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Textos <strong>de</strong><br />
<strong>Angela</strong> Maria<br />
Brighenti
<strong>Contos</strong> <strong>de</strong><br />
<strong>Angélica</strong><br />
Dados Internacionais <strong>de</strong> Catalogação na Publicação (CIP)<br />
B855<br />
Brighenti, <strong>Angela</strong> Maria<br />
<strong>Contos</strong> <strong>de</strong> <strong>Angélica</strong> / <strong>Angela</strong> Maria Brighenti;<br />
ilustrações <strong>de</strong> Flora Brina ... [et al.]. – São Paulo : Edições Viva e Deixe Viver, 2021.<br />
124 p. : il.<br />
ISBN: 978-65-994682-4-7<br />
1. Coletânea/Miscelânea. I. Brina, Flora (il.). II. Título.<br />
CDU: 82-8<br />
Ficha catalográfica elaborada por: Adriana Aparecida da Luz - CRB: 8/9360<br />
Índices para catálogo sistemático<br />
1. Coletânea/Miscelânea B869.8<br />
Associação Viva<br />
e Deixe Viver<br />
Valdir Cimino<br />
Atados<br />
Augusto Lima Conte<br />
Fernanda Tiveron Dall’Antonia<br />
Isabela <strong>de</strong> Paula Beato<br />
Coor<strong>de</strong>nação<br />
Paulo Zilberman<br />
Produção<br />
Ana Paula Monteiro<br />
Projeto gráfico<br />
Luciana Souza<br />
Sabrina Zerlini <strong>de</strong> Sá<br />
Vanessa Lopes<br />
Victor Luiz Magalhães<br />
Capa<br />
Luciana Souza<br />
Diagramação<br />
Paulo Zilberman<br />
Ilustrações<br />
Alicia Tunda Soares<br />
Aline Boechat<br />
André Moniz<br />
Bianca Prado<br />
Flora Brina<br />
Gabriela Tiburcio Guimarães<br />
Luan Pessoa<br />
Sabrina Zerlini <strong>de</strong> Sá<br />
Sofia Buranello da Silva<br />
Zahra Mousavi<br />
2 3
Índice<br />
Introdução 6<br />
Prefácio 9<br />
A menina que nasceu chorando 10<br />
O Cavaleiro <strong>de</strong> Espadas 14<br />
A Luz 18<br />
A Torre 22<br />
A Mão <strong>de</strong> Deus 26<br />
Uma história <strong>de</strong> amor 30<br />
O encontro 34<br />
A cama voadora 40<br />
O trem 44<br />
Iogurte com pepinos 48<br />
Conto <strong>de</strong> terror: o teste 52<br />
O santuário 56<br />
Cães ferozes 62<br />
Muitas histórias 66<br />
O museu da cida<strong>de</strong> 70<br />
Mizanxisto 74<br />
Searching for the ocean 78<br />
Conto <strong>de</strong> terror: matadores <strong>de</strong> mulheres e crianças 82<br />
Os amigos 86<br />
Pequenos milagres 90<br />
O homem sinistro contra-ataca 94<br />
O espinheiro 98<br />
O mais lindo presente 102<br />
A menina da bicicleta 106<br />
O sapo amarelo 112<br />
Minibiografia 126<br />
4 5
Introdução<br />
Natural <strong>de</strong> São Carlos, no Estado <strong>de</strong> São Paulo,<br />
<strong>de</strong> uma família <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> italianos da<br />
região do Veneto, <strong>Angela</strong> Maria Brighenti<br />
foi a terceira <strong>de</strong>ntre seis filhos. Estudou na<br />
“Escola Normal” da cida<strong>de</strong>, dos 7 aos 17 anos, e<br />
adorava línguas estrangeiras, principalmente<br />
Inglês e Alemão.<br />
Graduou-se em Engenharia <strong>de</strong> Materiais pela<br />
Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral <strong>de</strong> São Carlos, em 1978,<br />
e seguiu carreira instigante e <strong>de</strong>safiadora até<br />
2006. Concluiu pós-graduação lato sensu pelo<br />
MBA Internacional e Curso <strong>de</strong> Especialização<br />
em Gestão Ambiental da Proenco Brasil, tendo<br />
escrito monografia intitulada “Os plásticos e<br />
o lixo nas cida<strong>de</strong>s” em 2006.<br />
Em 2007 tornou-se contadora <strong>de</strong> histórias<br />
pela “Associação Viva e Deixe Viver” e esta<br />
foi uma experiência inesquecível, assim<br />
como, provavelmente, o gatilho do processo<br />
<strong>de</strong> escrever e compor. A partir <strong>de</strong> 2008<br />
começou a compor textos e canções que<br />
servem à teatralização e contação <strong>de</strong> histórias<br />
no contexto da educação ambiental para<br />
o consumo consciente, lixo pós-consumo,<br />
poluição ambiental e coleta seletiva.<br />
Infelizmente, vítima <strong>de</strong> um câncer, <strong>Angela</strong><br />
faleceu em 2011.<br />
Em março <strong>de</strong>ste ano a família da <strong>Angela</strong><br />
entrou em contato com a Associação Viva e<br />
Deixe Viver para apresentar um legado <strong>de</strong><br />
histórias, estórias e canções para divertir,<br />
ensinar e apren<strong>de</strong>r.<br />
O objetivo <strong>de</strong> mobilizar pessoas gerando<br />
transformações positivas na socieda<strong>de</strong> foi<br />
o elo que levou a Viva a contatar a Atados,<br />
para a realização <strong>de</strong> uma parceria para esse<br />
projeto, convidando pessoas à oportunida<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong> um trabalho voluntário para a execução<br />
das ilustrações e diagramação dos livros<br />
<strong>de</strong>ixados por <strong>Angela</strong>, com a supervisão <strong>de</strong> um<br />
profissional técnico da área.<br />
A transformação positiva é o que move o<br />
trabalho <strong>de</strong> ambas as organizações envolvidas<br />
nesse projeto, gerando um brilhante resultado<br />
que você encontra aqui.<br />
Agra<strong>de</strong>cemos à querida voluntária <strong>Angela</strong><br />
(in memoriam), assim como sua família que<br />
acreditou nessa união viva e potente da arte.<br />
Luciana dos Santos Bernardo<br />
Associação Viva e Deixe Viver<br />
Outubro/2021<br />
<strong>Angela</strong>, <strong>de</strong>senhada por<br />
Mariana Prava<strong>de</strong>lli Salmazo<br />
6 7
Prefácio<br />
Seguramente me lembrarei para<br />
sempre <strong>de</strong> algumas histórias que<br />
ouvia quando criança, junto com<br />
meu irmão, antes <strong>de</strong> dormirmos.<br />
Histórias sobre o mundo, seus<br />
mistérios, criaturas sobrenaturais,<br />
tempos antigos e até mesmo um<br />
futuro, que, muito provavelmente,<br />
nunca saberemos se <strong>de</strong> fato se<br />
concretizará ou se permanecerá<br />
em nossas imaginações.<br />
- afinal nunca saberemos ao<br />
certo), possibilitando que nossa<br />
imaginação voe longe ao sentir<br />
seus aromas, suas cores e até<br />
mesmo seu frio na barriga.<br />
Felipe Brighenti Salles<br />
Leonardo Brighenti Salles<br />
<strong>Angela</strong>, pintada<br />
por Flora Brina<br />
Talvez seja essa a beleza das<br />
histórias... por um momento<br />
ganhamos as chaves das portas<br />
(ou janelas) para que nossas<br />
imaginações percorram o<br />
infinito...<br />
Nos <strong>Contos</strong> <strong>de</strong> Angelica,<br />
a autora nos conduz, com<br />
o coração cheio <strong>de</strong> emoções, à<br />
suas inúmeras histórias, contos,<br />
experiencias (reais ou fictícias<br />
<strong>Angela</strong>, <strong>de</strong>senhada por Ananda Laura<br />
8 9
A menina<br />
que nasceu<br />
chorando<br />
Era uma vez uma menina que nasceu<br />
chorando. É certo que todas<br />
as crianças nascem chorando, mas<br />
essa menina chorava à toa e na escola<br />
seus colegas a chamavam <strong>de</strong><br />
“mina d’água” quando ela chorava<br />
só porque a professora olhava para<br />
ela e lhe perguntava uma coisa<br />
qualquer!<br />
Ela amava suas irmãs e seus irmãos,<br />
mas até que <strong>de</strong> vez em quando eles<br />
brigavam. A menina cresceu na<br />
fazenda entre<br />
cachorros<br />
pequenos e gran<strong>de</strong>s, coelhos <strong>de</strong><br />
todas as cores, riachos e muitas<br />
árvores que davam flores lindas e<br />
jabuticabas docinhas!<br />
O tempo passou e a menina parou<br />
<strong>de</strong> ser chorona porque começou a<br />
gostar muito <strong>de</strong> estudar e apren<strong>de</strong>r<br />
coisas novas. Ela gostava <strong>de</strong><br />
números e canções e sonhava um<br />
dia ser cantora <strong>de</strong> ópera- mas<br />
não foi o que se passou. Apren<strong>de</strong>u<br />
matemática e física e, saber como<br />
funcionavam aquelas coisas estranhas<br />
chamadas <strong>de</strong> átomos e moléculas,<br />
ia cada vez mais agradando<br />
à menina chorona.<br />
Mais um pouco e ela<br />
contava histórias para<br />
seus dois filhos pequenos<br />
e via os olhinhos <strong>de</strong>les<br />
brilharem com o brilho<br />
<strong>de</strong> quem <strong>de</strong>scobre a<br />
vida passo a passo,<br />
enquanto aprendiam<br />
a ler. Para eles, as<br />
histórias até pareciam<br />
saltar dos livros e<br />
10<br />
Ilustração: Flora Brina
eles nem pensavam nos <strong>de</strong>senhos da TV!<br />
Havia heróis montados em cavalos brancos e<br />
Princesas que se perdiam na floresta; árvores<br />
que falavam com esquilos e roedores; fadas<br />
azuis que preparavam comida para os duen<strong>de</strong>s<br />
enquanto eles saiam pela floresta usando longos<br />
chapéus coloridos e cantando as melodias<br />
que se espalhavam e caíam com o orvalho da<br />
noite. Havia também histórias <strong>de</strong> ursos que<br />
comiam mel e hibernavam até a primavera. “De<br />
novo, <strong>de</strong> novo!” Os dois pequenos nem queriam<br />
dormir e pediam que lesse para eles o “Menino<br />
Maluquinho” só mais uma vez.<br />
A menina que chorava podia contar histórias <strong>de</strong><br />
monstros, dragões e super-heróis para os filhos<br />
dos seus filhos e sabe o que? Continuava a<br />
chorar! O tempo passou, uma tristeza chegou, a<br />
saú<strong>de</strong> se foi e outra vez ela chorou tanto e nem<br />
mais podia contar histórias para os meninos que<br />
agora já eram homens feitos.<br />
O tempo, ah! O tempo, a menina apren<strong>de</strong>u que<br />
ele é o senhor <strong>de</strong> todas as dores e então que nos<br />
ensina sobre o amor. Quando recobrou a saú<strong>de</strong>,<br />
apren<strong>de</strong>u que maior que toda tristeza do mundo<br />
é o amor e são as estrelas! É que os olhinhos dos<br />
pequenos brilham como as estrelas do céu quando<br />
eles ouvem histórias <strong>de</strong> fadas azuis e pirilampos<br />
que habitam as florestas <strong>de</strong> seus sonhos!<br />
Ilustração: Flora Brina<br />
13
O cavaleiro<br />
<strong>de</strong> espadas<br />
<strong>Angélica</strong> ia fazer seis anos em<br />
outubro e morava numa gran<strong>de</strong><br />
fazenda com sua família. Numa<br />
tar<strong>de</strong> brincava com suas irmãs e<br />
seu único irmão no quintal próximo<br />
da cozinha da casa, on<strong>de</strong> havia<br />
goiabeiras, macieiras e um lindo<br />
agrupamento <strong>de</strong> pitangueiras que<br />
o pai <strong>de</strong>la mandava podar formando<br />
o que se parecia com um bolo<br />
<strong>de</strong> forma gigante. No verão eram<br />
tantas e vermelhas as pitangas que<br />
o falso bolo mais parecia um bolo<br />
<strong>de</strong> morangos!<br />
Logo ia entar<strong>de</strong>cer e a mãe <strong>de</strong><br />
<strong>Angélica</strong> recolheu todas as crianças<br />
para tomar banho e jantar, mas<br />
naquela tar<strong>de</strong>, por <strong>de</strong>scuido, <strong>de</strong>ixou<br />
<strong>Angélica</strong> do lado <strong>de</strong> fora. A menina<br />
foi procurar abrigo no porão<br />
Ilustração: Sofia Buranello da Silva
que ficava abaixo da cozinha em<br />
frente às pitangueiras e, enquanto<br />
tentava abrir a porta do porão, um<br />
som difuso <strong>de</strong> cornetas e flautas<br />
ruidosas acompanhado pelo alvoroço<br />
<strong>de</strong> muitos cavalos, chegou aos<br />
seus ouvidos e ia chegando cada<br />
vez mais perto <strong>de</strong>la.<br />
Ela conseguiu abrir a porta do<br />
porão, mas as sombras das coisas<br />
velhas que o pai mantinha ali <strong>de</strong>ntro<br />
a amedrontavam ainda mais e<br />
seu terror aumentou quando voltou<br />
para fora e se <strong>de</strong>parou com o<br />
Cavaleiro <strong>de</strong> Espadas, montado em<br />
seu cavalo negro, vestindo roupas<br />
pretas e com ar muito sinistro.<br />
<strong>Angélica</strong> correu para a porta da<br />
cozinha, mas foi obrigada a enfrentar<br />
o estranho homem <strong>de</strong> barbas e<br />
cabelos negros, pois tropeçou num<br />
brinquedo esquecido no quintal.<br />
Para sua surpresa o forasteiro fala<br />
com ela em tom bondoso e lhe<br />
diz que veio buscá-la para que ela<br />
conhecesse o mundo da cavalaria<br />
bem além da fazenda dos seus pais.<br />
Ao levantar-se do chão, <strong>Angélica</strong><br />
olha para aquele homem e vê mais<br />
uma <strong>de</strong>zena <strong>de</strong> cavaleiros montados<br />
em seus cavalos negros, todos<br />
em perfeito silêncio. <strong>Angélica</strong> estava<br />
tão assustada que <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> sentar-<br />
-se novamente, pois mal conseguia<br />
mover-se.<br />
Sob o olhar do Cavaleiro <strong>de</strong> Espadas<br />
ela novamente procura um jeito<br />
<strong>de</strong> fugir ou escon<strong>de</strong>r-se, mas só<br />
<strong>de</strong>sejava que sua mãe aparecesse<br />
na porta da cozinha. A um toque da<br />
mão direita do Cavaleiro, que não<br />
pretendia assustá-la ainda mais, a<br />
cavalaria faz a volta e galopa velozmente,<br />
<strong>de</strong>ixando atrás <strong>de</strong> si, muita<br />
poeira e mais ruídos.<br />
Pouco <strong>de</strong>pois nada mais se ouvia<br />
daquela algazarra <strong>de</strong> ruídos, flautas<br />
e o galope dos cavalos. A porta<br />
da cozinha se abre e em seguida<br />
<strong>Angélica</strong> ouve a voz <strong>de</strong> sua mãe<br />
chamando-a para entrar em casa,<br />
perguntando a ela por que ainda<br />
estava do lado <strong>de</strong> fora se já era<br />
hora <strong>de</strong> dormir!<br />
Ilustração: Sofia Buranello da Silva
A luz<br />
Pedro nascera muito míope<br />
e logo cedo passou a<br />
usar grossas lentes para<br />
po<strong>de</strong>r enxergar. Ele morava<br />
numa fazenda on<strong>de</strong><br />
havia pomar, serraria e<br />
um lindo lago. No pomar<br />
cresciam mangueiras,<br />
laranjeiras <strong>de</strong> todas<br />
as qualida<strong>de</strong>s e 5.000 pés<br />
<strong>de</strong> abacaxis que seu pai<br />
cultivava para vendê-los<br />
na cida<strong>de</strong> mais próxima à<br />
fazenda.<br />
Os pais <strong>de</strong> Pedro gostavam<br />
muito <strong>de</strong> festas e, quando<br />
chegavam as festas juninas,<br />
as noites frias na fazenda eram<br />
tomadas pelo aroma do gengibre,<br />
das lascas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira que ardiam na<br />
fogueira, busca-pés, biribas e foguetes.<br />
Fogos <strong>de</strong> artifício estouravam no<br />
céu escuro caindo sobre a fogueira,<br />
como se fosse para iluminar os quatro<br />
cantos da fazenda e mostrar que<br />
o escuro não se eternizaria jamais.<br />
Pedro era um menino muito es-<br />
Ilustração: André Moniz<br />
19
perto e havia pedido que seu pai<br />
lhe fizesse um escon<strong>de</strong>rijo bem no<br />
alto <strong>de</strong> uma figueira que era a árvore<br />
mais antiga da fazenda. Uma<br />
noite Pedro brincava <strong>de</strong> colorir<br />
seus <strong>de</strong>senhos e resolveu <strong>de</strong>senhar<br />
uma escada por on<strong>de</strong> começava a<br />
subir e subir; subia mais, em direção<br />
ao céu, e ia ficando cada vez<br />
mais alto. Só que mais alto no céu<br />
ia ficando também mais escuro e<br />
mais frio - <strong>de</strong> congelar a barriga -<br />
e quando já não havia como subir<br />
mais, Pedro foi ficando cansado e<br />
caiu no sono.<br />
Então, Pedro sonhou que <strong>de</strong> lá do<br />
alto do céu escuro, ele <strong>de</strong>spencava<br />
em queda livre sem haver nada em<br />
que pu<strong>de</strong>sse apoiar-se. Pedro sentiu<br />
