LAB 01 - "Experimentação do cotidiano pela arte"
Experimentos texto-visuais: cultura, arte e moda.
Experimentos texto-visuais: cultura, arte e moda.
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
1A
FOTO: ARAD
2A
FOTO: ARAD
3A
YOU LIVE WHEREVER YOU LIVE,
YOU LIVE WHEREVER YOU LIVE,
YOU DO WHATEVER WORK YOU DO,
YOU DO WHATEVER WORK YOU DO,
YOU TALK HOWEVER YOU TALK,
YOU TALK HOWEVER YOU TALK,
YOU EAT WHATEVER YOU EAT,
YOU EAT WHATEVER YOU EAT,
YOU WEAR WHATEVER CLOTHES YOU WEAR,
YOU WEAR WHATEVER CLOTHES YOU WEAR,
YOU LOOK AT WHATEVER IMAGES YOU SEE...
YOU LOOK AT WHATEVER IMAGES YOU SEE...
Você mora onde quer que você more,
você faz qualquer trabalho que você faça,
você fala como quer que você fale,
você come o que quer que você coma,
você veste qualquer roupa que você vista,
você olha para qualquer imagens que você vê…
b 1
YOU’RE LIVING HOWEVER YOU CAN.
“IDENTITY” …
OF A PERSON,
OF A THING,
YOU ARE WHOEVER YOU ARE.
OF A PLACE.
“IDENTIDADE” ...
VOCÊ ESTÁ VIVENDO COMO VOCÊ PODE.
DE UMA PESSOA,
DE UMA COISA,
VOCÊ É QUEM QUER QUE VOCÊ SEJA.
DE UM LUGAR.
2 3
“IDENTITY”.
THE WORD ITSELF GIVES ME SHIVERS.
IT RINGS OF CALM, COMFORT, CONTENTEDNESS.
WHAT IS IT, IDENTITY?
TO KNOW WHERE YOU BELONG?
TO KNOW YOUR SELF WORTH?
TO KNOW WHO YOU ARE?
HOW DO YOU RECOGNISE IDENTITY?
WE ARE CREATING AN IMAGE OF OURSELVES,
WE ARE ATTEMPTING TO RESEMBLE THIS IMAGE…
IS THAT WHAT WE CALL IDENTITY?
THE ACCORD
BETWEEN THE IMAGE WE HAVE CREATED OF OURSELVES
AND… OURSELVES?
JUST WHO IS THAT, “OURSELVES”?
“IDENTIDADE”
A PRÓPRIA PALAVRA ME DÁ ARREPIOS.
RESSOA CALMA, CONFORTO E CONTENTAMENTO.
O QUE É ISSO, IDENTIDADE?
SABER AONDE VOCÊ PERTENCE?
SABER O SEU VALOR PRÓPRIO?
SABER QUEM VOCÊ É?
COMO VOCÊ RECONHECE A IDENTIDADE?
NÓS ESTAMOS CRIANDO UMA IMAGEM DE NÓS MESMOS,
NÓS ESTAMOS TENTANDO PARECER COM ESSA IMAGEM...
É ISSO O QUE CHAMAMOS DE IDENTIDADE?
O ACORDO
ENTRE A IMAGEM QUE CRIAMOS DE NÓS MESMOS
E... NÓS MESMOS?
QUEM É ESSE, NÓS?
4 5
WE LIVE IN THE CITIES.
THE CITIES LIVE IN US …
TIME PASSES.
WE MOVE FROM ONE CITY TO ANOTHER,
FROM ON COUNTRY TO ANOTHER.
NÓS MORAMOS EM CIDADES
AS CIDADES MORAM EM NÓS…
O TEMPO PASSA.
NÓS MUDAMOS DE UMA CIDADE PARA OUTRA,
DE UM PAÍS PARA OUTRO.
MUDAMOS DE IDIOMA,
MUDAMOS HÁBITOS,
MUDAMOS DE ROUPAS,
OPINIÃO
MUDAMOS MUDAMOS DE ROUPA,
TUDO.
TUDO MUDAMOS MUDA, E RÁPIDO.
TUDO.
IMAGENS ACIMA TUDO DE TUDO…
MUDA, E RÁPIDO.
WE CHANGE LANGUAGES,
WE CHANGE HABITS,
WE CHANGE OPINIONS,
WE CHANGE CLOTHES,
WE CHANGE EVERYTHING.
EVERYTHING CHANGES, AND FAST.
IMAGES ABOVE ALL…
CHANGE FASTER AND FASTER AND THEY HAVE
BEEN
BEEN MULTIPLYING MULTIPLYING AT A AT HELLISH A HELLISH RATE RATE EVER EVER SINCE SINCE THE
THE
EXPLOSION THAT UNLEASHED THE ELECTRONIC IMAGES.
IMAGENS ACIMA DE TUDO…
THEY THE ARE VERY THE IMAGES THAT ARE NOW REPLACING
PHOTOGRAPHY.
MUDAM CADA VEZ MAIS RÁPIDO E ELAS TÊM SE
MULTIPLICADO MUDAM CADA VEZ EM UM MAIS RITMO RÁPIDO INFERNAL ELAS DESDE
TÊM
SE MULTIPLICADO A EXPLOSÃO QUE EM DESENCADEOU UM RITMO INFERNAL AS IMAGENS
DESDE A
EXPLOSÃO ELETRÔNICAS. QUE DESENCADEOU SÃO AS IMAGENS AS IMAGENS QUE ELETRÔNICAS,
AGORA
AS MESMAS IMAGENS ESTÃO QUE SUBSTITUINDO AGORA ESTÃO A SUBSTITUINDO FOTOGRAFIA.
A FOTOGRAFIA.
6 7
WE HAVE LEARNED TO TRUST THE PHOTOGRAPHIC IMAGE.
CAN WE TRUST THE ELECTRONIC IMAGE? WITH PAINTING
EVERYTHING WAS WAS SIMPLE. SIMPLE. THE THE ORIGINAL ORIGINAL WAS WAS
THE
ORIGINAL, UNIQUE AND AND EACH EACH COPY COPY WAS WAS A A COPY COPY – A FORGERY.
WITH PHOTOGRAPHY PHOTOGRAPHY AND AND THEN THEN FILM FILM THAT IT BEGAN BEGAN TO
GET COMPLICATED. THE ORIGINAL WAS A NEGATIVE.
NEGATIVE,
WITHOUT A PRINT, IT IT DID DID NOT NOT EXIST, EXIST, JUST JUST THE
OPPOSITE, EACH EACH COPY COPY WAS WAS THE THE ORIGINAL. ORIGINAL. BUT NOW BUT WITH
NOW
THE WITH ELECTRONIC, THE ELECTRONIC AND SOON IMAGE THE DIGITAL, AND SOON THERE THE IS NO DIGITAL,
MORE
NEGATIVE THERE IS AND NO MORE NO MORE NEGATIVE POSITIVE. AND THE NO VERY MORE NOTION POSITIVE.
OF
THE VERY NOTION THE ORIGINAL OF THE IS OBSOLETE.
ORIGINAL IS OBSOLETE.
EVERYTHING IS A COPY.
EVERYTHING IS COPY.
ALL DISTINCTIONS HAVE BECOME ARBITRARY.
NO WONDER THE IDEA OF
ALL DISTINCTIONS HAVE BECOME ARBITRARY.
IDENTITY FINDS ITSELF IN SUCH A FEEBLE STATE.
NO WONDER THE IDEA OF
IDENTITY IS OUT, OUT OF FASHION. EXACTLY.
IDENTITY FINDS ITSELF IN SUCH A FEEBLE STATE.
THEN WHAT IS IN VOGUE, IF NOT FASHION ITSELF?
IDENTITY IS OUT, OUT OF FASHION. EXACTLY.
BY DEFINITION, FASHION IS ALWAYS IN.
THEN WHAT IS IN VOGUE, IF NOT FASHION ITSELF?
NÓS APRENDEMOS A CONFIAR NA IMAGEM FOTOGRÁFICA.
PODEMOS CONFIAR NA IMAGEM ELETRÔNICA?
COM COM A PINTURA, A TUDO TUDO ERA ERA SIMPLES. O ORIGINAL O ERA ERA ÚNICO O
E
ORIGINAL CADA E CÓPIA CADA CÓPIA ERA UMA ERA CÓPIA UMA CÓPIA - UMA - FALSIFICAÇÃO.
UMA FALSIFICAÇÃO.
COM A FOTOGRAFIA E ENTÃO O FILME, ISSO COMEÇOU A FICAR
COMPLICADO. O ORIGINAL ERA UM NEGATIVO. NEGATIVO, SEM IMPRESSÃO
NÃO EXISTIA, PELO CONTRÁRIO, CADA CÓPIA ERA O ORIGINAL.
MAS AGORA, COM ELETRÔNICO, E EM BREVE O DIGITAL, NÃO HÁ
MAIS NEGATIVO OU POSITIVO.
A PRÓPRIA NOÇÃO DE ORIGINAL É OBSOLETA.
TUDO É UMA CÓPIA.
TODAS AS DISTINÇÕES SE TUDO TORNARAM É CÓPIA.
ARBITRÁRIAS. NÃO É DE
ADMIRAR QUE A IDEIA DE IDENTIDADE SE ENCONTRE EM UM
TODAS ESTADO AS TÃO DISTINÇÕES DÉBIL. IDENTIDADE SE TORNARAM ESTÁ ARBITRÁRIAS. FORA, FORA DE NÃO MODA.
É DE
EXATAMENTE. ADMIRAR QUE ENTÃO A IDEIA O DE QUE IDENTIDADE ESTÁ EM ALTA, SE ENCONTRE SE NÃO A PRÓPRIA
EM UM
ESTADO MODA? TÃO POR DÉBIL. DEFINIÇÃO, IDENTIDADE A MODA ESTÁ FORA, SEMPRE FORA NA DE MODA.
EXATAMENTE. ENTÃO O QUE ESTÁ EM ALTA, SE NÃO A PRÓPRIA
MODA? IDENTIDADE POR DEFINIÇÃO, E MODA, AS A DUAS MODA SÃO ESTÁ CONTRADITÓRIAS?
SEMPRE NA MODA.
IDENTIDADE E MODA, AS DUAS SÃO CONTRADITÓRIAS?
BY DEFINITION, FASHION IS ALWAYS IN.
IDENTITY AND FASHION, ARE THE TWO CONTRADICTORY?
IDENTITY AND FASHION, ARE THE TWO CONTRADICTORY?
MONÓLOGO INICIAL DO FILME:
“NOTEBOOKS ON CLOTHES AND CITIES” - WIM WENDERS (1989)
8 9
CONTEÚDOS
CONTEÚDOS
CONTEÚDOS
CONTEÚDOS
CONTEÚDOS
VOZES por VICTORIA VIANNA 14
EDITORIAL 12
COLABORADORES 13
ÃO 16
PEK0 22
001 32
CORPO COLETIVO 38
MANIFESTO MODA 40
CIBORGUE_CIBERFEMINISMO_CIBERCULTURA 42
REDE DE CICLOS 46
++++++++++++PROJETOS
RECORDAÇÕES, ESPERANÇA, AMAÇU,
GARRAS AFIADAS, AS NAMORADAS, DREAMBOY,
HIMAÝATAN, NÃO SABE ME VER - SEM TÍTULO, SOMOS,
IMAGENS DE 2018 UM EDITORIAL DE M0DA,
COLAGENS, SILLÍCIO.
ECRÃ por CRYSTAL DUARTE 126
10 11
Editorial
Escrever esse primeiro editorial é tão difícil quanto prazeroso, significa que, no
momento em que digito essas palavras, a LAB (edição 01) está em processo
de finalização. E quantos não foram os processos envolvidos para chegar às
partes finais, e os tantos outros que ainda irão acontecer até o momento em
que você está lendo. Essa edição partiu exatamente dessa constância de
processos envolvidos em torno de algo que se cria e do valor de cada um deles,
muito mais do que o resultado final, que nada mais é do que a consequência.
Sendo essa a primeira edição do projeto que vem sendo desenvolvido
ao longo dos últimos 6 meses, mas que está presente em ideia há
mais de 1 ano e meio, cabe dizer que a LAB é um projeto experimental
de uma produção texto-visual colaborativa. Não há a presunção de
ser algo totalmente inovador ou superior ao que já foi feito por outras
publicações. Tudo aqui é parte da união do desejo de explorar habilidades
concomitantemente a gerar um espaço livre de troca, de debate e de
exposição acerca da cultura contemporânea, em suas diversas formas.
São os processos e o cotidiano que me inspiraram a desenvolver esse projeto
e são os colaboradores que fazem “a experimentação do cotidiano pela arte”.
Nessa edição, buscou-se trazer narrativas das expêriencias do cotidiano
que viram arte pelas mãos de criadores de música, de arte, de imagens e de
vida. A colaboração de cada um faz do coletivo a força para a mudança nas
estruturas e sistemas. Minha eterna gratidão aos que aqui estão presentes.
Coube também a essa edição, com o advento da pandemia do covid-19 e o
extremo avanço da participação do digital na vida das pessoas, discutir essa
relação que vem se desenvolvendo a passos largos, num local ainda pouco
conhecido como a internet. Tema escolhido não com a intenção de conspirar
contra ou a favor, mas sim de gerar discussões necessárias acerca desse mundo
digital, tão presente, mas ainda desconhecido em sua magnitude e domínio.
