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C A R L O S B O R T O L Á S
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D O I N H A N D U Í
D O I N H A N D U Í
Foto: Arquivo Cléber Bortolás
Plínio Domingos Bortolás e Clasilda Dambrós
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D E D A M B R Ó S A B O R T O L Á S
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D O I N H A N D U Í
CARLOS BORTOLÁS
FLOR DO CAMPO
cdbortolas@gmail.com
C A M P E R E A N D O M E M Ó R I A S
“Todo relato é, por definição, infiel. A realidade,
como já se disse, não pode ser contada nem
repetida. A única coisa que se pode fazer com a
realidade é reinventá-la de novo.”
Tomás Eloy Martínez, em Santa Evita
O fundão do Inhanduí, como chamo os campos da minha infância lá no 5º
Subdistrito do Alegrete, deixou meu cotidiano em 1975. Com nove anos,
sob guarda de seu Neri Rodrigues e de dona Iná Quevedo, a primeira e
eterna e professora, me arranquei pra cidade. O fundão virou coisa de
férias, feriados, quando reforçava o trabalho na lavoura de arroz.
Dona Clasilda Dambrós, minha mãe, nos deixou em 1979. Dois anos
depois, saí do Alegrete e ganhei o mundo. Perdi de vez o contato com o
fundão quando seu Plínio Domingos Bortolás, meu pai, já casado com a
Sirlei Botelho, mudou-se para a região do Passo do Meio. Ali, também na
costa do Inhanduí, percorreu a maior parte do trecho final de sua vida.
Em março de 2019, numa visita ao Alegrete, decidi voltar ao fundão do
Inhanduí. Queria rever os campos dos meus tempos de guri, matar a
saudade. Da passagem por lá, guardo com carinho a conversa com dona
Gelsa Rodrigues na varanda da casa principal da Guajuviras, a estância
dos campos da minha infância e adolescência. Lembramos histórias e
voltei à cidade com uma frase de dona Gelsa: "Tempo bom aquele!"
A conversa daquela tarde ensolarada digna da Pampa ficou adormecida
num canto da memória. Até despertar nestes duros tempos de Covid-19.
Refez-se, então, a velha vontade de dar vida a passagens daquele "tempo
bom". Com a ajuda de muitos, especialmente do meu irmão Cléber
Romário e do amigo Eneri Gonçalves, me embrenhei no passado.
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Assim nasceu DE DAMBRÓS A BORTOLÁS - RELATOS DO FUNDÃO DO
INHANDUÍ. Não é um livro, mas uma reunião de família, celebração de
amigos e pessoas que deram cor, voz e alegria à minha infância e
adolescência. Nesta campereada de memórias, passado e presente
caminham lado a lado sem compromisso com tempos verbais. Como que
levando um trator campo afora, atropelo o português sem medo.
Estes relatos carregam muito de seu Adolfo Dambrós, meu avô e um
grande contador de histórias. Histórias que os netos e netas nunca se
importaram se repetidas pela enésima vez, porque, entre gestos e risadas
fartas, seu Adolfo sempre incorporava algo novo nos seus causos. Era
como se, dia após dia, remontasse na lavoura de arroz uma taipa que a
água teimava levar. Ríamos, sempre!
DE DAMBRÓS A BORTOLÁS - RELATOS DO FUNDÃO DO INHANDUÍ é um
abraço para meus pais Plínio e Clasilda; os irmãos Cléber e Rosa; os avôs
Adolfo, Abrelina, Cecília, Iti e Helena; os tios e tias do braço Alegrete:
Antenor, Celso, Dênia, Noeli (Frida), Gabbi, Maria, Marizete, Neivete e
Zeca; os tios e tias do braço Dona Francisca: Abílio, Elaine, Elita, Elvira,
Heitor, Ilizi, Leone, Noeli, Vilmo, Vanir e Talita; o primo-irmão André; o
irmão da vida Claudir Rampelotto, o Cláudio; o tio Armando; os cunhados
Alceu e Marilvânia; sobrinhos e sobrinhas; primos e primas; seu Elvio
Berriel; dona Gelsa; seu Neri; dona Iná; amigos... E por aí afora!
Hoje, são urbanos os descendentes dos Dambrós e dos Bortolás que, na
esteira de seu Adolfo, firmaram pé na Fronteira Oeste lá pelos anos 1950.
Aos sobrinhos(as) e primos(as) repasso estes garranchos com um
carinhoso pedido: continuem contando histórias. E leiam, leiam muito!
Fica o registro. Segue a vida!
Brasília, março de 2021.
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MEU MATE É UM LIVRO,
UM AMIGO,
um pouco de tudo
É A PROSA À TARDINHA
com os olhos pro mundo
Mauro Moraes,
em Sobra Cavalo
Foto: Carlos Bortolás
Paulo Mendes
H I S T Ó R I A S , V I D A E A M I Z A D E
Conheci Carlos Bortolás, o Carlinhos, como era chamado, na sala do fundo do
corredor do prédio do Centro de Ciências Sociais e Humanas da Universidade
Federal de Santa Maria (UFSM) no segundo semestre de 1982. Foi durante um
intervalo entre uma aula e outra que trocamos algumas palavras.
Eu me identifiquei na hora com o cara, que parecia vir do campo também,
pela capacidade de entender o que eu falava e por um certo ar cosmopolita
que transparecia no modo dele se vestir, de falar e conviver com todos. Na
época, como era muito tabacudo (ainda sigo, porém um pouco falquejado),
fiquei impressionado com aquele loirinho franzino, simpático, falante e que
demonstrava ser esperto e culto.
Sempre que podia ficava por perto dele e de seus colegas mais próximos.
Assim, fui travando conhecimento da literatura, da cultura beatnik, do rock and
roll, do futebol e da política internacional, porque o cara era fera. Devagar fui
me entrosando, porque nada sabia do mundo, mas fui aprendendo um pouco
aqui, outro ali e fizemos juntos até militância estudantil.
Foi o início de uma amizade que perdurou através dos anos. Fizemos
trabalhos acadêmicos juntos, como programas de rádio e até um filme.
Quando o Carlinhos foi morar em São Miguel do Oeste, no Extremo Oeste de
Santa Catarina, me mandou uma carta emotiva. Lembro que quando a li,
percebi na hora o quanto nos admirávamos.
Juntos, participamos de "epopeias". A melhor de todas foi a viagem a Buenos
Aires, passando por Montevidéu, cruzando o Rio da Prata no lendário Vapor
de La Carrera e voltando de trem desde a capital argentina até Santo Tomé, ao
lado de São Borja. Na época, o Carlinhos morava em Florianópolis.
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Foi nessa viagem platina que inventei a história que até hoje é contada como
verdadeira. Como eu era inexperiente, Carlinhos foi me explicando como
funcionavam os trâmites burocráticos nas fronteiras. Em Montevidéu, antes
de entrarmos no barco para a Argentina, tivemos que preencher uma "tarjeta"
onde constava nombre e apellido. Prontamente, meu parceiro de viagem
tratou de me alertar que se tratava de nome e sobrenome em espanhol.
Para sacaneá-lo, comecei a espalhar que o alegretense havia escrito Carlos no
espaço do nombre e Carlinhos no do apellido. Todos achavam engraçado, e
Carlos ficava chateado. Mas como sempre teve um coração de manteiga,
balançava a cabeça e ria junto.
Agora, passados tantos anos, recebo este DE DAMBRÓS A BORTOLÁS -
RELATOS DO FUNDÃO DO INHANDUÍ com histórias da infância do Carlinhos.
Umas eu conhecia por alto, outras não tinha a menor ideia.
Foi uma forma de conhecer melhor aquilo que o 'loirinho' viveu quando piá e
entender porque nosso encontro na UFSM frutificou: éramos quase iguais,
simples como esses ranchos beira de estrada, solitários como porteiras de
invernadas, de alma buena e sempre em busca de liberdade, como esses
potrinhos recém-nascidos. Tínhamos histórias de campo, bolichos, caçadas,
carreiradas, lavouras, escolas rurais, de dezenas de tipos humanos que
povoam esses fundões de campo onde eu e o Carlinhos crescemos.
Descobri nesses causos verdadeiras crônicas campeiras, a forma discreta de o
Carlos Bortolás manifestar sua saudade, discrição que lhe acompanhou a vida
inteira. Sua generosidade e gratidão com os familiares e com todos que de
alguma forma cruzaram a sua vida.
São textos ternos, honestos e, por isso mesmo, lindos. Belamente
diagramados, trazendo citações dos poetas e cantores que o Bortolás aprecia,
ilustrados com fotos antigas e recentes. Uma joia, como quadro do Berega.
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Fiquei feliz, muito orgulhoso do meu amigo e por ele ter me escolhido para
escrever este depoimento. Lendo os relatos, por vezes chorei, por outras
desatei a rir e concordei que Carlinhos tomou a decisão certa. Nem padre,
nem militar: um cidadão do mundo. É isso que ele foi e sempre será.
Sérgio Metz, o Jacaré, falecido letrista do Tambo do Bando, escreveu uma
canção onde cita a célebre expressão de Leon Tolstói "cante sua aldeia e serás
universal". Por serem tão singulares, estes relatos tornam-se universais. Pois
"exatamente por não ter asas é que o homem da querência voa".
Porto Alegre, julho de 2021.
Paulo Mendes e Carlos Bortolás: Buenos Aires, 1989
Foto: Arquivo Carlos Bortolás
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E N C O N T R O S D E F A M Í L I A
Luciano Dambrós Gabbi
Encontros de família são sempre recheados de histórias que nutrem o
imaginário das novas gerações. Trago esta certeza de minha infância,
quando saíamos de Santa Maria rumo ao Alegrete para encontros na casa
do Tio Nor (Antenor Dambrós) e da Tia Dênia (Dênia Bortolás). Ali
também morava o vô Adolfo Dambrós, homem de feitos e memórias.
Havia muita afinidade naquelas reuniões familiares regadas a churrasco,
chimarrão, risoto de galinha, pudim de leite condensado, doce de
abóbora, torneio de bocha, viagens imaginárias de caminhão, pão de
amendoim, frutas orgânicas, umas cervejinhas...
Entre os guris, dizíamos que não éramos só primos, éramos primosirmãos.
E não faltavam causos e histórias com enredos ousados e
complexos, como o nosso significado de primos-irmãos.
Lembrar do Tio Nor e da Tia Dênia é lembrar também de seus irmãos
mais velhos: tia Clasilda Dambrós e tio Plínio Bortolás. O resultado? Os
ramos Dambrós-Bortolás e Bortolás-Dambrós. Assim, posso afirmar que
minha família possui, de fato, o raro registro de primos-irmãos. A Rosa, o
Carlos, o Cléber e o André estão aí para provar!
Revisitar essas memórias é reviver o cheiro do galpão do tio Nor nas
brincadeiras de caminhoneiro com os primos vindos do Paraná. É ouvir as
deliciosas gargalhadas do vô Adolfo ao final de cada causo (re)contado,
salivar com o gosto das uvas, bergamotas e laranjas do céu colhidas no
pátio da tia Dênia…
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Lembrar dessas passagens é, principalmente, dar vida a memórias
afetivas desta família que, a sua maneira, sempre soube expressar a
felicidade de estarmos juntos.
Nas minhas ricas, saudosas e vitais recordações do Alegrete não existia o
fundão do Inhanduí. Nunca estive ali. Mas, agora, ele existe. Existe
porque o 'primo-irmão' Carlos Augusto Dambrós Bortolás, o Carlinhos,
materializa-o nestes relatos que define como campereadas de memórias.
Dele, de parentes, de amigos...
Bom, disse que haviam histórias complexas... Mas o que não é complexa
é a narrativa do 'primo-irmão', também conhecido em outras paragens
como Urtigão, apelido revelado por seus amigos quando nos
encontramos em Brasília. Carlinhos ficou contrariado naquela noite!
Mas este ranzinza pouco foi visto nas vezes que cruzou o Brasil para
encontros de família. Aqui, ele continua sendo Carlinhos, Carlos, mano,
irmão mais velho, queridinho da titia…
Estes relatos apresentam um universo que, se bem recordo, o Carlinhos
sempre descreveu de forma fragmentada. Agora, ele se materializa com
traços de um grande encontro, como nossas reuniões familiares.
