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Anna Sens<br />
Boemia,<br />
sociabilidade<br />
e resistência<br />
democrática da imprensa<br />
durante a ditadura<br />
militar em Curitiba
EXPEDIENTE<br />
Anna Sens<br />
Identidade visual e diagramação:<br />
Fotografia:<br />
Revisão:<br />
Livro-reportagem apresentado como requisito parcial à conclusão do curso de<br />
Comunicação Social, habilitação em Jornalismo, Setor de Artes, Comunicação<br />
e Design (Sacod), da Universidade Federal do Paraná (UFPR).
Boemia,<br />
sociabilidade<br />
e resistência<br />
democrática da imprensa<br />
durante a ditadura<br />
militar em Curitiba
Maffesoli, 1984
O único lugar onde a<br />
comunicação resiste<br />
é o bar”
sumário
Prefácio<br />
Beber e coçar<br />
é só começar<br />
Sem lenço,<br />
sem documento<br />
Mais um<br />
dedo de prosa<br />
Agora é<br />
que são elas
07<br />
Prefácio<br />
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08
Beber e coçar<br />
é só começar<br />
“O Rio de Janeiro é o mar, Curitiba<br />
é o bar e onde <strong>bebe</strong>r é legítima defesa”<br />
Paulo Leminski
A LUTA BEBE CERVEJA<br />
13<br />
As mãos engorduradas de frango frito, desses que ninguém sabe em que gordura foram<br />
feitos, mas que todo mundo come mesmo assim e nem questiona, porque há algo de aceitável<br />
em comer qualquer porcaria quando se está num bar. É igual, sei lá, rollmops, iguaria curitibana<br />
que consiste em sardinha e cebola em conserva há sabe-se lá quantos anos, feitas pra<br />
quem tem coragem, estômago ou costume.<br />
É coisa de bar mesmo, botequim, para os boêmios convictos. É para quando se está bêbado<br />
e faminto e sem grana, então umas poucas moedas de cruzado, cruzeiro ou cruzeiro novo já<br />
são suficientes para matar a fome. Mas nem só nessas situações - às vezes, quando de passagem<br />
e com o bucho vazio, a maior alegria do sujeito é encontrar uma portinha aberta, que<br />
serve fritura e refrigerante até umas horas, e aí não importa mesmo por qual banha aquilo<br />
passou.<br />
Enfim, as mãos engorduradas de frango frito eram as mesmas mãos que trocavam dinheiro<br />
no caixa, que seguravam tacos de sinuca e que faziam anotações em bloquinhos de tempos<br />
em tempos. Eram as mãos de aproximadamente dez jornalistas vindos de todos os cantos do<br />
Brasil, não estavam bêbados, mas estavam ali já há alguns dias. E no fim das contas comer<br />
frango frito no barzinho é um bom disfarce.<br />
E entre eles estava Luiz Manfredini, o Manfra, que assume a mea culpa daquela reunião de<br />
repórteres não combinada com antecedência. O ano é 1978, Manfra era repórter da sucursal<br />
do Jornal do Brasil em Curitiba, e ainda ostentava cabelos compridos ao invés do chapéu<br />
panamá que usava quando contou essa história.<br />
Então ele estava ali comendo frango frito ao lado de jornalistas da Veja, do Estadão, da Folha<br />
de S. Paulo, num bar mequetrefe que devia até ter um nome, mas que ninguém se lembra, e<br />
que ficava na frente do Quartel do Boqueirão, na zona sul de Curitiba, às suas ordens.<br />
O Quartel do Boqueirão era um dos pólos do regime militar na cidade, onde os soldados<br />
treinavam para matar e morrer em nome da pátria amada, Brasil, em tempos que andar na<br />
rua era perigoso porque o Estado estava contra você. Ver polícia pela rua não dava sensação
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de segurança, mas de medo. Não confiar em ninguém era sintoma, para andar até a esquina<br />
tinha que ser olhando para os lados.<br />
O grupo estava ali e ria e conversava e apostava no bilhar, com os olhos sempre atentos ao<br />
quartel e aos seus soldados fazendo ronda. Se estivessem parados na frente da porta do<br />
