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Reticências - Os Melhores do Ano

Sexta-feira é sinónimo de Reticências. Na primeira edição do ano, uma retrospectiva pelo que de melhor se fez na cultura em 2019. Já nas bancas com o Ponto e Vírgula;

Sexta-feira é sinónimo de Reticências. Na primeira edição do ano, uma retrospectiva pelo que de melhor se fez na cultura em 2019. Já nas bancas com o Ponto e Vírgula;

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N.º 1 | ANO 1 | ENTREGA COM O PONTO E VÍRGULA DE SEXTA-FEIRA, 10 DE JANEIRO DE 2020

RETI

^

CEN

CIAS

+

Richard

Zimler

A alma e o coração,

da literatura para o mundo

O efeito

Rosalía

A lição religiosa, o

concerto do ano

Os melhores do ano.



RETI

^

CEN

CIAS

O ano em que foi

difícil escolher

2019 foi um ano de excelência cultural.... Perdemo-nos por entre notas musicais

e diálogos de séries, composição fotográfica e planos cinematográficos, tecidos

invulgares e as multidões de concertos. Perdemo-nos, mas encontramo-nos

também. Agora, queremos partilhar estes novos pedacinhos de nós com todos

os que nos quiserem ler. Porque a arte existe para ser partilhada e a beleza está

e todas as coisas - basta olharmos com atenção.

6

O primeiro suspiro

A entrevista aos First Breath

After Coma, banda que lança

o terceiro álbum de estúdio.

20

O efeito Rosalía

O concerto do ano para

a equipa do Reticências

44

Goodbye, friend

A despedida em excelência

de Mr. Robot

29

“É melhor ter sorte do

que ser bom”

A entrevista a Stuart Dryburgh, cineasta

que já foi nomeado aos Óscares.

54

Passado, presente

e futuro

Os 60 anos da RTP no Porto

66

A alma e o espírito

de Richard Zimler

A entrevista ao autor

norte-americano.

3


CONTEMPLAÇÕES

Recetáculo do

absurdo com sentido

esafiaram-me a escrever. Mas, então,

tenho que escrever uma crónica?

Sobre qualquer tema? Poderia

escrever sobre o preço do pão, sobre

as minhas resoluções para este Dano ou, talvez, sobre o ciclo repetitivo da vida.

Mas não me apetece particularmente escrever

sobre qualquer um desses. Assim, não tenho

tema.

Pensando bem, também há espaço no

mundo das crónicas para isso. Crónica é liberdade

textual, não é? O local para o tudo e para

o nada, onde as divagações fazem perfeito sentido

e o sem nexo e inexequível encontram um

lar.

São 3 da manhã e tenho tendência para

oscilar entre o planeamento meticuloso e desgastante

de textos – provocado pelo meu zeloso

perfecionismo, que ocasionalmente surge,

sempre sem ser convidado – e a escrita impulsiva

e sem qualquer tipo de ponderação. Nem me

atinge. Sou o meio, não o início. A mão mexe

sozinha e a caneta despeja marcas de tinta na

folha. Sem tema é complicado. Mas é um desafio

que imponho a mim mesma.

A crónica sem tema e sem sistema.

Só assim é que faz sentido. Quando nada

faz sentido e não existe qualquer controlo. As

palavras fluem e flutuam à nossa volta; não

as podemos apanhar, escapam à nossa compreensão.

Elas não são nossas – e nunca serão.

Possuem vontade e desejos próprios. Nós somos

apenas o recetáculo, a frincha, o veículo

pelo qual se exprimem. Transbordam do mundo

abstrato para o mundo concreto. De concreto

pouco têm; podem significar tudo e nada,

abranger a partícula mais ínfima ou o cosmos

na sua completa imensidão.

Concreto. Mas nem palpáveis são. Como

poderiam ser concretas? Coerência, ordenação,

gramática, pontuação – tudo convenções, ideias

e teorias que criamos, mas que significam absolutamente

nada. E se elas não concordarem?

Como é? Pedimos-lhes com gentileza? “Deixas

que ponha uma vírgula aqui?”

O absurdo de tudo isto. O absurdo da

existência e do ser humano. O absurdo de termos

criado as palavras e os significados, mas,

quais filhas emancipadas, estas terem crescido

e nos ultrapassado. Cresceram e tornaram-se

algo superior a nós. A Humanidade desaparecerá,

mas as palavras continuarão aqui.

Quando já não houver ninguém para as

proferir, vociferar, ouvir, por elas se fascinar;

quando os ossos do último ser humano tiverem

desaparecido, quando cinzas e poeira cósmica

forem tudo o que ondula à superfície do planeta

– juntamente com uns pontinhos de luz,

claro está – elas cá estarão. Gravadas em papel,

rocha, computadores, bases de dados, bunkers

ou estações espaciais. Em ondas pelo espaço,

ainda a navegarem, para cada vez mais longe,

na esperança de serem captadas e compreendidas

por outra civilização. Na forma de entidades

etéreas. Elas cá estarão.

Rebeldes e livres. Infinitas e incontroláveis.

Imutáveis, mas em eterna evolução.

Sofia Matos

Silva

4


Votos de esperança

para o Cinema

português

019 terminou e a indústria de Cinema

tem muito em que pensar. A

Netflix continua a servir de plataforma

para grandes autores testarem

ideias arrojadas. A Disney 2e a Apple entraram no ringue do streaming. A

bilheteira viu o filme mais bem-sucedido de

sempre.

No entanto, apesar de mais de dois

mil milhões de euros de Endgame e oito dos

restantes nove(!) filmes da Disney renderem

mais de mil milhões de euros na bilheteira, as

receitas globais foram inferiores ao ano passado.

Em novembro, só um filme (Ford v Ferrari)

não foi um falhanço de bilheteira. Não só isso

como a indústria ainda está a recuperar do recorde

de baixo número de espetadores em salas

de 2017. Ou seja, os filmes estão cada vez mais

caros e há cada vez menos pessoas a ir vê-los.

Esta problemática merece a sua própria

reflexão, mas vamos colocá-la de lado para

falarmos de um país que fugiu à regra: Portugal.

Desde 2015 que os cinemas portugueses

têm recuperado o número de espetadores e

2019 é o melhor ano desta subida, ultrapassando,

provavelmente, a marca dos 15 milhões de

portugueses em salas.

Num mercado global dominado pela

Disney, que deteve 80% das receitas feitas em

bilheteiras pelo mundo, Joker foi o segundo

filme mais visto em Portugal. No ranking mundial

o filme para maiores de 18 ficou em sétimo,

enquanto para as audiências tipicamente familiares

de Portugal ficou só atrás do filme mais

visto de sempre no nosso país (O Rei Leão de

2019).

CONTEMPLAÇÕES

Para além do aspeto financeiro, o cinema português

também tem dado sinais de vida do

ponto de vista artístico. Variações é um belo

tributo ao mito que lhe dá nome e foi o filme

português mais visto dos últimos quatro anos e

o quinto mais visto de sempre. Snu fez-nos recordar

duas figuras marcantes do Portugal pós-

25 de abril. Tiago Guedes lançou dois filmes de

qualidade num ano: Tristeza e Alegria na Vida

das Girafas e A Herdade, este último presente

no Festival de Veneza. Quem também esteve

em Veneza foi Leonor Teles com o seu Cães

que Ladram aos Pássaros. E para o ano teremos

Bruno Aleixo e uma biografia das Doce.

Portugal produziu filmes bons, muito bons até,

e provou que também tem grandes artistas.

Ninguém chega lá sem espetadores, mas nessa

componente os portugueses têm correspondido

e mostrado interesse em ideias arrojadas. Há

um público que quer ver Cinema de autor.

Este ano desmantelou o preconceito negativo

em torno dos filmes portugueses para muitos

espetadores. Podemos voltar a acreditar que

uma obra nacional não vai ser um fracasso de

bilheteira. Confirmamos que não são só os

filmes para a família que não têm salas desertas.

Crescemos contra as tendências do mercado

mundial.

A terminar 2019 e a entrar num 2020 essencial

para a definição da próxima década cinematográfica,

este texto serve de votos de esperança

para a produção nacional. Portugal tem

artistas com boas ideias e público que as quer

visionar. Precisa-se de continuar a apostar no

que é nosso. Temos de dar plataformas para o

Cinema português se mostrar ao país e ao mundo.

Sem medos, como sempre, a rumar contra

as marés, em direção a um futuro melhor.

João

Malheiro

5


01

Os melhores


9

do ano

Num ano de muito para ver, ouvir e experienciar, seria

injusto ceder ao advento das listas hierarquizadas. Em vez de

listarmos o que se fez, lemos todas estas artes de forma igual na

sua importância para a construção de um ano que, do ecrã ou do

palco para a realidade, se viveu a ferro e fogo.

Por João Malheiro, Sofia Matos Silva, Tiago Serra Cunha


ÚSICA ´


O primeiro

suspiro

Roberto Caetano, Telmo Soares, Pedro Marques, Rui

Gaspar e João Marques são os cinco membros dos

First Breath After Coma. Depois de dois trabalhos

focados no exterior, NU oferece o convite para uma

viagem apenas de ida aos cantos mais escondidos

do quinteto.

Por Sofia Matos Silva

SOFIA MATOS SILVA

Em NU, música e imagem

estão intrinsecamente

ligadas. Cada

vídeo musical é uma

peça do puzzle, um capítulo

do filme. Sendo um álbum

visual pensado na sua totalidade,

a história apenas pode

ser compreendida se for ouvida

a duração completa. A

componente visual esteve a

cargo da CASOTA Collective,

da qual Telmo, Pedro e Rui

são membros. Desta forma, a

banda conseguiu controlar todos

os aspetos da criação de

NU, de uma forma que nunca

antes tinha acontecido: é um

trabalho dos cinco do primeiro

segundo ao último frame.

É um álbum cru, feito

puramente de emoção e talento

Quem o ouve, é sugado

para este mundo que é o dos

First Breath After Coma. Mesmo

que a música não seja totalmente

compreendida – improvável,

mas não impossível

-, o filme não deixa margem

para dúvidas. As emoções são

fortes e chegam às profundezas

de cada um de nós.

Depois dos concertos

de promoção do disco, surgiu

agora uma nova oportunidade:

abrir os concertos dos Efterklang,

em Lisboa e no Porto.

Os First Breath After Coma

tocam pela primeira vez NU

na íntegra. O Reticências teve

oportunidade de conversar

com Roberto e Telmo umas

horas antes da apresentação

no Hard Club.

Como nasceu esta banda?

Telmo: Quando tínhamos 14

anos conhecemo-nos na escola

– não todos nós, mas, eu, o

Pedro e o Rui - e começamos

uma banda de garagem de

miúdos. Começamos a querer

dar concertos e deparámo-nos

com um problema: não tínhamos

vocalista. Entretanto,

um pouco ao acaso, o Roberto

deparou-se connosco. É uma

história engraçada.

Roberto: Eu tinha 18 anos, sou

mais velho do que eles uns anitos.

E nesse verão de 2008 foi

a primeira vez que fui a Paredes

de Coura. Um bocadinho

com a ajuda de fumos e assim,

que é o habitual por Coura…

eu sempre cantei por casa, só

9


MÚSICA

First Breath After Coma

para mim, mas ali libertei-me e

algumas pessoas disseram que

tinha jeito e aquilo ficou-me

no ouvido. Duas semanas depois,

numas festas da aldeia

onde nós temos a nossa sala

de ensaios, estava a estacionar

o carro e vinha a ouvir Arctic

Monkeys ou The Strokes,

uma coisa assim do género, e

eles iam a passar e ouviram.

Meteram conversa, disseram

que gostavam imenso da banda,

depois começamos a conversar

e marcamos um ensaio.

E pronto, a primeira vez que

cantei para alguém e que cantei

para um microfone foi no

primeiro ensaio com eles. A

partir daí fiquei com eles. Mais

tarde, chegou o João, a meio

do primeiro álbum. E desde

então temos continuado com

este grupo.

Para além de músicos, são

também contadores de

histórias. Onde vão buscar

inspiração, a base para estas

histórias?

T: No primeiro e no segundo

álbum tínhamos a forma de

nos inspirarmos em coisas exteriores,

em filmes, em livros,

em músicas, em fotografias.

Sempre gostámos muito disso.

Até por isso é que tínhamos

este bichinho de fazer uma

banda sonora, um dia, para

uma longa-metragem. Ainda

não aconteceu, mas esperamos

10

“ Nós não nos

contentamos muito

com arranjar uma

fórmula vencedora.

Gostamos muito de

explorar.

esperamos que um dia aconteça,

porque gostamos muito

disto. Pegar numa história,

pegar num conceito, e construir

um disco a partir disso.

Curiosamente, neste último

álbum, invertemos um bocado

a situação. Não estamos a

contar histórias de outros, estamos

a contar a nossa própria

história, e essa é a particularidade

do NU.

Como é que os vossos anteriores

discos se ligam?

Como evoluíram de uns

para outros?

R: Acaba por ser uma evolução

normal. Nós não nos contentamos

muito com arranjar

uma fórmula vencedora, ‘gostaram,

vamos manter a mesma

sonoridade’. Não. Gostamos

muito de explorar, e somos

bastante ecléticos naquilo que

ouvimos, e depois misturamos

tudo. O NU foi completamente

diferente dos primeiros

dois; o Drifter não foi tão diferente,

mas também já foi

diferente do Misadventures. O

quarto até pode ser outra cena

qualquer diferente. Acho que

é muito aquilo que sentes e

aquilo com que mais te identificas

no momento, e tentar

procurar coisas novas nessa

altura, nesse estado de espírito.

T: Acho que os álbuns estão

a crescer connosco. É engraçado

porque, se começas a

fazer um álbum aos 40 anos,

e depois fazes outro aos 43 e

outro aos 46, é menos provável…

se bem que há pessoas

que fazem isso de uma forma

espetacular, o David Bowie

foi-se reinventando toda a

vida. Mas é mais difícil. Nós

por acaso temos aqui um álbum

que nos apanhou na juventude,

outro que apanhou

a entrada na fase adulta, outro

agora já numa fase adulta.

Está a acompanhar o nosso

crescimento e acho engraçado

isso ficar registado em formato

de áudio.

Como funcionava o vosso

processo criativo pré-NU?

R: Era tudo ao molho e fé em

Deus.

T: Era um bocado mais baseado

em ensaio como banda,

muito à base de jam. Nós

combinávamos horas de en-


SOFIA MATOS SILVA

saio e sentávamo-nos os cinco

a tocar. Passávamos bastante

tempo a tentar descortinar

algo dali que soasse bem e que

desse para trabalhar. O NU já

não foi assim, foi uma coisa

muito mais pormenorizada,

mais cirúrgica. Havia ali aquele

conceito que era interessante

trabalhar, então fomos

trabalhá-lo com calma.

Porque resolveram ir todos

para aquela casa e viver lá?

R: Porque a casa estava desabitada

e nós já há algum tempo

que queríamos ocupar os

vários espaços à volta - a casa

era um desses espaços. E,

também, porque pensámos

que se estivéssemos os cinco

ali a viver durante seis meses,

íamos estar a fazer som 24 horas,

era só descer as escadas e

tínhamos a nossa sala de ensaios.

E depois foi esse processo

um bocado… acabou

por acontecer esse processo

de que nem estávamos à espera.

Fomos percebendo as

dinâmicas uns dos outros. E

isso acabou por trazer ao NU

algo mais íntimo, mais pessoal,

com pedacinhos de cada

um nas músicas.

