Afetos da Travessia
Composta por transcrições, diários, registros de processo e uma coleção de obras desenvolvidas entre 2018 e 2020, Afetos da Travessia é uma publicação que parte do universo conceitual do artista George Teles para abordar questões ligadas ao espaço, o corpo, ao exercício do fazer e à espessura político-ontológica do deslocamento como estratégia para narrar diferentes formas de construção e ficção da paisagem. O livro também conta com textos desenvolvidos pelo artista Allan da Silva e pelo pesquisador Tarcisio Almeida. Ficha Técnica: Autor: George Teles Autores Convidados: Tarcisio Almeida, Allan da Silva Organização: George Teles e Tarcisio Almeida Produção executiva: Andarilha Edições O projeto tem apoio financeiro do Estado da Bahia através da Secretaria de Cultura e da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Programa Aldir Blanc Bahia) via Lei Aldir Blanc, direcionada pela Secretaria Especial da Cultural do Ministério do Turismo, Governo Federal.
Composta por transcrições, diários, registros de processo e uma coleção de obras desenvolvidas entre 2018 e 2020, Afetos da Travessia é uma publicação que parte do universo conceitual do artista George Teles para abordar questões ligadas ao espaço, o corpo, ao exercício do fazer e à espessura político-ontológica do deslocamento como estratégia para narrar diferentes formas de construção e ficção da paisagem. O livro também conta com textos desenvolvidos pelo artista Allan da Silva e pelo pesquisador Tarcisio Almeida.
Ficha Técnica:
Autor: George Teles
Autores Convidados: Tarcisio Almeida, Allan da Silva
Organização: George Teles e Tarcisio Almeida
Produção executiva: Andarilha Edições
O projeto tem apoio financeiro do Estado da Bahia através da Secretaria de Cultura e da Fundação Cultural do Estado da Bahia (Programa Aldir Blanc Bahia) via Lei Aldir Blanc, direcionada pela Secretaria Especial da Cultural do Ministério do Turismo, Governo Federal.
- No tags were found...
You also want an ePaper? Increase the reach of your titles
YUMPU automatically turns print PDFs into web optimized ePapers that Google loves.
UM TERÇO DA PONTE
MÃOS DE GRAXA
E UMA TARRAFA AMARRADA NOS OMBROS
A MEMÓRIA DE SEU ROQUE
QUE ME NINOU QUANDO MENINO
ATÉ HOJE ME PÕE PARA DORMIR
E ME PÔS A TECER AS PRIMEIRAS REDES
DE AMPARO
E ME ENSINOU A ATRAVESSAR
DO JACUÍPE AO PARAGUASSU
EM DUAS BRAÇADAS E MEIA
ESTE MERGULHO É TAMBÉM SOBRE ELE
AFETOS DA TRAVESSIA
GEORGE TELES
GEORGE TELES
AFETOS DA TRAVESSIA
ANDARILHA
conteudo
11
33
93
129
141
147
Caminhar com as entranhas à mostra
[notas e cadernos]
Mergulhar no grude da tinta
[obras selecionadas]
Aglutinar a poeira dos rastros, preencher o Oco do corpo
[registros de pesquisa]
Políticas do toque, políticas do encontro
[Tarcisio Almeida, George Teles]
Você já tentou costurar um braço de rio num corpo serpente?
[Allan da Silva]
Lista de obras
george teles
afetos da travessia
notas e cadernos
A.
sentir o gosto da ferrugem
da ponte nos dedos dos pés
ao caminhar sobre o Paraguassu
perceber que o perecer da matéria é
o acúmulo dos resquícios dos encontros.
um terço da ponte.
mãos de graxa e uma tarrafa amarrada nos ombros
a memória de seu Roque
que me ninou quando menino
até hoje me põe para dormir.
e me pôs a tecer as primeiras redes
de amparo
e me ensinou a atravessar
do Jacuípe ao Paraguassu
em duas braçadas e meia.
este mergulho é também sobre ele.
Os textos a seguir
são transcrições, notas e
fragmentos produzidos pelo
artista entre
2016 e 2021.
george teles
afetos da travessia
12 13
george teles
afetos da travessia
14 15
B.
essa noite sonhei
que no lugar da ponte se estendia
uma rede ao invés.
dava de caminhar
se estirar
e agarrar resquícios de encontros que
aconteciam ali.
acordei, desci a ladeira
debaixo da mesma ponte
formava-se uma rede também. essa agora
era de luz
do encontro do sol com as dobras de água.
passei o dia pensando
nesse corpo cintilante
e tentando saber do porquê ele me revirava
tanto por dentro.
notas e cadernos
C.
antes de tudo, preparo o corpo para o trabalho.
viro-o corpo do avesso. porque estender a
experiência de encontro, transbordar o tempo
presente para tocar os cruzamentos que estão por
vir, exigem da minha pele propriedades existentes
nas partes de dentro. é entender todo corpo como
corpo-tecido – suscetível ao desgaste, ao
alargamento da trama e ao avesso. também quero
expor as entranhas para ter por fora a sabedoria
das mucosas. ser superfície hipersensível, passível
às penetrações, mas com a expertise de distinguir
qual atravessamento deve ser permitido. produzir,
a partir da vulnerabilidade, formas de defesa para
este corpo. produzir tal corporalidade que é
tramada, maleável, viscosa e líquida é o que torna
possível que outros corpos atravessem, alarguem,
penetrem, grudem e construam a matéria palpável
do encontro.
e sobre as entranhas à mostra, muito penso sobre
seu Roque, meu avô, e meu pai, filho dele. uma
paisagem constante de casa era das máquinas com
as entranhas expostas. meu pai me ensinou, ao seu
modo, a preciosidade de ver o esqueleto das
coisas. os fios, esqueletos e outros órgãos das
máquinas à mostra tornam possível o
entendimento completo de seu funcionamento
mecânico. deixar o esqueleto à mostra para
possibilitar o diagnóstico do que está por vir.
assim como o meu corpo, que para recuperar sua
potência de trabalho precisa de uma coreografia
de preparação; ser virado do avesso e deixar as
entranhas à mostra.
george teles
afetos da travessia
16 17
D.
esparramar na sensação que me chega
a partir da tessitura de redes
a repetição a alternância dos ritmos. nó espaço nó no compasso dos
vazios das malhas. não importa o caminho que se pegue, o sentido
do atar é o mesmo. ele me disse. da coreografia das mãos até a sua
finalidade – estender um corpo cansado, agarrar o que está de
passagem – me alcança lugares adormecidos.
atravessar do Jacuípe ao Paraguassu com duas braçadas e meia.
o balanço do corpo no feito é conduzido pelo ritmo do fazer. e o
próprio fazer é, também, conduzido pelo balanço das águas.
compassado pela firmeza dos ferros.
não é à toa que, como eu já te disse, o corpo que se forma do
encontro entre o sol e as dobras das águas é também uma rede de
amparo.
engolir a rede cáustica me estica os braços as pernas, cresce por
inteiro para aguentar o fôlego em poucas braçadas da travessia. ou
então ser também eu mesmo esse corpo de luz dobrada em malha.
talvez assim, abandonando os limites da carne da pele seja mais fácil
desaguar na baía. mainha mãe de mamãe diz djulinho menino peixe
e eu faço que não. digo que quero djulinho de sol. e ela ri. e hoje eu
também. porque ainda é tudo o que eu quero mesmo.
e quero ser luz moldada em tecido pela água porque penso que
quem sabe diluindo meu corpo assim não seria mais fácil o trânsito.
se fazer em curva, se desfazer nas dobras. percorrer quilômetros em
dois movimentos de virada. a expertise do corpo cáustica que se
permite estar e não estar nos lugares ao mesmo tempo. um corpo
projetado, se estende nas superfícies, se estica e se contrai, caminha
no avesso das coisas sendo ele mesmo o avesso da luz quem sabe.
notas e cadernos
enquanto caminho aqui percebo na sola dos pés a trepidação da
passagem em contramão. agora, nesse estado avessado, a ínfima
falta do chão nos pés é lembrança do eterno estado de travessia.
sempre no meio do caminho. me pergunto se mais ou menos
quinze, trinta metros de distância do fundo do rio e trinta minutos
de caminhada lenta são suficientes para deixar escapar do corpo
todo o peso da rigidez nas caminhadas em terra firme.
o estremecer que começa nos pés se espalha em onda pelo corpo me
lembra por uns segundo a leveza de estar no mar. sei que até a água
ser completamente salgada ainda faltam alguns desagues. e que
daqui, a trinta ou quarenta metros suspensos, a chegada no mar é
ainda menos provável. é assim mesmo quando estou avessado, a
extensão da pele hipersensível degusta detalhadamente qualquer
resquício de memória da experiência que o território provoca. me
faz caminhar por estas, por outras as quais estão tramadas e por
algumas que ainda não sei de onde vêm.
