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Caderno de Entrevistas Cabeça Coração

FUTURA – Caderno de Entrevistas do Projeto Cabeça Coração, realizado entre abril e setembro de 2023.

FUTURA – Caderno de Entrevistas do Projeto Cabeça Coração, realizado entre abril e setembro de 2023.

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Caderno de

Entrevistas

Abril —

Setembro

20

22

CABE

ÇA

CORA

ÇÃO




(D)

pg

ENTREVISTA

COM

ELISABETE

FINGER

35

(C)

pg

19

ENTREVISTA

COM

CHRISTINE

GREINER

(B)

pg

15

ANTES DE

COMEÇAR

POR TARINA

QUELHO

ÍND

(A)

pg

11

ANTES DE

COMEÇAR

POR SORAYA

PORTELA


(E)

pg

61

ENTREVISTA

COM HELENA

VIEIRA

(F)

pg

ENTREVISTA

COM JOICE

BERTH

83

ICE

(G)

pg

109

ENTREVISTA

COM CLARICE

LIMA

(H)

pg

130

ANTES DE TERMINAR

POR SORAYA PORTELA

(I)

pg

133

ANTES DE TERMINAR

POR CLARICE LIMA E

ALINE BONAMIN




8


9


10


ANTES

(A)

DE

COMEÇAR

POR

SORAYA

PORTELA

11

Coleções em pedaços de pensamentos, de perguntas, de pensamentos

frases, de pensamentos palavras, de pensamentos noções, de

pensamentos sem ornar, de pensamentos sem serventia, pensamentos

sem fim…

Essa escrita se dá a partir de uma ação que já aconteceu, e traz à

tona uma coleção de pensamentos em pedaços no formato de frases,

perguntas, composição de palavras soltas sem nenhuma necessidade

de ornar, com toda curiosidade genuína que me invadiu sobre as pessoas

que entrevistaria; mesmo sendo de algumas delas admiradora de suas

pesquisas, livros, parceiras em alguns trabalhos, como também as que

teria a oportunidade de conhecer.

O que pode ser tão bom quanto se espantar ou se interessar por alguém?

De que maneira conhecer alguém pode nos apresentar outros mundos?

Aqui, nesse texto você entrará em contato com aquilo que não foi

perguntado, o que não entrou tal e qual o que não foi dito, ou restou,

mesmo sendo um texto sobre algo que já aconteceu. Você vai conhecer o

que foi processo imaginacional das conversas com todas as integrantes

do projeto cabeça-coração para planejar provisoriamente, sem se apegar

ao que poderia ser trazido como pergunta nas entrevistas. Tanto eu como

Tarina compartilhamos nossas curiosidades a respeito das convidadas,

isso se repetiu antes dos dias de entrevista. De que maneira entrevistar

pode ser ambiente para o que estava por vir? Aproveitar para perguntar

e discutir pontos sobre determinada maneira de pensar que às vezes


(A)

lendo o livro de uma autora, ouvindo uma fala gravada em uma palestra,

surge aquele desejo de ter a oportunidade do corpo a corpo para saber

sobre aquele aspecto discutido como se a gente pudesse desvelar outras

camadas, assim como criar lugar para quem assiste, conhecer. Quais

assuntos Christine desperta? E Bete, Helena, Clarice, Joice levantam

por serem quem são e fazer o que fazem?

O passado, o antigo, o que precisa ser convocado, o chamado das e

para as coisas muito me interessa dos acontecimentos. Tenho pensado

muito na efervescência do ANTES, o ANTES da coisa em si. Portanto,

desejo apresentar as precipitações das costas do encontro. O que

aconteceu numa dimensão outra do encontro que geralmente fica sem

ser visto, mas está diluído para ser sentida, pois tudo que é feito tem

uma mistura, um trabalho, um grosso de materiais agindo que dará corpo

ao acontecimento, neste caso às entrevistas.

12

Entrevistar pessoas tem sido um convite de trabalho recorrente para

mim, acredito que o motivo seja meu interesse explícito pelos contextos

de falas nas programações, daquilo que é processual. Conversa boa

é conversa aberta, viva, e como coisa viva tudo importa. Conversar

pode ser uma força que nos encaminha para conhecer o improvável,

uma oportunidade para acolher as diferenças sem precisar grifá-las

previamente. Sou conversadeira de nascença e me divirto com isso, porque

se tem uma coisa gostosa de aproveitar é a força de bons encontros, do

“estar junto”, e mulheres, embora separadas no mesmo mundo, podem

sim abrir buracos para outras imaginações sobre determinados assuntos.

O que quero dizer é que as pessoas têm esse poder de atravessar nossas

vidas, suas presenças movimentam energias de criação em nós e nos

levam a perceber os deslocamentos das questões discutidas. Às vezes

é na presença de outras pessoas e determinados grupos que as antigas

questões são retomadas em sua potência, isso abre portais.

O que acontece quando lançamos as mesmas perguntas para pessoas

diferentes? Como fazê-las?

A chegada de alguém pode ser uma força que ilumina, ela sempre

nos modifica, as vidas outras, assim como suas despedidas sempre

nos modificam. Já ouvi certa vez, que a realidade se modifica a todo

instante. Por isso, reconheço e tenho chamado esse “fazer Entrevista”

de “práticas de conhecer”, uma atitude importantíssima que pode dar

ritmo diferente aquilo que se sabe, sobre algo, um lugar e alguém.

O que nos olha da história dessa pessoa, daquilo que ela produz no

mundo? Precisamos conhecer, e para tal, o que menos importa talvez

seja o que vai ser compreendido, mas o que será trocado. Foi assim

que me senti fazendo neste projeto de entrevistas. Cacá, a DIVA, como

chamo carinhosamente Clarice Lima, me convidou para fazer junto com

Tarina Quelho a entrevista de Christine Greiner, e foi tão gostoso que

continuei até o final do projeto. Uma das sensações mais maravilhosas é

o convite para participar de um projeto de alguém. Tenho tanto respeito


(A)

por isso, me sinto carregada de energia e de alguma forma acredito

que isso corre pro entorno, banha outras vidas. Aconteceu muito

quando a Futura soltava a cada semana as entrevistas para as pessoas

assistirem a seu tempo, receber mensagens do povo dizendo que ouviu

as entrevistas lavando uma louça, colocou para ouvir e dormiu, etc.

Arte tem que ser mais assim misturada na vida, falo vida vida mesmo,

aquela do corre, do dia a dia, né? Fui usando o desassossego bom e

me joguei em direção às convidadas, atrás delas eu fui como quem ia

farejando cheiro de comida boa. Seguindo os rastros, produções que

podiam ser imagens, textos, estudos, atrás de tudo que essas pessoas

movimentavam nas variadas dimensões do que elas são, e quando estão

sendo. Busquei o que derramavam no mundo, nos seus contextos banais,

escutando o mais simples de suas existências, pois é nesse momento

que geralmente se revela o mais bonito de nós. Kazuo Ono no livro o

“Treino e(m) Poema” fala que “não precisamos nos mover o tempo todo,

há esse cantinho. Nos movimentamos mexemos, mas quando temos

esse lugar para descansar, sentimos alívio… não crescemos quando

estamos em movimento, sabiam? Mas quando paramos, descansamos

e sonhamos…”.

13

Ah, outra coisa que gosto de pensar quando sou chamada para realizar

uma entrevista é que não existe uma forma de entrevistar, deve haver

sempre um apetite em dar espaço para aquilo que precisa respirar entre

nós das histórias, das experiências em vida das pessoas. Para sentir

algo não precisamos estar perto ou saber demais, alcançá-la demais,

há tanta beleza no esquecimento você não acha? Entrevistar para dar

espaço, para o que não existe ainda entre nós, não sei, não entendo, etc.

Fazer com todo empenho!


14


(B)

DE

COMEÇAR

ANTES

POR

TARINA

QUELHO

15

E eu escolhi começar a escrever essas palavras com a conjunção e. E:

uma “palavra invariável” que exprime relação. O e liga uma coisa na outra

coisa sem precisar explicar muito o porquê. E ninguém pode antecipar a

potência de um encontro, nunca.

E neste texto eu falo para um nós mulheres, nós devir-mulher, e convido

a todas a colar nesse nós, pelo menos enquanto durar ler estas palavras.

Não muito tempo atrás participei de um laboratório de escrita em que me

foi pedido associar livremente palavras a determinadas categorias e uma

delas era mulher. Me surpreendi com o fato de que minhas associações

eram todas negativas, tristes no sentido espinosano, despotencializantes

(e eu nem sei se essa palavra existe). E na apresentação de um dos

livros do Paul Preciado, a Virginie Despentes começa dizendo como

ela sofre pra escrever. Eu acho que todas nós sofremos para escrever e

também pra falar. E como sofremos da síndrome da impostora em maior

porcentagem.

A cabeça-coração me deu um contexto para refletir nisso. E eu nunca

pensava na palavra feminismo até pouco tempo atrás, porque eu demorei

para entender o que era. E porque talvez eu não tenha entendido até

agora. Mas dançar dentro disso cura muita coisa dentro de mim, na

minha cabeça-coração.

E eu me lembro da Valentina que ficou muito puta numa aula porque

eu chamei uma parte do nosso corpo de aparato reprodutivo. E a gente

conversou. E refletimos sobre os dispositivos da linguagem, e como


(B)

nossa subjetividade vai se conformando nisso. E encontramos que, a

partir de então, nós o chamamos de aparato criativo. E a gente ficou

mais alegre com isso. E me faz pensar que tem coisa que só dá pra fazer

juntas.

E eu me alegrei tanto pela oportunidade de ter participado das

entrevistas. Foram nossos encontros de refletirmos juntas, de gossip,

como eu entendi da Silvia Federici. E como eu gostei de estar entre nós.

Porque talvez essa seja a dimensão que eu sinto que é vital para nós:

estarmos juntas.

E como também é vital e desafiadora a nossa tarefa do que seria uma

possível construção de aliança que não desconsidere a experiência

singular de cada vida, um estarmos juntas sabendo que cada uma habita

a experiência desde um lugar bem particular. Dois corpos não podem

ocupar o mesmo espaço: isso também é uma afirmação política.

E que mais do que tudo é necessário um reconhecimento de que todas

estamos morrendo, mas algumas de nós bem mais rápida e violentamente

que outras. Mas precisamos “sobreviver mais um dia”, como disse a

Helena Vieira. Viver mais um dia.

16

E eu me pergunto para que serve a vida, e só vem um pensamento meio

óbvio na minha cabeça-coração: só serve para ser vivida.

E eu me lembro que o coração é um tubo espiralado que pulsa ondulando,

que na verdade começou a pulsar antes de ser coração, e que esse pulso

se continua por toda uma vida. E que o coração também é um músculo e

que todo músculo se sente. E que o músculo resiste. E começo a refletir

sobre o que é resistir, e encontro que a resistência é um modo de estar

em relação. Eu posso resistir a algo, mas também posso resistir com

algo. É um modo de encontrar o outro, a resistência me faz saber que

tem alguém do outro lado, resistindo comigo. E eu penso que resistir

junto pode ser até gostoso.

E eu me lembro da Yvonne Rainer, e de que a mente também é um

músculo, e talvez a imaginação seja a soma de todos eles. Porque não tem

pensamento sem movimento. E eu volto a um coração com sua própria

cabeça (porque no corpo dessa coisa que a gente é, cada cabeça tem

seu próprio coração). E eu tive vontade de saber como se fala cabeçacoração

em guarani. Akã- ñe’ã. E eu reflito que guarani é só uma das

formas de falar que já existiam por aqui. E que já existiram milhares de

possibilidades de dizer isso.

E eu estou aqui, em pleno janeiro de 2023 tentando entender que coube

justamente a nós todas estarmos vivas ao mesmo tempo neste planeta.

E que meu limite na criação de alianças é você não desejar matar a outra.

E volto à nossa tarefa de ir em direção a um modo de aceitar radicalmente


(B)

as diferenças e de que não podemos esperar por um plano. Não dá

tempo, ou talvez a ideia mesma de encontrar um plano seja só estancar

um fluxo. É preciso começar a fazer, ou entender que já começamos,

nos nossos pequenos e grandes encontros do dia a dia, quando você

assistir ou ler estas entrevistas ou um livro, quando você sai pelas ruas,

nos nossos ativismos e no carnaval. E já começou.

E eu penso na palavra poder e de que eu não gosto muito dela e que eu

gosto muito mais da palavra potência, porque me implica em algo que se

move. Não me interessa poder sobre algo, mas sim poder para fazer algo.

E penso sobre o que é um movimento organizado e na palavra anarquia

que a Chris trouxe.

E volto aos nossos encontros, em como foi bom ter a Soraya junto. E em

como eu gostaria de dançar com ela. E com Cacá, e com Aline, e com

Tota, e com Marcela, e com Nati, e com i, e com Amanda, e com Karen, e

Chris, e Joice, e Bete e Helena. E faço as pazes com o vital que é dançar.

17


18


TARINA

QUELHO

Entrevista

realizada

ENTREVISTAM

(C)

em

Abril

de

2022

E

SORAYA

PORTELA

CHRISTINE

GREINER

19 CLARICE Bom... Gente, boa noite! Obrigada pela presença de vocês.

Essa é a primeira entrevista que a gente está realizando e é um grande

prazer recebê-las todas aqui no projeto Futura onde Tarina Quelho e

Soraya Portela vão entrevistar Christine Greiner. Essa entrevista vai

estar disponível online e vai virar uma publicação também em formato

PDF que a gente vai compartilhar no nosso site. Importante dizer que

esse projeto foi contemplado pela 31 a edição do programa Municipal de

fomento à dança para a cidade de São Paulo, Secretaria Municipal de

Cultura. E é isso vou desligar aqui minha câmera e deixar com as nossas

maravilhosas para gente começar.

TARINA Oi gente boa noite. A Soraya vai estar hoje entrevistando

comigo a Christine... bom, acho que sem formalidade né? A Cacá

falou um pouco do projeto. Também queria agradecer muito à Cacá,

principalmente por ter uma oportunidade de estar conversando

com a Chris, junto com a Soraya. Então... Soraya, não sei se você

quer se apresentar, falar alguma coisa... como a gente...

SORAYA (risadas) Também eu queria agradecer: agradecer

à Cacá, Tarina, Aline, Christine, todo mundo que tá fazendo

esse projeto, né? Cabeça Coração, que é lindo o nome! Que

é da Futura que é um projeto de mulheres que é bem bonito

também. Mulheres artistas, né? Eu queria agradecer e

dizer: vamos aproveitar esse momento para se comer, né?

