Caderno de Entrevistas Cabeça Coração
FUTURA – Caderno de Entrevistas do Projeto Cabeça Coração, realizado entre abril e setembro de 2023.
FUTURA – Caderno de Entrevistas do Projeto Cabeça Coração, realizado entre abril e setembro de 2023.
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Caderno de
Entrevistas
Abril —
Setembro
20
22
CABE
ÇA
CORA
ÇÃO
(D)
pg
ENTREVISTA
COM
ELISABETE
FINGER
35
(C)
pg
19
ENTREVISTA
COM
CHRISTINE
GREINER
(B)
pg
15
ANTES DE
COMEÇAR
POR TARINA
QUELHO
ÍND
(A)
pg
11
ANTES DE
COMEÇAR
POR SORAYA
PORTELA
(E)
pg
61
ENTREVISTA
COM HELENA
VIEIRA
(F)
pg
ENTREVISTA
COM JOICE
BERTH
83
ICE
(G)
pg
109
ENTREVISTA
COM CLARICE
LIMA
(H)
pg
130
ANTES DE TERMINAR
POR SORAYA PORTELA
(I)
pg
133
ANTES DE TERMINAR
POR CLARICE LIMA E
ALINE BONAMIN
8
9
10
ANTES
(A)
DE
COMEÇAR
POR
SORAYA
PORTELA
11
Coleções em pedaços de pensamentos, de perguntas, de pensamentos
frases, de pensamentos palavras, de pensamentos noções, de
pensamentos sem ornar, de pensamentos sem serventia, pensamentos
sem fim…
Essa escrita se dá a partir de uma ação que já aconteceu, e traz à
tona uma coleção de pensamentos em pedaços no formato de frases,
perguntas, composição de palavras soltas sem nenhuma necessidade
de ornar, com toda curiosidade genuína que me invadiu sobre as pessoas
que entrevistaria; mesmo sendo de algumas delas admiradora de suas
pesquisas, livros, parceiras em alguns trabalhos, como também as que
teria a oportunidade de conhecer.
O que pode ser tão bom quanto se espantar ou se interessar por alguém?
De que maneira conhecer alguém pode nos apresentar outros mundos?
Aqui, nesse texto você entrará em contato com aquilo que não foi
perguntado, o que não entrou tal e qual o que não foi dito, ou restou,
mesmo sendo um texto sobre algo que já aconteceu. Você vai conhecer o
que foi processo imaginacional das conversas com todas as integrantes
do projeto cabeça-coração para planejar provisoriamente, sem se apegar
ao que poderia ser trazido como pergunta nas entrevistas. Tanto eu como
Tarina compartilhamos nossas curiosidades a respeito das convidadas,
isso se repetiu antes dos dias de entrevista. De que maneira entrevistar
pode ser ambiente para o que estava por vir? Aproveitar para perguntar
e discutir pontos sobre determinada maneira de pensar que às vezes
(A)
lendo o livro de uma autora, ouvindo uma fala gravada em uma palestra,
surge aquele desejo de ter a oportunidade do corpo a corpo para saber
sobre aquele aspecto discutido como se a gente pudesse desvelar outras
camadas, assim como criar lugar para quem assiste, conhecer. Quais
assuntos Christine desperta? E Bete, Helena, Clarice, Joice levantam
por serem quem são e fazer o que fazem?
O passado, o antigo, o que precisa ser convocado, o chamado das e
para as coisas muito me interessa dos acontecimentos. Tenho pensado
muito na efervescência do ANTES, o ANTES da coisa em si. Portanto,
desejo apresentar as precipitações das costas do encontro. O que
aconteceu numa dimensão outra do encontro que geralmente fica sem
ser visto, mas está diluído para ser sentida, pois tudo que é feito tem
uma mistura, um trabalho, um grosso de materiais agindo que dará corpo
ao acontecimento, neste caso às entrevistas.
12
Entrevistar pessoas tem sido um convite de trabalho recorrente para
mim, acredito que o motivo seja meu interesse explícito pelos contextos
de falas nas programações, daquilo que é processual. Conversa boa
é conversa aberta, viva, e como coisa viva tudo importa. Conversar
pode ser uma força que nos encaminha para conhecer o improvável,
uma oportunidade para acolher as diferenças sem precisar grifá-las
previamente. Sou conversadeira de nascença e me divirto com isso, porque
se tem uma coisa gostosa de aproveitar é a força de bons encontros, do
“estar junto”, e mulheres, embora separadas no mesmo mundo, podem
sim abrir buracos para outras imaginações sobre determinados assuntos.
O que quero dizer é que as pessoas têm esse poder de atravessar nossas
vidas, suas presenças movimentam energias de criação em nós e nos
levam a perceber os deslocamentos das questões discutidas. Às vezes
é na presença de outras pessoas e determinados grupos que as antigas
questões são retomadas em sua potência, isso abre portais.
O que acontece quando lançamos as mesmas perguntas para pessoas
diferentes? Como fazê-las?
A chegada de alguém pode ser uma força que ilumina, ela sempre
nos modifica, as vidas outras, assim como suas despedidas sempre
nos modificam. Já ouvi certa vez, que a realidade se modifica a todo
instante. Por isso, reconheço e tenho chamado esse “fazer Entrevista”
de “práticas de conhecer”, uma atitude importantíssima que pode dar
ritmo diferente aquilo que se sabe, sobre algo, um lugar e alguém.
O que nos olha da história dessa pessoa, daquilo que ela produz no
mundo? Precisamos conhecer, e para tal, o que menos importa talvez
seja o que vai ser compreendido, mas o que será trocado. Foi assim
que me senti fazendo neste projeto de entrevistas. Cacá, a DIVA, como
chamo carinhosamente Clarice Lima, me convidou para fazer junto com
Tarina Quelho a entrevista de Christine Greiner, e foi tão gostoso que
continuei até o final do projeto. Uma das sensações mais maravilhosas é
o convite para participar de um projeto de alguém. Tenho tanto respeito
(A)
por isso, me sinto carregada de energia e de alguma forma acredito
que isso corre pro entorno, banha outras vidas. Aconteceu muito
quando a Futura soltava a cada semana as entrevistas para as pessoas
assistirem a seu tempo, receber mensagens do povo dizendo que ouviu
as entrevistas lavando uma louça, colocou para ouvir e dormiu, etc.
Arte tem que ser mais assim misturada na vida, falo vida vida mesmo,
aquela do corre, do dia a dia, né? Fui usando o desassossego bom e
me joguei em direção às convidadas, atrás delas eu fui como quem ia
farejando cheiro de comida boa. Seguindo os rastros, produções que
podiam ser imagens, textos, estudos, atrás de tudo que essas pessoas
movimentavam nas variadas dimensões do que elas são, e quando estão
sendo. Busquei o que derramavam no mundo, nos seus contextos banais,
escutando o mais simples de suas existências, pois é nesse momento
que geralmente se revela o mais bonito de nós. Kazuo Ono no livro o
“Treino e(m) Poema” fala que “não precisamos nos mover o tempo todo,
há esse cantinho. Nos movimentamos mexemos, mas quando temos
esse lugar para descansar, sentimos alívio… não crescemos quando
estamos em movimento, sabiam? Mas quando paramos, descansamos
e sonhamos…”.
13
Ah, outra coisa que gosto de pensar quando sou chamada para realizar
uma entrevista é que não existe uma forma de entrevistar, deve haver
sempre um apetite em dar espaço para aquilo que precisa respirar entre
nós das histórias, das experiências em vida das pessoas. Para sentir
algo não precisamos estar perto ou saber demais, alcançá-la demais,
há tanta beleza no esquecimento você não acha? Entrevistar para dar
espaço, para o que não existe ainda entre nós, não sei, não entendo, etc.
Fazer com todo empenho!
14
(B)
DE
COMEÇAR
ANTES
POR
TARINA
QUELHO
15
E eu escolhi começar a escrever essas palavras com a conjunção e. E:
uma “palavra invariável” que exprime relação. O e liga uma coisa na outra
coisa sem precisar explicar muito o porquê. E ninguém pode antecipar a
potência de um encontro, nunca.
E neste texto eu falo para um nós mulheres, nós devir-mulher, e convido
a todas a colar nesse nós, pelo menos enquanto durar ler estas palavras.
Não muito tempo atrás participei de um laboratório de escrita em que me
foi pedido associar livremente palavras a determinadas categorias e uma
delas era mulher. Me surpreendi com o fato de que minhas associações
eram todas negativas, tristes no sentido espinosano, despotencializantes
(e eu nem sei se essa palavra existe). E na apresentação de um dos
livros do Paul Preciado, a Virginie Despentes começa dizendo como
ela sofre pra escrever. Eu acho que todas nós sofremos para escrever e
também pra falar. E como sofremos da síndrome da impostora em maior
porcentagem.
A cabeça-coração me deu um contexto para refletir nisso. E eu nunca
pensava na palavra feminismo até pouco tempo atrás, porque eu demorei
para entender o que era. E porque talvez eu não tenha entendido até
agora. Mas dançar dentro disso cura muita coisa dentro de mim, na
minha cabeça-coração.
E eu me lembro da Valentina que ficou muito puta numa aula porque
eu chamei uma parte do nosso corpo de aparato reprodutivo. E a gente
conversou. E refletimos sobre os dispositivos da linguagem, e como
(B)
nossa subjetividade vai se conformando nisso. E encontramos que, a
partir de então, nós o chamamos de aparato criativo. E a gente ficou
mais alegre com isso. E me faz pensar que tem coisa que só dá pra fazer
juntas.
E eu me alegrei tanto pela oportunidade de ter participado das
entrevistas. Foram nossos encontros de refletirmos juntas, de gossip,
como eu entendi da Silvia Federici. E como eu gostei de estar entre nós.
Porque talvez essa seja a dimensão que eu sinto que é vital para nós:
estarmos juntas.
E como também é vital e desafiadora a nossa tarefa do que seria uma
possível construção de aliança que não desconsidere a experiência
singular de cada vida, um estarmos juntas sabendo que cada uma habita
a experiência desde um lugar bem particular. Dois corpos não podem
ocupar o mesmo espaço: isso também é uma afirmação política.
E que mais do que tudo é necessário um reconhecimento de que todas
estamos morrendo, mas algumas de nós bem mais rápida e violentamente
que outras. Mas precisamos “sobreviver mais um dia”, como disse a
Helena Vieira. Viver mais um dia.
16
E eu me pergunto para que serve a vida, e só vem um pensamento meio
óbvio na minha cabeça-coração: só serve para ser vivida.
E eu me lembro que o coração é um tubo espiralado que pulsa ondulando,
que na verdade começou a pulsar antes de ser coração, e que esse pulso
se continua por toda uma vida. E que o coração também é um músculo e
que todo músculo se sente. E que o músculo resiste. E começo a refletir
sobre o que é resistir, e encontro que a resistência é um modo de estar
em relação. Eu posso resistir a algo, mas também posso resistir com
algo. É um modo de encontrar o outro, a resistência me faz saber que
tem alguém do outro lado, resistindo comigo. E eu penso que resistir
junto pode ser até gostoso.
E eu me lembro da Yvonne Rainer, e de que a mente também é um
músculo, e talvez a imaginação seja a soma de todos eles. Porque não tem
pensamento sem movimento. E eu volto a um coração com sua própria
cabeça (porque no corpo dessa coisa que a gente é, cada cabeça tem
seu próprio coração). E eu tive vontade de saber como se fala cabeçacoração
em guarani. Akã- ñe’ã. E eu reflito que guarani é só uma das
formas de falar que já existiam por aqui. E que já existiram milhares de
possibilidades de dizer isso.
E eu estou aqui, em pleno janeiro de 2023 tentando entender que coube
justamente a nós todas estarmos vivas ao mesmo tempo neste planeta.
E que meu limite na criação de alianças é você não desejar matar a outra.
E volto à nossa tarefa de ir em direção a um modo de aceitar radicalmente
(B)
as diferenças e de que não podemos esperar por um plano. Não dá
tempo, ou talvez a ideia mesma de encontrar um plano seja só estancar
um fluxo. É preciso começar a fazer, ou entender que já começamos,
nos nossos pequenos e grandes encontros do dia a dia, quando você
assistir ou ler estas entrevistas ou um livro, quando você sai pelas ruas,
nos nossos ativismos e no carnaval. E já começou.
E eu penso na palavra poder e de que eu não gosto muito dela e que eu
gosto muito mais da palavra potência, porque me implica em algo que se
move. Não me interessa poder sobre algo, mas sim poder para fazer algo.
E penso sobre o que é um movimento organizado e na palavra anarquia
que a Chris trouxe.
E volto aos nossos encontros, em como foi bom ter a Soraya junto. E em
como eu gostaria de dançar com ela. E com Cacá, e com Aline, e com
Tota, e com Marcela, e com Nati, e com i, e com Amanda, e com Karen, e
Chris, e Joice, e Bete e Helena. E faço as pazes com o vital que é dançar.
17
18
TARINA
QUELHO
Entrevista
realizada
ENTREVISTAM
(C)
em
Abril
de
2022
E
SORAYA
PORTELA
CHRISTINE
GREINER
19 CLARICE Bom... Gente, boa noite! Obrigada pela presença de vocês.
Essa é a primeira entrevista que a gente está realizando e é um grande
prazer recebê-las todas aqui no projeto Futura onde Tarina Quelho e
Soraya Portela vão entrevistar Christine Greiner. Essa entrevista vai
estar disponível online e vai virar uma publicação também em formato
PDF que a gente vai compartilhar no nosso site. Importante dizer que
esse projeto foi contemplado pela 31 a edição do programa Municipal de
fomento à dança para a cidade de São Paulo, Secretaria Municipal de
Cultura. E é isso vou desligar aqui minha câmera e deixar com as nossas
maravilhosas para gente começar.
TARINA Oi gente boa noite. A Soraya vai estar hoje entrevistando
comigo a Christine... bom, acho que sem formalidade né? A Cacá
falou um pouco do projeto. Também queria agradecer muito à Cacá,
principalmente por ter uma oportunidade de estar conversando
com a Chris, junto com a Soraya. Então... Soraya, não sei se você
quer se apresentar, falar alguma coisa... como a gente...
SORAYA (risadas) Também eu queria agradecer: agradecer
à Cacá, Tarina, Aline, Christine, todo mundo que tá fazendo
esse projeto, né? Cabeça Coração, que é lindo o nome! Que
é da Futura que é um projeto de mulheres que é bem bonito
também. Mulheres artistas, né? Eu queria agradecer e
dizer: vamos aproveitar esse momento para se comer, né?
Para se devorar aqui. E é isso! Eu queria me descrever, me
apresentar pra quem vem depois, assistir depois: eu sou uma
mulher de cabelo cacheado, pele clara, eu uso óculos, tenho o
rosto redondo. Estou vestindo uma blusa cheia de bananas,
(C)
porque eu sou interessadíssima numa dança banana, numa
arte banana. Estou aqui com um fundo atrás de mim, com
uma parede amarela com uma janela bem aberta, azul. E
meu nome é Soraya e falo de Teresina, no Piauí.
TARINA Incrível! Eu tô falando aqui de dentro do meu computador,
com vocês(risos), com você em algum lugar do planeta. Então,
apesar de ser uma entrevista a gente vai indo meio que numa
conversa, tá? Então.. bom, Chris, a gente ficou conversando muito,
eu e a Soraya, com as meninas também, né? Do projeto delas e
tal.. Então eu fiquei com algumas curiosidades para te perguntar,
acho que eu tenho uma curiosidade genuína pelo seu processo de
criação, né? Para entender como você... Bom... eu te considero
uma criadora, eu leio os seus livros, em parte como ficção, e queria
te perguntar como você aborda, como você pensa sobre isso você,
se você se pensa com uma criadora, né, primeiro. E, se sim, como
você mantém o seu próprio processo criativo como ele é e, incluiria
uma coisa: como você, como seu corpo, entra ou não entra em
seus processos criativos.
20
CHRISTINE Ah tá bom! Então... obrigada Tarina,
obrigada Cacá pelo convite. Estou bem contente de
estar aqui com vocês. Soraya, também! Eu também
acho legal a gente também tá cada uma num lugar
diferente, né? Essa é uma das vantagens, né? Tem
várias desvantagens, mas tem essa vantagem nesse
espaço virtual: aqui a gente consegue desde que
começou essa história aí de Pandemia eu encontrei um
monte de gente que eu acho que eu não encontraria
se não fosse nesse espaço, então tem uma coisa
interessante também. É... Como a Soraya se descreveu
eu queria dizer que eu também estou numa... na frente
de uma parede amarelona aqui. Aliás nossos amarelos
são bem parecidos, mas em vez de ter uma janela eu
tenho aqui ó umas cerejeiras, um quadrinho. Algumas
pessoas sabem que eu tenho essa pesquisa comprida
com o Japão, então...também tô de óculos, tô com
uma blusa verde e também sou uma mulher branca,
se bem que branca um pouco amarela que eu tenho
minha família toda misturada que nem a Tarina, né?
A gente é totalmente mestiça.
Bom, mas primeiro eu queria te dizer Tarina que eu
achei super legal você falar, agora, que às vezes você
lê meus livros e parece que você tá lendo ficção. Você
sabe que é sonho da minha vida, né, escrever um livro,
assim, ficção... Assim, eu tenho muita vontade e eu acho
que eu tô cada vez mais próxima disso, principalmente
a partir do momento que eu comecei a pensar nessa
ideia de fabulação que eu tenho conversado algumas
vezes. Foi... acho que o último livro que eu escrevi que
eu dei esse nome foi ‘Fabulações do corpo japonês’.
Numa época em que todo mundo fala do falso. Assim,
a gente já pensa no lado bem pejorativo, né, disso
(C)
21
que a gente fica pensando logo em fakenews, como
a gente é enganado o tempo inteiro. E tem um poder
do falso que esse poder ficcional que está ligado à
ideia de fabulação que me intriga, sim, eu gosto muito
porque eu gosto de metáforas também. E e eu acho
que muitas vezes quando a gente cria uma imagem,
quando você tá... mesmo quando se está escrevendo
uma pesquisa acadêmica e tal, eu acho que às vezes
você cria uma proximidade muito maior com quem tá
lendo. é Então eu fico contente que você perceba isso
nos meus livros porque, primeiro, eu nunca pensei...
assim... eu não gosto de um escrita acadêmica fechada,
sabe, assim muito blindada. Eu não gosto de pensar
que eu tô escrevendo livros assim para cinco pessoas
lerem, eu tenho uma questão importante, assim para
mim, que é realmente comunicar. Então é... Para fazer
isso, algumas vezes no processo de pesquisa, e busco
essa aproximação com universos que são universos
ficcionais. E, também, porque como eu trabalho muito
com artistas eu aprendo muito. Eu sempre digo isso,
a minha fonte de pesquisa tá longe de ser só uma
fonte bibliográfica. Eu gosto de aprender com as
experiências artísticas e com essas experiências nãoartísticas,
que são as coisas que acontecem na vida.
Eu me lembro que uma vez, pensando no livro que
eu escrevi há muitos anos, já, que chama ‘O corpo
em crise’ eu fiquei pensando nisso, eu falei: gente,
acho que eu não teria escrito esse livro se fosse uma
coisa assim só de ficar lendo as bibliografias que eu
tava lendo naquela naquele momento, eu tava muito
inquieta com a obra do Giorgio Agamben. Tava lendo
essas pessoas todas que falam sobre as políticas para
o norte. Mas tem uma questão: o lugar onde eu moro.
Porque eu moro aqui no centro da cidade de São Paulo
e tem uma precariedade, assim, umas zonas de muita
vulnerabilidade perto da minha casa e eu acho que eu
me alimentei muito disso também para escrever o livro.
Então, assim, eu posso pensar em vários artistas que
eu admiro, que eu tava assistindo os trabalhos e que
também estavam discutindo, né, cada um do seu jeito,
essas questões da vulnerabilidade, da precariedade,
mas tinha uma coisa também na rua, acontecendo na
rua. Eu presto muita atenção nisso, assim como as
questões pessoais, também, que acontecem comigo.
Eu acho que de alguma forma isso vem também
para aquilo que eu tô escrevendo. Não é uma escrita
imparcial, assim, que tá pensando como se a vida
da gente fosse compartimentada, né, ‘aqui a minha
pesquisa acadêmica, aqui as análises de espetáculo,
aqui a minha vida pessoal...’ eu nunca consegui fazer
isso é sempre tudo embolado. E eu acho que isso que
você falou também, Tarina, sobre criação... eu também
acho que é um processo de criação e, assim, eu nem
conhecia esse termo, há pouco tempo que eu tenho
(C)
22
esse contato próximo, né, com esses pesquisadores
que estão lá no Canadá, a R Neil e o (inaudível), né.
E eles usam muito, não são só eles: também tem
um bocado de gente aí falando disso, mas eles usam
muito esse termo de Research Creation, né, que é
uma pesquisa-criação e eu acho muito legal porque
é isso: quando você tá pesquisando não tem outra
possibilidade que não seja estar criando junto, né. Eu
não tenho, Tarina, um método. Assim, se eu for falar
para você, eu não tenho. É uma coisa bem caótica,
até. Eu não sei te dizer... Eu, quando comecei a fazer
pesquisa, eu nunca comecei assim, com uma vida
sossegada para fazer pesquisa, sabe. Eu fui mãe muito
cedo, então eu, assim, toda minha vida de pesquisa
sempre foi com criança, cachorro, muito barulho. Aqui
onde eu moro também é muito barulhento. Assim, tem
que pensar em dinheiro! Não é um negócio, assim, de
ficar naquele sossego, ‘agora vou pesquisar’, ‘vou ler
meus livros’. É sempre uma leitura no meio do caos!
Nunca teve, assim, uma situação tão sossegada. Eu
acho que me acostumei com isso porque a primeira
vez que eu tive uma oportunidade, assim, superbacana
- por exemplo - de ir sozinha para o Japão e ficar lá
estudando com tudo quietinho, sossegado... Eu não
conseguia fazer nada porque eu estou acostumada
com barulho, com bagunça! Eu custei a pensar: ‘nossa
senhora, agora eu tô quieta aqui, imagina: não tenho
que dar aula, também. Tá tudo organizado! Como é
que eu vou fazer?! Não era possível para mim fazer
nada, assim, então.
Outra coisa que eu gosto, também, que eu acho que
tem a ver, além desse negócio de pesquisa-criação,
eu gosto muito de ler um cara que se chama William
James. Na verdade eu gosto da versão do William
James. Os livros dele têm saído pela Editora N-1, que
também publicou meus livros sobre o Japão, e o William
James e o David Lapoujade valorizam muito isso, ele
falava num negócio que chama empirismo radical.
Que é essa ideia de que a gente não só faz pesquisa,
mas a gente conhece sempre- inevitavelmente - a
partir da prática. Então não tem esse negócio de ficar
criando essas separações de teoria e prática, é tudo
prática mesmo quando você tá estudando, lendo,
isso também é um exercício prático. E eu acho que
quando isso se torna realmente uma posição, assim,
um ponto de partida: entender que tudo exercício,
isso também, acho que que dá um ritmo diferente pra
história, né? Então eu te diria assim: método mesmo
não tem, mas tem assim: eu acredito que a gente cria
realmente precisa de uma certa caoticidade, porque a
gente precisa estar tirando as coisas do lugar, criando
esses deslocamentos até para ficar se colocando em
xeque o tempo inteiro. Então, não ficar numa zona
(C)
23
de conforto, sabe, ficar se questionando. Aí acho
que entra uma questão do tempo também, né. Você
tá sempre se questionando. Não acreditar que nada
está resolvido, mesmo se você já falou daquilo muitas
vezes, já fez aquilo muito tempo.. não acreditar que tá
resolvido! Então tem essa caoticidade, tem essa ideia
de uma criação junto com a pesquisa e eu vou falar
só mais uma coisa (porque senão, não é conversa,
vira monólogo!) mas, assim, tem uma coisa muito
importante para mim que é criar e estudar junto. Eu
nunca faço isso sozinha. Tem, claro, tem aqueles
momentos que eu fico lendo sossegada. Eu também
gosto, de vez em quando, de ficar lendo sozinha, né.
Mas eu gosto muito desse exercício de pensar junto.
Então eu faço isso com alguns amigos artistas que
nem, por exemplo, essa semana a Lia Rodrigues está
se apresentando aqui em São Paulo. Aí eu gosto de
encontrar com a Lia, de conversar com ela, a gente
às vezes lia os mesmos livros... gosto de conversar.
Lá de Teresina, Soraya, eu gosto muito de conversar
com Marcelo. A gente sempre conversa, tá sempre
trocando figurinhas... Então, tem muitas pessoas, tem
um monte de gente, não dá não dá para falar todo
mundo. E os meus alunos, as pessoas que estudam
comigo, desde o pessoal da graduação até o pessoal
do mestrado, doutorado. O que eu gosto muito desse
trabalho de orientar pesquisa. Eu acho muito legal
porque eu entendo a orientação de pesquisa como um
compartilhamento, eu aprendo muito com as pessoas
também. Acho que essa questão do (estar) junto,
também, para mim é bastante importante porque cada
vez aparece uma pergunta diferente, um problema
diferente e até às vezes quando eu tenho dificuldade
de orientar uma pessoa, isso é muito desafiador e
muito legal para mim, eu gosto de conversar com
gente que é difícil para mim conversar, tá. É assim
que é desafiador você encontrar um jeito de abrir um
caminho ali, sabe, criar um uma empatia. Quanto é
difícil também é legal. Bom, então é isso.
TARINA Eu queria só fazer um parêntese, me perdoa Soraya, eu
espero que quando eu disse que lia seus livros como ficção tenha
sido louca, mas eu acho que você entendeu que para mim eu leio
teoria, de modo geral, porque eu sinto que eu preciso desses canais
de imaginação para entrar na lógica do outro, né.
SORAYA Tá bom! Eu queria aproveitar isso que você falou
porque eu lembrei eu tava(sic) lendo uma coisa que você
escreveu, eu acho que há uns 10 anos atrás, você fez um livro,
uma entrevista com a Dani Lima. Naquele livro ‘Sem gestos’
e eu fui atrás de uma coisa sua que fosse antiga porque me
interessa e eu digo isso, assim, pensando que fui ler isso e
era muito interessante, por exemplo, uma coisa que você
falava lá sobre mediação como uma estratégia de continuar
(C)
24
a viver porque a gente está o tempo inteiro mediando as
coisas que acontecem com aquilo que a gente sente, né. E
aí eu fiquei pensando assim: ah, como é que eu posso fazer
isso para trazer para Chris, como uma experiência nossa? Eu
disse assim: ah, eu vou perguntar para vários artistas que eu
conheço e vou fazer perguntas dizendo “Você tem alguma
pergunta que você gostaria muito que a Chris pensasse,
que é urgente para você, né. Exatamente pensando no
que você fala lá, que eu achei muito bonito, de mediação
como atravessamento, né. E eu achei isso muito bonito,
isso ficou no meu pensamento. A Carol, que é uma pessoa
com quem eu tô trabalhando agora, Carolina Mendonça, ela
fez uma pergunta que a gente tava discutindo muito, que
tem a ver com essa ideia de pesquisar, né, que é - para
mim, por exemplo, - é muito importante estar falando com
uma pesquisadora viva. Uma mulher, pesquisadora, autora,
viva. Isso era uma das minhas perguntas que é: como é ser
um autora viva, né, já que a gente tem muito essa coisa,
principalmente acadêmica, das Deleuze (sic), das bicha tudim
que já morreram mas a bicha que está pensando filosofia
agora, pensando o corpo de agora, né, e tal. Então, para mim
é muito importante isso, né, de você ser uma pesquisadora
mulher-autora (sic). Então ela perguntou o seguinte, que é:
como é que a pesquisa se relaciona com a temporalidade
ou como a pesquisa nos possibilita experimentar outras
temporalidades. Eu fiquei pensando isso dentro disso que
você trás, desse seu processo criativo, né, disso que você
falou como uma continuidade, né, da conversa.
CHRISTINE Então, Soraya, acho bem legal essa
a tua observação, né, as coisas que você falou e a
pergunta da Carol, porque para mim essa questão da
temporalidade é superimportante porque eu nunca
penso na temporalidade assim de uma forma linear:
o passado, presente, futuro. Eu penso mesmo nesse
viés dos atravessamentos. Então, tem - por exemplo
- perguntas que estão comigo há muitos anos, muitos
anos. E, assim, eu acho que, sei lá, é capaz de eu
nunca conseguir responder, mas o que me impulsiona
é a pergunta, não é resposta, né. E esse movimento,
assim, de vai para trás vai para frente vai pra trás
vai para frente, isso eu faço um sempre, inclusive
com as escolhas das minhas interlocuções, assim, de
quem que eu tô lendo das coisas que eu tô assistindo
também. É sempre nesse movimento de vai para trás
vai para frente. Então eu gosto de alguns mortos que
você falou aí. Eu gosto alguns mortos, eu converso com
alguns fantasmas, mas eu também gosto de gente viva
e essa coisa de mulher viva eu acho importantíssimo
porque outro dia mesmo, até... tem um monte de
gente que tá estudando comigo pensando essas
questões das pensadores mulheres, né, e feministas
ou mesmo que não sejam mulheres cis, que sejam
(mulheres trans), mas é uma coisa muito presente na
(C)
25
minha vida, isso. Nos últimos tempos, assim... nem só
agora, já tem alguns anos... a gente ficou vendo que
realmente, assim, é desproporcional, né, a quantidade
de - por exemplo - de filósofos homens. E às vezes,
não é que as mulheres não estavam escrevendo, não
estavam pensando, mas é difícil chegar nesse lugar,
né, de ser o autor traduzido, né. Ter uma posição para
se tornar uma referência e muitas vezes isso acontece
mais com homens do que com mulheres, mas até
um certo ponto: agora eu acho que a gente tá num
movimento importante! Então as vozes femininas
estão muito fortalecidas e eu gosto de trazer essas
autoras e de conversar com elas e, claro, as que
estão aqui em São Paulo ou tão no Brasil e que é mais
fácil criar essa interlocução é uma coisa, mas coisa
mesmo com algumas que estão fora também, é uma
coisa que me interessa porque, eu acho, isso é outra
questão que tem muito a ver com a temporalidade:
a gente pensar nas questões a partir de contextos
diferentes e de tempos diferentes, isso também, vai
intoxicando a questão. Então vão surgindo outras
coisas, vão surgindo outros insights, então, isso é uma
coisa que me interessa. E mesmo quando eu trabalho
com os mortos, por exemplo, eu sempre acho que a
gente precisa de uma mediação viva. Então, assim,
eu - por exemplo - eu gosto muito de ler as coisas
do Focault, falei do Agamben... Eu gosto de algumas
coisas também do Deleuze, mas - por exemplo - é
interessante olhar como é que isso tá sendo trabalhado
por quem tá aqui com a gente, né? Tá num contexto
também brasileiro ou tá num contexto mais próximo...
Como é que se dá esse deslocamento das questões?
Então, eu acho sempre esse movimento muito
importante que é um movimento temporal também,
porque você traz lá sei lá o Foucault escreveu um
troço nos anos 50 e pode ainda tem muita potência
aquilo, mas se a gente pensa isso hoje e se pensa, por
exemplo, num contexto aqui de Brasil, dependendo
do lugar que a gente está no Brasil isso também vai
reverberar de uma forma diferente. Então eu acho
que eu me interesso muito pela diferença e não por
ficar ali, sabe, que nem um papagaio repetindo aquelas
coisas. Me interessa a diferença e me interessa
também questionar esses grandes nomes. A gente
não tem que fazer essas leituras como se fosse uma
coisa religiosa. É interessante criar perguntas para
indagar: será que ainda vale isso, mesmo assim? Sei
lá, pensando nas pessoas que mais nos afetam, ainda
assim, a coisa muda. E às vezes acontece movimento
também diferente: você acha que aquilo não faz
sentido nenhum e depois de um tempo começa a
fazer sentido. Isso já aconteceu comigo também,
que é um movimento um pouquinho inverso do que
eu tava falando. Por isso que eu acho que essa ideia
(C)
dos atravessamentos é muito legal porque a gente
vai mesmo, né, vai atravessando tudo lá e vai vendo
o que é que mobiliza a gente, o que é que ativa algum
tipo de movimento. É isso que me interessa: ativar
movimento. Eu acho que cada vez mais, na situação
que a gente está hoje, né, que estamos todos numa
situação muito vulnerável. Então, como é que a gente
faz para criar movimento? Como é que a gente faz?
Então, isso eu acho bem legal.
TARINA Chris, seguindo aí é de como a gente faz para criar
movimento, eu fiquei curiosa de te ouvir um pouco mais desse seu
interesse, dessa sua mobilização ou nessa sua ideia da fabulação...
e eu fiquei pensando, também, dentro disso se tem, ou se não
tem, qual é a relação da fabulação e do falso enquanto potência
de fazer corpo ou de conhecer. Então, assim, a fabulação ela é
uma estratégia legítima de conhecimento ou a gente consegue
desassociar a ideia de conhecimento com a ideia de verdade e
como... fiquei pensando até mesmo nas coisas, particularmente
nas quais eu trabalho, de educação somática, né, que é uma
versão de fabular para conhecer alguma coisa que muitas vezes é
intangível de outras formas, né, então...
26
CHRISTINE Então, Tarina, isso daí cola em algumas
coisas que eu também tenho estudando faz tempo e,
você sabe, porque eu sei que você gosta e também
por conta desse teu trabalho, com somática, é quando
a gente estuda sobre memória, percepção, fala sobre
o início a gente lê esses caras assim como António
Damásio, né, esses autores que estão estudando
mesmo a partir da neurologia, mas que estão
interessados na conexão com a filosofia - porque é aí
que a gente consegue entrar já que ninguém vai ficar
lendo neurociência dura porque aí não tem condição,
a gente não tem formação nem conhecimento sobre
isso; mas eu gosto de ler como o corpo aprende, como
o corpo conhece - e eles não falam em fabulação,
mas eles falam o tempo inteiro em imaginação.
Porque todas as nossas habilidades cognitivas, elas
têm essa mediação da imaginação, então até isso
tem a ver com a pergunta da Soraya, tá? Que quando
a gente lembra de alguma coisa, quando a gente se
relaciona com o passado... quando a gente lembra, a
gente lembra imaginando, então nunca é o passado
tal e qual. Então essa questão do falso é muito legal
da gente conversar porque como eu tava falando
no começo: não é esse falso que incomoda a gente
como, por exemplo, a fakenews, ou quando um político
mente descaradamente para gente. Não é desse falso
que a gente tá falando, a gente tá falando do falso no
sentido do poder, da potência do falso. E aí esse falso
potente significa imaginação e eu gosto desse nome,
fabulação, porque a fabulação tem trajetória, né?
Então, por exemplo, os neurocientistas eles usam o
(C)
27
termo imaginação porque estão explicando isso: ‘você
lembra de alguma coisa’ e junto com a lembrança,
a lembrança se constitui a partir da imaginação do
passado ou, por exemplo, mesmo consciência: a
gente tem vários níveis de consciência e tal, quem
trabalha, né, com dança, com performance, teatro
saberá perfeitamente disso. Então assim, você estar
consciente de algo que está acontecendo é sempre
também um processo imaginativo, até mesmo quando
você tá testando ali aquela presença. Mesmo ali como,
por exemplo, numa atividade que lembra a meditação,
vamos dizer assim, você tá lá naquele momento e
você não tá elucubrando, pensando outra coisa, você
tá pensando no que tá passando naquele momento:
a temperatura, o estado corporal, o movimento que
tá acontecendo aquele momento... Ainda quando
a gente tá nessa situação, a gente não desliga a
imaginação, então a imaginação está acontecendo e,
Tarina, por exemplo, para quem trabalha com Body-
Mind Centering®: você fica imaginando uma série de
imagens e coisas que estão acontecendo ali no corpo
e aquilo não é descolado no corpo, tem o impacto
corporal!
Aqui eu tenho umas alunas, né, uma - particularmente
- que ela se interessa muito por medicina chinesa (eu
também andei estudando essas coisas uma época),
então, por exemplo, a respiração nas medicinas
asiáticas, tanto na chinesa como na indiana, é um
processo imaginado. Porque a imaginação é aquilo:
no Japão também, né, tem ai-ki-dô... você respira
com a planta do pé, você respira, sei lá... não é uma
respiração assim que é só nariz, boca, que desce
pro pulmão... é uma respiração, assim, imaginada
e espalhada pelo corpo. Só que quando você fala
imaginado não quer dizer que é uma bobagem ‘ah, sei
lá uma metáfora maluca’, não é isso! Porque que cada
vez que você imagina alguma coisa, eu lembro até da
aula do Klauss, o Klauss Vianna falava isso: ‘ah, respira
com o lado direito do corpo, solta pelo lado esquerdo,
sei lá, né? Dá para fazer isso?! Mas a gente fazia o
exercício, imaginava aquele negócio. Você imaginou,
alguma coisa mudou no estado corporal. Então tem
isso de saída ali no corpo. Na discussão da fabulação,
antigamente fabulação era um negócio só da literatura.
