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7.6. Mudança

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7.6 MUDANÇA

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Mudança

Na planicie avermelhada os joazeiros alargavam

Os

duas manchas verdes. Aquelles infelizes tinham caminhado

o dia inteiro, estavam cançados e famintos. Ordinariamente

repousado † bastante

andavam pouco, mas como haviam tomado um longo

num dia

repouso na areia do rio secco, a viagem progredira

bem umas três léguas. num dia Fazia horas que

procuravam uma sombra. A folhagem dos joazeiros

apareceu-lhes muito longe, atravez dos galhos pelados

da catinga † rala.

carregando

Arrastaram-se para lá, devagar, sinha Victoria com

com o filho mais

o filho mais novo escanchado no quarto e o bahu de

sombrio, cambaio, o aiol a

folha na cabeça, Fabiano atraz com o aiol a

tiracollo, a cuia pendurada numa correia presa ao

cinturão, a espingarda de pederneira no hombro. O

iam

menino mais velho e a † cachorra Baleia seguiam

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atraz.

aproximou-se approximava-se, afastava-se

O joazeiro, que parecia /*proximo, foi-se/ afastando,

O joazeiro approximava-se, afastava-se e a uma volta do caminho

afastando, /*nesta/ volta do caminho desappareceu completamente

recuaram,

Os juazeiros aproximaram-se, afastaram-se e numa volta do caminho sumiram-se.

sumiu-se. O pequeno mais velho poz-se a chorar,

O menino mais velho poz-se a chorar, sentou-se no chão. †

sentou-se no chão, e Fabiano, impaciente, gritou-lhe:

– Anda, condemnado do b diabo, gritou-lhe o pae.

Não obtendo resultado, fustigou-o desesperadamente

pequeno

com a bainha da faca de ponta. Mas o filho esperneou

acuado, depois socegou, deitou-se, e fechou os olhos.

Fabiano ainda lhe deu algumas pancadas e esperou

que elle se levantasse. Como isto não acontecesse,

procurando

espiou os quatro cantos, zangado, procurando em que

desabafar praguejando baixo.

A catinga estendia-se, de um vermelho indeciso

salpicado de manchas brancas que eram ossadas. O

vôo negro dos urubus fazia circulos altos em redor

de bichos moribundos.

– Anda, excomungado.

pirralho

O pequeno não se mexeu, e Fabiano desejou

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matal-o. Tinha o coração grosso, e queria responsabili-

zar alguem pela sua desgraça. A secca apparecia-lhe

criança

como um facto necessario — e a obstinação do/da filho

irritava-o. Certamente esse obstaculo miudo não era

difficultava a marcha, e o vaqueiro

culpado, mas impedia a viagem, e Fabiano precisava

chegar./, Não sabia onde não sabia onde.

Tinham deixado os caminhos, cheios de espinho e

pisavam a

† seixos, fazia horas que seguiam pela margem

a

do rio, na lama secca e rachada que escaldava os pés.

No Pelo

do sertanejo

Pelo espirito atribulado de Fabiano passou a idéa

de abandonar o filho naquelle descampado. Pensou nos

urubus, nas ossadas, coçou a barba ruiva e suja, ir-

resoluto, Ergueu-se nas pontas dos pés, examinou

os arredores. demoradamente. Sinha Victoria estirou o

beiço indicando vagamente uma direcção e affirmou

com alguns sons gutturaes que estavam perto. Fabiano

metteu a faca na bainha, guardou-a no cinturão, aco-

menino,

corou-se, pegou no pulso do filho, que se encolhia,

com os joelhos encostados ao estomago, e estava frio

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como um defuncto. Ahi a colera desappareceu e Fabiano

teve pena. Impossivel abandonar o anjinho aos bichos

do mato. Entregou a espingarda a sinha Victoria,

poz

levantou-se,

montou o filho no cangote, ergueu-se, agarrou os bra-

cinhos que lhe cahiam sobre o peito, molles, sujos, finos

como cambitos. Sinha Victoria approvou esse arranjo,

lançou de novo a interjeição guttural, e designou

com a cabeça e tornou a lançar a interjeição guttural,

e designou

designando com o beiço os joazeiros invisiveis.

E a viagem prosseguiu, mais lenta, e mais

arrastada, num silencio grande.

Ausente do companheiro, a cachorra Baleia

tomou a frente do grupo. Arqueada, as costellas

offegando,

à mostra, corria resfolegando, a lingua fóra da

boca. E de quando em quando se detinha,

esperando as pessoas, que se retardavam.