Foi difícil, passar do exterior,

de contar histórias sobre

outros, para falar sobre

vocês mesmos? Quais fo-


MÚSICA

First Breath After Coma

ram os principais desafios?

R: Eu acho que nós tínhamos

um bocado de medo, aquela

falta de coragem de realmente

dizer o que queremos,

- nem que seja certas palavras,

como usar love numa música,

ou baby, ou o que quer que

seja. Tínhamos um bocado de

medo de as usar, parece que

estávamos um bocado constrangidos

com aquilo que podiam

dizer de nós. E acho que

mandámos tudo à fava. Decidimos

ser simplesmente nós,

falar daquilo que realmente

nos apetece falar e daquilo que

se passa connosco cá dentro;

daquilo que cada um individualmente

sentiu, mas que ao

longo da vida acaba por ser

transversal, porque todos temos

esses sentimentos de fragilidade.

Acho que essa foi a

maior barreira que passamos a

nível lírico, ‘vamos falar sobre

nós’.

Como se lembraram de fazer

um álbum visual?

T: A cena já é muito antiga.

Nós já estamos ligados ao

audiovisual desde o início.

Sempre tivemos essa curiosidade.

Até porque dois de nós

temos formação nesta área; na

altura não tínhamos, mas hoje

em dia temos. E era só uma

questão de tempo até chegarmos

a um álbum em que decidíssemos

‘este álbum vai ter

que ter um filme que o ilustre

do início ao fim”. Agora foi a

altura certa.

E todo aquele simbolismo,

de onde vem?

T: O labirinto foi provavelmente

o conceito que uniu

todos estes aspetos. Era realmente

a única coisa que desde

o início era um ponto assente,

à volta do qual ia revirar o álbum

todo. Nós pusemo-nos

a pesquisar sobre o labirinto,

mitologia grega, mitologia romana,

que histórias há à volta

do labirinto, qual a simbologia

do labirinto em diferentes

culturas e foram-nos surgindo…

por exemplo, há uma

frase do Murakami que eu não

vou conseguir citar porque

SOFIA MATOS SILVA

12


MÚSICA

First Breath After Coma

é bastante longa, em que

ele fala do labirinto e até faz

referência a uma cultura antiga

qualquer que associava o

labirinto às entranhas do ser

humano. Tudo isto fez com

que o álbum ganhasse uma

vertente bastante misteriosa e

espiritual que, depois, também

nos inspirou para as músicas.

Porquê a criança nuns

capítulos e o homem

noutros?

R: Isso tem a ver com a linha

cronológica, com a ideia do

nascer. Começa com o bebé e

acaba com uma pessoa adulta,

que já viveu, já amou, já sofreu,

já perdeu, e que, se calhar,

encontrou o seu centro, o seu

ponto de equilíbrio, a sua calma,

a sua paz. É um fio condutor;

começa na fragilidade

de quando somos pequenos.

Ao longo da vida aprendemos

a lutar contra a fragilidade e

há uns que conseguem e outros

que não, uns que resolvem

de uma maneira e outros de

outra.

T: Esta ideia de bebé, criança,

a infância, é algo que sempre

nos apelou muito, não sei se

por uma questão conceptual

ou se simplesmente porque as

ideias vão sempre parar a isso,

mas é engraçado. Porque na

infância é quando nós somos

mais verdadeiros a nós próprios

e acho que é um bocadinho

isso que nós vamos buscar.

Como chegaram a esta

identidade sonora tão específica,

tão vossa?

R: Eu acho que, na nossa

opinião, entre os cinco e dentro

do nosso universo, temos

bom gosto musical. Ou seja,

daquilo que nos enche as medidas,

daquilo que achamos

que é boa música para se ouvir,

nós os cinco temos a cabeça

muito no mesmo sítio. E

isso facilita logo o processo de

criarmos algo nosso, porque

são cinco cabeças viradas para

o mesmo sítio, que funcionam

como uma. É difícil quando

uma cabeça tem uma ideia e

quer transportá-la para algo

físico, da tua cabeça reproduzires

algo que estás a pensar,

quanto mais cinco pessoas que

estejam dispersas para sítios

diferentes. E, no nosso caso, é

quase como se fosse só uma

cabeça a querer fazer um só

objeto. Daí o nome [da banda];

é muito mais do que uma

homenagem aos Explosions

In The Sky, porque nunca foi

esse o nosso objetivo. O tema

“First Breath After Coma”

deles, a conotação que a frase

tem para nós é mesmo essa, de

um novo começo. Uma nova

oportunidade, que é algo que

nós procuramos todos os dias,

fazer algo novo, criar algo que

soe diferente.

Têm algum projeto em

construção? Ou só haverá

álbum novo daqui a mais 3

anos?

T: Queremos ver se não. Não

queremos fazer promessas de

timing, mas queríamos ver se

encurtávamos um bocadinho

esse padrão dos três anos.

R: Talvez para dois.

T: Para dois. Para um não é de

certeza. Mas para dois era fixe.

Se calhar pode ser uma daquelas

resoluções de passagem de

ano. Ainda não temos para

futuro nenhum projeto na calha,

mas uma das nossas resoluções

é sermos mais produtivos

e mais eficazes a compor.

Temos que começar a andar

com um pouco mais de…

R: … genica.

T: Genica e estaleca, para

lançar as coisas mais regularmente,

que é uma coisa que

todos temos vontade.

R: Menos esporádica.

T: E mais constante. Andamos

aqui à volta dos álbuns,

passamos meses e meses, entramos

em loucos quando o

estamos a fazer. E, se calhar,

há outra maneira de encarar as

coisas.

A entrevista completa em

bit.ly/pvjornal

13


MÚSICA

Ghostly Kisses

Um “ambiente

meio sonhador,

um pouco escuro

e calmo, tudo ao

mesmo tempo”

Ghostly Kisses é o projeto dream pop de Margaux

Sauvé. A canadiana escreve as letras, compõe as

canções, canta, é violinista e pianista. O nome

‘Ghostly Kisses’ surgiu do poema de William

Faulkner, Une ballade des dames perdues. De

facto, é um nome que parece refletir na perfeição

a voz etérea de Margaux. Como a própria o

descreve, este é um projeto que combina um lado

sonhador com um lado negro. O resultado é música

curiosamente pacífica, arrepiante e emotiva.

Por Sofia Matos Silva

15

SOFIA MATOS SILVA



MÚSICA

Ghostly Kisses

SOFIA MATOS SILVA

Os primeiros trabalhos de Margaux

surgem em 2015. Nesse ano, lançou

o seu primeiro single, “Never

Know”, em maio. O segundo saiu

passado um mês; de nome “One”, conta com

composição e produção de Dragos Chiriac, que

colaborou com Margaux nos primeiros tempos.

Dois anos depois, surge o primeiro EP,

intitulado What You See. The City Holds My Heart

saiu em novembro de 2018 e tem 5 músicas,

incluindo o homónimo single arrebatador, que

conseguiu garantir a atenção da crítica do mundo

da música alternativa. Neste EP já consta o

nome de Louis- Étienne Santais, assim como o

de vários outros músicos que têm colaborado

com Margaux. Chegando a 2019, é divulgado o

Ghostly Kisses Vinyl, que junta algumas canções

novas a músicas anteriores. Duas semanas depois

desta entrevista, Margaux lançou ainda

um EP de versões acústicas das suas músicas,

intitulado Alone Together.

O que te fez apaixonar pela música?

Bem, quando eu era muito nova, com cerca de

quatro, cinco anos de idade, o meu avô deu um

violino ao meu irmão. A minha mãe já tocava

piano e, então, eu e o meu irmão começamos

a tocar violino. A música é algo que chegou à

minha família e à minha casa quando eu era

muito nova. Acho que os primeiros momentos

que me fizeram apaixonar pela música foram

em casa, quando nós os três tocávamos juntos

diariamente.

Como nasceu este projeto, Ghostly Kisses?

Eu toco violino desde muito pequena. Comecei

a cantar e a escrever música quando estava

na universidade; estava a estudar psicologia e

acho que, de alguma forma, não queria real-

mente fazê-lo, não queria

estar na escola. Então,

sempre que tinha tempo,

eu começava a tocar piano,

a compôr músicas e a escrever

letras. Acho que, nesta

altura, tu tentas descobrir

o que vais fazer com a tua

vida, e parecia que a música

estava a ocupar mais e mais

do meu tempo. E percebi

que era isso que eu queria

fazer, então comecei a

fazer músicas e entrei em

contacto com um produtor

que conheço em Québec

- que é onde eu vivo - e

começou assim. Comecei

a cantar música a sério daí em diante e, quatro

anos depois, temos a nossa primeira digressão

na Europa.

Até agora, parece que estás a explorar o teu

som. No entanto, já tens uma identidade

bastante concisa. Pensas assim também,

ou preferes continuar a explorar um pouco

mais - antes de lançar um álbum, por

exemplo.

Eu acho que tenho explorado e acho que vou

continuar a explorar, porque é algo que eu

sinto que sempre vou querer fazer, porque é

como se, as tuas preferências, as coisas de que

gostas, isso cresce e evolui. Assim, eu acho que

o núcleo principal será sempre o mesmo, com

canções de amor e vibrações sonhadoras, atmosféricas,

mas vai tomar nuances diferentes.

Não vou estar sempre, por exemplo, vestida da

mesma maneira, as coisas vão evoluindo um

pouco. Mas acho que vai levar eventualmente

16


(e muito em breve, na verdade)

a um álbum. Talvez no próximo

ano, já estamos a trabalhar

nele, provavelmente vai ser o

nosso próximo lançamento.

Eu acho que é importante ter

alguma liberdade, não fazer

sempre a mesma coisa; acho

que todos os artistas procuram

diferentes maneiras de expressar

o que querem expressar,

mas há sempre algo que permanece

comum. É assim que

eu vejo

De onde surgiram os rapazes?

Bem, eu costumava ter... o

primeiro produtor com quem

trabalhei foi o Dragos Chiriac,

dos Men I Trust. E nós

éramos todos um grupo de

amigos a fazer música na cidade

de Québec, conhecíamo-nos

todos. Mas depois

o Dragos decidiu dedicar o

seu tempo totalmente a Men

I Trust, porque era o seu

próprio projeto.

Eles vieram cá no verão.

Sim, eu sei [risos]. A Emma

é uma das minhas amigas

mais antigas, desde o ensino

secundário. Então, quando

o Dragos começou a trabalhar

mais em Men I Trust,

eu comecei a trabalhar mais

com o Louis - que era um dos

nossos amigos -, que toca piano

e produz música. Então,

começamos a trabalhar juntos,

e pedimos aos outros para

virem tocar nas atuações ao

vivo. Mas, no estúdio e todas

as músicas, trabalho-as com o

Louis.

Como chegaste a esta identidade?

Se existisse um som

feito por fantasmas pacíficos,

eu diria que é este.

[Risos] Acho que tem sido

um processo em desenvolvimento,

a criação da identidade

visual e a criação do que ouves

no som, na música, é algo que

se tem vindo a desenvolver e

que vai evoluindo fazendo. No

início, eu tinha uma ideia do

que queria fazer, algo bastante

sonhador, mas, ainda assim,

um pouco escuro, como as

emoções ou os relaciona-

17


MÚSICA

Ghostly Kisses

relacionamentos, e coisas assim.

E ao fazê-lo, ao experimentar...

não sei exatamente

como fizemos isto, mas é

só que, sempre que tentamos

uma nova ideia, tentamos

um som diferente, e fazemos

crescer este mundo que imaginamos.

É um mundo bastante

mágico.

Quais são suas

inspirações?

Diferentemente,

em termos de escrita,

eu costumo

escrever sobre as

18

escrever sobre as minhas

próprias histórias, ou os meus

relacionamentos, e, às vezes,

escrevo e percebo, depois,

quando leio o texto, ‘oh, ok,

“ Acho que todos os

artistas procuram

diferentes maneiras

de expressar o que

querem expressar,

mas há sempre algo

que permanece

comum.

Sim! Acho que tentamos escapar

um pouco quando

fazemos música. Quando eu

escrevo letras, gosto de fugir

ao mundo real e isso é algo

que está muito presente na

linha da criação. E o nome:

nós vimos o nome num poe-

ma e combinou

perfeitamente com

o mundo que estávamos

a tentar

criar. Então, tudo

meio que se encaixou...

como peças

diferentes de um

puzzle. Mas há alguns

anos não era

algo tão claro, é

algo que tem vindo

a crescer.

eu estou a falar sobre isto,

nem tinha percebido’. Então,

tem sido algo meio libertador,

escrever. Mas, para a minha

música, gosto mesmo muito

dos sons e das produções

dos anos 90, como sou uma

violinista, adoro cordas, adoro

piano, adoro guitarras. Então,

ouço muito London Grammar

e Dido.

Nota-se bem.

[Risos] Então, eu diria que estas

são todas as inspirações,

um pouco de mim com inspirações

de outras bandas e

de outros músicos. Para criar

este ambiente meio sonhador

e um pouco escuro, e calmo

ao mesmo tempo.

SOFIA MATOS SILVA

É uma espécie

de paradoxo. É

como os Smiths.

Eles têm letras

muito escuras,

mas o som torna-as

sempre…

Mais leves. Sim!

Sim. São dois

opostos. E teu

som também

é assim. Escuro,

mas também

pacífico.

Sim!

Com quem gos-


as de dividir dividir um palco

ou um estúdio?

Não tenho ninguém em

mente. Gostava de fazer uma

colaboração com algum tipo

de música de dança. Algo

como, tu sabes, a canção dos

Disclosure com os London

Grammar, acho que é uma

combinação tão boa.

Dois mundos diferentes.

Sim! É tão boa, soa tão bem.

Isso é algo que eu gostava

muito de fazer, mas com

quem, não sei, há muitos artistas...

Também gostaria de

fazer alguma coisa mais orquestral,

não necessariamente

uma colaboração com outro

artista, mas gostaria de fazer

uma espécie de espetáculo orquestral.

Fazer parte de uma

grande produção como essa

seria muito, muito bom. Então,

dois sonhos.

Como funciona o teu processo

criativo? O que te inspira, te

leva a escrever e a criar?

Eu costumo começar apenas a

tocar piano ou a cantar melodias.

Não sei exatamente como

a inspiração vem, mas geralmente

é apenas a cantar ou a

tocar ou a ouvir outras músicas.

E só eu, às vezes, sinto

que consigo escapar um pouco

e entrar no modo criativo...

Não ouço mais nada para além

MÚSICA

Ghostly Kisses

de novas ideias. E, quer dizer,

é difícil dizer como acontece

exatamente, porque é muito

diferente de vez para vez. Às

vezes, o Louis começa algo no

piano e depois eu junto-me e

canto com ele, ou outras vezes

ele faz tudo bonitinho, batidas

de bateria, e começamos

a partir daí. Temos algumas

inspirações em comum, que

partilhamos. Mas, quando

criamos, por vezes isso simplesmente

acontece, acaba

por ser bastante espontâneo.

Temos um som diferente de

que gostamos e, partindo disso,

começamos a criar novas

músicas. E noutras alturas é

muito mais íntimo, é mais eu

com os meus pensamentos e

as minhas emoções, a passar

tudo isso para o papel.

Porquê a “Zombie”, que

cantas nos concertos?

Acho que a ideia de fazer a

cover surgiu quando ela morreu

[Dolores O’Riordan dos

The Cranberries]. Decidimos

experimentar tocar a cover num

concerto... porque íamos atuar

na semana em que ela

morreu. E foi muito bem recebido

pelas pessoas, então

depois decidimos gravar uma

versão e incluí-la no álbum. Só

porque... eu gosto muito de

fazer covers, acho que é bom

trazer outra vida a uma canção

e dar-lhe um outro tom, uma

segunda vida.