Então as pessoas pensavam as fábulas, né, as ficções
para contar uma história, só aqui já tem, assim, eu
sinto que - principalmente nos últimos dez anos, mas
tem gente já politizando a fabulação há mais tempo
- eu acho que mais ou menos em torno da década
de 80, a fabulação começou a ser trabalhada como
fabulação política. Então, é nesse sentido que tem
me interessado muito porque é você usar a fabulação
para dar visibilidade para narrativas silenciadas,
(C)
28
para mundos que, supostamente, como se eles não
pudessem existir... Isso que eu tô falando para você,
Tarina, é até de um livro que a gente já conversou,
é de um autor que se chama Tavia Nyong’o que ele
fala sobre afrofabulação. Eu gosto dessa conexão
que ele propõe que é afrofabulação, aí ele pensa na
Saidiya Hartman, que essa autora agora tá sendo toda
traduzida em português, a própria Donna Haraway...
então é uma rede, assim, de um pensamento que
tirou a fabulação só do escopo da literatura e levou
para um outro lugar, que é assim: será que a operação
fabulatória ajuda a gente.. não é a recuperar, porque
não existe recuperação, essa coisa de ‘vou recuperar
o passado’ eu não acredito nisso, acho que não é
possível, porque quando você se relaciona com o
passado já não é mais o passado, no passado, é
um passado presentificado com outras questões.
Então, essa fabulação política, ela promove um outro
atravessamento - já que a gente tava falando disso
– né, e pode trazer para visibilidade alguma coisa que
tava lá na opacidade, deixado para trás, né?. Eu tava
hoje... voltei a ler um livro que fazia muito tempo que
eu não lia um negócio também (incompreensível) um
livro lá que citava xxxx, por causa de uma aula que
eu vou dar segunda-feira e ele fala assim: ‘ah eu me
interessava muito pelos crepúsculos, por uma sombra
bem comprida que não é uma sombra só que tá, agora,
aqui, mas que ela se estende lá longe e aí ela cria essas
outras temporalidades e, às vezes, algumas perguntas
que estavam lá adormecidas, voltam. E voltam e têm
uma potência de ativar, às vezes, outra coisa que,
naquele primeiro momento, sei lá, tinha outro sentido.
Não sei se é por aí, Tarina, que você perguntou...
TARINA Acho que tem acho que tem essas todas coisas, acho
que tem essa... fiquei pensando até agora, claro, porque tem uma
relação Direta com a própria ideia do afrofuturismo, né, como
esse, também, modo de friccionar politicamente com a ideia de
visibilidade também, ou não, mas também isso, eu tô pensando
mesmo na perspectiva da criação artística, o quê que a ideia de
fabulação pode trazer para a gente conversar junto também,
porque tudo bem aqui no campo da criação a gente já pode dizer
que tudo é uma fabulação, né, mas enfim...
SORAYA eu achei superinteressante porque quando
você falou, por exemplo, que algumas situações, algumas
condições de vida, por exemplo: elas estão tão induzidas
a não aparecer, a não fazer parte da vida que aí eu fiquei
pensando ‘poxa, talvez a imaginação seja a única coisa que
ninguém pode tirar da gente. Ninguém pode dominar esse
lugar e aí eu fiquei pensando em todos esses corpos e em
todos os movimentos que a gente faz, por exemplo, de –
aliás - a gente é induzida o tempo a pensar sempre grandes
(C)
29
deslocamentos, grandes blocos de áreas do corpo para
pensar, para produzir pensamento, para produzir teoria, para
produzir um bocado de coisa, né?’ E aí eu fiquei pensando
as bichas de abrigo por exemplo, né, o envelhecimento em
abrigo que, geralmente, é o corpo sentado o tempo inteiro, as
pessoas com deficiência física, né, as pessoas que não tem
possibilidade de deslocamento porque estão em situação
de sítio, que estão (nem precisa ser em outro país) mas no
nosso próprio país que não tem um direito de se deslocar.
Então assim, o quanto que a gente é induzido a grandes
deslocamentos e parece que a vida só existe quando a gente
só reconhece esses grandes deslocamentos.
Eu fiquei pensando isso que você fala, isso dessa coisa do
testemunho e da arte, como é que a arte pode ser esse lugar
do testemunho, mas um testemunho que é dessa pulsão de
vida, ser reconhecido em qualquer linha de vida, né? E aí
eu tenho uma pergunta para isso, porque eu acho que tem
a coisa da memória que é uma coisa que, desse texto que
eu li, foi uma das coisas mais bonitas porque eu adoro ler
coisa em que os olhos da gente brilham! É bom demais! E
aí eu li e fiquei com vontade de perguntar: existe uma ética
da memória, por exemplo: eu não sei nem o quê que eu tô
perguntando, mas me veio essa pergunta na hora e eu anotei
ela e, assim, existe uma ética da memória porque eu sinto
que essa coisa de imaginar é uma coisa tão formidável. Por
exemplo, eu lembrei também de uma coisa que o Daniel
Munduruku fala que a gente aprende no susto, a gente
aprende no espanto. No interior diz-se muito, né? Que é a
filosofia do mato, que eu chamo, que é do Brasil profundo,
né, que as pessoas dizem, por exemplo, que a gente aprende
quando se espanta, né? E ele fala isso também e eu fiquei
pensando isso, aproveitando para perguntar, né, existe uma
ética da memória?
CHRISTINE Olha, eu nunca pensei nisso, Soraya,
então não sei se eu vou saber responder, mas assim eu
tenho uma tendência a pensar que quando a gente está
falando da memória íntima, a memória de cada um, eu
acho que não tem, não. E você pode pensar e imaginar
o que você quiser. Assim, quando implica no outro aí
acho que tem que ter, porque ética a gente não pode
ficar sem. Quando a gente tá, sabe, trabalhando com o
coletivo, com o outro, é absolutamente fundamental,
né? Agora, a memória de cada um, eu não colocaria
nenhum tipo de limite nisso, nem moral, nem ético,
nada, nada! Aí é a liberdade que você tem, realmente,
de imaginar, projetar mundos, criar fantasias... você
pode pensar o que você quiser: ninguém tem nada
com isso! Então quando, a partir do momento que,
você compartilha, aí já não é mais só você, né, aí tem
o outro na jogada. Então, se você não pode continuar
pensando só em si mesmo, isso implica, sim, em outras
coisas. Agora, você falou um montão de coisas legais
(C)
aí, essa história do espanto é maravilhosa e o grande
problema é quando a gente perde essa capacidade do
espanto porque eu concordo total com ‘filosofia do
mato’ que você falou.
SORAYA Isso, ‘filosofia do mato’ (risos)
30
CHRISTINE Olha gente: eu tô junto! Filosofia do
mato: tem que espantar para aprender alguma coisa.
O problema é quando a gente fica naquele momento
que você não se espanta mais com nada, aí também
não aprende nada, né? Então fica complicada a
situação. Então, é lindo isso daí que você falou e eu
acho que a imaginação, assim como ela está presente
em todas as nossas habilidades - mesmo cognitivas,
perceptivas - ela também cria os movimentos, é o que
impulsiona a gente. Quando você falou desse negócio
do não poder sair do lugar, não poder se deslocar,
eu pensei numa frase que eu acho sempre bonita,
daquele escritor, Jean Genet, que ele ficou preso
muito tempo, né, ele foi preso, escreveu muitos livros
dentro da prisão, e ele falava isso que ‘as pessoas
podiam roubar o espaço dele, mas não roubavam o
tempo porque ele seguia imaginando, escrevendo’...
isso daí acho uma coisa linda! E também lembrei de
outra coisa, lembrei da Alice Ruiz, tem um haikai
dela que fala isso, ela diz: ‘ai que viagem ficar aqui
parada’. Vocês sabem que eu sempre lembro dela,
tô lembrando disso até na pandemia! Lembrei desse
negócio porque, olha, eu vou te dizer: eu mesma sou
assim, eu faço cada viagem parada sem que sair do
lugar, e é tão bom! Assim, tem hora que você viaja
tanto ali que você fala ‘bom, se chegar um dia que
for para aí presencialmente, eu acho que nem precisa
mais: a viagem já aconteceu! Então, mas é assim. Isso
aí é brincadeira, né? É brincadeira e não é, mas - assim
- a imobilidade é uma coisa bem complicada, né?
Porque, claro, que mesmo estando imóvel, estando
encarcerado, estando numa situação que você... eu
tenho pensado muito nessas questões da doença
também. Muito. Então, você tendo um deslocamento
difícil isso não significa que você não pensa, que você
não imagina, que você não faz as coisas, mas precisa
ter uma força danada para transformar essa situação
de vulnerabilidade em criação. É muito complicado. É
uma dificuldade extrema fazer isso.
Eu tenho estudado muito isso porque eu tô dando um
curso sobre um negócio que chama cripistemologia,
que é como é que você, a partir dessas situações -
que são muitas vezes, as pessoas que escrevem sobre
isso – normalmente - são pessoas que têm alguma
doença e que, ao invés de se afundarem na doença
(porque que a pessoa doente possui uma tendência,
(C)
também, de transformar a doença na coisa principal
e perder a pessoa), é... como você transforma esse
estado de precariedade? Você usa a doença para
criar. Você parte dessa singularidade corporal, para
fazer alguma coisa que é um negócio que os artistas
fazem, assim, o tempo inteiro. Então, fazem isso até
em situações agravadas em que é difícil, né, bem
complicado. Eu tenho estudado muito essa bibliografia
e tem algumas pessoas que têm problemas de saúde
que estão estudando junto comigo e tá sendo muito
bom o que é de novo aquele movimento: não estudar
só com a bibliografia, mas estudar com as experiências
e tá sendo muito legal. Acho que às vezes é difícil, mas
tá sendo muito legal.
TARINA Chris, a gente tá começando a se encaminhar, infelizmente,
pro final e - encaminhando com esse final – pensando, né, você
falou que tem essas perguntas que às vezes não fazem sentido e
depois fazem e vice-versa. Hoje, 2022, nesse dia amanhã pode já
ser diferente... que questão do passado que tá mais viva para você,
olhando toda a sua história, se tem algo lá do seu passado que
hoje tá mais presente, que questão do passado está te habitando
novamente hoje? Não sei se habilitar é uma boa metáfora.
31
Christine: Olha, eu sempre fui muito (e acho que isso
daí nunca mudou, na verdade!) eu sempre fui muito
interessada por essas questões desses estados de
crise, né, até quando eu escrevi esse livro mesmo do
‘Corpo em crise’ eu começo falando que eu gostava de
ler a Clarice Lispector quando era bem jovem com os
13 anos, eu já gostava de letras. Nem sei se eu entendia
direito o quê que tava acontecendo lá, mas eu gostava
do movimento, aquilo me trazia um movimento. Tem
uma época que eu pensava mais nisso, que é essa
relação de catástrofe e criação. Então teve uma
época que eu pensava muito nisso. Depois quando eu
comecei a estudar Bourriaud, né, aí era muito presente
isso daí. E, durante, uma certa época eu (não é que eu
parei de pensar nisso mas, assim, ficou meio de lado)
eu comecei a trabalhar com outras coisas e agora,
recentemente, são esses fluxos né de vai-e-vem
e eu acabei de fazer a tradução do livro desse meu
amigo lá do Japão… que ele escreveu sobre o Artaud.
Vai sair! Aaah, você quer fazer propaganda? Vai sair
um livro agora dia 15 de maio que se chama Artaud,
pensamento e corpo. E aí você imagina isso, Tarina,
fazer essa tradução! Eu fui jogada de novo nessa
história da catástrofe-criação.
TARINA Chris, eu não consigo nem imaginar o que é fazer uma
tradução disso.
CHRISTINE É um negócio bem maluco porque o
quê que acontece: o Artaud do Kuniichi Uno assim: o
(C)
Kuniichi Uno escreveu esse trabalho há 40 anos como
uma tese de doutorado orientada pelo Deleuze. Só
que quando ele começou a fazer a pesquisa do Artaud
com o Deleuze ele conheceu o Min Tanaka que tava
dançando lá em Paris, Munique. Ele era o cara lado
Butô (não posso falar mais isso porque ele desistiu de
Butô) . A última vez que ele veio dançar em São Paulo
ele falou que se alguém falasse que ele tava dançando
Butô, ele ia cancelar o espetáculo, mas, enfim...
naquela época era Butô, e aí então é uma Artaud, ele
fez uma pesquisa muito grande sobre o Artaud: estão
lá as cartas, os desenhos, o heliogábalo, a questão
do corpo tem um capítulo inteiro disso, mas assim é
um Artaud todo contaminado não só pelo Japão, mas
especificamente pelo Butô.
Então você imagina esse negócio dessa tradução foi
uma coisa bem maluca e como é muito recente eu
acho que deu uma embolada, Tarina, nessa questão
aí de catástrofe com criação que nunca, de fato, me
abandonou, mas durante um tempo eu deixei meio
de lado até porque também você precisa respirar um
pouco, né? Pensar em outras coisas...
32
Agora, assim, veio muito fortemente por causa desses
estudos da cripistemologia e que, claro, tem tudo a
ver com o Artaud porque é como ele dizia: ‘o ofício
dele era se reinventar’, mas se reinventar quando
você tá internado no manicômio é diferente da gente
se reinventar na nossa vida, né? É difícil, gente, é
difícil! Mas eu acho que são duas coisas que voltam:
uma é essa e a outra é esse desejo de ficção que vai
aparecendo de formas diferentes, sabe. Cada vez de
um jeito diferente. Que lá atrás aparecia muito para
mim na forma de poesia e depois foi se modificando,
agora um encaminhou aí com essa história da
fabulação e depois, você não tava me perguntando
isso, mas não entendi que era isso, e revelei para vocês
o meu segredo que é a vontade de escrever um livro
de ficção. (risos) Deu um bololô aqui na conversa, mas
tudo bem.
TARINA Eu quero ser sua primeira leitora!
Chris eu queria te agradecer muito mesmo e, para realmente, ser
a última fala da entrevista a gente vai propor que seja sua. É uma
pergunta, na verdade, do projeto porque é algo que nunca deixa
de ser um incômodo, não sei se é essa palavra mas algo que toca
a artista e o seu próprio tempo. Então a gente queria terminar a
entrevista com uma pergunta sua e perguntar o quê que você acha
que a artista da dança não pode deixar de te perguntar em 2022?
Que pergunta em 2022 você jogaria para alguém que fala assim:
‘eu quero dançar’.
(C)
CHRISTINE o quê que a pessoa não pode deixar de se
perguntar?
Olha a palavra que vem na minha cabeça é anarquia,
sabia? Anarquia. Como revolucionar, como criar
anarquia? É isso que a gente está precisando. E eu
acho que para fazer isso é só na micropolítica, é
realmente no pequeno. Esse confronto maior não é
para gente, isso é para outras pessoas, sabe? Porque a
gente não resolve nada, né, vamos combinar? Quem é
artista, professor, escritor... a gente não resolve nada,
a gente só cria umas zonas de ação. Então acho que é
isso a gente tem que trabalhar na anarquia, acho que
é isso que eu pensaria. (E esperança para a Futura!).
SORAYA Nossa, maravilhoso!
33
34
E
Entrevista
realizada
em
Maio
de
2022
SORAYA
PORTELA
ELISABETE
FINGER
TARINA
QUELHO
ENTRE
VISTAM
(D)
35 CLARICE Oi gente, bom dia! Hoje a gente dá seguimento a série de
entrevistas Cabeça Coração do projeto Futura. E a gente está aqui com
a Tarina Quelho e a Soraya Portela, entrevistando, conversando hoje
com a coreógrafa Elisabete Finger. É um grande prazer estar com vocês
todas aqui hoje, para a gente conversar. Eu e a Aline, coordenamos esse
projeto que foi contemplado pela 31 a edição do Programa Municipal de
Fomento à Dança para a cidade de São Paulo, Secretaria Municipal
de Cultura. Então agora, eu vou deixar vocês com elas para a gente
conversar. Obrigada pela presença.
TARINA Obrigada, Cacá. Clarice e Aline. Bom, gente, eu sou a
Tarina, meu nome é Tarina Quelho. Eu sou uma mulher cis, não
sou branca, sou mestiça. Tenho um cabelão assim bem volumoso
preto, já com fios brancos, porque eu já não sou tão nova. Estou na
frente de uma parede branca, vestindo uma camiseta azul marinho.
SORAYA Meu nome é Soraya. Oi, minha gente! Oi, Bete,
bem-vinda! Que saudade! Tarina, Cacá, as meninas todas
desse projeto Cabeça Coração. Eu vou me descrever: Eu sou
Soraya Portela, falo do Piauí, de Teresina. Sou uma mulher
de pele clara, tenho os cabelos encaracolados, eles vão até
aqui, à altura do ombro, tem um volume de cabelo. Eu uso
óculos, animal print. Tenho o rosto redondo, roliço. Atrás de
mim tem uma porta azul, com plantas e uma parede branca.
E eu quis fazer esse cenário aqui, homenageando a querida
Bete, né?! Maravilhosa! E aí, Bete, pode “arrochar’’.
(D)
36
ELISABETE Olá, queridas! Nossa que delícia estar
aqui com vocês, Soraya, Tarina! Bom, eu sou Elisabete
Finger, sou uma mulher de pele clara, de olhos
claros, tenho o cabelo castanho, agora ele está meio
avermelhado - não porque eu queira, mas ele ficou
assim. Estou usando uma franjinha bem curtinha.
Também já tenho umas ruguinhas, porque eu já tenho
quarenta e dois anos. Estou vestindo uma camiseta
verde, clara, assim bem verde, bem “cheguei!”. Estou
em Berlin, estou falando de Berlin, da minha casa. Tem
uma espécie de cortina cinza atrás de mim.
TARINA Bom, é um prazer estar com vocês duas aqui, claro! A gente
vai indo nesse bate-bola, numa conversa. Esse nosso encontro, a
gente está chamando de conversa, entrevista ou algo por aí, ele faz
parte de uma série de encontros, como a Clarice falou no começo, tá
dentro desse projeto que foi contemplado pelo Fomento e a primeira
entrevista, o primeiro encontro que a gente fez foi com a Christine
Greiner e a gente jogou para a Christine uma pergunta para ela fazer
uma pergunta que foi sobre o quê que seria algo fundamental, que
não pode não estar no horizonte de alguém, de uma jovem, que quer
trabalhar com dança contemporânea hoje, em 2022, no mundo. E
a Chris jogou a palavra anarquia. Teve um momento da entrevista
que ela falou uma coisa ótima. Ela falou: “a gente que é artista, a
gente que escreve, a gente não muda as coisas”. Ela falou algo por
aí, né, Soraya?! Eu não vou citar exatamente porque eu não lembro,
mas ela colocou algo como “o nosso papel é diferente, tem algo,
tem uma outra coisa…” Então, eu jogaria para você, não exatamente
para se relacionar com essa palavra, mas o que é que, para você
- pensando em fazer esse gancho com a Chris, é hoje algo que
não pode não estar no seu horizonte enquanto criadora, enquanto
coreógrafa, enquanto performer?
ELISABETE Uau! eu acho que é uma certa noção de
responsabilidade. Não sei, essa palavra me vem agora
quando eu penso que criar danças, criar arte, criar
movimento é também criar mundos, possibilidades.
Não sei se eu concordo tanto com isso de que a
gente não muda nada, acho que a gente pode mudar
bastante coisa. Mas a gente, com certeza, cria
fissuras e oferece possibilidades para a gente mesmo,
para quem a gente encontra, para quem encontra as
coisas que a gente está fazendo e aí nessa função
de criar mundos, danças e possibilidades, eu acho
que a gente tem uma imensa responsabilidade. Essa
palavra me veio com isso, com a ideia de que se eu
estou criando mundos, criando possibilidades, eu
tenho que ser responsável por ele. Mas também me
lembro de um jeito de pensar a responsabilidade que é
a habilidade de dar respostas, de oferecer respostas e
isso não quer dizer exatamente que eu vou ter todas
as respostas, talvez as perguntas nem existam ainda,
mas é essa habilidade de lidar com respostas, então, e
de colocar essas respostas no mundo mesmo que elas
(D)
37
não tenham relação direta com perguntas, sabe? É
uma coisa que me vem agora com essa sua pergunta
que parece bem filosófica, eu vou pensar sobre ela
ainda. A gente pode ir desempacotando no desenrolar
dessa entrevista.
SORAYA Eu acho interessante essa palavra, Bete,
responsabilidade, porque eu fico pensando muito mais
sobre tomar uma posição sobre as coisas que nos cercam,
nos circundam, né?! E se interessar mesmo, eu acho.
Me veio isso na cabeça. E também você falou a palavra
mundo. A gente tem falado, tem se falado muito, existem
muitas respostas sobre criar mundos e aí, eu fico pensando
assim: muitos mundos já existem, será que a gente está
se responsabilizando por esses mundos que já existem?
Mundos que, inclusive, com o trabalho da gente a gente deixa
de incluir, deixa de considerar, deixa de se responsabilizar
por eles. Mundos que constituem a dimensão da vida da
gente. E aí, eu acho que, nesse sentido, eu acho que tem a
ver com esse projeto Cabeça Coração que tem o interesse
de juntar mulheres. E eu fiquei pensando assim, eu lembrei
de uma coisa, você, Bete, é uma pessoa que quando a gente
conversa com você, seus olhos brilham. Eu acho isso incrível:
pessoas que conversam e os olhos brilham. E aí, eu fiquei
pensando sobre o que é que isso diz de você como artista. O
quê que isso diz de você como artista?
ELISABETE Ah, eu não sei… Eu me sinto muito
apaixonada pelo o que eu faço, pelas perguntas em
torno disso, por vocês, pelas coisas que vocês fazem.
Isso me move muito. Eu não consigo não me mover
com essas coisas e acho que é até um problema pelo
outro lado, às vezes eu tenho que fazer um grande
esforço para criar um equilíbrio entre a vida prática
cotidiana, tarefas, famílias, obrigações cotidianas
e esse impulso que eu tenho na direção da arte, dos
projetos, das criações, dos encontros. Então, para
mim, não é necessariamente uma escolha, sei lá, eu
me sinto puxada, sugada por esse lugar, um lugar em
que eu me comunico com o mundo. Sei lá, às vezes,
eu tenho medo também porque a gente pode beirar a
loucura em alguns projetos, sair mesmo das casinhas,
e percebo o quanto a gente se envolve com a arte e
deixa esse outro lugar - dinheiro, organizações para
uma vida prática, sabe? São coisas que vêm chegando
com a idade agora, sabe? Aposentadoria, onde é
que eu vou morar, como é que eu vou, enfim, talvez
isso já estivesse presente antes mas agora isso vem
chegando com mais força, e aí essa paixão que faz
brilhar o olho e que me leva para os lugares, eu sinto
que eu preciso equilibrar um pouco mais com essa
vida prática. Talvez essa ideia de responsabilidade
tenha que aparecer aqui de algum jeito, a habilidade
de criar respostas para esse equilíbrio. Falando assim
(D)
faz parecer que a arte está tão separada da vida, não
é? Não está, não acho que ela esteja, mas tem um
jeito de organizar o fazer artístico que eu acho que
para mim ainda é muito impulsivo, apaixonado e eu
estou tentando rever cada vez mais. É uma conversa
que passa por aí também, eu estou pensando cada
vez mais nisso, no labor da arte, no fazer arte, como a
gente organiza isso, como a gente faz isso de um jeito
saudável para a gente, sem enlouquecer, sem ficar
sem dinheiro, sem ficar sem aposentadoria, como que
a gente regula um pouco essas coisas.
TARINA Mas, Bete, seguindo um pouco nessa coisa do olho que
brilha e da paixão, eu fiquei curiosa sobre a sua relação com a
matéria, essa viagem, eu vou chamar assim porque é uma viagem
que eu vejo que está toda na sua trajetória, essa viagem ela
começou como? Onde? Teve algum momento, artisticamente
falando, em que você falou: eu sou artista? Teve um momento em
que isso aconteceu? E quando isso aconteceu, isso já veio junto
com essa curiosidade pela matéria? Parece para mim uma coisa
super sensorial de perguntar para o mundo que quase lembra o
lugar da criança que vê as coisas e as matérias como algo mágico,
por assim dizer. Não é exatamente uma palavra que você usa, mas
eu estou visualizando assim.
38
ELISABETE Então, várias coisas… Teve um momento
lá atrás em que eu pensei e, que eu me lembro como
um marco, em que eu fiz uma escolha pela arte. Eu fiz
faculdade de direito na UFPR, cinco anos, terminei,
nunca exerci, mas fiz esses cinco anos. E lá no meio da
faculdade eu só fazia o essencial para conseguir
passar raspando de ano e conseguir fazer os trabalhos,
fiz o mínimo para conseguir chegar no final. E lá no
meio dessa faculdade, eu me lembro que eu dividia
meus dias entre dançar de tarde e ir à faculdade de
manhã. E aí me apareceu um estágio que era um pouco
o estágio dos sonhos, todo mundo queria esse estágio,
e ele caiu no meu colo, alguém estava saindo e me
ligou dizendo olha, eu vou te indicar, eu queria que
fosse você. E aí, o que eu tinha que fazer? Eu tinha que
largar o balé. O balé e todas as danças que eu fazia. E
eu senti que eu tinha que tomar aquela decisão, e que
eu estava decidindo naquela hora o que eu queria para
o futuro e eu disse não para o estágio e disse não, eu
agora estou decidindo pela minha vida, pelo meu
estudo como artista. E, claro, demorou muito para eu
me entender com artista. Depois disso foi uma
confusão, eu fui para lá, fui para cá… E lá no começo,
eu também fiz parte dessa nossa geração que
começou criando, que não teve esse histórico de
passar por companhia de dança, a gente já vem desse
lugar do autor, de criar e se responsabilizar também
pelas coisas todas, então eu faço, eu danço, eu penso
o cenário, o figurino, eu sou responsável por essa coisa
(D)
39
toda que é uma obra. Eu já vim com isso em Curitiba,
na casa Hoffmann, em contato com outras pessoas
que estavam produzindo dessa forma, mas os meus
primeiros trabalhos, nas primeiras investigações eu
estava muito ligada na palavra, na estrutura da
palavra, eu adoro estruturas, hoje menos, mas na
época eu adorava as estruturas e estava muito ligada
à poesia concreta, eu lembro disso,eu estava na tensão
de Palavras: coisas no espaço tempo e eu criei as
minhas primeiras peças à partir disso, mas elas tinham
muita base nessa estrutura, tinha um lugar da
inteligência da estrutura e de um corpo a serviço
dessa estrutura. Bacaninha, legal, até funcionou,
circulei um pouco com esses trabalhos. E depois eu
fui, eu apliquei para uma escola na França, que é o
CNDC, em Angers, e fui parar nessa escola. E quando
eu cheguei lá, ninguém falava português, e as minhas
Palavras: coisas no espaço tempo não fizeram sentido,
ninguém entendia o que eu falava e não fazia sentido
traduzir porque estava na materialidade da palavra, e
também eu fui muito questionada, no bom sentido, fui
muito desafiada nisso de por quê eu vim estudar dança
se no que eu estava interessada era nessas estruturas
em que eu podia, praticamente, desenhar no papel a
peça? E isso foi bem desafiador para mim, porque daí
eu pensei, poxa, por quê mesmo eu estou aqui fazendo
isso que eu estou fazendo ou querendo fazer isso que
eu estou querendo fazer e qual é essa viagem do
corpo. E então, todo o meu tempo na França foi um
pouco para entender essas relações de como era a
minha entrada no meu próprio corpo e como era a
entrada do meu corpo nas danças que eu queria fazer.
E teve um momento ainda nessa escola, nessa
formação, era o final da formação e a gente estava ali
preparades para fazer nossas peças e eu estava
preparada para fazer um trio. Éramos eu e mais dois
artistas, um homem e uma mulher. E o que aconteceu?
Eles eram namorados e brigaram. O trio implodiu, todo
mundo acabou brigando e virou três solos - o que,
hoje, eu acho que foi providência do universo, porque
foi muito melhor para todos nós, mas na época, foi
uma grande crise porque eu não estava preparada
para estar sozinha no estúdio e me entender com esse
corpo, partir do corpo, começar pelo corpo. E um dia
indo para o meu ensaio solitário, eu pensei, eu preciso
de outra presença, preciso de um corpo para estar
comigo. E como não tinha ninguém, eu fiz o corpo, fiz
uma massa, foi aí que eu fiz a massa do Amarelo. Eu
peguei farinha, óleo, água e criei esse volume, era um
volume para estar comigo, era muito uma estratégia
para me devolver minha própria presença. Então, ter
outro me devolve a minha própria presença e isso
tanto pela textura, temperatura, o gelado da massa
me faz perceber como eu sou quente, o peso dela me
(D)
40
faz me conectar com o meu peso, o cheiro dela com o
meu cheiro e então, me coloca em mim. O fato de
trabalhar com uma matéria me devolve a mim mesma.
E foi assim que veio a massa. No começo eu queria
que ela fosse um corpo muito grande, depois eu já
imaginei que ela poderia ser um chão e eu ficava
fazendo massa em casa sem parar e cheguei a
dezesseis quilos de massa, e era assim muito pesada
e completamente fora de qualquer condição de
trabalho porque durava dois dias e eram quilos de
farinha e era assim, um pedacinho assim, não era nada
em termos de volume no espaço, mas era muita coisa
em termos de trabalho para fazer, materiais para
comprar, enfim, e aí eu entendi que a presença dela era
essa, hoje ela tem cinco quilos e ela é assim, ela é o
que ela é. E a partir desse encontro com essa massa,
esse fazer e me colocar em estado de fazer e de
encontrar, de mover para daí descobrir do que é que eu
estou falando, para daí descobrir que dança é essa.
Então foi a primeira vez que eu me coloquei nesse
lugar de dançar para descobrir que dança é essa, de
descobrir dançando do que é que eu estou falando ou
o que é que vai acontecer. E foi um processo longo,
super solitário, mas também muito prazeroso de
entender que é possível, e que essas coisas acontecem
e que a partir daí a gente pode desdobrar várias
referências e também aprender a se colocar nessa
posição de observador do que você está fazendo, do
que está acontecendo mais até do que o que você
está fazendo, o que está acontecendo entre você e as
matérias e aí ler possibilidades, caminhos possíveis e
deixar, puxar coisas para dentro desse conjunto. Eu
falo isso até nas oficinas, nas práticas de encantamento,
que não é que você nunca mais pode ter ideias, mas é
que as ideias que você tiver a partir de certo momento,
elas vão fazer parte desse grupo de matérias, elas não
são mais só minhas, elas ideias que vieram desse
encontro, elas são minhas e da massa, elas são dessa
assemblage que somos nós agora, esse novo grupo.
Então, eu acho que o encontro com as matérias veio
daí e aí eu fiz Amarelo que é essa que, nossa,
surpreendentemente ainda dancei agora há pouco
tempo. E para mim Amarelo foi uma grande formação.
Eu sempre falo: fiz Direito, fiz Amarelo. Amarelo me
formou mais que a minha faculdade de Direito, me deu
mais instruções de base, de princípios, do que eu quero
fazer na vida, do que eu quero colocar no mundo, das
coisas pelas quais eu quero ser responsável. Com
Amarelo eu descobri o modo de fazer, me deu um
chão, um chão amarelo para eu pisar. E depois disso
vem o desenvolver desse encontro com as matérias.
Eu acho que existe essa leitura, ela existe, eu vejo, eu
percebo, mas junto com ela me veio muitas vezes uma
leitura que falava de um certo animismo, de você ver a
(D)
41
alma das coisas, você lidar com as coisas como se
elas tivessem alma. Isso sempre me incomodou muito,
eu queria dizer não é isso, mas eu demorei para ter
instrumentos e vocabulário para conseguir desenvolver
um pouco mais isso, porque não se trata isso. E hoje
eu consigo dizer melhor porque achar que as coisas
têm alma, talvez elas tenham e a gente nunca vai
saber, talvez a gente saiba um dia, mas para mim não
é esse o ponto. Para mim, atribuir alma às coisas está
num lugar um tanto antropocêntrico, na nossa cultura,
porque para que essa coisa possa se mover, possa ser
criativa no mundo, possa surpreender, possa performar
no mundo, quer dizer que ela precisa ter alma? É um
pouco atribuir qualidades humanas à coisa. Por quê se
ela pode simplesmente ser coisa? E, sendo coisa, ela
pode performar, ela pode ser criativa, ela pode nos
desafiar. Então não estava nesse animismo das coisas
terem ou não alma. Estava no lugar da coisa. Pelo
simples fato dela ser coisa, ela vibra nesse mundo e
então está no lugar da matéria que vibra, está no lugar
da matéria que gera informações para esse mundo
mesmo independente de mim, as matérias se
encontram entre elas, elas se articulam, tomam
decisões, elas criam coisas, criam cosmos, criam
micromundos, outros mundos independente do que eu
acho disso. Então, eu acho que estava mais nesse
lugar do encontro com a coisa e de ver a coisa como
encantada, e então aí entra essa palavra encantamento.
Eu gosto mais do encantamento do que da mágica,
mágica não é uma palavra que pertence muito ao meu
vocabulário. O encantamento me remete a isso, a
essas práticas ou culturas ou tempos atrás na nossa
história ocidental em que o mundo é encantado, as
coisas tem poderes, as coisas tem sua própria lógica.
Então esse mundo encantando das coisas encantadas,
eu acho que está mais próximo da minha pesquisa do
que a mágica, porque a mágica parece precisar ter
alguém que a faça parecer mágica em lugar de possuir
mágica em si mesma. Enfim, eu falo disso também
nas oficinas, nós estamos tão acostumados a atribuir
características humanas às coisas que se, por
exemplo, a gente está numa casa e um objeto que está
na prateleira cai, a gente logo acha que é fantasma,
que o objeto não pode cair por si só, a gente acha que
ele não tem capacidade criativa, performativa para
simplesmente cair e a gente tem que atribuir a ele um
plus de qualidades humanas, “ah, a minha avó que
morreu nessa casa está querendo me mandar um
mensagem”, a gente não pode simplesmente admitir a
capacidade performativa da coisa que resolveu cair da
estante.Então, para mim está aí nesse campo.
TARINA Quando eu pensei na coisa que eu chamei de mágica e
usei essa palavra mesmo de um jeito bastante informal de criança,
(D)
42
eu falei muito mais nessa relação, que eu acho que tem tudo a ver
com o que você falou, de criar a massa, criar o corpo, muito mais
nessa relação física, material mesmo de algo que eu não consigo
explicar com palavra porque tem uma dimensão para mim que eu
estou chamando de mágica e, talvez não seja essa, realmente, a
melhor palavra, mas que tem a ver com esse pensamento que é
um outro pensamento, mas é um pensamento de curiosidade por
essa coisa, pelo que essa coisa tem e pelo o que ela faz por si.
Você ficou falando bastante do objeto e da coisa e, eu não sei é na
sua biografia ou em algum material onde você fala do seu próprio
trabalho, mas tem uma coisa que você colocou lá que me deixou
reflexiva. Você coloca o corpo enquanto coisa que excede o status
de objeto. Bom então a minha pergunta é: o que é esse excesso?
O que excede, excede para onde? E quando excede o status de
objeto, se torna o quê?
SORAYA Eu queria completar essa pergunta da Tarina
porque eu acho que existe uma relação com as coisas como
objetos e existe uma relação com a materialidade. Qual é aí,
não no sentido comparativo, mas quais são as qualidades
dessas duas palavras? Então eu queria aproveitar para falar
sobre isso e perguntar quais são as noções que você discute
dentro disso, porque eu acho que a depender dos lugares,
a depender de como as pessoas se relacionam, eu acho
que deve ser diferente. Mas vamos colocar assim: objeto é
uma coisa, no imaginário mais comum quando você escuta
objeto quer dizer que é uma coisa, e também tem o objeto da
academia, da discussão científica, da discussão legitimada,
de toda uma noção de como a gente aprendeu aquela
palavra, aquela definição e é ela quem vale, o objeto de
estudo, aquilo com o que eu me relaciono à distância, aquilo
que está a meu serviço, a serviço do que eu quero descobrir,
e aí tem a matéria que é algo, trazendo uma relação que eu
faço, quase maior do que eu, quase algo que às vezes desliza
pelos dedos, atravessa como ar, para mim matéria traz isso.
Eu fiquei curiosa.
