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Pep Guardiola - A Evolução - Martí Perarnau

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Na Alemanha, Guardiola viveu uma metamorfose que o transformou em

numerosos aspectos. Enquanto conservou suas características

fundamentais (o jogo de posição como modelo e a competitividade

insaciável como motor), ele incorporou novos traços durante a

experiência em Munique.

Esta obra é uma peça singular no universo dos livros sobre futebol.

Animado pelo atrevimento do próprio Guardiola, Martí Perarnau propõe

uma narração "livre”, que Llui do presente ao passado e se detém em

reLlexões, pessoas ou momentos signiLicativos da trajetória de Pep. Do

restaurante vazio após a dolorosa eliminação para o Atlético de Madrid –

na que foi considerada a melhor atuação da era alemã de Guardiola – a

como se ensaia um escanteio, a carta de um torcedor, a meticulosa

descrição da virada sobre a Juventus ou o carinho com que o Bayern se

despediu do técnico.


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APRESENTAÇÃO

André Kfouri

Em Guardiola confidencial, Martí Perarnau nos apresentou um treinador

desconhecido. Pep Guardiola já tinha nome, currículo e um lugar de honra na

história do futebol, mas aqueles que gravitavam em seu entorno protegiam uma

relação baseada na confiança e na discrição. Perarnau conseguiu um ingresso

para o universo de um clube dirigido pelo técnico catalão, e — ao nos convidar a

entrar e nos guiar com seu olhar curioso e sensível — revelou como ele

trabalha, no que acredita, o que valoriza, como sente o jogo que colaborou para

transformar desde que assumiu o Barcelona, em 2008.

Antes do primeiro livro, apenas podíamos imaginar Pep Guardiola. Depois

da descrição da primeira temporada no Bayern — por si só um formidável

relato sobre a vida de um time de futebol da elite desse esporte —, é possível

afirmar que sabemos algo sobre ele. Esta segunda obra produzirá um efeito

semelhante, não exatamente por ampliar o mundo de Guardiola e nos permitir

ler um pouco de seu cérebro, mas por relembrar que fotografias são registros

estáticos de um momento que está no passado. As três temporadas na

Alemanha foram tão transformadoras para o futebol daquele país quanto para

Pep e sua maneira de se relacionar com o jogo.

Pep Guardiola: A evolução é um livro sobre uma pessoa com sede de

experiências e conhecimentos, mas também sobre um técnico disposto a se

modificar para seguir questionando o que é convencional e gerando o tipo de

futebol que carrega em seu coração. Se a ideia de dissociá-los fosse possível,

provavelmente seria um livro mais a respeito de Pep do que de Guardiola,

embora o âmbito no qual as transformações se aplicam seja sempre o campo de

jogo e as ferramentas necessárias para conquistar os jogadores por intermédio

dos quais o técnico exibe seu trabalho. E, ao conhecer a pessoa com um pouco

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mais de profundidade, descobrimos por que ele decidiu não renovar seu

contrato com o Bayern, por que resolveu seguir seu caminho na Inglaterra e por

que escolheu o Manchester City.

Guardiola precisa se modificar para se manter na vanguarda tática do

futebol, uma área em que as mentes mais capazes disputam uma corrida cada

vez mais veloz. Como principal inovador do jogo, ele vive constantemente

atento a sutilezas de outras modalidades esportivas que possam lhe ser úteis,

confortável na posição de “ladrão de ideias”, como se define. Perarnau deixa o

ambiente do esporte para entender como funciona a cabeça de um

perfeccionista, descolando etiquetas que foram associadas à sua imagem por

gente que não o conhece. O estilista romântico se converte em competidor

feroz; o professor dogmático se revela um acumulador de conceitos. As únicas

convicções imutáveis são a confiança na preparação detalhista ao extremo, a

intenção de controlar o que acontece a partir do momento em que a bola se

mexe e o desejo de oferecer uma classe de futebol que emocione as pessoas.

Perarnau também nos conduz pela tentativa de descobrir para onde o jogo

está se movendo. O futebol é uma atividade em que o novo nada mais é do que a

reutilização de ideias antigas em contextos diferentes. Ao longo dos tempos, os

treinadores que reuniram criatividade e coragem foram aqueles que

impulsionaram o esporte aos saltos táticos que marcaram épocas, mas é

interessante notar que os times mais formidáveis da história eram semelhantes

na forma como enxergavam o jogo. Há uma inegável conexão através das eras

entre os proponentes do futebol que busca a fluidez, o senso coletivo, o

refinamento técnico, o encantamento. Pep Guardiola é um membro dessa

linhagem à procura de novas respostas durante o maior desafio de sua carreira.

Este livro é um manual para acompanhá-lo.

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NOTA SOBRE TERMINOLOGIA

Ao longo deste livro, o autor faz inúmeras referências às posições dos

jogadores de futebol. Em muitas, por ser espanhol, ele usa termos alheios aos

mais utilizados no Brasil. O tradutor entendeu ser necessário manter essa

terminologia por fidelidade à forma como Martí Perarnau visualiza os

jogadores, mas a tradução não pode correr o risco de provocar má

compreensão. Por isso, a seguinte explicação:

— CENTRAL: jogador que atua no centro da defesa. Para não causar

confusão com o “meio-campista central”, que também é citado na obra, usamos

a denominação completa na maioria das vezes: “defensor central”. Quando se lê

apenas “central”, o motivo é evitar a repetição de palavras.

— INTERIOR: meio-campista que atua pelo lado do campo. Tem

características ofensivas e muitas vezes se posiciona entre o extremo e o

centroavante.

— EXTREMO: atacante que atua pelo lado do campo.

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PREFÁCIO

Pep Guardiola não leu este livro, como também não leu Guardiola confidencial.

Nem o fez antes da publicação, o que teria sido um desejo legítimo de averiguar

o que seria dito, nem o fez depois, por curiosidade de saber o que se disse sobre

ele. Certo dia, em Munique, um bom amigo lhe perguntou sobre essa decisão:

“Não o li”, respondeu Guardiola, “por enquanto. Lerei daqui a quinze ou vinte

anos, para recordar como foi minha passagem pelo Bayern”.

Eis então uma pessoa peculiar, que autoriza a entrada na intimidade de seu

vestiário, o acesso e a publicação de toda a informação que o rodeia, mas que

não se preocupa em conhecer o resultado desse trabalho. Um comportamento

que explica melhor o personagem do que um bocado de palavras que

poderíamos empregar para descrevê-lo.

A influência que a Alemanha exerceu sobre Guardiola provocou nele uma

importante metamorfose que este livro pretende descrever em detalhes. Foi

como a transformação que o adolescente sofre quando abandona a casa dos

pais para conhecer o mundo. Pep Guardiola: A evolução retrata como é a nova

versão do treinador que aterrissa em Manchester para enfrentar o maior

desafio de sua carreira, sua terceira etapa como técnico. Se seu período azulgrená

foi eminentemente autobiográfico — pois nele Pep investiu tudo o que

viveu e aprendeu como jogador do Barça — e o período vermelho de Munique

se distinguiu pela adaptação a uma cultura clássica — à qual o treinador

agregou uma torrente inesgotável de criatividade disruptiva —, o período azul

que se abre em Manchester é uma tela em branco que ele encara sendo alguém

muito diferente do que foi em Barcelona e Munique, mas sem deixar de ser,

acima de tudo, Guardiola.

A primeira vez que falei com ele sobre este livro foi quando Guardiola já

tinha se despedido oficialmente do Bayern e entrava em férias antes de sua

apresentação como treinador do City. Como era de esperar, Pep não entendeu

claramente:

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— Quando deixo um lugar, não gosto de reviver o passado. Fui muito feliz

em Munique, fui embora muito contente com todas as pessoas do clube, e tudo

isso já ficou para trás. Não vale a pena que você escreva sobre esses dois

últimos anos.

Para convencê-lo, eu lhe disse a verdade:

— Na realidade, o livro já está quase pronto. Eu fui escrevendo, dia a dia,

durante dois anos…

— Ah, bom… Então talvez você não deva jogá-lo no lixo. Faça o que quiser.

E foi assim que estas letras chegaram à impressão. Sem que existisse por

trás delas um projeto preconcebido milimetricamente, sem que o protagonista

as tenha lido e sem que o autor tivesse, até o último minuto, certeza de que elas

tomariam a forma de um livro.

O que se lerá a seguir é fruto de dois anos de trabalho contínuo, centenas

de treinamentos e jogos, além de inúmeras entrevistas e conversas que tentei

condensar neste relato sobre a grande transformação que Munique provocou

em Pep. Nada teria sido possível sem a atitude amigável do Bayern, que, após a

publicação de Guardiola confidencial, seguiu facilitando o acesso do autor à

rotina do time. Que conste meu agradecimento a todo o clube: desde o principal

dirigente, Karl-Heinz Rummenigge, até o mais humilde dos guardas ou sócios.

Estendo o agradecimento a Guardiola e a sua equipe de auxiliares, não só

por abrir todas as portas, até mesmo nos momentos mais delicados ou amargos,

mas especialmente pela liberdade com que me permitiram trabalhar todo esse

tempo. A regra foi: “Faça o que quiser”. Desse modo, publiquei o que eu quis. Os

elogios que escrevo pertencem a mim. As críticas que emito, também.

O leitor encontrará catorze capítulos que narram a metamorfose vivida por

Pep, dentro dos quais se incluem cinquenta notas de apoio que permitem

ampliar, compreender ou justificar as teses que são apresentadas. Recomendo

que se leve em conta a data de cada nota.

No fim dos capítulos (exceto o último) também há os “Bastidores”. São

relatos de jogos e detalhes de tática ou de determinados eventos, organizados

de forma cronológica, que foram produzidos ao redor do cenário principal em

que Pep se moveu nesses anos. Cada um pode ler os “Bastidores” como preferir:

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na ordem natural em que se apresentam ou ao terminar toda a leitura do livro

— como se fosse, na realidade, outro livro. Como achar melhor.

No papel de autor, não fui ortodoxo nem canônico na confecção do livro.

Combinei perspectivas, mesclei óticas e escrevi o que me pareceu interessante,

mesmo sob o risco de impedir que o texto tivesse um estilo homogêneo. É

provável que a trajetória de Guardiola rumo ao ecletismo tenha influenciado

nessa escolha. Não é um livro fácil, pois afasta o linear, flerta com a

complexidade e joga com o tempo e com os tempos ao misturar datas e

acontecimentos. Mas, no fim das contas, a vida do futebol não é mais que isso:

um contínuo ir para a frente e para trás.

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Fazer vinte vezes, recomeçar a obra, poli-la constantemente, poli-la sem descanso.

NICOLAS BOILEAU

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CAPÍTULO 1

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O CAMALEÃO

Quem conduz e arrasta o mundo não

são as máquinas, mas sim as ideias.

VICTOR HUGO

Woody Allen lhe estendeu a mão enquanto fazia aquela careta ácida que

vemos em muitas cenas de seus filmes:

— Bem-vindo, Pep, mas creio que o jantar vai aborrecê-lo. Nesta mesa, não

temos o mínimo interesse por futebol…

— Nenhum problema, Woody, eu adoro cinema. Você gosta de basquete?

Se quiser, podemos falar dos Knicks…

E as duas horas seguintes transcorreram velozes ao redor de umas taças de

vinho e do New York Knicks. Pep Guardiola empregou um de seus traços menos

conhecidos: a adaptação ao entorno. Embora sua imagem pública seja a de um

dogmático implacável e feroz, na realidade ele é um camaleão dúctil e versátil

que se adapta à paisagem e às circunstâncias. Se não se pode conversar sobre

futebol para não aborrecer o anfitrião, fala-se de basquete e mais

concretamente dos Knicks e seu futuro complicado — ainda que Pep seja,

particularmente, um admirador de Gregg Popovich.

Adaptação. Eis aqui um traço desconhecido de Guardiola. Adaptação aos

jogadores, ao contexto, ao rival e às circunstâncias. A Alemanha o obrigou a

extrair de seu interior essa característica pouco empregada em sua carreira

como treinador. Adaptar-se para ser capaz de impor sua proposta. Adaptar-se

como um camaleão. Não são os mais fortes nem os mais inteligentes que

sobrevivem, mas aqueles que melhor se adaptam.

Se no Barcelona Pep se impôs por convicção, na Alemanha ele fez isso por

adaptação. Não imaginávamos que essa pudesse ser uma de suas forças

motrizes internas, pois pensar em Guardiola era pensar em paixão, ambição

competitiva, talento e convicção, mas não em ecletismo e adaptabilidade. Suas

ideias de jogo eram tão firmes e potentes que pareciam rígidas e inabaláveis —

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ou seja, dogmáticas —, mas para sobreviver na Alemanha ele teve que se

mimetizar com o entorno e adquirir uma flexibilidade inesperada.

Somente deixando de ser, ele poderia seguir sendo ele.

— Creio que agora sou um treinador melhor. Aprendi muito aqui e isso

será muito útil para os passos seguintes. Acreditei que poderia implantar o jogo

do Barça e o que fiz na realidade foi sintetizar o jogo que eu trazia com o que

eles [os jogadores do Bayern] já tinham. Foi uma síntese extraordinária.

Um treinador melhor, neste caso, significa um treinador mais eclético. Por

um lado, Guardiola se radicalizou e é mais cruyffista do que nunca, ainda que no

sentido integrador do futebol total holandês. Mas ao mesmo tempo ele se

alemanizou, absorvendo uma cultura de jogo diferente até conseguir combinar

os fundamentos próprios com os adquiridos em Munique. No fim, Pep não

implantou o futebol de Cruyff na casa de Beckenbauer como pretendia no início,

mas fez algo melhor e mais inteligente: mesclou o jogo de Cruyff com o de

Beckenbauer, e dessa combinação surgiu um jogo híbrido que sintetiza as

principais virtudes de ambas as filosofias.

Quando, depois do falecimento de Cruyff em março de 2016, perguntou-se

a Pep o que o mundo do futebol poderia fazer por Johan, ele simplesmente

respondeu: “É preciso obedecê-lo”. O capitão Philipp Lahm (seu fiel escudeiro

no Bayern e seu prolongamento em campo) acrescentou: “A ideia de Cruyff era,

literalmente, jogar futebol. Nem mais, nem menos. Sua ideia não se baseava no

controle do rival, mas no controle da bola e do jogo. E foi isso que fizemos no

Bayern de Pep”. E Domènec Torrent, seu assistente técnico, fez a conexão final:

“Ele é hoje a síntese entre o Barça de Cruyff e tudo o que aprendemos na casa de

Beckenbauer”.

Pep é, neste momento, um treinador eclético que se aproxima da ideia da

integração dos modelos de jogo, do futebol total se entendido como um futebol

fluido, um futebol “líquido”. Slaven Bilić — o ex-jogador e hoje magnífico

treinador do West Ham — fez o prognóstico de que “a próxima revolução tática

será a morte do esquema”, e Guardiola vai se aproximando do limiar de tal

revolução: “Os sistemas de jogo não importam, o que importa são as ideias”,

disse.

Guardiola é hoje um treinador melhor, ainda que não tenha conseguido o

triunfo pleno em Munique, não nos esqueçamos. Não conseguiu reeditar o

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triplete com o Bayern, também não conquistou a preciosa Champions League (a

“competição da irregularidade”), sequer alcançou a final. Ganhou sete títulos

com o Bayern, entre eles três ligas consecutivas (o campeonato da

regularidade), pulverizando todos os recordes históricos do futebol alemão;

acima de tudo, levou o time a desenvolver um jeito de jogar delicioso,

dominante e policromático. Mas sua obra de arte não culminou com o êxito

absoluto e clamoroso; quando alguns na Alemanha qualificaram seu trabalho

como “inacabado”, estavam certos do ponto de vista dos troféus. É, assim, uma

verdade evidente: ele não pôde ganhar todos os títulos, mas impôs

completamente seu conceito de jogo.

Como resume Uli Köhler, jornalista alemão da Sky Deutschland: “Ele deixa

algo especial. Deixa um futebol para recordação. Deixa um estilo de futebol que

o Bayern nunca voltará a jogar e que os torcedores nunca mais voltarão a ver”.

“FUI MUITO FELIZ”

Doha, 5 de janeiro de 2016

Guardiola já anunciou que deixará o Bayern. Marco Thielsch, torcedor do

clube, envia esta mensagem para que chegue a Pep:

Ainda estou muito triste por sua decisão de não renovar, mas devo

dizer que você nunca nos decepcionou. Você sempre disse que tem

consciência de ser apenas uma pequena parte da história do clube. Sou

torcedor do Bayern há mais de trinta anos e quero lhe dizer que as coisas

nunca foram tão bonitas como nestes dois anos e meio. Nunca vi o meu

Bayern jogando um futebol tão bonito e não posso explicar a quantidade de

momentos maravilhosos que você e a equipe nos deram. São tantos

momentos excepcionais e fui tão feliz ao ver meu time jogando assim que

derramei muitas lágrimas de alegria. Por essa razão, quando você declarou

que se não ganhar a Champions League muitos dirão que sua missão ficará

incompleta, também devo dizer que há muita gente, como eu, que não vê as

coisas dessa maneira. Quero ganhar, claro que sim. Mas quero ganhar

precisamente pela maneira de jogar futebol que praticamos com Pep.

Quero ganhar por esse estilo de jogo. Não posso descrever com palavras o

que essa maneira de jogar significa para mim. Mas, mesmo se não

ganharmos, seu legado será tão grande que nunca esquecerei esses

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momentos incríveis pelo resto da minha vida. E tenho que dizer, também,

que como pessoa você é realmente uma grande inspiração para mim.

Obrigado também por isso. Vamos desfrutar desse último meio ano todos

juntos.

Emocionado, Pep leu a mensagem de Marco Thielsch:

— Só por provocar num torcedor essas emoções com o jogo do time, já terá

valido a pena todo o trabalho…

Foi uma “sinfonia inacabada” no que diz respeito à vitrine de troféus, o que

nos conduz a uma comparação inevitável. A maior derrota de Cruyff também

aconteceu em Munique, quando perdeu a final da Copa do Mundo de 1974,

justamente diante de Beckenbauer, mas é igualmente obrigatório destacar que

aquela derrota acabou se convertendo em uma das grandes vitórias de Cruyff.

Ele perdeu o troféu, sim, e aquela também foi uma sinfonia inacabada, mas

ganhou o reconhecimento mundial pelo jogo desenvolvido por sua equipe, a

Laranja Mecânica, em um dos tantos paradoxos que o futebol nos oferece. O

mesmo acontecerá com Pep, seu “filho”? O troféu não conquistado por ele em

Munique, neste caso a Champions que não foi vencida, se transformará em uma

futura vitória de Guardiola em forma de reconhecimento pelo jogo que seu

Bayern praticou? Não podemos saber com precisão o grau do efeito produzido

por Pep na futura evolução do jogo na Alemanha, mas todos os indícios

apontam para o fato de que sua influência acabará sendo contundente e

significativa.

O arquiteto catalão Miquel del Pozo, incansável divulgador da pintura nas

redes sociais, encontra um paralelismo fascinante entre a experiência do

mediterrâneo Guardiola na Alemanha e a que viveram os pintores alemães na

Itália, em ambos os casos como exportadores de uma técnica muito específica:

“Os pintores e artistas germânicos e holandeses (os pintores flamengos),

seguindo a rota de Alberto Durero, levaram à Itália a técnica da pintura a óleo, e

essa técnica teve uma influência decisiva no desenvolvimento posterior da

pintura italiana”. E, ao mesmo tempo, produziu-se o efeito inverso: “Houve um

antes e um depois da viagem à Itália para os artistas germânicos, porque eles

descobriram um mundo novo. Goethe vive um encantamento quando descobre

a Itália, e Winckelmann sente o mesmo em relação à Grécia. Durero é um grande

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especialista na pura técnica alemã, mas a influência também se dá no caminho

inverso: quando descobre a luz e a sensibilidade italianas, Durero se

transforma. Isso me lembra a fascinação que Pep sentiu na Alemanha e a que

muitos alemães sentiram por Pep”.

Domènec Torrent tampouco tinha dúvidas a respeito do tema: “Pep deixa

um grande legado na Alemanha. Em forma de jogo, de ideias, de versatilidade e

de vontade. Karl-Heinz Rummenigge explicou com muita precisão: quanto mais

tempo passar, mais se perceberá o grande trabalho que ele fez no Bayern. Você

não pode imaginar a quantidade de treinadores alemães que nos procurou nos

últimos meses e nos transmitiu essa mesma valorização: a enorme riqueza

futebolística que Pep deixa na Alemanha”. O analista alemão Tobias Escher faz a

seguinte descrição: “Antes de Guardiola chegar à Alemanha, ninguém aqui

conhecia o conceito de jogo de posição”.

Embora tenha conquistado menos troféus em Munique do que em

Barcelona (catorze de dezenove possíveis no Barça, sete de catorze no Bayern),

Guardiola se sente melhor treinador em 2016, quando chegou a Manchester, do

que em 2012, quando deixou o Barça. Por quê?

“Sou um técnico melhor porque antes montava tudo para chegar a Messi, e

então Messi resolvia, mas na Alemanha tive de pensar em mais opções; esse

jogador deve ir para esse ponto, esse outro por trás dele etc. Precisei me meter

até mesmo na cozinha, e isso faz você melhorar.”

Ele aprendeu a se adaptar a contextos complexos e hostis, superou uma

sucessão de adversidades sem fim, resistiu a dificuldades às quais não estava

acostumado e enriqueceu sua capacidade como treinador e sua versatilidade

graças à imersão realizada na Bundesliga. O futebol alemão o transformou,

como advertiu Lorenzo Buenaventura, seu preparador físico, poucos meses

depois de chegar a Munique, com palavras premonitórias: “Pep está mudando o

Bayern, e a Alemanha está mudando Pep”.

O homem que, em julho de 2016, aterrissa cheio de sonhos e entusiasmo

em Manchester é mais resistente e maduro que o que apareceu em Munique em

junho de 2013. Sua dimensão também é muito mais humana, menos idealizada.

Já não é um técnico elevado aos altares, quase divinizado, exageradamente

divinizado. A Alemanha expôs seus defeitos, e isso o converte em alguém menos

perfeito e mais terreno.

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Sua metamorfose se mostra no contraste de duas imagens que ilustram a

distância que existe entre o Pep que chegou a Munique e o Pep que foi embora

da capital bávara.

A imagem de 24 de junho de 2013, em Munique, foi a de um Pep

impecavelmente vestido com um terno cinza, gravata grená, colete de seis

botões, camisa de colarinho italiano, lenço branco no bolso superior e sapatos

brilhantes. Era um Pep ungido de glamour, rodeado pela cúpula dirigente do

Bayern, quase a imagem de uma poderosa corporação multinacional. Um look

que parece desenhado para uma sessão de fotografia publicitária. Uma imagem

impecável e elegante. Era luz, brilho, perfeição.

A imagem de 3 de julho de 2016, em Manchester, é a de um Pep vestido de

maneira informal, com uma camiseta cinza de manga curta, calça jeans, tênis e

um blazer despojado que o técnico tira sempre que pode. É o look de um

homem moderno, relaxado, de espírito esportivo, e também de alguém que quer

começar a trabalhar imediatamente. Não se barbeou, como se tivesse pressa

para encarar o grande desafio que o espera em Manchester. É uma imagem que

exprime energia, decisão e convencimento, mas também normalidade e

naturalidade, e que o faz se conectar com o torcedor da maneira expressada

pelo lema escolhido pelo clube: A new era begins [Começa uma nova era].

DANKE PEP

Munique, 22 de maio de 2016

Na sacada da prefeitura está se festejando um novo doblete, o segundo de

Pep. Depois de conquistar sua quarta Bundesliga consecutiva, o Bayern

venceu ontem a Copa em Berlim, no último jogo de Guardiola no clube.

Todos dormiram pouco. Vemos Pep vestido com calça de agasalho e uma

simples camiseta branca com a palavra “Double”. Ele não fez a barba e

brinda com uma taça de vinho branco (heresia) na pátria da cerveja

infinita. É um Pep terreno, rodeado por seus colaboradores e jogadores, a

imagem de uma equipe unida. Vê-se também a imagem de um Pep

próximo, agradecido e emocionado, uma imagem de normalidade e

naturalidade. A Alemanha também mudou o look de Pep, oposto ao que se

viu quando chegou três anos atrás. Em Marienplatz, onde se comemora o

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doblete, um torcedor pintou seu torso nu com um enorme “Danke Pep”

[Obrigado, Pep].

A reação diante das adversidades superadas e a resiliência de que precisou

para perseverar frente aos numerosos obstáculos que surgiram nesses três

anos lhe conferem uma dureza de que Pep precisava. Ele aprendeu com

tropeços e conseguiu chegar ao final da etapa bávara sem sofrer um desgaste

excessivo. Guardiola partiu de Munique sorridente e feliz, sem nenhuma conta

pendente, abraçado a seus jogadores e também ao clube bávaro, tanto aos

dirigentes quanto aos torcedores, que lhe deram formidáveis mostras de

carinho. Se o sucesso se mede pelo número de olhos que brilham ao seu redor,

como explica Benjamin Zander em suas esplêndidas conferências, os jogadores

que Pep deixou na Baviera sentem que seu técnico alcançou um grande êxito, e

assim se expressaram durante as longas e emotivas despedidas, na privacidade

do vestiário de Säbener Straße.

Em Munique, Pep teve boas lições: aprendeu a dizer “não”, uma virtude que

lhe fazia falta; cometeu erros — e de todos eles tentou extrair ensinamentos;

soube limitar seu tempo a três anos sem prolongá-lo a uma quarta temporada

asfixiante, como no Barcelona; e dosou melhor sua energia — por isso, não

precisou de nenhum ano sabático, nenhuma parada para recarregar as baterias.

Pôde viajar diretamente de Munique a Manchester sem necessitar de uma

estação intermediária, apenas de ligeiras férias para voltar à sua querida Nova

York com a família e ver as finais da nba. Se Pep precisava amadurecer como

treinador, a Alemanha facilitou todo o processo com golpes de realismo.

Quando o Bayern anunciou, perto do Natal, que Pep não renovaria seu

contrato, desatou-se nos meios de comunicação alemães um vendaval contra o

treinador, sem que fosse muito relevante o motivo de cada rajada: um dia

porque Lewandowski não jogava, outro dia porque Müller não jogava, outro

porque Götze não jogava. Guardiola simplesmente iria deixar o clube, o que o

convertia no alvo perfeito sob qualquer pretexto. Por duas vias diferentes,

chegou ao treinador uma proposta que define o contexto real em que ele se

encontrava: se aceitasse conceder uma entrevista individual a um poderoso

meio de grande tiragem, em troca receberia proteção das críticas…

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Em seus últimos meses em Munique, Pep recebeu muitas repreensões por

não ganhar a Champions League, sobretudo da imprensa sensacionalista, ainda

que, em geral tenha sido por parte daqueles que se mostraram pouco

interessados no jogo propriamente dito durante esses anos. Devemos

reconhecer que a compreensão do jogo não é uma tarefa simples. O futebol

contemporâneo alcançou uma elevada complexidade e, para compreender

todos os fenômenos que ocorrem dentro do gramado, é conveniente se

aproximar com a mente aberta, sem ideias preconcebidas, com atitude humilde.

Isso é tão válido para o modelo de futebol que Guardiola propõe quanto para

outro tão antagônico como o que Ranieri pratica no Leicester. Se não se faz um

mínimo esforço para entender o jogo, as análises acabam sendo

desalentadoramente supérfluas, recorrendo-se a aspectos totalmente alheios ao

próprio jogo. Basta olhar diariamente a imprensa para se comprovar isso.

A criatividade, porém, é imprescindível no futebol, e não me refiro ao gesto

criativo do futebolista, que certamente é uma das essências desse esporte, mas

à mentalidade inovadora do treinador. A criatividade, como afirma Ken

Robinson, o grande educador e escritor britânico, “não é um conjunto

extravagante de atos expressivos, mas a forma mais elevada de expressão

intelectual”. Pode-se alegar que o futebol pertence unicamente ao âmbito físico

e técnico, que não possui nenhuma dose de intelecto, mas eu me permito aqui

rebater essa alegação: o futebol são ideias (além de gestos técnicos e outros

muitos fatores). A ideologia, entendida como a proposta que um treinador

apresenta a uma equipe, tem sido um dos grandes impulsos da evolução do

futebol.

Há poucos meses li uma interessante reflexão de Raymond Verheijen,

treinador holandês: “No mundo do futebol, a maioria das pessoas quer proteger

o status quo tradicional porque tem medo de se equivocar. É uma subsociedade

primitiva na qual não se tolera a crítica e onde as pessoas preferem preservar e

defender as ideias estabelecidas. O mundo do futebol não gosta das pessoas que

questionam as demais porque isso incomoda, e ninguém gosta de se sentir

incomodado. Obviamente, falta fazer muitas coisas de maneira inteligente no

futebol”.

A inovação nas ideias que são propostas e levadas adiante está na base do

desenvolvimento do jogo, do mesmo modo que “a ciência se alicerçou sobre um

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pensamento rico, original e criativo unido ao entendimento crítico”, disse Ken

Robinson. Contudo, devemos reconhecer que o conceito de criatividade tem

uma imagem muito ruim dentro do futebol, porque estamos diante de um

mundo voluntariamente obsoleto, fixado em paradigmas que caducaram, no

qual grandes forças conspiram para que nada evolua e tudo permaneça

estancado no clichê da comodidade. O futebol tem um medo atávico de

inovação.

E é exatamente nesse ponto do caminho, após a sinfonia inacabada na

mesma cidade em que seu “pai” Cruyff também deixou de completar sua maior

obra, que Guardiola decide enfrentar o maior desafio de sua carreira: tentar

impor o seu jogo na Inglaterra, a terra dos fundadores do esporte. Impor

equivale a uma tarefa “evangelizadora”? Domènec Torrent, o braço direito de

Guardiola, recusa essa interpretação: “Ninguém deve se enganar: Pep não foi a

Manchester para revolucionar o futebol inglês, nem para ensinar a jogar futebol,

como se afirmou em alguns lugares. Pep veio para a Inglaterra para contribuir

com novas ideias. Para contribuir e somar, não para mudar nem dar lições a

ninguém. O futebol se joga de mil maneiras, e a única coisa que Pep faz é jogar

com uma dessas mil maneiras — uma que possa agradar mais ou menos e com a

qual ele ganhe frequentemente, mas que não é a única nem a ‘verdadeira’. É

apenas a maneira que Pep propõe. Deixe-me repetir para que ninguém se

confunda: Pep não é um messias que vai evangelizando o mundo do futebol

para transformá-lo. Ele apenas quer propor seu jogo, aprender com os que

jogam de outra forma e tentar somar e agregar riqueza à sua maneira de ver o

futebol”.

Implantar seu conceito de futebol no Manchester City é uma tarefa

complicada e árdua, porque a equipe que Pep herdou não possuía uma

identidade reconhecível e singular de jogo, e também não se destacou por seu

caráter ambicioso, traços que eram definidores do Barcelona e do Bayern. Pep

terá de gerar um impacto potente nas formas e no conteúdo futebolístico de um

time que precisa de uma grande mudança (a metade dos integrantes da

temporada anterior superava os trinta anos de idade), dentro de um entorno

extremamente competitivo pela incorporação de treinadores (Conte, Mourinho,

Klopp…) e jogadores magníficos (Mkhitaryan, Xhaka, Pogba, Ibrahimović…), no

centro de uma idiossincrasia futebolística radicalmente distinta da que

Guardiola representa. Manchester é um desafio até maior para Pep que o que

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ele enfrentou no Barcelona em 2008, quando era apenas um treinador novato,

mas que “jogava” em casa; e é um desafio diferente do Bayern em 2013, quando

teve de lutar, já consagrado como técnico, com o fantasma permanente do

triplete.

Manchester é uma obra nova, que parte sem ideias preconcebidas e sem

uma estrutura de jogo consolidada e identificável. Os planos do novo edifício

representam sua absoluta incumbência. Aí está também a grande

responsabilidade que ele assume. Durante as férias de verão, falamos sobre esse

desafio e Pep foi muito sucinto: “É o trabalho mais difícil que já enfrentei”.

Seu grande desafio.

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BASTIDORES

SANGUE NA BOCA

Munique, 10 de setembro de 2014

À noite, disputou-se em Madri o jogo entre Espanha e França, pelas

quartas de final do Campeonato Mundial de basquete. De maneira

surpreendente, a França bateu a Espanha por 65 a 52. Digo

surpreendente porque, apenas uma semana antes, na fase de grupos, o

time espanhol derrotou o francês por 88 a 64, depois de ter vencido

Senegal, Brasil e Sérvia (que terminou como vice-campeã mundial). A

Espanha chegou invicta às quartas de final, com seis vitórias

consecutivas, mas foi golpeada pela França no momento-chave. Dessa

derrota inesperada surge uma longa reflexão de Manel Estiarte sobre a

competitividade das grandes equipes. Estiarte sabe bem o que é ganhar

e o que é perder, afinal de contas se trata do melhor jogador de polo

aquático da história:

“Faz tempo que uma ideia ronda minha cabeça. Minha tese — e não

pretendo que seja nenhuma teoria universal — é que as equipes

grandes, as muito grandes, se acostumaram tanto a ganhar que não

concebem estar perdendo. No basquete, no futebol, no handebol, em

qualquer esporte coletivo. Não acontece com todos nem acontece

sempre, mas vejo muitas coincidências. Tenho a impressão de que os

times grandes, como não estão acostumados a perder, não têm em seus

planos o conceito da derrota, sobretudo quando são favoritos. E basta

que o rival, por qualquer motivo (porque ele está muito bem ou porque

você está mal), fique um pouco à frente no placar para que tudo afunde.

“E ninguém se salva. Pense no que aconteceu no futebol nos últimos

anos. Veja alguns exemplos: o Barça de Pep fica em vantagem no

Bernabéu e acaba vencendo o Real Madrid por 6 × 2; o Barça de Pep

enfrenta o Real de Mourinho, que era um time formidável, e o varre por

5 × 0; há muitos exemplos parecidos na Inglaterra, ou aqui na Alemanha:

o Dortmund de Klopp ganha a final da Copa por 5 × 2 contra o Bayern de

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Heynckes, sem deixá-lo levantar a cabeça; o Bayern de Heynckes derrota

o Barça de Messi, Xavi e Iniesta por 7 × 0 em dois jogos; o Real de

Ancelotti nos massacra aqui em Munique no ano passado por 4 × 0; a

Alemanha destroça o Brasil por 7 × 1 na casa dos brasileiros… Cada vez

encontro mais exemplos desse tipo: duas grandes equipes se enfrentam,

uma delas se adianta no marcador, não importa se com muitos méritos

ou poucos, e o rival desmorona pouco a pouco até ser arrasado. [E novos

exemplos surgirão nas semanas seguintes: o Bayern destruirá a Roma no

Estádio Olímpico por 7 × 1, e o Tottenham vencerá o Chelsea de

Mourinho por 5 × 3 na Premier League.]

“Minha tese é que os jogadores desses grandes times não

conseguem imaginar que serão derrotados. Não concebem isso. Estão

preparados para a vitória. Não digo para a vitória fácil, de jeito nenhum.

Mas, sim, para a vitória. Ganham tantos e tantos jogos que construíram

uma relação cotidiana com o triunfo. Inclusive, se às vezes têm de reagir

em um jogo em que tomam um gol, também estão acostumados a fazer

isso rapidamente.

“E, de repente, chega o dia em que enfrentam outro grande time que

por qualquer razão abre vantagem no placar. O pior é se isso acontece de

forma imerecida, um pouco por casualidade, injustiça ou erro. O rival se

adianta e você fica caído na lona: foi nocauteado sem perceber. Um gol. E

depois o segundo gol. Você está perdendo por 2 × 0 num jogo que, em

teoria, deveria estar ganhando — talvez por ser um pouco superior ou

porque os resultados anteriores foram muito positivos e você se

preparou muito bem para a partida. Merecia estar ganhando, mas sofreu

duas pancadas e está no chão. E quando isso acontece, o mais comum é

permanecer na lona. Não estamos acostumados a reagir. O time pequeno

já sabe que será golpeado várias vezes e chega ao jogo preparado

psicologicamente para isso. Mas você, não. Você é grande e, ainda que

respeite muito o rival, que também é muito grande, não está acostumado

a ser nocauteado.

“Você está no chão, perdendo por 1 × 0 ou por 2 × 0 e seus planos

foram arruinados. É a famosa frase: ‘Todo mundo tem um plano até levar

um soco na boca’. [Frase atribuída a Mike Tyson mas que, na realidade, é

de Joe Louis.] E em vez de se agarrar como pode ao pescoço do

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oponente, sem soltá-lo até recuperar a respiração, você quer continuar

como se nada tivesse acontecido. E aí é que você é arrasado de verdade.

“Creio que, de forma geral, nós perdemos; se generalizo,

evidentemente há mil exceções, um pouco do espírito guerreiro do

esportista. Digamos que seja o espírito histórico dos balcânicos. Você

enfrentava os iugoslavos e os húngaros, sobretudo os iugoslavos, e sabia

que haveria jogo até o apito final. Às vezes, até depois do apito final.

Mesmo que você fosse superior, eles se agarravam ao seu pescoço e não

soltavam enquanto tivessem alguma chance, ainda que mínima. Mais ou

menos como os times italianos de futebol, quando estão vencendo por 1

× 0: você sabe que eles se defenderão como leões e que não haverá meio

de batê-los. Ou como os times alemães de futebol, que você sabia que

conseguiriam empatar ou ganhar no último minuto do jogo. Você sabia.

Ou como os atletas ingleses meio-fundistas, a quem não se pode dar

como derrotados até o último metro. Pois os iugoslavos eram assim em

qualquer esporte coletivo. Não importava se você estivesse lhes dando

uma surra: eles seguiriam em pé, aguentando e aguentando, esperando

uma oportunidade. E a maioria dos times balcânicos conserva uma parte

desse espírito.

“E creio que isso é algo que os grandes times de futebol devem

recuperar, devem trabalhar, devem estimular. Veja o que nos aconteceu

no ano passado contra o Real. O.k., tínhamos desfalques, jogadores

machucados, dificuldades, mas era uma desvantagem de apenas um gol.

Saímos do Bernabéu com a sensação de oportunidade desperdiçada, de

ter perdido um jogo em que atuamos muito bem e que o resultado

razoável teria sido ao menos um empate. Mas 0 × 1 não é um resultado

ruim, de jeito nenhum. E digo mais: no confronto que vale a passagem à

final da Champions, não me parece grave estar no minuto setenta da

partida de volta e ter de marcar um único gol para ir à prorrogação.

“Mas nós queremos mais. Somos grandes e ambiciosos e queremos

mais. E então nos dão um soco — num escanteio que talvez não

deveríamos ter concedido, e sofremos um gol. A coisa se complica. E

depois uma falta que não deveríamos ter cometido. E outro gol. Outro

soco. E você desmorona. Não está acostumado a receber os golpes;

costuma ser quem os dá. E é derrubado.

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“Eu acredito que há pontos comuns em todas essas derrotas que

mencionei. O Real que perde por 6 × 2 e 5 × 0 contra o nosso Barça; os

grandes times ingleses que levam meia dúzia de gols; o Bayern de

Heynckes que cai diante do Dortmund de Klopp; o Barça que afunda

diante do Bayern de Heynckes; nosso Bayern que cai contra o Real; o

Brasil que se afoga diante da Alemanha… No jogo entre Espanha e

França no Mundial de basquete, aconteceu exatamente isso: um grande

que não concebe estar perdendo a partida que pensava que ganharia. E

termina estendido na lona.

“Todos são grandes times, não é um problema do tipo de jogador,

nem de treinador, nem de tática. Creio que os grandes de hoje são

maiores do que nunca, por isso batem todos os recordes nas ligas e

continuam batendo. Recordes de pontos, de gols, de invencibilidade, de

menor número de gols sofridos… Crescemos cada vez mais e, quanto

maiores somos, menos podemos imaginar um tropeço. E quando

tropeçamos, zás, perdemos o costume de nos agarrar ao colete salvavidas.

“É possível que eu esteja enganado e que minha tese não seja

correta, mas começo a acreditar que de fato é assim e que os grandes

times devem recuperar o espírito dos iugoslavos. Você sofreu um golpe,

o.k., mas aguente, resista, engula o sangue e não pense em nada: nem nos

planos que ruíram, nem se foi injustiça ou imerecido, nem que você era o

favorito. Nada. Apenas se agarre ao remo e reme. Reme para que passem

os minutos, tentando manter o resultado. Que passem os minutos e você

não seja derrubado. Se está perdendo por 1 × 0, tudo bem, dói, é uma

merda, mas aguente esse 1 × 0 e não permita que a diferença se amplie.

Porque talvez chegue o quarto de hora final e você ainda estará

perdendo por 1 × 0, mas então alguma coisa pode acontecer. Na melhor

das hipóteses, é o rival quem se afunda nesse momento ou você tem um

pouco de sorte e empata. E daí tudo muda e, talvez, seja você quem vai

acabar nocauteando o rival.

“Não sei, pode ser que o que estou dizendo seja conversa fiada, mas

me parece que há algo de verdade em tudo isso e que os times grandes

— os jogadores e os técnicos dos times grandes — devem se obrigar a

repensar essa situação e a se preparar para o dia em que, ao

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enfrentarem um igual, talvez seus planos não se concretizem e eles

tenham de se disfarçar de iugoslavos.”

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CAPÍTULO 2

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POR QUE O CITY?

Prefiro que minha mente se abra pela

curiosidade a fechar-se pela convicção.

GERRY SPENCE

Não é uma pergunta simples. Por que Pep escolheu o Manchester City em vez

de outro clube com muito mais história, como sempre foi sua preferência?

É provável que uma das explicações se encontre na própria pergunta.

Depois de dirigir um Bayern carregado de história e lendas, Guardiola prefere

uma instituição em que o peso da tradição seja mais leve. No City, não escutará

convenções que se repetem frequentemente em muitos outros lugares: “Aqui

sempre se fez assim…”.

Antes de nos aprofundarmos nisso, deveríamos compreender por que

Guardiola deixou o Bayern após cumprir integralmente o contrato de três anos

que assinou em 2013, sem aceitar a generosa renovação que a direção do clube

lhe ofereceu.

O que motivou Pep a sair de Munique foi a vontade de ampliar

conhecimentos que o ajudem a se transformar ainda mais. Ele quis modificar e

ser modificado, procurou mudar justamente para ser mudado. Essa é a única

razão que o estimulou a abandonar uma cidade maravilhosa como Munique, um

clube poderoso como o Bayern e um elenco extraordinário que, em suas mãos,

aprendeu outra maneira de jogar e a interpretou com excelência. Um elenco que

o quer bem, como demonstrou de forma exaustiva.

Três anos e nenhum dia a mais. Guardiola é assim: um sujeito pouco

comum, que gosta de cumprir os compromissos, mas não de prolongá-los. No

futebol, é normal que o treinador de sucesso peça ao clube para prorrogar seu

contrato. Guardiola pensa diferente: prefere construir sua obra durante um

tempo limitado e depois dizer adeus.

A verdade é que, desde sempre, ele não é um tipo normal, mas um

personagem de pensamento não convencional. Do contrário, ainda estaria

treinando o Barcelona: só alguém de comportamentos não convencionais

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abandona o imparável Messi em seu esplendor, ou se despede de seu mágico

trio de meios-campistas (Busquets, Xavi, Iniesta). E o mesmo se pode dizer do

Bayern de Neuer, Lahm e Alaba. Mas Guardiola é assim. Uma vez construído o

melhor time do mundo, e possivelmente da história do futebol, Pep preferiu

abandonar o Barça a se perpetuar nele. E quando o Bayern já jogava como ele

queria, também o abandonou. Não é habitual; o normal no ser humano é tentar

se perpetuar em seu habitat. Guardiola pretende o contrário: sempre foi uma

pessoa inquieta, que prioriza o aprendizado do novo à comodidade do

conhecido. Não é fácil compreendê-lo, mas, com a ajuda de Miquel del Pozo e

suas analogias pictóricas, tentaremos: “Pep pinta sua obra, mas não a

contempla. Este é um traço totalmente de genética artística, de criador. Do tipo

de artista para quem a obra só importa enquanto a está criando. Entregam-se

totalmente à sua obra, e para eles a única coisa que importa é esse momento de

criação; mas, quando terminam, quando a entregam ao que chamamos de

mundo das coisas, ou seja, quando está acabada, a obra deixa de interessar a

eles. Portanto, essa dedicação absoluta à obra durante o processo é muito

coerente com a genética do artista, assim como o ato de abandoná-la ao

terminar”.

Por esse motivo, quando chegou ao Bayern em 2013, ele assinou por três

temporadas e apenas por três, e fez o mesmo com o Manchester City. É

inevitável lembrar que, muitas décadas atrás, o treinador húngaro Béla

Guttmann expressou uma opinião surpreendente: “A terceira temporada

consecutiva em um clube costuma ser um desastre”. (No caso de Guardiola, suas

terceiras temporadas sempre foram boas, mas isso não invalida a reflexão do

treinador húngaro.) Guttmann era formado em psicologia e foi um treinador

extraordinário, que dirigiu o grande Honvéd de Puskás e Bozsik, colaborou para

o desenvolvimento do 4-2-4 no Brasil com o uso do falso 9 como variante

húngara, e se consagrou no Benfica com duas Copas da Europa seguidas (e

também com sua célebre maldição, que perdura: “Jamais, nem em cem anos, o

Benfica voltará a ganhar uma Copa da Europa”). Guttmann foi o primeiro

técnico que aplicou ciclos curtos de trabalho de forma voluntária, por causa do

desgaste gerado pela maneira intensa de dirigir seus times. Quando

consultamos seu perfil, aparecem traços básicos que coincidem com os de

Guardiola: o que mais interessava a Guttmann era absorver informação,

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conhecer jogadores, extrair o melhor rendimento de cada um deles, viajar,

aprender novos sistemas. Sua vida era o futebol…

Essa maneira de ser se choca frontalmente com os pensamentos

convencionais. Pep nunca quis se consolidar em seu posto de trabalho, nem

permanecer em um único lugar. Ao contrário: quer viajar, conhecer e aprender.

Quer ser livre. Sua quarta temporada como treinador do Barcelona foi longa; ele

compreendeu que três anos são suficientes para que uma equipe aprenda,

corrija e aperfeiçoe um determinado modelo de jogo. Também para que apareça

o cansaço próprio de um modelo muito exigente. A maneira de gerir equipes de

Guardiola não contempla a comodidade nem o relax, e se baseia no trabalho

permanente e detalhista, tanto do treinador como dos jogadores. Xabi Alonso

disse: “Pep e sua comissão técnica me deram um mestrado em futebol. Não se

trata apenas de trabalhar duro (com Pep, você repete as ações algumas vezes

até que se automatizem). Você absorve aquelas ideias porque ele é minucioso

em seus ensinamentos, tanto quando você acerta como quando precisa ser

corrigido. Não é algo unicamente ligado à tática, mas a uma filosofia. De fato,

você deve prestar atenção absoluta em todos os momentos e ser muito rápido

mentalmente. Todos nós no Bayern agora somos muito mais rápidos para

captar e aplicar os conceitos que trabalhamos com ele”.

Essa forma de trabalhar gera muitos avanços e melhoras nos futebolistas,

mas, ao mesmo tempo, cria também um forte desgaste entre eles e o treinador.

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2.1. POR TXIKI E SORIANO

Se uma ideia não é absurda a

princípio, então não vale a pena.

ALBERT EINSTEIN

Por que o Manchester City? Porque Txiki Begiristain e Ferran Soriano estão no

clube e Pep confia neles, simplesmente assim. Trabalharam juntos com fluidez e

acerto no Barcelona, e a confiança mútua é estreita. Ainda que a história do City

seja muito mais rica do que se crê nestes tempos de memória escassa, ela não

representará grandes restrições e Pep poderá trabalhar sem sentir que está

rompendo uma maneira imutável de fazer as coisas. O City é uma tela em

branco que lhe permitirá decidir o que quer pintar e como será a nova obra que

deseja edificar. A capacidade financeira do clube lhe permite incorporar

jogadores magníficos, ter uma comissão técnica de elite e aprofundar a

implantação de suas ideias nas categorias mais jovens.

A escolha feita apresenta essas vantagens a Pep, que começa sua terceira

etapa como treinador num lugar novo, sem estar preso a triunfos do passados

ou a costumes arraigados, e onde não vai romper padrões esculpidos em pedra

sagrada, nem deixar grandes lendas indicarem o caminho que o time deve

seguir. O desafio é colossal, mas é precisamente por isso que é tão atrativo aos

seus olhos.

Embora tenha alcançado de forma histórica, em maio de 2016, as

semifinais da Champions League contra o Real Madrid, não se pode considerar

que o Manchester City tenha terminado a temporada passada entre os seis

melhores times da Europa, porque é indiscutível que três espanhóis (Real

Madrid, Barcelona e Atlético de Madrid), dois alemães (Bayern e Borussia

Dortmund) e a campeã da Itália (a Juventus) eram, futebolisticamente falando,

equipes superiores. É possível que dentro de dez meses não seja assim, mas

esse era o quadro na primavera de 2016. Basta ouvir o balanço da temporada

realizado por Khaldoon Al Mubarak, presidente do City, no próprio canal de

televisão do clube: “Devemos estar agradecidos a Manuel [Pellegrini] e à sua

equipe por esses êxitos [dos últimos três anos]. Ao mesmo tempo, também não

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podemos ocultar a decepção, sobretudo neste ano. Tínhamos muitas

expectativas para esta temporada. Não me importa perder para o Real Madrid,

mas queria sentir que demos 100%, e não creio que fizemos isso”.

Resumamos as razões pelas quais Pep assinou contrato com o Manchester

City, depois de considerar que seu trabalho no Bayern estava completo:

• Porque queria viver uma nova experiência e aprender outra cultura

futebolística;

• Porque o projeto do City tem poucos condicionantes e é uma tela em

branco;

• Porque possui recursos econômicos suficientes para construir um grande

projeto;

• Porque Txiki e Soriano lhe garantem um trabalho em sintonia;

• Porque o clube lhe oferece a oportunidade de construir um magnífico

legado na forma do “Idioma City”.

A escolha de Guardiola, por onde quer que se olhe, foi significativa: se

conseguir realizar seu projeto, a recompensa será tão elevada quanto arriscada.

Seu propósito de mudar para aprender e sair da zona de conforto é louvável e

gerará novas vivências, que, no entanto, não serão simples nem fáceis.

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BASTIDORES

UM PLANO PERFEITO

Roma, 21 de outubro de 2014

Como ainda não podia contar com Thiago, o treinador ia utilizando

David Alaba como curinga da equipe, enquanto Philipp Lahm e o resto

dos jogadores alemães se colocavam em forma após o triunfo na Copa do

Mundo do Brasil. Pep planejou os jogos da liga de setembro e outubro, e

também a visita a Moscou, contra o cska, pela Champions, com a defesa

de quatro e alternando a disposição global do time de acordo com as

características dos adversários. Em geral, empregou o 4-2-1-3 e o 4-2-3-

1, mas também utilizou seu querido 4-3-3 e até o 3-3-4. A peça que

permitia passar velozmente de um esquema de jogo a outro era sempre

David Alaba, que foi escalado como defensor central, lateral esquerdo,

meio-campista central ou interior esquerdo, conforme as exigências de

cada jogo.

Antes da partida contra a Roma, o Bayern acumulou cinco vitórias

seguidas e cada vez jogou um pouco melhor. A fluidez começava a se

apossar do centro do campo, sem que fosse fundamental saber se a

companhia da dupla Xabi-Lahm (estabelecida como o dueto vertebral do

time) era Götze, Højbjerg ou Alaba. Também se modificavam as posições

no ataque, às vezes com Bernat de extremo esquerdo, outras com Götze

ou Müller, que também alternava a posição de centroavante com

Lewandowski — até Pizarro teve sua oportunidade. Robben jogava

sempre, era fixo no time, absolutamente o homem-chave, que fazia

diferença em todas as suas ações. Robben estava alcançando o ponto alto

da primavera anterior e a cada jogo dava mais sinais de sua relevância

no Bayern.

Pep não quis encarar a partida contra a Roma como apenas mais

uma. Por essa razão, no domingo, 5 de outubro, poucas horas depois da

vitória sobre o Hannover pela Bundesliga por 4 × 0, Pep, Estiarte e

Michael Reschke abandonaram a festa do Bayern na Oktoberfest para

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viajar a Turim, onde Roma e Juventus fariam um jogo importante para

definir de quem era a supremacia no campeonato italiano. Foi um jogo

duro, com três pênaltis marcados, três jogadores expulsos e uma vitória

agônica para a Juventus, no último instante, graças a um chute de

Bonucci. A Roma teve boa atuação e por alguns momentos foi superior

ao time local, mas a derrota lhe causou um abalo moral importante. Foi

uma experiência interessante para Guardiola: ele observou com minúcia

como jogava o time de Rudi Garcia e começou a refletir sobre a forma de

derrotá-lo. Embora não possa fazer isso com assiduidade, Pep gosta de

observar pessoalmente seus futuros rivais.

No treinamento de segunda-feira, 20 de outubro, em Säbener

Straße, Pep mostrou a seus jogadores qual seria o plano no dia seguinte

no Olímpico de Roma. Trabalhou na saída de bola de trás com três

defensores e o reforço de Xabi Alonso. Repetidamente. Um clássico nos

treinamentos de Guardiola: Neuer ou Reina cedia a bola a um dos três

centrais e, a partir desse ponto, os teóricos oponentes pressionariam o

possuidor da bola, que por sua vez deveria buscar qualquer um de seus

três companheiros, os outros dois centrais ou Xabi — a quem Pizarro

vigiava como se fosse um “Totti virtual”. Pep tinha claro como a Roma

iria jogar e, portanto, também sabia o que pretendia. A conversa do dia

seguinte foi interessante.

Às seis da tarde do dia 21 de outubro, Pep indicou a posição de Totti

no vídeo que Carles Planchart tinha preparado:

— Olhem, rapazes: Totti vai vigiar Xabi, mas não conseguirá fazer

isso durante muito tempo. Então, Xabi, não se preocupe em excesso.

Totti apertará você nos primeiros dez minutos e logo o deixará

totalmente livre. Sairemos com a defesa de três: Benatia na direita,

Boateng no meio e Alaba na esquerda. David, você só será defensor

quando nos atacarem; terá de se ocupar da velocidade de Gervinho. Mas

no resto do tempo, você será um meio-campista a mais. Ou seja, nós

vamos sair com a defesa de três, mas o terceiro defensor será Xabi, ainda

que pareça ser Alaba. Ao lado de Xabi, Lahm formará um doble pivote.

Philipp: se marcarem Xabi, você manda, você organiza, você sai com a

bola. Robben e Bernat, ocupem-se dos lados. De todo o corredor externo.

Ou seja, vocês serão extremos laterais. Arjen, como no ano passado

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contra o Manchester United, lembra-se? Seja prudente nos esforços, não

se canse muito rápido. Ataque, mas com um olho nas costas para ajudar

a defesa. Acima, Götze na mediapunta, mas caindo mais para a esquerda.

Müller e Lewandowski, movam-se e movam-se. Movam-se muito,

esvaziem o centro do ataque para que eles não saibam quem marcar. E

pressionem. Os defensores deles sofrem quando são pressionados, não

saem fácil de trás se estão sendo mordidos; então pressionem, não os

deixem respirar. Vocês roubarão a bola com facilidade e pum: faremos

muitos gols hoje.

O plano era claro, mas Pep acrescentou um pouco mais:

— Prestem atenção. Acontecerá o seguinte: eles vão acreditar que

Totti marcará Xabi Alonso, mas ele logo vai deixá-lo jogar. Lahm estará

bastante livre e, sobretudo, Alaba criará superioridade pela esquerda,

onde não o esperarão porque, sendo lateral esquerdo, ele não deveria

subir. Mas David subirá e criaremos uma vantagem tremenda na

esquerda. Vejam, Xabi sairá com a bola até o centro do campo sem

problema e teremos uma superioridade extraordinária na esquerda com

Bernat, Alaba, Götze e Lewandowski no mínimo. Müller, aproxime-se

deles, distancie-se dos centrais. O que acontece então? Construiremos

todo o jogo pela esquerda e os centrais deles não terão referência. Na

direita, só estaremos com Lahm e Robben, e parecerá que por ali não

somos perigosos. E vamos criar o perigo na direita! Da esquerda para a

direita! Eles não vão conseguir tapar esse buraco…

O Bayern aterrissou no Olímpico de Roma como um avião. Em

menos de meia hora, já tinha arrasado o time local, que aos 35 minutos

perdia por 5 × 0. Nos nove jogos anteriores, a Roma só tinha sofrido

quatro gols, mas hoje já tinha levado cinco em pouco mais de trinta

minutos… A pressão alta do Bayern foi demolidora. Müller e

Lewandowski bastavam para subjugar toda a defesa romana e o time de

Rudi Garcia não conseguia afastar a bola nem cruzar o centro do campo.

A posição de Robben foi fundamental, assim como o abandono de

Totti na marcação de Xabi. Tudo o que fora previsto se cumprira: o

Bayern se alinhava em um 3-1-4-2, que se modulava num 3-4-3; Alaba

somava-se ao meio de campo, Xabi saía facilmente com a bola, o jogo

transcorria bem na faixa esquerda graças ao êxito de Götze, cujos

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movimentos entre as linhas inimigas eram esplêndidos; Bernat era o

homem livre em cada jogada junto com Götze e Lahm; e, finalmente, as

ações mais perigosas acabavam no lado oposto, onde Robben esperava

para executar a Roma. O quarto gol, marcado aos 29 minutos pelo

holandês, foi um reflexo da conversa de Pep, que levou as mãos à cabeça

quando Lewandowski traçou uma diagonal deliciosa às costas dos

zagueiros italianos, e Robben chegou na corrida para aumentar o

marcador.

Se um ano antes o Bayern tinha construído uma obra-prima no

Etihad Stadium de Manchester, contra o City — aquela partida em que se

viu a apoteose do rondo,* com a lendária sequência de passes que somou

três minutos e 27 segundos —,agora havia esculpido outra obra de arte

na capital da Itália, na doce e sensível Roma. O time de Pep deixava outro

jogo mágico para as videotecas.

Com sua contundência habitual, Thomas Müller resumiu, ao sair do

chuveiro, o que tinha acontecido: “Guardiola nos ensinou exatamente

onde estavam as fraquezas da Roma”.

No dia seguinte, Pep está jantando sozinho em casa porque Cristina

e os filhos viajaram para Barcelona aproveitando a semana festiva de

outono em Munique, e os outros membros da comissão técnica tinham

compromissos familiares. Embora veja pela televisão o que se passa no

jogo entre Bayer Leverkusen e Zenit (2 × 0), ele não presta atenção

excessiva e reflete sobre o ocorrido no Olímpico de Roma, esse 7 × 1

apoteótico que deixou o futebol europeu boquiaberto:

— Estou muito contente pelo jogo de ontem: estamos jogando

muito melhor do que no ano passado. Já viu os jogos de posição às

segundas-feiras: são incríveis, tac-tac-tac. Os rapazes estão jogando

como numa fábula, já não têm de pensar nos movimentos e encontram

homens livres por todas as partes. Xabi nos deu vida, mudou o rosto do

time e, graças à presença dele, podemos fazer coisas como pressionar a

Roma e causar estrago nos seus pontos fracos.

Pep se serve de uma taça de vinho branco e continua:

— Eu gosto de jogar no 3-4-3. Ontem desfrutei demais jogando

assim em Roma. Benatia passava pelo extremo que caía ao seu lado,

Alaba pelo oposto e Boateng varria tudo, com a vantagem de que Xabi

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estava sempre atento para se meter no meio e marcava Totti. E Lahm e

Götze sempre ficavam livres entre as linhas. Foi uma delícia jogar assim.

E então ele oferece outra opinião sobre a defesa de três:

— Lembre que quando passamos a nos defender com quatro, eles

criaram três ocasiões de perigo, porque perdemos o controle no centro

do campo. É mais seguro defender com três do que com quatro!

Outro jogador que domina os pensamentos de Guardiola é David

Alaba:

— Está impressionante. Joga de central e, porra!, logo você o vê

como extremo esquerdo. Terminou como atacante em alguns momentos.

Mas aí eu penso: deixe, deixe que ele voe, não lhe corte as asas, não

limite o jogador…

* No Brasil, a chamada “roda de bobinho”. (N. T.)

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CAPÍTULO 3

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A ALEMANHA MODIFICOU PEP

Encontre o que ama e deixe que isso mate você.

CHARLES BUKOWSKI

A Alemanha acelerou o amadurecimento de Guardiola, que, se ainda conserva

seus traços principais, modificou outros e incorporou alguns novos, tanto no

âmbito puramente do jogo como no da gestão ou no pessoal. A experiência

alemã lhe trouxe benefícios muito importantes, fazendo-o um treinador melhor,

e este amadurecimento é o que permite entender por que Pep aceitou o grande

desafio de Manchester.

Digamos como premissa básica que seus fundamentos se mantêm sem

nenhuma mudança. Pep continua sendo, sobretudo, um competidor nato que

jamais se permite um respiro e também não o concede a seu time: “Eu não jogo

pelo estilo, mas para ganhar”.

É o mesmo insatisfeito de anos atrás, que nunca se sente completamente

contente com o trabalho realizado, porque, em seu processo de autocrítica,

sempre observa defeitos e pequenos erros ou áreas em que pode fazer algo

mais — e melhor. Conserva o gosto pelo detalhe: é perfeccionista e, por

conseguinte, obsessivo na busca de correções e aperfeiçoamentos. Sua partida

perfeita sempre está por ser disputada. Conserva sua alma dupla de homem

emocional e racional ao mesmo tempo, o que, em certas ocasiões, oferece uma

imagem contraditória na aparência, pois ele nem sempre maneja essa dicotomia

com equilíbrio. Algumas vezes se mostra extraordinariamente frio; outras,

excepcionalmente emotivo. Como treinador é um resultadista romântico. Ainda

que não haja a menor dúvida de que o pragmatismo sempre se impõe em seu

interior, ele jamais renuncia ao outro objetivo: “O que conta de verdade é a

emoção que provocamos nas pessoas”.

Entre os traços que mudaram em Pep durante sua etapa em Munique,

aparecem dois que ele maneja em proporções similares, embora sejam

antagônicos: continua temendo os rivais, mas é muito mais atrevido,

provavelmente porque enriqueceu seu arsenal com os conceitos que aprendeu.

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O choque entre culturas futebolísticas distintas, a dele e a majoritária no jogo

alemão, terminou sendo positivo.

Paco Seirul·lo, diretor de metodologia do Barcelona, explica as razões pelas

quais um choque cultural induz melhorias em quem o vive: “No início, podem

ter problemas, mas o choque acaba sempre sendo positivo porque essas

pessoas acrescentam elementos de interação distintos dos que já tinham, sem

saber. Possuímos os neurônios-espelho, que nos tornam capazes de fazer o que

o outro faz; e, em função do que faz o outro, eu me comporto de uma maneira

ou de outra. Antes, chamávamos isso de aprendizagem por imitação, mas hoje

dizemos que os neurônios-espelho são capazes de reproduzir tarefas. Ou seja,

que somos capazes de imitar, mas isso demora certo tempo. Se você vê que

todos os jogadores do seu time, quando dominam a bola, dão um chutão para o

ataque, acaba pensando que jogar futebol é mandar a bola ao ataque com

chutões. Mas se vê que seus companheiros giram e conduzem a bola e dão dois

ou três toques, ou passam a bola entre eles, como se estivessem esperando para

ver o que acontece, você não vai pensar que é preciso dar chutões para a frente,

e optará por conduzir dois ou três metros, parar e aí passar a bola a alguém que

tenha a camiseta da mesma cor que a sua. E se seguimos progredindo por esse

caminho, quando vê alguém que se coloca num determinado espaço a fim de

atrair jogadores para que você tenha a oportunidade de jogar com ele, e ele por

fim lhe devolve a bola, então você percebe que há um espaço mais amplo que

favorece sua atuação e, assim, avança no aprendizado. E enquanto vão se

executando as intermediações de jogo, que são intermediações relacionais,

aparecem conceitos de jogo distintos e, claro, são enriquecedores”.

Depois da imersão alemã, Pep possui mais ferramentas em seu catálogo e

encontrou gosto pelos desafios. Já mencionei a resiliência como um atributo que

o fortaleceu; e a adaptabilidade como um traço novo que brotou em sua

personalidade. Tudo isso o fez mais flexível. Ainda que, como sinal de sua

identidade, Pep continue sendo paixão, paixão e paixão.

PAIXÃO OU ENERGIA

Munique, 19 de abril de 2016

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O Bayern acaba de eliminar o Werder Bremen e consegue sua passagem à

final da Copa da Alemanha. O rosto do treinador é o de alguém esgotado, o

que me faz ponderar com Estiarte, seu grande amigo, se não seria mais

eficaz se Guardiola economizasse energia em sua maneira de treinar e

conceber o futebol. Talvez seja mais rentável desgastar-se menos,

entregar-se menos, esgotar-se menos, com o objetivo de durar mais.

Estiarte é categórico:

— Na equação entre paixão e energia, prefiro que ele não afrouxe nem

um milímetro a pressão, ainda que isso o leve a situações como a desses

dias, em que está vazio e esgotado. Mas, se ele começar a poupar energia,

talvez perca a paixão, e isso o levaria a não ser Pep. Não, não pode nem

deve mudar.

Há quatro atributos nos quais convém entrar com detalhes, porque

sofreram modificações durante os três anos em que Pep viveu na Alemanha:

• o foco no trabalho;

• o ecletismo ideológico;

• a firmeza de critério; e

• a capacidade de inovação.

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3.1. O FOCO NO TRABALHO

A arte de reger consiste em saber quando largar

a batuta para não atrapalhar a orquestra.

HERBERT VON KARAJAN

Em sua concepção de trabalho, duas constantes poderosas têm influência

sobre Pep: a formação dada por seus pais e sua própria maneira de se ver, como

uma pessoa sem talento excessivo, carência que ele pretende compensar com

muito esforço (o que sem dúvida pode surpreender o leitor).

A seguinte afirmação do filósofo espanhol José Antonio Marina coincide

com a ideia de Pep sobre o trabalho: “O talento não é um dom (coisa), mas um

processo (aprendizado), e não está no princípio, mas no final da educação e do

treinamento”.

Diz Guardiola: “O que não se treina, se esquece”. Portanto, a base do

rendimento é o treinamento e o trabalho. Não tanto do ponto de vista

quantitativo, mas nos aspectos da qualidade e do sentido dele: “O conceito é

mais importante do que o físico”. O treinador transmite a ideia com a palavra,

mas o jogador a assimila com a prática reiterada, dirigida e corrigida.

“Treinando, convencemos os jogadores dos conceitos táticos”. A assimilação

plena da ideia se adquire em contextos que se aproximam da competição:

“Aprende-se o conceito tático jogando, porque o real é o jogo”. Ao final, a

essência da transmissão de conceitos e ideias de jogo possui uma condição

essencial de escolha. Não se trata de repetir mecanicamente algumas ações, mas

de compreender a razão de cada uma delas: “O treinamento consiste em que os

jogadores tomem decisões”, define Guardiola. E não basta dizer e treinar; é

preciso viver tudo isso como experiência: “Para aprender, é preciso

experimentar. Não basta que alguém lhe diga. Para corrigir verdadeiramente

um defeito, primeiro é necessário sofrer suas consequências”. O erro e a derrota

são grandes estimulantes da correção e do progresso.

Esses critérios exigem do treinador uma grande quantidade de trabalho

dedicado ao treinamento, mas o bem mais escasso de um time de elite é,

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precisamente, o tempo. E sem tempo não há trabalho prévio possível. “Não há

nenhuma fórmula secreta. Você ganha por concentração, esforço e atenção a

pequenos detalhes”, diz Steve Kerr, o técnico do Golden State Warriors. Mas

como se resolve esse dilema aparentemente insolúvel, esse embate entre a

escassez de tempo e a necessidade de trabalhar nos detalhes? Mudando a

orientação do foco do treinador. Otimizando seu tempo e esforço.

Paco Seirul·lo me ajudou a compreender essa reorientação seletiva no foco

de trabalho de Guardiola: “Antes se jogava uma partida por semana e, portanto,

cinquenta partidas por ano. Agora são duas ou três por semana, resultando em

até setenta partidas. Isso desgasta. Esse grande compromisso do treinador o

obriga a deixar de ‘estar’ no treinamento e se dedicar a preparar a competição.

Essa é uma mudança de prioridades que começamos a resolver quando Pep

ainda estava no Barcelona: Pep desaparece, entre aspas, durante a semana; vai

ao treinamento quase sem exigência emocional em relação ao que será

trabalhado, porque tudo já está desenhado e são os demais (o treinador

assistente, o preparador físico, o analista de vídeo) que preparam o dia a dia. Ele

está presente durante o treinamento de uma hora e meia e o dirige, claro,

corrigindo erros de execução. Mas quando o treinamento termina, ele vai para o

que é realmente substancial: preparar o jogo seguinte. Na véspera e no dia do

jogo, ele se submete a um grande estresse de trabalho com os jogadores — um

dia com a análise e outro com a direção que quer impor à partida —, mas no

resto dos dias está mais tranquilo, vendo jogos de seu time e dos rivais. Não está

ocupando sua energia com a preparação dos treinamentos. Essa é uma

dinâmica que começou no Barcelona e foi aperfeiçoada no Bayern. E é a

dinâmica imprescindível para um treinador com tantos jogos por ano”.

Essa foi uma modificação gradual em Guardiola. Pela primeira vez em sua

carreira, ele deixou de dirigir treinamentos em três ocasiões durante os últimos

meses em Munique. Foram três sessões de pouca relevância, sempre em dias

pós-jogo e, portanto, de regeneração. Domènec Torrent comandou essas

sessões, enquanto Pep permaneceu na sua sala em Säbener Straße preparando

o jogo seguinte por intermédio da análise do rival. Aconteceu em 3 de abril,

domingo, antes da visita do Benfica para jogar as quartas de final da Champions;

repetiu-se em 20 de abril, uma quarta-feira, e voltou a se passar noutro

domingo, 1o de maio, antes de cada disputa de semifinais contra o Atlético de

Madrid. Pep passou essas manhãs preparando o plano estratégico contra esses

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rivais: o plano de jogo, os vídeos dos adversários e as instruções que daria a

seus jogadores.

DEPURAR A ANÁLISE

Munique, 1º de maio de 2016

Em certo momento no jantar, Guardiola diz em voz baixa:

— Estou bloqueado. Pensei tanto no jogo, sobre como atacar o Atlético

e como nos defendermos, que estou saturado e bloqueado. Agora preciso

depurar tudo isso e deixar apenas o essencial. Dormir, refrescar a cabeça,

limpá-la e que só fique o suco: as duas ou três ideias fundamentais.

Na manhã seguinte, o bloqueio tinha desaparecido. O treinador se

mostra ágil e revigorado. Màrius, seu filho, joga bola no gramado com Leo,

filho de David Trueba. Além de amigo íntimo de Pep, cineasta e romancista,

Trueba é um homem culto que gosta de se aprofundar nos processos

criativos, seja qual for o âmbito. Ele sabe que Pep passou três dias seguidos

“carregando o software”, estudando variantes e modos de atacar o Atlético

de Madrid, e nos explica a razão para a transformação tão radical de Pep

em tão poucas horas:

— Pep segue um processo de aproximação em relação ao jogo que

lembra muito o das composições de Bob Dylan. Preenche páginas e páginas

para depois deixar somente os versos essenciais. Primeiro escreve muito,

depois só deixa a essência.

A análise é um ato solitário de criação. No domingo pela manhã, a dois

dias da semifinal da Champions, tudo já se reduziu a uma só dúvida:

— Benatia ou Boateng? Os outros dez estão claros.

Ele também está ocupado em encontrar o ponto de equilíbrio que o

time necessita durante o jogo:

— Só precisamos de um gol, mas se exigirmos muito controle, muita

paciência e muita tranquilidade dos nossos jogadores, talvez eles fiquem

confusos. E se pedirmos energia e eletricidade, talvez seja suicídio. Não é

simples encontrar o equilíbrio entre ser frio e paciente e ser enérgico e

ofensivo. Temos de encontrar a dose justa de cada coisa.

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Excluindo-se essas três sessões em que Pep se ausentou, o procedimento

nos dias restantes é o seguinte: a comissão técnica prepara a base do

treinamento. Domènec Torrent e Lorenzo Buenaventura elaboram o conteúdo

básico da sessão de acordo com as indicações estratégicas ordenadas por

Guardiola, que por sua vez estão relacionadas aos informes prévios preparados

por Carles Planchart, o responsável pelas análises dos rivais — um colaborador

fundamental, dado que as sessões se orientam sempre de maneira muito

específica, tendo em vista o oponente e a abordagem tática que Pep quer dar a

seu time em cada encontro. Com tudo isso, Torrent e Buenaventura apresentam

diariamente a Pep uma sessão de trabalho específica para sua aprovação ou

modificação. Eles se reúnem uma hora e meia antes e discutem o conteúdo da

sessão, tendo em conta as circunstâncias concretas de cada dia: climatologia,

jogadores lesionados ou com dores, atletas que se incorporam ao grupo,

necessidade de fazer rodízios ou treinos com cargas especiais para algum

jogador, e também sentimentos e emoções pessoais ou coletivas. Dessa reunião

surge a sessão definitiva, que é dirigida pelo próprio Guardiola, mas o treinador

já tinha sido liberado de todo o desgaste prévio da preparação do treinamento.

Ele o aprova ou modifica, e o dirige com essa energia transbordante que o

caracteriza, e efetua todas as correções que acredita serem oportunas, mas só

investirá uma hora e meia de seu tempo diário nessa tarefa, para poder dedicar

toda a sua concentração ao trabalho tático específico. A sessão termina sempre

com outra reunião da comissão técnica ainda no gramado, para avaliar como

transcorreu o treinamento e deixar estabelecidas as bases para o dia seguinte.

Pep pode dedicar o tempo restante da jornada a seu outro grande objetivo,

junto com o aperfeiçoamento tático: a preparação detalhada do próximo jogo.

A busca por maior eficiência energética não foi um objetivo individual de

Guardiola, mas de sua comissão técnica, o que também resultou no progresso

de todos eles. Domènec Torrent compartilhou o banco cerca de duzentas vezes

com Pep, realizou mais de duzentas palestras táticas e preparou inúmeras

jogadas de bola parada na companhia de Carles Planchart, que analisou mais de

1150 jogos de equipes rivais para extrair seus pontos fracos, enquanto Lorenzo

Buenaventura desenhava infinitas tarefas técnicas, táticas e físicas nos 835

treinamentos que Pep comandou no Bayern. Eles também deram um passo

adiante graças ao que experimentaram em Munique.

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O CRITÉRIO DOS RODÍZIOS

Munique, 14 de agosto de 2015

A atribuição dos minutos de jogo a cada atleta não é produto de mero

capricho. Obedece a uma estratégia que Pep detalha durante o jantar no

restaurante da Allianz Arena, pouco depois de vencer na estreia da liga (5 ×

0 sobre o hsv Hamburgo):

— Por exemplo, Xabi precisa ter um papel como o de hoje: jogar mais

ou menos sessenta minutos para organizar o time e cansar o rival. E depois,

ao banco para descansar. Precisamos de Xabi com muito vigor para abril e

maio, para que não seja como na temporada passada. Também é necessário

administrar a dupla Lahm-Rafinha de maneira parecida. Rafinha é

importantíssimo para o time e o farei jogar muitas vezes como hoje (os

últimos 35 minutos). Quando o rival já está frouxo e grogue, Rafinha nos

traz velocidade e astúcia. Assim que ele entra em campo, Philipp [Lahm]

sobe um pouco e vai para o meio, e os dois causam muitos estragos no

adversário. Mas, antes, é necessário que Lahm tenha desgastado os rivais

desde o primeiro minuto, que os faça correr e seja intenso. Para que depois

entre o Rafinha e finalize os adversários com sua eletricidade.

As partidas são jogadas com catorze atletas e a missão de cada um

deles, assim como os minutos que terão, não são fruto de casualidade; ao

contrário, obedecem a um plano premeditado.

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3.1.1. A PAIXÃO PELO DETALHE E PELA PREPARAÇÃO

Tenha cuidado com as coisas pequenas. Sua

presença ou sua ausência podem mudar tudo.

HAN SHAN

Essa administração das energias do treinador não significa que Guardiola

tenha reduzido sua paixão obsessiva pela preparação e pelo detalhe. Ele apenas

ajustou melhor o foco em relação às prioridades da semana, com dedicação

exaustiva à análise e aos trabalhos prévios de preparação tática para cada

partida. Conserva sua vocação de artista pontilhista e pretende que cada jogo se

assemelhe a um trencadís de Gaudí. (O trencadís é um mosaico artístico formado

por milhares de pequenos fragmentos de cerâmica.) Nenhuma pedra pode

faltar, por mais irrelevante que pareça, ou o trencadís perderá sua beleza e

harmonia artística.

Um exemplo concreto e real nos ilustrará essa paixão pelo detalhe e pela

preparação minuciosa. Estamos em 18 de maio de 2016, uma quarta-feira, no

campo n. 1 de Säbener Straße, a oitenta horas da final da Copa da Alemanha,

que será disputada no sábado, em Berlim. Exceto Javi Martínez, que corre pela

primeira vez depois da leve operação que sofreu — o que deixa Guardiola sem

seu central mais consistente —, estão presentes todos os jogadores que

protagonizaram o sprint final da temporada, incluídos Xabi Alonso e Mario

Götze, ambos infiltrados com calmantes por causa de fratura nas costelas. No

auditório interior do vestiário, Guardiola detalhou a eles o fator que considera

fundamental para a final contra o Borussia Dortmund: Thomas Tuchel jogará no

erro dos bávaros, buscando que a organização defensiva do Bayern fique em

igualdade numérica com o ataque do Dortmund e que isso aconteça longe do gol

de Neuer, com muitos metros de gramado para correr. E na corrida, o BVB é

superior.

Assim, Pep desenha um plano estratégico que vai revelando a seus

jogadores em pequenas doses. Na quarta-feira, ele passa o conceito-chave que o

Bayern deve respeitar se quiser ganhar: é necessário manter a superioridade

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numérica na defesa durante todos os momentos da final. Aconteça o que

acontecer.

Sobre o campo de treinamento, Pep se converte em uma torrente de

energia. Transmite a seus jogadores todos os detalhes do que imagina que pode

acontecer durante o jogo, tenta explicar o que o rival fará e como seus jogadores

devem responder a esses pontos fortes, minimizando-os e aproveitando esse

conhecimento para superar o oponente. São atividades que se dão a portas

fechadas, sem a presença de ninguém, nem sequer os habituais amigos ou

familiares de jogadores que são admitidos em outras sessões de treinamento

menos importantes: nenhum general mostraria sua estratégia ao inimigo antes

da batalha. São atividades breves, de dez ou quinze minutos de duração, mas de

uma intensidade incrível.

A primeira é um exercício geral em que Thiago vigia um Gonzalo Castro

virtual, e Müller um Julian Weigl de mentirinha. Dois jogadores juvenis ocupam

a posição dos jogadores do Dortmund. Sem parar de dar ordens, envolto em um

turbilhão de gestos e gritos, Pep força Müller a fechar os corredores que se

apresentam ao Weigl fictício, enquanto instrui Lewandowski e Douglas Costa a

impedir que Hummels (representado em campo por Taşçi) possa fazer o passe

longo com facilidade. Ele complementa o plano com instruções a Thiago:

— Thiago, em cima de Castro! Thiago, em cima de Castro, não deixe que ele

se vire!

A atividade dura quinze minutos e é uma prévia do treinamento

propriamente dito, que acontece na sequência e consiste num exercício de vinte

repetições de força explosiva, seguida de rondos e um longo jogo em meiocampo

disputado por três equipes de seis jogadores. Depois, se desenvolve

outra atividade tática, mas unicamente para o bloco defensivo: só Vidal e os

defensores. Xabi Alonso e Götze já se retiraram da sessão, doloridos, e seus

rostos denotam que não poderão jogar a final.

Novamente protegidos dos olhares indesejados, os integrantes da

organização defensiva dedicam os dez minutos seguintes a outro ponto do

plano estratégico: neutralizar Aubameyang e manter a superioridade numérica

a qualquer preço.

São dez minutos fascinantes, que mereciam ser vistos por qualquer

apaixonado pelo futebol, se não estivesse em jogo um título tão importante

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como a Copa da Alemanha. É Guardiola em estado puro: ele quer que Arturo

Vidal, o menos ortodoxo de seus meios-campistas, alcance o rigor de um

Busquets ou um Xabi Alonso e mantenha fixa a posição de meio-campista

central que deverá ocupar e que será pivô de toda a organização defensiva. Do

acerto de Vidal dependerá grande parte do êxito na final. Pep pede aos centrais

que fiquem muito abertos. Boateng já está acostumado, mas Kimmich ainda

hesita:

— Josh, para a linha lateral! Vai, sem medo, para a lateral!

O titubeio de Kimmich é compreensível. Como defensor central do Bayern,

o treinador o posiciona de início na linha de cal, como se fosse lateral direito,

trinta metros à frente de Neuer e 35 metros à direita do eixo do campo. O jovem

jogador pensa que será impossível voltar a tempo para sua posição se ocorrer

algum incidente que o obrigue a isso, mas o treinador é irredutível em suas

ordens. Pep o quer longe, bem aberto na direita, como Boateng na esquerda. E

os laterais, Lahm e Alaba, estão quase no centro do campo. No meio de todos

eles, reina Vidal. Os ensaios procuram coordenar dois efeitos: a vigilância férrea

de Vidal a Aubameyang, se este se soltar de sua posição, e o retorno rápido dos

zagueiros à área em caso de contra-ataque.

Pep se faz de Vidal. Coloca-se em sua posição, explica os detalhes, como se

mover e até onde ir em função do que fizer o centroavante do Dortmund, que é

representado por outro jogador juvenil. Se o falso Aubameyang se move para

fora, Vidal não o segue: Kimmich ou Boateng se ocuparão dele; mas, neste caso,

Vidal deve ocupar o papel do central que se desloca.

— Arturo, para a direita! Arturo, não siga Aubameyang!

E Vidal se corrige. Se Aubameyang avança pelo centro, Vidal então o marca

de perto e libera seus centrais. O exercício se repete, em todas as formas e

variantes possíveis, com Pep aos gritos, dominado por esse vigor especial que o

possui nesses momentos. Para imaginar como são esses minutos, pensem no

Guardiola que todos vemos durante um jogo e multiplique-o por dez. É um

vulcão de energia. Ele consegue que seus jogadores compreendam a essência

tática do que deverão implementar no sábado, em Berlim: Vidal deve manter a

posição, sem se distanciar do ponto ao redor do qual gira toda a organização;

deve atuar diante de Aubameyang de duas maneiras opostas, de acordo com o

movimento que o centroavante fizer em cada ação; e os quatro homens da

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defesa têm de se abrir como uma rosa na fase de início e se fechar como um

punho no caso de um contra-ataque, na máxima velocidade possível e

assumindo todo o risco de que sejam capazes, mas com um fundamento que não

é negociável: poderão atacar como quiserem e puderem, mas sempre

conservando a superioridade numérica na defesa.

Este é o Pep Guardiola mais autêntico, o que mostra toda a sua energia

como treinador.

O plano estratégico será complementado nos dias seguintes com novas

atividades, com mais explicações, palestras e vídeos, até culminar no sábado à

tarde, por volta das 17h30, no hotel Regent de Berlim, quando Pep vai expor em

um quadro-negro três esquemas que detalham a forma necessária para atuar

em função de como o Borussia Dortmund jogar. O Bayern não sabe qual dos três

esquemas o Dortmund escolherá, entre os que estão sendo usados nos últimos

meses; mas isso não importa, porque para cada um há uma resposta preparada

e todos os jogadores de Guardiola conhecem nos mínimos detalhes o que devem

fazer se seus rivais jogarem de um ou outro modo. Refiro-me não só a como eles

devem se distribuir, mas como pressionar e a quem, para que lado do campo

devem orientar a saída do rival e como realizar as coberturas, os apoios e as

compensações em cada caso. Esses esquemas não são mais do que o reflexo

gráfico e conclusivo de todas as atividades em que o time trabalhou desde terçafeira

de forma exaustiva, mas hoje eles o veem em sua integridade. É um plano

que expressa todas as variantes possíveis que Tuchel pode usar e todas as

medidas que os homens de Pep devem aplicar. Variantes estudadas, ensaiadas e

aprendidas com ênfase.

Durante a final, eles quase não vão precisar de instruções. Lahm, Kimmich,

Boateng e Alaba notam de imediato os sistemas distintos que o Dortmund vai

utilizando e as mudanças que se sucedem, e adaptam-se instantaneamente à

nova situação, sempre com uma leve indicação do capitão. Apenas Vidal precisa

de algumas correções vindas do banco; Pep, gritando, se encarrega de recordar

ao chileno que ele deve manter sua posição acima de qualquer outra prioridade.

Os planos são cumpridos rigorosamente.

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3.2. O ECLETISMO IDEOLÓGICO

Quem só busca a saída não entende o labirinto;

e, mesmo que a encontre, sairá sem ter entendido.

JOSÉ BERGAMÍN

Anteriormente, já apontei como foi relevante Guardiola incorporar novos

conceitos (alguns deles aparentemente pouco convencionais) em seu catálogo

de fundamentos do jogo. É importante conhecer o processo mental que

conduziu Pep até esse ecletismo ideológico.

Para isso, o leitor deve me permitir retroceder até fevereiro de 2014.

Sentado em seu escritório na Ehrengust Straße, perto do rio Isar, na capital

bávara, ouço Roman Grill com atenção. É o representante de Philipp Lahm, o

capitão do Bayern, mas sobretudo ouço-o falar sob outro prisma: Grill é sem

dúvida a mente mais lúcida de tantas que conheci no futebol alemão. E naquele

distante inverno de 2014, quando o novo time de Pep ainda se encontrava nos

primeiros passos de seu caminho em Munique, ele se expressou do seguinte

modo: “Estou absolutamente seguro de que Pep Guardiola não anda pelo

mundo pensando ‘Vou fazer cópias do Barça’. Não, em seus primeiros meses no

Bayern, já vimos que não é assim. Ele analisa muito bem seu time e os jogadores

que tem, e cria o tipo de jogo que considera oportuno para esse time. Tenho a

sensação de que Pep tem em sua mente um plano para desenvolver a carreira e

o Bayern de Munique é um primeiro passo para poder dizer ao mundo: ‘Olhem,

eu posso trabalhar em qualquer lugar’. Nós o veremos em sua verdadeira

dimensão nos próximos dois anos. Não sei como será porque ele

frequentemente realiza experimentos táticos com o time e não sei qual será a

linha tática adotada. Sejam quais forem as razões, ele de vez em quando faz

experimentos, mas tenho certeza de que não quer fazer uma cópia do Barça.

Antes de chegar ao Bayern, ele analisou muito bem onde teria as melhores

possibilidades de desenvolver um time ganhador e viu que esse time tem muita

técnica, mas também muita entrega e força, com o que ele teria todas as

condições de se mostrar ao mundo como um técnico que pode trabalhar em

qualquer lugar”.

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Esta teria sido uma reflexão muito apropriada no verão de 2016, uma vez

conhecida a experiência em Munique, mas é surpreendentemente lúcida,

porque seu autor a expressa no inverno de 2014, quando, naquele momento, o

que todos acreditávamos era que Pep ia pelo mundo doutrinando de acordo

com seu dogma futebolístico e que era praticamente um fundamentalista de

suas ideias.

A metamorfose de Guardiola tornou-o mais radical, mas ao mesmo tempo o

fez se desprender do dogma. Ele é mais cruyffista no sentido dos fundamentos

do jogo (bola, passe, posição, ataque), mas se distanciou do dogma imutável. Em

Munique, disputou a metade dos 161 jogos com quatro ou cinco atacantes;

defendeu com dois jogadores, com três, quatro e também com cinco; mas o fez

com quatro centrais, com três, com dois, com um e até sem nenhum; e, em certa

ocasião, com quatro laterais! Empregou 23 módulos de jogo diferentes,

chegando a utilizar cinco meios-campistas e, em várias ocasiões, só um; foi

simétrico e totalmente assimétrico; jogou passando a bola, mas também jogou

mandando-a aos extremos para que cruzassem, com a perna que lhes é mais

natural, para o cabeceio dos centroavantes. Foi profundamente guardiolista e,

ao mesmo tempo, rompeu com o que o distinguiu no Barcelona.

JOGAR COM CINCO ATACANTES

Munique, 13 de março de 2015

— Olhe para mim, o defensor dos meios-campistas, jogando com cinco

atacantes! A vida toda defendendo que tinha de jogar com os meioscampistas,

que a chave está neles, e agora minha força reside nos

atacantes… Mas, veja, não é colocar atacantes por colocar. Não estamos no

dia do jogo com o Real Madrid (0 × 4). Naquela vez joguei com quatro

atacantes, mas com dois laterais abertos e essa foi a cagada, porque

defendíamos com dois meios-campistas centrais e dois zagueiros

centralizados, e assim é impossível cortar os contragolpes. Agora é

totalmente diferente, porque a chave está nos dois laterais, que quando

têm a bola à sua frente se fecham junto com o meio-campista central e

formam uma linha de três que nos protege dos contra-ataques. Com este

salva-vidas, sim, é possível usar cinco atacantes, porque eles têm as costas

bem cobertas.

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Inevitavelmente, Robben e Ribéry aparecem no papel de “interiores”:

— Bem, além disso, dois desses atacantes vão jogar por dentro, como

meias interiores. Os que melhor driblam, que são os extremos, Robben e

Ribéry. Só que em vez de os mandarmos para os lados, com as limitações

da linha lateral e para enfrentar o lateral e o interior rivais fazendo o dois

contra um, vamos colocá-los por dentro; pois, se driblarem o meiocampista

central rival, estarão cara a cara com o gol.

— Mas você era um fundamentalista dos meios-campistas — repito a

ele. — Você queria jogar com mil meios-campistas…

— Sim, fui, mas estão me convertendo em um técnico que joga com

cinco atacantes. É um fenômeno curioso que aprendi aqui e sempre vou

dever isso à Alemanha. Ainda que, bem, na Champions talvez joguemos a

partida fora de casa com muitos meios-campistas, e, em casa, com muitos

atacantes. Fora, tentaremos controlar por intermédio do passe; e em casa

nos soltaremos, como contra o Shakhtar (7 × 0).

O time que deveria ser dos meios-campistas é um time de atacantes e

laterais…

— Além disso, os laterais também podem atacar, mas com moderação,

quando a bola estiver à frente deles e houver pouco risco de perdê-la.

Nesses casos, o ideal é que possam cruzar a bola, porque teremos cinco

caras que vão finalizar de todas as maneiras possíveis. Mas cuidado com os

nomes que damos a cada um: Lahm é lateral? Por quê? Por que não é um

meio-campista? E Alaba? E Rafinha? Robben é atacante? Por que não é um

meio-campista? Talvez ele seja um meio-campista!

No meu entender, essa é a mais significativa transformação que a

Alemanha provocou em Guardiola. O abandono do dogmatismo e a

incorporação de conceitos alheios lhe conferem maior flexibilidade, sem que

tenha abandonado nenhuma de suas ideias.

Em 2014, Grill apontou nessa direção: “Quando o Barcelona e Pep

Guardiola se juntaram, vimos um futebol genial. Também conhecemos José

Mourinho e não importa onde ele vá, ao Chelsea, à Inter, ao Porto… Com

Mourinho, o jogo é sempre idêntico: baseado na organização tática defensiva.

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Mas agora ainda não sabemos com exatidão como é o futebol de Guardiola.

Ainda não o conhecemos em toda a sua magnitude”.

Ou seja, há mais de dois anos, Roman Grill colocava em questão como era o

verdadeiro futebol que Guardiola pretendia pôr em prática. Recusava que Pep

fosse unidirecional em sua concepção de jogo e observava que o treinador

catalão abrigava o desejo de abrir sua mente a novos conceitos e incorporá-los a

seu catálogo. Eu perguntei se era possível que um treinador se mantivesse no

topo mundial com um estilo eclético de jogo, ou seja, com uma combinação de

vários estilos de jogo diferentes, ou se era mais fácil fazê-lo com um único

modelo. E ele respondeu assim: “No fundo, e ainda que pareça o contrário, a

filosofia de Guardiola não é tão rígida como a de Mourinho. Dizemos que ele é

mais artístico em seu jogo, mas também é mais livre. Pep tem seus princípios de

jogo e, com eles, sua mente analisará qual equipe se adaptará bem e permitirá o

jogo de toque, tendo a superioridade no centro do campo. Pep não vai para um

clube no qual deva se adaptar completamente à equipe que treinará: vai para

onde possa implantar seus princípios. Empregará o que encontrar, porque não é

tão rígido a ponto de não usar os recursos que têm à mão, mas imporá seus

critérios de jogo. E também acho que ele veio a Munique com a intenção de criar

a ‘marca Guardiola’, e é muito consciente de que o toque de bola forma a maior

parte dessa marca. Também por essa razão ele quer atrair os clubes que

buscam praticar esse tipo de futebol. Ele me parece ser um sujeito muito ciente

do que quer na carreira, por isso sempre analisará bem para qual clube irá. Pep

sempre tem muito claro o que quer. É um cara que quer ajudar os jogadores,

quer jogar em sintonia com eles e não contra eles, mas tem muita clareza

quanto a seus objetivos”.

Recebi de Roman Grill os primeiros indícios de que Guardiola estava

evoluindo rumo ao ecletismo. O treinador havia saído de Barcelona com uma

imagem contundente e dogmática: era o senhor do jogo de posição, dos mil

passes por jogo, dos 73% de posse de bola. O dono da bola. Logo se fixou ao seu

redor o celebrado slogan do “tiquitaca”, que teve um sucesso planetário.

Mas, ainda mais rapidamente, o próprio Guardiola rejeitou esse slogan por

ser reducionista: “O tiquitaca é uma merda: é passar a bola por passar, sem

intenção nem agressividade”.

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Na aparência, tratava-se apenas de negar um slogan que não fazia justiça

ao jogo de posição e que ridicularizava a realidade do jogo que o Barcelona

praticava. Mas, na verdade, existia algo mais nesse episódio de rejeição. Se

dissermos que Guardiola não possui uma mente convencional, por que razão ele

iria se fechar em seu próprio dogma de jogo? Por que razão depreciaria os

conceitos de futebol que poderia aprender a assimilar na Alemanha? Uma

atitude como essa não casaria com a mentalidade aberta, com a curiosidade

permanente e a busca de novidades e contribuições que pudessem surgir de

outra disciplina esportiva (xadrez, handebol, rúgbi…) ou cultural. Se um dos

motores que o movem é o mudar para ser mudado, por que razão ele rechaçaria

ideias de jogo distintas das suas, mas que seriam interessantes ou atrativas?

