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Raízes Historicas do Campesinato Brasileiro - Maria de Nazareth Baudel Wanderley - 1996

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RAÍZES HISTÓRICAS DO CAMPESINATO BRASILEIRO

MARIA DE NAZARETH BAUDEL WANDERLEY

XX ENCONTRO ANUAL DA ANPOCS.

GT 17. PROCESSOS SOCIAIS AGRÁRIOS.

CAXAMBU, MG. OUTUBRO 1996

“Les sciences sociales du XIXe. Siècle ont fait preuve d’une incompréhension

surprenante à l’égard des choses rustiques. Tout leur effort d’analyse et d’interprétation

s’est porté sur l’économie industrielle et sur la société urbaine. Fascinées par la naissance

de la classe ouvrière, par la prodigieuse efficacité de l’entreprise capitaliste et par

l’instrument unique que constitue la monnaie, elles se sont désintéressées d’un système

social qui fonctionne sans salariés, ni entrepreneurs, ni monnaie, et qui cependant demeurait

majoritaire en Occident il y a un siècle, et le demeure encore aujourd’hui dans le monde.”

HENRI MENDRAS. La fin des paysans.


2

Dedico este trabalho ao Professor HENRI MENDRAS.

INTRODUÇÃO.

A agricultura familiar não é uma categoria social recente nem a ela corresponde uma

categoria analítica nova na Sociologia Rural. No entanto, sua utilização, com o significado e a

abrangência, que lhe tem sido atribuídos nos últimos anos, no Brasil, assume ares de

novidade e renovação. Fala-se de uma agricultura familiar como um novo personagem,

diferente do camponês tradicional, que teria assumido sua condição de produtor moderno;

propõem-se políticas para estimula-los, fundadas em tipologias que se baseiam em sua

viabilidade econômica e social diferenciada. Mas, afinal, o que vem a ser uma agricultura

familiar? Em que ela é diferente do campesinato, do agricultor de subsistência, do pequeno

produtor, categorias que, até então, circulavam com mais frequência nos estudos

especializados? Como entender o campesinato brasileiro à luz da teoria clássica?

Este trabalho tem a intenção de refletir sobre este tema, tendo como ponto de partida

e eixo norteador, as seguintes hipóteses:

a) - a agricultura familiar é um conceito genérico, que incorpora uma diversidade

de situações específicas e particulares;

b) - ao campesinato corresponde uma destas formas particulares da agricultura

familiar, que se constitui enquanto um modo específico de produzir e de viver

em sociedade;

c) - a agricultura familiar que se reproduz nas sociedades modernas deve

adaptar-se a um contexto sócio-econômico próprio destas sociedades, que a

obriga a realizar modificações importantes em sua forma de produzir e em

sua vida social tradicionais;

d) - estas transformações do chamado agricultor familiar moderno, no entanto,

não produzem uma ruptura total e definitiva com as formas “anteriores”,

gestando, antes, um agricultor portador de uma tradição camponesa, que lhe

permite, precisamente, adaptar-se às novas exigências da sociedade.

e) - o campesinato brasileiro tem características particulares - em relação ao

conceito clássico de camponês - que são o resultado do enfrentamento de

situações próprias da História social do País e que servem hoje de

fundamento a este “patrimônio sócio-cultural”, com que deve adaptar-se às

exigências e condicionamentos da sociedade brasileira moderna.

Após retomar mais aprofundadamente estas hipóteses, pretendo refletir mais

detalhadamente sobre algumas dimensões deste patrimônio herdado pelos atuais

agricultores familiares no Brasil.

I - A AGRICULTURA FAMILIAR COMO UMA CATEGORIA GENÉRICA.

O ponto de partida é o conceito de agricultura familiar, entendida como aquela em que

a família, ao mesmo tempo em que é proprietária dos meios de produção, assume o trabalho

no estabelecimento produtivo. É importante insistir que este caráter familiar não é um mero

detalhe superficial e descritivo: o fato de uma estrutura produtiva associar familia-produçãotrabalho

tem consequências fundamentais para a forma como ela age econômica e

socialmente.

No entanto, assim definida, esta categoria é necessariamente genérica, pois a


3

combinação entre propriedade e trabalho assume, no tempo e no espaço, uma grande

diversidade de formas sociais. Como afirma Hugues Lamarche “a agricultura familiar não é

um elemento da diversidade, mas contém, nela mesma, toda a diversidade” (LAMARCHE.

1993:14)

1.1. O Campesinato Tradicional Como Uma Forma Particular Da Agricultura Familiar.

A agricultura camponesa tradicional vem a ser uma das formas sociais de agricultura

familiar, uma vez que ela se funda sobre a relação acima indicada entre propriedade, trabalho

e família. No entanto, ela tem particularidades que a especificam no interior do conjunto

maior da agricultura familiar e que dizem respeito aos objetivos da atividade econômica, às

experiências de sociabilidade e à forma de sua inserção na sociedade global.

Os estudos clássicos sobre o campesinato são por demais conhecidos, o que dispensa

a necessidade de retomá-los neste texto. Permito-me, apenas, sublinhar alguns aspectos

importantes para a argumentação que pretendo desenvolver. 1

Henri Mendras identifica cinco traços característicos das sociedades camponesas, a

saber: uma relativa autonomia face à sociedade global; a importância estrutural dos grupos

domésticos, um sistema econômico de autarcia relativa, uma sociedade de

interconhecimentos e a função decisiva dos mediadores entre a sociedade local e a

sociedade global.” (MENDRAS.1976).

A autonomia é demográfica, social e econômica. Neste último caso, ela se expressa

pela capacidade de prover a subsistência do grupo familiar, em dois níveis complementares:

a subsistência imediata, isto é, o atendimento às necessidades do grupo doméstico, e a

reprodução da família pelas gerações subsequentes. Da conjugação destes dois objetivos

resultam suas características fundamentais: a especificidade de seu sistema de produção e

a centralidade da constituição do patrimônio familiar.

a) - O sistema de policultura-pecuária.

O sistema tradicional de produção camponês, denominado de “policultura-pecuária” e

considerado “uma sábia combinação entre diferentes técnicas”, foi se aperfeiçoando ao longo

do tempo, até atingir um equilíbrio numa relação específica entre um grande número de

atividades agrícolas e de criação animal. Com efeito, os estudos sobre as sociedades

camponesas tradicionais mostram que a evolução destas pode ser percebida através do

esforço de aperfeiçoar esta diversidade, seja pela introdução de novas culturas, até o limite

da supressão das áreas de pousio, seja pelo aprofundamento da relação entre as culturas e

as atividades pecuárias efetuadas no estabelecimento. Como o afirma Mendras, “toda a arte

do bom camponês consistia em jogar sobre um registro de culturas e criações o mais amplo

possível e a integra-los em um sistema que utilizasse ao máximo os subprodutos de cada

produção para as outras e que pela diversidade de produtos fornecesse uma segurança

contra as intempéries e as desigualdades das colheitas.” (MENDRAS.1984:85).

Marcel Jollivet, retoma esta mesma reflexão, não a partir da dinâmica interna das

sociedades camponesas, porém, sob a ótica das determinações da sociedade global (ou das

diferentes sociedades globais, feudal, capitalista etc). 2 Para ele, o caráter familiar da

produção agrícola decorre de uma adequação às próprias condições técnicas tradicionais da

produção agrícola. De fato, “...o estabelecimento familiar camponês constitue uma

organização social bem adaptada às condições técnicas da produção agrícola. O sistema de

policultura-pecuária, que representa a forma não apenas característica, mas também, a mais

elaborada, a mais produtiva da economia agrícola após a revolução forrageira do século XVIII

e que continuou a se desenvolver e a se aperfeiçoar até uma época muito recente, supõe,

para atingir sua plena eficácia, ser implantado nos quadros da unidade familiar de produção.”