ELISABETE Muito bom, gente. Obrigada por essa
pergunta! Bom, eu criei para mim mesma em algum
momento essa distinção. Eu não trabalho com objetos,
eu falo sobre isso e defendo esse ponto de vista. Eu
trabalho com matérias. Não que um seja melhor que o
outro, mas porque são relações diferentes. A relação
que a gente tem com um objeto é uma relação de uso,
por exemplo, essa garrafa tem água dentro e eu a abro,
fecho e a uso para tomar água. A relação que eu tenho
com a matéria é outra, é uma relação de isso é vidro,
isso tem esse peso, isso tem essa forma, essa coisa
aqui encaixa nessa aqui, elas se encaixam, olha que
erótico que é, eles viram uma coisa só. Então quando
eu falo nas práticas de encantamento, eu bem cri cri
com isso, que a gente não trabalha com objetos mas
sim com matérias. Eu falo também porque quando eu
chamo alguma coisa de objeto, eu automaticamente
(D)
43
me coloco no lugar do sujeito. Se isso é um objeto,
eu só posso ser o sujeito porque objeto eu não sou.
E a gente ainda coloca o objeto no sentido pejorativo
quando a gente é chamado de objeto, então eu não
sou objeto, eu sou o sujeito que o usa. Então não é
disso que eu estou falando, porque ainda que se
coloque valor de uso nesse objeto, critérios, dinheiro,
validade, legitimidade, ainda não é disso que eu
estou falando. Estou operando num campo onde eu
quero me entender como matéria, não como sujeito
necessariamente, mas como matéria. Eu gostaria de
ser esse corpo, carne, ossos, líquidos, pele, pêlos, essa
é a minha linguagem, esse amontoado de matérias e
texturas diferentes, essa assemblage de matérias e
texturas diferentes. E entender as coisas que estão
no mundo também como matéria, me aproximar
dessas coisas como matéria, então o meu trabalho
é, cada vez mais, criar práticas, exercícios, pesquisas
onde eu consiga me perceber mais como matéria e
me aproximar de um mundo de matérias, matérias
encantadas que tenham suas próprias sabedorias,
que performam, que são criativas. E tem um grande
entendimento que entrelaça tudo isso, que é o do
erotismo. Que talvez se aproxime em algum lugar do
entendimento da criança que bota tudo para dentro,
que bota o mundo para dentro, que bota tudo na boca,
que quer se aproximar das coisas e precisa cheirar,
botar dentro do nariz, dentro da orelha, dentro de
todos os buracos possíveis para se aproximar dessa
coisa e viver a experiência da coisa. É o erotismo de
Bataille, Georges Bataille, que vai falar de corpos que
se atravessam, se aproximam. Então o corpo que se
excede, que excede o seu status de objeto, é esse
corpo que sai do lugar onde ele estava confinado, esse
lugar em que o sujeito o coloca de servir para isso,
isso é um objeto, a gente faz esse uso dele, assim e
assado, tá explicado, resolvido, eu vendo esse objeto,
custa tanto, reproduzimos em série, isso combina com
aquilo… Então, ele corpo sai desse lugar e consegue
se revelar como coisa, então ela excede esse lugar.
Exceder é uma palavra que também vem de Bataille
que vai falar de dois corpos que se encontram e
conseguem se atravessar, e por um breve momento,
eles se excedem, eles continuam um no outro. Então
eu saio desse lugar da individualidade, do isolamento
e eu excedo esse lugar, eu escapo dele, eu encontro
o outro. E no erotismo do Bataille ele vai dizer que
isso acontece no sexo e talvez seja o nosso momento
mais evidente de exceder, de encontrar, de se misturar
com o outro, de continuar no outro, ele usa a palavra
continuidade. Mas é um momento muito breve, depois
disso a gente volta a se separar, eu volto a ser eu, você a
ser você, e um abismo entre nós, essa descontinuidade.
Mas a gente fala que o erotismo é uma condição,
(D)
44
uma busca. A gente está na vida buscando transpor
esses abismos e tentando encontrar, perfurar, cruzar,
penetrar, trazer para dentro, estar dentro de alguma
coisa, sair do isolamento do eu, dessa matéria sozinha
e encontrar outros e outras. Então o que Bataille
vai dizer, e que eu acho muito interessante sempre,
é que o erotismo não só tem a ver com sexo, não se
encerra ali. O erotismo tem, acima de tudo, a ver com
morte. Porque é só no momento da morte que a gente
vai, de fato, exceder esse lugar onde está confinado,
esse meu isolamento. Então no momento da morte
eu vou finalmente me misturar com a Terra, vou
jorrar, transbordar, vou ser tudo, vou virar o cosmos,
literalmente, vou virar adubo, vou virar árvore, vou me
encontrar completamente com essa matéria. Então,
essa questão matéria está muito entrelaçada a esse
lugar do erotismo nessa visão do Bataille, como uma
condição de estar no mundo, numa busca contínua de
estar no mundo. E esse lugar de exceder tem a ver
com isso. Exceder primeiro o status de objeto que
foi atribuído a essa matéria por alguém e de exceder
esse isolamento porque quando as matérias excedem
esse isolamento, elas se encontram, se misturam, se
perfuram, se penetram e depois voltam a ser uma
ou, talvez, as matérias possam ter essa capacidade
de permanecer misturadas. E aí, só para reagir a isso
que a Soraya falou de que as matérias se associam
a coisas grandes do cosmos, eu costumo buscar as
matérias para trabalhar que tenham menos formas
estabelecidas, que sejam menos evidentes como
objetos. Então, para mim, trabalhar com uma xícara
ou uma garrafa seria bem difícil porque ela traz toda
essa carga de uso, do seu valor de uso. Por isso eu
vou nesse lugar de um plástico gigante, uma massa ou
uma goiabada, e agora já me contradizendo, eu uso um
cubo que é uma forma bem estabelecida, mas é um
cubo com um buraco no meio que pode ser penetrado
e eu vou tentando desconstruir esse lugar da forma
que traz uma função. Eu acho que trazer essas
matérias que são mais disformes com cabelo, líquidos,
plantas que são matérias que tem a sua própria vida,
sua própria presença. Na Monstra, fica evidente que a
planta não é um objeto, embora isso sempre se possa
discutir, mas para mim é evidente que não é, ainda
que a gente possa tratar uma planta como objeto,
não é? Eu falo na Monstra que a gente pendura uma
samambaia na sala como quem pendura um quadro,
não é? Eu escolho o lugar onde ela fica melhor, coloco
uma luz nela e ela está arrasando, combinando com
o meu sofá. Então, sim, eu também posso objetificar
plantas. Pronto, eu falei bastante.
SORAYA É, a gente faz isso com pessoas também. Eu
fiquei pensando o tempo inteiro em relação a essa ideia de
(D)
45
objetificar. Inclusive, como é que a gente, às vezes, tem tudo
isso no trabalho, todas essas questões maturadas. Você
falou muito do fazer, de como o trabalho te despertou e te
manteve desperta nesse lugar de pensar em como criar,
como fazer e a importância desse lugar de fazer, então,
como é que a gente tem feito para criar nesses tempos? Eu
sinto que você trás uma coisa que talvez marque um tempo,
seja a cicatriz de um tempo, que é como a partir de um lugar
de prática, um convívio, os trabalhos apareciam e de como,
às vezes, a cicatriz desse tempo, as marcas do tempo agora
são outras, porque talvez a gente não tenha mais, não sei
se são as vistas da minha idade porque eu sinto que a gente
veio de um lugar de coletivo e tem esse marco também na
sua história onde as vistas se reuniam e elas tinham o lugar
de prática delas, elas cruzavam os interesses delas, elas
atravessavam, faziam interseção, faziam bifurcação, faziam
magia, viravam bicho para estar juntas - bicho no sentido
de selvagem como estado. Faziam isso e o trabalho surgia
desse olho d’água, coisa que para mim parece matéria, que
é quase como uma imensidão que pode ser mínima também.
Então eu sinto que tem isso, mas também tem agora, e eu
falo por mim também porque, às vezes, eu me sinto assim,
nesse lugar de pegar um livro para criar, eu pego uma questão
e aí então eu vou criar. Eu me sinto praticando, minha prática
é diária. Eu não separo vida e arte, não consigo nem sei se
existe isso e pouco importa quando é arte ou quando é vida.
Mas tem essas muitas variações das maneiras de criar
que dizem respeito a um tempo e sinto que tem uma coisa
muito importante no que você faz que é perguntar o que a
gente considera criação. Porque, às vezes, a gente objetifica
a criação. Então era isso que eu queria falar, quando é que
a gente objetifica a criação? No sentido de que a gente
passa um tempão mexendo em coisas, praticando essas
coisas mas aí vem a lógica do mundo e objetifica a criação,
transforma a criação em objeto porque os modelos de
fruição, os modelos de difusão, circulação, todos eles são
coisas de um mundo muito regulado. Então agora me deu
esse clic, eu fiquei pensando em como isso é forte. Então
eu estou pensando em como é importante, eu não estou
falando de algo que tenhamos que fazer, mas estou falando
dessa importância de estar atento ao lugar criativo. E aí eu
lembrei de uma coisa que o Antônio Damásio fala sobre as
descobertas e as tecnologias surgirem do incômodo, da
nossa precisão. E eu não estou falando de precariedade
ou miséria, mas da precisão da carne, da vida. E eu fiquei
pensando se você entende o seu trabalho como tecnologia
também e o encantamento como tecnologia, o erotismo
como tecnologia, a tecnologia do corpo.
TARINA Eu quero só jogar uma coisa aqui que eu fiquei pensando,
uma reflexão. Acho super legal como você está abordando a
matéria e como seu incômodo, para pegar um gancho no que a
Soraya falou, vai aparecendo em como você vai dando sentido
para as coisas no mundo, e eu fiquei pensando nessa relação
(D)
46
tão rica entre a ideia do sujeito e do objeto. Tem algo para mim,
conforme você foi falando, que é um paradoxo. Talvez seja mais
uma ambivalência, no bom sentido da coisa, que é uma coisa aqui e
outra ao mesmo tempo. Eu fiquei lembrando do Viveiros de Castro,
em um dos livros dele, o Anti-Narciso de Metafísicas Canibais, ele
fala um pouco da nossa relação enquanto sociedades ocidentais,
das culturas que a gente poderia chamar nativas e ele fala que
a gente pensa a relação sujeito e objeto num binarismo onde o
sujeito é um objeto sobre o qual a gente não consegue conhecer
tudo, por isso a gente dá para ele o status de sujeito. E nas culturas
Ameríndias, é o contrário, é o objeto que é um sujeito que você
não entendeu todo o aspecto. Então eu fiquei pensando um pouco
nesse binarismo sujeito-objeto, e tem algo que aparece quando
você fala da ideia do encontro, e aí eu entendo o excesso nesse
sentido, estou entendendo isso agora porque uma vez que as
pessoas não entendem quando uma coisa cai e logo querem botar
uma intenção, e ao mesmo tempo a intenção, a intencionalidade
de alguma forma é aquilo que constitui o sujeito. O sujeito tem
intenção, o objeto não. Então, tem essa ambivalência que aparece
no nosso próprio modo, no nosso modo brasileiro de entender a
vida porque eu acho que em diferentes lugares isso aparece de
formas diversas. Eu não estou fazendo nenhuma pergunta, acho
super legal isso que a Soraya colocou sobre como você entende
a tecnologia no seu trabalho. Eu estou refletindo sobre essa coisa
que aparece nas suas criações que, para mim, não é do animismo
mas sim dessa relação complexa, erótica, conturbada entre o que
é sujeito e o que é objeto.
ELISABETE Que interessante! Nossa, muitas coisas!
Eu até tentei anotar aqui para não esquecer de tudo.
Mas vou começar pelo final. Eu concordo plenamente,
não vejo paradoxo. Eu acho exatamente isso do
Viveiros de Castro, que eu conheço bem pouco, só
li os textos clássicos, mas quando o objeto, a coisa
ou a matéria cai da estante e a gente atribui a isso
características humanas, ah, foi uma alma, então eu
estou subjetificando o objeto que enquanto objeto
não poderia cair. Então eu só consigo atribuir o valor
de ação a um sujeito, dentro da cultura ocidental.
Porque eu como sujeito também considero que eu
sei tudo sobre esse objeto, porque a única coisa que
eu posso não saber sobre o sujeito que é coisa mais
complexa, que é aquela coisa de que o desconhecido
está em nós. Os objetos podem ser completamente
conhecidos, dominados, fabricados em série, enfim. E
é exatamente aí, porque o desconhecer não cabe ao
objeto, isso eu domino, eu conheço. Eu só desconheço
sujeitos que estão no lugar da complexidade máxima
e para que eu possa reconhecer uma ação no objeto
eu preciso elevá-lo à categoria de sujeito porque só
assim ele consegue estar no campo do desconhecido.
Eu acho isso muito interessante. E isso me faz um link
com a questão do incômodo e da objetificação das
nossas criações, pelo menos da forma que eu entendi,
(D)
47
Soraya, eu acho que a gente objetifica as nossas
criações quando a gente acha que sabe tudo sobre
elas, quando a gente atribui a elas esse valor de uso,
quando a gente fecha elas dentro dessa caixinha onde
ela nos serve. E aí, pode ser por vários motivos, até
mesmo os mais legítimos, e por que não também, não
é? Se as coisas nos servem, por que não objetificar?
Mas eu acho que isso é que é o objetificar, quando eu
coloco a minha criação nesse lugar em que ela me
serve, inclusive para pagar minhas contas, para me
dar sustento, para ser programada, para circular, para
chamar atenção para outras coisas que talvez sejam
mais misteriosas que não servem, e por que não, não
é? Então eu acho que o objetificar está neste lugar. Eu
não sei se eu consigo fazer isso, eu sempre acho que
vou fazer trabalhos onde eu acabo a peça e metade
das pessoas está assim (faz cara de incômodo), e
a outra metade está assim (faz cara de quem não
entendeu nada). São poucas as pessoas que vem me
dizer alguma coisa afirmativa sobre o trabalho, então
fica sempre em um lugar meio esquisito. Eu estou
lidando com isso, às vezes, eu me frustro muito porque
eu adoraria que as pessoas reconhecem, gostassem,
a gente quer ser gostado, não é? Mas eu não acho
que estou nesse lugar. Acho que tem um lugar ali
esquisito com o qual eu tenho que aprender a lidar e
que muitas vezes não serve para pagar as contar e
ser programado. Há muito tempo, quando eu estava
na França, eu encontrei um coreógrafo que eu adoro,
que também não é um coreógrafo que entrou nesse
lugar de grandes circulações, que é o Loïc Touzé, e o
Loïc falava uma coisa muito interessante, ele falava
que era importante a gente guardar de uma peça um
lugar que você não entende, um lugar desconhecido
para você, como uma caverna que você fala nossa,
não consigo entrar ali dentro, mas a caverna continua
na sua peça. Porque, ele dizia, é dali que você vai tirar
a próxima peça, é dali que as coisas vão vir, das coisas
não resolvidas. Para mim isso faz sentido, faz muito
sentido isso de guardar esse espaço de não saber
tudo sobre a coisa que você está criando. Porque
isso impede essa coisa de entrar no lugar de objeto,
justamente, do super resolvido. Então, guardar um
certo espaço para não resolver, para coisas com as
quais você não está completamente satisfeito, que
não é claro para você, que você não conseguiu definir,
um lugar do não saber e do desconhecido dentro de
uma obra e considerar essa obra acabada mesmo
sendo inacabada. Por exemplo, Amarelo. Eu faço ele
hoje e ainda olho e falo nossa, tem uns buracos, sei lá,
hoje eu pensaria em corrigir isso, mas eu não consigo,
não consigo corrigir e então eu só respeito. Então é um
lugar assim de respeito a essa coisa que é uma coisa
em si, uma coisa, não um objeto, isso é uma coisa
(D)
com os poderes da coisa, com o encantamento da
coisa, como a coisa que coloca coisas no mundo, que
performa por si só e chega um lugar em que a gente
só respeita e fala: bom, agora aqui eu não tenho mais
como arrumar, fechar, resolver. Então, guardar esse
lugar de não saber nas obras, para mim, faz parte. E
lidar com as críticas, com as inseguranças da gente
mesmo como artista de falar eu estou colocando isso
no mundo, e tem um lugar aqui que me incomoda, mas
faz parte dessa coisa e como é que a gente lida com o
nosso próprio incômodo? E talvez seja esse incômodo
que vai gerar a próxima coisa.
TARINA Eu acho super legal isso que você falou do não saber,
talvez porque também seja um espaço muito caro para mim na
criação. Eu sempre acho que o que a gente é o que é o óbvio,
então se você vai fazer aquilo que você já sabe, vai sempre fazer a
mesma coisa. Então, é um pouco esse algo, como você falou, que
fica e mantém esse espaço de possibilidades. Nesse sentido, qual
é a diferença entre sustentar esse espaço de não saber enquanto
coreógrafa e sustentar esse mesmo espaço como performer?
Tem diferença?
48
ELISABETE Acho que tem diferença, sim. Como
coreógrafa, eu acho, que está mais nesse lugar de
escolhas dramatúrgicas ou de ficar menos no meu
corpo e mais nesse corpo coletivo, nessa assemblage
da qual eu também faço parte, mas como eu não
estou em cena, está em outro lugar, está em um lugar,
talvez, mais organizacional na coisa e eu consigo olhar
para esse lugar com mais distanciamento. Como
performer, eu me lembro muito de uma das pessoas
com quem eu mais aprendi, colocando ali o Amarelo
no lugar da formação e as pessoas que cruzam nosso
caminho, essa pessoa é a Deborah Ray, coreógrafa
norte-americana. Eu tive dois encontros com ela.
Um em Curitiba, onde eu apresentei aquelas minhas
primeiras peças da poesia concreta e ela me destruiu,
e isso foi muito importante. Depois disso, eu vou à
França, passou um tempo, mais de um ano, e eu olho
lá no programa, quem está no programa? Deborah. E
aí eu falei nossa Deborah, eu sou brasileira, a gente
se encontrou na Casa Hoffmann. Você se lembra
de mim? E ela falou assim eu estava esperando por
você. E eu achei aquilo, uau, nossa, agora eu vou ter
que dar conta, segurar esse rojão. E foi um processo
muito intenso com ela, porque ela criou uma peça com
a gente e a gente fez os solos, as adaptações de solo
dessa peça e eu lembro da Deborah dizer uma coisa,
ela era ótima com entrevistas, as pessoas venham
entrevistá-la porque a gente estava dançando no
teatro municipal de Angers, e as pessoas pediam fala
sobre essa dança. E ela já falava assim dança? eu não
trabalho com dança. Já jogava tudo no ventilador. Ela
(D)
49
falava eu trabalho com espaço e tempo. E ela falava
disso, dessa combinação entre espaço, tempo e corpo
é sempre um não saber. Mesmo que você ache que
sabe exatamente o que você vai fazer, é sempre um
não saber. E aí o que ela mais chavama a gente, era
para cultivar esse estado. Eu estou neste momento
não sabendo a minha relação entre o espaço e o tempo,
esse é o meu estado como performer, eu estou aqui
não sabendo. Então era uma atualização constante, a
presença vem daí. Isso para mim foi uma grande chave
de virada. E você pode dançar a mesma coreografia,
eu admiro demais os coreógrafos que conseguem
desenhar o movimento, eu acho incrível, tenho tentado
chegar a esse lugar, me aventurar nesse lugar. Como
é que cria com esse requinte de detalhes e repete
sequências, frases inteiras? E como performer, como
você se coloca em relação com esse tipo de material,
com esse outro modo de presença? Por mais detalhada
e escrita que seja a coreografia, a realidade é que eu
não sei, porque não existe essa precisão de espaço,
tempo e corpo. Então eu não sei. Esse momento aqui
e agora eu desconheço.Mas é cultivar essa relação do
desconhecer, se colocar nesse lugar do incômodo que
gera a coisa. Então, para mim, como performer e até
como performer do meu próprio trabalho, um trabalho
que a gente repete várias vezes, que a gente conhece,
as matérias me ajudam muito nisso. Porque, de fato,
eu não sei. As coisas acontecem o tempo todo, elas
se atualizam, a massa muda com o calor, com o frio,
com a luz, com o meu contato com ela, aquele cabelo
de massa nunca é igual, por exemplo. Então essa
atualização de presença com as coisas também é
muito preciosa e é uma estratégia.
SORAYA Falando nisso, nessa coisa de você estar apresentando
um trabalho de dez anos, o Amarelo, por exemplo.
ELISABETE Tem dezessete anos o Amarelo.
TARINA Eu assisti, tem uns quinze (anos).
SORAYA Nossa senhora! É isso mesmo. Você falou dessa
coisa de respeitar o trabalho, entender que o trabalho diz
respeito ao tempo onde criar era daquele jeito e quais são as
fricções que ele causa nesse tempo agora. E será mesmo que
a gente tem tanto tempo assim? Será que não é o mesmo
tempo em que a gente vive recordando? Eu acredito muito
nisso, por isso eu amo o passado. Eu amo o antigo, eu acho
incrível o antigo. Eu acho maravilhoso poder estar aqui com
duas pessoas como eu, tem Cacá também, tem as meninas
que estão aqui no escuro dessa conversa, e saber que a gente
tem um passado juntas. Eu tenho um passado com a Tarina,
eu tenho uma memória com a Tarina, um tempo com a Tarina
onde a Tarina veio aqui e vê-la e encontrá-la nesse momento.
(D)
50
E tenho uma história com você também, tenho um passado
com você, então assim, como é importante a gente entender
isso para se desfazer e se despedir de algumas mazelas que
nos criaram como mulheres, como artistas, como bichas, não
é? Como bichas vivas. Então, eu fiquei pensando nessa coisa
do Amarelo, de apresentar agora, e tenho pensado muito
sobre a ideia de sustentabilidade de um trabalho, porque eu
acho que você traz um interesse nas suas criações, nas coisas
que você discute, nos pensamentos que você elabora com as
suas criações, que é uma ideia de ecologia, de cooperação,
de combinação, então eu fiquei pensando o que seria essa
sustentabilidade da criação? E eu queria completar com
outra pergunta: você dança a mesma coisa? Você considera
que você dança a mesma coisa? E junto com essa coisa da
sustentabilidade, da criação, dos trabalhos e da existência…
Eu acho que não é nem sobre responder, mas é sobre a gente
criar paisagens em torno dessas questões do que a gente faz.
ELISABETE Massa! Olhando para você agora eu vi
que ficaram um monte de coisas sem responder, não
é, Soraya? Mas uma delas, aqui você traz de novo, é
sobre o modo de criação, como a gente se organizou
como coletivo, essa coisa de a gente não estar
sozinha, sobre o modo de organização que também
pertenceu a um tempo… mas só para responder isso
e tentar chegar nessa nova pergunta que tem relação,
eu que a gente está sempre perseguindo esses modos
de estar juntos, não é? Como estar juntos? Acho que
essa é uma grande questão até política do mundo:
modos de estar juntos nesse mundo. Como que a
gente consegue estar juntos sendo separados, sendo
diferentes? Essa é uma questão bem cara para mim
como coreógrafa. Eu gosto cada vez mais de trabalhar
com grupos e é isso, como é que a gente pode fazer
coisas juntes sendo separados, sendo diferentes?
Como a gente vai fazer coisas juntes, talvez até a
mesma coisa que nunca vai ser a mesma coisa, sendo
corpos tão diferentes? Mas eu acho que isso é uma
questão que a gente persegue. Para mim, mesmo
que não seja mais o coletivo daquele jeito, eu sempre
vou trabalhar com grupos, com gente por perto.
Quando eu vejo, eu já estou de novo organizando
grupos, chamando, organizando projetos grandes
que envolvem milhares de pessoas e eu penso nossa,
mas eu queria fazer algo mais simples dessa vez, e
aí quando eu vejo, já tem gente. Eu estou cada vez
mais envolvida com os estudos da kundalini também
e tem um lugar da sangha yoga que é esse lugar da
comunidade onde a gente coopera e se responsabiliza
uns pelos outros de alguma forma sem precisar
fazer a mesma coisa. Então, por exemplo, a minha
comunidade aqui em Berlin, Michael, Michele, tem a
nossa comunidade brasileira, e é isso. Para eu poder
ver uma performance e se meu companheiro não está
(D)
51
aqui comigo, então o Michael ficou com a Sofia. Então
tem esse lugar de comunidade artística que também
entra no lugar de se responsabilizar por quem está
perto, pelos amigos que são parceiros de trabalho…
Então esse lugar da comunidade, eu acho que é muito
precioso. Agora, você perguntou da sustentabilidade
e das ecologias do trabalho… Bom, eu vejo que cada
vez mais, e de uma maneira até assustadora, eu estou
falando sempre sobre a mesma coisa. Talvez isso seja
sustentabilidade ou repetição, mas assim, a gente
espera que a gente vá se aprofundando. Eu já tive essa
conversa quando eu estava entrevistando o Alejandro
lá no cena onze, e era ver isso também, como a gente
recicla o próprio material, a gente faz a nossa auto
reciclagem mesmo sem saber, de uma forma intuitiva.
O Alejandro falava ah, aqueles bastões de metal
eles estão lá atrás. Então é isso, uma coisa que fazia
parte de um cenário e depois entrou na peça e que
depois se transformou nisso e depois naquilo e aí a
gente veio para propor Elefante com a transformação
dessa coisa e desse movimento junto com a coisa,
e eu acho que a gente faz essa auto reciclagem, os
nosso materiais coreográficos vão mudando, vão
reaparecendo e vão se transformando. Agora, vendo
essas duas pontas assim, Amarelo, por exemplo, que
eu considero que é a minha primeira criação onde eu
me entendi como criadora apesar de ter feito outras
coisas antes, mas eu vendo Amarelo e vendo Graça
que é essa peça que eu fiz com o Gira Dança, né,
vendo as duas coisas juntas, aí eu olho e falo nossa
isso eu já tava no Amarelo. Como é que eu estou
fazendo a mesma coisa até hoje? Passaram 17 anos
e, sabe, aquela coisa que estava lá atrás, ela reaparece
aqui e ela tá ali também de um jeito diferente, tá no
Buraco, está na Monstra, enfim. Bom, eu espero que
esteja cavando, né, ao invés de repetir, eu espero que
eu esteja cavando mais. Sim, são coisas que estão no
jeito que me relaciono com o mundo também, estão se
repetindo nas nas peças e acho interessante pensálas
como uma reciclagem, como esses ecossistemas
que vão se transformando. Tem sempre alguma coisa
antiga desse passado da Soraya que vai ficando, tem
sempre coisas novas que vão grudando e tudo isso
vai se transformando, mas tem ali uma coisa que vem
junto, então que vai se reciclando, que não é jogada
fora. Eu não sei se eu respondi tudo, Soraya ou se
ficou alguma coisa…
TARINA Bom, eu vou jogar aqui uma pergunta totalmente
alienígena sobre o que está sendo nossa conversa até esse
momento. Na verdade, não é uma pergunta totalmente alienígena,
mas é pensando nessa ideia do corpo matéria e você falou isso
que quando você vê, já está um conglomerado de gente,um
amontoado, né? Nos seus últimos trabalhos, eu acho que eu posso
(D)
52
estar enganada - isso também é uma pergunta, mas eu acho que a
maior parte deles é performado só por mulheres. Isso é um acaso?
É uma escolha consciente? Esse corpo matéria que também inclui
essas outras matérias, como ele aparece para você?
ELISABETE Muito bom! Então, eu faço muita coisa
ao mesmo tempo. Então tem alguns trabalhos que eu
estou fazendo que não são só com mulheres e que
ainda não estão rodando. Agora, por exemplo, fiz uma
série audiovisual que me deixou completamente louca,
chamada Histórias de Gestos, já já vocês vão ouvir
falar dela. Mas assim, tem todo esse trabalho invisível,
né, que a gente fica aqui na frente do computador,
suando, criando a série, trabalhando com mil licenças
e depois quando vem para o mundo, a gente fala ah,
ficou pronto!, mas foi uma trabalheira. E isso envolveu
muita gente. Eu fiz uma outra peça aqui na Europa,
com bailarinos de Portugal e Suécia, onde tem dois
homens também em cena e também é uma peça que
não circulou pelo Brasil. Mas assim, nessas duas, acho
que a gente está falando de Monstra e Graça, não é? A
Monstra foi minha retomada depois de ser mãe. Tarine
sabe bem, tem esse lugar, depois que você passa por
essa experiência que é um atravessamento gigante…
E eu tinha ido morar em São Paulo. Então foi assim, um
lugar novo para mim e eu também estava vindo dessa
experiência da maternidade de dois anos e meio em
casa com a criança e não conhecer São Paulo. Então,
eu já tinha uma provocação para criar a Monstra com
a Manuela Eichner e já estava trabalhando com ela
nisso e aí, a gente falou vamos lançar um chamado,
“procura-se performers”, aí a gente anunciou no
Facebook assim e aí ela fez uma colagem bonitona
lá e a gente recebeu quem veio, quem pôde vir e aí
era São Paulo, e a gente fez uma coisa bem elástica,
eram 5 dias de residência mas você não precisava vir
em todos, tinha que dizer em qual deles você podia
vir, então apareceu muita gente, as mais diferentes,
tinha alguns homens e tinha muitas meninas também.
Então foi essa a primeira residência. E aí as pessoas
grudam de certa forma, né, as assemblages se fazem
por si mesmas, nem acho que a gente tem que
escolher em algum momento, as pessoas escolhem.
Então, algumas pessoas foram desaparecendo, outras
ficaram mais firmes e aí, numa segunda residência a
gente já tinha esse grupo que estava mais sólido. E
aí, eram só mulheres, então, quando a gente olhou
para isso na segunda residência, bom, a gente falou
é, é um trabalho das meninas. Constituiu-se um
trabalho das meninas. Já tinha esse nome até, que
era um nome que eu não gostava, Monstra, porque
eu já tinha vindo dos estudos para monstro, eu tinha
pirado na história do monstro… Aí quando eu resolvi
virar a página, ok, próxima situação,próxima pesquisa,
(D)
53
aí eu encontrei Manuela e a gente vai fazer as coisas,
e está lá a Monstera deliciosa, aí ela tinha que dar
um nome para essa criação, então Monstra, eu falei
tá bom, título provisório, depois a gente encontra um
melhor. É sempre assim, né? Fica para sempre o título
provisório. Comigo, pelo menos, é assim. Aí ficou
Monstra e a gente viu que foi se formando esse lugar
das plantas com as mulheres, a peça foi se fazendo
desse encontro. E na Graça, foi um convite específico
do Gira Dança, do Alexandre. Eu acho que tem um
lugar do feminino no meu trabalho, talvez eu tenha
que aprender a articular melhor isso ainda, é um lugar
meio desconhecido para mim também, mas eu vejo as
pessoas apontarem isso. E o Alexandre veio com esse
convite para eu coreografar as mulheres do Gira, do
Gira Dança e eu achei sensacional coreografar esse
trio. Nossa, tão diferente! Maravilhoso! Então, fez todo
sentido também, mas aí já foi o ponto de partida, as
mulheres. E ainda a gente usou em algum momento,
essa expressão “as fêmeas do Gira Dança”. Então, foi
mesmo repensar o feminino, o corpo, representações
de corpos femininos, “o quê que é fêmea?”, “o quê que
é mulher?”, várias perguntas. E aí muitos assuntos…
TARINA A gente está se aproximando do nosso fim, mas Soraya,
fica à vontade…
SORAYA Eu tive vontade de perguntar, na verdade, eu tinha
várias perguntas, Bete. Primeiro queria dizer que eu fiz um
filme ano passado com quatro velhas, como eu chamo elas.
Porque eu acredito nessa força da gente dizer o que a gente
é, sem precisar ser mais, mas ter a possibilidade de escolher
o que a gente pode dizer que a gente é. Então, eu eu digo
muito para elas que tem que ser bom dizer que é velha, tem
que ser bom dizer que é um corpo antigo. Qual o problema
disso? Quais são as implicações que estão no corpo da gente
fica escondendo? Porque a gente esconde a idade da gente?
Qual é a importância da gente dizer a idade da gente? Da
gente dizer que a gente tá trabalhando, a gente dizer que
tem 40 e tantos e é artista, é uma mulher artista, é essa a
profissão da gente… Então,essas coisas importantes. E eu
fiz esse filme com elas durante a pandemia, elas são minhas
alunas, a gente dança juntas desde 2016, são mulheres de 70
anos para cima. E tem uma parte lá do Serenatas, não sei se
você viu, vocês viram, mas tem uma parte lá do Serenatas
que eu fiz em homenagem a ti, que é uma recordação a ti que
foi uma pessoa que eu fui estudar exatamente por que me
interessa essa relação com o corpo que não é essa maneira
pronta que a gente tem. Eu acredito, eu tenho estudado, que
o corpo a gente faz ele todo dia e por isso que ser criança
crescer dói, por isso que ser velho dói, por isso que ser uma
mulher de 40 anos dói, por isso que ser uma mulher artista
dói, porque a gente está fazendo o corpo o tempo inteiro
e fazer uma coisa, dói, às vezes, não é? Não é só a dor
(D)
54
desesperadora que tira a gente das coisas, mas uma dor que
põe o corpo em crise, que incomoda, que faz a gente querer
outras coisas, abrir o apetite. Então assim, nesse filme tem
essa parte em que a Tetê tira uma peruca de dentro do
armário da cozinha, é a peruca de uma travesti. Então, é uma
mulher de 70 anos sabendo que o poder que ela queria na
vida, era botar uma peruca de travesti. Então assim, a arte é
esse lugar exatamente de poder fazer coisas, fazer massas,
desenvolver magias, encantamentos. Então queria te dizer
isso e perguntar para ti quais são as comunidades que o teu
trabalho como criadora tem criado. Qual é a importância
de pensar, de saber disso? Porque a gente falou sobre criar
mundos, mas já tem muitos mundos para gente dar conta e
eu acredito que não é sobre edificar esses mesmos todos,
mas é sobre se relacionar com os mundos que já existem
para daí, na fricção, outros mundos surgirem, né? Então, qual
é essa responsabilidade, pegando a palavra lá do começo,
qual é a responsabilidade de olhar para essas comunidades
que o trabalho da gente cria? Desde as pessoas com quem
eu estou trabalhando e a importância disso, desde as
comunidades que eu crio quando eu estreio o meu trabalho,
quando eu vou torná-lo público, quando eu faço esse trabalho
agir na exterioridade, né, contactar o mundo… Como eu
considero isso? Em que parte eu considero as pessoas no
meu trabalho? No momento que eu estou criando ou é só
na hora que eu vou mostrar para elas? Então, quais são as
comunidades que você entende que o seu trabalho cria? E
uma última pergunta que eu acho ótima, porque eu adoro
pegar pergunta das outras, que é uma pergunta da Tereza
Rocha, que ela perguntou um dia para mim. A Teresa Rocha
é quem fez o livro Dança Contemporânea. Eu acho que as
bichas todas, ou um pouco das bichas conhecem. Teresa
Rocha é uma bicha cearense, minha gente! Quem não
conhece, procure saber do livro dela. Ela é ótima! Bom, ela
perguntou uma vez para mim: onde o seu trabalho tropeça?
Onde ele gagueja? Eu acho que tem a ver com isso da
comunidade que eu perguntei. Onde o teu trabalho gagueja?
As suas práticas, a coisa toda…E se você pensa sobre isso,
porque, às vezes, a gente não pensa e se não pensa, não tem
problema nenhum, não.
ELISABETE Olha! Lindas perguntas. Agora, eu
vou tentar chegar nelas. Espera aí. É… Bom, eu
vou começar pelo tropeço. Eu acho que eu vivo
tropeçando. Eu gostaria de tropeçar menos. Mas
quando eu vejo, eu já estou nesse lugar. Como é que
eu fui me meter aqui? A última foi essa de dizer que eu
ia fazer uma série audiovisual, se eu nunca fiz. Eu não
sei de onde eu tirei toda essa empáfia de dizer que eu
ia fazer, vamos fazer, vou fazer acontecer. Tem cinco
episódios, contratei equipe, pedi patrocínio, consegui,
aí vieram os contratos, orçamentos, advogados… E
quando eu estou lá no meio, eu penso gente, por que
eu fiz isso comigo? Mas, claro, adoro o trabalho, estou
(D)
55
super apaixonada, é uma série que eu amo. Mas eu
tropeço muito, eu me vejo nesse lugar do tropeço
como um incômodo, sabe? Porque parece que eu
estou sempre procurando. Acho que é mais o lugar
do desconforto, do não saber. Então quando eu acho
que ele tá ficando fácil, eu invento uma coisa. Lá atrás
foi o Discoreografia. Eu vou fazer um programa de
rádio agora. E assim, eu tinha acabado de parir, por
quê que eu vou fazer um programa de rádio agora?
