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Portugal a Pedalar

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PORTUGAL

A PEDALAR

Prefácio de Mário Soares

Pedro Almeida Vieira


José Manuel Caetano

José Manuel Caetano nasceu em Faro, em 25 de novembro de 1943.

Empresário e gestor, fundou, em setembro de 1987, a Federação Portuguesa

de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta, de que é Presidente e Membro Honorário.

Da sua vasta atividade associativa, destaca-se a organização

de importantes eventos mobilizadores da sociedade civil em torno

das temáticas do cicloturismo e da mobilidade sustentável.

Pai da introdução do BTT (bicicletas todo-o-terreno) em Portugal (1987)

e do cicloturismo no Algarve (Alcantarilha, 1988). No âmbito da Presidência Aberta

pelo Ambiente do Presidente da República Mário Soares (Sintra, 1994), coordenou a

ação dedicada à bicicleta, com a participação de mais

de 2500 utilizadores. Foi orador em dezenas de conferências e eventos,

e tem coordenado ações no âmbito do Dia Europeu Sem Carros e da Semana

Europeia da Mobilidade.

Na área do ambiente, especial menção para o papel impulsionador

que teve na promoção do Encontro Nacional das Associações de Defesa

do Ambiente, do Prémio Nacional de Ambiente Fernando Pereira, das I e II Cimeiras

Ecologista Ibérica, da Conferência Os Desafios Estratégicos para

o Turismo Sustentável e do Encontro Nacional de Jovens para o Ambiente, ambos no

âmbito da Presidência Portuguesa do Conselho da União Europeia.

José Manuel Caetano é Presidente da Confederação Portuguesa

das Associações de Defesa do Ambiente (que cofundou em 1987), Membro Associado

do Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), da

Associação Nacional de Conservação da Natureza (QUERCUS),

da European Cyclist’s Federation, da Alliance Internationale de Tourisme,

da Union Européenne de Cyclotourisme, da Coordinadora Ibérica

en Defensa de la Bici, da Confederação Portuguesa de Prevenção

do Tabagismo e do Núcleo Cicloturista de Sesimbra (ambos de que é sócio fundador).

Foi, em 2012, nomeado pelo Secretário de Estado das Obras Públicas, Transportes e

Comunicações para integrar a Unidade de Missão para

a Elaboração da Carta de Mobilidade Ligeira.

Representa o Movimento Ambientalista no Conselho Económico Social

e no Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas, integrando, igualmente, o

Observatório do Ambiente.

Foi galardoado com o “Prémio Nacional da Mobilidade em Bicicleta” em Setembro de

2018 em reconhecimento pelos 31 anos de dedicação à evolução da bicicleta em

Portugal.

Foi galardoado com o “Prémio Quercus 2018”, pelo trabalho meritório que este tem

realizado na área do Ambiente, e pela sensibilização e defesa das várias causas

ambientais em que se tem envolvido.

Foi distinguido com a Medalha de Mérito – Grau Ouro da cidade de Faro em Setembro

de 2019, por ser dinamizador da sociedade civil em torno das temáticas do

cicloturismo e damobilidade sustentável e pelo seu percurso profissional e de vida

assinalável do ponto de vista ambiental e cívico.


Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta “FPCUB”

JOSÉ MANUEL CAETANO

Portugal

a Pedalar


© 2015, Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta

Título: Portugal a Pedalar

Autor: Pedro Almeida Vieira

Coordenação: Irina Guerreiro

Capa: Micaela Neto

Fotografias: Artur Lourenço

Revisão: Inês Santos

Paginação: Nuno Marques

Impressão e Acabamento: CadavalGráfica

Depósito Legal nº 390716/15

ISBN 978-989-20-4677-8

Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta

Rua Bernardo Lima 35, 2.º B

1150-075 Lisboa

Portugal

fpcub@fpcub.pt

www.fpcub.pt


Prefácio

É

com muito gosto que me associo à homenagem devida a José

Manuel Caetano, presidente da Federação Portuguesa de Ciclotu-

turismo e Utilizadores de Bicicleta.

Tive a oportunidade de o conhecer e de reconhecer a muito meritória

actividade da Federação que dirige, em 1994, quando, no exercício do

meu segundo mandato como Presidente da República, integrei, em Sintra,

com largas centenas de cicloturistas, um passeio pela Vila.

Pouco tempo depois, soube que, em Assembleia Geral da Federação, fui

proposto para sócio honorário, distinção que muito me honrou.

Ultimamente, a Federação distinguiu-me ainda com o Prémio Nacional

de Mobilidade em Bicicleta, o que também registei com muito agrado.

Desde jovem que me sinto amante da natureza e a bicicleta foi um meio

de transporte que serviu para eu a desfrutar, nas férias que os meus pais

me propiciavam, sobretudo na Foz do Arelho. Utilizava-a com regularidade

e em grandes passeios.

Nos nossos dias, em que a preservação do ambiente e o desenvolvimento

sustentável estão em destaque, pelos riscos – sérios – que o nosso planeta,

que é o único conhecido para nele vivermos, corre, tudo o que possa ser

feito para o preservarmos é uma prioridade.

Saúdo, assim, a persistência de José Manuel Caetano, através da Federação

que dirige, na dinamização de inúmeras iniciativas de sensibilização

ambiental com recurso à bicicleta, divulgando também, por meio desta,

o nosso vasto património cultural e arqueológico, que é testemunho da

identidade de Portugal.

A bicicleta, preenchendo o sonho do imaginário das crianças, é também

hoje – e de forma crescente – o meio não poluente por excelência de mobilidade.

Saúdo, por isso, a iniciativa da justa homenagem a José Manuel Caetano,

à qual me associo com todo o prazer.


PORTUGAL A PEDALAR

Uma rápida história da bicicleta

Ninguém sabe ao certo quando, onde e por quem foi inventada a roda.

Talvez tenha sido há cerca de cinco mil anos; talvez mais. Recentes estudos

arqueológicos sobre esta matéria, conduzidos na Áustria, concluíram

que a mais antiga roda que chegou até à actualidade foi desenterrada há

cerca de uma década em terrenos pantanosos de Ljubljana, na Eslovénia:

tem 72 centímetros de diâmetro e tem uma «vida» estimada entre 5.100 e

5.300 anos. Suplantará assim em idade, outras anteriormente encontradas

na Europa e sobretudo na Mesopotâmia.

Nada garante, contudo, que não venham a ser descobertos vestígios mais

antigos, ou que a degradação associada ao tempo e a ausência de documentos

escritos torne impossível determinar com exactidão a origem da roda.

A curiosidade arqueológica apenas serve para compreender quão longo foi

o percurso da roda até aos dias de hoje, e sobretudo para se perceber que

durante anos, décadas, séculos e milénios o seu uso pelas sociedades se

mostrou muito limitado. De facto, quem quer que tenha sido o inventor

da roda, certo parece ser que não obteve demasiados aplausos dos seus patrícios

nem dos seus contemporâneos. As primeiras rodas terão provavelmente

servido como brinquedo, pois em tempos remotos, de pouco ou

nada serviriam para as actividades do quotidiano. Os caminhos e trilhos, se

assim se podiam chamar, eram sinuosos, pedregosos; não seria tarefa fácil

dar uso às rodas: ou seja, pô-las a girar, a rodar para transportar pessoas

ou cargas.

Mesmo quando se tornaram mais resistentes e os caminhos menos agrestes,

o seu uso como meio de locomoção necessitou sempre de uma força

biológica de tracção. Podia ser o próprio homem, mas com limitações,

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e por isso procurou-se encontrar animais que fizessem esse trabalho. De

entre os animais domesticáveis, ao longo dos tempos, quase somente os

cavalos e os bois se mostraram aptos, e com força motriz suficiente, para

locomover veículos com rodas por entre terrenos irregulares. Mesmo após

o surgimento das rodas com raios, que as tornaram menos pesadas e mais

ágeis. Em todo o caso, os egípcios e os chineses parecem ter sido os povos

que, nesse aspecto, conseguiram introduzir de um modo generalizado as

rodas como auxiliares de locomoção, quer para fins civis quer militares.

Enquanto as sociedades humanas não conseguiram moldar a paisagem,

esses veículos nunca se tornaram um massificado meio de transporte. Durante

muito tempo, os ancestrais carros com rodas, sempre movidos pela

força animal, eram bastante lentos ou, se um pouco mais ligeiros, serviam

apenas para trajectos muito curtos, para transporte de cargas ou como carros

de combate em guerras e cerimónias. Para transporte individual, o cavalo

manteve, por isso, o domínio durante incontáveis séculos.

Ainda durante a Idade Média houve quem desejasse ultrapassar as limitações

das rodas. Roger Bacon, um frade franciscano inglês do século XIII

– conhecido por Doctor Mirabilis, grande estudioso da sua época em áreas

como a Mecânica, a Filosofia, a Geografia e principalmente a Óptica – profetizou

que se haveria de inventar um meio de usar as rodas sem qualquer

intervenção do cavalo ou de outro animal de tracção. Contudo, nos séculos

seguintes ninguém concretizaria esse sonho.

Há algumas décadas, integrado no Codex Atlanticus, uma colecção encadernada

de desenhos e escritos de Leonardo da Vinci – produto do seu

trabalho entre 1478 e 1519, constituído por 12 volumes –, descobriu-se um

modelo daquilo que se poderia considerar um protótipo de uma bicicleta

moderna. Porém, esse desenho, que se encontra na Biblioteca Ambrosiana

de Milão, foi recentemente considerado uma falsificação, ou seja, alguém o

incorporara na miscelânea de Leonardo da Vinci durante uma operação de

restauro realizada nos anos 60 do século XX.

Assim, de facto, somente no final do século XVII se verificaram efectivamente

alguns avanços para a concretização do tal sonho de Roger Bacon.

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Um desses primeiros inventos tratou-se, na verdade, de uma cadeira com

rodas movidas por um sistema de propulsão por alavanca manual, concebida

pelo relojoeiro alemão Stephan Farffler, que era paraplégico. Ainda na

última década desse século, o matemático Jacques Ouzanon inventou um

modelo similar mas movido com os pés. Nos anos seguintes houve outros

inventos semelhantes, mas sempre procurando adaptar carruagens ou cadeiras

a sistemas de propulsão mecânica, embora sem grandes inovações.

Ou seja, veículos ligeiros, para transporte individual, parece nunca terem

existido até aos finais do século XVIII, se bem que se conheça o relato de

um jesuíta, numa viagem à China, sobre uma estranha charrete capaz de

transportar o condutor. Porém, não existem sequer desenhos sobre esse

veículo.

Durante muito tempo considerou-se como verídico – surgindo ainda em

diversas obras ensaísticas – ter o primeiro protótipo de um velocípede sido

inventado por um francês, o conde de Sivrac. Relata-se ter este nobre construído

um veículo primitivo, denominado celerífero, exibido publicamente

no parisiense Palais Royal em 1791. Porém, na verdade, nem o celerífero,

nem tão-pouco o conde de Sivrac, existiram. De facto, o celerífero foi sim

uma «invenção» criada pelo jornalista e cronista francês Louis Baudry de

Saunier. Em 1891, através da sua obra «Histoire Générale de la Vélocipédie»,

Saunier quis apenas engrandecer para a posteridade o engenho e a

cultura gaulesa, apresentando um desenho de um arcaico velocípede de

origem francesa. Contudo, na segunda metade do século XX, diversos estudiosos

investigaram mais a fundo a origem do celerífero e constataram que

todos os museus que possuíam um modelo o tinham adquirido sempre

após a publicação da obra de Louis Baudry de Saunier. E quanto ao seu

inventor, o tal conde de Sivrac, jamais se confirmou por documentos a sua

existência real, algo estranho dado que se trataria de um nobre.

Deste modo, hoje mostra-se indesmentível que o primeiro e verdadeiro

protótipo de uma bicicleta surgiu apenas no século XIX. Concebido pelo

barão Karl Drais de Saverbrunn, este veículo não possuía ainda pedais: o

passageiro, sentado numa espécie de selim, impulsionava os pés assentes

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no chão, andando ou correndo, até atingir uma velocidade de equilíbrio.

Levantando então os pés do chão, circulava em cima do veículo, podendo

direccioná-lo ou mesmo travar. Ou seja, em terreno plano e não muito

acidentado seria mais rápido do que andar a pé; nas descidas atingiria uma

velocidade considerada, naquela época estonteante.

Protótipo da primeira bicicleta inventada por Karl Drais

Esta novidade foi patenteada em 12 de Janeiro de 1818, primeiro em Baden,

na Alemanha, e mais tarde em outras cidades europeias, tendo sido

baptizada, pelo seu autor, com o nome de Laufmaschine – ou seja, máquina

de correr. Para a posteridade ficaria mais conhecida por draisiana

ou dresina, em honra do seu inventor. Apesar dos esforços deste, que se

lançou num périplo por várias cidades europeias, o seu invento não vingou,

pois nenhum fabricante quis apostar em larga escala na sua produção.

Somente na Inglaterra houve uma fabricante de coches, Denis Johnson,

que viu ali algum potencial, mas também não quis pagar quaisquer direitos

ao barão alemão. Denis Johnson introduziu algumas alterações no

invento de Karl Drais e fabricou 320 veículos que, em poucos meses do

ano de 1819, se esgotaram, comprados sobretudo por jovens e excêntricos

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burgueses – os chamados dândis. Aliás, em Inglaterra este veículo tornou-

-se mais conhecido como dandy-horse – isto é, cavalo do dândi. No entanto,

esgotado o ímpeto da novidade, a draisiana decaiu rapidamente de

interesse na Inglaterra e em outros países, tanto mais que o seu uso nas ruas

das cidades começou a conflituar com os peões, então pouco habituados a

estes excêntricos veículos. Alguns municípios da Europa chegaram mesmo

a proibir a sua circulação.

Apesar desta difícil infância, as sementes lançadas pelo invento do barão

Karl Drais viriam a frutificar: afinal, inventara-se um veículo de transporte

com potencial, mais ligeiro e pequeno de que uma carruagem, menos exigente

e dispendioso do que um cavalo. Assim, ao longo da terceira década

do século XIX, a primitiva draisiana foi sendo aperfeiçoada por alguns inventores

entusiásticos, destacando-se a substituição da madeira por ferro,

que melhorou a sua estrutura e durabilidade. Deste modo, tornou-se possível

a adopção de sistemas de suspensão no selim e nas rodas, aumentando

assim o conforto.

Porém, durante ainda mais alguns anos, mesmo com inovações, as draisianas

continuaram a ser vistas como uma excentricidade, embora cativando

cada vez mais irredutíveis adeptos. De facto, em 20 de Abril de 1829, na

cidade de Munique, realizou-se aquela que é considerada a primeira prova

velocipédica do mundo, envolvendo 26 participantes. Mas não foi muito

rápida: o vencedor gastou 31 minutos e meio a percorrer 4 quilómetros e

meio, ou seja, uma média de 8,6 quilómetros por hora. Era uma velocidade

superior à de uma caminhada, mas ainda longe de impressionar.

O grande obstáculo destes primitivos velocípedes não era apenas a velocidade

reduzida. Na verdade, era óbvio: necessitava de uma constante

propulsão pelos pés do condutor no chão em zona plana ou ligeiramente

inclinada, não sendo assim um veículo prático e cómodo. E se muitos

pensaram em encontrar uma alternativa, foi o ferreiro escocês Kirkpatrick

Macmillan, em 1839, que encontrou uma solução exequível. Mantendo o

conceito da draisiana, concebeu uma viga central para ligar as duas rodas,

adaptando aí um sistema de propulsão por pedais em balanço ligados a

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uma cambota, no eixo da roda traseira, accionada por meio de alavancas.

Deste modo, o condutor movimentava os pedais para a frente e para trás,

conseguindo assim um movimento contínuo e prescindindo assim de colocar

os pés no chão. Contudo, se Macmillan melhorou a draisiana, também

não conseguiu fazer vingar comercialmente este novo modelo, não o

tendo sequer patenteado. Parece ter sido, porém, o pioneiro em acidentes

de bicicleta: em 1842, um periódico escocês relatou que um «engenhoso»

veículo, cujo condutor não era identificado – mas referindo ser natural da

região natal de Macmillan, o que indicia que era ele próprio – atropelara

uma jovem. Acabou multado em cinco xelins pela autoridade local.

Cerca de uma década mais tarde, em 1855, o espinhoso trajecto dos velocípedes

primitivos foi finalmente desbravado. Pierre Michaux, um carroceiro

da cidade francesa de Brunel, decidiu fazer algumas experiências

numa draisiana que recebera para consertar, introduzindo-lhe um sistema

de propulsão ligado directamente à roda dianteira. Reparou então que,

com esta adaptação, diminuía consideravelmente o esforço necessário para

a movimentar. Neste processo, Pierre Michaux acabou por redesenhar a

draisiana, criando-lhe um quadro de ferro e um sistema de propulsão por

alavancas e pedais na roda dianteira. Assim nasceria a denominada bicicleta

Michaux, a primeira a ser comercializada em larga escala.

Sabe-se também que, em paralelo, um outro ferreiro francês, Pierre Lallement,

concebeu também um outro velocípede a partir da draisiana original,

em quase tudo idêntico ao modelo de Michaux. E, de facto, Lallement

levaria mais tarde esse seu invento para os Estados Unidos, aí registando a

patente em 1866, mas o seu negócio no outro lado do Atlântico acabou por

não ser bem-sucedido do ponto de vista comercial.

Entretanto, em 1868, o francês André Guilmet decidiu substituir os raios

de madeira dos novos velocípedes por raios de ferro. E no mesmo ano foi

também inventado um sistema de roda livre. Todas estas inovações aguçariam

ainda mais o apetite para a competição. Em 1869 começaram a ser

realizadas duas provas em França, que se tornariam bastante populares: a

primeira ligando Toulon e Caramon, com 212 concorrentes; a segunda li-

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gando Rouen e Paris. Como os veículos eram ainda pesadíssimos, atingindo

os 50 quilogramas, as velocidades alcançadas eram ainda muito baixas.

Na prova Toulon-Caramon-Toulon, o vencedor gastou três horas e nove

minutos para percorrer apenas 34 quilómetros – ou seja, menos de 11 quilómetros

por hora -, enquanto na prova Rouen-Paris, o vencedor consumiu

cerca de 10 horas num percurso de 123 quilómetros.

Em todo o caso, em 1869, o relojoeiro italiano Raimundo Valloni construiu

um modelo de triciclo que se destinava sobretudo às mulheres, uma vez

que estava adaptado às volumosas roupas femininas, como as saias. A sua

solução passou pela construção de uma barra central rebaixada, facilitando

o posicionamento adequado e confortável das pernas das condutoras. Com

uma terceira roda, Valloni eliminou também a probabilidade elevada de

quedas, além de ter aplicado freios e sistema de transmissão.

Certo é que a popularidade dos velocípedes, junto do público feminino,

não parou de crescer ao longo da segunda metade do século XIX. Tanto

assim que a activista norte-americana Susan Anthony diria, décadas mais

tarde, que a bicicleta fez mais pela emancipação da mulher do que qualquer

outra coisa no Mundo, pois tinham ganho uma maior mobilidade e, portanto,

uma maior liberdade.

Entretanto, na Exposição Mundial de Paris em 1870, então uma montra

universal por excelência de inventos de todo o género, seria apresentado

um novo velocípede: o biciclo, com a roda dianteira de grandes dimensões,

protegidas por borracha maciça, onde estavam os pedais. Foi, no entanto,

um veículo pouco usado, porque, estando o condutor a uma altura significativa

– por vezes até três metros –, a condução tornava-se extremamente

perigosa, podendo uma queda resultar em graves ferimentos. Mais tarde,

surgiriam outros modelos mais inovadores. Num desses inventos, era a

roda traseira que possuía os pedais, estando a segunda, mais pequena, à

frente, melhorando assim o equilíbrio e segurança na condução. Noutro

caso, existiam duas rodas traseiras e uma dianteira – ou seja, estava-se perante

um triciclo. No entanto, mesmo com estas melhorias, nenhum destes

veículos obteve grande projecção comercial.

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Na segunda metade do século XIX, os triciclos permitiram que as mulheres aderissem à nova moda

Entretanto, ainda nos anos 70, as inovações continuaram. Os velocípedes

passaram a ter rolamentos de esferas de aço, travões de molas e aros de

roda metálica de perfil côncavo. Em 1880 surgiu então a primeira bicicleta

moderna – isto é, com a roda traseira motora e transmissão por corrente

horizontal – inventada pelo inglês Jas Starley. A partir daqui, as bicicletas

ganharam velocidade e maior conforto. Em 1885, já com quadro triangular,

as bicicletas já ultrapassavam uma velocidade de 20 quilómetros por

hora em provas desportivas.

Contudo, um dos grandes avanços tecnológicos que impulsionou ainda

mais a velocidade e durabilidade das bicicletas foi a introdução de pneumáticos

nas rodas. A ideia surgiu, se assim se pode sintetizar, por via de

uma brincadeira de criança; ou melhor dizendo, pela vontade do veterinário

escocês John Boyd Dunlop em melhorar o pequeno triciclo do seu filho,

testando vários resguardos nas rodas. A sua invenção sucedeu em 1886,

mas apenas dois anos mais tarde seria patenteada. Pouco depois, os irmãos

franceses André e Édouard Michelin decidiram também desenvolver um

pneumático para permitir maior durabilidade e uma rápida substituição

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das rodas. Na origem do invento destes dois irmãos esteve, aliás, um árduo

e inglorioso trabalho na reparação da roda de uma bicicleta: depois de

três duras horas a tentarem retirar a borracha da roda, gastaram mais uma

noite para a deixar secar e, depois de tudo isto, o dito pneu não aguentou

mais de umas centenas de metros. Por isso, só descansaram quando conceberam

o primeiro pneumático desmontável. Estava então lançada uma

corrida comercial entre Dunlop e os irmãos Michelin, que se projectaria

nas estradas.

Com efeito, em Setembro de 1891 realizou-se uma prova velocipédica –

que se tornaria clássica – ligando Paris a Brest, e retornando, num percurso

de vários dias. Embora tivessem participado mais de duas centenas de ciclistas

– todos homens, porque as sete inscrições de mulheres foram recusadas

pela organização –, com vários tipos de velocípedes, o maior interesse

acabou por se centrar no tipo de pneumáticos usados. Durante a corrida, as

atenções concentraram-se em Charles Terront e Adolphe Clément: o primeiro

conduzia uma bicicleta com pneus Michelin, enquanto a bicicleta do

segundo tinha pneus Dunlop. A vitória acabaria por sorrir a Terront – um

dos primeiros heróis franceses do ciclismo –, que percorreu os quase 1.200

quilómetros em 71 horas e 22 minutos. Assim, nesta maratona pioneira,

ainda sob uma organização incipiente, é de salientar o facto de o vencedor

ter alcançado uma velocidade de quase 17 quilómetros por hora, que já não

envergonhava. Para além dos pneumáticos, as bicicletas beneficiavam já

de outras melhorias no design e no aerodinamismo, reduzindo o seu peso

para cerca de 22 quilograma, menos de metade de há duas décadas.

A partir deste momento, a popularidade das bicicletas tornou-se exponencial.

Aumentaram os clubes de ciclismo na Europa e nos outros continentes,

construíram-se velódromos, organizaram-se corridas um pouco por

todo o lado, alguns ciclistas tornaram-se profissionais, criaram-se sistemas

de apostas quanto aos vencedores de muitas provas, editaram-se periódicos

dedicados exclusiva ou parcialmente ao ciclismo. Enfim, do ponto de vista

lúdico, as bicicletas tinham-se tornado tão populares como os cavalos de

corrida.

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PORTUGAL A PEDALAR

O velódromo Maria Amélia, no Porto, na passagem para o século XX

Porém, durante ainda algum tempo mais, pela novidade e pelos elevados

custos de produção, as bicicletas não alcançaram um estatuto de veículo

utilitário e de massas; apenas eram acessíveis às elites da burguesia e, claro,

aos corredores profissionais.

Em Portugal, a moda das bicicletas também pegou, sobretudo a partir dos

anos 90 do século XIX, mas também inicialmente apenas entre as elites

económicas. Os velocípedes eram então vendidos como actualmente se

faz com os automóveis, ou seja, em poucas casas comerciais, onde se dava

destaque às melhores marcas, algumas com contrato de exclusividade para

todo o país. Conforme anunciado no primeiro número do jornal «A Bycicleta»,

um periódico cuja publicação efémera se iniciou em 1895, existiam

então em Portugal apenas dois estabelecimentos comerciais de revenda: a

Casa Memória, na praça lisboeta do Rossio; e uma loja no Porto pertencente

a João Garrido e localizada na Rua Passos Manuel. Na capital eram

vendidas bicicletas das marcas Clement, Rudge-Whitworth, Brennabor e

Phenix, enquanto na Cidade Invicta estavam disponíveis apenas bicicletas

Clement e Adler. Aos preços daquela época, estes veículos custavam entre

85 mil e 100 mil réis, montantes que se mostravam inacessíveis à esmagadora

maioria dos portugueses. Com efeito, calculando a inflação e os

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factores de desvalorização da moeda, os 100 mil réis em finais do século

XIX corresponderiam hoje a mais de dois mil euros. Porém, se se comparar

com outros bens ainda actualmente existentes – como os livros, que então

custavam em média 200 réis – pode dizer-se que uma bicicleta daquela

época rondaria hoje o equivalente a mais de sete mil euros. Por esses motivos,

na passagem do século XIX para o século XX a bicicleta era um veículo

bastante caro, usado quase em exclusivo pela burguesia endinheirada e por

alguma nobreza mais liberal e moderna.

Tanto se mostrou um veículo de elites que nasceriam rapidamente várias

agremiações, com denominações pomposas, ligadas exclusivamente à bicicleta,

tais como o Real Club Velocipedista de Portugal, o Real Veloclub do

Porto, o Velo Club de Lisboa, o Velo Club Caldense e o Gymnasio Aveirense.

O próprio rei D. Carlos I participou em diversas corridas no velódromo

da Palhavã. Em 1899 acabaria por ser criada uma espécie de federação, a

União Velocipédica Portuguesa, presidida pelo segundo conde de Caria,

Bernardo Homem Castelo Branco. O grande dinamizador desta instituição

foi o jornal Tiro Civil, que começara a abordar eventos velocipédicos nas

suas páginas, através da pena de Carlos Calixto.

Nas primeiras décadas do século XX, a popularidade da bicicleta estenderse-ia

finalmente a todas as classes sociais, tornando-se esta um veículo do

quotidiano. Não apenas por via da generalização das provas velocipédicas,

mas também pelo aumento e melhoria das condições das estradas urbanas

e rurais. Embora a esmagadora maioria dos arruamentos e caminhos fosse

ainda de terra batida – muito raras eram as estradas empedradas e o alcatrão

apenas se generalizou muitas décadas mais tarde –, a circulação em

bicicleta tornou-se mais confortável, permitindo a realização de trajectos

mais longos.

Por outro lado, por via das economias de escala na sua produção, os preços

de aquisição diminuíram. E assim, sendo inicialmente veículos de elite,

as bicicletas foram-se popularizando. As classes mais favorecidas aderiram

entretanto a um novo e mais ecléctico veículo: o automóvel.

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Bicicleta Columbia, (1898) com transmissão cardan, foi um inovasão fundamental

Em todo o caso, pode dizer-se que a bicicleta se tornou, durante a primeira

metade do século XX, aquilo que o cavalo fora até ao século XIX: o principal

meio de locomoção individual. Neste período, as autoridades administrativas

constataram as suas enormes vantagens. Sendo as bicicletas mais

rápidas do que andar a pé, sendo mais baratas e práticas em comparação

com os cavalos, e ainda, de uma forma muito mais evidente, em relação aos

veículos automóveis, as diversas instituições públicas, e também empresas

privadas, renderam-se às suas potencialidades. Transformou-se num meio

de transporte individual por excelência, porquanto permitia uma maior

liberdade e mobilidade a um relativo baixo custo, sobretudo em zonas urbanas.

Por outro lado, as provas velocipédicas também popularizaram a

bicicleta. A Volta a Portugal, iniciada em 1927, bem como outras provas

regionais, consagrariam o fascínio popular pelas duas rodas. Por exemplo,

durante a década de 30, ao longo dos dias da prova, juntavam-se multidões

no Rossio, em Lisboa, apenas para consultar os resultados das etapas desta

prova velocipédica.

Entretanto, as recentes inovações no design e no uso de novos mecanismos,

como as mudanças, o uso de novos materiais e sistemas de suspensão e

amortecimento, permitiram que as bicicletas se tornassem menos pesadas

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e mais ágeis. A tecnologia de ponta possibilitou assim maiores velocidades

e a circulação em qualquer terreno.

A bicicleta trouxe maior liberdade à vida das mulheres ao longo do século XX

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PORTUGAL A PEDALAR

Porém, apesar disso, com a generalização do uso do automóvel sobretudo

a partir do final dos anos 60, se é certo que em muitos países a bicicleta

continuou a manter a sua importância, quer como veículo de transporte,

quer como de lazer, o seu uso em Portugal sofreu um forte declínio. Nos

anos 70, com o aumento do poder de compra, as famílias foram optando

mais pelo automóvel ou pelos motociclos. E, mesmo continuando a ser

um veículo muito utilizado em diversas regiões do país – sobretudo no

Centro litoral e em algumas zonas mais planas de outras regiões –, a bicicleta

perdeu espaço nos grandes aglomerados populacionais. Esta situação

deveu-se, em grande parte, ao significativo aumento do tráfego rodoviário,

agravado pelo facto de o Código da Estrada a ter «secundarizado» em relação

aos veículos com motor.

Um outro factor também determinou em Portugal, sobretudo a partir dos

finais dos anos 70, o decréscimo do uso da bicicleta como meio quotidiano

de transporte: o preconceito social. De facto, com o advento do automóvel

e a generalização dos motociclos, a bicicleta ficou associada sobretudo à

população jovem e às classes sociais menos favorecidas. A modernidade,

assim se julgava em Portugal, não passava pela bicicleta – mesmo se as

evoluções tecnológicas das décadas mais recentes mostravam as suas potencialidades

–, como se fosse um veículo obsoleto ou um mero brinquedo

de recreio para jovens. Ou então apenas um fenómeno desportivo a manter

por diversão e competição. A bicicleta parecia assim estar condenada a ser

uma avis rara nas estradas e nas principais cidades portuguesas.

É certo que alguns irredutíveis foram, sobretudo ao longo da segunda metade

do século XX, tentando promover e divulgar a paixão pelas bicicletas,

quer como meio de transporte, quer como veículo de lazer, com excelentes

resultados para a saúde. Nuns casos eram antigos ciclistas de competição

ou pessoas a si associadas; noutros, eram aficcionados pelas bicicletas ou

pessoas que viam nelas uma forma saudável, mais económica e ambientalmente

amigável de se transportarem.

Neste âmbito, alguns pequenos núcleos, em grande parte criados informalmente,

estabeleceram-se em diversas regiões, mas, sobretudo depois da

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PORTUGAL A PEDALAR

Revolução dos Cravos, em 1974, o país estava mais preocupado em enriquecer

a todo o custo e o automóvel era a ambição da generalidade da

população, apresentado e usado como sinal de modernidade. A bicicleta

estava assim, no início dos anos 80 do século passado, quase ameaçada de

extinção como veículo de transporte, tal como sucedera, algumas décadas

antes, com o cavalo. A menos que, obviamente, surgisse algo e alguém que

invertesse esse rumo. E contribuísse decidida e decisivamente para fazer

renascer em Portugal a paixão pela bicicleta.

É a essa paixão, e à afirmação da bicicleta em Portugal, que se dedicam as

próximas páginas, através do percurso singular de José Manuel Caetano e

da Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta.

Duas rodas e as muitas formas de circular

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PORTUGAL A PEDALAR

Uma vida quase vulgar

Em 1950, João Nobre da Silva era um homem vivido. Já vira mais de sete

dezenas de primaveras, uma monarquia caindo, uma república tingindo-se

de sangue, um golpe de Estado descambando numa ditadura. Com o

advento da República, saíra de Lisboa e regressara às origens, em terras algarvias.

Fora então escolhido para presidir a Câmara Municipal de Olhão,

depois tornou-se governador civil, mais tarde presidente da Junta Geral

do Distrito. Veio Salazar e este republicano de sete costados desligou-se da

política. Ou, melhor dizendo, dos cargos políticos, porque compreendeu o

rumo do Estado Novo. Escolheu o outro lado da barricada, difícil, sempre

com a PIDE desconfiada, enquanto se dedicava finalmente ao que estudara

em Lisboa: medicina, cujo curso concluíra com distinção no início do

século XX. No Algarve, o seu apego e altruísmo foram premiados: ficou

conhecido por «pai dos pobres».

Não foi, porém, por ser pobre que José Carlos Braz foi, em certo dia desse

ano de 1950, falar com o doutor João Nobre da Silva. Foi por desespero de

pai. No Hospital da Santa Casa da Misericórdia de Faro, então gerido por

religiosas, jazia o seu filho, vítima de um insólito acidente. Nas brincadeiras

do recreio, algumas crianças aproveitavam o corrimão das escadas que

davam para o pátio para se empoleirarem, acabando este por ceder ao peso;

algumas pedras acabaram por apanhar a perna do filho de José Carlos Braz,

partindo-lhe o fémur. Tinham-no levado para o então hospital de Faro e ali

lhe meteram umas talas, algodão e ligaduras, deixando ver no que aquilo

dava. Deu para o torto. O joelho infectou e as freiras diziam já que a solução

apenas passaria pela amputação. Eram outros tempos. Mesmo por

causa de uma simples fractura podia ficar-se mutilado.

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PORTUGAL A PEDALAR

O doutor Nobre da Silva sabia desse perigo. E também conhecia as religiosas.

Porém, em vez de as convencer a usar outros métodos terapêuticos,

propôs antes a José Carlos Braz uma radical salvação: levarem a criança

dali; ele a trataria. As freiras não foram da mesma opinião e recusaram a saída

do miúdo. Os dois homens não estavam para debates: levaram a criança

em braços, sob os gritos das freiras. Uma espécie de rapto que evitou uma

«cura» pior que a afecção inicial.

Já em casa de José Carlos Braz, o doutor Nobre da Silva compôs então uma

caixa de madeira, meteu lá a perna da criança, e através de um sistema de

roldanas com pesos, não só conseguiu curar a fractura como a perna ficou

completamente direita e sem mazelas. Poucos meses depois, este miúdo,

de nome completo José Manuel Caetano, que esteve em risco de perder

uma perna ou ficar a coxear para sempre, corria de casa até ao Largo de

São Francisco. Levava no bolso algumas moedas para alugar uma bicicleta.

Aí, nessa pequena praça farense, deu as primeiras pedaladas. Sem grandes

quedas.

Mais de seis décadas depois, José Manuel Caetano somente guarda uma

minúscula cicatriz que lhe recorda aquele infausto acidente infantil. E talvez

o episódio já estivesse esquecido, não fosse uma certa aversão àquelas

freiras da Misericórdia de Faro, que podiam ser boas a meter almas para o

Céu, mas que quase lhe tiraram a perna.

Mas recuemos no tempo. No bilhete de identidade, José Manuel Caetano

nasceu em 2 de Dezembro de 1943, mas na verdade saiu do ventre da sua

mãe uma semana antes, a 25 de Novembro. A diferença nas datas era costume

de época: aplicava-se uma multa para quem se atrasasse no registo

dos recém-nascidos. Ora, como nem sempre dava jeito aos progenitores

acelerar nas burocracias, e como geralmente os partos sucediam em casa,

como foi o caso, contornava-se essa obtusa lei atribuindo, como data de

nascimento, um outro dia.

Seja como for, mais ou menos sete dias, pouca importância tem na vida de

uma pessoa. Muito menos de uma criança. Tal como pouca importância

terá um relato detalhado a história da infância de José Manuel Caetano. Foi

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PORTUGAL A PEDALAR

como todas, ou quase todas, ou pelo menos não se distinguiu da maioria.

Foi logicamente marcada, como quase sempre sucede com todas as crianças,

pelos destinos trilhados pelos pais. Em plena época do Estado Novo,

num período em que o sector agro-florestal vivia bons tempos, o seu pai

instalara-se no Algarve como empresário do sector da cortiça. Comprava-a

e fazia o seu primeiro processamento, o cozimento, para depois a enviar

para as fábricas de produção de rolhas localizadas sobretudo no norte do

distrito de Aveiro.

A expansão deste negócio levaria o patriarca da família a migrar para outras

paragens, primeiro para Garvão, no concelho de Ourique, mais tarde

para Sines, mas nunca abandonando por completo o Algarve. O jovem José

foi, por isso, fazendo os seus estudos primários ao sabor destas circunstâncias;

inicialmente em Faro, em seguida em Sines, regressando depois de

novo a Faro, onde concluiu a quarta classe nos primeiros anos da década

de 50. De permeio, nas férias ou período de interrupção das aulas, passava

algumas temporadas em Garvão. Ao contrário da maioria das crianças

daquela época, que depois da escola primária começavam logo a trabalhar,

ele teve oportunidade de continuar os estudos, uma vez que o seu pai tinha

algumas posses. Deste modo, ingressou no único estabelecimento algarvio

que permitia alimentar perspectivas de futuro fora da árdua agricultura:

a Escola Industrial e Comercial de Faro, instituição criada em 1951 pela

fusão da antiga Escola Industrial e Comercial de Tomás Cabreira com a

Escola Técnica Elementar Serpa Pinto.

Entretanto, em meados dos anos 50, José Carlos Braz abandonou o sul do

país e instalou-se na Margem Sul de Lisboa para continuar a sua actividade

industrial na cortiça. O seu filho, José Manuel, na altura com 13 anos,

entrou na Escola Industrial e Comercial Alfredo da Silva, no Barreiro, para

frequentar um curso de laboratório químico. Porém, a perspectiva de se

empregar na CUF, o destino habitual para quem cursava naquele estabelecimento

de ensino, não o seduziu. Convenceu assim o pai a aboná-lo para

atravessar o rio Tejo e ingressar no Instituto Industrial de Lisboa. Por lá andou,

desenrascando-se, sem brilhantismo de relevo; sempre ia conseguin-

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PORTUGAL A PEDALAR

do, como confessa agora, justificar ao seu pai novos abonamentos. Mesmo

assim terminou o curso, em horário nocturno, enquanto usufruía da

vida mundana na capital. Por esses tempos, muito se divertiu e descansou.

Lisboa era cidade sedutora. Mas não mandriou, porque ainda nos finais

da adolescência começou a tornar-se independente financeiramente. No

início dos anos 60, o seu pai decidiu mudar de ramo de actividade, abandonando

a cortiça e abrindo diversas ourivesarias na região do Barreiro

e Moita. Com Lisboa ali ao pé, o seu filho acabou por ser o seu «sócio»,

nunca empregado, com a incumbência de contactar clientes ou potenciais

clientes na capital. Não se saiu mal, pelo contrário.

José Caetano no início dos anos 60, dando as suas primeiras pedaladas, amadoras

Nos primeiros anos de vida cosmopolita, entre os estudos, o trabalho e

a vida mundana típica de um jovem da sua época, José Manuel Caetano

usava sobretudo os transportes públicos nas suas deambulações. Porém,

por vezes também calcorreava as estradas de bicicleta, sobretudo quando

tinha de rumar até Paço de Arcos para contactar um dos fornecedores do

pai. A Marginal era então uma estrada com pouco tráfego e o excelente piso

permitia autênticos passeios à beira do estuário do Tejo. Contudo, em 1962

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PORTUGAL A PEDALAR

tirou a carta de condução de veículos ligeiros – uma benesse não muito

comum para jovens de 19 anos – e a bicicleta foi-se encostando, a não ser

para alguns passeios ou corridas amadoras na zona do Barreiro, organizadas

sobretudo pelo Ginásio Atlético Clube da Baixa da Banheira.

Prova popular no Barreiro, em 1960. José Caetano foi segundo classificado

Antes dos 20 anos, José Manuel Caetano ainda aproveitou uma espécie de

ano sabático para viajar pela Europa, especialmente pela Alemanha. De regresso,

continuou a usufruir das maravilhas da capital Portuguesa. Comprou

um carro em segunda mão, um Ford Balilla, que lhe custou mil e oitocentos

escudos; pouco depois trocou-o por um Anglia Fascinante. Ainda

teve tempo, e disponibilidade financeira, para adquirir um apartamento

mobilado na Venda Nova, integrado num dos primeiros empreendimentos

do famoso J Pimenta, quando os subúrbios de Lisboa começavam a crescer.

Tudo isto antes dos 20 anos. Porém, a tropa interrompeu-lhe esta dolce vita.

Em 1966, após o habitual período militar em Portugal, foi destacado para

Angola, em plena Guerra Colonial. Como tinha carta de condução e estudos,

ficou numa zona de retaguarda, como responsável pela frota de ve-

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PORTUGAL A PEDALAR

ículos na região de Calambata, perto de São Salvador do Congo. Depois

seguiu para o Cuanza Norte, na região do Dondo, para auxiliar a vigilância

na zona da barragem de Cambambe. Mais tarde foi deslocado um pouco

mais para o interior do norte de Angola, na região de Nova Gaia, actual

Cambundi-Catembo. Dessa experiência de dois anos não trouxe traumatizantes

recordações. Esteve em algumas zonas de conflito, é certo, mas nunca

deu um tiro, e procurou ter boas relações com o povo local, e sobretudo

com os sobas. Desta estadia relembra-se da importância, naquela região, de

Zé do Telhado, o famoso salteador português do século XIX, considerado

ainda hoje como um herói para o povo angolano. De facto, este famigerado

salteador, degredado em 1859 para Angola, tornar-se-ia ali um respeitado

negociante de borracha, cera e marfim, casando com uma africana e granjeando

uma aura de homem bom. A sua sepultura, na aldeia de Xissa, no

município de Mucari, ainda hoje é lugar de romagem.

