de</strong>bates que não serão esgotados neste texto, mas apontamos<br />
para a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> reflexão a fim <strong>de</strong> evi<strong>de</strong>nciar as formas como foram<br />
construídas as relações <strong>de</strong> alimentação em torno do pescado em Regência<br />
a partir das alterações sofridas e percebidas como problema após o<br />
evento crítico do rompimento da barragem e a chegada da lama.<br />
Como o apresentado, <strong>de</strong>ntre os elementos que acionaremos para tratar<br />
das consequências na alimentação local, trabalharemos sobre as discussões<br />
sobre as proibições da pesca no rio e no mar e sobre a entrega e a<br />
manutenção do cartão <strong>de</strong> auxílio emergencial na região. Abordaremos<br />
tais fatores enquanto potenciais cortes <strong>de</strong> re<strong>de</strong>, conforme utilização <strong>de</strong>ssa<br />
i<strong>de</strong>ia por Strathern (2011), por produzir mudanças na alimentação entre<br />
o rompimento e as proibições, e por conta da própria dinâmica <strong>de</strong> implementação<br />
e uso do cartão por alguns moradores <strong>de</strong> Regência.<br />
184
Capítulo 7<br />
I<strong>de</strong>ntificação do CORTE <strong>de</strong> re<strong>de</strong>: AS MUDANçAS em<br />
TORNO DA ALIMENTAção NA vila<br />
Figura 1: Peixes mortos nas margens do <strong>Rio</strong> Doce em Governador Valadares<br />
(MG).<br />
Fonte: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2015/11/26/ibama-registra-<br />
9-toneladas-<strong>de</strong>-peixes-mortos-nas-margens-do-rio-doce.htm (último acesso em 14/08/2017).<br />
O primeiro <strong>de</strong>staque se dá em relação ao rompimento e ao período em<br />
que vários animais foram encontrados mortos em diversos pontos ao longo<br />
da bacia hidrográfica do rio Doce. Com a mortanda<strong>de</strong> dos animais,<br />
passou-se a discutir a respeito da qualida<strong>de</strong> do pescado, o que gerou uma<br />
crise nas peixarias e na distribuição da mercadoria – algo observado no<br />
relatório organizado pelo grupo <strong>de</strong> pesquisa e extensão Organon (2015),<br />
referente ao ano da ruptura da barragem. Essa discussão sobre a qualida<strong>de</strong><br />
do peixe se esten<strong>de</strong> até os dias atuais, com alguns elementos que<br />
observamos enquanto potencializadores para a dinâmica <strong>de</strong> incertezas, e<br />
que trabalharemos a partir da discussão <strong>de</strong> Renzo Tad<strong>de</strong>i (2014a) acerca<br />
das secas enquanto <strong>de</strong>sastre, para o qual os <strong>de</strong>sastres são processos, que,<br />
<strong>de</strong>ntre outros <strong>de</strong>sdobramentos, também geram incertezas. 3 No presente<br />
3 “Como todo <strong>de</strong>sastre, as secas não são “coisas”, mas sim processos. Diferentemente das<br />
<strong>de</strong>mais categorias <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastre, por sua vez, as secas se caracterizam por ausências, e não pela<br />
presença inconveniente <strong>de</strong> algo fora do lugar (como são tornados, furacões e inundações, por<br />
exemplo). É essa dimensão <strong>de</strong> ausência que afeta todas as coisas e relações do contexto em<br />
que ocorre e que faz da seca, mais do que algo, um campo <strong>de</strong> possibilida<strong>de</strong>s, e, portanto, um<br />
185
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
caso, inicialmente vamos pontuar a proibição da pesca e seus arranjos,<br />
indicando os pontos e momentos <strong>de</strong> liberação e proibição. Nesse sentido,<br />
a incerteza gerada a partir das mudanças na qualida<strong>de</strong> e na legalida<strong>de</strong> do<br />
pescado <strong>de</strong>ixou tal questão em aberto <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a primeira <strong>de</strong>scida dos rejeitos.<br />
A incerteza gerada pela mortanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> animais e pelas proibições<br />
dizia respeito à qualida<strong>de</strong> da água e do pescado, inaugurando a discussão<br />
sobre os laudos técnico-científicos e as dúvidas sobre a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
consumo e comércio do pescado, como po<strong>de</strong> ser observado nas falas <strong>de</strong><br />
dois interlocutores resi<strong>de</strong>ntes <strong>de</strong> Regência (cujos nomes serão omitidos)<br />
quanto às suas preocupações:<br />
O principal hoje seria a saú<strong>de</strong>, em relação à nossa água [...] porque<br />
a água traz câncer <strong>de</strong> pele, traz muitas coisas, que a gente não<br />
sabe o que po<strong>de</strong> trazer, mas isso a gente po<strong>de</strong> já... como a gente<br />
não é muito leigo <strong>de</strong> alguma coisa, então a gente já tá sabendo o<br />
que que po<strong>de</strong> trazer. Ela não vai trazer agora, no momento imediato<br />
– você tomando hoje, já aparece amanhã a doença – não.<br />
Ela vai vir com o tempo, enten<strong>de</strong>u? Então esse tempo po<strong>de</strong> prejudicar<br />
mais tar<strong>de</strong>. Então o que que a gente tem que fazer hoje? É<br />
trabalhar o laudo em cima disso aí.<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em fevereiro <strong>de</strong> 2017].<br />
Nós não sabe <strong>de</strong> nada que existe nessa água, se tá boa, o que presta<br />
o que num presta, que tão trabalhando, no mar mesmo, é barco.<br />
Se tá boa pra banho, a prefeitura falou que po<strong>de</strong> tomar banho<br />
que agora no verão que a água tá boa, mas os peixe tá contaminado,<br />
se os peixe tá contaminado, e aí, os peixe tão on<strong>de</strong>, os peixe<br />
tão fora da água?<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em fevereiro <strong>de</strong> 2017].<br />
Esses fatores, entre outros observados na vila tanto antes quanto logo<br />
campo <strong>de</strong> embates matizado por distintos graus <strong>de</strong> incerteza, o que pretendo analisar neste<br />
texto.” (TADDEI, 2014a, p.1).<br />
186
Capítulo 7<br />
após a chegada dos rejeitos, geraram uma gran<strong>de</strong> sensação <strong>de</strong> falta <strong>de</strong> informação<br />
sobre a extensão do problema, como se po<strong>de</strong> observar no relatório<br />
citado sobre os impactos <strong>de</strong>correntes do rompimento da barragem<br />
e da chegada da lama (LEONARDO et al., 2017), no qual foram mapeadas<br />
algumas das principais transformações vivenciadas nas localida<strong>de</strong>s<br />
<strong>de</strong> Regência e Povoação. Somando-se a isso, observou-se a profusão <strong>de</strong><br />
laudos e pesquisas <strong>de</strong> diversas áreas <strong>de</strong> conhecimento, realizadas sobre<br />
as águas do rio e do mar, do pescado e da população dos locais afetados,<br />
<strong>de</strong> forma concomitante com a indisponibilida<strong>de</strong> dos resultados <strong>de</strong> tais<br />
pesquisas para a maioria da população. Quando disponíveis, tais dados<br />
pouco dialogam com a população local, cujas questões relacionadas à<br />
qualida<strong>de</strong> da sua água e do seu alimento permanecem sem resposta e<br />
sem alternativas, o que gera o aumento da sensação <strong>de</strong> <strong>de</strong>sinformação<br />
e a diminuição da confiança sobre as informações obtidas. Além disso,<br />
aumentam as incertezas quanto aos riscos aos quais se encontram sujeitos<br />
os moradores e outros seres, o que po<strong>de</strong>mos <strong>de</strong>preen<strong>de</strong>r a partir da<br />
observação em espaços mais amplos <strong>de</strong> discussão, como, por exemplo,<br />
durante audiência pública realizada em 30 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2016 sobre<br />
a saú<strong>de</strong> do povo capixaba após o <strong>de</strong>rramamento dos rejeitos, na Assembléia<br />
Legislativa do Espírito Santo (ALES), quando falaram representantes<br />
dos atingidos:<br />
Essa cena perdurou por vários meses, enquanto isso a população<br />
permanecia em total <strong>de</strong>sconfiança da qualida<strong>de</strong> da água e ainda<br />
permanece, a população <strong>de</strong> Colatina, ainda permanece, <strong>de</strong>sconfiando<br />
da água. Você passa pelos restaurantes, você vai ver lá um<br />
sinal que ali só se cozinha com água mineral. E a população não<br />
<strong>de</strong>ixa as suas crianças tomarem água da torneira nas escolas e<br />
por aí vai.<br />
[Representante do Fórum Capixaba em Defesa do rio Doce,<br />
em fala durante audiência pública ocorrida na ALES em 30 <strong>de</strong><br />
novembro <strong>de</strong> 2016].<br />
Pois vamos, o MPF, me <strong>de</strong>sculpe o MPMG, se em vinte dias a<br />
água foi dita como limpa pelo prefeito, em agosto ela foi dita<br />
como suja, e só em agosto, pelo MPMG, falando que essa água<br />
po<strong>de</strong>ria causar doenças <strong>de</strong>generativas. Não só, em novembro, a<br />
187
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Justiça também vai aqui no Espírito Santo falar que essa água<br />
não estava própria para o consumo e que, portanto, outro tratamento<br />
<strong>de</strong>veria ser dado a ela. E se em novembro, percebam que<br />
a água foi dita limpa, e que um ano <strong>de</strong>pois vários outros laudos<br />
dizem que ela estava suja.<br />
[Representante do Fórum Capixaba em Defesa do rio Doce,<br />
em fala durante audiência pública ocorrida na ALES em 30 <strong>de</strong><br />
novembro <strong>de</strong> 2016].<br />
Eu gostaria que vocês se lembrem do ví<strong>de</strong>o que eu acabei <strong>de</strong> passar,<br />
não foram só cinco dias, e mais, a gente tem outros laudos,<br />
que dão insegurança para essa água.<br />
[Representante do Fórum Capixaba em Defesa do rio Doce,<br />
em fala durante audiência pública ocorrida na ALES em 30 <strong>de</strong><br />
novembro <strong>de</strong> 2016].<br />
E também os pescadores não estão conseguindo mais ven<strong>de</strong>r<br />
seus peixes, porque os peixes lá estão contaminados e todos os<br />
consumidores estão com medo <strong>de</strong> comprar os peixes, então mais<br />
uma pergunta que o pescador está querendo saber dos nosso representantes,<br />
é como é que nós vamos viver, se nós estamos hoje<br />
vivendo <strong>de</strong> ajuda.<br />
[Moradora atingida do norte da foz do rio Doce, em fala durante<br />
audiência pública ocorrida na ALES em 30 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2016].<br />
Retomando a questão principal <strong>de</strong> discussão neste tópico, apontamos<br />
para o <strong>de</strong>senho institucional da proibição da pesca, aqui marcada a partir<br />
da Ação Civil Pública (ACP) encaminhada pelo Ministério Público Fe<strong>de</strong>ral<br />
e Procuradoria da República dos Estados <strong>de</strong> Minas Gerais e Espírito<br />
Santo – Força Tarefa rio Doce (distribuição por prevenção, autos n.º 60017-<br />
58.2015.4.01.3800 e 69758.61-2015.4.01.3400), que apresenta uma construção<br />
cronológica do processo, apontando as medidas da proibição e a documentação<br />
que <strong>de</strong>u base para a interrupção das ativida<strong>de</strong>s pesqueiras, com<br />
os dois mapas elaborados pelo Núcleo <strong>de</strong> Geoprocessamento e Monitoramento<br />
Ambiental da Superintendência do IBAMA no Estado <strong>de</strong> São<br />
Paulo (NUGEO/SP). Nesse documento, encontramos a primeira <strong>de</strong>marcação,<br />
que data <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2016, on<strong>de</strong> consta como área <strong>de</strong> proibição da<br />
188
Capítulo 7<br />
pesca toda a região da foz com até 30 metros <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>. A segunda<br />
<strong>de</strong>marcação data <strong>de</strong> junho <strong>de</strong> 2016; nela, a alteração do limite da área <strong>de</strong><br />
proibição <strong>de</strong> pesca foi reduzida à área com profundida<strong>de</strong> <strong>de</strong> até 20 metros.<br />
A ACP se inicia apresentando a <strong>de</strong>manda jurídica da proibição com a discussão<br />
técnica quanto às incertezas sobre os impactos dos rejeitos:<br />
Aliás, em virtu<strong>de</strong> das incertezas sobre o impacto da pesca na fauna<br />
estuarina e marinha, bem como sobre possível contaminação dos<br />
pescados, logo após o término do período <strong>de</strong> <strong>de</strong>feso do camarão,<br />
instituído pela Instrução Normativa IBAMA nº 189/2008, houve<br />
proibição da pesca <strong>de</strong> qualquer natureza, ressalvada a <strong>de</strong>stinada<br />
à pesquisa científica na área compreendida entre a região <strong>de</strong> Barra<br />
do Riacho, em Aracruz/ES, até Degredo/Ipiranguinha, em Linhares/ES,<br />
<strong>de</strong>ntro dos 25 (vinte e cinco) metros <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>.<br />
Tal interdição da ativida<strong>de</strong> pesqueira nas proximida<strong>de</strong>s da foz do<br />
<strong>Rio</strong> Doce, <strong>de</strong>terminada para valer a partir <strong>de</strong> 22/02/2016, <strong>de</strong>correu<br />
<strong>de</strong> medida liminar proferida na Ação Civil Pública nº 0002571-<br />
13.2016.4.02.5004, proposta pelo MPF perante a Vara Fe<strong>de</strong>ral da<br />
Subseção Judiciária <strong>de</strong> Linhares, conforme <strong>de</strong>cisão anexa (Doc.<br />
18) (MPF, 2016b, p. 25, grifo nosso).<br />
Na ACP impetrada pela Vara Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Linhares (MPF, 2016b), mencionada<br />
no documento supracitado, no que se refere à pesca no litoral <strong>de</strong><br />
Linhares, a área <strong>de</strong> proibição sugerida em fevereiro <strong>de</strong> 2016 <strong>de</strong>marca os 25<br />
metros <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong> a partir <strong>de</strong> um mapa elaborado pelo Tamar/ICM-<br />
Bio, como <strong>de</strong>scrito no documento <strong>de</strong> Inquérito Civil da ação em questão:<br />
“A medida preventiva <strong>de</strong> proibição da pesca <strong>de</strong>ve recair, segundo informações<br />
obtidas com os órgãos ambientais, na área compreendida entre<br />
a região <strong>de</strong> Barra do Riacho, em Aracruz, até Degredo/Ipiranguinha, em<br />
Linhares, <strong>de</strong>ntro dos 25 metros <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong> [...]” (MPF, 2016b, p.15). 4<br />
Posteriormente, no <strong>de</strong>senrolar da mesma ação, a proposta <strong>de</strong> redução da<br />
4 As duas Ações Civis Públicas em questão, (1) a impetrada pela Força Tarefa <strong>Rio</strong> Doce,<br />
incluindo União, Ministério Público Fe<strong>de</strong>ral em Minas Gerais e no Espírito Santo (nº 60017-<br />
58.2015.4.01.3800 e 69758.61-2015.4.01.3400) e (2) a impetrada pelo MPF na Vara Fe<strong>de</strong>ral<br />
<strong>de</strong> Linhares (nº 0002571-13.2016.4.02.5004 [2016.50.04.002571-0]) abordam questões que<br />
extrapolam a situação da pesca no que diz respeito à foz do rio, sendo a primeira muito mais<br />
ampla, abrangendo os impactos verificados em ambos os estados afetados diretamente pelo<br />
crime socioambiental.<br />
189
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
área proibitiva foi <strong>de</strong>signada até os 20 metros <strong>de</strong> profundida<strong>de</strong>, em maio<br />
do mesmo ano.<br />
A postura institucional quanto às indicações <strong>de</strong> proibição, justificadas<br />
pelas incertezas técnicas sobre os níveis <strong>de</strong> contaminação, conforma-se<br />
como uma postura conservadora no sentido ambiental, que segue o Princípio<br />
Ambiental <strong>de</strong> Precaução. Entretanto, alterações <strong>de</strong>ssas áreas proibitivas<br />
foram observadas primeiramente em relação ao mar, porém, quanto<br />
às interdições da pesca no rio, pu<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar, também, na primeira<br />
ACP citada, a associação direta com a elevação da turbi<strong>de</strong>z da água:<br />
[...] proibição da pesca <strong>de</strong> espécies nativas no rio Doce e alguns <strong>de</strong><br />
seus tributários é necessária para fins <strong>de</strong> repovoamento <strong>de</strong>ssas espécies<br />
na Bacia Hidrográfica do <strong>Rio</strong> Doce. Em razão da elevação da<br />
turbi<strong>de</strong>z das águas do rio Doce causada pela lama <strong>de</strong> rejeitos oriundos da<br />
barragem <strong>de</strong> Fundão ocorreu a mortanda<strong>de</strong> <strong>de</strong> diversas espécies, alguns<br />
tributários compartilham estas mesmas espécies, <strong>de</strong>vendo ser<br />
preservados em razão do importante papel na recomposição da<br />
biota da bacia como um todo (MPF, 2016c, p. 194-195, grifo nosso).<br />
A relação da mortanda<strong>de</strong> dos peixes com a turbi<strong>de</strong>z e a incerteza sobre<br />
a contaminação da água foram reforçadas por uma profusão <strong>de</strong> notícias<br />
jornalísticas, observada nos primeiros momentos da <strong>de</strong>scida dos rejeitos<br />
pelo rio Doce. 5 Assim, esses marcadores <strong>de</strong> proibição indicados pelas<br />
ACP’s passaram a ser interpretados <strong>de</strong> várias formas pelos atingidos<br />
da região da foz. Desse modo, em campo, ao questionarmos sobre as<br />
proibições, pu<strong>de</strong>mos i<strong>de</strong>ntificar respostas que indicavam a ausência <strong>de</strong><br />
informações precisas sobre a proibição, uma vez que os conhecimentos<br />
sobre as <strong>de</strong>cisões judiciais foram mediados por diversos veículos na sua<br />
chegada à comunida<strong>de</strong>, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> jornais, contato direto com representantes<br />
<strong>de</strong> órgãos públicos, representantes da empresa acusada <strong>de</strong> causar o dano<br />
ambiental, via associações comunitárias, etc. Assim, as incertezas sobre o<br />
<strong>de</strong>senho da proibição da pesca apareceram na comunida<strong>de</strong> na forma <strong>de</strong><br />
5 A título <strong>de</strong> exemplos, ver reportagens: “Peixes são encontrados mortos no leito do <strong>Rio</strong><br />
Doce, em Nanuque” (G1, Globo, 09/11/2015); “Peixes do rio Doce morreram por asfixia,<br />
não por contaminação” (Portal Brasil, 26/11/2015); “<strong>Rio</strong> Doce tem três toneladas <strong>de</strong> peixes<br />
mortos recolhidos no ES” (G1, Globo, 27/11/2015). Os respectivos links encontram-se nas<br />
referências.<br />
190
Capítulo 7<br />
dúvidas sobre as possibilida<strong>de</strong>s em relação ao rio, tanto sobre a própria<br />
proibição da ativida<strong>de</strong> pesqueira e sobre o pescado, quanto no caso da<br />
utilização da água para outras ativida<strong>de</strong>s cotidianas como a irrigação <strong>de</strong><br />
lavouras, banho, etc. Por esse caminho <strong>de</strong> incertezas, sem suporte institucional,<br />
seja por parte do estado ou por parte da empresa responsável, os<br />
moradores locais acabaram por tomar o conhecimento das informações<br />
por vias buscadas por eles próprios, entre si mesmos, até por conta da<br />
questão da linguagem técnica dominar o <strong>de</strong>bate, como nos relatou uma<br />
moradora <strong>de</strong> Regência, cujo nome será omitido:<br />
[Nome omitido]: [...] Poxa vida, e agora, a lama chegou, a lama<br />
chegou no <strong>Rio</strong> Doce, [...] a gente agora sim caiu a ficha, né, que<br />
a gente não po<strong>de</strong>ria mais [usar] o rio, comer o peixe e num usar<br />
mais o nosso lazer, que era o único lazer que a gente tinha, a gente<br />
não po<strong>de</strong>ria mais usar o espaço…<br />
Entrevistador: Mas essa conclusão que vocês não po<strong>de</strong>riam mais<br />
usar, vocês chegaram conversando entre si, assistindo televisão<br />
ou ouvindo algum responsável falar a vocês?<br />
[Nome omitido]: Na verda<strong>de</strong> foi entre nós mesmos assim, enten<strong>de</strong>u,<br />
não <strong>de</strong> alguém responsável assim pela Associação, chegar<br />
pra gente e explicar, falar que a gente não podia mais usar, foi o<br />
que nós fomos ouvindo mesmo, televisão, isso aí, não tivemos o...<br />
não tivemos assim uma conversa entre Associação, entre nós da<br />
comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Associação, fomos nós mesmos da vila se comunicando<br />
um com o outro mesmo.<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em fevereiro <strong>de</strong> 2017].<br />
Parte da discussão sobre a proibição da pesca na ACP (MPF, 2016c) está<br />
relacionada à i<strong>de</strong>ntificação e ao cadastramento dos pescadores, sendo<br />
uma das recomendações do Ministério Público (MP) para a atuação da<br />
Samarco que: “[...] adotem medidas necessárias à i<strong>de</strong>ntificação e cadastramento<br />
dos pescadores atingidos por eventual proibição <strong>de</strong> pesca, inclusive<br />
das ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> média escala, artesanal <strong>de</strong> pequena escala, bem como<br />
toda a ca<strong>de</strong>ia produtiva afetada, ainda que por meio <strong>de</strong> exigência a ser<br />
formulada para a SAMARCO” (MPF, 2016c, p. 35). Passamos a perceber,<br />
191
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
então, como o processo <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificação e cadastramento dos pescadores<br />
se <strong>de</strong>lineou como ponto crucial gerador <strong>de</strong> incerteza na comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
Regência Augusta (assim como em outras comunida<strong>de</strong>s). As reflexões a<br />
respeito dos marcadores da proibição da pesca e os <strong>de</strong>sdobramentos sobre<br />
a alimentação dos afetados se conectam, <strong>de</strong>sta forma, no ponto <strong>de</strong><br />
corte representado pelo auxílio emergencial (que passou a ser i<strong>de</strong>ntificado<br />
pela empresa como “cartão benefício” no processo <strong>de</strong> implementação<br />
nas comunida<strong>de</strong>s), como veremos.<br />
Uma vez que a i<strong>de</strong>ntificação e o cadastramento fazem parte do processo<br />
<strong>de</strong> implementação do auxílio emergencial aos atingidos, a incorporação<br />
do cartão como acesso à renda submeteu a comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> modo compulsório<br />
e questionável a esse processo. No presente caso, tal processo<br />
está sendo observado a partir dos seus <strong>de</strong>sdobramentos em relação à mudança<br />
sobre as possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> acesso à alimentação; contudo, po<strong>de</strong>se<br />
indicar outras discussões e críticas possíveis que também emergiram<br />
tanto no período <strong>de</strong> aplicação dos questionários como nas entrevistas<br />
realizadas até fevereiro <strong>de</strong> 2017. Por exemplo: (1) a própria modalida<strong>de</strong> do<br />
auxílio e a forma <strong>de</strong> implementação; (2) problemas com a entrega e os<br />
cadastros; (3) críticas quanto aos critérios sobre os contemplados; (4) problemas<br />
familiares e questões <strong>de</strong> gênero que foram <strong>de</strong>sdobradas a partir<br />
da implementação do auxílio em algumas residências; <strong>de</strong>ntre outras. 6<br />
Com a nossa perspectiva, o corte <strong>de</strong> re<strong>de</strong> passou a ser acionado no sentido<br />
<strong>de</strong> que a incorporação do cartão na dinâmica da comunida<strong>de</strong> alterou<br />
relações econômicas, políticas e ontológicas. Trabalharemos, especificamente,<br />
a mudança na alimentação e a inserção <strong>de</strong> proteínas exógenas na<br />
comunida<strong>de</strong> como um modo <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r a dinâmica do <strong>de</strong>sastre a partir<br />
da centralida<strong>de</strong> da comensalida<strong>de</strong> dos peixes:<br />
Antigamente comia muito mais [peixe], antigamente, carne <strong>de</strong><br />
boi na minha época <strong>de</strong> rapazinho novo era difícil, o mais que<br />
a gente [comia] <strong>de</strong> carne era carne <strong>de</strong> porco, carne <strong>de</strong> bicho do<br />
mato, mas carne <strong>de</strong> boi mesmo igual a gente compra no açougue<br />
é <strong>de</strong> pouco tempo pra cá, eu falo isso porque eu sei, não vai adiantar<br />
eu contar mentira pra você porque chega lá na frente outro<br />
6 Ver também LEONARDO et al., 2017.<br />
192
Capítulo 7<br />
po<strong>de</strong> falar que não era, outro po<strong>de</strong> falar que era, aí junta tudo e<br />
faz um <strong>de</strong>talhe ‘ah, o [nome omitido] falou que era peixe e era<br />
peixe mesmo’, antigamente Regência não tinha saída pra lugar<br />
nenhum, a saída daqui era pelo rio Doce, daqui pra Linhares e<br />
Povoação, o que fazia aqui ficava aqui, daqui trocava farinha com<br />
osseiro com biju, com tapioca, a gente dava o peixe, eles davam<br />
farinha, tapioca, carne <strong>de</strong> porco dava isso, era tudo trocado, não<br />
tinha nada vendido, não.<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em fevereiro <strong>de</strong> 2017, grifo nosso].<br />
Observando a fala acima transcrita <strong>de</strong> um dos nossos interlocutores,<br />
indicamos que os processos <strong>de</strong> incorporação <strong>de</strong> outras proteínas foram<br />
também <strong>de</strong>sdobramento <strong>de</strong> outras relações <strong>de</strong>senvolvidas a mais longo<br />
prazo na comunida<strong>de</strong>. Gostaríamos <strong>de</strong> frisar, no entanto, que o elemento<br />
do auxílio emergencial implementado, associado às incertezas quanto à<br />
proibição da pesca, age na forma <strong>de</strong> um corte <strong>de</strong> re<strong>de</strong>, pois passa a tornar<br />
a escolha sobre a alimentação algo compulsória – no sentido <strong>de</strong> que a<br />
chegada dos rejeitos, a proibição da pesca e a nova dinâmica <strong>de</strong> circulação<br />
<strong>de</strong> valor na comunida<strong>de</strong>, representada pelo cartão, alteraram o caráter<br />
<strong>de</strong> escolha sobre a proteína a ser consumida pela família <strong>de</strong> modo<br />
muito mais dramático do que as alterações gradativas na alimentação que<br />
foram vivenciadas progressivamente na comunida<strong>de</strong>. Nesse sentido, também<br />
é interessante pontuar outra transformação emblemática no sentido<br />
alimentar e ontológico que ocorreu na comunida<strong>de</strong> em outro momento<br />
específico, mediada pela implementação do projeto <strong>de</strong> conservação <strong>de</strong><br />
tartarugas marinhas TAMAR. Durante esse processo, a relação com as<br />
tartarugas marinhas, que são os principais entes <strong>de</strong> proteção do projeto,<br />
foi muito significativamente transformada na comunida<strong>de</strong>, 7 po<strong>de</strong>ndo<br />
7 A transformação à qual nos referimos diz respeito ao consumo da carne e <strong>de</strong> ovos <strong>de</strong> tartarugas<br />
marinhas, alterado com a chegada do TAMAR em Regência, que tomou para si “[...]<br />
o termo careba, que é a antiga <strong>de</strong>nominação local para tartaruga, sendo careba mole ou <strong>de</strong><br />
couro o termo usado para <strong>de</strong>nominar a Demorchelys coriácea; o termo careba dura ou amarela<br />
usado para <strong>de</strong>signar a Caretta caretta; enquanto o termo careba ver<strong>de</strong>, a Chelonia mydas<br />
(TAMAR, 2000). O termo carebeiro <strong>de</strong>signava os que praticavam o extrativismo baseado<br />
nesses animais [...]”. (TORRES et. al., 2017, p. 92). Para aprofundamento nas discussões sobre<br />
as mudanças na vila com relação à atuação do TAMAR, ver CAMPOS, 2015; FREITAS, 2014<br />
193
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
ser consi<strong>de</strong>rada, também, como um corte <strong>de</strong> re<strong>de</strong> <strong>de</strong> relações entre seres<br />
heterogêneos, no sentido alimentar, bem representado na fala <strong>de</strong> outro<br />
interlocutor da comunida<strong>de</strong>:<br />
[...] já tinha uma questão [...], quando ele, o Tamar chegou aqui tirou<br />
a questão da, da, da tartaruga da alimentação, como os ovos, a<br />
proteína, isso prejudicou muito os nativos caboclos, agora, com a<br />
retirada do peixe da dieta, você tem uma tendência muito gran<strong>de</strong><br />
ao que, agora eles vão começar ao que, a consumir o que, a industrialização,<br />
cê tá tirando, tendência aí a não muito longo prazo cê,<br />
é... exterminar a cultura total <strong>de</strong>ssa comunida<strong>de</strong> ainda que, que<br />
eu venho acompanhando, e, pra eles, tão tentando se agarrar no<br />
que, que acha que é benefício pra eles, que muitos aí não têm,<br />
pelo que eu vejo, outra coisa assim, uma preocupação <strong>de</strong>les, pra<br />
on<strong>de</strong> eu vou, o que que eu vou fazer se eu num acreditar <strong>de</strong> que<br />
eu posso cair no mar, <strong>de</strong> que eu posso consumir o peixe, muitos<br />
tão, tem que se agarrar nisso e achar que, que, <strong>de</strong> alguns falaram<br />
assim, ‘mas isso aí po<strong>de</strong> ser boato, mentira que eles tão inventando’,<br />
o pessoal que é do contra, enten<strong>de</strong>u, a Samarco já ven<strong>de</strong>u um<br />
pouco <strong>de</strong>sse peixe <strong>de</strong> que num é tanto isso que tão falando, é só<br />
pra botar medo.<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em maio <strong>de</strong> 2016].<br />
Com isso, a característica alimentar que estamos acionando enquanto<br />
foco <strong>de</strong> análise po<strong>de</strong> ser i<strong>de</strong>ntificada a partir dos trabalhos <strong>de</strong> campo e<br />
nos questionários aplicados durante a etapa <strong>de</strong> pesquisa quantitativa,<br />
uma vez que as questões sobre a alimentação foram constantemente direcionadas<br />
para a ausência da proteína, alterando as preferências, os preparos,<br />
as tradições, as festas, as relações com o pescado, as formas <strong>de</strong> aquisição<br />
e <strong>de</strong>mais enredamentos. Estes foram reorganizados abruptamente a<br />
partir da proibição e da introdução do valor que o cartão representou na<br />
comunida<strong>de</strong>, embora ainda não se tenha uma i<strong>de</strong>ia da escala temporal<br />
<strong>de</strong>ssa alteração.<br />
e FONTINELLI, 2016.<br />
194
Capítulo 7<br />
Sobre COMO se <strong>de</strong>ram OS DESVIOS e RUPTURAS NAS<br />
relações viscerais e EMOCIONAIS COM o pescado<br />
I<strong>de</strong>ntificadas as interrupções e os cortes <strong>de</strong> re<strong>de</strong> que indicamos como<br />
importantes para pensar a respeito da alimentação na vila, apresentaremos<br />
alguns dos seus <strong>de</strong>sdobramentos que implicam em conflitos ontológicos<br />
(ALMEIDA, 2013) e em novas formas <strong>de</strong> (re)invenção (WAGNER,<br />
2010) sobre as incertezas em relação ao pescado, evi<strong>de</strong>nciando algumas<br />
práticas <strong>de</strong>senvolvidas por nossos interlocutores e as suas justificativas<br />
sobre a ausência da normalida<strong>de</strong> do consumo do peixe. As práticas estão<br />