Mas era um lugar super prazeroso que apareceu e no
final das contas, parece que foi tudo sincronizado,
também foi um momento que eu me afastei um
pouco dos processos de criação, então eu vivi um
pouco os processos de criação dos outros através
do Discoreografia, mas é esse lugar de como é que
eu posso sair desses lugares e ir para outros? Então,
eu me sinto nesse movimento. Não é tão consciente,
porque, às vezes, me custa um tombo, um stress, uma
questão. Então eu acho que, de certa forma, eu cultivo
o tropeço. Claro, tem os outros tropeços. Não sei se
era essa a pergunta exatamente, mas de coreográficos
ou dramatúrgicos, com certeza tem. Nem sei se eu
consigo avaliar, talvez. Já teve questões mais antigas,
algumas dessas de produção de imagens que eu vejo
também, hoje em dia eu lido com mais tranquilidade
quando as pessoas falam do meu trabalho, né, que tem
muitas imagens produzidas e é uma preocupação, para
mim, de que essas imagens sejam a consequência de
uma ação e não uma imagem pela imagem. Então, isso
eu tenho trabalhado duro nos últimos anos. Espero
ter saído desse lugar. Mas é uma questão que eu me
pergunto sempre, sabe, pergunto para as pessoas que
estão trabalhando comigo, será que a gente tá indo
para esse lugar? Sabe, essa imagem que a gente está
criando é uma coisa que a gente faz assim e venho
aqui e faço uma coisa e “tcharam!”, produzimos uma
imagem e quando acaba essa imagem, vamos fazer
outra coisa. Então, não é isso que eu quero. Então,
como é que essa imagem é uma consequência dessas
relações entre corpos e matérias? Bom, então esse é
um tropeço em que eu me policio, sim, para não entrar
nesse buraco. Não nesse buraco, em outros tudo bem.
E sobre as comunidades, eu acho acho incrível como a
gente forma comunidades. Eu me apego, me emociono.
Agora eu tenho esse lugar de dar aula. Nos últimos anos
eu dei muitas aulas. Partilhei todas essas informações
e outras nessas práticas de encantamento. E, nossa,
eu viajo nas pessoas, me apego, choro, vou embora
morta. Para mim, cria-se uma comunidade de afetos,
de desdobramentos. E eu vejo isso, sabe? A Monstra,
por exemplo, quando a gente apresenta e no final a
gente oferece as plantas para as pessoas, e as plantas
estão mijadas, espalhadas, quebradas e as pessoas
vão lá e pegam as plantas e depois de um tempão,
(D)
56
me mandam fotos das plantas e dizem olha só, essa
planta veio da Monstra. Eu acho sensacional, acho
isso sensacional! Como a gente cria esses vínculos
das peças passando pelo mundo. Quando você me
fala de comunidade, também lembrei disso, de como
eu fui para lá com o Gira Dança e como eu aprendi
com elas, assim, vendo essa comunidade delas ali, e
eu me lembro da gente chegar e eu propus da gente ler
coisas juntos, ler em voz alta e depois fazer anotações,
e criar um coro. Eu estou na investigação desse coro
também faz muito tempo. Tem na Monstra, depois
aparece na Graça, coisa que já tinha lá no Amarelo, no
Buraco… E aí tinha essa investigação desse coro e eu
pedia para a gente escrever coisas e a Jânia me fala
assim olha Bete, com aquele sotaque maravilhoso,
eu não sei fazer essas coisas, não, escrever essas
coisas difíceis, não, não consigo falar essas coisas
bonitas… Aí eu falei Jânia, relaxa, não é essa a ideia,
vamos fazer, vamos no processo de fazer a palavra
como matéria, vamos fazer! E aí depois de um tempo,
era aquilo: corta, pega um texto aqui, costura dali e
repete, repete, repete, canta, aí passa para a outra…
E aí, a Jânia me sai com ela, ela fala assim, quando
eu vejo ela está cantando essa: “o Poder da mulher é
voar e sangrar como um pássaro imaginário”. Eu achei
isso tão incrível! Isso vem de vários lugares, sabe, que
a gente leu ou alguém falou e a outra repetiu… Mas
ver isso nela, assim, para mim, é muito interessante
ver como o trabalho construiu essa frase com ela. “O
poder da mulher é voar e sangrar como um pássaro
imaginário.” Eu podia tatuar essa frase da Jânia. Mas
assim, essa construção de comunidades é também
a gente aprender com essas comunidades; né; como
o que a gente coloca lá como pretexto, talvez, para
a gente criar coisas juntas, volta para a gente de
um outro jeito, muitas vezes surpreendente. Então,
muitas comunidades, gente! Essas dos trabalhos, daí
essas como professora, de kundalini também e eu
acho sensacional! Talvez, o que eu esteja fazendo seja
só um pretexto para criar comunidades, não é? Para
ficarmos juntes nesse mundo.
TARINA Meninas! Eu vou chamar vocês de meninas nesse momento.
ELISABETE Chama.
TARINA Bom, eu acho que, de algum modo, esse projeto aqui
também é uma tentativa de criar comunidade. Fiquei refletindo
sobre essas últimas coisas que você falou lá atrás, em como você
chegou nessa ideia do fazer para estar junto como também a
ideia das matérias também é atravessar esse só que, talvez, seja
apenas uma ficção porque é da habilidade das coisas estar em
relação, então, agradecer a Clarice e a Aline, a todas as meninas
e menines do projeto, por estarem, de alguma forma, promovendo
(D)
essa possibilidade em que todas nós estejamos, por um pequeno
tempo que seja, em comunidade. Eu amei todas as coisas que você
falou porque eu acho que sempre a gente pensa melhor juntas,
né? Eu acho que isso é uma das coisas mais incríveis de poder
estar em relação mesmo que seja por um período curto de tempo,
né, Soraya? Você estava falando dessas nossas histórias do
passado, acho que a gente também tem histórias entre a gente e
essa é mais uma que, às vezes, é um encontro tão curto mas que
vai ressignificando um monte de coisa, e daqui a alguns anos e a
gente vai falar ai, nossa! Como você, por exemplo, que lembrou
do coreógrafo e do que ele te falou, como quando você lembrou
da Deborah Ray e a gente volta entre nós mesmas. Então é isso,
muito obrigada, Bete! Obrigada, Soraya! Obrigada, Clarice e Aline.
Obrigada a todos que estão aí em algum lugar!
CLARICE Tarina, você não vai jogar uma pergunta para a Bete, para finalizar?
TARINA Vamos jogar! Vamos voltar na pergunta do começo,
né? Você teve aí duas horas para meditar sobre ela, então a
gente vai jogar, que a gente tá jogando esse esse link, essa essa
continuidade, que é pergunta com a qual a gente começou. Que
pergunta você acha que um artista, uma jovem artista quer fazer
dança contemporânea hoje, em dois mil e vinte e dois, não pode
deixar de se fazer? É isso, gente? Vocês podem entrar na pergunta
também se vocês acharem que ela está muito abstrata.
57
ELISABETE Uma pergunta para uma pessoa jovem?
TARINA É, para os jovens. Eu fui etarista agora, eu fui para as
pessoas jovens porque a gente já tá com as nossas corpas e
cabeças e corações cheios de questões.
ELISABETE Nossa, eu nem sei como formular em uma
pergunta. Mas eu acho que eu perguntaria isso, que foi
uma pergunta importante para mim, que é: o que há de
específico nisso que você escolheu como linguagem,
como princípio ativo, e que só pode ser feito aqui? Se
a gente está falando de dança, de movimento… Enfim,
na dança contemporânea o quê que só pode ser feito
aqui? O que é isso que você está perseguindo que só
pode ser feito aqui? O quê, de específico, você agarra
para o seu trabalho que só pode ser feito neste meio?
Pensando a dança contemporânea como um meio.
Para mim, foi importante entender o que de específico
eu estou perseguindo e por quê que eu não estou na
literatura ou no cinema - lugares nos quais depois
a gente possa até estar, como eu estou agora no
audiovisual, mas o que é que tem aqui que te interessa
de tão específico assim? Então, eu acho que encontrar
uma pedrinha, uma coisinha, e conseguir reduzir isso
a um lugar muito específico que é o que te interessa e
que está aqui nesse meio. Mas são muitas perguntas,
gente, eu tive que escolher uma, tá? Porque foi difícil.
(D)
TARINA Mas essas já são, na verdade, muitas, Bete. (risos)
ELISABETE É. (risos)
CLARICE Obrigada, gente, pela presença!
TARINA Valeu, gente!
ELISABETE Obrigada!! Eu agradeço muito. Olha, foi
uma delícia. Obrigada! Que linda essa comunidade, eu
quero ver as outras entrevistas agora, quero falar com
vocês depois. Já fiquei apegada, vamos falar mais.
CLARICE Eu agradeço aqui, em nome do projeto, à Tarina, à Soraya, à
Bete e a todas e todes que estiveram aqui com a gente. Muito obrigada!
58
59
60
TARINA
QUELHO
ENTREVISTAM
E
SORAYA
PORTELA
Entrevista
realizada
HELENA
VIEIRA
em
(E)
Junho
de
2022
61 CLARICE Oi, gente! A gente está aqui para a terceira entrevista Cabeça
Coração. Hoje estamos com a Helena Vieira e quem vai entrevistá-la é
Tarina Quelho e Soraya Portela. Lembrando que o Cabeça Coração faz
parte do projeto Futura que foi contemplado pela 31 a edição do Programa
Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo, através da
secretaria municipal de cultura. Estamos aqui todas as participantes do
Cabeça Coração, e a Aline Bonamin que também é coordenadora deste
projeto junto comigo. Então, vou deixar agora com vocês. Obrigada.
TARINA Oi, gente! Boa tarde, bom dia, boa noite - dependendo
do horário de quem está assistindo a gente. (risos) Meu nome
é Tarina, eu sou uma mulher, não sou branca, tenho um cabelo
bastante volumoso que não é liso, mas também não poderia dizer
que é crespo. Estou na frente de uma árvore, uma Jabuticabeira
que eu amo que está nesta casa desde que eu nasci. Eu estou na
casa dos meus avós.
SORAYA Olá a todas! Eu sou a Soraya Portela, falo aqui
de Teresina, Piauí. Sou uma mulher artista, tenho cabelos
encaracolados, sou uma mulher de pele clara, estou com
óculos, minhas bochechas são redondas, minha cara é roliça
- ainda bem, cheia de curvas. Atrás de mim tem uma parede
branca com quadros de uma mulher com os braços acima
da cabeça, tem uma galinha mulher, tem uns quadros meio
abstratos de riscos de tinta e do meu lado tem uma janela
(E)
azul com uma cortina e um gato preto acaba de passar por
aqui, chamado Cibalena. Então, vamos lá.
HELENA Eu sou Helena Vieira, estou aqui em um
fundo branco com uma porta. Sou uma mulher de pele
clara, de cabelos cacheados, sou uma mulher trans,
estou com um vestido preto de gola canoa.
62
TARINA Helena, então, primeiro de tudo, claro, agradecendo em
nome do projeto, não? Super, assim, por você ter topado conversar
com a gente. E a gente tem tentado, apesar do nome dessa coisa
que a gente tem tentado fazer ser entrevista, a gente tem tentado
que seja mais como uma conversa, mas é um misto. Esses dias
eu lembrei de uma história, e eu falei que a gente podia chamar
fofoca, não é? Porque a Silvia Federici fala que fofoca ou gossip, na
verdade, era sinônimo de amiga, não é? Então, quando você falava
assim eu tô indo gossip, quer dizer que eu estava indo com a minha
amiga. Então, de alguma forma, essa conversa entre amigas é uma
gossip e que depois foi apropriada como algo que é vergonhoso,
com a ideia de fofoca como uma coisa ruim, mas enfim. Então, só
para dizer que tudo isso está dentro das possibilidades da nossa
conversa. (risos) E pensando um pouco assim nas coisas que a
gente leu e em falas públicas suas, eu já queria começar jogando
para você uma pergunta que é a seguinte: qual que é a relação
ou o limite ou o fio de continuidade entre a militância e a criação
artística? E onde que essas práticas se sobrepõem ou não se
sobrepõem? Onde elas divergem e onde elas convergem? E como
que a imaginação opera nesses campos?
HELENA Nossa, é uma pergunta nada simples. São
muitas perguntas juntas. Bom, mas eu acho que a
primeira coisa é o quanto essa pergunta é importante,
sobretudo se a gente pega o fio da produção artística
do teatro, das artes plásticas, da dança nos últimos
dez anos, a gente vai ver que a gente passa por um
momento dos temas vinculados à arte feminista,
aos temas vinculados a uma produção baseada no
corpo socialmente descriminado, no corpo negro,
no corpo trans, a gente vai ver que essas temáticas
ganharam espaço dentro das artes. Essas temáticas
ganharam espaço dentro das artes e um conjunto de
reivindicações desses sujeitos também modificaram
a cena artística. Então, movimentos de artistas
trans, movimentos de artistas negros, o resgate de
uma perspectiva ancestral nas artes… Parece que
esse conjunto de forças nos últimos quinze anos, foi
uma tsunami na nossa cena artística de modo geral.
O que fez com que, inclusive, artistas que gozavam
de grandes renomes, mas que faziam uma arte mais
mainstream, mais clássica ou menos contestatórias
(E)
63
caíssem, fossem um pouco para a margem ou ficassem
com menos espaço e se instala em dado momento uma
zona de reivindicação, mas também uma zona de malestar.
Acho que isso é importante, não é? A entrada
desses novos sujeitos em cena, não é tranquila. Não é
tranquila. O fato de não ser uma entrada tranquila, e aí
tentem ver como eu estou vendo isso, eu estou vendo
como se houvessem por debaixo dos palcos, todo um
movimento tectônico de afetos e alguns afetos vão
construindo, então, uma série de embates no campo
das artes que também vão interferir na forma de
produção da arte, de modo que a gente vai ter uma
cena muito marcada para uma arte extremamente
engajada, extremamente vinculada à identidade, e
então, a arte se transforma ou a produção, a criação
artística em dado momento se transforma em uma
linguagem para falar de identidade. Ou ela aproximase
perigosamente de ser apenas uma ferramenta para
falar de identidade - o que eu acho extremamente
importante. Importante porque traz novos corpos,
novos discursos para o centro do debate. Contudo,
eu acho que a gente está em um momento que é
preciso dar um passo além, é preciso entender as
linguagens artísticas - e eu vou falar linguagem por
mero didatismo, porque eu não acredito hoje que
consiga se separar com clareza o teatro da dança,
a dança das artes plásticas e todos eles do cinema.
Eu não sei como é que a gente separa tudo isso. A
gente está no fundo de uma miscelânea. Bom, mas
eu vou falar as linguagens por didatismo. Então, eu
acho que para essas linguagens foram importantes os
processos que a gente viveu, mas a gente precisa dar
um passo além para que essas linguagens não sejam
só ferramentas de militância, mas que elas consigam
produzir criativamente discursos artísticos que não
desconsiderem aqueles corpos. Não se trata mais da
corporalidade meta-corporal que é o corpo negro em
cena falando do corpo negro ou o corpo trans em cena
falando do corpo trans, mas é estes corpos em cena
produzindo discursos multiplos, porque não me parece
bom existir uma sobrecodificação onde o conteúdo
se imponha sobre a forma. Então, por exemplo, eu fiz
algumas curadorias e eu fico com um sentimento de
que tudo parece tanto a mesma coisa. É como se a
gente estivesse - e isso é compreensível e é positivo,
mas é como se a gente estivesse em um momento
de looping, de repetição de que o mesmo discurso
é fundamento em determinadas corporalidades, a
gente está nessa hiperprodução de coisas parecidas.
Eu acho que esse é o nosso momento. A gente precisa
(E)
64
dar um passo para o além que é, talvez, reescrever
os clássicos, sei lá. Gente, olha, eu acho que eu estou
numa pira de voltar para o Édipo… E reescrever aquilo
à luz desses embates que se realizaram agora. Então,
toda arte, para mim, ela é política, mas nem toda ela é
engajada politicamente. E eu acho que não deveria ser
porque a linguagem da militância, a linguagem própria
do ativismo, ela funciona em determinadas camadas
do sujeito, não é? Se a gente parar para pensar como
é que nós, enquanto sujeitos, enquanto corpo, como
é que nós nos relacionamos com o mundo? Nós nos
relacionamos com o mundo em duas dimensões
fundamentais. A primeira dimensão é a dimensão dos
perceptos, que é aquela dimensão da nossa relação
racional com o mundo, então, o que eu percebo como
racional, o que eu consigo entender do ponto de vista
da razão e que pode se transformar em linguagem no
campo do simbólico. Então, tudo aquilo que eu posso
efetivamente pensar, é percepto. E há aquelas coisas
que nós aprendemos com o corpo, que são do âmbito
dos afetos, que é daquilo que se compõe com esse
corpo e o modifica produzindo algum saber; saber
este que nunca vai ser posto em linguagem porque
ele resiste à simbolização. Ele é um saber que ele
está ali sempre com uma insistência que deforma a
nossa capacidade de pensar nos termos da linguagem.
O corpo enquanto essa força, ele é um lugar onde a
arte é sua. De modo que a militância fala à razão, fala
aos perceptos. Mas a arte não pode se restringir ao
campo do simbólico como linguagem, ela precisa falar
ao corpo. E aí, é preciso então que nós não assistamos
mais ou vejamos apresentações e obras de arte para
perguntar o que isso significa ou o que isso quis dizer.
A pergunta deveria ser: o que isso fez comigo? O que
aconteceu em mim quando tive contato com aquela
obra? E aí, por isso, eu acho que é uma perda para a
potencialidade como instrumento, para os campos de
afetos, de intensidades. É um problema para as artes
se elas se permitirem ser polidas pelas linguagens do
ativismo - não que a linguagem do ativismo seja ruim
ou equivocada, mas porque a linguagem do ativismo
não tem o mesmo potencial de alcançar o mesmo
campo do sujeito que tem a linguagem da arte. De
modo que se o ativismo é inundado de arte, ele deixa
de falar direito; e se arte for inundada de ativismo,
ela deixa de falar direito. Não que esse corpo do
artista não possa ser uma coisa e outra ao mesmo
tempo, a minha questão é: a gente tem que avançar
um pouco nisso. A Suzan Sontag, em um texto dos
anos sessenta, chamado contra interpretação, fala
(E)
justamente que nós vivemos no império do sentido,
do significado sobre a forma e a gente está sempre
em busca de interpretar, de buscar o que foi dito. Mas
não é sobre buscar o que foi dito, e sim permitir que
a obra aconteça em você numa composição criadora.
Eu acho que tem um outro lugar para a arte que não
pode ser sobre codificado pelo ativismo, mas isso não
significa retirar da arte em suas múltiplas linguagens
o seu caráter político.
TARINA Maravilhosa. Fiquei lembrando de uma coisa que eu
gostaria de falar que é sobre perspectiva. Eu acho que tem uma
ideia de perspectiva, não é? Existe uma perspectiva trans sobre
o corpo trans, mas também existe uma perspectiva trans sobre
economia, sobre política, sobre moradia e, de alguma forma, eu
sinto isso que você está conversando também no campo das artes
de um modo geral. Esse salto de entender que é uma perspectiva e
não necessariamente um tema que se encerra em si mesmo, menos
um tema e um modo de ver ou de criar ou de sentir. Então, eu acho
fundamental isso aí que você trouxe para a nossa conversa e me
sinto muito tocada por isso.
65
SORAYA Eu fiquei pensando também, a partir disso que
você traz, e eu acho que tem um ponto bem importante que
é, assim, eu acho que também é um reflexo do momento
que a gente vive, que é a coisa de quem assiste ou quem
é espectador, quem é público. Para mim, eu gosto muito
mais de me relacionar e pensar como pessoa e não como
um grupo que tá ali enquanto lugar e, talvez, possa se
pensar ali numa comunidade temporária, não é? Que vive
uma experiência com uma coisa ali, todo mundo vai dividir
uma experiência, compartilhar uma experiência artística
ali. Isso que você falou me faz pensar no seguinte: é como
se as artistas, os artistas estivessem preocupadas em
criar uma coisa, em processar todas as questões que vem
junto com o trabalho artístico e o público, as pessoas que
vão assistir, ficam nesse outro lugar que é perguntar o que
é que isso significa, não é?É como se, realmente, a gente
confirmasse a nossa relação de viver em mundos separados
e portanto se relacionar com a criação, com a experiência
artística de maneiras também separadas, não é? Então, eu
fico pensando… Uma das perguntas que eu faço é: quando
você está no processo criativo de criação de um espetáculo,
de um livro, de uma fala - porque eu considero que a criação
pode estar numa fala, a criação pode estar numa palestra, a
criação pode estar uma obra artística, a criação pode estar
no texto, no livro, não é? Então, em que momento você se
pergunta onde as pessoas estão naquilo que você faz? Em
que momento eu considero as pessoas que eu nem sei quem
são, mas que vão estar comigo no compartilhamento de
(E)
66
uma experiência? Quando eu as considero no meu trabalho?
Aí, eu pergunto isso para você. Quando você vai falar,
quando você está pensando em um roteiro - como você
está fazendo agora, quando você vai criar um texto você
pensa sobre isso?
HELENA Eu acho que tem uma coisa que é: nós nunca
efetivamente nos relacionamos com o público. Nós
nos relacionamos sempre com a ideia que nós temos
do nosso público, de modo que a nossa relação é
sempre com a gente mesmo. Com a gente e com os
nossos estereótipos. Então, a gente está sempre se
relacionando com uma ideia de público que é produzida
por nós e é alimentada pela nossa bolha, seja ela qual
for, de modo que a nossa relação é sempre com a
gente mesmo. É esse o aprisionamento da linguagem.
Nós sempre nos relacionamos conosco e com as
imagens que nós mesmos produzimos, entre outras
coisas, não é? Então, sendo assim, a gente vive um
tempo - e, talvez, os editais ajudem nisso, que é a arte
virando arte de produto. A gente tem entregado muito
menos editais de formação, de processo; você tem
sempre mais editais de montagem, de apresentação,
editais que consideram o produto feito. Eu acho que o
enfoque nesse processo criativo nosso tem que ver se
a gente está gostando. O Guattari falou assim: onde
não tiver desejo, vá embora. Porque, às vezes, a gente
fica ah, meu deus, eu preciso fazer isso, precisa dizer
isso dessa maneira, dizer isso daquela forma, mas a
questão é: você está gostando? Eu consigo gostar
enquanto faço? E depois, criar um enfrentamento
com o público é sempre um enfrentamento com
outro de quem nós não sabemos o que esperar. Eu
sempre penso que se a obra for odiada é uma reação
incrível, porque pior que uma obra odiada é uma obra
que ninguém lembra, uma obra apática. Uma vez, eu
escrevi uma peça de teatro em Fortaleza, era uma
performance, e a gente foi processada pelo Ministério
Público por vilipêndio a símbolo religioso porque o ator
sangrava no Cristo enquanto passava um filme pornê
na tela, a peça chamava Histórias Compartilhadas. Aí,
um menino foi ao teatro do Dragão do Mar e levou a
avó dele, depois ele me mandou um e-mail contando:
olha, minha avó não fala mais comigo. Eu vi o título
Histórias Compartilhadas e pensei que era uma peça
de contar histórias, mas ela ficou tão assustada que
ela não fala mais comigo por causa da merda da sua
peça. E eu respondi: ah, que bom! Se a sua avó não fala
mais com você, é porque a peça teve efeito. (risos) A
arte precisa fazer as pessoas se moverem de alguma
(E)
67
forma, e isso não significa que vai ser sempre positivo.
Eu acho que tem muito mais a ver com gostar de estar
fazendo, com o desfrute que você tem no processo do
que com essa preocupação maior com o público. Isso,
claro, depende do seu processo de criar. Se você está
em um processo mercadológico, é outra coisa. Então,
o roteiro de mercado, para mim, é assim: você escreve
o que você quiser, eles vão cortar e depois você
adequa. A questão, para mim, é que a arte não pode
servir para nos aborrecer, aquele processo - ainda
que você tenha saído de caso sem vontade nenhuma
de ir, sei lá, para o ensaio, mas dentro do ensaio você
descobre que ah, foi bom ter saído de casa, foi ter
vindo ao ensaio. Porque se a arte que a gente faz não
estiver fazendo algo com a gente, ela não vai fazer
nada com o público. Esse é o ponto. Porque se a gente
planeja as coisas sempre no campo da linguagem,
ela não vai funcionar. Eu acho que tem que planejar
também as pausas, os silêncios, aquilo que está com a
gente, sabe? Você experiencia algo e dali, sei lá, surge
uma cena. Tem uma quantidade de brincadeiras, de
jogos que se faz nesse espaço como forma de criar
pertencimento com a criação. Eu acho que a criação
é uma espécie de território ao qual a gente aprende
a pertencer, mas quando a gente vai muito querendo
fazer dentro de uma receita, a gente vira estrangeiro
no território da criação. Eu acho que não funciona.
Eu acho que para a gente ser natural no território da
criação, a gente precisa ir lá para brincar.
TARINA Bom, Helena, eu lembrei de uma coisa, é um episódio
anedótico, mas é fato porque você estava falando: bom, a questão
não é se a pessoa gostou ou não gostou, mas se teve efeito. Não
gostar, inclusive, é um efeito. E, então, eu lembrei que, às vezes,
dependendo, inclusive, de quem gostou, é bom você ligar sua antena.
Eu tenho uma amiga que uma vez estava fazendo uma peça e uma
pessoa de reconhecidas opiniões reacionárias e retrógradas, disse
que gostou muito. Eu falei: olha, eu acho que você tem que olhar
para o que você está fazendo porque ou tem milagre acontecendo
no mundo ou tem alguma outra coisa acontecendo. (risos) E bom,
eu acho a brincadeira fundamental. Eu lembrei do livro do Brian
Massumi, O que os animais nos ensinam sobre política, onde ele
fala da improvisação e da brincadeira e de como, na verdade, não
há algo menor do que aquela, digamos assim, ação no mundo real
no momento do caçar - porque ele está falando de animais, mas
que é o brincar de caçar que introduz na caçada a possibilidade da
improvisação que é o que vai garantir a sobrevivência daquilo, não
é? Então, a brincadeira é a introdução…
(E)
68
HELENA É isso, eu vou concordar contigo. Nós,
quando crianças, nos relacionamos em primeiro lugar
com o mundo através da brincadeira e do lúdico. De
modo que essa ponte entre o mundo do qual não
fazemos parte e em que nós nos ligamos como lugar
em que a gente se nutre, se dá pela brincadeira. É a
brincadeira que é capaz de operar entre a razão e o
corpo para produzir uma outra coisa.
TARINA Incrível. Bom, vou seguir aqui. Uma outra questão que se
levantou ao te ouvir, porque realmente eu fiquei curiosa de ouvir a
sua elaboração sobre isso. Pensando da ideia da representação e
da representatividade e em sua certa crise da representatividade
- então, o que eu vou jogar, eu nem sei se é uma pergunta; é uma
tentativa de reflexão para te jogar uma tentativa de reflexão. Bom,
há alguns anos, eu li um artigo de um curador, alguém que tentava
estabelecer essa ponte entre a crise da representatividade e
a crise na representação, que tem a ver um pouco com o que a
gente estava falando sobre o lugar de onde se fala, porque hoje
se a personagem é uma pessoa trans, é uma pessoa trans que vai
fazer, não é ninguém fingindo que é, ninguém vai falar por ninguém,
ninguém vai representar ninguém… E por outro lado, essa crise de
representatividade ou legitimidade, ela é diferente para diferentes
pessoas, não é? Porque tem uma parcela de nós que nunca foi
representada, então, essa crise bate diferente porque nunca houve
legitimidade para essa parcela de nós - e nós sabemos quem
são, não temos ilusão em relação a isso. Por outro lado, a minha
pergunta vai no sentido de que a representatividade é fundamental
e ela tem efeitos no mundo, e a gente vê esses efeitos no mundo
e também os efeitos que acontecem quando ela não existe. Mas
tem um limite? Qual é o limite da representatividade e como é que
a gente negocia? Será que a representatividade tem um limite de
assimilação? Será que tudo é assimilável por isso? Então, eu acho
que a minha pergunta está um pouco nessa relação da captura e o
fugidio dessa captura e quais são os limites disso.
HELENA Bem, eu acho que a primeira coisa é que
quando a gente pensa política, os processos políticos,
seja a política partidária ou seja a política no sentido
mais amplo, a política das sociedades humanas
ocidentais. A gente está pensando que a política,
desde a modernidade, se dá por representação,
ela é uma política que funciona por identidade, pela
capacidade de aparecer para o espaço de aparição,
não é? Assim, a política no ocidente, quando a gente
olha para a Grécia, a gente vai ver que o que funda
esse mundo grego é a cisão Oîkos que é a dimensão
por área e Pólis que é a dimensão por espaço público.
Esse espaço público, ele é o espaço de aparição, é
onde a política opera dentro de um palco de regimes
(E)
69
de visibilidade e de invisibilização, não é? As formas
de aparição dentro desse espaço são múltiplas. Tem
as formas de aparição no parlamento, tem as formas
de aparição no mundo da economia, das empresas,
etc., tem as formas de aparição das artes, dos artistas
e da indústria cultural, existem múltiplas formas de
aparição. Frequentemente, são os corpos que mais
aparecem que vão fazer com que as coisas se realizem
no mundo público, e também, por consequência, causar
impactos no mundo privado. Fazer com que as coisas
se realizem é a capacidade própria do humano que é a
capacidade de ação política e, por definição, uma ação
criadora, criativa. Bem, certos grupos ao longo do
tempo, começam a pleitear formas de aparição. Estão
aí, o movimento sufragistas, o intenso movimento
artístico dos anos cinquenta, de mulheres feministas
e da produção de arte feminista ao longo dos anos
cinquenta; depois o teatro dos oprimidos, os teatros
que vão trazer operários, negros e negras para o palco…
E as reivindicações dessas artes mais vanguardistas,
por assim dizer, até que elas se impõem também como
demanda para a indústria cultural, não queremos
mais negros e negras apenas como escravos, apenas
como empregadas domésticas, a transformação
da forma de representar a mulher, não é? Então, a
gente vai ter mais mulheres protagonistas que não
sejam dependentes de homens, mais narrativas sobre
mulheres que não sejam sexualizadas, e aí, a gente
vai ter a demanda pelas questões homosexuais onde
queremos ver beijo, queremos ver toque… É como
se os espaços onde se pode aparecer - porque a
política vai sempre pela aparição: o que não aparece,
não é político, esses espaços são sempre alvos de
uma série de reivindicações e aí, o que acontece é
que a capacidade de um grupo de fazer-se aparecer
nesse espaço, é representatividade; a representação
é a noção de que as coisas não vão funcionar pela
participação direta, mas pela mediação entre pessoas
e símbolos e etc. E a representatividade é, justamente,
quando determinados grupos organizados passam a
ocupar esse espaço de aparição de modo a contar
de alguma maneira histórias coletivas, não é? Que
é a ideia de escrevivência da Conceição Evaristo,
por exemplo. Histórias que, de alguma forma, sendo
histórias individuais, pertencem, de alguma maneira, à
coletividade. Contudo, e eu acho que isso é importante,
há sempre o risco de que o grupo que representa
engula os sujeitos supostamente representados de
modo que outros interesses possam vir a atravessar
o processo da representatividade. Eu acho que a
(E)
representatividade como pauta, como tema é um
bom começo, mas é um péssimo objetivo para o
final. Nas artes, nós podemos começar demandando
representatividade, mas se a gente tiver que demandar
isso para sempre, e se essa for a meta, significa que a
gente descobriu um jeito tedioso de morrer.
SORAYA Eu vi um vídeo seu, lembrei de um vídeo seu. Eu
fui no seu Instagram para conhecer a Helena do Instagram
também, como ela aparece no Instagram - falando em
aparição, não é? E eu vi um vídeo seu onde você estava
falando sobre como convocar as pessoas para pensar a
democracia e você falava nesse vídeo que, às vezes, tem
existências que precisam ainda fazer coisas muito básicas
e que elas não tem na carne a experiência da democracia,
não é? Então, como é que a gente pensa em convocar as
pessoas e querer que as pessoas tenham uma energia,
enquanto elas têm tantas outras preocupações estruturais
e básicas e nenhum tipo de relação com isso? Porque, às
vezes, a palavra é essa. Não sei, você tem a palavra mas ela
não está na sua carne, ela não está no seu dia a dia. Então, eu
fiquei com vontade de te ouvir falar mais sobre isso.
70
HELENA Foi no aniversário de vinte e cinco anos da
revista Cult e o que eu dizia era que nas eleições de 2018,
eu fui candidata a deputada federal, não é? Mas, nas
eleições de 2018, eu vi parte da esquerda e do campo
progressista convocando as pessoas para defender
a democracia e, para mim, havia uma convocatória
equivocada. Equivocada porque parte das pessoas, boa
parte da população brasileira não experimentou isso
que nós chamamos democracia, não é? Alguns, como
Boaventura de Sousa e Santos, usam o eufemismo
para chamar de democracias de baixa intensidade,
não é? Mas como a gente pode dizer assim: ah, mas
a polícia não vai mais te respeitar para populações
que se reuniam nas praças e eram perseguidas pela
polícia? Jovens negros das periferias, as mães desses
jovens, os pais desses jovens, os trabalhadores que
pegam dois ônibus lotados às cinco da manhã… Esses
sujeitos não experimentaram a democracia. Como
você pode ser convocado para defender algo que
você não experimentou? De modo que o convocatório
deveria ser para a gente construir uma democracia,
para a gente construir o Brasil, para a gente inventar
o Brasil. Porque a gente vem pensando essa coisa de
visibilidade e invisibilidade, mas nós temos inúmeras
parcelas da população brasileira que está submetida,
há anos, a regimes cruéis de invisibilidade, de morte,
gente que tem sido moída pelo país há séculos. A minha
(E)
71
questão é: a gente tem um Brasil para inventar e qual é
o esforço para fazer isso. Parte dos nossos políticos e
artistas, inclusive, têm se comportado como médicos
de um paciente terminal. Só fala coisa triste. Sabe
porque ninguém escuta a gente da esquerda? Porque a
gente só fala tragédia, a gente só fala tristeza, nós não
apresentamos para as pessoas o mundo de vida que
pode existir. A gente contesta esse mundo de morte,
esse mundo de fome, mas nós não as convocamos
a sonhar com um mundo sem fome, um mundo sem
pobreza. Porque nós ficamos chatos, melancólicos,
tomados por uma tristeza existencial que faz com que
ninguém nos escute porque nós somos aquelas pessoas
negativas. E eu acho que parte disso, desse esforço, tem
a ver com se as forças conservadoras que nos tomam,
se elas anunciam também tragédias e elas não querem
que as coisas mudem, as pessoas são conservadoras
porque elas tem medo do futuro, porque elas não
entendem o presente. O conservadorismo é uma
profunda incompreensão do presente. Eu dou sempre o
exemplo de que nós todos somos conservadores. Sabe
quando a gente diz assim: ah, a geração de hoje não
sabe o que é uma balada. Na minha época, quando eu
ouvia Kate Bush, era tudo! A gente sabia o que era uma
balada. Na minha época é que criança sabia ser criança.
Essa ideia de que o presente é sempre ruim e que o
passado é sempre melhor, isso é um afeto conservador.
E quando esse afeto conservador se transforma em
reação política, ele tenta fazer o mundo voltar ao que
era ou, no limite, conservar o que está. Então, não há
possibilidade de discutir o futuro. Eu acho que para
a gente que é das artes, a gente tem uma tarefa que
é provocar a imaginação, fazer com que as pessoas
possam imaginar o futuro. E para isso, não adianta
fazer uma obra falando para as pessoas o quanto
elas morrem, porque as pessoas sabem que estão
morrendo, as pessoas sabem as violências que sofrem.
A gente tem que fazer da arte um objeto de sonho,
não uma corporificação da hiper-realidade através da
linguagem artística. A realidade é dura demais.
TARINA Agora que você estava falando, eu fiquei lembrando de
um dos últimos livros do Tikkun, onde logo no começo, elas ou
eles, enfim, colocam essa ideia de que a gente está no momento
de falar da crise dos recursos naturais e aí, ele diz que é mais do
que uma crise dos recursos naturais, é uma crise dos recursos
subjetivos, não é? Esta crise é maior do que a outra e a tão grande
que faz a gente ter dificuldade de imaginar a outra, de imaginar uma
outra coisa para outra e não é uma tarefa realmente simples. Mas
é justamente porque não é simples, que nós não vamos nos, como
(E)
72
se diz isso? Não é nos reter, nos negar… Enfim, que nós não vamos
lidar com ela. E aí, pensando um pouco nesses desafios de tentar
entender eixos, cortes de possível aderência de luta, da criação
de - não sei se a palavra é comunidade, mas uma fabricação de
algo que seja comum e sobrecomum, como a gente já viu. Eu fiquei
pensando nas histórias do feminismo, aquela coisa dos 99%, que
vão um pouco nessa ideia da relação do feminismo como algo anti
capitalista, anti racista, porque no fundo tem uma sobreposição
entre essas lutas, então, eu acho que a pergunta é: quem é o inimigo
contra o qual a gente está lutando? Existe um inimigo? O nome
desse inimigo é capitalismo, e patriarcado? Então, eu acho que eu
te perguntaria, qual é o nome do seu inimigo? E você sente que
tem um inimigo que tem um chão comum e que pode gerar mais
aderência e onde a gente pode entender que em algum lugar onde
as demandas são muito diferentes, mas que tem algo que a gente
possa encontrar em comum? Ou, talvez, eu esteja sendo muito
conciliatória? E diria uma outra coisa, serão várias perguntas em
uma. Nesse sentido, qual é a dança entre a destruição e a reforma?