EDDIE JONES E AS TRANSFERÊNCIAS

Munique, 19 de setembro de 2015

Acabavam de chegar de Darmstadt, onde o Bayern venceu com

brilhantismo (3 × 0). Estiarte tinha deixado Pep em casa, mas ligou para ele

cinco minutos depois:

— Viu o Japão no rúgbi, o que fez Eddie Jones?

— Não, o que aconteceu?

Era a maior surpresa da história do Campeonato Mundial de rúgbi: o

Japão acabara de vencer a África do Sul por 34 × 32,graças a um try no

último instante do jogo. Pep levou as mãos à cabeça. Era uma surpresa

inimaginável. Nem o maior dos fanáticos japoneses podia sonhar com um

resultado tão surpreendente. O Japão manteve a calma durante todo o

encontro, sem permitir que os sul-africanos, bicampeões mundiais em

1995 e 2007, escapassem no placar (12 × 10 no intervalo). Quando

faltavam cinco minutos, o time treinado por Eddie Jones (nascido na

Tasmânia, de mãe japonesa e pai australiano) tinha se plantado na zona de

22 metros do conjunto sul-africano, com apenas três pontos de

desvantagem. O Japão dispôs de várias faltas a seu favor que poderia ter

chutado entre os postes, conseguindo um empate que por si só também

seria histórico. Mas imbuídos de um sentido singular de honra competitiva,

os japoneses se encheram de coragem e renunciaram ao chute seguro e ao

empate, e buscaram um try improvável e a glória esportiva. Chocaram-se

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contra a “parede” seguidas vezes e se levantaram sem esmorecer,

acumulando fases de jogo e sequências largas de passe e, no final, os

homens de Eddie Jones moveram a bola até o lado direito do campo e

rapidamente mudaram de sentido, então fizeram o mesmo até o lado

oposto para que Karne Hesketh conseguisse o try da vitória. O mundo oval

explodiu num êxtase colossal: a formiga tinha derrotado o elefante.

Guardiola não acreditou na notícia. Sabia o que aquilo significava

porque, em dezembro do ano anterior, passara uma tarde inteira

trabalhando com Eddie Jones. O selecionador japonês (hoje técnico da

Inglaterra) fora a Säbener Straße para compartilhar conhecimentos com

Pep, como explicou dias mais tarde:

— O rúgbi e o futebol são muito parecidos na hora de mover a bola

dentro do espaço. Eu vim ver Pep Guardiola para que ele me ajude a tornar

minha seleção taticamente mais flexível. Precisamos ser capazes de variar

a formação tática em função da evolução do jogo em cada partida.

Ao desembarcar em Munique, Pep tinha a intenção de implantar o jogo de

Cruyff e do Barça, mas logo observou que deveria ir além, por duas razões:

porque não tinha os jogadores necessários para reproduzir o modelo com

exatidão, e também porque as qualidades de seus novos atletas ofereciam novas

possibilidades a serem introduzidas em suas ideias de jogo.

Ferran Adrià, reconhecido como o melhor chef de cozinha do mundo

durante vários anos e, sem dúvida, o mais inovador e criativo dos grandes chefs,

aceitou, encantado, conversar sobre o processo vivido por Guardiola e

colaborou com um ponto de vista que me parece muito enriquecedor acerca da

necessidade de formação integral para um treinador: “Para mim, Pep foi muito

cedo para o Bayern, porque lhe teria caído muito bem a vivência de não só um

ano sabático, mas de dois ou três anos dando voltas pelo mundo e aprendendo

muito mais. Mas é certo também que não se pode deixar passar uma

oportunidade como a oferecida pelo clube alemão. Ele tinha de aceitar aquela

proposta em 2013, embora isso lhe tirasse a oportunidade de se formar de

maneira muito mais completa. Por que digo isso? Basicamente porque não sei

se Pep possui um método científico empírico de trabalho. Por essa razão,

durante o ano em que esteve em Nova York, eu o convenci a visitar o mit, o

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centro de inovação mais importante do mundo, e a se reunir com Israel Ruiz,

que é o vice-presidente executivo, para poder conhecer o MediaLab — onde se

pesquisa sobre desenho e tecnologia — e avançar um pouco mais nesse método

científico que sugeri a ele que construísse. Porque uma coisa é ser um estudioso

do futebol e ter visto muitos jogos, e outra coisa é ter um método científico de

trabalho, científico empírico, com o que jogadores seriam como robôs às suas

ordens, para poder testar e modificar decisões. Mas quando você fala com Pep,

ele diz: ‘No Barça, minha tática consistia em fazer a bola chegar a Messi’. Com

Pep, você nunca sabe exatamente como ele se julga. Eu tenho uma relação

cordial com ele e o conheço bem, mas não sei se ele possui esse método

científico empírico. Claro, é muito difícil construí-lo, porque isso significaria

abandonar o futebol durante dois anos e se dedicar por completo a decodificar

o jogo e construir esse método. No fim das contas, foi o que eu fiz: fechei o El

Bulli e tratei de tentar decodificar a cozinha”.

Tudo coincide, nos pormenores, com o que o próprio Guardiola costumava

dizer: “No Barça, minha tarefa consistia em providenciar que o time realizasse

os movimentos adequados no tempo preciso para deixar Messi no ponto exato.

Então Leo finalizava o processo em gol”.

Mas, no Bayern, foi muito diferente, porque não existia um Messi para

finalizar as ações nem o perfil de jogadores preparados desde muito jovens para

atuar como intermediários dessas rotas, e o treinador se viu obrigado a

construir circuitos de jogo muito diferentes dos do Barcelona, para que os

jogadores com que contava transitassem por caminhos distintos, sem dispor de

um finalizador inverossímil como Messi. Com uma referência ao basquete,

Ferran Adrià resume: “Phil Jackson dizia que Scottie Pippen tornou possível que

Jordan fosse Jordan. E, é claro, Xavi e Iniesta são os que permitiram que Messi

fosse Messi”. No Bayern, Pep não teve nem Messi nem Xavi, e nessas ausências

residiu um dos grandes estímulos para que imaginasse novas rotas dentro do

jogo.

Adrià anota que o ecletismo de Guardiola foi um processo paralelo ao da

comprovação da capacidade dele: “Bem cedo, Pep teve consciência de que seu

Bayern não poderia ser como seu Barça: porque não tinha Messi nem Xavi e

Iniesta; sem eles, não era possível criar um monstro daquela dimensão. Mas ele

fez algo muito inteligente em Munique: provou-se a si mesmo, para saber se o

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que aconteceu no Barça tinha sido uma casualidade. E não, não foi casualidade

porque ele conseguiu, no Bayern, reproduzir o mesmo modelo com outros

intérpretes e modificando conceitos. Alguns porque não podia aplicar, e outros

porque os incorporou como novos. E só a ausência de Messi (e Xavi e Iniesta) o

impediu de obter resultados tão superlativos e um jogo tão mágico como o do

seu Barcelona. Mas ele comprovou que seu modelo funciona. Ganhou muito e

jogou muito bem, embora sem essa magia especial que Messi proporciona”.

Depois de conviver com Guardiola em suas três temporadas no Bayern,

minha impressão pessoal é a de que sua guinada na direção do ecletismo foi e é

irreversível, se entendemos como tal a combinação harmoniosa entre seus

fundamentos de cruyffista radical (bola, passe, ataque, defender-se longe do

próprio gol) e os novos conceitos retirados do futebol alemão (velocidade e

verticalidade, bola ao espaço, cruzamentos para a área, ataques em massa). Na

realidade, o verdadeiro valor do treinador não consiste tanto em ter convicções,

mas em propô-las e implantá-las inclusive quando o contexto não é o mais

apropriado, e também em analisar essas mesmas convicções, corrigi-las,

aperfeiçoá-las e adaptá-las a esse contexto. As convicções são uma ferramenta,

não um colete. As convicções não devem ser um dogma, mas um espaço

demarcado onde se busca ter movimento e fluência, e Guardiola se move

melhor agora nesse espaço demarcado do que preso em um dogma.

É preciso dizer que, junto com os muitos avanços e aperfeiçoamentos

introduzidos por Pep em seu catálogo de jogo e no do campeão alemão, também

existem dois âmbitos nos quais ele não conseguiu um bom rendimento com o

Bayern. Refiro-me fundamentalmente à gestão dos próprios contra-ataques e

dos ritmos das partidas.

No primeiro aspecto, e embora ele tenha muitas vezes reiterado que gosta

que seu time contra-ataque, sua própria exigência de dominar o jogo no campo

contrário torna essa ideia quase inviável.

Nestes três anos, o Bayern só marcou nove gols de contra-ataque. É

facilmente compreensível que, se um time tem a bola durante 75% do tempo e

seu jogo se desenrola de forma majoritária perto da área rival, essas duas

condições impedem, por si mesmas, que se gerem os espaços necessários para

realizar qualquer contragolpe. Para criar esses espaços é preciso ser dominado

ou ceder, momentaneamente ou como forma de ludibriar o rival, o domínio do

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jogo e recuar. Nas duas últimas temporadas, para citar um exemplo evidente, o

Barcelona de Luis Enrique se aprofundou nesse artifício, o que permitiu que

seus três magníficos atacantes (Messi, Suárez e Neymar) protagonizassem um

sem-fim de contragolpes bem-sucedidos. Não é menos verdade que tanta cessão

de domínio do jogo ao adversário também provocou no Barça muito mais

momentos de dificuldades defensivas do que em outras épocas. Até hoje,

entretanto, Guardiola prefere priorizar o domínio do jogo bem longe de seu gol

a gerar as condições adequadas para a gestação de contra-ataques. É um

inconveniente que ele assume em troca de ser o time dominante e também o

menos goleado de todas as competições.

— O que digo a meus jogadores é: quando a bola é mais perigosa, quando

está perto de nossa área ou quando está longe? O que é mais perigoso? Se está

mais perto, há mais possibilidades de sofrermos um gol. Não serei convencido

do contrário.

UM GOL DE CONTRA-ATAQUE!

Munique, 7 de novembro de 2015

Durante o jantar, Pep revê com alegria as imagens em que seis jogadores

do Bayern correm, como uma manada de búfalos, na direção da área do

Stuttgart para marcar o primeiro gol do jogo. Um gol que faz feliz toda a

comissão técnica:

— Um gol de contra-ataque! — grita Pep, encantado com a velocidade

de seus jogadores.

O Stuttgart tinha um escanteio a favor, mas, dezessete segundos

depois de cobrá-lo, sofreu o gol. Obra de Robben, que o marcou com a

barriga. O gol bávaro foi fruto de uma proposta da equipe de analistas de

Carles Planchart:

— Nós estudamos e tudo saiu perfeito.

Domènec Torrent, na qualidade de responsável pelas ações de

estratégia, tinha marcado a jogada em vermelho, porque o Stuttgart cobra

alguns escanteios curtos, na tentativa de que Insúa cruze a bola depois de

dois ou três toques prévios, mas corre o risco de ter só Serey Dié, o meiocampista

central, mantendo-se atrás para vigiar um possível contragolpe.

Na sessão matinal de análise, Torrent explicou a seus jogadores que, se

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conseguissem recuperar rápido a bola quando ela estivesse com Insúa,

provavelmente poderiam atacar com perigo.

Dito e feito. Aos onze minutos de jogo, o Stuttgart situou oito homens

dentro ou próximos da área de Neuer, com Emiliano Insúa no vértice

esquerdo e Dié como único salva-vidas. E quando Insúa errou o

cruzamento, rasteiro e fraco, facilmente recuperado por Arturo Vidal, o

Bayern saiu em disparada contra a meta de Tytoń. Seis velocistas

desenfreados contra Serey Dié como único protetor de seu campo.

Bastaram só oito toques e onze segundos para que a arrancada feroz

desembocasse no gol de contra-ataque, para felicidade da equipe de

analistas e treinadores.

O segundo aspecto em que Guardiola não conseguiu o rendimento desejado

foi na gestão dos ritmos, do tempo dos jogos, especialmente em momentos

delicados depois de o Bayern sofrer um gol. Seu time foi exageradamente

uniforme nos ritmos, como o próprio Pep reconheceu quando falamos sobre o

assunto:

— Perdemos o controle em alguns momentos de certos jogos, porque essa

forma de jogar que temos, de ir sem parar contra o rival, de apertar e não deixar

o adversário pensar, ir e ir sempre, essa dinâmica… Como mudá-la de repente?

Eu pensei muito sobre isso. Como dizer a eles que, justo agora que tomamos um

gol, não devem ir para a frente, não devem apertar? Justo quando é preciso

reagir. É duro encontrar esse equilíbrio. Depois de três anos inteiros pedindo

que continuem indo à frente e apertando até nos treinamentos mais simples,

que não devem deixar de ir para cima do adversário nem por um minuto, como

dizer a eles, de repente, que agora vamos ficar calmos e passivos?

— É como pedir a um leão que se ponha a caminhar.

— Exato. Algumas vezes não fomos estáveis após receber um golpe. Ser

estável significa defender-se da mesma forma, como se não tivesse acontecido

nada, e dar vinte passes seguidos para acalmar tudo. Mas não, como é preciso

reagir, pegamos a bola e saímos em disparada, nos precipitamos correndo para

a frente. É a mecânica do time que provoca isso: se você tem cinco atacantes, a

tentação é ir para a frente rápido para reverter. Mas nesses momentos, o que

faz falta é a mentalidade do meio-campista: agora pegarei a bola e darei

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cinquenta passes. E com isso você faz o suflê baixar, o time que fez o gol esfria e

você pode começar a pensar em como vai reagir a partir desse momento. Mas se

você pega a bola e se precipita indo adiante, perde e começa a correr para trás

de novo. Se o rival está vivendo o bom momento do gol, zás, lá vem ele outra

vez. Não, não, isso não tem de funcionar assim. Calma, pausa e vinte passes para

que o suflê murche.

Esse dilema na gestão dos ritmos ficou em aberto na sua lista de itens para

melhorar.

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3.3. A FIRMEZA DE CRITÉRIO

Só se pode ter fé na dúvida.

JORGE WAGENSBERG

A dúvida sempre será uma companheira de viagem de Guardiola, mas em seu

último ano em Munique ele experimentou uma mudança categórica. Seus

titubeios desapareceram, dando lugar à firmeza de critério. Pep tem um

conceito muito positivo a respeito da dúvida: emprega-a como ferramenta de

análise dos rivais. Do mesmo modo que o jogador de xadrez avalia as diferentes

opções que surgirão a partir de um determinado movimento, Pep toma um

caminho imaginário e se conduz mentalmente por ele para averiguar até onde

seu plano de jogo o levará. As “dúvidas” de Guardiola são, na realidade, as

“variantes” do enxadrista.

Ele pensa que nenhum caminho é totalmente seguro no mundo do futebol,

e também que qualquer oponente tem qualidades para colocar seu time em

sérios apuros, o que às vezes induz a crer que Guardiola está dissimulando ao

exagerar as virtudes dos rivais, mas é absolutamente verdadeiro que ele sempre

encontra virtudes e artifícios perigosos nos adversários e jamais se acomoda em

uma suposta superioridade. Sempre tem como pauta de trabalho explorar todas

as variantes que o enfrentamento com qualquer rival pode oferecer.

Depois de ter analisado o oponente, ele faz uma avaliação estratégica,

assinalando seus pontos fracos e as melhores opções para atacá-lo. O resultado

disso é o “plano de jogo”. Depois, identifica as fortalezas do rival e estuda como

se defender, e a partir daí começa a análise das variantes, como faz todo jogador

de xadrez.

O que surge então é uma complexa matriz com numerosas rotas possíveis,

com planos de jogo e escalações diferentes. Todas as variantes permanecem

expostas sobre o tabuleiro de análise. Pep não rejeita nenhuma opção, por mais

estranha que soe. Só assim é possível compreender ideias como as vistas nos

últimos anos: Lahm atuando como extremo direito numa partida crucial da

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Champions, ou os pontas Robben e Ribéry jogando como meios-campistas

interiores em outros encontros menos importantes.

O estudo obsessivo e pormenorizado das numerosas opções que se abrem

é uma das características mais potentes que Guardiola possui, mas, até a última

temporada, gerava também um efeito pernicioso: o treinador prolongava o

estudo além do necessário, levando-o às vezes a limites exagerados, chegando a

modificar seus planos na tarde do dia do jogo. O estudo de variantes e o manejo

das dúvidas se convertiam em hesitação, o que podia ser prejudicial para o

objetivo pretendido.

Isso mudou de forma contundente. Pep já não hesita. Segue embaralhando

hipóteses, submete-as à análise e ao escrutínio, e estuda variantes, mas já não

duvida de suas decisões. Escolhe um caminho e o segue com todo o rigor, sem

se distanciar dele. Algo que comprovei pessoalmente não menos de seis vezes

durante a primavera de 2016, quando Pep me explicava seus planos de jogo

com vários dias de antecedência, até com a escalação que previa. Em todas as

ocasiões, os planos se cumpriram sem nenhuma modificação.

“JOGAREMOS DESTE MODO…”

Munique, 5 de abril de 2016

Essas quartas de final de Champions mostram uma mudança importante

em Pep: ele segue embaralhando muitas variantes, mas já não é vítima de

suas próprias dúvidas. Acaba de ganhar por 1 × 0 do Benfica e já decidiu

como jogar a partida de volta. Enquanto janta com o pai, Valentí, e o filho,

Màrius, Pep revela suas ideias para o encontro de Lisboa:

— Preencheremos o centro do campo com Xabi, Arturo Vidal e Thiago,

e Lahm junto a eles. Os quatro, formando um losango, com muita paciência

com a bola. E à frente jogaremos com três, em vez de quatro. Um dos

centroavantes vai para o banco: Lewy ou Müller. Dois extremos e um

atacante, e mais quatro meios-campistas no centro. Esse é o plano. Contra o

Benfica não podemos jogar com passe longo, tampouco com passes diretos

para os lados, porque eles montam o três contra um sobre o ponta

rapidamente. Temos de mandar a bola para as laterais e devolvê-la ao

centro para conseguir a quebra por dentro: um drible, um mano a mano e

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então abrimos o jogo, porque assim não haverá tempo para a cobertura

aparecer. E, para fazer gols, temos de chegar com a segunda linha: temos

que aparecer em vez de estar. Esse é o plano.

Durante os sete dias seguintes, ele estudou outras alternativas, mas

decidiu obedecer à sua primeira convicção e jogar com três meioscampistas,

Xabi, Vidal e Thiago (mais Lahm), e um único centroavante:

Müller. Este Guardiola de 2016 provoca poucas surpresas entre sua

comissão técnica.

Manchester nos confirmará se essa nova firmeza de critério e o abandono

das hesitações, uma vez escolhida a estratégia de jogo, são frutos do

amadurecimento intrínseco do treinador ou se foi assim porque o projeto

específico do Bayern estava completo.

Em qualquer caso, e à espera da resposta definitiva, torna-se muito

interessante recordar o que Pep disse a Patricio Ormazábal, ex-jogador e agora

treinador dos juvenis da Universidad Católica do Chile, quando este lhe pediu

conselhos: “Vá com a sua ideia até o final, Pato, sempre que for uma ideia

sensata e que possa ser realizada. Se for um disparate, você tem que revisá-la,

mas se for boa e você acreditar nela, vá com tudo. E se não correr bem, digamos

por exemplo que haja falhas numa saída de bola, o que se deve fazer não é

mudar de ideia, mas trabalhá-la mais e melhor. Não copie. Faça o que você

sente, não aquilo que quem ganha faz”.

Aproveitarei o conselho que Guardiola deu ao bom amigo Ormazábal para

esclarecer um assunto: nunca ouvi Pep dizer que suas ideias de jogo são

melhores que as dos outros técnicos, nem que o jogo de posição seja melhor que

o jogo direto ou o que se baseia numa defesa intensiva e no contragolpe. Pep

defende suas ideias e tenta melhorá-las para que sejam executadas com eficácia

e perfeição, mas está muito longe de se crer possuidor de uma verdade absoluta

no futebol; de fato, o que fica destas páginas é um manifesto sobre como ele

absorve e integra elementos de outros modelos e outros treinadores (incluindo

os antagônicos, que também admira, como Ranieri e Klopp), sem nenhum

esforço.

Etiquetas foram coladas sobre Guardiola de maneira constante e muitos

tentaram relacioná-lo a uma inflexibilidade dogmática que ele não possui, e isso

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aconteceu tanto entre seus devotos quanto entre seus detratores. Todos estão

errados: Guardiola não é um treinador atado ao dogma, mas um técnico que se

move em permanente evolução, captando ideias de todas as partes (“sou um

ladrão de ideias”), digerindo-as e assimilando-as em seu conceito essencial de

futebol. Isso, sim: quando toma uma ideia como sua, seja qual for a origem, ele

trabalha com ímpeto para levá-la adiante.

O futebol vive refém do uso excessivo de clichês e estereótipos: na falta de

conhecimento verdadeiro, aplicam-se etiquetas para tentar argumentar ou

justificar o que vemos. Essa é a causa da criação de determinados conceitos

completamente artificiais e baseados em falácias: o guardiolismo é um deles (e o

antiguardiolismo é exatamente igual: algo vazio de conteúdo).

O guardiolismo não existe como tal, entre outras razões, porque Guardiola

não é um “produto pronto”: ele está em produção. E, portanto, está mudando.

Foi assim em Munique e seguirá sendo assim em Manchester. Guardiola é um

técnico que busca progredir e melhorar, e nós já vimos sua evolução rumo ao

ecletismo, mas ele não pretende criar uma escola, nem se rodear de apóstolos

que deem continuidade à sua obra, nem se erigir na “única verdade” do futebol.

De fato, ele mesmo recusa toda alusão ao guardiolismo e não se sente

representado por aqueles que aparentam ser seus grandes seguidores, mas são

fabricantes de clichês tão superficiais e etiquetas tão equivocadas como as que

seus detratores tentam lhe atribuir.

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3.4. A ATITUDE INOVADORA

Inovar é conectar coisas.

JON PASCUA IBARROLA

Entre as numerosas definições do termo “inovação”, há uma de Ferran Adrià

que, mesmo atípica, se enquadra perfeitamente a Guardiola: “A inovação é e

sempre foi a busca por ganhar a vida”.

Façamos ponderações sobre o que entendemos por inovação no futebol. As

verdadeiras criações pertencem ao âmbito do gesto técnico e são os jogadores

que as “inventam”. O que os treinadores fazem quando “inovam” é empregar

seus recursos de maneira diferente. Os movimentos táticos que propõem não

são “criações” no sentido estrito, e os chamamos de “inovações” porque supõem

novos usos dos recursos existentes. O professor Júlio Garganta explica com

precisão: “Na música, há muito tempo se conhecem as notas musicais, os

compassos, os ritmos. Isso não mudou, mas todos os dias surgem canções novas

e novos intérpretes. Por quê? Porque a partir das notas, dos compassos, dos

ritmos que se conhecem é possível gerar novidades, por intermédio de novas

combinações. No futebol acontece o mesmo, mas para que haja inovação é

necessário saber pensar, além de saber atuar de acordo com o modo como se

pensa”.

Guardiola não inova no futebol por estar possuído por um espírito

pioneiro, aventureiro, criativo ou messiânico. Ele o faz por necessidade. É

preciso ganhar a vida em cada jogo. O que impulsiona Pep a não ficar quieto é o

rival; ele intui as dificuldades que o oponente lhe causará e esse é o motor de

suas inovações, até o ponto extremo em que, ao nos perguntarmos qual seria o

sistema de jogo ideal para Guardiola, devemos responder sem duvidar: a

mudança. O que funciona hoje não servirá amanhã. E é preciso atuar, é preciso

mudar.

O processo que Pep segue para inovar é simples: sua origem está na

necessidade de sobreviver diante dos perigos que ele intui. O núcleo central

desse processo consiste na análise do rival e em não se conformar com a

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utilização corriqueira de seus recursos próprios (basicamente, jogadores,

posições e funções), empreendendo uma busca permanente por novos e

melhores usos. Como resultado se obtém um determinado “produto” que — não

sempre, mas em vários casos — contém certa dose de inovação.

É interessante observar a parte central e substancial do processo, porque

se alguém estudar a história da evolução tática do futebol, encontrará

semelhanças formidáveis entre os grandes treinadores. Todas as coincidências

sempre se verificam neste mesmo fator: buscar formas novas e melhores de

utilizar os recursos existentes. Pensando nos diferentes “falsos 9” ao longo da

história, há um fator coincidente em todos os treinadores (Meisl, Peucelle,

Sebes, Villalonga, Cruyff, Spalletti, Guardiola…) que os puseram em prática: foi a

mesma ideia, mas implementada em contextos diferentes. Se analisamos como a

Cambridge University aplicou o 2-3-5 em 1880 e como Guardiola recuperou

esse esquema em forma de pirâmide em 2015, observamos algo parecido: a

mesma disposição espacial surgiu a partir da busca de novos usos ao que se

empregava de forma habitual. E assim ocorre com a maior parte dos avanços e

inovações táticas no futebol. Não são “inventos” nem “criações” puras, mas usos

diferentes de recursos similares, e a esses novos usos denominamos

“inovações”.

Por essa razão, o estudo da história da tática me parece uma fonte

formidável de inspiração para os treinadores contemporâneos. Quando Juanma

Lillo recomenda a Guardiola que, contra determinados times, use a “formação

ampulheta”, Pep estimula o seguinte debate interno em sua equipe técnica: “De

que maneira podemos jogar com cinco atacantes sem que o risco seja suicida?”.

A análise termina desembocando no 2-3-5 com que o Bayern arrasa o Arsenal e

vira o jogo contra a Juventus na Champions League 2015/2016.

A esse respeito, convém escutar o que nos diz Paco Seirul·lo: “O futebol é

menos evoluído do que outros esportes coletivos, como o basquete ou o

handebol, porque eles têm a vantagem de serem jogados com a mão e em

espaço pequeno, o que possibilita o surgimento de coisas novas mais facilmente

e as associações entre os atletas de diferentes maneiras. Por outro lado, nós, por

jogarmos com os pés, em campo grande e dividindo o terreno de jogo com o

rival, precisamos elevar muito o nível técnico dos jogadores para conseguir

mudar qualquer coisa”.

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Prossegue Seirul·lo: “Para que essas mudanças e inovações sejam levadas

adiante, a formação dos jogadores tem de evoluir muito. Eles devem aceitar que

não basta jogar, que é preciso compreender o jogo. Em geral, há pouca

compreensão do jogo. Há intuições e talentos específicos. Um jogador descobre

que deve driblar para a direita quando o pé esquerdo do oponente está colado

ao chão, mas outro não descobre nunca, e por isso nunca driblará e se limitará a

passar a bola. Também porque ninguém lhe disse isso. A verdade é que os

jogadores, apesar dos treinadores e do entorno, são capazes de construir coisas

novas que depois são aproveitadas por alguns outros — os mais capazes, sejam

treinadores ou instituições —, que podem dizer que o jogo continuou evoluindo.

Por isso se afirma que o futebol é dos futebolistas. Sim, em parte é verdade,

porque são eles que o desenvolvem, mas o futebol pertence mais às equipes.

Quem passa à história são os times. Os Mágicos Magiares, a Laranja Mecânica, o

Milan de Sacchi, o Pep Team…”.

Ferran Adrià colabora com seu ponto de vista sobre a inovação no futebol:

“Não sei se dentro de um vestiário de futebol se fala sobre inovação. Duvido que

digam: ‘Vamos criar’. Devem, sim, dizer: ‘Vamos jogar’. De outro modo, seria

uma revolução. E creio que Pep já pensou em tudo isso para o futuro. Não sei se

um time de futebol está preparado para ouvir de seu treinador: ‘Vamos criar’.

Talvez achem graça e imaginem que ele tomou alguma coisa estranha… Ser

disruptivo no futebol consistiria em transformar uma equipe em um conceito de

inovação. Transformá-la em um laboratório criativo. Qual é o problema? É que o

futebol não admite isso porque, se você não ganhar, será mandado para a rua.

Seria um time experimental, como os Globetrotters, porém sério, sem

brincadeiras. Um time que não tivesse de ganhar ligas, que fizesse exibições e

que pudesse jogar com absoluta liberdade. Que tivesse os melhores jogadores e

que fizesse exibições de jogo… Claro, isso é impossível. Entre muitas outras

questões, quem pagaria o salário dessa gente? E isso nos leva a uma realidade: a

experimentação no futebol, ao nível máximo, é impossível. Impossível. Por esse

motivo, as ideias que Pep poderia chegar a imaginar são impossíveis de traduzir

numa equipe. O que ele fará é estabilizar essas ideias em um modelo que seja

possível”.

VOCÊS VIRAM CRUYFF JOGAR?

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Madri, 9 de janeiro de 2015

— Uma das cenas mais bonitas da minha vida foi quando Messi, Xavi e

Víctor Valdés vieram ao meu laboratório, o Bulli Taller, e eu perguntei:

“Vocês viram o Ajax dos anos 1970, o Ajax de Cruyff?”. E os três me

disseram: “Não…” — explica Ferran Adrià. — Foi alucinante. Claro, mesmo

assistindo hoje, o jogo daquele time parece um futebol contemporâneo. É

incrível. Por outro lado, você vê agora o Brasil de Pelé e não o percebe

como contemporâneo. Mas o Ajax dos anos 1970, sim. Parece um time de

hoje em dia. Mas eles três não viram o time jogar. Xavi, Messi e Valdés!

“E eu pergunto: fez falta a Xavi, Messi e Valdés ter visto e conhecido o

Ajax de Cruyff? Parece que não… O.k., de acordo, eles são jogadores e não

treinadores… Mas, se você quiser valorizar a inovação… Primeiro, o que é a

inovação no futebol? Porque no final o que nós medimos são os gols. A

inovação seria para quem criou o drible, quem criou a bicicleta… E em que

âmbitos do futebol se pode criar? Para responder, primeiro teríamos que

decodificar o futebol.

“Porque você pode criar em muitos âmbitos e não apenas no gesto

individual do jogador. Pode criar ao organizar um banco de reservas: fazer

de uma outra maneira, por uma série de razões. Mas, antes de decidir,

devemos decodificar essa metodologia.

“Pep sempre me dizia: ‘Cruyff é que é um puta craque’. Mas eu digo: E

Michels? Bom, se formos até lá atrás, ou foi você quem inventou o futebol,

ou tudo vem de algum lugar, de algum começo. Ainda que você seja muito

disruptivo, tudo teve sua evolução.”

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3.4.1. BARREIRAS QUE DIFICULTAM A IMITAÇÃO

Uma coisa é saber e outra é

tirar vantagem do que se sabe.

RICARDO OLIVÓS

A crescentemos a tudo o que dissemos antes que a possibilidade de uma

inovação se difundir e ser imitada está estreitamente relacionada, também no

futebol, às barreiras de entrada aplicáveis a tal inovação. Por exemplo, as

dificuldades que existem para se imitar uma simples linha de quatro defensores

são bem reduzidas (é preciso ter quatro jogadores que saibam defender e pouco

mais), mas estruturar uma organização defensiva completa em que os onze

jogadores participem de maneira harmônica e coordenada importa exigências

maiores. E, sem dúvida, planejar um jogo de posição completo, onde ataque e

defesa se tornem indissociáveis e cada movimento individual e coletivo não

apenas tenham sentido, mas também uma carga de intenção, elevará as

barreiras de imitação a uma grande altura.

Cada um desses diferentes níveis de dificuldade gerará,

proporcionalmente, graus distintos de imitação real. No caso do jogo de posição,

que até hoje é o modelo mais complexo e elaborado de todos os já

desenvolvidos, em algumas ocasiões ele “parece” ter sido posto em prática, mas

na realidade estão sendo copiados apenas alguns símbolos do modelo e não

seus autênticos fundamentos. Nesse caso, não há uma implantação verdadeira,

mas somente uma imitação superficial de alguns de seus efeitos, e de nenhuma

de suas causas.

É compreensível, porque implantar esse modelo exige estabelecer diversas

condições prévias. O treinador e sua comissão técnica precisam ter um

profundo conhecimento desse modo de jogar, suas características e razões, o

porquê de cada posição, movimento e instrumento a ser empregado, e o

domínio abrangente da metodologia imprescindível para o ensinamento e a

implementação entre os jogadores do elenco. Os futebolistas devem ter boa

capacidade de compreensão tática e uma alta predisposição de vontade para

assimilar um modelo complexo e de difícil aprendizagem. Em suma, as barreiras

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de entrada para imitá-lo são variadas e poderiam explicar por si mesmas o

reduzidíssimo número de equipes que conseguiram implementá-lo com acerto.

De maneira completa, nos tempos atuais, o modelo foi praticado pelo Barcelona,

pelo Bayern e pelo Borussia Dortmund; e de maneira menos completa, também

pudemos vê-lo em seleções nacionais como Chile, Alemanha, Espanha, Itália e

Peru, além de clubes como o Hoffenheim do jovem Julian Nagelsmann, o Rayo

Vallecano de Paco Jémez ou a ud Las Palmas de Quique Setién. O novo Sevilla de

Jorge Sampaoli e Juanma Lillo também começou sua imersão nesse modelo de

jogo. E o Manchester City, certamente.

Mas talvez haja algo mais, além das citadas barreiras, que dificulte a

propagação desse modelo e ninguém melhor do que Juanma Lillo para refletir

sobre isso:

— Houve quem quisesse gerar a sensação, e conseguiu porque é uma

sensação fácil de criar, de que é preciso ter grandes atletas para praticar o jogo

de posição. A minha impressão é a contrária. As pessoas confundem o possível

com o provável. Por regulamento, esse esporte permite que qualquer time

vença qualquer outro sem passar nem uma vez ao campo do adversário, ainda

mais com a mudança no pontapé inicial. Isso não acontece em nenhum outro

esporte. Mesmo sem cruzar o centro do campo, você pode ganhar por 1 × 0. O

treinador pode treinar a probabilidade, tentar aumentar o provável. Mas o

possível… Que um burro voe também é possível, mas é pouco provável. E há mil

exemplos mais de coisas que são possíveis, mas pouco prováveis. Enquanto

falamos, eu posso crescer e passar a medir dois metros. É possível que ocorra,

mas é muito pouco provável…

O que o jogo de posição busca é aumentar o índice de probabilidade de

ganhar por intermédio do jogo:

— Isso é demonstrável, mas não só com times sublimes, mas também com

outros muito mais modestos. Mas como associaram o jogo de posição aos

sublimes, como o Dream Team de Cruyff ou o Barça de Pep, então nos dizem

que para praticá-lo bem é preciso ter jogadores muito bons. Claro, com esses

jogadores… E é exatamente o contrário! Ganhar com apenas dois toques, com o

central mandando um chutão ao centroavante, isso sim é verdadeiramente

difícil. Ganhar com apenas dois toques, de dois jogadores, é menos provável,

muito menos provável do que com o jogo de posição, a menos que os dois

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jogadores sejam Maradona como central e Maradona como atacante. Se não, é

muito difícil.

Na opinião de Lillo, nesse ponto reside a escassez de praticantes do jogo de

posição:

— Toda essa confusão faz que, em vez de se dizer que é mais provável

ganhar com o jogo de posição, se diga que só é possível praticá-lo com grandes

futebolistas. Mas é o contrário. Eu digo outra coisa: pretender ganhar, que é o

objetivo do jogo, com unicamente dois ou três jogadores interferindo na jogada,

em dois ou três toques, é tentar quase um milagre. É possível, mas é quase um

milagre. E se me respondem que aconteceram muitos milagres, eu digo que sim,

sobretudo se houver dois times que jogam por um milagre; então o milagre

acontece. Quem diz que só se pode jogar esse jogo com grandes futebolistas, na

realidade, é quem quer jogar de outro jeito…

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BASTIDORES

SOBREVIVER COM O 3-5-2

Dortmund, 4 de abril de 2015

Na quinta-feira, 2 de abril, Pep já tomou a decisão, que compartilha na

primeira hora do dia com seus ajudantes. Sem a capacidade de Robben e

Ribéry para superar rivais, sem a onipresença de Alaba, sem o sentido de

antecipação de Badstuber (todos eles machucados) e com Lahm e Thiago

sem ritmo, a situação do time volta a ser de clara inferioridade

competitiva e emocional. O Bayern não pode ir ao Signal Iduna Park de

Dortmund com o peito aberto, como se não tivesse baixas, motivo pelo

qual Pep ordena novamente o 3-5-2 que utilizou na final da Copa da

Alemanha de 2014: um homem a mais na defesa, um homem a mais no

meio de campo, dois homens a menos no ataque.

Durante os dois dias seguintes, os treinamentos se concentram em

recordar as pautas de comportamento que esse módulo de jogo exige.

Rafinha e Bernat terão de ser como acordeões que se dobram e

desdobram ao redor dos três defensores centrais. Xabi Alonso deverá

trabalhar duro para que não haja espaço entre ele e os zagueiros,

evitando ceder essa zona letal aos meios-campistas ofensivos do

Dortmund. Lahm e Schweins-teiger jogarão como interiores, mas só um

deles, de forma alternada, poderá se distanciar de Xabi para pressionar

mais à frente: o outro sempre deverá permanecer perto do jogador

espanhol; e os dois atacantes, Müller e Lewandowski, terão a tarefa mais

dura: deverão prender os quatro defensores rivais, ameaçá-los o

suficiente para que não se incorporem ao centro do campo, proteger as

bolas que chegarem e construir quase por conta própria todo o jogo

ofensivo do Bayern, porque as instruções de Guardiola aos jogadores

restantes serão categóricas: risco zero no ataque, toda a parte ofensiva

somente com Müller e Lewandowski.

No momento mais difícil da temporada, o único plano é a

sobrevivência.

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Pep ainda não sabe ao certo se em abril e maio poderá estabelecer

um novo plano de jogo. A temporada mostrou que todos os planos que

desenhou foram destruídos pelas lesões. Começou o curso com o 3-4-3,

mas os ligamentos do joelho de Javi Martínez se romperam. Com a

chegada de Xabi Alonso, acreditou que poderia praticar o jogo de

posição mais ortodoxo, mas a recaída de Thiago e a fratura de tornozelo

de Lahm o impediram, pois a equipe ficou sem interiores e o 4-3-3 se

tornou inviável. O terceiro plano da temporada foi o dos atacantes: jogou

com cinco ao mesmo tempo (2-3-2-3), obteve excelentes resultados, mas

quando Robben e Ribéry alcançaram a plenitude como interiores no jogo

contra o Shakhtar Donetsk, o invento desmoronou em apenas dezoito

minutos por causa das lesões de ambos.

Pep se viu obrigado, então, a desenhar um quarto plano de jogo,

mas estamos em abril e não há tempo para ensaiar e corrigir. Agora,

cada partida é uma final e o time joga a cada três dias. A lógica diz que o

regresso de Lahm e Thiago, embora ambos acumulem dezoito meses de

baixa, deveria significar um jogo mais tradicional, com Xabi ou

Schweinsteiger no papel de único meio-campista central, servindo aos

meias interiores para que encontrem o último passe próximo à área

rival. Mas a realidade é complicada: Lahm é um “motor a diesel”, um

jogador confiável como poucos, mas que necessita de muito tempo para

alcançar seu melhor rendimento. E não há tempo. Quanto a Thiago, não

joga simplesmente há 371 dias, e em sua cabeça, assim como na de todos

os muniquenses, é certo que há mil fantasmas. Pep se pergunta se o novo

plano de jogo deve passar por dois jogadores que estão tão longe de seu

melhor momento. E a resposta é não. É mais importante sobreviver do

que desenhar o quarto plano da temporada.

No jogo em Dortmund, o Klassiker, a distribuição do Bayern quando

tem a bola é um 3-5-2. O Borussia Dortmund se afogará diante dessa

formação fechada e compacta que não deixa espaços entre suas linhas e

nega ao time local o que ele mais necessita: metros para correr. Pela

primeira vez na temporada, os jogadores de Pep não se mostram muito

interessados na bola (a posse se reparte em 50%), nem buscam se

assentar no campo do adversário. São instruções concretas do treinador:

linhas compactas, superioridade numérica na defesa e no centro do

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campo, reduzir as perdas de bola ao máximo e buscar os dois atacantes

para que eles decidam. O Dortmund joga com sua eletricidade habitual,

mas aos dez minutos de jogo, já caiu nas redes bávaras. O Bayern se

assemelha à “formação tartaruga” das legiões romanas, protegido por

todos os lados e impenetrável.

Sobressaem os três defensores centrais: Benatia, Boateng e Dante,

atentos e firmes. Schweinsteiger, embora as estatísticas não reflitam, faz

uma partida formidável, assim como Bernat. E os dois atacantes

alcançam o objetivo traçado: Müller e Lewandowski prendem os quatro

zagueiros do Dortmund. O polonês brilha: não só consegue o gol do

triunfo, dividindo o mérito com Müller na ação, mas ganha dez duelos

aéreos durante a partida, recorde absoluto para um centroavante na

Bundesliga.

Jürgen Klopp sofre para decifrar o Bayern. Fica a impressão de que

o treinador do Dortmund esperava um Bayern ortodoxo em seu jogo

posicional, de muitos passes interiores; e diante de um Bayern compacto

e fechado, que não busca jogar no campo do adversário nem ter a bola

em excesso, o treinador e os jogadores do BVB padecem até decodificar

o que está acontecendo. Esperavam pelo Guardiola atrevido e voraz, mas

deram de cara com o Guardiola precavido e rochoso, uma versão que

tinham visto na final da Copa e que se repete neste sábado de abril. É o

3-5-2 compacto e sem fissuras para usar nos dias de emergência.

— Thiago voltou e essa é a grande notícia. Thiago nos dá a vida… —

Pep me disse, mais tarde.

A opinião na equipe é unânime, e ninguém a expressa melhor do

que Xabi Alonso:

— O Mago voltou.

Thiago só disputa vinte minutos, substituindo o capitão Lahm, que

mais uma vez deixou a pele no campo, mesmo não estando em boa

forma. Os primeiros cinco minutos de Thiago após um ano de baixa são

deslumbrantes. Possuído por uma inquietação difícil de descrever, o

meia espanhol parece jogar outro esporte. Pede a bola, se oferece livre

entre as linhas do Dortmund, dribla, faz passes entre frestas que só ele

vê… São só cinco minutos, mas o jogo todo é monopolizado por Thiago.

Naturalmente, se trata de uma miragem; logo a falta de ritmo começa a

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cobrar seu preço e, ainda que o treinador reforce a proposta com a

entrada de Götze, o jogo acabará desacelerando. O Bayern sobrevive à

eletricidade do Dortmund e dá um passo decisivo para ganhar seu

terceiro título consecutivo da Bundesliga, o segundo de Pep.

A celebração pela vitória é formidável e, ainda mais, pelo retorno do

Mago Thiago. Seus companheiros inundam o vestiário com aplausos

dedicados a seu regresso, e Thiago desaba em lágrimas. Seu ano foi tão

amargo, tão obscuramente amargo, que as emoções transbordam e ele

chora diante de todos os seus companheiros, que o abraçam e o beijam.

— Fizemos um jogo muito sério — disse Xabi. — As pessoas podem

pensar o que quiserem do Dortmund, porque o time não está bem

classificado, mas era um jogo muito duro. Foi como uma semifinal de

Champions League.

Jürgen Klopp, sempre sincero em suas declarações, resume:

— O Bayern mereceu ganhar.

Guardiola obteve sua quinquagésima vitória na liga, em apenas 61

jogos. É um recorde absoluto de rapidez na Bundesliga, pois Udo Lattek

tinha sido o mais precoce em conseguir os cinquenta triunfos,

necessitando de 78 partidas. Guardiola bate recordes e está a um

pequeno passo de conquistar sua segunda liga consecutiva, mas está

muito descontente. Não assim que o jogo termina, quando se mostra

feliz e eufórico, mas horas mais tarde, após analisar a partida com sua

comissão técnica.

Mas, antes disso, ele abraçou todos os atletas. Lahm e Thiago,

efusivamente. Em público, felicitou Dante, que estava com o moral baixo

fazia semanas. E expressou seu orgulho pelo triunfo “conseguido por um

verdadeiro time”, frase na qual pretende englobar o momento delicado

que o Bayern vive: quebrado pelas ausências, mas com o ânimo

fortalecido e mais disposto do que nunca a superar os obstáculos com

competitividade.

No íntimo, contudo, Pep está insatisfeito…

Soa contraditório, por suas exibições de euforia ao término do jogo.

Quando faltava um minuto para o final, ele abraçou Lahm com

intensidade, celebrando a vitória. Pep tem motivos para estar feliz:

novamente venceu, em seu estádio, um rival que, apesar de não estar

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num bom momento, foi um colosso nos últimos anos: duas vezes

campeão da liga, finalista da Champions League, ganhador da Copa de

2012 varrendo o Bayern por 5 × 2, campeão da Supercopa alemã duas

vezes seguidas…

Mas está descontente.

— Ganhamos e fizemos o que precisávamos fazer. Esse era o plano,

e os garotos o executaram com perfeição. Mas o plano era um puro

exercício de sobrevivência para tentarmos sair vivos e darmos um passo

a mais depois de tantas desgraças sofridas.

Em momentos assim, Guardiola não admite réplica nem

argumentações sobre a necessidade de jogar desse modo.

— Assim não vamos a lugar nenhum. Impossível. Superamos um

obstáculo, mas nossa maneira de jogar tem que ser outra.

A menção a Thiago e Lahm, além dos numerosos lesionados, não

muda sua análise. Pep venceu, mas tem plena consciência de que

conseguiu por uma via que não o satisfaz. Sabe que não havia outra

possível; afinal, foi ele quem decidiu que esse era o único plano. Mas,

uma vez alcançado o triunfo, aparece seu inconformismo.

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CAPÍTULO 4

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POR QUE PEP É UM TREINADOR MELHOR?

Os melhores professores são os que ensinam onde

você deve olhar, mas não dizem o que deve ver.

ALEXANDRA TREFOR

Pep cresceu taticamente porque a Alemanha o impediu de permanecer

ancorado no conforto do jogo que praticou com o Barcelona durante quatro

anos prodigiosos. Com o Bayern era inviável jogar do mesmo modo, e esse

desafio lhe proporcionou um mar de enriquecimento. Ele se viu obrigado a

mudar, adaptou-se por necessidade, por instinto de sobrevivência frente a um

futebol alemão que estruturalmente ainda tem suas bases (apesar das

aparências) fincadas na prática de defender com muitos jogadores e sair

correndo diante da menor oportunidade, sem se importar com o que fica para

trás nem com o que acontece depois. Por essa razão, na Bundesliga podem ser

vistos semanalmente os contra-ataques mais velozes e bem construídos do

futebol europeu, ainda que não sejam os mais eficientes, o que tem como

consequência um jogo bastante impreciso, precipitado e com pouca pausa. Um

jogo descontrolado. Guardiola costuma usar uma frase de Juanma Lillo que

resume essa forma de jogar:

— Quanto mais rápido a bola vai, mais rápido volta.

É um conceito simples que define com precisão um dos riscos do jogo

direto. Guardiola emprega esse conceito com frequência:

— Lillo tem grandes frases, mas essa é uma das melhores. Eu a utilizei

muito em Munique. Demorei um pouco para encontrar a tradução exata. Disse a

eles: “Querem jogar com bola longa? Sem problemas… Mas devem saber de uma

coisa: a bola que viaja rápido, volta rápido também”. E essa é uma grande

verdade do futebol. De cada dez bolas longas, o zagueiro central rival, que

defende de frente, ganha oito. E quando você começa a ir, a bola já está

voltando. Dizem: “Dá no mesmo, vamos sair rápido com um chutão para a

frente!”. Mas então, antes que você perceba, a bola já voltou… Essa é uma ideia

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do cacete, que expliquei muitas vezes aos meus jogadores no Bayern e que

também vou ter de usar muitas vezes na Inglaterra.

Juanma Lillo tem sido um personagem decisivo na carreira de Guardiola. Se

Johan Cruyff lhe deu a oportunidade como jogador e o levou a ser capitão no

Barcelona, Juanma Lillo foi quem dirigiu Pep no trânsito de jogador a treinador.

Se Cruyff implantou o jogo de posição com sua extraordinária intuição, Lillo

realizou outra coisa que supõe dificuldades enormes: construiu o corpus

intelectual que permitiu compreender (e difundir) o jogo de posição. Guardiola,

intuitivamente muito próximo de Cruyff, necessitou do caráter didático de Lillo

para se aprofundar nesse modelo e aprender a ensiná-lo.

Cruyff e Lillo foram os dois grandes mentores de Pep, que menciona um ou

outro todos os dias. “Juanma nos dizia” é uma de suas frases habituais, e isso

confere um sentido taxativo às ideias de Lillo, sobre quem Pep afirma: “Mais do

que falando, Juanma é bom sobretudo treinando”. A descrição outorga a Lillo

uma credibilidade muito superior à que lhe é reconhecida de maneira geral: seu

valor não reside nas palavras, mas em sua capacidade de construir o jogo de

maneira prática, treinando, e de transmiti-lo de maneira didática.

Conversei com Lillo sobre a velocidade da bola que vai e volta: “Isso é

assim porque um desenvolvimento paulatino do jogo significa uma pressão

imediata, enquanto um desenvolvimento rápido significa um retorno súbito da

bola. No jogo, para ir ganhando terreno com os homens de fora, preciso de

interações por dentro. E como só há uma coisa que ordena uma equipe, que é a

bola, isso permite a todos os meus jogadores estar em eixos e alturas distintas.

E se você já estiver movendo os rivais, poderá encontrar os homens livres muito

mais facilmente, porque no deslocamento que os times fazem para compensar

isso, ou os rivais se separam entre eles, ou se separam todos eles”. Lillo

acrescenta: “Se não se usa o tempo para jogar, é difícil que a equipe avance

idoneamente para dominar o adversário. É preciso passar a bola na hora certa,

no lugar certo e no momento certo. Do contrário, quanto antes a bola vai, antes

ela volta, mas com um acréscimo: ao ir, a bola vai sozinha; porém, quando volta,

tem o costume de retornar com eles, os rivais…”.

Permitam-me, neste ponto, retroceder na história do futebol e ler o que, em

1901 — sim, em 1901 —, escrevia no livro Association Football o histórico

capitão do Sheffield United, Ernest Needham, um dos jogadores de maior

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destaque na Inglaterra no início do século passado: “Às vezes, e gostaria de

bater firme nisso, a combinação entre os defensores e os médios é uma boa

decisão. Quando um defensor pode dar a bola a seu médio em uma boa posição

para avançar pelo campo, deve passá-la sem duvidar, em vez de lançar a bola

para longe com um chute. Esse tipo de jogo é muito mais bem-sucedido. Muitos

defensores, quando têm a oportunidade, dão um chute longo, pensando que é

uma façanha e esquecendo que, em nove de cada dez vezes, a bola passará por

cima de seus atacantes e acabará nos pés da equipe adversária, que não terá

dificuldade para devolvê-la”.

Lillo e Guardiola se sentiriam à vontade conversando com Needham. Ou

com Jimmy Hogan, cuja ideologia era coincidente, como explicou Norman Fox

no livro que dedicou ao treinador inglês: “Hogan dizia que a melhor e mais

segura opção de jogo consistia em iniciá-lo cuidadosamente desde a zona

defensiva, com passes curtos, para ir avançando. [Ele] não tinha nada contra os

passes longos, mas eles deveriam ser muito precisos. Enfatizava o conceito de

‘preciso’. Lançar bolas longas sem razão, para acabar dando a bola ao

adversário, nunca se incluiu em suas táticas”. Voltemos ao presente, não sem

antes anotar que o futebol atual ainda segue frequentemente na direção oposta

à que propunham Needham e Hogan.

VIAJAMOS JUNTOS

Munique, 1° de fevereiro de 2016

Noel Sanvicente [ex-jogador e treinador venezuelano] comenta:

— O mais interessante do Barça sempre foi como recuperavam a bola.

Como a recuperavam rápido e bem.

Guardiola responde:

— Isso acontecia porque os jogadores avançavam juntos, estavam

próximos entre si e, quando perdiam a bola, não podiam fazer outra coisa a

não ser recuperá-la: era o mais simples. Se os extremos estão abertos, mas

os atacantes estão próximos da bola, você pode recuperá-la com facilidade.

Esse processo de “passo a bola, passo a bola, passo a bola”, sempre me

aproximando do meu companheiro, é o que culmina em viajar todos juntos

com a bola. E quando a perdemos, é fácil recuperá-la. O Barça era o time

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menos físico do mundo, com Xavi ou Iniesta medindo um metro e setenta,

mas recuperava a bola porque viajava compacto.

Contudo, é preciso ter atenção: quando você ataca e tem muita gente à

frente da bola, está liquidado se a perder… liquidado. Se você tem dois

atacantes muito adiantados e dois extremos muito abertos, aí perde a bola,

nenhum dos quatro poderá ajudá-lo na recuperação. Se sempre manda a

bola longa, tchau mesmo, está liquidado. Nem o time mais físico do mundo

consegue recuperar essas bolas. Nem os alemães, que são umas feras

fisicamente falando. Não é uma questão de força, mas de espaços. O campo

é muito grande, o futebol é muito grande. É enorme. Se você não fizer como

estou dizendo, tchau mesmo.

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4.1. ADEUS AO DOGMA

Nunca faça o que você já sabe fazer.

EDUARDO CHILLIDA

Durante sua experiência na Alemanha, Pep se protege, busca fórmulas para se

integrar ao ritmo veloz do jogo e, ao mesmo tempo, evitar os contragolpes dos

rivais. Encontra essas fórmulas e as aplica. Adapta-se ao entorno da Bundesliga

e, com o transcorrer do triênio, consegue domesticar a fera, acalma o jogo e lhe

dá pausa. Consegue reduzir a velocidade do rival sem comprometer a de seus

jogadores. Surgem algumas realidades paradoxais. Seu Bayern é

defensivamente o melhor time do continente, ainda que se defenda a cinquenta

metros de seu gol e com dois jovens (Kimmich e Alaba) jogando como

defensores centrais sem sê-los. Seus jogadores aparentam jogar com

parcimônia, mas fazem entre 170 e 240 sprints por jogo, quase sempre mais do

que o rival. E em 53 jogos da terceira e última temporadas, o Bayern concede

apenas 161 finalizações aos rivais, uma média de só três por partida. Pep nos

define seu jogo:

— Se alguém quer compreender realmente o que fizemos nesses três anos,

o resumo é que jogamos com Kimmich e Alaba (um meio-campista central e um

lateral) como defensores centrais, e os colocamos a cinquenta metros de Neuer;

isso permitiu que nos impuséssemos no campo do adversário, jogando de tal

maneira que só sofremos dezessete gols em 34 jogos de liga. Esse é o nosso

jogo.

Nem o próprio Guardiola imaginava que teria de se adaptar tanto à

Alemanha. Logo compreendeu que seu Bayern não podia jogar como seu

Barcelona: bastou comprovar as qualidades intrínsecas dos jogadores de que

dispunha. Salvo Thiago, formado em La Masia, barcelonista, nenhum deles

acumulava milhares de horas de formação específica no modelo de jogo de

posição. Em Munique, Pep podia ensinar os fundamentos a eles e aproximá-los

desse modelo, mas não os converter nos praticantes mais ortodoxos desse tipo

de jogo. O Barça era uma orquestra quase inteiramente composta de violinistas,

enquanto, no Bayern, os intérpretes tinham menor profundidade específica,

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mas maior diversidade. Pela própria essência dos instrumentos que a

compunham, a “Filarmônica de Munique” não podia soar igual à “Sinfônica de

Barcelona”, embora interpretasse a mesma partitura, pois, por definição, era

mais heterogênea em suas qualidades. Ademais, o clube seguiu priorizando esse

traço, por exemplo, quando negociou Toni Kroos contra a opinião de Guardiola.

Em pouco tempo, Pep compreende essa nova realidade, recua em sua ideia

de reproduzir o modelo do Barça e empreende um caminho mais longo e

distinto. Não renuncia a seu conceito de futebol: quer a bola, quer dominar os

jogos, pausá-los, frear a velocidade dos rivais, abortar seus contragolpes, impor

a presença de seu time no gramado por intermédio do passe e do movimento

constante sem abandonar as posições, atacando sempre, em qualquer cenário.

Mas renuncia ao dogma canônico e consegue que o Bayern interprete o jogo de

posição no sentido vertical e em alta velocidade.

OS 23 MÓDULOS UTILIZADOS

Nada reflete melhor a mudança de Pep na Alemanha do que o número de

módulos de jogo que utilizou. Em Munique, ele empregou 23 módulos

diferentes, número muito próximo dos 29 que Marcelo Bielsa catalogou

como cifra total que um time de futebol pode praticar.

Podemos agrupar esses 23 módulos em três grandes blocos, de acordo com

a frequência e a maneira com que Pep os utilizou no Bayern: *

• os troncais;

• os alternativos;

• os esporádicos.

Troncais

4-3-3

4-2-3-1

4-2-4

3-4-3

2-3-5

2-3-2-3

Alternativos

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4-4-2 (com e sem losango)

4-1-4-1

4-2-2-2

4-2-1-3

4-1-1-4

3-5-2 (e sua variante defensiva 5-3-2)

3-3-1-3

3-2-3-2

2-3-3-2

2-4-4

Esporádicos

3-6-1

3-2-5

3-1-4-2

3-1-2-1-3

3-3-4

5-4-1

2-3-1-4

* Para reduzir a quantidade de cifras empregadas, nos módulos não consta a figura do goleiro.

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4.2. UM CANIVETE SUÍÇO

Contra grandes problemas, soluções simples.

LEONTXO GARCÍA

Na primeira temporada em Munique, Guardiola vence de forma retumbante na

liga, mas cai da mesma maneira na Champions League. Não conseguiu seu

propósito, como reconhece em maio de 2014:

— Preciso de mais tempo para me assegurar de que a equipe é minha.

Preciso de mais tempo. Ganhamos e ganhamos muito; e, por essa razão, estamos

todos contentes, porque a vitória sempre lhe dá tempo para fazer mais coisas.

Ganhar títulos lhe dá tempo para construir o futuro. Mas o que traz a satisfação

verdadeira é sentir que o time é seu e joga como você quer. E nisso ainda

preciso de tempo. A equipe ainda não é minha por completo. […] Por quê? É que

é algo contracultural. Preciso convencer os jogadores. E no processo de “você se

adapta e eu me adapto”, tem de haver um mix. Portanto, é necessário alcançar

um ponto de encontro nesta matéria. Mas eu vou convencer esses jogadores. E é

contracultural por acontecer depois de eles terem ganhado um triplete e com a

mesma base de jogadores que o conseguiu.

Na segunda temporada, um grande avanço se produz, embora os

resultados não reflitam esse progresso no jogo em sua verdadeira medida. Com

Xabi Alonso no leme, Pep consegue que o time adote definitivamente o eixo

vertical como orientação básica, sem perder nenhum de seus atributos de passe,

a pausa e as linhas compactas. Se Lahm é a peça-chave da primeira temporada,

Alonso é a da segunda. Uma praga de lesões impedirá que se conheça o

autêntico rendimento do Bayern no momento culminante do ano, quando

voltará a cair nas semifinais europeias.

A harmonia no jogo se alcançará na terceira temporada, na qual nenhum

jogador se destacou demais, mas sim todo o coletivo. É um time maduro em sua

nova forma de jogar, capaz de interpretar partituras distintas de acordo com as

necessidades da partida e do rival. Guardiola se mimetizou em um camaleão, e o

Bayern também. É uma equipe eclética. Joga com dois, três e até quatro planos

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de atuação diferentes em um mesmo confronto, e passa de um a outro

praticamente sem necessidade de receber instruções. Os jogadores podem

ocupar distintas posições sem dificuldade: Javi Martínez é defensor central ou o

interior esquerdo; Xabi Alonso é meio-campista central ou defensor central;

Douglas Costa é extremo esquerdo ou interior direito; Kimmich é lateral

esquerdo, defensor central ou extremo direito… Se, no Barcelona, o treinador

pretendia que cada futebolista pudesse jogar em três posições no campo, em

Munique subiu a aposta, visto que Rafinha jogou em cinco posições distintas;

David Alaba, em seis; e Joshua Kimmich e Philipp Lahm rasgaram todos os

esquemas, jogando em até oito posições diferentes…

Todos aprenderam a tocar todos os instrumentos e se produziu um efeito

que nem o próprio Guardiola tinha imaginado: sempre acreditamos que sua

maneira de jogar exigia atletas especialistas, mas ocorre que, no Bayern, os

jogadores alcançaram a categoria de multifuncionais. Cada jogador é como um

canivete suíço, sem deixar de ser um especialista; nesta transformação, o

treinador teve paciência, mas, sobretudo, foram os jogadores que

demonstraram inteligência e vontade. Não é por acaso que, a poucas semanas

de começar a dirigir o Manchester City, Pep já tenha se referido a esse conceito

de jogador multifuncional: “Fernandinho tem tanta qualidade que pode jogar

em dez posições”.

No Bayern, Pep Guardiola apostou na queda das fronteiras interiores do

time e no desaparecimento das posições. Se antes seu jogo era para jogadores

guardiolistas, o Bayern não só será lembrado por homens com esses traços

evidentes, como Lahm e Kimmich, mas também por outros como Vidal e

Robben, perfis que a princípio pareciam incompatíveis com o treinador. Ainda

que o jogo de seu Bayern tenha se distinguido pelos princípios mais

estreitamente ligados a Pep — a propriedade da bola, o ataque posicional, a

organização esmerada, a defesa adiantada (sempre foi o time mais ofensivo e

menos goleado), a pressão por proximidade, as trocas permanentes… —, ao

mesmo tempo, também se caracterizou por fundamentos que não pareciam

próprios de Guardiola: a verticalidade, a velocidade (não só do passe, mas

também do jogador), o passe longo e no espaço vazio, a priorização dos

extremos, carregar a área com atacantes numerosos ou o chute de longa

distância… “Eu me adaptei e aprendi muito mais do que o contrário. Foi uma

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experiência de vida do cacete, aprendi muito”, ele repete sem parar quando faz

seu balanço final.

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4.3. O PROCESSO DE ADAPTAÇÃO E APRENDIZAGEM

Aprender é o único antídoto contra a velhice.

HOWARD GARDNER

Pep imaginava que viveria um processo de mútua adaptação entre ele e os

jogadores, mas, na verdade, não foi exatamente assim. Porque na prática não

existe esse processo mútuo e simétrico de adaptação das duas partes, mas dois

processos distintos: um é o de adaptação; o outro, de aprendizagem. O

treinador se adapta aos jogadores e eles aprendem uma organização distinta de

jogo. O diretor da orquestra se adapta aos instrumentos que a compõem; os

intérpretes aprendem a tocar uma partitura diferente.

É um processo que fala bem do treinador e ainda melhor dos jogadores,

como enfatiza o escritor alemão Ronald Reng: “Os jogadores do Bayern me

surpreenderam mais do que o próprio Pep. Sua atitude humilde, sempre

dispostos a aprender, me surpreendeu”.

O psiquiatra húngaro Thomas Szasz explicava que “cada ato de

aprendizagem consciente requer a vontade de sofrer uma lesão na própria

autoestima”, e essa vontade expressada pelos jogadores do Bayern — com

Lahm, Neuer, Alaba e Boateng puxando a fila — é um dos maiores traços de

generosidade que já houve no futebol. Campeões consagrados, ganhadores de

tudo, aceitaram com humildade aprender outra maneira de praticar seu

esporte. Aceitaram de bom grado, inclusive assumindo as dificuldades que

sentiram no processo, essa lesão na autoestima que Szasz menciona. Por sua

vez, o treinador aprendeu muitíssimo. Não por acaso, para qualquer professor, a

melhor forma de aprender é ensinando.

Domènec Torrent explica como foi esse processo:

— Os jogadores entendiam os rondos como algo lúdico, mas para Pep eles

têm uma importância básica e ele os fez compreender de imediato. A essência

da mudança no Bayern com Guardiola se resume nos rondos, em como os

jogadores acabaram entendendo essa atividade. Para eles, era só um exercício

para começar ou terminar o aquecimento, só um divertimento em que a bola

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podia ir dez metros para fora do perímetro enquanto não tocasse no chão. Era

então outra forma de compreendê-lo. Mas desde o primeiro dia, Pep explicou

que seria muito importante a forma como se postavam, como recebiam a bola,

se o controle era com a perna direita ou esquerda. Pep tem claro que o rondo

permite melhorar o jogador, permite que ele se prepare corretamente para

receber a bola, é a essência para não perder a bola e jogar com mais velocidade.

Os jogadores entenderam muito rápido que aquilo tinha um sentido e uma

lógica, logo progredindo. Um dia estávamos comparando os rondos dos

primeiros treinamentos com os do final, e foi um espetáculo. Não tinha nada a

ver um com o outro. No final, a bola voava.

— Depois dos rondos, foi preciso ensinar os jogos de posição…

— Sim, eles nunca tinham praticado. Desconheciam o sentido dos jogos de

posição. Para Pep e para a escola do Barcelona, é um costume, mas em Munique

se acreditava, a princípio, que era um jogo para manter a posse da bola. Não! É

um jogo de posição, não de posse. Um jogo para saber como você deve se

colocar e se perfilar quando tem a bola e onde deve pressionar quando não tem.

É um exercício eminentemente tático, mas com um componente físico. Lorenzo

Buenaventura media as pulsações e sempre eram muito altas. É um exercício

muito completo, que é essencial para Pep, porque dá velocidade e sentido ao

jogo. Os atletas logo compreenderam que não se tratava de conservar a bola,

mas de como deveriam jogar e como cada um deveria se perfilar.

— Foi um processo lento e difícil?

— Não, eles pegaram rapidamente. Lahm ficava encantado e, se algum dia

não praticávamos, ele reclamava. E Manu Neuer sempre queria participar dos

jogos de posição porque melhorava muito seu jogo com o pé. Até nos dias em

que ele deveria fazer recuperação [física], nos pedia para participar. Todos

comprovaram que o jogo de posição lhes beneficiava, que jogavam mais fácil e

que tudo o que fazíamos tinha um sentido.

— Os jogos de posição podem ser considerados um símbolo do processo

que Guardiola levou a cabo no Bayern?

— Sim, sem dúvida. Os jogadores se convenceram de imediato. Os meios de

comunicação locais divulgaram outra coisa. Mas os jogadores sempre tiveram a

mente aberta para as ideias de Pep, absorvendo-as imediatamente. Muita gente

entende que, com um futebol direto, você consegue mais; mas, no Barcelona e

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no Bayern, ficou demonstrado que o jogo de posição dá bons frutos. Os

jogadores alemães se surpreendiam com a intensidade que esse tipo de

trabalho gerava, porque, mesmo com um esforço físico brutal, o que eles

estavam praticando era a essência do futebol: perda de bola, pressão,

recuperação, voltar a se abrir e ter a bola novamente em seu poder…

O assistente de Pep reflete sobre o choque cultural vivido entre as ideias de

Guardiola e a tradição do jogo alemão:

— O choque cultural aconteceu mais na imprensa e em parte da torcida,

mas não com os jogadores, que logo seguiram a rota demarcada por Pep. No

terceiro mês já nos diziam que nunca tiveram a sensação de ser tão dominantes

na Bundesliga. Eles disseram que, mesmo no ano do triplete, que foi um êxito

enorme, frequentemente chegavam igualados aos últimos minutos dos jogos e

que só os resolviam no final, na base da coragem e do talento.

Em Manchester, Pep deu início a um processo similar, também com os

rondos como o primeiro passo e os jogos de posição como segundo degrau

desse processo de adaptação, ensinamento e aprendizagem. Devemos enfatizar

que é um processo que não tem fim e cujo objetivo é que o aluno (o jogador) se

torne “independente” do treinador graças a seu domínio dos conceitos

aprendidos — do mesmo modo que o objetivo do mestre artesão consistia em

ensinar o aprendiz a não depender mais dele, uma vez transcorrido o longo

período de aprendizado. No futebol, o ideal é que a equipe consiga “pensar” por

sua conta, sem necessidade de receber instruções constantes do treinador,

embora para isso seja preciso que o processo de que falamos torne-se exaustivo

e profundo. Isso exige tempo. O ideal é que o jogador consiga expressar sua

máxima potencialidade de jogo sem necessidade de pensar cada ação. Ao

terminar a interpretação da obra, o violinista se aproxima respeitosamente do

diretor da orquestra e, estendendo sua mão, lhe diz: “Obrigado, maestro!”.

Vejamos agora um detalhe concreto desse processo no Bayern: como o

jovem meio-campista central Joshua Kimmich se converteu em defensor

central?

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4.3.1. KIMMICH DE CENTRAL: ACASO, INTUIÇÃO E ATREVIMENTO

Ao final, a cada gesto você está jogando; e, a

cada gesto, demonstra uns ou outros valores.

HOWARD ZINN

Primeiro caiu Benatia, depois Boateng; cinco dias mais tarde, Javi Martínez; ao

fim de duas semanas, Holger Badstuber. No início de 2016, Guardiola ficou sem

os quatro defensores centrais do Bayern e, mais uma vez, teve de improvisar:

— Usemos Kimmich como zagueiro.

Pep dá a instrução a Domènec Torrent, que entrega um colete laranja ao

jovem Joshua Kimmich, obrigando-o a mudar de lado. Ele iria jogar como meiocampista

central no time vermelho, mas foi escolhido como defensor central do

time laranja, e deve ensaiar uma saída de bola especial com Lahm. A escolha de

Kimmich não foi premeditada, mas quase um fruto do acaso, imposta pela baixa

de Javi Martínez e pela necessidade de trabalhar essa nova saída de bola. É,

contudo, uma escolha baseada nos fundamentos do jogo do treinador: com

Cruyff, Pep aprendeu que um bom meio-campista central tem possibilidades de

jogar no centro da defesa. O próprio Pep teve de jogar como defensor central de

emergência no Barcelona, precisamente em Munique, contra o Bayern, em

1996. E como treinador não foram poucas as vezes em que precisou utilizar seu

meio-campista central na defesa: usou Yaya Touré na final da Champions de

2009, e Javier Mascherano na decisão de 2011. Hoje, sem pensar, movido

apenas pela intuição, ele faz de Kimmich o eleito.

Estamos em 28 de janeiro de 2016 e Javi Martínez acaba de anunciar ao

treinador que não pode mais suportar as dores no joelho: ele vai a Barcelona

para operar o menisco. Não é grave, e em apenas dois meses ele pode voltar

para o time, mas sua ausência abre uma cratera na defesa. Para substituí-lo, o

jovem meio-campista central Kimmich se coloca em uma linha defensiva com

Lahm, Badstuber e Bernat, que repete sem cessar a mencionada abertura de

jogo: o capitão se adianta até o círculo central, se aproxima de Xabi Alonso, e os

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três defensores combinam toques curtos até encontrar o passe adequado que

permita cruzar a linha média e assentar o time no campo do adversário.

O treinador elegeu a saída com três defensores como elemento prioritário

para a parte final da temporada. A razão fundamental é que, assim, garante a

segurança nos passes entre os zagueiros: “Com dois centrais na saída, às vezes

os passes são muito longos, porque eles estão bastante distantes entre si. Por

outro lado, com a saída de três (dois centrais e um lateral esquerdo), os passes

são mais curtos e, portanto, mais rápidos e mais precisos. A saída é mais segura.

Mas essa saída só me interessa havendo a progressão de Lahm. Quero fazer uma

mudança importante em relação aos dois anos anteriores. Quero sair sempre

com três atrás, e Lahm como segundo meio-campista central acompanhando

Xabi”.

Pep tem dez tipos diferentes de saídas de bola codificadas e ensaiadas. É

um assunto-chave para ele, porque entende que a construção do jogo só pode

ser verdadeiramente eficaz se começar da maneira correta desde trás. É algo

bem semelhante à importância das aberturas no xadrez (ainda que no futebol

não tenhamos “batizado” essas modalidades de saída de bola, exceto a

lavolpiana). Para o jogo de posição, uma saída limpa, coordenada e harmônica é

um passo imprescindível. Juanma Lillo nos explica a razão: “Se a intenção é

viver instalado no campo do adversário, é preciso uma saída vantajosa e

adequada à conjuntura particular e cultural da equipe. Só se você sair bem e de

forma limpa, poderá se instalar no campo do adversário. Sem essa boa saída,

não é possível”.

Durante os dois períodos de doze minutos que dura a partida de

treinamento, Pep não se separa de Kimmich, que, acossado por Müller e Coman,

sofre com alguns desajustes. A cena lembra inevitavelmente a que Javi Martínez

protagonizou em 2013, quando começava sua etapa no Bayern. Pep emprega as

mesmas instruções:

— Linha, Josh, linha! Mantenha a linha, Joshua, sem recuar, adiante,

adiante! Vai, vai! Linha, Josh, linha!

Enquanto os dois times se enfrentam com a faca nos dentes durante a

partida (que será vencida pelo time laranja, com um gol de Robben), Pep só tem

olhos para Kimmich:

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— Para cima do centroavante, Josh! Agora não, Josh, agora não! Olhe para

Badstu, olhe para Badstu!

Badstuber determina a linha e Kimmich perde a orientação

frequentemente, porque não é fácil respeitá-la nessas condições, contra duas

enguias que serpenteiam como Müller e Coman, e desprovido do apoio de

Lahm, que abandona a lateral para acompanhar Xabi. A comissão técnica está

satisfeita com o experimento.

— Ele aprenderá em quatro dias — diz Domènec Torrent, após marcar um

impedimento polêmico, do qual Müller reclama.

— Como sai bem com a bola! — aponta Carles Planchart.

— Ele tem talento, aprenderá — observa Lorenzo Buenaventura.

— E é um garoto valente — conclui Manel Estiarte.

Os quatro estão sobre a linha lateral, enquanto Pep continua correndo com

Kimmich, como se fosse sua sombra, marcando seus movimentos, corrigindo-o,

polindo as incorreções, dando-lhe conselhos sobre o papel de defensor central

que o jovem terá de aprender depressa.

Quando o jogo-treino termina, todo a equipe técnica se vira para Pep para

compartilhar seu veredicto:

— Ele vai conseguir — diz Guardiola, coçando a cabeça. — Não será fácil,

precisa aprender a manter a linha, mas vai conseguir. É muito cedo para decidir.

Uma coisa é jogar bem uma partida dessas, outra é competir. A liga é muito dura

e podemos queimar o menino se o colocarmos ali…

Mas a maneira como Pep fala sugere o contrário. Sugere que “se ele se

atreve a conseguir, eu vou me atrever a colocá-lo”.

Kimmich lembra inevitavelmente o caso de Javier Mascherano, o meiocampista

central argentino que Guardiola transformou em zagueiro central no

Barcelona. Kimmich tem a mesma altura (1,76 m), é rápido, gira com facilidade

e vai bem de cabeça. Ele é um “miniMascherano”. E Pep percebe isso de

imediato. E ainda vê uma vantagem:

— Ele é jovem, aprende rápido, tem uma visão panorâmica e um jogo de

pés excelentes. Pode nos dar uma saída de bola magnífica, mas é preciso

trabalhar muito. Faremos sessões específicas só para ele: linha, linha, linha,

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para que aprenda os truques do central. Ele é rápido, muito rápido, vai bem por

cima, é disciplinado e tem qualidade com a bola, por ser meio-campista. Mas

precisa aprender o conceito de ir para trás. Estamos sendo obrigados a

experimentar.

Domènec Torrent acrescenta um detalhe importante:

— No jogo que Pep propõe, um bom meio-campista jogando como defensor

pode dar uma saída de bola que impulsione o time como se fosse uma catapulta.

Claro que ainda tem que aprender a defender…

Nos dias seguintes, o jovem alemão receberá um mestrado defensivo da

comissão técnica: no campo e também por intermédio de vídeos. Uma semana

exaustiva de ensinamentos e aprendizagem, durante a qual ele absorve uma

dose extraordinária de ações e conceitos (tenhamos em conta que, para sua

reconversão como defensor central, Javi Martínez revisou mais de duzentos

vídeos diferentes com Pep). A cabeça de Kimmich ferve, porque o treinador

decidiu ir a fundo com a proposta. Cinco dias mais tarde, ele será escalado como

defensor central no jogo da liga contra o Hoffenheim, sua oitava posição

diferente no time em apenas meio ano.

O jovem rende em bom nível e Pep começa a avaliar seriamente utilizá-lo

durante as próximas semanas, e não só como medida de emergência.

— Temos de experimentá-lo em condições mais duras que as de hoje.

Temos de experimentá-lo em Leverkusen contra o Kießling, mas gostei do que

vi hoje. Ele sabe segurar a bola se for necessário ou atravessar linhas sem medo;

com ele, a saída de três é muito confiável. Tenho a impressão de que pode ser

um central ideal para o Bayern. Esse menino não tem medo de ir adiante.

Kimmich jogou sete partidas seguidas inteiras, de modo admirável.

Descansou uma rodada e voltou para emendar a maioria dos jogos importantes

do final da temporada, fosse contra a Juventus, o Borussia Dortmund, o Benfica

ou na final da Copa. Seu rendimento foi inesperado e soberbo (o que acabou lhe

valendo também a titularidade como lateral na Eurocopa de seleções), e ainda

que a chave do sucesso esteja nas muitas horas de trabalho que o rapaz e o

treinador dedicaram a corrigir os detalhes de sua nova posição, não menos

importante foi o atrevimento que ambos mostraram: Guardiola por jogar com o

jovem em uma situação tão delicada, e Kimmich pela valentia que demonstrou

tanto nos dias em que acertou quanto nos poucos momentos em que errou.

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Nesse caso, o atrevimento foi um fator tão importante quanto a aprendizagem e

o próprio acaso que interveio, inesperadamente, para que se produzisse esse

tipo de experimento.

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4.4. OS TRAÇOS TÁTICOS

O que você vê é a consequência do que você não vê.

No livro Guardiola Confidencial, publicado no Brasil em 2015, são descritas as

principais novidades que Guardiola introduziu no jogo do Bayern em seu

primeiro ano, assim como a metodologia empregada. Como fundamentos de

jogo, recordemos os seguintes: a posição alta da linha defensiva; o avançar

juntos; a bola que ordena a equipe; a busca de superioridade no centro do

campo; os laterais como falsos interiores; o desaparecimento do falso 9. Como

ferramentas metodológicas, apontemos: o rondo para melhorar o gesto técnico;

os jogos de posição para o passe, a colocação, a pressão, a intencionalidade e a

troca de posicionamento de acordo com a perda ou a recuperação da bola; o

ensaio de distintas saídas de bola de forma analítica e sem oposição; e a prática

de diferentes tipos de pressão sobre o adversário.

Dois anos mais tarde, é interessante detalhar algumas das principais

características do jogo do Bayern em 2016, porque isso nos permite ver os

traços da partitura final:

• Ter a bola em seu poder. Nos 161 jogos dirigidos por Guardiola, o Bayern

tem a posse de bola em média por 70,47% do tempo, a maior porcentagem do

futebol europeu. Esse dado é significativo da mudança que se produziu no modo

de jogar do Bayern com relação ao time dirigido por Jupp Heynckes, que teve

média de 61,35%.

• Avançar de forma compacta por intermédio do passe. O time de Pep tem

uma média de 726 passes por jogo, 159 a mais do que com Heynckes (567).

Esse é provavelmente outro dos elementos

que melhor refletem a mudança de paradigma no jogo do Bayern, junto

com a posição média da defesa.

• Precisão no passe. O Bayern de Guardiola alcança a segunda melhor média

europeia no acerto dos passes (87,9%, contra 88,7% do Paris Saint-Germain),

embora seja quem tenha dado o maior número de passes entre todos os times

das grandes ligas (726, contra 686 do psg). Os jogadores titulares com maior

acerto foram (média das três temporadas): Alaba (91,31%), Lahm (91,04%) e

Alonso (90,59%). O caso de Alaba é muito significativo, pois ele melhorou

substancialmente seu registro em cada uma das três temporadas: 89,35%;

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91,65% e 92,48%. Os dois jogadores com menor acerto no passe foram

Lewandowski (77,97%) e Müller (70,1%).

• Posição alta dos jogadores no campo. Oito dos jogadores tiveram sua

posição média sempre no campo do adversário; os outros dois (exceto o

goleiro) se situaram no círculo central como posição média. O centro de

gravidade da equipe se fixou a 58,3 metros de Neuer. A distância média entre as

linhas foi de 29,3 metros, o que dá a ideia de um time contraído.

• Defesa muito alta. Para alcançar a mencionada posição alta de todo o

time, foi necessário adiantar muito a linha defensiva. Se com Heynckes ela se

situava a 36,1 metros do goleiro, e, no primeiro ano de Guardiola, subiu para

43,5 metros, na terceira temporada terminou colocando-se a 48,5 metros.

Apesar disso, o time sofreu menos finalizações contra seu gol (apenas três por

jogo) que nos cinco anos anteriores, e melhorou seu recorde histórico da

Bundesliga, com apenas dezessete gols sofridos em 34 jogos. O número de gols

recebidos por temporada em todas as competições diminuiu a cada ano: 44, 36

e 31.

• Impossibilidade de contragolpear por falta de espaço. A posição média tão

alta da equipe provocou como consequência negativa a impossibilidade de

efetuar contra-ataques. A própria posição dominante negava o espaço

necessário, e o Bayern dispôs de apenas trinta ações de contragolpe em cada

temporada, com média de três gols por curso (contra 7,5 do Bayern de

Heynckes).

• Finalizações. O modelo de jogo aplicado com Guardiola incrementou o

número de chutes a gol com relação ao Bayern de Heynckes: 986 contra 908. O

aumento foi mais significativo nos chutes dentro da área (631 contra 571), mas

também ocorreu com os chutes de fora

da área (355 a 337). O número total de finalizações, somando as certas e as

que foram desviadas, subiu para 2914.

• Defesa por zona. A implantação da defesa por zona, tanto em escanteios

quanto em faltas, teve um balanço de apenas catorze gols sofridos em lances de

bola parada, em 161 jogos. Nesses três cursos, o Bayern sofreu só sete gols em

470 escanteios (um gol a cada 67 tiros de canto cobrados pelo adversário). A

defesa zonal nos escanteios sofreu leves mudanças com o passar dos anos,

alterando a posição das duas linhas de acordo com o tipo de rival e

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acrescentando bloqueios específicos. O trabalho de Domènec Torrent nessa

melhora foi eficaz, porque o número de gols sofridos em escanteios diminuiu a

cada ano: cinco no primeiro, dois no segundo e nenhum no terceiro ano.

• Variabilidade de recursos táticos. Nas três temporadas, Guardiola

empregou até dez saídas de bola diferentes, organizadas e ensaiadas, e usou 23

módulos de jogo distintos.

[Fonte dos dados: opta.]

TRIÂNGULOS E TROCAS

Wolfsburgo, 27 de outubro de 2015

As mudanças e movimentos dentro de uma equipe são frutos de sua vida

interna, de sua evolução diária. A suplência de Robben hoje em uma

partida de Copa evidencia que nada é permanente. Mas, além disso, o

processo de construção de um time fica marcado pelas interações dos

jogadores, pelas influências que vão estabelecendo entre si. Alguns atletas

influem e são influenciados por outros quando são escalados juntos,

gerando inesperadas multiplicações de rendimento. E esse é um fator

essencial na hora de escolher a escalação. Em Wolfsburgo, além de um

grande resultado (3 × 1), o Bayern começou a construir interações que

renderão muito no futuro: quando Alaba se adianta como extremo

esquerdo, Thiago se transforma em lateral esquerdo. É um lateral postiço,

simplesmente uma plataforma da qual ele contempla todo o campo de

operações e pode tomar as melhores decisões. Como surgiu essa sequência

de movimentos? Domènec Torrent explica:

— Pep está insistindo muito nos triângulos pela esquerda. No outro

lado não fazemos isso porque saímos fácil com Jérôme, Philipp e Xabi. Mas

pela esquerda não buscamos apenas sair com a bola, mas ser agressivos. As

combinações entre Coman e Alaba nos permitem essa agressividade, e com

isso, de maneira natural, Thiago retrocede um pouco, como se fosse um

falso lateral esquerdo. Ele não só é o vértice básico desses triângulos, mas

obtém uma vantagem primordial: vê todo o campo rival de frente e pode

facilmente tomar a melhor decisão.

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A dinâmica real é que Coman e Alaba atacam e atacam sem parar, e

compartilham as posições de exterior e interior de maneira constante.

Thiago tem que se ocupar de guardar a plataforma de iniciação do jogo

como se fosse o lateral esquerdo. Ele se sente à vontade e seus

companheiros também. E os três começam a formar um triângulo feliz que

ataca de modo inigualável. Torrent acrescenta alguns detalhes:

— O treinador marca as posições que devem ser ocupadas e são os

jogadores que decidem, em cada momento, quem ocupa cada uma delas.

Fazemos triângulos de formas diferentes, que permitem a expressão do

jogador e estimulam sua capacidade de decisão. É uma fórmula flexível.

O processo de adaptação-aprendizagem entre técnico e jogadores levou a

orquestra a alcançar sua harmonia durante o terceiro ano, quando o jogo

chegou a seu melhor nível e a temporada foi esplêndida, ainda que a eliminação

nas semifinais da Champions League tenha impedido que culminasse em um

sucesso absoluto. Na Alemanha foi cunhado o conceito de “inacabada” para

definir a obra de Guardiola: uma sinfonia inacabada. Como dirá o jornalista

alemão Uli Köhler, o Bayern de Pep seria uma obra de arte à qual faltou o toque

final da culminação europeia: “[Guardiola] disse que mudaria pequenos

detalhes, mas depois mudou tudo. Revolucionou o Bayern e o colocou para

jogar futebol. Pôs a equipe em outro nível de jogo, o mais alto, porque jogar

assim, com a defesa quase no campo oposto, é muito perigoso. Nunca

voltaremos a ver um futebol como o de Guardiola no Bayern. Foi um sucesso.

Ele melhorou o time, os jogadores e toda a Bundesliga teve de melhorar porque

ele trouxe ideias novas. Ganhou muitas coisas e deixa algo especial, deixa um

futebol para a lembrança. Deixa um estilo de jogo que o Bayern nunca voltará a

praticar e que os torcedores não verão nunca mais. Mas faltou a cereja no bolo:

a Champions League”.

Em Munique, Guardiola realizou, acima de tudo, um exercício de

ensinamentos, flexibilidade e multifuncionalidade. Ele se mimetizou com seus

jogadores e extraiu características que muitos deles não conheciam. Essa é uma

obrigação de todo treinador: facilitar a expansão do talento de seus jogadores.

Tirar deles as melhores qualidades que possuem, inclusive as desconhecidas. O

talento de Lahm como meio-campista, a capacidade de Kimmich como defensor

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central, a excelência dos passes de Boateng ou a eletricidade de Douglas Costa

são alguns desses “descobrimentos” de Guardiola, embora ele tenha, na

realidade, apenas criado as condições para que esses futebolistas expressassem

tais qualidades com liberdade. Em um jogo como o futebol, não linear, complexo

e variado, essa é uma das maiores virtudes que um líder técnico pode possuir:

facilitar e promover a expansão do talento armazenado por seus homens, que

frequentemente permanece em compartimentos escondidos.

OS DADOS DE PEP GUARDIOLA NO FC BAYERN (2013-16)

161 jogos

121 vitórias (75,16%)

21 empates

19 derrotas

396 gols marcados (2,46 gols/jogo)

111 gols sofridos (0,69 gol/jogo)

7 títulos (3 Bundesligas, 2 Copas da Alemanha, 1 Mundial de Clubes, 1

Supercopa da Europa)

Média de passes por jogo: 726

Passes curtos por jogo: 644 (88,7%)

Passes longos por jogo: 63 (8,6%)

Cruzamentos por jogo: 17,3

Média de passes certos: 87,9%

Média de finalizações por jogo: 18,1

Média de dribles por jogo: 16,6

Média de posse de bola: 70,47%

Bundesliga

102 jogos

82 vitórias (80,39%)

11 empates

9 derrotas

254 gols marcados (2,49 gols/jogo)

58 gols sofridos (0,57 gol/jogo)

Copa da Alemanha

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17 jogos

14 vitórias (82,35%)

3 empates

0 derrota

45 gols marcados (2,65 gols/jogo)

7 gols sofridos (0,41 gol/jogo)

Champions League

36 jogos

23 vitórias (63,89%)

5 empates

8 derrotas

87 gols marcados (2,42 gols/jogo)

37 gols sofridos (1,03 gol/jogo)

Outras competições

6 jogos

2 vitórias (33,33%)

2 empates

2 derrotas

10 gols marcados (1,66 gol/jogo)

9 gols sofridos (1,5 gol/jogo)

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4.5. AS REGRAS DE PEP

Joga-se como vive-se.

XABIER AZKARGORTA

Que jogo o torcedor do Manchester City imagina que Guardiola vai propor? Um

jogo reconhecível e coerente com a personalidade do treinador. Seu jogo com o

Bayern foi diferente de seu jogo com o Barcelona, mas em ambos os casos foi

um futebol “de Guardiola”, do mesmo modo que o estilo de um músico se

reconhece ainda que mude com os anos e percorra diferentes etapas. Pep, como

veremos mais adiante, possui alma de pintor e também percorrerá etapas

distintas, mas todas as rotas passam por um mesmo caminho, o que faz seu jogo

ser identificável e reconhecível.

Se em Munique usou os laterais como falsos interiores e os extremos como

meios-campistas, Pep também variou sistemas de jogo como quem vira as

páginas de um livro, recuperou a pirâmide (o módulo 2-3-5) e, em função das

circunstâncias, se permitiu jogar com cinco atacantes ou cinco defensores, com

cinco meias ou só um, e ainda que tudo isso tenha significado uma melhora em

seu arcabouço de conhecimentos, não quer dizer que fará o mesmo no

Manchester City. Ou seja, não podemos confundir a ideologia com os detalhes

conjunturais.

Os fundamentos de seu repertório de ideias, de sua ideologia futebolística,

permanecem inalterados. Foram os mesmos em Barcelona e em Munique, e

serão os mesmos em Manchester e em seu destino seguinte, seja qual for: tomar

a iniciativa, ser dominante e atacar, ter a bola como ferramenta, construir o jogo

desde trás… O que muda, então? Os detalhes. Na Alemanha, ele incorporou

novos elementos, tendeu à iconoclastia e renovou movimentos e posições. Sua

essência se manteve idêntica, mas os detalhes mudaram substancialmente até o

ponto em que seu modelo de jogo se alterou. Quando você olha o quadro,

continua vendo uma pintura de Guardiola, mas é uma pintura diferente das que

estávamos acostumados a ver.

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Aqui reside a parte mais importante da transformação vivida por Pep na

Alemanha. Ele mudou, mas conserva a substância. Mudou em mil coisas, mas

mantém toda a sua essência ideológica. Se olharmos apenas para algumas

modificações ou adições concretas (o doble pivote ou o emprego de dois

centroavantes), podemos nos confundir. Perderemos a perspectiva global, pois

mesmo tendo mudado muito, Guardiola segue sendo Guardiola. Seu jogo

continua tendo traços inequívocos: a importância da saída de bola desde a

retaguarda, sem a qual não é possível construir o jogo de posição de maneira

sólida; a altura da linha defensiva, marcada pela posição da bola e com duas

características básicas: ir atrás do rival e cobrir o companheiro; a sequência de

quinze passes prévios como veículo facilitador da transição ataque-defesa; a

busca de superioridades (numéricas ou posicionais) na linha média; a

intencionalidade no passe como instrumento para desorganizar o adversário; a

procura por homens livres atrás das linhas de pressão do adversário; a

paciência imprescindível dos atacantes, que não devem buscar a bola, mas

confiar que seus companheiros a farão chegar no momento oportuno; e a gestão

defensiva dos jogadores rivais livres, aqueles que se ocupam de aproveitar os

contra-ataques.

Há quatro fundamentos do jogo de Guardiola que merecem ser ampliados

após sua passagem pela Alemanha:

• tomar a iniciativa;

• jogadores complementares;

• a velocidade e a pausa;

• fixar e abrir.

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4.5.1. TOMAR A INICIATIVA (POR KASPAROV)

Não é verdade que existem bons e maus treinadores. O que há são treinadores

valentes e outros que não o são.

JUANMA LILLO

Tomar a iniciativa do jogo é um pilar básico da mentalidade de Guardiola. Ele

não concebe o futebol de outro modo que não seja tendo a bola como

propriedade, avançando de forma coletiva (diz Juanma Lillo: “É preciso viajar

juntos, não só no mesmo trem, mas no mesmo vagão”), empregando o passe

como ferramenta para se organizar e desorganizar o rival, sendo agressivo para

recuperar a bola, ocupando o campo do adversário de forma massiva e

concentrando toda a intencionalidade do jogo em atacar o oponente.

— Minha ideia de futebol é simples: eu gosto de atacar, atacar e atacar…

Durante o último inverno, Pep leu o livro How Life Imitates Chess, de seu

bom amigo Garry Kasparov, e anotou cuidadosamente o que o grande mestre

enxadrista escreveu a respeito de tomar a iniciativa do jogo. São ideias muito

reveladoras:

“Já mencionamos antes o conceito de ter a iniciativa: é a chave para ter

êxito como atacante. Quando somos nós que criamos a ação em vez de

reagirmos, estamos conseguindo controlar o fluxo do jogo. Nosso adversário

deve reagir, o que significa que seus movimentos ficam mais limitados e,

portanto, mais previsíveis. A partir dessa posição de liderança, podemos olhar

adiante e seguir controlando a ação. Enquanto continuarmos gerando ameaças

e pressionando, manteremos a iniciativa. No xadrez, isso conduz a um ataque

que não pode ser combatido. Nos negócios, leva a uma maior participação no

mercado. Nas negociações, leva a uma oferta melhor. Na política, conduz a um

incremento nas urnas. Em todos os casos se cria um ciclo positivo de qualidade

verdadeira, ao que se soma a percepção de uma posição melhor e da iminência

da vitória, ou seja, benefícios tangíveis e intangíveis. Essa é a vantagem de quem

ataca.”

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Kasparov acrescenta que não basta ter a iniciativa, é preciso potencializá-la

sem cessar:

“Uma vez que dispomos da iniciativa, devemos explorá-la e alimentá-la

constantemente. Wilhelm Steinitz [primeiro campeão do mundo de xadrez,

entre 1886 e 1894] nos recorda que o jogador com vantagem tem obrigação de

atacar se não quiser perdê-la. É um fator dinâmico que pode desaparecer num

pequeno instante. Dominar a iniciativa pode se converter em ganhos. Ou pode

se transformar em um aumento cada vez mais forte da própria iniciativa até que

o adversário simplesmente não possa acompanhar o ritmo e caia derrotado.

“Isso não significa necessariamente concentrar suas forças em uma única

ameaça avassaladora. Pode funcionar, mas na vida real (ou no xadrez) não há

uma arma equivalente à Estrela da Morte em Star Wars, capaz de destruir

qualquer resistência. Nossos competidores reagirão e prepararão suas defesas,

por isso devemos usar criativamente nossa iniciativa e manter a perspectiva de

como definimos o que seja o sucesso. Um ataque não tem de ser tudo ou nada,

ou rápido como um raio. A pressão sustentada pode ser muito eficaz e a criação

de falhas na posição ocupada pelo nosso adversário pode nos conduzir a uma

vitória em longo prazo. Uma das qualidades do grande atacante é conseguir o

rendimento máximo de uma posição sem buscar mais do que é possível.”