(JOLLIVET.1974:236).

1 - Pretendo apoiar-me, especialmente, na reflexão sobre o tema, que foi produzida pelo “Groupe

de Sociologie Rurale”, nos anos 70. Além dos livros de Henri Mendras, então diretor do Grupo,

vou me referir frequentemente, aos dois tomos que resultaram da pesquisa sobre as coletividades

rurais francesas, realizada sob a direção de Marcel Jollivet e Henri Mendras. Cf. JOLLIVET e

MENDRAS, dir. 1971 e JOLLIVET dir. 1974.

2 - Mesmo tendo partilhado, com Henri Mendras, a coordenação da pesquisa sobre as

coletividades rurais francesas, acima referida, Marcel Jollivet desenvolveu uma análise própria,

fundamentada no materialismo histórico, para explicar a reprodução do campesinato sob o

capitalismo. Cf. JOLLIVET. 1974.


Esta adequação diz respeito, antes de mais nada à qualidade e à quantidade do

trabalho que está associado ao sistema de policultura-criação. “Ele exige, com efeito, um

trabalho intensivo, que só os membros da família se dispõem a aceitar; por outro lado, a

multiplicidade de tarefas que ele implica requer muita leveza na organização do trabalho, da

mesma forma que uma grande diversidade de competências. O camponês deve ser um

artesão independente.”(p.236).

Esta percepção da agricultura familiar é confirmada por Michel Gervais: “Sua linha de

conduta não pode ser ditada do exterior. Só ele pode apreciar as circunstâncias que sua ação

deverá levar em conta. Ele deve poder a todo momento modificar os seus projetos, seu

programa de trabalho, para enfrentar um fato novo. Ele tem, assim, a necessidade de ser

plenamente responsável. Enfim, e sobretudo, ele é o único que pode impor a si mesmo esta

terrível disciplina, estes cuidados minuciosos, esta sujeição de todos os instantes. Assim, o

individualismo, de que tanto se acusou o camponês artesanal, antes de ser um traço de

caráter, era uma necessidade técnica.”( GERVAIS et alii.1965:25)

Estas reflexões são ainda corroboradas pelas análises de Jerzy Tepicht a respeito do

camponês da Polônia. (TEPICHT.1973) Este autor mostra, na obra em que reflete sobre sua

experiência, como responsável pela implantação do modelo “socialista” na agricultura

polonesa, que o campesinato organiza o seu trabalho levando em conta dois fatores

estruturais. Por um lado, ele dispõe do que denominou de “forças produtivas não

transferíveis”, isto é a capacidade de trabalho de pessoas ligadas entre si pelo laço do

parentesco que, mesmo sem estar disponíveis no mercado de trabalho, se envolvem nas

atividades produtivas do estabelecimento familiar, em razão desta mesma comunidade

doméstica de interesses; por outro lado, ele deve considerar o tempo de não trabalho, isto é,

o tempo em que o desenvolvimento cultural - vegetal ou animal - segue seu curso natural,

biológico, prescindindo do trabalho humano. Trata-se portanto, de estabelecer os ajustes

necessários entre a força de trabalho disponível e o ritmo e a intensidade do trabalho exigido

ao longo do ano. Deve-se observar, porém, que, nestes casos, a pluriatividade e a

contratação de trabalhadores alugados no estabelecimento familiar estão inscritas na própria

forma de produzir do camponês, enquanto uma possibilidade, mas sua concretização

dependerá, fundamentalmente, do contexto mais geral que engloba o campesinato.

b) - O horizonte das gerações.

Para além da garantia da sobrevivência no presente, as relações no interior da família

camponesa tem como referência o horizonte das gerações, isto é, um projeto para o futuro.

Com efeito, um dos eixos centrais da associação camponesa entre família, produção e

trabalho é a expectativa de que todo investimento em recursos materiais e de trabalho

despendido na unidade de produção, pela geração atual, possa vir a ser transmitido à

geração seguinte, garantindo a esta, as condições de sua sobrevivência. Assim, as

estratégias da família em relação à constituição do patrimônio fundiário, à alocação dos seus

diversos membros no interior do estabelecimento ou fora dele, a intensidade do trabalho, as

associações informais entre parentes e vizinhos, etc, são fortemente orientadas por este

objetivo a médio ou longo prazo, da sucessão entre gerações. Combinando os recursos que

dispõe na unidade de produção com aqueles a que pode ter acesso fora do estabelecimento

- em geral, atividades complementares, temporárias e intermitentes - a família define

estratégias que visam, ao mesmo tempo, assegurar sua sobrevivência imediata e garantir a

reprodução das gerações subsequentes.

Da centralidade da família, como portadora do esforço de trabalho e detentora da

propriedade, tanto quanto, definidora das necessidades de consumo, decorre a importância

que asssume a evolução de sua composição, como um elemento chave do próprio processo

de transformação interna da unidade família/estabelecimento, o que Chayanov denominou

“diferenciação demográfica”. (CHAYANOV.1974)

Para enfrentar o presente e preparar o futuro, o agricultor camponês recorre ao

passado, que lhe permite construir um saber tradicional, transmissível aos filhos e justificar as

decisões referentes à alocação dos recursos, especialmente do trabalho familiar, bem como a

maneira como deverá diferir no tempo, o consumo da família. O campesinato tem, pois, uma

cultura própria, que se refere a uma tradição, inspiradora, entre outras, das regras de

parentesco, de herança e das formas de vida local etc.

c) - As sociedades de interconhecimento e a autonomia relativa das sociedades rurais.

À autarcia econômica corresponde, de uma certa forma, a autonomia relativa da vida

social. A agricultura camponesa tradicional é profundamente inserida em um território, lugar


de vida e de trabalho, onde o camponês convive com outras categorias sociais e onde se

desenvolve uma forma de sociabilidade específica, que ultrapassa os laços familiares e de

parentesco. “Uma coletividade rural apresenta uma dupla natureza funcional. Ela é, por um

lado, um estabelecimento humano de valorização de um meio natural: a população local

utiliza o território para sua subsistência; a aldeia (“village”) é um atelier de produção

correspondente a um território. Por outro lado, é também uma unidade de habitação, de

residência, um quadro de vida familiar e social de um gênero particular, caracterizado,

notadamente, pela sua fraca dimensão e pela estabilidade da população.”(JOLLIVET e

MENDRAS.1971:209).

É esta sociabilidade que permite definir a sociedade rural como uma “sociedade de

interconhecimento”, isto é, de “uma coletividade na qual, cada um conhecia todos os demais

e conhecia todos os aspectos da personalidade dos outros. Diversidade e homogeneidade

asseguravam, graças à relação de interconhecimento, a vida social extraordinariamente

intensa, descrita nos romances e em toda a literatura sobre a vida do campo nos séculos

XVIII e XIX ...” (p.24).

Entretanto, mesmo nas sociedades rurais tradicionais, a autonomia é sempre relativa.

A necessidade de reservar parte de seus recursos para as trocas com o conjunto da

sociedade, e para atender a suas imposições terminam por introduzir no interior do própio

modo de funcionamento do campesinato, certos elementos que lhe são, originalmente,

externos.

De fato, o sistema de policultura-pequena criação é concebido como um todo,

estruturado de forma a garantir a subsistência da família camponesa. Porém, ele não elimina

a fragilidade da agricultura camponesa, nem impede a emergência das situações de miséria e

de grandes crises: seus resultados dependem de causas aleatórias, de origem natural - os

efeitos das intempéries - ou das implicações das relações político-sociais dominantes,

especialmente a extração da renda da terra.