Isto merece celebração! Então, convido vocês a acenderem o fogão a
lenha de suas lembranças. Prepararem pinhão, pipoca com melado,
abram uma cervejinha, um vinho, e naveguem pelos relatos deste DE
DAMBRÓS A BORTOLÁS - RELATOS DO FUNDÃO DO INHANDUÍ.
E que se mantenha sempre viva a verve de contadores de histórias dos
Dambrós e dos Bortolás.
Santa Maria, maio de 2021.
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DE TODO
aquello que tuve
SOLO EL RECUERDO
me queda
Atahualpa Yupanqui,
em Nada Mas
Foto: Carlos Bortolás/1984
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INHANDUÍ, INHANDUÍ
querência linda
DESTE MEU RINCÃO
lembras também
MEUS TEMPOS DE GURI
Dupla Mirim,
em Inhanduí
Foto: Carlos Bortolás
A B R I N D O A P O R T E I R A
Volta e meia, seu João Rodrigues, dono daqueles campos que chamo de
fundão do Inhanduí, lembrava dos tempos de rebordosas no Rio Grande
do Sul. "A gente juntava a cavalhada e largava em direção ao Uruguai
cortando cerca que encontrasse pela frente. Quando a situação se
acalmava, voltava."
O fundão do Inhanduí da minha infância e adolescência era terra de
harmonia, solidariedade e gente generosa. Muito generosa!
Quem guardava a entrada para aqueles fundos era o Coralino Amaral da
Silva, o Tio Cora, bolicheiro de fala mansa e enorme sabedoria. Na
retaguarda, também à beira do corredor dos Três Capões, estavam
postados seu Antalício Gonçalves, negro de riso fácil e esparramado
conhecido como Tio Canta, e dona Belmira. A sombra do umbu daquela
casa sempre foi um imã a um descanso despreocupado.
Na primeira porteira da estrada de cerca de três quilômetros que cortava
cerros, sangas e coxilhas em direção ao rio Inhanduí, seu Gerônimo Alves
da Silva e dona Grasélia estavam sempre prontos para uma boa acolhida.
Mais adiante, seu Alberto Pereira, homem de poucas palavras conhecido
por Didi, e as filhas. Bem pertinho, a sede da Guajuviras, casa de seu Elvio
Berriel e dona Gelsa Rodrigues.
Em frente, à direita, descendo cerro no rumo do rio, estava a casa de seu
Altivo Rodrigues e dona Bereni. Por ali também passaram a dona Iracema
e o Pedro Néri, um quinchador de capim caninho e santa fé de primeira.
Mais tarde, seu Dilceu Rodrigues se instalou à esquerda da estrada
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Mais adiante, depois do rodeio, cruzando a taipa do açude, ficava a casa
de seu Plínio Domingos Bortolás e de dona Clasilda Dambrós, meus pais.
Ali também vivia o Claudir Rampelotto, o Cláudio. E no final da estrada, à
margem do açude, a de seu Neri Rodrigues e de dona Iná Quevedo.
E tinha a gurizada. Délvio, José Dilson (Dico), Aírton, Aldo, Carlinhos,
Marilene, Cléber, Rosa, eu, Eron, Ezilda, Antônia, Maria de Lurdes…
Nesse mosaico de África, Portugal, País Basco, Espanha e Itália desfilavam
tropeiros, campeadores, domadores de cavalos, arrozeiros, esquiladores,
corredores de carreira, peões, ciganos, mascates, a benzedeira, a
professora, alunos da dona Iná… Tratores puxando arado, grade, arrastão
e reboque partilhavam campo com gado, cavalos, ovelhas... Várzeas e
coxilhas acolhiam pastos, capões, lavouras de arroz, trigo, sorgo, milho...
Em mesas e fogões, saberes vindos de longe se materializavam em
polenta com pomba, carreteiro com charque de ovelha, carne de porco
na lata, minestra, canjica salgada, mocotó, rapadura de amendoim,
fervidos, churrasco, chimarrão, vinho, cachaça… Tempo de marcação e
castração era tempo de assado de bola de terneiro na brasa e na cinza.
Neste rincão do Brasil meridional, o mundo de fora vinha pelas ondas do
rádio. Português com rasgos de espanhol e pitadas de italiano se
misturavam em conversas à sombra de cinamomos, bergamoteiras e
laranjeiras e à beira de fogões e fogos de chão.
Do fundão do Inhanduí, carrego o me viro bem no espanhol, o quase
nada sei do italiano e um português que dá pra me defender com alguma
galhardia. E muitos retratos e histórias que ainda guardo na memória.
Tudo é herança viva! E vida!
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O macacão pura graxa não deixava dúvida: Leo Castilho, conhecido no
Alegrete como Leo Cabeludo, era um baita mecânico.
Ainda recordo a perícia com que desmontava e remontava o velho Zetor
que seu Plínio Domingos Bortolás, meu pai, utilizava nas lavouras de
arroz que plantava no fundão do Inhanduí. Até hoje tenho a impressão
que, no final, Cabeludo devolvia ao trator menos peças que retirava.
E era assim. Problemas com o Zetor? Chama o Cabeludo!
Ele, geralmente, chegava na calada da noite, tempo que dedicava a
caçadas de capincho, tatu, mulita, e a pescar umas traíras, piavas...
Certa feita, Cabeludo apareceu meio mamau lá no fundão do Inhanduí.
Nenhuma novidade! O homem devorava garrafões de cachaça.
Cabeludo cruzou a porteira e, ao buscar local para deixar a caminhonete,
acertou o cinamomo postado como sentinela em frente à casa de
madeira. Contrariado, saiu do carro, observou o para-choque torto e não
teve dúvida: voltou, deu marcha-à-ré e repetiu o movimento. Dessa vez,
direcionou o cinamomo para o outro lado do para-choque.
Pra quem olhava de fora, movimento certeiro. Só não se via sentido na
manobra. Logo veio a resposta. Cabeludo desceu da caminhonete,
conferiu o para-choque e sentenciou: "Agora está reto."
Com o 'serviço' concluído e alheio aos olhares de espanto ao redor,
Cabeludo parte rumo à casa perguntando por comida. E, diante da
resposta positiva, sentencia: "Então vamos jantar, que tô com fome!"
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C O I S A S D O S C I G A N O S
Não havia captação de água nas casas no fundão do Inhanduí. A gente
dependia de uma cacimba próxima à casa de seu Neri Rodrigues e
dona Iná Quevedo, onde também funcionava a Dom Luis Felipe de
Nadal, escola dos meus dois primeiros anos de estudos.
Duas ou três vezes por semana, enchíamos lá tonéis de metal de 200
litros. O transporte era de trator e arrastão. E dele balde para encher
e esvaziar aqueles tonéis. A gurizada forcejava!
A situação se arrastou até que um belo dia seu Plínio Domingos
Bortolás, meu pai, resolveu dar um fim naquele causo. Comprou um
carneiro hidráulico.
Que maravilha da engenharia é o carneiro hidráulico! E, por cima,
funciona mesmo sem energia elétrica, que estava longe de chegar ao
fundão do Inhanduí. Basta um bom volume de água para gerar
pressão e nada vai impedir que suba cerro acima.
Água jorrava aos borbotões naquela cacimba cristalina. E como era
linda a dança das vertentes no fundo todinho de areia.
A operação carneiro começou com a montagem da estrutura abaixo
da cacimba. Depois, uma vala rasgou o campo para acomodar cerca
de 300 metros do cano até uma caixa de mil litros posicionada a uns
dois metros do solo sob uma laranjeira pertinho da casa principal.
Tudo pronto. Hora de usufruir!
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Mas quem diz que funciona?
Embora o tac tac frenético e irritante do carneiro, nada da água subir o
cerro. Concluíram que era falta de pressão. Mas não houve suficiente
conhecimento naquela terra que desse um jeito no problema.
A caixa continuou vazia por semanas. E dele puxar agua de arrastão.
Num domingo de sol, da sombra dos cinamomos em frente às casas
percebe-se movimento de carro na coxilha do rodeio do outro lado do
açude. Quem chega sem avisar? "São os ciganos", responde dona Clasilda
Dambrós, minha mãe, identificando o grupo de fala fácil e solta que volta
e meia aparecia lá pelo fundão do Inhanduí.
Com eles sempre vinham alegria, risos, histórias, conhecimento...
A sombra dos cinamomos, a conversa flui. E logo chegam as queixas do
seu Plínio e da dona Clasilda com o tal de carneiro. Um dos ciganos
pergunta: "Podemos ir lá dar uma olhada, seu Plínio?" "Claro, claro",
responde, já partindo para pegar o material que julgava necessário.
Foi o tempo de uma olhada aqui, uma mexida ali e um "vamos voltar pras
casas para ver se está funcionando". Quando chegamos, já se ouvia o
som da água batendo no fundo da caixa.
Não tenho a menor ideia do que foi feito. Mas seu Plínio aprendeu
direitinho. Aquele carneiro nunca mais parou de levar água às casas.
Depois daquela visita dos ciganos, os tonéis de buscar água foram
aposentados. O tempo de água na torneira se instalou de vez no fundão
do Inhanduí. E adeus banho de bacião.
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NO MEU PAGO
tudo é lindo
DESDE QUE O DIA
amanhece
Cenair Maicá,
em Belezas Missioneiras
Foto: Carlos Bortolás
A C O L C H O A D O D E L Ã D E O V E L H A
Brasil afora, quando falo dos extremos climáticos no Alegrete, muita
gente se espanta. Sempre lembro de coisa de mais de 40 graus no verão e
de abaixo de zero no inverno.
Nos verões da minha infância, tínhamos o nosso ar-condicionado natural,
os arvoredos de cinamomo, de onde podia-se observar o bailado das
ondas de calor que distorciam o horizonte. Nos invernos, a coisa mudava
de figura. Haja lenha de angico no fogão para dar conta. E na hora de
dormir, coberta e mais coberta.
No fundão do Inhanduí, uma das especialidades da casa era a produção
de acolchoados. Dona Clasilda Dambós, minha mãe, conduzia a linha de
confecção com matéria-prima trazida dos campos ao redor: lã de ovelha.
Eram generosos aqueles campos do fundão do Inhanduí povoados por
rebanhos de corriedale e merino australiano.
No inverno, algumas ovelhas sucumbiam naturalmente ao frio. E sempre
aparecia uma morta por algum sorro que circulava por ali.
Dona Clasilda contava com o apoio de bombeadores. Volta e meia, seu
Elvio Berriel, em suas campereadas, passava pelas casas e avisava: "dona
Clasilda, tem uma ovelha morta lá perto do capão".
Era só dar um tempo. Coisa de dois ou três dias depois, a lã da ovelha se
soltava com facilidade. Era puxar e deu. E voltar para casa com sacos de
estopa e plástico cheios de lã. E, com sorte, um ovo de avestruz.
Próximo passo? Transformar aquela massa bruta!
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Depois de fervida em tacho de metal e seca nas cercas, o material
recolhido no campo passava por um processo de sova. Arame liso
dobrado, empunhadeira improvisada e força, muita força, transformavam
a massa bruta e compactada em enormes cerros de lã soltinha.
Era lindo de ver os flocos branquinhos espalhados sobre o forro do
futuro acalchoado na mesa grande da cozinha E a habilidade de dona
Clasilda com a agulha para dar forma final? Demais!
Como eram quentes aqueles acolchoados! E pesados!
Dona Clasilda exagerava. Em noites de frio de renguear, sempre
reservava dois acolchoados daqueles para as crianças. Impossível se
mexer sob aquele peso. Dormíamos estaqueados.
Mas brabo mesmo era sair da cama em manhã de inverno. Haja coragem!
Foto: Arquivo Cléber Bortolás
Dona Clasilda Dambrós, na lavoura de arroz
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N A S O N D A S D O R Á D I O
Garoava naquela tarde de 10 de dezembro de 1972, um domingo, quando
eu e o Claudir Rampelotto, o Cláudio, nos sentamos próximo ao rádio
para ouvir Internacional-RS x Cruzeiro-MG pelo Campeonato Brasileiro. O
dia chuvoso forçara uma pausa no plantio de arroz na várzea abaixo das
casas de madeira rodeadas por cinamomos, laranjeiras e limoeiros.
Partidaço! Ganhamos de três a dois.
O rádio era companheiro de primeira hora no fundão do Inhanduí. Por
ele chegavam notícias do Brasil e do mundo. Os avisos da cidade vinham
pelo Mensageiro Rural da Rádio Alegrete. Era notícia boa e notícia ruim.