Acredito que a LAB 01, ainda que numa forma inicial, conseguiu ser construída
amarrando um compilado de conteúdos pertinentes e demonstrando a
potência criativa de artistas independentes. A você que está lendo, espero que
a LAB consiga proporcionar uma leitura que gere, ainda que indiretamente,
uma troca de experiências com os artistas aqui presentes, assim como
reflexões acerca dos temas, para que o debate continue para além das páginas.
Boa leitura e goze sem moderação.
Victoria Vianna
COLABORADORES
Arad
Crystal Duarte
Cyrilo
Dau
Filipe Braga
Gabriel Gil
Gabrielzíssima
Gustavo Cunha
João Suhett
Lele Reis
Marina Dalgalarrondo
Matheus Valois
Pek0
Satänika
Thaynara Bragança
Yu Frazão
Yuri Ladarin
COLABORADORES
12 13
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
VOZES
14 15
VOZES
16
COR, FORMAS,
ESTRUTURAS,
TEXTURAS E
AMPLITUDE.
A ÃO é tudo isso,
é moda fora da caixa,
é criatividade e arte em
versão vestível.
OA
A marca brinca com volumes e formatos, criando novas
estruturas corpóreas sobre o corpo de quem usa, traz
um estudo de cor muito bem elaborado e franzidos que
contrastam com a voluptuosidade das modelagens.
As peças são unissex, sendo a grande maioria
desenvolvida em tecidos 100% algodão, que inclusive é a
referência para o nome “ÃO”.
Ã
Foi através do Projeto Estufa que a marca despontou,
apresentando suas coleções no SPFW a partir de 2018.
Os desfiles se destacam pelo conjunto da produção: roupas,
modelos, beauty e atitude, oferecendo uma moda potente
que consegue trazer novidade e inovação para as passarelas.
E não é aquela “novidade da estação”, mas sim coleções
com vestimentas que se distinguem da obviedade que vem
sendo perpetuada ultimamente pela moda das passarelas
brasileiras, salvo exceções.
ÃO de Marina Dalgalarrondo tem forte relação com a
arte, essa conexão é perceptível na sua simplicidade
extremamente forte, gosto de pensar na marca dessa
forma. Suas modelagens e formas não são nada simples,
mas se fazem parecer leves e despretensiosas, de uma
maneira muito positiva e, ao mesmo tempo, é de um
impacto visual impressionante, que não tem como não
parar para olhar e apreciar as estruturas, os volumes
e as cores. Parece que tudo casa, e casa muito bem.
Para conhecer um pouco mais sobre a ÃO, tivemos a
oportunidade de entrevistar sua estilista e idealizadora,
Marina Dalgalarrondo, e entender um pouco mais do seu
universo, inspirações e criações.
TEXTO E ENTREVISTA > VICTORIA VIANNA
AGRADECIMENTOS > MARINA DALGALARRONDO
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
@ao.algo
VOZES
VOZES
V.V: Como nasceu a ÃO? O que te motivou a
começar a marca?
M.D: A ÃO nasceu em meados de 2017 com
o desejo de desenvolver um projeto mais
ousado de vestuário, de bancar cores fortes/
estranhas/não-convencionais e de criar uma
espécie de disparidade de referências estéticas
dentro de uma coleção. O que me motivou, e
ainda motiva é trabalhar com criação dentro
de um processo experimental que engloba
uma pesquisa relacionada às Artes Visuais.
V.V: Os desfiles, além das peças, trazem
consigo toda uma estética que traduz a
temática da coleção apresentada. Qual
a importância dessa fusão entre peças,
maquiagem, modelos, som e tudo que
envolve o desfile, para a identidade da
marca?
M.D: Esta fusão é fundamental. Gosto de
pensar em teatro quando penso em um
desfile, justamente porque é onde cada
setor existe como parte complementar de
uma imagem total (acting, trilha, luz, figurino
(styling e design), maquiagem, locação,
vídeo, cenário e também o público) . E
acredito que estas frentes são igualmente
importantes e complexas. Quando desenho
uma coleção, ela carrega referências de
variadas linguagens, como música, cinema,
pintura, performance, e até referências
ordinárias do cotidiano. Para apresentar este
universo gosto de desenhar junto com todos
os colaboradores elementos que enriqueçam
essa comunicação. A trilha por exemplo, é
um elemento que me cativa muito. Fiz uma
coleção de AW19 chamada “Texturesss” que
foi criada a partir de uma trilha original para o
desfile. A música aconteceu antes, processo
incomum para este tipo de apresentação.
V.V: As coleções da ÃO não tem aquela
necessidade de seguir ou “investir” em
tendências de moda, o que as tornam
mais atemporais e mais autênticas. É
mais libertador ou mais desafiador criar
sem se preocupar em necessariamente
se encaixar dentro de certos padrões
que a indústria da moda ainda impõe?
M.D: É mais verdadeiro, é como eu sei
fazer. Sinceramente tenho pouquíssima
paciência para desfiles de moda, salve
algumas exceções. Porém, também
gosto de olhar para a tendência de moda.
É incrível como existe um senso estético
comum acontecendo em um tempo
específico, isso normalmente é fruto de
questões políticas, sociais e econômicas.
Mas gosto de captar a estética de um tempo
a partir de outras fontes fora da moda.
Caso contrário seria um tema fechado em
si próprio e passível de más interpretações.
V.V: As peças que você cria tem nas formas
e nas modelagens uma estética muito forte,
dando um novo formato ao corpo. O que
te inspira a criar essas formas? Existe de
fato uma intenção de “modificar” o formato
do corpo, ou é mais um interesse em
questões de criação com modelagens mais
“atípicas”?
M.D: Gosto de distorcer a forma da silhueta
tradicional com volumes e texturas e
isso vai de encontro com um desejo de
inventar novos corpos. Gosto de explorar
a experiência sensitiva que é “habitar”uma
forma incomum. Também me interesso
por processos de criação de modelagens
que fogem da metodologia usual, gosto de
cortar um tecido em um formato randômico,
e entender como ele se comporta no corpo.
“O que me motivou, e ainda
motiva, é trabalhar com
criação dentro de um
processo experimental
que engloba uma pesquisa
relacionada às
Artes Visuais.”
18 19
VOZES
VOZES
V.V: A coleção “CAMPO/FIELD RELIEF” foi criada a partir do acessório
“field relief” que é utilizado em cavalos para evitar o contato com moscas
que transmitem doenças. Como se deu esse processo criativo?
M.D: Eu queria falar sobre a utilização da máscara como acessório limitante,
mas com um potencial direcionamento para o auto-cuidado /auto-conhecimento.
Criei um acessório conceitual que vela todos os sentidos da cabeça. Na pesquisa
visual para o desenvolvimento desta hiper-máscara achei este acessório para
cavalos e percebi nele uma série de analogias com o presente momento. É
um acessório que direciona ou fecha a visão, o olfato e audição dos cavalos,
parte para evitar doenças, parte para
limitar a percepção do animal frente
ao campo. Ironicamente é chamada de
“Field Relief”, que traduzindo livremente
seria “Alívio do/no Campo”. Acredito
que o único alívio possível em vedar
qualquer sentido do nosso corpo se dá
na amplitude da percepção do mesmo.
Quando fecho os os olhos, a boca e o
nariz, só me resta olhar para dentro e
ouvir os barulhos e sinais que meu corpo
faz. A máscara de “Campo” é também
um signo de tantos sentimentos difíceis
que nos atravessam neste período,
a introspecção, o medo do escuro,
a paralisia e perda de perspectiva.
V.V: O tema dessa revista é “EXPERIMENTAÇÃO” e a ÃO como marca faz isso
com excelência, seja nas formas, nas cores, na produção ou nos materiais.
Você enxerga a marca como de fato um trabalho de experimentação pessoal?
M.D: Sim, a ÃO é não só uma marca, mas um lugar de experimentação. Digo
isso porque gosto de me envolver em outros projetos que possam abrir um
campo experimental para a vestimenta. Exposições, Videos, Performances, etc.
É importante deixar em aberto cada coleção, para que eu possa desenvolver
com meus colaboradores novas metodologias, abrir possibilidades para trabalhar
com materiais incomuns e dar muita margem para o erro (muita mesmo).
V.V: Ainda sobre essa coleção, ela
tem uma pegada e uma temática que
se relaciona muito com a situação
que estamos vivendo, a ideia da
proteção em relação ao mundo
externo e no foco para o campo
interior. A pandemia foi um fator que
influenciou de alguma forma essa
ideia? Se sim, como?
M.D: Sim, como mencionei anteriormente. Vivemos tempos muito sombrios. Em fevereiro
já havia desenhado a coleção inteira na cor preto, era também um desejo de falar sobre
um impulso de revolução, de luto, de perdas em vista ao nosso total despreparo político e
social. Quando este cenário passou a envolver uma pandemia mundial, a força desta
revolta se intensificou e se canalizou para um pensamento de que, por mais cliché
que soe, precisamos repensar nossa postura e isso requer sim, um olhar para dentro.
V.V:
O que a gente pode esperar da ÃO que ainda está por vir?
M.D: Em termos práticos, lançaremos a nossa coleção SS21
pelo SPFW. Até o fim do ano teremos um site com um desenho
muito especial, e devemos invadir meios inesperados, rs.
Também acredito que exista uma força potente que irá emergir
do horror que vivemos atualmente, espero que a estética do
nosso tempo responda à altura da dimensão dessa catástrofe.
Essa é a função da moda, registrar tudo isso em lookinhos.
TODAS AS IMAGENS SÃO DA COLEÇÃO CAMPO/ FIELD RELIEF DA ÃO
FOTOS: Alexandre Furcolin
20
Styling e Modelo: Amanda Hackmann
21
Pek0
“Eu sou uma travesti que faz música eletrônica,
é basicamente isso. Começando esse texto de
uma forma bem debochada, é basicamente isso,
e é basicamente também uma forma que traduz
o que é Pek0 em outras palavras, se tivesse
que ser no dicionário ou algo assim. Mas é
isso, o meu corpo, esse corpo que é dado como
estranho. Não sei se é certo dizer isso, muito pelo
contrário, porque no final eu acho que deveria
ser mais visto como normal, a proposta de
aceitar quem você é, experimentar quem você é,
e descobrir.
Porque eu acho que no final, tudo que eu não
quero ser, tudo que eu não queria ser, era um
personagem. E eu acho que meio que tudo que
eu me tornei acabou sendo, e não, e sim. Essa
questão que é o que eu acho que me define. De
fato, a resposta é não, óbvio, mas a dúvida é
sempre interessante de ser jogada, brincada e
manipulada.”
(Pek0)
VOZES
A DESCRIÇÃO DE SI MESMA POR PEK0, ESCRITA
AO LADO, ACONTECEU DENTRO DE UMA
LONGA CONVERSA QUE TIVEMOS PARA ESSA
ENTREVISTA. APESAR DA NOSSA RELAÇÃO DE
PROXIMIDADE E AMIZADE, ESSE DIÁLOGO FOI
PARA MIM O QUE EU ESPERO QUE SEJA PARA
VOCÊ: CONHECER MAIS DA ARTISTA COMO
ARTISTA, MAS TAMBÉM DA ARTISTA COMO
PESSOA. ASSIM, BUSQUEI QUESTIONAR NÃO
COM O OBJETIVO DE QUERER INFORMAÇÕES,
MAS MUITO MAIS DA VONTADE DE OUVIR,
OUVIR A ARTISTA FALAR SOBRE SI E SUA ARTE.
FEITA PRESENCIALMENTE, TEMOS AQUI
TRANSCRITAS FALAS COM MARCAS DE
ORALIDADE, QUE PODEM DEIXAR O TEXTO
MAIS LONGO E INFORMAL, COM O INTUITO DE
QUE, ASSIM COMO EU TIVE A OPORTUNIDADE
DE OUVIR ESSAS PALAVRAS, QUE A LEITURA
DELAS TAMBÉM PERMITA UMA APROXIMAÇÃO.
ENTREVISTAR PEK0 PESSOALMENTE TORNA
TUDO O QUE AQUI ESTÁ ESCRITO MUITO MAIS
VISCERAL E PESSOAL. QUE A INTENSIDADE E
A PROFUNDIDADE DO QUE FOI DITO CONSIGA,
AINDA QUE EM MENOR PROPORÇÃO,
ESTAREM PRESENTES TAMBÉM NO TEXTO.
PEK0 É MULTIARTISTA, É CORPO, É SOM, É
VOZ, É CRIADORA E CRIATURA (OU, COMO
EU TAMBÉM GOSTO DE DIZER, É SEQUELA
E MILAGRE). COM 3 ÁLBUNS LANÇADOS,
TANTAS OUTRAS PERFORMANCES FEITAS,
ALÉM DE OUTROS PROJETOS ARTÍSTICOS
REALIZADOS, PEK0 FALA NESSA ENTREVISTA
SOBRE TUDO ISSO, SOBRE PROCESSO
CRIATIVO, SOBRE MÚSICA, SOBRE ROUPA,
SOBRE INDIVIDUAL E COLETIVO, SOBRE SER,
SOBRE VIDA E SOBRE ARTE, TUDO ISSO DE
UMA FORMA MUITO ORGÂNICA E ESPECIAL.
22
TEXTO E ENTREVISTA> VICTORIA VIANNA
FOTOS> KARIN SANTA ROSA
23
VOZES
Pelo que você se lembra, como começou
seu processo de experimentação?