O capítulo do livro em que Kasparov detalha esses conceitos tem o título “A

iniciativa raramente chama duas vezes”, e sua reflexão parece calcada no que

Guardiola costuma fazer com os fundamentos do jogo de posição, carregando

determinadas zonas do campo para enganar o adversário, ou determinando

quinze passes prévios a qualquer ataque para tratar de desorganizar o rival.

Pep entende o futebol como um processo:

— Sou um fã dos extremos, e no Bayern há extremos extraordinários. Mas

para que eles possam participar em situação de vantagem, precisamos construir

um processo de jogo que lhes dê essa vantagem a partir do primeiro passe,

desde a saída da bola de trás. E isso não é simples: é um processo longo e

complicado.

Kasparov define o xadrez como um processo similar:

“Ir um passo à frente significa que podemos desequilibrar nossos

adversários, além de mudar e nos mover de maneira que provoque fraquezas. O

defensor tem de correr para cobrir buracos, mas trabalhar sempre contra uma

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pressão constante logo se transforma em missão impossível. Cobrir uma brecha

significa criar outra em outro ponto, até que algo se rompe e o ataque fica

maior. No xadrez, temos o ‘princípio dos pontos vulneráveis’. É muito raro

ganhar uma partida contra um jogador forte com um só ponto de ataque. Em

vez de nos fixarmos neste único ponto, devemos aproveitar nossa pressão para

provocar outras falhas.”

Prossegue Kasparov:

“As principais ferramentas da iniciativa são a mobilidade, a flexibilidade e a

distração. Construir todos os nossos exércitos para atacar um único ponto pode

nos limitar tanto quanto faz com o defensor. Até o ataque dos aliados no Dia D

(Operação Overlord, a maior invasão por mar da história) implicou uma série

de táticas de distração para impedir os nazistas de enxergar a realidade e

preparar suas defesas. Junto com as técnicas mais tradicionais, os aliados

combinaram a criação de uma unidade do exército totalmente fictícia,

utilizando equipes ao estilo de Hollywood, para enganar o inimigo e fazê-lo crer

que os invasores dispunham do dobro de suas capacidades reais.”

Tomar a iniciativa tem uma relação direta com a ideologia do treinador

e/ou de seus futebolistas. A história do futebol é, na realidade, a história de suas

ideias, a história daqueles que se arriscaram a colocá-las em prática. Durante

uma longa refeição celebrada em Munique, Guardiola e Noel Sanvicente, extécnico

da Venezuela, falaram precisamente das ideias do futebol e deixaram

comentários muito interessantes, que reproduzo:

— O futebol tem um fio condutor — dizia Sanvicente. — Parece que está

tudo inventado e o que ocorre é que tudo se adapta às novas circunstâncias. O

que muda é em que momento, como e com quais jogadores se aplica um

sistema, um módulo ou um papel que já foram empregados em outros tempos.

— Claro que existe um fio condutor, sem dúvida, e em todas as formas de

jogar — aponta Guardiola. — Se você pensa no catenaccio, há um fio desde

Nereo Rocco até o que Mourinho aplica no Camp Nou em 2010. É o mesmo. No

futebol, você decide o que quer ser e fazer. Por exemplo, o fundamento essencial

do meu jogo é a forma de defender e, com essa maneira de jogar, sempre somos

o time menos goleado de todo o campeonato. Sempre.

— É que o futebol, no fundo, é um debate entre ideias, um debate

ideológico. Por isso o fundamental não é tanto ganhar ou perder, mas o caminho

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que você escolhe e as razões pelas quais você o escolheu. A riqueza do futebol

reside no intercâmbio de ideias que se produz constantemente — observa o

venezuelano.

— No meu caso, o contexto me muda muito — insiste Guardiola. — É

impossível não mudar. Aqui na Alemanha, mudei a forma de atacar (a de

defender, não, pois é sempre a mesma), porque você se adapta às características

dos jogadores. Por exemplo, se o seu lateral não corre para cima e para baixo

por oitenta metros sem parar, você tem de se adaptar a isso. Se colocar o

extremo por dentro, meu lateral sobe, mas se meu lateral não está em condições

de subir com todo o vigor, então tenho que colocá-lo por dentro para que jogue,

e abrir o campo com o extremo. Porque você não pode atacar com profundidade

se não tiver amplitude. É impossível. E tem de adaptar seu ataque a essa

realidade. Agora, se tenho um lateral que é uma máquina, que vai para cima e

para baixo sem parar… Mas minha teoria (e creio que o futebol será assim nos

próximos tempos, e só falo do jogo posicional e não de outro modelo) é que não

existem feras capazes de resistir toda uma temporada indo para cima e para

baixo, correndo oitenta metros a cada ação. Ou talvez eles aguentem uma

temporada, mas na seguinte já sofrem e na terceira não aguentam.

Tomar a iniciativa no jogo, como propõem Kasparov e Guardiola, é uma

conduta que contém em si um grande risco, e a história desse esporte está

repleta de exemplos. Os cemitérios do futebol estão cheios de equipes que

jogaram com esse tipo de risco e acabaram derrotados por outras que

praticaram uma proposta reativa, porque é óbvio que nem os melhores

fundamentos nem sua boa execução podem eliminar todos os riscos inerentes à

tomada da iniciativa. A última semifinal de Champions League contra o Atlético

de Madrid foi um bom exemplo. O Bayern esmagou o Atlético contra seu

próprio gol, dominou de forma implacável, assaltou sua área com contundência,

agressividade e rapidez, e finalizou 53 vezes nos 180 minutos de jogo (o que é

um recorde na Champions), mas bastou um passe falho de Boateng seguido de

uma pressão equivocada, uma leve indecisão de Xabi Alonso e um toque errado

de Alaba para que o risco de tomar a iniciativa levasse a um gol fatídico que fez

cair por terra o trabalho de um ano inteiro e condenou Guardiola a ser

freneticamente criticado por não conduzir seu time até a final. É o risco que

deve assumir, em qualquer âmbito de nossa existência, quem toma a iniciativa e

aposta por atuar de modo proativo. Pode-se obter recompensas muito

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satisfatórias, mas também castigos bem amargos. Mas não se pode pedir a quem

crê nisso que mude de ideia, assim como não se pode pedir ao leão que cace

mariposas.

Se o que acabo de dizer nos induzisse a crer que Guardiola não medita

sobre os riscos ou não tenta proteger seu time, erraríamos de forma categórica:

“Eu só busco dotar meus jogadores dos fundamentos de jogo que reduzam os

riscos ao mínimo e potencializem suas virtudes ao máximo”.

O time de Pep sempre foi, por grande diferença, o menos goleado da liga,

seja na Espanha com o Barcelona, ou na Alemanha com o Bayern. Até na única

vez em que não conquistou o título do campeonato, na temporada 2011/2012,

quando o Real Madrid de Mourinho o superou, seu Barcelona também foi o time

que sofreu menos gols. O último ano em Munique melhorou todas as relações

numéricas, pois o Bayern fechou a Bundesliga com média de 0,5 gol sofrido por

jogo, frente a 0,68 no primeiro ano e 0,53 no segundo. E isso com Kimmich e

Alaba como defensores centrais no trecho mais duro da temporada.

Ernesto Valverde, treinador do Athletic de Bilbao e bom amigo de

Guardiola, me explicou qual é, no seu entender, a maior virtude de Pep: “O que

Pep fez no Barcelona e no Bayern foi dotá-los de uma organização defensiva de

grande excelência. As pessoas creem que seu grande mérito esteve no ataque,

mas não é assim: o ataque foi bem com os jogos de posição, mas onde ele se

mostrou brilhante foi organizando a defesa”.

O sonho futebolístico de Guardiola é fora do comum: “Meu sonho é pôr os

onze adversários dentro de sua área desde o primeiro minuto e não os deixar

passar do meio de campo. Agora, para conseguir isso, é necessário ser muito

preciso. Como disse muito bem Marcelo [Bielsa], ‘todo mundo defende espaços

curtos e ataca espaços grandes. Eu quero atacar espaços pequenos e defender

espaços grandes’. Claro, se um ou dois jogadores não forem bem, acabou. Mas se

todos vão bem, eu tento manter você na sua área e fazer com que nem sequer

consiga cheirar a bola em todo o jogo. Isso eu aprendi com Marcelo e dei uma

palestra em Buenos Aires em que o citei, porque é preciso citar quem expressa

conceitos tão bons. Agora, para isso você necessita de muita qualidade e

paciência, saber que ajuda quando não interfere na jogada. O difícil nas grandes

equipes é que todos consigam compreender essa ideia: que, ao não interferir,

está ajudando o processo para que, quando chegue o momento de interferir,

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você esteja só contra um adversário, ou até contra nenhum. E é muito difícil.

Você tem de estar quieto, esperando que a bola chegue…”.

Tomar a iniciativa traz embutido em sua essência o risco do contra-ataque

do rival. Vimos mil vezes como esse risco se transforma em um gol do

adversário que, fechado em sua área durante longos minutos e se defendendo

como um ouriço, sabe aproveitar uma fresta para desferir a punhalada. Esse

risco é indiscutível. Mas também — e mais frequentemente — vimos o oposto:

como um time encerrado em sua área era bombardeado e goleado sem piedade

por quem tomava a iniciativa. Quem, como Guardiola, propõe jogar com a

iniciativa, sempre corre o risco de ser apunhalado. O futebol não é mais do que

isso: um jogo de propostas e riscos.

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4.5.1.1. JOGO DE POSIÇÃO, JOGO DE LOCALIZAÇÃO

Praticamos um excelente jogo de posição.

Quem nos vê jogar, vê a assinatura de Pep.

PHILIPP LAHM

Ter a iniciativa é um elemento inerente ao jogo de posição, porque indica a

vocação principal da equipe que o põe em prática. E isso não é novo. Em 1952, o

jogador, jornalista e escritor Ivan Sharpe se mostrava extremamente

preocupado com a decadência do futebol inglês e já usava o termo “jogo

posicional” para descrever o modelo avançado que praticavam os países líderes

daquele momento, pouco antes de a Hungria desferir seu grande golpe em

Wembley, vencendo a Inglaterra por 6 × 3, em 1953: “Os estrangeiros”, escreve

Sharpe “nos ultrapassaram em seu estilo de jogo. Os segredos do ofício e o estilo

de jogo escocês de combinação de passes se transferiram ao estrangeiro. Nós

exportamos a mercadoria, mas perdemos a habilidade de fabricá-la. A

atmosfera excessivamente tensa que rodeia os jogos de liga na Inglaterra, com

seus acessos e descensos, transformou nosso futebol em algo parecido com um

coquetel agitado. Mas o frenesi não é futebol. Desse modo, o jogo dos

estrangeiros agora tem um perfil mais científico. O jogo posicional está muito

mais desenvolvido, já que acumula as combinações de passes […]. Hoje não

estamos entre os três primeiros na classificação mundial se nos referimos ao

estilo e aos métodos científicos, e a ameaça que surge é que os jovens

estrangeiros, esses sim, estão sendo treinados nessa direção em quase todos os

países. A Inglaterra necessita de uma nova mescla em seu futebol”.

Passaram-se quase 65 anos desde a referência de Sharpe e o jogo de

posição evoluiu de maneira exuberante, tanto em seu desenvolvimento prático

quanto no didático. E é precisamente aquele que se encarregou de seu

tratamento intelectual, Juanma Lillo, quem nos oferece uma revisão

imprescindível, que começa pelo próprio nome deste modelo de jogo:

“Decidimos chamá-lo de ‘jogo de posição’, mas a definição é pouco precisa,

porque podemos nos perguntar: pode-se estar bem posicionado e mal situado?

Ou, ao contrário, bem situado e mal posicionado? Claro que sim! E por que isso

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acontece? Se recorremos ao dicionário, vemos que ‘posição’ tem uma relação

sinonímica com postura. No entanto, o termo ‘situação’ vem de sítio ou lugar.

Assim, pode ocorrer que você tenha uma postura (posição) ideal, mas num

lugar inadequado. Ou num lugar ideal, mas com uma postura inadequada. E

ambas têm a ver com a relação anterior e posterior, com o que aconteceu

previamente e o que você quer fazer na sequência, para ajudar na

sustentabilidade do jogo. Por essa razão, ‘posição’ e ‘situação’ não definem com

precisão esse modelo de jogo. A palavra que relaciona esses dois termos com

uma intencionalidade tática é ‘localização’. A esta forma de jogar, deveríamos

chamar de ‘jogo de localização’”.

Ao leitor pode parecer uma nuance acadêmica, mas não é. Nem se trata de

uma questão semântica ou teórica, pois existe um grande potencial nessa

modificação de nome, que pode permitir desenvolvimentos futuros em relação

à lógica interna do jogo. Não é apenas semântica, porque esse conceito de “jogo

de localização” pode permitir uma série de conexões e relações com o

treinamento, pode agregar ideias para o treinamento e para que o jogador o

entenda melhor, fazendo com que esse estilo coletivo de jogo cresça. É uma

forma de chamar as coisas que pode ajudar a construir mais coisas que tenham

a ver com treinar e jogar. Não depreciemos o valor das palavras. Lillo sempre foi

muito apegado a conceitos que Wittgenstein expunha, tais como o “somos

apenas palavras”, porque “as palavras nos ajudam a transformar o mundo em

um lugar menor e nosso cérebro em um lugar mais amplo”.

Na amálgama contínua de relações que se dão no futebol, essas definições e

redefinições colaboram para a compreensão e o progresso, e essa é a razão pela

qual Lillo propõe a redefinição, ainda que não pretenda assumir o protagonismo

das definições intelectuais no futebol: “O que eu digo é que só existe um livro de

treinamento e tática: as regras do jogo. E também que precisamos pensar bem

nas palavras que usamos, por isso proponho chamá-lo de ‘jogo de localização’,

como veículo para que o treinador seja entendido, mas não busco nenhuma

definição universal. Mais ainda: realmente estou de acordo com Krishnamurti

quando diz que a palavra é necessária para se comunicar, mas que a palavra não

é a coisa. Nossa busca como treinadores não pode se limitar apenas a como

ganhar o jogo, deve se dedicar também a que os jogadores entendam o que

precisam fazer”.

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4.5.1.2. OS ESPAÇOS DE FASE

As ideias simples somente se

encontram nas mentes complexas.

REMY DE GOURMONT

Outra pessoa muito próxima de Guardiola sempre foi Paco Seirul·lo, cujo

caráter didático também é valorizado por Lillo: “Paco não só é um grande

construtor de circuitos e metodologia, mas também de jogo. Juntos construímos

muitíssimas ssp [situações simuladoras preferenciais] para melhorar a captação

conceitual do jogador, mas de uma perspectiva mais cultural. O caráter didático

de Paco tem sido importantíssimo para buscar veículos que permitam que os

jogadores entendam o que propomos”.

Falei com Seirul·lo sobre os modelos de jogo:

— Costumam ser muito fechados, mas definidos de modo ligeiro. Só são

definidos para se determinar os lugares no espaço, a forma de jogar e o número

de jogadores que estão em uma linha ou outra. Não definem mais do que isso.

De cinco defensores, passamos a quatro, ou a quatro mais um. De três médios

passamos a quatro ou cinco. E de cinco atacantes sempre fomos a menos: de

cinco a um ou a nenhum. O que propomos é distinto. De observar o simples e o

linear, temos de passar a observar o complexo: tudo tem a ver com tudo e nada

acontece que não possa acontecer, mas as interações entre os jogadores são

interações, não são ações. Sempre se disse: “Isto é uma ação de jogo”. Não, não é

uma ação: é uma interação. Porque quando faço algo em relação a você,

modifico coisas suas e você também modifica coisas minhas.

— Ou seja, teria um efeito similar à medição da velocidade do elétron, que

provoca uma mudança no próprio elétron a ser medido…

— Exatamente. O conceito quântico é o suporte da complexidade do jogo.

Até agora, o futebol nunca foi apresentado assim. Parecia que o defensor era o

passivo e o atacante era o ativo, porque tudo se guiava pelo eixo ataque-defesa.

Só que o futebol não vive nesse eixo, mas em um conceito quântico. O futebol

sempre se moveu em uma dicotomia simplista: o bom e o mal, o pragmático e o

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romântico etc. Nunca se identificou, pela alta complexidade do jogo, em que

elemento temos de nos fixar para ir esquadrinhando a complexidade do futebol.

Se conseguirmos examinar essa complexidade, poderemos construir um jogo

novo. Ou poderemos propor ideias para um jogo novo ou diferente.

Acrescenta Seirul·lo:

— Nós dizemos: no futebol não há jogadas. Normalmente se diz que há

jogadas. Em um jogo transmitido pela televisão sempre se menciona a palavra

“jogada”. Se diz: “a jogada de Messi”. E os demais da equipe não existem nesse

momento. Parece que é Messi contra o mundo. Ou se diz: “Essa jogada se parece

com aquela outra”. Mas é preciso entender que o futebol não é uma sucessão de

jogadas, mas uma sucessão de situações complexas. Messi leva a bola até um

ponto e está em determinadas condições porque anteriormente aconteceu algo;

e enquanto ele joga, está acontecendo alguma coisa que permite isso. Porque se

não houvesse mais nada, os dez adversários lhe tomariam a bola e pronto. Mas

existem esses “algos” e “algumas coisas” nesse momento, ainda que essas outras

ações não sejam atrativas para as pessoas.

Seirul·lo completa sua exposição:

— No jogo, tentamos o quanto antes tomar a iniciativa não só porque

temos a bola, mas porque criamos uma situação que é favorável a nós. A isso

chamamos “espaços de fase”, o que se define por: onde está a bola, em que

situação está, onde estão os rivais, a distância que há entre a bola e os rivais e os

nossos próprios jogadores, as trajetórias de cada jogador e cada rival e a bola, a

orientação do jogo, a organização do jogo… E tudo isso constitui unicamente

uma situação de jogo que dura um décimo ou dois décimos de segundo. No

momento em que a bola muda de lugar, os jogadores também mudam e aparece

uma nova situação. E assim sucessivamente. Isso implica muitíssima

complexidade e tem uma base nas teorias da termodinâmica. Quando um

líquido esquenta, as partículas se movem mais e se organizam de uma

determinada maneira ou de outra em função de elementos que aparecem nas

características desse líquido. Você uma vez escreveu: “O Barça não é sólido, mas

líquido”. É uma definição acertada: ele é líquido. Porque quando dizemos “Esse

time é muito sólido, é muito compacto”, na realidade dizemos que é muito

vulnerável. Os líquidos são menos vulneráveis que os sólidos. Do sólido, se pode

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conhecer tudo, inclusive seus pontos fracos. Você golpeia um ponto fraco e o

quebra. O líquido, não.

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4.5.2. JOGADORES COMPLEMENTARES

Para saber se tinha feito um bom jogo, eu me perguntava

se tinha tornado meus companheiros melhores.

BILL RUSSELL

Quem deve aplicar no campo o conceito de tomar a iniciativa são os jogadores.

E uma das regras internas de Pep é que tais jogadores sejam complementares

em suas características. Há alguns anos se gerou em Barcelona uma avalanche

de críticas ácidas ao treinador Frank Rijkaard porque escalava Xavi e Iniesta,

atletas considerados “iguais”. Quando tiveram resultados ruins, foi comum ler

ou ouvir que “Xavi e Iniesta não podem jogar juntos”. Mas depois chegou

Guardiola, colocou-os juntos e o Barcelona decolou a uma altura nunca

imaginada…

— Era um grave erro de apreciação — reflete Seirul·lo. — Todo mundo

dizia: “Xavi e Iniesta fazem a mesma coisa”. Errado! Eles não se parecem em

nada. Andrés e Xavi não se parecem em nada. São claramente complementares,

porque são bem distintos. Jogam em zonas diversas e de modo diferente. Ocorre

que as pessoas dizem que eles são iguais porque lhes atribuem elementos de

jogo similares, mas eles são totalmente diferentes e complementares. Isso

acontece com muitos outros conceitos no futebol, como a ordem e o equilíbrio.

Ordem e equilíbrio são elementos coexistentes do jogo, por isso falamos de

situações e de organizações. A organização é dinâmica, enquanto o equilíbrio é

estático. Por isso falamos sempre do dinâmico, nunca do estático.

Os jogadores complementares não só são essenciais na composição da

equipe por razões técnicas, pela capacidade tática que possuem ou pelas

qualidades físicas que se alimentam entre si, mas também — e muito

especialmente — por suas distintas personalidades. Guardiola explicou de

forma detalhada durante um evento organizado pela empresa Adidas:

— Há jogadores que pensam mais no que a equipe necessita e em qual é a

melhor solução. Há jogadores como Bastian Schweinsteiger, que controlam a

partida: ele joga pensando mais na equipe. Essa classe de jogador é inteligente e

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tem a visão global do que a equipe necessita. É por isso que existem jogadores

que controlam completamente o jogo. Eles fazem o que o treinador quer ou o

que a equipe precisa. E depois vêm os que causam o caos. Há outro tipo de

jogador, como Arjen Robben, que pensa: “Certo, tenho que ir por dentro, porque

quero receber a bola, driblar e marcar o gol”. Eles jogam seguindo seu instinto e

talento, estão acima do que acontece no campo. Há momentos em que não

interferem de forma regular no processo de criação de jogo, mas precisamos

desses jogadores nos últimos quinze ou vinte metros. Eles podem criar

absolutamente tudo e o treinador não pode controlá-los. Não se pode limitar

isso. O caos e o controle existem, e você precisa de ambos. São parte do jogo.

Você precisa de jogadores que analisem o que deve ser feito, e há outros que

têm de ser um pouco mais livres e mostrar seu talento no máximo grau possível.

Quando você dirige uma equipe, deve mesclar os dois tipos de jogadores,

porque eles lhe dão uma grande vantagem.

Acertar na mescla: eis uma questão complicada. Mas essa combinação de

qualidades que se complementam pode, por sua vez, potencializar a busca de

novos perfis. Por exemplo, em janeiro de 2015, Guardiola já tinha desenvolvido

completamente sua proposta de fazer os laterais jogarem como meioscampistas

interiores junto com o meio-campista central. Lahm e Alaba (Rafinha

e Bernat também) dominavam a nova função e o treinador me explicou o que

isso lhe sugeria:

— Meu conceito do papel dos laterais se modificou na Alemanha. Já não os

vejo como carrileros,* mas como interiores, e isso vai me permitir incorporar a

meu jogo um meio-campista interior muito diferente dos habituais (Xavi,

Iniesta, Thiago). Agora posso contratar um “chegador”** potente, porque ele

sempre terá as costas bem protegidas.

Desse modo, a chegada ao Bayern de Arturo Vidal, depois de cinco meses,

cumpriu um objetivo específico: ampliar o perfil dos meios-campistas de Pep

com um registro muito diferente.

Na realidade, o que acontece com grande parte dos jogadores que

trabalham com Guardiola é que eles não são o que aparentam, e isso quebra o

estereótipo com que se pretende estreitar o futebol. Ninguém explicou melhor

do que Joshua Kimmich: “Aqui no Bayern, o jogo é interpretado de forma

diferente. Aqui, ser lateral significa ser quase um meio-campista”.

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O treinador espanhol Ismael Díaz Galán encontrou uma forma de

completar a expressão de Kimmich: “Por isso falamos há muito tempo que um

defensor não se define pela posição, mas pela situação do jogo. As mudanças de

dois séculos nas regras do impedimento fizeram com que os jogadores mais

recuados deixassem de ter apenas a função defensiva. O jogo da Laranja

Mecânica dos anos 1970, que nutriu ‘gênios’ como Pep, levou isso à máxima

expressão ao entender que todos defendem quando não se tem a bola e todos

atacam quando se tem, independentemente da posição de cada um. O mérito do

treinador reside em descobrir os talentos de seus jogadores para aproveitá-los

nos distintos momentos do jogo, em inter-relação com os talentos de seus

companheiros e cada contexto mutável”.

Em sua explicação, Ismael Díaz Galán chama Guardiola de “gênio”, um

termo geralmente muito aplicado quando se fala sobre Pep, o que me dá a

oportunidade de uma breve reflexão. Em dois livros completos dedicados ao

treinador (Guardiola confidencial e este), evitei, de forma voluntária, empregar

esse termo, porque me considero incapaz de definir com exatidão o que

significa. Li numerosa documentação a respeito do talento dos gênios e sobre

quais seriam os traços recorrentes na personalidade de todos eles (analíticos,

impulsivos, autodidatas, autocríticos, metódicos, apaixonados e vários outros).

Sem dúvida, podemos encontrar muitos desses traços em Guardiola, mas

apenas isso não o transforma automaticamente num gênio, nem mesmo o fato

de sua proposta futebolística ser inovadora e atrevida. É um gênio por seus

êxitos? Não, os êxitos o definem como ganhador, mas não dizem que ele é

genial. Acima de outras características, vejo-o fundamentalmente como um

trabalhador infatigável e entendo que, para saber com certeza se há sentido em

usar o conceito de “gênio”, devemos esperar que conclua sua carreira como

treinador e assim avaliá-lo em sua plena dimensão.

* O defensor que atua indo e vindo pelos lados do campo. (N. T.)

** Normalmente, um meio-campista com facilidade para chegar à área adversária com a bola. (N. T.)

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4.5.3. A VELOCIDADE E A PAUSA

O futebol é cada vez mais um xadrez;

e no xadrez, se você perde a concentração

por um segundo, está morto.

SIR ALEX FERGUSON

A velocidade é essencial no conjunto de ideias de Guardiola: “A chave do

esporte está na velocidade. Quem ganha no esporte é aquele que o faz um pouco

mais rápido do que os demais. Não é força, é velocidade”.

Mas ele não fala de uma velocidade relacionada ao atletismo, mas de uma

velocidade “matizada”. Vejamos quais são esses matizes:

• É uma velocidade relacionada com o jogo, portanto com a bola como

elemento substancial.

• É uma velocidade mental: pensar a ação com certa antecedência oferece

vantagem.

• É uma velocidade orientada à intencionalidade: se o jogo está em fase de

construção, a velocidade deve ser moderada para permitir o avanço em grupo;

se o jogo está na zona de definição, a velocidade deve ser elevada para

conseguir vantagem no duelo final.

• É uma velocidade precisa. É inútil atuar muito rapidamente se os passes

saem errados, as recepções ruins ou as intenções equivocadas. A precisão

incrementa a velocidade efetiva.

• É uma velocidade inteligente: antecipar-se gera vantagem, intuir permite

compensar uma desvantagem, pausar o jogo evita que a bola corra sem sentido

de um campo a outro (“quanto mais rápido a bola vai, mais rápido ela volta”).

Segundo Lorenzo Buenaventura, o preparador físico de Guardiola: “A

velocidade é uma capacidade com muitos matizes, mas podemos identificar no

mínimo três deles, embora haja vários outros:

• A velocidade pura, que é a velocidade do atleta: é a velocidade que define

quem é o mais rápido.

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• A velocidade aplicada ao futebol: se nosso jogador intui o que vai

acontecer e se antecipa, já não é tão importante o fato de seu rival ser mais

rápido, porque o nosso poderá arrancar antes e compensará com sobras sua

menor velocidade atlética.

• A velocidade modulada dentro da jogada: nosso atacante talvez seja mais

lento que o defensor rival, mas não o enfrenta com um sprint puro, e sim

jogando com as pausas: ameaça, engana, arranca, freia e, quando o marcador

também freia, então ele volta a arrancar… E, neste jogo, ainda que ele seja mais

lento, chegará muito antes ao objetivo”.

O terceiro tipo de velocidade que Buenaventura observa é fundamental no

jogo, e é o que permite compreender que jogadores “lentos” como Iniesta ou

Lahm sejam capazes de superar constantemente seus adversários, muito mais

rápidos em velocidade atlética. Essa “velocidade modulada”, ou “velocidade

inteligente”, não só é crucial no jogo, mas também se pode afirmar que, sem ela,

é impossível que um time exerça um papel dominante durante uma partida.

Jorge Valdano explica a questão da seguinte forma, em seu livro Fútbol: El

juego infinito: “No futebol existem três tipos de velocidade: a de translação (em

quanto tempo somos capazes de percorrer uma distância; é a velocidade que

caracteriza, por exemplo, Usain Bolt), a mental (que nos permite escolher a

melhor entre muitas possibilidades quase num ato de reflexo; no futebol,

pensar rápido ou pensar antes de receber a bola se converteu em fator crítico) e

a técnica (que se chama ‘precisão’ e é a mais importante de todas, porque vai do

individual ao coletivo: se eu controlo a bola com apenas um toque, sou rápido;

se passo com apenas um toque, consigo que minha equipe seja rápida). Para

compreender, não é necessário ver números, basta ter olho crítico”.

Pensemos em Lahm: uma de suas grandes virtudes é a capacidade de dar

um passe certo e preciso para um companheiro. Um passe assim sempre é um

presente que se entrega em forma de tempo, espaço ou ambos. Outra das

virtudes de Lahm é a compreensão do jogo, porque ele não só sabe dar esse

presente a um companheiro, mas tem consciência de qual deve ser o

movimento seguinte e necessário para que a jogada tenha continuidade e,

sobretudo, relevância. Por essa razão, ele parece um jogador rápido, quando na

realidade sua velocidade gestual não admite comparação alguma com a maioria

dos rivais que enfrenta. Mas Lahm pensa mais rápido. Dá o passe sabendo como

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a ação continuará, intuindo o que acontecerá depois desse passe. Essa

compreensão e clarividência lhe permitem estar ou chegar ao ponto exato em

que voltará a ser relevante na jogada, como apoio, no um contra um, como

driblador… Lahm é mais lento que a maioria de seus rivais, mas pensa mais

rápido, por isso chega antes ao encontro com o passe seguinte.

COMO LAHM É INTELIGENTE

Munique, 12 de dezembro de 2015

Nas palavras de Guardiola: “Philipp sabe jogar. Sabe jogar de todos os

jeitos. E com isso, pode fazer de tudo. Um veterano, se sabe jogar, pode

prolongar sua carreira o quanto quiser. Um que não sabe jogar aos trinta

anos já está decadente. Mas Lahm pode prolongar, porque sabe jogar. Se

quisesse, poderia jogar até os quarenta anos, porque entende o jogo. E Xabi

Alonso, também”.

Observemos a velocidade por outra ótica: “Sem retrocessos do tempo, não

se pode fazer progressões”. Quem afirma é Christian Thielemann, maestro

alemão, que atualmente comanda a Staatskapelle de Dresden e o Festival de

Páscoa de Salzburgo, e já regeu a Filarmônica de Munique. É um grande

especialista em Beethoven e suas conversas com Joachim Kaiser (Beethoven

entdecken, “Descobrir Beethoven”) são muito reveladoras. Quando se refere à

Oitava Sinfonia, Thielemann explica que o quarto movimento, um allegro vivace,

é tão veloz, enérgico e furioso que é praticamente inviável seguir

incrementando-o… A não ser que se façam leves retrocessos no tempo da

orquestra. O mesmo ocorre no futebol: a velocidade no jogo é filha da pausa.

Diz o escritor Richard Sennett: “O ritmo tem dois componentes: a

acentuação e o tempo, a velocidade de uma ação. Na música, modificar o tempo

de uma obra é um meio de olhar adiante e antecipar. As indicações retardando e

acelerando obrigam o músico a preparar uma mudança; essas amplas alterações

de tempo o mantêm alerta”.

Guardiola explica de seu modo: “No futebol, a velocidade quem dá é a bola.

E os passes: um-dois, tac-tac, e você faz o adversário correr para trás, ainda que

pareça que não está fazendo nada”.

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4.5.4. PRENDER E ABRIR

Todas as ações táticas devem se guiar pelo princípio do

pouco consumo de energia para provocar a fadiga do inimigo.

SEPP HERBERGER

— Qual é o traço principal dos All Blacks? — pergunta Guardiola ao

interlocutor.

A resposta é:

— Eles prendem e abrem, prendem e abrem, prendem e abrem…

Guardiola insiste:

— Atenção com isso! Prendo e abro. Eu ataco pelo centro e abro pelo lado.

Concentro e abro. O melhor momento de ataque pertence ao rúgbi. Eu ataco e

divido você, ataco e divido, ataco e divido. E como o passe é obrigatoriamente

para trás, ataco de frente. É o melhor conceito de ataque que existe! Eles não

podem passar para a frente para atacar, devem fazê-lo obrigatoriamente para

trás, e isso lhes permite ficar de frente. Vou pelo centro, atraindo rivais para

servir a quem está livre e para matar por essa zona livre. Não há melhor

maneira de atacar do que no rúgbi…

A seleção neozelandesa de rúgbi, os All Blacks, é o melhor time do mundo

de qualquer categoria esportiva na atualidade, com apenas três derrotas nos

últimos 59 jogos. Praticam como ninguém um conceito muito sugestivo. Quem

ataca no rúgbi? Os All Blacks asseguram que não é quem tem a bola, mas quem

está no campo do adversário.

— Quem está no campo do adversário ataca ainda que não tenha a bola? —

pergunta Guardiola.

— Sim, ainda que não tenha a bola; mas se eles estão ocupando o campo do

adversário, se encontram perto do objetivo.

— E fazem alta pressão? — insiste Pep.

— Claro. E de vez em quando dizem: passamos muito tempo jogando do

mesmo modo, prendendo o adversário e abrindo o jogo; agora é preciso mudar.

Aí mandam a bola para a linha do gol rival e vão para a frente com catorze

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jogadores. O rival tem a bola em seu poder, mas no ponto onde querem os All

Blacks, perto da linha do gol. E não se importam se o adversário passa a bola:

nós, dizem os neozelandeses, os pressionaremos até esgotá-los e, quando

tomarmos a bola, estaremos a poucos metros do try. E então voltamos à nossa

forma costumeira de atacar. E assim recuperam o fôlego e continuam com o

habitual: prender e abrir. Talvez joguem 25 fases de jogo seguidas à base de

prender e abrir até que o rival se canse e não possa mais fazer as coberturas…

Conseguem, assim, a harmonia entre a tipologia de seus jogadores, a velocidade

e o conceito de jogo.

— Soa como se jogassem um rúgbi total — conclui Guardiola —. É preciso

tirar alguma lição de tudo isso…

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BASTIDORES

PARA GANHAR, PRIMEIRO É PRECISO PERDER

Munique, 18 de setembro de 2015

Campeonato Mundial de basquete de 2014: há um ano, a França venceu

a Espanha, na Espanha, por 65 a 62.

Campeonato Europeu de basquete de 2015: ontem, a Espanha

venceu a França, na França, por 80 a 75.

É um enfrentamento que serve para refrescar a reflexão de Manel

Estiarte. Há um ano, ele analisava a derrota espanhola; hoje, reflete

sobre a vitória. Estiarte viu o jogo junto com Guardiola, outro grande fã

desse tipo de jogo vibrante:

“Foi um jogo maravilhoso, não porque a Espanha ganhou. Ambos os

times mereceram ganhar. Foi uma maravilha, porque se jogou com uma

intensidade elevada, sem nenhuma trégua, com um time superior

(França) que sentiu a pressão de jogar em casa e ficou abaixo das

expectativas, e um time inferior (Espanha) que cresceu com o passar dos

minutos e dos acertos. Um jogo tão memorável quanto o do ano passado,

mas por razões muito diferentes.

“Há um ano, foi a vitória de um time em estado de graça que, a

partir de um momento concreto, passa a mandar no jogo e impede que a

seleção espanhola reaja. A Espanha vinha em uma trajetória fantástica

naquele Mundial, estava invicta e, sobretudo, parecia imparável; mas

quando as coisas mudaram, não soube se agarrar a nenhum argumento

competitivo.

“Hoje aconteceu algo muito diferente. Esta seleção espanhola era

inferior à do ano passado, basicamente pelas lesões que sofreu, mas se

agarrou como nunca a qualquer possibilidade de remar pelo jogo. Não se

deixou levar nenhuma vez, nem mesmo quando tudo estava contra ela e

a semifinal parecia perdida. Soube lutar, lutar e lutar, e eu tiro disso uma

lição que não sei se é verdade, mas me parece ser.

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“Olha, para poder ganhar, primeiro é preciso perder. Em uma

competição desse tipo, com muitos jogos e fases de eliminação, que

poderíamos comparar um pouco à Champions League no futebol, você

quase sempre precisa que alguém o freie e o golpeie para reagir e ser

mais forte. Se você ganha e ganha e sua trajetória não tem rivais, você se

sente imbatível, genial, desfruta de tudo e está feliz, mas talvez dentro

das próprias vitórias esteja o germe da derrota, porque algumas coisas

você não está fazendo bem. Talvez sejam pequenas coisas, pequenos

detalhes que não impedem que você ganhe os jogos, mas que estão lá. E

você não presta atenção neles, nem o treinador presta atenção nesses

pequenos déficits. Você ganha e está contente, desfruta e comemora. Até

brinca um pouco com o adversário. ‘Ganhamos deles!’, você diz, e brinda

às vitórias, esquecendo que houve algumas pequenas manchas escuras

pelo caminho. E aí está o perigo.

“Por outro lado, se logo lhe dão um murro na cara e o derrubam,

mas você não é eliminado, talvez estejam lhe fazendo um favor, porque

então todos os alarmes soarão. O que fizemos de errado? Que problemas

temos, que defeitos, que carências? O que estamos fazendo mal? E todos

ficam atentos: o treinador, os jogadores, os auxiliares, os analistas, todos,

todos. Não há brindes, nem alegria, nem celebrações e ninguém brinca

com ninguém. De repente, tudo fica vermelho. Alarme. O que está

acontecendo? Os sentidos se aguçam, então você focaliza rapidamente

onde estão as manchas escuras e como fazer para remediá-las.

“Claro, se você está numa dinâmica positiva, ganhando e ganhando

jogos um depois do outro, nenhum treinador aparecerá para dizer que é

necessário perder o próximo jogo. Claro, não se trata disso, seria uma

besteira. Se você está surfando a onda, deve seguir e seguir. Eu não digo

que é preciso forçar isso, que seja necessário forçar uma derrota. O que

digo é que, às vezes, simplesmente acontece. Você está sobre a onda e é

derrubado com um murro. E esse murro muitas vezes é providencial,

porque conduz à reflexão coletiva, une mais o grupo, mostra os pontos

fracos e reforça os objetivos. Estamos mal, nos derrubaram, chegamos a

um passo da eliminação, já não somos favoritos, somos inferiores… São

coisas que você pensa, que medita nessas horas que parecem tão

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amargas, mas são reflexões cruciais que o fazem ressurgir se o grupo é

capaz de convertê-las em energia positiva.

“Veja, há um ano a Espanha parecia superior à França — e creio que

era mesmo, como demonstrou ao vencê-la na primeira fase. Mas se

sentiu bela e, quando precisou apertar os dentes, não soube como fazer.

E hoje era o contrário: a Itália lhe deu um baile e, diante dos outros

rivais, tudo tinha sido muito difícil, com jogos arrastados e sem brilho.

Mas a derrota para a Itália despertou a fera e provocou a gana de lutar.

E, com tudo isso, a seleção espanhola não saiu para jogar hoje, mas para

lutar. Com tudo contra: os prognósticos, 27 mil torcedores franceses e a

própria realidade do jogo. A França era superior. Hoje a França era a

bela; a Espanha, a lutadora. E ganhou porque perdeu duramente para a

Itália. Porque aquela derrota a deixou nocauteada e ela teve de reagir,

teve de descobrir as manchas escuras que possuía, as falhas sofridas,

sendo obrigada a se convencer de que só poderia ganhar se lutasse por

todas as bolas como se fosse a última oportunidade de sua vida.

“Talvez eu me equivoque com minhas teorias, mas estou bastante

convencido do que lhe digo. Estava convencido no ano passado, quando

disse que os grandes times, que se sentem muito superiores, às vezes

carecem do espírito de luta dos iugoslavos, aquele espírito que faz você

se agarrar ao 1% de possibilidade de reverter. E creio que também não

me equivoco em relação ao que digo hoje: para poder ganhar, às vezes

você precisa sofrer uma derrota dura e sangrar. Porque o sangue faz

você reagir.”

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CAPÍTULO 5

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A INFLUÊNCIA DE PEP SOBRE O FUTEBOL ALEMÃO

Se você quer o arco-íris, tem de aguentar a chuva.

Uma vez comentadas as importantes mudanças que a Alemanha provocou em

Guardiola, analisaremos a influência do treinador catalão sobre o futebol

alemão, começando pela que foi exercida de maneira direta no Bayern de

Munique.

Se nos resultados lhe faltou a coroação com uma vitória na Champions

League, em jogo ele superou qualquer expectativa que pudesse haver antes de

sua chegada a Munique. O Bayern praticou um jogo de posição com elevada

maestria em todos os seus aspectos, com uma orientação vertical que o tornou

mais parecido com o praticado pelo Barcelona de 2008/2009, do que o

Barcelona de 2010/2012. O jogo do Bayern se caracterizou por uma

consistência média excelente, de traços muito reconhecíveis, com vocação para

dominar todas as partidas, sob qualquer circunstância, pisando sempre no

campo do adversário e orientando-se de forma indiscutível ao ataque. As

médias de gols marcados (2,46 por jogo) e gols sofridos (0,69) retratam essa

vocação ofensiva combinada com um alto grau de controle sobre os ataques

rivais: Neuer conseguiu defender com sucesso seu gol em 81 dos 154 jogos que

disputou — ou seja, não sofreu gol em mais da metade das partidas. Durante os

três anos, o Bayern sempre ocupou durante mais tempo o campo do rival do

que o seu próprio, e sempre teve o predomínio da posse, alcançando seu maior

índice em março de 2016, quando teve a bola por 82,7% do tempo contra o

Werder Bremen (5 × 0), jogo em que trocou a maior quantidade de passes: 993,

com 92% de acerto. Dos gols marcados pelo Bayern nesses três anos, 72%

aconteceram depois de ações coletivas de média ou longa duração, com a

intervenção de mais de cinco jogadores.

O controle foi um selo de identidade. Esse controle se moldou nos três

grandes fatores do jogo: a bola, o espaço e o ritmo das partidas. É possível

enumerar os jogos oficiais em que o Bayern não teve de fato o controle: os

primeiros doze minutos contra o Arsenal, em 2014; a catastrófica queda diante

do Real Madrid; a derrota para o VfL Wolfsburg, em janeiro de 2015; os treze

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minutos no Camp Nou que transcorreram entre o interessante 0 × 0 e o

desastroso 0 × 3, com Messi como carrasco; a meia hora de histeria no campo

do Mönchengladbach, no final de 2015; e o primeiro quarto de hora contra o

Atlético de Madrid, na semifinal da Champions.

O time não só obteve vitórias sonoras, com títulos e algumas goleadas

monumentais, mas produziu atuações coletivas extraordinárias: em

Manchester, contra o City, na noite dos 94 passes consecutivos; no Olímpico,

desesperando a Roma; nas exibições ofensivas contra o Arsenal, o Porto ou o

Shakhtar, que também tiveram placares ruidosos; em incontáveis

enfrentamentos com o Borussia Dortmund, o Wolfsburg, o Bayer Leverkusen e,

claro, contra outros times de menor porte. Possivelmente, o auge do jogo do

Bayern de Guardiola se deu em três partidas disputadas nos últimos meses: na

primeira hora contra a Juventus, em Turim; na épica virada contra a mesma

Juventus, poucas semanas mais tarde; e na semifinal frente ao Atlético de

Madrid, disputada na Allianz Arena.

No âmbito individual, a atuação mais chamativa foi indubitavelmente a de

Robert Lewandowski, em setembro de 2015, quando conseguiu marcar cinco

gols no Wolfsburg em apenas nove minutos.

Com Guardiola, os traços competitivos do time (que já eram historicamente

muito evidentes) subiram um ponto, pois Pep agregou constância e

regularidade. Basta ver que, pela primeira vez na história, o clube conseguiu

somar quatro ligas seguidas, três delas após a conquista do triplete com

Heynckes. Como disse Ottmar Hitzfeld, “Guardiola não foi avaliado justamente.

Quem não reconhece seu rendimento não tem a mínima ideia. Um time que

ganha o triplete costuma cair num buraco, mas Guardiola fez o Bayern ser ainda

mais ambicioso”.

O clube de Munique nunca havia conseguido ganhar o título nacional

depois de a Alemanha conquistar uma Copa do Mundo: essa tradição de declínio

pós-Mundial também foi quebrada. O Bayern só afrouxou sua competitividade

uma vez conquistadas as ligas, o que foi muito palpável em 2014, suavizou-se

em 2015, mas se evitou em 2016. Enquanto os títulos estiveram em disputa, o

caráter coletivo do Bayern se notabilizou pelo desejo permanente de vitória. O

clube conquistou o título de liga mais precoce da história em 2014 (na vigésima

sétima rodada, ainda no mês de março); prolongou até dezenove a sequência de

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vitórias no campeonato (com dez triunfos seguidos fora de casa); fechou o

primeiro turno do campeonato de 2014/2015 invicto, quando recebeu apenas

quatro gols em dezessete jogos, treze deles sem sofrer gols; e se distinguiu por

seu volume goleador, pois marcou quatro ou mais gols em quase 25% das

partidas (38 dos 161 jogos disputados): ganhou por quatro gols de diferença em

dezessete ocasiões; por cinco, em nove vezes; por seis, em três; por sete, em

duas; e por oito gols, uma vez (a maior goleada foi o 8 × 0 sobre o Hamburgo,

em fevereiro de 2015). Ainda que tenha se destacado na Bundesliga por outras

grandes goleadas (7 × 0 Werder Bremen, 6 × 1 Wolfsburg, 5 × 1 Borussia

Dortmund), foi na Champions League que o Bayern obteve as vitórias mais

sonoras: 5 × 1 ante o Arsenal, 6 × 1 no Porto, 7 × 0 contra o Shakhtar e 7 × 1

sobre a Roma.

O Bayern que Guardiola deixa como herança a Carlo Ancelotti é diferente

daquele que havia recebido de Jupp Heynckes. Na área dos resultados, Pep não

conseguiu deixar um triplete para seu sucessor, mas dois dobletes. No âmbito da

competitividade, legou um time tão agressivo e ambicioso quanto o de

Heynckes, mas ao qual conseguiu adicionar ainda maior continuidade e

estabilidade na vitória. E no âmbito do jogo, a equipe adquiriu uma nova

personalidade, pois, se conserva os principais atributos do quadro campeão

com Heynckes (verticalidade, rapidez e energia), sua imersão no jogo de

posição foi radical. Pode-se afirmar que o Bayern de 2015/2016 foi um dos

times que melhor praticaram esse modelo na história, além do Barcelona de

2011 e do Ajax de 1996.

Para além do terreno de jogo, Guardiola contribuiu na modernização do

Bayern em vários aspectos que rodeiam a equipe. Impulsionou a implantação

de excelentes instalações para a prevenção e reabilitação de lesões em Säbener

Straße, bem como a ampliação e modernização das academias; reduziu as

concentrações do time ao mínimo imprescindível; impôs critérios atualizados e

rigorosos em matéria de nutrição e cuidados com a saúde do jogador; gerou

uma dinâmica poderosa de análise e estudo dos rivais, dotando o clube de uma

ampla equipe de analistas formados por ele; e deixou documentada sua

metodologia de treinamento, tarefas e exercícios. Como resumiu Stefen

Niemeyer, torcedor do Bayern: “Pep e seu entorno foram importantíssimos para

o desenvolvimento do clube, para avançar e alcançar um novo nível, que era

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desconhecido. Para mim foi um exemplo muito bom de como nós, europeus,

podemos desfrutar e ganhar com o intercâmbio e a colaboração”.

O perfil de Ancelotti como sucessor de Guardiola — que lhe desejou os

melhores votos numa mensagem escrita no quadro-negro de seu escritório — é,

a princípio, o ideal para que a nova ideologia futebolística implantada no

Bayern tenha continuidade. O histórico tático do italiano nos revela um

treinador com características de excelente administrador das heranças

recebidas. Ele não possui uma ideologia de jogo tão significativa como outros

técnicos, mas se distingue por sua adaptação ao que recebeu. Depois da

impressão tão profunda que Guardiola deixou em matéria de jogo, Ancelotti

provavelmente será um continuador esplêndido, tanto para que o modelo de

jogo vá adiante quanto para administrar o estresse competitivo que Pep

insuflou nos jogadores em Säbener Straße. O desaparecimento dos rondos no

Bayern, desde o primeiro dia de treinamento com Ancelotti, poderia ser

interpretado como um intento de ruptura ideológica, mas é muito mais correto

entender esse fato como o emprego de uma metodologia diferente. A

incorporação do italiano parece um grande acerto por parte do Bayern e uma

garantia de que os êxitos alcançados nos últimos anos continuarão.

Que as palavras de Arrigo Sacchi sirvam como desfecho para as linhas

anteriores: “Todo treinador que chega para substituir Guardiola tem um

problema: não pode ser melhor do que ele. Mas tem uma vantagem: encontra a

mesa posta”.

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5.1. SUA CONTRIBUIÇÃO PARA A BUNDESLIGA

Se você não luta de alguma maneira pelo

melhor ou por um ideal, está perdido.

NORMAN FOSTER

A gressividade competitiva e ideologia futebolística. Essas são as duas

contribuições fundamentais de Guardiola para a Bundesliga.

Nos três anos anteriores à sua chegada, o balanço dos triunfos do Bayern

tinha sido irregular. Embora tenha conquistado o soberbo triplete em 2013,

com Heynckes, o clube não obteve nenhum título maior nas duas temporadas

anteriores, apenas a Supercopa alemã de 2012. É evidente que a contribuição de

Jupp Heynckes na temporada 2012/2013 foi um ponto de inflexão categórico na

hierarquia do futebol alemão e a colaboração de Guardiola consistiu em dar

continuidade ao sucesso, uma vez conseguido o triplete. (De fato, o grande

temor na direção do Bayern residia em um possível declínio depois das

conquistas de 2013 ou da Copa do Mundo de 2014.)

O treinador catalão pressionou ao máximo os jogadores para evitar essa

queda e conseguiu que o Bayern não apenas vencesse outros três títulos

consecutivos de liga para somar ao de Heynckes, mas que o fizesse com

recordes absolutos praticamente em todos os âmbitos do jogo. Esse agressivo

espírito competitivo não escolheu campeonatos. Os resultados foram

esplêndidos na liga e na Copa (cinco títulos no total, dois dobletes) e amargos na

Champions, com a desclassificação em três semifinais seguidas.

Li frequentemente que essa característica competitiva do Bayern tinha

pouco mérito, porque a qualidade do elenco era muito superior à de todos os

times alemães. É uma afirmação correta, mas que ao mesmo tempo exige uma

importante análise. É correta porque a qualidade é inquestionável: antes de Pep

chegar, o Bayern já tinha um elenco estupendo que formava o núcleo central da

seleção alemã, e, com ele, melhorou graças a jogadores como Douglas Costa,

Xabi Alonso, Lewandowski, Thiago, Vidal, Kimmich ou Coman. A grande

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questão, no entanto, se resume a uma pergunta: o que fizeram o Bayern e seus

rivais durante esse período?

• O Bayern gastou 53,4 milhões de euros em jogadores (contratações

menos vendas) e conquistou três ligas.

• O Borussia Dortmund gastou 44,15 milhões de euros e fez 62 pontos a

menos que o Bayern nas três ligas.

• O Wolfsburg gastou 27 milhões e fez 73 pontos a menos do que o Bayern

nos três anos.

A diferença de investimento entre os três clubes não é suficientemente

significativa para explicar a grande distância em pontos que separou o campeão

de seus grandes rivais, embora esteja claro que o gasto em contratações não

seja o único fator de influência, pois os salários são outra razão poderosa (os do

Bayern são os mais elevados da Alemanha, porém inferiores aos de seus

grandes adversários europeus), além do fato de o Bayern ter debilitado o BVB

com as contratações de Götze e Lewandowski. Mas tudo isso não é suficiente

para explicar o imenso abismo que o Bayern abriu em relação a seus oponentes.

Como o BVB de Tuchel demonstrou na última temporada, há outras causas,

além do dinheiro, que são precisamente o jogo e o espírito competitivo que um

treinador consegue injetar em seu time. E o próprio acerto nas contratações.

A segunda contribuição do treinador catalão ao futebol alemão é a

qualidade e quantidade de ideias sobre o jogo que ele semeou durante três

anos. As propostas de Guardiola enriqueceram o futebol no país e, ao mesmo

tempo, incrementaram a contradição que se instalou após sua refundação desde

a virada do século. Ao longo desse período, a Alemanha não modificou sua

estrutura futebolística apenas por causa dos resultados discretos da seleção e

dos clubes (maquiados, de vez em quando, por algum triunfo), mas pela

convicção ideológica de que o jogo praticado estava obsoleto. A partir do ano

2000, foram adotadas medidas de grande profundidade que afetaram todos os

estratos dos clubes, estimulando a formação de treinadores, a detecção de

talento, a proliferação de jogadores jovens nas categorias de base e a

estabilidade financeira dos clubes. (Em seu livro Das Reboot, o jornalista

Raphael Honigstein relata de maneira esplêndida as razões desse processo de

renovação e os parâmetros que o compõem.) O resultado dessa transformação

começou a se comprovar a partir de 2006, coincidindo com a Copa do Mundo

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realizada na Alemanha, e foram alcançados rendimentos ainda melhores nos

anos sucessivos, com a seleção nacional, o Bayern e o Borussia Dortmund como

referências.

Se o processo de refundação foi tão acertado, qual é a contradição que

convive com ele? A que é subjacente ao próprio conceito de jogo que se pratica.

No futebol alemão coexistem três grandes vetores ideológicos:

1. A tradição herdada dos anos 1970.

2. A cultura do Gegenpressing popularizada por Klopp.

3. O jogo de posição proposto por Guardiola.

Esse conflito ideológico é profundo e mereceria, por si só, um trabalho

extenso que se afasta do objetivo desta obra, por isso me limitarei a anotá-lo em

linhas gerais. Dentro do futebol alemão, tanto se pensarmos na liga quanto na

própria seleção, sobrevivem poderosos atavismos arraigados a um tipo de jogo

que gerou inúmeros triunfos nos anos 1970 e 1980, ao mesmo tempo em que a

formação técnica majoritária se fundamenta em dinâmicas unidirecionais do

jogo — representadas com êxito pelo Gegenpressing de Jürgen Klopp e

continuadas por outros técnicos como Roger Schmidt e Ralph Hasenhüttl —,

que se conectam emocionalmente ao sentir tradicional do torcedor (correr

muito, entregar-se ao máximo, lutar até a exaustão) e ao próprio caráter

germânico. Basta recordar que a Bundesliga é o campeonato em que os times

correm mais quilômetros, para cima e para baixo sem parar, e com as médias de

velocidade mais altas.

Conversei a respeito com um dos analistas mais interessantes do futebol

alemão, o jovem Tobias Escher, que acaba de publicar o livro Do líbero ao doble

pivote: Uma história tática do futebol alemão, e sua resposta foi muito

significativa, pois nos confirma algo que já intuíamos: aquilo que não se

conhece, nem se reconhece, é geralmente considerado como “abstrato”. Sobre o

mencionado conflito ideológico, disse Escher: “Eu acrescentaria que antes de

Guardiola chegar à Alemanha, ninguém aqui conhecia o conceito do jogo de

posição, porque nunca tinha sido parte da cultura do futebol alemão como

ocorreu na Catalunha ou na Holanda. Na Alemanha, o termo taktik (‘tática’) se

utiliza com frequência como sinônimo de ‘defesa’. Assim, um jogo ‘tático’ é um

jogo defensivo, em que ambos os times fecham seus gols de todas as formas. De

acordo com essa concepção, táticas são necessárias para defender, mas não

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para atacar. Esse, acredito, foi um dos grandes problemas para Pep na

Alemanha: os torcedores, jornalistas e treinadores não eram capazes de ver que,

para marcar gols, é necessário dar aos jogadores determinadas ordens táticas

sobre como devem se posicionar e interagir entre si etc. Na Alemanha, muitas

pessoas pensam que a melhor maneira de marcar gols é deixar tudo nas mãos

dos jogadores. Ou, como Beckenbauer disse a sua equipe em 1990: Fußball de

Geht raus und de spielt! (‘Só temos de jogar futebol!’). Desse modo, na Alemanha,

não se verificou uma consciência autêntica do que Guardiola estava fazendo,

desde o ponto de vista tático. Aqui, atacar é equivalente a ter velocidade. E

Guardiola não usou a velocidade, mas usou algo que as pessoas não entendiam:

o jogo de posição. Creio que esse foi o principal conflito ideológico que tivemos”.

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5.2. TUCHEL, O POTENCIAL HERDEIRO

Não há treinadores infalíveis, nós somos nossa

trajetória… em que há vitórias e derrotas. O

importante é somar mais alegrias do que amarguras.

JESÚS CANDELAS

Outros treinadores alemães, interessados há vários anos no modelo que gerou

tantos êxitos para o Barcelona e para a seleção espanhola, realizaram imersões

para transportá-lo ao futebol alemão, em diversas medidas e proporções.

Joachim Löw é talvez o técnico mais destacado dessa terceira corrente. A

passagem de Guardiola trouxe um enorme fluxo de ideias, novos conceitos e

fundamentos que (acompanhados pelo sucesso obtido) não só estimularam

debate e discussão, como também um poderoso efeito de aprendizagem e

imitação. Treinadores destacados como Julian Nagelsmann, André Schubert ou

Thomas Tuchel são as principais referências dessa terceira tendência, que

Guardiola definiu desde o primeiro dia como “contracultural”, pois significou

um choque estrondoso com a tradição alemã e o jogo de contrapressing.

Assim, o futebol alemão, à margem de seus excelentes resultados, se

encontra imerso em um processo de agitação interna — com pouca visibilidade,

por certo — no qual essas três tendências convivem e discutem de maneira

permanente, em uma tensão latente que não sabemos como terminará. A

contribuição de Guardiola a esse processo foi mais do que notável, ao oferecer

uma versatilidade tática desconhecida e exigir dos outros treinadores respostas

constantes como réplicas às propostas do Bayern. Essas respostas chegaram de

todos os ângulos possíveis: desde um contundente incremento da organização

defensiva (a defesa 6-3-1 deixou de ser avis rara e se converteu em habitual)

até o emprego de uma pressão extenuante para frear a saída de bola do Bayern,

passando pelo uso de todo tipo de disposições táticas em busca de antídotos

para as ideias de Pep, o que serviu como grande estímulo para que ele seguisse

avançando em suas propostas. E, claro, embora se encontre em fase

embrionária, vimos o crescimento de Thomas Tuchel como potencial herdeiro

de Guardiola no âmbito do jogo de posição na Alemanha.

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Tuchel introduziu no Borussia Dortmund um novo paradigma de jogo. Sem

perder a personalidade intensa, agressiva e direta que Klopp lhe havia

inspirado, criou um variado catálogo estratégico e tático, dotando sua equipe de

um jogo posicional do qual carecia (e que foi uma das principais razões do

declínio no último período de Klopp, quando os rivais lhe cederam a bola e lhe

negaram espaço para correr). Em minha opinião, Tuchel é o treinador alemão

mais interessante dos últimos anos do ponto de vista estratégico, e com grande

futuro. Ele demonstrou isso no Mainz 05 e demonstra no Dortmund. Em suas

mãos, o BVB passou de ser um time que corria muito para um conjunto que

corre com muito sentido.

JANTAMOS?

Munique, 6 de novembro de 2015

Quando se despediam no corredor do vestiário da Allianz Arena, Tuchel

disse a Pep:

— Como está a próxima semana? Podemos jantar algum dia?

— Sim, claro, estou livre na terça. Me telefone e marcamos.

O triunfo do Bayern foi impressionante (5 × 1), mas, na entrevista

coletiva, Guardiola elogiou categoricamente o jogo do Borussia Dortmund.

Não foram palavras diplomáticas, Pep pensava realmente assim. Um par de

horas mais tarde, ele as repetiu diante de Domènec Torrent e Manel

Estiarte. Sentia verdadeira admiração pelo trabalho realizado por Thomas

Tuchel em poucos meses. O BVB, que com Klopp foi um time formidável e

vertiginoso, embora em sua etapa final tenha desenhado um jogo menos

confiável, havia sofrido uma esplêndida transformação nas mãos de Tuchel,

adquirindo um domínio notável de todas as facetas do jogo. O Dortmund

não demonstrou isso nessa tarde na Allianz Arena, onde o Bayern o

esmagou, mas a derrota não ocultou a grande evolução que estava se

produzindo.

Guardiola e Tuchel mantinham uma relação excepcional, que se iniciou

sobre o gramado durante a primeira temporada de Pep na Alemanha,

quando Tuchel treinava o Mainz 05, um time que sufocou o Bayern nas

duas vezes em que se enfrentaram. O técnico catalão ficou admirado com

as propostas de jogo do alemão e ambos se reuniram durante o ano

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sabático de Tuchel, após sua despedida do Mainz. Comeram no

Schumman’s Bar, onde ficaram célebres as conversas que mantiveram,

usando saleiros e copos para imitar movimentos táticos. O fato de Tuchel

se converter no treinador do grande rival (Borussia Dortmund) não

atrapalhou essa boa relação, de forma que na terça-feira à noite, apenas 48

horas depois de terem se enfrentado na liga, Guardiola e Tuchel

compartilharam uma mesa.

Os mecanismos mentais que Guardiola usou para preparar o encontro

do domingo intrigavam Tuchel. O técnico do BVB tinha consciência de que

havia escolhido uma via heterodoxa para lutar com o Bayern, trocando de

posição ou de papel nada menos do que seis jogadores de seu time básico.

Talvez tenham sido muitos. Tuchel decidiu retornar imediatamente ao

cenário do desastre para tentar averiguar de que modo Pep tinha se

preparado para massacrar um time que, até aquele domingo, era um

prodígio de organização e inventividade.

Guardiola também queria conhecer em primeira mão a razão pela qual

Tuchel tinha trocado tantas peças de seu time e intuir as propostas que ele

apresentaria no futuro imediato. Os treinadores que dirigiam os dois

primeiros colocados do campeonato se reuniram de maneira privada, sem

testemunhas, para compartilhar conhecimentos e sensações poucas horas

depois de se enfrentarem em campo, como fazem os enxadristas após suas

partidas. Nem Pep nem Tuchel temiam revelar seus pensamentos um ao

outro. O essencial ficaria guardado em segredo.

No dia seguinte, Guardiola comentou muito sucintamente o conteúdo

da conversa:

— Se a Alemanha adotar o jogo de posição, será sobretudo graças a

Tuchel.

Perguntei ao treinador suíço Hermann Kälin, de formação eclética por

causa da instrução na Alemanha, da experimentação no México e do

aperfeiçoamento junto a Paco Seirul·lo em Barcelona, se Tuchel seria capaz

de cumprir a profecia de Pep:

— Estou convencido de que o Borussia Dortmund de Thomas Tuchel

será uma equipe para se ter muito em conta no futuro, não só na

Bundesliga, mas também na Europa. Tuchel é, com folga, o treinador mais

promissor da Alemanha nos últimos trinta anos, e digo isso com

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conhecimento de causa. Ele modificou em pouco tempo o paradigma que o

Dortmund vinha adotando com Klopp. Agora o time corre, em média, dez

quilômetros a menos por jogo do que fazia antes, é mais intenso e joga

melhor, porque tem mais posse de bola. Seu coeficiente de passes certos

melhorou notavelmente e os jogadores exploram melhor suas grandes

qualidades. Agora correm menos, mas correm melhor. Na Alemanha, Pep já

foi o xerife, mas no futuro será Tuchel.

O desafio de Tuchel também é colossal. Depois de uma brilhante primeira

temporada, na qual devolveu a máxima competitividade ao Dortmund, ele não

conseguiu culminar o trabalho com um título, derrotado na liga e na Copa por

Guardiola, e na Europa League por Klopp. Ironias do destino. Durante o verão

seguinte, perdeu três esteios do time — Hummels (contratado pelo Bayern),

Gündoğan (Manchester City) e Mkhitaryan (Manchester United) —, o que o

obrigou a uma recomposição completa da equipe e a seu rejuvenescimento com

jogadores como Merino, Dembélé, Mor, Rode, Schürrle, Guerreiro, Bartra e

Götze. Como se dá em Manchester com Guardiola, a temporada 2016/2017

também será um formidável desafio para Tuchel, após o qual poderemos saber

se, de fato, é possível considerá-lo o herdeiro-sucessor de Pep na Alemanha em

relação às ideias de jogo.

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5.3. SUA INFLUÊNCIA SOBRE A MANNSCHAFT

O problema do mundo é que os tontos e fanáticos

estão sempre muito seguros de si mesmos, e as

pessoas mais sábias estão repletas de dúvidas.

BERTRAND RUSSELL

Ponderar a influência de um treinador de clube em uma seleção é

terrivelmente difícil. Quanto influenciou a colaboração do Guardiola

barcelonista nos sucessos da seleção espanhola? É impossível precisar. Na

aparência, a influência foi elevada, porque a seleção absorveu por osmose uma

boa parte do jogo do Barça, acrescentando, graças à inteligência do técnico

Vicente del Bosque, outros elementos que agregaram consistência e

diferenciação (Xabi Alonso, como doble pivote, junto a Busquets foi um dos mais

notáveis). Mesmo sendo impossível medir tal influência, é indiscutível que o

jogo implantado por Guardiola no Barcelona teve impacto na continuação do

sucesso da seleção, dado que o núcleo central foi composto de jogadores de Pep

e sua dinâmica de jogo também foi percebida, sem a menor dúvida.

Podemos afirmar o mesmo em relação à seleção alemã que ganhou a Copa

do Mundo de 2014, com uma coluna vertebral formada por homens do Bayern.

Não só a melhora individual em jogadores como Boateng, Kroos, Neuer ou Lahm

se transferiu à Mannschaft, mas uma parte do modelo de jogo praticado pelo

Bayern tomou corpo também na seleção, por decisão e estímulo de Löw, que

acrescentou outros elementos singulares (o papel relevante de Khedira como

interior ou a direção executiva do time por parte de Lahm, mesmo localizado do

lado direito).

Em ambos os casos, sendo certo e inegável que Guardiola teve um papel

nos triunfos das seleções da Espanha e da Alemanha (coincidindo com suas

passagens pelo Barça e pelo Bayern), tanto por dirigir as equipes que formaram

majoritariamente a estrutura dessas seleções quanto pelo progresso individual

dos jogadores, não é menos certo que se trata de uma influência que não pode

ser medida ou avaliada, e que só foi possível graças ao convívio com a

inteligência tática e emocional expressada pelos técnicos Del Bosque e Löw. Em

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qualquer caso, supõe-se um feedback mútuo positivo entre técnicos de

personalidade proativa.

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5.4. O PROGRESSO DOS JOGADORES

O dia a dia equivale a ser um artesão do rendimento.

ROBERTO OLABE

Onde a influência de Guardiola não admite a menor dúvida, pois resultou

poderosa e contundente, é no aperfeiçoamento das qualidades de uma grande

parte dos jogadores que ele treinou no Bayern. Um dos técnicos que mais

influíram no trabalho de Pep é o argentino Julio Velasco, treinador de voleibol,

que assim avalia a progressão do jogador: “O prazer do treinador tem de ser o

prazer de um artesão, não o de um industrial. Somos artesãos do ensinamento e

da formação do esportista. O treinador tem de ser feliz com o progresso de seu

esportista, não com o resultado que ele conseguir. Feliz pelo processo, não pela

vitória. Isso é o que deve nos encher de satisfação. O primeiro prazer é ver os

seus jogadores crescerem. E o segundo é a vitória que se obtém com esses

jogadores”.

As palavras de Velasco ilustram à perfeição o sentimento de Guardiola em

sua relação com os jogadores: “Em geral, na vida você já sabe quem é quem. E

sabe quem o quer bem de verdade e quem só o procura por outros interesses.

Veja, de todos os jogadores que tenho, eu já sei quem ajudei, a quem vou deixar

algo — pequenininho — para sua vida e para quem não vou significar nada. E

com esses últimos será assim por uma única razão: simplesmente porque minha

ideia de jogo não os agrada. Não terá havido nenhuma má intenção por parte

deles, apenas essa ideia que não os agradou”.

Ajudar seus homens é a principal motivação de Pep, até mais do que

ganhar. Comprovamos pessoalmente com um jogador que não conseguiu

melhorar com Guardiola: Mario Götze. Pep nunca dedicou a um atleta tantos

esforços, tantas horas de vídeo, análise e conversas como com Götze. Com

nenhum outro ele teve tanta paciência ou tentou tantas variantes, a nenhum

outro deu tantas oportunidades. Sem sucesso. Provavelmente em razão do

excesso de expectativa que se gerou na Alemanha em relação a essa jovem

promessa, logo comparada a Messi, quando na realidade Götze é menos

extraordinário do que se imaginou quando ele tinha dezoito anos. Ou talvez seja

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apenas mais um dos inúmeros casos de esportistas que, em determinados

contextos, não conseguem expressar suas qualidades. O indiscutível é que tanto

Guardiola quanto Götze tentaram de forma notável durante 36 meses, sem

alcançar tudo o que desejavam.

Por outro lado, a lista de êxitos é longa. Lahm passou de ser um lateral

formidável a um meio-campista imprescindível: um cérebro executivo em

campo, sem importar a região que ocupe, capaz de determinar os ritmos, dar

passes decisivos e agregar uma dose impensável de certeza a seu time. Pep viu

em Boateng um diamante bruto desde o primeiro momento e o poliu a um

ponto que nem sequer o próprio jogador tinha sonhado; hoje ele é um defensor

central portentoso, de muita visão de jogo e com uma técnica de passe superior.

Com Guardiola, Neuer extraiu todas as suas capacidades intrínsecas: de goleiro

se transformou em verdadeiro futebolista, e não só por ter adotado o

posicionamento mais próprio para um líbero em diversas ocasiões, mas porque

sempre deu continuidade ao jogo, não tanto por sua técnica com os pés, mas por

uma disposição mental em permanente concentração.

A CONCENTRAÇÃO DE NEUER

Munique, 5 de novembro de 2014

O jogo deixou uma curiosidade. O Bayern finalizou 24 vezes, reflexo de seu

domínio, e a Roma só conseguiu disparar duas vezes ao gol, ambas aos 38

minutos do segundo tempo, quando Neuer fez duas defesas soberbas em

chutes consecutivos de Gervinho e Nainggolan. Fiquei surpreso com a

capacidade de Neuer de se manter tão atento quando o jogo já estava

terminando, após oitenta minutos nos quais praticamente não atuou. Fiz

esse comentário a Toni Tapalović, o treinador de goleiros do Bayern, que

me respondeu assim:

— Não se surpreenda. Manu está sempre concentrado, não se distrai

nunca. Ainda que não intervenha, ele está jogando a partida em todos os

segundos de cada minuto.

Joshua Kimmich foi outra vitória pessoal de Guardiola, que acreditou

cegamente nele (“Cedo ou tarde, Kimmich vai atuar na seleção. Ele tem tudo de

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que um jogador necessita”, setembro de 2015), estimulou-o a jogar com

valentia, utilizou-o em situações e papéis impensados, corrigiu-o duramente

quando foi necessário e confiou a ele desafios relevantes até impulsioná-lo a ser

um indiscutível jogador de seleção: o jovem Kimmich foi um aluno

extraordinário.

KIMMICH, A GRANDE ESPERANÇA

Munique, 10 de agosto de 2014

Faz um calor abrasador em Munique quando o telefone toca e acorda

Estiarte. É Pep:

— Vamos para a Allianz. Pego você em dez minutos!

Michael Reschke, o responsável pelo scouting, espera os dois no

estádio. Mas o Bayern não vai jogar, e sim o rival municipal, o tsv 1860

München, da segunda divisão, o que surpreende ainda mais Estiarte. O time

enfrenta o rb Leipzig, no qual atua Joshua Kimmich, uma das grandes

pérolas do futebol alemão. Kimmich se proclamou campeão europeu sub-

19 com a Mannschaft apenas dez dias antes. Guardiola e Estiarte chegam a

tempo, às 15h30, para ver o início de um jogo que acaba sendo um absoluto

desastre. Uma partida banal, em que a bola voa de uma área à outra sem

parar no centro do campo. É um jogo horrível, sem a menor consistência

tática e de uma pobreza entristecedora, no qual Kimmich toca apenas 33

vezes na bola.

Mas sete dias mais tarde, Guardiola telefona de novo para Estiarte e,

desta vez, está profundamente alterado:

— Manel, Manel, estou no carro, chego em dois minutos! Você precisa

ver Kimmich! É uma máquina!

Pep decidiu dar uma segunda oportunidade ao rapaz e se entusiasmou

com o que viu: a capacidade de direção de Kimmich, seu sentido do jogo e

dos ritmos, como perfila o corpo, recebendo com uma perna e passando

com a outra, seu olfato para as coberturas e um sentido agudo para intuir

qual deve ser a ação seguinte. Pep observa nele um grande talento e o quer

a seu lado. E o quer já.

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Douglas Costa chegou a Munique rodeado de interrogações, e até o

treinador teve de forçar seriamente sua contratação diante da resistência do

clube. Quem é?, perguntaram-se os jornalistas, torcedores e também algum

dirigente do Bayern. Meses mais tarde, Costa não só se transformou na

revelação da Bundesliga, mas em um jogador imprescindível para que o jogo do

time tivesse harmonia, sem que importasse em qual posição ele atuava. Quando

Kingsley Coman aterrissou no Bayern, era uma promessa que pouco participava

dos jogos na Juventus, mas em Munique terminou sendo um dos carrascos do

ex-time (como disse Guardiola: “O cruzamento feito por um rapaz de dezenove

anos é o que transforma você em vencedor ou fracassado”). Toni Kroos era um

mediapunta excelente em quem Pep aperfeiçoou os fundamentos de meiocampista

central interior, que assenta seu time no campo do adversário e o

conduz em qualquer um dos eixos, qualidade que depois, com os

aprimoramentos de Ancelotti no Real Madrid, lhe permitiu se transformar em

um maestro. David Alaba era um lateral imparável, uma fúria elétrica, o jogador

com maior capacidade atlética da equipe e, nesses três anos, tornou-se um

futebolista completo: foi defensor central nos trechos mais decisivos do último

ano de Guardiola, meio-campista interior em muitos momentos, extremo e até

centroavante, sem perder suas qualidades originais; para seu progresso,

sempre foi melhor orientá-lo do que deixá-lo livre como o vento. Finalmente,

Lewandowski e Müller, os dois jogadores de perfil mais heterodoxo, obrigaram

o treinador a exprimir sua capacidade de construir ambientes de jogo

específicos para qualidades tão anárquicas como as deles, até conseguir um

encaixe que funcionou de forma tão eficaz que ambos pulverizaram suas marcas

goleadoras (Lewandowski, 44 gols, com um incremento de 50% em relação à

média dos três anos anteriores; Müller, 32 gols, incremento de 39%).

Xabi Alonso expressou em poucas palavras qual era o segredo de tantas

lapidações: “Com Pep, tudo é muito trabalhado em detalhes. As coisas saem bem

não por acaso ou porque ele nos dá instruções, mas porque, com ele, você

trabalha, trabalha e trabalha”. Sem a menor dúvida, a melhora experimentada

pelos jogadores está na base da felicidade com que Guardiola se despediu de

Munique. Foi sua maior satisfação e uma das contribuições mais importantes

que realizou na Alemanha:

— A grande influência que nós treinadores temos é essa. Hoje veio nos ver

um assistente técnico do Real Madrid, que nos disse: “Vocês não sabem como

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Toni Kroos fala de vocês, de toda a equipe técnica: ‘Tudo o que os treinadores

nos diziam acabava acontecendo e sabíamos tudo sobre os rivais’”. Aí está,

pronto, esse é o meu trabalho e a minha satisfação. Não é a metodologia nem

nada parecido: é ensinar algo aos jogadores, e que eles notem. Você ajudou esse

jogador a entender o jogo ou a ser ainda melhor? Bingo, missão cumprida.

Destacamos em Pep seu talento tático e também sua evolução estratégica,

mas na realidade o que o define melhor como treinador — em expressão que

tomo de Dante Panzeri — é que ele “sabe fazer jogadores”: sabe extrair suas

melhores qualidades.

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BASTIDORES

O FLOW DE LEWANDOWSKI

Munique, 22 de setembro de 2015

Se o flow existe, o flow se encarnou em Lewandowski.

— Hoje vamos meter quatro neles…

Foram cinco. O autor da frase é Juanma Lillo, uma das duas grandes

referências técnicas de Guardiola, junto com Johan Cruyff. Como fazem

frequentemente, Pep e Lillo conversaram por um longo tempo,

analisando o desempenho do Bayern diante do Darmstadt 98 (jogo que o

Bayern venceu por 3 × 0 no sábado passado, com um brilhante

rendimento de homens como Rode e Coman).

— Percebeu que nos movemos pouco, mas bem?

A pergunta de Pep é retórica. Ele já sabe que seu time se moveu

bem e pouco. Guardiola, como Lillo, pensa que é a bola que deve chegar

aos jogadores — e não os jogadores que devem ir até a bola. Correr, sim,

mas com sentido. Correr muito, mas com muito sentido. Não correr para

se mostrar, nem correr para se precipitar em relação à bola, mas para

estabelecer posições e conseguir que a bola chegue rápido aos jogadores

que as ocupam. E correr muito, claro, mas para pressionar o rival, para

atacar com profundidade no momento oportuno, para se recolher

quando você é contra-atacado, para alcançar as posições que devem

estar sempre ocupadas… Pep quer que seu time corra muito (“Devem

correr como loucos”), mas com os objetivos claros e não correndo

apenas por correr.

Às vezes, seus jogadores correm “demais”. Correm sem necessidade

e sem sentido. Arturo Vidal é um dos que precisam dessa reconversão:

em Darmstadt, mostrou uma grande evolução e Lillo comenta com Pep.

O treinador catalão está satisfeito com a incorporação do meio-campista

chileno.

Na conversa por telefone, Pep faz elogios a Joshua Kimmich, o

diamante que o encantou um ano atrás e que, em Darmstadt, fez sua

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estreia como titular na Bundesliga, mostrando um rendimento soberbo.

Hoje, Guardiola observa que a Alemanha tem vários dos melhores

meios-campistas centrais jovens do mundo: um é Kimmich, outro é

Julian Weigl, do Borussia Dortmund, e outro é Gündoğan, versátil e capaz

de jogar em todas as posições do meio de campo. Kimmich joga como o

próprio Guardiola fazia; Weigl joga como Sergio Busquets; Gündoğan

acrescenta uma excelente capacidade de condução. A Alemanha tem o

futuro garantido.

Guardiola está concentrado no Wolfsburg, o grande rival da

temporada passada e que, há sete semanas, o impediu de conquistar a

Supercopa alemã. O VfL visita a Allianz Arena e ainda não perdeu na liga.

É um inimigo perigoso.

— Tranquilo, Pep, vamos meter quatro neles.

Foram cinco. Foi um momento mágico. Um momento que durou

quase nove minutos. Um momento durante o qual Robert Lewandowski

alcançou esse estado de flow: “Foi uma loucura”, disse o goleador. “Eu só

queria chutar e chutar e não pensar no que estava acontecendo…”

A história lembrará que, em oito minutos e 57 segundos,

Lewandowski tocou nove vezes na bola, finalizou seis vezes, chutou uma

bola na trave e marcou cinco gols.

Mas o impacto foi maior do que as simples cifras ou os recordes

pulverizados. O impacto na Allianz Arena foi vulcânico. Foram nove

minutos improváveis, desses com os quais não se pode sonhar, que não

podem ser previstos nem imaginados. Nove minutos mágicos em que

Lewandowski acabou com as angústias e os temores de falhar nas

finalizações. Arrancou essa membrana de temor que o cobria, que o

amarrava, que o encolhia, e desencadeou todo o seu potencial, sua força,

seu chute.

O impacto sacudiu o mundo do futebol. Os comentaristas de rádio e

televisão enlouqueceram, gritando como se estivessem possuídos,

enquanto os torcedores viviam uma algazarra inédita à medida que

Lewandowski acumulava conclusões a gol. Os gols aconteciam um atrás

do outro, e o polonês entrou em transe, como se uma força interior o

impulsionasse em direção à meta de Benaglio, submetido a uma tortura.

O Wolfsburg, pétreo e sólido como uma rocha no primeiro tempo, se

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desmoronou como areia de praia. Os próprios jogadores do Bayern

pareciam estar assistindo a um milagre e também se contagiaram pelo

flow de Lewandowski, pois Vidal logo encontrou corredores gigantescos

onde enviar a bola, Müller aumentou sua capacidade para emaranhar as

pernas dos rivais, Douglas Costa pareceu multiplicar sua velocidade e

Götze — talvez mais do que qualquer um — também pareceu

compreender que estava compartilhando um momento histórico, pois

serviu três bolas sensacionais para que seu companheiro as mandasse à

rede.

Houve muitos momentos mágicos na história do futebol, mas esse

terá sido um dos mais potentes pela forma como um atacante rompeu

tudo o que estava preestabelecido. Ninguém refletiu melhor a

inverossimilhança do ocorrido que Guardiola, cujo rosto mostrava a

incredulidade do mundo inteiro diante da magia de Lewandowski. Com

as mãos na cabeça, a boca aberta e os olhos quase lacrimejando, Pep era

o espelho onde todos olhamos para tentar compreender como aquela

proeza havia sido possível, e a imagem que o espelho nos devolveu foi a

de nós mesmos com as mãos na cabeça, a boca aberta e os olhos

lacrimejando. O que aconteceu?

— Não sei! Não posso explicar. Foi algo mágico — diria Pep mais

tarde.

Algo mágico. Nove minutos mágicos de Lewandowski, o goleador

que entrou em transe para protagonizar um momento inesquecível.

O Bayern começou dominador como está acostumado, mas o

Wolfsburg não só o freou como chegou ao intervalo com vantagem no

placar. A eficiência do time de Hecking se resume em um dado frio: foi a

décima segunda vez, em 2015, que o Wolfsburg marcou um gol em seu

primeiro disparo à meta rival…

O gol não fez mais do que acentuar os problemas do time de

Guardiola, que com meia hora de jogo mandou Javi Martínez e

Lewandowski aquecerem, revolucionando tudo no vestiário. Quando as

coisas vão mal, não se deve dar broncas, mas fazer as correções

oportunas. E foi isso que aconteceu: Bernat e Thiago saíram da equipe. A

reorganização se mostrou acertada. Javi Martínez se ocupou de Bas Dost

e o anulou: ganhou os sete duelos aéreos que mantiveram no segundo

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tempo. Isso permitiu que Boateng se liberasse como central pela

esquerda e pudesse organizar com tranquilidade a saída de bola, sem se

preocupar com o atacante holandês.

A segunda grande modificação foi a troca dos extremos, que

passaram a jogar com sua perna natural: Götze na direita, Costa na

esquerda, o que desbaratou a tática de teia de aranha de Hecking. Um

terceiro fator somou ainda mais benefícios à reorganização do Bayern: a

profundidade de Alaba como lateral esquerdo alterou a marcação sobre

Douglas Costa, que passou a enfrentar um único rival. E a posição de

Müller atrás de Lewandowski completou a transformação. Os quatro

fatores, mais um 4-2-4 bem protegido no meio de campo, foram a

significativa mudança de cenário que precedeu a explosão.

Quem iniciou o festival foi Mario Götze, um jogador submetido a um

escrutínio severo. Foi ele quem deu o passe a Arturo Vidal, que chegou

correndo à área desde a segunda linha e deu a bola à Müller, e o desvio

em Dante permitiu que Lewandowski abrisse sua conta goleadora. Götze

começou tudo e, na metade do flow de seu companheiro, seguiu servindo

bolas deliciosas. Também deu os passes do terceiro e do quinto gols,

realizou quatro dribles completos, roubou duas bolas perigosas e

completou uma atuação extraordinária, à sombra do fenômeno que

assolou a Allianz Arena. Silencioso e discreto, Götze foi o detonador do

“flow Lewandowski”. Isso aconteceu várias vezes com Götze: nas três

temporadas de Guardiola, ele não brilhou à altura esperada, mas

realizou grandes partidas que não foram valorizadas em sua justa

medida, provavelmente porque esperavam que ele fizesse o impossível,

fosse o novo Messi.

Outro fato, também relevante, teve destaque esta noite, mas passou

despercebido diante do desempenho explosivo de Lewandowski.

Analisando as partidas jogadas até hoje, observamos que vem

acontecendo algo significativo em relação ao balanço de gols marcados e

sofridos pelo Bayern:

Primeiros tempos: 4 gols a favor / 3 contra

Segundos tempos: 16 gols a favor / 0 contra

Comentei com Pep nessa mesma noite do triunfo contra o

Wolfsburg que isso não podia ser coincidência.

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— Que Dome lhe responda — disse.

Então levei os dados ao auxiliar técnico. Por que essa enorme

diferença de gols marcados e sofridos entre as primeiras e segundas

partes? Esse parcial de 16 × 0 nos segundos tempos era demolidor.

— Isso é fruto do jogo que Pep apresenta. Ainda há gente que

parece não compreender, mas isso é o que Pep busca. Ter a bola em

nosso poder, cansar o adversário, modificar as propostas e o desenho

tático como quiser sem se preocupar, até que chega um momento em

que tudo isso junto faz com que o rival já não consiga pressionar nem

fechar corretamente os espaços. E então os gols aparecem. É simples

assim.

Dezesseis gols a zero nos segundos tempos. Não era coincidência…

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CAPÍTULO 6

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O PLANO ESTRATÉGICO

O método estratégico consiste em desafiar todas

as hipóteses em vigor com uma única pergunta: por quê?

KENICHI OHMAE

Tudo o que foi detalhado até agora permite compreender a personalidade de

Guardiola, os trabalhos que realizou no Bayern, as mudanças que introduziu,

sua vontade de absorver conhecimentos e os traços táticos essenciais do futebol

que ele propõe. Mas essas são apenas características da pintura, não a obra

completa. E se é muito interessante ver Guardiola de perto, como se usássemos

um microscópio, é ainda mais necessário contemplá-lo de longe, com um

binóculo que nos facilite a compreensão global de seu trabalho, o quadro

completo da obra.

Esse quadro global é seu “plano estratégico”. É um plano preparado para

três anos em que ele pretende dotar o time de todas as ferramentas e

conhecimentos necessários para desenvolver o tipo de jogo que propõe, tendo

em conta o contexto competitivo em que se encontra e a especificidade dos

jogadores que compõem o elenco. Pep o aplicou no Bayern e, aperfeiçoando a

experiência de sete anos em times de elite, também o desenvolveu para o

Manchester City. Tal plano contém os seguintes elementos estritamente

futebolísticos:

• Modelo de jogo

• Fundamentos de jogo

• Metodologia de treinamento

• Planos de jogo

• Elementos táticos

• Ações táticas

• Aperfeiçoamento técnico-tático

• Análise do rival e do contexto competitivo

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Também trata de elementos que não são especificamente futebolísticos, e

sim mais relacionados à equipe:

• Nutrição

• Prevenção de lesões

• Reabilitação de lesões

• Recuperação do esforço

• Preparação emocional

• Cultura de equipe

Podemos compreender que o plano estratégico é muito mais amplo do que

o modelo de jogo e figura em um nível superior aos planos de jogo conjunturais

que se estabelecem para cada partida, ou aos módulos, sistemas e ações táticas

que se utilizam de maneira específica durante a temporada. É um plano de

longo prazo, de três anos, durante o qual Guardiola busca desenvolver todas as

suas ideias de jogo e fazer que os atletas consigam extrair todo o seu potencial.

Essas ideias, por sua vez, não são peças imutáveis. Estão sob permanente

influência do contexto competitivo, dos rivais, das ocorrências e adversidades

dentro do próprio time, dos estados de forma física, técnica e emocional, tanto

individuais quanto coletivos, e da exigência competitiva do calendário. As ideias

de jogo são permeáveis e mutáveis ao longo de todo o período de vida do plano

estratégico. Poderíamos catalogá-las como “seres vivos” que evoluem ao longo

desse período: nascem, crescem, amadurecem, morrem e são substituídas por

outras ideias.

A estratégia é a moldura em que a obra será criada; os planos de jogo e as

táticas são os pincéis e os traços com os quais se pinta a obra. A tática aparece

na continuação da estratégia, por mais que coloquialmente ambas sejam

confundidas, dando-se sua fusão num mesmo conceito. Estratégia é se

perguntar “o quê?” e “por quê?”. Tática é se perguntar “como?” e “quando?”. A

estratégia nos indica até onde vamos; a tática, como iremos até lá.

QUAL É A TÁTICA, PEP?

Barcelona, 27 de junho de 2016

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— A tática é que cada jogador saiba exatamente o que deve fazer em cada

momento e em cada posição que ocupa durante uma partida específica.

— É preciso adaptar a tática de sua equipe à do rival?

— Claro que sim. Contra quem jogamos? Contra o vazio? Não, jogamos

contra outro time que tem qualidades específicas e nós devemos conhecer

essas qualidades, saber todos os seus pontos fortes e fracos, temos de

radiografar o rival e nos adaptar a ele. Nossa responsabilidade é conhecer

contra quem jogamos e fazer com que nossa tática esteja adaptada a essas

características. Cada jogador deve conhecer essa realidade do oponente e

saber o que deverá fazer em cada circunstância.

— E se o rival modifica seus comportamentos habituais durante o

jogo?

— Nós precisamos prever isso e saber como deveremos atuar. Quando

digo “nós”, quero dizer todos nós como equipe, ou seja, que cada jogador

saiba o que precisa mudar a partir do momento em que decidimos alterar

alguma coisa por causa do rival. Tanto no princípio, porque defende com

cinco em vez de quatro, como durante o jogo, porque houve uma mudança

de planos. É necessário ter trabalhado todas essas modificações em

treinamento, e os jogadores precisam conhecer todas essas possíveis

variações e qual deve ser sua reação imediata.

— Portanto, preparar-se e conhecer [o rival] é mais importante do que

o módulo que usamos ou a distribuição espacial.

— Sem dúvida. A tática não é combinar números: é saber o que fazer

em cada momento.

Guardiola sempre foi mais tático do que estratégico. O aspecto que ele

dominou sempre foi a preparação de cada uma das batalhas que enfrenta (as

partidas), ou seja, o âmbito tático do futebol. Entretanto, a estratégia é um

aspecto em que havia grande margem para que ele melhorasse e a experiência

na Alemanha lhe foi muito útil para avançar nessa questão. Após sua etapa em

Munique, Pep confere uma importância muito maior ao quadro estratégico.

Essa focalização em médio prazo é a causa de suas demonstrações de

insatisfação, mesmo ao longo de uma sucessão de vitórias: talvez o time esteja

vencendo, mas não avançando corretamente pelo caminho adequado, o que

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pode ser muito mais negativo do que uma derrota conjuntural, porque o

resultado em curto prazo costuma atentar contra o em médio prazo.

Ao se mostrar esquivo após uma vitória, Pep gera estranheza na torcida ou

na imprensa, mas o fato é que ele se protege muito durante o triunfo, bem mais

do que na derrota. A melhora e o crescimento de um time não são produzidos

por causa dos triunfos obtidos, mas em virtude das lições que extraem deles e

das derrotas também. Os resultados provocam alegrias ou tristezas, mas nunca

dão razão. Marcelo Bielsa falou do triunfo como um “impostor”, e Garry

Kasparov avisou sobre seus perigos: “Eu chamo de ‘o perigo do sucesso’. Ganhar

cria a ilusão de que tudo está bem. Há uma tentação muito forte de pensar só no

resultado positivo sem ter em conta todas as coisas que saíram mal (ou que

poderiam ter saído mal) pelo caminho. Depois de uma vitória, queremos

celebrá-la, não analisá-la. Reproduzimos o momento triunfal em nossa mente

até que o percebemos como se fosse algo completamente inevitável para

sempre. […] A complacência é um inimigo perigoso. A satisfação pode levar a

uma falta de vigilância, a cometer erros e perder oportunidades. [É] uma

espécie de paradoxo. O êxito e a satisfação são nossos objetivos, mas também

podem dar lugar a padrões negativos de comportamento que impeçam o grande

êxito e a grande satisfação”. Advertido por seus amigos, Guardiola busca o

triunfo acima de qualquer outro objetivo; porém, uma vez conquistado, ele vigia

suas consequências ao extremo.

Estabelecida a relevância que o plano estratégico tem para Guardiola,

passarei aos aspectos menos comentados sobre ele, uma vez que, no livro

anterior, descrevi minuciosamente a metodologia de treinamento, os rondos e

jogos de posição, a preparação física, a importância da análise dos rivais e do

cuidado com a nutrição, além de vários detalhes quanto à preparação emocional

dos jogadores. Ainda no primeiro livro, especifiquei as variantes e ações táticas

utilizadas; por isso, vou me concentrar agora somente em três aspectos

específicos do quadro estratégico:

• Modelo de jogo

• Planos de jogo

• Cultura de equipe

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6.1. O MODELO DE JOGO

O modelo de jogo é tão forte

quanto o mais fraco de seus elos.

FRAN CERVERA

O modelo de jogo reflete a personalidade da equipe e, portanto, o caráter do

treinador. É a caixa de ferramentas do time. Como sabemos, um encanador não

leva em sua maleta os mesmos instrumentos de um cirurgião, e um carpinteiro

não leva um colete salva-vidas. O treinador é quem fornece esse modelo à

equipe, baseado em seus fundamentos de jogo. De acordo com sua sensibilidade

para compreender as qualidades conhecidas e ocultas dos jogadores, será maior

ou menor o grau de adaptação, harmonia e coesão futebolísticas que o time

exibirá.

É indubitável que, mesmo que Guardiola tenha estabelecido no Bayern um

modelo de jogo absolutamente identificável, o jogo de posição (seguiremos

usando esse termo por enquanto), se o meio de campo tinha Lahm, Kroos e

Thiago, não aconteciam as mesmas coisas de quando era formado por Xabi

Alonso, Vidal e Müller. As características dos jogadores influenciam

decisivamente no desenvolvimento do jogo pretendido, o que, por sua vez,

provoca uma percepção distorcida do conceito de modelo de jogo que um

treinador possui. O modelo de Guardiola tem fundamentos indiscutíveis, que

repassaremos:

• Posse de bola: a posse é uma ferramenta, só uma ferramenta, não é o

modelo de jogo nem a filosofia que o inspira.

• Superioridade numérica na defesa e numérica ou posicional no centro do

campo.

• Amplitude máxima de campo para encontrar a maior profundidade

possível, combinando com sequências de passes para atrair adversários e

liberar o atacante para seu duelo individual.

• Escalonamento de jogadores para facilitar o início do jogo e o avanço

compacto.

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• Busca do terceiro homem em todas as ações de construção de jogo e de

homens livres entre as linhas de pressão rivais (terceiro homem = buscar o

homem livre partindo de triângulos).

• Proteção defensiva mediante a posse da bola (como disse Pep: “A melhor

maneira de esfriar um ambiente quente é ter a bola”) e o emprego seletivo da

pressão depois de sua perda.

• Respeito às posições, estimulando a troca de jogadores nelas e dando

prioridade para que a bola chegue ao jogador que a espera, e não o contrário.

