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LAB 01 - "Experimentação do cotidiano pela arte"

Experimentos texto-visuais: cultura, arte e moda.

Experimentos texto-visuais: cultura, arte e moda.

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1A


FOTO: ARAD

2A


FOTO: ARAD

3A


YOU LIVE WHEREVER YOU LIVE,

YOU LIVE WHEREVER YOU LIVE,

YOU DO WHATEVER WORK YOU DO,

YOU DO WHATEVER WORK YOU DO,

YOU TALK HOWEVER YOU TALK,

YOU TALK HOWEVER YOU TALK,

YOU EAT WHATEVER YOU EAT,

YOU EAT WHATEVER YOU EAT,

YOU WEAR WHATEVER CLOTHES YOU WEAR,

YOU WEAR WHATEVER CLOTHES YOU WEAR,

YOU LOOK AT WHATEVER IMAGES YOU SEE...

YOU LOOK AT WHATEVER IMAGES YOU SEE...

Você mora onde quer que você more,

você faz qualquer trabalho que você faça,

você fala como quer que você fale,

você come o que quer que você coma,

você veste qualquer roupa que você vista,

você olha para qualquer imagens que você vê…

b 1



YOU’RE LIVING HOWEVER YOU CAN.

“IDENTITY” …

OF A PERSON,

OF A THING,

YOU ARE WHOEVER YOU ARE.

OF A PLACE.

“IDENTIDADE” ...

VOCÊ ESTÁ VIVENDO COMO VOCÊ PODE.

DE UMA PESSOA,

DE UMA COISA,

VOCÊ É QUEM QUER QUE VOCÊ SEJA.

DE UM LUGAR.

2 3



“IDENTITY”.

THE WORD ITSELF GIVES ME SHIVERS.

IT RINGS OF CALM, COMFORT, CONTENTEDNESS.

WHAT IS IT, IDENTITY?

TO KNOW WHERE YOU BELONG?

TO KNOW YOUR SELF WORTH?

TO KNOW WHO YOU ARE?

HOW DO YOU RECOGNISE IDENTITY?

WE ARE CREATING AN IMAGE OF OURSELVES,

WE ARE ATTEMPTING TO RESEMBLE THIS IMAGE…

IS THAT WHAT WE CALL IDENTITY?

THE ACCORD

BETWEEN THE IMAGE WE HAVE CREATED OF OURSELVES

AND… OURSELVES?

JUST WHO IS THAT, “OURSELVES”?

“IDENTIDADE”

A PRÓPRIA PALAVRA ME DÁ ARREPIOS.

RESSOA CALMA, CONFORTO E CONTENTAMENTO.

O QUE É ISSO, IDENTIDADE?

SABER AONDE VOCÊ PERTENCE?

SABER O SEU VALOR PRÓPRIO?

SABER QUEM VOCÊ É?

COMO VOCÊ RECONHECE A IDENTIDADE?

NÓS ESTAMOS CRIANDO UMA IMAGEM DE NÓS MESMOS,

NÓS ESTAMOS TENTANDO PARECER COM ESSA IMAGEM...

É ISSO O QUE CHAMAMOS DE IDENTIDADE?

O ACORDO

ENTRE A IMAGEM QUE CRIAMOS DE NÓS MESMOS

E... NÓS MESMOS?

QUEM É ESSE, NÓS?

4 5



WE LIVE IN THE CITIES.

THE CITIES LIVE IN US …

TIME PASSES.

WE MOVE FROM ONE CITY TO ANOTHER,

FROM ON COUNTRY TO ANOTHER.

NÓS MORAMOS EM CIDADES

AS CIDADES MORAM EM NÓS…

O TEMPO PASSA.

NÓS MUDAMOS DE UMA CIDADE PARA OUTRA,

DE UM PAÍS PARA OUTRO.

MUDAMOS DE IDIOMA,

MUDAMOS HÁBITOS,

MUDAMOS DE ROUPAS,

OPINIÃO

MUDAMOS MUDAMOS DE ROUPA,

TUDO.

TUDO MUDAMOS MUDA, E RÁPIDO.

TUDO.

IMAGENS ACIMA TUDO DE TUDO…

MUDA, E RÁPIDO.

WE CHANGE LANGUAGES,

WE CHANGE HABITS,

WE CHANGE OPINIONS,

WE CHANGE CLOTHES,

WE CHANGE EVERYTHING.

EVERYTHING CHANGES, AND FAST.

IMAGES ABOVE ALL…

CHANGE FASTER AND FASTER AND THEY HAVE

BEEN

BEEN MULTIPLYING MULTIPLYING AT A AT HELLISH A HELLISH RATE RATE EVER EVER SINCE SINCE THE

THE

EXPLOSION THAT UNLEASHED THE ELECTRONIC IMAGES.

IMAGENS ACIMA DE TUDO…

THEY THE ARE VERY THE IMAGES THAT ARE NOW REPLACING

PHOTOGRAPHY.

MUDAM CADA VEZ MAIS RÁPIDO E ELAS TÊM SE

MULTIPLICADO MUDAM CADA VEZ EM UM MAIS RITMO RÁPIDO INFERNAL ELAS DESDE

TÊM

SE MULTIPLICADO A EXPLOSÃO QUE EM DESENCADEOU UM RITMO INFERNAL AS IMAGENS

DESDE A

EXPLOSÃO ELETRÔNICAS. QUE DESENCADEOU SÃO AS IMAGENS AS IMAGENS QUE ELETRÔNICAS,

AGORA

AS MESMAS IMAGENS ESTÃO QUE SUBSTITUINDO AGORA ESTÃO A SUBSTITUINDO FOTOGRAFIA.

A FOTOGRAFIA.

6 7



WE HAVE LEARNED TO TRUST THE PHOTOGRAPHIC IMAGE.

CAN WE TRUST THE ELECTRONIC IMAGE? WITH PAINTING

EVERYTHING WAS WAS SIMPLE. SIMPLE. THE THE ORIGINAL ORIGINAL WAS WAS

THE

ORIGINAL, UNIQUE AND AND EACH EACH COPY COPY WAS WAS A A COPY COPY – A FORGERY.

WITH PHOTOGRAPHY PHOTOGRAPHY AND AND THEN THEN FILM FILM THAT IT BEGAN BEGAN TO

GET COMPLICATED. THE ORIGINAL WAS A NEGATIVE.

NEGATIVE,

WITHOUT A PRINT, IT IT DID DID NOT NOT EXIST, EXIST, JUST JUST THE

OPPOSITE, EACH EACH COPY COPY WAS WAS THE THE ORIGINAL. ORIGINAL. BUT NOW BUT WITH

NOW

THE WITH ELECTRONIC, THE ELECTRONIC AND SOON IMAGE THE DIGITAL, AND SOON THERE THE IS NO DIGITAL,

MORE

NEGATIVE THERE IS AND NO MORE NO MORE NEGATIVE POSITIVE. AND THE NO VERY MORE NOTION POSITIVE.

OF

THE VERY NOTION THE ORIGINAL OF THE IS OBSOLETE.

ORIGINAL IS OBSOLETE.

EVERYTHING IS A COPY.

EVERYTHING IS COPY.

ALL DISTINCTIONS HAVE BECOME ARBITRARY.

NO WONDER THE IDEA OF

ALL DISTINCTIONS HAVE BECOME ARBITRARY.

IDENTITY FINDS ITSELF IN SUCH A FEEBLE STATE.

NO WONDER THE IDEA OF

IDENTITY IS OUT, OUT OF FASHION. EXACTLY.

IDENTITY FINDS ITSELF IN SUCH A FEEBLE STATE.

THEN WHAT IS IN VOGUE, IF NOT FASHION ITSELF?

IDENTITY IS OUT, OUT OF FASHION. EXACTLY.

BY DEFINITION, FASHION IS ALWAYS IN.

THEN WHAT IS IN VOGUE, IF NOT FASHION ITSELF?

NÓS APRENDEMOS A CONFIAR NA IMAGEM FOTOGRÁFICA.

PODEMOS CONFIAR NA IMAGEM ELETRÔNICA?

COM COM A PINTURA, A TUDO TUDO ERA ERA SIMPLES. O ORIGINAL O ERA ERA ÚNICO O

E

ORIGINAL CADA E CÓPIA CADA CÓPIA ERA UMA ERA CÓPIA UMA CÓPIA - UMA - FALSIFICAÇÃO.

UMA FALSIFICAÇÃO.

COM A FOTOGRAFIA E ENTÃO O FILME, ISSO COMEÇOU A FICAR

COMPLICADO. O ORIGINAL ERA UM NEGATIVO. NEGATIVO, SEM IMPRESSÃO

NÃO EXISTIA, PELO CONTRÁRIO, CADA CÓPIA ERA O ORIGINAL.

MAS AGORA, COM ELETRÔNICO, E EM BREVE O DIGITAL, NÃO HÁ

MAIS NEGATIVO OU POSITIVO.

A PRÓPRIA NOÇÃO DE ORIGINAL É OBSOLETA.

TUDO É UMA CÓPIA.

TODAS AS DISTINÇÕES SE TUDO TORNARAM É CÓPIA.

ARBITRÁRIAS. NÃO É DE

ADMIRAR QUE A IDEIA DE IDENTIDADE SE ENCONTRE EM UM

TODAS ESTADO AS TÃO DISTINÇÕES DÉBIL. IDENTIDADE SE TORNARAM ESTÁ ARBITRÁRIAS. FORA, FORA DE NÃO MODA.

É DE

EXATAMENTE. ADMIRAR QUE ENTÃO A IDEIA O DE QUE IDENTIDADE ESTÁ EM ALTA, SE ENCONTRE SE NÃO A PRÓPRIA

EM UM

ESTADO MODA? TÃO POR DÉBIL. DEFINIÇÃO, IDENTIDADE A MODA ESTÁ FORA, SEMPRE FORA NA DE MODA.

EXATAMENTE. ENTÃO O QUE ESTÁ EM ALTA, SE NÃO A PRÓPRIA

MODA? IDENTIDADE POR DEFINIÇÃO, E MODA, AS A DUAS MODA SÃO ESTÁ CONTRADITÓRIAS?

SEMPRE NA MODA.

IDENTIDADE E MODA, AS DUAS SÃO CONTRADITÓRIAS?

BY DEFINITION, FASHION IS ALWAYS IN.

IDENTITY AND FASHION, ARE THE TWO CONTRADICTORY?

IDENTITY AND FASHION, ARE THE TWO CONTRADICTORY?

MONÓLOGO INICIAL DO FILME:

“NOTEBOOKS ON CLOTHES AND CITIES” - WIM WENDERS (1989)

8 9



CONTEÚDOS

CONTEÚDOS

CONTEÚDOS

CONTEÚDOS

CONTEÚDOS

VOZES por VICTORIA VIANNA 14

EDITORIAL 12

COLABORADORES 13

ÃO 16

PEK0 22

001 32

CORPO COLETIVO 38

MANIFESTO MODA 40

CIBORGUE_CIBERFEMINISMO_CIBERCULTURA 42

REDE DE CICLOS 46

++++++++++++PROJETOS

RECORDAÇÕES, ESPERANÇA, AMAÇU,

GARRAS AFIADAS, AS NAMORADAS, DREAMBOY,

HIMAÝATAN, NÃO SABE ME VER - SEM TÍTULO, SOMOS,

IMAGENS DE 2018 UM EDITORIAL DE M0DA,

COLAGENS, SILLÍCIO.

ECRÃ por CRYSTAL DUARTE 126

10 11



Editorial

Escrever esse primeiro editorial é tão difícil quanto prazeroso, significa que, no

momento em que digito essas palavras, a LAB (edição 01) está em processo

de finalização. E quantos não foram os processos envolvidos para chegar às

partes finais, e os tantos outros que ainda irão acontecer até o momento em

que você está lendo. Essa edição partiu exatamente dessa constância de

processos envolvidos em torno de algo que se cria e do valor de cada um deles,

muito mais do que o resultado final, que nada mais é do que a consequência.

Sendo essa a primeira edição do projeto que vem sendo desenvolvido

ao longo dos últimos 6 meses, mas que está presente em ideia há

mais de 1 ano e meio, cabe dizer que a LAB é um projeto experimental

de uma produção texto-visual colaborativa. Não há a presunção de

ser algo totalmente inovador ou superior ao que já foi feito por outras

publicações. Tudo aqui é parte da união do desejo de explorar habilidades

concomitantemente a gerar um espaço livre de troca, de debate e de

exposição acerca da cultura contemporânea, em suas diversas formas.

São os processos e o cotidiano que me inspiraram a desenvolver esse projeto

e são os colaboradores que fazem “a experimentação do cotidiano pela arte”.

Nessa edição, buscou-se trazer narrativas das expêriencias do cotidiano

que viram arte pelas mãos de criadores de música, de arte, de imagens e de

vida. A colaboração de cada um faz do coletivo a força para a mudança nas

estruturas e sistemas. Minha eterna gratidão aos que aqui estão presentes.

Coube também a essa edição, com o advento da pandemia do covid-19 e o

extremo avanço da participação do digital na vida das pessoas, discutir essa

relação que vem se desenvolvendo a passos largos, num local ainda pouco

conhecido como a internet. Tema escolhido não com a intenção de conspirar

contra ou a favor, mas sim de gerar discussões necessárias acerca desse mundo

digital, tão presente, mas ainda desconhecido em sua magnitude e domínio.