Regressado a Portugal em finais da década de 60, José Manuel Caetano

retomou a sua vida de negócios na área da ourivesaria e relojoaria, aumentando

a sua condição de vida. Casou em 1970, teve dois filhos durante

essa década, instalou-se em Benfica, viajou muito. Enfim, foi vivendo bem,

melhor ainda após a Revolução dos Cravos, com o poder de compra dos

portugueses a aumentar e o valor do ouro e a popularidade dos relógios

também. Durante mais de uma década tornou-se apenas num homem

como os demais, sem grande história para contar – ou, pelo menos, agora

não julga que tenha interesse ser contada com detalhe. Para contar, na verdade,

tinha uns bons punhados de notas, uma família, mas que lhe sabia

a pouco. No início dos anos 80 construiu então uma vivenda em Santana,

uma zona rural nos arredores de Sesimbra, tentando assim ter uma melhor

qualidade de vida, que o fizesse descansar aos fins de tarde e nos finsde-semana

do bulício da capital, onde continuava a trabalhar diariamente.

Porém, sobrava-lhe muito tempo. As únicas ocupações eram os cafés locais

ou a televisão. Depois, descansava ou dormia. Sabia-lhe também a pouco. E

estava então a entrar na meia-idade; aquela idade em que o corpo se pode

«aburguesar» ainda mais. Ou não.

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PORTUGAL A PEDALAR

De Sesimbra ao Algarve

se refaz uma vida

Corria o ano de 1983, José Manuel Caetano gozava de um cenário envolvente

idílico, junto à serra da Arrábida, quando regressava dos seus

negócios em Lisboa. Durante a semana chegava à sua nova vivenda na aldeia

de Santana, perto de Sesimbra, e tinha todo o tempo do mundo. Entrara

então na denominada meia-idade, altura em que a mente, por vezes,

vai avisando o corpo para se cuidar um pouco melhor. Ou seja, para fazer

exercício.

Nessa época, os ginásios escasseavam; não havia nenhum em Santana; mesmo

que os houvesse, José Manuel Caetano não tinha paciência para fazer

que corria numa passadeira rolante ou para montar numa bicicleta estática;

e seria, além de tudo, um desperdício, com o Cabo Espichel e a Arrábida

ali a uns passos. Ou melhor, a umas pedaladas.

Em Lisboa passava muitas vezes perto de uma loja de bicicletas, propriedade

de Aristides Martins, antigo ciclista e seleccionador nacional. E tanto

por ali passou que, em certo dia, se decidiu a comprar uma. Meteu-se à

estrada. Sozinho. Pedalou vezes sem conta até ao Cabo Espichel: treze quilómetros

para lá, desde Santana; vinte e seis quilómetros, contabilizando

ida e volta. Das primeiras vezes custou-lhe um pouco, que a vida agitada

de nómada do volante, o tabaco – fumava desde os 20 anos e consumia

então um maço por dia –, algumas bebidas em ritmo social e a barriguinha

causada por tudo isto, não o auxiliavam muito. Mas nunca foi homem para

desistir, muito menos aos primeiros arquejos.

Desistiu assim do tabaco. O corpo, com a nova actividade física, «exigiu-

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PORTUGAL A PEDALAR

-lhe» abandonar esse vício, para melhorar o empenho e o desempenho nas

pedaladas até ao Cabo Espichel. Poucos meses depois, José Caetano encabeça

e coordena a 1.ª Edição do Sesimbra-Algarve (1987), para a qual

«arregimentou», de entre a vizinhança, alguns companheiros para estas

andanças velocipédicas. Gente nova e com espírito entusiástico. Formaram

um pequeno núcleo de cicloturistas e começaram também a percorrer a

Arrábida, sobretudo aos fins-de-semana. Estes passeios levaram-no, pouco

depois, a deixar de beber nesses dias, sobretudo pela necessidade de deitar

cedo para depois madrugar e pedalar em grupo.

Incentivado por esta nova actividade lúdica – que, em poucos meses, retirara

o tabaco e a bebida do seu quotidiano –, já nesta altura José Manuel

Caetano mostrava o seu espírito imaginativo e de dinamização, para animar

e congregar grupos e, sobretudo, para angariar apoios. Da inicial meia

dúzia de elementos frequentes nos passeios na zona de Sesimbra, passaram

a mais de uma dúzia, depois várias dezenas em alguns casos, integrando

todos os níveis sociais, com todo o tipo de bicicletas. Nestas vivências em

comum, nasceria informalmente o Núcleo Cicloturista de Sesimbra, que

haveria mais tarde de constituir-se como associação com personalidade jurídica

e, ainda, como organização não-governamental da área do ambiente.

Ainda nesta fase informal, José Manuel Caetano conseguiu que uma companhia

de seguros, a GAN, apoiasse os cicloturistas sesimbrenses não apenas

com equipamentos mas também com um seguro contra acidentes

pessoais e de responsabilidade civil, em troca de publicidade. O «negócio»

beneficiaria ambas as partes, porque mais tarde, quando os membros do

Núcleo Cicloturista de Sesimbra alargaram os seus passeios para outras

áreas da Margem Sul e mesmo para outras regiões do país, sobretudo para

Lisboa, as suas camisolas com o patrocínio da GAN saltavam bem à vista.

Nos contactos que foi estabelecendo nestes passeios, ficou-lhe patente que,

apesar de vivo, o movimento cicloturístico vivia porém da carolice e, como

sempre sucede nestes casos, sofrendo de deficiências organizativas. Algo

que já vinha de longe. Nos idos dos anos 80, o cicloturismo em Portugal

mantinha-se fragmentado, se assim se pode dizer. Apesar dos esforços dos

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PORTUGAL A PEDALAR

entusiastas desta actividade, as estruturas organizativas estavam cheias de

voluntarismo e paixão, mas dependentes da disponibilidade de alguns indefectíveis

amantes que tentavam, como podiam, organizar alguns eventos.

Enfim, problemas estruturais com décadas, que impossibilitavam uma expansão

sustentável.

De facto, ao longo do século XX, o cicloturismo português jamais conseguira

criar raízes duradouras num país rendido ao automóvel, que passou

a dominar as estradas e relegou as bicicletas para um plano secundário.

Os velocípedes sem motor eram vistos como veículos pouco prestigiantes

socialmente, embora mobilizassem as massas quando ocorriam provas de

competição.

Nos anos 40, António Duarte Laureano, um operário fabril de Lisboa, foi

o primeiro a esforçar-se por remar contra esta maré, criando o grupo «Os

Quinze», com o objectivo de promover a bicicleta como meio de transporte

saudável e lúdico. No entanto, as suas viagens de bicicleta pelo país,

dando palestras em várias academias culturais e sociedades recreativas, levantaram

suspeitas, desconfiando a PIDE que faziam parte de uma estratégia

subversiva de acção política. Se assim foi, ou não, ignora-se; certo é que

António Duarte Laureano chegou a ser detido algumas vezes pela polícia

política do Estado Novo.

Anos mais tarde, em finais da década de 50, também Aristides Martins,

antigo ciclista – que participou em mais de uma dezena de edições da Volta

a Portugal, e que chegou a ocupar o cargo de seleccionador nacional de

ciclismo – fez nova tentativa para dinamizar o cicloturismo. Porém, neste

período, sem particular sucesso, tal como sucedeu com os esforços do escultor

Laureano Pinto Bastos, professor da Faculdade de Arquitectura do

Porto, ou António Sousa Pires, licenciado na Sorbonne, que realizaram,

nesse período, alguns passeios cicloturistas pelo país.

Na década seguinte, o médico Eduardo Vasco da Veiga de Oliveira procurou

incutir nos meios intelectuais da região do Porto alguns convívios

de bicicleta, onde participaram, entre outros, Eugénio de Andrade, Jorge

Listopad, Bento da Cruz, Sofia de Mello Breyner Andresen e Agustina

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PORTUGAL A PEDALAR

Bessa-Luís. Ainda nos anos 60, José Manuel Sá Carneiro e António Sousa

Martins, juntamente com Fernando Castel-Branco Sacramento, promoveram

diversos raides cicloturistas de fundo, que viriam a dar origem ao livro

«Caminho de Santiago», da autoria de Eduardo de Oliveira, publicado em

1970. Porém, todos estes grupos nunca tiveram grande expressão nem continuidade,

esmorecendo ao longo dos anos.

António Laureano passando o testemunho da sua actividade a José Caetano, (Lisboa, 1988)

Já depois da Revolução de 25 de Abril, Aristides Martins fez nova tentativa

de reorganização do cicloturismo, criando com mais uma dúzia de pessoas

a Comissão Distrital de Cicloturismo de Lisboa (CDCL). Com uma

diversidade de iniciativas bastante relevantes, que visavam também introduzir

nas suas actividades de lazer uma componente cultural e social, esta

associação chegou a deter 69 núcleos e mais de um milhar de aderentes,

tendo promovido raides e passeios a nível nacional e mesmo internacional.

Contudo, sem nunca ter obtido apoios estatais, Aristides Martins tentou

ainda uma aproximação à Federação Portuguesa de Ciclismo, de modo a

que fosse aí criado um núcleo específico vocacionado para o uso lúdico

da bicicleta. Por desinteresse desse organismo federativo, não alcançou tal

intento. E, portanto, o cicloturismo, embora mantendo-se activo, estava

longe de cativar a generalidade da sociedade, sobretudo nas áreas urbanas.

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PORTUGAL A PEDALAR

Ou seja, continuava confinado a amantes das bicicletas, sem grandes perspectivas

de futuro.

Foi nos contactos com esta realidade, e no decurso desses passeios fora da

Margem Sul, que José Manuel Caetano foi estimulado por Aristides Martins

– que lhe viu características para uma passagem de testemunho com

melhores resultados – a pensar em organizar raides com maior projecção.

E seria nestas conversas que nasceria a ideia de organizar um passeio de

bicicleta entre Sesimbra e o Algarve.

Estava José Manuel Caetano a amadurecer este projecto quando encontrou

em Lisboa um seu antigo amigo, Henrique Júnior. Filho de José Maria Duarte

Júnior, então proprietário do Hotel Montechoro, um dos primeiros

complexos hoteleiros algarvios, Henrique era mais utilizador de veículos

de quatro rodas ou de hélices, mas por conselho médico fora convencido a

comprar uma bicicleta. E a dar umas pedaladas, claro. Entusiasmado com

a projectada organização do raide para o Algarve pelo Núcleo Cicloturista

de Sesimbra, Henrique Júnior desafiou então José Manuel Caetano e os outros

participantes a ficarem alojados em Montechoro; ou seja, a ser aquela

zona do concelho de Albufeira o destino final do passeio. E José Manuel

Caetano aceitou o convite, julgando que teria apenas cerca de duas dezenas

de participantes.

Montechoro foi, efectivamente, o destino final deste raide, que se iniciou

em Sesimbra no dia 1 de Maio de 1987, mas o hotel não chegou a ser local

de alojamento. Por uma simples razão: não houve 20 cicloturistas apenas,

nem 200, mas sim mais de um milhar. O retumbante sucesso deste passeio

– que se viria a tornar, nos anos seguintes, numa espécie de «Meca do

Cicloturismo» em Portugal – foi fruto de um acaso, embora os acasos se

construam, muitas vezes, com esforço e empenho.

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PORTUGAL A PEDALAR

Carlos

Pimenta

Empresário, ex-eurodeputado e ex-secretário de Estado do Ambiente

e presidente da Plataforma para o Crescimento Sustentável.

Em 1987/88, decorreu o Ano Europeu do Ambiente. Esta acção comunitária

incluiu uma grande campanha de sensibilização pública

sobre a temática ambiental e a concessão de apoios financeiros às associações

de defesa do ambiente. Por si só, esta acção permitiu a consolidação

de muitos grupos locais que até então não tinham uma estrutura

estável.

Em 1987, foi igualmente publicado o Relatório Brundtland, que consagrou

definitivamente o conceito do desenvolvimento sustentável e a

indissociabilidade entre o desenvolvimento económico e o estado do

ambiente. O reconhecimento destes princípios teve uma influência determinante

nas associações de defesa do ambiente em Portugal. Na sua

maioria, tornaram-se mais pragmáticas, abandonando a filosofia de

ruptura radical com o sistema — tão característica dos grupos ecologistas

tradicionais e tão pouco eficaz. As associações passaram a tentar

alterar o sistema social por dentro.

E foi precisamente em 1987 que, sob iniciativa e impulso do seu fundador,

o José Manuel Caetano, foi criada a Federação Portuguesa de

Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB), com os objectivos de

defender o ambiente e o Património Cultural através da bicicleta como

forma de mobilidade sustentável, lazer e turismo.

Podemos dizer que o grupo liderado pelo José Manuel Caetano estava

30 anos à frente do pensamento dos dirigentes políticos, autárquicos e

académicos em Portugal. A sua actividade foi precursora, notável na

sua dedicação à causa pública e deu sementes que hoje se vêem por todo

o lado. Deram voz e expressão ao sonho de Ribeiro Telles e, sem a adesão

que conseguiram granjear, hoje não teríamos, seguramente, em Lisboa

a ligação entre o Marquês de Pombal e Monsanto para bicicletas e em

circuito pedonal, bem como uma multitude de vias dedicadas um pouco

por todo o País.

Para além da dedicação e do voluntariado feito com um profissionalismo

exemplar, patente por exemplo na atenção à educação para a segurança

rodoviária e para o respeito da natureza nos percursos escolhidos,

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PORTUGAL A PEDALAR

o que foi verdadeiramente inovador foi o «casamento» entre a actividade

física com utilidade quotidiana – mobilidade, ou de desporto e lazer,

com um Programa de Defesa do Ambiente, da Natureza, do Património,

com contornos bem vincados e que colocavam a FPCUB no patamar das

ONGs de Ambiente mais credíveis e que melhores resultados obtinham.

Em 1987, a actividade do José Manuel Caetano foi decisiva para o despertar

de milhares de pessoas para a causa da Sustentabilidade e para o

sonho de um Território que não fosse um subúrbio sem qualidade, um

deserto de betão povoado de automóveis. Ao longo dos anos, essa actividade

estendeu-se para além fronteiras, quer com «eventos de rua», quer

com reflexões, seminários e encontros que ajudaram a mudar a política

europeia de mobilidade e de Ordenamento do Território.

Nunca esquecerei os momentos em que vinham à Rua do Século, sede

da Secretaria de Estado do Ambiente, com mais uma iniciativa, uma

ideia, uma nova indignação perante mais um atentado urbanístico. E

as palavras transformavam-se em multidões em cima de bicicletas, arrastando

os media e as populações. Obrigaram os políticos a reagir, os

autarcas a dialogar, inquietaram-nos a todos.

Bem-haja, José Manuel Caetano, bem hajam os seus amigos e colegas

que na FPCUB souberam dar corpo a um sonho e mostrar que a acção

política se faz vivendo e fazendo e não só através dos canais formais.

Muito obrigado.

De facto, estando nos seus preparativos, José Manuel Caetano contactou

a delegação de Setúbal do então Serviço Nacional de Parques, Reservas

e Conservação da Natureza – entidade precursora do actual Instituto da

Conservação da Natureza e das Florestas – para saber se existiriam algumas

limitações ou condicionalismos ambientais durante o percurso, bem como

para obter recomendações sobre os locais de alojamento da comitiva. O

responsável por aquele departamento deu-lhe as informações necessárias,

sugerindo-lhe também que contactasse a Secretaria de Estado do Ambiente,

pois talvez até os pudessem apoiar. Numa altura em que o relacionamento

com alguns governantes era muito informal, José Manuel Caetano

aproveitou a dica, até porque conhecia bem o então jovem Secretário de

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PORTUGAL A PEDALAR

Estado Carlos Pimenta, que se criara no Barreiro. Rapidamente seria agendada

uma reunião.

Com um dinamismo e uma visão estratégica que ainda hoje continuam a

ser um marco na política ambiental portuguesa, Carlos Pimenta viu nessa

iniciativa do Núcleo Cicloturista de Sesimbra uma excelente oportunidade

para chamar a atenção para a importância ambiental e paisagista da faixa

costeira entre Sines e Sagres. Com efeito, além de 1987 ter sido escolhido

pela então Comunidade Económica Europeia (CEE) como o Ano Europeu

do Ambiente, este governante estava a preparar legislação essencial para

este sector – como a Lei de Bases do Ambiente e a Lei das Associações de

Defesa do Ambiente. E uma das suas prioridades passava pela preservação

da última grande faixa costeira ainda não urbanizada, quase desconhecida

pelos portugueses e ainda mais pelos europeus. Tinha naquele passeio

cicloturista uma excelente oportunidade de mobilizar um grande evento

naquela região, para a revelar à sociedade, passo importante para a criação

da desejada Área de Paisagem Protegida do Sudoeste Alentejano e Costa

Vicentina.

O subsequente apoio logístico e também financeiro da Secretaria de Estado

do Ambiente ao primeiro passeio Sesimbra-Algarve tornar-se-ia decisivo.

Carlos Pimenta dispensaria mesmo, durante vários meses, alguns

dos seus assessores para empreender contactos e abrir portas que garantissem

o sucesso desta iniciativa, que viria a contar igualmente com o apoio

das autarquias de Sines, Odemira, Aljezur e Vila do Bispo. Além disso, o

Núcleo Cicloturista de Sesimbra conseguiu assim meios de divulgação da

iniciativa, tendo até contado com o auxílio do jornal Correio da Manhã,

curiosamente então propriedade de Carlos Barbosa, actual presidente do

Automóvel Clube de Portugal.

Com estas parcerias, o dia 1 de Maio de 1987 transformar-se-ia num marco

indelével da História do cicloturismo em Portugal. Se o objectivo inicial,

quando a ideia foi tomando forma na mente de José Manuel Caetano em

meados de 1986, era agregar algumas dezenas de pessoas, Sesimbra viu raiar

esse dia com mais de um milhar de veículos de duas rodas – registaram-se

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PORTUGAL A PEDALAR

1.136 inscritos – e uma parafernália de carros de apoio, grupos de jovens

escuteiros e elementos da Cruz Vermelha Portuguesa, além de batedores

da GNR. De igual modo, numa altura em que os contactos não eram fáceis

com «nómadas» – não existiam ainda telemóveis –, José Manuel Caetano

conseguiu a ajuda de mais de duas dezenas de radioamadores, a operar na

frequência da Banda do Cidadão, para coordenar as comunicações entre o

pelotão e a estrutura logística.

Nesse primeiro dia, os cicloturistas partiram pela manhã de Sesimbra, subindo

a Arrábida até Azeitão, e depois desceram para Setúbal, atravessando

de ferry o Sado até Tróia. Depois, rumaram para Melides, seguindo em

direcção a Sines, onde almoçaram, retomando o trajecto para Vila Nova de

Milfontes, aproveitando ainda para atravessar a bela aldeia de Porto Covo,

que no ano anterior ficara nacionalmente conhecida através de uma canção

de Rui Veloso. A enorme comitiva, em alegre confraternização, alojouse

então no parque de campismo local.

Participantes no 1.º Raide Sesimbra / Montechoro (1987)

As reportagens e fotografias dos jornais da época testemunham um ambiente

que terá sido inesquecível para os participantes. Uma notícia do

Correio da Manhã salientou que «chegou a atingir mais de dez quilómetros

a densa coluna de ciclistas» que percorreu os cerca de 330 quilómetros entre

Sesimbra e Montechoro ao longo de três dias. Encontrava-se ali o mais

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PORTUGAL A PEDALAR

longo e concorrido passeio cicloturista jamais feito em Portugal e mesmo,

quiçá, em outros países. Os jornais referiram mesmo que o tradicional passeio

que se fazia na Inglaterra entre Birmingham e Liverpool nunca tinha

tido tantas pessoas.

O segundo dia daquela «bicifila ao encontro da Natureza», como titulou

uma reportagem do Diário do Alentejo, formando um «enorme bicho

reluzente ao sol sobre as arribas do Sudoeste», continuou a viagem pelo

litoral alentejano, em direcção à Zambujeira do Mar, entrando pela costa

vicentina, cruzando Aljezur e depois Vila do Bispo, contornou Sagres e

entrou-se mais adiante pela praia do Zavial até Lagos. O terceiro e derradeiro

dia, como se fosse a última etapa de uma Volta a Portugal de ciclismo

profissional, foi uma espécie de consagração. Não para um, mas para todos.

À chegada a Montechoro, no final da manhã, esperava-os um repasto de

heróis, oferecido pelo hotel local.

O jornalista Humberto Vasconcelos, então ao serviço do já extinto Diário

Popular, foi talvez quem melhor conseguiu expressar em palavras aqueles

três dias de amor à bicicleta. «Quem esquece o enorme zunido de enxame

de abelhas, que fazem os raios das rodas cortando o ar, numa paisagem

onde o silêncio reina? E o som dos carretos, descidas abaixo, parecendo cigarras

cantando loucas de alegria», questionava de forma poética. E transmitiu

o entusiasmo a que assistira naquela comitiva, com gentes de todas as

idades, tentando desmontar os mitos então existentes sobre os utilizadores

de bicicleta. «Tirem da cabeça a ideia de que isto de cicloturismo é uma coisa

para ciclistas reformados ou frustrados, um grupo de barrigudos, de cabelos

brancos. A gente nova está a curtir esta forma de utilizar a bicicleta»,

escreveu, embora estabelecendo também aquilo que diferenciava, já então,

o cicloturismo do ciclismo: a forte componente cultural – que haveria de

se estender às questões ambientais e de saúde pública – em detrimento da

competição.

Por outro lado, Humberto Vasconcelos destacava ainda que, neste mundo

do cicloturismo, apesar da ausência de um espírito competitivo – aliás, a

entreajuda era a palavra de ordem –, havia uma aguerrida paixão dos seus

38


PORTUGAL A PEDALAR

amantes pelas «máquinas», cada vez mais modernas. As «pasteleiras» – assim

denominadas depreciativamente as bicicletas das zonas rurais – estavam

a dar lugar a velocípedes modernos, com estruturas de titânio e fibra

de carbono. Era a modernidade, afinal, que rolara pelo litoral alentejano e

costa vicentina.

Lamentavelmente, todo este espectáculo não teve cobertura televisiva, num

período em que o monopólio era ainda da RTP. Humberto Vasconcelos,

num dos seus artigos jornalísticos, lamentava «a televisão que temos, que

mais uma vez perdeu uma excelente ocasião de fazer uma reportagem que

tinha todos os ingredientes para resultar: bicicletas, paisagem bela, calor

humano, humor, peripécias, música, folclore, poetas populares, tudo coisas

que os telespectadores gostam». De facto, a animação neste passeio foi

constante, com uma multidão imensa a assistir sempre que passava a comitiva,

com recepções cheias de animação nas vilas por onde os cicloturistas

paravam. Como se houvesse «várias Voltas a Portugal num dia só», como

relatou o jornalista do Diário do Alentejo.

Luísa Carriço, co-fundadora da FPCUB, durante o Raide Sesimbra/Montechoro (1987)

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PORTUGAL A PEDALAR

Luísa

Carriço

Co-fundadora da FPCUB e a única mulher participante no I Raide Sesimbra-Algarve*

Eram oito horas da manhã do dia 1 de Maio de 1987. Sesimbra! O

começo do dia apresentava-se prometedor. E éramos muitos, quase

1.200 cicloturistas, 400 apoiantes e 150 viaturas de apoio. Iríamos

iniciar o que foi o maior raide de cicloturismo do continente; iríamos

percorrer essas estradas e planícies alentejanas, deste Portugal tão pouco

conhecido e duma beleza tal que só nós, como poucos, nos orgulhamos

de possuir.

Partimos, tendo como objectivo, além de outros, o chegar a Montechoro

a pedalar durante 3 dias. E que belo espectáculo proporcionámos a

essas gentes por essas terras fora, um espectáculo multicolor de camisolas

e bicicletas cruzando este Portugal desconhecido que nós viemos

descobrir e ajudar a conhecer. E a camaradagem, e a amizade, e a

solidariedade que uniu este grande grupo de cicloturistas e respectivos

acompanhantes.

Chegámos a Vila Nova de Milfontes. Cansados sim, mas contentes, felizes!

E como nos receberam essas pessoas adoráveis, rodeando-nos de

toda a admiração, prestando-nos toda a ajuda de que nós precisámos,

nesta tão linda terra alentejana à beira-mar plantada. E depois foi o

descanso tão merecido, para no dia seguinte seguirmos para Lagos, passando

por Vila do Bispo e Sagres. Enfim Algarve. A paisagem, da alentejana

à algarvia qual delas a mais bela. E por fim…, enfim Montechoro.

O fim? Não, penso que não. Não foi o fim mas sim o princípio de um

raide que espero que se volte a repetir, e que graças a uma organização

tão bem planeada foi possível.

Graças ao Sr. José Caetano e a toda a sua organização foi realizado este

raide tão bem sucedido.

E à Brigada de Trânsito com as suas 12 motas e os seus carros que nos

acompanharam no trajecto do princípio ao fim sempre com a sua boa

disposição e ajuda para o que era necessário e que nunca se pouparam a

esforços para que os cicloturistas rolassem em segurança. Não podemos

esquecer também os bons acompanhantes que foram a Cruz Vermelha e

40


PORTUGAL A PEDALAR

elementos dos Escuteiros. Com a ajuda da Câmara de Sines, Odemira,

Aljezur e Vila do Bispo fomos recebidos e acarinhados por todos os que

nos quiseram ver e receber nestes locais de passagem. Para nos apoiar

tínhamos também o Dr. Aristides Leitão do Serviço Nacional de Parques,

Reservas e Conservação da Natureza, que nos acompanhou nesta

iniciativa, ao qual dirigimos o nosso agradecimento.

Tivemos muitos, e muitos colaboradores, encontrámos e conhecemos

muitos amigos entre os quais destaco aqui um cantinho especial para

o Sr. José Maria Duarte Júnior, o qual nos fez uma recepção nunca esperada

com um almoço para cicloturistas e respectivos acompanhantes

no Hotel Montechoro. E que almoço, que encontro maravilhoso, com

oportunidade para convívio, entrega de lembranças, enfim um final do

I Raid Sesimbra-Montechoro com a despedida de um «até para o ano».

*depoimento escrito em 1987

Porém, num aspecto, este primeiro passeio acabou por revelar uma particularidade:

o cicloturismo era então um exclusivo dos homens. De facto,

durante o passeio Sesimbra-Montechoro, mulheres houve muitas, mas nos

automóveis de apoio à comitiva. Ou seja, homens no pedal, mulheres ao

volante. A única excepção, destacada pela reportagem do Diário Popular,

foi Luísa Carriço, então uma jovem de 23 anos, secretária da Siderurgia

Nacional. Ao contrário das outras mulheres, não deixou os homens a pedalarem

sozinhos.

José Manuel Caetano foi, no decorrer deste primeiro raide, o homem-forte

do pelotão. Não que tenha alcançado qualquer «camisola amarela», porque

não era importante saber quem chegava primeiro em qualquer etapa nem

no final, mas sim pela sua abnegação na organização do evento. E, conforme

testemunhou a reportagem do Diário do Alentejo, apesar dos inúmeros

afazeres logísticos e de coordenação que um pelotão de mais de um milhar

de pessoas exigia, ele «ainda encontrou energia para enquadrar a caravana,

pedalando» todo o percurso. E, porventura, um novo sentido para a sua

vida.

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PORTUGAL A PEDALAR

Nunca perder o pé

José Manuel Caetano também foi para sua casa, mas se guardou também

os bons momentos desses dias, não quis apenas repeti-los. Quis mais.

Durante aquele passeio, nas muitas conversas que foi mantendo com outros

entusiastas, viu naquela multidão – integrando muitos amigos indefectíveis

das duas rodas, misturados com pessoas que precisavam apenas de

mais um pequeno empurrão para se tornarem habituais utilizadores – um

capital humano que seria quase um crime desaproveitar.

Contudo, repetir simplesmente, ano após ano, um raide como aquele,

soube-lhe a pouco. Viu ali o embrião para estabelecer sinergias, aumentar

a articulação entre os diversos núcleos informais de cicloturistas, enfim

bastava – e essa palavra é fácil de escrever, mas mais difícil de concretizar

– construir um «trampolim» para fazer mais e melhor, para transportar a

paixão das bicicletas a todo o país. Não apenas uma paixão pontual, mas

um verdadeiro e estável casamento.

Para além disso, aquele raide Sesimbra-Montechoro, realizado no âmbito

do Ano Europeu do Ambiente, e que tinha a si subjacente um propósito

concreto – a criação da Área de Paisagem Protegida do Sudoeste Alentejano

e Costa Vicentina, formalizada em 7 de Julho de 1988 –, poderia dar um

objectivo suplementar. Ou seja, o cicloturismo não serviria apenas para pedalar

como actividade lúdica, para exercitar os cicloturistas, mas também

para defender causas socio-ambientais.

O jornalista Humberto Vasconcelos, com quem José Manuel Caetano estabeleceria

um contacto estreito durante aqueles dias de pedaladas, convenceu-o

nas semanas seguintes, se tal fosse necessário, a aproveitar a energia

humana que se passeara pelas estradas do sul do país. Considerava este jor-

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PORTUGAL A PEDALAR

nalista, como escreveu numa das suas reportagens, que a Federação Portuguesa

de Ciclismo (FPC) deveria abrir os olhos àquele fenómeno, criando

uma estrutura de fomento do cicloturismo no seu seio.

José Manuel Caetano, pouco depois de regressar a casa, não perdeu assim

tempo. De imediato estabeleceu contactos com a FPC e, pouco tempo depois,

teve luz verde para criar a Comissão Instaladora da Comissão Técnica

Nacional de Cicloturismo naquela instituição. Juntando um pequeno grupo

de amigos das bicicletas, apoiado por juristas, entregaria na FPC um

anteprojecto de estatutos dessa Comissão Técnica, através de documento

concluído em 8 de Junho de 1986 e assinado por si e ainda por José António

Marcos Serra, José Manuel Ribeiro e Vasco Gonçalves de Oliveira Santos.

Nessa proposta pretendia-se enquadrar o cicloturismo dentro da FPC por

via de uma estrutura autónoma e independente, quer ao nível dos dirigentes

quer do desenvolvimento de actividades fora do ambiente competitivo.

Em suma, sugeria-se uma Comissão Técnica com independência funcional

e financeira, que viesse a promover «a prática ordenada do cicloturismo em

Portugal», coordenando os eventos de âmbito nacional em articulação com

estruturas distritais, que mantivesse e fomentasse relações de amizade e

colaboração com congéneres internacionais, representando essa actividade

no país e no estrangeiro.

1.º Congresso Nacional de Cicloturismo em Palmela (1992)

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PORTUGAL A PEDALAR

Aristides

Martins

Ex-ciclista de competição e ex-seleccionador nacional de ciclismo

minha vida sempre foram as bicicletas. Participei em cerca de uma

A dezena de Voltas a Portugal e em quase duas centenas de outras

provas de ciclismo em território nacional e no estrangeiro; fui depois

técnico e seleccionador nacional e, mais tarde, tive uma empresa de venda

de bicicletas. Essa paixão pelas duas rodas – pela 8.ª arte, se se atender

ao formato de uma bicicleta deitada – nunca me largou. E sempre

pensei que, mesmo fora do circuito competitivo, a bicicleta deveria estar

sempre presente no quotidiano e, sobretudo, como veículo social e cultural,

ou seja, como forma de as pessoas conhecerem o país e levarem calor

humano a variadas instituições carenciadas.

Em 23 de Março de 1980, eu e alguns carolas fundámos a Comissão Distrital

de Cicloturismo de Lisboa. Organizámos durante alguns anos diversos

convívios de cicloturismo em Portugal e até mesmo o raid Paris-

Lisboa. Sei que outras agremiações, entre as quais clubes desportivos,

como o Sporting e o Benfica, realizavam alguns convívios entre os seus

antigos atletas. Mas, na verdade, todas estas acções eram dinamizadas

por apaixonados pelas bicicletas, mas sem a existência de um órgão dinamizador

e coordenador.

Ainda nos anos 80 procurei, com simplicidade, que o cicloturismo fosse

integrado na Federação Portuguesa de Ciclismo, já que o seu presidente

nessa época manifestara tal desejo. Na verdade, os cicloturistas eram já

então bem mais superiores do que os ciclistas de competição. Porém, tal

nunca se viria a concretizar-se e foi assim, com especial agrado, que vi

surgir em 1987 a Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores

de Bicicleta. O seu fundador e presidente, José Manuel Caetano, soube

ao longo destas décadas dinamizar ideias e tornar hoje o cicloturismo e

o uso da bicicleta um fenómeno social, económico, de lazer e publicitário,

contribuindo para uma melhoria na saúde física e mental de uma

faixa cada vez maior da população portuguesa.

Costumo dizer que, por tudo o que já fez, José Manuel Caetano merece

uma estátua. E eu, nos meus quase 98 anos que já não permitem muitas

deslocações, prometo já sair do meu banco da lisboeta Avenida da Igreja

para ir à sua inauguração.

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PORTUGAL A PEDALAR

Aristides Martins

Aristides Martins no II Passeio Cicloturista de Sesimbra - Núcleo Cicloturista “SE”

Porém, apesar dos primeiros contactos positivos, a FPC, mais vocacionada

para o ciclismo profissional, acabou por nunca dar encaminhamento

à proposta apresentada por José Manuel Caetano. Pouco lhe importou.

Sendo homem que nunca gostou de deixar para o dia seguinte aquilo que

poderia ser feito no dia anterior, aproveitou a troca de ideias na escrita do

documento para a FPC, e sem delongas não ruminou sobre a recusa: decidiu

criar um organismo autónomo.

Embora sem precedente experiência no mundo associativo, José Manuel

Caetano possuía os conhecimentos suficientes para desobstruir os meandros

burocráticos, e assim, em 28 de Setembro de 1987 – ou seja, menos

de seis meses após o raide Sesimbra-Montechoro – constituiria o Centro

Português de Cicloturismo (CPC), através de escritura no 19º Cartório

Notarial de Lisboa. Nascia assim a primeira entidade lusitana que visava

«desenvolver a prática do cicloturismo ecologista, de lazer, manutenção e

turismo, promover e divulgar, através da utilização da bicicleta, a defesa e

preservação do ambiente, natureza e o património natural e construído,

excluindo-se intuitos competitivos ou de lucro económico dos seus associados,

e representar o cicloturismo internacionalmente e em Portugal».

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PORTUGAL A PEDALAR

Além de José Manuel Caetano, os subscritores da constituição desta novel

estrutura foram José António Marcos Serra – que já o auxiliara nos abortados

contactos com a FPC –, Luísa Manuel da Cruz Correia Carriço – a

única mulher que participara no raide Sesimbra-Montechoro –, Joaquim

Manuel Gonçalves Cerqueira e Carlos Joaquim Barroso Lopes. No entanto,

apenas os três primeiros ficaram com o estatuto de associados fundadores.

A José Manuel Caetano foi mesmo atribuído um número simbólico: não o

1, mas sim o 0000 – ou seja, assim mesmo, quatro dígitos, todos zero, como

se simbolicamente significasse a intenção de, começando do zero, suplantar

rapidamente a fasquia do milhar de associados.

Tal como célere foi a constituição deste novo organismo, também José

Manuel Caetano não perdeu tempo em organizar a primeira Assembleia

Geral que, deste modo, daria início às actividades no terreno. Esse evento

fundador realizou-se em 23 de Outubro desse ano, nas instalações das

Obras Sociais do então Ministério das Obras Públicas (OSMOP), tendo

sido presidido por José António Marcos Serra. Além de indivíduos a título

pessoal, e como demonstração de que este novo organismo já então recebia

a aceitação da generalidade dos pequenos núcleos cicloturísticos, estiveram

presentes, neste primeiro encontro, representantes do Grupo Cicloturista

Os Passarinhos, do Grupo Desportivo IFADAP, da União Recreativa e Desportiva

Quinta do Conde, do Núcleo Cicloturista da OSMOP, do Núcleo

Cicloturista de Aljezur, do Núcleo Cicloturista de Sesimbra, do Núcleo Cicloturista

da Fábrica de Chocolates Regina, do Grupo Desportivo da Cabográfica

e da Secção de Alcantarilha da Corporação Voluntária de Salvação

Pública de Silves.

De forma unânime, e natural, a primeira Assembleia Geral do CPC elegeria

José Manuel Caetano para a presidência da direcção – marcando assim

o início do seu «reinado» à frente dos destinos do cicloturismo português

–, sendo a vice-presidência entregue a Álvaro Lopes Santos. Por fim, Vítor

Carlos da Silva Real, como tesoureiro, Luísa Manuel da Cruz Correia Carriço

e Carlos Joaquim Barroso Lopes, como secretários, Pedro de Almeida

Mendonça e Joaquim Lopes Vieira, como vogais, completavam esta primeira

equipa directiva.

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PORTUGAL A PEDALAR

José António

Marcos Serra

Co-fundador da FPCUB

Receber o convite para dar um testemunho para um livro sobre a FP-

CUB e, em consequência natural, sobre o seu Presidente de sempre,

induziu-me sentimentos vários: alegria, saudade, orgulho, vontade de

contar tudo… e frustração, por não poder contar quase nada.

Fui-me ao arquivo pessoal sobre cicloturismo: três pastas enormes, repletas

de documentos oficiais, técnicos e privados. Comecei a folhear e

desisti: não iria conseguir citar um avo do que seria interessante fazer;

teria de remeter-me à recordação simples.

Foi em 1986 que o José Caetano, sabendo da minha paixão antiga pela

bicicleta, e da minha fama de profissional com capacidade de organização,

me propôs fundarmos uma associação cicloturista nacional, que

enquadrasse a utilização da bicicleta na sua forma de lazer. Relutante,

nos primeiros minutos, acabei por aderir à ideia, e adiantar logo algumas

propostas, visando alargar a abrangência dessa organização, por

exemplo, aos utentes da bicicleta, na sua vivência diária. Assentou-se

que seriam três os associados fundadores; que um deles, a Luísa Carriço,

abriria a porta à ala feminina da associação; que eu ficaria encarregado

da elaboração dos textos dos Estatutos e Regulamento Interno,

a apresentar na primeira Assembleia Geral que viesse a ser realizada;

que ele, o José Caetano, homem já sobejamente conhecido no mundo do

cicloturismo, congregaria grupos, associações e praticantes para aderirem

a esta causa nova; começar-se-ia com a designação de Centro Português

de Cicloturismo, e, quando os associados viessem a determinálo,

como aconteceu naturalmente, assumir-se-ia como Federação que,

de facto, era.

Seguiu-se um período exultante de trabalho árduo e sem limite, lutas

denodadas e vitórias em catadupa.

Criação de um logótipo inicial, obra de colega e amigo, Carlos Fonseca.

Desenho de impressos e suportes, usando imaginação, computadores

incipientes e fotocópias. Querela com a FPC que queria manter,

com estatuto de irmão pobre, o cicloturismo sob a sua asa. Discussão

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PORTUGAL A PEDALAR

acesa com alguns grupos nortenhos que não viam com bons olhos que

a organização nacional do cicloturismo se firmasse em Lisboa. O jogo

inteligente de argumentos e tácticas para fazer prevalecer a designação

de BTT, para as bicicletas todo o terreno, contra a obsoleta VTT.

A conquista progressiva de credibilidade pública, e um lugar digno na

imprensa nacional, nas Associações de Defesa do Ambiente e nas Organizações

Internacionais…

Tanto para dizer, mas contando (porque se impõe), a história em três

tempos:

- Em 27 de Julho de 1987, legitimamente orgulhosos, os três associados

fundadores preenchiam as suas Fichas de Inscrição: o José Manuel Caetano,

com o número 0001 (a realidade veio a suplantar enormemente

a ambição dos quatro dígitos); eu com o 0002; a Luísa Carriço com o

terceiro número.

- Na Assembleia Geral de 23 de Outubro de 1987, foram aprovados os

Estatutos e o Regulamento Internos, e nomeados os primeiros órgãos

directivos: a presidência da Direcção, naturalmente sob a orientação

do José Caetano. Firme, mas contemporizador, assumi a presidência da

Assembleia Geral.

As dificuldades exigiram fortaleza e bom senso, ainda durante muitos

anos, mas o resultado está aí; acima de tudo e de todos, graças à dedicação

de uma vida, a do José Manuel Caetano.

Como forma de premiar e homenagear dois dos homens que, durante décadas,

tinham intentado esforços em prol de um cicloturismo organizado,

José Manuel Caetano propôs que nessa Assembleia Geral fosse concedido o

raro estatuto de associado honorário a António Duarte Laureano e Aristides

Martins.

Cerca de duas semanas mais tarde, em 6 de Novembro de 1987, a nova

direcção do CPC reuniria pela primeira vez. Havia muita coisa a tratar.