quartel como lhes era devido à função, fazendo perguntas e inquirindo a entrada, talvez<br />
fossem presos também, porque primeiro se prendia e depois se questionava. Quando dava<br />
tempo de questionar.<br />
Mas estavam dentro do bar matando hora, e ninguém desconfia de quem está dentro do bar.<br />
Ninguém vem questionar, não há nada de estranho em se reunir para comer frango frito e<br />
jogar conversa fora. O soldado não iria atravessar a rua e perguntar quem eles eram, o que<br />
queriam, levantar a voz, apontar o fuzil, dizer que era proibido. Porque no bar tudo é lícito e<br />
tudo convém.<br />
O que havia acontecido foi o seguinte: o Tenente Coronel Tarcísio Nunes Ferreira estava<br />
preso no Quartel do Boqueirão já há alguns dias. No total foram oito. Foi porque falou mal<br />
dos milicos num evento que Manfra estava. Voilà, no dia seguinte já estava nas páginas do<br />
Jornal do Brasil. O cara foi preso. Aí a imprensa foi feito louca atrás dele, atrás de alguma informação,<br />
querendo saber o que ia acontecer.<br />
Mas já que não podiam ficar batendo na porta do Quartel o dia inteiro, ou seriam presos eles<br />
mesmos, ficaram no bar, disfarçando, comendo frango, olhando de rabo de olho. Nesse ínterim,<br />
Manfra pensou até em se disfarçar de militar e invadir o local, mas se conteve. Ficou no<br />
aguardo.<br />
Quando o tenente foi solto, foram os repórteres feito gaviões atrás dele para uma entrevista,<br />
surpreendendo aos soldados todos. Então quer dizer que aquele povo jogando sinuca no bar<br />
era na verdade jornalista de olho na gente? Isso mesmo, porque, afinal, um bar é sempre<br />
muito mais que um bar.
A LUTA BEBE CERVEJA<br />
13<br />
AFINAL,<br />
UM BAR<br />
É SEMPRE MUITO MAIS<br />
QUE UM BAR.
12<br />
Figuras de nem tão boa reputação assim passeiam pela noite, se esquivam, se escondem, se<br />
mostram, se abrem. Os sete pecados se agudam. A liberdade, a libertinagem. Não só.<br />
Algumas coisas que acontecem quando o sol se põe são agregadoras - é lá que se cruzam os<br />
amores e as traições, onde se expõem as feridas, as brigas de faca e palavra. É lá que se fala<br />
de política de forma visceral e se senta à mesa com o inimigo.<br />
Na noite estão os bares, antros de paixão e poder disfarçados em pequenos muquifos de<br />
azulejos brancos. Na noite estão os bêbados na rua, tomando litros e litros de cerveja barata.<br />
Na noite estão as boates, as prostitutas, os poetas. A vida acontece e sempre foi assim. Há<br />
alguma coisa sobre a noite que acolhe os desabrigados pela vida. Herdeiros, filósofos,<br />
intelectuais, músicos - há um consenso que a noite une as pessoas - e entre todos, jornalistas.<br />
Rato de bar, à toa na vida, boêmio desde sempre, embora cada geração julgue a anterior<br />
muito mais que a sua própria. Jornalista está sempre junto de outros jornalistas, porque o<br />
amor pelas palavras, pela entrevista, pela checagem e pela coisa toda é maior do que o que<br />
se tem por uma profissão qualquer. No auge do jornal impresso, havia uma coisa ainda mais<br />
especial em jornalista se reunir no bar noite adentro.<br />
Olha: o jornal fechava lá depois da meia-noite, começavam a rodar as rotativas, as máquinas<br />
espalhafatosas, e ficaria tudo pronto só nos altos da madruga. Os repórteres, com um<br />
chapéuzinho embaixo do braço, saíam da redação meio perdidos, em bando, num tempo<br />
que quase ninguém tinha carro e dinheiro.<br />
Reza a lenda que as redações eram esfumaçadas e que todo mundo fumava enquanto<br />
batucava na máquina de escrever. Quase todos fumavam feito chaminé, a fumaça misturada<br />