Acredito que a LAB 01, ainda que numa forma inicial, conseguiu ser construída

amarrando um compilado de conteúdos pertinentes e demonstrando a

potência criativa de artistas independentes. A você que está lendo, espero que

a LAB consiga proporcionar uma leitura que gere, ainda que indiretamente,

uma troca de experiências com os artistas aqui presentes, assim como

reflexões acerca dos temas, para que o debate continue para além das páginas.

Boa leitura e goze sem moderação.

Victoria Vianna

COLABORADORES

Arad

Crystal Duarte

Cyrilo

Dau

Filipe Braga

Gabriel Gil

Gabrielzíssima

Gustavo Cunha

João Suhett

Lele Reis

Marina Dalgalarrondo

Matheus Valois

Pek0

Satänika

Thaynara Bragança

Yu Frazão

Yuri Ladarin

COLABORADORES

12 13



VOZES

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VOZES

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VOZES

16

COR, FORMAS,

ESTRUTURAS,

TEXTURAS E

AMPLITUDE.

A ÃO é tudo isso,

é moda fora da caixa,

é criatividade e arte em

versão vestível.

OA

A marca brinca com volumes e formatos, criando novas

estruturas corpóreas sobre o corpo de quem usa, traz

um estudo de cor muito bem elaborado e franzidos que

contrastam com a voluptuosidade das modelagens.

As peças são unissex, sendo a grande maioria

desenvolvida em tecidos 100% algodão, que inclusive é a

referência para o nome “ÃO”.

Ã

Foi através do Projeto Estufa que a marca despontou,

apresentando suas coleções no SPFW a partir de 2018.

Os desfiles se destacam pelo conjunto da produção: roupas,

modelos, beauty e atitude, oferecendo uma moda potente

que consegue trazer novidade e inovação para as passarelas.

E não é aquela “novidade da estação”, mas sim coleções

com vestimentas que se distinguem da obviedade que vem

sendo perpetuada ultimamente pela moda das passarelas

brasileiras, salvo exceções.

ÃO de Marina Dalgalarrondo tem forte relação com a

arte, essa conexão é perceptível na sua simplicidade

extremamente forte, gosto de pensar na marca dessa

forma. Suas modelagens e formas não são nada simples,

mas se fazem parecer leves e despretensiosas, de uma

maneira muito positiva e, ao mesmo tempo, é de um

impacto visual impressionante, que não tem como não

parar para olhar e apreciar as estruturas, os volumes

e as cores. Parece que tudo casa, e casa muito bem.

Para conhecer um pouco mais sobre a ÃO, tivemos a

oportunidade de entrevistar sua estilista e idealizadora,

Marina Dalgalarrondo, e entender um pouco mais do seu

universo, inspirações e criações.

TEXTO E ENTREVISTA > VICTORIA VIANNA

AGRADECIMENTOS > MARINA DALGALARRONDO

@ao.algo

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VOZES

VOZES

V.V: Como nasceu a ÃO? O que te motivou a

começar a marca?

M.D: A ÃO nasceu em meados de 2017 com

o desejo de desenvolver um projeto mais

ousado de vestuário, de bancar cores fortes/

estranhas/não-convencionais e de criar uma

espécie de disparidade de referências estéticas

dentro de uma coleção. O que me motivou, e

ainda motiva é trabalhar com criação dentro

de um processo experimental que engloba

uma pesquisa relacionada às Artes Visuais.

V.V: Os desfiles, além das peças, trazem

consigo toda uma estética que traduz a

temática da coleção apresentada. Qual

a importância dessa fusão entre peças,

maquiagem, modelos, som e tudo que

envolve o desfile, para a identidade da

marca?

M.D: Esta fusão é fundamental. Gosto de

pensar em teatro quando penso em um

desfile, justamente porque é onde cada

setor existe como parte complementar de

uma imagem total (acting, trilha, luz, figurino

(styling e design), maquiagem, locação,

vídeo, cenário e também o público) . E

acredito que estas frentes são igualmente

importantes e complexas. Quando desenho

uma coleção, ela carrega referências de

variadas linguagens, como música, cinema,

pintura, performance, e até referências

ordinárias do cotidiano. Para apresentar este

universo gosto de desenhar junto com todos

os colaboradores elementos que enriqueçam

essa comunicação. A trilha por exemplo, é

um elemento que me cativa muito. Fiz uma

coleção de AW19 chamada “Texturesss” que

foi criada a partir de uma trilha original para o

desfile. A música aconteceu antes, processo

incomum para este tipo de apresentação.

V.V: As coleções da ÃO não tem aquela

necessidade de seguir ou “investir” em

tendências de moda, o que as tornam

mais atemporais e mais autênticas. É

mais libertador ou mais desafiador criar

sem se preocupar em necessariamente

se encaixar dentro de certos padrões

que a indústria da moda ainda impõe?

M.D: É mais verdadeiro, é como eu sei

fazer. Sinceramente tenho pouquíssima

paciência para desfiles de moda, salve

algumas exceções. Porém, também

gosto de olhar para a tendência de moda.

É incrível como existe um senso estético

comum acontecendo em um tempo

específico, isso normalmente é fruto de

questões políticas, sociais e econômicas.

Mas gosto de captar a estética de um tempo

a partir de outras fontes fora da moda.

Caso contrário seria um tema fechado em

si próprio e passível de más interpretações.

V.V: As peças que você cria tem nas formas

e nas modelagens uma estética muito forte,

dando um novo formato ao corpo. O que

te inspira a criar essas formas? Existe de

fato uma intenção de “modificar” o formato

do corpo, ou é mais um interesse em

questões de criação com modelagens mais

“atípicas”?

M.D: Gosto de distorcer a forma da silhueta

tradicional com volumes e texturas e

isso vai de encontro com um desejo de

inventar novos corpos. Gosto de explorar

a experiência sensitiva que é “habitar”uma

forma incomum. Também me interesso

por processos de criação de modelagens

que fogem da metodologia usual, gosto de

cortar um tecido em um formato randômico,

e entender como ele se comporta no corpo.

“O que me motivou, e ainda

motiva, é trabalhar com

criação dentro de um

processo experimental

que engloba uma pesquisa

relacionada às

Artes Visuais.”

18 19



VOZES

VOZES

V.V: A coleção “CAMPO/FIELD RELIEF” foi criada a partir do acessório

“field relief” que é utilizado em cavalos para evitar o contato com moscas

que transmitem doenças. Como se deu esse processo criativo?

M.D: Eu queria falar sobre a utilização da máscara como acessório limitante,

mas com um potencial direcionamento para o auto-cuidado /auto-conhecimento.

Criei um acessório conceitual que vela todos os sentidos da cabeça. Na pesquisa

visual para o desenvolvimento desta hiper-máscara achei este acessório para

cavalos e percebi nele uma série de analogias com o presente momento. É

um acessório que direciona ou fecha a visão, o olfato e audição dos cavalos,

parte para evitar doenças, parte para

limitar a percepção do animal frente

ao campo. Ironicamente é chamada de

“Field Relief”, que traduzindo livremente

seria “Alívio do/no Campo”. Acredito

que o único alívio possível em vedar

qualquer sentido do nosso corpo se dá

na amplitude da percepção do mesmo.

Quando fecho os os olhos, a boca e o

nariz, só me resta olhar para dentro e

ouvir os barulhos e sinais que meu corpo

faz. A máscara de “Campo” é também

um signo de tantos sentimentos difíceis

que nos atravessam neste período,

a introspecção, o medo do escuro,

a paralisia e perda de perspectiva.

V.V: O tema dessa revista é “EXPERIMENTAÇÃO” e a ÃO como marca faz isso

com excelência, seja nas formas, nas cores, na produção ou nos materiais.

Você enxerga a marca como de fato um trabalho de experimentação pessoal?

M.D: Sim, a ÃO é não só uma marca, mas um lugar de experimentação. Digo

isso porque gosto de me envolver em outros projetos que possam abrir um

campo experimental para a vestimenta. Exposições, Videos, Performances, etc.

É importante deixar em aberto cada coleção, para que eu possa desenvolver

com meus colaboradores novas metodologias, abrir possibilidades para trabalhar

com materiais incomuns e dar muita margem para o erro (muita mesmo).

V.V: Ainda sobre essa coleção, ela

tem uma pegada e uma temática que

se relaciona muito com a situação

que estamos vivendo, a ideia da

proteção em relação ao mundo

externo e no foco para o campo

interior. A pandemia foi um fator que

influenciou de alguma forma essa

ideia? Se sim, como?

M.D: Sim, como mencionei anteriormente. Vivemos tempos muito sombrios. Em fevereiro

já havia desenhado a coleção inteira na cor preto, era também um desejo de falar sobre

um impulso de revolução, de luto, de perdas em vista ao nosso total despreparo político e

social. Quando este cenário passou a envolver uma pandemia mundial, a força desta

revolta se intensificou e se canalizou para um pensamento de que, por mais cliché

que soe, precisamos repensar nossa postura e isso requer sim, um olhar para dentro.

V.V:

O que a gente pode esperar da ÃO que ainda está por vir?

M.D: Em termos práticos, lançaremos a nossa coleção SS21

pelo SPFW. Até o fim do ano teremos um site com um desenho

muito especial, e devemos invadir meios inesperados, rs.

Também acredito que exista uma força potente que irá emergir

do horror que vivemos atualmente, espero que a estética do

nosso tempo responda à altura da dimensão dessa catástrofe.

Essa é a função da moda, registrar tudo isso em lookinhos.

TODAS AS IMAGENS SÃO DA COLEÇÃO CAMPO/ FIELD RELIEF DA ÃO

FOTOS: Alexandre Furcolin

20

Styling e Modelo: Amanda Hackmann

21



Pek0

“Eu sou uma travesti que faz música eletrônica,

é basicamente isso. Começando esse texto de

uma forma bem debochada, é basicamente isso,

e é basicamente também uma forma que traduz

o que é Pek0 em outras palavras, se tivesse

que ser no dicionário ou algo assim. Mas é

isso, o meu corpo, esse corpo que é dado como

estranho. Não sei se é certo dizer isso, muito pelo

contrário, porque no final eu acho que deveria

ser mais visto como normal, a proposta de

aceitar quem você é, experimentar quem você é,

e descobrir.

Porque eu acho que no final, tudo que eu não

quero ser, tudo que eu não queria ser, era um

personagem. E eu acho que meio que tudo que

eu me tornei acabou sendo, e não, e sim. Essa

questão que é o que eu acho que me define. De

fato, a resposta é não, óbvio, mas a dúvida é

sempre interessante de ser jogada, brincada e

manipulada.”

(Pek0)

VOZES

A DESCRIÇÃO DE SI MESMA POR PEK0, ESCRITA

AO LADO, ACONTECEU DENTRO DE UMA

LONGA CONVERSA QUE TIVEMOS PARA ESSA

ENTREVISTA. APESAR DA NOSSA RELAÇÃO DE

PROXIMIDADE E AMIZADE, ESSE DIÁLOGO FOI

PARA MIM O QUE EU ESPERO QUE SEJA PARA

VOCÊ: CONHECER MAIS DA ARTISTA COMO

ARTISTA, MAS TAMBÉM DA ARTISTA COMO

PESSOA. ASSIM, BUSQUEI QUESTIONAR NÃO

COM O OBJETIVO DE QUERER INFORMAÇÕES,

MAS MUITO MAIS DA VONTADE DE OUVIR,

OUVIR A ARTISTA FALAR SOBRE SI E SUA ARTE.

FEITA PRESENCIALMENTE, TEMOS AQUI

TRANSCRITAS FALAS COM MARCAS DE

ORALIDADE, QUE PODEM DEIXAR O TEXTO

MAIS LONGO E INFORMAL, COM O INTUITO DE

QUE, ASSIM COMO EU TIVE A OPORTUNIDADE

DE OUVIR ESSAS PALAVRAS, QUE A LEITURA

DELAS TAMBÉM PERMITA UMA APROXIMAÇÃO.

ENTREVISTAR PEK0 PESSOALMENTE TORNA

TUDO O QUE AQUI ESTÁ ESCRITO MUITO MAIS

VISCERAL E PESSOAL. QUE A INTENSIDADE E

A PROFUNDIDADE DO QUE FOI DITO CONSIGA,

AINDA QUE EM MENOR PROPORÇÃO,

ESTAREM PRESENTES TAMBÉM NO TEXTO.

PEK0 É MULTIARTISTA, É CORPO, É SOM, É

VOZ, É CRIADORA E CRIATURA (OU, COMO

EU TAMBÉM GOSTO DE DIZER, É SEQUELA

E MILAGRE). COM 3 ÁLBUNS LANÇADOS,

TANTAS OUTRAS PERFORMANCES FEITAS,

ALÉM DE OUTROS PROJETOS ARTÍSTICOS

REALIZADOS, PEK0 FALA NESSA ENTREVISTA

SOBRE TUDO ISSO, SOBRE PROCESSO

CRIATIVO, SOBRE MÚSICA, SOBRE ROUPA,

SOBRE INDIVIDUAL E COLETIVO, SOBRE SER,

SOBRE VIDA E SOBRE ARTE, TUDO ISSO DE

UMA FORMA MUITO ORGÂNICA E ESPECIAL.

22

TEXTO E ENTREVISTA> VICTORIA VIANNA

FOTOS> KARIN SANTA ROSA

23



VOZES

Pelo que você se lembra, como começou

seu processo de experimentação?