Para se devorar aqui. E é isso! Eu queria me descrever, me

apresentar pra quem vem depois, assistir depois: eu sou uma

mulher de cabelo cacheado, pele clara, eu uso óculos, tenho o

rosto redondo. Estou vestindo uma blusa cheia de bananas,


(C)

porque eu sou interessadíssima numa dança banana, numa

arte banana. Estou aqui com um fundo atrás de mim, com

uma parede amarela com uma janela bem aberta, azul. E

meu nome é Soraya e falo de Teresina, no Piauí.

TARINA Incrível! Eu tô falando aqui de dentro do meu computador,

com vocês(risos), com você em algum lugar do planeta. Então,

apesar de ser uma entrevista a gente vai indo meio que numa

conversa, tá? Então.. bom, Chris, a gente ficou conversando muito,

eu e a Soraya, com as meninas também, né? Do projeto delas e

tal.. Então eu fiquei com algumas curiosidades para te perguntar,

acho que eu tenho uma curiosidade genuína pelo seu processo de

criação, né? Para entender como você... Bom... eu te considero

uma criadora, eu leio os seus livros, em parte como ficção, e queria

te perguntar como você aborda, como você pensa sobre isso você,

se você se pensa com uma criadora, né, primeiro. E, se sim, como

você mantém o seu próprio processo criativo como ele é e, incluiria

uma coisa: como você, como seu corpo, entra ou não entra em

seus processos criativos.

20

CHRISTINE Ah tá bom! Então... obrigada Tarina,

obrigada Cacá pelo convite. Estou bem contente de

estar aqui com vocês. Soraya, também! Eu também

acho legal a gente também tá cada uma num lugar

diferente, né? Essa é uma das vantagens, né? Tem

várias desvantagens, mas tem essa vantagem nesse

espaço virtual: aqui a gente consegue desde que

começou essa história aí de Pandemia eu encontrei um

monte de gente que eu acho que eu não encontraria

se não fosse nesse espaço, então tem uma coisa

interessante também. É... Como a Soraya se descreveu

eu queria dizer que eu também estou numa... na frente

de uma parede amarelona aqui. Aliás nossos amarelos

são bem parecidos, mas em vez de ter uma janela eu

tenho aqui ó umas cerejeiras, um quadrinho. Algumas

pessoas sabem que eu tenho essa pesquisa comprida

com o Japão, então...também tô de óculos, tô com

uma blusa verde e também sou uma mulher branca,

se bem que branca um pouco amarela que eu tenho

minha família toda misturada que nem a Tarina, né?

A gente é totalmente mestiça.

Bom, mas primeiro eu queria te dizer Tarina que eu

achei super legal você falar, agora, que às vezes você

lê meus livros e parece que você tá lendo ficção. Você

sabe que é sonho da minha vida, né, escrever um livro,

assim, ficção... Assim, eu tenho muita vontade e eu acho

que eu tô cada vez mais próxima disso, principalmente

a partir do momento que eu comecei a pensar nessa

ideia de fabulação que eu tenho conversado algumas

vezes. Foi... acho que o último livro que eu escrevi que

eu dei esse nome foi ‘Fabulações do corpo japonês’.

Numa época em que todo mundo fala do falso. Assim,

a gente já pensa no lado bem pejorativo, né, disso


(C)

21

que a gente fica pensando logo em fakenews, como

a gente é enganado o tempo inteiro. E tem um poder

do falso que esse poder ficcional que está ligado à

ideia de fabulação que me intriga, sim, eu gosto muito

porque eu gosto de metáforas também. E e eu acho

que muitas vezes quando a gente cria uma imagem,

quando você tá... mesmo quando se está escrevendo

uma pesquisa acadêmica e tal, eu acho que às vezes

você cria uma proximidade muito maior com quem tá

lendo. é Então eu fico contente que você perceba isso

nos meus livros porque, primeiro, eu nunca pensei...

assim... eu não gosto de um escrita acadêmica fechada,

sabe, assim muito blindada. Eu não gosto de pensar

que eu tô escrevendo livros assim para cinco pessoas

lerem, eu tenho uma questão importante, assim para

mim, que é realmente comunicar. Então é... Para fazer

isso, algumas vezes no processo de pesquisa, e busco

essa aproximação com universos que são universos

ficcionais. E, também, porque como eu trabalho muito

com artistas eu aprendo muito. Eu sempre digo isso,

a minha fonte de pesquisa tá longe de ser só uma

fonte bibliográfica. Eu gosto de aprender com as

experiências artísticas e com essas experiências nãoartísticas,

que são as coisas que acontecem na vida.

Eu me lembro que uma vez, pensando no livro que

eu escrevi há muitos anos, já, que chama ‘O corpo

em crise’ eu fiquei pensando nisso, eu falei: gente,

acho que eu não teria escrito esse livro se fosse uma

coisa assim só de ficar lendo as bibliografias que eu

tava lendo naquela naquele momento, eu tava muito

inquieta com a obra do Giorgio Agamben. Tava lendo

essas pessoas todas que falam sobre as políticas para

o norte. Mas tem uma questão: o lugar onde eu moro.

Porque eu moro aqui no centro da cidade de São Paulo

e tem uma precariedade, assim, umas zonas de muita

vulnerabilidade perto da minha casa e eu acho que eu

me alimentei muito disso também para escrever o livro.

Então, assim, eu posso pensar em vários artistas que

eu admiro, que eu tava assistindo os trabalhos e que

também estavam discutindo, né, cada um do seu jeito,

essas questões da vulnerabilidade, da precariedade,

mas tinha uma coisa também na rua, acontecendo na

rua. Eu presto muita atenção nisso, assim como as

questões pessoais, também, que acontecem comigo.

Eu acho que de alguma forma isso vem também

para aquilo que eu tô escrevendo. Não é uma escrita

imparcial, assim, que tá pensando como se a vida

da gente fosse compartimentada, né, ‘aqui a minha

pesquisa acadêmica, aqui as análises de espetáculo,

aqui a minha vida pessoal...’ eu nunca consegui fazer

isso é sempre tudo embolado. E eu acho que isso que

você falou também, Tarina, sobre criação... eu também

acho que é um processo de criação e, assim, eu nem

conhecia esse termo, há pouco tempo que eu tenho


(C)

22

esse contato próximo, né, com esses pesquisadores

que estão lá no Canadá, a R Neil e o (inaudível), né.

E eles usam muito, não são só eles: também tem

um bocado de gente aí falando disso, mas eles usam

muito esse termo de Research Creation, né, que é

uma pesquisa-criação e eu acho muito legal porque

é isso: quando você tá pesquisando não tem outra

possibilidade que não seja estar criando junto, né. Eu

não tenho, Tarina, um método. Assim, se eu for falar

para você, eu não tenho. É uma coisa bem caótica,

até. Eu não sei te dizer... Eu, quando comecei a fazer

pesquisa, eu nunca comecei assim, com uma vida

sossegada para fazer pesquisa, sabe. Eu fui mãe muito

cedo, então eu, assim, toda minha vida de pesquisa

sempre foi com criança, cachorro, muito barulho. Aqui

onde eu moro também é muito barulhento. Assim, tem

que pensar em dinheiro! Não é um negócio, assim, de

ficar naquele sossego, ‘agora vou pesquisar’, ‘vou ler

meus livros’. É sempre uma leitura no meio do caos!

Nunca teve, assim, uma situação tão sossegada. Eu

acho que me acostumei com isso porque a primeira

vez que eu tive uma oportunidade, assim, superbacana

- por exemplo - de ir sozinha para o Japão e ficar lá

estudando com tudo quietinho, sossegado... Eu não

conseguia fazer nada porque eu estou acostumada

com barulho, com bagunça! Eu custei a pensar: ‘nossa

senhora, agora eu tô quieta aqui, imagina: não tenho

que dar aula, também. Tá tudo organizado! Como é

que eu vou fazer?! Não era possível para mim fazer

nada, assim, então.

Outra coisa que eu gosto, também, que eu acho que

tem a ver, além desse negócio de pesquisa-criação,

eu gosto muito de ler um cara que se chama William

James. Na verdade eu gosto da versão do William

James. Os livros dele têm saído pela Editora N-1, que

também publicou meus livros sobre o Japão, e o William

James e o David Lapoujade valorizam muito isso, ele

falava num negócio que chama empirismo radical.

Que é essa ideia de que a gente não só faz pesquisa,

mas a gente conhece sempre- inevitavelmente - a

partir da prática. Então não tem esse negócio de ficar

criando essas separações de teoria e prática, é tudo

prática mesmo quando você tá estudando, lendo,

isso também é um exercício prático. E eu acho que

quando isso se torna realmente uma posição, assim,

um ponto de partida: entender que tudo exercício,

isso também, acho que que dá um ritmo diferente pra

história, né? Então eu te diria assim: método mesmo

não tem, mas tem assim: eu acredito que a gente cria

realmente precisa de uma certa caoticidade, porque a

gente precisa estar tirando as coisas do lugar, criando

esses deslocamentos até para ficar se colocando em

xeque o tempo inteiro. Então, não ficar numa zona


(C)

23

de conforto, sabe, ficar se questionando. Aí acho

que entra uma questão do tempo também, né. Você

tá sempre se questionando. Não acreditar que nada

está resolvido, mesmo se você já falou daquilo muitas

vezes, já fez aquilo muito tempo.. não acreditar que tá

resolvido! Então tem essa caoticidade, tem essa ideia

de uma criação junto com a pesquisa e eu vou falar

só mais uma coisa (porque senão, não é conversa,

vira monólogo!) mas, assim, tem uma coisa muito

importante para mim que é criar e estudar junto. Eu

nunca faço isso sozinha. Tem, claro, tem aqueles

momentos que eu fico lendo sossegada. Eu também

gosto, de vez em quando, de ficar lendo sozinha, né.

Mas eu gosto muito desse exercício de pensar junto.

Então eu faço isso com alguns amigos artistas que

nem, por exemplo, essa semana a Lia Rodrigues está

se apresentando aqui em São Paulo. Aí eu gosto de

encontrar com a Lia, de conversar com ela, a gente

às vezes lia os mesmos livros... gosto de conversar.

Lá de Teresina, Soraya, eu gosto muito de conversar

com Marcelo. A gente sempre conversa, tá sempre

trocando figurinhas... Então, tem muitas pessoas, tem

um monte de gente, não dá não dá para falar todo

mundo. E os meus alunos, as pessoas que estudam

comigo, desde o pessoal da graduação até o pessoal

do mestrado, doutorado. O que eu gosto muito desse

trabalho de orientar pesquisa. Eu acho muito legal

porque eu entendo a orientação de pesquisa como um

compartilhamento, eu aprendo muito com as pessoas

também. Acho que essa questão do (estar) junto,

também, para mim é bastante importante porque cada

vez aparece uma pergunta diferente, um problema

diferente e até às vezes quando eu tenho dificuldade

de orientar uma pessoa, isso é muito desafiador e

muito legal para mim, eu gosto de conversar com

gente que é difícil para mim conversar, tá. É assim

que é desafiador você encontrar um jeito de abrir um

caminho ali, sabe, criar um uma empatia. Quanto é

difícil também é legal. Bom, então é isso.

TARINA Eu queria só fazer um parêntese, me perdoa Soraya, eu

espero que quando eu disse que lia seus livros como ficção tenha

sido louca, mas eu acho que você entendeu que para mim eu leio

teoria, de modo geral, porque eu sinto que eu preciso desses canais

de imaginação para entrar na lógica do outro, né.

SORAYA Tá bom! Eu queria aproveitar isso que você falou

porque eu lembrei eu tava(sic) lendo uma coisa que você

escreveu, eu acho que há uns 10 anos atrás, você fez um livro,

uma entrevista com a Dani Lima. Naquele livro ‘Sem gestos’

e eu fui atrás de uma coisa sua que fosse antiga porque me

interessa e eu digo isso, assim, pensando que fui ler isso e

era muito interessante, por exemplo, uma coisa que você

falava lá sobre mediação como uma estratégia de continuar


(C)

24

a viver porque a gente está o tempo inteiro mediando as

coisas que acontecem com aquilo que a gente sente, né. E

aí eu fiquei pensando assim: ah, como é que eu posso fazer

isso para trazer para Chris, como uma experiência nossa? Eu

disse assim: ah, eu vou perguntar para vários artistas que eu

conheço e vou fazer perguntas dizendo “Você tem alguma

pergunta que você gostaria muito que a Chris pensasse,

que é urgente para você, né. Exatamente pensando no

que você fala lá, que eu achei muito bonito, de mediação

como atravessamento, né. E eu achei isso muito bonito,

isso ficou no meu pensamento. A Carol, que é uma pessoa

com quem eu tô trabalhando agora, Carolina Mendonça, ela

fez uma pergunta que a gente tava discutindo muito, que

tem a ver com essa ideia de pesquisar, né, que é - para

mim, por exemplo, - é muito importante estar falando com

uma pesquisadora viva. Uma mulher, pesquisadora, autora,

viva. Isso era uma das minhas perguntas que é: como é ser

um autora viva, né, já que a gente tem muito essa coisa,

principalmente acadêmica, das Deleuze (sic), das bicha tudim

que já morreram mas a bicha que está pensando filosofia

agora, pensando o corpo de agora, né, e tal. Então, para mim

é muito importante isso, né, de você ser uma pesquisadora

mulher-autora (sic). Então ela perguntou o seguinte, que é:

como é que a pesquisa se relaciona com a temporalidade

ou como a pesquisa nos possibilita experimentar outras

temporalidades. Eu fiquei pensando isso dentro disso que

você trás, desse seu processo criativo, né, disso que você

falou como uma continuidade, né, da conversa.