As memórias que eu tenho... É muito difícil
de responder essa pergunta, de cara assim.
Eu fui buscar as memórias que eu tenho
mais novas, com auxílio de fotografias e
histórias, já tem muita experimentação. Então
eu realmente não sei dizer quando começou,
mas eu sei quando eu assumi mais isso.
Eu acho que a partir do cenário eletrônico,
a partir das festas eletrônicas, a partir de
frequentar o cenário eletrônico, de ver a
multiplicidade que tinha aquele espaço, e
esse palco aberto que vinha se criando,
da performance, quando eu comecei a
frequentar o cenário eletrônico. Acho que
nesse momento foi quando veio meu gatilho,
dentro da pista de fato, onde surge esse
impulso, esse start, para querer trabalhar e
jogar essa experimentação tão pessoal, que
eu carregava na minha vida toda, para arte e
para projetar em algum lugar. Eu acho que é a
partir de ver esse cenário, de ver esse espaço.
Além da produção musical, você também já performou diversas vezes. Como se difere
o processo criativo/experimental de um e do outro?
Eu acho que a maior diferença é que o processo para criar performances são
pautados muito mais em um resultado imagético, no que vai se definir de imagem,
e é meio que também o como é restrito esse espaço. Porque eu gostaria de poder
furar essa bolha da performance com som e ser uma coisa só, porque no final é tudo
uma coisa só, mas não, o cenário é cobrado o trabalho de performance como algo só
de imagem, só de corpo e não é permitido som, e eu sinto a falta na verdade do som
nas minhas performances corporaispartir de ver esse cenário, de ver esse espaço.
Pelo que eu me lembro, a performance começou na sua vida de maneira muito
espontânea, com você se pondo nesse lugar, de fato indo até o palco e se
expressando, até que em um determinado momento sua figura como performer foi
se consolidando e passou a ser um trabalho. De que maneiras isso acrescentou ou
mudou sua forma de expressão e representação artística?
VOZES
O processo de me assumir como performer, de me tornar performer dentro da cena eletrônica,
vem desse intuito natural, desse impulso de ir para o palco, quando se tinha um palco. Eu
acho que a partir do momento que existiu a troca de estar no palco ali de graça, por vontade
própria, sem ter pensado em nada e ao mesmo tempo pensando em tudo, porque é de
uma segurança exigida e de estar predisposta. Mas acho que o que muda, o fator que que
faz essa grande mudança, independente do dinheiro, eu acho que é esse local que surge
essa troca do público comigo, a partir disso eu acho que eu mesma ali vi, caramba eu devo
pensar mais sobre isso.
Eu acho que é nesse momento, no momento que eu subo ao palco de graça, que eu me
toco que eu devo ser paga, que eu me toco que eu devo pensar em alguma coisa e que
esse espaço está aberto, mas é ali no palco que eu descubro tudo isso, estando de graça,
por vontade própria. Eu acho que muda nesse momento, esse lugar de intuitivo para algo
pensado, muda justamente no momento que eu subo no palco.
(existe também uma mudança no sentido de criação? a partir do momento que a
performance deixa de ser totalmente intuitiva, para quando ela passa a ser feita a
partir de uma ideia pré-concebida?)
É sempre a partir do espontâneo, é um roteiro aberto, tem-se uma proposta de início, meio
e fim, eu sei por onde eu vou caminhar, mas por quanto tempo e o “corpo”, vai depender da
batida. Eu acho que tem também o processo de construção, de talvez uma persona, podemos
chamar assim, que querendo ou não foi criado, mas de uma forma muito organicamente,
mas querendo ou não foi criado, a partir dessa proposta de pensar até onde é orgânico e até
onde não é. Porque a performance é apresentada para mim, justamente como um conflito
do ator em entender o que é personagem e o que não é, e dentro da performance não existe
mais personagem, não existe mais ator, é um outro local, e é muito a partir desse conflito de
o que personagem que se é criado e do que é real, do que orgânico e do que não é, e no
final a resposta é que tudo é orgânico, mas é compreensível que também não seja.
(os seus “sons”?)
Não necessariamente os meus sons, mas de ter também autonomia sobre o som, porque nem
sempre eu tenho essa autonomia. Então a maior diferença eu acho que é justamente quando
eu vou pensar numa performance é um projeto que eu deixo aberto a o se moldar ao público,
se moldar ao som, se moldar ao próprio palco que eu não sei o que vai ser, que às vezes eu
tenho que improvisar e que às vezes não existe. Eu acho que é mais por aí, enquanto no som
o processo flui com uma autonomia, e aí eu não tenho que me moldar a nada e é justamente
gozar de não ter que se moldar a nada, de ter a minha opinião, de ter o meu som, e acho que
talvez seja isso, talvez um complemente o outro
24 25
VOZES
VOZES
No âmbito musical, como começou esse processo?
Eu comecei escrevendo. Eu escrevia poesias e aí em
um momento eu juntei alguns amigos e a gente fez
uma primeira banda, onde outras pessoas cantavam e
eu escrevia as letras e meio que tava também numa
direção musical talvez, uma coisa assim, mas era tudo
ainda muito jovem. E a partir de escrever esse projeto,
eu começo a estudar no teatro a performance e em
paralelo o cenário eletrônico começa a se consolidar
mais e ter um espaço de experimentação maior e eu, a
partir disso, de ser letrista, de escrever para os outros,
começo a escrever para mim mesmo, começo a escrever
sobre a minha vivência, num ato performático, quando
eu digo ato performático é referente a um corpo que fala
e eu comecei a escrever pensando nisso, na mensagem
que o meu corpo pode falar e que só o meu corpo pode
falar e o valor disso. A partir disso é de onde eu começo.
Já são 3 álbuns lançados: Noites, Nóias e Muito Mais (2018), Sequela dos Peixes (2019) e
Medo Profundo (2020), todos elaborados e produzidos totalmente por você. Como foram
essas experiências?
O primeiro CD, é muito um primeiro contato com a música eletrônica, então pouco me servia,
pouco me bastava. Eu digo, esse “pouco” é a primeira batida, a primeira proposta de batida que
eu costumava experimentar em cima da proposta de voz, porque sempre surgiu a partir ir da
proposta de voz, dava certo, as coisas davam certo muito facilmente. Era muito orgânico, uma
relação de sentir e é isso e não pensar muito. Muito fluido, muito natural, muito espontâneo.
Já no segundo CD sou eu questionando um pouco mais, pensando um pouco mais e buscando
um pouco mais de diferença, de uma opinião mais minha, porque até então o primeiro CD, por fluir
tão fácil, gera um trabalho que tem uma personalidade, não pode deixar de ter uma personalidade,
mas que tem menos personalidade, que eu senti falta na verdade, de personalidade, acho que
a fala é essa: eu senti falta de personalidade. E aí surge o segundo projeto nessa carência em
mostrar algo mais MPB, algo mais erudito.
(mais personalidade em questão de som? musicalmente?)
É, porque ficou uma personalidade, uma estética, muito clichê de música eletrônica, o primeiro.
Os beats que eu usei, um tanto quanto clichês.
(Você não acha que você tem essa visão agora? Conforme o tempo passa a gente analisa
de uma outra forma.)
Eu sempre me questiono isso também, e sempre quando escuto eu nunca acho nada clichê e
sempre acho muito inovador. Mas é mais a própria proposta de som, de ser um beat convencional,
de ser pouco trabalhado eu diria, nessa questão sonora. Era uma questão poética muito maior,
uma necessidade de uma expressão poética, de falar poesia, muito maior. Já no segundo, eu
não queria mais esse cenário eletrônico, eu queria uma coisa mais orgânica, algo que dialogasse
mais com a minha personalidade, até mesmo de ouvinte, porque eu escuto muito MPB e queria
produzir algo mais, que tivesse a referência da MPB, mas que também não fugisse tanto de uma
pegada eletrônica, de uma pegada techno 4x4, dessa estética que eu gosto muito. E aí surge
esse segundo CD, nessa carência, tudo numa proposta de qualidade sonora mais desenvolvida,
e toda proposta estéreo, que eu ainda não havia trabalhado, e pensar em jogar os instrumentos
para um lado, jogar os instrumentos pro outro, começar a experimentar a respeito disso.
E no terceiro CD, é como se eu voltasse para o eletrônico, pra pista de dança, pro dançante, e
fosse pra uma pista de dança com personalidade, como se eu estivesse respondendo o primeiro
CD. A partir disso eu gero todo o projeto do Medo Profundo que é pensar na pista de dança num
lugar tenebroso, num lugar assustador e ao mesmo tempo dançante, brincar com expectativa,
com suspense, muito suspense, muito inspirado nas trilhas de suspense.
E uma qualidade, quando vai para pista, vai para uma pista de dança de qualidade maior. No
primeiro projeto, essa fluidez toda, levou para um espaço que eu nem refletia muito “do que eu
estou fazendo”, é um House? É um isso? É um aquilo? E realmente, o som tem uma pegada de
Techno, mas tem uma pegada de house também, mas também não se configura nesse padrão.
E quando já vai para o Medo Profundo já é quase um Trance, porque eu pego o certos samples
que são de 180 BPM e coloco ele x2, e aí isso gera 360 BPM, isso nem toca sabe, ninguém toca,
não é nem tocável, é quase um prog. Mas é um elemento, não é um prog, não se consiste num
prog, tal qual não se consiste no techno, tal qual não se consiste em quase nada. Se consiste
num som com estilísticas, com estéticas, com semblantes, com nuanças, que se perpassam por
vários ritmos, em vários gêneros.
26 27
VOZES
Todo desenvolvimento criativo
é composto de erros e acertos.
Como você se relaciona com os
erros? Existe de fato erro e acerto
ou são só explorações que levam a
diferentes resultados?
A minha relação com erros e acertos
eu acho que eu posso comparar à
relação com a performance visual,
que foi gerada organicamente e no
palco. O espaço de experimentar era
dado no palco e isso se traduz muito
para como eu levo também o projeto
musical, que não necessariamente foi
apresentado direto no palco, mas eu
sempre fiz muita questão de mostrar
os meus processos, entendendo que
o artista está sempre em evolução
e a proposta musical é totalmente
pautada nisso, em mostrar o processo,
e mostrando o processo vão aparecer
os erros e acertos.
Por exemplo, continuando na
performance, existia um momento
em que as próprias performances
que seriam de freestyle, que é esse
método que você só chega e vai ali
com seu corpo, com o que você tem e
se joga. Essas próprias performances
já vinham com roteiro, chegou um
ponto em que já se tinha um mini
roteiro pensado e que era seguido,
então já não era mais tão espontâneo,
mas surgiu do espontâneo. Os erros
e os acertos foram experimentados
ao longo, até que se chegou numa
própria pauta e cria-se um roteiro com
as experiências em que eu fui tendo.
Então quando vou para o projeto
musical, eu vou muito imatura, muito
jovem, sem ter feito curso nenhum,
sem ter estudado absolutamente
nada, mas colocando nesse lugar
de apresentar o processo, o tempo
inteiro. Eu acho que os erros e os
acertos foram codificados a partir daí.
Medo Profundo, seu último álbum, foi
lançado no início da quarentena no
Brasil, conta um pouco sobre como foi o
desenvolvimento desse projeto no meio
do caos.
O CD ele veio sendo produzido antes do caos,
e talvez, me colocando muito no lugar de sei
lá, espiritualista, talvez eu estivesse prevendo
um que apocalíptico, e são essas reflexões
que as minhas poesias criam ao longo do
tempo, elas mudam de forma, e ao mesmo
tempo não, são a mesma coisa, porque
as poesias são sobre pessoas, são sobre
situações, são sobre coisas muito maleáveis,
coisas muito humanas, muito sentimentais
e, como tudo, eu acho que está em eterna
mudança.
O medo profundo ele vem sendo produzido
dentro de uma fervoria interna, onde eu
estava muito clubber, muito baladeira, muito
baladinha (risos). E quando vem a pandemia,
é o choque. E que quando veio a pandemia e
eu tinha esse CD pronto, clubber, esperando
o momento de lançar ele, tão dançantemente,
entendi que na verdade ele era sobre um
resgate, uma memória. Era justamente brincar
com o imagético da balada, porque foi o CD
que foi praticamente ouvido dentro de casa,
ninguém ouviu ele numa pista de dança, só
em lives, mas ainda é muito dentro de casa.
E realmente coincidiu com esse período de
sentir falta da balada, do refletir esse espaço
e criar um propósito a partir daí, de entender
que dentro da pandemia que deveria ser
lançado o medo profundo, tão clubber, e não
no período onde eu pudesse fazer shows,
como eu tinha imaginado e idealizado.
Você possui também uma forte ligação com a
moda, que apesar de ser uma forma de expressão
individual, está em constante relação com social.
Como você enxerga o que você veste nessa
relação individual-coletivo?
Choque, choque, a primeira palavra é essa: choque.
Eu acho que o que traduz essa relação é choque, e
é um choque que eu não queria causar, que dentro
da minha cabeça não é um choque, principalmente
sendo estudante de design de moda, é muito cabível,
porque quando se pensa em arte contemporânea,
em globalização, em um momento que informação
tá completamente a nossa disposição, resta a nós,
como designers de moda, como artistas, como
artistas plásticos, como artistas sonoros, brincarmos
com isso, com todas as referências que estão à nossa
disposição, e tudo que eu sou visto, quero ser, é a
partir disso, a partir do social, do que já existiu, do
que faz a sociedade.
