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Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos - 09.11.2020 imagens revisadas -flapbook - compar,

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Capítulo 1

...e eram asas enormes!


A chegada da morte assombrou Cesar Astu Ninan com o fantasma

de si mesmo em um passado muito distante, quando ele soube que

ficaria louco.

Era o outono dos seus cem anos e Cesar se convencera de que a

morte o havia esquecido. Resumia seus dias aos passeios em clima

ameno e perfumado pelas flores da mimosa, sob o sol filtrado pelas

folhas das árvores se revestindo de ferrugem e ocre.

Mas, finalmente a morte chegou e Cesar reviveu, com requintes de

detalhes, o momento há trinta anos quando um inesperado

farfalhar de asas agitadas num voo misterioso provocou seu poder

clarividente e ele soube que a descida da enorme escadaria de pedra

que se lhe impunha logo à frente, passo a passo, degrau a degrau,

marcaria o perder-se da sua consciência e da sua alma para a

loucura em um ritmo idêntico ao do seu corpo na descida. Até que

ao descer o último degrau ele estaria completa e irremediavelmente

louco.

As lembranças o envolveram como a mortalha do seu fantasma

triste.

Era o meio da tarde e Cesar fora levado, como todos os dias, até o

alto da colina, atado à sua cadeira de rodas para ser deixado num

local de descanso de onde a vista do mar era especialmente bela.

Dormitava sonhos desfeitos como trapos esfiapados produzidos

pela claudicante cadeira de rodas sobre as pedrinhas soltas do

caminho.


E foi então que um estalido metálico, inaudível, senão no

milionésimo de segundo em que se imobilizou o alvoroço da vida

despertou-o, anunciando o romper-se da trava da cadeira de rodas

que começou uma aceleração incontrolável colina abaixo. E Cesar

mergulhou nas lembranças do momento exato no passado em que

se perdeu na loucura, ao mesmo tempo em que compreendeu que

estaria morto antes mesmo de chegar ao fim do caminho e

despencar, os cento e setenta metros do precipício, até as águas

azuis e geladas do Egeu.

Ele fez um murmúrio que pareceu aos que o acompanhavam e que

ficaram imobilizados, estarrecidos pela extravagância com que ele

se retirava da vida, uma tímida tentativa de pedido de socorro,

mas que na verdade foi apenas um sussurro de profundo espanto

pelo assombro de julgar a morte tão espetacular quanto tardia e

desejada.

E assim Cesar viveu seus dois momentos supremos, simultâneos,

plenos de saberes sobre a loucura e sobre a morte com o chacoalhar

do seu velho corpo preso à corrida alucinada da cadeira de rodas

em direção ao abismo. Resgatado do tormento que havia sido sua

consciente rendição à loucura e convencido de que tudo o que valia

a pena ser lembrado da sua longa vida, houvera tão somente entre

estes dois momentos.

E julgou a morte infinitamente mais aceitável do que a loucura.

Revoltara-se.


O desvario da loucura que o acometera naquele outono dos seus

setenta anos, em que ele almejara a consequente libertação total

dos sentidos, deveria ter acontecido já nos primeiros passos a

descerem os degraus da enorme escadaria de pedra como parte do

acordo subconsciente e secreto para desapegar-se do peso da sua

sanidade e bom senso.

Quisera libertar-se das amarras das convenções sociais, quisera o

direito de estar além do certo e do errado, oportuno e inoportuno,

lógico e ilógico. Quisera esquecer-se do que se esperava dele.

Quisera o direito de se embriagar no ser sem limites.

E alguém completamente liberto como ele quisera vir a ser deveria

estar acima e absolutamente inalcançável aos raciocínios comuns,

rasteiros e reles ou aos argumentos e considerações minimamente

convencionais.

Acreditou que iria mergulhar de imediato na incoerência dos

pensamentos e desfrutar da liberdade de uma mente sem

compromissos que se entregara docilmente às imagens

tresloucadas, absurdas e divertidamente coloridas. Mas a

consciência da loucura enganou-o e a prova era aquele debate

íntimo já tão conhecido. A sequência de ideias irritantemente

coerentes e normais que insistiram em importuná-lo.

Nada lhe foi poupado. Ao descer cada degrau sentiu o romper-se

de uma a uma as amarras que mantinham a fragilidade da sua

condição humana e sem forças para incorporar a justa revolta,

continuou descendo.


Ele soube, percebeu e perseguiu o encadeamento impecável dos

argumentos a favor e contra o seu desejo de libertação, que àquela

altura da descida já deveriam estar subjugados ao absurdo e a

completa irresponsabilidade.

Talvez a suprema leveza da inconsequência que deveria ser o

estado natural da loucura pudesse salvá-lo, mas teria sido

imprescindível que se tivesse instalado de imediato, já, nos

próximos segundos, para ele ter sido poupado de reconhecer o

engano e a revolta justificar-se como uma atitude plenamente

compreensível em uma consciência perfeitamente lúcida.

Mas inaceitável naquela posição em que ele se encontrara, há

poucos, pouquíssimos passos para o último degrau.

Então? De que adiantaria estar completamente louco sabendo-se

louco?

Convencera-se da vantagem da barganha, sua sanidade pelo

libertar-se das amarras e limitações impostas pela, mortalmente

chata, sociedade que o havia enganado, roubando-o das vastas

estepes e planícies escarpadas onde ele poderia voar durante horas

e eras se não o houvessem sequestrado e arrancado suas asas.

... e eram asas enormes!

Ainda podia senti-las. Mesmo após todos aqueles anos sem elas,

preso a terra. Tal como acontecia aos amputados de vulgares

membros humanos que continuavam com a sensação das partes

arrancadas. Sim...! Ele podia senti-las. Seu peso, sua maciez, o leve


farfalhar que faziam ao chocar-se contra o vento quando ele as

abria em toda sua gloriosa enormidade ao se preparar para a

experiência sublime do voo.

Lembrou-se da própria figura. De como deveria parecer infeliz em

toda sua altura magrela, com a penugem eternamente desalinhada

na cabeça e com o fator principal a lhe arruinar a aparência, ...Sem

Asas...

Deplorável!

Ele que adorava resumir ideias e sentimentos em apenas uma

palavra, só tinha a dizer isso,...deplorável!

Chegou ao último degrau e se imobilizou uma segunda vez

agarrando-se àquele momento ínfimo como a um milésimo de

segundo da salvação improvável, pois mesmo no instante final,

decisivo e fugaz, um resquício de inteligência e raciocínio lógico

lutou por sua integridade.

Olhou para a bela jovem que o acompanhava. Reconheceu-a, não

como a uma igual, porque estava claro que ela era e sempre fora

totalmente humana, jamais tivera asas, nem mesmo asas

pequeninas. Mas olhou-a como a alguém em quem alguma vez

havia confiado.

Tentou falar, não conseguiu.

Isabeau, por sua vez, sentindo a parada brusca e a insistência do

olhar do tio avô imobilizou-se também e lhe retribuiu o olhar.


Sem jamais conseguir entender o que realmente estava

acontecendo, deu-se conta, no entanto, que estava assistindo a

definitiva transformação de Cesar. Reconheceu toda sua profunda

agonia e sentiu-se gelar.

Como em uma filmagem em câmera lenta, Isabeau viu a expressão

dos olhos negros, sempre meiga e acolhedora, apagar-se para em

seu lugar se instalar o brilho ofuscante da loucura.

Então Cesar desviou os olhos dos olhos dela e se movimentou para

o próximo passo, para descer, finalmente, o último degrau.


Capítulo2

Isabeau


Para Isabeau que haveria de recordar por muitos anos o momento

em que vira a loucura se apossar da consciência do seu tio avô Cesar

Astu Ninan, aquele foi um instante de definição de quem ela seria.

Deparou-se face a face com a loucura na sua forma mais absoluta.

Viu-a na luz sinistra que se desprendeu dos olhos que ela antes

percebia meigos e reconheceu-a na prostração implacável que se

abateu sobre Cesar.

Percebeu que Cesar foi atirado numa inconsciência tão profunda e

inalcançável que os médicos diagnosticaram um coma severíssimo

com apenas olhá-lo, estarrecidos pela máscara da morte que não

era morte, mas um estado infinitamente mais cruel por significar a

fuga voluntária aos desígnios da vida.

Nos primeiros instantes aterradores, Isabeau teria sucumbido ao

desespero e às lágrimas, mas foi salva de se perder pelas

necessidades urgentes que contavam apenas com ela para serem

atendidas. Via o corpo desfalecido de César, tão completamente

vulnerável e abandonado pela consciência que ela sempre

reconhecera vibrantemente lúcida e se superou exigindo de si

mesma capacidade de controle.

Percebeu-se completamente alerta, ciente de todo e qualquer

movimento, tão atenta que quase conseguia adivinhar o que

aconteceria na sequência inevitável dos diminutos milésimos dos

segundos seguintes e seguintes e seguintes, no encadeamento sem

fim que só teria termo quando ela assim o determinasse.


Era ela também, como César, uma consciência fora do corpo, mas

ao contrário do seu tio avô, Isabeau estava consciente da própria

consciência. Observando-se, definindo-se e dominando-se, a si e a

sucessão das providências que precisava tomar.

Assumiu as decisões como se estivesse apartada dos

acontecimentos, assistindo a si mesma, conseguindo uma lucidez

extraordinária e mantendo uma calma muito necessária.

Ao comandar as ações do pelotão de seguranças que os

acompanhavam a Cesar e a ela própria, e que se imobilizou naquele

instante de perplexidade, ao responder as inúmeras perguntas dos

paramédicos que corriam com o corpo desfalecido de Cesar para a

ambulância, ao resolver toda a burocracia do internamento e

principalmente saber o que dizer ou não dizer para a legião de

repórteres e fãs que se materializaram como num passe de mágica,

Isabeau assumiu uma definitiva transformação de ser.

Ao enfrentar a multidão desde o caminho de curvas e desníveis até

os infindáveis labirintos dos corredores do hospital, Isabeau

assumiu uma força que haveria de acompanhá-la dali em diante

até o final de seus dias. Com César Astu Ninan era muito diferente.

Ele perdera-se da consciência.

Nesta época do seu desvario, Cesar era um homem muito famoso.

Fato, como tantos outros relacionados a ele, inexplicável.

É preciso reconhecer que nunca houve uma razão legítima para a

imensa notoriedade que cercava Cesar. Para a fama que o envolvia


e afligia. Desde sempre apontado e reconhecido como um gênio,

Cesar se desviou muito cedo do que se esperava dele.

Inventor, músico, escritor, cientista e pensador. Tudo isso se dizia

e se atribuía a Cesar Astu Ninan. Mas uma análise sincera sobre a

qualidade de sua obra revelou uma verdade assombrosa.

A verdade é que nunca houve nenhum grande invento ou criação

e nem mesmo nenhuma proposição inédita ou revolucionaria para

avalizar a suposta genialidade como inventor, apesar do inegável

brilhantismo da inteligência que se impunha a quantos o

conhecessem.

Foi forçoso reconhecer que Cesar nunca inventara nada

verdadeiramente extraordinário, sequer importante ou prático,

apenas quinquilharias e ideias excêntricas, com alguma

originalidade e até alguma graça, mas sem nenhum proveito

importante para si próprio ou para seus semelhantes.

E as pretensas descobertas científicas que por algum tempo

chegaram a merecer a atenção de renomados cientistas, temerosos

de ignorarem alguma grande descoberta, se revelaram, ao final, de

pouca ou nenhuma relevância. E o mesmo com todos os demais

interesses da sua personalidade inquieta.

Foi um instrumentista realmente extraordinário, mas nunca se

tornou o grande compositor que se esperou e que se anunciou ao

mundo que ele seria desde a sua mais tenra idade, quando foi

declarado gênio e um prodígio.


Após mais de uma década de tentativas para sublimar a música

que trazia aprisionada em seu âmago, incapaz de materializar em

notas e sequências melodiosas toda sua beleza indescritível, César

se conformou à negação cruel do seu próprio espírito traduzida pela

incapacidade da criação.

Frustrado, ainda não completara dezoito anos quando fechou o

piano, guardou o violino na caixa e abandonou a música.

Como escritor o tempo provou que fora apenas aceitável.

Os seus livros de contos ou histórias recebidos com alarde e

festejados pela esmagadora maioria dos críticos a época de suas

publicações como verdadeiras obras primas, apresentavam

argumentos de fina ironia, feitos para diversão inocente e leve

entretenimento, mas que se revelaram pouco significativos quando

analisados sob a expectativa de ideias inovadoras, revolucionárias

ou vanguardistas ou ao menos como análises aprofundadas do

assunto tratado.

O fato é que na totalidade da obra de Cesar pela vida, o que se

encontrava eram as mesmas buscas incessantes de qualquer um

para significar a vida e houve até quem o acusasse de um estilo

perigosamente superficial.

De maneira que acabou por se impor a conclusão de que o fato

verdadeiramente surpreendente sobre Cesar foi ter sido ele, pela

maior parte de sua longa vida, um personagem revestido por

misteriosa aura de interesse e persistente especulação a ocupar o

centro das atenções do mundo.


Aqueles que lhe eram íntimos e lhe tinham amor se espantaram

quando, passados anos do seu desaparecimento nas águas

profundas do Mar Egeu, se flagraram pensando nele com a mesma

leveza com que se pensa num personagem favorito de alguma

história extraordinária para os momentos de lazer.

Era como se aquele espírito livre e fluido escapasse a vida real

através da sua maneira de ser inesperada e em muitos aspectos

inacreditável.

Era imensamente rico. Mas sua fortuna incalculável era muito

mais devida aos méritos ou deméritos da família já praticamente

toda ela extinta, do que aos seus próprios feitos, desfeitos ou

malfeitos.

Um homem perseguido por seus delírios e pelos dos seus

semelhantes que não se cansavam de escutar e recontar as histórias

das suas esquisitices. Uma fonte inesgotável de atenção e notícia.

Sempre mencionado e lembrado até a exaustão, estando ou não,

sua figura excêntrica, relacionada aos assuntos das conversas

atiradas fora ou aos encontros casuais ou marcados para os finais

das tardes e das noites que invadiam as madrugadas. Sob este

ponto de vista Cesar Astu Ninan foi um autêntico fenômeno.

Após sua morte, alguns filósofos seus contemporâneos,

convenceram-se que tal fama se devia muito mais às carências de

sucessivas gerações sedentas por mitos e heróis do que aos

atributos reais da personalidade que tinham como alvo.


Mas ao tempo da nossa história essa conclusão estava longe de se

formar.

Por isso não foi surpresa quando a notícia do seu colapso inundou

os noticiários, alimentou os tabloides e estimulou as especulações

sobre o que teria provocado um coma tão severo fazendo surgirem

apostas sobre o tempo em que Cesar continuaria mergulhado no

mais profundo de si mesmo.

E Isabeau, que o acompanhava, assumiu a responsabilidade dos

cuidados para com César Astu Ninan com a seriedade e a

completude de alguém mais decidida e forte do que ela se

reconhecia até aquele momento.

Naquele triste dia do colapso de Cesar, muito mais tarde após a

burocracia do internamento e a entrevista com uma infinidade de

médicos especialistas, Isabeau estava instalada em um hotel

exatamente em frente ao hospital onde Cesar Astu Ninan era

mantido em isolamento e constante observação.

E finalmente pode pensar em outro velho senhor.

Consultou o relógio para se situar no tempo de Terra Alta, sua

cidade natal. Foi capaz de imaginar a movimentação que deveria

estar acontecendo no casarão familiar com os preparativos para a

costumeira cerimônia de degustação de charutos e para o jantar de

todos os sábados, oferecido por seu avô, Victor Gatopardo, à

Confraria do Tabaco.


Anos após aquele dia, em suas memórias, Isabeau reconheceria ter

vivido os minutos infindáveis em que pensava na melhor maneira

de contar para o seu avô sobre o ocorrido com César, numa

condição emocional muito diferente do seu estado normal.

Foi só quando se isolou do mundo num quarto impessoal, que

Isabeau enfrentou o medo da crua incerteza. Incorporada com a

preocupação atordoante pelo que havia acontecido com César sem

entender o que era aquele retirar-se espontâneo da vida, Isabeau

se sentiu subitamente esvaziada de força, murcha por dentro,

pobre de energia.

Ela foi atirada num redemoinho de emoções confusas e

pensamentos sorrateiros envolveram-na atraindo sentimentos que

até então, aos vinte e nove anos, ela acreditava totalmente

superados, mas que se renovaram idênticos aos que conhecera anos

atrás e que dominaram toda sua infância.

Uma infância mergulhada em insegurança e solidão aterradoras.

Por todo aquele tempo da meninice que deveria ser uma coleção de

experiências felizes para qualquer criança, Isabeau fora

profundamente infeliz por anos que lhe pareceram séculos.

Fora deixada esquecida e perdida entre os salões e os corredores do

casarão da família em infindáveis dias e horas de absoluta solidão,

envolvidos por um medo difuso sem forma e sem nome, até

finalmente ser resgatada para uma vida totalmente diferente da

vida de qualquer outra menina.


Havia recém completado quatro anos quando o destino a

transformou na única herdeira das duas mais famosas e

importantes famílias da tradição terraaltina e a mergulhou no

completo esquecimento que se perpetuou pelos sete anos seguintes.

Num final de outono, nos primeiros dias cheios com o ar gelado das

geadas do inverno que chegava rapidamente, um misterioso surto

de gripe espanhola assolou o extenso primeiro planalto do vasto

continente que abrigava a cidade de Terra Alta.

A população sofreu com uma das mais virulentas variações da

doença.

Os índices de contaminação e mortes foram alarmantes.

Em poucos dias a maior parte dos moradores da pequena cidade e

de todos os vilarejos dos arredores caiu doente.

Nas famílias Ninan e Gatopardo, por alguma razão tão misteriosa

quanto o próprio aparecimento do mal, a violência da gripe foi

muito maior do que em qualquer outro núcleo familiar.

Em pouco menos de dois meses seis pessoas das duas famílias

adoeceram e morreram sem que qualquer dos esforços dos médicos,

dos remédios ou das orações pudessem ajudá-las.

Houve até quem duvidasse que os Ninan e os Gatopardo

estivessem contaminados com a mesma doença que se disseminara

pelo resto da população.


A desconfiança era de alguma doença muito mais perigosa e fatal,

mas nunca definitivamente reconhecida ou diagnosticada.

Circunstância que fortaleceu as crenças num mistério sinistro e

ganhou fama como uma maldição tão antiga quanto à história da

fundação da própria cidade.

Uma história entrelaçada às origens das duas famílias, que se sabia

ter surgido e prosperado num lugar em que se tocaiavam

caravanas de mercadores perdidas entre as perigosas trilhas

serpenteantes entre árvores e camufladas pelas armadilhas das

brumas.

Os rumores se transformaram em certeza e preencheram os

relatórios oficiais do lugar, quando passado o surto mais violento

da gripe, constatou-se que entre os membros Ninan e Gatopardo

se contavam o maior número de mortes entre consanguíneos.

Naqueles dias de pesadelo, Cesar Ninan e Victor Gatopardo

compartilharam as perdas, o sofrimento e um desespero tão

profundos que o antigo e amplamente reconhecido relacionamento

de amizade estreita entre eles adquiriu contornos de uma relação

simbiótica permeada e envolvida pelos laços da tragédia

incompreensível.

Tantas vezes foram os nomes Astu Ninan e Gatopardo citados

juntos e sempre se referindo aos mesmos acontecimentos que

acabaram por se confundirem e passaram a ser atribuídos à

designação de uma única e mesma linhagem.


Principalmente entre os mais jovens e menos versados sobre as

origens e descendências dos primeiros habitantes da vasta

extensão de terras férteis e rios caudalosos que fez nascer a cidade

de Terra Alta.

Os dois homens, Cesar Astu Ninan e Victor Gatopardo passaram a

ser reconhecidos como irmãos ao invés do seu verdadeiro grau de

parentesco de apenas cunhados.

E quase como uma premonição à tragédia que se abateria sobre

eles numa espécie de confirmação macabra dos laços que os uniam

para o bem e para o mal, a primeira morte oficialmente atribuída

à epidemia que devastava a cidade foi a da mulher de Victor, que

era também a irmã de Cesar Ninan.

A sucessão das centenas de imagens que reproduziram ambos os

homens, ombreados e curvados pela dor e pelo inconformismo

diante da perda da mesma mulher, foram veiculadas como

manchetes de jornais e noticiários das televisões pelo continente à

fora e ganharam notoriedade no mundo.

Imagens replicadas infinitamente e sustentadas pela figura de

César cuja fama, àquela época, há muito já ultrapassava

fronteiras.

Por todo o vasto planalto onde se situava a cidade de Terra Alta e

sua população assustada, um contingente extra de médicos,

enfermeiros e cientistas, se organizou como um exército para

combater a doença e ajudar o povo a resignar-se àquela tragédia

que se alastrava com a rapidez dos suspiros de medo e desespero.


No entanto nada poderia ter preparado a Victor e a Cesar para as

mortes dos seus familiares que começaram a se suceder

dramaticamente e com curtos intervalos entre uma e outra.

Apenas três dias após o enterro da mulher de Victor, morreram o

casal de velhos Ninan sogros de Victor e pais de Cesar Astu Ninan.

No mesmo dia e com diferença de poucas horas entre um e outro.

Seguiram-se as mortes dos filhos de Victor, primeiro sua filha e

mãe da pequena Isabeau e poucos dias depois seu primogênito com

apenas vinte e um anos. E finalmente foi a vez do irmão mais velho

de Cesar.

Essa sequência aterradora de mortes, que permaneceram envoltas

em mistério no imaginário da população, foi o acontecimento que

transformou a pequena Isabeau numa triste órfã abandonada

entre as velhas paredes do casarão Gatopardo.

A última representante das duas famílias e a depositária das

heranças genéticas, físicas e materiais dos dois senhores.

Neta de Victor Gatopardo e sobrinha neta de César Astu Ninan,

Isabeau foi envolvida e esquecida na dor dos dois homens decididos

a abandonar suas origens e suas raízes como uma marca de revolta

contra o destino impiedoso que lhes roubou as famílias, perdendose

em viagens infindáveis para todos os cantos do planeta, cada

qual mais longa e distante e encarada com idênticas atitudes

desiludidas.


Durante os sete anos seguintes à devastação da epidemia em Terra

Alta, Isabeau viveu sob a tutela legal de Victor como uma sombra

mal percebida e ainda menos considerada. Era sua dependente

legal e tão somente, mas Victor a esqueceu e separou-se

completamente dela.

Convencido que a distância física conseguiria aliviá-lo da sua

angustiosa frustração pelo que ele julgava ser o fracasso da sua

vida familiar e da raiva profunda que dominava seu espírito,

Victor usou a considerável influência do nome de família para

conseguir sua nomeação e se transformar no Embaixador

Gatopardo, para representar o país nos mais distantes destinos do

planeta.

Cesar Astu Ninan não hesitou em segui-lo.

Amparado por sua enorme fortuna acompanhou o cunhado e

amigo em cada viagem, carregando consigo de cada vez o que quer

que fosse seu interesse no momento. Seus trabalhos pretensamente

científicos, suas incursões em literatura ou seus inventos e

experimentos inusitados.

E assim os dois homens começaram uma rotina de partidas e

chegadas em viagens que se perpetuou pelos anos em que Isabeau

ficou abandonada aos cuidados apenas indispensáveis.

Antigos serviçais fiéis às famílias viviam no casarão Gatopardo e

velhos professores vinham todos os dias para algumas poucas

horas de aulas monótonas.


Foi organizada uma engrenagem eficiente e funcional, mas

completamente impessoal.

Rostos apenas levemente familiares observavam-na nas pequenas

atividades e necessidades do dia a dia e vozes indiferentes,

distantes e com entonações frequentemente impacientes repetiam

ordens curtas para o cumprimento da maçante tarefa de cuidar da

órfã que ninguém queria e com a qual ninguém realmente se

importava.

As pessoas se revezavam e eram substituídas sob a

responsabilidade e as decisões dos advogados de Cesar e de Victor

através de frias comunicações telefônicas secundadas e

confirmadas por ordens escritas. Era mantida uma rotina de

constante renovação das pessoas, que nunca permaneciam

encarregadas dos cuidados com Isabeau por tempo suficiente para

nada parecido com uma relação afetiva.

Com frequência regular e com fria precisão, eram trocadas as vozes

e os rostos, mas persistiam as mesmas eternas atitudes impessoais

e desinteressadas, com a eficácia exata para o cumprimento da

tarefa encomendada e regiamente paga.

Sob tal condição a menina vivia como uma autômata. Alimentase,

banhava-se, vestia-se, estudava suas lições, distraia-se com os

muitos jogos e brinquedos espalhados pelo casarão e permanecia

completamente solitária e infeliz e ignorante da própria solidão e

infelicidade.


Desses anos sombrios a mais amarga das lembranças de Isabeau e

a única capaz de levá-la a incontroláveis lágrimas era também a

mais importante porque marcava uma mudança completa em sua

vida.

O fato acontecera em um anoitecer no casarão Gatopardo, num

intervalo entre as infindáveis viagens e uma das raríssimas

ocasiões em que seu avô e seu tio avô decidiram permanecer em

Terra Alta por pouco mais de um dia. Nessa ocasião especial a

menina decidira esclarecer uma dúvida que a estava consumindo

desde uma conversa perturbadora com Consuelo, a cozinheira de

pele trigueira e sorriso fácil, recentemente contratada.

Vinda há poucas semanas, através de uma agência de empregos

utilizada pelos advogados de Victor, Consuelo encontrara no

casarão envolto em brumas tristes, aquela menina calada. Nessa

época Isabeau era meio arisca, enfiada em velhas roupas

desgastadas, desajeitadas, impróprias e grandes demais para ela e

com a necessidade dolorosa de ser vista. Com o coração esmagado

sob o peso da dor da criança, Consuelo derreteu-se para com ela em

atenções e amabilidades.

A boa e simples mulher não imaginava que estava destinada a

provocar uma mudança crucial na vida da infeliz criatura presa

entre as paredes do casarão.

Em retrospectiva dos acontecimentos, Consuelo seria forçada a

reconhecer que nunca fez realmente nenhum grande esforço para

ser aceita no mundo melancólico da pequena Isabeau.


Ela era tão terrivelmente carente, ingênua e solitária, que teria

correspondido imediatamente ao menor sinal de interesse por sua

frágil e desolada figura, por parte de quem quer que fosse. E assim,

Isabeau foi atraída para o convívio com a cozinheira com a mesma

certeza e facilidade com que uma borboleta é atraída para a luz e

logo a aconchegante cozinha se tornou o centro da vida da menina.

Ali, naquela cozinha, Isabeau começou a passar longas horas em

conversas intermináveis com a bondosa mulher.

Um dia, sem desconfiar do quanto a magoaria, Consuelo perguntou

à menina quando iriam fazer bolos e doces para festejar seu

aniversário. A surpresa da pergunta deixou Isabeau abalada

porque ela simplesmente não conseguia atinar com a resposta.

Mesmo seus mais enérgicos esforços foram inúteis para fazê-la se

lembrar de uma única vez em que seu avô, Victor, ou seu tio avô,

César, houvessem apenas mencionado ou feito a mais leve

referência à data.

Os dois homens traziam-lhe uma montoeira de presentes a cada

chegada.

Na totalidade, badulaques comprados por assistentes e secretarias

que não tinham nenhum conhecimento ou interesse pela menina.

Eram quinquilharias, uma coleção de coisas completamente

inadequadas que sequer Isabeau saberia como usar, mas que a

enchiam com seu prazer infantil. Tantos pacotes coloridos serviam

admiravelmente à manobra dos dois homens decididos a mantê-la

à uma distância confortável.


Vendo-a distraída com os pacotes e seus conteúdos surpreendentes

e, depois de analisados, apenas com relativa atenção, os relatórios

sobre suas atividades seu desenvolvimento e o seu cotidiano,

Victor e Cesar podiam se convencer de que a atendiam

convenientemente, e que podiam esquecê-la.

Voltavam para as profundezas do seu mundo afastado das

lembranças da família destruída, deixando-a novamente envolta

em sombras. Até a próxima partida sempre iminente para um

destino qualquer e sem data de regresso.

Naquele dia da conversa na cozinha, Isabeau ainda era

suficientemente pequena, inocente e tola para acreditar que

receber presentes poderia ser uma indicação segura para a data do

aniversário e então respondeu para a cozinheira que aniversariava

sempre que o avô e o tio chegavam das suas infinitas viagens.

E tal foi o esforço da menina em parecer convicta do absurdo que

dizia que o coração da boa Consuelo confrangeu-se com pena da

criança e ela fingiu aceitar aquela resposta como bastante

razoável. Mas Isabeau percebeu a verdade por traz da expressão

cheia de pena da mulher e decidiu, naquele exato momento, que a

próxima chegada de Victor e Cesar seria diferente e que ela teria

alguma coisa a lhes dizer.

E assim, em um entardecer em que estavam os dois no casarão,

recém- chegados de algum dos seus muitos destinos

extraordinários, a pequena Isabeau venceu sua quase insuportável

timidez e entrou na biblioteca, avançando até inacreditáveis dois


metros das poltronas em que Victor e César se acomodavam com

seus charutos e seus conhaques.

Ereta e resoluta, Isabeau se forçou a perguntar em que dia deveria

festejar seu aniversário.

A voz da pequena soou levemente esganiçada pelo nervosismo e

invadiu o silêncio sagrado das mentes dos dois homens

perturbando-os num rincão da consciência que eles teriam

preferido ignorar para sempre. Surpreenderam-se com a aparição

da menina até o espanto.

Estavam completamente esquecidos dela, pois tinham a certeza de

tê-la deixado com a infinidade de pacotes das compras ao acaso

naquele pedacinho das suas vidas com as mágoas e raivas e

sentimentos de ultraje à traição do destino.

E, repentinamente, eis que ela, violando o acordo secreto e

vergonhoso ousou voltar das sombras das dores passadas, porque

precisava saber o dia em que nasceu e que deveria contar a

passagem dos seus anos no percurso da vida.

Os dois homens se voltaram com enorme desagrado para olhá-la

durante um silêncio de qualidade dolorosa só comparável a dor

profunda no olhar da menina.

E ela, apesar de tão pequena e frágil e assustada não retrocedeu

sequer um centímetro de sua resolução, nem mesmo quando ambos

os homens, praticamente desconhecidos para ela e com ares


enfezados se soergueram fulminando-a com reprovação pela

impertinência.

Mas então aconteceu um daqueles momentos sobre os quais

certamente os anjos fazem registros nos céus e Victor olhou para a

neta e a viu verdadeiramente pela primeira vez em anos.

Viu a solidão e a tristeza incalculáveis emolduradas pelas roupas

que eram grandes demais para ela. Que deveriam ter pertencido à

mãe ou até mesmo à avó da menina e os sapatos de saltos enormes

nos pés infantis e o rostinho coberto por antigas maquiagens que

ela utilizara de forma desastrosa, certamente para parecer mais

adulta e se dar a coragem de enfrentar os dois únicos parentes que

tinha no mundo e que deveriam cuidar dela sem jamais ignorá-la.

Victor Gatopardo viu Isabeau reconheceu o cruel abandono da

menina e sentiu a maior vergonha de toda sua vida.

Cesar já começara um discurso sobre a inutilidade de saberem-se a

exatidão dos dias dos aniversários que ameaçava acabar com uma

preleção sobre as possibilidades das mortes traiçoeiras que

levavam os seres com os quais muitos bolos festivos tinham sido

cortados e velinhas comemorativas assopradas.

Mas Victor calou-o com um gesto de tamanha autoridade que não

admitiu questionamentos.

Então prometeu à menina que iria procurá-la na sala de estudos ao

final da tarde para conversarem. Buscava garantir assim, a si

mesmo e ao cunhado, o necessário equilíbrio para lidarem com a


situação e o tempo para descobrirem a resposta à pergunta,

certamente através do registro de nascimento da criança que

deveria estar esquecido entre papéis em alguma gaveta ou cofre.

Mais tarde Victor foi à sala de estudos e encontrou Isabeau

ocupada com um quebra cabeças indicado para pessoas muitíssimo

mais velhas do que ela, composto de infinitas peças minúsculas e

dificílimas de diferenciar entre si e que ela examinava

demoradamente antes de tentar cada encaixe.

Ela ainda vestia as velhas roupas que não eram dela e no rosto o

tom de um batom vermelho demais a envelhecia até fazê-la parecer

uma anã com olhos de criança.

Victor se aproximou cauteloso, ciente de ser praticamente um

estranho e de não ter o direito de esperar nada além de uma fria

tolerância.

Após um longo debate com Cesar, ele havia decidido por uma

solução muito peculiar ao seu caráter criativo, original e amante

da justiça, que pretendia reparar o mal incalculável que seu

egocentrismo havia causado à neta e, ao mesmo tempo se possível,

ajudá-la a sorrir. Entregou para Isabeau um pequeno envelope e

disse-lhe que ela contava então, até aquele dia, dez anos completos,

faltando poucas semanas para os onze.

Disse que dentro do envelope havia uma anotação com a data em

que ela havia nascido e que ela poderia abri-lo imediatamente se

quisesse, mas que ele propunha uma solução mais divertida.


Prometia nunca mais deixá-la, nunca mais se ausentar da presença

dela.

Disse que eles celebrariam seu aniversário com todas as tradições

conhecidas, bolos, doces, presentes, programações especiais,

sempre que ela desejasse, sempre que ela decidisse ser dia de seu

aniversário, até mesmo mais de uma vez por ano.

Disse ainda, que isso seria assim até o dia que ela decidisse abrir o

envelope para saber a data verdadeira, ou elegesse outra data a seu

gosto, que então passaria a ser o dia de festejarem oficialmente seu

nascimento.

E que essa decisão era e seria sempre, apenas dela.

Observou-a segurar o envelope como a um pequeno tesouro, viu-a

arfar o peito magro de criança mal nutrida de amor e mal cuidada

de atenção sob uma emoção que ela não conseguiria entender e viu

os olhos tristes brilharem com uma luz nova de interesse e com a

indecisão entre descobrir imediatamente a informação tão

desejada ou aceitar aquela outra proposta, muito tentadora para

uma criança.

Quando finalmente ela se decidiu e sem abrir o envelope foi guardálo

com cuidado infinito entre as páginas de um velho livro de

histórias numa das estantes mais afastadas do quarto, Victor se

comoveu por ela haver aceitado a promessa do encantamento e da

brincadeira feitas por alguém que não merecia, por parte dela, nem

consideração e nem confiança.


Secretamente agradeceu a alguma inteligência divina e superior à

chance de se redimir de seu egoísmo monstruoso e guardou aquele

momento num cantinho especial do coração.

Estavam em vinte e um de maio, meados do outono em que a

natureza se preparava para o desnudar das almas que

sucumbiriam ao hibernar do inverno e Isabeau viveu os sete anos

seguintes, até completar dezessete anos, em viagens infindáveis e

para destinos extraordinários e escolhendo dias diferentes para

festejar seu aniversário. Faziam cada festejo mais espetacular e

criativo que o outro.

Os vários aniversários festejados eram cuidadosamente marcados

por Isabeau em um diário secreto com as datas e anotações ao lado

para qualificar as festas, passeios, brincadeiras e presentes numa

escala particular de satisfação.

Podiam ser avaliados como mais ou menos, bons, muito bons,

ótimos e geniais e havia ainda uma coluna com a contagem dos

anos fictícios acumulados marcando a idade que ela teria se fossem

aniversários reais.

Na última contagem Isabeau constatou encantada que se todos os

aniversários fossem válidos ela estaria com a fantástica idade de

179 anos.

Então, finalmente cansada da brincadeira e mais amadurecida,

abriu o envelope que lhe fora entregue por Victor naquela época

de solidão absoluta, leu a data ali escrita e sem uma palavra,


voltou a guardá-lo num dos cantos mais distantes da prateleira de

livros de historias.

Dias depois, ao final de uma reflexão tão íntima que nunca a

ninguém foi dado saber o que se passara em seu espírito, Isabeau

anunciou aos velhos que o dia do seu aniversário seria sempre 21

de maio.

Foi assim que antes de contar vinte anos, Isabeau Astu Ninan

Gatopardo já havia conhecido a maior parte dos países do mundo

e aprendera a falar quatro idiomas além de se familiarizar com

vários dialetos e costumes os mais variados.

Uma vida de aventuras, chegadas e partidas e novos cenários.

Até Victor resolver se aposentar do serviço diplomático e voltar

para Terra Alta, onde ele e Isabeau passaram a residir

permanentemente no velho casarão Gatopardo.

Cesar Astu Ninan continuou a vida nômade até finalmente se

estabelecer num pequeno e primoroso apartamento em Roma.

Vinha de visita à Terra Alta sem respeitar datas ou avisos prévios

ou horários. Chegava e partia simplesmente e gostava de fingir

para Isabeau que era como um ser mágico com o poder de aparecer

e sumir ao seu bel prazer.

Nunca ela e os dois homens falaram sobre àqueles anos de

abandono.


E nunca Isabeau pensou naquele longínquo mês de maio em que se

rebelara contra sua sentença de anonimato e solidão, sem cobrir-se

de lágrimas.

Eram lembranças evocadas com a facilidade dos odores do tabaco

misturado ao perfume amadeirado dos conhaques aquecidos em

dias de frio e impregnados nos móveis da solene biblioteca que

jamais perdeu para Isabeau uma aura de austeridade e

distanciamento cruel.

Mas também eram lembranças que lhe devolviam a sensação de

aconchego da velha cozinha, com a acariciante mistura dos aromas

doces de maças assadas com estrato de baunilha, canela e açúcar e

servidas com uma caneca de chocolate quente, preparados para ela

por Consuelo, como um prêmio por sua coragem.

Agora, aos vinte e nove anos, mulher feita, cheia de experiências

extraordinárias, Isabeau se considerava afortunada por sua vida

tão diferente da vida de qualquer outra jovem.

E foram estas lembranças que se infiltraram na sua recém

descoberta força para enfrentar o destino e o colapso de Cesar e

para ela marcar os números do telefone do casarão em que nascera,

para falar com seu avô, Victor Gatopardo, em Terra Alta.

Isabeau conseguia visualizar o aparelho, ao pé da escadaria, pois

máquinas com barulhos estridentes eram mantidas afastadas da

biblioteca, considerada um santuário por Victor.


Para o avô Victor Gatopardo, a biblioteca era um lugar permitido

apenas aos preciosos livros, à música, às obras de arte e às reuniões

com amigos cuidadosamente escolhidos, entre goles de conhaque e

baforadas dos charutos.

Feita a discagem Isabeau percebeu, do seu lado do fone, o toque

da campainha insistente do aparelho a se derramar pelo corredor

do casarão Gatopardo. Pediu em pensamentos, com um fervor

reservado às orações, que fosse seu avô Victor a atender ao

telefone.

Ouviu um alô numa modulação profunda que fez seu coração

acelerar e uma vertigem a obrigou a segurar nos braços da

poltrona.

Em resposta à voz de Jacques Lan, tão ardentemente desejada e

tão cuidadosamente evitada, Isabeau sussurrou.

“__Preciso falar com Victor, é urgente.”

Desejou que sua voz não fosse reconhecida. Houve um longo

silêncio e depois a certeza de que este segundo pedido também não

fora atendido, pois recebeu a pergunta num tom muito brusco, o

mesmo tom que tinha a capacidade de provocar nela uma agitação

doída. Jacques Lan perguntou. “__O que aconteceu?”

Agora as lágrimas, até ali corajosamente contidas, cegaram-na das

paredes áridas do quarto de hotel. “__Chame Victor, por favor.”

Implorou. E a resposta de Jacques Lan, exigente e grave.


“__Não! Antes me diga o que aconteceu.” Então ela cedeu como

cederia sempre a ele. Descreveu a cena que estaria gravada na sua

memória por muitos anos.

Descreveu os dos minutos de agonia em que percebeu a

transformação incompreensível no olhar do seu tio avô Cesar, do

desfalecimento dele e da perplexidade dos médicos, incapazes de

entender e muito menos explicar, o coma profundo em que ele

estava mergulhado.

Falou da penosa necessidade de enfrentar o batalhão de repórteres

e de fãs, sem nenhuma certeza sobre o que dizer ou deixar de dizer,

porque tudo se movia caoticamente ao redor dela deixando-a

totalmente impotente.

E finalmente falou sobre seu cansaço e a apreensão sobre o que

estaria acontecendo com Cesar e sobre sua preocupação em dar a

notícia a Victor.

Então por um segundo um desejo louco de vê-lo, de estar

novamente com Jacques e na proteção dos seus braços, quase a fez

suplicar que ele viesse estar com ela, mas ciente de que ele deveria

detestá-la e desejar se manter para sempre longe dela e de tudo que

dissesse respeito a ela, calou-se mordendo os lábios.

Só então ela percebeu que Jacques chamava por seu avô,

entregando-lhe o fone enquanto avisava. “__Ela esta bem, foi Cesar

Ninan. Ele sofreu uma espécie de colapso.”


Controlando-se e agradecida por poder finalmente se comunicar

com Victor antes que os noticiários sensacionalistas o alcançassem,

Isabeau conseguiu relatar o acontecido com precisão e clareza.

Ouvindo-a Victor imaginava a cena na qual seu cunhado se

entregara ao momento mais difícil. Mantendo sempre em

perspectiva as extravagâncias e as esquisitices daquela

personalidade extraordinária se esforçou por entender o que havia

acontecido com Cesar.

Ele era, Victor sabia muito bem, uma personalidade

perigosamente instável, cujo colapso, afinal, não constituía

nenhuma surpresa. Saber que Cesar estava mergulhado num coma

tão profundo fez Victor pensar num paradoxo curioso como é da

natureza dos paradoxos.

De certa forma se consolava ao pensar que o coma de Cesar o

deixava a salvo do seu principal tormento, as multidões com seu

alarde, a massa humana que insistia em persegui-lo sem trégua.

E começou a se perguntar por quais trilhas misteriosas andaria

Cesar Astu Ninan naquele momento. Afastado da consciência

ordinária e previsível das mentes em vigília e abandonado ao

mistério de mundos desconhecidos no mais íntimo de si mesmo.

No coma que o mantinha a salvo das multidões que tanto o

aterrorizavam e que haviam sido atraídas e permaneciam

invadindo cada canto ao redor e pelos corredores do hospital,

precisamente pelo seu estado de coma.


Pensava nisso quando desligou o telefone depois de se certificar de

haver tranquilizado razoavelmente Isabeau informando-a sobre

algumas providências que tomaria imediatamente para ajudá-la.

Voltou para a biblioteca e para a companhia de seus amigos

havanófilos e com seu ar mais taciturno enfrentou a interrogação

nos seus olhares.

Soube da determinação de Jacques em partir para se encontrar

com Isabeau e após refletir sobre a eficácia de tal atitude decidiu

que não o acompanharia, mas que esperaria ali, naquela velha casa

em Terra Alta.

Jacques seria perfeitamente capaz de ajudá-la e tomar qualquer

atitude e decisão necessária e ele, Victor, estava convicto que

permanecendo em Terra Alta poderia atuar com mais eficiência

para trazê-los para casa.

Ouviu a opinião do psiquiatra, doutor Júlios Longarcco, que

conheceu Cesar Ninan alguns anos atrás, ali mesmo, no casarão

Gatopardo e que já naquela época o classificou como uma

personalidade claramente esquizotípica, com seu estado agravado

pela constante e excessiva exposição pública.

E aproveitou a sabedoria do centenário juiz, Huberto Granzia, que

preferiu fixar sua atenção sobre a decisão daquela viagem

precipitada de Jacques Lan. Que partiu com o ímpeto de uma

rajada de vento.


“__Pura tolice.” Declarara o juiz depois de uma longa tragada no

charuto fedorento.

Os olhares que Victor recebeu dos outros amigos, em especial de

Esmée Hemil diante deste comentário do juiz significavam

entender o velho magistrado como alguém que desaprovava os

atos impulsivos de paixão.

Mas Esmée e o próprio Victor entendiam perfeitamente.


Capítulo 3

Loop, Mahoo e TilsithTeray


Com espanto Cesar Ninan percebeu que estava voando mesmo sem

suas asas e percebeu também que podia enxergar tudo

perfeitamente, mesmo estando com os olhos bem fechados. E Cesar

tinha a certeza de tê-los bem fechados.

Um conhecimento muito antigo e profundo dizia a Cesar, que

apesar das circunstâncias que aconselhavam duvidar da

veracidade de tudo o que estava experimentando nada poderia ser

mais real.

Via, lá embaixo, a sombra do seu corpo espichado tal qual trapo

esfiapado balouçando ao vento frio dos Andes. Via as rochas, a

vegetação rala e seca açoitada pelo ar gelado impiedoso, os

caminhos cheios de pedras das águas que desceriam através do vale

quando o calor degelasse parte das neves eternas e via as passagens

tortuosas, assombradas por sombras infinitas entre as gretas das

montanhas, todavia ali ainda baixas, mas que cresceriam na

medida em que se embrenhassem cada vez mais para o centro do

continente até atingirem as alturas assustadoras e fantásticas dos

picos incontáveis da imensa cordilheira.

Cesar pairou com leveza nas alturas. Reconhecendo o lugar,

percebendo os movimentos, escolhendo o que fazer a seguir.

Imperturbável na sua condição de espírito invisível.

Pensou na possibilidade de pousar e imediatamente a ação se fez.

Pousou docemente, sem peso, sobre uma grande rocha vermelha

que se erguia como um imponente monólito a poucos metros em


frente à entrada da caverna por onde sabia que a raposa deveria

sair.

Tranquilo, Cesar Astu Ninan esperou.

Loop, a raposa, abriu os olhos, ergueu a cabeça e empinou as

orelhas imediatamente alerta ao som quase imperceptível de um

galho seco sendo esmagado, vindo do lado de fora da caverna.

Com cuidado e absoluto silêncio, Loop esgueirou-se em direção à

entrada da rocha e se imobilizou percebendo os passos macios de

seu amigo Mahoo, o puma, subindo a trilha.


Os sentidos aguçadíssimos da raposa revelaram que Mahoo

chegava bem. Vinha solitário e calmo, com a respiração

compassada. Com certeza havia encontrado água, comida e o

descanso necessário à longa jornada.

Cautelosa pelo profundo conhecimento dos perigos da vida, mas

decidida a conferir a percepção dos seus sentidos, Loop saiu para o

pequeno platô rochoso em frente à entrada de pedra em arco.

Estacou imediatamente, com um arrepiar no dorso que pôs seus

pelos castanhos em pé.

De onde estava podia ver o corpo cinza azulado de Mahoo no

elegante movimento compassado dos felinos, subindo a estreita

trilha de pedra. Os olhos da raposa confirmavam a certeza anterior

de que o amigo estava bem. De que nada havia a temer. Mas, um

sentido muito mais sensível revelou um mistério além da sua

capacidade de compreensão. Foi impossível para Loop definir o

que a estava deixando desconfiada e inquieta.

O puma, por sua vez, sentiu imediatamente o desassossego da

raposa e pôs os sentidos alerta. Convenceu-se de que muito embora

seus penetrantes olhos âmbar não pudessem enxergar mais

ninguém ao lado da figura de Loop, lá no alto, dentro do ângulo de

visão que englobava o platô rochoso em frente à entrada da

caverna e o majestoso monólito que se erguia soberano,

dominando parte da visão do horizonte, ali, havia,

indiscutivelmente, mais alguém.


Invisível, misteriosamente camuflado à paisagem de rochas e

nuvens e pequenas ervas rasteiras, havia uma presença tão real

quanto qualquer dos elementos que lhes eram visíveis e palpáveis.

Impossível de ser espreitado, farejado ou compreendido e, no

entanto, ao alcance de um bote.

César, o ser detectado pela finíssima capacidade perceptiva dos

animais, também não via a si mesmo, pousado, imóvel, sobre o

monólito vermelho, em sua condição extraordinária de espírito

invisível. Exatamente em frente ao platô de pedra da caverna em

que Loop e Mahoo habitavam.

Ficaram assim, a raposa e o puma, imobilizados por um longo

momento, olhando sem nada enxergar, diretamente para o lugar

em que pairava a forma etérea de Cesar Astu Ninan.

Sobre o ser diáfano de Cesar fixaram-se dois pares de olhos

penetrantes devassando o ar silencioso e tentando compreender

como a presença indiscutível não podia ser vista, ouvida ou

farejada.

Finalmente, com suprema cautela, rosnando baixinho, a raposa

moveu-se para trás sem se voltar e sem desviar os olhos do lugar

suspeito por um segundo sequer. Movendo-se sempre de ré, entrou

novamente para a segurança da toca de onde ficou espreitando a

rocha misteriosa.

Enquanto isso, Mahoo o puma, abaixou-se bem rente ao solo e

começou a subida em direção ao platô, engatinhando. Com os olhos

de fogo voltados para aquela direção perturbadora. As garras e os


dentes à mostra e os pelos do lombo eriçados, com os músculos

retesados prontos para o salto de ataque ou para a fuga salvadora.

Chegou à entrada da caverna na qual a raposa o esperava e com

um pulo alcançou o interior e a proteção do rústico abrigo.

Lá de dentro, protegidos pela sombra da pedra que se projetava

sobre o platô, ficaram os dois amigos em imóvel expectativa.

Assim passaram-se horas.

A sabedoria do mundo selvagem ensina que sempre que algo é

incompreensível a ponto de não ser possível acreditar nos sentidos,

ou sempre que há dúvida sobre como agir, o melhor a se fazer é

absolutamente nada. Manter a calma, cultivar o silêncio,

permanecer tranquilo e quieto até que a dinâmica da vida mostre

a melhor ação a adotar e o caminho a seguir.

Para Cesar Ninan, incorpóreo, sem peso, insensível, o tempo não

era um problema. Poderia permanecer ali, no alto da pedra

vermelha, eternamente. Pairando em frente à caverna sobre a

rocha solitária, até que sua própria passividade provasse aos

animais não representar perigo algum.

Veio à noite e seguiu-se o amanhecer, passaram-se as horas

arrastadas do dia. Veio à noite mais uma vez e mais um

amanhecer.

Foi só ao escurecer do segundo dia de vigília que finalmente um

levíssimo roçar sobre as paredes de pedra no interior da caverna,

anunciou o movimento do felino em direção à saída. Seguiu-o a


raposa e ambos chegaram ao platô movendo-se com extrema

atenção e cautela e mantendo sob vigilância constante a rocha em

frente que suportava o mistério da presença translúcida. Partiram

rápidos, cada qual para uma direção, em busca do alimento e da

água necessários.

Como antes, Cesar Astu Ninan esperou.

Assim passaram-se mais horas e seus dias, infinitos instantes em

infinitos momentos que, para Cesar, em espírito, transcorreram

como num sonho. Até que o medo deixou de invadir os corações

com a insistência costumeira e os animais, muito embora ainda

estivessem cientes da existência do ser invisível a observá-los, se

acostumaram com ele, confiando na sua tranquila imobilidade.

Então, num entardecer, daqueles tantos que se sucederam, Loop e

Mahoo voltaram da sua ronda diária e ao invés de correrem para a

segurança do interior da caverna, deixaram-se ficar sobre o platô,

estirados em descanso.

“___Por quanto tempo ainda teremos que esperar?” Perguntou a

raposa enquanto se distraía com um pedaço de osso velho

esquecido entre os baixos arbustos que venciam a dureza da rocha

e insistiam em crescer entre as fissuras. Mahoo não respondeu

imediatamente, fixou os olhos âmbar no enganador vazio no alto

da rocha vermelha, sentiu a presença que já se tornara familiar e

pensou que talvez sua espera já não devesse ser tão prolongada.

Para a raposa, respondeu.


“___Pequena Morte não falou sobre prazos, ou esperas. Cuidamos

muito mais dos fatos do passado e certamente do que virá no futuro.”

“___Bem, bem...” ponderou a raposa sem desviar sua atenção do

osso seco, “___pelo que sei, a chegada do pássaro Tilsith Teray

sempre é notada com algum estardalhaço. De maneira que saberemos

com certeza, quando for chegada à hora.”

“___Com estardalhaço sim.” Concordou o puma e prosseguiu com

sua voz profunda como um sussurro. “___Desta feita, porém, será

diferente.”

“___O que quer dizer?” Perguntou Loop sem se dar ao trabalho de

fingir desinteresse.

“___Pequena Morte não tomará mais as decisões. Será a decisão de

Grande Morte que será ouvida quando a hora chegar.”

Esta notícia fez Loop enrijecer-se. Sabia o suficiente sobre as

trilhas da vida para compreender que a intervenção de Grande

Morte jamais significaria nada de bom para os animais da Terra.

“___Então foi com Grande Morte que você se encontrou às margens

daquele Lago Infinito?” Perguntou amedrontada.

Loop bem podia imaginar o felino espreitando as misteriosas águas

azuis escuras que, ambos, assim como todos os demais animais dos

Andes, acreditavam ser infinitas.

As águas do Lago no Fim da Terra, que todos sabiam ter em suas

profundezas, uma ligação mágica com o centro da própria


Inteligência Cósmica de onde fluía o alimento para a vida de todo

o planeta. Naquele lago a quatro mil metros de altura, no grande

planalto entre as incontáveis montanhas da cordilheira.

Ali, às margens das águas mágicas, protegido pelo poder de

Pássaro Tilsith, que influía sobre as ações da Morte negociando

almas dos mortos e destinos dos vivos com a mesma desenvoltura

com que fazia a troca das cores da sua plumagem, Mahoo, o puma,

foi se encontrar com Pequena Morte, a irredutível, a indesejável,

para manter com ela um diálogo indireto através dos reflexos no

espelho d’água.

Com uma razoável certeza de conseguir enfrentar seus medos, o

puma seguira para sua missão porque aceitava com naturalidade e

até compreensão a interferência de Pequena Morte no ciclo da

vida. Mas a simples menção de um encontro com Grande Morte

encheu-o de um terror tal que fez seu sangue gelar. Ouvindo as

palavras de Loop o puma encolheu-se e mostrou as garras

enquanto a cara negra se desfigurava num esgar. Grande Morte era

a personificação da destruição irremediável. Sua ação devastadora

sobre comunidades inteiras, raças e até espécies que não teriam

misericórdia e jamais outra chance de existir sobre a terra, tornava

a simples ideia de uma aproximação com ela, impossível.

Por isso, com perplexidade diante da suposição de Loop de que o

encontro no altiplano andino pudesse ter acontecido com aquela

descomunal e aterradora força cósmica, Mahoo fixou a amiga

raposa com espanto, pensando em como faria para responder sem

alarmá-la e sem faltar com a mais absoluta verdade.


Escolheu as palavras com cautela e começou com uma

advertência.

“___A vinda de Grande Morte a Terra é proibida. Você sabe disso!”

Como a raposa continuasse olhando-o sem compreender, tratou de

explicar.

“___Foi Pequena Morte que vi refletida nas águas azuis do Lago

Infinito, foi com ela que o pássaro Tilsith Teray marcou meu encontro

desde tempos tão antigos que já é impossível contar, mas foi sobre a

vinda de Grande Morte que se falou em caso de falharmos na nossa

missão.”

A raposa deixou totalmente de lado a distração com o velho osso e

encarou o puma com a seriedade que o assunto exigia.

“___O que exatamente teremos que fazer?” Perguntou ela com o

medo transparente na voz.

“___Por agora muito pouco. Esperaremos aqui a chegada do pássaro

Tilsith Teray. Então, ...veremos !”

“___Fale sobre o que disse exatamente Pequena Morte,” pediu Loop

e se acomodou com o focinho estirado sobre as patas dianteiras,

pronta para as revelações do puma.

Mahoo também voltou para sua posição de descanso e se dispôs a

narrar sua viagem até as margens do lago mágico e seu encontro

com Pequena Morte, marcado desde sempre nos caminhos da vida

do Pássaro Tilsith.


“___Cheguei às margens do Lago Infinito ao final do meu quinto dia

de jornada.” Começou, Mahoo com seu mais profundo tom de voz.

“___O dia tinha visto a passagem do rei sol pelo céu desde muito cedo,

mas o vento gelado também estivera soprando sem descanso de maneira

que o apagar do sol e a chegada da noite trouxe um frio profundo. Eu

sabia que poderia não ser bom encontrar Pequena Morte naquela hora

em que as sombras tornam todos os caminhos incertos. Sua natureza

por demais sombria e as nuances obscuras das horas tardias fazem-na

distrair-se das suas resoluções mais firmes.”

A raposa concordou porque sabia o quanto Pequena Morte podia

ser perigosa envolvida pelas vestes negras da noite que age sobre

ela como um narcótico, libertando-a de uma natural timidez

perfeitamente percebida à luz do dia. “___Então esperou até o

amanhecer!” Adivinhou Loop e prosseguiu, imaginando cada passo

do puma. “___Escondeu-se por perto do local do encontro. Em uma

caverna talvez?”

“___Não, não em uma caverna, encontrei uma toca num tronco de

árvore. Um lugar seco e abrigado. Fiquei ali até que a manhã afastou

as sombras e até apagarem-se as estrelas. Então, protegido pela luz que

obriga Pequena Morte à reflexão, lembrando-a dos compromissos

assumidos para que exerça o controle necessário a não se deixar levar

por sua natureza mortal, fui até uma alta pedra que se debruça sobre

as margens do Lago Infinito. Antes, bebi das suas águas mágicas.

Fiquei quieto, sem provocar o menor ruído até que vi sobre minha

imagem refletida no lago a reprodução do disco do rei sol exatamente

sobre a minha cabeça. Sabia que então deveria chamar. Por isso ergui


meu rugido duas vezes. Assustei os pássaros e percebi a debandada das

lhamas que pastavam logo adiante, até aquele momento, ignorantes da

minha presença.”

“___Estava contra o vento, como convém!” Declarou Loop que sem

interromper o raciocínio, prosseguiu com uma explicação.

“___Pois se assim não fosse o bando o teria farejado logo a sua

chegada.”

“___Sim, mas não pela intenção da caçada. Segui a orientação de

pássaro Tilsith Teray e já havia dois dias que me alimentava apenas

de pequenos arbustos e mel.”

“___Arrh!” Fez Loop lembrando-se de uma ocasião em que

também ela fora mandada numa missão que exigira aquele

sacrifício de uma alimentação completamente desprovida da carne

de caça.

Perguntou. “___Pequena Morte veio logo ao seu chamado?”

O puma fechou os olhos como se uma lembrança assustadora

devesse ser apagada e balançou a cabeça em concordância.

“___Meu reflexo nas águas mágicas azuis borrou-se e fui envolvido

por uma nuvem muito cinza, densa e gelada. Soube imediatamente

que se tratava de Pequena Morte. Vi meu eu líquido turvar-se em

ondas e o cinza perolado do manto de Pequena Morte, envolveu todas

as coisas, até tudo o mais sumir. Num instante, foi como se eu

estivesse suspenso no ar, flutuando. Mesmo podendo sentir a rocha

firme sobre meu corpo, a ilusão de estar solto no ar era aterradora. Tive


vontade de olhar ao redor, mas me lembrei da orientação de pássaro

Tilsith e fixei firmemente o reflexo indefinido nas águas.”

“___Seria a pior das loucuras,... olhar a Morte de frente.” Concordou

Loop sentindo os pelos do dorso se arrepiarem ao imaginar o perigo

enfrentado pelo puma.

Mahoo sacudiu um torpor da lembrança do medo e prosseguiu na

narrativa. “____Fiquei muito quieto e senti o que ela dizia. Pois os

encontros com a Morte só podem ser descritos através dos sentimentos

porque faz parte da sua magia esse poder de envolver os sentidos para

se comunicar. Não há nenhum som e nenhuma voz e, no entanto,

consegue-se ouvir tudo o que ela diz.” Explicou o puma e continuou

com a descrição da sua aventura.

“___Senti que Pequena Morte me fazia um cumprimento tentando

ser o mais gentil possível. Fiquei grato porque esta percepção teve o

efeito de afastar grande parte do medo e consegui compreender

claramente o sentimento que ela me causava e que era sua narrativa.”

“___Foi então que ela anunciou a vinda de Grande Morte?”

“___Não,... não, muito depois! Primeiro me fez sentir e assistir tudo

sobre o início dos tempos. O manto cinza perolado foi ficando fino e

translúcido e eu pude ver como se tudo estivesse acontecendo naquele

momento. Vi uma época remota quando as terras foram se resfriando

com o transcorrer das eras, quando a própria Pequena Morte surgiu

em oposição a sua irmã gêmea, a vida, que se agitava nas águas na

forma de elegantes filamentos em espiral onde estava gravado o código


do mistério da formação de todos os seres que haveriam de povoar a

Terra. Há quinhentos milhões de anos.”

O puma fez uma longa pausa e percebeu a atenção de Loop que,

fascinada pelo que ele contava, não movia um único músculo.

Fechou os olhos para conseguir rever cada detalhe daquele

momento mágico e, revendo tudo, recordando as lições da morte,

prosseguiu.

“___Pequena Morte me falou dos tempos idos quando as selvas

cobriam a maior parte da terra seca e os mares tinham seres do

tamanho das árvores que precisavam da força das águas para poderem

se mover e de quando tais seres começaram a caminhar sobre a terra.

Depois me falou dos dias em que criaturas apoiadas em duas pernas

desceram das árvores e começaram a viver em cavernas escuras. Tão

cheios de medo que haveriam de se tornar os animais mais perigosos

da criação. E me fez sentir todo o espanto de quando a olharam de

frente e a reconheceram e a chamaram morte, compreendendo que

estava ligada de forma permanente e inexorável à vida, como as duas

faces de uma mesma verdade. Reconheceram-na e lhe deram mil

nomes. Eles, que um dia chamariam a si mesmos de humanos, dentre

todos os seres que povoavam o planeta foram os únicos a desenvolverem

plena consciência dela, Pequena Morte. E eles a temeram.”

“___Harrgh, harrgh,” bufou Loop, compreendendo naquele

instante que o conhecimento da morte havia se estendido para

todos os seres da terra a partir daquela primeira percepção dos

homens que a reconheceram.


Assim nasceu o mal, filho primeiro do medo. E esses, que se

chamariam humanos tornaram-se nossos algozes.”

“___Sim, e essa terrível verdade vai agora lhes custar o direito de

prosseguirem na caminhada para a evolução, como raça e como

espécie. Grande Morte está, neste exato momento, preparando seu voo

gelado sobre a Terra. O tempo urge, haveremos de combater o terrível

combate e o final é incerto, nada é sagrado para o poder de aniquilação

completa de Grande Morte e se lhe for dada a permissão, pela Infinita

Inteligência Cósmica, de vir a Terra...”

A frase inacabada do puma fez, mais uma vez, um frêmito de medo

percorrer a espinha da raposa que incapaz de permanecer serena

diante de uma perspectiva tão sombria levantou-se agitada e se

pôs a caminhar de um lado para o outro.

Tanto estardalhaço fez a raposa neste frenesi de pânico e irritação,

que afinal Mahoo ergueu um rugido de advertência, chamando-a à

razão.

“___ Aquiete-se Loop, de nada nos servirá esse seu ir e vir sem

propósito. A nós, a você e a mim, nos foi confiada à missão de tentar

arrumar as coisas para o trabalho de pássaro Tilsith Teray junto aos

homens e devemos permanecer calmos, ou tudo estará

irremediavelmente perdido. Ouça o que digo e se aquiete.”

Mahoo poderia ter se enraivecido contra a raposa porque sua

missão, assim como a dela, exigia que vestissem o manto da

lealdade cega e irredutível para com os humanos, perdoando-lhes

tudo, tentando compreendê-los para achar neles o caminho para o


conhecimento criador, afastando-os dos desfiladeiros da

insanidade que havia se apoderado das suas almas fazendo-os se

esquecerem da sua natureza sublime e da sua missão cósmica. Mas

tinha a alma mergulhada numa tristeza profunda porque tudo o

que vira em sua longa vida e tudo o que lhe fora revelado naquele

encontro com Pequena Morte, às margens do Lago Infinito, eram

prova deste desatino insustentável da humanidade e porque o que

Loop dizia, era verdade.

No entanto foi Loop que afinal lhe resgatou o ânimo.

“___Reconheço sua verdade Mahoo, o puma e agora faço a promessa

de seguir com a trilha do entendimento que deverá ser apresentada aos

homens como única forma de prosseguir. Nunca mais minha alma se

entregará ao desespero. Dite as ordens Mahoo e eu obedecerei, seguirei

na trilha sem hesitação.”

O puma se satisfez com as palavras daquela companheira que ele

reconhecia como valorosa, acomodou-se mais uma vez e se dispôs

a prosseguir.

Então Pequena Morte me disse,” recomeçou ele. “___O encontro

de pássaro Tilsith Teray com Grande Morte dará uma única

oportunidade para convencê-la a retirar seu pedido junto a Infinita

Inteligência Cósmica de estender seu manto gelado sobre a Terra.

Neste único encontro o Pássaro Tilsith Teray precisará da palavra

certa que fará a consciência delicadíssima de Grande Morte vibrar com

o som mais sublime jamais criado, pois só assim será possível afastar

seu poder de aniquilação total.”


“___Não sei se compreendo Mahoo, falamos de um som. Como uma

música?”

O puma, também em dúvida, procurou explicar o melhor que pode.

“___Um som. Música? Uma palavra? Muitas palavras? Não sei. Foi

o que me fez sentir Pequena Morte. Tão sublime será esse som que terá

o poder de fazer os sentidos se converterem em ondas suaves e

acolhedoras, então tudo será compreendido e tudo será visto como

completamente certo. Com cada coisa em seu lugar.”

Diante do olhar da raposa que continuava com evidente

interrogação, Mahoo, afinal, confessou.

“___Eu mesmo não compreendo bem como acharemos esse som. Mas

Pássaro Tilsith compreenderá e saberá usá-lo para dissuadir Grande

Morte do seu propósito macabro.” Loop balançou a cabeça

tristemente.

“___Nunca mais minha alma será tomada pelo desespero, mas não

posso deixar de pensar que bem faremos se estivermos preparados para

o pior, pois que, se nossa esperança reside na capacidade de

compreensão de Grande Morte...”

Então Mahoo fez uma revelação surpreendente.

“___ ... estaremos diante de uma capacidade de compreensão e perdão

infinitos...”


Tal foi a expressão de espanto da raposa diante destas palavras,

que se o puma soubesse sorrir, teria sorrido. Ele continuou.

“___Esse é o conhecimento que arrisquei minha vida para alcançar,

quando fui ao encontro com Pequena Morte às margens do Lago

Infinito. Naquele vasto planalto ao pé das montanhas. Lá, num

pequeno pedaço da Terra em que nunca pés humanos estiveram e onde

a Morte pode ser misericordiosa e não se entregar a sua natureza

mortal. Ali eu senti a verdade desconhecida até então por todos os seres

que vivem na Terra, a verdade sobre a natureza de Grande Morte que

é a mais terna, amorosa e delicada das forças cósmicas e da natureza,

...antes de...”

Como o puma tivesse silenciado abruptamente e como esse silêncio

parecia não acabar mais, a raposa tomada de um espanto

descomunal e igual impaciência exigiu.

“___Antes? Continue Mahoo, você diz ser Grande Morte a mais

bondosa força da natureza, antes..., Antes de quê?”

“___Antes de finalmente convencer-se de que sua atuação

aniquiladora é a única forma de preservar o delicado equilíbrio do

Universo. Então, ela se transforma e passa a ser o terror insuperável

e incontido que destrói qualquer chance de vida para o planeta. Assim

é a atuação de Grande Morte, que sofre tanto com a imposição da sua

força e com a devastação causada por seu manto gelado que após cada

ação arrasadora segue durante eras com suas lágrimas enchendo o

Cosmos como chuvas de estrelas cadentes. Por isso! Por sofrer um

sofrimento incalculável, Grande Morte dá às criaturas todas as


oportunidades para a salvação. Dispõe-se a dilacerar seu manto e

deixar vibrar em seu ser o som sublime que mantém sua natureza

passiva. Um único som com as notas e a vibração exata à manutenção

sagrada da vida e ela se retira para as profundezas insondáveis e

negras do cosmos onde permanece adormecida e de onde surgirá sempre

que o equilíbrio do infinito estiver em perigo.”

O puma fechou os olhos como para afastar a lembrança de algo

muito superior a seu entendimento que não podia ser retido por

muito tempo em sua mente simples de animal mortal e declarou

finalmente.

“___Tal foi à revelação que recebi de Pequena Morte. Depois um

torpor e um cansaço infinitos envolverem todo o meu corpo e por um

momento acreditei que Pequena Morte havia se esquecido de seu

compromisso e que eu estava morrendo. Mas esse pensamento não me

provocou medo, apenas uma grande tristeza por ser levado da vida.

Adormeci um sono sem sonhos e quando acordei estava na toca quente

e protegida do tronco da árvore que me havia servido de leito na noite

da minha chegada.”

Loop, a raposa, suspirou um profundo suspiro resignado.

Agora se sentia totalmente comprometida com a missão que fora

deixada em seu caminho e no de seu amigo Mahoo, o puma. Disse

para ele.

“___Então nos resta encontrar o pássaro Tilsith e lutar pelo melhor.

Lutaremos a boa luta Mahoo e o resultado é incerto. Bem faremos nos

preparando para o pior, embora devamos esperar o melhor. Suas


palavras falam de uma doçura de Grande Morte que é algo

inacreditável e, no entanto devo acreditar, porque é você quem me diz

dessa doçura e porque eu o conheço de antigas trilhas e porque se assim

não for não restará esperança.”

As palavras da raposa soaram profundas e tristes entre as rochas e

o solo árido da planície andina. Uma brisa leve veio soprar aquelas

palavras para cada pequeno espaço entre as rochas, para cada

pequena pedrinha. Envolveram cada grão de pó e as poucas

plantas corajosas que nasciam e viviam da dureza daquela

paisagem ocre e vermelha, cheia de uma força invencível e

tranquila.

Subitamente uma chuvinha miúda e impossível, naquele recanto

do mundo onde nunca chovia, começou a molhar os caminhos

gelados.

Espantados e atendendo ao instinto de animais selvagens, o puma

e a raposa voltaram os olhos ansiosos para o lugar misterioso no

alto da rocha vermelha que suportava a presença invisível de Cesar

Astu Ninan e maravilhados puderam perceber quase

instantaneamente o contorno que começava a se definir contra o

azul do infinito, reverberando às milhares de gotículas de água a

refletirem, qual um universo de minúsculos brilhantes, a luz

esmaecida do sol poente. Recortando e traduzindo uma figura

ancestral contra o céu do escurecer.

A imagem foi emergindo, explodindo de luz e brilho, deixando

aparecer o corpo muito alto e muito magro do homem.


Viram que ele era muito velho e quieto e que parecia muito triste

e fraco. Que estava curvado como se sob um peso descomunal que

o esmagava, provocando um terrível sofrimento. Em tudo fazendo

pensar em uma carga de dor.

No mesmo instante, simultaneamente a capacidade inesperada dos

animais de enxergá-lo, Cesar Ninan readquiriu sua própria

capacidade de auto percepção.

Descobriu-se imóvel e entorpecido pela própria imobilidade, com

frio e com medo. Acocorado como num poleiro no alto da rocha

árida e afiada que lhe lastimava os pés descalços. Estava com os

longos cabelos brancos caídos sobre o rosto descarnado e os braços

cruzados na ação de abraçar-se tão estreitamente que conseguia

tocar as costas e sentir com as pontas dos dedos os tocos onde

antigamente havia um par de asas enormes, agora cortadas rente.

Com o lugar exato marcado por protuberâncias inflamadas de

ossos e carne machucada, latejante na infinita dor da mutilação

criminosa.

Loop e Mahoo não o temeram, ao invés, sentiram pena dele.

Vendo-o tão trágico e só, compreenderam que ele escutara toda a

narrativa da aventura do encontro com Pequena Morte e que por

isso seu abatimento e sua desesperança eram tão grandes.

Compreenderam também aquela chuvinha miúda que caiu sobre o

pedacinho do mundo onde nunca chovia. Aquelas gotas frias eram

o reflexo das lágrimas incontroláveis de Cesar Astu Ninan.


Capítulo 4

Crimes - no Clube de Havanófilos


O bilhete anônimo era um bilhete que a impaciência de Victor

insistia em classificar como ridículo, mas com uma mensagem que

fizera disparar um conhecido alarme persistente e incômodo

naquele espaço afastado da consciência destinado aos assuntos

desagradáveis. “__Crimes estão acontecendo no seu clube.” Acusava

a nota perturbadora, mal feita, ou antes, feita às pressas, com letra

comum e sob a premência de não ser surpreendida.

Ainda estava onde Victor Gatopardo o havia encontrado. Entre as

páginas do encarte especial do Anuário sobre Solos e Climas para

a Excelência na Produção do Tabaco de autoria do já falecido,

Wilburn Klum, um especialista mundialmente reconhecido na

produção de puros que fora um grande amigo de Victor, um dos

poucos por quem o Gatopardo conseguira nutrir sincera afeição e

de quem se recordava com saudade.

A nota anônima fora colocada especificamente ali, entre as páginas

do anuário e dentro do encarte por alguém que conhecia Victor o

suficiente para saber, com absoluta certeza, que ele não deixaria

de folhear a publicação.

O anuário era uma obra volumosa, extremamente técnica que não

atraía o real interesse de Victor, pois embora ele gostasse de ser

apontado como grande conhecedor, a verdade é que degustava

charutos exclusivamente por prazer. Porém aqueles encartes que

se sucediam a cada edição e que traziam cópias dos excelentes

trabalhos do seu velho e saudoso amigo despertaram no Gatopardo

um sentimento nostálgico. Renovou a assinatura da publicação e

a recebia com regularidade, sempre no endereço do Clube


Internacional de Havanófilos e ainda em nome de Wilbur, detalhe

que ele fazia questão de manter como uma espécie de homenagem.

“__Crimes estão acontecendo...” as palavras com um quê de

dramaticidade piegas não deixavam de perturbar sua costumeira

placidez. Inconvenientes, asquerosas, provocando um mal estar

bem definido.

Ter encontrado aquele bilhete fizera Victor repassar, vezes sem

conta, seus movimentos na tarde em que fora até a biblioteca do

Clube em busca do anuário e ele se lembrava em detalhes da visita.

Desde sua chegada ao suntuoso casarão até o momento em que

saíra, já noite, passando pelo largo hall, apanhara casaco e bengala

na chapelaria e lembrava-se de haver trocado palavras breves ao

se despedir cortesmente de dona Olga, a encarregada da

administração, - no Clube há tantos anos que já parecia parte do

mobiliário. Saíra pela porta principal e descera as escadas até o

carro que o esperava para levá-lo a casa sem se apoiar nos

corrimões de mármore, mas utilizando a mão direita com destreza

para manejar a elegante bengala com castão de prata e carregando,

sobre o braço esquerdo, o casaco dobrado e o anuário, ambos

firmemente seguros contra o peito.

Pouco depois, já bem acomodado no banco de trás do automóvel e

entregue a competência do velho chofer, resolvera se distrair e

abrira o pesado volume buscando de imediato as páginas centrais

com o encarte. E ali encontrou o bilhete. Escrito em papel cartão

branco comum, quase saltando de entre as páginas para ficar

inerte sob seu olhar atônito.


“__Crimes estão...” - com as letras graúdas, em tinta preta,

agressivas, gritando irritantes para sua consciência, exigindo sua

atenção.

Uma acusação absurda, sem nenhuma base de sustentação...

Ou não... ?

Mais tarde, já em casa, Victor se entregou a uma reflexão profunda

e corajosa.

Disposto a confrontar, inclusive, sua evidente omissão nos

assuntos do Clube Internacional de Havanófilos desde que deixou

a sua presidência, há vinte e três anos.

Deixou também de frequentar o lugar.

No início timidamente, com uma desculpa ou outra. Restringiu

suas idas aos encontros oficiais, festas de cerimônia em que os

convites eram quase convocações e a algumas poucas reuniões de

final se semana, uma ou duas vezes por mês, até, finalmente,

resumir seu comparecimento à busca do famoso anuário e à

festividade de natal. E mesmo as eleições dos novos presidentes

deixaram de contar com sua presença.

Aos que perguntavam, ele respondia que as reuniões da Confraria

do Tabaco, formada por ele próprio e seus quatro fieis amigos mais

chegados, só aconteciam com a devida atenção aos detalhes para a

competente apreciação dos charutos na intimidade da biblioteca

da sua própria casa.


A verdade é que os infindáveis compromissos, os debates, os

jantares, as festas e as ocasiões envoltas em luxo e em cerimônias

cansativas e cheias de pompa, o haviam enfarado.

No passado costumava ter orgulho do fato do Clube haver

alcançado status e se sobressair como uma espécie de símbolo de

honradez para a sociedade Terraaltina e participou com

entusiasmo de todos os eventos que serviam para evidenciar e

fortalecer esta posição.

Com tanto cuidado e senso de justiça eram debatidos os assuntos

levados à sua mesa presidencial que o Clube Internacional de

Havanófilos se firmou, em meio à comunidade, como um pilar de

integridade. Um autêntico baluarte da conduta correta.

Uma instituição baseada nos mais altos princípios e virtudes e que

passou a ser uma espécie de guardiã da moral e do mais refinado

equilíbrio.

E nunca, durante os vinte anos que Victor ocupou sua presidência,

um parecer emitido por ele e pela mesa diretora da instituição fora

contestado, nem mesmo por órgãos oficiais. Ao contrário. Entre as

memórias do Clube Internacional de Havanófilos existiam e

estavam cuidadosamente documentados e arquivados, episódios

envolvendo causas processuais, até mesmo algumas de alcance

internacional, sobre as quais o entendimento dos membros da

presidência do Clube havia influenciado e até sido decisivo para o

veredicto das cortes e tribunais. Tal o reconhecimento de sua

retidão, imparcialidade e de seu prestígio.


Para Victor, que esteve pessoalmente envolvido na maior parte

destes acontecimentos, esta influência evidentemente

supervalorizada para uma associação que nasceu apenas com a

finalidade de reunir um punhado de cidadãos que compartilhavam

o gosto pela degustação de charutos, nunca pareceu inadequada ou

excessiva. Acontecera espontaneamente e assim foi assimilada.

Sempre com atuações irrepreensíveis.

Ou era no que Victor queria acreditar.

No entanto, ele se afastara há tanto tempo, mais de duas décadas

e de maneira tão definitiva que não tinha como saber.

Não com certeza absoluta.

Por isso aquele bilhete anônimo conseguiu despertar nele uma

inquietação tão profunda, tirando-lhe a paz. Não podia se livrar

da impressão de que as palavras provocaram um eco no mais

profundo da sua consciência, com a frequência exata para disparar

uma resposta com idênticas notas repetitivas e constantes que não

paravam nunca, por serem alimentadas sempre e sempre com a

mesma vibração.

E isso, Victor estava bem ciente, só era possível porque tais

palavras traduziam algo sobre o que ele tinha forte desconfiança,

alguma verdade abafada no fundo da sua consciência, alguma

coisa que, bem lá no íntimo, ele já sabia.

Não que pudesse dizer que desconfiava de crimes. Seria exagero.

Mas sabia, podia sentir que nos últimos tempos havia algo de


escuso, fora de foco, alguma coisa definitivamente errada vinha

acontecendo no Clube Internacional de Havanófilos.

E agora não conseguiria mais ignorar este fato.

Com um suspiro de cansaço o Gatopardo se ergueu da sua poltrona

favorita e colocou firmemente o anuário com seu encarte e o bilhete

inquietante sobre uma bonita escrivaninha, no canto da biblioteca

em frente a uma das janelas.

Olhou em volta.

As poltronas de couro com as mesas aparador já estavam

preparadas para a reunião de todos os sábados. Seus confrades

viriam para a degustação de puros, para um suntuoso jantar e, em

seguida, para nova rodada de charutos, num ritual que poderia

durar horas infinitas. Então ele teria oportunidade de tentar

sondar sobre os últimos acontecimentos no Clube.

Durante a conversa, entre uma palavra ou outra, sem despertar

alardes e, se possível, sem revelar o bilhete desagradável.

Procuraria por uma pista. Alguma revelação de um ou outro

episódio não totalmente esclarecido, ou até algum rumor de

escândalo ou talvez a desconfiança de alguma atitude que não

ficara bem entendida ou que parecera de má fé.

Seus amigos, os confrades, frequentavam o Clube com alguma

regularidade ou ao menos muito mais do que ele. Talvez soubessem

de alguma coisa, se houvesse alguma coisa para saberem. E lhe

diriam, se ele perguntasse.


Com este pensamento Victor Gatopardo resolveu que já era hora

de ir dormir. Agora que já havia decidido uma linha de atuação,

acreditava que conseguiria tirar da mente a acusação do bilhete

anônimo e teria uma boa noite de sono.

Victor não tinha como saber que naquele preciso momento, muito

distante dali, a mente doente de Cesar Astu Ninan se voltava

contra ele próprio para aprisiona-lo num redemoinho de universos

paralelos que o levariam a outras vidas e mundos, muitos medos e

angústias que acabariam em decorrência disso, modificando planos

e determinando ações inesperadas e que o bilhete anônimo ficaria

esquecido, por quase um mês, entre as páginas do encarte com a

reprodução de um dos mais brilhantes textos sobre a manufatura

de charutos, de autoria de seu saudoso amigo, Wilbur Klun.


Capítulo 5

Victor Gatopardo


Victor Gatopardo escondia um segredo num cantinho bem

afastado e obscuro da memória e do coração, mas que reaparecia

inesperado e inconveniente sempre que ele se esquecia dos truques

para afastar a tristeza. Abatia-se então, perdia o brilho e sua

personalidade carismática, cálida, envolvente, adquiria contornos

cinzentos e Victor se transformava num ser cabisbaixo de

movimentos lentos.

A metamorfose podia durar dias e era sempre enfrentada por

Victor com um voluntário isolamento. Semelhante ao tratamento

das enxaquecas crônicas que só encontram alívio nos refúgios da

penumbra e do absoluto silêncio.

O segredo era um segredo só dele. E mesmo os mais íntimos e que

o amavam e que se referiam a estes momentos como um traço de

tendência a melancolia natural do seu caráter, sem excessiva

preocupação porque Victor reagia a tais declínios de ânimo com

força e coragem, não desconfiavam da verdade.

Constantes autoanálises haviam convencido Victor sobre a

natureza do seu segredo e incapaz de eliminá-lo Victor criou

métodos para ao menos controlá-lo e estava convencido que as

ocasionais depressões eram um sintoma deste esforço. Assim fora

desde sempre ou ao menos desde que tinha memória de si mesmo e

Victor atribuía a existência do tal terrível defeito a sua origem e

educação.

Agora, já na altura da vida em que as obrigações com o trabalho

davam lugar as muitas horas de contemplação da própria


existência e em que podia esquecer o correr do tempo em prol das

longas caminhadas pelas largas ruas que o levavam de volta ao

casarão familiar vindo dos poucos destinos rotineiros que ainda

mantinha, Victor se surpreendia a avaliar o seu segredo cada vez

com mais constância e com crescente complacência. Descobriu, a

força da renovação do exercício de conhecer-se, que se tornava tão

mais suscetível à autoindulgência quanto mais cálido estivesse o

dia.

Nas manhãs de verão, quando a cidade naturalmente fria ainda

não aceitara o calor excessivo do sol, Victor saia a pé até uma

confeitaria famosa por suas iguarias em panificação e trazia coisas

gostosas para o café da manhã, sua refeição preferida.

Encompridava o caminho da volta para dar-se tempo às reflexões,

passava pelos parques, cruzava com intencional vagar as praças,

parava a admirar os jardins e reconhecia que embora fosse capaz

de apreciar as temporadas no campo e os afazeres nas estâncias,

era primordialmente um ser urbano. Sentia-se bem andando as

ruas largas e limpas do bairro elegante em que ficava o casarão

Gatopardo, vizinhando com as velhas mansões senhoriais e sabia,

com o saber do muito viver, que essa predileção se devia

principalmente ao fato de que era no ambiente urbano que ele

conseguia ser absolutamente só.

Nos momentos em que se propunha uma análise corajosa sobre seu

segredo, Victor, apesar da admissão de sua natural afinidade pela

vida nas cidades com sua inevitável artificialidade em meio às

infinitas regras de conduta, se reconhecia apenas superficialmente


civilizado, como o eram, ele estava convencido, a totalidade da

raça humana e não apenas considerando os seus contemporâneos,

mas todos mesmo, os humanos do passado, do presente e

certamente o seriam os seres humanos do futuro.

Para Victor era fato incontestável que mesmo o melhor e mais

gentil e educado dos homens conseguiria ser apenas

superficialmente civilizado. A isso se seguia admitir sua inabalável

crença na maldade intrínseca aos seres da sua espécie e daí uma

sequência de raciocínio lógico e baseado em fatos determinados o

levava à raiz do seu segredo.

Começava sempre com uma sincera busca pela máxima filosófica

do conhecer-se a si mesmo e Victor mentalmente enumerava os

próprios defeitos. Detinha-se entre vaidoso, teimoso e perdulário e

passava logo para a reflexão de que uma vez que não podia

honestamente se julgar completamente bom, apesar de seus

esforços férreos de anos sem conta, porque sendo humano, a

suposição de bondade plena seria tolice, podia ao menos se obrigar

a ser justo e honrado. E seguia com o encadeamento dos

pensamentos descambando para as suas lembranças com a

infinidade de erros repetidos e a rememoração da sua história mais

antiga.