Depressa e bem.

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PORTUGAL A PEDALAR

Um início a sprintar

Constituir uma associação era fácil. Juntavam-se uns amigos, cheios

de boas intenções e projectos em mente, começava-se por fazer um

pedido de certificado de admissibilidade de denominação no Registo Nacional

de Pessoas Colectivas, sem necessidade de qualquer documentação

e pagando um montante baixo; depois elaboravam-se uns estatutos, que,

além do objecto específico, podiam quase ser uma cópia dos de uma outra

qualquer; marcava-se um notário e, pronto, ficava constituída. Hoje, com

a Associação na Hora, no âmbito do programa Simplex, ainda se torna

mais fácil. Em seguida, convocava-se uma assembleia geral, escolhiam-se os

membros da Assembleia Geral, da Direcção e do Conselho Fiscal. E, enfim,

começava-se a trabalhar.

E é aqui que começam, por regra, os problemas de uma associação. O entusiasmo

geral, as mil e uma ideias durante a gestação, por vezes desvanece-se

quando o «rebento» vê a luz do dia. Os projectos, que na mente pareciam

fáceis de executar, emperram em obstáculos; alguns dos membros da direcção

acabam por estar assoberbados nas suas tarefas profissionais, não

podendo empenhar-se tanto como os outros colegas e os seus consociados

gostariam; os financiamentos nas fases iniciais não são, regra geral, abundantes,

a menos que haja mecenas. E é assim que, enfim, a generalidade das

associações, voluntárias nas intenções e amadoras nas execuções, acaba não

por fazer o que deseja, mas sim o que pode. Em suma, muitas tornam-se

moribundas à nascença.

Quando criou o Centro Português de Cicloturismo (CPC), o desejo de José

Manuel Caetano era fazer muito; fazer bem, mas sobretudo muito. Porém,

sem megalomanias. «Criei algo que se podia meter numa caixa de sapatos»,

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PORTUGAL A PEDALAR

costuma dizer, para mostrar que pretendeu, nesta primeira fase, uma estrutura

leve e ágil, susceptível de funcionar em qualquer lado e sem surpresas

desagradáveis no dia em que tem de se pagar contas.

Em todo o caso, o CPC tinha de funcionar num sítio concreto. E para isso

José Manuel Caetano predispôs-se a ceder parte de um seu escritório, localizado

na Avenida Miguel Bombarda, junto à Fundação Calouste Gulbenkian,

tendo assumido pessoalmente os custos iniciais do telefone, da

água e da electricidade até conseguir alguma sustentabilidade financeira.

Ali se manteve a sede durante cerca de doze anos.

A sede era importante, mas o trabalho mais ainda. O ano de 1988 iniciava-se

e tornou-se logo necessário preparar a reedição do raide Sesimbra-

Algarve, cujo início se agendara para o dia 22 de Maio. Embora em termos

práticos a organização deste evento contasse com a parceria do Núcleo Cicloturista

de Sesimbra – liderado igualmente por José Manuel Caetano –, o

dinamismo despoletado pela criação recente do CPC fez-se sentir de imediato:

a segunda edição do raide contou com quase três mil pessoas, o que

foi fruto de um intenso trabalho de divulgação e de contactos com núcleos

de cicloturistas que, rapidamente, foram aderindo ao novo movimento.

Depois da segunda edição do passeio Sesimbra-Algarve, realizada em 1988,

as prioridades centraram-se especialmente no estabelecimento de parcerias

e na obtenção de apoios para os diversos eventos dos núcleos afiliados.

Houve, contudo, também espaço para iniciativas autónomas, como a Festa

da Bicicleta em Lisboa, no dia 5 de Junho de 1988, que reuniu largas centenas

de utilizadores de bicicleta.

O ano de 1989 seria marcado, mais do que o anterior, por um salto quantitativo

e qualitativo na História do cicloturismo português. Elencar todas as

iniciativas promovidas ou realizadas em parceria pelo CPC seria fastidioso

– embora se deva indicar que foram 77. Em todo o caso, mais uma vez, foi

o raide Sesimbra-Algarve, na sua terceira edição, que se destacou como o

evento de maior sucesso. Tendo tido, pela primeira vez, Tavira como destino

final, o sucesso da terceira edição deste passeio, que decorreu entre 29

de Abril e 1 de Maio, foi estrondoso: quatro mil participantes, contando

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PORTUGAL A PEDALAR

pela primeira vez com cicloturistas estrangeiros. Aliás, a partir deste ano

o raide passou a denominar-se Encontro Internacional de Cicloturismo

Sesimbra-Algarve.

Em 1989, o Raide Sesimbra/Tavira, contou com 4.000 participantes

O crescimento no número de participantes neste evento comprovava também

a excelência da capacidade organizativa trazida com a existência do

CPC, pois aumentara a complexidade logística e, em consequência, os encargos.

Porém, as inscrições foram gratuitas para os sócios. O segredo esteve

em José Manuel Caetano, que soube suportar os encargos com inúmeros

apoios de entidades externas. De facto, a título de exemplo, a terceira edição

do Sesimbra-Algarve teve o apoio da Secretaria de Estado, através do Serviço

Nacional de Parques, Reservas e Conservação da Natureza, da Direcção-Geral

do Desporto, das autarquias de Sesimbra, Seixal, Sines, Odemira,

Aljezur, Vila do Bispo, Lagos e Tavira, da Cruz Vermelha Portuguesa, do

Caparica CB (rádio-amadores), do Governo Civil de Faro, da Região de Turismo

do Algarve e das Forças Armadas, além do patrocínio de 16 empresas

de vários sectores de actividade. A organização teve mesmo a oportunidade

de oferecer um galhardete e um medalhão a cada cicloturista, bem como

troféus e placas artísticas a cada uma das equipas de cicloturistas.

Quem participou neste evento talvez apenas de forma indirecta tenha ficado

com a percepção da capacidade da organização. Profissional, feita por

amadores. Nada foi deixado ao acaso, quer em termos da indicação precisa

53


PORTUGAL A PEDALAR

dos locais de abastecimento e de descanso, quer ao nível de comunicações,

segurança rodoviária, assistência médica e reparação de bicicletas, quer

ainda na criação do salutar ambiente de convívio e de confraternização

durante e no final de cada etapa. O CPC também não esqueceu as suas

origens: a componente ecologista. Os participantes foram instruídos de

que aquele era sobretudo «um passeio turístico e ambientalista», conforme

expressamente constava de um boletim informativo. Estava a atravessar-se

uma zona protegida, mais importante ainda por a sua criação ter ficado

intimamente associada ao nascimento do movimento cicloturístico.

A crescente capacidade de mobilização destes eventos cicloturísticos começou

a despertar, inevitavelmente, cada vez maior interesse dos políticos.

Macário Correia, então Secretário de Estado do Ambiente, com um perfil

diferente de Carlos Pimenta, viu, naquela concentração de cicloturistas,

um óptimo local para exposição. Por isso mesmo, marcaria presença na

última etapa do passeio, e tão entusiasmado ficou que, desejando associarse

àquele movimento, num discurso despediu-se com um «até para o ano».

Para José Manuel Caetano, as palavras nunca foram de circunstância, mas

de compromisso; e se alguém decide, com uma promessa, abrir uma janela,

ele bate de imediato à porta, esperando que seja cumprida. Por isso,

aquela janela haveria de ser usada no futuro em casos similares: pouco depois

deste passeio, enviou uma carta a Macário Correia recordando-lhe as

palavras e pedindo-lhe, desde logo, apoio para a próxima edição. E já com

data marcada: 29 de Abril a 1 de Maio de 1990, pois José Manuel Caetano

sempre decidiu depressa.

O passeio internacional Sesimbra-Algarve passou a funcionar como «elemento»

agregador dos cicloturistas portugueses, que para ali confluíam

ano após ano, servindo também, em especial nas primeiras edições, para

reforçar os laços entre o novo organismo federativo e os diversos núcleos.

Cimentaram-se ali, pelas estradas, relações de amizade e de futuras cooperações.

Ganhou-se um espírito de união. Com tantos milhares de pessoas,

crescendo em cada encontro, todos iam confirmando, entre pedaladas, que

não estavam sozinhos no país do automóvel. E quem lá ia uma primeira

vez, arriscava a ter de ir segunda e terceira. E mais houvesse.

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PORTUGAL A PEDALAR

Ladislau

Ferreira

Artista plástico e actor

Eu já há muito praticava cicloturismo de forma solitária. Até que

um dia os jornais deram grande relevo a um passeio que concentrou

mais de mil pessoas, que foram de Tróia ao Algarve em dois dias.

«Como eu gostaria de ter ido», pensei.

Mais tarde, num passeio dominical pela capital, juntei-me a um grupo

que pedalou até ao Largo do Carmo, onde os esperava uma sardinhada,

oferta da Câmara Municipal de Lisboa. Foi aí que um senhor

da organização, muito amável, me convidou a almoçar com eles e me

deu uma ficha de inscrição da Federação Portuguesa de Cicloturismo

e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB) – era o José Manuel Caetano.

Começou então para mim uma associação, um convívio, uma mais-

-valia na minha vida; tudo graças à luta da bicicleta. Encontrei um

grupo muito heterogéneo, de culturas diferentes, mas unidos pelo prazer

do veículo. Muitas alegrias e alguns pequenos escolhos, de menos

importância. E alguns amigos que desapareceram.

Querem que fale do José Manuel Caetano e da FPCUB? Confundemse.

A FPCUB é o José Manuel Caetano. Tudo seria diferente sem ele

e quem cá ficar verá o que acontece no dia em que o seu «reinado»

acabar. Há assuntos que só ele conhece no meio da confusão de tantos

papéis. Mas não se perde. Vive a luta intensamente, goste-se ou não.

Tem sabido aproveitar bem a corrente favorável de que a bicicleta beneficia

a nível nacional e internacional, chamando a si uma intervenção

e protagonismo político. Enfim, quem não conhece o presidente da

FPCUB?

Contudo, apesar do dinamismo destes e de outros eventos por todo o país,

faltava então «angariar» mais praticantes nas cidades, sobretudo em Lisboa,

onde subsistia – e ainda hoje assim sucede para uma parte da população

– o mito das «sete colinas». Ou seja, que a orografia da capital e as

bicicletas são um «casamento» impossível.

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PORTUGAL A PEDALAR

Foi como primeira demonstração dessa falácia que José Manuel Caetano

promoveu, através do CPC, a primeira Festa da Bicicleta logo no ano de

1988, no âmbito das comemorações do Dia Mundial do Ambiente. Sem

pejo das colinas e subidas em seu redor, algumas centenas de pessoas percorreram

a Avenida da Liberdade até ao Terreiro do Paço em ambiente

festivo. Foi apenas o primeiro ensaio. No ano seguinte, na mesma data,

a dimensão do pelotão seria largamente superior. Com diversos grupos a

partirem do Cabo Espichel, Vila Franca de Xira, Guincho e Campo Grande,

a concentração de mais de três mil cicloturistas encheu o Terreiro do Paço

como nunca antes se registara.

No Dia Mundial do Ambiente de 1988, o Parque Eduardo VII (Lisboa) foi invadido por mais 3.000 participantes

A par dos primeiros esforços em retomar o uso das bicicletas em Lisboa,

José Manuel Caetano desde o início «impôs» que os eventos do CPC tivessem

sempre associada uma Académicas de ambiental, aproveitando para

realizar passeios que servissem também para sensibilizar participantes, e

a sociedade no geral, para a necessidade de preservar zonas sob risco ambiental

ou com valores naturais. Nos primeiros dois anos de actividade, de

entre as iniciativas desenvolvidas destacam-se, além da Festa da Bicicleta

em Lisboa e do tradicional raide Sesimbra-Algarve, a Volta Ambiental a

Portugal – entre 4 e 15 de Agosto de 1989 – e ainda um passeio ao longo

da Reserva Natural do Tejo, em 8 de Novembro desse ano, como protesto

contra o previsto alargamento do Campo de Tiro de Alcochete. Este último

evento contou, ao longo de 70 quilómetros, com cerca de 1.100 utilizadores

de bicicleta.

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PORTUGAL A PEDALAR

José Caetano em primeiro plano no Raide que ligou Viseu a Coimbra em 1989

De igual modo, merece referência o raide que tem ligado Caldas da Rainha

até à cidade espanhola de Badajoz desde os primeiros anos da década de 80.

Inicialmente dinamizado por Mário Lino, um entusiasta do cicloturismo

e responsável pelo Museu do Ciclismo das Caldas, constituía desde a sua

primeira edição, em 1982, um importante evento no cicloturismo ibérico.

Através dele criaram-se fortes laços de amizade e diversos intercâmbios

em muitas outras modalidades desportivas e culturais entre duas regiões.

Durante muitas edições, este evento contou com o apoio da Câmara Municipal

das Caldas da Rainha e o trabalho desenvolvido pelo Sporting Clube

das Caldas, na área do cicloturismo – para além da colaboração, no lado

espanhol, do Cyclo Clube de Badajoz e dos municípios de Badajoz, Coria,

Oliva de La Frontera, Moraleja, Villa Nueva del Fresno, La Albuera, Alburquerque,

Olivença, Zafra e La Codosera –, mas acabou por ganhar ainda

mais projecção com a entrada da FPCUB, como co-organizador. Num percurso

com duração de três dias, por regra o raide Caldas da Rainha-Badajoz

conta com a participação de mais de mil cicloturistas.

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PORTUGAL A PEDALAR

Caravana do Raide Caldas/Badajoz em 1999, um evento inspirado por Mário Lino e apoiado por Aristides

Martins e FPCUB

Embora apartidária, a FPCUB não tem recusado participar em iniciativas

de carácter político, se integradas em eventos de natureza cultural ou desportiva.

Exemplo disso são os passeios cicloturísticos no dia 5 de Outubro

integrados nas comemorações do aniversário da Confederação Geral dos

Trabalhadores Portugueses – Intersindical Nacional (CGTP-IN). Em 2014

realizou-se a 23ª edição. Também todos os anos, a FPCUB apoia e divulga

um passeio no Seixal no âmbito da Festa do Avante. De igual modo, não

são esquecidos os eventos de âmbito religioso, designadamente a Bênção

Nacional dos Ciclistas, que se realiza anualmente, em Fevereiro, na cidade

de Fátima.

Entretanto, em virtude da sua capacidade de dinamização, José Manuel

Caetano ainda teve tempo para se desdobrar em outras actividades em prol

do cicloturismo que extravasavam a simples organização de passeios. Em

finais de 1988, por via da sua amizade com o jornalista Humberto Vasconcelos,

conseguiu que o Diário Popular começasse a dedicar uma página ao

cicloturismo na sua edição de sábado, tendo também iniciado uma colaboração

com a revista Duas Rodas. Nestes dois periódicos, José Manuel

Caetano aproveitaria para, não só divulgar os diversos eventos de ciclotu-

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PORTUGAL A PEDALAR

rismo em Portugal, como, sobretudo, abordar as experiências no estrangeiro,

onde a bicicleta constituía um meio de transporte habitual, mesmo

em cidades de grande dimensão. E, sempre que possível, aí lançava ideias

para melhorar a logística dos eventos e inovar cada vez mais. Por exemplo,

numa dessas colaborações, no início de Janeiro de 1989, insistiu na importância

da componente cultural e social, propondo que se incluísse, nos

eventos, «visitas aos pontos mais históricos e culturais de cada localidade»,

bem como visitas aos hospitais, prisões, albergues e pousadas. «Assim podemos,

de certa forma, com a troca de informações de cada região, levar as

pessoas a um consenso de gostos e práticas, deixando de se acusar entre si

e passando a haver a hipótese de uma melhor escolha nas actividades recreativas

e de lazer de cada um. É altura de inovar! Vamos a isso! Aqui fica

a aposta», defendeu.

Por toda esta multiplicidade de iniciativas – e com o número de associados

colectivos e individuais a não parar de crescer –, o primeiro ano de existência

do CPC evidenciou que não se estava perante uma mera associação

com membros individuais e colectivos, mas sim uma autêntica federação

de cicloturismo. Aliás, José Manuel Caetano teve sempre essa intenção e

demonstrou-a quando, logo em Agosto de 1988, a direcção que presidia

começou a apoiar financeiramente alguns eventos de núcleos cicloturistas.

Isto porque este sempre defendeu que as receitas obtidas pelas quotizações

também deveriam ser investidas junto dos diversos núcleos. Em suma, o

CPC não vivia dos filiados; vivia para os filiados.

Além disso, José Manuel Caetano conseguiu, para os associados, aquilo que

já obtivera para o Núcleo Cicloturista de Sesimbra: um seguro de acidentes

pessoais e de responsabilidade civil, através da seguradora GAN – algo

que se tornaria praticamente impossível ou muito oneroso, se feito individualmente

por cada utilizador de bicicleta. E praticamente sem pesar nos

bolsos dos associados, porque as verbas pagas à seguradora provinham das

quotas.

Em paralelo, também não foi descurada a comunicação junto do público

em geral que, afinal, constituía o «alvo», para que a utilização da bicicleta,

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PORTUGAL A PEDALAR

quer para turismo e lazer, quer para um uso mais quotidiano, se generalizasse.

Assim, desde cedo, além da mobilização da comunicação social para

os eventos, José Manuel Caetano e os diversos dirigentes do CPC intensificaram

a sua presença em programas televisivos, «seduzindo» em paralelo

muitos jornalistas para abordagens noticiosas e reportagens sobre as

temáticas à volta das bicicletas. Para uma apresentação mais formal, mas

em contacto informal com os interessados, o CPC começou também a participar

em exposições organizadas em centros de congressos como a FIL.

Secção de Cicloturismo do Sport Lisboa e Benfica no final da ligação Caldas Rainha/Lisboa 1988

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PORTUGAL A PEDALAR

Foi assim com naturalidade, perante este contínuo crescimento, que, em 19

de Novembro de 1998, a CPC decidiu chamar as «coisas» pelo seu nome:

sendo já mais do que uma mera associação aglutinadora de pequenos núcleos

praticantes de cicloturismo, em Assembleia Geral foi aprovada uma

alteração da denominação. O CPC passou a designar-se Centro Português

de Cicloturismo – Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de

Bicicleta. A opção por esta dupla denominação não seria definitiva, nem

nunca esteve na mente dos associados. Antes sim pretendeu-se encontrar

uma forma transitória de habituação àquilo que já existia: um autêntico

organismo federativo. E assim, ultrapassadas algumas burocracias legais ao

longo de 1989, em 16 de Fevereiro do ano seguinte acabaria por ser aprovada,

também em Assembleia Geral, a denominação actual. Formalmente

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PORTUGAL A PEDALAR

nasceu, nesse dia, a Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores

de Bicicleta (FPCUB), herdando toda a organização e os pecúlios de um

investimento de dois anos e meio de esforço e dedicação.

Artigos primeiro e segundo da escritura de constituição do CPC, 29/09/1987

Sinal disso, evidenciava-se no crescimento imparável de filiados: se, aquando

da constituição em 1987, o CPC agregava 300 associados individuais e

30 colectivos, em finais de 1990 já a FPCUB ultrapassava os 2.800 filiados

individuais e as duas centenas de colectivos. Muitas colectividades com importância

histórica no desporto, em geral, e no ciclismo, em particular, acabaram

mesmo por aderir à FPCUB, como se mostra com o exemplo do Sport

Lisboa e Benfica, que inscreveu a sua secção de cicloturismo no ano de 1988.

Em suma, tinham passado apenas pouco mais de dois anos desde que José

Manuel Caetano começara a liderar um movimento cicloturístico, mas foi

tempo suficiente para juntar núcleos informais e disseminados numa estrutura

federativa, para criar e organizar uma multiplicidade de eventos e

cativar um crescente número de cicloturistas pontuais ou regulares. E, sem

«dores de parto», a «infância» da FPCUB passou-se sempre a sprintar, sempre

a subir, como se as encostas fossem sempre descidas.

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PORTUGAL A PEDALAR

Da estrada às montanhas

Mais do que uma mudança na denominação, a Federação Portuguesa

de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB) – oficializando-se

como verdadeira estrutura aglutinadora por excelência dos interesses

e ambições dos diversos núcleos espalhados pelo país – acabou por incorporar,

de forma mais explícita, outros objectivos para além dos previstos

em 1987 na fundação do Centro Português de Cicloturismo.

Sendo certo que se mantinha como objecto fundamental o desenvolvimento

da prática do cicloturismo ecologista de lazer, manutenção e turismo, a

FPCUB também desejava abranger os utilizadores regulares de bicicleta.

Ou seja, a bicicleta não podia continuar a ser apenas um veículo de passeios

de fim-de-semana ou de férias, mas também um meio de transporte

quotidiano. Desse modo, poderia começar-se a reivindicar medidas para

que a bicicleta deixasse de ser uma avis rara nas estradas urbanas. E, sendo

Portugal um país de pequena dimensão, fazia todo o sentido que a FPCUB

agregasse ambas as actividades.

Para além disso, foi também introduzida nos seus novos estatutos uma

nova «modalidade»: o BTT. Também conhecidas inicialmente por «montanhesas»,

em meados dos anos 80 as bicicletas todo-o-terreno (BTT) eram

ainda velocípedes raros, praticamente inexistentes em Portugal. No estrangeiro

também ainda não abundavam, mesmo sabendo-se que as primeiras

adaptações de bicicletas normais para pisos agrestes remontavam aos anos

50 do século XX, sendo o norte-americano James Finley Scott considerado

o pioneiro. De facto, somente a partir da década de 70 as BTT se popularizariam

nos Estados Unidos, através sobretudo dos modelos criados por

Gary Fisher e Tom Ritchey, e mais tardiamente na Europa. Por estarem

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PORTUGAL A PEDALAR

equipadas com pneus mais largos e cardados, sistemas de amortecimento,

quadros reforçados e guiadores e aros especiais, as BTT rapidamente ganharam

adeptos que desejavam uma actividade mais dinâmica e próxima

da Natureza. Ou seja, as bicicletas galgaram as estradas, ganharam assim

mais espaço, proporcionando descobertas que antes somente, e de forma

lenta, se mostravam possíveis em caminhadas.

Contudo, em finais dos anos 80, apesar de uma parte significativa dos cicloturistas

portugueses já terem ouvido falar ou lido sobre as chamadas

«montanhesas», não havia nenhuma empresa nacional que as comercializasse

directamente. A única opção passava pela importação, mas a preços

bastante elevados. Por isso, foi preciso que alguns apaixonados – e também

endinheirados, porque essas bicicletas eram, por via da novidade e da necessidade

de as importar, bastante caras – começassem a usá-las em território

português para os fabricantes nacionais e os revendedores começarem a

olhar para a BTT – como hoje sucede – com outros olhos.

Horacio Silva

Horacio Silva coordena, um dos primeiros eventos com BTT em Portugal promovido pela FPCUB em 1989

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PORTUGAL A PEDALAR

Carlos

Manuel Pereira

Empresário da restauração e vice-presidente da FPCUB

Devo ter sido das primeiras pessoas a comprar uma bicicleta de

montanha. Era uma novidade em Portugal no início dos anos 90.

Há meia vida que não andava de bicicleta, mas o desejo de fugir do barulho,

de me exercitar e de estar em contacto com a Natureza levou-me

a regressar. Eu praticava então, nessa altura, windsurf, e foi para cuidar

da resistência física que tinha decidido voltar a pedalar. Comecei esses

exercícios, esses passeios, sozinho, pela região da Costa da Caparica.

Depois fui espicaçando o meu grupo de companheiros de windsurf para

me seguirem. Eu era o mais velho e tinha algum poder de persuasão.

Fomos fazendo os nossos passeios sobretudo pela Margem Sul, até que,

no início de 1991, o proprietário do stand onde comprara a bicicleta me

disse que se ia realizar um passeio de BTT entre Mértola e Foz do Alvor,

no Algarve, organizado pela Federação Portuguesa de Cicloturismo e

Utilizadores de Bicicleta (FPCUB). Decidimos ir. Éramos talvez mais

de dezena e meia.

Este passeio fez despertar em mim, de forma decisiva, o bichinho pela

bicicleta. Percorremos o barrocal algarvio, num esforço titânico, mas

também com inesquecíveis repastos. Acho que andámos 260 quilómetros

durante alguns dias, mas ganhámos peso. E foi aí que também

conheci, pela primeira vez, o José Manuel Caetano, que estava, como

eu, sempre à frente da comitiva. Durante essas pedaladas e no convívio

diário criou-se entre nós, desde logo, uma grande empatia. E regressei

a casa com um desafio lançado por ele: ajudar a FPCUB a dinamizar

a secção de BTT. Disse-lhe que, na medida das minhas ocupações profissionais,

tentaria fazer o que fosse possível. E até hoje. Em 1992 fui

convidado para a direcção da FPCUB e a partir de 1996 passei a ocupar

a vice-presidência.

Durante todos estes anos, vi no José Manuel Caetano um homem que

soube tornar realidade um sonho: pegar em ideias e concretizá-las, fazendo

as pessoas contactarem com a Natureza, exercitando-se, através

das bicicletas. A sua capacidade de organização e de dinamização são

ímpares. Mas, mais do que isso, ganhei um amigo para a vida, que há

muito não se limita às pedaladas. Não só por ele ser um amante, como eu,

de viagens e de uma cidade que ambos adoramos – Nova Iorque –, mas

também por ser exímio cozinheiro nos repastos que já partilhámos.

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PORTUGAL A PEDALAR

Um dos primeiros portugueses a possuir uma «montanhesa» foi José Manuel

Caetano. Não foi, porém, aquisição fácil nem rápida. Nos finais dos

anos 80, as importações a partir do mercado norte-americano, mesmo de

bicicletas, estavam envolvidas num complexo e muito oneroso processo

burocrático e fiscal. As taxas alfandegárias facilmente ultrapassavam o valor

do produto. Por isso, José Manuel Caetano encontrou um expediente

que, apesar de não ser ilegal, era pouco ortodoxo. E se assim evitou que

fosse oneroso, foi porém moroso. Aproveitando as suas frequentes deslocações

aos Estados Unidos por motivos profissionais ou em viagens de lazer

a Nova Iorque – a sua cidade preferida – foi trazendo uma BTT às peças:

agora uma roda, depois o quadro, mais tarde a pedaleira, a seguir os travões

e as restantes peças, montando-a finalmente em terras portuguesas quando

concluiu a «colecção». Demorou vários meses até conseguir todas as peças

do «puzzle».

Em Outubro de 1988, num artigo da sua autoria na revista Duas Rodas,

intitulado «Ei-la que surge, a montanhesa», já José Manuel Caetano auspiciava

bons andamentos para esta novidade, destacando que, no ano anterior,

em França já se tinham vendido três vezes mais BTT do que bicicletas

convencionais. E previa que, no nosso país, estaria para breve uma forte

adesão, sobretudo nas camadas mais jovens. «Poderá haver algo mais saboroso

para um grupo de jovens do que agarrar na ‘montanhesa’, na mochila

e no saco-cama e partir para o Gerês ou a Estrela?», questionava, sabendo

de antemão a resposta.

José Manuel Caetano começou então a usar a sua «montanhesa» em alguns

dos seus passeios. Foi encontrando outros companheiros de pedaladas –

muito poucos – que também já possuíam essas «preciosidades». E a experiência

de usar este tipo de bicicletas mostrou-se tão aliciante que daí partiu

a ideia de, no seio da FPCUB, promover a sua divulgação; por isso ficou

explícita no novo objecto social.

Contudo, devido à especificidade das BTT, tornava-se necessário encontrar

uma forma distinta de as promover. Foi no meio de conversas, de pedaladas

pelo interior de Monsanto, de projectos e desejos, que a direcção

66


PORTUGAL A PEDALAR

da FPCUB decidiu, numa reunião em 16 de Novembro de 1990, criar a

Comissão Nacional para Bicicletas Todo o Terreno, depois de José Manuel

Caetano ter lançado um desafio a Horácio Lopes da Silva, também um

recente «apaixonado» pelas «montanhesas», para coordenar a dinamização

de eventos envolvendo estes novos velocípedes.

Sabendo-se, desde logo, que as «montanhesas» reuniam todos os ingredientes

para se tornarem bastante populares, a FPCUB debateu inicialmente

como haveria. A bicicleta de todo-terreno veio permitir transpor a maioria

dos obstáculos e um maior contacto com a natureza de abordar esta nova

actividade, cujos passeios teriam características algo distintas dos habituais

passeios organizados para cicloturistas de estrada. Ainda se ponderou,

dado ser uma «modalidade virgem» em Portugal, dinamizar quer a prática

de lazer, quer a componente competitiva, mas acabou por se optar por

excluir a parte da competição por sair dos limites previstos nos estatutos.

Se esta questão se mostrou pacífica, houve também que ponderar até que

ponto uma actividade de ar livre, usando bicicletas, poderia conflituar com

a faceta de protecção ambiental, que fora uma das matrizes fundadoras da

FPCUB. De facto, uma coisa era percorrer estradas asfaltadas ou pavimentadas,

mesmo com muitas centenas ou alguns milhares de bicicletas; outra

bem diferente seria percorrer trilhos ou caminhos pedonais em zonas

sensíveis do ponto de vista ecológico, pela sua riqueza quer botânica, quer

animal. Além disso, a logística de um evento com BTT mostrava-se mais

complexa, uma vez que os percursos se faziam necessariamente em zonas

mais recônditas e de difícil ou impossível acessibilidade às comitivas de

apoio automobilizado.

A decisão que saiu destes debates no seio da direcção da FPCUB foi a de

criar assim uma espécie de regulamento para estabelecer algumas regras

nos eventos de BTT. Desse modo, ficou determinado, não apenas que a organização

de passeios deste género deveria sempre pré-estabelecer um trajecto,

como também que deveria «exigir» aos participantes o escrupuloso

cumprimento de especiais regras de segurança e de ambiente. Entre essas

normas estavam a recomendação do uso de capacete, a proibição de saída

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PORTUGAL A PEDALAR

dos trilhos naturais ou já criados e a recolha dos resíduos produzidos, bem

como a adopção de normas de minimização dos impactes negativos em zonas

de sensibilidade ecológica. Além disso, em todos esses eventos deveriam

ser solicitadas autorizações às autarquias e também às autoridades ambientais,

se fosse caso para isso. Para minimizar a pressão ambiental, o número

de inscrições deveria ser reduzido, mas aproveitando-se sempre a oportunidade

para introduzir nesses passeios uma componente informativa. Por

isso, em determinados locais de paragem, procurava-se sempre que estivesse

presente um especialista na área da ecologia ou do património, para elucidar

os participantes sobre aspectos curiosos ou relevantes dessa área.

Os primeiros eventos informais de BTT, sob os auspícios da FPCUB, através

de Horácio Lopes da Silva, realizaram-se na Serra da Malveira e no

Parque Florestal de Monsanto, em Lisboa, tendo depois rapidamente saltado

para a Margem Sul, sobretudo para as zonas de Sesimbra e da Serra da

Arrábida. O primeiro evento com alguma dimensão mediática realizou-se

em 14 de Outubro de 1990, integrado no IV Encontro Nacional de Cicloturismo,

participando já cerca de duas centenas de utilizadores de BTT, que

percorreram o sopé da Arrábida.

Para ajudar o mediatismo do evento, o então Secretário de Estado Macário

Correia decidiu participar, embora também ele tenha comprovado que as

BTT não eram para todos, que para se andar nelas e nos locais mais acidentados

se exigia uma melhor forma física. De facto, na edição do dia seguinte

do Correio da Manhã, numa reportagem sobre este passeio, o jornalista

ironizava a desistência do governante junto à Aldeia do Meco, escrevendo

jocosamente que deveria ter sido «efeito do sedentarismo, e, se calhar, dos

ambientes poluídos que é obrigado a frequentar (discotecas, reuniões de

ministros, etc.)».

Entretanto, outros núcleos de cicloturistas espalhados pelo país, sobretudo

na região Norte, foram também organizando alguns pequenos passeios de

BTT. E nunca mais se parou de crescer, à medida que aumentou o número

de aficcionados, também por via de um incremento das entradas destas

bicicletas em território nacional.

68


PORTUGAL A PEDALAR

O primeiro grande passeio de BTT afastado das grandes urbes, e promovido

pela FPCUB, realizou-se em Abril de 1991, entre Mértola e a Foz do Alvor.

Com a participação de um pequeno grupo de três dezenas de pessoas,

cruzou-se o Baixo Alentejo e o barrocal algarvio, durante quatro dias, até

terminar naquela povoação do concelho de Portimão. Mais do que a experiência

de pedalar por paisagens maravilhosas, longe do ruído automóvel,

numa constante mas agradável disputa contra a orografia e o acidentado

do trajecto, o convívio entre estes participantes e as populações locais, por

vezes habitando montes isolados, mostrou também que nas BTT se cimentavam

verdadeiras amizades. Não apenas por ser feito em grupos mais pequenos,

que propiciam um contacto mais estreito dos participantes, mas

também porque, devido ao maior esforço despendido, aumenta a predisposição

para a entreajuda e o apoio.

E foi neste passeio pelo Alentejo e Algarve profundos que nasceu uma forte

amizade entre José Manuel Caetano e Carlos Manuel Pereira, então um

empresário na área da moda, que extravasaria mesmo o mundo das bicicletas.

Embora nunca antes tivesse contactado nem participado em eventos

da FPCUB, Carlos Pereira fora informado da realização desse evento numa

visita a um stand de bicicletas e, como era já um utilizador habitual de BTT

em diversas zonas da Margem Sul, decidiu agrupar os seus companheiros

e partir para essa aventura. Rapidamente haveria de ficar imbuído no espírito

da federação presidida por José Manuel Caetano, e pouco depois, no

início de Janeiro de 1992, aceitou integrar a direcção da FPCUB.

A partir desse momento, a BTT viria a ganhar uma grande projecção, sob a

batuta de José Manuel Caetano e Carlos Pereira, até porque entretanto, por

afazeres profissionais, Horácio Lopes da Silva deixou de estar tão presente

na preparação de eventos. Em 11 de Abril de 1992, durante dois dias, viria

a realizar-se o primeiro raide BTT na região das termas de Monfortinho.

E a edição do tradicional raide cicloturístico Sesimbra-Algarve desse ano

incluiria também, pela primeira vez, um percurso alternativo para as BTT.

Ao longo dos anos seguintes, com o aumento de aderentes, acompanhando

a aposta dos fabricantes nacionais neste tipo de velocípedes, as BTT foram

69


PORTUGAL A PEDALAR

consolidando a sua presença em eventos da FPCUB, de entre os quais se

destacou o raide Setúbal-Odemira-Algarve. Organizado pela FPCUB e sob

coordenação de Pedro Roque de Oliveira entre 2006 e 2010, sempre em

finais de Abril e durante dois dias, este raide teve percursos distintos em

função do destino final em terras algarvias, após a primeira etapa finalizar

em Odemira, embora alcançando mais de 250 quilómetros. Na primeira

edição, o destino final foi Albufeira, tendo-se escolhido nos anos seguintes

Querença (2007 e 2008), Vilamoura (2009) e Vila do Bispo (2010). Por

compreensíveis razões de logística e de preservação ambiental, o raide nunca

teve um percurso marcado ou sinalizado no terreno nem tão-pouco um

canal de tráfego exclusivo, tendo-se optado por estradas, caminhos rurais

e trilhos abertos ao movimento de outros veículos, recorrendo-se também

ao auxílio da tecnologia GPS através de um track disponibilizado pela FP-

CUB. Estando arredadas deste raide quaisquer motivações competitivas, e

sabendo-se das dificuldades físicas elevadas, os participantes agrupavam-se

de modo informal, com dois ou três elementos, impondo o ritmo desejado

e adequado.

Pedro Roque de Oliveira e Jel (dos Homens da Luta) com José Caetano, em Janeiro de 2013, durante a manifestação

em Lisboa, organizada pela FPCUB, em prol da maior proteção aos peões e ciclistas

70


PORTUGAL A PEDALAR

Pedro

Roque de Oliveira

Deputado à Assembleia da República pelo PSD, ex-Secretário de Estado do Emprego

e Presidente dos Trabalhadores Sociais Democratas e membro dos órgãos associativos da FPCUB

Conheci o José Manuel Caetano no ano de 2000, num debate promovido

na Assembleia da República pelos «Verdes» a propósito da

proposta de criação de uma «Rede Nacional de Ciclovias».

Estava longe de pensar, por um lado, que iria dois anos mais tarde tornar-me

deputado daquela casa e, por outro lado, que trilharia um caminho

em conjunto com o José Manuel Caetano na FPCUB em prol da

promoção do ambiente e da mobilidade ciclável em Portugal.

Convenhamos: José Manuel Caetano é uma pessoa sui generis e é necessário

conhecê-lo bem para se entender todas as subtilezas do seu carácter,

para além do seu apurado e cáustico sentido de humor.

É que, por debaixo de uma aparência algo anarquista e até desorganizada,

esconde-se alguém bastante eficaz na acção, que tem as ideias bem

definidas e que tem feito um trabalho ímpar em Portugal na defesa do

ambiente e da mobilidade suave.

É claro que José Manuel Caetano não é o único. Sobretudo nos dias que

correm, cada vez mais gente segue os seus passos. Mas, acima de tudo,

foi importante que tenha tido razão antes do tempo e, tal factor, em

conjunto com uma teimosia proverbial, foram responsáveis pela alteração

do paradigma da bicicleta em Portugal.

O «lobbying» permanente em prol da causa velocipédica e do ambiente

foram grandemente responsáveis pela tomada de consciência social em

torno da mobilidade ciclável.

Mas certamente que quer o ambiente, quer a bicicleta em Portugal muito

lhe devem, a si e à Federação que criou e que ainda hoje dirige.

Muito esperamos ainda de José Manuel Caetano, até porque muito ainda

falta fazer em Portugal em nome da causa velocipédica.

71


PORTUGAL A PEDALAR

Evento de BTT entre Sintra e Malveira da Serra 1988

Notícia do Correio da Manhã, com destaque de primeira página, em que se apelidavam as BTT de montanhesas

1989

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PORTUGAL A PEDALAR

1.º Encontro de BTT, na Aroeira, organizado pela FPCUB e pela Câmara Municipal do Seixal 1989

Travessia da Ribeira no Cachopo, em Tavira (1990). A bicicleta todo-o-terreno veio permitir transpor a maioria

dos obstáculos e um maior contacto com a Natureza

Além destes eventos no Continente, também merecem destaque os passeios

de BTT no arquipélago dos Açores, que durante 14 anos percorreram, de

forma alternada, as ilhas da Terceira, São Miguel, Pico, São Jorge e Faial. Infelizmente,

desde 2012, estes raides cessaram devido às dificuldades e cus-

73


PORTUGAL A PEDALAR

tos acrescidos no transporte de bicicletas, quer nas viagens de avião quer

nos percursos de barco entre as ilhas açorianas. No arquipélago da Madeira

também se têm realizado alguns eventos pontuais, sobretudo dinamizados

pela delegação local, representada pelo Ludens Clube de Machico.

Apesar destas dificuldades em «impor» a bicicleta nos arquipélagos portugueses,

a FPCUB não se tem cansado de tentar demonstrar junto das autoridades

e dos operadores turísticos as enormes potencialidades do uso das

bicicletas nas diversas ilhas, aproveitando exactamente aquilo que, na aparência,

se pode mostrar um óbice: a forte inclinação. De facto, por exemplo,

em Maui, uma das principais ilhas do Havai, cuja altitude máxima atinge

os três quilómetros, existem diversas empresas de aluguer e organização

de raides com bicicletas. Os turistas, mesmo aqueles com pouca prática ou

sem grandes condições físicas, são transportados em veículos automóveis

até às zonas mais elevadas, descendo depois as estradas ou outros caminhos

em bicicleta, conseguindo-se assim uma forma mais agradável e independente

de contacto com a Natureza.

Mas mesmo no quotidiano, sobretudo em meio urbano, as BTT têm vindo

a ganhar a preferência de muitos utilizadores, por serem veículos mais estáveis

e resistentes em comparação com as tradicionais bicicletas de estrada.

As lojas de comercialização aproveitaram o crescente interesse nesta gama,

e apresentam agora uma enorme variedade, para todos os bolsos e desejos,

o que tornou as BTT bastante populares. A sua versatilidade permitiu mesmo

que, em diversas variantes, as BTT se tornassem veículos para a prática

desportiva de competição em Portugal, tal como em muitos outros países,

transcendendo a sua função de veículo utilitário e turístico. Mas, independentemente

disto, não subsistem dúvidas de que se deve à FPCUB o papel

pioneiro na sua divulgação em território nacional. E se hoje já são muitas,

por certo amanhã serão ainda mais.

74


PORTUGAL A PEDALAR

Um equilíbrio dinâmico

Nós devíamos servir de exemplo para outras federações, pois temos

bastante dinheiro sem que o Estado nos dê algum». Em Junho de

1996, num artigo publicado no jornal Record em vésperas do X Encontro

Internacional de Cicloturismo Sesimbra-Algarve, José Manuel Caetano

mostrava o seu orgulho pela situação financeira da Federação Portuguesa

de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB).