A minha relação com vestir e o coletivo ela surge da
compreensão de que somos seres individuais para
sempre, mesmo que o grupo de patricinhas, que todo
mundo é igual, elas são pessoas diferentes e quando
se pensa nisso, quando eu penso nisso, é muito uma
relação de experimentação que eu vivi de descobrir o
meu corpo e a roupa do meu corpo, a roupa que cai
bem no meu corpo. Porque nascendo com um pênis
e derivados do gênero masculino, foi me associado
toda uma relação de conforto com a roupa muito
naturalmente, e, a partir disso, eu inicio uma pesquisa
interna de experimentação para entender melhor o
meu corpo, porque no final o meu corpo não se dava
bem também com as roupas dadas por masculinas.
Quando eu começo a experimentar, quando surge
esse processo, eu começo a descobrir um novo
corpo dentro do meu próprio corpo que não havia
sido aflorado ainda.
No final, esse processo de experimentação ele só me
trouxe que é isso, que não importa a roupa que eu
esteja usando, nada vai me acontecer se nada tiver
que acontecer, e se tiver que acontecer vai acontecer,
independente da roupa que eu estiver usando. Não
é a minha roupa que vai causar problemas ou gerar
situações, as situações vão ser criadas eu estando
vestido da forma que for, porque eu sou a pessoa que
eu sou, nunca vou conseguir deixar de ser. Então o
que importa é eu estar bem vestida, é exatamente
sobre isso.
As situações vão acontecer, o importante é estar
bem vestida, dica da Pek0 (risos)
VOZES
28 29
VOZES
VOZES
Acredito que o processo de experimentação não se
restrinja somente ao que se cria, mas também ao
próprio ser, que está sempre mudando e evoluindo.
Como é esse processo de experimentação interno do
seu eu, dentre dificuldades e alegrias?
As dificuldades perdem um pouco de sentido quando se
pensa que você é o que você é, e dificuldade todo mundo
vai sentir, todo mundo sente na pele, nas relações, e
dentro do período de experimentação, ele é criado, eu
volto a dizer isso, mas a partir desse conforto, de talvez
essa possibilidade de diálogo com as pessoas que
poderiam vir a afetar isso psicologicamente com valor
emocional na minha vida, como meus amigos, minha
família. A partir desse conforto que se gera esse processo
de experimentação e essa permissão a se experimentar,
e sem medo.
Eu acho que me mais gera não são as dificuldades e as
tristezas, são mais as alegrias, são mais descobrir as
alegrias, e descobrir as alegrias de um novo ângulo, que é
às vezes contagiar uma pessoa com uma ideia, contagiar
sua mãe com seu ideal, e não é sua mãe né vai virar
travesti, é sua mãe entender quando você quer dizer que
quer estar gostosona e sua mãe entender que todo mundo
quer estar gostosona, e que isso é mais próximo dela do
que é de se pensar. E no final é isso, todo esse processo
de experimentação é sobre o que nós somos, e sobre no
final conforto, porque todo esse corpo, quem busca isso,
quem enfrenta isso, vai buscar o conforto, vai alcançar
isso e vai precisar estar confortável.
Como você definiria a experiência de ser Pek0 no Brasil de 2020?
Ser a Pek0 no Brasil de 2020 é existência,
e é saber que não está sozinha.
Chegar nesse estágio de sentir medo do futuro,
de sentir medo do presente,
mas de ter a consciência de que a luta é constante,
que a luta tem que ser constante.
Um senso de comunidade.
É como se eu não fosse a Pek0 sozinha.
30 AGRADECIMENTOS> PEK0
31
VOZES
VOZES
0
0
1
COM O ANIVERSÁRIO DE 1 ANO
COMEMORADO EM JANEIRO DE 2020,
A 001 MOSTROU, AO LONGO DESSA
TRAJETÓRIA, SUA GRANDE POTÊNCIA, NÃO
SÓ COMO EVENTO, MAS COMO PRODUÇÃO
ARTÍSTICA E CULTURAL, TRAZENDO UMA
PERTURBAÇÃO PARA A CENA TECHNO
DO RIO DE JANEIRO, ATÉ ENTÃO MAIS
ELITIZADA E POUCO DIVERSIFICADA.
REALIZADA DE FORMA INDEPENDENTE
PELO COLETIVO, A FESTA, DESDE SUA
PRIMEIRA EDIÇÃO, CONSEGUIU AGREGAR
INICIATIVAS EM FALTA NO CENÁRIO
CARIOCA. FOI DEMOCRATIZANDO O
ACESSO, TANTO DO PÚBLICO, COMO
DOS ARTISTAS QUE TOCARAM E
PERFORMARAM, CRIANDO UM LOCAL
DE LIBERDADE ARTÍSTICA, E TRAZENDO
UMA PROPOSTA DE SOM EXPERIMENTAL
QUE A FESTA SE CONSAGROU NA NOITE.
AO LONGO DE MAIS DE UM ANO, A
001 REALIZOU DIVERSOS EVENTOS,
SEMPRE COM NOVOS NOMES NO LINE
UP, APOIANDO ARTISTAS, TORNANDO
A ENTRADA ACESSÍVEL E TUDO DE
MANEIRA AUTÔNOMA, MOSTRANDO A
FORÇA QUE UM MOVIMENTO COLETIVO
TEM QUANDO CONSEGUE PRODUZIR E
COMUNICAR SUA VISÃO LEVANDO EM
CONSIDERAÇÃO TAMBÉM AS PESSOAS
PARA AS QUAIS SE ESTÁ PRODUZINDO.
A 001 É FESTA, É ARTE, É SOM,
É UNIÃO E MUITA EXPERIMENTAÇÃO.
PARA CONHECERMOS UM POUCO MAIS
DESSA HISTÓRIA, AINDA CURTA, MAS JÁ
MUITO IMPACTANTE, ENTREVISTAMOS
OS PRODUTORES DA FESTA: SATÄNIKA,
YURI LADARIN E GABRIELZÍSSIMA, PARA
FALAR UM POUCO DE TODOS ESSES
PONTOS QUE FAZEM A 001 SER A 001.
0 000000000 1 000000000 00 1 0 0000000 0 000000000 1 000000000 00 1 0 0000000 0 000000000 1 000000000 00 1 0 0000000 0 000000000 1 000000000 00 1 0 0000000
32 33
VOZES
Como nasceu a 0011? como foi esse
processo de criar e começar uma
festa?
A 001 nasceu a partir da
ideia da criação de uma
plataforma “conectadora”
de potentes expressões
artísticas, principalmente
experimentais, às quais não
se via abertura no mercado
mais formal. A ideia de unir
essas potências e reuni-las
em um só ambiente, teve
uma resposta muito positiva
do público, foi aí que
enxergamos a necessidade
da festa.
Apesar de já ter uma cena techno no RJ quando a festa teve sua
primeira edição, nenhuma das festas já existentes traziam a
proposta de som que a 001 tem. Preencher essa lacuna e trazer esse
som mais pesado foi desafiador?
Em relação a cena techno no RJ, víamos muita
difusão na origem do ritmo, ainda mais percebendo
os coletivos seletos que traziam a proposta. Não
consideramos desafiador no primeiro momento pois
estávamos simplesmente abertos e experimentando,
expondo nossos gostos, e criando um espaço nosso e
de quem quisesse somar, com muito amor e respeito.
Após percebemos grande desafio em custear todos
os custos e nosso maior desafio até então tem sido
esse, rentabilizar nossas produções.
VOZES
Além do som, a festa traz uma proposta
visual e uma concepção de liberdade artística
e de corpes que é muito significativa. Qual
é importância disso para vocês como
produtores da festa?
Toda a proposta visual, fonográfica
e performática parte de nós
produtores, mas nada seria tão
possível sem a liberdade, sem
a vontade de troca e sem as
expressões mais simples de cada
corpa que se permite envolver.
Essas trocas são nossa maior
importância!
A 001 está sempre trazendo diferentes
artistes, tanto para tocar quanto para
performar. Como é feito esse trabalho de
pesquisa?
Um de nossos ideais é a criação
de oportunidades. Nosso processo
de pesquisa parte de um campo
bem pessoal, na busca de artistas
potentes e que conversem com
nossa proposta e estética visual,
e cada um de nós produtores
ficamos encarregados de uma
das funções, Juliano Santana é o
maior responsável pela nossa ID
Visual, Yuri Landarin e Satänika
são os curadores fonográficos e
Gabrielzissima responsável pela
curadoria de perfomances. No fim,
todes apresentam suas propostas e
alinhamos as ideias.
34 35
VOZES
VOZES
Para mim, a 001, além de uma festa muito potente, é um ato político. Vocês
também a enxergam dessa forma?
Para nós é muito importante sermos vistos dessa forma,
pois sem dúvidas acreditamos além de ser um ato político,
um ato de liberdade! Por sermos, existirmos e resistimos
dentro de um falido e genocida
CIS_tema.
Como tem sido manter a plataforma 001
nesse período pandemia? Como isso afetou
não só a festa, mas também vocês?
Tem sido um desfio manter
nossa plataforma sem
nenhum recurso e as nossas
responsabilidades, mas temos
nos virado como podemos,
continuamos criando nossos
conteúdos, fizemos diversas
lives gratuitas, 1 mês de
programação com 12 talks
sobre assuntos importantes
como DST’s, Relacionamentos,
Drogas e +. Lançamos o
selo ZERO.REC que é uma
plataforma que reúne trabalhos
de artistas independentes. E
pretendemos não parar por
aqui...
O que a gente pode esperar da 001 daqui
pra frente?
O segredo é não esperar, a
001 se cria a partir de todes,
então se jogue com força,
some, crie com a gente, se
emocione, consientize!...
Agora é sério, esperem uma
001 ainda mais milituda!
E pra terminar, o que não pode faltar
na 001?
Para fechar gostoso, na 001
não pode faltar respeito a
tudo e todes, amor, liberdade
e aquele look BOCA!
TEXTO E ENTREVISTA> VICTORIA VIANNA
36
FOTOS> GUSTAVO CUNHA
AGRADECIMENTOS> SATÄNIKA, GABRIELZÍSSIMA E YURI LADARIN
37
COLETIVO
MANIFESTO MODA
REDE DE CICLOS
CIBORGUE_CIBERFEMINISMO_CIBERCULTURA
RECORDAÇÕES
ESPERANÇA
AMAÇU
GARRAS AFIADAS
AS NAMORADAS
DREAMBOY
HIMAÝATAN
NÃO SABE ME VER
SEM TÍTULO
SOMOS
CORPO
arte por Victoria Vianna
IMAGENS DE 2018 UM EDITORIAL DE M0DA
COLAGENS
SILLLÍCIO
M A N I F E S T O
Com
a pandemia, e mesmo
antes dela, muito se tem falado
sobre as novas relações
de consumo que irão
acontecer a partir desse
período, dentro da moda inclusive,
discutindo o “novo
papel da moda”. É sempre
importante e necessário repensar
estruturas e sistemas,
principalmente aqueles
que funcionam seguindo
padrões estabelecidos há
muitos anos, assim como
aqueles que afetam toda
a sociedade, direta ou indiretamente,
e a moda definitivamente
é um deles.
M O D A
A questão, no entanto, é ver
que, apesar do esforço em refletir
sobre as diversas problemáticas
presentes na indústria
da moda, esse “novo papel” é
sempre algo atrelado ao consumo,
ainda que agora ele seja
o consciente. Obviamente a
moda tem um vínculo com a
comercialização e com o capitalismo
muito bem estabelecidos,
independente de
qualquer nova visão, por ser
uma das indústrias mais lucrativas,
tendo os setores mais
elevados pertencente à grandes
conglomerados empresariais
que mantém a economia
girando e gerando lucros.
Contudo, ela não deve ser resumida
somente a essa relação
econômica e estrutural.
Existe um outro lado da moda,
que diz respeito à individualidade,
à identidade e a subjetividade
das múltiplas pessoas.
O vestir-se consegue externalizar
questões e sentimentos
em relação a si próprio, ou
mesmo permitir um maior conhecimento
do eu, através de
um processo de investigação.
Essa relação, porém, é constantemente
minada ou reduzida
a partir da influência das
mídias e da criação de perfis
identitários aos quais as pes-
por VICTORIA VIANNA
soas supostamente devem
se encaixar para “fazer parte”.
A propagação de conteúdos
relacionados a moda
constantemente atrelados ao
consumo e a necessidade de
pertencimento faz com que,
cada vez mais, o ato de se
vestir vire um processo de reprodução,
muito mais do que
de criação/experimentação.
As informações que divulgam
tendências, personalidades,
desfiles, peças e demais assuntos
que giram em torno da
indústria da moda é sim muito
importante e possui um valor
informativo muito necessário
para quem tem interesse
no tema. A problemática é
outra, é a falta de discussões
mais atreladas a aspectos individuais
e de uma visão mais
visceral da moda. É muito comum
ver as pessoas, principalmente
jovens, consumindo
as mesmas roupas, ou muito
similares, tendo um “estilo”
muito parecido. Isso é resultado
de uma excessiva disseminação
de matérias e posts que
correlacionam moda, estilo,
tendências e influencers, gerando
a ideia de que “estar na
moda” é estar dentro desses
conceitos, com essas peças e
dessas determinadas formas.