Entre o irmão mais velho e Victor, três crianças haviam nascido e

morrido ainda pequenas, vítimas de uma síndrome respiratória

que aparecia com frequência na linhagem Gatopardo e quando

finalmente Victor nasceu de um parto particularmente difícil que

debilitou fatalmente sua mãe, já bastante fragilizada pelos meses


de uma gravidez completamente desaconselhável, pois como era de

senso comum, conceber aos quarenta e sete anos representava

estremo risco para a mãe e para o bebê foi amplamente apoiada à

decisão do pai de Victor passar a habitar outro quarto, separado

da mulher para preservar-lhe o que lhe restava de saúde.

Victor cresceu entre as paredes do casarão Gatopardo sob os

cuidados de babás e preceptores e assistindo de longe o extinguirse

da mãe tal e qual o apagar de uma vela.

Da mãe, Victor herdou os antepassados militares. Uma longa

hereditariedade Van D’Vicci, de generais, todos ostentando títulos

e louros de coragem, masculinidade, honradez e mando. Então mal

completara sete anos quando foi enviado para o internato da escola

militar para oficiais e foi nesta escola onde recebeu a notícia da

morte da mãe. Foi nesta escola também que recebeu as notícias

sobre os sucessivos casamentos do pai, três em menos de cinco anos

e, finalmente, a notícia da morte do pai em decorrência de seus

excessos. E foi o irmão quem Victor encontrou no lugar de

patriarca da família quando, faltando menos de um mês para

completar quinze anos, voltou para a cidade de Terra Alta e para

o casarão Gatopardo.

Eram os primeiros anos da sua vida adolescente e Victor encontrou

no casarão uma situação muito diferente do que havia

vislumbrado em suas reminiscências do cotidiano da elite

terraaltina.


Os Gatopardo, assim como a maior parte das famílias tradicionais

de Terra Alta eram grandes latifundiários. Possuíam extensões

obscenas de terras em sequência e também em pedaços isolados e

espalhados pelos vales nas montanhas.

Em suas terras cobertas principalmente pelas semeaduras de

especiarias, produzindo a pimenta do reino, pimenta negra, branca

e verde e, a coqueluche da gastronomia mundial, o açafrão, além

de uma infinidade de tipos de cogumelos, viviam quinhentas e

setenta e sete famílias de agricultores, trabalhadores da terra que

pagavam pelo direito de cavar o solo incrivelmente fértil para

enterrar nele as sementes entranhadas com o milagre

extraordinário da vida.

Eram gerações das mesmas famílias de lavradores que já haviam

trabalhado arduamente em todos os ciclos das monoculturas, da

cana de açúcar, café, erva mate e soja, ajudando aos senhores das

terras terem seus lucros aumentados pelos benefícios financeiros

oferecidos pelos governos centrais para incentivar as políticas

momentâneas de exploração das monoculturas, mas que jamais

abandonaram o milagre das pimenteiras que acreditavam ser a

verdadeira vocação daqueles vales entre as montanhas nevadas.

E agindo assim estes trabalhadores deram aos senhores de terras

muito mais do que o lucro exponencial do momento, garantiram a

continuidade de uma riqueza que não podia ser medida apenas pelo

dinheiro, mas também por uma tradição de força e renovação da

vida.


E um dia Victor entenderia isso com muita clareza.

Mas antes de compreender e incorporar a verdade do milagre que

era tirar vida das semeaduras haveria o inevitável período da

perda. Pois nem mesmo o acúmulo inescrupuloso de tanta riqueza

ou a inesgotável fertilidade das terras conseguiu salvar as antigas

famílias, reconhecidas em brasões sentenciados à erosão do tempo

e destinados à aniquilação das suas fortunas. No caso Gatopardo

a bancarrota que se avizinhava era sabidamente, na sua

totalidade, de exclusiva responsabilidade da inépcia do

administrador. Era notório que o pai de Victor não podia ser

recomendado por sua competência e capacidade de trabalho.

Dissipara a vida em frivolidades. Ainda era um homem moço e

vigoroso quando declarou abertamente desejar descarregar

imediatamente o peso das responsabilidades sobre seus herdeiros.

E o filho varão, promissor às aspirações da renovação do esplendor

da família não era Victor, mas seu irmão, o primogênito

Gatopardo, mais velho do que Victor quase quinze anos.

Consciente disso e francamente agradecido à sorte por não ser o

centro das atenções da família, Victor havia decidido abandonar a

carreira militar.

Logo nos primeiros anos do colégio decidiu que não era aquela vida

que queria para si, tampouco tinha alguma aspiração específica e

acabou se decidindo pela formação em administração em

agronegócios muito mais para ter um título, fosse qual fosse do que

por verdadeira vocação ou gosto, sem nenhuma pretensão a

assumir a direção dos negócios da família que, aliás àquela altura,


Victor mal imaginava quais seriam. E sua decisão não causou

nenhuma comoção familiar além de nenhuma credibilidade, é

forçoso reconhecer.

Questionado nestes seus arroubos de independência Victor foi

firme e monossilábico. “__é do que você gosta?” Perguntara o irmão

entre uma tragada e outra de um cigarro longo, fino e escuro,

muito mentolado que espalhava um leve odor adocicado ao seu

redor. E Victor. “__Não!”, tão enfático e sincero que arrancou ao

irmão uma gargalhada deliciosa tão espontânea e cascateante que

contagiou a determinação de casmurrice de Victor, acabando,

ambos os rapazes, sacudidos pelas risadas compartilhadas.

Isso serviu para que soubessem que poderiam, afinal, darem-se

muito bem.

E assim, contra todas as probabilidades foram anos felizes aqueles

primeiros da adolescência de Victor. Acolhido no casarão

Gatopardo com sua aura de nobreza decadente e mantido à sombra

do irmão que vivia uma vida de desregrados prazeres.

O primogênito Gatopardo parecia ter o propósito firme de acabar

com o pouco da fortuna que ainda restava e escandalizar e

desagradar o maior número possível das famílias tradicionais da

severa sociedade Terraaltina. Além de provocar a comparação

inevitável, nas lembranças de todos, com os desmandos e perdições

da vida do seu pai.

Sob a tutela, orientação e patrocínio deste irmão, Victor seguiu seu

plano e se matriculou no curso escolhido, ali mesmo em Terra Alta,


numa das mais prestigiosas Universidades do País e, além disso,

iniciou-se em sua sexualidade e se aprimorou como “bon vivant”.

Mas embora estivesse bastante satisfeito com a liberdade e com às

milhares de possibilidades extravagantes que a vida de farras do

irmão lhe proporcionava, além da entrada garantida em todas as

casas de prazeres da periferia da cidade, a verdade é que Victor

teve, desde sempre, uma personalidade séria, afeita ao trabalho, à

busca pelo conhecimento e ao empreendedorismo não

necessariamente material, mas muito mais, intelectual.

Victor muito cedo se convenceu de que melhorar a educação do

povo era o único caminho verdadeiro para a dignidade da vida dos

que o rodeavam e da sua própria. E secretamente cultivava a ideia

de um dia vir a ser professor, pois o ofício de ensinar sempre lhe

pareceu o mais nobre de todos.

Entre as horas de estudos no campus universitário e as festas e

farras organizadas no casarão Gatopardo, algumas durante dias

ininterruptos, Victor mantinha suas aspirações só para si. Uma

intuição muito amadurecida fazia-o acreditar que seus argumentos

ainda muito crus não resistiriam às chacotas e aos milhares de

motivos contrários que seu irmão certamente apresentaria para

dissuadi-lo.

E Victor não queria discutir com seu irmão.

Não conseguia conscientemente respeitá-lo porque o

comportamento completamente irresponsável do irmão não

deixava margens para admirações, mas durante aqueles anos de


sua adolescência e por muito tempo depois disso, foi a espécie de

carinho protetor e condescendente que sentia pelo irmão o mais

perto que Victor conseguiu chegar de um sentimento de afeto

sincero e um interesse, ainda que muito limitado, por outro ser

humano.

E foi nesta época também e como resultado de reflexões com

relação aos sentimentos, ou mais acertadamente, a falta deles.

Para com a totalidade das pessoas com quem convivia e, forçado a

reconhecer a superficialidade, senão a completa inexistência de

interesse, até mesmo por seu próprio irmão, que Victor começou a

se preocupar seriamente com sua capacidade para o amor.

Este amor descrito em prosas e versos e que prometia uma

resposta, uma ampliação e uma valorização dos motivos para

continuar respirando e o qual ele não conseguira nunca sequer

imaginar como seria este amor completo e incondicional. Porque

uma sinceridade implacável o obrigava a reconhecer que nunca

sentira nada que remotamente pudesse ser descrito dessa maneira,

por nada e absolutamente ninguém.

A enlevação dos sentidos apenas pelo desejo de proteger e fazer

feliz e se entregar totalmente a outra pessoa. Incondicionalmente.

E que deveria ser, sem dúvida, o que diferenciava os seres humanos

dos outros animais. Essa espécie de poder que fazia os seres

humanos melhores do que as outras espécies, este sentimento

supremo e que deveria ser puro e belo e forte e completo e que ele,

Victor, embora acreditando o espreitasse e procurasse, não

conseguia encontrar.


Pensava nisso e, angustiado, se perguntava o que haveria de errado

com sua alma.

Ao escutar as confidências dos tormentos das paixões que lhe

faziam os amigos ocasionais, dos tempos da escola militar e agora

das turmas da universidade, Victor comparava-as às suas próprias

sensações e se reconhecia incapaz das sensações que afligiam a

maior parte de seus companheiros.

Muito embora conseguisse compreender a paixão carnal e

encontrasse infinito deleite com suas favoritas, entre as belas

jovens das casas de prazeres que frequentava regularmente, ou

mesmo desfrutando os namoros fortuitos com algumas jovens

colegas, integrantes de famílias que se relacionavam com a sua e

que tinham um comportamento bem mais liberal do que seus pais

ousariam admitir, não se enganava e sabia perfeitamente que o que

experimentava nestes encontros de horas e noites, nada tinha a ver

com o amor profundo e sincero que poderia dar um significado a

sua vida.

Este amor, Victor não conseguia encontrar.

Avaliava a alternativa de jamais formar uma família com mulher

e filhos. Seria um eterno solitário, um esquisitão incapaz da

intimidade e do aconchego do lar.

Mas esta imagem de um futuro árido, considerada um fracasso no

estreito leque de possibilidades vislumbradas como ideal para a

sociedade em que se inseria, para Victor não se mostrava tão

terrível e talvez fosse até confortável na sua avaliação íntima


consciente. Uma situação a qual ele se ajustaria perfeitamente e

até com alguma coisa parecida com felicidade se não fosse por uma

desconfiança que se imiscuía em seu espírito ainda mais

inquietante, um defeito de sua alma ainda pior. Uma completa e

incorrigível falta de empatia pela totalidade dos seus semelhantes

e o monstruoso enfado que era o único sentimento que as pessoas

conseguiam despertar nele.

Por conta desta constatação um temor sorrateiro e mal

compreendido inquietava-o ainda mais, fazendo-o suspeitar de

alguma deficiência de seu espírito, irreparável e terrível a torna-lo

menos do que humano.

Então vivia avaliando os próprios sentimentos, atento aos

pensamentos e às atitudes de impaciência ou desprezo ou mesmo

indiferença pelos outros e se censurava quanto a sua incapacidade

para a compreensão ou a solidariedade, recriminando-se, exigia de

si mesmo ser ao menos justo.

Passou a se policiar rigidamente, reprimindo julgamentos e se

forçando a ver sempre o melhor nas pessoas. Tinha consciência de

possuir e deixar transparecer um certo olhar indulgente que as

magoava e humilhava, porque percebiam neste olhar um desprezo

quase visceral. Então se forçou a suprimir tal olhar e se policiava

com rigor quanto a isso.

Mas não demonstrar desprezo era diferente de não sentí-lo e ao

final de cada embate íntimo, confrontado por seus pensamentos e


sentimentos Victor era sempre obrigado a reconhecer a simples

verdade.

Era-lhe impossível gostar de gente.

Seus semelhantes, além de intimamente maus, egocêntricos, eram

chatos, desinteressantes, afetados, insuportavelmente carentes,

reprimidos na sua autenticidade e irrefreáveis em suas exigências

ridículas e necessidades infantis.

Numa palavra. Insuportáveis.

Reconheceu-se completamente incapaz de gostar das pessoas em

geral ou aturá-las individualmente. Avaliou o grau da impaciência

que lhe causavam e se convenceu de que precisava esconder esse

sentimento até de si mesmo porque sabia que não conseguiria, no

percurso de uma vida, redimir-se dele.

Por isso Victor tentava sinceramente levar sua vida sendo o mais

justo e correto possível, alimentando ideais de ajudar a todos.

Um dia, pensava ele, num futuro não muito distante, atuaria

decisivamente ajudando aos seus semelhantes através da

educação, para que pudessem se erguer da sua mesquinhez

assombrosa e insuportável insignificância.

Ignorava conscientemente uma tendência utópica nas suas ideias

de ambiciosas iniciativas para nunca fraquejar nos bons

propósitos.


E se acostumou a repetição mental de uma frase tão

frequentemente que se ele fosse afeito às orientações espirituais

poderia tê-la adotado como um mantra,“...é preciso ser bom”, dizia

para si mesmo e repetia e repetia até sentir passar sua irritação

contra a humanidade.

Resultou disso, ser Victor, desde muito cedo, reconhecido na

comunidade como um exemplo de caráter e nobreza de atitudes e

mesmo os desmandos e os deslizes cometidos logo na sua chegada

à Terra Alta sob a influência do irmão, acabaram perdoados como

pecadilhos comuns aos muito jovens.

E o fato é que logo sua natureza séria e diligente se impôs e ele

começou a se portar como o verdadeiro adulto da família.

O irmão achou imensa graça e se acostumou a implicar com ele,

mas sempre de forma afetuosa.

E assim se passaram dois anos.

Então, quando ele já estava com dezessete anos completos, da

forma mais inesperada, começou a notar uma diferença alarmante

no comportamento do irmão.

De alegre e barulhento festeiro, o irmão começou a ficar taciturno.

Ora furtivo, ora esquivo e agressivo com olhares assustados. A se

esgueirar por trás das portas e pelas frestas e sombras das paredes,

escondido nos quartos e nas salas, saindo totalmente oculto pela

escuridão total da noite ou se aproveitando apenas da luz do luar.


Acabaram-se as festas e as companhias dos amigos de jogo e das

mulheres públicas.

Antes sempre cheio de vaidade por sua figura jovem e atraente,

cultivada com belos e caros trajes, agora o irmão passava os dias

enfiado em roupões maltrapilhos e sujos, ... até mal cheirosos.

Saia cada vez mais e mais tarde da noite, se esgueirando, para

lugares ignorados e secretos, sem responder aos chamados ou

apelos de Victor ou de quem quer que fosse.

Victor começou a temer por alguma doença terrível ou por uma

perturbação mental severa. Mas mesmo seus esforços mais

persistentes não conseguiram fazer seu irmão contar o que estava

acontecendo. Ao contrário, quanto mais enérgicas suas tentativas

para atraí-lo e fazê-lo falar mais conseguia afastá-lo. Até chegar ao

ponto de percebê-lo apenas pelas batidas das portas a se fecharem

abruptamente quando o irmão o percebia se aproximando ou leves

e fugidios sopros de ar ou mínimos roçares de tecidos deslizantes

denunciando um corpo que se move furtivo na pressa para se

esvair.

Victor experimentou a ilusão de estar vivendo com um fantasma.

Semanas se passaram e o comportamento aflitivo do irmão só

piorava, Victor se pôs a avaliar suas opções e já considerava

seriamente buscar a ajuda de médicos, psiquiatras e até da polícia.

E foi então que os fatos se precipitaram.


Em um entardecer de verão Victor foi atraído dos seus trabalhos

escolares na biblioteca pelo som de vozes alteradas vindas do hall

de entrada do casarão. Saiu apressado pelo som inequívoco de

conflito e viu, na porta principal escancarada, a figura

desarranjada do seu irmão, completamente coberto de sangue e em

farrapos e sendo agredido com socos e pontapés, além dos mais

torpes insultos, por dois homens estranhos e trajados como

ciganos.

Sem tempo para reflexões Victor se lançou sobre os agressores na

tentativa de proteger o irmão ao mesmo tempo em que os seus

gritos pedindo ajuda, atraíram os empregados.

O chofer, a cozinheira e o mordomo correram em defesa dos irmãos

que agora eram agredidos igualmente. Mas os agressores eram

tremendamente fortes além de muito hábeis na arte das lutas livres

e os machucados infringidos aos rapazes foram terríveis.

Acabaram desacordados e quase mortos, salvos pelos empregados

e pela chegada da polícia que atendeu ao chamado inundado de

súplicas histéricas da cozinheira.

Seguiram-se muitos dias de dolorosa convalescença.

Mas tão grave quanto a agressão em si, no entender de Victor, foi

ele não conseguir arrancar do irmão nenhuma explicação, nem

mesmo a mais leve tentativa de uma justificativa para o

comportamento selvagem dos homens que entre murros e

pontapés deixaram claro terem uma razão muito forte para a surra

que se empenhavam em aplicar.


Surra originalmente destinada ao irmão, mas que não perdeu nada

em raiva e violência quando incluíram a Victor.

A este acontecimento, que continuava sem explicação porque os

dois valentões fugiram e não foram descobertos pela polícia,

seguiu-se a invasão do casarão Gatopardo e da cidade e da região

de Terra Alta.

Aconteceu antes mesmo de estarem os dois irmãos plenamente

recuperados. Ainda convalescentes, sofrendo dores atrozes e sob o

forte efeito de medicação, foram surpreendidos pela tomada do

casarão Gatopardo por nada menos que uma guarnição armada.

E esta descrição é completamente apropriada porque foi mesmo

um ato de ocupação.

Num meio de tarde em que se debatia numa semi inconsciência por

conta da quantidade de remédios que era obrigado a usar, Victor

acordou como se para dentro de um pesadelo e viu sua casa, seu

quarto e sua vida serem invadidos pelo mais novo representante

militar da estirpe Van D’Vicci.

Reconhecido como um fenômeno de precocidade a ocupar um alto

cargo como um dos prestigiados generais das forças armadas do

país, estava o general empertigado, esplêndido e terrível a observar

Victor desde o pé da sua cama.

O general nada disse e nada lhe foi perguntado, permaneceu poucos

minutos à vista de Victor, parecendo ter sua atenção atraída por

absolutamente tudo, menos o rapaz coberto de ferimentos


estendido no leito. Depois de uma inspeção visual por todo

aposento, o general saiu com andar rígido, marchando literalmente

e um dos oficiais se aproximou do convalescente para informar do

desejo do general de ser acompanhado por Victor e por seu irmão

ao jantar.

Uma instrução compreendida pelo oficial de alguma maneira

mágica, porque Victor não viu o mínimo indicio de comunicação

do general para com seu subordinado o que não impediu que o

convite fosse transmitido com a exata entonação de uma ordem e

Victor compreendeu que custasse o que custasse não seria

aconselhável faltar ou sequer se atrasar para o jantar daquela

noite.

Logo ficou entendido pelos rapazes que a invasão era geral.

Ia muito além dos limites do casarão Gatopardo, toda a região da

cidade e do planalto de Terra Alta fora ocupada por cinco

destacamentos militares sob o comando do general Van D`Vicci.

E Victor era, a época, ainda bastante ingênuo para raciocinar que

não tinham nenhum motivo para temores, porque afinal o general

era um primo em segundo grau da sua mãe, fato que os tornava

parentes, ainda que afastados e ao que ele soubesse nada havia

naquelas bandas de Terra Alta e seus arredores, com suas

pimenteiras e vasta produção de especiarias e açafrão para

desagradar aos militares.

Com este raciocínio Victor tentou se tranquilizar, mas ainda assim

odiou ver os pelotões marchando duros e empertigados por sua


casa, suas salas, escadas, corredores e jardins, bem como as ruas

largas e ensolaradas que pareceram repentinamente esvaziadas de

vida, abandonadas por todos que não vestissem verde oliva e se

perguntava ansioso o que significaria tudo aquilo.

De imediato e sem poderem se pronunciar sobre o que estava

acontecendo na sua casa e na sua cidade, Victor e seu irmão foram

mantidos em severa prisão domiciliar. Ficaram confinados aos seus

aposentos, podendo circular pelas salas e corredores em horários

determinados, com direito as comodidades com que estavam

acostumados desde que não tentassem sair da casa. Mas com

guardas armados às portas dos quartos e sem permissão sequer

para se aproximarem das janelas, sem acesso ao jardim ou às

varandas sob as portas janelas, que deveriam ser mantidas

fechadas e com as cortinas estendidas.

Telefonemas e visitas estavam totalmente proibidos.

Então, foi com um forte sentimento de indignação que Victor

atendeu ao comando do general para estar àquela noite na sala de

jantar pontualmente às 20h.

Uma ocasião que ficaria gravada na memória de Victor como uma

das mais humilhantes e constrangedoras de toda sua vida e

também como a mais reveladora.

Durante este insuportável jantar, entre as frases esfiapadas com

sentidos duplos e entre ameaças veladas e acusações que lhes foram

lançadas em rosto e o obstinado silêncio do seu irmão, Victor

pensou que enlouquecera e que lhe falavam um amontoado de


sandices para comprovar sua capacidade de compreensão. Pouco a

pouco, o que dizia o general ia tomando forma e descrevendo para

Victor a incrível ocorrência da participação de seu irmão em um

movimento de insubordinação dos agricultores da região das

montanhas de Terra Alta, para a tomada da posse das terras

cultivadas pelos agricultores, num movimento classificado pelo

general de alta traição e ataque contra a propriedade o patrimônio

e a ordem social estabelecida.

Atônito, Victor escutava as acusações do general esperando as

negativas do irmão e seus protestos de inocência e quando isto não

aconteceu e Victor viu seu mutismo e sua postura cabisbaixa

começou a sentir como se lhe fossem retirando espessos véus de sob

os olhos, um a um, para deixar aparecer uma visão diferente,

inacreditável e extraordinária de um irmão revolucionário.

Victor mal pode acreditar no que ouvia, estupefato pela própria

alienação e ignorância. Tentava entender como era possível estar

acontecendo uma revolução nas estâncias e nas fazendas e

plantações, a não mais de quarenta quilômetros da cidade de Terra

Alta, de tal magnitude a atrair a intervenção das forças armadas e

ele, Victor, não saber de nada.

Mas o choque foi ainda maior ao saber que seu irmão tinha, não só

participação no movimento, mas era o principal responsável por

aquela tentativa de subversão da ordem.

Como poderia ser verdade estar aquele mesmo ser negligente,

irresponsável, infantil e inútil envolvido com qualquer tipo de


reivindicação social e de tal expressão que o exército se sentira

compelido a intervir com a força e a brutalidade costumeiras, em

nome da ordem e soberania nacionais, e ele, Victor, não ter

conhecimento de nada?

Foi só então que Victor começou a entender a extraordinária

mudança de personalidade do irmão naqueles últimos meses que

ele atribuíra a alguma doença terrível. Partira do irmão de Victor

a iniciativa para o levante popular com milhares de famílias de

agricultores organizados em um movimento para impedir a

entrada dos proprietários e para a tomada de posse das terras de

cultivo.

Chamaram ao movimento, Ferrolhos nas Porteiras, numa alusão à

determinação de impedirem a entrada nas propriedades de

qualquer um que não fosse trabalhador ou familiar de

trabalhadores rurais.

Com a compreensão vieram outros questionamentos. Por que o

irmão não o procurara para chama-lo a participar da iniciativa?

Quando que ele, Victor, se transformara em alguém que não

merecia a confiança do seu irmão? E não era ele o Gatopardo

comprometido com as causas sociais? Não era ele que fazia o

supremo esforço para se integrar ao total da sociedade e se

preocupava com planos mirabolantes para estender o bem à toda

humanidade?


O monólogo do general deixava evidente o quanto ele sabia sobre

cada movimento dos revolucionários e o quanto os pobres planos

dos trabalhadores haviam sido rechaçados e desarranjados.

Escorraçada cada mínima esperança de vitória aos trabalhadores

daquelas terras, que conheciam cada grão e cada pedra pelo esforço

de muito cavá-las e amontoá-las e varrê-las e rasgá-las pela força

da pá e do arado e que por isso deveriam pertencer-lhes, pela

simples verdade de que para cada gota d`água derramada na rega,

havia a correspondente gota de suor dos rostos e braços do

trabalhador.

Victor só conseguia ver a cabeça baixa do irmão arrasado na

agonia da derrota. Uma derrota sofrida antes mesmo do começo da

peleja.

E Victor tentava montar o quebra-cabeças para visualizar a figura

aos pedaços.

Pouco a pouco, começou a entender e a acreditar.

Conseguiu imaginar seu irmão num arroubo de heroísmo

inconsciente, ou numa explosão de generosidade produzida por

muita cerveja e vodka, tentando se livrar do infinito enfado da

vida que lhe minava o espírito.

Ou talvez, desesperado por se livrar da culpa mortal por sua

condição de explorador do trabalho braçal de mil setecentos e

quinze trabalhadores, ou quem sabe ainda motivado pelo total

desinteresse por qualquer atividade remotamente parecida com


trabalho ou responsabilidade e sendo impelido a distribuir

documentos de outorga de posse das terras numa espécie de revolta

contra a própria condição subserviente a uma ordem social que

desprezava e à qual se sentia subjugado.

Durante aquele jantar Victor foi informado que dentre as

quinhentas e setenta e sete famílias que viviam nas terras dos

Gatopardo, seu irmão já havia, até aquele momento em que foram

invadidos pela milícia armada sob o comando do general Van

D`Vicci, distribuído títulos de posse das terras cultivadas para

duzentas e setenta famílias e a notícia havia se espalhado pelos

vales, campos e estâncias entre as montanhas qual fogo seguindo

um rastilho de pólvora.

Então todos os agricultores nas propriedades das trinta e sete

famílias de grandes latifundiários que permaneciam naquele

mesmo sistema de exploração do trabalho rural, haviam se

organizado num levante para exigir a posse das terras em que

viviam e em que trabalhavam há pelo menos trinta gerações.

E agora os campos estavam em guerra. Ou mais exatamente,

haviam sido palco de um massacre. Vinte e quatro horas antes do

momento em que Victor acordara do seu torpor e se deparara com

a figura formidável do general, primo em segundo grau de sua mãe

e em consequência seu parente, parado hirto ao pé da sua cama,

exércitos fortemente armados esmagaram qualquer esperança de

vitória e de conquista por parte dos agricultores. Pobres

trabalhadores, mulheres e crianças carregando foices e pedaços de


paus e pedras contra soldados treinados armados com

metralhadoras, revólveres, sabres e tanques de guerra.

Victor podia jurar, muito embora não conseguisse um momento a

sós com o irmão para arrancar dele os detalhes daquela loucura,

que não havia passado pela sua cabeça oca que uma ação como

aquela não poderia nunca ter sido levada a cabo de maneira tão

displicente e estúpida.

Certamente, em nenhum momento o tonto havia se dado conta do

tremendo perigo a que estava expondo aquelas famílias, os demais

trabalhadores da região, todos na cidade e eles próprios.

Não sabia, seu irresponsável e inconsequente irmão, que viviam há

dezessete anos sob o jugo de um regime militar e há pelo menos

doze anos sob a vigência de um ato institucional, o décimo quarto

de uma série, que previa pena de morte para os considerados

culpados de crimes contra a ordem e a soberania nacional?

Suspenso por um pânico que não conseguia assimilar com clareza

Victor tentava imaginar o que havia sido o massacre no campo.

Pelas estimativas mais conservadoras se admitiam quase sete mil

trabalhadores rurais mortos, entre homens, mulheres e crianças e

outros quatorze mil presos, levados para algum lugar sob a

custódia do poder central da união. Além de cerca de duzentas

pessoas desaparecidas. Era o saldo da ação militar nas plantações

de pimenteiras enquanto, em ato simultâneo, o general ocupava a

capital e as principais cidades do Estado e seus arredores.


Nos dias que se seguiram qualquer dúvida que ainda pudesse haver

no espírito de Victor sobre a atuação irresponsável do seu irmão

foi dissipada.

Finalmente Victor compreendeu o famoso episódio da surra

descomunal que quase os matara, ao irmão e a ele próprio. Ele já

ouvira falar de agentes que se infiltravam por toda parte, em todas

as classes e instituições com o propósito de espionarem as

atividades de possíveis insurgentes contra o regime e que atuavam

dissuadindo algum afoito. Teve a certeza de que deviam ao seu

parentesco com o general ainda estarem vivos e continuarem ali,

no casarão Gatopardo em Terra Alta.

Sob o comando do general e suas tropas tudo em Terra Alta

mudou.

A cidade adotou novas cores, novos sons e novos aromas com a

soldadesca se esparramando por todos os cantos. Foram suspensas

as aulas, foram fechadas as salas públicas e as duas bibliotecas e os

três museus, foram interrompidas as seções da câmara de

vereadores.

O governador do Estado, mesmo tendo assumido o cargo por

indicação do governo central militar foi destituído de suas funções

sob a alegação de ter se mostrado inepto e vacilante diante da

ameaça enfrentada. Foram trocados os chefes da polícia, os

secretários da justiça, do tesouro, da comunicação e da educação.

As universidades foram fechadas por tempo indeterminado, alguns

professores foram forçados a se aposentar ou a se demitir, alguns


juízes foram convidados a renunciar a seus cargos e a se manterem

em casa, também por tempo indeterminado.

Eram proibidas as reuniões com mais de duas pessoas sob qualquer

pretexto.

Foram ocupados os jornais, revistas emissoras de rádio e televisão,

alguns foram fechados e muitos jornalistas, professores, escritores,

advogados e até policiais precisaram se apresentar para declarar e

justificar suas ações nos últimos meses. Foi imediatamente

constituída uma comissão de cidadãos reconhecidos como de

confiança do governo militar para atuarem como sensores para

toda e qualquer forma de comunicação.

Até o culto aos domingos nas igrejas católicas só podiam acontecer

sob a vigilância de mais de um oficial com um destacamento de

pelo menos dez soldados para garantir a lei e a ordem. No entanto

o general foi enfático ao garantir a liberdade de todo e qualquer

culto desde que na intimidade do lar, porque era sabido por toda a

nação que o único e legítimo culto oficial do país e que por isso

poderia ser expresso em atos públicos, era o da Santa Igreja

Católica Apostólica Romana. Para oficializar esta nova lista de

normas foi instituído, para toda a região e em especial para a

capital, Terra Alta, o ato de conduta civil número um, ACC1, com

validade indeterminada.

Estava declarada a Lei Marcial para todo o Estado.

O próprio general assumiu a administração como chefe do

executivo e não hesitou em acumular as funções de chefe do


legislativo e do judiciário. No entanto não ocupou a residência

oficial do governo, mas aboletou-se com todo seu estafe e cercado

de muito perto pelos principais oficiais e auxiliares, no velho

casarão Gatopardo.

Disse que apreciava a histórica austeridade do casarão e estar em

companhia da família.

Para Victor e seu irmão foi o começo de uma longa descida ao

inferno.

Aos poucos, muito lentamente a cidade começou a voltar à velha

rotina, mas sob a vigilância dos militares. As pessoas tentavam

atuar com naturalidade e fingiam ignorar os soldados armados,

sempre aos pares, caminhando por todos os lugares, entrando de

repente e com estardalhaço para fazerem-se notar em todos os

lugares. Mantendo uma cortesia exagerada para com os cidadãos e

impondo sua presença com arrogância.

No casarão Gatopardo tinha-se a impressão da vida em um

quartel.

O general reservou para si próprio dois quartos do andar superior

além do vasto escritório no térreo com uma saleta de recepção,

banheiro e a adega, mas não mostrou interesse pela biblioteca o

que foi um alívio para Victor que já naquela época tinha predileção

pelo lugar e ciúme de todos os seus livros. Ele e o irmão tiveram

que se mudar para dois quartos menores no andar de baixo, num

fim de corredor com um único banheiro a ser dividido entre os dois,


afastados da cozinha e da circulação tomada pelos soldados em

constante ir e vir.

Com as aulas suspensas Victor mantinha um plano de estudos e

leitura e se entrincheirava na biblioteca.

Todos os dias passava alguns minutos no quarto do irmão,

observava-o ainda em convalescença dos machucados que lhe

foram infligidos com a tremenda surra e percebia que ele era

incapaz de encará-lo ou sequer deixar que lhe visse os olhos.

Com pena, Victor evitava qualquer palavra que pudesse ser

interpretada como uma crítica porque na verdade não deixava de

sentir orgulho pelo que o irmão fizera. Sem esquecer a incrível

irresponsabilidade do ato em si, Victor admirava o propósito.

Os dias se arrastavam e para os dois rapazes enclausurados entre

as paredes do Casarão e nas turbulências de seus espíritos cheios de

dúvidas e incertezas pelo que deveriam esperar por parte do

general com sua prepotência, as horas se sucediam com lerdeza

quase insuportável.

Raramente viam o general, mas ele se fazia presente através dos

soldados que eram tantos e tão constantes em cada canto da casa,

do jardim e da cidade, que se tinha a ilusão de que se reproduziam

infinitamente sendo cada vez mais e mais.

Então, num começo de entardecer, um dos oficiais informou-os que

o general os esperava para o jantar. Era aquela a primeira vez

desde o fatídico dia em que ele ocupara o casarão e em que havia


se apresentado aos dois durante um jantar que seria lembrado por

Victor como uma das piores ocasiões da sua vida que eles eram

novamente chamados a sua presença.

Como da outra vez sentiram-se péssimos e parecia que o general

era o único com algum apetite, Victor mal conseguia tocar no prato

e seu irmão condescendeu apenas alguns pequenos goles da taça de

água.

O general pareceu não se importar com a inapetência e o mutismo

dos jovens, parecia ao contrário, bastante à vontade, satisfeito

consigo próprio e aproveitou para informa-los que começariam

uma nova etapa no seu relacionamento. A partir daquele dia, disse

o general, deveriam jantar sempre juntos, sempre às 20h

pontualmente e após uma pequena palestra que ele, general, faria

para ambos diariamente.

Para isso seriam esperados todos os dias às 16h, também

pontualmente, no escritório, ali mesmo no Casarão.

E para aquele ser inacreditável em sua soberba, a ideia de uma

pequena palestra era ele falar ininterruptamente durante quatro

horas, todos os dias, desde que Victor e seu irmão apareciam na

porta do escritório e se esgueiravam de má vontade até o sofá no

estremo mais afastado possível da mesa de trabalho do general, até

o final sempre solene da palestra quando era ordenado irem para a

sala de jantar e para a segunda parte da sessão de tortura.

Na totalidade destas tardes cansativas o discurso do general se

resumia a repetição enfadonha da determinação e do dever das


forças armadas em manter a ordem estabelecida, assegurar o

direito a propriedade privada, ao sistema capitalista e a

preservação das instituições sagradas da sociedade ocidental, como

o casamento heterossexual e monogâmico, o respeito à

constituição federal, ao estilo de vida ocidental, ao sacramento do

casamento e à sacralidade da família e a prevalência da igreja

católica.

Mas havia também algumas revelações importantes e Victor ficou

atento a todas elas.

Foi assim que ele soube que os documentos que o irmão entregou

passando para os agricultores a posse das terras, haviam sido

declarados ilegais com base em direito de transmissão de bens

patrimoniais porque violavam flagrantemente os direitos dos

herdeiros, que eram, ele mesmo Victor e os filhos das três exmulheres

do seu pai, cada uma com uma criança, meias irmãs dos

dois Gatopardos, com a agravante de serem tais herdeiros

considerados menores de idade e, portanto enquadrados em uma

legislação ainda mais protecionista.

Então o prejuízo dos trabalhadores ia muito além dos ferimentos

físicos, das mortes, das pessoas desaparecidas e das casas e campos

destruídos.

Os seus sacrifícios haviam sido completamente em vão. Sem

merecerem sequer o benefício da admissão de questionamento

legal, foram sumariamente descartados os documentos de outorga

das terras pela classificação de ilegais.


A decisão irrevogável da justiça era uma sentença de desesperança

para uma das mais importantes reivindicações de qualquer

agricultor, a posse do pedaço de terra no qual vivia e do qual

produzia seu sustento. Naquela luta nas plantações dos planaltos

da região de Terra Alta, os trabalhadores foram feridos

mortalmente em seus sonhos de um futuro melhor e mais justo.

Era uma época anterior a nossa atual que é acertadamente

conhecida como era da comunicação. Naqueles dias ainda não

existiam as centenas de canais de televisão com transmissões ao

vivo em tempo real e a cores, nem à telefonia celular, nem os

computadores residenciais e a internet ou o fenômeno da

globalização e Victor estava muito consciente de que a versão que

passaria para a história sobre a luta nos campos de Terra Alta seria

escrita exclusivamente pela mão dos vencedores.

Já circulava a notícia veiculada por todos os meios de comunicação

e em todas as rádios com licença para transmissão no território

nacional, de uma grande conspiração fortemente armada,

perpetrada por milícias mercenárias estrangeiras com interesses

alheios a ordem estabelecida no país e que foram desbaratadas e

vencidas em uma luta heroica de destacamentos do exército sob o

comando do general Van D`Vicci em atenção às ordens diretas da

Presidência da República.

O general estava sendo aclamado como um grande herói e receberia

as honras devidas em uma cerimônia adequada na capital federal.

Relatórios oficiais já haviam sido entregues.


Mas o que mais perturbou o espírito de Victor com a continuidade

das tais tardes de palestras não foi apenas a indignação com as

ideias extraordinariamente preconceituosas e estreitas, às quais o

general pretendia serem as únicas interpretações corretas de

nacionalismo e patriotismo de que tanto se orgulhava. Mas foi a

constatação de que a avaliação do general sobre os seres humanos

não lhe pareceu totalmente descabida. E embora discordasse

horrorizado com quase a totalidade do pensamento daquele

homem terrível a verdade é que compreendia sua irritação contra

a totalidade da raça humana.

E o pior foi que a monstruosa arrogância e prepotência do general,

que se derramava livre nestas horas em que podia se deliciar com

o som da própria voz, deixando à mostra alguns dos mais feios

pensamentos que Victor já conhecera, não tinham o efeito de

atrapalhar sua perspicácia.

E para o supremo desespero de Victor o general foi capaz de

perceber acertadamente que ele, Victor, não apenas compreendia

algumas das suas ideias, mas que também era capaz de concordar

com elas.

Victor não saberia dizer exatamente qual parte dele, algum

minúsculo gesto, ou um breve brilho no olhar, quem sabe um quase

imperceptível sinal de cabeça em concordância, deixara o general

perceber esta pontinha incômoda e absolutamente desprezível do

seu íntimo, que era seu tormento e seu desgosto mais profundo.


Não tudo, não toda a perturbadora extensão da sua repulsa,

desencanto e enfado com a humanidade. Mas o fato é que o general

soube vasculhar no espírito de Victor um vislumbre do seu segredo.

E arrancou de Victor quase uma confissão num momento de maior

eloquência contra a afirmação e o pensamento que reinava

unânime na sociedade ocidental de que todos os homens são iguais

e assim devem ser considerados perante a lei. Perguntou à queima

roupa para um Victor atônico com o discurso inflamado quase até

a apoplexia, se ele Victor, concordava com suas ideias contrárias a

essa pretensa igualdade e ficou visivelmente satisfeito quando

Victor respondeu que sim.

Foi um momento de triunfo para o general e Victor flagrou-se pego

numa armadilha. Mas decidiu não deixar que a vitória do general

fosse completa e se forçou a uma atitude perfeitamente fria,

desinteressada, quase blasé.

Sustentou o olhar perscrutador que tentava devassar-lhe a alma

forçando-se a uma expressão perfeitamente desinteressada como se

aquele deslize não tivesse nenhum real significado e como se a

revelação do seu menosprezo por um dos valores mais difundidos

na cultura ocidental não tivesse nenhum significado real.

Consolou-se por sua inépcia em proteger seu segredo raciocinando

que na escala do seu desencanto com seus semelhantes o general

ocupava uma posição de destaque. Fato que Victor assinalava

como um ponto a seu favor.


Depois desse incidente houve uma mudança sutil no

comportamento do general para com os irmãos Gatopardo. Victor

percebeu um afrouxamento na rispidez da voz e na expressão de

desprezo com que o general sempre os encarava. Ainda eram os

mesmos modos arrogantes e o comando que não admitia

desobediência ou mínimas lerdezas, mas começou um leve

relaxamento no aperto do laço.

Victor anotou mentalmente cada uma destas situações

classificando as experiências como aprendizados valiosos e tratou

de tatear uma forma de tirar proveito da situação. Para o resto da

sua vida, momentos similares àquele com o general que havia

revelado perigosamente um resquício do seu segredo, seriam

reconhecidos por Victor como o “efeito general” e serviriam para

deixá-lo alerta.

Passaram-se os meses. Com a pacificação dos ânimos algumas

atividades da cidade que haviam sido interrompidas recomeçaram

sob a supervisão do conselho de sensores. As aulas nas

universidades foram retomadas com alguns novos professores,

houve alterações no cronograma de ensino e adotaram um novo

programa para atividades e assuntos em geral além de uma

atenção especial enfática para as aulas de moral e civismo.

Uma manhã, quando Victor ainda estava na mesa da cozinha

terminando o seu desjejum um dos oficiais veio chamá-lo para que

fosse se encontrar com general na alameda de saída do jardim.


O carro oficial, preto e lustroso já estava com os soldados e outro

oficial à espera. Com um gesto foi indicado a Victor para entrar no

carro e aguardar. Quando o general afinal se juntou a ele não

houve nenhum cumprimento ou explicação, apenas partiram e

Victor soube imediatamente que estavam à caminho das fazendas

de cultivo e das estâncias. Um súbito mal estar e um pânico

começaram a dominá-lo. Fosse o que fosse o que haveria para ver

naqueles campos de sangue Victor não se sentia preparado para

enfrentar.

Foi uma viagem de pavor. Viu os campos arrasados, as casinhas

simples onde antes viviam famílias apinhadas de crianças,

destruídas, animais mortos por todo lugar. Barricadas fortificadas

por homens armados até os dentes espalhadas por todos os

caminhos e um sentimento de abandono e completa desilusão

parecia haver absorvido Victor e por mais de uma vez foi preciso

toda sua força de vontade para ele segurar as lágrimas.

Mas de diversas maneiras aquela viagem foi tremendamente

proveitosa.

Victor não esperava nenhuma amabilidade ou condescendência

por parte do general e de fato não recebeu nenhuma, mas recebeu

a fórmula para mudar as coisas para melhor. Quando o general

começou a falar foi como se ele se tivesse revestido em uma pessoa

um pouco mais humana.

As ideias, o gestual e até a voz ficaram minimamente mais

amigáveis.


Ali ainda estava um homem que transpirava autoritarismo e para

quem o espaço de uma vida seria pouco para sequer começar a

entender conceitos como direitos individuais, respeito às minorias,

tolerância à diversidade, supremacia da democracia ou qualquer

dos valores que para Victor eram fundamentais para o início de

qualquer tentativa para diálogos.

No entanto pela primeira vez Victor conseguiu perceber um ser

humano que, ainda que de uma forma tão defeituosa que beirava

ao grotesco e no que havia de pretensioso ao burlesco, mas que

ainda assim falava de maneira sincera em promover o melhor para

a maior parte das pessoas.

Para o general o esforço pela busca do bem comum justificava o

uso da autoridade absoluta e da força e até da crueldade se

necessário. Mas ainda assim ele falava do bem e do justo para

todos.

Então quando o general impôs a Victor a condição dele assumir

seu papel na hierarquia social de Terra Alta como um

representante autêntico de uma classe diferenciada, superior, que

deveria arcar com a responsabilidade para com os trabalhadores

tal e qual um pai assume a responsabilidade para com crianças

pequenas e tolas demais para o entendimento sobre suas próprias

vidas, direitos e deveres, Victor já sabia que qualquer tentativa

para um debate de ideias seria completamente inútil.

E ele foi capaz de concordar com o general com toda convicção

porque entendeu que aquele era o único caminho que lhe restava


se quisesse uma chance para trabalhar em prol da própria

liberdade e do bem aos que dependiam daquelas terras para seu

sustento.

Pelo mesmo motivo Victor apoiou o general quando ele exigiu de

seu irmão recomeçar um relacionamento e um convício estreito

com as demais famílias tradicionais da região.

Muito especialmente com os donos de terras, os grandes

latifundiários.

O general queria o fortalecimento do controle das relações de

trabalho nos campos e sugeriu uma atenção muito especial para

com a família Astu Ninan. Tratava-se de uma das mais ricas

famílias não só da região como do país, com quem o general

esperava poder selar brevemente o estreitamento social e comercial

através de laços familiares.

Sem o menor cuidado em preparar os espíritos dos Gatopardo para

o que se seguiria o general declarou sua firme intenção em

promover o casamento do primogênito Gatopardo com a única

filha do patriarca Astu Ninan. E como se isso não bastasse, exigiu

pressa. Esperava um convite de casamento ainda antes do natal.

Foi um irmão hirto e pálido e trôpego pela comoção que Victor viu

sair da sala de jantar naquela noite após ouvir esta exigência do

general e Victor ficou aflito para tentar descobrir o que o irmão

pretendia fazer, mas quando tentou segui-lo até o quarto para

conversarem Victor encontrou a porta trancada à chave e seus

chamados e súplicas não foram atendidos.


A partir daí a disposição do irmão sofreu uma grande piora.

Ele ficou mais e mais distante e indiferente, silencioso, cabisbaixo,

alheio a tudo e a todos, obedecendo ordens e agindo e reagindo

automaticamente. Victor, consciente de que o irmão passara a

considerá-lo um traidor, o observava de longe e cada vez mais

preocupado.

No entanto não foi difícil começar um convívio com as demais

famílias latifundiárias. Na verdade, ao tomar para si a missão de

restabelecer laços sociais com a nata da elite terraaltina Victor

descobriu, não muito surpreso, que na absoluta totalidade aqueles

autênticos senhores feudais estavam ansiosos para se fazerem

presentes à mesa do general.

Eles apreciavam o poder tanto quanto apreciavam seu dinheiro,

suas mansões, suas vidas de regalias e seus negócios mais e mais

prósperos. Foi muito fácil os Gatopardo e o general receberem e

serem recebidos para jantares, para saraus, para tardes de jogos e

até para passeios em estâncias preparadas para o lazer.

Verdadeiros retiros de descanso e diversão.

E surpreendentemente o general conseguia ser tão simpático,

espirituoso e charmoso quanto lhe era fácil ser ríspido, cortante,

autoritário e cruel. Victor e seu irmão muito cedo conheceram as

duas facetas do seu caráter e não se surpreendiam quando o general

fazia questão de colocá-los, ambos, um passo à frente do seu estafe

de oficiais e os apresentava como seus diletos sobrinhos, filhos da

muito amada e saudosa prima mais querida e mais chegada da sua


falecida mãe a quem ele devia o supremo serviço de zelar pelo

futuro de seus herdeiros.

No que dizia respeito a Victor este teatro até podia passar como

coisa de parente mais velho e preocupado com um jovem de apenas

dezessete anos, mas no que se referia ao irmão poderia ter sido

incômodo e até risível aquela posição de pretenso protetor porque

o general e o irmão de Victor tinham, a época, quase a mesma

idade. No entanto o papel de poder era exercido pelo general com

tanta determinação que ninguém nunca ousou comentar o fato.

Na verdade, até caiu muito bem nas matérias dos jornais e revistas

que tinham licença para produzir as notícias.

E assim os irmãos Gatopardo começaram uma nova vida de

integração à classe social tradicional na sociedade Terraaltina,

latifundiários e donos de fazendas de cultivo e de vastas e muito

lucrativas estâncias com centenas de cabeças de gado.

Naquela região chamada de Terra Alta, cuja capital era a cidade

de mesmo nome. Nos planaltos em diferentes níveis entre

montanhas da cordilheira, havia centenas de milhares de extensões

de terras delimitadas e demarcadas que pertenciam às famílias de

imigrantes vindos para aquela parte do continente em diferentes

épocas.

Desde há setecentos anos, em épocas distintas, mas por razões

similares. E todos, em todas as épocas sem exceção usaram mão de

obra escrava fornecida pelas tribos e misturaram-se aos nativos.

De maneira que não havia como se falar em sangue puro ou em


linhagens livres de miscigenação. Mas isso não impedia que

houvesse aqueles que aspiravam tal status e empenhavam-se em

proclamar a pureza da estirpe da própria família. A farsa era

facilmente revelada a qualquer um que se debruçasse com algum

interesse sobre a história das migrações.

Em épocas mais remotas vieram milhares na chamada, primeira

leva migratória. Eram os portugueses, os espanhóis e os

holandeses.

A maioria destas famílias se instalara nas terras mais baixas e mais

planas, mais próximas ao litoral. Mas alguns se aventuraram mais

para o interior do continente e começaram a subir as montanhas

da imensa cordilheira.

A história insinua que estes homens que subiram mais alto e que

se aventuraram mais para dentro nas terras selvagens eram os que

tinham bons motivos para deixar para trás sua origem e seus

nomes de família.

Eram degradados, fugitivos ou condenados que haviam sido

acusados por crimes diversos e haviam sido banidos sem permissão

de algum dia voltarem à terra natal.

Estes conquistaram vida nova e alguns fizeram fortunas nas vastas

extensões dos planaltos e vales entre as montanhas. Terras férteis,

usurpadas aos nativos. Riquíssimas em minérios, em ouro e em

pedras preciosas. Conquistaram também os próprios povos que ali

estavam e constituíram famílias se misturando às mulheres

indígenas. Era fácil seguir-lhes a pista pelos nomes inventados e


que de alguma maneira lhes delineava o caráter ou a ocupação.

Entre estes se podia listar seguramente os Longarcco, os

Lagofundo, os Serragrande, os Tiracouro e também os Gatopardo

além de tantos outros que o passar de centenas de anos haviam

lapidado as gerações e consolidado como nomes de famílias

tradicionalíssimas e honradas.

Além destes havia os que igualmente escolheram as terras férteis

entre as montanhas, mas que não precisavam necessariamente

apagar vestígios do passado, eram descendentes de espanhóis que

lustravam em brasões os nomes de família, os Marquez, os

Munhoz, os Vasquez, os Rodrigues, os Dragos e também alguns

portugueses, os Limoeiros, Oliveiras, Mamoreiros, Sousas, Lemos,

Soutos.

Entre eles era comum que alguns voltassem para suas terras de

origem para mostrarem seu sucesso e trazerem de lá toda sorte de

coisas bonitas e consideradas chiques para suas casas. Traziam

móveis, quadros, estátuas, jogos de louça e cristais, talheres de

prata, instrumentos musicais, joias e tecidos finíssimos, perfumes.

Mandavam vir nos navios pedras e azulejos e até plantas e fontes

para as construções e para os jardins das suas mansões.

E finalmente havia aqueles que, em sua maioria, tinham se

estabelecido mais ao sul do continente, nas terras litorâneas ou ao

pé das serras. Chegaram um pouco mais tarde, na última leva

migratória e muitos vieram fugindo das guerras na Europa. Eram

italianos, franceses, alemães, poloneses, japoneses e entre eles os

holandeses Van D`Vicci.


Mas dentre todos os nomes da região de Terra Alta havia um de

origem mais antiga do que qualquer outro e também mais

misteriosa, eram os Astu Ninan.

A origem desta família se perdia no tempo e era mesclada entre

lendas e o imaginário popular.

Os descendentes Astu Ninan traziam gravada nas fisionomias sua

miscigenação. E a presença do sangue nativo era um traço de tal

maneira forte e respeitado como a marca de uma herança superior,

que se dizia, que sempre que um Astu Ninan chegava para alguma

cerimônia nas antigas aldeias em que eram observados costumes

milenares ancestrais, eram imediatamente reconhecidos e

recebidos com honras e o respeito devido aos reis e aos príncipes.

Eram homens e mulheres de pele acobreada e inegáveis

características indígenas que se misturavam às cabeleiras de

evidente herança nórdica. Tinham cabelos louros como flores de

trigo, misturados a abundantes mechas castanhas avermelhadas.

Altos e magros. A herança inca aparecia principalmente marcada

nos desenhos dos rostos com maçãs protuberantes e nos olhos

muito vincados sob testas pequenas, em que mechas de cabelos

finos como plumagens de pássaros novos nasciam quase desde as

sobrancelhas. Muitas histórias pretendiam explicar sua origem e

também a incalculável fortuna que lhes pertencia. E a lenda mais

conhecida falava de um homem nórdico, cuja descrição fazia

pensar num representante Viking. Que em época anterior a

chegada de qualquer outro grupo migrante, havia sido capturado


por uma tribo do povo Java Ayran, em menor número que os

demais povos da região, mas muito mais selvagem e feroz.

As circunstâncias em que tal personagem veio para esta parte do

mundo e numa época tão remota nunca ficaram claras e a história

já começava tratando do destino escolhido pelos nativos para o seu

prisioneiro.

O Viking seria servido numa espécie de banquete aos mais

importantes da tribo. Mas inconformado com uma morte tão

humilhante o homem fez um apelo ao conselho de anciãos para

morrer lutando. Os chefes resolveram atendê-lo porque

entenderam que existia justiça no pedido para que seu sangue

manchasse a terra após uma disputa honrosa pela vida. Este

homem do norte, com uma brilhante cabeleira louro acobreada era

extraordinariamente grande e com uma força descomunal e lutou

com tanta bravura e venceu tantos guerreiros valorosos antes de

ser finalmente subjugado que chamou a atenção de uma jovem

divindade feminina.

A jovem deusa era um presente das estrelas, era um ser celestial,

de grande beleza e guardiã de toda a herança genética dos Java

Ayran, nela havia o melhor e mais sublime da raça, toda a força,

toda a verdade e todo o futuro do povo. Era mantida reclusa numa

das mais altas montanhas, em que poucos tinham a permissão para

ir.

Ela apaixonou-se perdidamente pelo guerreiro invasor e teve com

ele cento e quarenta e sete filhos e filhas. Passaram-se séculos em


que o casal viveu feliz na caverna da mais alta montanha e seus

descendentes desceram para povoar os vales, misturando-se ao

resto do povo Java Ayran. Eram reconhecidos por sua linhagem

especial porque eram todos altos, belos, e com os cabelos claros,

louros avermelhados como o Viking, com os traços perfeitos e o

acobreado da pele da deusa, sua mãe.

Mas o homem do norte era um guerreiro e embora amasse a deusa

começou a sentir falta da liberdade dos campos e dos mares.

Inquieto, sentindo-se preso e infeliz resolveu descer a montanha

para se aventurar pelos vales e pelos rios e conhecer outros povos.

Durante suas viagens o nórdico conheceu outras tribos do povo

Java Ayran e em todas elas teve mulheres que se apaixonaram por

ele e com cada uma delas ele teve um único filho. O número desta

descendência variava conforme quem estivesse contando a

história, mas parecia haver um consenso entre cento e trinta e

cento e cinquenta filhos, todos homens, semelhantes ao pai no

porte de urso e na força descomunal, mas apresentando todas as

demais características incas.

Teriam estes filhos, cada qual, formado sua própria tribo.

Eles espalharam-se pelos vales e dominaram a maior parte das

terras férteis como chefes guerreiros, mas deviam respeito e

subordinação aos filhos do Viking com a deusa que reconheciam

imediatamente. Com o passar dos séculos as crianças descendentes

das mulheres Java Ayran com o guerreiro nórdico se

multiplicaram infinitamente, mas as que apresentavam alguma


das características atribuídas à herança divina se tornaram cada

vez mais raras.

A história acabava sempre com o desaparecimento do homem do

norte ou por desilusão ao não ser mais recebido pela deusa na

montanha sagrada ou por haver se perdido nas muitas trilhas

tentando achar o caminho de volta para o alto da montanha que a

deusa, irritada com sua traição, fez permanecer encoberta por

nuvens impenetráveis por séculos ininterruptos. Numa alusão a

este vagar incessante por vales e picos das montanhas andinas e à

sua cabeleira loura acobreada que fazia lembrar labaredas de fogo,

o homem do norte foi chamado Astu Ninan, Pássaro de Fogo dos

Andes.

Seus herdeiros da união com a deusa continuaram o nome Astu

Ninan e a eles foram passadas as terras altas infindáveis com suas

riquezas e sua incrível fertilidade.

Sendo o poder patriarcal um legado aos descendentes diretos do

primogênito, uma condição observada rigorosamente por dezenas

de gerações desde sempre.

A história, em parte documentada, continuava contando que

quando chegaram os primeiros invasores eles cobiçaram as terras

baixas dominadas pelos nativos.

Centenas de anos de lutas e mortes foram resolvidas através de um

engodo contra as poucas tribos sobreviventes. Ofereceram uma

enormidade de quinquilharias, contas coloridas, pentes para os

cabelos, vidros de perfumes baratos, cacos de espelhos e outras


tantas bobagens, em troca das terras baixas e planas, famosas por

sua fertilidade e que ainda não haviam sido usurpadas.

E os invasores foram cuidadosos na negociação, elaboraram

documentos delimitando quais as terras que passariam para sua

posse e quais as que nunca seriam tiradas às tribos, até o final dos

tempos, fizeram questão de assegurar, para convencerem os

nativos de que jamais reivindicariam as terras mais altas.

De maneira que estas terras altas foram às únicas que

permaneceram livres da dominação dos homens brancos.

Precisamente as terras destinadas aos descendentes Astu Ninan.

Comprovando estas histórias foram encontrados documentos

antigos atestando uma negociação pelas terras litorâneas e os

altiplanos das alturas mais modestas, as chamadas terras baixas,

de fácil acesso com seus rios e lagos fabulosos e sua fertilidade

prodigiosa. E o passar do tempo acabou transformando a tentativa

de engodo na grande fortuna dos herdeiros Astu Ninan porque

numa espécie de justiça natural a se abater sobre os gananciosos e

inescrupulosos, foram exatamente nestas terras altas deixadas aos

nativos, nos vales juncados das nascentes de rios das montanhas,

entre os paredões de rochas íngremes sobre os precipícios infinitos

e respeitando, quase milagrosamente o exato limite demarcado

pelos usurpadores, que foram descobertas imensas jazidas de

diamantes.

Os séculos de extração das riquezas acabaram por extinguir os

veios de diamantes e a terra nos altiplanos mais elevados foram as


primeiras em que se plantaram pimenteiras e uma variedade

enorme de especiarias, além do precioso açafrão.

A fortuna Astu Ninan que começou com as pedras preciosas e na

época dos plantios de especiarias já era imensa, nunca parou de

crescer.

Esta era a lenda bem conhecida por quase toda a população da

cidade e dos arredores. Era cantada nas noitadas ao calor das

fogueiras e interpretada em encenações nas festas tribais e

cerimônias antigas transformando os Astu Ninan em verdadeiras

celebridades locais.

No entanto ao tempo da nossa história, a despeito da sua herança

inca, os Astu Ninan haviam se afastado há séculos de qualquer

possível influência tribal e já não se notava em seu comportamento

nenhum gesto denunciando a ascensão nativa tão antiga.

Eram os herdeiros de gerações completamente moldadas aos

costumes e a educação do branco ocidental.

As cabeleiras de mechas louras acobreadas era a característica

física mais constante entre eles, o traço que havia vencido o tempo

e se transmitira através dos séculos, embora cada vez mais

raramente. Misturadas aos traços indígenas e a cor exótica da pele,

causavam um efeito intrigante, variando com maior ou menor

incidência em cada indivíduo e contribuindo para o falatório local

e para o povo se referir a um e outro dentre eles como um

representante mais ou menos identificado com o que se

convencionou chamar o tipo Astu Ninan.


Já eram poucos ao tempo da nossa história, todos pertencentes a

uma mesma linhagem e distribuídos pelas terras e pelos altiplanos

andinos. Mas o patriarca Astu Ninan, o detentor da maior parte

da riqueza da família, vivia com seu núcleo familiar no coração da

cidade de Terra Alta e fazia parte da mais elevada e importante

faixa da aristocracia local.

Por aquela época, a bela mansão com suas linhas clássicas de

arquitetura romana, a poucos metros na mesma rua em que ficava

o casarão Gatopardo, abrigava a família do patriarca Astu Ninan

constituída de cinco pessoas. O casal, formado por primos entre si

como era da tradição da família quando se tratava da união de um

primogênito e seus três filhos e todos autênticos representantes do

tipo Astu Ninan, com belas cabeleiras louras em que se

destacavam mechas brilhantemente acobreadas e os traços finos,

mas com inegáveis rasgos nativos.

A única menina, a filha do meio, era precisamente quem o general

pretendia para casar-se com o irmão de Victor.

E Victor, sobre esse assunto, surpreendeu-se consigo próprio por

sentir um interesse sincero em conhecê-los, fato raro, porque

normalmente ele não se interessava em conhecer quem quer que

fosse.

Na verdade, se tratava de um reconhecimento porque ao tempo em

que Victor era criança e seus pais ainda viviam e frequentavam as

famílias tradicionais, sendo recebidos para diversas ocasiões e

recebendo a todos em retribuição no Casarão Gatopardo, havia


existido uma relação de amizade bastante estreita com os Astu

Ninan. Então embora não tivesse uma memória muito clara deste

convívio, era certo que Victor já estivera com eles.

Mas além da curiosidade por conta das histórias sobre os Astu

Ninan e pela determinação do general em unir as duas famílias, a

verdade é que os Astu Ninan interessavam a Victor principalmente

por tudo que ele ouvira contar sobre o caçula da família, o famoso

Cesar Astu Ninan.

Sobre este personagem havia histórias intrigantes. Dizia-se e

assegurava-se que o menino era um gênio.

Teria, pelo que sabia Victor, naquela época, dez ou onze anos, mas

era reconhecido por sua inteligência extraordinária e por sua

capacidade criativa e inventiva desde antes de completar um ano

de idade. Contava-se que nesta tenra idade ele aprendera ler e

escrever sozinho e que antes dos três anos aprendera também a

tocar vários instrumentos musicais reproduzindo peças clássicas

dificílimas e já se interessava pela leitura de todo e qualquer livro

que lhe caísse nas mãos sendo capaz de explicar e debater seus

conteúdos diante de plateias extasiadas.

O patriarca Astu Ninan, a princípio, tentara minimizar a

importância destas proezas verdadeiramente estarrecedoras, mas

o garoto era de tal maneira brilhante e tão inquieto em seu

brilhantismo, que mandá-lo para a Europa para um colégio

interno, preparado para o ensino de mentes privilegiadas, logo

pareceu ser a opção mais aconselhável.


O pequeno Cesar Astu Ninan partiu da sua casa e da sua terra natal

antes dos cinco anos. De tempos em tempos ele voltava para passar

seu período de férias e então as histórias de seus feitos enchiam as

conversas e se organizavam apresentações em que o menino tocava

piano e violino com admirável desenvoltura e talento, declamava

poesias, representava e recitava os principais diálogos de peças

clássicas. Aos sete anos jogava xadrez com vários representantes

da intelectualidade local e discutia literatura, pintura e escultura,

comentava as mais importantes descobertas científicas

detalhando-as para melhor entendimento da plateia e, aos oito,

explicava porque tinha convicção de que o nosso sistema solar

deve ser um sistema binário, muito embora só se conheça o sol,

nosso astro maior, como sua única, solitária, central e indiscutível

estrela.

Dessas reuniões em que os Astu Ninan exibiam a genialidade do

filho caçula, Victor tinha apenas relatos sem nunca haver

participado de nenhuma. Coincidiam sempre com sua própria

ausência da cidade pelos anos quando ele também esteve fora

estudando como interno no colégio militar e só voltava para Terra

Alta por poucos dias durante suas próprias férias.

Mas de cada vez os comentários sobre a genialidade do garoto

prodígio eram mais e mais surpreendentes.

Por tudo isso quando finalmente chegou a data em que os jovens

Gatopardo, acompanhados pelo general e seu séquito de oficiais

deveriam comparecer à mansão Astu Ninan para um sarau em que


toda a aristocracia terraaltina era esperada, Victor estava

realmente entusiasmado pela curiosidade.

Foi em um entardecer particularmente agradável em que as tardes

frias de inverno começavam a aceitar a chegada do calor e do

perfume da primavera e o ar do começo da noite ficava gostoso,

com um friozinho apenas na medida para garantir boas noites de

sono ou de alegres reuniões.

A rua em frente à mansão Astu Ninan enfeitou-se e iluminou-se

para a chegada dos convidados e mesmo estando o Casarão

Gatopardo a pouco mais de trezentos metros dos seus jardins, a

posição do general não admitia que chegassem a pé, então foram

numa comitiva de três carros pretos lustrosos com toda pompa e

luxo para um trajeto que não levou meio minuto. Saíram tarde de

casa e se fizeram esperar. Todos os convidados já haviam chegado.

Outro detalhe que a afetação do general não deixava de observar.

Ele adorava entradas triunfais e aquela, daquele entardecer, foi

especial.

O general era todo brilho e pose, cercado pelos comandados cada

qual mais empertigado e pelos jovens Gatopardo apresentados

como sobrinhos sob sua tutela e proteção, como dois marionetes

em exibição para o deleite dos pais das donzelas casadoiras para

quem uma aliança com o general era sumamente importante.

Mas um simples olhar para a forma como o casal Astu Ninan se

aproximou do general e deles próprios, convenceu Victor de que,

no que se referia ao seu irmão, a partida estava definida.


O casamento do primogênito Gatopardo com a única filha do

patriarca Astu Ninan estava acertado em seus detalhes e a

apresentação dos noivos seria uma mera formalidade.

O irmão de Victor e futuro noivo também percebeu isso e em

consequência se tornou ainda mais casmurro e cabisbaixo.

Não viram a jovem imediatamente, ao que parecia ela também

resolvera fazer uma entrada de destaque. Dizia-se que era uma

verdadeira beldade e Victor que até então só a vira à distância e

por pouquíssimos segundos não duvidava, porque bem podia

imaginar o efeito de um tipo exótico como o dela, cercado de

cuidados e mimos e aparatado com as mais finas e belas roupas e

joias.

Victor se afastou para a varanda tão logo percebeu o general

distraído entre uma infinidade de pessoas ansiosas em

cumprimentá-lo e ao seu irmão, cercados pelo casal de anfitriões e

o primogênito Astu Ninan. Ao contrário de Victor, seu irmão

nunca perdera o convívio com aquelas pessoas e para ele não

haveria surpresas.

Uma vez do lado de fora, foi fácil para Victor caminhar pela larga

varanda e entrar pelas portas janelas da biblioteca, um ambiente

tão mais ao seu gosto e de onde ele poderia facilmente ouvir a

música vinda do salão e saber a hora de voltar para a festa.

Entrou imediatamente interessado em verificar os títulos nas

prateleiras e foi neste lugar cercado de obras literárias, o que


sempre lhe evocava o melhor de todos os momentos, que Victor viu

Cesar Astu Ninan pela primeira vez.

Cesar estava em pé, meio encostado numa das estantes cobertas de

livros, ao lado de um janelão que, completamente aberto, deixava

ver ao fundo o jardim com árvores tão abundantes e frondosas que

fazia pensar imediatamente num parque.

O entardecer estava começando a adotar o tom azul escuro dos

inícios das noites, não haveria luar e o anuncio da primavera vinha

com o trinar dos grilos. O ar estava morno. Victor não o viu de

imediato, mais o percebeu, como certamente devem ser percebidas

as presenças meio diáfanas de seres ainda não totalmente

encarnados. Foi como se Cesar se revelasse aos poucos e, no

entanto, ele não fizera nada intencional para causar este efeito.

Era só sua maneira natural de ser naquela época de menino

retraído, esquivo e solitário.

Esta percepção, que Victor custou a aceitar como verídica, foi

confirmada pelo jeito meio encurvado da figura muito alta e muito

magra para os seus dez, quase onze anos. Victor ficou admirado

pelo rosto profundamente expressivo, principalmente pelos olhos

maravilhosos, muito amendoados, grandes e negros com enormes

cílios curvados, parecendo úmidos, o que fez Victor se perguntar se

ele teria chorado. Eram olhos infinitamente tristes, mas que uma

curiosidade quase insuportável obrigava a fixar com interesse a

tudo e a todos.


Subitamente Victor não soube o que falar. Uma situação a qual ele

não estava habituado.

Cesar forçou-se a um sorriso tímido, mas os olhos não sorriram.

“__ Sei quem você é.” Declarou ele finalmente parecendo satisfeito

por poder mostrar sua perspicácia. Victor sorriu também e

observou-o. Colocou os braços para trás adotando uma postura

que lhe era cômoda sempre que pretendia usar toda sua atenção.

Poderia ter dito que ele, Victor, também sabia quem era seu

interlocutor, mas preferiu deixar que o menino exibisse sua

esperteza. Perguntou. “__ E como você sabe?” Mas Cesar não

respondeu a pergunta. Franziu um pouquinho a testa observando

Victor mais atentamente, calculando sua altura, seu peso, sua

idade, analisando as suas roupas e claramente se perguntando

quem realmente era ele. Victor esperou um veredito qualquer que

também não veio. Ao invés disso, o menino fez um anúncio e uma

previsão. “__ Logo mais eu precisarei voltar para o salão, devo

apresentar uma sonata para violino de minha autoria. Eu a compus

quando tinha sete anos, é uma sonata em Mi menor com três

movimentos, mas vou apresentar apenas o Prelúdio, a primeira parte

do primeiro movimento, vou evitar a Toccata que se segue e o Adagio

para não tornar a apresentação muito cansativa.” E depois de

observar Victor com ainda mais intensidade o menino declarou, ...

“__ mas você não vai gostar.”

Surpreso Victor ia perguntar por que ele dizia isso, mas muito

subitamente a atitude de Cesar o fez calar. O menino que até então


parecia disposto a uma conversa e observava Victor com profundo

interesse de repente ficou totalmente introspectivo, se pôs meio de

lado evitando o contato visual e como resultado assumiu um ar

meio ausente como se tivesse esquecido que estava na presença e

falando para outra pessoa. O olhar até então brilhante e levemente

divertido se tornou opaco, inexpressivo e ele começou a verbalizar

pensamentos como se exclusivamente para si próprio, em voz

baixa, quase num sussurro.

Um tanto incômodo com essa demonstração de uma personalidade

tão instável Victor o observava fascinado e lutou com a dificuldade

de entender tudo o que ele dizia. Era mais um murmurar rápido

em que as palavras se acavalavam e se sobrepunham umas às

outras.

“___ Era um carrinho de brinquedo imitando os carros de corrida,”

começou recitando o menino e prosseguiu como numa ladainha.

“___ era todo amarelo e com tudo que tem os carros de verdade no

painel e nos bancos, a gente podia ver porque as portas se abriam,

também abria o capô e tinha partes do motor. Eu adorei! Logo quis

brincar com ele.” Então o menino fez uma pausa e voltou o olhar

diretamente para Victor, mas ainda assim parecia que não o

enxergava mais, continuou com a voz mais entrecortada como se

as palavras murmuradas fossem difíceis de serem pronunciadas.

“___ Ele ficou decepcionado, o meu pai. Nas outras vezes em que

ganhei carrinhos ou aviões ou barcos de brinquedo eu os usei para

aprender e descobrir coisas. Destruí todos quase imediatamente porque

precisava saber como eram feitos e de que eram feitos, então ele


esperava sempre isso, acho que por isso eu não podia mais ser como

qualquer outro menino.”

Outra pausa e quando falou de novo era um fio de voz. Repetiu

como para se explicar. “__Ele esperava sempre isso, o meu pai, ficou

decepcionado, quase bravo, demorei muito tempo pra entender o

porquê.”

Calou-se então por um tempo que pareceu torturante para um

atônito Victor que mal respirava tentando entender tudo o que ele

dizia.

Cesar suspirou profundamente parecendo subitamente muito

cansado, um surpreendente menino velho e muito cansado. Victor

sentiu que se comovia quase até às lágrimas e ficou ainda mais

confuso porque a revelação ainda não se concluíra. Mas quando

Cesar falou novamente como se estivesse se desculpando, Victor

sentiu sua emoção justificada.

“__Você entende?” Disse ele e agora seu olhar devassou a alma de

Victor diretamente. “__Eu só tinha quatro anos e queria poder

brincar...” Calou-se totalmente então e sem mais uma palavra, sem

ao menos uma despedida, mais uma vez desviou o olhar da pessoa

de Victor e como se esquecido da sua presença, saiu da biblioteca

deixando-o sozinho e perplexo.

Victor se deixou ficar, sentindo-se estático e abalado até a alma,

sem saber bem o que pensar e como agir. Ficou assim por minutos

infinitos tentando contextualizar aquele episódio espantoso.

Jamais, até então, alguém o havia impactado daquela maneira.


Quando chegou à mansão Astu Ninan para a noite de festa,

imaginou que conheceria um menino extremamente inteligente

com este tipo de inteligência incômoda, agitada, exibicionista.

Pensou que logo iria satisfazer sua curiosidade observando-o como

a um espécime incomum e digno de apenas um mínimo da sua

atenção e então, quase imediatamente, poderia se esquecer dele

como se nunca o houvesse conhecido. Como lhe era habitual e tão

cômodo a propósito de toda e qualquer pessoa.

Mas não fora assim. Victor não estava preparado para a

insuportável tristeza daquela declaração que ele nem tinha a

certeza de que tivesse sido feita para ele ouvir.

Passaram-se minutos que lhe pareceram horas e Victor não

conseguia se decidir se mover daquele lugar em que encontrou o

menino extraordinário.

E quando afinal lhe chegou, vindo do salão, o som de um violino

num lamento incrivelmente belo, mas tão contínuo e pungente que

fazia pensar num animal ferido em agonia, foi forçado a reconhecer

que Cesar acertara na sua previsão.

Não gostou mesmo da música.


Capítulo 6

A Emancipação de Victor


O irmão de Victor morreu numa madrugada silenciosa de um dia

que se alongava, empurrando a escuridão da noite, obrigando-a a

se retirar apressada para criar no céu o azul delicado e

aconchegante das primeiras horas de uma primavera suave.

Um momento no tempo em que pouco a pouco cores mais

vibrantes do sol sobre as flores explodindo nos jardins e árvores e

muros e praças anunciavam a força da renovação da vida.

E foi assim, com a natureza se preparando para uma festa, que o

primogênito Gatopardo resolveu partir.

Victor o encontrou completamente vestido com seu mais elegante

smoking, submerso até o pescoço na banheira em que a água

morna se transformou num caldo espesso e rosado pela quantidade

de sangue que havia se derramado dos pulsos cortados fundo.

Num ímpeto impensado, que uma mínima reflexão teria

denunciado como inútil, Victor se atirou sobre ele e buscou no

âmago da sua vontade a força descomunal que precisaria para

arrancar seu irmão do caldo de sangue e morte. Arrastou-o para

fora do banheiro se esparramando sobre o cadáver. Ensopado pelo

líquido pegajoso, ia escorregando, tropeçando, caindo, enquanto

lutava a luta inglória para resgatar a vida que já não estava mais

ali. Olhava o rosto macilento e exangue, tentava fazer os olhos se

abrirem e o movimento da respiração voltar esbofeteando-o,

gritava a plenos pulmões pedindo ajuda e embora uma multidão


de soldados e oficiais e empregados tenha acorrido imediatamente,

para Victor foi como se tivesse lutado sozinho por dias.

Na avaliação do legista, o irmão estava morto desde a véspera há

pelo menos oito horas quando Victor o encontrou e a urgência dos

gritos e da agitação em resgatálo refletia apenas um tormento que

haveria de acompanhar Victor pelo resto da sua vida.

Um tormento envolto numa raiva profunda, insana, poderosa que

o invadiu tornando-o incapaz para qualquer coisa durante dias e

que ficou tão marcada em sua memória que serviu de parâmetro,

dali por diante, para todas as suas tragédias. Diante de todas as

suas dores futuras Victor haveria de mergulhar naquela raiva

insana que aos demais pareceria uma reação de choque, de dor e

tristeza. Mas que na verdade nunca foi isso, nunca ele ficou ou

ficaria imobilizado pelo choque, mas apenas muito consciente e

impotente diante de um profundo e completo ódio.

Adquiriu uma atitude tão séria e resoluta na sua agressividade

solitária e muda que até mesmo o general resolveu deixá-lo em paz.

Teve permissão para voltar a ocupar seus antigos aposentos no

andar de cima do casarão e isso foi um verdadeiro alívio porque

aquela parte da casa com as marcas da morte do irmão puderam

ser lacradas e permaneceriam assim por muito tempo.

Nunca mais, depois do dia em que acompanhou seu corpo para

enterrá-lo no jazigo da família, Victor voltou a mencionar o irmão.

Ordenou aos empregados que se desfizessem de todos os seus

pertences pessoais, guardou fotos e documentos com sua imagem e


nome no cofre, trancafiou os aposentos que haviam sido de uso

exclusivo dele e quando o general, contribuindo para a última ação

que iria apagar de vez a lembrança da passagem do seu irmão pela

vida, informou a Victor de que tomara as providências legais para

torná-lo, a ele Victor, emancipado segundo a lei civil para que

pudesse assumir suas responsabilidades como maior de idade, à

frente da herança, dos bens e dos negócios da família, Victor não

encontrou nada para dizer.

Sabia que para o general o suicídio do irmão criara um entrave nos

planos para recolocar a família Gatopardo no antigo patamar de

riqueza com a correspondente influência social que evoluiriam

rapidamente para uma sólida posição de poder. Mas não achou que

lhe devesse nenhuma palavra de compreensão e conforto, alias

ficou muito atento ao fato do quanto àquela morte estúpida havia

deixado sua verdadeira natureza aflorar. Há muito tempo que não

se reconhecia tão alheio ao que os outros pudessem fazer, ou dizer,

ou pensar ou sentir. Estava literalmente se lixando para o mundo.

Assim passaram-se meses.

Victor enclausurado na biblioteca entre seus livros, seus estudos,

as músicas que gostava de ouvir baixinho e seus pensamentos

mantidos mais do que nunca, só para si, mal se dava conta da

presença, no casarão Gatopardo, do general e seus comandados.

Mas ele sabia que não poderia continuar assim para sempre. Logo

a paciência do general acabaria e ele seria chamado à ordem com a

rispidez de praxe.


Por isso resolveu tomar as rédeas da sua vida. Formulou um plano

e observou com cuidado o momento de agir. Para todos os demais

a lenta retomada das atividades normais foi a evolução natural do

seu estado de luto para uma aceitação do estabelecido e inevitável

e para a paz de espírito que o passar do tempo havia possibilitado.

Mas uma vez mais não era isso, era apenas a execução de um plano

frio e calculado para ele recuperar sua vida.

O final de ano com as festas de natal e ano novo aproximava-se

rapidamente. Haveria uma inevitável melancolia, Victor temia

que até algumas lágrimas, nas reuniões obrigatórias com as demais

famílias de latifundiários tornadas amigas pela campanha de

reaproximação do general. Em especial com os Astu Ninan, uma

vez que o noivado do irmão de Victor com a herdeira Astu Ninan

fora anunciado e o casamento marcado para a primeira semana do

ano novo, fato que transformara Victor num quase parente e

alguém que compartilhava a dor profunda da perda trágica de um

ente querido e isso faria o reencontro adotar um tom trágico.

Victor sabia que seria muito difícil para ele enfrentar essa

verdadeira prova de paciência. Mas estava decidido.

Observou com cuidado o desenrolar do cenário político. Começava

a se caracterizar no país um processo forte de redemocratização.

A lei da anistia beneficiava alguns famosos exilados e embora uma

parte do exército, os chamados militares linha dura, esboçassem

alguma reação como puderam atestar os episódios de cartas bomba

em atentados à população civil, o fato é que estava restaurado o

pluripartidarismo e o país vivia uma forte campanha pela


retomada das eleições diretas para todos os cargos executivos e

legislativos e em especial para o de presidente da república.

A cidade de Terra Alta e toda a região ao redor, jamais fez

nenhuma manifestação em apoio ao movimento popular para

forçar a retomada da prática democrática.

A lembrança dos episódios recentes no campo havia deixado suas

marcas muito profundas e nenhuma voz se ergueu para exigir a

liberdade de escolha.

Ali, os fundamentos da democracia foram sendo restaurados ao

sabor da atuação civil na política e na liderança que acontecia

paulatinamente no resto do território nacional. Lentamente,

porém seguramente, e o mais importante para Victor,

ininterruptamente. Em novembro o general recebeu com uma

cerimônia simples e deu posse, ao novo governador do Estado

Terraaltino.

Este ainda indicado pelo governo central militar, mas que faria a

transição para o próximo governo que haveria de ser eleito por

voto popular.

Na capital federal e no resto do país havia uma forte pressão de

toda a sociedade para que a Câmara dos Deputados aprovasse uma

Emenda Constitucional que determinava eleições diretas

imediatas.

Ciente de tudo isso Victor pensou que era hora de tomar seu lugar.

Pediu uma audiência ao general e depois de uma espera de quase

três horas anunciou sua firme decisão de assumir de uma vez por


todas, sua posição como o chefe da família Gatopardo e para isso

começaria se apresentando diante do patriarca Astu Ninan para

pedir a mão da sua única filha em casamento.

A ousadia da proposta desconcertou o general e um longo silêncio

e uma evidente surpresa o fez observar Victor com cuidado. Victor

achava que podia adivinhar o que o militar estava pensando.

Ele imaginava se aquele quase menino, inexperiente, meio tolo,

demasiadamente intelectual e ainda meio infantil poderia levar a

cabo a responsabilidade de retomar a posição de influência e

mando da família naquela parte tão economicamente importante

do país, à frente de uma atividade que tinha um peso político

muito grande. O general não queria mais surpresas no campo, em

especial naquela região em que estavam as raízes da sua família

Van D`Vicci e dos seus familiares por afinidade, os Gatopardo.

Nada de terras cultivadas sendo distribuídas de mão beijada a

quem quer que fosse. Nada de subverter a ordem social

estabelecida, nada de direitos do trabalhador ou do agricultor.

Não confiava completamente em Victor para a tarefa, mas

reconhecia que não tinha muita escolha. A única ligação

incontestável com os grandes latifúndios daquela região que ele,

general, podia reivindicar, era seu parentesco com os Gatopardo e

a única maneira de restaurar a fortuna dilapidada da família para

recolocá-la numa posição de influência para dominar as relações de

trabalho no campo dependia da aliança com os Astu Ninan.


O plano era de uma simplicidade espantosa e por isso mesmo seria

muito eficiente, como tudo o que o general fazia.

O fato dos Astu Ninan concordarem entusiasmados com esta

aliança, estando tão interessados nisso quanto o próprio general,

havia facilitado às coisas. Para os Astu Ninan uma relação familiar

com o mais alto escalão do exército, ainda que indiretamente e por

afinidade de casamento como acontecia com o general Van D`Vicci

e os Gatopardo, asseguraria sua própria posição de influência e

poder pelos séculos vindouros. Sob todos os aspectos aquele

casamento era proveitoso para ambas às famílias.

O suicídio do primogênito Gatopardo fora um duro golpe para as

maquinações do general e ele mesmo, se tivesse o sobrenome

Gatopardo, estaria disposto ao sacrifício, mas com um parentesco

apenas por afinidade o processo legal para legitimamente tomar a

posse das terras e da herança da família seria muito complicado e

temerário naqueles tempos de retomada gradual dos direitos civis.

Ele nunca pensara na possibilidade de passar para Victor a

responsabilidade da continuidade destes planos porque o via,

apenas como um menino calado e tristonho que ficara muito

abalado com a morte do irmão. Mas agora eis que Victor vinha

espontaneamente se colocar a disposição para tornar possível a

aliança tão desejada. Então o garoto começou a se configurar

rapidamente aos olhos do general, como a melhor opção.

Feitas estas considerações o general observou que não seria

socialmente aconselhável, na verdade nem mesmo aceitável,

Victor propor se relacionar romanticamente com a noiva do seu


irmão tão recentemente desaparecido. Haveria que se esperar um

tempo mínimo de seis meses a um ano, o que não impediria que

Victor retomasse imediatamente as visitas de amizade, com um

gradual e muito desejado estreitamento das relações.

Intimamente o general se encarregaria de deixar o velho Astu

Ninan a par da nova possibilidade. E foi assim que Victor começou

a frequentar a mansão Astu Ninan com regularidade e surpreendeu

a todos com seu charme e desenvoltura.

Conquistou, além do coração da jovem e linda herdeira, também a

admiração e o respeito do casal Astu Ninan e do primogênito da

família.

Simultaneamente Victor se dedicou com determinação ao seu

plano de dominar o cenário político e social da cidade e dos

trabalhos no campo. Começou a dividir seu tempo de atenções a

sua futura noiva com os deveres na escola e visitas periódicas às

fazendas e estâncias.

Definiu objetivos a serem alcançados para a gradual e segura

melhoria da vida dos trabalhadores no campo. Decidiu-se a

aprender tudo sobre as vidas deles para poder entendê-los e

entender-se com eles e propor ações com reais possibilidades de

serem implantadas com sucesso e afastar definitivamente qualquer

interferência do general.

No natal daquele ano Victor se declarou adequadamente à filha

dos Astu Ninan e recebeu dela a promessa de se tornar sua mulher

no prazo de dois anos a partir daquela data. Manteriam em segredo


o compromisso por um prazo socialmente adequado. Mas muito

antes disso Victor conseguiu influenciar a família Astu Ninan e

obteve financiamento para alguns dos seus projetos. Convenceu-os

com argumentos verdadeiros, que era o melhor para os negócios.