sendo trabalhadas como modos <strong>de</strong> enredamento e <strong>de</strong> atuação em relação<br />
ao rompimento da barragem, modos em que <strong>de</strong>stacaremos as agências<br />
adotadas para respon<strong>de</strong>r às incertezas e às novas dinâmicas postas a partir<br />
da chegada dos rejeitos <strong>de</strong> mineração em Regência Augusta.<br />
É fato que o efeito <strong>de</strong>snorteador da chegada dos rejeitos foi imensurável,<br />
incapturável por qualquer iniciativa <strong>de</strong> pesquisa, por mais complexa que<br />
seja (ou possa vir a ser). Fatores <strong>de</strong> contradição como a curiosa proibição<br />
da pesca no mar, explicitada na seção anterior, e a não tão explícita<br />
proibição da pesca no rio Doce – algo paradoxal pelo rio ser a fonte <strong>de</strong><br />
on<strong>de</strong> emanou a chamada “pluma <strong>de</strong> rejeitos” 8 na foz – terminaram por<br />
<strong>de</strong>ixar a população <strong>de</strong> Regência à mercê <strong>de</strong> uma <strong>de</strong>cisão e com uma responsabilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>sconfortável, não subsidiada por informações técnicas,<br />
que afeta seus cotidianos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> relações sociais, modos <strong>de</strong> vida e economias<br />
políticas, como também suas economias ontológicas (ALMEIDA,<br />
2013). Deste modo, a alteração da relação com o pescado não se restringiu<br />
apenas à relação pragmática <strong>de</strong> pescar ou não pescar, ou ainda, comer<br />
ou não comer. Destarte, abordaremos as transformações na vila, tendo<br />
como foco o pescado e as implicações <strong>de</strong>ssas modificações abruptas na<br />
relação com esses entes do rio e do mar, com importância primordial na<br />
localida<strong>de</strong>, cujos efeitos foram <strong>de</strong>sdobrados em dimensões muito além e<br />
muito aquém das relações individuais <strong>de</strong> consumo (ou da sua privação) e<br />
dos efeitos do consumo do pescado nos corpos humanos.<br />
Como observado no relatório da pesquisa que estamos utilizando como<br />
8 O termo “pluma <strong>de</strong> rejeitos” é <strong>de</strong>rivado do termo técnico da hidrologia; contudo, o termo<br />
mais utilizado nas localida<strong>de</strong>s atingidas para <strong>de</strong>signar os rejeitos que <strong>de</strong>saguaram do rio no<br />
mar é “lama da Samarco”.<br />
195
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
ponto <strong>de</strong> referência (LEONARDO et al., 2017), as soluções que envolvem<br />
mudanças em todo o processo <strong>de</strong> alimentação da vila incluem a diminuição<br />
na quantida<strong>de</strong> e na frequência do consumo do pescado, alterações<br />
nos modos <strong>de</strong> aquisição do alimento e amplas restrições ao consumo do<br />
pescado e ao uso da água no que se refere a quem po<strong>de</strong>, quanto po<strong>de</strong><br />
e como po<strong>de</strong>, e ainda quanto ao uso <strong>de</strong> outras fontes alternativas. Esses<br />
fatores têm como um dos seus <strong>de</strong>sdobramentos o aumento nos custos <strong>de</strong><br />
vida e a <strong>de</strong>sestruturação (ou reestruturação) da vida financeira e social <strong>de</strong><br />
muitas famílias. No relatório <strong>de</strong> Leonardo e colaboradores (2017), portanto,<br />
muitos <strong>de</strong>sses fatores <strong>de</strong>monstraram uma significativa piora na qualida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> vida e na insegurança alimentar, questões estas que ganharam<br />
amplo <strong>de</strong>staque na vila.<br />
Para nossos fins, essas alterações serão observadas no sentido, trabalhado<br />
por Almeida (2013, p. 8), <strong>de</strong> que as economias políticas e ontológicas<br />
são intrínsecas à “produção <strong>de</strong> coisas e <strong>de</strong> pessoas por meio <strong>de</strong> coisas e<br />
<strong>de</strong> pessoas”, não sendo, portanto, dimensões indissociáveis da existência.<br />
Essa perspectiva nos permite tratar os conflitos em um nível essencial,<br />
tentando atribuir, assim, a real importância aos impactos sofridos pela<br />
população da vila <strong>de</strong> Regência no que diz respeito ao aspecto da alimentação<br />
e à sua relação com o pescado.<br />
Para contextualizar a economia política e ontológica da qual estamos tratando,<br />
é interessante observar algumas informações conhecidas sobre a<br />
comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Regência, observáveis também através dos dados quantitativos<br />
levantados durante a pesquisa <strong>de</strong>senvolvida ao longo do segundo<br />
semestre <strong>de</strong> 2016. A comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Regência é, em sua maioria, composta<br />
por pessoas relacionadas à pesca, direta ou indiretamente, que vivem<br />
do rio e com o rio (LEONARDO et al., 2017). Essa relação é estendida<br />
também à praia e ao mar, seja através do trabalho ou do lazer. Nos dados<br />
quantitativos obtidos na pesquisa em questão, a centralida<strong>de</strong> da pesca e<br />
do consumo do peixe é um dado muito significativo do ponto <strong>de</strong> vista<br />
estatístico, com 98% dos entrevistados tendo afirmado que o peixe era o<br />
elemento central da alimentação das suas famílias. Ainda segundo a pesquisa,<br />
a frequência do consumo do peixe nas residências era gran<strong>de</strong>, sendo<br />
que 53,4% dos entrevistados consumiam o pescado <strong>de</strong> uma a três vezes<br />
por semana, e uma porcentagem significativa <strong>de</strong> 20,9% o consumiam<br />
diariamente. O prejuízo na ativida<strong>de</strong> pesqueira foi também relacionado<br />
196
Capítulo 7<br />
ao aumento <strong>de</strong> gastos com alimentação observado durante a pesquisa, o<br />
que também foi relacionado com um prejuízo social e afetivo, alterando<br />
relações e modos <strong>de</strong> vida.<br />
A alteração no acesso ao peixe como parte da alimentação se <strong>de</strong>u por uma<br />
série <strong>de</strong> condicionamentos, bem como gerou uma série <strong>de</strong> outras consequências.<br />
As proibições na pesca e o medo gerado pelas incertezas foram<br />
alguns dos fatores condicionantes, sendo a implementação do cartão uma<br />
das mudanças mais emblemáticas no novo cenário. Esmiuçando-se o impedimento<br />
do acesso ao pescado, diversas questões <strong>de</strong> cunho econômico se<br />
<strong>de</strong>sdobraram no processo <strong>de</strong> implementação do cartão e geraram alterações<br />
marcantes na vivência financeira das famílias, como, por exemplo, as<br />
dinâmicas <strong>de</strong> gestão do recurso financeiro – sobre quem recebia o benefício<br />
no domicílio, quanto recebia e com que frequência recebia. Destarte, tudo<br />
mudou com a entrada do cartão como substituto da renda antes proveniente<br />
da pesca ou do comércio e ativida<strong>de</strong>s associadas (importante frisar que<br />
apenas as consi<strong>de</strong>radas impactadas pela empresa), <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a dinâmica financeira<br />
até o po<strong>de</strong>r <strong>de</strong> compra. O trecho do relatório <strong>de</strong> pesquisa transcrito<br />
abaixo <strong>de</strong>monstra alguns dos principais aspectos alterados pelo cartão:<br />
No universo total pesquisado, o “cartão” (auxílio emergencial)<br />
abrangeu 39% dos entrevistados. A diferença foi mínima entre<br />
Regência (38,2%) e Povoação (39,6%). Sem a<strong>de</strong>ntrar a espinhosa<br />
questão da abrangência da distribuição do cartão, salientamos<br />
uma questão frequentemente levantada em campo: a do limite<br />
<strong>de</strong> saque e a periodicida<strong>de</strong> mensal do <strong>de</strong>pósito. A periodicida<strong>de</strong><br />
e o limite mensal contrastam com a realida<strong>de</strong> até então vivida na<br />
região: do pagamento por diárias e o recebimento pelo sucesso<br />
do esforço realizado, seja numa colheita farta <strong>de</strong> cacau seja numa<br />
boa pescaria. Ou, ainda, na empreitada da construção <strong>de</strong> uma<br />
casa ou um feriado movimentado. Além <strong>de</strong>sta violenta transformação<br />
em relação ao tempo anteriormente vivido, também mostrou-se<br />
violento o processo <strong>de</strong> adaptação dos habitantes da região<br />
às novas <strong>de</strong>mandas e experiências que surgem, nivelando por<br />
baixo e homogeneizando as diferentes realida<strong>de</strong>s e relações prévias<br />
travadas entre os habitantes <strong>de</strong>stas comunida<strong>de</strong>s, o <strong>Rio</strong> Doce,<br />
o oceano, o solo e <strong>de</strong>mais entes. (LEONARDO et al., 2017, p. 21).<br />
197
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
O processo implementado pela empresa resultou em uma homogeneização<br />
<strong>de</strong> relações e vivências, antes diversas e fluidas, em torno <strong>de</strong> vários aspectos<br />
da existência, incluindo as relações com o pescado e outros entes,<br />
com a alteração na lógica socioeconômica previamente estabelecida, que<br />
não exigia necessariamente a mediação financeira. Portanto, observamos<br />
que, neste ponto, não apenas ocorreu um corte <strong>de</strong> re<strong>de</strong> ontológico (no<br />
sentido da relação com o pescado) como também ocorreu a ressignificação<br />
material <strong>de</strong> relações que se davam paralelamente, como as próprias<br />
relações <strong>de</strong> mercado, que, antes regidas pela comensalida<strong>de</strong> dos peixes,<br />
agora passaram por alterações radicais. Essas alterações se <strong>de</strong>ram tanto<br />
no modo como são adquiridos os alimentos, e nas relações ali implicadas,<br />
como também no tipo <strong>de</strong> alimento consumido. Assim, na comunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Regência, o não acesso ao pescado trouxe consigo outras formas <strong>de</strong><br />
relações que passaram a envolver a compra (<strong>de</strong> alimentos exógenos), excluindo<br />
outras formas previamente exercidas na comunida<strong>de</strong> (baseadas<br />
em trocas e na comensalida<strong>de</strong> do pescado).<br />
Segundo Almeida (2013, p. 8): “Toda economia política pressupõe a existência<br />
<strong>de</strong> entes. Esses são pressupostos ontológicos, e constituem matéria<br />
<strong>de</strong> uma economia ontológica”. Nesse sentido, a proibição da pesca e a<br />
implementação do cartão como soluções à presença dos rejeitos e metais<br />
pesados na alimentação local pressupõem a existência <strong>de</strong> outras fontes<br />
<strong>de</strong> alimentação como substitutos a<strong>de</strong>quados para o pescado. Entretanto,<br />
para a população local, o consumo <strong>de</strong> carnes <strong>de</strong> animais comprados (a<br />
altos custos) nos mercados não parece se constituir como algo coerente<br />
com a relação que conhecem e cultivam em Regência com o pescado e<br />
as práticas associadas à pesca, as quais extrapolam a própria necessida<strong>de</strong><br />
fisiológica do consumo <strong>de</strong> proteínas.<br />
Como os “pressupostos ontológicos são indispensáveis e não são separáveis<br />
da observação empírica” (ALMEIDA, 2013, p. 8), ontologicamente<br />
falando, o próprio pescado teve a sua essência alterada, <strong>de</strong> elemento central<br />
da comensalida<strong>de</strong> local para elemento símbolo <strong>de</strong> risco e incerteza.<br />
Essa alteração foi retratada em fotografias divulgadas por atingidos pelo<br />
<strong>de</strong>sastre, que mostravam peixes mortos e doentes encontrados ao longo<br />
do rio Doce, modificações também percebidas por nossos interlocutores<br />
locais, como na fala transcrita abaixo:<br />
198
Capítulo 7<br />
A pescadinha, o dorminhoco, tudo quanto é peixe, xaréu, sarda,<br />
cação, guaibira, o forte é agora, a nossa pesca forte é <strong>de</strong> novembro<br />
a fevereiro, é o período que a gente ganha bastante dinheiro,<br />
eu vi o peixe que me <strong>de</strong>ram, eu fui tratar ela tava com aquela<br />
lama na escama, eu fui escamar ela, aí aquela escama com aquela<br />
lama amarela difícil <strong>de</strong> sair, eu acho que é a lama do negócio,<br />
porque eu já tratei bastante peixe, a mulher já tratou, aí eu vi ela<br />
tratando, fazendo filezinho, botava na água <strong>de</strong> gelo né, pra fazer<br />
o filé, a gente tira o filé e joga na água <strong>de</strong> gelo pra <strong>de</strong>pois colocar<br />
nas ban<strong>de</strong>ja pra po<strong>de</strong>r enrolar, ela ficava branquinha tudo limpinho,<br />
branquinha mesmo, que a pescadinha é branquinha, e eu já<br />
tratei bastante aí, mas agora cê limpa, limpa, limpa e ainda fica<br />
agarrado aquele amarelo, essa cor laranja fica agarrada no courozinho<br />
<strong>de</strong>la, é difícil tirar.<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em fevereiro <strong>de</strong> 2017].<br />
Desta forma, o corte <strong>de</strong> re<strong>de</strong> que observamos se <strong>de</strong>sdobra inúmeras vezes,<br />
passando pela substituição dos entes em relação alimentar, on<strong>de</strong> o peixe<br />
vira boi, frango ou porco, carnes exógenas, vendidas nos mercados. Para<br />
muitos, o peixe <strong>de</strong>ixa <strong>de</strong> existir como ente integrante <strong>de</strong>ssa forma <strong>de</strong> relação<br />
ou, em outros casos, passa a significar outras coisas, como veículo<br />
<strong>de</strong> doenças que po<strong>de</strong>m se manifestar no futuro. A questão do tempo em<br />
que se manifesta a contaminação do pescado foi uma observação recorrente<br />
na comunida<strong>de</strong>, principalmente no que diz respeito às concepções<br />
sobre quem po<strong>de</strong>ria se arriscar no consumo, que seriam os mais velhos,<br />
e, por outro lado, os que não podiam comer, que seriam as crianças, <strong>de</strong>vido<br />
ao fato <strong>de</strong> que o risco do <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong> doenças <strong>de</strong>correntes do<br />
acúmulo <strong>de</strong> metais pesados ser encarado como algo progressivo e que só<br />
seria sentido <strong>de</strong> fato no futuro 9 – e que, portanto, para as crianças, <strong>de</strong>veria<br />
ser mais irredutivelmente evitado; para os velhos, por outro lado, não <strong>de</strong>-<br />
9 Essa percepção que localiza no futuro os danos fisiológicos do consumo do peixe, i<strong>de</strong>ntificada<br />
tanto na fala <strong>de</strong> resi<strong>de</strong>ntes locais quanto na fala <strong>de</strong> técnicos e pesquisadores das ciências<br />
naturais, como apresentaremos a seguir, po<strong>de</strong> ser problematizada por outras manifestações<br />
dos atingidos, que relataram diversas doenças sem diagnóstico e afecções da pele (principalmente)<br />
em audiências públicas e em publicações nas re<strong>de</strong>s sociais.<br />
199
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
veria ser consi<strong>de</strong>rado com o mesmo agravo.<br />
A contaminação do pescado e a alteração da sua constituição se manifestam<br />
<strong>de</strong> diferentes formas, tanto visível e pragmaticamente, <strong>de</strong> acordo<br />
com o observado na fala do nosso interlocutor acima, como também <strong>de</strong><br />
forma correlacionada, tendo em vista que a contaminação também era<br />
<strong>de</strong>duzida a partir da observação <strong>de</strong> políticas, como a <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong><br />
água potável e a proibição da pesca, além da própria implementação do<br />
cartão. Dada a característica visceral 10 da relação com o pescado, o impacto<br />
sobre a privação do consumo do peixe e das vivências relacionadas a<br />
isso é, também, afetivo e emocional. Assim, os dados quantitativos sobre<br />
a continuação do consumo do pescado na vila após a lama po<strong>de</strong>m ser<br />
também alarmantes, consi<strong>de</strong>rando o cenário <strong>de</strong> incertezas. Os dados <strong>de</strong>monstram<br />
que 69,5% dos entrevistados em Regência conheciam alguém<br />
que permanecia consumindo o pescado (LEONARDO et al., 2017), o que<br />
corrobora com a fala <strong>de</strong> um dos nossos interlocutores sobre a não cessação<br />
da procura:<br />
Hoje, assim, o que a gente mais pescava, assim, o que a gente mais<br />
pegava, quando a gente pescava, era… a pescadinha, o caçari, o<br />
dorminhoco, a guaibira, a corvina, o robalo… enten<strong>de</strong>u? São os<br />
peixes que é, que é mais procurado na comunida<strong>de</strong> hoje. Até hoje<br />
mesmo, tem gente que procura ainda, sabendo que não tem como a<br />
gente pescar. Mas… eles… vêm querendo peixe. Mas a gente não<br />
po<strong>de</strong> pescar com, sem ter um laudo <strong>de</strong> se os peixes tão bons. Mais<br />
tar<strong>de</strong> po<strong>de</strong> dar problema, e aí complica a gente, né. Fica ruim<br />
<strong>de</strong>ssa maneira aí.<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em fevereiro <strong>de</strong> 2017. Grifo nosso].<br />
Assim, a contaminação visceral, encarnada nos corpos dos animais,<br />
ameaça se encarnar nos corpos humanos também por tempo in<strong>de</strong>terminado.<br />
Temos então que, apesar do corte <strong>de</strong> re<strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificado, que altera<br />
a lógica alimentar na vila, a procura e o consumo do pescado ainda exis-<br />
10 “Seria possível dizer que a visceração prece<strong>de</strong> a existência, que prece<strong>de</strong> a essência – não<br />
como enca<strong>de</strong>amento processual, mas como condição <strong>de</strong> existência: a visceração é a existência<br />
em movimento” (TADDEI, 2014b, p. 8).<br />
200
Capítulo 7<br />
tem, <strong>de</strong> certa forma alterados e <strong>de</strong>turpados dos seus enredamentos anteriores,<br />
seja pelas formas <strong>de</strong> aquisição do alimento seja pelas significações<br />
e visceralida<strong>de</strong>s implicadas. Agora, o consumo é associado a um risco, 11<br />
mediado por incertezas e inseguranças. Essas que, enredadas pelo <strong>de</strong>sastre,<br />
permeiam também as falas dos representantes tecnocientíficos, vistos<br />
pelo público abrangente como autorida<strong>de</strong>s no quesito:<br />
Então dá pra perceber aqui, não aumentou só os metais na água<br />
após o aci<strong>de</strong>nte, esses metais foram transferidos para a base da ca<strong>de</strong>ia<br />
trófica. E provocaram efeitos nesses organismos? Provocaram!<br />
O nível <strong>de</strong> peroxidação lipídica dos organismos coletados, né, na<br />
primeira expedição, principalmente em torno da foz do rio Doce,<br />
apresentaram praticamente <strong>de</strong>z vezes mais lipoperoxidação do<br />
que os que a gente encontrou na segunda e na terceira expedição.<br />
E percebam, que legal, quando a gente entra nas áreas mais protegidas,<br />
nesses níveis não ocorrem diferenças. Então isso mostra<br />
também que efetivamente organismos que estavam em torno da<br />
foz do rio Doce naquele momento estavam sofrendo maior estresse,<br />
tá? Isso é um indicador <strong>de</strong> impacto biológico. Bom, com isso<br />
a gente fechava aquela primeira pergunta: houve a disponibilização<br />
do metal? Houve. Esse metal ficou biodisponível? Ficou. Esse<br />
metal foi transferido? A gente vai ver agora. Mas ele causou um<br />
impacto biológico em que ele foi absorvido? Causou. Na base da<br />
ca<strong>de</strong>ia trófica. Se eu <strong>de</strong>struo a base da ca<strong>de</strong>ia trófica, todo o restante<br />
fica comprometido, tá? Como eu disse, não dá pra explicar tudo,<br />
então vamos focar em alguns pontos. Então a gente parte pra outra<br />
questão que é importante: Tudo bem, se passou pro zooplâncton,<br />
po<strong>de</strong> ter passado pra organismos <strong>de</strong> níveis tróficos mais elevados;<br />
se eles passaram, po<strong>de</strong> ter chegado nos peixes; se chegou no peixe<br />
e camarão, a gente po<strong>de</strong> estar em risco. Agora entramos numa outra<br />
pergunta importante, que é questão <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> pública, tá? Não somos<br />
nós que resolvemos este problema – eu canso <strong>de</strong> dizer isso,<br />
11 “É interessante <strong>de</strong>stacar que a percepção dos entrevistados acerca do risco do consumo<br />
<strong>de</strong> peixes parece ser sutilmente atenuado dada à sua origem: ao passo que 94% do total consi<strong>de</strong>raram<br />
comer peixes oriundos do <strong>Rio</strong> Doce um risco para a saú<strong>de</strong>, “apenas” 74% consi<strong>de</strong>ram<br />
que comer peixes oriundos do mar pu<strong>de</strong>sse acarretar em alguma contaminação ou dano<br />
à saú<strong>de</strong>” (LEONARDO et al., 2017, p. 19).<br />
201
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
porque muita gente me pergunta: A população então está em risco?<br />
- A gente só po<strong>de</strong> respon<strong>de</strong>r essa pergunta, com o consumo, se houver um<br />
estudo que mostre quanto <strong>de</strong> pescado, qual o pescado consumido, e qual<br />
a frequência <strong>de</strong> consumo. Pra ver se o que tá sendo consumido efetivamente<br />
com base nessas concentrações que a gente <strong>de</strong>termina, se<br />
a população está em risco ou não. Então é um estudo muito mais<br />
complexo, do que o estudo puro e simples que a gente tem aqui. A<br />
gente tá vendo um elemento da fórmula. A gente precisa <strong>de</strong> mais<br />
dois parâmetros no mínimo: frequência <strong>de</strong> consumo, né, e o biótipo do<br />
cidadão, se ele é criança, se ele é mulher, se ele é homem, seu peso, a massa<br />
e tudo... então tem que ter um estudo populacional, um pouco mais<br />
longe pra gente ver se tem risco à população ou não. Ou seja, entra<br />
como uma <strong>de</strong>cisão da área da saú<strong>de</strong> humana. (Fala do Professor<br />
Adalto Bianchini, em audiência na ALES, em 2017, grifo nosso).<br />
A fala transcrita acima foi proferida pelo professor Adalto Bianchini durante<br />
um evento ocorrido na Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo em 6<br />
<strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2017. 12 As confluências entre a fala <strong>de</strong> Bianchini e algumas das<br />
práticas <strong>de</strong> prevenção adotadas pela população local são coincidências<br />
ou concordâncias pragmáticas (ALMEIDA, 2013), mas que se baseiam em<br />
percepções fundamentalmente diferentes sobre o pescado, tanto em nível<br />
ontológico como em nível visceral e emocional. Assim, evitar o consumo,<br />
diminuir a frequência e privar as crianças do contato com a fonte dos<br />
contaminantes – medidas adotadas por alguns moradores <strong>de</strong> Regência<br />
– seriam medidas coerentes com os pressupostos elencados pelo professor<br />
durante a sua fala. Segundo essa palestra, os efeitos do <strong>de</strong>sastre – no<br />
sentido da contaminação dos ecossistemas, incluindo os humanos, que<br />
fazem parte da ca<strong>de</strong>ia trófica – passaram por sua fase crítica e existem<br />
agora enquanto efeitos crônicos, que <strong>de</strong>mandam observação atenta e<br />
12 A palestra intitulada “Impactos da lama <strong>de</strong> rejeitos da barragem do Fundão, em Mariana<br />
(MG), sobre a zona estuarina do rio Doce e zona costeira adjacente, por meio <strong>de</strong> monitoramento<br />
ecotoxicológico e biomarcadores: resultados das três expedições <strong>de</strong> monitoramento<br />
realizadas no local, visando à avaliação e monitoramento da qualida<strong>de</strong> e saú<strong>de</strong> das áreas<br />
costeiras e marinhas” foi proferida pelo professor Adalto Bianchini, do Instituto <strong>de</strong> Ciências<br />
Biológicas, Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do <strong>Rio</strong> Gran<strong>de</strong> (FURG). O evento ocorreu no auditório do<br />
Centro Tecnológico da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo (UFES), no dia 6 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong><br />
2017, sob organização do Núcleo <strong>de</strong> Estudos da Qualida<strong>de</strong> do Ar (Departamento <strong>de</strong> Engenharia<br />
Ambiental da UFES) em parceria com a ONG Juntos SOS ES Ambiental.<br />
202
Capítulo 7<br />
acompanhamento ao longo dos próximos anos (ou décadas) 13 .<br />
Ainda, do mesmo modo, as falas observadas na comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Regência<br />
e as falas dos representantes tecnocientíficos colocam em evidência a<br />
questão aberta sobre a contaminação e os riscos <strong>de</strong>correntes <strong>de</strong>ssa contaminação.<br />
Entretanto, as incertezas sobre o futuro e sobre os efeitos do<br />
evento crítico no que diz respeito ao pescado, em si mesmas, já não são<br />
o que mais importa, pragmaticamente falando. A partir do momento em<br />
que, presentes para os diversos agentes enredados nesse processo, as próprias<br />
incertezas e os enredamentos sobre o pescado fazem a contaminação<br />
existir enquanto agente (essa sim mais importante nesse contexto), cuja<br />
ameaça põe em risco a vida <strong>de</strong> muitos, ela as modifica <strong>de</strong> forma drástica –<br />
seja <strong>de</strong>ntro dos seus corpos, nos agentes com quem se relacionam ou nas<br />
suas práticas cotidianas. Do mesmo modo como Tad<strong>de</strong>i (2014a) observou<br />
o processo <strong>de</strong> plasmagem da seca enquanto sujeito político com o qual<br />
todos agentes enredados – entre políticos, mídia e agricultores – precisam<br />
lidar, observamos também a plasmagem da contaminação enquanto<br />
agente ontológico nos enredamentos do <strong>de</strong>sastre e suas controvérsias.<br />
Uma forma <strong>de</strong> enten<strong>de</strong>r o(s) enredamento(s) que aproxima(m) e<br />
põe(m) em relação corpos <strong>de</strong> gentes, animais e plantas, previsões<br />
científicas, coberturas jornalísticas, ações oficiais <strong>de</strong> mitigação e<br />
os elementos, no processo que plasma a seca e ao mesmo tempo<br />
configura os mesmos corpos, previsões, coberturas e ações como<br />
marcados por ela, é ver isso tudo como uma gran<strong>de</strong> ecologia<br />
emocional (TADDEI, 2014a, p. 7).<br />
CONSIDERAções FINAIS<br />
Buscamos observar, a partir do evento crítico da chegada da lama da<br />
Samarco em Regência e da i<strong>de</strong>ntificação do corte <strong>de</strong> re<strong>de</strong> representado<br />
pela implementação do “cartão benefício” enquanto medida emergencial<br />
compensatória, algumas das principais mudanças vivenciadas pela<br />
comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Regência no que diz respeito às relações antes estabelecidas<br />
entre humanos e peixes – da pesca, da venda e/ou troca e do consu-<br />
13 Vi<strong>de</strong> em: http://seculodiario.com.br/34797/10/contaminacao-pela-lama-da-samarcovale-bhp-entra-em-fase-cronica-e-preocupa-pesquisadores<br />
(último acesso em 28/07/2017).<br />
203
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
mo, principalmente. 14 Consi<strong>de</strong>rando o episódio como um evento crítico,<br />
tratamos <strong>de</strong>ssas mudanças enquanto <strong>de</strong>sdobramentos do <strong>de</strong>sastre, cujos<br />
efeitos são continuados e que, portanto, não se limitam ao dia do evento<br />
traumático (DAS, 1995; SILVA, 2010). Observar o aspecto alimentar na<br />
comunida<strong>de</strong> é uma questão <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> importância, dados os aspectos<br />
pragmáticos e ontológicos que permeiam essa questão, não apenas <strong>de</strong>vido<br />
ao risco progressivo representado pelo consumo <strong>de</strong> metais pesados<br />
pelas pessoas e pelo alojamento visceral <strong>de</strong>sses metais nos seus corpos,<br />
mas também pelo aspecto emocional <strong>de</strong>ssa visceralida<strong>de</strong>.<br />
Algumas das práticas adotadas pelos moradores <strong>de</strong> Regência quanto ao<br />
consumo do pescado po<strong>de</strong>m ter resultados fisiologicamente felizes nos<br />
seus corpos, do ponto <strong>de</strong> vista dos efeitos que o consumo dos contaminantes<br />
<strong>de</strong>correntes do <strong>de</strong>sastre po<strong>de</strong> causar, segundo o indicado por<br />
técnicos das ciências naturais e do que é <strong>de</strong> conhecimento dos próprios<br />
moradores. Entretanto, <strong>de</strong>vemos pontuar que a concordância pragmática<br />
entre o que é sugerido por representantes do saber tecnocientífico e as<br />
práticas <strong>de</strong> conhecimento dos moradores locais – por não serem amparadas<br />
pelas mesmas economias ontológicas – não se dá por serem práticas<br />
plenamente coerentes entre si, e o uso emocional <strong>de</strong>sses elementos<br />
viscerais (no presente caso, o peixe), como explicado por Tad<strong>de</strong>i (2014a)<br />
(quanto à questão da água), se diferencia totalmente do uso racional:<br />
Estou convencido <strong>de</strong> que não se usa a água racionalmente, como<br />
querem os técnicos; nem <strong>de</strong> forma consciente, como querem os<br />
jornalistas. Dada a sua condição <strong>de</strong> elemento visceral, a água se<br />
usa, e só po<strong>de</strong> ser usada, emocionalmente. O que ocorre é que há<br />
usos emocionais mais ou menos ambientalmente felizes (“Dá no<br />
mesmo”, diria um hidrólogo. Talvez, mas ainda assim só se restringirmos<br />
nossa visão a um elemento apenas, <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um todo<br />
complexo: a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> água acumulada nos reservatórios.<br />
Pensemos, ao invés disso, em como enten<strong>de</strong>r as formas como populações<br />
se relacionam com a água, e como atuar sobre isso <strong>de</strong><br />
14 No que tange às observações proferidas neste artigo sobre o cartão da Samarco enquanto<br />
um corte <strong>de</strong> re<strong>de</strong>, é importante observar que tal ponto <strong>de</strong> vista po<strong>de</strong> não se encontrar em<br />
consonância com outros que estão presentes na vila <strong>de</strong> Regência. Nesse sentido, frisamos<br />
que a nossa perspectiva e as perspectivas <strong>de</strong> alguns dos moradores em sua diversida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
posições quanto à essa questão não são e nem precisam ser as mesmas.<br />
204
Capítulo 7<br />
modo a lidar com problemas <strong>de</strong> abastecimento, e aqui há toda a<br />
diferença do mundo entre o uso racional e o uso emocional ambientalmente<br />
feliz.) (TADDEI, 2014a, s.p.).<br />
Nesse sentido, o que impe<strong>de</strong> as pessoas, <strong>de</strong> fato, <strong>de</strong> pescar ou <strong>de</strong> consumir<br />
o peixe não é a contaminação comprovada cientificamente e sugerida por<br />
laudos técnicos apenas, mas sim uma matriz <strong>de</strong> incertezas geradas pelo<br />