Guardo um clássico na voz do Auri Dorneles, que era mais ou menos
assim: - Alô seu fulano no Rincão do Itapororó. Cicrano hospitalizado.
Venha! Convém trazer luto.
Na infância, para ouvir rádio, só com a ajuda dos adultos. É que o ABC
grandão ficava numa estante fora do alcance das crianças. Num dia, ao
chegar da lavoura dos Farrapos, ninguém em casa, me estiquei todinho e,
na hora de ligar o rádio, BUM! O ABC foi ao chão. A caixa externa ficou
toda trincada, mas não se rompeu.
Quando dona Clasilda Dambrós, minha mãe, chegou, foi querendo saber
o que tinha acontecido. "Queria ouvir a Guaíba", respondi, já esperando
pelo pior. Que não veio. Ficou numa reprimenda das leves.
Aquele rádio, mesmo avariado, ainda funcionou por um bom tempo.
Depois, vieram outros, com muita onda curta. Quando estava na
universidade, meus períodos de férias foram tempos das rádios Central
de Moscou, Havana, Sandino, Venceremos…
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Com o tempo, o rádio ganhou companhia: uma televisão preto e branco
de 14 polegadas que o Cláudio comprou. A TV funcionava conectada por
jacarés à bateria de algum trator posicionado em frente da casa. Era mais
à noite, já que de dia os tratores geralmente estavam às voltas com
alguma coisa da lavoura ou das casas.
Tinha vezes que a imagem era só chuvisco. Mas ai de quem tentasse
desligar a TV. O Cléber Romário, meu irmão, ameaçava cair no choro. Por
que? "Eu quero olhar as formiguinhas", repetia sem parar.
Entre um chuvisco e outro, vi jogos memoráveis naquela TV, como a
vitória do Internacional sobre o Fluminense no Maracanã (2x1) que nos
levou à final e ao primeiro título brasileiro. Também lembro do Valdomiro
destruindo o Atlético Mineiro na campanha do tricampeonato.
Aqueles times do Inter eram muito bons. Mas a TV do Cláudio era melhor.
Com ela, a imagem de outros rincões chegou ao fundão do Inhanduí. E
passamos a ter outros olhos para ver o mundão lá fora.
Claudir Rampelotto, o Cláudio, montando um pneu de trator
Foto: Arquivo Cléber Bortolás
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O M E T E O R O L O G I S T A
No fundão do Inhanduí, até poderes sobrenaturais desenvolvi. Duraram
alguns poucos anos, é verdade, mas, graças a eles, virei uma espécie de
meteorologista de plantão. Conseguia antecipar chuva, frio...
O que não teve nada de sobrenatural foi como adquiri tais poderes. Eles
vieram de um tombo que caí nos canos que levavam água do Inhanduí à
lavoura de arroz na várzea dos Farrapos. O resultado imediato foi uma
imensa bola de sangue na parte superior da perna direita.
Correr sobre canos era passatempo para os guris que cuidavam de motor
nos levantes de água à beira do rio ou de uma regadeira nos tempos de
irrigação da lavoura. O motor a diesel usando naquelas estruturas exigia
alguém por perto. Sempre. De dia, tarefa dos guris. De noite, dos adultos.
Nos meus tempos de fundão do Inhanduí, era sagrado: de manhã, aula;
de tarde, cuidar do motor. No período de férias, manhã e tarde.
Bom, melhor cuidar de motor do que ficar gerenciando irrigação da
lavoura de arroz, tarefa impossível para quem não tinha conhecimento de
como criar fluxos naturais para acumular água na imensidão das várzeas
cheias de taipas ou curvas de nível.
Cuidar de motor era um tédio ensurdecedor. A única companhia sonora,
fora o ronco sem parar do motor, vinha do rádio de pilha. Gastei ouvido
com Roberto Carlos, Benito de Paula, Odair José, Rita Lee, Antônio
Marcos, Agepê, Vanusa, Fernando Mendes, Elis Regina, Raul Seixas...
E tinham aquelas velhas revistas. A beira dos levantes, li e reli fotonovelas
dezenas de vezes. Gerry Ross, Michela Roc, Paola Pitti eram muito
afamados no meu fundão do Inhanduí.
25
O resto do tempo era ocupado com alguma pescaria, exploração do mato
ao redor, captura de cigarra, banho na regadeira, biquinho no buraco na
na ponta do cano... E sempre tinha a corrida pelos canos. O maior desafio
era passar pelas áreas de vazamento. Aquilo era sabão puro.
Numa dessas corridas veio o desastre. O pé deslizou no vazio. Desabei
sobre o cano com todo o peso do corpo na perna direita. Como na
tradução de Augusto de Campos do Canto I da Divina Comédia, de Dante
Alighieri, "caí como corpo morto cai". Sorte que o cano era rente ao chão.
Dor insuportável! Mal consegui caminhar até as casas. O hematoma
escuro na perna parecia não parar de crescer. Virou uma bola imensa.
Intocável! E não houve remédio caseiro que desse jeito, a ponto de dona
Clasilda Dambrós, minha mãe, buscar ajuda médica na cidade.
A solução? Uma cirurgia para drenar o sangue coagulado. Entrei em
pânico. E bati pé. Cortar minha perna? De jeito nenhum!
A relutância foi tal que não restou a dona Clasilda alternativa que buscar
algo para extirpar naturalmente aquele corpo estranho. Formou-se uma
junta médica que reuniu toda a vizinhança. Pitaco daqui, pitaco dali,
apareceu um unguento milagroso que não recordo o nome.
A mancha escura se foi, mas o caroço na perna continuou firme e visível.
Com ele, nova rotina. Véspera de chuva, doía. Véspera de frio, mais ainda.
Aquele caroço me acompanhou por anos. Com o tempo, minguou, até se
tornar imperceptível. E junto se foram meus poderes de meteorologista.
Perdi o poder de prever chuva, frio... Mas o momento daquele tombo
continua vivo. Muito vivo. Só de lembrar, dói!
26
UM DIA
me deu saudades
E FUI REVER
o meu pago
João da Cunha Vargas,
em Querência
Foto: Carlos Bortolás
A Q U E L E S P A S T É I S
O povo do fundão do Inhanduí gostava duma carreira de cavalo!
Aquilo contagiava quem chegava por ali. Não foi diferente com os
Dambrós e os Bortolás que se abancaram no fundo do campo da
Guajuviras para plantar arroz. Foi questão de pouco tempo ver seu Plínio
Domingos Bortolás, meu pai, e dona Clasilda Dambrós, minha mãe, por
alguma cancha reta da região.
Com eles, seu Neri Rodrigues, seu Elvio Berriel, andei por carreiras em
canchas retas no campo do Alcendor, no corredor dos Três Capões, e do
Helvécio, no encontro da estrada do Mariano Pinto e do Angico.
Ambientes festivos onde se podia comer uns pastéis murchos e com
pouco recheio, beber cerveja e refrigerante refrescados na água e
serragem e observar com muita curiosidade um jogo de osso ou tava...
Se para os gringos, como éramos chamados, as canchas retas eram uma
espécie de passeio, para os demais moradores da região era coisa mais
séria. Seu Elvio era um carreirista afamado e conhecido na região pelo
gosto por bons cavalos.
Nos tempos do Cléber Romário, meu irmão, os cavalos pras carreiras
escolhidos pelo seu Elvio passavam pelas mãos do seu Dilceu Rodrigues,
que fazia a preparação física. Seu Dilceu também orientava os treinos do
Breno, jóquei de um metro e sessenta de altura e por volta de 50 quilos.
E não parava por aí. Tinha o transporte, que era feito pelo seu Gerônimo
Alves da Silva num Ford F350 v8.
Como costuma dizer o Cléber, estrutura azeitada aquela!
28
Mas, para o Cleber, o melhor vinha da cozinha da Guajuviras. Ali, dona
Gelsa Rodrigues preparava pastéis com recheio farto e outros quitutes
para levar às carreiras.
Era comida pra todo o dia. Servia os de casa e os que se abancavam em
busca de uma conversa amigável e de ar fresco à sombra do arvoredo
onde dona Gelsa se instalava com suas guloseimas.
De briga, confusão, o Cléber não lembra. Só de voltar pra casa, retomar a
lida diária, os estudos e se preparar para as próximas carreiras.
Até hoje, quando recorda das carreiras, o Cléber Romário saliva. E
murmura: "Aqueles pastéis…"
Foto: Arquivo Cléber Bortolás
Cléber Romário montando seu cavalo preferido, um Massey Fergunson bem sujo
29
D I A D E C A R N E A R P O R C O
Numa noite, chego a um restaurante em Brasília louco de fome, dou de
mão no cardápio e começo a buscar o que comer. Olho daqui, olho dali e
paro numa 'Maminha na Lata'. Interessante! Chamo o garçom. O que é?
"Carne colocada numa lata e coberta com banha de porco. Coisa fina."
De imediato, veio à memória o fundão do Inhanduí. Comi muita carne na
lata por lá. Carne de porco.
Não era questão de ser coisa fina. Era de necessidade mesmo. A geladeira
movida a querosene Jacaré mal refrescava o leite. Gelo era quase um
milagre. Freezer, então, nem pensar. Não havia energia elétrica por lá.
A situação impulsionava um dos acontecimentos sociais daquelas bandas:
o dia de carnear porco. Tinha menos apelo que marcação, mas, sempre
vinha gente da vizinhança mais próxima para dar uma mão. O trabalho
começava cedo da manhã e entrava noite. Sem muita folga.
Tirando a parte de sangrar o porco, quando me refugiava no primeiro
quarto que encontrava, a lida era linda. Salivo ao lembrar da hora de
provar o tempero da carne para o salame e a linguiça. Frigideira de ferro
em punho, fritavam-se generosas porções no fogo de chão e logo vinha o
veredito: "tá bom", "um pouco mais de sal", "falta cominho"...
Não se perdia praticamente nada do porco. A carne sem gordura e o
toucinho moídos e picados eram destinados para linguiça e salame; mantas
de gordura cortadas em cubos, para banha e torresmo. Carne com osso era
cozida e colocada em latas de metal que um dia tinha armazenado
biscoitos sortidos. E ainda havia as entranhas e outras partes do animal,
destinadas para morcilha, chouriço, queijo de porco...
30
Produziam-se varas e varas de linguiça e salame. A cura era feita numa
área próxima ao teto de capim do galpão, onde também secava o couro
do porco, usado no feijão.
Num panelão de ferro e muito fogo de lenha, a gordura se transformava
em litros de banha e muito torresmo. Uma parte da banha era guardada
pura e a outra, destinada às latas para cobrir a carne com osso cozida. Do
torresmo até se produzia uma espécie de patê. Coisa fina!
O dia de labuta garantia meses de carne no fundão do Inhanduí. Quando
o estoque se aproximava do fim, o porco da vez já estava a postos no
chiqueiro perto das casas.
À medida que mais um dia de carneação se aproximava, seu Plínio
Domingos Bortolás, meu pai, começava a amolar as facas e a preparar os
panelões. Como vinha gente da vizinhança, ele não podia fazer feio.
Foto: Arquivo Cléber Bortolás
Seu Neri Rodrigues, de chapeu, dando uma força na carneação
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D E S F I L E D E B O I T A T Á
Aquele cerro dos campos das Canoas na divisa com a várzea de cima era
uma atração à parte nas noites sem lua no fundão do Inhanduí. No breu,
a gente via das casas luzinhas descendo em direção à lavoura de arroz.
Em frente às casas, assistíamos maravilhados. Um espetáculo!
Aquilo era coisa do tal de boitatá, diziam. E logo vinham histórias de
almas penadas, de pessoas que ficaram cegas devido à intensidade do
fogo… Melhor ficar longe, alertavam.
Mas, de vez em quando, um daqueles seres iluminados que desfilavam
pelo cerro se desgarrava. Lembro da história de um que apareceu lá pela
boca dos canos na lavoura das Canoas. Até nuveou a visão do seu Plínio
Domingos Bortolás, meu pai, mas por pouco tempo.
Com o tempo, aprendi que as luzes que caminhavam cerro abaixo nada
tinham de sobrenatural. Era fogo fátuo, queima de gases originados da
decomposição de matérias orgânicas.
Mas o estrago já estava feito! Nos tempos de guri, qualquer vultinho na
noite era um deus me acuda. E os ruídos? Até jacaré quando pulava da
taipa no açude era susto garantido!