Começou implantando um sistema de cooperativas já com um

modelo de autogestão, livre da interferência do Estado. E mais do

que isso com absoluta neutralidade política, sem fins lucrativos e

sem a contaminação de qualquer ideologia político partidária ou

religiosa.

Mostrou-se sempre tão sério em seus propósitos tão empenhado e

com tamanha disposição para o trabalho que logo começou a

contar com o respeito, a confiança e o apoio dos outros

latifundiários. Passou a frequentar às famílias dos poderosos

senhores das terras, com a naturalidade de um filho pródigo e

falava sobre suas ideias com tal desenvoltura e entusiasmo que

logo conseguiu convencê-los a experimentar o que ele chamava de

seu programa para as famílias rurais. Depois da cooperativa o

outro grande passo foi a construção de escolas e clínicas de saúde

em suas próprias terras, mas que atenderiam a todos na região

indiscriminadamente. Organizou associações de trabalhadores e

de latifundiários, sendo participante ativo de ambas.

E entusiasmou os outros donos de terras com suas ideias para um

sistema de transporte do homem do campo e de escoamento das

safras. Através da associação de produtores fizeram pressão sobre

o poder público.


Envolveu-se ativamente com a vida social da cidade. Começou a

ser presença constante nos principais eventos e festas e nunca

ninguém desconfiou do quanto isto lhe custava. Também manteve

em absoluto segredo seus planos para dar a posse das terras para

os trabalhadores, que precisariam de uma elaboração mais

detalhada, mas dos quais, jamais Victor abdicaria.

E em cada uma destas ações Victor teve o cuidado de não

contrariar o pensamento do general nem nos mínimos detalhes e

de assegurar para si o controle total de toda a atividade no campo,

principalmente com respeito às ações sociais.

Coroou seu esforço com as providências relativas às três exmulheres

de seu pai e seus respectivos filhos, dando a elas a posse

das heranças que lhes eram de direito e se assegurando de que

nunca lhes faltasse nada e nem às crianças. Victor sabia que este

era um detalhe espinhoso que o general desejava ver resolvido com

a maior justiça e discrição.

Assim quando finalmente o general se convenceu de que a ordem

social havia sido definitivamente restabelecida e que não havia

mais o menor risco de distúrbios no campo, além de se satisfazer

com a atuação de Victor como o mais novo chefe da família

Gatopardo, anunciou com orgulho que havia encontrado no seu

sobrinho, quando da sua chegada à Terra Alta, um menino e agora

na partida deixava um homem.

Foi-se com o ímpeto de um vendaval arrastando seu exército tal

qual um séquito.


E foi assim que aos vinte e um anos Victor assumiu o controle total

de sua vida, casou-se com a única filha do patriarca Astu Ninan e

recebeu, além da noiva, todo o prestígio e o poder daquele nome de

centenas de anos.

O general se desculpou porque estava numa missão de pacificação

no Araguaia e não compareceu à cerimônia, meses depois deste

contato Victor receberia a notícia da morte dele em decorrência de

um dardo embebido em curare, um veneno altamente tóxico feito

com plantas misteriosas, encravado exatamente no coração e

Víctor não chegou a lamentar essa morte. Mas a época do tão

desejado casamento do Gatopardo com a bela herdeira Astu

Ninan, símbolo do êxito de sua interferência ditatorial nas vidas

dos terraaltinos, o general mandou uma comitiva de oficiais para

representá-lo carregados com dúzias de caixas de vinho e

champagne para a festa além de centenas de metros de seda, cetim

e rendas, para presentear a noiva. Foi celebrada uma missa na

catedral mais importante da cidade e todas as famílias e

autoridades compareceram.

O rigor das instituições sociais obrigava as famílias dos noivos

ocuparem lugares na igreja em lados opostos para representarem a

união de dois ramos diferentes, o que causou um constrangimento

inesperado, pois só alguns minutos antes da entrada da noiva que

se deram conta de que do lado Gatopardo não haveria ninguém

representando a família do noivo em consequência da inesperada

ausência do general, uma falta que nem mesmo seus oficiais

conseguiam amenizar e porque Victor não se lembrou em momento


algum de convidar as ex-mulheres do seu pai e seus três meio

irmãos para uma cerimônia que ele secretamente abominava.

As filas de bancos vazios logo depois do altar ricamente enfeitado

para um dos mais luxuosos casamentos acontecidos na cidade de

Terra Alta passaram a ser motivo de mortificação para os

organizadores da festa e para a mãe da noiva que se considerava

humilhada.

Victor nem por um segundo se permitiu inquietar por um assunto

tão banal. Estava por demais entusiasmado com o bom

andamento dos seus planos, pela facilidade com que havia

conseguido se fazer ouvir pelas lideranças políticas e pelas forças

econômicas de Terra Alta, o que o fazia prever o êxito de tudo que

planejara. E estava especialmente eufórico com a notícia sobre a

escolha, pelo Colégio Eleitoral, do nome de um representante civil

para assumir o cargo de Presidente da República. O primeiro em

vinte e um anos.

Mas ao se posicionar frente ao altar para esperar por sua noiva,

Victor ficou agradavelmente surpreso quando viu seu futuro

cunhado, Cesar Astu Ninan, que havia antecipado a vinda para

Terra Alta antes dos feriados da escola, especialmente para

prestigiar o evento, ocupando sozinho o lugar reservado à família

do noivo, bem no meio com o maior destaque e com toda a

compenetração exigida para a ocasião.

Mal sabia Victor que num futuro distante e por muitos anos, Cesar

seria a única pessoa ao seu lado.


Capítulo 7

A Confraria do Tabaco – O Poder Dentro do Poder


Durante os trinta e três anos que durou o casamento de Victor a

percepção comum era de que fora um sucesso, ao menos nos seus

aspectos gerais. Para a sociedade terraaltina eles eram o casal

perfeito e para a família Astu Ninan eram a garantia de mais um

baluarte para a permanência da família no topo do poder

econômico e social.

Victor tinha consolidado sua fama, junto a maior parte da

sociedade da região das grandes fazendas dos altiplanos, como

sendo pessoa com caráter ilibado, moralmente irrepreensível,

comprometido com o bem da sociedade em geral e particularmente

interessado na melhoria das condições de vida dos trabalhadores

da terra. Havia conseguido levar para à montanha, nos altiplanos,

as condições reais para a melhoria e para a preservação do bem

estar das famílias de agricultores.

Trabalhou sempre com os políticos mantendo relações estreitas

com o poder sem nunca se tornar ele mesmo um político e interferiu

diretamente com a administração pública e as grandes fortunas da

região e conseguiu o financiamento para a construção de hospitais

e escolas, fez programas para a construção e manutenção das casas

das famílias, obrigou os governos se preocuparem com as

manutenções das estradas, criou um programa de cultura

itinerante levando aos vilarejos cinemas, teatros e bibliotecas

móveis e influenciou na construção de estradas de ferro que


ligavam os altiplanos às cidades de forma rápida, segura, limpa e

barata.

Durante anos trabalhou ativamente num projeto de investimentos

das grandes fortunas em programas para a exploração do imenso

potencial turístico da região. Convenceu os antigos grandes

latifundiários a trocarem suas terras produtivas por

empreendimentos na área do turismo. Ele mesmo, com o

financiamento dos Astu Ninan e apoio de bancos de investimentos

federais, construiu hotéis, cassinos, estações de esqui, estações de

banhos termais para terapias e tratamentos com águas vulcânicas,

abundantes nas montanhas e vales e tornou estes

empreendimentos lucrativos para troca-los pelas terras cultivadas

ou oferecê-los como parte do pagamento destas terras, que depois

eram vendidas aos trabalhadores rurais que iriam pagá-las em

trinta ou cinquenta anos com parte dos lucros das colheitas.

A família Astu Ninan cuja riqueza era o principal suporte privado

em parceria ao poder público, para cada iniciativa destas,

mantinha uma porcentagem dos lucros dos hotéis, cassinos e

estações termais e enriquecia cada vez mais.

Através desta estratégia conseguiu pouco a pouco ajudar milhares

de trabalhadores a comprarem suas pequenas propriedades.

E conseguiu isso sem um único distúrbio social. Na mais absoluta

paz.

No entanto entre a classe política havia muitos que se opunham a

ele dizendo perceber nestas manobras uma estratégia de


dominação do capital, cada vez mais concentrado nas mãos de

poucos. E era verdade que os grandes empreendimentos, as

propriedades ricas e altamente lucrativas que começaram a faturar

milhões com a indústria do turismo ficaram exclusivamente nas

mãos dos antigos latifundiários. Mas Victor raciocinava que tinha

sido a única maneira que lhe fora possível dar a cada família de

agricultor a oportunidade para a posse de seu pequeno pedaço de

terra cultivada.

Também o acusaram de discriminação e de manobrar para manter

as cidades inacessíveis aos trabalhadores dos altiplanos. O projeto

com a manutenção de escolas, hospitais e os programas de cultura

itinerante foi classificado como parte de uma política perversa

para impedir a descida da população das montanhas para as

grandes cidades. Seus críticos mais ferozes usavam principalmente

argumentos contra as iniciativas culturais que tinham grande

visibilidade e afirmavam que os espetáculos apresentados nas

pracinhas dos vilarejos eram avaliados como de qualidade muito

inferior ao que se podia ver em Terra Alta ou qualquer outra cidade

da região e de sofrerem censura. A campanha difamatória foi tão

intensa que por esta época a imagem de Victor em âmbito nacional

começou a estar ligada à manobras para implantar a censura.

Isso piorou muito quando Victor começou uma campanha para

interessar os jovens das famílias dos agricultores a dedicarem suas

vidas ao trabalho na terra. Houve verdadeiros comícios em que

Victor e a família Astu Ninan foram acusados abertamente de

terem o único interesse na perpetuação de gerações de


trabalhadores condenados às condições precárias e sofridas da

rotina rural para sustentação das vidas luxuosas e privilegiadas

dos ricos nas cidades.

Victor nunca se abalou com estes ataques, nem sequer tomava

total conhecimento deles. Continuava trabalhando naquilo que

acreditava ser o melhor para o povo das montanhas e para a

remissão da sua própria alma, firmemente convicto que seu

desinteresse e enfado quanto aos seus semelhantes

individualmente teriam que ser compensados conseguindo, ainda

que minimamente a cada vez, melhorar as condições de vida no

dia-a-dia das comunidades. Convencido que para o trabalhador da

terra, o melhor era ele e sua família poderem continuar vivendo e

trabalhando em suas terras, Victor continuava obstinadamente

implantando programas de educação e saúde e promovendo a ideia

da boa vida nas montanhas para os agricultores.

Por conta disso, seus opositores diziam que Victor não queria ver

o homem da montanha descendo as trilhas e embora Victor tivesse

que ter cuidado ao externar esta opinião porque dependendo do

interlocutor seria matéria certa para uma polêmica infindável, a

verdade é que ele não queria mesmo.

Quando o acusavam de oferecer aos campesinos um atendimento

hospitalar precário Victor não se dava ao trabalho de responder e

raciocinava que este atendimento era o único que possibilitava

muitas vezes manter uma pessoa viva até ser levada para os

grandes centros e hospitais e clínicas mais bem equipados e


continuava investindo na melhoria das condições de saúde e

saneamento básico lá na montanha.

Para todos que o conheciam de longa data e o apoiavam, esta

atitude de total indiferença às críticas mordazes parecia

engrandecê-lo porque reconheciam sua firmeza de caráter. E na

prática era o que realmente acontecia. Mas o verdadeiro motivo

dele se manter alheio aos seus acusadores era inconfessável. Victor

não se dignava explicar suas ideias, iniciativas e dificuldades, não

por um sentimento de humildade ou reconhecimento de que

apenas cumpria com seu dever apesar de muitas vezes ser

incompreendido, mas por seu absoluto desinteresse pela opinião

alheia fosse de quem fosse.

Mas apesar deste solene desprezo sabia ser fundamental ter os

poderosos ao seu lado, não conseguiria nada sem eles, então Victor

era o mais atraente, charmoso, espirituoso e participativo membro

da nata da sociedade terraaltina. Neste meio ele era um mestre em

vender sua própria imagem. E conseguiu ser apreciado pela

maioria dos seus contemporâneos e ser respeitado por todos.

E seria seguro afirmar que tivera total êxito em manter seu segredo

como um segredo só dele. Ninguém desconfiava da sua enorme

aridez d’alma.

Para a família era perfeito, atencioso, cioso de seus deveres de

marido e pai, para com os sogros portava-se com a correção de um

bom filho e para com os cunhados era o irmão sempre devotado.

Havia uma única queixa explícita da mulher e era com relação às


longas ausências de Victor. Era frequente ele ficar muitos meses

nas montanhas, nas estâncias e nas fazendas. E usava estes longos

períodos livres da pressão social para repor as energias, para se

armar da paciência necessária ao convívio com a sociedade de

compromissos e festejos de Terra Alta.

A mulher o amava profundamente e na quase totalidade do tempo

acreditava ser amada por ele. Havia momentos raros, em que uma

leve desconfiança ensombrecia seu horizonte cor de rosa. Raros

momentos quando ela flagrava no marido um quase imperceptível

ar de enfado, ou um minúsculo olhar desinteressado ou mesmo um

gesto praticamente despercebido de impaciência. Então corria

para sua capela particular nos jardins do casarão, que ela fizera

construir com requinte e luxo, para consagrá-la à Virgem Maria de

quem era fervorosa devota e ajoelhava-se orando para afastar a

tentação da dúvida.

E quando ia à casa da mãe para compartilhar das visitas da velha

mestiça curandeira, em atenção à caridade, porque jamais

admitiriam, a mãe e ela mesma, darem a menor atenção às

predições e feitiços da crença ancestral e ouviam a declaração da

velha bruxa, em transe, assegurar reconhecer a alma de Victor

vagando no deserto dos incapazes para o amor, a mulher de Victor

se mostrava altiva ao declarar confiança absoluta na devoção

irrestrita do marido por sua pessoa. Mas secretamente reforçava

em seu coração a determinação de suprir sozinha a cota de amor

que deveriam ter como casal, aos olhos do povo e aos olhos de


Deus. Assegurava-se de prover sozinha, amor suficiente para os

dois.

Orgulhava-se dele e admirava-o como marido e como pai. Via-o

exercer o feitiço que fascinava a todos que o conheciam fazendo-o

capaz de monopolizar multidões e renovava sua paixão por ele a

cada vez. E o fato é que Victor possuía tal carisma que envolvia e

encantava a todos que o ouviam. E mesmo os que discordavam das

suas ideias e até seus detratores acabavam admirando-o

secretamente por sua capacidade de eloquência, pela sagacidade

com que defendia suas ideias, por sua capacidade de trabalho e

admitiam que ele era sincero e que acreditava no que dizia.

A mulher de Victor percebia a enorme influência do marido sobre

todas as pessoas e curvava-se submissa ao seu poder, confundindo

amor a admiração irrestrita. Tentava não interferir nas suas

decisões de negócios, mas assustada pela previsão da curandeira de

que ele seria assassinado caso ocupasse qualquer cargo público, fez

com que ele prometesse jamais participar como candidato em

eleições e ficou envaidecida acreditando que por sua influência

Victor jamais se curvara aos pedidos de amigos e familiares para

se candidatar. Ele frequentemente atuava junto aos políticos, mas

jamais aceitara nem mesmo filiar-se a qualquer partido.

No papel de pai, Victor repetia o sucesso. Era responsável e

completamente confiável. Seu casal de filhos o amava. As crianças

sentiam-se seguras sob sua força e influência tranquilas e jamais

questionaram seu amor porque eram atendidas nas suas

necessidades. Então a indiferença de Victor por elas ficava


camuflada por sua irretocável atuação como provedor e exemplo

de honestidade e civilidade e pela brevidade do convívio em

família, restrito aos poucos dias em que ele estava em casa nos

intervalos das longas ausências.

Por tudo isso, nesta época Victor se auto avaliava bem sucedido,

especialmente no que dizia respeito à preservação do seu segredo.

Dentre todos que lhe eram íntimos a única pessoa a não lhe causar

um enfado mortal e de quem Victor dignava-se considerar

sinceramente a opinião, era seu cunhado, Cesar Astu Ninan. Isso

era surpreendente até para o próprio Victor e a prova conclusiva

de que ele conseguia camuflar seu desinteresse por todos os demais

com admirável sucesso, era o fato de que nem mesmo Cesar

desconfiava disso.

Victor não tentava explicar o fenômeno realmente, apenas o

aceitava como consequência natural pelo interesse que lhe

despertara aquele garoto anos atrás, se confessando esmagado sob

uma expectativa grande demais para ele. Passara, desde então, a

acompanhar a vida de Cesar à distância e tentara avaliar como ele

estaria enfrentando cada nova situação e a profunda agonia

revelada na longínqua tarde em que se conheceram. Victor tinha

certeza de ser o único, além do próprio Cesar, a saber o que

realmente lhe ia n`alma. Causara-lhe enorme curiosidade observar,

ano após ano, como o garoto manejava a própria vida para fazê-la

tolerável.


Cesar era, no entender de Victor, o único ser humano,

individualmente considerado, a apresentar um drama existencial

autêntico e merecedor de atenção, um drama verdadeiro, fruto de

circunstâncias que ele era incapaz de controlar.

Cesar era um garoto preso entre as necessidades básicas de se

reconhecer merecedor da aprovação dos pais, aceito e

compreendido no seu meio social, precisando, como todos nós,

justificar o motivo da própria existência, o que no caso de Cesar

era ainda mais difícil do que para a maioria porque se tratava de

justificar a existência de um gênio e, por fim, obrigado a considerar

sua própria satisfação enquanto ser consciente.

Todos estes fatores juntos pareceram ao Gatopardo um desafio

fascinante.

Além disso, a inteligência aguda de Cesar tornava-o um

interlocutor valioso. Ele era capaz de análises precisas, concisas,

corretas e excepcionalmente justas.

E mais importante do que tudo isso, Cesar não era chato.

Cesar mal completara quatorze anos quando Victor se casou com

a irmã dele e o Gatopardo foi saudado e abraçado pelo garoto como

irmão. Terminadas as festividades do casamento e as férias

escolares, Cesar voltara para a Europa e as notícias retratavam o

adolescente mergulhado em um trabalho árduo.

Naquele mesmo ano Cesar deveria apresentar ao mundo a primeira

sinfonia de sua autoria e, patrocinado por seus pais, abrir a


temporada de gala em uma das salas de espetáculo mais famosas e

aclamadas da Europa. A fama do menino gênio ultrapassava as

fronteiras da pequena cidade de Terra Alta, da região e do Estado

para literalmente espalhar-se pelo planeta. Os pais de Cesar eram

incansáveis nas diversas táticas e projetos e não mediam gastos

para a promoção do nome e da imagem do filho prodígio.

Como mágica começaram a aparecer produtos com a marca de

Cesar, uma figura estilizada de um arco de violino, ou poderia ser

de violoncelo, com farta cabeleira loura acobreada. Era uma

inteligente caracterização da jovem figura de Cesar que na

adolescência parecia mesmo, um alto e muito magro arco meio

encurvado, sob uma cabeleira rebelde com mechas de fogo.

Havia discos com uma variedade eclética de gêneros musicais,

filmes com historietas musicadas e livros infantis da autoria de

Cesar saudados pela crítica como verdadeiras obras primas de

criatividade e elementos instigadores para os jovens de todas as

idades, como prometiam em letras garrafais os cartazes

promocionais de cada linha do que Cesar escrevia. Mas a grande

ambição dos Astu Ninan era o triunfo de Cesar como músico.

Todos os demais interesses eram vistos pelos pais como distrações

para o recreio da mente do gênio.

O casal Astu Ninan reverenciava a música e queria ver o nome da

família alçado por Cesar ao mais alto pedestal da arte suprema.

Em especial a mãe de Cesar, ela mesma uma pianista de talento,

para quem era uma questão de superação pessoal ver o filho gênio,

reconhecido como o mais importante compositor e instrumentista


de todos os tempos. E ela deixava claro que não aceitaria nada

menos.

Victor se preocupava. Tinha confiança na capacidade e na

inteligência de Cesar, mas também sabia da sua profunda dúvida.

Sabia-o atormentado sob o peso de uma expectativa implacável e

grande demais.

Quando afinal se aproximou o dia da tão esperada apresentação

toda a família preparou-se para a viagem. Todos iriam se encontrar

com Cesar e com a mãe, que fora na frente para cuidar dos detalhes

e apoiar o filho. Victor se flagrou incapaz para aturar dias

ininterruptos no convívio dos sogros, da mulher e dos cunhados

envolvidos por considerações e detalhes detestáveis e arranjou um

pretexto para atrasar a própria ida. Iria depois, encontrar-se-ia

com a família no dia marcado para a estreia de Cesar. Podiam

esperar e confiar, ele não deixaria de ir por nada no mundo.

Iria encontrá-los lá.

E foi mesmo. Chegou ao teatro e subiu ao balcão onde estavam

reservados os lugares aos familiares do artista a tempo de

testemunhar a longa agonia dos pais e dos irmãos de Cesar que não

conseguiam entender porque Cesar não vinha ao palco da

esplêndida casa de espetáculos cujos lugares estavam completos

por um público ávido por receber e conhecer o maior gênio musical

de todos os tempos.

E Cesar se fazia esperar mesmo após chamarem-no nos microfones

por três vezes. A orquestra à espera, o público, os jornalistas, os


empresários donos e funcionários do teatro, as autoridades, uma

lista de nomes famosos nas artes e na vida política e empresarial,

... todos à espera.

E Cesar não vinha...

Chamaram novamente, uma quarta, uma quinta e uma sexta vez,

mas Cesar não vinha.

O público começou uma movimentação inquieta. Alguns mais

afoitos levantavam-se e saiam para os corredores da entrada.

A orquestra fez alguns movimentos para atrair às atenções.

Mas Cesar continuava ausente. Um dos violinistas, também

maestro, tomou uma batuta e começou a ensaiar alguns acordes.

O público se aquietou por alguns minutos, mas logo recomeçaram

os protestos de descontentamento.

E nada de Cesar...

Finalmente foram, Victor e o resto da família, se juntar à fila de

organizadores e responsáveis pelo espetáculo, espremidos no

corredor em frente ao camarim ameaçando derrubar a porta

trancada. Chamavam em vão. Começaram a se revezar nas

súplicas tentando sensibilizar Cesar, mas nem mesmo as lágrimas

da mãe e da irmã, os brados do pai e do irmão e a tentativa de

negociação dos empresários foram capazes de fazer Cesar abrir

aquela porta.


Do palco começaram a vir os brados e os chamados de um público

já completamente impaciente e que se julgava desrespeitado. Logo

se julgariam enganados. Os ânimos, dali para frente, ameaçavam

se tornar intransigentes. Mas Cesar não abria a maldita porta.

A mãe de Cesar, já histérica, estava à beira de um colapso. O pai

esmurrava porta e parede indistintamente, o irmão escondia a

cabeça nas mãos em desespero e a mulher de Victor não conseguia

conter as lágrimas. Mas a porta continuava trancada.

Então, quando tudo o mais falhou, arrombaram a porta para

encontrar Cesar encolhido num canto do camarim, meio despido,

febril e insano, com o olhar ausente dos muito perturbados e

praticamente incapaz de compreender o que estava acontecendo.

Foi sua primeira crise.

Espalhou-se a notícia de um colapso nervoso, uma febre mental

que havia acometido o menino gênio e que o obrigara a retirar-se

para um longo período de repouso absoluto em paradeiro secreto.

E era tudo verdade. Cesar saiu daquele camarim carregado como

um bebê, em posição fetal, de olhos vidrados e incapaz de formular

uma única palavra, além de parecer totalmente alheio ao que

sucedia ao seu redor.

Seguiram-se dias de caos e informações contraditórias, as

manchetes iam desde especulações sobre um grande golpe

publicitário até insinuações sobre uma morte inexplicável.


Legiões de jornalistas e fotógrafos bisbilhoteiros precisaram ser

contidas e formularam-se e adotaram-se planos extraordinários

para despistá-los.

Cesar submergiu numa clínica para transtornos mentais, superexclusiva,

por trás de montanhas intransponíveis à maioria das

pessoas, no coração dos Alpes Suíços. Seus pais o acompanharam.

Os outros Astu Ninan e Victor Gatopardo voltaram para Terra

Alta.

Uma volta melancólica em que o cálculo das perdas financeiras era

apenas um pálido esboço do que Victor entendia como a perda real

em toda sua trágica extensão.

Foi gasta uma fortuna em indenizações e pagamentos de multas

por quebra de contrato, mas os advogados da família Astu Ninan

tinham a certeza de ganhar os recursos e recuperar todo o prejuízo

acrescido dos juros pelo sofrimento e agonia moral, infringidos a

Cesar. Além do mais tinham muitas apólices de seguros protegendo

cada aspecto da valiosa vida do garoto.

Victor ficou dividido entre lamentar o tormento do cunhado e a

esperança de vê-lo se libertar das cobranças insanas para provar

seu gênio criador. Esperou que o desastre internacional fosse

decisivo para aplacar a determinação Astu Ninan de lançar o

jovem para a fama. Mas esta esperança não se concretizou.

Ao contrário.


Num movimento surpreendente e ilógico o estrondoso fiasco do

evento serviu para atiçar as imaginações de tal maneira que a

figura fragilizada, quase até ser patética, do adolescente

compridão e magrelo com cabeleira rebelde de fogo, ganhou os

contornos da figura de um jovem herói atormentado.

Cesar passou a ser lamentado pelo sofrimento que sua genialidade

e esforço na criação do belo lhe haviam causado e pela tortura

mental, profundamente cruel que esmagara sua resolução e sua

força, condenando-o à prisão da inconsciência.

Por isso, afirmavam todos, jornalistas, médicos, figuras do show

business... Cesar Astu Ninan estava delirantemente febril e

inalcançável. Seu amor pela música e seu esforço criativo o haviam

esgotado, era um herói da beleza, da construção do sublime e do

extraordinário. Os jornais, as revistas, os canais de televisão

mostravam incansavelmente a figura caricata do arco de violino

com cabeleira de fogo curvando-se subjugado a grandeza e ao peso

da própria criação.

Victor sabia que havia nisso tudo muito do dinheiro Astu Ninan

pagando pelas manchetes e depoimentos de críticos, empresários e

médicos.

Sobre a qualidade da música, nem Victor e nem mais ninguém em

Terra Alta podiam opinar pela simples razão de nunca a terem

ouvido. Jamais foi apresentada ao grande público porque Cesar

nunca autorizou sua divulgação, restringindo-se tê-la ouvido, a

mãe de Cesar que acompanhara cada pequeno detalhe da sua


criação e aos músicos que compunham a orquestra para o

espetáculo que não aconteceu e que eram impedidos de reproduzila

pela lei dos direitos autorais e por um rigoroso contrato de

confidencialidade.

As primeiras mil cópias gravadas que seriam comercializadas ao

final do espetáculo foram recolhidas e sua venda proibida. Nunca

se soube de algum exemplar que tivesse escapado à busca e

apreensão e a destruição.

E, no entanto, Victor preferiu o silêncio ao lhe chegaram às mãos

declarações de alguns músicos famosos, respeitados

mundialmente, que haviam tido acesso a música de Cesar

misteriosamente e sobre quem Victor custava a acreditar que se

venderiam ao poder do dinheiro dos Astu Ninan, declarando a

composição de Cesar como sublime e imortal.

Foi essa a sentença, distribuída aos quatro ventos, a definir o

futuro do garoto de quatorze anos e que passaria o resto da vida

tentando estar à altura do que a família e o mundo esperavam dele.

Mas a época em que tudo isso aconteceu, mesmo a perspicácia de

Victor não o alertou para o completo significado das manchetes

que invadiram os noticiários. Apenas o passar do tempo e as

muitas vezes em que Cesar estaria acuado, incapaz de enfrentar a

própria fama, fariam Victor avaliar adequadamente o peso

daquelas declarações. E ele, Victor, um dia haveria de se resignar

à própria incapacidade para ajudá-lo.


Foram estes os acontecimentos e seus desdobramentos familiares

que marcaram os primeiros cinco anos do casamento de Victor com

a bela herdeira Astu Ninan.

Cesar continuou vivendo na Europa, vinha à Terra Alta de tempos

em tempos e até a sua recuperação completa, foi consenso na

família deixarem de lado as grandes apresentações. O casal Astu

Ninan mudou-se para ficar com ele quase ininterruptamente.

Os negócios dos Astu Ninan e dos Gatopardo passaram a ser

dirigidos exclusivamente pelo primogênito Astu Ninan e por

Victor.

Quando o primeiro filho de Victor nasceu. Salvando a mulher de

Victor de se transformar numa depressiva crônica, após seis anos

de tentativas e três gestações interrompidas por abortos

espontâneos, Cesar fez uma pausa nas pesquisas, no lançamento de

livros e em tudo o mais que estava chamando sua atenção no

momento e veio para Terra Alta para conhecer o sobrinho.

Ficou por muito mais tempo do que pretendia a princípio porque

foi escolhido pela irmã e pelo cunhado para batizar o bebê.

E dois anos depois, em plena maioridade e finalmente senhor de si,

liberto finalmente da maior parte das imposições dos pais, Cesar

voltou à Terra Alta para estar presente ao nascimento da filha de

Victor e depois à cada ano, nos aniversários das crianças, nas festas

de natal e ano novo e no aniversário de Victor.


O fato dele não demonstrar o mesmo interesse pelos aniversários

dos demais membros da família ou por nenhuma outra ocasião

festiva para os Astu Ninan ou para a cidade de Terra Alta, nunca

foi mencionado abertamente, mas foi devidamente registrado

muito tempo depois nas páginas da sua biografia não autorizada.

A exceção à regra de se manter afastado da cidade foi assumida por

Cesar em deferência a um único acontecimento fora das datas préestabelecidas

e que serviu para estender ainda mais

reconhecimento ao já muito prestigiado nome de Victor.

Ocorre que haviam se passado sete anos da ditadura militar e o

país enfrentava uma séria crise com um processo de impedimento

do presidente da república sob acusações gravíssimas de

corrupção.

Victor intuiu, mais do que propriamente constatou, uma espécie

de crise moral se insinuando entre a população em todas as classes

e notadamente entre os mais jovens.

O governo de Terra Alta, da capital e do Estado era aparentemente

correto, honesto na sua atuação e não havia nenhum fato para

amparar alguma ação investigativa. A preocupação era com um

afrouxamento de algumas práticas do bom convívio e dos bons

costumes num nível mais íntimo, dentro das famílias e no dia-adia

da população. Condutas não escritas e nem comumente

descritas, mas que formavam uma espécie de espírito do lícito, do

desejável, do socialmente aceito e compreendido como ético e bom.

Coisinhas aparentemente pequenas, mas que eram a base para a


manutenção de uma sociedade saudável que se definiam como a

observação às pequenas regras de educação e de como tratar ao

outro.

A atenção ao cumprimentar alguém, o cuidado em nunca entrar

numa sala sem pedir licença, o costume de se esperar o

consentimento dos pais para deixar a mesa, olhar com atenção

respeitosa para quem chega, oferecer a vez aos mais velhos,

respeitar o tempo das crianças e dos idosos, dizer bom dia, boa

tarde, como vai, por favor, obrigado e tantas outras pequeninas

coisas essenciais.

Quase instintivamente, numa reação a preocupação com a perda

destes bons costumes, Victor se reuniu com alguns representantes

mais respeitados da sociedade buscando apoio para difundir suas

ideias contra a corrupção em todas as suas formas e, para manter

este relacionamento mais estreito e constante, formou com eles um

grupo mais ou menos fixo cuja finalidade declarada era à prática

inocente e flagrantemente elitista da degustação de charutos.

Após lautos jantares nas residências de um e outro, quando as

senhoras se retiravam para formarem suas rodas de conversas e os

homens geralmente ocupavam as bibliotecas ou os escritórios e se

serviam de bons conhaques para prepararem os paladares para os

puros, Victor aproveitava para abordar o assunto da corrupção

que parecia ter se tornado prática constante no governo central do

país.


Nestas oportunidades falava da sua preocupação com a

deterioração de alguns pilares da moralidade e da observação das

fórmulas para o bom convívio e sobre a necessidade de uma

vigilância constante ao correto, ao honesto e ao lícito.

Acostumou-se a receber no casarão Gatopardo, todos os sábados à

tarde, seus amigos mais chegados e arduamente cultivados e todos

aqueles cujas opiniões se identificavam melhor com o que ele

próprio pensava.

Contaminados pela persistência com que ele defendia suas ideias,

outros grupos também começaram a finalizar jantares e reuniões

festivas com rodadas de degustação de charutos. E logo eram

comuns os amplos debates entre uma e outra baforada azulada do

tabaco.

Rapidamente estas reuniões evoluíram do hábito observado

apenas entre alguns grupos, para uma verdadeira mania regional.

E pode-se afirmar que nesta época não acontecia em Terra Alta

um único encontro familiar ou entre amigos que não acabasse com

uma sessão mais ou menos formal para a degustação de puros e isso

cresceu até virar uma extensão do hábito nacional do cafezinho.

Em Terra Alta oferecia-se um charuto cuidadosamente colocado

ao lado das xicrinhas de fina porcelana.

Como estratégia para manter o interesse nestas reuniões, Victor

começou a promover verdadeiros concursos de degustação de

charutos, com cobertura da imprensa e premiações.


O grupo de Victor se auto intitulou a Confraria do Tabaco e ainda

não haviam completado um ano de degustações consecutivas

quando Victor foi chamado por um dos seus confrades mais

assíduos, o velho e muito venerável juiz Huberto Granzia, que

propôs a fundação do Clube Internacional de Havanófilos.

O juiz oferecia um casarão de sua propriedade, situado numa das

principais praças da cidade, enorme e senhorial, para sede da

sociedade e como única contrapartida à doação do imóvel, queria

permanecer vitaliciamente como presidente honorário do Clube.

Desde que Victor aceitasse de imediato e por aclamação, ser

conduzido ao cargo de Presidente Executivo. Uma posição de

poder e destaque que rapidamente se consolidaria em meio à

sociedade terraaltina e que o Gatopardo ocupou através de eleições

sucessivas por quase vinte anos.

E em todas as cerimônias de posse foi prestigiado com a presença

de Cesar Astu Ninan que, então, já era uma das personalidades

mais famosas da época.

O Clube cresceu em importância e em prestígio até se converter

num baluarte de justiça e honradez, simbolizado por um brasão em

que estavam representadas a Confraria do Tabaco e outras nove

confrarias fundadoras, nomeadas com letras douradas sobre uma

anilha de charuto castanha.

E a atuação do Clube conquistou um poder tão efetivo e atuou de

forma tão decisiva e amplamente respeitada pela totalidade da

sociedade que em menos de um ano era reconhecido, pelo então


governador do Estado, como o verdadeiro poder dentro do poder,

tal o alcance da sua influência.

E essa declaração foi avaliada pelos atentos observadores,

analistas sociais e formadores de opinião de todo o país, como

sendo exata e sem nenhum exagero.


Capítulo 8

A Flor do Açafrão


Todos os que já estiveram nas trilhas das montanhas,

principalmente acima dos cinco mil metros sabem que ali o silêncio

tem uma qualidade diferente. É mais profundo, pungente,

completo. É um silêncio que se espalha, envolve, se fixa e subjuga.

É poderoso e definitivo e faz igualmente silenciosos os seres que

vivem nestas paragens áridas. E é sem dúvida um traço marcante

e que distingue os seres das montanhas, a faculdade de viverem

plenamente atuando com todo e qualquer movimento, no mais

absoluto silêncio.

São também extremamente atentos, os seres das montanhas, e é

bom que assim sejam, porque nos caminhos dos altiplanos e entre

os poderosos paredões de pedra e ravinas e precipícios infinitos, as

similaridades confundem e as semelhanças enganam nossa

percepção e se não estiverem, os seres que vivem ali, acostumados

aos percursos entre as rochas e pradarias de vegetação rasteira, se

não aprenderem a diferenciar os arbustos que parecem idênticos,

as rochas que são tão iguais e as trilhas que se misturam, se

confundem e que parecem sobrepor-se magicamente umas as

outras iludindo os sentidos e parecendo determinar os destinos

sempre na mesma direção, certamente acabarão perdidos e sem

chance de sobrevivência.

Mas o viver nestes lugares com tamanha exigência de atenção e

adaptação provoca um refinamento muito especial dos sentidos e

os seres desenvolvem capacidades extraordinárias, fazendo os

movimentos das próprias vidas acontecerem numa harmonia

perfeita e muito íntima ao ritmo da natureza.


Os seres passam a ser verdadeiras extensões do que acontece ao seu

redor. Aprendem a perceber diminutas, quase inexistentes,

particularidades. Assim, a multiplicidade deslumbrante de cores,

como os verdes que para o olhar comum não apresentam nenhuma

diferença, aos habitantes das montanhas gritam suas nuances e

servem para marcar os caminhos, as rochas idênticas em forma e

nos matizes sutilíssimos entre os tons de areia e os infinitos ocre e

tijolo e marrom que se misturam ao primeiro olhar do recém

chegado transformando-se num borrão das tintas na paleta da

natureza, têm, aos olhos dos nativos, contornos tão próprios e tons

tão diferentes e particulares que não apenas marcam a trilha certa

da encruzilhada como servem para se criar signos que informarão,

aos que vem em sentido contrário, sobre o que há mais adiante.

Possíveis lugares para pouso, água, comida, talvez abrigos para as

noites gélidas, além de avisos contra os infinitos perigos.

Os seres das montanhas também precisam ser exímios farejadores,

pois os cheiros são comunicadores importantes, prestando

informações únicas e valiosas sobre o que esperar e contra o que se

precaver. Uma brisa fresca virá certamente depois de uma curva

que se abre para um descampado, o cheiro de umidade, ainda que

raro e quase inexistente, denunciará um braço de rio, um córrego,

um lago ou um pequeno olho d’água logo à frente, um ar

perfumado poderá ser a promessa de frutos maduros ou de mel

fresco num rincão próximo, mas também o alerta para o perigo das

colmeias de abelhas selvagens, assim como odores fétidos quase

sempre anunciam a morte detrás da próxima elevação.


Tudo isso Victor aprendeu convivendo e trabalhando com os povos

nos altiplanos. Em especial naquela região das vastas plantações

de pimenteiras de Terra Alta, que ele conhecia muito bem.

Victor sabia como podia ser enganosa a impressão de que toda a

paisagem era igual. A verdade é que havia por aquelas paragens

uma variedade geográfica surpreendente.

À leste da cidade de Terra Alta, começando no fim de uma estrada

muito íngreme a quase três mil metros de altura, encontrava-se um

dos vales mais distantes e de difícil acesso, por trás de rochas

incrivelmente altas e escarpadas e cercado por penhascos

assustadores. Ali, no vale entre as montanhas se alargava um

campo perfeitamente plano e vasto, embora estreito para os

padrões das propriedades de cultivo dos latifundiários.

Era uma ampla faixa de terreno que ao primeiro olhar pareceria

árida e inóspita, mas que na verdade tinha a vantagem da

irrigação constante e natural de um grande braço de rio de degelo

que a invadia periodicamente. Durante a maior parte do ano,

durante os meses de temperaturas baixas, o rio crescia no leito

original até se transformar, de manso fio d’água dos meses de

inverno, num manancial incrivelmente poderoso e cristalino

durante a primavera e o verão.

Este rio corria justo na divisa oeste da faixa de terra até desaguar

num lago majestoso com águas profundas que se multiplicavam

em dezenas de pequenos regatos a se infiltrarem pelo meio das

poucas árvores altas e densas como pequenas amostras de florestas


tropicais, mas que ali tinham sua exuberância reduzida à apenas

uma larga e muito alta franja verde marcando o limite do planalto

e escondendo abismos imensos que recebiam as águas em

cachoeiras esplêndidas até sumirem quase magicamente, sugadas

para rios subterrâneos por onde continuariam seu caminho, desde

as alturas das montanhas andinas até os oceanos.

A extensão totalmente plana e a abundância de água limpa a

fertilizarem suas terras tornavam o lugar uma verdadeira

preciosidade, mas naturalmente protegida das multidões cobiçosas

por sua incomum dificuldade de acesso.

E foi por este lugar, chamado pelos indígenas Mayuasiri Pacha,

(terra do canto meloso do rio), não maior do que setenta hectares

ou três módulos rurais, que Victor Gatopardo lutou durante trinta

anos para dar o direito de reconhecimento de posse ao povo Yana.

Os Yana eram um povo cuja história estava envolta nas lendas e

no contar, tanto quanto os famosos Astu Ninan que haviam sido

os donos originais de Mayuasiri Pacha.

Mas o verdadeiramente curioso sobre este povo é que os Yana não

eram em sua maioria nativos das montanhas e sua miscigenação

indígena era pequena, restrita aos primeiros poucos representantes

que haviam surgido da união de um único homem com algumas

nativas. A maior parte da formação daquele grupo extraordinário

era essencialmente de imigrantes, vindos de todas as partes do

planeta e que, ao contrário dos demais, não haviam se misturado


aos nativos das montanhas. E talvez tenha sido este o seu maior

pecado.

Eles não eram um povo na concepção comum de raça. Eram uma

mistura de várias raças. Representantes os mais diversos de vários

povos que se haviam reunido sob um mesmo jeito de viver, uma

mesma maneira de levar a vida e cultivado crenças e costumes

muito próprios.

Eram uma comunidade fechada de agricultores, como a grande

maioria dos montanheses daquelas bandas. Também eles

cultivavam as pimenteiras, criavam lhamas e alpacas e cavalos

crioulos. Mas tinham como diferencial a produção em grande

escala do açafrão. Cultivavam-nos em todas as suas espécies, mas

principalmente o açafrão da flor branca.

A lenda que se misturava à história comprovada por alguns poucos

documentos oficiais, falava de um imigrante Mouro que teria

chegado por aquelas paragens no final do século XVIII quando

tribos selvagens ainda dominavam completamente as montanhas

e suas planícies. Foi este o personagem que deu origem ao povo

Yana e acabou envolto em misticismo.

Um Mouro de pele escura, ele mesmo chamado pelos indígenas de

Yana, cujo significado é negro. Com suas leis e costumes estranhos,

com seus indefectíveis turbantes e a fé cega em um deus único e seu

profeta e cuja terra de origem pela sua descrição, fazia pensar no

Marrocos, embora nunca se tenha encontrado nenhuma

comprovação disso. E que provou ser um personagem excepcional.


Chegou como sobrevivente de um naufrágio e venceu as alturas das

montanhas e as terras áridas e geladas e conseguiu ser aceito entre

as tribos porque tinha conhecimentos de medicina e química e

soube convencer os nativos de que tinha poderes mágicos.

Viveu perambulando por todo aquele pedacinho do mundo e nunca

se soube de uma família fruto de uma união estável com alguma

nativa. No entanto e, isso também comprovava a tese do Mouro

ser reconhecido pelos nativos como alguém especial, deixou uma

vasta linhagem porque lhe era permitido ter filhos com qualquer

mulher que lhe aprouvesse.

Por tudo que se pode descobrir sobre ele, é seguro afirmar que era

um solitário por convicção e um meio nômade por vocação.

Andava por toda parte escolhendo pousos por temporada em busca

das melhores condições de vida segundo as mudanças das estações.

Plantava, caçava, pescava e criava beberagens e coisas

extraordinárias. Tinha armadilhas geniais, sistemas de irrigação e

controle de pragas que eram simples e muito eficazes.

Construiu vários acampamentos que eram utilizados numa espécie

de rodízio de estadias, tão inteligentemente equipados que eram

funcionais mesmo quando da sua ausência.

Nunca houve um documento relatando quando e por que o Mouro

resolveu mudar seu jeito solitário para se associar com outras

pessoas e nem quem foram os que constituíram o primeiro grupo

de seus seguidores, mas também nunca houve dúvida que o


principal personagem responsável pela formação da comunidade

Yana tenha sido este homem.

Ele conseguiu impor aos demais além da sua maneira de viver, suas

crenças, seus costumes, sua moral e suas leis e transmitir uma

fórmula secreta que faria a fortuna dos que o sucederam.

Configurou-se sob seu comando uma comunidade completamente

distinta e fechada e em consequência disso, vista pelas demais com

desconfiança.

Por muito tempo viveram dispersos pelos planaltos e pelas trilhas

das montanhas em agrupamentos menores e se reconheciam e se

reuniam em ocasiões específicas, principalmente para seus cultos.

Seguiam uma religião similar à islâmica, mas com algumas

particularidades com rituais bastante peculiares e que não eram

próprios do islamismo. Adotavam a poligamia para os homens que

podiam ter até quatro esposas e a obediência total ao chefe da

unidade familiar, com poder, inclusive, de punir suas mulheres e

seus filhos com a morte em caso de ofensa grave.

Tinham restrições alimentares severas e uma orientação muito

rígida quanto ao vestir, sendo obrigatório aos adultos

permanecerem sempre com as cabeças cobertas quando fora de

casa e para as mulheres era lei o uso de longos véus negros e muito

fechados a partir dos sete anos.

As crianças, mantidas afastadas de qualquer contato com crianças

de fora da comunidade, eram ensinadas segundo a interpretação

que tinham dos costumes islâmicos e eram alfabetizadas através


do estudo do corão. Mas o acesso ao grupo nunca foi negado aos

imigrantes que mostravam interesse em juntar-se à comunidade,

ao contrário, aceitavam em seu meio qualquer viajante que se

dispusesse a adotar seus costumes e seu modo de vida. Após um

tempo apropriado de treinamento e um período de teste e rigorosa

avaliação, que podia durar alguns meses ou até vários anos, o

forasteiro poderia ser aceito integralmente.

Tantas diferenças de costumes e atitudes causaram desde sempre

muitos problemas e conflitos. Principalmente com o crescimento

da comunidade em número de pessoas e em poder econômico.

Ficaram conhecidos pela produção e comercialização de um

tempero que preparavam segundo uma fórmula secreta herdada

ao lendário Mouro, com o pó dos pistilos secos das flores do açafrão

branco, misturado a uma pasta feita da raiz de uma planta rara,

chamada pelos nativos Ninasisanuna, espírito da flor de fogo, cuja

forma de cultivo também era mantida secreta, restrita a alguns

poucos escolhidos.

A tal pasta, de cor vermelha escura e com um odor bastante

penetrante, levemente adocicado e com um sabor muito peculiar,

diferente de tudo que se conhecia, mas descrito como evocativo do

sabor de ovas de sardinha torradas e maceradas com manteiga e

azeite de dendê, podia dar, à mistura com o açafrão, propriedades

alucinógenas fortíssimas, dependendo da quantidade usada na

composição do tempero. Segundo esta propriedade, a maior ou

menor adição da pasta ao pó do açafrão, produziria um valioso,


raro e finíssimo condimento para comidas exóticas, sofisticadas e

caras, ou um poderoso e altamente viciante, psicotrópico.

O fato é que o comércio desta mistura específica fez a fortuna dos

Yana.

Cresceram em número, riqueza e poder e ficaram cada vez mais

reclusos e cercados pelos rumores sobre suas supostas práticas

criminosas.

Durante os distúrbios no campo, nos idos da ditadura militar, os

Yana haviam sido massacrados, mas um pequeno núcleo de

homens e mulheres sobreviveu. E mesmo a saída dos militares do

poder não arrefeceu a perseguição cruel à comunidade e para se

protegerem os Yana deixaram de se reunir em pequenos grupos

dispersos, formaram uma única grande comunidade e foram

procurar refúgio naquelas terras de difícil acesso.

Encontraram Mayuasiri Pacha com seu solo fértil pelas enchentes

sazonais, o lago com peixes deliciosos a proteção natural das

montanhas com seus picos de neves eternas que cercavam o vale e

as condições ideais para a produção secreta da Ninasisanuna.

Fixaram-se ali e prosperaram. Quando Victor Gatopardo tomou

conhecimento da existência deles, eram aproximadamente mil

quinhentas e trinta pessoas distribuídas em trezentos núcleos

familiares convivendo e trabalhando a terra e subordinados a

costumes e leis muito próprias.


Para consolidar a paz nos campos dos altiplanos, Victor se

empenhou pela legalização da posse de Mayuasiri Pacha pela

comunidade dos Yana e intercedeu pessoalmente junto a própria

família tentando um acordo.

Mas o lugar pertencia originalmente não apenas ao núcleo familiar

do patriarca

Astu Ninan. Uma infinidade de parentes distantes, todos com o

sobrenome Astu Ninan alegavam ter algum direito àquele remoto

e esquecido pedaço de terra sobre o qual a presença dos Yana havia

feito despertar um interesse inesperado.

Aconteceu que se espalhou a notícia de que em Mayuasiri Pacha,

na estreita faixa de floresta que sombreava o lago, perdendo-se nos

penhascos e desfiladeiros, crescia em grande quantidade uma

planta arbustiva nativa, conhecida pela extraordinária

propriedade de indicar locais com diamantes. A pandanus

candelarun, ou planta de diamantes. A planta espalhava-se

naquelas encostas e como se não bastasse, vinha acompanhada das

formações de sedimentações vulcânicas chamadas kimberlitos, o

que aumentava a suspeita sobre a existência das pedras preciosas.

Não era novidade a existência de diamantes naquela região do

mundo, a isso que se devia a enorme fortuna dos Astu Ninan. Mas

o fato é que a busca incansável pelas pedras e a exploração de toda

a região das montanhas durante gerações, havia extinguido os

veios e há anos não apareciam diamantes em quantidade

minimamente necessária para viabilizar sua busca. Um trabalho

que se sabia insanamente árduo e caríssimo. Mas o falatório e a


presença da pandanus candelarun e dos kimberlitos aguçou a

cobiça e hordas de aventureiros começaram a invadir Mayuasiri

Pacha.

Seguiram-se vários episódios de violência e luta armada. Muitos

destes caçadores de riquezas desapareceram em Mayuasiri Pacha

sem nunca se ter descoberto o que aconteceu realmente com eles.

E a desconfiança e a má vontade da população contra os Yana só

fez aumentar.

Victor particularmente não acreditava que realmente ainda

houvesse diamantes naquelas terras e os Astu Ninan,

secretamente, concordavam com ele. Mas alimentavam a polêmica

para não abrirem mão de uma possível fortuna no caso de existir

mesmo algum veio esquecido de diamantes e por conta disso

opunham-se à venda de Mayuasiri Pacha para os Yana.

E, além disso, havia a questão do ódio e havia a questão política e

havia a questão da luta pelo poder.

A briga em torno destas terras se transformou num pedestal de

acusações para serem usadas pelos detratores de Victor e dos Astu

Ninan, que pretendiam atingir através deles, os poderosos de quem

Victor se servia para seus projetos nas montanhas.

Instalou-se uma verdadeira guerra que perdurou por anos.

A cada nova eleição para qualquer que fosse o cargo público,

sempre havia alguém em um palanque, tratando em seu discurso

da questão dos Yana.


E de modo geral o sentimento que prevalecia é de que eram pessoas

perigosas, capazes de atos perversos, criminosos, em nome de seu

deus e da sua maneira de viver que eles acreditavam ser a única

admissível.

É claro que a atitude separatista dos Yana, fanática em suas

crenças, intransigente quanto aos relacionamentos com os demais

e sempre arrogantemente agressiva quando vinham à cidade, não

ajudava a melhorar a opinião pública.

E embora Victor mantivesse com os principais líderes da

comunidade um relacionamento bastante amigável, a verdade é

que havia em todos os grupos envolvidos, os brancos cristãos nas

cidades e povoados dos altiplanos, os mestiços e os indígenas das

aldeias e povoados das montanhas e os Yana de Mayuasiri Pacha,

muitos representantes que não queriam um convívio harmonioso.

Contra os Yana pesava principalmente a discriminação religiosa e

muita cobiça e inveja por causa do extraordinário sucesso

financeiro que eles conseguiam. Atribuído oficialmente a produção

e comercialização do tempero da flor branca do açafrão, mas que

inflamava ainda mais o falatório acerca da produção e venda

clandestinas do psicotrópico.

O imenso enriquecimento da comunidade de agricultores, pessoas

na sua maioria sem nenhum preparo ou educação formal, com suas

mulheres escondidas sob véus negros, que desrespeitavam as leis

do país praticando a poligamia e de quem se dizia serem capazes

de punir os próprios filhos com a morte, se tornara para a sociedade


preconceituosa e elitista de Terra Alta uma ofensa explícita e

constante. Muito agravada pelas declarações dos Yana que diziam

ser absolutamente necessário se manterem afastados para não se

contaminarem pelo vício e pelo pecado das vidas mundanas.

Então, quando muitos dias de trabalho tentando agendar

encontros para a discussão de possíveis acordos eram perdidos por

conta de algum detalhezinho mínimo, às vezes apenas a falta de

um olhar amigável por parte de alguém, ou uma palavra pouco

polida ou uma observação tola, de outra. Reações que

confirmavam a xenofobia e o racismo e as pessoas se separavam

cheias de ódio, não era propriamente uma surpresa.

Tantas foram as chances desperdiçadas que Victor resolveu

comprar o direito dos Yana permanecerem em Mayuasiri Pacha.

Com muito custo, após várias tentativas Victor conseguiu um

contrato de arrendamento das terras em troca de um pagamento

mensal altíssimo, mas que era flagrantemente usurário e precisava

ser revisto. Por isso continha uma cláusula de prazo bastante curto

para aquele tipo de contrato.

O acordo foi fechado com o sogro de Victor que aceitou os termos

em nome de todos os Astu Ninan. Mas os primos Astu Ninan

haviam comprovado seu direito à parte das terras e amparados por

uma ordem judicial estavam exigindo, para permitirem a

permanência dos Yana, a entrada de um grupo de geólogos para

examinarem as formações dos kimberlitos que comprovariam ou

não a existência de diamantes.


A coisa toda ameaçava se transformar numa guerra. Pois esta

possibilidade de diamantes havia atiçado a cobiça desenfreada e o

poder público, além de poderosos grupos empresariais

independentes, estava estudando um meio de se meter na história

através do direito do governo federal sobre todas as riquezas em

solo nacional. Havia inclusive propostas milionárias aos Astu

Ninan, para a compra das terras mesmo antes da conclusão dos

estudos dos geólogos.

Os Yana ameaçavam lutar até a morte de cada homem, mulher e

criança. Não admitiam a entrada dos geólogos alegando que

pagavam muito bem pelo direito ao uso daquelas terras e que se

alguém forçasse a entrada estaria violando sua propriedade

reconhecida por contrato, ainda que temporário. O que era

rigorosamente verdade. E não admitiam sequer visitas esporádicas

de turistas atraídos pela fama do tempero da flor branca, ou a

entrada de repórteres, antes corriqueiras, por conta da divulgação

do caso de disputa das terras. Para impedirem a entrada de

qualquer pessoa que não pertencesse à comunidade armaram-se

pesadamente e mantinham seus portões e suas muralhas

cuidadosamente vigiados. Para legitimar essa ação agressiva

alegavam a necessidade de protegerem os segredos para a produção

do famoso tempero.

Mas o que se dizia por toda a região de Terra Alta era que os Yana

estavam muito mais arredios porque precisavam manter o segredo

sobre o cultivo da Ninasisanuna e a proporção da pasta da raiz

desta planta usada na mistura com o pó dos pistilos da flor do


açafrão branco para preparo da droga. E esta crença, que por

muito tempo mantinha-se apenas como sussurros e rumores,

cresceu para virar suspeita e denúncia e ganhar visibilidade

nacional ilustrando manchetes em jornais, revistas e

documentários para televisão e transbordar em notícias mundo à

fora.

Preocupado, Victor reconheceu para os primos Astu Ninan que

seria preciso tirar a limpo aquela história de produção de

psicotrópico. Muito embora não acreditasse nisso.

Então quando eles apresentaram um plano para infiltrarem

espiões entre os Yana, mesmo contra a decisão do seu sogro, o

patriarca Astu Ninan, e consciente de que o real e único interesse

dos primos era apenas descobrir se havia, ou não, diamantes nos

limites dos paredões dos precipícios, Victor concordou com plano

deles.

Usou seu bom relacionamento com os principais líderes da

comunidade para conseguir informações úteis ao plano. Soube que

a comunidade estava interessada em receber homens hábeis como

marceneiros.

De tempos em tempos os Yana faziam uma espécie de propaganda

para angariar simpatizantes e às vezes surgiam demandas

específicas.

Os primos Astu Ninan foram cuidadosos na escolha de seus espiões

e nem Victor soube antecipadamente quem eram. Mas em poucas

semanas três homens, aparentemente com conhecimentos e


talentos extraordinários em marcenaria, conseguiram ser aceitos

para o período de treinamento em Mayuasiri Pacha.

Enquanto isso continuavam as negociações legais. Praticamente

todos os dias Victor recebia no seu escritório em Terra Alta ou à

noite durante as seções de degustação de charutos no Clube

Internacional de Havanófilos, grupos de empresários e

investidores interessados em negociar as terras em que havia a

desconfiança da existência de diamantes.

A novidade foi um pessoal ligado a um departamento nacional de

estudos geológicos cuja reivindicação era de que o lugar ficasse

preservado, que se assegurasse um tempo necessário para a

investigação apropriada e mais do que isso, em caso de realmente

existirem diamantes que se fizesse um estudo minucioso do

impacto ambiental para a extração das pedras. Solicitavam de

imediato a evacuação ampliada da área que deveria ficar proibida

a todos, inclusive aos Yana, até a conclusão destes trabalhos.

E para deixar a situação ainda mais complicada, havia a

representação desta solicitação junto à câmara de deputados

estaduais com o apoio de vários deputados e seus partidos.

A opinião pública se incendiou e o assunto que já ganhara o

interesse internacional começou a despertar a atenção de grupos

ambientalistas, associações de mineradores e grupos de proteção

aos direitos humanos.

Victor via cada vez com maior preocupação a necessidade de

assegurar para a comunidade o direito ao estilo de vida que


mantinham há duzentos anos e a posse das terras em que viviam e

trabalhavam há pelo menos cinco gerações.

As disputas se enredavam cada vez mais e não havia uma solução

à vista.

Nessa época ele ficava muitos meses nos altiplanos, fora de Terra

Alta e para compensar a mágoa da mulher com suas longas

ausências, começou a tirar pequenos períodos de folga, duas ou três

vezes por ano.

Poucos dias, mas para os quais Victor planejava viagens

maravilhosas. Iam para hotéis luxuosos, faziam passeios

fantásticos, frequentavam museus, galerias de arte, restaurantes

requintados, teatros, shows musicais, balés, óperas e traziam

objetos de arte para que ela pudesse impressionar as amigas nos

lanches e jantares.

O estratagema deu resultado. A mulher de Victor reconheceu seu

empenho em agradá-la e sufocou as dúvidas sobre seu amor.

Ou fingiu...

Nestas viagens Victor sempre decidia o roteiro para passar pelo

menos um dia com Cesar. Era um bálsamo para sua alma. Muitas

vezes os dois eram deixados à espera, quando a mulher de Victor,

em companhia da mãe ou de alguma amiga, saia em peregrinação

de compras.


Então Victor e Cesar se sentavam tranquilos com seus drinques e

seus charutos em algum salão de algum hotel de luxo ou em algum

reservado de um restaurante da ocasião que tivesse uma vista

espetacular e ficavam por horas desfrutando a paisagem e a

companhia um do outro, perfeitamente satisfeitos e muitas vezes

sem a necessidade sequer de trocarem uma única palavra.

Foi durante uma destas viagens, em que Victor se ausentara de

Terra Alta e ficara incomunicável por quase uma semana, que o

incidente com os espiões contratados pelos primos Astu Ninan,

infiltrados entre os Yana, abalou os noticiários. A princípio apenas

nos limites da região de Terra Alta, mas logo de todo o país e do

mundo.

Os três homens foram mortos a golpes de facão sob a alegação de

legítima defesa por terem tentado estuprar uma menina durante

as orações e o descanso do meio dia. Um período de quatro horas,

entre onze da manhã e às quinze horas da tarde em que os Yana

determinavam que todos fizessem suas orações com a intenção à

prosperidade da comunidade, após se lavarem e prepararem os

alimentos. Durante estas quatro horas todos mantinham completo

silêncio para que as reflexões das ladainhas sagradas entoadas

continuamente pelos velhos sábios em todos os cantos de

Mayuasiri Pacha lhes penetrassem os corações, até o badalar do

sino que ordenava o retorno aos afazeres.

O crime dos três homens foi julgado ainda mais hediondo por ter

sido tentado neste período do dia especialmente solene. Mas nunca

ficou esclarecida a real circunstância em que se deu a suposta


tentativa de estupro e como o linchamento foi aceito como a única

alternativa da legítima defesa.

Os fatos descreviam a morte imediata de dois dos homens em

decorrência dos golpes de facão, tendo acontecido ainda dentro dos

limites de Mayuasiri Pacha, onde mais tarde as autoridades foram

resgatar os corpos. E a morte do terceiro homem, que, num

primeiro momento, por milagre conseguiu escapar, correndo e

escondendo-se nas matas fora da propriedade, tendo acontecido

num vilarejo próximo para onde fora levado por lugarenhos sem

vínculos com a comunidade Yana, que o encontraram e tentaram

salvá-lo curando-o dos ferimentos terríveis e que receberam sua

declaração agonizante de inocência.

Perguntas, tais como por que não foram os três homens presos

pelos cinco jovens e vigorosos Yana que se apresentaram como

testemunhas do ocorrido e que em maior número poderiam ter

imobilizado os supostos agressores anulando o perigo e evitando o

linchamento, nunca foram satisfatoriamente respondidas.

E o mesmo sobre as contradições nas declarações que descreviam

a menina, quase vítima de estupro, com sua idade variando desde

sete até doze anos, ou ainda sobre as identidades de todos os

envolvidos.

A tragédia ganhou as manchetes acusando os Yana de um

assassinato brutal. Nem mais nem menos. Por motivo fútil, por não

terem, os três marceneiros se mostrado à altura das exigências da

comunidade durante o tal período de treinamento.


O ódio contra os Yana chegou a proporções alarmantes. Incidentes

de desrespeito com xingamentos e agressões quando eles eram

vistos na cidade começaram a ser frequentes e muito violentos.

Também se intensificaram as pichações em locais destacados e as

antigas acusações de produtores e traficantes de drogas

incrementaram-se às de assassinos.

Victor estava consciente de que em breve, se as coisas não se

esclarecessem, poderiam começar a aparecer nas frases dos muros

os nomes Astu Ninan e Gatopardo. Mas se via numa situação

desastrosa, sabendo da verdade e sem poder explicar como.

As únicas providências que se atreveu a tomar foram confessar ao

sogro ter apoiado a iniciativa dos primos Astu Ninan, o que lhe

valeu uma admoestação severa, e procurar um aconselhamento

numa conversa informal com o velho juiz Granzia que lhe disse

para não fazer absolutamente nada até que a polícia, encarregada

das investigações, se pronunciasse.

Enquanto isso Victor procurou agir com a maior naturalidade

diante das circunstâncias e não sentiu nenhuma diferença no

tratamento que lhe dispensavam os líderes Yana. Ou eles

realmente não sabiam que Victor tivera sua participação na

contratação dos espiões ou eram bons atores resolvidos a manter

as aparências de confiança na pessoa dele.

Victor resolveu ser mais cauteloso. A barbárie do crime acabou

convencendo-o de que os Yana tinham mesmo alguma ilegalidade

muito séria a esconder, só isso explicaria as mortes brutais dos três


espiões. A produção do terrível psicotrópico começou a parecer a

Victor uma possibilidade real, mas que precisaria de outro

momento para ser investigada.

Aproximavam-se as eleições estaduais. Victor e os Astu Ninan

pretendiam apoiar a reeleição do atual governador, mas a questão

dos Yana ameaçava se transformar no estopim que iria implodir a

candidatura. Não era possível deixar o ocorrido sem a resposta de

uma ação enérgica.

Os responsáveis pelo linchamento tinham que se apresentar à lei

para serem julgados, mas os Yana se recusavam a permitir a

entrada da polícia e não concordavam em entregar ninguém,

alegando que se tratava de um assunto interno à comunidade e que

agiriam segundo suas próprias leis. Fariam seu próprio

julgamento. Sem permitirem a entrada de ninguém de fora em

Mayuasiri Pacha pelo tempo que julgassem necessário.

Forçar a entrada seria arriscar-se a ter um massacre nas mãos em

que os Yana estavam dispostos a sacrificar mulheres, velhos e

crianças.

A oposição estava fazendo da história toda uma tenda de retalhos

da administração pública e da pessoa do governador. Acusavamno,

desde ser um fraco inepto incapaz de manter a lei no Estado,

até de esconder interesses escusos em relação à comunidade dos

Yana e lucrar com o comércio da droga.

A entrada da polícia na comunidade, à força se necessário, já era

uma necessidade premente.


Victor teve uma reunião com o sogro, com os primos Astu Ninan e

com o velho juiz Granzia e informou que iria a público falar sobre

a verdadeira identidade dos três homens que haviam sido mortos,

para tentar justificar, ainda que em parte, a ação dos Yana e dar

mais tempo ao governador. Mas logo ficou evidente que de nada

adiantaria porque o fato dos três homens estarem espionando não

justificava o linchamento. Ao contrário, piorava às coisas na

medida em que fazia aumentar a desconfiança do envolvimento

dos Yana com a produção e o tráfego de drogas.

Victor foi obrigado a concordar com o sogro quando ele raciocinou

que os Yana foram inteligentes alegando que o linchamento

ocorrera para defender uma menina ameaçada de estupro. Podia

não ser dentro da lei, mas era explicável e para muitos até

aceitável. O problema é que a história toda havia sido muito mal

contada e precisaria ser melhorada.

Sob todos os pontos de vista pareceu-lhes a melhor saída,

corroborarem a versão do estupro e fazer compreensível e tolerável

a violência pelas circunstâncias que a explicaram, embora fosse

preciso condenar veementemente o grau alarmante de

agressividade. Era preciso esvaziar a munição da oposição contra

o governador e evitar a qualquer custo a invasão a Mayuasiri

Pacha.

Concordaram em sugerir ao governador mudar seu discurso e sua

postura, buscar um acordo com os anciãos Yana, inclusive com

relação ao assunto das drogas. Por aquele momento tudo precisava


ser silenciado, abafado, desconsiderado. Interesses maiores e mais

urgentes pediam isso.

A Victor caberia convencer os lideres Yana.

Estavam em início de julho e os dias de inverno faziam mais

pesadas as neves eternas nos picos das montanhas.

Cesar chegou à cidade viajando incógnito como se habituara a

fazer sempre que vinha passar uns dias em casa. Seu mais novo

livro havia sido lançado há uma semana e já era considerado um

fenômeno em vendas. Os críticos estavam fazendo um

estardalhaço apontando o trabalho como o mais intrigante do

século. Perguntado sobre isso, Cesar limitou-se a encolher os

ombros enquanto dava a Victor sua resposta mais sincera, como

sempre. “__ precisam de um assunto para distraírem as pessoas

Victor, eu pareço ser sempre o que vende mais fácil.”

E concluiu apressado. “___vou com você para a montanha, preciso de

férias.”

Partiram na madrugada seguinte, Victor ia satisfeito com a

companhia de Cesar porque intuiu que ele, com sua perspicácia

fina e imparcial, poderia ser útil. Teria reuniões complicadas com

os Yana e estava particularmente insatisfeito pela questão das

drogas, suas suspeitas, cada vez mais fortes, começavam a deixar

difícil o empenho que ele precisava ter para ajudar os Yana e salvar

a reeleição do Governador, o apoio de Cesar seria especialmente

bem vindo. Encontraram-se com os líderes Yana na sede de uma

estância dos Astu Ninan. E Victor mandou que se preparassem


pratos deliciosos a base de milho e queijo de cabra, uma comida

indígena muito apreciada e que ele sabia que não ofenderia os

hábitos alimentares restritos dos seus convidados. Pretendia

naquele encontro ouvir muito mais do que falar. Era preciso

decidir se conseguiriam transformar em verídica a história do

estupro e ajustarem as versões que passariam para a imprensa.

Cesar ao seu lado foi aceito pelos Yana sem contestação. A maioria

das pessoas acreditava que eles eram irmãos e viam com

naturalidade compartilharem segredos nos negócios e os mesmos

interesses comerciais.

O encontro foi, como de costume, dominado por Victor. Ele se

mostrou consternado pelo ocorrido, desejou que a criança vítima

do ataque estivesse bem, asseverou que compreendia a atitude dos

defensores da menina ainda que desejasse não ter sido tão estrema

e com isso, deixou clara a direção em que iam as tentativas de

negociação.

Ficou logo compreendido por todos, que o Gatopardo, assim como

os Astu Ninan, pretendia dar suporte a história da legítima defesa

e conseguir amenizar o problema para os Yana e para o

governador.

Os Yana, assim encorajados, resolveram contar sua versão dos

fatos e dessa vez apresentaram uma história mais bem elaborada.

Com os detalhes mais bem explicados, em que uma menina de sete

anos, saíra sem ser percebida do lado da mãe enlevada num


momento de oração, o que explicava não ter notado a falta da

criança.

A menina fora em busca do cachorrinho, um filhote travesso que

se perdera pelos lados dos estábulos e ali fora abordada pelos

criminosos. Felizmente um jovem de apenas quinze anos, filho de

uma das mais respeitadas famílias da comunidade, estava, naquele

dia, encarregado dos cuidados com os animais e viu quando os três

homens seguiram a menina. Pressentindo o perigo seguiu-os,

estava armado com o facão porque viera do pasto de onde trazia

fardos de grama fresca para os cavalos o que foi uma felicidade

porque pode defender a menina e defender-se a si mesmo contra o

ataque.

Os cinco outros homens, a princípio apontados como os

responsáveis pelo linchamento, agora eram identificados apenas

como os que primeiro foram atraídos pelos gritos do jovem e da

menina e que acorreram para ver o que acontecia e acabaram

interferindo para impedir a fatalidade. Mas eles chegaram tarde,

tendo encontrado dois dos homens já mortos e o terceiro foragido.

Uma história afinal, que se não era totalmente verossímil ao menos

pretendia explicar os pontos mais relevantes e que os Yana

estavam dispostos a sustentar até a morte. E é claro que no

momento apropriado o jovem falaria com a polícia, podiam

providenciar isso. Entregariam o jovem para ser interrogado e a

menina com a mãe, entregariam até o cachorrinho.


Cesar fez um aparte solicitando os corpos dos dois homens que

haviam morrido em Mayuasiri Pacha para exame. Os Yana

concordaram prontamente, podiam entregar os corpos é claro,

tudo no momento apropriado e esse momento deveria ser tema de

um novo encontro, mas para esse encontro os Yana pediam a

presença também do governador.

Por um instante Victor ficou surpreso, não esperara por isso.

Estava prestes a uma negativa enérgica quando um sinal

praticamente imperceptível de Cesar o fez calar. Interpretando

corretamente o olhar de Cesar o Gatopardo, em vez de uma

negativa, fez uma promessa. Comprometeu-se a se empenhar ao

máximo para conseguir o encontro com o governador e quanto ao

local, não foi preciso o apoio do cunhado para Victor saber,

exatamente o que dizer.

Assegurou aos Yana que se encontrariam brevemente em Terra

Alta, ele mesmo, Victor, se responsabilizaria pela segurança de

todos no caminho e na estadia nas dependências da sede do Clube

Internacional de Havanófilos.

A inegável habilidade de Victor em lidar com este episódio do tema

Yana, já tão desgastado, ficou notória e fazia parte dos relatos que

Cesar e outros amigos de Victor gostavam de relembrar. Mas a

parte mais impressionante em que a capacidade de convencimento

de Victor ficou mais evidente, o famoso encontro nos salões do

Clube, com a presença do governador, foi um segredo e por isso

mesmo omitido dos relatos, mesmo daqueles não oficiais, por

muitos anos.


Para a nossa história será suficiente resumir os fatos.

O encontro aconteceu nos salões do Clube Internacional de

Havanófilos sob a organização de Victor com a ajuda dos Astu

Ninan, em especial do sogro de Victor e também com a

participação de Cesar e com a presença dos primos Astu Ninan e

do juiz Huberto Granzia.

O governador compareceu secretamente e os Yana fizeram-se

representar pelos três líderes principais e por mais um personagem

até ali desconhecido de Victor, mas que viria ser pessoa de

destaque nacional no futuro.

Deste encontro ficaram acertadas as manobras para acalmarem a

opinião pública com a divulgação das conclusões das investigações

sobre as mortes dos três homens, salvarem a candidatura do

governador oficializando um discurso sobre sua liderança firme e

exemplar num episódio tão delicado, através da publicação de um

agradecimento especial à sua atuação assinado pelos anciãos e em

contrapartida à formalização do contrato de compra e venda de

Mayuasiri Pacha para legitimar a posse e o uso das terras pelos

Yana.

Esperaram uma semana para liberar os termos do acordo para os

jornais, rádios e televisões e fizeram parecer que tinha havido uma

reunião das forças do governo, no ato representado pelo secretário

de segurança do Estado. Esta sim, de portas abertas, inclusive com

cobertura da imprensa em que o poder executivo exigiu e

conseguiu a colaboração dos Yana para uma ampla averiguação


do “episódio da morte dos três marceneiros”, como ficou

conhecido.

Houve farta reportagem.

A menina foi ouvida, a mãe foi ouvida o rapaz que salvou a menina

foi levado a depor, os corpos dos três homens foram examinados e

paralelamente a tudo isso um grupo de geólogos, ditos

independentes porque não eram funcionários do governo federal,

mas profissionais indicados para prestar serviços de consultoria e

acabaram aceitos como peritos judiciais fizeram a tão esperada

averiguação dos kimberlitos.

As conclusões foram amplamente divulgadas.

O rapaz que matou os agressores da menina com golpes de facão

foi considerado inocente pelas mortes por ter agido em legítima

defesa, dele próprio e da criança, os três marceneiros

repentinamente apareceram com fichas policiais onde estavam

anotados vários crimes desde simples roubos, latrocínios e também

estupros.

E para terminar, os kimberlitos se revelaram formações

interessantes pelo tipo de sua sedimentação vulcânica, mas

decididamente sem vestígios de diamantes.

Quanto às acusações sobre a produção e o tráfico de drogas, o

governador se declarou convencido da inocência dos Yana “após

cuidadosa investigação por parte da polícia”, mas se

comprometeu, tão logo passadas as eleições, se empenhar junto à


comunidade e, contando sempre com a ajuda inestimável de Victor

Gatopardo, uma das personalidades mais respeitadas da sociedade

terraaltina e do país, conseguir elaborar e firmar um acordo para

tornar aberta a vida na comunidade com a permissão para

visitações dirigidas e a realização de um amplo estudo sobre os

processos de produção da pasta de Ninassisanuna e do famoso

tempero, nas palavras textuais dele, “___eliminar de uma vez por

todas as suspeitas infundadas sobre uma das produções

economicamente mais importantes da região de Terra Alta.

A mistura da pasta de Ninasisanuna e o pó da flor branca do açafrão,

um tempero maravilhoso.”

Muito dinheiro dos Yana financiou a campanha para o governo do

Estado assim como muito dinheiro dos Astu Ninan e Gatopardo.

Os interesses de cada um seriam atendidos com o passar das

eleições.

Victor ficou relativamente satisfeito. Era da sua personalidade dar

a devida importância apenas aos assuntos da maioria da

população, das massas, das comunidades. Como sempre não se

preocupava com os pequenos dramas individuais. Então, o fato de

terem sido os três homens assassinados e não lhes fazerem justiça

e, além disso, lhes denegrirem as memórias, foi encarado como o

necessário a se fazer e aceitar, para um bem maior.

Um dia essa escolha lhe seria cobrada e Cesar alertou-o sobre isso,

mas Victor já se havia esquecido dos detalhes.


De tudo aquilo apenas um fato menor teimava em voltar à

memória do Gatopardo chamando sua atenção. Era um olhar

malicioso que Victor percebera no jovem Yana, que ele até então

não conhecia e que havia comparecido, acompanhando aos anciãos

representantes da comunidade, à reunião secreta com o

governador no Clube de Havanófilos.

Era um jovem em que se percebia uma inteligência inquieta e uma

verdadeira avalanche de ambição, falou pouco, mas sempre que o

fez mostrou-se feroz na defesa dos interesses da comunidade e

deixou claro que não haveria hesitação em destruir a candidatura

do governador caso fosse o necessário para preservar a

sobrevivência dos Yana e seu modo de vida e por diversas vezes

Victor sentiu-se insistentemente avaliado por seu olhar astuto.

Chamava-se Julião Yana Mathamatos, havia adotado o Yana

como parte do seu nome de batismo e fizera questão de registrar o

fato em cartório.

Para a mídia começou a aparecer como Yana Matos ou por uma

espécie de marca, JM.Yana e assim haveria de vir a ficar famoso,

não apenas no país, mas também no mundo.


Capítulo 9

Terra Arrasada


Quando Isabeau nasceu Victor estava ausente de Terra Alta há

três meses e demorou quase outro tanto a voltar. Finalmente

quando chegou para conhecer a neta, a roupinha ritual para a

celebração das vidas novas, inspirada na cultura ancestral Java

Ayran que ele havia mandado confeccionar especialmente como

presente à recém-nascida, já não servia mais nela.

Foi a primeira vez em todos seus anos de casado que a mulher o

recebeu com fria indiferença para deixar registrada a mágoa que

lhe causara ele estar longe da cidade e da família durante um

evento de tamanha importância, como o nascimento de sua

primeira neta.

Victor se resignou às caras feias e às acusações porque realmente

não estava disposto a ficar dando explicações e porque sabia que

por trás das queixas o verdadeiro grande motivo para a aflição da

mulher, mais do que não ter assistido ao nascimento da menina, é

que ele já não conseguia mais convencê-la de que não tinha casos

com outras mulheres, ou ainda mais dramático e ridículo, que não

tinha nenhuma outra família alojada em alguma vila ou rincão das

montanhas.

A princípio se impacientara com esta acusação e sequer se dignara

respondê-la, mas viu a mulher tão sofrida, tão infeliz e tomada pelo

desespero que tentara sinceramente confortá-la e por algum tempo

tivera êxito em afastar as suspeitas. Reorganizou sua agenda e

ficou em Terra Alta pelo tempo recorde de quatro meses, sem uma

única viagem, nem mesmo de um dia e a mulher se livrou do manto

de tristeza e começou a se colorir com a alegria da vida, mas tão


logo ele recomeçou sua rotina de viagens ela mergulhou novamente

num poço de tristeza e depressão e Victor já não conseguia tolerar

ser seguido pelo olhar pejado de lágrimas. Por isso a sugestão entre

tímida e desafiadora dela ir com ele para as montanhas nem sequer

mereceu uma consideração séria por parte de Victor.

Ele simplesmente partiu sem se despedir.

A situação piorou muito quando Victor não conseguiu chegar a

tempo para o enterro do pai da pequena Isabeau, morto num

acidente quando o casal e a criança voltavam de uma estada de

quinze dias numa das mais elegantes estações de águas termais das

montanhas e o carro em que viajavam foi imprensado entre um

caminhão transportando fardos de cana e um paredão de rocha à

beira da estrada.

As mortes do genro de Victor e do motorista foram instantâneas.

A filha de Victor sofreu ferimentos sérios tendo sido encontrada

curvada sobre si mesma para proteger com seu corpo a criança que

tinha nos braços, foi levada às pressas para um atendimento de

emergência e os médicos estavam confiantes sobre sua

recuperação. A pequena Isabeau, então com apenas nove meses de

idade, fora resgatada milagrosamente incólume.

Um desencontro inexplicável fez com que Victor só tomasse ciência

da tragédia com mais de três dias de atraso. Encontrou em Terra

Alta a família enlutada, sua filha convalescente dos ferimentos

incapaz de compreender a extensão da própria perda, a neta

entregue aos cuidados exclusivos de uma enfermeira e a mulher


trancada no quarto e em si mesma, incapaz de perdoá-lo como não

o faria até o dia da sua morte.

Apenas Cesar esperava por ele no Casarão às escuras abandonado

pela família que se mudara para a mansão Astu Ninan a trezentos

metros na mesma rua. E foi Cesar o único a testemunhar o seu

desabafo de frustração, “__Maldição!” Gritou Victor para um

Cesar silencioso e solidário para com sua busca do bem maior e da

redenção da própria alma.

Viveram assim, entre desconfianças, acusações e uma impaciência

e um enfado mortal de Victor, os quatro anos seguintes. A única

concessão que ele se forçou a fazer foi nunca mais passar um mês

inteiro fora de Terra Alta, mas ainda assim a cada chegada e a cada

partida as recriminações o perseguiam.

Nesta época, se perguntado, provavelmente Victor responderia

que já se resignara a incompreensão dos que o cercavam e que

deixara, há muito, de se considerar um sucesso. Via-se agora como

um eterno lutador contra a própria incapacidade de empatia para

com seus semelhantes e esta visão de si mesmo era exatamente o

oposto de como era visto no meio em que convivia e em que era

reconhecido e saudado como um vencedor.

Aos cinquenta e cinco anos Victor Gatopardo era considerado um

exemplo pelos que o conheciam socialmente e empresarialmente.

Era admirado e invejado pelos homens e desejado pelas mulheres.

Era o tipo de homem em quem a idade madura caíra bem.


As têmporas começando a agrisalhar na cabeleira espessa e negra

lhe davam um ar requintado e o gosto que sempre fora apurado no

vestir, com a idade, permitia-lhe adotar acessórios da mais fina

elegância. As roupas de corte perfeito complementavam-se pela

bengala de pau-brasil com castão de prata e madrepérola, pelos

cachecóis de seda e pelo relógio de corrente de ouro preso ao bolso

do indefectível colete.

Os aromas da loção de barba e do perfume de excelente qualidade

que se acostumara a usar desde que ainda era quase um menino,

agora na meia idade se misturaram aos cheiros marcantes dos

charutos e dos conhaques amadeirados e impregnaram-no com um

odor másculo e cheio de personalidade. Aliadas a isso estavam às

feições regulares onde olhos profundamente azuis e incrivelmente

penetrantes eram completados pelo carisma e pela loquacidade

espantosa que exibia uma inteligência rápida e uma cultura

solidamente superior.

Mas o tempero especial que fortalecia o fascínio provocado pelo

Gatopardo em seus relacionamentos residia, ironicamente, na raiz

do seu segredo, que ele fora sempre hábil em ocultar.

Naquela terrível aridez d’alma e completa incapacidade de

empatia que ele soubera camuflar tão perfeitamente que nunca

foram suspeitadas pela opinião pública ou sequer pela maioria dos

seus íntimos e acabaram se traduzindo para o entendimento das

pessoas como um irresistível traço de mistério, por sua atitude

sempre impassível, distanciada, mesmo nos assuntos mais

apaixonantes, suportados por uma vasta experiência de vida.


Tornou-se uma marca, uma característica sua, e para muitos uma

prova de equilíbrio e força de caráter que se tornou lendária.

A companhia frequente do mundialmente famoso, Cesar Astu

Ninan, não ofuscava sua figura, ao contrário, completava-a e eram

recorrentes as referências errôneas a Victor como o marcante irmão

do famoso escritor, pensador e cientista, que muitos repórteres e

comunicadores insistiam em divulgar.

Na cidade de Terra Alta e seus arredores as duas personalidades

eram reverenciadas, mas Cesar era visto como alguém distante, um

homem do mundo, com uma vida glamourosa de pensador, uma

celebridade. Excêntrico cientista afastado do dia a dia da

comunidade terraaltina e de sua produção rural de pimenteiras,

cogumelos e açafrão.

Victor, ao contrário, apesar de fazer parte da elite, era um homem

da terra.

Conhecia os caminhos das montanhas, conhecia sua língua e seus

costumes e sua trajetória de vida estava intimamente relacionada

às vidas dos povos dos altiplanos, tanto quanto da cidade.

Naquele ano em que Isabeau completaria quatro anos, e Victor já

festejara seu quinquagésimo quarto aniversário, o inverno na

montanha foi especialmente rigoroso. As nevascas chegaram

muito mais cedo que em anos anteriores e as temperaturas

despencaram transformando os dias de sol, claros e limpos no

passar de um tempo envolvido pelos ventos gélidos cortantes e as

noites em longas horas de escuridão enregelante.


Victor se empenhou especialmente junto a administração pública

para que nos altiplanos e nas trilhas das montanhas não faltassem,

gás nas casas e nos prédios públicos, lenha para as lareiras das

casinhas dos campesinos, sistemas de aquecimentos nas escolas,

clínicas e hospitais e comandou uma grande campanha para a

angariação de cobertores e agasalhos a serem distribuídos de porta

em porta.

A população da montanha na região de Terra Alta chegara aos

trezentos mil habitantes e Victor sabia que ninguém sobreviveria

àquelas temperaturas sem uma casa aquecida e sem comida e

roupas quentes.

Em todas as igrejinhas e nos salões paroquiais das pequenas vilas

foram organizados grupos de atendimentos emergenciais com

paramédicos e assistentes de enfermagem e eram servidas sopas

quentes com pães e ensopados de milho cozido todas às noites.