• Excelência no gesto técnico, incluída a posição corporal na recepção e no

passe, além da busca de passes que melhorem a posição do companheiro.

• Intensidade máxima em todos os momentos do jogo, entendida como

poder de concentração.

• Posição dominante no campo (refletida pela linha defensiva adiantada) e

orientação puramente ofensiva.

É claro que acontece de forma diferente se esses fundamentos são

executados pelos jogadores mencionados do Bayern, ou por Busquets, Xavi e

Iniesta no Barcelona. Naquele caso, o Barcelona de Pep usava muitos passes

curtos e próximos, um avanço gradual e muito compacto, uma orientação

frequentemente horizontal para facilitar esse avanço e um sprint final

estreitamente relacionado com a finalização genial e inigualável de Messi. No

Bayern, as características dos jogadores utilizados induziram a buscar ações

diferentes, por isso vimos uma orientação muito mais vertical e rápida,

numerosos passes em diagonal para os lados, uma notável preponderância dos

extremos e um intento de finalização muito mais coletivo do que individual. E,

sem a menor dúvida, perceberemos outro tipo de jogo em Manchester se, por

exemplo, os intérpretes no centro do campo forem Fernandinho, Gündoğan e

Silva.

Vamos, então, repetir a pergunta do quarto capítulo: Guardiola modificou

seu modelo de jogo? Se considerarmos que ele acrescentou nuances

importantes, adaptou-se às características dos jogadores disponíveis e se

enriqueceu com conceitos que lhe pareceram úteis, poderíamos afirmar que,

sim, modificou. E não só ao longo dos três anos vividos em Munique, mas em

cada temporada e até entre uma partida e outra. De fato, cada encontro não é

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feito só de competição e sobrevivência, pois forma parte de um plano mais

amplo de execução de seu modelo. Mas essa mudança de modelo de jogo

conserva todos os fundamentos essenciais em Guardiola, sem eliminar nenhum

deles, e enriquecendo os existentes graças à exigência com que reagiram os

concorrentes.

O modelo do “jogo de posição” tem duas qualidades de destaque. De uma

parte, se trata de um modelo estruturado e definido, que dota o jogador de um

conhecimento espacial e dinâmico: o treinamento lhe instrui as possíveis rotas

que o jogo pode tomar; é um mapa detalhado da topografia que deve ser

superada e, portanto, é uma ajuda inestimável para o protagonista. Por outro

lado, ainda que pareça contraditório em relação à frase anterior, é um modelo

aberto — “evolutivo” — que se conecta bem com a complexidade do futebol:

permite incluir melhorias e avanços, modificar as falhas e fraquezas que são

observadas e adaptar o mapa às características específicas dos jogadores e à sua

progressão.

Podemos assemelhar o modelo de jogo à partitura de uma obra musical.

Guardiola compôs sua partitura, mas cada orquestra que ele dirige a interpreta

com matizes específicos. Entretanto, o maestro introduz novas notas à partitura

em função de como soa a orquestra, de como se sentem os intérpretes e qual é a

acústica da sala (e do adversário, é claro, fator essencial no futebol). É uma

partitura “mutável” em seus matizes, que evolui continuamente durante os três

anos de vida do projeto. A música soa parecida, mas, na comparação do início

com o final, percebemos notáveis diferenças no ritmo, na harmonia e na

interpretação. O maestro Christian Thielemann explica: “Pode-se tocar uma

obra do mesmo modo ou se pode fazer uma ruptura total. Então, o estilo

reaparece, mas com outra dinâmica. Esses detalhes surgem depois de repetidas

execuções. Alguém pode pensar que é igual, mas é, no máximo, parecido”.

Aqueles que queiram seguir rotulando Guardiola como o treinador do perene

tiquitaca não terão entendido nada de seus sete anos como treinador.

Um modelo de jogo é, enfim, um quadro fixo e móvel ao mesmo tempo. É

uma partitura que se modifica diariamente conforme o rival, a experiência e a

evolução das próprias ideias.

UM TIME É UMA ORQUESTRA

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Barcelona, 1o de julho de 2015

Uma equipe de futebol é como uma orquestra sinfônica. Paco Seirul·lo

opina de modo parecido, embora com nuances interessantes: “Uma equipe

se parece a uma orquestra se observamos o futebol pela linearidade: o

defensor destrói, o médio constrói, o atacante finaliza, o treinador leva a

batuta, e com tudo isso dizemos que é uma orquestra. E o que é a partitura?

A história. Mas para que a metáfora seja bastante próxima à realidade do

futebol, devemos acrescentar a possibilidade de quem toca o trombone ser

capaz de mudar de instrumento e tocar o violino, assim como todos os

demais instrumentos. E está claro que isso não acontece em uma orquestra,

mas sim em um time de futebol”.

Juanma Lillo: “Há outra diferença substancial para acrescentar à que

Paco aponta: no futebol, você sempre enfrenta um adversário. Não sei se

você é uma orquestra ou não, mas evidentemente será uma orquestra que

enfrenta outra orquestra, que está tocando ao mesmo tempo”.

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6.2. OS PLANOS DE JOGO

Normalmente, uma batalha se engendra de forma

convencional, mas se ganha mediante táticas de surpresa…

A surpresa e a convenção surgem reciprocamente em ciclos.

SUN TZU

A singularidade do futebol alemão estimulou em Guardiola a busca de

variantes táticas para responder a forças que ele não estava acostumado a

enfrentar. E provocou no treinador o aumento de repertório em seus planos de

jogo. Essa foi uma de suas maiores novidades na Alemanha, pois a variedade de

recursos táticos utilizados pelos adversários (que ao longo desses três anos

também evoluíram num ritmo similar ao imposto por Guardiola) motivou o

treinador catalão a não ficar estancado na zona de conforto de seu modelo de

jogo e a se aprofundar em uma área que não havia explorado em toda a sua

extensão: os planos de jogo.

O que entendemos exatamente disso? É o cenário estratégico com o qual se

planeja uma partida específica. Se o modelo de jogo tem um caráter geral, o

plano de jogo possui um caráter particular. É composto do sistema ou módulo

de jogo a ser empregado; dos jogadores que serão escalados e pelas

substituições em função dos acontecimentos; dos elementos táticos que serão

desenvolvidos de acordo com o rival (posições para cobrir, movimentos a

realizar, coberturas especiais…); das jogadas de bola parada, ofensivas e

defensivas; e do ritmo ou tempo de jogo recomendável. O treinador não só deve

prepará-lo nos mínimos detalhes, como deve estar pronto para perceber e

assimilar o mais rapidamente possível o que está acontecendo em campo, a fim

de introduzir as modificações necessárias.

O plano de jogo, portanto, é muito mais amplo do que coloquialmente se

considera o sistema de jogo. Quando lhe perguntaram sobre as frequentes

mudanças de sistema dentro de uma mesma partida, Guardiola respondeu: “O

importante não é o sistema, mas as ideias”. Quando disse “ideias”, ele se referia

ao plano de jogo. Indubitavelmente, o plano de jogo de uma partida tem

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semelhanças inevitáveis com o plano de batalha de estratégias militares, dado

que consiste na avaliação — que deve ser a mais acertada possível — das

próprias forças e das adversárias.

Temos quatro níveis diferentes que (peço desculpas pela repetição)

definirei novamente para facilitar a compreensão:

1. Plano estratégico: o quadro global do projeto de três anos.

2. Modelo de jogo: a caixa de ferramentas que o treinador oferece ao time.

3. Plano de jogo: o conjunto de elementos específicos e a dinâmica de jogo

com que se enfrenta uma partida.

4. Sistema (ou módulo) de jogo: a distribuição espacial dos jogadores em

campo em cada momento específico de uma partida.

A evolução vivida pelos planos de jogo utilizados por Guardiola no Bayern

foi muito significativa.

Durante sua primeira temporada, os planos foram eminentemente lineares

e sem variantes excessivas. Consistiam em tentar impor o modelo de jogo,

desorganizando o rival por intermédio da troca de muitos passes. A paciência e

a confiança na própria maneira de jogar eram elementos essenciais para

conseguir os objetivos. A partida que melhor exemplificou esse conceito foi a

disputada em outubro de 2013, no Etihad Stadium, contra o Manchester City (3

× 1 para o Bayern). Aquele dia se evidenciou o paradigma do jogo de posição,

quando o Bayern somou 94 passes seguidos, ao longo de três minutos e meio,

no que foi uma assombrosa recriação de um rondo gigantesco. A antítese dessa

estratégia que o time de Guardiola interpretou de forma constante em seu

primeiro ano foi protagonizada contra o Real Madrid, em Munique (derrota por

4 × 0), quando o plano de jogo abandonou a paciência, a sucessão de passes e o

avanço compacto, e se converteu num ataque suicida, de peito aberto, que

terminou em queda humilhante.

A segunda temporada se caracterizou por uma ampliação dos planos de

jogo. Os atletas da equipe conheciam e dominavam mais variantes táticas,

sabiam trocar de sistema sem dificuldade e compreendiam muito melhor a

necessidade de combinar ritmos distintos. Esses aperfeiçoamentos permitiram

implantar planos com maior riqueza conceitual, como o expressado no Estádio

Olímpico, diante da Roma (vitória por 7 × 1), em outubro de 2014. O Bayern

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apresentou numerosos elementos que entorpeceram o rival: uma inesperada

defesa de três; a posição liberada de Xabi Alonso; um peso demolidor de

jogadores pelo lado esquerdo do ataque, incluindo Alaba — embora ele atuasse

como defensor central —, gerando uma superioridade imparável; a utilização

de laterais extremos; o acionamento de Robben apenas para duelos

individuais… Com meia hora de jogo, o placar já era de 5 × 0 e se ampliou ainda

mais. Thomas Müller definiu com simplicidade o plano de jogo: “Guardiola nos

ensinou exatamente onde estavam as fraquezas da Roma”.

A derrota mais importante da segunda temporada aconteceu no Camp Nou.

O Bayern (dizimado por lesões) veio a campo com a defesa de três; Rafinha era

o defensor central esquerdo. Poucos dias antes, ele havia feito o mesmo contra o

Borussia Dortmund e o rendimento defensivo fora excelente, por isso repetiu-se

o plano contra o Barça: “Eu quis ganhar um homem a mais no centro do campo

e dominar o jogo”, explicou Pep. “Era um risco atrás que podia nos dar lucro na

zona central para controlar a partida. Mas Messi e Suárez interpretaram bem

nossas intenções e nos impediram de conseguir o que buscávamos, por isso não

havia outro remédio a não ser passar a uma defesa de quatro.” Na realidade, o

Bayern não perdeu a partida por esses sucessivos planos de jogo, mas pelo

acerto final de Messi e pela falta de equilíbrio nos últimos minutos.

Na terceira e última temporada, os planos se sofisticaram muito mais e

incluíram um incremento substancial de movimentos e detalhes táticos. No

princípio, quando o time ainda não havia alcançado sua melhor forma, a

prioridade consistia em conduzir bem as partidas para sua fase final, o que se

comprovava com dados estatísticos muito significativos. Nos dez primeiros

jogos da temporada (nove vitórias e um empate), o Bayern marcou trinta gols e

sofreu cinco, mas com uma vantagem de performance descomunal na segunda

metade de cada partida, fruto do plano de jogo: na soma dos primeiros tempos,

marcou sete gols e sofreu quatro; nos segundos tempos, marcou 23 e sofreu um.

Era evidente que a prioridade dos planos passava por mastigar bem o rival e

executá-lo depois do intervalo.

Uma vez alcançado um bom estado de forma e uma melhor dinâmica

coletiva, Guardiola modificou radicalmente seus planos. Juanma Lillo havia

sugerido que “contra determinados times convém jogar com a forma de uma

ampulheta”. Por quê? Porque quando você alcança o máximo limite de seu jogo,

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é preciso modificá-lo. “Devemos questionar o status quo a todo momento,

especialmente quando as coisas vão bem”, disse Kasparov. E porque manter os

planos inalterados pode acelerar o declínio de qualquer ciclo. (Um ciclo de vida

é composto de três fases: aprendizagem, crescimento e declínio. Estancar-se

durante a fase de crescimento equivale a entrar em cheio no declínio; para

evitar isso, é necessário mudar de planos antes que seja tarde.)

Houve um motivo importante para essa mudança específica: cada vez mais

os rivais acumulavam em frente à própria área cinco ou até seis defensores,

com uma segunda linha formada por outros quatro médios que também se

somavam à defesa. Portanto, diante dessas muralhas, o Bayern não só chegou a

escalar quatro atacantes, mas até cinco, primeiro no formato wm (o 3-2-2-3 de

Herbert Chapman), e mais adiante com a pirâmide (o 2-3-5 da Cambridge

University em 1880), em ambos os casos buscando uma disposição no campo

em forma de “ampulheta”. Esse movimento pretendia a obtenção do “efeito

espelho”: se o rival aumentava o número de defensores, Pep aumentava o

número de atacantes.

A partir de 24 de outubro de 2015, data em que inaugurou seus novos

planos de jogo (contra o Colônia), Guardiola apresentou uma força inicial de

ataque massivo, buscando amassar e triturar o rival com um bombardeio

concentrado em um período relativamente curto de tempo. Era um plano de

jogo oposto ao habitual, pois priorizava o poder de fogo, e que foi posto em

prática não só no campeonato alemão, mas também na Champions League:

primeiro contra o Arsenal (5 × 1), depois como plano de emergência contra a

Juventus (4 × 2). Em todos os casos, o plano consistia num grande número de

elementos e ações de ataque em pouco tempo, para — uma vez adquirida uma

vantagem substancial no marcador — introduzir uma mudança de disposição e

ritmo na sequência, com a inclusão de meios-campistas e uma adaptação ao

modo “posse tranquila”.

BLITZKRIEG

Wolfsburgo, 27 de fevereiro de 2016

O plano agressivo de hoje é uma guerra-relâmpago (blitzkrieg) com cinco

atacantes. É uma overdose de atacantes que atuarão durante um tempo

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limitado. Quando Pep escala os cinco, o faz apenas durante um trecho

reduzido do encontro, para obter uma vantagem significativa no marcador.

Na base do plano está o abrir fogo à vontade; pretende-se adquirir

vantagem acumulando uma força extraordinária no ataque (o renascido 2-

3-5). Para isso, de forma geral, Douglas Costa atua por dentro; e Coman,

como extremo. As três fases do jogo (abertura-construção-finalização) se

mantêm, mas o ritmo se altera: é mais veloz, direto e agressivo, em busca

do gol.

Uma vez em vantagem, Pep modifica a escalação e passa à segunda

parte do plano, com um meio-campista a mais, quatro atacantes e um jogo

de maior elaboração que termine por desordenar o oponente desgastado.

Se a blitzkrieg não produz a vantagem desejada no placar, o treinador

também reduz o número de atacantes para quatro, porque uma das

características essenciais de sua “guerra-relâmpago” é a limitação de

tempo, já que existem grandes riscos de sofrer contragolpes. Neste ponto,

Pep muda para o plano “conservador” e busca vencer a partir do jogo de

posição.

Tudo isso se observa na Volkswagen Arena, onde o Bayern dispõe de

seis boas oportunidades de marcar na primeira meia hora, mas não alcança

o objetivo. A partir desse momento, os efeitos benéficos da acumulação de

atacantes costumam se dissipar, e isso acontece também em Wolfsburgo,

onde o conjunto local se defende do ataque bávaro e assalta várias vezes a

meta de Neuer com sério perigo. Aos cinquenta minutos, Thiago substitui

Costa e a blitzkrieg se transforma em “jogo conservador”. O Bayern

massageia a bola e, ainda que os donos da casa disponham de um par de

excelentes finalizações com Kruse, o time de Pep confirma o triunfo com

gols de Coman e Lewandowski. No dia do aniversário de 116 anos da

fundação do Bayern, o clube alcança a vigésima vitória na liga, em 23 jogos.

Pep está satisfeito. A vitória em Wolfsburgo é um passo mais próximo

da conquista do campeonato, sua terceira Bundesliga seguida, igualando-se

a duas grandes lendas do futebol alemão: Udo Lattek e Ottmar Hitzfeld. E

será a quarta liga consecutiva do Bayern, um feito inédito e histórico. Pep

não quer deixar de ganhar esse prêmio e só faltam onze partidas para

assegurá-lo. Ademais, ele pôde ensaiar a “guerra-relâmpago” que usará

contra a Juventus, e também a habilidade de seus jogadores para passar a

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um plano mais conservador e ortodoxo, sem perder agressividade e

eficiência nas finalizações.

O exemplo mais significativo da amplitude dos planos de jogo se deu na

última partida de Pep como treinador do Bayern: a final da Copa da Alemanha,

em 21 de maio de 2016, em Berlim, diante do Borussia Dortmund (no tópico

3.1.1, falamos sobre como Guardiola trabalhou taticamente essa final durante a

semana prévia). O treinador preparou três planos diferentes em função do rival:

“O Dortmund pode jogar de três maneiras distintas e não sabemos com qual

sairá, nem quando ou como mudará durante a partida”, nos explicava o analista

Carles Planchart durante os dias anteriores ao jogo.

O Borussia Dortmund de Thomas Tuchel se distinguia por alternar três

sistemas de jogo ao longo dos meses anteriores: 5-3-2, 5-2-2-1 e 4-2-3-1. Para

enfrentá-lo, Guardiola preparou durante a semana outros três módulos de jogo

que davam resposta aos borussers, detalhando o que fazer em cada caso, como

deviam ser as coberturas, as marcações e a orientação do jogo. A verdadeira

dimensão do progresso dos jogadores bávaros pôde ser apreciada nessa final: o

Bayern obrigou o BVB a se desnaturalizar à base de muita pressão, cortando

suas linhas de passe, adiantando a defesa (Kimmich e Boateng) até o centro do

campo e forçando Hummels e companhia a lançar bolas longas sem controlar

sua direção. O Dortmund de Tuchel se viu impelido, involuntariamente e pelos

movimentos do Bayern, a aplicar um formato similar ao do Dortmund de Klopp,

e acabou tendo a bola em seu poder em apenas 30% do tempo, enquanto sua

média na temporada era mais do que o dobro (61%).

Meia hora antes da final, no quadro-negro do vestiário do Bayern no

Estádio Olímpico de Berlim, estavam os três planos de jogo que a equipe havia

ensaiado durante a semana. Os jogadores haviam sido instruídos para que, a

cada vez que o Dortmund modificasse seu sistema de jogo, o Bayern alterasse

de imediato sua organização defensiva, e isso provocaria um efeito cascata. O

capitão Lahm era o encarregado de tomar a decisão em cada momento, sem

necessidade de ordens de Guardiola. O BVB iniciou o jogo no 5-3-2, e o Bayern

se colocou com defesa de três e Lahm no meio de campo; quando o BVB mudou

para o 4-2-3-1, Lahm recuou à lateral direita e todo o time mudou sua

disposição de maneira instantânea; e quando o BVB passou ao 5-2-2-1 (que foi

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um 3-4-2-1 com a bola), Lahm e Alaba se aproximaram de Vidal, no papel de

meio-campista central, e o Bayern passou a uma defesa de dois. Em cada caso, a

reação de Lahm gerou um novo plano de jogo — com nuances táticas

detalhadas, previamente conhecidas pelo elenco — que só foi possível graças ao

exaustivo trabalho de preparação por parte de todos.

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6.3. A CULTURA DE EQUIPE

Nenhum êxito é atribuível a

mim; é o trabalho de todos nós.

PROVÉRBIO MAORI

Todo grande time nasce da confluência entre uma ideia inspiradora e

estimulante, que reúne as energias coletivas, e uma derrota enorme que

provoca fraturas e efeitos catárticos. A ideia é equivalente às fundações de um

edifício: a derrota serve como cimento para unir a base; e a cultura de equipe é

a estrutura do edifício.

A cultura de equipe vai muito além da gestão emocional de quem a

compõe. Ela é (novamente) o quadro estratégico dentro do qual se dá a gestão

das emoções e dos sentimentos dos componentes do conjunto. Em geral, as

equipes de futebol não desenvolveram esse tipo de cultura de maneira

sistemática e com enfoque estratégico, apenas o fizeram de forma espontânea.

Um exemplo de cultura estruturada metodologicamente é a dos All Blacks

neozelandeses no rúgbi: concebida desde o pensamento estratégico e, claro,

estimulada a partir de uma derrota catastrófica (nesse caso, o Mundial de 2007,

em que foram eliminados nas quartas de final).

A cultura de equipe abrange muito mais do que slogans e vídeos

motivacionais, regras disciplinares e rituais ou linguagens específicas. É um

pacto de condutas e comportamentos que engloba todos os componentes do

time e os dirige até metas globais que permitem visualizar de maneira

irrefutável a identidade dessa equipe. Como dizem os mencionados All Blacks,

em um trecho do livro Legacy, de James Kerr: “Devemos fazer as coisas

corretamente para que ninguém mais deva se ocupar delas, porque ninguém

além de nós mesmos deve cumprir nossas tarefas. Os All Blacks devem cuidar

de si mesmos […]. Nunca devemos ser grandes demais a ponto de deixar de

fazer as pequenas obrigações, como secar a área dos chuveiros ou varrer o

chão”.

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No Bayern, embora tenha dedicado o grosso de seu tempo à mudança no

modelo de jogo, tarefa complexa e arriscada por si só, Guardiola semeou

diversos elementos representativos de uma cultura coletiva de trabalho.

Determinou que o vestiário fosse exclusivo para seus componentes principais,

impedindo, no terceiro ano, a entrada de indivíduos alheios ao trabalho —

como amigos, familiares ou executivos do clube, salvo os membros do comitê de

direção. Ainda que tenha imposto poucas normas de comportamento (“Aqui

dentro, quatro regras e ponto. Fora de Säbener Straße, que façam o que

quiserem: são adultos”), elas deveriam ser cumpridas rigorosamente, tanto as

que se referiam a disciplina e respeito quanto as de cuidado extremo com a

saúde (nutrição, descanso, reabilitação…).

Guardiola utilizou frequentemente imagens de atitudes exemplares dos

próprios jogadores: David Alaba, lesionado, exibindo nas cadeiras do estádio

sua euforia pela atuação do time; Xabi Alonso em um sprint de contra-ataque,

após defender um escanteio; Thomas Müller tirando a luva para agradecer uma

assistência de Robben… Domènec Torrent e Carles Planchart se encarregaram

de reunir cenas de condutas esportivas louváveis de seus jogadores para

mostrá-las em ocasiões específicas como exemplos de comportamento.

Objetivos foram fixados com o apoio de estímulos visuais. Quando o time

chegou à cidade esportiva do Bayern no começo de julho de 2015, se deparou

com uma novidade: todas as paredes mostravam o número 4 pintado na cor

vermelha, como símbolo da meta da temporada: conquistar o quarto título

consecutivo da liga, um feito histórico nunca alcançado na Alemanha. Em

algumas paredes, só havia o número 4; em outras, se lia “Jeder Für’s Team”

(“Cada um pelo time”); na maioria, “Champions 4 ever” (“Campeões para

sempre”); e na parede do corredor das salas da comissão técnica, constavam, na

cor preta, os títulos já conquistados (2013, 2014, 2015) e, em vermelho, o

objetivo desejado: 2016. Desse modo, todos os componentes do vestiário

tinham a recordação diária de qual era a missão da temporada.

Também era muito significativo observar o vestiário do time na Allianz

Arena, após os jogos. Depois que todos saíam, talvez fosse possível encontrar

um pequeno pedaço de grama ou uma tira de esparadrapo no chão; sobre as

mesas, alguma garrafa com resto de bebida. No mais, o local estava um brinco:

os membros da equipe limpavam praticamente todo o vestiário (“Nunca

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devemos ser grandes demais a ponto de deixar de fazer as pequenas

obrigações”).

O equilíbrio entre o rigor dos treinamentos (mais no aspecto mental do que

no físico) e a liberdade oferecida por Guardiola nos comportamentos e nas

normas foi importante para o desenvolvimento da cultura de equipe no Bayern.

Mostrarei um exemplo disso.

Um dos aspectos relatados que mais surpreenderam os leitores de meu

livro anterior foi o fato de Guardiola não entrar no vestiário antes dos jogos

para fazer palestras motivadoras. Continua sendo assim. Pep faz três palestras

táticas (a primeira na véspera e as outras duas no mesmo dia do jogo), mas

nenhuma delas se dá no vestiário do estádio, nem tem como foco principal a

questão emocional. Em algumas ocasiões, na terceira explanação, que acontece

no hotel duas horas antes, após informar a escalação e instruir sobre o plano de

jogo, ele pode acrescentar algumas ideias com traços motivacionais, mas são

ligeiras e sem conteúdo excessivo. Pep prefere se centrar no jogo e aí não vê

limites: pode até se estender por longos períodos. Na primeira partida em que

dirigiu o Manchester City, exatamente em Munique contra o Bayern, ele quis dar

a seus novos jogadores tantos detalhes táticos na última palestra, que o time

chegou ao estádio apenas 45 minutos antes do apito inicial. Isso é resultado das

experiências vividas no Barcelona e também do aprendizado durante o ano

sabático em Nova York.

Com o Barcelona, Guardiola viveu prévias de partidas muito emotivas,

como a de Roma em 2009, quando, minutos antes de disputar a final da

Champions League contra o Manchester United, mostrou um vídeo ambientado

no filme Gladiador, com a presença de todos os componentes do elenco, o que

provocou emoções profundas nos jogadores. Mas não ficou claro para Pep que

criar essa emoção tenha tido um efeito benéfico, pois os primeiros minutos do

jogo foram bastante desastrosos. Como escreveu Phil Jackson: “Descobri que

cada vez que estava muito excitado mentalmente, essa atitude exercia um efeito

negativo em minha capacidade de permanecer concentrado se me via

submetido à pressão. Por isso fiz o contrário. Em vez de acelerar os jogadores,

desenvolvi diversas estratégias para ajudá-los a acalmar suas mentes e

fortalecer a consciência”.

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Logo que chegou ao Bayern, Guardiola pediu que seu escritório fosse onde

antes ficava um pequeno depósito, fora do vestiário dos jogadores, para não

interferir na vida interna do time nos instantes prévios aos jogos. Ele acredita

que é melhor que o treinador não “atrapalhe” esses minutos de concentração.

As instruções são transmitidas no momento pertinente, durante os

treinamentos e nas palestras táticas, e ele entende que os jogadores são

esportistas adultos com qualidades para administrar seu estado de humor.

Pep também concedeu liberdade completa para que cada atleta do Bayern

acrescentasse os exercícios que quisesse durante o próprio aquecimento. Assim,

Boateng era quem permanecia menos minutos em campo, pois preferia realizar

exercícios de elasticidade lombo-pélvica no vestiário. Neuer se caracterizou por

não querer defender mais de seis ou oito chutes antes de cada encontro. Na

terceira temporada, Müller e Lewandowski adicionaram a seu repertório de

preparação uma dúzia de cabeceios a gol, em bolas cruzadas por Lahm. Dessa

forma, cada jogador pôde introduzir alguns detalhes ao aquecimento geral

dirigido por Lorenzo Buenaventura, pois o treinador entende que é mais

importante facilitar a tomada de decisões do jogador do que submetê-lo a um

método estático, o que Pep complementa finalmente ao não apresentar

nenhuma palestra emocional nos minutos anteriores a uma partida.

Dessa maneira, diante de um trabalho diário exaustivo e intenso, de alta

exigência mental e concentração constante, Guardiola propiciou que cada

jogador mantivesse ou implantasse costumes e hábitos pessoais nas fases que

antecedem a competição; de forma definitiva, que cada um pudesse desenvolver

sua personalidade e encontrar livremente seu espaço individual dentro do

objetivo global.

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6.3.1. ESPÍRITO CITIZEN

A chave do êxito sustentado é seguir crescendo como equipe. Ganhar consiste em

adentrar ao desconhecido e criar algo novo.

PHIL JACKSON

Em Manchester, Guardiola decidiu usar o termo “espírito”, em vez de “cultura”,

porque lhe pareceu mais compreensível a todos e também menos pomposo. Ele

o utilizou de imediato, já em sua primeira aparição diante dos torcedores, em 3

de julho de 2016: “O que queremos é criar um espírito de equipe o mais cedo

possível”. Pep colocou esse objetivo antes mesmo do modelo de jogo, o que é

muito significativo de suas intenções à frente do City. Em primeiro lugar, citou o

espírito de equipe; em segundo, jogar bem (“Meu principal objetivo é fazer que

as pessoas sintam orgulho do jogo que praticamos”); e em terceiro lugar, “tentar

ganhar o primeiro jogo. E depois, o segundo jogo. E depois, outro…”. Jogadores

como Gaël Clichy pareceram entender a mensagem imediatamente: “Pep quer

que nos mostremos orgulhosos de vestir essa camisa e que sejamos dignos

dela”.

Vemos, pois, a importância que Pep confere à criação dessa cultura coletiva

no vestiário do Manchester City. Se essa ideia vem antes de outras não é por

casualidade, mas porque ele pretende que esse espírito (ou alma) de equipe

seja o grande cenário geral que contagie todas as demais propostas. A criação

do espírito de equipe não só antecede a implantação do modelo de jogo, mas o

envolve com toda a influência possível. Se o coletivo é capaz de se reunir sob um

espírito estratégico comum, pode ser mais factível a aplicação do modelo

futebolístico, sua execução mais ou menos acertada e a consequência final

(ganhar jogos). Portanto, para ele, trata-se de uma prioridade estratégica que

será desenvolvida até que se torne notória em seus aspectos identificáveis:

comportamentos dentro e fora da atividade esportiva, posicionamento mental,

tipo de jogador que forma parte do time, linguagem, rituais, normas e atitudes…

O selo e a identidade que configuram o conceito de cultura/espírito de equipe.

O leitor enxergará sem dúvidas que não estamos diante de uma tarefa

linear. Assim, erros acontecerão no caminho percorrido até o objetivo,

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disfunções e contradições que deverão se resolver da mesma forma que ocorre

no âmbito estrito do próprio jogo. Imediatamente, Pep definiu o treinamento

como um prêmio que deve ser conquistado por méritos e não por contrato, o

que significa que qualquer jogador que não reúna as condições básicas para

treinar a pleno rendimento deverá recuperá-las em um âmbito diferente do

vivenciado pela equipe, seja por causa de excesso de peso, por falta de

concentração suficiente, seja por qualquer outra razão.

A construção completa desse espírito citizen por parte de Guardiola não

aparenta ser breve nem simples. Exigirá paciência, tempo e cumplicidade. Ao

final, só será possível se os jogadores quiserem seguir o caminho indicado por

seu treinador.

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6.4. SEUS ALIADOS: OS JOGADORES

Um time é como um bom relógio: se perde uma

peça, ainda é bonito, mas já não funciona igual.

RUUD GULLIT

Guardiola sempre manteve certa distância de sua equipe. Era uma medida de

autoproteção: “Tento não ter uma relação íntima com os jogadores, porque não

quero que confundam isso com as razões para entrarem em campo ou não. No

fim, sou eu que tenho que decidir e prefiro fazer isso sem laços emocionais

muito estreitos”.

Mas, em Munique, Pep abriu mão dessa autodefesa e liberou seus

sentimentos. Foi por agradecimento ao que estava recebendo. Os jogadores do

Bayern fizeram, desde o início, um grande esforço para aprender o que ele

ensinava, para se adaptar a seu jogo e mudar. Mais adiante, durante o segundo

ano, assumiram a colossal epidemia de lesões com um espírito coletivo

impagável, o que gerou vínculos poderosos entre eles e o treinador, pois nada

une mais do que lutar contra a adversidade.

“RAPAZES, ESTAMOS FODIDOS”

Dortmund, 4 de abril de 2015

Todas as dúvidas que rondavam a equipe técnica em março, sobre quais

atacantes e quais meios-campistas seriam titulares nos grandes jogos,

desapareceram. Agora não há nem como escolher: só restam catorze

jogadores disponíveis. Jogarão os que estiverem saudáveis. Ainda que

exista grande diferença entre jogar ou não com Robben e Ribéry. A

estatística é contundente: com eles dois, o Bayern ganhou 85% dos jogos;

sem eles, só 60%. Pep foi sucinto antes da partida contra o Borussia

Dortmund:

— Rapazes, estamos fodidos. No momento decisivo, estamos mais

fodidos do que nunca. Só podemos resolver isso como um grupo. Nós que

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restamos temos que ir em frente. Rapazes, temos de dar um passo adiante.

Eu como treinador e vocês como equipe. Vamos dar um passo adiante…

Após conseguir uma vitória dificílima contra o Dortmund de Klopp em abril

de 2015, que quase garantia a Bundesliga, Pep se expressou categoricamente:

“Aconteça o que acontecer, esses jogadores serão meus heróis por toda a vida

pela forma como se comportaram na adversidade”.

Ao final, na última temporada, deixaram correr livremente os sentimentos.

Principalmente Pep. Diante dos ataques externos vindos de um setor da

imprensa, ele encontrou no elenco seus melhores aliados. Os jogadores foram

seu escudo protetor. Sem que pedisse, eles o defenderam e deixaram a pele em

campo por seu técnico.

Lahm e Neuer foram fundamentais nessa metamorfose. No momento mais

duro dos três anos, após a derrota para o Real Madrid, em 2014, o capitão foi

contundente: “Estamos com você, Pep. Estamos com você até a morte”. O

treinador pôde se apoiar sempre no capitão e também no goleiro. Ambos o

ajudaram na convivência, pois Pep seguiu sendo tremendamente exigente.

Thiago serve como exemplo de jogador ao qual Guardiola jamais deu respiro,

sempre lhe pedindo a perfeição. Mas o treinador se tornou mais próximo, mais

aberto, mais íntimo com todos os jogadores. Deixou de ser distante como

medida de autoproteção. Abriu seu coração e eles atuaram com reciprocidade.

Não foram seus grandes aliados apenas como reconhecimento aos

planejamentos táticos e ao conhecimento dos rivais, ou porque Pep lhes deu

ferramentas para ser melhores e mais eficazes, mas especialmente por uma

questão de sentimento. Pep usou em público algumas frases mais do que

exageradas, como a célebre: “Eu adoraria ter mil Dantes no meu time”. Todos

sabiam que, acima de tudo, era uma questão de defender e animar o jogador

brasileiro depois de uma atuação ruim, mas apreciaram o gesto de Pep de sair

em defesa de um membro do elenco que passava por um momento amargo,

embora isso gerasse críticas dos meios de comunicação e certa gozação. Os

jogadores avaliavam positivamente esse tipo de atitude, porque entendiam que

o técnico sempre estaria do lado deles e não os abandonaria na sarjeta nos

momentos ruins.

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Foi assim, com a mediação de Lahm e Neuer, e sempre apoiando

firmemente o elemento mais fraco do grupo, que se estabeleceu uma verdadeira

relação de amor entre os jogadores do Bayern e o treinador catalão. Amor é

uma palavra forte e possivelmente imprópria no mundo do futebol, pouco dado

a essa expressão, mas é a que Guardiola usa sempre e a que os jogadores usam

com ele. Eu a escutei inúmeras vezes no elevador da Allianz Arena: “Te amo,

Philipp, te amo!”, gritava Pep num dia qualquer, enquanto abraçava o capitão e

lhe dava um par de beijos na bochecha.

Tudo foi paz e amor? Sem dúvida que não. Pep prescindiu de Mandžukić,

com quem declarou que iria à guerra, mas não se entendeu futebolisticamente.

Foi bastante exigente com Thiago, a quem sempre pediu mais, como se faz com

um filho. Queimou os miolos com Götze, tentando extrair dele esse rendimento

fora de série que prometia e que quase não apareceu desde que ele deixou

Dortmund, lugar para onde voltou: é o jogador a quem Pep dedicou mais tempo.

Apostou em Højbjerg com dedicação paternal, mas o desencontro entre eles foi

irreversível. Entregou-se apaixonadamente a Ribéry, mas recebeu respostas

contraditórias: um grande carinho enquanto esteve em Munique (“Sem

nenhuma dúvida, Pep é o melhor treinador que já tive”, janeiro de 2015, diário

TZ) e desprezo quando não estava mais (“É um treinador jovem, que carece de

experiência”, julho de 2016, Bild Zeitung). E tentou encaixar Schweinsteiger em

uma dinâmica de jogo que não era simples para ele, ainda que sempre o tenha

escalado nas partidas importantes.

XABI E BASTIAN NÃO COMBINAM BEM…

Stuttgart, 13 de setembro de 2014

Pep usou todo o seu catálogo de variantes táticas em Stuttgart, onde

venceu por 2 × 0. Teve de se empenhar a fundo, porque o time não jogava

com fluidez. Ao longo de noventa minutos, modificou várias vezes a

disposição dos jogadores: começou com o 3-4-3, mudou para o 4-3-3 e

evoluiu para o 3-2-3-2, com um doble pivote composto de Alonso e

Schweinsteiger. Experimentou tudo em busca de uma fluidez que não

aparecia.

Uma pergunta começava a se fazer evidente e inevitável: por que o

Bayern funcionava melhor quando jogava com apenas um meio-campista

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central e cinco atacantes à frente dele? Dito de outro modo, ficava cada vez

mais claro que Alonso e Schweinsteiger não combinavam bem.

O futebol é, entre outras coisas, a química que surge entre os

jogadores. Não me refiro à simpatia entre eles, mas a algo muito mais

profundo e epidérmico: a empatia futebolística. Dois jogadores podem

multiplicar seu rendimento quando são escalados juntos, mas também

podem dividir sua eficácia. Depende da reação química que surge dessa

união. Obviamente, outros fatores interferem no rendimento (os rivais, as

sinergias do conjunto completo, as instruções recebidas e cumpridas em

maior ou menor escala etc.), mas é essa reação química que gera grandes

associações. Ou o oposto. Durante anos se escreveu em Barcelona que Xavi

e Iniesta não podiam jogar juntos, até que Guardiola os escalou e se

descobriu que o efeito era devastadoramente positivo. Mas nem sempre é

assim. Alonso se combinou de forma excelente com jogadores como

Busquets ou Khedira, totalmente opostos em sua interpretação do futebol.

Por sua vez, Schweinsteiger desenvolveu um jogo magnífico com Javi

Martínez ou Toni Kroos, outros dois jogadores absolutamente opostos

entre si. E, a priori, a parceria entre Xabi e Bastian prometia, mas, em

campo, não funcionou. A reação química dava como resultado um jogo

amorfo e neutro, embora ambos tentassem ao máximo e seguissem

tentando nas semanas posteriores. Alonso e Schweinsteiger tinham uma

magnífica relação pessoal, eram compenetrados, entendiam o jogo de um

modo similar, mas, quando atuavam juntos, a combinação não produzia um

bom resultado.

A relação de vestiário se dá entre 25 jovens com características diversas e

um treinador de personalidade forte. O elenco foi o grande aliado de Guardiola

em Munique porque, em conjunto, os jogadores sempre estiveram a seu lado,

nos momentos bons e, sobretudo, nos ruins: “O ambiente no vestiário é do

cacete — comentou Pep em fevereiro de 2016, quando as críticas da imprensa

alemã eram mais fortes. Não há expressões negativas, nenhum ‘bicho esquisito’

e todo mundo rema na mesma direção. Eu tive muita sorte com esses rapazes.

São pessoas formidáveis, maravilhosas; é um prazer treiná-los”.

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Quando sua etapa alemã estava terminando, o treinador mostrou em

público todas as emoções acumuladas e, no Estádio Olímpico de Berlim, com o

título da Copa recém-conquistado, explodiu em lágrimas. E, como símbolo da

relação estabelecida, foram os jogadores que o sustentaram em pé. Pep chorou

nos braços de todos eles e o capitão Lahm o obrigou a levantar pessoalmente o

troféu que foi entregue ao elenco.

— Pep, você levanta a taça.

— Não, não, Philipp, é sua, é do time.

— Pep, é nossa. Você levanta.

O capitão foi o principal ponto de apoio que permitiu a Pep elevar o jogo do

Bayern. Lahm o ajudou a implantar suas ideias, a modulá-las de acordo com o

ânimo do elenco, a replanejar situações delicadas, além de ter sido quem

esclareceu as dúvidas nos momentos difíceis. Procedeu com retidão, sobriedade

e solidariedade. Foi inteligente e fiel. Em dezembro de 2015, Lahm foi à sala do

treinador e, em nome de todos os jogadores, pediu encarecidamente que

Guardiola renovasse seu contrato com o clube. Possivelmente essa foi uma das

maiores recompensas que Pep levou do Bayern: o carinho de seus jogadores.

Se Lahm foi a retidão e a moderação, Thomas Müller foi a anarquia e a

brincadeira constante. A soma de ambos resume com bastante precisão como

era o ambiente dentro do Bayern de Pep.

SILÊNCIO E RUÍDO

Ingolstadt, 7 de maio de 2016

Falta uma hora e meia para que o Bayern jogue contra o time local: uma

vitória significa vencer a quarta liga consecutiva. Passaram-se quatro dias

da dolorosa eliminação nas semifinais da Champions contra o Atlético de

Madrid. O time ainda está estupefato pelo ocorrido: jogou a melhor partida

da era Guardiola, mas não conseguiu seu objetivo.

Estamos no The Classic Oldtimer Hotel de Ingolstadt, conhecido por

seu extraordinário museu de motos e carros antigos, entre eles numerosas

Ferraris, bem perto do estádio. A palestra técnica vai começar em breve. A

sala de reuniões está escura, apenas iluminada pelo brilho de uma imagem

fixa que aparece em uma tela. Uma foto do número 4, em vermelho.

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Simboliza a quarta liga seguida, o leitmotiv da temporada. E só falta uma

vitória para consegui-la. A sala está quase vazia, apenas um par de

ajudantes de Pep sentados nas cadeiras do fundo, absortos em seus

celulares. O treinador está sentado na primeira fila, sozinho, repassando

mentalmente as mensagens sucintas que quer expor. Não é um dia para

grandes discursos, mas, mesmo que os acontecimentos da Champions

ainda provoquem dor, é necessário um penúltimo esforço: a recompensa

em forma de título é muito grande. É preciso conseguir que a equipe reaja

de seu desânimo. Pep pensa em várias ideias enquanto o número 4 pisca,

em vermelho intenso, na tela. Então chega Lahm. Sem fazer barulho, sentase

a seu lado.

— Hola, Pep.

— Hola, Pipo.

Não falam. Durante dois minutos, ambos olham para a tela sem abrir a

boca. O silêncio é absoluto na sala escura. O capitão e o treinador parecem

hipnotizados pelo número 4; provavelmente, repassam o que tiveram de

lutar para estar ali, às portas de um novo título. É uma cena que simboliza a

convivência desses três anos. Não precisam dizer nada para compreender

tudo. No meio dessa atmosfera quase mística, aparece, ruidoso e

vociferante, Thomas Müller. Barulhento, ele se senta ao lado de Pep e

começa a soltar suas brincadeiras. O silêncio inteligente e cúmplice de

Lahm, a agitação ruidosa de Müller.

Seria enjoativo para o leitor ler agora os numerosos elogios que a maioria

dos jogadores do Bayern dedicou a seu treinador; digamos simplesmente que

até os que jogaram poucos minutos — como Van Buyten, Pizarro ou Kirchhoff

— fizeram isso com profusão. Nos longos jantares em que Pep e os jogadores se

despediram, e também no último dia, nos vestiários de Säbener Straße,

multiplicaram-se as mostras de emoção e carinho que Pep recebeu de todos os

jogadores, o que o levou a repetir um sentimento que tem gravado em seu

coração:

— O maior prêmio para um treinador é o que, no fim, os jogadores sentem

por você.

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Quando Pep regressou a Munique com o City, no final de julho, essas

demonstrações de carinho dos jogadores se repetiram e foram relevantes: todos

os presentes em Säbener Straße foram saudá-lo e abraçá-lo. Para Pep, esse foi

um dos grandes prêmios de sua carreira: comprovar o afeto que seus jogadores

anteriores sentiam por ele.

Para chegar a isso, o treinador teve de modificar seus hábitos e se

relacionar de outro modo com sua equipe: precisou se desprender da couraça

com que se protegia e se abrir emocionalmente. Ainda mais destacável é a

generosidade sem limite dos jogadores. Foi assim porque, sem dúvida, eles

gostavam dessa forma de jogar, mas também porque intelectual e

voluntariamente, quiseram aprendê-la. Em vez de recebê-lo com receio, os

atletas desfrutaram do aprendizado como crianças. E aqui é preciso apresentar

uma questão: os jogadores do Manchester City receberam Pep desde o primeiro

dia com uma fome voraz de aprendizado. Saberão manter essa mesma atitude

de maneira duradoura nos próximos anos?

Em julho, quando Pep telefonou a um dos candidatos a ser contratados

pelo City, o jogador respondeu entusiasmado: “Mister, já estava achando que

não ia me contratar!”. Mas o entusiasmo inicial é o bastante? Eles manterão essa

atitude de forma continuada ao longo do tempo, sem desfalecer, nos momentos

ruins que sem dúvida chegarão? Os jogadores do City estão dispostos a pagar o

alto preço que essa aprendizagem exige? Se levarmos em conta o que se viu nos

primeiros meses, parece que sim. Fabian Delph disse: “Aprendi mais em três

semanas com Pep do que em toda a minha carreira até agora”. Guardiola

respondeu: “Quero que os torcedores saibam que podem ficar orgulhosos

desses jogadores, de como aprendem e lutam em cada treinamento”. O certo é

que todo o elenco treinou com voracidade durante esses primeiros meses,

incluindo aqueles jogadores que foram informados pelo treinador, ao chegar,

que não continuariam no City a partir do dia 1o de setembro.

Pep iniciou seu caminho em Manchester com a mesma atitude que

aprendeu em Munique: sem couraça e com o coração bem aberto aos jogadores.

Conseguirá conviver esses anos sem voltar a se fechar em si mesmo?

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BASTIDORES

O BAYERN LÍQUIDO

Bremen, 17 de outubro de 2015

O Bayern alcançou a maturidade no jogo que seu treinador pretende: no

outono de 2015, o time possui duas grandes rotas principais e uma

terceira via como alternativa.

Primeira rota: o jogo transita por fora. As zonas interiores são como

pontos de apoio permanentes no avanço ou “áreas de descanso” na

progressão.

Segunda rota: o jogo transita por dentro até alcançar a zona dos

meios-campistas rivais, momento em que se redireciona para fora

buscando a finalização.

Rota alternativa: o uso de bolas longas, geralmente em diagonal

para o lado oposto ao do lançador, buscando aproveitar o excesso de

flutuação do adversário.

A principal virtude do Bayern é a capacidade de usar as três rotas

de maneira alternada durante os jogos, conforme os jogadores e o

treinador interpretem as exigências impostas pelo rival. Poderíamos

dizer que a equipe alcançou um ponto de maestria estratégica, no qual

reuniu vários modelos dentro de seu modelo de jogo, vários estilos que

se fundem em um não estilo. Guardiola está mais eclético do que nunca.

Mais camaleônico do que nunca. Dispõe de um número incontável de

opções de jogo. Soltou-se de qualquer amarra, de qualquer dogma, o que

não significa que tenha renunciado a seus fundamentos de jogo. Ao

contrário: seus fundamentos são mais fortes do que nunca, mas o que

variou é sua expressão até o extremo que permite qualificar esse time

como o “Bayern líquido”, conceito que implica fluidez no movimento,

variedade na forma e riqueza na diversidade.

Alcançar esse nível foi possível graças à interação ativa com a

realidade.

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As ideias de Pep foram confrontadas com a realidade do futebol

alemão (por exemplo, com os contra-ataques letais de todas as equipes);

a realidade da capacidade dos jogadores, estimulada pela vontade de

ensinar do treinador; a orientação pretendida por Guardiola,

enriquecida pelas limitações e virtudes de seus jogadores, que o

obrigaram a uma adaptação positiva à natureza dos intérpretes. O

treinador, enfim, foi o maestro que, conhecendo a partitura à perfeição,

compreendeu que nenhuma orquestra pode soar melhor do que aquela

em que os músicos podem expressar suas potencialidades sem limites.

Na qual cada jogador expõe o melhor que tem dentro de si, o que já se

conhecia dele e o que nem ele sabia que possuía. Essa é a grande virtude

de todo mestre: propiciar que os jogadores extraiam de seu interior todo

o suco futebolístico que possuem (e que talvez desconheçam). E

combinar todas essas qualidades, as conhecidas e as desconhecidas, de

maneira harmônica para multiplicar o rendimento do coletivo. O “estilo”

se faz dentro dos jogadores, e o que o bom treinador consegue é extrair,

explorar, unir e coordenar esses diferentes estilos em busca do bem

comum da equipe.

Hoje, no Bayern de Pep, cada jogador não só está no posto que

melhor se adapta às suas características, mas também cumpre os papéis

que mais agregam ao coletivo. Todos sacrificam uma parte de si mesmos

e, em troca, todos se beneficiam do salto qualitativo global. Com a atual

compreensão do jogo e suas rotas, jogadores e treinador não somam,

mas multiplicam, e o fazem com simplicidade. O Bayern joga de um

modo singelo, desprovido de adornos, focado exclusivamente no gol, que

tenta alcançar por qualquer uma das três rotas que controla.

Se é pela primeira rota, os defensores centrais, o meio-campista

central e o goleiro se ocuparão de levar a bola até os corredores

exteriores, para que os laterais façam o jogo avançar. Com cada

interrupção ou obstáculo, a bola será cedida às zonas interiores, onde

qualquer companheiro servirá como ponto de apoio, que será utilizado

como um passe simples para seguir progredindo, como combinação para

juntar rivais e estabelecer “acampamentos-base” provisórios, ou como

mudança de orientação para levar a bola ao lado oposto. Os apoios se

realizam quase sempre em triangulações, a figura geométrica por

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excelência para Guardiola. Quem deseja avançar se apoia no

companheiro com um passe que será devolvido em melhores condições,

do mesmo modo que um menino usa a parede da escola para que ela lhe

devolva a bola.

A continuação do movimento provavelmente levará o jogo para a

zona de finalização: de maneira direta, avançando pela região externa

em relação ao início da ação; ou pelo lado oposto, mediante mudança de

orientação, que será como um “toque de trombeta” que ordena a carga

final. O papel dos que jogam por fora (laterais e extremos) é o de

avançar e o dos interiores (meio-campista central, defensores centrais,

médios e meio-campista ofensivo) consiste em servir de apoio e tomar a

decisão tática adequada em cada ocasião.

Chegado o momento da carga final, geralmente será um dos

extremos (ou o lateral) o encarregado do penúltimo movimento: o

aprofundamento e a penetração na área para o passe definitivo. O

centroavante, o meia ofensivo, o outro extremo e um dos meioscampistas

entram na área; pelo menos três jogadores (interior, meiocampista

central e lateral oposto) se posicionam perto da entrada da

área para o possível rebote.

A segunda rota termina do mesmo modo, mas se inicia de maneira

distinta. Neste terceiro ano, a maioria dos times já não pressiona

fortemente o Bayern: a experiência os ensinou que, por mais pressão

que exerçam, a habilidade dos jogadores de Munique os leva a superá-la

com relativa facilidade. É certo que em algumas ocasiões há erros, como

o que aconteceu em Hoffenheim, quando Alaba cedeu a bola do gol a

Volland. Mas isso ocorre pouquíssimas vezes, o que explica por que até

as equipes que têm na pressão o seu selo de identidade (Bayer

Leverkusen ou Borussia Dortmund) a reconsideram em suas visitas à

Allianz Arena. Isso tudo é fruto da hierarquia que o Bayern foi

construindo, o que, por sua vez, levou os rivais a lhe cederem a bola e o

mando das operações, optando por negar espaços. Como última

consequência dessa dinâmica, o time de Pep quase nunca encontra

condições para efetuar contragolpes. Como é possível contra-atacar, se a

equipe está quase sempre atacando?

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Se o adversário fecha os corredores exteriores, então o Bayern

passa à sua segunda rota, por dentro, mais linear e com menos

elementos do que a primeira. Nesse caso, se estabelece uma

comunicação de passes entre os defensores centrais e/ou o meiocampista

central e os atacantes (Lewandowski e Müller). Esses passes,

rasteiros, verticais e fortes, servem para a reorganização coletiva ou

para o início do ataque. No primeiro caso, a bola regressará ao defensor

central ou ao meio-campista central, que decidirá se a disposição de

companheiros e rivais permite retomar a primeira rota e viajar por fora.

No segundo caso, a decisão consistirá em buscar o extremo, direta ou

indiretamente, para que “toque a trombeta” e inicie o ataque.

Em ambas as rotas, pode-se observar que as lições extraídas da

segunda temporada foram fundamentais para o avanço estratégico atual.

De uma parte, o aprendizado do módulo (ou sistema) 3-4-3 resultou no

aperfeiçoamento de conceitos ao redor do terceiro homem, os homens

livres, a progressão com apoios interiores e as triangulações. Por outra

parte, a realidade obrigou Guardiola a jogar várias partidas com quatro e

até cinco atacantes, por causa da praga de lesões, experiência da qual ele

extraiu lições inéditas: o treinador dos “mil meios-campistas” aprendeu

(com seus jogadores) que era possível escalar cinco atacantes sem

desequilibrar o time. Aprendeu que podia reforçar seus conceitos de

dois extremos muito abertos e profundos, combinando-os com um

centroavante capaz de cumprir as fases de ataque clássico e também os

movimentos de falso 9 (Lewandowski), enquanto convivia com um

meio-campista ofensivo muito trabalhador, meio caótico, mas

especialista em “chegar” e não em “estar” (Müller). Guardiola aprendeu

tudo isso em sua segunda temporada no Bayern e fez a aplicação na

terceira. Quem aprendeu foi o técnico, mas, acima de tudo, seus

jogadores descobriram que podiam fazer aflorar o que existia dentro

deles.

Assim nasceu o ecossistema perfeito para Müller, que se

transformou em um homem livre na zona de ataque, sem nenhuma

responsabilidade na construção do jogo, salvo receber passes de costas

para o gol, controlá-los e fazer a bola chegar aos extremos. Na realidade,

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é Müller quem “toca a trombeta”: quando ele cede a bola ao extremo, eis

o sinal. A carga se inicia neste momento.

O time é constituído por duas metades muito próximas entre si. A

metade traseira — formada pelo goleiro, os dois defensores centrais e o

meio-campista central — assenta-se no grande círculo e toma as

decisões estratégicas: quando se deve transitar pela rota 1, quando se

deve ir pela rota 2 ou quando escolher a rota alternativa (a diagonal

longa a partir de Boateng ou Xabi para o extremo ou para um dos

atacantes). O cérebro do time habita o círculo central.

A metade dianteira — composta dos dois extremos, o meiocampista

ofensivo e o centroavante — cumpre funções de distração e

movimentação, durante o primeiro trecho de evolução do jogo, e de

ataque quando “soa a trombeta”. São eles que escolhem o momento de

atacar, conforme percebem um certo grau de confusão no adversário.

Entre as duas metades se encontra “a cola de contato”, a cartilagem que

mantém a equipe unida com flexibilidade gelatinosa, quase líquida: são

os laterais e os interiores, jogadores versáteis, cujo papel principal

consiste precisamente em servir de apoio aos dois compartimentos,

gerar vantagens e superioridades, fechando possíveis frestas.

A metade traseira hospeda o cérebro estratégico do time, o que

elege a cada instante a rota que deve ser percorrida. A metade dianteira

contém a vontade de execução, por ser quem escolhe o momento e a

zona adequados para lançar a carga. E os intermediários atuam como

articuladores da estrutura, são o óleo que lubrifica as conexões, a

cartilagem, a gelatina do time.

Neste ecossistema simples, cada jogador é potencializado em suas

características. Boateng e Xabi podem tomar decisões, sejam de apoio ou

mediante passes longos e precisos; Alaba e Bernat podem conduzir a

bola e correr; Javi Martínez contém seus movimentos para ser agressivo,

cortando ações ofensivas do rival antes que seja tarde; Lahm e Rafinha

se oferecem como lubrificantes para facilitar qualquer tarefa necessária;

Vidal rompe o espaço; Thiago faz contato permanente com a bola e a

conduz para desorientar o adversário; Costa e Coman se divertem pelos

lados, correndo e driblando; Lewandowski sente que pode atacar a área

com força, porque as bolas chegarão até ele; e Müller alcança a plenitude

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como Der Raumdeuter (“o investigador de espaços”), pois o jogo de seu

time se converteu em algo simples e fluido, no qual ele pode se mover

livremente no ataque, sabendo que só precisa aparecer…

Simples, fluido, singelo, líquido… Custou dois anos e meio de muito

trabalho, muita observação e correção, muita compreensão mútua,

muita aprendizagem e adaptação. Mas o jogo do Bayern de Guardiola

está, por fim, completamente definido. Não era Pep quem tinha um estilo

e queria implantá-lo, mas os jogadores que o possuíam em seu interior.

O treinador conseguiu extraí-lo, unir as complementaridades entre todas

as partes, aparar as divergências, adicionar seus fundamentos, incluir o

que foi aprendido e combinar tudo em um formato que soma todas as

sensibilidades e gera bom resultado.

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CAPÍTULO 7

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AS ADVERSIDADES VIVIDAS

Cada vez que cometo um erro parece que

descubro uma verdade que não conhecia.

MAURICE MAETERLINCK

Guardiola está apenas na metade de seu caminho como treinador e,

consequentemente, ainda tem muito a aprender. Compreendo que essa

afirmação pode parecer estranha quando confrontada com seus títulos e

troféus, seu indiscutível engenho estratégico e tático, assim como seu carisma,

mas é assim. Pep é jovem: só tem sete anos na elite mundial dos treinadores.

Alcançou o auge ao final de seu primeiro ano completo, quando conquistou os

seis grandes títulos com o Barcelona. Ninguém conseguiu nada igual nos 150

anos de história do futebol. A maioria dos seus grandes predecessores

necessitou de longas carreiras antes de chegar à plena maturidade no papel de

treinador. Vamos nos concentrar na seguinte lista de técnicos, buscando aquilo

que eles têm em comum: Chapman, Pozzo, Hogan, Raynor, Rappan, Weisz,

Erbstein, Guttmann, Rocco, Pesser, Sebes, Herrera, Busby, Maslov, Happel,

Schön, Michels, Lobanovskyi, Beskov, Menotti, Telê Santana, Ferguson… Exato:

todos precisaram de um longo período de amadurecimento. (Naturalmente,

sempre há exceções: Sacchi, Cruyff e Mourinho.)

Guardiola superou todos os registros históricos. Consagrou-se na

temporada de sua estreia, com apenas 38 anos, e continuou acumulando êxitos

em forma de troféus e concepção de jogo. Mas essas vitórias não significam que

tenha atingido a maturidade. Pep continua sendo um homem jovem, com

possivelmente muitos anos pela frente como treinador. Está há sete temporadas

no nível mais alto e cabe pensar que lhe resta, no mínimo, um período similar,

se não maior. Ele ainda está se formando e aprende rápido. “Aprender” é sua

palavra favorita, a que mais utiliza. Isso pode soar contraditório com seu rótulo

de sabe-tudo, mas é a realidade: Pep se considera um “sabe-nada”, pois acredita

que lhe falta todo um mundo por aprender como técnico.

No Barça, ele triunfou sendo um “adolescente” dos bancos, ou seja, venceu

sem sair de casa, sem se distanciar de um ambiente favorável (favorável porque

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os resultados permitiram, não nos enganemos). Munique foi a primeira viagem

ao exterior, a um mundo distinto. O adolescente abandonou o seio familiar e foi

em busca de aventuras, como faz qualquer rapaz de dezoito anos que quer

conhecer o mundo. Pep foi como um desses adolescentes e assinou com o

Bayern para conhecer esse outro mundo que existe fora do Barcelona. (E

também para provar a si mesmo, como disse Ferran Adrià.) Na Alemanha,

evoluiu e se fez “adulto”, aprendendo que ainda falta muito para aprender.

AS DIFICULDADES AJUDAM

Munique, 12 de dezembro de 2015

As adversidades também têm um aspecto positivo. A equipe demonstra sua

adaptação e um exaustivo domínio dos sistemas de jogo; os jogadores

exibem sua capacidade para atuar corretamente em posições distintas; e a

comissão técnica descobre novas potencialidades, como explica Domènec

Torrent:

— As dificuldades nos obrigam a despertar. Por exemplo, por causa

desse problema atual de lesões, ganhamos um novo lateral: Kimmich. As

experiências comprovaram como ele é um bom jogador e também que

pode atuar bem nas duas posições de lateral, além das naturais, no centro

do campo. Algumas vezes, os testes não saem bem; mas em alguns casos,

ajudam a progredir.

Não faltaram críticas duras e abundantes a Guardiola na Alemanha, mas ele

também recebeu inúmeros e entusiasmados reconhecimentos. As críticas foram

frequentes na imprensa e também entre os denominados especialistas

(Matthäus, Effenberg e Hamann foram alguns dos habituais). O reconhecimento

partiu principalmente dos treinadores, sobretudo dos que foram rivais do

Bayern. Isaac Lluch, jornalista que permaneceu em Munique durante os três

anos de Pep, observa que há uma razão para isso: “O entorno do Bayern, que

prega com orgulho seu slogan bávaro Mia San Mia (‘nós somos nós’, ou em

tradução mais livre: ‘somos-como-somos-e-estamos-muito-satisfeitos-comisso’)

necessita de muito folclore e muitas demonstrações de identificação que

Guardiola não veiculou por intermédio da imprensa”.

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O jornalista Uli Köhler ofereceu sua visão sobre as expectativas exageradas

que se formaram ao redor do treinador: “No futebol e na vida às vezes se espera

muito, demais, de alguém. Pep Guardiola tem de ser primeiro o melhor

treinador, o melhor amigo dos jogadores, tem de conhecer as melhores táticas e

tem de ganhar tudo. Além disso, tem de ser o melhor amigo dos torcedores e

estar unido a eles; e, finalmente, parece que tem de saber fazer operações

cirúrgicas difíceis e até consertar aviões. Não é possível. Não se pode fazer tudo.

Então, eu não diria que ele tenha deixado de fazer alguma coisa. Não, Pep foi

bem. Tem feito um grande trabalho”.

No início de 2015, Manuel Neuer fez uma afirmação que abrangia tudo o

que Guardiola acrescentou ao futebol alemão: “Pep conhece todos os times da

Bundesliga muito melhor do que a maioria de nós, os alemães”.

Foi um elogio maiúsculo, pois significava que o treinador havia alcançado,

em apenas dezoito meses, uma profundidade de conhecimento da Bundesliga

que a maioria dos protagonistas do campeonato não possuía. Mas, ao mesmo

tempo, foi um dardo envenenado que se cravou no coração de muita gente.

Neuer não teve essa intenção, mas muitos interpretaram suas palavras de outra

maneira: um estrangeiro pretende saber mais sobre nós do que nós mesmos…

Foi muito simbólico que, após ganhar a Bundesliga por três anos consecutivos,

com vantagens significativas e pulverizando todos os recordes históricos,

Guardiola nunca tenha sido eleito o melhor técnico do ano na votação dos

jornalistas esportivos.

Em seu propósito de amadurecer e progredir, nada foi mais útil a Pep do

que as adversidades que teve de superar. A maior, possivelmente, foi a

epidemia de lesões que a equipe sofreu. Ao contrário das impressões criadas, o

problema não foram as lesões musculares, mas as traumáticas.

Se repassarmos os dados da temporada 2015/2016, que não diferem em

excesso das duas anteriores, observamos o seguinte: o elenco do Bayern teve

um total de dezenove incidentes musculares de graus e importâncias diferentes.

O número está totalmente de acordo com o estudo encomendado pela Uefa aos

professores Jan Ekstrand, Markus Waldén e Martin Hägglund, que concluíram

que um grupo de 25 jogadores tem, em média, dezoito lesões musculares em

uma temporada. Comprovamos, portanto, que a incidência desse tipo de lesão

no Bayern não foi especialmente significativa, estando na média do que

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acontece com equipes de elite. Na parte baixa da lista aparece o Borussia

Dortmund, com quinze, e o Chelsea, com dezessete. No topo, figuram os

principais rivais europeus, todos eles com muito mais lesões musculares do que

o Bayern: o Arsenal contabilizou 25; o Real Madrid, 27; o Barcelona, 30; o

Manchester United, 31; e a Juventus e o Manchester City, 33. [Fonte: Efias.com]

Vemos, pois, que a parte muscular foi resolvida com notável perícia por

Lorenzo Buenaventura, o preparador físico de Guardiola. Mas, então, quando

dizemos “epidemia de lesões”, estamos falando de quê?

O primeiro fator que influenciou de maneira poderosa nessa “epidemia” foi

o critério de recuperação das lesões musculares que era tradicional no Bayern

há décadas — o qual explicarei nas páginas seguintes. Trata-se de um critério

totalmente respeitável, mas que, em minha opinião, se tornou antiquado diante

das incessantes inovações em técnicas de recuperação e tratamentos

fisioterápicos existentes atualmente. O prazo médio de recuperação das

incidências musculares no Bayern foi de 31 dias por lesão, muito superior aos

22 dias do Borussia Dortmund ou aos doze dias do Borussia Mönchengladbach.

De modo que, embora a cifra total de lesões musculares no Bayern não tenha

sido extraordinária, o tempo de recuperação, sim, foi. [Fonte:

Fussballverletzungen.com]

Em segundo lugar, foi altíssima a ocorrência de acidentes traumáticos, ou

seja, os sofridos por golpes, entradas e choques envolvendo um adversário, que

levam a entorses, rupturas de ligamentos e fraturas ósseas; lesões que

costumam exigir recuperações mais longas, em média, do que as musculares.

Apenas na última temporada, o Bayern sofreu, em acidentes que acontecem

corriqueiramente no futebol, a descomunal quantidade de 27 lesões

traumáticas (50% a mais do que lesões musculares). Comparativamente, o

número de acidentes traumáticos sofridos pelos rivais foi: Juventus, catorze;

Barcelona, quinze; Arsenal e Manchester United, dezessete; Real Madrid,

dezoito; Chelsea, dezenove; Manchester City, 24; e Borussia Dortmund, 27.

Observamos que, exceto pela igualdade com o Dortmund e a semelhança com o

City, o número do Bayern chegou a ser praticamente o dobro da quantidade de

traumatismos sofrida por jogadores de clubes como Juventus e Barcelona.

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7.1. A CULTURA MÉDICA

Nosso destino nunca é um lugar, mas

uma nova forma de ver as coisas.

HENRY MILLER

O doutor Hans-Wilhelm Müller-Wohlfahrt exercia, há quase quatro décadas, o

cargo de chefe dos serviços médicos do clube. Ele começou quando Hoeneß,

Rummenigge e Beckenbauer ainda jogavam no Bayern, no final dos anos 1970.

E como é lógico que aconteça com qualquer profissional que acumula mais de

trinta anos no mesmo posto, a força do hábito era muito poderosa,

especialmente em uma sociedade como a bávara, que, se por um lado é aberta,

liberal, amável, simpática, culta, por outro é conservadora e muito zelosa das

responsabilidades de cada um. Durante cerca de quarenta anos, o doutor não se

envolveu em nenhuma outra questão do clube, mas também não permitiu que

alguém lhe fizesse perguntas sobre sua tarefa.

Em Munique, Guardiola encontrou uma situação radicalmente oposta à que

viveu em Barcelona, onde os serviços médicos (certificados como os mais

eficientes e avançados da Europa) são um modelo de inovação e trabalham com

o treinador no próprio campo. Seu conceito básico é utilizar todas as técnicas

possíveis (desde que sejam lícitas) para facilitar a recuperação das lesões da

forma mais rápida e segura que houver, e que o treinador disponha do máximo

de jogadores para competir durante o maior número possível de jornadas. Para

isso, entre outras ferramentas, incluída a clínica esportiva integrada ao próprio

centro de treinamentos e dotada dos melhores avanços tecnológicos com que

um clube pode contar, os serviços médicos do Barça “vivem” junto com o

treinador e os jogadores durante todos os dias e momentos do ano.

O conceito de trabalho do doutor Müller-Wohlfahrt é muito distinto. Ele

considerava que sua presença no campo de treinamentos não era necessária.

Tampouco acreditava ser preciso acompanhar a equipe nas viagens para jogos

na liga e na copa, mas o fazia nos encontros da Champions League. Para

qualquer revisão, os jogadores deveriam ir até sua clínica particular, mesmo

que o time já estivesse concentrado, às vésperas de uma partida. O critério

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essencial do doutor Müller-Wohlfahrt primava pela recuperação pausada do

atleta. Seus tratamentos consistiam principalmente no uso da mesoterapia, uma

técnica que trata as zonas afetadas com múltiplas microinjeções de substâncias

biológicas e homeopáticas como o Hyalart (ácido hialurônico extraído das

cristas de galos) e o Actovegin (extrato que se obtém do sangue de bezerros), o

que o tornou mundialmente famoso.

Os critérios utilizados pelo doutor Müller-Wohlfahrt são tão legítimos

quanto quaisquer outros, mas ainda assim batem de frente com as exigências de

um time de elite submetido ao maior estresse que se dá no esporte, pois tais

critérios supõem uma limitação colossal, como sabe qualquer pessoa que

pratique uma disciplina esportiva de alto nível.

O conflito latente não se produziu para simplesmente decidir quem tinha

razão, mas porque dois conceitos diametralmente opostos sobre as prioridades

na recuperação de lesões tinham de conviver dentro do mesmo time. E, de fato,

deve-se destacar que a relação pessoal entre Guardiola e Müller-Wohlfahrt

sempre foi agradável.

O conflito de critérios ficou imediatamente claro. Recordemos o ocorrido

em agosto de 2013: o Bayern jogaria a Supercopa alemã contra o Borussia

Dortmund e o doutor comunicou que dois pilares do time (Neuer e Ribéry)

seriam baixas por lesão. Pep disputou e perdeu seu primeiro jogo oficial sem

ambos (a ausência de Neuer foi decisiva); mas, 36 horas depois do encontro, os

dois jogadores estavam treinando com total normalidade na cidade esportiva.

Foi um fato chocante. Dois futebolistas essenciais da equipe não puderam jogar

por lesão, mas estavam curados praticamente no dia seguinte… Isso resume

tudo o que aconteceu ao redor dos serviços médicos do clube.

Na minha opinião, naquele momento, Pep não resolveu bem a diferença de

ideias com o doutor Müller-Wohlfahrt. Definitivamente se tratava de duas

maneiras muito distintas de entender o esporte de alta competição. Por respeito

ao doutor e ao clube, Pep não quis romper o que estava estabelecido no Bayern

durante quase quarenta anos e não tomou uma atitude drástica desde o

primeiro dia: acreditou que, com o passar dos meses, as posturas se

aproximariam e a relação pessoal cordial lhes permitiria uma confluência de

ideias bastante positiva para a equipe. Mas não foi assim. Pep se equivocou

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aceitando um status quo que, no meu entender, não poderia dar bom resultado,

por causa da alta exigência competitiva que existe no futebol moderno.

É muito enriquecedor que ideias diferentes convivam em um mesmo time,

pois desse intercâmbio surgem novas propostas e o coletivo se beneficia. A

tensão é um motor do progresso. Mas é inviável avançar quando o que existe

são dois conceitos radicalmente contrários em um âmbito tão crucial como o da

recuperação das lesões.

A disparidade de critérios se reproduziu em vários outros casos, cujos

detalhes específicos de diagnósticos e intervenções eu não posso revelar, por se

tratar de informações particulares dos pacientes. Ao término da primeira

temporada, Guardiola comunicou à direção que necessitava da presença

permanente de um médico junto à equipe. Ele nunca pediu a destituição de

Müller-Wohlfahrt, mas que ele designasse um profissional de sua confiança

para que convivesse de maneira estável com os jogadores nos treinamentos e

nas viagens. A decisão demorou muito para tomar corpo, pois Kilian Müller-

Wohlfahrt, filho do próprio doutor, só se incorporou ao time em janeiro de

2015.

Na primavera daquele ano, aconteceu a principal série de lesões no elenco.

Embora algumas tivessem origem muscular, a maioria teve causas traumáticas.

Todas as recuperações se alongaram por mais tempo do que o inicialmente

comunicado. Foi dito que Franck Ribéry ficaria fora por três ou quatro dias, mas

na realidade manteve-se ausente por mais de oito meses… E Karl-Heinz

Rummenigge se irritou. Foi no momento menos oportuno, após a derrota para o

Porto, na Champions, por 3 × 1. Ele apareceu no vestiário e repreendeu

duramente a demora na recuperação dos jogadores machucados. Não se dirigiu

especificamente ao doutor Müller-Wohlfahrt (por se tratar de um jogo de

Champions, ele estava junto com o time), mas a todo o grupo de médicos e

fisioterapeutas no geral. A bronca não durou mais que dez segundos. Guardiola

logo interveio, pediu calma e ordenou que os jogadores fossem para o banho.

No dia seguinte, o doutor anunciou sua demissão do posto: não o fez no clube,

mas por intermédio do jornal que publicava a maioria das notícias exclusivas

relacionadas aos assuntos médicos do Bayern.

O incidente prejudicou Guardiola principalmente. Sobretudo porque ele

ficou sem um médico no momento crucial da temporada, quando a situação na

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enfermaria era catastrófica. Houve partidas em que Pep só dispôs de doze

jogadores de linha… E teve de enfrentar essa situação sem um doutor. E,

ademais, porque foi inevitável que a opinião pública o culpasse por ter demitido

uma lenda do clube — especialmente porque, nos dias posteriores à saída de

Müller-Wohlfahrt, quem se pronunciou pela primeira vez diante dos meios de

comunicação não foi nenhum dirigente do clube, mas o próprio Guardiola.

HELENIO HERRERA DEMITIU O DOUTOR

Milão, julho de 1960

É muito instrutivo ler sobre a experiência vivida por Helenio Herrera, em

1960, quando foi contratado pela Inter de Milão, clube pelo qual ganharia a

Copa da Europa em 1964 e 1965. O serviço médico do clube italiano era

dirigido por um doutor de fora da entidade, que não estava presente no

local de treinamentos, mas que tratava os jogadores lesionados em suas

próprias consultas na cidade esportiva e dava instruções telefônicas ao

massagista da equipe para que ele as transmitisse ao treinador. O

precedente é extraordinariamente idêntico ao de Munique. O próprio

Helenio Herrera explica em seu livro, Yo: Memorias de Helenio Herrera

(1962), como atuou:

“É verdade que, quando cheguei à Inter, pedi ao nosso presidente que

fizesse algumas mudanças no pessoal do clube. Isso criou um ambiente de

receio em relação a mim. Medo mal-entendido. Eu nunca pedi a nenhum

presidente que prescindisse de uma pessoa que cumpre seu dever e

conhece sua profissão. Os que acreditavam que as alterações efetuadas em

alguns postos do clube eram simplesmente uma prova de autoridade de

minha parte se confundiam. O que ocorre é que eu carrego toda a

responsabilidade: se um jogador se machucar reiteradas vezes, ninguém

colocará a culpa sobre o massagista nem sobre o médico, mas falarão sobre

os treinamentos sem razoabilidade de Helenio Herrera. Por isso é lógico

que eu queira me cercar das pessoas mais competentes nos diferentes

postos. Ao chegar à Inter, não pedi um médico novo por capricho […]. Se

prescindo de uma pessoa é porque ela não serve para os meus métodos, o

que não significa colocar em dúvida sua capacidade profissional aplicada a

outras modalidades esportivas.

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“Ao começar a temporada, após quinze dias, o médico do clube não se

apresentou como era seu dever. Parece que tinha um sistema peculiar ‘à

distância’ para cuidar da saúde dos jogadores.

“Até que apareceu um dia. Era um senhor muito simpático e fazia

brincadeiras. Para mim, não foi uma delícia tirar-lhe o sorriso dos lábios

quando lhe pedi que, já que estava em férias, continuasse em férias…

“Seu sucessor, o doutor Quarenghi, é um médico jovem e inteligente,

que assiste a todos os treinamentos do time.”

Não é simples comparar a experiência de Helenio Herrera, em sua época

(cinquenta anos de idade, tendo dirigido dez clubes), com a de Guardiola

quando chegou a Munique (42 anos e apenas um clube), mas é evidente que

Herrera acertou em sua decisão. De pronto, eliminou qualquer possibilidade de

trabalhar com alguém de metodologia tão oposta. Não o fez por duvidar da

capacidade do simpático doutor, mas “porque não serve para os meus métodos

[de trabalho]”. Guardiola preferiu acreditar que o tempo solucionaria a

disparidade de critérios, mas não foi assim.

No final de maio de 2016, quando se mudou para Manchester com seus

colaboradores, Pep tinha alterado seu pensamento de forma radical: no City,

todos deveriam ir na mesma direção. Tomou, pessoalmente, decisões rápidas

em relação aos médicos (incorporando o doutor Eduard Mauri) e

fisioterapeutas, e dirigiu o casting para a contratação de uma nutricionista de

primeiro nível. Guardiola aprendeu a lição de Munique.

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7.2. A PERSONALIDADE DE PEP

O caráter de cada homem é seu destino.

HERÁCLITO

U ma virtude pode se converter em defeito, se for o caso. Guardiola possui a

virtude da empatia: imediatamente se interessa por seus assuntos, se adapta a

você, tenta ajudá-lo naquilo que for necessário. Identifica-se e compartilha seus

sentimentos. Obviamente, Pep agiu assim no Bayern desde o primeiro minuto:

seu discurso de apresentação foi feito em alemão, vestiu-se com os lederhosen

(calças de couro típicas da Baviera) na primeira Oktoberfest que pôde visitar,

assumiu que o clube desejava fazer treinamentos com portas abertas para

satisfazer os torcedores, aceitou que os dirigentes preferissem manter o médico

em seu cargo e que a política esportiva do clube o distanciasse de qualquer

responsabilidade em relação às categorias inferiores. Teve empatia com o clube

porque entendeu que esses fatores, e muitos outros, eram bons para a entidade.

E, diante da dúvida, Guardiola sempre deu prioridade ao que era melhor para

seu clube, em Barcelona e em Munique, ainda que não fosse o melhor para ele

no aspecto pessoal.

Tanta vontade para se adaptar à idiossincrasia do Bayern — um clube de

personalidade singular — também teve sua contrapartida negativa. Por

exemplo, Pep entendia que o treinador do campeão alemão deveria falar

alemão, por isso usou sempre esse idioma nas entrevistas coletivas. Pep não

falava alemão com a facilidade com que se expressa em outras línguas, e

obviamente cometia erros de sintaxe ou pronúncia. De vez em quando, algum

jornalista sugeria que ele respondesse em inglês e o diretor de comunicação do

clube, Markus Hörwick, lhe transmitia essa solicitação. Mas Guardiola não quis

deixar de falar alemão, porque pensava que isso poderia ser interpretado como

uma fraqueza do clube. O treinador do Bayern, acreditava Pep, deve falar

alemão (ou ao menos tentar). Mas o que era uma virtude, a empatia, a

identificação, transformou-se em defeito, porque suas declarações em alemão

nunca conseguiram ser tão específicas e detalhadas como eram em inglês — ou,

obviamente, em catalão ou castelhano. De maneira quase unânime, os

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jornalistas alemães com os quais conversei sobre esse tema consideravam que o

treinador se equivocava: eles não se importavam que Pep falasse em inglês. O

que importava era Pep!

Vimos que, no caso do médico, Guardiola não quis ser drástico porque

acreditou que o tempo faria com que duas posturas diametralmente opostas se

aproximassem; e no caso do idioma, decidiu centrar-se no alemão por respeitar

uma característica essencial do clube. Em ambos, aconteceu algo parecido: uma

virtude acabou se transformando em defeito.

A permanente busca por empatia e o desejo de atuar sempre em benefício

do clube conduziu Pep a algumas situações delicadas, nas quais o prejudicado,

paradoxalmente, acabou sendo ele mesmo. Se tivesse sido mais egoísta, talvez

não teria sofrido tanto em alguns episódios, como no caso de Toni Kroos.

Durante seu primeiro ano, Guardiola defendeu que o jogador não saísse do

clube. As discrepâncias entre Kroos e a direção do Bayern em matéria de salário

e valorização eram muito claras, e as relações pessoais tampouco eram as

melhores; o treinador se ocupou pessoalmente durante meses para tentar um

acordo. Kroos era um de seus pilares, o homem que dava sentido ao jogo uma

vez acionado por Lahm, e Pep não queria perdê-lo. Mas o Bayern avaliou de

outra forma e acabou fazendo a transação com o Real Madrid. Antes de chegar a

esse ponto, Guardiola poderia lançar um ultimato ao clube, mas ele jamais

gostou de fazer ameaças ou assumir posturas semelhantes e isso não lhe passou

pela cabeça. Depois de duas tentativas muito insistentes para ficar com Kroos, o

treinador entendeu que era preferível ser compreensível com o clube, ainda que

perdesse um jogador fundamental. Certo ou errado? Na minha opinião, aceitar

essa decisão foi outro equívoco de Pep, porque poucas vezes esse tipo de

comportamento é valorizado no futebol de alta competição. Tudo se esquece.

Dois meses mais tarde, quando Javi Martínez machucou o joelho e o time ficou

sem meios-campistas, todos quiseram saber como o treinador planejava

solucionar a crise…

Para compreender exatamente a razão pela qual Pep aceitou uma decisão

com a qual não concordava, não se pode esquecer a delicada situação que o

clube atravessava: Uli Hoeneß estava na prisão e Karl-Heinz Rummenigge se viu

obrigado a assumir novas e enormes responsabilidades. Ao treinador pareceu

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que sua obrigação consistia sobretudo em compreender e ajudar seu clube,

especialmente seu novo líder executivo, Rummenigge.

Mas esses não foram os únicos defeitos de Guardiola que vimos na

Alemanha.

Uma de suas características principais é tomar todos os proble-mas como

próprios, e em silêncio. Ele os guarda em seu interior, como caixas que não se

abrem, até que a pressão aumenta de forma extrema e ele então explode. É um

traço de caráter de difícil solução. Não se trata necessariamente de casos

importantes: em geral, são detalhes, que simplesmente vão se acumulando até

que, todos somados, parecem pesar muito. Pep é como uma panela de pressão

que prende o vapor até não ser mais possível. Isso se passa, em certas ocasiões,

por causa de perguntas grosseiras de um jornalista, declarações de um rival,

pela atitude de um determinado membro do elenco ou alguma decisão do clube.

Ele guarda tudo em silêncio… E o vapor vai aumentando. Certo dia, de repente,

explode e isso acontece com força excessiva.

Algo parecido ocorre com seus sentimentos. Pep é tremendamente

emotivo. Suas lágrimas incontroláveis após a final da Copa da Alemanha,

quando encerrou sua etapa no país, são reflexo dessa maneira de ser. Falei com

vários torcedores do Bayern nos dias posteriores, e todos concordavam:

“Achávamos que Pep era como uma máquina”, “Pensávamos que não tinha

sentimentos”, “Nós o víamos como um autômato”, “Suas lágrimas nos

mostraram outra pessoa. Sua sensibilidade nos tocou…”.

EU SÓ QUERO QUE ME QUEIRAM

Manresa, 23 de junho de 2015

As férias de verão terminaram em Manresa, perto de Santpedor, seu

povoado natal, onde Pep participou do quinquagésimo aniversário da

Ampans, associação de ajuda a jovens com incapacidade intelectual. O

treinador se emocionou profundamente com os testemunhos e expressou

seus sentimentos: “Se querem saber o que desejo na vida e no meu

trabalho, é que me queiram. Na minha profissão, tento fazer que todos me

queiram bem, mas não é fácil, porque deixo jogadores fora [da escalação] e

eles se chateiam, porque sentem que eu não os quero. Não sabem nem

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saberão que é por uma razão tática ou por loucuras minhas; eles concluem

que não gosto deles, e isso me faz muito mal, porque nunca pensei, nas

vezes em que ganhamos, que foi graças a mim. Sempre penso que ajudei,

nada mais. Eu não sou melhor do que ninguém. Tive a sorte de estar em um

grande clube e ter grandes jogadores. De verdade, o que eu busco não são

títulos, mas querer bem as pessoas e que elas também me queiram bem”.

Por que Pep só mostrou suas emoções no último dia? Basicamente por

duas razões: porque é muito introvertido e porque tenta se proteger. É mais do

que tímido: é especialmente introvertido, salvo quando está rodeado por

pessoas em quem confia. Nesses casos, Pep se abre por completo e expressa

outras características: é alegre, contundente e brincalhão. Tenho fotografias

dele dentro do elevador da Allianz Arena, nas quais ele se mostra tão farrista

quanto o mais extrovertido dos jogadores do Bayern, ou seja, David Alaba ou

Thomas Müller. Mas para que isso aconteça, ele precisa se sentir cômodo e

confiante de que ninguém ao redor trairá sua confiança. Por isso protege suas

emoções e as guarda para momentos muito pontuais, quase sempre em

particular.

Esse comportamento oferece a quem vê de fora uma imagem gélida do

treinador. Ele parece um tipo frio, insensível, como pensavam os torcedores, o

que gera uma enorme contradição quando Pep diz publicamente que quer

muito bem seus jogadores, que os ama, que se sente muito querido por eles, que

percebe diariamente o carinho que lhe oferecem e a paixão com que treinam.

Amor, ca-rinho, paixão ao redor de um homem frio e sem emoções? Ele expressa

todos esses sentimentos de maneira privada e em grandes doses. Essa

diferença entre o Guardiola dos âmbitos particular e público faz com que muita

gente não acredite nas expressões de emoção que se dão entre ele e seus

jogadores. Consideram-no incapaz de sentir aquilo que diz sentir. Até que, no

último dia, o rio se derrama e então todos comprovam que, efetivamente, Pep

era um sentimental e seus jogadores não só nutriam carinho por ele, mas

também paixão autêntica. Basta lembrarmos o que aconteceu ao terminar a

final da Copa no Olympiastadion de Berlim para nos certificarmos disso.

Pep também esconde as emoções como proteção contra seu próprio

excesso de confiança. Guardiola é uma pessoa que acredita rapidamente nos

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outros. Não observa riscos nas aproximações, não percebe se as pessoas que lhe

propõem algo têm boas intenções ou não. Em geral, Pep se mostra amável, se

abre, confia e, frequentemente, sofre a decepção da traição. Digamos, como

resumo, que Pep foi traído muitas vezes. Se, por um lado, ele tem horror à

possibilidade de trair alguém (e prefere perder qualquer batalha a cometer uma

traição), por outro, não é hábil o bastante para evitar ser traído. Em outras

palavras, peca por confiar em excesso. E por ser brando, exceto quando o vapor

chega ao limite.

Acima de suas virtudes e defeitos, Guardiola é uma boa pessoa que foi

colocada no epicentro de um mundo de pouca contemplação. Entre seus

defeitos, destaco mais um: carregar erros dos outros sobre suas próprias costas.

Não bastam os que ele mesmo comete, pois crê que deve assumir também os de

seus jogadores, os de seu clube e às vezes também os erros de pessoas que lhe

são totalmente alheias. Outro equívoco.

E sua obsessão tem dois lados. Sem ela, sem a paixão com que vive o

futebol, Pep não seria quem é. Mas, ao mesmo tempo, sua dedicação

permanente, a busca pela perfeição, o fato de entregar sua vida ao clube e aos

jogadores, constitui também uma pressão gigantesca para todos. Com Pep nada

se faz pela metade: tudo é sempre levado ao máximo. É uma virtude, mas às

vezes também se transforma em um defeito, porque nem todo mundo vive o

futebol com entrega e paixão idênticas.

Como em outros capítulos, a pergunta final é parecida: Pep aprendeu a

lição de Munique também nesses aspectos que menciono? Seus primeiros

passos em Manchester, aproximando-se dos torcedores ou conversando dentro

de um táxi com o menino Braydon Bent de forma divertida, expressando suas

emoções sem se reprimir, parecem indicar que ele vai nessa direção.

outubro/2017


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BASTIDORES

RESTAURANDO A PIRÂMIDE

Munique, 24 de outubro de 2015

Hoje é um dia histórico. O Bayern vence o Colônia e soma a milésima

vitória na Bundesliga, uma cifra formidável. O campeonato alemão, tal

como existe na atualidade, se estabeleceu em 1963, e o Bayern não subiu

à primeira divisão da liga até 1965. Nestes cinquenta anos na elite do

futebol do país, o clube de Munique disputou, até hoje, 1714 partidas,

com mil vitórias, 385 empates e 329 derrotas.

Pep está radiante. A própria Bundesliga distribuiu um gráfico com

os melhores percentuais de vitórias dos treinadores históricos do

Bayern: Guardiola tem média de 84%, com impressionante vantagem

sobre os demais: Magath, 64%; Hitzfeld e Heynckes, 63%; Lattek, 62%.

Da Espanha, chega outro dado: a vitória de hoje foi a de número

trezentos de Pep, desde seu começo no Barcelona B, em 2007.

— Essas trezentas incluem o Barça B?

É a única pergunta que ele faz. Sempre que se referem a seus títulos

como treinador, Pep pergunta se está contabilizada a temporada

2007/2008, que ele viveu na equipe filial do Barça, transformando-a em

campeã da terceira divisão. Sim, as trezentas vitórias incluem as 28 que

ele obteve com o Barça B.

Hoje Pep restaura a “pirâmide”. O Bayern se distribui sobre o

gramado da Allianz Arena em um 2-3-5, o módulo clássico do futebol

primitivo, que se utilizou entre o final do século xix e meados do século

xx. Pep recupera a ideia de jogo da antiguidade, do futebol “préhistórico”,

a origem e o início das verdadeiras táticas.

A inspiração surgiu de uma conversa com Juanma Lillo. Falavam

sobre a melhor maneira de enfrentar equipes médias, que se fecham em

sua própria área:

— Pense em uma ampulheta — disse Lillo.

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Houve o momento em que Pep recuperou a figura do falso 9,

quando fez Leo Messi jogar nessa região do campo contra o Real Madrid,

em 2009. Já conhecemos o processo que lhe permitiu recuperar esse

papel. Porém, o que acontece hoje não tem a ver com uma figura

específica, ou a função de um jogador, mas com todo o módulo de jogo,

toda a organização da equipe.

Pep não conhecia todos os detalhes históricos da “pirâmide”,

embora tivesse amplas referências:

— Juanma Lillo tinha me falado sobre ela.

Nas origens do futebol, quando a tática ainda não existia como tal e

havia somente pequenos traços de organização, todos os times se

moviam exclusivamente no sentido ofensivo do jogo. Da mesma forma

que continua ocorrendo nos pátios dos colégios de todo o mundo, os

jogadores de futebol em 1860 corriam, todos, dentro de um magma

caótico, atrás da bola, com o objetivo de marcar gols. O historiador

húngaro Árpád Csanádi observou que, após o 1-1-8 inicial em todas as

equipes, os primeiros níveis de certa organização coletiva foram

alcançados nos anos posteriores ao nascimento do futebol: os ingleses,

praticantes do jogo direto, se dispuseram no 2-1-7; e os escoceses, que

praticavam um jogo de passes, o fizeram em um mais moderado 2-2-6.

A implantação do 2-3-5 se originou fora dos terrenos de jogo, nas

primeiras conversas sobre tática, na Universidade de Cambridge. A

partir de 1880, a “pirâmide” se estabeleceu como sistema de jogo

universal, graças aos êxitos do Blackburn Rovers, entre outros. Em

alguns países, o sistema se transformou em um dogma que se prolongou

até os anos 1950, apesar de o wm (3-2-2-3) de Herbert Chapman (e

Árpád Weisz, na Itália) já ter dado mostras de sua eficácia àquela altura;

também haviam se mostrado eficientes os módulos associados à

orientação defensiva (chamados Bold, Béton, Verrou, Il Método,

Vianema…), que nasceriam a partir da noção de inferioridade de

algumas equipes e alcançariam seu apogeu nos anos 1960, com o

catenaccio italiano.

O mais importante na decisão de Guardiola de recuperar a velha

pirâmide não é o fato em si, mas o processo realizado para ativar essa

restauração. O resultado é o mesmo que no século xix, o 2-3-5, mas as

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causas pelas quais se chega a esse módulo de jogo são totalmente

diferentes das que os primeiros times de futebol protagonizaram.

Tampouco surge por obra de algum profundo conhecimento, prévio e

documentado, mas de maneira intuitiva, fruto de um processo em que

confluíram basicamente três causas: o domínio do jogo, os rodízios e o

gosto pelos atacantes. Vamos nos aprofundar nessas três causas que se

combinaram em Munique, no outono de 2015.

1. O domínio do jogo. A análise do rival do dia, o Colônia (e o mesmo

aconteceria com muitos outros), não admitia dúvidas sobre sua vocação:

o time se encerraria de forma intensiva ao redor de sua área, o que

inevitavelmente provocaria o domínio absoluto do Bayern. Domènec

Torrent e Carles Planchart repetiam sem parar:

— Eles se fecharão, Pep, a cada dia se fecharão mais e mais.

O Colônia se fecha em um 5-4-1, pretendendo que o Bayern se

choque contra o muro. Para evitar isso, Pep escala cinco atacantes e só

um meio-campista de origem, e mais três laterais. É a primeira vez que

ele implanta essa organização em uma equipe. Tanto no Barça quanto no

Bayern, ele já tinha usado algumas partes desse módulo. Em seu

primeiro ano em Munique, utilizou o 2-3-2-3 contra o Manchester

United, com Robben e Ribéry encarregando-se por completo dos lados,

como carrileros. Na segunda temporada, em numerosas partidas, escalou

cinco atacantes ao mesmo tempo, embora quase sempre com papéis de

interiores puros, próximos ao meio-campista central (Xabi Alonso). Com

os atacantes, Pep compensava a falta de meios-campistas; em jogos

relativamente tranquilos, o time podia assumir a presença de cinco

atacantes simultâneos sem se partir em dois. Assim, em março de 2015,

Guardiola encarou as oitavas de final da Champions, contra o Shakhtar

Donetsk, também com cinco atacantes; Robben e Ribéry como interiores

encarregados de buscar o drible decisivo em zonas internas do campo

rival. Foi um brilhante ensaio, cujo saldo foi um triunfo por 7 × 0.

Hoje, ele aplica o módulo em toda a sua extensão: é um 2-3-5 puro.

Vejamos como os jogadores se colocam sobre o gramado: Neuer está

fora de sua meta, uns quinze metros além da linha da grande área do

Bayern, atento, como sempre, a tudo o que acontece em campo para o

caso de ter de intervir (não o fará em todo o jogo). À frente dele, se

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colocam Boateng e Rafinha, os dois defensores centrais, ambos dentro

do círculo central, mas já no campo do Colônia. Arturo Vidal deve

exercer o papel de meio-campista central único; próximos a ele, Philipp

Lahm na direita e Alaba na esquerda. Os três compõem uma linha que

possui duas funções primordiais: distribuir a bola entre os cinco

companheiros de ataque e formar uma primeira parede que impeça

qualquer contra-ataque do rival.