As memórias que eu tenho... É muito difícil

de responder essa pergunta, de cara assim.

Eu fui buscar as memórias que eu tenho

mais novas, com auxílio de fotografias e

histórias, já tem muita experimentação. Então

eu realmente não sei dizer quando começou,

mas eu sei quando eu assumi mais isso.

Eu acho que a partir do cenário eletrônico,

a partir das festas eletrônicas, a partir de

frequentar o cenário eletrônico, de ver a

multiplicidade que tinha aquele espaço, e

esse palco aberto que vinha se criando,

da performance, quando eu comecei a

frequentar o cenário eletrônico. Acho que

nesse momento foi quando veio meu gatilho,

dentro da pista de fato, onde surge esse

impulso, esse start, para querer trabalhar e

jogar essa experimentação tão pessoal, que

eu carregava na minha vida toda, para arte e

para projetar em algum lugar. Eu acho que é a

partir de ver esse cenário, de ver esse espaço.

Além da produção musical, você também já performou diversas vezes. Como se difere

o processo criativo/experimental de um e do outro?

Eu acho que a maior diferença é que o processo para criar performances são

pautados muito mais em um resultado imagético, no que vai se definir de imagem,

e é meio que também o como é restrito esse espaço. Porque eu gostaria de poder

furar essa bolha da performance com som e ser uma coisa só, porque no final é tudo

uma coisa só, mas não, o cenário é cobrado o trabalho de performance como algo só

de imagem, só de corpo e não é permitido som, e eu sinto a falta na verdade do som

nas minhas performances corporaispartir de ver esse cenário, de ver esse espaço.

Pelo que eu me lembro, a performance começou na sua vida de maneira muito

espontânea, com você se pondo nesse lugar, de fato indo até o palco e se

expressando, até que em um determinado momento sua figura como performer foi

se consolidando e passou a ser um trabalho. De que maneiras isso acrescentou ou

mudou sua forma de expressão e representação artística?

VOZES

O processo de me assumir como performer, de me tornar performer dentro da cena eletrônica,

vem desse intuito natural, desse impulso de ir para o palco, quando se tinha um palco. Eu

acho que a partir do momento que existiu a troca de estar no palco ali de graça, por vontade

própria, sem ter pensado em nada e ao mesmo tempo pensando em tudo, porque é de

uma segurança exigida e de estar predisposta. Mas acho que o que muda, o fator que que

faz essa grande mudança, independente do dinheiro, eu acho que é esse local que surge

essa troca do público comigo, a partir disso eu acho que eu mesma ali vi, caramba eu devo

pensar mais sobre isso.

Eu acho que é nesse momento, no momento que eu subo ao palco de graça, que eu me

toco que eu devo ser paga, que eu me toco que eu devo pensar em alguma coisa e que

esse espaço está aberto, mas é ali no palco que eu descubro tudo isso, estando de graça,

por vontade própria. Eu acho que muda nesse momento, esse lugar de intuitivo para algo

pensado, muda justamente no momento que eu subo no palco.

(existe também uma mudança no sentido de criação? a partir do momento que a

performance deixa de ser totalmente intuitiva, para quando ela passa a ser feita a

partir de uma ideia pré-concebida?)

É sempre a partir do espontâneo, é um roteiro aberto, tem-se uma proposta de início, meio

e fim, eu sei por onde eu vou caminhar, mas por quanto tempo e o “corpo”, vai depender da

batida. Eu acho que tem também o processo de construção, de talvez uma persona, podemos

chamar assim, que querendo ou não foi criado, mas de uma forma muito organicamente,

mas querendo ou não foi criado, a partir dessa proposta de pensar até onde é orgânico e até

onde não é. Porque a performance é apresentada para mim, justamente como um conflito

do ator em entender o que é personagem e o que não é, e dentro da performance não existe

mais personagem, não existe mais ator, é um outro local, e é muito a partir desse conflito de

o que personagem que se é criado e do que é real, do que orgânico e do que não é, e no

final a resposta é que tudo é orgânico, mas é compreensível que também não seja.

(os seus “sons”?)

Não necessariamente os meus sons, mas de ter também autonomia sobre o som, porque nem

sempre eu tenho essa autonomia. Então a maior diferença eu acho que é justamente quando

eu vou pensar numa performance é um projeto que eu deixo aberto a o se moldar ao público,

se moldar ao som, se moldar ao próprio palco que eu não sei o que vai ser, que às vezes eu

tenho que improvisar e que às vezes não existe. Eu acho que é mais por aí, enquanto no som

o processo flui com uma autonomia, e aí eu não tenho que me moldar a nada e é justamente

gozar de não ter que se moldar a nada, de ter a minha opinião, de ter o meu som, e acho que

talvez seja isso, talvez um complemente o outro

24 25



VOZES

VOZES

No âmbito musical, como começou esse processo?

Eu comecei escrevendo. Eu escrevia poesias e aí em

um momento eu juntei alguns amigos e a gente fez

uma primeira banda, onde outras pessoas cantavam e

eu escrevia as letras e meio que tava também numa

direção musical talvez, uma coisa assim, mas era tudo

ainda muito jovem. E a partir de escrever esse projeto,

eu começo a estudar no teatro a performance e em

paralelo o cenário eletrônico começa a se consolidar

mais e ter um espaço de experimentação maior e eu, a

partir disso, de ser letrista, de escrever para os outros,

começo a escrever para mim mesmo, começo a escrever

sobre a minha vivência, num ato performático, quando

eu digo ato performático é referente a um corpo que fala

e eu comecei a escrever pensando nisso, na mensagem

que o meu corpo pode falar e que só o meu corpo pode

falar e o valor disso. A partir disso é de onde eu começo.

Já são 3 álbuns lançados: Noites, Nóias e Muito Mais (2018), Sequela dos Peixes (2019) e

Medo Profundo (2020), todos elaborados e produzidos totalmente por você. Como foram

essas experiências?

O primeiro CD, é muito um primeiro contato com a música eletrônica, então pouco me servia,

pouco me bastava. Eu digo, esse “pouco” é a primeira batida, a primeira proposta de batida que

eu costumava experimentar em cima da proposta de voz, porque sempre surgiu a partir ir da

proposta de voz, dava certo, as coisas davam certo muito facilmente. Era muito orgânico, uma

relação de sentir e é isso e não pensar muito. Muito fluido, muito natural, muito espontâneo.

Já no segundo CD sou eu questionando um pouco mais, pensando um pouco mais e buscando

um pouco mais de diferença, de uma opinião mais minha, porque até então o primeiro CD, por fluir

tão fácil, gera um trabalho que tem uma personalidade, não pode deixar de ter uma personalidade,

mas que tem menos personalidade, que eu senti falta na verdade, de personalidade, acho que

a fala é essa: eu senti falta de personalidade. E aí surge o segundo projeto nessa carência em

mostrar algo mais MPB, algo mais erudito.

(mais personalidade em questão de som? musicalmente?)

É, porque ficou uma personalidade, uma estética, muito clichê de música eletrônica, o primeiro.

Os beats que eu usei, um tanto quanto clichês.

(Você não acha que você tem essa visão agora? Conforme o tempo passa a gente analisa

de uma outra forma.)

Eu sempre me questiono isso também, e sempre quando escuto eu nunca acho nada clichê e

sempre acho muito inovador. Mas é mais a própria proposta de som, de ser um beat convencional,

de ser pouco trabalhado eu diria, nessa questão sonora. Era uma questão poética muito maior,

uma necessidade de uma expressão poética, de falar poesia, muito maior. Já no segundo, eu

não queria mais esse cenário eletrônico, eu queria uma coisa mais orgânica, algo que dialogasse

mais com a minha personalidade, até mesmo de ouvinte, porque eu escuto muito MPB e queria

produzir algo mais, que tivesse a referência da MPB, mas que também não fugisse tanto de uma

pegada eletrônica, de uma pegada techno 4x4, dessa estética que eu gosto muito. E aí surge

esse segundo CD, nessa carência, tudo numa proposta de qualidade sonora mais desenvolvida,

e toda proposta estéreo, que eu ainda não havia trabalhado, e pensar em jogar os instrumentos

para um lado, jogar os instrumentos pro outro, começar a experimentar a respeito disso.

E no terceiro CD, é como se eu voltasse para o eletrônico, pra pista de dança, pro dançante, e

fosse pra uma pista de dança com personalidade, como se eu estivesse respondendo o primeiro

CD. A partir disso eu gero todo o projeto do Medo Profundo que é pensar na pista de dança num

lugar tenebroso, num lugar assustador e ao mesmo tempo dançante, brincar com expectativa,

com suspense, muito suspense, muito inspirado nas trilhas de suspense.

E uma qualidade, quando vai para pista, vai para uma pista de dança de qualidade maior. No

primeiro projeto, essa fluidez toda, levou para um espaço que eu nem refletia muito “do que eu

estou fazendo”, é um House? É um isso? É um aquilo? E realmente, o som tem uma pegada de

Techno, mas tem uma pegada de house também, mas também não se configura nesse padrão.

E quando já vai para o Medo Profundo já é quase um Trance, porque eu pego o certos samples

que são de 180 BPM e coloco ele x2, e aí isso gera 360 BPM, isso nem toca sabe, ninguém toca,

não é nem tocável, é quase um prog. Mas é um elemento, não é um prog, não se consiste num

prog, tal qual não se consiste no techno, tal qual não se consiste em quase nada. Se consiste

num som com estilísticas, com estéticas, com semblantes, com nuanças, que se perpassam por

vários ritmos, em vários gêneros.

26 27



VOZES

Todo desenvolvimento criativo

é composto de erros e acertos.

Como você se relaciona com os

erros? Existe de fato erro e acerto

ou são só explorações que levam a

diferentes resultados?

A minha relação com erros e acertos

eu acho que eu posso comparar à

relação com a performance visual,

que foi gerada organicamente e no

palco. O espaço de experimentar era

dado no palco e isso se traduz muito

para como eu levo também o projeto

musical, que não necessariamente foi

apresentado direto no palco, mas eu

sempre fiz muita questão de mostrar

os meus processos, entendendo que

o artista está sempre em evolução

e a proposta musical é totalmente

pautada nisso, em mostrar o processo,

e mostrando o processo vão aparecer

os erros e acertos.

Por exemplo, continuando na

performance, existia um momento

em que as próprias performances

que seriam de freestyle, que é esse

método que você só chega e vai ali

com seu corpo, com o que você tem e

se joga. Essas próprias performances

já vinham com roteiro, chegou um

ponto em que já se tinha um mini

roteiro pensado e que era seguido,

então já não era mais tão espontâneo,

mas surgiu do espontâneo. Os erros

e os acertos foram experimentados

ao longo, até que se chegou numa

própria pauta e cria-se um roteiro com

as experiências em que eu fui tendo.

Então quando vou para o projeto

musical, eu vou muito imatura, muito

jovem, sem ter feito curso nenhum,

sem ter estudado absolutamente

nada, mas colocando nesse lugar

de apresentar o processo, o tempo

inteiro. Eu acho que os erros e os

acertos foram codificados a partir daí.

Medo Profundo, seu último álbum, foi

lançado no início da quarentena no

Brasil, conta um pouco sobre como foi o

desenvolvimento desse projeto no meio

do caos.

O CD ele veio sendo produzido antes do caos,

e talvez, me colocando muito no lugar de sei

lá, espiritualista, talvez eu estivesse prevendo

um que apocalíptico, e são essas reflexões

que as minhas poesias criam ao longo do

tempo, elas mudam de forma, e ao mesmo

tempo não, são a mesma coisa, porque

as poesias são sobre pessoas, são sobre

situações, são sobre coisas muito maleáveis,

coisas muito humanas, muito sentimentais

e, como tudo, eu acho que está em eterna

mudança.

O medo profundo ele vem sendo produzido

dentro de uma fervoria interna, onde eu

estava muito clubber, muito baladeira, muito

baladinha (risos). E quando vem a pandemia,

é o choque. E que quando veio a pandemia e

eu tinha esse CD pronto, clubber, esperando

o momento de lançar ele, tão dançantemente,

entendi que na verdade ele era sobre um

resgate, uma memória. Era justamente brincar

com o imagético da balada, porque foi o CD

que foi praticamente ouvido dentro de casa,

ninguém ouviu ele numa pista de dança, só

em lives, mas ainda é muito dentro de casa.

E realmente coincidiu com esse período de

sentir falta da balada, do refletir esse espaço

e criar um propósito a partir daí, de entender

que dentro da pandemia que deveria ser

lançado o medo profundo, tão clubber, e não

no período onde eu pudesse fazer shows,

como eu tinha imaginado e idealizado.

Você possui também uma forte ligação com a

moda, que apesar de ser uma forma de expressão

individual, está em constante relação com social.

Como você enxerga o que você veste nessa

relação individual-coletivo?

Choque, choque, a primeira palavra é essa: choque.

Eu acho que o que traduz essa relação é choque, e

é um choque que eu não queria causar, que dentro

da minha cabeça não é um choque, principalmente

sendo estudante de design de moda, é muito cabível,

porque quando se pensa em arte contemporânea,

em globalização, em um momento que informação

tá completamente a nossa disposição, resta a nós,

como designers de moda, como artistas, como

artistas plásticos, como artistas sonoros, brincarmos

com isso, com todas as referências que estão à nossa

disposição, e tudo que eu sou visto, quero ser, é a

partir disso, a partir do social, do que já existiu, do

que faz a sociedade.