HELENA Nossa, que loucura! Bem, eu vou começar
contando a história de um texto que eu amo da Suely
Rolnik, chamado Amor: o impossível e uma nova
suavidade, ele está naquela coletânea de textos que
ela fez com o Guattari. Suely Rolnik começa contando
a história de Ulisses e Penélope, e ela vai dizendo que
Ulisses e Penélope vivem uma espécie de simbiose.
Penélope tece todas as noites e chora a partida de
Ulisses todas as noites, e pela manhã ela desmancha
o que está tecendo e recomeça a tecer e chorar de
novo. Ulisses parte e foge de Penélope. E Penélope
diz: Ulisses, você me mata com a sua vontade de
ausência. E ele responde: E você, me sufoca com a sua
vontade de presença. Ulisses só é Ulisses porque ele
está fugindo de Penélope, se um dia ele termina com
Penélope e vai embora de vez, ele perde a sua vontade
de fugir, e perdendo sua vontade de fugir, ele deixa de
ser o herói que ele é porque perdeu a vontade de fugir.
Penélope se reconhece como mulher e como rainha
na espera eterna por Ulisses, de modo que se Ulisses
chega e fica, ela também não consegue mais ser
Penélope. Então, eles ficam nessa relação simbiótica
que é uma dança tediosa que não muda nova, eles não
criam novos territórios do amor porque eles têm medo
da desterritorialização, eles têm medo de perderem a
si mesmos caso as coisas mudem. Então, às vezes,
a gente estabelece relações com aquilo que a gente
conflita que são, na verdade, relações simbióticas.
Sempre que me perguntam para que serve o ativismo,
eu respondo: para acabar. O objetivo de todo ativismo
é acabar, o objetivo do feminismo é deixar de existir,
(E)
73
o objetivo da luta LGBT é acabar. Primeiro, porque é
horrível ser ativista. Segundo, porque os problemas
que fundam essas lutas, deveriam deixar de existir, de
modo que as lutas deveriam acabar. Se você não acha
que o objetivo do feminismo é o fim do feminismo,
é porque então você, de alguma forma, está presa
nessa relação simbiótica de crer que você precisa
sempre estar nesse enfrentamento com o inimigo. O
risco dessas relações simbióticas, dessas relações
de enfrentamento, é que quando eu penso em quem
é meu inimigo - seja o capitalismo ou o patriarcado,
ele também me constitui e se esse inimigo deixa de
existir, eu também deixo de existir. Então, nessas
relações de confronto direto, de antagonismo, os dois
antagonistas se reforçam. Então, eu não gosto de
pensar, às vezes, em quem é o inimigo porque se eu
olhar para o inimigo, ele é tão grande e eu vou me sentir
tão pequena que eu vou desistir. Então, seguindo, a
Suely Rolnik diz que Ulisses e Penélope são uma
forma de morrer de tédio, mas existe aquele que não
suporta o tédio de habitar os territórios consolidados
e sai pelo mundo, flanando, flanando e não constrói
nada e não está em nenhum lugar. Isso ela chama de
máquina celibatária. A máquina celibatária enfrenta
outro jeito jeito de morrer, morrer de se desconstituir.
Porque de tanto não construir território nenhum, de
tanto ter medo das coisas que são fixas, acabam por
se dissolver no nada e morrer. E ela diz que são dois
jeitos de morrer, mas os dois matam entre não fazer
nada por ter medo na mudança e querer mudar demais
e nada construir. Então, eu penso que a gente, às vezes,
orbita um pouco entre essas duas coisas. O temor da
modificação e, às vezes, o excesso de modificação
que desconstrói qualquer forma de linguagem. A
gente precisa encontrar a regra de ouro, o caminho do
meio ou - a Suely Rolnik vai dar a saída do replicante,
de Blade Runner, mas que eu vou usar como a história
das travestis. Eu pesquiso travestis na ditadura, e se
tem uma coisa que me marca muito na história delas
é que não tem uma heroína. Não tem uma (inaudível),
não tem um Marighella, não tem nada disso porque
tratava-se de inventar estratégias para sobreviver,
para seguir vivas. Então, eu acho que não se trata de
encontrar o inimigo, mas de encontrar um objetivo
que é continuar vivo mais um pouco ou o suficiente
para por este mundo abaixo, entende?Porque destruir
o capitalismo, destruir o patriarcado… a gente não
vai conseguir fazer isso e a gente está cansada de
perder. A gente disse: fascistas não passarão, eles
passaram. A gente disse: A Dilma não vai sair, ela
(E)
74
saiu. A gente disse: fora Temer, ele não foi embora.
A gente disse: não vem, Bolsonaro, ele veio. A gente
só perde. Então, a gente precisa começar a colocar
uns objetivos menores para perder menos, entende?
Porque se a gente só perde, a gente vai desistindo.
Então, eu acho que está na hora de a gente perder
menos. E aí, se a gente quiser lutar logo contra o
capitalismo, a gente vai perder, sabe? Então, a gente
precisa continuar vivas para esperar vir outra coisa.
Eu sou uma pessimista ativa, eu me considero, porque
assim, eu acho que pode vir outras coisas, mas o que
pode vir pode ser ainda muito pior. Nós não sabemos.
Eu, inclusive, anseio, espero que venha alguma coisa,
pode ser pior, mas que seja outra coisa.
SORAYA Eu amei a pessimista ativa, achei ótimo. (risos)
Negativa ativa, não é? Eu tenho uma amiga que fala que
a gente precisa ser negativa um pouco também porque o
excesso de positividade, o excesso de realidade, na arte
também, que não sobra espaço para sonhar, não sobra
espaço para imaginar, não sobra espaço para o desejo
porque é tudo tão grande e tão urgente que a gente vai
deixando de considerar as lutas que acontecem ao mesmo
tempo, que são lutas de dimensões diferentes, mas que
estão acontecendo, as coisas estão acontecendo. Tem uma
palavra que eu escutei muito assistindo você, lendo coisas
que você falou, procurando saber sobre você. Tem uma
palavra que você usa muito que é conhecimento, conhecer,
e eu fiquei pensando em te perguntar isso: de que forma
para você o conhecimento é uma criação? Quando é que
o conhecimento é ação? E como é para você pensar que
tipo de conhecimento a arte produz ou faz nascer ou deixa
nascer ou possibilita nascer. Então, eu fiquei com vontade de
saber de que maneira você acha que o contexto possibilita
um conhecimento para um mundo que não existe mais.
HELENA Eu gosto sempre de pensar, eu sempre
digo isso, gosto de lembrar como é que se fala
conhecimento em francês, que é connaissances. Co
é um prefixo latino que indica junto: coeducativo,
coordenado, cooperativa.. E naissances é nascimento.
De modo que conhecimento é algo desde o princípio
que significa nascer juntos. Também em português
significa isso, só que é em Latim, não é? Então, essa
ideia de aquilo que nasce junto já coloca para nós um
desafio ético de que conhecimento é algo que não se
faz só, conhecimento é algo que demanda outros. E,
eu acho que nós temos uma falência, nesse momento,
das nossas referências. Quem a gente lia nos anos 80,
70, 60, 50, no século passado, parece que perdeu um
(E)
75
pouco a sua capacidade de explicar as coisas, é como
se as nossas referências não dessem mais conta de
explicar o mundo para a gente. Eu lembro que quando
o Bolsonaro foi eleito, eu comecei a trabalhar com
política, política e a arte são coisas que ficam, hoje em
dia, me puxando. Bom, e eu sabia a receita. Eu sabia
que para um político ganhar a eleição ele tem que fazer
isso, isso e isso, como sempre foi feito. Bolsonaro
exatamente o contrário, não é? E quando ele foi eleito,
eu lembro que eu olhei assim para o Sérgio Buarque de
Holanda, Gilberto Braga, todo mundo ali e falei: gatos,
vocês são os intérpretes do Brasil, mas vocês erraram,
tá? O homem cordial não existe, olha isso. Eu acreditei
em vocês e está tudo errado. Mas não é que estavam
errado, acontece que nós vivemos um tempo que é
um tempo outro, que não é mais aquele e a gente tem
conhecimentos novos por produzir, conhecimentos
capazes de explicar esse tempo, de explicar o trabalho
sem vínculo, de explicar a completa desmaterialização
das relações, de explicar a virtualização da vida, de
explicar a nova religião do tempo que é auto-ajuda
- a auto-ajuda é a religião do nosso tempo, não é?
A gente tem desafios de produção de conhecimento
agora, não é? E esse conhecimento também requer,
daqueles que se intitulam acadêmicos, intelectuais, o
silêncio. E aí, eu acho que exerce a minha proposta,
não é? A gente precisa ouvir as pessoas. Uma vez
eu estava numa reunião partidária, e alguém disse
assim: nós precisamos saber como nós vamos falar
de aborto na quebrada. Eu falei: gata, você de onde?
Ela respondeu: eu vim da periferia. Eu falei assim:
Então, elas já sabem, elas sabem chás abortivos há
gerações. A gente não precisa descobrir como falar, a
gente precisa ouvir e descobrir o que elas têm a dizer
para nós. Então, a questão é outra. Eu acho que a
gente tem um processo de escuta para se consolidar.
E um processo de escuta dos artistas também, não é?
A gente quer tanto, tanto que ouçam o que a gente faz
artisticamente, mas a gente dedica tão pouco tempo
ao ouvir o que os outros têm a dizer do fazer artístico
da existência, não é? Porque existir é fazer arte. Então
assim, a gente ouve muito pouco o que as pessoas
estão fazendo. Eu lembro que eu estava dando um
curso de cinema queer e eu falei assim: gente, olha,
não é aqui que vocês vão aprender cinema queer
porque o cinema queer é aquele que não tem espaço,
que não tem curso, que não é reconhecido como
cinema. O que eu estou ensinando para vocês aqui já
está constituído em contradição. Se você quiser fazer
cinema de verdade, vá ver o que estão construindo
(E)
76
as páginas dos meninos que se filmam andando de
skate, das pessoas que fazem humor e não-humor
amador, sabe? Vá ver o que se produz lá onde a gente
acha que não é cinema. Então, a gente transformou
as nossas práticas subversivas em tradição, não
é? Então, a gente tem uma tradição subversiva. Eu
sempre digo assim: vou ver uma performance e vai
ter alguém nu. Quase sempre eu acerto. Não porque
seja um problema a nudez, mas porque, de alguma
forma, se institucionalizou, não é? E a questão é: como
nós conseguimos novas estratégias que não sejam
mais tão capturáveis? E sabendo que essas novas
estratégias vão ser capturadas e a gente vai ter que
criar de novo. É por isso que a gente é artista. Para a
gente criar uma estratégia e eles capturarem e a gente
criar de novo. Então, eu acho que é esse processo.
Eu acho que conhecimento é isso. Conhecimento é
o processo de criar formas de seguir contestando o
mundo a partir do nosso corpo.
TARINA É, eu acho que é muito vitalizante ouvir você falar porque
eu acho que você consegue encontrar no discurso que você domina
muito bem, as fissuras que fazem ele não estar tão capturado, não
é? Porque é o que você falou, a linguagem é captura de alguma
forma, não é? Quando ela se instaura, já foi e aí você fica tentando
fugir ou o que é fugidio que é o excesso, que é esse excesso que é
a potência porque aquilo que não cabe ali é o que vai seguir. Então,
realmente, como eu falei, é muito vital te ouvir, é muito legal. E
aí, pensando nisso que você falou da escuta, eu fiquei pensando
que você já colocou para gente uma estratégia de sobrevivência
porque estar com a atenção em outra coisa já te tira desse lugar pré
capturado que normalmente é o lugar que é um imã, não é? Que está
constantemente nos atraindo de volta. E aí, nesse sentido, falando
ainda do discurso e da estratégia para além da escuta ou, talvez,
você já tenha dado a resposta para a pergunta que eu tinha. Mas
voltando um pouco no que a Soraya também trouxe… Como que
a gente abre espaços dentro da macro política para essa escuta?
Porque tem gente que está fora, que fala diferente, que não está
no academiquês, que não entende, mas que tem a experiência.
Eu falei aqui, outro dia, também em termos anedóticos, mas é
verdade, especificamente, sobre a questão da transgeneridade ou
da cisgeneridade, não é? Eu tenho um amigo, uma pessoa próxima
que é uma drag queen e é um pouco mais velha que eu, e há alguns
anos me falou assim: Tarina, você não sabe o que eu descobri
semana passada. Eu perguntei: o quê? Ele falou: eu descobri que
eu sou cis, fiquei chocada. (risos) Então, o que eu tô falando é que
tem um gap sempre entre dominar o discurso e a experiência. Não
é sempre, mas esse gap pode existir. O que seria uma estratégia
de linkar esse gap ou não tem que linkar?
(E)
77
HELENA Tem uma coisa que é assim. Quem ocupa
espaços, sejam eles quais forem, têm o dever ético de
ser traficante, traficante de saberes, traficante de fazer
caminhar as coisas entre vários lugares. Eu acho que
se tem é uma cartografia e a gente precisa começar a
estar em vários lugares e a transitar em lugares onde
não costumamos transitar e a experimentar realidades
que nós não costumamos experimentar, não é? Sei lá,
ir ver filme mainstream no cinema em lugar de ir ver
cinema de arte, por exemplo. Onde é que as pessoas
estão vendo cinema majoritariamente? É no shopping.
Não é no CineSesc, não é? Eu adoro os filmes de arte
do CineSesc, mas eu acho que é importante que a
gente assista também o que está ali no Cinemark,
sabe? Porque é o que está fazendo rir e chorar um
monte de gente, sabe? Tem o Jack Halberstam que
é o autor que escreveu A arte queer do fracasso, ele
escreve essa obra a partir do Bob Esponja, de A fuga
das galinhas, ele falou assim: eu estou vendo cinema
queer, arte queer onde vocês só vêm indústria cultural.
Porque, de certo modo, para a vanguarda intelligenza,
essa nova intelligenza, a classe artística, bom, a gente
é chato para caramba, esnobe para caramba com o
que é mais popular, não é? E a gente faz isso pensando
que a gente está sendo subversivo, mas na verdade,
a gente está só assumindo o comportamento de uma
nova elite cultural, não é? Então, eu acho que a gente
que olhar lá onde é que o vírus do fascismo da elite
cultural se insere na gente, e a gente ir lá experimentar
aquilo, sabe? O cinema mainstream, um filme de ação
boba… E a gente vai ver que a gente vai se reencontrar
com a nossa humanidade, o quanto a gente vai rir com
uma comédia besta que a gente acha absurda, o quanto
a gente vai chorar com uma comédia romântica besta.
E a gente fala assim: olha, gente isso é uma besteira.
Mas a gente está rindo disso, está afetado. Então,
eu acho que tem afetos, coisas que acontecem no
mundo que a gente precisa voltar a experimentar, não
é? O meu diretor de teatro passou um exercício para
a gente que era o exercício do dispositivo. Era assim:
ele nos dava um dispositivo pessoal e um dispositivo
relacional e no dispositivo pessoal, o meu era assim
- a gente ia montar uma cena de improviso, e o meu
dispositivo pessoal era: você está em um reality show
e o outro era fazer alguém dali cantar com você. Cada
pessoa recebia um pessoal e um relacional, e a gente
ia construindo a cena. Enquanto estava ali, sem dizer
qualquer coisa, eu tinha que ser uma pessoa que
estava num reality show e esse dispositivo atuou ali
fazendo a história funcionar. E eu falei: a gente precisa
(E)
78
trocar o dispositivo. Sabe quando você quer ir a um
lugar e você fala: não quero ser artista hoje, hoje vou
ser outra coisa. Não é? Então eu acho que a gente
precisa inventar formas de abandonar os lugares
ossificados em que nós estamos. Porque não dá para
fazer grandes coisas, não temos como transformar
os grandes problemas, as únicas coisas que nós
podemos dar conta são as coisas que nós fazemos.
De modo que, então, é preciso pensar estratégias
que nós possamos fazer a partir de nós e que possam
depois coligar com os outros e produzir experiência.
Essa experiência vai fazer com que os discursos se
adequem porque os discursos aprendem a ser ditos,
não é? Os discursos aprendem a se organizar a partir
de sujeitos. A questão é: nós não podemos supor que
não existam discursos capazes de falar com os outros
porque o que acontece é que quando a gente vai falar
com alguém da quebrada, da periferia, a gente fala
como se fosse alguém que não entendesse nada. Não,
eu falo do meu jeito. Se alguém não entender, pergunta.
Porque eu não vou diminuir ou supor que o outro não
tem capacidade de entender. Mas eu só acho que o
outro não é capaz de entender porque eu sou incapaz
de experimentar aquela realidade que entende tantas
outras coisas que eu sou capaz de entender, entende?
Então, eu acho que tem esse exercício que não é de
empatia, mas de alteridade, que é permitir-se ser
afetado nas forças que afetam o outro, na esperança
de construir uma forma de aliança (sic).
TARINA Nossa, Helena! A gente poderia ficar com você mais
umas três horas e eu acho que não esgotaria o assunto, porque
cada vez que você vai falando vão abrindo vão abrindo janelas,
não é? E como eu falei, fundamentais mesmo. Mas a gente está
se aproximando do nosso fim, temos ainda alguns minutos, e eu
me sinto até um pouco estranha na pergunta que eu vou te jogar
porque, eu acho, quase tudo que você falou é a resposta dessa
pergunta. Mas a gente tem pensado no projeto uma pergunta que
atravessa e que a gente fez para as outras pessoas que tiveram
aqui com a gente e que tem a ver com a palavra urgência. Então, o
que é urgente hoje na arte e no mundo, nesse mundo? E para você,
eu acho que eu acrescentaria: tem ordem de urgência? Porque é
eu acho que tudo que você falou está na ordem da urgência, enfim.
Como que isso rebate aí para você?
HELENA Eu acho que a gente tem primeiro um
problema. A urgência, de certa forma, é aquilo
que nos convoca, aquilo que urge, não é? E não
necessariamente aquilo precisa ser rapidamente feito.
No capitalismo, nós passamos a entender urgência
(E)
79
como aquilo que precisa ser rapidamente atendido,
urgência como velocidade, e a velocidade é inimiga
da reflexão detida, a velocidade é inimiga da criação.
Então, eu acho que a urgência que nós temos é resistir
a tudo aquilo que parece urgente. A urgência que a
gente tem é pelo silêncio, é pelo luto, sabe? É pelo
perdemos, não temos resposta agora, sabe? Eu acho
que a urgência que nós temos agora é pelo silêncio,
é por combater todas as urgências que se tornam
um barulho na nossa cabeça e nos impedem de ouvir
qualquer realidade. Nós não escutamos o mundo
porque nós ouvimos tanto o barulho das urgências,
são tantos despertadores, tantas notificações, tanta
coisa dizendo: corre, você precisa fazer, você precisa
dar uma resposta. Que a gente dá respostas ruins e
fordistas para tudo. Então, eu acho que a gente tem
um outro desafio que é, justamente, não atender às
urgências. Então, a urgência que eu tenho é: olha,
gente, pára. Nada é urgente, nada é tão urgente que
possa te convocar para expandir respostas erradas.
Sabe aquele momento em que você precisa desligar
todos os seus celulares e não atender a campainha?
Eu acho que nós estamos nesse momento.
TARINA Eu estou. (risos)
SORAYA É muito bom pensar essa coisa da urgência a partir
da lógica da velocidade, não é? Porque parece que coloca
toda urgência no mesmo lugar. A minha urgência é que
nem a sua e você tem que resolver ali. Eu fiquei pensando
o quanto a gente está ficando ensaiadas, não é? O quanto
que a gente vai para as conversas ensaiadas, vai preparadas
demais, editadas demais, não é?
HELENA Afogada em respostas.
SORAYA Menina, é uma loucura! E como é bom ir deixando
isso cair, deixar as ruínas aparecerem. Porque parece
também que a gente instala também um lugar de vigília
sobre o discurso do outro, não é? Eu ainda espero a gente ter
outro encontro porque eu quero muito ouvir você falar sobre
a economia do discurso - que é uma parada que me deixou
passada e eu fiquei querendo muito saber mais, conversar
mais contigo sobre isso. Eu adoro gente que levanta as
mãos, que levanta assim os braços para falar porque eu
acho que é dar o corpo para a fala mesmo, fazendo essa fala
acontecer no corpo, de fato. Bom demais. Como é que você
falou? Queria lembrar e não esquecer jamais. Não sei o quê
ativa… Pessimista ativa. Que ótimo! (risos)
(E)
80
TARINA Eu já acho que eu sou uma otimista passiva. (risos) Mas
a gente pode discutir isso em um outro momento. Mas eu acho
que isso que você trouxe sobre a urgência, para mim, tem uma
relação com a história do inimigo e do tamanho dos desafios com
os quais a gente tem que lidar, porque a palavra urgência ela se
insere também ou algo que eu não posso deixar de fazer hoje é
algo que se insere também na mesma família dessa grandiosidade
com a qual é difícil lidar, que é de uma escala que é difícil de lidar.
E aí, eu lembrei de um provérbio americano, que fala assim: por
quê deixar para amanhã o que eu posso fazer depois de amanhã?
(risos) É uma outra lógica, mas, para mim, rebate muito nisso que
você estava dizendo, que é a mesma ideia da escuta, não é? É
daqui, é desse lugar, é daqui que isso vai acontecer. Então, a ideia
da esperança também… A esperança é o efeito de estar no mundo,
assim, eu espero que amanhã eu abra meu olho e esteja viva, mas
ela envolve também um pessimismo ativo, talvez - agora a gente
vai roubar, a gente vai hashtaguear o seu pessimismo ativo. (risos)
Então, Soraya, se você me permite, a gente vai… Nossa, Helena! Eu
continuaria aqui e talvez a gente continue em outros momentos.
Quero te agradecer muito, e agradecer também a Clarice, a Aline
e todas as outras pessoas que estão envolvidas nesse projeto, que
ajudam na produção e fazem isso acontecer. Então, muito obrigada
a todes, a todas!
SORAYA Obrigada, Helena! Um prazer conhecer você.
Prazer continuar te conhecendo. Isso foi só o início. Que
nem a imagem da criança, não é? A criança conhece se
aproximando. Então, eu acho que projetos como esse da
Cacá, da Aline, dessa galera, são muito bons por isso, porque,
eu acho, que é uma oportunidade de emparelhamentos, não
é? De aproximações. E isso é muito massa.
CLARICE Gente, muito obrigada a vocês três por essa conversa. Helena,
eu sou sua fã. Sou sua fã, te sigo, troco likes e tudo mais. E é realmente
emocionante te ouvir aqui a partir das coisas que elas trouxeram e eu
estou muito feliz. Obrigada, que bom que você, desde o começo, acreditou
nesse projeto e sempre mandou carta de anuência. (risos) Valeu demais
por a gente ter conseguido fazer isso acontecer e estarmos juntas aqui.
E agora que eu estou sabendo que você está em São Paulo, quando a
gente for fazer coisas eu vou te dar um toque, vou te chamar, quero te
ver ao vivo.
HELENA Tá bom. Que bom! Tchau, gente. Beijos.
TODAS Obrigada!
SORAYA Estou aqui friviando, meu amor! (risos)
81
82
(F)
E SORAYA
PORTELA
TARINA
QUELHO
Entrevista
realizada
em
Agosto
de
2022
ENTREVISTAM
JOICE
BERTH
83 CLARICE Oi, gente! Boa noite! A gente está bem feliz de estar aqui hoje,
recebendo a Joice, que é a quarta entrevistada dessa série de entrevistas
Cabeça Coração do projeto Futura, que foi contemplado pela 31 a edição
do Programa Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo,
através da secretaria municipal de cultura. Quem vai entrevistar a Joice
é a Soraya Portela e a Tarina Quelho. Vamos começar!
TARINA Oi, Joice! Boa noite!
JOICE Boa noite!
TARINA Estou muito, muito feliz de poder estar com você aqui!
Queria te agradecer em nome do projeto, mais uma vez, pela sua
presença. A gente tenta fazer uma coisa informal mesmo de uma
conversa, eu e a Soraya, a gente vai tentando uma entrar um pouco
também na lógica da outra, a gente tem um roteiro mas é um roteiro
bem aberto e vai muito de acordo com a química que rolar entre a
gente aqui. Então, eu falei, um pouco antes da gente se encontrar,
que eu ia relembrar aqui a Silvia Federici porque numa entrevista
que eu vi com ela, um podcast, ela falou isso em outros lugares
também que gossip era amiga, que é a palavra fofoca em inglês
e que depois virou uma coisa, enfim, que tem uma até uma carga
pejorativa, parece que é ruim mas que no fundo tinha a ver com
essa pessoa com quem você compartilhava coisas que, talvez,
você não fosse compartilhar em lugares públicos. Então, a fofoca,
no fundo, tem uma coisa de intimidade, até. Nessa construção
(F)
84
dessa intimidade tem um pouco de gossip, nesse sentido do
gossip, não é? E aí, bom, primeiro quero te dizer que eu sempre leio
o seu Instagram, a gente estava conversando um pouco sobre isso
também, sobre como a gente acompanha um pouco as crônicas
do que está acontecendo no Brasil e no mundo pela sua página do
Instagram. A gente fala gente, eu não sei o que está acontecendo
no mundo! Eu vou na página da Joice. (risos) Porque a gente
descobre o que tá acontecendo e não só, mas também com uma
perspectiva sempre muito apurada daquilo que está acontecendo.
E aí, como você é uma pessoa bem ativa nas redes sociais, eu
pensei em começar te perguntando uma coisa que tem a ver com
a criação dentro disso. Alguns, muitos anos atrás, o Boris Groys,
que é um cara que trabalha com design, pensando nessa ascensão
das redes sociais, ele dizia assim: bom, neste momento onde cada
um é o design de si próprio, qual é papel do artista? Então, em um
certo sentido, nas redes sociais que são campos onde todo mundo
também é o design de opinião de si próprio, qual é o papel do
intelectual, do teórico, do criador, e como é a criação nesse meio?
JOICE Bom, muito boa noite! Obrigada pelo convite. É
um prazer estar aqui conversando com vocês. Projeto
muito bacana e muito importante que vocês estão
fazendo, então, muito me honra ter sido uma das
escolhidas para trocar essas ideias, conversar e tudo
mais. Bom, a visão que eu tenho das redes sociais é
de um espaço de democratização da comunicação.
A gente tem histórico de formação desse nicho de
comunicação no país, que sempre foi excludente, não
é? Então, a gente chega e reivindica um lugar de fala
dentro desse esquema da comunicação e a gente
só consegue fazer isso por causa das redes sociais.
Porque na rede social, todo mundo é todo mundo.
Todo mundo é possível de existir ali, naquele espaço.
Todo mundo pode mostrar a sua criatividade. E você
vai depender, sim, você vai estar à mercê do algoritmo,
mas ainda assim é um espaço onde pessoas realmente
interessadas naquilo que você está fazendo, de alguma
forma vão te achar. Tem muitos conteúdos que eu
consumo na rede social, isso desde os tempos do
Facebook, que engrandeceram muito, que me levaram
para um caminho de pesquisa que sem a rede social,
eu não teria ido. Então, também vai muito também
do interesse das pessoas e daquilo que você está
produzindo. Então, para mim, nesse sentido de pensar
o papel do artista onde todo mundo é o design de si
mesmo e pensar em como é que fica o artista nisso,
o artista fica no lugar onde ele sempre esteve, que é
nesse cano por onde todas essas emoções vão escoar
de alguma forma, em algum momento com aquele
instrumental com que o artista trabalha. Então, se é
(F)
85
um músico, ele vai, de repente, sintetizar todas aquelas
informações que giram freneticamente na rede social
na música que ele está produzindo. Se ele é um pintor
ou escultor, enfim. Sabendo converter esse material
humano que a rede social nos coloca sem restrições,
eu acho que isso é muito engrandecedor. Eu acho que
os artistas melhoraram até, os seus posicionamentos,
a sua possibilidade de criação a partir das redes sociais
também. Eu acho que os artistas não se comunicam
mais da maneira como se comunicavam antes, as
redes sociais forçaram um pouco a revisão das coisas,
a revisão de modos de interagir com o público. E o
intelectual, ele não é um artista. Ele não está ali para
trabalhar com as emoções, ele está ali para provocar
um desconforto, para provocar um choque mesmo de
ideias, de opiniões e posicionamentos. O intelectual,
ele é o advogado do diabo e é ele quem vai fazer a
gente sair do lugar, se mexer um pouquinho, pensar
um pouco mais além. Ou pelo menos deveria ser essa
a função do intelectual. Eu ainda sou conectada com
o pensamento de Milton Santos que define muito
bem isso, não é? Milton Santos fala que existe uma
diferença entre o intelectual e o letrado. Como que o
Mano Brown pode ser um intelectual? Como Carolina
de Jesus pode ser uma intelectual? Eles podem
ser e eles são intelectuais porque eles provocaram
desconforto, eles provocaram o pensamento crítico a
partir do material de vida que eles tinham para colocar.
Ao passo que tem certas pessoas que são letradas,
muito letradas, são grandes acadêmicos, brilhantes
acadêmicos, cientistas, enfim, que nos trazem
uma série de informações que abastecem o nosso
pensamento, mas não são exatamente intelectuais. E
tem pessoas que sintetizam as duas coisas em si, elas
são letradas e também são intelectuais ao mesmo
tempo. Então, eu acho que o papel do intelectual em
rede social é, justamente, dar a cara a tapa, não é? Eu
tinha um ranço com essa palavra intelectual quando
era mais jovem, quando eu era muito rebelde, muito
rebeldezinha, subversivazinha. Então, só de falar em
intelectual (faz gesto de aflição)... A primeira vez que
falaram isso para mim, ih, nem vem! Porque vinha na
minha cabeça aquela pessoa toda certinha, falando
durinho, falando difícil e eu acho que nunca gostei
muito disso. Agora por que existia isso? Porque existe
uma barreira entre o intelectual e o povo. Eu acho que
não existe intelectual que não fala com o povo. Se
você não está falando com o povo, então você não
é intelectual. E aí a rede social quebrou isso, então
eu penso que o papel do intelectual na rede social,
(F)
86
infelizmente, é mais doloroso ainda do que no passado
porque é se expor e é muitas vezes ir na contramão do
que todo mundo tá falando, não é? Está todo mundo
dizendo, por exemplo, que o empoderamento é sair
nua na capa da revista e você vai ter que falar, como
intelectual, que não é bem assim, que não é por aí, pera
aí, vamos ponderar. Então, é isso, não é? E é isso que
muitas pessoas têm feito a duras penas. Não é fácil.
Você tem que ter um pouco de sangue de barata e
pouco de peito de aço porque também o viés negativo
da rede social, é a resposta violenta que você tem em
tempo real porque, às vezes, aquilo que você fala bate
como se fosse uma porrada e você também recebe de
volta esse contra-ataque de certas maneiras, assim,
que às vezes, incomoda muito. Então, muita gente
adoeceu, muita gente quis sair porque não gosta mais
da rede social, pegou pânico, pavor, ojeriza, não quer
mais saber nem ouvir falar de rede social. Então, eu
acho que é isso, ainda tem uns anos aí para a rede
social render tal qual a gente conhece agora, mas
também já se ensaia novos modos, porque eu acho
que comunicação vai acompanhando também as
mudanças que a sociedade vai experimentando.
SORAYA Agora vou eu aqui. Você vai falando e as janelas
vão abrindo assim, a cabeçona vai ficando desse tamanho.
(entre risos, faz gesto representando grandeza em torno
da cabeça) Boa noite, Joyce! Eu sou a Soraya, eu sou de
Teresina, Piauí. Mas eu estou trabalhando esses dias aqui
em Curitiba, por isso que eu estou morrendo de frio. Você
vai ver a diferença entre a roupa e a fala da pessoa. (risos)
Teresina é o oposto daqui.
JOICE Eu estive em Teresina e amei justamente por
causa do calor. Eu não gosto de frio, o frio me detona.
SORAYA Exatamente. Estamos juntas nessa. (risos) Você
falou dessa coisa das redes sociais e uma coisa que me
deixou bem feliz é que eu já te seguia e quando a Cacá falou
que a gente ia entrevistar a Joice, eu não liguei que essa
Joice era você, que era a Joice que eu seguia e que era Joice
onde eu ia toda vez quando estava acontecendo um assunto
que era um assunto que estava precipitado nas falas de
todo mundo, vamos dizer assim nas comunidades, eu ia lá
no teu Instagram e ia ver o que você escrevia. E aí, eu te
estudando para gente começar, estudando no no sentido de
procurar saber, de me interessar além das redes sociais que
era onde eu te conheci, vi que você falou, por exemplo, que
você escreve, você tem escrito e tem pensado em escrever
para pessoas. E isso me interessou muito porque essa coisa
(F)
87
de escrever também foi uma coisa que criou muitas marcas,
muitos traumas principalmente no nosso corpo de mulher,
nessa nossa relação de quem pode escrever e quem pode
dizer as coisas em escrito sobre as coisas do mundo. Por
muito tempo a gente foi afastada desse lugar de escrever
e de produzir essa intelectualidade, essa matéria intelectual
que é a escrita, as teorias. E aí, eu fiquei pensando quando
foi que isso aconteceu para você, esse momento em que
você percebeu, por exemplo, que você tinha que afinar a sua
escrita exatamente interessada nas pessoas, interessada
em alguém, interessada em que as pessoas pudessem se
entender no que você escreve. Eu acho que é nisso que
você fala muito, nessa importância de se reconhecer, se
reconhecer nas questões, se reconhecer nas urgências, nas
emergências, no que nos atravessa.
JOICE Olha, eu escrevo desde pequenininha. Assim,
eu comecei a criar o ato de escrever eu tinha uns
dezoito anos de idade. Eu ganhei uma agendinha, eu
fui a precoce da família, da parte da minha mãe eu sou
a mais velha, a primeira filha, a primeira neta, a primeira
sobrinha. Então, eu sempre fui hiper estimulada porque
eu fiquei um tempo convivendo com muitos adultos.
Eu não acho que isso foi exatamente positivo, mas
teve, sim, seu lado bom. Mas o fato é que eu fui tratada
de maneira diferente do que as outras crianças eram
tratadas, é como se a minha infância tivesse sido um
pouco ofuscada pela demanda dos adultos que eu
conseguia, até um certo ponto, responder. Então, no
Natal, enquanto todo mundo está ali ganhando um
presentinho, um brinquedinho, eu ganhei uma agenda.
Não ganhei uma boneca, não ganhei uma bola, não
ganhei um iô-iô, não ganhei uma peteca, uma pipa,
nada disso; ganhei uma agenda. Um diário, na verdade,
que era todo bonitinho, todo delicadinho, todo colorido,
vinha com uma caneta e uma com chave para trancar.
Aí, isso já me ganhou porque eu sempre tive essa coisa
de me preservar, mesmo criança. Eu cresci num
ambiente lotado de pessoas. A família do meu pai era
enorme, da minha mãe também enorme, sempre com
muita gente. Não que eu não gostasse, eu gostava,
mas eu sempre tive uma necessidade de, algum
momento, ficar sozinha, só comigo e preservar as
minhas coisas. E aí, eu falei mas tia, falei para a tia que
me deu (o diário), infelizmente, já falecida, era uma
pessoa muito querida, adorável, e eu perguntei para
ela: pra quê que serve isso aqui? E ela respondeu: é
para você escrever suas coisinhas, que você já está
ficando mocinha. Na verdade, eu não tinha oito anos
de idade, eu tinha dez anos de idade. Já está ficando
(F)
88
mocinha…Com dez anos de idade, eu já estava ficando
mocinha para minha família. E aí eu comecei a escrever
e tal, então sempre teve escrita muito cedo. Eu fui
estimulada à escrita, à leitura, essas coisas e tal.
