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CADERNO DE CINEMA

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Recordações da primeira viagem à Tchecoslováquia<br />

memória<br />

por Guido Araújo<br />

Se vire!<br />

Estávamos em 1958 e tinha eu 25 anos incompletos,<br />

vivendo no Rio de Janeiro que, apesar da poeira que<br />

cobria o centro da cidade com o desmonte do Morro do<br />

Castelo, continuava sendo a Cidade Maravilhosa nos seus<br />

últimos anos de capital da República, durante o governo JK.<br />

Naquela altura já tínhamos feito Rio, Quarenta Graus,<br />

Rio, Zona Norte e em São Paulo O Grande Momento, dirigido<br />

por Roberto Santos, chegava ao final das filmagens.<br />

O escritório da produtora Nelson Pereira dos Santos<br />

funcionava na Cinelândia, na rua Alcindo Guanabara. Numa<br />

tarde de abril, Nelson adentra na sala e numa atitude<br />

pouco comum a ele, vai dizendo: “Guido, se prepare, agora<br />

é sua vez!” Ante a minha cara de espanto ele acrescenta:<br />

“Acabo de receber convite para participarmos do Festival de<br />

Karlovy Vary com Rio, Zona Norte. Há dois anos, como você<br />

sabe, estive lá com Rio, Quarenta Graus e fomos premiados.<br />

Agora é sua vez de ir representar o nosso cinema.” Com a<br />

minha expressão cada vez mais espantada, eu disse: “Mas,<br />

ir como???” “Se vire! É nessas horas que a gente tem que<br />

recorrer aos amigos. Pela produtora vamos tentar comprar a<br />

sua passagem de ida (naquela época isto era possível). Para<br />

voltar, você tenta vender o filme, e na transação, desconta a<br />

passagem. Durante a sua permanência na Tchecoslováquia,<br />

tudo corre por conta dos tchecos”.<br />

Ainda espantado, mas ao mesmo tempo feliz com<br />

a perspectiva, escutei o Nelson dizer: “Agora corra para<br />

conseguir o passaporte e grana, pois o tempo urge. Recorra<br />

aos amigos.” E foi o que fiz, saí em campo para contar a<br />

novidade aos meus inúmeros amigos do Rio e solicitar<br />

ajuda. Meus companheiros da AMES (Associação Municipal<br />

dos Estudantes Secundaristas) e da UNE (União Nacional<br />

dos Estudantes) se mobilizaram, assim como os colegas<br />

da Faculdade Lafayette e, sobretudo, os amigos do meio<br />

cinematográfico. Recordo-me que a contribuição mais<br />

generosa veio de Paulo Goulart, que tinha se tornado meu<br />

amigo durante as filmagens de Rio, Zona Norte e já então<br />

ganhava bom cachê como ator de teatro, cinema e televisão.<br />

Tendo eu providenciado a remessa da cópia do filme<br />

diretamente para a direção do festival, com o passaporte em<br />

mãos e uma pequena quantia arrecadada, em princípio de<br />

junho de 1958 partia para a grande aventura. Naquela época<br />

os aviões não tinham muita autonomia de voo. Um avião<br />

da Panair do Brasil me levou do Rio até Dakar. Na capital do<br />

Senegal tive que esperar uns poucos dias para prosseguir<br />

viagem, já pela Air France, rumo a Paris.<br />

Na capital francesa a Air France me hospedou em plena<br />

avenida Champs-Élysées, perto do Arco do Triunfo, no belo<br />

hotel Claridge, para, no dia seguinte, prosseguir viagem<br />

em outro voo a Praga. Não é preciso dizer qual foi o meu<br />

deslumbramento ao desembarcar em pleno centro de Paris,<br />

num fim da tarde, com as luzes feéricas da Place de l’Étoile.<br />

No hotel luxuoso, cheio de espelhos, me senti meio tonto,<br />

um sertanejo deslocado, não tive coragem de descer para<br />

jantar no restaurante. Após um belo banho de banheira,<br />