muito medo e o vento soprou<br />
forte e o menino não conseguia<br />
abrir seus olhos, pois acabara <strong>de</strong><br />
per<strong>de</strong>r os óculos.<br />
Então, Pedro percebe que tudo ficou<br />
parado e quieto e pensou que<br />
continuasse a sonhar. Ao abrir os<br />
olhos, vê uma cordilheira <strong>de</strong> cris-<br />
tais brancos e brilhantes e a luz<br />
que os atravessava era tanta que<br />
no momento seguinte, milhares<br />
<strong>de</strong> arco-íris coloridos cobriam<br />
a cordilheira <strong>de</strong> cristais. Pedro<br />
quis correr para pegar seus<br />
lápis <strong>de</strong> cor e os pincéis <strong>de</strong><br />
colorir porque queria <strong>de</strong>senhar<br />
aquela maravilha diante <strong>de</strong><br />
seus olhos, mas nesse momento,<br />
encontra-se com o super-<br />
-herói <strong>de</strong> roupas vermelhas<br />
da história em quadrinhos e<br />
das telas <strong>de</strong> cinema. Parecia-lhe,<br />
então, que aquele<br />
seria seu gran<strong>de</strong> encontro<br />
com o herói e que estava<br />
na “Fortaleza da Solidão”!<br />
Ia começar a falar com o<br />
super-herói, mas lá embaixo<br />
ecoava seu nome,<br />
anunciado bem alto pela<br />
copeira que trabalhava<br />
em sua casa.<br />
20 Ilustração: André Moniz
A torre<br />
O tempo passou <strong>de</strong>pressa e <strong>Angélica</strong><br />
já tinha 25 anos quando foi visitar<br />
uma cida<strong>de</strong>la arranjada numa pequena<br />
ilha no Mediterrâneo, on<strong>de</strong><br />
o mar era muito azul e as casas dos<br />
moradores eram pintadas <strong>de</strong> branco,<br />
com janelas azuis e telhas amarelas.<br />
Havia uma torre circular que<br />
se elevava no ponto mais alto da ilha<br />
e servia como farol para orientar<br />
os barcos que se aproximavam. Era<br />
domingo ensolarado e nas ruelas<br />
estreitas feitas <strong>de</strong> subidas e <strong>de</strong>scidas,<br />
as pessoas caminhavam conversando<br />
alegres, como se para ser<br />
feliz bastasse estar ali e viver sob a<br />
luminosida<strong>de</strong> daquele dia.<br />
<strong>Angélica</strong> não resistiu àquela beleza<br />
e <strong>de</strong>cidiu subir na torre naquela<br />
manhã <strong>de</strong> modo a admirar o mar<br />
além do horizonte. Estava<br />
ofegante ao chegar ao<br />
topo e seus olhos<br />
per<strong>de</strong>ram-<br />
-se na imensidão azul turquesa que<br />
avistava, quando um choramingo<br />
fraco lhe chegou aos ouvidos. Olhou<br />
ao redor sem nada ver e <strong>de</strong>cidiu<br />
sentar-se para admirar o mar e<br />
não <strong>de</strong>u atenção ao som que havia<br />
escutado. <strong>Angélica</strong> acomodou-se<br />
perto das colunas gran<strong>de</strong>s e seus<br />
pensamentos voaram alto. Ela <strong>de</strong>ve<br />
ter tido um sentimento estranho,<br />
pois logo em seguida avistou uma<br />
meninazinha que inchava <strong>de</strong> tanto<br />
chorar e estava bem perto da janela<br />
principal. Muito assustada, ela abriu<br />
os olhos e viu <strong>de</strong>zenas <strong>de</strong> moradores<br />
ao seu redor e todos lhe apontavam<br />
o <strong>de</strong>do dizendo: você não vai abandoná-la<br />
aí, vai? <strong>Angélica</strong> sente medo<br />
e não enten<strong>de</strong> o que vê e, numa<br />
atitu<strong>de</strong> certeira, toma a criança nos<br />
braços e a beija com todo amor que<br />
seu coração po<strong>de</strong>ria sentir.<br />
Nesse momento, aquela figura que<br />
parecia mais um balão <strong>de</strong> borracha<br />
prestes a estourar, transforma-se<br />
numa linda criança vestindo<br />
um lindo vestido branco. Seus<br />
Ilustração: Aline Boechat<br />
23
olhinhos ver<strong>de</strong>s e suas bochechas<br />
rosadas brilhavam diante dos<br />
olhos <strong>de</strong> <strong>Angélica</strong>.<br />
Ela a aperta em seus braços e<br />
sente que essa linda criança lhe<br />
era bastante familiar. Olha para os<br />
lados e vê uma mulher que procurava<br />
pela menina e não sabe<br />
como agra<strong>de</strong>cê-la por ter cuidado<br />
da menina que da mãe se per<strong>de</strong>ra<br />
algumas horas antes.<br />
<strong>Angélica</strong> passou a se lembrar mais<br />
da felicida<strong>de</strong> que é ser criança.<br />
Seria capaz <strong>de</strong> <strong>de</strong>senhar e refazer<br />
seu vestido branco bordado com<br />
rendas brancas e flores miúdas e<br />
coloridas que em sua lembrança<br />
era aquele do qual mais gostara<br />
e que agora se parecia tanto ao<br />
daquela menininha. E havia seus<br />
brinquedos, seus cachorros, os<br />
escon<strong>de</strong>rijos dos coelhos e brinca<strong>de</strong>iras<br />
que inventou, para po<strong>de</strong>r<br />
ficar quietinha toda vez que queria<br />
rememorar essa menina <strong>de</strong> olhinhos<br />
ver<strong>de</strong>s que encontrara no<br />
alto da torre.<br />
24<br />
Ilustração: Aline Boechat
A mão<br />
<strong>de</strong> Deus<br />
Noite escura. Estrelas brilhando<br />
longe no céu não menos escuro.<br />
<strong>Angélica</strong> e Fausta gostavam <strong>de</strong><br />
ficar lá fora on<strong>de</strong> se sentavam no<br />
trampolim da piscina da casa do<br />
avô <strong>de</strong> Fausta, toda vez que chegava<br />
o verão e se ouvia o ruído<br />
do mar vizinho e a água permanecia<br />
numa temperatura<br />
agradável. Numa noite <strong>de</strong>ssas,<br />
as duas meninas conversavam<br />
longamente balançando as<br />
pernas para lá e para cá, riam e<br />
falavam com as estrelas.<br />
A piscina ficava relativamente<br />
perto da casa on<strong>de</strong> os adultos<br />
falavam e ouviam música animadamente.<br />
Fausta <strong>de</strong>ixa <strong>Angélica</strong> sozinha para<br />
buscar pipoca e chá <strong>de</strong> gelado e<br />
algo inusitado acontece a ela.<br />
<strong>Angélica</strong> costumava pensar muito<br />
em Deus e nesse momento,<br />
sentindo certeza absoluta, a<br />
menina diz para si mesma:<br />
Cansei <strong>de</strong> ficar aqui! Vou<br />
me atirar <strong>de</strong>sta altura e sei<br />
Ilustração: Bianca Prado
que a Mão <strong>de</strong> Deus vai me pegar!<br />
Nem bem terminou <strong>de</strong> falar, <strong>Angélica</strong><br />
jogou-se do alto do trampolim<br />
caindo na escuridão da água. Sua<br />
certeza era tamanha que em seguida<br />
uma imensa Mão surge e a recolhe<br />
<strong>de</strong> seu mergulho, começando a<br />
brinca<strong>de</strong>ira com ela. <strong>Angélica</strong> mergulhou<br />
outra vez e outra e outra<br />
e a Mão a recolhia nessa <strong>de</strong>liciosa<br />
brinca<strong>de</strong>ira <strong>de</strong> estalar na água.<br />
A menina foi ficando mais radiante<br />
e mais extasiada porque agora<br />
tinha certeza <strong>de</strong> que Deus estava<br />
diante <strong>de</strong>la, e, por um instante,<br />
a Imagem <strong>de</strong> Deus se confun<strong>de</strong><br />
agora à figura <strong>de</strong> um gigante<br />
branco e brincalhão que continua<br />
a brinca<strong>de</strong>ira com ela.<br />
Por um brevíssimo instante, <strong>Angélica</strong><br />
sente frio e medo e seu<br />
medo aumenta quando vê o gigante<br />
branco <strong>de</strong>saparecer, sendo<br />
substituído por um dragão amarelo,<br />
imenso e horripilante...<br />
Seu medo aumenta<br />
ainda mais e, para<br />
sua surpresa, um<br />
lindo tapete mágico,<br />
veloz como um<br />
pássaro <strong>de</strong> metal,<br />
<strong>de</strong>sce do céu e<br />
a afasta daquela<br />
imagem <strong>de</strong><br />
pavor e a leva <strong>de</strong><br />
volta à casa do avô<br />
<strong>de</strong> Fausta, on<strong>de</strong> todos<br />
a esperavam querendo<br />
saber on<strong>de</strong> se escon<strong>de</strong>ra.<br />
28<br />
Ilustração: Bianca Prado
Uma<br />
história<br />
<strong>de</strong> amor<br />
Os bisavós <strong>de</strong> <strong>Angélica</strong> vieram da<br />
Itália nos últimos anos do século<br />
XIX. Ana, a bisavó, havia nascido em<br />
Palermo na Sicília, enquanto que o<br />
bisavô vinha <strong>de</strong> uma pequena província<br />
em Treviso na região do Veneto,<br />
ao norte da Itália.<br />
Eles se casaram e tiveram muitos<br />
filhos até que um dia o patriarca<br />
viajou <strong>de</strong> volta para seu país, on<strong>de</strong><br />
<strong>de</strong>veria permanecer por cerca <strong>de</strong><br />
três meses.<br />
Passou um mês, outro e mais um, e o<br />
bisavô <strong>de</strong> <strong>Angélica</strong> não voltara.<br />
Passaram-se anos e ninguém soube<br />
o que havia acontecido a ele.<br />
Ana tinha o dom <strong>de</strong> costurar e se tornou<br />
uma gran<strong>de</strong> modista. Os quatro<br />
filhos tornaram-se ricos fazen<strong>de</strong>iros,<br />
enquanto que as filhas aprendiam<br />
com ela a arte <strong>de</strong> costurar e bordar.<br />
Ana já não precisava preocupar-se<br />
com o sustento dos filhos e também<br />
gostava muito <strong>de</strong> números e<br />
30<br />
Ilustração: Flora Brina
<strong>de</strong> escrever poemas.<br />
Numa tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> outono, Ana caminhava pelo<br />
jardim que construíra em sua casa para reproduzir<br />
imagens e lembranças da casa <strong>de</strong> seus<br />
pais em Palermo. A varanda da casa fazia-se<br />
abrir por portas altas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira rústica e balaústres<br />
brancos avançavam pelos jardins e se<br />
ouvia o ruído das águas da fonte cristalina que<br />
conduzia a outro jardim, mas abaixo, on<strong>de</strong> se<br />
dispunham vasos <strong>de</strong> barro em que Ana plantara<br />
folhagens e flores muito coloridas.<br />
Ana pensava em seus poemas e no homem que<br />
amara durante toda sua vida, quando olha na<br />
direção do portão principal da proprieda<strong>de</strong><br />
e vê um homem alto e forte que vestia uma<br />
jaqueta <strong>de</strong> couro e acenava para ela.<br />
Pouco tempo <strong>de</strong>pois, Ana encontra-se frente<br />
a frente com este homem, cujo rosto era<br />
<strong>de</strong>senhado por profundas rugas, mas cujo<br />
corpo se mantinha incrivelmente mais jovem.<br />
Ele não fala nada enquanto Ana lê para ele os<br />
poemas que escrevera porque nunca se cansara<br />
<strong>de</strong> esperar por aquele momento.<br />
A essa altura, os olhos <strong>de</strong> <strong>Angélica</strong> se enchiam<br />
<strong>de</strong> lágrimas, enquanto a avozinha terminava dizendo<br />
que foram muito felizes por mais alguns<br />
anos e que seu bisavô jamais havia se esquecido<br />
daqueles a quem tanto amava.<br />
32 Ilustração: Flora Brina
O encontro<br />
<strong>Angélica</strong> se preparava para o dia<br />
em que seu mais querido amigo<br />
viesse vê-la <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> passado<br />
quase um ano. <strong>Angélica</strong> <strong>de</strong>veria<br />
encontrar-se com ele numa pequena<br />
cida<strong>de</strong> na costa marítima<br />
e viajou num pequeno avião que<br />
a conduziu a esse local, mais<br />
uma pequena vila freqüentada<br />
em sua maioria por turistas estrangeiros<br />
do que propriamente<br />
uma cida<strong>de</strong>. Ali chegando,<br />
ela alugaria um carro e iria até<br />
a ponta da gran<strong>de</strong> montanha,<br />
on<strong>de</strong> havia uma pousada aconchegante<br />
que permitia avistar<br />
tanto a pequena praia abaixo,<br />
mesmo estreita que era, quanto<br />
a imensidão do mar que se abria<br />
por entre o arco <strong>de</strong>senhado pelas<br />
montanhas, sobre as quais a<br />
gran<strong>de</strong> montanha reinava silenciosamente.<br />
Este era o ponto <strong>de</strong><br />
encontro entre eles.<br />
<strong>Angélica</strong> se vê sozinha ao <strong>de</strong>scer<br />
do pequeno avião. De repente ela<br />
Ilustração: Zahra Mousavi
está num lugar que parece um<br />
<strong>de</strong>serto e apenas alguns operários<br />
trabalhavam no local. O local era<br />
fim <strong>de</strong> linha e <strong>Angélica</strong> se pergunta<br />
on<strong>de</strong> teria errado em seu trajeto,<br />
pois não era o lugar on<strong>de</strong> havia<br />
estado outras vezes e não sabia<br />
que lugar era aquele. Aqui havia<br />
uma estrada mo<strong>de</strong>rna e eu já passei<br />
muitas vezes por essa estrada:<br />
o que houve agora que a estrada<br />
não está mais aqui? Inútil fazer<br />
perguntas já que os trabalhadores<br />
vão-se embora, antes mesmo <strong>de</strong><br />
<strong>Angélica</strong> olhar para trás.<br />
Havia pedras e a paisagem era<br />
primitiva, tal qual um <strong>de</strong>serto que<br />
nunca houvera sido explorado.<br />
A vegetação era rara e mal podia<br />
ser encontrada ao longo <strong>de</strong> toda<br />
a área praticamente toda coberta<br />
<strong>de</strong> areia. Supostamente seu amigo<br />
<strong>de</strong>veria estar esperando por ela,<br />
conforme combinaram, atrás da<br />
gran<strong>de</strong> montanha que ficava do<br />
outro lado, subindo a serra além<br />
<strong>de</strong>sse local – mas não havia como<br />
chegar lá!<br />
<strong>Angélica</strong> se dá conta <strong>de</strong> que era<br />
certo que se per<strong>de</strong>ra em algum<br />
ponto do caminho e, cansada <strong>de</strong><br />
perguntar ao vazio, on<strong>de</strong> estou?...<br />
que lugar é esse?...por que não<br />
há mais a estrada que havia aqui<br />
por on<strong>de</strong> dirigi tantas vezes? Então,<br />
<strong>Angélica</strong> começa a caminhar<br />
pelo terreno árido, quase sem vida<br />
quando vê um pedaço <strong>de</strong> jornal<br />
velho pelo chão; ela se abaixa para<br />
pegá-lo e lê:1957!!! <strong>Angélica</strong> fica<br />
mais assustada ainda e começa a<br />
chorar <strong>de</strong>sesperadamente e per-<br />
Ilustração: Zahra Mousavi<br />
36<br />
37
gunta-se, será que viajei no tempo?...Voltei<br />
ao passado? Por que<br />
encontro um jornal <strong>de</strong> 50 anos<br />
atrás?..On<strong>de</strong> estão as pessoas?...<br />
On<strong>de</strong> está meu amigo?<br />
A perspectiva que <strong>Angélica</strong> tinha<br />
<strong>de</strong> chegar para seu encontro se<br />
esvai completamente e ela não<br />
consegue parar <strong>de</strong> chorar.<br />
Quando se acalma olha ao seu<br />
redor e para sua surpresa vê que<br />
atrás da gran<strong>de</strong> montanha,<br />
o sol brilhava...<br />
Ilustração: Olívia Ferrari<br />
38<br />
39
A cama<br />
voadora<br />
<strong>Angélica</strong> morava na fazenda <strong>de</strong><br />
seus pais e era uma menina que<br />
compreendia as coisas como se<br />
fosse bem mais velha.<br />
A casa da fazenda era muito gran<strong>de</strong><br />
e havia muitos lugares on<strong>de</strong> ela<br />
podia brincar com suas irmãs e seu<br />
irmão mais novo, sem contar um<br />
pequeno córrego canalizado pelo<br />
pai das crianças que as fazia pensar<br />
que fosse um barco,quando se enfileiravam<br />
e fingiam que remavam,<br />
espalhando água por toda parte.<br />
Havia cinco quartos <strong>de</strong> dormir<br />
na casa da fazenda dois dos quais<br />
eram ocupados pelas crianças, o<br />
terceiro era dos pais <strong>de</strong> <strong>Angélica</strong><br />
e os outros dois eram quartos <strong>de</strong><br />
hóspe<strong>de</strong>s em geral ocupados pelos<br />
familiares que vinham visitá-los<br />
<strong>de</strong> vez em quando.<br />
Às vezes <strong>Angélica</strong> tinha pesa<strong>de</strong>los<br />
