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Relatos do Fundão do Inhanduí

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C A R L O S B O R T O L Á S

D E D A M B R Ó S A B O R T O L Á S

R E L A T O S D O F U N D Ã O

R E L A T O S D O F U N D Ã O

D O I N H A N D U Í

D O I N H A N D U Í


Foto: Arquivo Cléber Bortolás

Plínio Domingos Bortolás e Clasilda Dambrós

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D E D A M B R Ó S A B O R T O L Á S

R E L A T O S D O F U N D Ã O

D O I N H A N D U Í

CARLOS BORTOLÁS

FLOR DO CAMPO

cdbortolas@gmail.com


C A M P E R E A N D O M E M Ó R I A S

“Todo relato é, por definição, infiel. A realidade,

como já se disse, não pode ser contada nem

repetida. A única coisa que se pode fazer com a

realidade é reinventá-la de novo.”

Tomás Eloy Martínez, em Santa Evita

O fundão do Inhanduí, como chamo os campos da minha infância lá no 5º

Subdistrito do Alegrete, deixou meu cotidiano em 1975. Com nove anos,

sob guarda de seu Neri Rodrigues e de dona Iná Quevedo, a primeira e

eterna e professora, me arranquei pra cidade. O fundão virou coisa de

férias, feriados, quando reforçava o trabalho na lavoura de arroz.

Dona Clasilda Dambrós, minha mãe, nos deixou em 1979. Dois anos

depois, saí do Alegrete e ganhei o mundo. Perdi de vez o contato com o

fundão quando seu Plínio Domingos Bortolás, meu pai, já casado com a

Sirlei Botelho, mudou-se para a região do Passo do Meio. Ali, também na

costa do Inhanduí, percorreu a maior parte do trecho final de sua vida.

Em março de 2019, numa visita ao Alegrete, decidi voltar ao fundão do

Inhanduí. Queria rever os campos dos meus tempos de guri, matar a

saudade. Da passagem por lá, guardo com carinho a conversa com dona

Gelsa Rodrigues na varanda da casa principal da Guajuviras, a estância

dos campos da minha infância e adolescência. Lembramos histórias e

voltei à cidade com uma frase de dona Gelsa: "Tempo bom aquele!"

A conversa daquela tarde ensolarada digna da Pampa ficou adormecida

num canto da memória. Até despertar nestes duros tempos de Covid-19.

Refez-se, então, a velha vontade de dar vida a passagens daquele "tempo

bom". Com a ajuda de muitos, especialmente do meu irmão Cléber

Romário e do amigo Eneri Gonçalves, me embrenhei no passado.

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Assim nasceu DE DAMBRÓS A BORTOLÁS - RELATOS DO FUNDÃO DO

INHANDUÍ. Não é um livro, mas uma reunião de família, celebração de

amigos e pessoas que deram cor, voz e alegria à minha infância e

adolescência. Nesta campereada de memórias, passado e presente

caminham lado a lado sem compromisso com tempos verbais. Como que

levando um trator campo afora, atropelo o português sem medo.

Estes relatos carregam muito de seu Adolfo Dambrós, meu avô e um

grande contador de histórias. Histórias que os netos e netas nunca se

importaram se repetidas pela enésima vez, porque, entre gestos e risadas

fartas, seu Adolfo sempre incorporava algo novo nos seus causos. Era

como se, dia após dia, remontasse na lavoura de arroz uma taipa que a

água teimava levar. Ríamos, sempre!

DE DAMBRÓS A BORTOLÁS - RELATOS DO FUNDÃO DO INHANDUÍ é um

abraço para meus pais Plínio e Clasilda; os irmãos Cléber e Rosa; os avôs

Adolfo, Abrelina, Cecília, Iti e Helena; os tios e tias do braço Alegrete:

Antenor, Celso, Dênia, Noeli (Frida), Gabbi, Maria, Marizete, Neivete e

Zeca; os tios e tias do braço Dona Francisca: Abílio, Elaine, Elita, Elvira,

Heitor, Ilizi, Leone, Noeli, Vilmo, Vanir e Talita; o primo-irmão André; o

irmão da vida Claudir Rampelotto, o Cláudio; o tio Armando; os cunhados

Alceu e Marilvânia; sobrinhos e sobrinhas; primos e primas; seu Elvio

Berriel; dona Gelsa; seu Neri; dona Iná; amigos... E por aí afora!

Hoje, são urbanos os descendentes dos Dambrós e dos Bortolás que, na

esteira de seu Adolfo, firmaram pé na Fronteira Oeste lá pelos anos 1950.

Aos sobrinhos(as) e primos(as) repasso estes garranchos com um

carinhoso pedido: continuem contando histórias. E leiam, leiam muito!

Fica o registro. Segue a vida!

Brasília, março de 2021.

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MEU MATE É UM LIVRO,

UM AMIGO,

um pouco de tudo

É A PROSA À TARDINHA

com os olhos pro mundo

Mauro Moraes,

em Sobra Cavalo

Foto: Carlos Bortolás


Paulo Mendes

H I S T Ó R I A S , V I D A E A M I Z A D E

Conheci Carlos Bortolás, o Carlinhos, como era chamado, na sala do fundo do

corredor do prédio do Centro de Ciências Sociais e Humanas da Universidade

Federal de Santa Maria (UFSM) no segundo semestre de 1982. Foi durante um

intervalo entre uma aula e outra que trocamos algumas palavras.

Eu me identifiquei na hora com o cara, que parecia vir do campo também,

pela capacidade de entender o que eu falava e por um certo ar cosmopolita

que transparecia no modo dele se vestir, de falar e conviver com todos. Na

época, como era muito tabacudo (ainda sigo, porém um pouco falquejado),

fiquei impressionado com aquele loirinho franzino, simpático, falante e que

demonstrava ser esperto e culto.

Sempre que podia ficava por perto dele e de seus colegas mais próximos.

Assim, fui travando conhecimento da literatura, da cultura beatnik, do rock and

roll, do futebol e da política internacional, porque o cara era fera. Devagar fui

me entrosando, porque nada sabia do mundo, mas fui aprendendo um pouco

aqui, outro ali e fizemos juntos até militância estudantil.

Foi o início de uma amizade que perdurou através dos anos. Fizemos

trabalhos acadêmicos juntos, como programas de rádio e até um filme.

Quando o Carlinhos foi morar em São Miguel do Oeste, no Extremo Oeste de

Santa Catarina, me mandou uma carta emotiva. Lembro que quando a li,

percebi na hora o quanto nos admirávamos.

Juntos, participamos de "epopeias". A melhor de todas foi a viagem a Buenos

Aires, passando por Montevidéu, cruzando o Rio da Prata no lendário Vapor

de La Carrera e voltando de trem desde a capital argentina até Santo Tomé, ao

lado de São Borja. Na época, o Carlinhos morava em Florianópolis.

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Foi nessa viagem platina que inventei a história que até hoje é contada como

verdadeira. Como eu era inexperiente, Carlinhos foi me explicando como

funcionavam os trâmites burocráticos nas fronteiras. Em Montevidéu, antes

de entrarmos no barco para a Argentina, tivemos que preencher uma "tarjeta"

onde constava nombre e apellido. Prontamente, meu parceiro de viagem

tratou de me alertar que se tratava de nome e sobrenome em espanhol.

Para sacaneá-lo, comecei a espalhar que o alegretense havia escrito Carlos no

espaço do nombre e Carlinhos no do apellido. Todos achavam engraçado, e

Carlos ficava chateado. Mas como sempre teve um coração de manteiga,

balançava a cabeça e ria junto.

Agora, passados tantos anos, recebo este DE DAMBRÓS A BORTOLÁS -

RELATOS DO FUNDÃO DO INHANDUÍ com histórias da infância do Carlinhos.

Umas eu conhecia por alto, outras não tinha a menor ideia.

Foi uma forma de conhecer melhor aquilo que o 'loirinho' viveu quando piá e

entender porque nosso encontro na UFSM frutificou: éramos quase iguais,

simples como esses ranchos beira de estrada, solitários como porteiras de

invernadas, de alma buena e sempre em busca de liberdade, como esses

potrinhos recém-nascidos. Tínhamos histórias de campo, bolichos, caçadas,

carreiradas, lavouras, escolas rurais, de dezenas de tipos humanos que

povoam esses fundões de campo onde eu e o Carlinhos crescemos.

Descobri nesses causos verdadeiras crônicas campeiras, a forma discreta de o

Carlos Bortolás manifestar sua saudade, discrição que lhe acompanhou a vida

inteira. Sua generosidade e gratidão com os familiares e com todos que de

alguma forma cruzaram a sua vida.

São textos ternos, honestos e, por isso mesmo, lindos. Belamente

diagramados, trazendo citações dos poetas e cantores que o Bortolás aprecia,

ilustrados com fotos antigas e recentes. Uma joia, como quadro do Berega.

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Fiquei feliz, muito orgulhoso do meu amigo e por ele ter me escolhido para

escrever este depoimento. Lendo os relatos, por vezes chorei, por outras

desatei a rir e concordei que Carlinhos tomou a decisão certa. Nem padre,

nem militar: um cidadão do mundo. É isso que ele foi e sempre será.

Sérgio Metz, o Jacaré, falecido letrista do Tambo do Bando, escreveu uma

canção onde cita a célebre expressão de Leon Tolstói "cante sua aldeia e serás

universal". Por serem tão singulares, estes relatos tornam-se universais. Pois

"exatamente por não ter asas é que o homem da querência voa".

Porto Alegre, julho de 2021.

Paulo Mendes e Carlos Bortolás: Buenos Aires, 1989

Foto: Arquivo Carlos Bortolás

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E N C O N T R O S D E F A M Í L I A

Luciano Dambrós Gabbi

Encontros de família são sempre recheados de histórias que nutrem o

imaginário das novas gerações. Trago esta certeza de minha infância,

quando saíamos de Santa Maria rumo ao Alegrete para encontros na casa

do Tio Nor (Antenor Dambrós) e da Tia Dênia (Dênia Bortolás). Ali

também morava o vô Adolfo Dambrós, homem de feitos e memórias.

Havia muita afinidade naquelas reuniões familiares regadas a churrasco,

chimarrão, risoto de galinha, pudim de leite condensado, doce de

abóbora, torneio de bocha, viagens imaginárias de caminhão, pão de

amendoim, frutas orgânicas, umas cervejinhas...

Entre os guris, dizíamos que não éramos só primos, éramos primosirmãos.

E não faltavam causos e histórias com enredos ousados e

complexos, como o nosso significado de primos-irmãos.

Lembrar do Tio Nor e da Tia Dênia é lembrar também de seus irmãos

mais velhos: tia Clasilda Dambrós e tio Plínio Bortolás. O resultado? Os

ramos Dambrós-Bortolás e Bortolás-Dambrós. Assim, posso afirmar que

minha família possui, de fato, o raro registro de primos-irmãos. A Rosa, o

Carlos, o Cléber e o André estão aí para provar!

Revisitar essas memórias é reviver o cheiro do galpão do tio Nor nas

brincadeiras de caminhoneiro com os primos vindos do Paraná. É ouvir as

deliciosas gargalhadas do vô Adolfo ao final de cada causo (re)contado,

salivar com o gosto das uvas, bergamotas e laranjas do céu colhidas no

pátio da tia Dênia…

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Lembrar dessas passagens é, principalmente, dar vida a memórias

afetivas desta família que, a sua maneira, sempre soube expressar a

felicidade de estarmos juntos.

Nas minhas ricas, saudosas e vitais recordações do Alegrete não existia o

fundão do Inhanduí. Nunca estive ali. Mas, agora, ele existe. Existe

porque o 'primo-irmão' Carlos Augusto Dambrós Bortolás, o Carlinhos,

materializa-o nestes relatos que define como campereadas de memórias.

Dele, de parentes, de amigos...

Bom, disse que haviam histórias complexas... Mas o que não é complexa

é a narrativa do 'primo-irmão', também conhecido em outras paragens

como Urtigão, apelido revelado por seus amigos quando nos

encontramos em Brasília. Carlinhos ficou contrariado naquela noite!

Mas este ranzinza pouco foi visto nas vezes que cruzou o Brasil para

encontros de família. Aqui, ele continua sendo Carlinhos, Carlos, mano,

irmão mais velho, queridinho da titia…

Estes relatos apresentam um universo que, se bem recordo, o Carlinhos

sempre descreveu de forma fragmentada. Agora, ele se materializa com

traços de um grande encontro, como nossas reuniões familiares.