Witold Kula, em seu clássico estudo sobre o sistema feudal na Polônia, explica esta

relação conflituosa entre a capacidade do camponês de assegurar a subsistência da família,

em sua própria parcela e o pesado ônus que representava a renda em trabalho, extraida

pelos senhores feudais: “A corvéia fornecia ao domínio senhorial uma mão de obra gratuita,

porém, à condição que o camponês pudesse se manter em condições de trabalhar. Problema

tanto mais importante quanto não se refere apenas às condições físicas do camponês, mas

também, a seus equipamentos e seus animais de tração.” (KULA.1970:45) E ele acrescenta:

“O domínio senhorial tinha tendência a reduzir a unidade camponesa a uma parcela inferior

ao mínimo necessário à sua subsistência. O fato que um ano bom permitia a esta unidade

gerar excecentes que podia oferecer no mercado, estimulava o senhor a diminuir sua área

ou a aumentar os encargos que pesavam sobre ela; com isto, bastava uma safra “ruim” para

que ela não pudesse satisfazer suas necessidades.” (p.46). É por esta razão que a renda

fundiária, pre- capitalista, paga pelo camponês ao senhor feudal, é considerada uma relação

extra-econômica, isto é, sua legitimidade social se baseia em outras razões - como os

princípios da lealdade e dos direitos superpostos dos diversos detentores da terra - não se

explicando como uma necessidade ligada imeditamente à subsistência do produtor direto.

Situação, de uma certa forma oposta a esta, é a analisada por Chayanov na Rússia.

Neste caso, tendo em vista a importância da propriedade comunal, os camponeses, por ele

estudados, gozavam de um grau de autonomia suficiente para decidir sobre a dimensão da

área que poderia cultivar, a cada ano, e o faziam - como Chayanov indica em seu estudo

clássico - em função da capacidade interna de sua família. (CHAYANOV.1974).

Compreende-se, assim, a importância que assume para o camponês a propriedade

familiar da terra. “Toda história agrária pode ser analisada como uma luta dos camponeses

pela posse total da terra, libertando-se dos direitos senhoriais e das servidões

coletivas.”(MENDRAS.1984:81)

d) - Agricultura camponesa, agricultura de subsistência e pequena agricultura: o que

dizem os conceitos.

Na perspectiva aqui adotada, é importante insistir, em primeiro lugar, que a agricultura

camponesa não se identifica simplesmente a uma agricultura de subsistência, entendida esta

como uma outra forma particular da agricultura familiar. Há situações em que, por razões

históricas e sociais diferentes, agricultores podem organizar sua produção, visando a

sobrevivência imediata, sem vincular suas estratégias produtivas ao projeto do futuro da

família. A constituição do patrimônio perde aqui sua força estruturadora. No sentido clássico


do termo, estes agricultores não seriam propriamente camponeses. Para Hugues Lamarche,

“conforme os objetivos a que se propõem os agricultores, para si mesmos e para suas

famílias, e conforme, também, os contextos socio-econômicos locais e o respectivo nível de

desenvolvimento, deve-se distinguir as unidades de produção camponesas de outras

consideradas de subsistência. Se a função de subsistência está bem presente no modelo

camponês, ele não se reduz jamais a isto; há neste modelo, profundamente arraigada, uma

vontade de conservação e de crescimento do patrimônio familiar.” (LAMARCHE. 1994: 270).

Em segundo lugar, da mesma forma, a pluriatividade e o trabalho externo de membros

da família não representam necessariamente a desagregação da agricultura camponesa,

mas constituem, frequentemente, elementos positivos, com o qual a própria família pode

contar para viabilizar suas estratégias de reprodução presentes e futuras. Finalmente, em

terceiro lugar, é necessário explicitar as relações entre agricultura camponesa e pequena

produção. Gostaria de formular a questão nos seguintes termos: a agricultura camponesa é,

em geral, pequena, dispõe de poucos recursos e tem restrições para potencializar suas

forças produtivas; porém, ela não é camponesa por ser pequena, isto é, não é a sua

dimensão que determina sua natureza e sim suas relações internas e externas, como foram

colocadas acima.

1.2. As Formas da Agricultura Familiar nas Sociedades Modernas.

O campesinato foi, e ainda é, historicamente predominante nas sociedades

tradicionais. Para Eric Wolf são integrantes das “sociedades camponesas” “aqueles

segmentos da espécie humana que permaneceram a meio caminho entre a tribo primitiva e

a sociedade industrial”. (WOLF. 1976:9) Por sua vez, Henri Mendras considera que "este

arquétipo da sociedade camponesa tradicional se incarnou sob formas diversas no Ocidente

europeu desde os meados da Idade Média até o fim do século XIX." (MENDRAS.1984:19)

Interessa saber, portanto, em que medida o modelo camponês clássico pode ser

generalizado a todas as sociedades em todos os momentos históricos, em particular nas

sociedades modernas. A hipótese que Mendras formula sugere que: “Em outras regiões do

mundo, este esquema pode servir de base de comparação e alguns de seus elementos

podem ser instrumentos úteis de interpretação: porém, seria perigoso vê-lo como um modelo

universal, capaz de explicar todas as coletividades agrárias dominadas por uma sociedade

mais abrangente. Numerosos estudos serão necessários sobre diferentes sociedades que

permitam construir esquemas análogos até que se possa saber se existe um tipo ideal único

de campesinato universal e se o camponês europeu, com suas variantes, não é apenas uma

espécie dentre outras, em um gênero mais amplo.” (MENDRAS.1984:19) 3

Como se sabe, este mundo tradicional, "que foi dominante no Ocidente até o final do

século passado", sofreu uma profunda transformação, em períodos mais recentes, tanto em

sua forma de produzir quanto em suas relações sociais. Gostaria, a este respeito, de propor

as seguintes hipóteses à reflexão.

a) - O campesinato que permanece.

Em primeiro lugar, o campesinato, mesmo tendo perdido a significação e a

importância que tinha nas sociedades tradicionais, continua a se reproduzir nas sociedades

atuais integradas ao mundo moderno. Pode-se identificar, portanto, em diversos países, na

atualidade, setores mais ou menos expressivos, que funcionam e se reproduzem sobre a

base de uma tradição camponesa, tanto em sua forma de produzir, quanto em sua vida

social. Mesmo tendo anunciado “o fim dos camponeses”, Mendras sustenta, juntamente com

Marcel Jollivet, no tomo 1 de “As coletividades rurais francesas”, esta hipótese da

permanência de um setor camponês residual na França. “Qualquer que seja a diversidade

das regiões e das nações, das civilizações e dos regimes políticos, vê-se, sempre a

coletividade rural inntegrar-se à sociedade global, conservando, no entanto, sua autonomia e

sua originalidade.” (JOLLIVET e MENDRAS.1971:21).

3 - Esta hipótese, formulada por Mendras, inspirou o estudo comparativo internacional que foi

realizado posteriormente, sob a coordenação de Hugues Lamarche, sobre a capacidade de

adaptação da agricultura familiar a contextos econômicos, sociais e políticos em 5 países. Ver.

LAMARCHE.1993 e 1994.


Em nossa pesquisa 4 , pudemos constatar que, se o campesinato tradicional

representou um pequeno resíduo entre os agricultores franceses, mais da metade dos

agricultores entrevistados na Polônia foram considerados camponeses. Paradoxalmente, a

orientação socialista da agricultura polonesa bloqueou a capacidade de transformação de

parte importante dos agricultores locais, do que resultou a reprodução das formas tradicionais

e clássicas do modelo camponês na agricultura e no meio rural daquele país.

b) - As formas modernas de agricultura familiar.

