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CADERNO DE CINEMA

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Cesare Zavattini<br />

Karlovy Vary, Zavattini e FFP<br />

Após a solenidade da abertura do XI MFF (Mezinárodní<br />

Filmovy Festival) – Festival Internacional de Filmes –,<br />

a organização do festival ofereceu um coquetel aos<br />

convidados no salão principal do hotel onde aconteceu o<br />

ato inaugural. Nessa ocasião fui apresentado aos demais<br />

participantes latino-americanos. Eram todos homens: um<br />

uruguaio, um peruano e três mexicanos, sendo estes um<br />

diretor e dois atores.<br />

O uruguaio, Danilo Trelles, já o conhecia de nome, pois<br />

era amigo de Nelson Pereira dos Santos e responsável por<br />

levá-lo a Montevidéu para a primeira apresentação fora<br />

do Brasil do Rio, Quarenta Graus, após o rumoroso caso<br />

da proibição. Danilo Trelles era empresário e cineclubista.<br />

Ele representava a empresa aérea suíça SAS na capital<br />

uruguaia. Na área do cinema, era diretor do SODRE, um<br />

empreendimento de cultura cinematográfica, que deu<br />

origem mais tarde à Cinemateca Uruguaia.<br />

Eu era o caçula do grupo, sendo o peruano Luiz Figueroa,<br />

de quem fiquei muito amigo, somente um pouco mais<br />

velho. O peruano, além de cineasta, era um talentoso artista<br />

plástico, como constatei mais tarde através de alguns<br />

trabalhos com que ele me presenteou.<br />

Também no coquetel, quanto tive oportunidade de<br />

manter inúmeros contatos, o mais importante foi com Karl<br />

Gass, diretor dos estúdios de documentário da República<br />

Democrática Alemã. Foi ele que me procurou, pois tinha<br />

conhecimento da minha presença no festival. A questão<br />

é a seguinte: Gass tinha conhecido e se tornado amigo de<br />

Nelson Pereira dos Santos, por ocasião daquela viagem<br />

que eu já me referi, que Nelson fez a Montevidéu. Graças<br />

a este relacionamento entre Gass e Nelson obtivemos<br />

uma importante ajuda para a realização do Rio, Zona<br />

Norte. Quando estávamos para iniciar a rodagem do filme,<br />

enfrentamos uma grande falta de recursos. Foi aí que veio<br />

uma providencial ajuda de Karl Gass, que atendeu ao apelo<br />

de Nelson. A indústria cinematográfica da DDR fabricava<br />

então a película virgem ORWO, que na falta da KODAK,<br />

quebrava o nosso galho. Deste modo, através do Uruguai, o<br />

bom amigo alemão da <strong>DE</strong>FA nos proporcionou a quantidade<br />

suficiente de filme negativo PB em 35 mm, para rodarmos o<br />

longa-metragem Rio, Zona Norte. Portanto, Nelson sabendo<br />

que Gass iria ao festival, tratou de avisá-lo sobre a minha<br />

viagem para Karlovy Vary.<br />

Durante os dias do festival, além dos filmes em concurso<br />

à noite, tínhamos pela manhã a Tribuna Livre, sessão de<br />

palestras e debates, geralmente seguida de uma recepção.<br />

Também não faltava oportunidade para os passeios e<br />

banhos nas termas.<br />

Como era natural, logo surgiu um entrosamento maior<br />

entre os latino-americanos. A organização do festival, da<br />

mesma maneira como havia designado uma intérprete em<br />

português para mim, também forneceu uma intérprete<br />

para atender a todos visitantes de língua espanhola.<br />

Durante a minha estada em Karlovy Vary, o<br />

acontecimento mais relevante para mim foi haver mantido<br />

contato com Cesare Zavattini. Naquela época ele era a<br />

pessoa que eu mais admirava de todo o cinema mundial;<br />

foi lendo os seus roteiros e assistindo os filmes que ele fazia<br />

com Vittorio de Sica, como Ladrões de Bicicleta e Umberto D,<br />

que me apaixonei pelo neorealismo italiano.<br />

Para mim Zavattini era a pessoa mais importante que<br />

estava ali naquele festival. Contudo, era um homem simples<br />

e gentil que se prontificou a ouvir as ponderações de um<br />

jovem imaturo como eu. Numa tarde saímos passeando pela<br />

alameda que circundava o rio e tomei coragem de lhe fazer<br />