-
E.
um corpo úmido para a coleta
virado às avessas e de entranhas à mostra, caminho para sentir o
pouco sal do resquício de mar que chega no paraguassu pela cheia
maré da baía de todos-os-santos. um corpo úmido, escorregadio e
pegajoso para guardar em sua superfície toda a poeira de ferrugem
da ponte. cobrir-se do resíduo da experiência e ser regado de água
salobra para ajudar na oxidação. um corpo pronto para a afecção.
pronto para o bater de perna.
e é no bater de perna que a coleta acontece. com as mãos em o, abro
no abdômen um buraco fundo para reter tudo aquilo que com os
olhos se sente o gosto. gravar nas mucosas os instantes lambidos
com os olhos. bater perna é, como minha mãe zama ensina, criar
dentro do trabalho cotidiano a possibilidade de caminhar sem
rumo, sem intenção de destino ou retorno, mesmo que por um
segundo. e eu daqui acho que só assim consigo. no caminho entre
dois pontos de sobrevivência, capturar em compassos ritmados
instantes que são meus de direito. saber dos desvios pela força das
pernas. e digo assim porque foi como ela me ensinou e no corpo que
construo quero carregar essa memória.
george teles
afetos da travessia
notas e cadernos
18 19
george teles
afetos da travessia
notas e cadernos
20 21
george teles
afetos da travessia
22 23
F.
para a deusa ou para a forma que tenha tomado nesse meio tempo
em que não nos falamos
queria te mostrar um pouco das composições de corpo que tenho
pensado a partir dos encontros nas minhas caminhadas – digo
mostrar porque te trago aqui imagens, antes de qualquer coisa.
tenho essa vontade, por saber de nosso trânsito assim, dos cursos
dos rios e dos nossos desagues no Paraguassu. eu daqui com minhas
memórias do Jacuípe me pergunto como é que o curso do Jaguaripe
desagua aqui desafiando o próprio curso da baía. quero traçar no
nosso encontro proximidades e distanciamentos desses corpos de
água. talvez entender nossos corpos confluentes seja uma maneira
de construir força para os próximos deslocamentos.
e por falar em águas, o primeiro corpo que gostaria de te mostrar é
sobre aquele que se forma por água, luz e pelo encontro. é um
corpo-rede de luz, o corpo da cáustica. quero me aproximar dele, ser
cáustica, porque é na dobra da água que a luz se transforma neste
tecido de materialidade escorregadia, se deita nas superfícies das
coisas com uma sabedoria ardilosa, muda de forma a cada novo
instante, seguindo o ritmo do embalo do mar do rio.
a cáustica, como uma forma de atravessamento do encontro, chega
para mim no movimento de tecer as primeiras redes. a repetição e o
ritmo, a demora no processo – por algum motivo meu corpo todo se
tornava memória das viagens com seu Roque, quem me ensinou a
nadar. observo então a semelhança entre a malha, seus vazios e
elasticidade, como esse movimento que a luz faz debaixo d’água.
este é também o corpo que sei que se forma do nosso encontro.
você sabe.
-
te ouço dizer que somos a ponta da lança e precisamos reposicionar
as nossas direções. não me esqueço
notas e cadernos
por tempos venho pensando, dentre outras coisas, a respeito dos
entrelaçamentos, nas penetrações e perfurações. estas, que para mim
são duas das principais formas de atravessamentos – ambas
perpassam, em seu caminho, abrem vazios e os preenchem com suas
grafias. me permanecem constantes. sempre me circulam e
repousam sobre minha cabeça, mas ainda me era custoso falar sobre
as perfurações, quanto mais tentar dar formas ou me estender sobre
elas. permanecer nessa experiência ou pensar em revisitá-las, me
estremece, me desconforta, me põe em um dos lugares que mais
procuro evitar. não quero me debruçar na desgraça das perfurações
nem me pôr ao dever de refazer a urdidura dos rasgos da miséria
assim como esperam que façamos. você sabe.
mas então, você vem e me diz sobre nos redirecionarmos, e todas as
outras conversas que já tivemos sobre olhar nos olhos, inverter os
polos... volto imediatamente às perfurações. pensar em adquirir uma
forma perfurante e me voltar para a direção oposta é exatamente o
que torna possível repensar essa experiência. por esse ângulo, as
perfurações não me parecem de todo mal quando não somos mais
os alvos, como vocês dizem nesse lugar que criamos. se colocar em
encontro para perfuração não mais como a trama que se parte, mas
sim como este corpo fino, rígido e com rota certa.
esse jeito de pensar nossos corpos como lanças, como ondas
sísmicas e como vasos é prova da sabedoria de quem dobra o barro
para se fazer existir. e eu, que parto do manuseio da matéria dos
encontros, como método para redesenhar o real, me encanto com
essa possibilidade de reestruturar a matéria. sei que somos corpos
em consonância nesse sentido também...
Fragmento de conversa entre
George e o artista Allan da Silva, em
compartilhamento de processos
sobre os deslocamentos e encontros no
território do Recôncavo da Bahia.
george teles
afetos da travessia
24 25
G.
fico pensando como que seria se com as mãos eu conseguisse tatear
todas as pedras do caminho entre a base da ladeira dos milagres e a
beira da lagoa grande. doze anos levaria, eu acho. queria fazer o
caminho contrário.
H.
do oco que formei no abdômen vaza o grude aglutinador das
partículas resquícios do que virá. sem muito esforço se suspende a
matéria em um lugar que se cria sem dizer para que ou como. mas
nós sabemos.
um passo, três gotas, 7 quilômetros. dois passos, agora o barro do
chão alcança o peito e nas juntas dos dedos se concentram águas.
as cordas se dobram em laços frouxos porque aqui a densidade do ar
sustenta os corpos em um peso que não é o conhecido. muito
intenso e muito leve. a profundidade que não se mede propõe aos
nós interrupção do seu propósito de força e sustento. e sustento
está no lugar e os nós aqui se formam pela vontade do enlace.
-
como sustentar laço de saliva o suor sem o pó de ferrugem da ponte
para dar a liga?
deslocado do território do qual o processo germina; longe da
cachoeira e sem a água salobra do Paraguassu para regar a ferrugem
matéria do fio que liga os corpos e costura os encontros. então
retorno ao oco.
gravar o oco dos encontros é registrar rotas para lidar com as
ausências dissolvidas nos espaços; aglutinar a poeira do rastro das
distâncias para tornar possível preencher e sustentar o peso de
quilômetros de vazios.
são cordas e linhas que me apontam para quatro mapas
coreográficos dos entrelaçamentos que estão por vir, do anseio do
afeto e da invenção do toque. o arranjo de fios marcando o papel já
é um encontro.
notas e cadernos
e é nas paisagens inventadas no grude da tinta
que então caminho
george teles
afetos da travessia
notas e cadernos
26 27
george teles
afetos da travessia
28 29
I.
aqui,
acordo, fecho os olhos
e me estico na embarcação
que nunca saiu debaixo do pé
de jambo
na nuca a dureza da madeira a coluna em U segmento de uma onda
o próprio balanço do
então
o movimento das redes
mar
respiro
e o enlace dessa dobra
se afrouxa em ritmo que me faz
queria saber como embalar todas as coisas
com a maciez das cores que me tocam
as orelhas ouvidos
cotovelos dobras dos joelhos
e peito do pé
o ruído da água batendo nas pedras
notas e cadernos
as cores lambendo as orelhas
ela sussurrou
J.
aqui,
acordo, fecho os olhos
e me esparramo na aspereza
do peito de uma forma gigante
os desníveis que a textura de um peito rochoso imprime em meu
rosto me faz querer dissipar os limites entre meu corpo e todas as
outras coisas
se a poeira é feita dos detritos de nós mesmos
e do pó viemos como dizem
quero moer minhas beiradas
regadas com as águas agridoces do Paraguassu
e esticar em uma forma assim
...