É pertinente, ainda mais com
o período que estamos vivendo,
que possamos gerar
conteúdos que enxerguem
e discutam o papel da moda
como uma ferramenta de exploração
pessoal, como algo
que diz muito mais a respeito
da forma como cada um
se enxerga do que como se
quer ou deve ser enxergado,
como uma experiência
que pode permitir conhecer
os diferentes “eus” em cada
um, que não crie um vínculo
direto com a incitação da
necessidade de se consumir
para pertencer, que afinal,
seja muito mais sobre
ser do que de fato pertencer.
Que o “novo papel da moda”
seja também discutir pessoas,
de pessoas para pessoas,
trocando experiências,
que os outros sirvam de referência
e não de modelo de
reprodução, que dentro das
similaridades possa ter individualidade.
Discutir vivências,
processos, histórias
que contam a moda como
formação, como criação,
como influência do eu no
coletivo e também do coletivo
no eu, trazendo mais
indivíduos e experiências
do que marca e tendências.
40 41
REDE
DE
NÃO É COMO SE AS “MÁQUINAS” CONTROLASSEM TODA E QUALQUER
INFORMAÇÃO QUE RECEBEMOS, AINDA NÃO. ACONTECE QUE, INSERIDOS
NAS REDES SOCIAIS E NO MEIO DIGITAL EM GERAL, NÓS MESMOS
ADENTRAMOS BOLHAS. É BEM PROVÁVEL QUE, DENTRO DA SUA REDE,
AS DIVULGAÇÕES DE MÍDIAS E INFORMAÇÕES SEJAM SEMELHANTES, E
OBVIAMENTE ISSO FAZ SENTIDO: VOCÊ NÃO VAI SEGUIR OU CURTIR ALGO
QUE FUJA DA SUA “VISÃO”, SEJA ELA ESTÉTICA OU IDEOLÓGICA. ISSO
ACARRETA NA DEFINIÇÃO DAS CARACTERÍSTICAS DE QUAIS SÃO SEUS
INTERESSES POR PARTE DOS ALGORITMOS E, AO MESMO TEMPO, O PRÓPRIO
ALGORITMO MANTÉM O CICLO VICIOSO DE TE OFERECER E SUGERIR,
APENAS CONTEÚDOS E PESSOAS QUE SIGAM SUAS PREFERÊNCIAS. NO
ENTANTO OS ALGORITMOS NÃO ESTÃO EXISTEM APENAS PARA TE INDICAR
PERFIS NOVOS, PÁGINAS LEGAIS OU AQUELA BLUSINHA QUE VOCÊ TANTO
QUERIA, SÃO TAMBÉM UMA FORMA DE COLETAR DADOS. SIM, EU SEI,
ISSO SOA UM TANTO QUANTO TEORIA DA CONSPIRAÇÃO, MAS NÃO É.
CICLOS
EM 2018, TORNOU-SE PÚBLICA A INFORMAÇÃO DE QUE
ATRAVÉS DE DADOS COLETADOS, ILEGALMENTE, POR
MEIO DO FACEBOOK, A CAMBRIDGE ANALYTICA, UMA
EMPRESA PRIVADA QUE COMBINAVA MINERAÇÃO E
ANÁLISE DE DADOS COM COMUNICAÇÃO ESTRATÉGICA
PARA O PROCESSO ELEITORAL, E QUE TEVE SUAS
ATIVIDADES ENCERRADAS EM MAIO DE 2018, APÓS OS
ESCÂNDALOS, COLETOU DADOS DE 87 MILHÕES DE
USUÁRIOS. A EMPRESA, QUE FOI RESPONSÁVEL PELA
CAMPANHA DE TRUMP EM 2016, ATRAVÉS DESSES DADOS,
ENVIOU DIVERSAS PROPAGANDAS POLÍTICAS QUE ERAM
ADAPTADAS DE ACORDO COM OS INTERESSES, LEIA-
SE DADOS, DE CADA USUÁRIO, SENDO DIVULGADAS EM
DIVERSOS SITES E DE DIFERENTES FORMAS. ESSE CASO
CONSEGUE MOSTRAR COMO NOSSOS DADOS PODEM
ESTAR SENDO NÃO SÓ MONITORADOS, MAS USADOS PARA
CRIAR CONTEÚDOS ESPECÍFICOS QUE CHEGARÃO ATÉ
NÓS, E ASSIM NOS MANIPULAR, OU AO MENOS TENTAR.
ESTAMOS CAMINHANDO, CADA VEZ MAIS, PARA NÃO SOMENTE UM MUNDO
EXTREMAMENTE DIGITAL, MAS TAMBÉM INTELIGENTEMENTE ARTIFICIAL, EM DOIS
SENTIDOS: TANTO A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL, QUE É OBJETO DE ESTUDOS HÁ ANOS,
ESTÁ SENDO GRADATIVAMENTE INSERIDA NO COTIDIANO, COMO TAMBÉM PARECE
QUE ESTAMOS FICANDO MAIS ARTIFICIALMENTE INTELIGENTES. ESSA NOSSA
INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL EM NADA TEM RELAÇÃO COM NÍVEL ESCOLAR, QUANTIDADE
DE CONHECIMENTO, NEM MESMO LIGAÇÃO DIRETA COM PODER AQUISITIVO,
TRATA-SE DO FATO DE QUE ESTAMOS DEIXANDO DE BUSCAR POR INFORMAÇÕES
PARA APENAS RECEBER, LER E COMPARTILHAR AS QUE CHEGAM ATÉ NÓS. ISSO
ACONTECE PORQUE AS REDES SOCIAIS CONSEGUEM GERAR UMA CURADORIA DE
CONTEÚDOS “FEITOS ESPECIALMENTE PARA VOCÊ”, ATRAVÉS DE MECANISMOS
TECNOLÓGICOS QUE CAPTAM DADOS E ESTABELECEM SUAS PREFERÊNCIAS.
42 43
TEXTO> VICTORIA VIANNA
A INTERNET E AS REDES SOCIAIS
SE TORNARAM UM MEIO DE
DIVULGAÇÃO E MARKETING
EXCELENTE, VISTO QUE ALCANÇAM
UMA QUANTIDADE ENORME DE
PESSOAS, SEM CONTAR QUE
SÃO REDES INTERCONEXAS COM
MILHÕES DE USUÁRIOS E NA QUAL
EXISTEM POUCAS INTERFERÊNCIAS
LEGISLATIVAS. A 032C PUBLICOU
UMA MATÉRIA CHAMADA: “THE
TRUMP-BALENCIAGA COMPLEX”
(O COMPLEXO TRUMP-BALENCIAGA),
NA QUAL CORRELACIONARAM A
DIVULGAÇÃO MIDIÁTICA DA MARCA
COM A DO PRESIDENTE AMERICANO,
MOSTRANDO QUE O SUCESSO DA
CAMPANHA POLÍTICA DE TRUMP,
ASSIM COMO O BREXIT (SAÍDA DO
REINO UNIDO DA UNIÃO EUROPÉIA),
PODEM SER ENTENDIDOS DA
MESMA MANEIRA QUE UMA MARCA
LANÇA UMA NOVA COLEÇÃO,
NESSE CASO A BALENCIAGA.
A BALENCIAGA POSSUI GRANDE PARTE DO
SEU SUCESSO DEVIDO AO HYPE QUE ELA
MESMA CONSEGUE GERAR ATRAVÉS DAS
SUAS POSTAGENS NAS REDES SOCIAIS.
O MARKETING EXECUTADO PELA MARCA
INCLUSIVE FICOU CONHECIDO COMO
“MEME-BAIT”, SIM, MEME DE MEMES DA
INTERNET E BAIT (ISCA) QUE SIGNIFICA
ALGO QUE A PRÓPRIA EMPRESA/PESSOA
GERA COMO ISCA PARA QUE OS OUTROS
REPRODUZAM OU CRIEM SUAS PRÓPRIAS
VERSÕES, O QUE ACABA GERANDO MAIS
DIVULGAÇÃO PARA O POST PRINCIPAL. OU
SEJA, A BALENCIAGA CRIA CONTEÚDOS
OU MESMO PEÇAS, QUE FUNCIONAM
COMO MEMES, E MEMES, NESSE CASO,
NÃO É NECESSARIAMENTE ALGO
ENGRAÇADO, MAS SIM ESSA IMAGEM
AMPLAMENTE DIVULGADA E COPIADA
QUE ACABA GERANDO MAIS PUBLICIDADE
PARA O “ORIGINAL”. UM BOM EXEMPLO
DISSO É A BOLSA FRAKTA, A MARCA
FEZ A SUA PRÓPRIA VERSÃO DE LUXO,
E DE COURO, DA SACOLA DA LOJA DE
MÓVEIS DE “BAIXO CUSTO” IKEA, QUE
CUSTA 0,99 CENTAVOS AMERICANOS,
SENDO SUA VERSÃO LUXUOSA VENDIDA
POR MAIS DE DOIS MIL DÓLARES.
O QUE A MARCA FAZ É GERAR
BURBURINHO. INDEPENDENTE SE AS
PESSOAS GOSTARAM OU NÃO, SE ESTÃO
ELOGIANDO OU DEBOCHANDO, DE
QUALQUER FORMA, ESTÃO DISSIPANDO E
GERANDO CONTEÚDO SOBRE O PRODUTO
E, EM CONSEQUÊNCIA, SOBRE A MARCA.
OUTRO BOM EXEMPLO É A CROCS DA
BALENCIAGA, QUE FOI AMPLAMENTE
DIVULGADA, TANTO POSITIVAMENTE
COMO NEGATIVAMENTE, O QUE SERVIU
DE PROPAGANDA, E ASSIM RAPIDAMENTE
AS CROCS DA MARCA ESTAVAM POR
TODO LUGAR. TEM TAMBÉM O UGLY
SNEAKERS, QUE VIROU UMA TENDÊNCIA
INTERNACIONAL, ONDE PRATICAMENTE
TODAS AS LOJAS TINHAM A SUA PRÓPRIA
VERSÃO DO MODELO LANÇADO PELA
BALENCIAGA. A MARCA CRIA TENDÊNCIAS,
ANTES MESMO DELAS SEREM DE FATO
UMA, ATRAVÉS DESSES CONTEÚDOS QUE
SÃO COMO MEMES E QUE IRÃO MANTER
AS PESSOAS FALANDO E DISSEMINANDO.
FUNCIONOU COM A BALENCIAGA,
FUNCIONOU COM TRUMP. O
PRESIDENTE ERA INICIALMENTE SÓ UM
MEME, POUCOS ACREDITAVAM QUE SUA
CAMPANHA IRIA DE FATO ACONTECER,
MAS MUITO SE FALAVA SOBRE.
DEPOIS, A CAMPANHA E AS PESQUISAS
INDICARAM QUE SIM, ELE NÃO SÓ DE
FATO ESTAVA CONCORRENDO COMO
TINHA CHANCES DE SER ELEITO, O QUE
GEROU AINDA MAIS PUBLICIDADE. ALÉM
DISSO, A SUA PRÓPRIA CAMPANHA ERA
BASEADA EM FAZER COM QUE ESSA
PRESENÇA DIGITAL CONTINUASSE
ACONTECENDO, E ASSIM, ELE FOI
NOMEADO PRESIDENTE. O QUE SE
ASSEMELHA TAMBÉM COM A ELEIÇÃO
DO ATUAL PRESIDENTE BRASILEIRO,
INICIALMENTE ERA SÓ UM MEME.
CHRISTOPHER WILEY QUE TRABALHOU
NA CAMBRIDGE ANALYTICA NO
PERÍODO DA CAMPANHA DE TRUMP
E FOI O RESPONSÁVEL POR EXPOR A
EMPRESA E O FACEBOOK SOBRE O USO
ILEGAL DE DADOS, DEU UMA PALESTRA
(FASHION MODELS AND CYBER
WARFARE) PARA A CONFERÊNCIA DO
BUSINESS OF FASHION (BOF) DE 2018,
NA QUAL EXPLICA QUE, ASSIM COMO
A MODA, A POLÍTICA COMEÇOU A SE
BASEAR NOS ASPECTOS CULTURAIS
PARA PROPAGANDEAR ALGO. SEGUNDO
WILEY, O EXTREMISMO POLÍTICO, COMO
TAMBÉM A MODA, SÃO BASEADOS EM
COMO AS INFORMAÇÕES CULTURAIS SE
PROLIFERAM ATRAVÉS DOS NÓS DE UMA
REDE. OU SEJA, O QUE A CAMBRIDGE
ANALYTICA FEZ FOI A MESMA COISA
QUE A MODA JÁ VINHA FAZENDO HÁ
UM TEMPO, CRIAR TENDÊNCIAS, E
MAIS ESPECIFICAMENTE, O QUE A
BALENCIAGA VEM REALIZANDO, EM
QUESTÕES DE COMO GERAR ESSA
TENDÊNCIA DE FORMA EFICAZ ATRAVÉS
DAS REDES E DOS PRÓPRIOS USUÁRIOS.
NO ENTANTO, A GRANDE DIFERENÇA É
QUE A CAMBRIDGE ANALYTICA AINDA
DETINHA DE DADOS ESPECÍFICOS,
E ILEGAIS, SOBRE OS USUÁRIOS.
THE TRUMP-BALENCIAGA COMPLEX (032C)
“FASHION MODELS AND CYBER WARFARE”(BOF NO YOUTUBE)
PRIVACIDADE HACKEADA (NETFLIX)
44
CASO CAMBRIDGE ANALYTICA (EL PAÍS)
45
+ INFOS:
ESSA ESTRATÉGIA FUNCIONA MUITO BEM PORQUE, PRIMEIRAMENTE, ACONTECE
ATRAVÉS DA INTERNET, E AINDA MAIS IMPORTANTE, PORQUE CONSEGUIU ENTENDER
QUE, MAIS RELEVANTE DO QUE O CONTEÚDO EM SI, É GERAR BURBURINHO.
