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Na Alemanha, Guardiola viveu uma metamorfose que o transformou em
numerosos aspectos. Enquanto conservou suas características
fundamentais (o jogo de posição como modelo e a competitividade
insaciável como motor), ele incorporou novos traços durante a
experiência em Munique.
Esta obra é uma peça singular no universo dos livros sobre futebol.
Animado pelo atrevimento do próprio Guardiola, Martí Perarnau propõe
uma narração "livre”, que Llui do presente ao passado e se detém em
reLlexões, pessoas ou momentos signiLicativos da trajetória de Pep. Do
restaurante vazio após a dolorosa eliminação para o Atlético de Madrid –
na que foi considerada a melhor atuação da era alemã de Guardiola – a
como se ensaia um escanteio, a carta de um torcedor, a meticulosa
descrição da virada sobre a Juventus ou o carinho com que o Bayern se
despediu do técnico.
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APRESENTAÇÃO
André Kfouri
Em Guardiola confidencial, Martí Perarnau nos apresentou um treinador
desconhecido. Pep Guardiola já tinha nome, currículo e um lugar de honra na
história do futebol, mas aqueles que gravitavam em seu entorno protegiam uma
relação baseada na confiança e na discrição. Perarnau conseguiu um ingresso
para o universo de um clube dirigido pelo técnico catalão, e — ao nos convidar a
entrar e nos guiar com seu olhar curioso e sensível — revelou como ele
trabalha, no que acredita, o que valoriza, como sente o jogo que colaborou para
transformar desde que assumiu o Barcelona, em 2008.
Antes do primeiro livro, apenas podíamos imaginar Pep Guardiola. Depois
da descrição da primeira temporada no Bayern — por si só um formidável
relato sobre a vida de um time de futebol da elite desse esporte —, é possível
afirmar que sabemos algo sobre ele. Esta segunda obra produzirá um efeito
semelhante, não exatamente por ampliar o mundo de Guardiola e nos permitir
ler um pouco de seu cérebro, mas por relembrar que fotografias são registros
estáticos de um momento que está no passado. As três temporadas na
Alemanha foram tão transformadoras para o futebol daquele país quanto para
Pep e sua maneira de se relacionar com o jogo.
Pep Guardiola: A evolução é um livro sobre uma pessoa com sede de
experiências e conhecimentos, mas também sobre um técnico disposto a se
modificar para seguir questionando o que é convencional e gerando o tipo de
futebol que carrega em seu coração. Se a ideia de dissociá-los fosse possível,
provavelmente seria um livro mais a respeito de Pep do que de Guardiola,
embora o âmbito no qual as transformações se aplicam seja sempre o campo de
jogo e as ferramentas necessárias para conquistar os jogadores por intermédio
dos quais o técnico exibe seu trabalho. E, ao conhecer a pessoa com um pouco
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mais de profundidade, descobrimos por que ele decidiu não renovar seu
contrato com o Bayern, por que resolveu seguir seu caminho na Inglaterra e por
que escolheu o Manchester City.
Guardiola precisa se modificar para se manter na vanguarda tática do
futebol, uma área em que as mentes mais capazes disputam uma corrida cada
vez mais veloz. Como principal inovador do jogo, ele vive constantemente
atento a sutilezas de outras modalidades esportivas que possam lhe ser úteis,
confortável na posição de “ladrão de ideias”, como se define. Perarnau deixa o
ambiente do esporte para entender como funciona a cabeça de um
perfeccionista, descolando etiquetas que foram associadas à sua imagem por
gente que não o conhece. O estilista romântico se converte em competidor
feroz; o professor dogmático se revela um acumulador de conceitos. As únicas
convicções imutáveis são a confiança na preparação detalhista ao extremo, a
intenção de controlar o que acontece a partir do momento em que a bola se
mexe e o desejo de oferecer uma classe de futebol que emocione as pessoas.
Perarnau também nos conduz pela tentativa de descobrir para onde o jogo
está se movendo. O futebol é uma atividade em que o novo nada mais é do que a
reutilização de ideias antigas em contextos diferentes. Ao longo dos tempos, os
treinadores que reuniram criatividade e coragem foram aqueles que
impulsionaram o esporte aos saltos táticos que marcaram épocas, mas é
interessante notar que os times mais formidáveis da história eram semelhantes
na forma como enxergavam o jogo. Há uma inegável conexão através das eras
entre os proponentes do futebol que busca a fluidez, o senso coletivo, o
refinamento técnico, o encantamento. Pep Guardiola é um membro dessa
linhagem à procura de novas respostas durante o maior desafio de sua carreira.
Este livro é um manual para acompanhá-lo.
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NOTA SOBRE TERMINOLOGIA
Ao longo deste livro, o autor faz inúmeras referências às posições dos
jogadores de futebol. Em muitas, por ser espanhol, ele usa termos alheios aos
mais utilizados no Brasil. O tradutor entendeu ser necessário manter essa
terminologia por fidelidade à forma como Martí Perarnau visualiza os
jogadores, mas a tradução não pode correr o risco de provocar má
compreensão. Por isso, a seguinte explicação:
— CENTRAL: jogador que atua no centro da defesa. Para não causar
confusão com o “meio-campista central”, que também é citado na obra, usamos
a denominação completa na maioria das vezes: “defensor central”. Quando se lê
apenas “central”, o motivo é evitar a repetição de palavras.
— INTERIOR: meio-campista que atua pelo lado do campo. Tem
características ofensivas e muitas vezes se posiciona entre o extremo e o
centroavante.
— EXTREMO: atacante que atua pelo lado do campo.
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PREFÁCIO
Pep Guardiola não leu este livro, como também não leu Guardiola confidencial.
Nem o fez antes da publicação, o que teria sido um desejo legítimo de averiguar
o que seria dito, nem o fez depois, por curiosidade de saber o que se disse sobre
ele. Certo dia, em Munique, um bom amigo lhe perguntou sobre essa decisão:
“Não o li”, respondeu Guardiola, “por enquanto. Lerei daqui a quinze ou vinte
anos, para recordar como foi minha passagem pelo Bayern”.
Eis então uma pessoa peculiar, que autoriza a entrada na intimidade de seu
vestiário, o acesso e a publicação de toda a informação que o rodeia, mas que
não se preocupa em conhecer o resultado desse trabalho. Um comportamento
que explica melhor o personagem do que um bocado de palavras que
poderíamos empregar para descrevê-lo.
A influência que a Alemanha exerceu sobre Guardiola provocou nele uma
importante metamorfose que este livro pretende descrever em detalhes. Foi
como a transformação que o adolescente sofre quando abandona a casa dos
pais para conhecer o mundo. Pep Guardiola: A evolução retrata como é a nova
versão do treinador que aterrissa em Manchester para enfrentar o maior
desafio de sua carreira, sua terceira etapa como técnico. Se seu período azulgrená
foi eminentemente autobiográfico — pois nele Pep investiu tudo o que
viveu e aprendeu como jogador do Barça — e o período vermelho de Munique
se distinguiu pela adaptação a uma cultura clássica — à qual o treinador
agregou uma torrente inesgotável de criatividade disruptiva —, o período azul
que se abre em Manchester é uma tela em branco que ele encara sendo alguém
muito diferente do que foi em Barcelona e Munique, mas sem deixar de ser,
acima de tudo, Guardiola.
A primeira vez que falei com ele sobre este livro foi quando Guardiola já
tinha se despedido oficialmente do Bayern e entrava em férias antes de sua
apresentação como treinador do City. Como era de esperar, Pep não entendeu
claramente:
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— Quando deixo um lugar, não gosto de reviver o passado. Fui muito feliz
em Munique, fui embora muito contente com todas as pessoas do clube, e tudo
isso já ficou para trás. Não vale a pena que você escreva sobre esses dois
últimos anos.
Para convencê-lo, eu lhe disse a verdade:
— Na realidade, o livro já está quase pronto. Eu fui escrevendo, dia a dia,
durante dois anos…
— Ah, bom… Então talvez você não deva jogá-lo no lixo. Faça o que quiser.
E foi assim que estas letras chegaram à impressão. Sem que existisse por
trás delas um projeto preconcebido milimetricamente, sem que o protagonista
as tenha lido e sem que o autor tivesse, até o último minuto, certeza de que elas
tomariam a forma de um livro.
O que se lerá a seguir é fruto de dois anos de trabalho contínuo, centenas
de treinamentos e jogos, além de inúmeras entrevistas e conversas que tentei
condensar neste relato sobre a grande transformação que Munique provocou
em Pep. Nada teria sido possível sem a atitude amigável do Bayern, que, após a
publicação de Guardiola confidencial, seguiu facilitando o acesso do autor à
rotina do time. Que conste meu agradecimento a todo o clube: desde o principal
dirigente, Karl-Heinz Rummenigge, até o mais humilde dos guardas ou sócios.
Estendo o agradecimento a Guardiola e a sua equipe de auxiliares, não só
por abrir todas as portas, até mesmo nos momentos mais delicados ou amargos,
mas especialmente pela liberdade com que me permitiram trabalhar todo esse
tempo. A regra foi: “Faça o que quiser”. Desse modo, publiquei o que eu quis. Os
elogios que escrevo pertencem a mim. As críticas que emito, também.
O leitor encontrará catorze capítulos que narram a metamorfose vivida por
Pep, dentro dos quais se incluem cinquenta notas de apoio que permitem
ampliar, compreender ou justificar as teses que são apresentadas. Recomendo
que se leve em conta a data de cada nota.
No fim dos capítulos (exceto o último) também há os “Bastidores”. São
relatos de jogos e detalhes de tática ou de determinados eventos, organizados
de forma cronológica, que foram produzidos ao redor do cenário principal em
que Pep se moveu nesses anos. Cada um pode ler os “Bastidores” como preferir:
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na ordem natural em que se apresentam ou ao terminar toda a leitura do livro
— como se fosse, na realidade, outro livro. Como achar melhor.
No papel de autor, não fui ortodoxo nem canônico na confecção do livro.
Combinei perspectivas, mesclei óticas e escrevi o que me pareceu interessante,
mesmo sob o risco de impedir que o texto tivesse um estilo homogêneo. É
provável que a trajetória de Guardiola rumo ao ecletismo tenha influenciado
nessa escolha. Não é um livro fácil, pois afasta o linear, flerta com a
complexidade e joga com o tempo e com os tempos ao misturar datas e
acontecimentos. Mas, no fim das contas, a vida do futebol não é mais que isso:
um contínuo ir para a frente e para trás.
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Fazer vinte vezes, recomeçar a obra, poli-la constantemente, poli-la sem descanso.
NICOLAS BOILEAU
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CAPÍTULO 1
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O CAMALEÃO
Quem conduz e arrasta o mundo não
são as máquinas, mas sim as ideias.
VICTOR HUGO
Woody Allen lhe estendeu a mão enquanto fazia aquela careta ácida que
vemos em muitas cenas de seus filmes:
— Bem-vindo, Pep, mas creio que o jantar vai aborrecê-lo. Nesta mesa, não
temos o mínimo interesse por futebol…
— Nenhum problema, Woody, eu adoro cinema. Você gosta de basquete?
Se quiser, podemos falar dos Knicks…
E as duas horas seguintes transcorreram velozes ao redor de umas taças de
vinho e do New York Knicks. Pep Guardiola empregou um de seus traços menos
conhecidos: a adaptação ao entorno. Embora sua imagem pública seja a de um
dogmático implacável e feroz, na realidade ele é um camaleão dúctil e versátil
que se adapta à paisagem e às circunstâncias. Se não se pode conversar sobre
futebol para não aborrecer o anfitrião, fala-se de basquete e mais
concretamente dos Knicks e seu futuro complicado — ainda que Pep seja,
particularmente, um admirador de Gregg Popovich.
Adaptação. Eis aqui um traço desconhecido de Guardiola. Adaptação aos
jogadores, ao contexto, ao rival e às circunstâncias. A Alemanha o obrigou a
extrair de seu interior essa característica pouco empregada em sua carreira
como treinador. Adaptar-se para ser capaz de impor sua proposta. Adaptar-se
como um camaleão. Não são os mais fortes nem os mais inteligentes que
sobrevivem, mas aqueles que melhor se adaptam.
Se no Barcelona Pep se impôs por convicção, na Alemanha ele fez isso por
adaptação. Não imaginávamos que essa pudesse ser uma de suas forças
motrizes internas, pois pensar em Guardiola era pensar em paixão, ambição
competitiva, talento e convicção, mas não em ecletismo e adaptabilidade. Suas
ideias de jogo eram tão firmes e potentes que pareciam rígidas e inabaláveis —
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ou seja, dogmáticas —, mas para sobreviver na Alemanha ele teve que se
mimetizar com o entorno e adquirir uma flexibilidade inesperada.
Somente deixando de ser, ele poderia seguir sendo ele.
— Creio que agora sou um treinador melhor. Aprendi muito aqui e isso
será muito útil para os passos seguintes. Acreditei que poderia implantar o jogo
do Barça e o que fiz na realidade foi sintetizar o jogo que eu trazia com o que
eles [os jogadores do Bayern] já tinham. Foi uma síntese extraordinária.
Um treinador melhor, neste caso, significa um treinador mais eclético. Por
um lado, Guardiola se radicalizou e é mais cruyffista do que nunca, ainda que no
sentido integrador do futebol total holandês. Mas ao mesmo tempo ele se
alemanizou, absorvendo uma cultura de jogo diferente até conseguir combinar
os fundamentos próprios com os adquiridos em Munique. No fim, Pep não
implantou o futebol de Cruyff na casa de Beckenbauer como pretendia no início,
mas fez algo melhor e mais inteligente: mesclou o jogo de Cruyff com o de
Beckenbauer, e dessa combinação surgiu um jogo híbrido que sintetiza as
principais virtudes de ambas as filosofias.
Quando, depois do falecimento de Cruyff em março de 2016, perguntou-se
a Pep o que o mundo do futebol poderia fazer por Johan, ele simplesmente
respondeu: “É preciso obedecê-lo”. O capitão Philipp Lahm (seu fiel escudeiro
no Bayern e seu prolongamento em campo) acrescentou: “A ideia de Cruyff era,
literalmente, jogar futebol. Nem mais, nem menos. Sua ideia não se baseava no
controle do rival, mas no controle da bola e do jogo. E foi isso que fizemos no
Bayern de Pep”. E Domènec Torrent, seu assistente técnico, fez a conexão final:
“Ele é hoje a síntese entre o Barça de Cruyff e tudo o que aprendemos na casa de
Beckenbauer”.
Pep é, neste momento, um treinador eclético que se aproxima da ideia da
integração dos modelos de jogo, do futebol total se entendido como um futebol
fluido, um futebol “líquido”. Slaven Bilić — o ex-jogador e hoje magnífico
treinador do West Ham — fez o prognóstico de que “a próxima revolução tática
será a morte do esquema”, e Guardiola vai se aproximando do limiar de tal
revolução: “Os sistemas de jogo não importam, o que importa são as ideias”,
disse.
Guardiola é hoje um treinador melhor, ainda que não tenha conseguido o
triunfo pleno em Munique, não nos esqueçamos. Não conseguiu reeditar o
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triplete com o Bayern, também não conquistou a preciosa Champions League (a
“competição da irregularidade”), sequer alcançou a final. Ganhou sete títulos
com o Bayern, entre eles três ligas consecutivas (o campeonato da
regularidade), pulverizando todos os recordes históricos do futebol alemão;
acima de tudo, levou o time a desenvolver um jeito de jogar delicioso,
dominante e policromático. Mas sua obra de arte não culminou com o êxito
absoluto e clamoroso; quando alguns na Alemanha qualificaram seu trabalho
como “inacabado”, estavam certos do ponto de vista dos troféus. É, assim, uma
verdade evidente: ele não pôde ganhar todos os títulos, mas impôs
completamente seu conceito de jogo.
Como resume Uli Köhler, jornalista alemão da Sky Deutschland: “Ele deixa
algo especial. Deixa um futebol para recordação. Deixa um estilo de futebol que
o Bayern nunca voltará a jogar e que os torcedores nunca mais voltarão a ver”.
“FUI MUITO FELIZ”
Doha, 5 de janeiro de 2016
Guardiola já anunciou que deixará o Bayern. Marco Thielsch, torcedor do
clube, envia esta mensagem para que chegue a Pep:
Ainda estou muito triste por sua decisão de não renovar, mas devo
dizer que você nunca nos decepcionou. Você sempre disse que tem
consciência de ser apenas uma pequena parte da história do clube. Sou
torcedor do Bayern há mais de trinta anos e quero lhe dizer que as coisas
nunca foram tão bonitas como nestes dois anos e meio. Nunca vi o meu
Bayern jogando um futebol tão bonito e não posso explicar a quantidade de
momentos maravilhosos que você e a equipe nos deram. São tantos
momentos excepcionais e fui tão feliz ao ver meu time jogando assim que
derramei muitas lágrimas de alegria. Por essa razão, quando você declarou
que se não ganhar a Champions League muitos dirão que sua missão ficará
incompleta, também devo dizer que há muita gente, como eu, que não vê as
coisas dessa maneira. Quero ganhar, claro que sim. Mas quero ganhar
precisamente pela maneira de jogar futebol que praticamos com Pep.
Quero ganhar por esse estilo de jogo. Não posso descrever com palavras o
que essa maneira de jogar significa para mim. Mas, mesmo se não
ganharmos, seu legado será tão grande que nunca esquecerei esses
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momentos incríveis pelo resto da minha vida. E tenho que dizer, também,
que como pessoa você é realmente uma grande inspiração para mim.
Obrigado também por isso. Vamos desfrutar desse último meio ano todos
juntos.
Emocionado, Pep leu a mensagem de Marco Thielsch:
— Só por provocar num torcedor essas emoções com o jogo do time, já terá
valido a pena todo o trabalho…
Foi uma “sinfonia inacabada” no que diz respeito à vitrine de troféus, o que
nos conduz a uma comparação inevitável. A maior derrota de Cruyff também
aconteceu em Munique, quando perdeu a final da Copa do Mundo de 1974,
justamente diante de Beckenbauer, mas é igualmente obrigatório destacar que
aquela derrota acabou se convertendo em uma das grandes vitórias de Cruyff.
Ele perdeu o troféu, sim, e aquela também foi uma sinfonia inacabada, mas
ganhou o reconhecimento mundial pelo jogo desenvolvido por sua equipe, a
Laranja Mecânica, em um dos tantos paradoxos que o futebol nos oferece. O
mesmo acontecerá com Pep, seu “filho”? O troféu não conquistado por ele em
Munique, neste caso a Champions que não foi vencida, se transformará em uma
futura vitória de Guardiola em forma de reconhecimento pelo jogo que seu
Bayern praticou? Não podemos saber com precisão o grau do efeito produzido
por Pep na futura evolução do jogo na Alemanha, mas todos os indícios
apontam para o fato de que sua influência acabará sendo contundente e
significativa.
O arquiteto catalão Miquel del Pozo, incansável divulgador da pintura nas
redes sociais, encontra um paralelismo fascinante entre a experiência do
mediterrâneo Guardiola na Alemanha e a que viveram os pintores alemães na
Itália, em ambos os casos como exportadores de uma técnica muito específica:
“Os pintores e artistas germânicos e holandeses (os pintores flamengos),
seguindo a rota de Alberto Durero, levaram à Itália a técnica da pintura a óleo, e
essa técnica teve uma influência decisiva no desenvolvimento posterior da
pintura italiana”. E, ao mesmo tempo, produziu-se o efeito inverso: “Houve um
antes e um depois da viagem à Itália para os artistas germânicos, porque eles
descobriram um mundo novo. Goethe vive um encantamento quando descobre
a Itália, e Winckelmann sente o mesmo em relação à Grécia. Durero é um grande
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especialista na pura técnica alemã, mas a influência também se dá no caminho
inverso: quando descobre a luz e a sensibilidade italianas, Durero se
transforma. Isso me lembra a fascinação que Pep sentiu na Alemanha e a que
muitos alemães sentiram por Pep”.
Domènec Torrent tampouco tinha dúvidas a respeito do tema: “Pep deixa
um grande legado na Alemanha. Em forma de jogo, de ideias, de versatilidade e
de vontade. Karl-Heinz Rummenigge explicou com muita precisão: quanto mais
tempo passar, mais se perceberá o grande trabalho que ele fez no Bayern. Você
não pode imaginar a quantidade de treinadores alemães que nos procurou nos
últimos meses e nos transmitiu essa mesma valorização: a enorme riqueza
futebolística que Pep deixa na Alemanha”. O analista alemão Tobias Escher faz a
seguinte descrição: “Antes de Guardiola chegar à Alemanha, ninguém aqui
conhecia o conceito de jogo de posição”.
Embora tenha conquistado menos troféus em Munique do que em
Barcelona (catorze de dezenove possíveis no Barça, sete de catorze no Bayern),
Guardiola se sente melhor treinador em 2016, quando chegou a Manchester, do
que em 2012, quando deixou o Barça. Por quê?
“Sou um técnico melhor porque antes montava tudo para chegar a Messi, e
então Messi resolvia, mas na Alemanha tive de pensar em mais opções; esse
jogador deve ir para esse ponto, esse outro por trás dele etc. Precisei me meter
até mesmo na cozinha, e isso faz você melhorar.”
Ele aprendeu a se adaptar a contextos complexos e hostis, superou uma
sucessão de adversidades sem fim, resistiu a dificuldades às quais não estava
acostumado e enriqueceu sua capacidade como treinador e sua versatilidade
graças à imersão realizada na Bundesliga. O futebol alemão o transformou,
como advertiu Lorenzo Buenaventura, seu preparador físico, poucos meses
depois de chegar a Munique, com palavras premonitórias: “Pep está mudando o
Bayern, e a Alemanha está mudando Pep”.
O homem que, em julho de 2016, aterrissa cheio de sonhos e entusiasmo
em Manchester é mais resistente e maduro que o que apareceu em Munique em
junho de 2013. Sua dimensão também é muito mais humana, menos idealizada.
Já não é um técnico elevado aos altares, quase divinizado, exageradamente
divinizado. A Alemanha expôs seus defeitos, e isso o converte em alguém menos
perfeito e mais terreno.
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Sua metamorfose se mostra no contraste de duas imagens que ilustram a
distância que existe entre o Pep que chegou a Munique e o Pep que foi embora
da capital bávara.
A imagem de 24 de junho de 2013, em Munique, foi a de um Pep
impecavelmente vestido com um terno cinza, gravata grená, colete de seis
botões, camisa de colarinho italiano, lenço branco no bolso superior e sapatos
brilhantes. Era um Pep ungido de glamour, rodeado pela cúpula dirigente do
Bayern, quase a imagem de uma poderosa corporação multinacional. Um look
que parece desenhado para uma sessão de fotografia publicitária. Uma imagem
impecável e elegante. Era luz, brilho, perfeição.
A imagem de 3 de julho de 2016, em Manchester, é a de um Pep vestido de
maneira informal, com uma camiseta cinza de manga curta, calça jeans, tênis e
um blazer despojado que o técnico tira sempre que pode. É o look de um
homem moderno, relaxado, de espírito esportivo, e também de alguém que quer
começar a trabalhar imediatamente. Não se barbeou, como se tivesse pressa
para encarar o grande desafio que o espera em Manchester. É uma imagem que
exprime energia, decisão e convencimento, mas também normalidade e
naturalidade, e que o faz se conectar com o torcedor da maneira expressada
pelo lema escolhido pelo clube: A new era begins [Começa uma nova era].
DANKE PEP
Munique, 22 de maio de 2016
Na sacada da prefeitura está se festejando um novo doblete, o segundo de
Pep. Depois de conquistar sua quarta Bundesliga consecutiva, o Bayern
venceu ontem a Copa em Berlim, no último jogo de Guardiola no clube.
Todos dormiram pouco. Vemos Pep vestido com calça de agasalho e uma
simples camiseta branca com a palavra “Double”. Ele não fez a barba e
brinda com uma taça de vinho branco (heresia) na pátria da cerveja
infinita. É um Pep terreno, rodeado por seus colaboradores e jogadores, a
imagem de uma equipe unida. Vê-se também a imagem de um Pep
próximo, agradecido e emocionado, uma imagem de normalidade e
naturalidade. A Alemanha também mudou o look de Pep, oposto ao que se
viu quando chegou três anos atrás. Em Marienplatz, onde se comemora o
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doblete, um torcedor pintou seu torso nu com um enorme “Danke Pep”
[Obrigado, Pep].
A reação diante das adversidades superadas e a resiliência de que precisou
para perseverar frente aos numerosos obstáculos que surgiram nesses três
anos lhe conferem uma dureza de que Pep precisava. Ele aprendeu com
tropeços e conseguiu chegar ao final da etapa bávara sem sofrer um desgaste
excessivo. Guardiola partiu de Munique sorridente e feliz, sem nenhuma conta
pendente, abraçado a seus jogadores e também ao clube bávaro, tanto aos
dirigentes quanto aos torcedores, que lhe deram formidáveis mostras de
carinho. Se o sucesso se mede pelo número de olhos que brilham ao seu redor,
como explica Benjamin Zander em suas esplêndidas conferências, os jogadores
que Pep deixou na Baviera sentem que seu técnico alcançou um grande êxito, e
assim se expressaram durante as longas e emotivas despedidas, na privacidade
do vestiário de Säbener Straße.
Em Munique, Pep teve boas lições: aprendeu a dizer “não”, uma virtude que
lhe fazia falta; cometeu erros — e de todos eles tentou extrair ensinamentos;
soube limitar seu tempo a três anos sem prolongá-lo a uma quarta temporada
asfixiante, como no Barcelona; e dosou melhor sua energia — por isso, não
precisou de nenhum ano sabático, nenhuma parada para recarregar as baterias.
Pôde viajar diretamente de Munique a Manchester sem necessitar de uma
estação intermediária, apenas de ligeiras férias para voltar à sua querida Nova
York com a família e ver as finais da nba. Se Pep precisava amadurecer como
treinador, a Alemanha facilitou todo o processo com golpes de realismo.
Quando o Bayern anunciou, perto do Natal, que Pep não renovaria seu
contrato, desatou-se nos meios de comunicação alemães um vendaval contra o
treinador, sem que fosse muito relevante o motivo de cada rajada: um dia
porque Lewandowski não jogava, outro dia porque Müller não jogava, outro
porque Götze não jogava. Guardiola simplesmente iria deixar o clube, o que o
convertia no alvo perfeito sob qualquer pretexto. Por duas vias diferentes,
chegou ao treinador uma proposta que define o contexto real em que ele se
encontrava: se aceitasse conceder uma entrevista individual a um poderoso
meio de grande tiragem, em troca receberia proteção das críticas…
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Em seus últimos meses em Munique, Pep recebeu muitas repreensões por
não ganhar a Champions League, sobretudo da imprensa sensacionalista, ainda
que, em geral tenha sido por parte daqueles que se mostraram pouco
interessados no jogo propriamente dito durante esses anos. Devemos
reconhecer que a compreensão do jogo não é uma tarefa simples. O futebol
contemporâneo alcançou uma elevada complexidade e, para compreender
todos os fenômenos que ocorrem dentro do gramado, é conveniente se
aproximar com a mente aberta, sem ideias preconcebidas, com atitude humilde.
Isso é tão válido para o modelo de futebol que Guardiola propõe quanto para
outro tão antagônico como o que Ranieri pratica no Leicester. Se não se faz um
mínimo esforço para entender o jogo, as análises acabam sendo
desalentadoramente supérfluas, recorrendo-se a aspectos totalmente alheios ao
próprio jogo. Basta olhar diariamente a imprensa para se comprovar isso.
A criatividade, porém, é imprescindível no futebol, e não me refiro ao gesto
criativo do futebolista, que certamente é uma das essências desse esporte, mas
à mentalidade inovadora do treinador. A criatividade, como afirma Ken
Robinson, o grande educador e escritor britânico, “não é um conjunto
extravagante de atos expressivos, mas a forma mais elevada de expressão
intelectual”. Pode-se alegar que o futebol pertence unicamente ao âmbito físico
e técnico, que não possui nenhuma dose de intelecto, mas eu me permito aqui
rebater essa alegação: o futebol são ideias (além de gestos técnicos e outros
muitos fatores). A ideologia, entendida como a proposta que um treinador
apresenta a uma equipe, tem sido um dos grandes impulsos da evolução do
futebol.
Há poucos meses li uma interessante reflexão de Raymond Verheijen,
treinador holandês: “No mundo do futebol, a maioria das pessoas quer proteger
o status quo tradicional porque tem medo de se equivocar. É uma subsociedade
primitiva na qual não se tolera a crítica e onde as pessoas preferem preservar e
defender as ideias estabelecidas. O mundo do futebol não gosta das pessoas que
questionam as demais porque isso incomoda, e ninguém gosta de se sentir
incomodado. Obviamente, falta fazer muitas coisas de maneira inteligente no
futebol”.
A inovação nas ideias que são propostas e levadas adiante está na base do
desenvolvimento do jogo, do mesmo modo que “a ciência se alicerçou sobre um
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pensamento rico, original e criativo unido ao entendimento crítico”, disse Ken
Robinson. Contudo, devemos reconhecer que o conceito de criatividade tem
uma imagem muito ruim dentro do futebol, porque estamos diante de um
mundo voluntariamente obsoleto, fixado em paradigmas que caducaram, no
qual grandes forças conspiram para que nada evolua e tudo permaneça
estancado no clichê da comodidade. O futebol tem um medo atávico de
inovação.
E é exatamente nesse ponto do caminho, após a sinfonia inacabada na
mesma cidade em que seu “pai” Cruyff também deixou de completar sua maior
obra, que Guardiola decide enfrentar o maior desafio de sua carreira: tentar
impor o seu jogo na Inglaterra, a terra dos fundadores do esporte. Impor
equivale a uma tarefa “evangelizadora”? Domènec Torrent, o braço direito de
Guardiola, recusa essa interpretação: “Ninguém deve se enganar: Pep não foi a
Manchester para revolucionar o futebol inglês, nem para ensinar a jogar futebol,
como se afirmou em alguns lugares. Pep veio para a Inglaterra para contribuir
com novas ideias. Para contribuir e somar, não para mudar nem dar lições a
ninguém. O futebol se joga de mil maneiras, e a única coisa que Pep faz é jogar
com uma dessas mil maneiras — uma que possa agradar mais ou menos e com a
qual ele ganhe frequentemente, mas que não é a única nem a ‘verdadeira’. É
apenas a maneira que Pep propõe. Deixe-me repetir para que ninguém se
confunda: Pep não é um messias que vai evangelizando o mundo do futebol
para transformá-lo. Ele apenas quer propor seu jogo, aprender com os que
jogam de outra forma e tentar somar e agregar riqueza à sua maneira de ver o
futebol”.
Implantar seu conceito de futebol no Manchester City é uma tarefa
complicada e árdua, porque a equipe que Pep herdou não possuía uma
identidade reconhecível e singular de jogo, e também não se destacou por seu
caráter ambicioso, traços que eram definidores do Barcelona e do Bayern. Pep
terá de gerar um impacto potente nas formas e no conteúdo futebolístico de um
time que precisa de uma grande mudança (a metade dos integrantes da
temporada anterior superava os trinta anos de idade), dentro de um entorno
extremamente competitivo pela incorporação de treinadores (Conte, Mourinho,
Klopp…) e jogadores magníficos (Mkhitaryan, Xhaka, Pogba, Ibrahimović…), no
centro de uma idiossincrasia futebolística radicalmente distinta da que
Guardiola representa. Manchester é um desafio até maior para Pep que o que
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ele enfrentou no Barcelona em 2008, quando era apenas um treinador novato,
mas que “jogava” em casa; e é um desafio diferente do Bayern em 2013, quando
teve de lutar, já consagrado como técnico, com o fantasma permanente do
triplete.
Manchester é uma obra nova, que parte sem ideias preconcebidas e sem
uma estrutura de jogo consolidada e identificável. Os planos do novo edifício
representam sua absoluta incumbência. Aí está também a grande
responsabilidade que ele assume. Durante as férias de verão, falamos sobre esse
desafio e Pep foi muito sucinto: “É o trabalho mais difícil que já enfrentei”.
Seu grande desafio.
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BASTIDORES
SANGUE NA BOCA
Munique, 10 de setembro de 2014
À noite, disputou-se em Madri o jogo entre Espanha e França, pelas
quartas de final do Campeonato Mundial de basquete. De maneira
surpreendente, a França bateu a Espanha por 65 a 52. Digo
surpreendente porque, apenas uma semana antes, na fase de grupos, o
time espanhol derrotou o francês por 88 a 64, depois de ter vencido
Senegal, Brasil e Sérvia (que terminou como vice-campeã mundial). A
Espanha chegou invicta às quartas de final, com seis vitórias
consecutivas, mas foi golpeada pela França no momento-chave. Dessa
derrota inesperada surge uma longa reflexão de Manel Estiarte sobre a
competitividade das grandes equipes. Estiarte sabe bem o que é ganhar
e o que é perder, afinal de contas se trata do melhor jogador de polo
aquático da história:
“Faz tempo que uma ideia ronda minha cabeça. Minha tese — e não
pretendo que seja nenhuma teoria universal — é que as equipes
grandes, as muito grandes, se acostumaram tanto a ganhar que não
concebem estar perdendo. No basquete, no futebol, no handebol, em
qualquer esporte coletivo. Não acontece com todos nem acontece
sempre, mas vejo muitas coincidências. Tenho a impressão de que os
times grandes, como não estão acostumados a perder, não têm em seus
planos o conceito da derrota, sobretudo quando são favoritos. E basta
que o rival, por qualquer motivo (porque ele está muito bem ou porque
você está mal), fique um pouco à frente no placar para que tudo afunde.
“E ninguém se salva. Pense no que aconteceu no futebol nos últimos
anos. Veja alguns exemplos: o Barça de Pep fica em vantagem no
Bernabéu e acaba vencendo o Real Madrid por 6 × 2; o Barça de Pep
enfrenta o Real de Mourinho, que era um time formidável, e o varre por
5 × 0; há muitos exemplos parecidos na Inglaterra, ou aqui na Alemanha:
o Dortmund de Klopp ganha a final da Copa por 5 × 2 contra o Bayern de
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Heynckes, sem deixá-lo levantar a cabeça; o Bayern de Heynckes derrota
o Barça de Messi, Xavi e Iniesta por 7 × 0 em dois jogos; o Real de
Ancelotti nos massacra aqui em Munique no ano passado por 4 × 0; a
Alemanha destroça o Brasil por 7 × 1 na casa dos brasileiros… Cada vez
encontro mais exemplos desse tipo: duas grandes equipes se enfrentam,
uma delas se adianta no marcador, não importa se com muitos méritos
ou poucos, e o rival desmorona pouco a pouco até ser arrasado. [E novos
exemplos surgirão nas semanas seguintes: o Bayern destruirá a Roma no
Estádio Olímpico por 7 × 1, e o Tottenham vencerá o Chelsea de
Mourinho por 5 × 3 na Premier League.]
“Minha tese é que os jogadores desses grandes times não
conseguem imaginar que serão derrotados. Não concebem isso. Estão
preparados para a vitória. Não digo para a vitória fácil, de jeito nenhum.
Mas, sim, para a vitória. Ganham tantos e tantos jogos que construíram
uma relação cotidiana com o triunfo. Inclusive, se às vezes têm de reagir
em um jogo em que tomam um gol, também estão acostumados a fazer
isso rapidamente.
“E, de repente, chega o dia em que enfrentam outro grande time que
por qualquer razão abre vantagem no placar. O pior é se isso acontece de
forma imerecida, um pouco por casualidade, injustiça ou erro. O rival se
adianta e você fica caído na lona: foi nocauteado sem perceber. Um gol. E
depois o segundo gol. Você está perdendo por 2 × 0 num jogo que, em
teoria, deveria estar ganhando — talvez por ser um pouco superior ou
porque os resultados anteriores foram muito positivos e você se
preparou muito bem para a partida. Merecia estar ganhando, mas sofreu
duas pancadas e está no chão. E quando isso acontece, o mais comum é
permanecer na lona. Não estamos acostumados a reagir. O time pequeno
já sabe que será golpeado várias vezes e chega ao jogo preparado
psicologicamente para isso. Mas você, não. Você é grande e, ainda que
respeite muito o rival, que também é muito grande, não está acostumado
a ser nocauteado.
“Você está no chão, perdendo por 1 × 0 ou por 2 × 0 e seus planos
foram arruinados. É a famosa frase: ‘Todo mundo tem um plano até levar
um soco na boca’. [Frase atribuída a Mike Tyson mas que, na realidade, é
de Joe Louis.] E em vez de se agarrar como pode ao pescoço do
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oponente, sem soltá-lo até recuperar a respiração, você quer continuar
como se nada tivesse acontecido. E aí é que você é arrasado de verdade.
“Creio que, de forma geral, nós perdemos; se generalizo,
evidentemente há mil exceções, um pouco do espírito guerreiro do
esportista. Digamos que seja o espírito histórico dos balcânicos. Você
enfrentava os iugoslavos e os húngaros, sobretudo os iugoslavos, e sabia
que haveria jogo até o apito final. Às vezes, até depois do apito final.
Mesmo que você fosse superior, eles se agarravam ao seu pescoço e não
soltavam enquanto tivessem alguma chance, ainda que mínima. Mais ou
menos como os times italianos de futebol, quando estão vencendo por 1
× 0: você sabe que eles se defenderão como leões e que não haverá meio
de batê-los. Ou como os times alemães de futebol, que você sabia que
conseguiriam empatar ou ganhar no último minuto do jogo. Você sabia.
Ou como os atletas ingleses meio-fundistas, a quem não se pode dar
como derrotados até o último metro. Pois os iugoslavos eram assim em
qualquer esporte coletivo. Não importava se você estivesse lhes dando
uma surra: eles seguiriam em pé, aguentando e aguentando, esperando
uma oportunidade. E a maioria dos times balcânicos conserva uma parte
desse espírito.
“E creio que isso é algo que os grandes times de futebol devem
recuperar, devem trabalhar, devem estimular. Veja o que nos aconteceu
no ano passado contra o Real. O.k., tínhamos desfalques, jogadores
machucados, dificuldades, mas era uma desvantagem de apenas um gol.
Saímos do Bernabéu com a sensação de oportunidade desperdiçada, de
ter perdido um jogo em que atuamos muito bem e que o resultado
razoável teria sido ao menos um empate. Mas 0 × 1 não é um resultado
ruim, de jeito nenhum. E digo mais: no confronto que vale a passagem à
final da Champions, não me parece grave estar no minuto setenta da
partida de volta e ter de marcar um único gol para ir à prorrogação.
“Mas nós queremos mais. Somos grandes e ambiciosos e queremos
mais. E então nos dão um soco — num escanteio que talvez não
deveríamos ter concedido, e sofremos um gol. A coisa se complica. E
depois uma falta que não deveríamos ter cometido. E outro gol. Outro
soco. E você desmorona. Não está acostumado a receber os golpes;
costuma ser quem os dá. E é derrubado.
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“Eu acredito que há pontos comuns em todas essas derrotas que
mencionei. O Real que perde por 6 × 2 e 5 × 0 contra o nosso Barça; os
grandes times ingleses que levam meia dúzia de gols; o Bayern de
Heynckes que cai diante do Dortmund de Klopp; o Barça que afunda
diante do Bayern de Heynckes; nosso Bayern que cai contra o Real; o
Brasil que se afoga diante da Alemanha… No jogo entre Espanha e
França no Mundial de basquete, aconteceu exatamente isso: um grande
que não concebe estar perdendo a partida que pensava que ganharia. E
termina estendido na lona.
“Todos são grandes times, não é um problema do tipo de jogador,
nem de treinador, nem de tática. Creio que os grandes de hoje são
maiores do que nunca, por isso batem todos os recordes nas ligas e
continuam batendo. Recordes de pontos, de gols, de invencibilidade, de
menor número de gols sofridos… Crescemos cada vez mais e, quanto
maiores somos, menos podemos imaginar um tropeço. E quando
tropeçamos, zás, perdemos o costume de nos agarrar ao colete salvavidas.
“É possível que eu esteja enganado e que minha tese não seja
correta, mas começo a acreditar que de fato é assim e que os grandes
times devem recuperar o espírito dos iugoslavos. Você sofreu um golpe,
o.k., mas aguente, resista, engula o sangue e não pense em nada: nem nos
planos que ruíram, nem se foi injustiça ou imerecido, nem que você era o
favorito. Nada. Apenas se agarre ao remo e reme. Reme para que passem
os minutos, tentando manter o resultado. Que passem os minutos e você
não seja derrubado. Se está perdendo por 1 × 0, tudo bem, dói, é uma
merda, mas aguente esse 1 × 0 e não permita que a diferença se amplie.
Porque talvez chegue o quarto de hora final e você ainda estará
perdendo por 1 × 0, mas então alguma coisa pode acontecer. Na melhor
das hipóteses, é o rival quem se afunda nesse momento ou você tem um
pouco de sorte e empata. E daí tudo muda e, talvez, seja você quem vai
acabar nocauteando o rival.
“Não sei, pode ser que o que estou dizendo seja conversa fiada, mas
me parece que há algo de verdade em tudo isso e que os times grandes
— os jogadores e os técnicos dos times grandes — devem se obrigar a
repensar essa situação e a se preparar para o dia em que, ao
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enfrentarem um igual, talvez seus planos não se concretizem e eles
tenham de se disfarçar de iugoslavos.”
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CAPÍTULO 2
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POR QUE O CITY?
Prefiro que minha mente se abra pela
curiosidade a fechar-se pela convicção.
GERRY SPENCE
Não é uma pergunta simples. Por que Pep escolheu o Manchester City em vez
de outro clube com muito mais história, como sempre foi sua preferência?
É provável que uma das explicações se encontre na própria pergunta.
Depois de dirigir um Bayern carregado de história e lendas, Guardiola prefere
uma instituição em que o peso da tradição seja mais leve. No City, não escutará
convenções que se repetem frequentemente em muitos outros lugares: “Aqui
sempre se fez assim…”.
Antes de nos aprofundarmos nisso, deveríamos compreender por que
Guardiola deixou o Bayern após cumprir integralmente o contrato de três anos
que assinou em 2013, sem aceitar a generosa renovação que a direção do clube
lhe ofereceu.
O que motivou Pep a sair de Munique foi a vontade de ampliar
conhecimentos que o ajudem a se transformar ainda mais. Ele quis modificar e
ser modificado, procurou mudar justamente para ser mudado. Essa é a única
razão que o estimulou a abandonar uma cidade maravilhosa como Munique, um
clube poderoso como o Bayern e um elenco extraordinário que, em suas mãos,
aprendeu outra maneira de jogar e a interpretou com excelência. Um elenco que
o quer bem, como demonstrou de forma exaustiva.
Três anos e nenhum dia a mais. Guardiola é assim: um sujeito pouco
comum, que gosta de cumprir os compromissos, mas não de prolongá-los. No
futebol, é normal que o treinador de sucesso peça ao clube para prorrogar seu
contrato. Guardiola pensa diferente: prefere construir sua obra durante um
tempo limitado e depois dizer adeus.
A verdade é que, desde sempre, ele não é um tipo normal, mas um
personagem de pensamento não convencional. Do contrário, ainda estaria
treinando o Barcelona: só alguém de comportamentos não convencionais
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abandona o imparável Messi em seu esplendor, ou se despede de seu mágico
trio de meios-campistas (Busquets, Xavi, Iniesta). E o mesmo se pode dizer do
Bayern de Neuer, Lahm e Alaba. Mas Guardiola é assim. Uma vez construído o
melhor time do mundo, e possivelmente da história do futebol, Pep preferiu
abandonar o Barça a se perpetuar nele. E quando o Bayern já jogava como ele
queria, também o abandonou. Não é habitual; o normal no ser humano é tentar
se perpetuar em seu habitat. Guardiola pretende o contrário: sempre foi uma
pessoa inquieta, que prioriza o aprendizado do novo à comodidade do
conhecido. Não é fácil compreendê-lo, mas, com a ajuda de Miquel del Pozo e
suas analogias pictóricas, tentaremos: “Pep pinta sua obra, mas não a
contempla. Este é um traço totalmente de genética artística, de criador. Do tipo
de artista para quem a obra só importa enquanto a está criando. Entregam-se
totalmente à sua obra, e para eles a única coisa que importa é esse momento de
criação; mas, quando terminam, quando a entregam ao que chamamos de
mundo das coisas, ou seja, quando está acabada, a obra deixa de interessar a
eles. Portanto, essa dedicação absoluta à obra durante o processo é muito
coerente com a genética do artista, assim como o ato de abandoná-la ao
terminar”.
Por esse motivo, quando chegou ao Bayern em 2013, ele assinou por três
temporadas e apenas por três, e fez o mesmo com o Manchester City. É
inevitável lembrar que, muitas décadas atrás, o treinador húngaro Béla
Guttmann expressou uma opinião surpreendente: “A terceira temporada
consecutiva em um clube costuma ser um desastre”. (No caso de Guardiola, suas
terceiras temporadas sempre foram boas, mas isso não invalida a reflexão do
treinador húngaro.) Guttmann era formado em psicologia e foi um treinador
extraordinário, que dirigiu o grande Honvéd de Puskás e Bozsik, colaborou para
o desenvolvimento do 4-2-4 no Brasil com o uso do falso 9 como variante
húngara, e se consagrou no Benfica com duas Copas da Europa seguidas (e
também com sua célebre maldição, que perdura: “Jamais, nem em cem anos, o
Benfica voltará a ganhar uma Copa da Europa”). Guttmann foi o primeiro
técnico que aplicou ciclos curtos de trabalho de forma voluntária, por causa do
desgaste gerado pela maneira intensa de dirigir seus times. Quando
consultamos seu perfil, aparecem traços básicos que coincidem com os de
Guardiola: o que mais interessava a Guttmann era absorver informação,
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conhecer jogadores, extrair o melhor rendimento de cada um deles, viajar,
aprender novos sistemas. Sua vida era o futebol…
Essa maneira de ser se choca frontalmente com os pensamentos
convencionais. Pep nunca quis se consolidar em seu posto de trabalho, nem
permanecer em um único lugar. Ao contrário: quer viajar, conhecer e aprender.
Quer ser livre. Sua quarta temporada como treinador do Barcelona foi longa; ele
compreendeu que três anos são suficientes para que uma equipe aprenda,
corrija e aperfeiçoe um determinado modelo de jogo. Também para que apareça
o cansaço próprio de um modelo muito exigente. A maneira de gerir equipes de
Guardiola não contempla a comodidade nem o relax, e se baseia no trabalho
permanente e detalhista, tanto do treinador como dos jogadores. Xabi Alonso
disse: “Pep e sua comissão técnica me deram um mestrado em futebol. Não se
trata apenas de trabalhar duro (com Pep, você repete as ações algumas vezes
até que se automatizem). Você absorve aquelas ideias porque ele é minucioso
em seus ensinamentos, tanto quando você acerta como quando precisa ser
corrigido. Não é algo unicamente ligado à tática, mas a uma filosofia. De fato,
você deve prestar atenção absoluta em todos os momentos e ser muito rápido
mentalmente. Todos nós no Bayern agora somos muito mais rápidos para
captar e aplicar os conceitos que trabalhamos com ele”.
Essa forma de trabalhar gera muitos avanços e melhoras nos futebolistas,
mas, ao mesmo tempo, cria também um forte desgaste entre eles e o treinador.
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2.1. POR TXIKI E SORIANO
Se uma ideia não é absurda a
princípio, então não vale a pena.
ALBERT EINSTEIN
Por que o Manchester City? Porque Txiki Begiristain e Ferran Soriano estão no
clube e Pep confia neles, simplesmente assim. Trabalharam juntos com fluidez e
acerto no Barcelona, e a confiança mútua é estreita. Ainda que a história do City
seja muito mais rica do que se crê nestes tempos de memória escassa, ela não
representará grandes restrições e Pep poderá trabalhar sem sentir que está
rompendo uma maneira imutável de fazer as coisas. O City é uma tela em
branco que lhe permitirá decidir o que quer pintar e como será a nova obra que
deseja edificar. A capacidade financeira do clube lhe permite incorporar
jogadores magníficos, ter uma comissão técnica de elite e aprofundar a
implantação de suas ideias nas categorias mais jovens.
A escolha feita apresenta essas vantagens a Pep, que começa sua terceira
etapa como treinador num lugar novo, sem estar preso a triunfos do passados
ou a costumes arraigados, e onde não vai romper padrões esculpidos em pedra
sagrada, nem deixar grandes lendas indicarem o caminho que o time deve
seguir. O desafio é colossal, mas é precisamente por isso que é tão atrativo aos
seus olhos.
Embora tenha alcançado de forma histórica, em maio de 2016, as
semifinais da Champions League contra o Real Madrid, não se pode considerar
que o Manchester City tenha terminado a temporada passada entre os seis
melhores times da Europa, porque é indiscutível que três espanhóis (Real
Madrid, Barcelona e Atlético de Madrid), dois alemães (Bayern e Borussia
Dortmund) e a campeã da Itália (a Juventus) eram, futebolisticamente falando,
equipes superiores. É possível que dentro de dez meses não seja assim, mas
esse era o quadro na primavera de 2016. Basta ouvir o balanço da temporada
realizado por Khaldoon Al Mubarak, presidente do City, no próprio canal de
televisão do clube: “Devemos estar agradecidos a Manuel [Pellegrini] e à sua
equipe por esses êxitos [dos últimos três anos]. Ao mesmo tempo, também não
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podemos ocultar a decepção, sobretudo neste ano. Tínhamos muitas
expectativas para esta temporada. Não me importa perder para o Real Madrid,
mas queria sentir que demos 100%, e não creio que fizemos isso”.
Resumamos as razões pelas quais Pep assinou contrato com o Manchester
City, depois de considerar que seu trabalho no Bayern estava completo:
• Porque queria viver uma nova experiência e aprender outra cultura
futebolística;
• Porque o projeto do City tem poucos condicionantes e é uma tela em
branco;
• Porque possui recursos econômicos suficientes para construir um grande
projeto;
• Porque Txiki e Soriano lhe garantem um trabalho em sintonia;
• Porque o clube lhe oferece a oportunidade de construir um magnífico
legado na forma do “Idioma City”.
A escolha de Guardiola, por onde quer que se olhe, foi significativa: se
conseguir realizar seu projeto, a recompensa será tão elevada quanto arriscada.
Seu propósito de mudar para aprender e sair da zona de conforto é louvável e
gerará novas vivências, que, no entanto, não serão simples nem fáceis.
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UM PLANO PERFEITO
Roma, 21 de outubro de 2014
Como ainda não podia contar com Thiago, o treinador ia utilizando
David Alaba como curinga da equipe, enquanto Philipp Lahm e o resto
dos jogadores alemães se colocavam em forma após o triunfo na Copa do
Mundo do Brasil. Pep planejou os jogos da liga de setembro e outubro, e
também a visita a Moscou, contra o cska, pela Champions, com a defesa
de quatro e alternando a disposição global do time de acordo com as
características dos adversários. Em geral, empregou o 4-2-1-3 e o 4-2-3-
1, mas também utilizou seu querido 4-3-3 e até o 3-3-4. A peça que
permitia passar velozmente de um esquema de jogo a outro era sempre
David Alaba, que foi escalado como defensor central, lateral esquerdo,
meio-campista central ou interior esquerdo, conforme as exigências de
cada jogo.
Antes da partida contra a Roma, o Bayern acumulou cinco vitórias
seguidas e cada vez jogou um pouco melhor. A fluidez começava a se
apossar do centro do campo, sem que fosse fundamental saber se a
companhia da dupla Xabi-Lahm (estabelecida como o dueto vertebral do
time) era Götze, Højbjerg ou Alaba. Também se modificavam as posições
no ataque, às vezes com Bernat de extremo esquerdo, outras com Götze
ou Müller, que também alternava a posição de centroavante com
Lewandowski — até Pizarro teve sua oportunidade. Robben jogava
sempre, era fixo no time, absolutamente o homem-chave, que fazia
diferença em todas as suas ações. Robben estava alcançando o ponto alto
da primavera anterior e a cada jogo dava mais sinais de sua relevância
no Bayern.
Pep não quis encarar a partida contra a Roma como apenas mais
uma. Por essa razão, no domingo, 5 de outubro, poucas horas depois da
vitória sobre o Hannover pela Bundesliga por 4 × 0, Pep, Estiarte e
Michael Reschke abandonaram a festa do Bayern na Oktoberfest para
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viajar a Turim, onde Roma e Juventus fariam um jogo importante para
definir de quem era a supremacia no campeonato italiano. Foi um jogo
duro, com três pênaltis marcados, três jogadores expulsos e uma vitória
agônica para a Juventus, no último instante, graças a um chute de
Bonucci. A Roma teve boa atuação e por alguns momentos foi superior
ao time local, mas a derrota lhe causou um abalo moral importante. Foi
uma experiência interessante para Guardiola: ele observou com minúcia
como jogava o time de Rudi Garcia e começou a refletir sobre a forma de
derrotá-lo. Embora não possa fazer isso com assiduidade, Pep gosta de
observar pessoalmente seus futuros rivais.
No treinamento de segunda-feira, 20 de outubro, em Säbener
Straße, Pep mostrou a seus jogadores qual seria o plano no dia seguinte
no Olímpico de Roma. Trabalhou na saída de bola de trás com três
defensores e o reforço de Xabi Alonso. Repetidamente. Um clássico nos
treinamentos de Guardiola: Neuer ou Reina cedia a bola a um dos três
centrais e, a partir desse ponto, os teóricos oponentes pressionariam o
possuidor da bola, que por sua vez deveria buscar qualquer um de seus
três companheiros, os outros dois centrais ou Xabi — a quem Pizarro
vigiava como se fosse um “Totti virtual”. Pep tinha claro como a Roma
iria jogar e, portanto, também sabia o que pretendia. A conversa do dia
seguinte foi interessante.
Às seis da tarde do dia 21 de outubro, Pep indicou a posição de Totti
no vídeo que Carles Planchart tinha preparado:
— Olhem, rapazes: Totti vai vigiar Xabi, mas não conseguirá fazer
isso durante muito tempo. Então, Xabi, não se preocupe em excesso.
Totti apertará você nos primeiros dez minutos e logo o deixará
totalmente livre. Sairemos com a defesa de três: Benatia na direita,
Boateng no meio e Alaba na esquerda. David, você só será defensor
quando nos atacarem; terá de se ocupar da velocidade de Gervinho. Mas
no resto do tempo, você será um meio-campista a mais. Ou seja, nós
vamos sair com a defesa de três, mas o terceiro defensor será Xabi, ainda
que pareça ser Alaba. Ao lado de Xabi, Lahm formará um doble pivote.
Philipp: se marcarem Xabi, você manda, você organiza, você sai com a
bola. Robben e Bernat, ocupem-se dos lados. De todo o corredor externo.
Ou seja, vocês serão extremos laterais. Arjen, como no ano passado
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contra o Manchester United, lembra-se? Seja prudente nos esforços, não
se canse muito rápido. Ataque, mas com um olho nas costas para ajudar
a defesa. Acima, Götze na mediapunta, mas caindo mais para a esquerda.
Müller e Lewandowski, movam-se e movam-se. Movam-se muito,
esvaziem o centro do ataque para que eles não saibam quem marcar. E
pressionem. Os defensores deles sofrem quando são pressionados, não
saem fácil de trás se estão sendo mordidos; então pressionem, não os
deixem respirar. Vocês roubarão a bola com facilidade e pum: faremos
muitos gols hoje.
O plano era claro, mas Pep acrescentou um pouco mais:
— Prestem atenção. Acontecerá o seguinte: eles vão acreditar que
Totti marcará Xabi Alonso, mas ele logo vai deixá-lo jogar. Lahm estará
bastante livre e, sobretudo, Alaba criará superioridade pela esquerda,
onde não o esperarão porque, sendo lateral esquerdo, ele não deveria
subir. Mas David subirá e criaremos uma vantagem tremenda na
esquerda. Vejam, Xabi sairá com a bola até o centro do campo sem
problema e teremos uma superioridade extraordinária na esquerda com
Bernat, Alaba, Götze e Lewandowski no mínimo. Müller, aproxime-se
deles, distancie-se dos centrais. O que acontece então? Construiremos
todo o jogo pela esquerda e os centrais deles não terão referência. Na
direita, só estaremos com Lahm e Robben, e parecerá que por ali não
somos perigosos. E vamos criar o perigo na direita! Da esquerda para a
direita! Eles não vão conseguir tapar esse buraco…
O Bayern aterrissou no Olímpico de Roma como um avião. Em
menos de meia hora, já tinha arrasado o time local, que aos 35 minutos
perdia por 5 × 0. Nos nove jogos anteriores, a Roma só tinha sofrido
quatro gols, mas hoje já tinha levado cinco em pouco mais de trinta
minutos… A pressão alta do Bayern foi demolidora. Müller e
Lewandowski bastavam para subjugar toda a defesa romana e o time de
Rudi Garcia não conseguia afastar a bola nem cruzar o centro do campo.
A posição de Robben foi fundamental, assim como o abandono de
Totti na marcação de Xabi. Tudo o que fora previsto se cumprira: o
Bayern se alinhava em um 3-1-4-2, que se modulava num 3-4-3; Alaba
somava-se ao meio de campo, Xabi saía facilmente com a bola, o jogo
transcorria bem na faixa esquerda graças ao êxito de Götze, cujos
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movimentos entre as linhas inimigas eram esplêndidos; Bernat era o
homem livre em cada jogada junto com Götze e Lahm; e, finalmente, as
ações mais perigosas acabavam no lado oposto, onde Robben esperava
para executar a Roma. O quarto gol, marcado aos 29 minutos pelo
holandês, foi um reflexo da conversa de Pep, que levou as mãos à cabeça
quando Lewandowski traçou uma diagonal deliciosa às costas dos
zagueiros italianos, e Robben chegou na corrida para aumentar o
marcador.
Se um ano antes o Bayern tinha construído uma obra-prima no
Etihad Stadium de Manchester, contra o City — aquela partida em que se
viu a apoteose do rondo,* com a lendária sequência de passes que somou
três minutos e 27 segundos —,agora havia esculpido outra obra de arte
na capital da Itália, na doce e sensível Roma. O time de Pep deixava outro
jogo mágico para as videotecas.
Com sua contundência habitual, Thomas Müller resumiu, ao sair do
chuveiro, o que tinha acontecido: “Guardiola nos ensinou exatamente
onde estavam as fraquezas da Roma”.
No dia seguinte, Pep está jantando sozinho em casa porque Cristina
e os filhos viajaram para Barcelona aproveitando a semana festiva de
outono em Munique, e os outros membros da comissão técnica tinham
compromissos familiares. Embora veja pela televisão o que se passa no
jogo entre Bayer Leverkusen e Zenit (2 × 0), ele não presta atenção
excessiva e reflete sobre o ocorrido no Olímpico de Roma, esse 7 × 1
apoteótico que deixou o futebol europeu boquiaberto:
— Estou muito contente pelo jogo de ontem: estamos jogando
muito melhor do que no ano passado. Já viu os jogos de posição às
segundas-feiras: são incríveis, tac-tac-tac. Os rapazes estão jogando
como numa fábula, já não têm de pensar nos movimentos e encontram
homens livres por todas as partes. Xabi nos deu vida, mudou o rosto do
time e, graças à presença dele, podemos fazer coisas como pressionar a
Roma e causar estrago nos seus pontos fracos.
Pep se serve de uma taça de vinho branco e continua:
— Eu gosto de jogar no 3-4-3. Ontem desfrutei demais jogando
assim em Roma. Benatia passava pelo extremo que caía ao seu lado,
Alaba pelo oposto e Boateng varria tudo, com a vantagem de que Xabi
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estava sempre atento para se meter no meio e marcava Totti. E Lahm e
Götze sempre ficavam livres entre as linhas. Foi uma delícia jogar assim.
E então ele oferece outra opinião sobre a defesa de três:
— Lembre que quando passamos a nos defender com quatro, eles
criaram três ocasiões de perigo, porque perdemos o controle no centro
do campo. É mais seguro defender com três do que com quatro!
Outro jogador que domina os pensamentos de Guardiola é David
Alaba:
— Está impressionante. Joga de central e, porra!, logo você o vê
como extremo esquerdo. Terminou como atacante em alguns momentos.
Mas aí eu penso: deixe, deixe que ele voe, não lhe corte as asas, não
limite o jogador…
* No Brasil, a chamada “roda de bobinho”. (N. T.)
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CAPÍTULO 3
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A ALEMANHA MODIFICOU PEP
Encontre o que ama e deixe que isso mate você.