talvez
essa vontade de me moer com as coisas
diga da necessidade de criar a matéria para a construção
de um território
que suporte um corpo cansado
um grude de poeira e saliva
liga do fio para a suspensão.
entre a fundura do peito úmido do recôncavo e a secura do céu da
boca do sertão quero dissolver nosso corpo no caminho e
incorporar toda a matéria do percurso.
nesse encontro, talvez, consiga sentir as memórias das materialidade
aprender os caminhos para
george teles
afetos da travessia
notas e cadernos
30 31
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
34 35
p. 33 - 34
Primeira e segunda braçadas
21 x 29,7 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01 (2 peças)
2020
george teles
afetos da travessia
36 37
p. 37
obras selecionadas
Caminhar no grude da tinta
42 x 59 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01
2020
george teles
afetos da travessia
38 39
p. 39
obras selecionadas
Mergulho em ferrugem viscoso
42 x 59 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01
2020
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
40 41
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
42 43
p. 40 - 42
Colisão
42 x 59 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01 (3 peças)
2021
george teles
afetos da travessia
44 45
p. 45
obras selecionadas
Caminhar no grude da tinta 3
29,7 x 42 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01
2020
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
46 47
george teles
afetos da travessia
48 49
p. 46 - 47
obras selecionadas
Oco 2
20 x 20 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01 (4 peças)
2020
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
50 51
p. 49 - 50
Oco
21 x 29,7 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01 (2 peças)
2019
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
52 53
george teles
afetos da travessia
54 55
p. 52 - 53
obras selecionadas
Oco
21 x 29,7 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01 (2 peças)
2019
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
56 57
george teles
afetos da travessia
58 59
p. 55 - 57
obras selecionadas
Tecer rede de amparo
21 x 29,7 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01 (4 peças)
2019
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
60 61
p. 59 - 60
Penetrar o avesso
42 x 59 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01 (2 peças)
2020
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
62 63
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
64 65
george teles
afetos da travessia
66 67
p. 62 - 65
obras selecionadas
Rotas para encontros que querem acontecer
21 x 29,7 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01 (4 peças)
2020
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
68 69
george teles
afetos da travessia
70 71
p. 67 - 69
Arranjos para desenlace e reenlace
21 x 29,7 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01 (3 peças)
2020
p. 71
obras selecionadas
Arranjos para desenlace e reenlace
21 x 29,7 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01
2020
george teles
afetos da travessia
72 73
p. 73
obras selecionadas
Resíduos do primeiro encontro
21 x 29,7 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01 (série com 9 peças)
2019
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
74 75
p. 74
Resíduos do primeiro encontro
21 x 29,7 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01 (série com 9 peças)
2019
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
76 77
p. 76
Resíduos do primeiro encontro
21 x 29,7 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01 (série com 9 peças)
2019
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
78 79
george teles
afetos da travessia
80 81
p. 78 - 79
obras selecionadas
Tecer rede de amparo 2
21 x 29,7 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01 (2 peças)
2019
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
82 83
george teles
afetos da travessia
84 85
p. 81 - 83
obras selecionadas
Coreografias de preparação para repouso
42 x 59 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01 (3 peças)
2020
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
86 87
george teles
afetos da travessia
88 89
p. 85 - 87
obras selecionadas
Coreografias pré-colisão
42 x 59 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01 (3 peças)
2020
george teles
afetos da travessia
obras selecionadas
90 91
p. 89 - 90
Penetração
42 x 59 cm
impressão s/ papel (monotipia)
ed. 01/01 (2 peças)
2020
george teles
afetos da travessia
registros de pesquisa
george teles
afetos da travessia
registros de pesquisa
94 95
george teles
afetos da travessia
registros de pesquisa
96 97
p. 93 - 95
Estudo de movimento e repouso
grafite s/ papel
2020
george teles
afetos da travessia
registros de pesquisa
98 99
p. 97
Cadernos de processos
grafite s/ papel
2020
p. 98
Estudo de movimento e repouso
grafite s/ papel
2020
george teles
afetos da travessia
registros de pesquisa
100 101
george teles
afetos da travessia
102 103
registros de pesquisa
p. 100 - 101
Moer as beiradas e esticar em uma forma
pastel oleoso e grafite s/ papel
2020
george teles
afetos da travessia
registros de pesquisa
104 105
george teles
afetos da travessia
106 107
p. 105 - 105
Estudo de movimento e repouso
grafite s/ papel
2020
registros de pesquisa
p. 107
Estudo de um corpo em U segmento de onda
grafite s/ papel
2020
george teles
afetos da travessia
registros de pesquisa
108 109
george teles
afetos da travessia
110 111
registros de pesquisa
p. 108 - 109
Estudo do oco
pastel oleoso s/ papel
2020
george teles
afetos da travessia
112 113
registros de pesquisa
p. 111
Estudo para penetrações
grafite s/ papel
2020
george teles
afetos da travessia
registros de pesquisa
114 115
p. 113 - 114
Fotografias retiradas de álbum
familiar perdido em enchente
1997 - 2010
george teles
afetos da travessia
registros de pesquisa
116 117
george teles
afetos da travessia
118 119
registros de pesquisa
p. 116 - 117
Estudo para colisão
impressão s/ papel (monotipia)
2020
george teles
afetos da travessia
registros de pesquisa
120 121
george teles
afetos da travessia
registros de pesquisa
122 123
p. 119 - 121
Estudo dos ruídos da colisão
impressão s/ papel (monotipia)
2020
p. 123
Fragmento da ponte Dom Pedro II
coletada no fundo do Rio Paraguaçu
(Cachoeira - São Félix)
2019
george teles
afetos da travessia
registros de pesquisa
124 125
george teles
afetos da travessia
registros de pesquisa
126 127
p. 124 - 125
Estudos de densidade para passagem
impressão s/ papel (monotipia)
2020
p. 127
Estudos de densidade para passagem
impressão s/ papel (monotipia)
2020
george teles
afetos da travessia
textos
Políticas do toque, políticas dos encontros
[Tarcisio Almeida, George Teles]
No (re)começo… entre terra e céu, um casulo suspenso que um
corpo, ainda confuso, rasga para desenrolar sua linha de vida:
uma Criança (re)nasce das feridas e das cinzas de um mundo
devastado. A sombra da Criança está viva: tão grande quão
pequena ela é, tão colossal quando franzina. A Sombra e a
Criança: dois corpos que se constroem em fricções,
contrapontos e acordes sutis. A Sombra e a Criança: dois pólos
magnéticos que, através de um jogo de cordas, (re)lançam um
campo de forças criador. Nesse corpo a corpo com a Sombra, a
Criança percebe os mortos, dialoga com eles, extrai sabedoria e
potência de todas essas vidas que a antecederam, e que se
inscrevem - linhas espectrais - em sua própria carne. Fios
invisíveis de uma história rasurada que ela retoma: a das
condenadas e condenados cujos sonhos abortados precisa
realizar sob formas inauditas. Sobreviver num universo em
ruínas é se deixar atravessar, deixar-se habitar pelo acréscimo
de vida prodigado pelos ancestrais, pelos animados (animais,
plantas e povos do infinito pequeno) e pelos elementos:
abraçar a própria morte, a potência da sombra e do humos,
para renascer. 1
1. Dénetèm Touam,
Cosmopoéticas do Refúgio.
Florianópolis: Cultura e Barbárie,
2020, p. 85 - 86.
2. TANSI, Sony Labou apud
BONA, Dénetèm Touam,
Cosmopoéticas do Refúgio.
Florianópolis: Cultura e Barbárie,
2020, p. 10.