Embora grande parte da população residente fosse bastante pobre,

a maioria tinha minimamente sua casinha com rústicas lareiras e

fogões de lenha, então os salões das igrejas acabavam recebendo

prioritariamente viajantes pegos pelo anoitecer no meio da trilha,

muitos ignorantes dos perigos do cair das noites nas montanhas e

que precisavam de pouso apenas até o amanhecer.

Aconteceu que num desses salões, exatamente na vila em que

Victor estivera por alguns dias, chegaram e foram imediatamente

recebidas cinco pessoas de uma mesma família Yana. Eram


facilmente identificados pelos turbantes nas cabeças dos homens e

pelos véus negros envolvendo as mulheres.

Victor não os viu chegar, havia partido ao entardecer, decidido a

estar ainda naquela madrugada em Terra Alta onde pretendia ficar

pelos próximos vinte dias. Aproximava-se o aniversário de Isabeau

e ele havia feito um planejamento cuidadoso para estar na cidade

e participar pacientemente e até com o que fosse necessário de

entusiasmo, aos festejos. Esperava que isso aplacasse a tristeza

profunda da mulher e pudesse consolar a filha.

Então foi apenas após vários dias que ele soube que a família Yana

fora encaminhada às pressas para o hospital mais próximo da

região com sintomas de uma gripe estranha e muito forte a qual

evoluiu rapidamente para uma pneumonia viscosa de uma

intensidade fortíssima como nunca antes verificada em

consequência de gripes comuns.

Apesar dos cuidados, a condição dos doentes piorou enormemente

e logo apareceram nas maçãs dos rostos manchas castanhoavermelhadas

que se estenderam pelas faces até as orelhas e

pescoços, tão completamente que tornavam impossível distinguirse

a cor original das peles. Em poucas horas as cinco pessoas

daquela família morreram por sufocação com uma paralisia total

da sua capacidade respiratória.

E em poucos dias, focos da mesma doença começaram a aparecer

em várias localidades da região. As pessoas caiam doentes com


febres e tremores pelos corpos, adquiriam as manchas nas peles,

perdiam a consciência e sufocavam até morrer.

O que se seguiu foi uma disseminação muito rápida e aterradora de

doença e morte.

Com base nos relatos da famosa gripe espanhola que se espalhou

pelo mundo nos idos de 1918 quando se estima que morreram

quarenta milhões de pessoas, diagnosticou-se o mal que se

espalhou e contaminou os altiplanos e se derramou sobre a cidade

de Terra Alta como uma onda de horror. Em poucos dias toda a

região precisou ser isolada e as notícias e a convicção dos médicos

cientistas eram de que enfrentavam uma cepa da doença muito

mais perigosa e com uma virulência muito maior do que até então

conhecida.

Mais uma vez Terra Alta foi cercada por um exército, mas agora

ao lado dos soldados completamente cobertos por roupas especiais

contra a contaminação, havia os profissionais de saúde,

pesquisadores, médicos e cientistas alarmados demais para

conseguirem transmitir alguma calma à população que

simplesmente começou a cair morta por todos os cantos.

E entre os Gatopardo e os Astu Ninan a violência da doença foi

ainda pior.

Em menos de dois meses morreram, a mulher e os dois filhos de

Victor e toda a família do patriarca Astu Ninan, a exceção de

Cesar, sem que nenhum esforço fosse suficiente para salvá-los.


Cesar que estava em Portugal quando soube da condição crítica da

irmã e do estado preocupante do resto da família contrariou todas

as recomendações e voltou às pressas para encontrar Victor ao lado

da mulher agonizante com constância e dedicação muito maior do

que ele jamais foi capaz durante os trinta e três anos em que

estiveram casados. E dias depois as imagens dos dois homens

ladeando o corpo durante os serviços fúnebres esparramaram-se

pelo mundo com a insistência e com o apelo que o nome Cesar Astu

Ninan sempre provocava.

Passaram-se semanas que pareceram anos de agonia só silenciada

com a chegada da morte quando o motivo das lágrimas antes

provocadas pelo sofrimento com os pulmões sufocados que não

deixavam mais a vida entrar em sopros de ar, era superado pelo

desespero dos que viam as pessoas morrendo.

Medo e tristeza se misturavam e as lágrimas corriam indistintas

por ambos.

Cesar chorava baixinho. Desejava não ter brigado tanto com a

família acerca de tudo. Desejava ter falado mais com o pai e ter

simplesmente sido capaz de amar mais a mãe, os irmãos e os

sobrinhos. Desejava ter sido um pouco o que esperavam dele.

Victor se fechou na conhecida amargura e na raiva insana que

mantinha latente no coração desde a madrugada do suicídio do seu

irmão e foi como se caísse num poço escuro, muito fundo e cuja

minúscula abertura para a luz, lá em cima, estivesse se fechando

inexoravelmente.


Em poucos meses toda a vasta região de Terra Alta e dos altiplanos

se transformou na imagem de terra arrasada.

O país, estarrecido e temeroso pela virulência da doença, aceitou

como imprescindíveis as duríssimas medidas para manter contido

o vírus numa tentativa desesperada de proteger o restante da

população.

Foram meses de fechamento total das fronteiras do Estado em que

não se permitiram nenhuma abertura. Ninguém entrava ou saía.

Enquanto isso os cientistas buscavam desesperadamente uma

vacina, remédios e o rastreamento do vírus da sua origem e

deslocamento para prevenção de novos surtos.

Foi impossível para Victor abafar a notícia de que o mal viera

trazido por famílias de imigrantes, todos absorvidos pela

comunidade dos Yana.

Para qualquer pessoa com bom senso seria fácil compreender que

aquela primeira família que aparecera com os sintomas da gripe,

não era necessariamente a responsável pelo aparecimento e

transmissão do mal, mas as pessoas estavam tão desesperadas e tão

cheias de medo que não havia a menor possibilidade de bom senso.

As acusações contra os imigrantes em geral e os Yana em especial,

recrudesceram o ódio contra a comunidade que já era extremo. Em

consequência a comunidade dos Yana, já tão fechada, se isolou

ainda mais e eles se entrincheiraram literalmente por trás das

altíssimas muralhas que haviam feito construir ao redor de

Mayuasiri Pacha.


Victor desconfiava que no centro da comunidade Yana a assolação

da doença devia ser ainda mais terrível que no resto da região em

consequência desse confinamento.

Começou a pressionar as autoridades para forçarem a entrada, sob

pena de serem acusados como cúmplices oportunistas de genocídio,

senão por alguma ação intencionalmente criminosa, mas por

negligência e omissão.

A reação da população foi imediata e de uma ferocidade

assustadora. Victor que era há muito tempo apontado como amigo

dos Yana começou a ser abertamente hostilizado por populares

cuja dor e desespero precisavam de um culpado para o tormento

em que se transformara suas vidas.

As velhas pichações do tempo da tragédia dos homens que haviam

se infiltrado na comunidade sob o disfarce de marceneiros e que

acabaram linchados sob a acusação de tentativa de estupro

voltaram com uma carga política que não deixava dúvidas sobre

os interesses obscuros dos detratores. Começaram a aparecer em

toda parte antigas frases dúbias, que em anos passados

manchavam os muros por toda a cidade.

“Marceneiros ou mercenários?” Indagava a mensagem acusatória e

prosseguia citando Victor, “ ... Victor Ninan Gatopardo , deve

saber.” Ou apenas uma ordem. “Perguntem a Victor Gatopardo

sobre a questão dos Yana.” Eram palavras que alertavam a Victor

não apenas sobre o sentimento xenofóbico disseminado em parte

da população, como também sobre o fato de que em algum nível


era conhecida a verdade sobre o triste episódio do linchamento dos

três homens e o envolvimento dele próprio e dos Astu Ninan.

Aquela estratégia de incluírem o Ninan no nome de Victor havia

sido muito utilizada por seus opositores em tempos passados

quando queriam assinalar a ligação íntima do Gatopardo com o

poder econômico dominante na região. E não deixava de ser

ofensiva porque sugeria uma subordinação humilhante à família

mais rica e poderosa.

Rapidamente o sentimento de união e igualdade que a pandemia

fez aparecer entre a população ao vitimar igualmente pessoas de

todas as classes e idades se transformou num sentimento insano de

separação e desigualdade em que alguns que se identificavam como

vítimas de um poder e uma influência mal entendida e ainda mais

mal explicada, supunham a elite da cidade de Terra Alta como

responsável pela existência e pela continuidade do fenômeno Yana

e em consequência pela tragédia que se abateu sobre eles. E no

centro deste enrosco estava Victor Gatopardo.

De um minuto para o outro Victor se transformou de alguém

admirado por sua correção e senso de justiça em símbolo da

dominação do rico sobre o pobre e o responsável pela comunidade

dos Yana. E na trilha do ressentimento e em boa parte por

oportunismo puro e simples, começaram os discursos em que a

sociedade terraaltina foi dividida entre “nós” e “eles”, sem nunca

ficar satisfatoriamente explícito quem seriam os “nós” e os “eles”,

aparecendo como citações que remetiam sempre às relações

nefastas, ligações escusas, interesses impróprios, castas, classes, os


bons e os maus, o bem e o mal, e toda uma série de entendimentos

maniqueístas a depender de quem fosse o orador.

Dependendo de quem ocupasse o palanque, o “nós”, servia para

designar os oprimidos, aqueles menos favorecidos economicamente

e cuja pregação dizia fazerem parte de uma camada da sociedade

cuja ascensão social não era nem desejada e nem permitida pela

elite, a qual, elite, neste tipo de discurso seriam “eles”.

Mas esta percepção podia ser facilmente confundida caso o orador

fosse ocupante de um cargo público e alinhado com o poder

vigente, mesmo que essa pessoa, o orador, individualmente

pertencesse à elite economicamente favorecida, o que deveria ser

deixado de lado, nunca mencionado ou lembrado, porque estaria

se colocando como representante de uma linha de conduta que se

pretendia a favor da maioria do povo e então esse “nós” se referiria

a todos que se identificavam com as orientações e ações desse poder

e se apresentaria como a voz legítima para falar por toda

população.

Daí, muitas vezes, fanáticos pela fórmula de “nós” e “eles” se

colocarem como pilares da verdade absoluta sem admitir a

possibilidade de incorporar oratórias e efetivar ações para

minimizar e até eliminar as diferenças e a importância do, “eles”

em oposição a “nós”.

Indivíduos que se apresentavam, sincera ou ingenuamente, ou

afoitamente, ou até especulativamente, com discursos que

serviriam aos demagogos e que pretendiam convencer as massas de


que deveriam impor a inclusão social à força, obrigando “eles”

aceitarem a manutenção de programas sociais para a sustentação

de todos “nós”, custasse o que custasse, mas que ignoravam o fato

e não explicavam como “eles” mantinham e dominavam a

supremacia econômica por décadas seguidas se “nós” estamos no

poder por tempo idêntico e nos declaramos determinados a

diminuir, senão acabar, com as tais diferenças sociais. O que, aliás,

se fosse verdade, tornava absurda a insistência dos discursos do

tipo “nós” e “eles”.

Para Victor, de fato o que realmente começou a assustar foi essa

deterioração da unidade social. Quando ocupantes de cargos

públicos que haviam chegado ao poder pelo voto direto e ali se

mantinham por décadas, insistiam na fórmula populista “nós” e

“eles” e a perpetuavam-na para também se perpetuarem no poder.

E a desilusão definitiva foi a constatação de que para comunidades

como a dos Yana ou qualquer outra similar, nunca haveria um

lugar nem entre o “nós”, e nem entre o “eles”, fosse quem fosse o

orador.

E Victor simplesmente não conseguia mais achar paciência para

estes discursos. Cansado da própria luta interior pela conduta de

excelência que se impusera, afinal desistiu de combater sua

natureza mais íntima e resolveu se dar umas férias e mandar a

humanidade às favas.

Victor começou desejar, poder se afastar de tudo aquilo e de todos.


Então quando finalmente o surto da doença começou a amainar e

as curas começaram a acontecer lentamente, quando deixaram de

ser registrados novos casos de pessoas doentes e o poder público

relaxou a ordem de isolamento da cidade e da região, Victor

decidiu partir.

Conseguiu para si próprio uma nomeação como embaixador e

escolheu os mais distantes destinos do planeta. César prontificouse

a acompanhá-lo.

Providenciaram uma verdadeira estrutura funcional a ser

administrada pelos advogados das famílias para os cuidados com

a pequena Isabeau, a época prestes a completar apenas quatro

anos, que ficou com enfermeiras, preceptores, cozinheiras e

encarregados dos serviços gerais, no Casarão Gatopardo.

E Victor e Cesar partiram, a princípio, por apenas “algum tempo.”

Mas a ideia desse algum tempo, que conscientemente para Victor

não poderia ser indefinido ou muito longo porque ele nunca deixou

verdadeiramente de estar ciente de suas obrigações, mesclou-se a

sua completa desilusão com a vida que ele tentara criar ao seu

redor na luta para se tornar um ser humano bom. Merecedor da

dádiva suprema de estar vivo. E teve o estranho poder de distorcer

a sua percepção do verdadeiro sentido do que seria esse “algum

tempo” ou “passar algum tempo”, e o que deveria ter sido um

afastamento curto, de poucas semanas ou meses, durou longos,

quatorze anos.


Após os primeiros sete anos de completo afastamento de Terra

Alta, Victor afinal reconheceu Isabeau em meio ao pesado manto

de revolta e frustração que o esmagava. Quando a menina estava

às vésperas de completar onze anos e era a imagem da solidão,

Victor reconheceu-a em meio ao véu nebuloso de mágoa, raiva e

fracasso que obscurecia sua mente e resgatou-a, cobriu-a de mimos

e reorganizou sua vida de maneira a nunca mais se ausentar da

presença dela.

Viveram a partir daí, os três, como nômades durante os sete anos

seguintes para só então voltarem à Terra Alta e ao Casarão

Gatopardo.

A região estava mudada, a cidade estava mudada. Victor não

voltou a se ocupar da vida nas montanhas.

Havia transformado às terras dos Gatopardo em propriedades cuja

posse foi integralmente passada aos trabalhadores e suas famílias

e raciocinou que não tinha mais nada a fazer por eles.

Recebia a sua aposentadoria e mantinha algumas aplicações que

lhe rendiam o suficiente para uma vida confortável, além disso, era

o administrador legal da imensa fortuna Astu Ninan e Cesar e

Isabeau eram muito generosos em proporcionar a ele as

extravagâncias tão ao gosto do seu jeito perdulário.

E então ele raciocinou que não precisava e não queria mais nada.

Vivia em companhia de Isabeau no velho Casarão Gatopardo.


Como único envolvimento social continuou como o anfitrião para

os encontros da Confraria do Tabaco, o grupo de amigos mais

chegados que se reuniam sempre no Casarão para a degustação de

puros.

Cesar chegava para visitas cada vez mais demoradas de tempos em

tempos e eles renovavam suas longas palestras, muitas sem

finalidade prática alguma, mas que sempre lhes davam real prazer.

E foi por essa época que Victor se convenceu de que finalmente era

feliz.


Capítulo 10

Isabeau e Jacques Lan


Jacques Lan chegou a Terra Alta e ao casarão Gatopardo trazido

pelo vento.

Foi essa a impressão que Victor carregou por toda a vida desde a

tarde em que o vira caminhando em meio ao vendaval que agitava

as árvores do jardim. Uma impressão que assumia ares de certeza

porque se renovava sempre que Victor pensava sobre aquele dia.

Um dia descrito por ele como tendo amanhecido e continuado todo

errado.

Desde muito cedo, ainda madrugada, Victor havia intuído algo de

extraordinário provocado pelo desassossego de uma brisa

estranha, inesperada, que começara a soprar de mansinho desde

passada à meia noite.

A brisa, aos poucos, ficou mais forte e atrevida, até se transformar

numa ventania correndo pelos caminhos entre os Ipês e os

canteiros de junquilhos amarelos, fazendo as folhinhas secas se

erguerem em bailados rápidos e rodopios engraçados e a se

esgueirar pelas frestas das portas e janelas para entrar nas salas e

desarrumar as cortinas.

Era a primeira ventania do outono e ela ainda veio morna e

perfumada e tão insistente que depois de envolver e abraçar tudo

e todos provocou arrepios, que não sendo de frio, seriam

certamente de presságios.

Tudo pareceu fora de lugar com aquele vento insidioso.


Victor levantou ainda antes dos primeiros raios de sol,

surpreendido pela súbita incapacidade de ficar na cama.

Incomodado sem saber por que, desceu as escadas às escuras até

uma cozinha que encontrou anormalmente desarrumada.

Consuelo, a cozinheira, havia decidido deixar sobre a larga mesa

de madeira, os tachos para o preparo das geleias e compotas e a

fileira de recipientes com suas tampas de ferro, fez Victor se

lembrar dos tempos em que a cidade e o Casarão foram invadidos

pelos soldados do general e ele se aborreceu com essa lembrança.

O café sobre o fogão de lenha, eternamente aquecido, naquele dia

estava frio, velho, com um cheiro de mofo e Victor desistiu de bebêlo

empurrando a xícara para a pia, com impaciência.

Saiu para o corredor em direção à biblioteca e a luz fraca da

passagem revelou o mostrador do relógio carrilhão

inacreditavelmente imobilizado em seus movimentos. O carrilhão,

que jamais atrasara nem mesmo um segundo nos últimos

cinquenta anos, estava misteriosa e completamente parado,

suspenso do seu andar incansável e marcando a hora, minutos e

segundos exatos daquela madrugada em que se imobilizara.

Uma hora, quinze minutos e quarenta e cinco segundos. Intrigado

Victor abriu a porta com a moldura de jacarandá no vidro bisotê

para dar corda à engrenagem, mas porque estava sem seu relógio

de corrente, deixado no estojo sobre a mesa de cabeceira no quarto,

foi incapaz de arrumar os ponteiros na posição correta e, também

por conta disso, ele nunca soube a hora exata em que a brisa de

presságios começou a soprar. Mas se deu conta da impertinência


do vento sorrateiro quando invadiu o corredor passando pelas

frestas da larga porta da entrada para vir sacudir o roupão de seda

que ele trazia largado sobre o pijama. Victor seguiu seu caminho

pelo corredor até a biblioteca onde se acomodou na sua poltrona

favorita e ficou ali, no escuro, esperando e espiando o nascer do

dia, consciente dos rodopios loucos do vento lá fora.

Quando finalmente a claridade do sol rompeu a noite e inundou de

cores a cidade e o casarão Gatopardo, os rumores da casa, já muito

conhecidos e que davam a Victor, inconscientemente, a certeza da

continuidade segura dos rumos da vida, naquela manhã soaram

diferentes.

O movimento de Consuelo na cozinha preparando a primeira

refeição não foi o mesmo de sempre.

Houve as batidas das panelas de ferro sobre o fogão que não eram

habituais, o chiar da água fervendo na chaleira pareceu distante e

impessoal, faltou a voz do entregador de jornais que parava todos

os dias uns minutos e tomava os primeiros goles do café forte e que

naquela ocasião se limitou a entrega do periódico e a um

cumprimento com a cabeça porque estava atrasado, os gatos viralatas

que vinham todas as manhãs para as migalhas de comida,

guardadas para eles pela cozinheira, não apareceram e até os

pássaros, que a boa mulher alimentava com farelos de pão,

pareceram mais agitados que de costume com seus piados mais

persistentes e estridentes.


E o relógio carrilhão, que havia parado misteriosamente seu eterno

caminhar, não marcou o passar das horas com suas badaladas

musicais, como fizera desde sempre.

Isabeau dormiu demais e Victor tomou o desjejum sem a

companhia da neta pela primeira vez em anos e o telefonema diário

de Cesar, que chegava sempre pontualmente às onze da manhã, só

veio no início da tarde e encontrou Victor ainda à mesa do almoço

se preparando para o cafezinho antes do charuto na biblioteca.

Então, quando Isabeau, sem nenhuma justificativa razoável a não

ser desejar ficar em casa, anunciou que iria faltar ao seu trabalho

de bibliotecária no Museu de História e Arqueologia da Região de

Terra Alta, fundado com a ajuda de Victor e Cesar e sediado no fim

da rua, na antiga mansão Astu Ninan e, agindo assim, contrariou

uma rotina que ela mesma estabeleceu para si e que costumava

seguir com rígida disciplina, Victor não achou o que contestar

porque afinal este fato estranho lhe pareceu perfeitamente de

acordo aos desacordos daquele dia extraordinário.

Ao entardecer o vento havia mudado e já não parecia brincar em

rodopios com as folhinhas sobre o gramado. Estava mais agressivo

e soprava do leste trazendo nuvens de chuvas.

Victor passara o dia enclausurado com seus livros na biblioteca e

viu, através da fresta das cortinas, um homem estranho chegar ao

portão do casarão Gatopardo e hesitar por longos minutos até

finalmente se decidir a entrar.


Ele avançou pela alameda do jardim envolvido pelo vento a lhe

desarranjar as roupas e os cabelos que usava compridos, caídos

sobre os ombros. Victor o espreitava avaliando sua figura jovem,

muito alta e muito máscula, com movimentos elegantes como os

de um felino e notou que, após se decidir, já não havia nos modos

do estranho nenhum vestígio da recente hesitação. Ele seguiu pelo

caminho que o levaria à porta de entrada com a desenvoltura dos

homens cheios de confiança e força.

E Victor, invadido pela visão do seu presságio, pensou que talvez

houvesse uma minúscula chance para um desvio do destino e que

afinal não se materializasse o inevitável. Mas reconheceu esta

possibilidade como vã pela voz alegre e despreocupada de Isabeau,

que veio do jardim de inverno atraída pelo som da campainha,

avisando aos empregados que ela mesma atenderia a porta.

Justamente Isabeau, a pessoa mais improvável para estar ali,

naquele dia e naquela hora.

Victor chegou até a passagem entre o corredor e a porta da

biblioteca e se deixou ficar num pequeno rincão de onde conseguia

ver a entrada principal do casarão sem ser visto, oculto pela

estante cheia de livros colocada naquele lugar para exibir aos que

entrariam no recinto sagrado uma amostra dos tesouros que iriam

encontrar.

E então, obedecendo algum mágico desígnio da vida, Isabeau

abriu a porta e o vento morno e perfumado trouxe para a

sobriedade da velha casa, Jacques Lan.


E Victor, fascinado. Percebeu o tempo suspenso naquele instante

infinito em que as duas almas, de Jacques e Isabeau se

encontraram. Segurou por um segundo a respiração, consciente de

ser espectador do momento supremo, único e tão raro nas vidas dos

seres humanos.

E mesmo sem poder ver o rosto da neta, de costas para ele, Victor

teve certeza de que ela também entendeu imediatamente a

importância daquele instante em sua vida.

Toda ela se imobilizou, ficou estática e pareceu flutuar suspensa no

tempo espaço e embora não tenha feito o mínimo movimento em

direção ao homem, parado a sua frente, foi como se ela se

entregasse para ele para se perder e se perpetuar em seus braços.

E Jacques... Como saber o que se passou em seu espírito e em seu

coração...

Ele mesmo, um dia, descreveria sua percepção daquele encontro

como um sonho muito belo, mas com a marca da inexorabilidade

do destino.

Victor viu nele um homem totalmente enlevado. Completamente

tomado de admiração e atração pela, incrivelmente bela, criatura

que tinha a sua frente. Viu o olhar para o rosto de Isabeau como

se incapaz de acreditar em tanta beleza e emocionado tentar falar,

mas sem conseguir imitir um som, ficar imóvel e hipnotizado,

apenas olhando para ela. Ele tentou erguer uma mão

minimamente em direção dela para talvez sentí-la e ter certeza de


que ela não era uma ilusão, mas descobriu-se incapaz também

disso.

Pareceu que os segundos se transformaram em horas e Victor teve

a forte impressão de que se não fizesse nada, o homem, roubado de

suas forças e de seu autocontrole em algum momento cairia de

joelhos diante de Isabeau. Uma suposição absurda e tão

extravagante que fez Victor se movimentar com estardalhaço

intencional para quebrar o encanto. Salvando a sanidade do

visitante e se poupando da agonia daquele minuto sem fim.

Victor saiu de seu esconderijo e caminhou resoluto em direção ao

par ainda imobilizado e preso no feitiço de um pelo outro. Falou

alto, num tom diferente do seu habitual, apresentando a si mesmo.

“___Victor Gatopardo! Em que posso ajudá-lo?” A fórmula de

cortesia teve o efeito de atrair apenas a atenção de Isabeau e ela se

voltou para olha-lo e Victor pode ver seus olhos marejados e soube

que ela sentira a mesma intensa emoção que nascera e crescera no

espírito, para ficar estampada no rosto daquele homem estranho,

que continuava parado sob o batente da porta da entrada, ainda

envolvido pelo vento e preso ao fascínio que Isabeau exercia sobre

ele. Incapaz de desviar os olhos dela.

Isabeau, ajudada pelo som da voz de Victor, conseguiu recuperar

em parte o domínio de si e afastar-se daquele espaço sob a mágica

influência do visitante para ir se colocar ao lado do avô e só então

encarar novamente o homem estranho e fascinante. Ele, no

entanto, continuava com olhos só para ela. Victor falou com ele

mais uma vez. “__Posso ajuda-lo meu jovem...?” E como ainda


ficasse sem resposta. Forçou um ruído áspero, com o som

característico de limpar a garganta para obrigar o interlocutor a

ouvi-lo. “__Hrum, hrum,...!” Só assim conseguiu alguma atenção

do estranho que, mais do que nunca, pareceu estar se libertando

com muito esforço de um sortilégio. Ele afinal respondeu para

Victor, revelando uma voz com modulação grave e profunda.

“___Sim? Como? ... como disse? Áh! me desculpe. Eu procuro por...

Victor? Victor Gatopardo, ... o embaixador?

O embaixador Gatopardo?” E finalmente ciente de que deveria estar

parecendo desrespeitoso e inapropriado fez um esforço para se

portar melhor. Voltou-se totalmente para Victor. “__ É o senhor?”

Victor fez uma semi reverência para indicar que era a pessoa

mencionada e encarou o homem com severidade. Isso serviu para

afinal ajudá-lo a recuperar completamente a compostura. Ele, com

esforço evidente, obrigou-se a continuar olhando somente para

Victor. Estendeu a mão em cumprimento.

“___Boa tarde embaixador, eu sou Jacques Lan. Acabo de chegar.

Fui recentemente contratado como chefe pesquisador do setor de

arqueologia e antropologia dos povos andinos da região central e me

disseram que seria imprescindível me apresentar ao senhor.”

Estreitou entre as suas a mão que Victor lhe estendera e continuou

falando. “__Tenho aqui minhas credenciais e uma carta do atual

Diretor do Museu Nacional de História Natural, que eu creio, é um

amigo seu.” Fez uma breve pausa, sorriu para Victor e percebendo

que o Gatopardo se mantinha completamente atento ao que ele

dizia continuou. “__Desculpe ter aparecido assim sem avisar, mas


pensei...! Bem ... apenas uma visita rápida, para falar sobre o meu

trabalho, ... algumas descobertas e novos projetos que eu penso que

poderão interessá-lo.”

A partir daí aquele encontro conseguiu adquirir nuances de

relativa normalidade. Victor convidou-o a entrar para a sala

indicando-lhe uma poltrona, enquanto Isabeau foi pedir para

Consuelo preparar e servir um café fresco.

Isabeau não participou da conversa, não ficou na sala, mas toda a

atenção de Jacques estava de tal maneira sintonizada na busca por

ela, na necessidade de percebê-la onde quer que estivesse por entre

aquelas velhas paredes e passagens do casarão assombrado por sua

figura de mulher recém descoberta e desejada por ele que mais

tarde, quando Victor, em conversa com Cesar contou sobre o

acontecido e descreveu aquele encontro inusitado, disse que na sua

opinião a escolha da neta se manter afastada fizera sua ausência

mais presente do que nunca.

E disse também sobre a visita que Jacques pretendera rápida, que

pareceu durar a eternidade.

O tempo provou que Victor estava certo. Sob vários aspectos, ao

entrar aquela tarde no casarão Gatopardo, Jacques Lan nunca

mais conseguiu sair.

Depois desse encontro o amor entre Isabeau e Jacques Lan seguiu

seu curso com a rapidez de uma forte correnteza colina abaixo e

com idêntica impetuosidade.


Para Victor, que por toda sua vida procurara por esse tipo de amor,

estar condenado a observá-lo se desenvolvendo, crescendo e se

apoderando de cada minúsculo detalhe da vida que em grande

parte também era a sua vida, contaminando tudo, cada canto de

cada espaço, cada atitude, cada vontade, ou sonho ou ideia e em

devaneios se desfazendo em suspiros, foi como uma benção e um

castigo que transformou o curso da sua existência, jogando-a num

torvelinho de sensações exacerbadas, exatamente naquela altura

da vida em que ele havia acreditado ter alcançado a placidez e o

silêncio dos seus dias.

Decidido a preservar sua paz de espírito, tentou ficar alheio ao

reboliço de emoções, até porque vira sempre sua neta tão senhora

destas situações, acabar com qualquer pretensão mais séria dos

admiradores com um simples dar de ombros, que preferiu esperar

para ver até onde iria aquela novidade.

Mas, uma súbita recaída de Isabeau a uma inacreditável

insegurança, obrigou-o a se ocupar daquele assunto de namorados

que a princípio ele pretendera deixar exclusivamente por conta dos

namorados.

Entre os dez e os dezoito anos, faze da vida que Isabeau

acompanhou avô e tio avô pelo mundo e se transformou de menina

em jovem mulher, todos os cuidados e todos os mimos com que foi

cumulada e às experiências que viveu criaram uma imagem

superficial de pessoa segura, confiante nos próprios atributos e na

capacidade de discernimento sobre a própria vida, seus quereres e

seus poderes. Até ali esteve sempre no comando dos próprios


sentimentos e os muitos garotos e jovens enamorados que

cruzaram seu caminho, alguns que se derreteram por ela com juras

de amor eterno, foram subjugados pela vontade soberana da jovem

e não mereceram dela um segundo de inquietação.

Victor observou e aliou a força indiscutível da personalidade da

neta a uma certa frieza, traço de caráter que ele admitia ter sido

herdado dele próprio e desejou, para o bem de Isabeau, que de

alguma forma ela pudesse suavizá-lo. Mas verificou que isto não

causava para ele, Victor, nenhum incômodo, ao contrário,

colocava os casos românticos da jovem numa categoria dos

assuntos sem importância que podiam ser esquecidos.

Deixados exclusivamente por conta dela. Providenciou que ela

tivesse toda a liberdade e acesso irrestrito às conversas e consultas

com médicos e terapeutas para ser adequadamente orientada, para

perguntar o que quisesse e para munir-se de tudo necessário a tais

assuntos e não pensou mais nisso.

O passar dos anos transformou Isabeau numa autêntica beldade,

bem aos moldes das famosas belezas Astu Ninan com aquela

intrigante mistura de raças que criava tipos exoticamente belos e

que já fora objeto de comentários até internacionais por conta das

raras ocasiões em que ela foi fotografada ao lado de Cesar.

Quando Jacques a encontrou, Isabeau estava com vinte e dois

anos.

No auge da sua beleza física e com sua personalidade plenamente

assumida, moldada por uma educação diferenciada, refinada, fiel


às regras da mais estrita etiqueta e ao mesmo tempo tolerante e

aberta às diferenças e aos mais diversos costumes. Isabeau ficava

perfeitamente e igualmente à vontade em uma recepção da realeza

em salões de algum palácio imperial ou entre choupanas de chão

batido em alguma cerimônia tribal cercada por nativos seminus.

E esta diversidade de experiências, incomuns para alguém tão

jovem, também já lhe valera ser cortejada por homens

representantes de diferentes raças e crenças e classes sociais e, com

todos, ela sempre soube lidar muito bem.

Então foi com surpresa que Victor a viu sucumbir à insegurança

diante da paixão de Jacques Lan, e só após muita reflexão

conseguiu avaliar o quanto ela ainda tinha, no inconsciente, da

menininha solitária do casarão.

A paixão inesperada que a deixou refém de Jacques, fez Isabeau

voltar às inseguranças da infância e duvidar do merecimento de ser

amada.

A princípio, já nos primeiros dias em que Jacques parecia segui-la

aonde quer que fosse, Isabeau, confusa e assustada, mais com seus

próprios desejos e pensamentos do que com a atitude apaixonada

de Jacques, procurou por Victor para conseguir dele as respostas

às perguntas que nem mesmo conseguia formular. E Victor se

descobriu incapaz de ajudá-la. Não sabia responder sobre um

sentimento que nunca havia experimentado e seu forte senso de

honestidade e justiça obrigava-o à sinceridade. Mas uma reflexão

corajosa sobre a história de vida de Isabeau e o profundo


conhecimento sobre seus medos, angústias e inseguranças, todas

elas remetidas àquela primeira infância marcada pelo abandono

pelo qual Victor carregaria sempre uma carga pesadíssima de

culpa, fizeram-no compreender muito do que se passava no íntimo

da neta. Ela era a eterna vítima de todos os anos em que ficou

esquecida e haver sido resgatada para uma vida de luxo e uma

sucessão de experiências maravilhosas não a livrou da percepção

sobre si mesma que se resumia por um único, feio e definitivo

adjetivo, ...inadequada. Sentimento tão mais destrutivo por ser

inconsciente.

Compreendendo isso Victor se convenceu que tudo dependeria da

atitude e da persistência de Jacques Lan. Disse isso a ele da forma

mais suave e se mantendo o mais distanciado possível, mas

intimamente prometeu ficar atento ao desenrolar dos

acontecimentos.

Encontravam-se com frequência porque a atividade de Jacques

como pesquisador envolvia viabilizar o desenvolvimento e a

implantação de novos projetos e ele estava trabalhando para

formalizar uma parceria entre o Instituto Histórico e Arqueológico

para Estudos Andinos que atuava no âmbito federal e a Fundação

Histórica Arqueológica para a Região de Terra Alta e o assunto

era de interesse de Victor e de Cesar Ninan que vinham investindo

com regularidade em varias áreas de pesquisas históricas e que

atuavam como verdadeiros mecenas captando doações e apoiando

as iniciativas oficiais e algumas particulares.


O encontro com Isabeau não foi totalmente inesperado porque

Jacques ouviu referências a ela e a sua famosa beleza, mas não

ousara esperar conhecê-la já na primeira visita ao casarão

Gatopardo e certamente nada o preparou para a emoção que o

invadiu ao vê-la.

Ele já estava com vinte e sete anos e com alguma experiência em

casos de amor. Mas nada nunca se comparou ao que ele sentiu

quando viu Isabeau pela primeira vez. E Jacques soube que tudo

o que tinha vivido até ali, cada pequeno acontecimento e

movimento em sua vida só serviram para levá-lo aquela tarde até

o casarão Gatopardo para ele se encontrar com ela.

A partir daquele encontro nunca mais conseguiu esquecê-la.

Ficava procurando desculpas para ir vê-la no casarão ou no museu

onde ela trabalhava. Inventava urgências para ir se encontrar com

Victor e fazia coincidir os horários com os dela. Acordava

murmurando seu nome, marcando bem a entonação final, fazendoo

alongar-se na última sílaba, num isabôôô... que sentia se

enroscando na língua e nos lábios e se acabando num suspiro de

aflição por não tela nos braços. Passava os dias contando os

minutos até a hora de ir, para se deixar ficar, nos seus caminhos,

buscando-a aflito contendo a agitação do coração ao percebê-la se

materializando na sua elegante figura, a força de tanto imaginá-la

e querê-la e desejá-la a cada segundo dos dias que só se acabavam,

para ele poder sonhar com ela.


Viveu assim entre agonia e êxtase por quase uma quinzena. Então

uma manhã, sem que houvesse planejado nada, nem

conscientemente se decidido a nada, saiu para ir ao casarão

Gatopardo e chegou imbuído de uma decisão inabalável. Venceu a

distância entre o portão principal e a porta da entrada em passadas

largas, quase correndo. Mal viu o mordomo que atendeu a porta

deixando-o entrar e que, no entanto, adivinhou o motivo do

ímpeto que o movia porque, sem uma palavra, lhe indicou

imediatamente o jardim de inverno aonde ele iria encontrar

Isabeau.

Encontrou-a na confusão de flores e folhagens e sem nenhuma

explicação ou a menor hesitação tomou-a nos braços para cobri-la

de beijos e não duvidou por um minuto que ela o aceitaria e

retribuiria seus carinhos. “__Eu precisarei partir, muitas vezes e em

algumas destas viagens ficarei longe por muito tempo.” Disse ele

afinal, ainda entre beijos e sem permitir que ela se afastasse dele,

como se explicando como seria para se relacionarem e para ficarem

juntos para o resto da vida, submetendo à aceitação dela a pessoa

que ele era e a sua forma de vida porque ele já não conseguia mais

viver sem ela.

E Isabeau subitamente apaziguada em suas dúvidas e medos sorriu

retribuindo-lhe os beijos e o abraço. Tomou-o para si pensando que

naquele momento ele não partiria. Respondeu para a declaração

dele. “__Mas hoje você está aqui.”

E assim foi naquele dia e nos muitos outros dias, por longos quatro

anos.


A vida no Casarão Gatopardo assumiu uma dimensão que Victor

nunca suspeitara. Com mais alegria, mais empolgação, com a

energia do amor dos jovens contaminando tudo e despertando a

simpatia de todos que frequentavam as vastas salas antigas.

A embriagues desse amor não deixava espaço para nenhuma

esperança de serenidade e controle. Amavam-se com ardor, com

sofreguidão, com desespero e envolviam todos e tudo nesta loucura

de desejarem-se e amarem-se acima de qualquer coisa.

Começou a ser comum Victor ser cumprimentado por seus amigos

havanófilos, que vinham todos os sábados à tarde para a

degustação de puros, elogiando a beleza do casal. E a princípio o

Gatopardo ficou intrigado porque não se achava responsável de

nenhuma maneira por aquele relacionamento. Mas ele acabou

reconhecendo que estava tendo muita satisfação com as

extravagâncias daquela nova rotina de risos e rodopios.

Via Isabeau feliz como nunca e seu conhecimento sobre Jacques e

seu convívio diário, independente do que ele representava para a

neta, despertou em Victor um sentimento de amizade que ele já

havia se resignado a não encontrar nessa vida e desistido de

procurar.

Jacques foi a única pessoa por quem Victor Gatopardo conseguiu

sentir uma amizade genuína, profunda e sincera e completamente

desinteressada. Todos os demais eram, em algum grau, agentes de

interesse em algum plano para a consecução de seus projetos.

Mesmo Cesar e Isabeau por serem seus parentes mais próximos e


especialmente pela tragédia que vitimara os demais membros da

família, muito além do afeto que Victor pudesse ter cultivado

incansavelmente por eles, representavam, mais do que qualquer

outra coisa, seu sucesso familiar.

E o grau de responsabilidade que Victor sentia pelo bem estar

deles, que era enorme, estava diretamente relacionado à percepção

desse sucesso.

Mas isso não valia para Jacques.

Jacques Lan conquistou a admiração, o respeito e a amizade do

Gatopardo principalmente por sua qualidade moral.

Victor reconhecia-o como um ser humano bom, pura e

simplesmente e acima de qualquer outro predicado e admirava-o

por sua inteligência, honradez, determinação, capacidade de

trabalho e por demonstrar uma saudável ambição.

Victor via muito do jovem que ele próprio fora em Jacques, mas o

considerava infinitamente melhor do que jamais tinha sido porque

Jacques era capaz de algo que Victor nunca conseguiu. Jacques era

capaz de amar. E não um amor qualquer, mas o amor

incondicional, pleno, definitivo, profundo e verdadeiro.

De uma maneira estranha, talvez até questionável em sua

legitimidade, Victor começou a se sentir redimido em uma parte

ínfima, mas ainda assim importante, daquele defeito de sua alma,

o seu segredo. Redimido por um homem como Jacques, que ele

valorizava acima de qualquer outro, conseguir se realizar no amor


de maneira tão sublime através de Isabeau. Pois afinal ele, Victor,

tinha alguma responsabilidade na formação desta mulher e era ela

a mulher amada por Jacques Lan.

Então quando cumprimentado acerca do relacionamento de

Isabeau e Jacques que invadiu o casarão Gatopardo de emoções e

que brincava com a imaginação de Victor associando o

desassossego da paixão ao vendaval de outono que trouxera

Jacques até ali, como se aquele vendaval nunca tivesse passado,

mas apenas se transformado no amor infinito que se derramava

pelos corredores, escadas e pela infinidade de cantos do casarão,

Victor passou a sorrir completamente satisfeito.

E foi por conta dessa satisfação subitamente despertada que Victor

começou a prestar mais atenção neles e notar também pequenas

manobras de Isabeau para evitar se afastar de Jacques.

Ela vivia assombrada pelo pavor de vê-lo partir.

Victor diagnosticou uma transmutação da velha insegurança e do

sentimento de inadequação que a atormentavam desde sua

meninice de criança abandonada, em crises de ansiedade e pânico

penosamente mal contidas, ao simples cogitar da possibilidade de

Jacques se afastar dela por mais de um ou dois dias.

A princípio muito timidamente, Isabeau usou suas artes femininas

para prendê-lo, fazendo-o adiar mais e mais as datas das viagens

dos trabalhos em campo. Jacques percebia claramente estas

manipulações, mas estava de tal maneira apaixonado que não

avaliava com clareza a que levaria este hábito dela se intrometer


no trabalho dele e até se sentia lisonjeado. Mas não foi surpresa

quando Victor começou a perceber uma certa impaciência de

Jacques com tais artimanhas.

E além disso havia as dificuldades normais do dia-a-dia, comuns

ao trabalho dele.

Muitas vezes projetos de pesquisas arqueológicas precisavam

esperar meses e até anos para que se conseguissem verba e

aprovação oficial para serem realizados. Desde que Jacques estava

vivendo em Terra Alta, no casarão Gatopardo com Isabeau, não

conseguira aprovação para nenhum projeto realmente empolgante

e os trabalhos menores, aulas, palestras, congressos, pesquisas

acadêmicas, suas atividades de laboratório e as avaliações e os

embasamentos teóricos já o estavam entediando.

Victor começou a se preocupar. Comentou com Cesar que

respondeu filosoficamente que o amor deles sobreviveria ao teste

da possessividade de Isabeau na medida do amadurecimento

emocional dela que precisaria superar suas inseguranças e se

fortaleceria com a realização profissional de Jacques.

Talvez o rapaz tivesse que voltar e reassumir seu posto burocrático

nos escritórios da capital se nenhuma pesquisa de campo

reconhecidamente valiosa fosse iniciada para justificar a

permanência dele em Terra Alta.

Com cautela, muito suavemente, Victor resolveu interferir usando

da sua influência sobre os Conselheiros do Museu e os diretores da

Secretaria de Cultura do Estado.


Todos amigos seus de longa data e a maioria membros antigos do

Clube Internacional de Havanófilos e conseguiu o financiamento

para um dos projetos mais ambiciosos de Jacques, mas que deveria

demandar um trabalho de campo de muitos meses, obrigando

Jacques a viajar diversas vezes e ficar fora da cidade por períodos

muito longos.

A notícia encheu Jacques com um ânimo novo e assustou Isabeau

que tratou de dissimular sua contrariedade. Mas como ainda

teriam algumas semanas antes de efetivamente começarem os

preparativos para as viagens, haveria mais algum tempo de paz, o

qual Victor pretendia usar para aconselhar a neta.

No entanto os acontecimentos se precipitaram por uma

circunstância inesperada. Uma descoberta extraordinária.

Jacques Lan não era apenas Jacques Lan, era de fato Jacques

Lorran Lévi-Strauss.

A revelação aconteceu ao sabor do acaso, como tantas vezes sucede

com as grandes descobertas. E depois de conhecidas às

circunstâncias e os detalhes do fato, Isabeau nem ao menos

conseguiu atribuir-lhe a importância merecida e não teria pensado

no assunto uma segunda vez se não pela grave crise desencadeada

no íntimo de Jacques, mas que ela só avaliou com a devida

seriedade após semanas de atraso.

Tudo aconteceu durante uma das ausências dele, quando

desenvolvia suas análises de laboratório. Isabeau resolvera

arrumar algumas caixas velhas, empilhadas num dos cantos mais


altos e inacessíveis do armário do quarto e dera com um velho e

muito amarelecido documento. Uma carta de apresentação para

um jovem recém formado cientista e pesquisador interessado em

participar de uma expedição às tribos remanescentes nas

profundezas da floresta Amazônica.

A carta seria um documento totalmente comum se não fosse pela

assinatura ilustre do célebre antropólogo e cientista, Claude

Gustave Lévi-Strauss.

Entre as dobras do papel e grandes nódoas de umidade a

testemunharem a passagem dos anos, estavam as argumentações

de Lévi-Strauss que se empenhara em apresentar o sobrinho neto,

recém graduado em arqueologia, antropologia e etnografia.

O jovem, que a carta pretendia apresentar, herdara o nome de

batismo do avô paterno, Jacques Lorran Lévi-Strauss, meio irmão

do famoso cientista e pensador, autor da carta.

O avô, o velho Jacques Lorran, seria lembrado unicamente por esse

parentesco que era a ligação entre o proeminente antropólogo e o

jovem Jacques Lan. Pois ele próprio fora um total desconhecido

que levara a vida pintando retratos e marinhas nas ruas estreitas

de Saint Paul de Vence, onde vivera a maior parte da sua vida

solitária e onde morrera tendo como única companhia um gato

siamês estrábico.

Impulsionado pelo apadrinhamento do tio avô famoso o jovem

cientista conseguiu seu primeiro trabalho de campo e o nome

Jacques Lorran assinou o original da primeira grande publicação


de suas descobertas. Fato que mencionamos aqui apenas para

ressaltar a supressão de Lévi-Strauss, numa clara tentativa de

Jacques se livrar do sobrenome que ameaçava ofuscar o brilho que

havia idealizado para si próprio.

Anos depois, já graduado também em psicologia forense e como

cientista pesquisador contratado pelo Departamento para Buscas

das Origens através da Arqueologia, Antropologia e Etnografia

Aplicadas do Museu Nacional de História Natural, ocasião em que

Jacques se perdera nas planícies andinas e descobrira as muralhas

construídas com ossadas humanas, a publicação dos trabalhos que

o tornariam conhecido e respeitado nos meios acadêmicos merecera

uma versão do nome de batismo ainda mais resumida. Apenas um

arremedo do nome completo e quase só uma lembrança do som

original. O simples e definitivo, Jacques Lan, que ele haveria de

adotar dali para frente, incorporando-o ao plano de alcançar

sucesso e fama como cientista arqueólogo, antropólogo, etnógrafo

e especialista em psiquiatria forense, nos passos do seu tio avô, mas

livre da influência do parentesco ou do ilustre nome de família.

Como Jacques Lan, desenvolveu uma força própria e se acostumou

a comodidade do seu anonimato. E foi assim que chegou à Terra

Alta para se encontrar com Victor Gatopardo. Numa tarde de

outono com o vento morno adocicado pelo perfume das flores da

mimosa e com o terracota e o ferrugem pintando as folhas das

árvores contra um céu cinza azulado.

Esquecido da carta assinada, anos antes, pelo ilustre tio avô.


E caíra na armadilha da paixão por Isabeau marcada por completa

e descontrolada obsessão.

Deixou de viver para apenas sobreviver por ela.

Sem se alarmar de imediato pelo deslumbramento que o dominara

por não conseguir avaliar corretamente a entrega de sua mente e

de seu coração, pensou que o seguir da vida, os dias sucedendo-se

aos dias, trariam o necessário arrefecimento da paixão.

Esperara que o tempo se encarregasse de curar os desvarios e

providenciasse a calma que temperaria sua vida de casal.

Viveram assim, quatro anos e meio de loucura apaixonada.

Com um gradual e inexorável aumento da necessidade de um pelo

outro até que Jacques se descobriu incapaz de seguir o compasso

natural da vida sem a percepção da sintonia do seu inspirar e

expirar em cadência uníssona à respiração de Isabeau.

E foi então que ela resolveu arrumar caixas velhas deixadas nas

prateleiras mais altas do armário do quarto e a história de um

jovem brilhante e ambicioso, que desejara marcar o mundo com as

suas descobertas, aparecera sob uma assinatura gravada pelo

nome Lévi-Strauss.

E Jacques se lembrou de quem era.

Ao contar sua história. Do seu nome herdado ao avô anônimo e da

descendência de um tio avô que era uma das personalidades mais

influentes da sua época, reviu a trajetória de uma vida que


pretendera suprema. E se reconheceu como o único traidor de si

mesmo. Despertou para o desespero da sua condição subserviente

a uma paixão doentia que não admitiria mais nada e nem

permitiria mais nada e sentiu todo o horror que sentiria se estivesse

se consumindo pelo vício de alguma droga mortal que exigiria,

para a recuperação da sua dignidade humana, os tormentos da

abstinência. Percebeu com uma sabedoria transcendente ao saber

mundano que não poderia ser certo, ou bom, ou justo, ou

verdadeiro, um ser humano precisar tanto de outro ser humano, a

ponto de depender da sua presença física para conseguir respirar.

Agarrou-se ao instante de lucidez para desejar o antigo desejo de

construir sua carreira e sua fama depois do sacrifício de repudiar o

próprio nome para ser reconhecido unicamente por seu talento.

Voltou-se para as necessidades de seus próprios desejos mais

profundos e compreendeu com um sofrimento de morte que não

haveria salvação em meias medidas. Para reencontrar-se, para

reconstruir-se como o cientista que desejara vir a ser, precisava se

libertar do feitiço de Isabeau e arrancar do coração a dependência

extrema que desenvolvera dela, para poder viver novamente sua

própria vida.

A partir dai, sofreu meses de tortura até conseguir forças para se

afastar dela e afastá-la dele e pensou que iria morrer. E de certa

forma morreu, porque nunca mais foi o mesmo. Agarrou-se ao

projeto que fora aceito e à oportunidade de uma longa viagem de

trabalho, como se agarraria a uma taboa de salvação e se

comprometeu com oito meses ininterruptos de trabalho de campo,


pesquisando evidências de culturas pré-incaicas numa das mais

hermas paragens andinas. Praticamente sem possibilidade de

comunicação. Para usar este tempo de total afastamento de

Isabeau como uma cura contra um mal que se ele não fosse capaz

de vencer, acabaria por matá-lo.

Desejando, ao final daquele tempo de tortura poder voltar para ela

e para uma vida mais normal, mais saudável. Em que o amor os

completaria sem aniquilar suas individualidades.

Partiu com uma equipe reduzida e com o firme propósito de não

voltar antes de completada sua missão. Partiu imbuído por uma

decisão inabalável. Mesmo com as lágrimas e o desespero dela e

deixando-a devastada apesar das explicações e das razões dele.

Ela brigou, discutiu, ameaçou, mas ele foi irredutível na decisão de

partir porque estava convencido de que seria a única maneira de

não perdê-la definitivamente. Prometendo na volta, voltar para

ela e para uma vida de um amor possível.

E uma vez lá, afogado na imensidão dos Andes, passou a lutar

contra a lembrança dela, contra a imagem gravada totalmente na

sua memória e em cada fibra do seu ser e esperou poder se recompor

para voltar ao que fora antes dela. Vivia um dia de cada vez, como

os dependentes de drogas e álcool que lutam suas lutas particulares

no dia-a-dia e tinha a ilusão de estar se fortalecendo com o lento

passar da vida.

Então se esgotaram os dias e os meses e a agonia da saudade deu

lugar a ânsia pela volta e pelo momento do reencontro. Jacques


voltou da longa ausência com a satisfação de um trabalho

completo e bem realizado. Chegou com uma aparência meio

selvagem, barbado, cansado e sujo. Usando as roupas de couro com

as marcas das trilhas e do desconforto dos lugares rústicos.

Mas chegou feliz e confiante, se sentindo pleno e bem, seguro de ter

feito o necessário para o melhor para ambos.

Morto de saudades dela, mas convencido de que a antiga

dependência cedera finalmente diante de um amor mais maduro,

mais tranquilo e por isso mesmo, mais duradouro.

Correu para casa desesperado por tomá-la nos braços.

Mas encontrou o casarão apenas com os empregados.

E foi o velho mordomo, o mesmo que um dia fora cúmplice da sua

louca paixão, que o informou que já havia quatro meses que

Isabeau havia partido.

Quando Victor voltou, após apenas alguns minutos, vindo às

pressas tão logo recebeu, em casa da sua amiga Esmée, a notícia

da chegada de Jacques, encontrou-o vasculhando papeis e

apontamentos em busca de alguma pista sobre o paradeiro de

Isabeau. Desarrumando, aflito, a ordem da escrivaninha que

ficava na saleta contigua ao quarto que fora deles pelos últimos

quatro anos.


Victor percebeu que Jacques estava profundamente perturbado.

Ainda vestia as roupas de couro e jeans com as marcas da vida rude

que vivera durante os oito meses passados nos confins andinos.

O rosto mais moreno do que antes, bronzeado pelo sol da

montanha, os cabelos longos, presos, caídos nas costas sob o

chapéu de cowboy, a barba por fazer, o olhar febril.

Jacques mal olhou para ele. Continuou a busca frenética de

qualquer coisa que lhe indicasse onde procura-la.

Victor escolheu as palavras com cuidado porque podia sentir toda

a tensão dele, o desassossego, a frustração que rapidamente dava

lugar à raiva. “__ Jacques,... olá meu rapaz.”

Jacques levou tanto tempo para responder que Victor pensou que

talvez não tivesse escutado e quando afinal falou,

surpreendentemente, não fez a única pergunta que o estava

atormentando e pela qual se mantinha naquela agitação nervosa.

Jacques não perguntou para onde Isabeau havia ido, ele disse

apenas. “___Victor.” Como se cumprimentando e assegurando que

o reconhecia apesar do seu evidente estado de perturbação.

Victor suspirou fundo, desistindo de esperar que aquele encontro

afinal não fosse terrivelmente difícil.

Disse, para informa-lo do que ele precisava saber e para fazer parar

aquela busca frenética, doentia. “___ Ela está em Roma, foi para lá

há quatro meses. Foi para ficar com Cesar, ... por um tempo.”


Estas palavras fizeram Jacques mudar imediatamente de atitude.

Ele olhou Victor por alguns instantes fixamente e seu olhar tinha

uma mágoa e uma determinação assustadoras. Agora que já sabia

onde Isabeau estava, sabia para onde ir. Caminhou resoluto da

saleta para o quarto e com um movimento brusco abriu a velha

mochila que deixara num canto, ainda cheia das coisas que

trouxera e esvaziou-a jogando todo o conteúdo pela cama e pelo

chão para dar lugar às outras roupas e coisas. Para a viagem que

pretendia fazer.

Victor que sabia exatamente o que ele estava pensando e até

ousava acreditar que sabia o que ele estava sentindo, tentou falar

com ele. Com a maior doçura de que foi capaz, começou dizendo.

“___ Ouça Jacques, agora você deve se acalmar, não fazer nada disso,

não deve ir atrás dela. Apenas fique aqui e me ouça.” Mas Jacques

não deu mostras de pretender ouvi-lo, ou a quem quer que fosse.

Continuou sua movimentação irritada, meio sem saber

exatamente o que fazia e sem a menor pretensão de lógica ou bom

senso. Indo e vindo pelo quarto sem parar. Agarrava a esmo coisas

de cima do toucador e trazia do banheiro objetos de toalete, ia

enfiando tudo na mochila. Não olhava para Victor.

Victor falou de novo contra aquela decisão dele, de ir encontrar

Isabeau.

“___ Jacques, escute, você não deve ir. Não será bom. Não será bom

para ela e certamente não será bom para você. Apenas fique aqui.

Vamos descer para a biblioteca, nos acomodarmos nas poltronas,

tomar um bom conhaque.” “__ vamos conversar!”


E de novo, agora com mais autoridade na voz, um tanto mais

brusco.

“___Vamos conversar. Eu preciso conversar com você. Preciso,... há

algo que eu quero,

...que eu preciso falar para você Jacques.”

Mas Jacques não ouvia. Deu por terminada a pretensa arrumação

da mochila de viagem, se certificou de pegar a carteira com

documentos, cartões e dinheiro, as chaves do carro, ... calçou

novamente as luvas de couro e, ... ia sair!

Precisava ir para longe dali, onde ela não estava mais. Ia sair para

procurar Isabeau!

Então Victor reuniu no seu íntimo as forças que lhe estavam

faltando e se decidiu a fazer o que já deveria ter feito.

Colocou-se no caminho dele em frente à porta, bloqueando a saída.

Calculou acertadamente que mesmo estando tão profundamente

perturbado, Jacques não o agrediria, ao menos não

imediatamente.

Era um risco bem calculado porque Jacques, jovem, forte, no auge

do seu desenvolvimento e estando em plena forma, poderia

machucá-lo com enorme facilidade, mas Victor acreditava que o

que tinha a dizer iria detê-lo, além de magoá-lo enormemente.

Mas, ainda assim, era algo que precisava ser dito.


Havia mágoa também na voz de Victor quando ele falou. Uma

mágoa que nem mesmo ele sabia ser capaz de sentir por estar

prestes a ferir tão terrivelmente outro ser humano.

“___Você não pode ir atrás dela Jacques. Não pode. Não deve.

Isabeau se casou com outro homem. Ela está casada há pouco mais de

uma semana agora.”

Esta revelação teve o poder de fazer Jacques parar imediatamente.

Como se de repente a alma lhe tivesse sido roubada. Como se

qualquer força que ainda pudesse ter, lhe faltasse. E então

aconteceu um silêncio mortal, para em seguida, vindo do lugar

onde ele estava, o barulho da pesada mochila se esparramando

sobre o chão, largada de repente, como se subitamente tivesse

ficado insuportavelmente pesada.

Além disso, só o olhar dele. Os olhos muito negros, expressivos

onde se podia ler sua alma normalmente muito sensível e que por

um milésimo de segundo adquiriu um brilho meio insano, mas que

logo se transformou na expressão da mais completa desilusão,

semelhante às expressões que Victor vira no olhar de alguns

homens vitimados por incomensurável injustiça humana.

Jacques não fez um único som, apenas foi se afastando da porta

para dentro do quarto, andando de costas, até sentir o obstáculo

da cama e então se deixou cair pesadamente e ficou ali, olhando

para muito longe através de Victor.

Compreendendo que o melhor que poderia fazer por ele seria deixálo

em paz, o Gatopardo puxou a porta do quarto para fecha-la


atrás de si, para deixar Jacques com o único mínimo consolo da

privacidade, pelo tempo que lhe fosse necessário.

Ele, Victor, ficaria ali no casarão, atento e ao dispor para quando

Jacques afinal precisasse ou desejasse falar. Depois Victor seguiu

pelo corredor para seu próprio quarto, em busca da serenidade e da

força que precisaria. Sentindo-se muito, muito, muito velho.


Capítulo 11

A Casa dos Ipês Amarelos


Jacques Lan precisou de setenta e três horas, dezessete minutos e

quarenta e sete segundos para conseguir se libertar do espesso

manto de angústia e desespero em que se viu enredado. Incorporar

a dor que lhe devassava a alma e transformar numa cicatriz

profunda e indelével, a terrível ferida aberta. Então emergiu do

processo de autocomiseração liberto e renovado em sua

determinação e sua força.

Começou com um demorado banho morno que ele fez durar

enquanto lhe duraram as lágrimas silenciosas a lhe embaçarem a

visão. Livrou-se da barba cerrada que lhe dava uma aparência

selvagem e trocou as roupas rústicas do trabalho de campo, por

acolhedoras roupas de algodão que gostava de usar no laboratório.

Saiu de novo para a vida com a firme decisão de não perder mais

nem um segundo com lamentações e se assegurou de ter bem

presente no espírito as suas verdades. E a primeira delas era seu

amor inabalável por Isabeau e o amor dela por ele.

Assegurou a si mesmo, repetindo mentalmente até gravar como

verdade inquestionável no seu espírito, que a sua salvação e a

preservação da sua sanidade, no momento, dependiam dele

conseguir fixar sua atenção nas pequenas coisas, na retomada

firme do fazer passo a passo as minúcias da sua rotina de trabalho

para se manter ocupado com assuntos do seu profundo interesse.

O resto viria depois...


Desceu para a copa e foi encontrar Victor ainda instalado à mesa

do café da manhã e ficou satisfeito ao notar seu olhar de

aprovação. Mas o velho Gatopardo que ficara atento aos rumores

do quarto fechado e contara os segundos daqueles três dias em que

Jacques se escondera do mundo, estava cauteloso, deixou Jacques

direcionar a conversa e começaram com amenidades. Até que sem

aviso, hesitação ou nenhuma fórmula de cortesia para assinalar a

transposição do assunto, Jacques perguntou com clareza.

“___Quem é ele?” E Victor se mostrou à altura do momento.

Com idêntica tranquilidade e na continuidade natural do que

estava dizendo, passou a relatar tudo o que sabia sobre o marido

de Isabeau.

Um intelectual de renome, reconhecido historiador, professor de

história da arte e autor de muitos livros de sucesso. Ela o conheceu

como um dos palestrantes em um evento patrocinado por Cesar em

Florença, nos anfiteatros medievais a céu aberto e nas ruínas das

catacumbas de San Miniato Al Monte, um dos sítios antigos mais

belos e importantes da região.

O professor Silviano Roubéins era bastante conhecido e respeitado

nos meios acadêmicos. Já contava cinquenta e três anos e aquele

era seu quarto casamento. Completamente encantado por Isabeau

usou sua amizade com León Tiithee, editor dos livros de Cesar e

também dos seus próprios trabalhos, para conseguir o endereço de

Cesar e ir vê-la em Roma.


Segundo o relato de Cesar, num primeiro momento Isabeau não

aceitou as atenções do professor, mas estava tão deprimida que o

próprio Cesar incentivou a amizade achando que a conversa

interessante, a grande inteligência e o considerável encanto pessoal

do homem muito culto e visivelmente apaixonado poderiam

ajudá-la a se recuperar. Ficou completamente surpreso e até

chocado quando Isabeau, após três meses das atenções constantes

do professor, anunciou que decidira aceitar o seu pedido de

casamento, mas que fora absolutamente sincera quanto aos seus

sentimentos tendo declarado a Silviano Roubéins que não só não

o amava como tinha convicção de que jamais o amaria.

Victor chegou à Roma um dia após a cerimônia de casamento, que

se resumiu às formalidades documentais na presença da autoridade

competente e seu encontro com a neta foi anormalmente tenso.

Não se lembrava de jamais ter estado tão irritado com ela.

O Gatopardo era desses homens cuja atitude vai ficando cada vez

mais contida e o tom de voz cada vez mais baixo e grave quanto

mais furioso. É a forma de não perderem nunca o autocontrole.

Por isso a entrevista que manteve com Isabeau, quase

imediatamente após sua chegada e que aconteceu numa das salas

do apartamento de Cesar, com Victor instalado numa larga

poltrona no extremo oposto à porta por onde Isabeau entrou e

onde permaneceu muito rígida, resumiu-se ao pouco que Victor

tinha a dizer e que foi dito numa frase que deixava cristalino seu

desapontamento, num fio de voz cortante e tão severo que Isabeau


não ousou sequer tentar responder. As palavras dele foram duras

como nunca, para ela.

“__Dentre todas as tolices para fazer, você optou pela mais completa,

triste, covarde e injusta. Esteja preparada a arcar com as

consequências.”

Para com o professor Silviano Roubéins, Victor tentou se mostrar

mais ameno, porque entendia que ele não podia ser

responsabilizado pelas idiotices de Isabeau.

Dias depois, já de volta à Terra Alta, num dos sábados em que

aconteciam as reuniões da Confraria do Tabaco, recebeu sua velha

amiga, Esmée Hemil, a única mulher confrade do grupo de

havanófilos mais chegados a ele e evocou a figura do homem com

quem Isabeau se casara para responder com a maior sinceridade às

perguntas de Esmée, ávida das novidades.

Esmée era uma fervorosa fã do casal Isabeau e Jacques que no

entender dela eram feitos um para o outro e cuja separação fora

uma traição aos bons desígnios, a ser reparada urgentemente para

a salvação espiritual dos jovens, que só teriam chance de evolução

como seres humanos, estando juntos. Em consequência se colocava

contra o professor e insistia que Isabeau brevemente se cansaria

dele ao se dar conta do absurdo que fizera ao escolher deixar

Jacques, belo como um deus e com sua personalidade máscula,

mesclada a uma insuspeita sensibilidade, para se casar com um

insignificante.


Embora não confessasse para Esmée para não incentiva-la na sua

interpretação muito pessoal dos fatos, Victor, antes de algumas

conversas com o professor, secretamente também se perguntara

como podia ser que Isabeau aceitasse um homem como Silviano

Roubéins quando seria lógico supor que seu ideal masculino era

Jacques Lan.

Mas, ao se lembrar do homem de figura frágil, com um encanto

muito persuasivo, de estatura mediana, muito magro e pálido, com

longos cabelos louros já grisalhos nas têmporas, que ele mantinha

presos e caídos atrás nas costas e invariavelmente metido em

roupas muito coloridas e ajustadas a sua forte personalidade de

uma maneira tão própria, que seria impossível pensar nele

convencionalmente, um homem maduro, que surpreendera Victor

favoravelmente com sua conversa fluída, fácil, inteligente e

despretensiosa a descrever deliciosas experiências de vida e de

quem Victor recordava especialmente os poderosos e tristes olhos

azuis, onde brilhava uma incrível luz perspicaz que devassava

almas, Victor se obrigava a uma resposta fiel ao seu compromisso

com a verdade e assegurava para sua amiga Esmée. “__Não,

minha cara!... se há algo que o professor Silviano Roubéins não é, ...é

insignificante.”

Não fosse esse fato talvez Victor pudesse cogitar algum tipo de

intervenção naquele contrato que classificava como uma tolice

completa.

Durante sua breve entrevista com Isabeau e sem amenizar a

profunda decepção que sentia, vendo-a agir daquela forma


leviana, Victor pensou perceber um sinal inequívoco de

arrependimento, mas ainda que isso fosse verdade restava agora, a

postura equilibrada do professor e a atitude distante de Jacques

que não admitia intromissões e então Victor se reservou o papel de

simples espectador do drama.

Após Jacques ouvir a resposta sobre quem era o homem com quem

Isabeau se casara, ficou muito clara sua resolução de não mais

tratar daquele assunto.

E assim foi. Não voltaram a mencionar Isabeau ou o marido dela.

Seguiram o curso da vida com a normalidade que aquela situação

esdrúxula permitia. Jacques continuou morando no casarão por

todo o primeiro ano da ausência de Isabeau e quando, no início do

segundo ano, Victor recebeu a notícia de que Isabeau viria para

uma visita de alguns dias, Jacques fez coincidir a chegada dela com

sua partida em uma longa viagem de trabalho e eles não tiveram

chance de se encontrar. Mas depois disso Jacques tomou a

iniciativa de sair do casarão. Mesmo contrariando a vontade de

Victor que argumentou, com mau humor, que ele não precisava

fazer isso, o casarão enorme não precisava ficar só para um velho

decrépito porque a cada doze meses, talvez Isabeau decidisse vir

passar dois ou três dias. Mas Jacques já tinha se decidido e sem

discutir, mudou-se para um pequeno apartamento muito prático,

próximo dali.

Quando estava em Terra Alta, Jacques comparecia às tardes de

sábado para as reuniões da Confraria do Tabaco e durante a


semana passava pelo casarão uma ou duas vezes, logo cedo, para

um café, ou no início da noite, cultivando assim a amizade e a

companhia que ele apreciava cada vez mais. Mas as conversas

entre ele e Victor ficavam no campo das pesquisas e das

descobertas arqueológicas e no desenrolar da vida da cidade e das

comunidades das montanhas, assuntos que gostavam de debater,

muitas vezes durante longas partidas de xadrez.

Durante estas visitas Jacques agia como se Isabeau Gatopardo não

existisse.

O casamento de Isabeau acabou em meados do seu segundo ano.

Cesar contou para Victor que ela havia decidido deixar o professor

e estava com ele, Cesar, no apartamento em Roma.

Ficaria vivendo com o tio avô por algum tempo e trabalharia como

sua assistente.

Para informar Jacques sobre isso Victor usou a velha tática de

falar sobre Isabeau da maneira mais natural possível. Entre uma

observação casual e outra e sem nenhuma ênfase especial ao

assunto e não ficou surpreso quando a reação dele foi a da mais

completa passividade, como se estivessem falando sobre alguém

apenas casualmente conhecido.

Sem nenhum comentário ou pergunta, Jacques apenas recebeu a

informação.


Continuou sua vida normalmente, dedicado ao seu trabalho,

saindo em longas viagens para as atividades de campo e

desenvolvendo as pesquisas e análises em laboratório.

Promovendo exposições, atendendo aos museus e aos

departamentos de estudos e ministrando alguns cursos e palestras.

Continuava frequentando as reuniões da Confraria todas às tardes

de sábado quando estava em Terra Alta e visitando Victor com

regularidade. Sem nunca falar dela.

Viveu assim, com rígido controle, até passados três meses do

término do casamento de Isabeau. E até aquela tarde de sábado

quando atendeu inadvertidamente o telefonema dela informando

sobre o colapso de Cesar.

Então ele reagiu com a impulsividade da paixão que havia

mantido firmemente controlada todo aquele tempo e partiu

imediatamente para encontrá-la.

E este colapso sofrido por Cesar Ninan transtornou também a

rotina de Victor Gatopardo num aspecto bem específico e íntimo,

insuspeito até, para os que conviviam com ele.

Não interferiu ou atrapalhou as suas idas e vindas ou os seus

compromissos, quase todos de ordem intelectual. Bons livros, boa

música, espetáculos de teatro e bom cinema, além das reuniões da

Confraria do Tabaco. Mas interferiu na ordem que Victor impunha

aos seus pensamentos e em tal grau, que até o fez esquecer por

completo o famoso bilhete anônimo, aquele que Victor havia

deixado entre as páginas do encarte do Anuário sobre Solos e


Climas para a Excelência na Produção do Tabaco, com acusações

contra o Clube Internacional de Havanófilos.

Victor não tinha nenhuma grande rigidez de hábitos, mas era

metódico em seus pensamentos.

Os assuntos de família eram sempre analisados pelas manhãs.

Antes de sair, quando ele ainda estava impregnado pelas cores,

texturas, cheiros, lugares e hábitos dos antepassados que haviam

vivido no mesmo velho casarão.

Inconscientemente Victor invocava toda a sabedoria e a força

daqueles, cujas vidas haviam se resumido nos que os sucederam

para meditar, avaliar e frequentemente, decidir.

Pois Cesar Astu Ninan, sendo um assunto de família se recusava a

permanecer nas manhãs e insistia em invadir as tardes,

entardeceres e noites. As várias avaliações da situação e as decisões

já tomadas, bem como as reflexões sobre as consequências do

estado de saúde de Cesar, se tornaram rapidamente uma obsessão.

E impertinente como todas as obsessões e profundamente

perturbadora o obrigou o a uma medida drástica.

Victor estabeleceu para si próprio, em seus pensamentos, horários

rígidos.

Todos os dias controlava o relógio para, as dez em ponto,

comunicar-se por telefone com Isabeau, Jacques Lan e Léon

Tiithee. Com cada um e nesta ordem, conversava longamente para


poder estar a par de tudo o que estava acontecendo com Cesar e

com todos os outros e para acompanhar as providências que León

estava sendo obrigado a tomar para preservar a figura pública de

Cesar Astu Ninan sem prejudicar os compromissos com a editora.

Trocava ideias com eles, dava sua opinião e fazia o necessário para

administrar o que precisava ser administrado.

Esperava, com alguma impaciência, pelo dia em que os médicos

permitiriam a Cesar viajar, para então, trazê-los para casa.

E vinha acalentando a ideia de instalar Cesar na extraordinária

propriedade conhecida como Girassóis, Ipês e Junquilhos

Amarelos.

Como primeira medida, decidiu fazer uma visita ao lugar.

Tratava-se de uma casa magnífica, adquirida e reformada por

Cesar com a participação e ativa ajuda de Victor e de Jacques Lan,

quando de uma das visitas de Cesar a Terra Alta. Na época Jacques

era recém-chegado e estava começando seu relacionamento com

Isabeau.

Cesar, talvez influenciado pelo romance da sobrinha neta que

parecia, aos olhos de todos, o modelo da felicidade, declarara estar

próximo o dia em que deveria voltar a viver na sua cidade natal.

Tudo acontecera de uma maneira inesperada, sem planejamento e

que Cesar descrevera para Victor como um curioso acaso, num dia

em que ele se animara a ir sozinho até o Prosa Café.


O Prosa era um barzinho da época da meninice de ambos, situado

numa das ruas mais antigas de Terra Alta, cujo dono, um espanhol

rabugento, mas com a perspicácia dos muito vividos, era capaz de

permanecer impassível na presença de uma celebridade como Cesar

Astu Ninan.

O espanhol assistia Cesar entrar no bar e ocupar uma pequena

mesa de canto, colocada no mesmo lugar desde sempre e encaravao

com uma atitude perfeitamente displicente. Não mostrava o

menor indício de reconhecê-lo, muito embora isso fosse impossível,

pois além da enorme fama de Cesar que reproduzia seu rosto em

cada canto do planeta, o espanhol o conhecia pessoalmente desde

a infância de Cesar e sua própria mocidade e o vira, ainda

adolescente, percorrer aquela mesma rua centenas de vezes e

atendera-o naquele mesmo balcão, servindo-o das bebidas e dos

cigarros proibidos, naquela mesma mesa.

Essa atitude adotada pelo espanhol de total desprezo pela

celebridade deixara Cesar encantado e transformara o bar num dos

poucos lugares que ele fazia questão de frequentar sempre que

estava na cidade.

Um dia, acomodado numa das mesas diante de uma taça de

martini seco com azeitonas e uma rodela de limão,

Cesar comprara a propriedade batizada como Girassóis, Ipês e

Junquilhos Amarelos.

Em um momento raro, de verdadeira empatia por um completo

desconhecido. Um homem muito velho, mesmo para a bem vivida


madures de Cesar, se aproximara da mesa que Cesar ocupava,

imitando a atitude do dono do café, sem parecer nem

minimamente impressionado por estar diante do famosíssimo

personagem e lhe fizera a proposta extraordinária.

Cesar comprou a propriedade descrita apenas como muito grande

e agradável, concordando com a quantia pedida e pagando-a de

imediato, em moeda corrente, pois de tão irrisória ele a tinha no

bolso, além de prometer solenemente, comparecer ao lado do leito

do velho quando o soubesse moribundo e leva-lo ao cemitério

depois de morto.

Mas a verdade é que Cesar Ninan, na ocasião, não levara

verdadeiramente a sério o acordo. Julgara que o estranho havia

aplicado um desses golpes para tirar dinheiro aos incautos e se

divertiu participando da farsa, ao mesmo tempo em que sentiu

curiosidade pelas maneiras do homem e pela forma como ele fizera

aquele pedido triste, tão impessoal, como se estivesse se referindo

ao fim de outra pessoa e não ao seu próprio destino de

desaparecimento em completa solidão.

Sem real espanto, mas apenas surpreendido por ainda encontrar

algo que o surpreendesse naquele canto do mundo, onde acreditava

já ter visto de tudo, Cesar

Astu Ninan ficara observando o velho se afastar com andar

trôpego, sem ao menos se lembrar de lhe perguntar seu nome, ou a

localização da propriedade comprada, ou como iria saber, quando

e como encontrá-lo, para assisti-lo na sua morte. Pensara que

talvez, um dia, pudesse usar a ideia daquele encontro e do diálogo


inacreditável em algum romance e, tão logo a figura encurvada do

velho desaparecera da sua vista, não pensara mais sobre ele.

Terminara seu drinque mergulhado em mil outros devaneios, já

esquecido por completo do incidente.

Dias depois os gritos aflitos de Consuelo, a cozinheira do casarão,

o obrigaram a recordar cada detalhe daquele encontro surreal, pois

a assustada mulher benzia-se diante de uma feia mancha de um

líquido vermelho, que mais tarde se verificou ser mesmo sangue, a

se alargar na vidraça de um dos janelões da cozinha.

Entre as repetições de “Madre de Dios,” e as lágrimas da

cozinheira, Cesar correu para testemunhar a aparição inexplicável

que foi crescendo até dominar a vista inteira do jardim,

transformando-a num borrão difícil de decifrar.

Ficaram os dois, imóveis, observando o sangue a se esparramar e

viram quando uma mão humana limpou um espaço do vidro para

deixar aparecer um rosto de velho, quase transparente na sua

lividez espectral e com um olhar tão solitário e triste que causava

pena, muito além do medo.

Cesar reconheceu o homem de quem comprara uma propriedade de

família por pouco mais do que alguns trocados e a quem havia

prometido um dos mais misericordiosos e importantes serviços que

um ser humano pode prestar a outro e dominou o próprio susto.

Saiu correndo pela porta da cozinha e se viu diante do fantasma

que ia aos poucos se desintegrando, mas que teve tempo de apontar

uma direção com braço trêmulo e gritar um nome, Santhiago Ruiz


Paz, antes de se misturar e se desvanecer na claridade estridente

da manhã de sol de outono.

Depois disso não encontrou sossego enquanto não convenceu

Victor sobre a veracidade do episódio e conseguiu sua ajuda e do

sagaz Jacques Lan, para irem em busca do velho.

Acabaram por encontra-lo depois de uma curta busca.

Ainda com um tênue fio de vida, Santhiago Ruiz Paz estava em

um leito do hospital da Casa de Misericórdia da cidade. Mas não

conseguiram descobrir ninguém capaz de lhes informar como ele

chegara ali, ou qual o médico responsável por seu internamento.

Estava completamente só.

Em nenhum momento, Ruiz Paz recuperou a consciência. Foi-se

ao primeiro raio de sol do dia seguinte em que Cesar ocupou o lugar

na poltrona, à cabeceira do leito.

Depois de acompanhá-lo ao cemitério e colocá-lo numa cripta

muito antiga, encimada por um anjo de pedra com as asas abertas

para o voo, que descobriram ser a cripta da família Ruiz Paz,

Cesar, Victor e Jacques, seguiram a pista encontrada numa

carteira enrugada e rasgada pelo uso que lhes foi entregue com os

outros poucos pertences do falecido.

Na carteira, ainda intocada, estava a quantia exata paga por Cesar

no dia em que conhecera Santhiago Ruiz Paz, além de um endereço

e de uma pequena fotografia de um gato malhado, com os olhos


rasgados e amarelos, brilhantes para a câmara que havia fixado

sua imagem.

O endereço tinha, no verso, um mapa feito amadoramente, com as

indicações para Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos.

Seguiram o mapa e acharam, cerca de vinte quilômetros fora da

cidade, uma propriedade fantástica.

Tão admirável que o primeiro impulso foi duvidar ser a mesma

vendida e comprada naquela mesa do Prosa Café. Mas que

reconheceram afinal, como sendo a que se referira o velho quando

viram o gato malhado a esperá-los, sentado diante do portão de

entrada sob uma arcada onde estava gravada a denominação do

lugar. Seguiram por um caminho de pedriscos brancos, todo

cercado por Ipês amarelos, sempre guiados pelo gato, até uma casa

toda terracota e ocre como as árvores de outono, em meio a um

bosque com cerca de dez mil metros quadrados.

Constataram que era uma construção muito grande, mas sem nada

das velhas mansões senhoriais. Entraram por portas duplas,

laqueadas de branco com maçanetas e fechaduras douradas,

encontraram um salão enorme e totalmente claro, com móveis

confortáveis e delicados, brilhando com a luz do sol que se

esparramava em todos os cantos e cuja entrada era livre a se

infiltrar pelos imensos janelões sem cortinas. Passaram pelo

corredor largo até cruzarem uma porta de vidro e deram num pátio

de cores e flores, como um jardim dentro de casa, que descobriram

estar no centro da construção e se comunicar com todas as demais


habitações. Os cinco quartos enormes incluíam total conforto e

privativamente, banheiros, salas de vestir e saletas de estar e todas

estas peças da casa terminavam no pátio central, bem como a

grande e moderna cozinha.

De maneira que aquele espaço encantador, decorado com azulejos

coloridos, flores, e uma pequena fonte de mármore, constituiria o

ambiente comum e de reunião aos que ali habitassem.

Cada vez mais surpresos e mudos pelo espanto, os três homens

percorreram a construção sem poderem acreditar que uma

propriedade soberba como aquela, pudesse ter sido objeto de uma

transação com valor tão irrisório e fora dos padrões mínimos da

negociação convencional e duvidaram da sua legalidade.

A cada passo, a cada porta aberta, encontravam quartos e salas

absolutamente lindos, decorados com requinte e luxo e onde uma

fortuna evidente fora empregada.

Um lugar extraordinário, belo e encantador, e onde não havia

ninguém, além de um grande gato malhado bamboleando-se entre

as árvores do parque que cercava a residência, com profusão de

girassóis, ipês e junquilhos amarelos.

Victor resolveu desvendar com cautela toda aquela história.

Encarregou o escritório de seu advogado de vasculhar os papéis em

cartórios e Jacques Lan de investigar tudo o que pudesse sobre a

propriedade e a família Ruiz Paz.


Em pouco mais de uma semana, sabiam apenas que efetivamente

a família de Santhiago Ruiz Paz acabara-se com ele e que entre os

papéis de posse da propriedade, ele deixara uma espécie de

testamento, escrito de próprio punho e num simples guardanapo

de papel com a marca do Prosa Café, em que declarava ter vendido

a propriedade conhecida como, “__Girassóis, Ipês e Junquilhos

Amarelos para, Cesar Astu Ninan, nascido na cidade de Terra Alta,

o escritor.” Descrevia rapidamente a propriedade, mencionava o

endereço postal e declarava também o valor da venda em dinheiro,

acertado entre ambos e recebido imediatamente e a transação

perfeitamente válida desde que cumprida a promessa feita por

Cesar de estar ao lado do seu leito de morte e de acompanha-lo ao

cemitério.

De maneira que o juiz designado para o caso declarou ser o

documento, feito no guardanapo de papel com a marca do Prosa

Café, cuja assinatura foi verificada e reconhecida como verdadeira,

comparada com documentos em cartório a atestarem a passagem

de Ruiz Paz pela vida, perfeitamente legal e Cesar Astu Ninan o

dono legítimo da propriedade conhecida como Girassóis, Ipês e

Junquilhos Amarelos.

A primeira providência de Cesar foi encarregar León Tiithee de

usar todo seu poder e influência para abafar a história e tirá-la dos

noticiários e tabloides, que já inundavam todo e qualquer meio de

comunicação.

A segunda foi transferir a propriedade, com todos os seus direitos,

para Victor Gatopardo.


Ao receber a visita dos advogados, encarregados do caso por León,

cheios dos documentos e com ares de impaciência para argumentos

e discussões, Victor compreendeu que nada havia a ser feito.

Cesar Ninan passara para o nome dele a propriedade e um fundo

substancial, em dinheiro, para sua administração e manutenção,

além de uma sugestão para que Victor deixasse imediatamente o

empoeirado casarão da família Gatopardo para ir se instalar

permanentemente na nova casa.

Depois da saída dos advogados Victor foi encontrar Cesar

acomodado numa poltrona na biblioteca, com os braços cruzados

no peito e os olhos fechados com um cansaço que parecia destinado

a atormentá-lo pelo resto da vida. Não precisou falar-lhe para

saber que seria inútil qualquer tentativa de debate sobre o assunto

e não se espantou quando ouviu a advertência que haveria de ser

repetida indefinidamente sempre às primeiras referências ao lugar.

“___É preciso estar preparado para devolvê-la, assim que algum

herdeiro da família Ruiz Paz apareça para reclamá-la.”

Victor aceitou aquelas palavras como mais uma determinação que

seria cumprida sem hesitação, mas não se furtou a declarar a única

expressão de vontade que todo aquele incidente extraordinário lhe

deixara. “___Estarei sempre preparado para qualquer coisa em

relação a esta propriedade inacreditável, mas nunca irei morar nela.”

Agora, pela primeira vez depois daqueles anos, Victor admitia a

possibilidade de mudar-se para a casa dos “Ipês Amarelos”, como

ele se acostumara a chamar o lugar intimamente. O passar dos


anos havia feito aquela história cair no esquecimento e já há muito

tempo não se fazia menção a ela. Ninguém morava lá. Na casa

deserta, nem mesmo o gato malhado nunca mais fora visto depois

do dia em que Victor trancara as portas e os portões e o percebera

sumindo-se, com aquele bambolear característico dos felinos, nas

profundezas do bosque, entre as árvores.

Victor contratara uma empresa especializada e a encarregara da

sua manutenção e guarda. Empregados da empresa iam ao lugar

periodicamente para se assegurar dos cuidados com o imóvel e para

prevenir a aproximação e a invasão de estranhos e curiosos.

E agora quanto mais pensava no assunto, mais Victor se convencia

de que levar Cesar para a casa dos Ipês Amarelos, seria o melhor a

fazer.

Discutiu a ideia com seus amigos, com Jacques Lan, León Tiithee

e o psiquiatra, Júlios Longarcco, recebeu de todos a aprovação e

Léon se prontificou a mandar uma equipe de seus melhores

seguranças para garantir a tranquilidade do traslado desde o

aeroporto até Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos e mantê-los

lá, para prevenir intrusões.

Além de uma equipe de enfermeiros e médicos, pelo tempo que

fosse necessário.

Mas foi a reação de Isabeau que decidiu Victor a concretizar o

plano definitivamente. “__Seria um alívio,” dissera ela quando

soube a intenção do avô, e concluiu com um suspiro dos mais


profundos e sinceros, “__é um lugar onde tenho certeza de podermos

ficar em paz.”