Porém, o objectivo da FPCUB nunca foi amealhar dinheiro. Ou melhor

dizendo, amealhar dinheiro serviu para desenvolver de forma sustentável

as actividades em prol do cicloturismo e da utilização da bicicleta. Ao contrário

da esmagadora maioria das organizações desportivas ou de outras

associações, o «segredo» da FPCUB foi simples: nunca dar pedaladas maiores

do que as que as pernas aguentam. Habituado a gerir a sua própria actividade

empresarial com felina ponderação, José Manuel Caetano montou

uma estrutura na FPCUB que, estando em muito baseada no voluntariado,

só na aparência se mostra voluntária. A começar por ele.

De facto, se na meia-idade, tal como se diz, se pondera sobre o que se fez e

o que se quer fazer, no caso específico de José Manuel Caetano, o cicloturismo

e o sucesso da FPCUB como estrutura e como verdadeiro movimento

social provocaram em si uma reflexão sobre a sua vida. Se a sua actividade

profissional, desde a adolescência, o fizera pessoa sem grandes preocupações

financeiras, com uma família e a habitar um local de que gostava, o

cicloturismo e as bicicletas levaram-no a concluir que, afinal, lhe faltava

viver. Sentia-se a viver para si; e as bicicletas convenceram-no a viver também

para os outros. Conhecer novas pessoas, dinamizá-las, incentivá-las,

perspectivando «revoluções» nas mentalidades – esse passou a ser o seu

desafio de vida. Estabilizado financeiramente, foi abandonando aos poucos

a sua actividade profissional e passou em pouco anos a dedicar-se de

corpo e alma em prol do uso das bicicletas. A viver pelo e para o mundo

das bicicletas mas nunca do cicloturismo, porque jamais recebeu qualquer

rendimento por ser presidente da direcção.

75


PORTUGAL A PEDALAR

José

Morais

Jornalista e director da revista «Notícias do Pedal»

Já lá vão muitos anos, não sei quantos ao certo, mas mais de 23. Num

certo dia, fui até à Avenida Miguel Bombarda, em Lisboa, onde então

estava instalada a sede da Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores

de Bicicleta FPCUB), para me tornar seu associado.

O José Manuel Caetano recebeu-me e deu-me logo uma panorâmica

dos seus objectivos, da instituição de que já era presidente e das muitas

actividades que realizavam. Se eu já gostava da bicicleta, aquele momento

foi importante para mim, já que comecei a gostar ainda mais, ao

mesmo tempo que comecei a vê-la com outros olhos.

Em 1993, fui convidado a colaborar com uma revista sobre bicicletas, por

recomendação do José Manuel Caetano. Começámos a trabalhar sempre

em conjunto e a FPCUB começou a fazer parte quase do meu dia-a-dia.

Ao longo de duas décadas, assisti a um desenvolvimento sem dúvida galopante

da instituição, que foi ganhando cada vez mais associados, começou

a ter uma posição na nossa sociedade, sendo ouvida para os mais diversos

temas, sempre com um objectivo: a defesa da bicicleta.

Mas nem sempre as instituições são reconhecidas, sem um grande trabalho

de bastidores, e aqui entra o incansável trabalho de José Manuel

Caetano, que eu considero um «mito» da bicicleta, pelo seu papel na

defesa e promoção da bicicleta. Com os anos a passar, e estando cada vez

mais por dentro da FPCUB, José Manuel Caetano convidou-me então

a ser suplente na sua lista para as eleições. Foi há uns 16 anos. Pouco

depois, convidou-me a ocupar o cargo de tesoureiro, e desde logo houve

uma sintonia enorme. Ano após ano, cada vez admiro mais o seu trabalho,

a sua gestão exemplar, o seu empenho nos desafios que tem pela

frente diariamente, as lutas que tem travado ao longo dos tempos, as

vitórias que tem vindo a conseguir.

A FPCUB não é hoje apenas o cicloturismo, como muitos pensam; hoje,

ocupa-se de um vasto leque de actividades, de projectos implantados ou

em curso. Apesar de não receber subsídios, graças a José Manuel Caetano

está financeiramente estável. José Manuel Caetano é, sem dúvida,

76


PORTUGAL A PEDALAR

um homem persistente, firme no seu trabalho, conhecedor das coisas,

com um leque de amigos e conhecidos muito extenso. Já várias vezes lhe

disse que daria um bom gestor para as finanças do nosso país. Apesar

disso, nem sempre de perfeição o homem foi criado, e não poderei deixar

em branco um seu defeito: nunca vi pessoa tão mal organizada, com

papéis em cima de papéis, notas em cima de notas, uma desarrumação

total; mas isso é com a sua memória, o seu computador chamado

cérebro, que supera tudo isso, e assim sendo, sempre no momento certo,

consegue dar conta do assunto.

Muito e muito haveria para falar, histórias para contar, que sem dúvida

dariam um grande livro, e é isso que irá dar. Tenho apenas esperança

de que este depoimento contribua para contar a história de

um homem cheio de uma vida vivida, um homem do mundo, como

se intitula, que para mim será sempre um «mito» da bicicleta, alguém

que lhe deu vida.

Com uma disponibilidade e dedicação completas para se ocupar dos assuntos

da FPCUB – que também necessitam de uma especial atenção em

termos de relações públicas –, José Manuel Caetano pôde assim ir acompanhando

a par e passo todas as iniciativas, projectos e eventos, convidando

e desafiando outros a darem um pouco do seu tempo, estabelecendo

parcerias, obtendo apoios e ajudas. Foi este trabalho de formiga que, ao

longo dos primeiros anos, conseguiu que a FPCUB fosse atraindo cada vez

mais pessoas e colectividades, que se associavam não apenas porque, desse

modo, poderiam participar em eventos de maior dimensão – pois uma

coisa é pedalar com meia dúzia de amigos; outra é engrossar um convívio

com centenas ou milhares de pessoas – mas também para usufruírem dos

benefícios de associado.

De facto, além do seguro de acidentes pessoais e responsabilidade civil,

a FPCUB foi firmando um crescente número de parcerias com diversas

entidades e empresas que concedem condições e preços especiais para os

associados. Actualmente, a FPCUB possui protocolos de parceria com 56

empresas, desde lojas de bicicletas e seus acessórios, até hotéis, restaurantes,

bares e parques de campismo, passando por estabelecimentos de saúde,

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PORTUGAL A PEDALAR

rent-a-car, livrarias e papelarias, ópticas e diversas lojas de uma gama muito

distinta de produtos.

Com toda esta gama de benefícios, a FPCUB aumentou paulatinamente o

número de associados. Razão tinha José Manuel Caetano para, aquando

da fundação do Centro Português de Cicloturismo em 1987, ter iniciado a

numeração dos associados com quatro dígitos. Na verdade, até foi modesto

na ambição, porque teria sido mais prudente adoptar logo cinco dígitos:

actualmente, congrega cerca de 1.100 colectividades e mais de 33 mil associados

individuais.

Através de uma gestão criteriosa dos montantes das quotas, conseguiu-se

assim ir custeando a organização de iniciativas próprias e, em simultâneo,

conceder apoio financeiro a diversos eventos de núcleos cicloturísticos

seus filiados. No entanto, nunca de forma arbitrária nem sem justificação

plausível. Todos os apoios atribuídos foram analisados pela direcção da

FPCUB, que sempre se mostrou parcimoniosa. Na verdade, esses apoios

financeiros nunca atingiram montantes elevados, porque a «política» de

José Manuel Caetano sempre foi simples e cristalina: parte do orçamento

de um determinado evento tinha de ser suportada pela imaginação e trabalho.

Ou seja, não só por trabalho voluntário, mas também através de apoios

externos, senão em dinheiro vivo, então em apoios e ofertas logísticas. De

qualquer modo, as ajudas financeiras da FPCUB aos núcleos foram vitais,

nem que fosse para sentirem que a sua federação servia para os unir, para

os incentivar, para os pôr a pedalar juntos por um objectivo comum: a

paixão pelas bicicletas.

A democraticidade da FPCUB também foi, desde o início, um factor de

união, mas estabelecida de forma equilibrada. Para evitar que o sistema de

votação nas Assembleias Gerais desvirtuasse o funcionamento regular de

uma federação que possuía também associados individuais, ficou definido

que os associados colectivos tinham o mesmo peso de uma pessoa singular.

Significa isto que as colectividades com muitos cicloturistas não poderiam

impor a sua vontade nas Assembleias Gerais contra a opinião dos associados

individuais.

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PORTUGAL A PEDALAR

Gilberto

Jordan

CEO do André Jordan Group

Conheço o José Manuel Caetano desde 2000 e foi por ele que tive conhecimento

da Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores

de Bicicleta (FPCUB) e do magnífico trabalho desta Associação nas questões

de Mobilidade em Portugal através do incentivo à utilização de meios

de transporte de baixo carbono, como a bicicleta. O papel activo do José

Manuel Caetano tem sido fundamental na dinamização da utilização da

bicicleta nas cidades, permitindo tornar as nossas cidades mais humanizadas,

mais saudáveis e menos perigosas para todos.

O seu genuíno interesse por questões de sustentabilidade vai para além

da mobilidade, e é comprovado pelo seu papel como presidente da Confederação

Portuguesa das Associações de Defesa do Ambiente (CPADA),

sendo que a sua personalidade activa torna também esta Associação

bastante dinâmica no panorama nacional.

A facilidade de relacionamento e comunicação, assim como o profundo

grau de conhecimento do José Manuel Caetano da realidade e dos diversos

agentes envolvidos nas questões da mobilidade, tornou o mesmo

num importante apoio para atingir as metas de mobilidade do Grupo

André Jordan. O nível de sustentabilidade do Grupo André Jordan contou,

nestes últimos anos, com a colaboração, acções e as actividades da

FPCUB e da CPADA.

A sua tenacidade, forma de trabalhar e a sua maneira de ser têm feito

do José Manuel Caetano um amigo e um excelente parceiro na definição

dos objectivos de sustentabilidade das nossas empresas.

Em todo o caso, as Assembleias Gerais da FPCUB quase sempre se mostraram

pacíficas, muito por via do papel de José Manuel Caetano. Não por

qualquer clima hostil em relação a opiniões divergentes, pelo contrário;

mais pelo seu tom apaziguador mas resoluto. Além disso, sempre se mostrou

evidente, para a globalidade dos associados, que os destinos da FP-

CUB tinham a marca indelével do seu presidente e fundador.

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PORTUGAL A PEDALAR

Luís

Fernandes

Gestor, actual presidente da Assembleia Geral da FPCUB

O

meu primeiro contacto com o José Manuel Caetano foi aos meus

quinze anos, e, passados vinte anos, tenho hoje, como sempre tive

da parte dele, a mesma confiança, amizade, oportunidade e disponibilidade.

O seu espírito jovem mantém-se hoje com a sua gentileza – a qual ninguém

diz a idade que tem; intocável como na hora em que o conheci.

Ao longo destes 20 anos de amizade, tive a oportunidade de ter as

mais variadas experiências com o José Manuel Caetano, dentro e fora

da Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta

(FPCUB); sempre na defesa da utilização da bicicleta como meio de

transporte alternativo e ecologicamente sustentável. Esta afirmação que

hoje se traduz numa realidade – basta ver dentro e fora das cidades, a

quantidade de regulares de bicicleta; há 20 anos, era vista com alguma

descrença junto da sociedade.

Nem por isso o José Manuel Caetano deixou de o afirmar, tantas e tantas

vezes, a políticos, jornalistas, autarcas, cidadãos e a todos os que o

quiseram escutar (e mesmo aos outros, os quais também o ouviram!).

Utilizou os mais variados meios – congressos, eventos, entrevistas, fóruns,

associativismo, etc.; para afirmar o espaço que a bicicleta e os seus

utilizadores mereciam na sociedade e no meio que os envolvia.

Fez parte integrante da criação de tantas formas de participação na sociedade,

e integrou a FPCUB em fóruns de representação da sociedade

civil, junto dos legisladores e do poder político local, regional e nacional.

Há bem pouco tempo, tive a oportunidade de visionar com ele algumas

imagens de um programa de televisão, no qual participámos os dois, em

defesa da utilização da bicicleta; e o discurso da altura continua actual

- e está a tornar-se cada vez mais real no dia-a-dia das grandes cidades

e fora delas.

Fico satisfeito por ver o percurso do desenvolvimento da bicicleta em

Portugal e do que actualmente se faz à volta da bicicleta; mas grande

parte desse trabalho foi feita pela FPCUB e pelo seu presidente, José

Manuel Caetano. Disso ninguém deve ter dúvidas!

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PORTUGAL A PEDALAR

Continuo a ver na FPCUB o mesmo espírito motivado ao longo destes

vinte anos, pelo que se torna por demais evidente que o José Manuel

Caetano é daquelas pessoas de que a sociedade civil necessita, e que a

FPCUB é, pela mão do seu presidente, um exemplo de dinamismo e de

serviço público.

Por esta ocasião, mais que palavras de ocasião, de agradecimento e de

saudação - que são merecidas - fica a expressão da minha gratidão pessoal

a alguém que merece um grande e longo OBRIGADO, por tudo o

que fez, e pelo que me permitiu fazer a seu lado.

Luís Fernandes, actual presidente da Assembleia Geral da FPCUB, aos 16 anos, durante um evento em Lisboa

no início da década de 90

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PORTUGAL A PEDALAR

Ou seja, não havendo homens insubstituíveis, é certo que há alguns que são

difíceis de substituir. E desnecessária se mostra a tarefa de substituir se não

existirem motivos para tal.

A FPCUB também cresceu porque soube mostrar e demonstrar uma contínua

preocupação pelos associados que foi, por vezes, para além da paixão

pelas bicicletas. A solidariedade está nos seus genes. Em determinadas

fases, a direcção da FPCUB aprovou mesmo a concessão de pequenos

empréstimos em dinheiro para associados em dificuldade económica ou

que necessitavam de adquirir uma bicicleta nova. E ainda hoje, quando os

associados ficam em situação de desemprego, beneficiam de uma especial

isenção no pagamento da quota anual, mantendo todos os seus direitos, incluindo

os seguros de acidentes pessoais e de responsabilidade civil. Nestes

casos, a FPCUB não só prescinde de uma parte das suas receitas, como tem

um custo acrescido, já que uma parte das quotas pagas pelos associados

serve sempre para pagamento do prémio deste seguro.

O espírito empreendedor de José Manuel Caetano na FPCUB, em associação

com os seus colegas da direcção e muitos outros colaboradores, também

se evidenciou na procura de uma estrutura física que pudesse ser útil

aos associados que se deslocassem das suas regiões para Lisboa. Através de

contactos com o Ministério do Ambiente, José Manuel Caetano obteve a

cedência da sede abandonada da antiga Companhia Portuguesa de Pescas,

em Olho de Boi, no concelho de Almada, e por via de ofertas de materiais

de construção, mais o trabalho voluntário de associados, criaram-se umas

instalações de apoio e pernoita de cicloturistas. Aliás, embora o secretariado

da FPCUB se tenha mantido desde sempre em Lisboa, por razões de

melhor eficácia, oficialmente a sua sede social manteve-se em Olho de Boi

até 2013. A partir dessa data a sede transferiu-se para a capital.

Em suma, por tudo isto, muito pela dedicação integral de José Manuel Caetano,

a FPCUB consolidou-se e tornou-se uma organização incontornável

no mundo associativo nacional, com uma extraordinária e eficaz capacidade

de dupla mobilização: não apenas porque as bicicletas em movimento

criam ao longo das estradas e caminhos um cenário de cor e brilho, mas

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PORTUGAL A PEDALAR

também pela quantidade de participantes que captou ao longo de mais de

duas décadas e meia de existência.

O empenho e a postura directa e informal, mas profissional na exigência,

que José Manuel Caetano tem imprimido neste movimento, a sua capacidade

de lançar desafios e de não descansar à beira de promessas, fez também a

FPCUB ver crescer os seus tentáculos – no bom sentido do termo – até todo

o país e mesmo galgar fronteiras. Com efeito, desde os anos 90 nasceram

diversas delegações regionais e locais, nomeadamente em Viana do Castelo,

Ponte de Sor, Lamego, Lousã e Coimbra, Alpiarça, Bombarral, Évora,

Vila Nova de Foz Côa, Viseu, Olhão, Alcantarilha e nas ilhas açorianas de

São Miguel, Pico, São Jorge e Terceira, havendo também representações em

Newark, nos Estados Unidos, e em Massy Palessiou, na região de Paris.

O objectivo, porém, jamais foi aglutinar ou controlar os núcleos cicloturísticos

já existentes, antes sim facilitar, do ponto de vista legal, o seu funcionamento.

Uma vez que esses núcleos eram, em muitos casos, apenas grupos

informais sem existência jurídica, o estatuto de delegação local da FPCUB

permitiu-lhes estabelecer parcerias e assim obter apoios de instituições públicas

e privadas para os seus eventos. Deste modo, conseguiu-se consolidar

e promover, com maior regularidade, muitas iniciativas que hoje marcam

a actividade cicloturista portuguesa, com destaque para o Minho Florido

(pela Delegação de Viana do Castelo), o Passeio Nocturno de São João (pela

Associação de Cicloturismo de Braga), o Passeio das Luzes de Natal (pela

EcoBike, no Porto), o Passeio de Cicloturismo da Feira de São Mateus (pela

Associação Académica de Viseu), a Volta de Cicloturismo aos Açores (pelas

delegações no Pico, Faial e São Jorge), o Passeio Anual de Cicloturismo de

Pombal (pelo Clube de Cicloturismo de Pombal) e a Volta ao Algarve em

Cicloturismo (pela delegação de Alcantarilha), entre muitas outras.

A consolidação da estrutura organizativa da FPCUB e a sua boa saúde financeira

possibilitaram assim, a partir dos anos 90, a multiplicação das iniciativas,

com destaque para os passeios, cujas características extravasaram

em muito o mero convívio. De facto, nunca esquecendo que, na sua génese,

esteve a preservação ambiental – no caso em concreto do litoral alentejano

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PORTUGAL A PEDALAR

e costa vicentina –, a FPCUB foi integrando também outras campanhas de

sensibilização ambiental e mesmo de saúde pública, incluindo acções no

terreno. Por exemplo, alguns passeios foram aproveitados para acções de

limpeza de praias ou de áreas protegidas, em parceria com outras entidades

ou associações. Também foram desenvolvidas campanhas de vigilância de

fogos florestais. E, em outros casos, os passeios tiveram como principal objectivo

doar as receitas das inscrições a instituições de solidariedade social.

Por exemplo, em 2010, o Ludens Clube de Machico, associado da FPCUB,

em parceria com a junta de freguesia local, organizou um passeio com o

objectivo de angariar fundos para auxiliar as famílias mais afectadas pela

tempestade que assolara a Madeira em 20 de Fevereiro daquele ano.

Noutros casos, as iniciativas visam dar a conhecer as evoluções tecnológicas

e os mais recentes equipamentos ligados à bicicleta, como é exemplo o

Mega Passeio Lisboa-Santarém que anualmente, em finais de Outubro, liga

a capital à cidade escalabitana com o objectivo final de visitar o Festival

Bike Portugal. O sucesso deste passeio tem revelado um crescimento significativo

ascendendo, em 2014, a cerca de 1.400 participantes.

Por via dessas iniciativas, que juntaram centenas ou alguns milhares de

bicicletas, a comunicação social começou, cada vez mais, a fazer uma larga

cobertura mediática, ganhando progressivamente a FPCUB um protagonismo

que lhe permitiu reivindicar mudanças de políticas de mobilidade e

segurança junto das autoridades locais e mesmo nacionais. E, neste processo,

perante uma entidade que conseguia o feito de juntar, quase do nada,

uma imensa multidão, muitos políticos passaram a olhar para as bicicletas

com outros olhos. Passaram a juntar-se aos eventos.

Mário Soares durante a Presidência Aberta do Ambiente em Sintra (1994)

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PORTUGAL A PEDALAR

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PORTUGAL A PEDALAR

Gostavam de se ver em cima de uma bicicleta. E sabiam que os seus eleitores

também. Aliás, um recente estudo inglês mostrou que a aparição pública

de um político andando de bicicleta aumenta significativamente a sua

popularidade e faz subir os valores das sondagens durante uma campanha

eleitoral.

Esse fenómeno, em Portugal, teve talvez o seu início em Sintra, no âmbito

da célebre Presidência Aberta do Ambiente e Qualidade de Vida, entre 4 e

21 de Abril de 1994. O então Presidente da República, Mário Soares, viu-se

acolhido por mais de dois milhares de utilizadores de bicicleta naquela vila

e tão agradavelmente surpreendido ficou que logo quis tornar-se associado

da FPCUB. Por pouco tempo, diga-se, foi um associado ordinário. Em

Assembleia Geral, realizada a 14 de Janeiro de 1995, ser-lhe-ia concedido o

estatuto de associado honorário.

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PORTUGAL A PEDALAR

Transpor fronteiras

O

dia 23 de Junho de 1988 marcou o início da internacionalização

do então Centro Português de Cicloturismo (CPC). Como representante

português, José Manuel Caetano chegava nesse dia a Barcelona,

em Espanha, para participar no Encontro Internacional de Cicloturismo

e Utilizadores de Bicicleta, um evento organizado pela European Cyclists’

Federation.

Embora fosse uma «inevitabilidade», esta primeira presença do associativismo

cicloturístico português em terras estrangeiras, menos de um ano

depois da sua constituição, foi em certa medida antecipada por um feliz

acaso. Poucos meses antes, José Manuel Caetano encontrara, numa rua lisboeta,

um alemão que procurava uma oficina de reparação de bicicletas.

No meio da conversa, constataria que o seu interlocutor era Tilman Bracher,

um conhecido entusiasta das bicicletas, com diversas obras publicadas

sobre esta temática, e que era então dirigente da Allgemeiner Deutscher

Fahrrad-Club, uma associação de âmbito nacional de utilizadores de bicicleta

com sede em Berlim. No final, lançou o convite a José Manuel Caetano

para ir logo a Barcelona. De lá sairia com o desafio de o CPC aderir à

European Cyclists’ Federation.

Nesse mesmo ano de 1988, formalizar-se-ia a adesão a este organismo internacional,

começando então a lançar-se as bases para uma colaboração

estreita entre os cicloturistas portugueses e estrangeiros. Em 1989, cicloturistas

de vários países participariam no passeio Sesimbra-Algarve. E em

1992, a Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta

(FPCUB) ficaria responsável pela organização do Congresso Europeu da

European Cyclists’ Federation.

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PORTUGAL A PEDALAR

Manfred

Neun

Presidente da European Cyclists’ Federation (ECF)

Tenho o prazer de felicitar a

Federação Portuguesa de Cicloturismo

e Utilizadores de Bicicleta

(FPCUB) pelo seu 27 º aniversário.

É um marco impressionante

e decisivamente motivo

para celebração! Desde a criação

da FPCUB, no Outono de 1987,

as condições para os utilizadores

de bicicletas em Portugal melhoraram

extraordinariamente e o trabalho da FPCUB na promoção do

uso da bicicleta como forma de lazer e turismo e para a mobilidade

quotidiana tem contribuído de forma importante para esta tendência

positiva na Europa. Exemplo disso tem sido a promoção da protecção

ambiental através do uso das bicicletas como forma de mobilidade sustentável,

que continua a dar frutos e a ser reconhecida a nível internacional.

Ao longo dos anos, a FPCUB desenvolveu e participou em vários projectos

que abrangem uma multiplicidade de actividades. Através desses

projectos, não só incentivou e motivou milhares de pessoas a darem uma

oportunidade à bicicleta, como também conseguiu destacar os benefícios

ambientais obtidos quando ela é utilizada. Neste âmbito, destaco

ainda eventos como a «Lisboa Antiga de Bicicleta», que permitiu aos

participantes descobrir Lisboa de uma forma saudável e ambientalmente

amigável, e, de igual modo, ajudou a aumentar a consciência

sobre a liberdade da mobilidade. Além disso, a participação da FPCUB

em actividades pan-europeias, como a Semana da Mobilidade e o Dia

sem Carros, demonstrou a sua vontade de incorporar novas ideias e cooperar

com outros parceiros, tanto em Portugal como em toda a Europa,

para atingir benefícios tangíveis.

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PORTUGAL A PEDALAR

Desde que a FPCUB se associou à European Cyclists’ Federation (ECF),

em 1990, temos tido conhecimento dos seus contactos a nível nacional

e do seu trabalho com diversos ministros portugueses, bem como com

os grupos parlamentares e com a Autoridade Nacional de Segurança

Rodoviária. Além disso, sabemos que a FPCUB tem prestado um apoio

vital ao Governo português nos esforços para incentivar os jovens a levarem

uma vida mais activa.

Também é preciso salientar que estamos muito gratos por a FPCUB se

ter aplicado com sucesso para se tornar na entidade coordenadora em

Portugal do EuroVelo, que tem contribuído para o desenvolvimento da

rede europeia de ciclovias. Estamos, por isso, ansiosos para continuar a

cooperação com a FPCUB nos próximos anos.

Aqui estamos para os próximos 27 anos!

Congresso em Barcelona, em 1998, que colminou na adesão da FPCUB à European Cyclists’ Federation

Nos anos seguintes, a FPCUB reforçaria a sua presença nesta organização

internacional, acabando por ser nomeada como entidade coordenadora em

Portugal do programa EuroVelo, uma rede europeia de rotas cicláveis que

pretende ligar os territórios europeus através de vias que proporcionem

simultaneamente percursos em segurança e paisagens apetecíveis para os

utilizadores de bicicleta. Em território nacional, a FPCUB tem promovido,

articulando-se com diversas entidades públicas e privadas, a concretização,

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PORTUGAL A PEDALAR

no terreno, de uma rota que percorre todo o litoral português. Para já, encontra-se

implementado o troço Vila Real de Santo António-Sagres. Já em

andamento está o projecto que ligará Sagres a Caminha. Em estudo está a

ligação à Europa, designadamente o troço entre Vila Real de Santo António

e Cádis, integrando assim a Rota Mediterrânica, de grande interesse para o

turismo gastronómico, agora que a Dieta Mediterrânica foi recentemente

classificada como Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO. E

outras rotas avançarão no âmbito do turismo religioso.

No âmbito dos diversos projectos da European Cyclists’ Federation, a FP-

CUB passou também a ser parceira oficial da Iniciativa Europeia de Cidadãos

30km/h, com o principal objectivo de reforçar a segurança dos utilizadores

de bicicleta em meio urbano, estando também representada no

Grupo de Trabalho sobre a Utilização do Capacete deste organismo.

Com a presença de cicloturistas estrangeiros em actividades organizadas

pela FPCUB, abriram-se ainda mais portas para incrementar a sua internacionalização.

E surgiram, com naturalidade, convites para que José Manuel

Caetano, através da FPCUB, desenvolvesse eventos de maior dimensão, sob

a égide da Alliance Internationale de Tourisme (AIT).

Sendo uma das mais antigas organizações internacionais, a AIT conta actualmente

com 140 associados de 101 países, e na sua génese esteve sempre

a locomoção como forma de usufruto de novos espaços. Criada em Agosto

de 1898 no Luxemburgo – sob a denominação, até princípios de 1919, de

Ligue Internationale des Associations Touristes –, numa altura em que os

automóveis estavam a dar os primeiros passos, uma parte das associações

fundadoras dedicava-se em exclusivo ao cicloturismo, como por exemplo

a Royale Ligue Velocipédique Belge. Nas décadas seguintes, passaria a ser

«dominada» por organizações do sector automóvel – por exemplo, o Automóvel

Clube de Portugal aderiu em 1932 –, mas os seus estatutos e requisitos

de afiliação continuaram a prever a adesão de associações envolvendo

todo o tipo de veículos, desde que realizassem actividades de ar livre.

Ideia recebida, ideia concretizada. José Manuel Caetano não perdeu tempo.

Depois de vários contactos e da apresentação de um conjunto de docu-

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PORTUGAL A PEDALAR

mentos que comprovavam o cumprimento dos requisitos, a FPCUB foi

aceite pela AIT como membro de pleno direito em 1991, passando assim a

ser o segundo organismo português associado a esta entidade internacional

e o terceiro a nível mundial com actividade na área do cicloturismo.

A partir da sua adesão à AIT, a FPCUB pôde estreitar ainda mais as suas relações

internacionais, demonstrando aos novos parceiros a sua capacidade

organizativa e de mobilização, bem como as belezas naturais de Portugal.

Como corolário, em 1995 a FPCUB foi escolhida como entidade organizadora

do 52º Rally de Cicloturismo desta organização internacional. Integrado

no Ano Europeu da Conservação da Natureza, sob auspícios do

Conselho da Europa e o lema «Pensemos no Futuro – Respeitemos a Natureza»,

este evento realizou-se em Mafra, contando com a participação de

750 cicloturistas estrangeiros, representando 13 países, e mais de mil cicloturistas

nacionais. Sete anos depois, em Julho de 2002, a FPCUB trouxe

de novo este grande evento internacional até Mafra, envolvendo, desta vez,

mais de um milhar e meio de cicloturistas de 14 países.

Evento promovido em Mafra pela FPCUB em 2002 no âmbito do Rally de Cicloturismo da AIT (Aliança Internacional

de Turismo)

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PORTUGAL A PEDALAR

A internacionalização dos enventos da FPCUB consolidaram-se nas últimas duas décadas

Por via de diversos projectos, sobretudo na área da segurança rodoviária,

realizados em colaboração entre a AIT e a Fédération Internationale de

l’Automobile (FIA) – conhecida sobretudo pela organização de provas de

automobilismo de competição –, a FPCUB também viria a aderir a esta

segunda organização internacional, a 31 de Março de 2005. Actualmente, a

FIA, fundada em 1904, integra 222 membros em todo o Mundo, dos quais

três portugueses: além da FPCUB, também o Automóvel Club de Portugal

(ACP) e a Federação Portuguesa de Automobilismo e Karting (FPAK).

Reunião preparatória de José Caetano do jurista José Manuel Meirim e de Cloude Durand, presidente da

Federação Francesa de Cicloturismo com vista à fundação da União Europeia de Cicloturismo UECT (2001).

A internacionalização da FPCUB ficaria reforçada ainda mais a partir de

9 de Novembro de 2002, quando se tornou uma das associações fundadoras

da Union Européenne de Ciclotourisme (UECT), que agrupa, actualmente,

as suas congéneres da França, Bélgica, Polónia, Espanha, Ucrânia e

Luxemburgo, além da AIT. No âmbito das diversas iniciativas conjuntas, a

92


PORTUGAL A PEDALAR

FPCUB ficou incumbida de organizar, entre 6 e 12 de Julho de 2008, em

parceria com o Núcleo Cicloturista de Sesimbra, a IV Semana Europeia de

Cicloturismo. Em Julho de 2014, a FPCUB repetiu a realização deste evento,

na vila da Murtosa, contando desta vez com mais de um milhar e meio

de participantes.

José Caetano com os representantes Holandêses, Ingleses Belgas e Fanceses em reunião em Amesterdão para

a constituição da UECT

A escolha deste concelho do distrito de Aveiro não foi um acaso: de acordo

com os inquéritos dos Censos 2011, a Murtosa é o concelho português

com maior percentagem de população activa (quase 17%) que utiliza a

bicicleta como meio de transporte principal nas deslocações diárias de casa

para o trabalho ou para o local de estudo. Aliás, o distrito de Aveiro constitui

a região nacional com a maior predominância da bicicleta, integrando

também os dois restantes municípios do pódio: Ílhavo, com quase 10%,

e Estarreja, com cerca de 7%. A região do Baixo Vouga, com uma média

de 3,9% de utilizadores quotidianos, apresenta um índice quase oito vezes

superior à média nacional.

Tem sido, no entanto, com Espanha que as relações internacionais se estabeleceram,

ao longo dos últimos anos, com maior frequência e profundidade.

Por via dos encontros no seio da UECT, José Manuel Caetano lançou o

desafio aos seus colegas espanhóis de se realizar periodicamente encontros

ibéricos com o objectivo de debater questões comuns relacionadas com o

cicloturismo e a utilização da bicicleta, bem como encontrar estratégias de

colaboração recíproca. Nesta linha, integrado na terceira edição do Con-

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PORTUGAL A PEDALAR

gresso Nacional de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta, organizou-se,

entre 27 e 29 de Setembro de 1996, o I Congresso Ibérico, subordinado ao

tema central «A Bicicleta e a Cidade». Mais de uma centena de participantes,

provenientes de regiões espanholas tão distintas como o País Basco,

Andaluzia, Catalunha e Galiza, tiveram assim oportunidade de iniciar uma

profícua troca de experiências e de convívio que ainda hoje se mantém.

Paralelamente, a FPCUB promoveu outras parcerias com suas congéneres

espanholas, sobretudo com a associação galega La Coruña en Bici e a andaluza

Contramano. Daqui, nasceu a ideia de estabelecer pontes mais eficazes

de troca de informações e, sobretudo, de coordenação de estratégias

de pressão e sensibilização junto dos poderes públicos de ambos os países.

Neste âmbito, através de uma parceria com a Coordinadora en Defensa

de la Bici – uma federação espanhola que agrupa mais de meia centena de

associações –, a FPCUB passou a co-organizar um congresso ibérico, cuja

mais recente edição, a décima primeira, se realizou em Lisboa no mês de

Maio de 2014.

De entre as principais prioridades e desafios saídos deste encontro ibérico,

destacaram-se questões relacionadas com a acalmia de tráfego urbano, tendo-se

proposto lutar cada vez mais contra a segregação dos utilizadores de

bicicleta, estimulando cada vez mais a circulação partilhada em vez de exclusivamente

a criação de mais ciclovias. Isto porque se torna mais fácil e mais

económico reduzir a velocidade dos veículos em circulação até velocidades

em que a partilha com as bicicletas seja segura do que investir em ciclovias.

Por outro lado, decidiu-se também reivindicar uma melhor coordenação

dos códigos da estrada nacionais dos países da União Europeia, para assim

se conseguir uma única norma europeia que permita aos ciclistas circular

sem se preocuparem com normas diferentes e, por vezes, contraditórias.

Numa outra linha, os congressistas consideraram também ser prioritário

que na Península Ibérica seja repensada a mobilidade de e para a escola,

promovendo-se a acalmia e redução do tráfego junto destes estabelecimentos

de ensino, privilegiando os caminhos pedonais e cicláveis, a par de

um desincentivo no uso do automóvel particular nestas deslocações, reduzindo

ou restringindo por completo o estacionamento perto das escolas,

como aliás já foi implementado na Holanda.

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PORTUGAL A PEDALAR

D. Manuel

Martins

Bispo-emérito de Setúbal

Texto enviado a título de saudação à organização do II Congresso Ibérico «A Bicicleta e a

Cidade» (Setembro de 1998).

Sempre gostei muito da bicicleta. O seu uso faz bem à saúde e permite-nos

um contacto simpático com a Natureza e as pessoas.

As ruas das nossas cidades não estão preparadas para o uso da bicicleta

e é pena. Também por esta razão, aumenta o recurso ao automóvel que

polui o ambiente, ocupa os espaços preciosos às pessoas (até os passeios!)

e contribui para desgastantes engarrafamentos.

Julgo necessário começar-se uma grande campanha no sentido de convencer

os poderes a criarem corredores nas artérias das povoações, para

termos possibilidade de recorrer à bicicleta sem perigo. Isto acontece em

boa parte dos países europeus, onde velhos e novos atravessam os caminhos

em todas as direcções nas suas bicicletas, indiferentes até ao frio

que possa fazer-se sentir.

Faziam muito bem os nossos papás se habituassem os seus filhos, de

pequeninos, a recorrerem à bicicleta para as suas deslocações, até escolares,

e como seria bonito vê-los, juntos, a darem o seu passeio de fimde-semana!

A bicicleta tem futuro, se tivermos algum interesse pelo nosso bem estar

e pela qualidade de vida do nosso semelhante.

Oxalá que a «nostalgia do quintal», de que tanto se fala hoje para referir

o regresso aos grandes valores, atinja também esta área tão importante,

tão simpática e tão útil dos nossos costumes de ontem.

Muitos e novos desafios se apresentam agora à FPCUB, em parte por via

dos contactos estabelecidos ao longo dos anos com as suas congéneres estrangeiras.

E, no futuro, por certo se intensificação e multiplicação, reforçando

o intercâmbio entre utilizadores de bicicleta portugueses e de outros

países. Enfim, é mais que certo que, no futuro, se unirão ainda mais esforços

para fazer aquilo que move muitas pessoas, independentemente da

nacionalidade: a alegria de pedalar, seja pela saúde, pelo ambiente, ou por

um mundo melhor.

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PORTUGAL A PEDALAR

Joaquín

Villas de Escauriaza

La Coruña en Bici

Não me recordo como, em 1996, chegou ao meu conhecimento a

realização de um congresso de ciclismo urbano que juntava portugueses

e espanhóis. Na Corunha, eu ajudara a criar uma associação

para a promoção do ciclismo urbano e, pouco depois, seríamos um dos

fundadores da ConBici. Sei apenas que eu e mais dois amigos decidimos

partir rumo a Lisboa e chegámos à margem sul do Tejo onde ficámos

alojados, por gentileza da Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores

de Bicicleta, na antiga sede de uma companhia de pesca de

Almada. No dia seguinte, seguimos então para a estação fluvial, onde

tomámos o barco que nos deixaria no Cais do Sodré. A seguir fomos de

comboio até Belém, para assistirmos à inauguração do Congresso Ibérico

sobre a Bicicleta e a Cidade. Surpreendeu-me o local deste evento,

pois este realizou-se num dos mais belos monumentos portugueses, o

Padrão dos Descobrimentos. Tinha ali estado antes mas nunca pensei

que no seu interior existisse um auditório. Conheci então outros ciclistas

espanhóis e portugueses, entre eles José Manuel Caetano, alma mater

deste congresso.

Nesta altura, o grande objectivo dos cicloturistas ibéricos era conseguir

que, nos nossos países, a bicicleta fosse um meio de transporte usado habitualmente,

como sucedia em zonas muito distintas do Mundo, como

era o caso das cidades do norte e centro da Europa, brilhando Amesterdão

de forma destacada, ou como a China, um imenso país ainda em

desenvolvimento.

No final do século passado, ainda víamos pedalar nas suas bicicletas,

por áreas planas das províncias de Leão ou de Aveiro, os avós ou os pais

daqueles que já só circulavam de motorizada ou de carro, desprezandoas

como se fossem algo antiquado e um sinal de pobreza. Poucas regiões

tinham então ciclovias. A única que existia em Lisboa, com pavimento

de paralelepípedos, estava ocupada por carros estacionados. As autoridades

administrativas olhavam para a bicicleta apenas como fenómeno

desportivo, ignorando as suas potencialidades como transporte alternativo.

José Manuel Caetano veio mostrar-nos que poderíamos aspirar a

objectivos mais ambiciosos e, de facto, se olharmos hoje para as nossas

ruas, seja em Lisboa seja na Corunha, ou em qualquer outra cidade ibé-

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PORTUGAL A PEDALAR

rica, vemos já ciclovias, parques de estacionamento exclusivo para bicicletas

e uma nova mentalidade, que tornou possível aos ciclistas usarem

no quotidiano as estradas e caminhos.

Na viagem de regresso a casa, naquele ano de 1996, eu e os meus colegas

meditámos sobre a possibilidade de organizar na nossa cidade o

congresso seguinte, para assim iniciar uma alternância entre os dois

países, algo que se viria a concretizar. A Coruña en Bici organizou em

1998 o II Congresso Ibérico sobre a Bicicleta e a Cidade, e já lá vão dez!

E tivemos assim a oportunidade de também receber e acolher as amplas

delegações portuguesas, lideradas, como não poderia deixar de ser, pelo

José Manuel Caetano. Fui, ao longo dos anos, encontrando-o também

em outras cidades espanholas e portuguesas, e sempre lhe apreciando o

seu entusiasmo, o seu trabalho e a sua cordialidade. Aquilo que parecia

um sonho, naqueles dias de 1996, foi-se consolidando como uma esperançosa

realidade. Por isso, creio ser de elementar justiça render uma

calorosa homenagem ao José Manuel Caetano pelo seu grande trabalho

em Portugal nas questões relacionadas com o ciclismo urbano, com o

cicloturismo e com o ambiente, e também por ter conseguido que Portugal

e Espanha não sejam já uma excepção negativa no panorama do

ciclismo urbano na Europa.

Obrigado por todo o trabalho, amigo Caetano, que bem está à vista. Um

bem-haja para ti!

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PORTUGAL A PEDALAR

Ricardo

Marqués

Professor da Universidade de Sevilha e fundador

da associação Contramano – ConBici (Espanha)

Conheço a Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de

Bicicletas (FPCUB) e o José Manuel Caetano, com quem compartilho

a paixão pela bicicleta, há muito tempo. Encontrámo-nos nos congressos

ibéricos «A Bicicleta e a Cidade», nos Velo-City e em numerosas

actividades de fomento da bicicleta. Sem menosprezar outras pessoas

cujo labor é também muito importante, creio que não minto se disser

que a FPCUB, tal como hoje a conhecemos, é, em boa medida, o resultado

do trabalho pessoal e incansável do José Manuel Caetano.

A FPCUB é, sem dúvida, um bom exemplo de como se pode combinar

todas as actividades em torno da bicicleta (cicloturismo, desporto,

transporte, ócio familiar...) numa plataforma eficaz de pressão e lobby

de cidadania. A recente reforma do Código da Estrada português, muito

favorável à bicicleta, é disso um paradigma. O seu papel tem sido também

importante ao nível da Península Ibérica e até à escala internacional.