que vem sendo vivenciado pela comunida<strong>de</strong>, tendo o cartão da Samarco<br />
um papel central no direcionamento disso. As alterações <strong>de</strong> caráter<br />
social, econômico, fisiológico, ontológico e emocional nas relações antes<br />
estabelecidas com os peixes, contudo, não nos permitem afirmar que as<br />
pessoas pararam <strong>de</strong> fato <strong>de</strong> consumir o peixe, dado o caráter emocional<br />
<strong>de</strong>sse consumo, mas sim que esse peixe agora é outro.<br />
[nome omitido]: A recomendação é que nós não po<strong>de</strong> comer o<br />
peixe, não po<strong>de</strong> comer o peixe que tá contaminado.<br />
Entrevistadora: E o pessoal aqui na vila tá comendo peixe?<br />
[nome omitido]: Ah tá, tá, eu não como todos os dias mas lá um<br />
dia eu como, pescadinha mesmo porque eu gosto <strong>de</strong> filé <strong>de</strong> pescadinha<br />
fritinha, é show <strong>de</strong> bola.<br />
[Entrevista realizada pela equipe do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Pesca e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES)<br />
em fevereiro <strong>de</strong> 2017].<br />
205
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
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Capítulo 7<br />
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adjacente, por meio <strong>de</strong> monitoramento ecotoxicológico e biomarcadores:<br />
resultados das três expedições <strong>de</strong> monitoramento realizadas no local,<br />
visando à avaliação e monitoramento da qualida<strong>de</strong> e saú<strong>de</strong> das áreas<br />
costeiras e marinhas (Palestra). Núcleo <strong>de</strong> Estudos da Qualida<strong>de</strong> do Ar<br />
(Departamento <strong>de</strong> Engenharia Ambiental da UFES); ONG Juntos SOS<br />
ES Ambiental (Orgs.). Auditório do Centro Tecnológico da Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo (UFES). 6 <strong>de</strong> julho <strong>de</strong> 2017.<br />
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Procuradoria da República em Linhares.<br />
Vara Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Linhares, Subseção Judiciária do Estado do Espírito<br />
Santo. Ação Civil Pública com pedido <strong>de</strong> Antecipação <strong>de</strong> Tutela.<br />
207
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Ref. Inquérito Civil nº: 1.12.004.000112/2015-62. 2 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2016.<br />
MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Procuradoria da República em Linhares.<br />
Vara Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Linhares, Subseção Judiciária do Estado do Espírito<br />
Santo. Tribunal Regional Fe<strong>de</strong>ral da 2ª Região (TRF-2). Ação Civil<br />
Pública com pedido <strong>de</strong> Antecipação <strong>de</strong> Tutela. 28 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2016. Processo<br />
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MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL. Procuradoria da República nos Estados<br />
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Pública com Pedido <strong>de</strong> Liminar Inaudita Altera Pars – Autos n. 60017-<br />
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Acesso em: 15 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2017.<br />
208
209
210
Capítulo 8<br />
No “insi<strong>de</strong>” tem lama: análise a partir da<br />
perspectiva dos surfistas <strong>de</strong> Regência após<br />
o rompimento da barragem <strong>de</strong> Fundão<br />
Marianna Gonçalves <strong>de</strong> Paula<br />
INTRODUÇÃO<br />
Localizada na foz do <strong>Rio</strong> Doce, em Linhares (ES), a Vila <strong>de</strong> Regência é<br />
uma vila tranquila, que atraía muitos turistas por suas ondas conhecidas<br />
nacionalmente para a prática <strong>de</strong> surfe, pela festa do Caboclo Bernardo,<br />
pelas bandas <strong>de</strong> congo, e também por ter a base do Projeto Tartarugas<br />
Marinhas (Projeto TAMAR) (CREADO et. al., 2016; CREADO, 2017; LEO-<br />
NARDO et al., 2017). Destino principal dos surfistas brasileiros, o uso das<br />
ondas <strong>de</strong> Regência para o surfe foi alterado após o rompimento da barragem<br />
em Bento Rodrigues, Mariana (MG), em novembro <strong>de</strong> 2015, o que<br />
afetou o <strong>Rio</strong> Doce e, consequentemente, a Vila <strong>de</strong> Regência.<br />
Após o evento da lama 1 , consi<strong>de</strong>rado o maior <strong>de</strong>sastre/tragédia socioambiental<br />
do Brasil, os moradores da Vila <strong>de</strong> Regência que <strong>de</strong>pendiam estritamente<br />
do <strong>Rio</strong> Doce se viram ameaçados. Os impactos são muitos, sejam<br />
eles a “escassez <strong>de</strong> água, inviabilização da pesca, inviabilização do surf ou<br />
esportes aquáticos, diminuição das ativida<strong>de</strong>s do turismo, contaminação<br />
das lavouras” (LOSEKANN et al., 2016, p. 7), bem como a violação <strong>de</strong> diversos<br />
direitos dos moradores e conflitos com as empresas responsáveis<br />
pela barragem <strong>de</strong> rejeitos (Samarco/Vale-BHP).<br />
A maioria das ativida<strong>de</strong>s econômicas em Regência era direta ou indiretamente<br />
ligada ao <strong>Rio</strong> Doce. Em um relatório divulgado pelo Greenpeace<br />
1 Após o rompimento da barragem, acadêmicos e locais tratam o acontecimento como um<br />
“evento da lama”. Tal termo <strong>de</strong>ve ser associado a um evento crítico continuado, que ainda<br />
está em processo (MILANEZ & LOSEKANN, 2016). Segundo Silva e colaboradores<br />
(2017), “Um evento crítico po<strong>de</strong> ser analisado enquanto processo, e, portanto, as situações<br />
sociais escolhidas especificamente para <strong>de</strong>scrição e análise aqui são parte <strong>de</strong> um escopo mais<br />
amplo <strong>de</strong> <strong>de</strong>sdobramentos e reações ao rompimento e à dispersão dos rejeitos <strong>de</strong> mineração.”<br />
(p. 4). Os eventos críticos como processo já foram apontados por Silva (2012).<br />
211
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
(LEONARDO et al., 2017), 99% dos moradores entrevistados relataram<br />
mudanças em suas rotinas após a lama e, entre os fatores apresentados,<br />
estão: aumento dos gastos com alimentação, prejuízos na pesca, falta <strong>de</strong><br />
lazer e aumento dos gastos com água.<br />
Foco da atenção <strong>de</strong> surfistas <strong>de</strong> diversos lugares do Brasil, as ondas <strong>de</strong> Regência<br />
são comparadas com ondas havaianas e até com as da Indonésia, e<br />
a contaminação trazida pela lama pôs em risco o seu uso, e alguns dizem<br />
que a sua conformação também. A falta <strong>de</strong> divulgação <strong>de</strong> laudos gera intrigas<br />
entre os moradores, entre eles os surfistas, que apontam para a falta<br />
<strong>de</strong>sses laudos e <strong>de</strong> uma resposta assertiva sobre as condições das águas.<br />
Sendo assim, encaram as ondas sem saber o risco que correm. Tratandose<br />
da saú<strong>de</strong> <strong>de</strong>ssas pessoas que ainda têm contato com as águas do <strong>Rio</strong><br />
Doce ou do mar em Regência, não se sabe ainda se altas doses gradativas<br />
<strong>de</strong>sses metais (arsênio, bário, chumbo, cobre, mercúrio e níquel 2 ) serão<br />
prejudiciais ao organismo através do contato com a pele, por exemplo.<br />
Após a lama, a dinâmica da Vila <strong>de</strong> Regência foi alterada por diversos<br />
conflitos entre os moradores atingidos, porém, antes da lama atingir a<br />
foz do rio Doce, Regência já passava por conflitos <strong>de</strong>vido aos anúncios<br />
<strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s empreendimentos que geraram muitas alterações nas dinâmicas<br />
da vida local em associação com conflitos com outros agentes. Ou<br />
seja, o evento da lama <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>ou e amplificou conflitos já existentes,<br />
os quais ganharam novas ressignificações. Esse caso é bem semelhante<br />
ao que ocorreu nas comunida<strong>de</strong>s afetadas pelas construções das barragens<br />
<strong>de</strong> Sobradinho e Machadinho, conforme <strong>de</strong>scrito pela autora Lygia<br />
Sigaud (1988) no texto intitulado “Efeitos Sociais <strong>de</strong> Gran<strong>de</strong>s Projetos Hidrelétricos:<br />
As Barragens <strong>de</strong> Sobradinho e Machadinho”. O referido texto<br />
teve como objetivo mostrar um estudo comparativo dos efeitos sociais,<br />
políticos, econômicos e culturais para os “atingidos”, consi<strong>de</strong>rando ainda<br />
que houve a intervenção do Estado na construção <strong>de</strong> hidrelétricas. Junto<br />
às populações analisadas, os conflitos culminaram em novas reestruturações<br />
sociais, algumas das quais semelhantes às encontradas em Regência,<br />
como novas formas <strong>de</strong> rea<strong>de</strong>quação social, política e econômica. Consequentemente,<br />
nesse novo cenário, a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> e as relações sociais ga-<br />
2 Os metais encontrados constam no laudo divulgado pelo Serviço Autônomo <strong>de</strong> Água e<br />
Esgoto (SAAE) <strong>de</strong> Baixo Guandu em novembro <strong>de</strong> 2015. Fonte: http://www.pmbg.es.gov.<br />
br/v1/ (último acesso em: 05/03/2018).<br />
212
Capítulo 8<br />
nharam novos sentidos e, com isso, também os moradores se <strong>de</strong>pararam<br />
com novas formas <strong>de</strong> resistência, confronto e po<strong>de</strong>r. Com esses fatos, também<br />
po<strong>de</strong>mos fazer um comparativo com textos <strong>de</strong> Telma Camargo da<br />
Silva (2012), que mostra as narrativas dos sobreviventes da contaminação<br />
pelo Césio 137 em Goiânia, em que a memória é trazida em novas formas<br />
<strong>de</strong> enfrentamento e até mesmo como forma <strong>de</strong> gerenciar os impactos sociais<br />
sofridos. Dentro <strong>de</strong>sse quadro, po<strong>de</strong>mos consi<strong>de</strong>rar os surfistas um<br />
dos quase-grupos 3 <strong>de</strong> resistência em Regência com a chegada da lama.<br />
É importante ressaltar, também, a noção <strong>de</strong> atingido, que, por se tratar <strong>de</strong><br />
um dos termos utilizados na literatura para classificar aqueles que sofrem<br />
as consequências difusas produzidas pela expansão <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s empreendimentos,<br />
acaba gerando disputa em sua <strong>de</strong>finição. Isso está correlacionado<br />
com a questão da atuação das empresas (Samarco/Vale-BHP) e com<br />
as medidas que elas foram obrigadas a cumprir na foz do <strong>Rio</strong> Doce por<br />
<strong>de</strong>terminação judicial após o rompimento da barragem, através principalmente<br />
do “perfil” <strong>de</strong> atingido preposto pela empresa, o qual abordaremos<br />
abaixo. Assim, neste artigo, partimos do pressuposto do conceito <strong>de</strong><br />
atingido <strong>de</strong> Vainer (2008), que diz o seguinte:<br />
Conceito em disputa, a noção <strong>de</strong> atingido diz respeito, <strong>de</strong> fato,<br />
ao reconhecimento, leia-se legitimação, <strong>de</strong> direitos e <strong>de</strong>veres <strong>de</strong><br />
seus <strong>de</strong>tentores. Em outras palavras, estabelecer que <strong>de</strong>terminado<br />
grupo social, família ou indivíduo é, ou foi, atingido por certo<br />
empreendimento significa reconhecer como legítimo – e, em alguns<br />
casos, como legal – seu direito a algum tipo <strong>de</strong> ressarcimento<br />
ou in<strong>de</strong>nização, reabilitação ou reparação não pecuniária. Isto<br />
explica que a abrangência do conceito seja, ela mesma, um objeto<br />
<strong>de</strong> disputa (VAINER, 2008, p. 40).<br />
Consi<strong>de</strong>rando o que foi exposto, o objetivo do artigo é dialogar com as<br />
memórias e narrativas dos surfistas <strong>de</strong> Regência, assumindo a opção <strong>de</strong><br />
tratar o evento da lama como crime ambiental, bem como usar o termo<br />
atingido, incluindo os surfistas nesta categoria — mesmo no caso em que<br />
eles não sejam consi<strong>de</strong>rados para fins <strong>de</strong> recebimento do cartão <strong>de</strong> auxí-<br />
3 Neste texto, os surfistas serão classificados como “quase-grupos” conforme o conceito<br />
<strong>de</strong> Adrian C. Mayer (Feldman-Bianco, 2009), “cujo os membros possuem interesses em<br />
comum, mas que po<strong>de</strong>rão formar grupos <strong>de</strong>finitivos” (p.127).<br />
213
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
lio mensal, o qual foi distribuído a algumas famílias da região.<br />
O presente artigo não tem por objetivo criticar quem surfa ou <strong>de</strong>ixou <strong>de</strong><br />
surfar em Regência, mas sim <strong>de</strong>monstrar as imprecisões trazidas aos surfistas,<br />
<strong>de</strong>vido à qualida<strong>de</strong> da água após a lama e as alterações que ela trouxe<br />
na relação com as águas do mar. Para tal intento foram feitas imersões<br />
em campo, com curta duração, bem como entrevistas com os surfistas e<br />
reportagens relativas a eles. Para melhor enten<strong>de</strong>r o processo <strong>de</strong> narrativas<br />
<strong>de</strong>sses surfistas atingidos, pensamos o contexto após o rompimento<br />
da barragem tendo como referência textos clássicos das Ciências Sociais<br />
que também abordam os eventos críticos e as alterações que geram. Desse<br />
modo, este artigo foi dividido em duas partes principais, uma em que<br />
trazemos o olhar sensível dos surfistas quanto à sua memória e <strong>de</strong> como<br />
se organizaram enquanto atingidos. Na segunda parte do texto, tratamos<br />
a presença da lama como algo continuado e cíclico, pois, em consequência<br />
das gran<strong>de</strong>s chuvas, mais lama <strong>de</strong>sce ao longo do <strong>Rio</strong> Doce.<br />
Para explicar melhor o ciclo <strong>de</strong> lama, relacionamos este artigo com o texto<br />
<strong>de</strong> Renzo Tad<strong>de</strong>i (2014), “As secas como modos <strong>de</strong> enredamento”, ao qual<br />
associamos as representações das gran<strong>de</strong>s chuvas e os seus enca<strong>de</strong>amentos<br />
sociais, políticos, culturais e ambientais. Já no texto no Tim Ingold<br />
(2012), “Trazendo as coisas <strong>de</strong> volta à vida: emaranhados criativos nos<br />
mundos materiais”, associamos a relação “objeto” e “coisa” com a cinesia<br />
das gran<strong>de</strong>s chuvas em Regência.<br />
MEMÓRIA E RESISTÊNCIA<br />
O surfe em Regência teve sua ascendência <strong>de</strong>pois dos anos 2000 quando<br />
moradores da vila, assim como moradores <strong>de</strong> Linhares, começaram a<br />
surfar por lá. A partir <strong>de</strong>les, veio a divulgação, e surfistas <strong>de</strong> outras localida<strong>de</strong>s<br />
e municípios, como Vitória, capital do Espírito Santo, passaram a<br />
frequentar os seus picos. 4 Assim, para contar um pouco da história do surfe<br />
em Regência, o surfista Fábio 5 <strong>de</strong>screveu como foi o início do surfe no lugar:<br />
No surfe foi quem trouxe essa explosão mesmo pra cá, <strong>de</strong> 2000<br />
pra cá, a gente tinha uma história. Eu mesmo viajava muito, via-<br />
4 Local favorável para a prática do surfe, ou a parte mais alta da onda.<br />
5 Para preservar a i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong> dos interlocutores, optei por usar nomes fictícios.<br />
214
Capítulo 8<br />
java com um bloquinho com fotos, e mostrava pra galera as fotos,<br />
e a galera sempre assim “mas, pô, isso aí não é sempre, essas fotos<br />
são esporádicas. Essa foto é velha né, não é <strong>de</strong> agora?”. Então eu<br />
fui chamando o pessoal pra morar aqui, fui chamando os novos<br />
a<strong>de</strong>ptos do surfe pra cá, fui o primeiro a vim morar, então não<br />
tinha ninguém, eu chamava as pessoas, falava bem, fazia <strong>de</strong> tudo.<br />
Era chamado também, como se fosse lorota né, “isso aí é lorota,<br />
isso aí não é verda<strong>de</strong>”. Então um amigo meu chamado R.B. veio,<br />
montou o Regência Surf, e aí você vai enten<strong>de</strong>r como Regência<br />
explodiu no cenário nacional e internacional. Esse cara todo dia<br />
fotografava e postava, todo dia. Então quando entrava o swell, entrava<br />
1 dia, 2, 3, 4, 5, 6, 7 dias <strong>de</strong> swell, as pessoas viam e falavam<br />
assim “caralho, não é lorota, é verda<strong>de</strong> mesmo, é a realida<strong>de</strong> lá, é a<br />
tubolândia mesmo, lá dá 4, 5 dias, 1 semana <strong>de</strong> ondas sem parar”,<br />
e não tem lugar nenhum do mundo que dá assim, só na Indonésia.<br />
Quer dizer, então Regência explodiu, o surfe atraiu tanta<br />
gente pra cá, por causa <strong>de</strong>ssa boca do rio aí, essa onda.<br />
[Entrevista com o surfista Fábio, realizada em Regência Augusta,<br />
em janeiro <strong>de</strong> 2017].<br />
Os picos <strong>de</strong> surfe <strong>de</strong> Regência se concentram na boca do rio Doce e nos<br />
Points 1 e 2. E, como dito acima, costuma ter swell 6 durante muito tempo,<br />
o que não é comum em outros lugares do Brasil, por isso as ondas <strong>de</strong> Regência<br />
atraíram surfistas <strong>de</strong> diversos lugares.<br />
Figura 1: Foto da boca do <strong>Rio</strong> Doce.<br />
Fonte: Acervo do GEPPEDES, 2017.<br />
6 Swell é uma ondulação no mar que é contínua e sem ruídos, i<strong>de</strong>al para a prática <strong>de</strong> surfe.<br />
215
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Figura 2: Foto do Point 2, praia <strong>de</strong> Comboios.<br />
Fonte: Acervo do GEPPEDES, 2017.<br />
Figura 3: Foto do Point 1, praia <strong>de</strong> Comboios.<br />
Fonte: Acervo do GEPPEDES, 2015.<br />
Dialogando com os surfistas, notamos que, antes da chegada da lama, o<br />
sonho <strong>de</strong>les era trazer campeonatos gran<strong>de</strong>s nacionais e internacionais<br />
para Regência, mas, <strong>de</strong>pois do ocorrido, esse sonho pareceu distante, partindo<br />
da antiga possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> concretização do sonho em curto prazo.<br />
De fato, muitos surfistas (e não apenas eles) alegaram a falta <strong>de</strong> laudos, <strong>de</strong><br />
216
Capítulo 8<br />
divulgação e <strong>de</strong> informações como algo que trazia dificulda<strong>de</strong>s para a realização<br />
<strong>de</strong> campeonatos, pois havia empecilhos para se conseguir um patrocínio<br />
para um evento <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte após o rompimento da barragem.<br />
Algo interessante é que os surfistas foram um dos agentes <strong>de</strong> resistência<br />
que protestaram contra a Samarco logo na chegada da lama em Regência.<br />
Em diálogos com ela, tentaram reivindicar e colocar-se como atingidos,<br />
mas não foram escutados pela empresa e seus consultores. É importante<br />
ressaltar que a empresa possui um “perfil” <strong>de</strong> atingido que não abrange<br />
todos que tinham algum tipo <strong>de</strong> vínculo com o <strong>Rio</strong> Doce. Leonardo e colaboradores<br />
(2016) reiteraram:<br />
Sendo assim, reconhecer-se e fazer-se reconhecer enquanto atingido<br />
tem sido um processo doloroso para todas as pessoas que<br />
viviam ou que, <strong>de</strong> alguma outra forma, estabeleciam uma relação<br />
<strong>de</strong> trabalho, religiosa, afetiva ou <strong>de</strong> outro tipo com o <strong>Rio</strong> Doce.<br />
Dessa forma, enten<strong>de</strong>mos que a necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> ter que se enquadrar<br />
em um perfil <strong>de</strong> atingido, <strong>de</strong>limitado pela própria empresa,<br />
tem ampliado o sofrimento social das vítimas do <strong>de</strong>sastre na foz<br />
do <strong>Rio</strong> Doce (LEONARDO et al., 2016, p. 101-102).<br />
Os surfistas que também são comerciantes 7 — pois há diferentes tipos <strong>de</strong><br />
surfistas — relataram o quanto foi <strong>de</strong>sgastante, no início, encaixarem-se<br />
nesse “perfil” apresentado pela empresa, fazendo com que muitos <strong>de</strong>les<br />
fossem embora para outros lugares. O surfista Ricardo, em uma entrevista<br />
<strong>de</strong> 30 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2016, seis meses após a chegada da lama em Regência,<br />
relatou a dificulda<strong>de</strong> <strong>de</strong> se a<strong>de</strong>quar ao “perfil” <strong>de</strong> atingido estabelecido<br />
pela Samarco:<br />
[...] pra mim eu não tenho condição <strong>de</strong>, igual eu tô falando, pra<br />
gente foi atingido porque a gente vivia do mar, do surfe, turismo,<br />
surfe dia, aí com a questão da lama persistindo aqui, com a questão<br />
do mar, do peixe suspenso mesmo, e a gente aqui não quer trabalhar<br />
com a questão <strong>de</strong> festa, <strong>de</strong> fomento, eu po<strong>de</strong>ria abrir alguma<br />
coisa voltada à festa noturna... isso aí a gente não se a<strong>de</strong>quou,<br />
por enquanto não quer mexer com isso... então surfe, dia, atingiu,<br />
7 O comércio em Regência está interligado ao turismo e ao surfe. Nesse caso, há surfistas<br />
que são donos <strong>de</strong> pousadas e restaurantes.<br />
217
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
a questão do meu boletim, o açaí também, tudo que a gente trabalhava<br />
aqui zerou, né, e a gente tem, as pessoas tão falando <strong>de</strong> se<br />
adaptar à nova realida<strong>de</strong>, né, eu não sei neste momento... eu não<br />
tenho renda e não vou ficar acumulando dívida, né, porque fica<br />
uma bola <strong>de</strong> neve num tá vindo ninguém, a conta <strong>de</strong> água e luz,<br />
as contas vêm, então se for pensar friamente não tem condição,<br />
se for viver pelo estilo <strong>de</strong> vida viver <strong>de</strong> doação e <strong>de</strong> contribuição,<br />
aqui eu tinha um trabalho, e o meu trabalho que eu vivia aqui é <strong>de</strong><br />
conseguir sobreviver, fazer nossa renda e... é muito complicado,<br />
eu me sinto atingido diretamente e não vejo, assim, em seis meses<br />
que se passaram não <strong>de</strong>ram nenhuma alternativa, não mostraram<br />
nenhum horizonte muito favorável a não ser a questão do cartão<br />
aí e que eles tão querendo reconhecer o comércio agora...<br />
[Entrevista com o surfista Ricardo, realizada em Regência Augusta,<br />
em 30 <strong>de</strong> maio <strong>de</strong> 2016].<br />
Muitos relatam que ser reconhecido como comerciante já era complicado,<br />
imagina o surfista ser reconhecido como atingido. É como se a lama<br />
lançada ao mar não fosse <strong>de</strong> responsabilida<strong>de</strong> da empresa responsável<br />
pela barragem e não tivesse atingido todos aqueles ligados ao mar e ao<br />
rio, alguns morando na área.<br />
Nas narrativas dos surfistas, po<strong>de</strong>mos notar a resistência que há em seus<br />
diálogos, porém cada indivíduo interpreta o evento <strong>de</strong> uma forma particular.<br />
Não obstante, no coletivo, os interesses são os mesmos, ainda que com<br />
sentidos diferentes. O conflito é gerado no momento em que é discutido o<br />
que há na água, se está contaminada ou não. Há os que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que a<br />
água esteja sim contaminada e que, por conta disso, o surfe precisaria parar.<br />
E há os que acreditam que a lama não seja assim tão prejudicial à saú<strong>de</strong> e<br />
que não há necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> parar as ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> surfe ou então <strong>de</strong> divulgar<br />
a questão da presença na lama, como via ciberativismo 8 nas re<strong>de</strong>s sociais.<br />
A falta <strong>de</strong> informações sobre a água potencializaria os conflitos, assim<br />
como <strong>de</strong>screve o surfista Marcos:<br />
8 Quanto ao ciberativismo, alguns surfistas usaram as re<strong>de</strong>s sociais para promover encontros<br />
e carreata, cobrando ações e soluções da empresa e órgãos públicos para lidar com o<br />
evento da lama.<br />
218
Capítulo 8<br />
[...] a falta do laudo real <strong>de</strong> o que tá acontecendo, o que aconteceu,<br />
então foi muito ruim, e o pior disso tudo foi para a comunida<strong>de</strong><br />
realmente <strong>de</strong> Regência assim, além do pessoal ao longo do rio<br />
para cima, até lá em Mariana foi o primeiro lugar, mas eu como<br />
sou daqui, eu <strong>de</strong>vo falar daqui, e é isso cara, assim, o pior <strong>de</strong> tudo<br />
foi para o pessoal da comunida<strong>de</strong> daqui <strong>de</strong> Regência, ninguém<br />
sabe as informações, não proce<strong>de</strong>m, elas são truncadas, elas fazem<br />
parte <strong>de</strong> um grupo seleto <strong>de</strong> pessoas, então, foi muito difícil,<br />
ainda mais para quem não tem essa ativida<strong>de</strong> assim, a esperteza<br />
<strong>de</strong> querendo estar conectado com isso, então aqui sofreu muito a<br />
comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Regência por falta <strong>de</strong> muita informação.<br />
[Entrevista com o surfista Marcos, realizada em Regência Augusta,<br />
em 21 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2016].<br />
O surfista Renato também relata a dificulda<strong>de</strong> que ele encontra atualmente<br />
em Regência, on<strong>de</strong> divulgar e não divulgar laudos sobre a qualida<strong>de</strong><br />
da água geram conflitos, pois a falta <strong>de</strong> divulgação é omitir e divulgar é<br />
publicizar o crime e o fato da água estar contaminada. Renato diz:<br />
Eu consegui muitas inimiza<strong>de</strong>s aqui na comunida<strong>de</strong>, com pessoas<br />
por exemplo que eu tinha relações afetivas, sabe, <strong>de</strong> décadas,<br />
enten<strong>de</strong>u, em função <strong>de</strong>ssa posição crítica que eu adotei...<br />
assim, agora, né, quando a gente começa a falar <strong>de</strong>ssas propostas<br />
<strong>de</strong> solução imediata do problema, a gente toca também numa<br />
questão importante, porque a galera elas querem dizer assim “a<br />
praia tá boa, o rio tá bom, po<strong>de</strong> vim surfar, po<strong>de</strong> vir tomar banho<br />
<strong>de</strong> rio, tá tudo lindo”, então assim, eles querem impulsionar o turismo<br />
a partir <strong>de</strong> um discurso baseado em conclusões que não<br />
tem como saber, se água do rio tá boa, se a água do mar tá boa,<br />
se a água do surfe pelo fato <strong>de</strong>la tá clara, isso a gente não sabe se<br />
significa ausência <strong>de</strong> contaminação, a gente não sabe. Então aí,<br />
eu fundamentei minha crítica justamente nisso, “você não espere<br />
<strong>de</strong> mim que eu faça isso, nunca”.<br />
[Entrevista com o surfista Renato, realizada em Regência Augusta,<br />
em 21 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2017].<br />
A necessida<strong>de</strong> <strong>de</strong> informação é uma <strong>de</strong>manda não só dos surfistas, mas<br />
219
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
<strong>de</strong> todos os moradores da Vila <strong>de</strong> Regência que se veem vulneráveis em<br />
relação ao crime ambiental cometido pela empresa Samarco.<br />
Em entrevista para o jornal Século Diário no dia 9 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2017, o<br />
produtor cinematográfico e produtor cultural José Augusto Muleta, um<br />
dos organizadores da “Segunda Carreata Contra a Lama e pela Paz”, manifestação<br />
organizada por surfistas, questionou as medidas adotadas pela<br />
Justiça Fe<strong>de</strong>ral que suspen<strong>de</strong>ram os processos criminais da Samarco/Vale-BHP<br />
e disse:<br />
Isso é faz <strong>de</strong> conta. Não existe horizonte <strong>de</strong> voltar a pesca na região<br />
e não vemos as pessoas sendo preparadas, os jovens, pra outras<br />
ativida<strong>de</strong>s econômicas. [...] A empresa não cuida das pessoas<br />
e a Fundação Renova é uma mentira. Não existe relação verda<strong>de</strong>ira<br />
com as pessoas. Só no papel e na <strong>de</strong>magogia. [...] A figura do<br />
surfista é totalmente ignorada. Jogaram lama na minha cara. [...].<br />
A Samarco matou um dos maiores rios do mundo e está impune.<br />
Um absurdo!<br />
[José Augusto Muleta, surfista, produtor cinematográfico e cultural,<br />
em entrevista ao jornal Século Diário, 9 <strong>de</strong> agosto <strong>de</strong> 2017].<br />
Outro problema enfrentado pelos surfistas é que, em alguns momentos,<br />
durante os dois anos após rompimento da barragem <strong>de</strong> Fundão, a água<br />
do mar tornou-se mais clara e não tinha aquela tonalida<strong>de</strong> alaranjada<br />
como na chegada da lama. E muitos <strong>de</strong>les, impulsionados pelo visual,<br />
acabavam abstraindo os problemas que po<strong>de</strong>riam estar associados ao uso<br />
da água. Problemas estes que são relembrados após as gran<strong>de</strong>s chuvas,<br />
quando mais lama <strong>de</strong>sce pelo rio e a tonalida<strong>de</strong> da água torna-se alaranjada<br />
novamente, o que iremos explicar na seção a seguir.<br />
O CICLO DE LAMA<br />
Logo na chegada da lama à vila <strong>de</strong> Regência, o visual do <strong>Rio</strong> Doce e<br />
do mar dava a impressão <strong>de</strong> horror. Sabemos que a relação visual é bem<br />
importante, pois ela dá a interpretação <strong>de</strong> senso comum ao fato e é o<br />
primeiro contato que se tem com as águas do rio e do mar. Esse fato nos<br />
faz pensar no plano etnológico <strong>de</strong> Lévi-Strauss (1976) acerca da “imaginação<br />
estética”, on<strong>de</strong> as categorias são sensíveis. No começo, quando a água<br />
220
Capítulo 8<br />
tinha o tom alaranjado, os surfistas não tinham coragem <strong>de</strong> encarar as ondas,<br />
mesmo porque houve, no início, a interdição das praias <strong>de</strong> Linhares,<br />
<strong>de</strong>ntre elas as <strong>de</strong> Regência e <strong>de</strong> Povoação. 9 Inclusive, a proibição da pesca<br />
continua até os dias atuais, mas, <strong>de</strong> fato, alguns pescadores e até mesmo<br />
surfistas não levam a interdição à risca. Com o passar dos meses, após a<br />
chegada da lama na foz do <strong>Rio</strong> Doce, a situação tomou outras proporções,<br />
assim como relata o surfista Luciano:<br />
Logo <strong>de</strong> início assim, eu parei <strong>de</strong> surfar aqui, mas não <strong>de</strong>morou<br />
muito, porque foi uma época que já começou a diminuir a onda,<br />
a quantida<strong>de</strong>, os dias <strong>de</strong> onda. Ai, eu lembro que no verão já em<br />
janeiro ou fevereiro, um dia que a gente foi na praia, a água tava<br />
mais verdinha, a água do Point lá, eu já surfei, e foi um processo<br />
aos poucos, uns dias que tava turva mesmo, já surfava, sempre<br />
preocupado <strong>de</strong>sse, se tá ou não tá contaminado, sempre com dúvida,<br />
aí foi passando o tempo, o verão, o outono, as chuvas diminuíram<br />