Ainda na vespera eram seis viventes, con-

coitado, morto Coitado, morrera na

tando com o papagaio. mas na areia do rio rio,

haviam

onde tinham descançado, à beira duma poça:

e por ali

a fome apertara demais os retirantes , em volta

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não existia signal de comida. e sinha Victoria sacrificara

não existia coisa comível — e sinha Victoria tinha

jantara

sacrificado o louro. Baleia comera os pés, a ca-

e

delle do amigo, mas não guardava

beça, e os ossos da ave, mas não tinha lembrança

disto. E Agora, enquanto parava, dirigia as pu-

pillas brilhantes aos objectos familiares, e extranhava

não ver sobre o bahu de folha a gaiola pequena onde

a ave

o papagaio se equilibrava mal. Fabiano tambem às

logo a recordação chegava.

vezes sentia falta della, mas recordava-se da scena da

vespera. Tinha andado a procurar raizes, à toa:

o resto da farinha acabara,

a farinha /*do bahu acaba/ findara, não se ouvia um

rondar na catinga.

berro de rez perdida pelas redondezas. Sinha

queimando

Victoria, escaldando o assento no chão, as mãos

cruzadas segurando os joelhos ossudos, pensava

em acontecimentos antigos que não se relaciona-

novenas,

vam: festas de casamento, vaquejadas, festas de

casamento ainda, tudo numa confusão. Despertara-

a um grito aspero, vira de perto a realidade e o

que andava

papagaio, Coitado. Estava furioso, e andava com

os pés apalhetados, numa attitude ridicula. Sinha

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Victoria Resolvera de supetão aproveital-o como

justificara-se

alimento e justificara a decisão declarando a si

ave elle

mesma que o animal era mudo e inutil. Não

mudo.

podia deixar de ser muda. Ordinariamente a fa-

milia falava pouco. E depois daquelle desastre

viviam todos calados, calados, raramente soltavam algumas

viviam todos num silencio lugubre, manifestavam

-se raramente, e por

louro

por gestos e palavras curtas. O infeliz pa-

pagaio aboiava, tangendo um gado inexistente, e

latia arremedando a cachorra.

tornaram

As manchas dos joazeiros tornou a ap-

parecer, Fabiano aligeirou o passo, esqueceu a

canseira e os ferimentos.

fome, a cançaço e as feridas. As alpercatas dell

gastas

delle estavam comidas nos saltos, e a embira tinha-

dedos

lhe aberto entre os artelhos rachaduras muito doloro-

sas. Os calcanhares, duros como cascos, gretavam-

se e sangravam.

caminho

Num cotovello do rio avistou um canto de

cerca, encheu-o a esperança de achar comida,

sentiu desejo de cantar. A voz sahiu-lhe rouca,

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medonha. Calou-se para não estragar força. à toa.

acompanharam a

Deixaram a margem do rio, foram beirando a

cerca, subiram uma ladeira, e chegaram aos joazeiros.

Fazia tempo que não viam uma sombra.

Sinha Victoria accommodou os filhos, que *se*

arrearam como trouxas, cobriu-os com molambos. que

passada a

retirou do bahu. O menino mais velho, tinha-se

reconstituído da vertigem que o derrubara, no caminho,

e agora, encolhido sobre folhas seccas, a cabeça en-

costada a uma raiz, adormecia, e acordava. E

quando

abria abria os olhos, distinguia *mal* vagamente um

monte p próximo, algumas pedras, e um carro

de bois. A cachorra Baleia foi enroscar-se perto

do amigo junto do amigo. junto delle.

sem

Estavam no pateo duma fazenda mas não

havia ali signal de vida. O curral deserto, o

chiqueiro das cabras arruinado e tambem deserto,

a casa do vaqueiro fechada, tudo annunciava aban-

dono. Certamente os moradores tinham fugido

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e o gado se finara e os moradores tinham fugido.

perceber

Fabiano procurou em vão distinguir um toque

de chocalho. Ergueu-se, Avizinhou-se da casa, bateu,

tentou forçar a porta. Encontrando resistencia, pe-

netrou num cercadinho cheio de plantas mortas e

garranchos e plantas mortas, rodeou a tapera, pi

alcançou o terreiro do fundo, viu um barreiro vazio,

murchas,

um bosque de catingueiras sem folhas, um pé de

o prolongamento

turco e a continuação da cerca do curral. Trepou-

-se no mourão do canto, examinou a catinga par-

onde avultavam as ossadas e os negrumes dos urubus. Des- salpicada de

dacenta nuns pontos, avermelhada em outros, manchada

nodoas pretas e brancas — esqueletos e

de preto e branco — ossadas e vôos de urubus. Des-

nodoas brancas e pretas — esqueletos e vôos de uburus. Des-

ceu, e foi empurrou a porta da cozinha. Voltou

salpicada de nodoas brancas e pretas — ossadas e voos de urubus. Desceu,

empurrou a porta da cozinha. Voltou desanimado,

desanimado, ficou um instante no copiar, fazendo

tenção de hospedar ali a familia. Mas chegan-

do aos † joazeiros, encontrou os meninos adorme-

cidos e não quiz accordal-os. Foi apanhar

gravetos, trouxe uma braçada de madeira /*podre/

do chiqueiro das cabras uma braçada de madeira

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roída pelo

meio † pelo p cupim, arrancou umas tou-

ceiras de macambira, arrumou tudo para a fogueira.