Com os pés sobre a linha da área do visitante, situam-se, da direita

para a esquerda: Coman, Robben, Lewandowski, Müller e Costa. Cinco

atacantes contra cinco defensores. Os jogadores do Bayern se colocam

sempre nos espaços entre cada defensor. Destacam-se por sua

mobilidade. Salvo os dois extremos, situados nas partes exteriores do

campo, o resto muda de posição de forma constante, recebendo bolas

das linhas de trás e tentando fazer penetrações perigosas na área. Se não

é possível, devolvem a bola velozmente para reiniciar o movimento em

outro intervalo do ataque. Os extremos também trocam de posição, o

que acaba esgotando a defesa do Colônia. Robben aparece onde estava

Coman, que aparece onde estava Costa, enquanto Müller e Lewandowski

enlouquecem os centrais visitantes com movimentos permanentes. E, se

em algum momento a dinâmica se interrompe, Alaba se adianta alguns

metros e se converte no sexto atacante. O Colônia mal consegue cruzar o

centro do campo e o Bayern passa mais de 70% do tempo na metade

contrária. A festa (4 × 0) termina com uma oferta de cerveja de graça

para todos os torcedores presentes.

A certeza do domínio foi o primeiro passo para a restauração da

pirâmide.

2. Os rodízios. A proximidade do confronto vital pela Copa, em

Wolfsburgo, obrigava o treinador a resguardar seus dois jogadoreschave

no centro do campo; Xabi Alonso e Thiago Alcántara, dois médios

que necessitam de muito frescor físico e, principalmente, mental, para

extrair seu melhor rendimento. A distribuição da bola por parte de Xabi,

bem como o drible e o passe de Thiago exigem de ambos o máximo nível

de descanso, o que os conduz ao banco nas datas prévias aos jogos de

alta importância.

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Contra o Colônia, aconteceu dessa maneira. E, como Rode

continuava machucado e Javi Martínez ainda não alcançara o melhor

rendimento, o único meio-campista que Pep podia utilizar sem riscos era

Arturo Vidal. As condições do rival permitiam jogar com um único meiocampista,

tendo em conta que Vidal estaria recebendo o apoio de Lahm e

Alaba, formando a linha de três homens à frente dos centrais.

A necessidade de dar descanso aos meios-campistas mais essenciais

foi o segundo ponto do processo.

3. O gosto pelos atacantes. “É curioso; toda a vida dizendo que só se

pode jogar com meios-campistas, que eles são a chave, e aqui estou eu,

jogando com cinco atacantes…” Pep disse isso um ano antes, quando não

podia contar com Lahm e Thiago. À época, o treinador compôs várias

escalações com cinco atacantes, ainda que sempre utilizasse dois deles

como substitutos dos meios-campistas interiores. Um jogo foi crucial

para reforçar suas novas ideias ofensivas: a volta contra o Porto, na

Champions. O péssimo resultado da ida (derrota por 3 × 1) obrigou o

Bayern a jogar totalmente voltado ao ataque e, para isso, Pep não teve

dúvidas em escalar cinco homens ofensivos, embora dois deles fossem,

de fato, laterais. Naquela noite, o Bayern atacou com Lahm, Müller,

Lewandowski, Bernat e Götze, cada um deles situado nos espaços entre

os defensores portugueses. Thiago e Xabi distribuíram bolas de um lado

para o outro. O Bayern amassou o Porto por 6 × 1 (5 × 0 nos quarenta

minutos iniciais).

Desde então, Guardiola entende que, em muitos jogos ao longo da

temporada, o mais efetivo seja escalar cinco atacantes, rompendo o

velho aforismo do futebol que assegura que se ataca melhor com menos

jogadores de frente. Hoje o Bayern alcançou uma dinâmica de jogo que

lhe permite infringir tais regras e atacar com cinco homens, sem que a

equipe se divida em dois corpos distintos.

O gosto pelos atacantes e as boas experiências adquiridas na

temporada anterior foram o terceiro ponto do processo com que

Guardiola restaurou, em 2015, a pirâmide de 1880. As razões que

conduziram à distribuição do time no 2-3-5 não tiveram relação

nenhuma com as que levaram os jogadores de Cambridge a se organizar

deste modo, e talvez nesta diferença resida o que é mais notório na

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coincidência. Um século e meio depois, o sistema de jogo voltava a ser o

mesmo e era tentador e inevitável pensar que o círculo evolutivo se

fechava, regressando ao ponto de origem, mas a realidade é que as

causas que conduziram ao emprego da pirâmide não tinham nenhuma

comparação possível entre si.

A utilização de cinco atacantes tem uma vantagem adicional:

aqueles que servem os passes têm mais alternativas à disposição, como

Pep observa no jantar após o jogo:

— Os passes do [defensor] central ou do meio-campista central são

mais seguros se vão para fora, em direção ao extremo; mas são mais

perigosos se vão por dentro, ainda que tenham menor porcentagem de

acerto. Com cinco atacantes, nosso central e nosso meio-campista

central têm mais opções para escolher. Podem passar para fora com

pouco risco, ou por dentro com mais risco, mas também gerando mais

perigo. Abre-se um leque maior de possibilidades para nós.

Para os jogadores do Bayern, isso significou o alcance de um dos

grandes objetivos estabelecidos no início da etapa de Guardiola: hoje

todos eles conhecem, compreendem e praticam o catálogo tático

completo que o treinador queria transmitir e ensinar. Assimilaram o

aprendizado e, o que é mais importante: durante o processo, extraíram

de seu interior todo o talento e as capacidades que já tinham, e agora

passam a exibi-las em seu nível mais alto. É uma vitória para esses

jogadores, o triunfo de sua ambição e vontade para aprender mais, e de

sua aptidão e energia para executar as coisas com acerto. Nenhum

exemplo é melhor do que a declaração de Roland Evers, o comentarista

da tv Sky Deutschland, que durante o jogo batizou Lahm do seguinte

modo: “Philipp Lahm, der Verteidigende Mittefeldflügelstürmer”, algo

como “o defensor-meia-extremo-atacante”.

Para Guardiola é um triunfo formidável de organização tática. Seus

jogadores não só aprenderam, compreenderam e executaram todas as

partituras que ele ensinou, mas também esta (o 2-3-5), particularmente

complexa e arriscada. Não por acaso, a “pirâmide” deixou de ser

praticada em meados dos anos 1950, porque outros sistemas de jogo

foram considerados mais eficientes e menos perigosos. Pep recuperou o

módulo de maneira muito distinta da que se praticava cem anos atrás.

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Sua pirâmide é pura organização e está repleta de detalhes e pequenas

instruções. Não é o caos desorganizado que os filmes antigos do futebol

de 1930 nos mostram, mas uma estrutura que possui vocação

fortemente ofensiva, reforçada nos pontos fracos e escorada para

manter o time agrupado. É uma pirâmide que, acima de qualquer outra

consideração, se destaca pela dinâmica de movimentos de todos os seus

componentes.

A história contém esse tipo de coincidência insuspeita. Por duas

vias completamente diferentes e mediante processos que não possuem

nenhuma semelhança entre si, os ideólogos primitivos da Cambridge

vitoriana e Pep Guardiola se viram intimamente relacionados em torno

de uma pirâmide…

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CAPÍTULO 8

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O TREINADOR COMO ARTESÃO DO TALENTO

Para chegar à excelência é necessário formar-se, mas para ultrapassá-la é preciso

transformar-se.

XESCO ESPAR

Pep é obcecado por aprender. Absorver conhecimentos. Aprender do que vê,

do que experimenta, do que lê ou lhe explicam. Das boas experiências e,

especialmente, das ruins. Existe a falsa crença de que um treinador de elite já

sabe tudo, mas não é assim: normalmente sabe o mesmo que um treinador de

terceira divisão! Move-se em outro entorno, com jogadores de categoria

superior e em um contexto competitivo elevado, e a pressão que recebe é

enorme, mas talvez seus conhecimentos sejam muito similares aos do técnico

que dirige uma equipe humilde, formada por jogadores modestos. As posições

que ocupam são muito distintas, mas seus conhecimentos não precisam ser.

Guardiola começou treinando na terceira divisão, algo de que sempre se

esquecem aqueles que, para criticá-lo, dizem que gostariam de vê-lo treinando

um time pequeno. Ele já fez isso e ganhou a liga com essa equipe pequena,

formada por jogadores adolescentes. Quem não esquece é Guardiola. E recordar

esse fato lhe permite lembrar também que seus conhecimentos talvez não

sejam muito diferentes dos de um treinador de terceira divisão. Isso o estimula

a seguir aprendendo. Desconfiem de quem afirma saber tudo. Repetirei o que

Pep disse ao fazer seu balanço final em Munique: “Eu me adaptei à Alemanha e

vim para aprender mais do que ensinar. Foi uma experiência de vida do cacete,

aprendi muito”.

Aprender foi o núcleo central de sua vivência na Alemanha e a causa

principal de sua metamorfose.

Não acreditem que, na Inglaterra, será diferente: sua predisposição é a de

aprender, não ensinar, porque aprender é um de seus alimentos preferidos. Pep

acredita que só assim poderá seguir avançando no futebol de elite. Não se refere

unicamente a incrementar o conhecimento do jogo, mas também a mergulhar

em outras disciplinas: comunicar-se melhor, analisar melhor sob pressão,

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propor planos mais ajustados a cada necessidade. Mesmo no nível mais alto é

necessário continuar aprendendo. Reginald Revans enunciou a ideia com

clareza: “Para sobreviver, necessitamos aprender na mesma velocidade das

mudanças que acontecem no entorno”.

Como um treinador aprende? A resposta que Pep me deu há anos segue

válida: “Aprende-se olhando e pensando. Observando e refletindo”. O treinador

deve observar e analisar as partidas e treinamentos; deve extrair ensinamentos

de seus mestres para aplicá-los em outros contextos; deve confrontar opiniões

dentro de sua comissão técnica e também com outros treinadores; deve ensaiar

e testar movimentos novos, consultar e debater com os jogadores; deve analisar

rivais, ver jogos, estudar vídeos, revisar erros, repassar detalhes e refletir sobre

tudo isso; deve ler livros e documentos de análises, fazer cursos de atualização e

compartilhar experiências com outros técnicos de futebol e de outras

disciplinas esportivas; deve “desaprender”; e, se for possível, deve investigar a

história do futebol para saber com precisão de onde viemos. Diz Ángel Cappa:

“O futuro do futebol está no passado”.

O treinador nunca deve deixar de observar e refletir. Só assim poderá

continuar aprendendo, desde que mantenha a mente aberta e não se deixe levar

por ideias preconcebidas: “Não existe o aprender se o pensamento se origina

em conclusões prévias”, descreveu Krishnamurti. O médico belga Maurice

Piéron concluiu: “Um trei-nador que não sabe observar é menos treinador. Em

mais de 80% do tempo de uma sessão [de treinamento] ou de um jogo, o treinador

observa”.

É revelador escutar o técnico argentino de voleibol Julio Velasco: “Eu

aprendi muito com os jogadores ruins, muito mais do que com os bons. Porque

com os ruins tive de me esforçar muito mais para encontrar a maneira de ajudálos

a melhorar”.

Com frequência, os treinadores aprendem com outros treinadores. Muitos

deles, como jogadores, estiveram às ordens de técnicos singulares, dotados de

ideias interessantes. Esses jogadores ensaiaram essas ideias, testaram suas

vantagens e inconvenientes e, anos mais tarde, colocaram isso em prática já

como treinadores. Não há como refutar esta sequência histórica: Jimmy Hogan

— Josef Blum — Karl Humemberger — Rinus Michels — Johan Cruyff — Pep

Guardiola. Também não se pode negar o fio condutor da seguinte relação:

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Herbert Chapman — Vittorio Pozzo — Karl Rappan — Helenio Herrera — Fabio

Capello — José Mourinho.

O filósofo José Antonio Marina escreve que a evolução humana foi

determinada “por sua capacidade de aprender” (além das mutações e da seleção

natural). Essa capacidade, que é a terceira força evolutiva do ser humano, pode

ser potencializada mediante um fator decisivo: “Não só podemos aprender mais

do que o resto dos animais — prossegue Marina —, mas somos capazes de

decidir o que queremos aprender”. A isso podemos chamar de “aprendizagem

seletiva”. O filósofo acrescenta um conceito que é essencial para se

compreender a evolução do futebol: “A função da inteligência (a função do

cérebro) não é conhecer, nem sentir, mas é dirigir a ação […]. Não pensamos

para conhecer. Pensamos para atuar. O talento é, portanto, a inteligência

atuando de maneira adequada, brilhante, eficiente”.

Paco Seirul·lo detalha os parâmetros da evolução do futebol: “Um treinador

tem uma ideia e a implementa. A princípio, o resultado é regular, mas depois

tudo anda bem e ele vence com essa ideia até que os adversários se dão conta e

respondem a ela… Isso é justamente o que faz as espécies evoluírem! No

futebol, é exatamente igual. As espécies sempre viveram esse tipo de processo.

Quando aparece uma determinada espécie de inseto, os passarinhos a devoram

rapidamente. Mas acontece que, após centenas ou milhares de anos, esse inseto

acaba desenvolvendo um veneno que mata seu predador. Então os outros

passarinhos percebem e evoluem, criando um antídoto ou deixando de comer

esse inseto. Assim são as evoluções. No futebol, acontece o mesmo. Para

entender a evolução do futebol, basta ler a Teoria da Evolução das Espécies. É

assim. É exatamente do mesmo jeito. Quando, de repente, alguém saca um

zagueiro e joga com três defensores e mais dois à frente — um 3-2-3-2, por

exemplo —, apenas isso já provoca uma mudança nas inter-relações

vivenciadas pelos atletas. E o que acontece? A princípio, essas inter-relações

não estão ajustadas e se perde muito a bola. Mas a grande vantagem que o

futebol tem é que essa mudança se manifesta rapidamente. Ela se manifesta

porque perdemos a bola! E isso acontece porque não há comunicação entre os

jogadores. Os adversários se aproveitam dessa falta de comunicação e são

capazes de nos superar, roubando-nos a bola. Cada vez que aparece um

elemento novo, um elemento distinto, todos os que estão no entorno desse jogo

se modificam, para o bem ou para o mal. Sempre é uma dicotomia. E demora um

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tempo até que apareça a essência de por que mudamos e que elementos

distintos acrescentamos. Mas não é um tempo muito longo, porque logo

observamos onde o modelo falha: perdemos a bola”.

A obsessão por aprender não pertence, portanto, a um âmbito

intelectualmente platônico. Não é aprender para conhecer mais, mas aprender

para dirigir melhor a ação. É uma obsessão tremendamente pragmática.

Dizemos que Guardiola é uma espécie rara porque, quando já construiu sua

obra (quando já “ensinou” seus jogadores), não se põe a contemplá-la, mas

parte para iniciar outro trabalho. E dizemos que é um tipo heterodoxo porque é

inconformista, obsessivo e nada lhe parece suficientemente perfeito. Mas talvez

ele seja apenas um sobrevivente, alguém que interiorizou que ficar quieto,

desfrutando de sua obra, constitui um grande perigo. Alguém que compreendeu

com clareza que quem não cresce, morre. “Crescer significa aprender e se

transformar pouco a pouco em uma versão melhor de si mesmo”, escreve

Imanol Ibarrondo. Portanto, é preciso se mover sempre, num continuum.

Aprender para não ficar ancorado no passado, porque nem mesmo o passo

prévio de desaprender é suficiente para seguir aprendendo. É necessário

formar-se sem descanso.

Ao anunciar que iria para a Inglaterra porque queria continuar

aprendendo, Guardiola estava dizendo, na realidade, que queria seguir

ensinando. Se o professor aprende ao ensinar, o mesmo acontece com o

treinador. Os psicólogos Ron Gallimore e Roland Tharp trabalharam durante

muito tempo perto de John Wooden, lendário treinador de basquete da

Universidade da Califórnia (ganhou dez títulos da ncaa entre 1964 e 1975), e

refletiram todas essas vivências em um livro cujo título é You Haven’t Taught

Until They Have Learned [Você não ensinou nada até que eles tenham

aprendido]. Isso é o treinamento! Não se trata de ensinar, mas que os jogadores

aprendam — se entendermos o “aprendam” como absorção das ideias que o

técnico propõe, ou no sentido de que o jogador consiga extrair suas melhores

virtudes, até as mais ocultas, graças ao impulso que o treinador lhe sugere.

Quando Guardiola disse, na metade de sua última temporada no Bayern,

que seu trabalho fundamental estava pronto, provocou surpresa geral e todo

mundo respondeu: “Ele está louco! Falta a Champions!”. Mas, para Pep, a obra já

estava terminada, porque os jogadores tinham aprendido o que ele se propôs a

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ensiná-los. O edifício estava construído, o quadro estava pintado, o trabalho

estava feito. Naturalmente, faltava algo muito importante: seguir competindo

no sprint final para tentar ganhar títulos. Mas, para Guardiola, a essência de sua

missão estava completa.

Reconheçamos que é uma característica pouco habitual e que, para um

aficionado do futebol ou jornalista médio, pode ser de difícil digestão. Certo.

Mas Nick Faldo já explicou que “só os muito bons querem melhorar. Por isso são

muito bons”. E Guardiola aplica para si mesmo o critério dos psicólogos

americanos: terei ensinado quando os jogadores tiverem aprendido. Nem um

minuto antes, nem um minuto depois.

Aprender e se formar não basta. Para seguir avançando, é preciso se

transformar. Deve-se rechaçar qualquer sentimento de satisfação e continuar

exigindo mais das próprias capacidades. Tendemos a dizer que tudo já foi

inventado: isso é falso! Tudo é suscetível de ser reinventado. Ou ser reutilizado

em condições diferentes das originais. A prática e o treinamento demonstram o

quanto é possível progredir. Marina detalha como Tchaikóvski compôs seu

Concerto para violino, em 1878, e Leopold Auer se negou a interpretá-lo

“porque considerava que era impossível tocar aquela peça”, mas hoje em dia

qualquer aluno de conservatório pode fazer isso. A prática conduziu a esse

ponto. Os jogadores do Bayern não eram capazes de encadear mais de dez

passes seguidos num rondo sem que um dos situados no centro interceptasse a

bola, mas, três anos mais tarde, vemos inúmeros vídeos que mostram como eles

chegaram a somar mais de cinquenta passes, numa velocidade inusitada. Como

foi possível? Praticando, recebendo correções, aprendendo.

O professor Santiago Coca expressou com lucidez o objetivo do

treinamento: “Dignifiquemos o futebol como jogo e liberemos o talento”. O

talento, como explica Marina, “não é uma pedra preciosa, escassa e cobiçada

[…]. Essa ideia forma parte de uma concepção estática do mundo e, a meu ver,

antiquada. É a antítese de uma visão criadora da inteligência, capaz de inventar

e ampliar nossas possibilidades, nossa riqueza, nosso talento”. O talento não é

um dom, mas o ato de aplicar bem nossos recursos. E como se consegue isso?

Com treinamento: é certo que nascemos com uma dotação genética, “mas

também é certo que nem todos esses genes se ativam ou, como se diz

tecnicamente, se expressam. O ambiente influencia essa ativação seletiva, e um

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dos componentes do ambiente é a educação, que dessa forma modula nossa

genética e se converte assim em geradora de talento no sentido estrito”,

acrescenta Marina. No futebol, a educação é o treinamento. Assim, pois,

treinando, ou seja, recebendo uma determinada educação, o jogador poderá

ativar e expressar os genes (e as características futebolísticas) que tem em seu

interior. O treinamento é o estimulante desse processo.

Arrigo Sacchi disse algo na mesma linha: “O objetivo do técnico é que, por

intermédio do jogo e do trabalho, se construa o jogador. Para ganhar, o

importante é a inteligência e o trabalho. Sempre tive claro que o futebol é um

esporte de equipe, não um esporte individual. Mas a pessoa, suas características

e virtudes também são importantes. Um jogador tem de amar o futebol, ser

trabalhador, honesto; por último, está o talento. O talento não é o primeiro. É

preciso fazer o jogador se aprimorar e que o time se mova como um só homem”.

Julio Velasco fez uma pergunta sugestiva: “Será que gostamos tanto do talento

porque treinadores não gostam de ter que trabalhar?”.

É importantíssimo observar um detalhe gramatical: os jogadores não

“treinam”: eles “se treinam”. Aqui, o pronome reflexivo “se” é a chave. O

treinador ensina e guia o aprendizado, mas quem se treina é o jogador. Treinarse

significa extrair toda a potencialidade que possui: física, técnica, intelectual,

volitiva, emotiva, tática, competitiva… Se o treinador é bom, será um

“facilitador” dessa extração de potencial. O treinamento é o processo de eclosão

do talento: “Desde uma perspectiva epigenética, a herança genética constitui

um recurso inicial de um processo construtivo que implica continuados ajustes

e equilíbrios”, como disse Marina.

O treinador é decisivo como guia desse processo, mas nem a prática mais

precisa e meticulosa é suficiente. Também é necessário o aprendizado que vem

da experimentação. Guardiola se expressou em outros termos: “Para aprender,

você deve experimentar. Não basta que lhe digam como é. Para corrigir

verdadeiramente um defeito, primeiro é preciso ter sofrido suas

consequências”.

E não há experiência mais substancial do que a que surge na derrota.

Stefan Zweig escreveu em Fouché: “Nada debilita mais o artista, o general, o

homem de poder, que a incessante conquista de sua vontade e seu desejo: só no

fracasso o artista conhece sua verdadeira relação com a obra, só na derrota o

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general observa seus erros, só na queda em desgraça o homem de Estado

alcança a verdadeira visão de conjunto da política. A riqueza contínua abranda,

o aplauso contínuo é obtuso; só a interrupção dá nova tensão e elasticidade

criadora ao giro no vácuo. Só a desventura dá profundidade e amplitude ao

olhar que observa a realidade do mundo”. Permitam-me acrescentar: a

necessidade estimula os sentidos.

Guardiola viveu poucas derrotas em sua carreira de treinador: apenas 10%

dos jogos em que dirigiu suas equipes. Não há treinador na história com menor

percentual de derrotas, por isso ele figura como o número 1 indiscutível na

classificação mundial histórica por pontos do Clube elo (que maneja uma tabela

similar à que se aplica no xadrez), com 2151 pontos, à frente do renomado

austríaco Hans Pesser (2143) e com notável vantagem sobre o restante dos

técnicos. Mas, precisamente porque foram poucas, Pep se lembra da maioria

dessas derrotas. Algumas caíram no esquecimento porque foram irrelevantes:

por exemplo, na Bundesliga, ele perdeu nove jogos dos 102 que disputou, mas

cinco desses reveses aconteceram quando o Bayern já havia conquistado o

título, por isso não tiveram nenhuma importância. Por outro lado, Guardiola

nunca se esquecerá da derrota sofrida para o Real Madrid na Champions

porque, naquele dia, foi ele quem se equivocou, renunciando a suas próprias

ideias; nem da derrota para o Atlético na mesma competição, ainda que por sua

crueldade, tendo em conta a partida sensacional que o Bayern disputou.

Tendemos a dizer que aprendemos uma lição de toda derrota, mas não

estou certo de que seja assim. Em algumas ocasiões, as desculpas turvam o

processo de análise e absorção da experiência; em outras, simplesmente se

tende a esquecer o que causa a dor. Mais do que em qualquer outro âmbito,

Guardiola se esforça para que isso não lhe aconteça e assume todas as derrotas

como uma lição que deve analisar profundamente. Depois de perder de forma

categórica um jogo de liga em Wolfsburgo, no início de 2015, por causa de

algumas inovações que introduziu e que resultaram negativas, Pep escreveu na

lousa de seu escritório o que chamou de “a Bíblia”: um guia tático que não

deixou de recordar desde então antes de qualquer jogo, consistindo

basicamente em que dois homens prendam quatro rivais no ataque e se procure

ter um homem a mais (superioridade) no meio de campo e na defesa.

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Pep também se obriga a analisar as vitórias com a mesma ótica que utiliza

nas derrotas; por essa razão, com frequência é visto taciturno apesar do triunfo.

A impressão é a de que ele não sabe desfrutar a vitória, mas o que está

buscando são as lições que se escondem atrás de cada uma delas. Seu amigo

Kasparov explica: “Quando algo vai mal, naturalmente queremos fazer melhor

na vez seguinte, mas devemos nos treinar para querer fazer melhor até mesmo

quando as coisas vão bem. Não fazer conduz à estagnação”. Guardiola

acrescenta: “É na vitória que se deve estar mais vigilante”.

Em suma, como disse Benjamin Britten: “Aprender é como remar contra a

corrente: quando para de remar, você retrocede”. Aprender é o motor de toda

evolução.

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8.1. O TALENTO SE CULTIVA POR INTERMÉDIO DO HÁBITO

Quando não faço bem as coisas,

desejo que meu treinador me corrija.

STEPHEN CURRY

Jesús Candelas, treinador espanhol de futebol de salão, faz uma reflexão muito

estimulante: “Mesmo em nosso melhor jogo ou rendimento, deveríamos poder

nos perguntar: ‘O que posso melhorar?’”.

E a resposta é: tudo. Tudo pode ser melhorado. E sempre. No caminho do

progresso não existem fronteiras. O que é necessário? Cultivar o talento. Dado

que definimos o talento como um processo e não como um dom, é correto falar

em cultivá-lo. E o fazemos por intermédio da prática. “Nem toda prática nos faz

progredir”, diz Marina. “É preciso um tipo particular, a ‘prática deliberada’, ou

seja, um treinamento bem dirigido, que nós chamaremos de ‘aprendizagem

profunda’.” O cultivo do talento não consiste na simples repetição de uma

atividade, mas na excelência dessa repetição, em sua orientação e direção, em

sua qualidade. A teoria de Malcolm Gladwell sobre as 10 mil horas de prática

para que alguém se transforme num “especialista” em determinada matéria foi

amplamente questionada por uma razão fundamental: a prática deve se

produzir na direção adequada porque, do contrário, é totalmente inútil e

ineficiente. Para que servem 10 mil horas se a prática é equivocada?

Com José Antonio Marina, entramos nesse terreno, intimamente

relacionado ao progresso de um jogador: “Não podemos dizer que a

aprendizagem seja tudo, mas sim afirmar com total segurança que não há

grandes talentos sem treinamento e que, a partir de certo nível de aptidão, a

‘prática deliberada’ é tudo”. Experimentos realizados com os alunos de violino

da Academia de Música de Berlim concluíram que o que distinguia o virtuoso do

medíocre só se devia ao efetivo trabalho de cada um. Repito o que Julio Velasco

disse: “O prazer do treinador tem de ser o prazer de um artesão, não o de um

industrial. Somos artesãos do ensinamento e da formação do esportista”.

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Quando assinalamos a melhora individual dos jogadores que Guardiola

treinou em Munique (com os casos destacadíssimos de Boateng, Kimmich,

Neuer, Lahm e Costa), não podemos deixar de salientar o processo que a

comissão técnica e os jogadores protagonizaram para alcançar essa melhora:

835 sessões de treinamento, 161 jogos oficiais, 37 jogos amistosos, 530

palestras técnicas grupais e cerca de 2 mil reuniões individuais para analisar

vídeos. Isso significa que a “aprendizagem profunda” dirigida por Guardiola se

esten-deu ao longo de mais de 1500 horas de jogo e prática no campo,além de

outras 1500 no escritório. Podemos resumir que os jogadores do Bayern

trabalharam cerca de 3 mil horas na direção indicada pelo treinador. São muitas

horas; mas, sobretudo, foi um tempo de muita “qualidade”, muito intenso,

concentrado no essencial e dirigido a objetivos específicos e muito

determinados.

MAIS UMA VEZ

Munique, 19 de janeiro de 2016

Pep acelerou os preparativos e, na terça-feira (19), dedicou uma longa

sessão a trabalhar a nova ação de pressão e roubo de bola, e o reinício do

ataque posicional. Foi um treinamento duro, de sobrecarga, o segundo da

semana com o mesmo objetivo. A sessão se alongou por duas horas e meia,

porque o treinador pedia mais uma repetição. Sempre uma a mais:

— Das Letzte! — gritava, pedindo a última.

Mas todos os jogadores sabiam que não era a última repetição. Recémsaído

de uma massagem por causa de um pequeno incômodo muscular,

Medhi Benatia ria ao meu lado:

— Todos nós já o conhecemos. Quando grita “Das Letzte!”, sabemos

que não é a última repetição. Aprendemos que a última, e talvez nem seja

essa, será quando ele de fato prometer: “Jungs, I promise you. Es ist das

Letzte!” [“Rapazes, eu prometo. É a última!”].

Pep ainda não estava fazendo nenhuma promessa, e essa “última”

jogada se repetia mais vezes enquanto o relógio seguia avançando e a

escuridão caía sobre Säbener Straße. Ele só pronunciou as palavras

mágicas quando o esgotamento tinha se apoderado de todos: “Jungs, I

promise you”. E aquela, sim,era a última repetição.

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Aí, sim, Benatia deu uma piscada e se despediu:

— Acabou por hoje.

O treinamento é o instrumento imprescindível para construir hábitos.

“Toda a nossa vida, em sua forma definida, não é mais do que um conjunto de

hábitos”, disse William James. (Pesquisadores da Universidade de Duke

estimam que mais de 40% das ações que realizamos a cada dia não são decisões

de momento, mas hábitos.)

Por que os hábitos são tão importantes? Marina explica que “nossa

capacidade de desenvolver atividades atentamente é pequena e custosa.

Lembrem-se de quando aprenderam a dirigir, ou de quando tentaram aprender

um novo idioma. Tudo exige uma concentração exagerada e cansativa […].

Pouco a pouco, essas atividades vão se automatizando, convertendo-se em um

hábito, e podemos realizá-las sem prestar atenção. Mediante hábitos,

ampliamos nossa capacidade perceptiva, intelectual, motora, moral […]. A

educação é, por fim, a aquisição de hábitos”. Somos o que fazemos

repetidamente, observou Aristóteles, antes de proclamar que a excelência não é

um ato, mas um hábito.

Por que deveria ser diferente no futebol? Para que uma determinada ação

saia bem, o esportista não pode pensar. Se Usain Bolt pensa como deve correr,

não corre. Se Stephen Curry pensa como tem que arremessar, não encesta. Se

Leo Messi pensasse como deveria chutar, nunca marcaria um gol. Todos eles

devem pensar (muito e repetidamente) durante a “prática deliberada”, nos

treinamentos (por isso essa prática deve ser excelente e exigente), mas não

durante a competição. O “hábito” que se adquire no treinamento é fundamental

para se compreender o dinamismo da inteligência (Marina) e para o êxito da

ação esportiva executada. Emma Stone explicou que só conhecia uma forma de

cantar bem ao vivo: “Você deve ensaiar muito. Deve conhecer tanto a canção e

aprendê-la tão bem que se sinta livre para improvisar”. O treinador Fran

Beltrán escreveu: “O futebol efetivo é o de quando você deixa de pensar. Por

isso devo treinar o que quero fazer, para que se transforme em um hábito”.

Quando falamos de hábitos no futebol, nos referimos a “automatismos”?

Dito de outro modo: como se compatibilizam as repetições constantes de

jogadas e ações nos treinamentos com a concepção do futebol como fenômeno

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complexo? Seirul·lo responde: “Nós tentamos repetir elementos específicos do

jogo com alguma variação. Porque se eu sempre faço o mesmo contra você, na

terceira vez você me pega. O que devemos fazer e treinar? Devemos construir

situações de jogo em que a repetição automática não tenha valor. Devemos

reduzir os ‘automatismos’ do jogo. Porque se automatizamos o jogo, então você

nunca me vencerá: em dez segundos, posso descobrir quais são seus

automatismos. O que devemos trabalhar, ainda que primeiro tenhamos de

descobri-las, são as interações eficientes que existem entre os jogadores. Não é

outro vocabulário, mas outro conceito”.

As interações entre jogadores compõem um âmbito fundamental no

futebol. O rendimento de uma equipe só pode se multiplicar (ou melhorar) se os

jogadores complementarem sua capacidade por intermédio das influências que

exercem uns sobre os outros e uns com os outros. Como influem nos

companheiros e como são influenciados pelos outros quando atuam juntos. Esse

certamente é um fator relevante para qualquer treinador no momento de

decidir uma escalação: muitas vezes, a melhor escalação não é a composta dos

melhores jogadores, mas daqueles que melhor se inter-relacionam. A arte das

interações em uma equipe tem múltiplos vetores: em algumas ocasiões,

depende da visão e do olfato do treinador; em outras, das improvisações dos

próprios jogadores; e, às vezes, simplesmente surgem por acaso.

A “aprendizagem profunda” exige objetivos de melhora contínua e

mecanismos de correção imediata: “O aluno deve saber em cada momento se

está indo bem ou mal. Praticar sem saber os resultados é como jogar boliche

com uma cortina que oculte os pinos. A evolução educativa deve estar muito

próxima da ação avaliada”, explica Marina. Surpreendeu que Guardiola tenha

corrigido Kimmich logo após o jogo contra o Dortmund, em março de 2016?

Provavelmente sim, por ser pouco habitual. Mas, na verdade, deve ser mesmo

algo incomum? Os jogadores de xadrez não se reúnem imediatamente após o

fim da partida para reavaliá-la de maneira conjunta e, por vezes, cruel? Quem

falhou, como, em que momento, o que poderia ter sido feito? O exército

americano comprovou a utilidade de revisar as ações militares realizadas. O

coronel Thomas Kolditz, da Academia de West Point, afirma: “Esse método

literalmente transformou o exército”. Por que as correções imediatas no futebol

nos surpreendem?

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CORRIGIR IMEDIATAMENTE

Dortmund, 5 de março de 2016

Pep não protela a correção de erros. Sempre foi uma de suas

características. O Pep dessa última temporada duvida pouco, aprofunda-se

em suas convicções, não admite que se ignore a mínima norma de conduta

estabelecida no vestiário, e é mais rigoroso do que nunca nas correções. Os

últimos instantes do jogo contra o Borussia Dortmund foram repletos de

erros, embora não tenham causado nenhum verdadeiro estorvo ao Bayern

(0 × 0), que praticamente sentenciou o título da liga. Depois de se despedir

de Tuchel com um longo abraço, Pep se dirige ao centro do Signal Iduna

Park e pede explicações a Medhi Benatia, que tinha substituído Xabi Alonso

no último minuto:

— Medhi, você deu as instruções a Kimmich?

— Sim, Pep, falei com ele, mas havia muito barulho.

Então Guardiola pergunta a Kimmich:

— Você ouviu as instruções de Benatia?

— Não, Pep, não as ouvi.

— Caralho, você tinha que se posicionar como meio-campista central!

— Desculpe, não escutei.

— Você tinha de ficar à frente da defesa de quatro e manter a posição,

mas você saiu dessa zona e nós perdemos o controle. Você precisa estar

atento quando lhe dão uma instrução.

— Desculpe, não entendi…

Neste ponto, a correção terminou. Pep abraçou seu jogador, a quem

adora como um filho.

— Você fez um jogo sensacional, Josh. Você é bom, muito bom. Eu

disse que você conseguiria, eu disse!

— Obrigado, Pep. Foi duro, mas acabou bem.

— Não. Bem, não. Foi do cacete. Você é foda, Josh, foda.

Estou muito orgulhoso de você.

Meses mais tarde, mal chamou atenção quando Guardiola se aproximou do

jovem Oleksandr Zinchenko para fazer algumas correções. Aos 25 minutos do

amistoso entre o Borussia Dortmund e o Manchester City, em 28 de julho, em

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Shenzhen, por causa do calor na cidade chinesa, houve uma pausa para que os

jogadores se refrescassem. Zinchenko, de dezenove anos e recém-chegado ao

City, tinha cometido erros em passes longos, erros de precipitação, e Pep fez o

jovem atleta enxergar que ele não deveria se antecipar demais, mas esperar

seus companheiros, juntar-se a eles e não desperdiçar a bola com passes sem

sentido. Foi uma correção imediata, mas o melhor foi a reação do rapaz, que

duas horas depois publicou uma fotografia do momento no Twitter, com este

breve texto: “Aprendendo e trabalhando duro”.

Por último: a “prática deliberada” é infalível? Não. Mas é imprescindível

trabalhá-la a fundo e na direção adequada; ela deve ser exigente, com correções

imediatas e sustentada intensamente para construir hábitos que permitam ao

jogador executar as ações sem a necessidade de pensá-las.

Christian Thielemann se expressa assim ao analisar seu comportamento

como maestro: “Antes de chegar ao palco, tenho uma ideia muito precisa na

cabeça, mas não sei se poderei transmiti-la, porque há outros companheiros [os

músicos]. E sabe o que se deve fazer antes de subir ao púlpito? Uma boa

lavagem cerebral! Para conseguir que a música surja espontânea, deve-se

esquecer de todas as ideias prévias”.

O hábito é o fermento do talento.

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8.2. A IMPORTÂNCIA DA MEMÓRIA NO FUTEBOL

A memória é o único paraíso do

qual não podemos ser expulsos.

JEAN PAUL

O talento não é um dom, mas um processo. O treinador é um artesão do

ensinamento, que cultiva o talento por meio da prática deliberada

(“aprendizagem profunda”), o que estimula a criação de hábitos que permitem

ao jogador atuar sem a necessidade de pensar: somente atuar. Os hábitos são

um dos detonadores do talento; é preciso, igualmente, que apareçam as

interações mais eficientes entre os jogadores. As correções devem ser

imediatas, para beneficiar o progresso da aprendizagem.

Se aquilo que não se treina é esquecido, como deve ser o treinamento para

não se esquecê-lo e, sobretudo, para que ofereça seus melhores frutos?

O fundamento da inteligência humana é a memória. E o talento se baseia no

gerenciamento ideal da memória. Portanto, dentro de seu programa de

ensinamentos, o treinador deve concentrar boa parte do trabalho nos estímulos

à memória do atleta. Porque, quanto mais o jogador lembrar, menos deverá

pensar, além de poder atuar e se inter-relacionar melhor. Surpreende que Pep

tenha dedicado o núcleo principal de seu primeiro treinamento em Manchester

ao início do jogo, à orientação da saída da bola e a como recuperá-la? Não, e isso

não aconteceu por casualidade, nem se trata do capricho de “treinar com a

bola”, ou de modismo. Por que ele fez isso? Não foi por ser obcecado pela tática,

mas por outra razão, que explico a seguir.

É junho de 2015. Pep está retornando da Suíça, onde passou uma semana

de férias. Do carro, com o telefone no viva-voz, ele explica:

— Tenho pensado que, por causa dos jogos a cada três dias, não há tempo

de preparar adequadamente todas as variantes táticas. Os rapazes já dominam a

defesa de três e a de quatro, e podemos passar rapidamente de uma a outra,

mas necessitamos de muito mais: devemos dominar todos os detalhes e não há

forma de conseguir isso se seguirmos treinando dessa maneira, porque não

temos tempo. Pensei muito sobre esse assunto nas férias e já falei com Dome

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[Torrent] e com Loren [Buenaventura]: na próxima temporada, treinaremos em

grupos separados para podermos nos aprofundar nos detalhes táticos. Às dez

da manhã, por exemplo, com defensores e meios-campistas centrais; ainda que

seja só por meia hora, trabalharemos todas as variantes táticas entre eles. E

uma hora depois, faremos o mesmo com os meios-campistas ofensivos e os

atacantes. Dessa forma, eles não treinarão mais em conjunto, mas seremos mais

eficazes.

E assim foi feito. Não tão frequentemente como Guardiola desejava, mas

uma vez por semana. Só que era insuficiente. Em fevereiro de 2016, quando já

tinha anunciado seu compromisso com o Manchester City, passeávamos por

uma rua de Munique e Pep disse:

— No futebol de hoje não há tempo para treinar. Por essa razão, devemos

trabalhar somente a tática. Na pré-temporada, não podemos seguir utilizando

duas semanas correndo ou preparando o físico, porque é precisamente o único

momento do ano em que podemos dedicar certo tempo a treinar de verdade,

aprender, ensaiar, conhecer e corrigir o tático. Conceitos, conceitos e conceitos.

Que eles os aprendam nesse momento da pré-temporada e depois iremos

desenvolvendo e recordando ao longo de todo o ano.

Essa é a razão principal pela qual, em Manchester, Guardiola aumentou o

número de treinadores que compõem sua equipe. Pep tem a seu lado Domènec

Torrent, Brian Kidd, Carles Planchart, Mikel Arteta, Rodolfo Borrell, além de

Lorenzo Buenaventura e seus colaboradores na preparação física e prevenção, e

de Xabi Mancisidor na direção técnica dos goleiros. Por que uma comissão

técnica tão ampla? Porque Pep trabalhará diariamente aspectos táticos em

diversos grupos e delegará outras funções a seus auxiliares. O objetivo é

aumentar o número de horas anuais dedicadas ao aperfeiçoamento tático.

Quando Guardiola pisou pela primeira vez no centro de treinamentos do

City (5 de julho de 2016), qual foi o núcleo do treino? Sim, uma sessão de

conceitos táticos. Desde o primeiro minuto, com o objetivo de transmiti-los e

ensiná-los de maneira profunda e poder recordá-los durante a temporada. Em

outras palavras: no início, ensinamentos por imersão; na sequência, por

recordação insistente (memória). Ao longo do ano, o treinador provocará nos

jogadores (por meio de sessões curtas, específicas e em grupos) a “lembrança”

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dos conceitos aprendidos. E acrescentará a isso tudo o fruto da experimentação

que surgirá durante a competição.

Aí está o valor da memória para uma equipe de futebol. Dizia Ortega y

Gasset: “Para ter boa imaginação, é preciso ter uma memória muito boa”. E

ninguém menos que Björn Borg declarou o seguinte: “O segredo para manter a

frieza sob a máxima pressão é a preparação e a prática até que a memória

muscular funcione sozinha”.

Eis o que Bobby Fischer fazia nos meses antes de conquistar o título

mundial de xadrez contra Boris Spassky, conforme descreve Frank Brady em

sua obra, Endgame: além de muitíssimo treinamento, Fischer adotou um livro

de cabeceira do qual não se separou durante meio ano: era o número 27 de

Weltgeschichte des Schachs (A história do xadrez mundial), onde havia 355

partidas jogadas por Spassky perfeitamente detalhadas, com um diagrama a

cada cinco movimentos. Fischer havia anotado numerosos comentários a

respeito de cada partida: nos movimentos considerados ruins, escrevia um

ponto de interrogação vermelho; nos que considerava bons, um ponto de

exclamação. E memorizou tudo! Memorizou 355 partidas e 14 mil movimentos

de seu adversário. Durante meses, Fischer pedia a qualquer pessoa que

escolhesse uma partida do livro e ele sabia dizer o lugar onde ela foi disputada e

quem tinha sido o rival de Spassky. Depois, o futuro campeão mundial recitava

sem erro todos os movimentos dessa partida. A memória é o ponto de apoio que

permite mover o talento criativo.

Para que um time de futebol possua criatividade elevada, seus

componentes necessitam de boa memória: precisam recordar o que

aprenderam e devem fazer isso “durante” os jogos para somar à sua memória

tudo o que acontece. “O ato de recordar refaz uma lembrança e, na próxima vez

que recordamos, não nos lembramos do acontecido no início, mas da lembrança

reconstruída na última vez que a evocamos”, escreveu Steven Rose.

POR FORA E COM PASSES LONGOS

Munique, 5 de outubro de 2015

Na última temporada de Guardiola, houve um caso muito revelador do

poder da memória do futebolista. O Borussia Dortmund de Thomas Tuchel

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chega invicto à Allianz Arena (onze vitórias em catorze jogos) para um

encontro crucial na liga. O Bayern também está invicto, o que promete um

duelo colossal. Durante a semana, Pep trabalhou diversas variantes a partir

da base de um 3-4-3 que, graças à liberdade concedida a Müller, flutua para

se tornar um 3-3-1-3 ou 3-3-4 no ataque, um 4-4-2 sem bola e um 4-5-1 na

necessidade de defender dentro de sua área.

Conhecida a escalação, vemos que Tuchel escolheu,

surpreendentemente, mudar a posição de metade de seus homens. No

vestiário do Bayern, a decisão é recebida com frieza. O capitão Lahm vai à

sala de Pep e diz:

— Viu a escalação, Pep? Teremos de jogar por fora e com passes

longos.

— É isso, Philipp. Por fora e com passes longos.

— Quer falar com os rapazes?

— Só um pequeno lembrete. Chame Jérôme [Boateng], Xabi [Alonso] e

Thiago.

Minutos mais tarde, os três jogadores e o capitão se reúnem com o

treinador. Nem sequer se sentam no sofá branco do escritório.

— Eles vão sair com um monte de meios-campistas para preencher a

zona central, por isso lembrem do que trabalhamos: temos de evitar a

circulação interior. Xabi e Thiago, bolas por fora. Jérôme, bolas longas. Os

passes por dentro têm de ser rasteiros, verticais e fortes para que não nos

roubem. Lembrem-se do que trabalhamos, nada mais.

A partida rapidamente pende em favor do Bayern, graças a um passe

longo de Boateng para Müller (que fez com que o zagueiro se aproximasse

do banco para apertar a mão de seu treinador). Com a ajuda dos vídeos

preparados por Carles Planchart, Guardiola recorda, no intervalo, o que foi

ensaiado durante a semana:

— Saímos por fora, evitamos o corredor central e só procuramos

Lewy, Müller ou Götze, por dentro, se Jérôme puder passar forte e rasteiro.

Se não puder, buscamos o passe longo e evitamos a pressão deles.

O Bayern vence o duelo por 5 × 1 (Boateng deu outra assistência, com

um passe de cinquenta metros). Quando o jogo termina, Tuchel declara: “O

Bayern nos surpreendeu com as bolas longas”. Os jogadores do Bayern

também dão declarações significativas.

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Xabi Alonso: “Pep nos ensinou diversos caminhos táticos pelos quais

podemos nos mover. Podemos jogar as partidas de várias maneiras, de

acordo com a necessidade”.

Jérôme Boateng: “Durante os jogos, basta um sinal de Pep para fazer

qualquer tipo de modificação na tática do time. Não temos problema. Ele

faz um gesto e nos lembramos perfeitamente do que temos que mudar”.

Qual é o jogador inteligente? Aquele que tem boa memória (parafraseando

o professor Marina). Alguém que tenha absorvido as centenas de instruções ao

longo do treinamento e que seja capaz de recordar o que aprendeu para ativar

as transmissões sinápticas no momento adequado e explorar suas capacidades.

O talento é a arte de investir bem os recursos de nossa inteligência.

Mas sempre há exceções. Certo dia, o jogo ia mal para o Bayern: a memória

e os hábitos não eram suficientes. Foi necessário promover uma revolução

radical, agitar as posições e criar uma reviravolta. Vale a pena lembrar o que

aconteceu, justamente porque, se é necessário ter tudo ensaiado e programado,

também é preciso ter a capacidade de romper com o planejado e deixar o

caminho livre para a improvisação.

O PAPEL DAS OITO MUDANÇAS

Munique, 12 de dezembro de 2015

— Estamos encalhados, Dome. Assim não vamos em frente neste jogo.

— Sim, estamos encalhados. Temos de mudar as coisas.

— Lahm de extremo, essa é uma solução. Mas se adiantarmos Philipp,

teremos de mudar tudo.

— É muito radical. Vai nos obrigar a fazer muitas alterações.

— Prepare-as.

O primeiro tempo do enfrentamento com o Ingolstadt foi

decididamente ruim. O Bayern jogou sem controle, incapaz de superar a

pressão agressiva que os visitantes aplicaram à defesa muniquense. Pelo

segundo jogo seguido, o oponente não esperava atrás, mas fazia um

pressing seletivo contra os defensores e meios-campistas do Bayern, que

não conseguiam iniciar com facilidade o jogo de sua área. De início, Arturo

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Vidal ocupou a posição de meio-campista central, mas só durou vinte

minutos nesse papel, por causa da pouca ordem que se estabelecera no

jogo. A essa altura, Kimmich passou então a jogar na mesma posição e Vidal

assumiu a função de interior esquerdo. Javi Martínez jogava como interior

direito. O Bayern poderia ter marcado no primeiro tempo, com uma

cavadinha de Lewandowski que a defesa salvou, mas também poderia ter

levado um gol. Neuer evitou o pior em algumas ocasiões.

No intervalo, os treinadores conversaram sobre possíveis medidas

para remediar aquele descontrole. De pronto fizeram Thiago substituir

Vidal, mas o Ingolstadt já tinha posto em prática sua segunda ideia de jogo:

agora esperava atrás, bem recuado, com uma defesa formidável que

limitava os efeitos dos bons dribles que Coman conseguia como extremo

direito.

— Se subirmos Lahm como extremo, teremos de fazer oito mudanças

de posição e passar a outro esquema de jogo.

O diagnóstico de Domènec Torrent implicava um terremoto no time,

mas era o que Pep queria.

— Estamos encalhados, Dome. Temos de chacoalhar isso

radicalmente. Vamos fazer já.

Pep decidiu usar um papel com as novas posições desenhadas. Era

melhor do que dar as instruções com sinais, porque seria difícil para os oito

jogadores envolvidos entenderem rápido. No minuto 58, aproveitando um

lateral, Guardiola entregou o papel com as instruções a Lahm. O time

passaria a jogar em 4-2-4, e as oito alterações eram essas:

• Lahm subia para jogar como extremo direito;

• Coman passava a ser extremo esquerdo;

• Rafinha trocava de lado para ser lateral direito;

• Badstuber se convertia em lateral esquerdo;

• Javi Martínez baixava à posição de defensor central pela esquerda;

• Thiago deixava o papel de interior e se unia a Kimmich como meiocampista

central;

• Lewandowski deixava a zona esquerda do ataque e se colocava como

centroavante;

• Müller passava de meio-campista ofensivo a segundo atacante, junto

com Lewandowski.

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Lahm leu as modificações e demorou pouco mais de um minuto para

transmiti-las. Começou por Coman, a quem orientou verbalmente, e seguiu

com Javi, que por sua vez passou o papel para Thiago, Rafinha e Badstuber.

Aproveitando um escanteio contra, Lahm concluiu a comunicação com os

dois atacantes. A reorganização surtiu efeito: ordenou melhor as peças do

Bayern e desconcertou a defesa do Ingolstadt.

Sem alcançar um grande nível, o jogo dos donos da casa melhorou em

fluidez e coerência. Dois extremos abertos e dois atacantes emparelhados

multiplicavam as linhas de passe disponíveis aos meios-campistas centrais

e Boateng. O gol que abriu o placar chegou precisamente desse modo:

Lewandowski se livrou da marcação e Boateng lhe enviou um passe

adocicado no espaço vazio. O polonês driblou o goleiro visitante e marcou

seu décimo quinto gol em dezesseis jogos de liga. Para Boateng, foi seu

terceiro passe para gol no campeonato, o que aumentava cada vez mais sua

importância no time: ele era um excelente defensor central; atualmente, se

converteu num pilar fundamental no jogo do Bayern.

Minutos depois, Coman, Müller e Lewandowski mostraram sua virtude

no manejo dos espaços e permitiram que o capitão Lahm marcasse o

segundo gol da tarde, com a perna esquerda, o que o levou a brincar com os

jornalistas sobre o conteúdo do papel: “Na nota, Pep dizia para eu marcar

um gol com a perna esquerda”, disse, rindo.

O papel foi uma exceção à norma da memória, por isso decidi guardálo

como lembrança de um dia especial.

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8.3. A LINGUAGEM É UMA ARMA PARA CONFUNDIR

Os limites da minha linguagem

são os limites da minha mente.

LUDWIG WITTGENSTEIN

Se a memória é um elemento-chave na explosão do talento de um jogador, a

transferência de conhecimento por parte do treinador é, ao mesmo tempo, um

desafio e uma escolha. É um desafio se focar em transferir seu conhecimento

aos jogadores, que deverão transformar essas instruções em elementos

tangíveis (o jogo e suas consequências: o gol, a vitória). Mas também é uma

escolha, porque o treinador sempre é alguém que está de passagem por um

clube e deve decidir o que fazer com esse conhecimento: pode transmiti-lo em

forma de legado ou levá-lo consigo quando for embora, sem deixar nada para

trás.

O primeiro desses dois vetores nos introduz conceitos intimamente ligados

à linguagem e à comunicação. Estamos diante de um dos grandes desafios

históricos do esporte: a comunicação entre treinador e esportista, entre técnico

e equipe. Há aí uma dificuldade enorme, porque a linguagem confunde. Osho

(Bhagwan Shree Rajneesh) afirmava que o ser humano “inventou a linguagem,

porque não sabia se comunicar”.

Não é preciso pensarmos num grupo onde coabitam diversos idiomas,

como foi o caso do Bayern com Guardiola, porque até em um habitat

monolinguístico as palavras nos confundem. O esporte sofre um agravante: a

comunicação se produz, em geral, em situações de tensão. A competição, a

fadiga, a paixão, as decepções compõem um quadro conflituoso para que a

comunicação flua de maneira harmônica. O treinador lança uma instrução e o

jogador capta uma mensagem distinta da que pretendia o emissor. Não é culpa

de nenhum deles: simplesmente, a ferramenta e os caminhos que utilizamos são

imperfeitos, porque nós também somos. É comum a afirmação de que “a

linguagem do futebol é universal”. Talvez sim, mas neste caso é universalmente

confusa!

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Richard Sennett afirma: “O que podemos dizer em palavras talvez seja mais

limitado do que o que podemos fazer com as coisas. É possível que o trabalho

artesanal [e o futebol é um trabalho artesanal, não esqueçamos] estabeleça um

campo de destreza e de conhecimento que transcende as capacidades verbais

humanas para explicá-lo; descrever com precisão como fazer um nó corrediço é

uma tarefa que põe à prova a capacidade do mais profissional dos escritores”.

A história do esporte está repleta de mensagens e instruções que perderam

sua essência no trajeto que vai do treinador até o esportista. Basta recordar o

que disse Jeff Van Gundy, técnico do Houston Rockets, sobre seu pivô chinês,

Yao Ming: “Só entende a metade do que lhe digo, igual a qualquer jogador

americano ou estrangeiro”. E 50% de compreensão é muito! Com mais ironia

ainda, o treinador Krešimir ćosić se referiu a seu pivô Stojan Vranković: “Eu lhe

disse para ganhar a posição com a bunda e jogar com a cabeça, mas ele deve ter

entendido o contrário…”.

Para o treinador, comunicar seus conhecimentos aos jogadores representa

um grande desafio, porque não é fácil expressar em palavras e imagens tudo o

que deseja transmitir. Guardiola não gosta dos desenhos e das setas sobre um

campo de futebol virtual, porque são figuras estáticas que não refletem a

realidade das dinâmicas e dos movimentos, muito mais difíceis de representar.

Por esse motivo, ele usa tanto o vídeo: “O vídeo serve para mostrar ideias.

Sem ele, treinar seria um cansaço imenso”. Isso ocorre em todos os âmbitos.

Para montar uma estante pré-fabricada, temos de consultar as figuras do

manual de instruções — e mesmo assim, para muitos de nós, acaba sendo uma

tortura. Para fazer um laço do tipo corrediço, precisamos recorrer a um vídeo

tutorial (ou à ajuda de um especialista). O vídeo é imprescindível para o jogo de

Pep, porque se trata de um grande quebra-cabeças em que se entrelaçam

jogadores, ações, posições, permutas, movimentos e decisões em uma

quantidade que as palavras não abrangem.

A linguagem verbal-escrita é um elemento provocador de confusão, que

não nos é útil para alcançar o verdadeiro objetivo da comunicação: “Criar

pensamentos em outra mente: isso é comunicar. Você nunca é visto; o que se vê

é a imagem que se forma nas outras mentes”, define Santiago Sinelnicof,

químico argentino.

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Seirul·lo afirma: “Quando um treinador diz: ‘você tem de pressionar’, o que

isso significa realmente? Porque, dependendo do que for entendido, todos irão à

zona da bola: os que estão mais perto chegarão antes e os que estão mais longe

chegarão mais tarde. Para outros, a pressão será esperar que o jogador esteja na

lateral e, nesse momento, os mais próximos diminuirão a distância. Para outros,

será esperar que a bola cruze a linha dos meios-campistas rivais, porque ali

haverá menos jogadores deles e mais possibilidades de roubar. E assim por

diante. Todas essas possibilidades de compreensão são definidas, mas confusas.

Em geral, tudo o que se faz no futebol é definido, mas confuso. Por quê? Porque

sabemos que pode acontecer isso ou pode acontecer aquilo. E ninguém se

atreve a definir cada coisa com precisão.

“Por essa razão — prossegue o diretor de metodologia do Barcelona — há

uma grande confusão entre técnicos e jogadores. As escolas de treinadores

tentam coordenar a terminologia de cada país. E mencionam uma descrição do

que é um desmarque com quebra de linha, por exemplo. Mas é uma situação

conjuntural de um país, porque outros países denominam de outra maneira.

Não é só um problema de idioma. É de compreensão e definição. Por outro lado,

isso também é uma riqueza cultural. O futebol é muito ancestral, tem muito da

cultura de raiz do lugar em que é praticado. Creio que isso é assim, porque se

joga com os pés. Se fosse com as mãos, não existiriam essas raízes.

“No basquete, a linguagem se origina na nba e todos empregam a mesma

terminologia, mas no futebol isso é totalmente diferente. Nem sequer os

números que definem uma determinada posição sobre o campo coincidem. No

mundo do basquete, todos sabem o que é o ‘1’ e o que existe são alternativas

para o que um ‘1’ é capaz de fazer: que arremesse de fora, que seja capaz de

dobrar o passe ou não etc. Todo o resto é aceito: esse jogador é o ‘1’ típico. Ou o

‘2’. Existe uma nomenclatura universal, porque a nba tem o domínio desse

processo. Mas o futebol nasceu de um modo muito distinto. Nasceu em um povo

que dava chutes na bola e decidiu chamar as coisas por um nome. E sua

expansão multiplicou essa dispersão da linguagem. Pensem que ainda há países

que não têm sequer escola de treinadores. Como vão chamar as coisas pelo

mesmo nome?”

Não é possível precisar qual percentual das ideias e instruções que

Guardiola propõe no campo de treinamento são verdadeiramente

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compreendidas por seus jogadores. É indiscutível que, no princípio de seu

período em Munique, o grau de compreensão foi pequeno e que, durante os três

anos, o Bayern chegou a um nível elevado de entendimento. Esse crescimento

também foi flutuante, porque cada jogador possui uma capacidade diferente de

absorção do conhecimento. A via habitual para aperfeiçoar esse processo

consiste em persistir na comunicação: expressar mais, expressar-se melhor,

complementar a linguagem verbal com a correção detalhada no campo, apoiarse

na imagem, repetir os movimentos e, definitivamente, empregar o método de

ensaio-erro até alcançar um alto grau de compreensão. Essa via tem um

handicap essencial: exige tempo, e o tempo é uma matéria-prima escassa no

futebol. Guardiola crê muito no processo de comunicação com seus jogadores

como elemento transformador e se preocupou em corrigir e aperfeiçoar sua

própria capacidade de se expressar e as ferramentas que utiliza para tanto. Mas

a linguagem verbal-escrita e audiovisual sempre terá enormes limitações. Existe

outro caminho.

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8.4. O FUTEBOL COMO IDIOMA. UMA METALINGUAGEM

O passe conecta, o chutão afasta. Há treinadores que

ensinam o que é básico e mais difícil: relacionar os jogadores.

DIEGO LATORRE

A outra via para incrementar de forma exponencial a transferência de

conhecimento do treinador e a compreensão do jogador consiste na criação de

uma “metalinguagem”. Significa construir um idioma próprio com os conceitos

de futebol que se pretende praticar. Usar o modelo de jogo e tudo o que com ele

se relaciona como uma língua singular que permita a fácil compreensão de

todos aqueles que a falem. Em resumo, transformar o futebol em um “idioma”.

Há alguns anos, empreguei a expressão “idioma Barça” para tentar definir a

metodologia de trabalho de La Masia, a academia onde se formam os jovens

futebolistas do time catalão. O mecanismo de aprendizagem e a própria

singularidade do modelo de jogo que praticam constituem por si mesmos um

idioma, se como tal entendermos uma forma sistêmica de expressão

futebolística. O citado idioma Barça possui um sistema de princípios

elementares que permitem representá-lo. Aqueles que o praticam —

treinadores, coordenadores e jogadores — usam códigos falados e escritos,

vocábulos especiais e números com significado diferente: tudo isso, em

conjunto, compõe uma espécie de abecedário. E a metodologia de aprendizagem

é sua gramática.

Já em 1970, uma figura culturalmente gigantesca como Pier Paolo Pasolini

concebia o futebol como um idioma e traçava seu primeiro esboço: “Eu não vejo

uma oposição entre linguagem literária e linguagem esportiva, porque a

linguagem esportiva é um subcódigo do código literário. Mas a linguagem

esportiva não é a linguagem dos jornalistas esportivos. A verdadeira linguagem

do esporte é a linguagem atlética, física, muscular, técnica, estilística dos

mesmos jogadores”.

Pasolini não está pensando na linguagem utilizada pelos homens que falam

do futebol, mas sim que o futebol é um idioma por si mesmo. Em 1971, ele se

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aprofundou: “O jogo de futebol é um ‘sistema de signos’, quer dizer, uma língua,

ainda que não seja verbal. Tem todas as características fundamentais da

linguagem por excelência, essa linguagem que usamos como segundo termo de

comparação, isto é, a linguagem escrita-falada. Outros sistemas de signos não

verbais são o da pintura, do cinema ou da moda”.

O cineasta e poeta argumenta: “Qual é a unidade mínima da língua do

futebol? Pois é essa: ‘Um homem que utiliza os pés para chutar uma bola’. Essa é

a unidade mínima, um podema [neologismo inventado por Pasolini, equiparável

ao fonema da linguagem verbal]. Os ‘podemas’ são 22 [22 jogadores]; as

‘palavras futebolísticas’ são potencialmente infinitas, porque são infinitas as

possibilidades de combinação dos ‘podemas’ (na prática, os passes entre

jogador e jogador): a sintaxe se expressa na ‘partida’, que é verdadeiramente

um discurso dramático. Quem não conhece o código do futebol não entende o

‘significado’ de suas palavras (os passes) nem o sentido de seu discurso (um

conjunto de passes) […]. Pode haver um futebol como linguagem proseadora e

um futebol como linguagem fundamentalmente poética. Assim, por razões

propriamente culturais e históricas, o futebol de alguns povos é em prosa, prosa

realista ou prosa estetizante (essa última é o caso da Itália), enquanto o futebol

de outros povos é em poesia”.

Amarro esse pensamento com o de Seirul·lo, cujas ferramentas não são a

poesia nem o cinema, mas o estudo da metodologia e da complexidade. E o fato

é que ele expressa uma ideia parecida com a de Pasolini: “As interações entre os

jogadores são o passe, a trajetória, o espaço, as superioridades. Há elementos de

observação do jogo que lhe permitem ver que uma ideia ainda não está na

dimensão desejada. Mas, claro, é preciso conhecer os elementos que constituem

o jogo e tudo isso não pode ser apreciado por aqueles que só se fixam em uma

jogada e não no passe. Cada passe é uma mensagem. Há quem dê passes

neutros: ‘Toma, faça o que puder’. Mas outros lhe dizem: ‘Toma, faça o que

quiser’. Ou: ‘Toma, pode desfrutar’. São passes intencionados. E nesse máximo

nível de expressividade e intencionalidade, só vi Iniesta”.

Prossegue Seirul·lo: “Iniesta passa a bola como um pai que joga tênis pela

primeira vez com seu filho pequeno e manda a bolinha no lugar exato e com a

força adequada para que ele possa devolvê-la, porque a ideia é que o menino

toque fácil a bolinha com a raquete e se divirta. Bem, Iniesta faz o mesmo, mas

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jogando na elite e ao lado dos atletas da máxima elite. Com seus passes, Andrés

diz: ‘Toma, faça o que quiser e pode desfrutar’, enquanto a maioria no futebol

diz: ‘Toma, faça o que puder’. Com o passe, ele está dizendo ao companheiro por

onde deve prosseguir a conversação, ou seja, o jogo”.

Pasolini e Seirul·lo nos dão indícios de sobra de que o futebol pode se

constituir num idioma em si mesmo, uma “metalinguagem”, em que: o passe é

uma maneira de se comunicar; o modelo de jogo é a gramática a ser dominada;

e os códigos, vocábulos e números formam o abecedário. Nos anos 1990, o

Barcelona construiu uma metalinguagem própria (o idioma Barça) e o

desenvolveu graças ao impulso de um gênio como Johan Cruyff — que, por sua

vez, aprendeu no Ajax de Amsterdã, onde gente como Reynolds, Humenberger,

Michels e Van der Veen criaram um “idioma”— e ao trabalho artesanal e

paciente de dezenas de treinadores que se converteram em professores dessa

linguagem, com os resultados conhecidos.

Guardiola é precisamente um filho desse idioma. Quando treinou o Barça,

conseguiu que sua equipe alcançasse a excelência na expressão dessa

metalinguagem, e agora tem pela frente uma oportunidade gigantesca no

Manchester City, além do próprio desafio de competir e tratar de ganhar.

Guardiola deverá escolher entre aperfeiçoar a comunicação com seus novos

jogadores no modo clássico, ou dar um passo muito mais ambicioso e

estabelecer as bases para construir um “idioma City”, embora essa seja uma

missão que exige bastante tempo, muitos recursos e uma colossal energia

coletiva. Em troca, também pode deixar um legado que irá muito além das

vitórias e das emoções.

Pep tem consciência da oportunidade que se abre diante dele. O

Manchester City reúne as condições objetivas para que se produza o intento de

construir um “idioma” próprio: a academia, os jovens, o amplo quadro de

professores, a vontade institucional… Todos os ingredientes essenciais estão

presentes e dispostos em Manchester. É preciso uni-los e trabalhá-los com a

paciência de um artesão.

Essa ideologia futebolística ampliada e estruturada (cujos primeiros

esboços se viram na Argentina e na Hungria) nasceu na Holanda, cresceu em

Barcelona, se potencializou na Alemanha e pode alcançar um novo marco na

Inglaterra. O personagem (Guardiola) possui o carisma, a energia e a paixão

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suficientes para encaminhar a elaboração dessa metalinguagem. Terá Pep a

vontade e a capacidade de fazê-lo? Terá tempo para plantar as sementes de um

“idioma” completo e compreensível para as sucessivas gerações de jogadores

citizen? Terá a clarividência, a convicção e o apoio para — parafraseando James

Kerr — “plantar as árvores que nunca verá crescer”?

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8.5. TRANSFERIR O CONHECIMENTO

Se aprendi tanto é porque passei a vida observando.

ALESSANDRO DEL PIERO

E stabelecemos que a linguagem que se emprega no futebol é uma ferramenta

imprescindível para que o treinador transfira seu conhecimento para a equipe.

E também definimos o que consideramos “metalinguagem” ou “o futebol como

idioma”. Agora, entramos na segunda parte: a escolha que o treinador faz

quando deixa um clube. Ele deposita seu conhecimento ou não? (Vamos nos

concentrar em Guardiola, claro.)

Escreve o grande arquiteto romano Marcos Vitrúvio, autor do cânone das

proporções do corpo humano: “As diversas artes se compõem de duas coisas:

artesanato e teoria. O artesanato pertence [unicamente] aos que estão

treinados… no trabalho; a teoria se compartilha com todas as pessoas

instruídas”.

Como estamos detalhando o Guardiola treinador-artesão, tratarei agora da

“teoria” e de como Pep a compartilha. Em 2012, ele se despediu do Barcelona

deixando em marcha um projeto muito ambicioso, que consistia em

documentar ao máximo a metodologia do jogo de posição. Desde então, seguiu

colaborando com o clube catalão. Guardiola fez isso de maneira totalmente

discreta, sem que quase ninguém soubesse e, ainda que seja provável que ele

não goste dessa revelação, entendo que o torcedor do Barcelona se interesse em

saber: Guardiola continuou proporcionando dados, ideias e documentação aos

gestores do projeto metodológico do Barça.

E quando foi embora do Bayern, o que ele fez? Deixou no clube alemão toda

a documentação dos exercícios e jogos de posição desenvolvidos em Munique

desde 2013, com explicações detalhadas das tarefas a realizar, algo que os

torcedores do clube campeão da Alemanha também devem saber. O depositário

foi Hermann Gerland, treinador assistente no período de Guardiola, que é o fio

condutor de todo o trabalho no Bayern, de forma invariável, desde os anos

1990.

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Desconheço o emprego efetivo que, no futuro, Barcelona e Bayern farão

dessa teoria documentada que Guardiola transmitiu aos dois clubes, e que, por

si mesma, representa um legado de cultura tática de primeira ordem, mas o fato

em si nos revela um treinador que não teme transferir o que conhece.

Recordemos sua íntima relação com Thomas Tuchel: era o grande rival na

Alemanha, mas Pep não hesitou em lhe explicar com profundidade os detalhes

do jogo de posição. Ele fez o mesmo com inúmeros treinadores, de níveis muito

diferentes, que foram a Säbener Straße: Sampaoli, Zidane, Dorival Júnior,

Sanvicente, Gattuso, Patricia González… Uma lista que supera os cinquenta

nomes.

Pep não viu problemas em abrir todo o seu catálogo tático no Guardiola

confidencial. Algumas vezes pensei se o que ele explicou tão livremente não foi

excessivo, já que qualquer concorrente pôde ter acesso a todo o seu

pensamento — e o habitual é não revelar as próprias ideias, como se comprova

frequentemente em entrevistas coletivas. Mas isso parece não importar a Pep,

que se sente confortável falando de conceitos táticos. Em algumas ocasiões, ele

se estende por longos minutos em entrevistas, detalhando aspectos que

poderiam dar pistas aos rivais. Esse fato define o caráter de Guardiola com

perfeição: ele “sente” que deve transmitir sua ideologia, sem medo de que

outros o copiem, imitem ou conheçam seus pontos fracos. Ao contrário: tem

consciência de que, no final, seu próprio progresso vai depender em grande

parte da pressão recebida dos técnicos rivais. E quanto mais alto for o nível,

melhor para todos e para o futebol (“Os grandes treinadores, como Mourinho,

me fizeram melhor”, disse em seu primeiro contato com a imprensa de

Manchester). Para que um treinador está no mundo do futebol? Apenas para

ganhar ou para tentar contribuir para que o próprio esporte melhore e evolua?

A resposta está diretamente relacionada à ideologia de cada um, mas, no caso

de Guardiola, sua escolha é evidente.

Existe, de qualquer modo, um componente de agradecimento e retribuição

por tudo o que ele recebeu. Quando dava seus primeiros passos como treinador

novato, e até quando ainda era jogador, mas já se interessava pela ideia de

dirigir times, Pep foi recebido por treinadores importantes (Bielsa, Menotti,

sempre por Cruyff e Lillo, Julio Velasco, Sacchi, Mazzone…) e todos lhe

transmitiram conselhos e conhecimento. Ele aprendeu que devia se comportar

do mesmo modo e, apesar da dificuldade de competir a cada três dias, Pep tenta

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atender o técnico jovem que eventualmente se interessa por sua metodologia. E

assume como prioridade transferi-la a certos jogadores que mostram

características de futuros treinadores. Foi assim em Barcelona — com homens

como Xavi, Busquets, Milito, Mascherano e Iniesta — e no Bayern, de maneira

exaustiva, com alguns possíveis candidatos a técnicos no futuro: Xabi Alonso,

Badstuber, Javi Martínez, Rafinha ou Neuer (Lahm, ao que parece, não quer ser

treinador). O goleiro, certamente, é um desses jogadores que compreendem o

jogo com enorme lucidez e é uma esponja que absorve conhecimentos. Em

Munique, Pep não economizou nesse tipo de conversas técnicas com todos eles,

especialmente com Neuer e Alonso: “Se posso ajudar um jogador a ser treinador

no futuro e contribuir com algo, me sinto feliz. Johan e outros fizeram isso

comigo e minha obrigação é fazer o mesmo com os jogadores”.

O sociólogo Richard Sennett menciona que Robert K. Merton “tratou de

explicar a transferência de conhecimentos na ciência apelando à sua famosa

imagem: ‘Nos ombros de gigantes’. Com isso, queria dizer duas coisas: em

primeiro lugar, que a obra dos grandes cientistas estabelece os termos de

referência, as órbitas nas quais giram os cientistas de níveis inferiores; e em

segundo lugar, que o conhecimento é aditivo e acumulativo: se constrói ao

longo do tempo, à medida que seres humanos se montam sobre ombros de

gigantes, como as colunas humanas do circo”. É uma descrição perfeitamente

aplicável a essa transferência de conhecimento entre treinadores.

Não obstante, tal transferência sempre tem como obstáculo as dificuldades

na comunicação mencionadas no capítulo anterior: “Grande parte dos

conhecimentos dos artesãos”, diz Sennett, “é conhecimento tácito, o que quer

dizer que as pessoas sabem como fazer uma coisa, mas não podem verbalizar o

que sabem”.

Houve muitos casos em que artesãos geniais não souberam transferir seu

conhecimento. Sennett menciona especialmente Stradivari (em outros textos,

também Cellini) e descreve as razões desse insucesso: “A dificuldade da

transferência de conhecimento propõe uma indagação sobre o porquê de ser

tão difícil, o porquê de o saber se transformar em um segredo pessoal […]. Na

fabricação de instrumentos musicais, os segredos de mestres como Antonio

Stradivari ou Guarneri del Gesù morreram com eles […]. O fato mais importante

que conhecemos sobre o ateliê de Stradivari é a apaixonada dedicação de seu

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mestre, que ia inesperadamente de um lugar a outro, reunindo e processando

os milhares de pequenos fragmentos de informação, que podiam não ter o

mesmo significado para os que só se ocupavam de uma parte do processo. O

mesmo ocorre nos laboratórios científicos dirigidos por gênios com suas

manias: a cabeça do diretor ou diretora é preenchida por uma informação cujo

sentido só ele ou ela podem captar […]. Para expressar essa observação em

linguagem abstrata: em um ateliê dominado pela individualidade e pela

originalidade do mestre, é provável que também domine o conhecimento tácito.

Após a morte do mestre, é seguramente impossível reconstruir todas as pistas,

movimentos e conhecimentos intuitivos reunidos na totalidade de sua obra; não

há maneira de tornar explícito o que é tácito”.

O conhecimento do futebol é tácito? Provavelmente sim, e essa é a razão

que levou técnicos como Juanma Lillo a documentar, “intelectualizar” e

descrever em detalhes a teoria do modelo de jogo de posição (e também a

evolução ao jogo de localização); e é o que motiva Guardiola a não reservar seu

conhecimento como se fosse um segredo militar. Esclareço essa afirmação para

evitar confusões: no dia a dia (táticas, escalações, estratégias planificadas),

Guardiola fecha as portas do treinamento, porque se trata de ferramentas

competitivas de uso imediato e conjuntural para a competição. O que ele abre é

a difusão controlada do conhecimento metodológico e a teoria do modelo de

jogo, ou seja, da ideologia futebolística.

Ressalto, enfim — e que isso sirva como semente de um projeto futuro —,

que o futebol são ideias e que essas ideias viajam pelo mundo com os

treinadores.

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8.6. O GESTO INTUITIVO

Pensar é o maior erro que um dançarino pode

cometer. Não se deve pensar, é preciso sentir.

MICHAEL JACKSON

E m 2007, Leo Messi fez uma jogada maradoniana, driblando vários rivais, que

terminou em um gol contra o Getafe. O jornalista Lu Martín lhe perguntou: “Sua

maneira de jogar é treinada ou simplesmente sai de dentro de você?”. Messi

respondeu: “Jogo como sei jogar, não pratico dribles, não ensaio nada”.

Andrés Iniesta marcou, em Stamford Bridge, o gol que levou o Barça de

Guardiola à final da Champions League de 2009. No livro La jugada de mi vida,

Marcos López e Ramon Besa lhe perguntaram sobre aquele gol; Iniesta

explicou: “Dentro de um jogo, minha cabeça vai muito rápido, não penso em

muitas coisas que faço”. E acrescentou: “Quanto mais penso nas coisas, pior elas

acabam saindo”.

Depois de marcar cinco gols no Wolfsburg em menos de nove minutos,

Robert Lewandowski teve de dar uma explicação para tal fenômeno, mas só

conseguiu dizer: “Foi uma loucura. Eu só queria chutar e chutar e não pensar no

que estava acontecendo…”.

Estamos, pois, diante do valor indescritível do gesto intuitivo, um gesto que

podemos relacionar com o estado de flow em grandes atuações esportivas ou

com a “síndrome de Stendhal”, se nos referirmos à contemplação artística. Em

todos os casos, Messi, Iniesta, Lewandowski e outros mil exemplos (o salto de

Beamon nos Jogos Olímpicos no México, em 1968, é o paradigma desse

fenômeno), a coincidência é unânime: “Não sei como aconteceu, não pensei em

nada, simplesmente ocorreu”. É o milagre do gesto esportivo sublime. Do gesto

surgido da intuição. Dizia Daisetsu Teitaro Suzuki, grande mestre zen: “O

funcionamento do inconsciente adestrado é, em muitos casos, simplesmente

milagroso”. O oitavo campeão do mundo de xadrez, o letão Mikhail Tal,

explicava: “Em minhas partidas, às vezes encontrei uma combinação intuitiva

de movimentos simplesmente porque sentia que ela deveria estar ali.

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Entretanto, não era capaz de traduzir meus processos de pensamento em uma

linguagem humana normal”.

Destaquemos que é preciso ser “inconsciente” e, portanto, o gesto deve

surgir “sem pensar”, e “adestrado”, ou seja, fruto do hábito e do treinamento. O

gesto intuitivo e milagroso do esportista não é filho do talento (Darwin: “Os

dotes físicos são um ponto de partida, não um fim”), mas do processo: nasce da

“prática deliberada” (treinar muito e na direção certa) e da liberação do

pensamento (não pensar durante a execução).

Regressemos a Seirul·lo: “Iniesta explicou mil vezes. Antes que alguém

perguntasse, ele explicou como fez aquele gol: ‘Vi que a bola chegava, vi o gol

etc. E tinha de chutar’. Depois, quando Andrés viu a jogada pela televisão, ele

descobriu que foi um chute de primeira, com que parte do pé havia chutado,

como jogou intuitivamente o corpo para trás ganhando espaço para o arremate

e todos os outros detalhes. Mas para ele não existiu nenhum pensamento sobre

o movimento que deveria realizar. Foi ideia e execução. A ideia foi: ‘Tenho de

marcar o gol’. E ele executou. Só muito mais tarde descobriu como tinha feito.

Não se pensa: executa-se uma ideia. Ele imaginou que, quando a bola deu o

segundo quique baixo, se perfilaria de determinado modo para que ele pudesse

chutá-la? Nada disso. Teve a intenção de marcar, a bola chegou e ele executou”.

Após falar de Iniesta, Seirul·lo descreve outro futebolista que conhece em

detalhes, Leo Messi: “Os teóricos das tomadas de decisão mencionam três fases:

a percepção, a decisão e a execução. Quando devem tomar decisões de alta

complexidade, fazem isso. Primeiro, perceber o entorno, observá-lo, analisá-lo;

tomar a decisão depois e executá-la. Mas, no futebol, só acontece uma situação:

uma ideia que deve se transformar em execução. Há uma única fase, não são

três (penso, decido, executo). Não. No futebol, há apenas uma: executar a ideia.

Quero superar você? Executo a ideia. Não penso em como vou superá-lo. Falei

muitas vezes com Messi sobre isso. E ele, quando quer passar por um rival, não

pensa se vai pela direita ou pela esquerda, não. Para ele, a ideia é passar pelo

rival. O que é, para Messi, passar pelo rival? É deixá-lo cravado e levar a bola

para outro lugar. Essa é a ideia de Messi. Sua ideia não é ir pela esquerda, com

um drible, com dois toques etc. Não, é passar por ele, deixá-lo cravado. E ponto.

Ele não pensa em como fará, só executa a ideia. Não pensa, não planeja.

Executa”.

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Por essa mesma razão, o futebolista inventa e o treinador inova (reutiliza

recursos em novas situações). É essencial que o treinador consiga criar um

clima de trabalho e adestramento dirigido aos objetivos coletivos e que, por sua

vez, facilite a criatividade individual: “Algo que aprendi como treinador”, diz

Phil Jackson, “é que você não pode impor sua vontade aos demais. Se você quer

que eles se comportem de outra maneira, deve servir de fonte de inspiração

para que mudem por conta própria. A maioria dos jogadores está acostumada a

permitir que o treinador pense por eles. Quando encontram um problema na

quadra, olham nervosamente para o banco com a esperança de que o treinador

lhes dê a solução. Grande parte dos técnicos adora isso, mas não é meu caso.

Sempre me preocupei em ajudar os jogadores a pensarem por si mesmos, para

que sejam capazes de tomar decisões difíceis no calor da batalha.”

Um exemplo de esportista que pensava por si mesmo é o jogador de

handebol Veselin Vujović, campeão olímpico e mundial com a Iugoslávia. Paco

Seirul·lo foi seu preparador físico em Barcelona, no final dos anos 1980 e início

dos 1990: “Vujović explicava sua maneira de atuar nos jogos: ‘Durante os

primeiros cinco, seis, sete minutos da partida, estou observando como funciona

meu entorno próximo. Faço uma finta de braço e vejo que o rival se aproxima de

mim. E sigo jogando. Na sequência, faço um movimento para chutar rápido e

avalio como o rival reage. Depois, dou um ciclo de passos no ataque e vejo se o

árbitro permite a ação ou não. E avalio mentalmente tudo o que aconteceu

nesses seis ou sete minutos e, assim que processo tudo, escolho o caminho para

seguir em cada um dos minutos seguintes, já sem nenhum erro. E então faço um

gol atrás do outro’. O.k., de acordo, o handebol se joga com as mãos. Passemos

ao futebol. Xavi ou Iniesta fazem algo parecido. Investigam, observam, analisam

e executam”.

O escritor e filósofo português Manuel Sérgio Vieira escreve em seu

magnífico Filosofia do futebol: “Um pensamento tático, seja qual for, necessita de

um jogador excepcional que verdadeiramente o interprete. Porque ninguém o

interpreta melhor do que ele. Talvez porque seja jogador e… artista! Uma coisa

é o sábio que domina a ciência criada; outra, o artista que a recria e reproduz.

Uma coisa é a razão que sabe distinguir; outra, o coração que sabe intuir e unir.

Por isso, o coração tem razões que a razão desconhece”.

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O jogador investiga, mas sobretudo intui. Seu instinto é imprescindível,

ainda que felizmente o futebol não se reduza ao gesto intuitivo, por mais

transcendental que possa ser.

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BASTIDORES

MÜLLER É O SÍMBOLO

Gelsenkirchen, 21 de novembro de 2015

Domènec Torrent é categórico:

— Müller simboliza o aprendizado do time. Todos interiorizaram o

conhecimento que Pep queria transmitir, e Thomas é o símbolo desse

processo.

Se um jogador esteve especialmente longe do núcleo ideológico que

Guardiola tentou implantar no Bayern durante esses anos, foi Thomas

Müller. Não por desinteresse, mas por características. Pensando em

qualquer outro poderíamos estabelecer um vínculo especial com Pep,

um traço que permitisse, após um processo formativo, alcançar a

categoria de símbolo, de paradigma do que o treinador buscava. Mas não

com Müller.

Neuer poderia ser o símbolo de Pep, por sua eficiência máxima. E

Lahm, sem dúvida, pela inteligência superlativa que manifesta nos

terrenos de jogo. Ou Xabi ou Thiago, pelas qualidades como meioscampistas,

um como distribuidor, o outro como criativo. Talvez Rafinha

ou Badstuber, pelo espírito de superação, ou Coman e Rode, pelo aspecto

humano. Sem dúvida, Alaba, pela imensa versatilidade. Ou Javi Martínez,

pela agressividade com que defende, sem falar de Boateng e o grande

salto qualitativo que protagonizou. Outros símbolos poderiam ser os

extremos dribladores, Robben e Douglas Costa, pelo fundamento

essencial do jogo que o treinador propõe. Ou Lewandowski, pela

capacidade de se adaptar a um contexto radicalmente oposto àquele de

onde veio.

Thomas Müller era a antítese do protótipo de futebolista ortodoxo.

Müller não se destaca por sua qualidade técnica, muito pelo contrário:

foi o jogador do Bayern que mais perdeu bolas nestes dois anos e meio

(30% das que recebeu). Não é o mais rápido do time nem dribla com

muito acerto; sua finalização de cabeça não chama atenção e seu disparo

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com qualquer das duas pernas pode ser melhorado. Ele gosta de

pressionar a defesa rival, mas frequentemente o faz olhando para os

próprios companheiros, com o que perde de vista seu objetivo

prioritário. Quando Pep tentou reconvertê-lo em meio-campista interior,

comprovou-se que Müller não poderia assumir esse papel.

E, entretanto…

Entretanto, Müller é um futebolista maravilhoso. E não só por seu

virtuosismo para conseguir gols de todas as maneiras possíveis, quase

sempre de modo inesperado, arrematando com uma parte do corpo

inesperada, a ponto de essa tipologia especial de gol adquirir a categoria

de adjetivo: na Alemanha, batizaram-na de “gol müllered”. Além dos gols,

é um jogador incrível por sua energia inesgotável, pelo compromisso

permanente com as necessidades do time, por seu otimismo contagiante,

pela ambição sem limites para ganhar e seguir ganhando apesar de

qualquer dificuldade. E ele possui uma virtude sem igual: é Die

Raumdeuter, o investigador dos espaços, o jogador que aparece no lugar

adequado. O apelido nasceu durante a Copa do Mundo de 2014, em um

grupo de aficionados do Football Manager, que apontou que a melhor

característica de Müller era a interpretação dos espaços e sua ocupação

na forma e no momento oportunos.

É assim. Antes que Guardiola chegasse ao Bayern, Müller já era um

jogador formidável, formado nas categorias de base por Hermann

Gerland, promovido por Louis van Gaal e comprovado como atacante

heterodoxo por Jupp Heynckes. O valor que Pep vislumbrou nele se

observa de imediato: Müller participou de 151 dos 161 jogos — ou, dito

de outro modo, só se ausentou em dez partidas durante três anos… Foi o

jogador de campo que Pep mais utilizou, com muita diferença em relação

aos demais.

Müller e Pep precisaram de dois longos anos para se sincronizar. O

treinador esperava dele determinados rendimentos em funções

específicas, como interior, extremo ou centroavante, que Müller não

conseguia produzir, ainda que tivesse realizado ótimas atuações como a

de Manchester, em outubro de 2013, jogando de falso 9, ou como a de

Roma, um ano mais tarde, no papel de atacante pela esquerda, e em

inúmeras aparições estelares — mas sem a continuidade desejada. O

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jogador sofria para se adaptar às exigências do jogo de posição que Pep

propunha. Onde Lahm, Neuer, Boateng ou Robben alcançavam seus

melhores desempenhos, Müller se sentia sufocado.

Até que, na terceira temporada, chegou a solução. Pep encontrou o

ambiente perfeito para Müller e o jogador bávaro multiplicou seu

rendimento e sua felicidade, o que resultou em abundantes declarações

elogiosas ao treinador, destacando a adaptação geral, o trabalho intenso

e a boa coordenação de movimentos de todo o time.

A posição idônea para Müller foi a de segundo atacante, às costas de

Lewandowski. Não era uma questão de localização, mas de inter-relação

com outros jogadores. Quando a equipe podia dispor de dois extremos

puros jogando com a perna natural, como Douglas Costa e Coman, muito

abertos pelos lados e com total disposição para cruzar bolas na área, a

tarefa de Müller se facilitava de forma extraordinária. Boateng ou Xabi

lhe passavam a bola, ele dava sequência enviando-a a um dos lados e

corria para a área ao mesmo tempo que Lewandowski, com quem

formava uma dupla tão eficaz quanto bem ajustada. Pep insistia nessa

sequência do jogo:

— Não é que gosto somente dos extremos muito abertos: eles são

imprescindíveis! E gosto mais quando jogam com a perna natural do que

com a perna trocada, ainda que os tenha utilizado quase sempre assim.

Mas pense em Gento, um dos melhores extremos da história [Paco

Gento, extremo do Real Madrid, ganhou seis Copas da Europa entre 1956

e 1966]; Gento jogava com a perna natural, mandava a bola longe e

corria até a linha de fundo para cruzar. Gosto muito dos extremos que

usam a perna natural, porque quando Costa ou Coman chegam ao final e

cruzam, Lewy e Müller vão para a bola como feras.

Para que essa conexão entre os quatro atacantes (os dois extremos,

mais Lewandowski e Müller, um como 9, outro como falso 9 ou meiocampista

ofensivo) acontecesse, a equipe se via obrigada a eliminar um

jogador das linhas de trás, um meio-campista ou um defensor, mas esse

era um âmbito tático em que Pep se movia sem dificuldades. O que lhe

interessava era que Müller seguisse encontrando o ambiente de jogo

mais benéfico para explorar sua investigação dos espaços. No outono,

Müller mostrava um ótimo rendimento, e Guardiola se divertia com os

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pequenos truques que o jogador pratica durante as partidas. Por

exemplo, nas cobranças de falta, nas quais ele costuma se intrometer,

dando a entender que vai interferir de certo modo ou simulando uma

queda ou um tropeço, como fizera no Mundial de 2014. Ou algo ainda

mais brincalhão: cada vez que participava do pontapé inicial de um jogo,

mantinha a bola imóvel após o apito do árbitro, fazendo os jogadores

rivais cruzarem o centro do campo antes do tempo. Então, Müller

protestava com o árbitro e exigia que os adversários voltassem à sua

metade do campo, momento em que aproveitava para passar a bola a um

companheiro e começar o jogo. Sempre surpreendia os rivais e Pep

morria de rir com esse truque. E Müller fazia isso em quase todos os

jogos.

Outro fator contribuiu para a adaptação de Müller ao novo modelo

de jogo: a liderança que foi adquirindo. Nos últimos anos, o vestiário do

Bayern teve dois líderes indiscutíveis: Lahm, o capitão, é o comandante

silencioso que dirige o rumo emocional da equipe com seu

comportamento, mais do que com palavras; e Schweinsteiger exercia

uma liderança mais expressiva, com uma linguagem corporal forte e

categórica. Hoje as coisas mudaram. Toni Kroos deixou o clube e, ainda

que Xabi e Thiago, líderes em jogo, possuam grande personalidade, são

conscientes de que liderar o Bayern é uma tarefa que corresponde aos

alemães e respeitam esse código acima de qualquer outra realidade.

Então apareceu Thomas Müller para ocupar o posto. Lahm continua

sendo o líder principal, discreto e calado, que dirige o vestiário sem

necessidade de abrir a boca. Müller é o vulcão que o complementa. É

quem brinca e ri, quem anima e grita, quem resmunga e se esforça para

que tudo siga pelo bom caminho.

Passados alguns dias, Müller iria brincar com o próprio Lahm por

causa de uma decisão de Guardiola. Em 9 de novembro, o Bayern jogou

um amistoso em Ratisbona contra o Paulaner Team, um time composto

de jogadores amadores reunidos por um casting feito ao redor do

mundo. É uma ocasião para satisfazer objetivos de um dos

patrocinadores do clube, na qual Neuer e Müller jogam por um quarto de

hora antes de se apresentarem à seleção alemã, e Pep dá minutos de jogo

a Badstuber, Kirchhoff e vários jovens jogadores. E também para que

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Philipp Lahm atue como falso 9. É uma chance formidável para o capitão,

que com Guardiola jogou em três das quatro posições da defesa, nas três

do centro do campo e também como extremo direito. Faltava (além de

jogar no gol) aparecer como centroavante, e agora ele tem sua

oportunidade: faz um gol em oito finalizações, em 45 minutos. Lahm

possivelmente nunca se divertiu tanto jogando futebol como nesta

partida, na posição de falso 9. E Müller aproveita para incorporar o

assunto a seu catálogo de brincadeiras.

Domènec Torrent dizia que Müller tinha se convertido no ícone de

Guardiola e é hora de saber o que o próprio Pep pensa a respeito:

— Müller simboliza totalmente o jogo que queremos e o interpreta

fabulosamente. É uma das coisas que me dão mais satisfação: conseguir

que seja um pouco melhor do que já era. E ele era muito bom!

Guardiola e Torrent concentram a conversa no jogador:

— Cada dia gosto mais de Müller — diz Torrent.

— Ele me ganhou para sempre — responde Pep.

— Lembre-se de que quando ficamos com dez [Badstuber foi

expulso no minuto 52 do jogo contra o Schalke 04], tivemos um

escanteio contra, e Benatia ainda não podia entrar. Foi Thomas quem

montou toda a organização defensiva. Com quatro gestos, organizou

tudo — acrescenta o auxiliar.

É o momento de perguntar se a saída de Bastian Schwein-steiger

obrigou Müller a assumir uma liderança maior:

— Não tinha pensado nisso — responde Guardiola. — Mas pode ser

um fator a mais. Basti tem grande personalidade e é provável que, sem a

presença dele, Müller tenha sentido que era o momento de dar um passo

à frente. O indubitável é que agora ele é um dos grandes líderes da

equipe.

Não há quem detenha Pep ao falar sobre Müller:

— Veja como ele comemora os gols: sempre, sempre apontando

para quem lhe deu o passe e indo abraçá-lo. Nunca comemora sozinho.

Sempre com os companheiros e especialmente com quem lhe deu a

assistência. E é muito preparado: de vez em quando, deixa um

companheiro bater um pênalti. Ou veja o que fez esta noite: quando

marcou o 3 × 0, em vez de comemorar sozinho, tirou o chapéu e deu a

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mão a Robben para agradecê-lo pelo passe. Essa imagem, Dome. Vamos

utilizar essa imagem em alguma palestra porque é um símbolo

grandioso do que é a humildade, o agradecimento e a liderança no

futebol.

A imagem teve um significado especial porque, em jogos recentes,

Robben mostrara um grande individualismo que impediu alguns

companheiros de marcar gols fáceis. Lewan-dowski se irritou de

maneira ostensiva, e o gesto de Müller parece dizer duas coisas ao

mesmo tempo: obrigado pela assistência e… esse é o caminho que

queremos dentro do time, o do passe e da ajuda mútua.

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CAPÍTULO 9

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SE TENHO QUE PERDER, QUERO ESCOLHER COMO

Não morra como um polvo:

morra como um tubarão.

PROVÉRBIO MAORI

Quando o jogo termina, Guardiola festeja o triunfo com a equipe; passado

pouco tempo, a vitória se transforma em um assunto a ser examinado e não

celebrado. Ela passa a ser um corpo inerte que deve sofrer a necessária

autópsia. E, neste ponto, Pep costuma encontrar defeitos e erros que poderiam

ser evitados. É possível que ele tenha sido educado tão radicalmente pela ideia

de que o triunfo pode ser um impostor (uma ideia de Bielsa) que não há vitória

que não termine com Guardiola resmungando por alguma chance perdida ou

erros que devem ser corrigidos.