Minha segunda hipótese refere-se ao fato de que, como já foi dito acima, nas

sociedades modernas multiplicaram-se outras formas da agricultura familiar não

camponesas. São aquelas em que, sob o impacto das transformações de caráter mais geral -

importância da cidade e da cultura urbana, centralidade do mercado, mais recentemente,

globalização da economia etc - tentam adaptar-se a este novo contexto de reprodução,

transformando-se interna e externamente em um agente da agricultura moderna.

Chama particularmente a atenção a agudeza e a pertinência das conclusões ao estudo

comparativo sobre as coletividades rurais, nas quais Jollivet e Mendras apontavam, ainda no

início dos anos 70, para a natureza das mudanças que efetivamente se realizaram nas

décadas seguintes, e cujo eixo é dado pela perda crescente da autonomia tradicional,

consequência da integração e subordinação à sociedade englobante e pelo esvaziamento das

sociedades locais, provocado pelo êxodo rural. “Pode-se analisar as mudanças em curso,

como uma passagem do modelo de “comunidade” de interconhecimento tradicional para uma

coletividade mais diferenciada, próxima do modelo urbano, onde a dimensão espacial

permanece, no entanto, mais determinante que na cidade.” E mais adiante se lê: Hoje, e

ainda mais amanhã, a coletividade rural permanece como um dos espaços onde se organiza

a vida do indivíduo; mas existem outros...” (JOLLIVET e MENDRAS.1971.:208)

Da mesma forma, Marcel Jollivet reconhece que a agricultura camponesa se reproduz

no interior das sociedades capitalistas modernas, como uma “pequena produção mercantil”

e analisa as razões, do ponto de vista do capital, do que denomina, baseando-se em

Bettelheim, o “duplo processo de conservação-dissolução”. “... o princípio fundamental

segundo o qual o pequeno produtor mercantil procura unicamente obter meios de trabalhosubsistência,

convém, perfeitamente, ao modo de produção capitalista uma vez que ele

obriga o pequeno produtor mercantil a produzir; ele pode ser inclusive um excelente meio

para a exploração capitalista do trabalho social agrícola na medida em que o pequeno

produtor mercantil reage a qualquer diminuição de seu nível de vida com um acréscimento

de seu esforço produtivo e em que toda intensificação deste gênero permite extrair uma maisvalia

crescente sobre seu trabalho. O modo de produção capitalista pode, portanto, apropriarse

do trabalho do trabalhador agrícola que é o camponês, como o faz com todo trabalhador,

“pela mediação da troca”, conservando, assim, sua forma de pequeno produtor mercantil.”

(JOLLIVET.1974:243).

c) - A herança do passado.

A presença dos agricultores familiares “modernos” tem sido percebida por alguns

estudiosos como o resultado de uma ruptura profunda e definitiva em relação ao passado.

Tratar-se-ia, nesta perspectiva, de um personagem todo novo, distinto do seu ancestral

camponês, gestado a partir dos interesses e das iniciativas do Estado. É o caso, entre outros,

de Claude Servolin, para quem a predominância desta agricultura moderna (que ele

denomina agricultura individual moderna) é recente. “Esta constatação - afirma Servolin - nos

obriga a renunciar à “teoria da sobrevivência”. E ele acrescenta: “Se a produção individual

moderna encontra sua origem em um passado longínquo, sua generalização e seu

desenvolvimento no curso da história contemporânea só pode ser compreendida se

admitimos que nossas sociedades, de alguma forma, preferiram esta forma de produção a

outras formas possíveis.” (SERVOLIN. 1990:27).

É bem verdade que a agricultura assume atualmente uma racionalidade moderna, o

agricultor se profissionaliza, o mundo rural perde seus contornos de sociedade parcial e se

integra plenamente à sociedade nacional. No entanto, parece-me importante sublinhar - e o

formularia como uma terceira hipótese - que estes “novos personagens”, ou pelo mesmo

uma parte significativa desta categoria social, quando comparados aos camponeses ou

4 - Trata-se do estudo comparativo internacional, acima referido, realizado sob a coordenação de

Hugues Lamarche.


outros tipos tradicionais, são também, ao mesmo tempo, o resultado de uma continuidade.

Jollivet e Mendras apontam a complexidade deste processo. “A rápida integração na

sociedade industrial de coletividades camponesas que, tendo permanecido marginais haviam

conservado seu modo de regulação social, seu sistema de valores e suas formas de

sociabilidade, oferece um campo de pesquisa cuja amplitude e totalidade desafiam o

sociólogo. Com efeito, esta integração aciona ao mesmo tempo, os mecanismos da

sociedade global e os das coletividades locais; não se trata de um simples fenômeno de

assimilação, como a palavra sugere: cada coletividade reage a sua maneira e tenta preservar

sua originalidade, de tal forma que a própria sociedade global também se modifica

profundamente. Este ajustamento recíproco e a dinâmica específica da sociedade industrial

contribuem para modelar os traços essenciais da civilização de amanhã”. (p.10)

Do ponto de vista do agricultor, parece evidente que suas estratégias de reprodução,

nas condições modernas de produção, em grande parte ainda se baseiam na valorização

dos recursos de que dispõem internamente, no estabelecimento familiar, e se destinam a

assegurar a sobrevivência da família no presente e no futuro. De uma certa forma, os

agricultores familiares modernos “enfrentam” os novos desafios com as “armas” que

possuem e que aprenderam a usar ao longo do tempo.

Hugues Lamarche refere-se à “conservação e transmissão de um patrimônio sóciocultural”,

constituindo um “modelo original”, que exerce “um papel fundamental no modo de

funcionamento da agricultura familiar”. (LAMARCHE, 1993;13)

Refletir sobre o patrimônio sócio-cultural que alimenta, nos dias de hoje, as estratégias

dos agricultores familiares no Brasil é o objetivo da segunda parte deste trabalho, que

apresento a seguir.

II - O CAMPESINATO NO BRASIL.

Jacques Chonchol, conhecido estudioso chileno da problemática agrária da América

Latina, tem, reiteradas vezes, reclamado da ausência, na historiografia brasileira, de uma

história social do campesinato em nosso País. Segundo ele, embora existam excelentes

estudos históricos sobre este tema, não dispomos ainda de uma obra de síntese, capaz de

interpretar a natureza e a trajetória particulares do campesinato brasileiro.

Esta é, sem dúvida, uma missão para os historiadores e estes não faltam neste País.

Neste trabalho, longe de qualquer pretensão ambiciosa, desejo apenas expressar algumas

reflexões gerais, feitas a partir da leitura dos estudiosos da agricultura e do campesinato no

Brasil, sobre que patrimônio sócio-cultural se constituiu ao longo desta história, servindo hoje

como “modelo original” para a atual geração de agricultores.

Evidentemente, é preciso considerar, antes de tudo, que o “modelo original” do

campesinato brasileiro reflete as particularidades dos processos sociais mais gerais, da

própria história da agricultura brasileira, especialmente: o seu quadro colonial, que se

perpetuou, como uma herança, após a independência nacional; a dominação econômica,

social e política da grande propriedade; a marca da escravidão, e a existência de uma

enorme fronteira de terras livres ou passíveis de serem ocupadas pela simples ocupação e

posse.

Minha hipótese geral, já formulada em outros textos anteriores, consiste em afirmar

que “no Brasil, a grande propriedade, dominante em toda a sua História, se impôs como

modelo socialmente reconhecido. Foi ela quem recebeu aqui o estímulo social expresso na

polìtica agrícola, que procurou moderniza-la e assegurar sua reprodução. Neste contexto, a

agricultura familiar sempre ocupou um lugar secundário e subalterno na sociedade brasileira.