e água foi diminuindo, né, a vazão do rio também, a<br />
maior parte da lama já tinha <strong>de</strong>scido, e o resto foi <strong>de</strong>positando no<br />
fundo do rio, e com isso rio foi limpando, e querendo ou não isso<br />
foi alento pra mim po<strong>de</strong>r olhar pro rio e <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> tanto chegar na<br />
janela, ir no mar, e não po<strong>de</strong>r mergulhar no verão, muito quente,<br />
olhar da janela e ver o rio com a água que era <strong>de</strong>... já era uma coloração<br />
mais normal do que como antes. Aí comecei a surfar com<br />
mais frequência sim, até o momento que já não me preocupando<br />
com isso, já não era uma coisa que eu pensava antes se o dia tava<br />
bom para o surfe, antes por exemplo quando aconteceu o negó-<br />
9 Em novembro <strong>de</strong> 2015, após a chegada da lama na foz do <strong>Rio</strong> Doce, foram interditadas<br />
as praias em Regência e Povoação. Com o avanço da lama no oceano, especificamente em<br />
<strong>de</strong>zembro, mais quatro praias foram interditadas no município <strong>de</strong> Linhares, sendo elas Comboios<br />
(que inclui Regência, mas não apenas), Pontal do Ipiranga, Degredo e Barra Seca. Em<br />
janeiro <strong>de</strong> 2016, as praias <strong>de</strong> Pontal do Ipiranga, Degredo e Barra Seca foram liberadas para<br />
banho pela prefeitura. Fontes:<br />
http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/municipio-<strong>de</strong>-linhares-es-fecha-duas<br />
-praias-por-causa-<strong>de</strong>-lama-da-samarco-30y47d1cglzgdv7yltjnupe87 (último acesso em:<br />
05/03/2018);<br />
http://brasil.estadao.com.br/noticias/geral,mais-tres-praias-capixabas-sao-interditadas-por<br />
-lama-da-barragem,10000006421 (último acesso em: 05/03/2018); http://g1.globo.com/<br />
espirito-santo/<strong>de</strong>sastre-ambiental-no-rio-doce/noticia/2016/01/tres-praias-<strong>de</strong>-linhares-sao<br />
-liberadas-para-banho-diz-prefeitura.html (último acesso em: 05/03/2018).<br />
221
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
cio falava “po<strong>de</strong> tá bom, mas a água tá uma merda”, eu cheguei<br />
pra mim eu tô dizendo, teve um momento que eu cheguei a “o dia<br />
hoje tá bom, vai ter altas ondas, vou surfar”, já não pensava muito<br />
na água, aí chegava lá, às vezes, e já via água mais amarelada e já<br />
ficava mais preocupado, mas não <strong>de</strong>ixava <strong>de</strong> cair.<br />
[Entrevista com o surfista Luciano, realizada em Regência Augusta,<br />
em 21 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2016].<br />
O visual da água se tornou um importante fator intuitivo que <strong>de</strong>terminava<br />
se o surfista <strong>de</strong>veria ou não surfar. A i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> modo geral, influencia<br />
na percepção <strong>de</strong> risco, pois o apego ao local é “importante para a<br />
construção e continuida<strong>de</strong> da sua i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>” (GIULIO et al., 2015, s.p.). O<br />
localismo está presente na linguagem dos surfistas, mas, diferentemente<br />
do sentido negativo 10 que comumente ele traz, nesse contexto, po<strong>de</strong>mos<br />
relacionar o localismo ao apreço que os surfistas têm com as ondas <strong>de</strong><br />
Regência.<br />
Nos períodos das gran<strong>de</strong>s chuvas, po<strong>de</strong>-se observar que a tonalida<strong>de</strong> da<br />
água muda e, pelo impacto sensorial, os surfistas ainda não costumam<br />
pegar ondas nessas condições. Por isso, po<strong>de</strong>mos dizer que a agência da<br />
lama é cíclica, mais do que um evento isolado, e, com os períodos <strong>de</strong> chuvas,<br />
é necessária uma reorganização para lidar com elas. Renzo Tad<strong>de</strong>i<br />
(2014), ao falar das secas anuais como modos <strong>de</strong> enredamento, ajuda-nos<br />
a enten<strong>de</strong>r a situação <strong>de</strong> Regência, pois, no caso do estudo feito por esse<br />
autor, os períodos <strong>de</strong> seca são intercalados com os das gran<strong>de</strong>s chuvas,<br />
culminando no fato <strong>de</strong>, em Regência, essas alternâncias se <strong>de</strong>sdobrarem<br />
ao longo do tempo, pois não houve a remoção dos rejeitos <strong>de</strong> mineração<br />
no <strong>Rio</strong> Doce à montante, bem como no mar. E, para se lidar com isso,<br />
<strong>de</strong>para-se, então, com a dicotomia “natureza” e “cultura” nos padrões coletivizantes<br />
<strong>de</strong> simbolização, que predominam junto a algumas instâncias<br />
e agentes, como os orientados predominantemente pela ciência e pela<br />
tecnologia, em que a natureza mostra a sua força e o domínio humano<br />
precisa atuar para controlá-la. Com isso, nas disputas simbólicas, <strong>de</strong>ve-<br />
10 O localismo é uma disputa <strong>de</strong> territorialida<strong>de</strong>; é a preferência que o surfista local tem<br />
sobre os surfistas <strong>de</strong> fora. Em lugares como o Havaí e Austrália, a cultura do localismo gerou<br />
diversos tipos <strong>de</strong> violências entre surfistas nativos versus surfistas adventícios. Fonte: http://<br />
www.waves.com.br/arquivo/localismo-virtual/ (último acesso em: 05/03/2018).<br />
222
Capítulo 8<br />
se “consi<strong>de</strong>rar estratégias que conjugam temporalida<strong>de</strong>, materialida<strong>de</strong> e<br />
corporalida<strong>de</strong>” (CREADO, 2017, p. 11). Tad<strong>de</strong>i reforça:<br />
As disputas simbólicas sobre como representar o ambiente <strong>de</strong>vem<br />
ser tomadas em seu viés performático (TADDEI, 2013), ou<br />
seja, em sua dimensão mais propriamente constitutiva, em razão<br />
do fato <strong>de</strong> que, para po<strong>de</strong>r manipular política e economicamente<br />
a seca, é preciso fazê-la existir como elemento político e/ou econômico.<br />
Ou seja, o que estou afirmando é que não há nada inerentemente<br />
biofísico, político ou econômico em uma estiagem;<br />
é o choque entre os fluxos variáveis <strong>de</strong> substância e energia do<br />
meio ambiente contra os sistemas humanos (e não humanos) <strong>de</strong><br />
pensamento e organização do mundo que “precipitam” a seca<br />
enquanto coisa com a qual se po<strong>de</strong> relacionar – ou seja, a seca é<br />
“inventada” da mesma forma como a cultura o é, na concepção<br />
dada ao termo por Roy Wagner (2010) (TADDEI, 2014, s.p.).<br />
Desse modo, concluímos, a partir <strong>de</strong> Tad<strong>de</strong>i (2014), que o crime ambiental<br />
não é um caso isolado no espaço e no tempo, ele passa por diversos<br />
processos que se <strong>de</strong>sdobrarão ao longo do tempo. Por isso, os surfistas <strong>de</strong><br />
Regência <strong>de</strong>verão passar por a<strong>de</strong>quações quanto a esses ciclos <strong>de</strong> lama,<br />
principalmente nos períodos <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s chuvas.<br />
Tim Ingold (2012), em “Trazendo as coisas <strong>de</strong> volta à vida: emaranhados<br />
criativos nos mundos materiais”, também nos ajuda a interpretar a relação<br />
dos surfistas com os ciclos da lama, pois ele propõe uma separação<br />
dos “objetos” das “coisas”, principalmente a forma como vemos o objeto,<br />
afirmando como <strong>de</strong>vemos “apren<strong>de</strong>r em um mundo mais que humano”<br />
(INGOLD, 2012, s.p). Para isso, Ingold faz uma separação do “objeto”, que<br />
Hei<strong>de</strong>gger <strong>de</strong>finiu como algo que não muda, e das “coisas”, que estão em<br />
constantes mudanças. Para Ingold, as coisas são vivas e estão emaranhadas<br />
nas linhas <strong>de</strong> <strong>de</strong>vir, que estão em constantes movimentos e são contínuas,<br />
fato ao qual po<strong>de</strong>mos relacionar com o movimento tanto humano<br />
quanto material. O ser vivo humano e as coisas não humanas se movimentam,<br />
assim como o ambiente. É possível ressaltar, então, usando Tim<br />
Ingold, que o ser-surfista é um ser-surfista-em-movimento, mesmo que<br />
isso signifique a possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> contaminação.<br />
223
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
De fato, esse ciclo <strong>de</strong> lama reinstaurado pelas gran<strong>de</strong>s chuvas faz com<br />
que Regência seja lembrada pelo rompimento da barragem, pois, além <strong>de</strong><br />
seus moradores serem lembrados pelo crime ambiental provocado pelas<br />
empresas Samarco/Vale-BHP, é como se a tragédia sempre voltasse a eles.<br />
O crime ambiental não é um acontecimento passado, ele é continuado,<br />
como ressalta Silva (2012) sobre o evento crítico que a autora associou à<br />
contaminação por Césio 137 em Goiânia. Dessa forma, todas as ações do<br />
presente são baseadas nas experiências passadas e tudo isso dificulta o<br />
controle do futuro:<br />
As narrativas indicam que as emoções e as atitu<strong>de</strong>s do presente<br />
são interpretadas como <strong>de</strong>correntes das experiências do <strong>de</strong>sastre,<br />
fixadas no passado, e percebidas como sem perspectivas <strong>de</strong> superação<br />
no futuro. Desta forma, as ativida<strong>de</strong>s cotidianas exercidas<br />
na escola e no trabalho são afetadas pelo pertencimento ao <strong>de</strong>sastre<br />
(SILVA, 2012, p. 15).<br />
Desta forma, novos sentidos <strong>de</strong> relação com o mar e seus movimentos<br />
foram e ainda serão estabelecidos pelos surfistas em Regência, bem como<br />
com os agentes da lama (CREADO et al., 2016), pois isso agora faz parte<br />
do ser-surfista em Regência Augusta, embora não se saiba ainda quais as<br />
consequências que isso po<strong>de</strong>rá vir a ter para a saú<strong>de</strong> humana.<br />
Em entrevista realizada pelos membros do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento do Espírito Santo (GEPPE-<br />
DES) com um gestor ambiental <strong>de</strong> um órgão fe<strong>de</strong>ral, que também é morador<br />
<strong>de</strong> Regência, foi levantada a questão se há algum órgão responsável<br />
pela saú<strong>de</strong> das pessoas. Ele respon<strong>de</strong>u:<br />
Olha, o que a gente saiba não, e esse é pra gente um dos pontos<br />
mais falhos nesse processo todo. O que nós fizemos agora, recentemente<br />
nos últimos meses, foi envolver o Município <strong>de</strong> Linhares<br />
nesse contexto, e tivemos há quinze dias atrás uma reunião com<br />
todos os secretários municipais <strong>de</strong> Linhares, apresentando todos<br />
os dados que a ICMBio dispõe, contaminação <strong>de</strong> água e <strong>de</strong> sedimento,<br />
disso gerou uma reunião nova semana retrasada com a<br />
secretaria <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> e todos os postos <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> da área atingida,<br />
esses PA’s relataram o que eles já estão observando <strong>de</strong> doenças<br />
224
Capítulo 8<br />
psicológicas, <strong>de</strong> doenças <strong>de</strong> pele, né, o que eles estão observando,<br />
e o município <strong>de</strong> Linhares está nesse momento se mobilizando<br />
pra tratar do tema, inclusive fazendo parte das câmaras técnicas<br />
<strong>de</strong> saú<strong>de</strong>, <strong>de</strong> organização social e biodiversida<strong>de</strong>, mas isso <strong>de</strong> uns<br />
meses pra cá.<br />
[Entrevista com gestor ambiental, realizada pelo GEPPEDES em<br />
Vitória/ES, em setembro <strong>de</strong> 2017].<br />
Como dito acima, atuações concretas que tratam da saú<strong>de</strong> humana ainda<br />
são <strong>de</strong>fectivas nos planos <strong>de</strong> ação oferecidos tanto pela Fundação Renova<br />
quanto pelo município <strong>de</strong> Linhares e outros órgãos públicos responsáveis,<br />
sendo tais ações prioritárias para resguardar a garantia fundamental<br />
à vida humana que é o direito à vida.<br />
CONSIDERAÇÕES FINAIS<br />
É importante ressaltar que a agência da lama é cíclica e não um mero<br />
evento isolado, uma vez que seus efeitos são continuados e isso influencia<br />
a própria prática do surfe em Regência Augusta (e não somente). Mas,<br />
dialogando com as narrativas dos surfistas, e a necessida<strong>de</strong> e o questionamento<br />
sobre os laudos, po<strong>de</strong>mos perceber a falta <strong>de</strong> interação <strong>de</strong> órgãos<br />
públicos, instituições e aca<strong>de</strong>mia, o que po<strong>de</strong> ser prejudicial aos atingidos.<br />
Essa interação é essencial para as novas relações a serem estabelecidas<br />
com o mar e as suas ondas, bem como para se pensar nas possíveis<br />
consequências para a saú<strong>de</strong> humana. Alguns laudos até existem, porém<br />
faltam medidas mais efetivas e <strong>de</strong> maior escala para lidar com o crime<br />
socioambiental enfocado.<br />
Todavia, não é possível dizer se a presença <strong>de</strong> um laudo <strong>de</strong>finitivo mudaria<br />
ou não a situação dos surfistas <strong>de</strong> Regência, até por conta do peso que<br />
a percepção sensorial e as emoções têm sobre a relação com as águas. Porém,<br />
as dúvidas po<strong>de</strong>riam ser mais bem esclarecidas. Mas é preciso atentar<br />
ao fato <strong>de</strong> que a saú<strong>de</strong> dos surfistas corre perigo, in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntemente<br />
das tonalida<strong>de</strong>s da água. O evento da lama é inter<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>nte com as mudanças<br />
climáticas da região, ou seja, no período das gran<strong>de</strong>s chuvas, há a<br />
problemática <strong>de</strong> se a<strong>de</strong>quar para remediar o ciclo vicioso após a tragédia,<br />
e os que mais sofrem com isso são os atingidos e a própria natureza.<br />
225
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Atentamos ao fato <strong>de</strong> que toda a problemática e os questionamentos<br />
quanto aos laudos estão gerando conflitos entre os próprios surfistas.<br />
Continuar ou não surfando em Regência, principalmente quando a tonalida<strong>de</strong><br />
da água se torna mais clara, é mergulhar por constantes testes.<br />
Os testes não estão apenas <strong>de</strong>ntro do mar, eles também são externos, pois<br />
as divergências entre surfar ou não no mar <strong>de</strong> Regência geram mal-estar<br />
entre os surfistas, principalmente aqueles que moram <strong>de</strong>ntro da vila, pelo<br />
fato <strong>de</strong> que há também os que <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>m que surfar não trará riscos.<br />
O surfe para os surfistas é ontológico, e a sua relação com o mar é intrínseca<br />
ao seu ser. O evento da lama afetou o sensível do ser e remexeu com<br />
toda a estrutura emocional, não apenas com a corporeida<strong>de</strong> do indivíduo,<br />
o ser físico, mas principalmente com os sentimentos, pois a relação com o<br />
mar é inerente ao surfista. A tragédia da lama <strong>de</strong>sestruturou o ser surfista<br />
em Regência, não pelo fato <strong>de</strong> <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser surfista, mas pela relação do<br />
surfista com o mar, relação essa que é transcen<strong>de</strong>ntal.<br />
226
Capítulo 8<br />
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229
230
Capítulo 9<br />
Documentários na re<strong>de</strong> sobre o <strong>Rio</strong> Doce<br />
após a “lama da Samarco”: imagens e<br />
territórios em disputa<br />
Daniela Zanetti<br />
Jéssica Latif<br />
Gessica Amâncio<br />
INTRODUção<br />
Meses após a tragédia socioambiental provocada pela mineradora Samarco<br />
– que em novembro <strong>de</strong> 2015 foi responsável por poluir o <strong>Rio</strong> Doce<br />
com rejeitos <strong>de</strong> mineração <strong>de</strong>vido ao rompimento <strong>de</strong> uma <strong>de</strong> suas barragens<br />
em Mariana (MG) –, já era possível assistir, no site <strong>de</strong> compartilhamento<br />
<strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os YouTube, <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> materiais audiovisuais sobre esse<br />
evento. O evento teve ampla repercussão na mídia tradicional, <strong>de</strong>ntro e<br />
fora do Brasil, mas também gerou uma gran<strong>de</strong> varieda<strong>de</strong> <strong>de</strong> conteúdo<br />
audiovisual disponibilizado no YouTube e produzido por distintos atores<br />
sociais: telerreportagens, web reportagens <strong>de</strong> veículos tradicionais <strong>de</strong> comunicação,<br />
ví<strong>de</strong>os amadores e documentários in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes.<br />
Inserindo, por exemplo, as palavras-chave “<strong>Rio</strong> Doce”, “lama” e “Samarco”<br />
no sistema <strong>de</strong> busca do YouTube, é possível encontrar mais <strong>de</strong> 6 mil 1<br />
publicações <strong>de</strong> materiais audiovisuais diversos que tratam direta ou indiretamente<br />
<strong>de</strong>ssa tragédia ambiental, enfocando o problema da água,<br />
do meio ambiente e das comunida<strong>de</strong>s atingidas. Acrescentando-se ainda<br />
nomes <strong>de</strong> cida<strong>de</strong>s e comunida<strong>de</strong>s situadas às margens do <strong>Rio</strong> Doce na<br />
busca, outras centenas <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os aparecem entre os resultados. São reportagens<br />
<strong>de</strong> TV e <strong>de</strong> re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> notícias (BBC, Canal Futura, TVE, Globo<br />
etc.), ví<strong>de</strong>os amadores, documentários, comentários/programas <strong>de</strong> vlogers<br />
e youtubers, teasers e até ví<strong>de</strong>os institucionais da própria Samarco.<br />
Este artigo objetiva i<strong>de</strong>ntificar modos <strong>de</strong> visibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s e<br />
1 Resultados obtidos até a finalização <strong>de</strong>ste artigo, em 12/09/2017.<br />
231
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
grupos sociais que foram atingidos <strong>de</strong> modo direto por essa tragédia ambiental,<br />
tendo como suporte <strong>de</strong> comunicação a produção audiovisual documental<br />
compartilhada em re<strong>de</strong>. Para tanto, apresenta uma breve análise<br />
<strong>de</strong> um conjunto <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os disponibilizados no YouTube, produzidos<br />
a partir <strong>de</strong> 2015 e que tratam <strong>de</strong> um tema específico: as consequências<br />
ambientais, sociais e culturais geradas pelo rompimento das barragens<br />
da mineradora Samarco em Mariana (MG) em novembro <strong>de</strong> 2015, tendo<br />
como foco a maneira como esse <strong>de</strong>sastre afetou as comunida<strong>de</strong>s situadas<br />
às margens do <strong>Rio</strong> Doce.<br />
Embora diversas reportagens televisivas tenham registrado as consequências<br />
<strong>de</strong>ssa tragédia, estando também disponíveis no YouTube, documentários<br />
produzidos por canais <strong>de</strong> TV não integram o conjunto <strong>de</strong><br />
produtos examinados. A etapa <strong>de</strong> seleção das obras consistiu em busca<br />
feita a partir <strong>de</strong> palavras-chave, tags e também a partir <strong>de</strong> sites específicos<br />
<strong>de</strong>dicados ao documentário e aos temas abordados na pesquisa.<br />
Como já apontado, o uso das palavras-chave – como “<strong>Rio</strong> Doce”, “lama”<br />
e “Samarco” – no sistema <strong>de</strong> busca do YouTube foi o dispositivo inicial<br />
para a localização <strong>de</strong>sses ví<strong>de</strong>os na re<strong>de</strong>. Em seguida, <strong>de</strong>ntre os materiais<br />
audiovisuais encontrados, selecionou-se aqueles que reuniam as seguintes<br />
características: a) tratarem <strong>de</strong> temas relativos ao “<strong>de</strong>sastre da lama da<br />
Samarco” e o modo como isso afetou comunida<strong>de</strong>s localizadas ao longo<br />
do <strong>Rio</strong> Doce, que no caso são representativas <strong>de</strong> grupos que <strong>de</strong> alguma<br />
forma sofrem “ameaças” e perdas <strong>de</strong> caráter territorial, comunida<strong>de</strong>s tradicionais<br />
e periféricas afetadas por gran<strong>de</strong>s empreendimentos econômicos<br />
(tais como barragens, <strong>de</strong>sastres ambientais etc.); b) apresentarem-se<br />
sob a forma <strong>de</strong> documentários; c) terem sido produzidos a partir <strong>de</strong> 2015.<br />
A seleção dos produtos estudados não teve como critério a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong><br />
visualizações, mas, sim, sua relevância do ponto <strong>de</strong> vista formal (recursos<br />
audiovisuais e dispositivos narrativos) e seu conteúdo. Também foram<br />
priorizadas produções in<strong>de</strong>pen<strong>de</strong>ntes, ou seja, não vinculadas a gran<strong>de</strong>s<br />
empresas <strong>de</strong> mídia (como, por exemplo, reportagens feitas para a TV que<br />
são postadas no YouTube). O recorte temporal leva em consi<strong>de</strong>ração o<br />
fato <strong>de</strong> que, no Brasil, o ano <strong>de</strong> 2015 é marcado por dois eventos críticos<br />
que <strong>de</strong>senca<strong>de</strong>aram um acirramento das disputas discursivas no campo<br />
político e social nos meios <strong>de</strong> comunicação em geral, mas em especial na<br />
Internet e nas re<strong>de</strong>s sociais on-line: o início do processo <strong>de</strong> impeachment<br />
232
Capítulo 9<br />
da presi<strong>de</strong>nta Dilma Rousseff e o rompimento <strong>de</strong> uma das barragens da<br />
mineradora Samarco, em Mariana (MG), que poluiu o <strong>Rio</strong> Doce e suas<br />
margens, afetando diversas cida<strong>de</strong>s e comprometendo o cotidiano <strong>de</strong> pequenas<br />
comunida<strong>de</strong>s em Minas Gerais e no Espírito Santo. Numa etapa<br />
posterior, os ví<strong>de</strong>os foram analisados a partir <strong>de</strong> suas características<br />
formais e narrativas, na tentativa <strong>de</strong> i<strong>de</strong>ntificar as “vozes” dos documentários<br />
a partir do modo como distintos atores sociais se apropriaram da<br />
problemática em questão e elaboram um discurso sobre isso. A proposta<br />
foi i<strong>de</strong>ntificar como diferentes dispositivos narrativos possibilitaram dar<br />
visibilida<strong>de</strong> às pessoas e comunida<strong>de</strong>s atingidas e evi<strong>de</strong>nciar dinâmicas<br />
sociais, políticas e econômicas que afetam esses territórios.Os documentários<br />
<strong>de</strong>stacados neste artigo são: Regência, as últimas horas antes da “lama”<br />
(2015) 2 ; <strong>Rio</strong> Doce, <strong>Rio</strong> Morto (2015) 3 ; A Luta Vencerá a Lama: uma marcha por<br />
justiça no <strong>Rio</strong> Doce 4 e <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Lama (2016) 5 .<br />
AUDIOVISUAL NAS re<strong>de</strong>s DIGITAIS: TERRITORIALIDADES,<br />
COMUNICAção e VISIBILIDADE<br />
As atuais plataformas <strong>de</strong> disponibilização <strong>de</strong> ví<strong>de</strong>os se tornaram ambientes<br />
propícios para o surgimento <strong>de</strong> discursos diversos, sobretudo a<br />
partir da circulação <strong>de</strong> produtos audiovisuais que trazem para o centro<br />
da narrativa as chamadas minorias sociais ou excluídas e suas <strong>de</strong>mandas<br />
por reconhecimento e visibilida<strong>de</strong> na esfera pública. É no contexto<br />
do ciberespaço – um ambiente marcado pela mediação em re<strong>de</strong> – que<br />
muitos materiais audiovisuais ganham repercussão junto a públicos distintos,<br />
possibilitando ainda a formação <strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s – <strong>de</strong> afetos, <strong>de</strong><br />
conhecimento etc. – em torno e/ou a partir <strong>de</strong>sses conteúdos. Essa visibilida<strong>de</strong><br />
passa também pelos modos <strong>de</strong> agenciamento do audiovisual na<br />
internet, ou seja, sua articulação com a cibercultura, com a cultura das<br />
re<strong>de</strong>s, ampliada pela lógica <strong>de</strong> compartilhamento cultural e <strong>de</strong> sociabilida<strong>de</strong>s<br />
propiciada pelas mídias sociais e pelas comunida<strong>de</strong>s virtuais que<br />
se constituem nesse contexto.<br />
2 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=3LLBLyfarew<br />
3 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=92kDMcz9ISE&t=872s<br />
4 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=sV-cSHwTJzs<br />
5 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7zQZqqSkJq0&t=151s<br />
233
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Nesse processo <strong>de</strong> mobilização da opinião pública através da operacionalização<br />
discursiva, a noção <strong>de</strong> esfera da visibilida<strong>de</strong> pública é importante na<br />
medida em que funciona como lugar <strong>de</strong> projeção dos discursos gerados no<br />
interior <strong>de</strong> uma re<strong>de</strong> <strong>de</strong> instituições e sujeitos sociais. É na esfera pública<br />
que se processa o <strong>de</strong>bate público, ou seja, “a contraposição argumentativa,<br />
a disputa <strong>de</strong> interesses mediada pela linguagem, as interações linguísticas<br />
competitivas sobre as matérias <strong>de</strong> interesse político coletivo” (GOMES, 2003,<br />
p. 58). Há uma esfera da visibilida<strong>de</strong> que pressupõe o processo <strong>de</strong> mediação,<br />
funcionando como espaço <strong>de</strong> fluxos e trocas discursivas entre indivíduos<br />
que <strong>de</strong> alguma forma estão relacionados com as questões colocadas em jogo.<br />
Para além das gran<strong>de</strong>s re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> mídia, espaços constituídos pelos veículos<br />
<strong>de</strong> comunicação hegemônicos e institucionalizados, po<strong>de</strong>-se consi<strong>de</strong>rar<br />
que houve certa ampliação da esfera da visibilida<strong>de</strong> pública a partir<br />
da efetivação das re<strong>de</strong>s sociais digitais, incorporando atores sociais mais<br />
diversificados e que <strong>de</strong> alguma forma passaram a participar mais ativamente<br />
dos processos <strong>de</strong> mediação na contemporaneida<strong>de</strong>.<br />
A partir do mapeamento e análise <strong>de</strong> alguns <strong>de</strong>sses ví<strong>de</strong>os documentais<br />
– consi<strong>de</strong>rando contexto cultural, aspectos estéticos e formais, temática e<br />
condições <strong>de</strong> produção –, i<strong>de</strong>ntificam-se os modos <strong>de</strong> representação <strong>de</strong>ssas<br />
minorias e os discursos gerados por esses materiais para se compreen<strong>de</strong>r<br />
como são capazes <strong>de</strong> ressignificar as territorialida<strong>de</strong>s – físicas e simbólicas<br />
– em disputa a partir da tragédia ambiental que <strong>de</strong>struiu um rio.<br />
A abordagem que pauta o estudo <strong>de</strong>sses materiais se ancora no conceito<br />
<strong>de</strong> territorialida<strong>de</strong> (RAFFESTIN, 1993; HAESBAERT, 2004), por enten<strong>de</strong>rmos<br />
que os atores sociais em evidência nessas narrativas foram afetados<br />
em seus territórios físicos e, portanto, necessitam ocupar territórios<br />
simbólicos para dar visibilida<strong>de</strong> às <strong>de</strong>mandas <strong>de</strong> suas comunida<strong>de</strong>s. A<br />
noção <strong>de</strong> territorialida<strong>de</strong> envolve a ação dos agentes e as disputas <strong>de</strong> po<strong>de</strong>r<br />
sobre um <strong>de</strong>terminado espaço, em um tempo específico. Para Haesbaert<br />
(2004), território, em qualquer acepção, diz respeito a po<strong>de</strong>r, “mas<br />
não apenas ao tradicional ‘po<strong>de</strong>r político’. Ele diz respeito tanto ao po<strong>de</strong>r<br />
no sentido mais concreto, <strong>de</strong> dominação, quanto ao po<strong>de</strong>r no sentido<br />
mais simbólico, <strong>de</strong> apropriação” (HAESBAERT, 2004, p. 1).<br />
Pensando a questão territorial a partir do marxismo, o geógrafo David<br />
Harvey privilegia a dimensão espacial no processo <strong>de</strong> acumulação no<br />
234
Capítulo 9<br />
modo <strong>de</strong> produção capitalista. Para tanto, ele procura <strong>de</strong>monstrar como a<br />
teoria da acumulação está ligada à teoria do imperialismo. Ao enfatizar a<br />
transformação da cultura em commodities no processo <strong>de</strong> globalização,<br />
Harvey <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que o “capitalismo, em um <strong>de</strong>terminado momento, constrói<br />
uma paisagem física apropriada à sua própria condição, apenas para<br />
ter <strong>de</strong> <strong>de</strong>struí-la, geralmente durante uma crise, em um momento subsequente”<br />
(HARVEY, 2005, p. 52). Para ele, os processos contemporâneos<br />
<strong>de</strong> globalização econômica se relacionam com as localida<strong>de</strong>s e as formas<br />
culturais. No caso da tragédia provocada pela Samarco, essa relação <strong>de</strong><br />
apropriação dos espaços visando à acumulação <strong>de</strong> capital é evi<strong>de</strong>nte.<br />
Os integrantes <strong>de</strong>ssas comunida<strong>de</strong>s tradicionais e ribeirinhas atingidas<br />
po<strong>de</strong>m ser consi<strong>de</strong>rados agentes periféricos, minorias sociais, pois, frente<br />
aos impactos da tragédia ambiental sobre seus territórios e cotidianos,<br />
estão sendo sub-representados institucionalmente, e também no que se<br />
refere à dimensão simbólica.<br />
Atualmente, o conceito <strong>de</strong> minoria se refere menos a uma questão <strong>de</strong><br />
quantida<strong>de</strong>, vinculando-se, então, a um aspecto qualitativo. Superam-se<br />
as questões numéricas e o conceito se apresenta com características tanto<br />
culturais quanto contra-hegemônicas. Sodré (2005) dispõe sobre as características<br />
da concepção <strong>de</strong> minorias como:<br />
A noção contemporânea <strong>de</strong> minoria [...] refere-se à possibilida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> terem voz ativa ou intervirem nas instâncias <strong>de</strong>cisórias do<br />
Po<strong>de</strong>r aqueles setores sociais ou frações <strong>de</strong> classe comprometidas<br />
com as diversas modalida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> luta assumidas pela questão<br />
social. Por isso, são consi<strong>de</strong>rados minorias os negros, os homossexuais,<br />
as mulheres, os povos indígenas, os ambientalistas, os<br />
antineoliberalistas etc. (SODRÉ, 2005, p. 11-12).<br />
Minoria, em seu conceito amplo, po<strong>de</strong> ser entendida como um conjunto<br />
<strong>de</strong> setores sociais ou parte <strong>de</strong> classes que se comprometem com lutas sociais<br />
que vislumbram possuírem voz ativa ou intervirem nas instâncias <strong>de</strong><br />