A minha relação com vestir e o coletivo ela surge da

compreensão de que somos seres individuais para

sempre, mesmo que o grupo de patricinhas, que todo

mundo é igual, elas são pessoas diferentes e quando

se pensa nisso, quando eu penso nisso, é muito uma

relação de experimentação que eu vivi de descobrir o

meu corpo e a roupa do meu corpo, a roupa que cai

bem no meu corpo. Porque nascendo com um pênis

e derivados do gênero masculino, foi me associado

toda uma relação de conforto com a roupa muito

naturalmente, e, a partir disso, eu inicio uma pesquisa

interna de experimentação para entender melhor o

meu corpo, porque no final o meu corpo não se dava

bem também com as roupas dadas por masculinas.

Quando eu começo a experimentar, quando surge

esse processo, eu começo a descobrir um novo

corpo dentro do meu próprio corpo que não havia

sido aflorado ainda.

No final, esse processo de experimentação ele só me

trouxe que é isso, que não importa a roupa que eu

esteja usando, nada vai me acontecer se nada tiver

que acontecer, e se tiver que acontecer vai acontecer,

independente da roupa que eu estiver usando. Não

é a minha roupa que vai causar problemas ou gerar

situações, as situações vão ser criadas eu estando

vestido da forma que for, porque eu sou a pessoa que

eu sou, nunca vou conseguir deixar de ser. Então o

que importa é eu estar bem vestida, é exatamente

sobre isso.

As situações vão acontecer, o importante é estar

bem vestida, dica da Pek0 (risos)

VOZES

28 29



VOZES

VOZES

Acredito que o processo de experimentação não se

restrinja somente ao que se cria, mas também ao

próprio ser, que está sempre mudando e evoluindo.

Como é esse processo de experimentação interno do

seu eu, dentre dificuldades e alegrias?

As dificuldades perdem um pouco de sentido quando se

pensa que você é o que você é, e dificuldade todo mundo

vai sentir, todo mundo sente na pele, nas relações, e

dentro do período de experimentação, ele é criado, eu

volto a dizer isso, mas a partir desse conforto, de talvez

essa possibilidade de diálogo com as pessoas que

poderiam vir a afetar isso psicologicamente com valor

emocional na minha vida, como meus amigos, minha

família. A partir desse conforto que se gera esse processo

de experimentação e essa permissão a se experimentar,

e sem medo.

Eu acho que me mais gera não são as dificuldades e as

tristezas, são mais as alegrias, são mais descobrir as

alegrias, e descobrir as alegrias de um novo ângulo, que é

às vezes contagiar uma pessoa com uma ideia, contagiar

sua mãe com seu ideal, e não é sua mãe né vai virar

travesti, é sua mãe entender quando você quer dizer que

quer estar gostosona e sua mãe entender que todo mundo

quer estar gostosona, e que isso é mais próximo dela do

que é de se pensar. E no final é isso, todo esse processo

de experimentação é sobre o que nós somos, e sobre no

final conforto, porque todo esse corpo, quem busca isso,

quem enfrenta isso, vai buscar o conforto, vai alcançar

isso e vai precisar estar confortável.

Como você definiria a experiência de ser Pek0 no Brasil de 2020?

Ser a Pek0 no Brasil de 2020 é existência,

e é saber que não está sozinha.

Chegar nesse estágio de sentir medo do futuro,

de sentir medo do presente,

mas de ter a consciência de que a luta é constante,

que a luta tem que ser constante.

Um senso de comunidade.

É como se eu não fosse a Pek0 sozinha.

30 AGRADECIMENTOS> PEK0

31



VOZES

VOZES

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1

COM O ANIVERSÁRIO DE 1 ANO

COMEMORADO EM JANEIRO DE 2020,

A 001 MOSTROU, AO LONGO DESSA

TRAJETÓRIA, SUA GRANDE POTÊNCIA, NÃO

SÓ COMO EVENTO, MAS COMO PRODUÇÃO

ARTÍSTICA E CULTURAL, TRAZENDO UMA

PERTURBAÇÃO PARA A CENA TECHNO

DO RIO DE JANEIRO, ATÉ ENTÃO MAIS

ELITIZADA E POUCO DIVERSIFICADA.

REALIZADA DE FORMA INDEPENDENTE

PELO COLETIVO, A FESTA, DESDE SUA

PRIMEIRA EDIÇÃO, CONSEGUIU AGREGAR

INICIATIVAS EM FALTA NO CENÁRIO

CARIOCA. FOI DEMOCRATIZANDO O

ACESSO, TANTO DO PÚBLICO, COMO

DOS ARTISTAS QUE TOCARAM E

PERFORMARAM, CRIANDO UM LOCAL

DE LIBERDADE ARTÍSTICA, E TRAZENDO

UMA PROPOSTA DE SOM EXPERIMENTAL

QUE A FESTA SE CONSAGROU NA NOITE.

AO LONGO DE MAIS DE UM ANO, A

001 REALIZOU DIVERSOS EVENTOS,

SEMPRE COM NOVOS NOMES NO LINE

UP, APOIANDO ARTISTAS, TORNANDO

A ENTRADA ACESSÍVEL E TUDO DE

MANEIRA AUTÔNOMA, MOSTRANDO A

FORÇA QUE UM MOVIMENTO COLETIVO

TEM QUANDO CONSEGUE PRODUZIR E

COMUNICAR SUA VISÃO LEVANDO EM

CONSIDERAÇÃO TAMBÉM AS PESSOAS

PARA AS QUAIS SE ESTÁ PRODUZINDO.

A 001 É FESTA, É ARTE, É SOM,

É UNIÃO E MUITA EXPERIMENTAÇÃO.

PARA CONHECERMOS UM POUCO MAIS

DESSA HISTÓRIA, AINDA CURTA, MAS JÁ

MUITO IMPACTANTE, ENTREVISTAMOS

OS PRODUTORES DA FESTA: SATÄNIKA,

YURI LADARIN E GABRIELZÍSSIMA, PARA

FALAR UM POUCO DE TODOS ESSES

PONTOS QUE FAZEM A 001 SER A 001.

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VOZES

Como nasceu a 0011? como foi esse

processo de criar e começar uma

festa?

A 001 nasceu a partir da

ideia da criação de uma

plataforma “conectadora”

de potentes expressões

artísticas, principalmente

experimentais, às quais não

se via abertura no mercado

mais formal. A ideia de unir

essas potências e reuni-las

em um só ambiente, teve

uma resposta muito positiva

do público, foi aí que

enxergamos a necessidade

da festa.

Apesar de já ter uma cena techno no RJ quando a festa teve sua

primeira edição, nenhuma das festas já existentes traziam a

proposta de som que a 001 tem. Preencher essa lacuna e trazer esse

som mais pesado foi desafiador?

Em relação a cena techno no RJ, víamos muita

difusão na origem do ritmo, ainda mais percebendo

os coletivos seletos que traziam a proposta. Não

consideramos desafiador no primeiro momento pois

estávamos simplesmente abertos e experimentando,

expondo nossos gostos, e criando um espaço nosso e

de quem quisesse somar, com muito amor e respeito.

Após percebemos grande desafio em custear todos

os custos e nosso maior desafio até então tem sido

esse, rentabilizar nossas produções.

VOZES

Além do som, a festa traz uma proposta

visual e uma concepção de liberdade artística

e de corpes que é muito significativa. Qual

é importância disso para vocês como

produtores da festa?

Toda a proposta visual, fonográfica

e performática parte de nós

produtores, mas nada seria tão

possível sem a liberdade, sem

a vontade de troca e sem as

expressões mais simples de cada

corpa que se permite envolver.

Essas trocas são nossa maior

importância!

A 001 está sempre trazendo diferentes

artistes, tanto para tocar quanto para

performar. Como é feito esse trabalho de

pesquisa?

Um de nossos ideais é a criação

de oportunidades. Nosso processo

de pesquisa parte de um campo

bem pessoal, na busca de artistas

potentes e que conversem com

nossa proposta e estética visual,

e cada um de nós produtores

ficamos encarregados de uma

das funções, Juliano Santana é o

maior responsável pela nossa ID

Visual, Yuri Landarin e Satänika

são os curadores fonográficos e

Gabrielzissima responsável pela

curadoria de perfomances. No fim,

todes apresentam suas propostas e

alinhamos as ideias.

34 35



VOZES

VOZES

Para mim, a 001, além de uma festa muito potente, é um ato político. Vocês

também a enxergam dessa forma?

Para nós é muito importante sermos vistos dessa forma,

pois sem dúvidas acreditamos além de ser um ato político,

um ato de liberdade! Por sermos, existirmos e resistimos

dentro de um falido e genocida

CIS_tema.

Como tem sido manter a plataforma 001

nesse período pandemia? Como isso afetou

não só a festa, mas também vocês?

Tem sido um desfio manter

nossa plataforma sem

nenhum recurso e as nossas

responsabilidades, mas temos

nos virado como podemos,

continuamos criando nossos

conteúdos, fizemos diversas

lives gratuitas, 1 mês de

programação com 12 talks

sobre assuntos importantes

como DST’s, Relacionamentos,

Drogas e +. Lançamos o

selo ZERO.REC que é uma

plataforma que reúne trabalhos

de artistas independentes. E

pretendemos não parar por

aqui...

O que a gente pode esperar da 001 daqui

pra frente?

O segredo é não esperar, a

001 se cria a partir de todes,

então se jogue com força,

some, crie com a gente, se

emocione, consientize!...

Agora é sério, esperem uma

001 ainda mais milituda!

E pra terminar, o que não pode faltar

na 001?

Para fechar gostoso, na 001

não pode faltar respeito a

tudo e todes, amor, liberdade

e aquele look BOCA!

TEXTO E ENTREVISTA> VICTORIA VIANNA

36

FOTOS> GUSTAVO CUNHA

AGRADECIMENTOS> SATÄNIKA, GABRIELZÍSSIMA E YURI LADARIN

37



COLETIVO

MANIFESTO MODA

REDE DE CICLOS

CIBORGUE_CIBERFEMINISMO_CIBERCULTURA

RECORDAÇÕES

ESPERANÇA

AMAÇU

GARRAS AFIADAS

AS NAMORADAS

DREAMBOY

HIMAÝATAN

NÃO SABE ME VER

SEM TÍTULO

SOMOS

CORPO

arte por Victoria Vianna

IMAGENS DE 2018 UM EDITORIAL DE M0DA

COLAGENS

SILLLÍCIO



M A N I F E S T O

Com

a pandemia, e mesmo

antes dela, muito se tem falado

sobre as novas relações

de consumo que irão

acontecer a partir desse

período, dentro da moda inclusive,

discutindo o “novo

papel da moda”. É sempre

importante e necessário repensar

estruturas e sistemas,

principalmente aqueles

que funcionam seguindo

padrões estabelecidos há

muitos anos, assim como

aqueles que afetam toda

a sociedade, direta ou indiretamente,

e a moda definitivamente

é um deles.

M O D A

A questão, no entanto, é ver

que, apesar do esforço em refletir

sobre as diversas problemáticas

presentes na indústria

da moda, esse “novo papel” é

sempre algo atrelado ao consumo,

ainda que agora ele seja

o consciente. Obviamente a

moda tem um vínculo com a

comercialização e com o capitalismo

muito bem estabelecidos,

independente de

qualquer nova visão, por ser

uma das indústrias mais lucrativas,

tendo os setores mais

elevados pertencente à grandes

conglomerados empresariais

que mantém a economia

girando e gerando lucros.

Contudo, ela não deve ser resumida

somente a essa relação

econômica e estrutural.

Existe um outro lado da moda,

que diz respeito à individualidade,

à identidade e a subjetividade

das múltiplas pessoas.

O vestir-se consegue externalizar

questões e sentimentos

em relação a si próprio, ou

mesmo permitir um maior conhecimento

do eu, através de

um processo de investigação.

Essa relação, porém, é constantemente

minada ou reduzida

a partir da influência das

mídias e da criação de perfis

identitários aos quais as pes-

por VICTORIA VIANNA

soas supostamente devem

se encaixar para “fazer parte”.

A propagação de conteúdos

relacionados a moda

constantemente atrelados ao

consumo e a necessidade de

pertencimento faz com que,

cada vez mais, o ato de se

vestir vire um processo de reprodução,

muito mais do que

de criação/experimentação.

As informações que divulgam

tendências, personalidades,

desfiles, peças e demais assuntos

que giram em torno da

indústria da moda é sim muito

importante e possui um valor

informativo muito necessário

para quem tem interesse

no tema. A problemática é

outra, é a falta de discussões

mais atreladas a aspectos individuais

e de uma visão mais

visceral da moda. É muito comum

ver as pessoas, principalmente

jovens, consumindo

as mesmas roupas, ou muito

similares, tendo um “estilo”

muito parecido. Isso é resultado

de uma excessiva disseminação

de matérias e posts que

correlacionam moda, estilo,

tendências e influencers, gerando

a ideia de que “estar na

moda” é estar dentro desses

conceitos, com essas peças e

dessas determinadas formas.