Quando comparado ao campesinato de outros paises, foi historicamente um setor

"bloqueado", impossibilitado de desenvolver suas potencialidades enquanto forma social

especifica de produção” (WANDERLEY.1995).

Assim, a história do campesinato no Brasil pode ser definida como o registro das lutas

para conseguir um espaço próprio na economia e na sociedade. Interessa, portanto, saber,

que condições ele encontra - estímulos ou obstáculos - e de que maneira os absorve ou os

supera em sua trajetória. Privilegiarei, nesta análise, apenas três objetivos, dentre muitos

outros, que parecem permanecer ao longo da história do campesinato brasileiro e que se

constituem como núcleos centrais, em torno dos quais se estrutura, até o presente, o amplo

leque das estratégias adotadas: refiro-me às lutas por um espaço produtivo, pela constituição

do patrimônio familiar e pela estruturação do estabelecimento como um espaço de trabalho


da família. 5

2.1. As fragilidades do sistema de produção: por uma Agricultura Estável e Rentável.

No Brasil, a construção de um espaço camponês se efetuou na maioria dos casos, sob

o signo da precariedade estrutural, que o torna incapaz de desenvolver toda as

potencialidades do próprio sistema clássico de produção e de vida social, diferenciando-o,

portanto, da estrutura européia, antes considerada, capaz de fechar o círculo da subsistência.

a) - O patamar mínimo e outras formas de precariedade.

É este, a meu ver, o sentido da análise de Antônio Cândido sobre os caipiras

paulistas. (CÂNDIDO.1964). Estes caipiras são, sem dúvida, camponeses, portadores de

uma cultura rústica. Porém, os elementos definidores do campesinato, no sentido clássico,

conforme foram anteriormente indicados, encontram-se, neste caso, em um patamar que

este autor definiu como os níveis “mínimos vitais e sociais”. É como se eles estivessem no

degrau inferior de uma escala que pudesse medir a natureza camponesa de um grupo social

de agricultores. “A sociedade caipira tradicional elaborou técnicas que permitiram estabilizar

as relações do grupo com o meio (embora em nível que reputaríamos hoje precário),

mediante o conhecimento satisfatório dos recursos naturais, a sua exploração sistemática e o

estabelecimento de uma certa dieta compatível com o mínimo vital - tudo relacionado a uma

vida social de tipo fechado, com base na economia de subsistência.” (CÂNDIDO.1964:19)

Neste caso, chamaria a atenção, especialmente, para as dificuldades encontradas para

a implantação de um sistema produtivo diversificado, semelhante ao da policultura-pecuária,

próprio do campesinato tradicional, como vimos acima. Embora, o consumo de proteínas na

alimentação humana pudesse ser assegurado, nos níveis mínimos já assinalados, através

das atividades de caça e pesca, a ausência da criação animal afetava diretamente, as

possibilidades de fertilização natural, só compensada pelo constante deslocamento das áreas

de culturas.

Neste nível de precariedade, certamente não há muito como construir um patrimônio

familiar. Podemos, no entanto, formular a hipótese de que, no caso dos caipiras, por muito

tempo, o projeto para o futuro, pelo qual as gerações atuais se comprometem com as

gerações que as sucedem, pôde ser assegurado, graças às possibilidades de mobilidade

espacial abertas pela prática da agricultura itinerante e, sobretudo, pelo sistema de posse

precária da terra. De uma certa forma, o patrimônio transmitido era o próprio modo de vida.

Evidentemente, não é possível generalizar esta situação limite - isto é, este padrão

correspondente aos mínimos vitais e sociais - para o conjunto do campesinato brasileiro, em

seus diversos momentos e em todo o território nacional. Porém, mesmo considerando que

as formas da precariedade são diferenciadas, os camponeses tiveram, de uma maneira ou de

outra, que abrir caminho entre as dificuldades alternativas que encontravam: submeter-se à

grande propriedade ou isolar-se em áreas mais distantes; depender exclusivamente dos

insuficientes resultados do trabalho no sítio ou completar a renda, trabalhando no eito de

propriedades alheias; migrar temporária ou definitivamente. São igualmente fonte de

precariedade: a instabilidade gerada pela alternância entre anos bons e secos no sertão

nordestino; os efeitos do esgotamento do solo nas colônias do Sul. A respeito desta última

situação, lembraria que Jean Roche, autor de um clássico estudo sobre a colonização alemã

no Rio Grande do Sul, é atento às fragilidades estruturais da agricultura colonial. Para ele, a

vida na colônia evolui, em geral, em 4 fases: a adaptação, expansão, seleção, e regressão.

Esta última, fase de declínio, ocorre quando os solos se esgotam e a terra disponível não é

mais suficiente, do que resulta, frequentemente, o deslocamento da população local para

outras áreas, onde recomeçará o ciclo. (ROCHE.1969)

b) - A instabilidade ameaça a autonomia.

Além da precariedade, o campesinato brasileiro é profundamente marcado pela

instabilidade das situações vividas. Com efeito, se são numerosos os estudos que indicam a

luta dos camponeses para terem acesso ao mercado, são igualmente inúmeras as

referências às suas derrotas neste campo de ação. Longe, porém, de desenhar uma direção

unívoca, resultando na dissolução do setor, estes embates dão conta de processos

5 - Deixo de tratar aqui a problemática da vida local no meio rural brasileiro, sobre a qual estou

elaborando um projeto de pesquisa. Ver sobre este tema. WANDERLEY e LOURENÇO. 1994.


complexos que construíram trajetórias diferenciadas nos diversos momentos e em diversos

espaços do território brasileiro. Assim, é possível identificar os processos de

“campesinização”, “descampesinização” e “recampesinização” que, de uma certa forma,

revelam os caminhos de sua instabilidade estrutural.

A situação de campesinização mais evidente, registrada na literatura sobre o tema é,

sem dúvida, a ocupação das serras gaúchas pelos colonos imigrantes da Europa, desde o

século passado, onde um campesinato de origem européia pôde se implantar em condições

mais favoráveis no interior do País. Mas há outras situações de campesinização. A título de

ilustração, sem pretender esgotar todos os casos, pode-se citar o processo de “caipirização”,

que Hebe Mattos de Castro analisou no Município de Capivarí, no Rio de Janeiro, após a

abolição da escravidão. (CASTRO.1987) Para esta historiadora, “... a organização agrária

revelada pelos dados analisados, configura-se ”caipirizada”, fundada no trabalho familiar, em

baixos níveis técnicos, inclusive no que se refere ao beneficiamento dos produtos cultivados,

na fragmentação da propriedade fundiária e em relações de produção que mesmo baseadas

na propriedade da terra não chegavam a engendrar uma elite agrária claramente diferenciada

do conjunto da população local.” (p. 187) E a autora acrescenta: “Em suma, uma

organização agrária voltada para a garantia da subsistência, trabalhando com limitadas

condições de acumulação e investimento... Uma comunidade pobre, capaz porém de manter

na sua dinâmica social um crescimento demográfico contínuo até pelo menos a segunda

década deste século, capaz também de garantir, mesmo que em níveis extremamente

baixos, a sobrevivência do produtor rural, inclusive do não-proprietário, em níveis de

estabilidade...”( p. 187).