A entrevista completa em

bit.ly/pvjornal

“ Não sei

exatamente como

a inspiração vem,

mas geralmente é

apenas a cantar ou

a tocar ou a ouvir

outras músicas. E

só eu, às vezes,

sinto que consigo

escapar um pouco

e entrar no

modo criativo

19



¡Tra tra!

Rosalía é, provavelmente, um dos maiores fenómenos

em ascenção no panorama musical global. No último

dia de Primavera Sound, no Porto, a espanhola deixou

o recinto em eletricidade pura. Este é o efeito Rosalía.

Por Tiago Serra Cunha

SOFIA MATOS SILVA

Faltavam ainda vários minutos

para o concerto mais aguardado

da noite e o palco principal

já estava completamente

inundado. Chegar lá à frente

era um desafio, mas ainda

dava para escapar por entre a

multidão. Uma vez tocado o

primeiro acorde da introdução

podia-se esquecer qualquer

movimento. Ia começar a lição

(quase) religiosa de Rosalía.

A espanhola, uma das

artistas mais aclamadas dos

últimos tempos, foi recebida

com loucura pelos que assistiram

ao concerto. Gritos

bem sonoros foram a primeira

expressão desse entusiasmo,

logo desde o início da atuação.

Em alguns silêncios entre os

temas (que foram poucos),

declarações de amor ou da

divindade da cantora ecoaram

pela plateia, correspondidos

por alguns “Porto, vos quiero

mucho” da parte da própria.

Depois de uma introdução

coreografada, soam os

primeiros aplausos de “Pienso

En Tu Mirá”, que ditam o

que viria a ser o espetáculo da

artista: o tradicional flamenco

mistura-se com o pop e, por

vezes, numa relação amorosa

explícita com toques de reggaeton

ou da eletrónica moderna.

Assim canta Rosalía, que

não se prende em rodeios na

sua expressão musical.

Ao longo do concerto,

predominam os temas do seu

segundo álbum de estúdio, El

Mal Querer, aquele que a lançou

para o estrelato mundial pela

mescla de estilos, influências

e tudo o que se possa querer

(bem, não mal) da catalã. No

entanto, há espaço para alguns

regressos ao passado; num

bom português aproximado

do galego, disse que estava

“muito agradecida por estar

aqui. De coração!” e exclama

um “obrigado” sorridente,

dizendo que quer “falar português.

Quero voltar muitas

vezes aqui para aprender este

língua tão bonita” em jeito de

antecipação de um momento

singular.

Deixando de lado a

produção flamenco-pop-chic

das primeiras atuações ou

o instrumental sentido de

“Barefoot In The Park”, colaboração

com James Blake

(que atuou no mesmo palco

na noite anterior), Rosalía

deixa um presente: “para toda

a minha gente que ouviu o

‘Los Angeles’ [o primeiro álbum

de estúdio], esta canção é

para vocês”. Estava na hora de

“Catalina”.

Apenas acompanhada

das palmas do seu coro totalmente

feminino, interpreta

21


um dos registos mais emocionantes

do seu primeiro

álbum, que difere em sonoridade

do segundo – é mais cru,

mais flamenco, mais despido

–, mostrando a sua alta formação

profissional no género

musical, que estudou na Escola

Superior de Música da Catalunha

com um dos maiores

professores do estilo, Chiqui

de La Línea.

Para o final, guardou

alguns dos seus maiores trunfos.

“Con Altura”, uma das

aventuras mais recentes de

Rosalía pelas sonoridades mais

quentes do reggaeton (sempre

sem perder o seu toque especial,

que só ela sabe entregar)

e em colaboração com J

Balvin, nome-maior do estilo

que atuou na noite anterior no

Primavera, fez a plateia ir aos

extremos.

Antes do grande final,

interpreta o novo single “Aute

Cuture”, que serve de aperitivo

para o tema mais aguardado

da lista: “Malamente” ecoa

pelo Parque da Cidade com

a mesma frescura de sempre,

sendo o clímax necessário

para acabar o espetáculo em

alta.

Rosalía representa uma

mescla bem conseguida de

sucesso e mérito. Moderna na

sua tradicionalidade, íntima

mas expansiva, sentimental e

festiva, a espanhola protagonizou

um dos concertos a recordar

desta edição do NOS

Primavera Sound. A forma

como reagiu ao calor do público

foi a retribuição perfeita de

uma princesa pop que já tem a

coroa a meio caminho.

22

SOFIA MATOS SILVA



24

SOFIA MATOS SILVA


MÚSICA

Emmy

Curl

A emancipação de

Por entre a neblina, Catarina Miranda conquistou a

montanha Invicta. ØPorto é uma tomada de posição, uma

afirmação da independência de Emmy Curl enquanto artista.

O Reticências falou com ela sobre a dualidade do novo álbum

e da cidade que ainda a faz sonhar.

Por João Malheiro e Sofia Matos Silva

25


MÚSICA

Emmy Curl

Porquê um álbum sobre o

Porto?

Passei cá os meus últimos 4

anos e foi uma cidade que me

fez crescer bastante. O Porto

veio ter comigo como uma

grande possibilidade de escolhas.

Era uma cidade maior

do que aquilo que estava habituada

a viver e foi a primeira

experiência num sítio com

tantas pessoas e tanta cultura.

Deu-me possibilidade de poder

crescer tanto como artista

como pessoa. Decidi dedicar

este álbum ao Porto por isso

e pelo amor que cultivei com

esta cidade. Tenho muitas saudades

e ainda sonho com o

Porto. É uma atmosfera muito

especial e acho que qualquer

pessoa que visita a cidade

sente isso.

Há algo da cidade que te

conquistou, particularmente?

O Porto tem uma dualidade

muito engraçada. O inverno é

uma merda. As casas não são

isoladas, o pessoal passa frio

dentro de casa. Para vestir a

roupa de manhã tinha de fazer

trinta squats para aquecer

o Porto e tinha de ter cinco

cobertores por cima. É dificil

a vida aqui no inverno, é

húmido, triste, é deprimente,

vento, chuva, nevoeiro. Mas

26

depois quando vem o Verão é

um contraste que nunca tinha

experienciado. Vivi em Aveiro

durante 6 anos e nunca tive

verão. É uma cidade perto do

mar, portanto não tens verão.

No Porto não. Há uma noite

em que estava tanto calor que

saí de bikini à noite e fui dormir

para o jardim das oliveiras.

Era o único sítio que estava

fresco. Esse contraste foi das

coisas que mais me impressionou.

Veres o Porto de Gaia

é muito especial, porque a cidade

torna-se uma montanha.

Em Vila Real, quando vou para

as montanhas é para me sentir

pequena, para ser confrontada

com a Natureza. Sentes uma

entrega, uma humildade, uma

simbiose. O Porto tem essa

característica. Podes afastar-te

do Porto e sentir que é uma

montanha. Achei isso muito

inspirador.

Porquê a escolha estilística

do título?, ØPorto?

Era engraçado que era para

dar o nome ao álbum só com

o “O” dividido, porque queria

fazer um álbum com dois lados.

Tens a parte da Natureza

e a parte da cidade. Queria

trazer a dualidade do Porto

para o álbum. A primeira parte

é em português, a segunda

é em inglês. A primeira parte

“ Tenho muitas

saudades e ainda

sonho com o Porto.

É uma atmosfera

muito especial .

fala da Natureza, da cidade no

campo mais espiritual e contemplativa.

A parte da cidade

fala do que verdadeiramente

acontece. A “City of Choices”

é uma crítica social. A “Good

Dancers” é sobre saíres de

uma discoteca bêbada e apaixonares-te

por um gajo que

viste durante uma hora. [risos]

E a escolha da capa?

A capa baseou-se num período

artístico que surgiu no

século XIX e era para criticar

o período rafaelita. Em vez de

retratar as pessoas de forma

perfeita, tratavam-nas como

elas verdadeiramente eram.

Escolhi uma das pinturas de

Dante, porque tinha um conceito

que eu apoio: A beleza

da realidade deve ser algo que

ajude as pessoas a viver o dia a

dia. E depois tens o contraste

com a cidade. Depois introduzi

a tecnologia no antigo,

porque isso também é o Porto.


MÚSICA

Emmy Curl

Porque é que tem programação

dentro?

Porque sou geek e encaixa

no conceito moderno. Este

álbum era para isso, fundir a

tecnologia com o classicismo

e o renascentismo.

Tens uma parte preferida

do álbum?

Não, não consigo ter preferência.

Eu produzi o álbum em

quatro anos e o que é doloroso

em produção é que não

consegues preferir ou deixar

de preferir. Começas a distanciar-te

tanto. É muita pressão

seres um self-producer, mas

tens as coisas como tu queres.

Fiz sozinha porque não conheço

em Portugal muitas mulheres

a produzir os próprios

álbuns. As mulheres têm muito

talento, como os homens

claro, mas não somos tão assertivas.

Somos mais influenciáveis,

enquanto os homens

são práticos. E atenção que

quando falo de homens, falo

em masculinidade. Uma mulher

pode ser bastante masculina.

O que quero dizer é que

há muitas mulheres que têm

um produto e ele acaba por

ser explorado por uma forma

masculina de trabalhar. Ouves

o álbum e acaba por ser igual

a muita coisa que já foi feita.

Acaba por se perder a essência

da ideia original?

Acho que se perde. Por exemplo,

se fosses um pintor e

estivesses a pintar um quadro

não ias gostar que me virasse

para ti e dissesse “alta ideia,

olha eu acabo o teu quadro”.

E tu olhas para o quadro e até

está fixe, mas está igual a milhares

de quadros.

Segue as regras.

Segue as regras, não é? E era

isso que tentei fazer neste álbum.

Não seguir regras nenhumas.

Neste álbum quis fazer

as coisas tal e qual como eu

imagino. Mesmo que o álbum

SOFIA MATOS SILVA

27


SOFIA MATOS SILVA

saia uma porcaria. Podia ter

saído. Eu corri esse risco e

ainda corro.

Não dá para voltares atrás?

Agora tem de ser sempre

tudo como tu queres?

28

“ Neste álbum quis

fazer as coisas tal

e qual como eu imagino.

Mesmo que

o álbum saia uma

porcaria. Podia ter

saído. Eu corri esse

risco e ainda corro.

Isto foi uma experiência para

mim e para as pessoas que trabalham

comigo. Vai ser lixado,

porque vou ter de ser eu

a promover tudo. Não havendo

ninguém, tens de ter muito

dinheiro, o que não tenho. Estou

a pensar fazer um crowdfunding.

Dá-me pena pessoal

que vem ter comigo e perguntar

porque é que não sou mais

conhecida. Apetece-me dizer

que não tenho dinheiro para

investir na promoção. São 5

mil euros para cima. Ou tens

um single com o Rui Veloso

ou a [Carolina] Deslandes ou

estás tramada (risos). Não é

não termos um trabalho decente,

é a questão de chegar

ao nosso público.

O que achaste da experiência

do Festival da Canção?

Achei altamente, diverti-me

imenso. Foi dos períodos mais

engraçados da minha vida.

Tinha concertos com duas

bandas diferentes, depois ia

lá, cantava e vinha-me embora.

Brincava com aquilo.

Não pensava que ia ficar em

segundo empatada. E fiquei

super contente por não ter

ganho. Realmente, não queria

ter ganho, queria continuar a

fazer o que gosto. Aquilo não

era a minha música, fui só dar

a minha voz. É uma canção

bonita, para toda a gente.

Gostei disso, da inocência das

coisas, mas não queria que me

identificasse. Não é o meu trabalho,

mas foi uma experiência

engraçada, gostei muito.

Como foi trabalhar com o

Júlio Resende e trabalhar

com algo que não é bem o


MÚSICA

Emmy Curl

teu estilo?

O Júlio é um gajo porreiro,

muito fixe. Gostei de trabalhar

com eles. Tive um bocado de

pena, mas é por não viver em

Lisboa. Quem não vive em

Lisboa é prejudicado, ponto.

Se és artista e não vives em

Lisboa vais estar sempre um

bocado atrasado, desconectado.

Tens de estar no local e eu

percebo isso. É normal.

Já tens conceito para o

próximo álbum?

Vou editar dois EPs em 2020

com músicas que podiam ter

entrado no álbum. Coloquei

15 músicas e já ficou um bocado

extenso. Se não colocar

as músicas em algum lado,

elas perdem-se. Por isso quis

mesmo que elas ficassem no

álbum para estarem registadas.

Foi um momento. Por

isso é que vem o EP. E depois

vou fazer um álbum de tecno.

[risos]

Tens algum sonho que

gostavas de alcançar?

Boa pergunta, nunca ninguém

me perguntou. Sempre senti

que alcancei o sonho agora.

Eu não sonho muito a longo-prazo.

Tenho a curto-prazo.

A longo-prazo só gostava

de ter uma casa no Douro, que

fosse meio estúdio meio casa.

“ [Cantar] em

português, não te

faz lembrar quase

ninguém, por

sermos mais

pequenos. Torna a

voz mais especial.

Pudesse passar lá férias e convidar

músicos para ir lá gravar.

Gostas mais de tocar em

palco ou em estúdio?

Em estúdio, mas tenho fases

em que gosto de tocar em

palco. Com o Paper Cuts eu

adorava fazer aqueles espetáculos,

porque não tinha nada

à minha volta. Em Emmy Curl

foi diferente. Agora, vou ter

uma pessoa a fazer a parte do

DJ para voltar a ter essa liberdade.

Como surgiu o Paper Cuts?

Foi um convite do Bruno, em

2010. Vim para substituir uma

vocalista e de repente tinha de

cantar um álbum inteiro para

a semana. Desde então colaborei

com o Bruno até este

ano. O álbum novo que ele vai

lançar ainda terá músicas cantadas

por mim, só que já não

canto ao vivo.

Há algum artista em Portugal

com quem gostavas de

colaborar?

Que pergunta difícil... [risos].

Olha, com o Vicente Palma,

era um dos que gostava de colaborar.

Até foi ele que veio

ter comigo. Gosto da música

dele, acho que tem um talento

do caraças. Filipe Raposo a

mesma coisa, até está no álbum.

Depois há muitos músicos

que andam por aí e não

os conheço. Não tenho estado

com tempo de investigar.

E não é só isso, eu tenho de

sentir a pessoa. Tenho de ter

contacto, tenho de estar perto.

Olha, fiz uma música com

a Marta Ren que deve sair no

próximo álbum dela. Mulher

do norte.

Gostas de cantar mais em

inglês ou em português?

Gosto dos dois.

Não há uma que saia mais

naturalmente?

Se calhar... se calhar, tens

razão. Se calhar em português

fica mais original, é a tua língua.

Em inglês tens milhões

de pessoas a cantar. Em português,

não te faz lembrar

quase ninguém, por sermos

mais pequenos. Torna a voz

mais especial.

29


úsic

Melhores do ano


a

2019 foi um ano excelente no que toca a produção

musical. Este tanto pode ser um artigo de melhores

do ano como um de retrospetiva; houve tantos

discos bons a sair que o difícil é escolher. Chamarlhe-emos,

então: 2019, um ano de e para a música.