uma consulta. Disse que gostaria de ter a opinião dele sobre<br />

uma questão que me atormentava. Perguntei a ele: – O que o<br />

senhor acha se por acaso surgir um convite para que eu venha<br />

aperfeiçoar os meus conhecimentos cinematográficos na<br />

Europa? – Ele então me respondeu: – “Você é bastante jovem,<br />

em início de carreira, e como me disse que não existem ainda<br />

no Brasil cursos organizados de cinema, portanto, caso lhe<br />

surja a oportunidade de estudos por aqui, você deve aceitá-la.”<br />

O conselho que recebi então do mestre Zavattini foi decisivo<br />

para traçar o meu futuro daí para frente.<br />

Na noite da exibição do Rio, Zona Norte tive que subir<br />

ao palco para pronunciar algumas palavras sobre o filme e<br />

expressar a minha satisfação por estar ali naquele momento<br />

representando o cinema brasileiro. As minhas palavras<br />

foram simultaneamente traduzidas para a plateia nas<br />

línguas: tcheco, russo, francês e inglês. O auditório estava<br />

totalmente lotado e foi boa a receptividade do público.<br />

Para mim foi um alívio haver superado sem problemas o<br />

momento mais tenso da minha presença no festival.<br />

Uns dois dias após a exibição do nosso filme, fui<br />

procurado por três tchecos que se apresentaram<br />

como dirigentes do “Filmov – Festival de Filmes dos<br />

Trabalhadores”. Naturalmente, como não tinha noção do<br />

que vinha a ser tal festival, através da minha intérprete<br />

eles me explicaram que era um festival destinado aos<br />

trabalhadores e ao público em geral, que acontecia logo<br />

após Karlovy Vary em várias cidades do país. A função deles<br />

era assistir os filmes do certame internacional, selecionar<br />

alguns e convidá-los, juntamente com seus representantes,<br />

para o novo festival. Em virtude disto, estavam ali para<br />

me propor aceitar o convite para ir com o filme Rio, Zona<br />

Norte visitar algumas cidades da Bohemia, Morávia e<br />

Eslováquia durante uns dez dias. Depois de me fornecer<br />

vários detalhes sobre o festival e ter justificado a escolha do<br />

filme brasileiro, só me restava aceitar tão atrativo convite.<br />

Ficou então combinado que, findo o festival de Karlovy Vary,<br />

eu regressaria a Praga e logo no dia seguinte iniciaríamos<br />

a maratona do FFP, com deslocamentos em carro ou avião,<br />

de acordo com a distância a ser percorrida. Desse modo tive<br />

oportunidade de conhecer lugares maravilhosos, em regiões<br />

de vales, planaltos e montanhas. A Tchecoslováquia era um<br />

pequeno país da Europa Central, mas extremamente belo<br />

e variado. Naquela época o país era um pouco maior, pois<br />

tinha ainda a Eslováquia (hoje em dia a República Eslovaca).<br />

A viagem me permitiu, pela primeira vez na minha vida, ver<br />

neve nos Altos Tatras, apesar de estarmos em pleno verão.<br />

Não vou falar sobre as encantadoras surpresas que<br />

me esperavam em cada local para não me estender<br />

demais. Apenas para dar uma ideia mais precisa do que<br />

era o Festival de Filmes dos Trabalhadores, vou me deter<br />

um pouco na apresentação do filme Rio, Zona Norte, em<br />

Gottwaldov. Esta cidade, que hoje recuperou o seu antigo<br />

nome Zlín, é a segunda em importância da região morava.<br />

A indústria de calçados, fundada pelo lendário Tomas<br />

Bata, sempre foi o ponto forte da sua produção industrial.<br />

Por outro lado, vale a pena lembrar que toda a Morávia<br />

possui um folclore muito rico. As exibições do festival eram<br />

feitas num imenso anfiteatro ao ar livre que o pessoal<br />

local chamava de “Kino de Verão”. Na realidade, apesar do<br />

período de verão, o certo é que à noite caía uma garoazinha,<br />

bem fria para o meu gosto. A população ia para o cinema<br />

6 Recordações da primeira viagem à Tchecoslováquia<br />

junho de 2016 | <strong>CA<strong>DE</strong>RNO</strong> <strong>DE</strong> <strong>CINEMA</strong> 7

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