As lendas que prosperavam pelo fundão do Inhanduí eram uma espécie
de rédea curta para a gurizada que gostava de se largar pelos campos à
noite. Pra reforçar, era comum numa conversa à beira do fogão alguém
dizer em voz alta que deu de cara com uma mula sem cabeça na boca da
picada da restinga ou no meio do mato.
O arsenal era reforçado com histórias de assombração. Perdi as contas
dos vultos que surgiram do nada no mato, num capão...
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Passar perto do cemitério à noite era pros de muita coragem. Também
corria solto que ali território de tatu peludo devorador de cadáveres
humanos. Sorte daqueles tatus, que se mantinham distantes da sanha
dos que vinham de fora em busca de caça fácil.
No fundão do Inhanduí, o sobrenatural também atiçava sonhos de
riqueza. A caça ao tesouro era alimentada pelo cerro dos Farrapos, no
fundo das casas. Corria à boca grande que ali, depois de derrotados num
entrevero com os imperiais, os farrapos teriam escondido um baú com
moedas valiosas. O caminho até o tesouro era indicado por uma corrente.
O que apareceu de corrente no fundão do Inhanduí! Volta e meia alguém
dizia ter topado com uma no campo. "Amanhã, eu volto lá com uma pá." E
quando voltava, nada de corrente. Mas, na dúvida, cavava. Não foram
poucas as covas abertas em busca do tal tesouro dos farrapos.
No fundão do Inhanduí, boitatá eu vi. De perto e de longe. Mula sem
cabeça, assombração, tesouro dos farrapos? Nunca passei perto. Saí de lá
com uma certeza: tesouro naquelas bandas só o das lavouras de arroz
maduro. Aquele amarelo era ouro puro!
Lavoura de arroz no fundão do Inhanduí em tempo de colheita
Foto: Carlos Bortolás
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C A C H O R R O E M F U G A
Tio Zeca, também conhecido por José Dambrós, forjou fama no Alegrete
como grande caçador de tatu. Não lembro dele refugar convite pra uma
caçada. Aliás, nem precisava de convite.
Muitas vezes ele bateu lá no fundão do Inhanduí. Mas, certa feita, Zeca
deparou-se com um baita problema: cachorro estava em falta na casa.
Para não deixar o irmão na mão, minha mãe, dona Clasilda Dambrós,
conseguiu um emprestado com o Pedro Néri, que morava na casa
construída pelo seu Altivo Rodrigues no outro lado do açude.
Era um cusco bonito!
Noite caindo, o Zeca embarca na Brasília vermelha com placas de Palmas,
Paraná, e segue até a casa do Pedro e da dona Iracema. Apanha o
cachorro, acomoda-o no carro e parte rumo ao cemitério. Dali seguiria
pela rota das Canoas.
Caçador experiente, Zeca intuiu: ao ver a pá e o saco, o cachorro vai
disparar atrás dos tatus. Disparar ele disparou. Mas de volta pra casa. O
Zeca ficou na mão. E com o dedo coçando para dar um tiro no fujão.
Mas caçador que é caçador não se dá por vencido. Zeca voltou à cidade e
conseguiu três cachorros emprestados com a tia Dorsolina Dambrós. A
única recomendação era devolver os dois barbudinhos. A cadela poderia
ficar no fundão do Inhanduí. Não faria falta.
Zeca matou a vontade de caçar tatu e retornou ao Paraná. Nas visitas
seguintes ao fundão do Inhanduí, não teve problema com falta de
cachorro. E os tatus que se cuidassem, porque a cadela que ficou por lá
era boa, muito boa, de faro.
34
E VI A LUA
no espaço
CLAREANDO
todo o rincão
João da Cunha Vargas,
em Deixando o Pago
Foto: Arquivo Cléber Bortolás
N O I T E D E C A Ç A R T A T U
Diversão no fundão do Inhanduí era caçar tatu.
Era atividade de início da noite. Por causa da lida diária e árdua na
lavoura de arroz, aquele negócio não empolgava muito os residentes.
Mas quando vinha gente da cidade... Especialmente o José Dambrós, o tio
Zeca, caçador dos mais afamados na área.
Campo iluminado pela lua cheia é lindo demais!
No fundão do Inhanduí, não faltava rota pra caçar tatu. Tinha a do campo
dos Farrapos, a das Canoas, a do entorno do rodeio, a do cemitério… E
não havia segredo. Lanterna em punho, pá e saco à mão e seguir os
cachorros bem de perto. "Em cima, em cima", ensinava o Zeca.
Problema mesmo só quando se topava com um zorrilho, alguma cobra,
um boi brabo...
O frenesi que antecedia uma caçada de tatu não era do feitio do seu
Adolfo Dambrós, meu avô. Ele tinha seus próprios métodos. Pra que
tanto esforço, correria campo afora atrás de cachorros?
Numa noite de lua cheia, a gurizada convenceu seu Adolfo a liderar uma
incursão pela rota das Canoas. À área de ação se chegava após uma
caminhada de pouco mais de um quilômetro pela várzea. Seu Adolfo
achou muito longe para ir a pé. E decidiu que iríamos de trator.
Sob a vigilância dos cachorros, cruzamos a taipa do açude, subimos e
descemos a coxilha em frente às casas e cortamos a várzea de cima em
linha reta até um capão de mato na divisa com as Canoas.
36
Fim do trecho, hora da caminhada… Expectativa total!
Subimos rumo ao campo plano. Coisa de uns 200 metros. Hora da ação!
Como a se preparar para a lida, seu Adolfo senta numa pedra grande.
Acende um cigarro. Depois outro... E desanda a contar histórias dos
tempos de Dona Francisca, do Mariano Pinto, do Rincão de São Miguel…
E nós: - Vamos, vô! Temos que acompanhar os cachorros.
E seu Adolfo: - Deixa que procurem. Se encontrarem, acoam.
Dali, seu Adolfo não saiu. Nem os cachorros.
Voltamos para as casas como fomos. De trator. E sem tatu.
Foto: Arquivo Cléber Bortolás
Adolfo Dambrós e Zanir Vilaverde Fernandes
37
O S E N H O R D O S C A P I N C H O S
Tenho para mim que, se preciso fosse, tio Armando Dambrós, irmão do
vô Adolfo, contava capinchos para dormir.
Era uma fixação!
No fundão do Inhanduí, sempre tinha algo de capincho quando tio
Armando estava por lá. Carne fresca, charque, óleo… A produção era
sustentada pela fartura de capincho naquela área. Numa faixa de uns
dois metros à beira do mato, arroz não se criava.
Acho que não exagero ao afirmar que tio Armando cheirava a capincho. E
que, talvez, esse era o segredo do grande aproveitamento nas caçadas
que fazia nos matos daquele trecho do Inhanduí. Mas ele também
conhecia como ninguém as manhas dos capinchos. E era bom, mas bota
bom nisso, de mira.
Numa noite sem lua, daquelas que dava medo botar o pé pra fora, tio
Armando decidiu explorar a área entre as casas e o campo das Canoas. O
estoque de carne de capincho estava baixo!
Vestiu seu uniforme de caça, em que se destacava a jaqueta tipo militar,
conferiu com cuidado a lanterna, a espingarda, a cartucheira... Revólver e
facão na cintura, tomou o rumo do mato.
Nas casas, acomodados em torno do fogão, todos de ouvido em pé.
Uma meia hora depois, o som de um tiro quebra o silêncio da noite
escura. Tio Armando achara o que buscava. E uma pergunta fica no ar:
acertou ou não acertou? O negócio era esperar.
38
O encontro entre tio Armando e o capincho ocorreu numa área de mato
fechado à beira do rio. Lagoão fundo. E o bicho era dos grandes.
Baleado, o capincho disparou para a água. Caçador experiente sabe que
isso é meio caminho para perdê-lo. Se morrer e for ao fundo, adeus!
Tio Armando não vacilou. Mergulhou no Inhanduí agarrado com o
capincho. A lida foi dura, mas ele conseguiu voltar à margem com o
bichão sob controle.
Ficamos sabendo do resultado quando, todo ensopado, tio Armando
voltou às casas. Precisava de ajuda para carregar a caça.
No dia seguinte, a carne do almoço foi bife de capincho à milanesa.
Uma delícia!
Foto: Carlos Bortolás
Inhanduí, o rio da infância
39
T E M P O R A L N A S C A N O A S
O arvoredo de cinamomos naquela área de campo aberto nas Canoas era
lindo e bem estruturado. Aquele recanto se destacava. E, à primeira vista,
parecia não haver melhor lugar para se erguer uma casa, especialmente
as temporárias que acompanhavam as lavouras de arroz em terras
arrendadas na Fronteira Oeste.
Formado em passagens anteriores, o arvoredo era garantia de sesta
fresquinha depois do almoço e de outras comodidades, especialmente
nos dias de muito calor.
E a vista? Dali, via-se a costa do Inhanduí e uma restinga imponente onde
lembro de acompanhar o vai e vem de cardumes de peixes pela água
cristalina. Um privilégio!
O que por lá ninguém entendeu foi quando seu Adolfo Dambrós, meu
avô, decidiu erguer uma casa numa área ali perto. "É o melhor lugar",
respondia, sem gastar muita saliva com explicações.
O ponto era rodeado por pequenas elevações e ficava próximo a uma
fonte de água, uma sanga clara que descia do cerro. Mas nada de
sombra. Não tinha árvore por perto. No verão a pino, na hora do meiodia,
ficar dentro de casa tinha lá seus contratempos.
A decisão continuou recebendo ressalvas até um grande temporal.
Quando o vento desceu a coxilha assobiando, foi um deus nos acuda.
Cinamomos foram ao chão. Construções ao redor do arvoredo sofreram
danos consideráveis. E a casa do seu Adolfo? De pé, firme, sem avaria.
A posição da casa deixou de ser assunto. Mas eu saí daquela encrenca
com uma certeza: seu Adolfo entendia das coisas da natureza. E como!
40
DEIXEI
gravado na casca
A DATA
marcando a era
João da Cunha Vargas,
em Tapera
Foto: Carlos Bortolás
O P E G A D O R D E P O M B Ã O
Como tinha pombão, jacu, perdiz no fundão do Inhanduí. Eu, confesso,
nunca fui muito fã de carne de ave, mas a 'italianada' que se abancou por
ali nunca perdia a oportunidade de aproveitar aquela fartura.
No fundão do Inhanduí, teve Dambrós que fez fama pela mira. Perdiz à
beira de estrada estava em apuros quando tio Armando passava. Caçava
de revólver e acertava quase sempre na cabeça, contavam, admirados, o
seu Elvio Berriel e o seu Neri Rodrigues. Não duvidem! Tio Armando era
uma lenda no Alegrete pela boa pontaria.
Seu Adolfo, meu avô e irmão de tio Armando, também fez fama. Mas por
técnicas que defino como mais refinadas e menos dispendiosas. Se na
pescaria preferia armar a rede no rio à noite e voltar "pra buscar os
peixes" de manhã, na captura de pombões o negócio era nada de tiros.
Pra que ir atrás se eles podiam vir até você?
As condições do fundão do Inhanduí ajudavam.
O mato entre a várzea e o rio era largo e fechado, com bons espaços
livres sob grandes árvores. Na várzea menor, perto das casas, trilhas de
gado permitiam caminhar do levante até perto da restinga. Quando o
arroz começava a formar cachos, aquela área era tomada por pombões.
E era por ali que agia seu Adolfo. Sua arma? Arapucas!
Com madeira roliça e cipó, a produção de arapucas começava após o
plantio da lavoura de arroz. Elas eram colocadas em pontos às margens
da trilha. Tudo estava pronto quando o arroz começava a encaixar e
bandos de pombões chegavam atraídos pela comida fácil e farta.
42
Todo o santo cair de tarde, seu Adolfo percorria aquela trilha. Os poucos
pombões que caiam nas arapucas eram levados para as casas, colocados
numa gaiola grande e arejada e alimentados com milho, arroz, sorgo…
Hora da etapa de limpeza e de engorda!
Uma das regras era a quantidade de pombões mantidos naquela gaiola.
Nada de aperto. Quando a lotação alcançava o limite estabelecido, seu
Adolfo baixava as arapucas.
Aqueles pombões fizeram a alegria de muitos visitantes no fundão do
Inhanduí. Eles eram oferecidos como ingrediente principal de dois pratos:
polenta com pomba ao molho e arroz com pomba, especialidades de
dona Clasilda Dambrós, minha mãe.