Por isso Victor foi até a propriedade e listou as necessidades a

serem atendidas.

Quando, ao anoitecer do último dia do outono, recebeu um

telefonema emocionado de Isabeau em que ela anunciava haver

Cesar finalmente despertado do profundo coma em que se isolara

do mundo e da vida por quase um mês, Victor pode responder, sem

hesitação, que estava tudo pronto para trazê-los para casa.


Capítulo 12

Infinitas Emoções e Alguns Entendimentos


A princípio ela não o viu propriamente, ofuscada pela intensa luz

a envolvê-lo tal qual uma aura. Apenas percebeu-o. A silhueta alta

e elegante, de costas para ela. Cercado pela claridade que invadia

a janela em frente à qual, ele a esperava.

Ele estava no fim de um corredor muito longo, que Isabeau ia

percorrendo, contando as batidas do coração.

Adivinhando-a, ele se voltou para fixá-la diretamente. Imóvel, a

menos de um metro de onde ela estacou petrificada e os olhos dele

lhe devassaram a alma. Mas apesar de tê-la perturbado, era um

olhar sereno. Com uma tranquilidade desconhecida para ela.

Isabeau se lembrava de um olhar apaixonado, sempre ansioso por

perscrutá-la por inteiro, que tomava posse dela, dominava-a e a

fazia perder-se nele.

Agora esse olhar estava diferente. E Isabeau soube que Jacques

estava com total domínio da situação. Com sua atenção posta nela,

mas centrada em si mesmo.

E ela compreendeu apenas com aquele olhar, que nunca mais teria

a alma de Jacques Lan em suas mãos.

Foi Léon Tiithee quem informou Isabeau sobre a vinda de Jacques

e ela nunca deixou de desconfiar que esta omissão de Victor fora

um ato premeditado e não só um esquecimento devido ao acúmulo

de preocupações. E ela fora se encontrar com Jacques naquele


corredor da pequena clínica para a qual Cesar fora transferido por

intermediação de León, que estava empenhado, usando todo seu

poder, para preservar Cesar do assédio dos jornalistas e dos fãs.

Era também com León Tiithee que Jacques, desde que conversara

com Isabeau por telefone e decidira vir se encontrar com ela, estava

mantendo frequente comunicação para saber aonde ir e com quem

deveria falar. Ele estava perfeitamente a par da atual situação de

Cesar, já livre dos aparelhos, mas ainda mergulhado no misterioso

e profundo estado de coma.

Isabeau nunca se lembraria com clareza do que dissera para

Jacques naquele primeiro encontro após quase quatro anos sem vêlo,

se é que ela dissera alguma coisa. Lembrava-se de haver

pensado que ele envelhecera, não um envelhecimento físico, pois

ele continuava o homem no auge da sua forma, exatamente como

ela o conhecera, mas ela percebeu com clareza seu envelhecimento

interior. Tratava-se de uma transformação muito profunda e

íntima, que se mostrava na sua fisionomia. Eram as marcas da

vivência e do amadurecimento da alma. E a serenidade e a calma

no olhar e no falar transmitiam um equilíbrio adquirido com a

vida, com o passar e a experiência dos anos, com o fato de ser

plenamente e ser íntegro.

Achou-o belo como sempre, mas mesmo a beleza dele estava

mudada. Ainda havia a masculinidade evidente, à flor da pele, mas

agora não havia mais agressividade ou impetuosidade, apenas uma

força tranquila.


Ele reparou que ela cortara os cabelos, que as madeixas louro

avermelhadas não lhe envolviam mais os ombros caindo até

abaixo da cintura e fez para ela um cumprimento qualquer, do

qual ela também não se lembrava porque não eram as palavras tão

ardentemente desejadas. Apenas palavras educadas, fórmulas de

cortesia, do bom convívio, que o colocavam tão distante dela...

Quando finalmente um dos médicos que atendia Cesar chegou para

a visita diária e para a entrevista com a família do doente, foi

Jacques quem dominou a conversa, fez as perguntas, assinalou as

sugestões e indagou sobre um prognóstico visando a possibilidade

de transferi-lo para casa.

Isabeau se deu conta do quanto ele estava informado. Soube depois

que antes de vir ele mantivera longas conversas com León Tiithee

e também com o chefe da equipe de neurologistas que atendiam

Cesar. Apresentava-se como a pessoa responsável em nome de

Victor Gatopardo.

Depois foram juntos vê-lo. Ladearam o leito onde Cesar se perdia,

sabe-se lá em que paragens.

Isabeau em dado momento ergueu os olhos procurando os de

Jacques, mas ele não olhou para ela. Parecia esquecido da sua

presença. E ela sentiu uma dor aguda como se a atingisse uma

facada no coração porque pensou ter ali a evidência de que ele já

não se importava minimamente com ela. E ao apelar para a

fórmula salvadora, para o fato dele estar ali, recebeu a resposta

que ela própria mentalmente elaborara e que tentava evitar.


Ela se convencera de que Jacques estava ali por Victor e por Cesar,

até por León Tiithee, mas não por ela. Estava ali porque Victor,

agora com setenta e seis anos completos já não aguentava bem os

voos longos, os fusos horários, as esperas e incertezas em

aeroportos e os traslados com bagagens e aglomerações.

Jacques viera para as providências que a distância tornava difíceis

para Victor e porque seu avô queria atender as necessidades de

Cesar, de León Tiithee e dela própria, Isabeau, e levá-los para casa

o mais brevemente possível.

Com esta constatação ela seguiu Jacques em silêncio para fora da

clínica até o pátio de estacionamento e não discutiu quando ele

pediu as chaves do carro para levá-la para casa. Ele ficaria com o

carro, com as decisões, com o ir e o vir, com tudo e senhor absoluto

de tudo, como sempre fora.

Durante o percurso praticamente não falaram, Isabeau olhava as

ruas já bem conhecidas e lutava contra as lágrimas.

Pararam em frente ao prédio que era quase uma antiguidade.

Restaurado para abrigar pequenos e poucos apartamentos, todos

cuidadosamente arrumados e decorados, atendendo as exigências

dos ilustres moradores. Ali Cesar morava em uma cobertura que

era um primor de luxo e elegância e onde agora, Isabeau também

vivia, há pouco mais de um ano.

Antes dela sair do carro, Jacques estendeu-lhe um cartão com o

endereço e o telefone do hotel onde ele se hospedara, para ela poder

contatá-lo a qualquer momento, não importando a hora.


Ao receber o cartão das mãos dele, seus dedos se tocaram

levemente e Isabeau se sentiu percorrida por uma descarga elétrica

que Jacques nem ao menos notou.

Já em casa, Isabeau permitiu finalmente que as lágrimas

corressem livremente.

A suspeita que se insinuara em sua mente e em seu coração, de que

Jacques usara a relação deles para conquistar a posição

ambicionada como cientista pesquisador, era como um veneno

elaborado no âmago da sua psique. E se traduzia pelo seu famoso

sentimento de inadequação que confirmava o sentimento de

abandono dela e o justificava, uma vez que alguém tão inadequada

não mereceria ser verdadeiramente amada. Tratava-se de um

mecanismo psíquico cruel que a dominava apesar de toda sua

inteligência e sua força. Que fora muito bem compreendido por seu

ex-marido. Uma armadilha psíquica que estava por trás da sua

fuga de Terra Alta ao se sentir abandonada por Jacques, Silviano

Roubéins falara-lhe sobre isso e reconhecendo a justeza da análise

ela o deixara.

De Silviano, do curto tempo que durou seu casamento, Isabeau

mantivera apenas a doçura com que ele sempre a tratara e a

lembrança da tristeza dos meigos olhos azuis que a fitaram

magoados quando ele se curvou para beijar-lhe as mãos num

adeus, que ambos sabiam definitivo.

Ele disse para ela que o curto convívio deles como marido e mulher

o fizera entende-la e prever que poderiam acabar assim, ele


compreendeu que para ela, desde que houvera Jacques Lan,

haveria apenas ele, sempre, apenas Jacques...

E assim era...


Capítulo 13

Em casa de León Tiithee


Jacques se apresentou naquela mesma noite na residência de León

Tiithee.

Sentiu real prazer em conhecer pessoalmente o homem com quem

vinha conversando, por telefone, com perfeita constância desde

sua decisão de viajar para Roma.

Um homenzarrão de fala mansa em tom sempre grave e baixo, com

um rosto bonito de romano. Jacques ficou surpreso por encontrar

um homem ainda muito jovem, calculou que contaria uns

cinquenta anos. Alto, quase tão alto quanto o próprio Jacques, e

com leve sobrepeso. E um dos mais importantes magnatas da

comunicação daqueles tempos. Dono de influentes editoras e

canais de televisão.

Cumprimentou-o com imensa simpatia e começou uma conversa

que se revelaria, ao correr da noite, tremendamente agradável.

Perguntou imediatamente como estava o embaixador Gatopardo

e ficou evidente para Jacques que o editor nutria por Victor

profunda admiração.

Conversaram sobre tudo e todos diante de uma jantar frugal, mas

divinamente saboroso, bebendo o melhor dos vinhos que Jacques

prometeu que retribuiria um dia, servindo-lhe iguarias especiais

dos povos andinos.

Jacques não se surpreendeu ao notar que o editor o observava com

cuidado, comparando-o possivelmente com o professor Silviano

Roubéins, de quem era amigo bastante próximo, segundo ouvira

dizer. Mas a afabilidade do editor autorizou Jacques a acreditar


que fora bem avaliado. Sem se aborrecer, encarou com

naturalidade a curiosidade do homenzarrão e apreciou a extrema

gentileza dele não haver feito a menor menção ao casamento

desastrado de Isabeau.

Era um assunto que Jacques se reservava o direito de não admitir,

muito mais por não saber realmente o que dizer, do que por

qualquer melindre que pudesse sentir.

Ele não responderia, ainda que lhe perguntassem diretamente o

que pretendia para si mesmo e para Isabeau, porque realmente

havia decidido deixar a vida mostrar o melhor a fazer.

Conscientemente ele não sabia. Naquele exato momento tentava

apenas ser útil a Victor, a Cesar Ninan e também a ela, mas sem

buscar continuísmos.

A impulsividade de ter vindo imediatamente se encontrar com ela

porque percebeu sua fragilidade ao telefone, foi um descuido que

ele se comprometeu a não se permitir mais. O sincero interesse em

ajudar não incluía romances e reconciliações.

Seu amor por ela nunca estivera em dúvida, mas a mágoa que ela

lhe causara havia aberto uma questão sobre a possibilidade ou não

de um relacionamento.

Enquanto esperava no fim daquele corredor da clínica em que

Cesar estava mantido na sua inconsciência extraordinária, ele se

perguntava o que sentiria ao revê-la.


E quando finalmente soube que ela chegava, pressentindo-a com

cada fibra do seu ser, mesmo antes de olhar o rosto lindo, ele

compreendeu que nada mudara nos seus sentimentos.

O coração saltou-lhe no peito e ele praticamente sorveu o perfume

dela, renovando a antiga sensação de completude que ela lhe dava

e se embriagando com sua beleza que reconheceu intacta. Notou o

corte de cabelo de mechas rebeldes, com os cachos acobreados

graúdos à altura dos ombros, mantidos em desalinho a lhe darem

um ar maroto, substituindo a cabeleira longa e macia na qual ele

costumava enrolar as mãos e esconder o rosto, quando a cobria de

beijos e fez um cumprimento, aludindo a sua jovialidade.

Muito embora tudo o mais nela, a postura e o amadurecimento do

corpo e dos olhos, afirmasse sua plenitude de mulher.

Mas mesmo tomado pela emoção de revê-la, ele se surpreendeu com

o próprio controle sobre sua alma que continuou tranquila, imune

ao encanto que antes o hipnotizava.

Pensou que isso era bom, amá-la desta maneira serena, mais

pacífica e inequivocamente eterna.

Com tal domínio, naquele momento especial ele poderia restringir

sua atenção ao que era primordial.

Por tudo isso, foi ele a estar à cabeceira de Cesar Astu Ninan,

quando ele saiu do coma de quase um mês, como se despertasse de

um sono superficial e comum. Sem dar a menor indicação de haver


reconhecido quem estava ao seu lado e sem o mínimo sinal de se

importar com isso ou com qualquer outra coisa no mundo.

E Jacques encarou o incidente com naturalidade, pela natureza do

estado do doente em si e porque muito embora tivesse sempre

havido entre eles um sentimento de sincera simpatia, a verdade é

que nunca haviam compartilhado de grande intimidade.

Mas quando as presenças de Isabeau e de León Tiithee, ambos

empenhados em resgatar Cesar daquele estado de completa apatia,

com conversas e perguntas constantes, não surtiu nenhum efeito,

todos começaram a se preocupar.

Informado sobre tudo, Victor Gatopardo, com a participação de

León, traçou planos com verdadeiras estratégias de despiste da

imprensa e dos fotógrafos para a viagem de Cesar Ninan para Terra

Alta seguida do translado para Girassóis, Ipês e Junquilhos

Amarelos.

A impressão de León Tiithee sobre o que pensavam os médicos

clínicos, psiquiatras e enfermeiros, responsáveis pelos cuidados

com Cesar Ninan, acerca desta viagem, variava entre o

desapontamento pela perda da notoriedade assegurada e fácil e o

alívio por livrarem-se do abacaxi. Principalmente diante da

determinação com que Cesar parecia se embrenhar cada vez mais

nas profundezas da apatia quase sobrenatural, e que só não

admitia diagnóstico de um novo coma profundo, porque ele abria

os olhos e respondia a um e outro som, aleatoriamente.


Para Jacques, as palavras de Victor com a firme decisão de

levarem Cesar para casa, soaram quase como um sussurro mal

humorado. “__Já que Cesar insiste em agir como um vegetal pode

muito bem continuar fazendo isso em sua própria casa.” Dissera ele.

E assim, numa madrugada fria, numa vasta clareira, distante da

cidade de Terra Alta e a cinco quilômetros de Girassóis, Ipês e

Junquilhos Amarelos, pousaram o avião particular providenciado

por León Tiithee, para encontrarem Victor Gatopardo a esperálos.

Eram seis pessoas que chegavam. Além de Isabeau, Jacques Lan e

León Tiithee, mais dois enfermeiros, revezando-se no atendimento

a Cesar, que desceu do avião em cadeira de rodas.

Distribuíram-se entre os três carros pretos, estacionados em fila

diante da pista de pouso improvisada e partiram, numa procissão

que poderia ser descrita como tendo ares de mistério.


Capítulo 14

Cesar na Caverna


Apesar da figura fragilizada de Cesar Astu Ninan, em toda sua

altura encurvada e esquálida provocar pena muito além do medo,

os animais estavam inquietos com a presença dele no interior da

caverna.

Espreitavam desconfiados aquele homem triste, com seus

movimentos lentos e silenciosos e um jeito tímido de curvar a

cabeça. Com os esfiapados cabelos brancos desalinhados, caídos

sobre os olhos sonâmbulos que lutavam para enquadrar

adequadamente o foco do que observavam com duvidosa lucidez.

Embora Maaho, o puma, acreditasse ser Cesar um ente mágico do

bem e mesmo Loop, a raposa, encontrasse nele e na sua atitude

pacata, humilde em sua solidão incomensurável, provas

definitivas para a crença num ser especial que não era e nem nunca

fora apenas humano, ainda assim, se mantinham distantes,

temendo por não compreenderem os sinais inequívocos de sua

vontade férrea para se retirar espontaneamente da vida.

Os dias se passavam lentos e com eles o tempo para Cesar assumir

de uma vez por todas seu destino e sua responsabilidade naquele

viés da existência que traria as consequências eternas do retomar

de um curso natural e contínuo, ou levaria ao caminho da

aniquilação total.

Os animais sentiam o escoar das horas preciosas em que uma

decisão precisava ser tomada e se assustavam com a imobilidade e

com o silêncio teimoso do homem, conscientes de que pouco a


pouco seu próprio entendimento daquele momento mágico ia se

perdendo e suas mentes simples voltavam ao domínio dos mais

primitivos e fortes instintos.

Lentamente, com precisão imperturbável, o fino e imperceptível

véu da irracionalidade ia descendo e nublando as mentes dos

animais, forçando-os ao esquecimento da sua condição

extraordinária. Aos poucos as horas assumiam sua característica

do passar imperturbável da existência que se perdia entre a luta

pela sobrevivência e os momentos preguiçosos dos seres que se

deixavam levar pela vida, apenas sendo o que sua natureza

determinara que fossem.

O perigo para Cesar era iminente.

Mahoo e Loop estavam se esquecendo de vê-lo como a um ser

especial.

Os contornos frágeis e trôpegos de Cesar e seu cheiro adocicado de

uma velhice senil começavam a se assemelhar com os movimentos

assustados e nervosos e com o aroma do suor e do sangue quente

das pacatas criaturas que vagavam pelas estepes e planaltos da

paisagem andina servindo aos desígnios da natureza e aos

predadores na condição de potenciais presas.

Cesar Astu Ninan, encolhido na sua imensa dor e no espanto por

uma missão que ele apenas começava a descobrir, oprimido entre

o medo de mergulhar no infinito e absoluto vazio e o desejo de

vencê-lo, e vencendo-o negá-lo, mas para isso tendo que renunciar

a vontade de se ocultar da responsabilidade que se lhe afigurava


imensa, fingia não perceber a mudança evidente nas atitudes dos

animais.

Ignorava o arfar surdo e assustadoramente ritmado dos olfatos que

o percebiam através das escuras reentrâncias nas pedras, o brilho

cada vez mais selvagem das pupilas âmbar que observavam a

fragilidade do seu corpo murcho e lhe mediam as forças esparsas e

o frêmito suave dos músculos poderosos, sempre prontos para o

bote mortífero, que acompanhavam os seus mais leves

movimentos.

Optava por se deixar abater, entregando-se ao fim previsível e

francamente atraente por se constituir na transformação que

asseguraria a continuidade, ainda que limitada, das vidas de Loop

e Mahoo, ou o revoltar-se que exigiria a atitude do guerreiro que

ele não conseguia mais se persuadir a ser.

Então, numa das tantas madrugadas em que o caminhar da lua

prateada no céu completamente coberto por estrelas anunciou o

aproximar-se inexorável do brilho do dia, num ínfimo momento

em que o respirar de Cesar parou, suspenso entre o expirar e o

inspirar, naquele mínimo segundo, quando ele se fundiu ao

multiverso, sendo apenas, finalmente indivisível com o todo e foi

capaz de perceber a grandiosidade da vida na paisagem árida dos

Andes, escapando à moldura da entrada da caverna com seus

contornos esculpidos em pedra e vegetação seca e neve eterna e

Cesar sentiu como se a visse pela primeira vez.


Naquele diminuto pontinho do espaço tempo Cesar transcendeu a

si mesmo para valorizar a vida e se decidir a lutar por ela.

Foi quando Mahoo, o puma, se lançou sobre ele no bote destinado

a matá-lo.

E Cesar Astu Ninan, plenamente consciente do momento,

antecipou em um segundo o movimento do felino e se voltou para

olhá-lo nos olhos. Desde o lugar no centro da abertura em arco com

o infinito se esparramando às suas costas e seu porte ereto e firme

em toda sua estatura de homem.

Os olhares do homem e da fera se encontraram e o de Cesar era

eterno de sabedoria e compreensão, sem o mínimo vestígio de

qualquer disposição para a luta.

E essa força da serenidade de Cesar arrefeceu a determinação do

ataque do puma apenas um milionésimo de segundo antes do

animal alcança-lo com seu salto de predador, obrigando-o

retroceder e recolher o bote. Em pleno ar o puma se contorceu com

sua delicada graciosidade de gato e parou o movimento, para se

deixar cair em pé, sem ruído, exatamente em frente a Cesar.

Engolindo o rugido terrível que serviria para abafar o lamento da

presa abatida.

Confuso e atordoado de espanto na sua simplicidade de animal

selvagem, o grande felino arfou e resmungou, entre a confusão da

exigência do seu instinto e sua necessidade de se entregar ao

domínio amoroso do ser humano cuja resolução agora se mostrava

inabalável. Subjugado pela força do olhar cheio de amor do


homem, o puma se obrigou a baixar a cabeçorra de cara negra

contorcida pelos esgares da sanha assassina e se aproximou

humilde, para lamber as mãos de Cesar pedindo seu perdão.

E Cesar o acolheu com uma atitude de severo carinho misturado

ao mais límpido e profundo amor. Ajoelhou-se abraçando o

poderoso pescoço de Mahoo, sentindo imensa pena por seu medo

insano e murmurando uma promessa para apaziguá-lo...

“__Pronto, pronto, irmão. Aquiete-se, descuide-se, tudo será como

deve ser e tudo será para o melhor,... para todos. Eu estou aqui e não

os deixarei.”

Cesar prosseguiu repetindo outra e outra vez essa promessa num

sussurro acariciante, como se falasse a uma criança para acalmála.

Com vagar ia agradando o lombo macio do felino, fazendo

baixarem os pelos que se eriçaram com a energia da violência,

procurando sentir, com o seu toque, a tensão de Mahoo ir cedendo,

deixando espaço para a paz e à entrega a uma sabedoria maior.

E sem deixar de amparar o felino com seu abraço, Cesar estendeu

a mão que lhe ficara livre para tocar a cabeça curvada de Loop, a

raposa, que se aproximou assustada.

E assim ficaram por muito tempo ali, os três, recortando-se contra

o dia andino que se impunha invadindo a caverna com sua

claridade estridente.


Em Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos, no pátio central, com

jardins e a pequena fonte de mármore branco onde a estatueta na

figura de um menino anjo deixava um fluxo incessante de água

jorrar sobre pequenas pedras transparentes, visitadas por

peixinhos vermelhos e dourados, Isabeau ouvia Cesar Astu Ninan,

alheio a tudo que o cercava, murmurar uma ladainha

incompreensível para ouvidos humanos e repetia tentativas

inúteis para fazê-lo aceitar as colheradas de uma sopa morna.

Era o terceiro dia que não conseguiam, nem ela e nem ninguém

mais, persuadi-lo a comer. O médico, Júlios Longarcco, havia

avisado que não poderia permitir que continuasse assim, teriam

que levá-lo para um hospital.

Triste com mais um fracasso nos seus esforços de resgatar Cesar

para a vida, Isabeau se levantou, finalmente disposta a buscar a

orientação do médico para providenciar o internamento. Mas foi

então que uma mão aparentemente muito fraca e magra seguroua

pelo pulso impedindo-a de se afastar.

Espantada Isabeau se voltou para encarar o rosto de fantasma com

olhos negros esmaecidos até se tornarem cinzas brilhantes e febris

e se encheu de surpresa ao sentir a voz cheia de força e a vontade

com um vigor inesperado.

“__Haverão de chegar para o jantar.” Avisou Cesar para o seu

espanto.


“__Quem?” Perguntou ela, aproximando seu rosto e ouvido da

boca de Cesar, pois nos últimos tempos, tudo para ele parecia

merecer o tratamento dos segredos de morte. “__O cão e o gato.”

Respondeu Cesar Ninan se recusando a qualquer outra explicação.

Mas, depois disso apressou-se a tirar da bandeja o prato de fina

porcelana onde boiava um caldo espesso de galinha gorda

engrossado com arroz e batatas e antes que Isabeau tivesse tempo

de impedi-lo, ele já havia usado o prato como se fora um copo,

virando tudo goela abaixo, sem se importar por se lambuzar com

o líquido gorduroso a se esparramar por seu torso, mãos, braços e

pernas.


Capítulo 15

Odaye Therak, O de Asas Brancas de Prata


As avaliações mais sinceras sobre seu caminhar pela existência

faziam Cesar Astu Ninan se reconhecer de total inutilidade.

Principalmente considerando as últimas décadas em que se

arrastara pela vida.

Tentava não pensar demasiadamente sobre isso e uma análise mais

ou menos minuciosa foi feita há muitos anos ao lado dos túmulos

recém ocupados por seus pais, seus irmãos e seus sobrinhos, ocasião

que marcou o início daquele longo período de vazio e em que um

desalento insidioso se instalou permanentemente sobre seus

ombros curvados à inexorabilidade da morte.

Julgava-se pouco ou nada confiável. Tímido, inseguro,

perfeitamente consciente de não corresponder ao altíssimo

conceito que seus semelhantes insistiam em ter dele, além de se

considerar definitivamente culpado pelo enorme desapontamento

que marcou os últimos anos de seu relacionamento com seus pais.

A carreira musical, eleita por eles como redentora da existência de

Cesar foi sendo abandonada sistemática e paulatinamente em cada

uma das suas nuances como quem desfolha as pétalas de uma flor

preciosa, rara, mas destinada a inevitável destruição pela simples

verdade de Cesar não conseguir se acreditar à altura dos padrões

mínimos que o fariam se revelar o gênio executor ou criador,

intérprete, virtuoso ou compositor que se anunciou ao mundo que

ele seria.

Excluíra-as, a cada uma destas atividades que aprendera com sua

mãe a amar, até afasta-las totalmente da sua vida. Fechou para


sempre o piano, encerrou o violino em sua caixa, destruiu as

partituras.

Mas ainda assim não conseguiu enganar totalmente um rígido

senso de responsabilidade e condenou-se a ser assombrado por isso

pelo resto da sua existência.

Ao completar seus setenta anos, Cesar definia a si mesmo como

medíocre e considerava este título como o mais dolorosamente

justo para atribuir a si mesmo em reconhecimento do próprio

fracasso.

Vivia em Roma. Num pequeno e primoroso apartamento em estilo

bizantino, com predominância dos detalhes dourados em ricos

mosaicos espalhados pelas paredes e sobre os arcos em estonteante

profusão, totalmente restaurado e modernizado em seus mais de

quatrocentos anos.

Uma pequena joia arquitetônica recheada de obras de arte, livros

raros, coleções finíssimas de porcelana e cristais e cuidadosamente

mobiliado e decorado com cores aveludadas, quentes e sedutoras

num perfeito equilíbrio com as cores fortes do estilo, para dar ao

seu morador a calmante sensação de aconchego. Ali, Cesar

conseguia se sentir seguro e razoavelmente satisfeito na sua

necessidade quase doentia de solidão e fuga introspectiva.

Havia sempre música suave, havia sempre flores frescas em vasos

de cristal, havia sempre o delicado perfume de rosas amarelas se

espalhando desde os cantos e de sob almofadas, toalhas de mesa e


tapetes, efeito dos saches com as pétalas das flores que eram

confeccionados especialmente para ele.

Era atendido em suas necessidades por três empregados membros

de uma mesma família. Um casal em que a mulher era a cozinheira,

também encarregada pelas compras de alimentos, mantimentos e

demais itens necessários à vida na casa, o marido, um vigoroso

senhor de meia idade que servia como camareiro, mordomo,

motorista, assistente pessoal e guarda costas e a jovem filha de

ambos que era copeira e fazia a limpeza, cuidando dos detalhes tais

como a renovação diária das flores e dos saches perfumados.

Serem uma família havia influído favoravelmente para a decisão

nas suas contratações. Haviam sido treinados sob a supervisão de

Victor e em seguida passados à autoridade de Isabeau que os

comandava perfeitamente desde Terra Alta.

De maneira que a vida de Cesar, embora avaliada por ele próprio

como profundamente frustrante como trajetória existencial e uma

perda total do ponto de vista da realização do seu suposto talento

e genialidade, transcorria sob controle.

Cesar conseguia se dedicar aos seus escritos que eram

invariavelmente aplaudidos pela crítica e pelo público e a todos os

demais interesses da sua personalidade inquieta, como as

quinquilharias que inventava sem nenhum critério e com pouco ou

nenhum proveito para quem quer que fosse. Mas que o faziam ser

reconhecido como um grande inventor.


E assim os dias de Cesar davam a ilusão de correrem plácidos, como

o fluir das águas num rio sempre calmo na superfície, mas com

corredeiras, pedras e acidentes bem lá no fundo.

Ano após ano, por toda a última década.

Então os pensamentos suicidas começaram a ser perigosamente

frequentes. E esta a razão pela qual Cesar passou a ir mais vezes

para Terra Alta e para o casarão Gatopardo em busca da única

família que lhe restava e que ele reconhecia. E foi apenas o acaso

que o fez negociar com a loucura enquanto ainda morava no seu

pequeno e primoroso apartamento em Roma. O acaso e talvez a

companhia de Isabeau, recém separada do marido e que resolvera

ficar um tempo com o tio avô em Roma, poupando-o da

necessidade de tantas viagens.

Não fossem essas circunstâncias, Cesar estava convencido, a

negociação com a loucura teria acontecido no casarão Gatopardo,

em Terra Alta, entre uma e outra baforada no charuto, seguida de

um largo trago do conhaque servido por Victor.

Teria feito alguma diferença? Cesar não sabia e tinha uma

inclinação quase invencível para acreditar que não. Até porque a

loucura se mostrara uma negociadora muito mais interessante e

persuasiva do que, em comparação, Cesar passara a considerar a

morte.

Com a morte, Cesar discutia as questões da inevitável finitude dos

seres em geral, e a sua própria em especial, com estreita

regularidade desde que era apenas um menino e já não encontrava


desafios no debate. Habituou-se aos raciocínios gélidos e a lógica

mortal e era forçoso reconhecer que por vezes a conversa se

tornava quase insípida, embora admitisse a sabedoria superior e

estivesse convencido de que a sua esquelética interlocutora nutria

alguma predileção por ele porque frequentemente se mostrava

muito razoável e até afável, atendendo seus argumentos e suas

súplicas.

No último encontro haviam quase concordado com a data final dos

oitenta e sete anos de Cesar para ele acompanhá-la no que seria o

seu último voo para aquele campo além do bem e do mal.

Mas eis que a loucura se interpusera aos encontros sobre a

conclusão do seu destino e tão sedutora e tão irresistivelmente

irresponsável que Cesar abandonou a cautela para aceitar entregar

sua alma e sua consciência para os raciocínios tresloucados sem

nem mesmo compreender bem como se daria isso, com a única

exigência de se perder de imediato na inconsciência...

Mas a loucura enganara-o e Cesar desceu para o submundo da

mente sentindo seu avanço à cada passo e suportando a lucidez e a

certeza inabalável do fracasso.

O insuportável e devastador reconhecimento da mediocridade

agravado pelo conhecimento da própria loucura.

Um contra senso teria argumentado Victor se tivesse sabido desta

linha de raciocínio... “pois que a mediocridade por definição não

seria a capacidade inabalável de aceitação e conformidade com o

mediano?”


Como poderia haver algum incômodo se a própria condição de

mediocridade, justamente avaliada, exigiria ser garantida e

mantida pela acomodação e pelo querer do medíocre?

Um medíocre, para sê-lo realmente, não poderia nunca ter

consciência da própria mediocridade ou, em todo caso, jamais

carregar um sentimento de insatisfação por isso. O próprio

reconhecer-se ou o incomodar-se ou o revoltar-se contra a

mediocridade exigiria do revoltado, estar, ainda que

minimamente, acima e além da condição de medíocre.

Assim também o louco que para ser completamente louco deveria

estar alheio à possibilidade de se saber louco.

Mas Victor nunca soube do debate íntimo que atormentava Cesar

durante o descer da grande escadaria ao final da qual ele sabia que

estaria completamente subjugado à loucura e, portanto, nunca

conseguiu nem tentar salvá-lo.

E assim Cesar desceu cada degrau esperando ser alcançado pela

leveza e pela irresponsabilidade que o salvariam da dor do fiasco

em que se transformou sua existência, mas tudo que conseguiu foi

cumular-se por mais um tormento que se traduziu na consciência

da mutilação das suas asas.

E eram asas enormes...

Cortadas, arrancadas do lugar em chagas nas suas costas para

obriga-lo a rastejar entre vales e cavernas na cordilheira andina.


E Cesar se viu dentro da caverna com seus salões que passou a

habitar em companhia dos amigos Loop e Mahoo.

Enormes espaços rústicos contendo sombras, como sítios mágicos

com infiltrações de água e luz a se misturarem para provocar todo

tipo de ilusões sob os raios claros e escuros incidindo nas

estalactites e estalagmites e nos farrapos de películas úmidas a se

refletirem em formações fantásticas espalhadas aqui e ali sobre o

piso, paredes e teto.

E em suas andanças entre os paredões de pedra chegaram ao

patamar na mais alta montanha, onde, agora ocultos por um vão

escuro, Cesar e seus amigos observavam Odaye Therak.

E Odaye Therak era um ser alado.

Ele estava solitário naquela espécie de varanda que se estendia

quase três metros além dos limites da caverna em que habitava e

suportava a longa espera distraindose a observar a própria sombra

projetada sobre o piso de rocha bruta.

Os raios do sol, minimamente deslocados da posição em que

marcariam exatamente o meio do dia, faziam sua sombra achatarse

até se parecer à silhueta de um tronco compacto, com um

penacho cômico se erguendo do alto da cabeça e com a

protuberância escura do contorno do dorso onde lhe nasciam as

asas.


Do local próximo, camuflados entre os vãos da rocha, Cesar, Loop

e Mahoo espreitavam o ser magnífico e comparavam às

deformações ilusórias da sombra sobre o piso de pedra aos

atributos do ser real.

Racionalizavam o próprio espanto classificando Odaye Therak

como um homem com asas e Cesar reconhecia que tal descoberta

ameaçava encher de significado a sua vida até ali considerada

injustificável, mas agora na iminência de se justificar.

A isso, seguiu-se o raciocínio de que classificar o ser alado como um

homem com asas seria rigorosamente errado, porque nada

autorizava afirmarem que aquele indivíduo extraordinário seria de

fato um ser humano do sexo masculino portador de uma mutação

fantástica, embora a comparação fosse compreensível, dadas às

similaridades nas aparências.

Mas uma observação mais cuidadosa, mais detalhada, acabou por

revelar muito mais as diferenças do que as igualdades e ao final da

análise a conclusão a que chegaram foi a de que viam um

enigmático, místico e maravilhoso ser alado, com alguma

semelhança aos seres humanos.

Pois Odaye Therak era, de fato, um ser alado e suas asas eram

enormes...

Um par de asas imaculadamente brancas e com nuances de um

brilho prateado que o batizavam, pois este o significado do seu

nome, Odaye Therak, “O de Asas Brancas de Prata”.


Em Odaye Therak estes membros extraordinários cobriam

inteiramente suas costas como uma enorme capa dividida

exatamente ao meio pela coluna vertebral. Nasciam em um ponto

a dois palmos abaixo da nuca deixando inteiramente livres a parte

superior do tronco, o pescoço e a cabeça e desciam verticalmente

ao longo da coluna até imediatamente abaixo da linha da cintura

se inclinando levemente à direita e à esquerda segundo sua

localização para a formação de cada uma das asas.

Tais asas eram cobertas por penas macias extremamente

especializadas em seu tamanho e forma e perfeitamente ajustadas

umas às outras, harmoniosas, delicadas e perfeitas. No alto, de

cotovelo a cotovelo formava-se, à altura dos ombros, uma delicada

linha horizontal de cartilagem, pele e penas, minimamente

protuberante e presa a músculos tão poderosos que, estes sim,

ficavam agressivamente perceptíveis sob a pele delicada. Fazendo

as asas se parecerem exatamente a vestimentas com uma espécie

de bainha no alto como acabamento e terminando de cada lado em

meias mangas por onde se enfiavam os braços. De maneira que ao

abri-los o ser alado abria também obrigatoriamente suas asas em

toda sua gloriosa extensão e quando cruzava os braços envolvia-se

sob as asas, qual sob um manto protetor.

Os antebraços lhe ficavam livres e semelhavam-se aos de qualquer

ser humano vulgar, acabando em punhos e em mãos de dedos

longos, mas com unhas enormes e afiadas como verdadeiras garras.

Desde o topo de sua cabeça e se estendendo por todo o corpo, nascia

uma penugem macia, longa e delicada, muito mais fina do que


cabelos humanos e que ia adquirindo nuances diferentes de

dourado à medida que se estendia ficando ainda mais fina e com

fios mais curtos colados mais intimamente a pele, mas na sua

totalidade com tons muito pálidos e suaves, que agora brilhavam

ao sol.

E assim, resultava disso o homem alado parecer totalmente

envolvido numa aura de luz dourado prateada que o fazia ter uma

natureza ainda mais mágica, reverberante. Como se todo ele, ao

invés de ser formado por carne, penas, cartilagens, músculos e

ossos como evidentemente era, fosse, ao invés, uma joia viva e

fulgurante.

No entanto dificilmente Odaye Therak teria consciência do

impacto eletrizante que sua figura soberba, muito alta e esguia

ostentando asas imensas e com músculos bem definidos

evidenciando sua fantástica força física, causava nos observadores

à espreita. E isso pela simples razão de que Odaye Therak via a si

mesmo e se reconhecia como o mais comum dos alados. Semelhante

a todos os outros indivíduos do seu povo.

Perfeitamente identificado com cada um dos cento e setenta e nove

milhões, novecentos e noventa e nove mil, oitocentos e três seres

que formavam o que se poderia chamar de civilização dos alados.

Criaturas aladas fantásticas espalhadas por três milhões e

trezentos mil quilômetros quadrados de montanhas, cavernas,

platôs, planaltos e vales, numa altura média de quatro mil metros

e em incontáveis extensões de terra, entre os picos majestosos na

vastidão da Cordilheira dos Andes.


Capítulo 16

O último degrau


Cesar acordou de um sono sem sonhos e se viu deitado sobre uma

cama macia e ricamente adornada no centro de um salão escavado

na rocha. Havia uma luz suave, aconchegante, que não

incomodava os olhos e Cesar podia ver por todos os lados detalhes

luxuosos e maravilhosamente confeccionados, móveis, objetos de

decoração e de uso cotidiano, feitos de metais polidos, entalhados

ou esculpidos em pedra.

Era o recém desperto do mesmo sono que ainda mantinha

inconscientes seus amigos Loop e Mahoo. Estavam os três entre

extraordinários seres alados que se moviam incansavelmente ao

seu redor, provocando um leve, quase inexistente farfalhar de

penas e asas, como numa louca coreografia de algum balé surreal.

E tudo parecia acontecer sob véus. Nada era completamente

nítido, nada tinha seus contornos e formas perfeitamente

definidos. Tudo era apenas uma possibilidade, um quase ser ou

estar.

Cesar viu, ou pensou ver, três seres alados, movendo-se como se em

câmera lenta em sua direção. Muito altos, majestosos, três homens

pássaros. Pensou que se comunicavam entre si e certamente se

perguntavam quem seriam eles, o próprio Cesar e seus amigos

Loop e Mahoo, estes seres estranhos. Sem asas.

Desde uma distância cautelosa observavam-nos atentamente.

Aquele que Cesar sabia ser o líder e a quem os outros chamavam

de Odaye Therak pareceu a Cesar se aproximar fixando-o com

ainda maior insistência. E Cesar se percebeu pensando que o


magnífico ser parecia divertido. Como alguém curioso em busca de

revelações que prometiam ser inusitadas e talvez até...mágicas?

Avaliando o olhar de Odaye Therak, Cesar percebeu com absoluta

clareza que a mente por trás daqueles olhos era lúcida e

enormemente inteligente. Calculista, científica, uma mente que

não admitiria brincadeiras ou barganhas.

Cesar se mantinha calmo, mas era impossível ignorar as garras

assustadoras que terminavam as mãos do ser alado e que se não

pelas unhas enormes e seguramente cortantes como afiadíssimas

navalhas, seriam incrivelmente iguais às mãos humanas.

Odaye Therak com tais garras, com toda sua força e sua figura

intimidante de dois metros de músculos poderosos, impunha-se a

Cesar exigindo a resposta à sua pergunta.

Mas, só talvez, existisse uma pergunta exigindo uma resposta.

Era apenas uma possibilidade.

Cesar pensou que podia escolher o que era real ou imaginário em

tudo aquilo e na hipótese de escolher que estariam mesmo à mercê

de um ser alado intimidador por sua força incontestável e por suas

mãos em forma de garras poderosas e que tal ser, lhe tivesse feito

realmente uma pergunta, a qual, portanto, precisava ser

respondida, então, ...em decorrência desta escolha seria preciso se

reconhecer encurralado, porque Cesar descobriu espantado e

alarmado, que não sabia realmente o que responder.


Fiel ao compromisso com a sinceridade, Cesar pensou que houve

um tempo em que fora um ser humano, um homem, como todos os

homens do seu tempo e lugar. E tão confiável quanto podem ser os

seres humanos o que verdadeiramente, é preciso que se diga, não é

muito.

Pausou seus pensamentos e observou os alados tentando perceberlhes

as reações, sabendo ou imaginando que os seres captavam

claramente todas as ideias que lhe vinham à mente. Mas como

máscaras imutáveis os rostos aquilinos não transpareciam nada.

Então ele seguiu pensando que um dia seus contemporâneos o

chamaram Cesar e que era filho de uma família muito antiga, Astu

Ninan, muito poderosa, com sua origem perdida nos tempos e nas

histórias dos vales e das montanhas dos Andes.

E que fizera uma escolha acreditando que encontraria liberdade,

felicidade e paz.

Mas descobriu que nada lhe seria fácil.

Deveria lutar para conseguir o desejado esquecimento que a

princípio acreditou que conquistaria simplesmente se deixando

perder da consciência, para se flagrar já não mais totalmente ser

humano.

Então houve um receio e, ...a julgar por seus velhos braços e mãos,

(ergueu os braços diante dos próprios olhos com tristeza

percebendo-os tão fracos e murchos) e continuou sua reflexão

silenciosa...


“__seja lá o que eu me tenha transformado, a verdade é que sou uma

versão velha e alquebrada, ...daquilo que sou agora. Seja lá, o que quer

que isso seja. __Não represento perigo para vocês.”

Com mais uma pausa, com a mente vazia e em branco por alguns

segundos olhou finalmente para os animais adormecidos. E sobre

eles os pensamentos lhe vieram infinitamente mais generosos.

“__Estes são Loop, a raposa e Mahoo, o puma, são seres das

montanhas, seres maravilhosos e me acompanham nesta jornada que

ainda tento entender.”

Desejou com uma devoção profunda ser entendido pelos alados em

seus pensamentos. Que pudessem lê-lo com a facilidade das

palavras impressas e que pudessem , mais do que isso, compreendêlo.

Sentia que era um momento em sua vida em que nada mais lhe

restava além de desejar a simples compreensão.

Então aquele cujo nome era Asran Hei e a quem Cesar percebeu

Odaye Therak chamar de irmão fez para seu líder perguntas que

ressoaram na mente de Cesar como se ele próprio as tivesse

formulado. “___(Maymanda), quem são esses seres? De onde

vieram? De qual montanha trazem sua força vital (Kawsai Urku),

qual o seu povo (Llacta)?” E, por fim, o terceiro ser alado, Ogidin

Hair mostrou sua inquietação, “__Como conseguiram chegar a esta

altura nas montanhas que só é possível aos Mantos?”

“Mantos”, a denominação chamou a atenção de Cesar e o fez

perceber mais cuidadosamente os alados parados à sua frente.


Os corpos eretos com os braços cruzados dando a impressão de

estarem envoltos por radiantes mantos de plumas e deixando

obvio o motivo de chamarem-se a si mesmos de Mantos. Quanto às

perguntas de como ele e seus amigos haviam chegado até ali tudo

o que Cesar sentia era confusão. Não tinha respostas satisfatórias.

Recordava-se apenas de vislumbres enevoados da longa

caminhada pelas trilhas andinas em companhia dos fiéis Mahoo e

Loop.

Então reviu em pensamentos sua história, como num filme,

acreditando com isso poder mostrar tais imagens aos homens

alados.

Entre névoas de sonhos ia recordando cada acontecimento desde o

instante em que vira a si mesmo pairando num voo sem asas sobre

as montanhas e os vales da cordilheira até pousar, invisível, na

rocha solitária e vermelha diante da caverna onde encontrara os

animais e onde permanecera um tempo sem conta até descobrir a

missão que o obrigava a seguir pelas trilhas entre as montanhas

supostamente em busca do místico pássaro Tilsith Teray.

Sentiu com uma certeza absoluta e inexplicável que os seres alados

o entendiam. Ainda entre névoas de pensamentos alucinados viu

que se afastavam, partiam, deixando-os sós naquele aposento de

pedra em que a luz delicada infiltrava-se por frestas infinitas.

O sono hopiáceo envolveu Loop e Mahoo por mais vinte minutos

quando então finalmente despertaram e foi preciso Cesar

tranquilizá-los, ficar ao lado deles para que não se entregassem ao


medo. Mas o próprio Cesar estava estranhamente tranquilo, como

se tudo o que conseguia perceber entre véus fizesse parte de uma

história já bem conhecida que ele ia revivendo e recordando poucos

segundos antes de cada acontecimento por insignificante que fosse,

para que então tivesse a certeza de que tudo era como deveria ser.

Um leve e muito delicado perfume que repentinamente ocupou a

sala totalmente e um quase inaudível farfalhar, como se milhares

de delicadas sedas roçassem as pedras no deslocamento de um

corpo deslizante entre paredes, alertou-os que alguém se

aproximava.

Loop se pôs imediatamente alerta e Mahoo empinou as orelhas e

baixou o corpo até rastejar o ventre no piso maciço, assumindo

uma postura de ataque. Cesar acalmou-os acariciando levemente

os lombos eriçados, falando baixinho para que se aquietassem.

Dentre as brumas observou atentamente o lugar de onde sentiam

a aproximação da inesperada visita e luzes e sombras fizeram Cesar

acreditar ver em movimentos rápidos uma silhueta

definitivamente familiar que lhe trouxe à mente o nome Isabeau.

Estremeceu de inquietação porque muito embora conseguisse ligar

o nome a uma imagem fugidia envolta nas nuvens da sua confusão

mental e tivesse a certeza de que tentava evocar alguém que lhe

deveria ser muito conhecida, Cesar sofria a agonia de não conseguir

se lembrar de quem era.

Com a respiração suspensa e o coração aos saltos esperou para ver

quem chegava.


Entrou na sala uma figura deslumbrante, fazendo Cesar pensar em

seres celestiais reverberando a mais pura beleza. Uma figura

indiscutivelmente, certamente, totalmente feminina. Um ser que

seria a materialização das imagens sonhadas dos anjos caso Cesar

alguma vez se houvesse entregue à tais devaneios.

Loop e Mahoo voltaram a se agitar, mas não voltaram a eriçar os

pelos dos lombos e nem armaram as garras, apenas empinaram as

orelhas e se mantiveram atentos, com os músculos retesados.

Prontos à fuga estratégica, mas ao mesmo tempo curiosos sobre o

ser que chegava e que sem demonstrar o mínimo receio, se

aproximou tranquila.

A mulher alada separou alimentos que trazia numa espécie de

carrinho puxado delicadamente por uma corrente dourada e

serviu-os primeiro a Loop e a Mahoo. Movia-se com estrema graça

e leveza e Cesar pensou, para seu espanto, vê-la sorrir. Era muito

alta, não tanto quanto os seres alados masculinos, ainda assim

mais alta do que Cesar e ele sempre se orgulhara de seus um metro

e noventa. Tinha asas brancas brilhantes que lhe cobriam as costas

como um manto até quase tocar o chão, exatamente como os

outros, mas a maior leveza e fragilidade da sua figura em

comparação às figuras dos seres alados masculinos, era evidente.

Também ela tinha feições aquilinas e também ela tinha mãos

extraordinariamente similares às mãos humanas, mas que

acabavam com dedos de unhas enormes e afiadíssimas. O corpo

dela também era totalmente coberto pela penugem delicada e


brilhante, mas com as nuances de cores ainda mais delicadas e

pálidas do que nos outros alados.

Vestia uma espécie de toga que lhe descia deste o pescoço, em

tecido muito fino, quase diáfano e totalmente bordado com, o que

pareceu a Cesar, serem milhares de pedras preciosas.

E havia a envolvê-la o perfume suave que a precedera, muito

delicado e delicioso, mas persistente a se desprender dela à cada

movimento.

Parecia a Cesar que ela os olhava intensamente, visivelmente

admirada e até tomada de viva emoção. Cesar pensou quem seria

e a resposta lhe veio como uma intuição muito forte da qual não

duvidou.

Soube que ela era Wayra Kori e que trouxera os alimentos para ter

a oportunidade de ver os seres mágicos que deixaram seu

companheiro, Odaye Therake, tão impressionado.

Surpreso com a qualificação de mágicos com referência aos seus

amigos e a si próprio, Cesar pensou em tranquiliza-la porque

subitamente e inexplicavelmente, era-lhe muito importante poder

satisfazê-la e assegurar, de alguma forma, todo o bem para aquela

criatura de tanta graça e beleza.

Obstinou-se a transmitir a ela o que sentia.


Fulminou-a com a força de um pensamento assegurando que...“o

que quer que fossem, ele e seus amigos animais, não representavam

perigo algum para ninguém naquele lugar mágico.”

Wayra Kori fez, para os três, um movimento leve como uma

reverência, cumprimentando-os. Cesar soube que ela o entendeu e

intuiu que ela desejava poder perguntar quem eram exatamente e

o que faziam ali naquela caverna nos Andes.

Indeciso sobre uma resposta satisfatória pensou tristemente.

“__Um dia talvez eu descubra quem eu sou e então prometo que direi

a você.”

E porque era toda essa a verdade, porque realmente não tinha

nenhuma resposta melhor para ela, baixou a cabeça e lágrimas

amargas lhe inundaram os olhos.

Sobre seus amigos animais subitamente tinha mais para dizer e,

pensou sobre eles. “__Estes são meus amigos. Companheiros fiéis

nesta jornada e é estranho que eu saiba desse fato com tanta certeza,

porque parece ser só o que sei.”

Mergulhou a mente em silêncio por alguns segundos mantendo a

tela da imaginação em imaculado branco, aos poucos, lentamente,

começou ponderando ideias, pensando em possíveis palavras, por

fim mencionou em pensamentos alguns fatos à mulher alada.

“__ Loop é uma raposa, uma fêmea de uma raça semelhante aos cães

embora completamente selvagem e Mahoo é um puma macho, um

representante de uma raça de grandes felinos. São animais que vivem


entre as montanhas e planaltos da grande cordilheira.” Emocionouse

então novamente quase até às lágrimas, subitamente tomado de

imensa gratidão pela amizade dos animais. Apontou-os para

evidenciá-los ao mesmo tempo em que afirmava...“__e são

perfeitos... ”

Sorriu para Wayra Kori.

Ela se mostrou ainda mais amável. Cesar recebeu dela uma

emanação e entendeu que ela os informava de que outros seres que

ela chamava Askarunas viriam vê-los. Explicou que, “...eram uma

casta de sábios Res Sas, estudiosos, conhecedores da vida e de tudo na

vida.”

Então Cesar pensou nestes seres que deveriam ser como médicos,

curadores de males físicos e talvez, também d’alma...? E se

convenceu que recebia de Wayra Kori uma afirmativa, pensou que

os Askaruna seriam criadores e pesquisadores de coisas novas.

Cesar concluiu em pensamentos. “__Cientistas, então...”

Fechou os olhos para melhor visualizar o que desejava mentalizar

e transmitir. Os pensamentos misturados às nuvens de idealizações

e sonhos, milagrosamente seguiram uma sequência lógica.

“__Venho de um lugar ao pé das montanhas, uma cidade. Eu venho

deste lugar, mas Loop e Mahoo vêm dos vales, planícies e planaltos

entre as montanhas.” E Wayra Kori sentindo o som que lhe era

estranho imitou-o em pensamentos. “__Cidade.” Repetiu ela

experimentando aquela vibração sonora até então desconhecida.

Por fim também ofereceu uma informação. “__Este lugar em que


estamos é dificilmente alcançado. Nesta altura apenas os Mantos

conseguem chegar.”

E Cesar repetiu várias vezes aquele som que só encontrava

correspondência no seu arquivo de conhecimento ao pensar num

acessório de vestimenta, como uma capa. “__Mantos?” Já havia

escutado os outros alados referirem-se aos Mantos. Pensou captar

uma explicação, mas não podia assegurar que era a mulher alada

quem o ajudava. Ele acreditou compreender que os Mantos eram

uma raça de alados, uma entre outras, formadoras da civilização

Res Sas, povo de seres alados tão semelhantes aos humanos como

a própria mulher alada e Odaye Therak, Asran Hei e Ogidin Hair.

E havia também os Livres. Cesar percebeu distintamente esta

informação. “Mantos e Livres, raças distintas de uma mesma espécie.

Formando um só povo, os Res Sas, o povo alado.”

E em seus pensamentos ecoou ainda mais uma estranha palavra,

...“AntZiien

(Deus dos ventos dos Andes), com referência ao alado Odaye Therak

o líder supremo Res Sas, primeiro filho da quinta casa dos Mantos.”

Então Cesar pensou que havia interpretado corretamente a

postura segura e com ares de autoridade que percebera nas ações

do ser alado.

Olhando a estranha beleza daquela fêmea alada que ali se

mantinha tão serena, tão tranquila, sem nenhum temor ou traço

de ansiedade além da curiosidade saudável e inteligente por

encontrar seres tão diferentes e tentar entendê-los, mas sem


cobranças ou expectativa de nenhuma espécie, Cesar se sentiu

confortado naquela antiga necessidade que aflorava nele como um

eco à mania de anonimato, de afastamento, de solidão e de ser

quase apenas uma sombra e se sentiu encantando. Era como

receber a garantia de que não seriam perturbados em sua paz e

segurança por mais observados que fossem.

Mais uma vez com os olhos fechados, decidido a captar qualquer e

toda informação que pudesse estar vindo de Wayra Kori, percebeu

com clareza a informação de Odaye Therak desejar descobrir tudo

sobre eles e sobre o motivo de estarem ali, naquele lugar e naquela

altitude só possível aos Mantos.

Sentia emanações leves, como se a mente de Wayra Kori passeasse

descontraída e quase displicente pelos pensamentos em cascata

que a presença de Cesar e de seus amigos animais provocavam e

então apareceu com força e claramente uma menção ao místico

pássaro Tilsith Teray. Isso fez a mente de Cesar imediatamente se

agitar e ele informou sua interlocutora em pensamentos.

“__Estamos em uma missão. Devemos encontrar Tilsith Teray, é um

resgate para a continuidade da vida.”

E então, também de imediato Cesar recebeu a declaração de Wayra

Kori de que era uma seguidora, uma discípula dos ensinamentos

de Tilsith Teray, diferente de Odaye Therak e muitos outros

Mantos, que pensavam que os ensinamentos e as leis antigas

seriam apenas histórias, apenas superstições.


No entanto a liberdade de crença entre os Res Sas era garantia de

Wayra Kori seguir suas próprias ideias e ter Tilsith Teray como o

depositário da sua fé.

Compreendendo o interesse de Cesar, a mulher alada prometeu

falar mais sobre o ser místico, mostrar-lhe escritos, ensinamentos,

contar-lhe as histórias.”

Cesar pensou, “...que Tilsith Teray seria o líder supremo desse

império de seres alados.”

Wayra Kori captou esse pensamento e sorriu como se desculpando

a tolice de Cesar, ela respondeu em pensamentos, com paciência,

quase com ternura, emanou a resposta para ele.

“__ Odaye Therak é o líder supremo do povo Res Sas. O Pássaro

Tilsith Teray é o espirito supremo do nosso povo.”

“__Tilsith Teray existiu no princípio dos tempos e foi o maior dos

líderes e o propagador da fé. Um grande espírito, um Deus criador do

primeiro Res Sas que deu origem a todo o povo alado das montanhas,

mas isso foi há muito, muito tempo. Antes das águas descerem e

quando os picos das mais altas montanhas eram como pequenas ilhas

sobre um mar infinito. Pássaro Tilsith Teray profetizou o

abaixamento das águas e o surgimento das alturas das grandes

montanhas e o aparecimento dos precipícios, dos vales e rios e dos

vastos campos e ensinou o povo fortalecer suas asas com o alimento

sagrado da flor Aska (deus da vida) e voar pelos vales e cultivar a

terra e pescar nas águas dos rios. De outra forma todos teriam perecido

e nada mais existiria.”


“__Agora Tilsith Theray vive apenas em espírito, pairando sobre as

montanhas habitadas por seu povo Res Sas. Provendo a renovação da

vida e a continuidade da nossa raça por toda a eternidade. Indicando

o caminho e observando a conduta de todos, principalmente dos

governantes. Odaye Therak é o primeiro filho da quinta família dos

Mantos, e este é o ciclo da quinta família. Então Odaye Therak é o

líder supremo dos Res Sas e do Conselho de Anciãos. Será assim até

que se complete este ciclo e os filhos da primeira família voltem a

ocupar o comando supremo no conselho, seguidos pela segunda e

terceira e quarta famílias, até mais uma vez voltar o ciclo da quinta

família e assim sucessivamente.”

Então se fez um branco completo e um silêncio absoluto na mente

de Cesar enquanto ele via a mulher alada fazer um gesto de

extrema delicadeza com as mãos como se pedindo a ele serenidade

e ele compreendeu que ela lhe pedia paciência porque não havia

nenhuma pressa em entender tudo.

Wayra Kori (Vento de Ouro) olhou-os com a limpidez da sua alma

alada aparecendo nos olhos. Mais uma vez Cesar pensou perceber

o ar de um sorriso no rosto estranho, com sua beleza quase

impossível para ser assimilada por uma mente humana e no qual

ele acreditava estar refletida a tranquilidade de uma consciência

sincera.

Cesar percebeu sucessivas emanações vindas da mente dela com a

intenção de tranquilizá-los, para que ficassem em paz, sem nada

temer, entregues aos cuidados dos Askarunas que viriam para

estudá-los, e pensou que não havia necessidade dela se preocupar


porque ele e Mahoo e Loop estavam pacíficos e até satisfeitos por

se entregarem às pesquisas dos Askarunas e ele seguiu seu

raciocínio, ... “__Sim teremos a oportunidade de nossas questões

serem respondidas e seu estudo poderá nos ajudar.”

E uma imagem refletida da mente da mulher alada alcançou-o.

Ela transmitiu para ele.

“__E descobrir o significado de estarem aqui.”

Então, subitamente, Wayra Kori pareceu a Cesar que hesitava,

mantendo seus pensamentos fora do poder de captação dele por

alguns instantes, até que afinal percebeu que ela se referia

novamente ao incrível, impossível fato dele e seus amigos estarem

naquela altura.

Ela disse.

“___Descobriremos como conseguiram chegar a estas alturas possíveis

apenas aos Mantos, impossíveis aos Livres, ...e ela hesitou

novamente um segundo antes de afinal concluir, ...

“__ ou para seres como você, Cesar Astu Ninan, o de asas

mutiladas.”

Estas últimas emanações de palavras pensamentos atingiram

Cesar com o poder de uma revelação muito dolorida e há muito

tempo sufocada. Em segundos ele reviu sua dor e sua revolta.

Lembrou-se e foi como viver novamente o sofrimento do perder

passo -a- passo sua lucidez e sua consciência.


Subitamente sentiu uma agonia imensa.

Faltou-lhe o ar, faltou-lhe o chão.

Curvou-se para frente como se atingido de morte por uma

punhalada. Mas infinitamente mais cruel porque aquele não era

um ato físico que pudesse ser impedido por uma reação física

contrária.

Era um ataque à sua alma.

Sofreu uma dor insuportável desencadeada pelo terrível

pensamento que lhe fora lançado pela mulher alada designando-o,

“o de asas mutiladas”. As palavras atingiram-no como se fossem

um comando para uma tortura espiritual acionada

inadvertidamente por Wayra Kori, lembrando-o que haviam

arrancado suas asas, deixando no lugar os tocos esfacelados em

carne viva.

Cesar se deixou cair de joelhos, lutando para respirar. Agitou os

braços num abraçar-se desesperado, envolvendo-se em si mesmo,

tentando alcançar, nas costas, o lugar exato da mutilação

criminosa.

Olhava por sobre os ombros para ver o que restava dos membros

que seriam o símbolo da liberdade. Debatia-se querendo se livrar

da revolta e sufocava um grito em sua própria imensidão, porque

não encontrava a força ideal para expressar tanta dor num único

berro.


Desfaleceu sobre o piso de pedra e caído percebeu entre névoas a

figura da mulher alada, cercada por Loop e Mahoo, que agitados

em aflição, vinham tentar resgatá-lo. Protegê-lo dos seus próprios

movimentos alucinados.

Sentiu braços que tentavam contê-lo, vozes que o chamavam à

razão, súplicas para que se acalmasse.

Procurou a face de Wayra Kori. Evocou-a em toda sua majestade

e sua beleza indescritível e inumana. Impossível de ser

compreendida ou sequer acreditada. Mas foi o rosto de Isabeau que

viu se delineando, misturado aos traços impressionantes da mulher

pássaro.

Desfeito em lágrimas e aflição, o rosto de Isabeau longinquamente

conhecido foi surgindo dentre a névoa de sortilégios, se impondo

para o reconhecimento de Cesar. Magicamente, como acontece com

os contornos de uma impressão fotográfica que vai emergindo sob

a ação do líquido revelador.

Então Cesar tentou chama-la, mas qual nome chamaria? Sem se

aquietar minimamente, na sua agonia dolorosa física e mental

tentava lembrar qual nome chamar para implorar misericórdia.

E Isabeau se perdia em lágrimas que a cegavam da dor de Cesar.

Com uma prece incessante reduzida à frases de súplicas repetidas

infinitamente para que os guardas costas e os enfermeiros

conseguissem conter Cesar naquele debater-se insano e tão

profundamente cruel.


E foram ambos os rostos, o de Isabeau e de Wayra Kori, envolvidos

um no outro, misturados em seus traços, conturbados na confusão

de anularem-se ao mesmo tempo em que se completavam, a última

visão de Cesar. Antes que conseguissem dominá-lo, aplicando-lhe

um forte sedativo destinado a fazê-lo dormir por horas.


Capítulo 17

Os Mantos e os Livres


Cesar vivia entre nuvens. Adivinhando coisas e gestos, sentindo

presenças, intuindo situações. Nada nunca parecia a ele

completamente certo, confiável, concreto, indiscutível. Tudo eram

apenas impressões em um eterno poder vir a ser.

Vivia uma vida de sonhos com sua dinâmica imprecisa e

poderosamente criativa. Uma vida que precisava ser aprendida aos

poucos para ele se adequar a ela e adequá-la ao seu próprio ser que

ele percebia diáfano, fluído, irreconhecível, um quase não ser.

O não ser que lhe parecia cada vez mais exato porque, se lhe

perguntassem, ele saberia dizer sem dificuldade tudo o que não era.

Não era feliz, não era compreendido, não era livre e não era, estava

convencido, totalmente humano, mas, sobretudo e, o pior de tudo,

...não tinha asas e, portanto, não era um ser alado.

Mas não obstante, dentre as brumas ele se via cercado por seres

alados.

Hipnotizado pelo farfalhar da agitação das penas e das asas

formando turbilhões de ondas peroladas, erguendo emanações que

reverberavam e pulsavam e se insinuavam entre tudo e todos e o

trespassavam porque Cesar sentia o movimento louco de voar no

mais recôndito de si mesmo.

E então, repentinamente, já não havia mais o impossível ou o irreal

e ele soube que nada poderia ser mais verdadeiro.


Estava em meio dos seres fantásticos alados. Altos, belos, soberbos

em suas cores brilhando sob mil flashes de luz e, num impulso, sem

pensar, Cesar buscou Victor com os olhos. Acreditou vê-lo logo

mais adiante por trás das nuvens de asas agitadas, mas quando a

figura que lhe atraíra a atenção parecendo-se a Victor se

aproximou, ao invés de reconhecer seu cunhado percebeu que o ser

que chegava era alguém diferente de todos que havia visto até

então, muito embora fosse também um homem alado.

E à medida que o estranho personagem se acercava, Cesar ia

compreendendo que se tratava do primeiro representante dos

chamados alados Livres que iria conhecer.

Uma sensação inexplicável o fez intuir que aquele seria também

um dos mais importantes seres a cruzar sua existência e só com vêlo

Cesar foi capaz de entender toda a extensão das diferenças entre

Mantos e Livres. E entenderia também sobre o que se sustentava

toda a organização daquela sociedade extraordinária.

A grande, a enorme questão entre as duas raças de alados a

formarem a sociedade Res Sas alicerçava-se nas diferenças dos

formatos das suas asas.

Na morfologia dos Livres as asas projetavam-se a partir de um

único ponto de contato em suas costas de onde surgiam sem

nenhuma ligação a músculos dorsais, deixando os braços

completamente livres e fazendo lembrar as asas de anjinhos

querubins da tradição cristã. Era uma aparente vantagem, mas

que cobrava o pesado tributo de provocar o desequilíbrio no andar


além de impossibilitar a sustentação dos corpos durante o voo para

alcançarem grandes alturas pela falta de aderência das asas a

músculos fortes nas costas.

E essa incapacidade dos Livres, garantia aos Mantos uma

supremacia inquestionável e invencível porque nos picos das

montanhas acima dos seis mil metros era que se cultivava

adequadamente a Ninasisanuna (alma da flor do fogo) e se

produzia o alimento derivado da Aska, sua flor branca.

E agora Cesar estava prestes a conhecer o mais importante

representante dos Livres da sociedade Res Sas, pois Nuna Sapaki

se aproximava.

E não se tratava de um alado qualquer, mas alguém de grande

prestígio e importância, o líder dos Askarunas, o equivalente à

classe dos cientistas nas sociedades humanas.

Logo Cesar concluiria que Nuna Sapaki era um verdadeiro

fenômeno para o povo alado, pois sua condição de alado Livre e,

portanto, inferior socialmente, havia sido superada por sua grande

capacidade intelectual e por sua disciplina para o trabalho.

Cesar manteve tais credenciais bem vívidas em seu espírito

enquanto o observava chegar. Ficaram frente à frente, Cesar Astu

Ninan e Nuna Sapaki.

O alado se apresentou a Cesar anunciando que por determinação

do líder Odaye Therak ficara encarregado de descobrir o mistério

que os envolvia, a ele e aos seus amigos animais.


E Cesar o ouviu ao mesmo tempo em que observava as grandes

asas com enormes corcovas emplumadas aparecendo acima e por

trás da cabeça de Nuna Sapaki, criando a ilusão dele ser muito

mais maciço e pesado do que os outros alados vistos até então.

Admirou a beleza do cinza azulado, com nuances peroladas mais

suaves, predominante em toda a fina penugem que lhe cobria o

corpo, mas que tinha o efeito de fazer Nuna Sapaki lembrar um

grande bloco de cimento a se chacoalhar. Notou o olhar

incrivelmente inteligente, perspicaz, brilhando na face aquilina,

que deixava transparecer serenidade, bondade e honradez.

Tudo isso chamou a atenção de Cesar, mas a característica que

marcou para sempre cada uma das suas lembranças sobre aquele

primeiro encontro foi o andar meio desequilibrado que fazia

lembrar um bêbado e que Cesar classificou como desengonçado.

Mais tarde Cesar descobriria ser esse andar deselegante uma

característica dos Livres, precisamente em consequência da

morfologia das suas asas e acentuada em Nuna Sapaki por sua

idade avançada.

Completamente sincero em sua dedicação à ciência, Nuna Sapaki

encarou com muita seriedade a incumbência de descobrir tudo

acerca dos três extraordinários personagens. Estarrecido por

encontrá-los naquela altura impossível à maioria dos seres, altura

para a qual mesmo ele precisava ser alçado, carregado por outros

cinco alados Mantos em uma espécie de liteira levada pelos ares.


Para chegar a esta e outras respostas o velho cientista anunciou

que os incluiria no seu cotidiano pelo tempo necessário às suas

investigações.

E assim, passou a conviver estreitamente com eles. Dedicou-se a

estudá-los.

Fez exames, desenhos, fotografias, filmagens. Pesou-os, mediu-os,

vasculhou com raios X o interior dos seus corpos, colheu e analisou

seus fluídos e dejetos, amostras de peles, sangue, pelos, unhas. Fez

milhões de perguntas, preencheu questionários com incontáveis

respostas, cruzou informações, pediu que caminhassem ou se

imobilizassem, saltassem, se agachassem, rolassem ou deitassem

em posições específicas, aplicou uma infinidade de testes com

figuras, textos, sons, deu-lhes de comer e beber alimentos diversos.

Observou-os em todos os pequenos afazeres do dia-a-dia e

monitorou-os durante às noites enquanto dormiam.

E ao final de três semanas, três dias e quatro horas de incessantes

estudos e avaliações concluiu que eram representantes de espécies

completamente distintas entre si e desconhecidas para os Res Sas.

Que não deviam estar naquelas montanhas entre seres alados, que

sua existência era enormemente improvável e que não era razoável

e nem mesmo possível que fossem encontrados ali, naquele lugar e

época ou sequer que estivessem vivos.

Cesar ficou deliciado.

A fama que sempre o acompanhara e atormentara perdera-se em

sua memória humana que ele já não reconhecia ou acessava, mas


que o alcançava com ecos das considerações de seus semelhantes a

encará-lo como uma excentricidade e então foi quase um resgate

de si mesmo se convencer de que o status de raridade e a

improbabilidade absoluta para ele e seus amigos serem e estarem

no mundo, era a única mudança de patamar na escala de

importância possível às suas vidas.

E no seu caso particular a derradeira chance de ver sua existência,

até então desprezível, urgentemente se justificar aos seus próprios

olhos. Agora, classificado como um bicho raro, talvez conseguisse

se convencer que valia para alguma coisa.

Além disso, Nuna Sapaki, com sua infinita generosidade, permitiulhe

acesso a sua extensa e maravilhosa biblioteca e aos dados da

civilização Res Sas. Então Cesar podia estudar enquanto era

estudado e deu livre vazão a sua, natural e insaciável criatividade

e curiosidade.

A elaboração de toda esta intrincada trama de interações, deduções

e compreensões ia se fazendo em Cesar na medida em que ele se

aprofundava mais e mais nas nebulosas abissais da sua mente.

Um mundo brilhante de possibilidades mágicas se abria à sua

necessidade dolorida de fazer-se viável à vida, ...qualquer vida.

E estar entre os alados trazia a promessa de asas para uma

liberdade dolorosamente desejada, tanto que ele não conseguia

resistir.


Então sua necessidade de afeto criou um Nuna Sapaki pleno de

atenção, gentileza, delicadeza e intenso interesse nele e em tudo

que lhe dizia respeito. Com uma deliciosa conversa Nuna Sapaki

não se furtava a responder Cesar e assim iam surgindo às respostas

às perguntas tão angustiosamente buscadas.

Cesar ia criando esse mundo, formando o cenário da sua profunda

inquietação como se montasse um quebra-cabeças de imagens

idealizadas e ia se envolvendo mais e mais na sociedade dos alados

em busca de uma redenção que o salvaria do suicídio e nesse

processo ignorava cada vez com mais facilidade os flashs

recorrentes da vida em Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos.

Via sombras entre as nuvens que se alargavam ou diminuíam

conforme a intensidade da luz e dos movimentos, misturadas aos

contornos dos corpos dos seus amigos animais e estas sombras

pareciam-se extraordinariamente às pessoas. Mas para cada

situação corriqueira e normal que ameaçava puxá-lo para a

realidade, imediatamente se interpunham, para sua percepção, as

imagens dos seres fantásticos e tão insuportavelmente belos e

perfeitos que ele não queria, que não podia deixar que partissem.

Cesar agarrou-se a sua dimensão construída com o desespero da sua

última possibilidade para justificar a própria existência.

Julgou, mergulhando em sua intuição com total desprezo a

qualquer possibilidade de raciocínio lógico, serem as figuras

humanas resolvidas em sombras, as emanações das formas

humanas de Loop e Mahoo, e relegou-as a insignificância de


pequenas perturbações no ar, minúsculas rugas se erguendo de

quando em quando e se insinuando nas ações da raposa e do puma

ou de seres outros que ele já não reconhecia e com quem já não se

importava.

Começou a considerar as recorrentes tentativas de seu fugaz senso

da realidade de resgatá-lo da loucura, excêntricas e, em grande

parte, divertidas aparições tão somente ilusórias e reverteu o real

em irreal e optou por não tomar conhecimento daquilo que

reconhecia apenas como visões estapafúrdias. Lutou uma longa e

estafante luta com todas as suas forças até se livrar do sopro

irritante de realidade que insistia em persegui-lo.

Vivia seu sonho de felicidade e ignorava as transformações que se

abatiam sobre a cidade de Terra Alta e sobre Girassóis, Ipês e

Junquilhos Amarelos.

E foi assim que passaram por ele, sem ele perceber, as notícias cada

vez mais alarmantes de distúrbios sociais cuja origem parecia ser a

comunidade Yana.

Como um veneno de ação lenta, mas devastadora, começaram

como rumores e foram crescendo e se encorpando até se

transformarem de simples suspeitas e falatórios em denúncias

sobre o envolvimento do Clube Internacional de Havanófilos em

um terrível crime.

O estopim da crise foi o aparecimento de um cadáver terrivelmente

mutilado nas escadarias da principal entrada da sede dos

havanófilos.


O corpo foi encontrado por garis que chegavam para o trabalho e

percorriam o parque em que se erguia o casarão, às primeiras horas

da manhã de um sábado e véspera de uma das ocasiões mais

badaladas da instituição, o tradicionalíssimo jantar dançante

anual para a comemoração do aniversário de fundação do Clube.

A notícia se espalhou como fogo seguindo uma trilha de pólvora.

Terra Alta se curvou horrorizada para observar mais de perto e

com atenção redobrada seu mais respeitado ícone da moral da

sociedade terraaltina, um perfeito baluarte do correto, do justo, do

honesto e do admirável, repentinamente envolto em espessas

nuvens de suspeitas.

E o passar das horas e dos dias piorou muito as coisas, pois não foi

apresentada uma explicação completamente aceitável para a

presença daquele cadáver às portas da entrada principal do Clube

e nem uma versão razoavelmente coerente inocentando a

instituição pela macabra aparição nos seus degraus.

Nada que distanciasse os havanófilos de qualquer envolvimento ou

responsabilidade por aquela morte totalmente, completamente,

vergonhosamente criminosa, que berrava o ilícito com o simples se

olhar para ela.

Ao contrário, havia rumores fortes de que a pessoa morta havia

sido empregada do Clube e ligada incontestavelmente aos seus

mais importantes membros.


Formou-se um escândalo inevitável e histérico que começou a

crescer como fervura de enxofre e venceu as barreiras das

autoridades e dos limites do Clube e de seu prestígio e se derramou

e se espalhou pelas ruas, pelas praças e por cada casa e canto da

cidade e empestou as mentes e agitou as neuroses e provocou o

frenético contorcer-se de uma sociedade ferida no seu âmago que

explodiu buscando culpados sobre quem distribuir sua dor.

A nata da sociedade terraaltina se viu mergulhada num mar de

denúncias e suspeitas que tomavam rapidamente um caráter

consideravelmente mais sinistro ao surgirem evidências

assustadoras do envolvimento de crianças com o uso de uma droga

específica, encontrada no cadáver e cuja procedência tinha raízes

na antiga suspeita de décadas atrás, sobre a manufatura e

comercialização de drogas pela comunidade Yana. E as manchetes

eram, a cada dia, mais sensacionalistas e toda a mídia adotou para

o caso o rótulo de crime hediondo.

Não se falavam em prisões, mas as investigações faziam uma longa

lista de suspeitos que estavam sendo intimados a prestar

esclarecimentos, depoimentos e sendo impedidos de deixar o país.

A grande maioria dos investigados fazia parte da elite local e,

todos, de alguma maneira, eram ligados ao Clube Internacional de

Havanófilos.

A cidade de Terra Alta se revolvia nas ruínas de uma inegável

decadência moral.


E uma vez mais Victor Gatopardo era provocado a se pronunciar,

a se interpor contra a histeria, fazendo valer um resquício de bom

senso.

E embora distante de tudo, mal compreendendo o que se passava,

Cesar sentia a aflição de Victor como uma espécie de eco no mais

profundo de si mesmo e se afligia por não conseguir identificar o

que era aquilo. Na sua incapacidade de voltar à realidade, Cesar

precisava desesperadamente da ajuda de Victor. Mas Victor estava

enfarado, cansado demais, velho demais, preocupado demais,

também com Cesar, mas sobretudo com sua própria vida que

começava a avaliar como equivocada.

E foi com essa disposição, que Victor recebeu a solicitação do

político, JM. Yana para um encontro que normalmente ele não

teria sequer considerado a possibilidade de atender.

JM.Yana como ficara conhecido nacionalmente após registrar esse

nome em cartório para poder usá-lo como uma espécie de marca,

ao se lançar na política nacional, era uma das poucas pessoas a

quem o Gatopardo não conseguia ignorar e esquecer

completamente.

E detestava-o conscientemente.

Conhecera-o há muitos anos durante o triste episódio dos três

marceneiros que haviam sido mortos em Mayuasiri Pacha, e fora

através da interferência de Victor, à época, que Julião

Mathamatos se aproximara dos poderosos e encontrara portas

abertas que ele soubera manter acessíveis usando para isso sem


nenhum escrúpulo o nome de Victor sempre que julgava

necessário, até poder apoiar-se em seu próprio prestígio sustentado

pelos muitos votos conseguidos com sua retórica populista e um

carisma indiscutível.

Construiu uma sólida influência política. Uma influência que o

tempo provou a Victor ser infinitamente nefasta.

Ser obrigado a reconhecer a própria participação na carreira

política de JM.Yana, ainda que indireta, parcialmente

involuntária e restrita há um passado de décadas, fazia Victor

sentir um mal estar bem definido e palpável. Algo que apenas

Cesar, se estivesse consciente, conseguiria compreender em sua

plenitude.

Mas Cesar estava em outra vida, alienado dos tormentos da cidade

e o Gatopardo não podia contar com a ajuda dele. E Victor

preferiria não ter que lidar com isso. Mas eis que o personagem

odioso se apresentara pedindo um encontro.

JM.Yana havia nascido e sido criado na comunidade Yana, tendo

vivido por trás dos seus muros até a idade adulta. E fora com apoio

e financiamento deste povo que iniciou sua militância política e se

converteu num fenômeno de votos. Mas durante esse trajeto houve

um momento em que o espertalhão compreendeu que suas

ambições de poder seriam prejudicadas se continuasse tendo sua

imagem ligada tão intimamente aos Yana, cujas polêmicas haviam

alcançado âmbito nacional e em alguns casos até internacional, e

então J.M.Yana abandonou e traiu suas raízes. Não teve o menor


problema em negar a própria origem se declarando contrário à

cultura e a própria história da formação daquela comunidade

única.

Desde os tempos do incidente dos três marceneiros que continuava

a ocupar um cantinho obscuro na consciência de Victor, a

comunidade Yana havia crescido e prosperado enormemente após

uma ameaça real à continuidade da sua existência.

Atitudes reguladoras impostas ao modo de viver do povo Yana e

regras estabelecidas para sua relação com os demais moradores da

região e principalmente para com a população da cidade de Terra

Alta, revestidas com a força da lei, asseguraram a permanência dos

Yana nas suas terras, para livremente poderem viver segundo seus

costumes.

E assim eles tiveram garantida sua segurança e seu progresso.

Multiplicaram-se e enriqueceram enormemente.

À época da epidemia que devastou a região e a cidade, há vinte e

um anos, eram tantos e tão poderosos que nem mesmo a enorme

mortandade dentro de seus muros fez que ficassem mais fracos.

E o ódio e a perseguição enormemente aumentada que começaram

a sofrer por conta da crença de que teriam sido os responsáveis pelo

início do surto da doença, serviu apenas para fazê-los mais

fechados, desconfiados, misteriosos e até, meio selvagens.

Reproduzindo-se e aceitando a inclusão de imigrantes dispostos a

abraçar seus costumes e converterem-se a sua fé, cresceram tanto


em número que logo transbordaram os enormes muros e os

paredões de pedra que cercavam Mayuasiri Pacha.

Esparramaram-se pelas encostas das montanhas, pelos vales, pelos

planaltos, pelos cursos dos rios e acabaram sendo maioria por toda

a cadeia de montanhas a oeste da região e da cidade de Terra Alta.

Sendo enormemente ricos, compravam as terras aos antigos

agricultores, inclusive muitas propriedades que haviam sido objeto

do incansável trabalho de Victor para torná-las posses das famílias

que nelas haviam trabalhado e vivido por várias gerações.

Ao tempo em que JM.Yaná começou sua vida pública e ficou

conhecido nacionalmente, muitas famílias que faziam parte da

comunidade e seguiam rigidamente suas leis, nunca tinham vivido

dentro das muralhas de Mayuasiri Pacha, eram o resultado desta

enorme expansão demográfica.

Organizavam-se em grupos menores fora dos muros da

propriedade original, delimitavam seus pedaços de terra onde

cultivavam as pimenteiras e o açafrão da flor branca e entregavam

o produto de seu trabalho mensalmente no centro da comunidade

para participarem das rezas e comungarem sua fé aos pés dos

líderes anciãos. Eram recebidos no interior da muralha onde

deixavam suas crianças nas escolas da comunidade para serem

educadas conforme as suas crenças e costumes, para receberem seu

quinhão em dinheiro e em bens de toda a sorte e em todas as datas

festivas e nas convocações para as reuniões consideradas de

interesse geral. E observavam rigorosamente a doutrina dos


antigos, mantendo sua reverência aos velhos e prestando-lhes

completa obediência.

E dessa forma, apesar de milhares viverem fora das muralhas, o

poder continuou firmemente nas velhas mãos dos anciãos, por

muitos anos.

Victor, isolado da vida pública, assistia com preocupação o que

acreditava ser uma nova e perigosa forma de latifúndio.

Os líderes Yana eram todos seus conhecidos com quem ele

negociara uma infinidade de vezes e que ainda o consideravam

amigo porque não esqueciam todo o trabalho e o esforço de Victor

para assegurar-lhes a posse legal de Mayuasiri Pacha, conseguida

depois de anos incontáveis de negociações e lutas em que Victor

exerceu sua influência intransigente. Além de nunca esquecerem a

sua defesa ferrenha ao povo Yana quando foram injustamente

acusados pela disseminação da terrível epidemia que assolara a

região.

Por tudo isso os anciãos Yana mantiveram relações de amizade e

respeito a Víctor e um canal de diálogo sempre aberto.

Mas Victor partiu de Terra Alta. A princípio com a companhia

apenas de Cesar e mais tarde, resgatando Isabeau para viver com

eles, manteve-se completamente afastado por longos, quatorze

anos e depois, quando retornou da sua crise de identidade com a

própria história, com sua origem e com Isabeau e Cesar, a única

família que lhe restou, Victor optou por viver recluso. Nunca

voltou a assumir seu papel político atuante.


Passou a acompanhar os acontecimentos na cidade e na região de

Terra Alta e no país, muito bem instalado na sua poltrona favorita

na biblioteca do velho casarão Gatopardo. E se afastou

completamente até mesmo da presidência e da convivência com os

frequentadores do Clube Internacional de Havanófilos.

E foi da comodidade dessa mesma poltrona, na comodidade e

isolamento da sua biblioteca que Victor assistiu à rápida e

ininterrupta ascensão de JM.Yana.

Observou as suas vitórias em sucessivas eleições para cargos

executivos cada vez mais importantes e reconheceu o poder de sua

retórica carismática envolvendo mentes e corações, em especial

entre os Yana que viviam fora dos muros de Mayuasiri Pacha, os

chamados Yana de Fora.

E foi principalmente através destes Yana de Fora que o poder do

político foi se alastrando para as várias comunidades rurais

espalhadas pelas montanhas e pelos planaltos de pimenteiras.

JM.Yana falava aos trabalhadores da terra e prometia melhorias

e ganhos como jamais haviam sonhado. Adotando em seus

discursos o velho posicionamento de nós e eles que Victor

detestava por considerar isso a marca de uma cisão social, perigosa

e injusta.

O político conquistou as comunidades mais humildes porque

falava como eles, se portava e sabia se colocar à altura deles e era

um mestre em construir uma identidade com eles. Acreditavam

nele porque ele conhecia suas queixas e seus temores mais íntimos.


JM.Yana prometia atender suas necessidades básicas e urgentes e

manter sua forma de vida segura.

E no primeiro momento, era preciso admitir, fora excelente.

Organizou as cooperativas e os sindicatos e lutou ao lado dos mais

humildes trabalhadores das terras para conseguir a atenção e o

empenho dos governantes com uma avalanche de demandas para

os campos e as sendas entre os paredões de rocha. Nessa época foi

verdadeiramente, um deles. Conseguiu se eleger para quase todos

os cargos eletivos da administração de Terra Alta e o apoio do

dinheiro dos Yana lançou-o, em pouco mais de uma década de

vitórias consecutivas, para o cenário nacional.

E foi então que um fato chamou a atenção de Victor

imediatamente.

Já nos primeiros anos em que o nome de JM.Yana e sua figura

começaram a ficar gravados nas mentes do país à fora, os velhos

líderes Yana, os verdadeiros detentores do poder, os dominantes

de Mayuasiri Pacha, se afastaram completamente dele. E seguindo

o exemplo dos anciãos, as famílias de dentro da muralha, os

chamados Yana de Dentro, em sua totalidade, também o

desertaram.

Foi uma divisão tão dramática da comunidade Yana e um fato tão

surpreendente e com tamanho vigor, que Victor teve um

sobressalto e começou a observar a carreira do político com

redobrada atenção.