Na derrota, ele é mais magnânimo com sua equipe, embora não aja assim

consigo mesmo. Já dissemos que, em oito temporadas como treinador, Pep

sofreu apenas 45 derrotas. Algumas foram produtos de erros dele, outras de

erros de seus jogadores, algumas até do azar e várias foram totalmente

irrelevantes. Duas delas tiveram grande semelhança e aconteceram no mesmo

nível de competição: as semifinais da Champions League de 2012, quando o

Barça foi eliminado pelo Chelsea de Di Matteo, e de 2016, quando o Bayern caiu

diante do Atlético de Simeone. Em ambas, os times de Pep jogaram de maneira

excelente e criaram um número elevado de ocasiões de gol: o Barcelona

finalizou 46 vezes contra Petr Čech; o Bayern chutou 53 vezes contra o gol de

Oblak. A eliminação chegou em ações parecidas, por um erro próprio seguido de

um contra-ataque certeiro do rival: é o conhecido risco que se assume ao tomar

a iniciativa. E, nos dois casos, a equipe de Pep falhou numa cobrança de pênalti

(em Barcelona, Messi; em Munique, Müller).

Essa semelhança conduz o treinador a buscar um modo de aperfeiçoar os

mecanismos de proteção, algo que sem dúvida veremos em Manchester, mas

que não o leva a variar sua vontade de tomar a iniciativa no jogo, nem sua

concepção do futebol:

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— Há uma coisa que se deve defender sempre: se construímos uma

maneira de jogar e as pessoas gostam de nós por causa dela, não devemos

mudar. Temos de respeitar a emoção da nossa gente. Se nos eliminam nas

oitavas [de final] da Champions, azar… Mas que seja com a nossa forma de

jogar. Dá no mesmo se você joga contra a Juventus ou contra o Barcelona.

Talvez eles me vençam, mas será no contragolpe, porque a bola é minha. E é

assim que se deve morrer. Não podemos mudar. Ou melhor: não devemos

mudar. Que me chamem de imprudente, não me importa. Voltarei no ano

seguinte. Cada um é o que é, e a grande tarefa consiste em convencer os

jogadores sobre esse caminho. Não se trata de ganhar ou perder, mas de seguir

o caminho que desenhamos juntos.

Para compreender melhor Guardiola na derrota, é interessante relatar com

detalhes o que aconteceu nas quatro semanas entre 5 de abril de 2016 — data

em que o Bayern ganhou do Benfica (1 × 0, gol de Vidal), na ida das quartas de

final da Champions League — e 3 de maio — quando foi eliminado do torneio

pela regra do gol fora de casa. Entre essas datas, aconteceu a última derrota de

Pep com o Bayern (1 × 0 para o Atlético de Madrid), a décima nona em 161

jogos e apenas a quarta em sua última temporada.

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9.1. UM TIME DE SACCHI

Defender é atacar o ataque do adversário.

ARRIGO SACCHI

Munique, 4 de abril de 2016

— É um time de Sacchi. É sério: o Benfica é um time de Sacchi. Uma verdadeira

fera, a melhor organização defensiva da Europa hoje. Mas não é um time

defensivo, ao contrário: a linha defensiva fica muito adiantada e aperta você

sem parar. Não deixa espaços entre linhas, não cabe uma casca de camarão

entre as duas linhas de trás. E tem atacantes rápidos e esses jovens, Renato… As

pessoas não veem a liga portuguesa, nem aqui na Alemanha, nem na Espanha,

nem na Inglaterra, por isso ninguém dá valor ao Benfica. Mas digo a você que é

uma equipe de Sacchi.

Pep está há doze dias sem levantar da cadeira, analisando o rival das

quartas de final da Champions League. Só saiu de seu escritório para visitar, em

Barcelona, a família de Johan Cruyff, falecido em 24 de março. Foi uma perda

gigantesca para ele: com Johan se foi sua maior referência, seu grande pai

futebolístico.

Nesses doze dias, Pep examinou dez jogos do Benfica: as partidas em casa e

fora contra o Sporting de Portugal, Atlético de Madrid, Zenit, Braga e Porto.

Combinou o formato panorâmico com o da televisão, em busca de pequenos

detalhes. Carles Planchart lhe passou suas próprias conclusões, após muitas

horas de análise, ainda que, como em todas as eliminatórias excepcionais, Pep

redobre o trabalho para depois contrastá-lo com o de Planchart. A primeira

consequência dessa rotina estafante é que a lombar de Guardiola sofre

contraturas em vários pontos. Um dos fisioterapeutas do clube teve de

desbloquear as costas do treinador, mas o problema não foi completamente

solucionado: Pep se move com dificuldade, dolorido no pescoço, na cervical e

nas costas.

— Estou há doze dias sem me levantar da cadeira ou fazer exercícios. Estou

quadrado.

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Ele estudou o Benfica de cima a baixo até conseguir esquadrinhar todos os

elementos que caracterizam o campeão português. Até modificou as rotinas

para que seus jogadores compreendam o perigo real do adversário. Desse

modo, pela primeira vez em três anos, Pep dirige o treinamento do domingo, 3

de abril, posterior à magra vitória sobre o Eintracht Frankfurt (1 × 0) pela liga,

um jogo discreto — como de certo modo é habitual depois da pausa para as

partidas das seleções —,decidido por um extraordinário gol de Ribéry, com uma

formidável meia-bicicleta. Aprecia-se novamente a boa forma de Ribéry e

também a melhora de Lahm, Alonso e Bernat, ao mesmo tempo em que se

percebe que os homens do ataque (Müller, Lewandowski e Douglas Costa)

atravessam a clássica má fase do atacante, esses períodos em que nada sai bem

para eles. O problema é que todos estão enfrentando esse momento ruim

simultaneamente.

No domingo pela manhã, Domènec Torrent se encarrega do treinamento,

enquanto Pep prepara diversos vídeos sobre a estrutura de jogo do Benfica. Ao

meio-dia, ele rompe outro costume e convoca uma reunião especial no andar de

cima do vestiário. Durante 45 minutos, o treinador detalha de forma exaustiva o

4-4-2 português, a linha defensiva que fica quase no círculo central, as

magníficas coberturas e apoios, como ficam juntas as linhas de trás (onde é

inviável receber uma bola com qualidade), o emprego da armadilha do

impedimento e o excelente jogo aéreo dos benfiquistas. É uma análise profunda

do rival, possivelmente a mais detalhada e extensa que Pep ofereceu a seus

homens nestes três anos. Quando vão para casa, os jogadores conhecem

profundamente o duro rival que os espera.

O treinamento de segunda-feira (4 de abril) começa com atraso, porque o

treinador novamente se estende analisando o modo de responder ao jogo eficaz

do Benfica. Dessa vez não haverá três palestras prévias, mas sim quatro, o que

confirma o alto grau de risco que Pep percebe na eliminatória. Só enxerga um

modo de jogar contra os portugueses e o explica detalhadamente ao elenco:

— Não podemos jogar direto, buscando Lewy e Müller, porque eles nos

deixarão em impedimento o tempo todo. Lewy e Müller terão de se sacrificar, se

livrar da marcação, ameaçar as investidas, mas não receberão bolas. A bola deve

ir de dentro para fora, até os extremos, mas aqui deveremos modificar nosso

comportamento porque, se o extremo quiser ir para cima e fazer sua jogada ou

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driblar, estaremos perdidos. O extremo que receber a bola tem de buscar

novamente o companheiro que estiver por dentro, e este é que deve ganhar o

duelo pessoal para abrir, outra vez, a bola para fora. Aí sim, aí eles estarão fora

de posição. Ou seja, rapazes, o caminho é complicado e é o seguinte: dentrofora-dentro-drible-fora

e, então, a definição.

É fácil de dizer e difícil de fazer, como se verá na noite de terça-feira na

Allianz Arena, sobretudo se os atacantes não estiverem bem, como é o caso.

Apenas Ribéry parece afinado.

Pouco tempo depois da palestra, no campo n. 2 de Säbener Straße, com

portas fechadas, o time ensaia repetidamente o circuito de jogo que Pep propôs.

Jogadores como Thiago, Lahm, Xabi, Alaba e Vidal parecem ter entendido com

perfeição. Mas a finalização das ações é muito deficiente.

— Papai, como você errou? — grita Alonso, o filho de Arturo Vidal.

— Não fiz nenhum gol! — queixa-se em voz alta o meio-campista chileno.

Ele não é o único. Os atacantes estão mal, a ponto de Pep se agitar, nervoso

e preocupado:

— Porra, não fizemos um puto gol! Não vamos sair daqui até que façamos

um gol.

— Amanhã, Pep, amanhã vamos fazer — responde Müller, tentando

tranquilizá-lo.

Na entrevista coletiva, Manuel Neuer e Douglas Costa mostram um

profundo conhecimento do Benfica e, da sua parte, Guardiola se sente

confortável falando de futebol e do modelo de jogo dos portugueses. Como em

todas as vezes em que se vê nessa situação, Pep oferece inúmeros dados do

rival, explica muitas características e mostra que o analisou com rigor. Quem

sabe se é a melhor estratégia ou se seria mais producente se mostrar discreto e

calado, ocultando que conhece as cartas do rival?

Quando um jornalista alemão afirma que o Benfica é um time muito

defensivo, Pep se apressa para analisar essa opinião:

— Quantos jogos do Benfica você viu?

— Poucos.

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— Não, poucos não: nenhum. Você não viu nenhum. Se tivesse visto algum,

não diria que é um time defensivo. O Benfica é uma equipe ofensiva com uma

grande organização defensiva, mas que ataca e é ofensiva.

É a mesma definição que se pode fazer do lendário Milan de Arrigo Sacchi,

que passou para a história do futebol como um time defensivo sem sê-lo. Aquele

Milan era um conjunto que se organizava defensivamente muito bem, porque

suas estrelas eram os atacantes. E Sacchi soube enganar: fez todos acreditarem

que sua equipe era defensiva, quando, na realidade, sua orientação de jogo era

inequivocamente ofensiva.

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9.2. MUITA DOR DE CABEÇA

Quando não se está bem, é preciso competir bem.

LORENZO BUENAVENTURA

Munique, 5 de abril de 2016

C omo nas últimas semanas, a escalação que Pep manda a campo só tem uma

variável: um meio-campista considerado titular fica de fora porque só há dois

lugares para três. Hoje é Xabi Alonso quem fica no banco. Durante o

aquecimento, Alonso mostra sua paixão pelo futebol de maneira inconsciente.

Enquanto os outros suplentes fazem um pequeno rondo, o jogador espanhol

observa ensimesmado, durante alguns minutos, o vídeo de jogos históricos que

o Bayern está projetando nos telões do estádio. Ele é louco pela história do

futebol.

No mesmo instante, Müller recebe os tradicionais cruzamentos laterais de

Lahm, e seus cabeceios não são certeiros: só consegue dois gols em oito

tentativas de cabeça. Um rendimento melhor do que no aquecimento para o

jogo contra a Juventus (zero de oito cabeceios), mas ele continua com a mira

descalibrada.

Entretanto, a partida começa com um golpe certeiro do Bayern, e seus

jogadores fazem os benfiquistas correrem de um lado para o outro. Douglas

Costa lança uma diagonal longa para Ribéry, este cede a bola a Lewandowski,

que passa a Bernat e seu cruzamento é cabeceado por Vidal, que chega de trás.

O filho do jogador chileno aplaude entusiasmado.

— Contra esse tipo de equipe, os gols não são feitos pelos que estão na

área, mas pelos que lá aparecem — dirá Pep, mais tarde, no jantar.

A partida transcorre exatamente como Guardiola tinha imaginado. O

Benfica se organiza em um 4-4-2 muito compacto e com um eficaz balanço

defensivo. O Bayern não procura Lewandowski e Müller, mas Ribéry e Douglas

Costa, para que Thiago ou Vidal penetrem de trás e voltem a trocar passes com

eles. Durante vinte minutos, os locais utilizam passes longos em diagonal e

nota-se que essa ação incomoda os visitantes; mas, nesse momento, o Bayern

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deixa de adotar essa estratégia e seu nível de jogo decai: o time fica preso na

teia de aranha planejada por Rui Vitória, o técnico benfiquista. Decai o nível de

jogo e, sobretudo, o ritmo imprimido.

No descanso, o ambiente é frio. Manel Estiarte e Valentí Guardiola, o pai de

Pep, que chegou à tarde para visitá-lo, comentam:

— Não estamos jogando bem — diz Valentí.

— Estamos um pouco brandos no ritmo — responde Estiarte.

O Bayern inicia o segundo tempo com as ideias que Pep refresca no

vestiário: é preciso primeiro ir por fora, passar para dentro e voltar com os

extremos. Mas o Benfica incrementa a proporção de bolas longas e altas,

buscando a vantagem de altura de Mitroglou sobre Kimmich, o que obriga

Guardiola a substituí-lo por Javi Martínez, o qual dirá mais tarde:

— Estou com dor de cabeça de tantas bolas altas que tive de mandar para

longe.

Com Javi, que joga sua centésima partida com a camiseta bávara, a

desvantagem pelo alto desaparece — ainda que, no cálculo total, o Benfica

ganhe 56% dos duelos aéreos do jogo. O time português só tem duas chances de

gol em noventa minutos, mas ambas são excelentes: Javi Martínez salva uma,

com a barriga; Neuer salva a outra, com o braço. Por sua vez, o Bayern

desperdiça cinco oportunidades claras de gol com Müller, Vidal, Ribéry e

Lewandowski em duas tentativas. A promessa de Müller de que marcaria um

gol também não se cumpre. O estado de forma dos atacantes é precário.

Durante o jantar, Guardiola se mostra preocupado:

— Essas coisas acontecem com frequência. Um atacante não é um jogador

de regularidade, como um meio-campista, mas de altos e baixos. Agora estão

num mau momento…

Lewandowski está especialmente desajustado. Aos 88 minutos, ele se vê

sozinho diante do goleiro Ederson e, após driblá-lo, decide não chutar, mas

fazer um passe para que o capitão Lahm finalize com o gol vazio. O segundo gol

parece inevitável, mas o polonês erra o passe e impossibilita que Lahm consiga

aumentar a vantagem na eliminatória com o que seria seu primeiro tento na

Champions. Guardiola observa:

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— Vi Lewy cansado. Creio que precisa de descanso. E Müller também. No

sábado, em Stuttgart, só um deles jogará; o outro descansará para Lisboa. E,

contra o Benfica, vamos pôr quatro homens no centro do campo e só um

atacante, e tentaremos atacar melhor do que hoje. O atacante que jogar no

sábado em Stuttgart estará no banco em Lisboa, e quem estiver no banco em

Stuttgart jogará em Lisboa.

O 1 × 0 deixa a sensação de decepção entre os torcedores alemães. Nada

estranho tendo em conta que pouca gente acreditou nas advertências lançadas

por Guardiola sobre o potencial do time português.

— Eu disse: o Benfica é um time sério e poderoso. Mas parece que como

não é espanhol, alemão ou inglês, deve ser fraquinho. Se as pessoas vissem a

liga portuguesa, compreenderiam como suas equipes são fortes.

Durante os quatro minutos posteriores ao jogo, Guardiola conversou com

Douglas Costa ainda no gramado. Seu rendimento caiu muito e o treinador o

convida a se corrigir, a se concentrar nas orientações, a trabalhar melhor (ele

cometeu erros sérios na pressão e nas marcações) e a voltar a ser o jogador que

deslumbrou no primeiro trecho da temporada. Após a conversa, ambos se

abraçam.

Pep é quem menos critica o jogo do time:

— O Benfica era como eu falei ou não? Veja, nós jogamos certo, mas

finalizamos mal. Pelo menos Franck está bem. Vamos ver se, com um pouco de

descanso, os da frente recuperam a forma.

Nesta noite, o Bayern igualou o recorde de vitórias consecutivas em seu

estádio na Champions League: a marca foi estabelecida pelo Real Madrid na

temporada 2013/2014, com onze triunfos. Hoje é a décima primeira vitória

seguida no curso europeu e Guardiola cumpriu também sua partida número

150 no comando do campeão alemão, com um balanço superlativo: 114 vitórias,

dezoito empates e só dezoito derrotas. Ele conta, orgulhoso, a seu pai:

— Papá, 76% de vitórias. Melhor que no Barça.

No clube azul-grená, foram 72,4%.

Valentí é um pai orgulhoso, mas, ao mesmo tempo, muito exigente. É o

responsável por Pep ter uma ética de trabalho a toda prova, uma de suas

características essenciais. Pep se considera um treinador de talento limitado,

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que necessita trabalhar mais para compensar essa carência. Seu pai, o pedreiro

Valentí, foi quem lhe transmitiu a característica que o acompanhará por toda a

vida. Hoje também não o abandona, pois segue dando voltas sobre o que será

necessário trabalhar nos próximos dias:

— Jogar contra o Benfica nos dá um rio de informações. Agora já não são

vídeos, mas a experiência do enfrentamento direto, e meus jogadores são mais

sábios do que ontem, aprenderam mais. Temos de aproveitar esse

conhecimento para jogar melhor. Eles perderam Jonas para a volta e nós

modificaremos alguns detalhes importantes.

Pep está interessado em saber se a magnífica organização defensiva do

Benfica é fruto do atual treinador, Rui Vitória, ou herança do lendário Jorge

Jesus. O jornalista português Miguel L. Pereira nos resolve a dúvida: “Creio que

é uma mescla de ambos. No Vitória de Guimarães, Rui Vitória se caracterizou

sempre como um treinador cuja organização defensiva era muito sólida. Então,

ele já jogava em um 4-4-1-1 com muitos jovens, e seu modelo no Benfica tem

muitas semelhanças com aquele Vitória de Guimarães que ganhou uma Copa do

Benfica de Jorge Jesus, com uma excelente atuação defensiva. Por sua vez, Jorge

Jesus melhorou muito seu modelo defensivo nos últimos anos. Seus primeiros

times com o Benfica eram muito mais de tração dianteira e deixavam a defesa

exposta com frequência. Ele evoluiu bastante nos últimos anos, e ter sempre um

núcleo de jogadores fixos ajudou a potencializar a linha de quatro e a ajuda dos

interiores. E ainda que Lindelöf, Semedo, Ederson e Renato estejam em sua

temporada de estreia, já treinaram com Jesus no ano passado. Foi mérito dele

reconverter Almeida em lateral, transformar Samaris e Pizzi em jogadores que

ajudam muito a potencializar o bloqueio ao adversário. Digamos que o Benfica

atual é uma grande herança, melhorada por um treinador com perfil adequado

para avançar outra etapa com os jogadores mais jovens”.

Pep recebe bem a informação. Ela não agrega nenhum dado significativo

para a preparação do jogo de volta, mas o ajuda a conhecer melhor o processo

de crescimento do Benfica:

— É admirável o que Jorge Jesus fez, admirável. E Rui Vitória fez o time

crescer ainda mais. São dois treinadores corajosos. Conseguiram reproduzir um

time parecido com o de Sacchi.

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Uma semana mais tarde, Lewandowski se sentará no banco do Estádio da

Luz e Müller estará em campo, tal como o treinador havia planejado. O Bayern

elimina o campeão português e alcança sua quinta semifinal consecutiva de

Champions League. Cinco anos seguidos: dois com Jupp Heynckes, três com Pep

Guardiola. E é a sexta semifinal em sete anos, pois a equipe chegou à final em

2010 com Louis van Gaal. É um balanço que se aproxima ao do Real Madrid

(seis semifinais seguidas) e ao do Barcelona (sete em nove anos).

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9.3. FAZER RODÍZIOS PARA DESCANSAR

O beisebol é 90% mental. A outra metade é física.

YOGI BERRA

Munique, 18 de abril de 2016

E ntre 2 de abril (vitória sobre o Eintracht Frankfurt) e 5 de maio (triunfo

sobre o Atlético de Madrid), Guardiola tenta recuperar os dois atacantes,

reduzindo seus minutos de participação. De maneira rotativa, eles se alternam

no campo e no banco: dos novecentos minutos, Lewandowski disputa

setecentos; Müller, 669. O único que consegue recuperar o ritmo perdido é o

polonês. O rendimento de Thomas Müller não melhora e sua má fase se

prolongará durante os meses seguintes, até alcançar seu nível mais baixo na

Eurocopa de seleções.

O estado de forma de um futebolista é multifatorial: fadiga física, fadiga

cognitiva, autoconfiança, modelo de jogo, entorno familiar, problemas pessoais,

inter-relações próprias do jogo ou simples aspectos da competição… Ninguém

consegue estar em plena forma todos os dias de sua carreira esportiva. Há

muitos fatores que interferem no rendimento do esportista e é impossível

decifrar como cada um deles atua, tanto nos momentos ótimos quanto nos não

tão bons. Quando é o caso, a preparação é realizada com cargas mais leves a fim

de reduzir o cansaço ao mínimo.

Lorenzo Buenaventura programou minuciosamente essas semanas nas

quais os jogos acontecem em ritmo vertiginoso, quase sem descanso. Em 35

dias, o Bayern disputará onze jogos. O período de recuperação entre eles

oscilará entre 62 e 98 horas. Como a recuperação fisiológica básica se dá num

mínimo de 72 horas, na metade das partidas, a equipe não terá o tempo

necessário para se recuperar do esforço. Como forma de compensação, as

sessões de treinamento de Buenaventura se limitam ao essencial, priorizando a

recuperação e acrescentando doses pequenas de força para manter o tônus. Por

si só, o esforço dos jogos já dota os jogadores de todas as demais capacidades

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competitivas. Descanso, recuperação, boa alimentação e pequenas quantidades

de força explosiva são a receita dessas duas semanas sem pausa.

Não é só a comissão técnica que regula as cargas da equipe. O próprio time

faz isso ao encarar cada jogo de modo distinto, em função de sua importância.

Os jogadores se esgotam nos encontros de Champions League, mas, de maneira

quase inconsciente, moderam seu desgaste na liga. Guardiola colabora tanto nas

escalações quanto nos próprios planos de jogo. Para manter a tensão coletiva e

evitar que se produza um declínio competitivo, o treinador faz rodízios

constantes. Com a exceção de Sven Ulreich, o goleiro reserva, o elenco inteiro é

mobilizado sem diferenciação. Desse modo, homens-chave como Ribéry, Thiago,

Vidal, Javi Martínez e Kimmich alternam entre o campo e o banco, como forma

de proteção. Os casos mais drásticos são Philipp Lahm e Xabi Alonso, os dois

mais veteranos. Desde janeiro, a comissão aplica a eles critérios de prudência

excessiva. Lahm disputou no máximo cinco jogos seguidos; Xabi, quatro. E,

desde março, nenhum deles jogou mais que três partidas consecutivas. Essa

política permite que ambos se encontrem bem nos jogos de Champions.

No extremo oposto está David Alaba, que soma dezenove partidas sem

descanso desde janeiro. Jogou todos os minutos. É uma autêntica barbaridade

fisiológica, mas as lesões dos centrais (Boateng, Benatia e Badstuber) obrigaram

Guardiola a usar o jogador austríaco nessa posição ou como lateral. Os

treinadores têm consciência de que Alaba necessita desesperadamente de um

breve descanso: foi o futebolista que atuou mais vezes em posições distintas das

que estava acostumado.

ALABA COMO CENTRAL

Munique, 7 de novembro de 2015

O jovem austríaco se senta em uma das duas cadeiras pretas da sala do

treinador, um local sem adornos. Na porta não figura o nome do técnico ou

qualquer sinal que o identifique, salvo um sucinto “fc Bayern München”.

Em seu interior, um sofá branco, uma mesa branca na qual Pep deixa seu

laptop, uma pequena poltrona, duas cadeiras pretas, um tapete vermelho e

fofo, além de uma lousa em que o treinador distribui pequenos botões

magnéticos que representam os jogadores.

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Alaba sentou-se de frente para Pep, que começa a falar. Aos dez

segundos, de repente, acontece algo inesperado: Alaba se dá conta de que

está usando um boné (como sempre, e sempre virado para trás), e o tira

enquanto pede desculpas a Pep por ter entrado na sala dessa maneira

pouco formal.

— David é um menino encantador — dirá Pep, horas mais tarde,

jantando com Cristina. — Eu estava dizendo o que esperava dele no jogo e,

quando ele percebeu que era uma conversa séria, tirou o boné

rapidamente. Interpretou que tinha sido falta de educação e me pediu

desculpas na hora. E isso me fascina, porque demonstra que ele é um rapaz

bem-educado e sensível. Só faltava esse detalhe para que me conquistasse

de vez.

Pep chamou Alaba para lhe pedir um favor: que volte a jogar na

posição de defensor central.

— No início da temporada, pedi que ele jogasse como central porque

nem Javi Martínez nem Badstuber estavam prontos, e Benatia logo se

machucou. Também lhe prometi que, quando os zagueiros estivessem

recuperados e disponíveis, ele voltaria à lateral, que é onde pode se

expressar ao máximo, onde tem o melhor rendimento, onde pode correr à

vontade, e cumpri minha palavra nos últimos jogos. Mas hoje preciso dele

outra vez como central. Por isso o chamei para pedir o favor novamente, e

dizer que hoje não poderá subir muito, porque necessitamos dele atrás,

como proteção. É um menino maravilhoso, que entendeu e aceitou sem

resmungar. David é o jogador ideal, tem tudo. E ainda teve esse detalhe de

educação…

A sessão de treinamento do dia anterior ao jogo contra o Werder Bremen

resume o que Buenaventura havia explicado: após o aquecimento, alguns

rondos e um jogo de posição de cinco contra cinco e mais três curingas. No total,

só 45 minutos. Leve e sem carga física ou mental. No dia anterior, os jogadores

já tinham trabalhado a dose prevista de força:

— Agora, fazemos tudo em carga submáxima. Estamos no sprint final. São

os últimos duzentos metros da corrida — diz Buenaventura.

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No sábado, 16 de abril, Guardiola completa quatrocentos jogos em

primeiras divisões (295 vitórias), contra o Schalke. Seu time comemora

vencendo por 3 × 0.

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9.4. A ÚLTIMA DERROTA

Onde está a força também

está, às vezes, a fraqueza.

DAVID LLADA

Madri, 27 de abril de 2016

Na palestra antes do jogo, Guardiola enfatiza a seus jogadores as virtudes do

Atlético de Madrid, que pressionará forte durante um período breve de tempo

(os primeiros quinze minutos), com suas duas últimas linhas muito compactas,

com bom balanço e excelentes apoios defensivos. Além disso, ele recorda a

qualidade do Atlético nas ações de bola parada e o perigo de seus contraataques,

assim como o efeito que a grama alta e seca provocará nos passes. A

exemplo do que fez no enfrentamento com o Benfica, em vez de três, Pep deu

quatro palestras táticas, para dividir os aspectos de estudo do rival. Em uma

delas mudou seu costume e, pela primeira vez na carreira de treinador, mostrou

a seus jogadores o vídeo completo de um trecho de um jogo: os primeiros

quinze minutos de Atlético de Madrid × Barcelona, pelas quartas de final da

Champions de 2014, com vitória dos locais por 1 × 0. Pep avisa a equipe que

enfrentarão uma pressão similar. Em 2014, o Atlético disparou três vezes

contra as traves nos primeiros vinte minutos e atropelou o Barça.

— Rapazes, eles vão nos dar o mesmo tratamento, então não sejam

atabalhoados. Saiam com a bola limpa e briguem nos duelos individuais. Os

primeiros vinte minutos são fundamentais. Se passarmos sem sofrer um gol,

teremos a eliminatória muito a nosso favor.

Mas os homens do Bayern não cumprem as instruções: começam o jogo

devagar e muito imprecisos, perdem todas as bolas divididas (nada menos que

75% dos 29 duelos disputados nos primeiros dez minutos) e logo sofrem o

único gol do encontro. Guardiola reclama com os punhos cerrados, porque

ocorreu exatamente o que ele havia advertido de maneira detalhada. Durante o

jantar, os próprios jogadores reconhecem que a culpa foi deles, que o treinador

os avisou e que simplesmente entraram mal em campo, sem a tensão necessária

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diante de um rival muito agressivo. Também concordam (falo com Xabi, Thiago,

Lahm, Javi e Costa) sobre vários aspectos positivos: a boa gestão defensiva nos

escanteios e faltas; a capacidade do time para superar o golpe sofrido com o gol

e não desmoronar animicamente; o magnífico segundo tempo, com um domínio

consistente; e as numerosas ocasiões de perigo geradas (sete muito claras). Há

mais otimismo do que tristeza, mais serenidade do que amargura, mas também

um mal-estar geral por não terem seguido as instruções do treinador.

A derrota provocou uma avalanche de críticas a Pep por parte da imprensa

e dos torcedores alemães. É compreensível que ele fosse criticado, porque nos

acostumamos a justificar as derrotas pelo jogador ausente e esse foi mais um

caso: a conclusão foi que o Bayern perdeu o jogo porque Müller ficou no banco e

“esse jogador tem de estar sempre nas partidas importantes”. Minha percepção

foi radicalmente oposta: penso que Guardiola acertou ao não o escalar como

titular, mas se equivocou ao fazê-lo entrar substituindo Thiago no minuto

setenta. Argumentarei.

Passados os primeiros dez minutos de péssima atuação, o Bayern se

recompôs, naturalmente beneficiado pelo recuo intenso do Atlético de Madrid,

uma de suas especialidades. Os duelos individuais não só se reduziram nos dez

minutos seguintes (de 29 a dezesseis), como também se igualaram em 50% nos

resultados, e dessa forma o jogo mudou de rumo. Os alemães passaram a

dominá-lo e começaram a criar ocasiões de perigo: finalizaram dezenove vezes

no total, exigiram que Oblak trabalhasse, dispararam ao travessão (Alaba) e

poderiam ter alcançado o gol. Na metade do segundo tempo, o empate parecia

inevitável, pois o Atlético já não conseguia fechar todos os corredores interiores

(um terreno em que é o grande especialista) e o Bayern criava um volume

notável de jogo e de chances.

E então Guardiola tirou Thiago para que Müller entrasse: a ideia era que

Müller agregaria maior capacidade goleadora e que o time não sentiria a baixa

de Thiago. Era um pensamento muito razoável, mas as consequências foram

opostas às planejadas: o Bayern perdeu o controle da bola, deixou de dominar o

centro do campo e, em consequência, criou menos ocasiões de gol a partir desse

momento.

Quatro minutos depois de Müller entrar, Ribéry perdeu a bola e, no

contragolpe, Fernando Torres arrematou na trave. O ritmo imparável do Bayern

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sofreu um colapso com a substituição e, ainda que os alemães tivessem alguma

oportunidade, os últimos vinte minutos foram bem piores do que os quarenta

anteriores, a ponto de Guardiola se ver obrigado a fazer Benatia entrar, porque

sua equipe tinha perdido o domínio da partida. Isso aconteceu por causa da

retirada de Thiago, o que debilitou o meio de campo e tornou muito mais difícil

a elaboração do jogo.

Assumo que dizer isso agora é muito fácil: Guardiola não acertou em Madri

com Müller, não porque o deixou no banco, mas por ter feito ele entrar. A

convicção de que Müller tem de jogar sempre nas partidas importantes é tão

arbitrária quanto qualquer outra no sentido contrário. Se estiver em boa forma,

claro que tem de jogar. Pep demonstrou isso nesses três anos: Müller foi o

jogador de campo mais utilizado, sem discussão, mas naquelas semanas sofria

um claro declínio de forma, como se comprovou no jogo de volta, também na

final da Copa da Alemanha e depois, de maneira ainda mais palpável, durante a

Eurocopa sob as ordens de Joachim Löw.

Quando está bem, Müller é um futebolista sensacional, mas quando seu

estado não é ótimo, sofre o mesmo que qualquer outro jogador: seu rendimento

piora e ele não consegue contribuir da mesma maneira. O que aconteceu entre

abril e julho foi algo muito habitual no futebol: todos os esportistas alternam

bons e maus momentos de forma. Müller tinha sido o símbolo positivo do time

durante grande parte do terceiro ano de Guardiola, mas, na hora decisiva,

simplesmente não estava no ponto…

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9.5. PROCURANDO UMA FENDA

A batalha mais dura eu travo

todos os dias comigo mesmo.

NAPOLEÃO BONAPARTE

Madri, 28 de abril de 2016

Desde uma e meia da madrugada, Pep e seu irmão, Pere, junto com os

colaboradores, debatem sobre o jogo e especialmente sobre como encarar o

encontro da volta. Os jogadores já foram para seus quartos, todos eles bastante

aborrecidos pelo resultado e pelas facilidades que foram oferecidas ao rival

durante o primeiro quarto de hora, mas também esperançosos pelo jogo que

fizeram na segunda parte e as sete oportunidades criadas, um número que

nenhum adversário do Atlético tinha conseguido até hoje. O time de Simeone é

um muro de concreto. Se a organização defensiva da Juventus e do Benfica (os

dois oponentes anteriores do Bayern) era de primeira categoria, a do Atlético

de Madrid alcançou a excelência.

Pep nunca faz prognósticos:

— Eu não sei o que acontecerá. Não podemos dizer aos rapazes que, como

hoje tivemos sete ocasiões de gol, na Allianz Arena criaremos catorze e faremos

três gols. Não sei, não sabemos, porque cada jogo começa do zero e o futebol

sempre é complexo, por essa razão é tão bonito e tão apaixonante. Talvez eles

nos metam um gol e então nós tenhamos que fazer três. Ou talvez façamos

cinco, não podemos saber. A única coisa que sabemos é que trabalharemos para

dar aos jogadores a melhor ordem e a melhor organização possível.

Pep já terminou a parte protocolar do jantar e, durante as duas horas e

meia seguintes, reflete sobre o jogo com seu irmão e dois amigos, em um dos

salões do hotel Eurostars. Com frequência, torcedores se aproximam para pedir

fotografias. Em dado momento, Jorge Mendes, o célebre agente português,

chega para saudá-lo e lhe desejar sorte. Mendes está negociando com Karl-

Heinz Rummenigge a contratação do benfiquista Renato Sanches pelo Bayern.

Essa cena, em plena semifinal de Champions e com o treinador concentrado em

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suas tarefas para encontrar a solução para a eliminatória, reflete como o futebol

se converteu hoje em uma máquina que está em movimento contínuo.

Durante essas duas horas e meia, Pep pronuncia a mesma frase pelo menos

trinta vezes:

— Preciso ver a partida de novo.

Guardiola disse a Carles Planchart para pensar no Borussia

Mönchengladbach, o rival do próximo sábado, dia em que o Bayern pode

conquistar sua quarta Bundesliga consecutiva, e que não se preocupasse com o

Atlético, porque ele mesmo se encarregará de preparar os vídeos para as

palestras da próxima semana.

— Preciso ver a partida de novo.

Embora repita a frase, Pep tem o encontro gravado em seu cérebro.

Recorda todas as ações: as equivocadas, os minutos iniciais de desatenção, as

falhas nos duelos individuais; mas também as ações acertadas, o longo período

de domínio completo, as boas chegadas de Vidal de trás, a efervescência de

Douglas Costa…

SAÍDA, ABERTURA, INÍCIO DE JOGO

Madri, 27 de abril de 2016

Pep diz:

— O mais importante é sair bem. Só atacaremos bem se iniciarmos o

jogo desde trás.

Pere, seu irmão, o interrompe:

— Mas, Pep, além de ser uma frase muito conhecida, isso é verdade? É

tão necessária a saída da bola?

— Com certeza, é imprescindível! Receber a bola diretamente do

central não é a mesma coisa que recebê-la do meia interior. Se recebe do

central, quase sempre a ação permite que a defesa atue sem problema. Por

outro lado, se recebe do interior, será muito mais difícil defender,

sobretudo se o interior tiver trazido para dentro os adversários. Na nossa

maneira de jogar, sair com a bola limpa é a base de tudo. E por isso fomos

tão mal no início, porque saímos mal.

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É muito tarde, já madrugada, mas é inevitável pensar em música e

xadrez.

Recordo a pergunta retórica de Christian Thielemann, o maestro, ao

refletir sobre a quinta sinfonia de Beethoven: “Pode existir uma boa

sinfonia sem uma boa abertura? Naturalmente não”.

Reviso o que Garry Kasparov disse: “A abertura é muito mais do que

uma mobilização trivial de forças. Com ela se estabelece que tipo de

batalha terá lugar, e é a primeira e melhor oportunidade de mover o jogo

até as zonas onde se está mais bem equipado do que o oponente para

combater. A abertura é a fase mais difícil, mais sutil do jogo”.

Juanma Lillo fecha a reflexão: “Há dois tipos de treinadores: os que

começam o ataque de seu time desde a saída da própria meta, e os que o

começam da saída da meta rival. Você só poderá se instalar no campo do

adversário se sair bem e limpamente”.

Se Pep se lembra tão vividamente de todas as ações da partida, por que

tanta ansiedade para revisá-la?

— Porque tenho de encontrar outra maneira de atacar o Atlético. Preciso

vê-la várias vezes, não para compreender o que aconteceu, mas para imaginar o

que vai acontecer na terça-feira e o que devemos fazer para ganhar.

Hoje ele não quer tomar decisões sobre como jogará nem com quem, ainda

que já tenha a escalação bastante desenhada:

— Uma coisa é certa. Não cometerei o mesmo erro de dois anos atrás,

contra o Real Madrid. Talvez sejamos derrotados, mas será com as minhas

ideias e não com as dos outros. Há algumas coisas claras: Lewandowski jogará

no ataque e Müller às costas dele, e mais dois extremos. Mas tenho muitas

outras coisas para decidir, conforme o que for possível ver no vídeo do jogo.

Por exemplo, planos e cenários distintos:

— É possível que nossa decisão seja jogar os primeiros quinze minutos de

maneira diferente da habitual. Se eles vierem nos pressionar durante um quarto

de hora, eu talvez ordene bolas longas desde a defesa até Lewandowski para

que nossa segunda linha chegue de frente. Não é uma boa maneira de gerar

jogo, mas é uma maneira de evitar a pressão, e isso pode ser um bom estímulo

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para a nossa torcida: ela pode nos empurrar e causar um curto-circuito na

proposta do Atlético. Mas devo fazer outros planos alternativos: não é a mesma

coisa se eles jogarem no 4-4-2, com Torres e Griezmann no ataque, ou se saírem

no 4-1-4-1 com Carrasco e um dos atacantes. E mais planos. Com Dome

[Torrent], temos de desenhar um plano de emergência para a última meia hora,

se tivermos de reverter o placar. Tenho a sensação de que esse jogo terá vários

jogos dentro dele e teremos de estar preparados para todos eles.

Guardiola dá muita importância a outro assunto que já mencionou na

eliminatória contra o Benfica:

— Por mais análises e mais detalhes que você dê aos jogadores, para

conhecer um rival não há nada como enfrentá-lo. Agora já jogamos contra eles e

meus homens sabem como é o Atlético, o que faz bem e o que faz menos bem.

Também é certo que Simeone e os seus nos conhecem mais, e tenho certeza de

que Cholo analisará como os dominamos na segunda parte e buscará acertar

alguns detalhes. Se formos capazes de extrair a essência do que vivemos hoje,

saberemos competir melhor.

Com o passar dos minutos, o treinador refina a análise:

— Basicamente, nossa saída de trás terá que ser de três contra dois, e para

isso eu talvez coloque Vidal junto com Boateng e Javi.

Soa estranho, mas Arturo é capaz de sair como defensor e chegar como

atacante. A segunda chave é impedir que eles corram, impedir que lancem

contra-ataques. Não posso achar que não conseguirão montar nenhum, mas

temos de evitá-los ao máximo. E a terceira chave pode estar no corredor da

direita: deveremos circular a bola rápido, um extremo terá de prender um

lateral, Lahm deverá prender o meio-campista que faz a cobertura e Douglas

Costa terá de receber por trás de Lahm, fazendo a diagonal da direita para a

esquerda a fim de chutar ou cruzar, ou para devolver a bola para fora quando os

rivais ajudarem a fechar essa zona. Acho que farei como David Trueba disse.

— O que ele disse?

— Que quando precisa terminar de escrever um romance, se encerra em

um monastério e o termina de uma vez. No domingo, farei algo parecido.

Deixarei o treinamento de recuperação com Dome e me fecharei em algum

lugar. Procurarei um hotel ou uma igreja — pisca o olho e dá risada —, ou

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provavelmente ficarei em casa, e passarei o dia revisando o jogo de hoje, para

encontrar a zona em que podemos causar estragos neles. Isso é o mais

apaixonante do trabalho de um treinador. No fim das contas, quem joga são os

jogadores. Eu só posso ordená-los e organizá-los, mas quero fazer isso da

melhor forma possível para chegar à final.

Na sequência, a cabeça de Guardiola destrincha várias possibilidades

imaginadas: jogar em um 3-4-3 para que os interiores ataquem o corredor entre

o central e o lateral rivais; apresentar um losango no centro do campo; escalar

os cinco atacantes, com Douglas Costa e Müller como interiores (“Mas não pode

ser durante noventa minutos”); e segue enumerando possíveis variantes em

função dos homens que pode utilizar. Sua tarefa consiste em encontrar uma

fenda na muralha do Atlético e organizar o Bayern de tal modo que possa

derrubar o muro a partir dessa fenda. Embora repita que o futebol é um jogo

imprevisível:

— Nós fazemos planos e estudamos, mas aí chega um jogador, bate na bola

com a bunda e coloca você na final. O futebol é uma ciência, mas é uma ciência

muito inexata.

Na despedida, Pep dá um carinhoso beijo em Pere, seu irmão mais novo,

que lhe diz:

— Obedeça às suas ideias, Pep. Só às suas ideias.

As reflexões de Guardiola terminam faltando dois minutos para as quatro

da madrugada, no elevador em que sobe ao vigésimo quarto andar do hotel

Eurostars de Madri, onde expressa seu maior desejo:

— Gostaria de fazer um grande jogo na terça-feira, para que a Alemanha

possa ver seus jogadores interpretando uma grande obra.

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9.6. A PAISAGEM ANTES DA BATALHA

Posso me equivocar, mas continuo sendo eu mesmo.

ANTÍGONA

Munique, 2 de maio de 2016

A rturo Vidal se lança ao solo para roubar uma bola, desliza sobre a grama e se

choca lateralmente contra uma das barras metálicas exteriores do campo. Solta

um forte grito de dor e fica caído no gramado. Quando se levanta, quase não

pode respirar e sofre uma leve tontura. A primeira exploração indica que o

golpe afetou uma costela. Faltam trinta horas para o jogo contra o Atlético de

Madrid e Vidal entra mancando no vestiário, se aproxima de Pep e lhe diz:

“Conte comigo, não se preocupe. Vou jogar mesmo que seja uma costela

quebrada”. Vidal é de aço…

No domingo à tarde, após almoçar com David Trueba e outros amigos, Pep

se fechou em casa e cumpriu seu desejo de revisar completamente o jogo de ida:

procurava uma pequena fenda na muralha construída pelo Atlético. Queria

encontrar uma pequena luz que iluminasse o caminho a ser seguido na Allianz

Arena. Achar essa outra forma de atacar a equipe de Simeone, que permita

desorganizar o adversário, desestabilizar uma defesa muito equilibrada, que

estará reforçada pelo capitão Diego Godín, surpreendentemente recuperado em

apenas dez dias de sua lesão muscular na coxa.

Perto das oito da noite, Pep acreditou ter encontrado o ponto fraco no

pequeno corredor entre o defensor central e o lateral esquerdo do Atlético,

sempre fechado por Koke. Se Lahm conseguisse manobrar de tal modo que

Koke se distanciasse dessa zona, Müller poderia entrar por ali. Tratava-se de

uma possibilidade pequena, mas era a que deveria ser explorada.

Durante toda a manhã de segunda-feira, Guardiola não se moveu de seu

escritório na cidade esportiva, dedicado exclusivamente a preparar o plano de

jogo e os vídeos que mostraria na palestra. Os jogadores do Bayern sempre

destacaram o valor das análises prévias de Pep e o quanto elas significam para

eles, porque apresentam uma informação preciosa e precisa. Esse foi o caso. O

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treinador lhes mostrou um resumo dos erros cometidos em Madri, basicamente

a perda de todos os duelos individuais por falta de tensão; e depois assinalou os

pontos fracos do Atlético, com ênfase especial no “corredor Koke”. Era preciso

afastar Koke daquela região: o responsável pela distração seria Lahm, e Müller

deveria aproveitar o vazio.

Sobre o gramado do campo de treinamento n. 1, fechado, o time ensaiou

três movimentos. O primeiro, pautado para os dez minutos iniciais do encontro,

consistiu no envio de bolas longas a Lewandowski. Prevendo uma saída

agressiva e a pressão do time de Simeone — como ocorreu em Madri e como a

Juventus fez na Allianz Arena, com grande êxito —, Guardiola decidiu empregar

o jogo longo desde a defesa até o centroavante, para que este domine a bola e a

ceda aos meios-campistas. Neuer e Boateng são os responsáveis pelos

lançamentos; e se Lewandowski não consegue controlar a bola, ao menos a

zona de perda da posse está muito longe do gol alemão. No sábado anterior,

vimos algumas tentativas nessa linha no jogo contra o Mönchengladbach, mas

agora já não é um ensaio, e sim uma decisão: contra a pressão do Atlético, bolas

longas para Lewandowski.

O plano de jogo imaginado pela comissão técnica do Bayern prevê que,

após esse primeiro trecho de pressão, o Atlético passe a adotar um bloco médiobaixo,

momento no qual o Bayern tratará de construir o jogo de seu modo

tradicional: sair jogando de trás. Durante cerca de vinte minutos, a equipe

repete os movimentos de saída de bola. O treinador só tem uma dúvida na

escalação: Benatia ou Boateng?

— Boateng nos dá uma saída de bola fantástica, mas está sem jogar faz três

meses e talvez não reúna condições de disputar um duelo tão forte. Benatia nos

dá um grande poder de antecipação em cada ação.

Após ensaiar a saída de bola pelo circuito Boateng-Alonso-Lahm, o time

trabalha o terceiro movimento tático: a ruptura interior pelo corredor de Lahm.

O treinador quer jogar com um losango no centro do campo: um 3-4-3 quando o

Bayern tenha a bola. Para isso, Xabi Alonso se situa na linha dos defensores

centrais e o losango é formado por: Vidal no vértice mais baixo, Müller no alto,

Lahm e Alaba nos lados. Na frente, os três atacantes: Douglas Costa e Ribéry nos

lados, Lewandowski centralizado. Pep quer inverter a superioridade numérica

que o Atlético sempre consegue na lateral. Se Costa ataca, Filipe Luis e Augusto

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Fernández o cobrem; se Lahm avança, Koke aparece, e o Atlético sempre fica

com um homem a mais. O plano de Pep consiste em prender esses três rivais

com Douglas Costa e Lahm, então circular a bola tão rápido por dentro, com o

apoio de Xabi ou Vidal, que Müller possa atacar verticalmente o espaço que

Koke deixará ao se aproximar da lateral. Para explorar essa pequena

possibilidade, Pep quer usar o 3-4-3 com losango, um módulo de jogo muito

próprio de Cruyff. Ele acrescenta uma instrução a mais para Vidal, Alonso e

Boateng: os passes para o lado direito deverão ser mais fortes e velozes do que

os para o lado esquerdo, justamente para facilitar as tentativas de ruptura.

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9.7. O CHORO E A ESTUPEFAÇÃO

Não poderia viver sem champanhe. Na vitória,

é o que mereço; na derrota, é o que necessito.

WINSTON CHURCHILL

Munique, 3 de maio de 2016

Com parcimônia, Pep levanta o suéter cinza e mostra o estado de sua camisa

branca. Está rasgada de cima a baixo. É curioso, mas os botões permanecem em

seu lugar, perfeitamente fechados. Só o tecido se rompeu, como se alguém

tivesse agarrado o pano com as mãos.

— Menos mal que você estava com o suéter — diz Cristina.

A camisa é o reflexo do estado anímico de Guardiola nesses momentos.

Está destroçado, como todos os seus jogadores e os torcedores do Bayern. Os

alemães usam um termo muito adequado para as grandes atuações: Souverän

(soberano). Assim foi a partida disputada pelos homens de Pep: soberba,

superlativa, mas o resultado é muito amargo. O valor dobrado dos gols fora de

casa os separa de uma final de Champions. Há uma outra sensação: estupefação.

Xabi Alonso se encontra em estado de choque. Rebusca em seu interior

alguma palavra para explicar o ocorrido, alguma justificativa à qual se agarrar,

mas não encontra nada. Está vazio por dentro de tanto chorar como nunca

chorou em um campo de futebol. Xabi tem consciência de que a de hoje talvez

seja sua penúltima chance de chegar a uma final de Champions como

protagonista do jogo. Em seu currículo há dois títulos, um com o Liverpool e

outro com o Real Madrid, mas ele queria ser o segundo futebolista a conquistar

os três troféus por clubes de países diferentes (Seedorf ganhou com o Ajax, o

Real Madrid e o Milan). Ele demorou muitos minutos até enxugar as lágrimas e

trocar de roupa. Pelos corredores internos da Allianz Arena, arrasta seus pés e

se contém quando abraça sua mãe, beija sua mulher e cumprimenta Iñaki, seu

representante. Ninguém diz nada porque há muito pouco a dizer. Xabi abraça

Periko, seu pai, ex-jogador da Real Sociedad e do Barça, que também esconde as

emoções em seu rosto fechado e imperturbável. Entre eles, basta um olhar para

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compreender quanta dor a eliminação causou. Jon, o filho maior de Xabi, rompe

o silêncio:

— Vamos para casa, papá. É hora de ir.

Diante do elevador, David Alaba tem o olhar tão perdido quanto Xabi. Um

amigo o abraça com força, lhe diz palavras alentadoras ao ouvido, mas David

não escuta. Está pasmo, não pode acreditar que o sonho acabou assim. E

rememora seu erro no gol do Atlético. Esse gol foi a soma de pequenas falhas. O

passe ruim de Boateng, sua tentativa estabanada de pressão para consertar o

erro, o passo adiante de Xabi na mesma direção, abandonando Fernando

Torres, a parada de Alaba para deixar Griezmann em impedimento, perdendo a

possibilidade de lutar em velocidade com o atacante francês, e, finalmente, o

último pequeno erro, o desvio involuntário na bola, que a colocou na bandeja

para que Griezmann finalizasse. Uma soma de detalhes ínfimos que impede o

Bayern de alcançar a final. David Alaba sabe e sente, e não há palavras ou

abraços que curem seu estado. Levará vários dias para se recompor.

Thomas Müller permanece pensativo e calado. Seu assombroso silêncio

reflete a dureza do momento. Müller é um homem jovial e efusivo, que sempre

fala, sorri ou brinca, até em situações pouco apropriadas. Da mesma forma que,

no campo, é um futebolista inclassificável, ele se maneja do lado de fora com

idêntica dose de imprevisibilidade. Às vezes, quando as circunstâncias pedem

discrição, Müller desata seu senso de humor, mas ninguém o reprova. No fim,

dizem todos, Müller é assim e já o conhecemos. Mas nesta noite, não é Müller,

mas uma sombra de si mesmo, um fantasma errante se movendo pelo interior

do estádio, silencioso e cabisbaixo, consciente de que sua atuação não foi boa.

Pelo pênalti perdido, que deu oxigênio a um Atlético agonizante, mas também

por seus movimentos, menos acertados do que o habitual. Nenhum

companheiro o critica, mas ninguém está alheio ao que ocorreu: o homem que

tantas vezes resolveu encontros decisivos com uma aparição repentina e

vertiginosa hoje não jogou bem.

Guardiola assimila o golpe com estoicismo. Quatro anos atrás,recebeu

outro muito parecido, quando o Chelsea, treinado por Roberto Di Matteo,

eliminou o Barça no mesmo estágio do torneio. Se naquela ocasião o domínio

barcelonista foi impressionante, a história se repetiu de maneira quase idêntica.

Nos 180 minutos de semifinal, o Bayern finalizou 53 vezes, mas, novamente, um

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time fechado sobre si mesmo conseguiu eliminar Guardiola. O treinador

tampouco tem algo a reprovar de seus jogadores, salvo aqueles horríveis

minutos iniciais no jogo de ida: “Se superarmos os primeiros vinte minutos [da

partida de ida], estaremos na final”, ele havia dito aos jogadores na palestra

prévia em Madri.

Mas não foi assim e o gol de Saúl, durante o péssimo momento dos bávaros

no primeiro jogo, viria a ser decisivo ao se combinar com o de Griezmann nesta

noite. O Atlético possui uma formidável organização defensiva (ainda que não

tenha impedido o grande número de finalizações do Bayern) unida a um contraataque

explosivo. Essa organização se inspira no jogo praticado pela Inter de

Milão dirigida por Helenio Herrera (embora hh jogasse com líbero). Como

naquela Inter que conquistou as Copas de Europa em 1964 e 1965, os laterais

do Atlético realizam longos percursos verticais; os defensores centrais vivem na

própria área e têm um sexto sentido que lhes permite fechar todas as linhas de

disparo do rival; os médios contam com uma assombrosa capacidade de se

sacrificar, cobrindo os espaços deixados por qualquer companheiro; e à

velocidade em terreno aberto de Torres se soma o talento desmedido de

Griezmann para controlar a bola sob qualquer tipo de pressão contrária. O

Atlético possui muitos registros futebolísticos de alto nível, mas se destaca

sobretudo por sua defesa, um grande mérito de Cholo Simeone, assim como os

êxitos da Inter foram responsabilidade de hh.

Desde o primeiro minuto, o Bayern assalta a muralha vermelha e branca.

Chove em Munique. Chove furiosamente, e o Bayern transborda energia e

clareza de ideias. A proposta de Guardiola foi interiorizada pelos jogadores ao

longo das três reuniões e dos dois treinamentos especificamente dedicados ao

plano de jogo que ele queria empregar. Pep aplica tudo que refletiu em Madri,

após o jogo de ida. Com a bola em seu poder, o Bayern se distribui em um 3-4-3

com um losango no centro. A linha traseira é formada por Javi Martínez, Xabi

Alonso e Boateng. O losango central tem Vidal no vértice baixo, Müller no alto,

Douglas Costa como interior direito e Alaba como esquerdo. A linha dianteira

tem Lahm no extremo direito, Ribéry no esquerdo e Lewandowski lutando com

o capitão do Atlético, Diego Godín. Note-se o papel distinto que Guardiola

determina a cada lado do campo: na direita, pretende-se que seja Lahm quem

ocupe a posição de extremo, permitindo que Douglas Costa se mova como

interior e avance pelo corredor que a defesa espanhola inevitavelmente terá de

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abrir entre o lateral e os centrais (por isso a proposta de que os passes nessa

zona sejam fortes e rápidos). Essa era a fenda que Pep tinha observado e por ela

o Bayern entrará durante toda a noite, em ondas sucessivas. Na esquerda, um

modelo mais ortodoxo, com Ribéry encostado na linha lateral e Alaba por

dentro, buscando sua facilidade de condução e disparo de longe. Passes pela

direita, condução pela esquerda.

A Allianz Arena é o ponto de apoio para a catapulta da equipe. O Bayern

começa a partida com a tensão própria das grandes noites; embora o pontapé

inicial favoreça o Atlético, em exatos quatro segundos os muniquenses já

tomam a bola e iniciam uma sinfonia de jogo.

Sem a menor dúvida, é a melhor partida da era Guardiola. Não a mais bela

do ponto de vista prático — e uma das mais infelizes sob o prisma do resultado

—, mas a melhor de cabo a rabo. Combina o jogo de posição mais ortodoxo com

a verticalidade que Pep pretendia desde que Xabi Alonso chegou ao time.

Mescla o ataque pelos lados, o sinal de identidade que o treinador quis

potencializar desde o primeiro dia, com a facilidade de seus interiores para

romper linhas pelos corredores centrais. Tem a bola em seu poder durante três

quartos do tempo, não dá sequer um passe desnecessário em 650, o triplo do

rival, que se encerra em sua área como se um caçador o perseguisse. O Bayern é

um rolo compressor, seus ataques são meditados, mas velozmente construídos;

não há precipitação, mas velocidade, e a chuva e a grama se mostram

primordiais para compreender essa dinâmica de jogo: hoje a bola voa a cada

passe e chega a seu destino um segundo mais rápida do que na ida, o que

significa que os defensores do Atlético sofrem muito mais para detê-los.

Xabi Alonso, Boateng e Lahm percebem desde os primeiros instantes qual é

o ponto fraco do Atlético. Os dois primeiros multiplicam os passes rasos, longos,

tensos e rápidos, fazendo os visitantes chegarem tarde a quase todas as bolas. O

capitão observa que a fenda mostrada por Pep aumenta e nela crava sua faca.

Ameaça, finta, prende o rival por fora, gira sobre si mesmo… Em resumo, aciona

Douglas Costa para que ele se aprofunde pelo corredor que se abre. O Bayern

empurra o Atlético contra seu formidável goleiro, impedindo-o de respirar. Os

madrilenhos só possuem um recurso: gastar o máximo de tempo cada vez que

têm um tiro de meta a favor. Sabem que esses poucos segundos os ajudam a

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seguir sobrevivendo, ainda que imediatamente voltem a ser esmagados pelos

bávaros, possuídos por uma dinâmica imparável.

Salvo Neuer, situado em seu campo, os 21 jogadores restantes convivem na

metade de campo do Atlético e é inevitável que o Bayern se adiante no

marcador. Xabi Alonso é o autor do gol, em uma cobrança de falta que o central

Giménez desvia. O Atlético abre a boca como um peixe fora d’água, agonizando

diante do jogo dos locais. E o Bayern dispõe de uma cobrança de pênalti que,

aparentemente, pode condenar o time de Simeone. Müller faz a cobrança com

seu peculiar estilo parcimonioso, mas Oblak, a estrela do Atlético na

eliminatória, consegue desviá-lo e ressuscita seu time. (Os pênaltis são um

ponto fraco de Oblak: em suas três temporadas no Atlético, ele só conseguiu

fazer três defesas em 21 cobranças.)

— É preciso seguir defendendo bem — diz Periko Alonso, pai de Xabi,

durante o intervalo.

O ataque do Bayern foi magnífico, mas sua maneira de se defender foi

ainda melhor: em 45 minutos, o Atlético só fez dois disparos de muito longe, e

não criou nenhuma sensação de perigo contra Neuer. Cristina, a mulher de Pep,

passeia nervosa com Valentina, a filha menor, pelos corredores do estádio,

tentando acalmar a angústia:

— Estamos perto, fazendo um jogo de cinema, mas ainda não conseguimos

o placar. Que pena o pênalti! Com 2 × 0, tudo já estava quase feito, mas ainda

vamos sofrer muito…

Cristina mal pode imaginar como terá razão. O início do segundo tempo é

menos tenso do lado dos bávaros. Os jogadores têm a sensação de que a etapa

mais complicada do trabalho já está feita: demonstrar ao rival uma

superioridade esmagadora. O Bayern se distrai durante os primeiros minutos

do recomeço, em que o Atlético introduziu uma mudança significativa: o belga

Carrasco (também lesionado na ida, também recuperado a tempo) entra em

campo com a intenção de conseguir algum contra-ataque que dê respiro aos

visitantes.

A pausa do Bayern dura apenas quatro minutos, pois o time logo recupera

o alto ritmo. Xabi faz a bola voar de lado a lado, Vidal aparece em todas as

partes, Lahm ordena o modo de atacar e os homens de frente fustigam o

adversário. Mas como acontece tantas vezes no futebol, após uma clara ocasião

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de gol do Bayern, vem uma similar para o Atlético. O Bayern não a transforma

em gol; o Atlético, sim. O tento de Griezmann será o passaporte à final europeia

para o time de Madri.

Para o Bayern será impossível mudar o rumo que a semifinal tomou.

Precisa marcar mais dois gols em um time que só sofreu cinco em toda a

Champions League, e que apenas uma vez em toda a temporada levou três gols

no mesmo jogo. O Atlético, no entanto, se sente vigoroso e renascido graças a

Griezmann, e as corridas de Carrasco e Torres aliviam a pressão sobre sua área.

O time de Pep continua com seu bom jogo de ataque, mas o de Simeone

prossegue sólido na defesa. A situação parece pedir a entrada de um jogador

como Thiago, para dar o último passe decisivo dentro da área, e de alguém

como Coman, para jogar pelo lado direito. Mas não é conveniente tirar Xabi, que

produz seu melhor jogo dos últimos anos, nem um Vidal soberbo, nem Lahm, no

melhor momento das últimas três temporadas… Pep opta por substituir Costa

(que continua sendo muito menos decisivo do que o jogador que assombrou

entre agosto e dezembro) por Coman, que falhará em vários lances individuais,

mas terá duas oportunidades para conseguir o gol que seria o terceiro, da

mesma forma que o Atlético poderia ter alcançado seu segundo, com um pênalti

de Torres que Neuer defendeu.

O segundo gol do Bayern chega no minuto 74. Jogada de Ribéry,

cruzamento de Alaba para a segunda trave na cabeça de Vidal, que toca para o

cabeceio preciso de Lewandowski. O Bayern aperta ainda mais o Atlético contra

sua área e soma chances de gol, a mais categórica, talvez, num disparo de Alaba

que desvia em um defensor, e Oblak (invertendo a direção à qual havia se

lançado) consegue mandar a bola a escanteio. O goleiro teve uma atuação

memorável e é, ao lado da excelente organização da equipe, o principal

responsável pela chegada do Atlético à sua segunda final de Champions League

em três anos. A estatística de “Expected Goals” (o algoritmo que calcula o

número de gols que um time poderia marcar segundo a quantidade de

finalizações e sobretudo sua qualidade) conclui que o Bayern pôde somar, em

condições normais de eficácia em finalizações, 4,24 gols contra 1,4 do Atlético

(considerando os pênaltis desperdiçados por ambas as equipes). Mas o

rendimento goleador do Bayern não correspondeu ao número e à qualidade das

oportunidades criadas.

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Pelo terceiro ano consecutivo, a equipe de Guardiola alcança as semifinais

da Champions League, mas não consegue passar à decisão. Contra o Real

Madrid, foi um grande erro de Pep, tentando interpretar um plano de jogo

equivocado. Contra o Barcelona, foi um Messi superlativo, combinado com a

epidemia de lesões do Bayern. Contra o Atlético de Madrid, o time alemão

compôs uma sinfonia prodigiosa, porém inacabada, de jogo. Há choro e

estupefação em Munique.

Ninguém janta no restaurante dos jogadores. Ninguém come nada. Lucas, o

garçom espanhol, oferece champanhe, vinho e cerveja, mas ninguém quer beber

nem mesmo para esquecer. Do time titular, só Neuer e Javi Martínez

permanecem no Players Lounge. Pep vai embora com sua família, após tentar

engolir duas ou três garfadas de pasta italiana, que logo deixa de lado:

— Isso foi como o Barça contra o Chelsea, em 2012, mas ainda mais

brutal…

Domènec Torrente e Carles Planchart estão, em aparência, piores do que

Pep. Ficam relembrando o jogo, pensando no volume produzido, no acerto dos

jogadores na maior parte das ações, no domínio avassalador, no elevado

número de finalizações e também no pênalti falhado por Müller e nas

prodigiosas defesas de Oblak. Até as três horas da madrugada, eles seguirão no

estádio quebrando a cabeça contra a realidade: a onda golpeou a rocha com

toda a força possível, mas a rocha resistiu. O Bayern está eliminado.

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9.8. NINGUÉM GANHA SEMPRE, AMIGO, NEM MESMO PELÉ…

A glória é ser feliz. A glória não é ganhar aqui

ou ali. A glória é desfrutar praticando,

desfrutar todos os dias, desfrutar trabalhando

duro, tentando ser um jogador melhor que antes.

RAFA NADAL

Munique, 4 de maio de 2016

Talvez Guardiola seja temerário e excessivamente atrevido com suas ideias,

sobretudo em um futebol que sofre de uma dependência tão doentia do triunfo

como o atual. Mas ele decidiu se aprofundar ainda mais no atrevimento e em

sua proposta de jogo. No Manchester City, pretende ser mais radical na vontade

de tomar a iniciativa, embora necessite de um longo período de tempo até

conseguir que seu novo time pratique de forma harmônica e sustentável o jogo

que ele proporá:

— Há gente que fez muito pelo futebol e que gosta dessa maneira de jogar,

e é preciso fazer isso por eles. Não pelo que dirão, nem pelo que escreverão os

jornais, não. Há gente que trabalhou muito para que se jogue bem o futebol. Há

vários treinadores que se arriscaram muito e transmitiram seu conhecimento, e

eu devo passar o bastão para as novas gerações. No futuro, o Barça deve ser

treinado por gente como Xavi ou Busquets, porque o que Johan Cruyff me

ensinou eu tentei transmitir a eles. E eles devem fazer o mesmo. E Mascherano,

que será um grande treinador, também. E gente como Xabi Alonso, como Manu

Neuer, como Javi Martínez ou outros… É disso que se trata.

Palavras de Guardiola no dia seguinte ao Bayern cair eliminado pelo

Atlético. E ele prossegue. É Pep na derrota:

— A principal lição que aprendi nesses três anos em Munique é como você

perde. Eu quero ganhar sempre, mas sei que não é possível, de modo que quero

escolher como perco. Há derrotas que lhe dão mais do que uma vitória. Essa

derrota para o Atlético é um desses exemplos. Não é a mesma coisa perder para

o Real Madrid [o 4 × 0 de 2014] e cair diante desse Atlético. E é disso que se

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trata: de que, se você perdeu, pelo menos foi você quem escolheu de que forma

caiu. Sabe qual foi o verdadeiro êxito dessa eliminatória? Que foram dois

grandes jogos contra um rival como o Atlético, que sempre torna as partidas

irritantes por tudo o que nega ao rival, que é sua grande virtude. E foi assim

graças à generosidade de meus jogadores, por tudo o que fizeram e arriscaram.

Não chegamos à final, mas conseguimos que nossos jogos contra um time como

o Atlético tenham sido admirados por todo o mundo, e esse não é um mérito

pequeno. E é mérito dos jogadores, que foram muito valentes.

A atitude de Guardiola diante da derrota sempre foi muito parecida: aceitála

com sobriedade, analisar os próprios erros e os méritos do rival, assumi-los,

tentar corrigi-los e reforçar ainda mais seu conceito de futebol:

— Com todo o respeito, já há muitos treinadores reativos. Nós somos filhos

de Cruyff, de Juanma Lillo, de Pedernera, do Brasil dos anos 1970, de Menotti e

Cappa, do Ajax, dos húngaros… Nós somos filhos de todos esses. Perdemos?

Pois, o.k., amanhã o sol nascerá de novo e sonharei outros sonhos, tranquilos,

está tudo bem. No futebol ninguém ganha sempre, amigo. Nem Maradona

ganhava sempre. Nem Pelé.

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BASTIDORES

CRACK!

Munique, 13 de fevereiro de 2016

É um sábado plácido, quase bucólico, em Munique. Amanhã, o Bayern

jogará o duro e hostil dérbi bávaro em Augsburgo, mas hoje faz um

treinamento suave, porque Pep quer evitar riscos. Sem Boateng nem

Javi, que iniciou a recuperação da artroscopia sofrida no menisco, e com

Benatia ainda de baixa médica, a linha defensiva está por um fio.

A manhã é doce e tranquila. Não há quase ninguém na cidade

esportiva de Säbener Straße, onde o habitual tocar dos sinos do bairro

provoca certa reflexão no visitante. Tocam e tocam sem parar, mas é um

som suave e tão cadenciado que resulta quase imperceptível, como a

água de uma fonte à meia-noite. Os homens de Pep praticam um jogo de

posição tranquilo, e o tac-tac-tac da bola se funde com o soar dos sinos.

Sobre uma das linhas exteriores do campo, encontra-se Holger

Badstuber, a pedra angular da defesa atual. É um dia delicioso até que

um ruído terrível o transforma em drama:

Crack!

O ruído inconfundível de um osso que acaba de se romper. Durante

o que parece ser um segundo de duração eterna, tudo se congela em

Säbener. É a incredulidade. Um silêncio profundo enquanto Badstuber

cai pesadamente. E começa a gritar. Seus gritos são de dor, raiva e

desespero. Seu joelho se rompeu, vítima de uma pisada em falso. Ele

agarra o pé enquanto os gritos destroçam a manhã tranquila. Vinte e

cinco companheiros o rodeiam, desesperados. Vários se afastam, tão

afetados que um deles não consegue evitar o vômito. Lahm sai correndo

em busca de uma ambulância. Pep leva as mãos à cabeça e, como outros

companheiros, não pode segurar o choro ao ouvir Badstuber gritar. O

doutor Braun, presente no campo desde que o clube mudou sua política

médica, interfere: protege a fratura, lhe dá um calmante e o tranquiliza.

Crack!

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O barulho foi como o de um galho de árvore que se quebra.

São dois minutos intermináveis. Dois minutos de alaridos. Dois

minutos de pesadelo. O defensor mais dotado da Baviera, a grande

promessa do Bayern nos últimos cinco anos volta a cair no poço de uma

lesão grave. Desde 2012, Badstuber visitou o cirurgião seis vezes: cada

uma dessas lesões poderia ter acabado com a carreira de qualquer

futebolista. Seis vezes ele regressou do inferno e voltou a jogar em

grande nível. Essa é a sétima queda. São dois minutos intermináveis e,

em cada grito, Badstuber revive o pesadelo que já sofreu.

Com a pele arrepiada e o coração congelado, ninguém é capaz de se

mover quando a ambulância leva o defensor alemão. Os mais sóbrios,

Domènec Torrent e Hermann Gerland, decretam o final da sessão e

ordenam que todos se encaminhem para as duchas. Amanhã há um dérbi

e o time precisa reagir após o drama.

Horas mais tarde, quando o ônibus da delegação chega a Augsburgo,

o ânimo já é outro: Badstuber foi operado com êxito, a fratura era limpa

e não oferecerá problemas sérios para a recuperação; ele próprio manda

uma mensagem de agradecimento por WhatsApp a todo o time. Voltam a

sorrir. Kathleen Krüger, a supervisora geral da equipe, produziu as

camisetas de apoio a Badstuber que todos os jogadores exibirão amanhã,

assim como os auxiliares técnicos, e que Pep vestirá durante todo o jogo.

A eficiente funcionária tem outra surpresa preparada. Após o jantar das

sete da noite (o Bayern sempre janta pontualmente às sete horas em

todas as viagens), a comissão técnica e os jogadores estão convidados a

acompanhar o jogo entre os dois primeiros classificados da série A

italiana, Juventus e Napoli. Às 20h45, Pep, Torrent, Planchart, Estiarte e

a maioria dos jogadores se acomodam em uma sala privada do hotel e

tomam notas sobre seu futuro rival europeu, que vence no último

instante graças a um gol de Zaza.

No dia seguinte, o Bayern faz em Augsburgo sua melhor partida da

temporada como visitante, avalia Domènec Torrent:

— Foi o melhor jogo, junto com o da Copa em Wolfsburgo, em

outubro [o Bayern venceu por 3 × 1].

A fratura de Badstuber despertou o urso bávaro, que não tem

piedade de seu rival. E como tantas outras vezes, Pep não apenas busca o

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objetivo específico no jogo (vencer o Augsburg e somar três pontos

preciosos na luta com o Borussia Dortmund), mas também pretende

atingir outro objetivo estratégico que está no horizonte iminente. Por

isso, ensaia a escalação que jogará em Turim. Ele não disse, salvo a seu

círculo mais íntimo, mas se não houver novidades (e não haverá), os

onze titulares contra o Augsburg serão os onze titulares contra a Juve.

A linha defensiva é composta pelos “baixinhos”: Lahm (1,70m),

Kimmich (1,76m), Alaba (1,80m) e Bernat (1,72m). Eles têm o

inconveniente óbvio da baixa estatura, mas a vantagem categórica da

qualidade na saída de bola. Será um grande risco enfrentar, na

Champions League, o finalista do ano anterior com essa linha defensiva,

mas é um risco que Pep avalia como razoável tendo em vista a melhora

em jogo que ela pode oferecer. Sem grande história, o dérbi bávaro é um

festival ofensivo dos homens de Munique: 36 finalizações, recorde

histórico na Bundesliga. Pep sorri. O urso acordou. Justo a tempo para

viajar a Turim, com uma defesa de baixinhos.

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CAPÍTULO 10

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ALMA DE ARTISTA, MENTE RACIONALISTA

Há muitas maneiras de ganhar

e poucas maneiras de agradar.

RODRIGO ZACHEO

Quando Guardiola menciona seus “ancestrais” futebolísticos, ele introduz um

elemento substancial para a compreensão do futebol. A história desse esporte é

também a da transmissão de ensinamentos entre mestres e alunos, entre

treinadores e os jogadores que, uma vez formados, os substituirão. Jimmy

Hogan teve uma influência notável sobre Josef Blum, que influenciou Karl

Humenberger, que por cinco anos dirigiu Rinus Michels, que treinou Johan

Cruyff, que passou suas ideias a Pep Guardiola, que as comunicou a Xavi

Hernández e Xabi Alonso… A evolução do futebol só pode se conceber a partir

da entrega generosa de conhecimentos por parte dos treinadores, seja

diretamente aos jogadores mais lúcidos, seja em forma de legado nos clubes que

treinam ou por onde passam. Viajar, ensinar e questionar o status quo formam

o caldo cultural que facilitou a inovação no futebol ao longo da história.

Naturalmente, todo aluno se inspira em seu mestre, como escreve John

Berger em sua célebre biografia de Picasso: “Os pintores sempre fizeram cópias

dos quadros daqueles que consideram seus mestres”. O arquiteto Miquel del

Pozo vai além na explicação desse fenômeno: “Como disse Berger, o pintor

costuma pintar o quadro de seu mestre, e esse é o ponto de partida para os

passos seguintes. Vemos isso no Renascimento, com Leonardo ou Botticelli e as

influências que receberam, respectivamente, de Verrocchio e Filippo Lippi.

Assim, notamos que a forma dos rostos que o aluno pinta é, a princípio, muito

parecida com a que o mestre pintava, mas pouco a pouco ele vai evoluindo. O

fundamento a partir do qual ele constrói pertence a seu professor, mas depois o

aluno acrescenta sua verdadeira criação”.

A analogia é inevitável: Gusztáv Sebes copia o quadro que Hogan e Hugo

Meisl pintaram; Cruyff pinta o de Michels; Mourinho, o de Helenio Herrera;

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Guardiola, o de Cruyff… E os alunos superam os mestres, porque galopam sobre

os ombros de gigantes…

Como explica Del Pozo, “na realidade, a folha em branco não existe. Um

artista nunca começa do zero, porque todo artista tem um passado, suas

influências, um mestre. Quando Pep Guardiola coloca em campo o primeiro

jogador de sua escalação, não está diante de uma folha em branco, uma vez que

possui referências anteriores, de seu passado e de seu mestre”. O ponto é que o

primeiro passo não consiste em imitar o quadro do mestre, mas sim

desenvolver o talento que lhe permite a evolução: “Leonardo da Vinci já disse

isso e é possível ler na inscrição que há atrás do cadafalso da aula magna de La

Sapienza, em Roma: ‘Triste discípulo aquele que não supera seu mestre’”.

Desse modo, para compreender Guardiola, devemos nos concentrar em

seus mestres. Pensemos nas duas grandes influências de sua carreira: Cruyff e

Lillo.

CRUYFF: intuitivo, espontâneo, criativo, artista, perspicaz, simples.

LILLO: racional, intelectual, reflexivo, profundo, erudito, complexo.

Não é de nos surpreender que dois mestres tão antagônicos em sua

personalidade — e, entretanto, tão próximos em suas ideias de futebol —

tenham estimulado extraordinariamente as duas almas de Guardiola: a do

artista e a do racionalista. Ele tem alma de artista e espírito de pintor, mas

mente racionalista e cabeça fria. O aluno é apenas o reflexo do que seus mestres

lhe ensinaram.

Quando Pep se mostra pensativo e silencioso, sentado sobre uma bola no

meio do campo de treinamento, está refletindo sobre como planejar uma

partida ou que vantagens terá a escalação de alguns jogadores específicos. É um

Pep racional e gélido. Quando o vemos durante os jogos agitando os braços,

gritando e orientando mudanças de posições, estamos diante do Pep que desata

sua paixão criativa. Reflexivo e complexo como Lillo; intuitivo e simples como

Cruyff.

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10.1. LADRÕES DE IDEIAS

As ideias são como as pulgas, saltam de

uns para outros, mas não picam todos.

GEORGE BERNARD SHAW

O próprio Guardiola se define frequentemente como um “ladrão de ideias”,

alguém que não só aprendeu de seus grandes professores, mas que vive com os

olhos bem abertos, capturando qualquer tipo de conhecimento ou experiência

para absorvê-los rapidamente, digeri-los e extrair alguma lição prática aplicável

ao futebol. “As ideias são de todo mundo. Eu roubei o máximo possível delas”,

disse Pep, em certa ocasião. Assim surgiu a inspiração para recuperar a figura

do falso 9 com Messi e tantas outras sementes que se transformaram em

pequenas ou grandes ideias. Pep não desperdiça oportunidades para fisgar

ideias, conceitos ou sensações, seja lendo um livro de rúgbi que o inspirará em

sua tentativa de aperfeiçoar o espírito de equipe, seja observando como o

Atlético de Madrid defende uma determinada jogada de lateral, o que

provavelmente veremos aplicado no Manchester City dentro de alguns meses.

Durante um evento de lançamento do Guardiola confidencial, um dos

presentes, muito amável, me explicou que esse processo de roubar ideias e

aplicá-las à sua própria obra era uma característica comum entre as

personalidades artísticas. Essa afirmação me intrigou, por isso consultei peritos

na matéria.

Juan Ramón Lara, especialista em música barroca e membro da Accademia

del Piacere, destaca especialmente Georg Friedrich Händel, o genial compositor

saxônico que alcançou o auge musical com O Messias, composto em 1741.

Händel adquiriu sua formação musical após viajar à Itália, confirmou-a ao

regressar à Alemanha e levou-a ao ápice quando emigrou para a Inglaterra:

“Händel não só aprendeu a escrever em estilos estrangeiros como o francês ou o

italiano, mas reutilizava habitualmente melodias e harmonias copiadas de obras

anteriores, fossem próprias ou alheias (de Giacomo Carissimi, Alessandro

Stradella, Reinhard Keiser…); ele as adaptava e as integrava em sua própria

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música com tal sabedoria que o resultado era sempre superior e muito

handeliano”.

Juan Ramón Lara, intérprete de viola de gamba, explica que “em O Messias,

especificamente, ele não praticou esse ‘roubo de ideias’ externo, mas o

autoplágio: utilizou vários duetos em italiano que compôs em sua juventude e

os converteu em coros”. Assim, do dueto para dois sopranos “Quel fior che

all’alba ride” (hwv 192), extraiu sua essência musical e compôs o coro “His yoke

is easy”, como o leitor pode comprovar procurando conhecer essas

composições, que figuram nas referências deste livro.

Miquel del Pozo encontra outra semelhança: “Picasso disse algo que lembra

muito a história do ‘ladrão de ideias’ de Pep. Picasso disse: ‘Eu não copio,

roubo’. Mas é preciso explicar o que Picasso queria dizer exatamente com essa

afirmação. Não pegava um modelo ou um quadro antigo e o copiava. O que fazia

era de certo modo engoli-lo, comê-lo, transformando-o em seu na sua totalidade

e incorporando-o à sua maneira de ser. E depois de o engolir, construía sua

própria obra. Por exemplo, As senhoritas de Avignon. É indubitável que no

quadro estão presentes El Greco e a escultura africana, mas não há cópia.

Picasso lhes ‘roubou’ a essência, passou por seu estômago, e esse processo

desemboca em uma obra própria. Não encontramos esse processo de absorção

só em Picasso, mas em muitos outros grandes artistas”.

A explicação pictórica de Del Pozo e a musical de Lara nos recordam, sem a

menor dúvida, o processo de desenvolvimento criativo que descrevemos em

Guardiola (e muito provavelmente essa afirmação vale para muitos outros

treinadores). Observar, refletir, “roubar a ideia”, engoli-la, atualizá-la a novas

circunstâncias e contextos… Não é o que o vimos fazer em Barcelona com o falso

9 de Messi? Não é o que ele fez em Munique ao restaurar a pirâmide, o 2-3-5?

Guardiola não inventou nada disso, mas teve a virtude de mergulhar no passado

e compreender que havia ideias com grande potencial para explorar em outras

condições. Ele as fez “passar por seu estômago”, “roubou” sua essência e

produziu sua própria obra.

Paloma Alarcó, chefe de conservação de pintura moderna do Museu

Thyssen-Bornemisza de Madri, emite uma opinião similar: “Ao voltar a Paris no

final de 1908, Georges Braque imediatamente ensinou o que havia pintado a

Picasso, com quem tinha uma especial sintonia. E, certamente, Picasso se

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apoderou da linguagem de Braque. Já sabemos que uma das características

principais do artista Pablo Picasso é o apropriacionismo. Ele não somente

captou a obra de grandes pintores da história (como Velázquez ou Manet), mas

também de muitos outros colegas. Mas isso não deve ser visto como um

exercício negativo. Picasso tinha certa atitude crítica à originalidade e, por

outro lado, contagiar-se pela obra de outros artistas era, para ele, uma espécie

de transferência mágica, a transferência de um poder de criação que provinha

de outro”. (O apropriacionismo é um movimento artístico que se baseia na

apropriação de elementos tomados para a criação de uma nova obra: pintura,

escultura, poesia. Esses elementos podem ser imagens, formas ou estilos da

história da arte ou da cultura popular, como também materiais ou técnicas

obtidas de um contexto não artístico.)

No segundo capítulo, Miquel del Pozo já nos definiu que o fato de Guardiola

não querer contemplar sua obra, uma vez concluída, revela uma “genética

totalmente de artista e de criador. O único momento importante para eles é o da

criação. Quando está acabada, a obra deixa de lhes interessar”. O filósofo José

Antonio Marina aponta outra peculiaridade: “A criatividade se baseia na riqueza

prévia, ainda que, depois, o ato de decidir seja fundamental. Os grandes artistas

sempre afirmaram que uma parte importante de seu trabalho consiste em

descartar”.

Esta afirmação me leva de volta a Munique, a uma conversa com o cineasta

e romancista David Trueba, amigo íntimo de Guardiola. Falamos de Bob Dylan e

do processo criativo que ele seguiu na composição de suas peças. Mencionei

algo a esse respeito, de passagem, no terceiro capítulo, mas agora Trueba

explica com detalhes: “Bob Dylan escrevia suas canções do seguinte modo: não

dormia e, em plena madrugada, preenchia páginas e páginas com versos.

Muitos. E quando terminava, começava a riscar alguns deles, fazia um corte

terrível no que havia escrito e deixava a mínima expressão possível. Podia

eliminar mais da metade do que havia escrito até deixar a pura essência do que

queria dizer. Seu processo criativo consistia em construir primeiro uma grande

carga de conteúdo e, depois, destilá-la até deixar só o fundamental”. O processo,

portanto, é exatamente como Marina o descreve.

E Trueba acrescenta: “Pep segue um processo de aproximação ao jogo que

lembra muito o das composições de Dylan. Preenche páginas e páginas para

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depois manter só os versos essenciais. E não é de agora. Quando estava no

Barça B, já escrevia páginas e páginas sobre cada partida. Peça para ele lhe

mostrar suas cadernetas. Ele tem tudo anotado. Escreve várias páginas de cada

jogo em sua caderneta, com dados, com detalhes, com erros e acertos. Escreve

um tratado sobre cada partida e depois fica só com o mais essencial”.

Vemos, pois, que o processo criativo de Guardiola consiste em “roubar

ideias”, engoli-las e digeri-las, “passá-las pelo estômago”, extrair sua essência,

aplicá-la a novos usos (inovar) e construir sua própria obra. E a metodologia

que ele segue para isso é a de obter e preparar uma documentação amplíssima e

depois descartar a maior parte, ficando apenas com o núcleo fundamental da

nova ideia.

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10.2. UM RESULTADISTA ROMÂNTICO

O futebol que vale é o que se guarda na lembrança.

ROBERTO FONTANARROSA

Em Guardiola, convivem duas almas: a do frio racionalista e a do pintor

apaixonado; a do competidor feroz que quer ganhar sempre e a do artista que,

ao mesmo tempo, pretende emocionar; o cruyffista radical e o eclético

alemanizado; o meio-campista de passe veloz que exige que seus jogadores

joguem com cadência; o introvertido que explode em emoções; o treinador que

crê que o futebol são ideias, mas exige que seus homens “corram como

desgraçados”; o ganhador insaciável que, ao mesmo tempo, quer ser dono de

suas derrotas… Em seu interior, convivem duas pessoas: Pep e Guardiola.

“Pep é uma mescla surpreendente entre o resultadista e o romântico, mas

não é um esteta.” A definição é de Xavi Valero, que foi goleiro de várias equipes

espanholas e do Wrexham galês, e que, desde 2007, atuou como treinador de

goleiros de Liverpool, Inter, Chelsea, Napoli e Real Madrid: “Na segunda vez em

que estive com Pep, me surpreendeu seu discurso distanciado da ars gratia artis

[a arte pela arte]. Me surpreendeu um homem que não era o esteta pretensioso

e afortunado que muitos descreviam… Descobri uma pessoa de convicções

profundas, capaz de transformar a paixão em razão com onze jogadores e uma

bola, um ‘como’ em um ‘quê’, o resultado na beleza… Para mim, esse é Pep, um

romântico da razão”.

Essas ideias de Xavi Valero definem à perfeição quem é Pep. Mas se

quisermos saber de primeira mão, nada melhor do que recordar o que ele

mesmo disse em Munique, durante uma alegre sobremesa. Naquele dia, Pep fez

uma declaração apaixonada sobre o que o futebol significa para ele:

— Eu digo a todos aqueles que quantificam o futebol, números, números,

números, o que uma liga a mais ou a menos muda nossa vida? Uma Champions a

mais ou a menos? Lutemos para que nos admirem! E façamos algo que venha da

alma, que venha da alma. Olhem, me entendam bem: os números são

indiscutíveis e eu quero ganhar, vocês já sabem, sabem de sobra, quero ganhar

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sempre. Além disso, não obrigo ninguém a pensar como eu. Só digo que se o que

eu proponho não os faz sentir nada, se não sentem cócegas, se nenhuma emoção

é gerada dentro deles, então que não mudem, que fiquem como estão, sejam

como são… Mas eu seguirei lutando sempre para tirar o melhor do futebol que

meus jogadores têm, e, se for possível, para emocionar quem está nos vendo.

Se o torcedor do Manchester City quiser compreender o treinador em toda

a sua amplitude, deverá ser consciente dessa duplicidade de almas que habitam

em Pep. Às vezes, poderão vê-lo triste durante uma vitória: é porque está

descontente com algum aspecto do jogo. Outras vezes, ele parecerá alegre na

derrota: será porque o time jogou como ele queria e a derrota foi apenas fruto

de algum fator incontrolável. Talvez o ouçam elogiar um jogador que teve uma

péssima atuação: ele não é cego, quer apenas que ninguém se sinta deslocado

no grupo. Ele será visto argumentando que é preciso jogar bem o futebol, dar os

passes adequados, defender-se organizadamente, atacar com o cérebro, e ao

mesmo tempo, festejando um gol de contra-ataque ou fruto da estratégia da

bola parada — ou até mesmo um tento conseguido por simples casualidade. Pep

será acusado de cínico ou hipócrita por dizer uma coisa e festejar outra, como se

não fosse possível lutar para implantar suas ideias e, simultaneamente, alegrarse

pelo triunfo se este chega por qualquer outra via. Quem quiser dizer que ele é

um tipo contraditório, terá argumentos para fazê-lo. Quem disser que é

complicado entender suas decisões e suas escalações, como distribui os

jogadores sobre o campo ou as mudanças de sistema e de planos de jogo que

realiza, estará correto: é complicado, porque rompe todos os clichês

convencionais. E, desde já, como escreveu Ignacio Benedetti, não se pode

analisar o que não se conhece… recomendo não se cegar pelas escalações: o que

importa são os planos de jogo.

Guardiola é um homem híbrido, mescla de romântico e resultadista. Volto a

Pasolini, que em 1971 escreveu um formidável artigo (“O futebol é uma

linguagem com seus poetas e seus prosistas”), sem dúvida influenciado pelo

ocorrido no Mundial de 1970, com a majestosa exibição do Brasil de Pelé,

Gerson, Tostão e Rivelino, impressionantes vencedores sobre aquela Itália na

qual Mazzola e Rivera não podiam jogar juntos para evitar que houvesse

excessivo talento em campo… Pasolini estabelece uma diferença profunda,

desde o ponto de vista da linguagem do futebol, entre as equipes que jogam em

prosa e as que jogam em verso: “Pode haver um futebol como linguagem

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prosística e um futebol como linguagem poética. Assim, por razões

propriamente culturais e históricas, o futebol de alguns povos é

fundamentalmente em prosa, prosa realista ou prosa estetizante (este último é

o caso da Itália), enquanto o futebol de outros povos é fundamentalmente

poesia […]. O catenaccio e a triangulação”, escreve Pasolini, “são um futebol de

prosa: se baseiam na sintaxe, ou seja, no jogo coletivo e organizado, na execução

raciocinada do código. Seu único momento poético é o contra-ataque, com o gol

como anexo culminante (que, como já vimos, não pode deixar de ser poético).

Em definitivo, o momento poético do futebol parece ser (como sempre) o

momento individualista (o drible e o gol, ou o passe inspirado). O futebol em

prosa é o futebol que chamamos de ‘sistema’ (o futebol europeu). O gol, neste

esquema, está encomendado à fase da ‘conclusão’, possivelmente por parte de

um ‘poeta realista’, como [Gigi] Riva, mas deve derivar de uma organização do

jogo coletivo fundado em uma série de passes ‘geométricos’ realizados segundo

as regras do código. O futebol poético é o futebol latino-americano. Um esquema

que, para ser realizado, requer uma capacidade monstruosa de driblar e no qual

o gol pode ser inventado por qualquer um, em qualquer posição. Se o drible e o

gol são momentos individualistas-poéticos do futebol, então o futebol brasileiro

é efetivamente um futebol de poesia”.

E então, Guardiola é poeta ou prosista? Ambos! Não é casual sua profunda

admiração por futebolistas italianos e brasileiros, tão antagonistas. Guardiola

aspira à integração, em um mesmo modelo, do futebol total de Michels e Cruyff

com as características de velocidade vertical e energia contínua dos alemães. Aí

está outro resumo de Pep: a poesia brasileira mais a prosa italiana; a poesia

holandesa com a prosa alemã.

Esta não é uma aspiração exclusiva dele, certamente: muitos treinadores já

a perseguiram desde que “A Máquina” do River, nos anos 1940, plantou as

primeiras sementes do futebol integral. Aquele time foi o precursor de outras

grandes esquadras, que, de forma intencional ou espontânea, se aproximaram

em graus e versões diferentes dessa aspiração ao futebol total pelas mãos de

Sebes, Maslov, Michels, Happel, Lobanovskyi, Sacchi e Cruyff. Guardiola visa a

essa integração e sua experiência em Munique reafirmou sua intenção. Ele tem

essa integração como objetivo não só porque hospeda duas almas em seu

interior, mas porque comprovou com o Bayern que é possível. O verdadeiro

sonho de Pep é que o Manchester City jogue o futebol de verso e prosa

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simultaneamente. Sem dúvida, ele necessitará de muitíssimo tempo para que

essa aspiração se torne realidade.

Mas sendo ambos, o que ele é? Mais romântico ou mais resultadista? Mais

poético ou prosista? Mais coração ou razão?

A equipe de marketing digital da Editorial Córner efetuou um estudo muito

revelador. Desenvolveu uma espécie de tabela periódica de elementos a partir

dos conceitos que mais se repetiam no livro Guardiola confidencial. O resultado

é muito curioso porque, sem nenhuma premeditação de minha parte como

autor, as noções mais utilizadas para descrever Guardiola não eram as

relacionadas à arte nem à estética, mas ao trabalho e ao esforço. Os resultados

gerais foram esses: o vocábulo “talento” aparecia dezenove vezes; entretanto, a

palavra “treinamento” estava escrita 189 vezes; “trabalho”, outras 89; e

“preparação”, catorze vezes; termos como “líder”, “método” e “elegância”

apareciam, no total, só catorze vezes (seis, sete e um, respectivamente); por

outro lado, ao agrupar as palavras “esforço”, “intensidade”, “correr”, “energia” e

“potência”, foram 171 ocorrências no total.

O balanço é impressionante. A tabela retratava alguém focado no trabalho.

Assim, podemos afirmar que Guardiola tem alma de

pintor e também esse toque de loucura atrevida de todo artista,

descontraído e passional; mas o Pep racional, frio, competidor e colericamente

pragmático que quer ganhar acima de tudo tem maior peso em seu caráter. Essa

dualidade é um atributo positivo ou uma contradição? Simplesmente é uma

necessidade para quem quer superar desafios importantes, explica o professor

Manuel Sérgio Vieira: “No tempo em que vivemos, diante da complexidade, há a

necessidade de ter, simultaneamente, o ‘espírito da sutileza’ e o ‘espírito da

geometria’, a razão e o coração, a teoria e a prática. O coração foi de fato a

primeira faculdade da dialética, em Pascal. E o curativo necessário para os

exageros da razão moderna. Se não me falha a memória, em Descartes há só um

método; em Pascal, se destacam dois (o da razão e o do coração). Por isso,

Pascal, ao mesmo tempo místico e pragmático, é um eterno contemporâneo”.

Michele Federico Sciacca afirma em seu Historia de la filosofia: “Há uma

forma de conhecimento não racional, que conhece o que a razão não conhece, o

esprit de finesse, a razão do coração, a intuição direta (sentir, compreender), que

penetra onde a dedução não pode chegar […]. Pascal chega a essas questões

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pela análise da condição humana”. É muito interessante que um treinador possa

combinar harmonicamente sua vocação racionalista, sua compreensão

intelectual do jogo, com a paixão e o sentimento. Vejo isso frequentemente em

Guardiola. Contarei um caso específico.

“SENTIR”

Munique, 21 e 22 de janeiro de 2015

Na quarta-feira, dia 21, pela manhã, Guardiola chegou cedo à cidade

esportiva e modificou os planos previstos. A ideia era fazer outra sessão

similar à da tarde anterior, mas ele explicou que “não a sentia”. Essa é uma

expressão muito própria de Guardiola. Pep precisa “sentir” a tarefa que vai

realizar no treinamento. Precisa senti-la, sentir-se à vontade com ela, além

de se encontrar em boa condição física e anímica para dirigi-la. Há dias em

que — como acontece com todo mundo — talvez ele tenha dormido mal,

ou esteja cansado ou descontente, ou apenas com preguiça. Simplesmente

“não sente” a atividade de treinamento que foi planejada. Não ocorre com

frequência, mas se deu duas ou três vezes ao longo desses anos no Bayern:

dois ou três dias em que ele modificou o tipo de trabalho, porque sua

cabeça e/ou seu corpo não estavam totalmente orientados ao treinamento

original. Hoje é um desses raros dias e ele determina a mudança. Domènec

Torrent e Lorenzo Buenaventura alteram as atividades e adiam a que

estava planejada para o dia seguinte.

Na quinta-feira, 22, se realiza a segunda sessão tática da semana.

Antes de Buenaventura ordenar uma atividade de força explosiva, na qual

cada jogador efetuará 24 movimentos de força, drible e sprint, Pep dirige a

sessão focada na recuperação da bola e no ataque imediato sem

reorganização. Dura apenas meia hora, mas ele é categórico nas instruções.