CHRISTINE Então, Soraya, acho bem legal essa

a tua observação, né, as coisas que você falou e a

pergunta da Carol, porque para mim essa questão da

temporalidade é superimportante porque eu nunca

penso na temporalidade assim de uma forma linear:

o passado, presente, futuro. Eu penso mesmo nesse

viés dos atravessamentos. Então, tem - por exemplo

- perguntas que estão comigo há muitos anos, muitos

anos. E, assim, eu acho que, sei lá, é capaz de eu

nunca conseguir responder, mas o que me impulsiona

é a pergunta, não é resposta, né. E esse movimento,

assim, de vai para trás vai para frente vai pra trás

vai para frente, isso eu faço um sempre, inclusive

com as escolhas das minhas interlocuções, assim, de

quem que eu tô lendo das coisas que eu tô assistindo

também. É sempre nesse movimento de vai para trás

vai para frente. Então eu gosto de alguns mortos que

você falou aí. Eu gosto alguns mortos, eu converso com

alguns fantasmas, mas eu também gosto de gente viva

e essa coisa de mulher viva eu acho importantíssimo

porque outro dia mesmo, até... tem um monte de

gente que tá estudando comigo pensando essas

questões das pensadores mulheres, né, e feministas

ou mesmo que não sejam mulheres cis, que sejam

(mulheres trans), mas é uma coisa muito presente na


(C)

25

minha vida, isso. Nos últimos tempos, assim... nem só

agora, já tem alguns anos... a gente ficou vendo que

realmente, assim, é desproporcional, né, a quantidade

de - por exemplo - de filósofos homens. E às vezes,

não é que as mulheres não estavam escrevendo, não

estavam pensando, mas é difícil chegar nesse lugar,

né, de ser o autor traduzido, né. Ter uma posição para

se tornar uma referência e muitas vezes isso acontece

mais com homens do que com mulheres, mas até

um certo ponto: agora eu acho que a gente tá num

movimento importante! Então as vozes femininas

estão muito fortalecidas e eu gosto de trazer essas

autoras e de conversar com elas e, claro, as que

estão aqui em São Paulo ou tão no Brasil e que é mais

fácil criar essa interlocução é uma coisa, mas coisa

mesmo com algumas que estão fora também, é uma

coisa que me interessa porque, eu acho, isso é outra

questão que tem muito a ver com a temporalidade:

a gente pensar nas questões a partir de contextos

diferentes e de tempos diferentes, isso também, vai

intoxicando a questão. Então vão surgindo outras

coisas, vão surgindo outros insights, então, isso é uma

coisa que me interessa. E mesmo quando eu trabalho

com os mortos, por exemplo, eu sempre acho que a

gente precisa de uma mediação viva. Então, assim,

eu - por exemplo - eu gosto muito de ler as coisas

do Focault, falei do Agamben... Eu gosto de algumas

coisas também do Deleuze, mas - por exemplo - é

interessante olhar como é que isso tá sendo trabalhado

por quem tá aqui com a gente, né? Tá num contexto

também brasileiro ou tá num contexto mais próximo...

Como é que se dá esse deslocamento das questões?

Então, eu acho sempre esse movimento muito

importante que é um movimento temporal também,

porque você traz lá sei lá o Foucault escreveu um

troço nos anos 50 e pode ainda tem muita potência

aquilo, mas se a gente pensa isso hoje e se pensa, por

exemplo, num contexto aqui de Brasil, dependendo

do lugar que a gente está no Brasil isso também vai

reverberar de uma forma diferente. Então eu acho

que eu me interesso muito pela diferença e não por

ficar ali, sabe, que nem um papagaio repetindo aquelas

coisas. Me interessa a diferença e me interessa

também questionar esses grandes nomes. A gente

não tem que fazer essas leituras como se fosse uma

coisa religiosa. É interessante criar perguntas para

indagar: será que ainda vale isso, mesmo assim? Sei

lá, pensando nas pessoas que mais nos afetam, ainda

assim, a coisa muda. E às vezes acontece movimento

também diferente: você acha que aquilo não faz

sentido nenhum e depois de um tempo começa a

fazer sentido. Isso já aconteceu comigo também,

que é um movimento um pouquinho inverso do que

eu tava falando. Por isso que eu acho que essa ideia


(C)

dos atravessamentos é muito legal porque a gente

vai mesmo, né, vai atravessando tudo lá e vai vendo

o que é que mobiliza a gente, o que é que ativa algum

tipo de movimento. É isso que me interessa: ativar

movimento. Eu acho que cada vez mais, na situação

que a gente está hoje, né, que estamos todos numa

situação muito vulnerável. Então, como é que a gente

faz para criar movimento? Como é que a gente faz?

Então, isso eu acho bem legal.

TARINA Chris, seguindo aí é de como a gente faz para criar

movimento, eu fiquei curiosa de te ouvir um pouco mais desse seu

interesse, dessa sua mobilização ou nessa sua ideia da fabulação...

e eu fiquei pensando, também, dentro disso se tem, ou se não

tem, qual é a relação da fabulação e do falso enquanto potência

de fazer corpo ou de conhecer. Então, assim, a fabulação ela é

uma estratégia legítima de conhecimento ou a gente consegue

desassociar a ideia de conhecimento com a ideia de verdade e

como... fiquei pensando até mesmo nas coisas, particularmente

nas quais eu trabalho, de educação somática, né, que é uma

versão de fabular para conhecer alguma coisa que muitas vezes é

intangível de outras formas, né, então...

26

CHRISTINE Então, Tarina, isso daí cola em algumas

coisas que eu também tenho estudando faz tempo e,

você sabe, porque eu sei que você gosta e também

por conta desse teu trabalho, com somática, é quando

a gente estuda sobre memória, percepção, fala sobre

o início a gente lê esses caras assim como António

Damásio, né, esses autores que estão estudando

mesmo a partir da neurologia, mas que estão

interessados na conexão com a filosofia - porque é aí

que a gente consegue entrar já que ninguém vai ficar

lendo neurociência dura porque aí não tem condição,

a gente não tem formação nem conhecimento sobre

isso; mas eu gosto de ler como o corpo aprende, como

o corpo conhece - e eles não falam em fabulação,

mas eles falam o tempo inteiro em imaginação.

Porque todas as nossas habilidades cognitivas, elas

têm essa mediação da imaginação, então até isso

tem a ver com a pergunta da Soraya, tá? Que quando

a gente lembra de alguma coisa, quando a gente se

relaciona com o passado... quando a gente lembra, a

gente lembra imaginando, então nunca é o passado

tal e qual. Então essa questão do falso é muito legal

da gente conversar porque como eu tava falando

no começo: não é esse falso que incomoda a gente

como, por exemplo, a fakenews, ou quando um político

mente descaradamente para gente. Não é desse falso

que a gente tá falando, a gente tá falando do falso no

sentido do poder, da potência do falso. E aí esse falso

potente significa imaginação e eu gosto desse nome,

fabulação, porque a fabulação tem trajetória, né?

Então, por exemplo, os neurocientistas eles usam o


(C)

27

termo imaginação porque estão explicando isso: ‘você

lembra de alguma coisa’ e junto com a lembrança,

a lembrança se constitui a partir da imaginação do

passado ou, por exemplo, mesmo consciência: a

gente tem vários níveis de consciência e tal, quem

trabalha, né, com dança, com performance, teatro

saberá perfeitamente disso. Então assim, você estar

consciente de algo que está acontecendo é sempre

também um processo imaginativo, até mesmo quando

você tá testando ali aquela presença. Mesmo ali como,

por exemplo, numa atividade que lembra a meditação,

vamos dizer assim, você tá lá naquele momento e

você não tá elucubrando, pensando outra coisa, você

tá pensando no que tá passando naquele momento:

a temperatura, o estado corporal, o movimento que

tá acontecendo aquele momento... Ainda quando

a gente tá nessa situação, a gente não desliga a

imaginação, então a imaginação está acontecendo e,

Tarina, por exemplo, para quem trabalha com Body-

Mind Centering®: você fica imaginando uma série de

imagens e coisas que estão acontecendo ali no corpo

e aquilo não é descolado no corpo, tem o impacto

corporal!

Aqui eu tenho umas alunas, né, uma - particularmente

- que ela se interessa muito por medicina chinesa (eu

também andei estudando essas coisas uma época),

então, por exemplo, a respiração nas medicinas

asiáticas, tanto na chinesa como na indiana, é um

processo imaginado. Porque a imaginação é aquilo:

no Japão também, né, tem ai-ki-dô... você respira

com a planta do pé, você respira, sei lá... não é uma

respiração assim que é só nariz, boca, que desce

pro pulmão... é uma respiração, assim, imaginada

e espalhada pelo corpo. Só que quando você fala

imaginado não quer dizer que é uma bobagem ‘ah, sei

lá uma metáfora maluca’, não é isso! Porque que cada

vez que você imagina alguma coisa, eu lembro até da

aula do Klauss, o Klauss Vianna falava isso: ‘ah, respira

com o lado direito do corpo, solta pelo lado esquerdo,

sei lá, né? Dá para fazer isso?! Mas a gente fazia o

exercício, imaginava aquele negócio. Você imaginou,

alguma coisa mudou no estado corporal. Então tem

isso de saída ali no corpo. Na discussão da fabulação,

antigamente fabulação era um negócio só da literatura.

Então as pessoas pensavam as fábulas, né, as ficções

para contar uma história, só aqui já tem, assim, eu

sinto que - principalmente nos últimos dez anos, mas

tem gente já politizando a fabulação há mais tempo

- eu acho que mais ou menos em torno da década

de 80, a fabulação começou a ser trabalhada como

fabulação política. Então, é nesse sentido que tem

me interessado muito porque é você usar a fabulação

para dar visibilidade para narrativas silenciadas,


(C)

28

para mundos que, supostamente, como se eles não

pudessem existir... Isso que eu tô falando para você,

Tarina, é até de um livro que a gente já conversou,

é de um autor que se chama Tavia Nyong’o que ele

fala sobre afrofabulação. Eu gosto dessa conexão

que ele propõe que é afrofabulação, aí ele pensa na

Saidiya Hartman, que essa autora agora tá sendo toda

traduzida em português, a própria Donna Haraway...

então é uma rede, assim, de um pensamento que

tirou a fabulação só do escopo da literatura e levou

para um outro lugar, que é assim: será que a operação

fabulatória ajuda a gente.. não é a recuperar, porque

não existe recuperação, essa coisa de ‘vou recuperar

o passado’ eu não acredito nisso, acho que não é

possível, porque quando você se relaciona com o

passado já não é mais o passado, no passado, é

um passado presentificado com outras questões.

Então, essa fabulação política, ela promove um outro

atravessamento - já que a gente tava falando disso

– né, e pode trazer para visibilidade alguma coisa que

tava lá na opacidade, deixado para trás, né?. Eu tava

hoje... voltei a ler um livro que fazia muito tempo que

eu não lia um negócio também (incompreensível) um

livro lá que citava xxxx, por causa de uma aula que

eu vou dar segunda-feira e ele fala assim: ‘ah eu me

interessava muito pelos crepúsculos, por uma sombra

bem comprida que não é uma sombra só que tá, agora,

aqui, mas que ela se estende lá longe e aí ela cria essas

outras temporalidades e, às vezes, algumas perguntas

que estavam lá adormecidas, voltam. E voltam e têm

uma potência de ativar, às vezes, outra coisa que,

naquele primeiro momento, sei lá, tinha outro sentido.

Não sei se é por aí, Tarina, que você perguntou...

TARINA Acho que tem acho que tem essas todas coisas, acho

que tem essa... fiquei pensando até agora, claro, porque tem uma

relação Direta com a própria ideia do afrofuturismo, né, como

esse, também, modo de friccionar politicamente com a ideia de

visibilidade também, ou não, mas também isso, eu tô pensando

mesmo na perspectiva da criação artística, o quê que a ideia de

fabulação pode trazer para a gente conversar junto também,

porque tudo bem aqui no campo da criação a gente já pode dizer

que tudo é uma fabulação, né, mas enfim...

SORAYA eu achei superinteressante porque quando

você falou, por exemplo, que algumas situações, algumas

condições de vida, por exemplo: elas estão tão induzidas

a não aparecer, a não fazer parte da vida que aí eu fiquei

pensando ‘poxa, talvez a imaginação seja a única coisa que

ninguém pode tirar da gente. Ninguém pode dominar esse

lugar e aí eu fiquei pensando em todos esses corpos e em

todos os movimentos que a gente faz, por exemplo, de –

aliás - a gente é induzida o tempo a pensar sempre grandes


(C)

29

deslocamentos, grandes blocos de áreas do corpo para

pensar, para produzir pensamento, para produzir teoria, para

produzir um bocado de coisa, né?’ E aí eu fiquei pensando

as bichas de abrigo por exemplo, né, o envelhecimento em

abrigo que, geralmente, é o corpo sentado o tempo inteiro, as

pessoas com deficiência física, né, as pessoas que não tem

possibilidade de deslocamento porque estão em situação

de sítio, que estão (nem precisa ser em outro país) mas no

nosso próprio país que não tem um direito de se deslocar.

Então assim, o quanto que a gente é induzido a grandes

deslocamentos e parece que a vida só existe quando a gente

só reconhece esses grandes deslocamentos.

Eu fiquei pensando isso que você fala, isso dessa coisa do

testemunho e da arte, como é que a arte pode ser esse lugar

do testemunho, mas um testemunho que é dessa pulsão de

vida, ser reconhecido em qualquer linha de vida, né? E aí

eu tenho uma pergunta para isso, porque eu acho que tem

a coisa da memória que é uma coisa que, desse texto que

eu li, foi uma das coisas mais bonitas porque eu adoro ler

coisa em que os olhos da gente brilham! É bom demais! E

aí eu li e fiquei com vontade de perguntar: existe uma ética

da memória, por exemplo: eu não sei nem o quê que eu tô

perguntando, mas me veio essa pergunta na hora e eu anotei

ela e, assim, existe uma ética da memória porque eu sinto

que essa coisa de imaginar é uma coisa tão formidável. Por

exemplo, eu lembrei também de uma coisa que o Daniel

Munduruku fala que a gente aprende no susto, a gente

aprende no espanto. No interior diz-se muito, né? Que é a

filosofia do mato, que eu chamo, que é do Brasil profundo,

né, que as pessoas dizem, por exemplo, que a gente aprende

quando se espanta, né? E ele fala isso também e eu fiquei

pensando isso, aproveitando para perguntar, né, existe uma

ética da memória?

CHRISTINE Olha, eu nunca pensei nisso, Soraya,

então não sei se eu vou saber responder, mas assim eu

tenho uma tendência a pensar que quando a gente está

falando da memória íntima, a memória de cada um, eu

acho que não tem, não. E você pode pensar e imaginar

o que você quiser. Assim, quando implica no outro aí

acho que tem que ter, porque ética a gente não pode

ficar sem. Quando a gente tá, sabe, trabalhando com o

coletivo, com o outro, é absolutamente fundamental,

né? Agora, a memória de cada um, eu não colocaria

nenhum tipo de limite nisso, nem moral, nem ético,

nada, nada! Aí é a liberdade que você tem, realmente,

de imaginar, projetar mundos, criar fantasias... você

pode pensar o que você quiser: ninguém tem nada

com isso! Então quando, a partir do momento que,

você compartilha, aí já não é mais só você, né, aí tem

o outro na jogada. Então, se você não pode continuar

pensando só em si mesmo, isso implica, sim, em outras

coisas. Agora, você falou um montão de coisas legais


(C)

aí, essa história do espanto é maravilhosa e o grande

problema é quando a gente perde essa capacidade do

espanto porque eu concordo total com ‘filosofia do

mato’ que você falou.

SORAYA Isso, ‘filosofia do mato’ (risos)

30

CHRISTINE Olha gente: eu tô junto! Filosofia do

mato: tem que espantar para aprender alguma coisa.