Quando eu comecei a escrever, de fato, para pessoas,
não foi uma coisa que aconteceu de repente quando
eu acordei de manhã. Eu eu tive vontade de ser
jornalista em algum momento da minha adolescência,
essa vontade durou muito tempo e todo mundo achava
que eu queria ser igual a Glória Maria, eu achava a
Glória Maria o máximo, só que a Glória Maria
entrevistava pessoas e eu nunca tive, durante bom
período da minha adolescência, eu não tinha essa
desenvoltura de abordar as pessoas, de conversar, eu
era um pouco tímida, um pouco retraída, então não
passou pela minha cabeça fazer o que a Glória Maria
fazia; e,bora eu a achasse o máximo. O que eu queria
escrever porque eu já sabia que o jornalista escrevia e,
para mim, escrever era uma coisa interessante.E aí, o
mundo dá seus revertérios, as suas voltas, eu tive
filhos, voltei para faculdade e eu fui fazer arquitetura
que também é uma coisa que tem uma relação com o
trabalho manual de alguma forma e com o pensamento
também, não é? As pessoas tem uma ideia da
arquitetura como algo que só lida com decoração e tal,
mas não. Se você pega um Niemeyer, por exemplo, se
você pega uma Raquel Rolnik, você tem arquitetos
que são altamente formadores de opinião e
provocadores com o seus trabalhos e em outros
nichos também de atuação. Enfim, quando eu escrevi
pela primeira vez para pessoas numa escala mais
ampla, não era uma coisa planejada assim ah, eu vou
ser agora uma pessoa que vai fazer coluna no jornal,
na revista. Não, foi uma coisa espontânea. Eu entrei
para o coletivo feminista, e aí, eu por ser mãe, era a
única mãe da minha turma, era Dia das Mães e eu já
escrevi alguma coisa sobre as mães e as pessoas
gostaram. E aí, eu passei a escrever cada vez mais.
Nesse processo, você aprende muita coisa também
sobre você e sobre o outro que recebe aquilo que você
está escrevendo. Então, a comunicação escrita ela
tem o seu seus problemas que vem justamente do
fato da gente não está olhando no olho da pessoa,
então a pessoa não sente a energia que a gente está
emanando naquele momento. Então, eu posso
escrever assim: nossa, eu estou com muita raiva.
Vocês estão ouvindo eu falar, então sabem que eu não
estou com raiva, mas quem lê aquilo vai pensar que eu
estou quebrando a casa inteira. Então, esses problemas
dão uns nós na comunicação da gente e aí surgem
(F)
89
confusões homéricas. O Facebook foi um palanque,
um campo de guerra, de feminismo, de luta antiracista,
não é? As redes sociais vieram e a gente veio
com a escrita e a gente pegava pesado e a gente
tomava porrada e era uma coisa de louco e tal. Então,
eu acho que sobre isso foi me levando para esse
caminho porque, não parece, mas eu sou uma pessoa
extremamente pacífica, da conversa, do diálogo, do
‘vamos deixar disso’... Eu nunca fui de brigar na escola
e quando eu me envolvi em confusões grandes na
escola, eu saí na lábia, na conversa, sabe? Então, me
incomodava aquele clima de você escrever um texto e
ganhar cinquenta inimigos, sabe? “Ai, mas você está
falando dos homens, você é uma feminista, você está
confrontando o comportamento masculino”. Sim, mas
a ideia não é que o homem me odeia, quer me matar
com vários tiros de escopeta; a ideia é que ele se
transforme, que ele transforme o comportamento
dele. Então, eu acho que essa percepção foi me
levando a entender que para qualquer pessoa que
pretende se comunicar, a comunicação é uma via de
mão dupla. Se eu falo e vocês não entendem, então eu
preciso rever também o que eu estou falando. Porque
é muito fácil dizer assim: ah você não entendeu o que
eu escrevi. Às vezes, a pessoa pode não ter entendido,
mas, às vezes, eu posso ter escrito também de jeito
entroncado, que gerou margens para outros
entendimentos, não é? Então, eu passei a ter esse
cuidado porque também a gente vai por um caminho
em que você começa a ganhar uma notoriedade,
ganhar uma visibilidade, e a sua responsabilidade
também aumenta. Esses dias, eu estou agora colunista
do Terra, escrevendo textos semanais para o Terra
sobre essas questões de diversidade, de raça, gênero
e tal. E aí eu gosto muito de esporte, acho que o
esporte é muito importante. Tudo que é relacionado
ao corpo, eu acho extremamente importante. E aí, eu
fiquei muito comovida, muito tocada com a morte do
campeão de jiu-jitsu que era um cara que podia ter
seus problemas enquanto homem, porque a estrutura
machista está aí e ninguém sai ileso dela, mas era um
cara que inspirava outras pessoas, que teve uma
trajetória bonita, brilhante dentro do esporte, enfim, e
morreu de uma maneira super besta. Eu escrevi um
texto sobre isso para tentar alertar, tentar conscientizar
do quanto existe um ponto do sistema de opressão
onde também o feitiço se volta contra o feiticeiro.
Então, a gente tem uma estrutura que é racista, que é
machista e tal, e noventa e nove porcento dos danos
dessa estrutura, vai bater diretamente na gente, não
(F)
90
é? Os envolvidos diretamente são a negritude,
indígenas, mulheres, pobres e tal, mas tem aquele um
por cento que embora seja pequenininho em número, é
gigante na prática e esse é um caso desse um por
cento, quer dizer, o cara morreu porque a mentalidade
armamentista é altamente patriarcal, falocêntrica.
Aquele homem que depende de uma arma para se
auto afirmar como um homem, é o resultado de como
as masculinidades são formadas em uma sociedade
patriarcal. Então, eu quis colocar isso no texto, mas
teve pessoas que não entenderam e acharam que
estava acusando o cara. E aí também tem essa
questão do clickbait que a mídia gosta muito, não é? A
mídia hegemônica tem esses cacoetes e tal, e faz uma
chamada lá que algumas pessoas entenderem como
se eu tivesse culpando o campeão, que foi a vítima, o
Leandro Lo, como se eu estivesse o culpando por ele
ter sido assassinado. E eu: não, ‘pera lá, eu estou
falando que ele é vítima. Eu estou falando que os
homens precisam atentar também para o momento
onde eles se tornam vítimas do machismo. Então,
essa é uma questão em que os homens precisam
pensar, porque eles tem que lutar contra o machismo
também. “Não, você está dizendo que ele morreu
porque era machista.” Sabe, assim, o povo não
entendeu. E assim, não estava me incomodando nem
um pouco o fato de estar sendo muito xingada, sabe,
são pessoas que eu não conheço, não fazem parte da
minha vida. Mas eu tenho interesse social naquilo que
eu estou fazendo com a escrita. Então, eu quero que
eles entendam porque o entendimento deles
determina muitos outros entendimentos, porque eles
vão levar essa informação, levar esse raciocínio para
outras pessoas. E aí, eu falei: não, vamos tirar esse
texto do ar e eu vou escrever de um jeito que fique
mais explícito para que as pessoas entendam. Então,
reescrevi, as pessoas entenderam, então é isso, não
tem jeito, de vez em quando você tem que entender
que gerou margens para outras interpretações, então
vamos rebobinar, sou velhinha, sou do tempo da fita
cassete (risos) então, vamos rebobinar para fazer a
coisa acontecer do jeito certo.
TARINA Nossa, Joyce! Você falou tantas coisas incríveis agora.
Passaram tantas coisas pela minha cabeça enquanto você estava
falando. Mas, essa coisa de você, como a Soraya trouxe, ter esse
cuidado de estar escrevendo para alguém e da pessoa entender
aquilo que você tá falando porque, de fato, você trouxe várias
coisas que tem ligação direta com o nosso campo aqui do projeto,
que é corpo, que é relação entre corpo e mente, que é percepção
(F)
91
do mundo porque, de fato, para mim também, quando eu recebo
uma mensagem, toda vez que eu recebo uma mensagem escrita,
eu penso: calma, que tom será que a pessoa usou ao escrever
essa mensagem? Porque a palavra não contempla o aspecto
sinestésico emocional, a não ser que você agregue palavras ali, e
que nem sempre significam o que elas realmente significam. Como
você disse, ao dizer “eu estou com ódio”, não vai experienciar
como se eu gritasse “EU ESTOU COM ÓDIO!”, não é? Eu vou
sentir coisas diferentes, mas a letra não compreende. Com a letra
escrita, a gente ainda consegue fazer uma coisinha, uma dancinha
com ela, mas é mais complicado. E aí, também porque é do nosso
campo, eu lembrei desse cara que é o Alva Noë, porque ele fala
muito da ideia de presença, como tornar algo presente. Então,
em resumo é que eu penso muito a arte como isso, que eu acho
que é também o que você está falando com os seus escritos,
que é sobre você ter algo que você quer tornar presente, não é
qualquer coisa, e que se aquele algo não está presente daquela
forma, vamos tentar encontrar formas de tornar aquilo presente.
Bom, dando uma espiralada naquilo que a gente está conversando,
mas seguindo a mesma lógica, eu estava pensando numa coisa
que a gente conversa um pouco antes também, que é a ideia de
aliança. Então, sabendo que nós somos atravessadas de formas
diferentes pelos contínuos da racialidade, do gênero, das classes
e de tudo isso onde a gente habita de forma diferente. Então,
com certeza a gente experiencia as violências de formas muito
diferentes, embora a violência esteja posta para todo mundo que
vive num país que foi colonizado, a gente vive diariamente com
a continuidade dessa violência de uma maneira que em outros
lugares do mundo, eu acho, é muito diferente, então, para gente
tem um tempero que é muito particular. E eu acho que a pergunta
que eu tenho e te passo, é sobre a possibilidade de aliança sem
fantasiar uma possível homogeneidade que não existe. Então,
existe essa possibilidade de aliança? Quais são as práticas que
tornariam essa aliança possível? Ou eu estou sendo naive, e não é
o momento histórico para isso acontecer?
JOICE Você fala de alianças entre pessoas?
TARINA É, por exemplo, entre um possível feminismo que fosse
racializado, mas espectralmente contínuo. É fantasioso imaginar
esse feminismo? Porque a gente sabe que o feminismo negro
não é o mesmo feminismo que a algum tempo atrás o feminismo
dava de barato, que era, vou usar essa palavra também bastante
complexa, o feminismo Universal. Sendo que a própria ideia de
Universal já teria que ser discutida pelo próprio feminismo, mas
enfim, foi de outro jeito. Então eu falo mesmo numa aliança que é
entender que nós, que embora recebamos a violência de formas
diferentes, todos estamos imersos nessa violência e que essa
violência atravessa - eu volto, só para, talvez, deixar um pouco
mais presente isso sobre o que eu tô falando, na apresentação
(F)
92
do livro lá do Fred Moten, o cara que faz apresentação para ele,
ele fala que enquanto um homem achar que ele é legal porque ele
defende o direito das mulheres; enquanto uma pessoa branca achar
que ela está sendo incrível porque ela está defendendo o direito
das pessoas negras, não vai adiantar porque essa pessoa tem que
entender que ela também está fodida por esse sistema. Ele fala de
um jeito, inclusive, poético porque ele usa a música, ele fala: “essa
pessoa precisa entender que ela também está morrendo, mais
suavemente, mas ela também está morrendo.” Então, um pouco
nesse sentido… Tem sentido?
JOICE Eu acho possível. Acho que todas as alianças
são possíveis. Qualquer tipo de aliança entre pessoas
é possível. Mais do que possível, eu acho que ela é
desejável. Eu acho que ela é imprescindível. Se nós
somos seres sociais, a gente precisa socializar e
socializar tem seus embates, tem seus impasses. Cada
vez mais eu penso que a gente tem que discutir as
questões relacionadas às opressões, a gente tem que
discutir as questões da mulher, de gênero feminino,
a gente tem que discutir as questões relacionadas
à raça, classe social… A gente tem que discutir tudo
isso e entender tecnicamente tudo isso. Mas a gente
não pode, em nenhum momento, desconectar isso do
nosso humano, do nosso lado humano. Eu acho que
isso é uma cesão que vem sendo feita instintivamente,
a gente não percebe muito que a gente está lutando
por causa que, no fundo, no fundo, estão relacionadas,
acima de tudo, a pessoas, sabe? Então, nós temos
as nossas limitações humanas. É difícil para a gente,
é uma ignorância nossa, é uma involução nossa não
aceitar a diferença ou olhar para o diferente de uma
maneira… bom, nós somos condicionados a isso!
É fato. É histórico. A gente foi condicionado a esse
tipo de postura, mas justamente por saber que a
gente foi condicionado, que a gente já deveria estar
se mexendo para mudar essa essa questão dentro
da gente. A gente ainda é muito limitado. Fala-se
em diversidade, fala-se muito em diversidade, mas
ninguém está assimilando, de fato, isso. O outro
ainda causa um estranhamento por isso que a gente
vê uma polarização política, não é? Ah, mas o outro
tem uma opinião… E quando você vai ver, existe um
espelhamento ali dos dois lados, estão tendo a mesma
postura só que em pólos diferentes, não é? Isso
dificulta as alianças de se constituírem. Porque falando
tecnicamente, intelectual e cognitivamente dentro de
todos os nossos estudos feministas, a gente sabe
que é a união que vai fazer com que a gente consiga
retomar ou tomar o poder e se consolidar como ser
(F)
93
social válido, humano e merecedor de tudo e mais um
pouco. Então tecnicamente isso está muito claro na
nossa mentalidade, mas subjetivamente não. Nós não
realizamos, lá dentro de nós, isso. Então, a pessoa
muitas vezes, olha para outra com uma superioridade,
não é? Porque assim, eu como psicanalista, eu que
estou aí nos caminhos da psicanálise e tal, a gente
aprende o seguinte: o que está no seu inconsciente,
ele vai sair de um jeito ou de outro. Você recalca daqui,
mas ele foge e vai por outro canto. Então se está no seu
inconsciente que você é uma pessoa superior, “olha, eu
sou uma feminista branca e aquela negrinha ali, né, eu
vou aturá-la porque ela é mulher como eu”. Se é isso
que está no seu inconsciente, em algum momento isso
vai escapar no seu comportamento, na sua maneira
de lidar com aquela pessoa, nas coisas que você for
fazer… Tudo é sintomático. Então, por exemplo, eu vou
fazer um evento aqui, não tem nenhuma mulher negra
sentada nessa mesa, ou vou organizar um projeto aqui,
mas quem manda é só branca, não é? Não vou chamar
nenhuma mulher negra aqui para estar no corpo de
organização desse projeto, não é? Nesse pequeno
espaço de poder que nós conseguimos construir
enquanto mulheres, as negras continuam de fora.
Agora, o que significa isso? Significa o tal do ato falho
que o Lacan fala e que nada mais é do que aquilo que
está no seu inconsciente saindo sem você perceber.
Não tem negras ali, não é porque você não acha uma
negra competente; não tem ali porque, no fundo, no
fundo, você não quer que ela esteja ali porque você
ainda enxerga, você ainda sente ela como subalterna.
Uma vez escrevi um texto, eu nem lembro para onde,
acho que foi para a Carta Capital, onde eu estava
esboçando essa reflexão do quanto o racismo, assim
como o machismo e todas as outras opressões, elas
são elementos políticos mas acima de tudo elas se
constituem também como emoção, como sentimento.
Então, você tem os sentimentos racializados, você tem
as emoções racializados e isso constrói uma barreira
invisível, é como se fosse uma parede de vidro, e você
tem uma relação com uma pessoa que é diferente
biologicamente de você pela cor da pele, pela genitália
ou pela vivência sexual e enfim, qualquer outra coisa,
então você adora aquela pessoa, você gosta daquela
pessoa, mas a aproximação com aquela pessoa vai
ter um limite porque existe ali o muro de vidro que é
justamente os nossos afetos racializados. Então, são
essas pequenas grandes dinâmicas que precisam ser
resolvidas, dentro ou fora da discussão feminista, antiracista
ou sei lá o quê, mas elas têm que ser abordadas.
(F)
94
Então, quando eu trago a questão da solidão da mulher
negra, que na verdade é o preterimento afetivo da
mulher negra, não é para causar. Eu até brinco com
isso em casa e digo: olha, existe a solidão da mulher
negra, mas também existe a solidão da mulher chata.
Então, às vezes, a gente também tem que admitir
que a gente é chata e que por isso a gente não tem
um companheiro. Mas é um assunto que precisa ser
discutido porque ele está nesse viés da racialização
dos afetos e sem a gente resolver isso, a gente não
anda com as nossas demandas políticas no feminismo,
na luta anti racista, LGBT, de classes e de tudo mais.
Então, as alianças são possíveis e a gente sabe,
cognitivamente, o quanto isso é fundamental para a
gente conseguir avançar na sociedade, mas as nossas
questões humanas, as nossas questões psíquicas,
subjetivas elas precisam ser muito bem avaliadas
e não podem ser negligenciadas porque senão elas
chegam lá dentro das rodinhas dos círculos de luta
social e elas vão impactar de jeito silencioso. “Ah,
porque agora estão com inveja de mim porque agora
sou uma feminista famosinha.” Ok, vamos destrinchar
isso daí, isso não pode ser um tabu, vamos conversar
sobre isso. “Ah, agora eu estou ali no movimento negro
e povo não quer falar comigo porque eu casei com um
branco.” Pera lá, vamos conversar sobre isso também.
Porque fica aquele silêncio, não é? E isso impacta de
uma maneira profunda naquelas lutas e inviabiliza
qualquer tipo de articulação e de aliança. Então, assim
as alianças são possíveis e elas são necessárias, mas
elas têm um viés subjetivo que precisa ser muito bem
resolvido para que elas funcionem.
SORAYA Eu fiquei pensando nisso que você falou e eu
fui atrás da coisa que você fala sobre empoderamento e
li um pouco mais sobre isso e a maneira como você traz,
para mim; foi muito interessante, por exemplo, encontrar
esse empoderamento que você fala; porque você traz o
empoderamento como um trabalho, como uma prática. E foi
a primeira vez que eu vi alguém falando de uma noção, de um
conceito, de uma coisa assim bem grandona, não é? De um
nome bem grandão que é empoderamento. E que se falou
tanto nesses tempos como uma prática, como uma atitude
e de pensar o empoderamento como uma coisa processual.
E eu achei bem interessante isso porque, agora linkando
o que você falou com o que a Tarina perguntou, o quanto
é importante a gente se perguntar sobre esses assuntos
que aparecem e que nos distanciam. Às vezes, por medo
de falar; às vezes, por medo desse lugar de divergência,
porque a gente é treinado para harmonizar o tempo inteiro, a
(F)
95
positivar o tempo inteiro… E aí, eu fiquei pensando em como
é que a gente faz para entender esse empoderamento como
uma prática? No sentido de nos perguntar sobre coisas da
vida mesmo. O que é poder? E o quê que me causa essa
sensação de estar sob uma opressão em alguma situação,
nessa condição que se me apresenta como existência? E
quais as ideias de poder, as políticas de poder, isso tudo que
você fala, assim, eu queria que você falasse um pouco sobre
isso, sobre essa relação de empoderamento e eu até falei
para as meninas o tanto que eu achei bonito e poético essa
relação que você traz de um futuro trabalhável. Eu achei isso
tão maravilhoso! Porque não é sobre um futuro futuro, mas
é sobre um futuro daqui a um segundo, que pode ser daqui a
um segundo, como ele pode ser mais longo, como ele pode
ser mais curto, não é? Então eu queria que você falasse um
pouco sobre isso e também me veio uma uma coisa que
eu acho que eu li de uma fala que você fez também, que
eu acho que tem a ver, que é: quando é que a gente toma
uma posição, diante dessas coisas que a gente precisa
conversar? E que, talvez, a gente precise mesmo, de fato,
se colocar numa posição de conversar. E quando é que a
gente toma uma posição de condenação? E quando é que
a gente toma uma posição de reconhecimento? E quanto
isso é importante nesse momento em que as urgências são
tantas e as lutas precisam caminhar mesmo? Porque elas já
estão caminhando há muito tempo, ainda bem.
JOICE Ainda bem! Quando Jurema Werneck fala
“nossos passos vêm de longe”, é porque vem de longe
mesmo, não é? Seria uma uma grande arrogância da
nossa parte achar que… Bom, se a gente tem um boom
do feminismo, do movimento negro, da luta LGBT
neste momento, isso é uma coisa que está sendo
preparada desde lá atrás. E eu acho que isso serve
muito para a gente entender esse viés do futuro
trabalhável. A gente nesse momento… Os capitalismos
vão vindo aí e eles vão mexendo com a nossa
percepção, brincando com a nossa percepção e essa
coisa do imediatismo, sabe? É para ontem. Tudo é
para ontem. E não tem nada que possa ser para ontem.
Tudo é um processo. Você vai trabalhando lentamente,
a tentativa e o erro vão surgindo e você vai aprimorando,
você erra aqui e aí você conserta ali, e você percebe
que aquilo podia ser um pouco melhor… É isso você vai
trabalhando, não tem fórmula mágica, não tem. Nós
não somos a Jeannie, é um gênio, não é? Que mexe o
narizinho, mexe o rabinho e tudo está resolvido.
Infelizmente, a gente tem que trabalhar. E a nossa
mentalidade é programada para o imediatismo, não é?
Tem que acontecer amanhã. A gente perdeu a conexão
(F)
96
com o passado, no sentido de olhar e falar cara, o quê
que as nossas mais velhas passaram para que a gente
estivesse aqui hoje? Porque falar em ancestralidade,
todo mundo está falando, mas como a gente está
lidando com essa questão da ancestralidade é uma
coisa que me preocupa, porque as pessoas vão
esvaziando as questões de uma forma que tira da
gente esse pequeno poder que é lidar com esses
instrumentais que vão surgindo. A ancestralidade é
um conceito incrível e ele é incrível justamente porque
quando a gente pensa na nossa ancestralidade, a
gente olha para trás e pensa, por exemplo, que eu fui a
primeira mulher da minha família a ter o diploma
universitário. E aí, lá atrás, a minha avó trabalhou na
lavoura de café e ela trabalhou grávida e ela fazia o
próprio parto e ela voltava para o trabalho. Então,
esses avanços, que quando a gente olha para trás e
vê, você fala: poxa, eu sou uma pessoa especial porque
eu vim de pessoas especiais que prepararam todo o
território para que hoje eu tivesse aqui falando com
mulheres, trocando informações, me fortalecendo,
falando com outras pessoas e tudo mais. Então, assim,
o empoderamento, quando eu fui pesquisar mais a
fundo… E outra questão do imediatismo é isso, não é?
As pessoas leem três linhas e opa, já sou especialista.
E aí, todo mundo está empoderado, está todo mundo
muito empoderado. Só que, de repente, a Mariele
aparece assassinada com quatro tiros no meio da
cara, no centro do Rio de Janeiro. Então, que
empoderamento é esse? Não é empoderamento,
porque se fosse, se a gente tivesse entendido… não
que a Mariele não tivesse morrido, não é isso. Mas é
entender o que é para a gente poder usar de maneira
consciente, estratégica para que um dia a gente não
perca mais uma Mariele. A gente perde quantas
Marieles por dia? Perde muitas ainda. Agora, quando a
gente compreende, por exemplo, ah, vamos falar de
empoderamento de um jeito certo, de um jeito sério,
então, tá. Então, vamos lá. De onde surgiu o
empoderamento? Surgiu de Paulo Freire. Paulo Freire!
Nosso Paulo Freire. Ele é o cara que planta ali uma
semente de empoderamento. Muita gente não sabe. O
pessoal está falando, o pessoal da direita falando em
empoderamento, empoderamento, empoderamento…
“Ai, eu empoderei, eu empoderei, eu empoderei” , e
falando mal do Paulo Freire. Como assim, não é? Olha
o nível em que a gente fica de desinformação. O start
do empoderamento é o Paulo Freire. Ele vem com a
teoria da conscientização crítica e ele usa pouco essa
palavra empoderamento, porque ele era um visionário
(F)
97
e sabia que poderia dar problema no futuro porque as
pessoas são preguiçosas, não querem pesquisar,
então, eu acho que ele já previa alguma coisa, então,
ele abandona o uso da palavra em um certo momento,
em um livro só é que ele cita a palavra empoderamento,
eu acho que umas quinze vezes, dezesseis vezes e
tal… Para tentar colocar essa coisa da teoria da
conscientização crítica. Quando você fala em
empoderamento, a primeira coisa que você tem que
pensar é que o poder tal qual nós o conhecemos, ele é
um conceito que já nasceu comprometido com a
opressão. Porque o poder tal qual nós o conhecemos
,ele tem que necessariamente ter alguém acima e
outro abaixo, quem está embaixo para sustentar quem
está em cima e quem está em cima, vai pisar em quem
está embaixo. É a tal da hierarquia. Isso é tão profundo,
não é? O Foucault, ele aprofunda muito nessa reflexão,
porque isso vai se ramificando por todas as instituições
sociais, então, em consequência, na ideia do casamento
heteronormativo, tem lá o marido e a esposa, o marido
é quem manda mais; a esposa, quem manda menos.
Então, já se criou uma hierarquia. Quando você tem
isso em termos de religião, você tem o padre e o padre
fica no altar, acima do restante das pessoas que estão
ali, então, já tem uma ideia de poder que é colocada
ali, não é? E aí, quando você pensa no professor, o
professor está em um lugar, da escola, de destaque.
Quando você pensa na educação com bases afro, nas
culturas africanas, quando você pensa, por exemplo,
NIgéria, Angola, Moçambique… As pessoas sentavam,
vamos fazer uma roda aqui, e tem um Griô no meio
passando as narrativas, as oralidades para as pessoas
ali de uma maneira igualitária e é como se todo mundo
estivesse abraçando ele. As coisas não são
desconectadas de um significado mais amplo. Então,
quando você tem um professor isolado na frente de
uma sala e todo mundo olhando só para ele, ninguém
pode olhar para o lado, só para aquela direção ali, você
está reforçando uma ideia hierárquica de poder. Então,
vamos discutir o poder? Se a gente continuar com
esse poder que é verticalizado, sempre vai ter as
relações de opressão. Agora, quando a gente começa
a pensar em uma forma de vivenciar o poder de forma
linear, todo mundo pode, todo mundo está no mesmo
patamar, aí a coisa começa a ficar diferente. Porque aí
não vai ter opressão. A relação fica igual, fica linear. E
aí você tem um processo para você chegar na
capacidade de praticar isso, de fato, você tem que ter
um fortalecimento, você tem que ter uma
transformação de ideias, de pensamentos, você vai
(F)
98
trabalhar a sua psique, então, você tem o pilar
psicológico no trabalho de empoderamento, tem o
pilar econômico porque ai, eu sou comunista, eu sou
socialista, eu sou anarquista… você pode ser o que
você quiser, mas a sociedade continua sendo
capitalista, infelizmente. Então, você tem que andar
por essa selva capitalista que já está consolidada
desde antes da gente chegar aqui, não é? Nasci e já
era assim o sistema.E você tem que se virar, porque
sem dinheiro…O que é que eu vou fazer sem dinheiro?
Não tem o que fazer. Tem mulheres aí, que não se
livram de situações de violência doméstica porque
não tem como custear sua própria vida, porque
depende do marido, não é? Então, como você vai falar
ah não, o dinheiro não importa? Infelizmente, o dinheiro
importa e a gente tem que achar caminhos para ter
esse dinheiro de uma maneira que contrarie um pouco
a lógica capitalista que é uma lógica que também
entra nessa ideia de hierarquia entre pessoas. E aí,
você tem um fortalecimento, uma reestruturação
cognitiva. Para poder entender tudo isso, eu preciso
me abastecer intelectualmente, então, tem que
consumir livros, palestras e tal, e aí você tem o
fortalecimento político. Angela Davis fala, e a gente
abaixa a orelha para compreender, que a política não
se restringe ao congresso nacional, às casas
legislativas, aos partidos. Não, a política vai muito
além. Respirar é um ato político. Levantar da cama de
manhã e decidir trabalhar ou se matar, é um ato
político. O que você compra no supermercado ou não
compra no supermercado, é um ato político. A gente
faz política o tempo inteiro porque política é o modo
com o qual a gente organiza a nossa vida e como a
sociedade organiza todas as outras vidas que estão ali
convivendo tangencialmente. Então, você tem todos
esses vieses para trabalhar no processo de
empoderamento. E se isso está sendo trabalhado,
você se torna uma pessoa empoderada, não é? O que
significa ser empoderada? Significa ser livre? Não,
significa que você criou uma consciência profunda a
ponto de entender exatamente quem você é,
socialmente falando, qual lugar que você ocupa, quais
as implicações que esse lugar que você ocupa trazem
para sua vida, como que você vai conseguir se livrar
disso, como você vai conseguir ajudar o seu grupo que
está nesse processo de descoberta disso tudo…
Porque você não desconecta o empoderamento
individual do coletivo, não é? Sozinhos nós somos
muito legais, mas juntos nós somos imbatíveis. Então,
é simbiótico. Eu me empodero e aí, eu sou um a mais
(F)
99
dentro da minha comunidade, apto a traçar um
caminho de trabalho, outro trabalho de transformação
social, então, empoderamento tem todo esse rolê que
não é de uma hora para outra, não é de um dia para o
outro. Tem pessoas que vão ter que parar um pouco
mais na parte psicológica, não é? Tem mulheres muito
bem-sucedidas que passaram por relacionamentos
abusivos, então, estão com o seu psicológico
totalmente detonado. Tem pessoas que estão com o
seu psicológico bacana, mas não sabem como podem
atuar politicamente dentro da estrutura para fragilizar,
para tencionar, para virar de pernas pro ar aquilo que a
gente precisa transformar, não é? Então, tem todas
essas questões. Agora, a última coisa que você me
perguntou foi sobre saber qual é o momento em que a
gente vai para o “arrebento” ou quando vai e põe o pé
no breque. Seria, mais ou menos, isso?
SORAYA Não, eu acho que não. Porque o que eu falei
do breque, para mim, vai quase como alisar a pessoa. No
nordeste, a gente chama assim, pelo menos, lá em Teresina
a gente fala assim sobre não alisar ninguém, tipo assim, não
deixar suave para ninguém. Eu acho que não é isso, mas
assim, é porque, às vezes, eu sinto que a gente está sempre
entre essa condenação e o reconhecimento. É quase como
se a gente estivesse atuando nessas duas posições: nos
processos de vigília enquanto a gente está menos nesse
lugar que você fala de entender quais são os aspectos da
vida mesmo. Porque se eu chegar para a minha mãe, que
tem setenta e oito anos, uma mulher de Brasil profundo,
se eu chegar para ela e disser: mamãe, você tem que se
empoderar, é quase como se eu deixasse de reconhecer nela
todo o caminho que essa mulher fez, inclusive para eu ser
quem eu sou como mulher hoje, nordestina, que estuda…
Não é?
JOICE É. Como eu estava falando dessa coisa
da ancestralidade, eu acho que a gente está em
um momento em que tem muitas pessoas novas
desconectadas do passado. A Bell Hooks tem um
conceito que eu gosto muito e que eu acho que cabe
para o momento, que é: por mais que a gente saiba
que uma direita tresloucada nesse país, que fala muita
bobagem e que é muito doida, enfim, extremamente
problemática… Mas quando eles dizem o seguinte:
você está com vitimismo, eu acho que a gente tem
que aproveitar tudo que gente ouve e refletir em cima
daquilo, porque nem toda crítica é dispensável e nem
toda crítica é apenas para te ofender, para te provocar.
E mesmo quando uma coisa é para te ofender, às
(F)
100
vezes, você pega aquilo e vira a chavinha ali, pega
aquilo para você e consegue transformar aquilo,
converter aquilo em um bônus para você mesmo.
Então, quando se fala dessa questão do vitimismo,
eu sei muito bem em que lugar eles querem colocar
a gente, mas a gente se põe nesse lugar também, se
prestar atenção. Porque as nossas avós, as nossas
mães, elas se viravam. Elas não tinham esse monte de
livros, elas não tinham essas referências intelectuais,
elas não tinham esses assuntos sendo discutidos
na televisão, mas isso não significa que elas eram
totalmente submissas e em muitos casos, significa
que as estratégias de luta delas eram outras. E a
gente precisa compreender essas estratégias, não
dispensar, achar que é bobagem. A minha avó tinha
que esperar o meu avô dormir para pegar a carteira
dele, pegar o dinheiro na carteira dele e ela fazia isso
com tanta precisão, tanto jeitinho que no dia seguinte
ele acordava e nem desconfiava que ela tinha pego
dinheiro dali. Poxa, é uma inteligência isso daí, sabe?
É uma inteligência, é uma estratégia inteligente. Ela
não podia com a força, ela ia com a inteligência e
surtia algum efeito. Ela fala, por exemplo, que o meu
avô proibia a minha tia de ir no baile, não queria que
ela saísse, que ela namorasse, nada. Então, o que ela
fazia? Ela dizia ah, tá, concordo com você e esperava
ele virar as costas, arrumava ela, levava ela no baile,
ela dançava, namorava, ficava ali olhando ela lá, depois
voltava e meu avô nunca nem desconfiou. Então,
ela criou uma filha com outra mentalidade porque
ela driblou os desmandos dele que, estruturalmente
falando, ela não tinha como confrontar. Porque era
uma coisa natural da época, o homem mandar na
mulher. Hoje em dia esse joguinho de cintura falta na
gente. Eu, por exemplo, muitas vezes fui no rebento
e perdi a oportunidade de virar o jogo ao meu favor.
E não só nessas questões relacionadas às relações
de gênero, de raça e tal, em outras questões da vida
também. Essa malandragem, essa coisa do capoeira,
não é? Às vezes, as pessoas não sabiam se capoeira
era luta ou era dança. Acabei de vir da audição de
trabalho super bonito que uma turma está fazendo em
homenagem ao mestre Moa que foi assassinado em
2001 por um bolsonarista. E o cara era um capoeirista,
era um mestre, não é? Um mestre e tal… E a capoeira
é uma coisa extremamente educativa para gente,
porque a capoeira é uma luta, mas ela também é uma
dança. Então, ela nos confunde. Você não sabe quando
está dançando ou quando tá lutando. E isso tem
faltado para gente, não é? A gente tem que retomar
(F)
101
isso que os nossos ancestrais deixaram para a gente.
Olha, o negócio é o seguinte: às vezes, você tem que
dançar e às vezes, você tem que lutar. E assim você
vai confundir o olhar do opressor. Então, de vez em
quando, você vira o jogo a seu favor na malandragem
e isso é uma coisa que a gente tem deixado de lado,
não tem aproveitado por pura arrogância intelectual.
Ah, não, mas é porque eu me formei na academia, eu
sou um acadêmico… Aí, você taca mil conceitos ali
e no fim das contas você cai em um relacionamento
abusivo e não consegue se livrar dele, você é
esmagado por aquele relacionamento abusivo mesmo
com todas as teorias que você estudou, mesmo com
tudo que você conseguiu construir, independência e
tudo mais, e você é uma mulher oprimida dentro da
sua própria casa, não é? Você não consegue nem ter
espaço para respirar, para tentar articular uma fuga
daquela situação, você precisa de alguém para vir e te
resgatar. Mas as nossas avós tinham caminhos, elas
tinham estratégias que funcionaram muito bem para
elas terem uma vida um pouco melhor. Então, assim,
nós temos muitos recursos hoje em dia que são muito
importantes, que nos servem muito, mas vale muito a
pena a gente olhar para o passado e tentar compreender
como que a subversão… como as mulheres mesmo
não sabendo o que era feminismo, como é que elas
conseguiam subverter alguns sinais de opressão na
vida delas, como é que elas conseguiam ali se virar
de alguma forma. Porque eu aprendi a ser feminista
com as minhas avós, e elas nem sabiam. Feminismo?
O quê que é isso? Eu não sei do que se trata. Nenhuma
delas estudou nem nada, mas as lições que elas me
deram sobre como se lida com as masculinidades,
eu carrego para a vida inteira. E assim, eu não gosto
muito de falar isso, mas eu fui casada e eu não passei
por metade do que eu vejo muitas mulheres por aí
passando, porque as minhas avós me ensinaram que
eu tinha que me impor desde o começo. Você não
depende de um homem para ser feliz e inteira, então
você se impõe. Se ele não aceitar, você cai fora e vai
viver a sua vida sozinha porque pode ser que seja mais
feliz para você. Então, eu acho que está faltando a
gente olhar um pouco para as nossas avós, enfim.
TARINA Nossas avós foram maravilhas, não é?
JOICE Nossa, muito maravilhosas!