O repúdio dos anciãos e da comunidade Yana mais tradicional, que

JM. Não conseguiu explicar ou esconder ao conhecimento público,

obrigou-o a uma mudança na sua estratégia e ele foi rápido em

tomar uma decisão. Fez uma inversão dos papéis e se apresentou à

opinião pública como tendo sido opção dele, JM. Yana, o

rompimento com sua origem.

Paradoxalmente, o teimoso silêncio dos anciãos e dos Yana de

Dentro, fiéis aos seus líderes, transformou a história de JM. na

verdade absoluta. Na única verdade.

O político fez espalhar uma versão muito romântica e fantasiosa

sobre seu nascimento e criação, se fazendo passar por um pobre

órfão que teria sido sequestrado pelo grupo Yana. Mantido na

comunidade sem direito a rejeitar a criação que lhe fora imposta.

E ele fez isso com tamanho talento para o embuste que conseguiu

convencer a quase totalidade dos eleitores do país. Cientistas

políticos que se dedicaram a observação e análise dos fatos podiam

divergir sobre um ou outro detalhe ou influência a contribuir para

os acontecimentos, mas todos concordavam que JM.Yana era um

fenômeno social e uma das personalidades a caminho de se

transformar em uma das mais influentes do mundo político.

A grande maioria das pessoas, principalmente entre os Yana de

Fora, se deixou envolver pela loquacidade do político e a principal

consequência foi uma surpreendente deserção aos velhos valores

que haviam sido fundamentais para a comunidade Yana desde o

seu surgimento.


O inacreditável aconteceu. As famílias dos Yana de Fora

abandonaram os velhos líderes, acreditaram em JM. Yana, e

cerraram fileiras com ele.

E este fato fez soar, em Victor, um alarme sobre a seriedade da

situação.

O Gatopardo ficou atônito porque conhecia melhor do que

ninguém a enorme influência de Mayuasiri Pacha com sua aura

religiosa, que a transformava num autêntico solo sagrado, uma

relíquia para todos os Yana, um povo reconhecido por seu

fanatismo e pela absoluta obediência aos seus anciãos. E ainda

assim, os Yana de Fora desertaram seus velhos líderes.

O lugar sempre fora uma espécie de santuário para a comunidade

e seus anciãos, os representantes diretos da divindade.

Até a sua situação física fora cuidadosamente escolhida e mantida

e era indiscutivelmente simbólica. Os líderes conselheiros sempre

fizeram absoluta questão de habitar exatamente o centro do lugar,

com suas terras e o rio cantante, suas plantações e ricas

construções e os muros altíssimos, facilmente classificados como

muralhas físicas, mas também e principalmente muralhas

espirituais. Tudo ali cultivava um significado simbólico místico.

Eles haviam se transformado e eram, literalmente, o centro da vida

e da alma Yana.

E, no entanto, assim mesmo, apesar de toda a devoção religiosa e

o fanatismo do povo, a maior parte das famílias de fora das

muralhas começou a rejeitar abertamente a antiga dominação dos


anciãos e a contestar sua liderança na esteira das ideias incutidas

por JM. Yana.

E esse acontecimento agravado, como Victor observou, pela

relativa rapidez com que ocorreu, com as famílias Yana de Fora

passando a recusar as velhas líderanças com facilidade espantosa,

hipnotizados pelos discursos dramáticos de JM.Yana, foi, para

Victor, um sinal incrivelmente perturbador.

E quando JM.Yana abandonou os subentendidos e começou a

atacar frontalmente os anciãos e a questionar seus costumes e

duvidar de sua legitimidade, Victor observou estarrecido a

comunidade em peso ficar a favor da sua retórica explosiva.

E classificou o fenômeno como algo novo e muito preocupante.

E ainda assim o centro de Mayuasiri Pacha com os velhos

conselheiros continuou teimosamente em silêncio e foi ficando

cada vez mais isolado.

JM. com uma projeção da própria imagem infinitamente maior do

que qualquer outro nome do povo Yana, conseguiu impor a nível

nacional a versão inventada por ele da sua ruptura com seu antigo

povo. E passou a bradar que fora dele a iniciativa de se afastar das

velhas mentes e dos costumes antigos por considerá-los já

completamente divorciados das verdadeiras necessidades dos

Yana.

Victor sabia com absoluta certeza que os líderes Yana o haviam

expulsado muito antes dele se atrever a negá-los publicamente,


chegando a proibi-lo de alguma vez voltar a cruzar os portões de

Mayuasiri Pacha e esse fato, por si só, era muito significativo.

A expulsão sumária era uma pena duríssima e irrevogável, só

aplicada em casos muito graves. E Victor se perguntava perplexo

o que teria feito JM. Yana para merecê-la a despeito de todo o

poder político e do prestígio conquistado por ele.

A situação evoluiu rapidamente para o quadro que agora estava

instalado e se entranhava na vida nacional porque JM.Yana era,

indiscutivelmente, uma personalidade influente no país inteiro.

Ele detinha a esmagadora preferência dos eleitores das montanhas

e sua fama se espalhava desde o interior para as principais cidades

e também entre as comunidades do litoral.

Todas as principais associações de trabalhadores da terra,

cooperativas e sindicatos estavam subjugados ao seu carisma e

compunham um verdadeiro exército militante segundo suas ideias.

O nome de JM.Yana aparecia como favorito aos votos de qualquer

eleição em qualquer ponto do país e ele fortaleceu ainda mais esta

posição ampliando as bases do alcance da sua retórica ao

transformar o antigo partido PTMYana, partido dos

trabalhadores das montanhas Yana, com apelo apenas regional

para o nacionalmente conhecido PTT, partido dos trabalhadores

da terra e adotou em seus discursos o chavão de que a terra a qual

se referia o nome do partido e sua sigla não se restringia às terras

cultivadas nos planaltos e nos vales entre às montanhas, mas ao

planeta Terra.


Ao ouvir isso Victor sentiu um frio percorrendo sua espinha.

Percebeu neste discurso a real intenção do político em projetar seu

nome muito além das fronteiras do país. E não duvidou por um

segundo sequer que JM.Yana cultivava, nas obscuras entranhas

da sua mente delirante e mentirosa, o sonho alucinante de dominar

o mundo.

A rapidez com que ampliava sua influência era inacreditável.

Incansável, dinâmico, disciplinado, carismático em seus

pronunciamentos e inteligente para detectar os anseios das

populações, sabendo sempre o que dizer com a modulação exata da

voz e na intensidade certa das afirmações, tudo de tal maneira

orquestrado que conseguia verdadeiros séquitos de admiradores.

Observando-o Victor se convenceu que JM. Yana tinha

conhecimento de alguma técnica extraordinariamente eficiente e

secreta para promover uma lavagem cerebral coletiva às multidões

que caiam sob seu fascínio, tal o domínio que exercia sobre as

massas.

E havia tanto frenesi e tanto deslumbramento diante dos seus

discursos que em alguns momentos Victor pensou serem, ele

próprio e os anciãos Yana, os únicos que percebiam o quanto

aquele ser era ridículo em seus anseios de grandeza a ponto de ser

risível.

Esse espetáculo se perpetuou durante meses.

Mas o golpe de misericórdia para colocar a opinião pública contra

os anciãos Yana veio através de declarações do político em cadeia


nacional de divulgação por toda grande mídia, alegando razões de

foro íntimo que o obrigavam a se afastar da sua origem, repudiar

seus velhos líderes e questionar seus mais arraigados costumes.

Tais palavras repetidas infinitas vezes durante dias para todos os

cantos do país e com repercussão internacional provocou uma

imensa comoção, porque foi especialmente este episódio que

mostrou para todos os observadores dos movimentos sociais a

extensão do domínio da personalidade de JM. Yana sobre o grande

público e a força da sua imensa popularidade.

De um minuto para o outro o país se dividiu e se definiu com todos

contra os Yana de Dentro e seus anciãos e o impensável aconteceu,

os velhos líderes e algumas poucas famílias mais conservadoras

ficaram completamente isolados dentro das muralhas de

Mayuasiri Pacha.

Instalou-se uma luta de poderes que foi aos poucos se configurando

porque esta ruptura trazia, intrínseca, um sério problema para os

dissidentes Yana. Pois o conhecimento completo da receita para a

produção da sua principal fonte de renda, o exótico tempero feito

com os pistilos da flor branca do açafrão e a pasta da misteriosa

planta Ninasisanuna, permanecia firmemente guardado com os

velhos líderes e conselheiros. Era um segredo de tal importância

que para protegê-lo haviam criado um sistema de fragmentação da

receita entre os anciãos considerados mais sábios e venerados, para

obrigar uma concordância absoluta entre eles para sua revelação,

protegendo assim, além da receita, os próprios anciãos que teriam


o apoio uns dos outros e estariam a salvo de qualquer tentação de

o traírem.

Agora a ruptura do povo Yana adquiriu seu caráter mais

pragmático. Os dissidentes precisavam da receita para sobreviver.

Começou uma gritaria infindável.

Diante da comoção das milhares de famílias Yana que ficaram de

uma hora para outra despojadas da sua principal fonte de renda,

JM.Yana jurou arrancar o segredo aos velhos nem que para isso

precisasse processar um a um por exploração e usurpação de bem

de direito da totalidade da comunidade. Berrou que nenhum

tribunal na terra deixaria de reconhecer que a comunidade deveria

ser soberana e dominar o conhecimento que representava seu bem

estar, sua segurança e seu desenvolvimento.

Mas os velhos líderes por sua vez pareciam dispostos a levar seu

segredo para o túmulo e prometeram que desafiariam qualquer

tribunal. Cerraram os portões da muralha e ameaçaram quem

tentasse entrar com o risco da própria vida.

Instalaram-se os discursos argumentativos e os tribunais

começaram infindáveis debates e julgamentos e enquanto as

discussões jurídicas ameaçavam se eternizar os grandes galpões

onde se armazenavam a especiaria para ser vendida e entregue mês

a mês, mundo à fora, iam se esvaziando rapidamente.

Começou uma verdadeira guerra.


E foi bem no meio desse imbróglio que foi achado o corpo torturado

do rapaz nos degraus da sede principal do Clube de Havanófilos e

Victor recebeu em Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos o pedido

de JM.Yana para se encontrarem.

O motorista com a solicitação ficou esperando a resposta e Victor

teve um primeiro impulso de devolvê-la, sem sequer tomar

conhecimento dos seus termos, com uma negativa cortante, mas

uma intuição mais fina, mais íntima o fez hesitar e abrir o

envelope.

Encontrou a mensagem pedindo a resposta sobre dia e hora para

uma reunião e outras duas palavras que eram como uma espécie

de senha para perturbar o sossego do Gatopardo, palavras do

passado que costumavam aparecer nas antigas pichações dos

muros, paredes e cartazes por toda cidade à época do incidente com

os três homens que haviam sido linchados dentro da comunidade

Yana, “Marceneiros ou mercenários?...”, estava escrito de maneira

descuidada, reproduzindo os rumores que corriam em Terra Alta

naqueles dias para evidenciar a desconfiança de que a versão

tornada oficial não fora convincente.

Mas Victor não teria tido nenhuma dúvida em ignorar

sumariamente a solicitação se fosse apenas essa mensagem dentro

do envelope, porque não se curvaria a nenhuma imposição de um

desclassificado, como tinha certeza que JM.Yana era, para se

preservar de ser envolvido mais uma vez naquela velha e triste

história de morte e mentiras.


Mas o envelope trazia algo mais.

Havia uma série de cinco fotos em preto e branco e eram imagens

terríveis. Apresentavam o mesmo corpo jovem, com marcas

impressionantes e intrigantes como evidências de sua morte

prematura e criminosa. Eram ampliações e variações da mesma

imagem, em diferentes ângulos, que inundavam os noticiários e as

manchetes sobre o corpo encontrado nas escadarias do Clube e

Victor as reconheceu imediatamente.

Isso fez com que Victor Gatopardo mudasse de ideia. E o motorista

levou como resposta à solicitação de JM.Yana para um encontro

com o embaixador Gatopardo, data e hora e a confirmação de que

Victor estaria ao dispor para recebê-lo, ali mesmo, na casa dos Ipês

Amarelos.

Agora, com o nome do Clube de Havanófilos envolvido com as

terríveis imagens do cadáver e com as acusações de tráfico de

drogas e o envolvimento de crianças num contexto ainda não

esclarecido, o escândalo que só fazia crescer se alastrou pela região

das pimenteiras. E JM.Yana orbitava o escândalo e aproveitava

com raro talento a exposição que o caso oferecia.

Ele parecia um bibelô numa vitrine.

Já fizera três discursos oficiais além de várias outras manifestações

fortuitas sempre em nome do seu partido e, mesmo sem citar nomes

claramente, as insinuações a Victor Gatopardo foram tão

evidentes que não foi surpresa começarem a aparecer nos muros,


por toda a cidade, antigas pichações com as frases de sentido duplo

dos tempos do caso dos linchamentos dos marceneiros.

O político, a cada aparição e declaração aos jornalistas, deixava

implícita a informação de que detinha provas cabais do

envolvimento de Victor e do Clube Internacional de Havanófilos

com a parte podre da comunidade Yana.

E esclarecia que esta chamada parte podre era a minoria que

continuava entrincheirada em Mayuasiri Pacha, negando-se ao

saudável e muito necessário movimento de integração que era o

anseio do resto da comunidade.

Nestas declarações dava a entender que o crime de Victor era

muito pior do que a suspeita ou simples conhecimento sobre a

produção da droga e sua comercialização. Fazia referências a

lucros financeiros supostamente conseguidos com a venda de

drogas e não demorou a aparecer nos muros o nome de Victor

ligado a acusações de tráfico.

Pela primeira vez na vida os jornalistas e os fotógrafos que em

grupos começaram a congestionar as estradas e chegar à Girassóis,

Ipês e Junquilhos Amarelos, permanecendo acampados nos

arredores da propriedade e mesmo invadindo os jardins, por horas

e dias, faziam isso para conseguir imagens e entrevistas com o

embaixador Victor Gatopardo em detrimento do mundialmente

famoso Cesar Ninan.

E sob essa influência o caminho desde o centro de Terra Alta até a

casa dos Ipês Amarelos começou a se parecer com um corredor de


hostilidades, com o ir e vir de manifestantes que insistiam em

confrontar Victor por seu envolvimento com os Yana.

Uníssona a história dos marceneiros vítimas de linchamento

ressuscitou-se a da epidemia de gripe espanhola que os detratores

de Victor conseguiram firmar no imaginário popular ter sido

responsabilidade da comunidade Yana. “__Estas pessoas,” diziam

eles, “__com sua forma de vida aglomerada, vivendo amontoados,

promíscuos”, berravam os acusadores em seus discursos e

continuavam espumando de indignação, repetindo suas acusações.

“__amontoados como animais e levando suas vidas numa

promiscuidade indecente, enclausurados nos limites de Mayuasiri

Pacha, favorecem a proliferação e disseminação de bactérias e vírus

das mais variadas doenças que acabam se espalhando pelo resto da

região. Para dentro das nossas casas e para o meio das nossas

famílias. Com seu jeito pecaminoso e sujo de viver,” prosseguiam as

vozes enraivecidas, “__um jeito de viver que põem em risco as vidas

de todos nós e que sempre foi defendido pelo senhor embaixador, Victor

Gatopardo.”

Não havia como comprovar o envolvimento de JM.Yana em cada

uma destas manifestações que tinha como alvo principal a figura

de Victor em paralelo aos anciãos e aos Yana de Dentro, mas a

relação das insinuações ao Gatopardo nos discursos, nas

declarações e nas entrevistas de JM., mantidas com regularidade

terapêutica, não deixavam dúvidas sobre a campanha de

difamação que JM.Yana parecia decidido a levar às últimas

consequências.


E o envolvimento do Clube Internacional de Havanófilos numa

investigação de um crime e receptação e distribuição de drogas que

forçosamente remetia aos Yana e à ligação de Victor com o povo

Yana, dava ao político um patamar fabuloso para sua atuação

teatral.

O fato de Victor estar afastado do Clube Internacional de

Havanófilos há mais de vinte anos não parecia fazer diferença

quando eram relembrados, à exaustão, o estreito envolvimento

dele com a fundação e a perpetuação da instituição apontada

durante décadas como o poder dentro do poder na cidade e em toda

região de Terra Alta e até do país.

Começaram a ser recordadas e recontadas algumas das mais

famosas histórias em que a diretoria do Clube, sempre com Victor

ocupando o cargo de presidente executivo, havia se envolvido em

questões de direito, de julgamento moral e como balizador do

correto, do justo e do honrado. E, de repente, as pessoas se

perguntavam se durante tais eventos haviam sido realmente

observados os mais altos valores humanos, ou, o quê...?

De repente, a evidente super valorização do Clube Internacional

de Havanófilos que havia prevalecido por décadas, foi

questionada.

De repente, a população se perguntava, como um grupo de

degustadores de charutos podia haver se intrometido em assuntos

dos poderes executivo, legislativo e judiciário do município e do

Estado e até influenciado em questões nacionais e algumas


internacionais? E com que legitimidade isso se dera? E, de repente,

Victor surgiu para o povo de Terra Alta como a personificação do

dominador. Um ser que lutava por se perpetuar no poder ainda

que para isso fosse necessário se associar à comunidade Yana,

considerada pela maioria uma comunidade de párias.

E era apenas isso, o poder pelo poder.

A imagem de Cesar Astu Ninan começou a aparecer como pano de

fundo para todas estas acusações e disseminou-se, quase

magicamente, a ideia de que também ele fora sempre uma vítima

de Victor. Com sua projeção internacional usada pelo Gatopardo

numa campanha maquiavélica de dominação eterna.

De um momento para o outro a vida em Girassóis, Ipês e

Junquilhos Amarelos se transformou num roteiro de incertezas e a

aparente segurança do interior de seus muros e portões deu lugar a

percepção de que não resistiria a uma ação minimamente mais

ousada. Victor mantinha a calma com a severidade de uma

disciplina longamente treinada e esperava os acontecimentos para

arriscar alguma atitude. Cada vez mais se convencia de que

qualquer providência a ser tomada dependeria do que acontecesse

durante seu encontro com JM.Yana.

Por dentro das ondas de nuvens madrepérolas em que sonhos de

voos se esgueiravam, Cesar Astu Ninan equilibrava sua

consciência.

E então, sem nenhum aviso ou sequer um pensamento perceptível,

Cesar se viu repentinamente na poltrona da biblioteca, em frente


a um dos janelões escancarado para o jardim de Girassóis, Ipês e

Junquilhos Amarelos.

Era início da noite, havia o perfume dos junquilhos amarelos

invadindo espaços e mentes e as portas duplas repentinamente se

abrindo para León Tiithee que entrou com seu costumeiro jeito

amigo e, sem demonstrar a mínima surpresa, com uma atitude

perfeitamente natural por encontrar Cesar perfeitamente lúcido,

como se a lucidez fosse sua condição cotidiana, sugeriu a ele, ir se

vestir para o jantar.


Capítulo 18

Entre mundos


E aquele jantar foi, como o resto das experiências que vivenciava

desde o descer da escadaria que o levou para sua loucura, um

acontecimento surreal.

Cesar soube, com um saber muito nebuloso e que se lhe afigurava

antigo, que estava em Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos e essa

volta foi como a sensação da queda brusca e assustadora no leito,

durante um sono cheio de sonhos ininteligíveis.

Nada era para ele exatamente compreensível ou totalmente

reconhecível.

Os corredores se tornaram infindáveis, salas e salões se

multiplicaram em sequência transformando as tentativas de sair

deles um feito quase impossível, e as escadas pareciam materializar

interminavelmente novos degraus que se inclinavam sempre para

o lado que não se queria ir.

Desorientado, com vagos lampejos de lembranças, incapaz de

discernir plenamente nada e ninguém, Cesar se movimentava com

a forte impressão de estar dando voltas sobre si mesmo e se

convenceu de estar preso e perdido num labirinto.

Às esperanças misturava certezas e assim acreditava que logo à

frente, por trás da próxima porta ou na esquina do corredor, ou

talvez ainda do próximo canto da parede, encontraria novamente

a entrada para a caverna dos seres alados.

Havia evidências que sustentavam essa crença. O longínquo

farfalhar das asas que lhe chegavam de repente atraindo-o para


uma ou outra direção, um fiapo de nuvem que escapava e vinha

flutuando para envolvê-lo ou a insinuação do perfume de Wayra

Kori.

Mas Cesar não conseguia reencontrar o mundo dos homens

pássaros, por mais que procurasse.

Perdera também a companhia de Loop e de Mahaoo.

Não conseguia mais vê-los senão como sombras fugidias que se

insinuavam por trás da sua própria sombra alongada nos pisos e

nas paredes. Sempre apenas resquícios que se apagavam no exato

momento que ele os percebia se esgueirando dos lugares em que ele

recém chegava e se dissolvendo no instante preciso que sua atenção

era atraída por uma pontinha de cauda ou pelo desenho

inconfundível de um focinho ou de uma orelha peluda.

Evaporavam-se para surgir mais uma vez, de repente, sempre às

suas costas, ou no ângulo mínimo da esguelha do seu olhar, como

num jogo de escode esconde.

Sentia-os, percebia-lhes as respirações compassadas de feras

inquietas, por vezes roçava-lhes os lombos macios ou sentia a

pontinha de uma língua áspera a lamber-lhe os dedos num

cumprimento amoroso, mas não conseguia mais encontrá-los.

Cesar começou a viver da esperança de revê-los, se alienando

conscientemente do desastre que se avizinhava a Girassóis, Ipês e

Junquilhos Amarelos com o fim da paz ameaçando-os à porta.


Vestido apropriadamente para o jantar, segundo a sugestão de

León Tiithee, se encolhia na própria incapacidade de compreender

como perdeu o mundo alado e como voltou para a casa dos Ipês

Amarelos sem ter nenhuma consciência destes feitos.

Com tal perplexidade compreendia também que estavam de

alguma forma em perigo, sentia a inquietação que os rodeava e

mesmo o ar sempre bonachão e sossegado de León Tiithee não

conseguia dissipar totalmente a certeza de que havia alguma coisa

profundamente errada acontecendo.

Há menos de vinte e quatro horas se recuperara, mais ou menos,

de um angustiante episódio de alienação paranoica que deixou

Isabeau com os nervos em frangalhos e havia esgotado a paciência

de Victor, e Cesar era franco ao reconhecer que não havia nenhuma

pretensão de certeza sobre o próprio bem estar.

Como resultado ele era mantido sob velada vigilância a uma

distância máxima de dois metros de alguém responsável.

Revezavam-se, observando-o com mal disfarçada ansiedade, o

próprio Victor, Isabeau, León Tiithee e qualquer dos enfermeiros

ou empregados mais antigos e leais. Todos com ares conspiradores

e uma indagação suspeita sobre o que ele quis dizer ao afirmar que,

“o cão e o gato, chegariam para o jantar”... declaração que ele

repetia frequentemente desde que surpreendeu sua sobrinha neta,

ao se apoderar do prato com a canja que ela tentava persuadi-lo a

tomar, emborcando-o goela abaixo, se lambuzando e se fartando


com a sopa morna para renascer com uma energia que esteve

ausente nas últimas três semanas.

Agora, bem acomodado numa das poltronas do salão, esperava a

chegada dos convivas.

Isabeau havia comentado que Jacques Lan, a pedido de Victor,

chegava de viagem e vinha acompanhado de pessoas amigas que

de alguma forma talvez pudessem ajudar com os acontecimentos

em Terra Alta e muito especialmente com a situação que se

estabeleceu sobre e ao redor de Mayuasiri Pacha onde os anciãos e

algumas famílias permaneciam isolados com a ameaça real de uma

invasão que prometia acabar em tragédia.

Em Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos corriam risco

semelhante, transformados em prisioneiros em sua própria casa

com as acusações cada vez mais diretas a Victor por sua ligação

com os Yana e as ações de grupos mais afoitos e fanáticos contra a

comunidade e quaisquer seus simpatizantes.

Durante a ausência de Jacques, León Tiithee tomou sobre si a

responsabilidade de algumas providências práticas e, sem nem

mesmo consultar Victor, reforçou a segurança à propriedade.

Fez isso discretamente tentando manter o máximo possível a

aparência de normalidade. Mas o lugar começou a ser monitorado

com mais eficiência e policiado por seguranças armados

distribuídos em pontos estratégicos.


Entradas e saídas eram rigidamente controladas e toda

comunicação exterior verificada.

Avisou Jacques sobre tais providências e conseguiu dele, não só

aprovação como um agradecimento especial e ainda maior

reconhecimento. E quando Jacques chegou, acompanhado dos

amigos, entrou na propriedade sem problemas apenas porque León

Tiithee havia informado para os guardas nos portões e nos jardins

o horário da sua chegada, o veículo em que viajavam e as

características confirmadas pelas fotografias de cada um deles.

Encontraram-se no salão, onde foram recebidos por Victor em

pessoa.

Isabeau havia pedido à Consuelo que preparasse alimentos

variados e leves porque entendia que deveriam permanecer

reunidos por horas, para poderem tratar de todas as preocupações

que os estavam afligindo e providenciou que fossem servidos no

pátio com o jardim de inverno, numa tentativa para deixar o

encontro um pouco mais leve.

Quando ela entrou no salão, em que a princípio se reuniram, sua

fisionomia onde não se via a costumeira doçura do olhar e sua

insistência em constantemente observar Victor para logo em

seguida procurarem por Cesar, denunciaram sua preocupação com

ambos. Tal como seus movimentos que precisavam ser contidos

para apresentarem sua elegante naturalidade disfarçando o

nervosismo que a perturbava.


Jacques não conseguiu impedir um aperto no coração ao percebêla

tão mais aflita e fragilizada e precisou de todo seu autocontrole

para não denunciar este sentimento.

Adiantou-se até ela para as apresentações designando os irmãos,

Hakan e Rosário Centeño e percebeu claramente toda a tensão que

a consumia. Ainda desta vez evitou tocá-la, muito mais para

ajudá-la a se preservar resistindo às lágrimas do que para controlar

o próprio sentimento.

No entanto o acontecimento que ficaria gravado nas lembranças

de todos sobre aquela noite, nada teve a ver com a miríade de

sensações, pensamentos, dúvidas e expectativas que os envolviam

e que se insinuou sutil num primeiro momento quando Isabeau se

aproximou de um Jacques atormentado por ela e incomodado pela

situação que ameaçava seu velho amigo Victor, ou a espontânea

admiração de Hakan, que conhecera Isabeau apenas através dos

olhos enamorados de Jacques e agora a comparava com a imagem

idealizada ou nem mesmo pelo encontro entre Isabeau e a jovem

mestiça Rosário, com potencial para se transformar num grande

incômodo porque a fina intuição feminina de uma Isabeau

apaixonada, que ouvira inúmeras histórias de Jacques

compartilhando sua vida de adolescente com os irmãos Centeño,

sempre a fizera ciente de que o sentimento de Rosário por Jacques

não correspondia apenas ao carinho fraternal que ele estendia

naturalmente à irmã do seu melhor amigo, mas ia muito além

disso.


O que realmente transformou aquela noite numa lembrança

memorável foi o encontro entre os irmãos Centeño e Cesar Astu

Ninan.

Cesar, depois de algumas horas em que recuperou a consciência de

estar em Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos, se mostrou

invulgarmente lúcido e estável.

Desde seu encontro com León Tiithee, quando acordou dos seus

sonhos com o mundo alado e no espaço de tempo em que

esperavam pela chegada de Jacques e seus amigos, ele se

comportava muito bem. Interessado em algumas leituras e

conversas amenas e até começou desenhos para uma nova

invenção, uma lâmpada de cabeceira capaz de perceber o sono

pelas ondas cerebrais da pessoa adormecida para então se desligar

automaticamente.

Depois se animou a alguns movimentos sobre o tabuleiro do jogo

de xadrez que se eternizava a espera dos seus momentos presente

e que alternava seus adversários entre Victor e León Tiithee.

Todos estavam cientes das recomendações do doutor Longarcco

sobre a importância de ajudarem Cesar na tentativa de equilibrar

seu emocional, evitando os extremos entre a depressão e a euforia.

E, no entanto, Cesar se mostrava tão admiravelmente bem que em

dado momento León sussurrou para Isabeau que alguma coisa

estranha estava seguramente acontecendo, porque nunca Cesar

havia sido tão normal.


E quando ele aceitou a sugestão de León Tiithee de se vestir para

o jantar e o fez com esmero em honra das visitas que chegavam,

assombrou a todos porque nunca em toda sua vida Cesar mostrou

o menor entusiasmo por conhecer quem quer que fosse.

Ao contrário, há anos costumava evitar e até se recusava às

apresentações e eis que se vestia para o jantar.

Então quando ele se apresentou na sua melhor forma e com uma

elegância discreta e sua simples presença causou uma forte

comoção em Hakan e em Rosário porque Cesar era a

personificação de um personagem cheio de magia e mistério que

eles haviam idealizado por toda sua vida, a emoção contida dos

irmãos só foi superada pelo espanto que os levou quase ao

paroxismo porque Cesar cumprimentou-os chamando-os pelos

nomes de seus secretos e mágicos animais de poder.

Um conhecimento revelado através de sonhos exclusivamente

para cada um dos herdeiros Wara, a nação à qual pertenciam

Hakan e Rosário, uma das mais antigas nações indígenas dos vales

andinos.

Cumprimentando-os Cesar falou baixinho para os dois,

“__Finalmente meus amigos, nem sei dizer com quanta ansiedade eu

os esperava e como me alegro em vê-los, meus fiéis e queridos, e para

Rosário, no ouvido dela, Loop, e para Hakan no ouvido dele,

Mahoo.”

Mais tarde, Hakan confessaria para Jacques que aquele primeiro

encontro com Cesar Astu Ninan havia superado suas expectativas


sobre as crenças arraigadas em seu espírito desde a infância de que

os Astu Ninan e, Cesar em especial, eram, de alguma forma,

herdeiros de uma transcendência espiritual e uma capacidade

consciente superior a maioria dos seres humanos.

O cientista em Hakan logo o libertaria das emoções místicas e o

levaria a racionalizar a experiência com Cesar, remetendo-o a

algumas descobertas e pesquisas no âmbito da física quântica, que

se propunham estudar fenômenos aparentemente mágicos aos

olhos leigos, mas com explicação científica comprovável e

mensurável. Como conectar-se num nível diferenciado de

consciência com outra, ou outras consciências individuais, e trocar

com elas conhecimento. Conhecer seu íntimo e se comunicar

telepaticamente. Capacidades que Hakan estava convencido de

que Cesar havia demonstrado.

Foi um Jacques Lan claramente perplexo pelas coisas que o amigo

lhe dizia, que perguntou. “__Devo acreditar que, de fato, Cesar

Ninan de alguma forma conseguiu se comunicar com você e com

Rosário telepaticamente e extrair de cada um o segredo dos seus nomes

de animais de poder?” E isso já nos primeiros dois ou três minutos

que se conheceram? ”

E cada vez mais espantado...“__E afinal o que são animais de

poder? ”

Hakan riu-se gostosamente da postura contestadora do amigo.

Como resposta disse para ele. “__Você tem razão. Como acreditar

nisso? Mas você acredita que num passado muito distante, há


aproximadamente treze bilhões de anos, quando nada existia, surgiu,

no nada, de coisa nenhuma, do vazio, uma forma esférica de pura

energia, infinitamente densa e infinitamente quente que cresceu num

primeiro momento até mais ou menos o tamanho de uma bola de tênis

e em seguida se expandiu e prosseguiu sua expansão para o infinito e

isso continuou e continua numa aceleração incontida que, até onde se

sabe, continuará para sempre, essa expansão acelerada e que desse

evento surgiu tudo o que há. Nós e tudo que nos rodeia passou a existir.

Tudo, ...galáxias, planetas, estrelas, sistemas solares, o nosso sol,

buracos negros, ...absolutamente tudo, nós mesmos ...o universo, o

multiverso.” E concluiu para um Jacques que já sorria para a

argumentação dele. “__Então, se você consegue acreditar nisso, ...do

que irá duvidar?

Reconhecendo a razão do amigo, Jacques apenas encolheu os

ombros, bem humorado, sorriu e nada disse.

Sendo o oposto do irmão, para Rosário Centeño a aceitação de

Cesar Astu Ninan foi um processo visceral. Ela o sentiu

literalmente e reconheceu-o no que já intuíra dele e aceitou-o sem

restrições, com a simplicidade de uma criança.

Rosário Centeño Purik era infinitamente mais instintiva do que

seu irmão Hakan e muito mais uma nativa Wara, muito mais do

que ele jamais havia sido. Ela era um prolongamento da mãe com

uma leve pincelada da civilização branca ocidental herdada ao pai.

Rosário era sentimento, não era razão. E havia ido até Girassóis,

Ipês e Junquilhos Amarelos por dois motivos. Para estar perto de


Jacques Lan e para conhecer Cesar Astu Ninan e encontrar nele a

magia ancestral.

No que se referia a Jacques, há muito que ela se conformara em

amá-lo recebendo dele, em troca, tão somente as emanações

daquele morno, distante sentimento fraternal, que era uma

extensão diminuída do carinho verdadeiramente de irmão que

Jacques compartilhava com Hakan. E que Rosário compreendeu

ser o máximo que ela teria dele.

E isto, antes mesmo dele conhecer Isabeau.

E após Isabeau, ...sabendo Jacques entregue a dor de haver se

separado dela, Rosário pensou que poderia tentar estar ao lado

dele para confortá-lo de alguma maneira. E então soube que

Hakan iria encontrar-se com Jacques no Atacama e que depois

talvez fossem até a vila onde sua mãe vivia. Por isso esperou lá por

eles.

Viu-os chegar cobertos pelo pó do deserto e recebeu Jacques com o

coração aos saltos. Há quase sete anos que não o via e agora o

encontrava exatamente como o havia espreitado em seus sonhos e

idealizado em pensamentos, belo como um deus e soberano dos

próprios anseios. Como sempre ele a tratou como a uma irmãzinha

que não via há muito tempo, chegando a comentar como ela havia

crescido.

Rosário notou as novas preocupações dele, a disposição para se

envolver em assuntos que nunca antes o haviam interessado,

negociatas, politicagens, investigações de coisas escusas e se


preocupou por ele. Notou a impaciência e a pressa dele em voltar

para Isabeau e soube que esta percepção, mais do que qualquer

outra, definia como seria seu relacionamento não apenas com ele,

mas também com essa mulher.

Estava decidida a se aproximar dela como uma amiga

incondicional para, através dela, garantir a felicidade de Jacques

porque em Rosário não havia o sentido da posse do ser amado, mas

tão somente o da generosa entrega de si mesma ao serviço do amor.

Rosário era feita de puro amor e música.

E era capaz de tal coerência e integridade consigo própria, que fora

a formação que escolhera para o cotidiano da vida. A de musicista.

Enquanto Hakan, durante os anos que ambos frequentaram a

escola, entregara-se às lides científicas, Rosário pedira ao pai que

a matriculasse numa escola de música. E aprendeu os fundamentos

do piano e apaixonou-se pelo violoncelo, mas só conseguiu se

revestir de corpo e alma pelas harmonias das composições quando

conheceu profundamente a obra de Piazzolla.

Adulta e já formada, começou a se destacar pela qualidade da sua

interpretação e teria sido perfeitamente feliz apenas com isso, se

não sentisse o chamado das inquietações espirituais através da

ancestralidade do povo de sua mãe. Porque Rosário, assim como a

mãe, era uma Runa, um ser, como muitos dos seres das

montanhas, dotado de uma sensibilidade espiritual especial que

evoluiria conforme se aprofundasse nos rituais preparatórios e na


observação de ações específicas de purificação, até atingir um nível

elevado de expansão da consciência e integração cósmica.

Ela acreditava nisso com todo fervor e por isso o conhecimento

com Cesar Astu Ninan, reconhecido pelos povos andinos, por ser

da linhagem Astu Ninan, como alguém que já conseguira um nível

de consciência superior, era-lhe tão importante. E Rosário ficou

encantada por ele.

Sentiu emanar de Cesar a paz espiritual que vinha procurando há

muito tempo e intuíra que tinham uma trilha comum de vida a ser

percorrida, para ela merecer absorver esta paz.

Cesar, que desde sua síncope se embrenhava cada vez mais

profundamente por uma encruzilhada no caminho da existência

em que se conectara simultaneamente a dois mundos, começara a

enxergar a vida em Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos de uma

forma que lhe seria impossível explicar aos que o rodeavam.

Havia uma neblina fininha e permanente sobre seus olhos que

precisava ser descortinada para deixar entrar plenamente a luz.

Em meio às sombras ele via os dois caminhos, eles seguiam

paralelos e se cruzavam e sobrepunham de repente,

inadvertidamente, transgredindo as leis da física e ele compreendia

que deveria seguir simultaneamente em ambos por longos trechos

incompreensíveis.

A chegada de Loop e Mahoo, neste mundo de flores amarelas, foi

um sinal de que sua existência estava prestes a se definir nas


realidades que sua consciência estruturara para as experiências a

serem vividas na matéria. Ele conseguia entender isso com clareza,

mas os próximos acontecimentos a serem escolhidos dentre as

possibilidades potenciais ainda estavam escondidos.

Sentia-se calmo e com uma lucidez espantosa, rara para o

momento que estava vivendo. Via, ao redor, Victor e Isabeau e

percebia-os apenas em parte, como se o outro lado deles, aquele das

almas que certamente tinham asas enormes, insistisse em

permanecer oculto à sua percepção.

Mas havia Jacques e León Tiithee com suas auras

permanentemente douradas, sinal seguro de espíritos elevados

embora muito impregnados pela materialidade e pela praticidade,

porque ambos eram consciências encarregadas dos cuidados físicos

com aqueles que os rodeavam.

E é claro, agora que Mahoo e Loop estavam ali com ele, travestidos

em suas formas humanas, tudo parecia mais vibrante e certamente

mais divertido.

Olhava-os se movimentando entre os outros e podia perceber

pequenos deslizes, como se fossem mínimas ranhuras nas fantasias

humanas pelas quais vazavam vestígios da sua índole mais

verdadeira e pura. Como pequenas pistas da sua natureza mais

íntima que teimavam em se mostrar por baixo das personalidades

de Rosário e Hakan com as quais eles se apresentavam ao mundo.

Cesar percebia coisinhas furtivas, vestígios das essências do puma

e da raposa. Pistas da sua verdadeira natureza que teimavam em


ficar visíveis apenas para ele que tinha olhos para vê-las. Às vezes

na forma de uma pontinha de uma cauda peluda a se insinuar por

baixo das vestimentas e que era escondida tão logo notada, ou um

pedacinho de uma orelha que se erguia, atenta, por baixo das

cabeleiras, só para ser rapidamente disfarçada, ou a atenção dos

olhares âmbar, atraídos imediatamente ao menor movimento,

imperceptíveis para os comuns dos mortais, ou simplesmente seu

modo de ser displicente inerente às suas naturezas selvagens que se

deixavam levar ao sabor da existência, traduzidos por sua

imobilidade e seu silêncio tranquilos.

Cesar percebia tudo isso em meio às atitudes comuns de pessoas

jantando em companhia umas das outras e mantendo uma

conversação educada e se espantava e sorria se divertindo.

Agora mesmo, naquele instante que refletia sobre esses sinais da

verdadeira essência dos irmãos Centeño, enquanto Isabeau se

curvava minimamente para frente para falar alguma coisa para

Rosário, disfarçando a tristeza que a intimidade que a jovem índia

demonstrava para com Jacques Lan, causava ao seu coração,

Cesar viu, claramente, uma sombra diáfana na forma de um

focinho de raposa se delinear sorrateira, surgindo dos traços da face

de Rosário entre os perfis, lado a lado, das duas mulheres

conversando. O contorno quase totalmente invisível e

inconfundível do focinho, percebido apenas por Cesar, se agitou

rapidinho no movimento característico do farejar e Cesar soube

que Loop farejava a tristeza de Isabeau.


Ele engoliu o espanto e compreendeu a enormidade da tolice da sua

sobrinha neta. Desejou poder dizer a ela que Loop, na sua

vestimenta de Rosário, era um ser puro em perfeita sintonia ao

ritmo da natureza e incapaz de uma atitude falsa ou equivocada.

E que o sentimento de amor em um espírito como o de Jacques não

tinha nada de superficial ou volúvel e este amor nascera para ela,

Isabeau. Era profundo e completo, não poderia ser abalado por

nada fora da interação deles dois, um com o outro, e que, portanto,

a ligação de Jacques com Rosário era tão somente a de amizade e

amor fraternal.

Cesar conseguia ver sobre a forma de Loop em sua roupagem de

Rosário, que a aura da raposa brilhava com as cores do arco íris,

sinal seguro de um amor de uma qualidade diferente daquela

comumente compreendida entre homens e mulheres.

Para Cesar era tudo tão claro, tão límpido e fácil de compreender

que ele se admirava da incapacidade de Isabeau e de todos os

outros entenderem isso.

Ele interpretava cada nuance de cada uma das pessoas ali reunidas

segundo um prisma ampliado das possibilidades e entendia a

transitoriedade de cada situação segundo sua importância

atribuída sob a ordem cósmica.

E nesta escala, qualquer das aflições humanas mostrava-se ínfima.

Não mais do que apenas uma minúscula perturbação

minimamente sentida, efêmera e fugaz na grandiosidade da

existência.


Por isso Cesar alcançou uma profunda paz. Tão necessária a ele

depois de toda comoção e sofrimento que havia enfrentado.

Assumiu e reconheceu um sentimento que os muitos religiosos

chamariam de estado de graça. Ele percebia as atitudes dos que o

cercavam, visivelmente curiosos sobre essa recém adquirida

tranquilidade e sabia-os inseguros sobre isso, observando-o como

se estivessem esperando a qualquer momento uma crise ou um

desmaio.

Mas, estranhamente, Victor conseguiu ficar imune à precisamente

essa desconfiança, uma renovada capacidade de crer em Cesar se

apoderou dele e ele acreditou na tranquilidade e no equilíbrio

demonstrado por Cesar e isso agiu sobre seu próprio espírito como

um bálsamo.

De uma forma nova, absolutamente espontânea e inesperada, a

serenidade de Cesar contaminou-o e subitamente Victor

compreendeu a enorme farsa de toda a comoção na qual se deixou

enredar.

Sentiu a calma inabalável do cunhado e buscou em si a ressonância

a essa calma. E a mesma paz o alcançou e Victor compreendeu que

todo o estardalhaço provocado pelos discursos inflamados de

JM.Yana eram apenas isso, palavras cheias de insinuações que não

resistiriam a análise séria e que serviam para camuflar o problema

real.

Num primeiro momento seria muito difícil impedir que o político

usasse o nome de


Victor como uma cortina de fumaça para desviar a atenção pública

e, ainda pior, que transformasse toda a história numa plataforma

para embasar seus discursos mais virulentos e garantir ainda maior

visibilidade nacional.

Mas a figura do político readquiriu para Victor a sua real

dimensão, muito aquém do seu inegável apelo popular

momentâneo. Victor lembrou-se de quem era realmente JM.Yana

e sua incapacidade, viu-o apenas como uma caracterização de

ganância, sem substância, sem nenhuma capacidade criadora real,

apenas um fazedor de discursos que nunca havia criado

verdadeiramente nada e, ao se lembrar disso Victor o percebeu em

toda sua insignificância e pequenez. Conseguiu enxergar através

da cortina de fumaça construída com muito alarde e ruído em

torno de um personagem falso, cuja derrocada era inevitável e

lembrou que a verdade estava em Mayuasiri Pacha, esse era o

drama real, e então ele compreendeu o pensamento dos anciãos que

se faziam invisíveis, esperando serem esquecidos pelo senso

comum, para seguirem com sua influência e poder sobre as

milhares de pessoas cujas vidas tinham em suas mãos

encarquilhadas, escondidos por trás de todo teatro de JM.Yana

que era apenas um fantoche com verve eloquente. Então era

preciso enorme cautela, porque Mayuasiri Pacha era uma força

muito real e muito perigosa, mas conhecida por ele e, portanto,

manobrável. Ou era no que queria acreditar.

Recomposto em seu equilíbrio interior e fortalecido em sua

capacidade de ação se sentiu relaxar do tormento que o fatigara


nos últimos dias. Foi apenas um descansar momentâneo e Victor

tinha consciência disso, sabia muito bem que aquela trilha de ódio

enraizada em décadas de rancores e ambições era muito longa e

muito perigosa. Mas recebeu agradecido a trégua tão bem-vinda e

necessária.

Começou a desfrutar daquela reunião.

Alegrou-se com alguns relatos de Jacques sobre suas expedições e

pesquisas andinas e comparou-as às experiências que ele próprio

havia vivido na sua mocidade enquanto andava pelas montanhas

promovendo a melhoria da qualidade de vida dos agricultores.

E riu-se com as espirituosas explanações de León Tiithee sobre suas

próprias viagens e sobre como ele entendia o que estava

acontecendo em Terra Alta. Em uma análise incrivelmente

perspicaz sobre JM.Yana.

Cesar, repentinamente acometido por uma capacidade sinestésica

extraordinária, assistiu o riso de Victor se espalhar pelo pátio na

forma de um véu muito fino com milhões de pontinhos dourados,

laranjas e amarelos brilhantes e com o cheiro e o sabor de passas

ao rum.

E viu também a sombra diáfana de Mahoo, o puma, andando

tranquilo, se misturando aos passos de Hakan que se levantou e

agora se dirigia para a poltrona ao lado da ocupada por Victor.

E Cesar sorriu observando, quase hipnotizado, os elegantes

movimentos do felino emergindo do andar do homem.


Viu Mahoo, como uma sombra cristalina, diáfana, invisível aos

outros, parar correspondendo à ação da sua forma humana, à ação

de Hakan parado por alguns segundos em frente ao assento que

iria ocupar e, por um milésimo de segundo voltar a cabeçorra de

fera para olhar para Cesar, permitindo a ele ver a cara negra onde

brilhavam os maravilhosos olhos âmbar, para, em seguida olhar

novamente para frente para fixar seu objetivo enquanto seu

correspondente humano se curvava levemente na atitude tão

corriqueira de se sentar, mas que naquele instante adquiria aos

olhos de Cesar uma qualidade sublime e mágica porque provocava

o desdobrar dos corpos, físico do homem, e etéreo do animal, que

se sobrepunham.

Completamente absorvido pela beleza e graça dos movimentos do

puma simultâneos aos do homem, Cesar ficou observando-o se

agachar levemente sobre os poderosos membros traseiros na busca

do impulso necessário e, com incrível leveza e sem o mínimo ruído,

saltar.


Capítulo 19

Afinal precisamos falar sobre amor


Cesar pela maior parte da sua vida desacreditou do amor.

Era-lhe fácil lembrar todas às vezes que fatos sucessivos

comprovaram a primeira grande decepção até a conclusão

inevitável de que o amor era uma fábula, um engano, uma ilusão.

Esse amor procurado ao final da trilha ardente, ardilosa e perigosa

da paixão quando todos os sabores já haviam sido experimentados

e as surpresas conhecidas, só restando a delícia da aceitação e do

reconhecer-se, mas que jamais eram encontrados.

Tudo o que Cesar conseguia após longos dias e até meses de febre e

devastação da razão e da consciência, era a decepção.

A constatação da insignificância do ser que acreditava amar,

reconhecendo-o apenas como mais alguém completamente banal e

irrelevante a quem poderia, no máximo, se acostumar, mas que

seria ridículo continuar adorando.

Não!

Até mesmo uma consideração distinguida, na maior parte das

vezes seria inapropriada, diante da mediocridade do ser reduzido à

condição de mero objeto frequentemente na iminência de

substituição.

Então, o amor, tão desejado e perseguido e cultivado através de

todas as ações e adulações e promessas e mil declarações, todas

absolutamente sinceras e ornamentadas pelas disposições


ferrenhas de eternidade e imortalidade se acabava com o último

suspiro apaixonado e mesmo a imobilidade e o silêncio mais

absolutos neste instante tão especial e frágil, mesmo o maior

cuidado e o desejo mais profundo e a prece mais ardorosa, nunca

conseguiam impedir que o amor se evolasse e se perdesse, dissipado

num milésimo de segundo naquele pedacinho de tempo ínfimo

entre o inspirar e o expirar em que tudo se imobiliza suspenso num

nada e, no qual, só então poderia ter sido,... mas não,...evaporavase

sem jamais existir realmente. Como por encanto, tal como o

esmaecer do orvalho a se formar e desfazer instantânea e

simultaneamente, ainda que sob os mais delicados, sensíveis e

diáfanos raios de sol.

Refén desta certeza, sempre que Cesar era surpreendido pelas

madrugadas e principalmente nos finais das noites outonais,

quando a luz era lenta em trazer as cores da vida, por preciosos

segundos antes do amanhecer, conseguia ver o manto de orvalho

sobre os jardins e então sempre lhe era preciso conter as lágrimas.

Durante anos tal certeza amargurou sua vida. Até finalmente ele

se revestir de um cinismo nada extravagante e mesmo sutil, mas

ainda assim por vezes, bastante cáustico.

Precoce em tudo, Cesar buscou sua identidade no amor desde

muito cedo e também desde muito cedo se convenceu do desamor

familiar.

Haveria de levar mais da metade de sua vida adulta para

compreender que o amor se faz também das imperfeições nos


relacionamentos e só a trágica morte da sua família resgataria nele

o sentimento de pertencimento à uma linhagem e ao dever de

honrar a sequência das vidas ancestrais justificadas na valorização

da sua própria vida.

Desígnio e exigência de todos aqueles que o precederam.

Redescobrir o amor por sua família ao vê-los mortos, a todos eles,

foi a sua suprema tragédia. Apenas sua. A sua tragédia dentro da

tragédia dividida com Victor e, sobretudo, dentro da tragédia

coletiva que não contemplava essa redescoberta do amor por eles,

por ter sido tarde demais.

A tragédia coletiva restrita apenas à perda de todos de uma vez,

por sua profusão indecente de mortes causadas por uma gripe

estúpida, lhe infringia a dor ainda maior ao diminuí-la,

apequenando-a à apenas mais uma tragédia entre todas as outras.

Foi ao enterrar sua família vítima da epidemia que se esparramava

por toda a região da sua cidade natal, que Cesar se fez vulnerável

à insanidade que um dia iria se apossar da sua consciência e da sua

alma, lenta, mas inexoravelmente.

“_Afinal o que mais poderia fazer?”

Como responder de forma minimamente coerente ao fantasma de

si mesmo que escarnecia do seu sofrimento por amar uma família

que sempre estivera ao alcance do seu amor e mais do que isso,

ansiando por esse amor, e que ele não se dignara aceitar como

humana e, consequentemente, cheia de defeitos?


Como encarar o espelho que refletia uma face em que as lágrimas

borraram as linhas até transformá-la numa espécie de máscara em

que apareciam marcadas as provas de cada uma das suas falhas

como ser humano monstruosamente egoísta, e que se ia enfeiando

mais e mais com os sucessivos pecados e crueldades e julgamentos,

num arremedo pobre do castigo idealizado por Oscar Wilde ao seu

famoso personagem? Como responder ao rictus cruel do fantasma

espantalho no espelho, que repetia sempre a mesma pergunta

como uma infindável ladainha?

“_Mas afinal o que você esperava?”

Incorporou-se da sua tragédia.

Ao mesmo tempo, conscientemente abdicou completamente do

amor em todas as suas formas. Compreendeu que era o que lhe

restava porque toda sua tolice em julgar sua família ao invés de

tentar apenas amá-la o havia feito um não merecedor do amor.

E não pela fatalidade do desencanto que o alcançava, como se

acostumara a pensar, mas por ser deixado pelo amor muito antes

de se reconhecer desiludido.

Muito antes de se perceber esvaziado da paixão, nos primeiros

vislumbres da possibilidade de um amor mais profundo e

verdadeiro e generoso, Cesar se sentia deixado, esquecido,

desacreditado e feito invisível, impossível de se amar.


Então, qualquer ânsia de entrega de si para o outro se tornava uma

loucura que nem mesmo ele, acostumado a flertar com a loucura,

se atrevia arriscar.

Mas isso não fora sempre assim desde,... desde quando? Desde o

seu despertar para o sentimento de inquietação e ardência entre as

pernas e sufocação e palpitação do coração que parecia prestes a

lhe sair pela boca e esborrachar-se com seus olhos saltados das

órbitas ao vê-lo e apenas por vê-lo, a ele, Víctor Gatopardo, com

toda sua insuportável beleza juvenil de ainda um quase menino

sob uma elegância que haveria de se tornar lendária e com a

capacidade de desprezar e esmagar e desnortear sentidos e

sentimentos com apenas um olhar ou um dar de ombros sem nem

mesmo se aperceber disso.

Victor Gatopardo.

Alguém perfeitamente alcançável e completamente inatingível que

fulminou o coração, a alma e qualquer capacidade de Cesar Astu

Ninan, desde aquele entardecer, na biblioteca da mansão familiar

em Terra Alta quando o vira pela primeira vez e o deixara, para

apresentar para alguns convidados uma composição para violino

de sua autoria que iria desconcertar Victor.

Desde aquele entardecer, Cesar jamais se libertou do amor por

Victor Gatopardo.

Mas se agarrava a sua verdade como a única chance de salvação

para o perder-se da sua alma e afirmava para si e para seus sentidos

com todo o poder da sua considerável inteligência, que nunca,


jamais se apaixonara por Victor. Amara-o desde sempre, mas

jamais sofrera por ele, por paixão.

Amou Victor com o mais puro, casto e profundo amor de que seria

capaz e ao vê-lo se tornar oficialmente seu cunhado, quando Victor

se casou com sua única irmã, Cesar se alegrou sinceramente porque

sabia que seria essa a mais próxima e permanente relação que

poderia ter com ele. Em seu coração eles se tornaram

verdadeiramente e eternamente irmãos.

A cada vez que voltava das férias em Terra Alta para a sua vida

europeia, num verdadeiro périplo em busca da paz que iria

perseguir durante anos, levava os momentos com Victor como um

tesouro de recordações que serviriam como uma meta a ser

perseguida a cada novo relacionamento.

Os anos, tendo incorporado seu amor por Victor e, entre seu

fracasso estrondoso como compositor até o momento extremo de

uma dor inimaginável quando enterrou toda sua família, Cesar

viveu nos limites do prazer e muito embora nunca tenha sido

verdadeiramente feliz se reconhecia imensamente privilegiado.

Depois de se libertar da responsabilidade e das expectativas e

exigências de seus pais, como resultado do susto com a síncope que

o acometeu quando estava com apenas quatorze anos e deveria ter

sido lançado ao mundo como o maior gênio musical de todos os

tempos, foi deixado literalmente em paz para ser e fazer o que bem

lhe aprouvesse. E sem nenhum exagero se referia a esse período da

sua vida como os anos loucos.


Por muito tempo Cesar foi excessivo de várias maneiras, mas ao

contrário do comum não foi um adolescente rebelde no sentido

exato do termo, daqueles que parecem buscar motivos para

malcriações, bater de portas e respostas sarcásticas e enviesadas.

Ele era e foi sempre muito quieto, introspectivo, ensimesmado em

pensamentos indecifráveis através dos olhos negros. E nessa época

assumiu a postura de fazer apenas o que queria. Sem explicações

ou discussões, nem sequer comentários. Nada lhe era negado ou

proibido e por fim, nem mesmo perguntado, uma disposição que

rapidamente se configurou a Cesar como ausência de interesse e de

amor.

Ao completar a maioridade já sabia exatamente onde queria viver

e como.

O mais afastado possível de seus pais e sem nenhuma regra, tão

somente o satisfazer da sua inquietação mental, da sua

curiosidade, da busca obsessiva por criar algo e da satisfação física.

E apesar da sua genialidade a falta de maturidade impediu-o de

compreender toda a extensão da própria infantilidade.

Permitiu-se todos os tipos de vícios e as experiências mais

extravagantes nos limites extremos do bom senso e da segurança.

Costumava pensar que uma proteção especial o envolvia porque

mesmo nas situações francamente irresponsáveis e ridiculamente

perigosas conseguia se safar com pouca, ou nenhuma,

consequência. E a maior prova de ter uma índole boa em que

estavam firmemente enraizados os bons princípios, a educação

esmerada e uma clara definição de caráter foi justamente manter


sempre uma linha muito clara marcando o limite do inegociável e

do sagrado, Cesar referia-se a essa norma como o “sagrado do

próximo” e observou-a sempre com rigor. E já bem mais velho, ao

recordar aqueles anos se orgulhava ao afirmar que mesmo os mais

amalucados desmandos, mesmo as mais irresponsáveis

brincadeiras e as diabrices mais estapafúrdias nunca a

ultrapassaram.

Foi uma época francamente hedonista, mas que não o impediu de

seguir a busca pelo sentido da sua existência e pelo seu impulso

criador desde que observada à decisão de se manter afastado das

diretrizes de seus pais para sua vida.

Sua primeira medida seria acabar de uma vez por todas com a

esperança dos pais em vê-lo voltar para a música. Valendo-se de

toda sua considerável inteligência auto argumentando sobre o

acerto da decisão, ensaiou um enorme discurso no qual

apresentaria aos pais seus motivos e suas certezas. Mas nunca

reuniu coragem suficiente fazer isso.

Cesar conhecia muito bem o pensamento da mãe, sua intransigente

lealdade à música como a expressão máxima e a mais sublime

forma de arte e sua determinação em fazer o gênio de seu filho se

expressar através da harmonia insuperável dos sons, e então, nem

mesmo a força da introspecção aprendida nas trilhas nos Andes

serviu para ele se decidir enfrentá-la.

Escolheu evitar o assunto. Fechou-se em si, afastou-se dos pais,

abandonou-os numa parte muito escura e esquecida da sua vida e


da sua mente para vê-los e ouvi-los apenas quando era muito

necessário e completamente inevitável. Mas secretamente se

envergonhava da própria covardia porque a verdade é que ele

sabia, no mais íntimo de si, que os pais tinham razão.

Ele sabia que era extraordinariamente dotado e em especial para a

música, sabia que tudo o que já criara, cada uma das notas a se

ligar magicamente na sequência harmonioza que formava a

melodia soberba, forte, viril e ao mesmo tempo doce que envolvia

e enternecia e esgotava os sentidos só poderia ter sido criada por

ele, por seu gênio a serviço daquela forma sublime de comunicação.

Mas era tão terrivelmente difícil e exigente a entrega, todo o

trabalho árduo e a submissão que deveria ter para com a música

que ele se acovardara.

Era ainda e sempre seria o menininho querendo brincar.

Mas mantinha esse saber muito escondido no mais profundo do

subconsciente.

Nunca se decidiu enfrentar a verdade de que se apequenava por

um incontrolável medo, mas também em grande parte por

preguiça, por languidez e falta de determinação diante da grandeza

da tarefa de se dedicar ao esforço hercúleo de compor música.

Era tão mais fácil, muito mais seguro e impessoal e completamente

descartável criar seus textos e seus brinquedos de bric-a-brac.


E essa verdade ele não conseguiria suportar ver traduzida nos olhos

tristes de seus pais, sobretudo na luz da compreensão fatal dos

olhos da sua mãe.

Começou a se apoiar numa fórmula secreta de auto adulação e

autojustificativa. Dizia para si mesmo que sempre poderia voltar

para a música a qualquer momento que quisesse e então agradaria

aos pais, atenderia a mais profunda ambição da sua mãe e

finalmente se transformaria no filho que eles sempre desejaram ter.

Nunca entendeu, nem mesmo com toda sua genialidade, que tudo

o que seus pais desejavam, era vê-lo feliz e integrado e seguro, a

salvo daquela perigosa tendência de resvalar para a

autodestruição. Convencidos de que estar Cesar aconchegado à sua

família era a única forma de felicidade.

E que eram eles, quem verdadeiramente, viviam a suprema

tragédia de serem os únicos a compreenderem que para um gênio

como o de Cesar só o desafio da criação do supremo, do sublime,

poderia possibilitar alguma realização.

Mas só lhes restou se conformarem à decisão dele, egocêntrica e

mesquinha, de abandonar a música e, verem-no, ano após ano,

perdido e agoniado como um viajante parado no guichê de

passagens sem saber responder ao vendedor dos tickets qual o

destino desejado.

Viram-no voltar aos colóquios com a morte mantidos desde muito

cedo.


Longos diálogos solitários em que debatia com a soberana máxima

das existências por quanto tempo ainda suportaria seguir uma

vida para a qual não via nenhum sentido.

Amarguravam-se e sofriam, mas mantinham sua aparência de

normalidade. Forçaram-se a se conformar pelo afastamento total

do filho que escolheu viver como se seus pais e familiares não

existissem.

E finalmente, sem alternativa, afastaram-se dele.

E Cesar, em meio a essa rebeldia sem causa, escrevia contos.

Deliciava-se criando personagens que representavam seus desejos

e suas esperanças assim como suas dores, mágoas e medos, mas foi

apenas quando encontrou a veia de inspiração em que conseguiu

espelhar seus sonhos mais íntimos que sua escrita ganhou uma

personalidade cativante, brilhante, com uma espontaneidade tão

inesperada que fascinava muito antes de ser inteligível.

Às vésperas de seus vinte e cinco anos e com mais um coração

partido numa longa lista de antigas paixões desiludidas, havia

decidido permanecer isolado por algum tempo, até que as emoções

se acalmassem, até poder respirar e expirar sem dor, até poder se

deixar ficar ao sol sem temer expor a sombra. Mas seu mais novo

antigo amor, inconformado com o término do romance, conspirou

de forma enlouquecida e nunca totalmente explicada para publicar

um livro com alguns dos mais expressivos contos de Cesar.


Ficou muito claro que o parentesco do jovem italiano com um dos

sócios fundadores da grande editora responsável pela publicação

foi o que possibilitou essa prova de dedicação.

Cesar entrou no grande salão preparado com uma recepção de gala

e luxo para o lançamento do seu primeiro livro e foi saudado e

recebido por ninguém menos do que León Tiithee, à época,

festejado como um prodígio dos negócios e o mais jovem diretor do

império de comunicação da sua família, que um dia ele dirigiria

com mão de ferro e individualmente.

Foi o começo de uma relação muito lucrativa para ambos e contra

todas as probabilidades, também o começo de uma grande

amizade. A partir deste encontro León Tiithee se transformou em

um dos mais próximos e sinceros amigos de Cesar Astu Ninan.

Uma amizade que Cesar cultivou com esmero e manteve pelo resto

da sua vida.

Em muitas ocasiões Cesar descreveu a si mesmo como um homem

de pouquíssimos bons amigos, costumava dizer que podia contálos

nos dedos de uma mão e lhe sobravam dedos. León Tiithee era

um desses poucos e se considerava verdadeiramente privilegiado

porque reconhecia em Cesar uma genialidade real, mas mais

importante do que isso, percebia nele uma capacidade, um dom,

um poder, ou como se queira chamar... uma condição especial que

lhe permitia transcender a percepção comum, ir além do

entendimento vulgar das pessoas para captar e descrever em seus

personagens e em situações de seus livros a mágica, a matéria do

além, a configuração dos sonhos. Criando-os verdadeiramente ao


seu redor e ao seu alcance. Transformando, através desse poder, os

pensamentos, os sentimentos e as crenças das pessoas, sempre para

melhor.

Nisso residia, segundo o entender de León Tiithee, a famosa

genialidade de Cesar.

Sua antiga fama de gênio musical foi resgatada, agora através dos

muitos interesses econômicos da grande editora e mantida por uma

espécie de aura do inusitado que acompanhava Cesar e o precedia.

E seu retraimento natural, sua recusa em dar entrevistas ou falar

em público despertou ainda mais o interesse sobre ele.

Rapidamente começou a ser assunto para as notícias

sensacionalistas.

Falava-se dele, aparentemente sem que ele tivesse qualquer

responsabilidade e mesmo nenhum conhecimento sobre como e

porque começara isso, que era um ser além da existência mundana,

alguém vindo de algum lugar misterioso, com um propósito e uma

missão secreta que um dia se tornaria compreensível.

Como o assunto dominante de seus contos costumava resvalar

sempre em temas mágicos, em possibilidades sobrenaturais, em

acontecimentos além da percepção humana comum, seus textos

começaram a ser base para as discussões dos místicos e daqueles

estudiosos, sinceros ou não, sobre a transcendência da vida e

alguns, aparentemente dotados de poderes de visão além da visão

física, fizeram muitas declarações públicas afirmando que podiam


enxergar uma espécie de manto de luz envolvendo Cesar e mesmo

antecipando-se a ele, anunciando sua chegada iminente.

Uma nuvem muito diáfana, mas perfeitamente real, que parecia

formada por minúsculos flocos brilhantes a refletirem brilhos

mágicos mesmo no escuro completo, que iam formando milhares

de raios com todas as cores do arco íris que se misturavam aos seus

movimentos como numa coreografia surreal.

E assim Cesar foi alçado à condição de um ser especial. Dotado de

sabe-se lá que poderes extraordinários.

E no começo de tudo isso, por algum tempo, ele pareceu se divertir.

Mas logo a atenção excessiva que atraia começou a importuná-lo.

Sua natural tendência à introspecção e a real necessidade de se

manter isolado para poder escrever ou se dedicar aos seus inventos

começou rapidamente a fazê-lo ter atitudes esquivas, malhumoradas,

cheias de segredos que serviam apenas para aumentar

o mistério que as pessoas farejavam nele e isso virou um

movimento perpétuo. As esquisitices da sua personalidade

basicamente tímida e insegura atraiam cada vez mais a turma

ávida por figuras geniais, excêntricas e carismáticas e o interesse

cada vez maior sobre tudo nele e dele faziam-no ainda mais

esquivo, criou-se um mótuo-contínuo.

Nem mesmo Cesar saberia precisar com certeza quando esse

incômodo cresceu até se transformar num tormento e em seguida

num sofrimento atroz, ou quando, exatamente, as multidões


deixaram de apenas importuná-lo para virarem um monstro

assustador petrificando-o e condenando-o a ataques de pânico que

não o deixavam respirar.

Aconselhado por León Tiithee decidiu se isolar num lugar ermo e

nessa busca sincera pela paz da sua alma, acabou chegando à Terra

Alta numa madrugada anônima onde pretendia ficar somente o

tempo indispensável para se preparar para partir em peregrinação

pelos caminhos entre as montanhas até o coração das terras Astu

Ninan.

No casarão da família, encoberto pela noite, foi recebido por seus

pais que apesar de terem muito bem incorporado o verniz social,

conservavam suficiente espírito nativo para compreenderem a

jornada pretendida como um caminho de autoconhecimento, seu

direito e, mais do que isso, como um dever à sua linhagem e ao

reconhecimento e desenvolvimento da própria essência, além de

avaliarem que talvez assim, finalmente, Cesar conseguisse

encontrar significado para a própria vida.

À pergunta, que ele se esforçou por fazer parecer casual,

responderam que Victor estava ausente há semanas, como era tão

comum naqueles tempos, seguindo sua inquietação transmutada

em seu trabalho entre os povos andinos, embrenhado pelas trilhas

nos altiplanos e desfiladeiros estreitos e empreendendo um esforço

teimoso para transformar pessoas simples em cidadãos,

completamente convencido de ser esse o seu dever sagrado, num

equívoco que Victor levaria toda uma vida para perceber.


Então Cesar partiu em sua busca pessoal, sem prazo de volta e sem

a chance de revê-lo.

Acompanhado por primos Astu Ninan que conheciam os caminhos

para as terras indígenas e saberiam guiá-lo para trás no tempo para

os antigos rituais de purificação e, através deles, ao conhecimento

ancestral e sagrado.

A princípio aos trancos, chacoalhando dentro do veículo rústico

por estradas apenas adivinhadas em meio às rochas e à mata

fechada e depois, ao seguir a pé, aos tropeções, assustado, inseguro,

caminhando trilhas inóspitas, estranhas, entre vegetações altas

com galhos enormes que se estendiam interrompendo a passagem,

com cipós semelhantes a chicotes e espinhos inoculadores de seivas

irritantes que se espalhavam pelo corpo como venenos.

E então, com a subida interminável, as trilhas iam se

transformando.

Iam se despindo das árvores e arbustos e se transformavam em

caminhos estreitos que obrigavam à passagem de uma pessoa por

vez entre uma vegetação rústica e, frequentemente, às bordas de

abismos infinitos.

E no entorno, tudo absolutamente igual, impossível de se

identificar qualquer particularidade a diferenciar uma trilha de

outra, um descampado de outro, quilômetros e mais quilômetros

das mesmas cores, mesma brisa, mesmos cheiros, mesma terra

árida, mesma vegetação rasteira e áspera, como uma armadilha

que ia puxando Cesar para um redemoinho de paisagens


infinitamente copiadas e reproduzidas e repetidas aos olhos do

viajante para transtornar sua direção e fazê-lo se perder num

labirinto sem paredes, a céu aberto. Uma prisão sem grades.

Mas Cesar, por absoluta impossibilidade de voltar ao antigo

tormento, estava decidido a seguir um caminho na sua maior parte

intuitivo que refletia a busca interna da sua consciência por sua

alma, e a recompensa veio silenciosa e tão gradual que não foi

notada imediatamente.

Na forma do lento incorporar da caminhada, aos poucos,

delicadamente, um saber intrínseco começou a se impor e Cesar

sorveu-o e foi adquirindo uma espécie de compreensão da senda de

peregrinação.

Abandonou as lutas e as exigências por facilidades impossíveis e as

revoltas infantis contra as pedras e tocos e curvas e as pequenas

depressões que antes o faziam claudicar e perder o equilíbrio e cair.

Começou a entender o passo a passo e se rendeu ao fluir dos

movimentos da caminhada e, pouco a pouco, seguir adiante foi

ficando fácil e natural até ser verdadeiramente prazeroso caminhar

a favor da brisa.

Devagar, mansamente, Cesar deixou de lutar e se entregou e a

natureza o abraçou reconhecendo-o como a um filho pródigo.

Mas alcançar esse entendimento levou um tempo inimaginado e

insuspeito para o jovem antes impetuoso e mimado. Até ele

conseguir se reconhecer o suficiente e começar a sentir o próprio

corpo e se respeitar e se adaptar aos movimentos que combinariam


com as nuances do seu caminhar, ao se reconhecer um buscador de

si mesmo e da própria consciência Cesar contava trinta e cinco

anos.

A vida nas trilhas das montanhas andinas pusera-o no caminho do

observador do entorno e de si próprio num exercício muito

consciente para o autoconhecimento, se fez mais quieto, com

aquela quietude tão característica aos povos das alturas, mais

atento de modo geral e muito mais propenso à generosidade para

com seus semelhantes.

E só então Cesar se reconheceu verdadeiramente apto a entrar no

coração dos Andes.


Capítulo 20

Illatiksi – A Origem da Luz


Ainda que Cesar Astu Ninan estivesse bastante familiarizado com

a prática da meditação profunda, o ar extremamente gelado à

beira do pequeno lago naquele local esquecido pelos homens

prejudicava sua capacidade para a interiorização.

Estava numa das margens, muito próximo à linha d’água,

acomodado sobre um banquinho rasteiro com apoio para os braços

e para as costas as quais ficavam totalmente sustentadas, desde a

nuca, por um espaldar enorme e reto, mantendo sua figura

desengonçada comprida e magra, na altura ideal para lhe

possibilitar cruzar as pernas na posição tradicional dos

meditadores e ao mesmo tempo, perfeitamente assentadas no chão.

Cesar havia idealizado e construído o tal banquinho que era um

prodígio de genialidade, leve para carregar, fácil de armar e

perfeito para os seus mais de um metro e noventa de altura.

Permitia-lhe o relaxamento total do corpo e o acalmar adequado

da mente para ele conseguir interiorizar o silêncio na sua busca

com a conexão cósmica.

Enrolara-se num poncho de lã de vicunha, tecido com as cores ocre

e vermelha da terra e estampado com as figuras estilizadas dos

animais dos Andes, sob o qual ainda vestia o traje rústico que se

acostumara a usar. As calças jeans com reforços em couro, uma

camisa de flanela desbotada com mangas compridas, o chapéu de

cowboy firmemente enfiado na cabeça e as mãos calçadas com

luvas de couro macio num amarelado desmaiado. Cumulara-se de

roupas num esforço para se proteger ao máximo do ar gelado da


madrugada no deserto, mas ainda assim o frio era profundo e o

incomodava.

Em completo silêncio para não perturbar a meditação do amigo

que o acompanhava, Cesar apenas abriu os olhos, mas fez isso no

momento exato em que o sol começava a surgir no horizonte

infinito e os raios avermelhados sobre o cobre daquelas terras

transformou o pequeno lago num espelho d’água completamente

dourado e tão incrivelmente cristalino que por instantes a imagem

refletida fez céus e terra se unirem e se prolongarem um no outro e

os milhões de estrelas da madrugada se esparramarem pela água e

pelo solo do deserto como se ali se houvesse estendido, desde lá de

cima, um manto de diamantes. E por um segundo Cesar prendeu a

respiração, fulminado pela beleza daquela ilusão.

E mesmo acreditando não ter feito nenhum movimento ou o

mínimo rumor, a verdade é que deve ter deixado escapar, ainda

que apenas um suspiro de encantamento diante de tamanha

magia, porque o velho indígena que meditava ao seu lado se mexeu

do seu poder extraordinário de transcendência e abriu os olhos,

voltando-se para fita-lo tranquilamente.

O rosto, com traços severos e pele escura, sumiu da percepção de

Cesar, ofuscado pelos raios do sol surgindo detrás da figura do

índio. E de repente se apagaram as estrelas e se desintegraram os

véus dos sonhos para eles se envolverem, e à vida, numa capa

reverberante de luz e calor.


Com um leve aceno de cabeça para desviar sua atenção de Cesar e

ainda em silêncio, o índio ergueu os olhos para o infinito, para ir se

incorporando com vagar, recitando mentalmente uma prece do

amanhecer. Sentindo novamente sua alma se limitando pelo

invólucro físico e reorganizando os sentidos para reassumir aquela

maneira usual, no estado de vigília comum, de estar no mundo.

Depois se ergueu sem pressa, com cuidado e delicadeza fez um

movimento simples, quase imperceptível, de cumprimento ao sol

que já se impunha completamente soberano no dia do deserto,

lançando seus raios desde a linha do horizonte.

Convidou. “__Venha Cesar. Vamos comer.”

Estavam no Atacama, norte chileno, num lugar no meio do deserto

seguindo a linha dos oásis, bem adiante do famoso lago Cejar num

ponto de afloramento pequeno d’água que ali formava um lago

menor embora da mesma nascente do lago principal. Distante

alguns quilômetros dos lugares turísticos famosos e que os antigos

habitantes chamavam de Allpa Yori, nome que o indígena

traduzira como, terra do despertar da vida, o que pareceu a Cesar

se justificar plenamente pelo espetáculo inebriante que acabara de

testemunhar.

Para o café da manhã deveriam caminhar cerca de um quilômetro

até uma formação rochosa alta, que providenciava uma sombra

muito bem vinda sobre a habitação muito simples e rústica

construída pelo indígena.


Ele era um dos últimos representantes do povo Java Ayran,

ancestrais dos Astu Ninan e dos Wara que miscigenados aos

brancos de origem europeia viviam supremos naquelas terras.

Antigamente eram os Java Ayram os senhores daquelas

montanhas e daquele deserto, agora reduzidos a pouco mais de mil

representantes.

Ao encontrar Cesar, o velho indígena reconheceu-o e aceitou-o pela

antiga crença andina acerca da sua origem divina Astu Ninan.

E o jovem Cesar nunca soube disso e se soubesse teria muito

provavelmente achado absurdo, mas a verdade é que o velho e

muito sábio nativo, conhecedor profundo do mundo andino,

detentor dos conhecimentos ancestrais que por sua magnitude e

beleza eram frequentemente considerados mágicos, prostrou-se

diante dele, não fisicamente, mas espiritualmente. Assumiu ser, em

desenvolvimento espiritual, inferior, e isso o fez desejar desvendar

incondicionalmente diante de Cesar os conhecimentos sagrados dos

ancestrais que lhes eram comuns.

Com um arraigado jeito introspectivo, muito silencioso, muito

tranquilo e com um pragmatismo permeado por pequenas ações

que em um primeiro momento se assemelhavam a rituais, mas que

se provaram absolutamente racionais e econômicas no sentido de

promover resultados desejados e esperados com o mínimo esforço,

o índio guiou Cesar por conhecimentos e costumes antigos e

valiosos. Com isso, os dias se seguindo aos dias no viver da vida nas

montanhas fez a mágica de amalgamar o espírito de Cesar ao

espírito dos Andes.


Até que finalmente Cesar se percebeu como parte integrante e

atuante da natureza. Conseguia senti-la e entendê-la, conseguia ser

e apoderar-se da sua força tranquila e mergulhar no seu profundo

silencio e paz.

Nos dias que se seguiram caminharam cada vez mais para o norte,

se afastando de qualquer trilha conhecida, se embrenhando deserto

à dentro. Entregues aos cuidados tão somente da vida. Confiantes

na sua própria integração ao entorno e ao fluxo natural.

Sua caminhada os levou aos pés do vulcão adormecido Calla

Hoayra e ali acamparam para esperar a permissão da montanha

para a subida.

O velho índio contou a Cesar sobre o mistério daquele lugar.

Apenas mais um entre os milhares de mistérios do deserto e da

enorme cordilheira. E a narrativa, seguindo a tradição dos

ensinamentos passados oralmente, era intitulada “flutuar na

correnteza do rio” porque tinha a virtude de levar o ouvinte a um

estado alterado de consciência, cujas sensações simulavam o

flutuar sobre águas mansas e relaxantes, num fluxo ininterrupto

de conhecimento e provocado através dos sons das palavras exatas

e cuidadosamente reproduzidas na sequência e ritmo certos para a

emanação de um mantra sagrado, que induzia a esse estado

consciencial especial.

A história contada pelo velho indígena exatamente como o fora

sempre, passada de geração em geração há milhares de anos,

obedecia a uma cadência calma com algumas ênfases em palavras


específicas, pausas pequenas após outras longas e diferentes

modulações do início ao fim e foi se integrando de tal maneira a

sons do entorno, aos pequenos estalidos do vento quente sobre a

areia e suas infinitas pedrinhas e o minúsculo assobiar sobre as

ondulações nas dunas e o balouçar das folhinhas rasteiras da

vegetação rústica ao pé da montanha, que aos poucos se formou

uma ondulação na energia, no ar, formando uma egrégora muito

peculiar e quase mágica que induziu às mentes à quietude do seu

tagarelar infalível até o total e pacífico silenciar.

E assim, essa meditação em sua forma perfeita, absorveu e ilustrou

a história sobre o grande e esplêndido lago sazonal que se formava

naquele lugar sob condições muito raras, marcadas por uma

conjunção astronômica extraordinária.

Eles estavam em plena puna do Atacama, nos Andes centrais,

muito distantes e ao sul do lago Titicaca.

Ali, naquele lugar, e apesar da distância, originário da mesma fonte

do famoso lago, se formava de tempos em tempos e apenas por

alguns meses, um espelho d’água muito límpido, se estendendo aos

pés do vulcão Calla Hoayra, inundando uma área aproximada de

dez quilômetros quadrados, refletindo os picos da montanha

considerada pelos habitantes daquela região, a mais sagrada.

Mas esse fenômeno das águas que inundavam toda a região não se

restringia apenas ao aparecimento do lago, era muito mais vasto,

mais importante e definitivo e era sobre esse acontecimento que o


velho índio instruía Cesar, embora ainda não fosse o tempo para o

mágico acontecimento e sua observação.

O Calla Hoayra (Montanha do Vento), um vulcão extinto, com

seus seis mil, duzentos e setenta metros de altura, uma infinidade

de platôs, cavernas, trilhas e neves eternas era o centro do

fenômeno do lago que existe durante apenas alguns meses e que

acontece em intervalos de cento e dezessete anos. Sempre no início

da primavera, permanecendo até meados do outono do ano

vindouro e marcando um tempo cultuado pelos nativos como do

renascer da vida.

Apesar da subida ao Calla Hoayra ser muito longa, é considerada

bastante fácil, bastando-se seguir a estreita trilha entre paredões

de rocha. Mas, apesar disso a montanha tem a qualidade

surpreendente de se manter completamente livre de qualquer

atividade turística ou esportiva. E mesmo estando isolada no

centro de uma planície muito extensa e arrogantemente exposta

na paisagem andina, permanece misteriosamente desconhecida aos

aventureiros.

Ninguém, além dos nativos iniciados em ritos muito específicos,

sobe o Calla Hoayra.

A montanha, segundo a crença dos povos andinos, é um portal que

contém inúmeros outros portais para dimensões paralelas.

Constitui-se no acesso aos diversos mundos visitados

frequentemente por aqueles com o desenvolvimento espiritual e


consciencial apropriado, além de servir de entrada para os espíritos

que chegam, vindos de outras realidades, ao nosso mundo.

Tal crença está tão arraigada e difundida entre as tribos do lugar

que a ninguém ocorre duvidar das histórias extraordinárias de

pessoas que sobem a montanha para nunca mais serem vistas, ou

que descrevem seres mágicos de outras dimensões que chegam por

este portal.

E, por conta disso, existe e é uma atitude rigorosamente observada

entre os nativos, uma espécie de acordo tácito, um pacto de silêncio

respeitado com tanta disciplina que já se constitui numa lei local

que mantém a montanha protegida de visitantes indesejados ou de

pessoas, que por não estarem devidamente preparadas para as

experiências transcendentais, correriam sérios riscos tentando uma

escalada em que encontrariam experiências que não conseguiriam

entender e que seguramente afetariam sua sanidade mental.

Por isso é literalmente impossível a qualquer pessoa que não esteja

acompanhada de um morador andino pertencente às tribos Java

Ayran e com alto grau de iniciação nos ritos mágicos, conseguir

informações acerca da montanha e dos caminhos que levam às

trilhas e as indicações para a subida.

Entre os povos andinos são conhecidas e narradas uma infinidade

de histórias sobre as excursões frustradas de grupos que se

aventuraram contra todas as orientações e avisos dos moradores

do lugar e ficaram perdidos, procurando os caminhos para a subida

durante dias. Seguindo as estradas aparentemente muito


utilizadas, percorrendo quilômetros entre paredões de pedra que

ao olhar e ao senso comum dos visitantes, só poderiam levar aos

platôs lá no alto, mas que, no entanto, acabavam envolvendo as

pessoas em verdadeiros labirintos. Obrigando-as se reconhecerem

perdidas, até que convencidas da inutilidade de seus esforços, após

voltas infindáveis, retornavam sobre os próprios passos para

voltarem ao ponto de onde partiram.

Muitos mencionavam um personagem misterioso, por vezes

descrito como um nativo, velho, encurvado, com o rosto desfeito

em rugas que lhes indicava a direção da saída do labirinto

assegurando que conseguissem encontrar o caminho da volta. Por

vezes era um menino índio e houve até quem seguisse,

instintivamente, o andar, aparentemente sem rumo, de uma lhama

ou o voo de um condor.

Mas sempre, ao incorporarem a certeza de que deveriam desistir da

escalada se viam milagrosamente direcionados corretamente para

a volta e qualquer que fosse o ser mágico que se apresentava para

ajudar, o rumo indicado era sempre contrário ao da subida e

terminava invariavelmente nos pés da montanha.

Mas aqueles poucos que efetivamente subiam o vulcão inebriamse

com a beleza da paisagem e com a experiência mística.

Além da visão intrigante formada pelo reflexo da montanha no

solo avermelhado, coberta pelo manto azul esmaecido do céu sobre

suas coroas nevadas, o Calla Hoayra é repleto de pequenos platôs

encantadores, com vegetação e flores extraordinárias, pequenas


nascentes e até algumas cachoeiras cristalinas encobrindo cavernas

misteriosas.

Cesar e seu amigo desenvolveram um plano que previa

precisamente a subida até o segundo platô a cinco mil metros de

altura no Calla Hoayra. Para, então, prosseguirem, montanha à

dentro numa busca às escuras sobre revelações que se dizia estarem

gravadas nas paredes de pedra das cavernas.

Havia relatos sobre um rio cuja nascente era no alto da montanha

e que se dividia, com um braço seguindo pelo interior da rocha,

inundando as milhares de cavernas, formando um rio subterrâneo

e com outro braço seguindo exterior ao vulcão se lançando por uma

das suas encostas.

Assim era o majestoso rio Mayuasiri. Nascido das neves eternas a

mais de seis mil metros de altura, ia descendo, correndo pelo

interior da montanha, inundando as infinitas salas das cavernas

imensas como antigas catedrais esculpidas e escavadas na pedra

com a própria força das suas águas, até sair novamente para a

liberdade, quase mil quilômetros distante do seu lugar de origem,

dividido em dois leitos montanha abaixo, paralelos, em alguns

trechos muito próximos, em outros muito distantes seguindo o

capricho do que suas águas milenares haviam desenhado na rocha

bruta.

Formando platôs alagados semelhantes a enormes lagos,

corredeiras ligeiras e perigosas, quedas d’água que se perdiam em

precipícios gigantescos e por fim, lá embaixo, um curso rápido e


ininterrupto de água límpida que se espalhava por quilômetros

incontáveis de terras andinas em meio à vasta vegetação selvagem

e exatamente sob a única entrada possível do lugar chamado pelos

nativos Mayuasiri Pacha, ao lado do abismo entre inexpugnáveis

paredões de pedra. Até se embrenhar em florestas virgens e

encontrar o mar.