e por isso gostava <strong>de</strong> ficar perto<br />
<strong>de</strong> sua irmã mais velha para aliviar<br />
Ilustração: André Moniz<br />
40<br />
41
seu medo. Mas acontece que os<br />
outros irmãos também tinham pesa<strong>de</strong>los<br />
e também queriam a irmã<br />
mais velha. Acontecia que ninguém<br />
mais dormia direito, pois,<br />
os três mais novos saíam <strong>de</strong> suas<br />
camas para amontoar-se na cama<br />
da irmã protetora, que era muito<br />
paciente e cuidava muito bem <strong>de</strong><br />
seus irmãos menores.<br />
O pai das crianças saía algumas<br />
noites para a queimada da cana <strong>de</strong><br />
açúcar na época que antecedia o<br />
replantio. Em geral isso acontecia<br />
em julho quando fazia muito frio<br />
na fazenda e as noites eram muito<br />
escuras.<br />
E era certeza que <strong>Angélica</strong> tinha<br />
um pesa<strong>de</strong>lo toda vez que seu pé<br />
ficasse para fora do lençol! Logo<br />
em seguida <strong>Angélica</strong> sonhava que<br />
sua cama saía do quarto pela porta<br />
da cozinha e voava pelas noites<br />
frias por toda parte da fazenda.<br />
Voava sobre o pomar, as jabuticabeiras<br />
do jardim da ala sul próximo<br />
à serraria, passava sobre o<br />
Ilustração: André Moniz<br />
“quadrado”- uma gran<strong>de</strong> área <strong>de</strong><br />
pérgolas on<strong>de</strong> cresciam buganvílias<br />
brancas e lilás, cor- <strong>de</strong>-rosa<br />
e vermelhas, sobre uma longa<br />
extensão <strong>de</strong> gramado e quando<br />
aumentava o frio, a cama sobrevoava<br />
a queimada no canavial.<br />
<strong>Angélica</strong> não conseguia encontrar<br />
seu pai e, quando estava prestes<br />
a <strong>de</strong>sistir, sentia que um cobertor<br />
quentinho vinha salvá-la daqueles<br />
passeios malucos com sua<br />
cama voadora no meio da<br />
noite fria!<br />
42
O trem<br />
<strong>Angélica</strong> foi para os Estados<br />
Unidos acompanhada<br />
por um grupo <strong>de</strong> jovens<br />
e todos conversavam<br />
animadamente em inglês.<br />
Fora dali dois vagões <strong>de</strong> trem se<br />
encontram lado a lado e suas portas<br />
laterais abrem-se para <strong>de</strong>pois<br />
fechar- se, o que frustra um homem<br />
<strong>de</strong> aparência sinistra que<br />
perseguia uma mulher que, por<br />
sua vez, respira aliviada. Antes que<br />
ele saltasse para apanhar sua presa,<br />
a porta se fecha e o vagão on<strong>de</strong><br />
ele estava se vai.<br />
Ilustração: Aline Boechat<br />
45
A mulher leva <strong>Angélica</strong> à casa da<br />
professora <strong>de</strong> inglês e lhe explica<br />
que ela <strong>de</strong>veria visitar dois jovens<br />
que precisavam <strong>de</strong> sua ajuda. Ambos<br />
suplicavam a <strong>Angélica</strong> que os<br />
ajudasse a libertar-se do estado<br />
em que se encontravam, pois não<br />
eram propriamente humanos.<br />
Viviam prisioneiros <strong>de</strong> um corpo<br />
amorfo, meio animal e meio inanimado,<br />
mas havia um <strong>de</strong>talhe:<br />
sua consciência era ilimitada.<br />
Embora eles não falassem com<br />
clareza <strong>Angélica</strong> os entendia com<br />
clareza. Perambulavam pelas<br />
ruas à procura do segredo que os<br />
libertasse daquela condição <strong>de</strong><br />
corpo disforme. Sofriam porque<br />
não conseguiam libertar-se da<br />
ma<strong>de</strong>ira e do vidro, mesmo sendo<br />
dotados <strong>de</strong> super-consciência.<br />
Um dos meninos tentava falar a<br />
<strong>Angélica</strong> aquilo que ela <strong>de</strong>veria<br />
fazer para ajudá-los, mas, o segundo<br />
menino, mal conseguia<br />
pronunciar qualquer palavra.<br />
<strong>Angélica</strong> sente forte emoção porque<br />
queria libertar os jovens <strong>de</strong><br />
seu cativeiro e ela diz a eles que<br />
precisava ir e que voltaria <strong>de</strong>pois<br />
<strong>de</strong> passado o tempo necessário<br />
para que ela apren<strong>de</strong>sse mais do<br />
que falar idiomas estrangeiros<br />
e encontrasse a chave para a<br />
libertação dos meninos.<br />
Os trens retornam e<br />
com eles, o homem<br />
sinistro que ainda<br />
não havia <strong>de</strong>sistido<br />
<strong>de</strong> apanhar<br />
a mulher que<br />
perseguia, mas<br />
agora ela estava<br />
bem longe<br />
do campo <strong>de</strong><br />
visão do forasteiro<br />
e podia<br />
recuperar sua<br />
paz, feliz porque<br />
tivera a chance <strong>de</strong><br />
encontrar-se com<br />
<strong>Angélica</strong> e retransmitir-lhe<br />
uma importante<br />
missão.<br />
46 Ilustração: Aline Boechat<br />
47
Iogurte<br />
com<br />
pepinos<br />
<strong>Angélica</strong> voltou à sua cida<strong>de</strong> natal<br />
e caminhava pelas ruas com sua<br />
mãe, quando passam por uma loja<br />
que vendia sapatos usados. Muitos<br />
sapatos eram expostos nas vitrines<br />
e <strong>Angélica</strong> ficava inconformada ao<br />
vê- los sujos e velhos e se perguntava<br />
quem po<strong>de</strong>ria querer comprar<br />
sapatos naquele estado.<br />
Seguindo seu caminho esquecendo-se<br />
dos sapatos velhos, chama-lhes<br />
atenção uma casa muito<br />
gran<strong>de</strong> on<strong>de</strong> salas <strong>de</strong> visita muito<br />
amplas compunham vários ambientes<br />
cheios <strong>de</strong> luminosida<strong>de</strong>;<br />
sofás, poltronas e muitas almofadas<br />
coloridas os <strong>de</strong>coravam, com<br />
graça e muito conforto. Tudo era<br />
claro e repleto <strong>de</strong> cores vivas e<br />
estampadas <strong>de</strong> vermelho, ver<strong>de</strong><br />
limão e branco. A mãe <strong>de</strong> <strong>Angélica</strong><br />
lhe diz que essas cores <strong>de</strong>veriam<br />
ajudá-la a equilibrar as cores para<br />
a <strong>de</strong>coração <strong>de</strong>sua própria casa<br />
nova, ao que <strong>Angélica</strong> não dá ouvidos<br />
e as duas retomam o passeio a<br />
pé pelas ruas.<br />
Ilustração: Bianca Prado 49
Depois elas se vêem diante da<br />
construção arquitetônica do século<br />
XVIII on<strong>de</strong> <strong>Angélica</strong> e toda sua família<br />
tinham passado os primeiros<br />
anos escolares, entre pátios iluminados<br />
e largos e longas escadarias<br />
que lhes davam acesso como se<br />
através <strong>de</strong>las as portas do mundo<br />
se abrissem <strong>de</strong> volta ao passado.<br />
As salas <strong>de</strong> aula haviam sido reconstituídas,<br />
porém, mantendo em<br />
<strong>de</strong>talhes os afrescos daquele tempo<br />
cada vez mais distante. Não se po<strong>de</strong><br />
afirmar qual das duas mulheres<br />
parecia inspirar mais profundamente<br />
as memórias que brotavam<br />
daquele maravilhoso lugar.<br />
Então, seguem para o antigo bairro<br />
dos ingleses on<strong>de</strong> as ruas e as<br />
casas eram estreitas, porém as<br />
casas eram altas e revestidas <strong>de</strong><br />
tijolos à vista, com poucas cores<br />
vivas, bem cuidadas e com aspecto<br />
muito requintado. As duas <strong>de</strong>ci<strong>de</strong>m<br />
parar numa doceira para comer<br />
torta <strong>de</strong> chocolate com avelãs<br />
e provar chá <strong>de</strong> ervas aromáticas<br />
indianas quando encontram uma<br />
amiga da mãe <strong>de</strong> <strong>Angélica</strong>.<br />
A senhora começa a falar e falar e<br />
falar e diz a <strong>Angélica</strong> que não <strong>de</strong>veria<br />
reclamar por ser obrigada a<br />
comer iogurte com pepinos!<br />
50 Ilustração: Bianca Prado<br />
51
Conto <strong>de</strong><br />
terror:<br />
o teste<br />
Mafalda, tia <strong>de</strong> <strong>Angélica</strong>, era uma<br />
mulher rica, jovem e bonita e que<br />
não tinha filhos, mas consi<strong>de</strong>rava<br />
<strong>Angélica</strong> e suas duas irmãs como<br />
se fossem suas filhas. Haveria uma<br />
celebração muito importante e<br />
as três jovens vestiam vestidos<br />
em tons fortes <strong>de</strong> azul e amarelo,<br />
cheios <strong>de</strong> babados e saias rodadas.<br />
Essas roupas faziam-nas aparentar<br />
muito menos ida<strong>de</strong> do que <strong>de</strong><br />
fato tinham, mas era assim que<br />
Mafalda queria. O diretor da escola<br />
local estava presente e acompanhado<br />
<strong>de</strong> seus três netos com<br />
os quais as meninas não trocam<br />
nenhuma palavra, porquanto sabiam<br />
que iriam passar pelo mesmo<br />
“teste” que elas. Os seis jovens<br />
cumprimentam-se e <strong>Angélica</strong>,<br />
pelo menos estava constrangida<br />
por estar vestida daquela maneira<br />
<strong>de</strong>sconcertante.<br />
Todos estão numa imensa sala do<br />
casarão que pertencia à Mafalda.<br />
Portas enormes e largas <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira<br />
<strong>de</strong> lei conduziam a um terraço<br />
revestido <strong>de</strong> mármores e granitos<br />
aplicados no piso das varandas. Ao<br />
longe, avistava-se o mar e a celebração<br />
começaria com professores<br />
que haviam sido colegas da tia das<br />
meninas e com o diretor da escola,<br />
todos na lista <strong>de</strong> convidados.<br />
Ilustração: Flora Brina<br />
52 53
Uma chuva forte não programada<br />
com ondas que atingiam as varandas<br />
do casarão avança e inevitavelmente<br />
atinge os convidados.<br />
Outra mudança brusca ocorre<br />
e todos os convidados viam-se<br />
<strong>de</strong>ntro do mar e eram ameaçados<br />
pelas ondas fortes e por mais duas<br />
dúzias <strong>de</strong> professores ávidos por<br />
aplicar o “teste” em seus alunos.<br />
<strong>Angélica</strong> guardava boas lembranças<br />
<strong>de</strong> sua primeira professora, e<br />
quase não a reconhece ao <strong>de</strong>parar-se<br />
com ela que havia se tornado<br />
uma mulher um tanto ru<strong>de</strong><br />
e feia. No meio daquela confusão<br />
<strong>de</strong> gente naquela situação difícil,<br />
que por pouco não conduz todos<br />
ao afogamento, a professora lhe<br />
pergunta: como é que se tratam as<br />
outras pessoas?<br />
– Com amor, <strong>Angélica</strong> respon<strong>de</strong>.<br />
A essa altura ela não podia mais<br />
avistar as irmãs e o medo <strong>de</strong> terse<br />
perdido <strong>de</strong>las aumenta.<br />
– Mas amar a alguns é fácil, responda<br />
como se faz para amar o inimigo!<br />
<strong>Angélica</strong> não respon<strong>de</strong>, mas percebe<br />
que sua antiga professora já não<br />
era tão amável como no passado. E<br />
espirra-lhe um pouco <strong>de</strong> água nos<br />
olhos para conseguir <strong>de</strong>spistá-la,<br />
entrando no bote salva-vidas com<br />
auxílio <strong>de</strong> uma bóia que alguém<br />
lhe arremessara. Havia bóias para<br />
todos que enfim se salvam daquele<br />
teste insólito e po<strong>de</strong>m agora participar<br />
da gran<strong>de</strong> celebração.<br />
<strong>Angélica</strong> sai à procura das irmãs e<br />
da tia e as encontra boiando calmamente<br />
em uma piscina, vestidas<br />
com roupas <strong>de</strong> banho, como<br />
se nada tivesse acontecido; apenas<br />
vê algumas algas que se haviam<br />
<strong>de</strong>sprendido <strong>de</strong> seus corpos e se<br />
colavam ao fundo da piscina.<br />
Já era outro dia e ela resolve<br />
escolher uma re<strong>de</strong> no jardim para<br />
que pu<strong>de</strong>sse <strong>de</strong>itar-se <strong>de</strong> costas<br />
e fingir que flutuava por entre<br />
as nuvens claras que se moviam<br />
muito rapidamente no céu e,<br />
mesmo com os olhos fechados,<br />
perceber os raios da luz do sol.<br />
54<br />
Ilustração: Flora Brina
O santuário<br />
Estavam em família na enorme<br />
casa dos bisavós <strong>de</strong> <strong>Angélica</strong> em<br />
sua principal proprieda<strong>de</strong>. O lugar<br />
era rústico lembrando o medieval,<br />
pois a ma<strong>de</strong>ira grossa e bruta compunha<br />
batentes <strong>de</strong> portas e janelas<br />
edificando-as como amplas passagens<br />
para o tempo que acumulara<br />
seus sinais. Lá fora as pare<strong>de</strong>s<br />
eram construídas com blocos <strong>de</strong><br />
pedra, um a um, bloco sobre bloco.<br />
Era dia <strong>de</strong> festa e este havia sido o<br />
lugar aon<strong>de</strong> <strong>Angélica</strong> mais gostara<br />
<strong>de</strong> ir durante a maior parte da sua<br />
vida. Mas hoje, já não queria mais<br />
voltar a ele e nada a fez mudar <strong>de</strong><br />
idéia durante muito tempo. <strong>Angélica</strong><br />
lembrava-se <strong>de</strong> que na última<br />
vez que lá estivera, um empregado<br />
trazia seu pobre jumento no colo<br />
agonizante porque acabara <strong>de</strong> se<br />
aci<strong>de</strong>ntar e per<strong>de</strong>r uma das patas<br />
dianteiras.<br />
Naquele dia ela enfim não po<strong>de</strong>ria<br />
fugir àquela obrigação, pois era<br />
celebração dos 96 anos <strong>de</strong> sua avó<br />
paterna.<br />
E toma a <strong>de</strong>cisão novamente irrevogável<br />
<strong>de</strong> ir à sua festa, o que<br />
significava retornar àquele lugar.<br />
Logo que se aproxima, ouve o<br />
barulho da música que espalhava<br />
pelo ar a grandiosida<strong>de</strong> daquele<br />
dia. A família era muito numerosa<br />
e possivelmente havia perto <strong>de</strong> 230<br />
pessoas no local. Os avós paternos<br />
e seus pais, durante algumas décadas<br />
tinham tido muitos amigos e<br />
todos os amavam quase como seus<br />
netos e bisnetos na pequena província<br />
vizinha.<br />
<strong>Angélica</strong> sai a uma das amplas<br />
varandas da casa principal e lá<br />
estavam dois jovens casais <strong>de</strong> japoneses<br />
conversando animadamente,<br />
quando um cachorro começa a<br />
latir sem parar. Ela se abaixa para<br />
brincar com o cãozinho e <strong>de</strong>scobre<br />
que sua pelugem era falsa, pois na<br />
verda<strong>de</strong>, sob ela havia um bebê que<br />
chorava e não um cachorro. Quando<br />
ela <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> tomá-lo nos braços, a<br />
mãe corre e o faz antes <strong>de</strong> <strong>Angélica</strong><br />
e tudo volta ao normal.<br />
57
Depois <strong>de</strong> cumprimentar as pessoas<br />
que conhecia e muitas que nunca<br />
havia visto, lembrou-se <strong>de</strong> que o<br />
empregado que carregava o animal<br />
<strong>de</strong> estimação no dia em que este<br />
agonizava, lhe havia ensinado sobre<br />
o local que chamava <strong>de</strong> santuário,<br />
pois era o lugar aon<strong>de</strong> o homem ia<br />
quando precisava pensar sobre a<br />
estranheza da vida.<br />
E naquela manhã, <strong>Angélica</strong> vai procurar<br />
o santuário atrás do pasto,<br />
on<strong>de</strong> as árvores eram muito altas<br />
e formavam <strong>de</strong>nso agrupamento.<br />
Então, encontra uma senhora japonesa<br />
que a leva para falar com<br />
o mestre do santuário que também<br />
era um velho senhor japonês.<br />
Quando está diante <strong>de</strong>le, <strong>Angélica</strong><br />
percebe que este homem se transfigura,<br />
ora mostrando sua própria<br />
imagem, ora parecendo uma imensa<br />
árvore cuja copa se agigantava e<br />
suas longas folhagens e ramagens<br />
mostravam seu cãozinho <strong>de</strong> estimação<br />
e ora como se tivesse o rosto<br />
<strong>de</strong> cada um dos familiares <strong>de</strong>la.<br />
O velho japonês lhe pe<strong>de</strong> um copo<br />
<strong>de</strong> água e ela lhe diz que não havia<br />