Era coisa de primeira, de lamber os beiços, conta o Alceu Aírton
Gonçalves de Souza, meu cunhado. Este nunca se fez de rogado na hora
de pedir licença para servir mais um prato.
Foto: Arquivo Cléber Bortolás
André Adolfo, seu Adolfo, Carlos Augusto e Rosa Helena
43
O L E N D Á R I O Z E T O R
Não lembro do tio Celso Dambrós no fundão do Inhanduí. Nem ele sabe
quantas vezes passou por lá. "Foram poucas, Carlinhos", resume.
Mas, por lá, ele sempre aparecia em histórias dos tempos do Mariano
Pinto e do Rincão do São Miguel contadas por seu Plínio Domingos
Bortolás, meu pai. O Celso estava sempre 'nas boca'. "O Boooniiiito",
repetia seu Plínio, recordando o apelido que o próprio Celso se deu.
Que relação de respeito e admiração tinham os dois. Em conversas com o
Celso, identifiquei um gosto comum: o Zetor, um trator para todo o
serviço de lavoura vindo da extinta Tchecoslováquia.
O primeiro trator do seu Plínio, um Zetor 50, era lendário no fundão do
Inhanduí. Conduzir aquela máquina era privilégio de poucos. Ai de quem
botasse a mão nele sem autorização expressa. Uma vez, numa saída do
seu Plínio, ousei. E deu ruim.
O Zetor 50 não perdeu a condição de xodó do seu Plínio nem quando
virou sucata e ficou exposto ao tempo sobre uns tocos de madeira na
lateral das casas.
Esse trator lendário também contribuiu para aumentar a fama de
vaqueano do Celso. No caso, um Zetor Super 50 dos tempos que seu
Adolfo Dambrós, meu avô, plantava arroz no Rincão do São Miguel.
Ninguém gostava muito de lidar com aquele Zetor, mas o Celso amava. O
problema era o banco duro, situação que resolveu com uma enjambração
para ter mais conforto: quatro molas parafusadas sob o banco.
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No fim de um dia de muito frio e trabalho árduo com o Zetor, o Celso
desengatou a grade na várzea e tomou o rumo de casa. Hora de
descansar! Com fama de pé pesado, engatou uma oitava, acelerou fundo
e, pra aproveitar o molejo do banco macio, jogou o corpo pra trás.
Hora da enjambração cobrar seu preço!
O banco se desprendeu, e o Celso foi ao chão todo enrolado no pala que
usava para driblar o frio de lascar. O trator seguiu em frente, acelerado.
A cena do Celso correndo desesperado atrás do Zetor ganhou mundo em
rodas de conversas à beira de fogões e fogos de chão. Essa e muitas
outras. Quando apareço por Uruguaiana para visitar ele e a Frida, sempre
sobra tempo pra resgatar algumas de suas incontáveis gauchadas.
E é um tal de Bonito pra cá, Bonito pra lá…
Foto: Arquivo Cléber Bortolás
Seu Plínio Domingos Bortolás e seu Zetor
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B O I A A P I M E N T A D A
Nos campos das Canoas, próximo à boca do cano que levava à lavoura de
arroz água puxada do Inhanduí por um Caterpillar, um rancho de tábua e
chão batido era ponto para refeição, descanso... À noite, era posto de
vigilância para quem cuidava do motor à beira do rio.
Roncava alto aquele Caterpillar! Dia e noite.
O rancho também era pouso para quem vinha do povo pra uma caçada,
pescaria. Lavoura de arroz em várzea é sinônimo de capincho. E aquele
ponto do Inhanduí também era bom de peixe.
Uma noite apareceram por lá o mecânico Leo Castilho, o Cabeludo, e dois
amigos. Mal desembarcaram, os amigos pegaram as armas e tomaram o
rumo do mato atrás de capincho. Restou ao Cabeludo acomodar o
tralharedo no rancho, improvisar as camas e preparar a janta.
Baita boia comemos eu, seu Plínio Bortolás, meu pai, e o Cabeludo!
Mas o Cabeludo não se conformava com a desfeita dos amigos e resolveu
dar o troco. Fim do jantar, pôs uma quantidade descomunal de pimenta
na comida que sobrou na panela de ferro. E sentenciou: "vamos dormir".
Tenho certeza que nem o Cabeludo, conhecido pelo gosto pela pimenta,
comeria aquela boia sem reclamar. E foi só o que ouvimos quando, de
madrugada, os caçadores apressados voltaram ao rancho varados de
fome e voaram rumo à panela. Foi um festival de "ai, ai, ai", "não dá para
comer isso", "tem muita pimenta"...
Na manhã, Cabeludo pergunta sobre os capinchos. Notícias pouco
animadoras. Sobre a comida, nenhum pio.
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REPONTANDO
o meu destino
CAMPEIA
meu pensamento
Noel Guarany,
em Filosofia de Gaudério
Foto: Carlos Bortolás
C R U Z E I R A N Ã O É M U Ç U M
Antes da tecnologia de ponta dos dias de hoje, lavoura de arroz dava
trabalho. Bota trabalho nisso. A lida não terminava nunca. E quando
terminava, era tempo de pensar em como começar tudo de novo.
No meu tempo, eram semanas no lombo de trator e dele arado e grade
para preparar a terra. Depois, dias e dias de poeira com semeadeira,
adubadeira, tapadeira, entaipadeira… A colheita, período de lama em
estado puro, só depois de meses de irrigação.
A água que molhava as lavouras do fundão do Inhanduí vinha do açude e
do levante no Inhanduí. E seguia por valos e regadeiras que exigiam
manutenção sempre. O ponto que dava mais trabalho ficava abaixo da
taipa do açude, onde caraguatás insistiam em retomar o terreno perdido.
Numa tarde, seu Plínio, Claudir Rampelotto, o Cláudio, e Ilizi Fantinel, o
tio Izi, se embrenharam no local para limpar a área e nivelar o valo.
Tinham o reforço do Poldo, vindo de Dona Francisca, terra dos meus pais.
Foice em punho, Poldo abre caminho no caraguatazal. Corta pra cá, corta
pra lá, até que um animal rastejante fica preso na lâmina. Em meio a
botes pra todo lado, Poldo ergue a foice e grita: "Ilizi, olha que baita
'munçum' eu peguei".
Pânico total! O muçum era uma cruzeira, cobra temida na região. E das
grandes. "Tinha até cabelo", exagera o Cléber Romário, meu irmão.
Tio Izi só consegue dizer: - Larga isso, Poldo. É uma cruzeira. Larga!
Foi por um triz! Poldo voltou são e salvo pra Dona Chica. Mas, do fundão
do Inhanduí, levou um ensinamento: cruzeira não é muçum.
48
C A N T A N D O N A M I S S A
Em 1973, larguei o fundão do Inhanduí para morar à beira do corredor
que leva aos Três Capões. Coisa de dona Clasilda Dambrós, minha mãe, e
dona Iná Quevedo, minha primeira e eterna professora, para garantir que
eu continuasse com os estudos.
Eram tempos de consolidação de uma reforma ortográfica que varreu do
dia-a-dia da escrita um caminhão de acentos circunflexos e tremas
inacreditáveis. Adeus môlho, estrêlas, flôres, pilôto, saüdade...
À beira do corredor dos Três Capões, por dois anos, morei com dona Iná,
seu Neri Rodrigues e o Aírton Quevedo Rodrigues, marido e filho da dona
Iná. A casa de madeira tinha um quarto amplo com divisória, cozinha,
sala, garagem e, no maior espaço, a sala de aula da escola Getúlio Vargas.
Pros padrões do fundão do Inhanduí, aquele corredor era muito
movimentado. Na época de colheita, vazios ou carregados, passavam por
ali muitos caminhões. Um território de Mercedes 1113 toco.
No Alegrete dos anos 1970, era comum escola de campanha receber um
evento anual de porte: a missa. Da cidade vinha um aparato da Igreja
Católica e das redondezas, vizinhança em peso. Aquilo era uma espécie
de feira sem produtos à venda, exposição de cavalos, carroças, aranhas,
tratores, cachorros...
Minha primeira missa na Getúlio Vargas foi um divisor de caminhos.
Sala de aula apinhada! Posicionado bem em frente ao padre, erro o
caminho do sinal da cruz. De forma brusca, uma freira pega minha mão e
a guia, ditando em voz alta: "em cima, em baixo, esquerda, direita". A sala
inteira é alertada. Tipo, aprendam pra não errar!
49
Fim da celebração, hora de amenidades, confraternização. E lá vem
alguém lembrar que eu era metido a cantor. A fama, indica o amigo Eneri
Gonçalves, vinha dos tempos de fundão do Inhanduí.
Antes de frequentar a que foi minha primeira escola, volta e meia eu
seguia até a Dom Luiz Felipe de Nadal, me aproximava da porta e tascava
um "Tropeiro Velho" do Teixeirinha. O desfecho para aquela busca por
plateia era sempre o mesmo: minha irmã Rosa Helena saindo em
desabalada carreira da aula pra me fazer voltar pra casa.
Eu não lembro. Mas se o Eneri lembra... E, naquela missa na Getúlio
Vargas, mais alguém lembrava. Pra quê?
Levado na marra ao palco que minutos antes era púlpito, ensaio resistir.
E o povo: - Canta, canta, canta!
Não tem pra onde correr. O sim é recebido com euforia, gritos, assovios...
Prego os olhos no chão e mando um "Menino da Porteira" que o Sérgio
Reis cantava sem parar no rádio. Tropeço numas partes, atropelo outras
e vou até o fim. Sou brindado com aplausos entusiasmados e gritos,
muitos gritos de incentivo.
Mamãe e professora, puro orgulho! Eu, querendo me enfiar num buraco.
Aquela missa interrompeu qualquer pretensa verve cantora. Me agarrei
nos estudos e toquei em frente.
Não me arrependo! Mas, confesso, volta e meia, ao lembrar do ocorrido,
lamento não ter aproveitado melhor aquele momento de sucesso.
50
DE VEZ EM QUANDO
no horizonte do
passado
SURGE UMA NUVEM
de lembranças
andarilhas
Humberto Gabbi Zanatta,
em Tropa de Osso
Foto: Carlos Bortolás
M E L A N D O N O C E M I T É R I O
No fundão do Inhanduí, o mel consumido em casa vinha, principalmente,
da mata que abraça o rio e dos capões de mato espalhados pelo campo.
Melar era tranquilo. Geralmente o pessoal se deparava com abelhas mais
mansas. Era uma boa fumaça e deu!
Bravas eram as do cemitério no alto da segunda coxilha. Aquele enxame
que se abrigava em uma das três campas sem uso há anos tinha fama na
região. Quem se aproximava sabia dos riscos.
Quantos corridões tomamos só de passar ali por perto!
Por isso, melar aquelas abelhas era uma fixação. Sempre que voltava em
férias ao fundão do Inhanduí, os planos eram renovados. Até que
apareceu o Paulo Trindade, enteado da Sirlei Botelho, minha madrasta. O
Paulo era determinado e não tinha medo. Um bruto!
Bom sinal! Mãos à obra!
Com o apoio do Cléber Bortolás, meu irmão, elaboramos um plano
simples. Para evitar picadas nas pernas e nos pés, Paulo usaria duas
calças e uma bota de couro cano longo. O tronco e a cabeça seriam
protegidos por duas camisas, um casaco e um saco de adubo com
plástico grosso. Um óculos reforçaria a proteção dos olhos.
Tinha até rota de fuga. A picape Willys do seu Plínio Domingos Bortolás,
meu pai, ficaria a uns cinquenta metros com motor ligado e vidros bem
fechados. O Paulo viria na carreira, jogaria o saco com o mel na
carroceria, entraria na caminhonete e partiríamos a toda. Depois, bem
longe do cemitério, era comemorar com um bom favo de mel.
52
Revisamos o plano várias vezes para não ter erro. Mas, na hora da ação,
nada funcionou como planejado. Nem de perto.
Mal o Paulo abriu a campa, as abelhas avançaram com tudo. E se
concentraram na cabeça, passando pelos furos que fizemos no saco de
adubo. Mas por que furos?, gostam de perguntar quanto conto a história.
Ora! O Paulo tinha que enxergar alguma coisa pra retirar os favos.
Picado de forma implacável, Paulo recua, derruba parte da campa e se
arranca como pode em direção ao ponto de fuga com uma nuvem de
abelhas na cola. Se estapeando como dava, entra na caminhonete
gritando alto: "vamos embora, vamos embora. Rápido, rápido".
