Ana Passarinha
Simone é uma faxineira vivendo em um relacionamento abusivo, a sua história irá se cruzar com a tragédia de outra mulher. tomando rumos inesperados.
Simone é uma faxineira vivendo em um relacionamento abusivo, a sua história irá se cruzar com a tragédia de outra mulher. tomando rumos inesperados.
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Ana Passarinha
- Vamos começar pelo andar de cima e depois terminamos aqui embaixo, beleza?
Simone estava com a mente longe, observando a estrutura da velha casa de pensão,
imaginando como o lugar teria sido em outros tempos. Só percebeu que a supervisora falava com
ela depois que a mulher estalou os dedos em sua orelha.
- Ei menina, você não vai durar muito tempo se ficar viajando assim!
- Desculpa dona Neide, não vai mais acontecer – e não podia mesmo acontecer, precisava
daquele emprego ou Sérgio não ia ficar nada feliz. Nem ela gostaria de voltar a passar a maior parte
dos dias em casa, na mira da atenção dele.
- Se a gente limpar tudo rapidinho, damos o fora daqui antes de anoitecer. Deus me livre
ficar nesse lugar no escuro.
- Por que? - ela ajeitou a touca na cabeça, pensando em como ela ia amassar seus cachos.
- Esse prédio era uma pensão há muito tempo, foi minha avó que contou. Pensão da Cecília,
alguma coisa assim. Um lugar bem pobre, pra gente pobre.
- Não parece.
Neide pegou o esfregão e o balde e começou a subir as escadas, fazendo sinal para que
Simone a seguisse.
- Bom, isso foi antes do pessoal rico se apropriar e jogar os pobres pra fora daqui. Agora é
um bairro nobre, mas nem sempre foi assim.
- E qual o problema que tem aqui? – as luvas de borracha grudavam no suor das mãos dela.
- Você nunca ouviu falar na Ana Passarinha? – Neide arregalou os olhos escuros em
indagação.
- Eu não.
- Então, morava uma moça aqui, acho que no quarto no fim desse corredor. Ela era uma boa
moça, mas não tinha ninguém no mundo. Uma mulher sozinha hoje em dia já é perigoso, quem dirá
naquela época.
Simone concordou, Sérgio sempre a lembrava de como era bom para ela ter um homem
como ele, trabalhador e forte pra cuidar dela, para protegê-la. Afinal, mulher sozinha só pode ser
puta. Ela não queria ser uma puta, queria?
- Ana trabalhava numa confecção que ficava aqui no bairro, perto da Praça dos Fundadores,
sabe qual?
- Sei sim, aquela que tem a fonte, né?
Neide assentiu.
- Toda noite, depois do serviço a Ana ia até a praça, sentava num banco e ficava jogando
comida para os passarinhos. Diziam que ela era linda, parecia uma princesa sentada lá. Tipo a
Branca de Neve alimentando os bichinhos. Isso chamou a atenção de um rapaz.
Neide varria o chão, levantando uma nuvem de poeira, enquanto Simone espirrava um
líquido nas janelas e esfregava. Ela podia ver em sua mente uma jovem de cabelos longos e escuros
sentada na praça. Talvez um pouco parecida com ela mesma, quem sabe.
- Esse rapaz começou a seguir a Ana por todo lado, mas ela não dava trela pra ele. Dizia que
era muito nova pra namorar e só queria ficar em paz com os passarinhos. Por isso apelidaram ela
assim. A Ana dos Passarinhos. Com o tempo ficou só Ana Passarinha. O rapaz, que era filho do
delegado da época, não ficou feliz em ser rejeitado. Numa noite, se juntou com uns amigos pra
beber e resolveu encurralar a Ana na volta pra pensão.
Simone engasgou. Não estava gostando do rumo que aquela história estava tomando.
- Fizeram barbaridades com ela, coitada. Chegou aqui na pensão toda machucada, as roupas
rasgadas e chorando. Contou que foi o filho do delegado, mas ninguém deu bola ou não queria
arranjar problema com a polícia. A Ana parou de trabalhar e de ir até a praça, dizem que os
passarinhos sabiam que alguma coisa tinha acontecido, porque também pararam de aparecer por lá.
Alguns dias depois do ocorrido, encontraram ela morta no quarto. Tinha se matado.
Um arrepio correu pelas costas de Simone. Que história mais triste.
- Mas por que as pessoas tem medo desse lugar? Ela não era gente ruim.
- Foi por causa do que aconteceu depois. Assim que o corpo foi descoberto, os passarinhos
ficaram estranhos. Invadiam os quartos dos hóspedes, atacavam as pessoas e fizeram ninhos no
quarto da Ana. Isso espantou todo mundo daqui. O pessoal achava que o espírito dela tava
assombrando o lugar. Um dia o filho do delegado, que agora era policial, foi chamado aqui pra
apartar uma briga. Mas acontece que não tinha briga nenhuma, quando ele entrou na pensão uma
revoada de passarinhos foi pra cima dele, arrancou os olhos, a língua, os dedos... uma coisa
medonha. A minha avó viu tudo. Os moradores e a dona da pensão se sumiram, o lugar ficou
abandonado desde esse dia.
- E o filho do delegado?
- Morreu né, tava todo em pedaços. Minha avó me falou que foi uma vingança da Ana.
Agora esse prédio é um viveiro de passarinho, olha esse chão todo cheio de pena e merda. Por mim,
nunca mais ninguém abria isso, tacava fogo logo.
- O que vão fazer aqui?
- Acho que vai ser um hotelzinho.
- Você acredita nessa história?