como conseguir um naquele momento,<br />
pois se afastara <strong>de</strong>masiado<br />
da casa. <strong>Angélica</strong> agora está diante<br />
do velho japonês e <strong>de</strong> outra gran<strong>de</strong><br />
árvore repleta <strong>de</strong> frutos amarelos<br />
<strong>de</strong> casca brilhante. O vento começa<br />
a soprar forte nesse instante,<br />
o céu fica escuro e o chão forrado<br />
<strong>de</strong> folhas e gravetos quase negros.<br />
Os frutos amarelos caíam todos ao<br />
chão, alguns se esborrachavam,<br />
outros ficavam inteiros.<br />
O velho japonês engatinhava sobre<br />
o chão ao lado <strong>de</strong> <strong>Angélica</strong>, que lhe<br />
dizia: vamos procurar bem, porque<br />
alguns frutos ainda são bons para<br />
ser comidos e vão saciar sua se<strong>de</strong>,<br />
pois têm muito caldo. Então, o velho<br />
ergue-se do chão ajudando-a a<br />
levantar-se também e diz que já era<br />
hora <strong>de</strong> ela partir, mas que <strong>de</strong>veria<br />
aceitar o presente que ele lhe ofertava.<br />
<strong>Angélica</strong> abre uma pequena<br />
caixinha <strong>de</strong> marfim que ele traz<br />
consigo, e, ao abri-la fica admirada<br />
58<br />
Ilustração: Sabrina Zerlini
ao ver a miniatura do santuário<br />
que se erguia sobre três pequenos<br />
cristais, dois coloridos e um branco.<br />
Eles se <strong>de</strong>spe<strong>de</strong>m e ele diz a ela<br />
que quando viessem as tempesta<strong>de</strong>s<br />
em sua vida que ela olhasse<br />
através dos pequenos cristais.<br />
Quando volta para a festa é o<br />
momento <strong>de</strong> cortar o bolo <strong>de</strong><br />
aniversário e pelo menos meta<strong>de</strong><br />
dos convidados dançava efusivamente,<br />
enquanto a outra meta<strong>de</strong><br />
nem sequer pensava em <strong>de</strong>sfazer<br />
esse instante solene <strong>de</strong> modo a<br />
reorganizar seus <strong>de</strong>stinos.<br />
<strong>Angélica</strong> tem certeza <strong>de</strong> que toda<br />
estranheza da vida apenas parecia<br />
ser assim. Acontecera a ela,<br />
tal qual fossem peças encaixadas<br />
<strong>de</strong> um quebra - cabeças em seus<br />
múltiplos <strong>de</strong>talhes e em muitas<br />
cores, o dia em que seu coração<br />
se tornou límpido e ela apren<strong>de</strong>u<br />
a enxergar através <strong>de</strong>le.<br />
E o empregado que carregara seu<br />
animal preferido já <strong>de</strong>via saber<br />
disso há bastante tempo.<br />
60<br />
Ilustração: Sabrina Zerlini
Cães<br />
ferozes:<br />
a caçada<br />
Nunca se sabe ao certo o que po<strong>de</strong><br />
acontecer quando nos <strong>de</strong>paramos<br />
com um cão bravo... Caros amiguinhos:<br />
tirem suas próprias conclusões...<br />
Havia um escon<strong>de</strong>rijo estreito<br />
cujas pare<strong>de</strong>s eram <strong>de</strong> pedra<br />
muito espessa por on<strong>de</strong> <strong>Angélica</strong><br />
não conseguia passar. Um homem<br />
<strong>de</strong>sconhecido atiçava um cão feroz<br />
contra ela que se escondia, fugia<br />
ou se <strong>de</strong>fendia para que o cão<br />
não a alcançasse. Depois <strong>de</strong> muito<br />
esforço, o cão per<strong>de</strong> meta<strong>de</strong> das<br />
patas dianteiras enquanto a jovem<br />
se escon<strong>de</strong> em silêncio...<br />
A caçada continua e um velho<br />
bruxo traçava seu plano <strong>de</strong>rra<strong>de</strong>iro<br />
para <strong>de</strong>struir nossa heroína. Entre<br />
cartas <strong>de</strong> seu advogado e perseguições<br />
numa casa muito ampla,<br />
cheia <strong>de</strong> cômodos, janelas largas e<br />
portas abertas e uma gran<strong>de</strong> área<br />
externa <strong>de</strong> corredores e jardins,<br />
o velho bruxo lança uma enorme<br />
ban<strong>de</strong>ja amarela e azul ao encalço<br />
<strong>de</strong> <strong>Angélica</strong>. Depois, arranja muitos<br />
dobermans negros gran<strong>de</strong>s e<br />
ferozes, cujas presas eram longas e<br />
afiadas, e os arremete todos atrás<br />
<strong>de</strong>la que corre muito e sem parar,<br />
até que cai no chão por ficar exaurida.<br />
Os cachorros a ro<strong>de</strong>iam. Algo<br />
inusitado acontece, pois, ao invés<br />
Ilustração: André Moniz
<strong>de</strong> atacá-la, começam a lamber<br />
<strong>Angélica</strong> caída ao chão e <strong>de</strong>pois vão<br />
embora, <strong>de</strong>sistindo <strong>de</strong> sua presa.<br />
Cães ferozes permanecem à espreita<br />
<strong>de</strong> alguém que vive distraído<br />
e, outra vez parece que vão atacar,<br />
agora na casa da avó <strong>de</strong> <strong>Angélica</strong>.<br />
Ilustração: André Moniz<br />
Eram gordos e pesados, escuros e<br />
muito enfurecidos. Uma empregada<br />
da casa <strong>de</strong>ixa-os escapar e o<br />
pai da menina que está por perto,<br />
nada po<strong>de</strong> fazer para <strong>de</strong>tê-los.<br />
Apesar disso, há tempo para que<br />
ela e sua irmãzinha fujam pela<br />
porta da sala <strong>de</strong> jantar e os cachorros<br />
latem sem parar, empurram a<br />
porta e forma-se uma confusão <strong>de</strong><br />
pessoas, gritos, cachorros latindo,<br />
até que eles vêem a avó chegar e<br />
ficam imóveis. A simples presença<br />
da avó das meninas parecia transformá-los<br />
em estátuas.<br />
No verão seguinte <strong>Angélica</strong> vai<br />
visitar amigos que há muito não via<br />
e um cão bravo novamente corre<br />
atrás <strong>de</strong>la, movimentando-se muito<br />
rapidamente enquanto ela fica<br />
apenas olhando para cima, pois,<br />
como uma espiral giratória e muito<br />
rápida, ele vai subindo e subindo<br />
até que <strong>de</strong> repente cai sobre o chão.<br />
Quando olha para ele no chão, vê<br />
que não era exatamente um cachorro<br />
– e muito menos era bravomas<br />
havia-se transformado num<br />
duen<strong>de</strong> pequenino e muito brincalhão,<br />
<strong>de</strong> barbas e cabelos ruivos,<br />
falando com <strong>Angélica</strong> em inglês e<br />
usando roupas muito coloridas!<br />
Eles se tornaram amigos e os dois<br />
riam sem parar! O nome pouco<br />
comum do novo amigo era Ruphy<br />
e ela não conseguia parar <strong>de</strong><br />
rir já que ele queria contar-lhe<br />
que uma feiticeira havia praguejado<br />
contra ele por causa <strong>de</strong> suas<br />
barbas vermelhas das quais não<br />
gostava. Como ele havia corrido<br />
atrás <strong>de</strong>la para fazê-la parar <strong>de</strong> lhe<br />
falar sobre sua barba, a feiticeira<br />
transformou-o em um cão bravo<br />
e agora, vejam só, Ruphy voltou a<br />
ser um duen<strong>de</strong> muito engraçado<br />
e brincalhão e continuava a pular<br />
alto como uma mola que logo o<br />
<strong>de</strong>volvia ao chão.
Muitas<br />
histórias<br />
A casa era gran<strong>de</strong> e espaçosa e o<br />
pé direito bem alto lhe conferia<br />
toques da bela arquitetura inspirada<br />
na Itália renascentista. Muitas<br />
janelas favoreciam que a luz<br />
entrasse tanto quanto quisesse.<br />
E muitas histórias eram contadas<br />
na vizinhança sobre aquela casa.<br />
Alguns diziam que havia pertencido<br />
a três gerações <strong>de</strong> patriarcas,<br />
médicos que cuidavam das crianças<br />
que às vezes precisavam <strong>de</strong>les.<br />
Outros que havia sido um restaurante<br />
indiano ou afegão cujos<br />
donos teriam sido dois homens<br />
gordos e <strong>de</strong>sconfiados e sua mãe,<br />
que lhes preparava pratos in<strong>de</strong>scritivelmente<br />
saborosos e por isso,<br />
seus filhos passaram a vida como<br />
verda<strong>de</strong>iros glutões.<br />
Uma velha mulher era conhecida<br />
na periferia da cida<strong>de</strong> pelo nome <strong>de</strong><br />
Ádria e contava uma linda história<br />
<strong>de</strong> amor numa época em que aquela<br />
casa servira <strong>de</strong> palco para a felicida<strong>de</strong>.<br />
O amor impossível entre um<br />
Ilustração: Aline Boechat
professor e sua aluna, em tal ponto<br />
da vida <strong>de</strong>le, que já havia sido casado<br />
três vezes e tinha cinco filhas<br />
<strong>de</strong>sses casamentos. A casa havia<br />
sido o lugar on<strong>de</strong> eles passavam<br />
horas caminhando pelos jardins,<br />
fingindo que a filhinha mais nova<br />
do professor fosse <strong>de</strong>les, até o dia<br />
em que a verda<strong>de</strong>ira mãe <strong>de</strong>scobriu<br />
e expulsou <strong>de</strong> uma vez por todas a<br />
aluna dos arredores da casa.<br />
Também era comum contar-se pela<br />
redon<strong>de</strong>za que um homem sinistro<br />
mudara-se para a casa e substituíra<br />
todos os quadros que <strong>de</strong>coravam as<br />
pare<strong>de</strong>s pelos seus próprios quadros<br />
e, logo <strong>de</strong>pois disso, uma tempesta<strong>de</strong><br />
muito forte a estremecera,<br />
e toda a casa teve <strong>de</strong> passar por<br />
profunda reforma.<br />
E lá estava <strong>Angélica</strong> caminhando<br />
calmamente olhando tudo por<br />
todos os cantos da casa e em sua<br />
mente aquelas histórias lhe pareciam<br />
muito reais.<br />
Contava-se também que as telas<br />
do homem sinistro haviam per-<br />
dido as cores e a textura e no lugar<br />
<strong>de</strong>las havia apenas tecido em<br />
branco amarelado pelo tempo.<br />
Além disso, o jardim interno era<br />
<strong>de</strong> uma beleza familiar, pois a fazia<br />
lembrar-se dos momentos <strong>de</strong><br />
sua própria infância quando corria<br />
com seus primos e primas sob o<br />
balcão moldado por balaústres<br />
que se <strong>de</strong>pendurava do nível<br />
superior, tal qual havia<br />
na casa <strong>de</strong> seus<br />
avós maternos.<br />
<strong>Angélica</strong> sentia<br />
que aquelas<br />
imagens mantinham-se<br />
nítidas <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong>la, embora<br />
soubesse que nunca<br />
<strong>de</strong> fato tivesse<br />
morado lá, nem com<br />
sua família.<br />
Sabia, no entanto, que iria<br />
preencher as telas em branco<br />
com sua própria história quando<br />
se mudasse para a casa.<br />
68 Ilustração: Aline Boechat
O museu<br />
da cida<strong>de</strong><br />
Na pequena cida<strong>de</strong> na costa noroeste<br />
da Espanha, on<strong>de</strong> <strong>Angélica</strong><br />
<strong>de</strong>cidira passar o verão naquele<br />
ano, o evento do momento era o<br />
Museu da Cida<strong>de</strong> que acabara <strong>de</strong><br />
passar por uma reforma espetacular.<br />
A fachada tinha sido totalmente<br />
revestida <strong>de</strong> mármore travertino<br />
alabastrino raríssimo que reluzia o<br />
dia e a noite.<br />
Sobre o portal <strong>de</strong> entrada havia um<br />
arranjo imenso <strong>de</strong> pedras semipreciosas<br />
ver<strong>de</strong>s, em forma <strong>de</strong> flor,<br />
em longos “<strong>de</strong>dos” que sugeriam a<br />
formação <strong>de</strong> pétalas.<br />
Esses tais<br />
<strong>de</strong>dos imitavam<br />
cristais <strong>de</strong> esmeraldas<br />
<strong>de</strong> rara beleza.<br />
A fachada do museu<br />
havia-se transformado<br />
mesmo num<br />
verda<strong>de</strong>iro esplendor<br />
em arte e olhar para ela<br />
suscitava a lembrança<br />
tranqüilizante <strong>de</strong> algum<br />
processo em germinação.<br />
Lá <strong>de</strong>ntro, logo na entrada, <strong>Angélica</strong><br />
<strong>de</strong>para-se com escadas<br />
construídas em caracol coberto <strong>de</strong><br />
mármore branco e gra<strong>de</strong>s <strong>de</strong> ferro<br />
pintadas <strong>de</strong> ver<strong>de</strong> e ela vê, inexplicavelmente,<br />
uma criança traquinas<br />
que escorregava pelas pedras polidas<br />
dispostas como corrimão da<br />
escada e ia esbarrando numa fileira<br />
<strong>de</strong> harpas vermelhas e douradas<br />
que começavam a tocar.<br />
Lá fora acontecia uma<br />
gran<strong>de</strong> festa e on<strong>de</strong> se<br />
encontrava a família<br />
<strong>de</strong>ssa criança, embora<br />
ninguém pu<strong>de</strong>sse supor<br />
o que se passava a<br />
alguns passos dali, pois<br />
somente <strong>Angélica</strong> e essa<br />
criança <strong>de</strong>sconhecida<br />
haviam a<strong>de</strong>ntrado o<br />
museu. Nem ela sabia<br />
ao certo como conseguira<br />
entrar sem<br />
ser vista pelos seguranças,<br />
já que<br />
havia chegado há<br />
Ilustração: Bianca Prado<br />
71
horas atrás. Quanto à criança, não<br />
tinha a menor idéia como po<strong>de</strong>ria<br />
estar ali.<br />
<strong>Angélica</strong> aguarda até que a menina<br />
volte para o saguão do museu daquele<br />
que seria seu último passeio<br />
pelo corrimão; ajeita seu vestido<br />
e os cachos dourados <strong>de</strong> seus<br />
cabelos e lhe diz que iria levá-la<br />
ao encontro <strong>de</strong> seus pais que haviam<br />
dado conta <strong>de</strong> que a menina<br />
<strong>de</strong>saparecera, pois pelo som que<br />
vinha pelo lado <strong>de</strong> fora, ouvia-se a<br />
<strong>de</strong>scrição da menina através dos<br />
alto-falantes.<br />
Uma vez cumprida sua missão,<br />
<strong>Angélica</strong> toma a direção norte do<br />
entorno do museu on<strong>de</strong> um canal<br />
se <strong>de</strong>senhava por um belo jardim<br />
forrado <strong>de</strong> flores <strong>de</strong> muitas espécies,<br />
porém todas cor-<strong>de</strong>-rosa<br />
escuro.<br />
Curioso é que à medida que <strong>Angélica</strong><br />
passa entre as flores do jardim<br />
para chegar ao outro lado, as flores<br />
soltam-se tingindo o gramado<br />
<strong>de</strong> cor-<strong>de</strong>-rosa para logo em seguida<br />
<strong>de</strong>smanchar-se.<br />
Ilustração: Bianca Prado
Ilustração: Flora Brina<br />
Mizanxisto<br />
Nadrilon era um trabalhador incansável<br />
e um velho contador <strong>de</strong><br />
histórias. Saía pelo mundo com<br />
sua lanterna mágica iluminando<br />
caminhos por on<strong>de</strong> muitos já haviam<br />
passado e ainda muitos outros<br />
iriam passar.<br />
Vivia à beira do vale dourado que<br />
assim era conhecido porque as<br />
águas límpidas <strong>de</strong> um rio que cortava<br />
campos ver<strong>de</strong>s como brotos<br />
<strong>de</strong> alface, brilhavam sob a luz das<br />
manhãs e era como se os seixos<br />
dourados do leito do rio, espalhassem<br />
pó <strong>de</strong> ouro por todo o vale.<br />
Nadrilon vivia na al<strong>de</strong>ia próxima e<br />
contava que o vale dourado <strong>de</strong>safiava<br />
a paisagem on<strong>de</strong> outrora o Cavaleiro<br />
<strong>de</strong> Bastões salvara sua amada<br />
da picada <strong>de</strong> uma serpente venenosa<br />
e terrível.<br />
Na encosta entrecortada pelo vale<br />
do rio nascera uma árvore incomum<br />
o que se notava pela formação<br />
<strong>de</strong> sua copa que era vigorosa<br />
e formava um <strong>de</strong>senho em vinte<br />
e duas partes, cada uma <strong>de</strong>las<br />
75
apoiada nas duas inferiores como<br />
meias luas equilibrando-se em<br />
manobras <strong>de</strong> perfeito malabarismo.<br />
Dizia-se que essa estranha<br />
árvore era mizanxisto e seu po<strong>de</strong>r<br />
<strong>de</strong> cura era insuperável porquanto<br />
brotava da terra que gerava os<br />
seixos dourados.<br />
Nadrilon gostava <strong>de</strong> contar a todos<br />
a lenda do Cavaleiro enquanto<br />
a magia da lanterna espalhava a<br />