pedi a refeição no apartamento. Depois fiz um pequeno<br />

passeio, andando até o Arco do Triunfo. Em seguida<br />

regressei ao hotel, pois cedo, no dia seguinte, seguiria para o<br />

aeroporto de Orly, voando para Praga.<br />

Chegando em Praga, já me aguardavam no aeroporto os<br />

dirigentes do Festival de Karlovy Vary e uma jovem senhora,<br />

Vlasta Havlínová, escalada para ser a minha intérprete.<br />

Pouco depois das apresentações e dos trâmites burocráticos<br />

de praxe, os tchecos gentilmente me ofereceram um<br />

café turco e uma aguardente da região, feita de ameixas,<br />

chamado “slivovice”. Isto, enquanto estava ultimando os<br />

preparativos para a decolagem de uma pequena aeronave<br />

que nos conduziria, pouco depois, a Karlovy Vary, num voo de<br />

apenas meia hora. Chegamos na cidade ainda com tempo<br />

folgado para me instalar no hotel e, em seguida, almoçar.<br />

À tarde, após um pequeno descanso, fui com a intérprete<br />

ao local do credenciamento do festival, para receber todas<br />

as instruções e o material a mim destinado. Voltamos ao<br />

hotel para que eu guardasse as coisas e logo saímos para o<br />

primeiro passeio.<br />

Estava eu completamente fascinado pela beleza do<br />

local. Era uma agradável tarde de verão e jamais em toda<br />

a minha vida eu tinha visto um balneário tão encantador.<br />

No centro da cidade corria um rio tranquilo de pequenas<br />

cachoeiras. Ao longo dele as pessoas, sem pressa, passeavam<br />

pela famosa colonada ou entre as construções barrocas que<br />

surgiam aqui e acolá. Um pouco mais distante, pelos lados,<br />

os verdejantes bosques de ciprestes subiam a encosta. Vez<br />

por outra, era surpreendido pelas inúmeras fontes termais.<br />

Logo me chamaram a atenção os canecos de louça com<br />

bocal que várias pessoas carregavam. Fiquei sabendo que as<br />

fontes termais possuíam água com diferentes temperaturas,<br />

sendo algumas quentes, daí a necessidade de ingerir a água<br />

parcimoniosamente. Após as novidades do passeio, convidei<br />

Vlasta para sentarmos num bar e tomar a famosa cerveja<br />

tcheca. Na realidade eu já havia experimentado a saborosa<br />

cerveja durante o almoço. Contudo, naquela hora da tarde,<br />

após uma longa caminhada, ela me pareceu mais prazerosa.<br />

Só então houve oportunidade para Vlasta me falar um pouco<br />

sobre ela e como aprendeu o português. Fiquei sabendo<br />

que ela havia morado no Rio de Janeiro no início dos anos<br />

50 e trabalhado na Legação da Tchecoslováquia. Naquela<br />

época o Brasil não mantinha ainda relações diplomáticas ao<br />

nível de embaixada, o que só veio a acontecer nos anos 60.<br />

Mas o certo é que naquele tempo Vlasta era jovem e veio a<br />

conhecer o deputado baiano Fernando Santana, por quem<br />

ficou perdidamente apaixonada. Quando as autoridades<br />

tchecas tomaram conhecimento do caso amoroso, não<br />

gostaram nada da estória e resolveram despachá-la de<br />

volta para a Tchecoslováquia. Apesar de Fernando Santana<br />

ser deputado comunista, isto não ajudou em nada. Para<br />

os burocratas tchecos, numa época em que o país vivia<br />

no obscurantismo stalinista repressor, o raciocínio era<br />

que Vlasta havia cometido uma falta grave ao se envolver<br />

com um homem estrangeiro. Portanto, deveria regressar<br />

imediatamente à sua terra natal e perder o emprego na área<br />

diplomática.<br />

junho de 2016 | <strong>CA<strong>DE</strong>RNO</strong> <strong>DE</strong> <strong>CINEMA</strong> 5

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