INDEPENDENTE DO QUE SE FALE, QUANTO MAIS DIVULGAÇÃO MAIS PUBLICIDADE
É GERADA E, CONSEQUENTEMENTE, MAIS PESSOAS VÃO ADERIR A “TENDÊNCIA”.
NO CASO POLÍTICO AINDA EXISTE A QUESTÃO DOS DADOS COLETADOS, QUE
SÃO DADOS CULTURAIS E SOCIAIS, PROPORCIONANDO ENTENDER QUEM É
ELA AQUELA PESSOA, O QUE ELA GOSTA, SEUS INTERESSES E ASSIM CRIAR
CONTEÚDOS E PROPAGANDAS ESPECÍFICAS PARA CADA USUÁRIO. É NESSE
MOMENTO QUE TAMBÉM ENTRA A PROBLEMÁTICA DA ASSIMILAÇÃO DE CONTEÚDOS
E INFORMAÇÕES QUE CHEGAM ATÉ NÓS, MAS NÃO PROCURAR SABER MAIS,
BUSCAR OUTRAS FONTES OU MESMO VERIFICAR O QUE ESTÁ SENDO DIVULGADO.
O CASO DA MODA E DA BALENCIAGA É MAIS SUPERFICIAL, MAS
PROBLEMÁTICO TAMBÉM. POR MAIS QUE O CONTEÚDO NÃO SEJA
FEITO COM BASE EM DADOS OBTIDOS, A MARCA SE APROPRIA
DE SÍMBOLOS OU PRODUTOS DO CONSUMO DE MASSA E OS
TRANSFORMA EM ARTIGOS DE LUXO. A “RELEITURA” DESSES ITENS
POPULARES NÃO VALORIZA O PRODUTO ORIGINAL, MAS SIM O CRIADO
A PARTIR DELE, ELITIZANDO E VENDENDO PARA UMA PARCELA
ÍNFIMA DE PESSOAS, OU SEJA, AINDA MANTÉM UMA SEGREGAÇÃO
ENTRE QUEM TEM A BOLSA DA MARCA E QUEM TA USANDO O
MODELO BARATO, QUE SERIA A CÓPIA, MAS NA VERDADE, É O
ORIGINAL, UMA GRANDE INVERSÃO DE VALORES. EXISTE TAMBÉM A
QUESTÃO DO HYPE, QUE SÓ É GERADO PELO COMPARTILHAMENTO,
SENDO ASSIM, SÃO AS PESSOAS QUE DEFINEM E GERAM O VALOR
DE MARCA NO MEIO DIGITAL. NÓS VIRAMOS OS PRODUTORES E O
PRODUTO, SE NÃO HOUVER COMPARTILHAMENTO NÃO HÁ HYPE.
AO MESMO TEMPO, NÃO SÃO OS “USUÁRIOS-PRODUTORES” QUE
SE BENEFICIAM DISSO, MUITO PELO CONTRÁRIO, É A PRÓPRIA
MARCA, QUE CONSEGUE ATINGIR MUITO MAIS INDIVÍDUOS,
REALIZAR MAIS VENDAS E AUMENTAR SEU VALOR DE MERCADO.
A INTERNET E AS REDES SOCIAIS OFERECEM ESSA IDEIA DE LIBERDADE, DE
IDENTIDADE PESSOAL, DE DIVULGAÇÃO E DE ACESSO AMPLO, O QUE NÃO DEIXA
DE SER UMA VERDADE E UMA GRANDE UTILIDADE DAS REDES. MAS OCORRE
QUE, PAULATINAMENTE, AS ESTRATÉGIAS ECONÔMICAS E POLÍTICAS VÊM SE
ADAPTANDO AO MEIO DIGITAL E A FORMA COMO AS PESSOAS SE COMPORTAM
DENTRO DELE. ASSIM, VEM SE TORNANDO COMUM QUE OS USUÁRIOS SEJAM
USADOS COMO MEIO DE DIVULGAÇÃO, COMO PRODUTORES DE CONTEÚDO,
VIABILIZANDO UMA FORMA DE EMPRESAS SE PROMOVEREM GRATUITAMENTE. ISSO
TUDO GERALMENTE ACONTECE SEM QUE AS PESSOAS TENHAM CONHECIMENTO
DE QUE ESTÃO SENDO USADAS COMO FERRAMENTA E QUE ELAS MESMAS
SÃO O PRODUTO FINAL A SER CAPTURADO POR TODA ESSA ESTRATÉGIA.
BEM-VINDES A NOVA ERA DIGITAL
\\CIBORGUE_
CIBERFEMINISMO_
CIBERCULTURA||
46 47
TEXTO> VICTORIA VIANNA
Com o acontecimento da pandemia mundial, a qual ainda
estamos vivendo, o uso de aparelhos eletrônicos, da
internet e das redes sociais cresceu de forma abrupta.
Mais do que nunca, tivemos que nos adaptar, dentro de determinados
contextos sociais, a exercer através de meios eletrônicos
praticamente tudo que fazíamos fora de casa, das coisas
mais básicas, como conversar e ver amigos, até trabalhar e/
ou estudar. Solidificando e reconstruindo a relação humano-
-digital e presenciando um desenvolvimento ainda mais acelerado
da cibercultura, já muito presente na nossa realidade.
A cibercultura se desenvolve principalmente a partir da década de
1980, com o avanço da internet e a criação do computador pessoal
(1981), tendo origens anteriores a esse período, mas é nesse
momento que ela começa a se consolidar devido ao maior acesso
e a maior quantidade de conteúdos digitais, gerando maiores
trocas entre os usuários. Em 1985, a filósofa e bióloga Donna
Haraway escreve o Manifesto Ciborgue (versão final lançada em
1991), no qual ela discorre sobre a crise identitária dos movimentos
sociais, principalmente o feminismo, devido ao que ela chama
de “política de identidade”, abordando a relação e influência da
ciência e da tecnologia sobre as relações sociais no século XX.
A partir desse manifesto, surge o conceito de ciberfeminismo,
cunhado pela primeira vez em 1991 pelo coletivo feminino australiano
VNS Matrix, que se auto proclamaram “ciberfeministas”
através do Manifesto Ciberfeminista, elaborado por elas e
inspirado no manifesto ciborgue de Haraway. Apesar da filósofa
não ter usado o termo ciberfeminismo, seus estudos e teorias
foram incorporados por diferentes grupos a partir da análise do
feminismo em relação às novas tecnologias e meios de comunicação,
propondo a organização dentro da rede e a apropriação
como forma de ativismo político presente nos estudos de Donna.
O ciberfeminismo teve diferentes frentes com visões e ações
diversas dentre as várias linhas de pensamento, mas todas surgem
a partir da ideia central de reinvenção de outros feminismos a
partir da ótica das novas tecnologias de comunicação. Uma grande
influência para o movimento é também o surgimento das teorias do
pós-humano em meados dos anos 1980. O pós-humano se dá devido
a junção da cultura ciberpunk, com o aparecimento das redes e dos
dispositivos de comunicação, somados ao surgimento das teorias
sobre genética e manipulação biológica, gerando um contexto
sócio-tecnológico transitando entre ficção-científica e teorias
científicas como a cibernética, biologia e informática. Assim,
entende-se que as diferentes teorias e linhas de pensamento do
ciberfeminismo se constroem dentro desse contexto novo e amplo.
O movimento, no entanto, acabou gerando uma certa dicotomia
entre as visões. Existia uma interpretação mais ligada a inserção
da mulher no mundo da tecnologia e uma outra vertente que
estava mais direcionada ao pós-humano e ao conceito do
ciborgue, com a hipotética da internet ser um meio sem gêneros
aonde seria possível desconstruir essa visão biológica e binária
dos gêneros. Por isso o ciberfeminismo não conseguiu criar uma
linha de pensamento unificado que conseguisse entender qual
era a sua visão perante o feminismo no mundo tecnológico,
gerando um movimento descentralizado e heterogêneo.
Apesar disso, o movimento foi muito potente durante os anos
1990, tendo seu auge em 1997, através de diversas publicações
ciber feministas como: Zero + Ones (1997), The War of Desire
and Technology at the close of the Mechanical age (1997), tendo
um teor artístico muito forte, sendo esse um dos seus pontos
de congruência entre as diferentes vertentes, ocasionando
trocas e experiências em diferentes fundos culturais. Também
recuperou as táticas artísticas da arte feminista dos anos 1960
e 1970, além de buscar um novo modo das representações
de gênero, corpo e espaço social no meio tecnológico.
ALL NEW GEN;
VNS MATRIX -
1992-93
Imagens cedidas
pelo coletivo
48 VNS MATRIX.
49
Artisticamente o ciberfeminismo influenciou também na criação
de trabalhos através de coletivos, com grupos como VNS Matrix,
que inspiraram outras artistas com técnicas como a colagem,
mixagem, apropriação de imagens, buscando mesclar o corpo com
as máquinas, questionando a representação feminina, trazendo
o ciborgue como o ser nas diversas morfologias das interfaces
eletrônicas. Carregando nessa arte diversos aspectos da cultura
ciberpunk e de figuras populares da ficção científica. Mesmo
com seus problemas teóricos, o ciberfeminismo foi responsável
por conseguir de fato questionar o papel da mulher dentro
desses meios de comunicação, gerando diferentes resultados
de acordo com o contexto socio-cultural ao qual estava inserido,
em determinado local e momento, dando a oportunidade para
diversas mulheres entrarem nesse ambiente, conquistarem
seu espaço e modificarem suas realidades e opressões.
É válido ressaltar que foi através da internet onde tudo isso
aconteceu, que apesar de estar se tornando um ambiente cada
vez mais usado, dissipado e acessível, continua sendo um local
sem regras, que propaga uma ideologia patriarcal e no qual quem
detém os grandes domínios são grandes empresas lideradas
majoritariamente por homens cis brancos. Por isso, é importante
que esse espaço seja cada vez mais dominado por minorias e
que essas consigam atingir cada vez mais uma parcela maior de
pessoas, levando adiante discussões tecno-sociais, como foi o
movimento do ciberfeminismo, que dentro do contexto em que
estava inserido, e apesar das divergências, conseguiu criar espaços
ativos de luta dentro do meio digital. Agora, mais do que nunca,
necessita-se que esse local seja ocupado de forma consciente e
ativa para não somente criar um espaço diverso e representativo,
mas também, para que as pessoas consigam não ser manipuladas
pelas grandes corporações e empresas milionárias que criaram
um local de dominação, onde quase tudo pode ser feito e muito
pouco se sabe sobre o que está sendo implementado. Isso tudo
nos mostra também como os coletivos e movimentos artísticos
são fundamentais na luta contra espaços de dominação,
uni-vos.
The future is
unnamed; VNS
+ INFOS:
A PRIMAVERA DAS MULHERES: CIBERFEMINISMO E OS MOVIMENTOS FEMINISTAS (REVISTA FEMINISMOS DISP. ONLINE)
Matrix - 1994
OS SIGNIFICADOS DE “CIBERFEMINISMO”: CONSTRUÇÕES DE SENTIDO DE UM FEMINISMO NAS MÍDIAS DIGITAIS (ANAIS DISP. ONLINE)
Imagem cedida
MANIFESTO CIBORGUE (DISP. ONLINE)
pelo coletivo
CIBERFEMINISMO: NOVOS DISCURSOS DO FEMININO EM REDES ELETRÔNICAS (TESE DISP. ONLINE)
50 VNS Matrix
51
RECORDAÇÕES
por THAYNARA BRAÇANÇA
A SENSAÇÃO DE UM DIA CINZENTO, PRESTES A CHOVER,
UM CENÁRIO DE AFLIÇÃO PARA MUITOS.
ESPERANÇA
ESPERANÇA
PULVA PERSONIFICA A ESPERANÇA, QUE SE PROTEGE COM TECIDOS E
ACESSÓRIOS METÁLICOS, DEMONSTRANDO FORÇA E DETERMINAÇÃO
PARA PASSAR PELOS MOMENTOS DIFÍCEIS QUE A PANDEMIA NOS TROUXE.
A SERIEDADE DA EXPRESSÃO DA PERFORMANCE, PROJETA UM OLHAR
DE ESPERANÇA EM MEIO A REALIDADE QUE ESTAMOS PRESENCIANDO.
55
57
ENSAIO REALIZADO A PARTIR DO VÍDEO PERFORMANCE “ESPERANÇA” DO MÚSICO E DJ ALBIN, COM O APOIO DO
“PROJETO ANEXO”, UMA CAMPANHA VIRTUAL COM O INTUITO DE AJUDAR ARTISTAS AFETADOS PELA PANDEMIA.
PERFORMANCE E DIREÇÃO CRIATIVA> PULVA COSMOS
FOTOS E EDIÇÃO> GABRIEL GIL
STYLING E FIGURINO > GABRIEL GIL E PULVA COSMOS
AMAÇU
O LAGO AMAÇU,
LOCALIZADO NA AMAZÔNIA, SE
TORNOU UMA DAS PRIMEIRAS
LENDAS DESDE A COLONIZAÇÃO.