- Melhor acreditar do que duvidar e acabar que nem o filho do delegado.
- Voltou a acontecer alguma coisa ruim aqui?
- Tem gente que conta que vê a Ana na janela do quarto quando passa na rua, outros contam
que se você chamar o nome dela três vezes no espelho e assoviar que nem um passarinho, ela
aparece e manda os pássaros comerem os seus olhos. Tudo que eu sei é que esse lugar tem tristeza
nele. Não gosto daqui.
- Tendi, mas eu fiquei com muita dó dela. Ela só queria trabalhar e viver a vida. Como
qualquer pessoa.
- É, mas aí aconteceu a pior desgraça que pode acontecer na vida de uma mulher: cruzar o
caminho de um homem – Neide gargalhou com o próprio comentário e ficou em silêncio.
Simone sorriu tristemente, pensou mais uma vez em Sérgio esperando por ela em casa, uma garrafa
na mão esquerda e na outra, uma cinta. Um aviso para ela caso chegasse muito tarde.
Neide e ela conseguiram limpar a maior parte da sujeira do primeiro andar, eram quase seis
da tarde quando chegaram perto do quarto que costumava pertencer a Ana. Simone abriu a porta e
um cheiro horrível de mofo, merda de passarinho e carne podre recendeu pela antiga pensão.
- Não, isso aí fica pra amanhã. Tá escurecendo já e eu tô indo embora.
Simone olhou um pouco para o quarto, ainda havia alguns móveis nele, mas nada em bom
estado. Alguns pombos arrulhavam, mas ela não viu onde estavam. Voltou a fechar a porta.
Esperando sozinha no ponto de ônibus, Simone repassou toda a história de Ana Passarinha
em sua mente. Imaginou a mulher voltando para casa depois do trabalho, exatamente como ela fazia
agora, sem imaginar que um dia não mais o faria. Sentiu tristeza por Ana, mas também por si
mesma.
Viu um pequeno passarinho de peito amarelo pousar no chão, bicando a terra meio úmida da
chuva da tarde. Abriu a bolsa e pegou um pote com o resto do seu lanche, jogou os farelos de pão
no chão e o pássaro não demorou a começar a come-los. Ela sorriu com a cena, mas logo seu ônibus
apareceu e ela precisou embarcar.
- Você atrasou hoje – o bafo de cerveja de Sérgio invadiu suas narinas quando ele a puxou e
beijou seus lábios sem nenhuma delicadeza ou ternura, como fazia quando eles se conheceram.
Quando ele segurava o queixo dela, beijava seu nariz e a abraçava como se nada no mundo pudesse
lhe fazer mal, desde que ela estivesse naquele abraço. Agora, Sérgio só a segurava com violência.
- A gente foi limpar uma pensão meio longe daqui. E eu aproveitei pra passar no mercado no
caminho também – respondeu colocando as sacolas das compras na mesa.
- Bife hein? Tá achando que vai ficar rica limpando a merda dos outros é – ele ria enquanto
ela guardava a comida na geladeira.
- Vai tomar um banho que cê tá fedendo. Te espero a tarde toda e você vem cheirando que
nem bunda de galinha. Isso desanima qualquer um.
Ela suspirou. Estava acostumada aos comentários dele, não eram as piores coisas que já
havia dito sobre ela, mas algo em seu peito se apertou e subiu até à garganta. Segurou o ódio e foi
para o banheiro. Soltou os cabelos cacheados do coque e lavou as mãos.
O cansaço se lançou sobre ela de uma só vez. Passava o dia inteiro trabalhando enquanto
Sérgio dormia e bebia, ao chegar em casa ainda precisava atender seus caprichos. No começo do
seu relacionamento ele era trabalhador, respeitoso e até carinhoso, mas agora era uma sombra de
homem.
Lembrou do que Neide disse mais cedo e concordou cheia de tristeza. Onde ela poderia estar
se nunca tivesse conhecido Sérgio? Onde Ana Passarinha poderia estar se nunca tivesse cruzado
com o filho do delegado? Eram devaneios sem sentido, mas tomaram sua mente com força. Talvez
tudo fosse acontecer exatamente do mesmo jeito, mas ninguém nunca teria certeza.
Encarou os escuros olhos exaustos no espelho manchado. Não havia nela nem uma ponta de
esperança de que um dia sua vida poderia ser melhor do que era agora, então o que ela tinha a
perder? Olhando seu reflexo, disse três vezes:
- Ana Passarinha. Ana Passarinha. Ana Passarinha - em seguida assoviou baixinho, para
não chamar a atenção de Sérgio.
Nada. Absoluto silêncio. Baixou a cabeça, sentindo um pouco de decepção. Ana não
enviaria nenhum pássaro para comer seus olhos. Tomou um banho quente e demorado, precisava
tirar o cheiro de sujeira do corpo. Saiu do banheiro enrolada na toalha e foi para o quarto.
- Você quer que eu passe um café pra você? – gritou para o marido enquanto se vestia.
Nenhuma resposta veio.
- Sérgio?
Silêncio.
Andou até a pequena sala, a televisão estava ligada, mas sem som. Sentado em frente ao
aparelho, de costas para ela, se encontrava o marido, estaria dormindo?
Quando colocou a mão no ombro do homem, sua cabeça pendeu para trás. Simone abafou
um grito com a outra mão.
Sérgio estava morto e seus olhos eram apenas dois buracos negros enormes, com sangue
escorrendo deles.
Ela só conseguiu ouvir um baixo chilreio atrás de si, antes de perder totalmente a
consciência.