CHARLES BUKOWSKI
A Alemanha acelerou o amadurecimento de Guardiola, que, se ainda conserva
seus traços principais, modificou outros e incorporou alguns novos, tanto no
âmbito puramente do jogo como no da gestão ou no pessoal. A experiência
alemã lhe trouxe benefícios muito importantes, fazendo-o um treinador melhor,
e este amadurecimento é o que permite entender por que Pep aceitou o grande
desafio de Manchester.
Digamos como premissa básica que seus fundamentos se mantêm sem
nenhuma mudança. Pep continua sendo, sobretudo, um competidor nato que
jamais se permite um respiro e também não o concede a seu time: “Eu não jogo
pelo estilo, mas para ganhar”.
É o mesmo insatisfeito de anos atrás, que nunca se sente completamente
contente com o trabalho realizado, porque, em seu processo de autocrítica,
sempre observa defeitos e pequenos erros ou áreas em que pode fazer algo
mais — e melhor. Conserva o gosto pelo detalhe: é perfeccionista e, por
conseguinte, obsessivo na busca de correções e aperfeiçoamentos. Sua partida
perfeita sempre está por ser disputada. Conserva sua alma dupla de homem
emocional e racional ao mesmo tempo, o que, em certas ocasiões, oferece uma
imagem contraditória na aparência, pois ele nem sempre maneja essa dicotomia
com equilíbrio. Algumas vezes se mostra extraordinariamente frio; outras,
excepcionalmente emotivo. Como treinador é um resultadista romântico. Ainda
que não haja a menor dúvida de que o pragmatismo sempre se impõe em seu
interior, ele jamais renuncia ao outro objetivo: “O que conta de verdade é a
emoção que provocamos nas pessoas”.
Entre os traços que mudaram em Pep durante sua etapa em Munique,
aparecem dois que ele maneja em proporções similares, embora sejam
antagônicos: continua temendo os rivais, mas é muito mais atrevido,
provavelmente porque enriqueceu seu arsenal com os conceitos que aprendeu.
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O choque entre culturas futebolísticas distintas, a dele e a majoritária no jogo
alemão, terminou sendo positivo.
Paco Seirul·lo, diretor de metodologia do Barcelona, explica as razões pelas
quais um choque cultural induz melhorias em quem o vive: “No início, podem
ter problemas, mas o choque acaba sempre sendo positivo porque essas
pessoas acrescentam elementos de interação distintos dos que já tinham, sem
saber. Possuímos os neurônios-espelho, que nos tornam capazes de fazer o que
o outro faz; e, em função do que faz o outro, eu me comporto de uma maneira
ou de outra. Antes, chamávamos isso de aprendizagem por imitação, mas hoje
dizemos que os neurônios-espelho são capazes de reproduzir tarefas. Ou seja,
que somos capazes de imitar, mas isso demora certo tempo. Se você vê que
todos os jogadores do seu time, quando dominam a bola, dão um chutão para o
ataque, acaba pensando que jogar futebol é mandar a bola ao ataque com
chutões. Mas se vê que seus companheiros giram e conduzem a bola e dão dois
ou três toques, ou passam a bola entre eles, como se estivessem esperando para
ver o que acontece, você não vai pensar que é preciso dar chutões para a frente,
e optará por conduzir dois ou três metros, parar e aí passar a bola a alguém que
tenha a camiseta da mesma cor que a sua. E se seguimos progredindo por esse
caminho, quando vê alguém que se coloca num determinado espaço a fim de
atrair jogadores para que você tenha a oportunidade de jogar com ele, e ele por
fim lhe devolve a bola, então você percebe que há um espaço mais amplo que
favorece sua atuação e, assim, avança no aprendizado. E enquanto vão se
executando as intermediações de jogo, que são intermediações relacionais,
aparecem conceitos de jogo distintos e, claro, são enriquecedores”.
Depois da imersão alemã, Pep possui mais ferramentas em seu catálogo e
encontrou gosto pelos desafios. Já mencionei a resiliência como um atributo que
o fortaleceu; e a adaptabilidade como um traço novo que brotou em sua
personalidade. Tudo isso o fez mais flexível. Ainda que, como sinal de sua
identidade, Pep continue sendo paixão, paixão e paixão.
PAIXÃO OU ENERGIA
Munique, 19 de abril de 2016
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O Bayern acaba de eliminar o Werder Bremen e consegue sua passagem à
final da Copa da Alemanha. O rosto do treinador é o de alguém esgotado, o
que me faz ponderar com Estiarte, seu grande amigo, se não seria mais
eficaz se Guardiola economizasse energia em sua maneira de treinar e
conceber o futebol. Talvez seja mais rentável desgastar-se menos,
entregar-se menos, esgotar-se menos, com o objetivo de durar mais.
Estiarte é categórico:
— Na equação entre paixão e energia, prefiro que ele não afrouxe nem
um milímetro a pressão, ainda que isso o leve a situações como a desses
dias, em que está vazio e esgotado. Mas, se ele começar a poupar energia,
talvez perca a paixão, e isso o levaria a não ser Pep. Não, não pode nem
deve mudar.
Há quatro atributos nos quais convém entrar com detalhes, porque
sofreram modificações durante os três anos em que Pep viveu na Alemanha:
• o foco no trabalho;
• o ecletismo ideológico;
• a firmeza de critério; e
• a capacidade de inovação.
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3.1. O FOCO NO TRABALHO
A arte de reger consiste em saber quando largar
a batuta para não atrapalhar a orquestra.
HERBERT VON KARAJAN
Em sua concepção de trabalho, duas constantes poderosas têm influência
sobre Pep: a formação dada por seus pais e sua própria maneira de se ver, como
uma pessoa sem talento excessivo, carência que ele pretende compensar com
muito esforço (o que sem dúvida pode surpreender o leitor).
A seguinte afirmação do filósofo espanhol José Antonio Marina coincide
com a ideia de Pep sobre o trabalho: “O talento não é um dom (coisa), mas um
processo (aprendizado), e não está no princípio, mas no final da educação e do
treinamento”.
Diz Guardiola: “O que não se treina, se esquece”. Portanto, a base do
rendimento é o treinamento e o trabalho. Não tanto do ponto de vista
quantitativo, mas nos aspectos da qualidade e do sentido dele: “O conceito é
mais importante do que o físico”. O treinador transmite a ideia com a palavra,
mas o jogador a assimila com a prática reiterada, dirigida e corrigida.
“Treinando, convencemos os jogadores dos conceitos táticos”. A assimilação
plena da ideia se adquire em contextos que se aproximam da competição:
“Aprende-se o conceito tático jogando, porque o real é o jogo”. Ao final, a
essência da transmissão de conceitos e ideias de jogo possui uma condição
essencial de escolha. Não se trata de repetir mecanicamente algumas ações, mas
de compreender a razão de cada uma delas: “O treinamento consiste em que os
jogadores tomem decisões”, define Guardiola. E não basta dizer e treinar; é
preciso viver tudo isso como experiência: “Para aprender, é preciso
experimentar. Não basta que alguém lhe diga. Para corrigir verdadeiramente
um defeito, primeiro é necessário sofrer suas consequências”. O erro e a derrota
são grandes estimulantes da correção e do progresso.
Esses critérios exigem do treinador uma grande quantidade de trabalho
dedicado ao treinamento, mas o bem mais escasso de um time de elite é,
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precisamente, o tempo. E sem tempo não há trabalho prévio possível. “Não há
nenhuma fórmula secreta. Você ganha por concentração, esforço e atenção a
pequenos detalhes”, diz Steve Kerr, o técnico do Golden State Warriors. Mas
como se resolve esse dilema aparentemente insolúvel, esse embate entre a
escassez de tempo e a necessidade de trabalhar nos detalhes? Mudando a
orientação do foco do treinador. Otimizando seu tempo e esforço.
Paco Seirul·lo me ajudou a compreender essa reorientação seletiva no foco
de trabalho de Guardiola: “Antes se jogava uma partida por semana e, portanto,
cinquenta partidas por ano. Agora são duas ou três por semana, resultando em
até setenta partidas. Isso desgasta. Esse grande compromisso do treinador o
obriga a deixar de ‘estar’ no treinamento e se dedicar a preparar a competição.
Essa é uma mudança de prioridades que começamos a resolver quando Pep
ainda estava no Barcelona: Pep desaparece, entre aspas, durante a semana; vai
ao treinamento quase sem exigência emocional em relação ao que será
trabalhado, porque tudo já está desenhado e são os demais (o treinador
assistente, o preparador físico, o analista de vídeo) que preparam o dia a dia. Ele
está presente durante o treinamento de uma hora e meia e o dirige, claro,
corrigindo erros de execução. Mas quando o treinamento termina, ele vai para o
que é realmente substancial: preparar o jogo seguinte. Na véspera e no dia do
jogo, ele se submete a um grande estresse de trabalho com os jogadores — um
dia com a análise e outro com a direção que quer impor à partida —, mas no
resto dos dias está mais tranquilo, vendo jogos de seu time e dos rivais. Não está
ocupando sua energia com a preparação dos treinamentos. Essa é uma
dinâmica que começou no Barcelona e foi aperfeiçoada no Bayern. E é a
dinâmica imprescindível para um treinador com tantos jogos por ano”.
Essa foi uma modificação gradual em Guardiola. Pela primeira vez em sua
carreira, ele deixou de dirigir treinamentos em três ocasiões durante os últimos
meses em Munique. Foram três sessões de pouca relevância, sempre em dias
pós-jogo e, portanto, de regeneração. Domènec Torrent comandou essas
sessões, enquanto Pep permaneceu na sua sala em Säbener Straße preparando
o jogo seguinte por intermédio da análise do rival. Aconteceu em 3 de abril,
domingo, antes da visita do Benfica para jogar as quartas de final da Champions;
repetiu-se em 20 de abril, uma quarta-feira, e voltou a se passar noutro
domingo, 1o de maio, antes de cada disputa de semifinais contra o Atlético de
Madrid. Pep passou essas manhãs preparando o plano estratégico contra esses
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rivais: o plano de jogo, os vídeos dos adversários e as instruções que daria a
seus jogadores.
DEPURAR A ANÁLISE
Munique, 1º de maio de 2016
Em certo momento no jantar, Guardiola diz em voz baixa:
— Estou bloqueado. Pensei tanto no jogo, sobre como atacar o Atlético
e como nos defendermos, que estou saturado e bloqueado. Agora preciso
depurar tudo isso e deixar apenas o essencial. Dormir, refrescar a cabeça,
limpá-la e que só fique o suco: as duas ou três ideias fundamentais.
Na manhã seguinte, o bloqueio tinha desaparecido. O treinador se
mostra ágil e revigorado. Màrius, seu filho, joga bola no gramado com Leo,
filho de David Trueba. Além de amigo íntimo de Pep, cineasta e romancista,
Trueba é um homem culto que gosta de se aprofundar nos processos
criativos, seja qual for o âmbito. Ele sabe que Pep passou três dias seguidos
“carregando o software”, estudando variantes e modos de atacar o Atlético
de Madrid, e nos explica a razão para a transformação tão radical de Pep
em tão poucas horas:
— Pep segue um processo de aproximação em relação ao jogo que
lembra muito o das composições de Bob Dylan. Preenche páginas e páginas
para depois deixar somente os versos essenciais. Primeiro escreve muito,
depois só deixa a essência.
A análise é um ato solitário de criação. No domingo pela manhã, a dois
dias da semifinal da Champions, tudo já se reduziu a uma só dúvida:
— Benatia ou Boateng? Os outros dez estão claros.
Ele também está ocupado em encontrar o ponto de equilíbrio que o
time necessita durante o jogo:
— Só precisamos de um gol, mas se exigirmos muito controle, muita
paciência e muita tranquilidade dos nossos jogadores, talvez eles fiquem
confusos. E se pedirmos energia e eletricidade, talvez seja suicídio. Não é
simples encontrar o equilíbrio entre ser frio e paciente e ser enérgico e
ofensivo. Temos de encontrar a dose justa de cada coisa.
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Excluindo-se essas três sessões em que Pep se ausentou, o procedimento
nos dias restantes é o seguinte: a comissão técnica prepara a base do
treinamento. Domènec Torrent e Lorenzo Buenaventura elaboram o conteúdo
básico da sessão de acordo com as indicações estratégicas ordenadas por
Guardiola, que por sua vez estão relacionadas aos informes prévios preparados
por Carles Planchart, o responsável pelas análises dos rivais — um colaborador
fundamental, dado que as sessões se orientam sempre de maneira muito
específica, tendo em vista o oponente e a abordagem tática que Pep quer dar a
seu time em cada encontro. Com tudo isso, Torrent e Buenaventura apresentam
diariamente a Pep uma sessão de trabalho específica para sua aprovação ou
modificação. Eles se reúnem uma hora e meia antes e discutem o conteúdo da
sessão, tendo em conta as circunstâncias concretas de cada dia: climatologia,
jogadores lesionados ou com dores, atletas que se incorporam ao grupo,
necessidade de fazer rodízios ou treinos com cargas especiais para algum
jogador, e também sentimentos e emoções pessoais ou coletivas. Dessa reunião
surge a sessão definitiva, que é dirigida pelo próprio Guardiola, mas o treinador
já tinha sido liberado de todo o desgaste prévio da preparação do treinamento.
Ele o aprova ou modifica, e o dirige com essa energia transbordante que o
caracteriza, e efetua todas as correções que acredita serem oportunas, mas só
investirá uma hora e meia de seu tempo diário nessa tarefa, para poder dedicar
toda a sua concentração ao trabalho tático específico. A sessão termina sempre
com outra reunião da comissão técnica ainda no gramado, para avaliar como
transcorreu o treinamento e deixar estabelecidas as bases para o dia seguinte.
Pep pode dedicar o tempo restante da jornada a seu outro grande objetivo,
junto com o aperfeiçoamento tático: a preparação detalhada do próximo jogo.
A busca por maior eficiência energética não foi um objetivo individual de
Guardiola, mas de sua comissão técnica, o que também resultou no progresso
de todos eles. Domènec Torrent compartilhou o banco cerca de duzentas vezes
com Pep, realizou mais de duzentas palestras táticas e preparou inúmeras
jogadas de bola parada na companhia de Carles Planchart, que analisou mais de
1150 jogos de equipes rivais para extrair seus pontos fracos, enquanto Lorenzo
Buenaventura desenhava infinitas tarefas técnicas, táticas e físicas nos 835
treinamentos que Pep comandou no Bayern. Eles também deram um passo
adiante graças ao que experimentaram em Munique.
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O CRITÉRIO DOS RODÍZIOS
Munique, 14 de agosto de 2015
A atribuição dos minutos de jogo a cada atleta não é produto de mero
capricho. Obedece a uma estratégia que Pep detalha durante o jantar no
restaurante da Allianz Arena, pouco depois de vencer na estreia da liga (5 ×
0 sobre o hsv Hamburgo):
— Por exemplo, Xabi precisa ter um papel como o de hoje: jogar mais
ou menos sessenta minutos para organizar o time e cansar o rival. E depois,
ao banco para descansar. Precisamos de Xabi com muito vigor para abril e
maio, para que não seja como na temporada passada. Também é necessário
administrar a dupla Lahm-Rafinha de maneira parecida. Rafinha é
importantíssimo para o time e o farei jogar muitas vezes como hoje (os
últimos 35 minutos). Quando o rival já está frouxo e grogue, Rafinha nos
traz velocidade e astúcia. Assim que ele entra em campo, Philipp [Lahm]
sobe um pouco e vai para o meio, e os dois causam muitos estragos no
adversário. Mas, antes, é necessário que Lahm tenha desgastado os rivais
desde o primeiro minuto, que os faça correr e seja intenso. Para que depois
entre o Rafinha e finalize os adversários com sua eletricidade.
As partidas são jogadas com catorze atletas e a missão de cada um
deles, assim como os minutos que terão, não são fruto de casualidade; ao
contrário, obedecem a um plano premeditado.
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3.1.1. A PAIXÃO PELO DETALHE E PELA PREPARAÇÃO
Tenha cuidado com as coisas pequenas. Sua
presença ou sua ausência podem mudar tudo.
HAN SHAN
Essa administração das energias do treinador não significa que Guardiola
tenha reduzido sua paixão obsessiva pela preparação e pelo detalhe. Ele apenas
ajustou melhor o foco em relação às prioridades da semana, com dedicação
exaustiva à análise e aos trabalhos prévios de preparação tática para cada
partida. Conserva sua vocação de artista pontilhista e pretende que cada jogo se
assemelhe a um trencadís de Gaudí. (O trencadís é um mosaico artístico formado
por milhares de pequenos fragmentos de cerâmica.) Nenhuma pedra pode
faltar, por mais irrelevante que pareça, ou o trencadís perderá sua beleza e
harmonia artística.
Um exemplo concreto e real nos ilustrará essa paixão pelo detalhe e pela
preparação minuciosa. Estamos em 18 de maio de 2016, uma quarta-feira, no
campo n. 1 de Säbener Straße, a oitenta horas da final da Copa da Alemanha,
que será disputada no sábado, em Berlim. Exceto Javi Martínez, que corre pela
primeira vez depois da leve operação que sofreu — o que deixa Guardiola sem
seu central mais consistente —, estão presentes todos os jogadores que
protagonizaram o sprint final da temporada, incluídos Xabi Alonso e Mario
Götze, ambos infiltrados com calmantes por causa de fratura nas costelas. No
auditório interior do vestiário, Guardiola detalhou a eles o fator que considera
fundamental para a final contra o Borussia Dortmund: Thomas Tuchel jogará no
erro dos bávaros, buscando que a organização defensiva do Bayern fique em
igualdade numérica com o ataque do Dortmund e que isso aconteça longe do gol
de Neuer, com muitos metros de gramado para correr. E na corrida, o BVB é
superior.
Assim, Pep desenha um plano estratégico que vai revelando a seus
jogadores em pequenas doses. Na quarta-feira, ele passa o conceito-chave que o
Bayern deve respeitar se quiser ganhar: é necessário manter a superioridade
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numérica na defesa durante todos os momentos da final. Aconteça o que
acontecer.
Sobre o campo de treinamento, Pep se converte em uma torrente de
energia. Transmite a seus jogadores todos os detalhes do que imagina que pode
acontecer durante o jogo, tenta explicar o que o rival fará e como seus jogadores
devem responder a esses pontos fortes, minimizando-os e aproveitando esse
conhecimento para superar o oponente. São atividades que se dão a portas
fechadas, sem a presença de ninguém, nem sequer os habituais amigos ou
familiares de jogadores que são admitidos em outras sessões de treinamento
menos importantes: nenhum general mostraria sua estratégia ao inimigo antes
da batalha. São atividades breves, de dez ou quinze minutos de duração, mas de
uma intensidade incrível.
A primeira é um exercício geral em que Thiago vigia um Gonzalo Castro
virtual, e Müller um Julian Weigl de mentirinha. Dois jogadores juvenis ocupam
a posição dos jogadores do Dortmund. Sem parar de dar ordens, envolto em um
turbilhão de gestos e gritos, Pep força Müller a fechar os corredores que se
apresentam ao Weigl fictício, enquanto instrui Lewandowski e Douglas Costa a
impedir que Hummels (representado em campo por Taşçi) possa fazer o passe
longo com facilidade. Ele complementa o plano com instruções a Thiago:
— Thiago, em cima de Castro! Thiago, em cima de Castro, não deixe que ele
se vire!
A atividade dura quinze minutos e é uma prévia do treinamento
propriamente dito, que acontece na sequência e consiste num exercício de vinte
repetições de força explosiva, seguida de rondos e um longo jogo em meiocampo
disputado por três equipes de seis jogadores. Depois, se desenvolve
outra atividade tática, mas unicamente para o bloco defensivo: só Vidal e os
defensores. Xabi Alonso e Götze já se retiraram da sessão, doloridos, e seus
rostos denotam que não poderão jogar a final.
Novamente protegidos dos olhares indesejados, os integrantes da
organização defensiva dedicam os dez minutos seguintes a outro ponto do
plano estratégico: neutralizar Aubameyang e manter a superioridade numérica
a qualquer preço.
São dez minutos fascinantes, que mereciam ser vistos por qualquer
apaixonado pelo futebol, se não estivesse em jogo um título tão importante
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como a Copa da Alemanha. É Guardiola em estado puro: ele quer que Arturo
Vidal, o menos ortodoxo de seus meios-campistas, alcance o rigor de um
Busquets ou um Xabi Alonso e mantenha fixa a posição de meio-campista
central que deverá ocupar e que será pivô de toda a organização defensiva. Do
acerto de Vidal dependerá grande parte do êxito na final. Pep pede aos centrais
que fiquem muito abertos. Boateng já está acostumado, mas Kimmich ainda
hesita:
— Josh, para a linha lateral! Vai, sem medo, para a lateral!
O titubeio de Kimmich é compreensível. Como defensor central do Bayern,
o treinador o posiciona de início na linha de cal, como se fosse lateral direito,
trinta metros à frente de Neuer e 35 metros à direita do eixo do campo. O jovem
jogador pensa que será impossível voltar a tempo para sua posição se ocorrer
algum incidente que o obrigue a isso, mas o treinador é irredutível em suas
ordens. Pep o quer longe, bem aberto na direita, como Boateng na esquerda. E
os laterais, Lahm e Alaba, estão quase no centro do campo. No meio de todos
eles, reina Vidal. Os ensaios procuram coordenar dois efeitos: a vigilância férrea
de Vidal a Aubameyang, se este se soltar de sua posição, e o retorno rápido dos
zagueiros à área em caso de contra-ataque.
Pep se faz de Vidal. Coloca-se em sua posição, explica os detalhes, como se
mover e até onde ir em função do que fizer o centroavante do Dortmund, que é
representado por outro jogador juvenil. Se o falso Aubameyang se move para
fora, Vidal não o segue: Kimmich ou Boateng se ocuparão dele; mas, neste caso,
Vidal deve ocupar o papel do central que se desloca.
— Arturo, para a direita! Arturo, não siga Aubameyang!
E Vidal se corrige. Se Aubameyang avança pelo centro, Vidal então o marca
de perto e libera seus centrais. O exercício se repete, em todas as formas e
variantes possíveis, com Pep aos gritos, dominado por esse vigor especial que o
possui nesses momentos. Para imaginar como são esses minutos, pensem no
Guardiola que todos vemos durante um jogo e multiplique-o por dez. É um
vulcão de energia. Ele consegue que seus jogadores compreendam a essência
tática do que deverão implementar no sábado, em Berlim: Vidal deve manter a
posição, sem se distanciar do ponto ao redor do qual gira toda a organização;
deve atuar diante de Aubameyang de duas maneiras opostas, de acordo com o
movimento que o centroavante fizer em cada ação; e os quatro homens da
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defesa têm de se abrir como uma rosa na fase de início e se fechar como um
punho no caso de um contra-ataque, na máxima velocidade possível e
assumindo todo o risco de que sejam capazes, mas com um fundamento que não
é negociável: poderão atacar como quiserem e puderem, mas sempre
conservando a superioridade numérica na defesa.
Este é o Pep Guardiola mais autêntico, o que mostra toda a sua energia
como treinador.
O plano estratégico será complementado nos dias seguintes com novas
atividades, com mais explicações, palestras e vídeos, até culminar no sábado à
tarde, por volta das 17h30, no hotel Regent de Berlim, quando Pep vai expor em
um quadro-negro três esquemas que detalham a forma necessária para atuar
em função de como o Borussia Dortmund jogar. O Bayern não sabe qual dos três
esquemas o Dortmund escolherá, entre os que estão sendo usados nos últimos
meses; mas isso não importa, porque para cada um há uma resposta preparada
e todos os jogadores de Guardiola conhecem nos mínimos detalhes o que devem
fazer se seus rivais jogarem de um ou outro modo. Refiro-me não só a como eles
devem se distribuir, mas como pressionar e a quem, para que lado do campo
devem orientar a saída do rival e como realizar as coberturas, os apoios e as
compensações em cada caso. Esses esquemas não são mais do que o reflexo
gráfico e conclusivo de todas as atividades em que o time trabalhou desde terçafeira
de forma exaustiva, mas hoje eles o veem em sua integridade. É um plano
que expressa todas as variantes possíveis que Tuchel pode usar e todas as
medidas que os homens de Pep devem aplicar. Variantes estudadas, ensaiadas e
aprendidas com ênfase.
Durante a final, eles quase não vão precisar de instruções. Lahm, Kimmich,
Boateng e Alaba notam de imediato os sistemas distintos que o Dortmund vai
utilizando e as mudanças que se sucedem, e adaptam-se instantaneamente à
nova situação, sempre com uma leve indicação do capitão. Apenas Vidal precisa
de algumas correções vindas do banco; Pep, gritando, se encarrega de recordar
ao chileno que ele deve manter sua posição acima de qualquer outra prioridade.
Os planos são cumpridos rigorosamente.
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3.2. O ECLETISMO IDEOLÓGICO
Quem só busca a saída não entende o labirinto;
e, mesmo que a encontre, sairá sem ter entendido.
JOSÉ BERGAMÍN
Anteriormente, já apontei como foi relevante Guardiola incorporar novos
conceitos (alguns deles aparentemente pouco convencionais) em seu catálogo
de fundamentos do jogo. É importante conhecer o processo mental que
conduziu Pep até esse ecletismo ideológico.
Para isso, o leitor deve me permitir retroceder até fevereiro de 2014.
Sentado em seu escritório na Ehrengust Straße, perto do rio Isar, na capital
bávara, ouço Roman Grill com atenção. É o representante de Philipp Lahm, o
capitão do Bayern, mas sobretudo ouço-o falar sob outro prisma: Grill é sem
dúvida a mente mais lúcida de tantas que conheci no futebol alemão. E naquele
distante inverno de 2014, quando o novo time de Pep ainda se encontrava nos
primeiros passos de seu caminho em Munique, ele se expressou do seguinte
modo: “Estou absolutamente seguro de que Pep Guardiola não anda pelo
mundo pensando ‘Vou fazer cópias do Barça’. Não, em seus primeiros meses no
Bayern, já vimos que não é assim. Ele analisa muito bem seu time e os jogadores
que tem, e cria o tipo de jogo que considera oportuno para esse time. Tenho a
sensação de que Pep tem em sua mente um plano para desenvolver a carreira e
o Bayern de Munique é um primeiro passo para poder dizer ao mundo: ‘Olhem,
eu posso trabalhar em qualquer lugar’. Nós o veremos em sua verdadeira
dimensão nos próximos dois anos. Não sei como será porque ele
frequentemente realiza experimentos táticos com o time e não sei qual será a
linha tática adotada. Sejam quais forem as razões, ele de vez em quando faz
experimentos, mas tenho certeza de que não quer fazer uma cópia do Barça.
Antes de chegar ao Bayern, ele analisou muito bem onde teria as melhores
possibilidades de desenvolver um time ganhador e viu que esse time tem muita
técnica, mas também muita entrega e força, com o que ele teria todas as
condições de se mostrar ao mundo como um técnico que pode trabalhar em
qualquer lugar”.
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Esta teria sido uma reflexão muito apropriada no verão de 2016, uma vez
conhecida a experiência em Munique, mas é surpreendentemente lúcida,
porque seu autor a expressa no inverno de 2014, quando, naquele momento, o
que todos acreditávamos era que Pep ia pelo mundo doutrinando de acordo
com seu dogma futebolístico e que era praticamente um fundamentalista de
suas ideias.
A metamorfose de Guardiola tornou-o mais radical, mas ao mesmo tempo o
fez se desprender do dogma. Ele é mais cruyffista no sentido dos fundamentos
do jogo (bola, passe, posição, ataque), mas se distanciou do dogma imutável. Em
Munique, disputou a metade dos 161 jogos com quatro ou cinco atacantes;
defendeu com dois jogadores, com três, quatro e também com cinco; mas o fez
com quatro centrais, com três, com dois, com um e até sem nenhum; e, em certa
ocasião, com quatro laterais! Empregou 23 módulos de jogo diferentes,
chegando a utilizar cinco meios-campistas e, em várias ocasiões, só um; foi
simétrico e totalmente assimétrico; jogou passando a bola, mas também jogou
mandando-a aos extremos para que cruzassem, com a perna que lhes é mais
natural, para o cabeceio dos centroavantes. Foi profundamente guardiolista e,
ao mesmo tempo, rompeu com o que o distinguiu no Barcelona.
JOGAR COM CINCO ATACANTES
Munique, 13 de março de 2015
— Olhe para mim, o defensor dos meios-campistas, jogando com cinco
atacantes! A vida toda defendendo que tinha de jogar com os meioscampistas,
que a chave está neles, e agora minha força reside nos
atacantes… Mas, veja, não é colocar atacantes por colocar. Não estamos no
dia do jogo com o Real Madrid (0 × 4). Naquela vez joguei com quatro
atacantes, mas com dois laterais abertos e essa foi a cagada, porque
defendíamos com dois meios-campistas centrais e dois zagueiros
centralizados, e assim é impossível cortar os contragolpes. Agora é
totalmente diferente, porque a chave está nos dois laterais, que quando
têm a bola à sua frente se fecham junto com o meio-campista central e
formam uma linha de três que nos protege dos contra-ataques. Com este
salva-vidas, sim, é possível usar cinco atacantes, porque eles têm as costas
bem cobertas.
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Inevitavelmente, Robben e Ribéry aparecem no papel de “interiores”:
— Bem, além disso, dois desses atacantes vão jogar por dentro, como
meias interiores. Os que melhor driblam, que são os extremos, Robben e
Ribéry. Só que em vez de os mandarmos para os lados, com as limitações
da linha lateral e para enfrentar o lateral e o interior rivais fazendo o dois
contra um, vamos colocá-los por dentro; pois, se driblarem o meiocampista
central rival, estarão cara a cara com o gol.
— Mas você era um fundamentalista dos meios-campistas — repito a
ele. — Você queria jogar com mil meios-campistas…
— Sim, fui, mas estão me convertendo em um técnico que joga com
cinco atacantes. É um fenômeno curioso que aprendi aqui e sempre vou
dever isso à Alemanha. Ainda que, bem, na Champions talvez joguemos a
partida fora de casa com muitos meios-campistas, e, em casa, com muitos
atacantes. Fora, tentaremos controlar por intermédio do passe; e em casa
nos soltaremos, como contra o Shakhtar (7 × 0).
O time que deveria ser dos meios-campistas é um time de atacantes e
laterais…
— Além disso, os laterais também podem atacar, mas com moderação,
quando a bola estiver à frente deles e houver pouco risco de perdê-la.
Nesses casos, o ideal é que possam cruzar a bola, porque teremos cinco
caras que vão finalizar de todas as maneiras possíveis. Mas cuidado com os
nomes que damos a cada um: Lahm é lateral? Por quê? Por que não é um
meio-campista? E Alaba? E Rafinha? Robben é atacante? Por que não é um
meio-campista? Talvez ele seja um meio-campista!
No meu entender, essa é a mais significativa transformação que a
Alemanha provocou em Guardiola. O abandono do dogmatismo e a
incorporação de conceitos alheios lhe conferem maior flexibilidade, sem que
tenha abandonado nenhuma de suas ideias.
Em 2014, Grill apontou nessa direção: “Quando o Barcelona e Pep
Guardiola se juntaram, vimos um futebol genial. Também conhecemos José
Mourinho e não importa onde ele vá, ao Chelsea, à Inter, ao Porto… Com
Mourinho, o jogo é sempre idêntico: baseado na organização tática defensiva.
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Mas agora ainda não sabemos com exatidão como é o futebol de Guardiola.
Ainda não o conhecemos em toda a sua magnitude”.
Ou seja, há mais de dois anos, Roman Grill colocava em questão como era o
verdadeiro futebol que Guardiola pretendia pôr em prática. Recusava que Pep
fosse unidirecional em sua concepção de jogo e observava que o treinador
catalão abrigava o desejo de abrir sua mente a novos conceitos e incorporá-los a
seu catálogo. Eu perguntei se era possível que um treinador se mantivesse no
topo mundial com um estilo eclético de jogo, ou seja, com uma combinação de
vários estilos de jogo diferentes, ou se era mais fácil fazê-lo com um único
modelo. E ele respondeu assim: “No fundo, e ainda que pareça o contrário, a
filosofia de Guardiola não é tão rígida como a de Mourinho. Dizemos que ele é
mais artístico em seu jogo, mas também é mais livre. Pep tem seus princípios de
jogo e, com eles, sua mente analisará qual equipe se adaptará bem e permitirá o
jogo de toque, tendo a superioridade no centro do campo. Pep não vai para um
clube no qual deva se adaptar completamente à equipe que treinará: vai para
onde possa implantar seus princípios. Empregará o que encontrar, porque não é
tão rígido a ponto de não usar os recursos que têm à mão, mas imporá seus
critérios de jogo. E também acho que ele veio a Munique com a intenção de criar
a ‘marca Guardiola’, e é muito consciente de que o toque de bola forma a maior
parte dessa marca. Também por essa razão ele quer atrair os clubes que
buscam praticar esse tipo de futebol. Ele me parece ser um sujeito muito ciente
do que quer na carreira, por isso sempre analisará bem para qual clube irá. Pep
sempre tem muito claro o que quer. É um cara que quer ajudar os jogadores,
quer jogar em sintonia com eles e não contra eles, mas tem muita clareza
quanto a seus objetivos”.
Recebi de Roman Grill os primeiros indícios de que Guardiola estava
evoluindo rumo ao ecletismo. O treinador havia saído de Barcelona com uma
imagem contundente e dogmática: era o senhor do jogo de posição, dos mil
passes por jogo, dos 73% de posse de bola. O dono da bola. Logo se fixou ao seu
redor o celebrado slogan do “tiquitaca”, que teve um sucesso planetário.
Mas, ainda mais rapidamente, o próprio Guardiola rejeitou esse slogan por
ser reducionista: “O tiquitaca é uma merda: é passar a bola por passar, sem
intenção nem agressividade”.
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Na aparência, tratava-se apenas de negar um slogan que não fazia justiça
ao jogo de posição e que ridicularizava a realidade do jogo que o Barcelona
praticava. Mas, na verdade, existia algo mais nesse episódio de rejeição. Se
dissermos que Guardiola não possui uma mente convencional, por que razão ele
iria se fechar em seu próprio dogma de jogo? Por que razão depreciaria os
conceitos de futebol que poderia aprender a assimilar na Alemanha? Uma
atitude como essa não casaria com a mentalidade aberta, com a curiosidade
permanente e a busca de novidades e contribuições que pudessem surgir de
outra disciplina esportiva (xadrez, handebol, rúgbi…) ou cultural. Se um dos
motores que o movem é o mudar para ser mudado, por que razão ele rechaçaria
ideias de jogo distintas das suas, mas que seriam interessantes ou atrativas?
EDDIE JONES E AS TRANSFERÊNCIAS
Munique, 19 de setembro de 2015
Acabavam de chegar de Darmstadt, onde o Bayern venceu com
brilhantismo (3 × 0). Estiarte tinha deixado Pep em casa, mas ligou para ele
cinco minutos depois:
— Viu o Japão no rúgbi, o que fez Eddie Jones?
— Não, o que aconteceu?
Era a maior surpresa da história do Campeonato Mundial de rúgbi: o
Japão acabara de vencer a África do Sul por 34 × 32,graças a um try no
último instante do jogo. Pep levou as mãos à cabeça. Era uma surpresa
inimaginável. Nem o maior dos fanáticos japoneses podia sonhar com um
resultado tão surpreendente. O Japão manteve a calma durante todo o
encontro, sem permitir que os sul-africanos, bicampeões mundiais em
1995 e 2007, escapassem no placar (12 × 10 no intervalo). Quando
faltavam cinco minutos, o time treinado por Eddie Jones (nascido na
Tasmânia, de mãe japonesa e pai australiano) tinha se plantado na zona de
22 metros do conjunto sul-africano, com apenas três pontos de
desvantagem. O Japão dispôs de várias faltas a seu favor que poderia ter
chutado entre os postes, conseguindo um empate que por si só também
seria histórico. Mas imbuídos de um sentido singular de honra competitiva,
os japoneses se encheram de coragem e renunciaram ao chute seguro e ao
empate, e buscaram um try improvável e a glória esportiva. Chocaram-se
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contra a “parede” seguidas vezes e se levantaram sem esmorecer,
acumulando fases de jogo e sequências largas de passe e, no final, os
homens de Eddie Jones moveram a bola até o lado direito do campo e
rapidamente mudaram de sentido, então fizeram o mesmo até o lado
oposto para que Karne Hesketh conseguisse o try da vitória. O mundo oval
explodiu num êxtase colossal: a formiga tinha derrotado o elefante.
Guardiola não acreditou na notícia. Sabia o que aquilo significava
porque, em dezembro do ano anterior, passara uma tarde inteira
trabalhando com Eddie Jones. O selecionador japonês (hoje técnico da
Inglaterra) fora a Säbener Straße para compartilhar conhecimentos com
Pep, como explicou dias mais tarde:
— O rúgbi e o futebol são muito parecidos na hora de mover a bola
dentro do espaço. Eu vim ver Pep Guardiola para que ele me ajude a tornar
minha seleção taticamente mais flexível. Precisamos ser capazes de variar
a formação tática em função da evolução do jogo em cada partida.
Ao desembarcar em Munique, Pep tinha a intenção de implantar o jogo de
Cruyff e do Barça, mas logo observou que deveria ir além, por duas razões:
porque não tinha os jogadores necessários para reproduzir o modelo com
exatidão, e também porque as qualidades de seus novos atletas ofereciam novas
possibilidades a serem introduzidas em suas ideias de jogo.
Ferran Adrià, reconhecido como o melhor chef de cozinha do mundo
durante vários anos e, sem dúvida, o mais inovador e criativo dos grandes chefs,
aceitou, encantado, conversar sobre o processo vivido por Guardiola e
colaborou com um ponto de vista que me parece muito enriquecedor acerca da
necessidade de formação integral para um treinador: “Para mim, Pep foi muito
cedo para o Bayern, porque lhe teria caído muito bem a vivência de não só um
ano sabático, mas de dois ou três anos dando voltas pelo mundo e aprendendo
muito mais. Mas é certo também que não se pode deixar passar uma
oportunidade como a oferecida pelo clube alemão. Ele tinha de aceitar aquela
proposta em 2013, embora isso lhe tirasse a oportunidade de se formar de
maneira muito mais completa. Por que digo isso? Basicamente porque não sei
se Pep possui um método científico empírico de trabalho. Por essa razão,
durante o ano em que esteve em Nova York, eu o convenci a visitar o mit, o
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centro de inovação mais importante do mundo, e a se reunir com Israel Ruiz,
que é o vice-presidente executivo, para poder conhecer o MediaLab — onde se
pesquisa sobre desenho e tecnologia — e avançar um pouco mais nesse método
científico que sugeri a ele que construísse. Porque uma coisa é ser um estudioso
do futebol e ter visto muitos jogos, e outra coisa é ter um método científico de
trabalho, científico empírico, com o que jogadores seriam como robôs às suas
ordens, para poder testar e modificar decisões. Mas quando você fala com Pep,
ele diz: ‘No Barça, minha tática consistia em fazer a bola chegar a Messi’. Com
Pep, você nunca sabe exatamente como ele se julga. Eu tenho uma relação
cordial com ele e o conheço bem, mas não sei se ele possui esse método
científico empírico. Claro, é muito difícil construí-lo, porque isso significaria
abandonar o futebol durante dois anos e se dedicar por completo a decodificar
o jogo e construir esse método. No fim das contas, foi o que eu fiz: fechei o El
Bulli e tratei de tentar decodificar a cozinha”.
Tudo coincide, nos pormenores, com o que o próprio Guardiola costumava
dizer: “No Barça, minha tarefa consistia em providenciar que o time realizasse
os movimentos adequados no tempo preciso para deixar Messi no ponto exato.
Então Leo finalizava o processo em gol”.
Mas, no Bayern, foi muito diferente, porque não existia um Messi para
finalizar as ações nem o perfil de jogadores preparados desde muito jovens para
atuar como intermediários dessas rotas, e o treinador se viu obrigado a
construir circuitos de jogo muito diferentes dos do Barcelona, para que os
jogadores com que contava transitassem por caminhos distintos, sem dispor de
um finalizador inverossímil como Messi. Com uma referência ao basquete,
Ferran Adrià resume: “Phil Jackson dizia que Scottie Pippen tornou possível que
Jordan fosse Jordan. E, é claro, Xavi e Iniesta são os que permitiram que Messi
fosse Messi”. No Bayern, Pep não teve nem Messi nem Xavi, e nessas ausências
residiu um dos grandes estímulos para que imaginasse novas rotas dentro do
jogo.
Adrià anota que o ecletismo de Guardiola foi um processo paralelo ao da
comprovação da capacidade dele: “Bem cedo, Pep teve consciência de que seu
Bayern não poderia ser como seu Barça: porque não tinha Messi nem Xavi e
Iniesta; sem eles, não era possível criar um monstro daquela dimensão. Mas ele
fez algo muito inteligente em Munique: provou-se a si mesmo, para saber se o
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que aconteceu no Barça tinha sido uma casualidade. E não, não foi casualidade
porque ele conseguiu, no Bayern, reproduzir o mesmo modelo com outros
intérpretes e modificando conceitos. Alguns porque não podia aplicar, e outros
porque os incorporou como novos. E só a ausência de Messi (e Xavi e Iniesta) o
impediu de obter resultados tão superlativos e um jogo tão mágico como o do
seu Barcelona. Mas ele comprovou que seu modelo funciona. Ganhou muito e
jogou muito bem, embora sem essa magia especial que Messi proporciona”.
Depois de conviver com Guardiola em suas três temporadas no Bayern,
minha impressão pessoal é a de que sua guinada na direção do ecletismo foi e é
irreversível, se entendemos como tal a combinação harmoniosa entre seus
fundamentos de cruyffista radical (bola, passe, ataque, defender-se longe do
próprio gol) e os novos conceitos retirados do futebol alemão (velocidade e
verticalidade, bola ao espaço, cruzamentos para a área, ataques em massa). Na
realidade, o verdadeiro valor do treinador não consiste tanto em ter convicções,
mas em propô-las e implantá-las inclusive quando o contexto não é o mais
apropriado, e também em analisar essas mesmas convicções, corrigi-las,
aperfeiçoá-las e adaptá-las a esse contexto. As convicções são uma ferramenta,
não um colete. As convicções não devem ser um dogma, mas um espaço
demarcado onde se busca ter movimento e fluência, e Guardiola se move
melhor agora nesse espaço demarcado do que preso em um dogma.
É preciso dizer que, junto com os muitos avanços e aperfeiçoamentos
introduzidos por Pep em seu catálogo de jogo e no do campeão alemão, também
existem dois âmbitos nos quais ele não conseguiu um bom rendimento com o
Bayern. Refiro-me fundamentalmente à gestão dos próprios contra-ataques e
dos ritmos das partidas.
No primeiro aspecto, e embora ele tenha muitas vezes reiterado que gosta
que seu time contra-ataque, sua própria exigência de dominar o jogo no campo
contrário torna essa ideia quase inviável.
Nestes três anos, o Bayern só marcou nove gols de contra-ataque. É
facilmente compreensível que, se um time tem a bola durante 75% do tempo e
seu jogo se desenrola de forma majoritária perto da área rival, essas duas
condições impedem, por si mesmas, que se gerem os espaços necessários para
realizar qualquer contragolpe. Para criar esses espaços é preciso ser dominado
ou ceder, momentaneamente ou como forma de ludibriar o rival, o domínio do
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jogo e recuar. Nas duas últimas temporadas, para citar um exemplo evidente, o
Barcelona de Luis Enrique se aprofundou nesse artifício, o que permitiu que
seus três magníficos atacantes (Messi, Suárez e Neymar) protagonizassem um
sem-fim de contragolpes bem-sucedidos. Não é menos verdade que tanta cessão
de domínio do jogo ao adversário também provocou no Barça muito mais
momentos de dificuldades defensivas do que em outras épocas. Até hoje,
entretanto, Guardiola prefere priorizar o domínio do jogo bem longe de seu gol
a gerar as condições adequadas para a gestação de contra-ataques. É um
inconveniente que ele assume em troca de ser o time dominante e também o
menos goleado de todas as competições.
— O que digo a meus jogadores é: quando a bola é mais perigosa, quando
está perto de nossa área ou quando está longe? O que é mais perigoso? Se está
mais perto, há mais possibilidades de sofrermos um gol. Não serei convencido
do contrário.
UM GOL DE CONTRA-ATAQUE!
Munique, 7 de novembro de 2015
Durante o jantar, Pep revê com alegria as imagens em que seis jogadores
do Bayern correm, como uma manada de búfalos, na direção da área do
Stuttgart para marcar o primeiro gol do jogo. Um gol que faz feliz toda a
comissão técnica:
— Um gol de contra-ataque! — grita Pep, encantado com a velocidade
de seus jogadores.
O Stuttgart tinha um escanteio a favor, mas, dezessete segundos
depois de cobrá-lo, sofreu o gol. Obra de Robben, que o marcou com a
barriga. O gol bávaro foi fruto de uma proposta da equipe de analistas de
Carles Planchart:
— Nós estudamos e tudo saiu perfeito.
Domènec Torrent, na qualidade de responsável pelas ações de
estratégia, tinha marcado a jogada em vermelho, porque o Stuttgart cobra
alguns escanteios curtos, na tentativa de que Insúa cruze a bola depois de
dois ou três toques prévios, mas corre o risco de ter só Serey Dié, o meiocampista
central, mantendo-se atrás para vigiar um possível contragolpe.
Na sessão matinal de análise, Torrent explicou a seus jogadores que, se
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conseguissem recuperar rápido a bola quando ela estivesse com Insúa,
provavelmente poderiam atacar com perigo.
Dito e feito. Aos onze minutos de jogo, o Stuttgart situou oito homens
dentro ou próximos da área de Neuer, com Emiliano Insúa no vértice
esquerdo e Dié como único salva-vidas. E quando Insúa errou o
cruzamento, rasteiro e fraco, facilmente recuperado por Arturo Vidal, o
Bayern saiu em disparada contra a meta de Tytoń. Seis velocistas
desenfreados contra Serey Dié como único protetor de seu campo.
Bastaram só oito toques e onze segundos para que a arrancada feroz
desembocasse no gol de contra-ataque, para felicidade da equipe de
analistas e treinadores.
O segundo aspecto em que Guardiola não conseguiu o rendimento desejado
foi na gestão dos ritmos, do tempo dos jogos, especialmente em momentos
delicados depois de o Bayern sofrer um gol. Seu time foi exageradamente
uniforme nos ritmos, como o próprio Pep reconheceu quando falamos sobre o
assunto:
— Perdemos o controle em alguns momentos de certos jogos, porque essa
forma de jogar que temos, de ir sem parar contra o rival, de apertar e não deixar
o adversário pensar, ir e ir sempre, essa dinâmica… Como mudá-la de repente?
Eu pensei muito sobre isso. Como dizer a eles que, justo agora que tomamos um
gol, não devem ir para a frente, não devem apertar? Justo quando é preciso
reagir. É duro encontrar esse equilíbrio. Depois de três anos inteiros pedindo
que continuem indo à frente e apertando até nos treinamentos mais simples,
que não devem deixar de ir para cima do adversário nem por um minuto, como
dizer a eles, de repente, que agora vamos ficar calmos e passivos?
— É como pedir a um leão que se ponha a caminhar.
— Exato. Algumas vezes não fomos estáveis após receber um golpe. Ser
estável significa defender-se da mesma forma, como se não tivesse acontecido
nada, e dar vinte passes seguidos para acalmar tudo. Mas não, como é preciso
reagir, pegamos a bola e saímos em disparada, nos precipitamos correndo para
a frente. É a mecânica do time que provoca isso: se você tem cinco atacantes, a
tentação é ir para a frente rápido para reverter. Mas nesses momentos, o que
faz falta é a mentalidade do meio-campista: agora pegarei a bola e darei
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cinquenta passes. E com isso você faz o suflê baixar, o time que fez o gol esfria e
você pode começar a pensar em como vai reagir a partir desse momento. Mas se
você pega a bola e se precipita indo adiante, perde e começa a correr para trás
de novo. Se o rival está vivendo o bom momento do gol, zás, lá vem ele outra
vez. Não, não, isso não tem de funcionar assim. Calma, pausa e vinte passes para
que o suflê murche.
Esse dilema na gestão dos ritmos ficou em aberto na sua lista de itens para
melhorar.
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3.3. A FIRMEZA DE CRITÉRIO
Só se pode ter fé na dúvida.
JORGE WAGENSBERG
A dúvida sempre será uma companheira de viagem de Guardiola, mas em seu
último ano em Munique ele experimentou uma mudança categórica. Seus
titubeios desapareceram, dando lugar à firmeza de critério. Pep tem um
conceito muito positivo a respeito da dúvida: emprega-a como ferramenta de
análise dos rivais. Do mesmo modo que o jogador de xadrez avalia as diferentes
opções que surgirão a partir de um determinado movimento, Pep toma um
caminho imaginário e se conduz mentalmente por ele para averiguar até onde
seu plano de jogo o levará. As “dúvidas” de Guardiola são, na realidade, as
“variantes” do enxadrista.
Ele pensa que nenhum caminho é totalmente seguro no mundo do futebol,
e também que qualquer oponente tem qualidades para colocar seu time em
sérios apuros, o que às vezes induz a crer que Guardiola está dissimulando ao
exagerar as virtudes dos rivais, mas é absolutamente verdadeiro que ele sempre
encontra virtudes e artifícios perigosos nos adversários e jamais se acomoda em
uma suposta superioridade. Sempre tem como pauta de trabalho explorar todas
as variantes que o enfrentamento com qualquer rival pode oferecer.
Depois de ter analisado o oponente, ele faz uma avaliação estratégica,
assinalando seus pontos fracos e as melhores opções para atacá-lo. O resultado
disso é o “plano de jogo”. Depois, identifica as fortalezas do rival e estuda como
se defender, e a partir daí começa a análise das variantes, como faz todo jogador
de xadrez.
O que surge então é uma complexa matriz com numerosas rotas possíveis,
com planos de jogo e escalações diferentes. Todas as variantes permanecem
expostas sobre o tabuleiro de análise. Pep não rejeita nenhuma opção, por mais
estranha que soe. Só assim é possível compreender ideias como as vistas nos
últimos anos: Lahm atuando como extremo direito numa partida crucial da
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Champions, ou os pontas Robben e Ribéry jogando como meios-campistas
interiores em outros encontros menos importantes.
O estudo obsessivo e pormenorizado das numerosas opções que se abrem
é uma das características mais potentes que Guardiola possui, mas, até a última
temporada, gerava também um efeito pernicioso: o treinador prolongava o
estudo além do necessário, levando-o às vezes a limites exagerados, chegando a
modificar seus planos na tarde do dia do jogo. O estudo de variantes e o manejo
das dúvidas se convertiam em hesitação, o que podia ser prejudicial para o
objetivo pretendido.
Isso mudou de forma contundente. Pep já não hesita. Segue embaralhando
hipóteses, submete-as à análise e ao escrutínio, e estuda variantes, mas já não
duvida de suas decisões. Escolhe um caminho e o segue com todo o rigor, sem
se distanciar dele. Algo que comprovei pessoalmente não menos de seis vezes
durante a primavera de 2016, quando Pep me explicava seus planos de jogo
com vários dias de antecedência, até com a escalação que previa. Em todas as
ocasiões, os planos se cumpriram sem nenhuma modificação.
“JOGAREMOS DESTE MODO…”
Munique, 5 de abril de 2016
Essas quartas de final de Champions mostram uma mudança importante
em Pep: ele segue embaralhando muitas variantes, mas já não é vítima de
suas próprias dúvidas. Acaba de ganhar por 1 × 0 do Benfica e já decidiu
como jogar a partida de volta. Enquanto janta com o pai, Valentí, e o filho,
Màrius, Pep revela suas ideias para o encontro de Lisboa:
— Preencheremos o centro do campo com Xabi, Arturo Vidal e Thiago,
e Lahm junto a eles. Os quatro, formando um losango, com muita paciência
com a bola. E à frente jogaremos com três, em vez de quatro. Um dos
centroavantes vai para o banco: Lewy ou Müller. Dois extremos e um
atacante, e mais quatro meios-campistas no centro. Esse é o plano. Contra o
Benfica não podemos jogar com passe longo, tampouco com passes diretos
para os lados, porque eles montam o três contra um sobre o ponta
rapidamente. Temos de mandar a bola para as laterais e devolvê-la ao
centro para conseguir a quebra por dentro: um drible, um mano a mano e
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então abrimos o jogo, porque assim não haverá tempo para a cobertura
aparecer. E, para fazer gols, temos de chegar com a segunda linha: temos
que aparecer em vez de estar. Esse é o plano.
Durante os sete dias seguintes, ele estudou outras alternativas, mas
decidiu obedecer à sua primeira convicção e jogar com três meioscampistas,
Xabi, Vidal e Thiago (mais Lahm), e um único centroavante:
Müller. Este Guardiola de 2016 provoca poucas surpresas entre sua
comissão técnica.
Manchester nos confirmará se essa nova firmeza de critério e o abandono
das hesitações, uma vez escolhida a estratégia de jogo, são frutos do
amadurecimento intrínseco do treinador ou se foi assim porque o projeto
específico do Bayern estava completo.
Em qualquer caso, e à espera da resposta definitiva, torna-se muito
interessante recordar o que Pep disse a Patricio Ormazábal, ex-jogador e agora
treinador dos juvenis da Universidad Católica do Chile, quando este lhe pediu
conselhos: “Vá com a sua ideia até o final, Pato, sempre que for uma ideia
sensata e que possa ser realizada. Se for um disparate, você tem que revisá-la,
mas se for boa e você acreditar nela, vá com tudo. E se não correr bem, digamos
por exemplo que haja falhas numa saída de bola, o que se deve fazer não é
mudar de ideia, mas trabalhá-la mais e melhor. Não copie. Faça o que você
sente, não aquilo que quem ganha faz”.
Aproveitarei o conselho que Guardiola deu ao bom amigo Ormazábal para
esclarecer um assunto: nunca ouvi Pep dizer que suas ideias de jogo são
melhores que as dos outros técnicos, nem que o jogo de posição seja melhor que
o jogo direto ou o que se baseia numa defesa intensiva e no contragolpe. Pep
defende suas ideias e tenta melhorá-las para que sejam executadas com eficácia
e perfeição, mas está muito longe de se crer possuidor de uma verdade absoluta
no futebol; de fato, o que fica destas páginas é um manifesto sobre como ele
absorve e integra elementos de outros modelos e outros treinadores (incluindo
os antagônicos, que também admira, como Ranieri e Klopp), sem nenhum
esforço.
Etiquetas foram coladas sobre Guardiola de maneira constante e muitos
tentaram relacioná-lo a uma inflexibilidade dogmática que ele não possui, e isso
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aconteceu tanto entre seus devotos quanto entre seus detratores. Todos estão
errados: Guardiola não é um treinador atado ao dogma, mas um técnico que se
move em permanente evolução, captando ideias de todas as partes (“sou um
ladrão de ideias”), digerindo-as e assimilando-as em seu conceito essencial de
futebol. Isso, sim: quando toma uma ideia como sua, seja qual for a origem, ele
trabalha com ímpeto para levá-la adiante.
O futebol vive refém do uso excessivo de clichês e estereótipos: na falta de
conhecimento verdadeiro, aplicam-se etiquetas para tentar argumentar ou
justificar o que vemos. Essa é a causa da criação de determinados conceitos
completamente artificiais e baseados em falácias: o guardiolismo é um deles (e o
antiguardiolismo é exatamente igual: algo vazio de conteúdo).
O guardiolismo não existe como tal, entre outras razões, porque Guardiola
não é um “produto pronto”: ele está em produção. E, portanto, está mudando.
Foi assim em Munique e seguirá sendo assim em Manchester. Guardiola é um
técnico que busca progredir e melhorar, e nós já vimos sua evolução rumo ao
ecletismo, mas ele não pretende criar uma escola, nem se rodear de apóstolos
que deem continuidade à sua obra, nem se erigir na “única verdade” do futebol.
De fato, ele mesmo recusa toda alusão ao guardiolismo e não se sente
representado por aqueles que aparentam ser seus grandes seguidores, mas são
fabricantes de clichês tão superficiais e etiquetas tão equivocadas como as que
seus detratores tentam lhe atribuir.
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3.4. A ATITUDE INOVADORA
Inovar é conectar coisas.
JON PASCUA IBARROLA
Entre as numerosas definições do termo “inovação”, há uma de Ferran Adrià
que, mesmo atípica, se enquadra perfeitamente a Guardiola: “A inovação é e
sempre foi a busca por ganhar a vida”.
Façamos ponderações sobre o que entendemos por inovação no futebol. As
verdadeiras criações pertencem ao âmbito do gesto técnico e são os jogadores
que as “inventam”. O que os treinadores fazem quando “inovam” é empregar
seus recursos de maneira diferente. Os movimentos táticos que propõem não
são “criações” no sentido estrito, e os chamamos de “inovações” porque supõem
novos usos dos recursos existentes. O professor Júlio Garganta explica com
precisão: “Na música, há muito tempo se conhecem as notas musicais, os
compassos, os ritmos. Isso não mudou, mas todos os dias surgem canções novas
e novos intérpretes. Por quê? Porque a partir das notas, dos compassos, dos
ritmos que se conhecem é possível gerar novidades, por intermédio de novas
combinações. No futebol acontece o mesmo, mas para que haja inovação é
necessário saber pensar, além de saber atuar de acordo com o modo como se
pensa”.
Guardiola não inova no futebol por estar possuído por um espírito
pioneiro, aventureiro, criativo ou messiânico. Ele o faz por necessidade. É
preciso ganhar a vida em cada jogo. O que impulsiona Pep a não ficar quieto é o
rival; ele intui as dificuldades que o oponente lhe causará e esse é o motor de
suas inovações, até o ponto extremo em que, ao nos perguntarmos qual seria o
sistema de jogo ideal para Guardiola, devemos responder sem duvidar: a
mudança. O que funciona hoje não servirá amanhã. E é preciso atuar, é preciso
mudar.
O processo que Pep segue para inovar é simples: sua origem está na
necessidade de sobreviver diante dos perigos que ele intui. O núcleo central
desse processo consiste na análise do rival e em não se conformar com a
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utilização corriqueira de seus recursos próprios (basicamente, jogadores,
posições e funções), empreendendo uma busca permanente por novos e
melhores usos. Como resultado se obtém um determinado “produto” que — não
sempre, mas em vários casos — contém certa dose de inovação.
É interessante observar a parte central e substancial do processo, porque
se alguém estudar a história da evolução tática do futebol, encontrará
semelhanças formidáveis entre os grandes treinadores. Todas as coincidências
sempre se verificam neste mesmo fator: buscar formas novas e melhores de
utilizar os recursos existentes. Pensando nos diferentes “falsos 9” ao longo da
história, há um fator coincidente em todos os treinadores (Meisl, Peucelle,
Sebes, Villalonga, Cruyff, Spalletti, Guardiola…) que os puseram em prática: foi a
mesma ideia, mas implementada em contextos diferentes. Se analisamos como a
Cambridge University aplicou o 2-3-5 em 1880 e como Guardiola recuperou
esse esquema em forma de pirâmide em 2015, observamos algo parecido: a
mesma disposição espacial surgiu a partir da busca de novos usos ao que se
empregava de forma habitual. E assim ocorre com a maior parte dos avanços e
inovações táticas no futebol. Não são “inventos” nem “criações” puras, mas usos
diferentes de recursos similares, e a esses novos usos denominamos
“inovações”.
Por essa razão, o estudo da história da tática me parece uma fonte
formidável de inspiração para os treinadores contemporâneos. Quando Juanma
Lillo recomenda a Guardiola que, contra determinados times, use a “formação
ampulheta”, Pep estimula o seguinte debate interno em sua equipe técnica: “De
que maneira podemos jogar com cinco atacantes sem que o risco seja suicida?”.
A análise termina desembocando no 2-3-5 com que o Bayern arrasa o Arsenal e
vira o jogo contra a Juventus na Champions League 2015/2016.
A esse respeito, convém escutar o que nos diz Paco Seirul·lo: “O futebol é
menos evoluído do que outros esportes coletivos, como o basquete ou o
handebol, porque eles têm a vantagem de serem jogados com a mão e em
espaço pequeno, o que possibilita o surgimento de coisas novas mais facilmente
e as associações entre os atletas de diferentes maneiras. Por outro lado, nós, por
jogarmos com os pés, em campo grande e dividindo o terreno de jogo com o
rival, precisamos elevar muito o nível técnico dos jogadores para conseguir
mudar qualquer coisa”.