luz ao atravessar o pó <strong>de</strong> ouro dos<br />
seixos. Ele contava que numa linda<br />
tar<strong>de</strong> <strong>de</strong> primavera o Cavaleiro<br />
encontrou sua amada colhendo<br />
flores do campo e amoras bem<br />
perto do vale e encheu-se do amor<br />
irradiado pela jovem.<br />
A partir <strong>de</strong>sse instante o Cavaleiro<br />
soube então, que aquele lampejo<br />
<strong>de</strong> iluminação trazia em si a<br />
mensagem que <strong>de</strong>spertou <strong>de</strong>ntro<br />
<strong>de</strong>le o amor como nunca havia<br />
experimentado.<br />
Muitas manhãs se seguiram até<br />
que o Cavaleiro e a jovem trocassem<br />
as primeiras palavras quando<br />
ele lhe oferece ajuda para carregar<br />
a cesta cheia <strong>de</strong> amoras e flores.<br />
Ela caminha na direção do cavaleiro<br />
que se aproxima montado em<br />
seu cavalo, porém algo a faz cair ao<br />
chão e seu grito <strong>de</strong> dor se espalha<br />
pelo vale dourado. O cavalo sai em<br />
disparada e o cavaleiro percebe rapidamente<br />
que o réptil já estava sob<br />
as patas <strong>de</strong> seu fiel companheiro,<br />
mas precisava agir ainda mais rapidamente<br />
para salvar sua amada.<br />
Então, ele a transporta para a beira<br />
do rio sob a copa <strong>de</strong> mizanxisto<br />
e usa o leite <strong>de</strong> suas folhas para<br />
neutralizar o veneno da serpente.<br />
O Cavaleiro permanece sete dias<br />
e sete noites lavando e cuidando<br />
do ferimento até que a jovem abre<br />
os olhos.<br />
Nadrilon sentia-se muito feliz<br />
quando contava a história <strong>de</strong> mizanxisto<br />
e da donzela que foi salva<br />
pelo Cavaleiro <strong>de</strong> Bastões e continuava<br />
a seguir seu caminho iluminando<br />
outros caminhos e contando<br />
histórias a quem por ali passasse.<br />
76<br />
Ilustração: Flora Brina
Searching<br />
for the<br />
ocean<br />
Coisas imprevisíveis aconteciam a<br />
toda hora e <strong>Angélica</strong> chegou à conclusão<br />
<strong>de</strong> que precisava apren<strong>de</strong>r a<br />
explorar terrenos <strong>de</strong>sconhecidos.<br />
Pessoas que faziam parte da sua<br />
vida tomavam seu carro emprestado<br />
e ela não conseguia dizer não; às<br />
vezes, era um professor, outras um<br />
gran<strong>de</strong> amigo que poucos anos <strong>de</strong>pois<br />
jamais voltou a falar com ela.<br />
Outras vezes era sua mãe dirigindo<br />
uma Lumina cheia <strong>de</strong> crianças<br />
no colo <strong>de</strong> suas irmãs ou então<br />
seu irmão que pilotava um veículo<br />
bastante estranho, cuja funilaria<br />
era muito frágil e dirigia ao sabor<br />
do vento que uivava para cima e<br />
para o alto!<br />
Quando então alguém tinha levado<br />
seu carro, ela tomava um<br />
ônibus urbano para ir à escola e<br />
sempre se encontrava com um<br />
senhor inglês muito distinto, que<br />
sorria para ela sempre do mesmo<br />
jeito, mas não lhe dizia nenhuma<br />
palavra. Isso aconteceu durante<br />
vários anos.<br />
Ilustração: Luan Pessoa
Outra vez por pouco <strong>Angélica</strong> não<br />
enten<strong>de</strong>u que estava sendo confundida<br />
com outra jovem, e se viu<br />
à beira <strong>de</strong> um <strong>de</strong>smaio, quando,<br />
um homem bem mais velho que<br />
ela, dizia ter-se apaixonado por<br />
ela e queira levá-la embora em<br />
sua Ferrari !<br />
Depois, foi a vez do motorista da<br />
escola das crianças informando<br />
que iria levá-las todas para ver<br />
polvos do fundo do mar lá no porto<br />
da praia dos pescadores, local on<strong>de</strong><br />
outrora seu avô costumava levar<br />
seus netos mais velhos para o mesmo<br />
passeio com o mesmo objetivo.<br />
Numa viagem que fez à Alemanha,<br />
<strong>Angélica</strong> entra no ônibus para reunir-se<br />
ao grupo que acompanhava<br />
e a neve havia transformado seus<br />
pés em blocos <strong>de</strong> gelo, já que ela<br />
usava lindos sapatos <strong>de</strong> couro totalmente<br />
ina<strong>de</strong>quados para toda<br />
aquela neve! Enquanto massageia<br />
os pés na tentativa <strong>de</strong> reanimá-los,<br />
um turista que a havia visto caminhar<br />
apressada, a<strong>de</strong>ntra o ônibus e<br />
lhe pe<strong>de</strong> como souvenir o chapéu<br />
cor-<strong>de</strong>-mel que combinava tão<br />
bem com seu casaco longo <strong>de</strong><br />
lã clara.<br />
Quando volta para casa<br />
<strong>de</strong>ci<strong>de</strong> comprar um<br />
jipe enorme, cujas<br />
rodas e pneus eram<br />
muito altos, enfim para<br />
que ela pu<strong>de</strong>sse explorar<br />
terrenos <strong>de</strong>sconhecidos<br />
e dirigir ela mesma<br />
seu jipe enquanto<br />
treinava a lição das aulas<br />
<strong>de</strong> inglês, tal como a história<br />
do livro ”Searching for<br />
the ocean”.<br />
80<br />
Ilustração: Luan Pessoa
Conto <strong>de</strong><br />
terror:<br />
matadores<br />
<strong>de</strong> mulheres<br />
e crianças<br />
Ilustração:<br />
André Moniz<br />
Era final <strong>de</strong> ano e toda família se<br />
reunia na casa bastante espaçosa<br />
da matriarca que acomodava<br />
muito bem cerca<br />
<strong>de</strong> quarenta pessoas<br />
e ficava no lugar<br />
mais alto do<br />
pequeno povoado.<br />
Nos<br />
jornais, a<br />
notícia que<br />
os matadores<br />
<strong>de</strong><br />
mulheres<br />
e crianças<br />
haviam<br />
fugido da<br />
prisão e<br />
po<strong>de</strong>riam<br />
oferecer ameaças<br />
<strong>de</strong> qualquer<br />
natureza.<br />
Todos estão reunidos<br />
esperando as comemorações<br />
do réveillon. Minha<br />
intuição me dizia que os matadores<br />
po<strong>de</strong>riam passar por ali e <strong>de</strong>-<br />
83
cido vasculhar o quarto <strong>de</strong> costura<br />
<strong>de</strong> minha avó para procurar pelos<br />
vilões. Vejo então uma escultura<br />
masculina <strong>de</strong> pedra estendida sobre<br />
o chão e aciono uma manivela<br />
que a faz mover-se e ganhar vida.<br />
Brad Pitt ergue-se do chão entre<br />
folhas, flores e terra e aparece na<br />
janela através da vidraça abaixada.<br />
Logo <strong>de</strong>pois surge Kenu Reeves e<br />
eu não entendo como aquilo podia<br />
estar acontecendo, afinal, o<br />
que estariam fazendo ali se ambos<br />
moram em Hollywood?<br />
Corro à sala <strong>de</strong> TV on<strong>de</strong> estavam<br />
meu pai e meu tio que nos visitava<br />
para lhes dizer que já sabia quem<br />
eram e on<strong>de</strong> estavam os matadores<br />
<strong>de</strong> mulheres e crianças. Nada comunico<br />
aos meus cunhados, já que<br />
haviam <strong>de</strong>ixado o portão aberto<br />
e meu cãozinho farejador fugira.<br />
Naquela tar<strong>de</strong>, enquanto eu gritava<br />
pelo nome <strong>de</strong>le, <strong>de</strong>parei-me com<br />
ele no meio da rua latindo diante<br />
da proprieda<strong>de</strong> do vizinho. Que<br />
susto! Ele po<strong>de</strong>ria ter sido atropelado<br />
ou ter-se envolvido em uma<br />
briga com algum vira-lata!<br />
A madrugada avançava e poucos<br />
ainda estavam acordados e vou<br />
lá fora fechar o portão pesado <strong>de</strong><br />
ma<strong>de</strong>ira, mas não tinha forças<br />
para fazê-lo sozinha. Eis que lá<br />
estou eu empurrando a pesada estrutura<br />
do portão quando surgem<br />
Brad Pitt e Kenu Reeves e eles me<br />
diziam que não vinham para matar<br />
as mulheres e as crianças, como os<br />
jornais anunciavam e que antes <strong>de</strong><br />
qualquer coisa, pediam que lhes<br />
servisse champagne e mais, queriam<br />
camas macias e lençóis brancos<br />
<strong>de</strong> algodão para dormir, pois<br />
estavam muito cansados!<br />
Agora era minha vez <strong>de</strong> largar os<br />
portões abertos, já que saí na disparada<br />
gritando a quem estivesse<br />
dormindo que viesse ver os matadores<br />
<strong>de</strong> mulheres e crianças!<br />
Minha intuição sobre os vilões não<br />
era correta; eles nem eram assaltantes<br />
e muito menos matadores<br />
<strong>de</strong> mulheres e crianças!<br />
84<br />
Ilustração:<br />
André Moniz
Os amigos<br />
A casa <strong>de</strong> Sabrina era gran<strong>de</strong> e<br />
luxuosa e tinha colunas romanas<br />
e tijolos claros à vista. Amigos<br />
do passado – exceto um ou dois<br />
que não foram localizados – vieram<br />
compartilhar esse momento.<br />
O motivo da festa era a fusão <strong>de</strong><br />
gran<strong>de</strong>s negócios <strong>de</strong><br />
três famílias tradicionais da cida<strong>de</strong>.<br />
Miguel pertencia a uma das ilustres<br />
famílias e foi um dos que não vieram<br />
já que estava em viagem internacional<br />
com objetivos <strong>de</strong> intercâmbio<br />
cultural.<br />
Gabriel provavelmente chegaria<br />
atrasado, pois fora assim que<br />
se acostumou ao longo <strong>de</strong> todos<br />
aqueles anos: jamais cumprira<br />
uma agenda sequer!<br />
O pai <strong>de</strong> Sabrina sempre discutia<br />
perspectivas <strong>de</strong> negócios com meu<br />
pai, porém nunca com cumprimentos<br />
calorosos ao estilo latino e<br />
sempre com pressa e falta <strong>de</strong> real<br />
propósito.Ela havia sido minha<br />
primeira amiga na escola, minha<br />
“quase” irmã, e durante muitos<br />
anos, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> então,<br />
86 Ilustração: Aline Boechat 87
sabíamos exatamente tudo o que a<br />
outra estava pensando.<br />
Vou andando pelo jardim principal<br />
e encontrando pessoas e<br />
não me parecia que tivessem sido<br />
parte importante do meu passado.<br />
Enquanto caminho por entre<br />
poltronas e mesas postas no jardim<br />
on<strong>de</strong> os convidados refrescavam-se<br />
com sucos <strong>de</strong> frutas<br />
exóticas, champagne e água, olho<br />
na direção da casa e vejo alguém<br />
acenando para mim. Tomo minha<br />
taça colorida pela groselha<br />
que invadia a cor laranja do suco<br />
misturado a pêssego e uva que eu<br />
bebia e me dirijo àquele grupo.<br />
E lá estava Sabrina abraçada aos<br />
meus queridos Licos, Augusto e<br />
Neto, os mesmos que nos acompanharam<br />
dos sete aos <strong>de</strong>zessete<br />
anos ouvindo aos mesmos professores<br />
nas mesmas salas <strong>de</strong> aulas.<br />
Depois disso cada um seguiu seu<br />
caminho; Licos vivia no exterior,<br />
Neto representava uma organização<br />
humanitária e Augusto dirigia<br />
uma gran<strong>de</strong> empresa no setor <strong>de</strong><br />
bebidas.<br />
Alguém bastante especial toca meu<br />
ombro e quando me viro, <strong>de</strong>paro-me<br />
com Álvaro que havia sido<br />
meu primeiro namorado, mas acabara<br />
casando-se com Sabrina. Recordamos,<br />
ao mesmo tempo, que<br />
em minha festa <strong>de</strong> 15 anos, Álvaro<br />
viera colher flores cor-<strong>de</strong>-rosa do<br />
meu jardim.<br />
Traços, rostos, cores, rugas e fios<br />
<strong>de</strong> cabelos, bocas e olhos, tudo isso<br />
se confundia diante <strong>de</strong> mim e se<br />
misturava com instantes do passado.<br />
Augusto era capaz <strong>de</strong> contar em<br />
<strong>de</strong>talhes situações das quais não<br />
me lembraria nem que tivessem<br />
ocorrido há uma semana ou quem<br />
sabe, ontem!<br />
Sabrina e eu entramos na casa e subimos<br />
para o segundo piso só para<br />
ter a perspectiva das cenas que se<br />
passavam no magnífico jardim, pois<br />
dali a algumas horas, tudo aquilo<br />
faria parte da galeria <strong>de</strong> imagens<br />
difusas em nossa memória.<br />
88 Ilustração: Aline Boechat
Pequenos<br />
milagres<br />
Milagres não são eventos fantasiosos<br />
ou objeto <strong>de</strong> sonhos. Milagres<br />
estão on<strong>de</strong> está o coração.<br />
<strong>Angélica</strong> passeava com seu cachorro<br />
e um casal <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um carro<br />
parou a seu lado para perguntar<br />
on<strong>de</strong> era a Rua Papirus. Não sei,<br />
<strong>de</strong>sculpem-me. Ficou tão <strong>de</strong>sapontada:<br />
<strong>de</strong>veria saber, já que mora no<br />
bairro há algum tempo. Caminhava<br />
pela Rua Sibipiruna e ao chegar<br />
numa esquina, <strong>Angélica</strong> <strong>de</strong>cidiu<br />
vasculhar a placa que se escondia<br />
sob folhas cerradas <strong>de</strong> duas gran<strong>de</strong>s<br />
árvores. Quer ver? Milagre!!<br />
Rua Papirus, era o que estava inscrito<br />
na placa. O coração <strong>de</strong> <strong>Angélica</strong><br />
saltou e ela também, pois começou<br />
a acenar fortemente com os<br />
braços para chamar a atenção do<br />
veículo que ainda estava por perto.<br />
O que ela queria era ajudar sinceramente<br />
o casal em sua busca.<br />
Quer outro?Há muitos anos <strong>Angélica</strong><br />
trabalhava para uma gran<strong>de</strong><br />
indústria <strong>de</strong> embalagens. Naqueles<br />
anos nem os aparelhos <strong>de</strong> fax<br />
Ilustração: Bianca Prado<br />
91
existiam, muito menos computadores<br />
pessoais e Internet. <strong>Angélica</strong><br />
precisava encontrar na literatura<br />
referências que comprovassem <strong>de</strong>terminada<br />
tecnologia, pois era vital<br />
para a empresa. Pesquisou em livros,<br />
revistas, periódicos, bibliotecas<br />
reais, até encontrar um artigo<br />
relevante ao tema cuja bibliografia<br />
era múltipla e extensa. Dentre<br />
elas uma apenas era dada como<br />
disponível por uma biblioteca na<br />
Inglaterra. O único recurso <strong>de</strong> que<br />
dispunha para tentar obtê-la seria<br />
escrever uma carta que viajaria<br />
muitos dias, às vezes até semanas<br />
para chegar a seu <strong>de</strong>stino final. Ela<br />
sabia que as chances eram bastante<br />
remotas, mas lá se foi sua missiva.<br />
Meses <strong>de</strong>pois, viva, <strong>de</strong>u pulos<br />
<strong>de</strong> alegria quando o correio lhe<br />
entregou exatamente o que tanto<br />
procurava! O que <strong>Angélica</strong> <strong>de</strong>sejava<br />
era sinceramente ajudar a resolver<br />
o problema da empresa.<br />
E mais outro. Po<strong>de</strong> parecer mesmo<br />
um pequeno acaso, mas <strong>Angélica</strong><br />
estava certa <strong>de</strong> que era mais um<br />
pequeno milagre. “Preste atenção,<br />
João!” é um livro que conta a estória<br />
<strong>de</strong> João, feliz da vida porque<br />
fora aprovado na escola! À medida<br />
que vai lendo a estória a um garoto<br />
<strong>de</strong> 12 anos hospitalizado há algumas<br />
semanas, sua mãe diz: “Ouça,<br />
essa estória é igual à sua, meu<br />
filho!” <strong>Angélica</strong> havia prometido o<br />
livro a ele, tão logo terminasse a<br />
leitura. O jovem ouvinte sonolento,<br />
abriu os olhos e o sorriso, mostrando<br />
sinais <strong>de</strong> que se via diante<br />
<strong>de</strong> uma possível solução para seu<br />
dilema,tal qual o João! Ela queria<br />
sinceramente fazer <strong>de</strong>spertar no<br />
menino o milagre das possibilida<strong>de</strong>s<br />
da vida.<br />
<strong>Angélica</strong> apren<strong>de</strong>u que na zona dos<br />
milagres não há distância entre o<br />
nosso coração e do outro. O individualismo<br />
já não existe mais. Na<br />
zona dos milagres só importa o<br />
outro; seus motivos, seu bem-estar<br />
e sua realização que operam como<br />
se fossem nossa própria riqueza.<br />
92<br />
Ilustração: Bianca Prado
O homem<br />
sinistro<br />
contra-ataca<br />