O problema é quando a gente fica naquele momento

que você não se espanta mais com nada, aí também

não aprende nada, né? Então fica complicada a

situação. Então, é lindo isso daí que você falou e eu

acho que a imaginação, assim como ela está presente

em todas as nossas habilidades - mesmo cognitivas,

perceptivas - ela também cria os movimentos, é o que

impulsiona a gente. Quando você falou desse negócio

do não poder sair do lugar, não poder se deslocar,

eu pensei numa frase que eu acho sempre bonita,

daquele escritor, Jean Genet, que ele ficou preso

muito tempo, né, ele foi preso, escreveu muitos livros

dentro da prisão, e ele falava isso que ‘as pessoas

podiam roubar o espaço dele, mas não roubavam o

tempo porque ele seguia imaginando, escrevendo’...

isso daí acho uma coisa linda! E também lembrei de

outra coisa, lembrei da Alice Ruiz, tem um haikai

dela que fala isso, ela diz: ‘ai que viagem ficar aqui

parada’. Vocês sabem que eu sempre lembro dela,

tô lembrando disso até na pandemia! Lembrei desse

negócio porque, olha, eu vou te dizer: eu mesma sou

assim, eu faço cada viagem parada sem que sair do

lugar, e é tão bom! Assim, tem hora que você viaja

tanto ali que você fala ‘bom, se chegar um dia que

for para aí presencialmente, eu acho que nem precisa

mais: a viagem já aconteceu! Então, mas é assim. Isso

aí é brincadeira, né? É brincadeira e não é, mas - assim

- a imobilidade é uma coisa bem complicada, né?

Porque, claro, que mesmo estando imóvel, estando

encarcerado, estando numa situação que você... eu

tenho pensado muito nessas questões da doença

também. Muito. Então, você tendo um deslocamento

difícil isso não significa que você não pensa, que você

não imagina, que você não faz as coisas, mas precisa

ter uma força danada para transformar essa situação

de vulnerabilidade em criação. É muito complicado. É

uma dificuldade extrema fazer isso.

Eu tenho estudado muito isso porque eu tô dando um

curso sobre um negócio que chama cripistemologia,

que é como é que você, a partir dessas situações -

que são muitas vezes, as pessoas que escrevem sobre

isso – normalmente - são pessoas que têm alguma

doença e que, ao invés de se afundarem na doença

(porque que a pessoa doente possui uma tendência,


(C)

também, de transformar a doença na coisa principal

e perder a pessoa), é... como você transforma esse

estado de precariedade? Você usa a doença para

criar. Você parte dessa singularidade corporal, para

fazer alguma coisa que é um negócio que os artistas

fazem, assim, o tempo inteiro. Então, fazem isso até

em situações agravadas em que é difícil, né, bem

complicado. Eu tenho estudado muito essa bibliografia

e tem algumas pessoas que têm problemas de saúde

que estão estudando junto comigo e tá sendo muito

bom o que é de novo aquele movimento: não estudar

só com a bibliografia, mas estudar com as experiências

e tá sendo muito legal. Acho que às vezes é difícil, mas

tá sendo muito legal.

TARINA Chris, a gente tá começando a se encaminhar, infelizmente,

pro final e - encaminhando com esse final – pensando, né, você

falou que tem essas perguntas que às vezes não fazem sentido e

depois fazem e vice-versa. Hoje, 2022, nesse dia amanhã pode já

ser diferente... que questão do passado que tá mais viva para você,

olhando toda a sua história, se tem algo lá do seu passado que

hoje tá mais presente, que questão do passado está te habitando

novamente hoje? Não sei se habilitar é uma boa metáfora.

31

Christine: Olha, eu sempre fui muito (e acho que isso

daí nunca mudou, na verdade!) eu sempre fui muito

interessada por essas questões desses estados de

crise, né, até quando eu escrevi esse livro mesmo do

‘Corpo em crise’ eu começo falando que eu gostava de

ler a Clarice Lispector quando era bem jovem com os

13 anos, eu já gostava de letras. Nem sei se eu entendia

direito o quê que tava acontecendo lá, mas eu gostava

do movimento, aquilo me trazia um movimento. Tem

uma época que eu pensava mais nisso, que é essa

relação de catástrofe e criação. Então teve uma

época que eu pensava muito nisso. Depois quando eu

comecei a estudar Bourriaud, né, aí era muito presente

isso daí. E, durante, uma certa época eu (não é que eu

parei de pensar nisso mas, assim, ficou meio de lado)

eu comecei a trabalhar com outras coisas e agora,

recentemente, são esses fluxos né de vai-e-vem

e eu acabei de fazer a tradução do livro desse meu

amigo lá do Japão… que ele escreveu sobre o Artaud.

Vai sair! Aaah, você quer fazer propaganda? Vai sair

um livro agora dia 15 de maio que se chama Artaud,

pensamento e corpo. E aí você imagina isso, Tarina,

fazer essa tradução! Eu fui jogada de novo nessa

história da catástrofe-criação.

TARINA Chris, eu não consigo nem imaginar o que é fazer uma

tradução disso.

CHRISTINE É um negócio bem maluco porque o

quê que acontece: o Artaud do Kuniichi Uno assim: o


(C)

Kuniichi Uno escreveu esse trabalho há 40 anos como

uma tese de doutorado orientada pelo Deleuze. Só

que quando ele começou a fazer a pesquisa do Artaud

com o Deleuze ele conheceu o Min Tanaka que tava

dançando lá em Paris, Munique. Ele era o cara lado

Butô (não posso falar mais isso porque ele desistiu de

Butô) . A última vez que ele veio dançar em São Paulo

ele falou que se alguém falasse que ele tava dançando

Butô, ele ia cancelar o espetáculo, mas, enfim...

naquela época era Butô, e aí então é uma Artaud, ele

fez uma pesquisa muito grande sobre o Artaud: estão

lá as cartas, os desenhos, o heliogábalo, a questão

do corpo tem um capítulo inteiro disso, mas assim é

um Artaud todo contaminado não só pelo Japão, mas

especificamente pelo Butô.

Então você imagina esse negócio dessa tradução foi

uma coisa bem maluca e como é muito recente eu

acho que deu uma embolada, Tarina, nessa questão

aí de catástrofe com criação que nunca, de fato, me

abandonou, mas durante um tempo eu deixei meio

de lado até porque também você precisa respirar um

pouco, né? Pensar em outras coisas...

32

Agora, assim, veio muito fortemente por causa desses

estudos da cripistemologia e que, claro, tem tudo a

ver com o Artaud porque é como ele dizia: ‘o ofício

dele era se reinventar’, mas se reinventar quando

você tá internado no manicômio é diferente da gente

se reinventar na nossa vida, né? É difícil, gente, é

difícil! Mas eu acho que são duas coisas que voltam:

uma é essa e a outra é esse desejo de ficção que vai

aparecendo de formas diferentes, sabe. Cada vez de

um jeito diferente. Que lá atrás aparecia muito para

mim na forma de poesia e depois foi se modificando,

agora um encaminhou aí com essa história da

fabulação e depois, você não tava me perguntando

isso, mas não entendi que era isso, e revelei para vocês

o meu segredo que é a vontade de escrever um livro

de ficção. (risos) Deu um bololô aqui na conversa, mas

tudo bem.

TARINA Eu quero ser sua primeira leitora!

Chris eu queria te agradecer muito mesmo e, para realmente, ser

a última fala da entrevista a gente vai propor que seja sua. É uma

pergunta, na verdade, do projeto porque é algo que nunca deixa

de ser um incômodo, não sei se é essa palavra mas algo que toca

a artista e o seu próprio tempo. Então a gente queria terminar a

entrevista com uma pergunta sua e perguntar o quê que você acha

que a artista da dança não pode deixar de te perguntar em 2022?

Que pergunta em 2022 você jogaria para alguém que fala assim:

‘eu quero dançar’.


(C)

CHRISTINE o quê que a pessoa não pode deixar de se

perguntar?

Olha a palavra que vem na minha cabeça é anarquia,

sabia? Anarquia. Como revolucionar, como criar

anarquia? É isso que a gente está precisando. E eu

acho que para fazer isso é só na micropolítica, é

realmente no pequeno. Esse confronto maior não é

para gente, isso é para outras pessoas, sabe? Porque a

gente não resolve nada, né, vamos combinar? Quem é

artista, professor, escritor... a gente não resolve nada,

a gente só cria umas zonas de ação. Então acho que é

isso a gente tem que trabalhar na anarquia, acho que

é isso que eu pensaria. (E esperança para a Futura!).

SORAYA Nossa, maravilhoso!

33


34


E

Entrevista

realizada

em

Maio

de

2022

SORAYA

PORTELA

ELISABETE

FINGER

TARINA

QUELHO

ENTRE

VISTAM

(D)

35 CLARICE Oi gente, bom dia! Hoje a gente dá seguimento a série de

entrevistas Cabeça Coração do projeto Futura. E a gente está aqui com

a Tarina Quelho e a Soraya Portela, entrevistando, conversando hoje

com a coreógrafa Elisabete Finger. É um grande prazer estar com vocês

todas aqui hoje, para a gente conversar. Eu e a Aline, coordenamos esse

projeto que foi contemplado pela 31 a edição do Programa Municipal de

Fomento à Dança para a cidade de São Paulo, Secretaria Municipal

de Cultura. Então agora, eu vou deixar vocês com elas para a gente

conversar. Obrigada pela presença.

TARINA Obrigada, Cacá. Clarice e Aline. Bom, gente, eu sou a

Tarina, meu nome é Tarina Quelho. Eu sou uma mulher cis, não

sou branca, sou mestiça. Tenho um cabelão assim bem volumoso

preto, já com fios brancos, porque eu já não sou tão nova. Estou na

frente de uma parede branca, vestindo uma camiseta azul marinho.

SORAYA Meu nome é Soraya. Oi, minha gente! Oi, Bete,

bem-vinda! Que saudade! Tarina, Cacá, as meninas todas

desse projeto Cabeça Coração. Eu vou me descrever: Eu sou

Soraya Portela, falo do Piauí, de Teresina. Sou uma mulher

de pele clara, tenho os cabelos encaracolados, eles vão até

aqui, à altura do ombro, tem um volume de cabelo. Eu uso

óculos, animal print. Tenho o rosto redondo, roliço. Atrás de

mim tem uma porta azul, com plantas e uma parede branca.

E eu quis fazer esse cenário aqui, homenageando a querida

Bete, né?! Maravilhosa! E aí, Bete, pode “arrochar’’.


(D)

36

ELISABETE Olá, queridas! Nossa que delícia estar

aqui com vocês, Soraya, Tarina! Bom, eu sou Elisabete

Finger, sou uma mulher de pele clara, de olhos

claros, tenho o cabelo castanho, agora ele está meio

avermelhado - não porque eu queira, mas ele ficou

assim. Estou usando uma franjinha bem curtinha.

Também já tenho umas ruguinhas, porque eu já tenho

quarenta e dois anos. Estou vestindo uma camiseta

verde, clara, assim bem verde, bem “cheguei!”. Estou

em Berlin, estou falando de Berlin, da minha casa. Tem

uma espécie de cortina cinza atrás de mim.

TARINA Bom, é um prazer estar com vocês duas aqui, claro! A gente

vai indo nesse bate-bola, numa conversa. Esse nosso encontro, a

gente está chamando de conversa, entrevista ou algo por aí, ele faz

parte de uma série de encontros, como a Clarice falou no começo, tá

dentro desse projeto que foi contemplado pelo Fomento e a primeira

entrevista, o primeiro encontro que a gente fez foi com a Christine

Greiner e a gente jogou para a Christine uma pergunta para ela fazer

uma pergunta que foi sobre o quê que seria algo fundamental, que

não pode não estar no horizonte de alguém, de uma jovem, que quer

trabalhar com dança contemporânea hoje, em 2022, no mundo. E

a Chris jogou a palavra anarquia. Teve um momento da entrevista

que ela falou uma coisa ótima. Ela falou: “a gente que é artista, a

gente que escreve, a gente não muda as coisas”. Ela falou algo por

aí, né, Soraya?! Eu não vou citar exatamente porque eu não lembro,

mas ela colocou algo como “o nosso papel é diferente, tem algo,

tem uma outra coisa…” Então, eu jogaria para você, não exatamente

para se relacionar com essa palavra, mas o que é que, para você

- pensando em fazer esse gancho com a Chris, é hoje algo que

não pode não estar no seu horizonte enquanto criadora, enquanto

coreógrafa, enquanto performer?

ELISABETE Uau! eu acho que é uma certa noção de

responsabilidade. Não sei, essa palavra me vem agora

quando eu penso que criar danças, criar arte, criar

movimento é também criar mundos, possibilidades.

Não sei se eu concordo tanto com isso de que a

gente não muda nada, acho que a gente pode mudar

bastante coisa. Mas a gente, com certeza, cria

fissuras e oferece possibilidades para a gente mesmo,

para quem a gente encontra, para quem encontra as

coisas que a gente está fazendo e aí nessa função

de criar mundos, danças e possibilidades, eu acho

que a gente tem uma imensa responsabilidade. Essa

palavra me veio com isso, com a ideia de que se eu

estou criando mundos, criando possibilidades, eu

tenho que ser responsável por ele. Mas também me

lembro de um jeito de pensar a responsabilidade que é

a habilidade de dar respostas, de oferecer respostas e

isso não quer dizer exatamente que eu vou ter todas

as respostas, talvez as perguntas nem existam ainda,

mas é essa habilidade de lidar com respostas, então, e

de colocar essas respostas no mundo mesmo que elas


(D)

37

não tenham relação direta com perguntas, sabe? É

uma coisa que me vem agora com essa sua pergunta

que parece bem filosófica, eu vou pensar sobre ela

ainda. A gente pode ir desempacotando no desenrolar

dessa entrevista.

SORAYA Eu acho interessante essa palavra, Bete,

responsabilidade, porque eu fico pensando muito mais

sobre tomar uma posição sobre as coisas que nos cercam,

nos circundam, né?! E se interessar mesmo, eu acho.

Me veio isso na cabeça. E também você falou a palavra

mundo. A gente tem falado, tem se falado muito, existem

muitas respostas sobre criar mundos e aí, eu fico pensando

assim: muitos mundos já existem, será que a gente está

se responsabilizando por esses mundos que já existem?

Mundos que, inclusive, com o trabalho da gente a gente deixa

de incluir, deixa de considerar, deixa de se responsabilizar

por eles. Mundos que constituem a dimensão da vida da

gente. E aí, eu acho que, nesse sentido, eu acho que tem a

ver com esse projeto Cabeça Coração que tem o interesse

de juntar mulheres. E eu fiquei pensando assim, eu lembrei

de uma coisa, você, Bete, é uma pessoa que quando a gente

conversa com você, seus olhos brilham. Eu acho isso incrível:

pessoas que conversam e os olhos brilham. E aí, eu fiquei

pensando sobre o que é que isso diz de você como artista. O

quê que isso diz de você como artista?