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Prossegue Seirul·lo: “Para que essas mudanças e inovações sejam levadas
adiante, a formação dos jogadores tem de evoluir muito. Eles devem aceitar que
não basta jogar, que é preciso compreender o jogo. Em geral, há pouca
compreensão do jogo. Há intuições e talentos específicos. Um jogador descobre
que deve driblar para a direita quando o pé esquerdo do oponente está colado
ao chão, mas outro não descobre nunca, e por isso nunca driblará e se limitará a
passar a bola. Também porque ninguém lhe disse isso. A verdade é que os
jogadores, apesar dos treinadores e do entorno, são capazes de construir coisas
novas que depois são aproveitadas por alguns outros — os mais capazes, sejam
treinadores ou instituições —, que podem dizer que o jogo continuou evoluindo.
Por isso se afirma que o futebol é dos futebolistas. Sim, em parte é verdade,
porque são eles que o desenvolvem, mas o futebol pertence mais às equipes.
Quem passa à história são os times. Os Mágicos Magiares, a Laranja Mecânica, o
Milan de Sacchi, o Pep Team…”.
Ferran Adrià colabora com seu ponto de vista sobre a inovação no futebol:
“Não sei se dentro de um vestiário de futebol se fala sobre inovação. Duvido que
digam: ‘Vamos criar’. Devem, sim, dizer: ‘Vamos jogar’. De outro modo, seria
uma revolução. E creio que Pep já pensou em tudo isso para o futuro. Não sei se
um time de futebol está preparado para ouvir de seu treinador: ‘Vamos criar’.
Talvez achem graça e imaginem que ele tomou alguma coisa estranha… Ser
disruptivo no futebol consistiria em transformar uma equipe em um conceito de
inovação. Transformá-la em um laboratório criativo. Qual é o problema? É que o
futebol não admite isso porque, se você não ganhar, será mandado para a rua.
Seria um time experimental, como os Globetrotters, porém sério, sem
brincadeiras. Um time que não tivesse de ganhar ligas, que fizesse exibições e
que pudesse jogar com absoluta liberdade. Que tivesse os melhores jogadores e
que fizesse exibições de jogo… Claro, isso é impossível. Entre muitas outras
questões, quem pagaria o salário dessa gente? E isso nos leva a uma realidade: a
experimentação no futebol, ao nível máximo, é impossível. Impossível. Por esse
motivo, as ideias que Pep poderia chegar a imaginar são impossíveis de traduzir
numa equipe. O que ele fará é estabilizar essas ideias em um modelo que seja
possível”.
VOCÊS VIRAM CRUYFF JOGAR?
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Madri, 9 de janeiro de 2015
— Uma das cenas mais bonitas da minha vida foi quando Messi, Xavi e
Víctor Valdés vieram ao meu laboratório, o Bulli Taller, e eu perguntei:
“Vocês viram o Ajax dos anos 1970, o Ajax de Cruyff?”. E os três me
disseram: “Não…” — explica Ferran Adrià. — Foi alucinante. Claro, mesmo
assistindo hoje, o jogo daquele time parece um futebol contemporâneo. É
incrível. Por outro lado, você vê agora o Brasil de Pelé e não o percebe
como contemporâneo. Mas o Ajax dos anos 1970, sim. Parece um time de
hoje em dia. Mas eles três não viram o time jogar. Xavi, Messi e Valdés!
“E eu pergunto: fez falta a Xavi, Messi e Valdés ter visto e conhecido o
Ajax de Cruyff? Parece que não… O.k., de acordo, eles são jogadores e não
treinadores… Mas, se você quiser valorizar a inovação… Primeiro, o que é a
inovação no futebol? Porque no final o que nós medimos são os gols. A
inovação seria para quem criou o drible, quem criou a bicicleta… E em que
âmbitos do futebol se pode criar? Para responder, primeiro teríamos que
decodificar o futebol.
“Porque você pode criar em muitos âmbitos e não apenas no gesto
individual do jogador. Pode criar ao organizar um banco de reservas: fazer
de uma outra maneira, por uma série de razões. Mas, antes de decidir,
devemos decodificar essa metodologia.
“Pep sempre me dizia: ‘Cruyff é que é um puta craque’. Mas eu digo: E
Michels? Bom, se formos até lá atrás, ou foi você quem inventou o futebol,
ou tudo vem de algum lugar, de algum começo. Ainda que você seja muito
disruptivo, tudo teve sua evolução.”
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3.4.1. BARREIRAS QUE DIFICULTAM A IMITAÇÃO
Uma coisa é saber e outra é
tirar vantagem do que se sabe.
RICARDO OLIVÓS
A crescentemos a tudo o que dissemos antes que a possibilidade de uma
inovação se difundir e ser imitada está estreitamente relacionada, também no
futebol, às barreiras de entrada aplicáveis a tal inovação. Por exemplo, as
dificuldades que existem para se imitar uma simples linha de quatro defensores
são bem reduzidas (é preciso ter quatro jogadores que saibam defender e pouco
mais), mas estruturar uma organização defensiva completa em que os onze
jogadores participem de maneira harmônica e coordenada importa exigências
maiores. E, sem dúvida, planejar um jogo de posição completo, onde ataque e
defesa se tornem indissociáveis e cada movimento individual e coletivo não
apenas tenham sentido, mas também uma carga de intenção, elevará as
barreiras de imitação a uma grande altura.
Cada um desses diferentes níveis de dificuldade gerará,
proporcionalmente, graus distintos de imitação real. No caso do jogo de posição,
que até hoje é o modelo mais complexo e elaborado de todos os já
desenvolvidos, em algumas ocasiões ele “parece” ter sido posto em prática, mas
na realidade estão sendo copiados apenas alguns símbolos do modelo e não
seus autênticos fundamentos. Nesse caso, não há uma implantação verdadeira,
mas somente uma imitação superficial de alguns de seus efeitos, e de nenhuma
de suas causas.
É compreensível, porque implantar esse modelo exige estabelecer diversas
condições prévias. O treinador e sua comissão técnica precisam ter um
profundo conhecimento desse modo de jogar, suas características e razões, o
porquê de cada posição, movimento e instrumento a ser empregado, e o
domínio abrangente da metodologia imprescindível para o ensinamento e a
implementação entre os jogadores do elenco. Os futebolistas devem ter boa
capacidade de compreensão tática e uma alta predisposição de vontade para
assimilar um modelo complexo e de difícil aprendizagem. Em suma, as barreiras
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de entrada para imitá-lo são variadas e poderiam explicar por si mesmas o
reduzidíssimo número de equipes que conseguiram implementá-lo com acerto.
De maneira completa, nos tempos atuais, o modelo foi praticado pelo Barcelona,
pelo Bayern e pelo Borussia Dortmund; e de maneira menos completa, também
pudemos vê-lo em seleções nacionais como Chile, Alemanha, Espanha, Itália e
Peru, além de clubes como o Hoffenheim do jovem Julian Nagelsmann, o Rayo
Vallecano de Paco Jémez ou a ud Las Palmas de Quique Setién. O novo Sevilla de
Jorge Sampaoli e Juanma Lillo também começou sua imersão nesse modelo de
jogo. E o Manchester City, certamente.
Mas talvez haja algo mais, além das citadas barreiras, que dificulte a
propagação desse modelo e ninguém melhor do que Juanma Lillo para refletir
sobre isso:
— Houve quem quisesse gerar a sensação, e conseguiu porque é uma
sensação fácil de criar, de que é preciso ter grandes atletas para praticar o jogo
de posição. A minha impressão é a contrária. As pessoas confundem o possível
com o provável. Por regulamento, esse esporte permite que qualquer time
vença qualquer outro sem passar nem uma vez ao campo do adversário, ainda
mais com a mudança no pontapé inicial. Isso não acontece em nenhum outro
esporte. Mesmo sem cruzar o centro do campo, você pode ganhar por 1 × 0. O
treinador pode treinar a probabilidade, tentar aumentar o provável. Mas o
possível… Que um burro voe também é possível, mas é pouco provável. E há mil
exemplos mais de coisas que são possíveis, mas pouco prováveis. Enquanto
falamos, eu posso crescer e passar a medir dois metros. É possível que ocorra,
mas é muito pouco provável…
O que o jogo de posição busca é aumentar o índice de probabilidade de
ganhar por intermédio do jogo:
— Isso é demonstrável, mas não só com times sublimes, mas também com
outros muito mais modestos. Mas como associaram o jogo de posição aos
sublimes, como o Dream Team de Cruyff ou o Barça de Pep, então nos dizem
que para praticá-lo bem é preciso ter jogadores muito bons. Claro, com esses
jogadores… E é exatamente o contrário! Ganhar com apenas dois toques, com o
central mandando um chutão ao centroavante, isso sim é verdadeiramente
difícil. Ganhar com apenas dois toques, de dois jogadores, é menos provável,
muito menos provável do que com o jogo de posição, a menos que os dois
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jogadores sejam Maradona como central e Maradona como atacante. Se não, é
muito difícil.
Na opinião de Lillo, nesse ponto reside a escassez de praticantes do jogo de
posição:
— Toda essa confusão faz que, em vez de se dizer que é mais provável
ganhar com o jogo de posição, se diga que só é possível praticá-lo com grandes
futebolistas. Mas é o contrário. Eu digo outra coisa: pretender ganhar, que é o
objetivo do jogo, com unicamente dois ou três jogadores interferindo na jogada,
em dois ou três toques, é tentar quase um milagre. É possível, mas é quase um
milagre. E se me respondem que aconteceram muitos milagres, eu digo que sim,
sobretudo se houver dois times que jogam por um milagre; então o milagre
acontece. Quem diz que só se pode jogar esse jogo com grandes futebolistas, na
realidade, é quem quer jogar de outro jeito…
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BASTIDORES
SOBREVIVER COM O 3-5-2
Dortmund, 4 de abril de 2015
Na quinta-feira, 2 de abril, Pep já tomou a decisão, que compartilha na
primeira hora do dia com seus ajudantes. Sem a capacidade de Robben e
Ribéry para superar rivais, sem a onipresença de Alaba, sem o sentido de
antecipação de Badstuber (todos eles machucados) e com Lahm e Thiago
sem ritmo, a situação do time volta a ser de clara inferioridade
competitiva e emocional. O Bayern não pode ir ao Signal Iduna Park de
Dortmund com o peito aberto, como se não tivesse baixas, motivo pelo
qual Pep ordena novamente o 3-5-2 que utilizou na final da Copa da
Alemanha de 2014: um homem a mais na defesa, um homem a mais no
meio de campo, dois homens a menos no ataque.
Durante os dois dias seguintes, os treinamentos se concentram em
recordar as pautas de comportamento que esse módulo de jogo exige.
Rafinha e Bernat terão de ser como acordeões que se dobram e
desdobram ao redor dos três defensores centrais. Xabi Alonso deverá
trabalhar duro para que não haja espaço entre ele e os zagueiros,
evitando ceder essa zona letal aos meios-campistas ofensivos do
Dortmund. Lahm e Schweins-teiger jogarão como interiores, mas só um
deles, de forma alternada, poderá se distanciar de Xabi para pressionar
mais à frente: o outro sempre deverá permanecer perto do jogador
espanhol; e os dois atacantes, Müller e Lewandowski, terão a tarefa mais
dura: deverão prender os quatro defensores rivais, ameaçá-los o
suficiente para que não se incorporem ao centro do campo, proteger as
bolas que chegarem e construir quase por conta própria todo o jogo
ofensivo do Bayern, porque as instruções de Guardiola aos jogadores
restantes serão categóricas: risco zero no ataque, toda a parte ofensiva
somente com Müller e Lewandowski.
No momento mais difícil da temporada, o único plano é a
sobrevivência.
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Pep ainda não sabe ao certo se em abril e maio poderá estabelecer
um novo plano de jogo. A temporada mostrou que todos os planos que
desenhou foram destruídos pelas lesões. Começou o curso com o 3-4-3,
mas os ligamentos do joelho de Javi Martínez se romperam. Com a
chegada de Xabi Alonso, acreditou que poderia praticar o jogo de
posição mais ortodoxo, mas a recaída de Thiago e a fratura de tornozelo
de Lahm o impediram, pois a equipe ficou sem interiores e o 4-3-3 se
tornou inviável. O terceiro plano da temporada foi o dos atacantes: jogou
com cinco ao mesmo tempo (2-3-2-3), obteve excelentes resultados, mas
quando Robben e Ribéry alcançaram a plenitude como interiores no jogo
contra o Shakhtar Donetsk, o invento desmoronou em apenas dezoito
minutos por causa das lesões de ambos.
Pep se viu obrigado, então, a desenhar um quarto plano de jogo,
mas estamos em abril e não há tempo para ensaiar e corrigir. Agora,
cada partida é uma final e o time joga a cada três dias. A lógica diz que o
regresso de Lahm e Thiago, embora ambos acumulem dezoito meses de
baixa, deveria significar um jogo mais tradicional, com Xabi ou
Schweinsteiger no papel de único meio-campista central, servindo aos
meias interiores para que encontrem o último passe próximo à área
rival. Mas a realidade é complicada: Lahm é um “motor a diesel”, um
jogador confiável como poucos, mas que necessita de muito tempo para
alcançar seu melhor rendimento. E não há tempo. Quanto a Thiago, não
joga simplesmente há 371 dias, e em sua cabeça, assim como na de todos
os muniquenses, é certo que há mil fantasmas. Pep se pergunta se o novo
plano de jogo deve passar por dois jogadores que estão tão longe de seu
melhor momento. E a resposta é não. É mais importante sobreviver do
que desenhar o quarto plano da temporada.
No jogo em Dortmund, o Klassiker, a distribuição do Bayern quando
tem a bola é um 3-5-2. O Borussia Dortmund se afogará diante dessa
formação fechada e compacta que não deixa espaços entre suas linhas e
nega ao time local o que ele mais necessita: metros para correr. Pela
primeira vez na temporada, os jogadores de Pep não se mostram muito
interessados na bola (a posse se reparte em 50%), nem buscam se
assentar no campo do adversário. São instruções concretas do treinador:
linhas compactas, superioridade numérica na defesa e no centro do
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campo, reduzir as perdas de bola ao máximo e buscar os dois atacantes
para que eles decidam. O Dortmund joga com sua eletricidade habitual,
mas aos dez minutos de jogo, já caiu nas redes bávaras. O Bayern se
assemelha à “formação tartaruga” das legiões romanas, protegido por
todos os lados e impenetrável.
Sobressaem os três defensores centrais: Benatia, Boateng e Dante,
atentos e firmes. Schweinsteiger, embora as estatísticas não reflitam, faz
uma partida formidável, assim como Bernat. E os dois atacantes
alcançam o objetivo traçado: Müller e Lewandowski prendem os quatro
zagueiros do Dortmund. O polonês brilha: não só consegue o gol do
triunfo, dividindo o mérito com Müller na ação, mas ganha dez duelos
aéreos durante a partida, recorde absoluto para um centroavante na
Bundesliga.
Jürgen Klopp sofre para decifrar o Bayern. Fica a impressão de que
o treinador do Dortmund esperava um Bayern ortodoxo em seu jogo
posicional, de muitos passes interiores; e diante de um Bayern compacto
e fechado, que não busca jogar no campo do adversário nem ter a bola
em excesso, o treinador e os jogadores do BVB padecem até decodificar
o que está acontecendo. Esperavam pelo Guardiola atrevido e voraz, mas
deram de cara com o Guardiola precavido e rochoso, uma versão que
tinham visto na final da Copa e que se repete neste sábado de abril. É o
3-5-2 compacto e sem fissuras para usar nos dias de emergência.
— Thiago voltou e essa é a grande notícia. Thiago nos dá a vida… —
Pep me disse, mais tarde.
A opinião na equipe é unânime, e ninguém a expressa melhor do
que Xabi Alonso:
— O Mago voltou.
Thiago só disputa vinte minutos, substituindo o capitão Lahm, que
mais uma vez deixou a pele no campo, mesmo não estando em boa
forma. Os primeiros cinco minutos de Thiago após um ano de baixa são
deslumbrantes. Possuído por uma inquietação difícil de descrever, o
meia espanhol parece jogar outro esporte. Pede a bola, se oferece livre
entre as linhas do Dortmund, dribla, faz passes entre frestas que só ele
vê… São só cinco minutos, mas o jogo todo é monopolizado por Thiago.
Naturalmente, se trata de uma miragem; logo a falta de ritmo começa a
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cobrar seu preço e, ainda que o treinador reforce a proposta com a
entrada de Götze, o jogo acabará desacelerando. O Bayern sobrevive à
eletricidade do Dortmund e dá um passo decisivo para ganhar seu
terceiro título consecutivo da Bundesliga, o segundo de Pep.
A celebração pela vitória é formidável e, ainda mais, pelo retorno do
Mago Thiago. Seus companheiros inundam o vestiário com aplausos
dedicados a seu regresso, e Thiago desaba em lágrimas. Seu ano foi tão
amargo, tão obscuramente amargo, que as emoções transbordam e ele
chora diante de todos os seus companheiros, que o abraçam e o beijam.
— Fizemos um jogo muito sério — disse Xabi. — As pessoas podem
pensar o que quiserem do Dortmund, porque o time não está bem
classificado, mas era um jogo muito duro. Foi como uma semifinal de
Champions League.
Jürgen Klopp, sempre sincero em suas declarações, resume:
— O Bayern mereceu ganhar.
Guardiola obteve sua quinquagésima vitória na liga, em apenas 61
jogos. É um recorde absoluto de rapidez na Bundesliga, pois Udo Lattek
tinha sido o mais precoce em conseguir os cinquenta triunfos,
necessitando de 78 partidas. Guardiola bate recordes e está a um
pequeno passo de conquistar sua segunda liga consecutiva, mas está
muito descontente. Não assim que o jogo termina, quando se mostra
feliz e eufórico, mas horas mais tarde, após analisar a partida com sua
comissão técnica.
Mas, antes disso, ele abraçou todos os atletas. Lahm e Thiago,
efusivamente. Em público, felicitou Dante, que estava com o moral baixo
fazia semanas. E expressou seu orgulho pelo triunfo “conseguido por um
verdadeiro time”, frase na qual pretende englobar o momento delicado
que o Bayern vive: quebrado pelas ausências, mas com o ânimo
fortalecido e mais disposto do que nunca a superar os obstáculos com
competitividade.
No íntimo, contudo, Pep está insatisfeito…
Soa contraditório, por suas exibições de euforia ao término do jogo.
Quando faltava um minuto para o final, ele abraçou Lahm com
intensidade, celebrando a vitória. Pep tem motivos para estar feliz:
novamente venceu, em seu estádio, um rival que, apesar de não estar
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num bom momento, foi um colosso nos últimos anos: duas vezes
campeão da liga, finalista da Champions League, ganhador da Copa de
2012 varrendo o Bayern por 5 × 2, campeão da Supercopa alemã duas
vezes seguidas…
Mas está descontente.
— Ganhamos e fizemos o que precisávamos fazer. Esse era o plano,
e os garotos o executaram com perfeição. Mas o plano era um puro
exercício de sobrevivência para tentarmos sair vivos e darmos um passo
a mais depois de tantas desgraças sofridas.
Em momentos assim, Guardiola não admite réplica nem
argumentações sobre a necessidade de jogar desse modo.
— Assim não vamos a lugar nenhum. Impossível. Superamos um
obstáculo, mas nossa maneira de jogar tem que ser outra.
A menção a Thiago e Lahm, além dos numerosos lesionados, não
muda sua análise. Pep venceu, mas tem plena consciência de que
conseguiu por uma via que não o satisfaz. Sabe que não havia outra
possível; afinal, foi ele quem decidiu que esse era o único plano. Mas,
uma vez alcançado o triunfo, aparece seu inconformismo.
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CAPÍTULO 4
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POR QUE PEP É UM TREINADOR MELHOR?
Os melhores professores são os que ensinam onde
você deve olhar, mas não dizem o que deve ver.
ALEXANDRA TREFOR
Pep cresceu taticamente porque a Alemanha o impediu de permanecer
ancorado no conforto do jogo que praticou com o Barcelona durante quatro
anos prodigiosos. Com o Bayern era inviável jogar do mesmo modo, e esse
desafio lhe proporcionou um mar de enriquecimento. Ele se viu obrigado a
mudar, adaptou-se por necessidade, por instinto de sobrevivência frente a um
futebol alemão que estruturalmente ainda tem suas bases (apesar das
aparências) fincadas na prática de defender com muitos jogadores e sair
correndo diante da menor oportunidade, sem se importar com o que fica para
trás nem com o que acontece depois. Por essa razão, na Bundesliga podem ser
vistos semanalmente os contra-ataques mais velozes e bem construídos do
futebol europeu, ainda que não sejam os mais eficientes, o que tem como
consequência um jogo bastante impreciso, precipitado e com pouca pausa. Um
jogo descontrolado. Guardiola costuma usar uma frase de Juanma Lillo que
resume essa forma de jogar:
— Quanto mais rápido a bola vai, mais rápido volta.
É um conceito simples que define com precisão um dos riscos do jogo
direto. Guardiola emprega esse conceito com frequência:
— Lillo tem grandes frases, mas essa é uma das melhores. Eu a utilizei
muito em Munique. Demorei um pouco para encontrar a tradução exata. Disse a
eles: “Querem jogar com bola longa? Sem problemas… Mas devem saber de uma
coisa: a bola que viaja rápido, volta rápido também”. E essa é uma grande
verdade do futebol. De cada dez bolas longas, o zagueiro central rival, que
defende de frente, ganha oito. E quando você começa a ir, a bola já está
voltando. Dizem: “Dá no mesmo, vamos sair rápido com um chutão para a
frente!”. Mas então, antes que você perceba, a bola já voltou… Essa é uma ideia
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do cacete, que expliquei muitas vezes aos meus jogadores no Bayern e que
também vou ter de usar muitas vezes na Inglaterra.
Juanma Lillo tem sido um personagem decisivo na carreira de Guardiola. Se
Johan Cruyff lhe deu a oportunidade como jogador e o levou a ser capitão no
Barcelona, Juanma Lillo foi quem dirigiu Pep no trânsito de jogador a treinador.
Se Cruyff implantou o jogo de posição com sua extraordinária intuição, Lillo
realizou outra coisa que supõe dificuldades enormes: construiu o corpus
intelectual que permitiu compreender (e difundir) o jogo de posição. Guardiola,
intuitivamente muito próximo de Cruyff, necessitou do caráter didático de Lillo
para se aprofundar nesse modelo e aprender a ensiná-lo.
Cruyff e Lillo foram os dois grandes mentores de Pep, que menciona um ou
outro todos os dias. “Juanma nos dizia” é uma de suas frases habituais, e isso
confere um sentido taxativo às ideias de Lillo, sobre quem Pep afirma: “Mais do
que falando, Juanma é bom sobretudo treinando”. A descrição outorga a Lillo
uma credibilidade muito superior à que lhe é reconhecida de maneira geral: seu
valor não reside nas palavras, mas em sua capacidade de construir o jogo de
maneira prática, treinando, e de transmiti-lo de maneira didática.
Conversei com Lillo sobre a velocidade da bola que vai e volta: “Isso é
assim porque um desenvolvimento paulatino do jogo significa uma pressão
imediata, enquanto um desenvolvimento rápido significa um retorno súbito da
bola. No jogo, para ir ganhando terreno com os homens de fora, preciso de
interações por dentro. E como só há uma coisa que ordena uma equipe, que é a
bola, isso permite a todos os meus jogadores estar em eixos e alturas distintas.
E se você já estiver movendo os rivais, poderá encontrar os homens livres muito
mais facilmente, porque no deslocamento que os times fazem para compensar
isso, ou os rivais se separam entre eles, ou se separam todos eles”. Lillo
acrescenta: “Se não se usa o tempo para jogar, é difícil que a equipe avance
idoneamente para dominar o adversário. É preciso passar a bola na hora certa,
no lugar certo e no momento certo. Do contrário, quanto antes a bola vai, antes
ela volta, mas com um acréscimo: ao ir, a bola vai sozinha; porém, quando volta,
tem o costume de retornar com eles, os rivais…”.
Permitam-me, neste ponto, retroceder na história do futebol e ler o que, em
1901 — sim, em 1901 —, escrevia no livro Association Football o histórico
capitão do Sheffield United, Ernest Needham, um dos jogadores de maior
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destaque na Inglaterra no início do século passado: “Às vezes, e gostaria de
bater firme nisso, a combinação entre os defensores e os médios é uma boa
decisão. Quando um defensor pode dar a bola a seu médio em uma boa posição
para avançar pelo campo, deve passá-la sem duvidar, em vez de lançar a bola
para longe com um chute. Esse tipo de jogo é muito mais bem-sucedido. Muitos
defensores, quando têm a oportunidade, dão um chute longo, pensando que é
uma façanha e esquecendo que, em nove de cada dez vezes, a bola passará por
cima de seus atacantes e acabará nos pés da equipe adversária, que não terá
dificuldade para devolvê-la”.
Lillo e Guardiola se sentiriam à vontade conversando com Needham. Ou
com Jimmy Hogan, cuja ideologia era coincidente, como explicou Norman Fox
no livro que dedicou ao treinador inglês: “Hogan dizia que a melhor e mais
segura opção de jogo consistia em iniciá-lo cuidadosamente desde a zona
defensiva, com passes curtos, para ir avançando. [Ele] não tinha nada contra os
passes longos, mas eles deveriam ser muito precisos. Enfatizava o conceito de
‘preciso’. Lançar bolas longas sem razão, para acabar dando a bola ao
adversário, nunca se incluiu em suas táticas”. Voltemos ao presente, não sem
antes anotar que o futebol atual ainda segue frequentemente na direção oposta
à que propunham Needham e Hogan.
VIAJAMOS JUNTOS
Munique, 1° de fevereiro de 2016
Noel Sanvicente [ex-jogador e treinador venezuelano] comenta:
— O mais interessante do Barça sempre foi como recuperavam a bola.
Como a recuperavam rápido e bem.
Guardiola responde:
— Isso acontecia porque os jogadores avançavam juntos, estavam
próximos entre si e, quando perdiam a bola, não podiam fazer outra coisa a
não ser recuperá-la: era o mais simples. Se os extremos estão abertos, mas
os atacantes estão próximos da bola, você pode recuperá-la com facilidade.
Esse processo de “passo a bola, passo a bola, passo a bola”, sempre me
aproximando do meu companheiro, é o que culmina em viajar todos juntos
com a bola. E quando a perdemos, é fácil recuperá-la. O Barça era o time
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menos físico do mundo, com Xavi ou Iniesta medindo um metro e setenta,
mas recuperava a bola porque viajava compacto.
Contudo, é preciso ter atenção: quando você ataca e tem muita gente à
frente da bola, está liquidado se a perder… liquidado. Se você tem dois
atacantes muito adiantados e dois extremos muito abertos, aí perde a bola,
nenhum dos quatro poderá ajudá-lo na recuperação. Se sempre manda a
bola longa, tchau mesmo, está liquidado. Nem o time mais físico do mundo
consegue recuperar essas bolas. Nem os alemães, que são umas feras
fisicamente falando. Não é uma questão de força, mas de espaços. O campo
é muito grande, o futebol é muito grande. É enorme. Se você não fizer como
estou dizendo, tchau mesmo.
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4.1. ADEUS AO DOGMA
Nunca faça o que você já sabe fazer.
EDUARDO CHILLIDA
Durante sua experiência na Alemanha, Pep se protege, busca fórmulas para se
integrar ao ritmo veloz do jogo e, ao mesmo tempo, evitar os contragolpes dos
rivais. Encontra essas fórmulas e as aplica. Adapta-se ao entorno da Bundesliga
e, com o transcorrer do triênio, consegue domesticar a fera, acalma o jogo e lhe
dá pausa. Consegue reduzir a velocidade do rival sem comprometer a de seus
jogadores. Surgem algumas realidades paradoxais. Seu Bayern é
defensivamente o melhor time do continente, ainda que se defenda a cinquenta
metros de seu gol e com dois jovens (Kimmich e Alaba) jogando como
defensores centrais sem sê-los. Seus jogadores aparentam jogar com
parcimônia, mas fazem entre 170 e 240 sprints por jogo, quase sempre mais do
que o rival. E em 53 jogos da terceira e última temporadas, o Bayern concede
apenas 161 finalizações aos rivais, uma média de só três por partida. Pep nos
define seu jogo:
— Se alguém quer compreender realmente o que fizemos nesses três anos,
o resumo é que jogamos com Kimmich e Alaba (um meio-campista central e um
lateral) como defensores centrais, e os colocamos a cinquenta metros de Neuer;
isso permitiu que nos impuséssemos no campo do adversário, jogando de tal
maneira que só sofremos dezessete gols em 34 jogos de liga. Esse é o nosso
jogo.
Nem o próprio Guardiola imaginava que teria de se adaptar tanto à
Alemanha. Logo compreendeu que seu Bayern não podia jogar como seu
Barcelona: bastou comprovar as qualidades intrínsecas dos jogadores de que
dispunha. Salvo Thiago, formado em La Masia, barcelonista, nenhum deles
acumulava milhares de horas de formação específica no modelo de jogo de
posição. Em Munique, Pep podia ensinar os fundamentos a eles e aproximá-los
desse modelo, mas não os converter nos praticantes mais ortodoxos desse tipo
de jogo. O Barça era uma orquestra quase inteiramente composta de violinistas,
enquanto, no Bayern, os intérpretes tinham menor profundidade específica,
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mas maior diversidade. Pela própria essência dos instrumentos que a
compunham, a “Filarmônica de Munique” não podia soar igual à “Sinfônica de
Barcelona”, embora interpretasse a mesma partitura, pois, por definição, era
mais heterogênea em suas qualidades. Ademais, o clube seguiu priorizando esse
traço, por exemplo, quando negociou Toni Kroos contra a opinião de Guardiola.
Em pouco tempo, Pep compreende essa nova realidade, recua em sua ideia
de reproduzir o modelo do Barça e empreende um caminho mais longo e
distinto. Não renuncia a seu conceito de futebol: quer a bola, quer dominar os
jogos, pausá-los, frear a velocidade dos rivais, abortar seus contragolpes, impor
a presença de seu time no gramado por intermédio do passe e do movimento
constante sem abandonar as posições, atacando sempre, em qualquer cenário.
Mas renuncia ao dogma canônico e consegue que o Bayern interprete o jogo de
posição no sentido vertical e em alta velocidade.
OS 23 MÓDULOS UTILIZADOS
Nada reflete melhor a mudança de Pep na Alemanha do que o número de
módulos de jogo que utilizou. Em Munique, ele empregou 23 módulos
diferentes, número muito próximo dos 29 que Marcelo Bielsa catalogou
como cifra total que um time de futebol pode praticar.
Podemos agrupar esses 23 módulos em três grandes blocos, de acordo com
a frequência e a maneira com que Pep os utilizou no Bayern: *
• os troncais;
• os alternativos;
• os esporádicos.
Troncais
4-3-3
4-2-3-1
4-2-4
3-4-3
2-3-5
2-3-2-3
Alternativos
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4-4-2 (com e sem losango)
4-1-4-1
4-2-2-2
4-2-1-3
4-1-1-4
3-5-2 (e sua variante defensiva 5-3-2)
3-3-1-3
3-2-3-2
2-3-3-2
2-4-4
Esporádicos
3-6-1
3-2-5
3-1-4-2
3-1-2-1-3
3-3-4
5-4-1
2-3-1-4
* Para reduzir a quantidade de cifras empregadas, nos módulos não consta a figura do goleiro.
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4.2. UM CANIVETE SUÍÇO
Contra grandes problemas, soluções simples.
LEONTXO GARCÍA
Na primeira temporada em Munique, Guardiola vence de forma retumbante na
liga, mas cai da mesma maneira na Champions League. Não conseguiu seu
propósito, como reconhece em maio de 2014:
— Preciso de mais tempo para me assegurar de que a equipe é minha.
Preciso de mais tempo. Ganhamos e ganhamos muito; e, por essa razão, estamos
todos contentes, porque a vitória sempre lhe dá tempo para fazer mais coisas.
Ganhar títulos lhe dá tempo para construir o futuro. Mas o que traz a satisfação
verdadeira é sentir que o time é seu e joga como você quer. E nisso ainda
preciso de tempo. A equipe ainda não é minha por completo. […] Por quê? É que
é algo contracultural. Preciso convencer os jogadores. E no processo de “você se
adapta e eu me adapto”, tem de haver um mix. Portanto, é necessário alcançar
um ponto de encontro nesta matéria. Mas eu vou convencer esses jogadores. E é
contracultural por acontecer depois de eles terem ganhado um triplete e com a
mesma base de jogadores que o conseguiu.
Na segunda temporada, um grande avanço se produz, embora os
resultados não reflitam esse progresso no jogo em sua verdadeira medida. Com
Xabi Alonso no leme, Pep consegue que o time adote definitivamente o eixo
vertical como orientação básica, sem perder nenhum de seus atributos de passe,
a pausa e as linhas compactas. Se Lahm é a peça-chave da primeira temporada,
Alonso é a da segunda. Uma praga de lesões impedirá que se conheça o
autêntico rendimento do Bayern no momento culminante do ano, quando
voltará a cair nas semifinais europeias.
A harmonia no jogo se alcançará na terceira temporada, na qual nenhum
jogador se destacou demais, mas sim todo o coletivo. É um time maduro em sua
nova forma de jogar, capaz de interpretar partituras distintas de acordo com as
necessidades da partida e do rival. Guardiola se mimetizou em um camaleão, e o
Bayern também. É uma equipe eclética. Joga com dois, três e até quatro planos
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de atuação diferentes em um mesmo confronto, e passa de um a outro
praticamente sem necessidade de receber instruções. Os jogadores podem
ocupar distintas posições sem dificuldade: Javi Martínez é defensor central ou o
interior esquerdo; Xabi Alonso é meio-campista central ou defensor central;
Douglas Costa é extremo esquerdo ou interior direito; Kimmich é lateral
esquerdo, defensor central ou extremo direito… Se, no Barcelona, o treinador
pretendia que cada futebolista pudesse jogar em três posições no campo, em
Munique subiu a aposta, visto que Rafinha jogou em cinco posições distintas;
David Alaba, em seis; e Joshua Kimmich e Philipp Lahm rasgaram todos os
esquemas, jogando em até oito posições diferentes…
Todos aprenderam a tocar todos os instrumentos e se produziu um efeito
que nem o próprio Guardiola tinha imaginado: sempre acreditamos que sua
maneira de jogar exigia atletas especialistas, mas ocorre que, no Bayern, os
jogadores alcançaram a categoria de multifuncionais. Cada jogador é como um
canivete suíço, sem deixar de ser um especialista; nesta transformação, o
treinador teve paciência, mas, sobretudo, foram os jogadores que
demonstraram inteligência e vontade. Não é por acaso que, a poucas semanas
de começar a dirigir o Manchester City, Pep já tenha se referido a esse conceito
de jogador multifuncional: “Fernandinho tem tanta qualidade que pode jogar
em dez posições”.
No Bayern, Pep Guardiola apostou na queda das fronteiras interiores do
time e no desaparecimento das posições. Se antes seu jogo era para jogadores
guardiolistas, o Bayern não só será lembrado por homens com esses traços
evidentes, como Lahm e Kimmich, mas também por outros como Vidal e
Robben, perfis que a princípio pareciam incompatíveis com o treinador. Ainda
que o jogo de seu Bayern tenha se distinguido pelos princípios mais
estreitamente ligados a Pep — a propriedade da bola, o ataque posicional, a
organização esmerada, a defesa adiantada (sempre foi o time mais ofensivo e
menos goleado), a pressão por proximidade, as trocas permanentes… —, ao
mesmo tempo, também se caracterizou por fundamentos que não pareciam
próprios de Guardiola: a verticalidade, a velocidade (não só do passe, mas
também do jogador), o passe longo e no espaço vazio, a priorização dos
extremos, carregar a área com atacantes numerosos ou o chute de longa
distância… “Eu me adaptei e aprendi muito mais do que o contrário. Foi uma
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experiência de vida do cacete, aprendi muito”, ele repete sem parar quando faz
seu balanço final.
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4.3. O PROCESSO DE ADAPTAÇÃO E APRENDIZAGEM
Aprender é o único antídoto contra a velhice.
HOWARD GARDNER
Pep imaginava que viveria um processo de mútua adaptação entre ele e os
jogadores, mas, na verdade, não foi exatamente assim. Porque na prática não
existe esse processo mútuo e simétrico de adaptação das duas partes, mas dois
processos distintos: um é o de adaptação; o outro, de aprendizagem. O
treinador se adapta aos jogadores e eles aprendem uma organização distinta de
jogo. O diretor da orquestra se adapta aos instrumentos que a compõem; os
intérpretes aprendem a tocar uma partitura diferente.
É um processo que fala bem do treinador e ainda melhor dos jogadores,
como enfatiza o escritor alemão Ronald Reng: “Os jogadores do Bayern me
surpreenderam mais do que o próprio Pep. Sua atitude humilde, sempre
dispostos a aprender, me surpreendeu”.
O psiquiatra húngaro Thomas Szasz explicava que “cada ato de
aprendizagem consciente requer a vontade de sofrer uma lesão na própria
autoestima”, e essa vontade expressada pelos jogadores do Bayern — com
Lahm, Neuer, Alaba e Boateng puxando a fila — é um dos maiores traços de
generosidade que já houve no futebol. Campeões consagrados, ganhadores de
tudo, aceitaram com humildade aprender outra maneira de praticar seu
esporte. Aceitaram de bom grado, inclusive assumindo as dificuldades que
sentiram no processo, essa lesão na autoestima que Szasz menciona. Por sua
vez, o treinador aprendeu muitíssimo. Não por acaso, para qualquer professor, a
melhor forma de aprender é ensinando.
Domènec Torrent explica como foi esse processo:
— Os jogadores entendiam os rondos como algo lúdico, mas para Pep eles
têm uma importância básica e ele os fez compreender de imediato. A essência
da mudança no Bayern com Guardiola se resume nos rondos, em como os
jogadores acabaram entendendo essa atividade. Para eles, era só um exercício
para começar ou terminar o aquecimento, só um divertimento em que a bola
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podia ir dez metros para fora do perímetro enquanto não tocasse no chão. Era
então outra forma de compreendê-lo. Mas desde o primeiro dia, Pep explicou
que seria muito importante a forma como se postavam, como recebiam a bola,
se o controle era com a perna direita ou esquerda. Pep tem claro que o rondo
permite melhorar o jogador, permite que ele se prepare corretamente para
receber a bola, é a essência para não perder a bola e jogar com mais velocidade.
Os jogadores entenderam muito rápido que aquilo tinha um sentido e uma
lógica, logo progredindo. Um dia estávamos comparando os rondos dos
primeiros treinamentos com os do final, e foi um espetáculo. Não tinha nada a
ver um com o outro. No final, a bola voava.
— Depois dos rondos, foi preciso ensinar os jogos de posição…
— Sim, eles nunca tinham praticado. Desconheciam o sentido dos jogos de
posição. Para Pep e para a escola do Barcelona, é um costume, mas em Munique
se acreditava, a princípio, que era um jogo para manter a posse da bola. Não! É
um jogo de posição, não de posse. Um jogo para saber como você deve se
colocar e se perfilar quando tem a bola e onde deve pressionar quando não tem.
É um exercício eminentemente tático, mas com um componente físico. Lorenzo
Buenaventura media as pulsações e sempre eram muito altas. É um exercício
muito completo, que é essencial para Pep, porque dá velocidade e sentido ao
jogo. Os atletas logo compreenderam que não se tratava de conservar a bola,
mas de como deveriam jogar e como cada um deveria se perfilar.
— Foi um processo lento e difícil?
— Não, eles pegaram rapidamente. Lahm ficava encantado e, se algum dia
não praticávamos, ele reclamava. E Manu Neuer sempre queria participar dos
jogos de posição porque melhorava muito seu jogo com o pé. Até nos dias em
que ele deveria fazer recuperação [física], nos pedia para participar. Todos
comprovaram que o jogo de posição lhes beneficiava, que jogavam mais fácil e
que tudo o que fazíamos tinha um sentido.
— Os jogos de posição podem ser considerados um símbolo do processo
que Guardiola levou a cabo no Bayern?
— Sim, sem dúvida. Os jogadores se convenceram de imediato. Os meios de
comunicação locais divulgaram outra coisa. Mas os jogadores sempre tiveram a
mente aberta para as ideias de Pep, absorvendo-as imediatamente. Muita gente
entende que, com um futebol direto, você consegue mais; mas, no Barcelona e
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no Bayern, ficou demonstrado que o jogo de posição dá bons frutos. Os
jogadores alemães se surpreendiam com a intensidade que esse tipo de
trabalho gerava, porque, mesmo com um esforço físico brutal, o que eles
estavam praticando era a essência do futebol: perda de bola, pressão,
recuperação, voltar a se abrir e ter a bola novamente em seu poder…
O assistente de Pep reflete sobre o choque cultural vivido entre as ideias de
Guardiola e a tradição do jogo alemão:
— O choque cultural aconteceu mais na imprensa e em parte da torcida,
mas não com os jogadores, que logo seguiram a rota demarcada por Pep. No
terceiro mês já nos diziam que nunca tiveram a sensação de ser tão dominantes
na Bundesliga. Eles disseram que, mesmo no ano do triplete, que foi um êxito
enorme, frequentemente chegavam igualados aos últimos minutos dos jogos e
que só os resolviam no final, na base da coragem e do talento.
Em Manchester, Pep deu início a um processo similar, também com os
rondos como o primeiro passo e os jogos de posição como segundo degrau
desse processo de adaptação, ensinamento e aprendizagem. Devemos enfatizar
que é um processo que não tem fim e cujo objetivo é que o aluno (o jogador) se
torne “independente” do treinador graças a seu domínio dos conceitos
aprendidos — do mesmo modo que o objetivo do mestre artesão consistia em
ensinar o aprendiz a não depender mais dele, uma vez transcorrido o longo
período de aprendizado. No futebol, o ideal é que a equipe consiga “pensar” por
sua conta, sem necessidade de receber instruções constantes do treinador,
embora para isso seja preciso que o processo de que falamos torne-se exaustivo
e profundo. Isso exige tempo. O ideal é que o jogador consiga expressar sua
máxima potencialidade de jogo sem necessidade de pensar cada ação. Ao
terminar a interpretação da obra, o violinista se aproxima respeitosamente do
diretor da orquestra e, estendendo sua mão, lhe diz: “Obrigado, maestro!”.
Vejamos agora um detalhe concreto desse processo no Bayern: como o
jovem meio-campista central Joshua Kimmich se converteu em defensor
central?
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4.3.1. KIMMICH DE CENTRAL: ACASO, INTUIÇÃO E ATREVIMENTO
Ao final, a cada gesto você está jogando; e, a
cada gesto, demonstra uns ou outros valores.
HOWARD ZINN
Primeiro caiu Benatia, depois Boateng; cinco dias mais tarde, Javi Martínez; ao
fim de duas semanas, Holger Badstuber. No início de 2016, Guardiola ficou sem
os quatro defensores centrais do Bayern e, mais uma vez, teve de improvisar:
— Usemos Kimmich como zagueiro.
Pep dá a instrução a Domènec Torrent, que entrega um colete laranja ao
jovem Joshua Kimmich, obrigando-o a mudar de lado. Ele iria jogar como meiocampista
central no time vermelho, mas foi escolhido como defensor central do
time laranja, e deve ensaiar uma saída de bola especial com Lahm. A escolha de
Kimmich não foi premeditada, mas quase um fruto do acaso, imposta pela baixa
de Javi Martínez e pela necessidade de trabalhar essa nova saída de bola. É,
contudo, uma escolha baseada nos fundamentos do jogo do treinador: com
Cruyff, Pep aprendeu que um bom meio-campista central tem possibilidades de
jogar no centro da defesa. O próprio Pep teve de jogar como defensor central de
emergência no Barcelona, precisamente em Munique, contra o Bayern, em
1996. E como treinador não foram poucas as vezes em que precisou utilizar seu
meio-campista central na defesa: usou Yaya Touré na final da Champions de
2009, e Javier Mascherano na decisão de 2011. Hoje, sem pensar, movido
apenas pela intuição, ele faz de Kimmich o eleito.
Estamos em 28 de janeiro de 2016 e Javi Martínez acaba de anunciar ao
treinador que não pode mais suportar as dores no joelho: ele vai a Barcelona
para operar o menisco. Não é grave, e em apenas dois meses ele pode voltar
para o time, mas sua ausência abre uma cratera na defesa. Para substituí-lo, o
jovem meio-campista central Kimmich se coloca em uma linha defensiva com
Lahm, Badstuber e Bernat, que repete sem cessar a mencionada abertura de
jogo: o capitão se adianta até o círculo central, se aproxima de Xabi Alonso, e os
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três defensores combinam toques curtos até encontrar o passe adequado que
permita cruzar a linha média e assentar o time no campo do adversário.
O treinador elegeu a saída com três defensores como elemento prioritário
para a parte final da temporada. A razão fundamental é que, assim, garante a
segurança nos passes entre os zagueiros: “Com dois centrais na saída, às vezes
os passes são muito longos, porque eles estão bastante distantes entre si. Por
outro lado, com a saída de três (dois centrais e um lateral esquerdo), os passes
são mais curtos e, portanto, mais rápidos e mais precisos. A saída é mais segura.
Mas essa saída só me interessa havendo a progressão de Lahm. Quero fazer uma
mudança importante em relação aos dois anos anteriores. Quero sair sempre
com três atrás, e Lahm como segundo meio-campista central acompanhando
Xabi”.
Pep tem dez tipos diferentes de saídas de bola codificadas e ensaiadas. É
um assunto-chave para ele, porque entende que a construção do jogo só pode
ser verdadeiramente eficaz se começar da maneira correta desde trás. É algo
bem semelhante à importância das aberturas no xadrez (ainda que no futebol
não tenhamos “batizado” essas modalidades de saída de bola, exceto a
lavolpiana). Para o jogo de posição, uma saída limpa, coordenada e harmônica é
um passo imprescindível. Juanma Lillo nos explica a razão: “Se a intenção é
viver instalado no campo do adversário, é preciso uma saída vantajosa e
adequada à conjuntura particular e cultural da equipe. Só se você sair bem e de
forma limpa, poderá se instalar no campo do adversário. Sem essa boa saída,
não é possível”.
Durante os dois períodos de doze minutos que dura a partida de
treinamento, Pep não se separa de Kimmich, que, acossado por Müller e Coman,
sofre com alguns desajustes. A cena lembra inevitavelmente a que Javi Martínez
protagonizou em 2013, quando começava sua etapa no Bayern. Pep emprega as
mesmas instruções:
— Linha, Josh, linha! Mantenha a linha, Joshua, sem recuar, adiante,
adiante! Vai, vai! Linha, Josh, linha!
Enquanto os dois times se enfrentam com a faca nos dentes durante a
partida (que será vencida pelo time laranja, com um gol de Robben), Pep só tem
olhos para Kimmich:
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— Para cima do centroavante, Josh! Agora não, Josh, agora não! Olhe para
Badstu, olhe para Badstu!
Badstuber determina a linha e Kimmich perde a orientação
frequentemente, porque não é fácil respeitá-la nessas condições, contra duas
enguias que serpenteiam como Müller e Coman, e desprovido do apoio de
Lahm, que abandona a lateral para acompanhar Xabi. A comissão técnica está
satisfeita com o experimento.
— Ele aprenderá em quatro dias — diz Domènec Torrent, após marcar um
impedimento polêmico, do qual Müller reclama.
— Como sai bem com a bola! — aponta Carles Planchart.
— Ele tem talento, aprenderá — observa Lorenzo Buenaventura.
— E é um garoto valente — conclui Manel Estiarte.
Os quatro estão sobre a linha lateral, enquanto Pep continua correndo com
Kimmich, como se fosse sua sombra, marcando seus movimentos, corrigindo-o,
polindo as incorreções, dando-lhe conselhos sobre o papel de defensor central
que o jovem terá de aprender depressa.
Quando o jogo-treino termina, todo a equipe técnica se vira para Pep para
compartilhar seu veredicto:
— Ele vai conseguir — diz Guardiola, coçando a cabeça. — Não será fácil,
precisa aprender a manter a linha, mas vai conseguir. É muito cedo para decidir.
Uma coisa é jogar bem uma partida dessas, outra é competir. A liga é muito dura
e podemos queimar o menino se o colocarmos ali…
Mas a maneira como Pep fala sugere o contrário. Sugere que “se ele se
atreve a conseguir, eu vou me atrever a colocá-lo”.
Kimmich lembra inevitavelmente o caso de Javier Mascherano, o meiocampista
central argentino que Guardiola transformou em zagueiro central no
Barcelona. Kimmich tem a mesma altura (1,76 m), é rápido, gira com facilidade
e vai bem de cabeça. Ele é um “miniMascherano”. E Pep percebe isso de
imediato. E ainda vê uma vantagem:
— Ele é jovem, aprende rápido, tem uma visão panorâmica e um jogo de
pés excelentes. Pode nos dar uma saída de bola magnífica, mas é preciso
trabalhar muito. Faremos sessões específicas só para ele: linha, linha, linha,
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para que aprenda os truques do central. Ele é rápido, muito rápido, vai bem por
cima, é disciplinado e tem qualidade com a bola, por ser meio-campista. Mas
precisa aprender o conceito de ir para trás. Estamos sendo obrigados a
experimentar.
Domènec Torrent acrescenta um detalhe importante:
— No jogo que Pep propõe, um bom meio-campista jogando como defensor
pode dar uma saída de bola que impulsione o time como se fosse uma catapulta.
Claro que ainda tem que aprender a defender…
Nos dias seguintes, o jovem alemão receberá um mestrado defensivo da
comissão técnica: no campo e também por intermédio de vídeos. Uma semana
exaustiva de ensinamentos e aprendizagem, durante a qual ele absorve uma
dose extraordinária de ações e conceitos (tenhamos em conta que, para sua
reconversão como defensor central, Javi Martínez revisou mais de duzentos
vídeos diferentes com Pep). A cabeça de Kimmich ferve, porque o treinador
decidiu ir a fundo com a proposta. Cinco dias mais tarde, ele será escalado como
defensor central no jogo da liga contra o Hoffenheim, sua oitava posição
diferente no time em apenas meio ano.
O jovem rende em bom nível e Pep começa a avaliar seriamente utilizá-lo
durante as próximas semanas, e não só como medida de emergência.
— Temos de experimentá-lo em condições mais duras que as de hoje.
Temos de experimentá-lo em Leverkusen contra o Kießling, mas gostei do que
vi hoje. Ele sabe segurar a bola se for necessário ou atravessar linhas sem medo;
com ele, a saída de três é muito confiável. Tenho a impressão de que pode ser
um central ideal para o Bayern. Esse menino não tem medo de ir adiante.
Kimmich jogou sete partidas seguidas inteiras, de modo admirável.
Descansou uma rodada e voltou para emendar a maioria dos jogos importantes
do final da temporada, fosse contra a Juventus, o Borussia Dortmund, o Benfica
ou na final da Copa. Seu rendimento foi inesperado e soberbo (o que acabou lhe
valendo também a titularidade como lateral na Eurocopa de seleções), e ainda
que a chave do sucesso esteja nas muitas horas de trabalho que o rapaz e o
treinador dedicaram a corrigir os detalhes de sua nova posição, não menos
importante foi o atrevimento que ambos mostraram: Guardiola por jogar com o
jovem em uma situação tão delicada, e Kimmich pela valentia que demonstrou
tanto nos dias em que acertou quanto nos poucos momentos em que errou.
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Nesse caso, o atrevimento foi um fator tão importante quanto a aprendizagem e
o próprio acaso que interveio, inesperadamente, para que se produzisse esse
tipo de experimento.
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4.4. OS TRAÇOS TÁTICOS
O que você vê é a consequência do que você não vê.
No livro Guardiola Confidencial, publicado no Brasil em 2015, são descritas as
principais novidades que Guardiola introduziu no jogo do Bayern em seu
primeiro ano, assim como a metodologia empregada. Como fundamentos de
jogo, recordemos os seguintes: a posição alta da linha defensiva; o avançar
juntos; a bola que ordena a equipe; a busca de superioridade no centro do
campo; os laterais como falsos interiores; o desaparecimento do falso 9. Como
ferramentas metodológicas, apontemos: o rondo para melhorar o gesto técnico;
os jogos de posição para o passe, a colocação, a pressão, a intencionalidade e a
troca de posicionamento de acordo com a perda ou a recuperação da bola; o
ensaio de distintas saídas de bola de forma analítica e sem oposição; e a prática
de diferentes tipos de pressão sobre o adversário.
Dois anos mais tarde, é interessante detalhar algumas das principais
características do jogo do Bayern em 2016, porque isso nos permite ver os
traços da partitura final:
• Ter a bola em seu poder. Nos 161 jogos dirigidos por Guardiola, o Bayern
tem a posse de bola em média por 70,47% do tempo, a maior porcentagem do
futebol europeu. Esse dado é significativo da mudança que se produziu no modo
de jogar do Bayern com relação ao time dirigido por Jupp Heynckes, que teve
média de 61,35%.
• Avançar de forma compacta por intermédio do passe. O time de Pep tem
uma média de 726 passes por jogo, 159 a mais do que com Heynckes (567).
Esse é provavelmente outro dos elementos
que melhor refletem a mudança de paradigma no jogo do Bayern, junto
com a posição média da defesa.
• Precisão no passe. O Bayern de Guardiola alcança a segunda melhor média
europeia no acerto dos passes (87,9%, contra 88,7% do Paris Saint-Germain),
embora seja quem tenha dado o maior número de passes entre todos os times
das grandes ligas (726, contra 686 do psg). Os jogadores titulares com maior
acerto foram (média das três temporadas): Alaba (91,31%), Lahm (91,04%) e
Alonso (90,59%). O caso de Alaba é muito significativo, pois ele melhorou
substancialmente seu registro em cada uma das três temporadas: 89,35%;
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91,65% e 92,48%. Os dois jogadores com menor acerto no passe foram
Lewandowski (77,97%) e Müller (70,1%).
• Posição alta dos jogadores no campo. Oito dos jogadores tiveram sua
posição média sempre no campo do adversário; os outros dois (exceto o
goleiro) se situaram no círculo central como posição média. O centro de
gravidade da equipe se fixou a 58,3 metros de Neuer. A distância média entre as
linhas foi de 29,3 metros, o que dá a ideia de um time contraído.
• Defesa muito alta. Para alcançar a mencionada posição alta de todo o
time, foi necessário adiantar muito a linha defensiva. Se com Heynckes ela se
situava a 36,1 metros do goleiro, e, no primeiro ano de Guardiola, subiu para
43,5 metros, na terceira temporada terminou colocando-se a 48,5 metros.
Apesar disso, o time sofreu menos finalizações contra seu gol (apenas três por
jogo) que nos cinco anos anteriores, e melhorou seu recorde histórico da
Bundesliga, com apenas dezessete gols sofridos em 34 jogos. O número de gols
recebidos por temporada em todas as competições diminuiu a cada ano: 44, 36
e 31.
• Impossibilidade de contragolpear por falta de espaço. A posição média tão
alta da equipe provocou como consequência negativa a impossibilidade de
efetuar contra-ataques. A própria posição dominante negava o espaço
necessário, e o Bayern dispôs de apenas trinta ações de contragolpe em cada
temporada, com média de três gols por curso (contra 7,5 do Bayern de
Heynckes).
• Finalizações. O modelo de jogo aplicado com Guardiola incrementou o
número de chutes a gol com relação ao Bayern de Heynckes: 986 contra 908. O
aumento foi mais significativo nos chutes dentro da área (631 contra 571), mas
também ocorreu com os chutes de fora
da área (355 a 337). O número total de finalizações, somando as certas e as
que foram desviadas, subiu para 2914.
• Defesa por zona. A implantação da defesa por zona, tanto em escanteios
quanto em faltas, teve um balanço de apenas catorze gols sofridos em lances de
bola parada, em 161 jogos. Nesses três cursos, o Bayern sofreu só sete gols em
470 escanteios (um gol a cada 67 tiros de canto cobrados pelo adversário). A
defesa zonal nos escanteios sofreu leves mudanças com o passar dos anos,
alterando a posição das duas linhas de acordo com o tipo de rival e
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acrescentando bloqueios específicos. O trabalho de Domènec Torrent nessa
melhora foi eficaz, porque o número de gols sofridos em escanteios diminuiu a
cada ano: cinco no primeiro, dois no segundo e nenhum no terceiro ano.
• Variabilidade de recursos táticos. Nas três temporadas, Guardiola
empregou até dez saídas de bola diferentes, organizadas e ensaiadas, e usou 23
módulos de jogo distintos.
[Fonte dos dados: opta.]
TRIÂNGULOS E TROCAS
Wolfsburgo, 27 de outubro de 2015
As mudanças e movimentos dentro de uma equipe são frutos de sua vida
interna, de sua evolução diária. A suplência de Robben hoje em uma
partida de Copa evidencia que nada é permanente. Mas, além disso, o
processo de construção de um time fica marcado pelas interações dos
jogadores, pelas influências que vão estabelecendo entre si. Alguns atletas
influem e são influenciados por outros quando são escalados juntos,
gerando inesperadas multiplicações de rendimento. E esse é um fator
essencial na hora de escolher a escalação. Em Wolfsburgo, além de um
grande resultado (3 × 1), o Bayern começou a construir interações que
renderão muito no futuro: quando Alaba se adianta como extremo
esquerdo, Thiago se transforma em lateral esquerdo. É um lateral postiço,
simplesmente uma plataforma da qual ele contempla todo o campo de
operações e pode tomar as melhores decisões. Como surgiu essa sequência
de movimentos? Domènec Torrent explica:
— Pep está insistindo muito nos triângulos pela esquerda. No outro
lado não fazemos isso porque saímos fácil com Jérôme, Philipp e Xabi. Mas
pela esquerda não buscamos apenas sair com a bola, mas ser agressivos. As
combinações entre Coman e Alaba nos permitem essa agressividade, e com
isso, de maneira natural, Thiago retrocede um pouco, como se fosse um
falso lateral esquerdo. Ele não só é o vértice básico desses triângulos, mas
obtém uma vantagem primordial: vê todo o campo rival de frente e pode
facilmente tomar a melhor decisão.
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A dinâmica real é que Coman e Alaba atacam e atacam sem parar, e
compartilham as posições de exterior e interior de maneira constante.
Thiago tem que se ocupar de guardar a plataforma de iniciação do jogo
como se fosse o lateral esquerdo. Ele se sente à vontade e seus
companheiros também. E os três começam a formar um triângulo feliz que
ataca de modo inigualável. Torrent acrescenta alguns detalhes:
— O treinador marca as posições que devem ser ocupadas e são os
jogadores que decidem, em cada momento, quem ocupa cada uma delas.
Fazemos triângulos de formas diferentes, que permitem a expressão do
jogador e estimulam sua capacidade de decisão. É uma fórmula flexível.
O processo de adaptação-aprendizagem entre técnico e jogadores levou a
orquestra a alcançar sua harmonia durante o terceiro ano, quando o jogo
chegou a seu melhor nível e a temporada foi esplêndida, ainda que a eliminação
nas semifinais da Champions League tenha impedido que culminasse em um
sucesso absoluto. Na Alemanha foi cunhado o conceito de “inacabada” para
definir a obra de Guardiola: uma sinfonia inacabada. Como dirá o jornalista
alemão Uli Köhler, o Bayern de Pep seria uma obra de arte à qual faltou o toque
final da culminação europeia: “[Guardiola] disse que mudaria pequenos
detalhes, mas depois mudou tudo. Revolucionou o Bayern e o colocou para
jogar futebol. Pôs a equipe em outro nível de jogo, o mais alto, porque jogar
assim, com a defesa quase no campo oposto, é muito perigoso. Nunca
voltaremos a ver um futebol como o de Guardiola no Bayern. Foi um sucesso.
Ele melhorou o time, os jogadores e toda a Bundesliga teve de melhorar porque
ele trouxe ideias novas. Ganhou muitas coisas e deixa algo especial, deixa um
futebol para a lembrança. Deixa um estilo de jogo que o Bayern nunca voltará a
praticar e que os torcedores não verão nunca mais. Mas faltou a cereja no bolo:
a Champions League”.
Em Munique, Guardiola realizou, acima de tudo, um exercício de
ensinamentos, flexibilidade e multifuncionalidade. Ele se mimetizou com seus
jogadores e extraiu características que muitos deles não conheciam. Essa é uma
obrigação de todo treinador: facilitar a expansão do talento de seus jogadores.
Tirar deles as melhores qualidades que possuem, inclusive as desconhecidas. O
talento de Lahm como meio-campista, a capacidade de Kimmich como defensor
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central, a excelência dos passes de Boateng ou a eletricidade de Douglas Costa
são alguns desses “descobrimentos” de Guardiola, embora ele tenha, na
realidade, apenas criado as condições para que esses futebolistas expressassem
tais qualidades com liberdade. Em um jogo como o futebol, não linear, complexo
e variado, essa é uma das maiores virtudes que um líder técnico pode possuir:
facilitar e promover a expansão do talento armazenado por seus homens, que
frequentemente permanece em compartimentos escondidos.