Por Sofia Matos Silva

A tradição manda entrar no ano novo com o pé

direito. James Blake aprendeu bem a lição: dezoito

dias decorridos e Assume Form já estava a ser

lançado. Contando com as participações de Travis

Scott, Metro Boomin, Moses Sumney, Rosalía e

André 3000, o britânico apresenta um conjunto

arrepiante de 13 músicas. James Blake sabe o que

faz, sem o saber. Consegue juntar toda a fragilidade

que sente à força que nele o mundo vê, a dor

à leveza, a tristeza mais profunda à mais pura das

alegrias. Assume Form é um disco no qual as músicas

se unem como se não existisse um início nem

um fim, mas um sempre. “Where’s The Catch?” é

uma das canções que se destaca no disco; quando

um dos mais respeitados músicos da década e

uma lenda do hip-hop se unem para falar de saúde

mental, o mundo fica em suspenso para ouvir o

que têm a dizer.

Passando diretamente para o fim do ano,

temos a obra-prima de Slow J. O puto lento desapareceu

durante dois anos e regressou com um

disco surpresa. You Are Forgiven foi lançado a 21

de setembro. A verdade é que, numa era em que o

hip-hop representa a maior fatia da música ouvida

mundialmente, há muito espaço para músicos que

não dizem absolutamente nada. Em Portugal, o

fenómeno do hip-hop tuga e, particularmente, do

trap, são o verdadeiro exemplo disso. O mérito de

Slow J é ainda maior por isso mesmo. Brutalmente

honesto, o músico usa e abusa das palavras como

ninguém. Foge de campanhas de marketing e dos

holofotes, não cede às pressões e mantém-se fiel a

si próprio.

Quem também se mantêm fiéis a si próprios

são os First Breath After Coma. O terceiro disco

da banda saiu em março e marcou um ponto de

viragem no seu percurso. NU é uma jornada sem

fim, uma que nos acompanha para toda a vida. Os

melhores álbuns são assim: tocam-nos algures cá

dentro quando com eles nos deparamos, num sítio

profundo para o qual ainda não temos denominação.

E nunca mais nos largam; ficam sempre

connosco, fiéis a quem neles viu algo mais. É um

disco que toca a perfeição, sem alguma vez o ter

ambicionado - e é tão bom por isso mesmo. Em

NU nos perdemos e em NU nos encontramos,

sem sequer saber que era isso que procurávamos.

Depois de Oshin e de Is The Is Are, os DIIV

regressam com um disco bastante diferente. Mais

maduros e experientes nas andanças da música, os

rapazes de Brooklyn cresceram, que sabem exatamente

o que estão a fazer e que os mundos do indie

rock e do shoegaze são onde pertencem. Depois

de ter passado pelo processo de desintoxicação e

reabilitação, Zachary Cole Smith quis pôr a sua

vida no sítio, assumir responsabilidades, reparar as

relações fragilizadas e recuperar as perdidas. Deceiver

é o primeiro trabalho da banda em que todos

os membros contribuíram para a sua composição.

Depois de quatro discos sólidos como

uma rocha – como um diamante, diria até - e de

não irem para o estúdio durante quatro anos, os

Foals resolveram lançar, não um, mas dois álbuns

em 2019. Everything Not Saved Will Be Lost é uma

maratona de músicas de qualidade, dividida entre

uma prova de primavera e uma de outono. Com 10

31




MELHORES DO ANO

Música

músicas e cerca de 40 minutos cada, as partes do

disco complementam-se e completam-se. Canções

como “Café d’Athens” e “I’m Done with the

World (& It’s Done with Me)” são tão boas que se

tornam difíceis de passar para palavras.

A rainha da melancolia lançou Norman

Fucking Rockwell! nos últimos dias de agosto e marcou

o fim de verão de toda a gente. A Lana tem o

dom de cantar e fazer toda a gente querer ouvi-la.

Este sexto trabalho acrescentou uma data de hinos

obrigatórios à já de si longa lista de músicas perfeitas

da Lana del Rey. Apesar de ainda melancólico

– como não o haveria de ser? – e emotivo, este já

é um trabalho ligeiramente mais leve e mais livre.

Quase que se pode associar a jams tocadas à volta

de uma fogueira na praia num fim de tarde de

verão, em vez do ambiente de viagem de carro à

chuva habitualmente associado. A Lana é e continuará

a ser uma das grandes referências da música,

e este é só apenas mais um álbum que não deixa

margem para dúvida.

Três anos depois, Angel Olsen regressa

para um dos discos mais importantes do ano. Ao

longo de 48 minutos, este verdadeiro anjo tanto

sussurra como nos berra ao ouvido, libertando

tudo o que sente e pedindo para nos libertarmos

com ela. Onze hinos, todos os espelhos e a dissecação

do Ser. Se havia alguma emoção por conhecer,

agora já não há. Tudo é explorado em All

Mirrors, exorcizado e recriado. Apesar de presa

dentro de si própria, Angel nunca estará sozinha.

Tem consigo os milhões de amantes de música

que, pelo mundo fora encontram nas suas canções

um espaço seguro. Um lar. A delicadeza com que

canta contrasta com a precisão visceral com que

nos afeta. Ninguém fica indiferente a All Mirrors.

Ghosteen é um disco particularmente doloroso

de ouvir. A dor de Nick Cave é tão palpável

que a conseguimos sentir até à medula dos ossos.

Só a primeira música já é suficiente para nos

destroçar. Apesar de emoção pura ser algo a que

estamos habituados na sua música, este trabalho

atinge um novo nível de autenticidade. Ghosteen é

um álbum para se ouvir a seu tempo. Com cuidado

34

e delicadeza, como quem pega num recém-nascido.

Porque o coração de Nick Cave parece já estar

destroçado para lá do ponto onde a recuperação é

possível e o nosso não, mas também lá pode chegar.

Billie, Billie, Billie. Com 18 anos feitos há

umas semanas, ainda traz consigo um pouco da inocência

da infância, mas já guarda em si uma mulher

forte o suficiente para carregar toda a dor do

mundo. WHEN WE FALL ASLEEP WHERE

DO WE GO? é um dos principais discos do ano;

trata-se apenas do disco de estreia, é certo, mas

já correu o mundo e as cerimónias de prémios.

Construído em colaboração com Finneas, pouco

se consegue distinguir onde acaba um e começa

o outro. São canções que parecem ter o dom de

pertencer a quem as ouve, quer tenha 10 ou 40

anos, quer se reflita no que é cantado ou apenas

o imagine. Por entre os mais jovens, poucos são

os que escapam ao furacão Billie, este remoinho

negro e intenso, ambíguo e inovador.

Jaden é outro dos grandes nomes mais jovens

a infiltrar-se no panorama musical, ainda que

mais lentamente e com um percurso mais irregular.

Se SYRE e a tonelada de mixtapes que já gravou

não o provaram, ERYS mostra que Jaden é,

sem qualquer dúvida, bastante mais do que o miúdo

mimado filho do Will Smith e da Jada Pinckett

Smith. ERYS continua a história de SYRE: um rapaz

tão obcecado com perseguir o pôr do sol que

um dia acaba por ser ele o perseguido. ERYS é

a parte renascida de SYRE, o outro lado do ego;

afinal, os nomes são precisamente o oposto um do

outro.

Apesar de ter destacado estes dez trabalhos

de 2019, poderia facilmente ter destacado mais uns

dez - e mais dez ainda. Para simplificar, fica para

referência futura uma lista de alguns dos melhores

discos do ano.

American Football LP3 (American Football) | Emerald

Classics (Swim Deep) | Hollywood’s Bleeding

(Post Malone) | Paper Castles (Alice Phoebe

Lou) | IGOR (Tyler, The Creator) | i,i (Bon Iver)


MELHORES DO ANO

Música

Pony (Rex Orange County) | Miramar Confidencial

(David Bruno) | Morningside (Swimming

Tapes) | Fine Line (Harry Styles) | Cry (Cigarettes

After Sex) | Oncle Jazz (Men I Trust) | Full Moon

Fever (The Pains of Being Pure At Heart) | DS-

VII (M83) | Trust in the Lifeforce of the Deep

Mystery (The Comet is Coming) | GINGER

(BROCKHAMPTON) | Weather (Tycho) | Hot

Motion (Temples) | Here Comes The Cowboy

(Mac DeMarco) | Atlas: Enneagram (Sleeping At

Last) | O Sol Voltou (Luís Severo) | Desalmadamente

(Lena D’Água) | Bairro da Ponte (Stereossauro)

| Aurora (Sensible Soccers) | Minho Trapstar

(Chico da Tina) | Lover (Taylor Swift) | Jesus

is King (Kanye West) | Fever (Balthazar) | Dedicated

(Carly Rae Jepsen) | Charli (Charli XCX) |

Titanic Rising (Weyes Blood) | I Am Easy to Find

(The National) | Thanks for the Dance (Leonard

Cohen) | Ventura (Anderson .Paak) | Schlagenheim

(Black Midi) | Outer Peace (Toro y Moi) |

All My Heroes Are Cornballs ( JPEGMAFIA) |

Fear Inoculum (TOOL)

RETICÊNCIAS

REDATORES João Malheiro; Sofia Matos

Silva; Tiago Serra Cunha

DIR. DE ARTE Tiago Serra Cunha

FOTOGRAFIA Sofia Matos Silva

REVISÃO João Malheiro

REDAÇÃO

Praça Coronel Pacheco, n.º 15,

4050-453 Porto

CONTACTO

pontoevirgulanoticias@gmail.com

35


ILMES

+


SOFIA MATOS SILVA

DR

Viagem até ao fim da

inocência

O Reticências traz a análise a Tristeza e Alegria Na Vida

Das Girafas do realizador Tiago Guedes.

Por João Malheiro

Baseado na peça de teatro do

mesmo nome, Tristeza e Alegria

Na Vida Das Girafas é o segundo

filme de Tiago Guedes a estrear

este ano. Depois de A Herdade,

o realizador portuense apresenta

um projeto que demorou dez

anos a ver a luz do dia. É uma reflexão

com elementos pessoais,

mas mensagens universais.

Girafa é uma menina de

dez anos que, sofre pela ausência

da mãe, que morreu há algum

tempo. Filha única, vive com o

pai e com Judy Garland, o seu

urso de peluche que fala e tem

cara de homem de meia-idade.

Um dia, a menina pega em Judy

e sai de casa, decidida a angariar

dinheiro para poder ver o Discovery

Channel.

A aventura de Girafa é

uma espécie de Alice no País das

Maravilhas em território lisboeta.

A protagonista e o seu urso

de peluche dão de caras com

uma série de personagens, cada

uma proporcionando uma lição

diferente ao par. Mais do que os

traços surreais, o grande sentimento

desta viagem é a melancolia.

O percurso, que pode ser

tão real como imaginário, está

cheio de pequenas deceções para

Girafa. São os passos em direção

ao fim da Inocência.

O argumento do filme é

a estrela maior. Todas as palavras

são da peça original, escrita brilhantemente

por Tiago Gomes

Rodrigues. O texto faz um excelente

trabalho de equilibrismo

entre a comédia e o drama,

sem nunca perder o tom único

da sua narrativa. Por um lado, a

forma de falar singular de Girafa,

os palavrões de Judy Garland

e as one-liners que servem como

remate de piadas absurdas. Do

outro, as reflexões realistas, as

perguntas que não podem ter resposta,

a dor da perda e da saudade.

No entanto, é no argumento

que reside o aspeto negativo

mais nítido. Por ser baseado

numa peça de teatro, o ritmo do

filme é prejudicado, nomeadamente

nas transições entre encontros

de Girafa com as personagens

caricatas da aventura. O

primeiro terço do filme também

demora um pouco a arrancar,

contudo a qualidade da escrita

colmata bem essa lacuna.

A realização de Tiago

Guedes faz uma boa tradução da

linguagem do Teatro para o Cinema,

mesmo com os já referidos

problemas de ritmo. Já a banda

sonora, composta por Manel

Cruz num misto de Foge Foge

Bandido com novos temas, encaixa-se

neste mundo.

Tristeza e Alegria Na Vida

Das Girafas culmina em beleza

um excelente ano para o Cinema

português. Depois de Variações

e A Herdade, o mais recente

filme de Tiago Guedes traz ao

grande ecrã uma história bizarra,

honesta e comovente.

Portugal é um país difícil

para a criação cinematográfica,

porém são filmes como Tristeza

e Alegria Na Vida Das Girafas que

nos fazem acreditar num futuro

melhor para a Sétima Arte do

nosso país.

37

Bom


Melhores do ano


Entre recordes e regressos, 2019 foi um ano de

cinema magistral. Vilões e herois, atores e duplos,

grandes reflexões marcaram a era que ainda está

a começar.

Por João Malheiro

2019 foi um fascinante para o mundo do Cinema.

Tivemos recordes positivos e negativos de bilheteira.

Alguns dos mestres voltaram em grande

forma. Outros novatos tentaram coisas novas e

interessantes. A Netflix apostou forte em filmes

próprios e a Disney sugou quase todo o lucro com

as propriedades que adquiriu. Pelo meio, ainda

houve espaço para algum orgulho nacional.

O ano que agora finda foi, do ponto de

vista qualitativo, um dos melhores desta década.

Foi complicado selecionar os melhores dos melhores

e, certamente, haverá ausências que seriam

presenças igualmente válidas.

Antes de prosseguirmos, fiquemos só com

a referência rápida ao filme inevitável do ano.

Avengers: Endgame pode não ser dos melhores, mas

é o mais bem-sucedido de sempre na bilheteira internacional.

Fez um total de 2.516.817.453,36 euros

nos Cinemas concluiu a maior saga de sempre

da História do Cinema.

Agora sim, entrando nas grandes obras do

ano, comecemos pelo início. O primeiro grande

filme de 2019 foi Us, o segundo filme de Jordan

Peele, depois de se ter estreado em grande com

Get Out. Novo sucesso? Pois claro, foi inclusive o

único filme baseado numa ideia original a ficar no

topo da bilheteira internacional.

Indo além dos números, Us é mesmo uma

peça fenomenal de terror. A genialidade de Peele

passa pela subversão de convenções para criar

um horror diferente do expetável. Us não é sobre

sustos do nada, arrepios sobrenaturais ou truques

baratos. É o terror obtido através da reflexão social.

Uma forma refrescante e eficaz de refletir e,

simultaneamente, perturbar.

Se Get Out foi a grande revelação, Us é a a

consolidação de Jordan Peele. O mais aliciante de

tudo isto é que depois de dois sucessos seguidos,

ainda temos a sensação de que Peele está apenas a

começar.

Do terror para a ficção científica não se

dá um salto muito grande, mas em Ad Astra o

que se destaca é o drama familiar. Brad Pitt lidera

um elenco magnífico de veteranos como Donald

Sutherland e Tommy Lee Jones. É mesmo a estrela

principal o grande destaque, devido à interpretação

intensamente subtil e envolvente.

A realização do experiente James Gray proporciona

uma experiência espacial ótima. A banda

sonora e a cinematografia apresentam um Espaço

frio e duro ao mesmo nível que é lindo e mágico.

O final é uma reflexão de como até numa coisa

tão vasta como o Espaço, não podemos deixar de

valorizar as pequenas coisas. Uma mensagem pura

e cheia de humanidade que não conseguiu grande

sucesso na bilheteira. Mesmo assim, os verdadeiros

amantes das estrelas que existem para além do

nosso céu devem dar uma oportunidade a Ad Astra.

De uma aventura espacial para o verdadeiro

Rocketman. A vida de Elton John teve direito a

um daqueles filmes biográficos que as massas tanto

gostam de ver.

No entanto, se Bohemian Rhapsody, de 2018,

foi um filme seguro sobre Freddie Mercury, o realizador

Dexter Fletcher decidiu ser arrojado a con-

39




MELHORES DO ANO

Filmes

tar a história de um dos músicos mais arrojados

de sempre. Rocketman desvia-se do estereótipo e

transforma a vida de Elton John num musical impressionista,

através do uso visionário da discografia

do músico britânico.