ELISABETE Ah, eu não sei… Eu me sinto muito

apaixonada pelo o que eu faço, pelas perguntas em

torno disso, por vocês, pelas coisas que vocês fazem.

Isso me move muito. Eu não consigo não me mover

com essas coisas e acho que é até um problema pelo

outro lado, às vezes eu tenho que fazer um grande

esforço para criar um equilíbrio entre a vida prática

cotidiana, tarefas, famílias, obrigações cotidianas

e esse impulso que eu tenho na direção da arte, dos

projetos, das criações, dos encontros. Então, para

mim, não é necessariamente uma escolha, sei lá, eu

me sinto puxada, sugada por esse lugar, um lugar em

que eu me comunico com o mundo. Sei lá, às vezes,

eu tenho medo também porque a gente pode beirar a

loucura em alguns projetos, sair mesmo das casinhas,

e percebo o quanto a gente se envolve com a arte e

deixa esse outro lugar - dinheiro, organizações para

uma vida prática, sabe? São coisas que vêm chegando

com a idade agora, sabe? Aposentadoria, onde é

que eu vou morar, como é que eu vou, enfim, talvez

isso já estivesse presente antes mas agora isso vem

chegando com mais força, e aí essa paixão que faz

brilhar o olho e que me leva para os lugares, eu sinto

que eu preciso equilibrar um pouco mais com essa

vida prática. Talvez essa ideia de responsabilidade

tenha que aparecer aqui de algum jeito, a habilidade

de criar respostas para esse equilíbrio. Falando assim


(D)

faz parecer que a arte está tão separada da vida, não

é? Não está, não acho que ela esteja, mas tem um

jeito de organizar o fazer artístico que eu acho que

para mim ainda é muito impulsivo, apaixonado e eu

estou tentando rever cada vez mais. É uma conversa

que passa por aí também, eu estou pensando cada

vez mais nisso, no labor da arte, no fazer arte, como a

gente organiza isso, como a gente faz isso de um jeito

saudável para a gente, sem enlouquecer, sem ficar

sem dinheiro, sem ficar sem aposentadoria, como que

a gente regula um pouco essas coisas.

TARINA Mas, Bete, seguindo um pouco nessa coisa do olho que

brilha e da paixão, eu fiquei curiosa sobre a sua relação com a

matéria, essa viagem, eu vou chamar assim porque é uma viagem

que eu vejo que está toda na sua trajetória, essa viagem ela

começou como? Onde? Teve algum momento, artisticamente

falando, em que você falou: eu sou artista? Teve um momento em

que isso aconteceu? E quando isso aconteceu, isso já veio junto

com essa curiosidade pela matéria? Parece para mim uma coisa

super sensorial de perguntar para o mundo que quase lembra o

lugar da criança que vê as coisas e as matérias como algo mágico,

por assim dizer. Não é exatamente uma palavra que você usa, mas

eu estou visualizando assim.

38

ELISABETE Então, várias coisas… Teve um momento

lá atrás em que eu pensei e, que eu me lembro como

um marco, em que eu fiz uma escolha pela arte. Eu fiz

faculdade de direito na UFPR, cinco anos, terminei,

nunca exerci, mas fiz esses cinco anos. E lá no meio da

faculdade eu só fazia o essencial para conseguir

passar raspando de ano e conseguir fazer os trabalhos,

fiz o mínimo para conseguir chegar no final. E lá no

meio dessa faculdade, eu me lembro que eu dividia

meus dias entre dançar de tarde e ir à faculdade de

manhã. E aí me apareceu um estágio que era um pouco

o estágio dos sonhos, todo mundo queria esse estágio,

e ele caiu no meu colo, alguém estava saindo e me

ligou dizendo olha, eu vou te indicar, eu queria que

fosse você. E aí, o que eu tinha que fazer? Eu tinha que

largar o balé. O balé e todas as danças que eu fazia. E

eu senti que eu tinha que tomar aquela decisão, e que

eu estava decidindo naquela hora o que eu queria para

o futuro e eu disse não para o estágio e disse não, eu

agora estou decidindo pela minha vida, pelo meu

estudo como artista. E, claro, demorou muito para eu

me entender com artista. Depois disso foi uma

confusão, eu fui para lá, fui para cá… E lá no começo,

eu também fiz parte dessa nossa geração que

começou criando, que não teve esse histórico de

passar por companhia de dança, a gente já vem desse

lugar do autor, de criar e se responsabilizar também

pelas coisas todas, então eu faço, eu danço, eu penso

o cenário, o figurino, eu sou responsável por essa coisa


(D)

39

toda que é uma obra. Eu já vim com isso em Curitiba,

na casa Hoffmann, em contato com outras pessoas

que estavam produzindo dessa forma, mas os meus

primeiros trabalhos, nas primeiras investigações eu

estava muito ligada na palavra, na estrutura da

palavra, eu adoro estruturas, hoje menos, mas na

época eu adorava as estruturas e estava muito ligada

à poesia concreta, eu lembro disso,eu estava na tensão

de Palavras: coisas no espaço tempo e eu criei as

minhas primeiras peças à partir disso, mas elas tinham

muita base nessa estrutura, tinha um lugar da

inteligência da estrutura e de um corpo a serviço

dessa estrutura. Bacaninha, legal, até funcionou,

circulei um pouco com esses trabalhos. E depois eu

fui, eu apliquei para uma escola na França, que é o

CNDC, em Angers, e fui parar nessa escola. E quando

eu cheguei lá, ninguém falava português, e as minhas

Palavras: coisas no espaço tempo não fizeram sentido,

ninguém entendia o que eu falava e não fazia sentido

traduzir porque estava na materialidade da palavra, e

também eu fui muito questionada, no bom sentido, fui

muito desafiada nisso de por quê eu vim estudar dança

se no que eu estava interessada era nessas estruturas

em que eu podia, praticamente, desenhar no papel a

peça? E isso foi bem desafiador para mim, porque daí

eu pensei, poxa, por quê mesmo eu estou aqui fazendo

isso que eu estou fazendo ou querendo fazer isso que

eu estou querendo fazer e qual é essa viagem do

corpo. E então, todo o meu tempo na França foi um

pouco para entender essas relações de como era a

minha entrada no meu próprio corpo e como era a

entrada do meu corpo nas danças que eu queria fazer.

E teve um momento ainda nessa escola, nessa

formação, era o final da formação e a gente estava ali

preparades para fazer nossas peças e eu estava

preparada para fazer um trio. Éramos eu e mais dois

artistas, um homem e uma mulher. E o que aconteceu?

Eles eram namorados e brigaram. O trio implodiu, todo

mundo acabou brigando e virou três solos - o que,

hoje, eu acho que foi providência do universo, porque

foi muito melhor para todos nós, mas na época, foi

uma grande crise porque eu não estava preparada

para estar sozinha no estúdio e me entender com esse

corpo, partir do corpo, começar pelo corpo. E um dia

indo para o meu ensaio solitário, eu pensei, eu preciso

de outra presença, preciso de um corpo para estar

comigo. E como não tinha ninguém, eu fiz o corpo, fiz

uma massa, foi aí que eu fiz a massa do Amarelo. Eu

peguei farinha, óleo, água e criei esse volume, era um

volume para estar comigo, era muito uma estratégia

para me devolver minha própria presença. Então, ter

outro me devolve a minha própria presença e isso

tanto pela textura, temperatura, o gelado da massa

me faz perceber como eu sou quente, o peso dela me


(D)

40

faz me conectar com o meu peso, o cheiro dela com o

meu cheiro e então, me coloca em mim. O fato de

trabalhar com uma matéria me devolve a mim mesma.

E foi assim que veio a massa. No começo eu queria

que ela fosse um corpo muito grande, depois eu já

imaginei que ela poderia ser um chão e eu ficava

fazendo massa em casa sem parar e cheguei a

dezesseis quilos de massa, e era assim muito pesada

e completamente fora de qualquer condição de

trabalho porque durava dois dias e eram quilos de

farinha e era assim, um pedacinho assim, não era nada

em termos de volume no espaço, mas era muita coisa

em termos de trabalho para fazer, materiais para

comprar, enfim, e aí eu entendi que a presença dela era

essa, hoje ela tem cinco quilos e ela é assim, ela é o

que ela é. E a partir desse encontro com essa massa,

esse fazer e me colocar em estado de fazer e de

encontrar, de mover para daí descobrir do que é que eu

estou falando, para daí descobrir que dança é essa.

Então foi a primeira vez que eu me coloquei nesse

lugar de dançar para descobrir que dança é essa, de

descobrir dançando do que é que eu estou falando ou

o que é que vai acontecer. E foi um processo longo,

super solitário, mas também muito prazeroso de

entender que é possível, e que essas coisas acontecem

e que a partir daí a gente pode desdobrar várias

referências e também aprender a se colocar nessa

posição de observador do que você está fazendo, do

que está acontecendo mais até do que o que você

está fazendo, o que está acontecendo entre você e as

matérias e aí ler possibilidades, caminhos possíveis e

deixar, puxar coisas para dentro desse conjunto. Eu

falo isso até nas oficinas, nas práticas de encantamento,

que não é que você nunca mais pode ter ideias, mas é

que as ideias que você tiver a partir de certo momento,

elas vão fazer parte desse grupo de matérias, elas não

são mais só minhas, elas ideias que vieram desse

encontro, elas são minhas e da massa, elas são dessa

assemblage que somos nós agora, esse novo grupo.

Então, eu acho que o encontro com as matérias veio

daí e aí eu fiz Amarelo que é essa que, nossa,

surpreendentemente ainda dancei agora há pouco

tempo. E para mim Amarelo foi uma grande formação.

Eu sempre falo: fiz Direito, fiz Amarelo. Amarelo me

formou mais que a minha faculdade de Direito, me deu

mais instruções de base, de princípios, do que eu quero

fazer na vida, do que eu quero colocar no mundo, das

coisas pelas quais eu quero ser responsável. Com

Amarelo eu descobri o modo de fazer, me deu um

chão, um chão amarelo para eu pisar. E depois disso

vem o desenvolver desse encontro com as matérias.

Eu acho que existe essa leitura, ela existe, eu vejo, eu

percebo, mas junto com ela me veio muitas vezes uma

leitura que falava de um certo animismo, de você ver a


(D)

41

alma das coisas, você lidar com as coisas como se

elas tivessem alma. Isso sempre me incomodou muito,

eu queria dizer não é isso, mas eu demorei para ter

instrumentos e vocabulário para conseguir desenvolver

um pouco mais isso, porque não se trata isso. E hoje

eu consigo dizer melhor porque achar que as coisas

têm alma, talvez elas tenham e a gente nunca vai

saber, talvez a gente saiba um dia, mas para mim não

é esse o ponto. Para mim, atribuir alma às coisas está

num lugar um tanto antropocêntrico, na nossa cultura,

porque para que essa coisa possa se mover, possa ser

criativa no mundo, possa surpreender, possa performar

no mundo, quer dizer que ela precisa ter alma? É um

pouco atribuir qualidades humanas à coisa. Por quê se

ela pode simplesmente ser coisa? E, sendo coisa, ela

pode performar, ela pode ser criativa, ela pode nos

desafiar. Então não estava nesse animismo das coisas

terem ou não alma. Estava no lugar da coisa. Pelo

simples fato dela ser coisa, ela vibra nesse mundo e

então está no lugar da matéria que vibra, está no lugar

da matéria que gera informações para esse mundo

mesmo independente de mim, as matérias se

encontram entre elas, elas se articulam, tomam

decisões, elas criam coisas, criam cosmos, criam

micromundos, outros mundos independente do que eu

acho disso. Então, eu acho que estava mais nesse

lugar do encontro com a coisa e de ver a coisa como

encantada, e então aí entra essa palavra encantamento.

Eu gosto mais do encantamento do que da mágica,

mágica não é uma palavra que pertence muito ao meu

vocabulário. O encantamento me remete a isso, a

essas práticas ou culturas ou tempos atrás na nossa

história ocidental em que o mundo é encantado, as

coisas tem poderes, as coisas tem sua própria lógica.

Então esse mundo encantando das coisas encantadas,

eu acho que está mais próximo da minha pesquisa do

que a mágica, porque a mágica parece precisar ter

alguém que a faça parecer mágica em lugar de possuir

mágica em si mesma. Enfim, eu falo disso também

nas oficinas, nós estamos tão acostumados a atribuir

características humanas às coisas que se, por

exemplo, a gente está numa casa e um objeto que está

na prateleira cai, a gente logo acha que é fantasma,

que o objeto não pode cair por si só, a gente acha que

ele não tem capacidade criativa, performativa para

simplesmente cair e a gente tem que atribuir a ele um

plus de qualidades humanas, “ah, a minha avó que

morreu nessa casa está querendo me mandar um

mensagem”, a gente não pode simplesmente admitir a

capacidade performativa da coisa que resolveu cair da

estante.Então, para mim está aí nesse campo.

TARINA Quando eu pensei na coisa que eu chamei de mágica e

usei essa palavra mesmo de um jeito bastante informal de criança,


(D)

42

eu falei muito mais nessa relação, que eu acho que tem tudo a ver

com o que você falou, de criar a massa, criar o corpo, muito mais

nessa relação física, material mesmo de algo que eu não consigo

explicar com palavra porque tem uma dimensão para mim que eu

estou chamando de mágica e, talvez não seja essa, realmente, a

melhor palavra, mas que tem a ver com esse pensamento que é

um outro pensamento, mas é um pensamento de curiosidade por

essa coisa, pelo que essa coisa tem e pelo o que ela faz por si.

Você ficou falando bastante do objeto e da coisa e, eu não sei é na

sua biografia ou em algum material onde você fala do seu próprio

trabalho, mas tem uma coisa que você colocou lá que me deixou

reflexiva. Você coloca o corpo enquanto coisa que excede o status

de objeto. Bom então a minha pergunta é: o que é esse excesso?

O que excede, excede para onde? E quando excede o status de

objeto, se torna o quê?

SORAYA Eu queria completar essa pergunta da Tarina

porque eu acho que existe uma relação com as coisas como

objetos e existe uma relação com a materialidade. Qual é aí,

não no sentido comparativo, mas quais são as qualidades

dessas duas palavras? Então eu queria aproveitar para falar

sobre isso e perguntar quais são as noções que você discute

dentro disso, porque eu acho que a depender dos lugares,

a depender de como as pessoas se relacionam, eu acho

que deve ser diferente. Mas vamos colocar assim: objeto é

uma coisa, no imaginário mais comum quando você escuta

objeto quer dizer que é uma coisa, e também tem o objeto da

academia, da discussão científica, da discussão legitimada,

de toda uma noção de como a gente aprendeu aquela

palavra, aquela definição e é ela quem vale, o objeto de

estudo, aquilo com o que eu me relaciono à distância, aquilo

que está a meu serviço, a serviço do que eu quero descobrir,

e aí tem a matéria que é algo, trazendo uma relação que eu

faço, quase maior do que eu, quase algo que às vezes desliza

pelos dedos, atravessa como ar, para mim matéria traz isso.