OS DADOS DE PEP GUARDIOLA NO FC BAYERN (2013-16)
161 jogos
121 vitórias (75,16%)
21 empates
19 derrotas
396 gols marcados (2,46 gols/jogo)
111 gols sofridos (0,69 gol/jogo)
7 títulos (3 Bundesligas, 2 Copas da Alemanha, 1 Mundial de Clubes, 1
Supercopa da Europa)
Média de passes por jogo: 726
Passes curtos por jogo: 644 (88,7%)
Passes longos por jogo: 63 (8,6%)
Cruzamentos por jogo: 17,3
Média de passes certos: 87,9%
Média de finalizações por jogo: 18,1
Média de dribles por jogo: 16,6
Média de posse de bola: 70,47%
Bundesliga
102 jogos
82 vitórias (80,39%)
11 empates
9 derrotas
254 gols marcados (2,49 gols/jogo)
58 gols sofridos (0,57 gol/jogo)
Copa da Alemanha
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17 jogos
14 vitórias (82,35%)
3 empates
0 derrota
45 gols marcados (2,65 gols/jogo)
7 gols sofridos (0,41 gol/jogo)
Champions League
36 jogos
23 vitórias (63,89%)
5 empates
8 derrotas
87 gols marcados (2,42 gols/jogo)
37 gols sofridos (1,03 gol/jogo)
Outras competições
6 jogos
2 vitórias (33,33%)
2 empates
2 derrotas
10 gols marcados (1,66 gol/jogo)
9 gols sofridos (1,5 gol/jogo)
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4.5. AS REGRAS DE PEP
Joga-se como vive-se.
XABIER AZKARGORTA
Que jogo o torcedor do Manchester City imagina que Guardiola vai propor? Um
jogo reconhecível e coerente com a personalidade do treinador. Seu jogo com o
Bayern foi diferente de seu jogo com o Barcelona, mas em ambos os casos foi
um futebol “de Guardiola”, do mesmo modo que o estilo de um músico se
reconhece ainda que mude com os anos e percorra diferentes etapas. Pep, como
veremos mais adiante, possui alma de pintor e também percorrerá etapas
distintas, mas todas as rotas passam por um mesmo caminho, o que faz seu jogo
ser identificável e reconhecível.
Se em Munique usou os laterais como falsos interiores e os extremos como
meios-campistas, Pep também variou sistemas de jogo como quem vira as
páginas de um livro, recuperou a pirâmide (o módulo 2-3-5) e, em função das
circunstâncias, se permitiu jogar com cinco atacantes ou cinco defensores, com
cinco meias ou só um, e ainda que tudo isso tenha significado uma melhora em
seu arcabouço de conhecimentos, não quer dizer que fará o mesmo no
Manchester City. Ou seja, não podemos confundir a ideologia com os detalhes
conjunturais.
Os fundamentos de seu repertório de ideias, de sua ideologia futebolística,
permanecem inalterados. Foram os mesmos em Barcelona e em Munique, e
serão os mesmos em Manchester e em seu destino seguinte, seja qual for: tomar
a iniciativa, ser dominante e atacar, ter a bola como ferramenta, construir o jogo
desde trás… O que muda, então? Os detalhes. Na Alemanha, ele incorporou
novos elementos, tendeu à iconoclastia e renovou movimentos e posições. Sua
essência se manteve idêntica, mas os detalhes mudaram substancialmente até o
ponto em que seu modelo de jogo se alterou. Quando você olha o quadro,
continua vendo uma pintura de Guardiola, mas é uma pintura diferente das que
estávamos acostumados a ver.
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Aqui reside a parte mais importante da transformação vivida por Pep na
Alemanha. Ele mudou, mas conserva a substância. Mudou em mil coisas, mas
mantém toda a sua essência ideológica. Se olharmos apenas para algumas
modificações ou adições concretas (o doble pivote ou o emprego de dois
centroavantes), podemos nos confundir. Perderemos a perspectiva global, pois
mesmo tendo mudado muito, Guardiola segue sendo Guardiola. Seu jogo
continua tendo traços inequívocos: a importância da saída de bola desde a
retaguarda, sem a qual não é possível construir o jogo de posição de maneira
sólida; a altura da linha defensiva, marcada pela posição da bola e com duas
características básicas: ir atrás do rival e cobrir o companheiro; a sequência de
quinze passes prévios como veículo facilitador da transição ataque-defesa; a
busca de superioridades (numéricas ou posicionais) na linha média; a
intencionalidade no passe como instrumento para desorganizar o adversário; a
procura por homens livres atrás das linhas de pressão do adversário; a
paciência imprescindível dos atacantes, que não devem buscar a bola, mas
confiar que seus companheiros a farão chegar no momento oportuno; e a gestão
defensiva dos jogadores rivais livres, aqueles que se ocupam de aproveitar os
contra-ataques.
Há quatro fundamentos do jogo de Guardiola que merecem ser ampliados
após sua passagem pela Alemanha:
• tomar a iniciativa;
• jogadores complementares;
• a velocidade e a pausa;
• fixar e abrir.
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4.5.1. TOMAR A INICIATIVA (POR KASPAROV)
Não é verdade que existem bons e maus treinadores. O que há são treinadores
valentes e outros que não o são.
JUANMA LILLO
Tomar a iniciativa do jogo é um pilar básico da mentalidade de Guardiola. Ele
não concebe o futebol de outro modo que não seja tendo a bola como
propriedade, avançando de forma coletiva (diz Juanma Lillo: “É preciso viajar
juntos, não só no mesmo trem, mas no mesmo vagão”), empregando o passe
como ferramenta para se organizar e desorganizar o rival, sendo agressivo para
recuperar a bola, ocupando o campo do adversário de forma massiva e
concentrando toda a intencionalidade do jogo em atacar o oponente.
— Minha ideia de futebol é simples: eu gosto de atacar, atacar e atacar…
Durante o último inverno, Pep leu o livro How Life Imitates Chess, de seu
bom amigo Garry Kasparov, e anotou cuidadosamente o que o grande mestre
enxadrista escreveu a respeito de tomar a iniciativa do jogo. São ideias muito
reveladoras:
“Já mencionamos antes o conceito de ter a iniciativa: é a chave para ter
êxito como atacante. Quando somos nós que criamos a ação em vez de
reagirmos, estamos conseguindo controlar o fluxo do jogo. Nosso adversário
deve reagir, o que significa que seus movimentos ficam mais limitados e,
portanto, mais previsíveis. A partir dessa posição de liderança, podemos olhar
adiante e seguir controlando a ação. Enquanto continuarmos gerando ameaças
e pressionando, manteremos a iniciativa. No xadrez, isso conduz a um ataque
que não pode ser combatido. Nos negócios, leva a uma maior participação no
mercado. Nas negociações, leva a uma oferta melhor. Na política, conduz a um
incremento nas urnas. Em todos os casos se cria um ciclo positivo de qualidade
verdadeira, ao que se soma a percepção de uma posição melhor e da iminência
da vitória, ou seja, benefícios tangíveis e intangíveis. Essa é a vantagem de quem
ataca.”
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Kasparov acrescenta que não basta ter a iniciativa, é preciso potencializá-la
sem cessar:
“Uma vez que dispomos da iniciativa, devemos explorá-la e alimentá-la
constantemente. Wilhelm Steinitz [primeiro campeão do mundo de xadrez,
entre 1886 e 1894] nos recorda que o jogador com vantagem tem obrigação de
atacar se não quiser perdê-la. É um fator dinâmico que pode desaparecer num
pequeno instante. Dominar a iniciativa pode se converter em ganhos. Ou pode
se transformar em um aumento cada vez mais forte da própria iniciativa até que
o adversário simplesmente não possa acompanhar o ritmo e caia derrotado.
“Isso não significa necessariamente concentrar suas forças em uma única
ameaça avassaladora. Pode funcionar, mas na vida real (ou no xadrez) não há
uma arma equivalente à Estrela da Morte em Star Wars, capaz de destruir
qualquer resistência. Nossos competidores reagirão e prepararão suas defesas,
por isso devemos usar criativamente nossa iniciativa e manter a perspectiva de
como definimos o que seja o sucesso. Um ataque não tem de ser tudo ou nada,
ou rápido como um raio. A pressão sustentada pode ser muito eficaz e a criação
de falhas na posição ocupada pelo nosso adversário pode nos conduzir a uma
vitória em longo prazo. Uma das qualidades do grande atacante é conseguir o
rendimento máximo de uma posição sem buscar mais do que é possível.”
O capítulo do livro em que Kasparov detalha esses conceitos tem o título “A
iniciativa raramente chama duas vezes”, e sua reflexão parece calcada no que
Guardiola costuma fazer com os fundamentos do jogo de posição, carregando
determinadas zonas do campo para enganar o adversário, ou determinando
quinze passes prévios a qualquer ataque para tratar de desorganizar o rival.
Pep entende o futebol como um processo:
— Sou um fã dos extremos, e no Bayern há extremos extraordinários. Mas
para que eles possam participar em situação de vantagem, precisamos construir
um processo de jogo que lhes dê essa vantagem a partir do primeiro passe,
desde a saída da bola de trás. E isso não é simples: é um processo longo e
complicado.
Kasparov define o xadrez como um processo similar:
“Ir um passo à frente significa que podemos desequilibrar nossos
adversários, além de mudar e nos mover de maneira que provoque fraquezas. O
defensor tem de correr para cobrir buracos, mas trabalhar sempre contra uma
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pressão constante logo se transforma em missão impossível. Cobrir uma brecha
significa criar outra em outro ponto, até que algo se rompe e o ataque fica
maior. No xadrez, temos o ‘princípio dos pontos vulneráveis’. É muito raro
ganhar uma partida contra um jogador forte com um só ponto de ataque. Em
vez de nos fixarmos neste único ponto, devemos aproveitar nossa pressão para
provocar outras falhas.”
Prossegue Kasparov:
“As principais ferramentas da iniciativa são a mobilidade, a flexibilidade e a
distração. Construir todos os nossos exércitos para atacar um único ponto pode
nos limitar tanto quanto faz com o defensor. Até o ataque dos aliados no Dia D
(Operação Overlord, a maior invasão por mar da história) implicou uma série
de táticas de distração para impedir os nazistas de enxergar a realidade e
preparar suas defesas. Junto com as técnicas mais tradicionais, os aliados
combinaram a criação de uma unidade do exército totalmente fictícia,
utilizando equipes ao estilo de Hollywood, para enganar o inimigo e fazê-lo crer
que os invasores dispunham do dobro de suas capacidades reais.”
Tomar a iniciativa tem uma relação direta com a ideologia do treinador
e/ou de seus futebolistas. A história do futebol é, na realidade, a história de suas
ideias, a história daqueles que se arriscaram a colocá-las em prática. Durante
uma longa refeição celebrada em Munique, Guardiola e Noel Sanvicente, extécnico
da Venezuela, falaram precisamente das ideias do futebol e deixaram
comentários muito interessantes, que reproduzo:
— O futebol tem um fio condutor — dizia Sanvicente. — Parece que está
tudo inventado e o que ocorre é que tudo se adapta às novas circunstâncias. O
que muda é em que momento, como e com quais jogadores se aplica um
sistema, um módulo ou um papel que já foram empregados em outros tempos.
— Claro que existe um fio condutor, sem dúvida, e em todas as formas de
jogar — aponta Guardiola. — Se você pensa no catenaccio, há um fio desde
Nereo Rocco até o que Mourinho aplica no Camp Nou em 2010. É o mesmo. No
futebol, você decide o que quer ser e fazer. Por exemplo, o fundamento essencial
do meu jogo é a forma de defender e, com essa maneira de jogar, sempre somos
o time menos goleado de todo o campeonato. Sempre.
— É que o futebol, no fundo, é um debate entre ideias, um debate
ideológico. Por isso o fundamental não é tanto ganhar ou perder, mas o caminho
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que você escolhe e as razões pelas quais você o escolheu. A riqueza do futebol
reside no intercâmbio de ideias que se produz constantemente — observa o
venezuelano.
— No meu caso, o contexto me muda muito — insiste Guardiola. — É
impossível não mudar. Aqui na Alemanha, mudei a forma de atacar (a de
defender, não, pois é sempre a mesma), porque você se adapta às características
dos jogadores. Por exemplo, se o seu lateral não corre para cima e para baixo
por oitenta metros sem parar, você tem de se adaptar a isso. Se colocar o
extremo por dentro, meu lateral sobe, mas se meu lateral não está em condições
de subir com todo o vigor, então tenho que colocá-lo por dentro para que jogue,
e abrir o campo com o extremo. Porque você não pode atacar com profundidade
se não tiver amplitude. É impossível. E tem de adaptar seu ataque a essa
realidade. Agora, se tenho um lateral que é uma máquina, que vai para cima e
para baixo sem parar… Mas minha teoria (e creio que o futebol será assim nos
próximos tempos, e só falo do jogo posicional e não de outro modelo) é que não
existem feras capazes de resistir toda uma temporada indo para cima e para
baixo, correndo oitenta metros a cada ação. Ou talvez eles aguentem uma
temporada, mas na seguinte já sofrem e na terceira não aguentam.
Tomar a iniciativa no jogo, como propõem Kasparov e Guardiola, é uma
conduta que contém em si um grande risco, e a história desse esporte está
repleta de exemplos. Os cemitérios do futebol estão cheios de equipes que
jogaram com esse tipo de risco e acabaram derrotados por outras que
praticaram uma proposta reativa, porque é óbvio que nem os melhores
fundamentos nem sua boa execução podem eliminar todos os riscos inerentes à
tomada da iniciativa. A última semifinal de Champions League contra o Atlético
de Madrid foi um bom exemplo. O Bayern esmagou o Atlético contra seu
próprio gol, dominou de forma implacável, assaltou sua área com contundência,
agressividade e rapidez, e finalizou 53 vezes nos 180 minutos de jogo (o que é
um recorde na Champions), mas bastou um passe falho de Boateng seguido de
uma pressão equivocada, uma leve indecisão de Xabi Alonso e um toque errado
de Alaba para que o risco de tomar a iniciativa levasse a um gol fatídico que fez
cair por terra o trabalho de um ano inteiro e condenou Guardiola a ser
freneticamente criticado por não conduzir seu time até a final. É o risco que
deve assumir, em qualquer âmbito de nossa existência, quem toma a iniciativa e
aposta por atuar de modo proativo. Pode-se obter recompensas muito
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satisfatórias, mas também castigos bem amargos. Mas não se pode pedir a quem
crê nisso que mude de ideia, assim como não se pode pedir ao leão que cace
mariposas.
Se o que acabo de dizer nos induzisse a crer que Guardiola não medita
sobre os riscos ou não tenta proteger seu time, erraríamos de forma categórica:
“Eu só busco dotar meus jogadores dos fundamentos de jogo que reduzam os
riscos ao mínimo e potencializem suas virtudes ao máximo”.
O time de Pep sempre foi, por grande diferença, o menos goleado da liga,
seja na Espanha com o Barcelona, ou na Alemanha com o Bayern. Até na única
vez em que não conquistou o título do campeonato, na temporada 2011/2012,
quando o Real Madrid de Mourinho o superou, seu Barcelona também foi o time
que sofreu menos gols. O último ano em Munique melhorou todas as relações
numéricas, pois o Bayern fechou a Bundesliga com média de 0,5 gol sofrido por
jogo, frente a 0,68 no primeiro ano e 0,53 no segundo. E isso com Kimmich e
Alaba como defensores centrais no trecho mais duro da temporada.
Ernesto Valverde, treinador do Athletic de Bilbao e bom amigo de
Guardiola, me explicou qual é, no seu entender, a maior virtude de Pep: “O que
Pep fez no Barcelona e no Bayern foi dotá-los de uma organização defensiva de
grande excelência. As pessoas creem que seu grande mérito esteve no ataque,
mas não é assim: o ataque foi bem com os jogos de posição, mas onde ele se
mostrou brilhante foi organizando a defesa”.
O sonho futebolístico de Guardiola é fora do comum: “Meu sonho é pôr os
onze adversários dentro de sua área desde o primeiro minuto e não os deixar
passar do meio de campo. Agora, para conseguir isso, é necessário ser muito
preciso. Como disse muito bem Marcelo [Bielsa], ‘todo mundo defende espaços
curtos e ataca espaços grandes. Eu quero atacar espaços pequenos e defender
espaços grandes’. Claro, se um ou dois jogadores não forem bem, acabou. Mas se
todos vão bem, eu tento manter você na sua área e fazer com que nem sequer
consiga cheirar a bola em todo o jogo. Isso eu aprendi com Marcelo e dei uma
palestra em Buenos Aires em que o citei, porque é preciso citar quem expressa
conceitos tão bons. Agora, para isso você necessita de muita qualidade e
paciência, saber que ajuda quando não interfere na jogada. O difícil nas grandes
equipes é que todos consigam compreender essa ideia: que, ao não interferir,
está ajudando o processo para que, quando chegue o momento de interferir,
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você esteja só contra um adversário, ou até contra nenhum. E é muito difícil.
Você tem de estar quieto, esperando que a bola chegue…”.
Tomar a iniciativa traz embutido em sua essência o risco do contra-ataque
do rival. Vimos mil vezes como esse risco se transforma em um gol do
adversário que, fechado em sua área durante longos minutos e se defendendo
como um ouriço, sabe aproveitar uma fresta para desferir a punhalada. Esse
risco é indiscutível. Mas também — e mais frequentemente — vimos o oposto:
como um time encerrado em sua área era bombardeado e goleado sem piedade
por quem tomava a iniciativa. Quem, como Guardiola, propõe jogar com a
iniciativa, sempre corre o risco de ser apunhalado. O futebol não é mais do que
isso: um jogo de propostas e riscos.
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4.5.1.1. JOGO DE POSIÇÃO, JOGO DE LOCALIZAÇÃO
Praticamos um excelente jogo de posição.
Quem nos vê jogar, vê a assinatura de Pep.
PHILIPP LAHM
Ter a iniciativa é um elemento inerente ao jogo de posição, porque indica a
vocação principal da equipe que o põe em prática. E isso não é novo. Em 1952, o
jogador, jornalista e escritor Ivan Sharpe se mostrava extremamente
preocupado com a decadência do futebol inglês e já usava o termo “jogo
posicional” para descrever o modelo avançado que praticavam os países líderes
daquele momento, pouco antes de a Hungria desferir seu grande golpe em
Wembley, vencendo a Inglaterra por 6 × 3, em 1953: “Os estrangeiros”, escreve
Sharpe “nos ultrapassaram em seu estilo de jogo. Os segredos do ofício e o estilo
de jogo escocês de combinação de passes se transferiram ao estrangeiro. Nós
exportamos a mercadoria, mas perdemos a habilidade de fabricá-la. A
atmosfera excessivamente tensa que rodeia os jogos de liga na Inglaterra, com
seus acessos e descensos, transformou nosso futebol em algo parecido com um
coquetel agitado. Mas o frenesi não é futebol. Desse modo, o jogo dos
estrangeiros agora tem um perfil mais científico. O jogo posicional está muito
mais desenvolvido, já que acumula as combinações de passes […]. Hoje não
estamos entre os três primeiros na classificação mundial se nos referimos ao
estilo e aos métodos científicos, e a ameaça que surge é que os jovens
estrangeiros, esses sim, estão sendo treinados nessa direção em quase todos os
países. A Inglaterra necessita de uma nova mescla em seu futebol”.
Passaram-se quase 65 anos desde a referência de Sharpe e o jogo de
posição evoluiu de maneira exuberante, tanto em seu desenvolvimento prático
quanto no didático. E é precisamente aquele que se encarregou de seu
tratamento intelectual, Juanma Lillo, quem nos oferece uma revisão
imprescindível, que começa pelo próprio nome deste modelo de jogo:
“Decidimos chamá-lo de ‘jogo de posição’, mas a definição é pouco precisa,
porque podemos nos perguntar: pode-se estar bem posicionado e mal situado?
Ou, ao contrário, bem situado e mal posicionado? Claro que sim! E por que isso
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acontece? Se recorremos ao dicionário, vemos que ‘posição’ tem uma relação
sinonímica com postura. No entanto, o termo ‘situação’ vem de sítio ou lugar.
Assim, pode ocorrer que você tenha uma postura (posição) ideal, mas num
lugar inadequado. Ou num lugar ideal, mas com uma postura inadequada. E
ambas têm a ver com a relação anterior e posterior, com o que aconteceu
previamente e o que você quer fazer na sequência, para ajudar na
sustentabilidade do jogo. Por essa razão, ‘posição’ e ‘situação’ não definem com
precisão esse modelo de jogo. A palavra que relaciona esses dois termos com
uma intencionalidade tática é ‘localização’. A esta forma de jogar, deveríamos
chamar de ‘jogo de localização’”.
Ao leitor pode parecer uma nuance acadêmica, mas não é. Nem se trata de
uma questão semântica ou teórica, pois existe um grande potencial nessa
modificação de nome, que pode permitir desenvolvimentos futuros em relação
à lógica interna do jogo. Não é apenas semântica, porque esse conceito de “jogo
de localização” pode permitir uma série de conexões e relações com o
treinamento, pode agregar ideias para o treinamento e para que o jogador o
entenda melhor, fazendo com que esse estilo coletivo de jogo cresça. É uma
forma de chamar as coisas que pode ajudar a construir mais coisas que tenham
a ver com treinar e jogar. Não depreciemos o valor das palavras. Lillo sempre foi
muito apegado a conceitos que Wittgenstein expunha, tais como o “somos
apenas palavras”, porque “as palavras nos ajudam a transformar o mundo em
um lugar menor e nosso cérebro em um lugar mais amplo”.
Na amálgama contínua de relações que se dão no futebol, essas definições e
redefinições colaboram para a compreensão e o progresso, e essa é a razão pela
qual Lillo propõe a redefinição, ainda que não pretenda assumir o protagonismo
das definições intelectuais no futebol: “O que eu digo é que só existe um livro de
treinamento e tática: as regras do jogo. E também que precisamos pensar bem
nas palavras que usamos, por isso proponho chamá-lo de ‘jogo de localização’,
como veículo para que o treinador seja entendido, mas não busco nenhuma
definição universal. Mais ainda: realmente estou de acordo com Krishnamurti
quando diz que a palavra é necessária para se comunicar, mas que a palavra não
é a coisa. Nossa busca como treinadores não pode se limitar apenas a como
ganhar o jogo, deve se dedicar também a que os jogadores entendam o que
precisam fazer”.
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4.5.1.2. OS ESPAÇOS DE FASE
As ideias simples somente se
encontram nas mentes complexas.
REMY DE GOURMONT
Outra pessoa muito próxima de Guardiola sempre foi Paco Seirul·lo, cujo
caráter didático também é valorizado por Lillo: “Paco não só é um grande
construtor de circuitos e metodologia, mas também de jogo. Juntos construímos
muitíssimas ssp [situações simuladoras preferenciais] para melhorar a captação
conceitual do jogador, mas de uma perspectiva mais cultural. O caráter didático
de Paco tem sido importantíssimo para buscar veículos que permitam que os
jogadores entendam o que propomos”.
Falei com Seirul·lo sobre os modelos de jogo:
— Costumam ser muito fechados, mas definidos de modo ligeiro. Só são
definidos para se determinar os lugares no espaço, a forma de jogar e o número
de jogadores que estão em uma linha ou outra. Não definem mais do que isso.
De cinco defensores, passamos a quatro, ou a quatro mais um. De três médios
passamos a quatro ou cinco. E de cinco atacantes sempre fomos a menos: de
cinco a um ou a nenhum. O que propomos é distinto. De observar o simples e o
linear, temos de passar a observar o complexo: tudo tem a ver com tudo e nada
acontece que não possa acontecer, mas as interações entre os jogadores são
interações, não são ações. Sempre se disse: “Isto é uma ação de jogo”. Não, não é
uma ação: é uma interação. Porque quando faço algo em relação a você,
modifico coisas suas e você também modifica coisas minhas.
— Ou seja, teria um efeito similar à medição da velocidade do elétron, que
provoca uma mudança no próprio elétron a ser medido…
— Exatamente. O conceito quântico é o suporte da complexidade do jogo.
Até agora, o futebol nunca foi apresentado assim. Parecia que o defensor era o
passivo e o atacante era o ativo, porque tudo se guiava pelo eixo ataque-defesa.
Só que o futebol não vive nesse eixo, mas em um conceito quântico. O futebol
sempre se moveu em uma dicotomia simplista: o bom e o mal, o pragmático e o
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romântico etc. Nunca se identificou, pela alta complexidade do jogo, em que
elemento temos de nos fixar para ir esquadrinhando a complexidade do futebol.
Se conseguirmos examinar essa complexidade, poderemos construir um jogo
novo. Ou poderemos propor ideias para um jogo novo ou diferente.
Acrescenta Seirul·lo:
— Nós dizemos: no futebol não há jogadas. Normalmente se diz que há
jogadas. Em um jogo transmitido pela televisão sempre se menciona a palavra
“jogada”. Se diz: “a jogada de Messi”. E os demais da equipe não existem nesse
momento. Parece que é Messi contra o mundo. Ou se diz: “Essa jogada se parece
com aquela outra”. Mas é preciso entender que o futebol não é uma sucessão de
jogadas, mas uma sucessão de situações complexas. Messi leva a bola até um
ponto e está em determinadas condições porque anteriormente aconteceu algo;
e enquanto ele joga, está acontecendo alguma coisa que permite isso. Porque se
não houvesse mais nada, os dez adversários lhe tomariam a bola e pronto. Mas
existem esses “algos” e “algumas coisas” nesse momento, ainda que essas outras
ações não sejam atrativas para as pessoas.
Seirul·lo completa sua exposição:
— No jogo, tentamos o quanto antes tomar a iniciativa não só porque
temos a bola, mas porque criamos uma situação que é favorável a nós. A isso
chamamos “espaços de fase”, o que se define por: onde está a bola, em que
situação está, onde estão os rivais, a distância que há entre a bola e os rivais e os
nossos próprios jogadores, as trajetórias de cada jogador e cada rival e a bola, a
orientação do jogo, a organização do jogo… E tudo isso constitui unicamente
uma situação de jogo que dura um décimo ou dois décimos de segundo. No
momento em que a bola muda de lugar, os jogadores também mudam e aparece
uma nova situação. E assim sucessivamente. Isso implica muitíssima
complexidade e tem uma base nas teorias da termodinâmica. Quando um
líquido esquenta, as partículas se movem mais e se organizam de uma
determinada maneira ou de outra em função de elementos que aparecem nas
características desse líquido. Você uma vez escreveu: “O Barça não é sólido, mas
líquido”. É uma definição acertada: ele é líquido. Porque quando dizemos “Esse
time é muito sólido, é muito compacto”, na realidade dizemos que é muito
vulnerável. Os líquidos são menos vulneráveis que os sólidos. Do sólido, se pode
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conhecer tudo, inclusive seus pontos fracos. Você golpeia um ponto fraco e o
quebra. O líquido, não.
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4.5.2. JOGADORES COMPLEMENTARES
Para saber se tinha feito um bom jogo, eu me perguntava
se tinha tornado meus companheiros melhores.
BILL RUSSELL
Quem deve aplicar no campo o conceito de tomar a iniciativa são os jogadores.
E uma das regras internas de Pep é que tais jogadores sejam complementares
em suas características. Há alguns anos se gerou em Barcelona uma avalanche
de críticas ácidas ao treinador Frank Rijkaard porque escalava Xavi e Iniesta,
atletas considerados “iguais”. Quando tiveram resultados ruins, foi comum ler
ou ouvir que “Xavi e Iniesta não podem jogar juntos”. Mas depois chegou
Guardiola, colocou-os juntos e o Barcelona decolou a uma altura nunca
imaginada…
— Era um grave erro de apreciação — reflete Seirul·lo. — Todo mundo
dizia: “Xavi e Iniesta fazem a mesma coisa”. Errado! Eles não se parecem em
nada. Andrés e Xavi não se parecem em nada. São claramente complementares,
porque são bem distintos. Jogam em zonas diversas e de modo diferente. Ocorre
que as pessoas dizem que eles são iguais porque lhes atribuem elementos de
jogo similares, mas eles são totalmente diferentes e complementares. Isso
acontece com muitos outros conceitos no futebol, como a ordem e o equilíbrio.
Ordem e equilíbrio são elementos coexistentes do jogo, por isso falamos de
situações e de organizações. A organização é dinâmica, enquanto o equilíbrio é
estático. Por isso falamos sempre do dinâmico, nunca do estático.
Os jogadores complementares não só são essenciais na composição da
equipe por razões técnicas, pela capacidade tática que possuem ou pelas
qualidades físicas que se alimentam entre si, mas também — e muito
especialmente — por suas distintas personalidades. Guardiola explicou de
forma detalhada durante um evento organizado pela empresa Adidas:
— Há jogadores que pensam mais no que a equipe necessita e em qual é a
melhor solução. Há jogadores como Bastian Schweinsteiger, que controlam a
partida: ele joga pensando mais na equipe. Essa classe de jogador é inteligente e
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tem a visão global do que a equipe necessita. É por isso que existem jogadores
que controlam completamente o jogo. Eles fazem o que o treinador quer ou o
que a equipe precisa. E depois vêm os que causam o caos. Há outro tipo de
jogador, como Arjen Robben, que pensa: “Certo, tenho que ir por dentro, porque
quero receber a bola, driblar e marcar o gol”. Eles jogam seguindo seu instinto e
talento, estão acima do que acontece no campo. Há momentos em que não
interferem de forma regular no processo de criação de jogo, mas precisamos
desses jogadores nos últimos quinze ou vinte metros. Eles podem criar
absolutamente tudo e o treinador não pode controlá-los. Não se pode limitar
isso. O caos e o controle existem, e você precisa de ambos. São parte do jogo.
Você precisa de jogadores que analisem o que deve ser feito, e há outros que
têm de ser um pouco mais livres e mostrar seu talento no máximo grau possível.
Quando você dirige uma equipe, deve mesclar os dois tipos de jogadores,
porque eles lhe dão uma grande vantagem.
Acertar na mescla: eis uma questão complicada. Mas essa combinação de
qualidades que se complementam pode, por sua vez, potencializar a busca de
novos perfis. Por exemplo, em janeiro de 2015, Guardiola já tinha desenvolvido
completamente sua proposta de fazer os laterais jogarem como meioscampistas
interiores junto com o meio-campista central. Lahm e Alaba (Rafinha
e Bernat também) dominavam a nova função e o treinador me explicou o que
isso lhe sugeria:
— Meu conceito do papel dos laterais se modificou na Alemanha. Já não os
vejo como carrileros,* mas como interiores, e isso vai me permitir incorporar a
meu jogo um meio-campista interior muito diferente dos habituais (Xavi,
Iniesta, Thiago). Agora posso contratar um “chegador”** potente, porque ele
sempre terá as costas bem protegidas.
Desse modo, a chegada ao Bayern de Arturo Vidal, depois de cinco meses,
cumpriu um objetivo específico: ampliar o perfil dos meios-campistas de Pep
com um registro muito diferente.
Na realidade, o que acontece com grande parte dos jogadores que
trabalham com Guardiola é que eles não são o que aparentam, e isso quebra o
estereótipo com que se pretende estreitar o futebol. Ninguém explicou melhor
do que Joshua Kimmich: “Aqui no Bayern, o jogo é interpretado de forma
diferente. Aqui, ser lateral significa ser quase um meio-campista”.
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O treinador espanhol Ismael Díaz Galán encontrou uma forma de
completar a expressão de Kimmich: “Por isso falamos há muito tempo que um
defensor não se define pela posição, mas pela situação do jogo. As mudanças de
dois séculos nas regras do impedimento fizeram com que os jogadores mais
recuados deixassem de ter apenas a função defensiva. O jogo da Laranja
Mecânica dos anos 1970, que nutriu ‘gênios’ como Pep, levou isso à máxima
expressão ao entender que todos defendem quando não se tem a bola e todos
atacam quando se tem, independentemente da posição de cada um. O mérito do
treinador reside em descobrir os talentos de seus jogadores para aproveitá-los
nos distintos momentos do jogo, em inter-relação com os talentos de seus
companheiros e cada contexto mutável”.
Em sua explicação, Ismael Díaz Galán chama Guardiola de “gênio”, um
termo geralmente muito aplicado quando se fala sobre Pep, o que me dá a
oportunidade de uma breve reflexão. Em dois livros completos dedicados ao
treinador (Guardiola confidencial e este), evitei, de forma voluntária, empregar
esse termo, porque me considero incapaz de definir com exatidão o que
significa. Li numerosa documentação a respeito do talento dos gênios e sobre
quais seriam os traços recorrentes na personalidade de todos eles (analíticos,
impulsivos, autodidatas, autocríticos, metódicos, apaixonados e vários outros).
Sem dúvida, podemos encontrar muitos desses traços em Guardiola, mas
apenas isso não o transforma automaticamente num gênio, nem mesmo o fato
de sua proposta futebolística ser inovadora e atrevida. É um gênio por seus
êxitos? Não, os êxitos o definem como ganhador, mas não dizem que ele é
genial. Acima de outras características, vejo-o fundamentalmente como um
trabalhador infatigável e entendo que, para saber com certeza se há sentido em
usar o conceito de “gênio”, devemos esperar que conclua sua carreira como
treinador e assim avaliá-lo em sua plena dimensão.
* O defensor que atua indo e vindo pelos lados do campo. (N. T.)
** Normalmente, um meio-campista com facilidade para chegar à área adversária com a bola. (N. T.)
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4.5.3. A VELOCIDADE E A PAUSA
O futebol é cada vez mais um xadrez;
e no xadrez, se você perde a concentração
por um segundo, está morto.
SIR ALEX FERGUSON
A velocidade é essencial no conjunto de ideias de Guardiola: “A chave do
esporte está na velocidade. Quem ganha no esporte é aquele que o faz um pouco
mais rápido do que os demais. Não é força, é velocidade”.
Mas ele não fala de uma velocidade relacionada ao atletismo, mas de uma
velocidade “matizada”. Vejamos quais são esses matizes:
• É uma velocidade relacionada com o jogo, portanto com a bola como
elemento substancial.
• É uma velocidade mental: pensar a ação com certa antecedência oferece
vantagem.
• É uma velocidade orientada à intencionalidade: se o jogo está em fase de
construção, a velocidade deve ser moderada para permitir o avanço em grupo;
se o jogo está na zona de definição, a velocidade deve ser elevada para
conseguir vantagem no duelo final.
• É uma velocidade precisa. É inútil atuar muito rapidamente se os passes
saem errados, as recepções ruins ou as intenções equivocadas. A precisão
incrementa a velocidade efetiva.
• É uma velocidade inteligente: antecipar-se gera vantagem, intuir permite
compensar uma desvantagem, pausar o jogo evita que a bola corra sem sentido
de um campo a outro (“quanto mais rápido a bola vai, mais rápido ela volta”).
Segundo Lorenzo Buenaventura, o preparador físico de Guardiola: “A
velocidade é uma capacidade com muitos matizes, mas podemos identificar no
mínimo três deles, embora haja vários outros:
• A velocidade pura, que é a velocidade do atleta: é a velocidade que define
quem é o mais rápido.
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• A velocidade aplicada ao futebol: se nosso jogador intui o que vai
acontecer e se antecipa, já não é tão importante o fato de seu rival ser mais
rápido, porque o nosso poderá arrancar antes e compensará com sobras sua
menor velocidade atlética.
• A velocidade modulada dentro da jogada: nosso atacante talvez seja mais
lento que o defensor rival, mas não o enfrenta com um sprint puro, e sim
jogando com as pausas: ameaça, engana, arranca, freia e, quando o marcador
também freia, então ele volta a arrancar… E, neste jogo, ainda que ele seja mais
lento, chegará muito antes ao objetivo”.
O terceiro tipo de velocidade que Buenaventura observa é fundamental no
jogo, e é o que permite compreender que jogadores “lentos” como Iniesta ou
Lahm sejam capazes de superar constantemente seus adversários, muito mais
rápidos em velocidade atlética. Essa “velocidade modulada”, ou “velocidade
inteligente”, não só é crucial no jogo, mas também se pode afirmar que, sem ela,
é impossível que um time exerça um papel dominante durante uma partida.
Jorge Valdano explica a questão da seguinte forma, em seu livro Fútbol: El
juego infinito: “No futebol existem três tipos de velocidade: a de translação (em
quanto tempo somos capazes de percorrer uma distância; é a velocidade que
caracteriza, por exemplo, Usain Bolt), a mental (que nos permite escolher a
melhor entre muitas possibilidades quase num ato de reflexo; no futebol,
pensar rápido ou pensar antes de receber a bola se converteu em fator crítico) e
a técnica (que se chama ‘precisão’ e é a mais importante de todas, porque vai do
individual ao coletivo: se eu controlo a bola com apenas um toque, sou rápido;
se passo com apenas um toque, consigo que minha equipe seja rápida). Para
compreender, não é necessário ver números, basta ter olho crítico”.
Pensemos em Lahm: uma de suas grandes virtudes é a capacidade de dar
um passe certo e preciso para um companheiro. Um passe assim sempre é um
presente que se entrega em forma de tempo, espaço ou ambos. Outra das
virtudes de Lahm é a compreensão do jogo, porque ele não só sabe dar esse
presente a um companheiro, mas tem consciência de qual deve ser o
movimento seguinte e necessário para que a jogada tenha continuidade e,
sobretudo, relevância. Por essa razão, ele parece um jogador rápido, quando na
realidade sua velocidade gestual não admite comparação alguma com a maioria
dos rivais que enfrenta. Mas Lahm pensa mais rápido. Dá o passe sabendo como
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a ação continuará, intuindo o que acontecerá depois desse passe. Essa
compreensão e clarividência lhe permitem estar ou chegar ao ponto exato em
que voltará a ser relevante na jogada, como apoio, no um contra um, como
driblador… Lahm é mais lento que a maioria de seus rivais, mas pensa mais
rápido, por isso chega antes ao encontro com o passe seguinte.
COMO LAHM É INTELIGENTE
Munique, 12 de dezembro de 2015
Nas palavras de Guardiola: “Philipp sabe jogar. Sabe jogar de todos os
jeitos. E com isso, pode fazer de tudo. Um veterano, se sabe jogar, pode
prolongar sua carreira o quanto quiser. Um que não sabe jogar aos trinta
anos já está decadente. Mas Lahm pode prolongar, porque sabe jogar. Se
quisesse, poderia jogar até os quarenta anos, porque entende o jogo. E Xabi
Alonso, também”.
Observemos a velocidade por outra ótica: “Sem retrocessos do tempo, não
se pode fazer progressões”. Quem afirma é Christian Thielemann, maestro
alemão, que atualmente comanda a Staatskapelle de Dresden e o Festival de
Páscoa de Salzburgo, e já regeu a Filarmônica de Munique. É um grande
especialista em Beethoven e suas conversas com Joachim Kaiser (Beethoven
entdecken, “Descobrir Beethoven”) são muito reveladoras. Quando se refere à
Oitava Sinfonia, Thielemann explica que o quarto movimento, um allegro vivace,
é tão veloz, enérgico e furioso que é praticamente inviável seguir
incrementando-o… A não ser que se façam leves retrocessos no tempo da
orquestra. O mesmo ocorre no futebol: a velocidade no jogo é filha da pausa.
Diz o escritor Richard Sennett: “O ritmo tem dois componentes: a
acentuação e o tempo, a velocidade de uma ação. Na música, modificar o tempo
de uma obra é um meio de olhar adiante e antecipar. As indicações retardando e
acelerando obrigam o músico a preparar uma mudança; essas amplas alterações
de tempo o mantêm alerta”.
Guardiola explica de seu modo: “No futebol, a velocidade quem dá é a bola.
E os passes: um-dois, tac-tac, e você faz o adversário correr para trás, ainda que
pareça que não está fazendo nada”.
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4.5.4. PRENDER E ABRIR
Todas as ações táticas devem se guiar pelo princípio do
pouco consumo de energia para provocar a fadiga do inimigo.
SEPP HERBERGER
— Qual é o traço principal dos All Blacks? — pergunta Guardiola ao
interlocutor.
A resposta é:
— Eles prendem e abrem, prendem e abrem, prendem e abrem…
Guardiola insiste:
— Atenção com isso! Prendo e abro. Eu ataco pelo centro e abro pelo lado.
Concentro e abro. O melhor momento de ataque pertence ao rúgbi. Eu ataco e
divido você, ataco e divido, ataco e divido. E como o passe é obrigatoriamente
para trás, ataco de frente. É o melhor conceito de ataque que existe! Eles não
podem passar para a frente para atacar, devem fazê-lo obrigatoriamente para
trás, e isso lhes permite ficar de frente. Vou pelo centro, atraindo rivais para
servir a quem está livre e para matar por essa zona livre. Não há melhor
maneira de atacar do que no rúgbi…
A seleção neozelandesa de rúgbi, os All Blacks, é o melhor time do mundo
de qualquer categoria esportiva na atualidade, com apenas três derrotas nos
últimos 59 jogos. Praticam como ninguém um conceito muito sugestivo. Quem
ataca no rúgbi? Os All Blacks asseguram que não é quem tem a bola, mas quem
está no campo do adversário.
— Quem está no campo do adversário ataca ainda que não tenha a bola? —
pergunta Guardiola.
— Sim, ainda que não tenha a bola; mas se eles estão ocupando o campo do
adversário, se encontram perto do objetivo.
— E fazem alta pressão? — insiste Pep.
— Claro. E de vez em quando dizem: passamos muito tempo jogando do
mesmo modo, prendendo o adversário e abrindo o jogo; agora é preciso mudar.
Aí mandam a bola para a linha do gol rival e vão para a frente com catorze
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jogadores. O rival tem a bola em seu poder, mas no ponto onde querem os All
Blacks, perto da linha do gol. E não se importam se o adversário passa a bola:
nós, dizem os neozelandeses, os pressionaremos até esgotá-los e, quando
tomarmos a bola, estaremos a poucos metros do try. E então voltamos à nossa
forma costumeira de atacar. E assim recuperam o fôlego e continuam com o
habitual: prender e abrir. Talvez joguem 25 fases de jogo seguidas à base de
prender e abrir até que o rival se canse e não possa mais fazer as coberturas…
Conseguem, assim, a harmonia entre a tipologia de seus jogadores, a velocidade
e o conceito de jogo.
— Soa como se jogassem um rúgbi total — conclui Guardiola —. É preciso
tirar alguma lição de tudo isso…
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BASTIDORES
PARA GANHAR, PRIMEIRO É PRECISO PERDER
Munique, 18 de setembro de 2015
Campeonato Mundial de basquete de 2014: há um ano, a França venceu
a Espanha, na Espanha, por 65 a 62.
Campeonato Europeu de basquete de 2015: ontem, a Espanha
venceu a França, na França, por 80 a 75.
É um enfrentamento que serve para refrescar a reflexão de Manel
Estiarte. Há um ano, ele analisava a derrota espanhola; hoje, reflete
sobre a vitória. Estiarte viu o jogo junto com Guardiola, outro grande fã
desse tipo de jogo vibrante:
“Foi um jogo maravilhoso, não porque a Espanha ganhou. Ambos os
times mereceram ganhar. Foi uma maravilha, porque se jogou com uma
intensidade elevada, sem nenhuma trégua, com um time superior
(França) que sentiu a pressão de jogar em casa e ficou abaixo das
expectativas, e um time inferior (Espanha) que cresceu com o passar dos
minutos e dos acertos. Um jogo tão memorável quanto o do ano passado,
mas por razões muito diferentes.
“Há um ano, foi a vitória de um time em estado de graça que, a
partir de um momento concreto, passa a mandar no jogo e impede que a
seleção espanhola reaja. A Espanha vinha em uma trajetória fantástica
naquele Mundial, estava invicta e, sobretudo, parecia imparável; mas
quando as coisas mudaram, não soube se agarrar a nenhum argumento
competitivo.
“Hoje aconteceu algo muito diferente. Esta seleção espanhola era
inferior à do ano passado, basicamente pelas lesões que sofreu, mas se
agarrou como nunca a qualquer possibilidade de remar pelo jogo. Não se
deixou levar nenhuma vez, nem mesmo quando tudo estava contra ela e
a semifinal parecia perdida. Soube lutar, lutar e lutar, e eu tiro disso uma
lição que não sei se é verdade, mas me parece ser.
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“Olha, para poder ganhar, primeiro é preciso perder. Em uma
competição desse tipo, com muitos jogos e fases de eliminação, que
poderíamos comparar um pouco à Champions League no futebol, você
quase sempre precisa que alguém o freie e o golpeie para reagir e ser
mais forte. Se você ganha e ganha e sua trajetória não tem rivais, você se
sente imbatível, genial, desfruta de tudo e está feliz, mas talvez dentro
das próprias vitórias esteja o germe da derrota, porque algumas coisas
você não está fazendo bem. Talvez sejam pequenas coisas, pequenos
detalhes que não impedem que você ganhe os jogos, mas que estão lá. E
você não presta atenção neles, nem o treinador presta atenção nesses
pequenos déficits. Você ganha e está contente, desfruta e comemora. Até
brinca um pouco com o adversário. ‘Ganhamos deles!’, você diz, e brinda
às vitórias, esquecendo que houve algumas pequenas manchas escuras
pelo caminho. E aí está o perigo.
“Por outro lado, se logo lhe dão um murro na cara e o derrubam,
mas você não é eliminado, talvez estejam lhe fazendo um favor, porque
então todos os alarmes soarão. O que fizemos de errado? Que problemas
temos, que defeitos, que carências? O que estamos fazendo mal? E todos
ficam atentos: o treinador, os jogadores, os auxiliares, os analistas, todos,
todos. Não há brindes, nem alegria, nem celebrações e ninguém brinca
com ninguém. De repente, tudo fica vermelho. Alarme. O que está
acontecendo? Os sentidos se aguçam, então você focaliza rapidamente
onde estão as manchas escuras e como fazer para remediá-las.
“Claro, se você está numa dinâmica positiva, ganhando e ganhando
jogos um depois do outro, nenhum treinador aparecerá para dizer que é
necessário perder o próximo jogo. Claro, não se trata disso, seria uma
besteira. Se você está surfando a onda, deve seguir e seguir. Eu não digo
que é preciso forçar isso, que seja necessário forçar uma derrota. O que
digo é que, às vezes, simplesmente acontece. Você está sobre a onda e é
derrubado com um murro. E esse murro muitas vezes é providencial,
porque conduz à reflexão coletiva, une mais o grupo, mostra os pontos
fracos e reforça os objetivos. Estamos mal, nos derrubaram, chegamos a
um passo da eliminação, já não somos favoritos, somos inferiores… São
coisas que você pensa, que medita nessas horas que parecem tão
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amargas, mas são reflexões cruciais que o fazem ressurgir se o grupo é
capaz de convertê-las em energia positiva.
“Veja, há um ano a Espanha parecia superior à França — e creio que
era mesmo, como demonstrou ao vencê-la na primeira fase. Mas se
sentiu bela e, quando precisou apertar os dentes, não soube como fazer.
E hoje era o contrário: a Itália lhe deu um baile e, diante dos outros
rivais, tudo tinha sido muito difícil, com jogos arrastados e sem brilho.
Mas a derrota para a Itália despertou a fera e provocou a gana de lutar.
E, com tudo isso, a seleção espanhola não saiu para jogar hoje, mas para
lutar. Com tudo contra: os prognósticos, 27 mil torcedores franceses e a
própria realidade do jogo. A França era superior. Hoje a França era a
bela; a Espanha, a lutadora. E ganhou porque perdeu duramente para a
Itália. Porque aquela derrota a deixou nocauteada e ela teve de reagir,
teve de descobrir as manchas escuras que possuía, as falhas sofridas,
sendo obrigada a se convencer de que só poderia ganhar se lutasse por
todas as bolas como se fosse a última oportunidade de sua vida.
“Talvez eu me equivoque com minhas teorias, mas estou bastante
convencido do que lhe digo. Estava convencido no ano passado, quando
disse que os grandes times, que se sentem muito superiores, às vezes
carecem do espírito de luta dos iugoslavos, aquele espírito que faz você
se agarrar ao 1% de possibilidade de reverter. E creio que também não
me equivoco em relação ao que digo hoje: para poder ganhar, às vezes
você precisa sofrer uma derrota dura e sangrar. Porque o sangue faz
você reagir.”
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CAPÍTULO 5
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A INFLUÊNCIA DE PEP SOBRE O FUTEBOL ALEMÃO
Se você quer o arco-íris, tem de aguentar a chuva.
Uma vez comentadas as importantes mudanças que a Alemanha provocou em
Guardiola, analisaremos a influência do treinador catalão sobre o futebol
alemão, começando pela que foi exercida de maneira direta no Bayern de
Munique.
Se nos resultados lhe faltou a coroação com uma vitória na Champions
League, em jogo ele superou qualquer expectativa que pudesse haver antes de
sua chegada a Munique. O Bayern praticou um jogo de posição com elevada
maestria em todos os seus aspectos, com uma orientação vertical que o tornou
mais parecido com o praticado pelo Barcelona de 2008/2009, do que o
Barcelona de 2010/2012. O jogo do Bayern se caracterizou por uma
consistência média excelente, de traços muito reconhecíveis, com vocação para
dominar todas as partidas, sob qualquer circunstância, pisando sempre no
campo do adversário e orientando-se de forma indiscutível ao ataque. As
médias de gols marcados (2,46 por jogo) e gols sofridos (0,69) retratam essa
vocação ofensiva combinada com um alto grau de controle sobre os ataques
rivais: Neuer conseguiu defender com sucesso seu gol em 81 dos 154 jogos que
disputou — ou seja, não sofreu gol em mais da metade das partidas. Durante os
três anos, o Bayern sempre ocupou durante mais tempo o campo do rival do
que o seu próprio, e sempre teve o predomínio da posse, alcançando seu maior
índice em março de 2016, quando teve a bola por 82,7% do tempo contra o
Werder Bremen (5 × 0), jogo em que trocou a maior quantidade de passes: 993,
com 92% de acerto. Dos gols marcados pelo Bayern nesses três anos, 72%
aconteceram depois de ações coletivas de média ou longa duração, com a
intervenção de mais de cinco jogadores.
O controle foi um selo de identidade. Esse controle se moldou nos três
grandes fatores do jogo: a bola, o espaço e o ritmo das partidas. É possível
enumerar os jogos oficiais em que o Bayern não teve de fato o controle: os
primeiros doze minutos contra o Arsenal, em 2014; a catastrófica queda diante
do Real Madrid; a derrota para o VfL Wolfsburg, em janeiro de 2015; os treze
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minutos no Camp Nou que transcorreram entre o interessante 0 × 0 e o
desastroso 0 × 3, com Messi como carrasco; a meia hora de histeria no campo
do Mönchengladbach, no final de 2015; e o primeiro quarto de hora contra o
Atlético de Madrid, na semifinal da Champions.
O time não só obteve vitórias sonoras, com títulos e algumas goleadas
monumentais, mas produziu atuações coletivas extraordinárias: em
Manchester, contra o City, na noite dos 94 passes consecutivos; no Olímpico,
desesperando a Roma; nas exibições ofensivas contra o Arsenal, o Porto ou o
Shakhtar, que também tiveram placares ruidosos; em incontáveis
enfrentamentos com o Borussia Dortmund, o Wolfsburg, o Bayer Leverkusen e,
claro, contra outros times de menor porte. Possivelmente, o auge do jogo do
Bayern de Guardiola se deu em três partidas disputadas nos últimos meses: na
primeira hora contra a Juventus, em Turim; na épica virada contra a mesma
Juventus, poucas semanas mais tarde; e na semifinal frente ao Atlético de
Madrid, disputada na Allianz Arena.
No âmbito individual, a atuação mais chamativa foi indubitavelmente a de
Robert Lewandowski, em setembro de 2015, quando conseguiu marcar cinco
gols no Wolfsburg em apenas nove minutos.
Com Guardiola, os traços competitivos do time (que já eram historicamente
muito evidentes) subiram um ponto, pois Pep agregou constância e
regularidade. Basta ver que, pela primeira vez na história, o clube conseguiu
somar quatro ligas seguidas, três delas após a conquista do triplete com
Heynckes. Como disse Ottmar Hitzfeld, “Guardiola não foi avaliado justamente.
Quem não reconhece seu rendimento não tem a mínima ideia. Um time que
ganha o triplete costuma cair num buraco, mas Guardiola fez o Bayern ser ainda
mais ambicioso”.
O clube de Munique nunca havia conseguido ganhar o título nacional
depois de a Alemanha conquistar uma Copa do Mundo: essa tradição de declínio
pós-Mundial também foi quebrada. O Bayern só afrouxou sua competitividade
uma vez conquistadas as ligas, o que foi muito palpável em 2014, suavizou-se
em 2015, mas se evitou em 2016. Enquanto os títulos estiveram em disputa, o
caráter coletivo do Bayern se notabilizou pelo desejo permanente de vitória. O
clube conquistou o título de liga mais precoce da história em 2014 (na vigésima
sétima rodada, ainda no mês de março); prolongou até dezenove a sequência de
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vitórias no campeonato (com dez triunfos seguidos fora de casa); fechou o
primeiro turno do campeonato de 2014/2015 invicto, quando recebeu apenas
quatro gols em dezessete jogos, treze deles sem sofrer gols; e se distinguiu por
seu volume goleador, pois marcou quatro ou mais gols em quase 25% das
partidas (38 dos 161 jogos disputados): ganhou por quatro gols de diferença em
dezessete ocasiões; por cinco, em nove vezes; por seis, em três; por sete, em
duas; e por oito gols, uma vez (a maior goleada foi o 8 × 0 sobre o Hamburgo,
em fevereiro de 2015). Ainda que tenha se destacado na Bundesliga por outras
grandes goleadas (7 × 0 Werder Bremen, 6 × 1 Wolfsburg, 5 × 1 Borussia
Dortmund), foi na Champions League que o Bayern obteve as vitórias mais
sonoras: 5 × 1 ante o Arsenal, 6 × 1 no Porto, 7 × 0 contra o Shakhtar e 7 × 1
sobre a Roma.
O Bayern que Guardiola deixa como herança a Carlo Ancelotti é diferente
daquele que havia recebido de Jupp Heynckes. Na área dos resultados, Pep não
conseguiu deixar um triplete para seu sucessor, mas dois dobletes. No âmbito da
competitividade, legou um time tão agressivo e ambicioso quanto o de
Heynckes, mas ao qual conseguiu adicionar ainda maior continuidade e
estabilidade na vitória. E no âmbito do jogo, a equipe adquiriu uma nova
personalidade, pois, se conserva os principais atributos do quadro campeão
com Heynckes (verticalidade, rapidez e energia), sua imersão no jogo de
posição foi radical. Pode-se afirmar que o Bayern de 2015/2016 foi um dos
times que melhor praticaram esse modelo na história, além do Barcelona de
2011 e do Ajax de 1996.
Para além do terreno de jogo, Guardiola contribuiu na modernização do
Bayern em vários aspectos que rodeiam a equipe. Impulsionou a implantação
de excelentes instalações para a prevenção e reabilitação de lesões em Säbener
Straße, bem como a ampliação e modernização das academias; reduziu as
concentrações do time ao mínimo imprescindível; impôs critérios atualizados e
rigorosos em matéria de nutrição e cuidados com a saúde do jogador; gerou
uma dinâmica poderosa de análise e estudo dos rivais, dotando o clube de uma
ampla equipe de analistas formados por ele; e deixou documentada sua
metodologia de treinamento, tarefas e exercícios. Como resumiu Stefen
Niemeyer, torcedor do Bayern: “Pep e seu entorno foram importantíssimos para
o desenvolvimento do clube, para avançar e alcançar um novo nível, que era
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desconhecido. Para mim foi um exemplo muito bom de como nós, europeus,
podemos desfrutar e ganhar com o intercâmbio e a colaboração”.
O perfil de Ancelotti como sucessor de Guardiola — que lhe desejou os
melhores votos numa mensagem escrita no quadro-negro de seu escritório — é,
a princípio, o ideal para que a nova ideologia futebolística implantada no
Bayern tenha continuidade. O histórico tático do italiano nos revela um
treinador com características de excelente administrador das heranças
recebidas. Ele não possui uma ideologia de jogo tão significativa como outros
técnicos, mas se distingue por sua adaptação ao que recebeu. Depois da
impressão tão profunda que Guardiola deixou em matéria de jogo, Ancelotti
provavelmente será um continuador esplêndido, tanto para que o modelo de
jogo vá adiante quanto para administrar o estresse competitivo que Pep
insuflou nos jogadores em Säbener Straße. O desaparecimento dos rondos no
Bayern, desde o primeiro dia de treinamento com Ancelotti, poderia ser
interpretado como um intento de ruptura ideológica, mas é muito mais correto
entender esse fato como o emprego de uma metodologia diferente. A
incorporação do italiano parece um grande acerto por parte do Bayern e uma
garantia de que os êxitos alcançados nos últimos anos continuarão.
Que as palavras de Arrigo Sacchi sirvam como desfecho para as linhas
anteriores: “Todo treinador que chega para substituir Guardiola tem um
problema: não pode ser melhor do que ele. Mas tem uma vantagem: encontra a
mesa posta”.
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5.1. SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A BUNDESLIGA
Se você não luta de alguma maneira pelo
melhor ou por um ideal, está perdido.
NORMAN FOSTER
A gressividade competitiva e ideologia futebolística. Essas são as duas
contribuições fundamentais de Guardiola para a Bundesliga.
Nos três anos anteriores à sua chegada, o balanço dos triunfos do Bayern
tinha sido irregular. Embora tenha conquistado o soberbo triplete em 2013,
com Heynckes, o clube não obteve nenhum título maior nas duas temporadas
anteriores, apenas a Supercopa alemã de 2012. É evidente que a contribuição de
Jupp Heynckes na temporada 2012/2013 foi um ponto de inflexão categórico na
hierarquia do futebol alemão e a colaboração de Guardiola consistiu em dar
continuidade ao sucesso, uma vez conseguido o triplete. (De fato, o grande
temor na direção do Bayern residia em um possível declínio depois das
conquistas de 2013 ou da Copa do Mundo de 2014.)
O treinador catalão pressionou ao máximo os jogadores para evitar essa
queda e conseguiu que o Bayern não apenas vencesse outros três títulos
consecutivos de liga para somar ao de Heynckes, mas que o fizesse com
recordes absolutos praticamente em todos os âmbitos do jogo. Esse agressivo
espírito competitivo não escolheu campeonatos. Os resultados foram
esplêndidos na liga e na Copa (cinco títulos no total, dois dobletes) e amargos na
Champions, com a desclassificação em três semifinais seguidas.
Li frequentemente que essa característica competitiva do Bayern tinha
pouco mérito, porque a qualidade do elenco era muito superior à de todos os
times alemães. É uma afirmação correta, mas que ao mesmo tempo exige uma
importante análise. É correta porque a qualidade é inquestionável: antes de Pep
chegar, o Bayern já tinha um elenco estupendo que formava o núcleo central da
seleção alemã, e, com ele, melhorou graças a jogadores como Douglas Costa,
Xabi Alonso, Lewandowski, Thiago, Vidal, Kimmich ou Coman. A grande
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questão, no entanto, se resume a uma pergunta: o que fizeram o Bayern e seus
rivais durante esse período?
• O Bayern gastou 53,4 milhões de euros em jogadores (contratações
menos vendas) e conquistou três ligas.
• O Borussia Dortmund gastou 44,15 milhões de euros e fez 62 pontos a
menos que o Bayern nas três ligas.
• O Wolfsburg gastou 27 milhões e fez 73 pontos a menos do que o Bayern
nos três anos.
A diferença de investimento entre os três clubes não é suficientemente
significativa para explicar a grande distância em pontos que separou o campeão
de seus grandes rivais, embora esteja claro que o gasto em contratações não
seja o único fator de influência, pois os salários são outra razão poderosa (os do
Bayern são os mais elevados da Alemanha, porém inferiores aos de seus
grandes adversários europeus), além do fato de o Bayern ter debilitado o BVB
com as contratações de Götze e Lewandowski. Mas tudo isso não é suficiente
para explicar o imenso abismo que o Bayern abriu em relação a seus oponentes.
Como o BVB de Tuchel demonstrou na última temporada, há outras causas,
além do dinheiro, que são precisamente o jogo e o espírito competitivo que um
treinador consegue injetar em seu time. E o próprio acerto nas contratações.