Meus pais pareciam não se dar<br />
conta <strong>de</strong> que eu “fugira” do caminho<br />
traçado pelo guia turístico em<br />
nossa viagem à Índia. Descera mais<br />
<strong>de</strong> quarenta metros abaixo da superfície<br />
porque queria acompanhar<br />
amigos estrangeiros em roteiro que<br />
não era o nosso. Entretanto, aquilo<br />
me parecia um verda<strong>de</strong>iro pesa<strong>de</strong>lo,<br />
porém absolutamente normal<br />
para as pessoas à minha volta. O<br />
medo ultrapassava minha consciência<br />
<strong>de</strong> estar com medo e só<br />
pensava em encontrar a saída, não<br />
importava que as pessoas moviam-<br />
-se,comiam, riam e conversavam<br />
com alegria e naturalida<strong>de</strong>, como<br />
se estivessem num restaurante.<br />
Eu queria sair porque sabia que<br />
havíamos chegado à Índia e eu<br />
queria sentir o aroma do incenso<br />
doce, admirar as miniaturas <strong>de</strong><br />
elefantes e as máscaras dos artesãos,<br />
aquelas mesmas máscaras<br />
que me fascinavam<br />
por suas cores e<br />
texturas <strong>de</strong>s<strong>de</strong><br />
a mais tenra infância. A cada contorno<br />
sem olhos minha imaginação<br />
voava nas alturas e logo criava<br />
um nome, um apelido ou associava<br />
suas cores aos cenários dos palácios<br />
dos imperadores em Jaipur<br />
ou às planícies áridas e poeirentas<br />
que via ao redor. Além disso, estava<br />
com fome e viera para comprar<br />
o almoço, <strong>de</strong> modo que precisava<br />
<strong>de</strong>scobrir como voltar.<br />
On<strong>de</strong> estava? Estava mesmo na<br />
Índia? Por que não realizava logo<br />
meu objetivo <strong>de</strong> comprar comida se<br />
ao meu redor todos estavam num<br />
restaurante? Não sabia ao certo.<br />
Decido então seguir por on<strong>de</strong> havia<br />
a<strong>de</strong>ntrado esse lugar esdrúxulo,<br />
pois os fios invisíveis que sustentam<br />
o universo me ofereceram o reencontro<br />
com o guia turístico, que me<br />
informa meus pais já terem seguido<br />
para o hotel on<strong>de</strong> recuperavam suas<br />
forças por algumas horas.<br />
Estou em meu quarto <strong>de</strong> hotel<br />
e antes mesmo <strong>de</strong> tirar o par <strong>de</strong><br />
tênis dos pés, reparo numa som-<br />
Ilustração: André Moniz<br />
95
a atrás do espelho do toucador;<br />
um homem <strong>de</strong>sconhecido havia<br />
entrado sorrateiramente em meu<br />
quarto e nele escon<strong>de</strong>u-se sem<br />
que eu o visse durante alguns dias.<br />
Antes meu pai o <strong>de</strong>scobriu e ele<br />
se foi, mas reapareceu disfarçado<br />
e agora <strong>de</strong>morou mais para meu<br />
pai <strong>de</strong>scobri-lo. Horas se passaram<br />
até que novamente ele entrou<br />
em cena segurando um fundo <strong>de</strong><br />
garrafa <strong>de</strong> vidro com a intenção<br />
clara <strong>de</strong> acertar meu pai. Decido<br />
interpelá-lo e começo a falar com<br />
ele fazendo-o sentir-se confiante<br />
<strong>de</strong> que não chamaria a governança<br />
nem a polícia, <strong>de</strong>s<strong>de</strong> que ele <strong>de</strong>ixasse<br />
meu pai e não lhe causasse<br />
nenhum mal. Era na verda<strong>de</strong> um<br />
boneco menino-anão que vestia<br />
uma capa preta para escon<strong>de</strong>r seu<br />
rosto sem brilho, marcado e sulcado,<br />
tão fundo quanto seus olhos<br />
que mal se viam. O anão queria<br />
mostrar-me suas vestes estranhas<br />
e o escon<strong>de</strong>rijo que acreditava privá-lo<br />
do contato com estrangeiros<br />
menos avisados. Enquanto me<br />
falava, eis que agora entra em cena<br />
o verda<strong>de</strong>iro homem sinistro. Este<br />
sim, não fala, olha somente, investiga,<br />
procura, anda <strong>de</strong> um lado e<br />
outro, levanta almofadas e colchas,<br />
abre portas e janelas, aproxima-se<br />
<strong>de</strong> mim, esfrega mechas <strong>de</strong> meus<br />
cabelos entre seus <strong>de</strong>dos e os<br />
aproxima das narinas para cheirá-<br />
-los em sinal <strong>de</strong> <strong>de</strong>mandar inspeção<br />
<strong>de</strong>talhada. Olha-me nos olhos,<br />
rodopia em volta <strong>de</strong> mim, empurra<br />
o boneco anão em direção à porta<br />
e ambos se vão. Antes <strong>de</strong> saírem o<br />
boneco anão me pe<strong>de</strong> um <strong>de</strong> meus<br />
pesados brincos <strong>de</strong> prata em forma<br />
<strong>de</strong> argola, pois era a condição<br />
que o homem sinistro impunha<br />
para <strong>de</strong>ixar-me em paz. Sentia-me<br />
vitoriosa já que felizmente o guia<br />
me indicara a saída daquele lugar<br />
insólito e não era mais obrigada<br />
a permanecer quarenta metros<br />
abaixo da superfície, olhando pessoas<br />
que eu não conhecia comendo<br />
legumes envoltos em massa <strong>de</strong><br />
panquecas e doce <strong>de</strong> leite.<br />
Afinal, ele me indicou a saída e<br />
cheguei ao hotel <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> mais<br />
uma hora caminhando sozinha, no<br />
meio das ruas repletas <strong>de</strong> ciclistas<br />
e pequenos veículos estranhos,<br />
que buzinavam a cada<br />
minuto, sem <strong>de</strong>finir<br />
nenhum critério<br />
compreensível para minha pobre<br />
mente oci<strong>de</strong>ntal.<br />
Também era motivo <strong>de</strong> orgulho<br />
para mim ter conseguido conversar<br />
com o boneco menino-anão e<br />
o homem sinistro, pois agora<br />
tinha certeza <strong>de</strong> que não<br />
voltariam mais a importunar-me,<br />
nem a meu pai.<br />
Po<strong>de</strong>ria sair livremente à procura<br />
das máscaras que<br />
permaneciam<br />
dançando<br />
na minha<br />
mente, tramando<br />
as<br />
histórias<br />
que eu iria<br />
contar<br />
quando<br />
voltasse<br />
para casa.<br />
96<br />
Ilustração:<br />
André Moniz
O espinheiro<br />
<strong>Angélica</strong> jogava frescobol com sua<br />
irmã mais velha usando gran<strong>de</strong>s<br />
raquetes <strong>de</strong> ma<strong>de</strong>ira e uma bolinha<br />
branca. Ambas eram belas e seus<br />
corpos ainda jovens saltitavam para<br />
lá e para cá, batendo bolinha, <strong>de</strong>scontraídas<br />
fazendo pontos, marcando<br />
e rindo e não querendo parar.<br />
O cunhado <strong>de</strong>las olhava e não dizia<br />
nada. Ao lado da quadra on<strong>de</strong><br />
as duas jogavam, havia um gran<strong>de</strong><br />
jardim cujos limites se arrematavam<br />
numa beirada <strong>de</strong> bosque cerrado,<br />
on<strong>de</strong> um pouco mais adiante<br />
se via um espinheiro, seco, <strong>de</strong>nso,<br />
escuro e assustador. Todos diziam<br />
que era muito perigoso entrar lá e,<br />
portanto, numa placa indicava-se<br />
:”Entrada Proibida”.<br />
Mas a voz da razão acaba tendo<br />
razão. O cunhado olhava e <strong>de</strong>cidiu<br />
dizer que as duas <strong>de</strong>viam ficar<br />
atentas para não atirar a bolinha<br />
para <strong>de</strong>ntro do espinheiro.<br />
Embora a irmã mais velha nem<br />
se importasse com as recomendações<br />
do cunhado, cumpria-as<br />
rigorosamente e jamais <strong>de</strong>ixava<br />
que a bolinha a<strong>de</strong>ntrasse a zona<br />
escura. Mas, a certa altura, a irmã<br />
arremete com mais força e, por<br />
um segundo, <strong>Angélica</strong> distrai-se<br />
e a bolinha lhe escapa da batida<br />
certeira, sendo atirada para bem<br />
<strong>de</strong>ntro do espinheiro. Embora sabendo<br />
que era escuro e amedrontador,<br />
<strong>Angélica</strong> vai atrás da bolinha<br />
para resgatá-la e continuar o jogo.<br />
À medida que vai entrando naquele<br />
estranho lugar, <strong>Angélica</strong> começa<br />
a ter sensações que flutuavam<br />
entre o pavor e aquele estado <strong>de</strong><br />
torpor que nos acomete quando<br />
nos apaixonamos. Quer fugir e não<br />
quer, tem<br />
medo e não tem, como se no meio<br />
daquela escuridão fosse encontrar<br />
seu gran<strong>de</strong> amor, a compreensão<br />
da vida e dos mistérios do Universo.<br />
Aquela experiência era tão<br />
gratificante que <strong>Angélica</strong> continua<br />
entrando escuridão a<strong>de</strong>ntro<br />
e a dualida<strong>de</strong> vai cada vez mais<br />
tomando conta <strong>de</strong>la. Quando lhe<br />
99
parece que não po<strong>de</strong>ria mais continuar,<br />
vê as imagens no escuro<br />
surgir como espinhos, canos <strong>de</strong><br />
ferro, gran<strong>de</strong>s áreas <strong>de</strong> ferrugem<br />
vermelha igualmente sombreada<br />
pelos espinhos e sente seu medo<br />
transformar-se em paz. Surge<br />
diante <strong>de</strong> seus olhos um clarão<br />
que a conduzia ao outro lado e<br />
ela se pergunta por que ninguém<br />
tivera tamanha ousadia e preferira<br />
gravar uma placa <strong>de</strong> advertência.<br />
Ao emergir pela saída que a conduzia<br />
para fora do espinheiro,<br />
nota um lago <strong>de</strong> águas claras e<br />
límpidas, cercado por outro imenso<br />
jardim forrado <strong>de</strong> pequenas<br />
flores brancas. Ela ro<strong>de</strong>ia o jardim,<br />
observa borboletas coloridas assentando-se<br />
sobre os canteiros <strong>de</strong><br />
flores, faz outra volta e logo avista<br />
sua irmã sentada no meio da quadra<br />
esperando-a retornar com a<br />
bolinha branca.<br />
O jogo continua a <strong>de</strong>speito <strong>de</strong><br />
<strong>Angélica</strong> guardar <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> si o<br />
segredo do espinheiro.<br />
100<br />
Ilustração: Sabrina Zerlini
O mais<br />
lindo<br />
presente<br />
Era uma vez uma história real. No<br />
tema central da história eu mesma<br />
sou a personagem.<br />
Lembro-me bem das várias vezes<br />
em que simplesmente perdia<br />
objetos <strong>de</strong> valor. Não que eu fosse<br />
<strong>de</strong>scuidada, o que certamente não<br />
era, até um dia em que compreendi<br />
porque era a vez <strong>de</strong> a minha<br />
mãe per<strong>de</strong>r uma <strong>de</strong> suas jóias -<br />
um broche <strong>de</strong> ouro e pérolas - que<br />
havia reservado para mim.<br />
Perto dos 15 anos perdi<br />
um lindo anel <strong>de</strong> topázio<br />
que pertencia<br />
a ela; lá pelos 18,<br />
um anel com uma<br />
pérola bastante<br />
gran<strong>de</strong> que também ela havia me<br />
cedido para que eu o usasse numa<br />
festa. Aquilo começou a me incomodar<br />
e ainda perdurou por vários<br />
anos.<br />
Aos 25 anos já havia entendido que,<br />
<strong>de</strong>sejar jóias e lindas peças que<br />
normalmente servem <strong>de</strong> objetos<br />
<strong>de</strong> <strong>de</strong>sejo às mulheres,<strong>de</strong> alguma<br />
forma não “funcionaria” para mim.<br />
Tanto que na minha graduação<br />
ganhei como presente <strong>de</strong> minha<br />
avó materna uma pedra ametista<br />
que tomava a forma <strong>de</strong> uma gran<strong>de</strong><br />
lágrima presa por fios <strong>de</strong> ouro. Meu<br />
temor em perdê-la era tão gran<strong>de</strong><br />
que a mantive <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> sua caixinha<br />
durante 21 anos. “Sabia” que se<br />
viesse a usá-la pagaria um elevado<br />
preço caso a per<strong>de</strong>sse.<br />
O tempo passou e não me importava<br />
com jóias, mas fui gostando<br />
<strong>de</strong> canetas. Claro,<br />
breve <strong>de</strong>sejo por canetas<br />
foi este, pois perdi as duas<br />
primeiras, logo <strong>de</strong> partida!<br />
Sem jóias e sem canetas bo-<br />
102 Ilustração: Aline Boechat<br />
103
nitas! Aprendi na expressão da<br />
canção maior dos meus 20 anos<br />
que ” o movimento <strong>de</strong> que você<br />
precisa está nos seus ombros”.<br />
Uma história, uma vida, mais histórias<br />
e estórias. Tempo que vai<br />
embora e <strong>de</strong>ixa suas marcas impressas<br />
no corpo. E faz cicatrizes<br />
na alma. Muitos dias em que a vida<br />
<strong>de</strong>ixou <strong>de</strong> fazer qualquer sentido.<br />
Certa vez, quando meu mundo<br />
havia <strong>de</strong>smoronado por inteiro,<br />
sonhei com meu amigo Avraham<br />
que falecera há alguns anos. Ele<br />
havia voltado para “plantar flores<br />
cor-<strong>de</strong>-rosa no meu jardim”. Só<br />
um fragmento <strong>de</strong> sonho <strong>de</strong>sconexo,<br />
foi o que pensei.<br />
Ontem foi meu aniversário. O<br />
mais lindo presente que recebi<br />
for ver muitos botões <strong>de</strong> flores no<br />
arbusto <strong>de</strong> hibiscus ainda jovem –<br />
que em maio ainda não havia mostrado<br />
suas cores. No inverno eu o<br />
po<strong>de</strong>i completamente por causa<br />
dos insetos que insistiam em <strong>de</strong>vorá-lo.<br />
Como eu disse, ontem foi meu<br />
aniversário. O jovem pé <strong>de</strong><br />
hibiscus em meu jardim amanheceu<br />
carregado <strong>de</strong> flores<br />
cor-<strong>de</strong>-rosa.<br />
104 Ilustração: Aline Boechat
A menina da<br />
bicicleta<br />
A paixão <strong>de</strong> Maria era sua bicicleta<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> quando ganhou <strong>de</strong> seu avô, o<br />
primeiro triciclo ao fazer três anos.<br />
Seu pai era <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong> uma<br />
família alemã muito rica que viera<br />
ao país no começo do século vinte e<br />
se instalara na região montanhosa<br />
do sul. Sua mãe nascera na América<br />
do Norte e era não somente uma<br />
mulher bastante culta como também<br />
<strong>de</strong> inteligência aguçada.<br />
Maria tinha um irmão e uma irmã<br />
mais novos, <strong>de</strong> modo que quando<br />
atingira ida<strong>de</strong> para viajar à Alemanha<br />
para continuar sua educação,<br />
os irmãos ainda estavam nas<br />
séries intermediárias do ensino<br />
fundamental.<br />
Maria iria morar numa pequena<br />
cida<strong>de</strong> bem próxima <strong>de</strong> uma importante<br />
metrópole, como é típico<br />
na Alemanha, <strong>de</strong> modo que po<strong>de</strong>ria<br />
levar sua querida amiga <strong>de</strong> duas<br />
rodas – pensou - sua companheira<br />
<strong>de</strong>s<strong>de</strong> os 14 anos que ainda estava<br />
em ótimo estado.<br />
O pai <strong>de</strong> Maria, no entanto, não<br />
permitiu que ela o fizesse e, ainda<br />
que sua festa <strong>de</strong> <strong>de</strong>spedida tivesse<br />
sido surpresa e cheia <strong>de</strong> amigos<br />
queridos, Maria lembrava-se a<br />
todo instante que teria <strong>de</strong> se acostumar<br />
com essa idéia e viver sem<br />
sua bike...<br />
Maria encaminhava-se para as<br />
ciências políticas e sociais, com<br />
forte inclinação para as questões<br />
ambientais e começava a perceber<br />
o quanto é necessário ir além do<br />
discurso conceitual e sofisticado,<br />
106 Ilustração: Gabriela<br />
107<br />
Tiburcio Guimarães
porém ainda distante da realida<strong>de</strong>,<br />
dada a premente necessida<strong>de</strong> da<br />
adoção <strong>de</strong> práticas que parem <strong>de</strong><br />
piorar a qualida<strong>de</strong> do meio ambiente<br />
mundial.<br />
Chegou o dia da viagem e, entre o<br />
choro e risos, Maria recebera <strong>de</strong><br />
seu pai um pôster maravilhoso <strong>de</strong><br />
sua companheira para lembrá-la<br />
<strong>de</strong> que daqui a algumas horas, essa<br />
imagem consolidaria os arquivos<br />
do passado. Maria só conseguiu<br />
controlar as lágrimas ao pensar que<br />