Isto merece celebração! Então, convido vocês a acenderem o fogão a

lenha de suas lembranças. Prepararem pinhão, pipoca com melado,

abram uma cervejinha, um vinho, e naveguem pelos relatos deste DE

DAMBRÓS A BORTOLÁS - RELATOS DO FUNDÃO DO INHANDUÍ.

E que se mantenha sempre viva a verve de contadores de histórias dos

Dambrós e dos Bortolás.

Santa Maria, maio de 2021.

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DE TODO

aquello que tuve

SOLO EL RECUERDO

me queda

Atahualpa Yupanqui,

em Nada Mas

Foto: Carlos Bortolás/1984


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A B R I N D O A P O R T E I R A

B O I A A P I M E N T A D A

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E N D I R E I T A N D O O P A R A - C H O Q U E

C O I S A S D O S C I G A N O S

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C R U Z E I R A N Ã O É M U S S U M

C A N T A N D O N A M I S S A

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A C O L C H O A D O D E L Ã D E O V E L H A

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M E L A N D O N O C E M I T É R I O

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N A S O N D A S D O R Á D I O

54

U V A F E R M E N T A D A

25

O M E T E O R O L O G I S T A

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P O R B A I X O D A T A I P A D O A Ç U D E

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A Q U E L E S P A S T É I S

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O M E R G U L H O D O M A S S E G U I N H A

30

D I A D E C A R N E A R P O R C O

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P A S T A D E D E N T E C O M D E F E I T O

32

D E S F I L E D E B O I T A T Á

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P E R D I D O S N O C A M P O

34

C A C H O R R O E M F U G A

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A E T E R N A P R O F E S S O R A

36

N O I T E D E C A Ç A R T A T U

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E X C E S S O D O C O N T I N G E N T E

38

O S E N H O R D O S C A P I N C H O S

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A O R E D O R D O A L E G R E T E

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P R O V A D E F O G O

T E M P O R A L N A S C A N O A S

42

O P E G A D O R D E P O M B Ã O

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R I O D A M I N H A I N F Â N C I A

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O L E N D Á R I O Z E T O R


INHANDUÍ, INHANDUÍ

querência linda

DESTE MEU RINCÃO

lembras também

MEUS TEMPOS DE GURI

Dupla Mirim,

em Inhanduí

Foto: Carlos Bortolás


A B R I N D O A P O R T E I R A

Volta e meia, seu João Rodrigues, dono daqueles campos que chamo de

fundão do Inhanduí, lembrava dos tempos de rebordosas no Rio Grande

do Sul. "A gente juntava a cavalhada e largava em direção ao Uruguai

cortando cerca que encontrasse pela frente. Quando a situação se

acalmava, voltava."

O fundão do Inhanduí da minha infância e adolescência era terra de

harmonia, solidariedade e gente generosa. Muito generosa!

Quem guardava a entrada para aqueles fundos era o Coralino Amaral da

Silva, o Tio Cora, bolicheiro de fala mansa e enorme sabedoria. Na

retaguarda, também à beira do corredor dos Três Capões, estavam

postados seu Antalício Gonçalves, negro de riso fácil e esparramado

conhecido como Tio Canta, e dona Belmira. A sombra do umbu daquela

casa sempre foi um imã a um descanso despreocupado.

Na primeira porteira da estrada de cerca de três quilômetros que cortava

cerros, sangas e coxilhas em direção ao rio Inhanduí, seu Gerônimo Alves

da Silva e dona Grasélia estavam sempre prontos para uma boa acolhida.

Mais adiante, seu Alberto Pereira, homem de poucas palavras conhecido

por Didi, e as filhas. Bem pertinho, a sede da Guajuviras, casa de seu Elvio

Berriel e dona Gelsa Rodrigues.

Em frente, à direita, descendo cerro no rumo do rio, estava a casa de seu

Altivo Rodrigues e dona Bereni. Por ali também passaram a dona Iracema

e o Pedro Néri, um quinchador de capim caninho e santa fé de primeira.

Mais tarde, seu Dilceu Rodrigues se instalou à esquerda da estrada

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Mais adiante, depois do rodeio, cruzando a taipa do açude, ficava a casa

de seu Plínio Domingos Bortolás e de dona Clasilda Dambrós, meus pais.

Ali também vivia o Claudir Rampelotto, o Cláudio. E no final da estrada, à

margem do açude, a de seu Neri Rodrigues e de dona Iná Quevedo.

E tinha a gurizada. Délvio, José Dilson (Dico), Aírton, Aldo, Carlinhos,

Marilene, Cléber, Rosa, eu, Eron, Ezilda, Antônia, Maria de Lurdes…

Nesse mosaico de África, Portugal, País Basco, Espanha e Itália desfilavam

tropeiros, campeadores, domadores de cavalos, arrozeiros, esquiladores,

corredores de carreira, peões, ciganos, mascates, a benzedeira, a

professora, alunos da dona Iná… Tratores puxando arado, grade, arrastão

e reboque partilhavam campo com gado, cavalos, ovelhas... Várzeas e

coxilhas acolhiam pastos, capões, lavouras de arroz, trigo, sorgo, milho...

Em mesas e fogões, saberes vindos de longe se materializavam em

polenta com pomba, carreteiro com charque de ovelha, carne de porco

na lata, minestra, canjica salgada, mocotó, rapadura de amendoim,

fervidos, churrasco, chimarrão, vinho, cachaça… Tempo de marcação e

castração era tempo de assado de bola de terneiro na brasa e na cinza.

Neste rincão do Brasil meridional, o mundo de fora vinha pelas ondas do

rádio. Português com rasgos de espanhol e pitadas de italiano se

misturavam em conversas à sombra de cinamomos, bergamoteiras e

laranjeiras e à beira de fogões e fogos de chão.

Do fundão do Inhanduí, carrego o me viro bem no espanhol, o quase

nada sei do italiano e um português que dá pra me defender com alguma

galhardia. E muitos retratos e histórias que ainda guardo na memória.

Tudo é herança viva! E vida!

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E N D I R E I T A N D O O P A R A - C H O Q U E

O macacão pura graxa não deixava dúvida: Leo Castilho, conhecido no

Alegrete como Leo Cabeludo, era um baita mecânico.

Ainda recordo a perícia com que desmontava e remontava o velho Zetor

que seu Plínio Domingos Bortolás, meu pai, utilizava nas lavouras de

arroz que plantava no fundão do Inhanduí. Até hoje tenho a impressão

que, no final, Cabeludo devolvia ao trator menos peças que retirava.

E era assim. Problemas com o Zetor? Chama o Cabeludo!

Ele, geralmente, chegava na calada da noite, tempo que dedicava a

caçadas de capincho, tatu, mulita, e a pescar umas traíras, piavas...

Certa feita, Cabeludo apareceu meio mamau lá no fundão do Inhanduí.

Nenhuma novidade! O homem devorava garrafões de cachaça.

Cabeludo cruzou a porteira e, ao buscar local para deixar a caminhonete,

acertou o cinamomo postado como sentinela em frente à casa de

madeira. Contrariado, saiu do carro, observou o para-choque torto e não

teve dúvida: voltou, deu marcha-à-ré e repetiu o movimento. Dessa vez,

direcionou o cinamomo para o outro lado do para-choque.

Pra quem olhava de fora, movimento certeiro. Só não se via sentido na

manobra. Logo veio a resposta. Cabeludo desceu da caminhonete,

conferiu o para-choque e sentenciou: "Agora está reto."

Com o 'serviço' concluído e alheio aos olhares de espanto ao redor,

Cabeludo parte rumo à casa perguntando por comida. E, diante da

resposta positiva, sentencia: "Então vamos jantar, que tô com fome!"

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C O I S A S D O S C I G A N O S

Não havia captação de água nas casas no fundão do Inhanduí. A gente

dependia de uma cacimba próxima à casa de seu Neri Rodrigues e

dona Iná Quevedo, onde também funcionava a Dom Luis Felipe de

Nadal, escola dos meus dois primeiros anos de estudos.

Duas ou três vezes por semana, enchíamos lá tonéis de metal de 200

litros. O transporte era de trator e arrastão. E dele balde para encher

e esvaziar aqueles tonéis. A gurizada forcejava!

A situação se arrastou até que um belo dia seu Plínio Domingos

Bortolás, meu pai, resolveu dar um fim naquele causo. Comprou um

carneiro hidráulico.

Que maravilha da engenharia é o carneiro hidráulico! E, por cima,

funciona mesmo sem energia elétrica, que estava longe de chegar ao

fundão do Inhanduí. Basta um bom volume de água para gerar

pressão e nada vai impedir que suba cerro acima.

Água jorrava aos borbotões naquela cacimba cristalina. E como era

linda a dança das vertentes no fundo todinho de areia.

A operação carneiro começou com a montagem da estrutura abaixo

da cacimba. Depois, uma vala rasgou o campo para acomodar cerca

de 300 metros do cano até uma caixa de mil litros posicionada a uns

dois metros do solo sob uma laranjeira pertinho da casa principal.

Tudo pronto. Hora de usufruir!

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Mas quem diz que funciona?

Embora o tac tac frenético e irritante do carneiro, nada da água subir o

cerro. Concluíram que era falta de pressão. Mas não houve suficiente

conhecimento naquela terra que desse um jeito no problema.

A caixa continuou vazia por semanas. E dele puxar agua de arrastão.

Num domingo de sol, da sombra dos cinamomos em frente às casas

percebe-se movimento de carro na coxilha do rodeio do outro lado do

açude. Quem chega sem avisar? "São os ciganos", responde dona Clasilda

Dambrós, minha mãe, identificando o grupo de fala fácil e solta que volta

e meia aparecia lá pelo fundão do Inhanduí.

Com eles sempre vinham alegria, risos, histórias, conhecimento...

A sombra dos cinamomos, a conversa flui. E logo chegam as queixas do

seu Plínio e da dona Clasilda com o tal de carneiro. Um dos ciganos

pergunta: "Podemos ir lá dar uma olhada, seu Plínio?" "Claro, claro",

responde, já partindo para pegar o material que julgava necessário.

Foi o tempo de uma olhada aqui, uma mexida ali e um "vamos voltar pras

casas para ver se está funcionando". Quando chegamos, já se ouvia o

som da água batendo no fundo da caixa.

Não tenho a menor ideia do que foi feito. Mas seu Plínio aprendeu

direitinho. Aquele carneiro nunca mais parou de levar água às casas.

Depois daquela visita dos ciganos, os tonéis de buscar água foram

aposentados. O tempo de água na torneira se instalou de vez no fundão

do Inhanduí. E adeus banho de bacião.

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NO MEU PAGO

tudo é lindo

DESDE QUE O DIA

amanhece

Cenair Maicá,

em Belezas Missioneiras

Foto: Carlos Bortolás


A C O L C H O A D O D E L Ã D E O V E L H A

Brasil afora, quando falo dos extremos climáticos no Alegrete, muita

gente se espanta. Sempre lembro de coisa de mais de 40 graus no verão e

de abaixo de zero no inverno.

Nos verões da minha infância, tínhamos o nosso ar-condicionado natural,

os arvoredos de cinamomo, de onde podia-se observar o bailado das

ondas de calor que distorciam o horizonte. Nos invernos, a coisa mudava

de figura. Haja lenha de angico no fogão para dar conta. E na hora de

dormir, coberta e mais coberta.

No fundão do Inhanduí, uma das especialidades da casa era a produção

de acolchoados. Dona Clasilda Dambós, minha mãe, conduzia a linha de

confecção com matéria-prima trazida dos campos ao redor: lã de ovelha.

Eram generosos aqueles campos do fundão do Inhanduí povoados por

rebanhos de corriedale e merino australiano.

No inverno, algumas ovelhas sucumbiam naturalmente ao frio. E sempre

aparecia uma morta por algum sorro que circulava por ali.

Dona Clasilda contava com o apoio de bombeadores. Volta e meia, seu

Elvio Berriel, em suas campereadas, passava pelas casas e avisava: "dona

Clasilda, tem uma ovelha morta lá perto do capão".

Era só dar um tempo. Coisa de dois ou três dias depois, a lã da ovelha se

soltava com facilidade. Era puxar e deu. E voltar para casa com sacos de

estopa e plástico cheios de lã. E, com sorte, um ovo de avestruz.

Próximo passo? Transformar aquela massa bruta!

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Depois de fervida em tacho de metal e seca nas cercas, o material

recolhido no campo passava por um processo de sova. Arame liso

dobrado, empunhadeira improvisada e força, muita força, transformavam

a massa bruta e compactada em enormes cerros de lã soltinha.

Era lindo de ver os flocos branquinhos espalhados sobre o forro do

futuro acalchoado na mesa grande da cozinha E a habilidade de dona

Clasilda com a agulha para dar forma final? Demais!

