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Gioventù série A | Amador Perez

O artista carioca Amador Perez apresenta o livro de artista "Gioventù série A", sobre desenhos autorais de 1995 baseados em obra homônima de Eliseu Visconti e ensaio crítico de Rafael Cardoso.

O artista carioca Amador Perez apresenta o livro de artista "Gioventù série A", sobre desenhos autorais de 1995 baseados em obra homônima de Eliseu Visconti e ensaio crítico de Rafael Cardoso.

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coleção

G I O V E N T Ù

.série A

. série A > 21 desenhos > 1995/96 > grafite > 18 x 13 cm

. série total > séries A, B e C > 63 desenhos (sobre a obra homônima de Eliseu

Visconti, 1898, MNBA, Rio) > 1995/98 > grafite e lápis de cor























































































O ostensivo e o invisível

Rafael Cardoso

"Enxergar um mundo num grão de areia" é o que preconizou William Blake na

primeira linha de seu célebre poema Auguries of Innocence. Descobrir incontáveis

imagens numa única é o que nos propõe, mais modestamente, Amador Perez em

Gioventù. Produzida entre 1995 e 1998, a obra é composta de uma série de 63

desenhos a grafite, dividida em 3 conjuntos de 21 desenhos cada. Entre um e outro

conjunto varia não somente o tamanho dos desenhos como também o tema

enfocado. Pode soar estranha essa sugestão de variação temática, sendo que todos os

desenhos remetem ostensivamente ao quadro Gioventù, pintado por Eliseu Visconti

em 1898. Que o espectador não se deixe enganar: embora a tela de Visconti sirva

de pretexto para o exercício de refundição imagética, ela está longe de ser o foco do

trabalho. Um pouco como as Variações Goldberg, de Bach, na antológica gravação

de 1955 por Glenn Gould, em que o pianista se apropriava dessa grande obra para

cravo e a transformava em algo novo, profundamente autoral e atual.

A palavra-chave é ostensível - de modo aparente, próprio para ser visto. Em cada

um dos desenhos que compõem a obra, Amador nos dá a ver algo que estava

latente na imagem primordial, mas talvez oculto ou até mesmo invisível. No

primeiro dos três conjuntos, a composição de Visconti é dissecada, pedaço por

pedaço, e submetida a distorções sutis. Algum elemento pictórico - o braço, por

exemplo, ou os pombos - é destacado pelo adensamento do contraste, ou então é

recortado da malha composicional e evidenciado ainda mais por sua ausência. Ao

proceder assim por cortes, seções e enquadramentos; borrados e apagamentos;

ajustes na escala de cinzas, o artista vai conduzindo o espectador a observar em

profundidade a construção da imagem. Como uma demonstração de filtros e

máscaras de Photoshop - programa que começava a se difundir na produção

imagética à época em que essa obra foi criada-, o primeiro conjunto reconfigura o

olhar, anunciando a inevitabilidade da manipulação e introduzindo as ferramentas

conceituais que vão orientar a transfiguração do grão de areia em mundo.

No segundo conjunto, o artista opera um truque peculiar que atende por diversos

nomes: na mágica, materialização; na religião, consubstanciação; na filosofia,

reificação. Dar existência concreta a algo abstrato, incorporar o incorpóreo, ou,


melhor dizendo, para os propósitos presentes, forjar um elo a mais entre as imagens

e as coisas. As dimensões de cada peça crescem quatro centímetros na altura, e o

espaço conquistado se abre em barra ao pé do quadro, uma nota que dialoga com a

imagem residual da Gioventù. Sobre o arcabouço apenas visível da composição

visual - reduzida quase à fantasmagoria pela delicadeza com que é decomposta em

traços e sombras - Amador empreende uma ação metódica de destacar detalhes

isolados. Começa com o olho esquerdo, passa para o direito, de lá para a orelha, o

cabelo, o nariz, a boca, o queixo, e vai descendo o corpo até alcançar a mão

esquerda dobre o colo. Na sequência, essa pormenorização passa da figura para o

fundo, perfazendo um circuito que começa no canto direito, sobe e circunda o

quadro, e se encerra na assinatura de Visconti no canto esquerdo.

A cada detalhe realçado corresponde um novo elemento introduzido abaixo: um

eco visual da forma, uma estilização, a transformação da representação em outra,

diferente. Assim, a mão direita da figura da Gioventù, com seu dedinho encostado

no queixo, ganha como correspondente o recorte de um desenho convencional de

mão, lembrando um ex-voto. Seu ombro, cuidadosamente arredondado e

detalhado, ganha como correspondente um ombro esquemático de linhas e círculos

e cilindros, como se fosse o projeto de uma prótese ou de um manequim de

desenho. Quase sempre inscritas no interior de formas geométricas - cartuchos,

elipses, quadrados, ovos -, essas vinhetas centralizadas evocam texturas, formatos e

conceitos distintos da representação primeira, mas passíveis de ser derivados dela

por um processo de abstração mental. O que parecia, de início, o exercício de dar

concretude às idéias pelo desenho agora revela o contrário: um processo de derivar

da concretude do desenho novas ideias. Trata-se do mesmo jogo de deslize entre

imagem e representação que norteia os trabalhos de Chuck Close, Gerhard Richter

e outros artistas que exploram os limites entre a fotografia e sua reprodução pela

fatura manual.