Nas noites, ao lado das fogueiras, nos acampamentos de descanso

durante a subida, o velho nativo ia contando a Cesar sobre o lago

sazonal que se formava aos pés do vulcão e sobre o rio dividido por

dentro e por fora da montanha e sobre milagres naturais que

aconteciam exatamente ali, no extremo do deserto.

Voltaram, em sua imaginação, milhares de anos no tempo para

uma época em que as tribos Java Ayran observavam as Plêiades e

em especial a estrela Sirius. Tal como as tribos antigas dos seus

irmãos africanos, os Dogons, com quem os Java Ayran mantinham

semelhanças em conhecimentos, em crenças e em costumes, o que

por si só se constituía num intrigante mistério, pois não havia

como explicar tais similaridades e até identidades exatas entre dois

povos separados desde sempre por um oceano.

Ambos detinham um saber inacreditável, mágico, uma crença

profunda referente a fenômenos cósmicos envolvendo as estrelas.

Achados arqueológicos com a incrível datação de doze mil anos

comprovam que o calendário de plantios, caça, pesca, colheitas e

as mudanças entre os acampamentos de verão e de inverno dos

Java Ayran, assim como dos Dogons, seguiam os movimentos das


plêiades, mas algumas inscrições faziam referência a outro evento

de enorme importância nas vidas das duas nações indígenas.

As inscrições revelaram que as tribos faziam observações muito

cuidadosas sobre Sirius e a maneira como ela aparece no céu.

Acreditavam que Sirius, ao invés de uma simples estrela se

constitui num sistema estelar em que a brilhante, Sirius A, é

orbitada por sua pálida e invisível irmã, uma anã branca, Sirius B,

cuja órbita leva cinquenta anos e que Sirius B movimenta-se no

céu seguida, praticamente atrelada, a uma terceira estrela, uma

anã marrom ainda mais obscura, Sirius C, chamada por isso, a

escura. E tais observações são reconhecidas exatamente e em

minúcias pelos dois povos e ignoradas pela maior parte da

comunidade científica formal.

Mas as revelações ficam incrivelmente mais interessantes quando

descrevem especificamente o momento conhecido como

nascimento helíaco da estrela, quando Sirius surge minutos antes

do nascer do sol e após um período de setenta dias em que esteve

invisível nos céus, eclipsada, ofuscada, pelos raios e pela

luminosidade solar.

Java Ayrans e Dogons perseguiram, desde o nascimento do

mundo, a noite e o momento exato deste renascer de Sirius,

chamado pelos povos andinos como a “Estrela do Lobo”.

Espreitavam com enorme interesse esse momento e observavam a

cor da sua luz, que se sabe, ao longo do tempo ter se transformado

de vermelho forte para o azul esbranquiçado da atualidade.


A tonalidade da luz estelar era de grande importância porque

evidenciava outro evento ainda mais raro e intrigante envolvendo

o sistema estelar e que se repetia e era observado a cada cento e

dezessete anos, chamado o “nascer da Raposa de Prata”.

Tal fenômeno raro era inacreditável sob vários aspectos porque

demandava uma sucessão extraordinária e tão exata e coincidente

de movimentos astronômicos que se constituía na materialização

de um verdadeiro milagre.

Para acontecer o “nascimento da Rapoza de Prata” era preciso que

o equinócio da primavera coincidisse com a lua cheia de setembro

e com um eclipse lunar total e o nascer helíaco da estrela Sirius A,

na madrugada seguinte ao eclipse, com o alinhamento exato e na

distância exata da estrela Sirius B, sobrepondo-se a anã marrom e

se posicionando com o Sol num ângulo ideal em relação à Terra e à

Lua. Todos esses eventos acontecerem sincronizados e nos

instantes e ângulos exatos, evidenciavam algo maravilhoso,

milagroso, inusitado, impossível, mas, no entanto, acontecia

exatamente assim a cada cento e dezessete anos,

impreterivelmente.

Então, era chegado o momento quando a pequena e pálida, ao

ponto da invisibilidade, anã branca Sirius B entrelaçada a sua irmã

ainda mais obscura, a anã marrom Sirius C, de repente se libertava

do manto da invisibilidade e aparecia em frente a estrela

poderosamente brilhante, Sirius A e com um brilho

fantasmagórico e inexplicável, ofuscava-a.


Para os Java Ayran andinos e para os Dogons africanos tornou-se

uma questão vital e não apenas cultural, rastrear o firmamento em

busca do “nascer da Raposa de Prata” e vê-lo se repetir com

perfeição a cada cento e dezessete anos. Fruto de um conhecimento

adquirido pela paciente e constate observação dos céus sobre os

Andes e sobre a savana africana, durante milênios e que tinha uma

aplicação prática para suas vidas muito real e importante porque

o fenômeno cósmico provocava em terras nativas, andinas e

africanas, enchentes monumentais.

As águas em terras africanas nunca foram descritas a Cesar, mas

as inundações em toda a enorme extensão do altiplano andino em

que se erguia o Calla Hoayra lhe foram detalhadas.

Ali o deserto se transformava.

Aparecia o lindo lago sazonal que fertilizava as terras e todo aquele

pedaço do mundo andino se movia e borbulhava, a vida se refazia

como uma criança no ventre líquido da mãe. Aquela parte da

cordilheira se cobria, durante meses com enormes mantos líquidos

para se integrar e permitir a comunicação navegável de um ponto

ao outro do enorme planalto, através dos lagos transformados em

mares e multiplicados nos leitos dos rios que se encontravam para

misturarem suas águas. Inclusive pelos interiores das montanhas

que ficavam com suas cavernas inundadas.

A enorme extensão aberta permanecia alagada por meses e era

fertilizada para os anos que se seguiam serem de abundância, com


a terra produzindo fartura de alimento e possibilitando o nascer e

renascer das espécies animais e vegetais.

Fenômenos eletrizantes, o cósmico e sua consequência terrena, que

um dia seriam comprovados por Jacques Lan e seu amigo, o jovem

astrônomo, Hakan Centeño, exatamente como relatado por Cesar

segundo a narrativa do velho guia nativo. Comprovando a

sabedoria dos antigos que descreviam os fatos, dominavam seus

cálculos, suas circunstâncias, suas particularidades e seus efeitos e

passaram tal conhecimento de geração em geração por milhares de

anos.

Fascinado por esta narrativa, mesmo ignorando a importância que

este conhecimento um dia teria em sua vida, Cesar transcendia seu

corpo e sua mente e viajava em espírito pelos labirintos da

montanha mística.

Viajou milhares de terras e picos incontáveis no voo de sua

consciência livre do corpo. Viu os paredões de pedra com suas

linhas praticamente inexistentes de caminhos e passagens por

tuneis gigantescos. Caminhos por onde homens solitários e almas

perdidas seguiam acreditando nos desígneos dos deuses para suas

vidas. Sem imaginar nenhuma explicação satisfatória para isso.

Viu os altiplanos, os platôs infindáveis nos meios dos paredões de

pedra que ninguém nunca havia vencido, ou visto. Viu rios

misteriosos, negros em sua profundidade impossível, viu grutas

abrigando morcegos comedores de frutos vermelhos e viu bandos

de lhamas indiferentes ao bote do puma que as mataria, grupos de


cavalos selvagens em debandada pelos vales, as raposas sorrateiras

se esgueirando para suas tocas e sentiu o fluxo da vida pulsando

na amplitude da respiração da mãe terra.

A fumaça azulada e sufocante da erva do cachimbo sagrado, que

ele tragava no compasso do seu próprio inspirar, envolvia todo seu

corpo e transformava a realidade em que ele estava.

Então, subitamente, o largo de pedra em que acampavam, Cesar e

seu amigo, foi tomado por nuvens baixas que se fecharam

bruscamente sobre eles. As estrelas foram apagadas no céu andino

e Cesar se viu num outro lugar.

Ali estavam, fantasmagoricamente e sem nenhum sentido ou

explicação, uma larga mesa, muito igual à mesa de banquetes da

mansão da sua meninice e, sobre ela, uma toalha do mais fino

linho, guardanapos, louças em porcelana requintadíssima, talheres

de prata, charutos e copos de cristal.

Naquele altiplano aos pés do Calla Hoyara tal e qual estariam

numa das inúmeras salas em Girassóis, Ipês e Junquilhos

Amarelos.

E Cesar pensou que, talvez em sonhos, pudesse mesmo haver uma

mesa de banquetes naquele altar num vulcão nos Andes. Observou

o luxo e a solenidade daqueles objetos que haviam invadido toda

sua história de vida e percebeu o quanto havia de nobre, elegante,

majestoso e icônico e ao mesmo tempo superficial, em tudo aquilo.


Pressentindo, com seu instinto mais primitivo, que aquilo não era

um sonho e que então, sendo assim, algo estava profundamente

errado.

E ele soube do perigo com um saber premonitório muito antes de

ver os guerrilheiros que chegavam. A princípio, apenas como

sombras dentro da sombra noturna com suas formas mal definidas

que se avolumavam sob o manto negro. Primeiro só um braço, um

tronco, uma face desconhecida e feroz.

E então um som, como o estampido de uma rolha de champagne e

o copo de cristal na mão de Victor se estilhaçando e explodindo em

milhões de pedacinhos brilhantes, enquanto o líquido castanho se

esparramava para baixo e ao redor, parecendo a Cesar,

terrivelmente, com um jorro de sangue.

E ele só conseguia pensar que aquilo era impossível, estava tudo

errado, como Victor teria chegado até ali? Como? Quando?

E Cesar olhando este estilhaçar-se como se hipnotizado, sem

conseguir compreender verdadeiramente o que estava acontecendo

ao mesmo tempo em que sentia uma mão rude, áspera, prendendoo

por um braço enquanto o cano de uma arma era comprimido

sobre sua face esquerda. Em seguida, mas quase simultaneamente,

vozes alteradas, estranhas, ordenando numa língua

incompreensível enquanto da escuridão surgiam mais homens

armados ameaçando cada um deles.

E Cesar, incapaz de desviar os olhos de Victor, percebendo-o

cambalear e ir se curvando sobre si mesmo até cair de joelhos,


provocando a reação da jovem irmã de Cesar que se desvencilhou

de seu captor com um safanão, para se atirar em direção do corpo

desfalecido do marido.

E então o som do segundo tiro. Que obrigou Cesar, por sua vez, se

revoltar contra o homem que o ameaçava, dar-lhe um empurrão e

com um tapa, lançar a arma encostada em sua face para longe,

permitindo ele se libertar e correr em direção da sua irmã e do seu

cunhado, para protegê-los, a ela e ao corpo de Victor, ali caído,

desfalecido, porque o perigo era imenso.

Tudo aconteceu em fração de segundos, mas Cesar teve tempo de

ver, apavorado, o rosto dela se contorcer de dor após o espanto,

segundos antes dela cair em seus braços e ele sentir uma dor forte,

na parte de trás da cabeça, para logo depois ser engolido pela

escuridão e não ver mais nada e não sentir mais nada.


Capítulo 21

Las Luces


Chamavam-se a si mesmos Las Luces de Las Rutas en Las

Montañas, o que acabou sendo simplificado tão somente para Las

Luces. E eram um grupo de aproximadamente mil e quatrocentas

pessoas que viviam em acampamentos espalhados naquela região

andina, em comunidades menores, com algo entre cem a duzentas

pessoas cada uma.

Eram guerrilheiros na exata acepção da palavra. Vivendo sua

guerra eterna contra o sistema social estabelecido invencível do

qual pretendiam ser o símbolo máximo dos excluídos.

Sob vários aspectos esta realidade alternativa, o modo de ser na

vida e de viver a vida daquelas pessoas com seu questionamento

legítimo e sua revolta compreensível, foi impregnando as horas e

os dias que começaram a ter um tempo diferente que se impôs a

Cesar e ao seu companheiro de excursão. Comunicavam-se num

dos milhares de dialetos das montanhas, que era compreendido

pelo companheiro de Cesar, o que ajudou a Cesar apenas num

primeiro momento, antes de serem separados. A princípio foram

levados para um acampamento distante cerca de cinco

quilômetros do local onde haviam sido capturados.

Algum lugar entre os, aproximadamente trinta e cinco quilômetros

de diâmetro do vulcão em que havia vegetação cerrada. Uma

pequena e muito espessa floresta, com as cabanas rústicas erguidas

formando um círculo, tal como os antigos nativos sempre fizeram

desde milhares de anos, numa clareira aberta a facão.


Cesar estava se sentindo péssimo. Com muito mais do que uma

absurdamente forte dor de cabeça. Na verdade o corpo inteiro lhe

doía. Era prisioneiro em uma cabana miserável, feita de taboas

toscas e galhos de vegetação a improvisarem uma espécie de jaula,

na qual ele era mantido acorrentado.

Estava completamente só, separado do seu amigo e sem saber o

que havia acontecido com ele, e mesmo seus chamados mais

insistentes não receberam resposta até muito mais tarde quando

dois homens armados e parecendo absolutamente hostis, vieram

para perto dele e o observaram por alguns minutos.

Ao primeiro movimento de Cesar tentando se erguer, responderam

com violentas coronhadas das armas nas suas faces que o deixaram

tonto e com imediatas rasgaduras na pele, que latejou

dolorosamente, onde afloraram finas linhas de sangue. Foram-se,

deixando-o tonto, machucado e furioso. Sem responderem a

nenhuma de suas perguntas. E todo o tempo Cesar pensava em

Victor, em sua irmã e no seu amigo indígena, lutando para

compreender o que teria acontecido e revivendo o terrível instante

em que vira sua irmã e Víctor, caírem, atingidos por tiros.

Ao imaginá-los feridos, talvez mortos, ao pensar em especial em

Victor, sentia seu coração se confranger.

Tudo lhe doía, sentia aflições infinitas, no peito e no estômago

como se prestes a ter um ataque súbito e então se obrigava a

bloquear os pensamentos.

Era um pesadelo.


E onde estariam? E por Deus... o que teria acontecido a Victor, o

que teria acontecido a eles?

Que tormento. O que deveria fazer? O que poderia fazer?

E o tempo ia passando. Cesar não saberia dizer quanto tempo.

Algumas horas? Um dia? Dias? Viu-se completamente

desconectado da percepção do transcorrer do tempo.

Seus captores voltaram e com rudeza o fizeram beber alguma coisa,

que pelo gosto, era água suja, mas Cesar estava com tanta sede que

não se importou. Tentou se erguer novamente e mais uma vez

recebeu no rosto, já intumescido, o duro golpe da coronha da arma,

caiu sobre os joelhos e viu o precioso gole d’água desperdiçado,

esparramado sobre a terra socada e árida.

Ficou largado meio desmaiado, preso pelos pulsos nas correntes.

E as horas continuaram passando sobre seu delírio.

Cesar nunca conseguiu medir com precisão por quanto tempo

durou aquele encarceramento cruel. Lembrava-se de que tantos

foram os golpes em suas faces com as coronhas das armas, que

começou a contar a passagem das horas pela sensação da dor nos

cortes e nos inchaços do rosto, sentia que estava todo intumescido

e febril, sentia os lábios enormes e um pouco como se estivesse

anestesiado e que essas sensações iam, aos poucos, diminuindo,

ajudando-o de alguma forma, criar alguma consciência do tempo

transcorrido. A dor ia se aplacando e o sangramento diminuindo e

então ele pensava que já era hora dos seus carcereiros


atormentadores voltarem e invariavelmente os homens armados

voltavam, ele tentava se erguer, exigir explicações e apanhava de

novo.

Esta cena teria se repetido uma infinidade de vezes, quantas?

Centenas? Milhares de vezes? Cesar não saberia dizer.

Até que um dia e, Cesar não saberia dizer quantos dias após ele

haver sido deixado na jaula, acorrentado, os homens vieram,

deram-lhe de beber a água insalubre e não bateram nele porque

Cesar, desta vez, permaneceu sentado, sem nenhuma tentativa

para se erguer ou falar.

Na próxima visita trouxeram-lhe comida. Uma coisa pastosa e

horrível que Cesar não conseguiu identificar, mas que ele comeu

sem um mínimo de revolta porque se decidiu sair daquela jaula

com vida.

Incorporando-se de uma força impossível, Cesar permaneceu

silencioso e calmo. Recebia a comida e a bebida e teria agradecido

de joelhos, caso lhe permitissem se ajoelhar, quando lhe trouxeram

roupas limpas para substituir às que usava, agora imundas por

seus próprios dejetos.

Uma sabedoria superior convenceu-o de que se continuasse com

aquele comportamento pacato, talvez, logo tivesse direito a um

banho.

Ele mesmo começava a mal aguentar o próprio fedor.


Até que chegou o dia em que o puseram de pé com puxões rudes e

enquanto um deles metia na boca de Cesar o cano de uma

espingarda, que Cesar havia identificado com facilidade como uma

sofisticada espingarda de repetição que deveria ser usada

exclusivamente pelas forças armadas da maioria dos países, o

outro abria o cadeado que lhe fechava as correntes ao redor dos

pulsos. Depois o vendaram e o empurraram, aos tropeções, para

fora da cabana.

Apesar da venda negra a lhe cobrir os olhos Cesar soube que era

dia, que havia um sol forte e que havia pessoas se movimentando

ao redor.

Prenderam-lhe as mãos nas costas com corda e um nó

terrivelmente apertado que lhe causava sofrimento e foram

empurrando-o, indicando o caminho que devia seguir com os

cutucões dos canos das armas.

Cesar foi caminhando e ouvindo vozes variadas, desconhecidas, no

dialeto que ele não entendia, mas pode perceber claramente que

naquele lugar havia homens, mulheres e crianças.

Caminharam para longe das vozes e logo o sol já não lhe aquecia

os ombros e o chão começou a ficar muito irregular fazendo-o

tropeçar repetidas vezes, então Cesar entendeu que se

embrenhavam na mata, seguindo por uma trilha mais e mais

estreita à medida que seguiam em frente.


Caminharam por aproximadamente uma hora e então pararam e o

fizeram sentar sobre pedras e folhas e o acorrentaram novamente

a um tronco.

Ali Cesar ficou preso e com os olhos vendados, por muito tempo.

Começou a esfriar e escurecer e Cesar soube que era noite quando

finalmente os homens voltaram. Ergueram-no, tiraram-lhe a

venda e o empurraram para mais alto, seguindo a trilha até uma

clareira. Amarraram-lhe as mãos agora na frente do corpo e o

fizeram segurar uma grande lanterna, enorme quadrada, pesada,

incômoda. Com gestos bruscos fizeram-no compreender que

deveria permanecer ali, segurando a lanterna com sua luz fria

cortando a noite como um farol. Era preciso ele mantê-la erguida

à altura dos ombros e os braços esticados. Assim ele foi obrigado a

ficar por longas e doloridas horas.

E isto também se repetiu uma infinidade de vezes.

A cada vez que era vencido pelo cansaço e a dor insuportável o

obrigava baixar os braços espancavam-no cruelmente. O cobriam

de coronhadas e o chicoteavam com algo que parecia ser uma tira

de couro com duríssimas pontas de metal afiado e cortante que se

enterravam na sua pele. Isso se repetia até ele desmaiar um

desmaio tão definitivo que nem mesmo os chutes, coronhadas,

chicotadas e socos repetidos conseguiam fazê-lo retomar a

consciência. Então esperavam ele acordar do torpor dos traumas e

ferimentos e repetiam todo o processo, obrigando-o a erguer a

lanterna. Noite após noite ele foi acorrentado a um tronco grosso,


no alto da trilha para segurar a enorme lanterna e servir como um

ponto de referência em algum caminho misterioso para viajantes

também misteriosos.

Um farol humano.

Os dias e noites se seguiam imperturbáveis e Cesar cumpria sua

missão de marco iluminador. Logo começaram a exigir dele,

movimentos diferentes, em algumas noites deveria fazer círculos

com a lanterna, bem amplos, erguendo os braços bem acima da

cabeça e desenhando um círculo no ar que terminava abaixo dos

pés, isso deveria continuar pela noite inteira. Outras vezes os

círculos deveriam ser menores e houve vezes em que deveria

movimentar a lanterna como se estivesse desenhando uma linha

no ar que deveria ser o mais reta possível.

E assim iam se sucedendo as exigências, círculos grandes,

pequenos, linhas retas na altura dos ombros ou um tipo de

ziguezague, linhas curtas e que se interrompiam por um abaixar

brusco. Não foi difícil compreender que os sinais eram um código

para viajantes camuflados pela mata e pela escuridão da noite e

Cesar se convenceu de que compunham mensagens bem

específicas, completas e com um certo grau de complexidade e,

temeroso de novas surras, prestou-se ao trabalho o melhor que

pode.

Pouco a pouco, muito lentamente ia sentindo que a agressividade

e a severa atenção com que seus captores lidavam com ele ia se


afrouxando, eles iam ficando mais e mais relaxados, descuidados

dele.

As longas horas em que era obrigado a ficar repetindo sinais com a

lanterna deixavam-no perto de morrer de exaustão e com o corpo

inteiro dolorido, com a cabeça zoando e os músculos massacrados,

mas ainda assim era melhor do que as cruéis agressões com as

coronhas das armas ou o chicote.

Até que um dia o levaram por um caminho entre vegetação

cerrada, tão difícil e acidentado que o deixaram sem a venda de

costume. Puxavam-no, as mãos presas em frente ao corpo por uma

corrente e amarrada ao cinturão do guarda que caminhava

adiante, outro vinha atrás dele empurrando-o, fazendo-o sentir

frequentemente o cano de uma metralhadora.

Chegaram num elevado e Cesar não conseguia ver mais do que um

palmo na sua frente porque a noite estava extraordinariamente

escura. Até mesmo as estrelas sempre tão presentes, aquela noite

estavam pálidas, quase apagadas.

Cesar sabia tratar-se de um fenômeno incomum nos céus das

montanhas, nuvens espessas que por estarem muito baixas,

ficavam prisioneiras entre os paredões de pedra e que deixavam a

noite muito nublada, normalmente o ar muito seco não permitiria

a formação de tantas nuvens, no entanto, raciocinou que ali a

vegetação exuberante proporcionaria muito mais umidade do que

no resto da cordilheira.


Cesar foi empurrado para o extremo do platô e quando acenderam

a lanterna, descobriu que estava exatamente na borda de um

precipício assustador. Como um poço escuro, inescrutável e

infinito, que mesmo a luz forte da lanterna de bateria não

conseguia penetrar além de poucos metros.

Ele via a floresta, as pedras do caminho e os paredões de rochas ao

redor e medindo mentalmente o quanto haviam subido calculou

que o precipício deveria ter facilmente mais de mil metros até o

chão. Tais profundidades extraordinárias sendo frequentes na

cordilheira.

Amarraram-no fortemente com uma corda envolvendo-o pela

cintura, parte do tronco e pernas. Indicaram-lhe que deveria

desenhar os círculos grandes com a lanterna e depois de prenderem

a outra extremidade da corda numa corrente que envolvia um

tronco grosso a apenas alguns centímetros da borda do platô sobre

o abismo, empurraram-no para o vazio dentro da noite e ele soltou

um grito enorme que soou como um urro de dor e espanto.

Rígido de pavor, Cesar sentiu-se jogado e largado num vácuo,

imobilizando-se por um milésimo de segundo no nada, antes de cair

pesadamente e ser puxado, no movimento contrário à força do

empurrão, pelo retesar e ricochetear da corda que sustentava seu

peso e o da lanterna. Como um pêndulo, o corpo de Cesar foi e

voltou chocando-se contra a rocha afiada repetidas vezes até

finalmente extinguir-se a energia da força que o atirara dentro da

noite e ele se imobilizar de repente, pendurado, inerte, suspenso

sobre o abismo, engolido pela escuridão aterradora.


Sentia os pés soltos no ar e isso, mais do que qualquer outra coisa,

lhe dava a dimensão do seu desamparo. As costas lanhadas

sentiam o paredão de pedra e a cada movimento que ele fazia se

raspavam contra as pontas duríssimas e afiadas. Cesar se esforçou

para se estabilizar. Sabia que sua segurança imediata dependia

dele realizar os movimentos com a lanterna, a qual naquele

momento parecia estar pesando cem quilos. Arranhando-se,

lastimando-se e sangrando contra as pedras cortantes a cada

tentativa, ele começou a desenhar círculos no ar.

Nunca Cesar teria imaginado a dificuldade do que ele era obrigado

a fazer. Sua posição completamente instável e o medo de cair e se

perder no abismo, faziam cada erguer e baixar dos braços esticados

sustentando a lanterna, um verdadeiro martírio. Lá de cima, ao

menor sinal do fraquejar dos esforços, vinham vozes ásperas que

não deixavam dúvidas sobre as exigências e as consequências de

qualquer rebeldia.

Alguns puxões bruscos o faziam lembrar que o castigo para a

desobediência seria cortarem a corda para ele mergulhar no

precipício infinito. Foi uma experiência tão assustadora e

traumatizante que por muitos anos depois, Cesar sentiria um

desconforto íntimo e persistente nas noites nubladas.

As horas passaram lentas e terrivelmente angustiantes.

Perto do amanhecer, quando a luz da lanterna começou a ser

ofuscada pela luz do sol nascendo por trás das montanhas, Cesar,

afinal, atreveu-se a parar os movimentos e o cansaço e a dor que


sentia eram tão grandes que mesmo a visão do precipício aterrador

deixou o medo esmaecido e ele não se movimentaria mais, nem

mesmo para salvar a própria vida.

Deve ter desmaiado porque quando se deu conta novamente de si,

o sol já aparecia alto no céu. O calor estava ficando sufocante e a

corda que o prendia se retesava e se ajustava dolorosamente pelo

inchaço do corpo. A lanterna amarrada aos seus braços pesava

terrivelmente. Cesar tentava erguer a cabeça para ver os

guerrilheiros lá em cima e descobrir porque não o puxavam, mas o

sol praticamente a pino o cegava.

Tentou gritar, primeiro um grito que saiu rouco, baixo, minúsculo,

impossível de se impor a quem quer que fosse, mas depois, numa

segunda tentativa, mais alto e inequivocamente desesperado.

E foi então que ouviu vozes alteradas.

Havia no platô mais pessoas além de seus dois algozes de sempre,

falando e gritando e, de repente, tiros, desde lá, da borda do

precipício.

Tiros contra ele.

Sentiu as balas passarem zunindo a milésimos de centímetros da

sua cabeça para ricochetearem na rocha às suas costas e

desesperado, instintivamente, começou a se balançar, fazendo

movimentos cada vez mais frenéticos para se transformar num

alvo em movimento e consideravelmente mais difícil.


Procurou alguma fenda na rocha ou uma protuberância qualquer

que pudesse lhe servir de escudo e balançou-se até cerca de meio

metro em frente para agarrar-se a uma ponta, afiada como uma

faca, mas que marcava a sombra de uma fenda suficientemente

larga para ele conseguir se enfiar ainda que a meio corpo e se

proteger mais ou menos dos tiros.

Agarrou-se como pode, torcendo as mãos num ângulo quase

impossível por conta da lanterna presa aos seus braços, que,

enorme, impedia-o de se segurar normalmente.

Os tiros continuaram por mais alguns minutos, estridentes e

enervantes e embora só conseguissem atingir a pedra,

ricochetearam e rasparam na corda estraçalhando as malhas

superficiais e Cesar sentiu o baque que anunciava o fraquejar da

sua única sustentação sobre o abismo. O seu fio de vida. E ele, que

nunca havia rezado, ergueu uma oração a alguma infinita

inteligência cósmica porque não queria morrer ali, despedaçandose

contra o solo depois de despencar por toda aquela altura

inacreditável. E pensou ter sido atendido porque os tiros pararam

tão repentinamente quanto haviam começado e reinou um silêncio

penetrante, lá em cima no platô e por todo o abismo.

Cesar esperou que o puxassem. Esperou, esperou e esperou, veio à

noite, depois mais um amanhecer. O sol se erguendo até chegar a

pino marcando o meio do dia, e ninguém para resgatá-lo e Cesar

compreendeu que seus carcereiros estavam mortos, certamente

assassinados por algum grupo rival que os havia emboscado e

provocado o tiroteio. No entanto tentou gritar mais uma vez e sua


voz se perdeu no infinito para voltar meio esfiapada, destroçada

num eco mal formado que mais parecia uma voz do além do seu

futuro se ele não fosse içado dali, daquele balouçar-se macabro

sobre uma morte estúpida.

Agora o inchaço do corpo pendurado, fazia a corda se apertar como

um garrote e Cesar sentia sua pele se rasgar. Grandes nódoas de

sangue começaram a manchar a camisa de tecido cru, rústico e

áspero, com que os guerrilheiros o vestiram.

Procurou na rocha algum apoio para os pés onde pudesse descansar

um pouco o peso do corpo, diminuindo a pressão da corda na

cintura, mas não conseguia manobrar a maldita lanterna para se

permitir ser ajudado pelas próprias mãos.

E o calor agora estava insuportável. Uma sede atroz o fazia

agonizar.

Passavam-se as horas. Cesar esperava a chegada dos guerrilheiros

como esperaria pela vinda dos melhores amigos, mas eles não

chegavam.

Voltou à noite e com ela um frio cortante. Novas nuvens se

formaram e continuaram baixas e Cesar se sentiu envolver pela

neblina espessa e suas roupas e todo ele se umedecer. Pensou que

talvez lhe fizesse algum bem àquela umidade na pele porque era

uma forma de absorver água, mas se preparou para um martírio

ainda maior com a corda de fibras que, depois de molhada, torraria

ao sol durante o transcorrer do dia, piorando muito o efeito do

estrangulamento.


Quando amanheceu novamente Cesar foi sacudido de sucessivos

desmaios por sua mente que lutava pela vida, mas mesmo seus

momentos despertos não poderiam ser exatamente descritos como

conscientes. Em todo caso esteve alerta o suficiente para perceber

elementos novos ao redor. Percebeu uma sombra que ia e vinha

sucessiva e constantemente e logo depois um barulhinho como um

flap, flap, suave, rápido e que ia se aproximando. Semimorto e com

dores atrozes por todo o corpo, com incrível dificuldade para

qualquer movimento, precisou de toda sua determinação para

erguer a cabeça e tentar ver o que era que chegava.

E viu. Aproximando-se com a leveza do vento, com uma graça

infinita e com precisão impecável, o grande Condor. Com as

enormes asas pretas e brancas completamente abertas e parecendo

feito, ele mesmo, apenas de ar, tal a intimidade da ave com o seu

ambiente. Cesar pensou que aquele grande pássaro se revestia de

atmosfera, como se o ar estivesse inflado, se exibindo sob uma

forma soberba idealizada.

O Condor não somente pairava no ar, ele era efetivamente uma

parte ampliada do ar. Era, ao mesmo tempo, extensão e síntese do

todo que o envolvia. Observando-o a dominar os céus e o vento

com naturalidade mágica, era impossível se duvidar da força da

sua natureza ou ignorar que a sua chegada e sua presença

definiriam e igualariam todas as coisas. Sem deixar nada

inconcluso ou sem resposta.

O grande pássaro voava descrevendo círculos cada vez menores à

medida que se aproximava do homem pendurado naquela encosta


da montanha. E ia ampliando a sombra sobre o corpo dilacerado,

encobrindo por completo o sol.

Na sua cara enrugada uma crista vermelha separava os olhinhos

argutos que observavam e avaliavam a próxima refeição,

buscando a certeza do extinguir-se completo da vida.

O Condor podia esperar, ele tinha a eternidade ao seu dispor.

Cesar Ninan, incapaz para qualquer reação ou sequer um mínimo

sentimento de revolta, encarou o bicho reparando nas garras

potentes e no bico enorme, encurvado, serrilhado, que poderiam

quebrar seus ossos com facilidade. E Cesar pensou que isso era

bom, faria sua morte ser mais rápida. Ele sabia que o Condor,

embora sendo uma ave enorme, não conseguiria libertá-lo das

cordas e correntes e sustentar seu peso para levá-lo para o alto,

voando com ele sobre um descampado ou sobre alguma rocha sem

vegetação, para soltá-lo de lá de cima e se assegurar da sua morte,

então o que o pássaro faria seria ir arrancando pedaços de sua

carne. Algumas partes suas como seus dedos, o nariz, as orelhas e

os olhos, fatias das faces, nacos da carne ensanguentada sobre seu

estômago e quadris. Por esse motivo seria ótimo aquele bico e

aquelas garras serem mesmo bem afiadas.

Finalmente o grande pássaro pousou numa saliência da rocha,

aproximadamente um metro e meio acima de onde Cesar se

entregava exausto, ao momento inevitável. Com o fechar das

grandes asas a sombra, que até então pairara sobre a fronte de

Cesar, extinguiu-se e os raios do sol voltaram a fustigá-lo.


Cesar pensou que agora não demoraria muito para o Condor vir

cravar as garras na sua carne ferida.

Como num sonho ouviu uma voz grave e gentil falando dentro da

sua cabeça e então soube, sem a menor dúvida, que estava

delirando.

A voz perguntou. “__Você sabe quem eu sou?” E Cesar fez um

esforço supremo para vencer a dor e o medo e olhar para o pássaro

uma vez mais, só para se certificar de que ainda veria a forma

impressionante do Condor. Mas o sol sobre seus olhos permitiu-lhe

apenas visualizar vagamente as penas negras agitadas com o vento

e os olhinhos de ave de rapina pregados nele, em meio a raios

luminosos e ofuscantes. Respondeu em pensamentos. “__Você é o

rei dos céus dos Andes. O maior e mais majestoso dos pássaros das

terras e das montanhas andinas.” E a voz insistiu. “__É no que você

realmente quer acreditar?” “__Sim.” Respondeu Cesar num fio de

voz, evitando a todo custo deixar aflorar aos seus lábios o nome

que sabia ser daquela que lhe falava. E a voz continuou.

“___E você se julga especial por eu vir até você, me mantendo nesta

forma de pássaro que você pode encarar sem real espanto ou temor, que

você conhece e ingenuamente admira?” Cesar precisou refletir por um

instante porque intuiu que daquela resposta dependeria ele viver

mais alguns minutos. Afinal, respondeu para o pássaro.

“__Não especial, mas incrivelmente privilegiado, aliás como vivi por

toda minha vida, pelo quê, eu te agradeço”. Então o pássaro grasnou

um grasnado longo e com uma nota profundamente triste, para


depois fazer sua derradeira pergunta. “__E quando chegar o

momento da sua última palavra neste mundo. O que você dirá?”

O Condor fixava-o, exigindo a resposta, agitando a cabeça pelada

de penas a emergir de um colarinho de plumas imaculadamente

brancas. E dessa vez Cesar não precisou refletir nem um segundo,

respondeu com a voz embargada pelas lágrimas e pela dor. Com o

resquício de força que conseguiu reunir, ele disse.

“__Victor.”

Fechou os olhos para a explosão brilhante da luz do sol, sentiu a

dor dilacerante das garras que se enfiaram nos seus ombros e

estremeceu com o eco do grito da rapina reverberando pelas rochas

do precipício que receberia seus restos, até finalmente ser

completamente envolvido por um manto de escuridão, para então,

não ver e não sentir mais nada.

O rosto que viu ao acordar foi o de Victor.

Seu cunhado estava com o cenho franzido e com um ar levemente

impaciente, observando-o. Ao percebê-lo desperto e razoavelmente

consciente Victor soltou um suspiro que revelou o quanto andava

preocupado. Disse para ele. “__Afinal, acordou. Você está dormindo

há mais de quarenta e oito horas.”


Cesar fechou mais uma vez os olhos convencido de que ao abri-los

novamente, a ilusão do rosto de Victor tão perto do seu, teria

sumido e ele precisaria voltar para aquele espaço vazio com

sombras, escuridão e lampejos em madrepérola. Mas a voz de

Victor insistiu para ele voltar para a vida, para aquele momento e

para uma realidade de cuidados e atendimentos no leito da clínica

em que estava sendo resgatado da sua quase morte.

Cesar teria se erguido de imediato e abraçado Victor, enquanto o

cobria de perguntas para conseguir compreender o que havia

acontecido, mas tudo o que efetivamente conseguiu foi um

murmúrio do mais sincero e profundo alívio.

Dias mais tarde, já completamente recuperado das lacerações,

torções, cortes e curado das infecções, mais ou menos lúcido, com

razoável discernimento para tentar entender o que se passara e

como e porque Victor estava ali, num posto de saúde embrenhado

numa das mais distantes trilhas das montanhas, dispôs-se muito

mais a ouvir do que falar.

Cesar soube que, seu sumiço por mais de três meses sem qualquer

notícia ou forma de comunicação com seus pais ou León Tiithee ou

qualquer outra pessoa, provocara a preocupação de seus familiares

e amigos. Então Victor, que era dentre todos quem conhecia

melhor aqueles caminhos, havia montado uma verdadeira

expedição de resgate e embrenhara-se nas trilhas para procurá-lo.

Seguindo pistas e as descobertas dos policiais e detetives

contratados e com a ajuda de guias e alguns lugarenhos amigos,

haviam finalmente conseguido encontrá-lo.


Ferido e seriamente doente num acampamento rústico aos pés do

Calla Hoayra, muitos quilômetros deserto à dentro.

Victor servira-se de um helicóptero para trazê-lo urgentemente

para o posto de saúde mais próximo e com condições mínimas para

salvar sua vida. A cura completa se daria num hospital mais bem

equipado, tão logo Cesar pudesse ser transportado.

Uma incrível quantidade de perguntas fervilhava na mente de

Cesar, mas ele se sentia muito cansado, muito esvaziado de

qualquer ânimo.

Descobriu que seria difícil falar sobre o que lhe acontecera.

Obrigou-se apenas a perguntar sobre o velho indígena seu amigo e

companheiro de excursão, mas Victor, e todos os outros que

haviam participado da expedição para resgatá-lo foram unânimes

ao afirmar que não existia tal pessoa.

Todas as informações que lhes haviam dado pistas para seguir os

passos de Cesar, todas as filmagens em lobs de hotéis, restaurantes,

locais onde ele havia ido providenciar o necessário para a viagem,

sua passagem pela pitoresca San Pedro do Atacama e todos os

testemunhos de cada pessoa com quem havia falado e que o

haviam visto tomar o rumo do deserto, asseguravam e provavam

que Cesar estivera todo o tempo absolutamente sozinho.

Fora uma viagem de apenas um homem.


Finalmente de volta a Terra Alta, liberado pelos médicos, Cesar se

recolheu a casa de seus pais. Ficou ali algumas semanas decidindo

quando e como partir para retomar sua vida.

Foram dias de embrenhar-se em si mesmo numa busca incansável

pela explicação para o que vivera. Apenas Victor recebeu dele um

relato completo e o mais fiel de que foi capaz, sobre todos os dias

em que caminhou sobre o Atacama e sobre sua terrível aventura

final.

Para os demais, seus pais, irmãos e León Tiithee ele fez relatos

cuidadosamente construídos para apenas satisfazer-lhes a

curiosidade, mas sem alarmá-los.

Nunca voltou a falar do seu amigo nativo Java Ayran que o levou

pelas trilhas desérticas e andinas até ao pé do Calla Hoyara, mas

jamais se esqueceu dele.

Em seus textos, dali para frente, haveria sempre ao menos uma

menção ao velho índio e à sua profunda sabedoria e Cesar nunca

acreditaria que ele não havia existido.

E Victor, fiel ao seu costumeiro modo silencioso e pragmático disse

muito pouco, não se convenceu totalmente pelo relato do cunhado

e manteve a continuidade dos serviços dos dois detetives

particulares contratados para localizar Cesar. Eles prosseguiriam

na busca de evidências sobre o misterioso indígena e o povo

guerrilheiro dos Andes.


Na sua maior parte, Victor atribuía a história que Cesar lhe

contara a um estado alucinado que, a solidão, as condições

excessivamente rústicas em que vivia e às ervas fortíssimas do

cachimbo que fumava lhe provocaram, mas não podia deixar de

considerar as marcas terríveis nos pulsos, tronco e tornozelos a

comprovarem os abusos que Cesar lhe descrevera e, além disso,

havia o olhar de Cesar em que se refletia a mudança profunda da

sua alma.

Por isso Victor manteve as buscas sem desconfiar que um dia,

passados muitos anos, ambos revisitariam aquela história.

E foi assim que aos quarenta anos, Cesar Astu Ninan voltou para

sua vida na Europa. Mas a verdade é que não foi uma decisão clara

e completamente consciente, foi mais um se deixar levar pela vida,

algo incoerente com o homem que ele se tornara durante a jornada

dos Andes, mas seguramente algo que seu espírito parecia ansiar.

Apoiado pelo então jovem magnata das comunicações, León

Tiithee, inscreveu com firmeza seu nome no rol dos mais

prestigiados escritores da sua época e isso duraria por toda sua

longa vida, sendo questionada essa classificação apenas muito

depois do seu desaparecimento nas águas do Egeu.

Mas mesmo então, sempre haveria os que lhe atribuiriam uma

importância absoluta e transcendente à compreensão comum e o

reconheceriam como gênio.


Cesar jamais se preocupou verdadeiramente com isso, já, nesta

época vivia cercado por um misterioso farfalhar de asas. E eram

asas enormes.


Capítulo 22

O Khipus das Estrelas


Para Victor a aventura andina de Cesar tinha um importante

componente educativo. Muito mais do que místico ou esotérico e

espiritual, as andanças de Cesar pelos Andes e em busca de suas

origens Astu Ninan foram, no entender de Victor, um fator de

aceitação de si mesmo.

Reconheceu no cunhado uma mudança tão significativa, um brilho

tão novo e pungente no olhar, uma força calma e intransigente que

crescia de alguma nova capacidade de entendimento que ele

adquirira e se impunha tão determinada, que era forçoso acreditar

que lhe vinha d’alma.

Victor intuiu que finalmente se lhe apresentava a resposta a uma

pergunta que se fizera anos atrás sobre como Cesar em sua

genialidade conseguiria lidar com a tragédia da sua existência e

intimamente aplaudiu a mudança de postura adotada pelo

cunhado.

Julgou extraordinário, e ao mesmo tempo inteligente, Cesar haver

se convertido no único Astu Ninan em quem a herança indígena se

sobrepôs às décadas de polimento e submissão aos costumes do

homem branco e desconfiou que dali em diante notariam nele, mais

marcadamente, uma veia mística.

E isso, na avaliação de Victor, daria a Cesar seu verdadeiro status

social vitorioso em todos os sentidos.

E Victor acertou, em parte, sua análise.


Cesar se transformou de inseguro e tartamudeante herdeiro

excêntrico, em um escritor e pensador com raízes nos costumes e

na cultura dos povos andinos. De esquisito ele passou a ser exótico,

com experiências diferentes, digno do interesse daqueles que

engrossariam a multidão de seus fãs.

Victor acreditou sinceramente e com enorme alívio que Cesar

finalmente encontrara seu equilíbrio e sua paz.

Porém não foi uma mudança totalmente equilibrada, os anos

acabariam por provar isso.

Foi verdade que a peregrinação andina recuperou em Cesar muito

da sua herança ancestral e despertou nele a compreensão e o

respeito profundo pela sabedoria dos povos das montanhas, mas

não ao ponto de salvá-lo da sua inquietação angustiante pelo

significado e propósito de sua vida. Apenas aplacou-a

momentaneamente.

Por algum tempo Cesar incorporou uma naturalidade às crenças e

uma tranquilidade tão absoluta em adotar costumes e práticas

espirituais ao modo dos Astu Ninan nativos que, os que recém o

conheciam, acreditavam ser essa sua verdadeira natureza,

mantida sob finas camadas de educação ocidental.

Ao ponto de inverterem-se os fatos e começarem a divulgar a

versão dele ter sido criado até sua idade adulta no coração dos

Andes, nas aldeias dos vales e planaltos, ao invés de ter Cesar

nascido e sido criado, literalmente à vida toda, sob a influência de

gerações e gerações de Astu Ninans pertencentes à nata da


sociedade branca de Terra Alta, cujos costumes eram muito

marcadamente influenciados pelos hábitos dos europeus

ocidentais.

E também era verdade que os caminhos das montanhas haviamno

fortalecido. Aprendeu a meditar, aprendeu a cultivar sua paz,

seu silêncio e sua determinação para o equilíbrio das emoções.

E o fizeram, além disso, verdadeiramente compreender Victor.

As caminhadas pelas trilhas das montanhas ajudaram-no a

entender a importância, para Victor, de cada uma das ações para

tentar melhorar as condições de vida daqueles povos e suas

necessidades mais prementes.

Mas também o fizeram convicto de muitas das suas inutilidades.

Por isso jamais foi um colaborador. Compreendia a necessidade de

ação de Victor muito mais do que o próprio Victor poderia

imaginar e se comprazia ajudando com dinheiro para viabilizar

muitos dos seus projetos, mas nunca participou deles.

O mais próximo que esteve de uma participação em alguma causa

envolvendo povos das montanhas foi durante a tragédia dos

marceneiros assassinados em Mayuasiri Pacha, quando

acompanhou o cunhado ao encontro secreto com os líderes Yana.

Depois, durante a cruel perseguição à comunidade Yana pelo povo

da região de Terra Alta, que os culpava pela disseminação da

doença que martirizara todos da cidade e das montanhas, Cesar se


absteve de qualquer palavra. Assistiu ao sofrimento de Victor,

tentou confortá-lo pela tragédia que os afetou, a ambos, mas nunca

se declarou a favor ou contra aquele povo estranho com seus

costumes insólitos.

Na verdade Cesar se sentia incapaz de compreendê-los e uma

intuição muito fina lhe dizia que não eram confiáveis.

Não os culpou pelas mortes da sua família e da sua cidade, mas tão

pouco se apiedou deles. Na época julgou-se muito aquém de

qualquer possibilidade de um ato de piedade.

Estava com quarenta e oito anos quando a epidemia devastou

Terra Alta destruindo vidas e famílias inteiras, destruindo a sua

família e jogando-o nos braços da loucura porque a traição da

morte o obrigou desertá-la.

Já não conversava com a morte como com uma amiga.

E aos cinquenta anos, viajava o mundo acompanhando Victor na

sua fuga raivosa que duraria os próximos quatorze anos. Sentia-se

finalmente capaz de fazer Victor minimamente confortado, talvez,

ao menos com uma conformidade tranquila e esse pensamento o

consolava da sua própria dor.

Aos poucos, muito lentamente, sentiu a dor ir diminuindo.

Sentiu o desespero e a culpa se distanciando dos seus dias,

esquecidos em algum canto bem trancado do subconsciente.


Mas jamais se enganou sobre essa paz, sabia que era uma trégua

apenas aparente e na melhor das hipóteses temporária. Um saber

mais profundo e primitivamente intuitivo lhe dizia que em algum

momento e sem nenhum aviso, teria sérias contas a acertar com

seu próprio ser.

Mas, naquele momento e nos anos em que viajou o mundo ao lado

de Victor ousou cultivar a paz.

Começou a se sentir satisfeito porque passava horas absorvido com

seus inventos e isso fazia sua mente ativa e ocupada, muito embora

nunca tenha inventado nada realmente importante.

Mas divertia-se.

Gostava de escrever seus livros, apreciava a proximidade com

León Tiithee e alguns poucos intelectuais que se haviam

aproximado dele, com quem conseguia ter momentos de conversas

agradáveis.

Depois, quando abandonaram os anos nômades e Victor decidiu se

instalar em Terra Alta, no velho casarão Gatopardo em companhia

de Isabeau, ele conseguiu ficar verdadeiramente satisfeito com isso

e voltou para sua vida na Europa.

Nessa época já era um excêntrico reconhecido e assumido, na

verdade pouco ou nada se importando com o que pensavam ou

falavam dele.


E falavam muito, era verdadeiramente uma pessoa de fama

mundial.

Aprendeu a evitar as multidões e com ajuda de León Tiithee e de

um discreto grupo de seguranças especialmente escolhidos,

conseguia manter sua privacidade e liberdade, desde que

observadas algumas regras.

Mudou-se para seu pequeno e precioso apartamento em Roma.

Por meses e com a ajuda de Isabeau e de Victor se divertiu com os

trabalhos de restauração do imóvel e com a preciosa tarefa de

mobiliá-lo e torná-lo a casa de seus sonhos e não hesitou em

entregar para Isabeau toda a carga da administração da moradia,

que ela desempenhou brilhantemente, mesmo à distância.

Começou a ir para Terra Alta pelo menos a cada seis meses, sempre

camuflado, servindo-se de subterfúgios para viajar incógnito.

Algumas vezes era bem sucedido. E numa destas estadias comprou

Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos.

Quando estava em Roma participava da vida no casarão

Gatopardo através das conversas diárias com Victor e até

desenvolveu o hábito de se fazer presente, através de aplicativos

de computador, aos encontros da Confraria do Tabaco aos sábados

e até aos jogos de xadrez entre Victor e Jacques Lan, durante a

semana.


O sentido da sua vida começou a ser irrelevante, sua continuidade

talvez amena, embora não imprescindível.

E foi então que os pesadelos começaram.

Raros, a princípio. Confusos, envoltos em sombras espessas com o

constante farfalhar de asas agitadas numa agonia de morte.

Depois, quase todas as noites.

Com enredos complicados e muito incongruentes como é comum

aos sonhos, mas sempre opressores. Angustiantes.

Convencido que os pesadelos remetiam a sua experiência no

cativeiro e às terríveis torturas dos mercenários andinos, Cesar

resolveu estudar mais sobre os povos daquelas terras.

E antes de ir em busca de material acerca dos povos antigos e seus

costumes, se predispôs registrar cuidadosamente tudo o que se

recordava da sua experiência desde a chegada ao deserto do

Atacama.

Sem a menor dificuldade, sua mente fervilhante fez jorrar para sua

consciência e para suas lembranças cada pequeno detalhe dos dias

passados aos pés do Calla Hoyara e sua subida pelas estreitas

trilhas da montanha, seguindo o caminhar do velho índio, seu

amigo, até o mais alto do vulcão e até serem capturados pelos

guerrilheiros Las Luces.


Naquele minuto Cesar sorriu para si mesmo se convencendo que

tudo aquilo, tudo do que se lembrava que havia vivido, fora muito

real.

Pensou em como seria voltar para aquelas terras, para os caminhos

de subida ao grande vulcão na busca pela conjunção cósmica que

deixaria visível nos céus dos Andes a “Raposa de Prata”.

E foi então que algo extraordinário aconteceu e Cesar foi invadido

por uma avalanche de informações e saberes sobre tudo que vira e

vivera. Como se um grande bloco de sinapses cognitivas se

instalasse repentinamente ligadas em sua cabeça e Cesar tivesse

um novo acesso a tudo, a todo conhecimento, e ele soube de tudo,

lembrou-se detalhadamente de tudo.

Soube que em breve o milagre cósmico aconteceria e então as águas

aos pés do Calla Hoyara iriam subir, o rio Mayuasiry iria crescer

nos seus dois leitos divididos, a céu aberto e pelo interior das

cavernas e no coração da montanha sagrada no leito subterrâneo

do rio, e uma inundação de vida e fertilidade viria do vulcão nos

Andes descendo a montanha em corredeiras violentas que

arrastariam tudo o que houvesse em seu caminho até o fundo do

mais alto precipício no extremo leste de Mayuasiri Pacha, as terras

por trás da fortaleza considerada inexpugnável.

A cheia da inundação das águas da Raposa de Prata criaria um

único ponto de acesso ao interior das muralhas à alguém

suficientemente determinado para navegar pelas perigosas

corredeiras até a pequena entrada que se formaria naturalmente


com a elevação do nível das águas, uma única e estreita abertura

entre a muralha e a pedra do paredão do abismo que ficaria,

milagrosamente e temporariamente, ao nível das águas crescidas

do rio.

E subitamente tudo isso era da maior importância.

Cesar se apressou a buscar o gravador que usava para registrar suas

reflexões para inspirar seus textos e começou a relatar, com o

máximo de precisão e detalhes, aqueles últimos meses da sua

peregrinação andina, quando fora deserto à dentro até aos pés do

grande vulcão.

Conseguia ver e ouvir seu companheiro indígena com clareza

absoluta e absorvia com a máxima atenção tudo o que ele lhe dizia.

Depois se entregou às pesquisas.

Vasculhou bibliotecas e centenas de arquivos em busca de maior

conhecimento sobre o assunto das conjunções estelares, dos rios de

montanha nos Andes, dos caminhos e dos povos do Atacama e

descobriu consternado, como era pobre o somatório do que se sabia

sobre o assunto. Como era quase inexistente um conhecimento

formal sobre uma das mais belas e fascinantes paisagens do

planeta.

Por conta disso começou a se formar na sua mente a certeza de que

precisaria voltar ao Calla Hoyara. Precisava seguir mais uma vez

a trilha montanha acima, embrenhar-se na vegetação espessa


daquele lado da rocha selvagem sobre o precipício em que uma vez,

entregara sua alma à força e à misericórdia do grande Condor.

E à medida que intensificava suas pesquisas os sonhos e pesadelos

começaram a ser mais completos, mais detalhados, cheios de sinais

e premonições que passaram a assombrá-lo também nos momentos

de vigília.

Num crescendo sorrateiro, contínuo e persistente, antigas certezas

sobre suas imensas culpas acerca das mortes de seus pais, irmãos e

sobrinhos voltaram a ocupar sua mente.

Começou a se insinuar no seu coração a convicção de que ele

poderia ter impedido a tragédia que os vitimou. Uma convicção

imposta a ele através do grito infinito do Condor, momentos antes

das garras cravarem-se sobre sua carne machucada para levá-lo

para o mundo além da vida terrena.

Aquele grito sem fim, ecoando cada vez com maior força ao invés

de ir sumindo, reverberando sobre as rochas e a mata selvagem da

formação abismal sobre a qual ele jazia indefeso, era a tradução do

mais belo e importante som que já ouvira e que, sabia agora, havia

salvado sua vida.

E para quê?

Para quê e por que fora salvo das garras da morte certa sobre o

precipício?


Era a pergunta que o atormentava e que era repetida e repetida

incansavelmente pela própria morte que recentemente começara a

se apresentar a ele novamente para longas conversas, como

acontecia quando era um menino acuado sob a imensa

responsabilidade de criar o mais belo som já ouvido no mundo e

que, ele agora sabia, pois lhe fora recém revelado, era o som que se

repetia reverberando na dureza das rochas e no fundo da

inacreditável altura dos abismos.

Então? Tudo aquilo que ele vivera e que sofrera, toda a vergonha

reprimida por sua covardia, por sua teimosia e, sobretudo, a

decepção com a morte que o atraiçoara negando-lhe o único pedido

que lhe fizera, de ser o primeiro a morrer, de nunca ter de passar

pela agonia de enterrar um ente querido.

Tudo isso.

Só para ter que reconhecer que afinal o verdadeiro valor da vida,

da sua vida e de tudo o mais, seria preservado e se reproduziria na

continuidade sagrada do vir a ser através do mais sublime som.

Exatamente como sua mãe havia lhe dito e havia passado toda

uma vida tentando fazê-lo compreender.

“Como poderia resistir à loucura depois disso?”

Mas não se entregou assim muito fácil, haveria que lutar, ou talvez

não lutar, mas certamente barganhar algumas condições, talvez

até algumas vantagens.


Ele podia entregar sua alma e sua consciência à loucura em troca

de ser esquecido pelas exigências de seus semelhantes, ser deixado

em paz sobre suas aptidões extraordinárias, sobre sua genialidade,

sobre sua capacidade maravilhosa para a criação do maravilhoso.

“Afinal, ele era o quê?”

Algum predestinado cuja missão estava traçada em escrituras

antigas ou papiros desfeitos em pó, ...cuja vontade não precisava

ser considerada e menos ainda o medo do fracasso ou a justa, sim,

...era preciso dizer, ... a sua muito legítima, escolha pela

mediocridade?

E então, o quê?

“Ele não tinha o direito de ser medíocre?”

E então, era isso. Por tudo isso precisava voltar. Mas soube que

não conseguiria. Não sem a assistência de seu amigo indígena que,

apesar das suas certezas, talvez nem fosse real.

E foi então que Cesar se lembrou de algo que sabia desde menino.

Sabia que cada trilha, cada caminho, cada conhecimento, dos

povos das montanhas eram registrados nos objetos maravilhosos

chamados Khipus e ao lembrar isso Cesar soube que poderia voltar

para o que quisesse.

Nada lhe seria impossível.


O Khipus era um objeto místico e mágico, contendo em suas

tramas a descrição dos segredos, dos caminhos, das riquezas, das

localizações dos povos, dos nomes de seus deuses e dos eventos

mágicos que sustentavam suas vidas.

Tecido com o couro de animais e provido de nós, diferentes cores,

pequenas contas, sementes, pedaços de ossos, ramos de vegetação,

tramas e barbantes de diversos comprimentos, tal e qual os khipus

comuns dos antigos. Na sua maioria uma espécie de sistema

contábil usado para a contagem e o controle das coisas a eles

pertencentes. Seus bens, animais, plantações e mesmo os

indivíduos nas tribos. Quantas crianças nasciam, quantos

morriam. Em suma, seus ganhos e perdas, suas riquezas.

Mas também muitas vezes usados para transmitir suas histórias e

preservar seu conhecimento e seus costumes.

Mas havia o Khipus com a descrição daquele evento extraordinário

que chamavam o “Nascer da Raposa de Prata”, fiel em sua

concepção básica à técnica para sua confecção e sua utilização

prática idêntica a de qualquer khipus, mas com a intenção mágica

de descrever em detalhes o evento estelar que reproduzia no solo

do deserto e no interior do vulcão o milagre do crescimento das

águas.

Seria um Khipus das estrelas.

No khipus das estrelas estavam descritas cada uma das etapas do

fenômeno cósmico que provocaria o acontecimento de importância


excepcional para todo aquele pequeno canto do planeta e seus

habitantes.

Deveria ser uma cópia exata e sem nem uma mínima alteração em

relação ao seu modelo. E isso era assim há dez mil anos, sendo

confeccionado a cada geração e tão somente pelos herdeiros da

sabedoria runa, os mágicos feiticeiros dos Andes.

Cada khipus servia de modelo para o próximo e era guardado como

objeto sagrado até que a deterioração pela passagem do tempo

indicasse a necessidade de confeccionar-se o novo.

Então, o herdeiro ou herdeira runa mais habilitado, era

encarregado da tarefa e sob a supervisão dos anciãos e dos sábios e

líderes das tribos copiava, no novo khipus, cada uma das centenas

de informações constantes no antigo e apresentava ao povo o

objeto sagrado renovado.

Havia tanta preocupação com a exatidão das informações que

vários grupos de pessoas das tribos, com alguma ascensão social,

encarregavam-se de fazer a conferência de cada pequeno nó e

aglomerados de nós, cada laçada, cada nuance de cor, cada

pequeno objeto a compor os vários cordões do khipus novo,

comparando-o ao modelo, o qual ficaria guardado num templo de

pedra, protegido das intempéries, ao lado do lugar onde seria

mantido, para veneração, o novo khipus. Para que se pudessem

consultar as informações e fazerem-se comparações a qualquer

tempo. Até que naturalmente o antigo objeto se transformasse em

pó.


Para cada uma destas etapas da confecção do khipus havia

cerimônias e rituais a serem observados e os herdeiros runas

deveriam se encarregar da sua correta execução. Um sem fim de

reuniões e visões e rezas e oferendas e peregrinações, repetidas

exaustivamente, geração após geração.

Até finalmente estarem na época e no momento em que as cinco

situações coincidentes e consecutivas criariam a condição para o

fenômeno astronômico que desencadearia um calor muito grande

nas montanhas Andinas a ponto de se derreterem a quantidade

necessária das neves eternas nos topos das montanhas para

acontecerem às enchentes excepcionais.

Para Cesar, esse assunto, todo misticismo envolvido, as sensações

que o esmagavam durante os sonhos em que invariavelmente caia

no precipício sem fim, envolvido pelo som ecoante do grasnar do

Condor com notas profundamente tristes e vibrantes que lhe

devassavam a alma, começou a ser uma obsessão. Rapidamente se

extinguia qualquer mínima possibilidade dele recuperar a sua paz.

Já não conseguia se concentrar em mais nada.

Começou a escrever textos após textos em que a situação mágica

se desenrolava e a cada vez o final era mais trágico, mais

terrivelmente triste e definitivamente cruel.

Ouvia o grito da ave de rapina, sentia sobre a face seu hálito

quente, era envolvido pelo farfalhar e pelas asas enormes, agitadas

que lhe batiam incansavelmente no rosto.


Reproduzia sem parar as notas do grito ecoante como se o estivesse

escrevendo sobre uma escala musical. Com pequenas alterações a

cada nova escrita, alguma pequena coisa aqui e ali. Fazia-o mais

estridente, ora mais grave, ou mais insuportavelmente longo, sem

fim, fiel a sua agonia.

Uma agonia que acabava sempre com seu corpo se despedaçando

no fundo rochoso e escuro do abismo. Sempre e sempre, numa

repetição infinita e angustiante a renovar o pavor, o medo e a

perda da sua vida.

E Cesar reconheceu que esse fim do qual não conseguia fugir,

acontecia inevitavelmente pela simples, cruel e inequívoca razão

de haverem cortado suas asas.

Isabeau jamais saberia, mas sua decisão de ir ficar algum tempo

morando com seu tio avô, Cesar Ninan, em Roma, contribuiu para

a síncope que vinha se formando nele. Em seu espírito perturbado.

Tê-la em casa foi uma novidade que o afligiu e entusiasmou ao

mesmo tempo deixando-o em um estado de espírito

descompassado, afoito como de um adolescente, apesar de seus

sessenta e nove anos completos, faltando menos de um mês para

completar os setenta.

E foi sob esse estado de espírito, que Cesar se comprometeu com

León Tiithee, a comparecer ao evento promocional para o

lançamento de seu último livro.


Tudo parecia ter corrido bem até saírem da bela biblioteca onde

acontecera o encontro, por uma porta lateral, Cesar e Isabeau,

para um elegante patamar de pedra no alto da grande escadaria

que eles desceriam juntos, passo a passo, degrau a degrau.


Capítulo 23

Voar, mas para onde


Era uma espécie de música. Cesar tinha certeza disso embora o som

lhe parecesse absolutamente estranho, mas de uma forma

arrebatadora, cativante e inesquecível. E era essa sua segunda

certeza. Cesar jamais esqueceria aquele som.

Sua melodia, sua harmonia, as estridências inesperadas, seguidas

de uma urgência e uma aceleração que iam num crescendo muito

bem marcado, cadenciado, aumentando, aumentando até explodir

em acordes violentos como gritos de angústia ou talvez de avisos,

para em seguida baixar até quase o silêncio completo, com apenas

um leve, quase inaudível trinar de minúsculos grilos agitados.

Milhares, milhões de campainhazinhas repicando notinhas finas,

como finíssimas pontinhas de agulhas insistentes no seu pinicar os

nervos e os tímpanos atentos. Sem nunca parar, sem nunca parar.

E as asas agitadas em voos frenéticos.

Mas não eram desordenados. Havia em toda aquela agitação

aparentemente doida e sem tréguas, uma ordem superior que se

impunha comandando os corpos dos alados a cobrir céus e terras e

as montanhas e os desfiladeiros sem fim, e os rios tortuosos.

Pois o império dos alados estava em guerra.

Mas Cesar só conseguiu se libertar da ilusão de que assistia a um

balé nos ares, após, literalmente, ver caírem dos céus aos seus pés

corpos de alados mortos, mutilados, desmembrados em lutas

insanas.


Eram grupos em números variados de alados Mantos e Livres, em

inúmeras formações, voando e riscando os ares em movimentos

fantásticos e guerreando uns contra os outros. Encontrando-se,

perseguindo-se, trocando lugares, espaços no espaço com o fundo

azul dos céus e com os picos nevados das altas montanhas,

marcando pontos específicos em que lutas travestidas de

coreografias aéreas alimentavam a morte com sua beleza irreal e

trágica.

E o som infinito, constante como se fosse a única coisa confiável,

ao lado do céu sereno e das montanhas imutáveis, fazia fundo para

as cenas do balé macabro, mas ainda assim cheio de leveza e graça.

E Cesar se envergonhou por não conseguir se horrorizar totalmente

e não conseguir desviar os olhos do espetáculo de morte e

destruição e achar nas imagens tristes, a delicadeza, a sincronia e

o encaixe perfeito dos corpos soberbos dos seres alados,

entrelaçados nos seus encontros para a destruição.

Mantos e Livres lutavam pelo poder. Uma luta que começara anos

antes, ainda durante o governo de On-Himar, que fora um líder

forte, dominador e que tivera a força para manter o poder dentro

da sua linhagem fazendo seu sucessor o seu primeiro filho, o

soberbo Odaye Therak.

Mas as emanações da guerra vinham de antes, muito antes de On-

Himar e das críticas que os sábios e poderosos Conselheiros Mantos

lhe dirigiam por reconhecerem nele os indefensáveis

comportamentos inadequados à sociedade Res Sas.


On-Himar era pai de quatro filhos, mas apenas o primeiro o tivera

com sua companheira legítima, e foi a esse filho que On-Himar fez,

com rara habilidade de governante manipulador, herdar seu lugar

de poder. Os outros filhos, todos meninos, eram de uniões com

jovens aladas cujas famílias desejavam para elas mais do que o

concubinato com o velho líder e mais do que filhos que seriam

apenas reconhecidos como de uma descendência nobre, mas sem a

possibilidade de ascenderem altas posições entre os alados Mantos

por não serem primogênitos.

Ojan-Rajak era seu quarto filho, fruto da união com a sua última

conquista, a jovem Anar-Asran.

Uma aventura da qual On-Himar haveria de se arrepender porque

Anar-Asran era filha do poderoso Conselheiro Shanu Ori que não

hesitou em julgar o comportamento do AntZiien, não apenas

desrespeitoso, mas também uma vil traição, julgamento que o

transformou num inimigo implacável.

As ações do Conselheiro em represália à ofensa foram fortes e

definitivas.

Ele começou fazendo reviver uma antiga acusação extremamente

grave que teria levado On-Himar à prisão e até a uma condenação

à pena de morte se tivesse havido provas, porque denunciavam

uma suposta relação entre o AntZiien e uma alada da raça Livre

que teria resultado no nascimento de um filho, e isso se constituía

um crime considerado hediondo para os Res Sas porque a união


entre as raças produzia crianças estéreis em cem por cento dos

casos e frequentemente, em seres incapazes de voar.

Tais nascimentos indesejados formavam a comunidade dos Llact

Allpa, pobres seres relegados à mais baixa e desprezível condição

da marginalidade dentre os Res Sas. Tão desprezados e esquecidos

que até sua existência carecia de crédito em grande parte da

sociedade dos alados, mas cuja suposta ligação com a pessoa do

AntZiien On-Himar, denunciada de forma peremptória, estridente

e pejada de pequenos detalhes exaustivamente repetidos com a

intenção de dar substância e, por consequência, veracidade ao

falatório, obrigava ser finalmente vista sob os holofotes das leis e

sob o julgamento triste e horrorizado, que fazia Mantos e Livres

igualmente inconformados, por serem forçados a encarar seu pior

e mais vergonhoso flagelo.

O Conselheiro Shanu Ori soube usar todo seu considerável poder e

as informações privilegiadas que tinha sobre o caso, para atacar o

líder, deixando seu governo fragilizado, desgastado ao ponto de ser

difícil a On-Himar continuar confiando totalmente na sua

autoridade e influência sobre os exércitos e sobre os Pacha Samay,

a classe dos sacerdotes, representantes do pássaro Tilsith Theray,

sua mais alta divindade alada.

E esta fraqueza custou ao AntZiien a paz do seu povo e o seu cargo

de governante.

Estando a confiança dos guerreiros no seu líder, abalada, o

movimento de descontentamento dos alados Livres contra a


dominação dos Mantos pelo controle absoluto da produção e

distribuição do alimento sagrado Aska, cresceu e se derramou com

toda a força, a virulência e a frustração de décadas de sufocação.

A mais antiga e justa reivindicação de uma parte muito

significativa dos indivíduos Livres explodiu com uma violência

estarrecedora e embora num primeiro momento os revoltosos não

fossem a maioria, havia uma mobilização de toda sociedade e tal

pressão para que fosse considerada a reivindicação dos insurgentes,

que rapidamente se percebia um movimento de adesão às novas

ideias, inclusive entre a classe dos alados armados, os Guerreiros, o

equivalente aos exércitos nas sociedades humanas.

A violência que se instalou levou o império Res Sas perigosamente

à beira do esfacelamento.

Assustados os Mantos se organizaram e finalmente fizeram calar a

principal voz discordante aos seus próprios interesses.

O Conselheiro Shanu Ori foi declarado traidor e preso e só não foi

executado por ser um indivíduo da raça Manto, o que por si só lhe

dava imunidade contra a imediata pena capital, além disso seu

cargo como Conselheiro, que o colocava na posição hierárquica de

poder imediatamente abaixo do próprio AntZiien, paralisou aos

demais Mantos ocupantes de cargos importantes deixando-os

momentaneamente aturdidos frente a uma situação inédita, sem a

agilidade necessária para imputar ao Conselheiro todo o peso das

consequências da sua virulência contra o poder constituído.


Finalmente calaram-no, mas o estrago estava feito. As vozes

inflamadas dos Livres que exigiam uma redefinição na forma de

governo do povo Res Sas não mais se calariam.

Para não perder tudo o AntZiien On-Himar foi obrigado a abdicar

do cargo vitalício, mas o fez com tal habilidade, além de contar

com a astúcia e a ajuda do gênio estrategista Nuna Sapaki, que

conseguiu alçar ao poder seu filho primogênito, Odaye Therak.

Para si próprio reservou uma cadeira como Conselheiro, a mesma

deixada vaga pelo desafeto, Shanu Ori. Abafou os rumores sob a

suposta existência de um menino Llacta Allpa que seria seu filho,

providenciou que jamais fosse encontrada nenhuma prova, ou até

mesmo a própria alada Livre com quem se dizia ele haver se

relacionado e, para promover sua vitória contra a crise de forma

completa, enfrentou o levante dos Livres oferecendo o futuro do

seu próprio filho, o recém nascido Ojan Rajak para rechaçar de vez

a terrível acusação que pretendia embasar a exigência dos Livres

em participarem da produção e da distribuição do alimento

sagrado, Aska.

Há décadas havia entre os alados Livres a crença de que a

distribuição da seiva Aska para as suas crianças, durante o ciclo

Samay, não era igualitária, havendo diferenças que supostamente

faziam a seiva distribuída às Livres, inferior em quantidade e

qualidade em comparação ao que era servida às crianças Mantos.

Para negar esta terrível acusação provando ser uma sórdida

mentira, o então AntZiien, On-Himar empenhou o futuro do seu


quarto filho Ojan Rajak comprometendo-se a fazê-lo viver, os

nove anos do seu ciclo Samay, num dos salões destinados

exclusivamente às crianças da raça dos Livres e, recebendo

portanto, a seiva Aska idêntica, em qualidade e quantidade, a que

seria servida aos demais casulos alocados e protegidos na mesma

caverna na rocha.

Esse compromisso atrasou a guerra em quase duas décadas, mas

não conseguiu evitá-la.

On-Himar não viveu tempo suficiente para testemunhar o

renascimento do seu quarto filho. Foi Odaye Therak como

AntZiien, que contou as horas infindáveis e nervosas até receber a

terrível notícia de que seu meio irmão, Ojan Rajak renascera do

seu casulo um ser completamente deformado e com apenas mais

algumas horas de vida.

O clamor horrorizado no coração do povo Res Sas ecoou por vales

e montanhas e transformou o mundo alado num barril de pólvora.

Cresceu a desconfiança dos Livres contra todo o bom senso que, se

prevalecesse, faria valer a evidência de que embora Ojan Rajak

tivesse renascido do seu ciclo Samay um ser doente e deformado

deveria ser em decorrência de algum problema que nada tinha a

ver com a seiva Aska que lhe fora servida, uma vez que todas as

outras crianças que haviam vivido o Samay nos casulos da mesma

caverna haviam renascido perfeitas. Mas o medo e a desconfiança

eram tão grandes que não havia espaço para o bom senso.


Mesmo entre alguns dos Mantos mais fiéis aos milenares costumes

Res Sas, e mesmo entre aqueles em que estava mais arraigada a

certeza de que os Mantos eram por direito divino os donos do poder

e, por esse motivo, eram os únicos fisicamente capazes de atingir

às alturas do topo do mundo e cultivar a Ninassinanuna e preparar

a Aska, começaram a aparecer dúvidas. Começaram a questionar

a sabedoria ancestral.

Os revoltosos, pouco mais de quarenta por cento dos indivíduos

Livres, mas que contavam com apoio dos poucos Mantos

simpatizantes do Conselheiro Shanu Ori, caído em desgraça,

uniram-se aos Livres em sua revolta, pegaram em armas e

partiram para o ataque.

O império Res Sas explodiu em violência.

Numa conversa com Nuna Sapaki, um aturdido Cesar Ninan

ouviria que a guerra era, afinal de contas, a única opção possível

naquela situação, a oferecer um mínimo de alívio a todos os

envolvidos.

No entender de Nuna Sapaki, nada poderia aliviar a tremenda

pressão a não ser uma boa quantidade de sangue derramado.

Chocado com tal declaração Cesar ficou mudo, mergulhado nas

conclusões dos tristes pensamentos de Nuna Sapaki.

Velho e terrivelmente cansado, o alado Livre olhava em frente

como se estivesse vendo muito longe, muito adiante, talvez uma

visão de fatalidade, parecendo-se ele mesmo mais do que nunca, a


um pesado bloco de concreto com as corcovas das asas enormes e

azuladas se sobrepondo a sua cabeça de penugens prateadas.

Como sempre a comunicação entre Cesar e os indivíduos alados

acontecia mentalmente e naquela ocasião Cesar se sentiu inundado

pelas emanações e pelas imagens mentais de Nuna Sapaki.

Imerso em pensamentos sombrios, infinitamente tristes, mas que

não eram dirigidos a Cesar, eram pensamentos que o faziam, mais

e mais, submergir em si mesmo. Seguia ideias em pensamentos

muito focados para explicar seu mundo a si mesmo.

“A cada término de um ciclo Samay, quando os casulos são rompidos,

os acusadores contam os casos de deformações e mortes entre as

crianças Livres e Llacta Alppa e sempre acham um número

infinitamente maior do que entre os renascimentos dos Mantos e

automaticamente recrudescem os gritos de ódio. E é verdade que todas

as crianças, incluindo-se nessa observação também as Mantos, estão

perfeitas, saudáveis e normais pelos nove anos precedentes, até o

momento de entrarem em seus casulos para o ciclo Samay. Então não

há como negar que os problemas ocorrem durante esse período de

transformação dos seus corpos.”

“Então é preciso explicar ao povo, exaustivamente, que tanto os Livres

como os Mantos, e até os infelizes Llacta Allpa, têm a anatomia de

suas asas definida geneticamente no momento de sua concepção.

A seiva Aska vai fornecer um complemento alimentar. E embora seja

um alimento de enorme importância não tem o poder de modificar o


formato das asas, ou alterar qualquer das complexas transformações

que os corpos sofrem durante o ciclo Samay.”

“As asas são apenas o detalhe mais visível a emergir ao final do ciclo,

mas a transformação num ser alado é muito mais do que apenas isso.”

“Muito mais do que apenas o desenvolvimento das asas, durante o

Samay, precisam ser fortalecidos e especializados os músculos dos

braços e pernas que serão muito exigidos durante as decolagens e os

pousos, os olhos precisam ser modificados e protegidos para estarem

aptos a enxergar desde grandes alturas e com precisão milimétrica e

tornarem-se altamente especializados para a percepção exata das

distâncias, porque isso é crucial para o deslocamento a grandes

velocidades e alturas, os pés precisam ser adaptados com o crescimento

de mais músculos entre os dedos terminando em unhas imensas, como

garras, para sustentarem os corpos e servirem como freios nas descidas

e, finalmente, as delicadas ramificações do cérebro precisavam ser

aperfeiçoadas e multiplicadas para as sinapses que terão que

comandar e sincronizar todo o processo. Tudo isso é necessário para o

desenvolvimento de um ser alado adulto e funcional.”

“Voar exige muito mais do que asas com músculos fortes, equilíbrio e

coragem de se atirar das alturas.”

“E esta é precisamente a explicação para os problemas com as crianças

Livres que aparecem em maior número pelo simples fato de serem mais

de oitenta por cento das crianças encasuladas à cada ciclo Samay, e

também para as numerosas mortes entre os Llacta Allpa.”


Cansado e profundamente abatido com tudo que estava

mentalizando e que era claramente captado por Cesar, o velho

alado permanecia estático, olhando pela abertura na rocha onde se

descortinava o horizonte como alguém não completamente

resignado com a tragédia que estava assistindo e que esperava ver

surgir ao longe algum milagre. Ele continuou seus pensamentos e

Cesar era perfeitamente empático às emoções que percebia nele.

“As crianças mestiças conseguem ter um desenvolvimento bastante

normal até seus nove anos e antes de seus corpos serem exigidos nas

enormes transformações dos Samay. Mas quando encasuladas,

quando seus corpos precisam responder a todas as transformações que

acontecem ao mesmo tempo do crescimento das asas, começam a

aparecer às deficiências resultantes da mistura incompatível de raças

e os problemas são insuperáveis. Há um sem fim de questões de

natureza genética e patologias diversas e graves. Mantos e Livres são

raças comprovadamente incompatíveis, por isso a prole resultante da

mistura é sempre estéril. Poucos entre os Llacta Allpa sobrevivem ao

ciclo Samay e os que sobrevivem renascem, em sua maioria, muito

fracos e debilitados, seres condenados a se arrastarem pela vida, mas

essa tragédia não ocorre por negligência na distribuição da Aska.”

Sempre que Nuna Sapaki e seus pares falavam ao povo Res Sas e

apresentavam essas explicações conseguiam calar as acusações,

mas apenas por algum tempo. Logo recomeçavam os rumores e a

cada vez mais raivosos e mais intransigentes e com o apoio de uma

parte cada vez maior da população.


Ideias revolucionárias que cresciam como um veneno mortal em

fermentação, ano após ano até que a visão do corpo deformado de

Ojan Rajak fez explodir uma guerra sem fim.

Nuna Sapaki continuava implacável, seu monólogo triste.

Fez uma pergunta que não esperava resposta, seu próprio

pensamento ia seguindo e desvendando para Cesar o submundo

Res Sas.

“Você tem ideia do sacrifício das mães em cada ciclo Samay? Para os

Res Sas é tão trabalhoso, demorado e difícil a formação de uma nova

criança e a transformação desta criança em adulto, que somos

obrigados a nos mobilizar. Unir forças para criar cada geração

seguinte.”

“Somos obrigados a ter filhos sempre na idade certa. O primeiro filho

aos vinte e três anos. As mulheres aladas concebem aos vinte e dois

anos e o bebê nasce quando a mãe completa os vinte e três.

Então transcorrem nove anos de cuidados com a criança que se

desenvolve com suas asas apenas latentes, como pequenos apêndices,

após esse período começa o ciclo Samay para aquela criança e todas as

outras da mesma geração. E por todo o período Samay as mães se

dedicam exclusivamente aos cuidados com seus filhos. Ficam

praticamente reclusas, protegendo-os e alimentando-os, renovando os

casulos para ajustá-los ao crescimento dos corpos. São casulos tecidos

com uma substância pastosa muito fibrosa e nutritiva, com alto teor de

proteína, que elas produzem em seus seios e que nutrem as crianças por

todos os nove anos. Além desse alimento as mães cuidam para que os


casulos recebam, através de uma espécie de tubo adaptado a eles, o

alimento Aska. Quando seus filhos completam seu desenvolvimento

despertam do sono letárgico, rompem os casulos e vêm novamente para

a vida.

E quando eles chegam à idade de vinte e três anos para gerarem seus

primeiros filhos, será tempo de seus pais terem os segundos filhos.”

“Então haverá primeiros e segundos filhos nascendo todos ao mesmo

tempo, todos os bebês nascerão no mesmo período, os nascimentos se

distribuem por três ou quatro dias. Após o quê o Império Res Sas vive

nove anos com crianças e então chega mais um ciclo Samay, quando

são todas encasuladas. E esta dinâmica é que garante a sobrevivência

da espécie.”

“Mas isso acontece apenas a cada vinte e três anos. Então não

podemos deixar passar o tempo da nova geração, pois ficaríamos muito

velhos e não conseguiríamos ter novas crianças e cuidar delas pela

infância e por todo o período do ciclo Samay. Uma única geração

perdida põe em risco a existência de toda a espécie Res Sas.”

“E a dedicação das mães nos Samay precisa ser completa, é

praticamente uma forma de escravidão. Trata-se de um esforço brutal.

Não existe no reino animal outro exemplo de uma relação de

interdependência tão completa e exclusiva como entre as aladas Res

Sas e seus filhos. Sobretudo durante o ciclo Samay em que as mães não

podem fazer outra coisa além de cuidarem, a cada segundo, dos casulos

que contém os corpos das suas crianças. Protegendo-as, alimentandoas,

medindo seu crescimento em milímetros e centímetros para


produzirem constantemente os filamentos nutritivos e tecerem com eles

os novos casulos, um após outro, num incessante doar-se e privar-se de

qualquer descanso ou o mínimo desvio da atenção. As mães em

servidão num ciclo Samay doam seus próprios corpos, inúmeras vezes,

para alimentarem e agasalharem seus filhos e nutrem-nos com seus

próprios espíritos através dos fluxos da Aska.”

E a conclusão parecia ainda mais com uma sentença perpétua.

“E elas não podem escolher não ter seus filhos. É impossível não se

tornarem mães. Os primeiros filhos são considerados uma obrigação

sagrada. A continuidade da sociedade Res Sas depende disso e a

esterilidade, mesmo por causas naturais, é uma desgraça e uma

vergonha para toda a família. Os Mantos e os Livres são obrigados

conceberem um primeiro filho. É uma imposição social tão poderosa

que ninguém ousa contrariar. A lei Res Sas garante o direito de

escolha a partir do segundo filho que podem optar por terem ou não,

mas em caso de decidirem por não criarem uma segunda criança

assumem a obrigação de seguirem o caminho espiritual dos Pacha

Samay por um período de três a cinco anos, para só então terão a

permissão de se dedicarem a outros interesses. E apesar do que diz a

lei a verdade é, que para as mulheres Mantos, não há essa escolha, não

há possibilidade de libertação.”

“Para elas, apesar do que prevê a lei, não há a possibilidade de

furtarem-se ao sacrifício do segundo filho e em consequência de

servirem num segundo ciclo Samay. E qualquer tentativa nesse sentido

provoca uma violenta condenação da sociedade. Sofrem todo tipo de

humilhações e constrangimentos e um cruel linchamento moral, que


em casos extremos, chega às agressões físicas. Além de ser um

escândalo de proporções descomunais. Arruínam suas vidas e as de

suas famílias.”

“É fácil de entender o sacrifício das Mantos quando sabemos que os

alados da raça Manto correspondem a menos de dez por cento do total

de indivíduos Res Sas. Qualquer criança Manto é portanto de uma

importância extraordinária, para a sociedade em geral para a

continuidade do cultivo da Ninassisanuna e também para a

perpetuação da sua raça”

“E sabendo disso, por vezes me pergunto qual das duas raças tem

realmente a soberania e o efetivo domínio do poder?”

“Porque há a questão da geração de um terceiro filho. Um fato raro,

mas que só acontece pela dedicação absoluta das aladas Mantos.

Um terceiro filho é saudado como um feito de enorme grandeza e valor

e apreciado em toda a extensão do sacrifício que envolve. Um terceiro

filho significa um terceiro ciclo Samay, com toda a monstruosa

exigência da servidão numa idade já avançada. Para servir num ciclo

Samay de terceiro filho a alada estará com setenta e seis anos no início

do ciclo e oitenta e cinco ao final.” “Aquelas que vivem tal sacrifício

se tornam merecedoras das maiores honrarias e louvores.

São consideradas heroínas e até alcançam o status de divinas, após

sua morte erguem-se estátuas e santuários em sua memória e lhes são

prestadas homenagens e oferendas. São apontadas para as jovens

recém despertas do seu ciclo Samay, como exemplos.”


“Por tudo isso é muito mais comum haver pais com terceiros filhos de

uma segunda ou até terceira união. Ou, como o infeliz Ojan Rajack,

um quarto filho de um homem Manto com predileção incontrolável por

jovens aladas. Estes filhos não podem chegar aos cargos de poder por

não serem primogênitos, mas ainda assim são crianças Mantos e a

promessa da continuidade da sua raça.”

“Tal é a estrutura da sociedade Res Sas. Então eu me inclino a

acreditar que são os Livres aqueles que verdadeiramente usufruem do

melhor da vida da sociedade alada. Para os Livres há a possibilidade

da escolha, a obrigação da perpetuação da espécie é infinitamente mais

leve porque são em número muito maior e não se veem obrigados à

geração do segundo filho.”

“Podem recomeçar suas vidas com interesses variados e, se é verdade

que não podem alçar seus corpos mais pesados até à altura de seis mil

metros para o cultivo e preparo da Aska, ainda assim podem voar.

Livres, como se denominam a si próprios.”

“Não podem tomar o poder, jamais terão um representante Livre nas

cadeiras do Conselho e nunca um deles poderá chegar a ser AntZiien,

mas tão pouco terão sobre si todo o peso da produção da seiva sagrada

ou o terrível fardo de continuidade da espécie em que nem um dentre

eles pode deixar de gerar filhos, mais e mais, dois, três e talvez mais,

ainda que para isso precisem condenar suas companheiras à

escravidão.”