A realização, durante mais de 10 edições, do Congresso Ibérico «A

Bicicleta e a Cidade», uma referência à escala ibérica das políticas de

promoção da bicicleta, deve muito à actividade da FPCUB, em geral,

e ao José Manuel Caetano, em particular. Deixo aqui as minhas mais

sinceras felicitações por este reconhecimento.

1.º Congresso Ibérico a «A Bicicleta e a Cidade» em 1996 com a presença do então Secretário de Estado José Sócrates

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PORTUGAL A PEDALAR

3.º Congresso Ibérico em Aveiro, marcado pela inauguração do projecto Bugas (2000)

Abertura do Congresso Ibérico em Aveiro no ano 2000

Encerramento do congresso Ibérico em Lisboa com a presença do Secretário de Estado João Almeida (2014)

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PORTUGAL A PEDALAR

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PORTUGAL A PEDALAR

Um Estado pouco reconhecido

Em Setembro de 1996, no âmbito do III Congresso Nacional da FPCUB,

o jurista José Manuel Meirim foi convidado para dissertar no painel

«Nove Anos: uma missão de serviço público». Na sessão de abertura estivera

o então Secretário de Estado do Ambiente, José Sócrates, mas abandonara

o local pouco depois, por mor de outros afazeres. O jurista lamentou-se

logo no início: «A minha intervenção deixou de ser oportuna, porque o

Estado se ausentou da sala».

Este episódio retrata, em toda a sua plenitude, o processo kafkiano que

tem norteado as relações formais entre o Estado e a FPCUB. Apesar de

ter invertido o marasmo de uma actividade desportiva que mobilizou e

mobiliza, literalmente, muitos milhares de praticantes por todo o país, de

todas as condições e idades, a FPCUB cedo constatou que, por parte das

autoridades estatais e de diversas entidades desportivas, mais adeptas da

competição, havia uma forte relutância em conceder-lhe o devido e respeitável

valor. Em considerá-la, enfim, uma organização que, em sentido

lato, não só promovia um desporto, como levava as pessoas a praticá-lo,

enquanto se deslocam ou visitam locais, em convívio saudável. Em suma,

em reconhecer-lhe formalmente o estatuto de utilidade pública desportiva.

Com um vasto trabalho ao longo dos seus primeiros cinco anos de existência,

a FPCUB considerava que tinha direito a obter aquele estatuto por

parte do Estado. Mais do que os benefícios financeiros, através de apoios

anuais, pretendia-se com essa concessão que, em simultâneo, se considerasse

que o cicloturismo, mais do que andar de bicicleta, era efectivamente

um desafio; não competitivo, é certo, mas um desporto na verdadeira acepção

etimológica do termo.

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PORTUGAL A PEDALAR

José

Manuel Pereira

Mestre em Gestão do Desporto,

Licenciado em Direito e administrador do Oeiras Viva

Nos últimos 30 anos, a Bicicleta, para uns veículo de pobres, para

outros coisa de tontos, transformou-se em objecto de culto! E o fenómeno

não se limita hoje aos passeios de pelotão, com carro vassoura,

cornetas, colorido e sardinha e febras no final; nem aos raides de BTT

pelas serranias do Portugal profundo. Hoje, a bicicleta é uma princesa

urbana!

O motivo: a perseverança e o trabalho de um homem: José Manuel Caetano!

Desde a primeira hora que o conheci, era eu um jovem técnico de

Desporto a prestar serviço numa autarquia local pioneira nestas coisas

desportivas, senti que as propostas de José Manuel Caetano faziam sentido.

É que a sua perspectiva do uso da bicicleta – e já lá vão quase 30

anos – traduzia-se em três funções essenciais para a vida das pessoas e

para a vida de uma cidade: promoção de uma vida activa; incremento

das relações sociais; facilitação de meios de mobilidade ambientalmente

sustentáveis.

Visionário para alguns, estranho para muitos outros! Mas certo é que o

trabalho de José Manuel Caetano foi sendo reconhecido; porém, curiosamente,

mais na área do Ambiente do que no Desporto!

E talvez por essa razão, Sua Excelência o Senhor Presidente da República,

Dr. Mário Soares, desafia José Manuel Caetano a organizar uma

gloriosa festa da bicicleta: Presidência Aberta pelo Ambiente, Sintra,

Abril de 1994, 2.500 utilizadores de bicicleta.

Tive a honra de colaborar com José Manuel Caetano. Foi um momento

único! Com uma inegável capacidade de mobilização e motivação das

pessoas que o rodeiam, ao que alia qualidades imprescindíveis a um

líder, como a dedicação, a vontade e a resiliência, José Manuel Caetano

tem conseguido dar vida a uma organização que conquistou um espaço

na sociedade portuguesa, a FPCUB. Representando cerca de 35.000

pessoas que fazem da bicicleta a sua forma de estar, a FPCUB é hoje reconhecida

por entidades públicas e privadas, nacionais e internacionais,

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PORTUGAL A PEDALAR

prestando um serviço de inegável valor, para a bicicleta, para as pessoas

e para a sociedade.

Curiosamente – ou não! –, somente a tutela do Desporto teima em não

prestar o merecido reconhecimento! Porém, José Manuel Caetano continua

a cumprir a sua missão: a defesa do uso da bicicleta como meio

de vida activa!

E não é esse o princípio ínsito no nosso texto constitucional e na Carta

Europeia do Desporto? É com muita honra, humildade e grande amizade

que dirijo estas palavras ao meu amigo José Manuel Caetano.

Um grande e forte abraço. E um obrigado!

Na verdade, do ponto de vista etimológico, desporto é palavra que provém

do inglês (sport) que, segundo os linguistas, «nasceu» no século XV para

significar «prática individual ou em grupo de exercício físico ou jogo para

divertimento ou lazer». Em Portugal, este vocábulo foi usado pela primeira

vez no século XVI, por Damião de Góis (tendo então escrito «deporte») e

também por Sá de Miranda (que escreveu «deporto»). No entanto, demoraria

ainda mais alguns séculos até que «desporto» ganhasse um significado

generalizado. Com efeito, somente a partir do século XIX a sociedade,

no seu todo, começou a aspirar e a obter disponibilidade, tempo livre, para

se recrear.

Somente depois desse período histórico, o desporto – que ainda hoje surge,

por exemplo no dicionário Houaiss, como sendo a «actividade física

regular, com fins de recreação e/ou de manutenção do condicionamento

corporal e da saúde» – passou a incorporar a componente de competição.

Não para melhor usufruto dos desportistas, mas sobretudo dos assistentes,

que gostavam de apreciar os dotes e talentos daqueles que melhor sabiam

praticar determinado desporto.

Ora, sendo o cicloturismo, sem qualquer dúvida, «actividade física regular,

com fins de recreação e/ou de manutenção do condicionamento corporal e

da saúde», seria quase óbvio que a FPCUB viesse a receber, quase assinado

de cruz, o estatuto de utilidade pública desportiva.

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PORTUGAL A PEDALAR

De facto, se o cicloturismo é uma actividade física regular, se os seus fins

são a recreação mas também, em simultâneo, a manutenção do condicionamento

corporal e da saúde, outra coisa não se poderia esperar. Aliás, o

Conselho da Europa, na sua «Carta Europeia do Desporto», aprovada em

Maio de 1992 em Rhodes, definiu desporto como «todas as formas de actividade

física que, através de uma participação organizada ou não, têm por

objectivo a expressão ou o melhoramento da condição física e psíquica, o

desenvolvimento das relações sociais ou a obtenção de resultados na competição

a todos os níveis». Em suma, antes de existir competição desportiva,

já existia desporto. Por isso mesmo, logo que entrou em vigor o novo

regime jurídico das federações desportivas no ano de 1993, José Manuel

Caetano pensou requerer o estatuto aí previsto, por entender que a FPCUB

preenchia os requisitos legais. Mas, infelizmente, em Portugal nem sempre

as autoridades seguem o que se mostra óbvio.

Com efeito, por despacho de finais de 1995 – publicado em Diário da República

a 27 de Fevereiro de 1996, dois longos anos após o pedido formal

da FPCUB –, o então Primeiro-Ministro António Guterres entendeu indeferir

o estatuto de utilidade pública desportiva, tendo seguido o parecer de

diversas entidades, como o Comité Olímpico Português, o Conselho Superior

do Desporto, o Instituto Nacional do Desporto e a Confederação do

Desporto de Portugal, que elaboraram pareceres negativos. Essa negativa

não esmoreceu a FPCUB, que recorreu ao Supremo Tribunal Administrativo,

não se satisfazendo tão-pouco por, meses mais tarde, em 29 de Maio, o

Governo lhe ter concedido o estatuto de utilidade pública – mas apenas de

utilidade pública genérica, não de utilidade pública desportiva.

Cerca de um ano depois desse recurso, em 1997, o Supremo Tribunal Administrativo

daria provimento às pretensões da FPCUB, anulando o despacho

de António Guterres. Porém, esse Governo nada fez para repor a justiça, o

seguinte também não, os que lhe sucederam também não. E entrou-se no

jogo do empurra e nada se decide, mesmo quando os tribunais superiores

impuseram ao Governo a tomada de uma decisão à luz da lei e não das

conveniências de bastidores.

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PORTUGAL A PEDALAR

Na verdade, o único obstáculo que tem justificado esta recusa do Estado,

em relação à utilidade pública desportiva a que justamente a FPCUB teria

direito, está intimamente ligado à Federação Portuguesa de Ciclismo

(FPC), organismo formalmente criado em 1944 e que se considera precursor

da União Velocipédica Portuguesa (UVP). Porém, essa herança nem é

historicamente confirmável, porquanto não se encontra registos de qualquer

actividade da UVP a partir de 1937, ignorando-se até o nome de qualquer

presidente de direcção durante esse período – factos atestados mesmo

em documentos de pesquisa histórica da FPC –, o que indica a inexistência

de actividade.

Seja como for, as entidades que deram parecer negativo, na década de 90, à

atribuição do estatuto à FPCUB apontaram a semelhança de objecto social

com a FPC. Contudo, estar-se-ia então perante uma falsa questão, porque

já então se mostrava evidente, quer para a FPC quer para a FPCUB, que os

seus objectos sociais eram distintos: enquanto a primeira se dedicava ao ciclismo

de competição, a segunda dedicava-se ao cicloturismo e à utilização

da bicicleta sem qualquer competição. Isto é, eram modalidades distintas,

apenas tendo em comum o uso do mesmo veículo; tal como muitos outros

desportos distintos têm a bola como «elemento» comum.

Mas talvez seja útil recuar no tempo para explicar melhor este processo

kafkiano. Como já se referiu, o precursoro da FPCUB – o Centro Português

de Cicloturismo – «apenas» nasceu porque em meados de 1987 a FPC não

quis dar andamento à proposta de José Manuel Caetano de criar, no seio

daquela federação, uma comissão especializada em cicloturismo. Durante

os anos seguintes, as duas federações foram percorrendo o seu caminho,

quando, em Abril de 1991, a Direcção-Geral dos Desportos «patrocinou»

uma reunião em que foi colocada a hipótese de uma fusão. Os dirigentes

das duas federações recusaram, mas encetaram negociações com vista à

assinatura de um protocolo para assumir as afinidades e diferenças entre as

duas modalidades envolvendo bicicletas.

Num documento conjuntamente escrito, e assinado em 27 de Abril de 1992

– ou seja, muito antes do novo regime jurídico das federações desportivas

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PORTUGAL A PEDALAR

–, a FPC comprometia-se a excluir da sua área de actuação o exercício do

cicloturismo – que, em abono da verdade, nunca desenvolveu –, reconhecendo

a FPCUB «como entidade dirigente da prática do cicloturismo de

lazer e manutenção, representando a modalidade perante os poderes públicos,

federações ou associações nacionais ou estrangeiras, assegurando

as relações desportivas nacionais e internacionais, com excepção da representação

perante a UCI [Union Cycliste Internationale], FIAC [Fédération

Internationale Amateur de Cyclisme] e FICP [Fédération Internationale

de Cyclisme Professionnel]». Mas mesmo assim, delegava na FPCUB a sua

representação nestas organizações internacionais em relação ao cicloturismo,

por tempo determinado e desde que lhe fossem prestadas informações.

Para concretizar essa declaração, a FPC extinguiu a Comissão Nacional de

Cicloturismo – que nunca tivera actividade – e comprometeu-se a não realizar

nem promover ou apoiar, sob qualquer forma, actividades de cicloturismo.

Por seu lado, a FPCUB prometia, como cumpriu, não promover

nem apoiar actividades não integráveis no conceito de cicloturismo, ou

seja, basicamente renunciava a patrocinar ou apoiar quaisquer eventos desportivos

de competição.

Por fim, as duas federações comprometeram-se a reconhecer aos seus filiados

«o direito à dupla filiação» – nos casos em que houvesse prática, de

forma alternada, de ciclismo de competição e de cicloturismo –, bem como

a alterar os estatutos e regulamentos para se adequarem ao acordo.

Apesar deste espírito de «boa-fé», expressão explicitamente inserida no documento,

houve quem não tivesse ficado satisfeito com esta separação de

águas entre a FPCUB e a FPC. E viria a surgir, poucos meses depois, em

Junho de 1992, a intenção de se criar uma Federação de Cicloturismo à

margem da FPCUB, com sede em Oliveira de Azeméis, que, se teve constituição

formal, foi extremamente efémera e não deixou história para contar.

Apesar disso, as relações institucionais entre a FPC e a FPCUB pareciam

então rumar a bom porto, e chegaram a realizar-se mesmo diversas reuniões

para dar um passo mais adiante no sentido de congregar esforços numa

paixão comum: as bicicletas. Assim, em Outubro de 1993 foi preparado

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PORTUGAL A PEDALAR

um pré-acordo para a criação de uma supra-estrutura federativa, recuperando

a denominação original de uma entidade «morta», da qual nascera

o ciclismo em Portugal: a União Velocipédica Portuguesa (UVP). Num documento

elaborado por responsáveis das duas federações, referia-se que «o

Estado manifesta[va] pouco interesse em reconhecer a utilidade pública a

diferentes entidades quando os instrumentos desportivos (a bicicleta) e os

locais (estradas) são os mesmos», pelo que consideravam que fazia todo

o sentido que a UVP pudesse ser «a associação de duas federações: a de

ciclismo (competição) e a de cicloturismo (lazer)», com vantagens mútuas.

Considerava-se assim que, com o renascimento da UVP, o prestígio histórico

da velocipedia portuguesa sairia reforçado e que as relações com o

Estado ficavam, deste modo, «mais claras». E com benefícios para todos,

porquanto «o ciclismo de competição pode[ria] recrutar mais facilmente

jovens de entre os cicloturistas se as relações [fosssem] mais estreitas e

amistosas entre as duas federações». Em suma, as duas federações assumiam

que, através da UVP, se melhoraria a promoção das bicicletas, possibilitando

uma redução de custos e a obtenção de sinergias positivas em

múltiplas actividades e eventos, nomeadamente em acções de formação

conjuntas para jovens em idade escolar. Tudo isto permitiria a maximização

de apoios financeiros, mediante protocolos com entidades oficiais e

particulares, para além de se poder aproveitar os momentos mediáticos em

torno das principais provas de ciclismo de competição para se divulgar a

velocipedia em todas as suas variantes.

Para que não houvesse dúvidas sobre o facto de não se estar perante uma

fusão, a UVP funcionaria com uma «total independência jurídica das duas

federações, salvaguardando a legitimidade própria dos seus órgãos sociais,

do seu património, dos seus estatutos, regulamentos, planos de actividades

e orçamentos». Para isso, teria uma estrutura ligeira «de representação

formal dos interesses da velocipedia, sem qualquer peso burocrático, com

órgãos dirigentes de reduzida dimensão e assegurando representatividade

igualitária e rotativa entre as duas federações, com estatutos simples e concretos».

Na verdade, pretendia-se que a UVP «ressuscitasse» como órgão

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PORTUGAL A PEDALAR

para potenciar simultaneamente o ciclismo de competição e de lazer, facilitando

a obtenção de apoios e tornando-os mais eficazes em benefício quer

do ciclismo de competição quer do cicloturismo.

Contudo, apesar de ter ficado prevista a criação de uma pequena comissão

instaladora, compreendendo entre três e cinco elementos, com vista

a preparar os estatutos e demais aspectos jurídicos, administrativos e logísticos

– e que deveria concluir os trabalhos até Janeiro de 1994 –, dada a

urgência foi efectuado o registo, as negociações estancaram. E nunca mais

avançaram.

Só depois disso, em finais de Junho de 1994, vendo que as relações com a FPC,

que entretanto mudara de presidência, se tinham esfriado, impossibilitando

um desejável entendimento, José Manuel Caetano decidiu iniciar o pedido

de utilidade pública desportiva para a FPCUB. Porém, ignorava então que

a FPC se tinha antecipado com similar pedido – e que veio a ser deferido,

com inusitada rapidez, em 24 de Setembro de 1994. Curiosamente, ao longo

deste processo, o presidente da Assembleia Geral da FPC e da FPCUB era,

nessa altura, a mesma pessoa: Macário Correia, ex-secretário de Estado do

Ambiente. José Manuel Caetano nunca foi informado por Macário Correia

de que a FPC, enquanto ainda decorriam negociações entre ambas as partes,

andava a tratar do seu pedido de utilidade pública desportiva.

Em suma, tantos anos depois, ainda com um currículo mais engrandecido,

a FPCUB continua a promover e organizar actividades de lazer, ambiente e

cultura – na sua acepção mais genuína –, mas continua também a aguardar

por justiça, por se ver reconhecida pelo Estado como uma entidade com

serviços relevantes para o desporto nacional. Este era e continua a ser um

desejo de José Manuel Caetano. Não tem, porém, insónias por causa disso.

O Estado nem sempre sabe reconhecer quem presta bons serviços ao país.

E ver milhares e milhares de pessoas a pedalar, muitas das quais iniciadas

em eventos da FPCUB, é já o prémio suficiente. Cada uma dessas pessoas

prova estarmos perante uma autêntica entidade de utilidade pública tout

court, incluindo desportiva. A custo zero. Mais dia, menos dia, terá assim de

surgir um Primeiro-Ministro que perceba isto. E que faça justiça.

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PORTUGAL A PEDALAR

Protocolo celebrado entre a FPCUB e a Federação Portuguesa de Ciclismo (1992)

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Protocolo celebrado entre a FPCUB e a Federação Portuguesa de Ciclismo (1992)

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Protocolo celebrado entre a FPCUB e a Federação Portuguesa de Ciclismo (1992)

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PORTUGAL A PEDALAR

Protocolo celebrado entre a FPCUB e a Federação Portuguesa de Ciclismo (1992)

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PORTUGAL A PEDALAR

À conquista da capital

Sobretudo a partir da década de 80, e com um maior incremento nos

anos 90, os automóveis tornaram-se reis das estradas, assenhorando-se

ainda mais das ruas das cidades e vilas, e exigindo mais rodovias. O tráfego

aumentou desmesuradamente e, enfim, a bicicleta foi cada vez mais perdendo

o seu espaço, como se intrusa fosse. Nas cidades, eram vistas como

veículos arcaicos, num país que julgava ter a modernidade a sair pelos escapes.

Circular de bicicleta nas estradas citadinas mostrava-se então um

acto de coragem, tamanha era a insegurança perante a omnipresença dos

automóveis. E, além disso, não se tornava muito saudável conviver com os

gases poluentes. Os automóveis dominavam o asfalto; os gases de escape

dominavam o ar em redor.

De facto, embora em 1990 os portugueses ainda fossem os cidadãos comunitários

que, per capita, menos poluíam através do uso de transportes,

rapidamente isso se alterou. No final dessa década já haviam ultrapassado

os dinamarqueses, os finlandeses, os gregos, os italianos e os espanhóis. De

acordo com dados da antiga Direcção-Geral de Viação, no final de 1999

estavam já matriculados em Portugal cerca de 6,3 milhões de automóveis

ligeiros, dos quais quase 4,6 milhões de passageiros, significando que a frota

automóvel tinha duplicado em apenas 10 anos.

Na verdade, nos anos 90, o automóvel tornou-se uma espécie de electrodoméstico

ambulante, sobretudo por via das facilidades de pagamento concedidas

pelos stands e instituições bancárias, com agressivas campanhas de

marketing, que permitiam a aquisição a prestações, por vezes sem juros

nem entrada inicial.

113


PORTUGAL A PEDALAR

António

Costa

Presidente da Câmara Municipal de Lisboa e actual Secretário Geral do Partido Socialista

O

José Manuel Caetano, que saúdo vivamente por ocasião do seu

70.º aniversário, não se limita a ser o presidente da Federação

Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta, o que já seria

relevante e o tornaria num aliado natural, e fundamental, na batalha

civilizacional (porque é disso que se trata!) que estamos a travar em

torno das questões da mobilidade suave dentro das cidades. Mas ele é

mais do que isso. É, verdadeiramente, um exemplo de cidadão activo

e participante na vida da cidade em todas as suas dimensões e, nessa

medida, um dos construtores da Lisboa do futuro.

Isto porque o José Manuel Caetano tem a noção exacta de que, hoje e

agora, o tema fundamental da nossa vida colectiva é o da sustentabilidade

do ambiente e de que essa batalha se ganha ou se perde nas cidades

e, em particular, nas grandes cidades, como Lisboa. Isso implica uma

mudança profunda de paradigma, em que as pessoas são sempre mais

importantes de que os automóveis, em que a defesa do ambiente e da

saúde surge no centro de toda a acção de governo da cidade.

Pedem-me um depoimento sobre o José Manuel Caetano, a propósito do

seu septuagésimo aniversário. A minha primeira tendência, confesso, foi

fazer o normal, que passava por lhe dar os parabéns nestas linhas. Mas,

pensando melhor, verdadeiramente o que devo fazer é congratular-me,

na minha qualidade de Presidente da Câmara Municipal de Lisboa, por

poder ter como aliado nas questões ambientais e de mobilidade da cidade

alguém com o conhecimento, a lucidez, o entusiasmo e a dedicação

do nosso aniversariante. Que nunca perca essa energia fundamental,

que contagia todos os que o rodeiam. E que se mantenha como o incansável

«apóstolo» da bicicleta e do ambiente.

Muitos parabéns!

114


PORTUGAL A PEDALAR

António Costa, presidente da autarquia alfacinha, e José Caetano no Lisboa Ciclável (2009)

Nesse mesmo período, as deslocações, até então predominantemente assentes

em transporte colectivo, passaram a basear-se no transporte individual.

Por exemplo, em 1991, os modos de transporte colectivo asseguravam mais

de metade das deslocações da população residente na Área Metropolitana

de Lisboa, mas em 2001 essa percentagem tinha descido para 37%. Nesse

período, a utilização do transporte individual aumentou de 26% para 45%.

Reunião entre representantes da FPCUB e diversas entidades para avaliação das acções do Dia Europeu Sem

Carros em 2001

115


PORTUGAL A PEDALAR

João

Soares

Deputado à Assembleia da República pelo Partido Socialista

e ex-presidente da Câmara Municipal de Lisboa

Associo-me com prazer à homenagem que é feita a José Manuel Caetano

com a edição deste livro. Antes de mais porque considero a

homenagem inteiramente justa. Conheço-o há muitos anos e sou, de alguma

forma, testemunha privilegiada e directa do papel pioneiro e didáctico

que tem tido em matéria de utilização da bicicleta em Portugal.

A FPCUB, e sobretudo José Manuel Caetano, estão na origem desta «explosão»

da bicicleta por todo o lado no nosso País.

Não esqueço o que fizemos, aqui há uns anos, juntos em Lisboa. Lançámos

juntos os primeiros «petardos» na origem desta «explosão»: no

primeiro e segundo dia, em Lisboa, da cidade sem carros.

Não esqueço o empenho da FPCUB e pessoal de José Manuel Caetano

no fechar, aos domingos, da Avenida da Liberdade.

Lembro a abertura da primeira ciclovia em Lisboa, Telheiras-Entrecampos.

Pedalámos juntos com o José Sócrates, então Ministro do Ambiente,

nessa ciclovia.

Não esqueço uma subida ao Castelo de São Jorge, em bicicleta, onde José

Manuel Caetano teve de me empurrar nos últimos metros.

O José Manuel Caetano é, nesta matéria, um exemplo. Até no seu diaa-dia.

Um homem que sempre viveu em coerência com aquilo que defende.

Fiz com ele algum caminho em conjunto, também de bicicleta.

Tenho nisso muito orgulho. Agradeço-lhe muito sinceramente todo o

apoio que dele recebi, e sobretudo o muito que me ensinou em matéria

de bicicleta. Desejo-lhe que continue, por muitos anos, com boa pedalada.

E manifesto a minha ambição por poder continuar a pedalar ao

lado dele, também por muitos anos…

116


PORTUGAL A PEDALAR

João Soares presidente da autarquia de Lisboa e Jose Caetano, no envento que assinalou o encerramento do

tráfego na Avenida da Liberdade aos domingos durante 2001

O crescimento do tráfego nos grandes centros urbanos foi proporcional à

venda de combustíveis, sobretudo nos distritos de Lisboa, Porto e Setúbal,

que passaram a representar cerca de metade das vendas totais do país, o que

explica assim o significativo agravamento da poluição urbana. O consumo

de gasolina a nível nacional registou um crescimento de 82% na década

de 80 e de 38% só na primeira metade dos anos 90, seguindo-se, a partir

daí, um incremento da ordem dos 3% por ano, até ao final dessa década. O

gasóleo, por sua vez, teve um aumento no consumo de 70% ao longo dos

anos 90.

Todas as soluções intentadas para aliviar o tráfego rodoviário nesta época

acabaram por ainda o piorar. Por exemplo, concluída em 1998, a segunda

travessia sobre o Tejo nunca conseguiu descongestionar a ponte 25 de

Abril. Em Abril de 1998, quando foi inaugurada a ponte Vasco da Gama,

nos dois sentidos da ponte 25 de Abril passavam cerca de 139 mil veículos

por dia, mas cinco anos mais tarde já eram mais de 155 mil. Nos anos 90, o

tráfego nesta ponte, construída na década de 60, mais do que duplicou. Por

117


PORTUGAL A PEDALAR

seu turno, ao longo dos primeiros quatro anos de funcionamento, a ponte

Vasco da Gama passou de uma média diária de 37 mil veículos para mais

de 55 mil, ou seja, uma subida superior a 40%. Nos subúrbios lisboetas, a

evolução do tráfego no IC19 (Queluz), IC16 (Lourel) e IC17 (Miraflores)

foi também muito significativa: o crescimento do volume de tráfego entre

1995 e 2000 foi de, respectivamente, 86%, 37% e 52%.

Este fenómeno não foi exclusivo da Grande Lisboa, nem das grandes cidades.

De acordo com as medições em contínuo do tráfego nas estradas

nacionais sob jurisdição do Instituto de Estradas de Portugal, no ano 2000

existiam 25 troços rodoviários com um fluxo diário superior a 20 mil veículos.

No caso das auto-estradas, em 1995 o tráfego médio diário ultrapassava

essa fasquia em 23 dos 55 troços então existentes. Uma situação que

aumentou muito significativamente a partir desse ano.

Confraternização junto à Brasileira do Chiado no âmbito do evento Lisboa Antiga de Bicicleta (1999)

A Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FP-

CUB) nasceu, assim, em contraciclo. Ou, noutra perspectiva, no momento

certo para inverter uma situação que caminhava perigosamente para se

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PORTUGAL A PEDALAR

tornar irreversível. De facto, as bicicletas até podiam continuar – e tinham

espaço de crescimento – a obter mais aderentes entre a população mais

urbana, sobretudo de uma grande cidade como Lisboa, mas apenas para

passeios cicloturísticos. Por outro lado, percorrer uma cidade como Lisboa

em cima de uma bicicleta, durante a semana, parecia quase uma miragem

ou um acto suicida.

Concentração no Largo de Camões, no âmbito do Lisboa Antiga de Bicicleta (2013)

Porém, se José Manuel Caetano fundou o Centro Português de Cicloturismo

– e sobretudo quando, formalmente, se transformou em federação,

contendo de forma explícita a expressão «utilizadores de bicicleta» – foi

exactamente para «reconquistar» esse espaço. Isto é, não pretendia que a

bicicleta servisse apenas como mero veículo para fazer exercício e apreciar

paisagens, mas sim que desempenhasse um papel importante nas deslocações

do quotidiano, mesmo em cidades. Mesmo em Lisboa. Mesmo na

mítica «cidade das sete colinas». Dir-se-ia que, em finais dos anos 80 e ao

longo da década seguinte, este seria um desejo mitómano: colocar estes

velocípedes nas estradas lisboetas, enxameadas de automóveis, e ainda por

cima numa cidade que crescera com o mito de quase ser intransponível

devido à sua orografia. E mesmo a frente ribeirinha, bastante plana, não se

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PORTUGAL A PEDALAR

encontrava acessível, devido à desordenada ocupação portuária e ferroviária.

Porém, para José Manuel Caetano e para a FPCUB, não era nada que

não se conseguisse superar, sobretudo tendo em conta a própria evolução

das bicicletas. Bastaria vontade política.

José Caetano em acção na zona do Chiado durante o Lisboa Ciclável (1999)

120


PORTUGAL A PEDALAR

E se a vontade dos políticos não surge por si, que venha através de outros. E

os outros eram a FPCUB. Uma das suas primeiras iniciativas desenvolvidas

em Lisboa visou desmontar o mito da cidade de colinas intransponíveis.

Em 18 de Dezembro de 1993, cerca de três dezenas de «aventureiros», com

bicicletas todo-o-terreno, partiram do plano Terreiro do Paço, junto ao estuário

do Tejo, percorreram as zonas antigas da cidade e almejaram subir as

íngremes calçadas da Bica, da Glória e do Lavra, «competindo» em força e

destreza com os elevadores da Carris. E não foram apenas jovens a alcançar

o topo dessas colinas. A idade dos participantes ia dos 14 aos 60 anos.

Esta primeira semente foi, também, aproveitada para iniciar as reivindicações

para investimentos em pistas cicláveis urbanas e em matéria de segurança.

Este evento não foi folclórico, portanto.

José Manuel Caetano insistiu e voltou a insistir, repetidamente. Três anos

depois do primeiro desafio de cruzar a Lisboa antiga montado em bicicleta

– com eventos a multiplicarem-se nas ruas da cidade, e aproveitando para

desenvolver campanhas na área da saúde e solidariedade social –, a intensidade

da adesão obrigou mesmo a FPCUB a limitar o número de participantes

a quatro centenas. No dia 16 de Junho de 1996, o Rossio, o bairro

de Alfama, o castelo de São Jorge, o Martim Moniz, o Largo da Anunciada,

o Jardim de São Pedro de Alcântara, o Bairro Alto, a zona de São Bento, o

Jardim da Estrela, o bairro de Campo de Ourique, a Rotunda de Alcântara,

a Torre de Belém, o Cais do Sodré, a Praça Luís de Camões, o Largo do

Chiado e o Largo do Carmo – ou seja, quase meia Lisboa, englobando praticamente

todas as partes mais declivosas da cidade – viram percorrer uma

multidão de duas rodas em «competição»; não em competição pura, mas

em competição contra um mito, para provar, sem margem para qualquer

dúvida, que em Lisboa se podia e deveria andar de bicicleta.

As colinas não eram um problema – na verdade, 80% do território da cidade

está praticamente ao nível do mar ou é planalto pouco inclinado; o

problema, a existir, residia nos eventuais conflitos em matéria de segurança,

entre automóveis e bicicletas.

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PORTUGAL A PEDALAR

Inauguração do estacionamento para bicicletas em Telheiras, oferecido pela FPCUB

E a vontade política foi aparecendo ao longo da segunda metade dos anos

90. Em 1995, por via da candidatura de Jorge Sampaio à Presidência da

República, o então vereador da Cultura, João Soares, assumiria a presidência

da Câmara de Lisboa. Mostrando uma outra sensibilidade para a utilização

da bicicleta, muito por via das «insistências» e reivindicações de

José Manuel Caetano e da FPCUB, a edilidade começou a mostrar mais

do que simpatia em relação à ideia de se criarem zonas cicláveis na capital.

E, como um político montado numa bicicleta se começara a tornar uma

moda bastante apreciada pela comunicação social – basta recordar o antigo

Presidente da República, Mário Soares, em passeios à beira-Tejo ou durante

a famosa Presidência Aberta sobre o Ambiente, em 1994 –, também João

Soares começou a «apadrinhar» pessoalmente algumas das iniciativas da

FPCUB. E, de facto, no passeio por Lisboa antiga em 1996, embora não tenha

feito todo o percurso, pedalou uma boa parte, prometendo, logo nesse

dia, a criação de pistas cicláveis em Telheiras, Restelo e Olivais.

Ao longo dos anos seguintes, com efeito, a autarquia lisboeta foi reiterando

a promessa da promoção do uso da bicicleta, sobretudo aquando de eventos

da FPCUB na capital, mas as medidas efectivas ainda tardaram algum

tempo mais. A única excepção foi o encerramento ao trânsito automóvel,

aos domingos, no Verão do ano 2001, da faixa central da Avenida da Liber-

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PORTUGAL A PEDALAR

dade, para proporcionar o seu uso por bicicletas ou outros veículos sem

motor.

Contudo, foi um trágico acidente, no início de 1999, em Lisboa, que, tristemente,

veio demonstrar o quão perigoso era, ainda, circular de bicicleta

na cidade, e demonstrar a urgência da necessidade de medidas concretas de

segurança. Na madrugada de 19 de Janeiro desse ano, um activo associado

da FPCUB, José Miguel Afonso – biólogo, activista ambiental e de defesa

dos animais e ainda crítico musical – foi abalroado mortalmente na Segunda

Circular por um automóvel, cujo condutor se colocou em fuga depois

de o veiculo arrastar a vítima mais de 50 metros. Apesar da onda de dor e

consternação causada por esta morte, José Manuel Caetano não esmoreceu

no seu projecto de tornar Lisboa ciclável; pelo contrário, mais reforçou as

suas reivindicações, aumentando a pressão junto das instâncias políticas,

quer a autarquia, quer, mesmo a Assembleia da República, para garantir

mais segurança aos utilizadores de bicicleta.

Reunindo com todos os grupos parlamentares, José Manuel Caetano haveria

de conseguir sensibilizar alguns deputados para a causa, como Francisco

Torres (PSD) e Maria Santos (PS), tendo sido mesmo aprovado por

unanimidade um voto de pesar pela morte de José Miguel Afonso.

Nunca nenhuma morte é útil, mas a tragédia de José Miguel Afonso acabou

por chamar a atenção, de forma decisiva, para a segurança rodoviária em

torno das bicicletas. E para que esse tema se mantivesse latente e constante,

a FPCUB tem, desde o ano 2000, homenageado este malogrado activista,

através de uma manifestação anual de âmbito nacional em prol da segurança

dos utilizadores de bicicleta, que se realiza sempre no aniversário da

sua morte. O tributo, em 2013, sob o lema «Basta de Atropelamentos», envolveu

27 localidades em todo o país, incluindo os arquipélagos. Entre elas

incluem-se Lisboa, Porto, Faro, Coimbra, Braga, Guarda, Leiria, Barcelos,

Vila Nova de Famalicão, Vila Real de Santo António, Seia, Machico, Tavira,

Póvoa do Varzim e Silvares.

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PORTUGAL A PEDALAR

Voto de Pesar pela morte do Associado da FPCUB José Miguel Afonso (1999)

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PORTUGAL A PEDALAR

A morte do associado José Miguel Afonso mobilizou, e continua a mobilizar, todos os quadrantes da sociedade.

À esquerda Maria Santos e Almeida Santos foram fulcrais na aprovação do voto de pesar na Assembleia

da República em 1999

Por via das alterações ao Código da Estrada, o Grupo de Trabalho para a Segurança Rodoviária da Assembleia

da República foi agraciado em 2013 com o Prémio Nacional de Mobilidade em Bicicleta pela FPCUB

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PORTUGAL A PEDALAR

José

Paulo Esperança

Pró-Reitor no Instituto Universitário de Lisboa (ISCTE)

e Presidente do Audax

A

utilização da bicicleta em Portugal deve muito à iniciativa e perseverança

de um pequeno grupo que, num contexto de absoluto

predomínio do automóvel, acreditou que era possível uma parte significativa

da população passar a preferir a bicicleta em deslocações urbanas

e de lazer. Destes, ninguém se destaca como o fundador da Federação

Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB), José

Manuel Caetano, que há quase 30 anos vem liderando um processo de

transformação de hábitos e mentalidades que teria sido muito mais lento

sem as múltiplas iniciativas da Federação e a sua dedicação permanente.

No entanto, há um acontecimento que vale a pena realçar. Em Maio

de 1999, foi organizada uma manifestação para o lançamento do movimento

Portugal Ciclável, que decorreu entre a Reitoria da Universidade

de Lisboa e o Terreiro do Paço, reivindicando a construção de

ciclovias, então praticamente inexistentes em todo o país. Não era uma

tarefa tão fácil como pode hoje parecer. Os autarcas receavam a oposição

dos automobilistas que, face ao crescimento do número de veículos

em circulação, consideravam o espaço rodoviário muito reduzido. Por

outro lado, alguns dos raros utilizadores regulares de bicicleta da época

contestavam a existência de ciclovias, argumentando que reduziriam a

flexibilidade e liberdade de utilização do espaço urbano. Dizia-se que,

sobretudo em Lisboa, não havia condições naturais para o uso regular

da bicicleta. As cidades amigas da bicicleta do Norte da Europa, afinal

com condições climatéricas muito mais hostis, eram uma miragem para

os portugueses.

Foi neste contexto que decorreu a manifestação, que reuniu quase mil

ciclistas, um pouco desconfortáveis com os 45 minutos que levámos a

fazer um percurso muito fácil, de cerca de oito quilómetros, com apoio

da PSP. Era fundamental que os utilizadores menos experientes não ficassem

para trás.

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PORTUGAL A PEDALAR

No Terreiro do Paço, livre dos carros que aí costumavam estacionar, por

ser domingo, estava um autocarro da Carris, decorado com cartazes da

manifestação. Foi nesse local, finalmente ocupado por um vasto número

de bicicletas, que o José Manuel Caetano se dirigiu aos órgãos de comunicação

social que se reuniram para noticiar a iniciativa. No entanto,

era importante ser rápido, para manter o grupo compacto. É que, enquanto

alguns ciclistas começavam a planear um «pequeno» passeio até

Cascais, para fazer alguns quilómetros, outros repararam que, na zona

próxima do Ministério da Agricultura, havia um desfile de modelos coreanas...

Também no rescaldo deste fatídico acidente e das diligências da FPCUB,

seria mesmo aprovada, em Janeiro de 2001, uma lei da Assembleia da República

que solicitava a elaboração, pelo Governo, de um plano para a criação

de uma rede nacional de pistas dedicadas especificamente à circulação

de velocípedes. Esse plano deveria garantir que todas as localidades tivessem

pistas cicláveis até à respectiva sede concelhia; que as diversas sedes

de concelho possuíssem ligação entre si, de forma contínua, por ciclovia;

que fossem ainda concebidas ligações interurbanas por pistas dedicadas,

devendo concretizar-se a sua junção com a rede europeia de ciclovias. Por

outro lado, as Câmaras Municipais deveriam assegurar que, nos espaços

urbanos, estas pistas fossem uma efectiva alternativa de transporte, garantindo

a sua expansão e zonas próprias de parqueamento, localizadas preferencialmente

junto a terminais de transportes públicos, edifícios públicos,

jardins e monumentos. E ainda prever a construção de pistas dedicadas e

parqueamentos próprios aquando do planeamento e beneficiação de zonas

urbanizadas, ribeirinhas e de lazer.

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PORTUGAL A PEDALAR

Manifestação promovida pela FPCUB contra o estacionamento automóvel na Praça do Comércio (1999)

Festa promovida pela FPCUB após o encerramento do parque de estacionamento naquela praça lisboeta em 2000

É certo que este plano nunca chegou a realizar-se à escala nacional – como

tantas outras promessas e boas intenções saídas da Assembleia da República

–, mas José Manuel Caetano aproveitou este inusitado clima político,

favorável às bicicletas, para prosseguir os seus contactos com a autarquia de

Lisboa. Daí nasceria um protocolo formal de cooperação entre a FPCUB e

a Câmara Municipal de Lisboa, assinado em 15 de Março de 2000, que visava

a criação progressiva de condições de segurança para todos aqueles que

utilizassem ou aspirassem a utilizar a bicicleta como forma quotidiana de

mobilidade. Em termos concretos, no âmbito desse protocolo, para além

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PORTUGAL A PEDALAR

de consultoria, a FPCUB passou a garantir a realização de um vasto conjunto

de iniciativas, entre as quais a Semana de Mobilidade que, nesse ano

de 2000, se iniciou, ainda numa fase embrionária, durante o Dia Europeu

sem Carros a 22 de Setembro.