po<strong>de</strong>r. Muniz Sodré (2005) afirma que as minorias po<strong>de</strong>m possuir características<br />
básicas que a conceituam. A primeira é a chamada vulnerabilida<strong>de</strong><br />
jurídico-social, isto é, elas apresentam um aspecto <strong>de</strong> vulnerabilida<strong>de</strong><br />
diante das políticas públicas e da legitimida<strong>de</strong> institucional. Já a i<strong>de</strong>nti-<br />
235
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
da<strong>de</strong> in statu nascendi dispõe que a minoria se apresenta constantemente<br />
com um aspecto <strong>de</strong> recomeço, com a característica <strong>de</strong> estar em constante<br />
formação. A terceira característica é a luta contra-hegemônica, ou seja, a<br />
luta da minoria contra a vigência do po<strong>de</strong>r hegemônico, a partir <strong>de</strong> ações<br />
minoritárias que po<strong>de</strong>m até se concretizar em virtu<strong>de</strong> <strong>de</strong> uma repercussão<br />
midiática. Por fim, existem as estratégias discursivas, que incluem<br />
também ações <strong>de</strong>monstrativas, formas pelas quais as minorias dão visibilida<strong>de</strong><br />
pública às suas <strong>de</strong>mandas: passeatas, manifestações, meios <strong>de</strong> comunicação<br />
alternativos (como jornais, ví<strong>de</strong>os, folhetos etc.), campanhas,<br />
manifestos, entre outras estratégias.<br />
Assim, a mídia e outros espaços <strong>de</strong> visibilida<strong>de</strong> pública (como as re<strong>de</strong>s<br />
sociais digitais) se tornam palco <strong>de</strong> disputas simbólicas e expõem as novas<br />
formas <strong>de</strong> se fazer política na socieda<strong>de</strong>. Recursos midiáticos, <strong>de</strong>ssa<br />
forma, surgem para as minorias como uma possibilida<strong>de</strong> <strong>de</strong> atuar no<br />
campo do simbólico.<br />
Partindo do pressuposto <strong>de</strong> que “ao se apropriar <strong>de</strong> um espaço, concreta<br />
ou abstratamente (por exemplo, pela representação)”, os atores sociais<br />
“territorializam” o espaço (RAFFESTIN, 1993, p. 143), enten<strong>de</strong>-se que as<br />
práticas <strong>de</strong> produção audiovisual também funcionam como dispositivos<br />
capazes <strong>de</strong> estabelecer territorialida<strong>de</strong>s ou <strong>de</strong>, pelo menos, torná-las<br />
visíveis e passíveis <strong>de</strong> serem i<strong>de</strong>ntificadas para além <strong>de</strong> suas fronteiras<br />
concretas. Tais práticas são, em essência, uma forma <strong>de</strong> “apropriação” <strong>de</strong><br />
espaços, que po<strong>de</strong>m ser recriados, realçados, modificados etc., sendo objeto<br />
(e também suporte) <strong>de</strong> uma construção discursiva. A própria ação do<br />
realizador audiovisual também consiste em ocupar, durante um tempo<br />
<strong>de</strong>terminado, espaços físicos que são ressignificados a partir das (novas)<br />
espacialida<strong>de</strong>s criadas pela linguagem audiovisual, seja no processo <strong>de</strong> filmagem,<br />
seja nas etapas <strong>de</strong> pós-produção (edição, tratamento <strong>de</strong> imagem e<br />
<strong>de</strong> som, efeitos especiais etc.). Desse modo, os documentários sob análise<br />
dão visibilida<strong>de</strong> às novas territorialida<strong>de</strong>s – e uma consequente disputa<br />
por territórios – geradas pelo <strong>de</strong>sastre provocado pela Samarco e aos <strong>de</strong>slocamentos<br />
físicos e simbólicos sofridos pelas comunida<strong>de</strong>s afetadas.<br />
Consi<strong>de</strong>rando tais premissas, propomos as seguintes questões: que atores<br />
sociais compõem as vozes dos documentários? Quais as abordagens trazidas<br />
pelos ví<strong>de</strong>os e que tipo <strong>de</strong> discurso prevalece com relação ao evento<br />
236
Capítulo 9<br />
da “lama da Samarco”? Como novas territorialida<strong>de</strong>s se constituem a partir<br />
<strong>de</strong>sses materiais?<br />
Uma TRAGÉDIA, MUITAS VOZES, diferentes PERSPECTIVAS:<br />
A CHEGADA DA lama<br />
Como o próprio título sugere, o documentário Regência, as últimas horas<br />
antes da “lama” procura mostrar os momentos que prece<strong>de</strong>m a chegada da<br />
lama <strong>de</strong> rejeitos na <strong>de</strong>sembocadura do <strong>Rio</strong> Doce, on<strong>de</strong> está localizada a vila<br />
<strong>de</strong> Regência. O documentário <strong>de</strong> 10min42s foi publicado em 12 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro<br />
<strong>de</strong> 2015 e conta com 56.031 visualizações. É uma realização do Instituto Últimos<br />
Refúgios 6 , uma organização socioambiental sem fins lucrativos que se<br />
<strong>de</strong>dica à produção <strong>de</strong> material audiovisual relacionado ao meio ambiente.<br />
O documentário tem início com imagens da praia <strong>de</strong> Regência e das águas<br />
limpas do mar, e das estradas <strong>de</strong> terra e da vila <strong>de</strong> Regência, feitas a partir<br />
<strong>de</strong> um carro em movimento. O seguinte texto explicativo aparece em tela:<br />
No dia 5 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2015 uma barragem <strong>de</strong> mineração rompeu-se<br />
em Minas Gerais liberando milhões <strong>de</strong> m³ <strong>de</strong> rejeitos. O<br />
aci<strong>de</strong>nte matou <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> pessoas e a “lama” atingiu o <strong>Rio</strong> Doce.<br />
Seguiu seu curso até a foz, chegando em Regência no dia 21 <strong>de</strong><br />
novembro.<br />
A partir <strong>de</strong>sse enunciado, a edição do filme se conduz pela contagem do<br />
tempo restante para a chegada da lama à vila. Faltando, então, sete horas<br />
para o evento (como mostra uma espécie <strong>de</strong> cronômetro colocado em<br />
tela), as primeiras imagens mostram pessoas praticando surf, com <strong>de</strong>poimentos<br />
<strong>de</strong> surfistas explicando as razões das ondas perfeitas <strong>de</strong> Regência,<br />
e relatando suas expectativas em torno da “chegada da lama”. Uma<br />
espécie <strong>de</strong> “mediador” – Thiago Ferrari, do Instituo O Canal – caminha<br />
filmando a si mesmo, explicando as fontes <strong>de</strong> renda <strong>de</strong> Regência, a importância<br />
do rio para a vila e os impactos sobre o turismo local. Imagens da<br />
natureza e <strong>de</strong> manifestações culturais da região são usadas para “ilustrar”<br />
essa fala. As entrevistas usadas no documentário são <strong>de</strong> surfistas, uma<br />
comerciante, um representante do projeto Tamar, um pescador. A comer-<br />
6 www.ultimosrefugios.org.br<br />
237
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
ciante Thalena Pereira, i<strong>de</strong>ntificada no ví<strong>de</strong>o como “nativa <strong>de</strong> Regência”,<br />
dá o seguinte <strong>de</strong>poimento:<br />
Nunca pensei em sair daqui para ganhar a vida fora. Minha expectativa<br />
<strong>de</strong> vida era manter isso aqui, simples mesmo, o que a<br />
gente tem aqui mesmo, bar, restaurante e pousadinha. Isso já estava<br />
sendo ótimo. Aí inesperadamente acontece isso. A Samarco<br />
vem e acaba com o sonho <strong>de</strong> todos. Acho que não só o meu, mas<br />
<strong>de</strong> todos.<br />
Também ouvimos a voz do pescador José Nildo “Frango”, que maneja seu<br />
barco sobre o rio, enquanto a câmera capta imagens da água: “O que será<br />
<strong>de</strong> nós? Vamos viver do que agora?”.<br />
O documentário também traz imagens <strong>de</strong> um protesto realizado às margens<br />
do <strong>Rio</strong> Doce, no píer da vila <strong>de</strong> Regência, no momento em que a<br />
lama chega ao local, cenas estas que também foram amplamente divulgadas<br />
pelas re<strong>de</strong>s <strong>de</strong> TV. Algumas pessoas nadam no rio ainda limpo e os<br />
manifestantes empunham cartazes e faixas.<br />
O tempo 00:00:00 exibido em tela indica a chegada da lama. Uma câmera<br />
num barco mostra o encontro das águas barrentas com as águas limpas<br />
do rio, o que também é registrado por câmeras aéreas. Uma música<br />
instrumental inserida no ví<strong>de</strong>o conduz a narrativa com dramaticida<strong>de</strong>.<br />
Vozes em off dos <strong>de</strong>poimentos gravados ao longo do documentário são<br />
inseridas <strong>de</strong> modo alternado, reforçando falas <strong>de</strong> indignação e tristeza.<br />
238
Capítulo 9<br />
Figuras 1 e 2: Pescador navega na <strong>de</strong>sembocadura do <strong>Rio</strong> Doce, antes e<br />
após a “chegada” da lama em Regência<br />
Fonte: Regência, as últimas horas antes da “lama” (2015).<br />
Figura 3: Moradores e visitantes <strong>de</strong> Regência protestam no dia da “chegada”<br />
da lama.<br />
Fonte: Regência, as últimas horas antes da “lama” (2015).<br />
239
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Figura 4: Moradores aguardam no cais a “chegada” da lama em Regência.<br />
Fonte: Regência, as últimas horas antes da “lama” (2015).<br />
SAÚDE pública<br />
Disponível no canal do YouTube do médico e escritor Drauzio Varella,<br />
o documentário <strong>Rio</strong> Doce, <strong>Rio</strong> Morto é uma realização da produtora <strong>de</strong> filmes<br />
e conteúdos Uzumaki. Publicado em 23 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2015, trata-se<br />
<strong>de</strong> um documentário que possui o formato próximo a <strong>de</strong> uma reportagem,<br />
<strong>de</strong>dicado a mostrar os impactos da lama tóxica no <strong>Rio</strong> Doce, especificamente<br />
na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Colatina, no norte do ES, situada às margens do<br />
rio. A narração é conduzida pelo médico Drauzio Varella, que se tornou<br />
bastante conhecido no Brasil por se <strong>de</strong>dicar à popularização da informação<br />
médica, <strong>de</strong>senvolvendo programas e participando <strong>de</strong> campanhas no<br />
rádio, na TV e na internet sobre questões do campo da saú<strong>de</strong>. Embora<br />
seja externo à comunida<strong>de</strong> retratada, e apesar <strong>de</strong> não aparecer no ví<strong>de</strong>o, o<br />
autor do documentário tem um trabalho midiático já reconhecido como<br />
socialmente engajado sobre o tema da saú<strong>de</strong> pública, o que confere legitimida<strong>de</strong><br />
a esse produto audiovisual.<br />
O foco do documentário <strong>de</strong> 16min22s é a questão da saú<strong>de</strong> pública no município<br />
<strong>de</strong> Colatina em função dos problemas relativos ao fornecimento<br />
<strong>de</strong> água para a população, em especial os casos <strong>de</strong> <strong>de</strong>ngue e zika vírus. Na<br />
ocasião da realização do documentário, moradores <strong>de</strong> Colatina estavam<br />
240
Capítulo 9<br />
vivendo um caos diário pela falta <strong>de</strong> água potável, tendo que enfrentar<br />
gran<strong>de</strong>s filas para aquisição <strong>de</strong> água mineral, que estava sendo distribuída<br />
para consumo pessoal.<br />
O ví<strong>de</strong>o tem início com imagens em plano aberto, apresentando a cida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Colatina a partir <strong>de</strong> um barco que navega pelo <strong>Rio</strong> Doce. O pescador<br />
que conduz o barco é entrevistado e fala dos prejuízos causados pela lama<br />
da Samarco. Em voz over, Drauzio Varella explica o que foi a tragédia ambiental<br />
do <strong>Rio</strong> Doce, enquanto vemos num mapa em tela o percurso da<br />
lama pelo rio. “Ainda não é possível estimar a dimensão <strong>de</strong>sta tragédia.<br />
A única certeza é que o <strong>Rio</strong> Doce está morto”, afirma o narrador. Em seguida,<br />
a equipe <strong>de</strong> reportagem visita a associação <strong>de</strong> pescadores da cida<strong>de</strong>.<br />
As imagens mostram caixas <strong>de</strong> isopor e gela<strong>de</strong>iras vazias, e focam os<br />
rostos dos pescadores, que relatam sobre os prejuízos financeiros: quanto<br />
ganhavam com a pesca e quanto passarão a receber pela Samarco.<br />
Numa segunda parte do documentário, o narrador apresenta a cida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> Colatina. Na sequência, a secretária <strong>de</strong> Saú<strong>de</strong> <strong>de</strong> Colatina na ocasião<br />
(Débora Gatti <strong>de</strong> Carvalho) fala sobre o problema da água no município<br />
e o que tem sido feito pela prefeitura para combater casos como os <strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>ngue e <strong>de</strong> zika vírus. As imagens mostram o atendimento nos postos <strong>de</strong><br />
saú<strong>de</strong>, a espera dos pacientes, o trabalho dos agentes <strong>de</strong> saú<strong>de</strong> etc. Drauzio<br />
Varella retoma a narração, falando das dificulda<strong>de</strong>s do fornecimento<br />
<strong>de</strong> água potável na cida<strong>de</strong>.<br />
Posteriormente, duas falas distintas evi<strong>de</strong>nciam o fato <strong>de</strong> que não existe<br />
consenso com relação à qualida<strong>de</strong> da água que estava sendo fornecida à<br />
população. Um engenheiro representante da SANEAR (Serviço Colatinense<br />
<strong>de</strong> Saneamento Ambiental) afirma que o novo tratamento adotado<br />
pela empresa oferece água em boas condições para consumo. Por outro<br />
lado, um promotor <strong>de</strong> justiça afirma que não há garantias <strong>de</strong> que a água<br />
estaria apta para uso da população e <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> medidas <strong>de</strong> precaução e a<br />
troca <strong>de</strong> fontes <strong>de</strong> abastecimento.<br />
“A Justiça Fe<strong>de</strong>ral obrigou a Samarco a distribuir água mineral para a população<br />
<strong>de</strong> Colatina. Todos os dias as filas e os postos <strong>de</strong> distribuição começam<br />
muitas horas antes da chegada dos caminhões”, relata o narrador,<br />
enquanto são exibidas imagens das longas e tumultuadas filas <strong>de</strong> moradores<br />
que se formam nas ruas e calçadas. Alguns <strong>de</strong>poimentos falam tan-<br />
241
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
to das dificulda<strong>de</strong>s em se obter a água distribuída pela Samarco quanto<br />
das condições precárias do fornecimento <strong>de</strong> água potável na cida<strong>de</strong>.<br />
Num bloco seguinte, são exibidas em tela diversas manchetes publicadas<br />
em sites <strong>de</strong> notícias que tratam do conflito <strong>de</strong> <strong>de</strong>cisões judiciais em relação<br />
a Samarco: a empresa consegue autorização para <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> fornecer<br />
a água mineral à população, mas logo em seguida é novamente obrigada<br />
a prestar esse serviço.<br />
Saindo do centro urbano, somos então levados para a zona rural <strong>de</strong> Colatina,<br />
numa comunida<strong>de</strong> situada a 30 quilômetros da cida<strong>de</strong>. A personagem<br />
escolhida é uma dona <strong>de</strong> casa que está com suspeita <strong>de</strong> infecção por<br />
zika. Em sua casa, ela mostra como é o sistema <strong>de</strong> coleta e <strong>de</strong> armazenamento<br />
<strong>de</strong> água, a queima <strong>de</strong> lixo, a fossa.<br />
A alternância entre os <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> pessoas simples – moradores mais<br />
afetados, representando a população <strong>de</strong> Colatina – e as entrevistas <strong>de</strong><br />
autorida<strong>de</strong>s e especialistas caracteriza o viés jornalístico do ví<strong>de</strong>o, que<br />
procura ouvir vários “lados”, apresentar mais <strong>de</strong> uma versão dos fatos,<br />
especificamente se a água do <strong>Rio</strong> Doce teria condições <strong>de</strong> ser ou não usada<br />
pela população, mesmo após tratamento específico. Contudo, ao final<br />
do documentário, sobre imagens <strong>de</strong> Colatina e do <strong>Rio</strong> Doce, o médico se<br />
manifesta sobre o tema, novamente em voz over:<br />
Enquanto o país vacila na punição dos responsáveis e na implantação<br />
<strong>de</strong> medidas <strong>de</strong> emergência, a população <strong>de</strong> Colatina<br />
segue <strong>de</strong>samparada e <strong>de</strong>sinformada. Estão reunidas todas as<br />
condições para uma calamida<strong>de</strong> na saú<strong>de</strong> pública. Conseguiremos<br />
agir a tempo?<br />
Trata-se <strong>de</strong> uma pergunta que evi<strong>de</strong>ncia a serieda<strong>de</strong> e a urgência com que<br />
<strong>de</strong>veria ser tratado o problema, uma espécie <strong>de</strong> alerta.<br />
242
Capítulo 9<br />
Figura 5: Pescadores navegam pelo <strong>Rio</strong> Doce, em Colatina, Norte do ES.<br />
Fonte: <strong>Rio</strong> Doce, <strong>Rio</strong> Morto (2015).<br />
Figura 6: Moradores <strong>de</strong> Colatina às margens do <strong>Rio</strong> Doce, já poluído.<br />
Fonte: <strong>Rio</strong> Doce, <strong>Rio</strong> Morto (2015).<br />
243
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Figura 7: Moradores <strong>de</strong> Colatina enfrentavam diariamente filas <strong>de</strong> distribuição<br />
<strong>de</strong> água.<br />
Fonte: <strong>Rio</strong> Doce, <strong>Rio</strong> Morto (2015).<br />
Figura 8: Responsável pelo controle da qualida<strong>de</strong> da água da empresa<br />
Serviço Colatinense <strong>de</strong> Saneamento Ambiental: disputa discursiva em<br />
torno da qualida<strong>de</strong> da água potável fornecida à população.<br />
Fonte: <strong>Rio</strong> Doce, <strong>Rio</strong> Morto (2015).<br />
244
Capítulo 9<br />
MARCHA por JUSTIça<br />
O documentário A Luta Vencerá a Lama: uma marcha por justiça no <strong>Rio</strong><br />
Doce, produzido pelo Coletivo <strong>de</strong> Comunicação do Movimento dos Atingidos<br />
por Barragens (MAB), apesar <strong>de</strong> registrar pouco mais <strong>de</strong> mil visualizações,<br />
é um importante instrumento <strong>de</strong> ampliação <strong>de</strong> vozes <strong>de</strong> uma<br />
minoria específica, organizada enquanto movimento social.<br />
Publicado em 9 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2016, esse documentário é assim apresentado<br />
no canal do MAB Comunicação no YouTube:<br />
1 ano após o crime da Samarco (Vale/BHP Billiton), que matou o<br />
<strong>Rio</strong> Doce, o Movimento dos Atingidos por Barragens (MAB) refez<br />
o caminho inverso da lama. A marcha que percorreu mais <strong>de</strong> 700<br />
km se iniciou na Vila <strong>de</strong> Regência (ES), local on<strong>de</strong> a lama encontrou<br />
o mar, passando por inúmeros municípios às margens do rio<br />
até chegar ao seu ponto final: o distrito <strong>de</strong> Bento Rodrigues, em<br />
Mariana (MG), povoado que foi totalmente <strong>de</strong>vastado pela lama.<br />
No <strong>de</strong>correr <strong>de</strong>ssa jornada <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia, luto e luta, atingidos por<br />
barragens do Brasil todo trocaram experiências e solidarieda<strong>de</strong>.<br />
Testemunhamos o sofrimento e angústia das pessoas atingidas.<br />
Vimos surtos <strong>de</strong> doenças multiplicando-se aos milhares, famílias<br />
com medo <strong>de</strong> beber a água, sacrificando-se ao buscá-la em locais<br />
distantes ou gastando seu dinheiro para comprar água mineral.<br />
Testemunhamos a enorme angústia, inimaginável tristeza <strong>de</strong><br />
quem per<strong>de</strong>u familiares e amigos, suas referências culturais, sua<br />
casa, seu meio <strong>de</strong> subsistência, o seu emprego e trabalho, os pertences<br />
pessoais, os brinquedos das crianças, o rio, a água, animais<br />
domésticos, peixes e gran<strong>de</strong> parte da natureza.<br />
Testemunhamos também a existência <strong>de</strong> um povo forte, trabalhador<br />
e lutador, que sofre, mas que tem esperança, que quer a<br />
justiça, quer seus direitos, e para isto está disposto a se organizar<br />
e lutar em um só grito: A Luta vencerá a Lama!<br />
Abaixo da <strong>de</strong>scrição do documentário, um link nos leva à página Tragédia<br />
Anunciada 7 , vinculada ao MAB, que traz matérias e atualiza o interessado<br />
7 http://tragedianunciada.mabnacional.org.br/<br />
245
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
acerca do tema.<br />
O documentário, com quase 45 minutos <strong>de</strong> duração, tem como dispositivo<br />
o registro da marcha que percorre as margens do <strong>Rio</strong> Doce. Por um<br />
mapa, acompanhamos o <strong>de</strong>slocamento da marcha do Espírito Santo em<br />
direção a Minas Gerais. As imagens <strong>de</strong>sse longo protesto – com centenas<br />
<strong>de</strong> pessoas empunhando ban<strong>de</strong>iras e caminhando por ruas e estradas<br />
– pontuam toda a narrativa, que se forma a partir <strong>de</strong> <strong>de</strong>poimentos dos<br />
manifestantes, moradores, li<strong>de</strong>ranças locais e representantes <strong>de</strong> minorias<br />
das regiões, coletados nas diversas cida<strong>de</strong>s e comunida<strong>de</strong>s existentes nesse<br />
percurso. Dessa maneira, traça um panorama acerca da situação <strong>de</strong>sses<br />
territórios após um ano da tragédia ambiental. “O que mudou?” é a pergunta<br />
que conduz as entrevistas com os moradores. As falas, em geral <strong>de</strong><br />
indignação e revolta, também aparecem nos discursos <strong>de</strong> representantes<br />
<strong>de</strong> movimentos sociais e <strong>de</strong> outras minorias que participam dos atos públicos<br />
e das ações organizadas pela marcha em cada localida<strong>de</strong>. Fotos e<br />
imagens <strong>de</strong> arquivo são utilizadas para servir <strong>de</strong> apoio aos relatos sobre os<br />
eventos que marcaram o primeiro ano <strong>de</strong>ssa tragédia.<br />
A edição do documentário alterna momentos <strong>de</strong> tensão, mostrando os<br />
dramas das pessoas afetadas, com cenas que ressaltam, por outro lado,<br />
aspectos como solidarieda<strong>de</strong>, união, coletivida<strong>de</strong>, engajamento e alegria,<br />
essas últimas quase sempre tendo como trilha sonora músicas <strong>de</strong> caráter<br />
popular. Numa gran<strong>de</strong> festa realizada ao longo da marcha, o grupo Falamansa<br />
e o cantor Zé Geraldo, por exemplo, aparecem cantando e dando<br />
<strong>de</strong>poimentos em favor das mobilizações dos atingidos. No fechamento do<br />
documentário, imagens em preto e branco e em câmera lenta <strong>de</strong> um protesto<br />
realizado na localida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Bento Rodrigues, on<strong>de</strong> ocorreu o rompimento<br />
da barragem, evi<strong>de</strong>nciam as vozes que gritam juntas por justiça.<br />
246
Capítulo 9<br />
Figuras 9 e 10: Marcha organizada pelo Movimento dos Atingidos por<br />
Barragens (MAB) realizada um ano após a tragédia ambiental provocada<br />
pela Samarco.<br />
Fonte: A Luta Vencerá a Lama: uma marcha por justiça no <strong>Rio</strong> Doce (2016).<br />
247
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Figuras 11 e 12: O documentário traz <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> moradores <strong>de</strong> localida<strong>de</strong>s<br />
situadas às margens do <strong>Rio</strong> Doce.<br />
Fonte: A Luta Vencerá a Lama: uma marcha por justiça no <strong>Rio</strong> Doce (2016).<br />
248
Capítulo 9<br />
REALIDADE VIRTUAL<br />
Recorrendo a outro dispositivo narrativo e à interativida<strong>de</strong>, o trabalho <strong>Rio</strong><br />
<strong>de</strong> Lama – A maior tragédia ambiental do Brasil 8 , do artista multimídia brasileiro<br />
Ta<strong>de</strong>u Jungle, inova ao utilizar a realida<strong>de</strong> virtual e a técnica do ví<strong>de</strong>o 360° para<br />
retratar, especificamente, os impactos do rompimento da barragem da Samarco<br />
sobre os sobreviventes da região <strong>de</strong> Mariana, em Minas Gerais. Publicado<br />
em 4 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2016, o documentário <strong>de</strong> 9min35s teve 21.8119 visualizações.<br />
Na obra, uma voz over conduz a narrativa, ressaltando a caráter trágico<br />
do evento:<br />
Na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Mariana, uma barragem <strong>de</strong> rejeitos <strong>de</strong> minério <strong>de</strong><br />
ferro da empresa Samarco se rompeu em 5 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2015.<br />
Sem a existência <strong>de</strong> um plano <strong>de</strong> emergência e nem sequer uma<br />
sirene <strong>de</strong> alerta, um rio <strong>de</strong> lama fez com que a vila <strong>de</strong> Bento Rodrigues<br />
<strong>de</strong>saparecesse do mapa e <strong>de</strong>ixasse 19 pessoas mortas. A<br />
lama fez o seu caminho <strong>de</strong> 600 quilômetros <strong>de</strong> <strong>de</strong>struição até o<br />
mar, o maior <strong>de</strong>sastre da história ambiental brasileira.<br />
O curta-metragem reúne <strong>de</strong>poimentos <strong>de</strong> pessoas que moravam em Bento<br />
Rodrigues e que per<strong>de</strong>ram suas casas com a tragédia. O espaço retratado<br />
é a própria vila <strong>de</strong>struída e coberta <strong>de</strong> lama. Esses sobreviventes circulam<br />
por entre os <strong>de</strong>stroços do local enquanto resgatam na memória eventos<br />
que faziam parte do cotidiano na comunida<strong>de</strong>: a disposição das ruas e<br />
das casas, a convivência entre os vizinhos, o lazer das crianças e as perdas<br />
sofridas após o evento. O tom melancólico da obra ressalta o fato <strong>de</strong> que<br />
nunca mais essas pessoas po<strong>de</strong>rão retornar as suas casas <strong>de</strong> origem.<br />
Os <strong>de</strong>poimentos são ouvidos em off, enquanto as imagens mostram cada<br />
um dos entrevistados caminhando em diferentes pontos da vila <strong>de</strong>vastada.<br />
Um cursor com setas situado no canto superior esquerdo da tela permite<br />
“navegar” em quatro direções pelas imagens em 360°, possibilitando<br />
uma melhor visualização dos estragos causados pela avalanche <strong>de</strong> lama.<br />
Ao final, o narrador <strong>de</strong>fen<strong>de</strong> que seja construído um “memorial <strong>de</strong> Mariana”<br />
para que a tragédia “não seja esquecida e nem repetida”.<br />
8 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=7zQZqqSkJq0&t=49s. Acesso em<br />
07/09/2017.<br />
9 Visualizações até 07/09/2017.<br />
249
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Figuras 13 a 15: Destruição e <strong>de</strong>solação marcam as imagens da obra <strong>Rio</strong> <strong>de</strong><br />
Lama, que inova esteticamente.<br />
Fonte: <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Lama – A maior tragédia ambiental do Brasil (2016).<br />
250
Capítulo 9<br />
VíDEOS amadores<br />
Embora não tenha feito parte do corpus <strong>de</strong> estudo <strong>de</strong>ste artigo, cabe<br />
<strong>de</strong>stacar que um tipo <strong>de</strong> material bastante encontrado no processo <strong>de</strong><br />
busca <strong>de</strong> documentários no YouTube são os ví<strong>de</strong>os amadores. São diversos<br />
fragmentos <strong>de</strong> filmagens, com imagens por vezes precárias, mas com<br />
forte caráter <strong>de</strong> registro e <strong>de</strong> <strong>de</strong>núncia.<br />
Com 98.702 visualizações e postado em 11 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2015, seis dias<br />
após o rompimento da barragem, um ví<strong>de</strong>o <strong>de</strong> 7min55s intitulado “lama<br />
da barragem em mariana matou todos os peixes do rio doce” é um exemplo<br />
<strong>de</strong> ví<strong>de</strong>o amador que gerou boa repercussão. Trata-se <strong>de</strong> um gran<strong>de</strong><br />
“plano sequência” que mostra centenas <strong>de</strong> peixes mortos às margens do<br />
rio. Inicialmente, as imagens são feitas a partir <strong>de</strong> um barco <strong>de</strong> pesca em<br />
movimento. Em off, ouvimos a voz <strong>de</strong> alguns homens que se i<strong>de</strong>ntificam<br />
como “nós, pescadores”. Eles conduzem a narrativa, perplexos e revoltados,<br />
recolhendo peixes mortos e i<strong>de</strong>ntificando cada um <strong>de</strong>les: “Olha aí,<br />
gente, o peixe morto aí” / “Quero ver quem vai ser responsável por isso<br />
aí agora” / “Matou tudo, gente!” Não tem nenhuma espécie viva aqui” /<br />
“Olha, gente, tucunaré, tilápia, cascudo, piranha...” / “Acabou, gente!”. A<br />
<strong>de</strong>scrição do ví<strong>de</strong>o no YouTube enfatiza a perspectiva dos pescadores:<br />
Como que os pescadores profissional do leito do rio doce vai sustentar<br />
sua família? que a única fonte <strong>de</strong> renda é a pesca, que a lama da barragem<br />
da Samarco com seus resíduos químicos e lama matou (todas) as espécies<br />
<strong>de</strong> peixes do leito do rio doce, que no mínimo vai <strong>de</strong>morar 20 anos para<br />
que o rio doce recupera sua fauna e flora. que vai ser responsável pela<br />
maior impacto ambiental da história.<br />
Ao longo do ví<strong>de</strong>o, os pescadores questionam sobre o que lhes resta e<br />
como po<strong>de</strong>rão sustentar suas famílias. Ao final, quatro homens seguram<br />
peixes <strong>de</strong> gran<strong>de</strong> porte mortos e os exibem para a câmera. O cinegrafista<br />
toma cuidado para não mostrar o rosto dos pescadores.<br />
Esses ví<strong>de</strong>os amadores, em geral, são compostos por imagens pontuais<br />
que mostram o <strong>Rio</strong> Doce sujo e o modo como a lama <strong>de</strong>struiu a fauna e a<br />
flora ao longo do rio, e narração em voz over, que praticamente <strong>de</strong>screve<br />
essas imagens. É o caso, por exemplo, do ví<strong>de</strong>o Tragédia <strong>de</strong> Mariana <strong>Rio</strong><br />
doce pe<strong>de</strong> socorro - Peixes mortos sem pieda<strong>de</strong>, com 81.072 visualizações,<br />
251
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
e publicado no dia 7 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2015, ou seja, dois dias após o rompimento<br />
da barragem da Samarco.<br />
Figuras 16 a 18: Pescadores que vivem às margens do <strong>Rio</strong> Doce mostram<br />
como a “lama” da Samarco foi responsável pela matança <strong>de</strong> peixes.<br />
Fonte: “Lama da barragem em mariana matou todos os peixes do <strong>Rio</strong> Doce”<br />
252
Capítulo 9<br />
VIDEOCLIPE<br />
Outro produto audiovisual que trata diretamente da tragédia socioambiental<br />
provocada pela Samarco é o vi<strong>de</strong>oclipe da canção Cacimba <strong>de</strong><br />
Mágoa 10 , da banda Falamansa e do cantor Gabriel O Pensador, publicado<br />
em 15 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2016. Com 4min30s, o vi<strong>de</strong>oclipe obteve mais <strong>de</strong> um<br />