A segunda contribuição do treinador catalão ao futebol alemão é a
qualidade e quantidade de ideias sobre o jogo que ele semeou durante três
anos. As propostas de Guardiola enriqueceram o futebol no país e, ao mesmo
tempo, incrementaram a contradição que se instalou após sua refundação desde
a virada do século. Ao longo desse período, a Alemanha não modificou sua
estrutura futebolística apenas por causa dos resultados discretos da seleção e
dos clubes (maquiados, de vez em quando, por algum triunfo), mas pela
convicção ideológica de que o jogo praticado estava obsoleto. A partir do ano
2000, foram adotadas medidas de grande profundidade que afetaram todos os
estratos dos clubes, estimulando a formação de treinadores, a detecção de
talento, a proliferação de jogadores jovens nas categorias de base e a
estabilidade financeira dos clubes. (Em seu livro Das Reboot, o jornalista
Raphael Honigstein relata de maneira esplêndida as razões desse processo de
renovação e os parâmetros que o compõem.) O resultado dessa transformação
começou a se comprovar a partir de 2006, coincidindo com a Copa do Mundo
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realizada na Alemanha, e foram alcançados rendimentos ainda melhores nos
anos sucessivos, com a seleção nacional, o Bayern e o Borussia Dortmund como
referências.
Se o processo de refundação foi tão acertado, qual é a contradição que
convive com ele? A que é subjacente ao próprio conceito de jogo que se pratica.
No futebol alemão coexistem três grandes vetores ideológicos:
1. A tradição herdada dos anos 1970.
2. A cultura do Gegenpressing popularizada por Klopp.
3. O jogo de posição proposto por Guardiola.
Esse conflito ideológico é profundo e mereceria, por si só, um trabalho
extenso que se afasta do objetivo desta obra, por isso me limitarei a anotá-lo em
linhas gerais. Dentro do futebol alemão, tanto se pensarmos na liga quanto na
própria seleção, sobrevivem poderosos atavismos arraigados a um tipo de jogo
que gerou inúmeros triunfos nos anos 1970 e 1980, ao mesmo tempo em que a
formação técnica majoritária se fundamenta em dinâmicas unidirecionais do
jogo — representadas com êxito pelo Gegenpressing de Jürgen Klopp e
continuadas por outros técnicos como Roger Schmidt e Ralph Hasenhüttl —,
que se conectam emocionalmente ao sentir tradicional do torcedor (correr
muito, entregar-se ao máximo, lutar até a exaustão) e ao próprio caráter
germânico. Basta recordar que a Bundesliga é o campeonato em que os times
correm mais quilômetros, para cima e para baixo sem parar, e com as médias de
velocidade mais altas.
Conversei a respeito com um dos analistas mais interessantes do futebol
alemão, o jovem Tobias Escher, que acaba de publicar o livro Do líbero ao doble
pivote: Uma história tática do futebol alemão, e sua resposta foi muito
significativa, pois nos confirma algo que já intuíamos: aquilo que não se
conhece, nem se reconhece, é geralmente considerado como “abstrato”. Sobre o
mencionado conflito ideológico, disse Escher: “Eu acrescentaria que antes de
Guardiola chegar à Alemanha, ninguém aqui conhecia o conceito do jogo de
posição, porque nunca tinha sido parte da cultura do futebol alemão como
ocorreu na Catalunha ou na Holanda. Na Alemanha, o termo taktik (‘tática’) se
utiliza com frequência como sinônimo de ‘defesa’. Assim, um jogo ‘tático’ é um
jogo defensivo, em que ambos os times fecham seus gols de todas as formas. De
acordo com essa concepção, táticas são necessárias para defender, mas não
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para atacar. Esse, acredito, foi um dos grandes problemas para Pep na
Alemanha: os torcedores, jornalistas e treinadores não eram capazes de ver que,
para marcar gols, é necessário dar aos jogadores determinadas ordens táticas
sobre como devem se posicionar e interagir entre si etc. Na Alemanha, muitas
pessoas pensam que a melhor maneira de marcar gols é deixar tudo nas mãos
dos jogadores. Ou, como Beckenbauer disse a sua equipe em 1990: Fußball de
Geht raus und de spielt! (‘Só temos de jogar futebol!’). Desse modo, na Alemanha,
não se verificou uma consciência autêntica do que Guardiola estava fazendo,
desde o ponto de vista tático. Aqui, atacar é equivalente a ter velocidade. E
Guardiola não usou a velocidade, mas usou algo que as pessoas não entendiam:
o jogo de posição. Creio que esse foi o principal conflito ideológico que tivemos”.
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5.2. TUCHEL, O POTENCIAL HERDEIRO
Não há treinadores infalíveis, nós somos nossa
trajetória… em que há vitórias e derrotas. O
importante é somar mais alegrias do que amarguras.
JESÚS CANDELAS
Outros treinadores alemães, interessados há vários anos no modelo que gerou
tantos êxitos para o Barcelona e para a seleção espanhola, realizaram imersões
para transportá-lo ao futebol alemão, em diversas medidas e proporções.
Joachim Löw é talvez o técnico mais destacado dessa terceira corrente. A
passagem de Guardiola trouxe um enorme fluxo de ideias, novos conceitos e
fundamentos que (acompanhados pelo sucesso obtido) não só estimularam
debate e discussão, como também um poderoso efeito de aprendizagem e
imitação. Treinadores destacados como Julian Nagelsmann, André Schubert ou
Thomas Tuchel são as principais referências dessa terceira tendência, que
Guardiola definiu desde o primeiro dia como “contracultural”, pois significou
um choque estrondoso com a tradição alemã e o jogo de contrapressing.
Assim, o futebol alemão, à margem de seus excelentes resultados, se
encontra imerso em um processo de agitação interna — com pouca visibilidade,
por certo — no qual essas três tendências convivem e discutem de maneira
permanente, em uma tensão latente que não sabemos como terminará. A
contribuição de Guardiola a esse processo foi mais do que notável, ao oferecer
uma versatilidade tática desconhecida e exigir dos outros treinadores respostas
constantes como réplicas às propostas do Bayern. Essas respostas chegaram de
todos os ângulos possíveis: desde um contundente incremento da organização
defensiva (a defesa 6-3-1 deixou de ser avis rara e se converteu em habitual)
até o emprego de uma pressão extenuante para frear a saída de bola do Bayern,
passando pelo uso de todo tipo de disposições táticas em busca de antídotos
para as ideias de Pep, o que serviu como grande estímulo para que ele seguisse
avançando em suas propostas. E, claro, embora se encontre em fase
embrionária, vimos o crescimento de Thomas Tuchel como potencial herdeiro
de Guardiola no âmbito do jogo de posição na Alemanha.
outubro/2017
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Tuchel introduziu no Borussia Dortmund um novo paradigma de jogo. Sem
perder a personalidade intensa, agressiva e direta que Klopp lhe havia
inspirado, criou um variado catálogo estratégico e tático, dotando sua equipe de
um jogo posicional do qual carecia (e que foi uma das principais razões do
declínio no último período de Klopp, quando os rivais lhe cederam a bola e lhe
negaram espaço para correr). Em minha opinião, Tuchel é o treinador alemão
mais interessante dos últimos anos do ponto de vista estratégico, e com grande
futuro. Ele demonstrou isso no Mainz 05 e demonstra no Dortmund. Em suas
mãos, o BVB passou de ser um time que corria muito para um conjunto que
corre com muito sentido.
JANTAMOS?
Munique, 6 de novembro de 2015
Quando se despediam no corredor do vestiário da Allianz Arena, Tuchel
disse a Pep:
— Como está a próxima semana? Podemos jantar algum dia?
— Sim, claro, estou livre na terça. Me telefone e marcamos.
O triunfo do Bayern foi impressionante (5 × 1), mas, na entrevista
coletiva, Guardiola elogiou categoricamente o jogo do Borussia Dortmund.
Não foram palavras diplomáticas, Pep pensava realmente assim. Um par de
horas mais tarde, ele as repetiu diante de Domènec Torrent e Manel
Estiarte. Sentia verdadeira admiração pelo trabalho realizado por Thomas
Tuchel em poucos meses. O BVB, que com Klopp foi um time formidável e
vertiginoso, embora em sua etapa final tenha desenhado um jogo menos
confiável, havia sofrido uma esplêndida transformação nas mãos de Tuchel,
adquirindo um domínio notável de todas as facetas do jogo. O Dortmund
não demonstrou isso nessa tarde na Allianz Arena, onde o Bayern o
esmagou, mas a derrota não ocultou a grande evolução que estava se
produzindo.
Guardiola e Tuchel mantinham uma relação excepcional, que se iniciou
sobre o gramado durante a primeira temporada de Pep na Alemanha,
quando Tuchel treinava o Mainz 05, um time que sufocou o Bayern nas
duas vezes em que se enfrentaram. O técnico catalão ficou admirado com
as propostas de jogo do alemão e ambos se reuniram durante o ano
outubro/2017
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sabático de Tuchel, após sua despedida do Mainz. Comeram no
Schumman’s Bar, onde ficaram célebres as conversas que mantiveram,
usando saleiros e copos para imitar movimentos táticos. O fato de Tuchel
se converter no treinador do grande rival (Borussia Dortmund) não
atrapalhou essa boa relação, de forma que na terça-feira à noite, apenas 48
horas depois de terem se enfrentado na liga, Guardiola e Tuchel
compartilharam uma mesa.
Os mecanismos mentais que Guardiola usou para preparar o encontro
do domingo intrigavam Tuchel. O técnico do BVB tinha consciência de que
havia escolhido uma via heterodoxa para lutar com o Bayern, trocando de
posição ou de papel nada menos do que seis jogadores de seu time básico.
Talvez tenham sido muitos. Tuchel decidiu retornar imediatamente ao
cenário do desastre para tentar averiguar de que modo Pep tinha se
preparado para massacrar um time que, até aquele domingo, era um
prodígio de organização e inventividade.
Guardiola também queria conhecer em primeira mão a razão pela qual
Tuchel tinha trocado tantas peças de seu time e intuir as propostas que ele
apresentaria no futuro imediato. Os treinadores que dirigiam os dois
primeiros colocados do campeonato se reuniram de maneira privada, sem
testemunhas, para compartilhar conhecimentos e sensações poucas horas
depois de se enfrentarem em campo, como fazem os enxadristas após suas
partidas. Nem Pep nem Tuchel temiam revelar seus pensamentos um ao
outro. O essencial ficaria guardado em segredo.
No dia seguinte, Guardiola comentou muito sucintamente o conteúdo
da conversa:
— Se a Alemanha adotar o jogo de posição, será sobretudo graças a
Tuchel.
Perguntei ao treinador suíço Hermann Kälin, de formação eclética por
causa da instrução na Alemanha, da experimentação no México e do
aperfeiçoamento junto a Paco Seirul·lo em Barcelona, se Tuchel seria capaz
de cumprir a profecia de Pep:
— Estou convencido de que o Borussia Dortmund de Thomas Tuchel
será uma equipe para se ter muito em conta no futuro, não só na
Bundesliga, mas também na Europa. Tuchel é, com folga, o treinador mais
promissor da Alemanha nos últimos trinta anos, e digo isso com
outubro/2017
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conhecimento de causa. Ele modificou em pouco tempo o paradigma que o
Dortmund vinha adotando com Klopp. Agora o time corre, em média, dez
quilômetros a menos por jogo do que fazia antes, é mais intenso e joga
melhor, porque tem mais posse de bola. Seu coeficiente de passes certos
melhorou notavelmente e os jogadores exploram melhor suas grandes
qualidades. Agora correm menos, mas correm melhor. Na Alemanha, Pep já
foi o xerife, mas no futuro será Tuchel.
O desafio de Tuchel também é colossal. Depois de uma brilhante primeira
temporada, na qual devolveu a máxima competitividade ao Dortmund, ele não
conseguiu culminar o trabalho com um título, derrotado na liga e na Copa por
Guardiola, e na Europa League por Klopp. Ironias do destino. Durante o verão
seguinte, perdeu três esteios do time — Hummels (contratado pelo Bayern),
Gündoğan (Manchester City) e Mkhitaryan (Manchester United) —, o que o
obrigou a uma recomposição completa da equipe e a seu rejuvenescimento com
jogadores como Merino, Dembélé, Mor, Rode, Schürrle, Guerreiro, Bartra e
Götze. Como se dá em Manchester com Guardiola, a temporada 2016/2017
também será um formidável desafio para Tuchel, após o qual poderemos saber
se, de fato, é possível considerá-lo o herdeiro-sucessor de Pep na Alemanha em
relação às ideias de jogo.
outubro/2017
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5.3. SUA INFLUÊNCIA SOBRE A MANNSCHAFT
O problema do mundo é que os tontos e fanáticos
estão sempre muito seguros de si mesmos, e as
pessoas mais sábias estão repletas de dúvidas.
BERTRAND RUSSELL
Ponderar a influência de um treinador de clube em uma seleção é
terrivelmente difícil. Quanto influenciou a colaboração do Guardiola
barcelonista nos sucessos da seleção espanhola? É impossível precisar. Na
aparência, a influência foi elevada, porque a seleção absorveu por osmose uma
boa parte do jogo do Barça, acrescentando, graças à inteligência do técnico
Vicente del Bosque, outros elementos que agregaram consistência e
diferenciação (Xabi Alonso, como doble pivote, junto a Busquets foi um dos mais
notáveis). Mesmo sendo impossível medir tal influência, é indiscutível que o
jogo implantado por Guardiola no Barcelona teve impacto na continuação do
sucesso da seleção, dado que o núcleo central foi composto de jogadores de Pep
e sua dinâmica de jogo também foi percebida, sem a menor dúvida.
Podemos afirmar o mesmo em relação à seleção alemã que ganhou a Copa
do Mundo de 2014, com uma coluna vertebral formada por homens do Bayern.
Não só a melhora individual em jogadores como Boateng, Kroos, Neuer ou Lahm
se transferiu à Mannschaft, mas uma parte do modelo de jogo praticado pelo
Bayern tomou corpo também na seleção, por decisão e estímulo de Löw, que
acrescentou outros elementos singulares (o papel relevante de Khedira como
interior ou a direção executiva do time por parte de Lahm, mesmo localizado do
lado direito).
Em ambos os casos, sendo certo e inegável que Guardiola teve um papel
nos triunfos das seleções da Espanha e da Alemanha (coincidindo com suas
passagens pelo Barça e pelo Bayern), tanto por dirigir as equipes que formaram
majoritariamente a estrutura dessas seleções quanto pelo progresso individual
dos jogadores, não é menos certo que se trata de uma influência que não pode
ser medida ou avaliada, e que só foi possível graças ao convívio com a
inteligência tática e emocional expressada pelos técnicos Del Bosque e Löw. Em
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qualquer caso, supõe-se um feedback mútuo positivo entre técnicos de
personalidade proativa.
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5.4. O PROGRESSO DOS JOGADORES
O dia a dia equivale a ser um artesão do rendimento.
ROBERTO OLABE
Onde a influência de Guardiola não admite a menor dúvida, pois resultou
poderosa e contundente, é no aperfeiçoamento das qualidades de uma grande
parte dos jogadores que ele treinou no Bayern. Um dos técnicos que mais
influíram no trabalho de Pep é o argentino Julio Velasco, treinador de voleibol,
que assim avalia a progressão do jogador: “O prazer do treinador tem de ser o
prazer de um artesão, não o de um industrial. Somos artesãos do ensinamento e
da formação do esportista. O treinador tem de ser feliz com o progresso de seu
esportista, não com o resultado que ele conseguir. Feliz pelo processo, não pela
vitória. Isso é o que deve nos encher de satisfação. O primeiro prazer é ver os
seus jogadores crescerem. E o segundo é a vitória que se obtém com esses
jogadores”.
As palavras de Velasco ilustram à perfeição o sentimento de Guardiola em
sua relação com os jogadores: “Em geral, na vida você já sabe quem é quem. E
sabe quem o quer bem de verdade e quem só o procura por outros interesses.
Veja, de todos os jogadores que tenho, eu já sei quem ajudei, a quem vou deixar
algo — pequenininho — para sua vida e para quem não vou significar nada. E
com esses últimos será assim por uma única razão: simplesmente porque minha
ideia de jogo não os agrada. Não terá havido nenhuma má intenção por parte
deles, apenas essa ideia que não os agradou”.
Ajudar seus homens é a principal motivação de Pep, até mais do que
ganhar. Comprovamos pessoalmente com um jogador que não conseguiu
melhorar com Guardiola: Mario Götze. Pep nunca dedicou a um atleta tantos
esforços, tantas horas de vídeo, análise e conversas como com Götze. Com
nenhum outro ele teve tanta paciência ou tentou tantas variantes, a nenhum
outro deu tantas oportunidades. Sem sucesso. Provavelmente em razão do
excesso de expectativa que se gerou na Alemanha em relação a essa jovem
promessa, logo comparada a Messi, quando na realidade Götze é menos
extraordinário do que se imaginou quando ele tinha dezoito anos. Ou talvez seja
outubro/2017
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apenas mais um dos inúmeros casos de esportistas que, em determinados
contextos, não conseguem expressar suas qualidades. O indiscutível é que tanto
Guardiola quanto Götze tentaram de forma notável durante 36 meses, sem
alcançar tudo o que desejavam.
Por outro lado, a lista de êxitos é longa. Lahm passou de ser um lateral
formidável a um meio-campista imprescindível: um cérebro executivo em
campo, sem importar a região que ocupe, capaz de determinar os ritmos, dar
passes decisivos e agregar uma dose impensável de certeza a seu time. Pep viu
em Boateng um diamante bruto desde o primeiro momento e o poliu a um
ponto que nem sequer o próprio jogador tinha sonhado; hoje ele é um defensor
central portentoso, de muita visão de jogo e com uma técnica de passe superior.
Com Guardiola, Neuer extraiu todas as suas capacidades intrínsecas: de goleiro
se transformou em verdadeiro futebolista, e não só por ter adotado o
posicionamento mais próprio para um líbero em diversas ocasiões, mas porque
sempre deu continuidade ao jogo, não tanto por sua técnica com os pés, mas por
uma disposição mental em permanente concentração.
A CONCENTRAÇÃO DE NEUER
Munique, 5 de novembro de 2014
O jogo deixou uma curiosidade. O Bayern finalizou 24 vezes, reflexo de seu
domínio, e a Roma só conseguiu disparar duas vezes ao gol, ambas aos 38
minutos do segundo tempo, quando Neuer fez duas defesas soberbas em
chutes consecutivos de Gervinho e Nainggolan. Fiquei surpreso com a
capacidade de Neuer de se manter tão atento quando o jogo já estava
terminando, após oitenta minutos nos quais praticamente não atuou. Fiz
esse comentário a Toni Tapalović, o treinador de goleiros do Bayern, que
me respondeu assim:
— Não se surpreenda. Manu está sempre concentrado, não se distrai
nunca. Ainda que não intervenha, ele está jogando a partida em todos os
segundos de cada minuto.
Joshua Kimmich foi outra vitória pessoal de Guardiola, que acreditou
cegamente nele (“Cedo ou tarde, Kimmich vai atuar na seleção. Ele tem tudo de
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que um jogador necessita”, setembro de 2015), estimulou-o a jogar com
valentia, utilizou-o em situações e papéis impensados, corrigiu-o duramente
quando foi necessário e confiou a ele desafios relevantes até impulsioná-lo a ser
um indiscutível jogador de seleção: o jovem Kimmich foi um aluno
extraordinário.
KIMMICH, A GRANDE ESPERANÇA
Munique, 10 de agosto de 2014
Faz um calor abrasador em Munique quando o telefone toca e acorda
Estiarte. É Pep:
— Vamos para a Allianz. Pego você em dez minutos!
Michael Reschke, o responsável pelo scouting, espera os dois no
estádio. Mas o Bayern não vai jogar, e sim o rival municipal, o tsv 1860
München, da segunda divisão, o que surpreende ainda mais Estiarte. O time
enfrenta o rb Leipzig, no qual atua Joshua Kimmich, uma das grandes
pérolas do futebol alemão. Kimmich se proclamou campeão europeu sub-
19 com a Mannschaft apenas dez dias antes. Guardiola e Estiarte chegam a
tempo, às 15h30, para ver o início de um jogo que acaba sendo um absoluto
desastre. Uma partida banal, em que a bola voa de uma área à outra sem
parar no centro do campo. É um jogo horrível, sem a menor consistência
tática e de uma pobreza entristecedora, no qual Kimmich toca apenas 33
vezes na bola.
Mas sete dias mais tarde, Guardiola telefona de novo para Estiarte e,
desta vez, está profundamente alterado:
— Manel, Manel, estou no carro, chego em dois minutos! Você precisa
ver Kimmich! É uma máquina!
Pep decidiu dar uma segunda oportunidade ao rapaz e se entusiasmou
com o que viu: a capacidade de direção de Kimmich, seu sentido do jogo e
dos ritmos, como perfila o corpo, recebendo com uma perna e passando
com a outra, seu olfato para as coberturas e um sentido agudo para intuir
qual deve ser a ação seguinte. Pep observa nele um grande talento e o quer
a seu lado. E o quer já.
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Douglas Costa chegou a Munique rodeado de interrogações, e até o
treinador teve de forçar seriamente sua contratação diante da resistência do
clube. Quem é?, perguntaram-se os jornalistas, torcedores e também algum
dirigente do Bayern. Meses mais tarde, Costa não só se transformou na
revelação da Bundesliga, mas em um jogador imprescindível para que o jogo do
time tivesse harmonia, sem que importasse em qual posição ele atuava. Quando
Kingsley Coman aterrissou no Bayern, era uma promessa que pouco participava
dos jogos na Juventus, mas em Munique terminou sendo um dos carrascos do
ex-time (como disse Guardiola: “O cruzamento feito por um rapaz de dezenove
anos é o que transforma você em vencedor ou fracassado”). Toni Kroos era um
mediapunta excelente em quem Pep aperfeiçoou os fundamentos de meiocampista
central interior, que assenta seu time no campo do adversário e o
conduz em qualquer um dos eixos, qualidade que depois, com os
aprimoramentos de Ancelotti no Real Madrid, lhe permitiu se transformar em
um maestro. David Alaba era um lateral imparável, uma fúria elétrica, o jogador
com maior capacidade atlética da equipe e, nesses três anos, tornou-se um
futebolista completo: foi defensor central nos trechos mais decisivos do último
ano de Guardiola, meio-campista interior em muitos momentos, extremo e até
centroavante, sem perder suas qualidades originais; para seu progresso,
sempre foi melhor orientá-lo do que deixá-lo livre como o vento. Finalmente,
Lewandowski e Müller, os dois jogadores de perfil mais heterodoxo, obrigaram
o treinador a exprimir sua capacidade de construir ambientes de jogo
específicos para qualidades tão anárquicas como as deles, até conseguir um
encaixe que funcionou de forma tão eficaz que ambos pulverizaram suas marcas
goleadoras (Lewandowski, 44 gols, com um incremento de 50% em relação à
média dos três anos anteriores; Müller, 32 gols, incremento de 39%).
Xabi Alonso expressou em poucas palavras qual era o segredo de tantas
lapidações: “Com Pep, tudo é muito trabalhado em detalhes. As coisas saem bem
não por acaso ou porque ele nos dá instruções, mas porque, com ele, você
trabalha, trabalha e trabalha”. Sem a menor dúvida, a melhora experimentada
pelos jogadores está na base da felicidade com que Guardiola se despediu de
Munique. Foi sua maior satisfação e uma das contribuições mais importantes
que realizou na Alemanha:
— A grande influência que nós treinadores temos é essa. Hoje veio nos ver
um assistente técnico do Real Madrid, que nos disse: “Vocês não sabem como
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Toni Kroos fala de vocês, de toda a equipe técnica: ‘Tudo o que os treinadores
nos diziam acabava acontecendo e sabíamos tudo sobre os rivais’”. Aí está,
pronto, esse é o meu trabalho e a minha satisfação. Não é a metodologia nem
nada parecido: é ensinar algo aos jogadores, e que eles notem. Você ajudou esse
jogador a entender o jogo ou a ser ainda melhor? Bingo, missão cumprida.
Destacamos em Pep seu talento tático e também sua evolução estratégica,
mas na realidade o que o define melhor como treinador — em expressão que
tomo de Dante Panzeri — é que ele “sabe fazer jogadores”: sabe extrair suas
melhores qualidades.
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BASTIDORES
O FLOW DE LEWANDOWSKI
Munique, 22 de setembro de 2015
Se o flow existe, o flow se encarnou em Lewandowski.
— Hoje vamos meter quatro neles…
Foram cinco. O autor da frase é Juanma Lillo, uma das duas grandes
referências técnicas de Guardiola, junto com Johan Cruyff. Como fazem
frequentemente, Pep e Lillo conversaram por um longo tempo,
analisando o desempenho do Bayern diante do Darmstadt 98 (jogo que o
Bayern venceu por 3 × 0 no sábado passado, com um brilhante
rendimento de homens como Rode e Coman).
— Percebeu que nos movemos pouco, mas bem?
A pergunta de Pep é retórica. Ele já sabe que seu time se moveu
bem e pouco. Guardiola, como Lillo, pensa que é a bola que deve chegar
aos jogadores — e não os jogadores que devem ir até a bola. Correr, sim,
mas com sentido. Correr muito, mas com muito sentido. Não correr para
se mostrar, nem correr para se precipitar em relação à bola, mas para
estabelecer posições e conseguir que a bola chegue rápido aos jogadores
que as ocupam. E correr muito, claro, mas para pressionar o rival, para
atacar com profundidade no momento oportuno, para se recolher
quando você é contra-atacado, para alcançar as posições que devem
estar sempre ocupadas… Pep quer que seu time corra muito (“Devem
correr como loucos”), mas com os objetivos claros e não correndo
apenas por correr.
Às vezes, seus jogadores correm “demais”. Correm sem necessidade
e sem sentido. Arturo Vidal é um dos que precisam dessa reconversão:
em Darmstadt, mostrou uma grande evolução e Lillo comenta com Pep.
O treinador catalão está satisfeito com a incorporação do meio-campista
chileno.
Na conversa por telefone, Pep faz elogios a Joshua Kimmich, o
diamante que o encantou um ano atrás e que, em Darmstadt, fez sua
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estreia como titular na Bundesliga, mostrando um rendimento soberbo.
Hoje, Guardiola observa que a Alemanha tem vários dos melhores
meios-campistas centrais jovens do mundo: um é Kimmich, outro é
Julian Weigl, do Borussia Dortmund, e outro é Gündoğan, versátil e capaz
de jogar em todas as posições do meio de campo. Kimmich joga como o
próprio Guardiola fazia; Weigl joga como Sergio Busquets; Gündoğan
acrescenta uma excelente capacidade de condução. A Alemanha tem o
futuro garantido.
Guardiola está concentrado no Wolfsburg, o grande rival da
temporada passada e que, há sete semanas, o impediu de conquistar a
Supercopa alemã. O VfL visita a Allianz Arena e ainda não perdeu na liga.
É um inimigo perigoso.
— Tranquilo, Pep, vamos meter quatro neles.
Foram cinco. Foi um momento mágico. Um momento que durou
quase nove minutos. Um momento durante o qual Robert Lewandowski
alcançou esse estado de flow: “Foi uma loucura”, disse o goleador. “Eu só
queria chutar e chutar e não pensar no que estava acontecendo…”
A história lembrará que, em oito minutos e 57 segundos,
Lewandowski tocou nove vezes na bola, finalizou seis vezes, chutou uma
bola na trave e marcou cinco gols.
Mas o impacto foi maior do que as simples cifras ou os recordes
pulverizados. O impacto na Allianz Arena foi vulcânico. Foram nove
minutos improváveis, desses com os quais não se pode sonhar, que não
podem ser previstos nem imaginados. Nove minutos mágicos em que
Lewandowski acabou com as angústias e os temores de falhar nas
finalizações. Arrancou essa membrana de temor que o cobria, que o
amarrava, que o encolhia, e desencadeou todo o seu potencial, sua força,
seu chute.
O impacto sacudiu o mundo do futebol. Os comentaristas de rádio e
televisão enlouqueceram, gritando como se estivessem possuídos,
enquanto os torcedores viviam uma algazarra inédita à medida que
Lewandowski acumulava conclusões a gol. Os gols aconteciam um atrás
do outro, e o polonês entrou em transe, como se uma força interior o
impulsionasse em direção à meta de Benaglio, submetido a uma tortura.
O Wolfsburg, pétreo e sólido como uma rocha no primeiro tempo, se
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desmoronou como areia de praia. Os próprios jogadores do Bayern
pareciam estar assistindo a um milagre e também se contagiaram pelo
flow de Lewandowski, pois Vidal logo encontrou corredores gigantescos
onde enviar a bola, Müller aumentou sua capacidade para emaranhar as
pernas dos rivais, Douglas Costa pareceu multiplicar sua velocidade e
Götze — talvez mais do que qualquer um — também pareceu
compreender que estava compartilhando um momento histórico, pois
serviu três bolas sensacionais para que seu companheiro as mandasse à
rede.
Houve muitos momentos mágicos na história do futebol, mas esse
terá sido um dos mais potentes pela forma como um atacante rompeu
tudo o que estava preestabelecido. Ninguém refletiu melhor a
inverossimilhança do ocorrido que Guardiola, cujo rosto mostrava a
incredulidade do mundo inteiro diante da magia de Lewandowski. Com
as mãos na cabeça, a boca aberta e os olhos quase lacrimejando, Pep era
o espelho onde todos olhamos para tentar compreender como aquela
proeza havia sido possível, e a imagem que o espelho nos devolveu foi a
de nós mesmos com as mãos na cabeça, a boca aberta e os olhos
lacrimejando. O que aconteceu?
— Não sei! Não posso explicar. Foi algo mágico — diria Pep mais
tarde.
Algo mágico. Nove minutos mágicos de Lewandowski, o goleador
que entrou em transe para protagonizar um momento inesquecível.
O Bayern começou dominador como está acostumado, mas o
Wolfsburg não só o freou como chegou ao intervalo com vantagem no
placar. A eficiência do time de Hecking se resume em um dado frio: foi a
décima segunda vez, em 2015, que o Wolfsburg marcou um gol em seu
primeiro disparo à meta rival…
O gol não fez mais do que acentuar os problemas do time de
Guardiola, que com meia hora de jogo mandou Javi Martínez e
Lewandowski aquecerem, revolucionando tudo no vestiário. Quando as
coisas vão mal, não se deve dar broncas, mas fazer as correções
oportunas. E foi isso que aconteceu: Bernat e Thiago saíram da equipe. A
reorganização se mostrou acertada. Javi Martínez se ocupou de Bas Dost
e o anulou: ganhou os sete duelos aéreos que mantiveram no segundo
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tempo. Isso permitiu que Boateng se liberasse como central pela
esquerda e pudesse organizar com tranquilidade a saída de bola, sem se
preocupar com o atacante holandês.
A segunda grande modificação foi a troca dos extremos, que
passaram a jogar com sua perna natural: Götze na direita, Costa na
esquerda, o que desbaratou a tática de teia de aranha de Hecking. Um
terceiro fator somou ainda mais benefícios à reorganização do Bayern: a
profundidade de Alaba como lateral esquerdo alterou a marcação sobre
Douglas Costa, que passou a enfrentar um único rival. E a posição de
Müller atrás de Lewandowski completou a transformação. Os quatro
fatores, mais um 4-2-4 bem protegido no meio de campo, foram a
significativa mudança de cenário que precedeu a explosão.
Quem iniciou o festival foi Mario Götze, um jogador submetido a um
escrutínio severo. Foi ele quem deu o passe a Arturo Vidal, que chegou
correndo à área desde a segunda linha e deu a bola à Müller, e o desvio
em Dante permitiu que Lewandowski abrisse sua conta goleadora. Götze
começou tudo e, na metade do flow de seu companheiro, seguiu servindo
bolas deliciosas. Também deu os passes do terceiro e do quinto gols,
realizou quatro dribles completos, roubou duas bolas perigosas e
completou uma atuação extraordinária, à sombra do fenômeno que
assolou a Allianz Arena. Silencioso e discreto, Götze foi o detonador do
“flow Lewandowski”. Isso aconteceu várias vezes com Götze: nas três
temporadas de Guardiola, ele não brilhou à altura esperada, mas
realizou grandes partidas que não foram valorizadas em sua justa
medida, provavelmente porque esperavam que ele fizesse o impossível,
fosse o novo Messi.
Outro fato, também relevante, teve destaque esta noite, mas passou
despercebido diante do desempenho explosivo de Lewandowski.
Analisando as partidas jogadas até hoje, observamos que vem
acontecendo algo significativo em relação ao balanço de gols marcados e
sofridos pelo Bayern:
Primeiros tempos: 4 gols a favor / 3 contra
Segundos tempos: 16 gols a favor / 0 contra
Comentei com Pep nessa mesma noite do triunfo contra o
Wolfsburg que isso não podia ser coincidência.
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— Que Dome lhe responda — disse.
Então levei os dados ao auxiliar técnico. Por que essa enorme
diferença de gols marcados e sofridos entre as primeiras e segundas
partes? Esse parcial de 16 × 0 nos segundos tempos era demolidor.
— Isso é fruto do jogo que Pep apresenta. Ainda há gente que
parece não compreender, mas isso é o que Pep busca. Ter a bola em
nosso poder, cansar o adversário, modificar as propostas e o desenho
tático como quiser sem se preocupar, até que chega um momento em
que tudo isso junto faz com que o rival já não consiga pressionar nem
fechar corretamente os espaços. E então os gols aparecem. É simples
assim.
Dezesseis gols a zero nos segundos tempos. Não era coincidência…
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CAPÍTULO 6
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O PLANO ESTRATÉGICO
O método estratégico consiste em desafiar todas
as hipóteses em vigor com uma única pergunta: por quê?
KENICHI OHMAE
Tudo o que foi detalhado até agora permite compreender a personalidade de
Guardiola, os trabalhos que realizou no Bayern, as mudanças que introduziu,
sua vontade de absorver conhecimentos e os traços táticos essenciais do futebol
que ele propõe. Mas essas são apenas características da pintura, não a obra
completa. E se é muito interessante ver Guardiola de perto, como se usássemos
um microscópio, é ainda mais necessário contemplá-lo de longe, com um
binóculo que nos facilite a compreensão global de seu trabalho, o quadro
completo da obra.
Esse quadro global é seu “plano estratégico”. É um plano preparado para
três anos em que ele pretende dotar o time de todas as ferramentas e
conhecimentos necessários para desenvolver o tipo de jogo que propõe, tendo
em conta o contexto competitivo em que se encontra e a especificidade dos
jogadores que compõem o elenco. Pep o aplicou no Bayern e, aperfeiçoando a
experiência de sete anos em times de elite, também o desenvolveu para o
Manchester City. Tal plano contém os seguintes elementos estritamente
futebolísticos:
• Modelo de jogo
• Fundamentos de jogo
• Metodologia de treinamento
• Planos de jogo
• Elementos táticos
• Ações táticas
• Aperfeiçoamento técnico-tático
• Análise do rival e do contexto competitivo
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Também trata de elementos que não são especificamente futebolísticos, e
sim mais relacionados à equipe:
• Nutrição
• Prevenção de lesões
• Reabilitação de lesões
• Recuperação do esforço
• Preparação emocional
• Cultura de equipe
Podemos compreender que o plano estratégico é muito mais amplo do que
o modelo de jogo e figura em um nível superior aos planos de jogo conjunturais
que se estabelecem para cada partida, ou aos módulos, sistemas e ações táticas
que se utilizam de maneira específica durante a temporada. É um plano de
longo prazo, de três anos, durante o qual Guardiola busca desenvolver todas as
suas ideias de jogo e fazer que os atletas consigam extrair todo o seu potencial.
Essas ideias, por sua vez, não são peças imutáveis. Estão sob permanente
influência do contexto competitivo, dos rivais, das ocorrências e adversidades
dentro do próprio time, dos estados de forma física, técnica e emocional, tanto
individuais quanto coletivos, e da exigência competitiva do calendário. As ideias
de jogo são permeáveis e mutáveis ao longo de todo o período de vida do plano
estratégico. Poderíamos catalogá-las como “seres vivos” que evoluem ao longo
desse período: nascem, crescem, amadurecem, morrem e são substituídas por
outras ideias.
A estratégia é a moldura em que a obra será criada; os planos de jogo e as
táticas são os pincéis e os traços com os quais se pinta a obra. A tática aparece
na continuação da estratégia, por mais que coloquialmente ambas sejam
confundidas, dando-se sua fusão num mesmo conceito. Estratégia é se
perguntar “o quê?” e “por quê?”. Tática é se perguntar “como?” e “quando?”. A
estratégia nos indica até onde vamos; a tática, como iremos até lá.
QUAL É A TÁTICA, PEP?
Barcelona, 27 de junho de 2016
outubro/2017
Clube SPA
— A tática é que cada jogador saiba exatamente o que deve fazer em cada
momento e em cada posição que ocupa durante uma partida específica.
— É preciso adaptar a tática de sua equipe à do rival?
— Claro que sim. Contra quem jogamos? Contra o vazio? Não, jogamos
contra outro time que tem qualidades específicas e nós devemos conhecer
essas qualidades, saber todos os seus pontos fortes e fracos, temos de
radiografar o rival e nos adaptar a ele. Nossa responsabilidade é conhecer
contra quem jogamos e fazer com que nossa tática esteja adaptada a essas
características. Cada jogador deve conhecer essa realidade do oponente e
saber o que deverá fazer em cada circunstância.
— E se o rival modifica seus comportamentos habituais durante o
jogo?
— Nós precisamos prever isso e saber como deveremos atuar. Quando
digo “nós”, quero dizer todos nós como equipe, ou seja, que cada jogador
saiba o que precisa mudar a partir do momento em que decidimos alterar
alguma coisa por causa do rival. Tanto no princípio, porque defende com
cinco em vez de quatro, como durante o jogo, porque houve uma mudança
de planos. É necessário ter trabalhado todas essas modificações em
treinamento, e os jogadores precisam conhecer todas essas possíveis
variações e qual deve ser sua reação imediata.
— Portanto, preparar-se e conhecer [o rival] é mais importante do que
o módulo que usamos ou a distribuição espacial.
— Sem dúvida. A tática não é combinar números: é saber o que fazer
em cada momento.
Guardiola sempre foi mais tático do que estratégico. O aspecto que ele
dominou sempre foi a preparação de cada uma das batalhas que enfrenta (as
partidas), ou seja, o âmbito tático do futebol. Entretanto, a estratégia é um
aspecto em que havia grande margem para que ele melhorasse e a experiência
na Alemanha lhe foi muito útil para avançar nessa questão. Após sua etapa em
Munique, Pep confere uma importância muito maior ao quadro estratégico.
Essa focalização em médio prazo é a causa de suas demonstrações de
insatisfação, mesmo ao longo de uma sucessão de vitórias: talvez o time esteja
vencendo, mas não avançando corretamente pelo caminho adequado, o que
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pode ser muito mais negativo do que uma derrota conjuntural, porque o
resultado em curto prazo costuma atentar contra o em médio prazo.
Ao se mostrar esquivo após uma vitória, Pep gera estranheza na torcida ou
na imprensa, mas o fato é que ele se protege muito durante o triunfo, bem mais
do que na derrota. A melhora e o crescimento de um time não são produzidos
por causa dos triunfos obtidos, mas em virtude das lições que extraem deles e
das derrotas também. Os resultados provocam alegrias ou tristezas, mas nunca
dão razão. Marcelo Bielsa falou do triunfo como um “impostor”, e Garry
Kasparov avisou sobre seus perigos: “Eu chamo de ‘o perigo do sucesso’. Ganhar
cria a ilusão de que tudo está bem. Há uma tentação muito forte de pensar só no
resultado positivo sem ter em conta todas as coisas que saíram mal (ou que
poderiam ter saído mal) pelo caminho. Depois de uma vitória, queremos
celebrá-la, não analisá-la. Reproduzimos o momento triunfal em nossa mente
até que o percebemos como se fosse algo completamente inevitável para
sempre. […] A complacência é um inimigo perigoso. A satisfação pode levar a
uma falta de vigilância, a cometer erros e perder oportunidades. [É] uma
espécie de paradoxo. O êxito e a satisfação são nossos objetivos, mas também
podem dar lugar a padrões negativos de comportamento que impeçam o grande
êxito e a grande satisfação”. Advertido por seus amigos, Guardiola busca o
triunfo acima de qualquer outro objetivo; porém, uma vez conquistado, ele vigia
suas consequências ao extremo.
Estabelecida a relevância que o plano estratégico tem para Guardiola,
passarei aos aspectos menos comentados sobre ele, uma vez que, no livro
anterior, descrevi minuciosamente a metodologia de treinamento, os rondos e
jogos de posição, a preparação física, a importância da análise dos rivais e do
cuidado com a nutrição, além de vários detalhes quanto à preparação emocional
dos jogadores. Ainda no primeiro livro, especifiquei as variantes e ações táticas
utilizadas; por isso, vou me concentrar agora somente em três aspectos
específicos do quadro estratégico:
• Modelo de jogo
• Planos de jogo
• Cultura de equipe
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6.1. O MODELO DE JOGO
O modelo de jogo é tão forte
quanto o mais fraco de seus elos.
FRAN CERVERA
O modelo de jogo reflete a personalidade da equipe e, portanto, o caráter do
treinador. É a caixa de ferramentas do time. Como sabemos, um encanador não
leva em sua maleta os mesmos instrumentos de um cirurgião, e um carpinteiro
não leva um colete salva-vidas. O treinador é quem fornece esse modelo à
equipe, baseado em seus fundamentos de jogo. De acordo com sua sensibilidade
para compreender as qualidades conhecidas e ocultas dos jogadores, será maior
ou menor o grau de adaptação, harmonia e coesão futebolísticas que o time
exibirá.
É indubitável que, mesmo que Guardiola tenha estabelecido no Bayern um
modelo de jogo absolutamente identificável, o jogo de posição (seguiremos
usando esse termo por enquanto), se o meio de campo tinha Lahm, Kroos e
Thiago, não aconteciam as mesmas coisas de quando era formado por Xabi
Alonso, Vidal e Müller. As características dos jogadores influenciam
decisivamente no desenvolvimento do jogo pretendido, o que, por sua vez,
provoca uma percepção distorcida do conceito de modelo de jogo que um
treinador possui. O modelo de Guardiola tem fundamentos indiscutíveis, que
repassaremos:
• Posse de bola: a posse é uma ferramenta, só uma ferramenta, não é o
modelo de jogo nem a filosofia que o inspira.
• Superioridade numérica na defesa e numérica ou posicional no centro do
campo.
• Amplitude máxima de campo para encontrar a maior profundidade
possível, combinando com sequências de passes para atrair adversários e
liberar o atacante para seu duelo individual.
• Escalonamento de jogadores para facilitar o início do jogo e o avanço
compacto.
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• Busca do terceiro homem em todas as ações de construção de jogo e de
homens livres entre as linhas de pressão rivais (terceiro homem = buscar o
homem livre partindo de triângulos).
• Proteção defensiva mediante a posse da bola (como disse Pep: “A melhor
maneira de esfriar um ambiente quente é ter a bola”) e o emprego seletivo da
pressão depois de sua perda.
• Respeito às posições, estimulando a troca de jogadores nelas e dando
prioridade para que a bola chegue ao jogador que a espera, e não o contrário.
• Excelência no gesto técnico, incluída a posição corporal na recepção e no
passe, além da busca de passes que melhorem a posição do companheiro.
• Intensidade máxima em todos os momentos do jogo, entendida como
poder de concentração.
• Posição dominante no campo (refletida pela linha defensiva adiantada) e
orientação puramente ofensiva.
É claro que acontece de forma diferente se esses fundamentos são
executados pelos jogadores mencionados do Bayern, ou por Busquets, Xavi e
Iniesta no Barcelona. Naquele caso, o Barcelona de Pep usava muitos passes
curtos e próximos, um avanço gradual e muito compacto, uma orientação
frequentemente horizontal para facilitar esse avanço e um sprint final
estreitamente relacionado com a finalização genial e inigualável de Messi. No
Bayern, as características dos jogadores utilizados induziram a buscar ações
diferentes, por isso vimos uma orientação muito mais vertical e rápida,
numerosos passes em diagonal para os lados, uma notável preponderância dos
extremos e um intento de finalização muito mais coletivo do que individual. E,
sem a menor dúvida, perceberemos outro tipo de jogo em Manchester se, por
exemplo, os intérpretes no centro do campo forem Fernandinho, Gündoğan e
Silva.
Vamos, então, repetir a pergunta do quarto capítulo: Guardiola modificou
seu modelo de jogo? Se considerarmos que ele acrescentou nuances
importantes, adaptou-se às características dos jogadores disponíveis e se
enriqueceu com conceitos que lhe pareceram úteis, poderíamos afirmar que,
sim, modificou. E não só ao longo dos três anos vividos em Munique, mas em
cada temporada e até entre uma partida e outra. De fato, cada encontro não é
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feito só de competição e sobrevivência, pois forma parte de um plano mais
amplo de execução de seu modelo. Mas essa mudança de modelo de jogo
conserva todos os fundamentos essenciais em Guardiola, sem eliminar nenhum
deles, e enriquecendo os existentes graças à exigência com que reagiram os
concorrentes.
O modelo do “jogo de posição” tem duas qualidades de destaque. De uma
parte, se trata de um modelo estruturado e definido, que dota o jogador de um
conhecimento espacial e dinâmico: o treinamento lhe instrui as possíveis rotas
que o jogo pode tomar; é um mapa detalhado da topografia que deve ser
superada e, portanto, é uma ajuda inestimável para o protagonista. Por outro
lado, ainda que pareça contraditório em relação à frase anterior, é um modelo
aberto — “evolutivo” — que se conecta bem com a complexidade do futebol:
permite incluir melhorias e avanços, modificar as falhas e fraquezas que são
observadas e adaptar o mapa às características específicas dos jogadores e à sua
progressão.
Podemos assemelhar o modelo de jogo à partitura de uma obra musical.
Guardiola compôs sua partitura, mas cada orquestra que ele dirige a interpreta
com matizes específicos. Entretanto, o maestro introduz novas notas à partitura
em função de como soa a orquestra, de como se sentem os intérpretes e qual é a
acústica da sala (e do adversário, é claro, fator essencial no futebol). É uma
partitura “mutável” em seus matizes, que evolui continuamente durante os três
anos de vida do projeto. A música soa parecida, mas, na comparação do início
com o final, percebemos notáveis diferenças no ritmo, na harmonia e na
interpretação. O maestro Christian Thielemann explica: “Pode-se tocar uma
obra do mesmo modo ou se pode fazer uma ruptura total. Então, o estilo
reaparece, mas com outra dinâmica. Esses detalhes surgem depois de repetidas
execuções. Alguém pode pensar que é igual, mas é, no máximo, parecido”.
Aqueles que queiram seguir rotulando Guardiola como o treinador do perene
tiquitaca não terão entendido nada de seus sete anos como treinador.
Um modelo de jogo é, enfim, um quadro fixo e móvel ao mesmo tempo. É
uma partitura que se modifica diariamente conforme o rival, a experiência e a
evolução das próprias ideias.
UM TIME É UMA ORQUESTRA
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Barcelona, 1o de julho de 2015
Uma equipe de futebol é como uma orquestra sinfônica. Paco Seirul·lo
opina de modo parecido, embora com nuances interessantes: “Uma equipe
se parece a uma orquestra se observamos o futebol pela linearidade: o
defensor destrói, o médio constrói, o atacante finaliza, o treinador leva a
batuta, e com tudo isso dizemos que é uma orquestra. E o que é a partitura?
A história. Mas para que a metáfora seja bastante próxima à realidade do
futebol, devemos acrescentar a possibilidade de quem toca o trombone ser
capaz de mudar de instrumento e tocar o violino, assim como todos os
demais instrumentos. E está claro que isso não acontece em uma orquestra,
mas sim em um time de futebol”.
Juanma Lillo: “Há outra diferença substancial para acrescentar à que
Paco aponta: no futebol, você sempre enfrenta um adversário. Não sei se
você é uma orquestra ou não, mas evidentemente será uma orquestra que
enfrenta outra orquestra, que está tocando ao mesmo tempo”.
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6.2. OS PLANOS DE JOGO
Normalmente, uma batalha se engendra de forma
convencional, mas se ganha mediante táticas de surpresa…
A surpresa e a convenção surgem reciprocamente em ciclos.
SUN TZU
A singularidade do futebol alemão estimulou em Guardiola a busca de
variantes táticas para responder a forças que ele não estava acostumado a
enfrentar. E provocou no treinador o aumento de repertório em seus planos de
jogo. Essa foi uma de suas maiores novidades na Alemanha, pois a variedade de
recursos táticos utilizados pelos adversários (que ao longo desses três anos
também evoluíram num ritmo similar ao imposto por Guardiola) motivou o
treinador catalão a não ficar estancado na zona de conforto de seu modelo de
jogo e a se aprofundar em uma área que não havia explorado em toda a sua
extensão: os planos de jogo.
O que entendemos exatamente disso? É o cenário estratégico com o qual se
planeja uma partida específica. Se o modelo de jogo tem um caráter geral, o
plano de jogo possui um caráter particular. É composto do sistema ou módulo
de jogo a ser empregado; dos jogadores que serão escalados e pelas
substituições em função dos acontecimentos; dos elementos táticos que serão
desenvolvidos de acordo com o rival (posições para cobrir, movimentos a
realizar, coberturas especiais…); das jogadas de bola parada, ofensivas e
defensivas; e do ritmo ou tempo de jogo recomendável. O treinador não só deve
prepará-lo nos mínimos detalhes, como deve estar pronto para perceber e
assimilar o mais rapidamente possível o que está acontecendo em campo, a fim
de introduzir as modificações necessárias.
O plano de jogo, portanto, é muito mais amplo do que coloquialmente se
considera o sistema de jogo. Quando lhe perguntaram sobre as frequentes
mudanças de sistema dentro de uma mesma partida, Guardiola respondeu: “O
importante não é o sistema, mas as ideias”. Quando disse “ideias”, ele se referia
ao plano de jogo. Indubitavelmente, o plano de jogo de uma partida tem
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semelhanças inevitáveis com o plano de batalha de estratégias militares, dado
que consiste na avaliação — que deve ser a mais acertada possível — das
próprias forças e das adversárias.
Temos quatro níveis diferentes que (peço desculpas pela repetição)
definirei novamente para facilitar a compreensão:
1. Plano estratégico: o quadro global do projeto de três anos.
2. Modelo de jogo: a caixa de ferramentas que o treinador oferece ao time.
3. Plano de jogo: o conjunto de elementos específicos e a dinâmica de jogo
com que se enfrenta uma partida.
4. Sistema (ou módulo) de jogo: a distribuição espacial dos jogadores em
campo em cada momento específico de uma partida.
A evolução vivida pelos planos de jogo utilizados por Guardiola no Bayern
foi muito significativa.
Durante sua primeira temporada, os planos foram eminentemente lineares
e sem variantes excessivas. Consistiam em tentar impor o modelo de jogo,
desorganizando o rival por intermédio da troca de muitos passes. A paciência e
a confiança na própria maneira de jogar eram elementos essenciais para
conseguir os objetivos. A partida que melhor exemplificou esse conceito foi a
disputada em outubro de 2013, no Etihad Stadium, contra o Manchester City (3
× 1 para o Bayern). Aquele dia se evidenciou o paradigma do jogo de posição,
quando o Bayern somou 94 passes seguidos, ao longo de três minutos e meio,
no que foi uma assombrosa recriação de um rondo gigantesco. A antítese dessa
estratégia que o time de Guardiola interpretou de forma constante em seu
primeiro ano foi protagonizada contra o Real Madrid, em Munique (derrota por
4 × 0), quando o plano de jogo abandonou a paciência, a sucessão de passes e o
avanço compacto, e se converteu num ataque suicida, de peito aberto, que
terminou em queda humilhante.
A segunda temporada se caracterizou por uma ampliação dos planos de
jogo. Os atletas da equipe conheciam e dominavam mais variantes táticas,
sabiam trocar de sistema sem dificuldade e compreendiam muito melhor a
necessidade de combinar ritmos distintos. Esses aperfeiçoamentos permitiram
implantar planos com maior riqueza conceitual, como o expressado no Estádio
Olímpico, diante da Roma (vitória por 7 × 1), em outubro de 2014. O Bayern
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apresentou numerosos elementos que entorpeceram o rival: uma inesperada
defesa de três; a posição liberada de Xabi Alonso; um peso demolidor de
jogadores pelo lado esquerdo do ataque, incluindo Alaba — embora ele atuasse
como defensor central —, gerando uma superioridade imparável; a utilização
de laterais extremos; o acionamento de Robben apenas para duelos
individuais… Com meia hora de jogo, o placar já era de 5 × 0 e se ampliou ainda
mais. Thomas Müller definiu com simplicidade o plano de jogo: “Guardiola nos
ensinou exatamente onde estavam as fraquezas da Roma”.
A derrota mais importante da segunda temporada aconteceu no Camp Nou.
O Bayern (dizimado por lesões) veio a campo com a defesa de três; Rafinha era
o defensor central esquerdo. Poucos dias antes, ele havia feito o mesmo contra o
Borussia Dortmund e o rendimento defensivo fora excelente, por isso repetiu-se
o plano contra o Barça: “Eu quis ganhar um homem a mais no centro do campo
e dominar o jogo”, explicou Pep. “Era um risco atrás que podia nos dar lucro na
zona central para controlar a partida. Mas Messi e Suárez interpretaram bem
nossas intenções e nos impediram de conseguir o que buscávamos, por isso não
havia outro remédio a não ser passar a uma defesa de quatro.” Na realidade, o
Bayern não perdeu a partida por esses sucessivos planos de jogo, mas pelo
acerto final de Messi e pela falta de equilíbrio nos últimos minutos.
Na terceira e última temporada, os planos se sofisticaram muito mais e
incluíram um incremento substancial de movimentos e detalhes táticos. No
princípio, quando o time ainda não havia alcançado sua melhor forma, a
prioridade consistia em conduzir bem as partidas para sua fase final, o que se
comprovava com dados estatísticos muito significativos. Nos dez primeiros
jogos da temporada (nove vitórias e um empate), o Bayern marcou trinta gols e
sofreu cinco, mas com uma vantagem de performance descomunal na segunda
metade de cada partida, fruto do plano de jogo: na soma dos primeiros tempos,
marcou sete gols e sofreu quatro; nos segundos tempos, marcou 23 e sofreu um.
Era evidente que a prioridade dos planos passava por mastigar bem o rival e
executá-lo depois do intervalo.
Uma vez alcançado um bom estado de forma e uma melhor dinâmica
coletiva, Guardiola modificou radicalmente seus planos. Juanma Lillo havia
sugerido que “contra determinados times convém jogar com a forma de uma
ampulheta”. Por quê? Porque quando você alcança o máximo limite de seu jogo,
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é preciso modificá-lo. “Devemos questionar o status quo a todo momento,
especialmente quando as coisas vão bem”, disse Kasparov. E porque manter os
planos inalterados pode acelerar o declínio de qualquer ciclo. (Um ciclo de vida
é composto de três fases: aprendizagem, crescimento e declínio. Estancar-se
durante a fase de crescimento equivale a entrar em cheio no declínio; para
evitar isso, é necessário mudar de planos antes que seja tarde.)
Houve um motivo importante para essa mudança específica: cada vez mais
os rivais acumulavam em frente à própria área cinco ou até seis defensores,
com uma segunda linha formada por outros quatro médios que também se
somavam à defesa. Portanto, diante dessas muralhas, o Bayern não só chegou a
escalar quatro atacantes, mas até cinco, primeiro no formato wm (o 3-2-2-3 de
Herbert Chapman), e mais adiante com a pirâmide (o 2-3-5 da Cambridge
University em 1880), em ambos os casos buscando uma disposição no campo
em forma de “ampulheta”. Esse movimento pretendia a obtenção do “efeito
espelho”: se o rival aumentava o número de defensores, Pep aumentava o
número de atacantes.
A partir de 24 de outubro de 2015, data em que inaugurou seus novos
planos de jogo (contra o Colônia), Guardiola apresentou uma força inicial de
ataque massivo, buscando amassar e triturar o rival com um bombardeio
concentrado em um período relativamente curto de tempo. Era um plano de
jogo oposto ao habitual, pois priorizava o poder de fogo, e que foi posto em
prática não só no campeonato alemão, mas também na Champions League:
primeiro contra o Arsenal (5 × 1), depois como plano de emergência contra a
Juventus (4 × 2). Em todos os casos, o plano consistia num grande número de
elementos e ações de ataque em pouco tempo, para — uma vez adquirida uma
vantagem substancial no marcador — introduzir uma mudança de disposição e
ritmo na sequência, com a inclusão de meios-campistas e uma adaptação ao
modo “posse tranquila”.
BLITZKRIEG
Wolfsburgo, 27 de fevereiro de 2016
O plano agressivo de hoje é uma guerra-relâmpago (blitzkrieg) com cinco
atacantes. É uma overdose de atacantes que atuarão durante um tempo
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limitado. Quando Pep escala os cinco, o faz apenas durante um trecho
reduzido do encontro, para obter uma vantagem significativa no marcador.
Na base do plano está o abrir fogo à vontade; pretende-se adquirir
vantagem acumulando uma força extraordinária no ataque (o renascido 2-
3-5). Para isso, de forma geral, Douglas Costa atua por dentro; e Coman,
como extremo. As três fases do jogo (abertura-construção-finalização) se
mantêm, mas o ritmo se altera: é mais veloz, direto e agressivo, em busca
do gol.
Uma vez em vantagem, Pep modifica a escalação e passa à segunda
parte do plano, com um meio-campista a mais, quatro atacantes e um jogo
de maior elaboração que termine por desordenar o oponente desgastado.
Se a blitzkrieg não produz a vantagem desejada no placar, o treinador
também reduz o número de atacantes para quatro, porque uma das
características essenciais de sua “guerra-relâmpago” é a limitação de
tempo, já que existem grandes riscos de sofrer contragolpes. Neste ponto,
Pep muda para o plano “conservador” e busca vencer a partir do jogo de
posição.
Tudo isso se observa na Volkswagen Arena, onde o Bayern dispõe de
seis boas oportunidades de marcar na primeira meia hora, mas não alcança
o objetivo. A partir desse momento, os efeitos benéficos da acumulação de
atacantes costumam se dissipar, e isso acontece também em Wolfsburgo,
onde o conjunto local se defende do ataque bávaro e assalta várias vezes a
meta de Neuer com sério perigo. Aos cinquenta minutos, Thiago substitui
Costa e a blitzkrieg se transforma em “jogo conservador”. O Bayern
massageia a bola e, ainda que os donos da casa disponham de um par de
excelentes finalizações com Kruse, o time de Pep confirma o triunfo com
gols de Coman e Lewandowski. No dia do aniversário de 116 anos da
fundação do Bayern, o clube alcança a vigésima vitória na liga, em 23 jogos.
Pep está satisfeito. A vitória em Wolfsburgo é um passo mais próximo
da conquista do campeonato, sua terceira Bundesliga seguida, igualando-se
a duas grandes lendas do futebol alemão: Udo Lattek e Ottmar Hitzfeld. E
será a quarta liga consecutiva do Bayern, um feito inédito e histórico. Pep
não quer deixar de ganhar esse prêmio e só faltam onze partidas para
assegurá-lo. Ademais, ele pôde ensaiar a “guerra-relâmpago” que usará
contra a Juventus, e também a habilidade de seus jogadores para passar a
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um plano mais conservador e ortodoxo, sem perder agressividade e
eficiência nas finalizações.
O exemplo mais significativo da amplitude dos planos de jogo se deu na
última partida de Pep como treinador do Bayern: a final da Copa da Alemanha,
em 21 de maio de 2016, em Berlim, diante do Borussia Dortmund (no tópico
3.1.1, falamos sobre como Guardiola trabalhou taticamente essa final durante a
semana prévia). O treinador preparou três planos diferentes em função do rival:
“O Dortmund pode jogar de três maneiras distintas e não sabemos com qual
sairá, nem quando ou como mudará durante a partida”, nos explicava o analista
Carles Planchart durante os dias anteriores ao jogo.
O Borussia Dortmund de Thomas Tuchel se distinguia por alternar três
sistemas de jogo ao longo dos meses anteriores: 5-3-2, 5-2-2-1 e 4-2-3-1. Para
enfrentá-lo, Guardiola preparou durante a semana outros três módulos de jogo
que davam resposta aos borussers, detalhando o que fazer em cada caso, como
deviam ser as coberturas, as marcações e a orientação do jogo. A verdadeira
dimensão do progresso dos jogadores bávaros pôde ser apreciada nessa final: o
Bayern obrigou o BVB a se desnaturalizar à base de muita pressão, cortando
suas linhas de passe, adiantando a defesa (Kimmich e Boateng) até o centro do
campo e forçando Hummels e companhia a lançar bolas longas sem controlar
sua direção. O Dortmund de Tuchel se viu impelido, involuntariamente e pelos
movimentos do Bayern, a aplicar um formato similar ao do Dortmund de Klopp,
e acabou tendo a bola em seu poder em apenas 30% do tempo, enquanto sua
média na temporada era mais do que o dobro (61%).