Como eram quentes aqueles acolchoados! E pesados!

Dona Clasilda exagerava. Em noites de frio de renguear, sempre

reservava dois acolchoados daqueles para as crianças. Impossível se

mexer sob aquele peso. Dormíamos estaqueados.

Mas brabo mesmo era sair da cama em manhã de inverno. Haja coragem!

Foto: Arquivo Cléber Bortolás

Dona Clasilda Dambrós, na lavoura de arroz

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N A S O N D A S D O R Á D I O

Garoava naquela tarde de 10 de dezembro de 1972, um domingo, quando

eu e o Claudir Rampelotto, o Cláudio, nos sentamos próximo ao rádio

para ouvir Internacional-RS x Cruzeiro-MG pelo Campeonato Brasileiro. O

dia chuvoso forçara uma pausa no plantio de arroz na várzea abaixo das

casas de madeira rodeadas por cinamomos, laranjeiras e limoeiros.

Partidaço! Ganhamos de três a dois.

O rádio era companheiro de primeira hora no fundão do Inhanduí. Por

ele chegavam notícias do Brasil e do mundo. Os avisos da cidade vinham

pelo Mensageiro Rural da Rádio Alegrete. Era notícia boa e notícia ruim.

Guardo um clássico na voz do Auri Dorneles, que era mais ou menos

assim: - Alô seu fulano no Rincão do Itapororó. Cicrano hospitalizado.

Venha! Convém trazer luto.

Na infância, para ouvir rádio, só com a ajuda dos adultos. É que o ABC

grandão ficava numa estante fora do alcance das crianças. Num dia, ao

chegar da lavoura dos Farrapos, ninguém em casa, me estiquei todinho e,

na hora de ligar o rádio, BUM! O ABC foi ao chão. A caixa externa ficou

toda trincada, mas não se rompeu.

Quando dona Clasilda Dambrós, minha mãe, chegou, foi querendo saber

o que tinha acontecido. "Queria ouvir a Guaíba", respondi, já esperando

pelo pior. Que não veio. Ficou numa reprimenda das leves.

Aquele rádio, mesmo avariado, ainda funcionou por um bom tempo.

Depois, vieram outros, com muita onda curta. Quando estava na

universidade, meus períodos de férias foram tempos das rádios Central

de Moscou, Havana, Sandino, Venceremos…

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Com o tempo, o rádio ganhou companhia: uma televisão preto e branco

de 14 polegadas que o Cláudio comprou. A TV funcionava conectada por

jacarés à bateria de algum trator posicionado em frente da casa. Era mais

à noite, já que de dia os tratores geralmente estavam às voltas com

alguma coisa da lavoura ou das casas.

Tinha vezes que a imagem era só chuvisco. Mas ai de quem tentasse

desligar a TV. O Cléber Romário, meu irmão, ameaçava cair no choro. Por

que? "Eu quero olhar as formiguinhas", repetia sem parar.

Entre um chuvisco e outro, vi jogos memoráveis naquela TV, como a

vitória do Internacional sobre o Fluminense no Maracanã (2x1) que nos

levou à final e ao primeiro título brasileiro. Também lembro do Valdomiro

destruindo o Atlético Mineiro na campanha do tricampeonato.

Aqueles times do Inter eram muito bons. Mas a TV do Cláudio era melhor.

Com ela, a imagem de outros rincões chegou ao fundão do Inhanduí. E

passamos a ter outros olhos para ver o mundão lá fora.

Claudir Rampelotto, o Cláudio, montando um pneu de trator

Foto: Arquivo Cléber Bortolás

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O M E T E O R O L O G I S T A

No fundão do Inhanduí, até poderes sobrenaturais desenvolvi. Duraram

alguns poucos anos, é verdade, mas, graças a eles, virei uma espécie de

meteorologista de plantão. Conseguia antecipar chuva, frio...

O que não teve nada de sobrenatural foi como adquiri tais poderes. Eles

vieram de um tombo que caí nos canos que levavam água do Inhanduí à

lavoura de arroz na várzea dos Farrapos. O resultado imediato foi uma

imensa bola de sangue na parte superior da perna direita.

Correr sobre canos era passatempo para os guris que cuidavam de motor

nos levantes de água à beira do rio ou de uma regadeira nos tempos de

irrigação da lavoura. O motor a diesel usando naquelas estruturas exigia

alguém por perto. Sempre. De dia, tarefa dos guris. De noite, dos adultos.

Nos meus tempos de fundão do Inhanduí, era sagrado: de manhã, aula;

de tarde, cuidar do motor. No período de férias, manhã e tarde.

Bom, melhor cuidar de motor do que ficar gerenciando irrigação da

lavoura de arroz, tarefa impossível para quem não tinha conhecimento de

como criar fluxos naturais para acumular água na imensidão das várzeas

cheias de taipas ou curvas de nível.

Cuidar de motor era um tédio ensurdecedor. A única companhia sonora,

fora o ronco sem parar do motor, vinha do rádio de pilha. Gastei ouvido

com Roberto Carlos, Benito de Paula, Odair José, Rita Lee, Antônio

Marcos, Agepê, Vanusa, Fernando Mendes, Elis Regina, Raul Seixas...

E tinham aquelas velhas revistas. A beira dos levantes, li e reli fotonovelas

dezenas de vezes. Gerry Ross, Michela Roc, Paola Pitti eram muito

afamados no meu fundão do Inhanduí.

25


O resto do tempo era ocupado com alguma pescaria, exploração do mato

ao redor, captura de cigarra, banho na regadeira, biquinho no buraco na

na ponta do cano... E sempre tinha a corrida pelos canos. O maior desafio

era passar pelas áreas de vazamento. Aquilo era sabão puro.

Numa dessas corridas veio o desastre. O pé deslizou no vazio. Desabei

sobre o cano com todo o peso do corpo na perna direita. Como na

tradução de Augusto de Campos do Canto I da Divina Comédia, de Dante

Alighieri, "caí como corpo morto cai". Sorte que o cano era rente ao chão.

Dor insuportável! Mal consegui caminhar até as casas. O hematoma

escuro na perna parecia não parar de crescer. Virou uma bola imensa.

Intocável! E não houve remédio caseiro que desse jeito, a ponto de dona

Clasilda Dambrós, minha mãe, buscar ajuda médica na cidade.

A solução? Uma cirurgia para drenar o sangue coagulado. Entrei em

pânico. E bati pé. Cortar minha perna? De jeito nenhum!

A relutância foi tal que não restou a dona Clasilda alternativa que buscar

algo para extirpar naturalmente aquele corpo estranho. Formou-se uma

junta médica que reuniu toda a vizinhança. Pitaco daqui, pitaco dali,

apareceu um unguento milagroso que não recordo o nome.

A mancha escura se foi, mas o caroço na perna continuou firme e visível.

Com ele, nova rotina. Véspera de chuva, doía. Véspera de frio, mais ainda.

Aquele caroço me acompanhou por anos. Com o tempo, minguou, até se

tornar imperceptível. E junto se foram meus poderes de meteorologista.

Perdi o poder de prever chuva, frio... Mas o momento daquele tombo

continua vivo. Muito vivo. Só de lembrar, dói!

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UM DIA

me deu saudades

E FUI REVER

o meu pago

João da Cunha Vargas,

em Querência

Foto: Carlos Bortolás


A Q U E L E S P A S T É I S

O povo do fundão do Inhanduí gostava duma carreira de cavalo!

Aquilo contagiava quem chegava por ali. Não foi diferente com os

Dambrós e os Bortolás que se abancaram no fundo do campo da

Guajuviras para plantar arroz. Foi questão de pouco tempo ver seu Plínio

Domingos Bortolás, meu pai, e dona Clasilda Dambrós, minha mãe, por

alguma cancha reta da região.

Com eles, seu Neri Rodrigues, seu Elvio Berriel, andei por carreiras em

canchas retas no campo do Alcendor, no corredor dos Três Capões, e do

Helvécio, no encontro da estrada do Mariano Pinto e do Angico.

Ambientes festivos onde se podia comer uns pastéis murchos e com

pouco recheio, beber cerveja e refrigerante refrescados na água e

serragem e observar com muita curiosidade um jogo de osso ou tava...

Se para os gringos, como éramos chamados, as canchas retas eram uma

espécie de passeio, para os demais moradores da região era coisa mais

séria. Seu Elvio era um carreirista afamado e conhecido na região pelo

gosto por bons cavalos.

Nos tempos do Cléber Romário, meu irmão, os cavalos pras carreiras

escolhidos pelo seu Elvio passavam pelas mãos do seu Dilceu Rodrigues,

que fazia a preparação física. Seu Dilceu também orientava os treinos do

Breno, jóquei de um metro e sessenta de altura e por volta de 50 quilos.

E não parava por aí. Tinha o transporte, que era feito pelo seu Gerônimo

Alves da Silva num Ford F350 v8.

Como costuma dizer o Cléber, estrutura azeitada aquela!

28


Mas, para o Cleber, o melhor vinha da cozinha da Guajuviras. Ali, dona

Gelsa Rodrigues preparava pastéis com recheio farto e outros quitutes

para levar às carreiras.

Era comida pra todo o dia. Servia os de casa e os que se abancavam em

busca de uma conversa amigável e de ar fresco à sombra do arvoredo

onde dona Gelsa se instalava com suas guloseimas.

De briga, confusão, o Cléber não lembra. Só de voltar pra casa, retomar a

lida diária, os estudos e se preparar para as próximas carreiras.

Até hoje, quando recorda das carreiras, o Cléber Romário saliva. E

murmura: "Aqueles pastéis…"

Foto: Arquivo Cléber Bortolás

Cléber Romário montando seu cavalo preferido, um Massey Fergunson bem sujo

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D I A D E C A R N E A R P O R C O

Numa noite, chego a um restaurante em Brasília louco de fome, dou de

mão no cardápio e começo a buscar o que comer. Olho daqui, olho dali e

paro numa 'Maminha na Lata'. Interessante! Chamo o garçom. O que é?

"Carne colocada numa lata e coberta com banha de porco. Coisa fina."

De imediato, veio à memória o fundão do Inhanduí. Comi muita carne na

lata por lá. Carne de porco.

Não era questão de ser coisa fina. Era de necessidade mesmo. A geladeira

movida a querosene Jacaré mal refrescava o leite. Gelo era quase um

milagre. Freezer, então, nem pensar. Não havia energia elétrica por lá.

A situação impulsionava um dos acontecimentos sociais daquelas bandas:

o dia de carnear porco. Tinha menos apelo que marcação, mas, sempre

vinha gente da vizinhança mais próxima para dar uma mão. O trabalho

começava cedo da manhã e entrava noite. Sem muita folga.

Tirando a parte de sangrar o porco, quando me refugiava no primeiro

quarto que encontrava, a lida era linda. Salivo ao lembrar da hora de

provar o tempero da carne para o salame e a linguiça. Frigideira de ferro

em punho, fritavam-se generosas porções no fogo de chão e logo vinha o

veredito: "tá bom", "um pouco mais de sal", "falta cominho"...

Não se perdia praticamente nada do porco. A carne sem gordura e o

toucinho moídos e picados eram destinados para linguiça e salame; mantas

de gordura cortadas em cubos, para banha e torresmo. Carne com osso era

cozida e colocada em latas de metal que um dia tinha armazenado

biscoitos sortidos. E ainda havia as entranhas e outras partes do animal,

destinadas para morcilha, chouriço, queijo de porco...

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Produziam-se varas e varas de linguiça e salame. A cura era feita numa

área próxima ao teto de capim do galpão, onde também secava o couro

do porco, usado no feijão.

Num panelão de ferro e muito fogo de lenha, a gordura se transformava

em litros de banha e muito torresmo. Uma parte da banha era guardada

pura e a outra, destinada às latas para cobrir a carne com osso cozida. Do

torresmo até se produzia uma espécie de patê. Coisa fina!

O dia de labuta garantia meses de carne no fundão do Inhanduí. Quando

o estoque se aproximava do fim, o porco da vez já estava a postos no

chiqueiro perto das casas.

À medida que mais um dia de carneação se aproximava, seu Plínio

Domingos Bortolás, meu pai, começava a amolar as facas e a preparar os

panelões. Como vinha gente da vizinhança, ele não podia fazer feio.

Foto: Arquivo Cléber Bortolás

Seu Neri Rodrigues, de chapeu, dando uma força na carneação

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D E S F I L E D E B O I T A T Á

Aquele cerro dos campos das Canoas na divisa com a várzea de cima era

uma atração à parte nas noites sem lua no fundão do Inhanduí. No breu,

a gente via das casas luzinhas descendo em direção à lavoura de arroz.