É pertinente, ainda mais com

o período que estamos vivendo,

que possamos gerar

conteúdos que enxerguem

e discutam o papel da moda

como uma ferramenta de exploração

pessoal, como algo

que diz muito mais a respeito

da forma como cada um

se enxerga do que como se

quer ou deve ser enxergado,

como uma experiência

que pode permitir conhecer

os diferentes “eus” em cada

um, que não crie um vínculo

direto com a incitação da

necessidade de se consumir

para pertencer, que afinal,

seja muito mais sobre

ser do que de fato pertencer.

Que o “novo papel da moda”

seja também discutir pessoas,

de pessoas para pessoas,

trocando experiências,

que os outros sirvam de referência

e não de modelo de

reprodução, que dentro das

similaridades possa ter individualidade.

Discutir vivências,

processos, histórias

que contam a moda como

formação, como criação,

como influência do eu no

coletivo e também do coletivo

no eu, trazendo mais

indivíduos e experiências

do que marca e tendências.

40 41



REDE

DE

NÃO É COMO SE AS “MÁQUINAS” CONTROLASSEM TODA E QUALQUER

INFORMAÇÃO QUE RECEBEMOS, AINDA NÃO. ACONTECE QUE, INSERIDOS

NAS REDES SOCIAIS E NO MEIO DIGITAL EM GERAL, NÓS MESMOS

ADENTRAMOS BOLHAS. É BEM PROVÁVEL QUE, DENTRO DA SUA REDE,

AS DIVULGAÇÕES DE MÍDIAS E INFORMAÇÕES SEJAM SEMELHANTES, E

OBVIAMENTE ISSO FAZ SENTIDO: VOCÊ NÃO VAI SEGUIR OU CURTIR ALGO

QUE FUJA DA SUA “VISÃO”, SEJA ELA ESTÉTICA OU IDEOLÓGICA. ISSO

ACARRETA NA DEFINIÇÃO DAS CARACTERÍSTICAS DE QUAIS SÃO SEUS

INTERESSES POR PARTE DOS ALGORITMOS E, AO MESMO TEMPO, O PRÓPRIO

ALGORITMO MANTÉM O CICLO VICIOSO DE TE OFERECER E SUGERIR,

APENAS CONTEÚDOS E PESSOAS QUE SIGAM SUAS PREFERÊNCIAS. NO

ENTANTO OS ALGORITMOS NÃO ESTÃO EXISTEM APENAS PARA TE INDICAR

PERFIS NOVOS, PÁGINAS LEGAIS OU AQUELA BLUSINHA QUE VOCÊ TANTO

QUERIA, SÃO TAMBÉM UMA FORMA DE COLETAR DADOS. SIM, EU SEI,

ISSO SOA UM TANTO QUANTO TEORIA DA CONSPIRAÇÃO, MAS NÃO É.

CICLOS

EM 2018, TORNOU-SE PÚBLICA A INFORMAÇÃO DE QUE

ATRAVÉS DE DADOS COLETADOS, ILEGALMENTE, POR

MEIO DO FACEBOOK, A CAMBRIDGE ANALYTICA, UMA

EMPRESA PRIVADA QUE COMBINAVA MINERAÇÃO E

ANÁLISE DE DADOS COM COMUNICAÇÃO ESTRATÉGICA

PARA O PROCESSO ELEITORAL, E QUE TEVE SUAS

ATIVIDADES ENCERRADAS EM MAIO DE 2018, APÓS OS

ESCÂNDALOS, COLETOU DADOS DE 87 MILHÕES DE

USUÁRIOS. A EMPRESA, QUE FOI RESPONSÁVEL PELA

CAMPANHA DE TRUMP EM 2016, ATRAVÉS DESSES DADOS,

ENVIOU DIVERSAS PROPAGANDAS POLÍTICAS QUE ERAM

ADAPTADAS DE ACORDO COM OS INTERESSES, LEIA-

SE DADOS, DE CADA USUÁRIO, SENDO DIVULGADAS EM

DIVERSOS SITES E DE DIFERENTES FORMAS. ESSE CASO

CONSEGUE MOSTRAR COMO NOSSOS DADOS PODEM

ESTAR SENDO NÃO SÓ MONITORADOS, MAS USADOS PARA

CRIAR CONTEÚDOS ESPECÍFICOS QUE CHEGARÃO ATÉ

NÓS, E ASSIM NOS MANIPULAR, OU AO MENOS TENTAR.

ESTAMOS CAMINHANDO, CADA VEZ MAIS, PARA NÃO SOMENTE UM MUNDO

EXTREMAMENTE DIGITAL, MAS TAMBÉM INTELIGENTEMENTE ARTIFICIAL, EM DOIS

SENTIDOS: TANTO A INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL, QUE É OBJETO DE ESTUDOS HÁ ANOS,

ESTÁ SENDO GRADATIVAMENTE INSERIDA NO COTIDIANO, COMO TAMBÉM PARECE

QUE ESTAMOS FICANDO MAIS ARTIFICIALMENTE INTELIGENTES. ESSA NOSSA

INTELIGÊNCIA ARTIFICIAL EM NADA TEM RELAÇÃO COM NÍVEL ESCOLAR, QUANTIDADE

DE CONHECIMENTO, NEM MESMO LIGAÇÃO DIRETA COM PODER AQUISITIVO,

TRATA-SE DO FATO DE QUE ESTAMOS DEIXANDO DE BUSCAR POR INFORMAÇÕES

PARA APENAS RECEBER, LER E COMPARTILHAR AS QUE CHEGAM ATÉ NÓS. ISSO

ACONTECE PORQUE AS REDES SOCIAIS CONSEGUEM GERAR UMA CURADORIA DE

CONTEÚDOS “FEITOS ESPECIALMENTE PARA VOCÊ”, ATRAVÉS DE MECANISMOS

TECNOLÓGICOS QUE CAPTAM DADOS E ESTABELECEM SUAS PREFERÊNCIAS.

42 43

TEXTO> VICTORIA VIANNA

A INTERNET E AS REDES SOCIAIS

SE TORNARAM UM MEIO DE

DIVULGAÇÃO E MARKETING

EXCELENTE, VISTO QUE ALCANÇAM

UMA QUANTIDADE ENORME DE

PESSOAS, SEM CONTAR QUE

SÃO REDES INTERCONEXAS COM

MILHÕES DE USUÁRIOS E NA QUAL

EXISTEM POUCAS INTERFERÊNCIAS

LEGISLATIVAS. A 032C PUBLICOU

UMA MATÉRIA CHAMADA: “THE

TRUMP-BALENCIAGA COMPLEX”

(O COMPLEXO TRUMP-BALENCIAGA),

NA QUAL CORRELACIONARAM A

DIVULGAÇÃO MIDIÁTICA DA MARCA

COM A DO PRESIDENTE AMERICANO,

MOSTRANDO QUE O SUCESSO DA

CAMPANHA POLÍTICA DE TRUMP,

ASSIM COMO O BREXIT (SAÍDA DO

REINO UNIDO DA UNIÃO EUROPÉIA),

PODEM SER ENTENDIDOS DA

MESMA MANEIRA QUE UMA MARCA

LANÇA UMA NOVA COLEÇÃO,

NESSE CASO A BALENCIAGA.



A BALENCIAGA POSSUI GRANDE PARTE DO

SEU SUCESSO DEVIDO AO HYPE QUE ELA

MESMA CONSEGUE GERAR ATRAVÉS DAS

SUAS POSTAGENS NAS REDES SOCIAIS.

O MARKETING EXECUTADO PELA MARCA

INCLUSIVE FICOU CONHECIDO COMO

“MEME-BAIT”, SIM, MEME DE MEMES DA

INTERNET E BAIT (ISCA) QUE SIGNIFICA

ALGO QUE A PRÓPRIA EMPRESA/PESSOA

GERA COMO ISCA PARA QUE OS OUTROS

REPRODUZAM OU CRIEM SUAS PRÓPRIAS

VERSÕES, O QUE ACABA GERANDO MAIS

DIVULGAÇÃO PARA O POST PRINCIPAL. OU

SEJA, A BALENCIAGA CRIA CONTEÚDOS

OU MESMO PEÇAS, QUE FUNCIONAM

COMO MEMES, E MEMES, NESSE CASO,

NÃO É NECESSARIAMENTE ALGO

ENGRAÇADO, MAS SIM ESSA IMAGEM

AMPLAMENTE DIVULGADA E COPIADA

QUE ACABA GERANDO MAIS PUBLICIDADE

PARA O “ORIGINAL”. UM BOM EXEMPLO

DISSO É A BOLSA FRAKTA, A MARCA

FEZ A SUA PRÓPRIA VERSÃO DE LUXO,

E DE COURO, DA SACOLA DA LOJA DE

MÓVEIS DE “BAIXO CUSTO” IKEA, QUE

CUSTA 0,99 CENTAVOS AMERICANOS,

SENDO SUA VERSÃO LUXUOSA VENDIDA

POR MAIS DE DOIS MIL DÓLARES.

O QUE A MARCA FAZ É GERAR

BURBURINHO. INDEPENDENTE SE AS

PESSOAS GOSTARAM OU NÃO, SE ESTÃO

ELOGIANDO OU DEBOCHANDO, DE

QUALQUER FORMA, ESTÃO DISSIPANDO E

GERANDO CONTEÚDO SOBRE O PRODUTO

E, EM CONSEQUÊNCIA, SOBRE A MARCA.

OUTRO BOM EXEMPLO É A CROCS DA

BALENCIAGA, QUE FOI AMPLAMENTE

DIVULGADA, TANTO POSITIVAMENTE

COMO NEGATIVAMENTE, O QUE SERVIU

DE PROPAGANDA, E ASSIM RAPIDAMENTE

AS CROCS DA MARCA ESTAVAM POR

TODO LUGAR. TEM TAMBÉM O UGLY

SNEAKERS, QUE VIROU UMA TENDÊNCIA

INTERNACIONAL, ONDE PRATICAMENTE

TODAS AS LOJAS TINHAM A SUA PRÓPRIA

VERSÃO DO MODELO LANÇADO PELA

BALENCIAGA. A MARCA CRIA TENDÊNCIAS,

ANTES MESMO DELAS SEREM DE FATO

UMA, ATRAVÉS DESSES CONTEÚDOS QUE

SÃO COMO MEMES E QUE IRÃO MANTER

AS PESSOAS FALANDO E DISSEMINANDO.

FUNCIONOU COM A BALENCIAGA,

FUNCIONOU COM TRUMP. O

PRESIDENTE ERA INICIALMENTE SÓ UM

MEME, POUCOS ACREDITAVAM QUE SUA

CAMPANHA IRIA DE FATO ACONTECER,

MAS MUITO SE FALAVA SOBRE.

DEPOIS, A CAMPANHA E AS PESQUISAS

INDICARAM QUE SIM, ELE NÃO SÓ DE

FATO ESTAVA CONCORRENDO COMO

TINHA CHANCES DE SER ELEITO, O QUE

GEROU AINDA MAIS PUBLICIDADE. ALÉM

DISSO, A SUA PRÓPRIA CAMPANHA ERA

BASEADA EM FAZER COM QUE ESSA

PRESENÇA DIGITAL CONTINUASSE

ACONTECENDO, E ASSIM, ELE FOI

NOMEADO PRESIDENTE. O QUE SE

ASSEMELHA TAMBÉM COM A ELEIÇÃO

DO ATUAL PRESIDENTE BRASILEIRO,

INICIALMENTE ERA SÓ UM MEME.

CHRISTOPHER WILEY QUE TRABALHOU

NA CAMBRIDGE ANALYTICA NO

PERÍODO DA CAMPANHA DE TRUMP

E FOI O RESPONSÁVEL POR EXPOR A

EMPRESA E O FACEBOOK SOBRE O USO

ILEGAL DE DADOS, DEU UMA PALESTRA

(FASHION MODELS AND CYBER

WARFARE) PARA A CONFERÊNCIA DO

BUSINESS OF FASHION (BOF) DE 2018,

NA QUAL EXPLICA QUE, ASSIM COMO

A MODA, A POLÍTICA COMEÇOU A SE

BASEAR NOS ASPECTOS CULTURAIS

PARA PROPAGANDEAR ALGO. SEGUNDO

WILEY, O EXTREMISMO POLÍTICO, COMO

TAMBÉM A MODA, SÃO BASEADOS EM

COMO AS INFORMAÇÕES CULTURAIS SE

PROLIFERAM ATRAVÉS DOS NÓS DE UMA

REDE. OU SEJA, O QUE A CAMBRIDGE

ANALYTICA FEZ FOI A MESMA COISA

QUE A MODA JÁ VINHA FAZENDO HÁ

UM TEMPO, CRIAR TENDÊNCIAS, E

MAIS ESPECIFICAMENTE, O QUE A

BALENCIAGA VEM REALIZANDO, EM

QUESTÕES DE COMO GERAR ESSA

TENDÊNCIA DE FORMA EFICAZ ATRAVÉS

DAS REDES E DOS PRÓPRIOS USUÁRIOS.

NO ENTANTO, A GRANDE DIFERENÇA É

QUE A CAMBRIDGE ANALYTICA AINDA

DETINHA DE DADOS ESPECÍFICOS,

E ILEGAIS, SOBRE OS USUÁRIOS.