REPRESENTANDO
O
COBIÇAMENTO DO HOMEM
BRANCO PELA NATUREZA
DESDE O INÍCIO DA
COLONIZAÇÃO DO BRASIL.
CRIAÇÃO E STYLING> JOÃO SUHETT E THAYNARA BRAGANÇA
MODELES> PEK0 E CYRILO
FOTOS> JOÃO SUHETT
TODAS AS PEÇAS FORAM DESENVOLVIDAS POR JOÃO SUHETT E THAYNARA BRAGANÇA.
ACREDITAVA-SE NA EXISTÊNCIA
DE UMA FONTE DE JUVENTUDE,
POR CONTA DE UMA ILHA
ENCOBERTA POR XISTO MICÁCEO,
UMA ROCHA QUE PRODUZ FORTE
BRILHO QUANDO ILUMINADA PELO
SOL, A QUAL TRAZIA A IDEIA DE
RIQUEZA PARA OS EUROPEUS.
61
GARRAS> ANA MATHEUS ABBADE
FOTOS E DIREÇÃO CRIATIVA> FILIPE BRAGA
MODELO> ÂNTONIA BAUDOIN
“GARRAS AFIADAS” SURGIU APÓS
NOITES EM CLARO PENSANDO SOBRE AS
FORMAS POSSÍVEIS DE EXTERNALIZAR
E TRANSMITIR AS SOMBRAS DE UM
EXAUSTIVO TERREMOTO SENSORIAL
ANSIOSO, QUE CONSTANTEMENTE ME
POSSUI E IMPOSSIBILITA A PROGRESSÃO
DO PENSAMENTO. ESCREVER SOBRE
SEUS BLOQUEIOS TE AJUDA A SAIR POR
CIMA DA SOMBRA DELES E TE ESTIMULA
A PRODUZIR CUIDADOSAMENTE,
JÁ QUE EXISTE A NECESSIDADE DE
MANTER O OBJETO FINAL FIEL AO QUE
SE SENTE. COMO DESTAQUE PRINCIPAL
DAS FOTOS ANALÓGICAS, AS GARRAS
AFIADAS, QUE FORAM CRIADAS POR ANA
MATHEUS ABBADE (@SURRADEUNHA)
DIALOGAM DIRETAMENTE COM O
SENTIMENTO DE ANSIEDADE POR
REPRESENTAREM AS AÇÕES DAS
ESTRUTURAS AUTO-PROTETORAS EM SUA
BUSCA CONSTANTE POR PRESERVAÇÃO
QUE, EXCESSIVAMENTE, ACABAM
ENDURECENDO E FRAGILIZANDO O
INDIVÍDUO.
A CONSTRUÇÃO EM FOTO-POEMA TEM
A FUNÇÃO DE RELACIONAR O DIÁLOGO
ENTRE ‘INDIVÍDUO-GARRAS’ PRESENTE
NAS IMAGENS COM OS SENTIMENTOS
FRÁGEIS DE QUEM VÊ, INTENSIFICADO
PELAS POSES DRAMÁTICAS COM TONS DE
INSTROPECÇÃO E AUTO-PROTEÇÃO QUE
SE RELACIONAM DIRETAMENTE COM OS
ESCRITOS.
O OBJETIVO PRINCIPAL DO PROJETO
É INTERROGAR ESSAS ESTRUTURAS
PSICO-AFETIVAS APARENTEMENTE
RÍGIDAS QUE NOS HABITAM E EXPLORAR
A FRAGILIDADE QUE ENVOLVE
NOSSOS COMPORTAMENTOS NA
BUSCA CONSTANTE POR CONFORTO
E QUE, MUITAS VEZES, ACABAM NUM
COMODISMO: PORQUE PRESERVAMOS?
PORQUE EXPLODIMOS? PORQUE
IMPLODE? PORQUE INCOMODA? QUANTO
TEMPO É POSSÍVEL SEGUIR RETO SEM
OLHAR PRA TRÁS? QUAL NOSSO OBJETIVO
EM SEGUIR EM FRENTE SEM CONSIDERAR
O QUE PASSOU?
NAMORADAS
AS
AS
NAMORADAS
FOTOS> YU FRAZÃO
MODELES> ANIS YAGUAR E SUMÉ AGUIAR
DREAMBOY
86 87
DIREÇÃO CRIATIVA e STYLING> CYRILO
FOTOS> FILIPE BRAGA
MODELO> LEONARDO PORTILHO
BEAUTY> VICTORIA VIANNA
HIMAýATAN
por DAU
O projeto
desmembra-se no
pensamento que
conjunturas de
indumentária e arranjos
sonoros diversos
podem produzir uma
sensação de resguardo.
Se estrutura nas
experiências de pessoas
que utilizam a roupa
como proteção física/
estética e a música
como resguardo
psicológico.
Himayatan, do árabe
“proteção”, vem de um
sentimento instantâneo
humano: o medo do
desconhecido e da
perda, transforma-se em
reflexos incontroláveis
produzidos pela mente.
O homo sapiens descobriu
diversas formas de
proteção psicológica e
física; de se defender.
A cena techno fornece inspiração
visual e conceitual a elaboração
do pensamento. A estética
urbana mesclada com o caos
de indústrias abandonadas é
usada como fonte primordial.
Concreto, cartazes promocionais
e expressivos, estudos de dança
[fluidez e rigidez corporal -
traduzida em moda] compõe a
linha inspiracional.
92 93
Na busca por alinhar o
contexto central do projeto
a um ideal sustentável, a
escolha da superfície têxtil
deu-se pelo cedimento do
mesmo por Marcelo Dau,
educador ambiental que
possui um trabalho de
conscientização ecológica.
O material - prensado feito a partir de fibras diversas descartadas
- é comumente utilizado como forro de utensílios que fazem contato
com o chão, servindo de mediador do atrito. Realizando a proteção de
calor, precisa ter gramatura elevada. Estruturado e grosso, o tecido
delimitou muitos caminhos que a roupa seguiria, como a necessidade de
um acabamento relativamente reforçado e a sua permanência estética.
94 95
96 97
NÃO SABE ME VER
SEM TÍTULO
por LELE REIS (@DESENHOCOISINHAS)
por LELE REIS (@DESENHOCOISINHAS)
98
ILUSTRAÇÃO ELABORADA NO PAINT
ILUSTRAÇÃO ELABORADA NO PAINT
FRAGMENTO DE UM POSSÍVEL PROJETO EM FASE EXPLORATÓRIA
S O M O S
Carrego meus fantasmas,
olho nos olhos,
tenho medo,
CORRO,
mas não adianta.
Então olho de novo,
me enxergo neles,
EU SOU ELES,
eles também me são,
SOMOS.
Entendo o que são,
são muitos,
mas são só o que permito ser.
Eu ouço eles,
converso,
reconheço,
eu danço com eles,
e assim,
ME LIBERTO.
por VICTORIA VIANNA
interpretado por JOÃO VITOR RUDE
FOTOS> VICTORIA VIANNA
101
103
105
“POESIA SÃO MONUMENTOS DESABADOS
EM POUCOS MOMENTOS DESABAFOS
FOTO> VITÓRIA LEONA
PERCEBI QUE VIVI ME MATANDO AOS POUCOS,
EM MEIO A GRITOS ROUCOS
RELACIONAMENTOS LOUCOS OU LONGOS DEMAIS
APRENDI
A PARAR COM AQUELES SOCOS
OS MURROS EM PONTA DE FACA,
SE AGORA É O TÉDIO QUE ME MATA
EM UM PASSADO MÉDIO, ASSÉDIO.
LONGOS ANOS DE SILÊNCIO TRADUZEM O QUE NÃO SE TEM REMÉDIO
E ALGUÉM SUGERIU: AMOR?
AMOR PATERNO, AMOR FRATERNO, AMOR ETERNO
AMOR EFÊMERO, AMOR ENFERMO
AMOR! POR FAVOR
ME RENDO,
SÓ ME DEIXA VIVA
E AÍ EU PROMETO QUE NUNCA MAIS
ENTRO NUMA RELAÇÃO ABUSIVA
NEM MAIS PASSIVA NEM MAIS AGRESSIVA
QUE SE META A COLHER E INTERFIRA
DO NOSSO LADO
AGORA.
OU VOCÊ SE ALINHA OU SE RETIRA.”
GIULIA DEL BEL - MAIO.2020
FOTOS> VITÓRIA LEONA
STYLING E FIGURINO > GIULIA DEL BEL
Têto, “Imagens de 2018 um Editorial de M0da”.
Colagens Digitais, 2020.
Models: Gabriel Sampaio e Rodrigo Moreira
COLAGENS por yU FRAZÃO
COLAGENS por yU FRAZÃO
fOTOS> FOTOS> YGOR VIEIRA
PRODUÇÃO> @GILGABRIELUS ARAD E GABRIEL E GIL @_4.7_4.77777
EDIÇÃO DE IMAGEM > @_4.7_4.77777
ARAD
MODELES MODELS > > TIEMI @ANGELLDIMARRA TAMURA E ANGEL E @TIEMI.TAMURA
DIMARRA
síllllici0
por ARAD
entidades detentas
de conexões, plugs,
metafóricos capazes
de se transformar
a partir da troca
de informações,
códigos, princípios
nas células que se
iserem.
a inspiração central desse projeto são as variações e
combinações moleculares em que o silício (elemento
químico de símbolo Si) pode existir, isto é, a labilidade
em que o elemento pode ocorrer de maneira natural ou
transformado pelo ser humano (p:ex.):pele humana,
microchips e diatomáceas (produtores de oxigênio
vital). buscando incentivar a curiosidade científica
em conexão com a segunda pele/roupa/armadura/
carapaça e iluminar algumas conexões que nos cercam.
ESTRUTURAS CORPORAIS ELABORADAS USANDO RESTOS DE TECIDOS DOADOS PELA FOCUS TEXTIL.
135
136 137
138 139
141
144
ECRÃ
por CRYSTAL DUARTE
Faz parte do senso comum a visão do documentário como um formato
rígido, com propósito educacional e composto por entrevistas e/ou imagens
de arquivo que exploram determinado assunto. No entanto, eu diria que o
documentário é na verdade o formato mais livre e experimental alcançado
pelo cinema. Particularmente, não vejo muito sentido na divisão de
fronteiras entre documentário e ficção, são todos filmes. São justamente
essas fronteiras e uma necessidade mercadológica de categorizar que
muitas vezes limitam a perspectiva do público sobre o documentário.
Se a divisa é traçada em documentário
ou ficção, ou seja, verdades ou
mentiras, é criada uma ilusão de
dois possíveis universos onde o filme
pode existir, quando na verdade toda
a arte se relaciona apenas com um
universo, o da verdade. O realismo,
por exemplo, nasce em oposição ao
teatro declamatório, concebe como
verdade algo mais alinhado com nossa
vivência real. Assim, se preocupa
em reproduzir através do cenário e
interpretação a vida. O antirrealismo,
se relaciona com um outro sentido da
verdade que não necessariamente
está contido ou é representado pelo
real. No antirrealismo a arte não imita a
vida, mas a expõe através de artifícios
da própria arte que nada remetem à
vida.
A verdade tem muitas formas. Diferente do que se pensa, a
verdade não está simplesmente atrelada ao fato, mas também à
perspectiva. No cinema, é o documentário que se arrisca a admitir
que está lidando com a verdade, enquanto a ficção se esconde
atrás da ideia da mentira mesmo influenciando o imaginário, ou
melhor, a realidade fora da tela. O documentário é livre. É o
formato onde tudo pode mudar, porquê se trata sempre de uma
investigação ou experimento que conta com certa espontaneidade,
seja no desdobramento da
temática, nas falas do
entrevistado, em um registro inesperado
e assim por diante. O documentário
acontece na frente da câmera, no
momento, e é sempre
experimental,
no sentido de que não existe uma
fórmula, é sempre uma experiência
que se revela enquanto acontece.
Além de todas as variáveis
que pertencem ao caráter espontâneo do
documentário, é também parte da grande variedade do universo
documental, a maneira com que será representada a verdade.
O documentário, acolhe as mais diversas formas de expressão
que o cinema de ficção em seu formato hegemônico (cinema
norte americano) rejeitou, como por exemplo a performance.
É dos tons de cinza que existem no meio de “documentário ou
ficção” que nascem as experiências mais interessantes e é a
arte do documentário que cruza mais
livremente e frequentemente essa fronteira.
Com isso tudo em mente, indico 5 documentários limítrofes que
misturam não só os conceitos de documentário e ficção, mas
também incorporam ao filme outros elementos não
pertencentes ao universo cinematográfico,
que ajudam a construir sua
verdade.
149
ECRÃ
ECRÃ
JOGO DE CENA (2007)
150
Coutinho (1933-2014), como é
chamado, é um dos mais famosos
e brilhantes cineastas brasileiros.
Sua obra dá grande importância as
pessoas, ou seja, ao relato. Eduardo
Coutinho tem um diferencial único:
a capacidade de fazer qualquer
um se sentir confortável diante de
uma câmera. Para um desavisado,
talvez esse diferencial pareça pouca
coisa, mas é um dom que poucos
possuem. A câmera é um objeto que
detém um certo poder, a câmera
pode inibir ou fazer se exibir, mas
de qualquer jeito é muito difícil que
passe despercebida. A mágica de
Coutinho é justamente conduzir uma
entrevista de maneira natural, como
se não estivesse de fato conduzindo.