Eu fiquei curiosa.

ELISABETE Muito bom, gente. Obrigada por essa

pergunta! Bom, eu criei para mim mesma em algum

momento essa distinção. Eu não trabalho com objetos,

eu falo sobre isso e defendo esse ponto de vista. Eu

trabalho com matérias. Não que um seja melhor que o

outro, mas porque são relações diferentes. A relação

que a gente tem com um objeto é uma relação de uso,

por exemplo, essa garrafa tem água dentro e eu a abro,

fecho e a uso para tomar água. A relação que eu tenho

com a matéria é outra, é uma relação de isso é vidro,

isso tem esse peso, isso tem essa forma, essa coisa

aqui encaixa nessa aqui, elas se encaixam, olha que

erótico que é, eles viram uma coisa só. Então quando

eu falo nas práticas de encantamento, eu bem cri cri

com isso, que a gente não trabalha com objetos mas

sim com matérias. Eu falo também porque quando eu

chamo alguma coisa de objeto, eu automaticamente


(D)

43

me coloco no lugar do sujeito. Se isso é um objeto,

eu só posso ser o sujeito porque objeto eu não sou.

E a gente ainda coloca o objeto no sentido pejorativo

quando a gente é chamado de objeto, então eu não

sou objeto, eu sou o sujeito que o usa. Então não é

disso que eu estou falando, porque ainda que se

coloque valor de uso nesse objeto, critérios, dinheiro,

validade, legitimidade, ainda não é disso que eu

estou falando. Estou operando num campo onde eu

quero me entender como matéria, não como sujeito

necessariamente, mas como matéria. Eu gostaria de

ser esse corpo, carne, ossos, líquidos, pele, pêlos, essa

é a minha linguagem, esse amontoado de matérias e

texturas diferentes, essa assemblage de matérias e

texturas diferentes. E entender as coisas que estão

no mundo também como matéria, me aproximar

dessas coisas como matéria, então o meu trabalho

é, cada vez mais, criar práticas, exercícios, pesquisas

onde eu consiga me perceber mais como matéria e

me aproximar de um mundo de matérias, matérias

encantadas que tenham suas próprias sabedorias,

que performam, que são criativas. E tem um grande

entendimento que entrelaça tudo isso, que é o do

erotismo. Que talvez se aproxime em algum lugar do

entendimento da criança que bota tudo para dentro,

que bota o mundo para dentro, que bota tudo na boca,

que quer se aproximar das coisas e precisa cheirar,

botar dentro do nariz, dentro da orelha, dentro de

todos os buracos possíveis para se aproximar dessa

coisa e viver a experiência da coisa. É o erotismo de

Bataille, Georges Bataille, que vai falar de corpos que

se atravessam, se aproximam. Então o corpo que se

excede, que excede o seu status de objeto, é esse

corpo que sai do lugar onde ele estava confinado, esse

lugar em que o sujeito o coloca de servir para isso,

isso é um objeto, a gente faz esse uso dele, assim e

assado, tá explicado, resolvido, eu vendo esse objeto,

custa tanto, reproduzimos em série, isso combina com

aquilo… Então, ele corpo sai desse lugar e consegue

se revelar como coisa, então ela excede esse lugar.

Exceder é uma palavra que também vem de Bataille

que vai falar de dois corpos que se encontram e

conseguem se atravessar, e por um breve momento,

eles se excedem, eles continuam um no outro. Então

eu saio desse lugar da individualidade, do isolamento

e eu excedo esse lugar, eu escapo dele, eu encontro

o outro. E no erotismo do Bataille ele vai dizer que

isso acontece no sexo e talvez seja o nosso momento

mais evidente de exceder, de encontrar, de se misturar

com o outro, de continuar no outro, ele usa a palavra

continuidade. Mas é um momento muito breve, depois

disso a gente volta a se separar, eu volto a ser eu, você a

ser você, e um abismo entre nós, essa descontinuidade.

Mas a gente fala que o erotismo é uma condição,


(D)

44

uma busca. A gente está na vida buscando transpor

esses abismos e tentando encontrar, perfurar, cruzar,

penetrar, trazer para dentro, estar dentro de alguma

coisa, sair do isolamento do eu, dessa matéria sozinha

e encontrar outros e outras. Então o que Bataille

vai dizer, e que eu acho muito interessante sempre,

é que o erotismo não só tem a ver com sexo, não se

encerra ali. O erotismo tem, acima de tudo, a ver com

morte. Porque é só no momento da morte que a gente

vai, de fato, exceder esse lugar onde está confinado,

esse meu isolamento. Então no momento da morte

eu vou finalmente me misturar com a Terra, vou

jorrar, transbordar, vou ser tudo, vou virar o cosmos,

literalmente, vou virar adubo, vou virar árvore, vou me

encontrar completamente com essa matéria. Então,

essa questão matéria está muito entrelaçada a esse

lugar do erotismo nessa visão do Bataille, como uma

condição de estar no mundo, numa busca contínua de

estar no mundo. E esse lugar de exceder tem a ver

com isso. Exceder primeiro o status de objeto que

foi atribuído a essa matéria por alguém e de exceder

esse isolamento porque quando as matérias excedem

esse isolamento, elas se encontram, se misturam, se

perfuram, se penetram e depois voltam a ser uma

ou, talvez, as matérias possam ter essa capacidade

de permanecer misturadas. E aí, só para reagir a isso

que a Soraya falou de que as matérias se associam

a coisas grandes do cosmos, eu costumo buscar as

matérias para trabalhar que tenham menos formas

estabelecidas, que sejam menos evidentes como

objetos. Então, para mim, trabalhar com uma xícara

ou uma garrafa seria bem difícil porque ela traz toda

essa carga de uso, do seu valor de uso. Por isso eu

vou nesse lugar de um plástico gigante, uma massa ou

uma goiabada, e agora já me contradizendo, eu uso um

cubo que é uma forma bem estabelecida, mas é um

cubo com um buraco no meio que pode ser penetrado

e eu vou tentando desconstruir esse lugar da forma

que traz uma função. Eu acho que trazer essas

matérias que são mais disformes com cabelo, líquidos,

plantas que são matérias que tem a sua própria vida,

sua própria presença. Na Monstra, fica evidente que a

planta não é um objeto, embora isso sempre se possa

discutir, mas para mim é evidente que não é, ainda

que a gente possa tratar uma planta como objeto,

não é? Eu falo na Monstra que a gente pendura uma

samambaia na sala como quem pendura um quadro,

não é? Eu escolho o lugar onde ela fica melhor, coloco

uma luz nela e ela está arrasando, combinando com

o meu sofá. Então, sim, eu também posso objetificar

plantas. Pronto, eu falei bastante.

SORAYA É, a gente faz isso com pessoas também. Eu

fiquei pensando o tempo inteiro em relação a essa ideia de


(D)

45

objetificar. Inclusive, como é que a gente, às vezes, tem tudo

isso no trabalho, todas essas questões maturadas. Você

falou muito do fazer, de como o trabalho te despertou e te

manteve desperta nesse lugar de pensar em como criar,

como fazer e a importância desse lugar de fazer, então,

como é que a gente tem feito para criar nesses tempos? Eu

sinto que você trás uma coisa que talvez marque um tempo,

seja a cicatriz de um tempo, que é como a partir de um lugar

de prática, um convívio, os trabalhos apareciam e de como,

às vezes, a cicatriz desse tempo, as marcas do tempo agora

são outras, porque talvez a gente não tenha mais, não sei

se são as vistas da minha idade porque eu sinto que a gente

veio de um lugar de coletivo e tem esse marco também na

sua história onde as vistas se reuniam e elas tinham o lugar

de prática delas, elas cruzavam os interesses delas, elas

atravessavam, faziam interseção, faziam bifurcação, faziam

magia, viravam bicho para estar juntas - bicho no sentido

de selvagem como estado. Faziam isso e o trabalho surgia

desse olho d’água, coisa que para mim parece matéria, que

é quase como uma imensidão que pode ser mínima também.

Então eu sinto que tem isso, mas também tem agora, e eu

falo por mim também porque, às vezes, eu me sinto assim,

nesse lugar de pegar um livro para criar, eu pego uma questão

e aí então eu vou criar. Eu me sinto praticando, minha prática

é diária. Eu não separo vida e arte, não consigo nem sei se

existe isso e pouco importa quando é arte ou quando é vida.

Mas tem essas muitas variações das maneiras de criar

que dizem respeito a um tempo e sinto que tem uma coisa

muito importante no que você faz que é perguntar o que a

gente considera criação. Porque, às vezes, a gente objetifica

a criação. Então era isso que eu queria falar, quando é que

a gente objetifica a criação? No sentido de que a gente

passa um tempão mexendo em coisas, praticando essas

coisas mas aí vem a lógica do mundo e objetifica a criação,

transforma a criação em objeto porque os modelos de

fruição, os modelos de difusão, circulação, todos eles são

coisas de um mundo muito regulado. Então agora me deu

esse clic, eu fiquei pensando em como isso é forte. Então

eu estou pensando em como é importante, eu não estou

falando de algo que tenhamos que fazer, mas estou falando

dessa importância de estar atento ao lugar criativo. E aí eu

lembrei de uma coisa que o Antônio Damásio fala sobre as

descobertas e as tecnologias surgirem do incômodo, da

nossa precisão. E eu não estou falando de precariedade

ou miséria, mas da precisão da carne, da vida. E eu fiquei

pensando se você entende o seu trabalho como tecnologia

também e o encantamento como tecnologia, o erotismo

como tecnologia, a tecnologia do corpo.

TARINA Eu quero só jogar uma coisa aqui que eu fiquei pensando,

uma reflexão. Acho super legal como você está abordando a

matéria e como seu incômodo, para pegar um gancho no que a

Soraya falou, vai aparecendo em como você vai dando sentido

para as coisas no mundo, e eu fiquei pensando nessa relação


(D)

46

tão rica entre a ideia do sujeito e do objeto. Tem algo para mim,

conforme você foi falando, que é um paradoxo. Talvez seja mais

uma ambivalência, no bom sentido da coisa, que é uma coisa aqui e

outra ao mesmo tempo. Eu fiquei lembrando do Viveiros de Castro,

em um dos livros dele, o Anti-Narciso de Metafísicas Canibais, ele

fala um pouco da nossa relação enquanto sociedades ocidentais,

das culturas que a gente poderia chamar nativas e ele fala que

a gente pensa a relação sujeito e objeto num binarismo onde o

sujeito é um objeto sobre o qual a gente não consegue conhecer

tudo, por isso a gente dá para ele o status de sujeito. E nas culturas

Ameríndias, é o contrário, é o objeto que é um sujeito que você

não entendeu todo o aspecto. Então eu fiquei pensando um pouco

nesse binarismo sujeito-objeto, e tem algo que aparece quando

você fala da ideia do encontro, e aí eu entendo o excesso nesse

sentido, estou entendendo isso agora porque uma vez que as

pessoas não entendem quando uma coisa cai e logo querem botar

uma intenção, e ao mesmo tempo a intenção, a intencionalidade

de alguma forma é aquilo que constitui o sujeito. O sujeito tem

intenção, o objeto não. Então, tem essa ambivalência que aparece

no nosso próprio modo, no nosso modo brasileiro de entender a

vida porque eu acho que em diferentes lugares isso aparece de

formas diversas. Eu não estou fazendo nenhuma pergunta, acho

super legal isso que a Soraya colocou sobre como você entende

a tecnologia no seu trabalho. Eu estou refletindo sobre essa coisa

que aparece nas suas criações que, para mim, não é do animismo

mas sim dessa relação complexa, erótica, conturbada entre o que

é sujeito e o que é objeto.

ELISABETE Que interessante! Nossa, muitas coisas!

Eu até tentei anotar aqui para não esquecer de tudo.

Mas vou começar pelo final. Eu concordo plenamente,

não vejo paradoxo. Eu acho exatamente isso do

Viveiros de Castro, que eu conheço bem pouco, só

li os textos clássicos, mas quando o objeto, a coisa

ou a matéria cai da estante e a gente atribui a isso

características humanas, ah, foi uma alma, então eu

estou subjetificando o objeto que enquanto objeto

não poderia cair. Então eu só consigo atribuir o valor

de ação a um sujeito, dentro da cultura ocidental.

Porque eu como sujeito também considero que eu

sei tudo sobre esse objeto, porque a única coisa que

eu posso não saber sobre o sujeito que é coisa mais

complexa, que é aquela coisa de que o desconhecido

está em nós. Os objetos podem ser completamente

conhecidos, dominados, fabricados em série, enfim. E

é exatamente aí, porque o desconhecer não cabe ao

objeto, isso eu domino, eu conheço. Eu só desconheço

sujeitos que estão no lugar da complexidade máxima

e para que eu possa reconhecer uma ação no objeto

eu preciso elevá-lo à categoria de sujeito porque só

assim ele consegue estar no campo do desconhecido.

Eu acho isso muito interessante. E isso me faz um link

com a questão do incômodo e da objetificação das

nossas criações, pelo menos da forma que eu entendi,


(D)

47

Soraya, eu acho que a gente objetifica as nossas

criações quando a gente acha que sabe tudo sobre

elas, quando a gente atribui a elas esse valor de uso,

quando a gente fecha elas dentro dessa caixinha onde

ela nos serve. E aí, pode ser por vários motivos, até

mesmo os mais legítimos, e por que não também, não

é? Se as coisas nos servem, por que não objetificar?