com o bafo de frio que a gente faz com a boca quando o nariz congela. Iam para o bar porque<br />
o bar acolhe, esquenta, e lá podiam esperar o jornal sair pronto, impresso, quentinho,<br />
cheirando à tinta, com as notícias que escreveram até altas horas.<br />
Tem quem se lembre de ir buscar o jornal recém-impresso para exibir aos garçons do bar<br />
quando tinha um furo de reportagem assinado por aquelas páginas. Outros, de que só pegar
A LUTA BEBE CERVEJA<br />
13<br />
na folha de jornal e manchar a mão de tinta já dava uma sensação de prazer indescritível,<br />
daquelas que só quem ama o que faz entende. Jornal fresco mancha a mão de tinta e isso é<br />
uma delícia.<br />
Estamos na década de 1960, também 1970, imagine só uma Curitiba com menos ares de<br />
modernidade, em que as pessoas caminhavam a passos curtos pelo centro. Já se ouviu dizer<br />
que quase não havia lugar para passar a noite em claro. O Bar Palácio era o último que<br />
fechava. Lá tinha cerveja, churrasco do tipo “filé de igreja” e Mineiro de Botas, uma sobremesa<br />
de banana, goiabada, queijo e ovo idolatrada pelos frequentadores.<br />
As mesas eram de madeira, compridas, sem toalhas, tudo muito simples, praticamente os<br />
mesmos garçons servindo com a cara amarrada desde a fundação em<br />
mil-novecentos-e-bolinha. Pela fama de fechar tarde, concentrava dezenas de intelectuais por<br />
metro quadrado - gente fina, grã-fina, finíssima, que vinha de fora comer o Churrasco<br />
Paranaense depois de assistir uma peça no Teatro Guaíra.<br />
Muito político parava por lá. Um encontro memorável é descrito por Adherbal Fortes de Sá Jr.<br />
no livro Curitiba no Tempo do Jazz, quando Lula e Fernando Henrique Cardoso sentaram no<br />
Bar Palácio e se puseram a discutir marxismo; ambos talvez nem sonhassem que seriam<br />
presidentes do país num futuro distante. Lula tinha dado as caras em Curitiba para participar<br />
de um congresso, FHC estava de passagem. Conversaram, apertaram as mãos. A coisa toda<br />
no bar, um bando de jornalista em volta. Artista, passante, gente desinteressada. Ninguém<br />
sabia que era um encontro de figuraças. O que acontece no bar é também despretensioso,<br />
só depois você percebe a importância.<br />
Mas quando se diz que bar abriga muito político, era muito mesmo, porque de certa forma o<br />
bar parece que faz parte da vida política de alguns eleitos. João Goulart, o Jango, nos tempos<br />
de glória lá pelo Rio de Janeiro, costumava despachar nos bares. Há relatos sobre isso em<br />
tudo quanto é canto, Ruy Castro registrou em A Noite de Meu Bem.<br />
Mas aí acontece que a boemia do Rio é mais óbvia, o Rio cheira à boemia, bem sabemos que
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Tom e Vinicius viram a Garota de Ipanema passando enquanto estavam sentados no bar, a<br />
mulher do Cartola tinha um bar e sambas aconteciam o tempo todo por lá. Mas acontece que<br />
o Rio de Janeiro tem praia, areia, mar e água de coco, e o clima praiano que sopra que o Havaí<br />
seja aqui, como canta Caetano Veloso em Menino do Rio, ofusca um pouco a boemia toda da<br />
classe artística.<br />
Já Curitiba é fria, Curitiba não tem escolha. Ou fica no bar ou não fica. O que mais se faz em<br />
uma cidade fria? Em épocas de neve, você veja bem, épocas de migração, de andar a pé, de<br />
sair do jornal lá por meia-noite, a única escolha é o bar.<br />
Mas vamos aos poucos. Não há quem negue que sobre Curitiba paira a fama de ser uma<br />
cidade provinciana. Cheia de pudores, a capital paranaense não está tão ao Sul para ostentar<br />
o orgulho dos gaúchos, nem tão ao centro para ser uma das grandes capitais do mundo, mas<br />
grita em brado retumbante que é uma pequena Europa dentro da América do Sul. Já levou<br />