este momento era a porta da entrada<br />
para seu futuro, tanto quanto os<br />
acenos <strong>de</strong> lenços brancos e coloridos<br />
acenavam para seu pôster.<br />
Quando <strong>de</strong> novo amanheceu Maria<br />
já estava na Alemanha e o trem<br />
que a levaria à sua cida<strong>de</strong> partiria<br />
às 14 horas, <strong>de</strong> modo que ainda<br />
havia tempo para caminhar um<br />
pouco e voltar à estação principal.<br />
Às 18 horas certamente estaria<br />
acomodada na casa <strong>de</strong> sua<br />
tia paterna, pensou, e um calafrio<br />
correu em seu estômago, causando-lhe<br />
o medo do <strong>de</strong>sconhecido<br />
que ia além da expectativa <strong>de</strong> viver<br />
em outro país, porque dominava a<br />
língua alemã já há um bom tempo.<br />
Não se podia dizer que se sentisse<br />
infeliz, porém o que sentia também<br />
não se parecia com felicida<strong>de</strong>.<br />
Pensou em sua família, seus<br />
amigos e sua bike, assim que sua<br />
tia abriu a porta do quarto on<strong>de</strong><br />
ela iria ficar durante os próximos<br />
anos. A tia era amável, falava bem<br />
<strong>de</strong>vagar e se parecia bastante com<br />
o pai <strong>de</strong> Maria, conforme ele mesmo<br />
já havia anunciado.<br />
Eis que a tia <strong>de</strong>ixa-a em seu quarto<br />
e lhe diz que po<strong>de</strong>ria <strong>de</strong>scansar<br />
até o jantar que seria servido às<br />
vinte horas e trinta minutos.<br />
Maria atira-se sobre a cama e logo<br />
se <strong>de</strong>ixa vencer pelo cansaço da<br />
longa jornada.<br />
Maria cai em sono profundo e<br />
sonha com sua bike que já não era<br />
cor-<strong>de</strong>-rosa, e sim fora pintada<br />
<strong>de</strong> vermelho e amarelo e era muito<br />
robusta, capaz <strong>de</strong> subir planos<br />
bastante inclinados. Num sobressalto,<br />
acorda quando está tentando<br />
subir um ângulo quase reto, mas<br />
obviamente a bike recua, ainda que<br />
ela continuasse insistindo. Ao abrir<br />
os olhos, vê que já eram oito horas<br />
e sai correndo em direção ao banheiro<br />
para tomar uma ducha.<br />
Ao jantar encontra-se com o tio e<br />
o primo e conversam sobre a viagem<br />
e seus projetos para ingressar<br />
num programa <strong>de</strong> iniciação científica<br />
assim que concluísse a graduação<br />
em sociologia.<br />
Maria continua exausta e lhes<br />
pe<strong>de</strong> licença para retornar ao<br />
quarto quando já era perto <strong>de</strong><br />
onze horas da noite e todos se<br />
serviam <strong>de</strong> chás e licores, conversando<br />
animadamente.<br />
Maria prepara-se agora para a<br />
primeira noite que marcaria sua<br />
nova vida em direção aos sonhos<br />
e projetos que sentia crescerem<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la. Queria oferecer sua<br />
contribuição às possíveis soluções<br />
para os entraves que dificultavam<br />
ações mais eficientes por parte<br />
das nações, particularmente com<br />
o objetivo <strong>de</strong> reduzir o <strong>de</strong>smatamento<br />
e cooperar com programas<br />
<strong>de</strong> educação infantil.<br />
Maria sonha que está no carro <strong>de</strong><br />
sua tia no banco do passageiro e<br />
a caçamba <strong>de</strong> um caminhão <strong>de</strong><br />
lixo <strong>de</strong>spren<strong>de</strong>-se e <strong>de</strong>speja o lixo<br />
sobre o carro. Nada acontece a ela<br />
e sua tia, mas o caminhão arrasta a<br />
bicicleta que estava presa no carro.<br />
Acorda assustada e <strong>de</strong>ci<strong>de</strong> não<br />
pensar mais em bicicletas.<br />
Três semanas após sua chegada,<br />
sua tia a chama para ver o presente<br />
que seu pai mandara para ela. Havia<br />
uma caixa bem gran<strong>de</strong> em seu<br />
quarto e ela <strong>de</strong>mora alguns minutos<br />
removendo materiais <strong>de</strong> embalagem<br />
até conseguir acessar uma<br />
bike cor <strong>de</strong> laranja com faixas roxas,<br />
robusta e linda! Maria pensa que<br />
era preciso criar formas a<strong>de</strong>quadas<br />
para reaproveitar todos aqueles materiais<br />
<strong>de</strong> boa qualida<strong>de</strong> e evitar que<br />
fossem <strong>de</strong>scartados. Então, lem-<br />
108 109
ou-se <strong>de</strong> que estava na Alemanha<br />
on<strong>de</strong> algumas iniciativas <strong>de</strong> cidadãos<br />
conscientes já se mo<strong>de</strong>lavam<br />
em ações para a reciclagem.<br />
Dois anos <strong>de</strong>pois, quando estava<br />
totalmente ambientada e sentindo-se<br />
pavimentando a estrada<br />
que a levaria à sua atuação no<br />
campo das ciências sociais, Maria<br />
foi atropelada enquanto pilotava<br />
sua bicicleta, por <strong>de</strong>scuido <strong>de</strong> um<br />
carro que dirigia na faixa exclusiva<br />
para ciclistas. Tornou-se paraplégica<br />
e durante três anos permaneceu<br />
internada numa clínica especializada<br />
em Berlim.<br />
Certo dia, Maria acordou e se levantou<br />
da cama caminhando com<br />
alguma dificulda<strong>de</strong>, mas atravessou<br />
o quarto até a porta quando<br />
uma enfermeira gritou chamando<br />
os <strong>de</strong>mais. Maria coor<strong>de</strong>nava mal<br />
as palavras, mas conseguia comunicar-se.<br />
Seus pais são chamados<br />
à Alemanha e três meses <strong>de</strong>pois<br />
Maria recebe alta do hospital.<br />
Mais três anos e ela se tornou ambientalista,<br />
tendo conseguido uma<br />
vaga na organização internacional<br />
das nações na área <strong>de</strong> proteção<br />
do meio ambiente. Maria tornou-<br />
-se especialista em educação para<br />
crianças e passou a ensinar-lhes<br />
formas divertidas <strong>de</strong> se perceber a<br />
importância da reciclagem e seus<br />
reflexos positivos sobre a economia<br />
<strong>de</strong> recursos naturais.<br />
Maria apren<strong>de</strong>ra que a escassez<br />
<strong>de</strong>sses recursos irá acirrar as dificulda<strong>de</strong>s<br />
para as gerações que<br />
virão <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> nós. O estilo <strong>de</strong><br />
viver da humanida<strong>de</strong> gerou conseqüências<br />
ainda não totalmente<br />
apreciadas pela ciência e pela tecnologia<br />
em razão do crescimento<br />
econômico <strong>de</strong>senfreado.<br />
Maria estava muito feliz quando<br />
retornou a seu país porque estava<br />
em meio a um processo capaz <strong>de</strong><br />
fazer <strong>de</strong>sabrochar mudanças e ela<br />
estava certa <strong>de</strong> que iria florescer<br />
no futuro, semeado em corações<br />
e mentes compassivos que só as<br />
crianças possuem.<br />
110<br />
Ilustração: Gabriela<br />
Tiburcio Guimarães
O sapo<br />
amarelo<br />
Dia <strong>de</strong> festa no brejo da taboa ver<strong>de</strong>.<br />
Dona Sapa Alvim, não se sabe por<br />
que, nasceu malhada assim, com<br />
borrões da cor <strong>de</strong> todos os outros<br />
sapos, e chorava porque se misturavam<br />
<strong>de</strong>ntro <strong>de</strong>la tristeza e alegria.<br />
É que havia chegado o tempo em<br />
que seus pequenos <strong>de</strong>veriam partir<br />
para <strong>de</strong>ixar <strong>de</strong> ser pequenos e<br />
<strong>de</strong>veriam percorrer caminhos que<br />
os levassem a outros brejos. Mais<br />
ainda, eles <strong>de</strong>veriam alcançar o<br />
brejo aberto, seguindo a tradição<br />
da família.<br />
Dona Sapa Alvim- nossa!- que<br />
susto ela levou! Ao passar em revista<br />
seus oito filhos que se preparavam<br />
para partir todos juntos,<br />
nem havia percebido quantas luas<br />
ficaram para trás.<br />
Os ex-pequenos <strong>de</strong>veriam atravessar<br />
brejos entre mosquitos e taboas,<br />
saltando pedra por pedra que, por<br />
vezes <strong>de</strong>sapareciam,causando neles<br />
o medo das pontas <strong>de</strong> icebergs que<br />
não se viam, quando ficavam cobertas<br />
pelas águas <strong>de</strong> mares turbulentos,conforme<br />
dizia seu avô.<br />
Mais assustada ainda ficou Dona<br />
Sapa Alvim ao examinar cuidadosamente<br />
seus filhos, um a um,<br />
antes da <strong>de</strong>spedida, sempre evitando<br />
palavras, pois estas a faziam<br />
chorar ainda mais. Então, viu-se<br />
diante daquele que sempre lhe parecera<br />
o mais seguro <strong>de</strong> si, embora<br />
fosse muito pequenino e, ao invés<br />
<strong>de</strong> ser da cor <strong>de</strong> todos os outros<br />
sapos, tornara-se um sapo- amarelo-<br />
seguro- <strong>de</strong>- si.<br />
Mamãe Alvim engasgou com as<br />
lágrimas, abraçou seu filhote amarelo<br />
e lhe perguntou:<br />
– Meu filho, em que instante você<br />
se tornou um sapo amarelo e eu<br />
nem sequer percebi?<br />
– Engana-se, mamãe, sou da mesma<br />
cor <strong>de</strong> meus irmãos – todos<br />
iguais ao nosso pai – exceto Gino<br />
Jr., o caçula , que é malhado igual à<br />
senhora!<br />
– Filho, ouça-me, você é diferente<br />
<strong>de</strong> seus irmãos e <strong>de</strong> Gino Jr.; nunca<br />
houve em outros tempos um<br />
113
sapo amarelo em nossa família e<br />
muito menos um sapo amareloseguro-<br />
<strong>de</strong>- si; isso o torna um<br />
sapo absolutamente incomum!<br />
Tome cuidado, filho, redobre a<br />
atenção, pois há muitos animais<br />
gran<strong>de</strong>s e fortes na floresta e eles<br />
po<strong>de</strong>rão pisar sobre você pensando<br />
que não passa <strong>de</strong> uma maranta<br />
barriga- <strong>de</strong>- sapo!<br />
– A<strong>de</strong>us, mamãe, não se preocupe,<br />
pois eu sei que sou da mesma cor<br />
<strong>de</strong> todos os outros sapos, exceto<br />
Gino Jr. que ainda não tem ida<strong>de</strong><br />
para partir conosco!<br />
E lá se foram um a um, os sete sapos<br />
da cor <strong>de</strong> todos os sapos e o oitavo<br />
sapo, o amarelo- seguro- <strong>de</strong>- si.<br />
Gino Maior era gran<strong>de</strong> e zangado<br />
e sua cor começava a escurecer e<br />
manchar-se porque ele não po<strong>de</strong>ria<br />
supor que manchas escuras<br />
ocorressem tanto por fora quanto<br />
por <strong>de</strong>ntro; <strong>de</strong>pois, vinha Gino<br />
Segundo Maior, valente e grandalhão<br />
como o irmão mais velho,<br />
um pouco mais cauteloso somente,<br />
talvez porque não fosse lá tão<br />
valente assim e Gino Maior era o<br />
exemplo que tinha a seguir.<br />
Ginoca era a única irmã no meio<br />
<strong>de</strong> tantos sapos da cor <strong>de</strong> todos os<br />
sapos. Até ela era da cor do pai <strong>de</strong><br />
todos e ninguém po<strong>de</strong>ria encontrar<br />
nela nenhum traço da Dona<br />
Sapa Alvim. Ginoca Terceira - era<br />
esse seu nome - gostava <strong>de</strong> viver<br />
aventuras ao lado dos irmãos. Mas<br />
ela não tinha a mínima paciência<br />
e vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> estar ao lado <strong>de</strong> Gino<br />
Bonachão e do sapo amarelo- seguro-<br />
<strong>de</strong>- si! Gino Bonachão era<br />
o quarto irmão que nunca tinha<br />
pressa. Prá que pressa?- vivia perguntando<br />
aos outros!<br />
O quinto da fila era Gino Calculador<br />
já que este só gostava <strong>de</strong> fazer<br />
contas e quando alguém lhe fazia<br />
uma pergunta, logo ele respondia<br />
em forma <strong>de</strong> números! Que difícil<br />
comunicar-se com este sapo que<br />
só pensava em números!<br />
O sexto irmão chamava-se Ginomigo<br />
e para ele sua família e seus<br />
amigos eram a única coisa importante<br />
na vida; Ginomigo sempre<br />
estava disposto a ajudar quem quer<br />
que fosse, e muito se esforçava<br />
para vencer barreiras que tentavam<br />
impedi-lo <strong>de</strong> realizar sua missão.<br />
O sapo amarelo- seguro- <strong>de</strong>- si só<br />
era mais velho do que Gino Jr. que<br />
permanecera em casa e o sétimo<br />
irmão era Ginego que resolveu não<br />
seguir nenhum irmão e logo que<br />
todos saltaram da primeira pedra,<br />
foi- se embora sozinho.<br />
Gino Maior <strong>de</strong>cidiu que eles iriam<br />
dividir-se e naturalmente era o<br />
lí<strong>de</strong>r do primeiro grupo, <strong>de</strong> modo<br />
que convocou Gino Segundo, Ginoca,<br />
Gino Calculador e Ginomigo<br />
para que o seguissem. Ginomigo<br />
preferia ter acompanhado o sapo<br />
amarelo e Bonachão, mas Gino<br />
Maior foi logo avisando que precisariam<br />
<strong>de</strong>le em caso <strong>de</strong> confusão<br />
com os animais da floresta e que<br />
somente voltariam a se encontrar<br />
passadas noventa e cinco luas. Só<br />
<strong>de</strong>pois <strong>de</strong> passado esse número<br />
<strong>de</strong> luas é que alcançariam o brejo<br />
largo, muito além da esplanada da<br />
floresta e do brejo raso.<br />
Isso significava que o sapo amarelo-<br />
seguro- <strong>de</strong>- si e Gino Bonachão<br />
eram os únicos integrantes<br />
do segundo grupo conforme o <strong>de</strong>sejo<br />
<strong>de</strong> Gino Maior. E foi assim que<br />
Bonachão e o sapo amarelo foram<br />
seguindo pelo brejo da taboa ver<strong>de</strong><br />
enquanto era dia, <strong>de</strong> modo que<br />
arranjassem um lugar para passar<br />
a noite. Ainda iria <strong>de</strong>morar pelo<br />
menos vinte e sete luas antes <strong>de</strong><br />
chegarem à esplanada das árvores<br />
da floresta e o percurso seria menos<br />
seguro, em razão da presença <strong>de</strong><br />
muitos animais selvagens.<br />
Bonachão era um gran<strong>de</strong> companheiro,<br />
mas era lerdo e pesado e o<br />
sapo amarelo teve <strong>de</strong> lutar contra<br />
seu impulso <strong>de</strong> abandonar o irmão<br />
que só queria dormir sob os ramos<br />
<strong>de</strong> espadanas que lhes bloqueavam<br />
a passagem. Bonachão só passou a<br />
compreen<strong>de</strong>r que corriam perigo se<br />
não atravessassem o primeiro brejo,<br />
114 115
quando, por um triz, equilibrou-se<br />
ao escorregar do alto <strong>de</strong> uma pedra<br />
cheia <strong>de</strong> limo! Ele iria servir <strong>de</strong> banquete<br />
a uma cobra-<strong>de</strong>-capim que se<br />
punha à espreita e à espera <strong>de</strong> um<br />
sapo lento como ele!<br />
Ufa! Que alívio! – pensou o sapo<br />
amarelo! Enfim, Bonachão agora<br />
era capaz <strong>de</strong> saltar mais rápido e<br />
ambos haviam escapado ilesos!<br />
Muitas aventuras e muitas luas<br />
<strong>de</strong>pois, o sapo amarelo e seu irmão<br />
Gino Bonachão aproximavam-se da<br />
esplanada da floresta. Não se podia<br />
dizer que estivessem cansados, e<br />
era bom mesmo, porque o caminho<br />
era longo, daqui em diante em<br />
ambiente com pouca água, o que<br />
era uma forte ameaça para que não<br />
chegassem ao encontro com Gino<br />
Maior e os <strong>de</strong>mais.<br />
Esta <strong>de</strong>via ser a esplanada da floresta<br />
porque um gran<strong>de</strong> espaço se<br />
abria antes <strong>de</strong> se avistarem árvores<br />
gigantescas, possivelmente<br />
centenárias e numerosas; estar<br />
sob elas era mais ou menos como<br />
116 Ilustração: Flora Brina<br />
117
se o dia não fosse dia e houvesse<br />
somente o escuro da noite.<br />
O sapo amarelo seguro <strong>de</strong> si pensou<br />
que precisavam seguir margeando<br />
a esplanada e evitar a<strong>de</strong>ntrar<br />
a floresta, porque certamente ele<br />
e Bonachão não conseguiriam<br />
chegar do outro lado- se é que o<br />
mundo não acabava ali mesmo!<br />
Num ponto <strong>de</strong>terminado a paisagem<br />