Foi um fiasco dos mais comentados na região!
O Paulo passou uns bons dias com o rosto inchado. E esse não foi o único
problema. No afã de melar aquelas abelhas, esquecemos da autorização.
Ao saber do ocorrido, seu Elvio Berriel, que gerenciava aqueles campos,
não gostou nem um pouquinho. E ordenou: "arrumem a campa"!
E cadê a coragem para voltar ao cemitério?
Foto: Carlos Bortolás
Cemitério do fundão do Inhanduí
53
U V A F E R M E N T A D A
Nos meus tempos de fundão do Inhanduí, visitar os avós paternos em
Dona Francisca era sagrado. Todo o ano era ano de rever seu Felix Marino
Bortolás, o nono Iti, e dona Helena Rosa Bressa, a nona Lena.
Dona Chica era a volta às origens para meu pai, seu Plínio Domingos
Bortolás, e minha mãe, dona Clasilda Dambrós. E também de reencontro
com meus tios do ramo Bortolás: Elvira, Talita, Elita, Vanir, Heitor e Leone.
Família de porte, reforçada pela tia Dênia no Alegrete.
Nos tempos em que não tinha carro na casa, a viagem era penosa! Nessa
situação, percorrer os cerca de 300 quilômetros entre Alegrete e Dona
Chica era coisa de dia. Eram três trechos bem intervalados.
A gente saía de manhã cedo do fundão do Inhanduí, caminhava uns bons
quilômetros até a estação de trem ou a parada do ônibus que vinha da
Barra do Ipané. Coisa de até uma hora, descíamos na cidade. Uma parada
ou na casa do tio Antenor e da tia Dênia ou na do vô Adalfo e da vó
Cecília e, no início da noite, ônibus para Santa Maria.
No Coração do Rio Grande, mais umas cinco horas de espera na
rodoviária. Pra quem vivia no campo, aquilo era um formigueiro humano
infernal. E dele ronco de estômago. Pouco antes de clarear o dia, enfim,
ônibus para Dona Francisca e para um café da manhã farto de queijo,
salame, chimia, pão caseiro... E carinho, muito carinho.
Se aquela viagem era coisa de louco, imaginem a volta! Sempre tinha um
garrafão de cachaça, de vinho, de vinagre, um saco de açúcar melado...
Das visitas, as que mais lembro são as dos tempos de colheita de uva e
produção de vinho. Aquilo era coisa de deslumbrar guri de lavoura.
54
Cedinho, a grande carroça de dois eixos cheia de cestos era levada das
casas para o parreiral por uma junta de bois. Os cestos maiores eram
para a uva colhida. Os menores estavam abastecidos com pão, salame,
chimia, queijo caseiro… Durante a colheita, o povo se fartava.
Os mais velhos tinham direito a vinho produzido pelo vô Iti e pela vó
Helena. E sempre tinha uma cachaçinha artesanal produzida por ali.
O trabalho durava praticamente toda a manhã. Depois do almoço, hora
de esmagar uva com os pés e extrair o mosto para fazer o vinho. Aquilo
era um entra e sai de gente nas tinas de madeira onde a uva era
colocada. Os pés entravam branquinhos e saíam roxos. E quando
apareciam abelhas, inchados.
O suco produzido nas tinas era depositado em grandes pipas de madeira.
Hora da fermentação! E de perigos para desavisados! Quanto mais o
processo de fermentação avança, maior o risco de se beber o suco.
Ninguém me avisou e continuei metendo firme noite adentro!
Uma devastação se aproximava!
Copo de suco vai, copo de suco vem... Começo a sentir uma
movimentação intestinal nunca vista. Coisa de vulcão em erupção. Foi um
deus me acuda e uma corrida nunca feita na minha vida até a patente
mais próxima. Por ali, entre uma saída rápida e outra, transitei o resto da
noite assolado por um senhor desarranjo intestinal, o popular churrio.
Nem o quitoco que tanto me salvou de tais apuros daria jeito naquilo.
Aquela situação é inesquecível. Até hoje, suco de uva na minha frente é
sinônimo de múltiplos arrepios. Bebo! Mas, por precaução, misturo
sempre uma boa quantidade de água.
55
P O R B A I X O D A T A I P A D O A Ç U D E
Pouco depois de se instalarem no fundão do Inhanduí, seu Plínio
Bortolás, meu pai, e dona Clasilda Dambrós, minha mãe, receberam a
visita de boas vindas de seu Elvio Berriel, que gerenciava a propriedade
do seu João Rodrigues.
A sede da Guajuviras ficava na entrada do campo, a cerca de um
quilômetro e pouco do corredor dos Três Capões. Entre os dois pontos,
quatro porteiras. E mais outras três até as casas no fundão. Abrir e fechar
porteira era tarefa para os guris. Aff!
De seu Elvio, guardo imagens das campereadas rotineiras, quando
percorria campos, coxilhas e bordas do mato e restingas do fundão do
Inhanduí. A cavalo, botas acima dos joelhos e a companhia de três
cachorros: um lebreiro, um ovelheiro e um de pedigree que me foge.
Naquele dia, fiz de tudo para impressionar a visita. Pulei por cima do
reboque, do trator, do arado.... Na volta, seu Elvio troca impressões com
dona Gelsa Rodrigues, sua mulher, sobre os recém-chegados. O que
chamou mais a atenção? "Um gringuinho loirinho. Um diabinho!"
Seu Elvio se encheu de razão quando lotei com areia o tanque de um Jipe
velho estacionado há um bom tempo no galpão das casas. Podem
perguntar, mas não vou contar a reação do seu Plínio. A do seu Elvio eu
conto: morria de rir quando lembrava o ocorrido. E como lembrava!
Incorporei de vez a fama de encapetado num ensolarado final de tarde.
Na taipa do açude em frente às casas, dona Clasilda Dambrós, minha
mãe, lidava com alguma coisa ao lado da comporta que liberava água
para a lavoura de arroz. A comporta estava escancarada, detalhe que
ignorei enquanto dava uns biquinhos pertinho da correnteza.
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A água estava uma delícia!
Como a prever o que estava por vir, dona Clasilda repetia: "toma cuidado
Carlos Augusto!" Ser chamado de Carlos Augusto não era bom sinal!
Mas segui firme. Biquinho pra cá, biquinho pra lá e … um pulo muito
perto da boca da comporta. Caio na correnteza, que me arrasta para o
duto. Lá dentro, dava pra ver uns poucos feixes de luz. O resto era
escuridão e pavor dos brabos.
Atirado de tudo que jeito contra as paredes, segui arrastado pela água
sob a taipa do açude. Coisa de uns sete metros que parecia não ter fim.
Engoli água como nunca, mas consegui chegar do outro lado. Bem...
Consegui não é bem o termo, né, mas cheguei.
Da boca do duto, fui jogado num poço fundo, zona de traíras pequenas.
Não deu tempo nem de pensar em nadar. Dona Clasilda me agarrou
pelos cabelos, me colocou em terra firme e, ato contínuo, usou todo o seu
conhecimento de como aplicar cascudos.
Sobrevivi abaixo de mau tempo. Sorte que o nível do açude estava baixo,
o que garantiu espaço para eu respirar durante a travessia imprevista.
Lá se vão uns 50 anos do ocorrido, mas, até hoje, a 'façanha' do
'gringuinho' é uma espécie de lenda naquelas bandas do Inhanduí e em
terras vizinhas. É só encontrar alguém que sabe do causo e lá vem a
história da taipa do açude. Quanto estive no Alegrete em 2019 e
encontrei o Délvio Berriel, adivinhem do que ele lembrou?
O que me deixa levemente contrariado é que pouco lembram dos riscos
que corri. Mas dos cascudos que levei da minha mãe...
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AO PÉ
do fogo de chão
VOU REPASSANDO
a memória
João da Cunha Vargas
em Chimarrão
Foto: Carlos Bortolás
1
O M E R G U L H O D O M A S S E G U I N H A
Com cinco anos, um toco de gente como se dizia no fundão do Inhanduí,
o Cléber Romário, meu irmão, já era metido a tratorista.
Seguia o inevitável caminho dos filhos de plantadores de arroz. A
preparação da terra e o plantio exigiam a força de muita gente. Ninguém
escapava. Bastava estar por perto e, "amanhã, você vai gradear lá na
beira do mato". Trabalho solitário e ensurdecedor, Os tratores daquele
tempo roncavam alto. E não existia este negócio de cabine.
A carreira de tratorista do Cléber começou cedo e de forma acidentada.
Numa manhã de sol, seu Plínio Domingos Bortolás, nosso pai, e o Ilizi
Fantinel, o tio Isi, decidiram remendar um trecho da regadeira que estava
vazando água na área da várzea do meio. A primeira parte do trabalho
era cortar uns torrões de terra preta no outro lado do açude.
Seu Plínio engatou o arrastão no Massey Ferguson 50, o Masseguinha,
acomodou as pás no arrastão e tomou o rumo do taipa do açude com o
Cléber a bordo. De perto, tio Izi acompanhava num Valmetinho tampinha.
Na descida pedregosa, uma das pás caiu do arrastão. Seu Plínio começa a
parar o trator, mas o Cléber vê uma oportunidade de assumir o volante.
"Não para, pai, não para. Deixa eu levar enquanto o senhor pega a pá."
Seu Plínio concordou.
Foi só ele descer do trator para que o Cléber, todo prosa, se adonasse do
banco. Menino observador, logo tratou de imitar o hábito dos tratoristas
mais rodados de escorar um braço no para-lama.
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Faltava braço pro Cléber, mas ele achou um jeito de se acomodar. E, todo
desajeitado, resolveu se amostrar um pouco.
Mão no volante, braço no para-lama, corpo ladeado, virou a cabeça para
mostrar a seu Plínio a gauchada do filho mais novo. Era tanta emoção e
busca de aprovação que esqueceu da curva fechada à frente, onde
começava a taipa do açude. O Cléber se exibia, e o trator seguia reto ao
açude. E o barranco era dos grandes.
Aquilo foi um tendel. Quando viu o desastre que se aproximava, seu
Plínio largou a pá como pode e, tipo gato do mato, voou do arrastão para
o trator. Deu tempo de puxar o estrangulador e tirar, do jeito que pode, o
Cléber para fora da confusão.
Mas não houve tempo de evitar o mergulho do Masseguinha, que só não
foi fundo do açude porque uma das rodas traseiras topou com um pé de
espinilho, árvore bruta de madeira sem igual para um churrasco. Mas a
frente do Masseguinha ficou todinha embaixo da água.
Espinilho é árvore com muito espinho. Bota espinho nisso. Seu Plínio saiu
todo lanhado. E o Cléber? Logo esqueceu do susto e começou a preparar
o lombo. Uma arte daquelas não passaria em brancas nuvens.
Mas o tempo jogou a seu favor. Primeiro foram os curativos no seu Plínio
feitos pela dona Clasilda Dambrós, nossa mãe, e pela tia Elvira Bortolás.
Aquilo demorou. Depois veio a retirada do Masseguinha do barranco,
trabalho para o Zetor e o Valmetinho.
A fúria de seu Plínio se amansou, e a paz voltou a reinar no fundão do
Inhanduí. "Santo espinilho", repete, até hoje, o Cléber Romário.
60
P A S T A D E D E N T E C O M D E F E I T O
Entre os Dambrós e os Bortolás, José Dambrós, o tio Zeca, é conhecido
pelo hábito de aprontar. O cara é um perigo. Pros desavisados, então...
A fama já era grande quando o Zeca passou num concurso do Banco do
Brasil e saiu do Alegrete para morar em Palmas, no Paraná.
Terra fria, muito fria! Até nevava por lá!
Em Palmas, onde passou por algumas pensões, o Zeca aperfeiçoou o seu
arsenal. E todo ano, quando voltava ao Alegrete para visitar a parentada,
colocava em prática os novos aprendizados.
Como geralmente fazia, numa dessas idas o Zeca bateu lá no fundão do
Inhanduí. Era uma visita ao seu Plínio, meu pai, e ao Claudir Rampeloto, o
Cláudio, que também vivia por lá - minha mãe, dona Clasilda, já não
estava por aqui.
De quebra, aproveitaria para tentar caçar uns tatus.
O Zeca ficou um tempinho no fundão do Inhanduí e, no dia de voltar à
cidade, resolveu "deixar uma recordação" de sua passagem. Era bem
cedinho da manhã. Seu Plínio e o Cláudio já andavam na lida diária da
lavoura de arroz.