Nesse ponto Baleia arrebitou as orelhas, ar-

regaçou as ventas, sentiu cheiro de preás, e, depois

de farejou um minuto, localizou-os no morro pro-

ximo e E sahiu correndo.

Fabiano seguiu-a com a vista e teve um

espantou-se: uma sombra passava sombra

movimento de surpresa: uma nuvem passava

por cima do /*curral/ monte. Tocou o braço da mu-

lher, † apontou o ceo, ficaram os dois algum tem-

po aguentando a claridade do sol. Enxugaram os

as lágrimas, agachar-se

olhos †, foram acocorar-se perto dos

temendo

filhos, suspirando, conservaram-se encolhidos, sem

animo de affrontar de novo a luz dura, receando

que a nuvem se tivesse desfeito, vencida pelo azul

terrivel,

medonho, aquelle azul que deslumbrava e endoidecia

a gente. Entrava dia e sahia dia. As noites

cobriam

fechavam a terra de chofre. A tampa anilada

sem nodoas

nodoas

baixava, escurecia, tornava-se ferrete, sem manchas,

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quebrada apenas pelas vermelhidões do poente. Mi-

udinhos, perdidos no deserto queimado, os fugitivos

agarraram-se, sommaram as suas desgraças e os

junto

seus pavores. O coração de Fabiano bateu contra

do coração de sinha Victoria, um abraço cançado

approximou os

juntou os farrapos que vestiam os cobriam. mal.

Resistiram à fraqueza, afastaram-se envergonhados,

sem animo de affrontar olhar espiar de novo a luz luz dura,

não se resolveram a espiar novamente o ceo, com

receosos de

que os alentava.

medo de perder a esperança ligeira que os animava.

Iam-se amodorrando e foram despertados

por Baleia, que trazia nos dentes um preá. Le-

vantaram-se todos gritando. O menino menino mais

velho esfregou as palpebras, afastando pedaços de

velho passou a mão pelos olhos, quiz afastar o

preá, confundiu-o com outros vistos em sonho. Sinha

Victoria beijava o focinho de Baleia, e como o fo-

cinho estava ensanguentado, sinha Victoria lambia

o sangue e tirava proveito do beijo.

Aquillo era uma caça bem mesquinha, mas

adiaria por algumas horas a morte do grupo

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grupo. E Fabiano queria viver. Olhou o ceo com

resolução. A nuvem tinha crescido, e agora cobria

o morro inteiro. Fabiano pisou com segurança, esque-

cendo as rachaduras que lhe estragavam os dedos e os

calcanhares.

remexeu no bahu, os

Sinha Victoria retirou do bahu uma /*quicé/

/*assar o/

cheia de dentes e dispoz-se a trabalhar na preparação

do preá. Os meninos foram quebrar uma haste de

alecrim para fazer um espeto. Baleia, com as

o ouvido attento,

orelhas attentas, o trazeiro em repouso e as pernas

vigiava, aguardando aguardando

da frente erguidas, fiscalizava as coisas, esperando

/*paciente/ a parte que lhe iria tocar, provavelmente os

ossos do bicho e talvez o couro.

Fabiano tomou a cuia, desceu a ladeira, e

ao

encaminhou-se rio secco, Subiu, desceu, afinal

achou

um pouco

encontrou no bebedouro dos animaes uma pouca

esperou

de lama. Cavou a areia com as unhas, a agua

que a agua marejasse e/,\ formasse uma poça e

marejou e encheu a poça. Quando a poça estava

debruçando-se

cheia, Fabiano debruçou-se no chão, bebeu muito.