THE TRUMP-BALENCIAGA COMPLEX (032C)

“FASHION MODELS AND CYBER WARFARE”(BOF NO YOUTUBE)

PRIVACIDADE HACKEADA (NETFLIX)

44

CASO CAMBRIDGE ANALYTICA (EL PAÍS)

45

+ INFOS:

ESSA ESTRATÉGIA FUNCIONA MUITO BEM PORQUE, PRIMEIRAMENTE, ACONTECE

ATRAVÉS DA INTERNET, E AINDA MAIS IMPORTANTE, PORQUE CONSEGUIU ENTENDER

QUE, MAIS RELEVANTE DO QUE O CONTEÚDO EM SI, É GERAR BURBURINHO.

INDEPENDENTE DO QUE SE FALE, QUANTO MAIS DIVULGAÇÃO MAIS PUBLICIDADE

É GERADA E, CONSEQUENTEMENTE, MAIS PESSOAS VÃO ADERIR A “TENDÊNCIA”.

NO CASO POLÍTICO AINDA EXISTE A QUESTÃO DOS DADOS COLETADOS, QUE

SÃO DADOS CULTURAIS E SOCIAIS, PROPORCIONANDO ENTENDER QUEM É

ELA AQUELA PESSOA, O QUE ELA GOSTA, SEUS INTERESSES E ASSIM CRIAR

CONTEÚDOS E PROPAGANDAS ESPECÍFICAS PARA CADA USUÁRIO. É NESSE

MOMENTO QUE TAMBÉM ENTRA A PROBLEMÁTICA DA ASSIMILAÇÃO DE CONTEÚDOS

E INFORMAÇÕES QUE CHEGAM ATÉ NÓS, MAS NÃO PROCURAR SABER MAIS,

BUSCAR OUTRAS FONTES OU MESMO VERIFICAR O QUE ESTÁ SENDO DIVULGADO.

O CASO DA MODA E DA BALENCIAGA É MAIS SUPERFICIAL, MAS

PROBLEMÁTICO TAMBÉM. POR MAIS QUE O CONTEÚDO NÃO SEJA

FEITO COM BASE EM DADOS OBTIDOS, A MARCA SE APROPRIA

DE SÍMBOLOS OU PRODUTOS DO CONSUMO DE MASSA E OS

TRANSFORMA EM ARTIGOS DE LUXO. A “RELEITURA” DESSES ITENS

POPULARES NÃO VALORIZA O PRODUTO ORIGINAL, MAS SIM O CRIADO

A PARTIR DELE, ELITIZANDO E VENDENDO PARA UMA PARCELA

ÍNFIMA DE PESSOAS, OU SEJA, AINDA MANTÉM UMA SEGREGAÇÃO

ENTRE QUEM TEM A BOLSA DA MARCA E QUEM TA USANDO O

MODELO BARATO, QUE SERIA A CÓPIA, MAS NA VERDADE, É O

ORIGINAL, UMA GRANDE INVERSÃO DE VALORES. EXISTE TAMBÉM A

QUESTÃO DO HYPE, QUE SÓ É GERADO PELO COMPARTILHAMENTO,

SENDO ASSIM, SÃO AS PESSOAS QUE DEFINEM E GERAM O VALOR

DE MARCA NO MEIO DIGITAL. NÓS VIRAMOS OS PRODUTORES E O

PRODUTO, SE NÃO HOUVER COMPARTILHAMENTO NÃO HÁ HYPE.

AO MESMO TEMPO, NÃO SÃO OS “USUÁRIOS-PRODUTORES” QUE

SE BENEFICIAM DISSO, MUITO PELO CONTRÁRIO, É A PRÓPRIA

MARCA, QUE CONSEGUE ATINGIR MUITO MAIS INDIVÍDUOS,

REALIZAR MAIS VENDAS E AUMENTAR SEU VALOR DE MERCADO.

A INTERNET E AS REDES SOCIAIS OFERECEM ESSA IDEIA DE LIBERDADE, DE

IDENTIDADE PESSOAL, DE DIVULGAÇÃO E DE ACESSO AMPLO, O QUE NÃO DEIXA

DE SER UMA VERDADE E UMA GRANDE UTILIDADE DAS REDES. MAS OCORRE

QUE, PAULATINAMENTE, AS ESTRATÉGIAS ECONÔMICAS E POLÍTICAS VÊM SE

ADAPTANDO AO MEIO DIGITAL E A FORMA COMO AS PESSOAS SE COMPORTAM

DENTRO DELE. ASSIM, VEM SE TORNANDO COMUM QUE OS USUÁRIOS SEJAM

USADOS COMO MEIO DE DIVULGAÇÃO, COMO PRODUTORES DE CONTEÚDO,

VIABILIZANDO UMA FORMA DE EMPRESAS SE PROMOVEREM GRATUITAMENTE. ISSO

TUDO GERALMENTE ACONTECE SEM QUE AS PESSOAS TENHAM CONHECIMENTO

DE QUE ESTÃO SENDO USADAS COMO FERRAMENTA E QUE ELAS MESMAS

SÃO O PRODUTO FINAL A SER CAPTURADO POR TODA ESSA ESTRATÉGIA.

BEM-VINDES A NOVA ERA DIGITAL



\\CIBORGUE_

CIBERFEMINISMO_

CIBERCULTURA||

46 47

TEXTO> VICTORIA VIANNA

Com o acontecimento da pandemia mundial, a qual ainda

estamos vivendo, o uso de aparelhos eletrônicos, da

internet e das redes sociais cresceu de forma abrupta.

Mais do que nunca, tivemos que nos adaptar, dentro de determinados

contextos sociais, a exercer através de meios eletrônicos

praticamente tudo que fazíamos fora de casa, das coisas

mais básicas, como conversar e ver amigos, até trabalhar e/

ou estudar. Solidificando e reconstruindo a relação humano-

-digital e presenciando um desenvolvimento ainda mais acelerado

da cibercultura, já muito presente na nossa realidade.

A cibercultura se desenvolve principalmente a partir da década de

1980, com o avanço da internet e a criação do computador pessoal

(1981), tendo origens anteriores a esse período, mas é nesse

momento que ela começa a se consolidar devido ao maior acesso

e a maior quantidade de conteúdos digitais, gerando maiores

trocas entre os usuários. Em 1985, a filósofa e bióloga Donna

Haraway escreve o Manifesto Ciborgue (versão final lançada em

1991), no qual ela discorre sobre a crise identitária dos movimentos

sociais, principalmente o feminismo, devido ao que ela chama

de “política de identidade”, abordando a relação e influência da

ciência e da tecnologia sobre as relações sociais no século XX.

A partir desse manifesto, surge o conceito de ciberfeminismo,

cunhado pela primeira vez em 1991 pelo coletivo feminino australiano

VNS Matrix, que se auto proclamaram “ciberfeministas”

através do Manifesto Ciberfeminista, elaborado por elas e

inspirado no manifesto ciborgue de Haraway. Apesar da filósofa

não ter usado o termo ciberfeminismo, seus estudos e teorias

foram incorporados por diferentes grupos a partir da análise do

feminismo em relação às novas tecnologias e meios de comunicação,

propondo a organização dentro da rede e a apropriação

como forma de ativismo político presente nos estudos de Donna.



O ciberfeminismo teve diferentes frentes com visões e ações

diversas dentre as várias linhas de pensamento, mas todas surgem

a partir da ideia central de reinvenção de outros feminismos a

partir da ótica das novas tecnologias de comunicação. Uma grande

influência para o movimento é também o surgimento das teorias do

pós-humano em meados dos anos 1980. O pós-humano se dá devido

a junção da cultura ciberpunk, com o aparecimento das redes e dos

dispositivos de comunicação, somados ao surgimento das teorias

sobre genética e manipulação biológica, gerando um contexto

sócio-tecnológico transitando entre ficção-científica e teorias

científicas como a cibernética, biologia e informática. Assim,

entende-se que as diferentes teorias e linhas de pensamento do

ciberfeminismo se constroem dentro desse contexto novo e amplo.

O movimento, no entanto, acabou gerando uma certa dicotomia

entre as visões. Existia uma interpretação mais ligada a inserção

da mulher no mundo da tecnologia e uma outra vertente que

estava mais direcionada ao pós-humano e ao conceito do

ciborgue, com a hipotética da internet ser um meio sem gêneros

aonde seria possível desconstruir essa visão biológica e binária

dos gêneros. Por isso o ciberfeminismo não conseguiu criar uma

linha de pensamento unificado que conseguisse entender qual

era a sua visão perante o feminismo no mundo tecnológico,

gerando um movimento descentralizado e heterogêneo.

Apesar disso, o movimento foi muito potente durante os anos

1990, tendo seu auge em 1997, através de diversas publicações

ciber feministas como: Zero + Ones (1997), The War of Desire

and Technology at the close of the Mechanical age (1997), tendo

um teor artístico muito forte, sendo esse um dos seus pontos

de congruência entre as diferentes vertentes, ocasionando

trocas e experiências em diferentes fundos culturais. Também

recuperou as táticas artísticas da arte feminista dos anos 1960

e 1970, além de buscar um novo modo das representações

de gênero, corpo e espaço social no meio tecnológico.

ALL NEW GEN;

VNS MATRIX -

1992-93

Imagens cedidas

pelo coletivo

48 VNS MATRIX.

49



Artisticamente o ciberfeminismo influenciou também na criação

de trabalhos através de coletivos, com grupos como VNS Matrix,

que inspiraram outras artistas com técnicas como a colagem,

mixagem, apropriação de imagens, buscando mesclar o corpo com

as máquinas, questionando a representação feminina, trazendo

o ciborgue como o ser nas diversas morfologias das interfaces

eletrônicas. Carregando nessa arte diversos aspectos da cultura

ciberpunk e de figuras populares da ficção científica. Mesmo

com seus problemas teóricos, o ciberfeminismo foi responsável

por conseguir de fato questionar o papel da mulher dentro

desses meios de comunicação, gerando diferentes resultados

de acordo com o contexto socio-cultural ao qual estava inserido,

em determinado local e momento, dando a oportunidade para

diversas mulheres entrarem nesse ambiente, conquistarem

seu espaço e modificarem suas realidades e opressões.

É válido ressaltar que foi através da internet onde tudo isso

aconteceu, que apesar de estar se tornando um ambiente cada

vez mais usado, dissipado e acessível, continua sendo um local

sem regras, que propaga uma ideologia patriarcal e no qual quem

detém os grandes domínios são grandes empresas lideradas

majoritariamente por homens cis brancos. Por isso, é importante

que esse espaço seja cada vez mais dominado por minorias e

que essas consigam atingir cada vez mais uma parcela maior de

pessoas, levando adiante discussões tecno-sociais, como foi o

movimento do ciberfeminismo, que dentro do contexto em que

estava inserido, e apesar das divergências, conseguiu criar espaços

ativos de luta dentro do meio digital. Agora, mais do que nunca,

necessita-se que esse local seja ocupado de forma consciente e

ativa para não somente criar um espaço diverso e representativo,

mas também, para que as pessoas consigam não ser manipuladas

pelas grandes corporações e empresas milionárias que criaram

um local de dominação, onde quase tudo pode ser feito e muito

pouco se sabe sobre o que está sendo implementado. Isso tudo

nos mostra também como os coletivos e movimentos artísticos

são fundamentais na luta contra espaços de dominação,

uni-vos.

The future is

unnamed; VNS

+ INFOS:

A PRIMAVERA DAS MULHERES: CIBERFEMINISMO E OS MOVIMENTOS FEMINISTAS (REVISTA FEMINISMOS DISP. ONLINE)

Matrix - 1994

OS SIGNIFICADOS DE “CIBERFEMINISMO”: CONSTRUÇÕES DE SENTIDO DE UM FEMINISMO NAS MÍDIAS DIGITAIS (ANAIS DISP. ONLINE)

Imagem cedida

MANIFESTO CIBORGUE (DISP. ONLINE)

pelo coletivo

CIBERFEMINISMO: NOVOS DISCURSOS DO FEMININO EM REDES ELETRÔNICAS (TESE DISP. ONLINE)

50 VNS Matrix

51



RECORDAÇÕES

por THAYNARA BRAÇANÇA



A SENSAÇÃO DE UM DIA CINZENTO, PRESTES A CHOVER,

UM CENÁRIO DE AFLIÇÃO PARA MUITOS.

ESPERANÇA

ESPERANÇA

PULVA PERSONIFICA A ESPERANÇA, QUE SE PROTEGE COM TECIDOS E

ACESSÓRIOS METÁLICOS, DEMONSTRANDO FORÇA E DETERMINAÇÃO

PARA PASSAR PELOS MOMENTOS DIFÍCEIS QUE A PANDEMIA NOS TROUXE.

A SERIEDADE DA EXPRESSÃO DA PERFORMANCE, PROJETA UM OLHAR

DE ESPERANÇA EM MEIO A REALIDADE QUE ESTAMOS PRESENCIANDO.

55



57



ENSAIO REALIZADO A PARTIR DO VÍDEO PERFORMANCE “ESPERANÇA” DO MÚSICO E DJ ALBIN, COM O APOIO DO

“PROJETO ANEXO”, UMA CAMPANHA VIRTUAL COM O INTUITO DE AJUDAR ARTISTAS AFETADOS PELA PANDEMIA.

PERFORMANCE E DIREÇÃO CRIATIVA> PULVA COSMOS

FOTOS E EDIÇÃO> GABRIEL GIL

STYLING E FIGURINO > GABRIEL GIL E PULVA COSMOS



AMAÇU

O LAGO AMAÇU,

LOCALIZADO NA AMAZÔNIA, SE

TORNOU UMA DAS PRIMEIRAS

LENDAS DESDE A COLONIZAÇÃO.