O paradoxo desse jogo reside na tensão entre matéria e forma. Como representação

de um conceito, o desenho é imaterial. Como obra de arte, ele é de uma

materialidade surda. É dessa feição material, inclusive, que deriva seu valor como

mercadoria (questão irredutível no mercado de arte, nunca é demais lembrar). Caso

se tratasse de arte digital, manipulada no computador e impressa em jato de tinta, a

Gioventù de Amador Perez não possuiria o mesmo sentido. Por mais que suas

formas fossem as mesmas - ou, mesmo, rigorosamente idênticas as aparências -

faltaria a corporeidade e a substância que distinguem a atividade manual, analógica,

de sua emulação por expedientes digitais. Quando se fala aqui em adensamento de


contraste, refere-se ao acúmulo físico de minério (grafite); quando se fala em

delicadeza de traços e sombras, quer dizer que houve uma menor pressão do lápis

sobre o papel. A mão do artista está inscrita em cada traço que compõe esses 63

desenhos, o que torna a Gioventù um monumento à obsessão e ao esforço. Como

culminação da obra desenhada de Amador, essa série ocupa um lugar histórico na

evolução de seu trabalho. Logo em seguida, o artista deu início à experimentação

com reprodução mecânica e manipulação digital que vem constituindo a faceta

mais importante de sua pesquisa desde 2000.

O último conjunto da série representa o renascimento da crisálida. Depois de ser

dissecada no primeiro conjunto e esquadrinhada no segundo a Gioventù ressurge

no terceiro, não mais como forma reconhecível mas como conceito redivivo. O

conjunto começa com uma sequência de imagens em que a oval do rosto é

despojado de toda e qualquer referência à composição restante, isolado contra o

fundo branco e submetido a distorções que só podem ser descritas como grotescas

(no sentido restrito, artístico, desse termo). O desenho aqui é polido ao máximo,

atingindo um cume de acabamento e síntese. É quase desumano que um produto

da mão humana possa alcançar tamanha precisão; e, se não fosse o humor de

inflexão surrealista que empresta leveza aos desenhos, sua luminosidade fria seria

insuportável. Essa sequência é seguida de outra em que o rosto, já reconstituído

como forma essencial, é reinserido na malha constitutiva do desenho, passando por

uma metamorfose de gradações de textura e claro-escuro. Na última sequência, a

Gioventù reaparece, não mais como a composição de Visconti, mas transmudada

em chave que abre a leitura para referências familiares: recortes e pedaços que

remetem a outras obras, inseridas em malhas diagramáticas recorrentes no trabalho

de Amador. É significativo que, nessa última sequência do último conjunto a cor

seja reintroduzida como elemento constitutivo. Afinal, o ponto de partida da obra

é uma pintura a óleo, a qual foi arrancada de sua condição primordial de pigmento

e pinceladas por meio da reprodução fotográfica. Chegar na cor, após tão árdua

desconstrução pelo desenho, é como se render à alegria infantil ao fim de uma vida

circunspecta.

Reside aí, talvez, uma indicação do motivo que levou Amador Perez a escolher a

obra de Visconti como ponto de partida. O nome Gioventù remete à juventude, à

ingenuidade da promessa, à inocência de quem mal ingressou no moinho da vida.

Na memória afetiva do artista, a tela de Visconti representa um momento de

descoberta - o momento em que o menino Amador deparou com a arte como

portal de ingresso para a memória. Segundo seu próprio relato, o artista encantou-se


pelo quadro durante uma visita de infância ao Museu Nacional de Belas Artes. Ao

se postar diante da velha pintura, o jovem devassou o sonho de juventude de

alguém que um dia buscou recapturá-la. Viu a renovação pela pela imaginação,

nova para ele embora já gasta para outro artista, falecido havia muito, cuja

identidade estava reduzida a um nome na etiqueta do museu. Uma semente foi

plantada em seu coração. O menino foi para casa e sonhou com a possibilidade de

reinventar, ele mesmo, o que o outro havia imaginado primeiro. Obteve uma

reprodução barata do quadro, encontrada em um livreto, e pôs-se a copiar. Como

todo sonho de menino, parecia fácil de realizar, algo que se atingiria com um

pouco de dedicação e talento. Mal sabia ele que aquela imagem daria origem a

tantas outras. Numa imagem descobrem-se todas, como no grão de areia se enxerga

o mundo. Descobre-se mesmo o que não está ali para ser visto - o invisível, o

enigma. A palavra traz à mente outra peça musical, contemporânea da Gioventù de

Visconti, e talvez uma comparação mais precisa do que as Variações Goldberg: as

variações Enigma, do compositor Edward Elgar - catorze variantes a partir de um

tema que nunca é revelado.

2014, in catálogo da exposição Memorabilia - Amador Perez - 40 Anos, Centro

Cultural Correios, Rio de Janeiro




Amador Perez novembro 2022

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