Ainda nesse mesmo ano, em colaboração com a FPCUB, o município da

capital portuguesa apresentaria o projecto «Lisboa Ciclável», que pretendia,

através de uma rede de ciclovias, tornar acessíveis, e com segurança, os

principais eixos viários e zonas da cidade. Esse plano previa a ligação entre

o bairro dos Olivais, a Alta de Lisboa, o Parque Periférico, a freguesia de

Benfica e a área florestal de Monsanto, bem como a faixa ribeirinha até à

zona oriental, deixando ainda em aberto outras vias a serem implantadas

no futuro. Com um prazo de execução de quatro anos, foi dada prioridade

à criação de pistas cicláveis em Monsanto e, mais tarde, na frente ribeirinha

entre o Parque das Nações e Algés. Para os anos seguintes, estava programada

a extensão de ciclovias na malha urbana mais antiga de Lisboa.

Porém, apesar disto, na edilidade lisboeta muitos responsáveis não acreditavam

na viabilidade deste plano. Por exemplo, em Abril de 2000, aquando da

inauguração de uma ciclovia na zona de Telheiras, um bairro de prédios de

classe média-alta com orografia plana, o então presidente da Empresa Pública

de Urbanização de Lisboa disse que «as pessoas têm todo o direito de andar

de bicicleta, mas não sei se é assim tanta gente». Acrescentou ainda que, na

sua opinião, Lisboa nunca seria uma cidade onde as pessoas usassem a bicicleta

para ir trabalhar. Mesmo assim, até 2002 avançaram algumas ciclovias,

sobretudo em Monsanto e também na frente ribeirinha. Nesta última zona

aproveitou-se o plano de urbanização do Parque das Nações, após a Expo-98,

e a reabilitação das áreas portuárias ao longo do estuário, destacando-se aqui

a nova postura da Administração do Porto de Lisboa.

A expansão das ciclovias pela edilidade lisboeta estagnaria durante as presidências

de Santana Lopes e Carmona Rodrigues, entre 2002 e meados de

2007. Aliás, Santana Lopes, ainda quando candidato às eleições autárquicas

em finais de 2001, manifestou críticas à decisão de João Soares de proibir o

tráfego automóvel na placa central da Avenida da Liberdade aos domingos

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PORTUGAL A PEDALAR

para aí permitir o acesso a bicicletas. Santana Lopes dizia que essa medida

prejudicava quem queria andar de carro. Por isso, não surpreende que se

tenha terminado com esse «oásis» dominical e parado, durante a sua presidência

e a de Carmona Rodrigues, praticamente todas as iniciativas em

prol do uso da bicicleta na capital portuguesa.

No período em que o PSD liderou o município lisboeta – primeiro com

Santana Lopes, a seguir com Carmona Rodrigues e, por fim, novamente

com o primeiro –, um estudo do Instituto Nacional de Estatística, intitulado

«Movimentos Pendulares e Organização do Território Metropolitano:

Área Metropolitana de Lisboa e Área Metropolitana do Porto 1991 – 2001»,

veio entretanto revelar que as deslocações com bicicleta nestas regiões nem

sequer representavam 1% de todas as deslocações. Pouco depois, um outro

estudo realizado, designado «Lisboa: O Desafio da Mobilidade», nem sequer

fazia referências à bicicleta como solução de transporte. Para piorar,

na presidência de Santana Lopes seria suspensa a colaboração do arquitecto

Gonçalo Ribeiro Telles, que desenvolvera o Plano Verde da cidade de

Lisboa. Esse plano, que visava a ligação das áreas verdes fragmentadas na

malha urbana, integrando Monsanto na mesma, mostrava-se fundamental

para a concretização da rede de ciclovias projectada durante a presidência

de João Soares.

Com a entrada em funções de António Costa como presidente da autarquia

lisboeta, a FPCUB teve, então, oportunidade de reforçar a colaboração

e de recuperar o tempo perdido. Como corolário da renovada postura da

autarquia, seria desenvolvido pela FPCUB o estudo «Bicicleta e Mobilidade

Sustentável em Lisboa – Princípios e Orientações para a Elaboração de

uma Carta Ciclável em Lisboa», concluído em Janeiro de 2008. Além de

um vasto levantamento sobre casos de sucesso no estrangeiro e de uma

identificação exaustiva dos constrangimentos ao uso da bicicleta em Lisboa

– para os quais eram apontadas soluções –, este estudo incluiu também os

resultados de um inquérito aos associados da FPCUB.

Nesse inquérito, que se realizara no ano anterior, ficou-se assim a saber

que, em Lisboa, os utilizadores de bicicleta eram maioritariamente ho-

130


PORTUGAL A PEDALAR

mens (85%), abrangendo sobretudo a população adulta (entre os 22 e os

62 anos), embora quase dois terços tivessem menos de 30 anos. Uma parte

considerável, tendo em conta a sua proporção na população, eram estudantes

do ensino superior (40%), sendo os restantes trabalhadores (35%),

desempregados (10%) e aposentados (5%).

Por outro lado, o inquérito mostrou também que quem usava as bicicletas o

fazia por opção pessoal ou por razões de poupança de custos, dado que 80%

dos inquiridos até dispunham de automóvel próprio ou tinham acesso a um

no seu agregado familiar. Na verdade, cerca de 95% possuíam habilitação

para conduzir veículos a motor. Um dos aspectos mais interessantes retirados

deste inquérito foi a constatação de que 75% dos utilizadores de bicicleta

tinham começado a pedalar com frequências nas suas deslocações habituais

apenas a partir do ano 2000, o que indiciava um crescimento muito sustentável

e com grande espaço de progressão. Até porque englobava sobretudo

uma faixa da população com sensibilidade e formação ambiental, pois três

em cada quatro inquiridos tinham formação académica superior ou eram

estudantes universitários. Em suma, este estudo da FPCUB, bem como o inquérito

incluso, permitiu assim mostrar que ainda havia um longo percurso

a fazer, mas também que, havendo medidas concretas, seria expectável um

crescimento fulgurante no uso da bicicleta em Lisboa.

Com a assunção da tutela do Ambiente da autarquia por parte de José Sá

Fernandes, que veio «desenterrar» o Plano Verde de Lisboa da autoria de

Ribeiro Telles, Lisboa «veria» multiplicar-se a rede de ciclovias, que totaliza

actualmente quase 80 quilómetros de extensão. Na verdade, muito por via

das sugestões da FPCUB, a rede de espaços verdes interconectados, desde

Monsanto até à zona oriental da capital – que originalmente tinha «apenas»

objectivos estéticos e de melhoria abstracta da qualidade de vida dos

cidadãos urbanos –, transformou-se, através das ciclovias a si associadas,

numa rede por excelência de mobilidade para bicicletas.

Embora ainda faltem medidas concretas para melhorar a segurança, sobretudo

nos principais eixos viários, nomeadamente nos troços que ligam

Entrecampos, Saldanha e Baixa Pombalina, bem como nas zonas adjacen-

131


PORTUGAL A PEDALAR

tes, a evolução nos últimos anos tem sido extremamente positiva. Exemplo

disso foi a recente alteração na circulação rodoviária na Avenida da Liberdade,

que não apenas condicionou bastante o tráfego automóvel nas faixas

centrais e laterais – com o objectivo de melhorar a qualidade do ar – como

estabeleceu corredores específicos para o uso da bicicleta. Na verdade, hoje

basta olhar para as estradas da capital para confirmar que a bicicleta já não

é uma avis rara. Embora mais presente, e cada vez mais, nas zonas planas

ribeirinhas e em ciclovias, nota-se que está a ganhar terreno nas estradas

da cidade, a tal ponto que se torna já difícil, mesmo em percursos mais

declivosos, não as ver em qualquer hora do dia.

Contudo, a FPCUB está longe de considerar concluído o trabalho da autarquia.

E tem procurado que sejam implementadas várias soluções, sobretudo

em eixos rodoviários onde não será possível construir ciclovias.

Englobam-se nesta categoria a introdução de sinalização específica, de estruturas

especiais para auxiliar a subida em zonas íngremes ou em escadas,

bem como a adopção de circuitos para bicicletas em vias de sentido único

e a criação de caixas de paragem nas intersecções semafóricas.

Em suma, se as actividades da FPCUB se mostram mais visíveis em iniciativas

de concentração de cicloturistas, quase sempre associadas a campanhas

de índole ambiental ou de saúde pública, tem sido no quotidiano, no crescente

número de utilizadores de bicicleta que percorre Lisboa de lés-a-lés,

que o seu esforço, mais discreto, tem colhido bons frutos. E, se actualmente,

a crise económica que grassa o país «obrigou» muitos a optar pela bicicleta

como veículo em viagens pendulares na área urbana, a FPCUB soube,

durante os últimos anos, preparar esse caminho em colaboração com a

autarquia de Lisboa. De facto, pode não ter construído qualquer metro de

ciclovia em Lisboa, mas nunca se teria alcançado os actuais 78 quilómetros

sem a sua perseverança. E o exemplo de Lisboa, sendo o caso mais paradigmático,

começa também a ser seguido em outras regiões urbanas do país.

Não em todas por acção directa da FPCUB, mas as sementes que as suas

iniciativas foram lançando por todo o país estão lá.

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PORTUGAL A PEDALAR

Pedalar por mais espaço

Em 22 de Setembro do ano 2000, por um dia as bicicletas destronaram

os automóveis nas cidades de Aveiro, Beja, Évora, Leiria, Lisboa e Porto

e ainda na vila de Sintra. Por iniciativa da União Europeia – que decidira

adoptar, a partir desse ano, para todos os países comunitários, um projecto

desenvolvido em França –, o tráfego automóvel foi condicionado, permitindo

assim que as pessoas pudessem andar a pé pelas estradas e utilizar

livremente as suas bicicletas sem quaisquer constrangimentos e sem riscos

de segurança.

Esta acção inédita inseria-se também num plano mais vasto que visava dar

execução à Directiva Europeia 96/62/CE, com vista à melhoria da qualidade

do ar em ambiente urbano, uma das grandes preocupações a nível

europeu à entrada do novo milénio.

O sucesso desta iniciativa – embora imbuída de carácter simbólico – levou

a que a Comissão Europeia fosse alargando o conceito, tendo instituído, a

partir de 2002, a Semana Europeia da Mobilidade, através de um consórcio

constituído pela Eurocities, Energie-Cités e Klima-Buendnis. Deste modo,

anualmente, entre 16 e 22 de Setembro, foram sendo aplicadas medidas e

actividades que não passavam apenas por «libertar» as estradas urbanas

dos automóveis em períodos curtos. Na verdade, pretendia-se dar um enfoque

especial à mobilidade para incentivar a implementação de medidas

estruturantes, através de uma mudança de comportamentos e da criação

de infra-estruturas destinadas a veículos mais eficientes energeticamente

ou não poluentes, como as bicicletas.

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PORTUGAL A PEDALAR

Joaquim

Baptista

Presidente da Câmara Municipal da Murtosa

Desde já, é necessário reconhecer a Federação Portuguesa de Cicloturismo

e Utilizadores de Bicicleta como a principal instituição

portuguesa a actuar na promoção do uso da bicicleta.

Conhecer o seu presidente, José Manuel Caetano, foi, para o Município

da Murtosa, um momento de inegável importância para a afirmação

nacional do seu projecto de mobilidade sustentável.

A paixão pela bicicleta, que nos une, permitiu estabelecer uma extraordinária

relação institucional e também pessoal.

Esta realidade exige-me o reconhecimento de que o percurso da FPCUB

é indissociável do trajecto de vida de José Caetano, pois a sua determinação

e persistência foram e continuarão a ser os factores diferenciadores

desta federação.

O município da Murtosa aproveita esta oportunidade para manifestar

a sua gratidão pelo activismo cívico do José Caetano, a quem o País deve

tributo pelo facto de ter conseguido colocar na ordem do dia o debate

sobre a necessidade de implementação das imperativas mudanças políticas

e culturais, promotoras de um novo paradigma de mobilidade, que

tenha por base a relação do Homem com o meio em que se insere.

O facto de fazer prevalecer a promoção do uso da bicicleta como um

interesse colectivo sobre outros eventuais proveitos pessoais ou institucionais

fez de José Caetano, do ponto de vista social e político, um homem

transversalmente aceite, granjeando o respeito e reconhecimento

de todos.

Nestas palavras ficam as felicitações pelo percurso feito e, acima de

tudo, a esperança no muito que, certamente, o José Manuel Caetano e

a “sua” Federação ainda farão pela promoção da mobilidade ciclável

e, consequentemente, pelo incremento da qualidade de vida dos Portugueses.

134


PORTUGAL A PEDALAR

Em todo o caso, malgrado algumas deficiências que se foi tentando corrigir

ao longo dos anos, estes eventos europeus relacionados com a mobilidade

urbana constituíram um forte incentivo ao crescimento do número de utilizadores

de bicicleta e de pistas cicláveis em Portugal. Com efeito, entre os

anos 2000 e 2007, de entre as cerca de 1250 medidas permanentes prometidas

pelas autarquias que foram aderindo à Semana Europeia da Mobilidade,

quase um quinto (227) destinava-se à promoção do uso da bicicleta,

quer através da construção de ciclovias e ecopistas, quer de sistemas inovadores

para incentivar o seu uso, nomeadamente sistemas de empréstimos

gratuitos, como em Aveiro e Cascais, ou a venda a preços reduzidos.

Murtosa, como vila ciclável, tem sido palco de diversos eventos da FPCUB

Mais do que mostrar – ou demonstrar – que em espaço urbano poderiam

existir alternativas ao automóvel, o Dia Europeu sem Carros, e mais tarde

a Semana Europeia da Mobilidade, viriam a desencadear em Portugal,

tal como noutros países, um forte debate junto dos poderes políticos com

vista à criação de melhores condições para o uso da bicicleta. E assim, ano

após ano, grande parte das autarquias foi prometendo – e, em grande parte

dos casos, concretizando – infra-estruturas como ciclovias e ecopistas,

como nunca antes se vira.

De facto, até finais da década de 90, poucas eram as infra-estruturas disponíveis

para andar de bicicleta sem substanciais riscos de segurança pe-

135


PORTUGAL A PEDALAR

rante o tráfego automóvel. No início do século XXI, por exemplo, apenas

a zona do Parque Florestal de Monsanto (25 km), o Parque das Nações (4

km), Telheiras-Entrecampos (6 km) e Alcântara-Belém (4 km) possuíam

pistas cicláveis na cidade de Lisboa. No restante território nacional, existiam

pistas na Póvoa do Varzim (6 km), Fafe-Guimarães (12 km), Aveiro

(10 km), Praia de Mira (3 km), Foz do Arelho-Caldas da Rainha (10

km), Cascais-Guincho (12 km), Trafaria-Costa da Caparica (4 km), Sines

(8 km), Base Aérea de Beja (12 km), Vilamoura (20 km) e Porto Santo (4

km). Contudo, muitas destas pistas apenas serviam para trajectos de lazer

e nem sempre tinham sido construídas com os devidos cuidados técnicos,

possuindo mesmo partes onde não se evitavam directos conflitos com o

tráfego automóvel. Um dos casos mais flagrantes verificava-se na ciclovia

que ligava Cascais à Praia do Guincho, que, sendo também usada para passeios

pedestres, constituía um risco de segurança para peões e cicloturistas.

Em muitos casos, esses percursos cicláveis surgiram através da construção

de infra-estruturas autónomas; noutros, na adaptação de percursos enquadrados

em redes urbanas de espaços verdes; e, noutros ainda, no aproveitamento

de antigos troços ferroviários disponibilizados pela REFER. Neste

último caso, destaca-se a denominada Ecovia do Litoral. Constituída por

12 segmentos que percorrem todo o litoral algarvio, numa extensão que se

prevê que venha a atingir quase 215 km, desde o Cabo de São Vicente até

Vila Real de Santo António – e que se integrará na Rota 1 do Atlântico do

projecto europeu EuroVelo –, aproveitará não só ciclovias pré-existentes

como estradas de tráfego misto, mas com reduzidos volumes de circulação,

bem como percursos de natureza em áreas protegidas.

Certo é que, na última década, o número e dimensão de pistas cicláveis,

de ecopistas, ecovias e de percursos de BTT não tem parado de crescer. De

acordo com o site Ciclovia, da responsabilidade de Vítor Rodrigues – que

tem vindo a compilar dados sobre os diversos projectos já implementados

ou em estudo –, existem já cerca de duas centenas de pistas cicláveis, que

no conjunto compreendem 425 km de ciclovias, 217 km de ecopistas, 335

km de ecovias, 585 km de percursos de BTT e 70 km de outro género de

infra-estruturas.

136


PORTUGAL A PEDALAR

Vítor

Fonte Rodrigues

Técnico informático e responsável pelo site Ciclovia.pt

Há dois tempos no cicloturismo em Portugal: antes da Federação

Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB)

e depois da FPCUB!

Antes, não havia nada. Hoje, com a FPCUB, os cicloturistas e utilizadores

de bicicletas têm uma organização ao seu lado, que os protege, que

os defende e que luta pelos seus direitos e interesses! São exemplo disso

os diversos eventos organizados e promovidos pela Federação, o seguro

de acidentes pessoais e de responsabilidade civil consignado a todos os

associados, o lobby exercido junto das entidades oficiais e órgãos de soberania,

entre outros.

À frente da actividade e dos destinos da FPCUB tem estado o José Manuel

Caetano, um activista associativo que não procura a autopromoção,

que não procura o protagonismo fácil num qualquer canal de televisão

ou rádio. Em vez disso temos, sim, um dirigente a dar a cara, não

só nas horas fáceis, mas também nos momentos difíceis; vemo-lo na

sua bicicleta, à frente de um passeio de bicicleta solidário, à frente da

manifestação de cidadãos pela convivência pacífica e respeito pelos modos

suaves, ou a encabeçar as delegações da FPCUB junto dos partidos

políticos com assento parlamentar.

Esta pressão constante junto dos órgãos de poder tem devolvido aos utilizadores

de bicicleta mais e melhores condições de circulação. O caso

mais evidente, e um bom exemplo, é o sucesso recentemente alcançado

com a aprovação na Assembleia da República do novo Código da

Estrada, em que os ciclistas deixaram de ser tratados como carroças,

mas também não são confundidos com os automóveis. Tal êxito só foi

possível graças à entrega e ao esforço abnegado, em prol de uma causa

comum, demonstrado todos os dias pelo José Manuel Caetano, ao volante

da FPCUB.

Podemos contar sempre com o José Manuel Caetano para prosseguir

esta árdua, mas recompensadora, tarefa de transformar a sociedade! Ao

dirigente associativo, ao cicloturista, ao homem e cidadão de Portugal e

do Mundo, muito obrigado!

137


PORTUGAL A PEDALAR

A postura da FPCUB nesta matéria, ao longo dos anos, tem primado por

um contido entusiasmo. Com efeito, se muitas têm uma extensão considerável

– em todo o país estão contabilizadas 31 com mais de 10 quilómetros

–, ainda se mantém um atraso considerável nos principais centros urbanos,

com excepção de Lisboa, que possui 42 quilómetros no Parque Florestal

de Monsanto e uma dezena de troços no casco urbano que totalizam mais

quase 36 quilómetros. Na verdade, em muitos casos, as pistas cicláveis portuguesas

não alcançam um quilómetro de extensão, o que limita muito a

prática do cicloturismo e torna impraticável a sua utilização quotidiana

pela generalidade dos utilizadores de bicicleta.

Por isso, embora aplauda sempre a criação de novas pistas cicláveis – tendo

mesmo contribuído, em muitos casos, para a sua concepção ou para posteriores

correcções de configuração –, a FPCUB não parou de reivindicar

medidas que permitissem, por um lado, conciliar a utilização segura das

bicicletas na restante rede viária e, por outro, encontrar formas rápidas e

expeditas para os utilizadores de bicicleta alcançarem os locais onde desejam

ou necessitam de pedalar. Para tal, a FPCUB foi insistindo, ao longo

dos anos, junto das empresas de transportes públicos, nomeadamente de

comboios, metropolitanos e autocarros, para que passassem a permitir o

acesso a bicicletas.

Em grande parte fruto deste trabalho de reivindicação, em 2005 o Metropolitano

de Lisboa começou a possibilitar o transporte gratuito de bicicletas

aos feriados e fins-de-semana, e também à noite durante os dias úteis,

desde as 21 horas e 30 minutos até ao fim da exploração diária. A esta

decisão da empresa transportadora não foram alheias as relações que José

Manuel Caetano foi estabelecendo com a entidade ao longo dos anos, sempre

que a FPCUB realizava grandes eventos com cicloturistas. Também por

essa altura, a Fertagus e o Metro do Porto concederam facilidades ao transporte

de bicicletas aos feriados, fins-de-semana e fora das horas de ponta.

Em algumas estações passaram a existir locais específicos de estacionamento

para velocípedes sem motor. E a CP veio, de igual modo, a autorizar, em

condições específicas, o transporte de bicicletas nos comboios suburbanos

da região de Lisboa.

138


PORTUGAL A PEDALAR

Jaime

Almeida

Sócio-gerente do Stand Jasma / Scott

Falar de José Manuel Caetano é falar de um amigo, de uma pessoa

de convicções fortes, muito determinada no apoio a todos os utilizadores

da bicicleta e de todos os movimentos e eventos que, nas últimas

décadas, têm sido essenciais para o fomento do uso da bicicleta no nosso

país.

Foi com ele, e com a Federação Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores

de Bicicleta (FPCUB), que o cicloturismo ganhou estatuto e se

organizou, passando os cicloturistas a ter quem os representasse e defendesse.

Os eventos cresceram, passando a ser grandes referências em

Portugal: o Sesimbra-Algarve, o Caldas-Badajoz, e dezenas de outros

eventos continuam a fomentar a prática do ciclismo de estrada como

actividade desportiva e de lazer saudável.

Recordo com muito agrado os primeiros passeios de BTT organizados

em Portugal, nos quais também colaborei, e onde o José Caetano conseguia

colocar os media, para acompanharem e divulgarem, à data, esta

nova modalidade.

A utilização da bicicleta nas cidades e as hoje já comuns ciclovias foram

uma luta que eu pude acompanhar desde o início, e se os políticos hoje

pensam e falam em bicicletas, para isso o José Caetano tem contribuído

de forma determinante e inteligente, pois foi com o seu trabalho

que começaram a ver-se os primeiros políticos a utilizar a bicicleta (por

exemplo, um evento que também apoiei há mais de 20 anos, que incluía

um passeio em Sintra no âmbito da Presidência Aberta sobre Ambiente

que Mário Soares, Edite Estrela e Macário Correia, entre outros, acompanharam,

pedalando).

Tenho colaborado com o José Caetano e a FPCUB desde sempre, desde

os primeiros Sesimbra-Algarve, primeiros passeios de BTT, Dias Europeus

Sem Carros. E é assim que conto continuar, apoiando quem mais

tem feito pela utilização da bicicleta em Portugal.

139


PORTUGAL A PEDALAR

Inauguração da Ciclovia Entre-Campos / Telheiras no Dia Europeu Sem Carros em 2001

Em 2006, seria a vez da Soflusa e da Transtejo – as duas empresas de ferries

que fazem ligação entre a capital e a Margem Sul –, que também passaram

a permitir o transporte gratuito de bicicletas. Em 2007 e 2008, a Carris

inovou de igual modo, colocando, em alguns autocarros, estruturas para

transporte de bicicletas. Os denominados Bike Bus começaram a ser usados

nas carreiras 24 (Pontinha-Alcântara-Calçada da Tapada), 25 (Estação

do Oriente-Prior Velho), 708 (Martim-Moniz-Parque das Nações) e 723

(Algés-Desterro).

Nos anos seguintes, as empresas de transportes continuariam as suas acções

em prol da facilidade de utilização das bicicletas. Em 2009, a CP tinha

já implantado parques para bicicletas em 23 estações da região de Lisboa,

na sequência da oferta de transporte gratuito sem restrição de horário ou

sentido em todas as suas linhas. No âmbito da modernização então em curso

nas linhas de Sintra, Azambuja e Sado, desde logo ficou prevista a criação

de um espaço multifunção apropriado para o transporte de bicicletas.

140


PORTUGAL A PEDALAR

Concentração na Praça dos Restauradores (Lisboa), no Dia Europeu sem Carros em 2001

Mais recentemente, no final de 2013, a CP passou a permitir o acesso a

bicicletas nos comboios Intercidades, através da colocação de estruturas

especiais em algumas carruagens. Por outro lado, tanto esta empresa como

o Metropolitano de Lisboa reforçariam a colaboração com a FPCUB em

diversos outros projectos, designadamente no Benfica Ciclável. A partir de

2010, a Fertagus também passou a autorizar o transporte de bicicletas sem

qualquer restrição horária, o mesmo tendo sido anunciado pelo Metropolitano

de Lisboa em 2013. Demonstrativo da importância das reivindicações

da FPCUB para a nova postura destas empresas em termo de facilitação do

transporte de bicicletas é o facto de este último anúncio se ter realizado no

decurso da entrega do Prémio Nacional de Mobilidade.

Também na Madeira merece destaque o serviço TB – Transporte de Bicicletas

em Autocarro –, lançado pela empresa de transportes colectivos Horários

do Funchal no decurso da Semana Europeia da Mobilidade de 2010,

que manteve, a partir desse ano, cinco carreiras da sua frota com suportes

na traseira dos autocarros que permitem acoplar bicicletas. Este serviço

surgiu assim como um complemento da mobilidade na cidade do Funchal,

«eliminando» os entraves nas deslocações em zonas mais declivosas. Em

paralelo, a empresa madeirense também instalou, junto às paragens dos

percursos com este serviço, locais de parqueamento para bicicletas.

Para destacar estas e outras iniciativas, a FPCUB instituiu, a partir de 2006,

o Prémio Nacional de Mobilidade em Bicicleta. Este galardão tem como

objectivo conceder um reconhecimento público pelo contributo de de-

141


PORTUGAL A PEDALAR

terminadas entidades para a promoção da utilização da bicicleta, nas suas

múltiplas vertentes, bem como destacar iniciativas fomentadoras do uso

deste veículo não motorizado.

Em oito edições – abrangendo actualmente sete categorias: Autarquias, Cidadania,

Comunicação Social, Empresas e Clubes, Activismo e Intervenção

Social, Dinamização Cultural da Bicicleta, e Entidades Públicas – foram

já distinguidas mais de meia centena de entidades e personalidades. Para

além das empresas de transporte já referidas, na primeira categoria.

Destacam-se os prémios obtidos por diversos projectos das autarquias de

Aveiro, Almeirim, Loulé, Murtosa, Lisboa (incluindo também edis como

João Soares, Rui Godinho e José Sá Fernandes) e Torres Vedras, bem como

a AMAL – Comunidade Intermunicipal do Algarve. De igual modo, em relação

a entidades ou empresas públicas, também se deve salientar as distinções

entregues à Polícia de Segurança Pública, a diversos agentes e oficiais

da Guarda Nacional Republicana, aos CTT, à Assembleia da República, ao

Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres e até ao Futebol Clube

do Porto – neste caso por ter instalado três pontos de parqueamento para

bicicletas, com 150 lugares, no Estádio do Dragão.

Entrega do Prémio Nacional de Mobilidade 2013 ao major Paulo Poiares (GNR) pelo Secretário de Estado

Pedro Roque de Oliveira e José Caetano

142


PORTUGAL A PEDALAR

A postura dos institutos públicos da área dos transportes, e mesmo dos

últimos Governos, em relação às bicicletas, tem vindo a modificar-se muito

positivamente. Há pouco mais de uma década, a bicicleta seria tema que

não ocuparia sequer um segundo da vida de um governante que tutelasse

o sector dos transportes. Hoje, tal já não sucede, embora ainda se espere

sempre mais. Porém, tem sido na acção do actual Instituto da Mobilidade

e dos Transportes Terrestres – entidade pública com a função de regular,

fiscalizar e coordenar o planeamento do sector dos transportes terrestres,

visando satisfazer as necessidades de mobilidade de pessoas e bens – que se

tem mostrado melhor essa nova postura. Para além do seu contributo para

melhorar a segurança no uso das bicicletas em meios urbano, especificamente

através do Código da Estrada, destacou-se através da preparação do

Plano Nacional para a Promoção da Bicicleta e Outros Modos Suaves e da

Carta da Mobilidade Ligeira.

Entrega do Prémio Nacional de Mobilidade 2013 ao comissário Luís Gancho (PSP) pelo Secretário de Estado

Sérgio Monteiro e José Caetano

Neste último caso, através de um sistema computacional de acesso público,

gratuito e permanente, pretende-se desenvolver uma plataforma que ex-

143


PORTUGAL A PEDALAR

plicite as condições em que devem interconectar-se os diversos modos de

mobilidade ligeira, integrando-os com os restantes modos de transporte.

Aliás, na equipa de missão para a concretização deste projecto, que integra

personalidades e diversas entidades estatais, encontram-se dois representantes

da FPCUB: José Manuel Caetano e Pedro Roque de Oliveira.

Porém, sendo incontestáveis as evoluções nos últimos anos, ao nível da

postura dos políticos e do sector empresarial em relação às bicicletas, com

a implantação de medidas concretas, a FPCUB não tem intenções de parar

nas suas reivindicações. Há muito ainda a fazer. É certo que Roma e Pavia

não se fizeram num dia, mas José Manuel Caetano e a FPCUB sabem que

houve um dia em que acabaram por ficar concluídas.

144


PORTUGAL A PEDALAR

A segurança em primeiro lugar

O

risco é algo omnipresente nas estradas: os acidentes rodoviários sucedem

quer com veículos pesados e ligeiros, quer com motociclos e

ciclomotores, quer com bicicletas e peões. Porém, durante infindáveis décadas,

desde o surgimento do automóvel, a bicicleta foi-se tornando o «elo

mais fraco» das estradas, sobretudo nas zonas urbanas, comparativamente

aos veículos a motor.

De facto, com o surgimento dos veículos motorizados, se em relação aos

peões rapidamente se adoptaram soluções e normas com vista à redução

de acidentes – criaram-se bermas e passeios, bem como passadeiras, com

ou sem semáforos –, no caso das bicicletas, similares medidas foram sendo

proteladas, sobretudo em Portugal. Como veículos que necessariamente

compartilham o mesmo espaço físico que os restantes meios de transporte

motorizado, os utilizadores de bicicletas estão necessariamente expostos a

riscos acrescidos, mais ainda porque as normas reguladoras do tráfego as

foram subalternizando durante largo tempo.

Com efeito, desde o surgimento dos primeiros normativos dedicados ao

tráfego rodoviário em Portugal – o primordial Regulamento sobre Circulação

de Automóveis data de 1901 –, quase se pode dizer que a bicicleta

foi vista como veículo tolerado mas indesejado nas estradas. Os veículos

a motor desde logo passaram a deter total primazia na circulação, nomeadamente

prioridade absoluta nos cruzamentos ou rotundas. No início do

século XX, isso não era um problema demasiado relevante, pois os automóveis

ainda eram escassos. Por exemplo, em 1928, existiam em Portugal

menos de 30 mil automóveis e a sua velocidade máxima pouco excedia

os 40 quilómetros por hora. No entanto, com o aumento significativo do

145


PORTUGAL A PEDALAR

tráfego, e o avanço tecnológico dos veículos a motor, que lhes permitiu

alcançar velocidades muito superiores, a vulnerabilidade da bicicleta aumentou,

sobretudo a partir dos anos 50 e, em especial, nas últimas três

décadas. Olhados, a partir daí, quase como um «empecilho» aos olhos dos

automobilistas, que desejavam circular com maior velocidade nas estradas,

os utilizadores de bicicleta começaram a ser quase aventureiros numa selva

de carros.

Apesar de não se terem realizado muitos estudos em Portugal sobre esta

matéria, em outros países a segurança dos utilizadores de bicicleta tem-

-se tornado uma prioridade. As autoridades e diversos investigadores têm

vindo a analisar em detalhe as causas e circunstâncias dos acidentes envolvendo

velocípedes sem motor, de modo a implementarem soluções para a

sua redução. Por exemplo, um estudo recente, desenvolvido pela Fundação

MAPFRE Espanha, em parceria com a Comissão Europeia e o projecto

BIKE-PAL, confirmou que as zonas urbanas constituem, os pontos mais

vulneráveis para os utilizadores de bicicleta, por existir um maior tráfego

automóvel, – susceptível de maior número de colisões frontais ou laterais,

em alguns casos envolvendo veículos pesados. Na verdade, dos acidentes

mais graves, apenas 20% se deveram a queda isolada do ciclista, o que demonstra

ser fundamental «disciplinar» o tráfego automóvel no sentido de

«respeitar» as bicicletas.

Na mesma linha, estatísticas do Reino Unido compiladas pela Royal Society

for the Prevention of Accidents também confirmaram que os entroncamentos

rodoviários ou zonas próximas são os pontos que devem merecer

cuidados redobrados para garantir uma maior segurança dos utilizadores

de bicicleta. Esse estudo também elencou as principais causas de acidentes,

entre as quais se destacam a colisão frontal ou na traseira da bicicleta, o

abalroamento lateral – sobretudo com autocarros ou camiões – e as desatenções

dos condutores dos veículos automóveis, que não asseguram uma

distância de segurança quando se cruzam ou ultrapassam bicicletas.

146


PORTUGAL A PEDALAR

A grande vulnerabilidade dos veículos de duas rodas é, de igual modo, confirmada

pelas estatísticas da sinistralidade em Portugal. Somente nos últimos

anos – muito por via das reivindicações da FPCUB pela adopção de

campanhas de sensibilização junto dos automobilistas e pela introdução de

melhorias nas condições de circulação em espaço urbano –, este panorama

se foi alterando. Mas, mesmo assim, o risco manteve-se elevado. Embora

a sinistralidade do grupo de utilizadores de bicicleta se mostre, em termos

absolutos, muito menor do que a registada em outros meios de transporte

– veículos ligeiros e pesados, ciclomotores e motociclos – e mesmo em

relação aos peões, certo é que se mostrava há muito tempo ser fundamental

garantir-lhes maior segurança. Não apenas por via da efectiva maior vulnerabilidade

do «condutor» de uma bicicleta em relação aos condutores

dos veículos automóveis, mas também por se mostrar imperioso dar sinais

efectivos de que a bicicleta representa hoje um modo de transporte seguro.

Nessa medida, uma das prioridades da FPCUB nos últimos anos, em simultâneo

com as acções de sensibilização dos condutores de veículos automóveis,

foi a pressão junto das autoridades no sentido de se introduzirem

alterações no Código da Estrada, com vista à diminuição dos potenciais

conflitos com o restante tráfego rodoviário. Esse esforço seria coroado de

êxito com a aprovação, em Julho de 2012, de novas normas no Código da

Estrada, que entraram em vigor no primeiro dia de 2014.

Helena Roseta e José Caetano na Praça dos Restauradores (Lisboa), em 1990, durante uma acção de sensibilização

contra a poluição, promovida pela FPCUB

147


PORTUGAL A PEDALAR

Carla

Castelo

Jornalista da SIC

Neste início de 2014, as alterações ao Código da Estrada suscitaram

dúvidas e discussão. Dar à bicicleta estatuto de veículo de pleno

direito na estrada, e aos utilizadores deste meio de transporte direitos

e mais segurança, causou estranheza a quem vê os veículos a motor – e

sobretudo os automóveis – como os únicos com direito a circular na via

e até a ocupar passeios.

Entre a claque automóvel-dependente generalizou-se o preconceito de

que as bicicletas «atrapalham» a circulação rodoviária e de que os ciclistas

são tão «indisciplinados» que até passam sinais vermelhos. Isto sem

qualquer fundamentação estatística ou base científica, como acontece,

aliás, com todos os preconceitos e generalizações. Só faltava virem dizer

que os automobilistas passam sempre no verde, que nunca causam acidentes

e que jamais um carro atropelou um peão ou um ciclista. Vale a

pena usar de bom senso e não criar tensão, nem fomentar conflitos de

que ninguém sairá a ganhar.

O que o novo Código da Estrada vem fazer com a introdução do conceito

de «utilizadores vulneráveis» (peões e velocípedes, em particular,

crianças, idosos, grávidas, pessoas com mobilidade reduzida ou com deficiência)

é proteger as pessoas. Deixemo-nos de automobilistas para

aqui e ciclistas para ali. Os veículos servem para transportar pessoas e, a

pé ou a pedalar uma bicicleta, qualquer um de nós está mais vulnerável

em caso de acidente do que ao volante de um automóvel, rodeado de

chapa metálica. Por isso, a lei diz que os condutores devem ter particular

atenção aos «utilizadores vulneráveis» e não podem pô-los em perigo.

Cada peão ou cada ciclista é uma pessoa que poderia ser o filho, a mãe,

a irmã, ou o avô de quem está ao volante. É preciso que os automobilistas

não esqueçam a sua condição humana quando entram na máquina,

potencialmente mortífera, que é o automóvel.

Numa altura em que, devido à má qualidade do ar em muitas cidades

da Europa, com graves consequências para a saúde pública, a própria

Comissão Europeia lançou um novo pacote para a mobilidade urbana,

em que pretende fomentar uma evolução para formas de trans-

148


PORTUGAL A PEDALAR

porte mais limpas, todas as medidas para promover a coexistência pacífica

e soluções mais sustentáveis deveriam ser bem-vindas. Reduzir

a poluição e o congestionamento nas zonas urbanas não é uma meta

para beneficiar os passarinhos ou fazer crescer as flores ou agradar a

uma trupe alternativa que gosta de pedalar ou andar a pé pela cidade.

Melhorar a qualidade do ar melhora a qualidade de vida e a saúde

das pessoas. De todas elas, independentemente do meio de transporte

que utilizam.

Ter um sistema de transportes menos dependente do automóvel particular

(não o excluindo, como é óbvio), apostando numa boa articulação

entre transportes públicos e bicicletas e num desenho urbano mais favorável

aos percursos pedonais e cicláveis, permite ainda ser mais eficiente

na utilização dos recursos e reduzir importações de combustíveis fósseis,

redução fundamental para o País ao contribuir para diminuir o défice.

Além disso, a aposta na bicicleta pode ser também uma aposta na economia

local e nacional. Pelas contas da ABIMOTA, a associação nacional

das indústrias de duas rodas, o sector industrial ligado aos velocípedes

é responsável por exportações de cerca de 200 milhões de euros por

ano, este número e pode crescer.

Se todos pedalássemos esta ideia, não seriam só os habitantes das cidades

a ganhar qualidade e anos de vida, poderia também ganhar a

economia do País, ao reduzir importações e ao criar riqueza e empregos,

fabricando aquela que já foi considerada a máquina mais eficiente criada

pelo Homem; aquela que converte calorias em combustível.

De entre as alterações mais importantes, destaca-se a abolição da discriminação

dos velocípedes na regra geral de cedência de passagem em cruzamentos

e entroncamentos sem sinalização. Ou seja, sem sinalética que

indique o contrário, a prioridade será sempre de quem se apresenta pela

direita, independentemente de ser um veículo a motor ou um velocípede.

Essa norma, se incorporada na consciência dos condutores de veículos com

motor, permitirá uma redução extremamente relevante dos acidentes envolvendo

bicicletas.

149


PORTUGAL A PEDALAR

150

Logótipo da iniciativa “Respeite o Ciclista”.

Por outro lado, cessou também a obrigatoriedade de as bicicletas circularem

sempre o mais à direita possível da faixa de rodagem, podendo assim,

por razões de segurança, reservar uma distância maior em relação à berma.

Caberá, sim, ao condutor de um veículo automóvel, caso pretenda ultrapassar

uma bicicleta, assegurar uma distância mínima lateral de 1,5 metros,

abrandando a velocidade durante essa manobra. Passou também a ser autorizado

que dois ciclistas pedalem lado a lado na estrada – ou seja, basicamente,

ocupando a faixa de rodagem, tal como um veículo automóvel –,

passando também a ser permitido que possam usar atrelados especiais para

transporte de passageiros.

Por outro lado, para permitir que as gerações mais jovens possam ir ganhando

experiência desde cedo, o novo Código da Estrada possibilita que

as crianças até aos 10 anos possam circular nos passeios reservados aos

peões.

Mesmo com a crescente proliferação de ciclovias, o Código da Estrada eliminou

a obrigatoriedade de os velocípedes as usarem se existirem na zona,

permitindo, assim, ao utilizador da bicicleta optar por circular juntamente

com o restante trânsito, caso considere a ciclovia menos vantajosa em termos

de segurança, conforto ou competitividade. Em cidades com corredores

BUS, as autarquias podem, também, autorizar que as bicicletas possam

aí circular. Por fim, o novo Código da Estrada equipara as passagens para


PORTUGAL A PEDALAR

velocípedes às passagens para peões, tendo agora os condutores dos outros

veículos de ceder passagem aos condutores de velocípedes, quando estiverem

para cruzar uma ciclovia.

Apesar dessa evolução, que pode ser vista como uma «revolução» positiva,

a FPCUB tem vindo a defender outras medidas inovadoras, já em implantação

em outros países.

De entre essas medidas destacam-se, por exemplo, a possibilidade, através

de sinalética especial, da circulação de bicicletas em sentido contrário em

vias de sentido automóvel único, ou ainda a colocação de «caixas» de paragens

junto aos semáforos.