Hoje, sim, Pep “sente” o treino. O time ensaia três variantes de ataque após

conseguir recuperar a posse: a primeira variante consiste em um passe

diagonal de Xabi Alonso com efeito para dentro, para que Robben penetre

na área desde o lado oposto. A segunda é uma diagonal com rosca para

fora, para que o extremo receba a bola muito aberto na lateral e, por sua

vez, faça um centro à área para a finalização de Lewandowski. A terceira

variante é a mais complexa: passe direto a Robben para que corte pelo

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corredor interior e combine com Lewandowski, que se aproxima; a ação

continua com um passe de Robben para o lado contrário, por onde

aparecem o outro extremo (Müller), pelo corredor exterior, e o lateral

Bernat, pelo interior.

A atividade deixa claro quem é quem no futebol: quem são os íntimos,

os próximos e os distantes. E, da relação entre esses três tipos de posição

que os jogadores ocupam no campo, resulta o maior ou menor grau de

fluidez de uma equipe. Os íntimos, os próximos e os distantes compõem um

dos fundamentos do jogo de posição.

A luta permanente de Guardiola consiste em alcançar a união harmônica

entre razão e coração, complexidade e simplicidade, reflexão e espontaneidade,

pensamento e sentimento. Ele busca essa união a partir de suas sensações, do

seu “sentir”.

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10.3. O PEP AZUL

A verdadeira originalidade não busca

uma nova forma, mas uma nova visão.

EDITH WHARTON

Manchester é o terceiro período “pictórico” de Guardiola: o período azul. Suas

etapas como pintor do futebol: Pep azul-grená, Pep vermelho, Pep azul.

A etapa azul-grená foi autobiográfica. O Barça é uma escola consolidada de

pintura, a singularidade personificada, a obra de muitos alunos com longa

aprendizagem. Ali, Pep pintou um quadro de seu mestre, pintou sua versão

pessoal do quadro de Cruyff. Aquela peça mostrou um estilo unívoco e unânime

interpretado por várias mãos: Guardiola, Xavi, Iniesta, Messi, Busquets, Piqué…

Foi uma etapa com certo aroma dogmático e monotemático, mas, de qualquer

forma, de caráter categoricamente autobiográfico, porque refletiu tudo o que

havia sido, até então, a vida de Pep: Barça, Barça e Barça.

O período vermelho foi sua etapa adaptativa. O Bayern representava uma

escola de pintura clássica, a ortodoxia no futebol. Seu quadro parecia ser

inamovível e o tema era intocável: a vitória, sem mais opções. Nessa escola

classicista, Guardiola introduziu elementos de ruptura, até surrealistas se

olharmos desde a ótica dos guardiões das essências germânicas. Pep uniu dois

estilos opostos buscando uma combinação que parecia inviável. Radicalizou-se

em seus fundamentos de Cruyff, acrescentou os de Beckenbauer e desembocou

em uma via eclética que não imaginávamos. Foi seu período de forte adaptação.

A etapa azul em Manchester é pura incógnita. No City não há uma escola

estilística estabelecida, e Pep não só tem diante de si uma folha em branco,

como também uma pintura cujo tema ainda está para ser definido: será uma

obra sujeita ao livre-arbítrio de Guardiola. Uma incógnita de futuro, um grande

desafio. Em Manchester, ele dispõe das três coisas que, segundo Ferran Adrià,

são imprescindíveis para poder realizar um trabalho criativo: liberdade,

pressão e risco. E as três estão presentes em quantidades abundantes.

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BASTIDORES

A “HEROICA”

Munique, 16 de março de 2016

María está se banhando em lágrimas. Seu tio, Pere, de pé sobre uma

cadeira do estádio, chora e chora. Manel Estiarte, com os olhos

inundados de lágrimas, massageia a mão direita, com a qual golpeou a

parede tão duramente que teme ter fraturado um par de dedos.

Lágrimas e dor, a cena poderia evocar um drama, mas é pura

euforia. Contra todos os prognósticos, no último suspiro do jogo, o

Bayern (com um cabeceio de Müller) igualou uma eliminatória que

parecia totalmente perdida. Desde o intervalo, os três se reuniram em

um canto da Allianz Arena. María, a filha mais velha de Guardiola, deixou

as cadeiras que ocupava junto com sua mãe e irmãos. Pere, irmão de

Pep, abandonou a posição que tinha na tribuna, rodeado por torcedores

italianos. Manel Estiarte, braço direito de Guardiola, distanciou-se dos

assentos onde se agitam, tensos, os jogadores não convocados para a

partida: Javi Martínez, Tom Starke e Jérôme Boateng.

Os três — María, Pere e Manel — juntam-se em um pequeno ângulo

que a escada principal da tribuna oferece, na porta 105 do estádio, e dali

vivem a reação do Bayern. É uma virada que parecia improvável, visto o

desenrolar do primeiro tempo.

— Será um milagre se revertermos — diz Pere, quando termina a

péssima primeira metade. — Precisamos de um milagre.

A Juventus esmagou o Bayern sem misericórdia e, sobretudo, fez

isso de um modo inesperado. Porque se alguma partida parecia

previsível era esta — e ninguém duvidava, tanto do lado de Munique

quanto do de Turim.

Cinco dias antes, Pep Guardiola jantava no estádio com o filho

Màrius e com Estiarte, após vencer o Werder Bremen por 5 × 0 (o que o

aproximava um pouco mais do título da liga), e aproveitou a ocasião

para apresentar suas ideias sobre o enfrentamento com a Juventus:

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— Manel, conhecemos os italianos. Você e eu somos meio italianos.

Bem, você é italiano por completo. Você sabe o que buscarão: a

“episódica”. Buscarão uma simples ocasião propícia: um escanteio, uma

falta, qualquer coisa. Tentarão chegar vivos ao minuto 75 e, então, nos

atacar com três homens de frente. E se não tivermos conseguido matálos

antes, viveremos um quarto de hora final terrível. Que pena que não

fechamos a eliminatória em Turim [2 × 2]. Eles buscarão a “episódica”.

São italianos e, se a estratégia não funcionar, então passarão à “heroica”,

e sofreremos como cães.

— Quieto, Pep! Não quero nem pensar — dizia Estiarte. — Até

segunda-feira, não quero falar do jogo. Do contrário, não vou poder

dormir.

Mas Pep seguia impávido, sem se importar com as dificuldades que

seu amigo teria para conciliar o sono:

— Temos de jogar ordenados e não enlouquecer.

— O que é enlouquecer? — perguntou Màrius.

— O que nos aconteceu contra o Real Madrid. Temos de jogar bem

posicionados, fazendo a bola se mover.

— E você já disse tudo isso aos jogadores? — indaga o filho.

— Não, é muito cedo. Precisam dormir tranquilos.

São italianos. Guardiola e Estiarte sabem bem, porque também são

bastante italianos. A experiência de Pep no Brescia o marcou

futebolisticamente, sem falar na de Estiarte, cujo domicílio familiar está

em Pescara desde 1984, quando foi contratado pelo clube de polo

aquático da cidade.

Pep revisou todos os jogos que a Juventus disputou neste ano. Indo

para o estádio, uma hora e meia antes de jogar contra o Werder Bremen,

aproveitou a viagem no ônibus para ver o primeiro tempo de Sassuolo ×

Juventus, jogado no dia anterior, sexta-feira.

— Sem bola, sempre defendem com cinco. Com a bola, se abrem em

3-4-3.

A partida contra o Werder Bremen foi tranquila. Serviu para

estabelecer alguns novos recordes: os 24 gols de Lewandowski em 26

rodadas da Bundesliga; os 993 passes da equipe; as três assistências de

Coman, igualando o que Ribéry conseguiu em outubro de 2012; os 167

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toques de Lahm na bola; os dois gols de Thiago… O Bayern foi um

vendaval, mas nem isso facilita o sono de Domènec Torrent, que durante

as três madrugadas seguintes acordará de maneira indesejada. Às

quatro, às cinco, às seis da manhã. Despertará, olhará o celular, pensará

na Juventus… Domingo, segunda-feira e terça-feira de insônia para

Torrent. O auxiliar só conseguirá dormir tranquilamente na noite

anterior ao grande encontro.

Não é seu time que o inquieta, mas a Juve:

— Estamos bem, o time está sóbrio, convicto do que fazer. Já não é

preciso convencer ninguém. Agora, todos sabem o porquê de cada

movimento e de cada coisa que fazem em campo. E tudo sai melhor. Mas

a Juve é muita Juve.

Carles Planchart está convencido de que eliminarão a Juventus:

— Nada é seguro no futebol, mas desta vez vejo claramente que

teremos argumentos de jogo suficientes para vencer.

Na noite de sábado, a escalação está quase decidida, quase. Falta

escolher entre Vidal e Thiago, Robben e Coman. Mas, no domingo pela

manhã, Robben sofre uma leve moléstia no abdutor esquerdo ao

terminar um jogo de seis contra seis. Nem sequer é uma lesão,

aparentemente, mas o limiar de dor de cada futebolista é diferente.

Ninguém em Säbener Straße intui, na metade do domingo, que Robben

não só será baixa contra a Juventus, como até o final da temporada…

Pep dirigiu o treinamento com uma energia arrebatadora, quase

com fúria:

— Sem tensão, o time está morto. É preciso estar sempre tenso. E

sempre há gente que busca ser seu inimigo e o ajuda a manter essa

tensão. Todos precisamos de amigos, mas também de inimigos.

Lewandowski treina mais vinte minutos cobrando faltas com

barreira, completamente sozinho.

— Também quer fazer gols de falta. Gosto dessa ambição de

melhorar que Lewy tem — diz Pep.

A segunda-feira transcorre sem grandes novidades. Robben é baixa

certa para a partida, mas a notícia não vaza ao exterior. Tampouco se

conhecem as dores de Kimmich. Não é nenhuma lesão, mas uma dor por

causa de uma pancada. É uma preocupação importante já que Robben

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pode ser substituído por Ribéry ou Coman, mas Kimmich, agora, é

insubstituível: é a coluna vertebral do time, o eixo sobre o qual tudo gira,

o homem que segura sozinho a defesa bávara desde fevereiro. Sem

Kimmich, o invento desmorona com estrondo, mas o jogador não

permite que se estabeleça a menor dúvida ao seu redor:

— Conte comigo, Pep. Jogarei com qualquer dor.

Por precaução, o jovem alemão apenas faz uma sessão de

recuperação, dirigida por Holger Broich. O treinamento geral dura no

máximo uma hora: depois dos rondos, nos quais se nota certo cuidado

coletivo para evitar pancadas e contusões, Pep trabalha movimentos

táticos de saída de bola, aproximação dos laterais junto ao meiocampista

central e o papel de Douglas Costa como meia interior.

No dia seguinte, uma nevasca enorme cobre Munique. A neve não

dá trégua durante vinte horas, e isso afeta o treinamento do Bayern, que,

após alguns exercícios de força explosiva, rondos, um jogo de posição e

trabalhos táticos, tem de finalizar a sessão para evitar riscos. A atividade

de jogadas pelas laterais e cruzamentos à área para finalizações é

impedida pela neve.

Antes de começar o treinamento, a Juve confirma as baixas de

Marchisio e Chiellini, e, na metade da sessão, chega à Munique a notícia

de que tampouco Dybala viajará com a campeã italiana por causa de uma

lesão. Estiarte informa as novidades a Pep, que não muda de critério:

— Não nos enganemos, nada muda. Na ida, eles empataram

precisamente sem nenhum dos três em campo, de modo que nada muda.

Ao contrário, essas baixas reforçam ainda mais a ideia de buscar a

“episódica”.

As respectivas entrevistas coletivas são um exercício de diplomacia.

Massimiliano Allegri explica suas ausências com normalidade:

— Nos faltam três jogadores, mas não é um drama. Um drama é

outra coisa, muito mais importante do que isso. O que está claro é que

amanhã precisamos fazer um grande jogo defensivo.

Uma lenda futebolística como Gigi Buffon emoldura o

enfrentamento:

— É um jogo digno de ser uma semifinal de Champions. O Bayern

está há cinco anos consolidado no topo e é muito forte, mas amanhã

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saberemos quem são os mais corajosos, se são eles ou nós.

Guardiola tenta apresentar uma visão lúdica do encontro:

— Não podemos ficar olhando para o resultado durante noventa

minutos. Só devemos fazer isso nos últimos quinze. Mas devo dizer que

um jogo nunca me preocupa; eu desfruto das partidas.

Precisamente neste momento, Pep desconhece que, no dia seguinte,

se verá obrigado a olhar para o resultado durante mais do que noventa

minutos, e que seus sentimentos estarão longe do desfrute. O futebol é

assim, ingovernável…

Na palestra prévia ao jogo, acontece algo inédito para um homem

tão meticuloso como Guardiola. Durante três anos, o ritual se repetiu

sem alterações. Duas horas e meia antes do encontro, os jogadores são

convocados a uma sala do hotel. Um após o outro, cruzam a porta e se

sentam. Hermann Gerland cuida para que ninguém falte, apaga as luzes,

fecha a porta e dá o sinal para que Pep inicie a conversa. O treinador se

aproxima da lousa e sempre começa a terceira e última palestra técnica

(recordemos que ele não dá instruções no vestiário do estádio) com a

escalação. Hoje o protocolo se repete…

— Rapazes, hoje jogam: Manu, Rafa, Kimmich, Benatia, David, Xabi,

Arturo…

Quando chega a este ponto, enquanto se ouve um leve pigarro ao

fundo, Domènec Torrent interrompe seu treinador, que prossegue

colocando peças magnéticas sobre o quadro branco.

— Perdão, Pep: Rafa?

E do fundo da sala, respondendo à interrupção, Rafinha se levanta e,

com grande alvoroço, grita:

— Dome, desgraçado!

O regozijo é monumental. Todos riem, salvo Pep, que pede mil

desculpas por seu erro.

— Perdão, Rafa; perdão, Philipp.

Rafinha brinca uns segundos mais, às gargalhadas:

— Dome, você é um desgraçado. Pep não tinha se dado conta e era

minha oportunidade de jogar…

O erro e a reação divertida de Rafinha relaxam o ambiente, mas a

conversa se canaliza enquanto as risadas se apagam. Pep repete a

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escalação titular, já com Lahm entre os onze. Ele escolheu Benatia para

acompanhar Kimmich no centro da defesa; Xabi para formar a dupla

com Vidal no meio de campo, sacrificando Thiago; e Ribéry, em vez de

Coman, para jogar como extremo, por causa da lesão de Robben. Nos

minutos seguintes, Pep detalha seu convencimento de que a Juventus

buscará a “episódica”, esse momento que se dá em todas as partidas: um

desvio, um escanteio, um pequeno erro desafortunado. E se essa ocasião

especial acontecer, o Bayern terá de enfrentar uma montanha, já que a

organização defensiva do time italiano é uma das melhores do futebol

europeu. Pep adverte seus homens para que, mais do que nunca, sejam

precisos com os passes, contundentes com os lançamentos e fortes nos

duelos mano a mano.

Durante o aquecimento, que hoje dura um par de minutos a mais do

que o habitual porque o frio é muito intenso, Lahm e Müller repetem o

ritual que incorporaram na presente temporada: os cruzamentos do

capitão para que o atacante ensaie o arremate de cabeça. Até oito vezes

fazem a operação, e o resultado é que Müller não consegue marcar

nenhuma vez…

Às 20h45, Pep dá um grito na lateral, com a mão aberta. Os

destinatários são Xabi, Lahm e Kimmich, os cérebros do time: cinco, diz o

treinador. Cinco, repete, com a mão bem estendida. A Juve defenderá

com cinco homens. Era a única dúvida durante a palestra no hotel: os

italianos poderiam defender com quatro ou com cinco. Vista a disposição

prévia ao apito inicial, fica claro que serão cinco, porque Alex Sandro

buscará o dois contra diante de Douglas Costa.

No primeiro minuto, um passe para Vidal permitiu ao Bayern a

chance de se adiantar no marcador, mas é um “quase”. E logo ocorre o

primeiro golpe de efeito. A Juve não tarda em encontrar sua “episódica”.

Só transcorreram cinco minutos quando David Alaba comete um erro

que serve de bandeja o tento para Pogba, com o gol vazio. Foi um erro de

orientação espacial, um dos poucos defeitos que o defensor austríaco às

vezes mostra: é um jogador de virtudes gigantescas, mas que se

desorienta quando é obrigado a girar sobre si e correr na direção do

próprio gol. Um lançamento de Khedira a Licht-steiner provoca esse

efeito pernicioso em Alaba, que perde a bola de vista e tampouco

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percebe a saída veloz de Neuer. O resultado é que a bola cai aos pés de

Pogba, que finaliza sem goleiro. É a “episódica” aos cinco minutos, o

cenário que o Bayern desejava evitar, o cenário ideal para a Juventus.

Mas como tudo pode piorar, o panorama ficará muito mais grave para o

time local…

A Juventus consegue provocar um curto-circuito no plano de jogo

do Bayern. A agressividade com que, primeiro Morata e Cuadrado, e

depois Khedira, Pogba e Alex Sandro pressionam a saída de bola alemã

deixa o time de Guardiola impossibilitado de construir o jogo a que está

acostumado. É a primeira vez na temporada que o Bayern não consegue

implantar sua estratégia de controlar a bola, assentar-se no campo do

adversário e manejar o ritmo do encontro. E quando David Alaba perde

uma bola próximo à área italiana, ao errar um controle, assistimos ao

prodigioso slalon de Morata, oitenta metros em linha reta, desviando de

rivais e obstáculos. A jogada é facilitada pela frouxidão dos jogadores do

Bayern. Nem Alaba por quarenta metros nem Benatia no círculo central

nem Alonso nem Vidal conseguem frear o atacante espanhol, que serve

uma bola açucarada a Cuadrado para o 2 × 0, um resultado que emudece

a Allianz Arena e põe a corda no pescoço de Guardiola. Parece

irreversível.

Manuel Neuer, como sempre que o barco soçobra, sai ao resgate e

salva outras duas ocasiões clamorosas. Qualquer uma delas seria a

sentença definitiva para a eliminatória. Após arremates de Quadrado e

de Morata, o goleiro evita o golpe fatal. E o árbitro anula uma ação de

Morata por impedimento inexistente: de fato, não anula o gol, mas a ação

anterior. Mas são demasiados sintomas de que o Bayern agoniza, é presa

fácil para os erros, e também sofre diante de uma excepcional atuação

italiana. E o pior: a dinâmica de jogo do Bayern não gera nada de bom

porque não encontra frestas para penetrar o muro juventino, nem

mostra a fortaleza emocional necessária para reagir ao grande problema

que emerge nos primeiros 45 minutos. Medhi Benatia, muito mais do

que Alaba, é o símbolo do caos local: o defensor central marroquino se

mostra lento e nervoso; parece superado pela tensão do acontecimento.

A torcida da Allianz Arena é muito parecida em comportamento

com a do Camp Nou barcelonista ou a do Santiago Bernabéu madridista:

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é um público reativo, que espera que a equipe o estimule e excite. O

silêncio se abate sobre o estádio de Munique, quebrado apenas pelos

dois mil incansáveis ultras, sempre animados e entusiastas, os únicos

que dão réplica aos apaixonados tifosi italianos, eufóricos porque o mel

da vitória começa a adoçar os lábios. No caminho para o vestiário, Mario

Mandžukić cruza com um membro da comissão técnica do Bayern e lhe

dedica uma careta zombeteira…

No intervalo, o vestiário é um funeral. Guardiola dispõe de cinco

minutos para reagir. Sobre o gramado, Juan Bernat finaliza o

aquecimento — iniciado aos 35 minutos de jogo —, orientado a

substituir Benatia. A mudança parece óbvia. Os ajudantes de Guardiola

não têm dúvidas:

— De acordo, precisamos de um gol para entrar de novo no jogo,

mas, antes do gol, precisamos de serenidade e segurança. Precisamos de

segurança atrás.

Estiarte fala sobre se agarrar ao salva-vidas e remar, sem pensar em

mais nada. Com a substituição, Pep pretende dois objetivos: ganhar

segurança coletiva e tranquilizar David Alaba, que, como central, sofre a

citada desorientação espacial em menor medida. Guardiola também

contempla a possibilidade de trocar Ribéry, cujo primeiro tempo foi

péssimo, por Coman, mas prefere mantê-lo na equipe, esperando que o

veterano reaja e melhore seu frágil desempenho inicial.

A segunda parte começa igual, horrível para o Bayern, que só se

sustenta graças às mãos de Neuer. A construção do jogo muniquense é

um pesadelo porque a Juve se encontra em um momento formidável,

com a moral nas nuvens e as ideias claras. As posições do Bayern são

corretas, mas a dinâmica tem pouco ritmo e o jogo não flui. A corda

aperta o pescoço de Guardiola, que logo realiza uma segunda mudança,

que será decisiva: com uma hora de jogo, Kingsley Coman substitui Xabi

Alonso.

— Pensei no que Cruyff faria no meu lugar e saiu isto — dirá Pep no

dia seguinte.

A modificação é decisiva porque a entrada de Coman como extremo

direito leva Douglas Costa à posição de interior, e isso converte a região

em um terreno quente, ainda que a Juve tenha superioridade contínua

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de três contra dois. O Bayern resolve o problema com qualidade técnica:

Costa bate como um pilão, por dentro, por fora, solitário ou se apoiando

em Coman e Lahm. À primeira vista não se observam fissuras na

muralha juventina, porque Coman falha em seus dois primeiros

movimentos individuais, mas, pouco a pouco, a onda vai desgastando a

rocha, com a colaboração de Ribéry, que começa a se sentir mais solto. O

Bayern cresce, mas isso não basta, pois está diante dos grandes mestres

da organização defensiva.

A Juve está tão confiante que Allegri responde com duas mudanças:

Sturaro no lugar de Khedira, totalmente esgotado e que há vários

minutos chega tarde na pressão; e Mandžukić no lugar de um formidável

Morata. No minuto seguinte, Lewandowski cabeceia um centro de

Douglas Costa para o gol. A “heroica” ainda é possível, mas quem deve

protagonizá-la é o Bayern. Costa, Coman e Ribéry atacam sem parar.

No minuto 85, a Juve faz um último esforço de pressão, ao que o

Bayern responde saindo com a bola tranquilamente: quanto mais pressa

houver, com mais calma se deve jogar. Precipitar-se não adianta nada.

Não há chutões, nem lançamentos frontais, nem ações desesperadas. O

time tem um modo de jogar interiorizado e decide morrer com ele. A

torcida tem dúvidas entre lançar os últimos gritos de ânimo ou baixar os

braços. Os seguidores estão como Thiago, há mais de meia hora se

aquecendo na lateral, primeiro com energia, depois com certa

inquietação, finalmente desanimado, quase sem esperanças.

Até que, no minuto noventa, Coman cruza a bola desde a linha de

fundo…

No dia seguinte, Pep confessa em um sussurro:

— Tive um pesadelo: sonhei com o centro de Coman. A bola

chegava, ele driblava e cruzava, mas a bola ia para a torcida…

Mas no mundo real aconteceu o contrário: a bola desenha uma

parábola majestosa, sobrevoa a cabeça de Bonucci e também evita o

salto de Barzagli, para chegar à posição de Müller, o mesmo que, no

aquecimento, falhou um sem-fim de cabeceios fáceis. Desta vez ele não

falha, apesar da vigilância dos rivais. Explode a Allianz e explode o

Bayern. E certamente explode (ainda que no sentido contrário) a

Juventus.

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A conversa de Guardiola antes da prorrogação é breve: já não há

jogo, a Juve está quebrada emocionalmente. Mas Thiago entra no lugar

de Ribéry e perde as duas primeiras bolas que toca. Thiago é uma pilha

de nervos e Pep lhe dá uma grande bronca. Não há dúvida de que

Guardiola não trata Thiago da mesma forma que os outros jogadores,

assim como um pai exigente não dá a seu filho o mesmo tratamento que

dispensa aos amigos dele. Para Pep, Thiago é um filho futebolístico que

deve ser sempre perfeito: não admite erros que, sim, permite a outros;

por exemplo, a Alaba nesta noite, em que cometeu dois muito graves.

Com Thiago, não. No intervalo da prorrogação, Pep lhe dá uma bronca

monumental e Thiago reage de maneira positiva.

A Juventus não se recompõe do golpe anímico sofrido no minuto

noventa e só aspira a chegar às cobranças de pênaltis. O Bayern está

crescido e busca o triunfo. E o alcança, mas não de qualquer maneira. Os

alemães pressionam fortemente a defesa italiana, Vidal rouba a bola e

Thiago entra na área, onde combina com Müller, que então tem um

desses momentos que o tornam único: é o bruto mais hábil do mundo.

Em outra parte do campo, ele talvez tivesse errado o domínio, mas,

dentro da área, Müller se transfigura e, com a perna esquerda, devolve a

bola suave e precisa para que Thiago quebre a Juve pela terceira vez e a

Allianz Arena venha abaixo. O time arrastou sua torcida a uma euforia

colossal que vai ao júbilo irrefreável dois minutos mais tarde, quando

Coman conduz um contra-ataque com superioridade numérica e

posicional, e o conclui marcando um gol contra sua ex-equipe. É o final

da agonia para Guardiola.

— Estávamos com a corda no pescoço e Robin Hood apareceu para

nos salvar — ele dirá durante o jantar.

Jêróme Boateng agarra María Guardiola e a lança pelos ares. A

felicidade está nos olhos da filha maior de Pep, que segue chorando até

quando o árbitro decreta o final de uma eliminatória brutal, que será

recordada na história da Copa da Europa. María desce uns degraus do

estádio e abraça sua mãe.

A eliminatória foi uma montanha-russa, como exibem os resultados

parciais. Depois dos soberbos sessenta minutos de domínio do Bayern

em Turim, com um 2 × 0 que parecia definitivo, vieram outros setenta e

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cinco minutos imparáveis da Juventus, com um parcial de 4 × 0 (dois

gols em Turim e mais dois em Munique), prolongados por cinquenta

minutos finais vibrantes do Bayern, nos quais obteve um contundente 4

× 0 nas condições mais inapropriadas. Foi uma eliminatória instável,

mas sensacional, que Jorge Valdano resumirá com seu discurso fluido

enquanto toma um refresco na sala de imprensa:

— Certamente, ao roteirista do futebol não se pode fazer nenhuma

crítica. Nos dá espetáculos fora de série, que contêm tudo o que o futebol

pode viver.

Pela primeira vez em três anos, o elevador privado da Allianz Arena

reúne, ao mesmo tempo, os componentes do quadro técnico: por acaso,

Guardiola, Torrent, Planchart e Estiarte coincidem naquele espaço,

sorridentes, exultantes, desejosos de tirar uma foto todos juntos para

recordar essa noite tão difícil de esquecer.

Mas quando chega ao restaurante dos jogadores, Pep não aguenta

mais. Hoje não come o queijo, nem o presunto, nem toma o champanhe.

Só beija Cristina e seus filhos, como quem se joga no sofá. Durante meia

hora, Guardiola está ausente, sem abrir a boca para mais do que dividir

um comentário com Màrius, enquanto a pequena Valentina cai, rendida,

sobre duas cadeiras. María, a filha mais velha, sofre uma aguda dor de

cabeça e pede permissão para pegar um táxi e ir dormir:

— Não, María, temos de aguentar aqui até que seu pai nos diga para

irmos — diz Cristina. — Sinto muito.

O esgotamento supera amplamente a alegria pelo triunfo, e só

muito depois Pep pedirá um prato de pasta a Germano Gobbetti, o

cozinheiro italiano do restaurante dos jogadores:

— Me dê qualquer coisa para comer, ou desmaiarei.

Foi um dos jogos mais tensos de sua vida, no qual precisou recorrer

a toda sua capacidade como treinador, e também um desses dias em que

ele reafirma sua crença de que, por mais que o técnico interfira, no final

tudo acaba dependendo de que a bola cruzada por um jogador de

dezenove anos não termine nas arquibancadas, e sim na cabeça de um

grande finalizador que errou oito cabeceios no aquecimento…

— Dome, amanhã você dirige o treinamento. Eu não conseguirei…

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Soa estranho ouvir essas palavras da boca de Pep, à meia-noite. Ele

está literalmente esgotado e todos a seu redor também parecem estar.

Não há festa alguma. A felicidade é silenciosa, vencida pela fadiga

emocional.

Mas, às nove da manhã, Pep já está em Säbener Straße e,

obviamente, dirige o treinamento. O dia é tipicamente mediterrâneo,

ensolarado e caloroso, e o treinador demonstra toda a alegria que não

podia expressar na noite anterior. A Juve ficou para trás.

— Sim, tivemos sorte. O centro de Coman poderia ter ido para fora,

ou Müller poderia ter cabeceado na trave. Mas é preciso buscar a sorte. E

jogamos cinquenta minutos com cinco atacantes, contra o finalista da

última Champions. Tivemos sorte, mas a procuramos com cinco

atacantes no campo.

Foi um risco maiúsculo. E, quando repito, Pep parece saber algo que

não conhecemos:

— Essas coisas, arriscar-se e jogar com cinco atacantes, você tem de

fazer por gente como Johan Cruyff e tantos outros como ele. Fazê-las por

ele, porque ele nos ensinou que é preciso procurar a sorte desse modo…

Sete dias depois, o próprio Pep se encarregará de escrever uma

breve mensagem de duas palavras que enviará a vários amigos: “Johan

morreu”.

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CAPÍTULO 11

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O CITY CONTRATA UM COMPETIDOR FEROZ

Quando jogo com as brancas, ganho porque

jogo com as brancas. Quando jogo com

as pretas, ganho porque sou Bogoljubov.

EFIM BOGOLJUBOV

Definamos alguns conceitos sobre a competição:

• Participar: intervir em uma atividade.

• Competir: lutar, dois ou mais adversários, por algo.

• Concorrência: a colisão de estratégias no mercado.

• Competitividade: a capacidade de uma estratégia de obter prevalência

sobre outra.

• Ganhar: obter o que se disputa em um jogo.

Digamos que as características essenciais de Guardiola são sua capacidade

de competir de forma intensiva e o alto grau de competitividade que ele gera

em suas equipes. Ainda que frequentemente se destaque o grande número de

títulos que conquistou (22 em oito temporadas: um com o Barcelona B, catorze

com o Barça e sete com o Bayern, 65% dos que disputou), seu elevado nível de

competitividade é ainda mais significativo: das 34 competições que disputou

desde 2007, só uma vez (Copa do Rei de 2010) Pep não chegou à semifinal. Esse

é um dado definitivo: em 33 vezes, foi finalista ou semifinalista (22 vezes

campeão, cinco vezes vice-campeão e seis vezes semifinalista).

O Manchester City contratou um treinador que compete com voracidade

por tudo e não economiza energia em nenhum torneio.

Pep entende que um time de elite não deve “presentear” competições e

está obrigado a ser competitivo em todas as que disputa, uma condição que até

há uma década parecia alheia ao mundo do futebol. Observemos que, desde

2009 até hoje, aconteceram o mesmo número de tripletes (quatro, dois do

Barça, um da Inter e um do Bayern) que nos 55 anos anteriores (Celtic, Ajax, psv

e Manchester United). Nesta mudança de paradigma, foi igualmente crucial o

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altíssimo nível de competitividade de outro grande treinador de elite, José

Mourinho, cuja rivalidade com Guardiola frutificou em duelos que agora são

retomados com a coincidência de ambos em Manchester.

Como vimos nas definições, competitividade não equivale a vitória.

Diferentemente de outros esportes, o futebol não apresenta uma relação direta

entre a superioridade no jogo ou a maior qualidade dos jogadores e o resultado.

Essa ausência de relação direta se suaviza enormemente nos campeonatos de

liga, competições de longa duração nos quais a regularidade e a superioridade

de um time adquirem um peso relevante na atribuição final dos títulos. Por

outro lado, nas competições por eliminatórias ou de curta duração, esses fatores

ficam minimizados, por isso tantas vezes se produzem resultados inesperados,

como vem ocorrendo na Champions League europeia, na qual nenhum

ganhador foi capaz de repetir seu título desde a inauguração do formato atual,

em 1992.

Ser muito competitivo não garante a vitória, mas você se aproxima dela.

Pep venceu 328 dos 450 jogos que dirigiu (72,9%); nas competições de liga

(76,4%) e na copa (75%) alcança suas melhores médias.

É mais do que improvável que, em Manchester, ele possa ganhar tanto

como em Barcelona (76,3% na liga) e tão repetidamente como em Munique,

onde teve porcentagens inéditas de vitórias: 82,3% na liga e 83,3% na copa,

competição na qual não perdeu nenhum jogo em três temporadas. É

inverossímil que Guardiola consiga se aproximar desses números com o City,

mas o torcedor citizen pode estar seguro de uma coisa: seu time competirá

sempre, sem importar se é superior ou inferior ao rival. Terá cinco defensores

ou cinco atacantes, jogará bem ou mal, ganhará ou perderá, mas sempre terá

uma disposição competitiva máxima. O City de Pep nunca deixará de competir.

A EXPERIÊNCIA DE KILIAN JORNET

Munique, 26 de janeiro de 2016

Poucos testemunhos esportivos tiveram tanto impacto sobre Guardiola

quanto o de Kilian Jornet, corredor de montanha, esquiador e alpinista

radical, que tem vários títulos mundiais em seu histórico. Eles se

conheceram por intermédio da Gore-Tex, empresa que patrocina Pep e

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colabora com Kilian, durante uma feira celebrada em Munique. Como é seu

costume nesses casos, Pep escutou atentamente o que Jornet lhe explicou,

com a intenção de conhecer novas ideias de outras disciplinas e adaptá-las

ao futebol.

Kilian criou um novo tipo de escalada e estava se preparando para

escalar o Everest em condições inéditas e extremas: sem provisão de

oxigênio, com uma mochila de dez quilos e correndo desde o acampamento

base até o cume. Jornet contou a Pep que uma das tarefas mais delicadas

tinha sido comprovar quantas sessões de treinamento ele poderia realizar

sem ingerir nenhum alimento, apenas água. E conseguiu fazer duas sessões

por dia, durante cinco dias! As duas primeiras jornadas foram cumpridas

com a intensidade habitual de seus treinamentos; no terceiro dia, ele

reduziu a intensidade a cerca de 70%; no quarto dia, completou sem

problemas a sessão matinal e diminuiu a sessão da tarde a 60%; e no

quinto dia, detectou um declínio forte em todas as suas capacidades:

conseguiu completar a sessão matinal, mas desmaiou à tarde e deu o

experimento por concluído.

Ele se submeteu a tal estresse com o objetivo de conhecer os limites de

seu corpo para a possibilidade de sofrer uma situação de risco excepcional

na montanha. Para Guardiola, assombrado pelo que Jornet detalhou, a lição

a extrair foi outra: “Quais são os limites de um time de futebol? Como

conseguimos averiguar tudo o que uma equipe é capaz de fazer?

Precisamos avançar nesse terreno…”.

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11.1. O QUE HÁ DEPOIS DO EVEREST?

Quando se chega ao cume, não se pode subir mais.

Por outro lado, é difícil permanecer lá porque simplesmente

não há nada para fazer e o tempo costuma estar ruim.

MIKHAIL TAL

Rona Petrosian se aproximou de Garry Kasparov, que esperava uma felicitação

efusiva, mas teve uma decepção. Era a noite de 9 de novembro de 1985, e

Kasparov tinha acabado de vencer a vigésima quarta partida de seu duelo com

Anatoly Kárpov. Haviam sido 24 batalhas ferozes e o jovem Kasparov (22 anos),

símbolo da nova Rússia liderada por Mikhail Gorbatchóv, tinha derrotado o

establishment soviético, coroando-se campeão mundial de xadrez. As

felicitações ao novo herói ainda ressoavam no Tchaikovsky Concert Hall quando

Rona Petrosian, mulher de Tigran, campeão do mundo entre 1963 e 1969,

sussurrou ao ouvido de Kasparov: “Lamento por você. O maior dia da sua vida

já passou”.

Kasparov sempre aparece na vida de Guardiola. O conceito de “impossível”

que o campeão de xadrez utilizou recorrentemente quando jantou com Pep em

Nova York, em 2012, também. Um par de anos mais tarde, na cidade esportiva

de Säbener Straße, Guardiola debatia com seu auxiliar, Domènec Torrent, sobre

o jogo e o “impossível”:

— Esqueça, Pep, é impossível. Nunca mais se voltará a jogar daquela

maneira — disse Torrent.

— Não, Dome, estou convencido de que é possível. Não voltaremos a jogar

exatamente da mesma maneira, mas podemos fazê-lo com aquela supremacia,

com aquele domínio. Digo que vamos conseguir. É possível… — respondeu

Guardiola.

Eles falavam do Barça, do jogo do Barcelona que produziu seis títulos

somados em 2009 (uma façanha não igualada) e quatorze troféus em quatro

temporadas. Não falavam dos títulos, mas do jogo que o time praticava e,

sobretudo, do domínio que estabelecia. Não falavam sobre imitar o jogo

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específico, mas se seriam capazes de construir outro time que pudesse dominar

com tanta categoria em campo.

Para Guardiola, os triunfos e os títulos são fruto do jogo: “Nossos êxitos ou

nossos títulos serão a consequência da forma como jogaremos”. A vitória só é o

resultado bem-sucedido do processo. Às vezes, você joga maravilhosamente e

não consegue ganhar, mas, na maioria das vezes, a qualidade do jogo o conduz

ao triunfo. E quando a qualidade do jogo é superlativa e se reproduz de maneira

constante, então você está diante daquele Barça que dominou o futebol mundial

de um modo ditatorial. Mas, pela mesma razão, quando você chega ao cume, já

não pode subir mais.

Ferran Adrià fala com conhecimento de causa sobre o que significa chegar

ao ponto mais alto: “Quando você construiu o melhor time da história, tem um

problema. Pep tem um problema: tudo o que ele fizer será sempre comparado

com aquele Barça”.

Manel Estiarte utiliza palavras similares: “Guardiola sempre terá de lidar

com a palavra triplete. É como uma condenação positiva por tudo o que ele

ganhou. Mas temos de ver essa exigência como um prêmio, porque todo mundo

queria estar na situação dele”.

Um provérbio mongol define essa situação em poucas palavras: “Se você

não subiu, não caiu”. Guardiola é muito consciente disso tudo, tanto em relação

ao número de troféus quanto em relação ao jogo em si. O que Edmund Hillary

sentiu após conquistar o Everest? Claro que não poderia escalar nenhuma

montanha mais alta (porque, como sabemos, não existe). Mas continuou

escalando e alcançou outros dez cumes superiores aos oito mil metros. Com

Pep, acontece algo semelhante:

— Tenho uma sensação complexa. Por um lado, a sensação de que aquilo [a

excelência do Barcelona] não poderá se repetir, o que me produz uma grande

insatisfação. Mas, por outro, tenho o desejo de tentar e a convicção de que é

possível jogar maravilhosamente bem com uma equipe diferente.

Munique foi um bom exemplo do último desejo. Ele não conquistou tantos

títulos como no Barcelona, mas seu Bayern foi dominante e deixou para a

história várias partidas formidáveis pelo jogo desenvolvido: contra o

Manchester City, a Roma, o Arsenal, a Juventus, o Atlético de Madrid… Pep não

conseguiu jogar com a consistência e a regularidade tão excepcionais do

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Barcelona, mas de forma abundante e generosa. Essa magnífica experiência é a

que estimula o desejo otimista de Guardiola diante de seu espírito pessimista.

Reconhecendo que não é possível subir ainda mais na montanha, ou, como disse

Rona Petrosian, sabendo que já viveu seu dia mais glorioso, ele tenta repeti-lo. E

a razão pela qual ele crê que é possível é esta:

— Não são os títulos. É o sentimento que você provoca nas pessoas. No

Barça, as pessoas não ficaram contabilizando os catorze títulos, mas recordando

como se jogava. A transcendência consiste no sentimento que você gera. O

importante é a emoção que você provoca.

No dia em que regressou a Munique, no final do mês de julho de 2016, Pep

recebeu formidáveis mostras de carinho por parte do clube, que até decorou a

entrada do vestiário visitante com uma bonita recepção: “Welcome back”, e de

torcedores como Arnd Marquardt, que se deslocou de Stuttgart apenas para lhe

agradecer pelo trabalho realizado. Mais tarde, os torcedores o aplaudiram em

Säbener Straße, onde o trataram como um deles, embora estivesse dirigindo o

treinamento do Manchester City. Marco Thielsch, um deles, me explicou a razão

para esse sentimento: “As pessoas que dão tudo pelo Bayern sempre são parte

da nossa família. Dessa forma, quando Pep nos visitar dentro de um ano, de

cinco ou de vinte, ele seguirá sendo o mesmo, um dos nossos. A isso chamamos

‘Einmal Bayern, Immer Bayern’ (‘uma vez Bayern, sempre Bayern’). Ele nos

honrou e nós o honramos”.

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11.2. CORRER COMO LOUCOS

Os vencedores nunca se rendem

e os que se rendem jamais vencem.

VINCE LOMBARDI

Em algumas ocasiões, me perguntaram qual é o verdadeiro método de

Guardiola. A resposta é decepcionante pela simplicidade: seu método consiste

em trabalhar muito, ter ideias, modificá-las, ouvir a opinião dos jogadores,

tentar e conseguir convencê-los, ser convencido, pensar, idealizar, apagar,

rasurar, mudar, começar de novo, insistir no que é essencial pela convicção de

que é bom, e mudar de rumo naquilo que se percebe errado. Enfim, atuar como

todos fazemos em nossas vidas. Esse é seu método: uma constante evolução,

fruto das exigências interna e externa. Fazer-se perguntas.

E o caráter. Guardiola é exigência. Não autoriza nenhum relaxamento no

que tange àquilo que foi planejado como treinamento. O esforço não é

negociável. Frequentemente se faz uma confusão com suas palavras, quando ele

se refere ao “correr”. Pep usa muito a frase “é preciso correr como loucos”, mas

a expressão não só é metafórica; é qualitativa em vez de quantitativa. Pep não

conta quilômetros. O que ele diz não significa que os jogadores devam correr

muitos quilômetros durante os jogos, já que seu conceito de jogo prioriza que a

bola se mova mais do que tudo; significa que ninguém pode poupar esforços.

“Correr” é sinô-nimo de “esforçar-se”. Em suas equipes, Pep só admite aqueles

que se esforçam sem limite.

UM BOM FEELING

Manchester, 5 de julho de 2016

Ele tem uma fome sem fim de futebol. Só se passaram 45 dias desde seu

último treinamento em Munique, mas Pep está faminto e demonstra isso

nessa primeira sessão em Manchester, onde se expressa com a eloquência

que o caracteriza. É o “vulcão Pep”, que parece estar esperando esse

momento há dez anos, com fome de grama, bola e jogadores para construir

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o seu projeto. Como o Pep que começou no Barcelona, como o Pep que, no

Trentino, iniciou sua caminhada no Bayern.

O fato de que alguns jogadores presentes não seguirão no clube não

diminui nem um pingo da energia exibida nesta manhã, em Manchester. Há

alguns dias, falávamos em Barcelona sobre seu novo projeto, e um dos

traços tão peculiares de Pep logo veio à tona: “Tenho o feeling de que esse

jogador [o leitor me perdoará por omitir o nome] pode ser muito melhor

do que aparenta. É uma sensação que adquiri vendo os vídeos e pelos

relatos que Txiki me passou. É um cara bacana, uma boa pessoa e um bom

companheiro. Gosto dele. Todos dizem que vou mandá-lo embora, mas não

só ficarei com ele, como me parece que ele será um jogador importante

para o time”.

E assim tem sido: contra todos os prognósticos, o jogador ficou no City

e Pep está satisfeito com ele.

Mais do que em qualquer outro lugar, Guardiola quer transmitir no City

esse caráter infatigável porque, nos últimos tempos, o time não deu ao mundo

grandes lições de ambição e luta. Todos conhecemos o alto grau de exigência

técnica e tática que Pep possui, mas outra característica dele costuma passar

despercebida: com ele, ninguém pode poupar energias físicas ou emocionais,

nem economizar esforços e compromisso. Ou você “corre como um louco”, o

que se entende como “se esforça como se não tivesse talento”, ou simplesmente

não fará parte do projeto, seja quem for. Os que decepcionam Pep não são os

que falham, mas os que não se esforçam.

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11.3. NÃO AFROUXE NUNCA, LEDECKY

Se o homem fosse constante, seria perfeito.

WILLIAM SHAKESPEARE

Uma equipe tem o caráter do seu treinador.

— Claro que sim! — diz Pep. — Quando estou frouxo, treinamos da mesma

maneira. Quando estou intenso e corrijo e animo e dou broncas, o time vai até

seu máximo. Este é o meu grande objetivo. Não afrouxar nunca. Aconteça o que

acontecer, independentemente de como eu me encontrar no meu íntimo. É o

grande desafio. Olhe, nos dois últimos anos, ganhar a liga tão cedo talvez tenha

nos prejudicado, porque tivemos dificuldades para seguir com a intensidade no

máximo, e creio que o time notou minha satisfação pelo triunfo, meu ligeiro

relaxamento. Foi muito pouco, muito leve, mas se você dá só 99% no esporte de

alto rendimento, já não vai bem. Fica faltando a você um poncho, algum

pequeno detalhe, e você paga o preço. É fundamental não afrouxar nunca, estar

sempre no máximo…

Hoje é 15 de agosto de 2015 e Guardiola acaba de iniciar sua última

temporada no Bayern. Ontem, estreou na Bundesliga, ganhando do Hamburgo

por 5 × 0 (“Finalmente tivemos uma boa estreia”). O calor é infernal em

Munique e as amplas sombrinhas que os guardas de Säbener Straße abriram

apenas suavizam levemente a sensação de estarmos dentro de um forno aceso.

— Rafa, o que você leva aí?

Rafinha saiu do vestiário com um copinho de sorvete nas mãos. O jogador

pensa que Pep está brincando, mas não é assim.

— Rafa, todos os detalhes são importantes. Os sorvetes, também.

Um pouco, o.k., mas cuidado para não ganhar peso. Nem um grama, Rafa,

não podemos falhar.

Rafinha pensou que era brincadeira, mas logo comprovou que era sério, e

entrou no vestiário para jogar o sorvete no lixo. Não haveria um segundo de

respiro para ninguém.

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— Se eu relaxo, o time relaxa — justifica Guardiola.

Ele é consciente de que, para manter a competitividade de forma

permanente, é imprescindível não afrouxar nunca a tensão, nem permitir

nenhum respiro, e também entende que a consequência disso é o desgaste:

— Por isso é muito difícil ficar mais de três anos na mesma equipe. Muito

difícil. A menos que você renove o elenco por completo. Nós nos esgotamos

mutuamente, jogadores e treinador, porque damos tudo. Nesses meus três anos

aqui, teremos dado tudo. A entrega dos jogadores terá sido máxima, e a minha

também. Acabaremos esgotados, sem capacidade para continuar.

Dar tudo, sem economizar energia, aí está a única “fórmula mágica” que

Pep possui. Não se deixem enganar: Guardiola não tem outra receita além dessa.

Na antessala do vestiário do Bayern, a conversa caminha para o nível de

exigência na alta competição e a necessidade de que o esportista nunca se

acomode em sua zona de conforto. Manel Estiarte rememora o desgaste físico

na seleção espanhola de polo aquático quando era treinada pelo croata Dragan

Matutinović (com quem foi vice-campeã olímpica, mundial e europeia entre

1991 e 1992, antes de vencer os Jogos Olímpicos de 1996), e Guardiola usa

Katie Ledecky, a sensacional americana multicampeã de natação, como exemplo

de esportista exigente:

— Outro dia li uma entrevista de Ledecky, em que explicava de onde tira a

energia para nadar todos os dias às quinze para as cinco da manhã. Quinze para

as cinco! Ela disse: “Quando mergulho na piscina às 4h45, penso que sou a única

pessoa do mundo capaz de nadar como uma fera a essa hora, e isso me motiva a

cada dia”.

A motivação interna do esportista é chave, mas a intensidade do treinador

também. Loles Vives, campeã máster de atletismo, presente à conversa,

pergunta:

— Como se consegue manter essa tensão sempre, sem afrouxar nem um

instante?

— Bem, aí está a chave para o sucesso. Não sei. Não conheço a resposta. Eu

não tenho uma receita nem uma fórmula mágica como disseram tantos livros

que foram escritos sobre mim, sem a mínima informação real. Eu não chego ao

treinamento e faço assim, zás, um estalar de dedos e aparece a solução para os

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problemas. Não é verdade, não conheço a chave. Só sei que não se pode afrouxar

nunca. Somos pessoas e nos movemos como as outras pessoas: de acordo com

nossos impulsos internos. Katie Ledecky se mobiliza por ser a única pessoa no

mundo que treina como uma fera a essa hora da madrugada. Mas talvez chegue

o dia em que isso já não a motivará. Talvez ela conheça um rapaz e se apaixone

por ele, e já não queira ralar às quinze para as cinco, e então irá para a piscina

às seis da manhã, que segue sendo uma hora incrível para treinar, mas não será

a mesma coisa e lhe faltarão alguns décimos de segundo no final… Não há

receita mágica para estar sempre ligado. Mas é preciso tentar. Por exemplo, me

sinto incomodado quando me criticam, mas, por outro lado, isso me estimula

muito e me mantém ligado; por isso, são bem-vindas as críticas dos jornalistas

ou dos especialistas. Michael Jordan dizia que, se você não tem inimigos, precisa

criá-los. E tinha razão. No esporte, você precisa estar sempre agitado e tenso,

nunca satisfeito. O que mantém o equilíbrio do corpo é a agitação e não o relax.

Por isso é preciso estar sempre tenso. Por isso um treinador deve tentar fazer

com que os jogadores não relaxem nunca…

Na noite anterior, além da estreia na liga que Pep acabará conquistando

pela terceira vez consecutiva, foi realizado o sorteio da segunda rodada da Copa

da Alemanha, e o resultado não poderia ser pior para o Bayern: jogará, no final

de outubro, no estádio do campeão da última edição, o VfL Wolfsburg, que

também é vice-campeão da liga. Estamos no elevador privado da equipe, na

Allianz Arena. É um elevador simples, retangular, forrado com grossos painéis

metálicos, sem espelhos ou o menor adorno; um elevador de carga, sóbrio e

silencioso. Aqui encontramos com Pep ao final de cada partida, durante os três

anos em Munique. O treinador o utiliza quase como um confessionário: aqui

dentro, explica seus pensamentos mais íntimos sobre o encontro disputado, ou

reflete sobre os compromissos seguintes. Foram confissões e vivências que

devo guardar em particular.

Ao contrário da maioria, Pep gostou do sorteio da Copa, embora tenha de

enfrentar o atual campeão, em seu estádio, dentro de onze semanas:

— Foi do cacete, eles estarão no ponto. Nós teremos jogado dez partidas de

liga e estaremos em plena Champions, jogando a cada três dias. Eles começarão

a se condicionar pelo ritmo de jogar a cada três dias. Estarão no ponto… É

melhor enfrentar um rival tão duro, porque nos obrigará a manter a tensão.

outubro/2017


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Agora não podemos relaxar nem um milímetro, e isso é bom porque vejo que

todos os jogadores estão tensos: eles têm de lutar por seu lugar em cada

treinamento porque, hoje, não há titulares indiscutíveis, salvo Manu [Neuer]. O

resto tem de ganhar seu lugar a cada dia. E isso é magnífico para mim porque

posso exigir o máximo deles.

Pep faz um gesto com as mãos, como se estivesse espremendo uma laranja,

e sai do elevador…

Não foram simplesmente bons propósitos no início da temporada. Pep não

afrouxou a tensão nos onze meses seguintes.

Poucas semanas mais tarde, ele teve de dirigir o jogo mais estranho de sua

carreira. A direção do Bayern se comprometeu a disputar um amistoso contra o

Jahn Regensburg (em Ratisbona) em plena pausa para as partidas das seleções

nacionais, o que deixou o treinador com apenas cinco jogadores do time

principal (os goleiros Ulreich e Starke, mais Lahm, Alonso e Rode). O

compromisso foi tão inoportuno que ele nem sequer pôde escalar os rapazes do

time B, que haviam jogado no dia anterior, por isso usou os juvenis. Em vez de

cancelar o amistoso, Guardiola o encarou com a maior dignidade possível,

esforçando-se ao máximo com os juvenis.

Interessante escutar a reflexão de Domènec Torrent sobre aquele dia:

— Pep sempre foi uma pessoa educada, correta e com uma disponibilidade

tremenda. Veja o que aconteceu hoje: outro treinador teria se negado, mas Pep

deu a cara mesmo sabendo que era impossível vencer. Deu instruções aos

jovens, se mostrou constantemente ativo e lutou pela vitória, pelo escudo do

Bayern e pelo prestígio do clube. Pep poderia ter saído de folga na segundafeira

passada por dez dias. Neste momento, só temos três jogadores de campo

para treinar e isso seria até razoável, como fizeram outros técnicos. Mas Pep

escolheu brigar pelo Bayern e prefere ensinar movimentos a garotos de

dezessete anos a ir para casa descansar.

A pressão sobre os jogadores não diminuiu em nenhuma circunstância. Se

em setembro de 2015, Lewandowski ou Thiago discutiam no meio de um jogo

para bater uma falta, ele encerrava a questão e ordenava que se respeitasse o

protocolo estabelecido:

— As faltas! As faltas! Vocês têm por escrito quem bate [Alonso e Alaba].

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Se Vidal sofria uma pancada no joelho durante o treino, em meados de

outubro…

— Que ele descanse e se recupere. Mas nada de aceitar gente a meio gás. É

preciso dar o máximo em todos os minutos de todos os dias. Não podemos

deixar nada passar, nada. Há muito em jogo para aceitarmos o relaxamento, por

mínimo que seja.

Se as vitórias e as goleadas aconteciam ininterruptamente em novembro…

— Não podemos deixar passar nenhum detalhe, nem permitir a menor

distração. Temos de manter a tensão, não podemos afrouxar.

Em fevereiro de 2016, quando Noel Sanvicente perguntava se ele

conseguiria manter o foco no Bayern até o final da temporada, sem se distrair

com sua contratação pelo Manchester City…

— Sim, não tenha dúvida. Esses quatro meses finais serão ainda mais

intensos. Eu me entregarei ainda mais. Mais do que nunca. Quero que tudo seja

a full. Que ninguém tenha a mínima dúvida: vamos ao limite como nunca. E creio

que os jogadores têm consciência de que vou exigir o máximo. Não há

desculpas. Eu lhes ensinei tudo o que precisavam para jogar dessa maneira. Se

ao final de três anos, treinando como um cavalo, um jogador não joga do modo

que proponho, é porque não quer. Mas não tenho dúvidas: todos querem e

todos vão querer ir até o fim no limite.

E ainda em abril de 2016, já no sprint final…

— Temos de estar a 100% sempre. Em todos os treinamentos, em todos os

jogos e todos os instantes.

Não afrouxar, aí está a frase que Guardiola mais repetiu em Munique e que

mais repetirá em Manchester.

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11.4. VESTIR-SE PARA A CERIMÔNIA, PREPARAR-SE PARA A

BATALHA

A beleza é uma forma de eficácia.

JUAN VILLORO

Quando dirige treinamentos, ele se veste com o agasalho que seus ajudantes

lhe dão, e, se faz frio, coloca um gorro qualquer e de qualquer maneira. Importalhe

pouco sua indumentária de trabalho, mas tudo muda quando chega a

cerimônia. Porque, para Pep, um jogo é uma cerimônia, o dia mágico. Então, sim,

ele se arruma e se veste para a ocasião. Podemos pensar que é vaidoso e quer se

mostrar elegante para os torcedores, e é possível que seja assim. Mas o que

verdadeiramente importa é o conceito de cerimônia com que vive cada

encontro.

O MEDO

Munique, 1º de maio de 2016

Guardiola e David Trueba falam sobre o medo e o temor do adversário

antes da partida. O medo entendido como galvanizador do rendimento, não

como temor paralisante.

— O medo é o melhor estimulante que existe — diz Guardiola. — Você

não pode encarar nenhum jogo se não tem esse medo do adversário, de

suas virtudes, do que ele pode fazer. Deve ser um medo que não o paralise,

mas que o mobilize.

— Claro que sim — responde Trueba. — Mas isso acontece com

qualquer um que tenha de realizar um trabalho criativo. Quando eu faço

um filme, sinto o mesmo pânico prévio: serei capaz de retratar o roteiro?

Conseguirei tirar o melhor dos meus atores? Saberei narrar as sucessivas

cenas de forma coerente? O mesmo acontece com o compositor de música

clássica, de rock ou com o treinador de futebol. Ninguém se livra desse

pânico. Recordo a história de Billy Wilder e Ernst Lubitsch, dois monstros

do cinema. Wilder havia escrito quarenta roteiros para Lubitsch e, um dia,

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decidiu fazer seu primeiro filme. E sentiu tanto pânico na noite anterior

que ligou para Lubitsch e disse que estava sofrendo um ataque. E Lubitsch

lhe disse: “Eu rodei sessenta filmes e sigo sentindo o mesmo pânico do

primeiro dia. E é melhor senti-lo, porque é o que faz você estar vivo…”.

No hotel em que estão concentrados, Pep usa o agasalho como qualquer

outro componente do elenco, porque a cerimônia ainda não começou.

Habitualmente são muito poucas horas no hotel e é um tempo que ainda faz

parte do trabalho de preparação. É ali onde se tem a última palestra, geralmente

de uns dez minutos, que começa sempre com Pep dando a escalação titular e o

plano (ou os planos) de jogo a ser empregado. Como as duas anteriores foram

baseadas na análise dos pontos fortes e fracos do adversário, nesta terceira e

última palestra o treinador concentra-se apenas em como seu time deve jogar.

São dez ou quinze minutos muito específicos, sem mensagens motivacionais,

focados no plano de jogo. Da conversa, eles vão direto para o ônibus e para o

estádio. Não haverá mais contato entre Guardiola e os jogadores até o início do

encontro.

Durante a hora que antecede a partida, o treinador troca de roupa,

vestindo-se para a cerimônia. Divide a sala com Estiarte, enquanto Domènec

Torrent se encarrega do time e de alguma emergência que possa ocorrer nesses

últimos sessenta minutos. Torrent, oito anos mais velho do que Pep, também é

emocionalmente mais frio. Seus pontos de vista são muito valorizados pelo

técnico. Por exemplo, Torrent reflete dessa forma sobre Pep: “Os tempos

mudaram muito e os preceitos antigos já não servem: hoje em dia é preciso

atuar sempre em função da realidade do rival, de como ele joga, de seus pontos

fortes e fracos, e temos de nos adaptar a eles. Sun Tzu disse que não importa se

o seu exército é muito superior ao do inimigo, sempre é necessário se adaptar à

realidade dele. Por essa razão é tão importante que nós saibamos dominar todo

tipo de variantes táticas”.

Pep não pisa no vestiário antes do jogo. Quando faltam quinze minutos,

Estiarte abandona a sala e o deixa completamente sozinho.

— Gosto de me concentrar no jogo, e para me concentrar bem, preciso

estar sozinho durante alguns minutos.

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Para ele, cada jogo é uma pequena culminação do caminho percorrido e da

obra trabalhada, por isso o grande significado que dá ao cerimonial prévio e

também à indumentária: ele quer se vestir como se fosse a uma festa de

importância. Porque é muito importante! É um símbolo que ajuda seus

jogadores a apreciar o valor e a transcendência que Pep confere à partida,

independentemente do nível: é a grande exposição pública em que todo o

trabalho deve ser mostrado, e é preciso se vestir de acordo com essa

transcendência. Quando faltam apenas três minutos para o apito inicial, Pep

pega duas garrafas de água e sai correndo para o banco… Começa a festa.

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BASTIDORES

A ENCRUZILHADA DO JOGADOR EM FORMA

Stuttgart, 9 de abril de 2016

Franck Ribéry se mostrou de novo em forma exuberante, e do mesmo

modo Lewandowski e Müller continuam vivendo uma seca: ambos estão

cansados e em má fase nas finalizações. É habitual que aconteça com os

atacantes; o problema é quando essa má fase ocorre para ambos no

mesmo momento da temporada.

A segunda razão da seca é estrutural e surge, paradoxalmente, do

bom momento que Ribéry vive. Sua presença dinamitou o ecossistema

de ataque instalado meses atrás. Lembrarei sucintamente como o

esquema funcionava: dois extremos jogando com perna natural (Coman

na direita, Douglas Costa na esquerda) e uma dupla de centroavantes

(Lewandowski e Müller). O circuito de ataque era muito simples: bola

para Müller, que ia até o círculo central para receber, gerando espaços

na defesa rival; o alemão cedia a bola a um dos lados e fazia carga contra

a área, movendo-se em direção diferente de Lewandowski; na lateral,

um dos extremos se encarregava de driblar o oponente e colocar a bola

na área para a finalização dos atacantes.

O rendimento da dupla ofensiva teve relação direta com esse

ecossistema e, muito especialmente, com os companheiros que

ocuparam as pontas. Vejamos os dados dos gols marcados, uma vez

descartados os de pênalti:

• Em setembro e outubro, sem Robben nem Ribéry (lesionados), e

com Coman e Costa jogando com perna natural, Lewandowski teve

média de 1,44 gol por jogo, e Müller, 0,33. Soma de ambos: 1,77 gol por

encontro.

• Em novembro, com Robben como extremo direito e Costa na

esquerda, com perna natural, as médias foram: Lewandowski, 0,5;

Müller, 1 gol por jogo. Soma: 1,5 gol por jogo.

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• Em dezembro, sem Robben nem Costa (lesionados), com Ribéry

jogando só 60 minutos e com o ecossistema inutilizado, a média caiu:

Lewandowski, 0,5; Müller, 0,33. Soma: 0,88 gol por jogo.

• Em fevereiro, com Robben na direita e Costa na esquerda, com

perna natural, a média voltou a subir: Lewandowski, 1; Müller, 0,62.

Soma: 1,62 gol por jogo.

• Em março e abril, com o retorno de Ribéry à esquer-da, sem

Robben (lesionado) e com Costa obrigado a jogar na direita, com perna

trocada, os números saem do prumo: Lewandowski, 0,33; Müller, 0,44.

Soma: 0,77 gol por jogo, a mais baixa da temporada.

Poderíamos deduzir que o rendimento goleador da dupla aumenta

quando os extremos que a acompanham jogam com a perna natural,

porque isso facilita o envio de bolas à área para finalização; e que

diminui quando os extremos jogam com perna trocada, ainda que não se

deva atribuir a presente seca de Lewandowski e Müller unicamente a

isso (e Ribéry não tem culpa nenhuma, é lógico), mas também à

coincidência de que ambos atravessam uma dessas clássicas fases ruins

dos finalizadores.

Mas é evidente que se produz um paradoxo: o estimulante retorno

de Ribéry ao time, ao qual agrega energia, drible, velocidade e bons

passes para gols, gerou um efeito pernicioso no ecossistema de ataque

que havia se consolidado e isso afeta, em especial, a Müller. Esse

paradoxo é um dos tantos que acontecem em um time de futebol ao

longo de seu caminho, em que sofre metamorfoses inesperadas. Em

certas ocasiões, a inclusão de um jogador excelente, em um grande

momento de forma, gera processos surpreendentes que provocam

consequências negativas para a dinâmica coletiva. Daí a

imprevisibilidade desse esporte.

O treinador deve avaliar essas disfunções e escolher o que é mais

rentável para a equipe. É evidente que, hoje em dia, Guardiola precisa ter

Ribéry em campo, embora ele reduza o rendimento da dupla

Lewandowski-Müller. O técnico está buscando um novo ambiente de

ataque que permita extrair o melhor de cada integrante. Não será

simples, porque restam apenas sete semanas de competição, no máximo,

e é pouco tempo para desenvolver esse novo sistema.

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Pep se debate em uma conjuntura perversa porque, no futebol, não

se pode ter tudo. Por um lado, ele queria o poder ameaçador de Robben

e Ribéry como extremos, os dois extremos de Heynckes em sua última

temporada, os dois de Guardiola em sua primeira temporada. O

sensacional Robben no drible e no chute, autor de 21 gols no primeiro

ano de Pep, individualista, focado sempre no gol. O formidável Ribéry,

dezesseis gols no primeiro curso de Pep, driblador inveterado,

incansável e elétrico, especializado em dar o passe para o gol de um

companheiro. Guardiola quis basear o jogo de seu Bayern nesses dois

homens: seria seu “Bayern dos extremos” (ao mesmo tempo que foi o

“Bayern dos laterais que jogam por dentro”). Mas a partir de 2014,

ambos foram encarando um sem-fim de lesões, de forma que

praticamente não coincidiram na equipe. Vários problemas sofridos pelo

Bayern se explicam por essa dupla ausência, como, há um ano, um

defensor do Barcelona reconheceu em conversa privada com a comissão

técnica de Munique: “Quando vimos que Robben e Ribéry não jogariam,

compreendemos que os eliminaríamos (nas semifinais da Champions).

Se você vê Müller ou Götze vindo, sabe que pode freá-los; se vê Robben

ou Ribéry, sabe que eles vão driblá-lo e superá-lo. Essas duas lesões nos

deram asas…”.

Exatamente por causa das lesões acumuladas por Robben e Ribéry,

que passaram mais tempo na enfermaria do que jogando, o clube e o

treinador buscaram alternativas confiáveis: Douglas Costa e Coman

foram os escolhidos e seu rendimento foi muito superior ao esperado.

Eles agregaram drible, velocidade, bom chute, desenvoltura e

criatividade. Jogando com a perna natural, catapultaram o rendimento

finalizador de Lewandowski e Müller até o ponto de que, no outono,

vimos o melhor “Bayern dos extremos” desses anos, mas com um

enfoque totalmente distinto do que Robben e Ribéry geravam: Costa e

Coman eram dois extremos que só se dedicavam ao drible e ao passe

para o centroavante.

Agora, Pep tem um problema. O regresso de Ribéry é uma excelente

notícia, mas decompôs o sistema de ataque que explora a melhor

finalização de Lewandowski e Müller. Pep gostaria de ter tudo, mas isso

é impossível. Como diz um dos cérebros mais privilegiados do futebol, o

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professor português Júlio Garganta, “em determinados momentos, é

necessário saber desviar o olhar, perceber que não se pode tocar todas

as teclas do piano ao mesmo tempo”. Pep até estuda a possibilidade de

escalar Douglas Costa como falso 9 em Lisboa. Faltam-lhe sete semanas

para encontrar uma fórmula que harmonize a intimidação dos dois

extremos veteranos, aproveite a energia dos dois jovens, encontre a

fluidez ofensiva e extraia a maior quantidade de jogo possível do dueto

de centroavantes. Não é simples, e ele não pode escalar cinco atacantes

sempre, porque os jogos que virão são enormes. E se Pep aprendeu algo

nesses anos, é que deve medir bem os riscos que pode correr.

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CAPÍTULO 12

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BULIMIA DE VITÓRIAS

A maior causa dos fracassos é querer

antecipar o sucesso. O sucesso chega

quando tem de chegar, não antes.

JOSÉ LUIS MARTÍNEZ

Para Guardiola, existe uma trilogia inseparável de objetivos:

• ganhar;

• jogar bem;

• emocionar.

Ele só alcança a satisfação e sente que teve êxito se consegue atingir os

três, de maneira simultânea e em grau de excelência (mas, mesmo assim,

encontrará defeitos por corrigir e não ficará plenamente contente).

Mas, e para os demais, onde está o limiar do sucesso? Já ouvimos Estiarte

mencionar a palavra triplete. Até 2009, era um termo que permanecia guardado

no baú das recordações históricas, mas agora dá a impressão de que não o obter

equivale ao fracasso. Aconteceu com Guardiola, em Munique, e também com

Luis Enrique, em sua segunda temporada no Barcelona. Em 37 tentativas desde

1976 até 2013, o Bayern só conseguiu ganhar duas vezes a Copa da Europa, mas

agora parece que sua obrigação é conquistá-la todos os anos. O mesmo acontece

com o Barça, que até 1992 não havia ganhado uma vez sequer e, desde então,

soma cinco títulos. Mas, quando não ganha, parece um desastre catastrófico.

Dou o nome de “bulimia de vitórias” a esse fenômeno dos tempos

modernos. Não possuo conhecimentos para afirmar que o fenômeno é

realmente um transtorno ou uma enfermidade, mas o descreverei: consiste em

não desfrutar dos grandes triunfos porque, já de imediato, é preciso projetar

novas conquistas. Ressalvando as distâncias lógicas, esse conceito implica viver

em permanente estado de ansiedade em torno dos resultados. É paradoxal, mas

quanto mais se ganha, mais se necessita seguir ganhando, e o “como”, o “quem”

e o “quê” vão ficando em segundo plano. O nível de obsessão que se estabelece

chega a ser tal que parece que o normal é viver em contínua insatisfação. O

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único momento de “não ansiedade” se restringe aos instantes em que se celebra

o gol, quando simplesmente nos deixamos levar, mas como nos envolvemos em

parâmetros “patológicos”, a vitória não nos nutre de verdade: apenas alimenta e

retroalimenta a ansiedade e a obsessão por uma nova fartura de triunfos. A que

se deve esse fenômeno? O que estimula essa tendência irrefreável?

No meu entender, é a confluência de duas energias díspares, mas

poderosas, que desembocam no mesmo objetivo: os clubes de futebol, em sua

nova faceta de marcas globais, e a indústria jornalística, em seu novo papel de

agitadora de emoções.

Alguns grandes clubes estão modificando sua personalidade e iniciaram

um processo inexorável de transformação em geradores de conteúdo que, como

tais, precisam de atores relevantes no cenário do marketing. Para isso, alguns

dirigentes sacrificam aspectos que pareciam intocáveis em suas entidades,

como o valor substancial dos sócios, o peso de sua longa história e, claro, a

importância que conferem ao próprio futebol. Sob o mantra da reconversão em

protagonistas do negócio de cifras enormes que é atualmente o esporte, esses

clubes desembocam na mencionada bulimia de vitórias. Deixa de ser

importante como o time joga, ou se o estádio recebe mais turistas desejosos de

ver estrelas famosas do que torcedores e sócios do próprio clube (por isso o

jogo não importa, e sim que os jogadores sejam famosos e vendam camisas). A

quota de receitas para captar se transformou no único aspecto relevante, para o

qual dois elementos são essenciais: os famosos e os triunfos. Esses clubes geram

uma nova dinâmica em que o núcleo do negócio, o core business, se transportou

da bola ao anúncio publicitário. Os impactos provocados pelo clube, entendido

como marca, são essenciais porque deles dependem novas fontes de renda. As

estrelas famosas são um instrumento imprescindível e a vitória se define como

a coroação da marca. Portanto, para esse tipo de clube, vencer sem cessar é

substancial para o negócio, sem interessar a maneira como vencem, e é por isso

que não podem saborear minimamente nenhum triunfo.

A outra grande força que trabalha nessa mesma onda é a indústria

jornalística. O que em outros tempos apresentava-se como um ofício artesanal,

o jornalismo foi desaparecendo em um processo selvagem de reindustrialização

que se acelerou na última década. Com ele, foram arrasados antigos paradigmas

jornalísticos e apareceram novos traços: o imediatismo, a superficialidade, a

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brevidade, o impacto… Embora ainda existam excelentes meios de comunicação

que praticam um jornalismo meticuloso, a tendência geral caminha em sentido

contrário: os meios, agora, são uma indústria de geração de conteúdos velozes e

sem profundidade. E coincidem precisamente com o mesmo objetivo dos

clubes.

Esse objetivo insere cada meio em uma espiral 24 horas por dia, sete dias

por semana, 365 dias por ano, na qual não existe descanso, pausa ou reflexão: é

um redemoinho sem fim, daí que tenham se multiplicado os erros jornalísticos

nos últimos anos, afetando reputações e pessoas, no mesmo ritmo em que

diminuíram os empregos, a extensão dos textos e sua qualidade. Se um tweet já

pode aparentar, às vezes, ser muito longo, qualquer manchete deve ser

suficientemente enganosa e atraente para gerar um clique. Esses meios também

encontraram seu novo core business: agitar emoções e provocar tensões.

Identificaram que emoções e tensões são as novas geradoras de receitas.

Essa confluência de objetivos e interesses entre clubes e meios de

comunicação deixa muito pouco espaço para que um treinador tente ser

pedagógico ao falar de futebol em suas aparições diante da imprensa. Os

técnicos perderam essa batalha. Há pouco mais de um ano, assisti a uma de

tantas demonstrações disso: durante a entrevista coletiva prévia a Bayern ×

Porto, Guardiola se estendeu por quatro minutos em detalhadas explicações

sobre o jogo do time português, especificando as características de cada um dos

futebolistas rivais. Sentados ao meu lado, os jornalistas alemães comentaram:

“O que nos importa como o Porto joga?”. Naturalmente isso não importa para o

negócio. Nem na Alemanha, nem na Espanha, nem na Inglaterra, nem em

nenhuma outra parte. O que adquire caráter relevante é se um treinador rasga a

calça no banco, se faz uma careta ou se bebe champanhe em vez de vinho,

porque isso gera impactos midiáticos. O jogo? O futebol? É só um pretexto

dentro do ciclo de geração de receitas. Com sua lucidez proverbial, Marcelo

Bielsa se referiu a isso quando disse: “Se algo se transformou em obstáculo para

a comunicação com as pessoas, foi o negócio jornalístico”. O problema não são

os jornalistas, mas a indústria jornalística.

O torcedor médio vive submetido à pressão dessas duas poderosas forças,

clubes e meios de comunicação, que por caminhos diferentes têm o objetivo

comum de produzir conteúdos impactantes. Assim, o torcedor é bombardeado

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com a mesma mensagem: só vale ganhar. Mas não se trata de ganhar de vez em

quando, como ocorreu ao longo de toda a história deste esporte, mas agora é

preciso ganhar sempre, de forma continuada e repetida, em um caracol que

deve ser infinito, pois, do contrário, estaremos falando de fracasso. Esse

fenômeno se instaurou naturalmente até o ponto em que se vê com

normalidade o grau desmedido de pressão e exigência sobre técnicos e

jogadores, e a vitória perdendo seu caráter extraordinário. Por quê? Porque

agitar a frustração dá muito resultado. Há muito mais frustrados do que

vencedores, quantitativamente falando. Porém, o rastro que os vencedores

deixam, tão antagônico mas tão potente, é mais do que suficiente para que a

massa frustrada compartilhe o desejo de vitória, ainda que por intermédio de

emoções obscuras.

A EXCEÇÃO É GANHAR

Roma, 18 de fevereiro de 2010

Diz o treinador argentino Julio Velasco, duas vezes campeão mundial e

vice-campeão olímpico de voleibol, bom amigo de Guardiola: “O esporte

ensina e serve para que se aprenda a perder, além de ganhar. Serve para se

aprender que, para ganhar, é preciso fazer as coisas bem, é preciso se

sacrificar, ser eficiente e dar importância às coisas importantes e às coisas

menos importantes, ainda que o preço a pagar seja muito alto. Mas serve

também para se aprender a perder. O verdadeiro esportista sabe que não

se pode ganhar sempre. A exceção é ganhar sempre. O normal é alternar

entre a vitória e a derrota”.

O ciclo da canibalização e da bulimia está instaurado: sempre se pode

ganhar mais. O treinador e os jogadores que mais ganham são o centro das

atenções em um universo onde fobias são a base das emoções mais primitivas e

mais facilmente agitáveis por alguns meios de comunicação. E, por sua vez, o

excesso de controle como necessidade para levar o negócio até não se sabe que

limites, por parte da imprensa e dos clubes, faz com que alguns olhem para o

outro lado e não fomentem aspectos essenciais da ética e do equilíbrio, aspectos

que “atrapalham” a obtenção de objetivos por uma via mais fácil e rápida, tão

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distante do tempo necessário e coerente que todo projeto requer. Guardiola é

consciente disso:

— Acontece em todas as partes. Ou você ganha, ou é massacrado. Só serve

ganhar. Não há o menor respeito pelo trabalho do treinador.

Dessa maneira, para que desfrutar do triunfo de hoje se temos de nos

debruçar sobre o triunfo de amanhã porque necessitamos de mais fartura

ainda? Quando algo se transforma em obsessão para nós, precisamente o que

fazemos é não saborear, não desfrutar e, o pior… não aprender. Descrevo esse

fenômeno como um transtorno social, que rompe a realidade essencial do

esporte, por isso se assemelha etimologicamente à bulimia: nenhuma vitória é

suficiente porque nenhuma sacia a voracidade dos meios e dos clubes. Nessa

dinâmica perversa, o torcedor é vítima e também impulsionador do círculo

vicioso. Em lugar de desfrutar do sucesso e considerá-lo uma bênção, fruto do

trabalho meticuloso de um coletivo, e valorizá-lo como uma das múltiplas

opções que o esporte oferece, a sociedade do futebol devora o triunfo em um

instante, de um bocado, sem saboreá-lo, e imediatamente reclama mais comida,

mais êxitos, mais fartura, mais e mais… É um transtorno dos tempos modernos,

uma “enfermidade” da cultura do imediatismo. Já, aqui e agora, tenho o que eu

desejo. Para isso, só é necessário sentir que o controle está nas nossas mãos. E a

verdade é que não existe nada mais distante e antagônico em relação à natureza

do esporte e do futebol, justamente a atividade esportiva mais incerta e menos

controlável das tantas que se praticam.

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12.1. ALINHADOS NO MESMO COMPRIMENTO DE ONDA?

Muitos dizem que as utopias são idiotices.

Mas, em todo caso, são idiotices vitais.

Um professor que não deixa seus alunos

pensarem em utopias e se equivocarem é

um professor muito ruim.

RICHARD SENNETT

Que padrão de medida o Manchester City usará com Guardiola? Essa é questão

fundamental da etapa inaugurada em julho de 2016. Não conheço a resposta,

mas temos indícios dela.

O Manchester City não é um simples clube inglês. Sua propriedade possui a

estrutura de uma corporação global, com ramos em numerosos países: é uma

multinacional do futebol. Do ponto de vista empresarial, é impecável; do

futebolístico, ainda não sabemos. Por um lado, é evidente que seu core business

está precisamente na geração de receitas elevadas mediante a criação de

conteúdos de impacto — conforme mencionamos nas páginas anteriores —,

com um acréscimo interessante: sua visão global, através de distintas marcas

em diferentes países, lhe confere um selo corporativo singular, o da

globalização. Mas, por outro, já detalhamos os riscos esportivos associados a

tudo isso.

Se a exigência que o City apresenta a Guardiola consiste em logo obter um

sem-fim de vitórias e o próprio triplete, então serão muito elevadas as

possibilidades de que se produza uma decepção geral, porque Guardiola não

possui uma varinha mágica nem pode garantir a segurança dos triunfos

permanentes. Na divertida conversa que Pep manteve dentro de um táxi com

Braydon Bent, o jovem torcedor lhe disse: “Com você podemos ganhar todos os

títulos, os quatro troféus!”. É um sintoma, simpático de momento, mas um

sintoma da expectativa que a torcida citizen pode ter interiorizado desde o

primeiro minuto.

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Pep pode garantir trabalho exaustivo, dedicação absoluta, que deixará a

vida por seu novo clube para construir um excelente time que jogue de forma

magnífica e alcance vitórias. Mas não pode assegurar o triunfo permanente.

AS CINCO RAZÕES DE BIELSA

Munique, 11 de dezembro de 2014

Manuel Barreto, treinador peruano amigo de Claudio Pizarro, assiste ao

treinamento do Bayern. A presença de técnicos é habitual em Säbener

Straße, e eles chegam de todas as partes do mundo para presenciar as

sessões de preparação de Guardiola, que costuma acolher essas visitas com

prazer, dedicando a elas sempre uma boa porção de seu escasso tempo

livre. Barreto vem de Marselha, onde visitou Marcelo Bielsa e viu um par de

treinamentos. Em uma dessas sessões, Bielsa tinha em mãos um grosso

documento de análise sobre o Nantes, o rival iminente do Olympique, e em

plena conversa com Barreto, o treinador argentino expôs uma ideia

interessante que reproduzo aqui:

— Uma partida pode ser vencida por cinco razões — explicou Bielsa.

E as detalhou:

— Porque um time é melhor. Pela condição física superior. Pelo acerto

tático ou técnico. Pelo coração. E a quinta razão possível é esta — e

apontou o livro com a análise do rival.

Guardiola escutou, interessado, as cinco razões de Bielsa que Manuel

Barreto reproduzia e concordou:

— Marcelo tem razão. E, além disso, deveríamos acrescentar outra: o

acaso.

A inteligência dos diretores do City, e especialmente do presidente

Khaldoon Al Mubarak, terá uma grande importância na trajetória de Guardiola

no clube azul. Se as exigências forem desenhadas em termos de imediatismo e

urgência, e não com ênfase no projeto e na estabilidade, tudo será muito

diferente. Se a missão de Pep é erguer uma equipe competitiva e dotá-la de uma

identidade categórica de jogo e de forte caráter, a missão do clube deve ser

alinhar a torcida no mesmo comprimento de onda que o treinador vier a

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demarcar. Escreveu John Berger na biografia de Picasso: “Para que um quadro

tenha sucesso, é indispensável que o pintor e o público estejam de acordo em

relação a seu significado”. Se transportamos o conceito para a nossa matéria, há

aí uma tarefa muito importante para o comando do Manchester City e também

para Pep: explicar detalhadamente aos seus torcedores qual é o caminho exato

que se escolheu tomar com sua contratação. É uma tarefa similar a dar um

passe no futebol: para que seja efetivo, não basta que só o passador ou só o

recebedor acerte. Ambos precisam acertar. Um fazendo o passe e o outro

recebendo-o.

O primeiro movimento foi um acerto. No domingo, 3 de julho de 2016, os

arredores do Etihad Stadium viveram uma jornada especial para receber seu

novo treinador. O ato foi projetado pessoalmente por Ferran Soriano, executivo

chefe do clube, e teve um único eixo estratégico: proximity (proximidade). O

clube buscava que treinador e torcida se conectassem imediata e intimamente.

Pep se apresentou vestindo roupa esportiva e informal, e respondeu as

perguntas dos fãs que, com cervejas nas mãos, queriam saber o que podiam

esperar de seu novo técnico. Foi um evento totalmente diferente da magnitude

de sua chegada a Munique três anos antes, quando a relevância dada a

Guardiola parecia significar quase a presença de um messias, ou um superhomem.

Para ser útil, toda experiência deve ser interiorizada, contemplada e

aproveitada: Pep tirou conclusões interessantes da ocasião que viveu em 2013

em Munique, dividiu-as com Soriano e o resultado foi o que se viu no primeiro

domingo de julho em Manchester: um evento sem solenidade, mas alegre e

festivo, popular e simples, no qual se estabeleceu a conexão técnico-torcedores.

O objetivo de ver todos se alinharem na mesma onda foi definido com um bom

primeiro passo, e a ideia teve continuidade depois dos agradáveis encontros de

surpresa com os fãs no táxi de Chappy e a conversa com Noel Gallagher. Clube e

treinador deram prioridade à proximidade e à comunicação direta de Guardiola

com o torcedor, sem intermediários, e isso não é casual, mas um movimento

estratégico.

Em sua primeira entrevista coletiva em Manchester, Pep se apresentou

como alguém de perfil discreto, apontou expectativas moderadas, rechaçou

chegar à Inglaterra para ensinar, e disse que vinha para aprender (no que está

totalmente certo), revelou seu sonho de conhecer diferentes cenários,

ambientes e entornos lendários, com os quais não estava acostumado, e definiu

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o verdadeiro foco do time: criar o espírito de equipe, conseguir jogar bem,

emocionar o torcedor, fazê-lo se sentir orgulhoso e feliz, e tratar a vitória

unicamente como resultado de todo esse processo. Mais do que inteligente, Pep

foi astuto.

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12.2. QUEM QUISER COMPREENDER, COMPREENDERÁ

… desdenhando de toda aparência, busca

a essência entranhando-se nas profundezas.

FAUSTO, GOETHE

Guardiola possui uma camaleônica capacidade para modificar a disposição de

seu time ao longo dos noventa minutos, o que por sua vez conduz a um

labirinto: essa capacidade se choca com os clichês estabelecidos, com as pautas

e as tradições, e com os tópicos reinantes no futebol, um esporte em que tudo o

que se distancia desse universo de pensamentos convencionais é considerado, a

princípio, suspeito e até frívolo. A incompreensão dos fenômenos que ocorrem

diante de nossos olhos costuma gerar uma reação de desprezo, em vez de

provocar curiosidade por averiguar a essência dessa novidade. Nesse sentido,

Guardiola está e estará sempre submetido ao escrutínio dos convencionalismos

dominantes: como não compreendem o que ele propõe, não só o ignoram, mas o

criticam com desprezo. Em vez de examinar sua capacidade instantânea para

introduzir modificações durante as partidas e agregar pequenas inovações,

costuma-se avaliar as intervenções do treinador ao refletir sobre sua equipe

com termos negativos. Isso já acontecia em Barcelona, onde todo movimento

que não se compreendia era qualificado de imediato como “invenção” ou

“guardiolada”.

É indiscutível que não é simples averiguar e compreender tudo o que Pep

faz. É preciso estar mentalmente muito preparado para entender Guardiola.

Diria mais: não se trata de saber muito ou pouco de futebol, mas de uma

questão de curiosidade, de aceitação do valor do pensamento não convencional,

da necessidade de questionar os estereótipos. Em vez de se perguntar, com

gesto indignado, como é possível que Guardiola escale determinados jogadores

no lugar de outros, ou os disponha de um modo específico, ou modifique a

formação dez vezes, ou que não repita os mesmos homens após uma grande

atuação, o que é imprescindível é observar os acontecimentos com vocação de

investigador. Para compreender Pep, é preciso fazer como o naturalista que vai

a um bosque para observar como canta um pássaro. É preciso ir aos jogos de

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Pep com telescópio e microscópio. E, sobretudo, sem preconceitos. Se formos

pensando “tem de fazer isso ou aquilo”, começamos mal, porque nosso

pensamento já está predisposto e condicionado. Open mind.

Suas partidas não são um concerto sinfônico de partitura fixa e conhecida.

Com Pep, um lateral não tem por que ser só um lateral, nem um meio-campista

precisa ser alto e musculoso, do mesmo modo que o goleiro deve se portar tão

bem com os pés quanto com as mãos. As coisas não são firmes, mas líquidas, e

tudo está por ser feito em cada jogo e em cada momento. A ortodoxia de

Guardiola é não ser ortodoxo. A verdadeira ideologia de jogo de Guardiola é a

evolução.

TEMOS MUITO A MELHORAR

Barcelona, 27 de junho de 2016

Em seu domicílio de Barcelona, se empilham as quinze malas e 87 caixas

que guardam a mudança que veio de Munique e que, dentro de algumas

semanas, irá para Manchester. Dentro de sete dias, Pep estará treinando

seu novo time e ele não para de dar voltas e voltas com novas ideias.

— Você não acha que o futebol tem um grande campo para

desenvolvimento pela frente, e está atrasado em relação a outros esportes?

— Sim. Temos de incorporar muitos aperfeiçoamentos que os outros

esportes desenvolveram e [por isso] estão mais avançados. Nos falta muito

caminho para percorrer até nos colocarmos no nível de outras disciplinas.

Não em todos os aspectos, veja, mas em alguns. Não é verdade que tudo já

foi inventado ou, ao menos, não é verdade que tudo já foi aplicado. Temos

muito campo de melhora e inovação.

Possivelmente seja assim, em parte, pela curiosidade quase infantil com

que ele observa tudo; e, sem dúvida, é fruto dos grandes treinadores com quem

rivalizou e das constantes reações em forma de antídoto que foram aplicadas às

suas propostas. Por ambas as razões, Pep entende o futebol como um ser vivo

em permanente mudança. E por isso, perguntar qual é sua verdadeira ideia de

futebol, seu esquema preferido de jogo ou seu 11 titular equivale a concluir

sempre o mesmo ponto: depende. Depende do momento, do rival, da análise das

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próprias forças, das fraquezas alheias, das interações que ele percebe em seus

homens, das reações criadas pelos treinadores adversários, até do que ele sente

em um determinado momento…

Para Pep, o futebol não é uma foto fixa, mas um filme em movimento cujo

roteiro se reescreve diariamente. Entretanto, alguns de seus gestos nunca

mudam. Essa mensagem vai para o menino Braydon Bent: se Pep coça a cabeça,

é porque algo o preocupa (não exageremos: às vezes sua cabeça simplesmente

coça…). Por outro lado, se esfrega ou aperta a testa, não é nenhum sinal de

preocupação, está apenas buscando a palavra adequada para se expressar. O

que mais o incomoda durante uma partida não é que um jogador execute mal

uma ação, mas que não cumpra o que foi treinado; neste caso, ele se volta para o

banco e se senta ao lado de Torrent, irritado porque trabalharam arduamente

aquele movimento e o jogador esqueceu… Como ocorre com Antonio Conte, Pep

também “joga” a partida de sua posição na lateral: ainda se sente jogador e

“participa” de cada ação, por isso se move sem parar, agitando os braços,

gritando, como quando jogava no meio de campo.

Ele gosta de desenhar as partidas com vários “trajes” dentro delas, como se

fossem as matrioskas russas. Além disso, gosta de checar o pulso dos jogos que

disputa. Frequentemente Pep os inicia de um determinado modo com o simples

objetivo de ver como o rival responde. Tendemos a ver o futebol apenas a partir

da equipe dominante, da equipe grande, mas se trata de um confronto, um jogo

de oposição. Salvo quando se enfrentam times de qualidades muito diferentes,

em geral um conjunto não impõe facilmente sua lei, mas deve “negociá-la” com

o adversário. E desse duelo, desse embate, dessa negociação, o futebol explode

em sua autêntica dimensão. Consciente disso, Pep gosta de começar as partidas

sem revelar todos os seus planos, como nos combates de boxe, em que há um

assalto de estudos.

O PARADOXO DOS FEIJÕES SECOS

Barcelona, 11 de novembro de 2010

Guardiola utiliza um conceito curioso para definir os minutos de estudo

que seu time pratica no início dos jogos: é o “paradoxo dos feijões secos”,

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que ele aprendeu durante sua longa passagem por La Masia, a academia do

Barcelona:

— Há jogos em que você imediatamente percebe que as coisas não vão

bem. Então, sempre me vem à cabeça a frase de Charly Rexach: derrube no

prato os feijões secos, os não cozidos, esses que estão duros como pedra, e

veja que uns ficam em cima dos outros, mal colocados, mas pouco a pouco

você vai movendo o prato com suavidade e os feijões vão se colocando cada

um em seu lugar. Pois no futebol acontece o mesmo. É genial. Você está

vendo uma partida e um jogador não funciona, mas você pensa: tranquilo,

dê tempo para que todos achem o seu lugar…

E acontece!

Cada jogador se assenta em seu lugar simplesmente porque os minutos

passam? “Não, eles se assentam por causa do sucesso nas interações. Pela

maneira como as interações com o companheiro vão crescendo dentro do

campo, confrontadas com o que o rival propõe”, responde Seirul·lo.

Para compreender como Guardiola encara as partidas é necessário vê-las

com a predisposição adequada. Seu pensamento não é convencional; ele dá

atenção muito específica às características do rival, o que influi poderosamente

na escolha dos jogadores que escala, que por sua vez estão submetidos a um

regime elevado de rotatividade; os planos de jogo são prioritários, variados e

flexíveis, e muito mais importantes do que o módulo ou o sistema; Pep

frequentemente utiliza ideias antigas do futebol, aplicadas a novas

circunstâncias; e a escalação titular e o módulo de jogo inicial são pontos de

partida para sondar o adversário e tratar de desenvolver o próprio jogo para

alcançar a vitória. Os pais de Braydon Bent deverão lhe explicar muito bem

todos esses detalhes para que o menino compreenda como o time jogará com

seu novo treinador.

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BASTIDORES

O ESCANTEIO DE LISBOA

Lisboa, 13 de abril de 2016

Em cada partida importante, a comissão técnica escolhe uma jogada de

bola parada de seu catálogo. Para jogar contra o Benfica, pelas quartas

de final da Champions, no Estádio da Luz, a escolha é o “escanteio Javi”.

Dará resultado, e não por casualidade. Os ensaios de segunda e terçafeira

foram exaustivos. O time executou esse tipo de escanteio por volta

de quarenta vezes. Fechados pela cortina cinza do campo n. 2 de Säbener

Straße, os jogadores repetiram, sem parar, uma ação que exige

coordenação e esmero. E cada um dos protagonistas fundamentais

analisou a jogada, em vídeo, não menos de doze vezes.

A inspiração surgiu observando o encontro entre Zenit e Benfica,

pelas oitavas de final. Um dos sete escanteios cobrados pelo time local

despertou, aos olhos de Carles Planchart e Domènec Torrent, uma

potencial fragilidade na defesa por zona do campeão português, que

marca com seus onze jogado-res dentro da área: dois deles se situam no

interior da pequena área, perto do primeiro poste; outros quatro

formam uma primeira muralha sobre a linha da área menor; e os demais

quatro se distribuem ao redor da marca do pênalti, mas todos eles mais

próximos da primeira trave. Só um defensor benfiquista se posiciona

perto do segundo poste. Por parte do Zenit, cinco jogadores ficam na

expectativa para o arremate, na parte mais distante da área em relação à

bola.

Em São Petersburgo, a jogada terminou sem graves consequências,

mas a comissão técnica do Bayern não ignora esse tipo de detalhe e

desenha uma ação estratégica com três características: distração,

precisão e antecipação. Vinte vezes na segunda, e outras vinte, na terça,

eles repetem a sequência, com lançamentos de Douglas Costa (perna

trocada) e Xabi Alonso (perna natural). Só um jogador se situa entre os

defensores rivais; os restantes esperam no limite da grande área: dois na

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região mais distante (os melhores cabeceadores) e três na parte mais

próxima. Para ser efetivo, o escanteio deverá ser longo e forte; o

cabeceio precisará ser suave e quase paralelo à linha do gol; e o jogador

que efetuar a finalização terá de se infiltrar entre quatro ou cinco rivais

que estarão correndo na direção oposta. O acerto nos treinamentos, sem

oposição, ronda os 60%.

E no minuto 52 do jogo em Lisboa, o Bayern tem o segundo

escanteio a seu favor. É o momento preciso. Os finalizadores se

dispersam em dois grupos. No vértice distante da pequena área, apenas

Ribéry se coloca entre dois adversários; Javi Martínez e Arturo Vidal

esperam sobre a meia-lua, totalmente livres, dissimulando. Na mesma

meia-lua, mas na vertical do primeiro poste e longe dos quatro

defensores portugueses que marcam por zona, Müller, Thiago e

Kimmich dão a impressão de que não entrarão em ação direta. O Benfica

tem seus onze homens dentro da área e apenas um rival a quem marcar,

Ribéry. A cobrança de Xabi Alonso é longa, a bola voa alto e com uma

curva de fora para dentro, o que faz girarem os nove defensores que

olhavam de frente para o lançamento: só um deles, Eliseu, o mais

próximo de Ribéry, vê a bola chegar de frente; seus outros companheiros

têm de girar 180 graus. A bola desce sobre a única zona em que não há

marcadores, e ali está precisamente Javi Martínez, que pode saltar com

plena liberdade e cabecear para o lado oposto. Um cabeceio direto para

o gol teria sido, provavelmente, repelido pelo goleiro Ederson, que

cobria bem a posição, mas um passe de cabeça (e é isso que Javi faz) é

indefensável. A bola tocada pelo espanhol cruza a pequena área em

direção oposta àquela em que vinha, os defensores que giraram 180

graus têm de fazer outro giro no sentido contrário, já sem a menor

capacidade de deter os três atacantes que aparecem de trás e se

infiltram entre eles. De novo, o gol chega por intermédio dos que “não

estão”, mas aparecem para finalizar. Müller marca, embora às suas

costas, Thiago e Kimmich cheguem em posição parecida, também em

condições de anotar.