A coreografia, o trabalho vocal, o arranjo

instrumental, a cinematografia, enfim, todas as

componentes audiovisuais brilham de maneiras

diferentes. No centro de tudo está Taron Egerton

no papel de Elton John. A interpretação reproduz

de forma fiel os maneirismos e espelha o caos

emocional da carreira conturbada do músico.

A moda dos filmes sobre estrelas também

chegou à música portuguesa, com certeza. António

Variações continua a ser uma figura icónica da

nossa cultura, apesar dos curtos anos na ribalta.

A paixão do realizador João Maia – e do ator Sérgio

Praia – manteve viva a ideia de um filme sobre

o artista. Uma década e meia depois, Variações é

o filme português mais visto nos últimos quatro

anos.

A narrativa não vai pelo caminho seguro de

mostrar os altos e baixos mais famosos do cantor.

Em vez disso, temos direito a um estudo íntimo de

personagem, onde observamos a luta de António

Variações para singrar no mundo da música, enquanto

lida com os problemas pessoais que marcaram

a sua vida.

Alguns podem ficar desapontados por não

verem a descoberta de Variações por parte de Júlio

Isidro, ou a atuação de abertura para o concerto

de Amália Rodrigues. No entanto, é contar o lado

mais desconhecido do artista o que dá mais valor a

este filme. Chama-se Variações, mas saímos da sala

de cinema a conhecer António.

Sérgio Praia merece todos os elogios

imagináveis pela sua transformação camaleónica.

A timidez do homem e a irreverência exuberante

do cantor são ambas interpretadas genialmente. A

prestação vocal é também de grande mérito. Ainda

dentro do parâmetro musical, a banda sonora do

filme nunca supera as composições originais, com

a exceção da ótima rendição de “Canção de Engate”.

42

João Maia lutou pela sua visão e para nos

dar a conhecer melhor António Variações. Este

filme comprova que, três décadas depois da morte

do artista, o mito mantém-se vivo.

As biografias não são os únicos filmes biográficos.

Às vezes, um realizador consegue dizer

mais sobre a sua vida no campo da ficção e prova

disso é Dolor y Gloria. Pedro Almodóvar escolheu

Antonio Banderas para encarnar o seu alter-ego:

Salvador Mallo.

O filme é simples e sem algumas das excentricidades

do realizador espanhol. Em vez disso,

temos um ensaio simples sobre o crepúsculo

da vida e as dificuldades criativas de um artista. A

simplicidade da narrativa, dos diálogos e da música

não são um ponto fraco, pelo contrário. O grande

mérito do filme é conseguirmos perceber a frustração

que uma vida com várias pontas soltas pode

deixar num homem que se sente encurralado pelo

seu próprio sucesso.

Antonio Banderas e Penélope Cruz são as

grandes estrelas e Banderas em particular faz uma

atuação sublime, candidata a melhor da carreira.

A reviravolta final empregada por Almodóvar fecha

o filme em chave de ouro, enquanto lhe atribuí

uma nova camada de significado. A prova derradeira

de que Dolor y Gloria é uma obra feita por um

artista que domina completamente a arte de contar

histórias.

Não são só os humanos que nos contam

boas histórias. Os brinquedos da Pixar conseguem

fazê-lo também. A verdade é que por mais

desnecessário que Toy Story 4 seja, a sua narrativa

não só reforça os valores que sempre foram os pilares

da saga como lhes dá uma conclusão satisfatória.

Tom Hanks tem a sua melhor

prestação como Woody, transmitindo as incertezas

do protagonista sobre o seu propósito no mundo.

Aceitar o fim da linha é uma mensagem forte

que pode tocar mais os graúdos do que os miúdos.

Mesmo assim, qualquer criança vai ficar encantada

com a magia típica da Pixar.


MELHORES DO ANO

Filmes

O impossível foi feito. Toy Story concluiu

duas vezes a saga com sucesso. A Disney está de

parabéns, mas esperemos que a empresa aprenda

com o seu filme e saiba seguir em frente por um

novo caminho.

Quem está sempre a meter-se em novos sítios

é Quentin Tarantino. Desta feita, o realizador

opta por nos colocar a conviver com um trio de

protagonistas, na fantasia de Hollywood de 1969.

A narrativa, ou falta dela, de Once Upon a Time…

in Hollywood apanha de surpresa o espetador. O

chamado hang-out movie não era feito por Tarantino

desde Jackie Brown.

As personagens são, assim, o elemento fulcral

para que o filme resulte. Os três atores principais

conseguem brilhar, cada um à sua maneira,

através das peripécias e o diálogo rico típicos de

Tarantino. DiCaprio apresenta uma projeção de

insegurança digna de prémios, Pitt tem o carisma

ligado ao máximo e Robbie encarna uma Sharon

Tate angelical.

A melancolia está sempre presente em Once

Upon a Time… in Hollywood. A melancolia pelo fim

bruto de uma era. É um projeto feito com carinho

por alguém que adora a 7ª Arte e as pessoas que

a fazem ou já fizeram. O realizador tem dito que

não sente necessidade de prolongar muito mais a

carreira, planeando retirar-se ao décimo filme. A

verdade é que Tarantino pode não precisar de criar

mais cinema, mas, neste momento, o cinema precisa

de mais pessoas que o criem como Tarantino.

Outro como ele também se destacou em

2019. Martin Scorsese junta um trio inédito constituído

por Robert De Niro, Al Pacino e Joe Pesci

para produzir um dos seus filmes mais ambiciosos.

The Irishman é um épico da máfia e, simultaneamente,

uma reflexão introspetiva e serena sobre a

tragédia inevitável de uma vida de crime. Uma celebração

do Cinema em que estes quatro vultos se

tornaram estrelas e uma desconstrução do mesmo.

A saga de três horas e meia nunca perde o fôlego.

Cada momento pode não ser absolutamente essencial,

mas são peças importantes de um puzzle

que nos confronta com a finalidade da vida. É um

ensaio paciente sobre camaradagem e mortalidade

e mais uma peça que forma a carreira lendária de

Martin Scorsese.

O estatuto de lenda não é fácil de obter,

mas este ano uma nova figura parece aproximar-se

desse título. Bong Joon-ho e o seu Parasite são um

dos destaques mais unânimes do ano. Um filme

fiel às suas raízes sul-coreanas que transmite uma

mensagem universal.

Um artista asiático volta a quebrar barreiras

linguísticas e culturais para provar que o Cinema

é um meio artístico capaz de nos unir à volta de

dilemas transversais a toda a Humanidade. 2019

foi um ano onde várias lendas vivas do Cinema

estiveram em destaque, mas também foi o ano em

que Bong Joon-ho se tornou numa lenda.

E não podemos terminar esta retrospetiva

sem mencionar o vilão mais lendário da cultura

pop. Joker caiu que nem uma bomba no status quo

cinematográfico. Um filme de baixo orçamento,

para maiores de 18 anos e vilificado pelos media.

Resultado? Recordes e quase mil milhões de euros

na bilheteira.

A performance já icónica de Joaquin Phoenix

é o centro de uma viagem profunda ao psíquico

de um monstro. O problema para muitos é como

esse monstro é real e humano. Um espelho das

consequências provocadas pelos grandes problemas

sociais do século XXI.

Não esquecer a fusão hipnotizante entre o

jogo de cores da cinematografia e as cordas trágicas

da banda sonora. Um universo de inocência,

repressão e, inevitavelmente, caos. Construído por

artistas no auge das suas capacidades, liderados

pelo realizador Todd Phillips.

Joker foi lançado na altura certa para colocar

todos em polvorosa. Amado por muitos e

odiado por tantos outros, é uma obra que dará que

falar durante muito tempo. Um filme que muitos

temiam que fosse um incentivo ao ódio quando

na verdade é uma carta desesperada por amor e

tolerância. Ou seja, o Melhor Filme de 2019.


Mr. Robot

eps0.0_goo

Chegou a altura de nos despedirmos de Mr

de despedidas e esta é uma particularmente

Por Sofia Matos Silva

Chegou a altura

de nos despedirmos

de

uma das mel-

hores séries de sempre.

Ninguém gosta de despedidas

e esta é uma

particularmente emocional;

no entanto, não

foi um adeus custoso.

Ao contrário do que se

tem passado com muitas

produções, Mr Robot

teve o final que merecia.

Tudo foi bem pensado

e bem planeado, cada

peça encaixou perfeitamente

no devido lugar.

Mais, cada segundo foi

planeado desde o início.

Com este último

episódio, temos a confirmação

de que Sam

Esmail sabia o que estava

a fazer desde que a

série estreou há quatro

anos atrás.

Mr. Robot é uma das

maiores obras-primas

da televisão. Ponto. E

isto em plena era de

ouro da televisão. Nunca

se fizeram tantas séries

com tanta qualidade,

nunca se investiu tanto,

nunca se inovou tanto.

Mas, mesmo assim, Mr

Robot destaca-se com a

maior das facilidades. E

eleva tanto a fasquia que

não sei se algum dia será

possível alguém pensar

uma série tão complexa

como esta.

A criação de

Sam Esmail inova tanto

pelo conteúdo como

pela forma. Como se

descreve o que é Mr Robot?

É uma série sobre

hackers? Sobre distúrbios

mentais? Sobre luta

de classes? Sobre combate

ao crime organizado?

Sobre como desmascarar

o 1% do 1%

que controla o mundo

a partir das sombras?

Sobre justiceiros que

tentam redistribuir a riqueza

do mundo?

Mr Robot é tudo

isto e muito mais. Nunca

uma série como esta

foi feita. Nunca uma

história destas foi contada.

Nunca uma produção

foi tão meticulosamente

planeada,

uma narrativa delineada

com cinco ou mais anos

de antecedência, com

pequenas pistas e detalhes

a serem deixados

DR


dbyefriend.mov

. Robot, uma das melhores séries de sempre. Ninguém gosta

emocional; no entanto, não foi um adeus custoso.

em cada episódio ao

longo de quatro temporadas,

para apenas serem

compreendidos no

último episódio. Nunca

um segredo foi tão bem

guardado, também,

mantido a sete chaves

dentro da mente que

criou todo este mundo.

É como construir

um puzzle de

dez mil peças, em que

a cada nova adição se

vai chegando um pouco

mais perto de descobrir

a imagem final. Mas,

quando parece que já

estávamos a chegar mais

perto, uma nova peça é

encaixada e muda completamente

a imagem. E

apenas se consegue chegar

à verdade quando a

última peça é colocada

no local onde pertence.

Ao fim de 45

episódios, temos a confirmação

de que somos

- também nós espetadores

- personagens na

série. E, não só personagens,

mas parte da

identidade da personagem

principal. Personagem

principal que

nem é, afinal, a personagem

principal. Nunca

a chegamos a conhecer,

sequer, para lá dos dois

segundos finais em que

abre os olhos. Nunca

chegamos a conhecer

o verdadeiro Elliot, apenas

uma das personalidades

dentro da sua

cabeça.

Em Mr Robot,

nunca sabemos o que é

real do que não é. Essa

é uma das particularidades

que tornam esta

narrativa tão única. Passamos

a primeira tem-

porada toda sem perceber

que metade do que

vemos é falso – ou, se

não falso, incorreto. Vemos

o mundo através

dos olhos de Elliott; ao

fim desses primeiros

dez episódios, percebemos

que estes olhos

não são os mais confiáveis.

Apenas vemos o

que Elliot vê – e mesmo

do que ele vê, apenas o

que nos deixa ver.

Na segunda

temporada acontece o

mesmo. Vivemos com

“ Em Mr Robot,

nunca sabemos

o que é real do

que não é. Essa

é uma das particularidades

que tornam esta

narrativa tão

única.

DR


SÉRIES

Mr. Robot

Elliot numa ilusão, numa fachada cuidadosamente

construída para o proteger de si próprio. Apenas

nos últimos episódios é levantado esse véu. Apesar

de já termos aprendido a lição e sabermos que o

jovem Alderson não é a testemunha mais precisa

da própria vida, somos novamente apanhados de

surpresa e ficamos, mais uma vez, maravilhados

com o génio de Sam Esmail. para o proteger de si

próprio. Apenas nos últimos episódios é levantado

esse véu. Apesar de já termos aprendido a lição

e sabermos que o jovem Alderson não é a testemunha

mais precisa da própria vida, somos novamente

apanhados de surpresa e ficamos, mais uma

vez, maravilhados com o génio de Sam Esmail.

Mas é na terceira temporada que o génio

de Sam Esmail começa a atingir o seu pico. Elliot

passa a viver num estado em que as personalidades

dentro da sua mente tomam controlo à vez, em

vez de coexistirem como antes – e que a maior

parte das vezes não têm sequer consciência do que

se passa quando a outra personalidade está a controlar.

Paralelamente, é na terceira temporada que

Mr Robot prova que a inovação que ia trazer ao

mundo das séries é uma autêntica revolução. Fã

de planos fantásticos, fotografia perfeita e movimentos

de câmara soberbos, Sam Esmail consegue

levar a produção da série ainda mais além. Um dos

episódios é feito no formato de take único. Apesar

de sabermos pelo próprio Sam que não se trata

efetivamente de um take único, o planeamento e

a construção estão tão perfeitos que nunca repararíamos

nesse facto. O episódio seguinte é construído

como uma luta contra o tempo.

A quarta temporada atinge um novo pico

– o último. No primeiro episódio vemos a personagem

a morrer e a ser ressuscitada. No segundo

descobrimos que existe uma personalidade para lá

das duas que já conhecíamos – ou que pensávamos

conhecer: Elliot e o Mr Robot. O quinto é um

episódio iniciado pela frase “Não temos de falar, se

não quiseres” e acaba com a frase “Chegou a altura

de falarmos”, sendo o episódio mudo entre estes

dois momentos. O sétimo é um dos – se não o

melhor – episódios de sempre; construído na forma

de uma peça teatral, divido em atos que correspondem

às fases do luto. E tudo isto com apenas

um cenário, três personagens e dois figurantes. A

representação de Rami Malek chega, aqui, a um

novo nível de excelência. O nono episódio marca

o fim de uma das linhas narrativas. E os quatro

episódios finais deixam qualquer fã da série sentado

na ponta do sofá, tal é o nível de suspense e de

ansiedade criado.

A primeira frase de Mr Robot é “hello,

friend”. Quatro anos depois, despede-se com “hello,

Elliot”. E despedimo-nos nós destas personagens

que já consideramos amigos também, personagens

que vimos evoluir, crescer e seguir o seu

destino - quer este seja o que queríamos ou o que

não sabíamos que queríamos, mas que Sam Esmail

escolheu dar-nos. Goodbye, friend.

46

Excelente


SOFIA MATOS SILVA

“É melhor ter sorte do que ser bom, mas,

quando tens sorte, é melhor que sejas bom”

A entrevista a Stuart Dryburgh, o cinematógrafo de grandes produções

que já esteve nomeado aos Óscares.

Por Sofia Matos Silva

O nome de Stuart Dryburgh,

provavelmente, não desperta

grandes memórias. Mas The Secret

Life of Walter Mitty, The Piano,

Men in Black: International, Alice

Through The Looking Glass, Ben is

Back, The Great Wall e Blackhat

são nomes bem conhecidos no

mundo do cinema.

O inglês-neozelandês de

67 anos conquistou o seu lugar

na história da cinematografia

mundial logo com o seu primeiro

trabalho. The Piano, de 1993,

esteve nomeado para oito Óscares,

incluindo o de Melhor Fotografia;

arrecadou três desses

prémios. Já The Secret Life of

Walter Mitty pode não ter ganho

qualquer Prémio da Academia,

mas é uma verdadeira obra-prima

a nível de fotografia.