alguns títulos: cidade modelo, cidade ecológica, cidade sustentável, limpa, bonita, sorriso. E<br />
etcetera.<br />
Os curitibanos também fizeram um nome. Alguns dizem que são fechados, outros que é tudo<br />
uma questão de manter a privacidade. Onde já se viu visitar a casa alheia sem avisar antes?<br />
Fila é questão de ordem. O sistema de transporte público comove até os mais bairristas. Vina,<br />
penal e piá. Dar um rolê pela XV. Leite quente. Curitibano que é curitibano fala essas coisas<br />
por aí e acha o máximo.<br />
Nos calçadões de petit-pavê do centro, um amontoado de histórias. É dobrando uma das<br />
esquinas da Praça Osório que está o “bar mais antigo da cidade”, de 1904. O Bar Stuart<br />
funciona até hoje e vira e mexe seu prédio, um casarão histórico, aparece à venda. Nas
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paredes, fotos em preto e branco de quem já passou por lá para tomar uma Água de Valeta<br />
ou comer o prato clássico: testículo de touro. Até uns tempos atrás, mulher não entrava, mas<br />
isso é história para se contar mais pra frente.<br />
Era outro point dos jornalistas, com seu jeito meio descolado de quem descobre a verdade<br />
antes de todo mundo. Mas jornalista nem sempre é assim tão seguro de si, é por isso que<br />
<strong>bebe</strong>m pra burro. Infelizmente, muitos morreram de cirrose ou complicações advindas do<br />
cigarro. Alguns viraram militantes anti-álcool. Outros migraram da cerveja para o uísque para<br />
o vinho para o Chocomilk. Há também os que frequentam os bares até hoje.<br />
Já teve jornalista que fechou pauta dentro do bar, escrevendo no guardanapo. Outros<br />
usavam o guardanapo para escrever poesia mesmo. Isso acontecia muito no Bar do Cardoso,<br />
um poeta querido por todos que às vezes levantava no meio do boteco para recitar suas<br />
poesias, e aí inspirava geral para escrever e recitar as suas próprias também.<br />
Outros eram do tipo que você sabia que ia encontrar em determinado bar. Alguns batiam<br />
ponto no Kapelle, outros no Bife Sujo, qualquer folga era desculpa para tomar uma gelada ou<br />
só encontrar o pessoal. A galera.<br />
É que nem todo mundo bebia, embora esses encontros tivessem sim motivação etílica. É<br />
normal lembrar de jornalista dentro do bar nas décadas de 60 e 70 - antes e depois também.<br />
Pelo menos até o início dos anos 1990, quando abriram o Bar Retranca dentro do Sindicato<br />
dos Jornalistas.<br />
Foi um fenômeno. Retranca é o nome que se dá para identificar uma pauta, o bar ficava<br />
dentro do próprio sindicato, diz que muito jornalista caiu duro lá de tanto tomar cerveja. Ou<br />
cachaça. Algumas reuniões do sindicato rolavam dentro do bar mesmo. Por que não?<br />
Mais do que álcool, os quitutes. Sair esfomeado da redação e cair de boca no Pernil com<br />
Verde que serviam (servem até hoje) nos bares que dividem parede e clientela no meio da<br />
Rua XV - Triângulo e Mignon - era de praxe. Alguns se contentavam com as empadinhas da
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Confeitaria Cometa. Outros o churrascão do Palácio, quem sabe hoje um filet à grisé, merci<br />
beaucoup.<br />
Nem todo jornalista tinha grana para desembolsar no Ile de France, restaurante<br />
tradicionalíssimo de Curitiba que fica ali na Praça 19 de Dezembro, e é por isso que gostavam<br />
mesmo do Bar do Luiz, que servia canja até umas horas e deixava, olha só, pendurar a conta.<br />
Pagar depois. Fiado. Deixar anotado. Coisa que só o século XX proporcionou. É um hábito<br />
muito vindo dos armazéns de secos e molhados, também, espaços que eram vendinha,<br />
boteco e restaurante dos bairros.<br />