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Saciado, cahiu de papo para cima, olhando as estrel-

las que vinham nascendo. Uma, duas, tres, quatro, ha-

via muitas estrellas, no ceo, havia mais de cinco es-

de

trellas no ceo. O poente cobria-se cirros — e uma

alegria doida enchia o coração de Fabiano. † Pen-

Caminhando, movia-se

sou na familia, sentiu fome. Desapparecera a sede,

mas a fome /*roia-o/ como um bicho zangado. Caminhan-

do, esquecia-se della, mexia-se como uma coisa, para

bem dizer não se differençava muito da bolandeira de

Mas Agora, deitado, apertava a barriga e batia os dentes.]

seu Thomaz. Que fim teria levado a bolandeira de

Com certeza estava parada.

seu Thomaz? † Olhou o ceo de novo. Os cirros accumu-

lavam-se, a lua surgiu, grande e branca. Certamente

ia chover. Tho Seu Thomaz fugira tambem, com a

secca, a bolandeira estava parada.

secca. Elle E elle, Fabiano, era como a bolandeira.

Não sabia porque, mas era. Uma, duas, tres, havia

mais de cinco † estrellas no ceo. A lua estava cer-

cada dum halo halo /*bran/ halo cor de leite. Ia chover.

Bem. A catinga resuscitaria, a semente do gado vol-

ao

voltaria ao curral e ao chiqueiro, e ao curral, e ao chiqueiro

taria aos cuarraes e ao chiqueiro, elle, Fabiano, seria

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o vaqueiro daquella fazenda morta. Muitos Chocalhos

de badalos de ossos animariam a solidão. Os meninos, gordos,

vermelhos, brincariam no chiqueiro das cabras, com a ca-

chorrinha, sinha Victoria vestiria saias de ramagens vis-

povoariam

tosas. As vaccas encheriam o curral. Elle, Fabiano, seria

[Lembrou-se dos

o vaqueiro. E a catinga ficaria toda verde. [Pensou nos

filhos, da mulher e da cachorra, que estavam lá em cima,

Lembrou-se do

debaixo dum joazeiro, com sede. Pensou no preá morto.

afastou-se, lento,

Encheu † a cuia, ergueu-se, /*lá/ foi seguindo lento

para não derramar a agua salobra. Subiu a ladeira.

chiquechiques e os

A aragem morna sacudia os /*chichiques/ e mandacarus.

Uma palpitação nov nova. Sentiu um arrepio na

catinga, uma resurreição de garranchos e folhas seccas.

Chegou. Poz a cuia no chão, /*devagarinho/, escorou-

matou a sede da familia. Em seguida

-a com pedras, Beber Beberam todos, e sinha Victoria aca

bou de preparar a comida /*lavou/ o preá. Em seguida

/*pedr a pedra † fuzil,/

Fabiano remexeu o aiol, bateu o /*paiol/ na pedra de figo,

Fabiano acocorou-se, remexeu o aió, tirou o fuzil, accendeu as

accendeu a fogueira. † inchou as bochechas

raizes de macambira, soprou-as, inchando as bochechas cavadas. Uma

cavadas e soprou as raízes de macambira. Uma

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elevou-se, tingiu-lhe o

labareda tremeu, † ganhou alento, tingiu-lhe de vermelho o

rosto queimado, a /*barr/ barba ruiva, os olhos azues. Minutos

depois o preá torcia-se e chiava no espeto de alecrim.

Eram todos felizes. Sinha Victoria vestiria uma saia

larga de ramagens. ver vermelhas. A sua estava †

remoçaria, as

†. A cara murcha de sinha Victoria se encheria, as

engrossariam,

nadegas bambas de sinha Victoria /*tomariam/ carne, a roupa

encarnada

vermelha de sinha Victoria provocaria a inveja das outras

caboclas.

A lua crescia, a sombra leitosa crescia, as estrel-

las foram esmorecendo naquella brancura que enchia a noite.

Uma, duas, tres, agora havia poucas estrellas, havia pou-

Ali perto a nuvem

co mais de cinco estrellas no ceo. A nuvem escura /*en-/

escurecia o

/*grossava/ por cima do morro.

A fazenda renasceria — e elle, Fabiano, seria o va-

queiro, para bem dizer seria dono na daquelle mundo.

Os troços minguados ajuntavam-se no chão: a espingarda

A espingarda de pederneira descançava no chão, perto

† de pederneira, o aiol, a cuia d’agua e o bahu de folha pintada.

do aiol, da cuia d’agua, do bahu de folha pintada. A fo-

A fogueira estalava.

gueira estalava O preá chiava em torrava-se cima das brazas.

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Uma ressurreição. As cores da saude voltariam à

cara triste de sinha Victoria. Os meninos se espojari-

am na terra fofa do chiqueiro das cabras. Chocalhos

tilintariam pelos arredores. A catinga ficaria toda verde.

Baleia agitava o rabo, olhando as brazas. E

daquellas

como não podia occupar-se com essas coisas /*nessas/ coisas,

esperava com paciencia a hora de mastigar os ossos.

Depois iria dormir.

16-Julho-1938

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