É de descampesinização o processo brutal, estudado por Guilhermo Palacios, pelo

qual o Estado e os latifundiários desestruturaram a economia e as formas sociais de

“cultivadores pobres livres” no Nordeste oriental. (PALACIOS.1987) Mas, a busca de novas

terras no sertão, reinstala em novas condições as comunidades de base familiar, num claro

mecanismo de recampesinização. O colonato em São Paulo - modelo pelo qual a força de

trabalho dos escravos nas fazendas de café foi substituída por trabalhadores livres - também

pode ser entendido como um espaço de campesinização, desfeito nos anos 60 com o

próprio fim do sistema adotado um século antes. (MARTINS.1979)

Exemplo de campesinizacão para uns ou de descampesinização para outros, o

morador é aquele trabalhador que, empregado dos engenhos, usinas e fazendas do

Nordeste, tenta assegurar as condições mínimas de uma atividade produtiva familiar no

interior da grande propriedade onde reside. Como o afirma Moacir Palmeira, “... não há

dúvida que a concessão de sítios representa o mais importante dos “prêmios” que o senhor

de engenho atribui ao morador, pois significa o morador poder plantar, além do seu roçado,

árvores e, portanto, ligar-se permanentemente à propriedade (e aqui o tempo de permanência

passa a ser um elemento importante). (PALMEIRA. 1977:106)

Finalmente, a relação de parceria, da maneira como foi considerada por Antônio

Cândido, permite uma certa forma de recampesinização. “... é possível dizer que o

incremento extraordinário da parceria pode significar verdadeira capitulação do latifúndio, que

permite refazerem-se no seu território agrupamentos de lavradores em condições parecidas,

muitas vezes, com a de pequenos sitiantes integrados em bairro, praticando, em pequena

escala, agricultura de subsistência.” (CÂNDIDO:1964:150).

Para este autor, “... a parceria representa um ponto de precária estabilidade no

processo de mudança ora em andamento, colocando o caipira entre a posição de

proprietário, ou posseiro, e a de salariado agrícola; e aparecendo, muitas vezes, como uma

única solução possível para a sua permanência no campo.” (CÂNDIDO:1964:151)

Uma história do campesinato brasileiro deveria explicitar as razões e os princípios da

regularidade destes movimentos, aparentemente díspares, dispersos em várias direções e

até mesmo contraditórios.

Vencedores ou perdedores neste campo de luta, os camponeses, no passado como

atualmente, dele participam com o objetivo de ter acesso a atividades estáveis e rentáveis. É

este objetivo que norteia suas estratégias econômicas e que se articulam em dois níveis

complementares. Por um lado, o acesso a uma atividade mercantil. A historiografia é plena

de exemplos que nos permitem afirmar que, desde o período colonial, os chamados

“cultivadores pobres livres” sempre buscaram alternativas econômicas que os integrassem

positivamente à economia local e regional, tanto o mercado interno de produtos alimentares,

como também o de produtos destinados à exportação, como o fizeram com a produção da

mandioca, do tabaco e do algodão. (PALACIOS.1987) E até hoje, sempre foi uma orientação


comum e natural destes agricultores, a busca de produto ou produtos comercializáveis, que

sejam o carro-chefe do sistema produtivo adotado.

Por outro lado, a esta atividade mercantil se soma o autoconsumo. É natural que,

dispondo de meios de produção, mesmo que em condições precárias e insuficientes, o

camponês procure, antes de mais nada, assegurar o consumo alimentar da família. Como

indicam Maria Yeda Linhares e Francisco Carlos Teixeira da Silva, a economia de

subsistência “é a face oculta da economia e da sociedade coloniais.” (LINHARES.SILVA.

1981:118)

Esta dupla preocupacão - a integração ao mercado e a garantia do consumo - é

fundamental para a constituição do que estamos aqui chamando de “patrimônio sóciocultural”,

do campesinato brasileiro. A este respeito, parece claro que a referência a uma

“agricultura de subsistência”, tão frequente na literatura especializada, pode esconder os

propósitos mais profundos dos agricultores. Nada indica que o campesinato brasileiro se

restrinja, em seus objetivos, à simples obtenção direta da alimentação familiar, o que só

acontece quando as portas do mercado estão efetivamente fechadas para eles. Pelo

contrário, a experiência do envolvimento nesta dupla face da atividade produtiva gerou um

saber específico, que pôde ser transmitido através das gerações sucessivas e que serviu de

base para o enfrentamento - vitorioso ou não - da precariedade e da instabilidade acima

analisadas. É este saber que fundamenta a complementação e a articulação entre a

atividade mercantil e a de subsistência, efetuada sobre a base de uma divisão do trabalho

interna da família ou da prática do “princípio da alternatividade”, formulado por Afrânio R.

Garcia Jr. (GARCIA JR.1990)

De fato, segundo Garcia, “há uma esfera do consumo doméstico que pode ser

abastecida diretamente do roçado para a casa, de produtos que podem ser autoconsumidos

ou vendidos. Este é particularmente o caso da mandioca. São produtos que têm a marca da

alternatividade. Alternatividade entre serem consumidos diretamente, e assim, atender às

necessidades domésticas de consumo, e serem vendidos, quando a renda monetária que

proporcionam permite adquirir outros produtos também de consumo doméstico, mas que não

podem ser produzidos pelo próprio grupo doméstico, como o sal, o açúcar, o querosene, etc.”

(GARCIA.1990:117).

2.2. A Busca de Uma Terra para a família.

Uma das dimensões mais importantes das lutas dos camponeses brasileiros está

centrada no esforço para constituir um “território” familiar, um lugar de vida e de trabalho,

capaz de guardar a memória da família e de reproduzi-la para as gerações posteriores.

Paradoxalmente, a perseguição deste objetivo supõe muito frequentemente, a extrema

mobilidade do agricultor, que se submete a longos, constantes e sucessivos deslocamentos

espaciais.

Na análise desta questão, será possível considerar duas situações distintas. Em

primeiro lugar, a mobilidade resultante da pressão direta da grande propriedade. Diante da

necessidade de escapar da submissão ao latifúndio, a alternativa possível consistiu, ao longo

da história do campesinato brasileiro, especialmente, em algumas regiões, na migração para

o interior do País.

Em segundo lugar, a migração para a fronteira se inscreve também na lógica interna

da reprodução da agricultura camponesa, particularmente, do Sul do País. O que chama a

atenção, neste caso, é o fato de que a reprodução social da família no Brasil muito

frequentemente gera a expectativa da instalação de cada filho em um novo estabelecimento.

6

Ora, tendo em vista os limites da estrutura colonial implantada no Sul, nos termos já

considerados acima, os desdobramentos naturais da vida econômica e social das colônias

termina por impor a busca de outras terras. Este foi, sabidamente, o processo que, a partir do

Rio Grande do Sul, permitiu a ocupação das fronteiras nos próprios Estados meridionais, e

que continua até o presente, nas fronteiras do Centro-Oeste e Norte do País.

(SANTOS.1993)

6 - Este fato causou estranheza entre os pesquisadores estrangeiros que visitaram o Brasil nos

quadros da pesquisa coordenada por Hugues Lamarche, pois para eles a reprodução camponesa

significa a reprodução do estabelecimento familiar e não necesssariamente, a alocação de todos

os filhos na agricultura. Esta diferença é importante, pois ela mostra o quanto, na maioria das

vezes, o agricultor conta apenas com sua terra para oferecer qualquer futuro para os filhos.


A migração tem aqui duas faces: a esperança e o fracasso. A existência de uma

fronteira agrícola, no interior do país, foi a condição que permitiu a estes camponeses

garantir a autonomia do seu modo de vida, especialmente, pelo fato da existência de terras

livres, acessíveis através do sistema de posses. As referências são numerosas na literatura

brasileira.