Nos primeiros dias de março em 2020 foi a última vez em que nos
tocamos fisicamente, e na ocasião, escolhemos ler pela primeira vez um
esboço para dizer sobre o nosso trabalho. Uma primeira e uma última
ação juntas, ao mesmo tempo. Desde então, em detrimento de mais
uma das vertigens do mundo, passamos a nos tocar por meio de pixels,
códigos e escrituras criptografadas. As perdas que hoje já superam os
milhares, nos dispersaram em sete cidades e a todo instante não
paramos de sentir o rumor da terra reagindo ao cosmocídio. “O barco
está fazendo água”, como apela Sony Labou Tansi, em sua Carta fechada
às gentes do Norte e Companhia. “Chegamos a esse momento crucial
em que é preciso aprender a reinventar tudo: os conceitos, as abordagens,
os hábitos, os métodos, as ferramentas, as nações, os espaços…
tudo hoje deve ser reinventado” 2 . E entre náusea e saudade, o toque em
sua dimensão ingovernável e radical, parece nos convidar a um trabalho
de análise e imaginação contra os narcóticos negacionistas já em
chamas. O fim do acordo dissimulado pelo desenvolvimento moralmente
insustentável do progresso bate à porta, como nos lembra o poeta kongo.
E o toque que se faz presente, do lado de cá, desde nós qualificados como
george teles
afetos da travessia
textos
130 131
selvagens, se torna o revés da sorte em sua máxima recusa. Ao clamar
pelo toque, não pretendo inventar nenhum conceito. Mas, pôr em
relação certos sentidos que parecem recuperar em nosso corpo uma
sabedoria mineral sempre presente. O toque como sonho, eis porque
Touam Bona declara que “é primeiro pelo sonho que percebemos que
podemos viver em relação com outras inteligências terrestres”. O sonho
não como deslocamento do real, mas como parte de sua constituição,
como tática de des-captura, como potência corrosiva que instala,
mesmo que furtivas, parcelas afiadas de liberdade.
O toque, fruto da incorporação de um ponto de vista do mundo, é o
mesmo que carrega o caráter ingovernável e clandestino da própria
criação. É através do toque e na busca por uma certa filosofia do toque,
parafraseando Harney e Moten (Hapticality, or love), que nos tocamos.
Extensões e abstrações táteis se aproximam aqui de uma textualidade
pelo toque por dentro e por fora do encontro. A hapticalidade 3 é o que rege
o espaço-tempo de forma a manifestar traços que fluem de cada uma dessas
experiências, cada uma desafiando a contenção por meio de uma composição
de impactos e multiplicidades, materiais, afetos e intensidades. Para
co-habitarmos o solo subcomum (undercommons) do toque, não mais
como espaço abandonado, será preciso considerarmos que aquilo que
está quebrado permanecerá quebrado e que não poderá ser reparado. “É
preciso cancelar o débito e o sistema de crédito. E é preciso amor.
Contra a ‘logisticality’ que gerencia as subjetividades e o conhecimento,
tramamos nossas pequenas e dispersivas revoluções cotidianas. Nós, os
embarcados” 4 . Estendidos, assim, em direção ao outro, por meio do
cultivo que se faz barricada frente ao tempo-espaço da vigilância, o
toque, legado da brutalidade transhistórica, é agora a recusa da normativa.
E é sob ele, desde ele, que passam a coexistir movimentos de dissonância,
ruído, trepidação, desorientação, fugitividade, despossessão…
3. Aqui háptico será utilizado
para dizer sobre o sentido do tato
em sua extensão sensível e
perceptível. Uma experiência
desencadeada diante da ação
(viver e agir) no espaço.
4. PINHO, Osmundo.
A universidade e os undercommons.
Revista Hemisférica, 2014.
Os autores também nos falam da hapticalidade como uma capacidade de
sentir com/pelo outro, por meio da pele. Nos dizem de uma solidariedade
comum: “uma sensação de sentir os outros sentindo você”. Um
sentimento que não pode ser sentido individualmente, mas nem coletivamente
como algo homogêneo. Uma sensação que não pode ser fixada
em um território, estado, nação, história ou instituição.
É uma sensação, se cavalgarmos com ela, que produz uma certa
distância do fixo e estabelecido, daqueles que se determinam no
espaço e no tempo, que se localizam numa determinada
história. Ter sido expedido é ter sido movido por outros, com
outros. É sentir-se em casa com os desabrigados, à vontade com
os fugitivos, em paz com os perseguidos, em repouso com os
que insistem em não o ser (...) Anteriormente, esse tipo de
sensação era apenas uma exceção, uma aberração, um xamã,
uma bruxa, uma vidente, um poeta entre outros, que sentiam
através dos outros, através de outras coisas. Essa é a sensação
insurgente da modernidade, a sua carícia herdade, o seu falar de
pele, o toque da língua, o discurso da respiração, o riso das mãos.
(...) Esta é a sensação que poderemos chamar de hapticalidade. 5
5. HARNEY, S.; MOTEN, F.
The undercommons: fugitive
planning and Black Study.
Wivenhort; New York; Port
Watson: Minor Compositions,
2013, p.97 - 98.
6. Para pegar emprestado duas
noções de Jacques Rancière
presentes em: A partilha do sensível:
estética e política (São Paulo:
Editora 34, 2005) e Dissensus: on
politics and Aesthetics
(Publishing group: London,
New York, 2010).
7. HARNEY, S.; MOTEN, F.
The undercommons: fugitive
planning and Black Study.
Wivenhort; New York; Port Watson:
Minor Compositions, 2013, p. 98.
Esses traços tocantes, aqui tamborilando em uma textura alternativa, e
que não podem ser facilmente regulamentados são produzidos desde
uma “distribuição do sensível”, bem como do dissenso necessário que é a
“demonstração de uma lacuna no próprio sensível” 6 . Essa insurgência tátil
do encontro sugere diferentes tempos, espaços, vozes, políticas e estéticas
me tocando, tocando você. “A pele contra a epidermização. (...)
Forçados a tocar e a ser tocados, a sentir e a ser sentidos nesse lugar de
ausência de espaço, embora negados aos afetos, à história e ao lar,
sentimo-nos (por) uns nos outros” 7 . Ser tocado e tocar essas práticas, temporalidades,
resistências é tocar na linguagem, tocar a oscilação e a alternância
eternas: a auscultação, fusão e dissolução do sujeito e do objeto.
Como então sustentar uma política do toque e do amor apesar da
despossessão total que nos corta? O toque é o arquivo imaterial que
percorre o fora do tempo, nos guiando na (des)captura. Não temer ao
desconhecido e abstrato resíduo do toque é o que o tremor sussurra.
Eles são a testemunha do nascimento de outras abstrações, talvez, mais
possíveis para nosso próprio mundo. Porque “já estamos aqui, nos
movendo. Nós estivemos por aí. Somos mais do que política, mais do
que estabelecidos, mais do que democráticos” 8 . O toque é como a
Criança diante da Sombra que abre esse prefácio. Ela se deixa tocar
pelos fios rasurados num universo em ruínas e tem na própria carne a
inscrição dos seus ancestrais, “a criança é como o junco, só pode cantar
e amar pelo entalhe que a abre para o sopro do infinito”. 9
8. op.cit p.19
9. op.cit p. 86
george teles
afetos da travessia
textos
132 133
Tarcisio Almeida: Eu gostaria de começar, mesmo que parcialmente,
dando vazão ao prolongamento que o seu trabalho me suscita. A maior
alegria que meu estado de escuta diante do teu processo pode ressentir
não está na condição de prefácio de um trabalho que tenho ajudado a
construir, mas nos momentos secretos em que, ao longo dessa interlocução,
tive de refrear inesperados ímpetos de me jogar também em uma
produção paralela. Desse segredo, o sustento de nossas presenças diante do
nosso encontro parece se realizar. Pensando nisso, eu gostaria de compartilhar
alguns momentos desses últimos dois anos em que temos nos
frequentado no âmbito da sua produção artística. Eles dizem de
algumas viradas conceituais, plásticas, de uma consistência formal e,
sobretudo, de uma conexão mais contundente com as esferas éticas
demandadas pela sua pesquisa. Nesse período, percebi um tipo de deslocamento
que parece ter acontecido entre as primeiras gravuras que vi,
em 2019, em relação com as produzidas agora, entre 2020 e 2021. Em
ambos os casos, sem dúvida, há uma defesa a favor da "política dos
encontros", que mais à frente vou te perguntar melhor. No entanto, me
parece que no início você se concentrava mais no efeito dos encontros,
ou mesmo nos encontros em si. Uma espécie de presente materializado
na ação. Entendendo que a experiência depurada de um encontro -
sejam eles pelo corpo, pelo espaço ou mesmo pela relação imaterial
presente nesse processo - depende também da criação de condições
possíveis para seu acontecimento (sempre inesperado e impossível de
prever), você parece repousar sobre esse território. O da criação de estratégias
que os permitam acontecer. Isso parece se realizar através de um
estudo sobre o espaço, pela criação de geografias e territórios ou mesmo
pelo movimento coreográfico que antecede os encontros. Por certo,
essas duas divisões que eu faço se confundem e se borram. Como você
as entende? Qual a importância delas?