Em frente às casas, assistíamos maravilhados. Um espetáculo!

Aquilo era coisa do tal de boitatá, diziam. E logo vinham histórias de

almas penadas, de pessoas que ficaram cegas devido à intensidade do

fogo… Melhor ficar longe, alertavam.

Mas, de vez em quando, um daqueles seres iluminados que desfilavam

pelo cerro se desgarrava. Lembro da história de um que apareceu lá pela

boca dos canos na lavoura das Canoas. Até nuveou a visão do seu Plínio

Domingos Bortolás, meu pai, mas por pouco tempo.

Com o tempo, aprendi que as luzes que caminhavam cerro abaixo nada

tinham de sobrenatural. Era fogo fátuo, queima de gases originados da

decomposição de matérias orgânicas.

Mas o estrago já estava feito! Nos tempos de guri, qualquer vultinho na

noite era um deus me acuda. E os ruídos? Até jacaré quando pulava da

taipa no açude era susto garantido!

As lendas que prosperavam pelo fundão do Inhanduí eram uma espécie

de rédea curta para a gurizada que gostava de se largar pelos campos à

noite. Pra reforçar, era comum numa conversa à beira do fogão alguém

dizer em voz alta que deu de cara com uma mula sem cabeça na boca da

picada da restinga ou no meio do mato.

O arsenal era reforçado com histórias de assombração. Perdi as contas

dos vultos que surgiram do nada no mato, num capão...

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Passar perto do cemitério à noite era pros de muita coragem. Também

corria solto que ali território de tatu peludo devorador de cadáveres

humanos. Sorte daqueles tatus, que se mantinham distantes da sanha

dos que vinham de fora em busca de caça fácil.

No fundão do Inhanduí, o sobrenatural também atiçava sonhos de

riqueza. A caça ao tesouro era alimentada pelo cerro dos Farrapos, no

fundo das casas. Corria à boca grande que ali, depois de derrotados num

entrevero com os imperiais, os farrapos teriam escondido um baú com

moedas valiosas. O caminho até o tesouro era indicado por uma corrente.

O que apareceu de corrente no fundão do Inhanduí! Volta e meia alguém

dizia ter topado com uma no campo. "Amanhã, eu volto lá com uma pá." E

quando voltava, nada de corrente. Mas, na dúvida, cavava. Não foram

poucas as covas abertas em busca do tal tesouro dos farrapos.

No fundão do Inhanduí, boitatá eu vi. De perto e de longe. Mula sem

cabeça, assombração, tesouro dos farrapos? Nunca passei perto. Saí de lá

com uma certeza: tesouro naquelas bandas só o das lavouras de arroz

maduro. Aquele amarelo era ouro puro!

Lavoura de arroz no fundão do Inhanduí em tempo de colheita

Foto: Carlos Bortolás

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C A C H O R R O E M F U G A

Tio Zeca, também conhecido por José Dambrós, forjou fama no Alegrete

como grande caçador de tatu. Não lembro dele refugar convite pra uma

caçada. Aliás, nem precisava de convite.

Muitas vezes ele bateu lá no fundão do Inhanduí. Mas, certa feita, Zeca

deparou-se com um baita problema: cachorro estava em falta na casa.

Para não deixar o irmão na mão, minha mãe, dona Clasilda Dambrós,

conseguiu um emprestado com o Pedro Néri, que morava na casa

construída pelo seu Altivo Rodrigues no outro lado do açude.

Era um cusco bonito!

Noite caindo, o Zeca embarca na Brasília vermelha com placas de Palmas,

Paraná, e segue até a casa do Pedro e da dona Iracema. Apanha o

cachorro, acomoda-o no carro e parte rumo ao cemitério. Dali seguiria

pela rota das Canoas.

Caçador experiente, Zeca intuiu: ao ver a pá e o saco, o cachorro vai

disparar atrás dos tatus. Disparar ele disparou. Mas de volta pra casa. O

Zeca ficou na mão. E com o dedo coçando para dar um tiro no fujão.

Mas caçador que é caçador não se dá por vencido. Zeca voltou à cidade e

conseguiu três cachorros emprestados com a tia Dorsolina Dambrós. A

única recomendação era devolver os dois barbudinhos. A cadela poderia

ficar no fundão do Inhanduí. Não faria falta.

Zeca matou a vontade de caçar tatu e retornou ao Paraná. Nas visitas

seguintes ao fundão do Inhanduí, não teve problema com falta de

cachorro. E os tatus que se cuidassem, porque a cadela que ficou por lá

era boa, muito boa, de faro.

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E VI A LUA

no espaço

CLAREANDO

todo o rincão

João da Cunha Vargas,

em Deixando o Pago

Foto: Arquivo Cléber Bortolás


N O I T E D E C A Ç A R T A T U

Diversão no fundão do Inhanduí era caçar tatu.

Era atividade de início da noite. Por causa da lida diária e árdua na

lavoura de arroz, aquele negócio não empolgava muito os residentes.

Mas quando vinha gente da cidade... Especialmente o José Dambrós, o tio

Zeca, caçador dos mais afamados na área.

Campo iluminado pela lua cheia é lindo demais!

No fundão do Inhanduí, não faltava rota pra caçar tatu. Tinha a do campo

dos Farrapos, a das Canoas, a do entorno do rodeio, a do cemitério… E

não havia segredo. Lanterna em punho, pá e saco à mão e seguir os

cachorros bem de perto. "Em cima, em cima", ensinava o Zeca.

Problema mesmo só quando se topava com um zorrilho, alguma cobra,

um boi brabo...

O frenesi que antecedia uma caçada de tatu não era do feitio do seu

Adolfo Dambrós, meu avô. Ele tinha seus próprios métodos. Pra que

tanto esforço, correria campo afora atrás de cachorros?

Numa noite de lua cheia, a gurizada convenceu seu Adolfo a liderar uma

incursão pela rota das Canoas. À área de ação se chegava após uma

caminhada de pouco mais de um quilômetro pela várzea. Seu Adolfo

achou muito longe para ir a pé. E decidiu que iríamos de trator.

Sob a vigilância dos cachorros, cruzamos a taipa do açude, subimos e

descemos a coxilha em frente às casas e cortamos a várzea de cima em

linha reta até um capão de mato na divisa com as Canoas.

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Fim do trecho, hora da caminhada… Expectativa total!

Subimos rumo ao campo plano. Coisa de uns 200 metros. Hora da ação!

Como a se preparar para a lida, seu Adolfo senta numa pedra grande.

Acende um cigarro. Depois outro... E desanda a contar histórias dos

tempos de Dona Francisca, do Mariano Pinto, do Rincão de São Miguel…

E nós: - Vamos, vô! Temos que acompanhar os cachorros.

E seu Adolfo: - Deixa que procurem. Se encontrarem, acoam.

Dali, seu Adolfo não saiu. Nem os cachorros.

Voltamos para as casas como fomos. De trator. E sem tatu.

Foto: Arquivo Cléber Bortolás

Adolfo Dambrós e Zanir Vilaverde Fernandes

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O S E N H O R D O S C A P I N C H O S

Tenho para mim que, se preciso fosse, tio Armando Dambrós, irmão do

vô Adolfo, contava capinchos para dormir.

Era uma fixação!

No fundão do Inhanduí, sempre tinha algo de capincho quando tio

Armando estava por lá. Carne fresca, charque, óleo… A produção era

sustentada pela fartura de capincho naquela área. Numa faixa de uns

dois metros à beira do mato, arroz não se criava.

Acho que não exagero ao afirmar que tio Armando cheirava a capincho. E

que, talvez, esse era o segredo do grande aproveitamento nas caçadas

que fazia nos matos daquele trecho do Inhanduí. Mas ele também

conhecia como ninguém as manhas dos capinchos. E era bom, mas bota

bom nisso, de mira.

Numa noite sem lua, daquelas que dava medo botar o pé pra fora, tio

Armando decidiu explorar a área entre as casas e o campo das Canoas. O

estoque de carne de capincho estava baixo!

Vestiu seu uniforme de caça, em que se destacava a jaqueta tipo militar,

conferiu com cuidado a lanterna, a espingarda, a cartucheira... Revólver e

facão na cintura, tomou o rumo do mato.

Nas casas, acomodados em torno do fogão, todos de ouvido em pé.

Uma meia hora depois, o som de um tiro quebra o silêncio da noite

escura. Tio Armando achara o que buscava. E uma pergunta fica no ar:

acertou ou não acertou? O negócio era esperar.

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O encontro entre tio Armando e o capincho ocorreu numa área de mato

fechado à beira do rio. Lagoão fundo. E o bicho era dos grandes.

Baleado, o capincho disparou para a água. Caçador experiente sabe que

isso é meio caminho para perdê-lo. Se morrer e for ao fundo, adeus!

Tio Armando não vacilou. Mergulhou no Inhanduí agarrado com o

capincho. A lida foi dura, mas ele conseguiu voltar à margem com o

bichão sob controle.

Ficamos sabendo do resultado quando, todo ensopado, tio Armando

voltou às casas. Precisava de ajuda para carregar a caça.

No dia seguinte, a carne do almoço foi bife de capincho à milanesa.

Uma delícia!

Foto: Carlos Bortolás

Inhanduí, o rio da infância

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T E M P O R A L N A S C A N O A S

O arvoredo de cinamomos naquela área de campo aberto nas Canoas era

lindo e bem estruturado. Aquele recanto se destacava. E, à primeira vista,

parecia não haver melhor lugar para se erguer uma casa, especialmente

as temporárias que acompanhavam as lavouras de arroz em terras

arrendadas na Fronteira Oeste.

Formado em passagens anteriores, o arvoredo era garantia de sesta

fresquinha depois do almoço e de outras comodidades, especialmente

nos dias de muito calor.

E a vista? Dali, via-se a costa do Inhanduí e uma restinga imponente onde

lembro de acompanhar o vai e vem de cardumes de peixes pela água

cristalina. Um privilégio!

O que por lá ninguém entendeu foi quando seu Adolfo Dambrós, meu

avô, decidiu erguer uma casa numa área ali perto. "É o melhor lugar",

respondia, sem gastar muita saliva com explicações.

O ponto era rodeado por pequenas elevações e ficava próximo a uma

fonte de água, uma sanga clara que descia do cerro. Mas nada de

sombra. Não tinha árvore por perto. No verão a pino, na hora do meiodia,

ficar dentro de casa tinha lá seus contratempos.

A decisão continuou recebendo ressalvas até um grande temporal.

Quando o vento desceu a coxilha assobiando, foi um deus nos acuda.

Cinamomos foram ao chão. Construções ao redor do arvoredo sofreram

danos consideráveis. E a casa do seu Adolfo? De pé, firme, sem avaria.

A posição da casa deixou de ser assunto. Mas eu saí daquela encrenca

com uma certeza: seu Adolfo entendia das coisas da natureza. E como!

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DEIXEI

gravado na casca

A DATA

marcando a era

João da Cunha Vargas,

em Tapera

Foto: Carlos Bortolás


O P E G A D O R D E P O M B Ã O

Como tinha pombão, jacu, perdiz no fundão do Inhanduí. Eu, confesso,

nunca fui muito fã de carne de ave, mas a 'italianada' que se abancou por

ali nunca perdia a oportunidade de aproveitar aquela fartura.

No fundão do Inhanduí, teve Dambrós que fez fama pela mira. Perdiz à

beira de estrada estava em apuros quando tio Armando passava. Caçava

de revólver e acertava quase sempre na cabeça, contavam, admirados, o

seu Elvio Berriel e o seu Neri Rodrigues. Não duvidem! Tio Armando era

uma lenda no Alegrete pela boa pontaria.

Seu Adolfo, meu avô e irmão de tio Armando, também fez fama. Mas por

técnicas que defino como mais refinadas e menos dispendiosas. Se na

pescaria preferia armar a rede no rio à noite e voltar "pra buscar os

peixes" de manhã, na captura de pombões o negócio era nada de tiros.

Pra que ir atrás se eles podiam vir até você?

As condições do fundão do Inhanduí ajudavam.

O mato entre a várzea e o rio era largo e fechado, com bons espaços

livres sob grandes árvores. Na várzea menor, perto das casas, trilhas de

gado permitiam caminhar do levante até perto da restinga. Quando o

arroz começava a formar cachos, aquela área era tomada por pombões.

E era por ali que agia seu Adolfo. Sua arma? Arapucas!

Com madeira roliça e cipó, a produção de arapucas começava após o

plantio da lavoura de arroz. Elas eram colocadas em pontos às margens

da trilha. Tudo estava pronto quando o arroz começava a encaixar e

bandos de pombões chegavam atraídos pela comida fácil e farta.