Meia hora antes da final, no quadro-negro do vestiário do Bayern no
Estádio Olímpico de Berlim, estavam os três planos de jogo que a equipe havia
ensaiado durante a semana. Os jogadores haviam sido instruídos para que, a
cada vez que o Dortmund modificasse seu sistema de jogo, o Bayern alterasse
de imediato sua organização defensiva, e isso provocaria um efeito cascata. O
capitão Lahm era o encarregado de tomar a decisão em cada momento, sem
necessidade de ordens de Guardiola. O BVB iniciou o jogo no 5-3-2, e o Bayern
se colocou com defesa de três e Lahm no meio de campo; quando o BVB mudou
para o 4-2-3-1, Lahm recuou à lateral direita e todo o time mudou sua
disposição de maneira instantânea; e quando o BVB passou ao 5-2-2-1 (que foi
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um 3-4-2-1 com a bola), Lahm e Alaba se aproximaram de Vidal, no papel de
meio-campista central, e o Bayern passou a uma defesa de dois. Em cada caso, a
reação de Lahm gerou um novo plano de jogo — com nuances táticas
detalhadas, previamente conhecidas pelo elenco — que só foi possível graças ao
exaustivo trabalho de preparação por parte de todos.
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6.3. A CULTURA DE EQUIPE
Nenhum êxito é atribuível a
mim; é o trabalho de todos nós.
PROVÉRBIO MAORI
Todo grande time nasce da confluência entre uma ideia inspiradora e
estimulante, que reúne as energias coletivas, e uma derrota enorme que
provoca fraturas e efeitos catárticos. A ideia é equivalente às fundações de um
edifício: a derrota serve como cimento para unir a base; e a cultura de equipe é
a estrutura do edifício.
A cultura de equipe vai muito além da gestão emocional de quem a
compõe. Ela é (novamente) o quadro estratégico dentro do qual se dá a gestão
das emoções e dos sentimentos dos componentes do conjunto. Em geral, as
equipes de futebol não desenvolveram esse tipo de cultura de maneira
sistemática e com enfoque estratégico, apenas o fizeram de forma espontânea.
Um exemplo de cultura estruturada metodologicamente é a dos All Blacks
neozelandeses no rúgbi: concebida desde o pensamento estratégico e, claro,
estimulada a partir de uma derrota catastrófica (nesse caso, o Mundial de 2007,
em que foram eliminados nas quartas de final).
A cultura de equipe abrange muito mais do que slogans e vídeos
motivacionais, regras disciplinares e rituais ou linguagens específicas. É um
pacto de condutas e comportamentos que engloba todos os componentes do
time e os dirige até metas globais que permitem visualizar de maneira
irrefutável a identidade dessa equipe. Como dizem os mencionados All Blacks,
em um trecho do livro Legacy, de James Kerr: “Devemos fazer as coisas
corretamente para que ninguém mais deva se ocupar delas, porque ninguém
além de nós mesmos deve cumprir nossas tarefas. Os All Blacks devem cuidar
de si mesmos […]. Nunca devemos ser grandes demais a ponto de deixar de
fazer as pequenas obrigações, como secar a área dos chuveiros ou varrer o
chão”.
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No Bayern, embora tenha dedicado o grosso de seu tempo à mudança no
modelo de jogo, tarefa complexa e arriscada por si só, Guardiola semeou
diversos elementos representativos de uma cultura coletiva de trabalho.
Determinou que o vestiário fosse exclusivo para seus componentes principais,
impedindo, no terceiro ano, a entrada de indivíduos alheios ao trabalho —
como amigos, familiares ou executivos do clube, salvo os membros do comitê de
direção. Ainda que tenha imposto poucas normas de comportamento (“Aqui
dentro, quatro regras e ponto. Fora de Säbener Straße, que façam o que
quiserem: são adultos”), elas deveriam ser cumpridas rigorosamente, tanto as
que se referiam a disciplina e respeito quanto as de cuidado extremo com a
saúde (nutrição, descanso, reabilitação…).
Guardiola utilizou frequentemente imagens de atitudes exemplares dos
próprios jogadores: David Alaba, lesionado, exibindo nas cadeiras do estádio
sua euforia pela atuação do time; Xabi Alonso em um sprint de contra-ataque,
após defender um escanteio; Thomas Müller tirando a luva para agradecer uma
assistência de Robben… Domènec Torrent e Carles Planchart se encarregaram
de reunir cenas de condutas esportivas louváveis de seus jogadores para
mostrá-las em ocasiões específicas como exemplos de comportamento.
Objetivos foram fixados com o apoio de estímulos visuais. Quando o time
chegou à cidade esportiva do Bayern no começo de julho de 2015, se deparou
com uma novidade: todas as paredes mostravam o número 4 pintado na cor
vermelha, como símbolo da meta da temporada: conquistar o quarto título
consecutivo da liga, um feito histórico nunca alcançado na Alemanha. Em
algumas paredes, só havia o número 4; em outras, se lia “Jeder Für’s Team”
(“Cada um pelo time”); na maioria, “Champions 4 ever” (“Campeões para
sempre”); e na parede do corredor das salas da comissão técnica, constavam, na
cor preta, os títulos já conquistados (2013, 2014, 2015) e, em vermelho, o
objetivo desejado: 2016. Desse modo, todos os componentes do vestiário
tinham a recordação diária de qual era a missão da temporada.
Também era muito significativo observar o vestiário do time na Allianz
Arena, após os jogos. Depois que todos saíam, talvez fosse possível encontrar
um pequeno pedaço de grama ou uma tira de esparadrapo no chão; sobre as
mesas, alguma garrafa com resto de bebida. No mais, o local estava um brinco:
os membros da equipe limpavam praticamente todo o vestiário (“Nunca
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devemos ser grandes demais a ponto de deixar de fazer as pequenas
obrigações”).
O equilíbrio entre o rigor dos treinamentos (mais no aspecto mental do que
no físico) e a liberdade oferecida por Guardiola nos comportamentos e nas
normas foi importante para o desenvolvimento da cultura de equipe no Bayern.
Mostrarei um exemplo disso.
Um dos aspectos relatados que mais surpreenderam os leitores de meu
livro anterior foi o fato de Guardiola não entrar no vestiário antes dos jogos
para fazer palestras motivadoras. Continua sendo assim. Pep faz três palestras
táticas (a primeira na véspera e as outras duas no mesmo dia do jogo), mas
nenhuma delas se dá no vestiário do estádio, nem tem como foco principal a
questão emocional. Em algumas ocasiões, na terceira explanação, que acontece
no hotel duas horas antes, após informar a escalação e instruir sobre o plano de
jogo, ele pode acrescentar algumas ideias com traços motivacionais, mas são
ligeiras e sem conteúdo excessivo. Pep prefere se centrar no jogo e aí não vê
limites: pode até se estender por longos períodos. Na primeira partida em que
dirigiu o Manchester City, exatamente em Munique contra o Bayern, ele quis dar
a seus novos jogadores tantos detalhes táticos na última palestra, que o time
chegou ao estádio apenas 45 minutos antes do apito inicial. Isso é resultado das
experiências vividas no Barcelona e também do aprendizado durante o ano
sabático em Nova York.
Com o Barcelona, Guardiola viveu prévias de partidas muito emotivas,
como a de Roma em 2009, quando, minutos antes de disputar a final da
Champions League contra o Manchester United, mostrou um vídeo ambientado
no filme Gladiador, com a presença de todos os componentes do elenco, o que
provocou emoções profundas nos jogadores. Mas não ficou claro para Pep que
criar essa emoção tenha tido um efeito benéfico, pois os primeiros minutos do
jogo foram bastante desastrosos. Como escreveu Phil Jackson: “Descobri que
cada vez que estava muito excitado mentalmente, essa atitude exercia um efeito
negativo em minha capacidade de permanecer concentrado se me via
submetido à pressão. Por isso fiz o contrário. Em vez de acelerar os jogadores,
desenvolvi diversas estratégias para ajudá-los a acalmar suas mentes e
fortalecer a consciência”.
outubro/2017
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Logo que chegou ao Bayern, Guardiola pediu que seu escritório fosse onde
antes ficava um pequeno depósito, fora do vestiário dos jogadores, para não
interferir na vida interna do time nos instantes prévios aos jogos. Ele acredita
que é melhor que o treinador não “atrapalhe” esses minutos de concentração.
As instruções são transmitidas no momento pertinente, durante os
treinamentos e nas palestras táticas, e ele entende que os jogadores são
esportistas adultos com qualidades para administrar seu estado de humor.
Pep também concedeu liberdade completa para que cada atleta do Bayern
acrescentasse os exercícios que quisesse durante o próprio aquecimento. Assim,
Boateng era quem permanecia menos minutos em campo, pois preferia realizar
exercícios de elasticidade lombo-pélvica no vestiário. Neuer se caracterizou por
não querer defender mais de seis ou oito chutes antes de cada encontro. Na
terceira temporada, Müller e Lewandowski adicionaram a seu repertório de
preparação uma dúzia de cabeceios a gol, em bolas cruzadas por Lahm. Dessa
forma, cada jogador pôde introduzir alguns detalhes ao aquecimento geral
dirigido por Lorenzo Buenaventura, pois o treinador entende que é mais
importante facilitar a tomada de decisões do jogador do que submetê-lo a um
método estático, o que Pep complementa finalmente ao não apresentar
nenhuma palestra emocional nos minutos anteriores a uma partida.
Dessa maneira, diante de um trabalho diário exaustivo e intenso, de alta
exigência mental e concentração constante, Guardiola propiciou que cada
jogador mantivesse ou implantasse costumes e hábitos pessoais nas fases que
antecedem a competição; de forma definitiva, que cada um pudesse desenvolver
sua personalidade e encontrar livremente seu espaço individual dentro do
objetivo global.
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6.3.1. ESPÍRITO CITIZEN
A chave do êxito sustentado é seguir crescendo como equipe. Ganhar consiste em
adentrar ao desconhecido e criar algo novo.
PHIL JACKSON
Em Manchester, Guardiola decidiu usar o termo “espírito”, em vez de “cultura”,
porque lhe pareceu mais compreensível a todos e também menos pomposo. Ele
o utilizou de imediato, já em sua primeira aparição diante dos torcedores, em 3
de julho de 2016: “O que queremos é criar um espírito de equipe o mais cedo
possível”. Pep colocou esse objetivo antes mesmo do modelo de jogo, o que é
muito significativo de suas intenções à frente do City. Em primeiro lugar, citou o
espírito de equipe; em segundo, jogar bem (“Meu principal objetivo é fazer que
as pessoas sintam orgulho do jogo que praticamos”); e em terceiro lugar, “tentar
ganhar o primeiro jogo. E depois, o segundo jogo. E depois, outro…”. Jogadores
como Gaël Clichy pareceram entender a mensagem imediatamente: “Pep quer
que nos mostremos orgulhosos de vestir essa camisa e que sejamos dignos
dela”.
Vemos, pois, a importância que Pep confere à criação dessa cultura coletiva
no vestiário do Manchester City. Se essa ideia vem antes de outras não é por
casualidade, mas porque ele pretende que esse espírito (ou alma) de equipe
seja o grande cenário geral que contagie todas as demais propostas. A criação
do espírito de equipe não só antecede a implantação do modelo de jogo, mas o
envolve com toda a influência possível. Se o coletivo é capaz de se reunir sob um
espírito estratégico comum, pode ser mais factível a aplicação do modelo
futebolístico, sua execução mais ou menos acertada e a consequência final
(ganhar jogos). Portanto, para ele, trata-se de uma prioridade estratégica que
será desenvolvida até que se torne notória em seus aspectos identificáveis:
comportamentos dentro e fora da atividade esportiva, posicionamento mental,
tipo de jogador que forma parte do time, linguagem, rituais, normas e atitudes…
O selo e a identidade que configuram o conceito de cultura/espírito de equipe.
O leitor enxergará sem dúvidas que não estamos diante de uma tarefa
linear. Assim, erros acontecerão no caminho percorrido até o objetivo,
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disfunções e contradições que deverão se resolver da mesma forma que ocorre
no âmbito estrito do próprio jogo. Imediatamente, Pep definiu o treinamento
como um prêmio que deve ser conquistado por méritos e não por contrato, o
que significa que qualquer jogador que não reúna as condições básicas para
treinar a pleno rendimento deverá recuperá-las em um âmbito diferente do
vivenciado pela equipe, seja por causa de excesso de peso, por falta de
concentração suficiente, seja por qualquer outra razão.
A construção completa desse espírito citizen por parte de Guardiola não
aparenta ser breve nem simples. Exigirá paciência, tempo e cumplicidade. Ao
final, só será possível se os jogadores quiserem seguir o caminho indicado por
seu treinador.
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6.4. SEUS ALIADOS: OS JOGADORES
Um time é como um bom relógio: se perde uma
peça, ainda é bonito, mas já não funciona igual.
RUUD GULLIT
Guardiola sempre manteve certa distância de sua equipe. Era uma medida de
autoproteção: “Tento não ter uma relação íntima com os jogadores, porque não
quero que confundam isso com as razões para entrarem em campo ou não. No
fim, sou eu que tenho que decidir e prefiro fazer isso sem laços emocionais
muito estreitos”.
Mas, em Munique, Pep abriu mão dessa autodefesa e liberou seus
sentimentos. Foi por agradecimento ao que estava recebendo. Os jogadores do
Bayern fizeram, desde o início, um grande esforço para aprender o que ele
ensinava, para se adaptar a seu jogo e mudar. Mais adiante, durante o segundo
ano, assumiram a colossal epidemia de lesões com um espírito coletivo
impagável, o que gerou vínculos poderosos entre eles e o treinador, pois nada
une mais do que lutar contra a adversidade.
“RAPAZES, ESTAMOS FODIDOS”
Dortmund, 4 de abril de 2015
Todas as dúvidas que rondavam a equipe técnica em março, sobre quais
atacantes e quais meios-campistas seriam titulares nos grandes jogos,
desapareceram. Agora não há nem como escolher: só restam catorze
jogadores disponíveis. Jogarão os que estiverem saudáveis. Ainda que
exista grande diferença entre jogar ou não com Robben e Ribéry. A
estatística é contundente: com eles dois, o Bayern ganhou 85% dos jogos;
sem eles, só 60%. Pep foi sucinto antes da partida contra o Borussia
Dortmund:
— Rapazes, estamos fodidos. No momento decisivo, estamos mais
fodidos do que nunca. Só podemos resolver isso como um grupo. Nós que
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restamos temos que ir em frente. Rapazes, temos de dar um passo adiante.
Eu como treinador e vocês como equipe. Vamos dar um passo adiante…
Após conseguir uma vitória dificílima contra o Dortmund de Klopp em abril
de 2015, que quase garantia a Bundesliga, Pep se expressou categoricamente:
“Aconteça o que acontecer, esses jogadores serão meus heróis por toda a vida
pela forma como se comportaram na adversidade”.
Ao final, na última temporada, deixaram correr livremente os sentimentos.
Principalmente Pep. Diante dos ataques externos vindos de um setor da
imprensa, ele encontrou no elenco seus melhores aliados. Os jogadores foram
seu escudo protetor. Sem que pedisse, eles o defenderam e deixaram a pele em
campo por seu técnico.
Lahm e Neuer foram fundamentais nessa metamorfose. No momento mais
duro dos três anos, após a derrota para o Real Madrid, em 2014, o capitão foi
contundente: “Estamos com você, Pep. Estamos com você até a morte”. O
treinador pôde se apoiar sempre no capitão e também no goleiro. Ambos o
ajudaram na convivência, pois Pep seguiu sendo tremendamente exigente.
Thiago serve como exemplo de jogador ao qual Guardiola jamais deu respiro,
sempre lhe pedindo a perfeição. Mas o treinador se tornou mais próximo, mais
aberto, mais íntimo com todos os jogadores. Deixou de ser distante como
medida de autoproteção. Abriu seu coração e eles atuaram com reciprocidade.
Não foram seus grandes aliados apenas como reconhecimento aos
planejamentos táticos e ao conhecimento dos rivais, ou porque Pep lhes deu
ferramentas para ser melhores e mais eficazes, mas especialmente por uma
questão de sentimento. Pep usou em público algumas frases mais do que
exageradas, como a célebre: “Eu adoraria ter mil Dantes no meu time”. Todos
sabiam que, acima de tudo, era uma questão de defender e animar o jogador
brasileiro depois de uma atuação ruim, mas apreciaram o gesto de Pep de sair
em defesa de um membro do elenco que passava por um momento amargo,
embora isso gerasse críticas dos meios de comunicação e certa gozação. Os
jogadores avaliavam positivamente esse tipo de atitude, porque entendiam que
o técnico sempre estaria do lado deles e não os abandonaria na sarjeta nos
momentos ruins.
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Foi assim, com a mediação de Lahm e Neuer, e sempre apoiando
firmemente o elemento mais fraco do grupo, que se estabeleceu uma verdadeira
relação de amor entre os jogadores do Bayern e o treinador catalão. Amor é
uma palavra forte e possivelmente imprópria no mundo do futebol, pouco dado
a essa expressão, mas é a que Guardiola usa sempre e a que os jogadores usam
com ele. Eu a escutei inúmeras vezes no elevador da Allianz Arena: “Te amo,
Philipp, te amo!”, gritava Pep num dia qualquer, enquanto abraçava o capitão e
lhe dava um par de beijos na bochecha.
Tudo foi paz e amor? Sem dúvida que não. Pep prescindiu de Mandžukić,
com quem declarou que iria à guerra, mas não se entendeu futebolisticamente.
Foi bastante exigente com Thiago, a quem sempre pediu mais, como se faz com
um filho. Queimou os miolos com Götze, tentando extrair dele esse rendimento
fora de série que prometia e que quase não apareceu desde que ele deixou
Dortmund, lugar para onde voltou: é o jogador a quem Pep dedicou mais tempo.
Apostou em Højbjerg com dedicação paternal, mas o desencontro entre eles foi
irreversível. Entregou-se apaixonadamente a Ribéry, mas recebeu respostas
contraditórias: um grande carinho enquanto esteve em Munique (“Sem
nenhuma dúvida, Pep é o melhor treinador que já tive”, janeiro de 2015, diário
TZ) e desprezo quando não estava mais (“É um treinador jovem, que carece de
experiência”, julho de 2016, Bild Zeitung). E tentou encaixar Schweinsteiger em
uma dinâmica de jogo que não era simples para ele, ainda que sempre o tenha
escalado nas partidas importantes.
XABI E BASTIAN NÃO COMBINAM BEM…
Stuttgart, 13 de setembro de 2014
Pep usou todo o seu catálogo de variantes táticas em Stuttgart, onde
venceu por 2 × 0. Teve de se empenhar a fundo, porque o time não jogava
com fluidez. Ao longo de noventa minutos, modificou várias vezes a
disposição dos jogadores: começou com o 3-4-3, mudou para o 4-3-3 e
evoluiu para o 3-2-3-2, com um doble pivote composto de Alonso e
Schweinsteiger. Experimentou tudo em busca de uma fluidez que não
aparecia.
Uma pergunta começava a se fazer evidente e inevitável: por que o
Bayern funcionava melhor quando jogava com apenas um meio-campista
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central e cinco atacantes à frente dele? Dito de outro modo, ficava cada vez
mais claro que Alonso e Schweinsteiger não combinavam bem.
O futebol é, entre outras coisas, a química que surge entre os
jogadores. Não me refiro à simpatia entre eles, mas a algo muito mais
profundo e epidérmico: a empatia futebolística. Dois jogadores podem
multiplicar seu rendimento quando são escalados juntos, mas também
podem dividir sua eficácia. Depende da reação química que surge dessa
união. Obviamente, outros fatores interferem no rendimento (os rivais, as
sinergias do conjunto completo, as instruções recebidas e cumpridas em
maior ou menor escala etc.), mas é essa reação química que gera grandes
associações. Ou o oposto. Durante anos se escreveu em Barcelona que Xavi
e Iniesta não podiam jogar juntos, até que Guardiola os escalou e se
descobriu que o efeito era devastadoramente positivo. Mas nem sempre é
assim. Alonso se combinou de forma excelente com jogadores como
Busquets ou Khedira, totalmente opostos em sua interpretação do futebol.
Por sua vez, Schweinsteiger desenvolveu um jogo magnífico com Javi
Martínez ou Toni Kroos, outros dois jogadores absolutamente opostos
entre si. E, a priori, a parceria entre Xabi e Bastian prometia, mas, em
campo, não funcionou. A reação química dava como resultado um jogo
amorfo e neutro, embora ambos tentassem ao máximo e seguissem
tentando nas semanas posteriores. Alonso e Schweinsteiger tinham uma
magnífica relação pessoal, eram compenetrados, entendiam o jogo de um
modo similar, mas, quando atuavam juntos, a combinação não produzia um
bom resultado.
A relação de vestiário se dá entre 25 jovens com características diversas e
um treinador de personalidade forte. O elenco foi o grande aliado de Guardiola
em Munique porque, em conjunto, os jogadores sempre estiveram a seu lado,
nos momentos bons e, sobretudo, nos ruins: “O ambiente no vestiário é do
cacete — comentou Pep em fevereiro de 2016, quando as críticas da imprensa
alemã eram mais fortes. Não há expressões negativas, nenhum ‘bicho esquisito’
e todo mundo rema na mesma direção. Eu tive muita sorte com esses rapazes.
São pessoas formidáveis, maravilhosas; é um prazer treiná-los”.
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Quando sua etapa alemã estava terminando, o treinador mostrou em
público todas as emoções acumuladas e, no Estádio Olímpico de Berlim, com o
título da Copa recém-conquistado, explodiu em lágrimas. E, como símbolo da
relação estabelecida, foram os jogadores que o sustentaram em pé. Pep chorou
nos braços de todos eles e o capitão Lahm o obrigou a levantar pessoalmente o
troféu que foi entregue ao elenco.
— Pep, você levanta a taça.
— Não, não, Philipp, é sua, é do time.
— Pep, é nossa. Você levanta.
O capitão foi o principal ponto de apoio que permitiu a Pep elevar o jogo do
Bayern. Lahm o ajudou a implantar suas ideias, a modulá-las de acordo com o
ânimo do elenco, a replanejar situações delicadas, além de ter sido quem
esclareceu as dúvidas nos momentos difíceis. Procedeu com retidão, sobriedade
e solidariedade. Foi inteligente e fiel. Em dezembro de 2015, Lahm foi à sala do
treinador e, em nome de todos os jogadores, pediu encarecidamente que
Guardiola renovasse seu contrato com o clube. Possivelmente essa foi uma das
maiores recompensas que Pep levou do Bayern: o carinho de seus jogadores.
Se Lahm foi a retidão e a moderação, Thomas Müller foi a anarquia e a
brincadeira constante. A soma de ambos resume com bastante precisão como
era o ambiente dentro do Bayern de Pep.
SILÊNCIO E RUÍDO
Ingolstadt, 7 de maio de 2016
Falta uma hora e meia para que o Bayern jogue contra o time local: uma
vitória significa vencer a quarta liga consecutiva. Passaram-se quatro dias
da dolorosa eliminação nas semifinais da Champions contra o Atlético de
Madrid. O time ainda está estupefato pelo ocorrido: jogou a melhor partida
da era Guardiola, mas não conseguiu seu objetivo.
Estamos no The Classic Oldtimer Hotel de Ingolstadt, conhecido por
seu extraordinário museu de motos e carros antigos, entre eles numerosas
Ferraris, bem perto do estádio. A palestra técnica vai começar em breve. A
sala de reuniões está escura, apenas iluminada pelo brilho de uma imagem
fixa que aparece em uma tela. Uma foto do número 4, em vermelho.
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Simboliza a quarta liga seguida, o leitmotiv da temporada. E só falta uma
vitória para consegui-la. A sala está quase vazia, apenas um par de
ajudantes de Pep sentados nas cadeiras do fundo, absortos em seus
celulares. O treinador está sentado na primeira fila, sozinho, repassando
mentalmente as mensagens sucintas que quer expor. Não é um dia para
grandes discursos, mas, mesmo que os acontecimentos da Champions
ainda provoquem dor, é necessário um penúltimo esforço: a recompensa
em forma de título é muito grande. É preciso conseguir que a equipe reaja
de seu desânimo. Pep pensa em várias ideias enquanto o número 4 pisca,
em vermelho intenso, na tela. Então chega Lahm. Sem fazer barulho, sentase
a seu lado.
— Hola, Pep.
— Hola, Pipo.
Não falam. Durante dois minutos, ambos olham para a tela sem abrir a
boca. O silêncio é absoluto na sala escura. O capitão e o treinador parecem
hipnotizados pelo número 4; provavelmente, repassam o que tiveram de
lutar para estar ali, às portas de um novo título. É uma cena que simboliza a
convivência desses três anos. Não precisam dizer nada para compreender
tudo. No meio dessa atmosfera quase mística, aparece, ruidoso e
vociferante, Thomas Müller. Barulhento, ele se senta ao lado de Pep e
começa a soltar suas brincadeiras. O silêncio inteligente e cúmplice de
Lahm, a agitação ruidosa de Müller.
Seria enjoativo para o leitor ler agora os numerosos elogios que a maioria
dos jogadores do Bayern dedicou a seu treinador; digamos simplesmente que
até os que jogaram poucos minutos — como Van Buyten, Pizarro ou Kirchhoff
— fizeram isso com profusão. Nos longos jantares em que Pep e os jogadores se
despediram, e também no último dia, nos vestiários de Säbener Straße,
multiplicaram-se as mostras de emoção e carinho que Pep recebeu de todos os
jogadores, o que o levou a repetir um sentimento que tem gravado em seu
coração:
— O maior prêmio para um treinador é o que, no fim, os jogadores sentem
por você.
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Quando Pep regressou a Munique com o City, no final de julho, essas
demonstrações de carinho dos jogadores se repetiram e foram relevantes: todos
os presentes em Säbener Straße foram saudá-lo e abraçá-lo. Para Pep, esse foi
um dos grandes prêmios de sua carreira: comprovar o afeto que seus jogadores
anteriores sentiam por ele.
Para chegar a isso, o treinador teve de modificar seus hábitos e se
relacionar de outro modo com sua equipe: precisou se desprender da couraça
com que se protegia e se abrir emocionalmente. Ainda mais destacável é a
generosidade sem limite dos jogadores. Foi assim porque, sem dúvida, eles
gostavam dessa forma de jogar, mas também porque intelectual e
voluntariamente, quiseram aprendê-la. Em vez de recebê-lo com receio, os
atletas desfrutaram do aprendizado como crianças. E aqui é preciso apresentar
uma questão: os jogadores do Manchester City receberam Pep desde o primeiro
dia com uma fome voraz de aprendizado. Saberão manter essa mesma atitude
de maneira duradoura nos próximos anos?
Em julho, quando Pep telefonou a um dos candidatos a ser contratados
pelo City, o jogador respondeu entusiasmado: “Mister, já estava achando que
não ia me contratar!”. Mas o entusiasmo inicial é o bastante? Eles manterão essa
atitude de forma continuada ao longo do tempo, sem desfalecer, nos momentos
ruins que sem dúvida chegarão? Os jogadores do City estão dispostos a pagar o
alto preço que essa aprendizagem exige? Se levarmos em conta o que se viu nos
primeiros meses, parece que sim. Fabian Delph disse: “Aprendi mais em três
semanas com Pep do que em toda a minha carreira até agora”. Guardiola
respondeu: “Quero que os torcedores saibam que podem ficar orgulhosos
desses jogadores, de como aprendem e lutam em cada treinamento”. O certo é
que todo o elenco treinou com voracidade durante esses primeiros meses,
incluindo aqueles jogadores que foram informados pelo treinador, ao chegar,
que não continuariam no City a partir do dia 1o de setembro.
Pep iniciou seu caminho em Manchester com a mesma atitude que
aprendeu em Munique: sem couraça e com o coração bem aberto aos jogadores.
Conseguirá conviver esses anos sem voltar a se fechar em si mesmo?
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BASTIDORES
O BAYERN LÍQUIDO
Bremen, 17 de outubro de 2015
O Bayern alcançou a maturidade no jogo que seu treinador pretende: no
outono de 2015, o time possui duas grandes rotas principais e uma
terceira via como alternativa.
Primeira rota: o jogo transita por fora. As zonas interiores são como
pontos de apoio permanentes no avanço ou “áreas de descanso” na
progressão.
Segunda rota: o jogo transita por dentro até alcançar a zona dos
meios-campistas rivais, momento em que se redireciona para fora
buscando a finalização.
Rota alternativa: o uso de bolas longas, geralmente em diagonal
para o lado oposto ao do lançador, buscando aproveitar o excesso de
flutuação do adversário.
A principal virtude do Bayern é a capacidade de usar as três rotas
de maneira alternada durante os jogos, conforme os jogadores e o
treinador interpretem as exigências impostas pelo rival. Poderíamos
dizer que a equipe alcançou um ponto de maestria estratégica, no qual
reuniu vários modelos dentro de seu modelo de jogo, vários estilos que
se fundem em um não estilo. Guardiola está mais eclético do que nunca.
Mais camaleônico do que nunca. Dispõe de um número incontável de
opções de jogo. Soltou-se de qualquer amarra, de qualquer dogma, o que
não significa que tenha renunciado a seus fundamentos de jogo. Ao
contrário: seus fundamentos são mais fortes do que nunca, mas o que
variou é sua expressão até o extremo que permite qualificar esse time
como o “Bayern líquido”, conceito que implica fluidez no movimento,
variedade na forma e riqueza na diversidade.
Alcançar esse nível foi possível graças à interação ativa com a
realidade.
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As ideias de Pep foram confrontadas com a realidade do futebol
alemão (por exemplo, com os contra-ataques letais de todas as equipes);
a realidade da capacidade dos jogadores, estimulada pela vontade de
ensinar do treinador; a orientação pretendida por Guardiola,
enriquecida pelas limitações e virtudes de seus jogadores, que o
obrigaram a uma adaptação positiva à natureza dos intérpretes. O
treinador, enfim, foi o maestro que, conhecendo a partitura à perfeição,
compreendeu que nenhuma orquestra pode soar melhor do que aquela
em que os músicos podem expressar suas potencialidades sem limites.
Na qual cada jogador expõe o melhor que tem dentro de si, o que já se
conhecia dele e o que nem ele sabia que possuía. Essa é a grande virtude
de todo mestre: propiciar que os jogadores extraiam de seu interior todo
o suco futebolístico que possuem (e que talvez desconheçam). E
combinar todas essas qualidades, as conhecidas e as desconhecidas, de
maneira harmônica para multiplicar o rendimento do coletivo. O “estilo”
se faz dentro dos jogadores, e o que o bom treinador consegue é extrair,
explorar, unir e coordenar esses diferentes estilos em busca do bem
comum da equipe.
Hoje, no Bayern de Pep, cada jogador não só está no posto que
melhor se adapta às suas características, mas também cumpre os papéis
que mais agregam ao coletivo. Todos sacrificam uma parte de si mesmos
e, em troca, todos se beneficiam do salto qualitativo global. Com a atual
compreensão do jogo e suas rotas, jogadores e treinador não somam,
mas multiplicam, e o fazem com simplicidade. O Bayern joga de um
modo singelo, desprovido de adornos, focado exclusivamente no gol, que
tenta alcançar por qualquer uma das três rotas que controla.
Se é pela primeira rota, os defensores centrais, o meio-campista
central e o goleiro se ocuparão de levar a bola até os corredores
exteriores, para que os laterais façam o jogo avançar. Com cada
interrupção ou obstáculo, a bola será cedida às zonas interiores, onde
qualquer companheiro servirá como ponto de apoio, que será utilizado
como um passe simples para seguir progredindo, como combinação para
juntar rivais e estabelecer “acampamentos-base” provisórios, ou como
mudança de orientação para levar a bola ao lado oposto. Os apoios se
realizam quase sempre em triangulações, a figura geométrica por
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excelência para Guardiola. Quem deseja avançar se apoia no
companheiro com um passe que será devolvido em melhores condições,
do mesmo modo que um menino usa a parede da escola para que ela lhe
devolva a bola.
A continuação do movimento provavelmente levará o jogo para a
zona de finalização: de maneira direta, avançando pela região externa
em relação ao início da ação; ou pelo lado oposto, mediante mudança de
orientação, que será como um “toque de trombeta” que ordena a carga
final. O papel dos que jogam por fora (laterais e extremos) é o de
avançar e o dos interiores (meio-campista central, defensores centrais,
médios e meio-campista ofensivo) consiste em servir de apoio e tomar a
decisão tática adequada em cada ocasião.
Chegado o momento da carga final, geralmente será um dos
extremos (ou o lateral) o encarregado do penúltimo movimento: o
aprofundamento e a penetração na área para o passe definitivo. O
centroavante, o meia ofensivo, o outro extremo e um dos meioscampistas
entram na área; pelo menos três jogadores (interior, meiocampista
central e lateral oposto) se posicionam perto da entrada da
área para o possível rebote.
A segunda rota termina do mesmo modo, mas se inicia de maneira
distinta. Neste terceiro ano, a maioria dos times já não pressiona
fortemente o Bayern: a experiência os ensinou que, por mais pressão
que exerçam, a habilidade dos jogadores de Munique os leva a superá-la
com relativa facilidade. É certo que em algumas ocasiões há erros, como
o que aconteceu em Hoffenheim, quando Alaba cedeu a bola do gol a
Volland. Mas isso ocorre pouquíssimas vezes, o que explica por que até
as equipes que têm na pressão o seu selo de identidade (Bayer
Leverkusen ou Borussia Dortmund) a reconsideram em suas visitas à
Allianz Arena. Isso tudo é fruto da hierarquia que o Bayern foi
construindo, o que, por sua vez, levou os rivais a lhe cederem a bola e o
mando das operações, optando por negar espaços. Como última
consequência dessa dinâmica, o time de Pep quase nunca encontra
condições para efetuar contragolpes. Como é possível contra-atacar, se a
equipe está quase sempre atacando?
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Se o adversário fecha os corredores exteriores, então o Bayern
passa à sua segunda rota, por dentro, mais linear e com menos
elementos do que a primeira. Nesse caso, se estabelece uma
comunicação de passes entre os defensores centrais e/ou o meiocampista
central e os atacantes (Lewandowski e Müller). Esses passes,
rasteiros, verticais e fortes, servem para a reorganização coletiva ou
para o início do ataque. No primeiro caso, a bola regressará ao defensor
central ou ao meio-campista central, que decidirá se a disposição de
companheiros e rivais permite retomar a primeira rota e viajar por fora.
No segundo caso, a decisão consistirá em buscar o extremo, direta ou
indiretamente, para que “toque a trombeta” e inicie o ataque.
Em ambas as rotas, pode-se observar que as lições extraídas da
segunda temporada foram fundamentais para o avanço estratégico atual.
De uma parte, o aprendizado do módulo (ou sistema) 3-4-3 resultou no
aperfeiçoamento de conceitos ao redor do terceiro homem, os homens
livres, a progressão com apoios interiores e as triangulações. Por outra
parte, a realidade obrigou Guardiola a jogar várias partidas com quatro e
até cinco atacantes, por causa da praga de lesões, experiência da qual ele
extraiu lições inéditas: o treinador dos “mil meios-campistas” aprendeu
(com seus jogadores) que era possível escalar cinco atacantes sem
desequilibrar o time. Aprendeu que podia reforçar seus conceitos de
dois extremos muito abertos e profundos, combinando-os com um
centroavante capaz de cumprir as fases de ataque clássico e também os
movimentos de falso 9 (Lewandowski), enquanto convivia com um
meio-campista ofensivo muito trabalhador, meio caótico, mas
especialista em “chegar” e não em “estar” (Müller). Guardiola aprendeu
tudo isso em sua segunda temporada no Bayern e fez a aplicação na
terceira. Quem aprendeu foi o técnico, mas, acima de tudo, seus
jogadores descobriram que podiam fazer aflorar o que existia dentro
deles.
Assim nasceu o ecossistema perfeito para Müller, que se
transformou em um homem livre na zona de ataque, sem nenhuma
responsabilidade na construção do jogo, salvo receber passes de costas
para o gol, controlá-los e fazer a bola chegar aos extremos. Na realidade,
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é Müller quem “toca a trombeta”: quando ele cede a bola ao extremo, eis
o sinal. A carga se inicia neste momento.
O time é constituído por duas metades muito próximas entre si. A
metade traseira — formada pelo goleiro, os dois defensores centrais e o
meio-campista central — assenta-se no grande círculo e toma as
decisões estratégicas: quando se deve transitar pela rota 1, quando se
deve ir pela rota 2 ou quando escolher a rota alternativa (a diagonal
longa a partir de Boateng ou Xabi para o extremo ou para um dos
atacantes). O cérebro do time habita o círculo central.
A metade dianteira — composta dos dois extremos, o meiocampista
ofensivo e o centroavante — cumpre funções de distração e
movimentação, durante o primeiro trecho de evolução do jogo, e de
ataque quando “soa a trombeta”. São eles que escolhem o momento de
atacar, conforme percebem um certo grau de confusão no adversário.
Entre as duas metades se encontra “a cola de contato”, a cartilagem que
mantém a equipe unida com flexibilidade gelatinosa, quase líquida: são
os laterais e os interiores, jogadores versáteis, cujo papel principal
consiste precisamente em servir de apoio aos dois compartimentos,
gerar vantagens e superioridades, fechando possíveis frestas.
A metade traseira hospeda o cérebro estratégico do time, o que
elege a cada instante a rota que deve ser percorrida. A metade dianteira
contém a vontade de execução, por ser quem escolhe o momento e a
zona adequados para lançar a carga. E os intermediários atuam como
articuladores da estrutura, são o óleo que lubrifica as conexões, a
cartilagem, a gelatina do time.
Neste ecossistema simples, cada jogador é potencializado em suas
características. Boateng e Xabi podem tomar decisões, sejam de apoio ou
mediante passes longos e precisos; Alaba e Bernat podem conduzir a
bola e correr; Javi Martínez contém seus movimentos para ser agressivo,
cortando ações ofensivas do rival antes que seja tarde; Lahm e Rafinha
se oferecem como lubrificantes para facilitar qualquer tarefa necessária;
Vidal rompe o espaço; Thiago faz contato permanente com a bola e a
conduz para desorientar o adversário; Costa e Coman se divertem pelos
lados, correndo e driblando; Lewandowski sente que pode atacar a área
com força, porque as bolas chegarão até ele; e Müller alcança a plenitude
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como Der Raumdeuter (“o investigador de espaços”), pois o jogo de seu
time se converteu em algo simples e fluido, no qual ele pode se mover
livremente no ataque, sabendo que só precisa aparecer…
Simples, fluido, singelo, líquido… Custou dois anos e meio de muito
trabalho, muita observação e correção, muita compreensão mútua,
muita aprendizagem e adaptação. Mas o jogo do Bayern de Guardiola
está, por fim, completamente definido. Não era Pep quem tinha um estilo
e queria implantá-lo, mas os jogadores que o possuíam em seu interior.
O treinador conseguiu extraí-lo, unir as complementaridades entre todas
as partes, aparar as divergências, adicionar seus fundamentos, incluir o
que foi aprendido e combinar tudo em um formato que soma todas as
sensibilidades e gera bom resultado.
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CAPÍTULO 7
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AS ADVERSIDADES VIVIDAS
Cada vez que cometo um erro parece que
descubro uma verdade que não conhecia.
MAURICE MAETERLINCK
Guardiola está apenas na metade de seu caminho como treinador e,
consequentemente, ainda tem muito a aprender. Compreendo que essa
afirmação pode parecer estranha quando confrontada com seus títulos e
troféus, seu indiscutível engenho estratégico e tático, assim como seu carisma,
mas é assim. Pep é jovem: só tem sete anos na elite mundial dos treinadores.
Alcançou o auge ao final de seu primeiro ano completo, quando conquistou os
seis grandes títulos com o Barcelona. Ninguém conseguiu nada igual nos 150
anos de história do futebol. A maioria dos seus grandes predecessores
necessitou de longas carreiras antes de chegar à plena maturidade no papel de
treinador. Vamos nos concentrar na seguinte lista de técnicos, buscando aquilo
que eles têm em comum: Chapman, Pozzo, Hogan, Raynor, Rappan, Weisz,
Erbstein, Guttmann, Rocco, Pesser, Sebes, Herrera, Busby, Maslov, Happel,
Schön, Michels, Lobanovskyi, Beskov, Menotti, Telê Santana, Ferguson… Exato:
todos precisaram de um longo período de amadurecimento. (Naturalmente,
sempre há exceções: Sacchi, Cruyff e Mourinho.)
Guardiola superou todos os registros históricos. Consagrou-se na
temporada de sua estreia, com apenas 38 anos, e continuou acumulando êxitos
em forma de troféus e concepção de jogo. Mas essas vitórias não significam que
tenha atingido a maturidade. Pep continua sendo um homem jovem, com
possivelmente muitos anos pela frente como treinador. Está há sete temporadas
no nível mais alto e cabe pensar que lhe resta, no mínimo, um período similar,
se não maior. Ele ainda está se formando e aprende rápido. “Aprender” é sua
palavra favorita, a que mais utiliza. Isso pode soar contraditório com seu rótulo
de sabe-tudo, mas é a realidade: Pep se considera um “sabe-nada”, pois acredita
que lhe falta todo um mundo por aprender como técnico.
No Barça, ele triunfou sendo um “adolescente” dos bancos, ou seja, venceu
sem sair de casa, sem se distanciar de um ambiente favorável (favorável porque
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os resultados permitiram, não nos enganemos). Munique foi a primeira viagem
ao exterior, a um mundo distinto. O adolescente abandonou o seio familiar e foi
em busca de aventuras, como faz qualquer rapaz de dezoito anos que quer
conhecer o mundo. Pep foi como um desses adolescentes e assinou com o
Bayern para conhecer esse outro mundo que existe fora do Barcelona. (E
também para provar a si mesmo, como disse Ferran Adrià.) Na Alemanha,
evoluiu e se fez “adulto”, aprendendo que ainda falta muito para aprender.
AS DIFICULDADES AJUDAM
Munique, 12 de dezembro de 2015
As adversidades também têm um aspecto positivo. A equipe demonstra sua
adaptação e um exaustivo domínio dos sistemas de jogo; os jogadores
exibem sua capacidade para atuar corretamente em posições distintas; e a
comissão técnica descobre novas potencialidades, como explica Domènec
Torrent:
— As dificuldades nos obrigam a despertar. Por exemplo, por causa
desse problema atual de lesões, ganhamos um novo lateral: Kimmich. As
experiências comprovaram como ele é um bom jogador e também que
pode atuar bem nas duas posições de lateral, além das naturais, no centro
do campo. Algumas vezes, os testes não saem bem; mas em alguns casos,
ajudam a progredir.
Não faltaram críticas duras e abundantes a Guardiola na Alemanha, mas ele
também recebeu inúmeros e entusiasmados reconhecimentos. As críticas foram
frequentes na imprensa e também entre os denominados especialistas
(Matthäus, Effenberg e Hamann foram alguns dos habituais). O reconhecimento
partiu principalmente dos treinadores, sobretudo dos que foram rivais do
Bayern. Isaac Lluch, jornalista que permaneceu em Munique durante os três
anos de Pep, observa que há uma razão para isso: “O entorno do Bayern, que
prega com orgulho seu slogan bávaro Mia San Mia (‘nós somos nós’, ou em
tradução mais livre: ‘somos-como-somos-e-estamos-muito-satisfeitos-comisso’)
necessita de muito folclore e muitas demonstrações de identificação que
Guardiola não veiculou por intermédio da imprensa”.
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O jornalista Uli Köhler ofereceu sua visão sobre as expectativas exageradas
que se formaram ao redor do treinador: “No futebol e na vida às vezes se espera
muito, demais, de alguém. Pep Guardiola tem de ser primeiro o melhor
treinador, o melhor amigo dos jogadores, tem de conhecer as melhores táticas e
tem de ganhar tudo. Além disso, tem de ser o melhor amigo dos torcedores e
estar unido a eles; e, finalmente, parece que tem de saber fazer operações
cirúrgicas difíceis e até consertar aviões. Não é possível. Não se pode fazer tudo.
Então, eu não diria que ele tenha deixado de fazer alguma coisa. Não, Pep foi
bem. Tem feito um grande trabalho”.
No início de 2015, Manuel Neuer fez uma afirmação que abrangia tudo o
que Guardiola acrescentou ao futebol alemão: “Pep conhece todos os times da
Bundesliga muito melhor do que a maioria de nós, os alemães”.
Foi um elogio maiúsculo, pois significava que o treinador havia alcançado,
em apenas dezoito meses, uma profundidade de conhecimento da Bundesliga
que a maioria dos protagonistas do campeonato não possuía. Mas, ao mesmo
tempo, foi um dardo envenenado que se cravou no coração de muita gente.
Neuer não teve essa intenção, mas muitos interpretaram suas palavras de outra
maneira: um estrangeiro pretende saber mais sobre nós do que nós mesmos…
Foi muito simbólico que, após ganhar a Bundesliga por três anos consecutivos,
com vantagens significativas e pulverizando todos os recordes históricos,
Guardiola nunca tenha sido eleito o melhor técnico do ano na votação dos
jornalistas esportivos.
Em seu propósito de amadurecer e progredir, nada foi mais útil a Pep do
que as adversidades que teve de superar. A maior, possivelmente, foi a
epidemia de lesões que a equipe sofreu. Ao contrário das impressões criadas, o
problema não foram as lesões musculares, mas as traumáticas.
Se repassarmos os dados da temporada 2015/2016, que não diferem em
excesso das duas anteriores, observamos o seguinte: o elenco do Bayern teve
um total de dezenove incidentes musculares de graus e importâncias diferentes.
O número está totalmente de acordo com o estudo encomendado pela Uefa aos
professores Jan Ekstrand, Markus Waldén e Martin Hägglund, que concluíram
que um grupo de 25 jogadores tem, em média, dezoito lesões musculares em
uma temporada. Comprovamos, portanto, que a incidência desse tipo de lesão
no Bayern não foi especialmente significativa, estando na média do que
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acontece com equipes de elite. Na parte baixa da lista aparece o Borussia
Dortmund, com quinze, e o Chelsea, com dezessete. No topo, figuram os
principais rivais europeus, todos eles com muito mais lesões musculares do que
o Bayern: o Arsenal contabilizou 25; o Real Madrid, 27; o Barcelona, 30; o
Manchester United, 31; e a Juventus e o Manchester City, 33. [Fonte: Efias.com]
Vemos, pois, que a parte muscular foi resolvida com notável perícia por
Lorenzo Buenaventura, o preparador físico de Guardiola. Mas, então, quando
dizemos “epidemia de lesões”, estamos falando de quê?
O primeiro fator que influenciou de maneira poderosa nessa “epidemia” foi
o critério de recuperação das lesões musculares que era tradicional no Bayern
há décadas — o qual explicarei nas páginas seguintes. Trata-se de um critério
totalmente respeitável, mas que, em minha opinião, se tornou antiquado diante
das incessantes inovações em técnicas de recuperação e tratamentos
fisioterápicos existentes atualmente. O prazo médio de recuperação das
incidências musculares no Bayern foi de 31 dias por lesão, muito superior aos
22 dias do Borussia Dortmund ou aos doze dias do Borussia Mönchengladbach.
De modo que, embora a cifra total de lesões musculares no Bayern não tenha
sido extraordinária, o tempo de recuperação, sim, foi. [Fonte:
Fussballverletzungen.com]
Em segundo lugar, foi altíssima a ocorrência de acidentes traumáticos, ou
seja, os sofridos por golpes, entradas e choques envolvendo um adversário, que
levam a entorses, rupturas de ligamentos e fraturas ósseas; lesões que
costumam exigir recuperações mais longas, em média, do que as musculares.
Apenas na última temporada, o Bayern sofreu, em acidentes que acontecem
corriqueiramente no futebol, a descomunal quantidade de 27 lesões
traumáticas (50% a mais do que lesões musculares). Comparativamente, o
número de acidentes traumáticos sofridos pelos rivais foi: Juventus, catorze;
Barcelona, quinze; Arsenal e Manchester United, dezessete; Real Madrid,
dezoito; Chelsea, dezenove; Manchester City, 24; e Borussia Dortmund, 27.
Observamos que, exceto pela igualdade com o Dortmund e a semelhança com o
City, o número do Bayern chegou a ser praticamente o dobro da quantidade de
traumatismos sofrida por jogadores de clubes como Juventus e Barcelona.
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7.1. A CULTURA MÉDICA
Nosso destino nunca é um lugar, mas
uma nova forma de ver as coisas.
HENRY MILLER
O doutor Hans-Wilhelm Müller-Wohlfahrt exercia, há quase quatro décadas, o
cargo de chefe dos serviços médicos do clube. Ele começou quando Hoeneß,
Rummenigge e Beckenbauer ainda jogavam no Bayern, no final dos anos 1970.
E como é lógico que aconteça com qualquer profissional que acumula mais de
trinta anos no mesmo posto, a força do hábito era muito poderosa,
especialmente em uma sociedade como a bávara, que, se por um lado é aberta,
liberal, amável, simpática, culta, por outro é conservadora e muito zelosa das
responsabilidades de cada um. Durante cerca de quarenta anos, o doutor não se
envolveu em nenhuma outra questão do clube, mas também não permitiu que
alguém lhe fizesse perguntas sobre sua tarefa.
Em Munique, Guardiola encontrou uma situação radicalmente oposta à que
viveu em Barcelona, onde os serviços médicos (certificados como os mais
eficientes e avançados da Europa) são um modelo de inovação e trabalham com
o treinador no próprio campo. Seu conceito básico é utilizar todas as técnicas
possíveis (desde que sejam lícitas) para facilitar a recuperação das lesões da
forma mais rápida e segura que houver, e que o treinador disponha do máximo
de jogadores para competir durante o maior número possível de jornadas. Para
isso, entre outras ferramentas, incluída a clínica esportiva integrada ao próprio
centro de treinamentos e dotada dos melhores avanços tecnológicos com que
um clube pode contar, os serviços médicos do Barça “vivem” junto com o
treinador e os jogadores durante todos os dias e momentos do ano.
O conceito de trabalho do doutor Müller-Wohlfahrt é muito distinto. Ele
considerava que sua presença no campo de treinamentos não era necessária.
Tampouco acreditava ser preciso acompanhar a equipe nas viagens para jogos
na liga e na copa, mas o fazia nos encontros da Champions League. Para
qualquer revisão, os jogadores deveriam ir até sua clínica particular, mesmo
que o time já estivesse concentrado, às vésperas de uma partida. O critério
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essencial do doutor Müller-Wohlfahrt primava pela recuperação pausada do
atleta. Seus tratamentos consistiam principalmente no uso da mesoterapia, uma
técnica que trata as zonas afetadas com múltiplas microinjeções de substâncias
biológicas e homeopáticas como o Hyalart (ácido hialurônico extraído das
cristas de galos) e o Actovegin (extrato que se obtém do sangue de bezerros), o
que o tornou mundialmente famoso.
Os critérios utilizados pelo doutor Müller-Wohlfahrt são tão legítimos
quanto quaisquer outros, mas ainda assim batem de frente com as exigências de
um time de elite submetido ao maior estresse que se dá no esporte, pois tais
critérios supõem uma limitação colossal, como sabe qualquer pessoa que
pratique uma disciplina esportiva de alto nível.
O conflito latente não se produziu para simplesmente decidir quem tinha
razão, mas porque dois conceitos diametralmente opostos sobre as prioridades
na recuperação de lesões tinham de conviver dentro do mesmo time. E, de fato,
deve-se destacar que a relação pessoal entre Guardiola e Müller-Wohlfahrt
sempre foi agradável.
O conflito de critérios ficou imediatamente claro. Recordemos o ocorrido
em agosto de 2013: o Bayern jogaria a Supercopa alemã contra o Borussia
Dortmund e o doutor comunicou que dois pilares do time (Neuer e Ribéry)
seriam baixas por lesão. Pep disputou e perdeu seu primeiro jogo oficial sem
ambos (a ausência de Neuer foi decisiva); mas, 36 horas depois do encontro, os
dois jogadores estavam treinando com total normalidade na cidade esportiva.
Foi um fato chocante. Dois futebolistas essenciais da equipe não puderam jogar
por lesão, mas estavam curados praticamente no dia seguinte… Isso resume
tudo o que aconteceu ao redor dos serviços médicos do clube.
Na minha opinião, naquele momento, Pep não resolveu bem a diferença de
ideias com o doutor Müller-Wohlfahrt. Definitivamente se tratava de duas
maneiras muito distintas de entender o esporte de alta competição. Por respeito
ao doutor e ao clube, Pep não quis romper o que estava estabelecido no Bayern
durante quase quarenta anos e não tomou uma atitude drástica desde o
primeiro dia: acreditou que, com o passar dos meses, as posturas se
aproximariam e a relação pessoal cordial lhes permitiria uma confluência de
ideias bastante positiva para a equipe. Mas não foi assim. Pep se equivocou
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aceitando um status quo que, no meu entender, não poderia dar bom resultado,
por causa da alta exigência competitiva que existe no futebol moderno.
É muito enriquecedor que ideias diferentes convivam em um mesmo time,
pois desse intercâmbio surgem novas propostas e o coletivo se beneficia. A
tensão é um motor do progresso. Mas é inviável avançar quando o que existe
são dois conceitos radicalmente contrários em um âmbito tão crucial como o da
recuperação das lesões.
A disparidade de critérios se reproduziu em vários outros casos, cujos
detalhes específicos de diagnósticos e intervenções eu não posso revelar, por se
tratar de informações particulares dos pacientes. Ao término da primeira
temporada, Guardiola comunicou à direção que necessitava da presença
permanente de um médico junto à equipe. Ele nunca pediu a destituição de
Müller-Wohlfahrt, mas que ele designasse um profissional de sua confiança
para que convivesse de maneira estável com os jogadores nos treinamentos e
nas viagens. A decisão demorou muito para tomar corpo, pois Kilian Müller-
Wohlfahrt, filho do próprio doutor, só se incorporou ao time em janeiro de
2015.
Na primavera daquele ano, aconteceu a principal série de lesões no elenco.
Embora algumas tivessem origem muscular, a maioria teve causas traumáticas.
Todas as recuperações se alongaram por mais tempo do que o inicialmente
comunicado. Foi dito que Franck Ribéry ficaria fora por três ou quatro dias, mas
na realidade manteve-se ausente por mais de oito meses… E Karl-Heinz
Rummenigge se irritou. Foi no momento menos oportuno, após a derrota para o
Porto, na Champions, por 3 × 1. Ele apareceu no vestiário e repreendeu
duramente a demora na recuperação dos jogadores machucados. Não se dirigiu
especificamente ao doutor Müller-Wohlfahrt (por se tratar de um jogo de
Champions, ele estava junto com o time), mas a todo o grupo de médicos e
fisioterapeutas no geral. A bronca não durou mais que dez segundos. Guardiola
logo interveio, pediu calma e ordenou que os jogadores fossem para o banho.
No dia seguinte, o doutor anunciou sua demissão do posto: não o fez no clube,
mas por intermédio do jornal que publicava a maioria das notícias exclusivas
relacionadas aos assuntos médicos do Bayern.
O incidente prejudicou Guardiola principalmente. Sobretudo porque ele
ficou sem um médico no momento crucial da temporada, quando a situação na
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enfermaria era catastrófica. Houve partidas em que Pep só dispôs de doze
jogadores de linha… E teve de enfrentar essa situação sem um doutor. E,
ademais, porque foi inevitável que a opinião pública o culpasse por ter demitido
uma lenda do clube — especialmente porque, nos dias posteriores à saída de
Müller-Wohlfahrt, quem se pronunciou pela primeira vez diante dos meios de
comunicação não foi nenhum dirigente do clube, mas o próprio Guardiola.
HELENIO HERRERA DEMITIU O DOUTOR
Milão, julho de 1960
É muito instrutivo ler sobre a experiência vivida por Helenio Herrera, em
1960, quando foi contratado pela Inter de Milão, clube pelo qual ganharia a
Copa da Europa em 1964 e 1965. O serviço médico do clube italiano era
dirigido por um doutor de fora da entidade, que não estava presente no
local de treinamentos, mas que tratava os jogadores lesionados em suas
próprias consultas na cidade esportiva e dava instruções telefônicas ao
massagista da equipe para que ele as transmitisse ao treinador. O
precedente é extraordinariamente idêntico ao de Munique. O próprio
Helenio Herrera explica em seu livro, Yo: Memorias de Helenio Herrera
(1962), como atuou:
“É verdade que, quando cheguei à Inter, pedi ao nosso presidente que
fizesse algumas mudanças no pessoal do clube. Isso criou um ambiente de
receio em relação a mim. Medo mal-entendido. Eu nunca pedi a nenhum
presidente que prescindisse de uma pessoa que cumpre seu dever e
conhece sua profissão. Os que acreditavam que as alterações efetuadas em
alguns postos do clube eram simplesmente uma prova de autoridade de
minha parte se confundiam. O que ocorre é que eu carrego toda a
responsabilidade: se um jogador se machucar reiteradas vezes, ninguém
colocará a culpa sobre o massagista nem sobre o médico, mas falarão sobre
os treinamentos sem razoabilidade de Helenio Herrera. Por isso é lógico
que eu queira me cercar das pessoas mais competentes nos diferentes
postos. Ao chegar à Inter, não pedi um médico novo por capricho […]. Se
prescindo de uma pessoa é porque ela não serve para os meus métodos, o
que não significa colocar em dúvida sua capacidade profissional aplicada a
outras modalidades esportivas.
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“Ao começar a temporada, após quinze dias, o médico do clube não se
apresentou como era seu dever. Parece que tinha um sistema peculiar ‘à
distância’ para cuidar da saúde dos jogadores.
“Até que apareceu um dia. Era um senhor muito simpático e fazia
brincadeiras. Para mim, não foi uma delícia tirar-lhe o sorriso dos lábios
quando lhe pedi que, já que estava em férias, continuasse em férias…
“Seu sucessor, o doutor Quarenghi, é um médico jovem e inteligente,
que assiste a todos os treinamentos do time.”
Não é simples comparar a experiência de Helenio Herrera, em sua época
(cinquenta anos de idade, tendo dirigido dez clubes), com a de Guardiola
quando chegou a Munique (42 anos e apenas um clube), mas é evidente que
Herrera acertou em sua decisão. De pronto, eliminou qualquer possibilidade de
trabalhar com alguém de metodologia tão oposta. Não o fez por duvidar da
capacidade do simpático doutor, mas “porque não serve para os meus métodos
[de trabalho]”. Guardiola preferiu acreditar que o tempo solucionaria a
disparidade de critérios, mas não foi assim.
No final de maio de 2016, quando se mudou para Manchester com seus
colaboradores, Pep tinha alterado seu pensamento de forma radical: no City,
todos deveriam ir na mesma direção. Tomou, pessoalmente, decisões rápidas
em relação aos médicos (incorporando o doutor Eduard Mauri) e
fisioterapeutas, e dirigiu o casting para a contratação de uma nutricionista de
primeiro nível. Guardiola aprendeu a lição de Munique.
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7.2. A PERSONALIDADE DE PEP
O caráter de cada homem é seu destino.
HERÁCLITO
U ma virtude pode se converter em defeito, se for o caso. Guardiola possui a
virtude da empatia: imediatamente se interessa por seus assuntos, se adapta a
você, tenta ajudá-lo naquilo que for necessário. Identifica-se e compartilha seus
sentimentos. Obviamente, Pep agiu assim no Bayern desde o primeiro minuto:
seu discurso de apresentação foi feito em alemão, vestiu-se com os lederhosen
(calças de couro típicas da Baviera) na primeira Oktoberfest que pôde visitar,
assumiu que o clube desejava fazer treinamentos com portas abertas para
satisfazer os torcedores, aceitou que os dirigentes preferissem manter o médico
em seu cargo e que a política esportiva do clube o distanciasse de qualquer
responsabilidade em relação às categorias inferiores. Teve empatia com o clube
porque entendeu que esses fatores, e muitos outros, eram bons para a entidade.
E, diante da dúvida, Guardiola sempre deu prioridade ao que era melhor para
seu clube, em Barcelona e em Munique, ainda que não fosse o melhor para ele
no aspecto pessoal.