George Teles: Antes de qualquer coisa, acredito que para mapearmos
esse deslocamento é preciso abandonarmos qualquer aproximação da
linearidade cronológica ou mesmo do progresso. Em 2016 comecei a
escrever sobre a poética dos encontros, tendo como ponto de partida a
investigação sobre a matéria. Estava mais debruçado sobre as técnicas de
costura e tecelagem; e hoje, quase 5 anos depois, retomo este processo
reconhecendo sua permanência a partir de aspectos éticos e conceituais. O
que acontece nesse intervalo de tempo – que pouco tem de intervalo, mas
sim de continuidade e retornos – é uma abertura maior para o processo, no
que diz respeito à escuta das necessidades da própria matéria e das próprias
experiências. O amadurecimento da forma, no entanto, só acontece a
partir da percepção de que esse processo demanda um trabalho contínuo.
Talvez tal fortalecimento entre a forma e experiência reflita de
maneira acentuada o que você chama de viradas plásticas ou ganho de
consistência formal.
Percebo o encontro como um instante de atravessamentos entre materialidades:
as rugosidades das superfícies, as partes físicas que compõem
um corpo, mas também toda a materialidade do invisível. Sempre me
sinto tocado por esse "presente" incorporado na ação. Nesse sentido, as
gravuras são os próprios encontros que tenho proposto. Elas podem ser
lidas como uma extensão do efeito dos encontros ou mesmo como rotas
que apontam para os próximos. Elas dizem também sobre a proposição
de formas para a própria matéria do invisível. Tensionam a corporificação
do imaterial nos instantes em que o papel encosta na matriz e em seguida
retorna ao estado de corpo imaterial. Ou mesmo, no momento em que
atingem o corpo de quem as vê, esse é um novo encontro que acontece.
Talvez eu ainda permaneça nessa primeira divisão que você faz. O que
não quer dizer que eu não concorde que estou na segunda, pois, as
fronteiras entre elas se confundem e aqui pretendo borrá-las ainda mais.
No que diz respeito à criação de condições possíveis para o acontecimento
dos encontros, intento esse lugar desde o princípio; nas primeiras
Redes de Amparo, em 2018, ou mesmo na constatação da necessidade de
um Corpo-Tecido. Esses processos de tessitura ganham fôlego na relação
com o território, na vontade de suspender o corpo e no desejo de ser
atravessado. As composições de corpo que evoco (ser tecido, virar do
avesso, ser rede, ser cáustica, ser pontiaguda) fazem parte dessas estratégias
para viabilizar o encontro. E elas só são possíveis porque são o
território criado a partir da relação dos nossos corpos com as geografias.
Só sou cáustica no encontro do sol com as dobras do Jacuípe com o
Paraguassu. E é sendo cáustica que me projeto na superfície para os
encontros e me dissolvo quando preciso. Essas noções também me
atingem através da escuta, das texturas das peles, dos toques, nas espessuras
dos espaços, na umidade do ar... Essas materialidades exigem uma
preparação de corpo. Exigem um exercício da sensibilidade e, principalmente,
de uma geografia possível.
TA: Você costuma se definir como acumulador e batedor de pernas.
Quando me deparo com essa forma de reconhecimento, penso que ela
diz de uma maneira de se mover e também sobre uma metodologia de
apreensão do mundo. Estaríamos falando da construção do corpo a
partir do trânsito? Ou mesmo daquilo que precisamos "dar um jeito"
george teles
afetos da travessia
textos
134 135
quando nos resta apenas o nosso entorno com suas qualidades, virtudes
e asperezas?
GT: O entendimento destas partes que me constituem é trazido a partir
da lida com meus familiares. Vem de observar os gestos de minha mãe
Zama que forjava dentro das eternas e dispendiosas movimentações
cotidianas, momentos de prazer e felicidade. Esses deslocamentos me
arrastavam, quando criança, por extensos itinerários – do tomba à
mangabeira, partindo em sete o anel de contorno 10 – dando conta de todas
as suas demandas, mas ainda assim reivindicando o que era nosso; o prazer
de se perder nas caminhadas, a possibilidade de criação a partir delas.
Tal reconhecimento foi um tanto tardio, embora meu corpo dissesse e
sentisse, pouco eu entendia, quando criança, sobre essas estratégias.
Apenas experimentava a felicidade, o prazer e a potência que me tomavam.
Hoje, depois de virado do avesso, busco pela sabedoria das mucosas,
entendo que é só a partir do bater de perna que o processo pode ser
construído. Me dizer batedor de perna é uma forma de reivindicar o
direito ao trânsito sem recorrer à romantização desse processo. Não é
no ócio, mas sim no trabalho que essa prática se constrói. Existem
algumas tentativas equivocadas de aproximar o caminhar à figura do flâneur
e acho que o bater de perna se corporifica também como uma resposta a essa
leitura. Me pergunto quem é esse flâneur e se é realmente possível alguma
aproximação desta figura no contexto do Recôncavo Baiano. Afinal, quem
tem o direito de flanar pela cidade?
10 . Referência aos bairros da
cidade de Feira de Santana (BA).
11. Ponte D. Pedro II, ponte de
ferro sobre o Rio Paraguaçu
que faz ligação entre as cidades
de Cachoeira e São Félix, no
Recôncavo da Bahia. A ponte é um
dos elementos centrais do território
no qual este trabalho se inicia.
O ser acumulador também vem da família, dessa vez, por parte de pai. A
tentativa constante de reter no corpo toda a matéria dos encontros
vividos é uma tarefa difícil. A luta contra o acúmulo – e a derrota –
sempre foram recorrentes por aqui. Então, sigo por uma via oposta, a do
acolhimento. Percebo que o corpo se constrói no acúmulo dos encontros
e me parece impossível pretender qualquer materialização de experiência
sem passar por tal processo. Uso da viscosidade das mucosas para aglutinar
essa poeira (resquício) dos encontros e com elas faço o grude e a liga
das matérias. A própria oxidação perseguida nos trabalhos são essa
composição/registro da ação do tempo em um corpo ferroso. A ferrugem
como inventário dos afetos e dos encontros. Afinal, o que diferencia
nosso corpo da ponte 11 Cachoeira-São Félix?
Aquilo que resta de um encontro é o que produz o próximo. Tomo a
acumulação como principal metodologia, estendo a rede da coleta nas
caminhadas e tento carregar comigo tudo o que é possível durante um
encontro. E com isso quero dizer desde o que é material, como as linhas,
cordas e o ferro utilizados na construção das matrizes para impressão, até o
que não se pode tocar com as mãos, mas sim lamber com os olhos. Escolho por
permanecer acumulador, escolho por ser batedor de perna. Mantenho essas
posições porque acredito na potência do fazer pelo trabalho.
TA: Defender o direito ao deslocamento é defender o direito ao encontro,
um direito à fragilidade e ao padecimento dos afetos. Seria possível
dizermos que a defesa do encontro é também uma defesa da memória?
Enquanto te escrevo, me lembrei de algumas fotografias da sua família e
do fato delas serem sobreviventes a uma enchente durante a sua infância.
Podemos cruzar essas experiências todas?
GT: Retomar essas fotografias ainda é uma experiência difícil. Embora
elas me despertem muitas vontades, ainda é algo em que preciso permanecer
para entender melhor. A relação com a memória é crescente no
trabalho, especialmente por conta do contexto em que essa pesquisa
surge. O deslocamento que faço para Cachoeira e São Félix no início da
minha formação é significativo. Ele ativa memórias até então adormecidas.
Tenho relação de infância com as duas cidades, a passagem por elas
era constante e o retorno para esse território faz acordar sensações que
eu não sabia que havia esquecido. O reconectar só é possível no território
fruto desse deslocamento. É difícil lembrar do que foi dissolvido.
Acredito que podemos pensar numa ideia de defesa da memória, sim.