42


Todo o santo cair de tarde, seu Adolfo percorria aquela trilha. Os poucos

pombões que caiam nas arapucas eram levados para as casas, colocados

numa gaiola grande e arejada e alimentados com milho, arroz, sorgo…

Hora da etapa de limpeza e de engorda!

Uma das regras era a quantidade de pombões mantidos naquela gaiola.

Nada de aperto. Quando a lotação alcançava o limite estabelecido, seu

Adolfo baixava as arapucas.

Aqueles pombões fizeram a alegria de muitos visitantes no fundão do

Inhanduí. Eles eram oferecidos como ingrediente principal de dois pratos:

polenta com pomba ao molho e arroz com pomba, especialidades de

dona Clasilda Dambrós, minha mãe.

Era coisa de primeira, de lamber os beiços, conta o Alceu Aírton

Gonçalves de Souza, meu cunhado. Este nunca se fez de rogado na hora

de pedir licença para servir mais um prato.

Foto: Arquivo Cléber Bortolás

André Adolfo, seu Adolfo, Carlos Augusto e Rosa Helena

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O L E N D Á R I O Z E T O R

Não lembro do tio Celso Dambrós no fundão do Inhanduí. Nem ele sabe

quantas vezes passou por lá. "Foram poucas, Carlinhos", resume.

Mas, por lá, ele sempre aparecia em histórias dos tempos do Mariano

Pinto e do Rincão do São Miguel contadas por seu Plínio Domingos

Bortolás, meu pai. O Celso estava sempre 'nas boca'. "O Boooniiiito",

repetia seu Plínio, recordando o apelido que o próprio Celso se deu.

Que relação de respeito e admiração tinham os dois. Em conversas com o

Celso, identifiquei um gosto comum: o Zetor, um trator para todo o

serviço de lavoura vindo da extinta Tchecoslováquia.

O primeiro trator do seu Plínio, um Zetor 50, era lendário no fundão do

Inhanduí. Conduzir aquela máquina era privilégio de poucos. Ai de quem

botasse a mão nele sem autorização expressa. Uma vez, numa saída do

seu Plínio, ousei. E deu ruim.

O Zetor 50 não perdeu a condição de xodó do seu Plínio nem quando

virou sucata e ficou exposto ao tempo sobre uns tocos de madeira na

lateral das casas.

Esse trator lendário também contribuiu para aumentar a fama de

vaqueano do Celso. No caso, um Zetor Super 50 dos tempos que seu

Adolfo Dambrós, meu avô, plantava arroz no Rincão do São Miguel.

Ninguém gostava muito de lidar com aquele Zetor, mas o Celso amava. O

problema era o banco duro, situação que resolveu com uma enjambração

para ter mais conforto: quatro molas parafusadas sob o banco.

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No fim de um dia de muito frio e trabalho árduo com o Zetor, o Celso

desengatou a grade na várzea e tomou o rumo de casa. Hora de

descansar! Com fama de pé pesado, engatou uma oitava, acelerou fundo

e, pra aproveitar o molejo do banco macio, jogou o corpo pra trás.

Hora da enjambração cobrar seu preço!

O banco se desprendeu, e o Celso foi ao chão todo enrolado no pala que

usava para driblar o frio de lascar. O trator seguiu em frente, acelerado.

A cena do Celso correndo desesperado atrás do Zetor ganhou mundo em

rodas de conversas à beira de fogões e fogos de chão. Essa e muitas

outras. Quando apareço por Uruguaiana para visitar ele e a Frida, sempre

sobra tempo pra resgatar algumas de suas incontáveis gauchadas.

E é um tal de Bonito pra cá, Bonito pra lá…

Foto: Arquivo Cléber Bortolás

Seu Plínio Domingos Bortolás e seu Zetor

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B O I A A P I M E N T A D A

Nos campos das Canoas, próximo à boca do cano que levava à lavoura de

arroz água puxada do Inhanduí por um Caterpillar, um rancho de tábua e

chão batido era ponto para refeição, descanso... À noite, era posto de

vigilância para quem cuidava do motor à beira do rio.

Roncava alto aquele Caterpillar! Dia e noite.

O rancho também era pouso para quem vinha do povo pra uma caçada,

pescaria. Lavoura de arroz em várzea é sinônimo de capincho. E aquele

ponto do Inhanduí também era bom de peixe.

Uma noite apareceram por lá o mecânico Leo Castilho, o Cabeludo, e dois

amigos. Mal desembarcaram, os amigos pegaram as armas e tomaram o

rumo do mato atrás de capincho. Restou ao Cabeludo acomodar o

tralharedo no rancho, improvisar as camas e preparar a janta.

Baita boia comemos eu, seu Plínio Bortolás, meu pai, e o Cabeludo!

Mas o Cabeludo não se conformava com a desfeita dos amigos e resolveu

dar o troco. Fim do jantar, pôs uma quantidade descomunal de pimenta

na comida que sobrou na panela de ferro. E sentenciou: "vamos dormir".

Tenho certeza que nem o Cabeludo, conhecido pelo gosto pela pimenta,

comeria aquela boia sem reclamar. E foi só o que ouvimos quando, de

madrugada, os caçadores apressados voltaram ao rancho varados de

fome e voaram rumo à panela. Foi um festival de "ai, ai, ai", "não dá para

comer isso", "tem muita pimenta"...

Na manhã, Cabeludo pergunta sobre os capinchos. Notícias pouco

animadoras. Sobre a comida, nenhum pio.

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REPONTANDO

o meu destino

CAMPEIA

meu pensamento

Noel Guarany,

em Filosofia de Gaudério

Foto: Carlos Bortolás


C R U Z E I R A N Ã O É M U Ç U M

Antes da tecnologia de ponta dos dias de hoje, lavoura de arroz dava

trabalho. Bota trabalho nisso. A lida não terminava nunca. E quando

terminava, era tempo de pensar em como começar tudo de novo.

No meu tempo, eram semanas no lombo de trator e dele arado e grade

para preparar a terra. Depois, dias e dias de poeira com semeadeira,

adubadeira, tapadeira, entaipadeira… A colheita, período de lama em

estado puro, só depois de meses de irrigação.

A água que molhava as lavouras do fundão do Inhanduí vinha do açude e

do levante no Inhanduí. E seguia por valos e regadeiras que exigiam

manutenção sempre. O ponto que dava mais trabalho ficava abaixo da

taipa do açude, onde caraguatás insistiam em retomar o terreno perdido.

Numa tarde, seu Plínio, Claudir Rampelotto, o Cláudio, e Ilizi Fantinel, o

tio Izi, se embrenharam no local para limpar a área e nivelar o valo.

Tinham o reforço do Poldo, vindo de Dona Francisca, terra dos meus pais.

Foice em punho, Poldo abre caminho no caraguatazal. Corta pra cá, corta

pra lá, até que um animal rastejante fica preso na lâmina. Em meio a

botes pra todo lado, Poldo ergue a foice e grita: "Ilizi, olha que baita

'munçum' eu peguei".

Pânico total! O muçum era uma cruzeira, cobra temida na região. E das

grandes. "Tinha até cabelo", exagera o Cléber Romário, meu irmão.

Tio Izi só consegue dizer: - Larga isso, Poldo. É uma cruzeira. Larga!

Foi por um triz! Poldo voltou são e salvo pra Dona Chica. Mas, do fundão

do Inhanduí, levou um ensinamento: cruzeira não é muçum.

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C A N T A N D O N A M I S S A

Em 1973, larguei o fundão do Inhanduí para morar à beira do corredor

que leva aos Três Capões. Coisa de dona Clasilda Dambrós, minha mãe, e

dona Iná Quevedo, minha primeira e eterna professora, para garantir que

eu continuasse com os estudos.

Eram tempos de consolidação de uma reforma ortográfica que varreu do

dia-a-dia da escrita um caminhão de acentos circunflexos e tremas

inacreditáveis. Adeus môlho, estrêlas, flôres, pilôto, saüdade...

À beira do corredor dos Três Capões, por dois anos, morei com dona Iná,

seu Neri Rodrigues e o Aírton Quevedo Rodrigues, marido e filho da dona

Iná. A casa de madeira tinha um quarto amplo com divisória, cozinha,

sala, garagem e, no maior espaço, a sala de aula da escola Getúlio Vargas.

Pros padrões do fundão do Inhanduí, aquele corredor era muito

movimentado. Na época de colheita, vazios ou carregados, passavam por

ali muitos caminhões. Um território de Mercedes 1113 toco.

No Alegrete dos anos 1970, era comum escola de campanha receber um

evento anual de porte: a missa. Da cidade vinha um aparato da Igreja

Católica e das redondezas, vizinhança em peso. Aquilo era uma espécie

de feira sem produtos à venda, exposição de cavalos, carroças, aranhas,

tratores, cachorros...

Minha primeira missa na Getúlio Vargas foi um divisor de caminhos.

Sala de aula apinhada! Posicionado bem em frente ao padre, erro o

caminho do sinal da cruz. De forma brusca, uma freira pega minha mão e

a guia, ditando em voz alta: "em cima, em baixo, esquerda, direita". A sala

inteira é alertada. Tipo, aprendam pra não errar!

49


Fim da celebração, hora de amenidades, confraternização. E lá vem

alguém lembrar que eu era metido a cantor. A fama, indica o amigo Eneri

Gonçalves, vinha dos tempos de fundão do Inhanduí.

Antes de frequentar a que foi minha primeira escola, volta e meia eu

seguia até a Dom Luiz Felipe de Nadal, me aproximava da porta e tascava

um "Tropeiro Velho" do Teixeirinha. O desfecho para aquela busca por

plateia era sempre o mesmo: minha irmã Rosa Helena saindo em

desabalada carreira da aula pra me fazer voltar pra casa.

Eu não lembro. Mas se o Eneri lembra... E, naquela missa na Getúlio

Vargas, mais alguém lembrava. Pra quê?

Levado na marra ao palco que minutos antes era púlpito, ensaio resistir.

E o povo: - Canta, canta, canta!

Não tem pra onde correr. O sim é recebido com euforia, gritos, assovios...

Prego os olhos no chão e mando um "Menino da Porteira" que o Sérgio

Reis cantava sem parar no rádio. Tropeço numas partes, atropelo outras

e vou até o fim. Sou brindado com aplausos entusiasmados e gritos,

muitos gritos de incentivo.

Mamãe e professora, puro orgulho! Eu, querendo me enfiar num buraco.

Aquela missa interrompeu qualquer pretensa verve cantora. Me agarrei

nos estudos e toquei em frente.

Não me arrependo! Mas, confesso, volta e meia, ao lembrar do ocorrido,

lamento não ter aproveitado melhor aquele momento de sucesso.

50


DE VEZ EM QUANDO

no horizonte do

passado

SURGE UMA NUVEM

de lembranças

andarilhas

Humberto Gabbi Zanatta,

em Tropa de Osso

Foto: Carlos Bortolás


M E L A N D O N O C E M I T É R I O

No fundão do Inhanduí, o mel consumido em casa vinha, principalmente,

da mata que abraça o rio e dos capões de mato espalhados pelo campo.

Melar era tranquilo. Geralmente o pessoal se deparava com abelhas mais

mansas. Era uma boa fumaça e deu!

Bravas eram as do cemitério no alto da segunda coxilha. Aquele enxame

que se abrigava em uma das três campas sem uso há anos tinha fama na

região. Quem se aproximava sabia dos riscos.

Quantos corridões tomamos só de passar ali por perto!

Por isso, melar aquelas abelhas era uma fixação. Sempre que voltava em

férias ao fundão do Inhanduí, os planos eram renovados. Até que

apareceu o Paulo Trindade, enteado da Sirlei Botelho, minha madrasta. O

Paulo era determinado e não tinha medo. Um bruto!

Bom sinal! Mãos à obra!

Com o apoio do Cléber Bortolás, meu irmão, elaboramos um plano

simples. Para evitar picadas nas pernas e nos pés, Paulo usaria duas

calças e uma bota de couro cano longo. O tronco e a cabeça seriam

protegidos por duas camisas, um casaco e um saco de adubo com

plástico grosso. Um óculos reforçaria a proteção dos olhos.

Tinha até rota de fuga. A picape Willys do seu Plínio Domingos Bortolás,

meu pai, ficaria a uns cinquenta metros com motor ligado e vidros bem

fechados. O Paulo viria na carreira, jogaria o saco com o mel na

carroceria, entraria na caminhonete e partiríamos a toda. Depois, bem

longe do cemitério, era comemorar com um bom favo de mel.