Tanta vontade para se adaptar à idiossincrasia do Bayern — um clube de
personalidade singular — também teve sua contrapartida negativa. Por
exemplo, Pep entendia que o treinador do campeão alemão deveria falar
alemão, por isso usou sempre esse idioma nas entrevistas coletivas. Pep não
falava alemão com a facilidade com que se expressa em outras línguas, e
obviamente cometia erros de sintaxe ou pronúncia. De vez em quando, algum
jornalista sugeria que ele respondesse em inglês e o diretor de comunicação do
clube, Markus Hörwick, lhe transmitia essa solicitação. Mas Guardiola não quis
deixar de falar alemão, porque pensava que isso poderia ser interpretado como
uma fraqueza do clube. O treinador do Bayern, acreditava Pep, deve falar
alemão (ou ao menos tentar). Mas o que era uma virtude, a empatia, a
identificação, transformou-se em defeito, porque suas declarações em alemão
nunca conseguiram ser tão específicas e detalhadas como eram em inglês — ou,
obviamente, em catalão ou castelhano. De maneira quase unânime, os
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jornalistas alemães com os quais conversei sobre esse tema consideravam que o
treinador se equivocava: eles não se importavam que Pep falasse em inglês. O
que importava era Pep!
Vimos que, no caso do médico, Guardiola não quis ser drástico porque
acreditou que o tempo faria com que duas posturas diametralmente opostas se
aproximassem; e no caso do idioma, decidiu centrar-se no alemão por respeitar
uma característica essencial do clube. Em ambos, aconteceu algo parecido: uma
virtude acabou se transformando em defeito.
A permanente busca por empatia e o desejo de atuar sempre em benefício
do clube conduziu Pep a algumas situações delicadas, nas quais o prejudicado,
paradoxalmente, acabou sendo ele mesmo. Se tivesse sido mais egoísta, talvez
não teria sofrido tanto em alguns episódios, como no caso de Toni Kroos.
Durante seu primeiro ano, Guardiola defendeu que o jogador não saísse do
clube. As discrepâncias entre Kroos e a direção do Bayern em matéria de salário
e valorização eram muito claras, e as relações pessoais tampouco eram as
melhores; o treinador se ocupou pessoalmente durante meses para tentar um
acordo. Kroos era um de seus pilares, o homem que dava sentido ao jogo uma
vez acionado por Lahm, e Pep não queria perdê-lo. Mas o Bayern avaliou de
outra forma e acabou fazendo a transação com o Real Madrid. Antes de chegar a
esse ponto, Guardiola poderia lançar um ultimato ao clube, mas ele jamais
gostou de fazer ameaças ou assumir posturas semelhantes e isso não lhe passou
pela cabeça. Depois de duas tentativas muito insistentes para ficar com Kroos, o
treinador entendeu que era preferível ser compreensível com o clube, ainda que
perdesse um jogador fundamental. Certo ou errado? Na minha opinião, aceitar
essa decisão foi outro equívoco de Pep, porque poucas vezes esse tipo de
comportamento é valorizado no futebol de alta competição. Tudo se esquece.
Dois meses mais tarde, quando Javi Martínez machucou o joelho e o time ficou
sem meios-campistas, todos quiseram saber como o treinador planejava
solucionar a crise…
Para compreender exatamente a razão pela qual Pep aceitou uma decisão
com a qual não concordava, não se pode esquecer a delicada situação que o
clube atravessava: Uli Hoeneß estava na prisão e Karl-Heinz Rummenigge se viu
obrigado a assumir novas e enormes responsabilidades. Ao treinador pareceu
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que sua obrigação consistia sobretudo em compreender e ajudar seu clube,
especialmente seu novo líder executivo, Rummenigge.
Mas esses não foram os únicos defeitos de Guardiola que vimos na
Alemanha.
Uma de suas características principais é tomar todos os proble-mas como
próprios, e em silêncio. Ele os guarda em seu interior, como caixas que não se
abrem, até que a pressão aumenta de forma extrema e ele então explode. É um
traço de caráter de difícil solução. Não se trata necessariamente de casos
importantes: em geral, são detalhes, que simplesmente vão se acumulando até
que, todos somados, parecem pesar muito. Pep é como uma panela de pressão
que prende o vapor até não ser mais possível. Isso se passa, em certas ocasiões,
por causa de perguntas grosseiras de um jornalista, declarações de um rival,
pela atitude de um determinado membro do elenco ou alguma decisão do clube.
Ele guarda tudo em silêncio… E o vapor vai aumentando. Certo dia, de repente,
explode e isso acontece com força excessiva.
Algo parecido ocorre com seus sentimentos. Pep é tremendamente
emotivo. Suas lágrimas incontroláveis após a final da Copa da Alemanha,
quando encerrou sua etapa no país, são reflexo dessa maneira de ser. Falei com
vários torcedores do Bayern nos dias posteriores, e todos concordavam:
“Achávamos que Pep era como uma máquina”, “Pensávamos que não tinha
sentimentos”, “Nós o víamos como um autômato”, “Suas lágrimas nos
mostraram outra pessoa. Sua sensibilidade nos tocou…”.
EU SÓ QUERO QUE ME QUEIRAM
Manresa, 23 de junho de 2015
As férias de verão terminaram em Manresa, perto de Santpedor, seu
povoado natal, onde Pep participou do quinquagésimo aniversário da
Ampans, associação de ajuda a jovens com incapacidade intelectual. O
treinador se emocionou profundamente com os testemunhos e expressou
seus sentimentos: “Se querem saber o que desejo na vida e no meu
trabalho, é que me queiram. Na minha profissão, tento fazer que todos me
queiram bem, mas não é fácil, porque deixo jogadores fora [da escalação] e
eles se chateiam, porque sentem que eu não os quero. Não sabem nem
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saberão que é por uma razão tática ou por loucuras minhas; eles concluem
que não gosto deles, e isso me faz muito mal, porque nunca pensei, nas
vezes em que ganhamos, que foi graças a mim. Sempre penso que ajudei,
nada mais. Eu não sou melhor do que ninguém. Tive a sorte de estar em um
grande clube e ter grandes jogadores. De verdade, o que eu busco não são
títulos, mas querer bem as pessoas e que elas também me queiram bem”.
Por que Pep só mostrou suas emoções no último dia? Basicamente por
duas razões: porque é muito introvertido e porque tenta se proteger. É mais do
que tímido: é especialmente introvertido, salvo quando está rodeado por
pessoas em quem confia. Nesses casos, Pep se abre por completo e expressa
outras características: é alegre, contundente e brincalhão. Tenho fotografias
dele dentro do elevador da Allianz Arena, nas quais ele se mostra tão farrista
quanto o mais extrovertido dos jogadores do Bayern, ou seja, David Alaba ou
Thomas Müller. Mas para que isso aconteça, ele precisa se sentir cômodo e
confiante de que ninguém ao redor trairá sua confiança. Por isso protege suas
emoções e as guarda para momentos muito pontuais, quase sempre em
particular.
Esse comportamento oferece a quem vê de fora uma imagem gélida do
treinador. Ele parece um tipo frio, insensível, como pensavam os torcedores, o
que gera uma enorme contradição quando Pep diz publicamente que quer
muito bem seus jogadores, que os ama, que se sente muito querido por eles, que
percebe diariamente o carinho que lhe oferecem e a paixão com que treinam.
Amor, ca-rinho, paixão ao redor de um homem frio e sem emoções? Ele expressa
todos esses sentimentos de maneira privada e em grandes doses. Essa
diferença entre o Guardiola dos âmbitos particular e público faz com que muita
gente não acredite nas expressões de emoção que se dão entre ele e seus
jogadores. Consideram-no incapaz de sentir aquilo que diz sentir. Até que, no
último dia, o rio se derrama e então todos comprovam que, efetivamente, Pep
era um sentimental e seus jogadores não só nutriam carinho por ele, mas
também paixão autêntica. Basta lembrarmos o que aconteceu ao terminar a
final da Copa no Olympiastadion de Berlim para nos certificarmos disso.
Pep também esconde as emoções como proteção contra seu próprio
excesso de confiança. Guardiola é uma pessoa que acredita rapidamente nos
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outros. Não observa riscos nas aproximações, não percebe se as pessoas que lhe
propõem algo têm boas intenções ou não. Em geral, Pep se mostra amável, se
abre, confia e, frequentemente, sofre a decepção da traição. Digamos, como
resumo, que Pep foi traído muitas vezes. Se, por um lado, ele tem horror à
possibilidade de trair alguém (e prefere perder qualquer batalha a cometer uma
traição), por outro, não é hábil o bastante para evitar ser traído. Em outras
palavras, peca por confiar em excesso. E por ser brando, exceto quando o vapor
chega ao limite.
Acima de suas virtudes e defeitos, Guardiola é uma boa pessoa que foi
colocada no epicentro de um mundo de pouca contemplação. Entre seus
defeitos, destaco mais um: carregar erros dos outros sobre suas próprias costas.
Não bastam os que ele mesmo comete, pois crê que deve assumir também os de
seus jogadores, os de seu clube e às vezes também os erros de pessoas que lhe
são totalmente alheias. Outro equívoco.
E sua obsessão tem dois lados. Sem ela, sem a paixão com que vive o
futebol, Pep não seria quem é. Mas, ao mesmo tempo, sua dedicação
permanente, a busca pela perfeição, o fato de entregar sua vida ao clube e aos
jogadores, constitui também uma pressão gigantesca para todos. Com Pep nada
se faz pela metade: tudo é sempre levado ao máximo. É uma virtude, mas às
vezes também se transforma em um defeito, porque nem todo mundo vive o
futebol com entrega e paixão idênticas.
Como em outros capítulos, a pergunta final é parecida: Pep aprendeu a
lição de Munique também nesses aspectos que menciono? Seus primeiros
passos em Manchester, aproximando-se dos torcedores ou conversando dentro
de um táxi com o menino Braydon Bent de forma divertida, expressando suas
emoções sem se reprimir, parecem indicar que ele vai nessa direção.
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BASTIDORES
RESTAURANDO A PIRÂMIDE
Munique, 24 de outubro de 2015
Hoje é um dia histórico. O Bayern vence o Colônia e soma a milésima
vitória na Bundesliga, uma cifra formidável. O campeonato alemão, tal
como existe na atualidade, se estabeleceu em 1963, e o Bayern não subiu
à primeira divisão da liga até 1965. Nestes cinquenta anos na elite do
futebol do país, o clube de Munique disputou, até hoje, 1714 partidas,
com mil vitórias, 385 empates e 329 derrotas.
Pep está radiante. A própria Bundesliga distribuiu um gráfico com
os melhores percentuais de vitórias dos treinadores históricos do
Bayern: Guardiola tem média de 84%, com impressionante vantagem
sobre os demais: Magath, 64%; Hitzfeld e Heynckes, 63%; Lattek, 62%.
Da Espanha, chega outro dado: a vitória de hoje foi a de número
trezentos de Pep, desde seu começo no Barcelona B, em 2007.
— Essas trezentas incluem o Barça B?
É a única pergunta que ele faz. Sempre que se referem a seus títulos
como treinador, Pep pergunta se está contabilizada a temporada
2007/2008, que ele viveu na equipe filial do Barça, transformando-a em
campeã da terceira divisão. Sim, as trezentas vitórias incluem as 28 que
ele obteve com o Barça B.
Hoje Pep restaura a “pirâmide”. O Bayern se distribui sobre o
gramado da Allianz Arena em um 2-3-5, o módulo clássico do futebol
primitivo, que se utilizou entre o final do século xix e meados do século
xx. Pep recupera a ideia de jogo da antiguidade, do futebol “préhistórico”,
a origem e o início das verdadeiras táticas.
A inspiração surgiu de uma conversa com Juanma Lillo. Falavam
sobre a melhor maneira de enfrentar equipes médias, que se fecham em
sua própria área:
— Pense em uma ampulheta — disse Lillo.
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Houve o momento em que Pep recuperou a figura do falso 9,
quando fez Leo Messi jogar nessa região do campo contra o Real Madrid,
em 2009. Já conhecemos o processo que lhe permitiu recuperar esse
papel. Porém, o que acontece hoje não tem a ver com uma figura
específica, ou a função de um jogador, mas com todo o módulo de jogo,
toda a organização da equipe.
Pep não conhecia todos os detalhes históricos da “pirâmide”,
embora tivesse amplas referências:
— Juanma Lillo tinha me falado sobre ela.
Nas origens do futebol, quando a tática ainda não existia como tal e
havia somente pequenos traços de organização, todos os times se
moviam exclusivamente no sentido ofensivo do jogo. Da mesma forma
que continua ocorrendo nos pátios dos colégios de todo o mundo, os
jogadores de futebol em 1860 corriam, todos, dentro de um magma
caótico, atrás da bola, com o objetivo de marcar gols. O historiador
húngaro Árpád Csanádi observou que, após o 1-1-8 inicial em todas as
equipes, os primeiros níveis de certa organização coletiva foram
alcançados nos anos posteriores ao nascimento do futebol: os ingleses,
praticantes do jogo direto, se dispuseram no 2-1-7; e os escoceses, que
praticavam um jogo de passes, o fizeram em um mais moderado 2-2-6.
A implantação do 2-3-5 se originou fora dos terrenos de jogo, nas
primeiras conversas sobre tática, na Universidade de Cambridge. A
partir de 1880, a “pirâmide” se estabeleceu como sistema de jogo
universal, graças aos êxitos do Blackburn Rovers, entre outros. Em
alguns países, o sistema se transformou em um dogma que se prolongou
até os anos 1950, apesar de o wm (3-2-2-3) de Herbert Chapman (e
Árpád Weisz, na Itália) já ter dado mostras de sua eficácia àquela altura;
também haviam se mostrado eficientes os módulos associados à
orientação defensiva (chamados Bold, Béton, Verrou, Il Método,
Vianema…), que nasceriam a partir da noção de inferioridade de
algumas equipes e alcançariam seu apogeu nos anos 1960, com o
catenaccio italiano.
O mais importante na decisão de Guardiola de recuperar a velha
pirâmide não é o fato em si, mas o processo realizado para ativar essa
restauração. O resultado é o mesmo que no século xix, o 2-3-5, mas as
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causas pelas quais se chega a esse módulo de jogo são totalmente
diferentes das que os primeiros times de futebol protagonizaram.
Tampouco surge por obra de algum profundo conhecimento, prévio e
documentado, mas de maneira intuitiva, fruto de um processo em que
confluíram basicamente três causas: o domínio do jogo, os rodízios e o
gosto pelos atacantes. Vamos nos aprofundar nessas três causas que se
combinaram em Munique, no outono de 2015.
1. O domínio do jogo. A análise do rival do dia, o Colônia (e o mesmo
aconteceria com muitos outros), não admitia dúvidas sobre sua vocação:
o time se encerraria de forma intensiva ao redor de sua área, o que
inevitavelmente provocaria o domínio absoluto do Bayern. Domènec
Torrent e Carles Planchart repetiam sem parar:
— Eles se fecharão, Pep, a cada dia se fecharão mais e mais.
O Colônia se fecha em um 5-4-1, pretendendo que o Bayern se
choque contra o muro. Para evitar isso, Pep escala cinco atacantes e só
um meio-campista de origem, e mais três laterais. É a primeira vez que
ele implanta essa organização em uma equipe. Tanto no Barça quanto no
Bayern, ele já tinha usado algumas partes desse módulo. Em seu
primeiro ano em Munique, utilizou o 2-3-2-3 contra o Manchester
United, com Robben e Ribéry encarregando-se por completo dos lados,
como carrileros. Na segunda temporada, em numerosas partidas, escalou
cinco atacantes ao mesmo tempo, embora quase sempre com papéis de
interiores puros, próximos ao meio-campista central (Xabi Alonso). Com
os atacantes, Pep compensava a falta de meios-campistas; em jogos
relativamente tranquilos, o time podia assumir a presença de cinco
atacantes simultâneos sem se partir em dois. Assim, em março de 2015,
Guardiola encarou as oitavas de final da Champions, contra o Shakhtar
Donetsk, também com cinco atacantes; Robben e Ribéry como interiores
encarregados de buscar o drible decisivo em zonas internas do campo
rival. Foi um brilhante ensaio, cujo saldo foi um triunfo por 7 × 0.
Hoje, ele aplica o módulo em toda a sua extensão: é um 2-3-5 puro.
Vejamos como os jogadores se colocam sobre o gramado: Neuer está
fora de sua meta, uns quinze metros além da linha da grande área do
Bayern, atento, como sempre, a tudo o que acontece em campo para o
caso de ter de intervir (não o fará em todo o jogo). À frente dele, se
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colocam Boateng e Rafinha, os dois defensores centrais, ambos dentro
do círculo central, mas já no campo do Colônia. Arturo Vidal deve
exercer o papel de meio-campista central único; próximos a ele, Philipp
Lahm na direita e Alaba na esquerda. Os três compõem uma linha que
possui duas funções primordiais: distribuir a bola entre os cinco
companheiros de ataque e formar uma primeira parede que impeça
qualquer contra-ataque do rival.
Com os pés sobre a linha da área do visitante, situam-se, da direita
para a esquerda: Coman, Robben, Lewandowski, Müller e Costa. Cinco
atacantes contra cinco defensores. Os jogadores do Bayern se colocam
sempre nos espaços entre cada defensor. Destacam-se por sua
mobilidade. Salvo os dois extremos, situados nas partes exteriores do
campo, o resto muda de posição de forma constante, recebendo bolas
das linhas de trás e tentando fazer penetrações perigosas na área. Se não
é possível, devolvem a bola velozmente para reiniciar o movimento em
outro intervalo do ataque. Os extremos também trocam de posição, o
que acaba esgotando a defesa do Colônia. Robben aparece onde estava
Coman, que aparece onde estava Costa, enquanto Müller e Lewandowski
enlouquecem os centrais visitantes com movimentos permanentes. E, se
em algum momento a dinâmica se interrompe, Alaba se adianta alguns
metros e se converte no sexto atacante. O Colônia mal consegue cruzar o
centro do campo e o Bayern passa mais de 70% do tempo na metade
contrária. A festa (4 × 0) termina com uma oferta de cerveja de graça
para todos os torcedores presentes.
A certeza do domínio foi o primeiro passo para a restauração da
pirâmide.
2. Os rodízios. A proximidade do confronto vital pela Copa, em
Wolfsburgo, obrigava o treinador a resguardar seus dois jogadoreschave
no centro do campo; Xabi Alonso e Thiago Alcántara, dois médios
que necessitam de muito frescor físico e, principalmente, mental, para
extrair seu melhor rendimento. A distribuição da bola por parte de Xabi,
bem como o drible e o passe de Thiago exigem de ambos o máximo nível
de descanso, o que os conduz ao banco nas datas prévias aos jogos de
alta importância.
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Contra o Colônia, aconteceu dessa maneira. E, como Rode
continuava machucado e Javi Martínez ainda não alcançara o melhor
rendimento, o único meio-campista que Pep podia utilizar sem riscos era
Arturo Vidal. As condições do rival permitiam jogar com um único meiocampista,
tendo em conta que Vidal estaria recebendo o apoio de Lahm e
Alaba, formando a linha de três homens à frente dos centrais.
A necessidade de dar descanso aos meios-campistas mais essenciais
foi o segundo ponto do processo.
3. O gosto pelos atacantes. “É curioso; toda a vida dizendo que só se
pode jogar com meios-campistas, que eles são a chave, e aqui estou eu,
jogando com cinco atacantes…” Pep disse isso um ano antes, quando não
podia contar com Lahm e Thiago. À época, o treinador compôs várias
escalações com cinco atacantes, ainda que sempre utilizasse dois deles
como substitutos dos meios-campistas interiores. Um jogo foi crucial
para reforçar suas novas ideias ofensivas: a volta contra o Porto, na
Champions. O péssimo resultado da ida (derrota por 3 × 1) obrigou o
Bayern a jogar totalmente voltado ao ataque e, para isso, Pep não teve
dúvidas em escalar cinco homens ofensivos, embora dois deles fossem,
de fato, laterais. Naquela noite, o Bayern atacou com Lahm, Müller,
Lewandowski, Bernat e Götze, cada um deles situado nos espaços entre
os defensores portugueses. Thiago e Xabi distribuíram bolas de um lado
para o outro. O Bayern amassou o Porto por 6 × 1 (5 × 0 nos quarenta
minutos iniciais).
Desde então, Guardiola entende que, em muitos jogos ao longo da
temporada, o mais efetivo seja escalar cinco atacantes, rompendo o
velho aforismo do futebol que assegura que se ataca melhor com menos
jogadores de frente. Hoje o Bayern alcançou uma dinâmica de jogo que
lhe permite infringir tais regras e atacar com cinco homens, sem que a
equipe se divida em dois corpos distintos.
O gosto pelos atacantes e as boas experiências adquiridas na
temporada anterior foram o terceiro ponto do processo com que
Guardiola restaurou, em 2015, a pirâmide de 1880. As razões que
conduziram à distribuição do time no 2-3-5 não tiveram relação
nenhuma com as que levaram os jogadores de Cambridge a se organizar
deste modo, e talvez nesta diferença resida o que é mais notório na
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coincidência. Um século e meio depois, o sistema de jogo voltava a ser o
mesmo e era tentador e inevitável pensar que o círculo evolutivo se
fechava, regressando ao ponto de origem, mas a realidade é que as
causas que conduziram ao emprego da pirâmide não tinham nenhuma
comparação possível entre si.
A utilização de cinco atacantes tem uma vantagem adicional:
aqueles que servem os passes têm mais alternativas à disposição, como
Pep observa no jantar após o jogo:
— Os passes do [defensor] central ou do meio-campista central são
mais seguros se vão para fora, em direção ao extremo; mas são mais
perigosos se vão por dentro, ainda que tenham menor porcentagem de
acerto. Com cinco atacantes, nosso central e nosso meio-campista
central têm mais opções para escolher. Podem passar para fora com
pouco risco, ou por dentro com mais risco, mas também gerando mais
perigo. Abre-se um leque maior de possibilidades para nós.
Para os jogadores do Bayern, isso significou o alcance de um dos
grandes objetivos estabelecidos no início da etapa de Guardiola: hoje
todos eles conhecem, compreendem e praticam o catálogo tático
completo que o treinador queria transmitir e ensinar. Assimilaram o
aprendizado e, o que é mais importante: durante o processo, extraíram
de seu interior todo o talento e as capacidades que já tinham, e agora
passam a exibi-las em seu nível mais alto. É uma vitória para esses
jogadores, o triunfo de sua ambição e vontade para aprender mais, e de
sua aptidão e energia para executar as coisas com acerto. Nenhum
exemplo é melhor do que a declaração de Roland Evers, o comentarista
da tv Sky Deutschland, que durante o jogo batizou Lahm do seguinte
modo: “Philipp Lahm, der Verteidigende Mittefeldflügelstürmer”, algo
como “o defensor-meia-extremo-atacante”.
Para Guardiola é um triunfo formidável de organização tática. Seus
jogadores não só aprenderam, compreenderam e executaram todas as
partituras que ele ensinou, mas também esta (o 2-3-5), particularmente
complexa e arriscada. Não por acaso, a “pirâmide” deixou de ser
praticada em meados dos anos 1950, porque outros sistemas de jogo
foram considerados mais eficientes e menos perigosos. Pep recuperou o
módulo de maneira muito distinta da que se praticava cem anos atrás.
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Sua pirâmide é pura organização e está repleta de detalhes e pequenas
instruções. Não é o caos desorganizado que os filmes antigos do futebol
de 1930 nos mostram, mas uma estrutura que possui vocação
fortemente ofensiva, reforçada nos pontos fracos e escorada para
manter o time agrupado. É uma pirâmide que, acima de qualquer outra
consideração, se destaca pela dinâmica de movimentos de todos os seus
componentes.
A história contém esse tipo de coincidência insuspeita. Por duas
vias completamente diferentes e mediante processos que não possuem
nenhuma semelhança entre si, os ideólogos primitivos da Cambridge
vitoriana e Pep Guardiola se viram intimamente relacionados em torno
de uma pirâmide…
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CAPÍTULO 8
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O TREINADOR COMO ARTESÃO DO TALENTO
Para chegar à excelência é necessário formar-se, mas para ultrapassá-la é preciso
transformar-se.
XESCO ESPAR
Pep é obcecado por aprender. Absorver conhecimentos. Aprender do que vê,
do que experimenta, do que lê ou lhe explicam. Das boas experiências e,
especialmente, das ruins. Existe a falsa crença de que um treinador de elite já
sabe tudo, mas não é assim: normalmente sabe o mesmo que um treinador de
terceira divisão! Move-se em outro entorno, com jogadores de categoria
superior e em um contexto competitivo elevado, e a pressão que recebe é
enorme, mas talvez seus conhecimentos sejam muito similares aos do técnico
que dirige uma equipe humilde, formada por jogadores modestos. As posições
que ocupam são muito distintas, mas seus conhecimentos não precisam ser.
Guardiola começou treinando na terceira divisão, algo de que sempre se
esquecem aqueles que, para criticá-lo, dizem que gostariam de vê-lo treinando
um time pequeno. Ele já fez isso e ganhou a liga com essa equipe pequena,
formada por jogadores adolescentes. Quem não esquece é Guardiola. E recordar
esse fato lhe permite lembrar também que seus conhecimentos talvez não
sejam muito diferentes dos de um treinador de terceira divisão. Isso o estimula
a seguir aprendendo. Desconfiem de quem afirma saber tudo. Repetirei o que
Pep disse ao fazer seu balanço final em Munique: “Eu me adaptei à Alemanha e
vim para aprender mais do que ensinar. Foi uma experiência de vida do cacete,
aprendi muito”.
Aprender foi o núcleo central de sua vivência na Alemanha e a causa
principal de sua metamorfose.
Não acreditem que, na Inglaterra, será diferente: sua predisposição é a de
aprender, não ensinar, porque aprender é um de seus alimentos preferidos. Pep
acredita que só assim poderá seguir avançando no futebol de elite. Não se refere
unicamente a incrementar o conhecimento do jogo, mas também a mergulhar
em outras disciplinas: comunicar-se melhor, analisar melhor sob pressão,
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propor planos mais ajustados a cada necessidade. Mesmo no nível mais alto é
necessário continuar aprendendo. Reginald Revans enunciou a ideia com
clareza: “Para sobreviver, necessitamos aprender na mesma velocidade das
mudanças que acontecem no entorno”.
Como um treinador aprende? A resposta que Pep me deu há anos segue
válida: “Aprende-se olhando e pensando. Observando e refletindo”. O treinador
deve observar e analisar as partidas e treinamentos; deve extrair ensinamentos
de seus mestres para aplicá-los em outros contextos; deve confrontar opiniões
dentro de sua comissão técnica e também com outros treinadores; deve ensaiar
e testar movimentos novos, consultar e debater com os jogadores; deve analisar
rivais, ver jogos, estudar vídeos, revisar erros, repassar detalhes e refletir sobre
tudo isso; deve ler livros e documentos de análises, fazer cursos de atualização e
compartilhar experiências com outros técnicos de futebol e de outras
disciplinas esportivas; deve “desaprender”; e, se for possível, deve investigar a
história do futebol para saber com precisão de onde viemos. Diz Ángel Cappa:
“O futuro do futebol está no passado”.
O treinador nunca deve deixar de observar e refletir. Só assim poderá
continuar aprendendo, desde que mantenha a mente aberta e não se deixe levar
por ideias preconcebidas: “Não existe o aprender se o pensamento se origina
em conclusões prévias”, descreveu Krishnamurti. O médico belga Maurice
Piéron concluiu: “Um trei-nador que não sabe observar é menos treinador. Em
mais de 80% do tempo de uma sessão [de treinamento] ou de um jogo, o treinador
observa”.
É revelador escutar o técnico argentino de voleibol Julio Velasco: “Eu
aprendi muito com os jogadores ruins, muito mais do que com os bons. Porque
com os ruins tive de me esforçar muito mais para encontrar a maneira de ajudálos
a melhorar”.
Com frequência, os treinadores aprendem com outros treinadores. Muitos
deles, como jogadores, estiveram às ordens de técnicos singulares, dotados de
ideias interessantes. Esses jogadores ensaiaram essas ideias, testaram suas
vantagens e inconvenientes e, anos mais tarde, colocaram isso em prática já
como treinadores. Não há como refutar esta sequência histórica: Jimmy Hogan
— Josef Blum — Karl Humemberger — Rinus Michels — Johan Cruyff — Pep
Guardiola. Também não se pode negar o fio condutor da seguinte relação:
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Herbert Chapman — Vittorio Pozzo — Karl Rappan — Helenio Herrera — Fabio
Capello — José Mourinho.
O filósofo José Antonio Marina escreve que a evolução humana foi
determinada “por sua capacidade de aprender” (além das mutações e da seleção
natural). Essa capacidade, que é a terceira força evolutiva do ser humano, pode
ser potencializada mediante um fator decisivo: “Não só podemos aprender mais
do que o resto dos animais — prossegue Marina —, mas somos capazes de
decidir o que queremos aprender”. A isso podemos chamar de “aprendizagem
seletiva”. O filósofo acrescenta um conceito que é essencial para se
compreender a evolução do futebol: “A função da inteligência (a função do
cérebro) não é conhecer, nem sentir, mas é dirigir a ação […]. Não pensamos
para conhecer. Pensamos para atuar. O talento é, portanto, a inteligência
atuando de maneira adequada, brilhante, eficiente”.
Paco Seirul·lo detalha os parâmetros da evolução do futebol: “Um treinador
tem uma ideia e a implementa. A princípio, o resultado é regular, mas depois
tudo anda bem e ele vence com essa ideia até que os adversários se dão conta e
respondem a ela… Isso é justamente o que faz as espécies evoluírem! No
futebol, é exatamente igual. As espécies sempre viveram esse tipo de processo.
Quando aparece uma determinada espécie de inseto, os passarinhos a devoram
rapidamente. Mas acontece que, após centenas ou milhares de anos, esse inseto
acaba desenvolvendo um veneno que mata seu predador. Então os outros
passarinhos percebem e evoluem, criando um antídoto ou deixando de comer
esse inseto. Assim são as evoluções. No futebol, acontece o mesmo. Para
entender a evolução do futebol, basta ler a Teoria da Evolução das Espécies. É
assim. É exatamente do mesmo jeito. Quando, de repente, alguém saca um
zagueiro e joga com três defensores e mais dois à frente — um 3-2-3-2, por
exemplo —, apenas isso já provoca uma mudança nas inter-relações
vivenciadas pelos atletas. E o que acontece? A princípio, essas inter-relações
não estão ajustadas e se perde muito a bola. Mas a grande vantagem que o
futebol tem é que essa mudança se manifesta rapidamente. Ela se manifesta
porque perdemos a bola! E isso acontece porque não há comunicação entre os
jogadores. Os adversários se aproveitam dessa falta de comunicação e são
capazes de nos superar, roubando-nos a bola. Cada vez que aparece um
elemento novo, um elemento distinto, todos os que estão no entorno desse jogo
se modificam, para o bem ou para o mal. Sempre é uma dicotomia. E demora um
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tempo até que apareça a essência de por que mudamos e que elementos
distintos acrescentamos. Mas não é um tempo muito longo, porque logo
observamos onde o modelo falha: perdemos a bola”.
A obsessão por aprender não pertence, portanto, a um âmbito
intelectualmente platônico. Não é aprender para conhecer mais, mas aprender
para dirigir melhor a ação. É uma obsessão tremendamente pragmática.
Dizemos que Guardiola é uma espécie rara porque, quando já construiu sua
obra (quando já “ensinou” seus jogadores), não se põe a contemplá-la, mas
parte para iniciar outro trabalho. E dizemos que é um tipo heterodoxo porque é
inconformista, obsessivo e nada lhe parece suficientemente perfeito. Mas talvez
ele seja apenas um sobrevivente, alguém que interiorizou que ficar quieto,
desfrutando de sua obra, constitui um grande perigo. Alguém que compreendeu
com clareza que quem não cresce, morre. “Crescer significa aprender e se
transformar pouco a pouco em uma versão melhor de si mesmo”, escreve
Imanol Ibarrondo. Portanto, é preciso se mover sempre, num continuum.
Aprender para não ficar ancorado no passado, porque nem mesmo o passo
prévio de desaprender é suficiente para seguir aprendendo. É necessário
formar-se sem descanso.
Ao anunciar que iria para a Inglaterra porque queria continuar
aprendendo, Guardiola estava dizendo, na realidade, que queria seguir
ensinando. Se o professor aprende ao ensinar, o mesmo acontece com o
treinador. Os psicólogos Ron Gallimore e Roland Tharp trabalharam durante
muito tempo perto de John Wooden, lendário treinador de basquete da
Universidade da Califórnia (ganhou dez títulos da ncaa entre 1964 e 1975), e
refletiram todas essas vivências em um livro cujo título é You Haven’t Taught
Until They Have Learned [Você não ensinou nada até que eles tenham
aprendido]. Isso é o treinamento! Não se trata de ensinar, mas que os jogadores
aprendam — se entendermos o “aprendam” como absorção das ideias que o
técnico propõe, ou no sentido de que o jogador consiga extrair suas melhores
virtudes, até as mais ocultas, graças ao impulso que o treinador lhe sugere.
Quando Guardiola disse, na metade de sua última temporada no Bayern,
que seu trabalho fundamental estava pronto, provocou surpresa geral e todo
mundo respondeu: “Ele está louco! Falta a Champions!”. Mas, para Pep, a obra já
estava terminada, porque os jogadores tinham aprendido o que ele se propôs a
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ensiná-los. O edifício estava construído, o quadro estava pintado, o trabalho
estava feito. Naturalmente, faltava algo muito importante: seguir competindo
no sprint final para tentar ganhar títulos. Mas, para Guardiola, a essência de sua
missão estava completa.
Reconheçamos que é uma característica pouco habitual e que, para um
aficionado do futebol ou jornalista médio, pode ser de difícil digestão. Certo.
Mas Nick Faldo já explicou que “só os muito bons querem melhorar. Por isso são
muito bons”. E Guardiola aplica para si mesmo o critério dos psicólogos
americanos: terei ensinado quando os jogadores tiverem aprendido. Nem um
minuto antes, nem um minuto depois.
Aprender e se formar não basta. Para seguir avançando, é preciso se
transformar. Deve-se rechaçar qualquer sentimento de satisfação e continuar
exigindo mais das próprias capacidades. Tendemos a dizer que tudo já foi
inventado: isso é falso! Tudo é suscetível de ser reinventado. Ou ser reutilizado
em condições diferentes das originais. A prática e o treinamento demonstram o
quanto é possível progredir. Marina detalha como Tchaikóvski compôs seu
Concerto para violino, em 1878, e Leopold Auer se negou a interpretá-lo
“porque considerava que era impossível tocar aquela peça”, mas hoje em dia
qualquer aluno de conservatório pode fazer isso. A prática conduziu a esse
ponto. Os jogadores do Bayern não eram capazes de encadear mais de dez
passes seguidos num rondo sem que um dos situados no centro interceptasse a
bola, mas, três anos mais tarde, vemos inúmeros vídeos que mostram como eles
chegaram a somar mais de cinquenta passes, numa velocidade inusitada. Como
foi possível? Praticando, recebendo correções, aprendendo.
O professor Santiago Coca expressou com lucidez o objetivo do
treinamento: “Dignifiquemos o futebol como jogo e liberemos o talento”. O
talento, como explica Marina, “não é uma pedra preciosa, escassa e cobiçada
[…]. Essa ideia forma parte de uma concepção estática do mundo e, a meu ver,
antiquada. É a antítese de uma visão criadora da inteligência, capaz de inventar
e ampliar nossas possibilidades, nossa riqueza, nosso talento”. O talento não é
um dom, mas o ato de aplicar bem nossos recursos. E como se consegue isso?
Com treinamento: é certo que nascemos com uma dotação genética, “mas
também é certo que nem todos esses genes se ativam ou, como se diz
tecnicamente, se expressam. O ambiente influencia essa ativação seletiva, e um
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dos componentes do ambiente é a educação, que dessa forma modula nossa
genética e se converte assim em geradora de talento no sentido estrito”,
acrescenta Marina. No futebol, a educação é o treinamento. Assim, pois,
treinando, ou seja, recebendo uma determinada educação, o jogador poderá
ativar e expressar os genes (e as características futebolísticas) que tem em seu
interior. O treinamento é o estimulante desse processo.
Arrigo Sacchi disse algo na mesma linha: “O objetivo do técnico é que, por
intermédio do jogo e do trabalho, se construa o jogador. Para ganhar, o
importante é a inteligência e o trabalho. Sempre tive claro que o futebol é um
esporte de equipe, não um esporte individual. Mas a pessoa, suas características
e virtudes também são importantes. Um jogador tem de amar o futebol, ser
trabalhador, honesto; por último, está o talento. O talento não é o primeiro. É
preciso fazer o jogador se aprimorar e que o time se mova como um só homem”.
Julio Velasco fez uma pergunta sugestiva: “Será que gostamos tanto do talento
porque treinadores não gostam de ter que trabalhar?”.
É importantíssimo observar um detalhe gramatical: os jogadores não
“treinam”: eles “se treinam”. Aqui, o pronome reflexivo “se” é a chave. O
treinador ensina e guia o aprendizado, mas quem se treina é o jogador. Treinarse
significa extrair toda a potencialidade que possui: física, técnica, intelectual,
volitiva, emotiva, tática, competitiva… Se o treinador é bom, será um
“facilitador” dessa extração de potencial. O treinamento é o processo de eclosão
do talento: “Desde uma perspectiva epigenética, a herança genética constitui
um recurso inicial de um processo construtivo que implica continuados ajustes
e equilíbrios”, como disse Marina.
O treinador é decisivo como guia desse processo, mas nem a prática mais
precisa e meticulosa é suficiente. Também é necessário o aprendizado que vem
da experimentação. Guardiola se expressou em outros termos: “Para aprender,
você deve experimentar. Não basta que lhe digam como é. Para corrigir
verdadeiramente um defeito, primeiro é preciso ter sofrido suas
consequências”.
E não há experiência mais substancial do que a que surge na derrota.
Stefan Zweig escreveu em Fouché: “Nada debilita mais o artista, o general, o
homem de poder, que a incessante conquista de sua vontade e seu desejo: só no
fracasso o artista conhece sua verdadeira relação com a obra, só na derrota o
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general observa seus erros, só na queda em desgraça o homem de Estado
alcança a verdadeira visão de conjunto da política. A riqueza contínua abranda,
o aplauso contínuo é obtuso; só a interrupção dá nova tensão e elasticidade
criadora ao giro no vácuo. Só a desventura dá profundidade e amplitude ao
olhar que observa a realidade do mundo”. Permitam-me acrescentar: a
necessidade estimula os sentidos.
Guardiola viveu poucas derrotas em sua carreira de treinador: apenas 10%
dos jogos em que dirigiu suas equipes. Não há treinador na história com menor
percentual de derrotas, por isso ele figura como o número 1 indiscutível na
classificação mundial histórica por pontos do Clube elo (que maneja uma tabela
similar à que se aplica no xadrez), com 2151 pontos, à frente do renomado
austríaco Hans Pesser (2143) e com notável vantagem sobre o restante dos
técnicos. Mas, precisamente porque foram poucas, Pep se lembra da maioria
dessas derrotas. Algumas caíram no esquecimento porque foram irrelevantes:
por exemplo, na Bundesliga, ele perdeu nove jogos dos 102 que disputou, mas
cinco desses reveses aconteceram quando o Bayern já havia conquistado o
título, por isso não tiveram nenhuma importância. Por outro lado, Guardiola
nunca se esquecerá da derrota sofrida para o Real Madrid na Champions
porque, naquele dia, foi ele quem se equivocou, renunciando a suas próprias
ideias; nem da derrota para o Atlético na mesma competição, ainda que por sua
crueldade, tendo em conta a partida sensacional que o Bayern disputou.
Tendemos a dizer que aprendemos uma lição de toda derrota, mas não
estou certo de que seja assim. Em algumas ocasiões, as desculpas turvam o
processo de análise e absorção da experiência; em outras, simplesmente se
tende a esquecer o que causa a dor. Mais do que em qualquer outro âmbito,
Guardiola se esforça para que isso não lhe aconteça e assume todas as derrotas
como uma lição que deve analisar profundamente. Depois de perder de forma
categórica um jogo de liga em Wolfsburgo, no início de 2015, por causa de
algumas inovações que introduziu e que resultaram negativas, Pep escreveu na
lousa de seu escritório o que chamou de “a Bíblia”: um guia tático que não
deixou de recordar desde então antes de qualquer jogo, consistindo
basicamente em que dois homens prendam quatro rivais no ataque e se procure
ter um homem a mais (superioridade) no meio de campo e na defesa.
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Pep também se obriga a analisar as vitórias com a mesma ótica que utiliza
nas derrotas; por essa razão, com frequência é visto taciturno apesar do triunfo.
A impressão é a de que ele não sabe desfrutar a vitória, mas o que está
buscando são as lições que se escondem atrás de cada uma delas. Seu amigo
Kasparov explica: “Quando algo vai mal, naturalmente queremos fazer melhor
na vez seguinte, mas devemos nos treinar para querer fazer melhor até mesmo
quando as coisas vão bem. Não fazer conduz à estagnação”. Guardiola
acrescenta: “É na vitória que se deve estar mais vigilante”.
Em suma, como disse Benjamin Britten: “Aprender é como remar contra a
corrente: quando para de remar, você retrocede”. Aprender é o motor de toda
evolução.
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8.1. O TALENTO SE CULTIVA POR INTERMÉDIO DO HÁBITO
Quando não faço bem as coisas,
desejo que meu treinador me corrija.
STEPHEN CURRY
Jesús Candelas, treinador espanhol de futebol de salão, faz uma reflexão muito
estimulante: “Mesmo em nosso melhor jogo ou rendimento, deveríamos poder
nos perguntar: ‘O que posso melhorar?’”.
E a resposta é: tudo. Tudo pode ser melhorado. E sempre. No caminho do
progresso não existem fronteiras. O que é necessário? Cultivar o talento. Dado
que definimos o talento como um processo e não como um dom, é correto falar
em cultivá-lo. E o fazemos por intermédio da prática. “Nem toda prática nos faz
progredir”, diz Marina. “É preciso um tipo particular, a ‘prática deliberada’, ou
seja, um treinamento bem dirigido, que nós chamaremos de ‘aprendizagem
profunda’.” O cultivo do talento não consiste na simples repetição de uma
atividade, mas na excelência dessa repetição, em sua orientação e direção, em
sua qualidade. A teoria de Malcolm Gladwell sobre as 10 mil horas de prática
para que alguém se transforme num “especialista” em determinada matéria foi
amplamente questionada por uma razão fundamental: a prática deve se
produzir na direção adequada porque, do contrário, é totalmente inútil e
ineficiente. Para que servem 10 mil horas se a prática é equivocada?
Com José Antonio Marina, entramos nesse terreno, intimamente
relacionado ao progresso de um jogador: “Não podemos dizer que a
aprendizagem seja tudo, mas sim afirmar com total segurança que não há
grandes talentos sem treinamento e que, a partir de certo nível de aptidão, a
‘prática deliberada’ é tudo”. Experimentos realizados com os alunos de violino
da Academia de Música de Berlim concluíram que o que distinguia o virtuoso do
medíocre só se devia ao efetivo trabalho de cada um. Repito o que Julio Velasco
disse: “O prazer do treinador tem de ser o prazer de um artesão, não o de um
industrial. Somos artesãos do ensinamento e da formação do esportista”.
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Quando assinalamos a melhora individual dos jogadores que Guardiola
treinou em Munique (com os casos destacadíssimos de Boateng, Kimmich,
Neuer, Lahm e Costa), não podemos deixar de salientar o processo que a
comissão técnica e os jogadores protagonizaram para alcançar essa melhora:
835 sessões de treinamento, 161 jogos oficiais, 37 jogos amistosos, 530
palestras técnicas grupais e cerca de 2 mil reuniões individuais para analisar
vídeos. Isso significa que a “aprendizagem profunda” dirigida por Guardiola se
esten-deu ao longo de mais de 1500 horas de jogo e prática no campo,além de
outras 1500 no escritório. Podemos resumir que os jogadores do Bayern
trabalharam cerca de 3 mil horas na direção indicada pelo treinador. São muitas
horas; mas, sobretudo, foi um tempo de muita “qualidade”, muito intenso,
concentrado no essencial e dirigido a objetivos específicos e muito
determinados.
MAIS UMA VEZ
Munique, 19 de janeiro de 2016
Pep acelerou os preparativos e, na terça-feira (19), dedicou uma longa
sessão a trabalhar a nova ação de pressão e roubo de bola, e o reinício do
ataque posicional. Foi um treinamento duro, de sobrecarga, o segundo da
semana com o mesmo objetivo. A sessão se alongou por duas horas e meia,
porque o treinador pedia mais uma repetição. Sempre uma a mais:
— Das Letzte! — gritava, pedindo a última.
Mas todos os jogadores sabiam que não era a última repetição. Recémsaído
de uma massagem por causa de um pequeno incômodo muscular,
Medhi Benatia ria ao meu lado:
— Todos nós já o conhecemos. Quando grita “Das Letzte!”, sabemos
que não é a última repetição. Aprendemos que a última, e talvez nem seja
essa, será quando ele de fato prometer: “Jungs, I promise you. Es ist das
Letzte!” [“Rapazes, eu prometo. É a última!”].
Pep ainda não estava fazendo nenhuma promessa, e essa “última”
jogada se repetia mais vezes enquanto o relógio seguia avançando e a
escuridão caía sobre Säbener Straße. Ele só pronunciou as palavras
mágicas quando o esgotamento tinha se apoderado de todos: “Jungs, I
promise you”. E aquela, sim,era a última repetição.
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Aí, sim, Benatia deu uma piscada e se despediu:
— Acabou por hoje.
O treinamento é o instrumento imprescindível para construir hábitos.
“Toda a nossa vida, em sua forma definida, não é mais do que um conjunto de
hábitos”, disse William James. (Pesquisadores da Universidade de Duke
estimam que mais de 40% das ações que realizamos a cada dia não são decisões
de momento, mas hábitos.)
Por que os hábitos são tão importantes? Marina explica que “nossa
capacidade de desenvolver atividades atentamente é pequena e custosa.
Lembrem-se de quando aprenderam a dirigir, ou de quando tentaram aprender
um novo idioma. Tudo exige uma concentração exagerada e cansativa […].
Pouco a pouco, essas atividades vão se automatizando, convertendo-se em um
hábito, e podemos realizá-las sem prestar atenção. Mediante hábitos,
ampliamos nossa capacidade perceptiva, intelectual, motora, moral […]. A
educação é, por fim, a aquisição de hábitos”. Somos o que fazemos
repetidamente, observou Aristóteles, antes de proclamar que a excelência não é
um ato, mas um hábito.
Por que deveria ser diferente no futebol? Para que uma determinada ação
saia bem, o esportista não pode pensar. Se Usain Bolt pensa como deve correr,
não corre. Se Stephen Curry pensa como tem que arremessar, não encesta. Se
Leo Messi pensasse como deveria chutar, nunca marcaria um gol. Todos eles
devem pensar (muito e repetidamente) durante a “prática deliberada”, nos
treinamentos (por isso essa prática deve ser excelente e exigente), mas não
durante a competição. O “hábito” que se adquire no treinamento é fundamental
para se compreender o dinamismo da inteligência (Marina) e para o êxito da
ação esportiva executada. Emma Stone explicou que só conhecia uma forma de
cantar bem ao vivo: “Você deve ensaiar muito. Deve conhecer tanto a canção e
aprendê-la tão bem que se sinta livre para improvisar”. O treinador Fran
Beltrán escreveu: “O futebol efetivo é o de quando você deixa de pensar. Por
isso devo treinar o que quero fazer, para que se transforme em um hábito”.
Quando falamos de hábitos no futebol, nos referimos a “automatismos”?
Dito de outro modo: como se compatibilizam as repetições constantes de
jogadas e ações nos treinamentos com a concepção do futebol como fenômeno
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complexo? Seirul·lo responde: “Nós tentamos repetir elementos específicos do
jogo com alguma variação. Porque se eu sempre faço o mesmo contra você, na
terceira vez você me pega. O que devemos fazer e treinar? Devemos construir
situações de jogo em que a repetição automática não tenha valor. Devemos
reduzir os ‘automatismos’ do jogo. Porque se automatizamos o jogo, então você
nunca me vencerá: em dez segundos, posso descobrir quais são seus
automatismos. O que devemos trabalhar, ainda que primeiro tenhamos de
descobri-las, são as interações eficientes que existem entre os jogadores. Não é
outro vocabulário, mas outro conceito”.
As interações entre jogadores compõem um âmbito fundamental no
futebol. O rendimento de uma equipe só pode se multiplicar (ou melhorar) se os
jogadores complementarem sua capacidade por intermédio das influências que
exercem uns sobre os outros e uns com os outros. Como influem nos
companheiros e como são influenciados pelos outros quando atuam juntos. Esse
certamente é um fator relevante para qualquer treinador no momento de
decidir uma escalação: muitas vezes, a melhor escalação não é a composta dos
melhores jogadores, mas daqueles que melhor se inter-relacionam. A arte das
interações em uma equipe tem múltiplos vetores: em algumas ocasiões,
depende da visão e do olfato do treinador; em outras, das improvisações dos
próprios jogadores; e, às vezes, simplesmente surgem por acaso.
A “aprendizagem profunda” exige objetivos de melhora contínua e
mecanismos de correção imediata: “O aluno deve saber em cada momento se
está indo bem ou mal. Praticar sem saber os resultados é como jogar boliche
com uma cortina que oculte os pinos. A evolução educativa deve estar muito
próxima da ação avaliada”, explica Marina. Surpreendeu que Guardiola tenha
corrigido Kimmich logo após o jogo contra o Dortmund, em março de 2016?
Provavelmente sim, por ser pouco habitual. Mas, na verdade, deve ser mesmo
algo incomum? Os jogadores de xadrez não se reúnem imediatamente após o
fim da partida para reavaliá-la de maneira conjunta e, por vezes, cruel? Quem
falhou, como, em que momento, o que poderia ter sido feito? O exército
americano comprovou a utilidade de revisar as ações militares realizadas. O
coronel Thomas Kolditz, da Academia de West Point, afirma: “Esse método
literalmente transformou o exército”. Por que as correções imediatas no futebol
nos surpreendem?
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CORRIGIR IMEDIATAMENTE
Dortmund, 5 de março de 2016
Pep não protela a correção de erros. Sempre foi uma de suas
características. O Pep dessa última temporada duvida pouco, aprofunda-se
em suas convicções, não admite que se ignore a mínima norma de conduta
estabelecida no vestiário, e é mais rigoroso do que nunca nas correções. Os
últimos instantes do jogo contra o Borussia Dortmund foram repletos de
erros, embora não tenham causado nenhum verdadeiro estorvo ao Bayern
(0 × 0), que praticamente sentenciou o título da liga. Depois de se despedir
de Tuchel com um longo abraço, Pep se dirige ao centro do Signal Iduna
Park e pede explicações a Medhi Benatia, que tinha substituído Xabi Alonso
no último minuto:
— Medhi, você deu as instruções a Kimmich?
— Sim, Pep, falei com ele, mas havia muito barulho.
Então Guardiola pergunta a Kimmich:
— Você ouviu as instruções de Benatia?
— Não, Pep, não as ouvi.
— Caralho, você tinha que se posicionar como meio-campista central!
— Desculpe, não escutei.
— Você tinha de ficar à frente da defesa de quatro e manter a posição,
mas você saiu dessa zona e nós perdemos o controle. Você precisa estar
atento quando lhe dão uma instrução.
— Desculpe, não entendi…
Neste ponto, a correção terminou. Pep abraçou seu jogador, a quem
adora como um filho.
— Você fez um jogo sensacional, Josh. Você é bom, muito bom. Eu
disse que você conseguiria, eu disse!
— Obrigado, Pep. Foi duro, mas acabou bem.
— Não. Bem, não. Foi do cacete. Você é foda, Josh, foda.
Estou muito orgulhoso de você.
Meses mais tarde, mal chamou atenção quando Guardiola se aproximou do
jovem Oleksandr Zinchenko para fazer algumas correções. Aos 25 minutos do
amistoso entre o Borussia Dortmund e o Manchester City, em 28 de julho, em
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Shenzhen, por causa do calor na cidade chinesa, houve uma pausa para que os
jogadores se refrescassem. Zinchenko, de dezenove anos e recém-chegado ao
City, tinha cometido erros em passes longos, erros de precipitação, e Pep fez o
jovem atleta enxergar que ele não deveria se antecipar demais, mas esperar
seus companheiros, juntar-se a eles e não desperdiçar a bola com passes sem
sentido. Foi uma correção imediata, mas o melhor foi a reação do rapaz, que
duas horas depois publicou uma fotografia do momento no Twitter, com este
breve texto: “Aprendendo e trabalhando duro”.
Por último: a “prática deliberada” é infalível? Não. Mas é imprescindível
trabalhá-la a fundo e na direção adequada; ela deve ser exigente, com correções
imediatas e sustentada intensamente para construir hábitos que permitam ao
jogador executar as ações sem a necessidade de pensá-las.
Christian Thielemann se expressa assim ao analisar seu comportamento
como maestro: “Antes de chegar ao palco, tenho uma ideia muito precisa na
cabeça, mas não sei se poderei transmiti-la, porque há outros companheiros [os
músicos]. E sabe o que se deve fazer antes de subir ao púlpito? Uma boa
lavagem cerebral! Para conseguir que a música surja espontânea, deve-se
esquecer de todas as ideias prévias”.
O hábito é o fermento do talento.
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8.2. A IMPORTÂNCIA DA MEMÓRIA NO FUTEBOL
A memória é o único paraíso do
qual não podemos ser expulsos.
JEAN PAUL
O talento não é um dom, mas um processo. O treinador é um artesão do
ensinamento, que cultiva o talento por meio da prática deliberada
(“aprendizagem profunda”), o que estimula a criação de hábitos que permitem
ao jogador atuar sem a necessidade de pensar: somente atuar. Os hábitos são
um dos detonadores do talento; é preciso, igualmente, que apareçam as
interações mais eficientes entre os jogadores. As correções devem ser
imediatas, para beneficiar o progresso da aprendizagem.
Se aquilo que não se treina é esquecido, como deve ser o treinamento para
não se esquecê-lo e, sobretudo, para que ofereça seus melhores frutos?
O fundamento da inteligência humana é a memória. E o talento se baseia no
gerenciamento ideal da memória. Portanto, dentro de seu programa de
ensinamentos, o treinador deve concentrar boa parte do trabalho nos estímulos
à memória do atleta. Porque, quanto mais o jogador lembrar, menos deverá
pensar, além de poder atuar e se inter-relacionar melhor. Surpreende que Pep
tenha dedicado o núcleo principal de seu primeiro treinamento em Manchester
ao início do jogo, à orientação da saída da bola e a como recuperá-la? Não, e isso
não aconteceu por casualidade, nem se trata do capricho de “treinar com a
bola”, ou de modismo. Por que ele fez isso? Não foi por ser obcecado pela tática,
mas por outra razão, que explico a seguir.
É junho de 2015. Pep está retornando da Suíça, onde passou uma semana
de férias. Do carro, com o telefone no viva-voz, ele explica:
— Tenho pensado que, por causa dos jogos a cada três dias, não há tempo
de preparar adequadamente todas as variantes táticas. Os rapazes já dominam a
defesa de três e a de quatro, e podemos passar rapidamente de uma a outra,
mas necessitamos de muito mais: devemos dominar todos os detalhes e não há
forma de conseguir isso se seguirmos treinando dessa maneira, porque não
temos tempo. Pensei muito sobre esse assunto nas férias e já falei com Dome
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[Torrent] e com Loren [Buenaventura]: na próxima temporada, treinaremos em
grupos separados para podermos nos aprofundar nos detalhes táticos. Às dez
da manhã, por exemplo, com defensores e meios-campistas centrais; ainda que
seja só por meia hora, trabalharemos todas as variantes táticas entre eles. E
uma hora depois, faremos o mesmo com os meios-campistas ofensivos e os
atacantes. Dessa forma, eles não treinarão mais em conjunto, mas seremos mais
eficazes.
E assim foi feito. Não tão frequentemente como Guardiola desejava, mas
uma vez por semana. Só que era insuficiente. Em fevereiro de 2016, quando já
tinha anunciado seu compromisso com o Manchester City, passeávamos por
uma rua de Munique e Pep disse:
— No futebol de hoje não há tempo para treinar. Por essa razão, devemos
trabalhar somente a tática. Na pré-temporada, não podemos seguir utilizando
duas semanas correndo ou preparando o físico, porque é precisamente o único
momento do ano em que podemos dedicar certo tempo a treinar de verdade,
aprender, ensaiar, conhecer e corrigir o tático. Conceitos, conceitos e conceitos.
Que eles os aprendam nesse momento da pré-temporada e depois iremos
desenvolvendo e recordando ao longo de todo o ano.
Essa é a razão principal pela qual, em Manchester, Guardiola aumentou o
número de treinadores que compõem sua equipe. Pep tem a seu lado Domènec
Torrent, Brian Kidd, Carles Planchart, Mikel Arteta, Rodolfo Borrell, além de
Lorenzo Buenaventura e seus colaboradores na preparação física e prevenção, e
de Xabi Mancisidor na direção técnica dos goleiros. Por que uma comissão
técnica tão ampla? Porque Pep trabalhará diariamente aspectos táticos em
diversos grupos e delegará outras funções a seus auxiliares. O objetivo é
aumentar o número de horas anuais dedicadas ao aperfeiçoamento tático.
Quando Guardiola pisou pela primeira vez no centro de treinamentos do
City (5 de julho de 2016), qual foi o núcleo do treino? Sim, uma sessão de
conceitos táticos. Desde o primeiro minuto, com o objetivo de transmiti-los e
ensiná-los de maneira profunda e poder recordá-los durante a temporada. Em
outras palavras: no início, ensinamentos por imersão; na sequência, por
recordação insistente (memória). Ao longo do ano, o treinador provocará nos
jogadores (por meio de sessões curtas, específicas e em grupos) a “lembrança”
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dos conceitos aprendidos. E acrescentará a isso tudo o fruto da experimentação
que surgirá durante a competição.
Aí está o valor da memória para uma equipe de futebol. Dizia Ortega y
Gasset: “Para ter boa imaginação, é preciso ter uma memória muito boa”. E
ninguém menos que Björn Borg declarou o seguinte: “O segredo para manter a
frieza sob a máxima pressão é a preparação e a prática até que a memória
muscular funcione sozinha”.
Eis o que Bobby Fischer fazia nos meses antes de conquistar o título
mundial de xadrez contra Boris Spassky, conforme descreve Frank Brady em
sua obra, Endgame: além de muitíssimo treinamento, Fischer adotou um livro
de cabeceira do qual não se separou durante meio ano: era o número 27 de
Weltgeschichte des Schachs (A história do xadrez mundial), onde havia 355
partidas jogadas por Spassky perfeitamente detalhadas, com um diagrama a
cada cinco movimentos. Fischer havia anotado numerosos comentários a
respeito de cada partida: nos movimentos considerados ruins, escrevia um
ponto de interrogação vermelho; nos que considerava bons, um ponto de
exclamação. E memorizou tudo! Memorizou 355 partidas e 14 mil movimentos
de seu adversário. Durante meses, Fischer pedia a qualquer pessoa que
escolhesse uma partida do livro e ele sabia dizer o lugar onde ela foi disputada e
quem tinha sido o rival de Spassky. Depois, o futuro campeão mundial recitava
sem erro todos os movimentos dessa partida. A memória é o ponto de apoio que
permite mover o talento criativo.
Para que um time de futebol possua criatividade elevada, seus
componentes necessitam de boa memória: precisam recordar o que
aprenderam e devem fazer isso “durante” os jogos para somar à sua memória
tudo o que acontece. “O ato de recordar refaz uma lembrança e, na próxima vez
que recordamos, não nos lembramos do acontecido no início, mas da lembrança
reconstruída na última vez que a evocamos”, escreveu Steven Rose.
POR FORA E COM PASSES LONGOS
Munique, 5 de outubro de 2015
Na última temporada de Guardiola, houve um caso muito revelador do
poder da memória do futebolista. O Borussia Dortmund de Thomas Tuchel
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chega invicto à Allianz Arena (onze vitórias em catorze jogos) para um
encontro crucial na liga. O Bayern também está invicto, o que promete um
duelo colossal. Durante a semana, Pep trabalhou diversas variantes a partir
da base de um 3-4-3 que, graças à liberdade concedida a Müller, flutua para
se tornar um 3-3-1-3 ou 3-3-4 no ataque, um 4-4-2 sem bola e um 4-5-1 na
necessidade de defender dentro de sua área.