Os registros perdidos na água podem parecer só um infortúnio, mas são
também o contexto em que vivemos, ao presenciarmos por todos os
lados o apagamento e a negação de nossa memória. Todas as situações
são desenhadas para que nossa memória se dissolva. Desse ponto, podemos
entender a proposição de encontros como a possibilidade de sentir
as memórias que não conseguimos acessar a partir de documentos
formais. Permitir sentir tais ausências é entender que o corpo carrega
experiências que só são possíveis de acessar a partir do encontro.
TA: Eu gostaria que você falasse mais sobre as técnicas em gravura
como o próprio encontro. Como isso se dá?
GT: Os procedimentos técnicos funcionam como condutores no trabalho.
E isso acontece porque me permito ser guiado pelo sentir deles no
corpo. Hoje tem sido a impressão que me preenche e por isso a utilizo,
mas poderia ser outra técnica, como já foi.
E me chega assim porque a coreografia e os gestos desses procedimentos
são muito potentes. Desde a limpeza até a secagem. Preparar os
corpos rígidos, cavar com a goiva os ocos nas superfícies, esticar o grude
george teles
afetos da travessia
textos
136 137
da tinta sobre as placas de vidro, dispor os tecidos matrizes, gravar
marcas em um corpo que será impresso em outro. Tudo sugere ao corpo
uma forma de ritualização dos encontros. Montar o jogo entre as densidades
dos corpos a serem impressos, equilibrar a dureza do fio de algodão
e a leveza dos sulcos das chapas de ferro. Arranjar o espaço de acordo com
a necessidade do encontro. A intensidade dos corpos é um dos acessos
para os territórios que se criam, a impressão utilizando uma colher de pau
é a própria colisão. Alisar repetidas vezes as costas do corpo-papel que
se esparrama sobre o corpo-matriz é o mesmo que ler com as mãos o
relevo dos encontros. Sentir a colher ecoar a aspereza que a superfície
toma a partir do contato, me permite entender a importância das densidades
em contato. Saber quando se faz necessário ser a finura do corpo
mole ou a rigidez das placas de metal, entender que até o papel mais fino
consegue se moldar aos desníveis sem ceder, e que os corpos mais
rígidos e cortantes também se derretem, se deterioram, viram pó (basta
colocá-los em colisão com o corpo) e experimentar esses territórios dos
encontros. Qual a diferença entre meu corpo e os que se criam na gravura?
Nossas dinâmicas não são, também, movidas pelas impressões?
TA: Durante o seminário que organizamos em 2020 pelo Práticas
Desobedientes, chamado Bonita é a noite com sua fundura, você levanta
questões próximas a estas. Fala sobre o exercício de imaginar a formação
de um corpo líquido-viscoso. "E ao mesmo tempo, pesado o suficiente
para aguar 10 vidas inteiras. As nossas". Em momentos como este podemos
encontrar uma relação entre a construção do corpo ao mesmo
instante em que o espaço se constitui, ou melhor, ao mesmo momento
em que o espaço passa a ser redesenhado para que o corpo possa ser
suportado. Algo sobre a possibilidade de construção de territorialidades
diante da edificação de nossas vidas, muitas vezes, experimentadas
como vidas impossíveis…
12. Práticas Desobedientes é um
programa de formação para jovens
artistas com foco em
aprendizagem coletiva e pedagogias
libertárias baseado no
Recôncavo Baiano desde 2019.
(www.praticasdesobedientes.com)
GT: Sim, acredito que essa relação fica evidente quando me percebo no
trânsito, na constante construção de estratégias para sustentar minha
existência a partir do movimento. Talvez as caminhadas sejam os limites
entre o corpo e o território. Todo o exercício de construção desses
corpos surge da necessidade do que a vida sugere, em consonância com
o que ela oferece. O exercício de lidar com as materialidades disponíveis
para moldar, simultaneamente, corpo e território, me permite a suspensão
desse próprio corpo que se recusa a lidar com os desconfortos das
construções disponíveis. Inclusive, pensar em fronteiras definidas entre
corpo e território ou pensar em separações entre as materialidades não
faz muito sentido. A partir dessa sensibilidade, tudo se borra e tudo
POÉTICA DOS ENCONTROS
ENCONTROS NO GRUDE DA TINTA
CAMINHAR
NO GRUDE
DA TINTA
MERGULHO
NA FERRUGEM
VISCOSA
OCO
ROTAS
COLISÕES
COREOGRAFIAS
COREOGRAFIAS
PRÉ-COLISÃO
REDES
DESENLAÇE
REENLAÇE
COREOGRAFIAS
DO REPOUSO
PENETRAÇÕES
RESÍDUOS DO
PRIMEIRO
ENCONTRO
RESÍDUOS
POÉTICA DOS ENCONTROS
george teles
afetos da travessia
textos
139 139
passa a ser feito desse grande emaranhado. Pensar que o território
disponível para esse trânsito é historicamente estruturado para a manutenção
dos estados de precariedade de nossas vidas me faz perceber a
emergência de sua remodelação. Imagino que meu trabalho surge
desse lugar. Redesenhar as territorialidades que sustentam o nosso
desejo pelos encontros.
TA: Nos últimos meses passamos a discutir, de forma mais aprofundada,
a importância da abstração como dispositivo estético-político,
observando-a como um ferramenta que, de diferentes maneiras, tem
nos permitido acessar experiências para o que tenho chamado de liberdade
cognitiva. De forma geral, abstrair é tornar complexa e densa nossa
relação com outros sentidos de mundo. Abstrair não é só adotar uma
posição estética, mas advogar através da expressão a favor de formas
inauditas, pensando junto a elas maneiras mais possíveis. A abstração
passa a ser um plano fugitivo. E a fugitividade aqui não é necessariamente
o efeito passivo de uma ação sofrida, mas antes, de tudo, uma recusa,
uma partida, uma estratégia, um modo, que permite que nos desloquemos
na direção de outros territórios existenciais. A abstração é uma
proposta de reestruturação das geografias, das paisagens, dos lugares e
da própria saúde. No seu caso, como você tem se interessado por essas
questões? Quando elas passam a ser uma das linhas mestras dentro da
sua pesquisa?
GT: Acho que podemos falar da abstração como uma estratégia contra
a captura feita por regimes de formas que não foram feitas em diálogo
conosco. Tenho me perguntado até que ponto suportamos permanecer
na fuga. Como você mesmo diz, tomar a fugitividade não como um
processo passivo e sim como a criação de rotas e ações para permanecermos
vivas é essencial. Desde que percebi meu interesse por essas outras
formas tomo posse da abstração para criar corpos, territórios e estados
que me permitam permanecer num lugar de conforto e acolhimento que
muitas vezes só é possível a partir do trabalho e dos encontros que
proponho. Pensar as Coreografias como uma preparação para repouso, ou
as próprias Suspensões, é dizer da vontade e da urgência por criar prazer
para o corpo cansado, fruto de um mundo que não foi desenhado por ele.
Talvez, a fuga seja também a perseguição por um lugar de repouso....
Allan da Silva, que assina o texto final do livro, é a pessoa que me alerta
sobre o fugir, mas sempre olhando nos olhos do perseguidor. Algo que
está presente também nas ideias do filósofo Dénètem Touam Bona (um
dos pilares para este processo). De todo modo, gosto de pensar que no
encontro do trabalho proponho a estruturação de um território que
busca tornar possível experienciar a felicidade por ela mesma, porque nós,
subjetividades sistematicamente subalternizadas, desejamos viver em um
lugar que não é só o da constante criação de estratégias para permanência.
Nesse sentido, seria inevitável não chegar à abstração. Se quero tocar em
corpos e territórios que se dão a partir da experiência de encontro, que se
moldam na materialidade do invisível, e que são mediados por sensações
desconhecidas pelo meu corpo, é impossível recorrer às modulações já
programadas. A partir disso é que recorro à agência da matéria para me
ajudar a entender, mesmo que de maneira efêmera, como se dão as
formas desses encontros.
TA: Me parece que dentro desse diálogo tudo passa a ser uma questão
de construirmos saídas (possibilidades de suporte para nossos territórios
existenciais) e saúdes (meios pelos quais nossas existências se
realizam em suas melhores potências). Essa saúde é fruto de uma
decisão radical sobre si e sobre o mundo. Essa saúde nos permite, sobretudo,
o acesso ao campo de novas línguas e linguagens. Como você
comentaria mais sobre isso a partir da sua experiência?