52


Revisamos o plano várias vezes para não ter erro. Mas, na hora da ação,

nada funcionou como planejado. Nem de perto.

Mal o Paulo abriu a campa, as abelhas avançaram com tudo. E se

concentraram na cabeça, passando pelos furos que fizemos no saco de

adubo. Mas por que furos?, gostam de perguntar quanto conto a história.

Ora! O Paulo tinha que enxergar alguma coisa pra retirar os favos.

Picado de forma implacável, Paulo recua, derruba parte da campa e se

arranca como pode em direção ao ponto de fuga com uma nuvem de

abelhas na cola. Se estapeando como dava, entra na caminhonete

gritando alto: "vamos embora, vamos embora. Rápido, rápido".

Foi um fiasco dos mais comentados na região!

O Paulo passou uns bons dias com o rosto inchado. E esse não foi o único

problema. No afã de melar aquelas abelhas, esquecemos da autorização.

Ao saber do ocorrido, seu Elvio Berriel, que gerenciava aqueles campos,

não gostou nem um pouquinho. E ordenou: "arrumem a campa"!

E cadê a coragem para voltar ao cemitério?

Foto: Carlos Bortolás

Cemitério do fundão do Inhanduí

53


U V A F E R M E N T A D A

Nos meus tempos de fundão do Inhanduí, visitar os avós paternos em

Dona Francisca era sagrado. Todo o ano era ano de rever seu Felix Marino

Bortolás, o nono Iti, e dona Helena Rosa Bressa, a nona Lena.

Dona Chica era a volta às origens para meu pai, seu Plínio Domingos

Bortolás, e minha mãe, dona Clasilda Dambrós. E também de reencontro

com meus tios do ramo Bortolás: Elvira, Talita, Elita, Vanir, Heitor e Leone.

Família de porte, reforçada pela tia Dênia no Alegrete.

Nos tempos em que não tinha carro na casa, a viagem era penosa! Nessa

situação, percorrer os cerca de 300 quilômetros entre Alegrete e Dona

Chica era coisa de dia. Eram três trechos bem intervalados.

A gente saía de manhã cedo do fundão do Inhanduí, caminhava uns bons

quilômetros até a estação de trem ou a parada do ônibus que vinha da

Barra do Ipané. Coisa de até uma hora, descíamos na cidade. Uma parada

ou na casa do tio Antenor e da tia Dênia ou na do vô Adalfo e da vó

Cecília e, no início da noite, ônibus para Santa Maria.

No Coração do Rio Grande, mais umas cinco horas de espera na

rodoviária. Pra quem vivia no campo, aquilo era um formigueiro humano

infernal. E dele ronco de estômago. Pouco antes de clarear o dia, enfim,

ônibus para Dona Francisca e para um café da manhã farto de queijo,

salame, chimia, pão caseiro... E carinho, muito carinho.

Se aquela viagem era coisa de louco, imaginem a volta! Sempre tinha um

garrafão de cachaça, de vinho, de vinagre, um saco de açúcar melado...

Das visitas, as que mais lembro são as dos tempos de colheita de uva e

produção de vinho. Aquilo era coisa de deslumbrar guri de lavoura.

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Cedinho, a grande carroça de dois eixos cheia de cestos era levada das

casas para o parreiral por uma junta de bois. Os cestos maiores eram

para a uva colhida. Os menores estavam abastecidos com pão, salame,

chimia, queijo caseiro… Durante a colheita, o povo se fartava.

Os mais velhos tinham direito a vinho produzido pelo vô Iti e pela vó

Helena. E sempre tinha uma cachaçinha artesanal produzida por ali.

O trabalho durava praticamente toda a manhã. Depois do almoço, hora

de esmagar uva com os pés e extrair o mosto para fazer o vinho. Aquilo

era um entra e sai de gente nas tinas de madeira onde a uva era

colocada. Os pés entravam branquinhos e saíam roxos. E quando

apareciam abelhas, inchados.

O suco produzido nas tinas era depositado em grandes pipas de madeira.

Hora da fermentação! E de perigos para desavisados! Quanto mais o

processo de fermentação avança, maior o risco de se beber o suco.

Ninguém me avisou e continuei metendo firme noite adentro!

Uma devastação se aproximava!

Copo de suco vai, copo de suco vem... Começo a sentir uma

movimentação intestinal nunca vista. Coisa de vulcão em erupção. Foi um

deus me acuda e uma corrida nunca feita na minha vida até a patente

mais próxima. Por ali, entre uma saída rápida e outra, transitei o resto da

noite assolado por um senhor desarranjo intestinal, o popular churrio.

Nem o quitoco que tanto me salvou de tais apuros daria jeito naquilo.

Aquela situação é inesquecível. Até hoje, suco de uva na minha frente é

sinônimo de múltiplos arrepios. Bebo! Mas, por precaução, misturo

sempre uma boa quantidade de água.

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P O R B A I X O D A T A I P A D O A Ç U D E

Pouco depois de se instalarem no fundão do Inhanduí, seu Plínio

Bortolás, meu pai, e dona Clasilda Dambrós, minha mãe, receberam a

visita de boas vindas de seu Elvio Berriel, que gerenciava a propriedade

do seu João Rodrigues.

A sede da Guajuviras ficava na entrada do campo, a cerca de um

quilômetro e pouco do corredor dos Três Capões. Entre os dois pontos,

quatro porteiras. E mais outras três até as casas no fundão. Abrir e fechar

porteira era tarefa para os guris. Aff!

De seu Elvio, guardo imagens das campereadas rotineiras, quando

percorria campos, coxilhas e bordas do mato e restingas do fundão do

Inhanduí. A cavalo, botas acima dos joelhos e a companhia de três

cachorros: um lebreiro, um ovelheiro e um de pedigree que me foge.

Naquele dia, fiz de tudo para impressionar a visita. Pulei por cima do

reboque, do trator, do arado.... Na volta, seu Elvio troca impressões com

dona Gelsa Rodrigues, sua mulher, sobre os recém-chegados. O que

chamou mais a atenção? "Um gringuinho loirinho. Um diabinho!"

Seu Elvio se encheu de razão quando lotei com areia o tanque de um Jipe

velho estacionado há um bom tempo no galpão das casas. Podem

perguntar, mas não vou contar a reação do seu Plínio. A do seu Elvio eu

conto: morria de rir quando lembrava o ocorrido. E como lembrava!

Incorporei de vez a fama de encapetado num ensolarado final de tarde.

Na taipa do açude em frente às casas, dona Clasilda Dambrós, minha

mãe, lidava com alguma coisa ao lado da comporta que liberava água

para a lavoura de arroz. A comporta estava escancarada, detalhe que

ignorei enquanto dava uns biquinhos pertinho da correnteza.

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A água estava uma delícia!

Como a prever o que estava por vir, dona Clasilda repetia: "toma cuidado

Carlos Augusto!" Ser chamado de Carlos Augusto não era bom sinal!

Mas segui firme. Biquinho pra cá, biquinho pra lá e … um pulo muito

perto da boca da comporta. Caio na correnteza, que me arrasta para o

duto. Lá dentro, dava pra ver uns poucos feixes de luz. O resto era

escuridão e pavor dos brabos.

Atirado de tudo que jeito contra as paredes, segui arrastado pela água

sob a taipa do açude. Coisa de uns sete metros que parecia não ter fim.

Engoli água como nunca, mas consegui chegar do outro lado. Bem...

Consegui não é bem o termo, né, mas cheguei.

Da boca do duto, fui jogado num poço fundo, zona de traíras pequenas.

Não deu tempo nem de pensar em nadar. Dona Clasilda me agarrou

pelos cabelos, me colocou em terra firme e, ato contínuo, usou todo o seu

conhecimento de como aplicar cascudos.

Sobrevivi abaixo de mau tempo. Sorte que o nível do açude estava baixo,

o que garantiu espaço para eu respirar durante a travessia imprevista.

Lá se vão uns 50 anos do ocorrido, mas, até hoje, a 'façanha' do

'gringuinho' é uma espécie de lenda naquelas bandas do Inhanduí e em

terras vizinhas. É só encontrar alguém que sabe do causo e lá vem a

história da taipa do açude. Quanto estive no Alegrete em 2019 e

encontrei o Délvio Berriel, adivinhem do que ele lembrou?

O que me deixa levemente contrariado é que pouco lembram dos riscos

que corri. Mas dos cascudos que levei da minha mãe...

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AO PÉ

do fogo de chão

VOU REPASSANDO

a memória

João da Cunha Vargas

em Chimarrão

Foto: Carlos Bortolás

1


O M E R G U L H O D O M A S S E G U I N H A

Com cinco anos, um toco de gente como se dizia no fundão do Inhanduí,

o Cléber Romário, meu irmão, já era metido a tratorista.

Seguia o inevitável caminho dos filhos de plantadores de arroz. A

preparação da terra e o plantio exigiam a força de muita gente. Ninguém

escapava. Bastava estar por perto e, "amanhã, você vai gradear lá na

beira do mato". Trabalho solitário e ensurdecedor, Os tratores daquele

tempo roncavam alto. E não existia este negócio de cabine.

A carreira de tratorista do Cléber começou cedo e de forma acidentada.

Numa manhã de sol, seu Plínio Domingos Bortolás, nosso pai, e o Ilizi

Fantinel, o tio Isi, decidiram remendar um trecho da regadeira que estava

vazando água na área da várzea do meio. A primeira parte do trabalho

era cortar uns torrões de terra preta no outro lado do açude.

Seu Plínio engatou o arrastão no Massey Ferguson 50, o Masseguinha,

acomodou as pás no arrastão e tomou o rumo do taipa do açude com o

Cléber a bordo. De perto, tio Izi acompanhava num Valmetinho tampinha.

Na descida pedregosa, uma das pás caiu do arrastão. Seu Plínio começa a

parar o trator, mas o Cléber vê uma oportunidade de assumir o volante.

"Não para, pai, não para. Deixa eu levar enquanto o senhor pega a pá."

Seu Plínio concordou.

Foi só ele descer do trator para que o Cléber, todo prosa, se adonasse do

banco. Menino observador, logo tratou de imitar o hábito dos tratoristas

mais rodados de escorar um braço no para-lama.

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Faltava braço pro Cléber, mas ele achou um jeito de se acomodar. E, todo

desajeitado, resolveu se amostrar um pouco.

Mão no volante, braço no para-lama, corpo ladeado, virou a cabeça para

mostrar a seu Plínio a gauchada do filho mais novo. Era tanta emoção e

busca de aprovação que esqueceu da curva fechada à frente, onde

começava a taipa do açude. O Cléber se exibia, e o trator seguia reto ao

açude. E o barranco era dos grandes.

Aquilo foi um tendel. Quando viu o desastre que se aproximava, seu

Plínio largou a pá como pode e, tipo gato do mato, voou do arrastão para

o trator. Deu tempo de puxar o estrangulador e tirar, do jeito que pode, o

Cléber para fora da confusão.

Mas não houve tempo de evitar o mergulho do Masseguinha, que só não

foi fundo do açude porque uma das rodas traseiras topou com um pé de

espinilho, árvore bruta de madeira sem igual para um churrasco. Mas a

frente do Masseguinha ficou todinha embaixo da água.

Espinilho é árvore com muito espinho. Bota espinho nisso. Seu Plínio saiu

todo lanhado. E o Cléber? Logo esqueceu do susto e começou a preparar

o lombo. Uma arte daquelas não passaria em brancas nuvens.

Mas o tempo jogou a seu favor. Primeiro foram os curativos no seu Plínio

feitos pela dona Clasilda Dambrós, nossa mãe, e pela tia Elvira Bortolás.

Aquilo demorou. Depois veio a retirada do Masseguinha do barranco,

trabalho para o Zetor e o Valmetinho.

A fúria de seu Plínio se amansou, e a paz voltou a reinar no fundão do

Inhanduí. "Santo espinilho", repete, até hoje, o Cléber Romário.

60


P A S T A D E D E N T E C O M D E F E I T O

Entre os Dambrós e os Bortolás, José Dambrós, o tio Zeca, é conhecido

pelo hábito de aprontar. O cara é um perigo. Pros desavisados, então...

A fama já era grande quando o Zeca passou num concurso do Banco do

Brasil e saiu do Alegrete para morar em Palmas, no Paraná.

Terra fria, muito fria! Até nevava por lá!

Em Palmas, onde passou por algumas pensões, o Zeca aperfeiçoou o seu

arsenal. E todo ano, quando voltava ao Alegrete para visitar a parentada,

colocava em prática os novos aprendizados.