Com o caminho livre, Zeca vai ao banheiro e injeta uma boa quantidade
de creme de barbear no tubo de pasta de dente.
E tchau fundão do Inhanduí. Até a próxima!
61
O que se ouviu depois foram reclamações e mais reclamações sobre a
qualidade daquela pasta de dente. "Está com defeito", dizia o Cláudio.
Seu Plínio até foi visto com frequência incomum na área dos limoeiros e
das laranjeiras em volta das casas. Catava e mastigava folhas na tentativa
de quebrar o gosto ruim da pasta de dente.
Um ano depois, quando o Zeca voltou ao fundão, seu Plínio e o Cláudio
ficaram sabendo que não tinha defeito nenhum naquela pasta de dente.
Era coisa do Zeca! Mais uma!
Foto: Arquivo Cléber Bortolás
Seu Plínio Bortolás preparando um assado
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PAIRA
um campeiro perfume
DA FLOR GUAXA
entre o chircal
Aureliano de Figueiredo Pinto,
em Gaudério
Foto: Carlos Bortolás
P E R D I D O S N O C A M P O
Já falei, mas não custa repetir: coisa mais linda que as noites de lua cheia
nos campos da Fronteira Oeste não existe. Em compensação, as sem lua…
"É assustador", repete o tio Zeca, como é conhecido o José Dambrós.
Senti na pele esta máxima do Zeca. Eu, o meu irmão Cléber Romário, o
Francisco Benites Ferreira, o Chico, e o Gilberto Bevilaqua, o Giba, colega
e amigo dos tempos de Universidade Federal de Santa Maria, a UFSM.
Nos períodos de férias ou feriado prolongado, sempre voltava ao fundão
do Inhanduí. Numa delas, convidei o Chico e o Gilberto. Coisa de acampar
no mato e, entre um churrasco e outro, uns tragos de cachaça e vinho,
puxar uns peixes do Inhanduí. O Chico e o Giba toparam.
Empolgado, decidi que a viagem seria um feito. Ao invés do ônibus, trem.
Nada de seu Plínio Domingos Bortolás, meu pai, nos pegar. Da estação do
Inhanduí, iríamos a pé. Coisa de cinco quilômetros pelos Farrapos.
Moleza, pensei! Meio que lembrava dos tempos que seguia seu Plínio e
dona Clasilda Dambrós, minha mãe, por aqueles caminhos para pegar o
ônibus que vinha do Passo do Ipané e o trem vindo de Uruguaiana. No
pior cenário, era mirar a direção das casas e tocar reto em frente.
Para dar emoção ao que seria um grande feito, não avisei seu Plínio.
Chegaríamos de surpresa. E, depois, era só colher os louros do feito nas
conversas à beira do fogão a lenha.
Embarcamos em Santa Maria. No Alegrete, o Cléber Romário, meu irmão,
se incorporou à turma. Mais uma meia hora sacolejando, estação do
Inhanduí. Chegamos mais pro fim da tarde.
64
Na descida, percebi que tinha chovido muito nos dias anteriores. Para
ganhar tempo, decidi cortar caminho. Que ideia! Batemos num charco
intransponível. Nunca vi tanta cobra na vida. E elas, feliz da vida com o
monte de sapo. Sem saída, retrocedemos em busca de um caminho mais
seguro. E seguimos campo afora.
Noite chegando, céu carregado de nuvens. À medida que avançávamos,
mais escuro ficava. Até que não se via mais nada. "As casas estão naquela
direção", repetia, torcendo para ver algum ponto de luz. Nada!
Em frente, mais um charco. Até hoje, o Cléber garante que nem cobra
passava por ali. Mas passamos. E o Cléber, que já havia se estatelado
numa sanga, quase foi engolido por um olho de boi. Atolado até a
cintura, começou a protestar. De fato era impossível encontrar as casas
naquele breu. Tiramos o Cléber do peludo, buscamos um lugar seco e
acampamos à espera do amanhecer.
Adeus louros à beira do fogão!
Na barraca para duas pessoas, nos acomodamos como deu. A sensação
de ver luzes em movimento por trás da coxilha perturbava. Era estrada?
As casas? Mas nosso destino estava selado. Era tentar dormir e pronto.
Na manhã, levanto cedinho para avaliar a situação. Surpresa! Estávamos
a uns 300 metros das casas. E o que era para ser um feito inacreditável
virou motivo de piada naquelas bandas.
Fomos nos esconder numa clareira à beira do Inhanduí. Naquela área de
mato largo próxima à restinga da várzea das casas, bebemos muita
cachaça, falamos de Pink Floyd, de contracultura… Peixe que é bom,
nada. E todo o dia, seu Plínio aparecia ostentando um sorrisinho maroto.
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Numa manhã, de ressaca, acordamos com um monte de peixes na
frigideira que, até então, estava ali a passeio. Espanto total! De onde
vinham se não havíamos pescado nada? Do espanto ao medo foi um
pulo. Estávamos cercados?
A explicação veio com a chegada de uns caçadores e pescadores que
estavam na área. O Chico ainda lembra do "e aí, gurizada! Passamos aqui,
tava todo mundo dormindo e resolvemos deixar os peixes". Ufa!
O Chico e o Giba ficaram lá pelo fundão uns três dias. Não lembro de
peixe algum puxado do Inhanduí. Na volta para Santa Maria, nada de
gauchadas. Seu Plínio fez questão de levá-los na picape Willys até a
estação do Inhanduí.
Eu fiquei. E haja paciência com o seu Plínio e o Claudir Rampelotto, o
Cláudio, que não paravam de lembrar da história.
Gilberto Bevilaqua, Francisco Benites Ferreira e Carlos Bortolás
Foto: Arquivo Chico Ferreira
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A E T E R N A P R O F E S S O R A
Cena linda da minha infância no fundão do Inhanduí era a gurizada
descendo as coxilhas rumo à casa de madeira e cozinha de pedra no
último ponto da estrada que partia do corredor dos Três Capões. Naquele
fundo de campo funcionou a minha primeira escola. Quando cheguei, já
se chamava Dom Luiz Felipe de Nadal, mas antes era Dr. Ciro Leães.
Dona Iná Quevedo Rodrigues era quem conduzia a gurizada ao mundo da
escrita e da leitura. A dona Gelsa Rodrigues lembra que a Iná professora
contou com o firme incentivo de dona Clasilda Dambrós, minhã mãe.
Foi dona Clasilda quem, em meio a lida árdua e diária da lavoura de
arroz, me ensinou a escrever com alguma desenvoltura as letras do ABC.
Às portas dos seis anos de idade, quando fui à escola, dona Iná me
ensinou a juntar e dar sentido para aquele mundaréu de letras.
Como era determinada a dona Iná! Na sala de madeira e chão batido à
beira de um pomar de laranjeiras e bergamoteiras onde funcionava a
escola, lidava com os alunos da primeira a quarta séries. No verão, aulas
de manhã; no inverno, à tarde.
Para a maioria da turma, chegar à escolinha era fácil. Bastava seguir a
estrada que levava ao fundão do Inhanduí e desviar à direita depois da
taipa do açude. Dos lados da Guajuviras vinham as gurias e os guris do
seu Alberto Pereira, o Didi, do seu Altivo e da dona Bereni Rodrigues e do
seu Elvio Berriel e da dona Gelsa Rodrigues ...
A turma do seu Zeferino e da dona Eva Antunes vinha do fundo do campo
dos Farrapos. A do seu Plínio Domingos Bortolás, meu pai, e da dona
Clasilda cortava uns trezentos metros de campo.
67
Mais complicado era o caminho da gurizada do seu Eufrásio e da dona
Élida Gonçalves, que cortava uns cinco quilômetros de campo e cerros
pelos Farrapos. A viagem a cavalo facilitava. Mas quando o trecho era
feito a pé, tinha um problema sério: um rebanho de gado. "Eu, o Ênio
Jorge e a Eleci chegamos muitas vezes atrasados por causa daquele gado.
Quanto corridão tomamos", conta o Eneri Gonçalves.
A escolinha era tão famosa que até recebia gente de outras querências. O
Eneri lembra do Francisco, filho do seu Arnóbio Berriel. Vindo do Mariano
Pinto, Francisco passou uma temporada na casa dos tios Elvio e Gelsa só
para estudar na Dom Luiz Felipe de Nadal.
Aquele mundo de conhecimento no fundão do Inhanduí resistiu de 1967
a 1972. Em 1973, dona Iná partiu para dar aula na Escola Getúlio Vargas,
à beira do corredor dos Três Capões. Ela seguiu firme na carreira de
professora. Passou pela Escola Nossa Senhora da Conceição, à beira da
estrada pro Mariano Pinto e, na cidade, se estabeleceu na Escola Básica
Fundamental Francisco Carlos, na Vila Nova, onde se aposentou.
Morei com ela e seu Neri Rodrigues quatro anos, dois no corredor dos
Três Capões e dois na cidade. Fui com eles pelo desejo de minha mãe. O
caminho para o futuro passava pelos estudos. Um desejo mais tarde
abraçado pelos meus tios Antenor Dambrós, Dênia Bortolás, Marizete
Dambrós e Umberto Francisco Gabbi.
Conclui o segundo grau, me formei na Universidade Federal de Santa
Maria, a UFSM, ganhei o mundo. Por onde ando, tenho sempre por perto
dona Iná, os colegas e a escolinha do fundão do Inhanduí.
Eles são eternos!
68
Dejaré
LAS PUERTAS E VENTANAS
de mi casa
ABIERTAS, PARA SIEMPRE
Alfredo Zitarrosa,
em Guitarra Negra
Foto: Carlos Bortolás
E X C E S S O D O C O N T I N G E N T E
O que eu faria quando crescesse era uma espécie de disputa velada no
fundão do Inhanduí. De um lado, meu pai, seu Plínio Domingos Bortolás,
apostava todas as suas fichas na carreira militar; do outro, minha mãe,
dona Clasilda Dambrós, na de padre.
Sempre que aparecia oportunidade, eles tratavam de puxar os lambaris
para a sua brasa. Meu pai recorria até a umas fotos dos seus tempos de
soldado em Cachoeira do Sul. Idílicas! Minha mãe buscava apoio em
fontes externas, como freiras e padres que apareciam para celebrar
missas naquelas bandas. Até de anjinho me chamaram!
Uma linha de apoio para dona Clasilda era a revista Família Cristã. Li
muitas nos tempos que meu passatempo era enfiar botões no nariz. Haja
cheirar pimenta-do-reino para expelir aqueles botões.
Naquelas revistas identifiquei três viagens que transformei em desejo. E
assim, vida adiante, atravessei de vapor o rio Uruguai entre Montevidéu e
Buenos Aires, percorri a Ferrovia do Inferno, entre Curitiba e Paranaguá,
e conheci a Mesquita Azul, em Istambul, na Turquia.
A carreira eclesiástica desandou cedo. Entre 1975 e 1978, quatro
tentativas de fazer a primeira comunhão. Resultado? Três reprovações e
uma possibilidade de aulas de recuperação. Nesta, dona Clasilda viu um
golpe para eu ficar mais tempo na cidade. Entre a primeira comunhão e
ajudar na lavoura de arroz, ficou com a segunda opção. A partir de 1979,
não se tocou mais no assunto.
Meu pai jogava com o tempo. Afinal, quando eu completasse 18 anos,
tinha encontro marcado com o alistamento militar. Ele ocorreu no final
de 1983, no segundo ano de Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).
70
Já entreverado no movimento estudantil e determinado a evitar de
qualquer maneira alguma passagem por quartéis, pensei: rumo ao
terceiro ano de curso, não passo da primeira etapa da seleção.
Parecia ter fundamento, mas cursos como o de Comunicação Social
causavam urticária no pessoal verde-oliva e seus adeptos. Até hoje, né! Se
fosse Engenharia, Medicina, as possibilidades de escapar eram mais
palpáveis... Resultado? Escalado para a segunda etapa da seleção.
Comecei a imaginar que teria problemas. O temor crescia quando, volta e
meia, aparecia alguém me alertando do serviço de inteligência militar na
universidade e de minha participação no movimento estudantil. "Tu
deves ter uma ficha lá", insistiam.