Contudo, com a entrada em vigor do novo Código da Estrada, a segurança

dos utilizadores de bicicleta não ficará garantida como se houvesse uma

varinha mágica. Mais fundamental que restituir à bicicleta a sua condição

de veículo semelhante aos demais, é agora garantir que essas novas normas

sejam cumpridas pela generalidade dos automobilistas. E também, que, de

igual modo, os utilizadores de bicicleta assumam cuidados especiais, porque

terão de ter a noção de que, mesmo com o Código da Estrada finalmente

a dar-lhes o merecido valor, os velocípedes sem motor continuarão

a ser veículos vulneráveis, sobretudo se o comportamento dos automobilistas

não se alterar.

Aliás, consciente disto, e mesmo antes da entrada em vigor do novo Código

da Estrada, a FPCUB tem vindo a desenvolver intensas campanhas de

informação junto dos utilizadores de bicicleta e de sensibilização junto dos

automobilistas, especialmente no que diz respeito à distância de segurança

nas ultrapassagens e na aplicação da regra da prioridade. Por exemplo, ao

longo de 2013, através de um protocolo assinado com o Ministério da Administração

Interna, Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, GNR,

PSP e Sport Zone, a FPCUB desenvolveu a campanha «Duas ou quatro

rodas, há espaço para todas», que incluiu spots que passaram em todos os

canais televisivos. A campanha, com uma multiplicidade de materiais e

conteúdos, pretendia sobretudo sensibilizar o público em geral, e os automobilistas

em particular, de que a partilha da via pública entre os utilizadores

de bicicleta e os veículos motorizados pode, e deve, ser pacífica.

151


PORTUGAL A PEDALAR

Sessões de esclarecimento pela FPCUB em Lisboa nas Universidades ISCTE e Lusíada, Escolas Secundárias, Virgílo

Ferreira, Gomes Ferreira e Básica S. Vicente de Telheiras sobre Código da Estrada e Segurança Rodoviária para

velocípedes, durante os anos 2013 e 2014.

152


PORTUGAL A PEDALAR

Recentemente, também se criou um site específico – www.codigodaestrada.org

–, para centralizar informações, sob a forma de guia da boa convivência

na estrada entre os utilizadores dos diversos meios de transporte,

além de constituir também uma plataforma de informação e de discussão

saudável sobre estas temáticas. De igual modo, a FPCUB tem vindo a

trabalhar activamente em outros projectos com a Autoridade Nacional de

Segurança Rodoviária, destacando-se a elaboração do folheto «Pedalar em

Segurança» e do «Guia do Condutor do Velocípede», editados ao longo do

ano de 2014.

E enquanto, por este lado, a segurança nas estradas tem vindo a melhorar, a

FPCUB continua activamente a seduzir novos «utilizadores» urbanos: não

apenas mostrando que, na maior parte dos percursos, a bicicleta pode ser

até mais rápida do que o automóvel, mas também ministrando cursos de

condução em espaço urbano. Em suma, a recuperar o tempo perdido. De

facto, com o «reinado» do automóvel a intensificar-se a partir dos anos 70

muitos adultos de hoje, sobretudo em zonas urbanas, nunca tiveram oportunidade

de aprender a andar de bicicleta, por isso, a FPCUB tem vindo a

fomentar acções de formação e aprendizagem. Nos últimos cinco anos, em

parceria com a Câmara Municipal de Lisboa, foram ministrados cursos a

mais de 750 pessoas nas instalações do Parque Desportivo Municipal de

São João de Brito. Uma parte considerável dos formandos foi «atraído»

pelas melhorias nas condições de circulação, nomeadamente a proliferação

de ciclovias na cidade; outros decidiram aprender «truques» para conviver,

com maior segurança, no meio do tráfego urbano. Mas, além destes

dois grupos, existem cada vez mais pais, e sobretudo mães, que decidem

aprender finalmente a andar de bicicleta para depois acompanharem os

seus jovens filhos em passeios.

153



PORTUGAL A PEDALAR

Sempre a inovar

Noutra linha, tendo em consideração que o aumento do número de

utilizadores quotidianos implicará uma maior procura de locais de

parqueamento, a FPCUB tem vindo a sensibilizar as autoridades locais e

empresas para que concedam estacionamentos que sigam as normas adoptadas

em outros países, ou seja, estruturas em «U invertidos», mais operacionais

e seguras, e esteticamente agradáveis. No âmbito dos trabalhos já

desenvolvidos na Unidade de Missão para a Elaboração da Carta da Mobilidade

Ligeira, a FPCUB elaborou, entretanto, o Manual de Estacionamentos

para Bicicletas.

Obviamente que o aumento de utilizadores frequentes em meio urbano

não dependerá apenas de todos estes factores. Actualmente, por razões de

ordem ambiental e também económica, cada vez existem mais bicicletas

em zonas urbanas. Torna-se, mesmo, quase impossível percorrer hoje uma

cidade como Lisboa sem que um automobilista se cruze com meia dúzia

de bicicletas, sem contar com aquelas que percorrem as ciclovias e as zonas

ribeirinhas. E estes exemplos – que demonstram serem seguras e acessíveis

as deslocações de bicicleta –, a par da generalização de espaços comerciais

onde se torna cada vez mais fácil adquirir este tipo de veículos, indicam-nos

que aumentará também a segurança. Até porque quantas mais bicicletas

houver a circular, mais respeito terão os condutores de veículos automóveis

quando por elas se cruzarem. Portugal ainda não se encontra ao nível dos

países da Europa Central e da Escandinávia – onde cada cidadão tem uma

bicicleta –, mas agora para lá irá, por certo, caminhar. Ou melhor, pedalar.

Longe vão os tempos em que o maior desafio da Federação Portuguesa de

Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB) era apenas congregar os

155


PORTUGAL A PEDALAR

núcleos informais de cicloturistas espalhados pelo país e incentivar o convívio

entre os seus membros em torno de passeios. Hoje a FPCUB dedicase

também a articular e organizar eventos e a melhorar as condições para a

bicicleta encontrar espaço seguro para os seus utilizadores.

Tudo isto tem sido feito com sucesso. E continuará a ser. Hoje, os passeios

cicloturísticos são a base da actividade da FPCUB e dos seus núcleos associados

– organizando-se cerca de três centenas de eventos deste género por

ano –, mas José Manuel Caetano nunca se deixou «cristalizar». De facto,

para cimentar a intervenção da FPCUB junto dos poderes políticos, soube

ele, ao longo de mais de duas décadas, ir subindo a fasquia, rodeando-se

de pessoas com conhecimentos técnicos para outros voos. Exemplos disso

são os diversos relatórios realizados pela FPCUB – que sustentam a sua

intervenção pública –, bem como alguns estudos técnicos executados para

diversas autarquias nos últimos anos, designadamente para Lisboa, Beja,

Sintra, Seixal e Vila Franca de Xira, ou ainda o recente Plano de Mobilidade

Ciclável do Município de Loulé. Aliás, este trabalho aprofundado e inovador,

desenvolvido em 2013 por uma equipa multidisciplinar, foi atribuído

à FPCUB por concurso público, atestando assim a sua idoneidade e competência

técnica.

Mesmo em relação a um dos seus objectos fulcrais – a promoção da utilização

da bicicleta –, a FPCUB tem procurado inovar e trazer «novo sangue»

para a sua causa, mesmo através de formas mais radicais, muitas das quais

com forte tradição no estrangeiro.

Um desses casos tem sido a organização, em Lisboa, do World Naked Bike

Ride. Criado em 2004 pelo activista social canadiano Conrad Schmidt,

este evento pacifista e ambiental tem como mote andar de bicicleta com

a menor quantidade de roupa – ou mesmo nu, se assim se desejar, e puder

– como forma de protesto ambiental. Ou seja, os participantes contrapõem

a alegada «indecência» do vestir (ou não vestir), em desacordo com

as convenções sociais, à «indecência» da poluição provocada pelo tráfego

automóvel. Ao longo da última década, este evento já envolveu sete dezenas

de cidades de 20 países, realizando-se num dia de Março no Hemisfério Sul

156


PORTUGAL A PEDALAR

e num dia de Junho no Hemisfério Norte. A FPCUB integrou esta campanha

em 2011, organizando um evento na cidade de Lisboa, com partida da

Praça Marquês de Pombal e chegada à Torre de Belém, passando pela Baixa

Pombalina. Embora as forças de segurança não tenham, até agora, autorizado

a nudez integral, a participação tem vindo a crescer ano após ano.

World Naked Bike Ride 2011 em Lisboa, com o apoio da FPCUB

Mais recentemente, a FPCUB tem realizado parcerias com as Lisbon, Porto

e Vilamoura Cycle Chic para a promoção de eventos que, embora sem

qualquer «radicalismo», têm cativado adeptos para o uso de bicicleta num

cenário urbano. Inicialmente criado na Dinamarca, com uma proliferação

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PORTUGAL A PEDALAR

crescente para diversas cidades mundiais, este evento pretende aliar a bicicleta

à moda, isto é, mostrar que se pode ser muito «fashion» em cima de

uma bicicleta, através da conjugação do vestuário com o design e decoração

da bicicleta, de modo a criar um conjunto perfeito. Para além de eventos

em Lisboa e Porto – que envolveram, por vezes, piqueniques e outras acções

de marketing com empresas de vestuário –, a FPCUB já realizou também

3 iniciativas deste género em Vilamoura.

Vilamoura Cycle Chic, uma organização da FPCUB (2012/13/14).

158


PORTUGAL A PEDALAR

Um outro projecto inovador, que vem sendo realizado desde 2011, é o concurso

«De Bicicleta para o Trabalho», numa organização conjunta da Lisboa

E-Nova - Agência Municipal de Energia-Ambiente, Câmara Municipal

de Lisboa, FPCUB e Matilha Cycle Crew. Inserida na Semana Europeia da

Mobilidade, esta iniciativa dirige-se às empresas e instituições sediadas ou

com instalações no concelho de Lisboa, visando incentivar os respectivos

trabalhadores a deslocar-se de bicicleta, em determinado dia, até aos locais

de emprego. As entidades interessadas em participar na iniciativa preenchem

um formulário, escolhendo o escalão correspondente (em função do

tipo de instituição ou do número de trabalhadores), adoptando, a partir

daí, a estratégia mais adequada para persuadir o máximo de trabalhadores

a usar a bicicleta. Os vencedores são escolhidas através de votação online.

Em 2014, participaram cerca de 700 pessoas de 80 empresas.

José Caetano em participação nos eventos 2014, Lisboa E-Nova “De Bicicleta para o trabalho” (em cima) e na

companhia de Micaela Neto do Matilha Cycle Crew no âmbito da “Illustração Voadora”, com o apoio da FPCUB

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PORTUGAL A PEDALAR

Miguel

Barroso

Arquitecto, Secretário da Direção e Membro do Conselho

Consultivo para a Mobilidade Sustentável da FPCUB

O

uvi falar pela primeira vez na Federação Portuguesa de Cicloturismo

e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB) em 1999. Na altura,

era praticante frequente de BTT, e fiz-me associado da Federação. Mas

foi só em 2008 que o meu amigo Pedro Roque me lançou o desafio de

colaborar com a FPCUB. Na altura, a minha disponibilidade era reduzidíssima

por motivos profissionais e pessoais, pelo que a minha colaboração

só começou com mais força a partir de 2010. Simultaneamente,

arranquei com o projecto Lisbon Cycle Chic, que tem contado com o

apoio da Federação para as inúmeras actividades desenvolvidas. Tenho

participado e dinamizado inúmeras iniciativas da Federação, destacando-se

todo o trabalho em torno das alterações ao Código da Estrada, a

participação no grupo de trabalho da ECF sobre a temática do capacete,

participação em dois Congressos Ibéricos, elaboração de manuais, organização

de eventos, palestras, colaboração com Câmaras Municipais,

entre muitos outros.

Em todo este processo e nas demais iniciativas em que participei, a figura

de José Manuel Caetano tem sido uma presença constante, que

vai além das suas responsabilidades como presidente e fundador da

FPCUB. Aliás, a história desta Federação funde-se com a história “do

Caetano”. É uma pessoa que se dedica por inteiro à causa ciclística e

ambiental, amigo do amigo, e sempre dinâmico. Não deixa os temas

caírem no esquecimento, e mobiliza todos os que o rodeiam para que as

coisas cheguem ao seu destino.

Alvo de inúmeras críticas, está longe de ser consensual. Não faz as coisas

para agradar aos outros, mas sim no sentido daquilo que entende ser a

melhor opção. A minha relação com “o Caetano” tem sido bastante próxima

nestes últimos anos, desde que comecei a colaborar mais activamente

com a FPCUB. Por vezes em sintonia, por vezes em desacordo, a sua determinação

e personalidade carismática são inolvidáveis.

Em mais de duas décadas passadas, a bicicleta em Portugal tem visto a

sua presença e expressão crescerem significativamente. A FPCUB, o José

Manuel Caetano, e todos os seus inúmeros colaboradores ao longo dos

anos, são, sem dúvida, pilares deste crescimento.

160


PORTUGAL A PEDALAR

José Caetano no Lisbon Cycle Chic (2012) com Marise Francisco vencedora do concurso de fotogenia promovido

pela FPCUB

161


PORTUGAL A PEDALAR

Também merece relevo o apoio que a FPCUB tem vindo a conceder para a

promoção e crescimento do Encontro Nacional de Bicicletas Antigas, que

se realiza desde 2004 em Burinhosa, no concelho de Alcobaça. Inicialmente

dinamizado por um pequeno grupo informal de amantes das bicicletas antigas,

denominado Men in Bike, este evento – que começou na sua primeira

edição com menos de 30 participantes – foi ano após anos crescendo em

adesão e entusiasmo, passando de uma iniciativa local para uma actividade

de dimensão nacional. Desde a edição de 2012, tornou-se mesmo necessário,

por razões logísticas, limitar o número de inscrições. Na edição de

2014, já organizada pela recém-criada Associação Nacional de Bicicletas

Antigas, filiada na FPCUB, o passeio contou com a presença de cerca de

800 amantes destes ancestrais veículos.

José Caetano com a sua “pasteleira” no VI Convívio de Bicicletas Antigas

Na mesma linha, a FPCUB tem vindo a associar-se, também, a diversos

eventos culturais, nomeadamente concertos musicais, sempre procurando

ter um «palco» para promover o uso da bicicleta. Um destes casos é o Rock

in Rio em Lisboa. Nas últimas duas edições, além de um passeio cicloturístico

pela capital para promover o seu uso nas deslocações para os concertos,

no âmbito da campanha de mobilidade «Eu vou de bicicleta», a FPCUB

162


PORTUGAL A PEDALAR

colaborou com a organização da Rock in Rio, a EDP, a Cycle Chic Network

e a Câmara Municipal de Lisboa na criação de um parque específico de

estacionamento em zona privilegiada do Parque da Bela Vista.

No sentido de destacar e promover acções concretas de responsabilidade

social e ambiental, a FPCUB instituiu também, em 2013, uma certificação

para empresas e entidades públicas e privadas que promovam e criem condições

para o uso da bicicleta. Denominada «Portugal – Amigo da Bicicleta»,

esta certificação encontra-se, actualmente, em fase de consolidação no

sector do turismo e restauração, contando com as parcerias da European

Cyclists’ Federation e do Turismo de Portugal, pretendendo-se, mais tarde,

alargar este conceito a outro tipo de empresas e entidades, incluindo

escolas e universidades. Para receber esta distinção, seguindo um modelo

já adoptado em diversos países (Estados Unidos, Alemanha, Suíça, República

Checa, Áustria, Hungria, Croácia, Reino Unido, Polónia, Eslovénia,

Dinamarca, Itália e Holanda), as empresas ou entidades têm de garantir

equipamentos, infra-estruturas e informações para promover e facilitar o

uso da bicicleta, sendo alvo de avaliação e monitorização contínuas supervisionadas

pela FPCUB.

De um modo informal, José Manuel Caetano lançou também uma experiência

que vivenciou, há alguns anos, na cidade norte-americana de São

Francisco: a Massa Crítica. A ideia é concentrar um grande grupo de utilizadores

de bicicletas numa determinada praça e «monopolizar» a estrada

– como, aliás, fazem os automóveis todos os dias – ao longo de um trajecto

nem sempre definido. O objectivo passa, sobretudo, por chamar a atenção

para a «existência» das bicicletas como parte integrante do tráfego viário.

Por regra, estes eventos realizam-se, sem local pré-definido nem organização

formal, na última sexta-feira de cada mês.

Uma outra iniciativa que tem vindo, de forma crescente, a ganhar adeptos

no mundo cicloturístico é o Desafio Audace, que se iniciou em Março de

2010, e que se realiza com uma regularidade anual e um calendário previamente

definido. Estando vedadas as provas de competição no seio da

FPCUB – pelos estatutos e pelo seu próprio espírito fundador –, o Desafio

163


PORTUGAL A PEDALAR

Audace encerra, no entanto, uma certa intenção de superação; não entre

concorrentes, mas sim de cada cicloturista consigo próprio.

Ao longo de uma época, são promovidos eventos específicos organizados

pelos diversos núcleos filiados na FPCUB para que, em percursos pré-definidos,

os cicloturistas que se inscrevam cumpram uma etapa. Aqui não

é a velocidade que determina o vencedor – ou seja, não vence o mais veloz

–, dado que é contabilizado, apenas, o objectivo essencial: percorrer as

rotas estabelecidas numa velocidade mínima de 15 quilómetros por hora,

amealhando pontos em função da quilometragem obtida ao longo do ano,

bonificada com pontos em trajectos de subida.

O Desafio Audace teve a sua génese no ano de 1891, em França, pela mão

do jornalista Pierre Giffard. Fanático cicloturista, ele organizou a primeira

corrida entre Paris e Brest, que rapidamente foi ganhando adeptos nas edições

seguintes, transpondo depois a fronteira para a Itália. Algum tempo

depois, o evento profissionalizou-se, através da criação do Audax Clube

Parisien, sendo as provas designadas como Brevets Audax em França. A

partir de 1951, deixaria de ser uma prova competitiva, passando assim a

constituir apenas um desafio cicloturístico, conhecido internacionalmente

por «randonnées». Com um novo modelo e objectivos diferentes da edição

original, os eventos Audax acabaram por permitir a participação de praticamente

todo o género de cicloturistas, pois a intenção era apenas concluir

determinado percurso longo num tempo máximo pré-definido, por etapas,

e com a obrigatoriedade de se cruzarem postos de controlo.

Embora não esteja integrado no Randonneurs Mondiaux – a organização

internacional que congrega o clube de passeios cicloturísticos de longa distância

–, o Desafio Audace da FPCUB adaptou as suas regras à realidade

portuguesa. Assim, foi elaborado um regulamento, para garantir a ordem e

a segurança dos participantes. Previamente inscrito, cada cicloturista recebe,

em cada trajecto programado, uma pontuação em função da extensão

percorrida e uma bonificação pelos quilómetros de subida. Numa fase intermédia

de cada etapa existe um posto de controlo, onde deve ser carimbada

a carta da rota, repetindo-se o mesmo procedimento no final. Se o

164


PORTUGAL A PEDALAR

passeio for concluído dentro do tempo máximo estipulado, o cicloturista

agrega a pontuação máxima. Ou seja, o último pode obter tantos pontos

como o primeiro. Existe, porém, uma regra fundamental: os cicloturistas

estão proibidos de usar carros de apoio. Ou seja, está subjacente ao Desafio

Audace o espírito de autonomia absoluta, apenas sendo incentivada a entreajuda

entre os cicloturistas.

O grande sucesso do Desafio Audace da FPCUB tem-se evidenciado no

aumento do número de participantes. Na época de 2010, foram realizados

10 eventos, com a participação global de 1.300 cicloturistas, subindo para

18 eventos e cerca de dois mil participantes no ano seguinte. Em 2012,

organizaram-se 19 eventos com 2.500 cicloturistas, enquanto que em 2013

calendarizaram se 20 eventos, envolvendo um total de 2.659 participantes.

No Audace, o desafio mais emblemático, e de maior ousadia para os cicloturistas,

é a ligação entre Porto e Lisboa em apenas dois dias, com uma

única paragem em Leiria, e que geralmente integra quase duas centenas de

participantes.

De igual modo, a componente da solidariedade social também começa a

despontar cada vez mais no mundo do cicloturismo. Desde 2011, em data

específica do Outono, a FPCUB organiza o Festival da Bicicleta Solidária,

um convívio em Lisboa em que o passeio constitui apenas o pretexto para

acções de solidariedade. Em 2012 e 2013 também se promoveu similar

evento na cidade do Porto. Embora a esmagadora maioria das habituais

iniciativas da FPCUB seja gratuita para associados, neste caso há lugar a

pagamento de uma inscrição; mas, em vez de dinheiro, são entregues bens

alimentares não perecíveis ou produtos de higiene. No final do evento,

através de acordos prévios, esses bens recolhidos pela FPCUB são entregues

a instituições de solidariedade social, que os distribuem por pessoas

carenciadas.

165


PORTUGAL A PEDALAR

Leonel

Mendonça

Secretário da Direcção da FPCUB e coordenador da Comissão Audace

Corria o ano de 2001 quando me tornei associado da Federação

Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB).

Desde o início que tomei contacto com a figura incontornável do seu

Presidente e a instituição FPCUB. Uma entidade gerida por associados

e para associados, com uma característica muito interessante de voluntariado,

sem subsídios e vivendo exclusivamente das quotas dos seus

mais de 33.000 associados individuais e 1.200 coletivos, que cria espaço

para uma relação de trabalho com qualquer um dos seus associados.

Primeiramente, cheio de ideias e crítico em relação ao Cicloturismo de

então, tive a liberdade de discutir, apontar defeitos, opinar sobre soluções

e participar na organização de alguns eventos com a marca FP-

CUB. José Manuel Caetano, como excelente condutor de homens que

é, ouvinte e decisor, depressa colocou algumas em cima da mesa e me

desafiou a passar à ação.

2010 foi ano de eleições para os Órgãos Sociais e o convite para fazer

parte da direção foi natural, fruto do trabalho desenvolvido até então.

O desafio de passar à ação estava lançado e passava, agora, por concretizar

e colocar em prática propostas que, até então, não tinham passado

de conversas entre mim e a direção, através do seu Presidente. A missão

era simples: lançar em Portugal passeios de bicicleta de longa e média

distância, que fossem um desafio e proporcionassem o máximo de satisfação

pessoal aos seus praticantes.

Com o apoio incondicional de José Manuel Caetano, tendo sempre como

orientação as políticas e tomadas de posição da FPCUB, expectativas e

desejos de uma extensa camada de cicloturistas e utilizadores de bicicleta,

nasce o Desafio Audace FPCUB, um novo conceito de passear de

bicicleta com uma componente desportiva muito forte, incentivando o

seu uso e realçando a característica básica de uma bicicleta: a liberdade

para pedalar.

O Desafio Audace FPCUB é um entre muitos eventos com a marca FP-

CUB, tendo lançado novos desafios, quer em distâncias, quer em dificuldades,

nunca esquecendo a componente turística, escolhendo percur-

166


PORTUGAL A PEDALAR

sos em paisagens idílicas e colocando, por vezes, pontos de paragem

em locais com factores regionais muito importantes. A FPCUB sempre

promoveu e divulgou a bicicleta, mesmo sem apoios de quem faz da

bicicleta o seu negócio, e o Desafio Audace posiciona-se como veículo

privilegiado de intercâmbio entre a instituição e as várias entidades

envolvidas. Seja na área de venda ou transportes, as parcerias de colaboração

ou apoio são uma boa oportunidade de aproximação e promoção

da bicicleta.

Esta iniciativa, que tem contado sempre com mais de mil pessoas, e contabilizando

uma quantidade recolhida de produtos alimentares superior a

uma tonelada, costuma integrar também muita animação, com encontro

de bicicletas antigas com trajes a rigor, corrida de orientação em bicicleta

«Alley Cat», uma Cicloficina e espectáculos musicais, além da presença da

BMX Kids Academy/Strides Bikes Portugal, onde crianças a partir dos 18

meses podem experimentar as divertidas bicicletas de iniciação à aprendizagem.

Polícia Municipal de Lisboa a coordenar com José Caetano o Festival da Bicicleta Solidária em Lisboa 2014.

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PORTUGAL A PEDALAR

Para facilitar a adesão, a FPCUB também conseguiu o apoio da Fertagus,

Transtejo e Soflusa, que concederam nesse dia, em horários específicos, a

travessia gratuita do Tejo gratuitamente aos participantes, desde que, claro,

acompanhados pelas respectivas bicicletas.

O esforço de inovação da FPCUB também tem passado por convencer outras

entidades mais «conservadoras» sobre as vantagens do uso da bicicleta.

Talvez o exemplo mais relevante tenha sido o caso da oferta, em 2010, de

uma dezena de veículos à Polícia Municipal (PM) da autarquia de Lisboa.

O objectivo era criar brigadas de patrulhamento, mas a FPCUB teve ainda

de fazer um árduo trabalho de bastidores para que, efectivamente, as bicicletas

deixassem de ficar encostadas num qualquer armazém e começassem

a percorrer as ruas da cidade. Água mole em pedra dura, tanto bate até que

fura, assim diz o ditado. E, de facto, depois de muitas insistências e outros

tantos adiamentos, foi finalmente criada a patrulha em bicicleta da PM no

primeiro trimestre de 2014 – uma decisão que levou a FPCUB a entregar

um dos seus prémios anuais de mobilidade àquela instituição.

E todas estas iniciativas, que já são muitas, serão por certo ainda mais no

futuro. Se a roda já foi inventada há muitos milénios; e a bicicleta há menos

de dois séculos, a imaginação para a usar, e não apenas para dar aos pedais,

será não só perene como ilimitada. E a FPCUB estará certamente na vanguarda.

Como sempre.

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PORTUGAL A PEDALAR

Mais do que pedalar

Ernest Hemingway disse que apenas com uma bicicleta se consegue

apreender os contornos de um país, porque, com outro meio de transporte,

apenas no alto das colinas, quando se pára, se pode apreciar a paisagem.

A bicicleta tem, de facto, esse condão: no meio do esforço e do suor,

pedalando se liberta os olhos e os ouvidos para a paisagem envolvente,

a mente reflecte melhor, tem tempo para se encontrar com a Natureza.

Talvez por isso mesmo, não sendo condição prévia possuir uma postura

ambientalista, quem começa a pedalar dificilmente evita ser «contagiado»

pelas belezas naturais que o vão rodeando, e que o impelem, de uma forma

imperceptível, a ser um indefectível defensor do ambiente.

José Manuel Caetano foi, como se sabe, rapidamente «contagiado». Mas

houve também outros «contágios» que marcariam a sua nova vida e, de

forma indelével, a própria FPCUB. De facto, mesmo que não lhe tivessem

bastado os seus passeios pela Arrábida, o raide Sesimbra-Algarve de 1987,

que esteve na origem da fundação da FPCUB, convencera-o a dar um cariz

ecologista ao movimento cicloturístico português. Nos estatutos e na prática.

Aproveitando a aprovação da Lei de Bases do Ambiente e da Lei das Associações

de Defesa do Ambiente, ao longo do ano de 1987, durante a gestão

de Carlos Pimenta à frente da Secretaria de Estado, a FPCUB tornar-se-ia

uma das primeiras organizações não-governamentais a inscrever-se no registo

do Instituto Nacional do Ambiente.

Fruto dos diversos contactos que foi estabelecendo durante os preparativos

para o primeiro raide Sesimbra-Algarve – sobretudo por via de alguns assessores

de Carlos Pimenta que, então, militavam em associações ambien-

169


PORTUGAL A PEDALAR

talistas, como o GEOTA –, José Manuel Caetano participaria, dois anos

depois, em 1989, no I Encontro Nacional das Associações de Defesa do

Ambiente, realizado na cidade de Viseu, onde diversas organizações nacionais,

regionais e locais debateram estratégias de união. De lá sairia a ideia

de se criar uma confederação que possibilitasse, não apenas o intercâmbio

de ideias e informação, mas também modelos de luta em defesa de questões

ambientais de importância geral.

Durante os meses seguintes, José Manuel Caetano integraria um núcleo de

ambientalistas de diversas organizações – incluindo duas de âmbito nacional:

a Liga para a Protecção da Natureza (LPN) e o Grupo de Estudos de

Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA) – com vista à criação da

Confederação Portuguesa das Associações de Defesa do Ambiente (CPA-

DA). Quando tudo levaria a crer que se conseguiria um consenso generalizado

– isto é, englobando a participação das três mais activas associações

nacionais, incluindo também a Quercus –, as negociações estagnaram. Porém,

José Manuel Caetano foi um dos que advogou que, apesar da não adesão

da LPN e da Quercus, se deveria avançar na mesma com a constituição

da CPADA. E assim se fez, em 5 de Abril de 1991, por iniciativa da FPCUB,

da Liga Portuguesa dos Direitos do Animal e do GEOTA.

Rapidamente, a CPADA colheu a adesão da esmagadora maioria das associações

não-governamentais de ambiente que, pela sua dimensão local e

regional, viram neste tipo de estrutura um excelente veículo para se manterem

informadas e potenciarem a sua acção junto dos poderes públicos.

De facto, actualmente a CPADA integra cerca de 110 associações de defesa

do Ambiente ou organizações não-governamentais deste sector. As áreas de

intervenção destas associações são das mais variadas, desde a conservação

da natureza e ordenamento do território, passando pelo património construído,

ambiente urbano e transportes alternativos, e terminando no bem-

-estar animal, agricultura biológica, educação ambiental e actividades de ar

livre, como espeleologia, montanhismo, escutismo e cicloturismo. Porém,

a união tem-se mantido incólume ao longo de mais de duas décadas e não

há registo de qualquer dissidência relevante.

170


PORTUGAL A PEDALAR

Carlos

Antunes

Empresário da área do ambiente, lutador antifascista

e co-autor do Manifesto Eco-Socialista

A

partir do fim do processo revolucionário, e sobretudo após o 25 de

Novembro de 1975, as questões da ecologia e do ambiente começaram

a preocupar todos aqueles que consideravam que este modelo

social não era sustentável. O meu interesse pela ecologia e a minha

simpatia pelas associações ambientalistas levou-me a participar activamente

num congresso em Setúbal, na segunda metade dos anos 70,

onde se produziu uma divisão entre política, entre aqueles que defendiam

a autonomia e independência deste movimento e entre os que, já

nessa altura, eram «submarinos» de forças partidárias.

Foi no seguimento deste processo que reencontrei o José Manuel Caetano,

em meados dos anos 80, quando ele era já um militante activo de

associações ambientalistas e fundara recentemente a Federação Portuguesa

de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB). Após esse

nosso reencontro, tivemos, ao longo das últimas décadas, oportunidade

de travar várias batalhas em prol da saúde, entre as quais as campanhas

contra o fumo do tabaco em ambientes fechados, e de promoção

da participação pública, nomeadamente com a organização do Fórum

Social Português. Também aqui, coincidimos na importância de combater

as tentativas de ingerência e de instrumentalização, por parte

de algumas forças políticas de esquerda, de modo a manter este fórum

completamente independente. Ao longo de todos estes contactos com

José Manuel Caetano, de tantas pedaladas e curvas da vida, nunca tive

oportunidade de com ele circular pelas estradas deste país. Não perdi a

esperança. Tendo aprendido na infância a andar de bicicleta – graças

à minha avó, que me dava 25 tostões todas as segundas- feiras para

alugar uma em São Pedro, na Serra da Cabreira, sei que nunca irei

desaprender. Um destes dias, na eventualidade de eu e o José Manuel

Caetano ficarmos velhos, por certo ainda teremos forças para percorrer

muitos mais caminhos, e dar muitas pedaladas.

171


PORTUGAL A PEDALAR

Para esta situação, muito contribuiu a forma como a CPADA nasceu e se

foi desenvolvendo. Seguindo, em certa medida, a filosofia imprimida por

José Manuel Caetano à FPCUB em relação aos seus núcleos cicloturísticos,

a CPADA nunca pretendeu substituir nem procurou protagonismo relativamente

ao trabalho das associações filiadas. Na verdade, constituiu-se,

sobretudo, como uma rede nacional de troca de informações entre as associações

e uma plataforma de debate de temas ambientais, assumindo-se

apenas indirectamente como parceira social em políticas de ambiente.

XIII Encontro Nacional das ADAS, com José Caetano, Carlos Antunes e Maria do Céu Sampaio (2007)

De facto, ao longo dos anos, embora a CPADA tenha desenvolvido projectos

autónomos, apenas em ocasiões muito especiais – quando se mostrava

útil transmitir uma opinião unanimemente concertada entre as diversas

associações – tomou uma posição pública, através de comunicados de imprensa

ou pareceres. Muito por influência do modelo de gestão seguido

por José Manuel Caetano na FPCUB, a CPADA acabou por servir, sobretudo,

de elo de comunicação entre as associações, assumindo um papel de

coordenação em diversas iniciativas quando se mostrava complexo, senão

impossível, assegurá-las de outra forma. Por exemplo, uma das principais

iniciativas da CPADA, ao longo dos anos, tem sido a realização do Encontro

Nacional de Associações de Defesa do Ambiente – que já conta com 24

edições até 2014 –, uma oportunidade única para que centenas de associações

de ambiente e de áreas similares de âmbito local e regional se encon-

172


PORTUGAL A PEDALAR

trem e debatam temas de interesse geral. Algo que seria difícil de realizar

sem uma estrutura confederativa.

Encontro Nacional das ADAs com a presença da ministra do Ambiente Elisa Ferreira, José Caetano e João

Caninas (1998)

Cerimónia de entrega do Prémio Carreira a Gonçalo Ribeiro Telles (2001)

173


PORTUGAL A PEDALAR

Bruno

Ribeiro Tavares

Assessor do Grupo Parlamentar do Partido Socialista na Assembleia da República,

Ambiente e o Ordenamento do Território

H

á tempos, recorri a uma frase de José de Almeida Fernandes (um

dos pais do ambientalismo português) para enquadrar uma investigação

sobre o ambiente e as políticas públicas de ambiente em Portugal:

“Como seria o nosso mundo humano se não existissem sonhadores

e seguidores de sonhos?” Uma frase que parece ter sido escrita a pensar

em José Caetano.

Na verdade, conheci José Caetano muito antes de o conhecer.

Quando, com os meus dezoito anos, me envolvi no meio associativo ambientalista,

no núcleo de Lisboa da maior associação de defesa do ambiente

nacional, o seu nome era assaz recorrente, não porque os interlocutores

fossem poucos (e quase sempre os mesmos), mas porque grande

parte da atividade de qualquer associação ambientalista em Portugal

passa pelo contacto com a Confederação Portuguesa das Associações de

Defesa do Ambiente (CPADA), surgida em 1991 pela mão do mesmo

José Caetano, agregando a generalidade das associações de defesa do

ambiente nacionais, e instituindo-se como sua representante. E porque

CPADA e José Caetano são e sempre foram indissociáveis.

De facto, a criação da Confederação Portuguesa das Associações de Defesa

do Ambiente, no momento em que se iniciava a mobilização dos

portugueses para as questões ambientais, seria apenas mais uma forma

de afirmar o protagonismo crescente de uma figura há muito ligada

ao meio associativo. Uma figura que vim a conhecer melhor em 2005,

quando, a convite do então candidato do Partido Socialista à Câmara

Municipal de Sintra, João Soares, elaborei o programa da sua candidatura

nos domínios do ambiente e do ordenamento do território. Na

apresentação daquelas linhas programáticas, em plena Serra de Sintra,

e entre tantas outras figuras ligadas ao meio ambientalista, estava José

Caetano, de quem rapidamente me tornei amigo – daqueles amigos

com quem, embora não estando embora muitas vezes, parece que o

estamos.

Foi, também, aí que o meu lado cicloturista conheceu o Senhor Bicicleta

em Portugal, no seu permanente Jour de Fête (quase como o carteiro do

filme de Jacques Tati, que, na sua graça ingénua, utiliza a bicicleta para

agilizar o seu trabalho e o dos outros), e ao lado de quem tenho tido a

174


PORTUGAL A PEDALAR

honra de participar na (e da) Federação Portuguesa de Cicloturismo e

Utilizadores de Bicicleta.

José Caetano é, aos setenta anos, um dos elos fundamentais entre a

sociedade civil e o poder político. A sua intervenção nos domínios da

formação e informação dos cidadãos, seja na promoção de projetos de

educação ambiental, de defesa do ambiente e do património, seja pela

permanente e ampla colaboração com autarquias, serviços da administração

pública, instituições públicas, privadas e cooperativas, escolas e

universidades, permitiu que tenhamos hoje várias gerações de pessoas

mais informadas, esclarecidas e ciclomobilizadas.

O testemunho que são estas poucas centenas de caracteres é isso mesmo:

linhas de amizade e gratidão. Amizade, porque o é. Gratidão, porque

estou grato por me ter cruzado um dia com José Caetano, e por

esse dia ter sido o primeiro, ser o de hoje, e, esperamos todos, todos os

que aí vêm.

E é por isso que sempre que o meu telefone toca e vejo o seu nome, me

questiono: como seria o nosso mundo humano se não existissem sonhadores

e seguidores de sonhos como José Caetano?

Cerimónia de entrega do Prémio Nacional de Ambiente a José Sá Fernandes (2004)

175


PORTUGAL A PEDALAR

Entrega do Prémio Nacional de Ambiente 2014 a Carla Castelo, jornalista da SIC com a presença de António

José Teixeira, director da SIC, José Caetano, Presidente da FPCUB e de Jorge Moreira da Silva, ministro do

Ambiente.

A CPADA criou igualmente os prémios nacional de ambiente e de carreira.

Para além disto, tem sido a CPADA a garantir a coordenação da eleição de

membros do movimento ambientalista para integrarem organismos consultivos

e de acompanhamento previstos nas leis orgânicas de Ministérios

ou de projectos públicos de âmbito local, regional ou nacional. Para tal, a

CPADA abre candidaturas, definindo regras e critérios em função do tipo

de «cargo» a ser preenchido, seguindo-se depois uma votação entre as associações,

incluindo as que não são suas filiadas, como a Quercus e a LPN.

Apenas no caso do Conselho Económico e Social a CPADA se constitui

como representante das organizações não-governamentais de ambiente,

integrando também o European Environmental Bureau.

176


PORTUGAL A PEDALAR

Entrega do Prémio Carreira 2014 a Carlos Pimenta por José Caetano e Jorge Moreira da Silva Ministro do

Ambiente

Apesar de somente desde 1998 ter assumido a presidência, como representante

da FPCUB, a CPADA tem vindo a desenvolver a sua actividade

muito por via da tenacidade e perseverança de José Manuel Caetano. Não

apenas por ele ter sido, desde sempre, um dos principais dinamizadores,

mas também graças à sua iniciativa, por ter estabelecido uma parceria

entre a CPADA e a FPCUB com mútuas vantagens económicas. De facto,

actualmente as duas organizações compartilham instalações e secretariado

em Lisboa, permitindo poupanças significativas em custos fixos.

177


PORTUGAL A PEDALAR

João

Caninas

Arqueólogo, dirigente do GEOTA

e co-fundador da CPADA com José Manuel Caetano

Conheci o José Manuel Caetano em 1987, num momento de forte

anímica em torno das questões ambientais. Corria o Ano Europeu

do Ambiente. Pertencendo a organizações diferentes, ele na FPCUB, eu

no GEOTA, fomo-nos aproximando, pela convergência num projecto

comum chamado Confederação Portuguesa das Associações de Defesa

do Ambiente e cimentando uma amizade que dura até hoje.

Fui conhecendo a personalidade de José Manuel Caetano e descobrindo

o seu genuíno interesse pelos problemas ambientais. Não recordo nenhum

momento em que tenha rejeitado uma boa causa. A sua energia

inesgotável e a incapacidade de estar parado revelaram-me uma vocação

marcante na organização de acontecimentos e na mobilização de

cidadãos, o que determinou a afirmação da FPCUB no meio associativo

como a maior ONGA portuguesa.

Por outro lado, é assinalável a sua permanente juventude, a par da sua

aposta, confiança e apoio aos mais jovens no meio associativo, principalmente

daqueles que correm mais riscos, por assumirem posições

frontais em relação a práticas reprováveis.

O José Manuel Caetano representa uma via de abordagem inclusiva dos

problemas ambientais, em que há lugar para todos, em divergência com

atitudes sectárias e elitistas no campo associativo. Julgo que é essa a via

sociologicamente mais adequada.

Desde a sua génese, a CPADA tem tido uma estrutura bastante ligeira –

sendo que os membros dos corpos sociais são representantes das associações

filiadas –, muito também por sugestão de José Manuel Caetano, que se

tem evidenciado como um dos seus principais timoneiros.

Mas não foi apenas na dinamização do intercâmbio entre associações ambientalistas,

através da CPADA, que José Manuel Caetano mostrou o seu

dinamismo ao longo das últimas décadas. Em meados de 1995, muito por

causa da sua amizade com o jornalista Humberto Vasconcelos e o arqueó-

178


PORTUGAL A PEDALAR

logo João Caninas – histórico dirigente do GEOTA –, foi também um dos

fundadores do Observatório do Ambiente, onde ocupou o cargo de tesoureiro.

Vocacionado para ser uma plataforma de divulgação e debate sobre

questões ambientais, o Observatório do Ambiente acabou por suspender

a sua actividade há cerca de uma década. Contudo, ao longo da segunda

metade dos anos 90, organizou um conjunto de debates e seminários relevantes

na área do ambiente. E chegou mesmo a publicar diversas obras, entre

as quais se destaca o livro «Eco-Entrevistas», que englobou quase duas

dezenas de entrevistas a políticos e personalidades nacionais, conduzidas

por destacados jornalistas.