Para começar: qual é o papel

de um diretor de fotografia?

Onde está a linha onde acaba

o trabalho do realizador e

começa o teu?

Essa é uma boa pergunta. Em

primeiro lugar, o diretor de fotografia

é o cinegrafista - por

vezes, o único. Por outras palavras,

estás a segurar uma câmara

na tua mão e estás a fazer a

filmagem das cenas de uma forma

pessoal. Às vezes, num filme

maior, és como um chefe de departamento

e podes ter duas, ou

três, ou quatro, ou mesmo cinco

equipas de filmagem diferentes

a trabalhar. Isso é estritamente

o que o trabalho é: fazer as filmagens

físicas, o vídeo do projeto.

Onde acaba o realizador e

começa o diretor de fotografia?

Essa linha é muito fluida. Num

extremo, há realizadores que se

preocupam essencialmente com

a representação, com a narrativa

e com as palavras precisas do

guião. E esses realizadores vãote

dizer: ‘ok, eu não sei muito

sobre fotografia, só quero que o

filme fique com um aspeto bonito;

esse é o teu departamento,

eu vou tratar da atuação, certificar-me

que eles dizem as palavras

certas e que eu fico feliz com o

resultado final; o teu trabalho é

fazer com que fique bom visual-

47


CINEMA

Stuart Dryburgh

mente’. Eu idealizo os planos,

tudo. No outro extremo, trabalhas

com um realizador que é

muito visual e que pode, mesmo

antes de fazeres parte do projeto,

já ter construído uma storyboard

completo, um booklet inteiro de

material visual, referências de

como quer que o aspeto do filme

seja. Portanto, é uma divisão

bastante fluida.

Já trabalhaste, naturalmente,

com realizadores com estilos

diferentes entre si. Como

equilibras esses relacionamentos?

Quer dizer, quando começo um

projeto novo, essa é a primeira

coisa que tenho que descobrir:

quanto ou quão pouco esta

pessoa quer que eu faça, que

presença posso ter... e, mesmo

que seja alguém muito visual,

em alguns aspetos, isso contribui

para uma colaboração melhor,

porque podemos falar na mesma

linguagem visual e, então, acho

que o filme que daí resulta pode

ser muito melhor.

Tens uma filosofia específica

relativamente ao processo

da cinematografia, ou vai

mudando consoante o filme?

Vai mudando, de facto. Certamente,

eu sempre me referi ao

meu estilo nos primeiros tempos

como sendo enhanced reality, que

é ligeiramente diferente do magical

realism, mas mais ou menos

dentro das mesmas linhas. Por

outras palavras, começa-se por

pensar no que o mundo, o local

ou o cenário tem para oferecer e,

a partir daí, vai-se melhorando e

48

aprimorando.

Um filme como The Secret

Life of Walter Mitty tem fotografia

assombrosa. Como

é que chegas ao produto final?

Tens uma ideia prévia de

como queres que cada plano

seja e tentas ao máximo concretizá-la,

ou vais escolhendo

ao longo da rodagem?

Há muita preparação e planeamento

prévio necessários para

se chegar a um filme; parte disso

acontece com meses de antecedência,

outras partes acontecem

com dois ou três dias de antecedência.

Há a preparação prévia

profunda, há a preparação que

fazes mesmo antes de filmar. E,

depois, há a mudança do esquema

a meio das filmagens - o que

acontece bastante e até é muitas

vezes uma coisa boa. Tens um

plano bom, mas, por vezes, chegas

a um local e a luz, a ação, a

representação, qualquer coisa -

pode mesmo ser qualquer coisa

-, faz-te mudar o plano. E, então,

muitas vezes acabas com algo

que é ainda melhor do que o que

tinhas originalmente planeado.

The Secret Life of Walter Mitty

foi inteiramente filmado em

película. Porquê?

O Ben Stiller, que é o realizador,

gosta muito de fotografia,

coleciona fotografia, sabe muito

sobre fotografia e, em muitos

aspetos, embora não seja essa a

parte principal do filme, é efetivamente

um filme sobre fotogra-

“ Adoro trabalhar

com filme. Há algo

muito intangível e

mágico na interação

da luz através de

uma lente com filme

fotografia, sobre fotógrafos e

sobre o amor pela imagem e pelo

arquivamento - pela preservação

de fotografia. Tendo isso em conta,

ele sentiu que era importante

ser feito em filme fotoquímico.

E é assim que funciona, hoje em

dia é normalmente uma escolha

do realizador.

Então, pessoalmente, qual

preferes? Depende?

Depende mesmo. Adoro trabalhar

com filme. Há algo muito

intangível e mágico na interação

da luz através de uma lente com

filme fotoquímico. Mas, ao mesmo

tempo, também aprendi a

fazer imagens bonitas em digital,

e estou muito feliz com filmar

em digital.

Logo no início da tua carreira,

trabalhaste no The Piano,

que acabou por ser um filme

mesmo grande. Como é que

isso afetou a tua evolução

profissional?

Eu acho que não percebemos o

quão grande o filme era. Quer

dizer, foi um filme grande para


CINEMA

Stuart Dryburgh

A entrevista completa em

bit.ly/pvjornal

fazermos na época; tinha grandes

estrelas americanas. Mas eu e a

Jane já tínhamos feito o An Angel

At My Table antes, por isso estávamos

bastante confortáveis

com a nossa colaboração e com

a ideia de fazer um filme de Hollywood.

E acho que é justo dizer

que, no final, sabíamos que tínhamos

feito um bom filme. Não

sabíamos o quão bem-sucedido

seria, não é, isso nunca se sabe.

Sabíamos que tínhamos feito um

bom filme, mas não sabíamos

que o mundo o ia adorar tanto

como nós o adorávamos, que iria

chegar a Cannes e aos Óscares e

a todos os outros festivais e prémios.

Já que falaste nos Óscares: este

ano, a Cerimónia dos Óscares

esteve para não transmitir

o Prémio de Melhor Cinematografia.

O que achaste

disso?

Para ser honesto, eu não assisto,

não presto grande atenção, não

me importo muito. Quer dizer,

se fosse nomeado, eu ia e iria

apreciar o evento, mas, de outra

maneira, eu realmente não presto

muita atenção. Não estou assim

tão interessado em prémios.

Com as atenções habitualmente

viradas para realizadores

e atores, achas

que a cinematografia enquanto

ofício pode estar a

The Piano

ser esquecida?

A cinematografia é muito importante.

Acho que a direção da

arte é muito importante - cenários,

roupas, cabelo, maquilhagem,

todos os ofícios são importantes.

Se as pessoas querem vê-los na

televisão? Nem por isso. As pessoas

querem ver as estrelas de

cinema. Eu não acho que prémios

importem muito; não importam

para mim, de qualquer

maneira.

Há algum avanço tecnológico

que consideres que vai mudar a

forma como a cinematografia é

feita atualmente?

Sim, eu acho que sim. Quer dizer,

as câmaras estão a ficar cada vez

DR

49


CINEMA

Stuart Dryburgh

mais pequenas, mais rápidas e

mais sensíveis. Há isso, há os

avanços que estão sempre a ser

feitos na área da pós-produção,

mas isso sempre existiu. Há 70

anos atrás, a emulsão mais rápida

de filme era 100ASA, e depois

no final dos anos 70, início dos

anos 80, apareceram os filmes

rápidos, que revolucionaram a

capacidade de trabalhar à noite

com luz natural. Então, há sempre

mudança, há sempre melhorias

tecnológicas.

De todo o trabalho que já fizeste,

que filme acabou por ficar

mais próximo do que idealizaste?

Há tantos... em geral, acho que

a maioria deles. Eu gosto muito

de um filme pequeno que fiz,

Ben is Back, no ano

passado em Nova

York, porque acabou

por sair bem, é

uma história sincera

e ficou bom a nível

visual. Gostei muito

da maneira como o

Blackhat acabou por

ficar, muito genuíno,

muito simples, muito

real, adorei isso.

Como é que o teu estilo

evoluiu ao longo

dos anos?

Acho que ficou mais

simples. Um dos aspetos

que eu acho

que se destaca, com

as emulsões mais rápidas

e agora o digital,

50

é que eu passei a confiar cada

vez mais na iluminação natural,

e menos na artificial. E eu gosto

disso, gosto de procurar a luz

natural e de tentar posicionar a

cena, criá-la onde está a luz boa.

“ Eu foco-me muito

no fotojornalismo.

Mais uma vez,

lá está, no mundo

real. E outros filmes,

o trabalho de outros

cineastas.

The Secret life of Walter Mitty

Quais são as tuas maiores inspirações

enquanto diretor de

fotografia?

Eu foco-me muito no fotojornalismo.

Mais uma vez, lá está,

no mundo real. E outros filmes,

o trabalho de outros cineastas.

Tens algum projeto a sair

num futuro próximo?

Não, acho que estou bem atualizado.

O Men in Black acabou

de sair, e tenho andado a filmar

anúncios publicitários para televisão

este ano, então não há

nada a ser planeado neste momento.

Bons anúncios publicitários,

contudo.

Que dicas darias a quem quer

entrar neste mundo?

A de como se chegar

à frente e se destacar...

é apenas uma

questão de se continuar

a trabalhar,

a dar tudo, fazer

o melhor trabalho

possível a cada oportunidade.

Eu tive

imensa sorte com

The Piano. Muito do

sucesso na indústria

cinematográfica é

baseado na sorte, em

estar no lugar certo à

hora certa. É melhor

ter sorte do que ser

bom, mas, quando

tens sorte, é melhor

que sejas bom.

DR


DR

Uma reviravolta em

três palavras

Quando tudo parecia resolvido, os momentos finais do último episódio

de Sharp Objects, a série ignorada nos Emmy, provam que, afinal, os

espectadores estavam errados — pelo menos em parte.

Por Tiago Serra Cunha

Inteligente, esta é a conclusão

que todos queriam, mesmo

que não o soubessem. O final

de uma das mais comentadas

produções do momento

prova que a minissérie da HBO

é muito mais que um thriller

sobre raparigas mortas e o

mistério que as envolve. É uma

entrada intensa num mundo que

parece tão real, e que na verdade

poderia mesmo ser.

Lentamente, percebe-se

que o verdadeiro mistério está

nos pormenores que vão para

além da trama que serve de pretexto

para o enredo se desenvolver.

Vai além de uma história

de tons assustadores para ser,

também, um melodrama que

explora relações interpessoais

e familiares e o impacto que o

mundo que nos rodeia, quer

queiramos quer não, pode ter

na personalidade e vontades de

cada um.

Um drama quase sufocante

Sharp Objects é apresentada

através dos olhos de Camille

Preaker, com Amy Adams numa

interpretação profunda de uma

personagem marcada. Repórter

em St. Louis, regressa à cidade

natal de Wind Gap, no Missouri,

para escrever sobre uma série

de desaparecimentos de jovens

raparigas.

A história não é fácil

de escrever. Não só pelo peso

que já acarreta, mas pela forma

como se sente naquele meio,

que faz tudo menos ajudar o

seu trabalho. O facto de regressar

às suas origens despoleta em

Camille sentimentos que tenta,

constantemente, empurrar para

o fundo da sua mente, mas que

não consegue ignorar.

Uma das principais causas

é Adora (Patricia Clarkson),

a sua mãe. Considerada uma

das figuras imponentes da pequena

cidade é, ao mesmo tempo,

um dos maiores alvos dos

comentários constantes e típicos

dos que habitam num meio

como Wind Gap. Coloquem-na

numa mansão com uma atmosfera

que adivinha tragédia e o

pacote está completo. Dentro

daquelas paredes, esforça-se por

ter um papel relevante para a sua

filha mais nova, Amma (Eliza

Scanlen).

Só que Amma, por trás

da sua faceta de menina bonita

que cuida da sua casa de bonecas

de uma forma que consegue ser

perturbadora, revela-se mais semelhante

a Camille do que aparenta

inicialmente. Ambas nas-

51


DR

Quase imediatamente, Camille é

arrastada para um drama familiar

interminável, que Adora faz

questão em manter de pé. Só

que, dentro da sua roupa escura

e que cobre todo o corpo, nem

faz questão de fingir que está integrada

naquele meio, que tanto

a marcou — literalmente.

Camille carrega consigo

uma cruel coleção de palavras,

cravadas na sua própria pele em

momentos de descontrolo. Bebe

constantemente, na maior parte

das vezes sozinha, numa tentativa

vã de ultrapassar o estado

de paranóia em que se encontra

constantemente.

52

Tudo se liga no final

O mistério principal que guia

Sharp Objects acaba por explodir

em vários outros pedaços,

construídos e ligados de forma

requintada. Apresenta-nos uma

visão do mundo que dá a sensação

de ser assustadoramente

real, uma vez que lida com dilemas

que não se prendem apenas

com duas mortes e a investigação

de Camille para a sua reportagem.

Aqui, não há elementos

que estejam a mais ou que sirvam

apenas para preencher a

narrativa. Além do mistério principal,

existem outros elementos

que, acabando por estarem de

certa forma conectados, completam

o enredo: os traumas do

passado, problemas com bebida,

os cortes e alguma misoginia intrínseca.

É, também, uma exploração

da vida numa pequena

cidade americana, ao mesmo

tempo que entra em detalhe ao

nível psicológico daqueles que a

integram. Faz um comentário incisivo

na dificuldade que os que

habitam estas comunidades têm

em escapar do passado tóxico

que assombra estas zonas rurais

— algo que se reflete nos personagens

e nos seus próprios dilemas

pessoais.

A forma como os vários

pretextos da série se manifestam

no seu desfecho mostra que esses

mesmos elementos não estavam

ali apenas para figurar ou

dar algum tipo de falsa sensação

de profundidade à trama. Tudo

acaba por ser relevante para a

conclusão das várias linhas narrativas

que, se já estavam relacionadas,

estreitam a sua ligação

com as revelações finais.

O final (in)esperado

Havia algo de errado com Amma

desde o início — o tom de voz

provocador, o olhar vazio por

trás da aparente confiança rebelde.

Só que, antes dos momentos

finais, tem-se a sensação de que

tudo não passava de uma máscara

para se proteger da personalidade

tóxica e abusiva da sua

mãe que, no fundo, foi uma das

causas da sua destruição.


SÉRIES

Sharp Objects

Pouco antes do grande

final, parecia que todas as

questões tinham sido respondidas.

Adora é acusada de matar a

sua filha mais nova há anos atrás,

Marian, e, graças à sua condição

(síndrome de Münchhausen

por procuração), pensa-se que

também terá sido a responsável

pela morte recente de Ann e Natalie.

Tudo fica aparentemente

bem, com Camille e Amma a libertarem-se

finalmente do ambiente

de mágoa causado pela sua

mãe numa nova vida em St. Louis.

Só que sendo Sharp Objects

a série que nos ensinou ser

até àquele momento, nem tudo

parecia certo; e na verdade não

estava. Os momentos finais do

último episódio desenvolvem-se,

tal como a série como um todo,

de forma lenta até explodir num

momento de suspiro coletivo.

Num jantar em casa do

editor de Camille, Mae, a nova

amiga de Amma, revela que quer

ser jornalista; a meia-irmã da protagonista

rapidamente diz que

se quer tornar numa on-camera

personality, de forma a garantir a

proximidade de Camille. No dia

seguinte, a mãe de Mae questiona

Camille sobre o paradeiro das

raparigas, uma vez que tinha assistido

à primeira discussão entre

ambas.