REPRESENTANDO

O

COBIÇAMENTO DO HOMEM

BRANCO PELA NATUREZA

DESDE O INÍCIO DA

COLONIZAÇÃO DO BRASIL.

CRIAÇÃO E STYLING> JOÃO SUHETT E THAYNARA BRAGANÇA

MODELES> PEK0 E CYRILO

FOTOS> JOÃO SUHETT

TODAS AS PEÇAS FORAM DESENVOLVIDAS POR JOÃO SUHETT E THAYNARA BRAGANÇA.

ACREDITAVA-SE NA EXISTÊNCIA

DE UMA FONTE DE JUVENTUDE,

POR CONTA DE UMA ILHA

ENCOBERTA POR XISTO MICÁCEO,

UMA ROCHA QUE PRODUZ FORTE

BRILHO QUANDO ILUMINADA PELO

SOL, A QUAL TRAZIA A IDEIA DE

RIQUEZA PARA OS EUROPEUS.

61







GARRAS> ANA MATHEUS ABBADE

FOTOS E DIREÇÃO CRIATIVA> FILIPE BRAGA

MODELO> ÂNTONIA BAUDOIN









“GARRAS AFIADAS” SURGIU APÓS

NOITES EM CLARO PENSANDO SOBRE AS

FORMAS POSSÍVEIS DE EXTERNALIZAR

E TRANSMITIR AS SOMBRAS DE UM

EXAUSTIVO TERREMOTO SENSORIAL

ANSIOSO, QUE CONSTANTEMENTE ME

POSSUI E IMPOSSIBILITA A PROGRESSÃO

DO PENSAMENTO. ESCREVER SOBRE

SEUS BLOQUEIOS TE AJUDA A SAIR POR

CIMA DA SOMBRA DELES E TE ESTIMULA

A PRODUZIR CUIDADOSAMENTE,

JÁ QUE EXISTE A NECESSIDADE DE

MANTER O OBJETO FINAL FIEL AO QUE

SE SENTE. COMO DESTAQUE PRINCIPAL

DAS FOTOS ANALÓGICAS, AS GARRAS

AFIADAS, QUE FORAM CRIADAS POR ANA

MATHEUS ABBADE (@SURRADEUNHA)

DIALOGAM DIRETAMENTE COM O

SENTIMENTO DE ANSIEDADE POR

REPRESENTAREM AS AÇÕES DAS

ESTRUTURAS AUTO-PROTETORAS EM SUA

BUSCA CONSTANTE POR PRESERVAÇÃO

QUE, EXCESSIVAMENTE, ACABAM

ENDURECENDO E FRAGILIZANDO O

INDIVÍDUO.

A CONSTRUÇÃO EM FOTO-POEMA TEM

A FUNÇÃO DE RELACIONAR O DIÁLOGO

ENTRE ‘INDIVÍDUO-GARRAS’ PRESENTE

NAS IMAGENS COM OS SENTIMENTOS

FRÁGEIS DE QUEM VÊ, INTENSIFICADO

PELAS POSES DRAMÁTICAS COM TONS DE

INSTROPECÇÃO E AUTO-PROTEÇÃO QUE

SE RELACIONAM DIRETAMENTE COM OS

ESCRITOS.

O OBJETIVO PRINCIPAL DO PROJETO

É INTERROGAR ESSAS ESTRUTURAS

PSICO-AFETIVAS APARENTEMENTE

RÍGIDAS QUE NOS HABITAM E EXPLORAR

A FRAGILIDADE QUE ENVOLVE

NOSSOS COMPORTAMENTOS NA

BUSCA CONSTANTE POR CONFORTO

E QUE, MUITAS VEZES, ACABAM NUM

COMODISMO: PORQUE PRESERVAMOS?

PORQUE EXPLODIMOS? PORQUE

IMPLODE? PORQUE INCOMODA? QUANTO

TEMPO É POSSÍVEL SEGUIR RETO SEM

OLHAR PRA TRÁS? QUAL NOSSO OBJETIVO

EM SEGUIR EM FRENTE SEM CONSIDERAR

O QUE PASSOU?



NAMORADAS

AS

AS

NAMORADAS

FOTOS> YU FRAZÃO

MODELES> ANIS YAGUAR E SUMÉ AGUIAR







DREAMBOY





86 87





DIREÇÃO CRIATIVA e STYLING> CYRILO

FOTOS> FILIPE BRAGA

MODELO> LEONARDO PORTILHO

BEAUTY> VICTORIA VIANNA



HIMAýATAN

por DAU

O projeto

desmembra-se no

pensamento que

conjunturas de

indumentária e arranjos

sonoros diversos

podem produzir uma

sensação de resguardo.

Se estrutura nas

experiências de pessoas

que utilizam a roupa

como proteção física/

estética e a música

como resguardo

psicológico.

Himayatan, do árabe

“proteção”, vem de um

sentimento instantâneo

humano: o medo do

desconhecido e da

perda, transforma-se em

reflexos incontroláveis

produzidos pela mente.

O homo sapiens descobriu

diversas formas de

proteção psicológica e

física; de se defender.

A cena techno fornece inspiração

visual e conceitual a elaboração

do pensamento. A estética

urbana mesclada com o caos

de indústrias abandonadas é

usada como fonte primordial.

Concreto, cartazes promocionais

e expressivos, estudos de dança

[fluidez e rigidez corporal -

traduzida em moda] compõe a

linha inspiracional.

92 93



Na busca por alinhar o

contexto central do projeto

a um ideal sustentável, a

escolha da superfície têxtil

deu-se pelo cedimento do

mesmo por Marcelo Dau,

educador ambiental que

possui um trabalho de

conscientização ecológica.

O material - prensado feito a partir de fibras diversas descartadas

- é comumente utilizado como forro de utensílios que fazem contato

com o chão, servindo de mediador do atrito. Realizando a proteção de

calor, precisa ter gramatura elevada. Estruturado e grosso, o tecido

delimitou muitos caminhos que a roupa seguiria, como a necessidade de

um acabamento relativamente reforçado e a sua permanência estética.

94 95



96 97



NÃO SABE ME VER

SEM TÍTULO

por LELE REIS (@DESENHOCOISINHAS)

por LELE REIS (@DESENHOCOISINHAS)

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ILUSTRAÇÃO ELABORADA NO PAINT

ILUSTRAÇÃO ELABORADA NO PAINT

FRAGMENTO DE UM POSSÍVEL PROJETO EM FASE EXPLORATÓRIA



S O M O S

Carrego meus fantasmas,

olho nos olhos,

tenho medo,

CORRO,

mas não adianta.

Então olho de novo,

me enxergo neles,

EU SOU ELES,

eles também me são,

SOMOS.

Entendo o que são,

são muitos,

mas são só o que permito ser.

Eu ouço eles,

converso,

reconheço,

eu danço com eles,

e assim,

ME LIBERTO.

por VICTORIA VIANNA

interpretado por JOÃO VITOR RUDE

FOTOS> VICTORIA VIANNA

101



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“POESIA SÃO MONUMENTOS DESABADOS

EM POUCOS MOMENTOS DESABAFOS

FOTO> VITÓRIA LEONA

PERCEBI QUE VIVI ME MATANDO AOS POUCOS,

EM MEIO A GRITOS ROUCOS

RELACIONAMENTOS LOUCOS OU LONGOS DEMAIS

APRENDI

A PARAR COM AQUELES SOCOS

OS MURROS EM PONTA DE FACA,

SE AGORA É O TÉDIO QUE ME MATA

EM UM PASSADO MÉDIO, ASSÉDIO.

LONGOS ANOS DE SILÊNCIO TRADUZEM O QUE NÃO SE TEM REMÉDIO

E ALGUÉM SUGERIU: AMOR?

AMOR PATERNO, AMOR FRATERNO, AMOR ETERNO

AMOR EFÊMERO, AMOR ENFERMO

AMOR! POR FAVOR

ME RENDO,

SÓ ME DEIXA VIVA

E AÍ EU PROMETO QUE NUNCA MAIS

ENTRO NUMA RELAÇÃO ABUSIVA

NEM MAIS PASSIVA NEM MAIS AGRESSIVA

QUE SE META A COLHER E INTERFIRA

DO NOSSO LADO

AGORA.

OU VOCÊ SE ALINHA OU SE RETIRA.”

GIULIA DEL BEL - MAIO.2020









FOTOS> VITÓRIA LEONA

STYLING E FIGURINO > GIULIA DEL BEL



Têto, “Imagens de 2018 um Editorial de M0da”.

Colagens Digitais, 2020.

Models: Gabriel Sampaio e Rodrigo Moreira















COLAGENS por yU FRAZÃO



COLAGENS por yU FRAZÃO



fOTOS> FOTOS> YGOR VIEIRA

PRODUÇÃO> @GILGABRIELUS ARAD E GABRIEL E GIL @_4.7_4.77777

EDIÇÃO DE IMAGEM > @_4.7_4.77777

ARAD

MODELES MODELS > > TIEMI @ANGELLDIMARRA TAMURA E ANGEL E @TIEMI.TAMURA

DIMARRA

síllllici0

por ARAD

entidades detentas

de conexões, plugs,

metafóricos capazes

de se transformar

a partir da troca

de informações,

códigos, princípios

nas células que se

iserem.

a inspiração central desse projeto são as variações e

combinações moleculares em que o silício (elemento

químico de símbolo Si) pode existir, isto é, a labilidade

em que o elemento pode ocorrer de maneira natural ou

transformado pelo ser humano (p:ex.):pele humana,

microchips e diatomáceas (produtores de oxigênio

vital). buscando incentivar a curiosidade científica

em conexão com a segunda pele/roupa/armadura/

carapaça e iluminar algumas conexões que nos cercam.

ESTRUTURAS CORPORAIS ELABORADAS USANDO RESTOS DE TECIDOS DOADOS PELA FOCUS TEXTIL.

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ECRÃ

por CRYSTAL DUARTE

Faz parte do senso comum a visão do documentário como um formato

rígido, com propósito educacional e composto por entrevistas e/ou imagens

de arquivo que exploram determinado assunto. No entanto, eu diria que o

documentário é na verdade o formato mais livre e experimental alcançado

pelo cinema. Particularmente, não vejo muito sentido na divisão de

fronteiras entre documentário e ficção, são todos filmes. São justamente

essas fronteiras e uma necessidade mercadológica de categorizar que

muitas vezes limitam a perspectiva do público sobre o documentário.

Se a divisa é traçada em documentário

ou ficção, ou seja, verdades ou

mentiras, é criada uma ilusão de

dois possíveis universos onde o filme

pode existir, quando na verdade toda

a arte se relaciona apenas com um

universo, o da verdade. O realismo,

por exemplo, nasce em oposição ao

teatro declamatório, concebe como

verdade algo mais alinhado com nossa

vivência real. Assim, se preocupa

em reproduzir através do cenário e

interpretação a vida. O antirrealismo,

se relaciona com um outro sentido da

verdade que não necessariamente

está contido ou é representado pelo

real. No antirrealismo a arte não imita a

vida, mas a expõe através de artifícios

da própria arte que nada remetem à

vida.

A verdade tem muitas formas. Diferente do que se pensa, a

verdade não está simplesmente atrelada ao fato, mas também à

perspectiva. No cinema, é o documentário que se arrisca a admitir

que está lidando com a verdade, enquanto a ficção se esconde

atrás da ideia da mentira mesmo influenciando o imaginário, ou

melhor, a realidade fora da tela. O documentário é livre. É o

formato onde tudo pode mudar, porquê se trata sempre de uma

investigação ou experimento que conta com certa espontaneidade,

seja no desdobramento da

temática, nas falas do

entrevistado, em um registro inesperado

e assim por diante. O documentário

acontece na frente da câmera, no

momento, e é sempre

experimental,

no sentido de que não existe uma

fórmula, é sempre uma experiência

que se revela enquanto acontece.

Além de todas as variáveis

que pertencem ao caráter espontâneo do

documentário, é também parte da grande variedade do universo

documental, a maneira com que será representada a verdade.

O documentário, acolhe as mais diversas formas de expressão

que o cinema de ficção em seu formato hegemônico (cinema

norte americano) rejeitou, como por exemplo a performance.

É dos tons de cinza que existem no meio de “documentário ou

ficção” que nascem as experiências mais interessantes e é a

arte do documentário que cruza mais

livremente e frequentemente essa fronteira.

Com isso tudo em mente, indico 5 documentários limítrofes que

misturam não só os conceitos de documentário e ficção, mas

também incorporam ao filme outros elementos não

pertencentes ao universo cinematográfico,

que ajudam a construir sua

verdade.

149



ECRÃ

ECRÃ

JOGO DE CENA (2007)

150

Coutinho (1933-2014), como é

chamado, é um dos mais famosos

e brilhantes cineastas brasileiros.

Sua obra dá grande importância as

pessoas, ou seja, ao relato. Eduardo

Coutinho tem um diferencial único:

a capacidade de fazer qualquer

um se sentir confortável diante de

uma câmera. Para um desavisado,

talvez esse diferencial pareça pouca

coisa, mas é um dom que poucos

possuem. A câmera é um objeto que

detém um certo poder, a câmera

pode inibir ou fazer se exibir, mas

de qualquer jeito é muito difícil que

passe despercebida. A mágica de

Coutinho é justamente conduzir uma

entrevista de maneira natural, como

se não estivesse de fato conduzindo.