Foi, aliás, também através do Observatório do Ambiente, em coordenação

com a CPADA, que, a partir de 1999, se instituiu o Prémio Nacional do

Ambiente Fernando Pereira – em memória do fotógrafo português, falecido

em 1985 a bordo de um barco da Greenpeace, devido a um ataque

dos serviços secretos franceses –, que tem vindo, com regularidade anual,

a galardoar personalidades, instituições e empresas com acções relevantes

em prol do ambiente.

Devido às sucessivas iniciativas da FPCUB na sensibilização sobre os riscos

do tabagismo para a saúde, José Manuel Caetano foi também um dos

principais dinamizadores da fundação da Confederação Portuguesa de

Prevenção do Tabagismo (COPPT), constituída em 25 de Março de 2004.

Esta decisão não é surpreendente. Afinal, desde 1987, a FPCUB começara a

desenvolver inúmeras campanhas nas áreas da saúde pública, do combate à

droga e da sensibilização para os riscos da SIDA e do tabaco. Através do uso da

bicicleta, as iniciativas da FPCUB conseguiram, de forma inequívoca, recuperar

inúmeras pessoas que estavam na dependência do álcool, droga ou tabaco.

Por outro lado, fomentando a utilização da bicicleta em acções de promoção

da saúde com escolas e juntas de freguesia, a FPCUB também foi

desenvolvendo programas de sensibilização em prol da qualidade do ar interior

e da defesa de espaços fechados livres de fumo. Isto sem contar com

os eventos cicloturísticos em todo o país, com grande mobilização, que

ocorrem anualmente no Dia Mundial Sem Tabaco (31 de Maio) e no Dia

do Não Fumador (17 de Novembro).

179


PORTUGAL A PEDALAR

Actualmente, reunindo um vasto conjunto de associações pertencentes

às áreas da saúde, da educação e do Ambiente, com interesses comuns na

prevenção do tabagismo em Portugal, a COPPT tornou-se uma influente

organização não-governamental na área da saúde, e sobretudo ao nível da

luta contra o tabagismo, quer na vertente preventiva, quer na do tratamento.

Teve, aliás, um papel fulcral na adopção da lei anti-tabágica em espaços

públicos. Porém, nos seus primeiros meses de existência «viveu» muito da

generosidade de José Manuel Caetano, que suportou alguns dos custos de

funcionamento, e lhe cedeu instalações para servirem de sede provisória. E

não é por acaso, mas sim pela sua forma de gestão, que José Manuel Caetano

tem sido escolhido, paulatinamente em cada acto eleitoral, para o cargo

de tesoureiro da COPPT.

Logotipos de entidades co-fundadas pela FPCUB e de eventos por si promovidos

180


PORTUGAL A PEDALAR

Luís

Rebelo

Presidente da Confederação Portuguesa de Prevenção do Tabagismo

Francamente não me lembro bem de como e onde conheci o José Manuel

Caetano. Mas sei que estaríamos por volta do ano 2000, em

Lisboa, quando nos cruzámos por causa da luta contra o fumo do tabaco.

Ambos tínhamos intervenção associativa – eu na Saúde, ele no Ambiente

e no Cicloturismo. Com outros, começámos a reunir esforços

com a finalidade de constituir uma Confederação para a Prevenção do

Tabagismo em Portugal. E, em Novembro de 2003, realizar-se-ia a Assembleia

Constituinte da Confederação Portuguesa de Prevenção do

Tabagismo (COPPT), com 16 instituições, integrando organizações

não-governamentais interessadas na prevenção e tratamento do tabagismo.

O José Manuel Caetano representava a Federação Portuguesa

de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB), tendo tido um

papel importante nos primeiros tempos da COPPT: «emprestaramnos»

a sede, o futuro logótipo foi executado por via do seu empenho,

e disponibilizaram o secretariado durante a fase da Comissão Instaladora,

que foi bem útil naquela época. Enfim, a experiência e os

contactos do José Manuel Caetano foram utilíssimos para o início e

afirmação da COPPT.

Hoje, Portugal tem uma lei de controlo do consumo do tabaco em

espaços públicos que, embora não seja perfeita, veio a ter um impacto

muito positivo na Saúde dos portugueses – poupou e poupa vidas e

anos livres de doença a muitos dos nossos concidadãos. E o José Manuel

Caetano, com a sua energia, convicção e trabalho, contribuiu

para isso e merece o nosso reconhecimento e louvor.

Mais recentemente, em 2011, José Manuel Caetano foi, também, um dos

principais dinamizadores do Clube Biciauto, que se poderá definir como

uma associação de automobilistas amigos da bicicleta ou então de utilizadores

de bicicleta que também usam o automóvel. Na verdade, o Clube

Biciauto pretende apenas destacar o óbvio: um automóvel ou uma bicicleta

são apenas veículos não incompatíveis entre si; e o mais importante

181


PORTUGAL A PEDALAR

é o respeito entre as pessoas, independentemente do veículo que possam

conduzir em determinado momento. Em suma, o objectivo desta associação

passa por promover a mobilidade inteligente, sensibilizando os automobilistas

para a utilização partilhada da bicicleta, transportes públicos e

outros modos suaves e sustentáveis, assim como para adoptarem comportamentos

de segurança e cidadania no espaço público e na estrada com os

restantes seus utentes.

Reunião preparatória da fundação da Confederação Portuguesa de Prevenção do Tabagismo (COPPT)

Deste modo, o Clube Biciauto defende medidas de acalmia do tráfego, a

convivência saudável entre automobilistas e utilizadores de bicicleta, bem

como com peões e com outros utilizadores de modos de transporte suaves

e ecológicos, procurando realizar acções de esclarecimento e sensibilização,

e ainda organizar cursos de formação na área da prevenção e segurança

rodoviária e utilização da bicicleta em meio urbano.

Enfim, tendo em consideração o histórico da multiplicidade de actividades

que José Manuel Caetano tem desenvolvido ao longo das últimas décadas,

provavelmente, dentro de mais alguns anos, este capítulo já estará desac-

182


PORTUGAL A PEDALAR

tualizado. Não se lamente; significa que ele continuou a percorrer o seu

caminho social. E sempre com a mesma garra. E de preferência com os pés

bem assentes nos pedais.

“Meu amor já veio de França,

trouxe-me uma Biciclete,

Ele diz que aquilo cansa,

Mas também não paga frete”.

Referência a António Aleixo, cauteleiro, que usava a bicicleta como meio de transporte. Esta quadra é o resultado

de uma busca sobre a bicicleta na vida do poeta popular, feita durante a organização do VII Sesimbra-

-Loulé (1993) traduzindo a mobilidade sem custo

José Caetano e seus amigos da Kumpania Algazarra em Lisboa, que têm animado o Festival da Bicicleta Solidária

(Pro bono) em Lisboa e Porto

183


PORTUGAL A PEDALAR

184


PORTUGAL A PEDALAR

Pelos trilhos da minha vida

Parece lugar-comum dizer-se que na meia-idade se fazem balanços da

vida. Julgo que em todas as idades se faz; se olha para o passado, se

perspectiva o futuro. Se tenta saber o que correu bem, aquilo que se poderia

ter feito melhor, e olha-se para frente com uma melhor consciência,

talvez mais amadurecida, do que a vida nos pode ainda dar e de como a

podemos influenciar.

Se assim é, um lugar-comum, fazer-se esse tipo de balanços, confesso

mesmo que assim sucedeu comigo. Interroguei-me, como muitos outros,

quando se fica a saber que não caminhamos para novos, mas que estamos

naquela fase em que o corpo e a mente estão no seu auge. Até então não

tinha queixas da vida. Usufruía de uma boa condição económica, fruto

do meu trabalho independente, uma família com filhos, mudara-me para

uma zona calma fora do bulício de Lisboa, viajava pelo Mundo, divertiame

com os amigos. Talvez tivesse tudo o que muitos ambicionavam. Contudo,

a vida não tem apenas isso como objectivo, comecei a compreender.

Trabalhava para coleccionar notas de mil; sentia ser quase uma prostituição.

Queria fazer algo por mim, mas também pelos outros. Queria, também,

fugir de uma vida sedentária, gozando outros prazeres da vida nos

quarenta anos seguintes.

Foi nestas reflexões que compreendi que, se o dinheiro não traz automaticamente

felicidade plena, permite algo de muito valioso: tempo. Ou seja,

concede-nos disponibilidade para gozar melhor o tempo. Mas não me via

a gozar desse tempo apenas com prazeres mundanos, nem me via, com a

idade a avançar, a jogar às cartas num qualquer jardim de bairro.

Estava então, em meados dos anos 80, numa altura da vida em que já fize-

185


PORTUGAL A PEDALAR

ra aquilo que o famoso ditado chinês considera necessário para usufruto

pleno da vida: plantara árvores, fizera filhos e, embora não tivesse escrito

qualquer livro, construíra uma vivenda. Faltava o livro, é certo, mas as letras

num papel também podem ser substituídas pelas acções, pelas marcas

indeléveis que imprimem na vida dos outros.

Não tinha ainda em mente aquilo que poderia fazer quando, mudado para

Santana, junto à Serra da Arrábida, comecei a andar de bicicleta – ou melhor

dizendo, retomei a bicicleta, que durante algumas décadas, depois da

minha juventude, ficara escondida pelos automóveis. Primeiro sozinho,

pouco depois com um pequeno grupo de pessoas, que fui conhecendo pelas

estradas, animando-nos mutuamente, até que cruzámos o Tejo para pedalar

com outros cicloturistas em Lisboa e noutras zonas do país. No início

de 1987, tendo já abandonado o tabaco, graças à bicicleta, senti forças para

integrar um pequeno pelotão de cerca de centena e meia de cicloturistas

que percorreram, em dois dias, os 300 quilómetros entre o Porto e Lisboa.

Com o meu grupo de amigos de Sesimbra, um núcleo de indefectíveis

amantes da bicicleta, decidimos então avançar para um desafio arrojado:

pedalar até ao Algarve. Aquilo que estava para ser um passeio cicloturístico

de algumas dezenas de pessoas haveria de se transformar, muito por via do

apoio do então Secretário de Estado do Ambiente, Carlos Pimenta, num

colossal pelotão de mais de mil cicloturistas, além de uma enorme comitiva

de apoio. No primeiro dia, mesmo já sabendo o número de inscritos,

lembro-me de ter pensado: «Grande confusão! Como me vou arranjar com

isto?» Mas arranjei-me, porque tinha muita gente para ajudar, e o espírito

de entreajuda dos cicloturistas, seu apanágio, deu um forte contributo. Foi,

sem dúvida, naquele passeio que germinou o movimento que hoje é a Federação

Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB).

E a «culpa» foi, em grande parte, do jornalista Humberto Vasconcelos, que

cobriu este raide para o extinto Diário Popular.

De facto, o Humberto Vasconcelos, que eu não conhecia, não parou de

insistir, ao longo dos primeiros dias do raide, que eu deveria aproveitar

aquele evento como peça mobilizadora de um organismo que congregasse

186


PORTUGAL A PEDALAR

os núcleos dispersos de cicloturistas. Fui acreditando nas suas palavras ao

primeiro dia, ao segundo dia; porém, ao terceiro dia, quase me senti traído.

Apesar do seu entusiasmo, a cobertura noticiosa no Diário Popular nos

primeiros dois dias centrou-se sobretudo na importância da zona que atravessámos

– e que hoje constitui o Parque Natural do Sudoeste Alentejano

e Costa Vicentina – e na acção da Secretaria de Estado do Ambiente. Esperei

que isso fosse «corrigido» nas suas reportagens seguintes. Porém, no

derradeiro dia, já no Algarve, ao confirmar que as lacunas se mantinham,

«ameacei-o»: que fosse almoçar a outro sítio; que a Secretaria de Estado do

Ambiente lhe pagasse o almoço. «Vai mas é tu aprender como estas coisas

do jornalismo se processam», rematou-me.

Não sei se ele almoçou connosco ou não – creio que sim, que me «desobedeceu»

–; mas no dia seguinte, já após o término do passeio, dei-lhe razão:

a sua cobertura noticiosa destacou tudo o que se passara ao longo daquelas

estradas alentejanas e da costa vicentina; transmitia sobretudo como um

evento cicloturista pode ser um eixo fundamental para levar uma mensagem

à sociedade. Mostrava, enfim, como as bicicletas são um elo virtuoso

de «transporte» de experiências, de camaradagem, de solidariedade.

Nas semanas seguintes, juntamente com alguns dos meus companheiros do

núcleo de Sesimbra e outras pessoas que conheci no raide para o Algarve,

bem como com os conselhos do Humberto Vasconcelos, fui amadurecendo

as ideias. Um primeiro contacto com a Federação Portuguesa de Ciclismo

mostrou-se infrutífero, por isso optámos por uma estrutura autónoma e

independente: o Centro Português de Cicloturismo.

A minha decisão de participar nesta «aventura» só foi tomada porque então

via que este projecto poderia representar um projecto de vida. Sabia

que tinha algumas pessoas que poderiam colaborar, como colaboraram,

mas também tinha já consciência, mesmo sem experiência nesta área, de

que muitas associações tinham a existência dificultada se não houvesse alguém

que as conduzisse. Enfim, que se pudesse dar ao luxo de disponibilizar

o seu tempo e mesmo alguns recursos numa fase inicial. Foi o que fiz:

não apenas cedi espaço físico num escritório que possuía, e que serviu de

187


PORTUGAL A PEDALAR

sede durante vários anos, mas também assumi que dedicaria dois dias por

semana e o fim-de-semana ao cicloturismo. Foi um esforço pessoal, mas

que me foi sendo «restituído» em satisfação pessoal, incluindo benefícios

para a minha saúde. Ver nascer e crescer este movimento, corporizado na

FPCUB, é motivo de orgulho pessoal, mas que julgo ser extensível a todos.

Seria injusto, e não devo, nem desejo, esquecer todos aqueles que, sobretudo

nos primeiros anos da FPCUB – e sabemos como a infância é um período

crítico –, deram um contributo fundamental. Sem eles, a FPCUB não

existiria, ou não seria aquilo que hoje conhecemos. Nos primeiros anos, o

trabalho da Luísa Carriço, do major Álvaro Santos, do Barroso Lopes, do

Joaquim Vieira e do Serra foram vitais, bem como a ajuda do Pedro Mendonça,

antigo inspector dos caminhos-de-ferro de Moçambique – que, então,

com os seus 65 anos, nos ofereceu os seus conhecimentos e maturidade.

Destaco igualmente Fernando Silvério, empresário de artes gráficas, pelo

apoio de mais de 20 anos. E também devo destacar o núcleo de cicloturistas

da Obra Social do Ministério das Obras Públicas, sobretudo a ajuda do seu

presidente, José Pereira, que, aliás, foi dos primeiros que aderiu à FPCUB e

inscreveu também logo os seus três filhos. De igual modo, não posso deixar

de salientar os cicloturistas da Sociedade Recreativa Alcantarilhense e dos

Bombeiros Voluntários de Alcantarilha. Enfim, foram muitos aqueles que,

quer no início, quer ao longo destas mais de duas décadas e meia, de forma

pontual ou permanente, como associados ou participantes dos eventos,

nos deram a sua força e estímulo para continuarmos e melhorarmos.

Numa organização não-governamental, como é a FPCUB, também cabe

destaque para o papel dos mecenas. E aqui devo bastante, sobretudo no início,

à cadeia de relações comerciais que fui desenvolvendo ao longo da minha

actividade profissional. Ou então soube «aproveitar» a solidariedade

de alguns responsáveis de empresas que eram também utilizadores de bicicleta.

Exemplo disso sucedeu com a seguradora GAN – actual Groupama

Seguros –, cujo administrador em Portugal naquela época, que eu conhecia

bem, era um francês que usava regularmente a bicicleta. A GAN começou,

primeiro, a apoiar o núcleo de cicloturismo de Sesimbra e, pouco mais

188


PORTUGAL A PEDALAR

tarde, com a fundação da FPCUB, consegui que todos os associados passassem

a usufruir de seguro de acidentes pessoais e de responsabilidade civil,

um benefício inquestionável para o seu crescimento. Durante alguns anos,

o director comercial da GAN, Vilela da Silva, ocuparia mesmo o cargo de

presidente do Conselho Fiscal da FPCUB.

Muitas outras empresas das minhas relações foram, também, apoiando

a FPCUB através de diversas formas. Acredito que, em alguns casos, não

tenham obtido retorno comercial imediato; talvez aceitassem dar apoios

por falta de coragem para recusar o pedido. Pouco importa se assim foi.

No entanto, muitas dessas pessoas estranhavam, ou achavam mesmo uma

loucura, eu ter-me metido nas bicicletas; achavam que devia dedicar-me

ao golfe ou ao ténis, onde era mais usual e fácil obter apoios e patrocínios.

A minha vivência na FPCUB também me permitiu um enriquecimento

pessoal, que procurei retribuir aos associados, por via dos contactos com

as nossas congéneres estrangeiras. Pude aí constatar o muito que já se fizera

lá fora, e se continuava fazendo, e, portanto, também o muito que teríamos

aqui, em Portugal, de fazer. No entanto, sempre fiz um esforço para

que Portugal não tivesse, nesses contactos, uma atitude de inferioridade, de

«aluno» que ia apenas aprender. Pelo contrário, assumi desde o início que a

FPCUB poderia constituir-se como parceiro activo e cooperativo junto das

diversas entidades do cicloturismo, do turismo e da mobilidade, daí que rapidamente

tenhamos aderido à Alliance Internationale de Tourisme (AIT),

à European Cyclists’ Federation (ECF) e mesmo à Federação Internacional

do Automóvel (FIA), para além de parcerias com associações espanholas

no âmbito da Coordenadora Ibérica em Defesa da Bicicleta (CONBICI). E

foi por isso, com naturalidade, que a FPCUB começou a organizar grandes

eventos internacionais na área do cicloturismo e da utilização da bicicleta.

Mas foi, sem dúvida, no contacto com as experiências no estrangeiro que

me apercebi do quanto estávamos «obrigados» a evoluir, do quanto teríamos

de reivindicar e lutar para que a bicicleta fosse tratada em Portugal

como um veículo essencial para a melhoria da mobilidade urbana. Que

se Londres, Nova Iorque e tantas outras cidades, muitíssimo mais popu-

189


PORTUGAL A PEDALAR

losas do que Lisboa, tinham nas bicicletas um meio de transporte quotidiano,

sendo usadas por pessoas das mais variadas condições económicas,

teríamos de o fazer também em Portugal. Esse sempre foi um dos nossos

grandes objectivos, e temos alcançado patamares muito positivos, embora

ainda não os desejáveis. Aliás, não deixa de ser curiosa a reacção de um

embaixador do Reino Unido em Portugal, que andava de bicicleta por Lisboa,

quando recebeu um nosso prémio. Estranhou ele que em Portugal se

destacasse uma pessoa em concreto por usar esse meio de transporte tão

habitual noutros países.

No entanto, também aprendi nesses contactos que a maior ou menor sensibilidade

para as bicicletas não é apenas uma questão cultural. Por vezes,

há casos especiais, até mesmo trágicos, que despoletaram mudanças. Por

exemplo, se hoje a Holanda constitui o paradigma do país onde a bicicleta

é acarinhada como transporte quotidiano, muito se deveu às alterações

introduzidas pelas autoridades daquele país nos anos 70 do século passado,

após a morte, por atropelamento, do filho de um conhecido médico.

Também nós, infelizmente, tivemos o nosso «mártir», o jovem biólogo José

Miguel Afonso, abalroado por um automóvel no início de 1999, quando

seguia na sua bicicleta. Para o bem e para o mal, deu início a uma progressiva

mudança da mentalidade dos nossos políticos sobre a segurança das

bicicletas no meio urbano, e que culminou com a recente alteração das

normas do Código da Estrada.

Ao longo dos anos, a bicicleta e a FPCUB acabaram assim por se tornar

as minhas ocupações principais e, a partir de 2003, mesmo exclusivas. E

até modificaram também a minha forma de fazer férias. Desde a década

de 90, tenho sempre usufruído, nas minhas viagens turísticas, da bicicleta

como companheira. Ou alugo uma em qualquer sítio ou transporto uma

das minhas. São sempre momentos para recordar. Elas tornaram as viagens

inesquecíveis, mesmo se algumas cheias de peripécias. Recordo-me bem da

minha viagem entre São Francisco, nos Estados Unidos, e Tijuana, no México.

Ou ainda da volta que dei em Maui, no Havai, em Maio de 2004, onde

até cheguei a dar de caras com Steven Spielberg numa oficina de bicicletas.

190


PORTUGAL A PEDALAR

Por causa delas, só por causa das bicicletas, tive oportunidade de ali entabular

conversa com ele por algum tempo; e também, diga-se, por ser português,

pois este realizador estava a preparar-se para iniciar as filmagens do

filme «A Guerra dos Mundos», que em parte decorreram em Newark, onde

existe uma grande comunidade portuguesa.

Mas talvez a minha mais marcante viagem de bicicleta tenha sido na Florida,

em Agosto de 1990, com um grupo de amigos. Desejávamos sair de

Orlando, passar por Tampa, atravessando o Parque Nacional de Everglades

e Fort Lauderdale, e retornar a Orlando. Contudo, no dia da nossa partida

para os Estados Unidos eclodiu a Guerra do Golfo. Devido às restrições

aeroportuárias, ficámos sem voo de ligação em Nova Iorque, sem bagagens

nem bicicletas, e só conseguimos chegar ao destino muito depois, cansadíssimos.

Mas bastaria, em Orlando, a ajuda de um rico rancheiro para nos

animar: tendo-nos visto no meio da rua a montar as bicicletas, talvez com

cara de desalento, ofereceu pronta guarida. Ele era também um amante de

bicicletas, e isso mostrou-se suficiente para ajudar uns desconhecidos.

De facto, nestas viagens e nas minhas vivências com a FPCUB – e qualquer

pessoa pode confirmar isto –, a bicicleta é, quase em qualquer parte

do mundo, mais do que um meio de locomoção que exercita o espírito

e a mente, que possibilita a fruição do espaço e do tempo de uma forma

inigualável. A bicicleta constitui, verdadeiramente, o melhor dos cartões de

apresentação, ou de visita. A bicicleta é, na verdade, um elo de comunicação,

um veículo de solidariedade muito especial. Podemos não conhecer o

parceiro, ter formações distintas, percursos de vida quase antagónicos, visões

do Mundo muito diferentes, mas, em cima de uma bicicleta, tudo isto

se esquece, tudo renasce como se todos fôssemos companheiros de longa

data, como se as conversas fluíssem ao sabor das pedaladas. A bicicleta seria

a única forma de juntar Einstein com um analfabeto de Trás-os-Montes, e

vê-los a conversar animadamente.

A bicicleta é, para mim, a eterna juventude ou a juventude recuperada. Não

me esqueço de que um dia recebi um troféu, de um anónimo, com uma

frase em que me agradecia, através da FPCUB, ter contribuído para que

191


PORTUGAL A PEDALAR

esse grupo visse horizontes que julgavam perdidos para sempre. Também

não me esqueço daquele reformado que, há já alguns anos, quando me

surpreendi com a sua bicicleta vistosa topo de gama e lhe perguntei quanto

tinha custado – deveria ter sido cerca de 7.500 euros –, me devolveu: «E já

me perguntaste se eu tive adolescência?»

E, sobretudo, devo também reconhecer que foi através das iniciativas da

FPCUB, e de muitas das suas incansáveis delegações ou núcleos afiliados,

que muitas pessoas começaram, ou recomeçaram, a andar de bicicleta,

muitas recuperando de problemas de saúde ou de hábitos debilitantes.

Noutros casos, ensinámos literalmente muitas pessoas a andar de bicicleta,

através de cursos, permitindo, por exemplo, que muitas mães pudessem

acompanhar os seus filhos em passeios. Ou até, como sucedeu recentemente,

que juristas e técnicos da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária

aprendessem a andar de bicicleta e que, dessa forma, compreendessem a

necessidade e urgência de melhorar as condições de segurança nas estradas,

no caso concreto dos velocípedes.

Na fase de consolidação da FPCUB, muito contribuíram todos os amigos

que me foram acompanhando nas diversas direcções. E devo, também, destacar

a ajuda da Ana Louro, que, desde 1994, quando ainda jovem engenheira

de ambiente, e até recentemente, deu um contributo decisivo para

a melhoria técnica da intervenção da FPCUB nas áreas do ambiente e da

promoção da bicicleta. Foi ela também o nosso elo de ligação a organizações

internacionais e representou as associações de defesa do ambiente no

Instituto de Promoção Ambiental, no Conselho Nacional do Ambiente e

Desenvolvimento Sustentável e na Direcção Geral de Viação, em nome de

um Código da Estrada amigo da bicicleta.

Também fundamental se mostrou um vasto conjunto de voluntários, alguns

cheios de vitalidade na sua juventude – como o Clube 3 A ou os Kid

Karcaça – Jovens Ambientalistas de Queluz –, que foram dinamizando

eventos e dando apoio no muito trabalho organizativo, porque a FPCUB,

para pôr outros a pedalar, tem muito que fazer nos bastidores.

Nos últimos anos, fruto de um crescimento sustentável, que garantiu a sua

192


PORTUGAL A PEDALAR

sustentabilidade económica, a FPCUB alcançou uma dimensão que lhe

permite ambicionar ainda mais. Concretizar mais projectos com equipas

a tempo inteiro. Temos acolhido muitos estudantes em fim de curso superior

para a realização de estágios profissionais em gestão de desporto,

sociologia, economia e mobilidade, e conseguimos agora deter um conjunto

de técnicos de diversas áreas para a elaboração de estudos, relatórios e

projectos. E temos ainda a disponibilidade de algumas personalidades de

topo – como Crisóstomo Teixeira, José Manuel Meirim, Pedro Roque de

Oliveira, José Paulo Esperança, Miguel Barroso, Agostinho Miranda, Jorge

Coelho, Carlos Gaivoto e José Limão (Transportes em Revista) entre outros

– que integram o nosso Conselho Consultivo para o Desenvolvimento

Sustentável, criado em 2008.

Enfim, mais de duas décadas e meia depois da fundação da FPCUB, ainda

há muito para fazer – e eu quero fazer ainda mais –, mas se fosse obrigado

agora a um novo balanço da minha vida, dir-vos-ia então que me sinto

um homem realizado e satisfeito, mais do que quando tinha 40 anos. E

muito por causa da FPCUB, e muito por aquilo que hoje a FPCUB representa

para muitos. Tudo isto não o fiz sozinho, é certo; nem desejava que

assim fosse. Afinal, quando pedalamos uma bicicleta, preferimos não estar

sozinhos. Acompanhados, dando ao pedal direito e ao pedal esquerdo, andamos

melhor e com aparente menor esforço. Na bicicleta, como na vida.

José Manuel Caetano

Lisboa, 14 de Abril de 2015.

193



PORTUGAL A PEDALAR

Arquivo Fotográfico e Histórico

José Caetano aos 17anos, com o seu habitual meio de transporte, 1960 Baixa da Banheira

195


PORTUGAL A PEDALAR

José Caetano encabeça e coordena a 1.ª Edição do Sesimbra / Algarve (1987)

1º encontro de cicloturismo no Algarve, Alcantarilha (1988)

Encontro em Sesimbra — Meca do Cicloturismo (1989)

196


PORTUGAL A PEDALAR

Concentração em Vila Verde (1990)

Concentração em Évora (1991)

Inicie o Ano a Pedalar Lisboa (2009)

197


PORTUGAL A PEDALAR

Primeira sede da FPCUB, em Olho de Boi (Almada) (1990)

Barcelona, 1988 FPCUB-BTT Mertola-Cachopo, 1990

FPCUB-BTT Mertola-ria Alvor, 1990

FPCUB, Ponte Vasco Gama

“Tejo Ciclável” 2012

FPCUB, Dia internacional da mulher, Lisboa (2015)

198


PORTUGAL A PEDALAR

FPCUB, Porto cycle chic, 2012

FPCUB e Kumpania Algazarra, Festival

da Bicicleta solidária Porto, 2013

FPCUB, Festival da Bicicleta solidária

Porto, 2013

FPCUB, Luzes Natal e bicicleta Lisboa,

2013

FPCUB e Junta de Alvalade, 2014 FPCUB, Audace na Moita, 2014

FPCUB/C.M. Lisboa Rock in Rio, 2014

FPCUB Fidalbyke 1000 Luzes, Dez. 2015

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PORTUGAL A PEDALAR

José Morais, FPCUB comunicação

Miguel Barroso, FPCUB mobilidade

Gonçalves “Estica”, FPCUB voluntário

Leonel Mendonça, FPCUB formador

Eduardo Soares, FPCUB delegado, Paris

António Baganha, FPCUB voluntário

Paulo Lopes, FPCUB voluntário

FPCUB, Paulo Rodrigues (Pato Cycles)

e José Caetano

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PORTUGAL A PEDALAR

FPCUB / C. M. Lisboa Rock in Rio 2014

Ladisláu Ferreira, FPCUB voluntário

FPCUB, voluntárias Rock in Rio 2014

O amor pela bicicleta como icon

FPCUB e o criativo Ayko assinalam

com um punho no guiador ciclovia

Santa Apolónia, 2014

FPCUB e Strider Bikes, preparando o futuro com crianças

201



PORTUGAL A PEDALAR

Agora pedalo eu

Albert Einstein expressou o desejo de ver todas as teorias físicas, essenciais

para compreender o Mundo e as nossas vidas, descritas de

uma forma tão simples que até uma criança as pudesse entender. Mas este

cientista, também filósofo, explicou que a vida é como andar de bicicleta;

que para manter o equilíbrio se tem de imprimir um contínuo movimento.

O progresso tem a si associado, com efeito, um contínuo movimento. E a

bicicleta constitui um paradigma do progresso. Faz parte do progresso, mas

jamais, como sucede com muitas outras coisas, se mostrará obsoleta; pelo

contrário. Uma máquina aparentemente simples, articulada pelo próprio

esforço humano, deslocando-se pela força e pela vontade do seu condutor,

para um destino. Não existe melhor analogia para os objectivos que devem

nortear as sociedades.

Mas a bicicleta, o uso da bicicleta, em si mesmo, é muito mais do que isso.

O sonho de uma criança, depois de aprender a andar e a correr, só pode

ser saber andar de bicicleta. Triste será uma infância sem uma bicicleta. E

se houve muitos momentos de alegria na minha infância, nunca esquecerei

um Natal de há quase quatro décadas, quando os meus pais – que

me diziam ir oferecer um pijama – me surpreenderam com uma bicicleta.

Naquela altura não havia à mão as máquinas de filmar, mas consigo facilmente

imaginar a minha felicidade. Todos os pais podem saber isso agora:

ofereçam uma bicicleta aos vossos filhos e verão que não há Playstation

ou coisas que tais que a suplantem. No momento da oferta, e depois de

os filhos aprenderem. Não apenas aprenderem a andar; apreenderem, sim,

que a liberdade só se reconhece inteiramente em cima de uma bicicleta,

sentindo que se ultrapassam as limitações do nosso corpo, percebendo o

ar que se respira, olhando por outro prisma o mundo que nos rodeia e que

203


PORTUGAL A PEDALAR

vai passando à medida que pedalamos. E mesmo as quedas são, em muitos

casos, uma lição de vida: levanta-se e continua-se a pedalar.

Aprendendo-se a andar de bicicleta, nunca se desaprende, costuma dizer-

-se. Contudo, se isto é uma verdade, também tem de se admitir que, infelizmente,

nas últimas décadas não se fez tudo aquilo que se deveria para as

nossas crianças, e os adultos que o foram, possam usufruir de um passeio

de bicicleta, de a usar no quotidiano, sobretudo nas cidades.

Cresci numa região, no distrito de Aveiro, onde a bicicleta era, e felizmente

ainda continua a ser, um veículo de transporte comum. Talvez um pouco

menos agora. Durante a adolescência, foi graças a elas que tive maior liberdade

de deslocação; não consigo imaginar a minha vida sem elas. Porém,

hélas, comportei-me como muitos quando chegaram a adultos. Enquanto

frequentei a universidade, em Évora, ainda andei bastante de bicicleta – até

ao dia em que, enfim, ma roubaram; mas, iniciando a minha vida profissional,

em Lisboa, em meados dos anos 90, parecia loucura usar uma. Nem

isso me passava então pela cabeça. Tinha carro e, além disso, seria quase

suicida então percorrer as ruas de Lisboa.

O convite que recebi do José Manuel Caetano – de quem sou amigo há já

quase duas décadas, com quem me cruzei e convivi em muitas ocasiões e

nobres lutas – para escrever este livro, fez-me reflectir de modo mais profundo

sobre muitos aspectos da sua vida e do seu trabalho. Tinha mais ou

menos a idade que ele tinha quando criou o Centro Português de Cicloturismo

– a entidade precursora da Federação Portuguesa de Cicloturismo

e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB) –; tinha talvez os mesmos «desregramentos».

Mas, também tinha – ou melhor, tenho agora –, muito por via do

seu trabalho e da FPCUB, outras condições para olhar para as bicicletas,

mesmo em espaço urbano. E também poderia beneficiar dos avanços tecnológicos,

algo nada despiciendo para quem andara na juventude apenas

em pasteleiras.

Em suma, enquanto estava na escrita deste livro, adquiri uma bicicleta.

Para quem usa uma com frequência – que será certamente a esmagadora

maioria de quem ler estas linhas –, não vale a pena explicar aquilo que

senti e tenho vindo a sentir. Para os outros, não divulgo para não estragar

204


PORTUGAL A PEDALAR

a surpresa. Posso apenas dizer que, com a minha nova bicicleta, readquiri

aquela alegria de sentir o vento na cara; que fico com uma inusitada satisfação

pessoal de «conquista» sempre que melhoro um determinado tempo

de percurso ou subo com maior facilidade uma estrada; que não me preocupo

agora, nas deslocações quotidianas, em saber se encontro lugar de

estacionamento e quanto pode custar-me; que em muitos casos demoro

menos tempo a chegar a um certo local em comparação com uma viagem

de carro; que tenho vindo a poupar imenso dinheiro em combustíveis; e,

last but not the least, sinto já alguns benefícios na minha capacidade física.

Enfim, de um ponto de vista egoísta, este livro vale por isso. Mas vale muito

mais, obviamente. Vale por destacar o papel de um homem que marca

e marcará o mundo das bicicletas em Portugal, por retratar o percurso de

duas décadas e meia de existência da Federação Portuguesa de Cicloturismo

e Utilizadores de Bicicleta. Porém, talvez ainda mais: representa sobretudo

um testemunho para a actual e futura gerações sobre a necessidade de nos

mobilizarmos por causas, de mantermos sempre o equilíbrio para atingirmos

o progresso que desejamos e merecemos. E, também, para ficarmos

conscientes de que nunca devemos recuar naquilo que fomos conquistando.

Fico, portanto, muito honrado por, através da escrita deste livro, poder

transmitir uma pequena amostra daquilo que José Manuel Caetano tem

feito e ainda vai, por certo, fazer. E também agradecido, porquanto, graças

ao seu convite, me reaproximei dos dois pedais. Hoje, muito por causa da

escrita deste livro sobre a sua vida e a FPCUB, a bicicleta passou a ser o meu

veículo preferencial, Lisboa acima e Lisboa abaixo. Sou, portanto, uma boa

testemunha dos benefícios e dos bons resultados que se obtêm a todos os

níveis quando se opta por andar de bicicleta. Muito provavelmente, sem

a insistência e persistência do José Manuel Caetano, agora que estou na

meia-idade, talvez tal não tivesse sucedido. Por tudo isso, muito obrigado.

Pedro Almeida Vieira

ADENDA: Cerca de um ano após ter iniciado a escrita deste livro, uma gripe “empurroume”

para a cama por uns dias. De lá, saí, recuperado e com uma decisão tomada: deixar de

fumar. Não duvidem de que sem a bicicleta não teria conseguido manter a decisão. E hoje,

passado mais de meio ano sem tabaco, são as ladeiras subidas de bicicleta, sem me apear,

que me convencem de que há todo um mundo para pedalar sem fumar.

205



Índice

Prefácio .......................................................................................................... 5

Uma rápida história da bicicleta .................................................................. 7

Uma vida quase vulgar ................................................................................ 23

De Sesimbra ao Algarve se refaz uma vida ................................................ 29

Nunca perder o pé ....................................................................................... 43

Um início a sprintar .................................................................................... 51

Da estrada às montanhas ............................................................................ 63

Um equilíbrio dinâmico ............................................................................. 75

Transpor fronteiras ..................................................................................... 87

Um Estado pouco reconhecido ................................................................ 101

À conquista da capital ............................................................................... 113

Pedalar por mais espaço ........................................................................... 133

A segurança em primeiro lugar ................................................................ 145

Sempre a inovar ........................................................................................ 155

Mais do que pedalar .................................................................................. 169

Pelos trilhos da minha vida ...................................................................... 185

Arquivo Fotográfico e Histórico ............................................................... 195

Agora pedalo eu ........................................................................................ 203



Federação Portuguesa de Cicloturismo

e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB)

A FPCUB foi fundada em setembro de 1987, sendo uma pessoa coletiva

de utilidade pública composta por 1.200 associações e clubes

e representando, atualmente, cerca de 33.000 associados.

A sua atividade tem como principais objetivos a defesa do ambiente, defesa e

divulgação do património cultural, histórico, edificado

e arqueológico através da promoção da bicicleta como forma de mobilidade

sustentável (bem como a defesa da segurança dos seus utilizadores),

e o desenvolvimento da prática do cicloturismo ecologista de lazer, manutenção e

turismo, representando-o internacionalmente e em Portugal.

É uma Organização Não Governamental de Ambiente de âmbito nacional, membro

fundador da Confederação Portuguesa das Associações de Defesa do Ambiente (de

que detém a Presidência do Conselho Executivo),

da Confederação Portuguesa de Prevenção do Tabagismo e da Union Européenne de

Cyclotourisme, integrando igualmente a European Cyclists’ Federation, a Aliança

Internacional de Turismo, a Federação Internacional do Automóvel e a Coordenadora

Ibérica em Defesa da Bicicleta.

Desenvolve o projeto Portugal Ciclável, com o objetivo de sensibilizar

a administração pública para a necessidade de criação de condições seguras para a

utilização da bicicleta e como forma complementar de mobilidade não poluente e em

integração com os transportes coletivos. Ao longo

dos anos, a Federação tem assumido um papel decisivo na sensibilização dos diversos

operadores de transportes públicos coletivos no sentido

de permitirem o transporte gratuito de bicicletas por parte dos passageiros.

Tem organizado inúmeros eventos mobilizadores, sensibilizando para

a importância da bicicleta para as pequenas deslocações pendulares.

Promove a bicicleta nas sucessivas edições do Dia Europeu Sem Carros

e da Semana Europeia da Mobilidade.

Desde 2006, institui o Prémio Nacional Mobilidade em Bicicleta, como forma de

reconhecimento público do contributo de determinadas entidades que tenham

promovido a utilização da bicicleta nas suas múltiplas vertentes.

A FPCUB é a coordenadora nacional da EuroVelo – Rede Europeia de Rotas Cicláveis.

A FPCUB é parceira da Iniciativa Europeia de Cidadãos 30km/h – Por Ruas Seguras e é

da sua responsabilidade o Plano de Mobilidade Ciclável para

o Município de Loulé (2013).

Desde a sua fundação, a Federação tem-se constituído num importante parceiro da

administração pública e das forças de segurança PSP e GNR para o reforço das

condições de segurança dos utilizadores de bicicleta. Também por isso, integrou, entre

2012 e 2013, a Unidade de Missão para

a Elaboração da Carta de Mobilidade Ligeira, permitindo alterações

ao Código da Estrada com resultados bastante favoráveis

para os utilizadores de bicicleta.


A bicicleta mantém-se hoje como um dos veículos mais usados no Mundo, contribuindo não

apenas para uma mobilidade ecológica como também para combater o sedentarismo e melhorar

a saúde dos seus utilizadores.

Contudo, em Portugal, se as bicicletas abundam agora na estrada e fora dela, e mesmo

nas cidades, correu o risco de se tornar uma raridade nos anos 80, pela desenfreada promoção

do uso dos veículos motorizados. Para inverter essa tendência, a Federação Portuguesa de

Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta (FPCUB) investiu, desde 1987, na mobilização da opinião

pública e na pressão e sensibilização dos poderes políticos com vista à melhoria das condições

de acessibilidade e segurança para o uso deste meio de transporte mais ecológico e saudável.

Se muitos hoje pedalam, se hoje se vê Portugal a pedalar, há porém um rosto que contribuiu

em todas as fases para essa mudança: José Manuel Caetano, fundador e presidente da FPCUB.

Este livro, mais que uma homenagem a quem ousou sonhar e soube melhor concretizar,

é um retrato da acção da FPCUB e dos seus associados. É uma prova de que valeu o esforço,

mas também da necessidade de continuar caminho.

Há ainda, e sempre, muito para fazer. Haja estradas, montes e cidades e vontade para pedalar.

PORTUGAL A PEDALAR

A história de vida e empenho de José Manuel Caetano, fundador e presidente da Federação

Portuguesa de Cicloturismo e Utilizadores de Bicicleta.

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