TARINA Eu fiquei pensando enquanto você estava falando,
inclusive nessa coisa avós porque eu acho que isso é… Enfim,
(F)
102
tudo é complexo hoje, não é? Como você falou, tudo o que a gente
diz pode ser facilmente cooptado, e sequestrado para dizer algo
que não foi nem o que a gente intentou naquele momento, não
é? Mesmo quando a gente pensa em feminismo, pensar hoje na
palavra mulher, dizer mulher, dependendo do contexto de coisas
que você agrega a essa palavra, pode gerar já um monte de coisas
em cima dela também. Mas de alguma forma, historicamente
falando, essa coisa do cuidado que sempre foi relegado a nós ou
pelo menos nessa história de sociedade que a gente conheceu, eu
fiquei pensando nessa coisa, como você falou, do empoderamento
que tem uma diferença muito grande, e eu estava lendo alguma
coisa, tempos atrás também, do poder sobre em relação ao poder
para. E acho que isso que você conta das suas avós, me leva muito
para a ideia do poder para, não é? Então, é ter poder para fazer
uma coisa e, nesse sentido, é a potência. Não é poder sobre o
outro. Então, a gente não está interessada no poder sobre, a gente
está interessada no poder para, porque é o que vai promover a
nossa vida. Fiquei muito viajando também em como você traz
sempre, nessa nossa conversa aqui você trouxe várias vezes, algo
que é da escala da vida, que é da escala do subjetivo, mas que está
continuamente aí, não dá para separar. O fato é que o que eu como,
o que eu leio, com quem eu transo, sim, transformam a forma pela
qual eu vejo o mundo, não é? Os meus amigos desde a infância e
etc, etc, etc… Então, eu acho que essa escala do corpo, às vezes,
fica mesmo deslocada quando a gente entra em discussões
macropolíticas e, no entanto, elas, talvez, são as que mais fazem
as cagadas quando a gente acha que a gente está mandando super
bem nas discussões macropolíticas e o nosso ato falho famoso
aparece para nos dar uma rasteira, não é? Enfim, dito isso, a gente
tem trazido em algumas das entrevistas, a gente trouxe para todo
mundo em algumas, nas últimas três entrevistas a gente trouxe
a palavra urgência. Então, eu jogaria para você, primeiro, se essa
palavra faz sentido para você hoje, essa palavra urgência é uma
palavra que está no seu repertório de como você pensa o mundo
hoje e se ela está, o quê que é urgente?
JOICE Olha, eu acho que a palavra urgência faz sentido
porque a gente tem tanto problema, tanto problema,
não é? Muita coisa acontecendo ao mesmo tempo,
muito sofrimento no mundo, muita coisa, assim, sabe?
No meu trabalho, no meu trabalho principal que é
como assessora parlamentar, aliás, ao longo da minha
vida eu não tive trabalho onde eu ficasse só lidando
com as coisas legais, assim, adoraria poder lidar só
com arte, com dança, com música essas coisas são
tão boas e que são trabalhosas também, claro, não
é? Estão aí vocês que não me deixam mentir, são
trabalhosíssimas, mas é um trabalho um pouco mais
feliz, digamos assim. Ao longo da minha vida, eu
sempre trabalhei com a miséria, com a pobreza, com
(F)
103
o sofrimento na minha cara, assim, cara a cara.Tanto
como arquiteta, como urbanista. Eu trabalhei como
urbanista, fazendo regularização fundiária, remoção
de famílias, regularização de favelas, que é a parte
pesada do trabalho de um arquiteto urbanista e tal.
Trabalhei no hospital psiquiátrico lidando com pessoas
ali excluídas, abandonadas pela sociedade, tentando
se inserir, enfrentando todas aquelas questões que a
gente conhece muito bem, então, eu sempre tive de
cara com o sofrimento, não consigo me livrar e sair
disso. E, hoje em dia, como assessora parlamentar,
a mesma coisa, eu vivo esse ambiente porque eu
trabalho com um vereador que o carro-chefe de
atuação da vida política dele é Direitos Humanos,
inclusive é por isso que eu estou lá. Então ,você vê
todo sofrimento do povo, a fome, a miséria, o frio, uma
série de coisas e tal. Então, falar que urgência é uma
palavra que não faz sentido, seria leviano da minha
parte, não é? A urgência nesse contexto dos Direitos
Humanos, das liberdades individuais, da preservação
da vida, do acesso à infraestrutura básica de vida é
urgente garantir. É urgente que uma pessoa tenha
onde morar, é urgente que uma pessoa tenha o que
comer, é urgente que uma mulher não morra, dentro
da sua própria casa, assassinada por um cara que
jurou amá-la e respeitá-la até que a morte os separe,
sabe? É urgente que meninas não sejam estupradas,
molestadas, é urgente que a população negra não seja
assassinada sistematicamente, os meninos pretos da
periferia e as meninas negras, tem muitas urgências no
mundo, faz muito sentido. Agora, por outro lado, tem
uma turma que encara as urgências por outro lado, um
outro viés que, às vezes, chega a ser até estridente
para mim, sabe? Ai, eu tô com burnout e eu tenho
que desacelerar porque o urgência do mundo e não
sei o quê… Não que as pessoas mentais uma pessoa
não devam ser levadas à sério, claro que tem, não é?
Mas eu acho que o que eu quero dizer é o seguinte,
a gente precisa caminhar rumo a uma encruzilhada
onde a palavra urgência esteja ali bem no meio e essa
palavra urgência signifique a mesma coisa para todo
mundo, entendeu? Então, não é urgente para você que
tem uma casa e que na pandemia, pôde fazer o seu
lockdown, e você tem a sua academia onde você cuida
do seu corpo e a grande reclamação da sua vida é o
excesso de trabalho; e a reclamação do outro aqui na
periferia da zona norte, é a falta de trabalho, sabe?
Então, eu acho que a gente tem que caminhar para se
juntar numa encruzilhada onde a urgência signifique a
mesma coisa para todo mundo. Até porque eu penso
(F)
que esses problemas de ordem mental que estão só
se avolumando, são consequências do nosso descaso
com essas urgências que compõem o limite entre vida
e morte para algumas pessoas. Enquanto a gente
estiver pulando corpos, não adianta falar muito em
saúde mental. Que saúde mental a gente pode ter em
uma sociedade onde você pula corpos? Você sabe
que na periferia estão matando a rodo. Jacarezinho…
Você vê lá um vídeo, a favela sendo bombardeada,
as milícias e todas essas coisas assim, então, sabe?
Eu acho que urgência é uma palavra que faz total
sentido em alguns contextos e em outros, ela deve
ser reconectada com a realidade da vida para que ela
seja potencializada, e aí ela vai surtir efeito pra todo
mundo, não é? Aquela coisa, enquanto não está bom
para todos, não vai estar bom para ninguém. Essa é
uma consciência que é urgente de se criar.
TARINA Joice, então. Bom, para finalizar o nosso dia de hoje, não
sei se você ainda tem algo que você queria falar, mas eu queria te
agradecer muito! Não é, Soraya?
SORAYA Sim!
104
TARINA Foi incrível para a gente! Olha, o que acontece é que a
gente poderia ficar aqui muitas horas, não é? Você sabe. Mas,
enfim…
SORAYA Eu disse para as meninas: meu deus, essa mulher
tem muito assunto para a gente conversar! Porque a mulher é
arquiteta, é urbanista, é curadora, é escritora, é psicanalista,
é coisadona… (risos)
TARINA A gente tem que pensar em, para o futuro, fazer por
capítulos, não é? (risos)
SORAYA Eu queria muito perguntar uma coisa. Eu queria
muito perguntar uma coisa! Quando nasce, e eu digo nascer
como algo que brota a todo momento, porque eu acredito
que o que a gente faz é fazer corpo o tempo inteiro, fazer
esse para viver nesse mundo agora. Agora é aqui, é daqui
a um minuto, daqui a dois segundos, agora… E eu queria
perguntar para você, nesse sentido de nascer que eu falo,
quando nasce uma mulher arquiteta, urbanista, curadora,
psicanalista e interessada em pessoas, o que isso altera
no mundo? O que isso constrói de corpo no mundo? O quê
que isso constrói no mundo como o corpo? Eu fiquei com
vontade de perguntar isso para você.
(F)
105
JOICE Nossa, que pergunta complexa! (risos) Que
pergunta linda, não é? Olha, eu acho que isso constrói
no mundo uma opção de caminho de transformação.
Eu sou uma pessoa muito orgulhosa com a vida que
eu levo hoje em dia, com a possibilidade… Eu sou
espiritualista, meu caminho de exercício da fé é a
Umbanda, mas eu tenho uma paixão aí pelo melhor
de todas as religiões e então eu acredito que nada
da vida da gente é por acaso, se você atravessa o
caminho de alguém, você tem, de alguma forma, que
deixar algo bom plantado ali, independente da pessoa
sentir que você plantou ou não. Então, eu sou muito
grata pela oportunidade de poder plantar coisas boas
no caminho das pessoas, ainda que muitas vezes soe
como… as pessoas, às vezes, falam assim: nossa,
eu tomei um tapa na cara agora com isso que você
escreveu, mas eu sei que é uma maneira carinhosa
de dizer que de alguma forma mexeu com elas e é
como se eu devolvesse para o mundo aquilo que, um
dia, também fizeram por mim. Porque todas essas
referências que eu carrego e que me inspiram, a
Lélia, Sueli Carneiro, Milton Santos, as minhas avós,
a atriz de Hollywood, a vocalista da banda de póspunk
que eu sou apaixonada, todas essas mulheres e
homens, muitos homens, Paulo Freire… Todas essas
pessoas, elas me libertaram, assim, sabe? Eu não
sou uma pessoa presa ou senso comum e não me
obrigo a seguir uma linha de pensamento igualzinha.
Então, quando uma pessoa se conecta comigo, é esse
incentivo que eu vou dar para essa pessoa. Pensa fora
da caixa, não adota para sua vida aquilo que o senso
comum está tentando enfiar goela abaixo. Então,
eu acho que é isso que dá para construir no mundo,
é um caminho de descoberta de autolibertação em
algum nível, acho que é isso. Que vocês também
fazem, porque trabalhar com corpo, trabalhar com
a arte, isso é altamente transformador e as minhas
grandes referências de pensamento, elas vem muito
da arte, elas vem muito da emoção que um quadro me
desperta, que uma dança me desperta, não é? O corpo
é altamente comunicativo, não é? O dançarino, o
esportista, o capoeirista, enfim, são todos intelectuais
orgânicos também porque eles estão usando o corpo
como instrumento de transformação, de provocação,
não é? Então, é isso. Estamos aqui no mesmo barco
que é esse barco de provocar transformações no
caminho das pessoas que de alguma forma cruzam
com o nosso, não é? Acho que é por aí.
TARINA Fala, Soraya.
(F)
SORAYA Eu estou aqui pensando…
TARINA Bom, o nosso (caminho) transformou. Por uma hora, por
uma hora e alguma coisa… (sic) São os encontros mesmo, não
é? E como cada encontro, não dá para antecipar a potência dele.
Então, acho que assim, nós vamos com muito desejo de continuar,
mas nós vamos finalizando o nosso encontro de hoje. (risos)
Eu queria me desculpar. No começo, gente, eu esqueci de fazer
a minha descrição. Então, queria falar para vocês que estão me
ouvindo, que eu sou uma mulher não branca, eu sou racializada,
mas também não sou uma mulher negra. Estou com meu cabelo
preso, meu cabelo é preto meio ondulado. Tenho um rosto que eu
poderia associar com algo indígena. Estou sentada na frente de
uma parede branca, em uma cadeira e estou usando um casaquinho
porque o lugar onde eu estou, está frio.
JOICE Eu também? Tenho que fazer, não é?
TARINA Ah, sim, seria legal. E a Soraya também.
106
JOICE Bom, eu sou uma mulher negra, eu tenho cabelo
crespo, meio Chanel, na altura da orelha. Estou com
uma camisa preta, uns colares dourados. Estou com
batom vermelho e unhas vermelhas. Estou sentada
numa poltrona amarela, atrás de mim tem uma parede
roxa e uma outra parede azul, dá para ver uma cortina
branca e tem dois quadros também do meu lado,
quadros pequenos com traços em preto e verde.
SORAYA E eu sou a Soraya, sou uma mulher de pele clara,
tenho os cabelos cacheados, encaracolados, ondulados
na altura do queixo. Meu rosto é arredondado, minhas
bochechas são salientes porque eu sou uma mulher roliça.
Estou de óculos, estou vestido preto e atrás de mim tem
uma parede branca e do lado, uma grade que é uma porta e
uma janela. Muito obrigada, Joice! Obrigada; gente querida
desse projeto! Cacá, Aline, todas as meninas desse projeto
Cabeça Coração. Olha aí, a bichona!
CLARICE Obrigada, gente!
SORAYA Eu estou que nem pinto no lixo! (risos)
CLARICE (risos) Obrigada, Soraya, Tarina, Joice! É sempre muito
inspirador ouvir vocês três conversando e dessa vez não foi diferente.
Queria agradecer em nome de todas as participantes e dos participantes
do projeto. Obrigada demais, Joice, por ter tirado esse tempinho para
ficar com a gente!
(F)
JOICE Eu que agradeço! Desejo que o projeto seja um
sucesso absoluto. Vocês merecem!
CLARICE Valeu!
107
108
TARINA
(G)
QUELHO E SORAYA
PORTELA
Entrevista
realizada
ENTREVISTAM
em
Setembro
de 2022
CLARICE
LIMA
109 ALINE Boa noite! Hoje a gente encerra a
série de entrevistas Cabeça Coração com as
maravilhosas Soraya Portela e Tarina Quelho,
que hoje entrevistam a coreógrafa Clarice Lima,
diretora da Futura. Esse projeto foi contemplado
pela 31 a edição do Programa Municipal de
Fomento à Dança para a cidade de São Paulo,
Secretaria Municipal de Cultura. Uma boa
entrevista. Arrasem!
TARINA Bom, gente, boa noite! Bom, primeiro queria dizer que
é incrível poder estar entrevistando a Cacá, Clarice Lima hoje
aqui. E agradecer a você, Clarice, pelo convite para a gente estar
participando desse projeto como entrevistadoras. Acho que para
mim e para a Soraya foi um desafio e também foi um grande
aprendizado essas quatro entrevistas. Então, finalizar com você,
eu acho incrível e pertinente. Bom, gente, eu sou Tarina. Eu sou
uma mulher racializada, não sou branca. Tenho um cabelo preto
bem volumoso, passa um pouco do meu ombro. Estou vestindo
uma camisa xadrez e estou em um fundo branco, simples.
SORAYA Olá! Boa noite, Cacá! Boa noite a todas! Eu sou
a Soraya Portela. Eu sou uma mulher de pele clara, tenho
os cabelos encaracolados, estou com um negócio aqui no
cabelo amarrado, em cima da cabeça, bem na altura da
moleira. Tenho um rosto roliço, estou usando óculos, estou
(G)
usando uma blusa listrada e atrás de mim tem uma cortina
e uma janela e uma porta azul. Eu estou muito feliz de
entrevistar a Cacá. Eu sou muito fã dela, gente!
CLARICE Oi, eu sou a Clarice e muita gente me chama de Cacá. Eu
sou uma mulher branca. Eu tenho os cabelos castanhos claros, pouco
maiores que a altura do ombro, vários cabelos brancos juntos. Tenho
os olhos claros, estou vestindo uma blusa azul-marinho, meu fundo é
branco e estou usando fones de ouvido brancos. Muito legal estar aqui
com vocês!
110
TARINA Gente, então, vamos começar como a gente tem falado,
como a gente tem começado nas outras entrevistas, a gente vai
realmente meio que numa conversa… Gente, apareceu aqui no
quadro, para vocês saberem, o meu filho que é uma criança surda e
está aqui tentando conectar o aparelho dele de video game. Bom,
enfim, só para vocês saberem que ele apareceu no quadro. A gente
estava conversando hoje mais cedo, eu e a Soraya, como que, para
a gente, essa entrevista com a Clarice tem um tempero especial
porque a gente tem intimidade com a Clarice. Acho que nós duas
te conhecemos mais do que conhecemos as outras entrevistadas
que participaram do programa e nós já trabalhamos com você,
então, a gente conhece um pouco o seu processo de criação, mas
não totalmente e eu poderia dizer que a gente tem uma intimidade
com você, então, para a gente tem um outro sabor as perguntas
e as respostas também. Eu queria começar te perguntando… Eu
acho que você está chegando agora numa idade onde faz sentido
eu começar a falar de trajetória. Talvez há dez anos, seria estranho
eu te fazer uma pergunta sobre a sua carreira ou sua trajetória,
mas neste momento, você já produziu um monte de coisas e
está produzindo a tempo suficiente, até para a gente entender ou
imaginar ou tentar captar um tema ou algo que é recorrente. Então,
a minha pergunta para você é se você reconhece sistemas. Então,
quando você olha para a sua produção desde que você começou
como criadora, autora das suas obras, tem algum tema, algum
assunto que te persegue ou que você persegue? Você reconhece
isso ou não é exatamente assim que você pensa esse contínuo das
suas criações?
CLARICE Eu acho que tem algumas coisas que seguem. Que eu sigo e
que me seguem. Eu acho que gente é uma coisa que me interessa muito.
Trabalhar com gente, pensar propostas artísticas que juntem pessoas,
eu acho que isso é uma coisa que eu gosto muito. E não é em todos os
trabalhos que isso acontece, mas dentro disso é pensar em como uma
proposta artística pode aproximar pessoas tão diferentes. Isso é uma
coisa que eu gosto muito de imaginar. E eu acho que uma outra coisa é
um desejo de experimentar o espaço, o espaço cênico, o espaço onde os
corpos se movimentam, onde as coisas se movimentam. Eu diria que essas
duas coisas: o desejo de aproximar pessoas e também uma curiosidade
por organização de espaço enquanto coreografia e de formas de organizar
(G)
isso; são coisas que vendem bem. E pode ser estático como é no caso
das Árvores e que agora também tem o Bosque que é estático ou pode
ser loucamente, que tem a ver também com todo meu treinamento de
passing through e tudo isso, mas o que eu acho divertido dentro de uma
criação artística é a possibilidade de aprender coisas diferentes, então
assim, como é que processos artísticos me ajudam a aprofundar estudos?
É que não é necessariamente linear, não é sempre assim, às vezes, é um
buraco aqui, outro buraco ali. Ele vai fazendo buracos como se fosse um
grande papel que vai aprofundando em alguns lugares a partir desses dois
pontos que, para mim, são muito importantes.
TARINA Acho que você tocou em um assunto que foi uma coisa
que eu e a Soraya conversamos um pouco antes. Dessa coisa
das parcerias. Porque acho que tanto eu como a Soraya, na nossa
conversa, a gente reconheceu um pouco isso que você está
dizendo sobre esse seu interesse por gente e em como isso vai se
desdobrando em parcerias. então, seguindo nessa nossa conversa,
você poderia falar, talvez, um pouco para a gente de como você
entende parceria, o que é parceria, o que é colaboração, como que
essas gentes entram nos seus trabalhos e, particularmente, eu ia
te pedir para você falar um pouco da parceria com a Aline que é
alguém que está, talvez, mais continuamente com você. Não sei se a
palavra é parceira, não sei como vocês se nomeiam nessa história…
111
CLARICE É curioso porque são formas diferentes de estar juntas. Eu
me interesso por todas elas. Tem formas que são mais breves, tem
formas que são mais pontuais e têm formas mais longas, assim, de
gente que vai ficando mais tempo. Tem, às vezes, pessoas que é melhor
ser amigo, então, tem várias formas de você estar juntos dentro de
uma vida em que a criação é muito próxima de todo o resto que você
faz - que é um pouco como eu vivo; a criação, a dança, para mim, são
muito importantes na minha vida, é uma grande parte da minha vida.
Então, eu sempre procuro… ah, como é que eu junto essas pessoas, mas
sem ser muito preguiçosa? Sem chamar sempre quem está muito ali
na mão. Como é que a gente pode pensar em quem não está aqui na
sala? E pode também convidar outras pessoas para estar aproximando
outras formas de perceber o mundo para dentro disso? Eu acho que no
Cabeça Coração, trazer essas pessoas para estar juntas é um presente
para mim porque eu aprendo com todas elas e todos eles, então, é uma
forma de estar aprendendo e de criar um ambiente onde todo mundo se
sinta à vontade para estar se colocando. E com a Aline, realmente foi
uma coisa muito especial que aconteceu desde antes, mas eu acho que
no Intérpretes em Crise, que foi um espetáculo em dueto que a gente
fez, a gente estabeleceu uma relação muito legal de parceria mesmo,
de suporte, de construir uma coisa juntas para além da nomenclatura,
entendeu? Ela está junto comigo para construir o lugar dela fazendo isso.
Então, se isso é coordenadora do projeto da Futura ou se é assistente
de coreografia dos Bichos Soltos ou se é bailarina de sei lá o quê… mas
é uma ideia de construção. E eu, como diretora e coreógrafa, construo
formas de estar dirigindo e coreografando. E o que eu acho bonito na
(G)
Aline é que ela como bailarina, ela constrói formas de estar dançando
e essas formas não são dadas, não é? Então tem a ver com construção
de cuidado, construção de contexto, construção de continuidade. E ela,
assim… A Aline é ouro.
112
SORAYA Ai, que bonitinha! (risos) É bonito mesmo ver
essas parceiras longas, não é? Aproveitando isso, Cacá, que
você fala de parceria e do interesse em aproximar gente,
do lugar da criação como esse lugar de aprender, inclusive,
aquilo que já sabe, então, como você mexe naquilo que
você já sabe também e também aprende outras coisas…
Eu fiquei pensando assim, existe uma diferença em dançar
o seu trabalho e dançar o trabalho de outra pessoa? Quais
são os pontos dentro dessa maneira de estar? Eu acho que
quando você trouxe a Aline nessa relação, eu achei bonito
porque você falou que a Aline acha o lugar dela de trabalho
no trabalho de outra pessoa, no teu trabalho, nessa junção
que vocês fazem. Então, qual é… Eu acho que não é nem
estabelecer diferenças, mas é assim, quais são os pontos
de trabalhar, dançar a dança de outra pessoa e dançar a
tua dança, ou seja, um projeto em você está mais pensando
ele, criando ele, é seu trabalho e o trabalho de uma outra
bicha. Como eu te vejo, por exemplo, ter parcerias muito
recorrentes, não é? Com o Christian, com a própria Tarina…
Em trabalhos, assim, com pessoas que eu te vejo dançando
mais, estabelecendo essas parcerias…
CLARICE Eu acho que quando eu danço os meus trabalhos, tem várias
outras preocupações que entram, não é? Porque tem a prática de ser uma
bailarina, tem a prática de pensar a coreografia, pensar a direção, pensar
a iluminação, pensar a produção, pensar todas essas coisas. E eu acho
um luxo, na verdade, hoje em dia pensar em dançar com outra pessoa
porque eu tenho que pensar menos coisas, o que, às vezes, inclusive,
não é tão fácil porque você entra tanto em um jeito que, às vezes, pode
até soar um pouco estranho. Porque você está tão acostumado a pensar
no dançar junto com o dirigir e o coreografar, só que tem outra pessoa
pensando isso, então, claro que sempre você colabora com as pessoas
com as quais trabalha em outras questões também que não só o do
dançar, mas eu acho que existe uma inteligência no dançar que, para
mim, agora essa inteligência está em todos os lugares e, às vezes, focar
só em um lugar é um pouco mais difícil porque eu estou menos treinada
para isso, ultimamente. Eu estou mais treinada para o tudão assim.
TARINA E, Clarice, eu estava lembrando agora com a Soraya,
conversando, eu acho que há uns dez anos você me falou, uma vez,
que você tinha uma frustração, não sei se a palavra é essa, mas que
você gostaria muito que no Brasil tivesse uma companhia de dança
para que você pudesse ser bailarina dessa companhia - não sei se
você vai se lembrar disso… Eu fiquei pensando, refletindo, sobre
como você acabou criando uma estrutura que te possibilitou, não
(G)
113
dançar numa companhia, mas criar esses espaços de convivência,
de comunidade onde é possível alguma criação emergir. Então,
voltando ainda no tema em que eu estava, que eu estou nesse tema,
acho que por várias razões da trajetória, o que transformou na
sua percepção de dança desde que você decidiu profissionalizar…
Primeiro assim, você decidiu? Você profissionalmente pensou: ah,
eu vou ser bailarina, eu sou bailarina. Porque tem gente que toma
essa decisão conscientemente e tem gente que, não sei, eu acho
que tem várias formas de adentrar nesse mundo. Então, desde que
você se viu bailarina, transformou a sua percepção de dança? E aí,
eu vou ser ousada. O que você acha que hoje é a dança?
CLARICE Tá. A minha formação toda foi de bailarina, inclusive, eu acho
que isso diz muito também sobre como eu crio. Eu crio a partir de quem
dança, eu não crio a partir de quem dirige. E, parte dessa minha formação
eu fiz fora do Brasil, e lá fora tinha muitas companhias, tinha muitas
audições. E eu lembro que quando eu voltei para cá e estava em São Paulo,
porque, sim, em São Paulo tem muitas companhias super importantes
que estão atuando há muito tempo, muitas companhias novas que estão
nascendo, mas que naquele momento não tinha uma percepção, talvez,
do lugar da audição que é esse lugar de uma companhia estabilizada
e que você não precisasse ser bailarina do balé, mas que tivesse um
lugar de companhias contemporâneas, mais experimentais, porém que
tivesse uma certa profissionalização mais estável. Então, quando eu
cheguei em São Paulo, estava no início do fomento, mas o fomento já
existia, então começou a ter já grupos em São Paulo. porém, teve um
momento que, para mim, foi muito importante nisso tudo, porque eu
trabalhava bastante tempo com o Jorge Garcia que é um coreógrafo
que eu gosto muito, trabalhei muitos anos sendo assistente dele ou
dançando com ele, e foi quando a Telma e o Christian me chamaram
para o projeto da Desaba, e nesse momento os dois ganharam, e eu
falei sim para os dois. E falei gente, eu estou dando sim para os dois. E o
Jorge ganhou o fomento, e o Christian e a Telma ganharam também. E
nesse momento, eu conversei com o Jorge e falei Jorge, eu estou afim
de dar um pouco mais de atenção para as minhas criações. Porque o com
o Jorge era um esquema de companhia todos os dias, e nos dias em que
ele não estava, eu tinha que estar, porque eu era assistente dele, eu que
tinha que organizar a galera, então, sobrava menos tempo. Então, para
mim, ali foi um marco de tipo: não, beleza, daqui eu estou afim de focar
mais em criar as minhas coisas do que estar trabalhando no esquema
de companhia de outro coreógrafo. Então, eu acho que tem essas duas
coisas respondendo a primeira parte da pergunta. A segunda parte, eu
acho que dança pode ser muitas coisas, agora o que eu gosto… Eu tenho
gostado muito de ver corpos em movimento, isso é uma coisa que eu
tenho gostado muito, isso é uma coisa que eu tenho perseguido muito
porque eu acho que danç, hoje em dia, pode ser muita coisa.
TARINA Só para fazer um adendo… Eu estou um pouco com a
Joice, na nossa última entrevista, na cabeça porque, às vezes,
você fala uma coisa… Só para re-contextualizar o que eu falei…
(G)
Porque eu acho que quando você, com mais de dez anos atrás,
talvez vinte anos atrás, falou disso, eu acho que também não era
tanto com relação a… como se diz? Não considerar o que existia,
mas muito mais a precariedade que era, não é? Porque o que a
gente chamava de companhia no Brasil naquela época e apesar
dos fomentos a gente sabe como ainda é precário você manter um
trabalho contínuo, então, eu acho que tinha muito mais a ver com a
percepção dessa precariedade da continuidade do que de existirem
profissionais com quem você poderia trabalhar como o bailarino
ou não. Não é? Acho que era mais essa nesse sentido que, como
você bem falou, o fomento transformou, mas o fomento é uma
ação, não é? E então, eu acho que ainda não existe uma política
que pensa todos os aspectos em que a produção ou a continuidade
da produção em dança precisam acontecer, não é? Mas enfim…
Adorei…
CLARICE Com certeza. É só a gente ver o orçamento que é destinado
ao fomento e o orçamento que é destinado para a companhia paulista
de dança, não é? Que é para uma companhia ganhar… Eu não sei se é
mais ou quase o mesmo valor que vinte companhias recebem, então, é
realmente muito complexo.
114
TARINA Ah e adorei você falar que você está gostando de corpos
em movimento. Eu também. Então, vamos perseguir isso. (risos)
SORAYA E eu queria aproveitar essa conversa aí das
companhias, das coisas que se pensava numa determinada
época, para agora Cacá, e eu lembro que você foi uma das
primeiras pessoas que foi convidada, no núcleo, para dar
um… naquela época era chique dizer workshop, não é? Eu
me lembro. Menina, e eu procurava saber o que diabo era
esse negócio de workshop, então era tipo uma coisa assim,
há uns quinze anos, eu acho, há uns dezesseis anos, mais
ou menos, dezessete, por aí… E você foi uma das pessoas
que o Marcelo convidou para ir lá, porque você estava nesse
trânsito Amsterdã-Brasil, não é? E você era uma jovem
bailarina ali, naquela época, não é? Começando e tal… Eu
lembro que tinha um negócio que você estava fazendo
que era meio vídeo, meio performance, do negócio das
aeromoças, da comunicação lá dos aviões… E eu me lembro
disso e também você foi a minha primeira professora de
improvisação. (risos) Olha, sou fã desde esse dia, desde
este tempo. E, para mim, tem uma coisa que a gente tava
conversando, eu e Tarina que eu acho que quando a gente
vai entrevistar alguém, essa pessoa traz assunto. E eu acho
que um dos assuntos que você traz e que eu lembro é uma
artista que migrou, migrou do seu país para estudar em
outro e migrou da sua região, que é o nosso querido Ceará,
para São Paulo, não é? Para viver essa coisa artística, essa
coisa da dança, não é? Então, para você, como é isso? Como
(G)
115
foi isso? Como é que é essa coisa e quais são as… os pontos,
assim, que te pegam nisso, que te mantém viva aí nessa
nessa tua história? De uma artista que precisou migrar por
muitas razões, mas eu acho que isso é um ponto importante,
assim, você acha que ainda precisa? Porque naquela época
as bichas saíam dos seus lugares para ir para outro rolê.
Você acha que isso continua ainda? Ainda precisa? Ainda
acontece muito? Como é? E quais são as discussões e
pontos que isso traz no fazer artístico? Nas implicações
disso, das distribuições, da fruição da coisa toda…
CLARICE Nossa Soraya, você falando agora eu me dei conta que eu
fui embora do Ceará há vinte anos, ou seja, eu moro há mais tempo
fora do Ceará do que no Ceará. Eu morei dezenove anos no Ceará, com
dezenove anos eu fui para fora estudar dança e bom, e sigo fora do
Ceará, não é? Nossa, realmente o tempo vai passando. E sim, quando
eu fui, não tinha uma faculdade de dança, não tinha um curso de dança
no Ceará. Tanto é que… Mas tinha os do Brasil, não é? Mas eu fui com
uma amiga que era a Rosana e ela falava ah gente se é para sair do Ceará,
vamos conhecer outros cantos, vamos aprender outras línguas, vamos
ver aí outras coisas. E hoje em dia morar em São Paulo, eu acho que me
dá uma outra perspectiva, sabe? Muda um pouco a forma que eu vejo
as coisas. Eu não acho que São Paulo é o Brasil, eu não acho que a zona
oeste e o centro de São Paulo são São Paulo, não é? Então, eu acho que
abre um pouco mais de perspectiva, assim, do que você é, onde você
está, o que você faz, o tamanho das coisas, a intensidade das coisas, não
é? Em lugares diferentes, as mesmas coisas têm outras intensidades. E
eu acho que eu também, eu não sei se foi o período que eu fui, mas tem
um grande ganho de quando eu fui viajar fora é que eu sempre conheço
alguém que conhece alguém. É muito curioso isso. Às vezes, tem uma
pessoa que eu não sei quem é, mas de repente conhece uma pessoa
com quem eu estudei quinze anos atrás em Amsterdã. Então, eu nem
falava dessa palavra network e eu acho que network também não é nada
imediato, assim, é uma coisa que, realmente, depois de um tempo você
começa a entender. Mas eu acho curioso assim… Outra vez, eu encontrei
com uma diretora de festival, aí: - ah, por acaso você conhece a fulana?
- Ah, fulana?! Fulana é maravilhosa! Conheço demais. E aí, de repente se
encontra em algum lugar em comum que ajuda a construir diálogos, não
é? Que podem dar em alguma coisa e podem não dar em nada, eu acho
que tudo isso também são as loterias da vida. Mas, eu acho que para
mim hoje o que faz muito sentido é isso, é sempre olhar as coisas de
perspectivas diferentes, assim, porque é isso e por mais que a gente fale
do fomento, aqui de São Paulo, quando você olha as políticas para dança
em outros estados e você vê o quão mais precário é, também ajuda
a gente a tanto pensar lá o que é que pode melhorar quanto também,
assim, gente, tá, mas não bora reclamar tanto assim, não. É ruim, mas
olha o tanto que a gente consegue fazer a partir disso, não é? Eu acho que
é isso. Muda um pouco a perspectiva porque te dá mais referência de
diferentes contextos e isso, para mim, é muito rico. Se faz sentido hoje,
(G)
eu não sei, tem que perguntar para essa juventude, não é? Para a galera
aí do Enem porque eu não sei mesmo.
116
TARINA É que eu acho que você focou um pouco na sua própria
resposta, não é? Porque quer a gente queira ou não, as escolas são
catracas, não é? Em um certo sentido, as escolas que você faz,
os professores que você tem, te colocam no mundo de outro jeito
e a gente ainda vive uma situação onde é, claro, se você estudou
em determinadas escolas, especialmente se você esteve fora do
Brasil, essas catracas se abrem de outras formas. Então, acho que
ainda não mudou, como você colocou, isso não é uma coisa tão
mensurável e nem tão imediata. Porque daqui a dez anos você
encontra alguém que também fez aquilo, e que as outras pessoas
que não tiveram lá, não fizeram aquilo e não tiveram aquela
experiência e não tem esse tipo de contato. Acho que também os
próprios assuntos, não é? As coisas que se discutem nos lugares…
Embora hoje tudo esteja muito globalizado, enfim. Mas voltando
naquilo que você falou, você falou ali atrás um pouco do passing
through, não é? Então eu estava pensando aqui… Porque eu fui ler
como você se apresenta e você fala diretora, coreógrafa, bailarina
e professora. Então, pensando no seu trabalho como professora,
eu pensei em te perguntar um pouco sobre o passing thru e o
flying low e o David (Zambrano)... Algo que você transformou
ali do David é o seu chão de movimento, de onde você puxa suas
criações ou não é? Tem uma divisão? Para mim, eu sempre tenho
essa curiosidade. Quando a gente é professora de uma coisa,
como que aquela coisa nos alimenta ou não… a gente cria duas
personalidades meio paralelas que uma dá a última coisa e outra
cria de um jeito que não necessariamente conversa com aquela
coisa, não é?
CLARICE Eu acho que o passing through que é uma das técnicas que o
David Zambrano desenvolveu, que é uma espécie de improvisação em
tempo real, é uma coisa que eu sempre persigo mesmo quando, às vezes,
eu vou contra. Mas ele me ajudou muito a olhar para o espaço e pensar
diferentes tipos de organização espacial porque é muito simples e é uma
técnica que eu gosto muito porque você pode fazer com criança, você
pode fazer com idoso, você pode fazer com gente que não faz dança…
Que para mim, é diferente do flying low, então, eu gosto muito porque
eu sinto que me dá muitas ferramentas que, às vezes, estão na criação
mas, às vezes, também são formas só de aquecer a percepção do corpo
para fazer o que você quiser, entendeu? Eu acho que traz percepções do
corpo, de atenção, de prontidão - essa palavra é um pouco complexa,
mas que me ajuda a estar atenta ao que eu preciso fazer. Acho flying
low é mais uma técnica específica que eu gosto, mas que eu também
acabo nunca aprofundando porque é uma técnica tão específica para
profissionais que acaba que os profissionais não tem dinheiro para pagar
as aulas de dança, então, acaba que eu não dou muito essa muito essa
aula e tudo bem também, mas eu acho que o passing through é uma
(G)
coisa que me atravessa, que segue me atravessando, não é? Passando
através. (risos)
SORAYA E Cacá, tem uma coisa que eu gosto muito no seu
trabalho são os nomes das coisas. Eu acho que outro ponto
que você traz no seu trabalho, para mim, é uma certa ironia,
um tipo de ironia, um certo humor que eu gosto. Eu acho que
não é nem ironia, é humor mesmo porque eu acho que ironia
é outra coisa. E eu gosto disso porque não é esconder o que
é ruim ou o que dói, o que a gente tem medo, essa coisa toda
que a gente anda mexendo como assunto… Mas eu acho que
é mais sobre como você trata esses assuntos de uma maneira
que seja prazerosa também. Então, pensando em uma das
peças que é Dançar Dói, que vem em cima dessa coisa de
chorar e tudo… Eu fiquei com vontade de te perguntar pelo
quê ainda, como artista da dança, como mulher artista da
dança, a gente ainda precisa chorar? Por qual motivo a gente
ainda precisa chorar para continuar a dançar?