Enfim, o Bar do Luiz era adorado pelo pessoal do Diário do Paraná, primeiro porque ficava ali<br />
na frente, depois pela história do fiado, depois porque era quase um bar próprio deles. Tinha<br />
essa coisa de cada jornal ter seu bar, embora os jornalistas acabassem se misturando na<br />
epifania que é a noite.<br />
Uma história que rola por aí é que havia uma escada secreta que ligava a redação do Diário<br />
do Paraná ao Bar do Luiz, como um acesso direto, liberado, que o jornalista caía da redação<br />
quase que em cima no balcão. Uma vez, o pessoal do Estado do Paraná resolveu migrar de<br />
bar e foi tomar umas lá no Bar do Luiz.<br />
A galera do Diário estranhou, afinal de contas aquele era o bar deles. Acharam que era<br />
truque, que o governador do Estado, Parigot de Souza, tinha morrido, e por isso os filhos do<br />
Estadinho estavam distraindo-os aparecendo ali, pra não perder o furo de reportagem na<br />
edição do dia seguinte.<br />
Usaram a escada secreta, um por um para não serem percebidos, para checar a história. Um<br />
subia, ligava para um hospital, não encontrava nada, e voltava para o bar para dar a chance<br />
do próximo jornalista do Diário investigar. No fim das contas, ninguém tinha morrido não,<br />
que nada. Era só para tomar uns drinks no bar vizinho.<br />
Essa coisa do bar próprio, muito era pela localização dos mesmos. Redação de jornal e bar
A LUTA BEBE CERVEJA<br />
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ficavam todos lado a lado, muito perto, e não era coincidência. O mais longe era o Bar do<br />
Hermes, lá no Rebouças, que investia em shows e por isso era um espaço mais musical. Tinha<br />
um porão pra quem gostava de sinuca também, mas o forte era ouvir música mesmo. O Bar<br />
do Hermes já rendeu pauta. Para o Estadinho, certa vez, porque o papagaio do Hermes<br />
sumiu. Tinham roubado. Saiu uma matéria daquelas falando da falta de coração do larápio.<br />
Devolveram o papagaio depois da repercussão.<br />
Quando o Bar Palácio mudou de lugar, ganhou destaque. Nas colunas sociais, não faltavam<br />
citações. Dino Almeida, o famoso colunista social da Gazeta do Povo, teve seu próprio bar por<br />
um período - o Bebedouro, no Largo da Ordem. Aliás, jornalista dono de bar acontecia vira e<br />
mexe, além dos que só apareciam e largavam o salário em cima do balcão.<br />
Tinha um bar lá no alto do Cabral que tinha um nome<br />
engraçado: Bar Sem Nome. Por um tempo, o bar não tinha porta<br />
e ficava 24h aberto. Lá no fundo, um caixão, para quem quisesse<br />
descansar depois da <strong>bebe</strong>deira. Alguns jornalistas se lembram<br />
de terem terminado a noitada dentro do caixão. Outros só de<br />
terem visto os colegas se sujeitarem. O que melhor que um<br />
caixão para representar a boemia dos vampiros de Curitiba?<br />
A noite também permitia que jornalistas de diferentes redações<br />
se encontrassem. Sem ciumeira. Era uma época de ouro, em<br />
que repórter trocava de jornal como quem troca de roupa. Era<br />
difícil ficar desempregado. Na verdade, ninguém ficava. Se saísse<br />
de um jornal, em questão de dias era contratado em outro. Por<br />
isso todo mundo era colega e partilhava pauta e coisa e tal.<br />
SEM CIUMEIRA.<br />
ERA UMA<br />
ÉPOCA DE<br />
OURO<br />
Mas mesmo assim, alguns adendos curiosos: o pessoal do Jornal do Brasil, sucursal que ficava<br />
próxima à Praça Santos Andrade, tinha fama de ostentação, porque tinham menos pautas<br />
para fazer por dia e recebiam mais do que os repórteres de jornais paranaenses. Só andavam<br />
de terno, pra cima e pra baixo. A boemia também era diferenciada. Jornalista do JB ia encher