“Inclino-me a acreditar que este é um preço demasiado alto para se

pagar pelo direito de imitir ordens e pelo privilégio do cultivo da

Aska.”

“Os Mantos dominam as alturas e é um espetáculo maravilhoso vê-los

em seus voos soberbos. Chegam ao topo do mundo, tocam as moradas

dos deuses, habitam as cavernas de luxo esplêndido entre as nuvens e

as estrelas, mas a que preço, ...por misericórdia da divindade Tilsith

Teray em sua sabedoria, eu me pergunto, a que preço?”

Era um entardecer melancólico que se desenhava através do

recorte na caverna, tal e qual uma janela na rocha, deixando ver

ao fundo o céu andino, por trás da figura do velho alado encurvado

sob o peso da sua própria tristeza e perdido em raciocínios sob o

mundo Res Sas, reverberando tons prateados.

Odaye Therak havia negociado uma trégua para a celebração do

ciclo Sathiri, a cerimônia sagrada de sete dias em que os alados

renascidos de seus casulos são apresentados ao povo para o

reconhecimento dos novos membros da sociedade Res Sas, plenos

de seus direitos e deveres e investidos do poder de voar.

Reuniam-se, todo o povo, todos os cerca de cento e oitenta milhões

de indivíduos alados, num imenso vale entre as altas montanhas

enfeitadas com neves eternas. Surgiam dos milhões de cavernas

escavadas nas rochas que delimitavam aquela incrível extensão de

terras planas e muito férteis, abençoada com pequenos cursos

d’água, pequenos braços de rios que desciam as montanhas em seu


caminho para o mar e alimentavam nesse percurso os pequenos

lagos cujas nascentes estavam no coração da mãe Terra.

E os paredões de pedra formando os precipícios inimagináveis e

delimitando o vale, contendo seu frio intenso e constante, seu ar

seco, um lugar onde não chovia nunca e havia apenas pequenos

amontoados de mata, aqui e ali, pequenas ilhas verdes na paisagem

ocre, com suas plantas desérticas incrivelmente adaptadas àquelas

condições extremas de ar gelado e muito sol durante todas as horas

do dia, com suas folhas suculentas, as flores de cactos selvagens

com suas formas arredondadas e inchadas pelo armazenamento da

água arduamente conseguida, cheias da seiva da própria força da

cordilheira, vivendo naquelas terras altas por milênios, nutrindose

da energia do coração do planeta e comprovando a essência da

vida.

Os dias do Sathiri eram a própria comprovação do prosseguimento

da vida para o império Res Sas. Eram o motivo e o fim para todo

o árduo e incessante trabalho das mães aladas e de todo o resto da

sociedade para a criação da nova geração de seres com asas e sua

maravilhosa capacidade de voar.

Apresentavam-se ao povo, saudavam seus governantes, faziam

oferendas e rituais de agradecimento à flor branca da

Ninassisanuna que lhes permitia o alimento sagrado Aska, vinham

para o centro do imenso vale, para o meio do círculo de indivíduos

que os haviam gerado e mantido protegidos e cuidados até

poderem abrir suas enormes e belas asas, preparando-se para o seu

primeiro voo, seu batismo no ar.


Chegavam em absoluto silêncio e com esse mesmo silêncio eram

recebidos pelo povo reunido. Vinham trazendo sob os ombros as

malhas rompidas do último casulo que os havia envolvido,

amparado e alimentado ao final dos nove anos de seus Samay e que

agora seriam deixados sob a pedra mais alta ao lado do abismo, no

extremo mais ao norte do extenso planalto, uma pedra sagrada em

que os restos dos casulos seriam servidos às aves dos Andes, às

águias, aos falcões, aos soberbos condores.

Desfaziam-se assim da sua condição de crianças, abandonavam

seus casulos para servirem como alimento no ciclo da vida e

deixavam livres e, finalmente à mostra, suas enormes asas

completamente formadas e que os sustentariam no ar quando, um

a um, se lançassem do alto do abismo para o voo que os tornaria

os mais novos adultos alados do império Res Sas.

O céu dos Andes se encheria com os soberbos corpos de jovens seres

alados planando sobre o abismo. Sustentados por suas asas

esplêndidas, enormes, imóveis nas malhas invisíveis do ar que os

envolvia e integrava como seu único e verdadeiro elemento

natural.

E só então o povo que os assistia, finalmente explodiria em

aplausos e ovações numa demonstração muito vibrante e

espontânea da mais profunda felicidade.

O silêncio, até então absoluto e profundo como o próprio abismo

que os assistia e que seria o palco da primeira grande performance

dos jovens como seres capazes da sublime ação de voar, seria


quebrado para celebrar Mantos e Livres, juntos em coreografias de

vida e beleza. Então cresceriam risos, aplausos, ovações e as vozes

de todos se uniriam num único grito de vitória de todo o povo e

haveria o agitar das asas em sons farfalhantes provocando

pequenos vendavais.

Uma legítima e vibrante demonstração de satisfação pelo sucesso

na realização da árdua tarefa.

Enquanto isso, na extremidade oposta do grande platô acontecia,

simultânea, outra cerimônia tão importante e muito mais

definitiva, protagonizada pelas famílias daqueles seres que haviam

sucumbido ao ciclo Samay, cujos renascimentos deram lugar às

mortes.

Estes eram levados em procissão cujo silêncio não seria quebrado

nunca, para serem deixados em altares de pedra por seus familiares

e serem recebidos por sacerdotes investidos de poderes especiais

que detinham a sagrada tarefa de esmagarem e triturarem seus

corpos até separar as carnes para oferenda às aves de rapina e com

o pó dos ossos cobrir a rocha que os ventos varreriam levantando

nuvens de cinzas soltas no ar.

Nas montanhas não havia terra a ser escavada para enterros.

Naquela ocasião, o primeiro alado a se aproximar do altar das

oferendas foi o supremo líder do povo Res Sas, Odaye Therak,

carregando nos braços o corpo torturado do seu meio irmão.


Cesar Astu Ninan, ao lado de Nuna Sapaki e dos seus fiéis amigos

animais, Loop e Mahoo, se comovia até às lágrimas.


Capítulo 24

A conversa no jardim


O jardim do lago, como era chamado, ficava numa leve depressão

do terreno, no extremo leste da propriedade e formava um dos mais

belos recantos do lugar. Diferente dos demais canteiros de

Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos, ali não predominavam as

flores em suas explosões de cores e perfumes, ou os troncos

poderosos dos Ipês amarelos que sustentavam os cachos pesados e

perfumados a se esparramarem pelos caminhos.

O jardim do lago era quase só grama rasteira de um verde muito

claro e uniforme, perfeito como um tapete delicadamente tecido a

se estender até o pequeno lago que lhe dava o nome e no qual, um

dia, Cesar pretendia criar um casal de cisnes, mas cuja aquisição

esperava por sua recuperação, senão completa ao menos

estabilizada.

Uma única linda e majestosa árvore crescia naquele canteiro à

margem do lago, um velho Salgueiro Chorão, imenso com sua aura

de sabedoria de vida eterna e tendo em frente um banco de jardim

onde Cesar se entregava à contemplação da algazarra das araras

azuis, empoleiradas nos galhos da árvore com o alvoroço de se

acomodarem para o entardecer. Cesar inebriava os olhos com o

contraste do azul turquesa das aves misturado aos vários tons de

verde e ao cristal do espelho d’água ao fundo, refletindo as nuances

do céu.

Facilmente uma tela de Claude Monet.

Victor foi encontrar o cunhado e ocupou o lugar ao lado dele,

deixado vago por Isabeau, poucos minutos antes.


Chegou sem a pretensão de uma grande conversa, na verdade

queria apenas uns instantes da velha e aconchegante

camaradagem de tantos anos de um convívio cheio de confiança.

Ansiava pelos momentos saudosos em que ficavam, às vezes por

horas, simplesmente fazendo companhia um ao outro, sem

necessidade de palavras.

E quando Victor começou a falar, foi apenas um verbalizar de

pensamentos profusos, que precisavam sair em sons ainda que não

recebessem resposta. Naquele instante Victor não esperava de

Cesar nada além da sua presença tranquila.

Mas a verdade, que Victor nunca soube, é que mesmo contra todas

as probabilidades, mesmo em meio ao nevoeiro espesso em que sua

mente submergia, Cesar percebeu claramente a melancolia de

Victor, sua profunda dor, seu medo fluido. Ouviu-o, ora como a

versão envelhecida e quase decrépita do jovem que Victor havia

sido, o amor da sua vida, ora como a personalidade complexa e

mágica de Nuna Sapaki.

Inconsciente disso, Victor começou a falar.

“__Há risco de guerra nas montanhas. Há risco de morte e sofrimento

e eu não sei o que fazer.” Estas tristes palavras de Victor formaram

um eco com a voz nasalada da imagem nebulosa de Nuna Sapaki.

Mas o que mais impactou Cesar foi perceber idêntico tom de

desespero em ambos.


Alheio à tais percepções possíveis apenas a Cesar, o Gatopardo

continuou falando, quase apenas num rumor, sobre toda a

indescritível inquietação que lhe torturava o espírito.

“__Estive em um encontro com JM.Yana”, começou Victor em voz

pausada, não olhava diretamente para Cesar, ia apenas falando.

“__Você saberia o quanto isso seria improvável se estivesse no seu

normal, e nunca precisei tanto, tê-lo no seu normal, meu velho...” Fez

um suspiro profundo, fixou o Salgueiro Chorão com seus galhos

curvados sob o peso das araras azuis aninhadas para a noite,

continuou. “__Concordei em recebê-lo porque ele me enviou

fotografias do corpo encontrado na escadaria do Clube de Havanófilos

e mencionou o drama daquele episódio, há anos, com os espiões

disfarçados de marceneiros em Mayuasiri Pacha, ... lembra-se?

Com essa pergunta Victor olhou para a expressão ausente de Cesar

e sorriu com tristeza.

Continuou ainda.

“__JM., entre outras coisas, esclareceu a ligação entre estes dois

episódios. Sei que você, assim como eu, considera JM.Yana um

crápula, acredite que nesse encontro ele confirmou essa certeza, mas há

algo muito mais importante do que ele, ou eu, ou o que penso e sinto

por ele e ele por mim, ou por nós...” “__JM. está com medo, veio pedir

minha ajuda, confessou crimes terríveis dos Yana e a ligação do Clube

de Havanófilos com a distribuição de drogas.”


“__Há meses, quando JM. foi banido de Mayuasiri Pacha fiquei

surpreso, não conseguia entender como isso foi possível. Com todo

poder e influência que conseguiu era de esperar que os anciãos, que

investiram muito dinheiro e tempo na sua carreira política, o

quisessem dentro da comunidade, então eu não conseguia entender por

que o baniram. Mas agora eu sei que JM.Yana traiu os anciãos.

Começou a roubar quantidades cada vez maiores da pasta da

Ninasisanuna e criou uma rede de distribuição da droga usando

jovens da comunidade admitidos no Clube de Havanófilos para

serviços gerais, entre eles o pobre rapaz cujo corpo foi deixado nas

escadarias, exatamente às vésperas de um dos eventos mais

importantes do Clube e com maior visibilidade.”

Victor fez um suspiro profundo, testemunha do seu enorme

cansaço e desilusão.

“__Então, o que eu estou tentando dizer é que não haverá como eu não

me envolver totalmente nessa história, e a vocês... Isabeau, você e

Jacques e até León Tiithee e os irmãos Centeño. Todos, ...não poderei

protege-los, seremos engolidos por esse escândalo, por esse crime sem

limites.”

Ficou então em silêncio por longos minutos, olhando sem ver a

sombra do anoitecer que vinha entrando no jardim.

Cesar o ouvia e via e percebia levemente deslocada dele, sua

energia traduzida na figura diáfana, transparente, de Nuna

Sapaki, e também ouvia as palavras na voz do alado ecoando as

palavras de Victor, mas muito mais do que apenas as palavras, a


mágoa, o inconformismo, o medo, a revolta e finalmente a certeza

da fatalidade.

“__Os anciãos se mantém isolados em Mayuasiri Pacha,” continuou

Victor, “__estão enclausurados no templo central, mantém famílias

lá, estimamos até mil e quinhentas pessoas trancadas no complexo que

JM.Yana descreve como tendo, além dos quatro andares visíveis,

mais dois andares subterrâneos. Só podemos supor que permanecem

no interior do templo por vontade própria. Mas há crianças, pelo

menos oitocentas crianças menores de doze anos, há mulheres e velhos

e JM.Yana está convencido, e eu também, que os anciãos os estão

mantendo como reféns e planejam uma ação desesperada se o lugar for

invadido.”

E, às declarações cheias de medo de Victor a voz de Nuna Sapaki

insistia em fazer eco. Com palavras rigorosamente diferentes, o

sentido e o temor do alado eram idênticos aos do Gatopardo.

Ele dizia, “__ ... pode haver uma ação desesperada se os Livres

chegarem aos cumes mais altos, se o templo Aska for invadido.”

Afirmava um atormentado Nuna Sapaki.

Victor Gatopardo continuava.

“__Não posso substimar o fanatismo dos anciãos e o perigo que isso

representa. São incontroláveis, imprevisíveis. Uma invasão a

Mayuasiri Pacha poderá resultar numa tragédia sem precedentes.”

“__confesso a você, Cesar, que pela primeira vez na vida, não sei o que

fazer.”


E a energia diáfana de Nuna Sapaki em palavras precisas,

confirmava, “__o templo Aska é um lugar sagrado só permitido aos

líderes Pacha Samay, aos guerreiros Hanã e ao próprio AntZiien

Odaye Therak,” e o velho alado concluía, “...apenas Mantos da

mais alta estirpe tem permissão para entrar ali, uma invasão dos

Livres pode provocar uma tragédia sem precedentes.”

Victor continuava seu monólogo conformado por apenas ter Cesar

próximo, ainda que não pudesse esperar nenhuma ajuda dele,

nenhum consolo. Ia jogando ideias e receios sem uma ordem

cronológica exata. Ia falando conforme lembrava os fatos e

conforme revivia seus temores.

“__Eu soube, assim que o li, que aquele bilhete anônimo dizia alguma

verdade, não acreditei, a princípio, num crime. E acho que nunca

saberemos quem o escreveu e, ...isso já não importa.”

“__Pensei que era um exagero, talvez alguém com muito

ressentimento, alguém que teria inveja da importância que o Clube de

Havanófilos conquistou, pensei...” E Victor baixou a cabeça branca

e movimentou os ombros como para se livrar de um peso

incômodo, continuou, “... ah! Nem sei bem o que pensei, ... pensei

que se tratava de algum escândalo de roubo, corrupção, até qualquer

coisa envolvendo traições românticas e depois, bem eu esqueci

completamente aquele bilhete, estava absorvido demais em mim

mesmo, em você com seu coma, em Isabeau e em Jacques Lan, ...mas,

tudo isso só prova quanto estou velho, anos atrás nada disso teria

acontecido, eu não permitiria. E agora, bem, é tarde demais, ...nunca

imaginei nada como o que JM. descreveu. É infame e terrível...”


A voz dele ficou subitamente mais baixa, mais grave, um tanto

rouca como se o ar lhe custasse sair e o som se lhe enroscasse na

garganta. Victor começou a deixar transparecer tanta dor que,

mesmo na sua apatia, Cesar sentiu um ressoar de tristeza, da

tristeza de Victor que vibrou também nele.

Victor continuou falando.

“__E não posso mais, não devo mais, ignorar os fatos, por mais

terríveis que sejam e que me façam, também, ser. Os fatos que se

impõem como inquestionáveis, desde, ...aih! ... só me resta implorar

que a misericórdia de algum deus me ajude!” E Victor tinha lágrimas

na voz quando continuou, “... os fatos que fiz questão de ignorar e

que se sucedem desde os tempos dos assassinatos dos espiões

disfarçados de marceneiros que enviei para a morte. Os três homens

que foram linchados em Mayuasiri Pacha porque descobriram o

segredo horrendo que agora será revelado, os assassinatos que conspirei

para acobertar, ... um crime terrível.”

Agora o peso da confissão era tão grande que Victor se curvava

sobre si mesmo, com a cabeça pendendo contra o próprio peito

latejante como se ali estivesse uma feriada aberta. E para os olhos

de Cesar, submetido ao poder de um estado alterado de

consciência, Nuna Sapaki imitava Victor, deixava pender a cabeça

emplumada, curvada sob uma mágoa gigante.

Victor sussurrou um brado de angústia que se repetiu na voz de

Nuna Sapaki.

“__Não haverá limite para a loucura humana?”


Com um esforço desesperado Victor controlou a emoção na voz

para continuar sua confissão. Como o faria a alguma suprema

autoridade moral, espiritual. Alguém que, do alto, pudesse ouvilo.

“__Os anciãos em seu orgulho criminoso e fanático, com a conivência

dos gananciosos da alta cúpula do poder, JM.Yana e os dirigentes do

Clube de Havanófilos, para se perpetuarem no poder e continuarem

recebendo fortunas com a distribuição das drogas, instituíram uma

prática de crueldade inimaginável aplicada ao povo Yana, para

manipulá-los, para criar uma falsa aura divina para os velhos líderes.

E a crueldade foi aplicada sempre aos mais fracos, aos mais jovens e

influenciáveis, alguns, ainda crianças. Submetidos à insanidade

desse fanatismo para controlar as pessoas e roubar suas almas. É disso

que se trata, Cesar, o supremo crime.”

Com um profundo suspiro que evidenciava o mais absoluto

cansaço, Victor ia revelando tudo a Cesar, todos os pensamentos,

sentimentos, raciocínios e a linha de compreensão que o apoiava

em suas conclusões.

“__Não é à toa o desespero de JM.Yana, ele não terá como se safar

da responsabilidade. Veio implorar minha ajuda. A invasão de

Mayuasiri Pacha revelará tudo. JM. Está com medo, confessou o que

sabe na esperança de conseguir amenizar sua pena, fez acusações

também, ...foi muito hábil ao me lembrar minha participação e,

inegável responsabilidade, na conspiração com os anciãos, anos

atrás.”


Instintivamente se aproximou mais a Cesar, baixou a voz até

quase um sussurro e continuou sua confissão.

“__... e quem além de você, Cesar, poderá me ouvir dizer isso?

JM.Yana confessou saber sobre uma prática terrível, ...Aya Kunturi,

como a chamam alguns povos orientais. Negou qualquer participação,

mas assumiu saber o que acontecia.”

As mãos que Victor apoiava num dos braços de Cesar tremiam

levemente, traindo todo o nervosismo que o afligia. Ele continuou.

“__Com essa confissão de JM.Yana eu consegui entender a expressão

de perplexidade de Jacques Lan ao ver as imagens ampliadas do corpo

encontrado nas escadarias do Clube, me chamou a atenção o espanto e

o temor que vi nos olhos dele, e depois, quando Jacques conseguiu

permissão para falar com o legista e viu o corpo, imediatamente

reconheceu os sinais e comprovou a prática da mumificação em vida.

E JM. Yana confessou que os anciãos incentivavam essa monstruosa

crueldade entre aqueles mais fanáticos, os muito jovens e

impressionáveis. Assim confirmavam seu controle e seu poder.

Prometiam às glórias divinas aos que se submetiam e riquezas às suas

famílias. ”

Victor fez um suspiro muito profundo para tentar evitar a angústia

e balançou levemente a cabeça grisalha. Continuou falando.

“__Você compreende, ...JM. não estava preparado para a reação dos

líderes Yana, quando começou com suas bravatas para se distanciar

da comunidade e iniciou todo o movimento para afastar os Yana de

Fora da influência dos anciãos. JM. Yana é uma dessas criaturas


que se apoia quase que exclusivamente no instinto de sobrevivência,

não tem nenhum requinte de raciocínio, nenhum conhecimento sólido,

nenhum estudo, nenhum saber profundo sobre absolutamente nada,

nem nenhuma sofisticação de sentimentos, de moral ou valores, mas

tem a esperteza daqueles muito safados, acostumados a sempre se

darem bem. Um espertalhão, como se diz, mas que não consegue

avaliar as consequências de seus atos.”

“__Incapaz de um raciocínio minimamente mais elaborado, uma

avaliação que considere todos os aspectos das situações, fez acordos

criminosos com os dirigentes do Clube e infiltrou entre os Havanófilos,

para usá-los como distribuidores das drogas, um grupo de jovens Yana

psicologicamente doentes, eles mesmos dependentes das drogas e com

problemas terríveis de autoestima, instáveis emocionalmente e

mentalmente, jovens que cedo ou tarde perderiam totalmente a noção

de suas ações podendo fazer literalmente qualquer coisa, até mesmo

expor o cadáver martirizado de um dos seus, nas escadarias do Clube

de Havanópilos.”

“__JM.Yana escolheu-os porque pensou que poderia dominá-los

facilmente, sem avaliar o risco de deixar pessoas tão instáveis sem o

amparo do domínio ao qual sempre se submeteram e do qual ficaram

dependentes. E quando percebeu que não podia controlá-los foi

obrigado a confessar aos anciãos sobre o esquema no Clube e eles o

expulsaram. Então criou a sua versão dos fatos e para salvar seu poder

e prestígio, começou uma narrativa contra os anciãos e o movimento

para dividir a comunidade e afastar os Yana de Fora da influência

dos líderes. E foi muito bem sucedido, num primeiro momento.


Mas, novamente subestimou as consequências. E assim como nunca

imaginou que um cadáver com as marcas da mumificação seria

exposto ao público, também não pensou que a rebelião dos Yana de

Fora faria os anciãos se isolarem nessa clausura louca,

nesse,”...Victor agitava os braços num movimento que pretendia

mostrar a imensidão da falta de senso que se apoderara dos velhos

Yana, tentando demonstrar o que sentia diante de toda aquela

insensatez, declarou.

“__E agora estamos diante de uma tragédia. O cadáver nas escadarias

do Clube denuncia a prática terrível da Aya Kunturi em toda sua

sequência insana de atos cruéis, além de evidenciar a ligação do Clube

com o esquema de distribuição das drogas.”

“__E isso nos deixa sem alternativas. A invasão a Mayuasiri Pacha

será inevitável. Então os fanáticos, loucos, serão capazes de tudo.

Poderão provocar a morte de todos que estão enclausurados no templo

central, todos, ... entre eles, crianças, Cesar, há, talvez, oitocentas

crianças mantidas lá”

E o número possível de crianças mantidas presas no templo, cujas

vidas corriam perigo, era uma obsessão para Victor. Ele ficava

repetindo.

“__Oitocentas crianças, oitocentas crianças...” Para enfatizar, para

si próprio, o tamanho do horror que a ideia lhe causava.

Victor lembrava em detalhes a descrição de Jacques sobre as

evidências que denunciavam o costume cruel da mumificação em

vida, encontradas no cadáver da escadaria do Clube e que tinham


semelhanças notáveis, algumas idênticas, às achadas em múmias

de sítios arqueológicos nos Andes e em determinadas escavações no

Japão, China e Índia.

Para um aturdido Cesar, o Gatopardo ia recitando o que aprendera

com Jacques Lan.

“__Esse costume, muito mais difundido no oriente, está bem

documentado e são conhecidos detalhes da prática. O achado que ficou

mais famoso foi de um mosteiro em Yamagato no Japão em que

descobriram registros do ritual chamado pelos antigos monges

Sokunshinbutsu. Neste mosteiro, centenas de monges, buscando

alcançar a iluminação, se submeteram ao martírio, mas apenas vinte

e quatro dentre eles tiveram êxito. O monge auto mumificado era

elevado imediatamente à condição de Buda para ser adorado em

altares de reverência.”

Victor continuou descrevendo sobre o ritual da mumificação em

vida.

“__O Sokunshinbutsu consistia em três etapas, cada uma de mil dias.

Na primeira o monge adotava uma alimentação muito controlada

apenas com sementes, castanhas, nozes e se submetia a práticas físicas

muito severas para eliminar toda a gordura do corpo. Após isso,

durante outros mil dias, se alimentava apenas de raízes de pinheiro e

bebia um chá venenoso, no Japão era o chá de uma planta chamada

urushi. Este chá provocava vômitos violentos e expulsão imediata de

dejetos além de envenenar o corpo, deixando-o tóxico demais para as

bactérias se alimentarem dele após a morte.”


“__E finalmente os aspirantes a semideuses se colocavam em posição

de meditação. Aqui há uma diferença importante com as múmias

encontradas nos Andes, a posição de lótus era adotada pelos monges

japoneses, mas os sacrificados andinos assumiam uma posição fetal.”

“__Depois eram colocados em caixões de pedra.”

“__E assim chegamos ao detalhe mais macabro porque tanto nos

mosteiros do oriente, como entre as tribos andinas, as pessoas

submetidas ao ritual da mumificação em vida eram trancadas, ainda

vivas. Os caixões dos monges tinham um minúsculo tubo vegetal para

deixar passar o ar e os monges levavam consigo um sinete que deveriam

tocar todos os dias para que os de fora soubessem que estavam vivos.

Quando finalmente deixavam de tocar o sino a tumba era

completamente lacrada por mais mil dias. Este detalhe também diferia

para os povos andinos. Os achados mostram que os nativos dos Andes

ao serem enclausurados nos caixões de pedra não tinham nenhuma

forma de comunicação com o exterior e nem tinham tubo para a

entrada de oxigênio. Eram simplesmente trancados vivos.”

Neste ponto Victor se calou por um longo momento, e era um

silêncio doloroso, cheio de auto recriminações. Um momento, que

se Cesar estivesse em seu estado normal, teria servido para ele falar

e talvez, amenizar com palavras de compreensão, a terrível culpa

que Victor sentia.

Mas Cesar só podia calar.

Victor concluiu seu relato sobre o triste ritual.


“__No caso dos monges japoneses. Findo o prazo da última etapa de

mil dias, as tumbas eram abertas e se o corpo estivesse preservado, livre

do ataque das bactérias e adequadamente mumificado, o monge teria

alcançado a iluminação e seria levado ao altar de Buda para adoração.

Já para as múmias andinas não haveria nenhuma transformação em

Buda ou equiparação a qualquer entidade, mas teriam ascendido a

uma condição espiritual superior e se tornariam elas mesmas,

divindades.”

“__Foram achadas cinco múmias num sítio antiquíssimo nos Andes

cujas características da pele, que Jacques descreveu como,

“emborrachada” e algumas condições muito específicas das paredes do

estômago e partes preservadas dos intestinos, comprovam esse

procedimento. Jacques acredita que conseguiu identificar quais

plantas andinas produziam a seiva para ser combinada com outros

alimentos específicos, nozes, castanhas, algumas raízes, cascas de

árvores e um chá venenoso, destinados a preparar o corpo ainda vivo,

literalmente para a preservação post mortem. Não foi surpresa

Jacques concluir que a seiva, ou pasta utilizada para a mumificação

em vida é a mesma produzida pelos Yana, a Ninassisanuna, e eu temo

que vamos encontrar muito mais provas desse horror, entre os segredos

no interior das muralhas em Mayuasiri Pacha.”

Então Victor se calou totalmente, mas a triste vibração das suas

palavras terminou por formar declaração semelhante na voz de

Nuna Sapaki. “__o conhecimento desse segredo trará o horror para

todo povo alado, o império Res Sas não sobreviverá à revelação do

grande embuste. Por milhares de anos, a crença nas propriedades


mágicas da Aska e o direito divino ao cultivo da Ninassisanuna

exclusivamente pelos Mantos, foram a base e o alicerce para a

sociedade Res Sas.”

Estavam, Cesar e Nuna Sapaki, no viés de consciência de Cesar que

o colocava na realidade do mundo dos seres alados, no ponto mais

alto da montanha, era noite e o céu dos Andes era um infinito

estrelado.

Embora Cesar não visse a batalha entre os Mantos e os Livres,

podia ouvi-la como a continuação daquele já conhecido som

traduzido nos milhões de campainhazinhas vibrando sem cessar e

provocando arrepios, que agora, Cesar sentia como arrepios de

pânico.

O império Res Sas se esfacelava em milhões de corpos emplumados

destroçados e caídos dos céus. Transformando as neves eternas em

imagens salpicadas de sangue. Exércitos infindáveis de alados

Livres haviam alcançado as alturas impossíveis em que, por

milhares de anos, apenas os Mantos foram admitidos.

Os Mantos resistiam heroicamente sob o comando direto de Odaye

Therak. Por dias e noites incontáveis, lutavam a luta desesperada,

mas o número muito maior de Livres, afinal, se impôs à

superioridade técnica dos guerreiros Mantos, reconhecidamente

muito mais ágeis e hábeis no uso das armas e capazes de

esplêndidas manobras nos ares.


Mas os Livres eram mais fortes, eram aguerridos, estavam furiosos,

convencidos da legitimidade da sua causa e eram em número

centenas de vezes, superior.

A estratégia dos Livres para a vitória foi simples e direta.

Atacaram e tomaram o controle total dos poucos postos de

transporte para as montanhas acima dos seis mil metros, içaramse

a si mesmos em grandes cestas ligadas a cabos de aço e

originalmente usadas para escoarem as safras da Ninasisanuna sob

a força de mecanismos de tração e invadiram os templos da seiva

da flor branca.

Os milhares de Mantos exaustos demais pelos dias e noites de

batalhas incessantes em que não podiam parar sequer um segundo

para o mínimo descanso ou para se alimentarem, sendo atacados

sem parar pelos contingentes de alados Livres revigorados por

muitas horas de sono, descansados, bem alimentados, recuperados

de suas dores e ferimentos e constantemente amparados por

companheiros, prontos a tomarem seus lugares ao menor sinal de

fadiga ou ao mais leve ferimento, não conseguiram defender suas

posições.

Mas os Livres não receberam nunca a rendição dos Mantos.

Odaye Therak morreria lutando.

E com ele seu devastado exército que rapidamente começava a se

parecer com um contingente de almas penadas. Ao final, eram

pouco mais de uma dezena de alados Mantos e um número ainda


menor dos pouquíssimos alados Livres que haviam se mantido fiéis

ao AntZiien e aos ensinamentos e costumes dos ancestrais.

Entre eles, Nuna Sapaki.

Um Nuna Sapaki sofrido, abatido e humilhado alado Livre, com

suas asas cinza azuladas se erguendo por trás de uma cabeça, agora

totalmente grisalha, incrivelmente igual à cabeça de Victor

Gatopardo com quem se confundia diante da perplexidade de um

Cesar Astu Ninan incapaz de dizer qualquer coisa eficaz para

aplacar sua dor.

A percepção de Cesar estava envolvida pelas vidas misturadas nas

dimensões do mundo Res Sas e em Girassóis, Ipês e Junquilhos

Amarelos, com suas histórias e aflições se completando, se

sobrepondo e se mesclando porque suas vidas se dissipavam e Cesar

via as paralelas das realidades que subvertian a ordem e em alguns

pontos se encontravam.

Suspenso num milésimo de segundo entre sua inspiração e

expiração, no ínfimo momento que Cesar apenas era, como parte

de tudo o que é, foi capaz de compreender o todo e viu com a visão

metafísica os eventos para aquelas duas manifestações da vida.

Ao mesmo tempo em que Nuna Sapaki lhe fazia compreender o

perigo com a eminente tomada do templo no qual se aquartelavam

os poucos Mantos sobreviventes, que resultaria numa tragédia

inimaginável porque a revelação da suprema mentira faria ruir as

bases da sociedade Res Sas e o grande mistério do poder.


Enquanto isso Victor Gatopardo dizia a Cesar que precisava ir a

Mayuasiri Pacha e usar toda sua persuasão e seu conhecimento dos

anciãos Yana para trazer à luz seus segredos, desvenda-los,

combater a insanidade e o fanatismo e fazer todo possível para

evitar uma tragédia.

Mas seu plano envolvia muito mais do que apenas argumentações,

súplicas e ameaças, tinha também seu lado temerário e aventureiro

em que Jacques Lan e Hakan Centeño atuariam com o

conhecimento trazido por Cesar, anos atrás, sobre o vulcão

sagrado, o Calla Hoyara e o fenômeno conhecido pelos povos

andinos como o “Nascimento da Raposa de Prata.”

O mágico acontecimento cósmico confirmado pelas pesquisas de

Hakan e que se repetia a cada cento e dezessete anos, quando a

pequena estrela, Sirius B, eternamente invisível e entrelaçada a

sua irmã mais obscura, a anã marrom, ficaria visível em frente a

Sirius A para ofuscá-la com um brilho fantasmagórico e

inexplicável. E então as águas subiriam com o derretimento das

neves eternas obedecendo ao sinal mágico das estrelas.

Apareceria o lago sazonal aos pés do Calla Hoyara, e desde o seu

cume as águas desceriam aumentadas num volume extraordinário

causando a cheia dos dois braços do rio Mayuasiri. Na cabeceira

um único rio deslizando e inundando as cavernas, mas que se

dividia em algum lugar adiante criando um segundo leito liberto

da montanha, fora, externo em meio à mata, a céu aberto.


Pedras imensas ficavam submersas e o rio se tornava navegável,

descendo em corredeiras borbulhantes até o ponto mais selvagem

do seu leito exterior, num abismo em uma das extremidades de

Mayuasiri Pacha. Alcançando com sua inundação, o único ponto

em que o final da muralha e a enorme rocha que era a parede do

precipício, não se encaixavam perfeitamente formando uma fenda

que embora estreita, poderia admitir uma pessoa adulta e decidida,

uma fresta, até então, e por cento e dezessete anos, inexpugnável

por ficar lá no alto do paredão de pedra, mas que o crescimento das

águas com o fenômeno do “Nascimento da Raposa de Prata” fazia

perfeitamente acessível, por poucos dias. Uma abertura vulnerável

para alguém atrevido, ou intrépido, ou suficientemente

desesperado para navegar as águas perigosas do rio Mayuasiri

montanha abaixo, até o ponto exato e encontrar essa única falha

existente entre a muralha e a rocha.

Tal era o plano temerário de Victor, Jacques Lan e Hakan para

tentarem impedir o inacreditável drama que se desenrolaria por

trás das muralhas.

Então, Victor Gatopardo, com suas feições misturadas às de Nuna

Sapaki, explicava tudo isso a um meio desperto Cesar Astu Ninan,

e assegurava que antes do próximo amanhecer tudo teria chegado

ao fim.

E, em sonhos, entre véus de madrepérola, Cesar compreendia-os, a

Victor e a Nuna Sapaki, muito bem.


Observou-os quando se afastaram dele, cada qual seguindo seu

caminho para salvar seu mundo.

Podia ver, com uma clareza impossível, sobrenatural, os atos de

Nuna Sapaki enfrentando o agressivo exército Livre no derradeiro

ataque ao único templo Aska que ainda resistia e no interior do

qual Odaye Therak se consagrava como o grande líder e herói dos

últimos Mantos e da divina Wayra Kori.

Via o alado com sua figura enganosamente maciça e com seu andar

desengonçado, como um velho marinheiro inconfortável em terra

firme, se colocar resoluto, muito ereto, no caminho dos guerreiros

Livres que chegavam às portas do templo.

Os guerreiros poderiam passar por ele com toda facilidade, eram

jovens e treinados, acostumados aos exercícios de combate e cheios

de motivação. Estavam empenhados em tomar aquele último

símbolo da dominação dos Mantos e, se possível, capturar com

vida o líder Odaye Therak, mas pararam diante de Nuna Sapaki.

O velho alado se impunha a eles, não pela força, mas por sua

estatura moral, pelo respeito e pela integridade de toda sua vida

pública em favor do povo alado e do império Res Sas.

Os jovens guerreiros Livres conheceram Nuna Sapaki por toda sua

vida e o respeitavam enormemente, então, precisavam da palavra

dele para se decidirem àquele último ato. Ele era um deles, também

era um Livre, entendia suas dúvidas e suas angustias e mais do que

isso, Nuna Sapaki tinha o conhecimento, ele tinha as respostas.


Cesar, entre Loop e Mahoo, assistiu o movimento do alado em

direção aos guerreiros enfurecidos que exigiam saber a verdade e

ouviu as palavras dele com a simplicidade e a clareza só possível às

declarações totalmente verdadeiras. E foi assim que Cesar soube,

ao mesmo tempo em que os revoltosos Livres, que a sagrada seiva

Aska não era de forma alguma sagrada, era ineficaz para as

delicadas, profundas e sofisticadíssimas transformações dos corpos

dos seres alados na sua fase Samay. Era apenas uma seiva pastosa

e nutritiva servida aos encasulados como um complemento

alimentar, mas perfeitamente dispensável, prescindível, sem

nenhuma ação efetiva obrigatória para a formação das asas ou

qualquer outro componente necessário aos corpos dos alados e que,

portanto, poderia simplesmente ser suprimida sem nenhum

prejuízo significativo para a formação dos alados adultos.

O cultivo da raiz Ninasisanuna e a mistura dos pistilos da flor

branca, para a seiva Aska tão supervalorizada, cuja produção só

era possível à elite dos alados Mantos, servira apenas para

preservá-los como a raça dominante do império Res Sas. Trata-se

de um grande, monumental e total embuste, uma enganação da

qual os Mantos se serviram durante milênios para se perpetuarem

no poder.

E à percepção de Cesar, a figura de Nuna Sapaki se misturava a

imagem de Victor Gatopardo, igualmente resoluto, igualmente

tomado pela força da verdade, completamente seguro do que devia

fazer, do que era imprescindível fazer.


Após, pouco mais de uma hora em que Jacques e Hakan, sob a

escuridão da noite, furtivos, escondidos, silenciosos como sombras,

trazidos pelas águas, entraram nas terras da comunidade Yana e

chegaram ao prédio central sem serem vistos pelas sentinelas,

Victor Gatopardo, porque se apresentara completamente só, era

admitido e transpunha os enormes portões de ferro, amparado tão

somente por sua convicção do que precisava fazer e seu antigo

conhecimento com os líderes Yana e se aproximava da escadaria

em frente à porta principal do grande templo.

Cesar via, como num filme, as figuras de Victor Gatopardo e de

Nuna Sapaki misturadas uma à outra e ao mesmo tempo

individualizadas em suas ações resolutas.

Via Nuna Sapaki frente aos guerreiros Livres, armados,

enfurecidos e momentaneamente estupefatos diante da revelação,

que embora já suspeitada, teve o poder de freá-los, deixando-os em

choque, imobilizados ante a necessidade da compreensão total do

significado e das consequências do que ouviam. Enquanto, numa

imagem paralela, via Victor Gatopardo subir os degraus até a

grande porta do templo central da comunidade Yana para ser

recebido pelos anciãos e negociar com eles sua rendição espontânea

e a libertação das pessoas mantidas ali, nos salões, nos palcos dos

seus delírios, nos subterrâneos antes insuspeitos, nas sombras das

suas crenças e na escuridão dos seus medos.

Lutavam contra o tempo das urgências que cada situação exigia.


Nuna Sapaki precisava vencer o rancor, o infinito desrespeito, a ira

frente à manipulação desleixada e vil, e apenas um instante

separava sua desesperada argumentação da explosão de ódio que

chacoalharia o aparvalhamento que imobilizava os alados Livres,

liberando toda sua violência.

E Victor sincronizara o momento em que se encontraria com os

anciãos aos movimentos de Jacques Lan e Hakan. Estaria às

portas do templo Yana sob as sombras dos últimos instantes

daquela madrugada após a ação deles para libertarem os reféns e

com minutos contados, ínfimos, negociados com o aval do

Governador, antes do comandante das forças de segurança ordenar

a invasão das muralhas.

Cesar assistia-os como num filme surreal em que eles eram atores

se revezando. Substituindo-se, complementando falas um do

outro, ou simultaneamente protagonistas e coadjuvantes das ações

que se desenrolavam. Eram o mesmo ser e eram diferentes,

vivendo situações similares, mas distintas.

E foi assim que Cesar arfou de susto e angústia quando assistiu o

velho Nuna Sapaki, teimosamente se interpor ao avanço dos

alados Livres, finalmente revividos em sua motivação para a

violência, mesmo quando Odaye Therake abandonou a prudência

do amparo dos fiéis que o cercavam e partiu sozinho para o ataque,

para impedir, com o próprio corpo, a entrada dos revoltosos no solo

sagrado.


O velho alado foi atingido de morte apenas um milésimo de

segundo antes do próprio Odaye Therake cair irremediavelmente

ferido, mas ainda com forças para se erguer e tentar defender, com

as suas grandes asas abertas, o corpo martirizado do amigo e,

abraçando-o, envolve-lo, ao mesmo tempo em que se envolvia a si

próprio, para morrerem juntos sob suas asas, como sob a proteção

de um manto.

Simultaneamente, no interior do templo, Victor começava uma

longa preleção aos anciãos Yana, enquanto podia apenas

acreditar, com a fé dos muito desesperados, no sucesso de Jacques

e Hakan. E intuir que os rapazes entraram na comunidade sem

serem percebidos, por volta das três horas daquela madrugada, se

antecipando à sua própria ação como o combinado, para se

aproveitarem das horas de sono e convencerem a quantos

pudessem sobre a tragédia eminente e libertarem

preferencialmente mulheres e crianças, levando-as até fora das

muralhas onde estariam totalmente a salvo. E que eles tiveram

êxito ao conduzirem os fugitivos por uma porta lateral cujo vigia

não era totalmente fanatizado pelas ideias esdrúxulas dos líderes

da comunidade e, ao ser convencido de que corriam perigo, deixara

que saíssem rapidamente e no mais absoluto silêncio.

Mas, para muitos foi tarde demais e Victor, após um discurso em

prol do valor à vida que ele esperava ter o efeito de sensibilizar os

anciãos, sentiu o mal estar repentino que o envolveu enquanto

ainda se iludia sobre seu poder de persuasão e suas ideias lhe

pareciam corretas, contra toda probabilidade do êxito de uma


discussão sensata com interlocutores tão completamente

fanatizados.

Repentinamente ficou difícil, quase impossível, respirar e as

palavras tão cuidadosamente escolhidas para o convencimento

perderam todo significado porque era evidente que caíra numa

armadilha e estava morrendo.

O mundo despencou diante dos seus olhos, rostos e sons se

confundiram, se distorceram, nada mais fazia sentido e num

segundo tudo o que Victor podia fazer era se agarrar às suas

últimas forças enquanto rastejava, lutando para sair dali, para

encontrar uma porta ou uma janela que pudesse abrir para deixar

entrar ar fresco e para ele fugir daquele lugar que fora tomado pelo

gás mortal.

Ao redor todos estavam caídos, morrendo, a maioria já mortos, o

único que ainda lutava por ar puro e pela vida era Víctor.

E então, quando a dor era insuportável e parecia a Victor que ele

havia engolido fogo vivo que já consumia seus pulmões e os olhos

lhe saltavam das órbitas pelo esforço de buscar oxigênio, Victor

sentiu uma mão poderosa que o agarrava e o puxava, arrastandoo

para fora daquele salão empestado e ele soube, mesmo estando

incapaz de ver, que Jacques Lan o encontrara e de alguma maneira

tentava salvá-lo.

Estavam descendo, sempre e sempre, por corredores infindáveis,

passando portas umas após outras, rápido, rápido, mais rápido

para escaparem a qualquer vestígio do veneno que se espalhava


mortal. Jacques carregava Victor como a um boneco de trapo,

semimorto, mas que finalmente já conseguia respirar, com

dificuldade, aceitando o queimar ardido dos pulmões. Já podia

sentir o ar entrando e Victor o sorvia com sofreguidão, esganiçado,

enquanto a voz de Jacques ordenava enérgica.

“__respire, Victor... respire.”

Então pararam. Mais uma porta. Jacques e Hakan falavam e

Victor entendeu que confiriam os relógios e percebeu urgência nas

vozes, nervosismo na maneira de se expressarem se referindo às

centenas de homens das forças de segurança que, afinal, naquela

hora, recebiam a ordem para invadir Mayuasiri Pacha.

Precisavam avisá-los do perigo, da armadilha potencialmente

mortal para os que comandassem a ação entrando primeiro no

templo.

Então a alternativa seria deixarem-no ali, com as costas apoiadas

contra a porta ainda fechada no final do corredor. Estavam num

dos subsolos, mas podiam sentir que ainda assim havia ar fresco e

os rapazes entenderam que isso só seria possível se os dutos para

respiração daquele corredor não se conectassem com a rede de

dutos do resto do prédio, captando o ar diretamente do exterior e

por isso estavam limpos e a salvo do ar envenenado.

Victor, semi consciente, compreendeu que lhe diziam para ficar e

esperar por eles. Não havia tempo para darem toda volta ao prédio

até a entrada. Precisavam retroceder sobre seus passos e seguirem

o caminho mais curto sendo capazes de correr com as respirações


suspensas pelo meio do salão principal, transformado numa

câmara de gás, até a entrada do templo, para saírem exatamente

em frente aos portões e encontrarem os homens das forças de

segurança assim que cruzassem os limites das muralhas.

Então, após isso, voltariam para buscá-lo.

E Victor esperou, respirando com dificuldade, sentindo o ardume

cruel dos pulmões queimados pelo gás venenoso que ainda lhe

anuviava a mente.

As costas apoiadas contra a porta.

Não saberia dizer quanto tempo ficou largado naquele final de

corredor, sem pensar em nada, sentindo aos poucos a clareza

mental voltar, conseguindo apenas e muito cautelosamente

respirar, sentir o ar fresco entrar e sair do seu velho peito dolorido,

machucado, sofrido, até que pensou na porta que o amparava e

pensou que talvez não fossem apenas as pequenas grelhas

marcando os dutos que davam passagem ao ar fresco, mas também

as frestas na porta e que então ali, haveria uma saída. Levantouse

com alguma dificuldade, mas não tanta como havia imaginado

que teria e pensou que era um sinal, um sinal de que deveria abrir

aquela porta e ver.

E Victor viu. O horror, a crueldade, a insanidade, a síntese do mal,

da blasfêmia e de toda perversidade possível à natureza humana.


Sentiu que enlouquecia, que não poderia viver com aquela visão

do salão infinito e sua coleção macabra, longa, extensa e

inacreditável de múmias de crianças.

Uma inimaginável sucessão de pequenos corpos ressecados,

colocados em altares para a adoração insana aos mumificados em

vida, uns ao lado dos outros. Eram todos corpos de crianças bem

pequenas, algumas, ainda bebês.

Sem forças, com os pulmões queimando, Victor foi se abaixando,

se deixando cair de joelhos. Não para implorar por perdão, pois

sabia que já estava muito além de qualquer possibilidade disso,

mas para esconder a própria face aos olhares mortos porque sua

omissão o fizera indigno deles e só lhe restava desaparecer a

caminho do inferno.

Além disso, só o coração se arrebentando no peito e um urro de

pavor nunca ouvido porque prendeu-se-lhe na garganta

sufocando-o e uma inundação de lágrimas como única dádiva de

misericórdia porque o cegou da visão dantesca, até finalmente ele

cair sem vida em frente aos altares da loucura. Cesar, com o poder

da intuição, viu as imagens de Victor Gatopardo e de Nuna Sapaki,

se confundirem e se complementarem pela derradeira vez.

Sentiu que era levado, que lhe secavam as lágrimas, que era

amparado no caminho de volta à casa, guiado pelas mãos

atenciosas de Isabeau e de Rosário, companheiras nos cuidados

dispensados a ele.


Deixou-se levar docilmente, ouviu as vozes suaves das jovens

tentando confortá-lo e reconheceu que sem elas, sem sua ajuda

paciente e protetora não teria encontrado o caminho de volta à

casa porque a noite se fizera, repentinamente, profundamente

escura. Negra como o breu.


Capítulo 25

E subiram a trilha, cantando...


Cesar Astu Ninan decidiu seguir sua vida na pequena ilha Tziê, no

mar Egeu, distante cerca de sete quilômetros da costa. Descreveua,

a todos que perguntaram, como sendo uma ilha toda branca,

com o brilho de uma pérola perfeita incrustada no azul marinho.

Alugou uma pequena casa em uma das mais belas praias da ilha e

a fez modernizar com todas as comodidades e mobiliar com esmero.

Mas, um cuidado verdadeiramente especial, reservou para uma

ampla sala que transformou em biblioteca e sala de música, com

portas-janelas que tinham saída para o jardim e vista para o mar.

Mudou-se para a ilha em companhia de Rosário Centeño de quem

já merecia uma amizade que beirava a devoção e que Cesar fez

questão de contratar como sua assistente para, com ajuda dela,

compor finalmente a música que se destinava salvar a vida em sua

essência mais pura, primordial e preciosa.

Essas decisões inesperadas, em especial a de retomar o trabalho

com a música, desconcertaram Isabeau ao ponto dela não saber o

que dizer e esboçar a única reação possível de apenas aceitar o que

lhe comunicava o tio avô.

No entanto o convívio com Rosário, sobretudo naqueles primeiros

meses incrivelmente difíceis após a morte de Victor, fez Isabeau

aprender a reconhecê-la e apreciá-la como pessoa íntegra e amiga.

E por isso sentiu algum alívio sabendo que Cesar poderia contar

com a presença e a ajuda dela. Sabia que ela cultivava por Cesar

uma espécie de veneração herdada aos ancestrais e às crenças da

sua tribo, mas também sabia que era uma jovem inteligente e

bastante equilibrada, capaz de avaliar bem a condição peculiar da


mente de Cesar. Rosário seria, pelos muitos anos seguintes, a fiel

amiga e confidente sobre quem Isabeau se apoiaria para, mesmo à

distância, acompanhar os rumos de Cesar.

Isabeau avaliou acertadamente que Rosário foi capaz de

compreender muito bem a disposição de Cesar que acreditou que

para se salvar, deveria salvar o mundo.

E compreendeu também que ele constatou em sua loucura, que o

mundo de Victor, esse mundo real de Girassóis, Ipês e Junquilhos

Amarelos estava definitivamente perdido, fora do seu alcance e por

isso se obrigou, como única alternativa para continuar vivo,

assumir o âmago da sua insanidade e incorporar a música que se

apoderara dele ao ser testemunha da destruição do mundo Res Sas

e passar a identifica-la como a agonia sonora da guerra alada.

E mesmo sem nenhum conhecimento sobre as visões de Cesar ou

sobre o mundo dos seres alados, mesmo com apenas uma pálida

ideia do que perturbava o espírito do homem que se acreditava

mutilado das suas asas e roubado do seu direito de voar, Rosário

era capaz de reconhecer o gênio criador e queria ajuda-lo na

composição e na busca do sublime.

Ajudá-lo a incorporar e restaurar a música da vida. A música que

Cesar nunca mais deixaria de ouvir.

Rosário talvez tenha sido a única capaz de entender que Cesar

agarrou-se à música porque apenas a busca eterna de um algo

qualquer, já não era o suficiente. E ali estava aquela sequência de

sons que se sucediam e repetiam perpetuamente, agarrados a ele,


movendo sua consciência e direcionando sua atenção porque era

evidente que aquela música continha intrínseco, um código de

desarmonia. Era uma música que hipnotizava, envolvia os

sentidos, confundia os desejos e se tornara sua obsessão porque

despertou nele seu talento negado e desrespeitado por muito

tempo. Então Cesar assumiu a responsabilidade de destacar,

compreender e escrever cada nota, medir e entender cada vibração

para rastrear nessa escrita espiritual a desarmonia que causou o

colapso e a morte do mundo das alturas impossíveis.

O horror pela tragédia da guerra entre os seres alados o obrigou

reconhecer seu dom. E Cesar se convenceu de que a vibração

daquelas notas, suas frequências e comprimentos de onda, as

características sonoras naquela sequência específica, foram a causa

de uma espécie de desagregação na energia da criação desde

átomos e moléculas, e o catalisador da sucessão de acontecimentos

que resultaram no conflito sem trégua. E sabendo disso, acreditou

que saberia curar a desarmonia.

Essa era a revelação que Cesar finalmente era capaz de

compreender e o levara e, aos seus amigos Loop e Mahoo, à

peregrinação pelo mundo das alturas andinas e ao viés da

existência que os transportou para aquele maravilhoso mundo

paralelo, com a missão imposta pelo pássaro Tilsith Teray para a

salvação do mundo.

E ele não falharia. Não mais!


Foi sua promessa a Victor quando o acompanhou ao jazigo dos

Gatopardo e o viu como o veria sempre a partir daquele dia, se

afastando lentamente até sua silhueta de velho triste, desiludido,

desaparecer contra a linha imaginária do horizonte. E para ter

certeza de que Victor voltaria, de que sempre poderia vê-lo ainda

que eternamente se afastando, Cesar decidiu fazer do tempo que

lhe restava a busca da correção da harmonia do som para a cura e

se reservou o direito de ignorar qualquer questionamento sobre a

justeza dessa decisão naquela altura da vida.

Já não podia e não queria preocupações com acertos e justiças, não

agora, que ele descera o último degrau e Victor morrera.

Haveria de encontrar em si a generosidade que lhe faltara antes,

ou tudo estaria perdido. A mesma generosidade, que um dia Loop,

a raposa, comprometera-se ter, quando Mahoo, o puma, exigiu isso

dela. Para merecerem a misericórdia de Grande Morte, que haveria

de chorar infinitamente lágrimas incandescentes de brilhos de

estrelas cadentes se não conseguissem cumprir sua missão.

Unido a Rosário que ele via alternadamente na figura amiga e

encantadora de Loop, a raposa, com as visitas periódicas de

Hakan, também frequentemente transmutado em Mahoo, o

puma, com as constantes comunicações e com o apoio de León

Tiithee e as vindas para visitas curtas, de tempos em tempos, de

Isabeau e Jacques Lan, ele se sentiu suficientemente amparado e

seu propósito de vida finalmente se revelou e Cesar o reconheceu e

acolheu.


Começou um extenso estudo sobre o poder criador e transformador

das ondas sonoras. Cercou-se das publicações de cientistas sérios e

iniciou suas próprias experiências sobre a ação dos sons, harmonias

e desarmonias na organização e composição de átomos e moléculas

e sua expressão no mundo físico. E se convenceu do efeito real,

concreto e definitivo do som, para a cura.

Os trabalhos de pesquisadores como dos doutores Masaru Emoto e

Massimo Citro eram suas leituras recorrentes e reformaram seu

conjunto de crenças. Afirmações como a retirada do texto, “Do

Código Básico do Universo” de autoria do Dr. Massimo Citro, “Os

corpos são formados quando a matéria pura se combina e, dessa forma,

perde sua pureza. Antes ininterrupta e contínua, ela se fragmenta em

corpos em alternâncias e em eventos. Torna-se um ritmo.” Passaram

a aparecer transcritos em lembretes presos a qualquer superfície

em todo e qualquer lugar da casa para ajudá-lo a manter o foco da

sua atenção e embasar suas próprias pesquisas e experiências.

Para as composições musicais propriamente ditas ele contava com

o talento de Rosário. Ela era uma extraordinária musicista, além

de ser tão persistente e disciplinada quanto ele próprio.

Mas nessa altura nenhum dos dois tinha como saber que aquele

trabalho os acompanharia pelos próximos trinta anos.

E a fiel Rosário ainda não conseguia avaliar o grau da insanidade

de Cesar que ia, passo-a-passo, calculando seus acertos, seus

avanços à medida que sua percepção do mundo alado ia ficando

igual ao que era nos tempos do domínio dos Mantos e de Nuna


Sapaki. Rosário não sabia que Cesar mantinha a nitidez das

próprias alucinações como uma espécie de bússola a orientar seu

caminho, e até que ponto ela mesma, transmutada em Loop, a

raposa, era parte fundamental desse mundo mágico entre as

realidades paralelas.

Cesar estava trocando definitivamente o permanente e real pelo

impermanente e irreal, encantado por apreciar e compreender

muito mais sua realidade de sonhos e de asas agitadas em voos

sublimes.

Aos poucos Rosário ia percebendo tudo isso.

Surpreendia Cesar nas suas longas conversas com os seres do seu

mundo imaginário e avaliava com razoável precisão o grau das

alucinações e o quanto o fato de Cesar vê-la na forma de seu animal

de poder segundo a crença da sua tribo materna, contribuía para o

bom relacionamento deles e o andamento dos trabalhos à medida

que aumentava a confiança que ele tinha nela. Depois de uma

longa reflexão decidiu que só importava sabê-lo um bom homem

com um potencial criativo e talento extraordinários, motivado por

um nobre propósito. Convencida de que a loucura era parte do

gênio criativo de Cesar, decidiu aceita-la pelo que era,

simplesmente, e a partir disso nem sequer se abalava quando ele a

chamava de Loop.

Alheio a essas reflexões de Rosário ou Isabeau ou quem quer que

tentasse analisa-lo, Cesar de adaptava às únicas mudanças


realmente significativas em sua vida, e precisou desenvolver um

mecanismo para diminuir a dor das suas perdas.

Resignou-se às mortes de Nuna Sapaki e de Odaye Therak, mas

começou a atrair o fantasma de Victor para longas conversas, que

eram interrompidas pela morte que chegava sem ser convidada e

se interpunha ciumenta porque sucumbira aos encantos de Victor

e o queria só para si. Algumas conversas entre os três foram

memoráveis para Cesar.

Victor contou os detalhes do seu encontro com os anciãos Yana,

perdidos na sua profunda perturbação de velhos putrefatos

agarrados às ilusões de riqueza e poder eternos por venderem suas

almas aos demônios e esperarem em troca as glorias dos deuses.

Insanos, perdidos entre os perdidos, malditos entre os malditos por

não respeitarem, mesmo o que os piores entre os profanos

respeitavam, um limite para sua profanação, uma linha de

conduta muito clara e definida abaixo da qual não permitiriam

deixar cair suas almas, um nível mínimo que jamais

ultrapassavam porque estariam se colocando além de qualquer

perdão possível mesmo para os mais misericordiosos deuses.

Aproveitando-se do poder de Cesar de encontra-lo nos jardins do

além, Victor perguntou sobre os acontecimentos em Mayuasiri

Pacha após sua partida, porque a morte, ao toma-lo para si,

segurou nas mãos seu coração partido pela dor e se apiedou dele

fazendo turvarem-se seus olhos com lágrimas, como um véu

espesso, para o impedirem de ver tudo o que a morte fazia surgir a

cada uma das suas passagens. Todos os gestos e todos os fatos,


palavras, pensamentos, desejos, omissões, covardias, heroísmos,

indiferenças, desesperos e provas de amor.

Victor foi impedido de conhecer estas revelações embora a justiça

divina assegure aos mortais o direito sagrado do conhecimento, nos

seus derradeiros instantes, de tudo imediatamente relacionado à

sua vida e morte.

Então, Cesar para responder a ele mediu as palavras, porque seria

preciso falar sobre os novecentos e trinta e cinco mortos no templo

Yana. Fanatizados e condenados ao tolo e fútil sacrifício, entre eles

alguns ignorantes do que lhes aconteceria sob o comando dos

anciãos Yana alucinados, que esperaram por Victor para tê-lo,

também a ele, numa sala com portas e janelas bem fechadas, para

darem o sinal aos encarregados de liberarem as centenas de

pastilhas de veneno nos difusores de ar e transformarem as

dependências dos andares superiores do templo em câmaras de gás

e no cenário de um dos mais terríveis pactos suicidas da história.

A enormidade do número de mortos era aterrorizante e

dimensionava o tamanho da tragédia. Estampou as manchetes

pelo mundo afora, horrorizou e paralisou ações, calou argumentos

e fez todos sentirem muito medo. Para preservar todas as ações

legais e os julgamentos e para salvar da desmoralização completa

o nome da cidade e para salvaguardar as boas e inocentes pessoas

que viviam e trabalhavam na região das pimenteiras, para que

pudessem seguir com sua forma de vida, as terríveis revelações

sobre as torturas em crianças com a suprema loucura das práticas

para mumificação em vida foram mantidas em severo sigilo.


E tão monstruosos e assustadores eram os fatos que mesmo os mais

frios e empedernidos repórteres e senhores da comunicação

pareceram compreender que ali havia um limite o qual não

deveriam cruzar.

Surpreendentemente essa parte tão terrível de todo o episódio

Yana foi tratada como um assunto regional. Sobre esse horror,

todos concordaram que seria melhor calar e deixar as autoridades

cumprirem suas obrigações, concluírem, imparciais, seu trabalho.

E o tempo provou que foi uma decisão sábia porque o que foi

divulgado e alardeado pelos quatro cantos do mundo foi suficiente

para envolver o planeta numa terrível sensação de que coisas assim

poderiam se repetir a qualquer momento, vindas de qualquer parte

e por qualquer motivo, afinal não havia lógica nenhuma naquilo.

Cresceu e se espalhou um medo difuso e por isso mesmo mais

apavorante. As pessoas faziam suposições, análises, tentavam

entender e achar uma razão, uma explicação e então faziam

projeções de uma tragédia ainda maior, possível, porque o número

de mortos poderia ter sido facilmente o dobro se não pela ação

corajosa de Jacques e Hakan que libertaram a maioria das crianças

e das mulheres, além de impedirem os homens das tropas da

segurança nacional de entrarem desavisados nos salões com o ar

envenenado.

Então por anos, por um tempo indeterminado, a cor da cidade de

Terra Alta foi o cinza. Escuro, indefinido, triste e profundamente

e doloridamente pessoal.


E Cesar para atender ao pedido do fantasma de Victor, começou

contando a extensão do envolvimento dos senhores do poder de

Terra Alta e do Clube Internacional de Havanófilos que

responderiam aos tribunais e cujas condenações seriam

inevitáveis, arrastando na lama o antigo bom nome de uma

instituição que havia servido ao bem, por décadas.

Descreveu as conclusões sobre a autópsia no corpo encontrado nas

escadarias do Clube e as evidências dos horrores descritos pelos

outros jovens Yana que haviam servido aos propósitos do político,

JM.Yana, quem, aliás, tinha chances muito boas de se safar às suas

culpas, pela atuação dos excelentes advogados que o serviam e

porque a rede de corrupção, do tráfico e não apenas de drogas, mas

também de influências e toda sorte de ilicitudes, era muito mais

vasta e envolvia muitos mais nomes poderosos do que se poderia

pensar a princípio.

E por fim, teria que falar dos pesares de Isabeau, Jacques Lan,

León Tiithee, os irmãos Centeño e dele próprio, Cesar, com os

ataques contra Girassóis, Ipês e Junquilhos Amarelos por conta do

envolvimento das famílias Gatopardo e Astu Ninan com a

comunidade Yana e com o Clube de Havanófilos.

Eram vistos, todos, como cúmplices pelos crimes, pelos horrores,

pelas drogas e por imporem um convívio tóxico e semeado de ódios

entre os habitantes de Terra Alta e os Yana.

Foram meses da vida transformados num inferno.


Mas também isso finalmente passou e após acalmados os ânimos e

recuperado o bom senso pela maioria da sociedade terraaltina,

Isabeau e Jacques Lan começaram um trabalho que levaria anos.

Ajudados pela grande influência de León Tiithee e Cesar,

trabalharam diligentemente para salvar a memória de Victor,

combatendo a terrível e injusta acusação de seu envolvimento com

os anciãos Yana.

Era bem compreendida por eles a enorme facilidade dos homens

em destronarem seus ídolos rebaixando-os aos mais vis e sórdidos

interesses e vícios e o fato de que uma versão dos acontecimentos

exaustivamente repetida acabar reconhecida como verdade, então

era preciso manterem viva e repetida a sua história.

A simples ideia de Victor envolvido com rituais brutais para

manter qualquer tipo de poder através da adoração de múmias era

ridícula, até mesmo entre os seus inimigos. Qualquer um que o

conhecesse, mesmo superficialmente, teria enorme dificuldade em

acreditar nisso. Mas duvidar da veracidade da ideia e não

disseminá-la era insuficiente, assim como apenas ignorá-la sem,

contudo, combater os falatórios como inverdades, calúnias que só

poderiam servir interesses escusos. Eram ideias terríveis, mas que

serviam aos inimigos políticos de Victor, e ele os tinha em

profusão, mesmo após sua morte.

Aqueles que se opuseram a Victor durante sua vida e que

conseguiam visibilidade apoiados nos discursos contra os Yana e

em defesa da destruição completa da comunidade, garantiam

votos e seguidores apenas mencionando em seus discursos o nome


Victor Gatopardo. Por essa época era quase uma senha para

mobilizar um contingente imenso de pessoas preconceituosas as

quais os fatos recentes autorizavam e validavam em seus

preconceitos e que julgavam Victor e sua família o símbolo de uma

elite privilegiada desejosa de se perpetuar.

Pessoas que insistiam em julgar todo esforço de Victor em prol dos

plantadores como uma estratégia para manter os interesses dessa

elite.

Então Isabeau e Jacques Lan tiveram muito trabalho.

Começaram transformando o casarão Gatopardo numa casa da

memória com exposições permanentes do que foram as vidas das

famílias. Com móveis, documentos, objetos diversos, obras de arte,

fotografias, filmes e toda e qualquer espécie de iniciativa para

contar as histórias dos Gatopardo e Astu Ninan e em especial a

trajetória política e familiar de Victor para provar que sua

intransigente defesa da comunidade Yana, no passado, era uma

questão de humanidade e não um projeto de poder. E para

lembrar datas e fatos relacionados à sua atuação honesta e

impecável na presidência do Clube Internacional de Havanófilos e

comprovadamente desvinculada das ações criminosas daqueles

que vieram muito depois dele, quando já se afastara do Clube há

duas décadas.

Com as participações de Cesar e de León Tiithee conseguiram

manter uma agenda com eventos para defender a memória de

Víctor em Terra Alta e em diversos países. Eram pequenas ações,

menções em discursos, exposições rápidas, curtos documentários


apresentados sempre na abertura de eventos maiores e um

primoroso texto com belas ilustrações de autoria de Cesar Astu

Ninan, distribuído como encarte em várias publicações, contando

a história de Victor, sua vida e sua constante atuação em favor das

comunidades de simples trabalhadores da terra.

Assim, lentamente, mas seguramente, a história que ficou gravada

junto à trajetória de Terra Alta foi a de Victor Gatopardo como

um defensor da melhoria das condições das vidas de todas as

comunidades com as quais conviveu e trabalhou.

O próprio Victor não desejaria nada além disso.

Em paz com isso, Cesar Ninan pode se dedicar integralmente ao

seu projeto para dominar a criação física dos eventos através da

harmonia dos sons que vibrariam para influenciar átomos e

moléculas.

E ele estudou e trabalhou seriamente para isso.

E assim começou um longo e muito árduo caminho de frustração.

Foram dezenas de milhares de experiências entre algumas sensatas

e elegantes, até muitas completamente insanas ou tresloucadas, ao

longo de trinta anos. Uma busca incansável e obsessiva pelo som

ideal, perfeito e único para harmonizar, corpo, mente e coração da

humanidade, do planeta e do multiverso.

Cesar escrevia incansavelmente os símbolos para os sons que

desejava fazer se encadearem perfeitamente e Rosário os


reproduzia ao piano, no violoncello, no violino. Às vezes cantava,

modulando a voz. Tentando arduamente acertar, mas

invariavelmente, ao longo de meses e anos, os esforços de ambos

mereciam um silencioso e desiludido gesto de cabeça de Cesar de

negação. Muitas vezes acreditaram estar na iminência de

ajustarem todas as variáveis para a combinação exata das notas,

vibração, modulação, frequência, mas os testes mostravam que

não.

Conseguiam algumas pequenas, minúsculas vitórias, belas

melodias na maioria das vezes, mas apenas isso, acertos em si

mesmos insignificantes, mas que eram saudados por ambos como

descobertas estupendas e anotadas e guardadas como pequenas

joias que um dia comporiam o tesouro.

Cesar muitas vezes se desesperava, mas não se atrevia desistir ou

se perderia num deserto sem fim porque há tempos o farfalhar das

asas dos seres alados era a forma que ele tinha para atrair o

fantasma de Victor e Cesar não se permitiria perder isso.

Os anos corriam e ele envelhecia em corpo e em espírito.

As alucinações com o mundo Res Sas o envolviam e ele fazia

questão que fossem a sua realidade em que a vida comum de vez

em quando se intrometia. Rosário era, em praticamente cem por

cento do tempo, a elegante e esperta Loop, com sua pelagem

castanha avermelhada e macia, o que não a impedia de tocar

soberbamente seus instrumentos, sem qualquer prejuízo em sua

postura.


Mas, dia-a-dia, teste após teste, o avanço era mínimo.

Saiam para longas caminhadas pelas praias até a pequena vila

mais próxima da sua casa branca no meio de paisagens brancas e

cercada por extensas e perfeitas faixas de areias brancas. E muitas

vezes Cesar ia só.

Saia ao sol, ou sob chuva e chuviscos ou sob ventos que

começavam leves e delicados para irem aumentando até

vendavais, ou sob noites de luar e estrelas imóveis, pequeninas

luzes perfeitamente fixas.

Observava a reprodução dos sons, media as vibrações, ajustava e

alterava frequências e ritmos, submetia a eles variadas substâncias

e seres vivos. Notadamente insetos gregários como formigas,

abelhas, vespas, porque estava convencido que as vibrações

influíam seu comportamento social, seus jardins eram cheios de

ninhos, colmeias, formigueiros, inventou objetos para contê-los

reproduzindo, ao máximo, suas condições naturais para controlar

as incidências dos sons sobre eles e poder observá-los. Pássaros em

seus ninhos também o interessavam e houve um tempo que

direcionou as experiências exclusivamente para eles, mas também

trabalhava com plantas e líquidos, água, sangue, coisas pastosas,

gelatinosas, fluidos criados por ele próprio após cálculos

misteriosos e media a influência dos sons sobre tudo isso.

Então uma manhã, muito cedo durante uma caminhada,

encontrou uma perfeita, delicada e rendada teia de aranha,


brilhante, pelas milhares de pequenas gotas de orvalho

reverberantes em toda ela, refletindo os raios do sol nascente.

Uma brisa muito suave mexia com a teia, fazendo-a tremeluzir

docemente e porque ela estava esticada entre o tronco da pequena

árvore e um de seus galinhos verdes e esguios, seu movimento

embalado pela brisa agitou a única extremidade presa ao apoio

mais frágil, fazendo-o se agitar também, então o pequenino galho

verde balançou muito levemente como se dançasse e, ...cantou.

A princípio Cesar duvidou do que ouvia, pensou que era uma nova

forma de alucinação, mas a brisa recomeçou seu soprar mínimo e

mais uma vez o galhinho se agitou puxado pela teia brilhante e

cantou.

E então Cesar compreendeu qual a única forma de compor a canção

com a vibração exata para a cura da vida. E a partir de então todo

seu trabalho mudou.

Começou pela coleta dos sons, de todos os sons da natureza que

podia ouvir, intuir, imaginar. Passou a grava-los com obsessão

idêntica com a que escrevia metros e metros de notas sobre as

pautas musicais. Comprou os melhores equipamentos gravadores

que encontrou, os mais sensíveis e precisos e instruiu Loop a ajudálo.

Buscava incessantemente captar os sons, qualquer som, mas em

especial aqueles mínimos, impossíveis aos seres humanos, porque

Cesar intuiu que nesses sons inaudíveis havia às correspondências

especiais que ele procurava. Depois, na comodidade da sua sala de

música ficava horas infinitas tentado ouvir os sons inaudíveis,


vezes sem conta reproduzia cada gravação sentindo as vibrações,

aprendendo a ressoar com elas, ouvindo o inaudível e percebendo

o imperceptível.

A pequena ilha branca virou sua sala de estudos.

Viviam cada vez mais fora, em meio à natureza.

E foi por essa época que Cesar começou um diário em que anotava

minuciosamente cada descoberta de cada dia. Chamou-o “O tecer

da teia.” A obra se transformou, anos depois quando León Tiithee

a descobriu, num livro extraordinário, uma obra de arte com

desenhos e com centenas de anotações e descrições de notas

musicais reconstituindo todo e qualquer som em cada uma das suas

variações e combinações possíveis.

Podia-se encontrar capítulos inteiros sobre, “barulhinhos do rolar

de grãos de areia com brisa suave”, “sons dos botões de rosas se abrindo

ao sol”, “sons das nuvens brancas com as ondas da maré alta”, e

variantes como, “sons das nuvens brancas na vazante da maré,” e ao

lado destas anotações havia as impressões de Cesar sobre os sons,

ele escrevia coisas como;

“o som da brisa embalando as folhas e flores pode ser percebido através

do odor fresco sempre que as pétalas, ou as pequenas bordas verdes se

agitam, ou se curvam, ou se misturam às partículas de pólem que

sempre se erguem no ar ao embalo da brisa. É esse conjunto de

minúsculas coisinhas que emitem os sons, muito próprios, muito

delicados, imperceptíveis aos ouvidos comuns, mas ainda assim,

muito verdadeiros.”


Também eram frequentes as descrições dos gostos, das formas e das

cores das ondas sonoras que ele percebia... “o som do luar de lua

cheia quando o mar está se enchendo nas madrugadas de calor, é

poderoso, despenca sobre a praia como uma colcha de veludo e tem cor

e gosto de morangos em calda.”

A obra era totalmente ilustrada seguindo tais percepções e não

havia uma única página em que não se pudessem ver os desenhos

de grandes asas, como as asas de anjos, entre as diversas figuras

coloridas.

Anos após o desaparecimento de Cesar, entre alguns biógrafos da

sua trajetória e estudiosos mais apaixonados da sua obra, que

buscaram minúcias nas pretensas escritas de tais sons impossíveis

aos ouvidos humanos, formou-se a ideia classificada no próprio

meio literário como exótica, de que a reprodução das diversas

pequenas melodias ali descritas quando executadas de um jeito

específico e secreto aos leigos, teriam o poder de criar realidades.

Alguns as descreviam como fórmulas mágicas sonoras.

À época da primeira e única edição deste texto cuja publicação

teve um número reduzido de cópias, ainda não havia esse rumor,

mas ainda assim a obra estava destinada desde seu lançamento a

se transformar num objeto raro e muito valioso para

colecionadores, vendidos, os poucos exemplares que foram

comercializados livremente a partir dos poucos compradores

originais, por verdadeiras fortunas, em leilões.


Assim se passaram os anos na pequena casa branca da ilha toda

branca, onde Cesar e Rosário Centeño se bastavam em seu

trabalho.

Rosário, após os primeiros anos de dedicação exclusiva às

pesquisas em ajuda ao projeto de Cesar começou a dividir seu

tempo para se dedicar as suas próprias composições e com apoio e

decisiva ajuda dele, a investir em uma carreira apenas sua.

Era talentosa e conseguiu êxito. Ausentava-se por vários dias

todos os meses quando ia fazer suas audiências ou suas

apresentações. Ela foi reconhecida e renomada por seu trabalho e

sua proximidade com o mundialmente famoso Cesar Astu Ninan,

além da amizade com León Tiithee lhe valeram muita visibilidade

e prestígio.

Cesar, ao contrário, nunca saía da sua ilha toda branca.

Vivia ali uma vida pacata, mas uma vida cheia, significativa pela

missão que ele se propunha. Pouco importando seus resultados,

porque a verdade é que após tantos anos, Cesar começava a

encarar a possibilidade de nunca ter resultados.

No outono em que completaria oitenta e sete anos, Cesar se

preparou para a chegada da morte porque havia combinado com

ela que essa seria a idade ideal para ele acompanha-la. Não a temia,

na verdade ansiava por recebê-la para reencontrar Victor.

A verdadeira alma de Victor, não apenas uma criação da sua mente

e da ânsia do seu coração.


Mas a morte não veio. E também não veio durante toda a década

seguinte.

Então, quando Cesar já contava noventa e oito anos uma queda

nas pedras durante uma das muitas excursões para gravar o luar

minguante sobre as ondas, provocou-lhe uma fratura no fêmur que

nunca se solidificou apropriadamente e Cesar passou a precisar de

uma cadeira de rodas. Ainda podia se levantar e caminhar

vagarosamente por poucas horas, mas cada vez menos e mais

dolorosamente.

A partir daí a fragilidade e as dificuldades físicas começaram a ser

mais e mais evidentes e Cesar começou a notar uma relação direta

entre os incômodos físicos que o obrigavam a prestar mais atenção

ao seu velho corpo decadente e uma crescente dificuldade para se

desprender e se reincorporar no mundo dos seres alados.

Ver-se nas alturas das cavernas andinas, assistir os voos dos novos

líderes, todos eles alados Livres, em suas armaduras brilhantes e

em impressionantes formações que faziam lembrar a Cesar as

marchas militares de exércitos poderosos, começaram a exigir dele

um esforço antes, desconhecido.

As conversas com Nãntapuric, o filho de Wayra Kory e do antigo

líder Manto, o AntZiien, Odaye Therak, ficaram cada vez mais

difíceis porque Cesar, embora o pressentisse, assim como alguns

dos outros raros remanescentes alados Mantos, incluindo a própria

Wayra Kori, já não conseguia fixar-lhes as imagens por muito


tempo. Tinha a estranha impressão de que já não conseguia se

manter sintonizado no mundo mágico Res Sas.

E essa condição deixava ainda mais insatisfatórios seus esforços

com a música porque não ficava no mundo alado pelo tempo e com

a qualidade presencial necessários para conseguir a fina detecção

de que precisaria para fazer os ajustes que transformariam as

vibrações para as guerras aladas na frequência da sua cura.

Então, numa madrugada escura, sem o luar de prata, Cesar voltou

do mundo dos seres alados e não conseguiu mais evocar o farfalhar

das asas para atrair o fantasma de Victor. Ficou abalado, mas

pensou que era apenas o cansaço e tentou não se preocupar.

Voltou aos sons, às vibrações infinitas, reverberando-as na própria

mente até cair num sono exausto e sem sonhos.

Os dias que se seguiram aquele dia foram-no afastando cada vez

mais da dimensão dos seres alados e Cesar sabia que era a velhice

avassaladora que afinal o abatia e ele rapidamente perdia suas

capacidades de acessar o mundo dos seres alados e de encontrar na

música que se incorporara a ele, desde que se vira espectador da

guerra entre Mantos e Livres, a dissonância cuja vibração resultara

naquele conflito monstruoso.

Então se apoderou de Cesar o mal da profunda melancolia.

As notas musicais, os sons, suas gravações, ainda eram repetidas e

as vibrações medidas numa continuação da busca sem fim pelo


acorde da vida, mas ele estava irremediavelmente envolto na

tristeza.

O mundo alado desaparecera deixando-o apenas com um eco

inesperado e intermitente que parecia feito para provocar sua

saudade, Victor e seu fantasma não vinham mais vê-lo porque

Cesar já não dominava o farfalhar das asas e até Loop e Mahoo

voltaram a ser apenas fugidias aparições de pontinhas de focinhos,

caudas ou orelhas peludas que serviam para comprovar as

essências dos animais de poder de Rosário e Hakan Centeño, mas

que não se aproximavam mais com a integridade de suas

existências e Cesar sofria pela falta deles.

E assim Cesar chegou ao outono dos seus cem anos.

Preso definitivamente a sua cadeira de rodas e à necessidade

constante da ajuda de enfermeiros Cesar estava triste e convencido

de que a morte o havia esquecido.

León Tiithee, para resgata-lo da depressão, estava empenhado em

convencer Cesar a aceitar ir passar uma temporada em Roma.

Mandaria o avião particular para busca-lo e aos seus

acompanhantes. Sabia que Isabeau e o marido, Jacques Lan

estavam na ilha desde a véspera e Hakan também havia chegado

dias antes para a celebração do aniversário. Era a primeira vez nos

últimos três anos que conseguiam se reunir e Isabeau alimentava

a esperança de León Tiithee aparecer de surpresa para o almoço

festivo, quando então as chances para convencer Cesar a ir para

Roma melhorariam muito.


Mas Cesar perdia-se em elucubrações e nas repetições

intermináveis de notas musicais. Não se decidia responder León

Tiithee. Seguia seus dias resumidos aos passeios até o alto da

colina. E mal conseguia demonstrar sua verdadeira satisfação pela

presença da sobrinha neta e dos dois homens que vieram visitá-lo.

Quanto a eles, tentavam alegrá-lo.

Enquanto Hakan e Jacques foram à cidade buscar coisas gostosas,

guloseimas, drinques, aperitivos e providenciar a encomenda do

bolo de aniversário numa excelente confeitaria que fazia a alegria

das mulheres, as duas resolveram acompanhar o passeio diário de

Cesar até o alto da colina.

Era o meio da tarde e Isabeau e Rosário foram juntas, seguindo o

enfermeiro, levando Cesar na cadeira de rodas, subindo a trilha até

o alto da colina para estar um tempo com ele num lugar de

descanso de onde a vista para o mar era especialmente bela.

Cesar dormitava seus sonhos esfiapados, cabeceando sua

sonolência embalada pelo claudicar monótono da cadeira de rodas.

Rosário começou a cantarolar uma sequência das últimas notas

escritas por Cesar que criavam um trecho de melodia muito bonita,

evocativa de almas em paz, que enterneceu Isabeau e ela pensou

que era como uma canção de ninar. Uma canção de ninar para seu

velho tio avô, composta por ele próprio no outono dos seus cem

anos. Isabeau encheu-se com um sentimento de profundo amor por

Cesar e seguiu o cantarolar de Rosário. As vozes das duas mulheres

se revestiram com uma brisa morna, perfumada pelas flores da


mimosa. Foi um momento de tanta harmonia e paz, uma

expressão tão espontânea de carinho, que até o enfermeiro arriscou

um cantarolar baixo, suficiente apenas para revelar uma bela e

promissora voz de tenor.

Um dia, nas memórias de Isabeau, haveria todo um capítulo em

que ela descreveria aquela tarde. Seria seu testemunho de como

tudo aconteceu e ela insistiria sobre o misterioso desaparecimento

de Cesar. Desde que chegaram ao lugar ideal e passados cerca de

trinta minutos da contemplação da vista extraordinária, quando,

de forma perfeitamente imperceptível, a cadeira de rodas começou

sua corrida com velocidade crescente colina abaixo, deixando-os

como que petrificados, aturdidos demais para a reação, a qual,

quando finalmente veio, foi inútil, porque precisaria ter sido

imediata para ser eficaz e salvar Cesar.

E de como o viram ser lançado no ar, do alto do abismo e como ele

foi subindo, magicamente, ao invés de cair. Cesar subiu voando no

espaço para então desaparecer, sumir, de um instante para o outro.

Isabeau detalhou as providências que se seguiram após o acidente,

as buscas e as investigações feitas pelos órgãos oficiais, pela polícia

local e seus peritos e as iniciativas particulares que ela mesma

contratou e que duraram quase um ano, sem que conseguissem

encontrar nada além dos destroços da cadeira de rodas.

Finalmente classificou o episódio como um mistério, e não se

furtou a se declarar convencida, contra toda a lógica e o senso

comum, que seu tio avô Cesar apenas sumiu como por encanto, no


ar. “...um retirar-se da vida perfeitamente em acordo a sua

personalidade única e extraordinária”. Anotaria ela ao final do

relato.

Esse capítulo das memórias de Isabeau foi intitulado, “... naquele

dia subimos a trilha cantando.”

Eles cantavam e Cesar sonhava com pássaros, girassóis, ipês e

junquilhos amarelos e via em sonhos a alameda do jardim que ele

percorreria a caminho do céu quando cantariam aquela mesma

música.

E havia brisa, havia o ir e vir das ondas batendo nas pedras lá

embaixo e entrando pela areia da praia, o tamborilar de conchas

se enterrando no fundo arenoso do mar, o nascer dos milhões de

animaizinhos rompendo as cascas dos ovos que os formaram, o

estourar das bolhas de ar em meio as agitadas nadadeiras dos

peixes em seus movimentos graciosos, o vento envolvendo as

folhas das árvores e o desabrochar das flores, o amadurecer dos

frutos, o lançar das sementes e os voos dos pássaros e seus trinados

e arrulhos e os milhões de outros barulhinhos impossíveis aos

ouvidos humanos normais, mas que o longo e disciplinado

treinamento de trinta anos o havia capacitado ouvir.

Incorporar, reverberar e vibrar na frequência exata da música dos

anjos.

E bem lá ao fundo, muito distante, o contínuo cantarolar em vozes

humanas entremeado de risos das mulheres e o tom grave do

enfermeiro, sussurrando para não perturba-lo no seu quase sono.


Em definitivo a harmonia e a frequência perfeitas formadas pela

totalidade dos pequenos sons da vida em paz.

E, então, um barulhinho metálico destoando, inaudível, senão

naquele milionésimo de segundo em que silenciou o alvoroço da

vida para Cesar ser acordado da sua letargia e ver a chegada da

morte e ser assombrado pelo fantasma de si mesmo há trinta anos,

quando ele soube que ficaria louco.

Compreendeu que ia morrer antes mesmo de chegar ao fim da sua

corrida alucinada em direção ao abismo e ser lançado no ar.

Solto, flutuando sem peso, sem medo, finalmente com asas

enormes para um voo mágico e com o Condor materializado em

madrepérola voando ao seu lado. Ouviu mais uma vez a voz como

um grasnar profundo lhe perguntando qual seria sua última

palavra nesse mundo e fiel a sua alma se ouviu dizer, “__Victor.”

Pensou que finalmente acompanhava a morte e que ela era uma

velha amiga e que havia no ar a música certa para a renovação da

vida e para salvar mundos. Plenamente consciente de quem era,

das suas asas enormes e de seus movimentos imitando os do

pássaro, desviou os olhos do Condor para olhar em frente, para ir

voando cada vez mais alto em direção ao sol.

fim



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