Mas eu acho que isso é que é o objetificar, quando eu

coloco a minha criação nesse lugar em que ela me

serve, inclusive para pagar minhas contas, para me

dar sustento, para ser programada, para circular, para

chamar atenção para outras coisas que talvez sejam

mais misteriosas que não servem, e por que não, não

é? Então eu acho que o objetificar está neste lugar. Eu

não sei se eu consigo fazer isso, eu sempre acho que

vou fazer trabalhos onde eu acabo a peça e metade

das pessoas está assim (faz cara de incômodo), e

a outra metade está assim (faz cara de quem não

entendeu nada). São poucas as pessoas que vem me

dizer alguma coisa afirmativa sobre o trabalho, então

fica sempre em um lugar meio esquisito. Eu estou

lidando com isso, às vezes, eu me frustro muito porque

eu adoraria que as pessoas reconhecem, gostassem,

a gente quer ser gostado, não é? Mas eu não acho

que estou nesse lugar. Acho que tem um lugar ali

esquisito com o qual eu tenho que aprender a lidar e

que muitas vezes não serve para pagar as contar e

ser programado. Há muito tempo, quando eu estava

na França, eu encontrei um coreógrafo que eu adoro,

que também não é um coreógrafo que entrou nesse

lugar de grandes circulações, que é o Loïc Touzé, e o

Loïc falava uma coisa muito interessante, ele falava

que era importante a gente guardar de uma peça um

lugar que você não entende, um lugar desconhecido

para você, como uma caverna que você fala nossa,

não consigo entrar ali dentro, mas a caverna continua

na sua peça. Porque, ele dizia, é dali que você vai tirar

a próxima peça, é dali que as coisas vão vir, das coisas

não resolvidas. Para mim isso faz sentido, faz muito

sentido isso de guardar esse espaço de não saber

tudo sobre a coisa que você está criando. Porque

isso impede essa coisa de entrar no lugar de objeto,

justamente, do super resolvido. Então, guardar um

certo espaço para não resolver, para coisas com as

quais você não está completamente satisfeito, que

não é claro para você, que você não conseguiu definir,

um lugar do não saber e do desconhecido dentro de

uma obra e considerar essa obra acabada mesmo

sendo inacabada. Por exemplo, Amarelo. Eu faço ele

hoje e ainda olho e falo nossa, tem uns buracos, sei lá,

hoje eu pensaria em corrigir isso, mas eu não consigo,

não consigo corrigir e então eu só respeito. Então é um

lugar assim de respeito a essa coisa que é uma coisa

em si, uma coisa, não um objeto, isso é uma coisa


(D)

com os poderes da coisa, com o encantamento da

coisa, como a coisa que coloca coisas no mundo, que

performa por si só e chega um lugar em que a gente

só respeita e fala: bom, agora aqui eu não tenho mais

como arrumar, fechar, resolver. Então, guardar esse

lugar de não saber nas obras, para mim, faz parte. E

lidar com as críticas, com as inseguranças da gente

mesmo como artista de falar eu estou colocando isso

no mundo, e tem um lugar aqui que me incomoda, mas

faz parte dessa coisa e como é que a gente lida com o

nosso próprio incômodo? E talvez seja esse incômodo

que vai gerar a próxima coisa.

TARINA Eu acho super legal isso que você falou do não saber,

talvez porque também seja um espaço muito caro para mim na

criação. Eu sempre acho que o que a gente é o que é o óbvio,

então se você vai fazer aquilo que você já sabe, vai sempre fazer a

mesma coisa. Então, é um pouco esse algo, como você falou, que

fica e mantém esse espaço de possibilidades. Nesse sentido, qual

é a diferença entre sustentar esse espaço de não saber enquanto

coreógrafa e sustentar esse mesmo espaço como performer?

Tem diferença?

48

ELISABETE Acho que tem diferença, sim. Como

coreógrafa, eu acho, que está mais nesse lugar de

escolhas dramatúrgicas ou de ficar menos no meu

corpo e mais nesse corpo coletivo, nessa assemblage

da qual eu também faço parte, mas como eu não

estou em cena, está em outro lugar, está em um lugar,

talvez, mais organizacional na coisa e eu consigo olhar

para esse lugar com mais distanciamento. Como

performer, eu me lembro muito de uma das pessoas

com quem eu mais aprendi, colocando ali o Amarelo

no lugar da formação e as pessoas que cruzam nosso

caminho, essa pessoa é a Deborah Ray, coreógrafa

norte-americana. Eu tive dois encontros com ela.

Um em Curitiba, onde eu apresentei aquelas minhas

primeiras peças da poesia concreta e ela me destruiu,

e isso foi muito importante. Depois disso, eu vou à

França, passou um tempo, mais de um ano, e eu olho

lá no programa, quem está no programa? Deborah. E

aí eu falei nossa Deborah, eu sou brasileira, a gente

se encontrou na Casa Hoffmann. Você se lembra

de mim? E ela falou assim eu estava esperando por

você. E eu achei aquilo, uau, nossa, agora eu vou ter

que dar conta, segurar esse rojão. E foi um processo

muito intenso com ela, porque ela criou uma peça com

a gente e a gente fez os solos, as adaptações de solo

dessa peça e eu lembro da Deborah dizer uma coisa,

ela era ótima com entrevistas, as pessoas venham

entrevistá-la porque a gente estava dançando no

teatro municipal de Angers, e as pessoas pediam fala

sobre essa dança. E ela já falava assim dança? eu não

trabalho com dança. Já jogava tudo no ventilador. Ela


(D)

49

falava eu trabalho com espaço e tempo. E ela falava

disso, dessa combinação entre espaço, tempo e corpo

é sempre um não saber. Mesmo que você ache que

sabe exatamente o que você vai fazer, é sempre um

não saber. E aí o que ela mais chavama a gente, era

para cultivar esse estado. Eu estou neste momento

não sabendo a minha relação entre o espaço e o tempo,

esse é o meu estado como performer, eu estou aqui

não sabendo. Então era uma atualização constante, a

presença vem daí. Isso para mim foi uma grande chave

de virada. E você pode dançar a mesma coreografia,

eu admiro demais os coreógrafos que conseguem

desenhar o movimento, eu acho incrível, tenho tentado

chegar a esse lugar, me aventurar nesse lugar. Como

é que cria com esse requinte de detalhes e repete

sequências, frases inteiras? E como performer, como

você se coloca em relação com esse tipo de material,

com esse outro modo de presença? Por mais detalhada

e escrita que seja a coreografia, a realidade é que eu

não sei, porque não existe essa precisão de espaço,

tempo e corpo. Então eu não sei. Esse momento aqui

e agora eu desconheço.Mas é cultivar essa relação do

desconhecer, se colocar nesse lugar do incômodo que

gera a coisa. Então, para mim, como performer e até

como performer do meu próprio trabalho, um trabalho

que a gente repete várias vezes, que a gente conhece,

as matérias me ajudam muito nisso. Porque, de fato,

eu não sei. As coisas acontecem o tempo todo, elas

se atualizam, a massa muda com o calor, com o frio,

com a luz, com o meu contato com ela, aquele cabelo

de massa nunca é igual, por exemplo. Então essa

atualização de presença com as coisas também é

muito preciosa e é uma estratégia.

SORAYA Falando nisso, nessa coisa de você estar apresentando

um trabalho de dez anos, o Amarelo, por exemplo.

ELISABETE Tem dezessete anos o Amarelo.

TARINA Eu assisti, tem uns quinze (anos).

SORAYA Nossa senhora! É isso mesmo. Você falou dessa

coisa de respeitar o trabalho, entender que o trabalho diz

respeito ao tempo onde criar era daquele jeito e quais são as

fricções que ele causa nesse tempo agora. E será mesmo que

a gente tem tanto tempo assim? Será que não é o mesmo

tempo em que a gente vive recordando? Eu acredito muito

nisso, por isso eu amo o passado. Eu amo o antigo, eu acho

incrível o antigo. Eu acho maravilhoso poder estar aqui com

duas pessoas como eu, tem Cacá também, tem as meninas

que estão aqui no escuro dessa conversa, e saber que a gente

tem um passado juntas. Eu tenho um passado com a Tarina,

eu tenho uma memória com a Tarina, um tempo com a Tarina

onde a Tarina veio aqui e vê-la e encontrá-la nesse momento.


(D)

50

E tenho uma história com você também, tenho um passado

com você, então assim, como é importante a gente entender

isso para se desfazer e se despedir de algumas mazelas que

nos criaram como mulheres, como artistas, como bichas, não

é? Como bichas vivas. Então, eu fiquei pensando nessa coisa

do Amarelo, de apresentar agora, e tenho pensado muito

sobre a ideia de sustentabilidade de um trabalho, porque eu

acho que você traz um interesse nas suas criações, nas coisas

que você discute, nos pensamentos que você elabora com as

suas criações, que é uma ideia de ecologia, de cooperação,

de combinação, então eu fiquei pensando o que seria essa

sustentabilidade da criação? E eu queria completar com

outra pergunta: você dança a mesma coisa? Você considera

que você dança a mesma coisa? E junto com essa coisa da

sustentabilidade, da criação, dos trabalhos e da existência…

Eu acho que não é nem sobre responder, mas é sobre a gente

criar paisagens em torno dessas questões do que a gente faz.

ELISABETE Massa! Olhando para você agora eu vi

que ficaram um monte de coisas sem responder, não

é, Soraya? Mas uma delas, aqui você traz de novo, é

sobre o modo de criação, como a gente se organizou

como coletivo, essa coisa de a gente não estar

sozinha, sobre o modo de organização que também

pertenceu a um tempo… mas só para responder isso

e tentar chegar nessa nova pergunta que tem relação,

eu que a gente está sempre perseguindo esses modos

de estar juntos, não é? Como estar juntos? Acho que

essa é uma grande questão até política do mundo:

modos de estar juntos nesse mundo. Como que a

gente consegue estar juntos sendo separados, sendo

diferentes? Essa é uma questão bem cara para mim

como coreógrafa. Eu gosto cada vez mais de trabalhar

com grupos e é isso, como é que a gente pode fazer

coisas juntes sendo separados, sendo diferentes?

Como a gente vai fazer coisas juntes, talvez até a

mesma coisa que nunca vai ser a mesma coisa, sendo

corpos tão diferentes? Mas eu acho que isso é uma

questão que a gente persegue. Para mim, mesmo

que não seja mais o coletivo daquele jeito, eu sempre

vou trabalhar com grupos, com gente por perto.

Quando eu vejo, eu já estou de novo organizando

grupos, chamando, organizando projetos grandes

que envolvem milhares de pessoas e eu penso nossa,

mas eu queria fazer algo mais simples dessa vez, e

aí quando eu vejo, já tem gente. Eu estou cada vez

mais envolvida com os estudos da kundalini também

e tem um lugar da sangha yoga que é esse lugar da

comunidade onde a gente coopera e se responsabiliza

uns pelos outros de alguma forma sem precisar

fazer a mesma coisa. Então, por exemplo, a minha

comunidade aqui em Berlin, Michael, Michele, tem a

nossa comunidade brasileira, e é isso. Para eu poder

ver uma performance e se meu companheiro não está


(D)

51

aqui comigo, então o Michael ficou com a Sofia. Então

tem esse lugar de comunidade artística que também

entra no lugar de se responsabilizar por quem está

perto, pelos amigos que são parceiros de trabalho…

Então esse lugar da comunidade, eu acho que é muito

precioso. Agora, você perguntou da sustentabilidade

e das ecologias do trabalho… Bom, eu vejo que cada

vez mais, e de uma maneira até assustadora, eu estou

falando sempre sobre a mesma coisa. Talvez isso seja

sustentabilidade ou repetição, mas assim, a gente

espera que a gente vá se aprofundando. Eu já tive essa

conversa quando eu estava entrevistando o Alejandro

lá no cena onze, e era ver isso também, como a gente

recicla o próprio material, a gente faz a nossa auto

reciclagem mesmo sem saber, de uma forma intuitiva.

O Alejandro falava ah, aqueles bastões de metal

eles estão lá atrás. Então é isso, uma coisa que fazia

parte de um cenário e depois entrou na peça e que

depois se transformou nisso e depois naquilo e aí a

gente veio para propor Elefante com a transformação

dessa coisa e desse movimento junto com a coisa,

e eu acho que a gente faz essa auto reciclagem, os

nosso materiais coreográficos vão mudando, vão

reaparecendo e vão se transformando. Agora, vendo

essas duas pontas assim, Amarelo, por exemplo, que

eu considero que é a minha primeira criação onde eu

me entendi como criadora apesar de ter feito outras

coisas antes, mas eu vendo Amarelo e vendo Graça

que é essa peça que eu fiz com o Gira Dança, né,

vendo as duas coisas juntas, aí eu olho e falo nossa

isso eu já tava no Amarelo. Como é que eu estou

fazendo a mesma coisa até hoje? Passaram 17 anos

e, sabe, aquela coisa que estava lá atrás, ela reaparece

aqui e ela tá ali também de um jeito diferente, tá no

Buraco, está na Monstra, enfim. Bom, eu espero que

esteja cavando, né, ao invés de repetir, eu espero que

eu esteja cavando mais. Sim, são coisas que estão no

jeito que me relaciono com o mundo também, estão se

repetindo nas nas peças e acho interessante pensálas

como uma reciclagem, como esses ecossistemas

que vão se transformando. Tem sempre alguma coisa

antiga desse passado da Soraya que vai ficando, tem

sempre coisas novas que vão grudando e tudo isso

vai se transformando, mas tem ali uma coisa que vem

junto, então que vai se reciclando, que não é jogada

fora. Eu não sei se eu respondi tudo, Soraya ou se

ficou alguma coisa…

TARINA Bom, eu vou jogar aqui uma pergunta totalmente

alienígena sobre o que está sendo nossa conversa até esse

momento. Na verdade, não é uma pergunta totalmente alienígena,

mas é pensando nessa ideia do corpo matéria e você falou isso

que quando você vê, já está um conglomerado de gente,um

amontoado, né? Nos seus últimos trabalhos, eu acho que eu posso


(D)

52

estar enganada - isso também é uma pergunta, mas eu acho que a

maior parte deles é performado só por mulheres. Isso é um acaso?

É uma escolha consciente? Esse corpo matéria que também inclui

essas outras matérias, como ele aparece para você?

ELISABETE Muito bom! Então, eu faço muita coisa

ao mesmo tempo. Então tem alguns trabalhos que eu

estou fazendo que não são só com mulheres e que

ainda não estão rodando. Agora, por exemplo, fiz uma

série audiovisual que me deixou completamente louca,

chamada Histórias de Gestos, já já vocês vão ouvir

falar dela. Mas assim, tem todo esse trabalho invisível,

né, que a gente fica aqui na frente do computador,

suando, criando a série, trabalhando com mil licenças

e depois quando vem para o mundo, a gente fala ah,

ficou pronto!, mas foi uma trabalheira. E isso envolveu

muita gente. Eu fiz uma outra peça aqui na Europa,

com bailarinos de Portugal e Suécia, onde tem dois

homens também em cena e também é uma peça que

não circulou pelo Brasil. Mas assim, nessas duas, acho

que a gente está falando de Monstra e Graça, não é? A

Monstra foi minha retomada depois de ser mãe. Tarine

sabe bem, tem esse lugar, depois que você passa por

essa experiência que é um atravessamento gigante…

E eu tinha ido morar em São Paulo. Então foi assim, um

lugar novo para mim e eu também estava vindo dessa

experiência da maternidade de dois anos e meio em

casa com a criança e não conhecer São Paulo. Então,

eu já tinha uma provocação para criar a Monstra com

a Manuela Eichner e já estava trabalhando com ela

nisso e aí, a gente falou vamos lançar um chamado,

“procura-se performers”, aí a gente anunciou no

Facebook assim e aí ela fez uma colagem bonitona

lá e a gente recebeu quem veio, quem pôde vir e aí

era São Paulo, e a gente fez uma coisa bem elástica,

eram 5 dias de residência mas você não precisava vir

em todos, tinha que dizer em qual deles você podia

vir, então apareceu muita gente, as mais diferentes,

tinha alguns homens e tinha muitas meninas também.