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a cara no bar do Hotel Mabu - bar de hotel é coisa fina… - nas costas do Editor Chefe.<br />
Era de uma garrafa de uísque pra cima noite adentro. O Mabu também é ali do lado<br />
da Santos Andrade, à propósito. O JB já foi chamado de Jornal da Condessa. Iam no<br />
Mabu e no Scavollo. Chique.<br />
Teve a vez que Manfra e uns amigos se embriagaram de uísque por lá e terminaram<br />
a noite assistindo desenho animado na casa de um deles. No dia seguinte, chegaram<br />
amassados, com cara de ressaca na redação. Ninguém falou nada. Só umas<br />
risadinhas. Antes que alguém pergunte, essa era uma coisa normal: chegar de ressaca<br />
ou até mesmo embriagado para trabalhar no dia seguinte. Lava o rosto com água<br />
gelada e pronto.<br />
Falando em terno, quem andava sempre de terno também eram os repórteres da<br />
Gazeta do Povo. Mas era diferente do terno mais chique do JB, porque eram uns<br />
ternos cheirando à naftalina, com ombreiras, coisa já ultrapassada, de outras épocas.<br />
Dava pra reconhecer de longe.<br />
Repórter do Estadinho era mais hippie. Os “sujinhos”, carinhosamente chamados.<br />
Calça boca de sino, mini-saia, a coisa toda. Ah, os anos 1970! Aliás, era um tempo de<br />
revolução. Homem de cabelo comprido, mulher de cabelo curto, o início do uso dos<br />
anticoncepcionais, liberdade sexual e feminina, quando isso assustava as<br />
senhorinhas descendentes de alemães da capital paranaense.<br />
Na noite ninguém ficava no armário, ou pelo menos é isso que se espera. Quem<br />
passeava por Curitiba nesses idos anos lembra-se bem da Gilda, figura que trocava<br />
beijos por uns trocados no calçadão, fez amigos no Bife Sujo e dançava de saias longas<br />
e peito peludo de fora pela Rua XV. Um ode à liberdade e à diversidade, dizia que era<br />
travesti e encantava por carnavais adentro com o jeito risonho. Quem via Gilda<br />
rodopiando por ali talvez sentisse que podia ser quem quisesse também. Há a fama<br />
de ser o “primeiro homossexual de Curitiba” - sabe-se que não é bem assim, mas<br />
Curitiba é a tal da provinciana, lembra?
A LUTA BEBE CERVEJA<br />
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Cheia de tradição. Aos sábados, uma feijuca no Lá no Pasquale, restaurante que ficava<br />
no meio do Passeio Público. Aos domingos, dia de sentar com a família à mesa do<br />
Madalosso e se esbaldar de frango e polenta. Quando começou a onda de almoçar<br />
fora, nos anos 50, a comida caseira servida longe de casa tinha seu charme, porque<br />
ninguém queria ficar em casa cozinhando em pleno domingo, faça chuva ou faça sol.<br />
Fez neve. Foi em 1975. Um dia Curitiba amanheceu branquinha e isso dividiu a<br />
história da cidade. Depois da neve, a capital ficou até mais simpática. Tinha assunto<br />
para puxar com os vizinhos no ponto de ônibus, os curitibanos começaram a dar bom<br />
dia. Para se esquentar, caipirinha. A do Pasquale era famosa; cachaça é feito água<br />
pros russos brasileiros.<br />
Imagine só um bando de jornalista embriagado jogando conversa fora. São eles quem<br />
sabem de tudo. Sabiam o que podia ou não falar, onde se reunir, o que é que tinha<br />
acontecido na cidade aquele dia, em outras cidades também. E bar tem esse gostinho<br />
de liberdade, sempre teve. Era todo dia depois do expediente, era aos finais de<br />
semana, era pra comer um lanche, tomar uma, encontrar alguém.<br />
Fazer jornalismo ultrapassa as páginas dos livros. Tem quem diga que aprendeu<br />
jornalismo no bar. Tem quem tenha entrevistado fonte lá. Coisa que se tirou do<br />
Pasquim. A irreverência mais séria possível. E em tempos sombrios, meu amigo, ter<br />
um lugar para se abrigar e ser irreverente é essencial.