Antônio Cândido, por exemplo, mostra como a mobilidade do caipira, que era,

inicialmente, uma condição necessária para o equilíbrio precário de seu modo de vida,

transforma-se em uma das “miragens econômicas e sociais”, quando este modo de vida é

ameaçado pela presença da grande propriedade e da cultura urbana. “São miragens, por

assim dizer de recuperação baseadas na esperança de tornarem-se proprietários e recriarem

as condições de vida acenadas nas utopias retrospectivas, já agora no Paraná, na Alta

Sorocabana, até em Mato Grosso.” (CÂNDIDO.1964:156) Para este autor, “... o principal

fator deste tipo de mobilidade é a insegurança da ocupação da terra; no caso, a perda de

posse ou propriedade, e a instabilidade trazida pela dependência à vontade do fazendeiro. No

entanto, vista do ângulo sociológico, ela funciona como preservação de cultura e de

autonomia.” ( CÂNDIDO.1964:164)

Pierre Mombeig, em seu clássico estudo sobre a zona pioneira em São Paulo, referese

ao movimento de colonos do café na direção da fronteira paulista. Reconhecendo a

importância do pequeno agricultor sitiante neste processo de ocupação do oeste do Estado,

Mombeig considera que “a maior parte dos pioneiros trabalhou como colonos nas grandes

fazendas das velhas regiões”. (MOMBEIG.1977:223)

No Nordeste, o sertão é percebido, inicialmente, como um lugar de fartura e de

liberdade, uma “terra de refúgio”, na feliz expressão de Francisco Carlos Teixeira da Silva

(SILVA.1981), onde um “herói civilizador”, cujo nome é guardado frequentemente, até hoje,

na memória de seus descendentes (GODOI.1993) (WOORTMANN. 1995), conquista um

novo território, no qual se instala com seu grupo familiar e tenta construir um espaço

camponês de vida e de trabalho.

Esta percepção positiva, da fronteira como possibilidade, é confirmada por Octávio

Guilherme Velho, para quem, “... o que a fronteira quando se abre parece representar é na

verdade, um locus privilegiado para o desenvolvimento da pequena agricultura.”

(VELHO.1976:97) Isto porque no novo espaço, o camponês se liberta dos antigos laços

sociais que o tolhiam nas áreas velhas, de onde provêm, tendo adquirido, “num período de

tempo relativamente curto, um grau bastante alto de integração vertical com o mercado”.

(p.197) Octávio Guilherme Velho considera, assim que “... esse campesinato parece estar

gradativamente se desmarginalizando. Trata-se, sem dúvida nessa escala de um fenômeno

novo para o Brasil. Aparentemente, pela primeira vez - e diferentemente do caso atual de

camponeses marginais posseiros - esse neocampesinato tem justificado economicamente

sua existência, embora isso não lhe garanta automaticamente a sobrevivência.” (p. 198)

Porém, por outro lado, o risco do insucesso sempre foi intenso e constante. Nesta

trajetória em busca de novas terras, além de ter que enfrentar as dificuldades inerentes ao

próprio deslocamento e à instalação em um local desconhecido, o grande desafio, consistia

em vencer as mesmas condições de que se tentava escapar. Guilhermo Palacios refere-se

aos riscos “do isolamento, da pobreza e da agricultura de subsistência” (PALACIOS.1987),

expressões da precariedade e da insuficiência que permanecem, no sertão como no litoral.

Para ele, “o isolamento imposto aos “sitiantes” e aos “agregados” nas décadas finais do

século XIX nada mais foi do que um elemento central à estratégia de transição dos grupos

hegemônicos da sociedade agrária brasileira.” (PALACIOS.1993: 50)

No caso do sertão nordestino, a estas dificuldades acrescenta-se o enfrentamento das

secas, que, como afirma Celso Furtado, se torna um “problema social”, a partir,

precisamente da intensificação da migração. “Essa combinação, aparentemente, tão feliz, da

pecuária com o algodão arbóreo, modificou as bases da economia sertaneja e transformou as

secas em um problema social de grandes dimensões. A população que acorria ao sertão, em

busca das vantagens que apresentava a cultura do algodão e seduzida pela abundância de

alimentos que ali florescem nos “bons” invernos, estava, em realidade, sendo atraída para

uma armadilha infernal. O trabalhador que se fixava no latifúndio sertanejo devia plantar

algodão em regime de meação com o dono, que financiava o plantio, adiantando sementes e

o necessário para custear a produção.” (FURTADO.1964:166)

Finalmente, nesta perspectiva, José Vicente Tavares dos Santos considera que a

fronteira gera também a exclusão social. “É justamente neste nomadismo dos colonos

brasileiros que se opera o inverso da seleção social: em outras palavras, a produção social da


exclusão é uma das dimensões do processo de colonização.” (SANTOS.1993:244).

De qualquer forma, seja como um lugar de refúgio e reconstrução, seja como um lugar

de desilusão e fracasso, a fronteira é o lugar da utopia. Como afirma José Vicente Tavares

dos Santos, “Acontece que havia entre os camponeses das regiões de origem, de certa

forma acuados pela falta de terras, um desejo de reproduzir-se como camponeses, quer

tratando-se deles mesmos em melhores terras ou em áreas mais extensas, ou de seus filhos

em condições semelhantes. Por conseguinte, esta “sede da terra” fez surgir, também, um

“sonho da terra” entre esses camponeses que queriam continuar sendo camponeses.” ( p.

258)

Assim, a própria existência da fronteira dá sentido à intensa mobilização. Isto é, o

deslocamento, uma vez que existam terras livres, se inscreve no projeto de vida de famílias

de camponeses como uma continuidade. Referindo-se aos agricultores do Nordeste, Marie

Claude Maurel conclui que, “se a terra tem um valor de meio de produção, e isto de maneira

absolutamente vital para a família agrícola, ela não é o território patrimonial ao qual os

campesinatos enraizados são vinculados; ela é um bem em “devir”, um patrimônio sobre o

modo imaginário, que o nordestino pode esperar constituir se ele tenta a aventura da

migração interior. ( MAUREL.1964:95)

Pode-se propor a hipótese que este processo não é exclusivo dos camponeses

nordestinos, mas pode ser observado como um traço comum entre os camponeses

brasileiros. O que parece a primeira vista como ausência de vínculo com o território familiar e

comunitário de origem significa, na verdade, a possibilidade de constituição - ou

reconstituição - do patrimônio familiar camponês, mesmo que seja em um local distante.

“Longe de representar indiferença em relação ao que conseguiram construir, a grande

aceitação da mobilidade espacial - que reflete as experiências realmente vividas das

migrações - demonstra o quanto eles estão ainda na busca do seu espaço próprio e definitivo.

Nisto, os brasileiros diferem profundamente dos franceses e mesmo dos canadenses,

instalados e enraizados há séculos em seus locais de origem”. (WANDERLEY.1995)

2.3. O Estabelecimento Agrícola: Um Lugar de Trabalho da Família.

Pela sua própria natureza, a unidade de produção camponesa é o resultado do trabalho

dos membros da família proprietária. O campesinato no Brasil não é diferente, sobre esta

questão, daqueles que se reproduzem ou se reproduziram em outros países. Porém, em

razão do próprio contexto em que se reproduz, ele revela uma longa tradição de trabalhar

alugado para terceiros e de empregar, ele mesmo, trabalhadores alugados em seu

estabelecimento familiar. Esta particularidade tem intrigado muitos estudiosos, que tentam

explica-lo como resultante de processos sociais de decomposição do campesinato.