Momentos depois, as atenções

voltam-se de novo para a

casa de bonecas de Amma. Depois

de encontrar a réplica da

cama que Mae tinha feito no lixo,

Camille observa de perto a casa

e descobre não só um dente no

seu interior, mas uma imitação

do chão de marfim do quarto de

Adora com dentes humanos.

Agora, tudo faz sentido.

Amma entra rapidamente em

casa e, ao ver a irmã com o dente

na mão, responde à sua expressão

de horror com três sonantes palavras

que dão à história a reviravolta

que se cozinhava sozinha

nos últimos minutos: “Don’t tell

mama“.

Uma forma de escape

Os créditos iniciam-se imediatamente

após as palavras de

Amma, mas ainda não é hora

de desviar os olhos do ecrã. A

música de Led Zeppelin incita a

continuar a olhar para, momentos

depois, duas cenas a meio

e no final dos créditos revelarem

finalmente o que já se tinha

percebido: foi Amma que matou

as duas raparigas de Wind Gap,

juntamente com as suas amigas;

era ela a famosa “mulher de

branco“.

Ou seja, este final mostra

que os espectadores estavam errados

— mas só em parte. Adora

matou, de facto, a sua filha mais

nova há anos atrás, mas as novas

mortes foram obra da aparentemente

inocente Amma. Só que,

como seria de esperar, a culpa

vai ter novamente com a matriarca.

Enquanto Camille usava

os cortes na pele como forma de

escapar aos traumas que ganhou

durante a sua infância nas mãos

da tóxica Adora, a dor deveria

ser igual para Amma, que foi

igualmente destruída. Se Amma

não se cortava, qual seria o seu

escape? A resposta é dada nas

cenas finais.

Este é o tipo de final que

se deveria esperar de uma série

que nos habituou, desde o início,

ao seu tom. A revelação final

surge, assim, no seguimento do

enredo — o anúncio não é feito

explicitamente até aos créditos,

uma vez que, nesse momento,

já saímos do ponto de vista de

Camille, que guia toda a trama;

assim, permite-nos finalmente

ver alguns momentos de fora e

só assim é possível ter uma nuance

dos atos de Amma. Só aí

é que percebemos que as pistas

estiveram sempre lá.

Sharp Objects é um festival

para os sentidos daqueles que

gostam de boa televisão. Uma

história inteligente, trazida à vida

por um elenco competente e

uma produção de topo.

Uma série para degustar

ao ritmo a que nos propõe desde

o início e que faz perceber que,

por vezes, o mistério está nos

pormenores que nem sempre se

vêem, escondido no interior magoado

de cada um.

Excelente

53


60 anos de RTP no Porto

Passado, presente e futuro

54

A20 de outubro

de

1959 era

realizada

a primeira

transmissão produzida

na íntegra no Centro

de Produção do Norte

da RTP, inaugurado no

mesmo dia. Seis décadas

depois, a estação

pública assume a unidade

como um dos pilares

das suas emissões,

com a certeza de que,

mesmo já não sendo

menina e moça, está

mais viva do que nunca.

A prova surge

nas comemorações

dos 60 anos de um dos

maiores centros de produção

de conteúdos do

país, o único desta dimensão

fora da capital

para uma estação generalista.

A sede, em Vila

Nova de Gaia, abriu

portas esta quarta feira

(23 de outubro) para

um open day destinado

a todos os que quisessem

ver por dentro

um dos principais motores

da produção da

RTP para todos os seus

serviços audiovisuais,

com o lançamento de

um livro e a abertura de

uma exposição.

60 anos depois do arranque das em

vez mais no seu Centro de Produç

Por Tiago Serra Cunha

Mas o que hoje se pode

ver é o resultado de

uma história longa e trabalhosa,

num centro de

produção que já teve no

seu seio alguns dos mais

importantes conteúdos

da história da RTP, continuando

este legado na

atualidade, tendo em

mãos grande parte da

sua produção de informação

e de entretenimento

para televisão e

rádio.

Um centro de

produção com várias

dimensões

Uma “grande vitória“. É

assim que Gonçalo Reis,

Presidente do Conselho

de Administração da

RTP, descreve ao Reticências

o culminar de

60 anos de produção a

norte. Vitória essa que

reflete a “presença consolidada,

sedimentada”

da marca de serviço público,

que precisa “de

estar em todo o território

e cobrir todas as

populações“.

Essa proximidade

dos portugueses é

um dos focos principais

da presença da RTP no

Porto. Esta presença

“aproxima a RTP dos

portugueses“, através

da produção de conteúdos

locais, com ênfase

no apoio aos setores

criativos da região, enriquecendo

“as valências

locais e regionais“. No

entanto, esta produção

a norte não é sinónimo

de produção estritamente

regional. Este é,

para Gonçalo Reis, um

“centro de produção

generalista, com competências

e ambições

globais“.

Informação do norte

para o país

Ao longo de várias décadas,

foram desenvolvidas

capacidades

que são transversais aos

vários canais e meios da

RTP. Entre os conteúdos

produzidos, destacam-se

os de informação,

com 40% dos

conteúdos noticiosos

da estação pública produzidos

inteiramente a

partir de Vila Nova de

Gaia. Tudo começou há

18 anos com a criação

da NTV, formada por

jovens jornalistas e técnicos

de televisão que

começaram um projeto

do zero, totalmente


issões da estação pública a norte, a RTP continua a apostar cada

ão local. Razões que mostram que o canal está mais vivo que nunca.

produzido no atual centro.

Quase duas décadas

depois, a NTV já

foi RTPN, RTP Informação

e, agora, RTP3.

Algumas das caras continuam

na estação até

hoje, como é o caso de

Cristiana Freitas, Estela

Machado ou Sandra

Fernandes Pereira. Mas

há muitos outros rostos

que deram os seus

primeiros passos no

canal e agora são alguns

dos nomes mais

sonantes do panorama

informativo português.

É o caso de

Júlio Magalhães, que

se estreou em televisão

na RTP e é atualmente

diretor-geral do Porto

Canal. “Os tempos são

outros“, mas há algo que

se mantém (também) 20

anos depois da década

que passou como cara

da RTP; no regresso à

primeira casa, recorda o

“local inovador” que foi

e continua a ser, com a

formação de vários “talentos

e profissionais“.

À frente de um

canal produzido regionalmente

mas emitido

para todo o país,

ressalta que, mesmo 60

SOFIA MATOS SILVA

anos depois da criação

deste Centro de Produção

do Norte, de

forma a descentralizar

a produção de televisão

e torná-la literalmente

nacional, isto “está

restringido à RTP“,

porque as restantes estações

não têm delegações

com a mesma

expressão. Mesmo que

se assista a alguma mudança,

é mínima e “o que

se fazia há 20 anos agora

faz-se igual, embora

com mais qualidade“.

Mesmo assim, esta

evolução na informação

pública sente-se nos

restantes canais. Mesmo

com o “retrocesso” da

RTP depois da aparição

dos privados, em que

esta deixa de dominar

o mercado, Júlio Magalhães

considera que a estação

conseguiu aumentar

o nível de qualidade

das suas produções, elevando

o seu estatuto

como “estação de todos

os portugueses”, com

uma programação variada

e certeira.

Entretenimento para

todos

Informação próxima

das histórias, da população,

de todo o país,

mas não só. O entretenimento

da RTP, pioneiro

nos formatos que hoje

vemos ser realizados

nos canais generalistas

portugueses, começou

no Centro de Produção

do Norte.

A 18 de setembro

de 1995, era emitido

o primeiro programa

d’A Praça da Alegria,

um dos principais form


atos de daytime na televisão

portuguesa, que

se mantém até hoje no

ar. Inicialmente apresentado

por Manuel

Luís Goucha e Anabela

Mota Ribeiro, teve mudanças

na apresentação

até que, em 2002, se

formou a dupla que

continua à frente do

programa, Jorge Gabriel

e Sónia Araújo.

O apresentador,

que foi um dos

anfitriões da celebração

dos 60 anos da RTP

Porto, contou ao Reticências

que integrar

uma equipa como a esta

a norte é “integrar uma

família, é a sensação que

se tem passado todos

estes anos. Nada nos é

ignorado ou afastado,

tudo é muito sentido e

vivido como se da nos-

“aproxima a RTP dos

portugueses“, através

da produção de conteúdos

locais, com ênfase

no apoio aos setores

criativos da região, enriquecendo

“as valências

locais e regionais“. No

entanto, esta produção

a norte não é sinónimo

de produção estritamente

regional. Este é,

para Gonçalo Reis, um

“centro de produção

generalista, com competências

e ambições

globais“.

Informação do norte

para o país

Ao longo de várias décadas,

foram desenvolvidas

capacidades

que são transversais aos

vários canais e meios da

RTP. Entre os conteú-

TV

RTP no Porto

sa família se tratasse. E

é essa a grande diferença

da RTP Porto para

a RTP em Lisboa. Aqui,

nada é deixado ao acaso.”

Uma proximidade

interna que “nos

faz perceber, no contacto

que temos com os

nossos convidados, que

eles gostam da intimidade

com que são tratados

de cada vez que cá

vêm, dizem que se sentem

em casa“, mas que,

por isso mesmo, passa

para fora do ecrã.

Apesar de muita

da informação da RTP

ser produzida nestes

estúdios, o mesmo não

se passa com o entretnimento.

Ainda menos

quando se olha para as

restantes estações. Jorge

Gabriel reitera que

fazem falta programas

de daytime produzidos

noutras regiões do país,

“para o país”.

Para o futuro,

mais especificamente

o da Praça da Alegria

e do entretenimento, o

apresentador garante

que “está no caminho

certo”, um caminho de

longa distância. O futuro

do único talk-show

generalista português

produzido fora de Lisboa

é “a inovação, o risco,

atenção àqueles que

não têm espaço na televisão

em Portugal”.

A exposição

poderá ser visitada durante

um ano nos estúdios

da RTP em Gaia.

SOFIA MATOS SILVA

56


DR

Chico-Espertismo Genial

Bruno Aleixo tem mais de 10 anos de existência. Começou com sketches

online de menos de um minuto, entretanto esteve na Rádio e na Televisão.

Agora, chegou ao Cinema. “O Filme do Bruno Aleixo” é o auge da criação

de João Moreira e Pedro Santo.

Por João Malheiro

O Filme do Bruno Aleixo teve direito

a uma exibição de antestreia

na sessão de encerramento da

sexta edição do Porto/Post/

Doc. Os criadores da personagem

e do seu universo, João

Moreira e Pedro Santo, assinam

a longa-metragem. Levar uma

personagem de sketches curtos

para o grande ecrã é sempre

complicado. Os fãs podem ficar

descansados, pois o filme supera

o desafio.

O humor de Bruno

Aleixo e companhia sempre residiu

em colocar estas personagens

com personalidades muito

características perante elementos

convencionais e ver a sua

desconstrução subversiva. Para

não fugir à essência, a narrativa

do filme arranja a desculpa

perfeita: Bruno Aleixo, Busto,

Homem do Bussaco e Renato

estão sentados numa esplanada

de café a discutir ideias para a

longa-metragem. O que se segue

é uma viagem pelos géneros

mais comum do cinema, desde

o thriller policial, passando pelo

terror e indo até à pornografia.

E até há um gozo subtil a super-heróis.

Nada escapa à trupe.

As comédias portuguesas

costumam cair em clichés e

tipos de humor muito arcaicos

e repetitivos. O Filme do Bruno

Aleixo evita ser mais um desses

filmes que, segundo Busto durante

a conversa, “só têm atores

atores a fazer caretas parvas no

cartaz”. Pelo contrário, cada

género de Cinema tem direito a

diferentes tipos de humor, como

o absurdo ou o chocante. Quando

uma piada está a ficar esgotada,

as personagens introduzem

uma nova reviravolta hilariante.

É pela qualidade da escrita

que Bruno Aleixo se tornou

um sucesso e a sua longa-metragem

não é diferente. O argumento

de João Moreira e Pedro

Santo é consistente, criativo e

eternamente citável. O chico-espertismo

bem à portuguesa de

Bruno Aleixo funciona tão bem

agora como há mais de dez anos

atrás. O Homem do Bussaco é

talvez a outra grande estrela do

57


filme, já que é por ele que

passam alguns dos momentos

mais engraçados. Busto

e Renato, mais jovens o que

equivale a uma maior inocência,

equilibram a fórmula que

sustenta a hora e meia de conversa.

Todos eles representam

um pedaço de Portugal que

nos continua muito familiar.

Por trás da palhaçada

óbvia, há um grande mérito

artístico a torná-la real.

Fernando Alvim, Adriano

Luz, Gonçalo Waddington

e Rogério Samora são os

destaques de um elenco que se

integra perfeitamente no universo

de Bruno Aleixo. João

Moreira e Pedro Santo fornecem

as vozes inconfundíveis

às personagens que criaram. A

equipa de animadores e dobradores

mostram que em Portugal

há muita qualidade nas

áreas mais técnicas do Cinema.

FILME

Bruno Aleixo

Desde vídeos de baixo-orçamento

de um Ewok a dar

conselhos até a um fenómeno

de culto que até já chegou ao

Brasil. Bruno Aleixo tem um

legado que é honrado e elevado

neste filme. Quem pouco

conhece da personagem não

tem de se preocupar, visto a

maioria do humor funcionar

sem qualquer contexto. Não

obstante, há piadas mais ou

menos subtis que recompensam

os fãs ferrenhos.

O Filme do Bruno

Aleixo é das melhores

comédias portuguesas modernas.

O mundo criado por

João Moreira e Pedro Santo

atinge, até ver, o seu auge

com esta longa-metragem

hilariante e inesquecível. É

DR

filme de culto instantâneo e as

frases do seu argumento serão

citadas durante muito tempo.

Depois de um excelente

2019, o Cinema português vai

começar o próximo ano em

grande. A data de estreia está

marcada para 23 de janeiro de

2020.

DR

DR


Bom


érie

Melhores do ano


O ano marca-se pelas despedidas e pelos grandes

dramas; o principal, a assoberbante quantidade

de oferta televisiva que faz com que este seja um

dos mercados com mais para oferecer.

sO ano começou, decorreu e terminou com vários

pontos altos, momentos televisivos de grande

qualidade. Não é algo novo, exceto talvez a frequência

com que começa a acontecer. O maior desafio

para a televisão em 2019 foi, precisamente,

sobressair-se perante si própria numa época em

que falar em peak tv faz mais sentido do que nunca.

Com oferta elevada, há o risco do conteúdo

se afundar entre os seus pares. Esse medo cria, por

outro lado, o desafio de superação que a TV agarrou

com distinção. Fez das dezenas de formas de a

ver um showcase do que de melhor se faz mundo

fora, com os grandes mercados a tornarem-se ainda

maiores e cujo selo de aprovação se torna cada

vez mais dourado.

O drama de um meio sobrecarregado torna

quase impossível a distinção por lugares específicos

do que melhor se fez no ano. São tantos os

conteúdos, tão distintos entre si, que acabam por

satisfazer locais muito diferentes da necessidade

cultural dos seus espectadores. A camada apelativa

das muitas séries televisivas que têm dado que falar

fazem com que a TV se esteja a tornar, cada vez

mais, o que cinema representa na sua essência.