As intervenções são pouquíssimas
e em voz baixa, tranquila, como se
ele fosse apenas a parte ouvinte
de uma conversa e não o diretor,
a voz que a tudo se sobrepõe.
Em Jogo de Cena, Coutinho propõe literalmente um jogo de verdadeiro ou falso.
A experiência começa com a publicação de um anúncio no jornal que convida
mulheres de diferentes faixas de idade a compareceram a uma entrevista e contar
uma história. A partir dessa chamada aberta no jornal foram selecionados alguns
relatos para participarem do filme. As mulheres que tiveram sua história selecionada
então, encontram com Coutinho para o registro de seu relato. Esse registro
servirá de material de estudo para atrizes, algumas de rosto instantaneamente
reconhecíveis, outras não, que interpretarão esses relatos. Como os relatos
e as interpretações estão misturados no filme, o espectador se vê obrigado
a jogar o jogo de Coutinho e tentar adivinhar a quem de fato pertence o relato.
Cena do filme “Jogo de Cena” de Eduardo Coutinho - 2007.
Além da camada interativa
do “jogo”, o filme também
se propõe a fazer um
estudo de cena. Como disse
anteriormente, as entrevistas
são compostas pelas donas
dos relatos, atrizes conhecidas
e atrizes desconhecidas.
Coutinho, se aproveita das
atrizes conhecidas, aquelas
que sabemos que não são
donas do relato, para investigar
como o ator constrói a emoção
por trás do personagem. Na
investigação do processo as
atrizes compartilham suas
dificuldades com o texto, que
muitas vezes estão ligadas às
lembranças de experiências
pessoais e esclarecem mais
sobre relação da interpretação
com a verdade. Uma delas
ressalta que não queria
que a leitura ficasse uma
“mímesis” do relato real, ou
seja, não necessariamente a
aproximação da verdade dentro
da interpretação está atrelada
à repetição do fato idêntico e
sim a uma compreensão dos
sentimentos ali expressos.
Jogo de cena é intensamente
íntimo, possui relatos
emocionantes, apresenta
uma proposta inovadora e
brinca com o elemento central
e definidor da categoria
documentário: a verdade.
EDUARDO COUTINHO
ECRÃ
ECRÃ
PINA (2011)
O diretor alemão Wim Wenders (75
anos) estava trabalhando ao lado
de Pina Bausch na produção desse
documentário quando a coreógrafa
morreu inesperadamente. Com a
ajuda dos alunos de Pina, o diretor
decide terminar o filme e transformalo
em uma homenagem. O filme
é um retrato completo que faz
muito mais do que apenas situar
o espectador sobre quem foi Pina
Bausch e sua relevância artística.
O próprio nome do filme “Pina”
insinua algo carinhoso, íntimo.
O filme começa em um palco
vazio, em seguida as palavras
“Para Pina. De todos nós que
fizemos esse filme juntos” ocupam
a tela. As palavras são substituídas
por um vídeo do rosto de Pina,
sorrindo com um cigarro entre os
dedos, o vídeo desaparece do palco
e então se inicia o espetáculo. O
documentário é como uma carta de
amor que te faz sentir conectado
com Pina através de sua arte. No
filme, seus alunos performam suas
obras mais famosas de maneira
sublime, e é literalmente possível
sentir a saudade e o respeito
assistindo às apresentações. O
filme tem pouquíssimas falas e
essas poucas são falas dos alunos
sobre Pina. Palavras de carinho.
Cena do filme “Pina” do Win Wenders - 2011
152
Cena do filme “Pina” do Win Wenders - 2011
As performances acontecem nas
mais diversas locações e são filmadas
da forma mais bela possível. A câmera
se coloca à disposição da coreografia
de Pina, sendo a prioridade da cena,
o corpo em movimento. Isso subverte
toda lógica de um cinema que muitas
vezes se esquece do corpo em cena.
Frequentemente o foco da obra está
centrado no diretor e quão específica
é aquela história ou temática sob o seu
olhar. No caso desse documentário
em particular, o foco está na obra de
Pina Bausch e quão impactante é. Para
isso, Wim Wenders coloca seu olhar a
serviço do corpo e principalmente a
serviço do registro do espetáculo.
“Pina” é a fusão de cinema,
dança, performance e teatro, em um
espetáculo único. É a tentativa de
explicar algo sobre Pina Bausch, que
não cabe no modelo racional e por isso
se apela para arte. É possível captar
a essência não só da artista, mas da
professora e da pessoa por trás da obra,
assistindo àqueles que a conheciam,
dançarem seus números exibindo
os frutos dos seus ensinamentos.
Em um dos fragmentos que mais
me chamou atenção, uma das alunas
diz estar triste porquê Pina ainda não
a tinha visitado em seus sonhos. Ela
esperava que isso acontecesse logo,
pois adoraria revê-la. Esse é o tipo
de relação que Pina cultivou, uma
conexão tão especial que até mesmo
após seu tempo de vida, seus alunos
anseiam por suas visitas.
WIM WENDERS
ECRÃ
ECRÃ
UMA LONGA VIAGEM (2012)
As experiências como guerrilheira, e mais tarde
como prisioneira da ditadura militar no Brasil,
exercem forte influência sob o trabalho de Lúcia
Murat (70 anos). No documentário, a diretora
retorna a esse passado, mas não para dentro
das prisões e sim para o mundo a fora. Uma
longa viagem retrata a jornada de três irmãos
que cresceram na década de 1960, com ênfase
na jornada de Heitor, o caçula. Para que não se
envolvesse nas lutas armadas contra a ditadura
(como Lúcia), Heitor foi mandado pelos pais para
Londres. Lá, experimentou um tipo de alienação
da situação política brasileira e uma imersão
nas vivências que a viagem proporcionava.
Heitor deu a volta no mundo duas vezes e
experimentou uma variedade imensa de drogas.
Para traduzir uma experiência tão rica e única
quanto a dele, Lúcia Murat extrapolou as fronteiras
do cinema tradicional. Se utilizando de projeção,
Lúcia retrata de maneira deslumbrante as viagens
do irmão. As cenas são representações que
acontecem em frente ao espaço de instalação.
As projeções funcionam como um cenário
interativo que é ao mesmo tempo a moldura e
o pano de fundo para os monólogos de Heitor,
que são interpretados pelo ator Caio Blat.
Cena do filme “Uma longa viagem” da Lúcia Maurat - 2012
154
Na verdade, os monólogos são cartas enviadas por Heitor para seus pais.
Por nunca haver uma leitura das respostas ao longo de toda a ação, se
instaura um sentimento de solidão, que só aumenta com o passar do filme.
Até o cenário projetado deixa de parecer interativo e começa a transmitir
uma certa loucura, como se Heitor estivesse falando com as paredes.
Em paralelo, imagens de arquivo e filmagens de locações da época da ditadura
contam da situação de Lúcia e de seu outro irmão, Miguel. Os caminhos de Lúcia
e Miguel parecem estar completamente desconectados do caminho de Heitor.
Mesmo tendo vindo ao Brasil para rever a família, Heitor sempre voltava a viajar,
até depois da soltura de sua irmã. Miguel estudou, se formou como médico
e começou a trabalhar. O filme então,
ganha um tom mais pessoal, os pais
de Lúcia morrem e Heitor começa a ter
dificuldades relacionadas a saúde mental.
Nesse contexto, cabe a ela e a seu irmão
mais velho, Miguel, cuidarem de Heitor.
O documentário muda de momento e
os caminhos dos três irmãos se unem.
Lúcia fala do medo e da dificuldade
com relação às crises de Heitor. Até então
não tão presente no documentário,
Miguel ganha maior foco, quando, se
torna o “porto seguro” da família, durante
essas adversidades. É possível
relacionar o título do filme (“Uma longa
viagem”) à viagem de Heitor pelo mundo,
sendo ela o enfoque principal. Por
outro lado, em uma análise mais atenta
creio que o título na verdade se refira
à jornada de vida dos três irmãos.
LÚCIA MURAT
ECRÃ
ECRÃ
SALVE O CINEMA (1995)
No ano de 1995, no centenário do
cinema, o diretor iraniano Mohsen
Makhmalbaf (63 anos) coloca um
anúncio no jornal convocando atores
para seu novo filme. O filme começa
com a imagem do carro em que está
o diretor, já com a câmera em mãos
filmando, tentando passar por uma rua
lotada de pessoas que se acumulam
na lateral das ruas e admiram a
câmera. A ideia é promover testes
com atores não profissionais, para
um filme. No final, a gravação desses
testes será o filme, onde cada um
terá interpretado um pequeno papel.
Para essa experiência, que
mistura e debocha dos conceitos
clássicos de documentário e ficção,
Mohsen Makhmalbaf interpreta
o papel do diretor. Com uma
postura extremamente autoritária
e impaciente pede para que as
pessoas reproduzam situações
dramáticas comuns do cinema
chamado de narrativo clássico,
como chorar ou reagir a uma
explosão. A proposta do teste, o
estereótipo do diretor e todo esse
contexto usado no documentário
são retirados do imaginário do
cinema americano, profundamente
enraizado em todo o mundo.
Os pedidos do diretor estão de
acordo com as noções de cinema
daqueles que estão realizando os
testes, mas não de acordo com
a sua experiência cultural. No
caso, estamos falando da cultura
islâmica e suas radicais diferenças
em relação à ocidental. A partir das
pressões impostas pelo diretor, se
revelam as discrepâncias entre a
vida como é mostrada no cinema
ocidental e a vida como ela é de
fato, para os que vivem inseridos
em uma outra lógica cultural. Nesse
caso, os participantes dos testes.
Em um dos meus momentos
favoritos do filme, uma menina
adolescente que não consegue
chorar a comando do diretor se
revolta e diz não entender o porquê
de ela precisar chorar se chorar é
para pessoas fracas. O diretor então
questiona a vontade da menina de
atuar e finalmente, enquanto explica
a importância que tem para ela “fazer
parte desse mundo”, a menina chora.
Em outro momento memorável
do filme, um homem alto, de
sobrancelhas grossas e bem moreno
se apresenta ao diretor e quando é
perguntado que papel ele gostaria
de fazer o homem responde: de
vilão. O diretor o questiona e ele
então responde que quer fazer papel
de vilão por ter a aparência de vilão.
No centenário do cinema
Mohsen Makhmalbaf pergunta:
de quem é o cinema que estamos
assistindo? Dos testes para um
filme de ficção, Makhmalbaf produz
um documentário sobre a ficção
que coloniza os imaginários. No
final, o diretor subverte a ideia
de filme, de interpretação e de
personagem revelando que o filme
se trata dos testes e o papel de
cada um é interpretar a si mesmo.
156
Cena do filme “Salve o cinema” do Mohsen Makhmalbaf - 1995
Cena do filme “Salve o cinema” do Mohsen Makhmalbaf
1995
MOHSEN MAKHMALBAF
ECRÃ
ECRÃ
PACIFIC (2009)
O título se refere a um cruzeiro, de onde foram
retiradas as imagens para o filme. Nenhuma
imagem foi filmada intencionalmente para
o documentário, as imagens utilizadas são
registros pessoais cedidos por passageiros
do cruzeiro. Marcelo Pedroso (41 anos),
utilizando a montagem, insere uma perspectiva
sob a perspectiva dos personagens. O
filme é um retrato socioeconômico de uma
classe social em ascendência. Pacific,
também trabalha a questão da produção
de imagem no mundo contemporâneo,
evidenciando uma disseminação de
tecnologia e uma “desterritorialização” do
olhar do diretor através de seu processo.
“O DOCUMENTÁRIO
ACONTECE NA FRENTE
DA CÂMERA, NO
MOMENTO E É SEMPRE
Cenas do filme “Pacific” do Marcelo Pedroso - 2009
Os registros das famílias, instantaneamente
dialogam com o imaginário do espectador
que muito provavelmente vai pensar nos
seus tios e tias, tornando toda a experiência
do documentário muito cativante. O caráter
pessoal das imagens destrói a hierarquia,
que normalmente existe dentro de um
filme, entre a câmera e a pessoa filmada.
Isso permite uma liberdade total por parte dos
“personagens” que interagem com a câmera
com mais intimidade. Como resultado, o
material tem um forte apelo cômico, mas não
estereotipado. Trabalhando a partir do olhar
do próprio “objeto”, o documentário oferece
de maneira bastante autêntica um olhar micro
sociológico sobre a classe (na época) emergente.
Pacific subverte a ideia do diretor como
criador ou desenvolvedor da imagem, o
colocando numa posição mais passiva diante
do conteúdo, que se impõe a ele. Abdicar do
controle dos registros inverte toda lógica do
processo, é como esculpir, transformar um
bloco denso de mármore em uma escultura
que estava “presa” lá dentro o tempo todo.
É também abdicar das escolhas estéticas e
assim como a temática, permitir que a estética se
apresente. O documentário é uma experiência
ousada, cujo processo é tão fascinante quanto
o próprio filme.
MARCELO PEDROSO
EXPERIMENTAL,
NO SENTIDO DE QUE
NÃO EXISTE UMA
FÓRMULA, É SEMPRE
UMA EXPERIÊNCIA QUE
SE REVELA ENQUANTO
ACONTECE.”
CRYSTAL DUARTE
159
COLETIVO DESCEU (@DESCEU_)
APOIE ARTISTAS INDEPENDENTES
@LABEXPERIMENTOS
DIREÇÃO CRIATIVA E DESIGN GRÁFICO > VICTORIA VIANNA
163
A
A
A