O estouro de euforia do Bayern tem um destinatário óbvio:

Domènec Torrent. Guardiola aponta instantaneamente para ele e corre

para abraçá-lo, felicitando-o pelo brilhantismo da ação desenhada.

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Ribéry faz o mesmo e a equipe completa se reúne no banco. Festejam a

já quase assegurada passagem à semifinal da Champions, mas também o

fruto do trabalho dos dias anteriores: não só ensaiaram sobre o campo,

mas, várias vezes na própria quarta-feira, Alonso, Javi Martínez, Ribéry,

Müller e Thiago, na companhia de Torrent e Planchart, revisaram o

vídeo. O “escanteio Javi” sentencia a eliminatória em Lisboa.

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CAPÍTULO 13

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O MAIOR DESAFIO

Quanto piores são os

antecedentes, mais valiosa é a vitória.

CHRISTIAN THIELEMANN

A experiência na Alemanha lhe foi muito útil em outro sentido: Guardiola

experimentou a importância de atuar como diretor-geral do vestiário. O futebol

inglês foi pioneiro em desenvolver essa figura, sob a denominação de manager,

graças ao poderoso impulso de Herbert Chapman, o deslumbrante técnico que

rompeu paradigmas nos anos 1920, e que aparece nos livros de história por sua

contribuição tática (o 3-2-2-3, o wm), embora mereça ainda maior destaque

pelas inovações de todo tipo e pela modernização que provocou na gestão de

uma equipe: desde a numeração das camisas até a iluminação artificial do

estádio, passando pela preparação física, a análise tática, os tratamentos

médicos e outros pequenos detalhes que compuseram o manual do futuro

manager de futebol. A figura se propagou pela Inglaterra, mas não da mesma

forma no resto da Europa, e ainda hoje se observa essa significativa distinção.

Os partidários continentais de que o treinador seja apenas treinador, sem

maiores responsabilidades de gestão, argumentam que a orientação esportiva

do clube não pode ficar a cargo de uma pessoa que muito possivelmente só

permanecerá na entidade durante um breve período de tempo. É um argumento

muito razoável e lógico. Pelo contrário, os partidários de que o técnico deve

possuir maiores cotas de responsabilidade e atuar como manager entendem

que só a gestão integral pode ser verdadeiramente eficiente. A história nos

mostraria bons e maus exemplos de ambas as opções. Minha intenção não é

debater qual é melhor, mas descrever o que Guardiola expôs durante sua etapa

alemã.

— Parece conveniente que o treinador seja o diretor-geral do vestiário.

A reflexão de Pep ia numa direção diferente da que o leitor imagina. Ele

não se referia à gestão esportiva em matéria de contratações, mas à integração

harmônica de todas as áreas que compõem uma equipe: serviços médicos,

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fisioterapia, reabilitação, nutrição, análise, big data, equipes juvenis… Diz

Estiarte: “No esporte de elite, as grandes diferenças se estabelecem, muito

frequentemente, por um pequeno detalhe. Esse 1% às vezes lhe dá ou lhe tira

um título”. A diferença entre chegar a uma final de Champions League e não a

alcançar pode residir, para mencionar um caso real, na recuperação pelo rival

de um jogador-chave como Godín, enquanto você não consegue recuperar

alguém essencial como Robben. O esporte de alta competição se parece com

uma operação cirúrgica de risco: para ter êxito, é preciso estar afinado ao

máximo, e, em algumas ocasiões, esse 1% significa ser ou não ser, porque a elite

vive sempre no limite, à beira do precipício: uma melhora mínima é capaz de

provocar importantes vantagens competitivas.

Ainda que tenha sido um marco histórico para o clube, a semifinal da

Champions que o Manchester City disputou no Santiago Bernabéu de Madri

deixou sabor amargo. Como disse Vicente del Bosque, em certa ocasião, “a

apatia é o veneno dos vestiários”, e o City passou uma impressão de time

apático e pouco combativo. Mais do que o próprio jogo e suas ideias, o que

alarmou a direção do clube foi a aparente carência de energia, sobretudo

mental. A unanimidade a respeito do baixo espírito competitivo foi

surpreendente.

Foi um jogo que convenceu a direção de que a mudança de rumo deveria

ser contundente. E que reafirmou a mesma ideia para Guardiola: não bastaria

retocar alguns detalhes, seria preciso realizar uma profunda remodelação. Em

uma visita a Dubai, no princípio de julho, ele percebeu que era imprescindível

contratar uma cifra elevada de novos jogadores, entre outras razões, porque o

elenco que chegou às semifinais europeias e à quarta posição na liga inglesa

tinha três características muito significativas:

• mais da metade dos jogadores (doze em 23) superava os trinta anos de

idade;

• dezessete desses 23 tinham 28 anos ou mais;

• só quatro futebolistas tinham 25 anos ou menos.

Sob essas circunstâncias, além do próprio modelo de jogo que pretendia

implantar, o treinador informou o presidente e o diretor esportivo do City a

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respeito dos perfis que necessitava, e os dividiu em duas áreas:

• a coluna vertebral defensiva;

• os novos extremos.

O objetivo principal e grande prioridade foi criar o núcleo da organização

defensiva, a obsessão número 1 de Guardiola em todas as suas equipes. Esse

núcleo estava composto pelo goleiro, os defensores centrais e o meio-campista

central. Pep identificou seus candidatos e as gestões começaram de imediato.

Uma delas se efetivou bem rápido (Gündoğan), outra não se concretizou

(Laporte) e as outras duas (Stones e Bravo) levaram várias semanas de

negociação; e também foi necessário que Pep conhecesse e avaliasse de forma

direta os jogadores que já estavam no elenco, para saber com quais poderia

contar com todas as garantias.

Em paralelo à contratação da coluna defensiva, o diretor esportivo, Txiki

Begiristain, incorporou dois novos extremos (Nolito e Sané), figuras que são

determinantes no tipo de jogo que Guardiola pratica. Assim como em relação ao

primeiro grupo, o treinador identificou poucos candidatos. Ainda que os meios

de comunicação tenham lançado enormes listas de supostos desejos do

treinador, esses palpites para contratações não tiveram o menor fundamento.

Pep manejou em todos os momentos uma lista muito sucinta e reduzida, que

combinou com Khaldoon e Txiki em Dubai.

Uma vez asseguradas a coluna vertebral defensiva e a chegada dos

extremos, iniciou-se a terceira fase. E neste ponto foi primordial o rendimento

dos jogadores durante a pré-temporada. Guardiola passou a dispor de um

núcleo coerente com suas ideias de jogo, ao qual se somaram, além dos jovens

promissores da base, os jogadores de grande categoria que já estavam no

elenco: Silva, De Bruyne, Kun Agüero e Fernandinho, além de Sterling,

recuperado fisicamente.

Antes de conhecer seus jogadores pessoalmente, Pep os estudou em

detalhes. Durante sua apresentação aos torcedores, perguntaram-lhe o que

valorizava em um futebolista, e a resposta foi condizente com o que havia

expressado na semana anterior, sentado no sofá de sua casa: “A primeira coisa

que vejo é se é um bom companheiro”. Um ano antes, Pep disse a seu amigo

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Pato Ormazábal: “Para ganhar, um grande time precisa de bons reservas. O que

mais me interessa em um jogador é seu histórico como suplente, saber como se

comporta na dificuldade. Se foi um bom suplente, me interessa. Se ele se

comportou mal nesses maus momentos, provavelmente não o contratarei”.

O VÍDEO DE ALABA

Munique, 24 de novembro de 2015

David Alaba postou no Twitter um vídeo muito simpático, mostrando

gestos de alegria pelos quatro gols marcados por seus companheiros no

jogo contra o Olympiacos. Lesionado três dias antes, no encontro com o

Schalke, Alaba viu o jogo da Champions da tribuna.

— Dome — disse Pep, dirigindo-se a seu auxiliar —, temos de guardar

esse vídeo para utilizá-lo algum dia em uma palestra e mostrar o que é o

bom companheirismo. David é um grande exemplo de humildade para

todos. E também temos de pegar imagens de Xabi Alonso se sacrificando

em uma cobertura que não era responsabilidade dele. Temos que ensinar

os exemplos dos jogadores que se sacrificam fazendo coisas que não são

suas atribuições.

Em uma conversa após um treinamento matinal em Munique, Juanma Lillo

comentou com Pep sobre outro traço que, no seu entender, é decisivo em

qualquer futebolista de categoria: “Quando formos observar um jogador que

talvez queiramos contratar, temos de nos concentrar em um dos valores que me

parecem mais importantes neste momento: se tem a capacidade de conviver

com a proximidade de um adversário. Se mantém ou não mantém a calma

quando tem rivais às costas, porque se sentir pressionado não é o mesmo que

estar pressionado. Há aqueles que não só são capazes de conviver com a

proximidade do rival, mas também com sua ameaça, como Andrés Iniesta, que é

capaz de tomar um ou dois cafés bem quentes enquanto está sendo fustigado…

Ou seja, se quando estiver pressionado, [o jogador] se desfaz da bola, mau sinal.

Mas se ele não muda quando se aproximam, isso é bom. É este que devemos

contratar!”.

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Guardiola diz: “Eu só pergunto: Esse jogador dribla? Eu quero jogadores

que driblem. É a principal pergunta que faço. Quero laterais que driblem e

defensores centrais e meios-campistas centrais e interiores e extremos que

driblem. Porque controle e passe se pode aprender. Agora, a capacidade para

driblar e avançar é chave”.

A contratação de jogadores ocupou uma parte importante do verão de

Guardiola, mas não menos relevante foi sua implicação na renovação dos

auxiliares da equipe. Ele levou muito a sério o que aprendeu em Munique e

atuou ativamente para se cercar dos recursos mais modernos na área médica,

de prevenção e reabilitação, e de nutrição e análise, envolvendo-se diretamente

com métodos e pessoal.

Pep confere grande importância à questão nutricional dos jogadores, como

já comprovamos em sua passagem por Munique. De forma acertada, considera

que a alimentação do esportista incide consideravelmente em seu rendimento.

Quer que os jogadores tomem café da manhã e almocem (antes e depois de cada

sessão de trabalho) na própria cidade esportiva do clube para garantir seu

desempenho durante o período de esforço, e também sua recuperação, tanto em

termos energéticos quanto no fisiológico e muscular.

Pela mesma razão, depois dos jogos em casa, todo o elenco está obrigado a

jantar no próprio estádio, segundo as diretrizes e cardápios estabelecidos pela

nutricionista e, salvo exceções, não é permitido que jantem algumas horas mais

tarde, em casa ou em um restaurante. O estado físico do futebolista é crucial

para que suporte bem a tensão competitiva ao máximo nível, premissa que os

principais protagonistas do jogo nem sempre têm em conta: o corpo é sua

ferramenta de trabalho, e não são poucos os que, com frequência, parecem se

esquecer disso.

Como todo bom treinador, Pep é consciente de que, para conseguir uma

ótima recuperação fisiológica, seus jogadores precisam repor imediatamente os

depósitos de glicogênio muscular, reparar os danos nos músculos devidos ao

grau de esforço e se reidratar convenientemente. Sabe que é preciso aproveitar

a “janela metabólica” pós-esforço, uma situação em que o organismo está

especialmente receptivo para a captação de nutrientes, o que favorece a

recuperação.

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É uma prática que Guardiola implantou no Barça, ampliou no Bayern e

incrementará em seu novo clube. A contratação de uma nutricionista foi uma

das primeiras tarefas que ele determinou quando chegou ao City, por isso

realizou o casting pessoalmente.

O treinador entende, ademais, que o esporte de alto nível exige a excelência

no aspecto da composição corporal. Quer que seus jogadores estejam ágeis e

fortes, sem excessos de peso e de gordura, e também sem hipertrofias

musculares. Para atingir essa excelência, os programas nutricionais

individualizados são essenciais.

Na televisão do clube, o presidente Khaldoon expressou suas expectativas:

“Não tenho dúvidas de que Pep transformará nossa equipe e a conduzirá a um

novo nível. Temos muitas expectativas graças à paixão e ao compromisso de

Pep. Nossos grandes objetivos para os próximos anos são lutar sempre para

ganhar a Premier League, e, claro, tentar ganhar a Champions”. Ainda que sejam

menos ambiciosos, trata-se de objetivos similares aos que, em junho de 2013,

na chegada de Guardiola ao Bayern, Karl-Heinz Rummenigge pronunciou: “Para

nós, o título mais importante é a Bundesliga, porque são 34 rodadas. Embora o

título mais bonito seja a Champions, nela não há garantias de nada nem adianta

jogar de forma mecânica”.

Ferran Soriano concretizou as expectativas com palavras bem medidas:

“Queremos estar em condições de competir por tudo nos meses em que se

decidem os títulos”. Note-se a coincidência milimétrica com uma característica

de Guardiola: a competitividade. Soriano não falou sobre ganhar títulos, mas em

competir por tudo.

Assim, pois, a exigência de sucesso também ficou demonstrada bem cedo

no City: em primeiro lugar, incrementar poderosamente a competitividade; e

em segundo, dominar a liga e conquistar uma Champions. Nada mal para um

clube que ganhou apenas quatro ligas em toda a sua história (duas nos últimos

seis anos) e que, na Champions, nunca havia passado das oitavas de final até a

última temporada. Mas é algo totalmente razoável: no final, ninguém contrata

Guardiola com objetivos modestos.

Como fez no Barcelona e repetiu no Bayern, Pep deixará a vida pelo City.

Obviamente, em retorno, receberá um salário fenomenal, de acordo com o custo

pessoal correspondente. É uma troca na qual o treinador se enriquecerá (além

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do aspecto econômico) aprendendo outra forma de conceber, praticar e viver o

futebol, e oferecerá sua maneira singular de jogar, com uma identidade

contundente, ligada à bola, ao passe, ao jogo de posição, ao ataque como

vocação irrenunciável do espírito competitivo extremo. Com esse intercâmbio,

Guardiola assumirá também o maior desafio de sua carreira como treinador.

No Barcelona, ele enfrentou um grande desafio porque era um téc-nico

jovem e sem experiência, no comando de uma equipe que marchava à deriva.

Acertou em numerosas decisões, envolveu os jogado-res formados em casa,

acrescentou outros de perfil distinto, mas que agregaram características

complementares, fez explodir o inédito talento de Messi graças à impagável

cooperação de Xavi e Iniesta, e a confluência histórica de todos os fatores

desembocou em um sucesso colossal.

Após alcançar o Everest do futebol, Pep experimentou outra montanha.

Xavier Sala i Martín argumentava, em 2013, que “Pep quer demonstrar no

Bayern que pode construir outro time dominante”.

Em 2016, Ferran Adrià ofereceu a resposta: “Pep foi provar a si mesmo

para saber se o que aconteceu no Barcelona foi uma casualidade. E não, não foi

casualidade, porque, no Bayern, ele conseguiu reproduzir o mesmo modelo com

outros intérpretes e modificando conceitos”.

Em Munique, Guardiola se adaptou a circunstâncias e expectativas

radicalmente diferentes das iniciais em Barcelona: de forma paradoxal, também

foi contratado depois que o time perdeu todos os títulos, mas, quando começou

a trabalhar, a crise já tinha passado e o Bayern havia vencido todos os troféus.

Sua proposta teve caráter especialmente contracultural, e ele só pôde

executá-la graças à generosa disposição dos jogadores, seus verdadeiros

aliados. Com eles a seu favor, mudou por completo o modo de jogar da equipe,

que presenteou portentosas exibições de jogo, embora não tenha conseguido

coroá-las com o êxito supremo.

A terceira etapa de Pep é a mais arriscada. No momento em que começa a

temporada de 2016/2017 no City, Guardiola não dispõe de um time tão potente

como em seus dois clubes anteriores, deve disputar um número maior de

partidas, os principais jogadores não participaram de boa parte da preparação

inicial e o aprendizado do novo modelo de jogo não pôde ser homogêneo para

todo o elenco.

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O futebol nunca é absoluto e definitivo. Sempre é relativo e relativista,

provisório e mutante. É um trânsito constante e, pela mesma razão, não se pode

adivinhar como será o período de Guardiola no City, além das características de

comportamento que descrevi nas páginas anteriores. Em matéria de resultados,

títulos e conquistas, não é possível prever o que sucederá, apenas que seu

verdadeiro jogo provavelmente demorará um ano e meio para se desenvolver

de forma plena e sustentável. É muito provável que, para o torcedor, pareça um

tempo excessivo: vinte meses! Penso que será a partir de março de 2018 que

poderemos ver os autênticos frutos de seu trabalho. O que se pode assegurar é

que, ganhe ou perca, o treinador enfrenta seu maior desafio em Manchester.

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13.1. COMO JOGARÁ O CITY DE GUARDIOLA

Não basta ter a bola: é preciso

saber o que fazer com ela.

JOHAN CRUYFF

No dia em que começou a treinar o Manchester City, Pep ainda não tinha

visualizado que equipe iria dirigir, por uma razão óbvia:

— Não a visualizo, ainda não posso imaginar como será a equipe, nem

como jogaremos, porque ainda não sei quem estará aqui e quem não estará.

Durante o mês precedente, falei muito com Pep sobre seu desafio. O

treinador sentia que seria a etapa de maior risco que jamais havia enfrentado e

era evidente que, nessa percepção, influía muito o fato de o elenco de jogadores

não estar pronto. Mas também eram óbvias suas intenções ao contratar

determinados futebolistas. Por que queria um goleiro, bons defensores centrais,

um meio-campista central e dois extremos? Sigamos posição por posição.

Goleiro. Pep considera o goleiro um iniciador do jogo. Não se trata de

esperar que possua um bom jogo com os pés: essa é apenas uma pequena parte,

mas não a mais importante. O goleiro precisa ter qualidade com os pés, da

mesma maneira que deve ter uma grande velocidade de reação e, claro, saber

deter ou rebater os arremates do adversário. Tem de defender e tem de saber

jogar! Uma qualidade não exclui a outra. São características óbvias e

fundamentais hoje em dia, e quem carecer de alguma delas terá uma grande

desvantagem para triunfar na elite. O que Pep busca no goleiro é que, além das

qualidades específicas do posto, disponha de um plus quanto à visão e

compreensão do jogo, de concentração, atrevimento e implicação na

organização coletiva. O futebol de Guardiola começa com as decisões tomadas

pelo goleiro e com a orientação de jogo que ele escolhe. Portanto, não se trata

de “tocar bem com os pés”, mas de jogar bem o futebol; não é uma questão de

qualidade específica, mas um valor global. O goleiro de Guardiola segue sendo

um goleiro, um especialista da meta, mas também deve ser um jogador

completo. O primeiro futebolista do time. Deve ser um jogador proativo.

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Defensores centrais. É muito similar ao detalhado a respeito da figura do

goleiro. Os defensores centrais de Guardiola precisam defender sua área como

quaisquer outros, com as mesmas habilidades, agressividade, destreza, ímpeto,

mas também devem ser excelentes em outro aspecto: a saída limpa da bola,

porque sem ela o jogo de posição não existe e é inviável se assentar e se impor

no campo do adversário. De novo: defender bem e sair jogando com a bola

tampouco são qualidades excludentes. São os defensores quem constroem a

armação do ataque, que iniciam a viagem da equipe até a área rival. E precisam

saber conviver com o risco de, quando o time estiver posicionado no campo

adversário, permanecer próximos do círculo central, a cinquenta metros do

próprio gol, para seguir empurrando o adversário. Precisam ser velozes,

atrevidos e capazes de assumir o risco. Também precisam ser proativos.

Meio-campista central. Como jogador, Guardiola foi meio-campista central,

e isso define quem ele escala nessa posição. É muito significativo que o primeiro

jogador que ele contratou para o Manchester City tenha sido Ilkay Gündoğan,

porque é o tipo de meio-campista que facilita a “construção do jogo” na zona

média do campo, permitindo que seus companheiros “viajem juntos” até o

ataque, sendo também capaz de conduzir a bola para atrair rivais ou dar uma

sequência de passes para desorganizar o oponente. Não é um meio-campista

central defensivo, nem tampouco é como Busquets, Xabi Alonso ou Weigl,

jogadores quem mantém sua posição muito fixa. Gündoğan possui traços

mistos: pode ser meio-campista central e pode ser interior, e isso nos indica que

Pep utilizará seus meios-campistas de modos muito díspares, mas com uma

única intenção: se impor no campo do adversário. A exemplo dos anteriores, os

meios-campistas centrais são jogadores proativos.

Extremos. Após sua passagem pela Alemanha, já não se pode conceber o

jogo de Guardiola sem extremos muito abertos. Devem ser jogadores capazes de

se manter colados à linha lateral, pacientes e esperando que a bola chegue. Com

ela em seu poder, eles devem enfrentar o duelo individual utilizando o drible.

O perfil desses jogadores define o jogo que o City praticará: o goleiro

decidirá a orientação, os centrais sairão jogando para transportar a equipe até o

campo de ataque, o meio-campista central interior assentará o time perto da

área rival e os extremos esperarão a bola para dar o último passe ao gol.

Obviamente, será um time de jogo proativo.

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Goleiro, defensores centrais, meios-campistas centrais, extremos: os quatro

perfis que configuram a armação de jogo que Guardiola deseja. O primeiro

objetivo do treinador, no verão, consistiu em garantir a incorporação dos

mencionados jogadores “vertebrais”, a partir dos quais ele poderia desenvolver

suas intenções, recuperando atletas já presentes, como Kolarov, ou usando

jovens da base. Esse núcleo lhe permitiria começar a estabelecer gradualmente

sua filosofia de jogo, como se pôde comprovar a partir do primeiro treinamento,

que teve um perfil tático fundamental e no qual já apareceram os rondos, a saída

de bola jogada, a pressão para recuperá-la e também a máxima exigência dos

jogadores, assim como um atributo que define Pep: a organização defensiva,

como observou Gaël Clichy: “Para que joguemos com ofensividade, como Pep

quer, exige-se dos defensores que apoiemos a recuperação da bola. Isso é algo

novo para nós, porque antes jogávamos muito abertos e sofríamos muitos gols

de contra-ataque. Pep está tentando nos tornar muito ofensivos, mas muito bem

organizados na defesa”. Nada que surpreenda…

O treinador dedicou muitas horas no verão a estudar minuciosamente a

“outra cara” dos jogadores. Com a informação que obteve do clube, analisou o

comportamento interno do elenco citizen na temporada anterior: o peso de

cada jogador e sua evolução diária; o tipo de recuperação que cada jogador

machucado realizou, o número de sessões de reabilitação que efetuou, e se

faltou em alguma ocasião; os atrasos em cada sessão de treinamento… Pep

analisou meticulosamente todos os detalhes. Quando chegou à cidade esportiva,

possuía um retrato bastante certeiro da postura de cada um durante a etapa

anterior. Portanto, nenhum membro da equipe técnica ficou surpreso quando,

ao responder a um torcedor que quis saber o que ele mais valoriza em um

atleta, Pep teria dito: “Que seja um bom companheiro”.

Os tópicos de comportamento que ele analisou no City, em essência, são

três:

• ética de trabalho

• espírito de equipe

• exigências de saúde (dieta e prevenção)

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Trabalhar é o combustível imprescindível para cultivar o talento e extrair

seu máximo rendimento. O espírito de equipe é o habitat essencial para se

construir uma cultura de cooperação que permita ser competitivo de forma

constante. E as posturas relativas às exigências de saúde são o estímulo

necessário para romper inércias apáticas e estabelecer novos hábitos e

dinâmicas positivas.

Pep não dá trégua a si mesmo e não haverá trégua para ninguém no City,

não importando a categoria do jogador ou seu currículo. Que ninguém se

surpreenda: jogarão aqueles que ganharem seus lugares no trabalho diário, e se

for necessário lançar mão da prolífica base do clube (uma das melhores da

Inglaterra), Guardiola não duvidará. Com ele, ninguém tem vaga assegurada e,

ao mesmo tempo, todos podem alcançar um lugar no time titular.

No final do mês de junho, ainda em Barcelona, Pep dizia:

— Ainda não visualizo o “meu” City porque hoje não sei quais jogadores

terei. Mas aquele que não correr e saltar como uma fera estará fora e em seu

lugar jogará um garoto, porque há garotos muito bons na base.

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13.2. JOGAR COM PACIÊNCIA E COM EXTREMOS

Não há nada novo. Há coisas

velhas que estavam esquecidas.

DANTE PANZERI

Pep se entrega por completo a seus futebolistas e exige a mesma entrega por

parte deles. Ao centroavante, por exemplo, sempre pede um sacrifício

gigantesco. O atacante central de um time de Pep é um “sofredor” (e não

importa se estamos falando de um falso 9 ou de um 9 puro). Vamos nos

concentrar em um jogo do Lewandowski da era Guardiola. Enquanto o núcleo

do Bayern se associava e trocava passes, Lewandowski se movia, corria, se

livrava da marcação, retrocedia, acelerava e tentava desorganizar o adversário.

Era garantido que ele tocaria poucas vezes na bola: 25 toques em média, ou

seja, dez a menos do que o goleiro Neuer e quatro vezes menos do que Alonso

ou Lahm. Vinte desses toques seriam para devolver a bola a um companheiro

em melhores condições. Os outros cinco seriam finalizações: um deles, em

média, terminaria dentro do gol rival. Lewandowski corria quase onze

quilômetros por jogo e realizava 85 sprints de máxima ou submáxima

velocidade, mas fazia contato com a bola só 25 vezes. O centroavante de Pep,

além de fazer gols, paga um preço altíssimo em nome do bem coletivo. Por isso

Lewandowski dizia: “Nosso jogo exige muita paciência”.

Os torcedores do Manchester City devem saber que a paciência é

obrigatória no time de Guardiola: os futebolistas impacientes não se encaixam

bem nessa maneira de jogar. E ninguém precisa ter mais paciência do que os

extremos — que têm de esperar mais até do que o centroavante. Para Pep, os

extremos são uma classe especial de futebolistas, da mesma forma que os

goleiros. Não são apenas especialistas: também são especiais. Precisam possuir

certa dose de “estranheza”. Durante uma refeição com Noel Sanvicente, extreinador

da seleção venezuelana, Pep elaborou melhor o que pensa dos

extremos:

— No meu modelo de jogo, um extremo é alguém que deve passar muitos

minutos sozinho em um dos lados, praticamente sem se mexer, sem tocar na

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bola, sem interferir. Esperando. Como um goleiro. Como acontece com Manu

[Neuer], que pode ficar quarenta minutos sem tocar na bola e, de repente, tem

de fazer uma intervenção quase milagrosa. Nos meus times, um extremo é como

um goleiro: um tipo especial.

Pep utiliza seus extremos em posições muito altas, colados à linha lateral,

quase fora do campo, aguardando. Esperando seu momento. Os extremos

passam longos minutos sem participar do jogo de forma ativa. Caminham, dão

um passo para dentro, dois para trás, fazem uma pequena ameaça e pouco mais;

são jogadores “silenciosos”. Esperar e esperar. Esperar que o resto da equipe

agite a cesta de cerejas, mova-a sem parar até que, de repente, o rival perca sua

ordem e então, zás, chega o momento. É um momento breve, elétrico e

obrigatoriamente preciso. A bola chega e o extremo deve intervir sem hesitação,

como o cirurgião que pega o bisturi e corta sem medo. No Bayern, Douglas

Costa e Coman cumpriam as instruções como soldados. Impávidos, aguardavam

e aguardavam o seu momento de atuar. Às vezes, Robben se agitava um pouco,

mas compreendeu que, se tivesse paciência, a bola chegaria até ele como se

fosse o bisturi. Ribéry se impacientava mais frequentemente e ia na direção da

bola em vez de conservar sua posição e esperar. Por isso, Lewandowski, um

esportista lúcido e mentalmente soberbo, diz que é preciso ter paciência. É uma

característica de identidade das equipes de Pep, e uma das chaves de seu êxito.

O ATAQUE EM ZONA

Munique, 31 de janeiro de 2016

O Hoffenheim chega apenas um par de vezes ao gol de Neuer. É uma

partida que oferece ensinamentos proveitosos:

— Em Turim, a Juventus nos enfrentará como o Hoffenheim fez:

fechada atrás. Eles colocarão Morata e Dybala para marcar Xabi e Lahm, e

nossos homens livres serão Kimmich e Alaba. E, se atuarmos bem, será

como hoje, quando não os deixamos sair facilmente de sua área.

Embora esteja revisando o jogo contra o Hoffenheim,Pep o utiliza para

preparar o encontro com a Juve.

— A Juve se fecha em cinco mais três, e por cima não há nada a fazer,

são uma massa compacta que não se pode penetrar. O que temos de fazer

(e esse jogo contra o Hoffenheim foi um ensaio perfeito) é atrair um dos

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centrais para fora, para que abandone sua posição, e então fazer um passe

por esse corredor.

Pep habitualmente planeja as partidas com dois objetivos: o primeiro

plano é tático, pois se concentra em um evento imediato e específico. O

segundo plano é de ordem estratégica: ele ensaia as armas que utilizará em

uma futura, e mais decisiva, batalha.

— A maioria das pessoas crê que a zona é apenas defensiva, mas isso

não é correto: também existe o ataque por zona. Quando seus atacantes

estão longe da bola, esperando que ela chegue após uma série de jogadas e

ações, isso é o ataque por zona. Chamamos de ataque posicional, mas em

realidade é um ataque por zona. O ponto não é buscar a bola para atacar,

mas esperar que ela chegue a uma determinada zona.

A conversa entre Guardiola e Sanvicente aprofundou-se na importância dos

extremos nessa maneira de jogar:

— É um processo difícil — diz Guardiola. — Não se trata de

começar a falar e já acreditar que amanhã tudo sairá bem. O ego também

influencia, por isso um menino de dezoito anos que seja humilde e rápido

frequentemente triunfa. Mas primeiro é preciso convencê-los. Que esperem por

fora, bem longe. Esperem e esperem que o momento chegará. Agora, quando

esse momento chega, é hora de refletir: quantos rivais você tem de driblar? Um.

Claro, geramos todo esse processo para que você, o extremo, só tenha de driblar

um oponente… e, às vezes, nenhum. Por outro lado, se você joga sem pensar e se

mete por dentro, quantos rivais tem de driblar? Quatro! Veja, não nos

confundamos: um extremo por dentro é muito interessante, mas há muito

poucos que sabem se portar assim. Porque, se estão por dentro, [os defensores]

os atacam de todas as partes, chegam pela frente, por trás, pelos lados, e são

muito poucos os extremos que dominam o espaço-tempo de maneira correta. O

extremo está acostumado a atuar lidando com poucos conceitos, a linha lateral e

um ou dois rivais, mas, quando ele se coloca por dentro, é atacado por todos os

lados e existem poucos que sabem jogar por ali, que sabem receber bem e

atacar bem, são muito poucos.

— Robben é um desses extremos muito interessantes — diz Sanvicente —,

porque sabe ir por fora e sabe fazer a diagonal e voltar para fora de novo.

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— Claro. Eu dizia a Arjen: de cada dez movimentos da equipe, você só

receberá uma bola, mas nessa bola deve sair o gol. Porque se você ataca de fora

para dentro e os atacantes se movem corretamente, é indefensável. Não há

movimento mais perfeito do que esse.

— O papel de um Robben é muito distinto do de um Douglas Costa —

destaca Sanvicente. — Robben seria o extremo-extremo, e Costa um interior

com drible…

— Preste atenção em Messi. Parece que está passeando, e quando percebe

que está sozinho, ou quando vê que começaram a vigiá-lo, finta para o espaço

vazio e ganha distância… Messi passa o jogo radiografando a situação de cada

instante. Parece que está caminhando e talvez seja o jogador que menos corre

na liga espanhola, mas, rapaz, quando a bola chega, ele tem a radiografia

completa do espaço-tempo. Sabe onde está cada um. E zás.

— Você gosta muito dos extremos jovens, teve Tello e Cuenca no Barça… —

aponta Sanvicente.

— Eu gosto de todo tipo de extremos e também os que fazem diagonais. Os

extremos clássicos do Barça faziam o dentro-fora muito bem, mas eu queria

também o outro movimento, o fora-dentro. Por isso contratamos Villa.

— Claro, e Neymar sabe fazer os dois movimentos — observa Sanvicente.

— Porque os brasileiros têm essas características. São muito móveis, têm pausa

e velocidade ao mesmo tempo.

— Romário, Ronaldinho, Douglas Costa, Neymar… — diz Guardiola. —

Essas pernas dos brasileiros, o tornozelo fino, as panturrilhas grossas e

potentes. Isso é mestiçagem pura, de gerações e gerações, e daí saem jogadores

maravilhosos.

A utilização dos pontas é um elemento futebolístico muito antigo, quase tão

antigo quanto o futebol, mas que, com o processo evolutivo que se tem vivido,

foi caindo em desuso até se converter quase em uma espécie em extinção. Seu

desaparecimento paulatino se deveu ao conservadorismo predominante nas

táticas de jogo, que apostaram na contínua redução do número de atacantes. Já

em 1963, o jornalista argentino Dante Panzeri analisava a questão em um

célebre artigo (“Não existem wines… Ou faltam atacantes?”) e raciocinava sobre

suas causas: “O winger [o extremo] não é consequência de nenhum tipo de

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experimento, mas da quantidade de atacantes que uma equipe utiliza […]. Se os

atacantes, que eram quatro, passam a ser três, e se os que antes eram três se

reduzem a dois… Pode-se esperar ou pedir que essa reduzida quantidade de

atacantes, em confronto com os defensores em maioria, atue nos lados, um em

cada ponta? Como extremos? Não: o futebol tem como meta um arco. O arco

está situado em um ponto intermediário da linha de fundo do campo, uma linha

de sessenta metros. Então: o instintivo, o lógico, o sensato, é que eles se

espremam. Que se juntem um pouco mais. Neste caso: que deixem os lados do

campo. Ou que todos se juntem em um dos lados. Mas nunca que mantenham

posições em que a única comunicação possível será por telefone. Antes,

existiam os extremos. Hoje os treinadores os fizeram desaparecer. Os que

sabem jogar seguem desejando o contrário. Ou mais: pedem que o campo seja

maior, porque eles sabem como ocupá-lo e aproveitá-lo todo”. Quando o

número de atacantes se reduz ao mínimo, o extremo se converte em uma raça

em extinção…

Guardiola aponta:

— O bom rendimento do extremo passa por uma condição prévia: que

todos estejam por perto. O atacante que finta, o meio-campista central que

estica a bola, o defensor que se incorpora ao ataque… Esses movimentos só são

possíveis se todos estiverem no ataque e próximos entre si. Se as pontas estão

ocupadas, os laterais se aproximam do meio-campista central e você fecha o

campo, tapa todos os corredores por onde o rival pode passar. Todos. Os

extremos abertos equilibram tudo.

— Agora, se um só fizer um movimento equivocado, ciao… — diz

Sanvicente.

— Claro, certamente. Você tem de saber que deve atacar por um

determinado espaço, mas que atrás de você há cinquenta metros vazios, e tem

de entender que, se perder a bola no ataque, precisa evitar que o adversário

possa correr esses cinquenta metros. Não pode sofrer contra-ataques.

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13.3. O QUE O ESPERA NA LIGA INGLESA

A surpresa constante não surpreende.

ALEJANDRO DOLINA

O novo entorno exigirá novas armas. A Premier League é diferente da

Bundesliga em vários aspectos e Guardiola é muito consciente disso. Em todas

as declarações prévias à estreia na liga, contra o Sunderland, o treinador

explicitou as dificuldades que encontraria no duplo propósito de conhecer um

campeonato distinto e tentar impor sua ideologia. A maior dificuldade,

entretanto, reside na qualidade dos competidores: excelentes equipes e,

sobretudo, magníficos treinadores. Os nomes de José Mourinho, Jürgen Klopp,

Slaven Bilić, Claudio Ranieri, Arsène Wenger, Ronald Koeman ou Mauricio

Pochettino bastam para compor um panorama excelente e variado, mas o certo

é que a lista de técnicos do campeonato não tem pontos fracos. De todos os

treinadores, o mais estimulante para Pep talvez seja Antonio Conte. No começo

de 2015, pedi a ele que me dissesse os nomes de treinadores com um grande

futuro e a resposta foi instantânea: “Tuchel e Conte”.

Em Conte, ele vê muitas semelhanças com seu próprio posicionamento

diante do jogo: a paixão pelo trabalho, a agressividade para ter a bola, o futebol

intenso, a competitividade permanente: “Conte pratica um jogo de posição

muito diferente do meu, mas é jogo de posição e ele faz muito bem”. Não

sabemos que rumo terá a Premier League nesta temporada, mas, antes de o

campeonato começar, Pep incluía a equipe de Conte entre os vários candidatos

ao título: um grande treinador, excelentes jogadores, um calendário sem

competições europeias e semanas longas para poder treinar a fundo e preparar

bem as partidas. Ademais, o tipo de jogo que Conte propõe precisa de um tempo

menor de aprendizagem e implantação que o de Guardiola, por isso podemos

imaginar que o Chelsea alcançará sua velocidade de cruzeiro (e o mesmo

podemos dizer de outros times, como o Manchester United de Mourinho, por

exemplo) antes do Manchester City.

O panorama de jogo a que Guardiola deverá fazer frente na Premier League

será tão variado e policromático quanto os distintos treinadores que a

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compõem, mas Juanma Lillo considera que existem alguns padrões comuns que

são diferentes dos que ele encontrou na Alemanha: “O futebol alemão é, desde

muito tempo, um futebol muito condutor, muito de conduções a alta velocidade.

Quando o jogador tem espaço pela frente, conduz e segue conduzindo e, em

geral, costuma escolher bastante bem o corredor interior para circular, que é a

melhor maneira de manter um contra-ataque, do mesmo modo que sucede no

basquete. Dessa maneira, o jogador que o acompanha pode passar por fora e

dar continuidade ao contragolpe. Pela mesma razão, Pep compreendeu logo que

o melhor modo de frear os contra-ataques era precisamente fixando seus

laterais por dentro. Quando o rival tomava a bola e iniciava o contragolpe, os

laterais de Pep estavam ali para detê-lo”.

Na Premier, Guardiola encontrará uma diferença substancial, analisa Lillo:

“Na Inglaterra também não há um futebol voltado para o domínio, mas os

contra-ataques não se produzem porque os times jogam voluntariamente dessa

forma, e sim porque as equipes em campo se contra-atacam mutua e

sucessivamente sem parar. É um futebol de contragolpes porque não há, antes,

uma sequência de passes que os impeça. A maneira de fazer os contra-ataques é

diferente da Alemanha. Eles geralmente consistem de um primeiro apoio em

jogo longo e, a partir daí, cria-se o contragolpe com o terceiro homem, que dá o

passe na direção do corredor exterior. Os jogadores correm por fora e lhes

basta um apoio interior para a sequência da jogada. Isso obrigará Pep a manter

seus valores de jogo, como a pressão para recuperar a bola, e provavelmente

também será útil que os laterais atuem por dentro, mas ele deverá vigiar mais e

muito bem os jogadores adiantados do time rival. Talvez até deva ordenar que

eles sejam marcados de frente. O time que contra-atacar dificilmente conseguirá

fazê-lo com passes nas costas da defesa rival; usará o apoio por dentro e o passe

para o corredor lateral. Portanto, o Manchester City terá de tentar interromper

essa sequência no primeiro instante, no momento do apoio por dentro que um

dos jogadores rivais adiantados tentará realizar”.

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BASTIDORES

O ÚLTIMO TREINO

Munique, 19 de maio de 2016

Pep recolhe as bolas, uma por uma, e as coloca no saco. Os juvenis que

ajudaram, como sparrings, a ensaiar os planos de jogo que serão

utilizados no sábado, contra o Borussia Dortmund, já se despediram

educadamente do treinador, e sobre o gramado de Säbener Straße só

ficaram os guardas que retiram a lona que impede a visão pública dos

treinamentos. Pep está sozinho no campo, recolhendo as bolas. Como em

seu primeiro dia em Munique, há quase três anos, chove com força em

sua despedida.

— Também chovia no primeiro dia? Não lembro. Ou seja, no

princípio e no final, chovendo… E o primeiro e o último jogo, contra o

Dortmund. Mas desta vez tenho Neuer e Ribéry…

Foi seu último treinamento no Bayern, mas nem a tensão de jogar a

final da Copa dentro de 48 horas evita que ele mostre um lampejo de

nostalgia.

— Desfrutei muito nestes três anos aqui. Desfrutei e aprendi muito.

Pessimista como sempre, Pep não se tranquilizou nem com o

magnífico treino realizado, ou com a alta eficiência nos ensaios de

cobranças de faltas e escanteios:

— Oxalá, no sábado, nossas finalizações sejam tão boas como as de

hoje…

Pep pega a última bola, fecha o saco e o deixa na porta do vestiário,

como um dos jogadores fazia diariamente. Hoje, talvez por casualidade,

talvez por ser seu último dia, ele preferiu recolhê-las pessoalmente.

Chove com força e, para assinar uma dedicatória em um livro, ele se

protege embaixo de um pequeno toldo. Quando comento que a

dedicatória é para um tal Garry Kasparov, seus olhos se iluminam.

Escreve com rapidez: “Para Garry. Meu ídolo”.

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Uma vez celebrado o triunfo na liga pela quarta temporada

consecutiva, o time treinou com a máxima energia. Paralelamente a um

exaustivo trabalho tático dirigido por Guardiola, seu auxiliar Lorenzo

Buenaventura planejou um microciclo estruturado de quatro dias de

treinamento, em que reforçou alguns aspectos do condicionamento

físico:

• Terça-feira: core e trabalho de tronco e membros superiores.

• Quarta-feira: trabalho de pernas e força explosiva.

• Quinta-feira: resistência em um jogo de trinta minutos.

• Sexta-feira: força explosiva leve.

Precisamente na sexta-feira, no Estádio Olímpico de Berlim,a

história fecha um novo ciclo com mais uma ironia. Na primeira final de

Copa que o Bayern de Guardiola disputou (em maio de 2014), David

Alaba se machucou na última jogada do último treinamento. E o que

acontece em maio de 2016? Exatamente o mesmo: na última ação da

sessão de sexta-feira, Alaba torce o tornozelo e precisa ser retirado pelo

serviço médico, que tratará da lesão nas 24 horas seguintes,

possibilitando que o defensor austríaco (com o tornozelo fortemente

enfaixado) possa jogar a final, ao contrário do que ocorreu em 2014…

Antes dos grandes jogos, Pep sempre se mostra intranquilo e

desconfiado: em particular, encontra poderosas virtudes nos rivais e

teme não acertar o plano de jogo. Nessas ocasiões, ele se concentra de

maneira especial no oponente, com o foco totalmente voltado para o

confronto: não tem olhos para mais nada, e essa é outra razão pela qual

ele adiantou a viagem para a capital da Alemanha.

— Partimos para Berlim dentro de algumas horas. Para as finais,

gosto de viajar com muita antecedência e estar na cidade, pisá-la um

pouco e desfrutar do tempo que tenho antes do jogo. É um costume que

tenho.

O jantar de quinta-feira em Berlim é muito emotivo para a comissão

técnica. Os jogadores organizam uma homenagem especial para todos

eles, e também para Mona Nemmer, a nutricionista, e Andy Kornmayer,

o preparador físico, que serão contratados pelo Liverpool. É o melhor

momento dos três anos, com um discurso especial de Lahm,

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acompanhado de palavras brilhantes de Neuer e divertidas de Müller, e

um sem-fim de presentes dos jogadores aos treinadores.

Mas a noite de sábado foi ainda mais emocionante: eles ganharam a

Copa.

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CAPÍTULO 14

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O TEMPO, ESSE GRANDE ESCULTOR

A arte nunca progride, evolui.

RAÚL SOLDI

O tempo esculpe qualquer pedra. Não se deve ter pressa quando se está

ensinando. Ou aprendendo.

Entre julho e setembro de 2013, senti um grande ceticismo a respeito do

trabalho de Guardiola no Bayern. Eu via os treinamentos e não observava

melhoras substanciais. Os rondos, os jogos de posição, os jogos-treinos, os

próprios jogos de competição, a linguagem corporal dos jogadores, as inúmeras

vezes em que Pep coçava a cabeça em cada sessão: tudo indicava que o processo

de assimilação e compreensão do novo modelo de jogo estava atravessando

sérias dificuldades. O fato de Guardiola nunca ser otimista colaborava para

minha percepção: ele não é extraordinariamente pessimista, mas sempre se

move em uma esfera de realismo, enxergando perigos nos rivais e falhas em seu

time. Tem constantemente na cabeça um mapa de riscos, e isso o transforma em

alguém muito cauteloso — e essa cautela o cobre com uma aura de pessimismo.

Passados alguns meses, meu ceticismo foi arrastado para longe pelo magnífico

jogo praticado pelos atletas do Bayern.

O início no Manchester City não foi muito distinto do começo em Munique:

tempos de aprendizagem, tempos difíceis. O City de Guardiola é, em sua fase

inicial, um conjunto de potencialidades que deve ser dotado de uma quantidade

enorme de software: um novo modelo de jogo, outra dinâmica de ritmo, maior

coesão, caráter competitivo, regularidade no rendimento, uma nova cultura

coletiva… São muitos fatores simultâneos que conviverão com altas exigências

desde o primeiro jogo. Pep não tem nenhum argumento para ser otimista no

início, se nos referimos à velocidade do processo. Não podemos saber se esse

início se concretizará em vitórias ou derrotas, em partidas boas ou ruins, nem

qual será o grau de descoordenação que o time sofrerá em sua nova versão.

Entretanto, para quem estiver interessado, será um período fascinante, porque,

por baixo de uma imagem visível — a dos resultados —, será possível perceber

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outra realidade: a do processo que lentamente vai se desenhando, ainda com

traços desconexos, a caminho do horizonte buscado.

Se olhamos o primeiro esboço de um quadro, é provável que só possamos

vislumbrar algumas pinceladas irregulares e pouco compreensíveis, e é

exatamente isso que acontecerá nos primeiros tempos de Guardiola no City. Sob

a camada de rendimento visível da equipe, terá lugar um processo complexo de

aprendizagem. Mas se, em curto prazo, serão as ações dos jogadores (e, às

vezes, o acaso) que marcarão as diferenças, em longo prazo, é a visão

estratégica e tática da equipe técnica que gerará o salto quantitativo de

rendimento.

Desse modo, podemos afirmar que se um time é reflexo do caráter do

treinador, ao mesmo tempo constitui-se também como um pacto. As partes

precisam chegar a um acordo sobre as condições mediante as quais construirão

um projeto único e comum. Só assim poderão extrair o melhor rendimento do

processo de ensinamento-aprendizagem e otimizar as energias coletivas. A

condição sine qua non para que uma equipe se converta em um grande time é

que suas partes decidam se associar não apenas somando esforços, mas

multiplicando capacidades.

A atual proliferação de jogos conspira contra esse processo. Diz Seirul·lo:

“As equipes devem se preparar taticamente para as batalhas que enfrentam a

cada três dias e isso lhes dificulta a absorção de conhecimentos estratégicos. O

prejudicado é o modelo de jogo, que não se molda a partir da aprendizagem

autêntica, mas obedecendo às instruções para as distintas batalhas”. Lorenzo

Buenaventura anota: “A chave é otimizar. Treina-se cada vez menos a equipe e

mais o jogador”.

Julen Castellano e David Casamichana, autores de El arte de planificar en

fútbol, descrevem em poucas palavras as razões pelas

quais uma equipe deve treinar: “Maximizar o rendimento coletivo de um

time de futebol exige otimizar todos os elementos que compõem o sistema e os

subsistemas incluídos, sem esquecer suas interações. Vinte e cinco corpos

diferentes (com passados específicos e imodificáveis, com presentes próprios e

irreplicáveis, e com futuros desconhecidos e, em certo modo, imprevisíveis)

destinados a compartilhar um mesmo projeto: competir no melhor nível

possível. E para isso é preciso treinar”.

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O treinador deve solucionar essa dificuldade combinando os esforços

específicos para cada partida com o pensamento estratégico a longo prazo.

Tudo isso terá como consequência certa incompreensão do mundo exterior a

respeito da equipe, apesar dos bons resultados obtidos nas primeiras semanas.

O uso de diversos sistemas de jogo, as escalações ou a disposição dos jogadores

sobre o campo serão algumas dessas particularidades que se chocarão com os

clichês estabelecidos. Manter a identidade de jogo, mas ser diferente a cada dia

e durante cada partida é um conceito não convencional, difícil de assimilar no

princípio. Lillo raciocina: “Por natureza, depreciamos aquilo que ignoramos, em

especial se o percebemos como uma agressão intelectual. Tudo aquilo que nos

escapa, que desconhecemos ou que cremos que tem um substrato intelectual

distante do nosso conhecimento, tendemos a depreciar… Sobre quem fala em

ter ‘colhões’ três vezes a cada quatro frases, costumamos afirmar que

entendemos bem. É um burro, mas eu o entendo. E como o entendo, o que ele

diz deve ser válido e correto. Mas sobre o outro, como não entendo o que ele

diz, sua proposta não me vale. Ou seja, colocamos a bolsa escrotal antes do

entendimento… E quando o jogo de posição obtém um resultado ruim, o

depreciam. Porque é algo que lhes escapa intelectualmente”.

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14.1. O FUTEBOL ESTÁ EM CONSTANTE MUDANÇA

O futebol é como a vida, está

em contínuo movimento.

MILJAN MILJANIć

O futebol é um ser vivo em constante movimento. Se você não avança,

retrocede. Se permanece atado a ideias preconcebidas, a realidade do jogo o

supera. Mas esse movimento contínuo é pouco visível, porque o ruído das

vitórias e das derrotas é sonoro e estridente e abafa tudo. Os triunfos e os

fracassos cegam os olhos diante das evoluções que se produzem no jogo. O

avanço real do futebol no seio de uma equipe se dá em silêncio e com sigilo. Não

por acaso, escreveu Zweig: “Em silêncio, como tudo o que se faz grande; com

premeditação, como tudo o que se empreende com astúcia”.

Guardiola e Seirul·lo nos falam sobre esse processo evolutivo, as causas e

as dificuldades para percebê-lo.

Guardiola: “Não é nada fácil se dar conta disso, mas o futebol muda sem

parar. O futebol atual já não é o de quatro anos atrás. Muda constantemente e é

preciso fazer um aggiornamento, uma atualização permanente. E não é simples

fazer isso enquanto você joga uma partida a cada três dias”.

Seirul·lo: “Há tantos jogos durante um ano que os times quase não têm

tempo de melhorar nem de treinar, apenas se recuperam. Não podem progredir,

mas ocorre que há jogadores muito bons que maquiam a realidade de equipes

que são piores que muitos times de vinte anos atrás”.

Guardiola: “Temos de reconverter a forma de treinar. Jogando a cada três

dias, só podemos fazer recuperação da partida anterior e refrescar alguns

conceitos táticos. Por isso temos de aprendê-los antes, na pré-temporada. E no

dia seguinte ao jogo, enquanto os titulares se recuperam, os suplentes e os que

estiverem bem por terem jogado poucos minutos devem trabalhar apenas os

conceitos táticos”.

Seirul·lo: “O futebol evoluiu muito graças aos jogadores e involuiu por

culpa de alguns treinadores, porque, em alguns países, esses treinadores optam

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por restringir a liberdade dos jogadores em benefício da segurança — entre

aspas — que querem ter de que vão ganhar. Então, o processo de evolução

acontece quando há um treinador valente que diz: ‘Vou fazer algo sobre o jogo

que os demais não entendam e não sejam capazes de compreender durante um

tempo’. E esses são os que provocaram a evolução ao longo da história — não

localmente, dentro de suas fronteiras, em países como Alemanha, Suécia ou

Hungria, nos tempos de ouro, quando as transformações se manifestavam nas

Copas do Mundo; mas aqueles treinadores que se libertam da necessidade de

ganhar, são eles que podem fazer o jogo evoluir. E sempre sobre os parâmetros

de defender o próprio gol e atacar o gol adversário. E isso se faz como no

exército, com linhas de jogadores que desenvolvem coisas distintas. Algumas

são muito eficientes em destruir, em impedir que o adversário passe (a dos

defensores); outras são muito eficientes em reconstruir os desacertos da equipe

contrária (a dos meios-campistas); e outras são capazes de estar continuamente

assediando a meta adversária (a dos atacantes), que é o objetivo final, o gol. E

tudo evoluiu em função desse critério: defender, construir, reconstruir,

assediar”.

Guardiola: “Preste atenção nos laterais. Agora são jogadores decisivos de

acordo com o papel que recebem. Eu já não quero laterais carrileros, o que

quero são laterais interiores. Quero meios-campistas que joguem no lugar dos

laterais. Isso foi crucial no Bayern: a polivalência de Alaba, a inteligência de

Lahm, a versatilidade de Rafinha, a energia de Bernat. Foram um tesouro. Isso

foi o que permitiu que pudéssemos jogar com cinco atacantes e fazer um monte

de gols e ganhar bem tantos jogos”.

Seirul·lo: “Em outros esportes, existe mais desenvolvimento e

documentação dos distintos modelos de jogo do que no futebol. As pessoas do

futebol, quando estão no futebol, estão tão implicadas no jogo do dia a dia, ou

em formar, que não tentam buscar os ‘porquês’, mas os ‘comos’. Como posso

solucionar esse problema que o oponente me apresenta? Porque se pensa que

tudo consiste em atacar e defender. Não se cogita: por que ele faz isso? Quais

são os elementos que o adversário me apresenta?”.

Guardiola: “Você não pode ficar quieto. O futebol muda e é preciso evoluir

sem parar. Por exemplo, a seleção italiana de Conte praticava o jogo de posição.

Preste atenção, a Itália praticando o jogo de posição! Diferente da forma

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praticada pelo meu time, mas era o jogo de posição. E isso é admirável por

Conte e seus jogadores, por Buffon, Bonucci, Chiellini etc. O mundo segue

colocando velhas etiquetas (tiquitaca, catenaccio), mas a realidade superou

todos esses clichês. Repito a você como exemplo: os laterais são peças

essenciais do jogo. Já não podemos seguir vendo-os como os caras que

defendem pelos lados e, de vez em quando, sobem para atacar pelo corredor.

Agora, eles devem ser meios-campistas que se alternam entre o apoio ao meiocampista

central e o movimento pelo lado para defender quando for necessário:

Kolarov, Zabaleta, Clichy, Sagna…”.

Seirul·lo: “Em geral, se fala das fases de jogo e sempre se evoluiu a partir

disso. Não houve nenhuma catástrofe que tenha arrasado com tudo o que foi

estabelecido e obrigado a recomeçar do zero. Mas nós negamos que existam

ataque e defesa. Negar esse conceito é negar muito, mas é preciso explicar às

pessoas que ataque e defesa não existem. Nos 150 anos que o futebol tem desde

que nasceu, o jogo evoluiu de modo que alguns jogadores são capazes não só de

fazer gols, mas também de ajudar a fazê-los; e outros não só são capazes de

defender, mas também de construir. E quando isso aconteceu, apareceram

treinadores que, graças a esse tipo de jogadores, construíram outra forma de

jogar”.Guardiola: “Gosto quando uma equipe é capaz de jogar bem

posicionalmente e, ao mesmo tempo, sabe se defender bem fechada em seu

campo, se o jogo conduz a isso. Ou quando uma equipe que ataca

posicionalmente muda e se põe a atacar cruzando bolas na área para que um

atacante as cabeceie. Gosto dessa flexibilidade constante. É uma capacidade que

devo melhorar ainda mais, embora tenha avançado muito no Bayern. Quero

conseguir que meu time jogue de todas essas distintas maneiras e não sofra em

nenhuma delas”.

Seirul·lo: “Para implantar qualquer evolução foram necessários

treinadores com pensamento não convencional. Mas que aplicaram esse

pensamento ao observarem um fenômeno específico que tenha acontecido. E

conseguiram isso por meio de jogadores que não foram educados na disciplina

ataque-defesa. Aqueles jogadores que não tinham essa formação restritiva

fizeram os treinadores perceberem que podiam realizar coisas diferentes; e

graças a essas outras coisas, esses treinadores conseguiram gerar evoluções de

jogo em dimensões cada vez mais distintas”.

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O jogador pouco disciplinado está na base das evoluções…?

Seirul·lo: “Para mim, sim. Porque ele gerou a curiosidade do treinador, o

que, unindo-se à sua capacidade de observação e de reflexão e análise,

desembocou em uma evolução específica. Se você é um treinador de

pensamento convencional, não só não acrescenta nada, mas afasta o jogador

indisciplinado [indisciplinado no sentido da disciplina ataque-defesa]. Esse foi o

motor que fez o futebol evoluir, porque se o treinador que observa a

‘indisciplina’ desse jogador é curioso e preparado, provavelmente verá uma luz

se acender e pensará: ‘Ah, então é possível fazer isso e aquilo!’. Portanto,

surgem construções de pensamento que desenvolvem elementos novos da

evolução do jogo. E nós avançamos”.

Guardiola: “Hoje em dia, já não se pode jogar como em 2009 ou em 2011,

porque talvez eu seja um treinador melhor, mas Conte e Klopp também são,

bem como todos os demais, e os jogadores sabem muito mais coisas do jogo,

porque são quatro anos mais experientes”.

Para onde se dirige o futebol? Para a síntese de todos os modelos de jogo,

mas não de maneira linear e continuada. Basta ver como, em determinadas

temporadas, consagram-se equipes que dão prioridade ao ataque — que

poderíamos englobar dentro das que praticam o jogo de posição —, e em

outras, são os times de caráter muito defensivo, ou de jogo reativo, ou

indefinido, que simplesmente souberam competir de forma pontual e

aproveitar suas oportunidades (como Portugal na Eurocopa 2016). Foi assim

desde o princípio desse esporte e isso continuará ocorrendo, mas não devemos

confundir uma moda com uma tendência, nem uma onda com uma corrente

submarina. Em cada temporada, podemos assistir ao triunfo de uma “moda”

diferente no jogo, fruto de mil circunstâncias, uma moda que até pode se

manter ao longo de vários anos seguidos, mas a tendência que o futebol está

seguindo não mudou há oito décadas — o futebol continua buscando a

integração de todos os modelos em um que os agrupe: o futebol integral, o

futebol total, o futebol líquido. Mencionarei alguns precedentes históricos.

Nos anos 1940, Carlos Peucelle, o formidável jogador e alma mater da

“Máquina” do River, o primeiro time que caminhou por essa trilha, definiu esse

modelo sonhado: “Todos [os jogadores] devem ser marcadores quando perdem

a bola, e todos devem ser atacantes quando têm a bola […]. A disciplina do

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futebol não é a rigidez, é a elasticidade. A disciplina da elasticidade. No modo de

ordenar os futebolistas [módulo de jogo], devemos pensar no 1-10 (havendo

jogadores!), que permite tudo. E não em um esquema rígido que só serve para

jogar contra quem atue dentro da mesma rigidez […]. Esse é meu único modelo

recomendável para jogar o futebol de uma maneira relativamente programada,

desde que estejamos relativamente seguros de contar com os jogadores

adequados: alguns entram e outros saem, todos avançam, todos recuam.

Futebol o tempo todo, futebol no campo todo”. Peucelle, portanto, propunha o

módulo de jogo 1-10, para que todos fizessem tudo. É a semente do futebol

total.

Cerca de quinze anos mais tarde, aconteceu a histórica exibição da Hungria

em Wembley (vitória sobre a Inglaterra por 6 × 3), que provocou uma crise

ideológica formidável entre os fundadores do futebol moderno. É muito

revelador ler como o selecionador húngaro, Gusztáv Sebes, encarou aquela

partida: “Dei ênfase ao ataque, usando os quatro atacantes e Hidegkuti em um

redemoinho de fluidez posicional que confundiu completamente a defesa

inglesa […]. Queria que os extremos, Budai e Czibor, retrocedessem cada vez

que fosse necessário para ajudar na defesa, enquanto Puskás, Kocsis e Hidegkuti

se moviam por todo o campo, porque pensei que os defensores ingleses se

sentiriam absolutamente obrigados a segui-los. À medida que deixassem esses

vazios, Bozsik avançaria por eles. Esse era o plano”. O time húngaro praticou um

jogo de ruptura e inovação, aproximando-se do futebol total.

Isso levou Willy Meisl, dois anos mais tarde, a escrever um livro

fundamental (Soccer Revolution), em que desenvolveu uma proposta sobre

como deveria ser o jogo do futuro. Meisl não só era um jornalista excelente e

profundo conhecedor do futebol e suas tendências, mas, sobretudo, o irmão

menor de Hugo Meisl, um dos homens mais importantes do futebol europeu na

primeira metade do século xx, que colocou em pé o célebre Wunderteam

austríaco com Matthias Sindelar como grande figura, e que compartilhou o

banco e conhecimentos com Jimmy Hogan — que por sua vez pavimentou o

caminho dos Mágicos Magiares (a seleção húngara da década de 1950).

Willy Meisl lançou a seguinte proposta: “Deve-se substituir o

individualismo pela capacidade integral do jogo. O estilo do futuro é the whirl (o

redemoinho). Não concebo o redemoinho só como um sistema, mas como a

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tática que pode acabar com todos os sistemas individualistas do futebol. Os

jogadores que compõem uma equipe devem concebê-la como algo muito similar

a uma orquestra […]. O futebol primitivo será transformado em um jogo veloz e

sem respiro, mas altamente especializado. A ação contínua e as mudanças

constantes serão predominantes. O jogo baseado na individualidade se

transformou em um jogo coletivo que só se pode resumir de um modo:

capacidade integral. A tática do futuro será o fluxo contínuo e a fluidez líquida

em todas as direções. Já vimos um monte de avisos nesse sentido. Para executar

o redemoinho, que não permite paradas, cada homem deve ser capaz de realizar

o trabalho de outro companheiro sem limite de tempo”. Assim, resumindo os

ensinamentos de seu irmão, de Hogan, de Hidegkuti e dos húngaros, Meisl se

aprofunda na mesma rota: a do futebol líquido.

(Praticamente ninguém levou essa proposta em consideração e a lição

magistral dos húngaros em Wembley só teve, na Inglaterra, a repercussão

levada a cabo pelo Manchester City, em 1954 e 1956: o célebre “plano Revie”,

implementado primeiro pelo time B e, mais adiante, na equipe principal,

dirigida por Les McDowall: consistiu fundamentalmente em transformar Don

Revie no falso 9 dos citizen.)

Mais tarde, a busca pelo futebol total atravessou períodos em que sumiu de

cena, mas, como as marés, sempre tornou a aparecer. Fosse

sob o domínio do Real Madrid de Alfredo Di Stéfano, a liderança de Helmut

Schön na Alemanha, em diversos traços do Santos de Pelé, na escola soviética do

trio Maslov-Beskov-Lobanovskyi, ou nas formidáveis revoluções impulsionadas

por Arrigo Sacchi e Johan Cruyff, que desembocaram na estrutura do jogo de

posição que Louis van Gaal estimulou no Ajax de 1995. Mas nenhuma dessas

iniciativas se destacou tanto quanto a Laranja Mecânica, a seleção holandesa

treinada por Rinus Michels, liderada por Cruyff e derrotada em Munique…

Michels afirmou: “Nos anos 1970, fui conhecido pela utilização de duas

estratégias de construção de jogo e ataque, que deixaram sua marca na

evolução do futebol: o chamado futebol total (Ajax de Amsterdã, em 1970) e a

pressão de futebol de ataque, a “caça” à bola (Copa do Mundo de 1974). O

futebol total foi a consequência da minha busca por uma maneira de romper as

defesas especialmente reforçadas. Isso requer ações durante a fase de

construção e de ataque, com a finalidade de surpreender o rival. Essa é a razão

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pela qual optei por realizar mudanças frequentes nas posições, dentro e entre

as três linhas. Permitimos a todos os jogadores participar na construção e

também no ataque, desde que assumissem a responsabilidade por suas tarefas

defensivas”.

O futuro para o qual o futebol está rumando não mudou desde os

princípios dos anos 1940, quando a “Máquina” do River empreendeu a busca

pelo futebol integral capaz de agrupar todos os modelos em um só. As

características que o definem foram expostas e a busca continua. Guardiola é

mais um dos que perseguem essa meta.

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14.2. TEMPUS FUGIT

PAT GARRETT: Os tempos mudam…

BILLY THE KID: Não, os tempos não mudam. Nós mudamos.

SAM PECKINPAH

Existe uma crença comum no futebol que se transformou em mantra: não há

tempo. Nunca há tempo. É uma crença imprecisa, mas se transformou em

universal, quase como uma profecia autorrealizada. Pensemos no caso

específico de Guardiola e do Manchester City. O próprio treinador reconheceu

em seu primeiro contato com a imprensa: “Já sei que no futebol nunca há

tempo…”.

Mas por que não há tempo? Por que não há tempo no City? Quem impede

que ele exista? O clube? Os torcedores? Não parece que seja assim. A direção do

clube tentou contratar Guardiola desde 2012. Tentou de todos os meios e de

forma reiterada. Demorou quatro anos para conseguir. Alguém em sã

consciência pode crer que os dirigentes que esperaram quatro anos para

contratar o diretor-geral de seu vestiário exigirão, agora, que ele cumpra os

objetivos em três meses? Seria um disparate, e Al Mubarak, Soriano e

Begiristain não estão loucos. Então são os torcedores que não têm tempo? Em

um clube que ganhou apenas quatro ligas em toda a sua história? Seria absurdo:

o torcedor é consciente de que viverá alegrias e tristezas — dias em que

acreditará ter a melhor equipe e outros em que pensará o contrário —, mas

também sabe que a paixão e o trabalho estão garantidos, e que treinador e time

deixarão a pele em campo para alcançar os objetivos. Por acaso o pequeno

Braydon Bent não tem tempo?

A realidade é bem distinta: se o City tem algo, além de dinheiro e ambição,

é tempo. Guardiola dispõe realmente do tempo necessário para desenvolver seu

projeto. Seu clube e seus torcedores são donos desse tempo e o concederam

sem limite algum.

Quem tem pressa é a indústria jornalística. Já detalhamos os novos

objetivos dessa indústria e como a “bulimia de vitórias” e a exigência de agitar

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os sentimentos são a base do negócio atual; para que a roda-gigante continue

girando, tudo deve ser rápido, apressado e superficial. Tudo deve mudar sem

parar. Para que a indústria alcance seus objetivos, qualquer treinador (e clube e

jogador) deve ter a sensação asfixiante de que não há tempo. Numerosos

representantes de futebolistas fazem força na mesma direção: para eles, não há

nada melhor do que um jogador que muda de clube a cada ano…

O tempo, o grande aliado autêntico de todo treinador, atenta contra a

indústria, e por essa razão os meios de comunicação atuam ativamente

interferindo nos processos. (Obviamente, reitero que me refiro à indústria e não

ao jornalista como indivíduo. E até dentro dessa indústria bulímica continua

havendo magníficas exceções.) Essa realidade não é exclusiva de Guardiola.

Com Mourinho, Conte, Klopp ou qualquer outro se produz a mesma

intervenção, e ocorre tanto no campeonato inglês quanto nas demais ligas. Não

é casual que a posição adotada por tantos treinadores de futebol e basquete

(Popovich, Obradović, Guardiola, Luis Enrique…) seja tão similar, apesar de

serem tão diferentes entre si: todos eles combatem as pretensões da indústria

midiática de influenciar ativamente seus projetos.

Nenhum treinador chega ao vestiário, saca a varinha mágica, diz quatro

frases geniais e seu time começa a jogar por música. Isso é falso: não há receitas

mágicas. Quem afirmar o contrário, está mentindo. Um time só pode começar a

jogar de forma encantadora (ou como seu técnico pretendia) depois de sofrer

(isso mesmo, sofrer) um longo processo de aprendizagem, correção, adaptação,

modificação e encaixe de peças, movimentos e interações. Só depois e nenhum

minuto antes. Esse processo não é capricho ou banalidade, mas uma

necessidade básica na atividade esportiva. Por que os meios o rejeitam e o

sabotam? Não é porque não o compreendem. Se tiver a oportunidade, pergunte

a qualquer jornalista e poderá comprovar que ele tem consciência, de modo

geral, que o mencionado processo (em palavras simples, o trabalho) é tão

imprescindível no esporte quanto o processo de maturação de um bom vinho.

Então por que o sabotam e conspiram contra ele? Porque a razão de ser da

indústria dos meios de comunicação consiste precisamente em exacerbar as

paixões mais brandas e impedir que os processos se assentem e se consolidem.

Para cumprir seus objetivos de fabricar e devorar monstros, a imprensa

necessita que os processos sejam interrompidos, entorpecidos e torpedeados,

que fracassem para que surjam outros novos e, desse modo, segue-se

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alimentando o “monstro”. Para isso, nada melhor do que fabricar um animal

mitológico: a falta de tempo…

É falso que não exista tempo no futebol para se desenvolver um bom

trabalho. É claro que todos nós conhecemos vários casos de presidentes de

clubes e torcedores ou jogadores que não estão dispostos a conceder nem um

minuto sequer a seu treinador para que leve adiante seu projeto, mas também

conhecemos vários exemplos contrários em entidades muito importantes, nas

quais impera a paciência: em Munique e Dortmund, em Barcelona e Bilbao, em

Turim e Lisboa, em Sevilha e Eindhoven.

O tempo é uma unidade de medida que modifica todas as perspectivas.

“Somos feitos de tempo. Só temos o tempo”, diz Juanma Lillo. “O tempo não é

ouro. O tempo é vida”, descreve José Luis Sampedro. O Manchester City dispõe

de muito tempo para Pep, ao contrário de todas as aparências, de modo que

quando você ler ou ouvir que Guardiola deve desenvolver seu projeto de

maneira urgente, porque não tem tempo para falhar, rejeite tal afirmação —

quem afirma isso não só está conspirando contra a construção do time:

simplesmente está mentindo.

Mais ainda: a assimilação das ideias de Pep não deve ser rápida, mas sim

tomar todo o tempo necessário. Não é um projeto reativo que prioriza os

espaços que o adversário deixa, nem está focado na destruição do jogo do rival,

mas é um modelo proativo e construtivo. É um modelo de ataque que se baseia

na edificação lenta e segura de uma estrutura de jogo, com uma boa organização

defensiva como medida de proteção. Pediríamos rapidez na construção de um

arranha-céu ou exigiríamos que nos garantissem segurança? O mesmo ocorre

com essa forma de jogar: na aprendizagem e na execução prática sobre o

campo, a rapidez não é uma boa companheira de viagem. Os jogadores do City

devem aprender sem pressa, com calma e paciência, pois só assim

compreenderão de verdade quais são as exigências do jogo de posição e

poderão praticá-lo de maneira excelente, mesmo que esse processo demore

vinte meses para amadurecer.

NOSSO TRABALHO É UM PROCESSO

Munique, 18 de março de 2016

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Apesar da importância do triunfo contra a Juventus, Pep seguia

considerando que aquele era só um ponto do processo evolutivo do

Bayern. Não lhe custou nada mencionar outra de suas paixões, o basquete:

— Gregg Popovich, o grande treinador do San Antonio Spurs, dizia que

o êxito necessita de tempo. Nosso trabalho é um processo.

Uma questão totalmente diferente é que os objetivos de Guardiola e do City

sejam tão ambiciosos que três anos podem não bastar para alcançá-los. Neste

último capítulo, há razão em dizer que é isso mesmo: três anos de tempo talvez

não sejam suficientes para que Pep Guardiola possa completar um projeto tão

importante como o que iniciou. É possível que precise de mais tempo e, nesse

caso, ele é quem deverá conceder a si mesmo esse tempo extra. Não me refiro

exatamente à duração de seu contrato, pois não é o momento nem é minha

intenção especular. Trato do sentido puro do tempo de que ele precisará para

levar adiante todos os objetivos que planejou, e que eu agora repasso:

• Desenvolver um minucioso plano estratégico.

• Implantar um modelo de jogo definido e detalhado.

• Construir uma cultura (espírito) de equipe competitiva e solidária.

• Dotar-se de uma identidade futebolística irrefutável.

• Desenhar um “idioma” próprio em todas as categorias de base.

• Ganhar títulos.

São muitos objetivos simultâneos num ambiente de grandíssima rivalidade

e exigência, motivo pelo qual entendo que não seria disparatado imaginar

Guardiola modificando suas próprias pautas de atuação e permanecendo mais

tempo do que o esperado em Manchester. Ele também deverá manejar com

discernimento o grau de pressão que exercerá sobre seus jogadores. Domènec

Torrent usa, em algumas ocasiões, uma imagem metafórica: “Pep estica o

chiclete ao limite”. O “chiclete” são os jogadores. Pep tensiona e estica esse

chiclete até o limite, até extrair de cada jogador o melhor de seu interior, mas

corre o risco de esgotar o outro e de se esgotar também; por isso, de vez em

quando, se faz necessário relaxar o nível de exigência (e ele deve aprender a

fazer isso) para descansar o chiclete.

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O trabalho artesanal de máxima qualidade está brigado com a velocidade.

Diz Sennett, mas poderia ser Guardiola: “A lentidão do tempo artesanal permite

o trabalho da reflexão e da imaginação, o que se torna impossível quando

surgem pressões para a rápida obtenção de resultados. A maturidade implica

muito tempo; a propriedade da habilidade é duradoura”. O projeto de Pep em

Manchester inclui um alto componente artesanal, porque vai mais longe que os

anteriores, pois ele não só deve vencer e melhorar as habilidades dos

indivíduos que dirigirá, mas também tem a missão de construir uma equipe de

todos os pontos de vista: do jogo à competitividade, do modelo ao caráter, da

identidade aos rituais.

Concordo com Santiago Coca, que diz que “o futebolista é o proprietário do

jogo”, mas não aceito a afirmação generalizada de que o futebol é dos

futebolistas, porque entendo que, embora sejam os protagonistas, não podemos

reduzir tudo a eles. O futebol não é dos futebolistas, tampouco é dos treinadores

ou dos torcedores, muito menos dos dirigentes. O futebol é das equipes.

O que é uma equipe? Para começar, é um ser vivo. E também é uma

congregação de forças: jogadores, treinadores, torcedores, dirigentes e o

contexto em que se encontram imersos, composto de rivais, jornalistas, o acaso

e o momento histórico que cada um vive. Tudo isso compõe a essência de uma

equipe. E, principalmente, uma equipe é a vontade de ser. Uma equipe é o

querer sê-lo. É construir um “nós” a partir de diversos “eus”. Construí-lo e

conduzi-lo por um rumo específico. Uma equipe é um pacto. E o futebol é das

equipes.

Os bons treinadores vivem duas vidas: a sua própria e a de suas equipes. E,

por essa razão, com frequência envelhecem prematuramente.

Em um de seus jantares nova-iorquinos, Kasparov mostrou a Pep quem

seria seu autêntico inimigo:

— O tempo, Pep, seu inimigo é o tempo.

E agora chegou o momento de Guardiola conceder a si mesmo todo o

tempo de que precisa para ser o que quer ser.

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POSFÁCIO

Carlos Eduardo Mansur

RENDER-SE, JAMAIS!

Quinze de março de 2017 ficará marcado nos registros históricos como o dia

em que, eliminado o Manchester City pelo Monaco, nas oitavas de final da Liga

dos Campeões, um time dirigido por Pep Guardiola obteve seu pior resultado na

história da principal competição de clubes da Europa. Na frieza das estatísticas,

eis o fato incontestável. Mas o entendimento do futebol como um processo

permite enxergar uma história muito mais rica. Se, antes de iniciar sua etapa na

Inglaterra, Pep via o Manchester City como uma tela em branco, hoje estamos

diante de uma obra inacabada. Sua versão final ainda se dará a conhecer em

temporadas que estão a caminho e se anunciam fascinantes. O dia 15 de março

de 2017 é também o emblema de que a jornada do treinador rumo ao ecletismo

— tão bem dissecada por Martí Perarnau nas páginas que você acabou de

percorrer — encontrou no clube inglês o seu maior desafio.

Naquele ponto da temporada, algumas expectativas de Pep já se

confirmavam. Por exemplo, liderava de forma incontestável a Premier League o

Chelsea de Antonio Conte, justamente o rival para cujo potencial Guardiola

chamara atenção, antes mesmo de se iniciar a disputa: fosse pela capacidade

técnica do time, fosse pela competência de um técnico que Pep admira ou,

ainda, por um calendário que não impunha ao Chelsea as competições

europeias, permitindo mais treinos para fixar conceitos e propiciando exibições

de impressionante vigor físico.

Guardiola sabia que sua forma de sentir o futebol, que já fora

contracultural na Alemanha, também o seria na Inglaterra, onde um jeito de

jogar fincou raízes e se tornou um selo de identidade da Premier League. Mas os

obstáculos se revelavam ainda mais duros. Não há outra forma de entender a

gestão de carreira de Pep senão como uma sequência de atos de coragem, tendo

em vista como teria sido cômodo permanecer em casa, no Barcelona,

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desfrutando da idolatria, do habitat natural do estilo de jogo sob cujos

fundamentos o próprio Guardiola se formou e comandando jogadores

talentosos, muitos deles formados por esses mesmos dogmas de futebol. Na

Inglaterra, onde o treinador foi outra vez se provar, mudar e ser mudado, ele se

viu diante do choque cultural mais radical.

Em dezembro de 2016, pouco antes de cumprir a metade de sua primeira

temporada em Manchester, já ficara clara a dimensão do desafio. “Na Inglaterra,

vou tardar mais a aplicar minhas ideias”, disse, em entrevista ao ex-atacante e

ex-comandado Thierry Henry, exibida pelo canal Sky Sports. “Em minhas etapas

anteriores, éramos os melhores na defesa. Agora, sofremos muitos gols. Creio

que a razão é que o futebol inglês é mais imprevisível. A bola está mais tempo

no ar. Sempre tentei controlar os jogos, e quando a bola está no ar não há

controle”, disse Guardiola.

Controle, provavelmente, foi a palavra que mais veio à cabeça de Pep nos

primeiros meses de Manchester. Afinal, ele decidira se testar na liga em que o

meio-campo é lugar de passagem, não de permanência. Na Premier League, no

meio-campo não se fica: se passa. E para um modelo que não abre mão da bola,

que pretende atacar, ocupar o campo do adversário — ter o controle — é pedra

fundamental do sistema. O campeonato inglês apresenta uma alucinante

sucessão de jogos marcados por golpes e contragolpes. “Um descontrole total”,

resumiu o ex-meia argentino Diego Latorre, hoje comentarista, após o frenético

1 × 1 entre City e Liverpool, em março de 2017.

Nunca foi tão difícil para Guardiola fincar as raízes de seu futebol. Afinal, o

jogo de posição era uma novidade para os atletas e para toda uma liga. Logo

ficaria claro que a linguagem nova iria requerer tempo de aprendizagem. Por

outro lado, materializou-se rapidamente outra ideia revelada por Martí

Perarnau nesta obra: Pep não chegou a Manchester um evangelizador, mas um

treinador de futebol disposto a mudar e ser mudado. De seus conceitos básicos,

claramente não abriria mão e, em alguns deles, conseguiu fazer o City evoluir.

Em março, cumpridos mais de dois terços da temporada, o time liderava as

estatísticas de posse de bola, fosse como mandante, fosse como visitante, com

média próxima de 62% de retenção da bola por partida. Era líder, também, nos

índices de troca de passes, mantendo sempre números próximos de seiscentos

por jogo, e jamais renunciou à tentativa de construir desde a defesa, colocando

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sua última linha distante do próprio gol. Era a implantação da ideia, a crença

numa forma de jogar colocada acima dos riscos da transição cultural. Ainda que

os erros de execução, como veremos adiante, tenham vitimado o time.

Outro traço marcante do jogo de Guardiola notado em Manchester é a

evolução dos jogadores e a transformação de muitos deles em multifuncionais.

O brasileiro Fernandinho é um exemplo. Nos primeiros meses de trabalho sob

as ordens de Pep, foi volante, meia interior, lateral direito e lateral esquerdo.

Confirmou a impressão manifestada pelo treinador neste livro, de que poderia

jogar em qualquer posição do campo. Houve crescimentos individuais

vertiginosos, como o do alemão Leroy Sané. Sua ascensão se notou conforme ele

foi compreendendo a função do extremo no jogo de posição: por vezes,

participar menos, mas confiar que a bola lhe chegará em boas condições para

executar seu papel.

Mudar e ser mudado é, claro, uma via de mão dupla. Se a Alemanha

incorporou ao repertório de Pep elementos como o jogo vertical, as bolas longas

e o recurso mais frequente aos cruzamentos, também foram vistos traços

ingleses em passagens de jogos do Manchester City. Se são resquícios presentes

numa etapa de transição, a serem descartados mais adiante, só o tempo dirá. No

dia 1o de novembro, ainda na fase de grupos da Liga dos Campeões, um time de

transições rápidas venceu o Barcelona por 3 × 1 com apenas 40% da posse de

bola.

Em seus melhores momentos, o time chegou a exibir uma elaboração

ofensiva envolvente: a construção de pontes para fazer a bola transitar da

defesa ao ataque, circulando pelo campo com rapidez até terminar na

finalização na área oposta, tinha a assinatura de Guardiola. Mas foi comum ver o

City, mesmo sem abrir mão dos passes e sem recorrer à lotérica bola longa, por

vezes jogar em transições muito velozes. Na partida de ida das oitavas de final

da Liga dos Campeões, contra o Monaco, no Etihad Stadium — o sensacional

duelo que terminou 5 × 3 para o time inglês —, as duas versões se mostraram: o

controle da bola no campo rival até Sterling abrir o placar; o vertiginoso ataque

ao adversário que resultou no gol de Agüero, empatando o jogo que, naquele

momento, estava 2 × 1 para os franceses. Era a busca da solução rápida, sem os

famosos quinze passes até que o time se organizasse para atacar. Talvez seja

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mais um sinal de um treinador que não abre mão de princípios, mas não se

amarra a dogmas.

Ficou nítido que, no City, Guardiola encontraria outros obstáculos inéditos

em sua trajetória, como um elenco menos potente do que os anteriores e com

mais necessidades de incorporação de jogadores. Mas, como antecipou

Perarnau, nada disso tirava da cabeça de Guardiola a predisposição de avançar

ainda mais no atrevimento de sua ideia de jogo. E a primeira temporada inglesa

confirma a previsão: sempre orientando para o ataque.

O drama é que este Manchester City teve muitos grandes momentos,

passagens encantadoras. Mas eram momentos, passagens. Ao que parece, a tese

de que será preciso um ano e meio para que floresça a plenitude do jogo se

mostra real. Raramente o time ofereceu, por longos períodos, a sensação de ter

controle das situações, de estar consolidado, de ser soberano nas partidas,

minimizando riscos.

“É a primeira vez na minha carreira que digo: agora tenho que me ver

como treinador”, disse Guardiola à Sky Sports, dias depois da queda na Liga dos

Campeões. Referia-se ao grau de necessidade de intervenção para que o

conjunto refletisse o seu pensamento.

Há diversas razões para entender por que o primeiro ano foi tão mais

difícil do que as primeiras temporadas em Munique ou Barcelona. O traço mais

alarmante foi o número de gols sofridos. Nos primeiros 28 jogos da Premier

League, o City levou trinta gols — nas duas últimas temporadas inteiras com

Guardiola, o Bayern de Munique sofreu 35. Contribuíram as lesões de Vincent

Kompany e o fato de os demais defensores e laterais raramente terem se

mostrado absolutamente confiáveis, fosse nas ocasiões em que se viram

pressionados, fosse na execução de um traço fundamental do jogo de Guardiola:

a construção desde a defesa.

Sem jogadores com este perfil, Pep buscou John Stones no mercado.

Claramente um defensor técnico, mas produto de um futebol que jamais

valorizou tal modelo. Stones não fora, em sua carreira, treinado para executar

esse tipo de jogo. Para construir desde a linha defensiva, outro pilar é o

chamado primeiro volante, o camisa 5. A solução foi buscar Ilkay Gündoğan no

Borussia Dortmund, mas ele não tardou muito em sofrer uma lesão que

inviabilizou sua temporada.

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O lateral Kolarov, convertido em zagueiro, até ofereceu alguma

estabilidade. Mas logo ficaria claro que, também nas laterais, Guardiola se

sentiria órfão de grandes opções. Ou, ao menos, de jogadores culturalmente

adaptados ao que exige dos homens que ocupam a função em seu time. Por

exemplo, alinhar-se junto ao volante, criando opções de passe na saída de bola,

na circulação pelo centro do campo de modo a desmontar a defesa adversária.

Clichy, Sagna e Zabaleta, todos acima dos 31 anos, exibiram dificuldades.

O jogo do City começava pior do que deveria num time de Pep. As perdas

de bola logo se mostrariam mortais e a pressão imediata após a perda da bola

— outra necessidade inegociável do modelo de jogo — ainda não acontecia com

o devido acerto. Uma conta alta, em especial num campeonato com times

programados para o jogo em transição e fisicamente fortíssimos. Fernandinho

mostrou-se apto a suprir lacunas, mas a solução a que mais recorreu Guardiola

foi Yaya Touré. O marfinense executa com alta qualidade o trabalho de

construção, mas seus 33 anos, ao longo de uma temporada dura como a inglesa,

cobram um preço.

Se o próprio Guardiola dizia, antes de assumir o City, que ainda não era

capaz de enxergar como seria “o seu City”, talvez se baseasse no fato de assumir

um clube com mais necessidades, em que teria autonomia e liberdade para

construir uma obra. E um clube aparentemente disposto a lhe dar este tempo. A

contratação de Gabriel Jesus, que chegou para a segunda metade da temporada,

completava a formação de um quinteto ofensivo que, à exceção de David Silva,

com seus 31 anos, apontava para um projeto de futuro: os 22 anos de Sterling,

os 25 de Kevin De Bruyne, os 21 de Leroy Sané — outra aposta de Guardiola —

e os dezenove de Gabriel Jesus.

O brasileiro logo se revelaria um imenso acerto, uma aparição de impacto

imediato, mas também um outro exemplo de lesões que tiraram de combate

peças essenciais. Após cinco jogos incompletos, uma fratura do metatarso

comprometeu sua temporada. Se, especialmente na defesa e nas posições de

meio-campo responsáveis por iniciar o jogo, Guardiola herdara uma base de

idade avançada, o ataque já fazia a transição para uma formação rejuvenescida

e de enorme potencial.

As trocas de passes e a adaptação dos homens ofensivos ao jogo de posição

proposto por Pep mostraram evolução, apesar dos problemas estruturais do

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time. Sané, cada vez mais beneficiado pela circulação da bola por dentro, via-se

em duelos de um contra um pela extrema. E mesmo o argentino Kun Agüero, ao

retomar um lugar no time após a lesão de Jesus, voltava a exibir qualidades de

grande atacante.

Em algumas ocasiões, um quinteto ofensivo tão leve sentiu a imposição

física da Premier League, mas essa questão Guardiola habituou-se a resolver

desde os tempos de Barcelona. O que o projeto de futuro andou pagando foi o

preço da falta de experiência. Nos duelos contra o Monaco, a oscilação de

jogadores como De Bruyne e Sterling, por vezes dentro de um mesmo jogo, foi

tão clara quanto os erros defensivos da equipe.

E outro traço se revelou: Perarnau nos mostrou o quanto a construção de

uma identidade, de um espírito de equipe num clube sem uma história tão

consolidada, uma camisa tão pesada quanto as do Barcelona e do Bayern de

Munique, era tema prioritário de Guardiola. Pois os 45 minutos iniciais no

principado de Mônaco pareceram refletir um vestiário ainda com sintomas de

autocomplacência. Da inércia da primeira etapa, passou-se a um jogo com

fluência notável no segundo tempo. O gol de Sané seria o da classificação, não

fosse a perda da primeira disputa aérea que se apresentou à defesa do City após

a conquista do placar que lhe favorecia.

Justo é perceber também, como se não bastasse para Pep ter de lidar com

todas as dificuldades naturais de implantação de um modelo contracultural, de

que forma o City administrou a repercussão escandalosa de suas derrotas. Cada

resultado ruim foi tratado como um acontecimento, como se fosse razoável

esperar que, no futebol inglês, Guardiola pudesse manter o aproveitamento

médio de 80% de vitórias que ostentou no Barcelona e no Bayern de Munique.

Em certa medida, é um técnico refém do alto padrão que estabeleceu, tanto em

resultados quanto em encantamento. Em dados momentos, a sensação era de

uma liga que, orgulhosa da imagem de campeonato mais difícil e duro do

mundo, dona de um ecossistema particular, buscava validação. Se Guardiola, o

melhor técnico que existe, sucumbir à Premier League, estará provado que este

é um campeonato especial.

Por fim, há momentos reveladores da personalidade de um treinador.

Passagens que traduzem um espírito, uma forma de enxergar o jogo e seu papel

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nele. Com Guardiola no City, um desses momentos aconteceu quatro dias depois

da derrota de Mônaco, no dia 19 de março, no Etihad Stadium.

No livro que você acabou de ler, Martí Perarnau conta que, ainda sob o

impacto da dolorosa eliminação diante do Atlético de Madrid, após ver seu

Bayern massacrar um rival acuado, Guardiola mostrou-se cada vez mais

convicto e apaixonado pela sua forma de olhar o futebol: generosa, voltada para

o ataque, preocupada em vencer, claro, mas em fazê-lo segundo suas

convicções, com um jogo capaz de emocionar as pessoas. “Há gente que fez

muito pelo futebol e que gosta dessa maneira de jogar, e é preciso fazer isso por

eles. […] Há gente que trabalhou muito para que se jogue bem o futebol. […]

Com todo o respeito, já há muitos treinadores reativos. Nós somos filhos de

Cruyff, de Juanma Lillo, de Pedernera, do Brasil dos anos 1970, de Menotti e

Cappa, do Ajax, dos húngaros […].Perdemos? Pois, o.k., amanhã o sol nascerá de

novo e sonharei outros sonhos [...].”

Pois Guardiola não deixou de sonhar. Quatro dias depois de perder a Liga

dos Campeões na etapa mais prematura de todas edições que já disputou, após

dias seguidos de debate sobre fragilidades defensivas, sobre riscos do sistema,

enfrentando quatro dias de críticas ao jogo do time num volume capaz de gerar

insegurança em um treinador menos convicto, lá estava o time de Guardiola

novamente em campo. Manchester City e Liverpool fizeram um típico jogo

inglês de área a área. Seguia sendo difícil obter o controle que Pep tanto preza.

O 1 × 1 foi entretenimento puro e descontrole total. Até que chegaram os dez

minutos finais.

Em teoria, a tabela indicava que a vitória era essencial tanto para o time de

Guardiola quanto para o de Klopp. Talvez até mais para o alemão, em

desvantagem na classificação e na luta por uma vaga na Liga dos Campeões.

Pois foi o Manchester City quem terminou o jogo afundado no campo

adversário, obcecado pelo gol, prensando o oponente com um desejo voraz de

ter a bola e atacar. Aqueles minutos soaram como um definitivo manifesto de

intenções: Pep Guardiola não se renderá.

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Sentado sobre a bola, Pep observa Thiago e Müller ensaiando cobranças de falta. O treinamento do

Bayern terminou há pouco tempo, mas alguns jogadores continuam praticando: dentro de alguns dias,

jogam contra a Juventus e convém afinar o disparo. Guardiola sempre é o último a deixar o campo de

treinamento. (Foto: Loles Vives)

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Guardiola explica ao autor do livro os planos de jogo que preparou para o enfrentamento do Bayern com

a Juventus. Será uma eliminatória sensacional de Champions League, repleta de emoção, bom jogo e

dramaticidade. (Foto: Isaac Lluch)

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Quinta-feira, 19 de maio de 2016: último treino de Guardiola na cidade esportiva do Bayern. Chove, como

no primeiro dia, e Pep se encarrega de recolher pessoalmente as bolas que foram utilizadas. É o adeus a

Säbener Straße. (Foto: Loles Vives)

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O Bayern acaba de eliminar a Juventus da Champions League, após uma prorrogação agônica. Estiarte,

Guardiola, Planchart e Torrent mostram sua felicidade no elevador particular do treinador na Allianz

Arena, cenário das melhores confissões de Pep. (Foto: Martí Perarnau)

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Quando os jogadores regressaram das férias, em julho de 2015, o objetivo da temporada estava nas

paredes do vestiário do Bayern: um 4 em vermelho fixava o foco na conquista da quarta Bundesliga

consecutiva. (Foto: Martí Perarnau)

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Todas as paredes de Säbener Straße foram adornadas com motivos alegóricos ao objetivo da temporada

2015/2016: ganhar a liga mais uma vez, um fato inédito na história do futebol alemão que lhes faria

campeões para sempre na memória coletiva. “Jeder Für’s Team” (“Cada um pelo time”) foi o lema do ano

no vestiário do Bayern. (Foto: Martí Perarnau)

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Guardiola escreveu esta mensagem de despedida no escritório de Säbener Straße: “Com muita estima.

Que tenha muita sorte, Carlo!!”. Ancelotti se mostrou grato quando leu. (Foto: Martí Perarnau)

O retorno a Munique: em 21 de julho de 2016, Pep voltou a treinar seu time na cidade esportiva de

Säbener Straße, mas, desta vez, seu time já não era o Bayern, mas o Manchester City. O reencontro com

seus antigos jogadores (na imagem, ele fala com Xabi Alonso; Thiago conversa com Domènec Torrent e

Carles Planchart) e com os torcedores muniquenses foi caloroso e de carinho transbordante. (Foto: Martí

Perarnau)

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Desde o primeiro treinamento com o Manchester City, Guardiola começou a semear os fundamentos de

seu jogo: saída de bola limpa, respeito às posições, busca de homens livres… Os meios-campistas centrais

(Fernandinho e Fernando na imagem) são peças imprescindíveis para que esses fundamentos se

apliquem. (Foto: Lintao Zhang/ Equipa/ Getty Images)

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Nolito é um dos cinco novos jogadores que chegaram ao City pela mão de Guardiola, no verão de 2016. A

utilização de extremos é um dos traços essenciais no jogo de Pep. (Foto: Stu Forster/ Equipa/ Getty

Images)

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Para alcançar os numerosos objetivos que fixou no Manchester City, Guardiola ampliou seu staff técnico.

Na imagem, junto a Pep, se sentam Domènec Torrent (auxiliar técnico), Mikel Arteta (assistente do

treinador) e Lorenzo Buenaventura (preparador físico). (Foto: Chris Brunskill/ Freelancer/ Getty Images)

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