2019 foi, assim, um ano de histórias intrínsecas,

complicadas, outras nem tanto, para todos

e para todos os gostos. Foi, também, o ano de

grandes despedidas. Game of Thrones foi uma das

séries que mais deu que falar nos últimos anos,

tornando-se, provavelmente, o produto televisivo

mais desejado da história; o final, aguardado em

grande expectativa, ficou aquém nas de muitos. O

final foi tudo menos consensual, mas a verdade é

que esta conclusão tem um mérito próprio, as decisões

que a moldaram a desviar-se do que se esperava

e a entregar, com distinção, uma experiência

audiovisual sem precedentes no meio televisivo.

Críticas e decisões aparte, a ambição de

Game of Thrones marca uma era, que terminou e ao

mesmo tempo começou com a exibição do seu último

episódio. Terminou porque não se sabe quando

se repetirá esta canção de gelo e fogo; começou

porque o toque de midas posto numa produção

destas permitiu e continua a permitir, até a obrigar,

que este legado passe para produções que, mesmo

que não se tornem neste sucesso sem fim, criem o

seu, próprio e específico.

Despedidas não só de GOT mas, também,

de uma das comédias geek mais queridas dos últimos

anos. The Big Bang Theory chegou ao seu fim

depois de uma bonita jornada de 12 temporadas,

precisamente 12 anos depois da estreia. Uma duração

justificada, mas de uma série que já pedia

descanso e cujo final deixa mais uma vez marcado

que o advento das sitcoms tradicionais parece estar

a chegar ao fim, substituídas por novos tipos

de comédia que não precisam de laugh tracks para

fazer rir e elevam a um outro patamar o conceito

de comédia de situação. Este ano, viram-se coisas

como a quarta temporada da genial The Good Place

ou a terceira da adorável Atypical, duas séries de

aguçado timing comédico.

Mas, se de comédia se fala, não se pode

deixar de parte aquela que é uma das surpresas do

ano e, provavelmente, do melhor que se fez em

televisão. Fleabag é quase um evento único em duas

Por Tiago Serra Cunha

61




MELHORES DO ANO

Séries

temporadas, uma vez que a sua criadora e protagonista,

Phoebe Waller-Bridge, já disse que a trama

ficou por ali. E já tivemos sorte em ter uma segunda

parte da história porque, até Pheobe ceder,

apenas a primeira, de 2016, iria existir, adaptada

diretamente da peça de teatro com o mesmo nome

que criou anos antes. E ainda bem que cedeu: a

segunda e última temporada de Fleabag é amor e

ódio, riso e destroços tudo dentro de um saco,

embelezado exteriormente na figura de um padre

sexy (um dos personagens mais dinâmicos desta

temporada) que nos faz questionar o que achamos

saber sobre os devotos da religião.

As discussões são reflexivas, porém digeríveis.

Fleabag é, provavelmente, um dos produtos

televisivos mais eletrificantes, devastadores e,

ao mesmo tempo, hilariantes dos últimos anos.

Salve, Phoebe Waller-Bridge, que também escreveu

Killing Eve, outra das séries mais cativantes dos últimos

tempos e que este ano teve uma segunda temporada

genialmente deliciosa ao continuar a juntar

o macabro com o inesperado, com uma obsessão,

com o riso, com tudo. Um novo talento a ter debaixo

de olho (por exemplo, no próximo filme de

Bond, em que fará parte da equipa de escritores).

As mulheres complexas em comédias

dramáticas igualmente labirínticas não se ficaram

na obra-prima de Waller-Bridge e, em 2019, Natasha

Lyonne também criou e protagonizou o seu

woman-show em Russian Doll. Foi esta a série que

iniciou o ano televisivo em mais uma vitória da

Netflix, que ao longo dos últimos anos se tem afirmado

uma das produtoras com selo de qualidade

quase garantido, desembrulhando a matrioska de

recantos naquilo que a TV tem para oferecer. Ou,

tirando-se a precisão da comédia, as histórias duramente

reais das mulheres de Monterey. A segunda

temporada de Big Little Lies, mesmo sem um

grande mistério por revelar, tem o seu trunfo na

exploração mais funda e dura dos sentimentos das

cinco mulheres e a forma como lidam com as consequências

dos seus atos.

Este tom introspetivo, que se cola ao misterioso,

correu alguns dos melhores frutos da colheita

do penúltimo ano da década.

Em produções grandiosas, explorou-se a

história real em traços de ficção com Chernobyl, da

HBO, que rapidamente se tornou uma das mais

bem classificadas do ano e entrou, também, na lista

das melhores de sempre. Em cinco episódios,

mostrou-nos de forma nua e crua as consequências

do pior desastre nuclear da História, tema que

voltou a ser comentado na altura certa. Toca profundamente

e avisa que nós, enquanto seres humanos,

temos o poder de, com ou sem consciência,

mudar o curso das vidas de todos.

Avisos para um amanhã mais assustador reforçados

em Years and Years que, ao estilo de Black

Mirror (uma das favoritas de outros anos), mostra

um olhar do lado contrário do telescópio ao nosso

mundo atual, com sucessivos avanços temporais

que amplificam a sensação tão familiar de tumulto,

um retalho de liberdades e direitos, numa conclusão

quase bíblica, estranha e inesperadamente

humana.

Ou, para além da reflexão sobre a nossa

realidade, a descoberta de presentes, passados e

futuros paralelos, com direito a viagens no tempo,

em performances de excelência — DARK, série

alemã da Netflix, pode quase ser considerado um

produto de nicho; não fosse uma série europeia,

mercado que ainda está a ganhar lentamente o seu

espaço entre as produções das gigantes máquinas

americanas e inglesas, teria certamente mais atenção,

mas não se lhe pode retirar o mérito. Em

argumento de um nó mental garantido, é difícil

de ver, mas impossível de parar. De parar de ver,

efetivamente, mas também de tentar entender.

Sem dúvida, uma das melhores séries que se fez

nos últimos anos, que reflete a tendência na aposta

em histórias quase mitológicas, dos e ses, que

encontram em produtos como The OA, injustamente

cancelada na segunda temporada quando

foi planeada para ter cinco, a miragem do desconhecido.

64


MELHORES DO ANO

Séries

De nó mental em nó mental, Mr. Robot

também se despediu do pequeno ecrã depois de

quatro temporadas. Se ao longo dos anos levantou

inúmeras questões que todos ansiavam ver respondidas,

evita a armadilha da incógnita e conclui a

sua história sem responder a tudo, mas a esclarecer

o essencial. A quarta temporada traz novas camadas,

literais e metafóricas, aos protagonistas, numa

série que não se deixa cair no previsível. Viver na

mente de Eliot é uma aventura que permite a Mr.

Robot brincar com o Cinema e testar os limites da

arte de fazer televisão.

O advento das séries que fazem pensar

continua em força e tem oferecido tramas bíblicas

que jogam com o que é ser-se humano, nos bons e

nos maus momentos. Como Mindhunter, que numa

intrincada segunda temporada continua a explorar,

a par com eventos como The Act (história real

igualmente macabra), os mais obscuros recantos

da mente humana; ou, do que é bem nosso, Sul,

um policial noir embalado pela Lisboa da troika,

aquela que quase se engoliu na sua própria sobrevivência,

antes dos airbnb sem fim. Mutações de

roteiro que casam na perfeição, em contraste, com

os milionários de Succession ou a mitologia remisturada

do novo Watchmen. Contradições, revolucionárias,

que se complementam.

Não fosse 2019, a par com a atitude de

transformação que percorre a sociedade atual, as

camadas mais jovens rebelam-se contra os sistemas,

em lutas incessantes por causas tão distintas.

Essa vontade em ser-se mais extrapola-se para o

ecrã, em odes à juventude, à diversidade e ao espírito

do que é viver como faz Euphoria. A série que

causou furor por romper com padrões, normalizando

a diferença e extinguindo categorizações, e

cenas com 71 pénis sem censura; é este contraste

entre banal e profundo que traz à série protagonizada

por Zendaya, embalada numa estética independente

e quase nostálgica, uma camada emocional

subtil e premente nas discussões que levam

esta era ao colo.

E ainda haveria muito por falar: a épica terceira

temporada de Stranger Things, Unbelievable,

Orange Is The New Black, BoJack Horseman. Rolam

os créditos de mais um ano recheado de boa

televisão, mas que chega a ser overwhelming; é a

era que obriga à seleção criteriosa do que queremos

ver, da união pelo streaming que, com tanto

para ver, faz o planeta disperso na quantidade

de escolhas. A televisão está em mudança, mesmo

com o advento de velhos favoritos; é cada vez

mais internet, cada vez mais aquilo que se quiser.

E, talvez por isso, uma fonte a caminho de ilimitada

de uma transfusão de artes, injeção de sentimentos

premonitórios que adivinham as experiências

do amanhã.

Que 2020 assim seja. Sem limites.


ITER-

TURA


SOFIA MATOS SILVA

A alma e o espírito de

Richard Zimler

O último romance do escritor foi o ponto de partida para uma

conversa profunda em torno das personagens, do livro e do

processo de escrita do autor.

Por Sofia Matos Silva

Aprendemos com Benni e Shelly,

personagens deste novo livro,

que existem diferentes maneiras

de superar as tragédias; com

Zimler, que é preciso saber perdoar

o mundo e a História – e

aprender a canalizar as emoções

em algo bom. Os Dez Espelhos

de Benjamin Zarco transmite a

mensagem de que é preciso largar

o passado, mas sem nunca

esquecer o seu papel na forma

como vivemos hoje. É um livro

de paixão e solidariedade, com

personagens imperfeitas e tumultuosas

que se refugiam nas

suas paixões.

O seu autor, Richard

Zimler, revela-nos, também, a

sua paixão por escrever acerca

do que é “desconfortável” - paradoxalmente

- na esperança de

que os leitores possam encontrar

na sua escrita um refúgio. Do

nascimento de Benjamin Zarco

até à possível continuação do legado

da sua família: fundem-se

complexos mundos interiores

com a realidade que nos toca e

que observamos todos os dias.

Descreve o seu processo criativo

como algo de muita liberdade.

É o momento que o inspira?

Como é que se chega a

esse nível de criatividade?

Bom, em parte, é um treino.

Um violinista não vai ser um

excelente músico sem treinar,

quatro, cinco horas por dia em

casa durante quinze anos, vinte

anos. A escrita é a mesma coisa:

temos que trabalhar, começar a

ler excelentes escritores e, depois,

pouco a pouco, começar a

escrever. Um parágrafo por dia,

uma página por dia. É todo um

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LITERATURA

Richard Zimler

SOFIA MATOS SILVA

processo de aprendizagem. É isso que eu fiz. Já

tenho 63 anos, então estou a escrever romances

desde, provavelmente, 1992.

Nesta sua última obra, “Os Dez Espelhos de

Benjamin Zarco”, Benjamin e Shelly são vítimas

do Holocausto. Como é que se dá voz

àqueles que não estão habituados a tê-la?

Com muita honestidade. É uma grande responsabilidade

falar por pessoas que não têm voz, porque

eu não quero distorcer a vida deles. Quem sou eu

para roubar a vida de uma pessoa, distorcê-la e

ganhar a vida vendendo livros? Não. Eu tenho que

fazer muita pesquisa, para contar essas vidas, da

perspetiva dessas pessoas, de uma forma honesta e

verdadeira. É uma enorme responsabilidade - e eu

sinto isso. Eu teria uma enorme sensação de culpa

se mentisse sobre um assunto tão importante

como este.

Para começar a escrever esta obra, entrou

em contacto com sobreviventes do holocausto?

Como é que foi, enquanto judeu, estar a

remexer nestas memórias?

Para escrever este romance, eu vi muitos vídeos,

mas não fiz entrevistas pessoais. Não sei porquê,

mas não me senti confortável a abordar esses assuntos

com pessoas que não me conhecem. Não

me senti bem. Mas não é necessário, porque há muitas

informações, muitos vídeos, muitos diários. Eu

cresci num bairro meio judaico, em Nova Iorque,

em que, por exemplo, na família que vivia do outro

lado da rua, o pai e a mãe tinham a tatuagem dos

números – tiveram nos campos de concentração.

E isso era bem comum onde eu cresci. Qualquer

pessoa que cresceu em Nova Iorque se deparava

com isso, mais tarde ou mais cedo. Curiosamente,

o Holocausto, para os judeus, está quase sempre

presente. Pelo menos para a minha geração. Se calhar,

agora, para os jovens judeus, não está tanto.

Mas, para a minha geração, era inevitável o Hol-

causto estar presente.

O que é que espera que este

livro represente no contexto

da sua obra?

Mais uma etapa. O que eu quero

sempre de um livro é que

seja apreciado, que os leitores

gostem do livro e fiquem emocionados.

Quer dizer, quando

eu escrevo um romance, não

é para ter uma relação só intelectual

com o leitor. Não,

eu quero o coração, a alma,

o espírito do leitor. Eu quero

que, sobretudo, desenvolva

uma relação com as personagens

do livro e, depois de acabar,

pense “bom, eu conheço esta gente e foi giro

passar 10, 20 ou 30 horas com eles”.

Poderão os leitores encontrar neste livro uma

espécie de refúgio e ajuda para lidarem com

os próprios problemas?

Eu acho que sim. Curiosamente, a literatura tem

essa dupla função. É quase um paradoxo. Por um

lado, é um refúgio onde podemos fugir dos nossos

problemas. Eu já passei por fases da minha

vida em que eu não queria pensar. Eu queria ler

um livro, queria entrar noutro universo em que a

doença do meu irmão não existisse. A literatura

pode ter uma função de empatia, de solidariedade

e de conforto.

Desde que começou a escrever, escolhe quase

sempre abordar temas que são tabus, que a sociedade

prefere ignorar ou esconder. Porque é

que escolhe fazê-lo?

Eu tenho uma personalidade muito subversiva.

Quando as outras pessoas preferem branquear

ou esquecer um assunto, um tema, um tabu, um

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crime, eu fico entusiasmado. Eu

quero falar daquilo. Dá-me um

prazer enorme, não sei porquê.

No caso do Último Cabalista de

Lisboa foram duas mil pessoas

mortas e queimadas no Rossio,

que foram esquecidos durante 5

séculos. Eu não achei isto justo.

Então, não me dá só prazer, mas

dá-me a sensação de conseguir

alguma justiça. Fico orgulhoso,

porque penso que estou a contribuir

para criar uma sociedade

melhor, mais compreensiva,

mais tolerante, de mais empatia

e isso dá-me prazer.

Em entrevista à RTP, referiu

que trazer todas estas

memórias para o contexto

em que estamos, em 2018, era

pertinente devido a todas as

tendências fascistas que se

ropa e também noutros pontos

do mundo. Acha que os

leitores devem encarar Os Dez

Espelhos de Benjamim Zarco,

não apenas, mas também,

como um lembrete?

Sim. Eu acho que nós sem

memória não somos nada. Temos

a obrigação de sabermos a

nossa história - e de sabermos

a história mundial também. Eu

acho que o Holocausto, obviamente,

pertence aos judeus

porque foram eles os mais afetados.

Mas pertence aos ciganos,

pertence aos comunistas, pertence

aos homossexuais, pertence

a toda a gente. Quer dizer,

faz parte da história do planeta.

O planeta é uma só “casa” e isso

é cada vez mais óbvio

Pretende continuar a fazer da

sua escrita uma arma contra

a ignorância, ao expor as pessoas

a temas sobre os quais

elas não querem falar?

Não é propriamente uma decisão

política minha. Faço isto porque

é o meu feitio, não posso fugir

da minha maneira de ser. Dá-me

prazer contar uma história que

os outros escritores não querem

contar. Às vezes, os leitores perguntam

“porque é que necessitávamos

de um estrangeiro para

contar a nossa própria história?”.

É uma pergunta interessante.

A entrevista completa em

bit.ly/pvjornal

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