GT: Acho importante retomar a nossa experiência dentro do Práticas
Desobedientes, levando em consideração que nossos encontros são um
desses espaços onde criamos juntos e nos permitimos estar e sentir a partir
dessa perspectiva. Lembro muito da sua proposta em voltarmos a desenhar
com os cotovelos e da preparação de corpo que Jamille Cazumbá 13 nos
propôs para atravessarmos essa passagem. Eu, que sempre vivi no desejo
de criar um novo corpo, percebo cada vez mais o quanto é necessário
superarmos alguns limites da compreensão para darmos conta de tudo
aquilo que não conseguimos dizer. Nesse exercício, surgem formas de
expressão que fogem do que somos ensinados a dizer. Talvez essa seja
uma das práticas de liberdade que você fala. Na perspectiva da criação,
tais ideias se desenvolvem muito a partir do movimento de virar o corpo do
avesso, que é um modo de preparação para torná-lo sensível à experiência,
ao ponto de deixá-lo aprender a língua da matéria. Acordar o corpo permite
que as composições aconteçam.
13. Jamile Cazumbá é artista
e pesquisadora integrante do
programa Práticas Desobedientes
desde 2019.
TA: Essa constelação de voos e pousos parece nos levar sempre ao lugar
dos encontros. Você gostaria de finalizar falando sobre eles enquanto
um lugar político?
GT: Nós sabemos o quanto a dessensibilização tem sido usada como mecanismo
de controle, atuando diretamente na manutenção da precarização e
adoecimento de determinados corpos e subjetividades. Poderíamos
george teles
afetos da travessia
textos
140 141
dizer que a dessensibilização é orquestrada a partir do gerenciamento
da vida. O fim é a paralisia e redução de nossa capacidade de sentir. Se
essa estrutura é um meio de determinação sobre a forma como nos
encontramos, poder favorecer outras possibilidades para que eles
aconteçam é assumirmos o compromisso com o cuidado e a manutenção
das nossas vidas. Quando escolho permanecer nos encontros molhados
pelas águas salobras do Paraguassu em São Félix ou quando escolho
permanecer no prazer de um encontro do desdobrar de tecidos e linhas
sobre um papel, eu atesto meu desejo pelos sons, tempos, texturas e
intensidades. Tenho aprendido com o movimento das redes, com os
rangeres de um cruzamento de ferro, com os ruídos e os silêncios de
uma conversa macia a cultivar essa forma de cuidado. A elaborar movimentos,
ferramentas e a compor as peças necessárias para esse redesenho.
É nessa coreografia que, talvez, se construa uma política dos encontros.
Você já tentou costurar um braço de rio num corpo serpente?
[Allan da Silva]
Certa feita, ao observar o céu de Jaguaripe, cidade onde nasci e me
encontro nesse período pandêmico, recebi a visão de uma grande serpente
prateada que chegava sinuosa envolvendo todo alto da colina dourada.
Lá de cima, a serpente destilava seu veneno em rios de águas agridoces.
Encharcou tudo, até o sono de George que, naquele mesmo dia, distante,
me contou dessa mesma visão.
Distante, mas nem tanto.
Distante quanto?
A terra que piso e o lastro onírico que sustenta o sono de meu amigo,
encontravam-se prontos para o plantio. Férteis.
Foi então que começamos a plantar.
E não foi ali que tudo começou.
A princesa heroica envolta em um manto de pedra nos atraiu, e fazia
todo mundo ali vibrar enquanto respirava por nós. Foi lá por 2015/16,
que o imã da sua coroa monumental nos juntou. Magnetizadas, arrastamos
pelas ruas quentes de brasa cinza chumbo toda realidade que podíamos
sustentar em nossas costas. Esse foi o movimento. Uma fricção
ardida gerava as pequenas ondas que desaguavam no Paraguaçu. Dentro
de cada uma, minava no meio e em nossos peitos.
Foi então que uma corrente de retorno se formou, chegando até nós
com toda sua força, arrastando em espiral tudo aquilo que estaria por
vir. Aguando em nossos olhos, eram visões. Apenas esclera e córnea,
espuma d’água e oco do mundo. Onde o raio da luz faz curva.
E não foi na Cachoeira que tudo começou.
george teles
afetos da travessia
textos
142 143
Em nossas costas largas de carregar bagagem, o peso de tudo que é já se
fazia sentir. Estávamos em busca daquilo que não conhecíamos, nem a
forma, nem o cheiro ou sabor. Só sabíamos que era fresco porque batia
constantemente em nossas caras como a brisa debaixo dos flamboyants
do Faquir. E tinha mesmo que ser ali porque o que fazíamos era o mistério,
porque batia quando estávamos juntas.
Esse frescor que nos mantinha sãos era o que mais perseguíamos durante
boa parte da passagem naquele lugar, e quanto mais próximo o final
do mundo, mais desidratadas ficávamos e ficávamos ainda mais desesperadas
por aquelas partículas frescas que chegavam do ar.
Eram dias de distribuir e noites de receber, de tudo. Por isso, entendemos
a costura, agora entendemos melhor o tecer, o movimento dos
braços, das mãos e dedos, ir para voltar e no meio de tudo isso as perfurações
seladas a vácuo. Perguntávamos sobre o que era, agora só
fazemos sentir.
Era o que perseguíamos.
Expectativas já não serviam. Como um tecido que se desgasta e rasteja
até o rasgar. Entendemos que tínhamos tudo, e entendemos também
que não era o suficiente.
O calor era o mesmo.
O corpo era outro.
Precisávamos alinhar, alinhavar, juntar, apontar, era sobre o que mais
conversávamos. Depois de tanto tempo expostas aquela inradiação não
poderia ser diferente, nos tornamos corpos receptáculos das nossas
próprias matérias. Um modelar–um grudar–um mover-se–um respirar-
–um gravar e um outro pintar–um costurar–um profetizar–um sobrepor,
derreter e penetrar.
A prática leva à perfeição, ouvimos dizer, e longe dos braços férvidos
da princesa heroica, num movimento involuntário original de retornar,
começamos a grande coreografia vital. Abrir os olhos, ponta dos
pés no chão frio, enchente e vazante dos peitos, dedos ágeis e mentes
enxurradas.
É assim que se sente o pulsar,
É assim que nos movemos.
Desafiar a física da lei, a materialidade das formas, gesticular o que o
corpo ainda não aprendeu, coletar experiências e andarilhar sobre as
cabeças, forjar deuses novos, e novos receptáculos também, novas
peles, músculos, órgão e vísceras. É dessa maneira que liberamos umas
nas outras partículas de vida, frescas como a brisa debaixo da árvore
de fogo.
Agora entendíamos tudo,
A transmutação.
Era o que mais queríamos.
Em Jaguaripe aprendi a tratar caranguejo – meio caminho andado, e
coletar tijolo na beira do rio – viagem no tempo. E foi na beirada oracular
de pedras gravadas que vi o futuro suspensa por Tempo. Aqui em
Jaguaripe somos todas beradeiras suspensas por Tempo. E nesse trocar de
línguas, entre rio, pedra, gente e encantados, lembrei da ferrugem. E o
que é a escuta da ferrugem, se não ser ouvinte dos estridentes gritos
metálicos sobre o anseio ao retorno? O praguejar por um estado de
existência.
Lembrei também da espera entre um passo e outro do meu amigo andarilho,
lembrei que ouvi pela língua de meu pai as palavras de minha vó
que diziam: O agrado é a demora da viagem. E lembrei que quando
fomos ao centro aprendemos que viajar só presta se for para retornar.
Vamos pro futuro para superviver o presente, e aqui nos lugares onde
estamos, retornadas, deixamos de ser caça e deixamos também de ser
caçadoras. Preferimos tecer, grudar, modelar, derreter, forjar, prever e
inradiar. Tudo. É assim que atravessamos.
E quando atravessamos, uma fenda temporal se abre, um fino raio de luz
põe-se a atar entre os braços e as costelas, os dedos, unindo umbigo e
coração. O raio toma conta do que não era corpo, tornando-se parte e todo.
É com essa forma que fazemos possível. É como boiar numa cabeça
george teles
afetos da travessia
textos
144 145
d’água, espaço ente o rio e a ponte. Para isso é preciso flexionar as entranhas,
ocupar os ocos e liberar ecos quentes.