mudou novamente agora se<br />
via a encosta <strong>de</strong> uma colina la<strong>de</strong>ada<br />
por água límpida e os dois<br />
irmãos ficaram muito felizes, pois<br />
tinham conseguido percorrer mais<br />
<strong>de</strong> quarenta luas!<br />
Mais um pouco e a colina <strong>de</strong>sapareceu<br />
dando lugar a uma savana.<br />
Os dois irmãos haviam alcançado<br />
o brejo raso quando começaram<br />
a ouvir galopes velozes <strong>de</strong> uma<br />
manada <strong>de</strong> zebras que corriam<br />
em alta velocida<strong>de</strong>, erguendo<br />
muita poeira da savana e lama do<br />
brejo raso. Uma zebra tropeçou,<br />
caiu <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong> um buraco perto<br />
do qual estavam os dois sapos e,<br />
aconteceu<br />
então que<br />
sua pata<br />
traseira<br />
bateu na<br />
pedra on<strong>de</strong><br />
Gino Bonachão<br />
havia<br />
acabado <strong>de</strong><br />
subir, e o pior<br />
suce<strong>de</strong>u, pois<br />
o irmão do sapo<br />
amarelo foi atirado<br />
com toda força para<br />
bem longe dali...<br />
O sapo amarelo- seguro<strong>de</strong>-<br />
si mal podia acreditar<br />
no que acabara <strong>de</strong> assistir<br />
e começou em vão a chorar e<br />
chamar pelo irmão. Enquanto<br />
isso, uma segunda zebra aproximou-se<br />
da zebra que caíra no<br />
buraco, cheirou-a, tentou movê-la<br />
e erguer-lhe as patas, até perceber<br />
que sua irmã não podia mover-se.<br />
Ao avistar o sapo amarelo- seguro-<br />
<strong>de</strong>- si, a zebra que a tudo pre-<br />
senciara, disse-lhe<br />
que coisas muito ruins nos<br />
E foi assim que o sapo amarelo<br />
conheceu alguém diferente <strong>de</strong><br />
um sapo. Zuleica, a zebra veloz,<br />
perguntou- lhe seu nome e ele<br />
Ilustração: Flora Brina<br />
118
lhe disse que era um sapo seguro<strong>de</strong>-<br />
si cuja cor era a mesma que a<br />
<strong>de</strong> todos os outros sapos e que por<br />
isso, não tinha um nome. Zuleica<br />
não enten<strong>de</strong>u bem, pois viu que se<br />
tratava <strong>de</strong> um sapo amarelo, mas<br />
<strong>de</strong>cidiu não retrucar; ajeitou-o em<br />
seu dorso e partiu pela savana.<br />
Sóis e luas a galope e o sapo amarelo<br />
estava muito cansado e com muita<br />
se<strong>de</strong>; amanheceu e eles estavam<br />
novamente diante da parte baixa do<br />
brejo raso, mas ainda era possível<br />
beber água e respirar melhor, pois o<br />
ar agora estava mais úmido. O sapo<br />
amarelo contou-lhe toda sua história<br />
e Zuleica lhe disse que assim que<br />
sua amiga girafa Faflá saísse para<br />
colher folhas, esta também o levaria<br />
um pouco mais adiante.<br />
O que é uma girafa? – perguntou o<br />
sapo amarelo. Zuleica lhe explicou<br />
e o sapo amarelo mal podia acreditar<br />
que houvesse alguém cujo<br />
pescoço fosse tão longo quanto o<br />
<strong>de</strong> uma girafa que podia alcançar<br />
bem no alto das árvores da floresta!<br />
E ele que nem pescoço tinha! -<br />
pensou. Mas também não precisava,<br />
porque sua comida favorita são<br />
insetos, não folhas <strong>de</strong> acácias!<br />
Faflá – contrariando a espécie<br />
- era muito falante e ajeitar-se<br />
agora no alto <strong>de</strong> sua cabeça foi<br />
muito divertido, embora o vento<br />
soprasse forte. Faflá o levaria até o<br />
pântano on<strong>de</strong> muitos rinocerontes<br />
nadavam o dia inteiro e o sapo<br />
amarelo- seguro- <strong>de</strong>- si tremeu<br />
<strong>de</strong> medo quando Faflá lhe explicou<br />
como eram os rinocerontes<br />
com aqueles chifres fortes e duros<br />
no alto da cabeça. O sapo amarelo<br />
sentiu um calafrio quando Faflá<br />
lhe contou que há duas luas, nascera<br />
seu bebê Rafí, <strong>de</strong>spencando<br />
<strong>de</strong> dois metros <strong>de</strong> altura imediatamente<br />
ao sair <strong>de</strong> <strong>de</strong>ntro <strong>de</strong><br />
sua barriga!! Rafí, no entanto, já<br />
se ambientara e passeava com os<br />
outros irmãos em algum lugar que<br />
Faflá <strong>de</strong>sconhecia.<br />
Depois foi a vez do elefante pesado<br />
e lerdo, o que lhe trouxe na<br />
memória seu bom irmão Bonachão.<br />
O sapo amarelo ergueu os<br />
olhos na direção das nuvens para<br />
reverenciar o irmão, mas sentia-<br />
-se orgulhoso porque Bonachão<br />
ficaria feliz por ele ter feito tantos<br />
amigos, que logo passavam a gostar<br />
<strong>de</strong>le e, no minuto seguinte, já<br />
queriam ajudá-lo a chegar ao ponto<br />
<strong>de</strong> encontro com Gino Maior e<br />
os outros.<br />
Até que o elefante o levou para<br />
as árvores favoritas dos macacos<br />
que faziam uma gran<strong>de</strong> algazarra<br />
pulando <strong>de</strong> cipó em cipó no meio<br />
da floresta. Os macacos não queriam<br />
parar a brinca<strong>de</strong>ira, mas pelo<br />
menos disseram ao elefante que<br />
aquele ponto ficava a noventa luas<br />
do brejo da taboa ver<strong>de</strong>, <strong>de</strong> modo<br />
que esta era uma boa notícia e eles<br />
estavam a apenas cinco luas do<br />
brejo largo!<br />
O elefante, então, lembrou-se dos<br />
coelhos selvagens que em geral<br />
eram mal humorados ao mesmo<br />
tempo em que eram bondosos com<br />
os amigos <strong>de</strong> seus amigos e <strong>de</strong>cidiu<br />
pedir-lhes que levassem o sapo<br />
amarelo até o ponto <strong>de</strong> encontro<br />
com Gino Maior.<br />
O sapo amarelo- seguro- <strong>de</strong>- si<br />
<strong>de</strong>spediu-se do elefante e segurou-se<br />
aos pelos compridos <strong>de</strong> um<br />
coelho cinza malhado em preto e<br />
lá foram eles pelo brejo raso até o<br />
brejo largo. Na verda<strong>de</strong>, ao chegarem<br />
lá, o coelho malhado lhe<br />
disse que aquele não era um brejo<br />
largo e sim um braço <strong>de</strong> mar<br />
prisioneiro do mar aberto e ali<br />
viviam garças brancas, coelhos<br />
selvagens como ele, caranguejos<br />
escuros e muitos peixes coloridos<br />
que faziam suas moradas sob<br />
o mato aquático e os corais que<br />
eram bem comuns ao redor.<br />
O sapo amarelo estava extasiado<br />
porque não sabia, até ter chegado<br />
ali, que o mar aberto pu<strong>de</strong>sse ser<br />
tão bonito; ficava imaginando que<br />
gostaria que Bonachão, sua mãe e<br />
Gino Jr. o vissem.<br />
Lembrou-se <strong>de</strong> que seus outros<br />
120
ZAHRA<br />
irmãos, numa altura <strong>de</strong>ssas, <strong>de</strong>veriam<br />
estar esperando por ele perto<br />
da toca dos coelhos. O coelho vai<br />
<strong>de</strong>ixá-lo sobre uma pedra gran<strong>de</strong><br />
e seca que ficava perto da entrada<br />
do brejo largo e lhe pergunta seu<br />
nome, ao que respon<strong>de</strong> ser o sapo<br />
seguro- <strong>de</strong>- si que não tinha um<br />
nome porque sua cor era igual a<br />
dos irmãos.<br />
acontecem a todos, mas que ela<br />
po<strong>de</strong>ria levá-lo até a montanha<br />
alta antes do ponto <strong>de</strong> encontro<br />
com seus outros irmãos, pois além<br />
<strong>de</strong> lhe fazer companhia, po<strong>de</strong>ria<br />
protegê-lo dos animais da floresta.<br />
Des<strong>de</strong> quando nasce sapo amarelo<br />
no brejo da taboa ver<strong>de</strong> on<strong>de</strong> só<br />
nasce sapo ver<strong>de</strong>? Ora essa, mirese,<br />
veja-se neste pedaço <strong>de</strong> lata<br />
polida, você é amarelo, não ver<strong>de</strong>,<br />
compare sua cor com a cor da mata<br />
e veja sua imagem nessa lata! – retrucou<br />
impaciente o coelho cinza<br />
malhado em preto.<br />
Então, o sapo amarelo- seguro-<br />
<strong>de</strong>- si olha-se no pedaço <strong>de</strong><br />
lata que lhe servia <strong>de</strong> espelho que<br />
o coelho lhe esten<strong>de</strong> diante dos<br />
olhos e finalmente compreen<strong>de</strong><br />
que todos tinham razão, pois ele<br />
era <strong>de</strong> fato, um sapo amarelo!<br />
Pensou mais um pouco e achou<br />
que <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> ter perdido o irmão,<br />
atravessado tantos brejos, feito<br />
muitos amigos, passado tantas<br />
luas sozinho, e, por fim, ter conseguido<br />
chegar ao mar aberto, ser<br />
um sapo amarelo não lhe pareceu<br />
ser tão ruim, pois agora sabia que<br />
era um sapo amarelo- seguro- <strong>de</strong>si<br />
<strong>de</strong> verda<strong>de</strong>.<br />
Então minha mãe tinha razão,<br />
lembrou-se ele novamente! Mas<br />
Dona Alvim nunca havia saído do<br />
brejo da taboa ver<strong>de</strong>, <strong>de</strong> modo que<br />
não po<strong>de</strong>ria supor que ele tivesse<br />
agora tantos amigos entre os<br />
gran<strong>de</strong>s animais da floresta.<br />
Assumindo-se agora como sapo<br />
amarelo- seguro- <strong>de</strong>- si, pediu<br />
ao coelho malhado que o levasse<br />
perto da toca dos coelhos. Então,<br />
eis que logo avistou uma folha <strong>de</strong><br />
Ilustração: Aline Boechat 123
acalifa amarela flutuando presa a<br />
um graveto, para lá e para cá...<br />
Olha mais fixamente pela segunda<br />
vez e reconhece Ginoca, com<br />
olheiras, chorando e balbuciando<br />
palavras que ele não compreendia.<br />
Ginoca? O que lhe aconteceu?<br />
Cadê os outros?<br />
– perguntou-lhe o sapo amarelo.<br />
– Outros? Todos se foram <strong>de</strong>ixando-me<br />
com Ginomigo, veja,<br />
ele está <strong>de</strong>itado sob a sombra das<br />
ramagens úmidas e escuras para<br />
recuperar-se <strong>de</strong> tudo o que nos<br />
aconteceu! M - aas....on<strong>de</strong> está<br />
Bonachão?<br />
– perguntou ela aflita.<br />
O sapo amarelo- seguro- <strong>de</strong>- si<br />
contou-lhe sobre o irmão e a irmã<br />
aumentou a força do choro, talvez<br />
pela dor que sentia ao lembrar-se<br />
<strong>de</strong> não ter tido vonta<strong>de</strong> <strong>de</strong> ficar ao<br />
lado do irmão enquanto ele era vivo.<br />
–E nossos irmãos mais velhos? O<br />
que lhes aconteceu?<br />
– perguntou-lhe, <strong>de</strong>pois <strong>de</strong> esperá-la<br />
acalmar-se.<br />
– Gino Segundo Maior tentou <strong>de</strong>fen<strong>de</strong>r<br />
Gino Maior do ataque <strong>de</strong> um<br />
gran<strong>de</strong> gato feroz que nos apareceu<br />
na savana e, po<strong>de</strong> imaginar o pior;<br />
Gino Maior ficou tão <strong>de</strong>sesperado<br />
que se afogou ao chegarmos ao<br />
brejo largo; Gino Calculador encontrou-se<br />
com Ginego, por obra<br />
do acaso, e ambos se foram juntos<br />
e disseram que nunca mais voltarão<br />
para o brejo da taboa ver<strong>de</strong>.<br />
Ginomigo e eu conseguimos nos<br />
escon<strong>de</strong>r e por fim, um coelho malhado<br />
nos trouxe até aqui.<br />
– Eu também cheguei aqui graças<br />
a um coelho malhado... po<strong>de</strong>mos<br />
<strong>de</strong>scansar um pouco agora? – retrucou<br />
exausto o sapo amarelo.<br />
– Não lhes parece que muitas vezes<br />
são nossos amigos que nos salvam?<br />
Quando vamos voltar para casa? –<br />
disse Ginomigo, erguendo-se do<br />
meio da folhagem em direção ao irmão<br />
com o propósito <strong>de</strong> abraçá-lo.<br />
Como? Se não sabemos voltar para<br />
casa? – retrucou Ginoca.<br />
Ginoca, é provável que você tenha<br />
razão, mas vamos voltar! Ela secou<br />
as lágrimas e disse aos dois irmãos:<br />
Que nada, eu sou mais velha que<br />
vocês e ambos terão <strong>de</strong> me respeitar<br />
e fazer o que eu disser,começando<br />
por <strong>de</strong>scobrir o caminho<br />
<strong>de</strong> volta para casa!<br />
O sapo amarelo seguro- <strong>de</strong>- si<br />
lançou mão <strong>de</strong> seu espelho <strong>de</strong> lata<br />
que pôs diante <strong>de</strong>la, dizendo-lhe<br />
com firmeza:<br />
Veja que você é igual aos nossos irmãos<br />
e a nosso pai, sapos típicos do<br />
brejo da taboa ver<strong>de</strong>; olhe para mim<br />
e veja que sou o único sapo amarelo<br />
em muitas gerações, conforme<br />
dizia nossa mãe. Eu a respeito por<br />
ser mais velha enquanto você me<br />
respeita por ser um sapo bastante<br />
raro. Acha justo? Vamos perguntar<br />
a Ginomigo o que ele acha?<br />
Ginomigo faz um sinal que estava<br />
<strong>de</strong> acordo e Ginoca <strong>de</strong>sistiu<br />
<strong>de</strong> usar os artifícios que sempre<br />
usara com os <strong>de</strong>mais irmãos. Então,<br />
os três se puseram na direção<br />
do mar aberto, pois o barulho das<br />
ondas quebrando os encantava.<br />
Aproximaram-se da praia e ficaram<br />
extasiados, mas logo os<br />
respingos da água salgada começaram<br />
a não lhes cair bem.<br />
Saltaram com bastante força os<br />
três sapos para a direção oposta<br />
ao mar até que perceberam que a<br />
paisagem começava a mudar e a<br />
água já não os atingia.<br />
Começava a entar<strong>de</strong>cer e eles<br />
<strong>de</strong>cidiram buscar abrigo perto <strong>de</strong><br />
uma pedra encurvada e torta que<br />
lhes servia <strong>de</strong> proteção e, finalmente,<br />
pararam para <strong>de</strong>scansar.<br />
Olhavam a clarida<strong>de</strong> no céu e<br />
sentiam sauda<strong>de</strong> do brejo da taboa<br />
ver<strong>de</strong> e dos irmãos.<br />
Na manhã seguinte estavam<br />
preparados para enfrentar<br />
a beleza e o perigo dos brejos<br />
que teriam <strong>de</strong> atravessar,<br />
pensando como seria magnífico<br />
avistar o brejo da taboa ver<strong>de</strong>,<br />
do alto da pedra do limo, que<br />
ficava a apenas cinco luas<br />
<strong>de</strong> sua casa.<br />
124 125
Minibiografia<br />
Nasci em São Carlos, interior <strong>de</strong> São<br />
Paulo numa família <strong>de</strong>scen<strong>de</strong>nte <strong>de</strong><br />
italianos da região do Veneto, sendo a<br />
terceira <strong>de</strong>ntre seis filhos. Estu<strong>de</strong>i na<br />
“Escola Normal” da cida<strong>de</strong> dos 7 aos 17<br />
anos e adorava línguas estrangeiras,<br />
principalmente Inglês e Alemão.<br />
Graduei-me em 1978 em Engenharia<br />
<strong>de</strong> Materiais pela Universida<strong>de</strong> Fe<strong>de</strong>ral<br />
<strong>de</strong> São Carlos, tendo seguido carreira<br />
instigante e <strong>de</strong>safiadora até 2006.<br />
Em 1980 lá fui eu com cara e coragem<br />
morar sozinha em Salvador, on<strong>de</strong><br />
jamais estivera antes, sem conhecer<br />
ninguém. Casei-me em 1981 – amor e<br />
paixão à primeira vista- e tenho dois<br />
filhos maravilhosos, sem nenhuma falsa<br />
modéstia. Concluí pós-graduação lato<br />
sensu pelo MBA Internacional e Curso<br />
<strong>de</strong> Especialização em Gestão Ambiental<br />
da Proenco Brasil, tendo escrito<br />
monografia intitulada “Os plásticos e<br />
o lixo nas cida<strong>de</strong>s” em 2006. Em 2007<br />
tornei-me contadora <strong>de</strong> histórias<br />
pela “Associação Viva e Deixe Viver” e<br />
esta foi uma experiência inesquecível,<br />
assim como provavelmente o gatilho<br />
do processo <strong>de</strong> escrever e compor.<br />
Foi a partir <strong>de</strong> 2008 que comecei a<br />
compor textos e canções que servem<br />
à teatralização e contação <strong>de</strong> histórias<br />
no contexto da educação ambiental<br />
para o consumo consciente, lixo pósconsumo,<br />
poluição ambiental e coleta<br />
seletiva- minha “mania”... São histórias,<br />
estórias e canções para divertir, ensinar<br />
e apren<strong>de</strong>r.<br />
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