117
CLARICE É, eu acho que tem duas coisas aí, não é? Acho que a questão
do humor é cearense, não é? Eu acho que tem a ver com o ser cearense e
de não se levar muito a sério, entendeu? E, para mim, não se levar muito
a sério tem a ver até com uma fala do Gilberto Gil, que eu acho incrível,
onde ele fala: “Gente, arte não é especial. Arte não é especial, arte é igual
alimentação, é igual a educação, é igual a saúde, é igual a todas essas
coisas que são básicas. Então, assim, eu gosto de pensar nessa ideia
que eu não sou especial e acho que essa coisa do humor, da ironia traz
um pouco de quebrar esse lugar do artista que tem que ser sério, cheio
de referências. Legal, acho demais. É muito bom estudar, mas, assim,
também é muito bom se divertir, não é? E como é que a gente pode ter
essas duas coisas? Bom, e quando eu criei o Intérpretes em Crise que
tem essa coisa do dançar dói e que é super forte, vinha muito de um
desejo muito gigante de querer dançar mesmo, e do fazer do bailarino, do
fazer da dança e passeia muito por tudo isso, não é? E aí, pensar o que
é que nos faz chorar hoje enquanto artista da dança, para mim, é pensar
o que é que faz chorar hoje a mulher no mundo, entendeu? É andar na
rua e se sentir medo, é saber que os boys na dança vão ser sempre hiper
valorizados, vão ser melhor pagos, vão ter mais destaque, são todas as
coisas que estão intrínsecas à nossa sociedade, é saber que, talvez, o
Bolsonaro pode vir a ganhar essa eleição. E aí, se isso ocorre, a gente
vai ficar péssimos. Vai ser pior ainda, pior do que está para a cultura e
para grana. Como é que vai ter? Vou conseguir pagar as contas? Não
vou conseguir pagar as contas? Então, eu sempre acho engraçado essa
pergunta como é não sei o que para você que é da dança? Gente, é igual
a você normal, não é, não?! Se a gente vive numa sociedade patriarcal,
racista, transfóbica, você vai ter isso. Não é assim, como se na dança
você não tivesse mais nada disso. Não, tem em todo canto, inclusive, na
dança, não é? Então, para mim, isso é muito forte apesar que também
tem um lugar de acolhimento dentro do fazer artístico, muitas vezes
de acolhimento do diferente, do outro, da outra, mas também não é um
(G)
ambiente blindado em que a gente está isento de todas essas mazelas
que a gente vive quando sai de casa.
118
TARINA Clarice, pensando um pouco nisso, você falou de chorar
por tudo que a gente pode chorar por ser mulher hoje no mundo,
então pensando um pouco nisso também, eu vou te fazer uma
pergunta que, talvez, eu fizesse para mim também, fizesse para
a Soraya fizesse para todas nós que é: quando a gente começou
a se fazer essas perguntas? Porque eu acho que, embora sejamos
diferentes, eu sou um pouco mais velha mas a gente tem gerações
próximas, não é? Acho que em algum momento isso entrou na
nossa criação e no nosso campo, e entrou e eu vejo no Futura
uma continuidade do que já vinha vindo lá das suas criações, mas
quando que isso apareceu? Isso é um assunto no Futura? Isso é
uma coisa que fica ali mastigando e que está no campo aberto
dessa criação? Eu estou pensando nisso porque, também, da
última vez em que a gente conversou rapidamente, você e Aline
estavam estudando a Donna Haraway e aí eu fiquei pensando e até
estava falando com a Soraya que eu acho que a Donna Haraway
tem uma, bom, eu vou dizer que ela tem uma pegada otimista. Eu
acho que ela tem uma coisa otimista porque ela fala “não vamos
nos deprimir. Está bom, estamos no luto, vamos sofrer, mas vamos
sofrer em companhia, vamos sofrer transformando”. Então, acho
que a minha pergunta para você é: quando que o feminismo , se eu
posso usar essa palavra, apareceu para você enquanto palavra?
Ele apareceu para você enquanto palavra e isso detonou algo
desse projeto ou não? Essa palavra faz parte do seu vocabulário?
CLARICE Faz, é uma palavra que faz bastante parte e eu consigo
localizar, mais ou menos, porque foi, mais ou menos, em torno do período
em que eu fiquei grávida da Nina. Que da Nina, eu fiquei grávida em
2016/2017, foi em torno daquele período, mas eu me aproximei dela
muito intuitivamente, não foi uma coisa vamos estudar o feminismo, eu
acho que teve a ver também com o boom das marchas do 8M, não é? 8
de Março que foi uma marcha que estava sendo bem forte em São Paulo,
pelo menos, e que era um lugar de ir com minhas amigas, não é? Então
eu lembro que teve ensaio, que a gente cancelou o ensaio e foi para a
marcha. Então, começou um pouco ali, tocando nisso intuitivamente.
Mas isso, por ter vivido uma experiência onde uma pessoa… Um homem,
dentro de um contexto, trouxe muitas questões para mim. Bom, muitas
questões que me fizeram me sentir menor, me fizeram sentir menos, me
fizeram sentir muito mal comigo mesma. E eu fiquei me perguntando o
porquê de uma pessoa dentro de um contexto estar me fazendo sentir
assim. E como um movimento de proteção mesmo, que hoje em dia eu
entendo como um movimento de proteção, eu falei vou trabalhar com
mulher agora. Vou trabalhar com mulher, vou trabalhar com mulher! Eu
quero trabalhar com mulher. Quero entender como é isso, entender
como é esse negócio, porque quando eu ia trabalhar só com as mulheres,
eu me sentia muito bem, eu não sentia nada disso. E infelizmente, graças
a Deus existe terapia para isso, por esse modo de operar de uma pessoa,
(G)
119
eu comecei a criar uma certa resistência a trabalhar com outros homens
porque eu quase projetava esse lugar de trauma que rolou, entendeu?
Então, eu falei não, eu estou precisando trabalhar com mulher, em um
lugar em que eu me sentia mais segura. E aí, a partir disso, foram vindo
conversas, foram vindo textos, foram vindo outras referências e que foi
me fortalecendo muito, me fortalecendo muito mesmo. Foi um processo
bastante longo, mas que tem a ver com o Cabeça Coração também, que
tem a ver com um projeto que a gente fez durante a pandemia que é o
Você sabe que eu não confio em você, não sabe? Que tem a ver com
aproximar outras pessoas. Então, assim, mais do que estudar o feminismo,
me interessava chamar a Ísis para vir falar e ouvir o que é que ela falava
ou chamar a Amanda para vir falar e ouvir o que ela falava… E aí, depois,
em outro momento, chamar o i gonçalves para vir falar e ver como é que
isso atravessava ele. Eu até digo assim nossa, gente, eu acho que foi
um momento de cura porque nesse último laboratório Cabeça Coração,
a gente resolveu, a gente entendeu que nesse momento eu já me senti,
assim, mais fortalecida por essa rede que eu construí, por tudo que eu
consegui estudar nesse período e falei agora eu estou pronta, bora abrir
para todo mundo. Para todas, todes e todos que agora eu me sinto mais
fortalecida nesse lugar de como foi importante para mim o feminismo
de me dar ferramentas para entender uma série de mecanismos que
uma pessoa operou, mas que a sociedade, como um todo, opera o tempo
inteiro e não me abalar. E entender que as coisas são assim, entender
onde é que eu posso me proteger e seguir em frente. Porque eu gosto de
gente, eu gosto dos boys, eu gosto das manas, eu gosto de todo mundo.
Mas rolou isso, assim, e foi bem nesse período, sabe Tarina? É engraçado
porque, às vezes, eu fico pensando, por exemplo, no projeto DR que é
uma grande referência na minha vida, que era um projeto da Tarina com
mais três bailarinas. Mais três, não era? Vocês eram quatro? Bom, para
mim, era um projeto super feminista, mas essa palavra não estava ali
rondando, não era?
TARINA É sim, mas eu acho que eu faço essa pergunta para mim também
porque eu reconheço isso tudo e não era uma palavra que estava presente
para a gente, não é? E éramos eu, a Laura Bruno, a Mara Guerreiro e a
Sheila Arêas. E a gente ficou uns anos fazendo e, de fato, quando eu
olho para trás eu falo gente, mas essa palavra! E aí, também eu já me
desculpo aqui por ter usado essa palavra no singular, porque na verdade
são vários feminismos, múltiplos. Eu acho que alguns aos quais a gente,
talvez, vou dizer por mim, tive acesso antes, muito antes, talvez, não
fizessem sentido e acho que a partir do momento que a gente - que eu,
pelo menos, fui entrando em contato com outros feminismos foi, talvez,
fazendo mais sentido também para mim. Mas eu acho super importante
tudo que você falou porque como a gente reincide, não é?! É muito forte.
A gente estava falando, eu com a Soraya, antes também que a Michele
Alexander que eu lembrei, que é uma mulher que fala sobre a luta prisional
nos Estados Unidos, sobre o sistema carcerário americano e tal… Ela
tem uma frase que é maravilhosa, ela fala assim: “o racismo evolui e
se modifica na mesma medida em que ele é contestado” e é a mesma
coisa com todos os ismos, é a mesma coisa com o machismo. Então,
(G)
120
acho que a gente patina, a gente tava conversando, em reconhecer o que
que é um movimento de transformação e o que que é um movimento
de reforma do antigo, não é? Porque, às vezes, parece que a casca está
muito transformada, mas as relações não estão e a gente continua
caindo nas mesmas coisas. Isso que você fala, eu super reconheço,
a gente tem medo. Parece que o tempo inteiro a gente vai falar uma
coisa que é impertinente, que está errada ou que não é coerente. E eu
lembrei também, só pra finalizar isso - que, na verdade, não vai finalizar
agora, não é? (risos) Porque não é uma coisa que dá pra finalizar, mas a
Bonnie, minha professora lá do BMC (Body-Mind Centering), a Bonnie
Bainbridge Cohen que é uma senhorinha, professora de movimento, foi
bailarina e tal… Eu estava em um workshop dela uma vez e uma menina
bem jovem, assim, bom, os workshops são bem grandes, então têm entre
cem e cento e cinquenta pessoas e tem, assim, os professores mais
importantes de BMC do mundo e fica aquela tensão e tem a Bonnie… E
essa menina quis fazer uma pergunta e ela começou falando assim: é…
desculpa… E aí, antes dela fazer a pergunta, a Bonnie falou: “eu posso
te pedir uma coisa? Não pede desculpa antes de falar. Porque quando
uma mulher pede desculpa antes de falar, faz uma coisa com a minha
cabeça.” Eu pensei: gente, que louco! Porque é isso, não é? A gente está
constantemente pedindo desculpa por uma coisa que a gente nem sabe
o que é, não é? Então, eu achei super forte isso que você falou porque,
no fundo, são esses incômodos ou esses machucados como o também
as alegrias e as potências que a gente encontra, que vão movendo a
nossa criação e intuitivamente, como você falou. Eu adoro também
a palavra intuitivo porque eu acho que a intuição, ela é o pensamento
enquanto corpo, enquanto presença no momento presente daquilo que
é antes ou concomitante, não sei a elaboração, mas que realmente está
na presença da experiência, não é? E que não necessariamente, porque
acho que também esse tema é um tema nosso e essa nossa própria
conversa tem a ver com isso que é a experiência não necessariamente
se traduz como uma elaboração intelectual, coerente, tal, tal, tal e isso
acaba se tornando também uma prisão para a gente e para todas as
outras mulheres que, às vezes, não manipulam bem os conceitos e aí,
também se sentem imediatamente excluídas, então estão duplamente
excluídas, não é? Ela já não participa do mundo e tem medo de participar
do próprio mundo porque, de novo, a mesma violência se reproduz. E por
isso que as nossas conversas aqui estão sendo tão legais porque a gente
pode falar o que a gente pensa, não é, Soraya?
SORAYA É. E aí, Cacá, pegando isso tudo que a Tarina fala,
tem várias perguntas que eu queria fazer, mas eu escolhi essa.
Eu gosto muito de ouvir, ler quando uma bicha se apresenta
como coreógrafa porque parece que a coreografia virou uma…
parece que é quase como se fosse diferente de ser criadora
ou fosse diferente de ser dramaturgista e é, de fato, ocupa
áreas diferentes da criação. Mas eu acho bonito quando uma
pessoa diz: eu sou coreógrafa, eu sou artista coreógrafa. E eu
queria que você falasse um pouco desse lugar da coreografia,
de como você lida com esse conceito, com esse modo de
(G)
121
atuar na dança, esse modo de criar, quais são os contornos em
que uma coreógrafa atua, em que ela está ali e se posiciona.
E aí, eu queria te perguntar qual é a coreografia que você diz,
assim: eu tenho que fazer essa coreografia, no meu tempo
de coreógrafa eu vou fazer isso. Tem essa coreografia que
tu diz assim: ai, eu gostaria de coreografar isso, eu tenho um
desejo, um impulso de fazer isso. Ou se você já teve também,
porque às vezes a gente já teve e está lidando muito mais
com a coisa toda, mas, enfim, era isso.
CLARICE Eu acho que coreografia é uma palavra muito importante.
Inclusive, eu tenho, ultimamente, quando eu consigo assistir alguma peça
de dança - o que é muito difícil, eu tenho olhado nas fichas técnicas. Aí
tem diretor, dramaturgo, elenco - não tem mais nem dançarino porque
não se sabe se é dançarino ou é bailarino, tem essa questão. Então,
elenco, intérprete… E aí, eu falei: gente, bote a palavra coreografia. Ou
então laboratório. Ah, eu vou dar um laboratório. É laboratório de quê?
De física, de química..? Vamos voltar a usar a palavra dança que eu acho
que é o nosso grande ouro, entendeu? Assim, porque eu acho que está
tudo mais que certo em aproximar a dança de outras coisas e pegar
essa palavra coreografia e esgarçar, colocar ela em outros cantos. Mas
eu acho que é o nosso ouro, assim, é pensar tudo isso junto, não é? E
eu tenho gostado muito, achei até curioso, porque a próxima Bienal de
Artes aqui de São Paulo, está usando o termo coreografia. Então, bora
ver o que é que vai trazer disso tudo, não é? E de peça, é engraçado,
eu tenho uma peça que eu amo, amo, amo muito, muito, muito, muito
mesmo. Que é a Dance da Lucinda Childs, eu amo demais! Toda vida
que eu não sei o que fazer, eu olho ela. Porém, é engraçado porque, por
exemplo, o Supernada é completamente inspirado no Menu de Heróis
da Weyla Carvalho, de Teresina. Eu vi o Menu de Heróis e falei: eu quero
fazer uma coisa para criança bem louca igual ao que ela faz. Bom, então,
quando eu fiz Árvores, eu lembro muito precisamente porque eu tinha
acabado de assistir Um Conto Idiota do Jorge Garcia que tem a cena da
morte lá que eles fazem e que uma pessoa fica de cabeça para baixo.
Eu pensei: meu Deus, a pessoa está de cabeça para baixo, que loucura!
Aquilo me inspirou profundamente e eu botei um negócio que virou outra
coisa, assim, tudo vira outra coisa, mas é isso, tem os inalcançáveis e
tem os do momento, por exemplo, eu estou no momento que eu estou
assistindo muitas coisas do Bruno Beltrão e eu acho que ele foi incrível,
tudo que ele produziu… E eu falei: gente, eu já vi essa peça. E assim,
como estudo, entendeu? Então, se eu lhe disser, hoje, duas pessoas que
estão assim bem fortes da dança, são elas o Bruno Beltrão e a Lucinda
Childs porque eu estou tentando pensar grande. (risos)
TARINA Dupla maravilhosa! Gostei das ref (risos).
SORAYA Olha, eu acho que você traz uma coisa tão simples
e eu acho que, assim, é como a gente deixa as coisas
encontrarem a gente, não é? Porque, às vezes, eu acho que
a gente fica nessa fissura de ir atrás dos assuntos e assistir
(G)
122
um filme, às vezes, te dá um negócio de que aquilo tem a
ver com o que você está vivendo, com aquilo que você está
precisando falar de uma maneira, comunicar de uma maneira
que não é na fala, que não é escrevendo uma teoria, uma
tese, um artigo científico, é dançando aquilo, não é? Então,
às vezes, eu sinto que a gente vai fechando essas aberturas,
não é? Esse te pegar, assim. O que é que te pega? Qual é a
coisa que te espanta? Como diz o Daniel Munduruku, e que
a gente prende levando um espanto. Então, é bonito e eu
gosto muito porque coreografia é uma coisa que eu acho
tão maravilhosa, é uma palavra e um conceito tão massa
de estudar e tem pouca coisa para estudar sobre isso. Mas
enfim, eu queria te perguntar também uma coisa, Cacá, que
tipo de artista você é? Assim, se você fosse pensar… Porque
dizem que tem muitas categorias de pessoas, têm muitas
categorias de mulher,,tem muitos tipos de várias coisas,
ainda bem. Porque todo dia, todo dia eu me pergunto que
tipo de artista eu sou. Que tipo de artista eu sou? E eu fico
com vontade de saber. Que tipo de artista você é? Se você
fosse, assim, pensar hoje, não precisa ser para vida toda,
não. É só hoje.
CLARICE Eu acho que eu tenho dois tipos. Tem o multitask que são
muitas tarefas ao mesmo tempo e o bipolar-show. O bipolar-show
reina em mim também. Eu sou maravilhosa, eu sou uma bosta. Eu sou
maravilhosa, eu sou uma bosta. Eu sou maravilhosa, eu sou uma bosta.
E fazendo mil coisas. Pensando tudo isso e fazendo mil coisas, dando
conta de mil coisas. Então, eu acho que tem o multitask e o bipolarshow.
(risos)
TARINA Clarice, achei incrível você falar - porque acho que eu
nunca tinha ouvido você tão assim nitidamente, organizadamente
colocando como que as referências vão entrando nos trabalhos,
não é? Falando de coisas que você viu e tal. Porque para mim você
é muito, falando dos temas que cada pessoa traz consigo, para
mim você é muito isso, você é tudo acontecendo ao mesmo tempo
e agora. Então, você é capaz de ter o seu Instagram organizado e
o seu site, você dirige aqui e tem dois filhos e tem não sei o quê…
E acho que quando você estava descrevendo, eu fui entendendo
um pouco a sua mente também, como que a sua mente vê uma
coisa e viaja. Dizem que tem tipos de cérebros diferentes e que
tem tipos de cérebro que tem dificuldade de concentração e muita
facilidade de associação, não é? E que esses cérebros, em teoria
- ai, tudo bem, tudo isso é ridículo, mas enfim, que são modos de
organizar o pensamento do que eles chamam de “criativo”. Mas aí,
pensando um pouco naquilo que você citou e que você curte do
Gil quando ele fala que não tem nada de especial em ser artista,
e talvez não tenha mesmo. Talvez, o que tenha de especial é que,
hoje, não é todo mundo que pode exercer essa não-especialidade,
porque seria incrível se todo mundo pudesse, não é? Como você
(G)
123
falou, é básico a gente criar, a gente improvisar, a gente estar no
mundo. Então, eu queria voltar um pouco naquilo que a Soraya
estava falando sobre o tipo de artista que você é na sua criação de
agora. Hoje você falou em Bruno Beltrão e Lucinda Childs, não é?
Tudo bem, mas o que é o ponto de, não sei se são essas palavras
que você usa também, não sei se a palavra é incômodo, não sei
se a palavra é curiosidade, não sei se a palavra é certeza, mas o
que é que você está movendo junto com as suas parceiras, nesse
momento, dessa criação da qual essa entrevista faz parte? Se é
que tem algo possível de se elaborar disso…
CLARICE Quando a gente estava entrevistando a Joice, ela falou alguma
coisa que tinha a ver com o esvaziamento do conceito de ancestralidade,
mas também trazendo a importância de se olhar para trás e aí, eu fiquei
pensando… Fiquei tentando pensar, por exemplo, eu trabalhei durante
muitos anos com o Christian, o Christian Duarte, e aprendi muitas coisas
com ele, mas parece que a coisa mais importante que eu aprendi com
ele foi que eu podia ser livre, eu podia fazer o que eu quisesse, eu podia
experimentar o que eu quisesse. Quer experimentar? Pega o negócio,
bota no chão, experimenta. Então, eu acho que nesse momento eu estou
querendo… Hoje, eu finalmente voltei a conseguir experimentar as coisas.
Essa palavra ser livre é muito complexa, mas tem a ver também com
acreditar em forças estranhas - e talvez, o nome da próxima peça seja
esse, forças estranhas, mas de ser mais intuitiva, de deixar que as coisas
aconteçam mais assim, entendeu? Que te pegue meio assim e você vai,
você não sabe direito o que é, mas você vai e você experimenta, você
faz. Você dá um pouco mais de tempo do que o imediatismo do agora,
não é? Porque a gente sempre quer ver logo o resultado e dá tempo de
não saber. Então, eu estou muito interessada em continuar sem saber
um pouco as coisas, mas continuo muito com essa vontade de mover.
Eu acho que essa palavra que a Chris Greiner trouxe também no começo
dessas entrevistas, que era anarquia, anarquia é uma palavra em que eu
tenho pensado muito, sabe? Então, tem essas essas coisas e que, para
mim, foi um grande presente o começo desse projeto em que a gente teve
quatro meses para experimentar coisas juntas, aprender umas com as
outras, trazer uma coisa ah, eu estava estudando isso, ah mas isso tem a
ver com aquilo, e não necessariamente alguém tem que ser especialista
para a gente poder conversar sobre as coisas. Então, se colocar nesse
lugar de aprender com essas outras forças. Eu estou nessa fé, dessa
coisa um pouco mais… Ah, sei lá, sabe? Assim, desse negócio que está
preso aí há um tempo, sabe? Dois anos, pandemia, não sei o quê… E aí,
eu estou afim de soltar. (risos)
TARINA Você me deu várias imagens. Eu visualizei várias coisas,
vamos ver depois… (risos) A gente ainda tem um tempinho, se a
gente quiser fazer mais uma pergunta, Soraya. Eu tenho ainda uma
última, não sei você.
SORAYA Joga na roda, joga na tela. (risos)
(G)
124
TARINA A gente ficou conversando também, tentando entender
os temas que apareceram nas outras entrevistas e acho que sobre
alguns você falou também… Eu acho que eu queria fazer duas
perguntas em uma. Uma delas é porque eu falei que quando a Chris
veio, foi a primeira entrevista, então para linkar com essa aqui, em
algum momento além de que ela trouxe a ideia da anarquia como
algo, eu não sei se fundamental ou imprescindível, mas como algo,
pelo menos, coerente com o momento em que a gente vive. E ela
colocou alguma coisa… Ela colocou assim: a gente - e eu entendi
“a gente” como a gente artistas, a gente intelectual, não muda
mesmo as coisas, não é? Mas eu entendi isso de uma maneira
positiva. Eu entendi isso como a gente não muda as coisas de uma
determinada forma, a gente muda de outra. A gente muda de um
modo que não é o modo pelo qual o professor muda quando ensina
o aluno, a gente muda de um modo que não é o modo pelo qual
o político, quando propõe uma lei, muda uma coisa - partindo do
princípio de que muda alguma coisa que propôs (risos). Então, nas
duas perguntas e uma pergunta tem a ver com essa da Chris que é:
o que você acha que se transforma através da arte? Transforma?
E se transforma, transforma em quê? Transforma em você ou
transforma em quem vê? Algo se transforma ou isso é um acaso?
E aí, acho que a outra pergunta, também fechando um ciclo, eu
acho que a gente foi movendo essa pergunta no decorrer dessas
cinco entrevistas e a gente foi chegando no modo de fazer essa
pergunta, e acho que tem muito a ver com isso que a gente tem
falado, de ir construindo, acho que, nesse sentido, eu posso dizer,
Soraya vou dizer em seu nome também porque a gente conversou
muito sobre essas coisas, não é? E essa ideia da construção
também, para a gente, foi presente nesse processo.
Mas a pergunta, essa que a gente foi transformando, é: a ideia de
urgência é pertinente? Essa palavra faz sentido ou não faz sentido?
E se ela faz sentido, o que é urgente? Eu acho que você respondeu
um pouco disso em várias das suas respostas, mas mesmo assim,
eu vou pedir para te ouvir falar ainda mais uma vez.
CLARICE O que transforma, não é? Essa foi a primeira pergunta. Bom,
eu acho que todo mundo que possa passar por alguma atividade, alguma
ação artística, é uma coisa incrível. Eu acho que é uma coisa que a
gente não necessariamente valoriza dentro do sistema que a gente tem,
entendeu? Assim, numa escala de zero a dez, qual a sua satisfação em
ter participado dessa atividade? Entendeu? Não é por aí o sistema de
valorização de uma experiência artística. Então, não sei se é a palavra
seria o transforma, mas eu acredito que move coisas aí, move coisas,
inclusive, dentro do mesmo lugar, mas dá uma movida até você se
reorganizar de novo, não é? Então, eu acho que é realmente incrível, mas
é difícil falar sobre isso porque eu não acho que é da ordem do racional,
não acho que é da ordem da palavra, eu não acho que eles se enquadram
no sistema de valor que a gente tem, entendeu? Porque é isso: você
comeu essa comida, de zero a dez, quanto ela vale? Eu nem sei se dá
(G)
para dizer isso também com comida… Mas, assim, tem um negócio aqui
não cabe muito nesse nosso sistema e que é o lugar de outras formas de
perceber e de dar valor a algo que acontece com você, não é? É isso. E,
para mim, o que é urgente agora é eleger o Lula. Para mim, isso é o que
é urgente nesse momento, é eleger Lula Presidente para que o país não
continue com o bolsonarismo. Para mim, isso é a coisa mais importante
nesse momento.
TARINA (risos) A melhor resposta que a gente teve nesse ciclo de
perguntas ou, no mínimo, a mais factível. É, realmente, achamos
uma coisa urgente e, finalmente, depois de alguns meses e muitas
entrevistas, concordamos em uma urgência necessária. (risos)
CLARICE Eu acho.
125
SORAYA Eu acho massa! (risos) Eu achei digno, muito bom.
Eu estou super satisfeita. Tem uma palavra, Cacá, que eu
lembro que… Sabe o que eu fazia, Cacá? Eu fazia o seguinte:
todas as vezes no meu percurso de artista e tal, que é bem
recente, vamos dizer assim, diante de tanta gente que já
é artista há não-sei-quanto-tempo. Eu não era artista,
não era das aulas de dança. Eu queria ser atriz de cinema,
inspirada na minha avó, mas aí, não deu certo e eu fui para o
teatro e no teatro, eu conheci o Marcelo. E aí que eu comecei
nessa história de núcleo, de arte contemporânea que eu
adoro. E eu lembro que você, depois que eu te conheci - e
que eu acho que aquilo foi muito importante porque você era
uma pessoa muito próxima, em termos de idade, da gente
ali, você estava começando também, estudando e tudo,
então, assim, a gente teve aula com alguém que estava
começando. A gente não teve aula com alguém que já
estava (no circuito). E isso, eu acho muito importante numa
formação. Como é que você entende as importâncias daquilo
que você aprende, não é? Com quem está com vontade de
estar fazendo uma coisa. Então, muitas vezes, para pensar
um projeto, para escrever um workshop, eu fui no seu site;
olhava lá e via como você organizava suas coisas e aquilo
me inspirava. Por isso que eu perguntei para você sobre
essa coisa de migrar, de entender quais são as importâncias
das coisas artisticamente… Eu adoro a maneira como você
traz o nome também que isso era uma pergunta que eu ia
fazer - só para você pensar depois, qual é a importância
do nome numa criação? Acho que pouco se fala sobre isso
também, não é? Então, são perguntas que vão ficando por
aí, para a gente conversar mais. E outra pergunta que eu
queria deixar aqui, já que a gente está fechando esse ciclo
de perguntas, é uma pergunta que eu acho muito importante
se fazer. Você se vê envelhecendo e dançando? Que é uma
das coisas que a gente não pensa e que, por muito tempo,
o trabalho artístico de uma bailarina, de uma criadora era
(G)
super pequeno, não é? Tinha uma validade, não é? Isso é
uma coisa que eu queria no deixar aí no ar, para gente ir para
as próximas entrevistas…
TARINA Mas se você quiser, Clarice, dizer umas palavrinhas. Se
você se sentir… Você ainda não está tão próxima, mas já sente um
pouco desse contínuo?
126
CLARICE Já. Já sinto. E acho que quanto mais próxima eu estou das
coisas, mais eu levo as coisas de boa e também começo a entender como
é que a gente pode olhar para elas de forma mais potente e menos…
Que eu acho que tem com esse negócio, essa coisa meio debochada,
de não se levar muito a sério, entendeu? Sabe, assim, como é que pode
olhar para cada momento do nosso ser, porque quando eu vejo umas
coisas dos jovens, eu falo: gente! Jesus! Mas é isso mesmo, aquilo era
daquele tempo, entendeu? E que massa que naquele tempo eu conheci
tanta gente legal também e que me um monte de coisas juntas, não é? E
eu acho que essa coisa de aproximar gerações, sejam elas quais forem,
super rico, sabe? Porque eu acho que, por um momento, a gente só se
aproximou de um jeito, sabe? Como é que a gente aproxima de outros
jeitos diferentes? Porque eu também não sou essa coisa romântica de
ah, eu só quero trabalhar com as minhas galeras da minha geração. Eu
acho incrível também poder trabalhar com o povo jovem, eu acho incrível
poder trabalhar com gente mais velha, mas como é que a gente aproxima
de outras formas que não sejam sempre as mesmas? Porque a gente
é acostumado ao professor, àquela (figura) que tem toda a sabedoria
do mundo e aqui (do outro lado) os jovens que estão estudando. Não,
tem um monte de coisas que eu aprendo com os jovens, tem um monte
de coisas que eles aprendem comigo, tem um monte de coisas que eu
aprendo com a minha avó, tem um monte de coisas que a gente aprende
de todos os lados, não é? Então, como é que a gente consegue deixar
esse caminho possível? Como é que a gente permite isso? Porque
sempre que a troca acontece, a gente cresce, a gente aprende coisas aí
nesse caminho, não é?
TARINA Gente, então falando em troca, acho que a gente vai
finalizando por aqui, a não ser que vocês ainda queiram falar alguma
coisa. Mas eu queria agradecer a Clarice pelo convite, pelo projeto,
agradecer você por ter se disposto a ser nossa entrevistada e dizer
que, para mim, os encontros são sempre muito fundamentais. Eu
estava assim, antes de começar, eu até falei com a Soraya que
eu estava me sentindo exausta. E como a nossa conversa foi
me energizando! Porque, de fato, o encontro ele tem isso. Gente
quando se encontra tem isso, pode ser uma desgraceira, pode
ser o fundo do poço, mas também pode ser o emergir de alguma
coisa muito potente porque ninguém consegue mesmo prever a
potência dessa coisa que é o encontro. Então, eu quero agradecer
a vocês por terem tornado a minha noite mais potente. E é isso,
gente, obrigada!
(G)
CLARICE Obrigada, Tarina e Soraya!
CLARICE Valeu!
SORAYA Obrigada, bichas! Foi massa fazer parte dessa
Cabeça Coração, dessa Futura.
127
128
129
(H)
ANTES
DE
TERMINAR
POR
SORAYA
PORTELA
130 Aqui no Piauí, de onde sou, usamos uma palavra–ação–saber popular
que é “curiar”, procurar saber sobre algo que está acontecendo, ou seja,
“você curia” sem estar no lugar de protagonista. Curiar é saber tudo, é
um interesse voraz por algo e ficar feliz porque aquilo existe.
Uma coisa importante antes de lançar essa coleção de pensamentos é que
elas são misturas de elaborações anotadas em meus antigos cadernos
de artistas, em situações de leituras e estudos solitários que fiz sem
precisar ser vista. Também pedaços de coisas escritas atravessadas por
aulas, oficinas, coisas que assisti de outros artistas, contextos artísticos
ou não, mas que no tempo em que esse projeto aconteceu foram ativadas
ao lembrar que poderia ser feita para alguém específico.
COLEÇÕES DE PEDAÇOS DE PENSAMENTOS, PERGUNTAS,
PENSAMENTOS FRASES, PENSAMENTOS PALAVRAS,
PENSAMENTOS NOÇÕES, PENSAMENTOS SEM ORNAR,
PENSAMENTOS SEM SERVENTIA, PENSAMENTOS SEM FIM…
Quando conhecer é criação?
Quando a arte se torna uma arte analfabeta, que fala com a fala dos outros?
Onde não tiver desejo, vá embora.
De que maneira você materializa seu processo criativo?
(H)
Poder falso - poder ficcional - universos ficcionais - imaginação.
Junto, não existe outra maneira.
Tudo é exercício.
De que maneira a pesquisa pode oportunizar outras temporalidades?
Qual a sua espacialidade como coreógrafa?
Que categoria de mulheres está na sua prática como ativista?
Onde suas criações e suas práticas como artista tem te posicionado?
Dançar para descobrir que dança é essa, práticas que vem do encontro.
A gente vive ainda um momento de medo, de fazer vigília nas falas das
pessoas que muitas vezes nos levam mais à condenação e menos ao
reconhecimento do que está acontecendo, de entender o contexto e
deixando para trás questionamentos do que isso significa. Como não
paralisar diante de tanta coisa para dar conta historicamente?
Matéria - descansar - isso é um vidro, isso é uma tampa que abarca a garrafa.
Objeto - uso - relação de uso.
131
Inteligência da estrutura.
Como sustentar o espaço de não saber na criação o lugar de performer
e de coreógrafa?
Como está o mundo quando uma dança nasce?
Que corpos estão sendo feitos por esse mundo?
Nesse momento tem se falado cada vez mais sobre lugares de
representatividade, existe diferença entre o lugar de “se apresentar” e o
lugar de “se representar”?
Sobre o corpo - falar e comunicar tem diferença?
De que maneira podemos nos mover para não extraírem nosso prazer?
Quais as mordaças desse tempo?
Quando a gente fala pelos outros? É possível falar pelos outros?
Possibilidades de escutas e o lugar de fala.
Como do meu lugar consigo elaborar as questões?
Você pensa em desistir e começar outra coisa? Quando isso acontece, o
que te faz retomar?
Qual a última coisa que você fez que não deu certo?
(H)
Qual foi a última dança que você viu que te fez chorar de emoção?
Sorrir? Ficar ofendida?
O que comunica o que você dança? Quando vocês faz o que faz?
Como criar lugares de sentir amor no mesmo mundo que nos mata?
Como a espacialidade - arquitetura tem definido o alcance do corpo?
Opressões estruturais - estética e afinidade.
Arquitetura como mudança social.
Uma prática cotidiana para a igualdade.
Reconstruir uma sociedade pelo aprimoramento do humano?
Por que mulheres tão empoderadas são perigosas?
No Brasil ainda se criam muros para isolar comunidades.
separabilidade - estética - espacialidade
Defeitos sociais - ou se nega e naturaliza ou se valoriza demais.
132
A história branca a ser seguida.
Como a arquitetura e o urbanismo no desenho das cidades reforçam o medo?
Como assim educação e informação privilegiada?
Como as lutas feministas podem vazar de uma relação de apagar incêndio?
Como desenvolver uma relação de responsabilidade sobre outras vidas
sem precisar ser mãe? Sem delegar isso à maternidade?
Que noções orbitam sua pesquisa sobre empoderamento?
Quais os conceitos estáveis vinculados ao feminismo?
Ativismo e militância, quais as relações disso com as redes sociais? Isso
tem relação com o sistema educacional?
Criar com humor. Criar com outros. Que noções, assuntos orbitam as
suas criações?
Que tipo de artista você é?
Qual a última vez que você dançou com alguém?
Um cheiro em cada bicha que entrar em contato com esse texto.
(I)
ANTES
DE
TERMINAR
POR
CLARICE E ALINE
LIMA BONAMIN
133 Antes de terminar essa publicação queremos agradecer às pessoas que
fizeram parte do grupo de pesquisa Cabeça Coração - Amanda Dias,
Karen Marçal, i gonçalves, Marcela Costa, Natália Mendonça e Patrícia
Árabe - que moveram e imaginaram outras formas de estar juntas/es,
criando no presente a Futura.
Obrigada Tarina Quelho e Soraya Portela pela parceria, confiança e
escuta na construção sensível de cada pergunta.
Obrigada Rafael Petri e Marina Nogueira pela produção de cada encontro.
Obrigada Christine Greiner, Elisabete Finger, Helena Vieira e Joice Berth
que acreditaram no nosso projeto e que toparam estar com a gente
compartilhando pesquisa, criação, pensamentos, sonhos, cabeça e coração.
134
135
138
139
Entrevistas
realizadas
on-line
entre os meses de
Abril e Setembro
de 2022
Projeto
gráfico
Transcrição e
edição de texto
Mateus Acioli
Estúdio Tropical
Aliás
Editora
Esse projeto foi realizado com apoio do Programa Municipal de Fomento
à Dança para a cidade de São Paulo - Secretaria Municipal de Cultura
R. Sebastiao Pereira, 110
Sta. Cecilia, Sao Paulo/SP
@
futura________
futurafutura.org