Como geralmente fazia, numa dessas idas o Zeca bateu lá no fundão do

Inhanduí. Era uma visita ao seu Plínio, meu pai, e ao Claudir Rampeloto, o

Cláudio, que também vivia por lá - minha mãe, dona Clasilda, já não

estava por aqui.

De quebra, aproveitaria para tentar caçar uns tatus.

O Zeca ficou um tempinho no fundão do Inhanduí e, no dia de voltar à

cidade, resolveu "deixar uma recordação" de sua passagem. Era bem

cedinho da manhã. Seu Plínio e o Cláudio já andavam na lida diária da

lavoura de arroz.

Com o caminho livre, Zeca vai ao banheiro e injeta uma boa quantidade

de creme de barbear no tubo de pasta de dente.

E tchau fundão do Inhanduí. Até a próxima!

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O que se ouviu depois foram reclamações e mais reclamações sobre a

qualidade daquela pasta de dente. "Está com defeito", dizia o Cláudio.

Seu Plínio até foi visto com frequência incomum na área dos limoeiros e

das laranjeiras em volta das casas. Catava e mastigava folhas na tentativa

de quebrar o gosto ruim da pasta de dente.

Um ano depois, quando o Zeca voltou ao fundão, seu Plínio e o Cláudio

ficaram sabendo que não tinha defeito nenhum naquela pasta de dente.

Era coisa do Zeca! Mais uma!

Foto: Arquivo Cléber Bortolás

Seu Plínio Bortolás preparando um assado

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PAIRA

um campeiro perfume

DA FLOR GUAXA

entre o chircal

Aureliano de Figueiredo Pinto,

em Gaudério

Foto: Carlos Bortolás


P E R D I D O S N O C A M P O

Já falei, mas não custa repetir: coisa mais linda que as noites de lua cheia

nos campos da Fronteira Oeste não existe. Em compensação, as sem lua…

"É assustador", repete o tio Zeca, como é conhecido o José Dambrós.

Senti na pele esta máxima do Zeca. Eu, o meu irmão Cléber Romário, o

Francisco Benites Ferreira, o Chico, e o Gilberto Bevilaqua, o Giba, colega

e amigo dos tempos de Universidade Federal de Santa Maria, a UFSM.

Nos períodos de férias ou feriado prolongado, sempre voltava ao fundão

do Inhanduí. Numa delas, convidei o Chico e o Gilberto. Coisa de acampar

no mato e, entre um churrasco e outro, uns tragos de cachaça e vinho,

puxar uns peixes do Inhanduí. O Chico e o Giba toparam.

Empolgado, decidi que a viagem seria um feito. Ao invés do ônibus, trem.

Nada de seu Plínio Domingos Bortolás, meu pai, nos pegar. Da estação do

Inhanduí, iríamos a pé. Coisa de cinco quilômetros pelos Farrapos.

Moleza, pensei! Meio que lembrava dos tempos que seguia seu Plínio e

dona Clasilda Dambrós, minha mãe, por aqueles caminhos para pegar o

ônibus que vinha do Passo do Ipané e o trem vindo de Uruguaiana. No

pior cenário, era mirar a direção das casas e tocar reto em frente.

Para dar emoção ao que seria um grande feito, não avisei seu Plínio.

Chegaríamos de surpresa. E, depois, era só colher os louros do feito nas

conversas à beira do fogão a lenha.

Embarcamos em Santa Maria. No Alegrete, o Cléber Romário, meu irmão,

se incorporou à turma. Mais uma meia hora sacolejando, estação do

Inhanduí. Chegamos mais pro fim da tarde.

64


Na descida, percebi que tinha chovido muito nos dias anteriores. Para

ganhar tempo, decidi cortar caminho. Que ideia! Batemos num charco

intransponível. Nunca vi tanta cobra na vida. E elas, feliz da vida com o

monte de sapo. Sem saída, retrocedemos em busca de um caminho mais

seguro. E seguimos campo afora.

Noite chegando, céu carregado de nuvens. À medida que avançávamos,

mais escuro ficava. Até que não se via mais nada. "As casas estão naquela

direção", repetia, torcendo para ver algum ponto de luz. Nada!

Em frente, mais um charco. Até hoje, o Cléber garante que nem cobra

passava por ali. Mas passamos. E o Cléber, que já havia se estatelado

numa sanga, quase foi engolido por um olho de boi. Atolado até a

cintura, começou a protestar. De fato era impossível encontrar as casas

naquele breu. Tiramos o Cléber do peludo, buscamos um lugar seco e

acampamos à espera do amanhecer.

Adeus louros à beira do fogão!

Na barraca para duas pessoas, nos acomodamos como deu. A sensação

de ver luzes em movimento por trás da coxilha perturbava. Era estrada?

As casas? Mas nosso destino estava selado. Era tentar dormir e pronto.

Na manhã, levanto cedinho para avaliar a situação. Surpresa! Estávamos

a uns 300 metros das casas. E o que era para ser um feito inacreditável

virou motivo de piada naquelas bandas.

Fomos nos esconder numa clareira à beira do Inhanduí. Naquela área de

mato largo próxima à restinga da várzea das casas, bebemos muita

cachaça, falamos de Pink Floyd, de contracultura… Peixe que é bom,

nada. E todo o dia, seu Plínio aparecia ostentando um sorrisinho maroto.

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Numa manhã, de ressaca, acordamos com um monte de peixes na

frigideira que, até então, estava ali a passeio. Espanto total! De onde

vinham se não havíamos pescado nada? Do espanto ao medo foi um

pulo. Estávamos cercados?

A explicação veio com a chegada de uns caçadores e pescadores que

estavam na área. O Chico ainda lembra do "e aí, gurizada! Passamos aqui,

tava todo mundo dormindo e resolvemos deixar os peixes". Ufa!

O Chico e o Giba ficaram lá pelo fundão uns três dias. Não lembro de

peixe algum puxado do Inhanduí. Na volta para Santa Maria, nada de

gauchadas. Seu Plínio fez questão de levá-los na picape Willys até a

estação do Inhanduí.

Eu fiquei. E haja paciência com o seu Plínio e o Claudir Rampelotto, o

Cláudio, que não paravam de lembrar da história.

Gilberto Bevilaqua, Francisco Benites Ferreira e Carlos Bortolás

Foto: Arquivo Chico Ferreira

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A E T E R N A P R O F E S S O R A

Cena linda da minha infância no fundão do Inhanduí era a gurizada

descendo as coxilhas rumo à casa de madeira e cozinha de pedra no

último ponto da estrada que partia do corredor dos Três Capões. Naquele

fundo de campo funcionou a minha primeira escola. Quando cheguei, já

se chamava Dom Luiz Felipe de Nadal, mas antes era Dr. Ciro Leães.

Dona Iná Quevedo Rodrigues era quem conduzia a gurizada ao mundo da

escrita e da leitura. A dona Gelsa Rodrigues lembra que a Iná professora

contou com o firme incentivo de dona Clasilda Dambrós, minhã mãe.

Foi dona Clasilda quem, em meio a lida árdua e diária da lavoura de

arroz, me ensinou a escrever com alguma desenvoltura as letras do ABC.

Às portas dos seis anos de idade, quando fui à escola, dona Iná me

ensinou a juntar e dar sentido para aquele mundaréu de letras.

Como era determinada a dona Iná! Na sala de madeira e chão batido à

beira de um pomar de laranjeiras e bergamoteiras onde funcionava a

escola, lidava com os alunos da primeira a quarta séries. No verão, aulas

de manhã; no inverno, à tarde.

Para a maioria da turma, chegar à escolinha era fácil. Bastava seguir a

estrada que levava ao fundão do Inhanduí e desviar à direita depois da

taipa do açude. Dos lados da Guajuviras vinham as gurias e os guris do

seu Alberto Pereira, o Didi, do seu Altivo e da dona Bereni Rodrigues e do

seu Elvio Berriel e da dona Gelsa Rodrigues ...

A turma do seu Zeferino e da dona Eva Antunes vinha do fundo do campo

dos Farrapos. A do seu Plínio Domingos Bortolás, meu pai, e da dona

Clasilda cortava uns trezentos metros de campo.

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Mais complicado era o caminho da gurizada do seu Eufrásio e da dona

Élida Gonçalves, que cortava uns cinco quilômetros de campo e cerros

pelos Farrapos. A viagem a cavalo facilitava. Mas quando o trecho era

feito a pé, tinha um problema sério: um rebanho de gado. "Eu, o Ênio

Jorge e a Eleci chegamos muitas vezes atrasados por causa daquele gado.

Quanto corridão tomamos", conta o Eneri Gonçalves.

A escolinha era tão famosa que até recebia gente de outras querências. O

Eneri lembra do Francisco, filho do seu Arnóbio Berriel. Vindo do Mariano

Pinto, Francisco passou uma temporada na casa dos tios Elvio e Gelsa só

para estudar na Dom Luiz Felipe de Nadal.

Aquele mundo de conhecimento no fundão do Inhanduí resistiu de 1967

a 1972. Em 1973, dona Iná partiu para dar aula na Escola Getúlio Vargas,

à beira do corredor dos Três Capões. Ela seguiu firme na carreira de

professora. Passou pela Escola Nossa Senhora da Conceição, à beira da

estrada pro Mariano Pinto e, na cidade, se estabeleceu na Escola Básica

Fundamental Francisco Carlos, na Vila Nova, onde se aposentou.

Morei com ela e seu Neri Rodrigues quatro anos, dois no corredor dos

Três Capões e dois na cidade. Fui com eles pelo desejo de minha mãe. O

caminho para o futuro passava pelos estudos. Um desejo mais tarde

abraçado pelos meus tios Antenor Dambrós, Dênia Bortolás, Marizete

Dambrós e Umberto Francisco Gabbi.

Conclui o segundo grau, me formei na Universidade Federal de Santa

Maria, a UFSM, ganhei o mundo. Por onde ando, tenho sempre por perto

dona Iná, os colegas e a escolinha do fundão do Inhanduí.

Eles são eternos!

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Dejaré

LAS PUERTAS E VENTANAS

de mi casa

ABIERTAS, PARA SIEMPRE

Alfredo Zitarrosa,

em Guitarra Negra

Foto: Carlos Bortolás


E X C E S S O D O C O N T I N G E N T E

O que eu faria quando crescesse era uma espécie de disputa velada no

fundão do Inhanduí. De um lado, meu pai, seu Plínio Domingos Bortolás,

apostava todas as suas fichas na carreira militar; do outro, minha mãe,

dona Clasilda Dambrós, na de padre.

Sempre que aparecia oportunidade, eles tratavam de puxar os lambaris

para a sua brasa. Meu pai recorria até a umas fotos dos seus tempos de

soldado em Cachoeira do Sul. Idílicas! Minha mãe buscava apoio em

fontes externas, como freiras e padres que apareciam para celebrar

missas naquelas bandas. Até de anjinho me chamaram!

Uma linha de apoio para dona Clasilda era a revista Família Cristã. Li

muitas nos tempos que meu passatempo era enfiar botões no nariz. Haja

cheirar pimenta-do-reino para expelir aqueles botões.

Naquelas revistas identifiquei três viagens que transformei em desejo. E

assim, vida adiante, atravessei de vapor o rio Uruguai entre Montevidéu e

Buenos Aires, percorri a Ferrovia do Inferno, entre Curitiba e Paranaguá,

e conheci a Mesquita Azul, em Istambul, na Turquia.

A carreira eclesiástica desandou cedo. Entre 1975 e 1978, quatro

tentativas de fazer a primeira comunhão. Resultado? Três reprovações e

uma possibilidade de aulas de recuperação. Nesta, dona Clasilda viu um

golpe para eu ficar mais tempo na cidade. Entre a primeira comunhão e

ajudar na lavoura de arroz, ficou com a segunda opção. A partir de 1979,

não se tocou mais no assunto.

Meu pai jogava com o tempo. Afinal, quando eu completasse 18 anos,

tinha encontro marcado com o alistamento militar. Ele ocorreu no final

de 1983, no segundo ano de Universidade Federal de Santa Maria (UFSM).

70


Já entreverado no movimento estudantil e determinado a evitar de

qualquer maneira alguma passagem por quartéis, pensei: rumo ao

terceiro ano de curso, não passo da primeira etapa da seleção.

Parecia ter fundamento, mas cursos como o de Comunicação Social

causavam urticária no pessoal verde-oliva e seus adeptos. Até hoje, né! Se

fosse Engenharia, Medicina, as possibilidades de escapar eram mais

palpáveis... Resultado? Escalado para a segunda etapa da seleção.

Comecei a imaginar que teria problemas. O temor crescia quando, volta e

meia, aparecia alguém me alertando do serviço de inteligência militar na

universidade e de minha participação no movimento estudantil. "Tu

deves ter uma ficha lá", insistiam.