As intervenções são pouquíssimas

e em voz baixa, tranquila, como se

ele fosse apenas a parte ouvinte

de uma conversa e não o diretor,

a voz que a tudo se sobrepõe.

Em Jogo de Cena, Coutinho propõe literalmente um jogo de verdadeiro ou falso.

A experiência começa com a publicação de um anúncio no jornal que convida

mulheres de diferentes faixas de idade a compareceram a uma entrevista e contar

uma história. A partir dessa chamada aberta no jornal foram selecionados alguns

relatos para participarem do filme. As mulheres que tiveram sua história selecionada

então, encontram com Coutinho para o registro de seu relato. Esse registro

servirá de material de estudo para atrizes, algumas de rosto instantaneamente

reconhecíveis, outras não, que interpretarão esses relatos. Como os relatos

e as interpretações estão misturados no filme, o espectador se vê obrigado

a jogar o jogo de Coutinho e tentar adivinhar a quem de fato pertence o relato.

Cena do filme “Jogo de Cena” de Eduardo Coutinho - 2007.

Além da camada interativa

do “jogo”, o filme também

se propõe a fazer um

estudo de cena. Como disse

anteriormente, as entrevistas

são compostas pelas donas

dos relatos, atrizes conhecidas

e atrizes desconhecidas.

Coutinho, se aproveita das

atrizes conhecidas, aquelas

que sabemos que não são

donas do relato, para investigar

como o ator constrói a emoção

por trás do personagem. Na

investigação do processo as

atrizes compartilham suas

dificuldades com o texto, que

muitas vezes estão ligadas às

lembranças de experiências

pessoais e esclarecem mais

sobre relação da interpretação

com a verdade. Uma delas

ressalta que não queria

que a leitura ficasse uma

“mímesis” do relato real, ou

seja, não necessariamente a

aproximação da verdade dentro

da interpretação está atrelada

à repetição do fato idêntico e

sim a uma compreensão dos

sentimentos ali expressos.

Jogo de cena é intensamente

íntimo, possui relatos

emocionantes, apresenta

uma proposta inovadora e

brinca com o elemento central

e definidor da categoria

documentário: a verdade.

EDUARDO COUTINHO



ECRÃ

ECRÃ

PINA (2011)

O diretor alemão Wim Wenders (75

anos) estava trabalhando ao lado

de Pina Bausch na produção desse

documentário quando a coreógrafa

morreu inesperadamente. Com a

ajuda dos alunos de Pina, o diretor

decide terminar o filme e transformalo

em uma homenagem. O filme

é um retrato completo que faz

muito mais do que apenas situar

o espectador sobre quem foi Pina

Bausch e sua relevância artística.

O próprio nome do filme “Pina”

insinua algo carinhoso, íntimo.

O filme começa em um palco

vazio, em seguida as palavras

“Para Pina. De todos nós que

fizemos esse filme juntos” ocupam

a tela. As palavras são substituídas

por um vídeo do rosto de Pina,

sorrindo com um cigarro entre os

dedos, o vídeo desaparece do palco

e então se inicia o espetáculo. O

documentário é como uma carta de

amor que te faz sentir conectado

com Pina através de sua arte. No

filme, seus alunos performam suas

obras mais famosas de maneira

sublime, e é literalmente possível

sentir a saudade e o respeito

assistindo às apresentações. O

filme tem pouquíssimas falas e

essas poucas são falas dos alunos

sobre Pina. Palavras de carinho.

Cena do filme “Pina” do Win Wenders - 2011

152

Cena do filme “Pina” do Win Wenders - 2011

As performances acontecem nas

mais diversas locações e são filmadas

da forma mais bela possível. A câmera

se coloca à disposição da coreografia

de Pina, sendo a prioridade da cena,

o corpo em movimento. Isso subverte

toda lógica de um cinema que muitas

vezes se esquece do corpo em cena.

Frequentemente o foco da obra está

centrado no diretor e quão específica

é aquela história ou temática sob o seu

olhar. No caso desse documentário

em particular, o foco está na obra de

Pina Bausch e quão impactante é. Para

isso, Wim Wenders coloca seu olhar a

serviço do corpo e principalmente a

serviço do registro do espetáculo.

“Pina” é a fusão de cinema,

dança, performance e teatro, em um

espetáculo único. É a tentativa de

explicar algo sobre Pina Bausch, que

não cabe no modelo racional e por isso

se apela para arte. É possível captar

a essência não só da artista, mas da

professora e da pessoa por trás da obra,

assistindo àqueles que a conheciam,

dançarem seus números exibindo

os frutos dos seus ensinamentos.

Em um dos fragmentos que mais

me chamou atenção, uma das alunas

diz estar triste porquê Pina ainda não

a tinha visitado em seus sonhos. Ela

esperava que isso acontecesse logo,

pois adoraria revê-la. Esse é o tipo

de relação que Pina cultivou, uma

conexão tão especial que até mesmo

após seu tempo de vida, seus alunos

anseiam por suas visitas.

WIM WENDERS



ECRÃ

ECRÃ

UMA LONGA VIAGEM (2012)

As experiências como guerrilheira, e mais tarde

como prisioneira da ditadura militar no Brasil,

exercem forte influência sob o trabalho de Lúcia

Murat (70 anos). No documentário, a diretora

retorna a esse passado, mas não para dentro

das prisões e sim para o mundo a fora. Uma

longa viagem retrata a jornada de três irmãos

que cresceram na década de 1960, com ênfase

na jornada de Heitor, o caçula. Para que não se

envolvesse nas lutas armadas contra a ditadura

(como Lúcia), Heitor foi mandado pelos pais para

Londres. Lá, experimentou um tipo de alienação

da situação política brasileira e uma imersão

nas vivências que a viagem proporcionava.

Heitor deu a volta no mundo duas vezes e

experimentou uma variedade imensa de drogas.

Para traduzir uma experiência tão rica e única

quanto a dele, Lúcia Murat extrapolou as fronteiras

do cinema tradicional. Se utilizando de projeção,

Lúcia retrata de maneira deslumbrante as viagens

do irmão. As cenas são representações que

acontecem em frente ao espaço de instalação.

As projeções funcionam como um cenário

interativo que é ao mesmo tempo a moldura e

o pano de fundo para os monólogos de Heitor,

que são interpretados pelo ator Caio Blat.

Cena do filme “Uma longa viagem” da Lúcia Maurat - 2012

154

Na verdade, os monólogos são cartas enviadas por Heitor para seus pais.

Por nunca haver uma leitura das respostas ao longo de toda a ação, se

instaura um sentimento de solidão, que só aumenta com o passar do filme.

Até o cenário projetado deixa de parecer interativo e começa a transmitir

uma certa loucura, como se Heitor estivesse falando com as paredes.

Em paralelo, imagens de arquivo e filmagens de locações da época da ditadura

contam da situação de Lúcia e de seu outro irmão, Miguel. Os caminhos de Lúcia

e Miguel parecem estar completamente desconectados do caminho de Heitor.

Mesmo tendo vindo ao Brasil para rever a família, Heitor sempre voltava a viajar,

até depois da soltura de sua irmã. Miguel estudou, se formou como médico

e começou a trabalhar. O filme então,

ganha um tom mais pessoal, os pais

de Lúcia morrem e Heitor começa a ter

dificuldades relacionadas a saúde mental.

Nesse contexto, cabe a ela e a seu irmão

mais velho, Miguel, cuidarem de Heitor.

O documentário muda de momento e

os caminhos dos três irmãos se unem.

Lúcia fala do medo e da dificuldade

com relação às crises de Heitor. Até então

não tão presente no documentário,

Miguel ganha maior foco, quando, se

torna o “porto seguro” da família, durante

essas adversidades. É possível

relacionar o título do filme (“Uma longa

viagem”) à viagem de Heitor pelo mundo,

sendo ela o enfoque principal. Por

outro lado, em uma análise mais atenta

creio que o título na verdade se refira

à jornada de vida dos três irmãos.

LÚCIA MURAT



ECRÃ

ECRÃ

SALVE O CINEMA (1995)

No ano de 1995, no centenário do

cinema, o diretor iraniano Mohsen

Makhmalbaf (63 anos) coloca um

anúncio no jornal convocando atores

para seu novo filme. O filme começa

com a imagem do carro em que está

o diretor, já com a câmera em mãos

filmando, tentando passar por uma rua

lotada de pessoas que se acumulam

na lateral das ruas e admiram a

câmera. A ideia é promover testes

com atores não profissionais, para

um filme. No final, a gravação desses

testes será o filme, onde cada um

terá interpretado um pequeno papel.

Para essa experiência, que

mistura e debocha dos conceitos

clássicos de documentário e ficção,

Mohsen Makhmalbaf interpreta

o papel do diretor. Com uma

postura extremamente autoritária

e impaciente pede para que as

pessoas reproduzam situações

dramáticas comuns do cinema

chamado de narrativo clássico,

como chorar ou reagir a uma

explosão. A proposta do teste, o

estereótipo do diretor e todo esse

contexto usado no documentário

são retirados do imaginário do

cinema americano, profundamente

enraizado em todo o mundo.

Os pedidos do diretor estão de

acordo com as noções de cinema

daqueles que estão realizando os

testes, mas não de acordo com

a sua experiência cultural. No

caso, estamos falando da cultura

islâmica e suas radicais diferenças

em relação à ocidental. A partir das

pressões impostas pelo diretor, se

revelam as discrepâncias entre a

vida como é mostrada no cinema

ocidental e a vida como ela é de

fato, para os que vivem inseridos

em uma outra lógica cultural. Nesse

caso, os participantes dos testes.

Em um dos meus momentos

favoritos do filme, uma menina

adolescente que não consegue

chorar a comando do diretor se

revolta e diz não entender o porquê

de ela precisar chorar se chorar é

para pessoas fracas. O diretor então

questiona a vontade da menina de

atuar e finalmente, enquanto explica

a importância que tem para ela “fazer

parte desse mundo”, a menina chora.

Em outro momento memorável

do filme, um homem alto, de

sobrancelhas grossas e bem moreno

se apresenta ao diretor e quando é

perguntado que papel ele gostaria

de fazer o homem responde: de

vilão. O diretor o questiona e ele

então responde que quer fazer papel

de vilão por ter a aparência de vilão.

No centenário do cinema

Mohsen Makhmalbaf pergunta:

de quem é o cinema que estamos

assistindo? Dos testes para um

filme de ficção, Makhmalbaf produz

um documentário sobre a ficção

que coloniza os imaginários. No

final, o diretor subverte a ideia

de filme, de interpretação e de

personagem revelando que o filme

se trata dos testes e o papel de

cada um é interpretar a si mesmo.

156

Cena do filme “Salve o cinema” do Mohsen Makhmalbaf - 1995

Cena do filme “Salve o cinema” do Mohsen Makhmalbaf

1995

MOHSEN MAKHMALBAF



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ECRÃ

PACIFIC (2009)

O título se refere a um cruzeiro, de onde foram

retiradas as imagens para o filme. Nenhuma

imagem foi filmada intencionalmente para

o documentário, as imagens utilizadas são

registros pessoais cedidos por passageiros

do cruzeiro. Marcelo Pedroso (41 anos),

utilizando a montagem, insere uma perspectiva

sob a perspectiva dos personagens. O

filme é um retrato socioeconômico de uma

classe social em ascendência. Pacific,

também trabalha a questão da produção

de imagem no mundo contemporâneo,

evidenciando uma disseminação de

tecnologia e uma “desterritorialização” do

olhar do diretor através de seu processo.

“O DOCUMENTÁRIO

ACONTECE NA FRENTE

DA CÂMERA, NO

MOMENTO E É SEMPRE

Cenas do filme “Pacific” do Marcelo Pedroso - 2009

Os registros das famílias, instantaneamente

dialogam com o imaginário do espectador

que muito provavelmente vai pensar nos

seus tios e tias, tornando toda a experiência

do documentário muito cativante. O caráter

pessoal das imagens destrói a hierarquia,

que normalmente existe dentro de um

filme, entre a câmera e a pessoa filmada.

Isso permite uma liberdade total por parte dos

“personagens” que interagem com a câmera

com mais intimidade. Como resultado, o

material tem um forte apelo cômico, mas não

estereotipado. Trabalhando a partir do olhar

do próprio “objeto”, o documentário oferece

de maneira bastante autêntica um olhar micro

sociológico sobre a classe (na época) emergente.

Pacific subverte a ideia do diretor como

criador ou desenvolvedor da imagem, o

colocando numa posição mais passiva diante

do conteúdo, que se impõe a ele. Abdicar do

controle dos registros inverte toda lógica do

processo, é como esculpir, transformar um

bloco denso de mármore em uma escultura

que estava “presa” lá dentro o tempo todo.

É também abdicar das escolhas estéticas e

assim como a temática, permitir que a estética se

apresente. O documentário é uma experiência

ousada, cujo processo é tão fascinante quanto

o próprio filme.

MARCELO PEDROSO

EXPERIMENTAL,

NO SENTIDO DE QUE

NÃO EXISTE UMA

FÓRMULA, É SEMPRE

UMA EXPERIÊNCIA QUE

SE REVELA ENQUANTO

ACONTECE.”

CRYSTAL DUARTE

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