Conhecida a escalação, vemos que Tuchel escolheu,
surpreendentemente, mudar a posição de metade de seus homens. No
vestiário do Bayern, a decisão é recebida com frieza. O capitão Lahm vai à
sala de Pep e diz:
— Viu a escalação, Pep? Teremos de jogar por fora e com passes
longos.
— É isso, Philipp. Por fora e com passes longos.
— Quer falar com os rapazes?
— Só um pequeno lembrete. Chame Jérôme [Boateng], Xabi [Alonso] e
Thiago.
Minutos mais tarde, os três jogadores e o capitão se reúnem com o
treinador. Nem sequer se sentam no sofá branco do escritório.
— Eles vão sair com um monte de meios-campistas para preencher a
zona central, por isso lembrem do que trabalhamos: temos de evitar a
circulação interior. Xabi e Thiago, bolas por fora. Jérôme, bolas longas. Os
passes por dentro têm de ser rasteiros, verticais e fortes para que não nos
roubem. Lembrem-se do que trabalhamos, nada mais.
A partida rapidamente pende em favor do Bayern, graças a um passe
longo de Boateng para Müller (que fez com que o zagueiro se aproximasse
do banco para apertar a mão de seu treinador). Com a ajuda dos vídeos
preparados por Carles Planchart, Guardiola recorda, no intervalo, o que foi
ensaiado durante a semana:
— Saímos por fora, evitamos o corredor central e só procuramos
Lewy, Müller ou Götze, por dentro, se Jérôme puder passar forte e rasteiro.
Se não puder, buscamos o passe longo e evitamos a pressão deles.
O Bayern vence o duelo por 5 × 1 (Boateng deu outra assistência, com
um passe de cinquenta metros). Quando o jogo termina, Tuchel declara: “O
Bayern nos surpreendeu com as bolas longas”. Os jogadores do Bayern
também dão declarações significativas.
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Xabi Alonso: “Pep nos ensinou diversos caminhos táticos pelos quais
podemos nos mover. Podemos jogar as partidas de várias maneiras, de
acordo com a necessidade”.
Jérôme Boateng: “Durante os jogos, basta um sinal de Pep para fazer
qualquer tipo de modificação na tática do time. Não temos problema. Ele
faz um gesto e nos lembramos perfeitamente do que temos que mudar”.
Qual é o jogador inteligente? Aquele que tem boa memória (parafraseando
o professor Marina). Alguém que tenha absorvido as centenas de instruções ao
longo do treinamento e que seja capaz de recordar o que aprendeu para ativar
as transmissões sinápticas no momento adequado e explorar suas capacidades.
O talento é a arte de investir bem os recursos de nossa inteligência.
Mas sempre há exceções. Certo dia, o jogo ia mal para o Bayern: a memória
e os hábitos não eram suficientes. Foi necessário promover uma revolução
radical, agitar as posições e criar uma reviravolta. Vale a pena lembrar o que
aconteceu, justamente porque, se é necessário ter tudo ensaiado e programado,
também é preciso ter a capacidade de romper com o planejado e deixar o
caminho livre para a improvisação.
O PAPEL DAS OITO MUDANÇAS
Munique, 12 de dezembro de 2015
— Estamos encalhados, Dome. Assim não vamos em frente neste jogo.
— Sim, estamos encalhados. Temos de mudar as coisas.
— Lahm de extremo, essa é uma solução. Mas se adiantarmos Philipp,
teremos de mudar tudo.
— É muito radical. Vai nos obrigar a fazer muitas alterações.
— Prepare-as.
O primeiro tempo do enfrentamento com o Ingolstadt foi
decididamente ruim. O Bayern jogou sem controle, incapaz de superar a
pressão agressiva que os visitantes aplicaram à defesa muniquense. Pelo
segundo jogo seguido, o oponente não esperava atrás, mas fazia um
pressing seletivo contra os defensores e meios-campistas do Bayern, que
não conseguiam iniciar com facilidade o jogo de sua área. De início, Arturo
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Vidal ocupou a posição de meio-campista central, mas só durou vinte
minutos nesse papel, por causa da pouca ordem que se estabelecera no
jogo. A essa altura, Kimmich passou então a jogar na mesma posição e Vidal
assumiu a função de interior esquerdo. Javi Martínez jogava como interior
direito. O Bayern poderia ter marcado no primeiro tempo, com uma
cavadinha de Lewandowski que a defesa salvou, mas também poderia ter
levado um gol. Neuer evitou o pior em algumas ocasiões.
No intervalo, os treinadores conversaram sobre possíveis medidas
para remediar aquele descontrole. De pronto fizeram Thiago substituir
Vidal, mas o Ingolstadt já tinha posto em prática sua segunda ideia de jogo:
agora esperava atrás, bem recuado, com uma defesa formidável que
limitava os efeitos dos bons dribles que Coman conseguia como extremo
direito.
— Se subirmos Lahm como extremo, teremos de fazer oito mudanças
de posição e passar a outro esquema de jogo.
O diagnóstico de Domènec Torrent implicava um terremoto no time,
mas era o que Pep queria.
— Estamos encalhados, Dome. Temos de chacoalhar isso
radicalmente. Vamos fazer já.
Pep decidiu usar um papel com as novas posições desenhadas. Era
melhor do que dar as instruções com sinais, porque seria difícil para os oito
jogadores envolvidos entenderem rápido. No minuto 58, aproveitando um
lateral, Guardiola entregou o papel com as instruções a Lahm. O time
passaria a jogar em 4-2-4, e as oito alterações eram essas:
• Lahm subia para jogar como extremo direito;
• Coman passava a ser extremo esquerdo;
• Rafinha trocava de lado para ser lateral direito;
• Badstuber se convertia em lateral esquerdo;
• Javi Martínez baixava à posição de defensor central pela esquerda;
• Thiago deixava o papel de interior e se unia a Kimmich como meiocampista
central;
• Lewandowski deixava a zona esquerda do ataque e se colocava como
centroavante;
• Müller passava de meio-campista ofensivo a segundo atacante, junto
com Lewandowski.
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Lahm leu as modificações e demorou pouco mais de um minuto para
transmiti-las. Começou por Coman, a quem orientou verbalmente, e seguiu
com Javi, que por sua vez passou o papel para Thiago, Rafinha e Badstuber.
Aproveitando um escanteio contra, Lahm concluiu a comunicação com os
dois atacantes. A reorganização surtiu efeito: ordenou melhor as peças do
Bayern e desconcertou a defesa do Ingolstadt.
Sem alcançar um grande nível, o jogo dos donos da casa melhorou em
fluidez e coerência. Dois extremos abertos e dois atacantes emparelhados
multiplicavam as linhas de passe disponíveis aos meios-campistas centrais
e Boateng. O gol que abriu o placar chegou precisamente desse modo:
Lewandowski se livrou da marcação e Boateng lhe enviou um passe
adocicado no espaço vazio. O polonês driblou o goleiro visitante e marcou
seu décimo quinto gol em dezesseis jogos de liga. Para Boateng, foi seu
terceiro passe para gol no campeonato, o que aumentava cada vez mais sua
importância no time: ele era um excelente defensor central; atualmente, se
converteu num pilar fundamental no jogo do Bayern.
Minutos depois, Coman, Müller e Lewandowski mostraram sua virtude
no manejo dos espaços e permitiram que o capitão Lahm marcasse o
segundo gol da tarde, com a perna esquerda, o que o levou a brincar com os
jornalistas sobre o conteúdo do papel: “Na nota, Pep dizia para eu marcar
um gol com a perna esquerda”, disse, rindo.
O papel foi uma exceção à norma da memória, por isso decidi guardálo
como lembrança de um dia especial.
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8.3. A LINGUAGEM É UMA ARMA PARA CONFUNDIR
Os limites da minha linguagem
são os limites da minha mente.
LUDWIG WITTGENSTEIN
Se a memória é um elemento-chave na explosão do talento de um jogador, a
transferência de conhecimento por parte do treinador é, ao mesmo tempo, um
desafio e uma escolha. É um desafio se focar em transferir seu conhecimento
aos jogadores, que deverão transformar essas instruções em elementos
tangíveis (o jogo e suas consequências: o gol, a vitória). Mas também é uma
escolha, porque o treinador sempre é alguém que está de passagem por um
clube e deve decidir o que fazer com esse conhecimento: pode transmiti-lo em
forma de legado ou levá-lo consigo quando for embora, sem deixar nada para
trás.
O primeiro desses dois vetores nos introduz conceitos intimamente ligados
à linguagem e à comunicação. Estamos diante de um dos grandes desafios
históricos do esporte: a comunicação entre treinador e esportista, entre técnico
e equipe. Há aí uma dificuldade enorme, porque a linguagem confunde. Osho
(Bhagwan Shree Rajneesh) afirmava que o ser humano “inventou a linguagem,
porque não sabia se comunicar”.
Não é preciso pensarmos num grupo onde coabitam diversos idiomas,
como foi o caso do Bayern com Guardiola, porque até em um habitat
monolinguístico as palavras nos confundem. O esporte sofre um agravante: a
comunicação se produz, em geral, em situações de tensão. A competição, a
fadiga, a paixão, as decepções compõem um quadro conflituoso para que a
comunicação flua de maneira harmônica. O treinador lança uma instrução e o
jogador capta uma mensagem distinta da que pretendia o emissor. Não é culpa
de nenhum deles: simplesmente, a ferramenta e os caminhos que utilizamos são
imperfeitos, porque nós também somos. É comum a afirmação de que “a
linguagem do futebol é universal”. Talvez sim, mas neste caso é universalmente
confusa!
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Richard Sennett afirma: “O que podemos dizer em palavras talvez seja mais
limitado do que o que podemos fazer com as coisas. É possível que o trabalho
artesanal [e o futebol é um trabalho artesanal, não esqueçamos] estabeleça um
campo de destreza e de conhecimento que transcende as capacidades verbais
humanas para explicá-lo; descrever com precisão como fazer um nó corrediço é
uma tarefa que põe à prova a capacidade do mais profissional dos escritores”.
A história do esporte está repleta de mensagens e instruções que perderam
sua essência no trajeto que vai do treinador até o esportista. Basta recordar o
que disse Jeff Van Gundy, técnico do Houston Rockets, sobre seu pivô chinês,
Yao Ming: “Só entende a metade do que lhe digo, igual a qualquer jogador
americano ou estrangeiro”. E 50% de compreensão é muito! Com mais ironia
ainda, o treinador Krešimir ćosić se referiu a seu pivô Stojan Vranković: “Eu lhe
disse para ganhar a posição com a bunda e jogar com a cabeça, mas ele deve ter
entendido o contrário…”.
Para o treinador, comunicar seus conhecimentos aos jogadores representa
um grande desafio, porque não é fácil expressar em palavras e imagens tudo o
que deseja transmitir. Guardiola não gosta dos desenhos e das setas sobre um
campo de futebol virtual, porque são figuras estáticas que não refletem a
realidade das dinâmicas e dos movimentos, muito mais difíceis de representar.
Por esse motivo, ele usa tanto o vídeo: “O vídeo serve para mostrar ideias.
Sem ele, treinar seria um cansaço imenso”. Isso ocorre em todos os âmbitos.
Para montar uma estante pré-fabricada, temos de consultar as figuras do
manual de instruções — e mesmo assim, para muitos de nós, acaba sendo uma
tortura. Para fazer um laço do tipo corrediço, precisamos recorrer a um vídeo
tutorial (ou à ajuda de um especialista). O vídeo é imprescindível para o jogo de
Pep, porque se trata de um grande quebra-cabeças em que se entrelaçam
jogadores, ações, posições, permutas, movimentos e decisões em uma
quantidade que as palavras não abrangem.
A linguagem verbal-escrita é um elemento provocador de confusão, que
não nos é útil para alcançar o verdadeiro objetivo da comunicação: “Criar
pensamentos em outra mente: isso é comunicar. Você nunca é visto; o que se vê
é a imagem que se forma nas outras mentes”, define Santiago Sinelnicof,
químico argentino.
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Seirul·lo afirma: “Quando um treinador diz: ‘você tem de pressionar’, o que
isso significa realmente? Porque, dependendo do que for entendido, todos irão à
zona da bola: os que estão mais perto chegarão antes e os que estão mais longe
chegarão mais tarde. Para outros, a pressão será esperar que o jogador esteja na
lateral e, nesse momento, os mais próximos diminuirão a distância. Para outros,
será esperar que a bola cruze a linha dos meios-campistas rivais, porque ali
haverá menos jogadores deles e mais possibilidades de roubar. E assim por
diante. Todas essas possibilidades de compreensão são definidas, mas confusas.
Em geral, tudo o que se faz no futebol é definido, mas confuso. Por quê? Porque
sabemos que pode acontecer isso ou pode acontecer aquilo. E ninguém se
atreve a definir cada coisa com precisão.
“Por essa razão — prossegue o diretor de metodologia do Barcelona — há
uma grande confusão entre técnicos e jogadores. As escolas de treinadores
tentam coordenar a terminologia de cada país. E mencionam uma descrição do
que é um desmarque com quebra de linha, por exemplo. Mas é uma situação
conjuntural de um país, porque outros países denominam de outra maneira.
Não é só um problema de idioma. É de compreensão e definição. Por outro lado,
isso também é uma riqueza cultural. O futebol é muito ancestral, tem muito da
cultura de raiz do lugar em que é praticado. Creio que isso é assim, porque se
joga com os pés. Se fosse com as mãos, não existiriam essas raízes.
“No basquete, a linguagem se origina na nba e todos empregam a mesma
terminologia, mas no futebol isso é totalmente diferente. Nem sequer os
números que definem uma determinada posição sobre o campo coincidem. No
mundo do basquete, todos sabem o que é o ‘1’ e o que existe são alternativas
para o que um ‘1’ é capaz de fazer: que arremesse de fora, que seja capaz de
dobrar o passe ou não etc. Todo o resto é aceito: esse jogador é o ‘1’ típico. Ou o
‘2’. Existe uma nomenclatura universal, porque a nba tem o domínio desse
processo. Mas o futebol nasceu de um modo muito distinto. Nasceu em um povo
que dava chutes na bola e decidiu chamar as coisas por um nome. E sua
expansão multiplicou essa dispersão da linguagem. Pensem que ainda há países
que não têm sequer escola de treinadores. Como vão chamar as coisas pelo
mesmo nome?”
Não é possível precisar qual percentual das ideias e instruções que
Guardiola propõe no campo de treinamento são verdadeiramente
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compreendidas por seus jogadores. É indiscutível que, no princípio de seu
período em Munique, o grau de compreensão foi pequeno e que, durante os três
anos, o Bayern chegou a um nível elevado de entendimento. Esse crescimento
também foi flutuante, porque cada jogador possui uma capacidade diferente de
absorção do conhecimento. A via habitual para aperfeiçoar esse processo
consiste em persistir na comunicação: expressar mais, expressar-se melhor,
complementar a linguagem verbal com a correção detalhada no campo, apoiarse
na imagem, repetir os movimentos e, definitivamente, empregar o método de
ensaio-erro até alcançar um alto grau de compreensão. Essa via tem um
handicap essencial: exige tempo, e o tempo é uma matéria-prima escassa no
futebol. Guardiola crê muito no processo de comunicação com seus jogadores
como elemento transformador e se preocupou em corrigir e aperfeiçoar sua
própria capacidade de se expressar e as ferramentas que utiliza para tanto. Mas
a linguagem verbal-escrita e audiovisual sempre terá enormes limitações. Existe
outro caminho.
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8.4. O FUTEBOL COMO IDIOMA. UMA METALINGUAGEM
O passe conecta, o chutão afasta. Há treinadores que
ensinam o que é básico e mais difícil: relacionar os jogadores.
DIEGO LATORRE
A outra via para incrementar de forma exponencial a transferência de
conhecimento do treinador e a compreensão do jogador consiste na criação de
uma “metalinguagem”. Significa construir um idioma próprio com os conceitos
de futebol que se pretende praticar. Usar o modelo de jogo e tudo o que com ele
se relaciona como uma língua singular que permita a fácil compreensão de
todos aqueles que a falem. Em resumo, transformar o futebol em um “idioma”.
Há alguns anos, empreguei a expressão “idioma Barça” para tentar definir a
metodologia de trabalho de La Masia, a academia onde se formam os jovens
futebolistas do time catalão. O mecanismo de aprendizagem e a própria
singularidade do modelo de jogo que praticam constituem por si mesmos um
idioma, se como tal entendermos uma forma sistêmica de expressão
futebolística. O citado idioma Barça possui um sistema de princípios
elementares que permitem representá-lo. Aqueles que o praticam —
treinadores, coordenadores e jogadores — usam códigos falados e escritos,
vocábulos especiais e números com significado diferente: tudo isso, em
conjunto, compõe uma espécie de abecedário. E a metodologia de aprendizagem
é sua gramática.
Já em 1970, uma figura culturalmente gigantesca como Pier Paolo Pasolini
concebia o futebol como um idioma e traçava seu primeiro esboço: “Eu não vejo
uma oposição entre linguagem literária e linguagem esportiva, porque a
linguagem esportiva é um subcódigo do código literário. Mas a linguagem
esportiva não é a linguagem dos jornalistas esportivos. A verdadeira linguagem
do esporte é a linguagem atlética, física, muscular, técnica, estilística dos
mesmos jogadores”.
Pasolini não está pensando na linguagem utilizada pelos homens que falam
do futebol, mas sim que o futebol é um idioma por si mesmo. Em 1971, ele se
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aprofundou: “O jogo de futebol é um ‘sistema de signos’, quer dizer, uma língua,
ainda que não seja verbal. Tem todas as características fundamentais da
linguagem por excelência, essa linguagem que usamos como segundo termo de
comparação, isto é, a linguagem escrita-falada. Outros sistemas de signos não
verbais são o da pintura, do cinema ou da moda”.
O cineasta e poeta argumenta: “Qual é a unidade mínima da língua do
futebol? Pois é essa: ‘Um homem que utiliza os pés para chutar uma bola’. Essa é
a unidade mínima, um podema [neologismo inventado por Pasolini, equiparável
ao fonema da linguagem verbal]. Os ‘podemas’ são 22 [22 jogadores]; as
‘palavras futebolísticas’ são potencialmente infinitas, porque são infinitas as
possibilidades de combinação dos ‘podemas’ (na prática, os passes entre
jogador e jogador): a sintaxe se expressa na ‘partida’, que é verdadeiramente
um discurso dramático. Quem não conhece o código do futebol não entende o
‘significado’ de suas palavras (os passes) nem o sentido de seu discurso (um
conjunto de passes) […]. Pode haver um futebol como linguagem proseadora e
um futebol como linguagem fundamentalmente poética. Assim, por razões
propriamente culturais e históricas, o futebol de alguns povos é em prosa, prosa
realista ou prosa estetizante (essa última é o caso da Itália), enquanto o futebol
de outros povos é em poesia”.
Amarro esse pensamento com o de Seirul·lo, cujas ferramentas não são a
poesia nem o cinema, mas o estudo da metodologia e da complexidade. E o fato
é que ele expressa uma ideia parecida com a de Pasolini: “As interações entre os
jogadores são o passe, a trajetória, o espaço, as superioridades. Há elementos de
observação do jogo que lhe permitem ver que uma ideia ainda não está na
dimensão desejada. Mas, claro, é preciso conhecer os elementos que constituem
o jogo e tudo isso não pode ser apreciado por aqueles que só se fixam em uma
jogada e não no passe. Cada passe é uma mensagem. Há quem dê passes
neutros: ‘Toma, faça o que puder’. Mas outros lhe dizem: ‘Toma, faça o que
quiser’. Ou: ‘Toma, pode desfrutar’. São passes intencionados. E nesse máximo
nível de expressividade e intencionalidade, só vi Iniesta”.
Prossegue Seirul·lo: “Iniesta passa a bola como um pai que joga tênis pela
primeira vez com seu filho pequeno e manda a bolinha no lugar exato e com a
força adequada para que ele possa devolvê-la, porque a ideia é que o menino
toque fácil a bolinha com a raquete e se divirta. Bem, Iniesta faz o mesmo, mas
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jogando na elite e ao lado dos atletas da máxima elite. Com seus passes, Andrés
diz: ‘Toma, faça o que quiser e pode desfrutar’, enquanto a maioria no futebol
diz: ‘Toma, faça o que puder’. Com o passe, ele está dizendo ao companheiro por
onde deve prosseguir a conversação, ou seja, o jogo”.
Pasolini e Seirul·lo nos dão indícios de sobra de que o futebol pode se
constituir num idioma em si mesmo, uma “metalinguagem”, em que: o passe é
uma maneira de se comunicar; o modelo de jogo é a gramática a ser dominada;
e os códigos, vocábulos e números formam o abecedário. Nos anos 1990, o
Barcelona construiu uma metalinguagem própria (o idioma Barça) e o
desenvolveu graças ao impulso de um gênio como Johan Cruyff — que, por sua
vez, aprendeu no Ajax de Amsterdã, onde gente como Reynolds, Humenberger,
Michels e Van der Veen criaram um “idioma”— e ao trabalho artesanal e
paciente de dezenas de treinadores que se converteram em professores dessa
linguagem, com os resultados conhecidos.
Guardiola é precisamente um filho desse idioma. Quando treinou o Barça,
conseguiu que sua equipe alcançasse a excelência na expressão dessa
metalinguagem, e agora tem pela frente uma oportunidade gigantesca no
Manchester City, além do próprio desafio de competir e tratar de ganhar.
Guardiola deverá escolher entre aperfeiçoar a comunicação com seus novos
jogadores no modo clássico, ou dar um passo muito mais ambicioso e
estabelecer as bases para construir um “idioma City”, embora essa seja uma
missão que exige bastante tempo, muitos recursos e uma colossal energia
coletiva. Em troca, também pode deixar um legado que irá muito além das
vitórias e das emoções.
Pep tem consciência da oportunidade que se abre diante dele. O
Manchester City reúne as condições objetivas para que se produza o intento de
construir um “idioma” próprio: a academia, os jovens, o amplo quadro de
professores, a vontade institucional… Todos os ingredientes essenciais estão
presentes e dispostos em Manchester. É preciso uni-los e trabalhá-los com a
paciência de um artesão.
Essa ideologia futebolística ampliada e estruturada (cujos primeiros
esboços se viram na Argentina e na Hungria) nasceu na Holanda, cresceu em
Barcelona, se potencializou na Alemanha e pode alcançar um novo marco na
Inglaterra. O personagem (Guardiola) possui o carisma, a energia e a paixão
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suficientes para encaminhar a elaboração dessa metalinguagem. Terá Pep a
vontade e a capacidade de fazê-lo? Terá tempo para plantar as sementes de um
“idioma” completo e compreensível para as sucessivas gerações de jogadores
citizen? Terá a clarividência, a convicção e o apoio para — parafraseando James
Kerr — “plantar as árvores que nunca verá crescer”?
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8.5. TRANSFERIR O CONHECIMENTO
Se aprendi tanto é porque passei a vida observando.
ALESSANDRO DEL PIERO
E stabelecemos que a linguagem que se emprega no futebol é uma ferramenta
imprescindível para que o treinador transfira seu conhecimento para a equipe.
E também definimos o que consideramos “metalinguagem” ou “o futebol como
idioma”. Agora, entramos na segunda parte: a escolha que o treinador faz
quando deixa um clube. Ele deposita seu conhecimento ou não? (Vamos nos
concentrar em Guardiola, claro.)
Escreve o grande arquiteto romano Marcos Vitrúvio, autor do cânone das
proporções do corpo humano: “As diversas artes se compõem de duas coisas:
artesanato e teoria. O artesanato pertence [unicamente] aos que estão
treinados… no trabalho; a teoria se compartilha com todas as pessoas
instruídas”.
Como estamos detalhando o Guardiola treinador-artesão, tratarei agora da
“teoria” e de como Pep a compartilha. Em 2012, ele se despediu do Barcelona
deixando em marcha um projeto muito ambicioso, que consistia em
documentar ao máximo a metodologia do jogo de posição. Desde então, seguiu
colaborando com o clube catalão. Guardiola fez isso de maneira totalmente
discreta, sem que quase ninguém soubesse e, ainda que seja provável que ele
não goste dessa revelação, entendo que o torcedor do Barcelona se interesse em
saber: Guardiola continuou proporcionando dados, ideias e documentação aos
gestores do projeto metodológico do Barça.
E quando foi embora do Bayern, o que ele fez? Deixou no clube alemão toda
a documentação dos exercícios e jogos de posição desenvolvidos em Munique
desde 2013, com explicações detalhadas das tarefas a realizar, algo que os
torcedores do clube campeão da Alemanha também devem saber. O depositário
foi Hermann Gerland, treinador assistente no período de Guardiola, que é o fio
condutor de todo o trabalho no Bayern, de forma invariável, desde os anos
1990.
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Desconheço o emprego efetivo que, no futuro, Barcelona e Bayern farão
dessa teoria documentada que Guardiola transmitiu aos dois clubes, e que, por
si mesma, representa um legado de cultura tática de primeira ordem, mas o fato
em si nos revela um treinador que não teme transferir o que conhece.
Recordemos sua íntima relação com Thomas Tuchel: era o grande rival na
Alemanha, mas Pep não hesitou em lhe explicar com profundidade os detalhes
do jogo de posição. Ele fez o mesmo com inúmeros treinadores, de níveis muito
diferentes, que foram a Säbener Straße: Sampaoli, Zidane, Dorival Júnior,
Sanvicente, Gattuso, Patricia González… Uma lista que supera os cinquenta
nomes.
Pep não viu problemas em abrir todo o seu catálogo tático no Guardiola
confidencial. Algumas vezes pensei se o que ele explicou tão livremente não foi
excessivo, já que qualquer concorrente pôde ter acesso a todo o seu
pensamento — e o habitual é não revelar as próprias ideias, como se comprova
frequentemente em entrevistas coletivas. Mas isso parece não importar a Pep,
que se sente confortável falando de conceitos táticos. Em algumas ocasiões, ele
se estende por longos minutos em entrevistas, detalhando aspectos que
poderiam dar pistas aos rivais. Esse fato define o caráter de Guardiola com
perfeição: ele “sente” que deve transmitir sua ideologia, sem medo de que
outros o copiem, imitem ou conheçam seus pontos fracos. Ao contrário: tem
consciência de que, no final, seu próprio progresso vai depender em grande
parte da pressão recebida dos técnicos rivais. E quanto mais alto for o nível,
melhor para todos e para o futebol (“Os grandes treinadores, como Mourinho,
me fizeram melhor”, disse em seu primeiro contato com a imprensa de
Manchester). Para que um treinador está no mundo do futebol? Apenas para
ganhar ou para tentar contribuir para que o próprio esporte melhore e evolua?
A resposta está diretamente relacionada à ideologia de cada um, mas, no caso
de Guardiola, sua escolha é evidente.
Existe, de qualquer modo, um componente de agradecimento e retribuição
por tudo o que ele recebeu. Quando dava seus primeiros passos como treinador
novato, e até quando ainda era jogador, mas já se interessava pela ideia de
dirigir times, Pep foi recebido por treinadores importantes (Bielsa, Menotti,
sempre por Cruyff e Lillo, Julio Velasco, Sacchi, Mazzone…) e todos lhe
transmitiram conselhos e conhecimento. Ele aprendeu que devia se comportar
do mesmo modo e, apesar da dificuldade de competir a cada três dias, Pep tenta
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atender o técnico jovem que eventualmente se interessa por sua metodologia. E
assume como prioridade transferi-la a certos jogadores que mostram
características de futuros treinadores. Foi assim em Barcelona — com homens
como Xavi, Busquets, Milito, Mascherano e Iniesta — e no Bayern, de maneira
exaustiva, com alguns possíveis candidatos a técnicos no futuro: Xabi Alonso,
Badstuber, Javi Martínez, Rafinha ou Neuer (Lahm, ao que parece, não quer ser
treinador). O goleiro, certamente, é um desses jogadores que compreendem o
jogo com enorme lucidez e é uma esponja que absorve conhecimentos. Em
Munique, Pep não economizou nesse tipo de conversas técnicas com todos eles,
especialmente com Neuer e Alonso: “Se posso ajudar um jogador a ser treinador
no futuro e contribuir com algo, me sinto feliz. Johan e outros fizeram isso
comigo e minha obrigação é fazer o mesmo com os jogadores”.
O sociólogo Richard Sennett menciona que Robert K. Merton “tratou de
explicar a transferência de conhecimentos na ciência apelando à sua famosa
imagem: ‘Nos ombros de gigantes’. Com isso, queria dizer duas coisas: em
primeiro lugar, que a obra dos grandes cientistas estabelece os termos de
referência, as órbitas nas quais giram os cientistas de níveis inferiores; e em
segundo lugar, que o conhecimento é aditivo e acumulativo: se constrói ao
longo do tempo, à medida que seres humanos se montam sobre ombros de
gigantes, como as colunas humanas do circo”. É uma descrição perfeitamente
aplicável a essa transferência de conhecimento entre treinadores.
Não obstante, tal transferência sempre tem como obstáculo as dificuldades
na comunicação mencionadas no capítulo anterior: “Grande parte dos
conhecimentos dos artesãos”, diz Sennett, “é conhecimento tácito, o que quer
dizer que as pessoas sabem como fazer uma coisa, mas não podem verbalizar o
que sabem”.
Houve muitos casos em que artesãos geniais não souberam transferir seu
conhecimento. Sennett menciona especialmente Stradivari (em outros textos,
também Cellini) e descreve as razões desse insucesso: “A dificuldade da
transferência de conhecimento propõe uma indagação sobre o porquê de ser
tão difícil, o porquê de o saber se transformar em um segredo pessoal […]. Na
fabricação de instrumentos musicais, os segredos de mestres como Antonio
Stradivari ou Guarneri del Gesù morreram com eles […]. O fato mais importante
que conhecemos sobre o ateliê de Stradivari é a apaixonada dedicação de seu
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mestre, que ia inesperadamente de um lugar a outro, reunindo e processando
os milhares de pequenos fragmentos de informação, que podiam não ter o
mesmo significado para os que só se ocupavam de uma parte do processo. O
mesmo ocorre nos laboratórios científicos dirigidos por gênios com suas
manias: a cabeça do diretor ou diretora é preenchida por uma informação cujo
sentido só ele ou ela podem captar […]. Para expressar essa observação em
linguagem abstrata: em um ateliê dominado pela individualidade e pela
originalidade do mestre, é provável que também domine o conhecimento tácito.
Após a morte do mestre, é seguramente impossível reconstruir todas as pistas,
movimentos e conhecimentos intuitivos reunidos na totalidade de sua obra; não
há maneira de tornar explícito o que é tácito”.
O conhecimento do futebol é tácito? Provavelmente sim, e essa é a razão
que levou técnicos como Juanma Lillo a documentar, “intelectualizar” e
descrever em detalhes a teoria do modelo de jogo de posição (e também a
evolução ao jogo de localização); e é o que motiva Guardiola a não reservar seu
conhecimento como se fosse um segredo militar. Esclareço essa afirmação para
evitar confusões: no dia a dia (táticas, escalações, estratégias planificadas),
Guardiola fecha as portas do treinamento, porque se trata de ferramentas
competitivas de uso imediato e conjuntural para a competição. O que ele abre é
a difusão controlada do conhecimento metodológico e a teoria do modelo de
jogo, ou seja, da ideologia futebolística.
Ressalto, enfim — e que isso sirva como semente de um projeto futuro —,
que o futebol são ideias e que essas ideias viajam pelo mundo com os
treinadores.
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8.6. O GESTO INTUITIVO
Pensar é o maior erro que um dançarino pode
cometer. Não se deve pensar, é preciso sentir.
MICHAEL JACKSON
E m 2007, Leo Messi fez uma jogada maradoniana, driblando vários rivais, que
terminou em um gol contra o Getafe. O jornalista Lu Martín lhe perguntou: “Sua
maneira de jogar é treinada ou simplesmente sai de dentro de você?”. Messi
respondeu: “Jogo como sei jogar, não pratico dribles, não ensaio nada”.
Andrés Iniesta marcou, em Stamford Bridge, o gol que levou o Barça de
Guardiola à final da Champions League de 2009. No livro La jugada de mi vida,
Marcos López e Ramon Besa lhe perguntaram sobre aquele gol; Iniesta
explicou: “Dentro de um jogo, minha cabeça vai muito rápido, não penso em
muitas coisas que faço”. E acrescentou: “Quanto mais penso nas coisas, pior elas
acabam saindo”.
Depois de marcar cinco gols no Wolfsburg em menos de nove minutos,
Robert Lewandowski teve de dar uma explicação para tal fenômeno, mas só
conseguiu dizer: “Foi uma loucura. Eu só queria chutar e chutar e não pensar no
que estava acontecendo…”.
Estamos, pois, diante do valor indescritível do gesto intuitivo, um gesto que
podemos relacionar com o estado de flow em grandes atuações esportivas ou
com a “síndrome de Stendhal”, se nos referirmos à contemplação artística. Em
todos os casos, Messi, Iniesta, Lewandowski e outros mil exemplos (o salto de
Beamon nos Jogos Olímpicos no México, em 1968, é o paradigma desse
fenômeno), a coincidência é unânime: “Não sei como aconteceu, não pensei em
nada, simplesmente ocorreu”. É o milagre do gesto esportivo sublime. Do gesto
surgido da intuição. Dizia Daisetsu Teitaro Suzuki, grande mestre zen: “O
funcionamento do inconsciente adestrado é, em muitos casos, simplesmente
milagroso”. O oitavo campeão do mundo de xadrez, o letão Mikhail Tal,
explicava: “Em minhas partidas, às vezes encontrei uma combinação intuitiva
de movimentos simplesmente porque sentia que ela deveria estar ali.
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Entretanto, não era capaz de traduzir meus processos de pensamento em uma
linguagem humana normal”.
Destaquemos que é preciso ser “inconsciente” e, portanto, o gesto deve
surgir “sem pensar”, e “adestrado”, ou seja, fruto do hábito e do treinamento. O
gesto intuitivo e milagroso do esportista não é filho do talento (Darwin: “Os
dotes físicos são um ponto de partida, não um fim”), mas do processo: nasce da
“prática deliberada” (treinar muito e na direção certa) e da liberação do
pensamento (não pensar durante a execução).
Regressemos a Seirul·lo: “Iniesta explicou mil vezes. Antes que alguém
perguntasse, ele explicou como fez aquele gol: ‘Vi que a bola chegava, vi o gol
etc. E tinha de chutar’. Depois, quando Andrés viu a jogada pela televisão, ele
descobriu que foi um chute de primeira, com que parte do pé havia chutado,
como jogou intuitivamente o corpo para trás ganhando espaço para o arremate
e todos os outros detalhes. Mas para ele não existiu nenhum pensamento sobre
o movimento que deveria realizar. Foi ideia e execução. A ideia foi: ‘Tenho de
marcar o gol’. E ele executou. Só muito mais tarde descobriu como tinha feito.
Não se pensa: executa-se uma ideia. Ele imaginou que, quando a bola deu o
segundo quique baixo, se perfilaria de determinado modo para que ele pudesse
chutá-la? Nada disso. Teve a intenção de marcar, a bola chegou e ele executou”.
Após falar de Iniesta, Seirul·lo descreve outro futebolista que conhece em
detalhes, Leo Messi: “Os teóricos das tomadas de decisão mencionam três fases:
a percepção, a decisão e a execução. Quando devem tomar decisões de alta
complexidade, fazem isso. Primeiro, perceber o entorno, observá-lo, analisá-lo;
tomar a decisão depois e executá-la. Mas, no futebol, só acontece uma situação:
uma ideia que deve se transformar em execução. Há uma única fase, não são
três (penso, decido, executo). Não. No futebol, há apenas uma: executar a ideia.
Quero superar você? Executo a ideia. Não penso em como vou superá-lo. Falei
muitas vezes com Messi sobre isso. E ele, quando quer passar por um rival, não
pensa se vai pela direita ou pela esquerda, não. Para ele, a ideia é passar pelo
rival. O que é, para Messi, passar pelo rival? É deixá-lo cravado e levar a bola
para outro lugar. Essa é a ideia de Messi. Sua ideia não é ir pela esquerda, com
um drible, com dois toques etc. Não, é passar por ele, deixá-lo cravado. E ponto.
Ele não pensa em como fará, só executa a ideia. Não pensa, não planeja.
Executa”.
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Por essa mesma razão, o futebolista inventa e o treinador inova (reutiliza
recursos em novas situações). É essencial que o treinador consiga criar um
clima de trabalho e adestramento dirigido aos objetivos coletivos e que, por sua
vez, facilite a criatividade individual: “Algo que aprendi como treinador”, diz
Phil Jackson, “é que você não pode impor sua vontade aos demais. Se você quer
que eles se comportem de outra maneira, deve servir de fonte de inspiração
para que mudem por conta própria. A maioria dos jogadores está acostumada a
permitir que o treinador pense por eles. Quando encontram um problema na
quadra, olham nervosamente para o banco com a esperança de que o treinador
lhes dê a solução. Grande parte dos técnicos adora isso, mas não é meu caso.
Sempre me preocupei em ajudar os jogadores a pensarem por si mesmos, para
que sejam capazes de tomar decisões difíceis no calor da batalha.”
Um exemplo de esportista que pensava por si mesmo é o jogador de
handebol Veselin Vujović, campeão olímpico e mundial com a Iugoslávia. Paco
Seirul·lo foi seu preparador físico em Barcelona, no final dos anos 1980 e início
dos 1990: “Vujović explicava sua maneira de atuar nos jogos: ‘Durante os
primeiros cinco, seis, sete minutos da partida, estou observando como funciona
meu entorno próximo. Faço uma finta de braço e vejo que o rival se aproxima de
mim. E sigo jogando. Na sequência, faço um movimento para chutar rápido e
avalio como o rival reage. Depois, dou um ciclo de passos no ataque e vejo se o
árbitro permite a ação ou não. E avalio mentalmente tudo o que aconteceu
nesses seis ou sete minutos e, assim que processo tudo, escolho o caminho para
seguir em cada um dos minutos seguintes, já sem nenhum erro. E então faço um
gol atrás do outro’. O.k., de acordo, o handebol se joga com as mãos. Passemos
ao futebol. Xavi ou Iniesta fazem algo parecido. Investigam, observam, analisam
e executam”.
O escritor e filósofo português Manuel Sérgio Vieira escreve em seu
magnífico Filosofia do futebol: “Um pensamento tático, seja qual for, necessita de
um jogador excepcional que verdadeiramente o interprete. Porque ninguém o
interpreta melhor do que ele. Talvez porque seja jogador e… artista! Uma coisa
é o sábio que domina a ciência criada; outra, o artista que a recria e reproduz.
Uma coisa é a razão que sabe distinguir; outra, o coração que sabe intuir e unir.
Por isso, o coração tem razões que a razão desconhece”.
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O jogador investiga, mas sobretudo intui. Seu instinto é imprescindível,
ainda que felizmente o futebol não se reduza ao gesto intuitivo, por mais
transcendental que possa ser.
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BASTIDORES
MÜLLER É O SÍMBOLO
Gelsenkirchen, 21 de novembro de 2015
Domènec Torrent é categórico:
— Müller simboliza o aprendizado do time. Todos interiorizaram o
conhecimento que Pep queria transmitir, e Thomas é o símbolo desse
processo.
Se um jogador esteve especialmente longe do núcleo ideológico que
Guardiola tentou implantar no Bayern durante esses anos, foi Thomas
Müller. Não por desinteresse, mas por características. Pensando em
qualquer outro poderíamos estabelecer um vínculo especial com Pep,
um traço que permitisse, após um processo formativo, alcançar a
categoria de símbolo, de paradigma do que o treinador buscava. Mas não
com Müller.
Neuer poderia ser o símbolo de Pep, por sua eficiência máxima. E
Lahm, sem dúvida, pela inteligência superlativa que manifesta nos
terrenos de jogo. Ou Xabi ou Thiago, pelas qualidades como meioscampistas,
um como distribuidor, o outro como criativo. Talvez Rafinha
ou Badstuber, pelo espírito de superação, ou Coman e Rode, pelo aspecto
humano. Sem dúvida, Alaba, pela imensa versatilidade. Ou Javi Martínez,
pela agressividade com que defende, sem falar de Boateng e o grande
salto qualitativo que protagonizou. Outros símbolos poderiam ser os
extremos dribladores, Robben e Douglas Costa, pelo fundamento
essencial do jogo que o treinador propõe. Ou Lewandowski, pela
capacidade de se adaptar a um contexto radicalmente oposto àquele de
onde veio.
Thomas Müller era a antítese do protótipo de futebolista ortodoxo.
Müller não se destaca por sua qualidade técnica, muito pelo contrário:
foi o jogador do Bayern que mais perdeu bolas nestes dois anos e meio
(30% das que recebeu). Não é o mais rápido do time nem dribla com
muito acerto; sua finalização de cabeça não chama atenção e seu disparo
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com qualquer das duas pernas pode ser melhorado. Ele gosta de
pressionar a defesa rival, mas frequentemente o faz olhando para os
próprios companheiros, com o que perde de vista seu objetivo
prioritário. Quando Pep tentou reconvertê-lo em meio-campista interior,
comprovou-se que Müller não poderia assumir esse papel.
E, entretanto…
Entretanto, Müller é um futebolista maravilhoso. E não só por seu
virtuosismo para conseguir gols de todas as maneiras possíveis, quase
sempre de modo inesperado, arrematando com uma parte do corpo
inesperada, a ponto de essa tipologia especial de gol adquirir a categoria
de adjetivo: na Alemanha, batizaram-na de “gol müllered”. Além dos gols,
é um jogador incrível por sua energia inesgotável, pelo compromisso
permanente com as necessidades do time, por seu otimismo contagiante,
pela ambição sem limites para ganhar e seguir ganhando apesar de
qualquer dificuldade. E ele possui uma virtude sem igual: é Die
Raumdeuter, o investigador dos espaços, o jogador que aparece no lugar
adequado. O apelido nasceu durante a Copa do Mundo de 2014, em um
grupo de aficionados do Football Manager, que apontou que a melhor
característica de Müller era a interpretação dos espaços e sua ocupação
na forma e no momento oportunos.
É assim. Antes que Guardiola chegasse ao Bayern, Müller já era um
jogador formidável, formado nas categorias de base por Hermann
Gerland, promovido por Louis van Gaal e comprovado como atacante
heterodoxo por Jupp Heynckes. O valor que Pep vislumbrou nele se
observa de imediato: Müller participou de 151 dos 161 jogos — ou, dito
de outro modo, só se ausentou em dez partidas durante três anos… Foi o
jogador de campo que Pep mais utilizou, com muita diferença em relação
aos demais.
Müller e Pep precisaram de dois longos anos para se sincronizar. O
treinador esperava dele determinados rendimentos em funções
específicas, como interior, extremo ou centroavante, que Müller não
conseguia produzir, ainda que tivesse realizado ótimas atuações como a
de Manchester, em outubro de 2013, jogando de falso 9, ou como a de
Roma, um ano mais tarde, no papel de atacante pela esquerda, e em
inúmeras aparições estelares — mas sem a continuidade desejada. O
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jogador sofria para se adaptar às exigências do jogo de posição que Pep
propunha. Onde Lahm, Neuer, Boateng ou Robben alcançavam seus
melhores desempenhos, Müller se sentia sufocado.
Até que, na terceira temporada, chegou a solução. Pep encontrou o
ambiente perfeito para Müller e o jogador bávaro multiplicou seu
rendimento e sua felicidade, o que resultou em abundantes declarações
elogiosas ao treinador, destacando a adaptação geral, o trabalho intenso
e a boa coordenação de movimentos de todo o time.
A posição idônea para Müller foi a de segundo atacante, às costas de
Lewandowski. Não era uma questão de localização, mas de inter-relação
com outros jogadores. Quando a equipe podia dispor de dois extremos
puros jogando com a perna natural, como Douglas Costa e Coman, muito
abertos pelos lados e com total disposição para cruzar bolas na área, a
tarefa de Müller se facilitava de forma extraordinária. Boateng ou Xabi
lhe passavam a bola, ele dava sequência enviando-a a um dos lados e
corria para a área ao mesmo tempo que Lewandowski, com quem
formava uma dupla tão eficaz quanto bem ajustada. Pep insistia nessa
sequência do jogo:
— Não é que gosto somente dos extremos muito abertos: eles são
imprescindíveis! E gosto mais quando jogam com a perna natural do que
com a perna trocada, ainda que os tenha utilizado quase sempre assim.
Mas pense em Gento, um dos melhores extremos da história [Paco
Gento, extremo do Real Madrid, ganhou seis Copas da Europa entre 1956
e 1966]; Gento jogava com a perna natural, mandava a bola longe e
corria até a linha de fundo para cruzar. Gosto muito dos extremos que
usam a perna natural, porque quando Costa ou Coman chegam ao final e
cruzam, Lewy e Müller vão para a bola como feras.
Para que essa conexão entre os quatro atacantes (os dois extremos,
mais Lewandowski e Müller, um como 9, outro como falso 9 ou meiocampista
ofensivo) acontecesse, a equipe se via obrigada a eliminar um
jogador das linhas de trás, um meio-campista ou um defensor, mas esse
era um âmbito tático em que Pep se movia sem dificuldades. O que lhe
interessava era que Müller seguisse encontrando o ambiente de jogo
mais benéfico para explorar sua investigação dos espaços. No outono,
Müller mostrava um ótimo rendimento, e Guardiola se divertia com os
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pequenos truques que o jogador pratica durante as partidas. Por
exemplo, nas cobranças de falta, nas quais ele costuma se intrometer,
dando a entender que vai interferir de certo modo ou simulando uma
queda ou um tropeço, como fizera no Mundial de 2014. Ou algo ainda
mais brincalhão: cada vez que participava do pontapé inicial de um jogo,
mantinha a bola imóvel após o apito do árbitro, fazendo os jogadores
rivais cruzarem o centro do campo antes do tempo. Então, Müller
protestava com o árbitro e exigia que os adversários voltassem à sua
metade do campo, momento em que aproveitava para passar a bola a um
companheiro e começar o jogo. Sempre surpreendia os rivais e Pep
morria de rir com esse truque. E Müller fazia isso em quase todos os
jogos.
Outro fator contribuiu para a adaptação de Müller ao novo modelo
de jogo: a liderança que foi adquirindo. Nos últimos anos, o vestiário do
Bayern teve dois líderes indiscutíveis: Lahm, o capitão, é o comandante
silencioso que dirige o rumo emocional da equipe com seu
comportamento, mais do que com palavras; e Schweinsteiger exercia
uma liderança mais expressiva, com uma linguagem corporal forte e
categórica. Hoje as coisas mudaram. Toni Kroos deixou o clube e, ainda
que Xabi e Thiago, líderes em jogo, possuam grande personalidade, são
conscientes de que liderar o Bayern é uma tarefa que corresponde aos
alemães e respeitam esse código acima de qualquer outra realidade.
Então apareceu Thomas Müller para ocupar o posto. Lahm continua
sendo o líder principal, discreto e calado, que dirige o vestiário sem
necessidade de abrir a boca. Müller é o vulcão que o complementa. É
quem brinca e ri, quem anima e grita, quem resmunga e se esforça para
que tudo siga pelo bom caminho.
Passados alguns dias, Müller iria brincar com o próprio Lahm por
causa de uma decisão de Guardiola. Em 9 de novembro, o Bayern jogou
um amistoso em Ratisbona contra o Paulaner Team, um time composto
de jogadores amadores reunidos por um casting feito ao redor do
mundo. É uma ocasião para satisfazer objetivos de um dos
patrocinadores do clube, na qual Neuer e Müller jogam por um quarto de
hora antes de se apresentarem à seleção alemã, e Pep dá minutos de jogo
a Badstuber, Kirchhoff e vários jovens jogadores. E também para que
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Philipp Lahm atue como falso 9. É uma chance formidável para o capitão,
que com Guardiola jogou em três das quatro posições da defesa, nas três
do centro do campo e também como extremo direito. Faltava (além de
jogar no gol) aparecer como centroavante, e agora ele tem sua
oportunidade: faz um gol em oito finalizações, em 45 minutos. Lahm
possivelmente nunca se divertiu tanto jogando futebol como nesta
partida, na posição de falso 9. E Müller aproveita para incorporar o
assunto a seu catálogo de brincadeiras.
Domènec Torrent dizia que Müller tinha se convertido no ícone de
Guardiola e é hora de saber o que o próprio Pep pensa a respeito:
— Müller simboliza totalmente o jogo que queremos e o interpreta
fabulosamente. É uma das coisas que me dão mais satisfação: conseguir
que seja um pouco melhor do que já era. E ele era muito bom!
Guardiola e Torrent concentram a conversa no jogador:
— Cada dia gosto mais de Müller — diz Torrent.
— Ele me ganhou para sempre — responde Pep.
— Lembre-se de que quando ficamos com dez [Badstuber foi
expulso no minuto 52 do jogo contra o Schalke 04], tivemos um
escanteio contra, e Benatia ainda não podia entrar. Foi Thomas quem
montou toda a organização defensiva. Com quatro gestos, organizou
tudo — acrescenta o auxiliar.
É o momento de perguntar se a saída de Bastian Schwein-steiger
obrigou Müller a assumir uma liderança maior:
— Não tinha pensado nisso — responde Guardiola. — Mas pode ser
um fator a mais. Basti tem grande personalidade e é provável que, sem a
presença dele, Müller tenha sentido que era o momento de dar um passo
à frente. O indubitável é que agora ele é um dos grandes líderes da
equipe.
Não há quem detenha Pep ao falar sobre Müller:
— Veja como ele comemora os gols: sempre, sempre apontando
para quem lhe deu o passe e indo abraçá-lo. Nunca comemora sozinho.
Sempre com os companheiros e especialmente com quem lhe deu a
assistência. E é muito preparado: de vez em quando, deixa um
companheiro bater um pênalti. Ou veja o que fez esta noite: quando
marcou o 3 × 0, em vez de comemorar sozinho, tirou o chapéu e deu a
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mão a Robben para agradecê-lo pelo passe. Essa imagem, Dome. Vamos
utilizar essa imagem em alguma palestra porque é um símbolo
grandioso do que é a humildade, o agradecimento e a liderança no
futebol.
A imagem teve um significado especial porque, em jogos recentes,
Robben mostrara um grande individualismo que impediu alguns
companheiros de marcar gols fáceis. Lewan-dowski se irritou de
maneira ostensiva, e o gesto de Müller parece dizer duas coisas ao
mesmo tempo: obrigado pela assistência e… esse é o caminho que
queremos dentro do time, o do passe e da ajuda mútua.
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CAPÍTULO 9
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SE TENHO QUE PERDER, QUERO ESCOLHER COMO
Não morra como um polvo:
morra como um tubarão.
PROVÉRBIO MAORI
Quando o jogo termina, Guardiola festeja o triunfo com a equipe; passado
pouco tempo, a vitória se transforma em um assunto a ser examinado e não
celebrado. Ela passa a ser um corpo inerte que deve sofrer a necessária
autópsia. E, neste ponto, Pep costuma encontrar defeitos e erros que poderiam
ser evitados. É possível que ele tenha sido educado tão radicalmente pela ideia
de que o triunfo pode ser um impostor (uma ideia de Bielsa) que não há vitória
que não termine com Guardiola resmungando por alguma chance perdida ou
erros que devem ser corrigidos.
Na derrota, ele é mais magnânimo com sua equipe, embora não aja assim
consigo mesmo. Já dissemos que, em oito temporadas como treinador, Pep
sofreu apenas 45 derrotas. Algumas foram produtos de erros dele, outras de
erros de seus jogadores, algumas até do azar e várias foram totalmente
irrelevantes. Duas delas tiveram grande semelhança e aconteceram no mesmo
nível de competição: as semifinais da Champions League de 2012, quando o
Barça foi eliminado pelo Chelsea de Di Matteo, e de 2016, quando o Bayern caiu
diante do Atlético de Simeone. Em ambas, os times de Pep jogaram de maneira
excelente e criaram um número elevado de ocasiões de gol: o Barcelona
finalizou 46 vezes contra Petr Čech; o Bayern chutou 53 vezes contra o gol de
Oblak. A eliminação chegou em ações parecidas, por um erro próprio seguido de
um contra-ataque certeiro do rival: é o conhecido risco que se assume ao tomar
a iniciativa. E, nos dois casos, a equipe de Pep falhou numa cobrança de pênalti
(em Barcelona, Messi; em Munique, Müller).
Essa semelhança conduz o treinador a buscar um modo de aperfeiçoar os
mecanismos de proteção, algo que sem dúvida veremos em Manchester, mas
que não o leva a variar sua vontade de tomar a iniciativa no jogo, nem sua
concepção do futebol:
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— Há uma coisa que se deve defender sempre: se construímos uma
maneira de jogar e as pessoas gostam de nós por causa dela, não devemos
mudar. Temos de respeitar a emoção da nossa gente. Se nos eliminam nas
oitavas [de final] da Champions, azar… Mas que seja com a nossa forma de
jogar. Dá no mesmo se você joga contra a Juventus ou contra o Barcelona.
Talvez eles me vençam, mas será no contragolpe, porque a bola é minha. E é
assim que se deve morrer. Não podemos mudar. Ou melhor: não devemos
mudar. Que me chamem de imprudente, não me importa. Voltarei no ano
seguinte. Cada um é o que é, e a grande tarefa consiste em convencer os
jogadores sobre esse caminho. Não se trata de ganhar ou perder, mas de seguir
o caminho que desenhamos juntos.
Para compreender melhor Guardiola na derrota, é interessante relatar com
detalhes o que aconteceu nas quatro semanas entre 5 de abril de 2016 — data
em que o Bayern ganhou do Benfica (1 × 0, gol de Vidal), na ida das quartas de
final da Champions League — e 3 de maio — quando foi eliminado do torneio
pela regra do gol fora de casa. Entre essas datas, aconteceu a última derrota de
Pep com o Bayern (1 × 0 para o Atlético de Madrid), a décima nona em 161
jogos e apenas a quarta em sua última temporada.
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9.1. UM TIME DE SACCHI
Defender é atacar o ataque do adversário.
ARRIGO SACCHI
Munique, 4 de abril de 2016
— É um time de Sacchi. É sério: o Benfica é um time de Sacchi. Uma verdadeira
fera, a melhor organização defensiva da Europa hoje. Mas não é um time
defensivo, ao contrário: a linha defensiva fica muito adiantada e aperta você
sem parar. Não deixa espaços entre linhas, não cabe uma casca de camarão
entre as duas linhas de trás. E tem atacantes rápidos e esses jovens, Renato… As
pessoas não veem a liga portuguesa, nem aqui na Alemanha, nem na Espanha,
nem na Inglaterra, por isso ninguém dá valor ao Benfica. Mas digo a você que é
uma equipe de Sacchi.
Pep está há doze dias sem levantar da cadeira, analisando o rival das
quartas de final da Champions League. Só saiu de seu escritório para visitar, em
Barcelona, a família de Johan Cruyff, falecido em 24 de março. Foi uma perda
gigantesca para ele: com Johan se foi sua maior referência, seu grande pai
futebolístico.
Nesses doze dias, Pep examinou dez jogos do Benfica: as partidas em casa e
fora contra o Sporting de Portugal, Atlético de Madrid, Zenit, Braga e Porto.
Combinou o formato panorâmico com o da televisão, em busca de pequenos
detalhes. Carles Planchart lhe passou suas próprias conclusões, após muitas
horas de análise, ainda que, como em todas as eliminatórias excepcionais, Pep
redobre o trabalho para depois contrastá-lo com o de Planchart. A primeira
consequência dessa rotina estafante é que a lombar de Guardiola sofre
contraturas em vários pontos. Um dos fisioterapeutas do clube teve de
desbloquear as costas do treinador, mas o problema não foi completamente
solucionado: Pep se move com dificuldade, dolorido no pescoço, na cervical e
nas costas.
— Estou há doze dias sem me levantar da cadeira ou fazer exercícios. Estou
quadrado.
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Ele estudou o Benfica de cima a baixo até conseguir esquadrinhar todos os
elementos que caracterizam o campeão português. Até modificou as rotinas
para que seus jogadores compreendam o perigo real do adversário. Desse
modo, pela primeira vez em três anos, Pep dirige o treinamento do domingo, 3
de abril, posterior à magra vitória sobre o Eintracht Frankfurt (1 × 0) pela liga,
um jogo discreto — como de certo modo é habitual depois da pausa para as
partidas das seleções —,decidido por um extraordinário gol de Ribéry, com uma
formidável meia-bicicleta. Aprecia-se novamente a boa forma de Ribéry e
também a melhora de Lahm, Alonso e Bernat, ao mesmo tempo em que se
percebe que os homens do ataque (Müller, Lewandowski e Douglas Costa)
atravessam a clássica má fase do atacante, esses períodos em que nada sai bem
para eles. O problema é que todos estão enfrentando esse momento ruim
simultaneamente.
No domingo pela manhã, Domènec Torrent se encarrega do treinamento,
enquanto Pep prepara diversos vídeos sobre a estrutura de jogo do Benfica. Ao
meio-dia, ele rompe outro costume e convoca uma reunião especial no andar de
cima do vestiário. Durante 45 minutos, o treinador detalha de forma exaustiva o
4-4-2 português, a linha defensiva que fica quase no círculo central, as
magníficas coberturas e apoios, como ficam juntas as linhas de trás (onde é
inviável receber uma bola com qualidade), o emprego da armadilha do
impedimento e o excelente jogo aéreo dos benfiquistas. É uma análise profunda
do rival, possivelmente a mais detalhada e extensa que Pep ofereceu a seus
homens nestes três anos. Quando vão para casa, os jogadores conhecem
profundamente o duro rival que os espera.
O treinamento de segunda-feira (4 de abril) começa com atraso, porque o
treinador novamente se estende analisando o modo de responder ao jogo eficaz
do Benfica. Dessa vez não haverá três palestras prévias, mas sim quatro, o que
confirma o alto grau de risco que Pep percebe na eliminatória. Só enxerga um
modo de jogar contra os portugueses e o explica detalhadamente ao elenco:
— Não podemos jogar direto, buscando Lewy e Müller, porque eles nos
deixarão em impedimento o tempo todo. Lewy e Müller terão de se sacrificar, se
livrar da marcação, ameaçar as investidas, mas não receberão bolas. A bola deve
ir de dentro para fora, até os extremos, mas aqui deveremos modificar nosso
comportamento porque, se o extremo quiser ir para cima e fazer sua jogada ou
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driblar, estaremos perdidos. O extremo que receber a bola tem de buscar
novamente o companheiro que estiver por dentro, e este é que deve ganhar o
duelo pessoal para abrir, outra vez, a bola para fora. Aí sim, aí eles estarão fora
de posição. Ou seja, rapazes, o caminho é complicado e é o seguinte: dentrofora-dentro-drible-fora
e, então, a definição.
É fácil de dizer e difícil de fazer, como se verá na noite de terça-feira na
Allianz Arena, sobretudo se os atacantes não estiverem bem, como é o caso.
Apenas Ribéry parece afinado.
Pouco tempo depois da palestra, no campo n. 2 de Säbener Straße, com
portas fechadas, o time ensaia repetidamente o circuito de jogo que Pep propôs.
Jogadores como Thiago, Lahm, Xabi, Alaba e Vidal parecem ter entendido com
perfeição. Mas a finalização das ações é muito deficiente.
— Papai, como você errou? — grita Alonso, o filho de Arturo Vidal.
— Não fiz nenhum gol! — queixa-se em voz alta o meio-campista chileno.
Ele não é o único. Os atacantes estão mal, a ponto de Pep se agitar, nervoso
e preocupado:
— Porra, não fizemos um puto gol! Não vamos sair daqui até que façamos
um gol.
— Amanhã, Pep, amanhã vamos fazer — responde Müller, tentando
tranquilizá-lo.
Na entrevista coletiva, Manuel Neuer e Douglas Costa mostram um
profundo conhecimento do Benfica e, da sua parte, Guardiola se sente
confortável falando de futebol e do modelo de jogo dos portugueses. Como em
todas as vezes em que se vê nessa situação, Pep oferece inúmeros dados do
rival, explica muitas características e mostra que o analisou com rigor. Quem
sabe se é a melhor estratégia ou se seria mais producente se mostrar discreto e
calado, ocultando que conhece as cartas do rival?
Quando um jornalista alemão afirma que o Benfica é um time muito
defensivo, Pep se apressa para analisar essa opinião:
— Quantos jogos do Benfica você viu?
— Poucos.
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— Não, poucos não: nenhum. Você não viu nenhum. Se tivesse visto algum,
não diria que é um time defensivo. O Benfica é uma equipe ofensiva com uma
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