Razões até que existiam. Em novembro de 1982, estava entre os que

protestavam contra a visita do general e presidente de plantão João

Baptista de Oliveira Figueiredo a Santa Maria. Minha tarefa? Apontar o

mais rápido possível prisões de companheiros que distribuíam panfletos.

Fiquei grande parte da manhã fingindo ler jornal numa parada de ônibus.

Em março de 1983, participei da marcha de milhares de estudantes que

ocuparam a reitoria da UFSM. Não passei do térreo, mas ainda hoje me

emociona a imagem da bandeira da UNE hasteada no andar do reitor.

Imaginando percalços à frente, comecei a sondar alguma ajuda. Em casa,

ninguém se coçou. Encontrei guarida com dona Eva Eci de Almeida, mãe

do Cezar Freitas, colega de curso. Dona Eva disse que conhecia alguém

que trabalhava na universidade. Se possível, tentaria ajudar.

Encarei a segunda etapa da seleção com dois caminhos claros: ou a ajuda

de dona Eva ou um ano de quartel.

71


Foram seis dias batendo ponto na 3ª Companhia de Comunicações

Blindada, a uns três quilômetros de caminhada da casa dos tios Umberto

Gabbi e Marizete Dambrós, onde morava. No caminho, uma passagem

para pedestres destruída no arroio Cadena. Cruzava me equilibrando

como dava nas estruturas de madeira restantes. Eu e os moradores da

margem esquerda do Cadena que se deslocavam rumo ao Centro.

No período, veio uma leva de dispensas e nada do meu nome. No dia do

tudo ou nada, consegui driblar um corte de cabelo de soldado raso, mas

não escapei de arrancar tiriricas que cresciam entre paralelepípedos.

Turma reunida, um capitão com sotaque carioca destila seu incômodo

com a música "Caminhando e Cantando", do Geraldo Vandré, um hino

daqueles tempos. Toda a sua ira é dirigida à passagem "nos quartéis lhes

ensinam uma antiga lição, de morrer pela pátria e viver sem razão".

Cuspia mamangavas o capitão! O sermão envereda para os perigos

comunistas que "ameaçam" o país. Sobra até tempo para identificar

"áreas infiltradas" pelos vermelhos.

Chegar ao ambiente da UFSM foi um passo. Onde estava o "foco de

infiltração"? Engenharia Florestal, História e Comunicação Social. "Aí tem

coisa", pensei. Comecei a ficar vermelho! E mais ainda quando o capitão

anuncia a presença de alguém desses cursos na sala. Não entendi se era

um aluno ou um comunista. Mas, intimado a me identificar, ergo a mão.

Não ouvi mais nada. Só quando anunciam meu nome. Liberado!

Nunca entrei em detalhes com dona Eva sobre o que ela fez ou não fez.

Não importava. Nada era maior que seu gesto de acolhimento. Em meio

ao cenário de incerteza que alimentei, senti-me abraçado por ela.

Obrigado dona Eva! E viva o excesso do contingente!

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A O R E D O R D O A L E G R E T E

Reza a lenda que as habilidades mecânicas do tio Antenor Dambrós

vinham dos tempos de aprendizado com o Leo Castilho, o Cabeludo. Seu

Antenor, o eterno Nor da tia Dênia Bortolás, conhecia como poucos os

intrincados caminhos de um motor. Os de caminhão, então. E o macacão

sempre pura graxa era, com certeza, feitio Cabeludo.

Tio Antenor era caminhoneiro afamado no Alegrete e, no meu imaginário,

o mais viajado dos Dambrós. Vivia pra cima e pra baixo de caminhão. Do

fundão do Inhanduí, puxou muita carga de arroz pra cidade.

E aquela viagem à Bahia lá nos anos 1970? Coisa de semanas e de muitas

histórias na casa da Avenida Rondon. Que aventura! Eu, guri, ouvia tudo

encantado. E a distância daquele trecho? Parecia que o tio tinha ido a

outro mundo e voltado são e salvo.

Foi o tio Antenor quem me apresentou um pedaço do que existia ao

redor do Alegrete. Em julho de 1980, topou dividir comigo a boleia de

uma carreta Scania numa viagem de Alegrete a Colombo, no ladinho de

Curitiba (PR). Guardo a data por causa da notícia que ouvi no rádio do

caminhão da quartelada militar na Bolívia que derrubou a presidenta

Lidia Gueiler. Na época, esse negócio de golpe não tinha fim na Bolívia.

Ignoro a carga. Mas lembro das refeições caseiras feitas no fogareiro a

gás em paradouros, das florestas de araucária, do frio de rachar no

Paraná, da fábrica da Serramalte em Getúlio Vargas, da primeira Pitu...

Do Alegrete, chegamos a Santa Catarina por Erechim. Depois do rio

Uruguai, passamos ao lado de Concórdia e batemos em Porto União.

Cruzamos o imponente rio Iguaçu rumo a Porto Vitória, São Mateus do

Sul, Campo Largo e Colombo.

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A volta foi pelo litoral. No rumo de Joinville, a descida noturna da Serra

do Mar foi de assustar. Parada em Canoas e Alegrete pela BR-290.

Naquela viagem, comecei a firmar gosto por outras terras. Antes, os

estudos. Tio Antenor e tia Dênia me acolheram por quatro anos, tempo

de concluir o primeiro grau e encaminhar o segundo. Depois vieram

Santa Maria, os tempos de universidade e outros pagos. Morei em Santa

Catarina, em Pernambuco, no Pará, finquei pé em Brasília.

Tio Antenor já partiu, mas por onde ando sempre lembro e lembrarei da

fonte do desejo de beber novos horizontes. A resposta está naquele julho

de 1980, na viagem de caminhão do Alegrete a Colombo.

Que porteira seu Antenor abriu pro guri do fundão do Inhanduí!

Sadir Fantinel, Carlos Bortolás e Antenor Dambrós

Foto: Arquivo Carlos Bortolás

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P R O V A D E F O G O

Nos primeiros tempos de cidade, quando morava com seu Neri Rodrigues

e dona Iná Quevedo, passava os fins de semana ou na casa do tio

Antenor Dambrós e da tia Dênia Bortolás, na avenida Rondon, ou na do

vô Adolfo Dambrós, na rua Demétrio Ribeiro. Ali, sob o olhar da tia Maria

Dambrós, comecei a dedilhar a primeira das muitas máquinas de

escrever que encontrei na vida. Na Cidade Alta, era território do bife à

milanesa feito pela tia Dênia. De lamber os beiços. Até hoje!

A cidade foi terreno fértil para meu gosto pela leitura. Não precisa ler e

reler as raras revistas que chegavam no fundão do Inhanduí. Na casa dos

tios, me divertia com a coleção da revista Placar do primo-irmão André

Adolfo Dambrós. Andei pelo Brasil inteiro naquelas revistas!

Na casa do meu avô sempre encontrava um livro perdido. Lembro de

Viagem à Aurora do Mundo, do Érico Veríssimo. E investia o dinheiro que

conseguia juntar numas revistas em quadrinhos. Era fã do Tex Willer!

Numa das idas à casa da Demétrio Ribeiro, fui recebido com a notícia de

que a Marizete Dambrós, a tia Mari, estava chegando de Santa Maria,

onde, depois de uma temporada em Cascavel, no Paraná, trabalhava no

Banco do Brasil. Trazia a tiracolo o Umberto Francisco Gabbi.

O Gabbi garante que não estava arrastando a asa para a Mari. Só estava

ali para dar carona para uma amiga de banco e, de quebra, conhecer o

Alegrete. Mas deu no que deu: casamento.

O Gabbi chegou no Alegrete 'vacinado' para o pandemônio que teria pela

frente. É que a Mari o alertou que também estaria por lá um sobrinho

que se metia em tudo que era conversa. Um tormento!

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Transformei o alerta da Mari em fato. Com gente nova na casa dando

ouvidos, 'parlei' pelos cotovelos durante o fim de semana todinho. Mas,

ufa!, o Gabbi foi embora com uma impressão diferente. "O que tu falava

tinha nexo, Carlão." Ainda tenho dúvidas, mas se o Gabbi diz, não discuto.

A vida nos uniu dois anos após a morte de dona Clasilda Dambrós, minha

mãe. Pelas mãos do Gabbi e da Mari, desembarquei em Santa Maria em

1981. Com o aval de seu Plínio Domingos Bortolás, meu pai, continuava a

rota dos estudos desejada pela minha mãe. Terminei o segundo grau no

Maria Rocha e emendei a universidade.

Nos dois primeiros anos de Santa Maria, morei com o Gabbi e a Mari na

casa 380 da rua São Francisco, bairro Nossa Senhora do Rosário. Nos

outros três, passei por repúblicas de estudantes, incentivo do Gabbi que

me ajudou demais no que, depois, encontrei por diante.

Do Gabbi veio o impulso para o caminho a seguir na universidade. Depois

de me ouvir sobre a inclinação pelo curso de Agronomia, porque dava

dinheiro, ele fez uma observação fundamental: "Carlão, tu tens que fazer

o que gosta". E me bandeei pro mundo da comunicação.

Corri mundo, mas uma coisa não mudou: continuo sendo o 'filho mais

velho' do Gabbi e da Mari. De quebra, ganhei quatro irmãs e irmãos:

Ketlen, Gustavo, Luciano e Maria Cecília.

Sempre que volto a Santa Maria, faço questão de revisitar essas

passagens. É uma forma de reforçar minha gratidão.

Mas nem tudo é coisa séria nas nossas conversas. É que o Gabbi sempre

lembra daquela visita ao Alegrete. Não tem jeito! Com o tempo, a Mari

deixou de lado o "ah! Umberto" e passou a reforçar as gargalhadas.

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Andei

por terras estranhas

NO MUNDO

MUITO APRENDI

Noel Guarany,

em Filosofia de Gaudério

Foto: Carlos Bortolás


R I O D A M I N H A I N F Â N C I A

No final de 2010, andávamos, eu, Adelson Barreto e Paulo Louredo, pelo

Paraguai em busca de exemplos da estruturação da agricultura familiar

no Mercado Comum do Sul, o Mercosul. De quebra, marquei um encontro

com vestígios de trincheiras do tempos da chamada Guerra do Paraguai.

Numa pequena propriedade rural de Caazapa, observo uma imensa teia e

dezenas de aranhas minúsculas.

"Araña pequeña", digo à funcionária do Ministério da Agricultura que nos

acompanha.

"Ñandú’i", ela responde.

"Inhanduí?"

"Sí, araña pequeña en guaraní."

No interior do Paraguai, encontro o significado do rio da minha infância.

Foto: Adelson Barreto

Carlos Bortolás

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Em torno da ideia, muitos se reuniram. Um agradecimento especial

à Noeli Frida, por olhar com carinho um mundaréu de palavras destes relatos;

à Valéria Rivoire e ao Angelo Ribeiro, pela amizade e a campereada dos relatos;

ao Délvio Rodrigues Berriel, pelo apoio à memória em Fundão do Inhanduí;

ao Eneri Gonçalves, pelas lembranças e pelo impulso à produção destes relatos;

ao amigo Francisco Benites Ferreira, o Chico, por encorpar Perdidos no Campo;

ao amigo Vava Etchepare, por destampar Desfile de Boitatá;

ao Umberto Gabbi e à Marizete Dambrós, pelas portas abertas e Prova de Fogo;

ao Cléber Bortolás, por ajudar demais e protagonizar alguns destes relatos;

à Laura Bortolás, por identificar imagens para estes relatos;

ao José Dambrós, o Zeca, pela memória fotográfica de dar inveja;

ao Celso Dambrós, pela boa conversa e as histórias dos tempos do arroz;

ao Alceu Aírton Gonçalves de Sousa, pela lembrança de Pegador de Pombão;

ao Luciano Gabbi, por se aventurar em Encontros de Família;

ao amigo Warner Bento Filho, pelo aval imprescindível;

ao amigaço Paulo Mendes, pela gentileza de Histórias, Vida e Amizade;

ao amigo Alessandro Landim, pelo eterno socorro tecnológico;

à companheira Leticia Braz, pela forma gráfica dos relatos e infindável paciência.

Foto Capa: Cléber Romário Dambrós Bortolás

Fotos Contracapa: 1 - Félix Marino Bortolás, Helena Rosa Bressa, Cecília Cassol, Adolfo Dambrós, Plínio

Domingos Bortolás e Clasilda Dambrós; 2 - Rosa Helena, Carlos Augusto e Cléber Romário Dambrós Bortolás


D E D A M B R Ó S A B O R T O L Á S

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