milhão <strong>de</strong> visualizações e foi produzido pelos artistas em parceria com o<br />
Instituto Últimos Refúgios (responsável pelo documentário Regência, as<br />
últimas horas antes da lama, <strong>de</strong>stacado neste artigo, e outros ví<strong>de</strong>os sobre o<br />
<strong>Rio</strong> Doce). A <strong>de</strong>scrição do ví<strong>de</strong>o no site explica o projeto:<br />
A Falamansa se uniu ao rapper Gabriel O Pensador e, em parceria<br />
com o instituto Últimos Refúgios e o Instituto O Canal, lançam<br />
um clipe emocionante dirigido pela brilhante diretora alemã Ilka<br />
Westermeyer. Cada visualização <strong>de</strong>ste clipe se transforma em<br />
uma doação para um fundo <strong>de</strong> assistência as famílias ribeirinhas<br />
com a finalida<strong>de</strong> <strong>de</strong> promover obras sociais comunitárias. Compartilhe<br />
o link e faça a sua parte! http://goo.gl/ZHiHTb<br />
No clipe, a montagem combina cenas dos artistas gravando a canção em<br />
estúdio com diversas imagens do <strong>Rio</strong> Doce e dos territórios <strong>de</strong>vastados<br />
pela lama, <strong>de</strong>stacando as águas sujas do rio, além das imagens <strong>de</strong> ribeirinhos<br />
diretamente afetados pela tragédia. Em quadros menores, sobrepostos<br />
na tela, personalida<strong>de</strong>s da televisão e da cena musical se posicionam<br />
em frente à câmera segurando cartazes com nomes <strong>de</strong> pessoas e palavras<br />
citadas na canção precedidas <strong>de</strong> uma hashtag, enfatizando os danos sociais<br />
provocados pelo <strong>de</strong>rramamento dos rejeitos <strong>de</strong> mineração no <strong>Rio</strong><br />
Doce e o modo como esse evento afetou a vida <strong>de</strong> milhares <strong>de</strong> pessoas.<br />
10 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=zX11uEaCZlY&list=PLBC5ZISdvR6JNxZ6f6ilI4lYsRdCN6Xep.<br />
Acesso em 07/09/2017.<br />
253
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Figura 19: Anônimos e personalida<strong>de</strong>s do campo artístico participaram<br />
do vi<strong>de</strong>oclipe Cacimba <strong>de</strong> Mágoa em protesto contra a tragédia provocada<br />
pela Samarco.<br />
Fonte: Vi<strong>de</strong>oclipe da canção Cacimba <strong>de</strong> Mágoa (2016).<br />
Imagens 20 e 21: Diversas imagens, em planos fechados e planos abertos,<br />
mostram os efeitos da lama no <strong>Rio</strong> Doce.<br />
Fonte: Vi<strong>de</strong>oclipe da canção Cacimba <strong>de</strong> Mágoa (2016).<br />
254
Capítulo 9<br />
A ÁGUA e o SUJEITO ORDINÁRIO: TERRITÓRIOS em DISPUTA<br />
Muitos dos materiais audiovisuais sobre o <strong>Rio</strong> Doce e a tragédia da<br />
“lama da Samarco” encontrados no YouTube são produzidos por sujeitos<br />
externos às comunida<strong>de</strong>s atingidas, ainda que tenham algum tipo <strong>de</strong><br />
vínculo com elas. São documentaristas (amadores e profissionais), jornalistas<br />
representando veículos <strong>de</strong> comunicação, frequentadores e “simpatizantes”<br />
<strong>de</strong>sses espaços. Nota-se, por outro lado, que diversos ví<strong>de</strong>os<br />
“amadores” parecem ter sido produzidos por moradores locais.<br />
Dos quatro documentários apresentados neste estudo, po<strong>de</strong>-se afirmar<br />
que três foram produzidos por agentes externos às comunida<strong>de</strong>s. O ví<strong>de</strong>o<br />
A Luta Vencerá a Lama: uma marcha por justiça no <strong>Rio</strong> Doce é uma exceção,<br />
pois foi realizado por integrantes do Movimento dos Atingidos por Barragens<br />
(MAB). Este também é a única produção que percorre várias cida<strong>de</strong>s.<br />
Cada um dos outros três ví<strong>de</strong>os se <strong>de</strong>dica a uma localida<strong>de</strong> específica.<br />
Alguns aspectos recorrentes po<strong>de</strong>m ser observados nos materiais analisados.<br />
Consi<strong>de</strong>rando a dimensão formal, os quatro documentários possuem<br />
dispositivos narrativos distintos: o primeiro tem um caráter <strong>de</strong> urgência e<br />
se antecipa à chegada da lama na vila <strong>de</strong> Regência (ES); o segundo segue<br />
o formato <strong>de</strong> reportagem e se <strong>de</strong>dica a chamar a atenção para a questão<br />
da saú<strong>de</strong> pública em Colatina (ES); o terceiro tem uma proposta artística<br />
que se ancora na memória <strong>de</strong> sujeitos <strong>de</strong>sterritorializados; e o quarto assume<br />
a forma <strong>de</strong> um registro <strong>de</strong> uma ação coletiva.<br />
Por outro lado, nota-se um padrão <strong>de</strong> produção audiovisual que privilegia a<br />
entrevista direta, em geral sem a presença <strong>de</strong> um mediador em cena. Por vezes,<br />
a figura do mediador aparece em cena, ouvindo os entrevistados ou falando<br />
diretamente para a câmera, como em Regência, últimas horas antes da “lama”.<br />
As obras, em sua totalida<strong>de</strong>, reúnem diferentes atores sociais das comunida<strong>de</strong>s<br />
retratadas, representativos <strong>de</strong> diversos segmentos sociais (pescadores,<br />
comerciantes, moradores, autorida<strong>de</strong>s locais, representantes <strong>de</strong><br />
organizações, visitantes etc.), ressaltando a imagem do nativo, do sujeito<br />
“local”, para tentar ressaltar um discurso que endossa a dimensão da tragédia,<br />
das perdas materiais e simbólicas que os moradores sofreram. Evi<strong>de</strong>ncia-se,<br />
sobretudo, a imagem e a fala do sujeito comum, ordinário, e <strong>de</strong><br />
como seu cotidiano foi afetado.<br />
255
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Nos materiais examinados, as falas em evidência quase sempre são as dos<br />
sujeitos comuns, ordinários, ou ainda <strong>de</strong> li<strong>de</strong>ranças comunitárias ou ligadas<br />
a movimentos populares em <strong>de</strong>fesa <strong>de</strong>ssas minorias atingidas. Quase<br />
não há falas institucionalizadas, com exceção <strong>de</strong> especialistas locais e representantes<br />
das municipalida<strong>de</strong>s. No lugar <strong>de</strong> um discurso “oficial”, são<br />
privilegiadas as narrativas das vítimas – ainda que em alguns materiais<br />
se recorra a entrevistas com especialistas e autorida<strong>de</strong>s locais. Inexistem,<br />
portanto, falas institucionais do governo estadual ou da Samarco. A mineradora<br />
aparece nas narrativas como uma espécie <strong>de</strong> antagonista. Devese<br />
consi<strong>de</strong>rar que “ouvir” a empresa é algo <strong>de</strong>snecessário e não <strong>de</strong>sejado<br />
nesse tipo <strong>de</strong> material, uma vez que ela já possui canais próprios <strong>de</strong><br />
comunicação e conta com bastante visibilida<strong>de</strong> nos gran<strong>de</strong>s veículos <strong>de</strong><br />
mídia. Isso se confirma, por exemplo, pelo fato <strong>de</strong> que, logo após o <strong>de</strong>rramamento<br />
da lama tóxica no <strong>Rio</strong> Doce, a Samarco produziu uma campanha<br />
publicitária veiculada na TV para amenizar os impactos negativos na<br />
imagem pública da empresa. Para tanto, como forma <strong>de</strong> “prestar contas” à<br />
socieda<strong>de</strong>, produziu um filme institucional no qual aparecem alguns pescadores<br />
<strong>de</strong> comunida<strong>de</strong>s atingidas “trabalhando” para a própria corporação<br />
em ações <strong>de</strong> redução <strong>de</strong> danos provocados pela tragédia ambiental.<br />
Na edição dos documentários, as entrevistas são alternadas com imagens<br />
<strong>de</strong> apoio que reforçam o discurso das vozes <strong>de</strong>stacadas. As imagens em<br />
geral apresentam os territórios afetados – principalmente o <strong>Rio</strong> Doce e<br />
seu entorno – a partir <strong>de</strong> diferentes escalas <strong>de</strong> planos e ângulos. Além dos<br />
moradores, das populações locais e dos seus territórios atingidos, a água<br />
do <strong>Rio</strong> Doce é a protagonista das narrativas. No caso dos documentários<br />
sobre Regência, o mar também ganha <strong>de</strong>staque.<br />
As vozes dos documentários que conduzem a narrativa assumem o tom da<br />
<strong>de</strong>núncia com relação à <strong>de</strong>gradação do meio ambiente (uma vez que este<br />
é o impacto mais imediato e visível) e aos prejuízos materiais, emocionais<br />
e simbólicos para as comunida<strong>de</strong>s e seus moradores. Ou seja, o discurso<br />
predominante se ancora na relação entre processos ambientais e sociais.<br />
Nota-se ainda que, à medida que os anos vão passando, o imediatismo<br />
que tenta dar conta do evento <strong>de</strong> forma mais factual, que <strong>de</strong> certa forma<br />
caracteriza os produtos aqui <strong>de</strong>stacados, dá lugar a outras abordagens,<br />
que vão atualizando a situação das comunida<strong>de</strong>s afetadas, aprofundan-<br />
256
Capítulo 9<br />
do-se nas consequências a médio e longo prazo. Este é o caso do documentário<br />
Regência: 365 dias <strong>de</strong> lama 11 (não incluído neste estudo). Apesar<br />
<strong>de</strong> ter pouquíssimas visualizações, o ví<strong>de</strong>o, publicado em 28 <strong>de</strong> fevereiro<br />
<strong>de</strong> 2017, atualiza o tema retratando a situação da comunida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Regência<br />
após um ano da tragédia ambiental.<br />
Nos documentários estudados e em outros materiais audiovisuais similares<br />
que passaram a circular nas re<strong>de</strong>s sociais após a tragédia provocada<br />
pela Samarco em novembro <strong>de</strong> 2015, são <strong>de</strong>stacados os sujeitos ordinários<br />
(CERTEAU, 2013), levados a reconstruir seus cotidianos. São mulheres e<br />
homens comuns que <strong>de</strong> alguma forma se viram <strong>de</strong>sterritorializados e passaram<br />
a formar uma minoria do ponto <strong>de</strong> vista dos direitos, da cidadania<br />
e da visibilida<strong>de</strong> na esfera pública a partir <strong>de</strong> um crime socioambiental.<br />
11 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Crat5USZp4g. Acesso em: 20 <strong>de</strong> setembro<br />
<strong>de</strong> 2017.<br />
257
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Referências<br />
CERTEAU, Michel <strong>de</strong>. A invenção do cotidiano: artes <strong>de</strong> fazer. 20ª ed.<br />
Petrópolis: Editora Vozes, 2013.<br />
GOMES, Wilson. Apontamentos sobre o conceito <strong>de</strong> esfera pública política.<br />
In: MAIA, R. e CASTRO, M. C. P. S. (Orgs). Mídia, esfera pública e<br />
i<strong>de</strong>ntida<strong>de</strong>s coletivas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003.<br />
HAESBAERT, Rogério. Dos múltiplos territórios à multiterritorialida<strong>de</strong>.<br />
Porto Alegre, setembro <strong>de</strong> 2004. Disponível em: http://www.ufrgs.br/<br />
petgea/Artigo/rh.pdf<br />
HARVEY, David. A produção capitalista do espaço. São Paulo: Annablume,<br />
2005.<br />
RAFFESTIN, Clau<strong>de</strong>. Por uma geografia do po<strong>de</strong>r. São Paulo: Ed. Ática,<br />
1993.<br />
SODRÉ, Muniz. Por um conceito <strong>de</strong> minoria. In: BARBALHO, Alexandre<br />
e PAIVA, Raquel (orgs.). Comunicação e cultura das minorias. São<br />
Paulo: Paulus, 2005.<br />
258
259<br />
Capítulo 9
260
Capítulo 10<br />
Uma onda <strong>de</strong> lama:<br />
viagem <strong>de</strong> águas tóxicas <strong>de</strong> Bento<br />
Rodrigues ao Atlântico brasileiro 1, 2<br />
Eliana Santos Junqueira Creado<br />
Stefan Helmreich<br />
Em 5 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2015, na vila <strong>de</strong> Bento Rodrigues, no município<br />
<strong>de</strong> Maria, no estado <strong>de</strong> Minas Gerais, Brasil, uma barragem com rejeitos<br />
<strong>de</strong> mineração <strong>de</strong> ferro <strong>de</strong> proprieda<strong>de</strong> da mineradora Samarco Mineração<br />
S.A. rompeu-se, liberando 62 milhões <strong>de</strong> metros cúbicos <strong>de</strong> lama <strong>de</strong> rejeitos<br />
rio Doce abaixo, soterrando e matando 19 pessoas e liberando matéria<br />
aquosa tóxica em direção ao Oceano Atlântico, on<strong>de</strong> ela chegou duas semanas<br />
<strong>de</strong>pois, contaminando praias e cida<strong>de</strong>s. Esse <strong>de</strong>sastre ambiental –<br />
que alguns comentadores nomeiam como crime ambiental cometido pela<br />
negligente empresa Samarco e seus parceiros <strong>de</strong> negócios, a brasileira<br />
Vale S.A. e a australiana BHP Billinton Ltda. (CREADO et al., 2017; LO-<br />
SEKANN, 2017) 3 — foi o pior <strong>de</strong>rramamento <strong>de</strong> sua espécie na história do<br />
1 Uma versão mais concisa do artigo foi previamente submetida, em inglês, para o Instituto<br />
<strong>de</strong> Estudos Brasileiros da Universida<strong>de</strong> <strong>de</strong> São Paulo (RIEB), cujo sítio eletrônico é https://<br />
www.revistas.usp.br/rieb. CREADO, E. S. J.; HELMREICH, S. A wave of mud: the travel of<br />
toxic water, from Bento Rodrigues to the Brazilian Atlantic. Revista do Instituto <strong>de</strong> Estudos<br />
Brasileiros, Brasil, n. 69, p 33-51, abr. 2018. DOI: http://dx.doi.org/10.11606/issn.2316-901X.<br />
v0i69p33-51 .<br />
2 Trabalho etnográfico foi conduzido por Creado com outros pesquisadores, a maioria<br />
<strong>de</strong> dois projetos. O primeiro, coor<strong>de</strong>nado pela Dra. Aline Trigueiro, foi um programa <strong>de</strong><br />
extensão financiado pelo Ministério da Educação (Edital PROEXT-2016) intitulado “Áreas<br />
protegidas e gran<strong>de</strong>s projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no horizonte <strong>de</strong> vivências das comunida<strong>de</strong>s<br />
locais”. O segundo, alocado <strong>de</strong>ntro do primeiro, coor<strong>de</strong>nado por Flavia Amboos<br />
Merçon Leonardo, com financiamento angariado pelo Coletivo <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Gente e coor<strong>de</strong>nado<br />
pelo Greenpeace, chamou-se “Depois da Lama: impactos na foz do rio Doce”. Ambos foram<br />
<strong>de</strong>senvolvidos <strong>de</strong>ntro do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento<br />
(GEPPEDES; https://www.geppe<strong>de</strong>s.com).<br />
3 Losekann (2017, p. 116) explica que: “[T]he fe<strong>de</strong>ral government issued a <strong>de</strong>cree on November<br />
13, 2015 (<strong>de</strong>creto 8276, November 13, 2015), which consi<strong>de</strong>red the event a ‘natural<br />
disaster’, which was consi<strong>de</strong>red by affected people as outrageous, consi<strong>de</strong>ring that the causes<br />
of the rupture were not natural, but rather the precarious conditions of security of the dam”.<br />
261
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Brasil e um dos maiores <strong>de</strong>rramamentos em volume <strong>de</strong> rejeitos no mundo.<br />
Para se ter uma i<strong>de</strong>ia, o vazamento <strong>de</strong> 2014, na barragem <strong>de</strong> Mount Polley,<br />
na Columbia Britânica, abarcou 15 milhões <strong>de</strong> metros cúbicos (SANTOS<br />
& MILANEZ, 2016). A contaminação teve um começo repentino, mas tornou-se<br />
uma calamida<strong>de</strong> em andamento e uma calamida<strong>de</strong> que se agrava,<br />
envenenando a vida do rio, interrompendo modos <strong>de</strong> vida, interferindo na<br />
infraestrutura <strong>de</strong> hidroelétricas e poluindo as águas do Atlântico.<br />
Logo que ocorreu o rompimento, a cobertura jornalística divulgou que os<br />
moradores das proximida<strong>de</strong>s do rio estavam confrontando e vivendo com<br />
uma onda <strong>de</strong> lama (EQUIPEONB, 2015). Foi possível, também, ler sobre<br />
“um tsunami <strong>de</strong> 62 milhões <strong>de</strong> metros cúbicos <strong>de</strong> lama” e que o estouro<br />
da barragem adveio em momento em que a mineradora Samarco estava<br />
sendo celebrada por sua lucrativida<strong>de</strong> — um fato não esquecido por um<br />
comentador que registrou que “a onda <strong>de</strong> boas notícias” sobre a performance<br />
da companhia <strong>de</strong>ra lugar a um “mar <strong>de</strong> lama” (GONÇALVES &<br />
FUSCO, 2015, s.p.).<br />
Figura 1: Mapa da onda <strong>de</strong> lama.<br />
Fonte: Reproduzido a partir <strong>de</strong> EQUIPEONB, 2015.<br />
Neste artigo, nós analisamos a figura da onda <strong>de</strong> lama. Atentamos para as re-<br />
262
Capítulo 10<br />
presentações da onda em notícias, em uma produção teatral sobre a onda<br />
e seus <strong>de</strong>sdobramentos, em um documentário baseado em testemunhas<br />
oculares e sonoras a partir do ponto <strong>de</strong> origem da onda, Bento Rodrigues.<br />
Nós também seguimos a onda em narrativas colhidas rio abaixo, ouvindo<br />
discussões políticas e legais e, ainda, <strong>de</strong>senvolvendo pesquisa sociológica<br />
a partir <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> pesquisadores da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito<br />
Santo (UFES) (CREADO et al., 2016). Nós também baseamo-nos em<br />
trabalho etnográfico <strong>de</strong>senvolvido por um <strong>de</strong> nós (Creado), conduzido em<br />
uma das comunida<strong>de</strong>s afetadas na costa brasileira, no estado do Espírito<br />
Santo, na vila Regência Augusta. A vila é um local <strong>de</strong> turismo <strong>de</strong> “natureza<br />
doméstica” (SUASSUNA, 2015), <strong>de</strong>sempenhada em festivida<strong>de</strong>s locais, em<br />
um projeto <strong>de</strong> conservação <strong>de</strong> tartarugas marinhas, e com o surfe (LEO-<br />
NARDO et al., 2017). Nós procuramos seguir, nesse percurso, a materialida<strong>de</strong><br />
da onda, incluindo a presença <strong>de</strong> chumbo, arsênio e mercúrio.<br />
Nós compreen<strong>de</strong>mos a onda <strong>de</strong> lama como uma força material-semiótica<br />
(HARAWAY, 1991), <strong>de</strong> forma a po<strong>de</strong>r traçar sua jornada física e social<br />
entre a barragem e a costa. A onda <strong>de</strong> lama é, simultaneamente, mais do<br />
que uma <strong>de</strong>scrição física e mais do que uma simples metáfora. É mais do<br />
que uma <strong>de</strong>scrição física porque a onda é uma figura simbólica que opera<br />
uma força que se move ininterrupta e lentamente através do espaço e do<br />
tempo, rapidamente levando à reformulação dos sentidos e percepções 4<br />
<strong>de</strong> passado, presente e futuro das pessoas. 5 É mais do que uma metáfora<br />
porque a propagação física da lama (seja ela referida como onda, pluma,<br />
turbi<strong>de</strong>z ou camada) resultou em <strong>de</strong>sastre ecológico e também fomentou<br />
mobilizações políticas coletivas, como protestos e manifestações populares<br />
(LOSEKANN, 2017). A onda, então, constituiu-se em veículo para<br />
rupturas materiais-simbólicas e para a contaminação, o que se dá <strong>de</strong> maneiras<br />
distintas para diferentes constituintes.<br />
A i<strong>de</strong>ia <strong>de</strong> escrever sobre a onda como processo material e simbólico,<br />
evento e trauma surgiu quando nós, os autores, encontramo-nos em uma<br />
conferência <strong>de</strong> antropologia em São Paulo. Eliana Creado realiza pesquisas<br />
<strong>de</strong> campo na foz do rio Doce e na costa do Espírito Santo <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2010.<br />
4 Senses é a palavra usada na versão em inglês, que abarca, ao mesmo tempo, sensações,<br />
percepções e sentidos.<br />
5 Compare, a respeito <strong>de</strong> inundações e afetos, com Whatmore (2013).<br />
263
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Stefan Helmreich, por sua vez, escreve sobre as ondas como forças materiais<br />
e simbólicas e segue o <strong>de</strong>sastre da Samarco (HELMREICH, 2014).<br />
Ambos são leitores do livro <strong>de</strong> Donna Haraway Staying with the Trouble,<br />
com reflexões sobre a seguinte passagem do livro: “Importa quais pensamentos<br />
pensam pensamentos. Importa quais conhecimentos conhecem<br />
conhecimentos. Importa quais relações relacionam relações. Importam<br />
quais mundos mundificam mundos. Importa quais estórias contam estórias.”<br />
(HARAWAY, 2016, p. 35) 6 .<br />
Como, nós nos questionamos, a imagem da onda importa? Que pensamentos<br />
permitem que ela seja uma possibilida<strong>de</strong>? Quais relações evi<strong>de</strong>ncia?<br />
Quais estórias possibilita contar? Para quem? Nós indagamos, no<br />
contexto do que Anna Tsing e colaboradores (2017) chamaram <strong>de</strong> “planeta<br />
danificado”, qual trabalho discursivo e político a imagem da onda po<strong>de</strong><br />
assumir no sentido <strong>de</strong> ajudar ou obstruir os entendimentos do rompimento<br />
da barragem e <strong>de</strong> suas sequelas.<br />
Foi possível distinguir quatro principais estilos <strong>de</strong> conversas <strong>de</strong> onda nas<br />
discussões sobre o rompimento da barragem da Samarco e suas consequências,<br />
manifestados ao longo da trajetória <strong>de</strong> <strong>de</strong>scida dos rejeitos na<br />
bacia do <strong>Rio</strong> Doce. Um: a imagem da onda em notícias, filmagens e documentários,<br />
usados para abordar a repentina inundação causada pelo<br />
rompimento. Trata-se da onda com a força inicial do trauma, uma força<br />
fora do lugar, uma força <strong>de</strong> rápida violência, 7 uma onda tornada conhecida,<br />
em retrospectiva, no tempo passado, como uma materialização socionatural<br />
<strong>de</strong> uma irresponsabilida<strong>de</strong> corporativa. Dois: a imagem da onda<br />
usada por representantes institucionais <strong>de</strong> uma municipalida<strong>de</strong> afetada,<br />
Baixo Guandu, para discutir a propagação <strong>de</strong> toxinas rio abaixo; aqui, a<br />
onda apareceu como risco presente e iminente para a saú<strong>de</strong> e o modo <strong>de</strong><br />
vida, uma onda <strong>de</strong> lama/águas venenosas e <strong>de</strong>letérias misturando-se com<br />
as águas que sustentam a vida, com possíveis riscos à infraestrutura <strong>de</strong><br />
uma hidrelétrica. Três: a onda <strong>de</strong>batida por engenheiros, representantes<br />
<strong>de</strong> governos e das empresas responsáveis pela barragem, ativistas e resi<strong>de</strong>ntes<br />
<strong>de</strong> Regência Augusta, na costa do Atlântico, como algo que ainda<br />
6 No original: “It matters what thoughts think thoughts. It matters what knowledges know<br />
knowledges. It matters what relations relate relations. It matters what worlds world worlds.<br />
It matters what stories tell stories.”<br />
7 Sobre violência lenta, confira Nixon (2013).<br />
264
Capítulo 10<br />
não chegou, mas que, em um futuro próximo, chegará; essa foi a onda<br />
como evento antecipado, uma chegada <strong>de</strong> algo in<strong>de</strong>sejado, advindo <strong>de</strong><br />
uma paisagem <strong>de</strong> mineração mais ao interior e relativamente mais industrializada<br />
(basta consi<strong>de</strong>rar o próprio nome Minas Gerais) e que muitos<br />
supunham distante e separada dos modos <strong>de</strong> vida costeiros. Quatro: a<br />
onda (ou, às vezes, pluma) como uma força material-semiótica disputada<br />
por representantes das empresas, gestores ambientais estaduais e fe<strong>de</strong>rais,<br />
advogados e pescadores preocupados (ou não) com as maneiras<br />
com que as ondas <strong>de</strong> lama — seja como forma ou matéria fora do lugar<br />
— atingiram e poluíram as ondas do oceano. 8 Essas ondas oceânicas não<br />
são únicas, mas, pelo contrário, na visão <strong>de</strong> ativistas, são evidência amplificada<br />
da repetição do insulto da onda original da Samarco. A onda<br />
<strong>de</strong> lama veio a ser uma amálgama <strong>de</strong> significados e materiais em disputa<br />
(águas, sedimentos, toxinas), apresentando-se como algo que, ao mesmo<br />
tempo em que se separa do rio e <strong>de</strong> sua foz, inva<strong>de</strong>-os.<br />
Antropólogos trabalhando com questões ambientais têm recentemente<br />
direcionado a atenção para a água. Um subconjunto <strong>de</strong>les possui interesse<br />
pelos rios. Para Hugh Raffles (2014), tributários do Amazonas, como o<br />
Igarapé Guariba, são notáveis por seus caminhos mutáveis, por sua evanescência<br />
— e suas engenharias-humanas e histórias <strong>de</strong> manipulação<br />
sempre esquecidas. Para Anne Ra<strong>de</strong>macher (2011), as paisagens fluviais 9<br />
<strong>de</strong> Catmandu são locais <strong>de</strong> conflitos sobre a conservação e a vida <strong>de</strong> migrantes.<br />
Para David McDermott Hughes (2005), um rio como o Limpopo,<br />
cruzando África do Sul, Moçambique e Zimbábue, é tanto um fluxo <strong>de</strong><br />
águas socialmente localizado, mas também, para alguns — como ativistas<br />
da conservação e da biodiversida<strong>de</strong> —, um lugar com futuro potencial.<br />
A análise <strong>de</strong> 2002, feita por Alley Kelly sobre o Ganges e sua qualida<strong>de</strong><br />
sagrada — como “mãe, <strong>de</strong>usa, purificadora, e suporte <strong>de</strong> todos os seres<br />
vivos” —, versa sobre ativistas ambientais que, entretanto, “essencializam<br />
o rio como um recurso alterado por ativida<strong>de</strong>s humanas; o rio é afetado<br />
pelo crescimento urbano, pela produção industrial, e pelas práticas <strong>de</strong><br />
8 Nossa abordagem simbólica é influenciada por: Douglas (1966), Turner (2012), Van Velsen<br />
(1987), Dawsey (2007), Geertz (2003), Wagner (2010) e Strathern (2011). Sobre o simbolismo<br />
da água, veja Strang (2004).<br />
9 Riverscape, na versão em inglês.<br />
265
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
cidadãos e elites administrativas e industriais” (ALLEY, 2002, p. 239). 10 O<br />
livro <strong>de</strong> Alley é um trabalho <strong>de</strong> vanguarda em um assunto que agora ocupa<br />
muitos antropólogos: a viagem das toxinas através do ambiente. 11 Esperamos<br />
contribuir para essa literatura com um exemplo do Brasil que, no<br />
entanto, é uma história com relevância internacional. Po<strong>de</strong>mos oferecer<br />
outras lições mais gerais do nosso caso, como os efeitos da <strong>de</strong>sregulação<br />
industrial no Brasil e a perda do controle contra a viagem (rápida ou lenta)<br />
das toxinas no ambiente. Assim, o rio Doce é, pace Raffles, um lugar <strong>de</strong><br />
memória e esquecimento. O rio Doce é, pace Ra<strong>de</strong>macher, um lugar <strong>de</strong><br />
conflitos no presente. O rio Doce é, pace Hughes, um lugar <strong>de</strong> transformação<br />
no futuro (embora <strong>de</strong> modo mais negativo do que positivo). O rio<br />
Doce é, pace Kelly and Richardson, um agente <strong>de</strong> progressiva, e mesmo<br />
crônica, toxida<strong>de</strong>.<br />
ONDA NÚMERO UM: A MEMÓRIA DO ROMPIMENTO EM BENTO<br />
RODRIGUES<br />
Para quem não vive em Bento Rodrigues e imediações, notícias da<br />
onda <strong>de</strong> lama chegaram através <strong>de</strong> jornais e, também, posteriormente,<br />
através <strong>de</strong> representações <strong>de</strong> arte politicamente engajada. Esses são<br />
exemplos do primeiro tipo <strong>de</strong> conversa <strong>de</strong> onda mencionado — trabalhos<br />
em que a imagem da onda é mobilizada para manter vivo na memória o<br />
repentino, mas longa-e-continuamente (re)construído, <strong>de</strong>sastre <strong>de</strong> engenharia<br />
corporativa, <strong>de</strong> modo a prevenir que ele seja apagado, e chamar a<br />
atenção para a sua magnitu<strong>de</strong>.<br />
Em maio <strong>de</strong> 2017, um <strong>de</strong> nós (Helmreich) assistiu a uma peça sobre o<br />
<strong>de</strong>sastre chamada Hotel Mariana. Encenada na Estação Satyros em São<br />
Paulo, consistia <strong>de</strong> atores reproduzindo as palavras <strong>de</strong> moradores <strong>de</strong><br />
Bento Rodrigues, os quais foram entrevistados pelo diretor da peça. Iniciou-se<br />
em silenciosa escuridão — uma escuridão quebrada não pela luz,<br />
10 No original, respectivamente: “mother, god<strong>de</strong>ss, purifier, and sustainer of all life” e “essentialize<br />
the river as a changing resource affected by human activities; the river is affected<br />
by urban growth, industrial production, and the practices of citizen and administrative and<br />
industrial elites”.<br />
11 Consulte Fortun (2001), Murphy (2006), Hecht (2012) e Li (2015). E, também, sobre<br />
toxinas em rios, Richardson (2016) e Bozovic e Miller (2016). Já para influentes histórias<br />
ambientais <strong>de</strong> rios, White (1996) e Pritchard (2011).<br />
266
Capítulo 10<br />
mas por uma gravação sonora, a reprodução do barulho do rompimento<br />
da barragem e o que se seguiu, uma precipitação catastrófica da água.<br />
Po<strong>de</strong>-se recuperar uma das primeiras reportagens sobre o rompimento,<br />
com um relato sobre o som que inundou Bento Rodrigues: “Seguiram-se,<br />
então, uma nuvem <strong>de</strong> poeira e o revoar dos pássaros. Os moradores do<br />
vilarejo perceberam ali que havia algo errado. Em questão <strong>de</strong> minutos,<br />
gritos e buzinas tomaram as ruas: a onda <strong>de</strong> lama se aproximava. Só havia<br />
tempo para correr.” (GARCIA et al., 2015, s.p.).<br />
Com a barragem construída em parte <strong>de</strong> areia e sedimentos (uma represa<br />
feita <strong>de</strong> terra, usando sistema <strong>de</strong> aterramento hidráulico), que aparentemente<br />
sofreu saturação por água durante muitos meses (BBC NEWS,<br />
2016), o som da ruptura também <strong>de</strong>ve ter sido o <strong>de</strong> “liquefação” da barragem<br />
(GARCIA et al., 2015, s.p.), o som da colisão <strong>de</strong> uma onda — reminiscência<br />
da passagem bíblica da escuridão da criação do mundo a partir<br />
da água, embora trazendo a <strong>de</strong>struição ao invés da geração da vida. O<br />
som da onda <strong>de</strong>sintegrou-se em vozes <strong>de</strong> pessoas confusas — uma torre<br />
<strong>de</strong> Babel reversa, não com as pessoas que construíram a estrutura que<br />
colapsou, mas com as vítimas <strong>de</strong> um projeto coorporativo que <strong>de</strong>u errado.<br />
Eventualmente a audiência escutava algo dos <strong>de</strong>z ou mais indivíduos no<br />
palco. Cada um dos atores usava fones <strong>de</strong> ouvido, passando a sensação <strong>de</strong><br />
que transmitiam as palavras das pessoas as quais escutavam com muito<br />
cuidado (o estilo “Verbatim” <strong>de</strong> teatro). Hotel Mariana ofereceu uma “intimida<strong>de</strong><br />
sem proximida<strong>de</strong>” (STERLAC, 2000), um reencenar do <strong>de</strong>sastre<br />
<strong>de</strong> modo a gerar simpatia e fazer a onda importar para aqueles a que proporcionou<br />
um testemunho virtual.<br />