O que parece importante a entender, em primeiro lugar, é que há aqui uma oferta

sazonal de empregos na agricultura, gerada pela grande propriedade, que foi, durante muito

tempo, satisfeita por camponeses, cujo tempo de não-trabalho coincidia com as safras das

grandes culturas. Manuel Correia de Andrade analisou a utilização pelas usinas de

Pernambuco dos “corumbas”, camponeses do agreste e do sertão. “Chegado, porém o estio,

nos meses de setembro e outubro, quando as usinas começam a moer e a seca não permite

a existência de trabalhos agrícolas no Agreste, eles descem em grupos em direção à área

canavieira, às vezes a pé, às vezes em caminhões e vêm oferecer seus trabalhos nas usinas

e engenhos. Aí permanecem, até as primeiras chuvas que são no Agreste em março ou abril,

quando regressam aos seus lares a fim de instalarem novos roçados.”(ANDRADE.1964:119) 7

E ele acrescenta: “Em pesquisas realizadas nos últimos 5 anos em mais de cinqüenta usinas,

desde o Rio Grande do Norte até Alagoas, não encontramos uma única que dispensasse a

cooperação dos corumbas. (p. 120)

Em segundo lugar, deve-se considerar que, tendo em vista, a precariedade e a

instabilidade da situação camponesa, o trabalho externo se torna, na maioria dos casos, uma

necessidade estrutural. Isto é, a renda obtida neste tipo de trabalho vem a ser indispensável

para a reprodução, não só da família, como do próprio estabelecimento familiar. Como o

afirma José Vicente Tavares dos Santos, referindo-se aos camponeses produtores de vinho

no Rio Grande do Sul, “a transformação periódica do camponês em trabalhador assalariado

é fonte de uma renda monetária que suplementa o rendimento obtido com a venda da uva....

Somente são limitados pelo ciclo de existência da família que em algumas épocas os libera

7 - Ver também SALES.1992.


e noutras os impede de desempenhar alguma atividade acessória.” E o autor conclui: “Assim

se explica porque aceitam a perspectiva de serem “jornaleiros”, isto é, trabalhadores diaristas

ou trabalhadores por tarefa (empreita), enquanto negam a sorte de serem “peon”, ou seja,

trabalhadores pernamentes. (SANTOS.1978: 38).

Este aspecto da questão é de grande importância, porque não se trata simplesmente

de demonstrar que os estabelecimentos camponeses não conseguem gerar renda suficiente

para manter a família; trata-se, ao contrário, de compreender os mecanismos deste equilíbrio

precário e instável, pelos quais o estabelecimento familiar se reproduz, a despeito do

trabalho externo e, em muitos casos, em estreita dependência deste mesmo trabalho externo.

Quanto ao fato de empregarem, eles mesmos, o trabalho alugado de terceiros, podese,

igualmente, considerar duas situações que me parecem distintas na agricultura brasileira.

A primeira corresponde aos casos em que o recurso ao trabalho alugado de terceiros se

inscreve na lógica interna da reprodução familiar, através de mecanismos tradicionais e do

envolvimento de pessoas da própria comunidade camponesa ou próxima a ela. Para Afrânio

R. Garcia, que analisou esta situação, com grande riqueza de detalhes, a utilização trabalho

de terceiros decorre da necessidade de “diminuir a auto-exploração da força de trabalho do

grupo doméstico” (GARCIA.1990:142) Como ele explica, “...a substituição de trabalhadores

domésticos pelos alugados não é algo que é feito de uma vez para sempre. Há uma

avaliação constante e renovada a cada ciclo agrícola, entre utilizar a força de trabalho

doméstica na agricultura, ou poupá-la destas tarefas utilizando alugados. Fica claro também,

que a composição do grupo doméstico por sexo e idade afeta diretamente este cálculo.”(p.

143) Análise semelhante já havia sido feita por José Vicente Tavares dos Santos. “A partir da

constatação empírica da existência de força de trabalho assalariada na unidade produtiva

camponesa, surge a questão fundamental: em que medida a existência desses

trabalhadores assalariados provoca a emergência de uma relação social de produção

capitalista no interior do processo de trabalho camponês?” E este pesquisador responde: na

unidade produtiva camponesa “não se verifica o desenvolvimento do capital enquanto relação

social entre as pessoas envolvidas no processo de traballho camponês. Ao contrário, a forma

salário ocorre no interior da produção camponesa em função do ciclo de existência da

família. Nesse sentido, a soma de dinheiro gasta no pagamento de salários aparece como

redução do rendimento familiar.” (SANTOS.1978:43)

Mas há uma segunda situação, mais complexa, na qual às razões internas se

acrescentam explicações externas à unidade de produção camponesa. Estudei um caso

semelhante, em Leme, São Paulo. (WANDERLEY.1989) Neste município concentra-se um

significativo contingente de assalariados rurais, atraídos pelo trabalho temporário nas culturas

da cana de açúcar e da laranja, efetuadas em grandes unidades empresariais. Além destes

estabelecimentos, existe no município um grande número de produtores, de origem

camponesa, que cultivam algodão em estabelecimentos familiares e que também utilizam em

grande escala o trabalho temporário dos “bóias-frias”. 8 Nestes casos, não se trata apenas da

substituição do trabalho familiar pelo alugado, nos termos propostos pelos autores acima

indicados. No exemplo citado dos produtores de algodão, se dependessem de suas próprias

forças ou das forças “substitutas”, equivalentes, dificilmente estes agricultores poderiam

plantar toda a área disponível com algodão, e, muito menos, aumentar a área de

estabelecimento, como quase todos o fizeram nos últimos anos. O fato de poder ampliar o

número de homens nesta tarefa manual, através do emprego de trabalhadores assalariados,

permite que a família aumente sua capacidade produtiva em outras fases do processo de

produção, através, sobretudo da utilização de máquinas e insumos.

Porém, nestes casos, de uma certa forma, o lugar do trabalho familiar é reiterado e

mesmo reforçado: os membros da família continuam envolvidos no trabalho do

estabelecimento - suas tarefas consistem agora, fundamentalmente, na operação das

máquinas (meios de produção e também patrimônio familiar) e na fiscalização dos

assalariados - e, sobretudo, estes estabelecimentos têm capacidade para absorver um maior

número de filhos. (WANDERLEY.1995)

O fato de utilizar, mesmo com uma elevada intensidade, o trabalho externo, não

transforma, necessariamente estes agricultores em empresários capitalistas, no sentido

clássico e exato do termo. É que - e isto me parece o mais importante a considerar - esta

agricultura familiar não é capaz, pelas suas próprias forças produtivas, de gerar o trabalho

8- Apesar do seu caráter moderno e atual, que, de uma certa forma, ultrapassa os limites deste

texto, a problemática das relações entre o campesinato e o trabalho assalariado também se inclui

como uma herança histórica, que forjou o campesinato no Brasil.


assalariado, limitando-se a utiliza-lo lá onde o capital e a grande propriedade têm esta

capacidade.

A GUIZA DE CONCLUSÃO

Este trabalho pretendeu reler as contribuições dos estudiosos, especialmente dos

historiadores, a respeito da constituição do campesinato no Brasil e propor alguns elementos

para compreender suas particularidades. Como em outros contextos históricos, esta

constituição tem como base o acesso à terra e a reprodução de formas particulares de

produção e de sociabilidade. O acesso à terra foi aqui, doloroso e restrito, do que resultou,

para a historiografia analisada, as características principais do campesinato brasileiro em

sua origem: a pobreza, o isolamento, a produção centrada na subsistência mínima e a

extema mobilidade espacial.

A agricultura familiar é hoje responsável por mais de 70% dos estabelecimentos

agrícolas no Brasil. (KAGEYAMA. BERGAMASCO.1989) Tendo que se adaptar às exigências

da agricultura moderna, esta forma de agricultura guarda ainda muito dos seus traços

camponeses, tanto porque ainda tem que “enfrentar” os velhos problemas, nunca resolvidos,

como porque, fragilizada, nas condições da modernização brasileira, continua a contar, na

maioria dos casos, com suas próprias forças.

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