Para atravessar é necessário tornar-se e o que tínhamos era corpo oco
flexionado e rígido para ser preenchido pela ética dessa passagem. E de
que eram feitas aquelas fibras? Como poderia ser a própria lança? Não podíamos
perseguir porque já estava em nós. Essa é a origem do cansaço, do
desgaste, assim como na fuga, jamais será possível encontrar beleza em
qualquer perseguição, tão pouco nessa. Preferimos a plenitude do
repouso, a vivida assunção, que faz das nuvens o estado condensado dos
rios que saem das frestas gravadas desses nossos corpos, os rios caudalosos
de águas respiradas, tem sal e açúcar e tudo que nos compõe, tem
braço também e tem escamas quando colidem com a luz.
No encontrar-se: Um re-pousar preciso.
Aqui estamos e já aprendemos a coreografia. Nossos pés que vazam o
soro da vida grudam em sola a geografia da terra e marcam novos territórios.
Repousamos no atravessar dos encontros desde nossos corpos
esponjosos, que quando secos se hidratam do soro uma das outras. É
dessa maneira que as correntes elétricas do Paraguaçu se misturam com
as águas terrosas do Jacuípe, desaguam no Rio das Onças para desembocar
na Bahia toda.
Outra vez úmidas o que fica são os rastros, hora de barro fresco, hora de
grude forte e é essa mistura que, no espaço entre as duas cabeças,
forma-se o resíduo de um momento, um estar, tudo aquilo que vibra até
o chocar.
E falando em colisões, é justamente de lá que tudo começa, de lá devemos
reposicionar porque é do esbarrar desses corpos que se grava novos
territórios num mapa que começa e termina entre o chão e o peito do pé.
Corpo de barro, corpo de luz, corpo de nylon, o corpo da deusa, de água,
de cera, de grude enferrujado. Corpo novo, corpo forte, fortaleza. Corpo
de serpente com braços de rio.
Quando eu encontro George, o barro que me compõe vibra e faz de
mim um vaso novo, inquebrável, viva.
Temos tudo. A vontade de viver.
Vivíssimas.
lista de obras
Caderno de gravuras
1. Primeira e segunda braçadas, 21 x 29,7 cm,,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
2. Primeira e segunda braçadas, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
3. Caminhar no grude da tinta, 42 x 59 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
4. Mergulho em ferrugem viscoso, 42 x 59 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
5. Colisão 2, 42 x 59 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2021.
6. Colisão 3, 42 x 59 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2021.
7. Colisão 1, 42 x 59 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2021.
8. Caminhar no grude da tinta 3, 29,7 x 42 cm
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
9. Oco 2, 20 x 20 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
10. Oco 2, 20 x 20 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
11. Oco 2, 20 x 20 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
12. Oco 2, 20 x 20 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
13. Oco, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2019.
george teles
afetos da travessia
148 149
14. Oco, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2019.
15. Oco, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2019.
16. Oco, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2019.
17. Tecer rede de amparo, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2019.
18. Tecer rede de amparo, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2019.
19. Tecer rede de amparo, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2019.
20. Tecer rede de amparo, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2019.
21. Penetrar o avesso, 42 x 59 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
22. Penetrar o avesso, 42 x 59 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
23. Rotas para encontros que querem acontecer, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
24. Rotas para encontros que querem acontecer, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
25. Rotas para encontros que querem acontecer, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
26. Rotas para encontros que querem acontecer, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
lista de obras
27. Arranjos para desenlace e reenlace, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
28. Arranjos para desenlace e reenlace, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
29. Arranjos para desenlace e reenlace, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
30. Arranjos para desenlace e reenlace, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
31. Resquícios do primeiro encontro, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2019.
32. Resíduos do primeiro encontro, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2019.
33. Resíduos do primeiro encontro, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2019.
34. Resíduos do primeiro encontro, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2019.
35. Resíduos do primeiro encontro, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2019.
36. Tecer rede de amparo 2, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2019.
37. Tecer rede de amparo 2, 21 x 29,7 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2019.
38. Coreografias de preparação para repouso, 42 x 59 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
39. Coreografias de preparação para repouso, 42 x 59 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
40. Coreografias de preparação para repouso, 42 x 59 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
41. Coreografias pré colisão, 42 x 59 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
george teles
afetos da travessia
150 151
42. Coreografias pré colisão, 42 x 59 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
43. Coreografias pré colisão, 42 x 59 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
44. Penetração, 42 x 59 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
45. Penetração, 42 x 59 cm,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
Caderno de processos
1. Estudo de movimento e repouso,
grafite s/ papel, 2020.
2. Estudo de movimento e repouso,
grafite s/ papel, 2020.
3. Estudo de movimento e repouso,
grafite s/ papel, 2020.
4. Cadernos de processos,
grafite s/ papel, 2020.
5. Estudo de movimento e repouso,
grafite s/ papel, 2020.
6. Moer as beiradas e esticar em uma forma,
pastel oleaoso egrafite s/ papel, 2020.
7. Moer as beiradas e esticar em uma forma,
grafite s/ papel, 2020.
8, 9 e 10. Estudo de movimento e repouso,
grafite s/ papel, 2020.
lista de obras
11.Estudo de um corpo em U segmento de onda,
grafite s/ papel, 2020.
12 e 13. Estudo do oco,
pastel oleoso s/ papel, 2020.
14. Estudo para penetrações,
grafite s/ papel, 2020.
15 e 16. Digitalização de fotografia analógica
(1997 - 2010).
17 e 18. Estudo para colisão,
impressão s/ papel (monotipia), 2020.
19 a 24. Estudo dos ruídos da colisão, impressão s/ papel (monotipia),
2020.
25. Fragmento da ponte Dom Pedro II coletada no fundo do Rio
Paraguassu (Cachoeira - São Félix), 2019.
26 a 28 Estudos de densidade para passagem,
impressão s/ papel, 2020.
george teles
afetos da travessia
À Zama, Alba, Beth e George pelo cuidado e fé.
À Deisiane, Luana pela escuta.
Às desobedientes, Larissa, Da Matta, Cazumbá, Allan, Kaick,
Michelle, Ari, Julia e Tarcisio por hidratarem semanalmente as
minhas juntas quebradiças.
Ao Paraguassu, Jacuípe e a todas as outras dobras de água e
pedra que foram repouso e permitiram os encontros que deram
corpo a este trabalho.
Organização
George Teles e Tarcisio Almeida
Textos
Allan da Silva, George Teles, Tarcisio Almeida
Produção executiva
Andarilha Edições
Revisão e preparação de originais
Deisiane Barbosa
Impressão
Ipsis Gráfica e Editora
Embora adote a maioria dos usos editoriais do âmbito brasileiro, esta publicação
não segue necessariamente as convenções das instituições normativas, pois
considera a edição um trabalho de criação que deve interagir com a pluralidade de
linguagens e a especificidade de cada obra publicada.
A reprodução parcial deste livro sem fins lucrativos, para uso privado ou coletivo,
em qualquer meio impresso ou eletrônico está autorizada, desde que citada a fonte.
Todos os créditos fotográficos e digitais pertencem ao autor.
Capa impressa em serigrafia sobre papelão. Miolo impresso em Polén soft 90
g/m 2 e Eurobulk 150 g/m 2 . Composto com as famílias tipográficas Agrandir e
Hoefler Text.
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Teles, George
Afetos da travessia / George Teles, Tarcisio Almeida, Allan da Silva;
coordenação George Teles.
1. ed.
Conceição da Feira, BA : Andarilha Edições, 2021.
ISBN 978-65-991857-7-9
1. Artes gráficas 2. Artes visuais 3. Gravuras
4. Artistas brasileiros I. Almeida, Tarcisio.
II. Silva, Allan da. III. Título.
21-59156 CDD-741.6
Índices para catálogo sistemático:
1. Artes gráficas 741.6
Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964
Este projeto tem apoio financeiro do Estado da
Bahia através da Secretaria de Cultura e da
Fundação Cultural do Estado da Bahia (Programa
Aldir Blanc Bahia) via Lei Aldir Blanc, direcionada
pela Secretaria Especial da Cultura do Ministério
do Turismo, Governo Federal.
APOIO FINANCEIRO:
ANDARILHA EDIÇÕES /120