Desejando <strong>de</strong>scobrir mais sobre as consequências do <strong>de</strong>sastre, e sobre as<br />
negliências que levaram a ele, po<strong>de</strong>-se recorrer (como fez Helmreich) a<br />
um documentário interativo, no formato <strong>de</strong> realida<strong>de</strong> virtual, publicado<br />
no YouTube em abril <strong>de</strong> 2016, cinco meses <strong>de</strong>pois do rompimento. “<strong>Rio</strong><br />
<strong>de</strong> Lama: a maior tragédia ambiental do Brasil”, dirigido por Ta<strong>de</strong>u Jungle,<br />
apresenta imagens que permitem ao usuário navegar em 360º. A fala<br />
do narrador é intercalada com as vozes dos moradores que recordam a<br />
vida em Bento Rodrigues antes do <strong>de</strong>sastre. O filme possibilita ao usuário<br />
navegar com o mouse através <strong>de</strong> imagens <strong>de</strong> <strong>de</strong>stroços, objetos pessoais,<br />
animais mortos e plantas <strong>de</strong>struídas, agora cobertas com a água lamosa<br />
<strong>de</strong> tom alaranjado.<br />
267
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
O documentário mostra o que ficou para trás após a onda rasgar a paisagem.<br />
Atenção especial é dada ao som — fenômeno evanescente que<br />
sempre trespassa a memória, recuperado para manter vivo o passado. O<br />
espectador/ouvinte escuta: (1) o som <strong>de</strong> um sino (e não <strong>de</strong> uma sirene,<br />
cuja presença alguns argumentam que teria salvado vidas); (2) um padre<br />
que relembra os gritos dos moradores no dia da ruptura; (3) um casal que<br />
canta “Mando meu recado”, 12 a partir <strong>de</strong> on<strong>de</strong> antes encontrava-se sua<br />
casa; (4) uma adolescente cantando “Além do <strong>Rio</strong> Azul”, em um templo<br />
enlameado (“além do rio azul, as ruas são <strong>de</strong> ouro e <strong>de</strong> cristais, ali tudo é<br />
vida, ali tudo é paz, morte e choro nunca mais, tristeza e dor nunca mais,<br />
morte e choro nunca mais” 13 ); (5) uma senhora cujo choro ouvimos durante<br />
todo o filme. O narrador apresenta a <strong>de</strong>manda pelo Memorial <strong>de</strong> Mariana:<br />
“Em respeito à vida que aqui existiu, em respeito àqueles que aqui<br />
morreram, em respeito ao Brasil, é imperativo que se faça o Memorial <strong>de</strong><br />
Mariana, para que essa tragédia não seja esquecida e nem repetida”. 14<br />
O diretor do documentário, Ta<strong>de</strong>u Jungle, aparece em outro ví<strong>de</strong>o. Ele diz<br />
ter escolhido uma narrativa que contrastasse as memórias “doces”, em referência<br />
ao nome do rio, com a “terra arrasada”. Sua expectativa era criar<br />
maior empatia com o uso da realida<strong>de</strong> virtual. Enfatizou que a situação<br />
dos sobreviventes seria pior do que a <strong>de</strong> refugiados <strong>de</strong> guerra, por não<br />
terem o direito a sonhar com o retorno. 15 Reforçou a ruptura da barragem<br />
como ato criminoso:<br />
O meu objetivo com esse filme é que os criminosos sejam culpados,<br />
porque foram extremamente levianos em não fazer um<br />
exercício anual <strong>de</strong> evacuação da cida<strong>de</strong>, <strong>de</strong> não terem sequer<br />
uma sirene <strong>de</strong> aviso, caso a barragem rompesse, e agora essa assistência<br />
impossível junto aos moradores; então, o meu objetivo é<br />
que esses criminosos sejam culpabilizados, sejam presos e sejam<br />
12 Composta por José Nascimento Jesus.<br />
13 Composta por Carlos A. Moyses.<br />
14 RIO DE LAMA. Ta<strong>de</strong>u Jungle (diretor); Marcos Nisti, Rawlinson Peter Terrabuio, Ta<strong>de</strong>u<br />
Jungle (produtores); Aca<strong>de</strong>mia <strong>de</strong> Filmes, Beenoculus, Maria Farinha Filmes (realizadores).<br />
<strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Lama/River of Mud, 4 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2016. Disponível em: goo.gl/u1mTzg. Último acesso<br />
em: 12 <strong>de</strong> fevereiro <strong>de</strong> 2018.<br />
15 RIO DE LAMA/VISÃO DO DIREITOR. Ta<strong>de</strong>u Jungle. Disponível em: goo.gl/WxV-<br />
ZDN, publicado em 8 <strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2016. Último acesso em: 5 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2017.<br />
268
Capítulo 10<br />
responsabilizados pelo seu crime.<br />
Tanto a peça quanto o documentário em realida<strong>de</strong> virtual vão além da<br />
simples transmissão <strong>de</strong> imagens, que, por si só, em excesso, po<strong>de</strong> produzir<br />
um efeito anestésico; 16 ou, para as pessoas atingidas, exacerbar o sofrimento<br />
(HELENA et al., 2017). Mesmo com tais riscos, eles preservam o<br />
caos causado pelo evento (DAS, 1999). A chegada e a abrupta violência da<br />
onda ficam retidas no tempo, uma proteção contra a dissolução da onda<br />
ou contra os esforços <strong>de</strong> obliteração da calamida<strong>de</strong>, à semelhança do que,<br />
às vezes, as águas dos rios fazem (RAFFLES, 2002). Essas representações<br />
<strong>de</strong> arte politicamente engajada procuram tornar o passado parte do presente<br />
e <strong>de</strong> um futuro orientado pela precaução. 17<br />
ONDA NÚMERO DOIS: A MATERIALIZAÇÃO DA lama E AS<br />
TOXINAS IMINENTES EM BAIXO GUANDU<br />
Em <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2015, pesquisadores <strong>de</strong> diferentes disciplinas da Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo viajaram rio Doce acima para verificar<br />
a situação <strong>de</strong> localida<strong>de</strong>s do estado que <strong>de</strong>pendiam das águas <strong>de</strong>sse<br />
rio para energia elétrica, pesca e lazer.18 Uma reportagem, intitulada<br />
“Lama interrompe ativida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Usinas Hidrelétricas no Leste <strong>de</strong> Minas”,<br />
datada <strong>de</strong> 16 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2015, trazia informações sobre duas hidrelétricas<br />
do rio Doce: a represa <strong>de</strong> Baguari, na cida<strong>de</strong> <strong>de</strong> Governandor Valadares,<br />
e a usina <strong>de</strong> Aimorés, na fronteira entre Minas Gerais e Espírito<br />
Santo. A operação <strong>de</strong> ambas as plantas estava suspensa, em função do<br />
receio <strong>de</strong> que a água tóxica danificasse as turbinas ou as comportas. No<br />
que diz respeito à planta <strong>de</strong> Aimorés, a matéria afirmava que “[se] está<br />
monitorando a situação da chegada da ‘onda’ no <strong>Rio</strong> Doce, através dos<br />
boletins emitidos pelo Serviço Geológico do Brasil – CPRM – e também<br />
com sua equipe <strong>de</strong> campo. A assessoria afirma que neste final <strong>de</strong> semana<br />
a mancha foi observada no reservatório da Usina <strong>de</strong> Aimorés.” (G1/VA-<br />
LES DE MINAS GERAIS, 2015, s.p.).<br />
16 Sobre como isso se dá no caso dos problemas ambientais, veja, por exemplo, Hannigan<br />
(1995).<br />
17 Veja também: goo.gl/sGwSgv e goo.gl/xLsLHC. Último acesso em: 27 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2018.<br />
18 Parte <strong>de</strong>ssa experiência está analisada no relatório redigido pelo ORGANON (2015).<br />
269
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
O grupo <strong>de</strong> pesquisadores reuniu-se com o prefeito do município <strong>de</strong> Baixo<br />
Guandu, na fronteira com Minas Gerais, e o entrevistou. Baixo Guandu<br />
chamou atenção do público, <strong>de</strong> agentes institucionais e das companhias<br />
mineradoras por conta <strong>de</strong> protestos com a ocupação dos trilhos da<br />
ferrovia Vitória-Minas Gerais (através da qual o minério <strong>de</strong> ferro é transportado<br />
entre Minas Gerais e o Porto <strong>de</strong> Tubarão, em Vitória, Espírito<br />
Santo). A ocupação <strong>de</strong>u-se em resposta ao rompimento da barragem e à<br />
subsequente dispersão da lama. Foi também uma resposta aos resultados<br />
<strong>de</strong> uma análise laboratorial, tornada pública pelo prefeito, das águas do<br />
rio Doce das proximida<strong>de</strong>s. Uma agência brasileira <strong>de</strong> notícias registrou:<br />
O resultado da análise laboratorial das amostras <strong>de</strong> água coletadas<br />
no <strong>Rio</strong> Doce, em Minas, apontou níveis acima das concentrações<br />
aceitáveis <strong>de</strong> metais pesados como mercúrio, arsênio, ferro e<br />
chumbo na lama que escorreu para o rio com o rompimento das<br />
barragens em Mariana (MG). O prefeito <strong>de</strong> Baixo Guandu (ES)<br />
[…] confirmou a informação.<br />
“Para se ter uma i<strong>de</strong>ia, a quantida<strong>de</strong> <strong>de</strong> arsênio encontrada na<br />
amostra foi <strong>de</strong> 2,6394 miligramas, sendo que o aceitável é <strong>de</strong> no<br />
máximo 0,01 miligrama”, citou.<br />
Ainda segundo o prefeito, são 100 quilômetros <strong>de</strong> material tóxico<br />
<strong>de</strong>scendo pelo rio. “Encontramos praticamente a tabela periódica<br />
inteira <strong>de</strong>ntro da água. Quero ver o que o presi<strong>de</strong>nte da Vale vai<br />
fazer para ajudar todo o povo”, disparou. (ALMEIDA, 2015, s.p.)<br />
O prefeito <strong>de</strong> Baixo Guandu afirmou que o município tinha 31 mil habitantes<br />
e que sua economia baseava-se na agricultura, no comércio e na<br />
mineração <strong>de</strong> granito. Contava também com cerca <strong>de</strong> 260-270 pescadores<br />
profissionais. O prefeito referiu-se a eles, ao ressaltar a importância do<br />
rio, invocando imagens bíblicas: “...Porque existe a cida<strong>de</strong>, por causa da<br />
água [...]. Então nós somos um rio, nós somos um rio! As comunida<strong>de</strong>s<br />
aqui são um rio! […] Ah, porque em 5 meses o rio está limpo... Ah, eu quero<br />
ver ele morar aqui agora! [...] quero ver ele morar aqui! Quero ver ele<br />
comer o peixe da água do <strong>Rio</strong> Doce, viver a nossa dor aqui, enten<strong>de</strong>u? Por<br />
isso que nós não vamos <strong>de</strong>ixar isso passar...”.<br />
Outra preocupação, disse ele, era evitar conflitos <strong>de</strong> distribuição <strong>de</strong> água,<br />
270
Capítulo 10<br />
como os ocorridos quando o abastecimento <strong>de</strong> água foi interrompido<br />
em alguns municípios, como em Governador Valadares, Minas Gerais, à<br />
montante, e em Colatina, Espírito Santo, à jusante. Sobre a movimentação<br />
dos rejeitos <strong>de</strong> mineração, o político disse, com um representante da<br />
Defesa Civil:<br />
A lama não chegou, ela está chegando a Valadares agora; o sólido,<br />
a coisa <strong>de</strong>nsa mesmo tá vindo <strong>de</strong>vagar. O que passou foi o<br />
que era mais leve, que a água trouxe, e já trouxe esse problema<br />
todo para a comunida<strong>de</strong>, né? E no início eu lembro que tão logo<br />
houve o rompimento, as primeiras manifestações nossas aqui<br />
graças ao trabalho preventivo da nossa equipe [...]. Aí a gente se<br />
manifestava numa direção e todo mundo tava indo em outra. Não<br />
sei se vocês acompanharam <strong>de</strong>s<strong>de</strong> o ínicio. A gente dizia é crime<br />
ambiental, é dano gran<strong>de</strong>, gravíssimo, isso vai chegar no mar...<br />
Alguns diziam: “não vai nem chegar aqui em Aimorés”, <strong>de</strong>pois<br />
que o pessoal foi vendo, vendo, vendo.<br />
O prefeito contou que, mesmo antes da chegada da própria lama, os moradores<br />
ficaram apreensivos. Detalhou:<br />
Antes <strong>de</strong> chegar a lama, gerou uma onda <strong>de</strong> boatos, disse-me-disse,<br />
“que que vai acontecer, né?”, no primeiro momento pânico generalizado,<br />
o pessoal saiu para comprar água, mas não só água...<br />
Qualquer vasilhame que <strong>de</strong>sse para armazenar água, até penico...<br />
tudo! Até copo <strong>de</strong>scartável... Sumiu tudo, não tinha no comércio.<br />
Então houve uma reação em ca<strong>de</strong>ia muito gran<strong>de</strong>, por sorte a<br />
gente conseguiu se precaver, fator tempo foi prepon<strong>de</strong>rante...<br />
A linguagem da lama importa por organizar a sensação <strong>de</strong> incerteza — enquanto<br />
a lama se movia, o mesmo se dava com as dúvidas trazidas por ela.<br />
A onda tornou-se meio material-semiótico <strong>de</strong> comunicação e organização<br />
(e, às vezes, <strong>de</strong>sorganização) <strong>de</strong> emoções e afetos (ZHOURI et al., 2017).<br />
Muitas soluções foram apresentadas antes da chegada da lama. Alguns<br />
consi<strong>de</strong>raram a remoção da lama para uma cratera ou o seu bloqueio<br />
pelas comportas da hidrelétrica <strong>de</strong> Aimorés. A última possibilida<strong>de</strong> foi<br />
<strong>de</strong>scartada por conta dos riscos <strong>de</strong> danos aos equipamentos. A rejeição<br />
da proposta também fez com que o prefeito recordasse a criação da hi-<br />
271
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
drelétrica, que exigiu que o curso do rio Doce fosse <strong>de</strong>sviado por 12 quilômetros,<br />
<strong>de</strong> modo que o lago e a casa <strong>de</strong> força permanecessem em Minas<br />
Gerais, e não no Espírito Santo. Uma posição <strong>de</strong> subordinação agora com<br />
possíveis efeitos tóxicos: "nós estamos aqui no ES, nós somos <strong>de</strong>stinatários<br />
do lixo". A água enlameada, então, mobilizou diferentes histórias<br />
(VAN VELSEN, 1987). Como o sugerido por Franz Krause, com base em<br />
seu trabalho <strong>de</strong> campo no rio Kemi, na Lapônia Finlan<strong>de</strong>sa,<br />
A água não apenas flui; ela flui em certos ritmos variados <strong>de</strong> intensida<strong>de</strong>s,<br />
tempos e direções, negociados pelo trabalho humano,<br />
a infraestrutura e o canal do rio. E as práticas das pessoas <strong>de</strong>sdobram-se<br />
em relação a esses fluxos aquosos específicos — assim<br />
como, com certeza, em relação a muitos outros. A pesca e a produção<br />
elétrica ilustram com precisão que o fluir constitui articulações<br />
<strong>de</strong> diferentes tipos, direções e tempos <strong>de</strong> movimento. Fluir<br />
não é apenas a antítese da inércia. Fluxos <strong>de</strong> materiais particulares<br />
movem-se através, ao longo ou perpassam fluxos específicos,<br />
que, por sua vez, influenciam o fluir. 19 (KRAUSE, 2014, p. 89-102).<br />
A onda <strong>de</strong> lama mudou “a intensida<strong>de</strong>, o ritmo e a direção” do ritmo socionatural<br />
do rio Doce. Falar <strong>de</strong> onda <strong>de</strong> lama exige pensar sobre como<br />
lidar com a inesperada, e ainda inexorável, mistura entre artificial, tóxico<br />
e natural, e o envenenamento.<br />
19 No original em inglês: “Water does not simply flow; it flows in certain rhythms<br />
of varying intensity, tempo and direction negotiated by human labour, infrastructure,<br />
the weather and the river bed. And people’s practices necessarily unfold in<br />
relation to these specific watery flows — as well as, of course, to a host of others.<br />
Fishing and hydroelectricity production illustrate precisely that flow is about the<br />
articulations of different kinds, directions and tempos of movement. Flow is not<br />
simply an antithesis to stasis. Flows of particular materials move through, along or<br />
past particular other flows, which in turn influence how they flow”.<br />
272
Capítulo 10<br />
Figura 2: Foto <strong>de</strong> imagem aérea da planta da hidrelétrica <strong>de</strong> Aimorés, <strong>de</strong>pendurada<br />
no gabinete do prefeito <strong>de</strong> Baixo Guandu.<br />
Fonte: Autoria <strong>de</strong> Eliana Creado, 4 <strong>de</strong> <strong>de</strong>zembro <strong>de</strong> 2015.<br />
ONDA NÚMERO TRÊS: A ESPERA EM REGÊNCIA AUGUSTA<br />
Depois da ruptura da barragem <strong>de</strong> Fundão, um <strong>de</strong> nós (Creado) viajou<br />
até a vila <strong>de</strong> Regência Augusta, há mais <strong>de</strong> 600 quilômetros rio abaixo,<br />
e encontrou ali moradores apreensivos que continuavam suas ativida<strong>de</strong>s<br />
diárias mesmo antecipando o influxo com apreensão. Crianças brincavam<br />
nas águas do rio Doce, pescadores dirigiam-se para o trabalho no<br />
mar e surfistas enfrentavam as ondas — uma situação que po<strong>de</strong> ser vista<br />
em um filme chamado “Últimos Dias em Regência”. 20<br />
Havia incerteza sobre o que aconteceria com a chegada dos rejeitos <strong>de</strong><br />
mineração. No Espírito Santo, medidas legais e administrativas foram tomadas<br />
quando a água mudou <strong>de</strong> cor na foz do rio Doce. Praias foram<br />
interditadas em Linhares, e moradores do município <strong>de</strong> Colatina ficaram<br />
sem abastecimento <strong>de</strong> água ou receberam água <strong>de</strong> qualida<strong>de</strong> duvidosa<br />
20 Disponível em: goo.gl/J5XeHk. Último acesso em 4 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2017. O filme resultou<br />
<strong>de</strong> parceria entre GEPPEDES e CAT, com produção <strong>de</strong> Daniela Zanetti e João Paulo<br />
Lyrio Izoton, e edição <strong>de</strong> Ana Oggioni. Veja também: “REGÊNCIA: As últimas horas antes<br />
da ‘lama’” (disponível em: goo.gl/EvTTMP), que começa com surfistas em ondas com águas<br />
claras e apresenta uma contagem regressiva para a chegada. Sobre o surfe em Regência Augusta,<br />
há também um filme, realizado em 2014, chamado “A Onda da <strong>Vida</strong>”, cujo trailer<br />
official está disponível em: goo.gl/LrL4ja.<br />
273
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
(BORGES, 2015; ORGANON, 2015).<br />
A então ministra do Meio Ambiente minimizou os efeitos da dispersão<br />
dos rejeitos no oceano (BORGES, 2015), fazendo uma previsão que teria<br />
sido impru<strong>de</strong>nte para qualquer estudante da matéria (MARTA-ALMEI-<br />
DA et al., 2016). O engenheiro Paulo Rosnan, da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do<br />
<strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro, também procurou minimizar as preocupações dos ambientalistas<br />
a respeito das consequências para as águas oceânicas, acreditando<br />
que “os possíveis estragos estão sendo superdimensionados pelos<br />
órgãos ambientais.” (BORGES, 2015, s.p.). E continuou: “No mar, eu creio que<br />
não será nada relevante. Haverá só uma mancha colorida muito gran<strong>de</strong> que<br />
se dispersará normalmente, como se dispersam as manchas que saem dos<br />
rios em épocas <strong>de</strong> gran<strong>de</strong>s chuvas.” (BORGES, 2015, s.p.). A mesma fonte registrou<br />
que a Samarco dissera que a pluma não era tóxica.<br />
Mas ondas <strong>de</strong> lama, <strong>de</strong> fato, apareceram na costa, como po<strong>de</strong> ser visto nas<br />
fotos da praia <strong>de</strong> Regência Augusta, que mostram as ondas quebrando<br />
com a coloração dos rejeitos. Discussões entre engenheiros, representantes<br />
da companhia, ativistas e moradores das áreas afetadas versavam sobre<br />
futuros possíveis. Se no relato <strong>de</strong> David McDermott Hughes (2005) sobre o<br />
rio Limpopo a água anima a imaginação <strong>de</strong> futuros virtuosos para ativistas<br />
da conservação da biodiversida<strong>de</strong>, aqui se <strong>de</strong>ram disputas entre os apologistas<br />
das corporações, que imaginaram a onda apenas como mancha a se<br />
dispersar, e outros, que viram a onda como capaz <strong>de</strong> repetir e amplificar<br />
seus riscos, suas potências negativas, e que, <strong>de</strong> novo e <strong>de</strong> novo, reincarnarse-iam<br />
em ondas oceânicas enlameadas, sinalizando o <strong>de</strong>sdobramento da<br />
poluição advinda do interior e a marginalização da ecologia costeira.<br />
274
Capítulo 10<br />
Figura 3: A chegada da lama em Regência Augusta, nas proximida<strong>de</strong>s da<br />
foz do rio Doce.<br />
Fonte: Reproduzida a partir <strong>de</strong> Borges (2015). Autoria da foto <strong>de</strong> Ricardo Moraes (Reuters).<br />
ONDA NÚMERO QUATRO: A MISTURA DAS TOXINAS NO OCEANO<br />
Em 25 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2015, <strong>de</strong>pois da lama (a)tingir o oceano, uma<br />
reunião foi realizada entre autorida<strong>de</strong>s governamentais e militares, técnicos<br />
<strong>de</strong> agências do estado do Espírito Santo, acadêmicos e resi<strong>de</strong>ntes das<br />
municipalida<strong>de</strong>s afetadas. As autorida<strong>de</strong>s governamentais procuravam<br />
estabelecer estratégias <strong>de</strong> ação, enfocando possibilida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> compensação<br />
para as comunida<strong>de</strong>s, através <strong>de</strong> projetos e outras medidas <strong>de</strong> mitigação<br />
que po<strong>de</strong>riam potencialmente advir <strong>de</strong> relações financeiras com a<br />
Samarco e seus parceiros.<br />
A maioria dos participantes tinha conexões institucionais reconhecidas<br />
pelo governo e, ao mesmo tempo, não se tratava <strong>de</strong> uma audiência pública.<br />
Representantes da empresa responsável pela barragem fizeram-se<br />
presentes. Discussões concentraram-se na presença marítima fe<strong>de</strong>ral<br />
via o navio Vital Oliveira, “o mais mo<strong>de</strong>rno da Marinha”, cujo propósito<br />
era conduzir estudos na foz do rio Doce e em suas proximida<strong>de</strong>s, para<br />
verificar a presença <strong>de</strong> “metais pesados e outros componentes” na água<br />
(JORNAL NACIONAL, 2015). Gestores da agência responsável pela ques-<br />
275
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
tão ambiental do estado do Espírito Santo apresentaram uma matriz <strong>de</strong><br />
impactos, e um <strong>de</strong> nós (Creado) participou <strong>de</strong> um grupo <strong>de</strong> trabalho sobre<br />
dimensões antrópicas.<br />
Algumas das medidas tomadas naquele momento, previstas em um documento<br />
assinado entre os Ministérios Públicos Estadual e Fe<strong>de</strong>ral com a<br />
Samarco, cuja <strong>de</strong>nominação jurídica é Termo <strong>de</strong> Compromisso Socioambiental<br />
Preliminar (TCSA), foram: (1) a remoção dos corpos mortos <strong>de</strong><br />
animais e sua disposição em aterros sanitários; (2) o estabelecimento <strong>de</strong><br />
bases <strong>de</strong> “govenança” nos municípios afetados; (3) a instalação <strong>de</strong> boias<br />
<strong>de</strong> contenção (<strong>de</strong> óleo) na foz do rio Doce; e (4) o monitoramento da qualida<strong>de</strong><br />
das águas. Tais ações foram vistas com muita suspeita pelas comunida<strong>de</strong>s<br />
locais.<br />
Membros da agência ambiental fe<strong>de</strong>ral operando na foz do rio Doce <strong>de</strong>sempenharam<br />
um papel proeminente no contexto pós-rompimento. Kane<br />
(2012, p. 1) escreve que “a infraestrutura costeira é dimensão material e<br />
simbólica do Estado em conflito com a natureza.” 21 O mesmo ocorreu aqui.<br />
A segunda meta<strong>de</strong> <strong>de</strong> 2015 já tinha sido um período <strong>de</strong> crise hídrica, quando<br />
houve uma redução nas chuvas, que, por sua vez, diminuiu a vazão do<br />
rio Doce e resultou na salinização das águas na foz. Esse rio <strong>de</strong>saguava<br />
no oceano apenas por uma estreita passagem da foz, ao norte, e, antes da<br />
chegada da lama, pescadores <strong>de</strong> Regência Augusta <strong>de</strong>mandaram a abertura<br />
da foz, ao sul, <strong>de</strong> modo a facilitar a passagem dos barcos <strong>de</strong> pesca<br />
(CREADO et al., 2016; LEONARDO et al., 2017). Boias <strong>de</strong> contenção <strong>de</strong><br />
vazamento <strong>de</strong> óleo foram instaladas na foz e técnicos <strong>de</strong> agências ambientais<br />
públicas tinham a expectativa <strong>de</strong> que a lama não se direcionasse para<br />
o sul. Expectativa posteriormente frustrada, dada a predominância da<br />
incidência do vento nor<strong>de</strong>ste na região (MARTA-ALMEIDA et al., 2016).<br />
Um representante da agência ambiental fe<strong>de</strong>ral explicou:<br />
Nós estávamos preparando pra enchente […] e então estávamos<br />
preparando a Barra Sul pra ser aberta [como também fora combinado<br />
com os pescadores, que almejavam acessar o oceano por<br />
ali] e se a enchente entrasse... essa era a estratégia. Com o aci<strong>de</strong>n-<br />
21 No original, em inglês: “coastal infrastructure is the material and symbolic<br />
dimension of the state in confrontation with nature.”<br />
276
Capítulo 10<br />
te, nós mudamos a estratégia e resolvemos aprofundar a barra<br />
Norte que já estava aberta, pra que a vazão se <strong>de</strong>sse por ali e [...]<br />
foi, felizmente, uma <strong>de</strong>cisão acertada que coincidiu a chegada da<br />
pluma com o vento sul [que moveu a pluma para o norte]. […] Até<br />
então a pluma vem se mantendo da foz pro norte. Ela nunca ficou<br />
na reserva biológica [Reserva Biológica <strong>de</strong> Comboios, situada<br />
próximo da foz, área <strong>de</strong> proteção das áreas <strong>de</strong> <strong>de</strong>sova e <strong>de</strong> tartarugas<br />
marinhas], exatamente ao sul da foz, né, apenas a primeira<br />
pluma, a pluma esbranquiçada […], mas a pluma <strong>de</strong> maior <strong>de</strong>nsida<strong>de</strong>,<br />
[…] que vocês estão vendo nas imagens, ela não <strong>de</strong>sceu, não<br />
entrou... [não] chegou à frente da Reserva Biológica ainda [não<br />
encostando na praia naquele momento], ela tá sendo empurrada<br />
pro sul até então, o mar virou pra nor<strong>de</strong>ste <strong>de</strong> novo hoje. Deu<br />
uma recuada, ela <strong>de</strong>u uma... a pluma <strong>de</strong>sce. A pluma branca […]<br />
chegou […] tanto que hoje a pluma mais <strong>de</strong>nsa tá com 12 quilômetros<br />
hoje. Ela chegou a 12 e 13 quilômetros. […] leste, nor<strong>de</strong>ste,<br />
ela começou a trazer pra baixo logo à noite... um pequeno vórtice<br />
ali na foz do Doce, que ela faz, ela dá uma encostadinha na<br />
praia <strong>de</strong> Regência, mas com uma tendência <strong>de</strong> sair pro sul e pegar<br />
um pouco as águas mais limpas, mais profundas, <strong>de</strong>ixando […]<br />
a praia do Comboios, [a] reserva biológica, e até [a] indígena... 22<br />
O mesmo agente institucional apresentou a hipótese <strong>de</strong> que as duas<br />
plantas <strong>de</strong> hidrelétricas, Aimorés e Mascarenhas, retiveram sedimentos.<br />
Animais mortos à montante também foram motivo <strong>de</strong> preocupação: “a<br />
mortanda<strong>de</strong> no rio é altíssima, altíssima, toneladas e toneladas”. Como<br />
a movimentação dos sedimentos nas águas costeiras era diária e intensivamente<br />
monitorada, ele apontou que algumas mudanças tinham sido<br />
observadas, entre os dias 23 e 25 <strong>de</strong> novembro <strong>de</strong> 2015, com um aumento<br />
da turbi<strong>de</strong>z das águas costeiras, nas proximida<strong>de</strong>s <strong>de</strong> Regência Augusta e<br />
Povoação, então: “foi solicitado ontem à empresa que fizesse uma batimetria<br />
nos lagos <strong>de</strong> Mascarenhas, <strong>de</strong> Aimorés pra ter uma i<strong>de</strong>ia do que está<br />
acumulado ainda […] para se ter uma i<strong>de</strong>ia […] <strong>de</strong>sse material.”<br />
De modo geral, pesquisadores das ciências naturais evitavam a imagem<br />
22 Quatro referências territoriais têm o nome <strong>de</strong> Comboios na região: a praia, o rio, a área<br />
protegida e a terra indígena.<br />
277
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
da lama, preferindo a terminologia pluma <strong>de</strong> sedimentos, evitando igualmente<br />
a retórica da onda, que enfatiza uma agência abrupta e incontida.<br />
Ao não usarem a linguagem da lama, tornavam a substância um objeto<br />
científico <strong>de</strong> maior neutralida<strong>de</strong>, negligenciando, no caminho, a possibilida<strong>de</strong><br />
do sedimento conter toxinas, e até mesmo naturalizando o <strong>de</strong>sastre<br />
(CREADO et al., 2017).<br />
A imagem da onda <strong>de</strong> lama, contudo, foi usada em outro evento acadêmico<br />
com profissionais do Direito. Aqui, po<strong>de</strong>-se pensar novamente na noção<br />
trazida por Hughes (2005) dos rios como lugares a respeito dos quais as pessoas<br />
discutem sobre os potenciais, bons e ruins. O evento foi o que po<strong>de</strong> ser<br />
chamado <strong>de</strong> drama social, segundo Victor Turner, com diferentes posições<br />
encenadas e confrontadas. 23 Foi realizado em outubro <strong>de</strong> 2016, em uma universida<strong>de</strong><br />
pública do Espírito Santo, com a participação <strong>de</strong>: (1) um <strong>de</strong>fensor<br />
público; (2) um advogado; (3) um promotor; e (4) uma moradora <strong>de</strong> uma<br />
vila <strong>de</strong> pescadores autoi<strong>de</strong>ntificada como afetada pela lama da Samarco.<br />
O <strong>de</strong>fensor público enfatizou as inúmeras dificulda<strong>de</strong>s enfrentadas pelos<br />
<strong>de</strong>fensores para lidar com os efeitos da água sobre os humanos e os<br />
não humanos, <strong>de</strong>vido à ampla extensão territorial do que ele chamou <strong>de</strong><br />
“dano ambiental” (ZHOURI, et al., 2017). Ele, outros profissionais do meio<br />
jurídico, cientistas sociais e comunida<strong>de</strong>s afetadas não consi<strong>de</strong>ravam os<br />
conceitos oficiais <strong>de</strong> afetados e <strong>de</strong> extensão territorial atingida como satisfatórios<br />
em comparação aos danos. 24<br />
Em seguida, o advogado assumiu um tom mais emocional. 25 Iniciou seu<br />
discurso da seguinte forma:<br />
Nós não estamos falando <strong>de</strong> <strong>de</strong>sastre, nós não estamos falando <strong>de</strong><br />
aci<strong>de</strong>nte, nós não estamos falando <strong>de</strong> algo que foi provocado por<br />
um terremoto, como muitos querem fazer acreditar! Nós estamos<br />
falando <strong>de</strong> um crime! Não <strong>de</strong> qualquer crime! Nós estamos<br />
23 Veja, por exemplo, Walley (2004).<br />
24 “[S]uch policies characterize a mistake and a reduction: the mistake of classifying the<br />
disaster as a case of environmental conflict and a reduction of the latter to a sphere of negotiation<br />
between interested parties.” (ZHOURI et al., 2017, p. 88).<br />
25 Consultar Losekann (2017) a respeito das expressões emocionais em audiências públicas<br />
sobre os efeitos do rompimento da barragem da Samarco no rio Doce. Remontamos também<br />
à proposta <strong>de</strong> uma ecologia das emoções associada à água em Tad<strong>de</strong>i (2014).<br />
278
Capítulo 10<br />
falando do maior crime socioambiental da história <strong>de</strong>sse país!<br />
Não vamos ter medo <strong>de</strong> falar sobre isso! Não vamos falar baixo<br />
sobre isso! Vamos falar alto! Grosso! Firme! Que nós estamos<br />
falando contra uma empresa criminosa! E não sou eu que estou<br />
falando sobre isso, é a lei!<br />