Razões até que existiam. Em novembro de 1982, estava entre os que
protestavam contra a visita do general e presidente de plantão João
Baptista de Oliveira Figueiredo a Santa Maria. Minha tarefa? Apontar o
mais rápido possível prisões de companheiros que distribuíam panfletos.
Fiquei grande parte da manhã fingindo ler jornal numa parada de ônibus.
Em março de 1983, participei da marcha de milhares de estudantes que
ocuparam a reitoria da UFSM. Não passei do térreo, mas ainda hoje me
emociona a imagem da bandeira da UNE hasteada no andar do reitor.
Imaginando percalços à frente, comecei a sondar alguma ajuda. Em casa,
ninguém se coçou. Encontrei guarida com dona Eva Eci de Almeida, mãe
do Cezar Freitas, colega de curso. Dona Eva disse que conhecia alguém
que trabalhava na universidade. Se possível, tentaria ajudar.
Encarei a segunda etapa da seleção com dois caminhos claros: ou a ajuda
de dona Eva ou um ano de quartel.
71
Foram seis dias batendo ponto na 3ª Companhia de Comunicações
Blindada, a uns três quilômetros de caminhada da casa dos tios Umberto
Gabbi e Marizete Dambrós, onde morava. No caminho, uma passagem
para pedestres destruída no arroio Cadena. Cruzava me equilibrando
como dava nas estruturas de madeira restantes. Eu e os moradores da
margem esquerda do Cadena que se deslocavam rumo ao Centro.
No período, veio uma leva de dispensas e nada do meu nome. No dia do
tudo ou nada, consegui driblar um corte de cabelo de soldado raso, mas
não escapei de arrancar tiriricas que cresciam entre paralelepípedos.
Turma reunida, um capitão com sotaque carioca destila seu incômodo
com a música "Caminhando e Cantando", do Geraldo Vandré, um hino
daqueles tempos. Toda a sua ira é dirigida à passagem "nos quartéis lhes
ensinam uma antiga lição, de morrer pela pátria e viver sem razão".
Cuspia mamangavas o capitão! O sermão envereda para os perigos
comunistas que "ameaçam" o país. Sobra até tempo para identificar
"áreas infiltradas" pelos vermelhos.
Chegar ao ambiente da UFSM foi um passo. Onde estava o "foco de
infiltração"? Engenharia Florestal, História e Comunicação Social. "Aí tem
coisa", pensei. Comecei a ficar vermelho! E mais ainda quando o capitão
anuncia a presença de alguém desses cursos na sala. Não entendi se era
um aluno ou um comunista. Mas, intimado a me identificar, ergo a mão.
Não ouvi mais nada. Só quando anunciam meu nome. Liberado!
Nunca entrei em detalhes com dona Eva sobre o que ela fez ou não fez.
Não importava. Nada era maior que seu gesto de acolhimento. Em meio
ao cenário de incerteza que alimentei, senti-me abraçado por ela.
Obrigado dona Eva! E viva o excesso do contingente!
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A O R E D O R D O A L E G R E T E
Reza a lenda que as habilidades mecânicas do tio Antenor Dambrós
vinham dos tempos de aprendizado com o Leo Castilho, o Cabeludo. Seu
Antenor, o eterno Nor da tia Dênia Bortolás, conhecia como poucos os
intrincados caminhos de um motor. Os de caminhão, então. E o macacão
sempre pura graxa era, com certeza, feitio Cabeludo.
Tio Antenor era caminhoneiro afamado no Alegrete e, no meu imaginário,
o mais viajado dos Dambrós. Vivia pra cima e pra baixo de caminhão. Do
fundão do Inhanduí, puxou muita carga de arroz pra cidade.
E aquela viagem à Bahia lá nos anos 1970? Coisa de semanas e de muitas
histórias na casa da Avenida Rondon. Que aventura! Eu, guri, ouvia tudo
encantado. E a distância daquele trecho? Parecia que o tio tinha ido a
outro mundo e voltado são e salvo.
Foi o tio Antenor quem me apresentou um pedaço do que existia ao
redor do Alegrete. Em julho de 1980, topou dividir comigo a boleia de
uma carreta Scania numa viagem de Alegrete a Colombo, no ladinho de
Curitiba (PR). Guardo a data por causa da notícia que ouvi no rádio do
caminhão da quartelada militar na Bolívia que derrubou a presidenta
Lidia Gueiler. Na época, esse negócio de golpe não tinha fim na Bolívia.
Ignoro a carga. Mas lembro das refeições caseiras feitas no fogareiro a
gás em paradouros, das florestas de araucária, do frio de rachar no
Paraná, da fábrica da Serramalte em Getúlio Vargas, da primeira Pitu...
Do Alegrete, chegamos a Santa Catarina por Erechim. Depois do rio
Uruguai, passamos ao lado de Concórdia e batemos em Porto União.
Cruzamos o imponente rio Iguaçu rumo a Porto Vitória, São Mateus do
Sul, Campo Largo e Colombo.
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A volta foi pelo litoral. No rumo de Joinville, a descida noturna da Serra
do Mar foi de assustar. Parada em Canoas e Alegrete pela BR-290.
Naquela viagem, comecei a firmar gosto por outras terras. Antes, os
estudos. Tio Antenor e tia Dênia me acolheram por quatro anos, tempo
de concluir o primeiro grau e encaminhar o segundo. Depois vieram
Santa Maria, os tempos de universidade e outros pagos. Morei em Santa
Catarina, em Pernambuco, no Pará, finquei pé em Brasília.
Tio Antenor já partiu, mas por onde ando sempre lembro e lembrarei da
fonte do desejo de beber novos horizontes. A resposta está naquele julho
de 1980, na viagem de caminhão do Alegrete a Colombo.
Que porteira seu Antenor abriu pro guri do fundão do Inhanduí!
Sadir Fantinel, Carlos Bortolás e Antenor Dambrós
Foto: Arquivo Carlos Bortolás
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P R O V A D E F O G O
Nos primeiros tempos de cidade, quando morava com seu Neri Rodrigues
e dona Iná Quevedo, passava os fins de semana ou na casa do tio
Antenor Dambrós e da tia Dênia Bortolás, na avenida Rondon, ou na do
vô Adolfo Dambrós, na rua Demétrio Ribeiro. Ali, sob o olhar da tia Maria
Dambrós, comecei a dedilhar a primeira das muitas máquinas de
escrever que encontrei na vida. Na Cidade Alta, era território do bife à
milanesa feito pela tia Dênia. De lamber os beiços. Até hoje!
A cidade foi terreno fértil para meu gosto pela leitura. Não precisa ler e
reler as raras revistas que chegavam no fundão do Inhanduí. Na casa dos
tios, me divertia com a coleção da revista Placar do primo-irmão André
Adolfo Dambrós. Andei pelo Brasil inteiro naquelas revistas!
Na casa do meu avô sempre encontrava um livro perdido. Lembro de
Viagem à Aurora do Mundo, do Érico Veríssimo. E investia o dinheiro que
conseguia juntar numas revistas em quadrinhos. Era fã do Tex Willer!
Numa das idas à casa da Demétrio Ribeiro, fui recebido com a notícia de
que a Marizete Dambrós, a tia Mari, estava chegando de Santa Maria,
onde, depois de uma temporada em Cascavel, no Paraná, trabalhava no
Banco do Brasil. Trazia a tiracolo o Umberto Francisco Gabbi.
O Gabbi garante que não estava arrastando a asa para a Mari. Só estava
ali para dar carona para uma amiga de banco e, de quebra, conhecer o
Alegrete. Mas deu no que deu: casamento.
O Gabbi chegou no Alegrete 'vacinado' para o pandemônio que teria pela
frente. É que a Mari o alertou que também estaria por lá um sobrinho
que se metia em tudo que era conversa. Um tormento!
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Transformei o alerta da Mari em fato. Com gente nova na casa dando
ouvidos, 'parlei' pelos cotovelos durante o fim de semana todinho. Mas,
ufa!, o Gabbi foi embora com uma impressão diferente. "O que tu falava
tinha nexo, Carlão." Ainda tenho dúvidas, mas se o Gabbi diz, não discuto.
A vida nos uniu dois anos após a morte de dona Clasilda Dambrós, minha
mãe. Pelas mãos do Gabbi e da Mari, desembarquei em Santa Maria em
1981. Com o aval de seu Plínio Domingos Bortolás, meu pai, continuava a
rota dos estudos desejada pela minha mãe. Terminei o segundo grau no
Maria Rocha e emendei a universidade.
Nos dois primeiros anos de Santa Maria, morei com o Gabbi e a Mari na
casa 380 da rua São Francisco, bairro Nossa Senhora do Rosário. Nos
outros três, passei por repúblicas de estudantes, incentivo do Gabbi que
me ajudou demais no que, depois, encontrei por diante.
Do Gabbi veio o impulso para o caminho a seguir na universidade. Depois
de me ouvir sobre a inclinação pelo curso de Agronomia, porque dava
dinheiro, ele fez uma observação fundamental: "Carlão, tu tens que fazer
o que gosta". E me bandeei pro mundo da comunicação.
Corri mundo, mas uma coisa não mudou: continuo sendo o 'filho mais
velho' do Gabbi e da Mari. De quebra, ganhei quatro irmãs e irmãos:
Ketlen, Gustavo, Luciano e Maria Cecília.
Sempre que volto a Santa Maria, faço questão de revisitar essas
passagens. É uma forma de reforçar minha gratidão.
Mas nem tudo é coisa séria nas nossas conversas. É que o Gabbi sempre
lembra daquela visita ao Alegrete. Não tem jeito! Com o tempo, a Mari
deixou de lado o "ah! Umberto" e passou a reforçar as gargalhadas.
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Andei
por terras estranhas
NO MUNDO
MUITO APRENDI
Noel Guarany,
em Filosofia de Gaudério
Foto: Carlos Bortolás
R I O D A M I N H A I N F Â N C I A
No final de 2010, andávamos, eu, Adelson Barreto e Paulo Louredo, pelo
Paraguai em busca de exemplos da estruturação da agricultura familiar
no Mercado Comum do Sul, o Mercosul. De quebra, marquei um encontro
com vestígios de trincheiras do tempos da chamada Guerra do Paraguai.
Numa pequena propriedade rural de Caazapa, observo uma imensa teia e
dezenas de aranhas minúsculas.
"Araña pequeña", digo à funcionária do Ministério da Agricultura que nos
acompanha.
"Ñandú’i", ela responde.
"Inhanduí?"
"Sí, araña pequeña en guaraní."
No interior do Paraguai, encontro o significado do rio da minha infância.
Foto: Adelson Barreto
Carlos Bortolás
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Em torno da ideia, muitos se reuniram. Um agradecimento especial
à Noeli Frida, por olhar com carinho um mundaréu de palavras destes relatos;
à Valéria Rivoire e ao Angelo Ribeiro, pela amizade e a campereada dos relatos;
ao Délvio Rodrigues Berriel, pelo apoio à memória em Fundão do Inhanduí;
ao Eneri Gonçalves, pelas lembranças e pelo impulso à produção destes relatos;
ao amigo Francisco Benites Ferreira, o Chico, por encorpar Perdidos no Campo;
ao amigo Vava Etchepare, por destampar Desfile de Boitatá;
ao Umberto Gabbi e à Marizete Dambrós, pelas portas abertas e Prova de Fogo;
ao Cléber Bortolás, por ajudar demais e protagonizar alguns destes relatos;
à Laura Bortolás, por identificar imagens para estes relatos;
ao José Dambrós, o Zeca, pela memória fotográfica de dar inveja;
ao Celso Dambrós, pela boa conversa e as histórias dos tempos do arroz;
ao Alceu Aírton Gonçalves de Sousa, pela lembrança de Pegador de Pombão;
ao Luciano Gabbi, por se aventurar em Encontros de Família;
ao amigo Warner Bento Filho, pelo aval imprescindível;
ao amigaço Paulo Mendes, pela gentileza de Histórias, Vida e Amizade;
ao amigo Alessandro Landim, pelo eterno socorro tecnológico;
à companheira Leticia Braz, pela forma gráfica dos relatos e infindável paciência.
Foto Capa: Cléber Romário Dambrós Bortolás
Fotos Contracapa: 1 - Félix Marino Bortolás, Helena Rosa Bressa, Cecília Cassol, Adolfo Dambrós, Plínio
Domingos Bortolás e Clasilda Dambrós; 2 - Rosa Helena, Carlos Augusto e Cléber Romário Dambrós Bortolás
D E D A M B R Ó S A B O R T O L Á S