A menção à lama enfatizou a ampla contaminação simbólica-material e,<br />
nesse discurso, foi dada ênfase às formas com que o Estado brasileiro,<br />
através <strong>de</strong> marcos regulatórios ambientais e <strong>de</strong> segurança fracos, permitiu<br />
e protegeu as corporações transnacionais <strong>de</strong>dicadas às ativida<strong>de</strong>s extrativistas,<br />
como as <strong>de</strong> mineraçao e exploração <strong>de</strong> óleo (SANTOS & MI-<br />
LANEZ, 2017).<br />
A onda <strong>de</strong> lama é aqui materialida<strong>de</strong> e símbolo, então, dos problemas do<br />
Brasil, como Nação, Estado e Mercado:<br />
Eu costumo dizer que a relevância do tema, do crime da Samarco,<br />
é porque o crime da Samarco, meus caros, minhas caras, nesse<br />
processo que nós estamos vivendo junto com a lama que <strong>de</strong>rrama<br />
da barragem <strong>de</strong> Fundão, vem com ela, se escancara nessa lama<br />
as contradições <strong>de</strong>sse país! [...] porque afinal <strong>de</strong> contas nós estamos<br />
falando <strong>de</strong> 660 barragens <strong>de</strong> mineração! Muitas <strong>de</strong>las com risco<br />
mais elevado <strong>de</strong> rompimento do que a <strong>de</strong> Fundão que se rompeu!<br />
Eu costumo dizer, portanto, que o crime que a Samarco, ele se<br />
torna emblemático porque ele revela, junto com a lama que <strong>de</strong>rramou,<br />
vários Brasis! O primeiro Brasil que eu vejo nessa lama,<br />
matando as pessoas, é o Brasil colonial [grifo nosso].<br />
Outros Brasis foram pontuados em sua fala: o “Brasil patrimonialista, privatista”,<br />
“o Brasil anti<strong>de</strong>mocrático” que “insiste em manter o seu povo longe<br />
das <strong>de</strong>cisões políticas”, “o Brasil do conchavo” e, por fim, fechando sua<br />
narrativa, o “Brasil da resistência”. Aqui, a onda <strong>de</strong> lama carrega consigo<br />
todas as forças, todas <strong>de</strong> uma vez. O discurso se encerrou com a referência<br />
a um poema <strong>de</strong> Carlos Drummond <strong>de</strong> Andra<strong>de</strong>, “Nosso tempo”, e, mais<br />
intensamente, com a letra <strong>de</strong> uma música <strong>de</strong> Gonzaguinha, “Vamos à<br />
luta”, em associação, no caso, à ocupação das escolas pelos secundaristas<br />
brasileiros. Aqui, havia uma reivindicação maior sobre tóxicos e temporalida<strong>de</strong>s,<br />
e sobre o alcance das histórias da colonização, via mineração, até<br />
279
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
os empreendimentos multinacionais atuais.<br />
Em terceiro lugar, adveio o discurso do promotor, com uma linha argumentativa<br />
acadêmica ou “técnica”. Ele <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>u a necessida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>senvolvimento<br />
<strong>de</strong> “uma tecnologia jurídica que possa dar conta <strong>de</strong> alguma<br />
medida documental que está sendo feita pelas entida<strong>de</strong>s responsáveis” e<br />
da <strong>de</strong>fesa dos “direitos”. A metáfora-chave aqui foi a <strong>de</strong> ondulações causadas<br />
na água por uma pedra para pensar os “litígios <strong>de</strong> natureza irradiada”:<br />
Eles são como uma pedra no lago. É como se você jogasse uma<br />
pedra no lago e ela fosse procurando diversas outras. São atingidos<br />
os que estavam no entorno da barragem, são atingidos o meio<br />
ambiente, a fauna, a flora, são atingidos aqueles que moravam ao<br />
longo do rio, são atingidos aqueles que bebiam a água do rio, são<br />
atingidos aqueles que viviam do rio, são atingidos aqueles que<br />
viviam do mar, todos são atingidos!<br />
A analogia aqui entre a radiação e uma onda sugere uma causa que originou<br />
o <strong>de</strong>sastre. A onda, em outras palavras, não aconteceu por si mesma;<br />
foi criada pela Samarco. Como Geertz (2003, p. 37) sugeriu sobre a analogia<br />
em ciência: “a teoria — seja esta científica ou não — avança principalmente<br />
graças à analogia, um tipo <strong>de</strong> compreensão que “vê” aquilo que é<br />
menos inteligível através <strong>de</strong> uma comparação com o mais inteligível […],<br />
quando esta muda <strong>de</strong> curso, os conceitos através dos quais ela se expressa<br />
também se modificam.” No pronunciamento acima, o apelo à analogia<br />
não leva em consi<strong>de</strong>ração apenas as leis da natureza, mas também as leis<br />
criminais que po<strong>de</strong>riam apontar os responsáveis e os culpados.<br />
O pronunciamento final foi o <strong>de</strong> uma moradora <strong>de</strong> uma vila <strong>de</strong> pescadores.<br />
Ela falou sobre as incertezas a respeito dos possíveis efeitos da lama<br />
na saú<strong>de</strong> humana e <strong>de</strong> outros seres:<br />
Eles vão conseguir dragar o mar? Eles vão conseguir tirar isso do<br />
mar? E com relação ao peixe contaminado... o peixe, ele não tem<br />
um GPS, “é pra ficar paradinho aqui, óh! Aqui tá contaminado,<br />
se eu sair daqui alguém vai, vai me comer!” Alguém vai pegar<br />
pra comer... […] O peixe que tá na mesa <strong>de</strong> vocês, que vocês estão<br />
comendo, está contaminado!<br />
280
Capítulo 10<br />
O discurso <strong>de</strong>la trouxe referências a corpos <strong>de</strong> humanos e não humanos<br />
afetados pela lama. Para ela, o <strong>de</strong>sastre seria parte <strong>de</strong> um plano maior<br />
para <strong>de</strong>struir os pescadores artesanais. A moradora associou o rompimento<br />
da barragem com projetos prévios <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento. Os conflitos<br />
internos <strong>de</strong> sua vila intensificaram-se <strong>de</strong>pois da lama e da interdição<br />
da pesca associada à lama. E ela questionou os laudos produzidos sobre<br />
as condições das águas com o financiamento da Samarco: “se eu fosse a<br />
empresa, jamais pagaria alguém pra produzir provas contra mim! Nunca!<br />
Por mais... por mais credibilida<strong>de</strong> que tem esse laboratório, eu não ia<br />
acreditar nesse laboratório.”<br />
Haraway escreveu que “ninguém vive em todos os lugares; todo mundo<br />
vive em algum lugar. Nada está conectado a tudo; tudo está conectado a<br />
alguma coisa.” (HARAWAY, 2016, p. 31). 26 Esses são precisamente os sentimentos<br />
expressos nos discursos do advogado e da moradora da vila <strong>de</strong><br />
pescadores, ao fazerem suas <strong>de</strong>mandas terrenas e aquáticas. Como Kane<br />
(2012) observou a respeito das políticas para os rios, “atores envolvidos<br />
em lutas pela água trilham para frente e para trás, vinculam eventos nos<br />
sertões às cida<strong>de</strong>s, tornam os padrões <strong>de</strong> exploração e resistência legíveis<br />
para audiências mais amplas.” 27 Tais argumentos são sobre potência fluvial<br />
(HUGHES, 2005). Eles também são colocados em termos <strong>de</strong> direção<br />
<strong>de</strong> fluxo — algo que Krause (2017) <strong>de</strong>nominou <strong>de</strong> dimensões “fluviais”. O<br />
fazer-espaço acontece “nos engajamentos dos que habitam as margens<br />
dos rios com [alguns <strong>de</strong>] seus fluxos e nas histórias que fazem sobre…<br />
parte <strong>de</strong>les, especialmente na pesca, nas viagens e no transporte” (KRAU-<br />
SE, 2017, p. 279). 28 As ondas possuem uma contun<strong>de</strong>nte direcionalida<strong>de</strong>:<br />
a onda <strong>de</strong> lama vem do passado para o futuro, do interior controlado por<br />
corporações para a pesca e a recreação, realizadas na costa.<br />
26 No original, em inglês: “nobody lives everywhere; everybody lives somewhere. Nothing is<br />
connected to everything; everything is connected to something.”<br />
27 No original, em inglês: “actors involved in aquatic struggles track back and forth, linking<br />
events in hinterlands to cities, making the patterns of exploitation and resistance legible to wi<strong>de</strong>r<br />
audiences.”<br />
28 Reprodução do trecho no original em inglês: “‘riverbank inhabitants’ engagement with<br />
and stories about… [a] river’s flows, especially in fishing, travel and transport.”<br />
281
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
Figura 4: Praia <strong>de</strong> Comboios com rejeitos <strong>de</strong> mineração na água do mar<br />
em Regência Augusta.<br />
Fonte: Autoria <strong>de</strong> Eliana Creado/GEPPEDES, novembro <strong>de</strong> 2016.<br />
Figura 5: Espuma contaminada em Regência Augusta.<br />
Fonte: Autoria <strong>de</strong> Eliana Creado/GEPPEDES, novembro <strong>de</strong> 2016.<br />
Em um dos últimos momentos <strong>de</strong> pesquisa <strong>de</strong> campo em Regência Augusta,<br />
Creado tirou algumas fotos dos muros da escola, com pinturas das<br />
crianças sobre o rio Doce. Uma é reproduzida abaixo. Ela mostra uma<br />
pura onda azul colidindo com uma onda <strong>de</strong> lama. No primeiro plano há<br />
282
Capítulo 10<br />
referências à vila, incluindo o seu farol. Nas duas inscrições é possível ler,<br />
à esquerda, “água fonte <strong>de</strong> vida” e, à direita, “esta lama não é nossa”. A<br />
leitura da esquerda para a direita dá priorida<strong>de</strong> existencial à onda azul, e<br />
à água como vida. Se uma coisa é viva quando se move, as ondas (e a lama)<br />
enredaram-se na imaginação da vila e em sua vida cotidiana (INGOLD,<br />
2012). A imagem refere-se ao caráter repetitivo do tempo social e da recorrência<br />
do nunca-por-terminar <strong>de</strong>sastre e crime da Samarco.<br />
Figura 6: Foto <strong>de</strong> pintura <strong>de</strong> crianças da escola <strong>de</strong> Regência Augusta.<br />
Fonte: Autoria <strong>de</strong> Eliana Creado/GEPPEDES, setembro <strong>de</strong> 2017.<br />
A onda <strong>de</strong> lama diluiu-se e persiste nas ondas do oceano (PAULA, 2017).<br />
Um relatório registrou a importância das ondas para os esportes aquáticos<br />
na região:<br />
As praias <strong>de</strong> Regência e Povoação são famosas por suas ondas, consi<strong>de</strong>radas<br />
i<strong>de</strong>ais para a prática do surf e do bodyboard. Os a<strong>de</strong>ptos<br />
das duas modalida<strong>de</strong>s são responsáveis por boa parte do turismo<br />
na região. Povoação, <strong>de</strong> mais difícil acesso ao público vindo da capital<br />
Vitória, é um <strong>de</strong>stino cobiçado por atletas <strong>de</strong> bodyboard <strong>de</strong><br />
todo o Brasil. Regência, do lado sul da foz do <strong>Rio</strong> Doce, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> a<br />
283
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
sua <strong>de</strong>scoberta galgou a posição <strong>de</strong> uma praia secreta e conhecida<br />
por poucos para uma das 10 melhores ondas do Brasil, eleitas <strong>de</strong><br />
acordo com o público <strong>de</strong> uma revista <strong>de</strong> circulação nacional especializada<br />
no esporte. (LEONARDO et al., 2017, p. 70).<br />
(IN)CONCLUSÕES<br />
Encerramos o texto consi<strong>de</strong>rando as negociações feitas para viabilizar<br />
o acordo entre os governos dos estados <strong>de</strong> Minas Gerais e Espírito Santo,<br />
as empresas responsáveis pela barragem <strong>de</strong> Fundão e as agências responsáveis<br />
pela proteção ambiental e <strong>de</strong> povos indígenas. As negociações não<br />
foram nem transparentes nem <strong>de</strong>mocráticas. Igualmente, não admitiram<br />
questionamentos sobre a viabilida<strong>de</strong> da ativida<strong>de</strong> <strong>de</strong> mineração nem dúvidas<br />
sobre as políticas ou os beneficiários da linguagem tecnocrática <strong>de</strong><br />
risco (ZHOURI, et al., 2017). Um <strong>de</strong> seus resultados foi um acordo, assinado<br />
em 2 <strong>de</strong> março <strong>de</strong> 2016, que criou uma “pessoa jurídica <strong>de</strong> direito<br />
privado”, (auto)alegadamente “sem fins lucrativos”, a Fundação Renova<br />
(FUNDAÇÃO RENOVA, 2016). O estatuto da Fundação Renova permite,<br />
inclusive, que ela empregue pessoas que já compõem os quadros <strong>de</strong> funcionários<br />
das empresas Samarco Mineração S.A., Vale S.A. e BHP Billiton<br />
Brasil Ltda. Seu objetivo seria implementar programas socioambientais<br />
e socioeconômicos para lidar com as consequências do rompimento da<br />
barragem (FUNDAÇÃO RENOVA, 2016).<br />
Trata-se <strong>de</strong> uma configuração <strong>de</strong> relações categorizada por conflitos <strong>de</strong> interesses,<br />
que po<strong>de</strong> ser particularmente perigosa no momento político atual<br />
brasileiro, <strong>de</strong> águas muito turbulentas. A Fundação Renova tem como sua<br />
principal mantenedora a Samarco Mineração S.A. e, subsidiariamente, a<br />
Vale S.A. e a BHP Billiton Brasil Ltda. Seu conselho consultivo não tem<br />
po<strong>de</strong>r <strong>de</strong>cisório, estando a seu cargo “emitir opiniões e pareceres não vinculantes<br />
sobre as matérias relativas aos programas, projetos e medidas a<br />
serem implementados para assegurar o cumprimento do Acordo e dos<br />
objetivos da Fundação” (FUNDAÇÃO RENOVA, 2016, p. 17, 50º. artigo.). 29<br />
29 ZHOURI e colaboradores (2017) escreveram: “The companies (Samarco, Vale and BHP<br />
Billiton) have been allowed to interfere in the process of <strong>de</strong>fining reparation and compensation<br />
actions, a fact which helps to guarantee the interests of the companies in <strong>de</strong>triment to the rights<br />
of affected people” (p. 97). Em Refining Expertise: How Responsible Engineers Subvert Environmental<br />
Justice Challenges, Gwen Ottinger (2013) argumenta que, ao se nomearem especial-<br />
284
Capítulo 10<br />
O nome da fundação foi explorado semanticamente pelos (ciber)ativistas,<br />
que utilizaram o trocadilho “Crime que se Renova”. Uma interpretação<br />
que foi sustentada, por exemplo, pela leitura do logotipo da organização,<br />
abaixo apresentada:<br />
Figura 7: Releitura do logo da Fundação Renova, com os nomes dos três<br />
parceiros: Samarco S.A., Vale S.A. e BHP Billinton.<br />
Fonte: Compartilhado no Facebook, em 24 <strong>de</strong> outubro <strong>de</strong> 2016.<br />
FUNDAÇÃO RENOVASAMARCO<br />
Discursos po<strong>de</strong>m mentir, mas as imagens não. Talvez porque a<br />
linguagem visual esteja próxima da lógica dos sonhos, ela po<strong>de</strong><br />
revelar atos falhos e sintomas por trás dos simbolismos políticos<br />
e i<strong>de</strong>ológicos.<br />
A marca visual criada para a fundação que nasceu <strong>de</strong> um acordo<br />
istas, e não responsáveis, engenheiros envolvidos em indústrias extrativistas protegem sua<br />
autorida<strong>de</strong> e limitam o discurso sobre justiça a parâmetros estritamente legais e técnicos que<br />
minam projetos <strong>de</strong> justiça ambiental mais inclusivos.<br />
285
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
obscuro, e evi<strong>de</strong>ncia a que veio. Usando as cores dos “patrões” em<br />
forma circular, sua construção <strong>de</strong>monstra a união das forças, <strong>de</strong><br />
suas potências, num movimento anti-ciclônico em torno da palavra<br />
RENOVA ao centro. Girando em torno <strong>de</strong> si, criado o símbolo<br />
<strong>de</strong>terminante que impõem o modus operand[i] que a fez surgir.<br />
RENOVASAMARCO renova a si mesmo retroalimentando, sem<br />
ao menos sinalizar algo que remeta aos que foram atingidos.<br />
A palavra fundação, reduzida, hierarquizada em escala inferior,<br />
em nada é ou representa o que <strong>de</strong>veria. Ao contrário, mascara a<br />
absorção <strong>de</strong> fundos e ações, com propósito inverso.<br />
A circularida<strong>de</strong> do <strong>de</strong>senho evoca também a recorrência da onda e, <strong>de</strong><br />
modo continuado, o ciclo <strong>de</strong> toxinas, em suspensão novamente e carreadas<br />
para o mar todas as vezes em que há chuvas rio acima e/ou quando<br />
as águas do oceano tornam-se turbulentas, por exemplo, por conta <strong>de</strong><br />
alterações climáticas. Os rejeitos <strong>de</strong> mineração agora são parte do ciclo<br />
hidrológico. 30 O gráfico também nos recorda o quão importante é continuar<br />
seguindo as (re)configurações das relações em torno do rio Doce no<br />
contexto <strong>de</strong> pós-rompimento.<br />
○<br />
Como a imagem da onda importa nas várias iterações aqui traçadas?<br />
Para resi<strong>de</strong>ntes e ativistas, a imagem da onda enfatizou a ruptura da barragem<br />
da Samarco como violência rápida, força fora do lugar, <strong>de</strong>vir físico-orgânico-tóxico<br />
fruto <strong>de</strong> um erro corporativo. Para as pessoas <strong>de</strong><br />
Baixo Guandu, gerou pavor, expectativas e incertezas. Para as pessoas <strong>de</strong><br />
Regência Augusta, configurou-se como fantasma físico-material <strong>de</strong> um<br />
<strong>de</strong>sastre que continua sendo relembrado, repetido, (re)quebrando como<br />
ondas oceânicas contaminadas. Alguns burocratas empresariais e técnicos<br />
estatais procuram minimizar o <strong>de</strong>sastre, evitando palavras como onda<br />
ou lama, dando preferência a termos mais tecnocratas e a que atribuem<br />
maior neutralida<strong>de</strong>, como turbi<strong>de</strong>z, mancha, pluma, rejeitos e sedimentos.<br />
Nas discussões sobre o rompimento e as suas consequências, as conver-<br />
30 Veja, por exemplo, Budds e colaboradores (2014).<br />
286
Capítulo 10<br />
sas <strong>de</strong> onda uniram e dividiram as pessoas. Kane (2012, p. 8) sugeriu que<br />
“como algo composto por conjuntos <strong>de</strong> crenças, práticas, circunstâncias<br />
e naturezas que revelam <strong>de</strong>sigualda<strong>de</strong>s sociais, a água retém o potencial<br />
<strong>de</strong> unir através <strong>de</strong> divisões incomensuráveis”. 31 Esse também é o caso dos<br />
fluxos das águas, <strong>de</strong>scritos <strong>de</strong> formas as mais distintas aqui, e que po<strong>de</strong>m<br />
dividir as pessoas através da política e das paisagens fluviais. Kane (2012,<br />
p. 11) coloca também que “tanto o pesquisador-escritor quanto o ativista<br />
(embora diferentemente baseados e com objetivos distintos) precisam<br />
apren<strong>de</strong>r a ligar criativamente os sujeitos tecnocráticos da gestão da água<br />
e os impulsos culturais por mudança e justiça social.” 32 Ao se examinar<br />
parte dos trabalhos retóricos e políticos que a figura da onda <strong>de</strong> lama po<strong>de</strong><br />
(e não po<strong>de</strong>) fazer, nós esperamos oferecer novas maneiras <strong>de</strong> se pensar as<br />
relações entre a questão das águas, os crimes ambientais e a justiça.<br />
AGRADECIMENTOS<br />
Agra<strong>de</strong>cemos a Marisol Marini pelo convite para escrever essa pequena<br />
contribuição e pelo seu apoio no <strong>de</strong>senvolvimento <strong>de</strong>ssas palavras, inicialmente<br />
para o RIEB. Nossos agra<strong>de</strong>cimentos também para Luísa Reis<br />
Castro e Caterina Scaramelli, pelas cuidadosas leituras <strong>de</strong> versões anteriores<br />
do artigo. Igualmente, agra<strong>de</strong>cemos ao pessoal do GEPPEDES, em<br />
especial Aline Trigueiro, sua coor<strong>de</strong>nadora; por seus trabalhos <strong>de</strong> pesquisa<br />
inspiradores, Bianca <strong>de</strong> Jesus Silva e Marianna <strong>de</strong> Paula; e, pela sua<br />
<strong>de</strong>dicação, Clara Crizio <strong>de</strong> Araujo Torres. Dois revisores anônimos do<br />
RIEB leram o material e teceram comentários que nos ajudaram a aguçar<br />
os argumentos ora apresentados. A versão em português também contou<br />
com a revisão <strong>de</strong> Ákilla Lonar<strong>de</strong>lli, a quem agra<strong>de</strong>cemos.<br />
31 Trecho no original: “as a subject composed of bundled sets of beliefs, practices, circumstances<br />
and natures that reveal social inequalities, water retains the potential to unite across<br />
unfathomable divi<strong>de</strong>s.”<br />
32 No original: “both the researcher-writer and the activist (albeit groun<strong>de</strong>d and aimed in<br />
different ways) must learn how to creatively link the rather technocratic subjects of water<br />
management and environmental crime to cultural impulses for change and social justice.”<br />
287
<strong>Vida</strong>s <strong>de</strong> <strong>Rio</strong> e <strong>de</strong> Mar: Pesca, Desenvolvimentismo e Ambientalização<br />
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293
Sobre as autoras e OS autores<br />
Aline Trigueiro<br />
Bacharela e licenciada em Ciências Sociais pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />
do <strong>Rio</strong> <strong>de</strong> Janeiro (UFRJ) (1997), mestra em Sociologia e Antropologia<br />
pelo Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Sociologia e Antropologia da UFRJ<br />
(2000) e doutora em Sociologia pela mesma instituição (2007), com período<br />
sanduíche na University of Oxford, England (2005). É Professora do<br />
Departamento <strong>de</strong> Ciências Sociais da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito<br />
Santo (UFES), membro do Programa <strong>de</strong> Pós-graduação em Ciências Sociais<br />
(PGCS) e coor<strong>de</strong>nadora do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Populações<br />
Pesqueiras e Desenvolvimento (GEPPEDES).<br />
Bernardo Furlaneto Bragato Oakes <strong>de</strong> Oliveira<br />
Bacharel em Ciências Sociais pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo<br />
(UFES) (2017). Durante o biênio 2016-2017, foi bolsista do Programa <strong>de</strong><br />
Extensão “Áreas protegidas e gran<strong>de</strong>s projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no<br />
horizonte <strong>de</strong> vivências das comunida<strong>de</strong>s locais: os impactos socioambientais<br />
e os seus <strong>de</strong>sdobramentos”, vinculado ao Grupo <strong>de</strong> Estudos e<br />
Pesquisas em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento (GEPPEDES).<br />
Bianca <strong>de</strong> Jesús Silva<br />
Bacharela e licenciada em Ciências Sociais pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />
do Espírito Santo (UFES) (2015 e 2017), e mestra em Ciências Sociais pela<br />
mesma instituição (2018). É pesquisadora colaboradora vinculada ao Grupo<br />
<strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento<br />
(GEPPEDES) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2015.<br />
294
Carolina <strong>de</strong> Oliveira e Silva Cyrino<br />
Bacharela em Serviço Social pela Escola Superior <strong>de</strong> Ciências da Santa<br />
Casa <strong>de</strong> Misericórdia <strong>de</strong> Vitória (EMESCAM) (2009), mestra em Ciências<br />
Sociais pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo (UFES) (2018), e doutoranda<br />
pelo Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Sociologia da Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral do <strong>Rio</strong> Gran<strong>de</strong> do Sul (UFRGS). É pesquisadora colaboradora do<br />
Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento<br />
(GEPPEDES) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2016.<br />
Clara Crizio <strong>de</strong> Araujo Torres<br />
Bacharela e mestra em Ciências Sociais pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito<br />
Santo (2013 e 2016). É pesquisadora colaboradora do Grupo <strong>de</strong> Estudos<br />
e Pesquisas em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento no Espírito<br />
Santo (GEPPEDES) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2015.<br />
Daniela Zanetti<br />
Graduada em Jornalismo pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo<br />
(UFES) (1997), mestra em letras pela Universida<strong>de</strong> Presbiteriana Mackenzie<br />
(2004), e doutora em Comunicação e Cultura Contemporânea pela Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral da Bahia (UFBA) (2010). É Professora do Departamento <strong>de</strong><br />
Comunicação Social da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo (UFES) e<br />
coor<strong>de</strong>nadora do Grupo <strong>de</strong> Pesquisas em Cultura Audiovisual e Tecnologia<br />
(CAT). Coor<strong>de</strong>na a equipe audiovisual do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas<br />
em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento (GEPPEDES) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2015.<br />
295
Eliana Santos Junqueira Creado<br />
Bacharela e mestre em Ciências Sociais pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong><br />
São Carlos (1998 e 2002) e doutora em Ciências Sociais pela Universida<strong>de</strong><br />
Estadual <strong>de</strong> Campinas (2006). Des<strong>de</strong> abril <strong>de</strong> 2010, é professora em Antropologia<br />
na Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo (UFES) e do Programa<br />
<strong>de</strong> Pós-Graduação em Ciências Sociais da UFES. Participa do Grupo<br />
<strong>de</strong> Estudos e Pesquisa em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento<br />
(GEPPEDES) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2015.<br />
Flávia Amboss Merçon Leonardo<br />
Bacharela (2011) e licenciada (2013) em Ciências Sociais pela Universida<strong>de</strong><br />
Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo (UFES), mestra em Ciências Sociais pelo<br />
Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Ciências Sociais da mesma instituição<br />
(2014), e doutoranda no Programa <strong>de</strong> Pós-Graduação em Antropologia e<br />
Arqueologia da Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> Minas Gerais (UFMG). É pesquisadora<br />
colaboradora do Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Populações<br />
Pesqueiras e Desenvolvimento (GEPPEDES) <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2011, e colaboradora<br />
no Grupo <strong>de</strong> Estudos em Temáticas Ambientais (GESTA) vinculado à<br />
UFMG <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2017.<br />
Géssica Amâncio dos Santos<br />
Graduada em Comunicação Social com habilitação em Publicida<strong>de</strong> e<br />
Propaganda pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo (UFES), e graduanda<br />
em Cinema e Audiovisual pela mesma instituição. Pesquisadora<br />
vinculada ao Grupo <strong>de</strong> Pesquisas em Cultura Audiovisual e Tecnologia<br />
(CAT). Durante o biênio 2016-2017 foi bolsista do Programa <strong>de</strong> Extensão<br />
“Áreas protegidas e gran<strong>de</strong>s projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no horizonte <strong>de</strong><br />
vivências das comunida<strong>de</strong>s locais: os impactos socioambientais e os seus<br />
<strong>de</strong>sdobramentos”, vinculado ao Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Populações<br />
Pesqueiras e Desenvolvimento (GEPPEDES).<br />
296
Jessica Ribeiro Latif<br />
Graduada em Comunicação Social com habilitação em Jornalismo pela<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo (UFES) (2015) e graduanda em<br />
Cinema e Audiovisual pela mesma instituição. Pesquisadora vinculada<br />
ao Grupo <strong>de</strong> Pesquisas em Cultura Audiovisual e Tecnologia (CAT). Durante<br />
o biênio 2016-2017, foi bolsista do Programa <strong>de</strong> Extensão “Áreas protegidas<br />
e gran<strong>de</strong>s projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no horizonte <strong>de</strong> vivências<br />
das comunida<strong>de</strong>s locais: os impactos socioambientais e os seus <strong>de</strong>sdobramentos”,<br />
vinculado ao Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Populações<br />
Pesqueiras e Desenvolvimento (GEPPEDES).<br />
João Paulo Lyrio Izoton<br />
Bacharel e mestre em Ciências Sociais pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito<br />
Santo (UFES) (2013 e 2016). É pesquisador colaborador do Grupo <strong>de</strong> Estudos<br />
e Pesquisas em Populações Pesqueiras e Desenvolvimento <strong>de</strong>s<strong>de</strong> 2011.<br />
Luiz Otávio Martins Duarte<br />
Graduando em Geografia pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo.<br />
Durante o biênio 2016-2017, foi bolsista do Programa <strong>de</strong> Extensão “Áreas<br />
protegidas e gran<strong>de</strong>s projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no horizonte <strong>de</strong> vivências<br />
das comunida<strong>de</strong>s locais: os impactos socioambientais e os seus<br />
<strong>de</strong>sdobramentos”, vinculado ao Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Populações<br />
Pesqueiras e Desenvolvimento (GEPPEDES).<br />
297
Mariana Pimenta <strong>de</strong> Alvarenga Prates<br />
Graduanda em Ciências Sociais pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito<br />
Santo. Durante o biênio 2016-2017, foi bolsista do Programa <strong>de</strong> Extensão<br />
“Áreas protegidas e gran<strong>de</strong>s projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no horizonte <strong>de</strong><br />
vivências das comunida<strong>de</strong>s locais: os impactos socioambientais e os seus<br />
<strong>de</strong>sdobramentos”, vinculado ao Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Populações<br />
Pesqueiras e Desenvolvimento (GEPPEDES).<br />
Marianna Gonçalves <strong>de</strong> Paula<br />
Bacharela em Ciências Sociais pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo<br />
(2017). Durante o biênio 2016-2017, foi bolsista do Programa <strong>de</strong> Extensão<br />
“Áreas protegidas e gran<strong>de</strong>s projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no horizonte <strong>de</strong><br />
vivências das comunida<strong>de</strong>s locais: os impactos socioambientais e os seus<br />
<strong>de</strong>sdobramentos”, vinculado ao Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Populações<br />
Pesqueiras e Desenvolvimento no Espírito Santo (GEPPEDES).<br />
Nayara Pinto Santana<br />
Graduanda em Geografia pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral do Espírito Santo.<br />
Durante o biênio 2016-2017, foi bolsista do Programa <strong>de</strong> Extensão “Áreas<br />
protegidas e gran<strong>de</strong>s projetos <strong>de</strong> <strong>de</strong>senvolvimento no horizonte <strong>de</strong> vivências<br />
das comunida<strong>de</strong>s locais: os impactos socioambientais e os seus<br />
<strong>de</strong>sdobramentos”, vinculado ao Grupo <strong>de</strong> Estudos e Pesquisas em Populações<br />
Pesqueiras e Desenvolvimento (GEPPEDES).<br />
298
Stefan Helmreich<br />
Bacharel em Antropologia pela University of California, Los Angeles<br />
(1989), mestre em Antropologia pela Stanford University e PhD em Antropologia<br />
pela mesma instituição (1995). Professor do Programa <strong>de</strong> Antropologia<br />
do Massachusetts Institute of Technology (MIT). Autor do<br />
premiado livro Alien Ocean: Anthropological Voyages in Microbial Seas<br />
(University of California Press, 2009). Atualmente é chefe do Programa <strong>de</strong><br />
Antropologia do MIT.<br />
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