Então foi essa a primeira residência. E aí as pessoas

grudam de certa forma, né, as assemblages se fazem

por si mesmas, nem acho que a gente tem que

escolher em algum momento, as pessoas escolhem.

Então, algumas pessoas foram desaparecendo, outras

ficaram mais firmes e aí, numa segunda residência a

gente já tinha esse grupo que estava mais sólido. E

aí, eram só mulheres, então, quando a gente olhou

para isso na segunda residência, bom, a gente falou

é, é um trabalho das meninas. Constituiu-se um

trabalho das meninas. Já tinha esse nome até, que

era um nome que eu não gostava, Monstra, porque

eu já tinha vindo dos estudos para monstro, eu tinha

pirado na história do monstro… Aí quando eu resolvi

virar a página, ok, próxima situação,próxima pesquisa,


(D)

53

aí eu encontrei Manuela e a gente vai fazer as coisas,

e está lá a Monstera deliciosa, aí ela tinha que dar

um nome para essa criação, então Monstra, eu falei

tá bom, título provisório, depois a gente encontra um

melhor. É sempre assim, né? Fica para sempre o título

provisório. Comigo, pelo menos, é assim. Aí ficou

Monstra e a gente viu que foi se formando esse lugar

das plantas com as mulheres, a peça foi se fazendo

desse encontro. E na Graça, foi um convite específico

do Gira Dança, do Alexandre. Eu acho que tem um

lugar do feminino no meu trabalho, talvez eu tenha

que aprender a articular melhor isso ainda, é um lugar

meio desconhecido para mim também, mas eu vejo as

pessoas apontarem isso. E o Alexandre veio com esse

convite para eu coreografar as mulheres do Gira, do

Gira Dança e eu achei sensacional coreografar esse

trio. Nossa, tão diferente! Maravilhoso! Então, fez todo

sentido também, mas aí já foi o ponto de partida, as

mulheres. E ainda a gente usou em algum momento,

essa expressão “as fêmeas do Gira Dança”. Então, foi

mesmo repensar o feminino, o corpo, representações

de corpos femininos, “o quê que é fêmea?”, “o quê que

é mulher?”, várias perguntas. E aí muitos assuntos…

TARINA A gente está se aproximando do nosso fim, mas Soraya,

fica à vontade…

SORAYA Eu tive vontade de perguntar, na verdade, eu tinha

várias perguntas, Bete. Primeiro queria dizer que eu fiz um

filme ano passado com quatro velhas, como eu chamo elas.

Porque eu acredito nessa força da gente dizer o que a gente

é, sem precisar ser mais, mas ter a possibilidade de escolher

o que a gente pode dizer que a gente é. Então, eu eu digo

muito para elas que tem que ser bom dizer que é velha, tem

que ser bom dizer que é um corpo antigo. Qual o problema

disso? Quais são as implicações que estão no corpo da gente

fica escondendo? Porque a gente esconde a idade da gente?

Qual é a importância da gente dizer a idade da gente? Da

gente dizer que a gente tá trabalhando, a gente dizer que

tem 40 e tantos e é artista, é uma mulher artista, é essa a

profissão da gente… Então,essas coisas importantes. E eu

fiz esse filme com elas durante a pandemia, elas são minhas

alunas, a gente dança juntas desde 2016, são mulheres de 70

anos para cima. E tem uma parte lá do Serenatas, não sei se

você viu, vocês viram, mas tem uma parte lá do Serenatas

que eu fiz em homenagem a ti, que é uma recordação a ti que

foi uma pessoa que eu fui estudar exatamente por que me

interessa essa relação com o corpo que não é essa maneira

pronta que a gente tem. Eu acredito, eu tenho estudado, que

o corpo a gente faz ele todo dia e por isso que ser criança

crescer dói, por isso que ser velho dói, por isso que ser uma

mulher de 40 anos dói, por isso que ser uma mulher artista

dói, porque a gente está fazendo o corpo o tempo inteiro

e fazer uma coisa, dói, às vezes, não é? Não é só a dor


(D)

54

desesperadora que tira a gente das coisas, mas uma dor que

põe o corpo em crise, que incomoda, que faz a gente querer

outras coisas, abrir o apetite. Então assim, nesse filme tem

essa parte em que a Tetê tira uma peruca de dentro do

armário da cozinha, é a peruca de uma travesti. Então, é uma

mulher de 70 anos sabendo que o poder que ela queria na

vida, era botar uma peruca de travesti. Então assim, a arte é

esse lugar exatamente de poder fazer coisas, fazer massas,

desenvolver magias, encantamentos. Então queria te dizer

isso e perguntar para ti quais são as comunidades que o teu

trabalho como criadora tem criado. Qual é a importância

de pensar, de saber disso? Porque a gente falou sobre criar

mundos, mas já tem muitos mundos para gente dar conta e

eu acredito que não é sobre edificar esses mesmos todos,

mas é sobre se relacionar com os mundos que já existem

para daí, na fricção, outros mundos surgirem, né? Então, qual

é essa responsabilidade, pegando a palavra lá do começo,

qual é a responsabilidade de olhar para essas comunidades

que o trabalho da gente cria? Desde as pessoas com quem

eu estou trabalhando e a importância disso, desde as

comunidades que eu crio quando eu estreio o meu trabalho,

quando eu vou torná-lo público, quando eu faço esse trabalho

agir na exterioridade, né, contactar o mundo… Como eu

considero isso? Em que parte eu considero as pessoas no

meu trabalho? No momento que eu estou criando ou é só

na hora que eu vou mostrar para elas? Então, quais são as

comunidades que você entende que o seu trabalho cria? E

uma última pergunta que eu acho ótima, porque eu adoro

pegar pergunta das outras, que é uma pergunta da Tereza

Rocha, que ela perguntou um dia para mim. A Teresa Rocha

é quem fez o livro Dança Contemporânea. Eu acho que as

bichas todas, ou um pouco das bichas conhecem. Teresa

Rocha é uma bicha cearense, minha gente! Quem não

conhece, procure saber do livro dela. Ela é ótima! Bom, ela

perguntou uma vez para mim: onde o seu trabalho tropeça?

Onde ele gagueja? Eu acho que tem a ver com isso da

comunidade que eu perguntei. Onde o teu trabalho gagueja?

As suas práticas, a coisa toda…E se você pensa sobre isso,

porque, às vezes, a gente não pensa e se não pensa, não tem

problema nenhum, não.

ELISABETE Olha! Lindas perguntas. Agora, eu

vou tentar chegar nelas. Espera aí. É… Bom, eu

vou começar pelo tropeço. Eu acho que eu vivo

tropeçando. Eu gostaria de tropeçar menos. Mas

quando eu vejo, eu já estou nesse lugar. Como é que

eu fui me meter aqui? A última foi essa de dizer que eu

ia fazer uma série audiovisual, se eu nunca fiz. Eu não

sei de onde eu tirei toda essa empáfia de dizer que eu

ia fazer, vamos fazer, vou fazer acontecer. Tem cinco

episódios, contratei equipe, pedi patrocínio, consegui,

aí vieram os contratos, orçamentos, advogados… E

quando eu estou lá no meio, eu penso gente, por que

eu fiz isso comigo? Mas, claro, adoro o trabalho, estou


(D)

55

super apaixonada, é uma série que eu amo. Mas eu

tropeço muito, eu me vejo nesse lugar do tropeço

como um incômodo, sabe? Porque parece que eu

estou sempre procurando. Acho que é mais o lugar

do desconforto, do não saber. Então quando eu acho

que ele tá ficando fácil, eu invento uma coisa. Lá atrás

foi o Discoreografia. Eu vou fazer um programa de

rádio agora. E assim, eu tinha acabado de parir, por

quê que eu vou fazer um programa de rádio agora?

Mas era um lugar super prazeroso que apareceu e no

final das contas, parece que foi tudo sincronizado,

também foi um momento que eu me afastei um

pouco dos processos de criação, então eu vivi um

pouco os processos de criação dos outros através

do Discoreografia, mas é esse lugar de como é que

eu posso sair desses lugares e ir para outros? Então,

eu me sinto nesse movimento. Não é tão consciente,

porque, às vezes, me custa um tombo, um stress, uma

questão. Então eu acho que, de certa forma, eu cultivo

o tropeço. Claro, tem os outros tropeços. Não sei se

era essa a pergunta exatamente, mas de coreográficos

ou dramatúrgicos, com certeza tem. Nem sei se eu

consigo avaliar, talvez. Já teve questões mais antigas,

algumas dessas de produção de imagens que eu vejo

também, hoje em dia eu lido com mais tranquilidade

quando as pessoas falam do meu trabalho, né, que tem

muitas imagens produzidas e é uma preocupação, para

mim, de que essas imagens sejam a consequência de

uma ação e não uma imagem pela imagem. Então, isso

eu tenho trabalhado duro nos últimos anos. Espero

ter saído desse lugar. Mas é uma questão que eu me

pergunto sempre, sabe, pergunto para as pessoas que

estão trabalhando comigo, será que a gente tá indo

para esse lugar? Sabe, essa imagem que a gente está

criando é uma coisa que a gente faz assim e venho

aqui e faço uma coisa e “tcharam!”, produzimos uma

imagem e quando acaba essa imagem, vamos fazer

outra coisa. Então, não é isso que eu quero. Então,

como é que essa imagem é uma consequência dessas

relações entre corpos e matérias? Bom, então esse é

um tropeço em que eu me policio, sim, para não entrar

nesse buraco. Não nesse buraco, em outros tudo bem.

E sobre as comunidades, eu acho acho incrível como a

gente forma comunidades. Eu me apego, me emociono.

Agora eu tenho esse lugar de dar aula. Nos últimos anos

eu dei muitas aulas. Partilhei todas essas informações

e outras nessas práticas de encantamento. E, nossa,

eu viajo nas pessoas, me apego, choro, vou embora

morta. Para mim, cria-se uma comunidade de afetos,

de desdobramentos. E eu vejo isso, sabe? A Monstra,

por exemplo, quando a gente apresenta e no final a

gente oferece as plantas para as pessoas, e as plantas

estão mijadas, espalhadas, quebradas e as pessoas

vão lá e pegam as plantas e depois de um tempão,


(D)

56

me mandam fotos das plantas e dizem olha só, essa

planta veio da Monstra. Eu acho sensacional, acho

isso sensacional! Como a gente cria esses vínculos

das peças passando pelo mundo. Quando você me

fala de comunidade, também lembrei disso, de como

eu fui para lá com o Gira Dança e como eu aprendi

com elas, assim, vendo essa comunidade delas ali, e

eu me lembro da gente chegar e eu propus da gente ler

coisas juntos, ler em voz alta e depois fazer anotações,

e criar um coro. Eu estou na investigação desse coro

também faz muito tempo. Tem na Monstra, depois

aparece na Graça, coisa que já tinha lá no Amarelo, no

Buraco… E aí tinha essa investigação desse coro e eu

pedia para a gente escrever coisas e a Jânia me fala

assim olha Bete, com aquele sotaque maravilhoso,

eu não sei fazer essas coisas, não, escrever essas

coisas difíceis, não, não consigo falar essas coisas

bonitas… Aí eu falei Jânia, relaxa, não é essa a ideia,

vamos fazer, vamos no processo de fazer a palavra

como matéria, vamos fazer! E aí depois de um tempo,

era aquilo: corta, pega um texto aqui, costura dali e

repete, repete, repete, canta, aí passa para a outra…

E aí, a Jânia me sai com ela, ela fala assim, quando

eu vejo ela está cantando essa: “o Poder da mulher é

voar e sangrar como um pássaro imaginário”. Eu achei

isso tão incrível! Isso vem de vários lugares, sabe, que

a gente leu ou alguém falou e a outra repetiu… Mas

ver isso nela, assim, para mim, é muito interessante

ver como o trabalho construiu essa frase com ela. “O

poder da mulher é voar e sangrar como um pássaro

imaginário.” Eu podia tatuar essa frase da Jânia. Mas

assim, essa construção de comunidades é também

a gente aprender com essas comunidades; né; como

o que a gente coloca lá como pretexto, talvez, para

a gente criar coisas juntas, volta para a gente de

um outro jeito, muitas vezes surpreendente. Então,

muitas comunidades, gente! Essas dos trabalhos, daí

essas como professora, de kundalini também e eu

acho sensacional! Talvez, o que eu esteja fazendo seja

só um pretexto para criar comunidades, não é? Para

ficarmos juntes nesse mundo.

TARINA Meninas! Eu vou chamar vocês de meninas nesse momento.

ELISABETE Chama.

TARINA Bom, eu acho que, de algum modo, esse projeto aqui

também é uma tentativa de criar comunidade. Fiquei refletindo

sobre essas últimas coisas que você falou lá atrás, em como você

chegou nessa ideia do fazer para estar junto como também a

ideia das matérias também é atravessar esse só que, talvez, seja

apenas uma ficção porque é da habilidade das coisas estar em

relação, então, agradecer a Clarice e a Aline, a todas as meninas

e menines do projeto, por estarem, de alguma forma, promovendo


(D)

essa possibilidade em que todas nós estejamos, por um pequeno

tempo que seja, em comunidade. Eu amei todas as coisas que você

falou porque eu acho que sempre a gente pensa melhor juntas,

né? Eu acho que isso é uma das coisas mais incríveis de poder

estar em relação mesmo que seja por um período curto de tempo,

né, Soraya? Você estava falando dessas nossas histórias do

passado, acho que a gente também tem histórias entre a gente e

essa é mais uma que, às vezes, é um encontro tão curto mas que

vai ressignificando um monte de coisa, e daqui a alguns anos e a

gente vai falar ai, nossa! Como você, por exemplo, que lembrou

do coreógrafo e do que ele te falou, como quando você lembrou

da Deborah Ray e a gente volta entre nós mesmas. Então é isso,

muito obrigada, Bete! Obrigada, Soraya! Obrigada, Clarice e Aline.

Obrigada a todos que estão aí em algum lugar!

CLARICE Tarina, você não vai jogar uma pergunta para a Bete, para finalizar?

TARINA Vamos jogar! Vamos voltar na pergunta do começo,

né? Você teve aí duas horas para meditar sobre ela, então a

gente vai jogar, que a gente tá jogando esse esse link, essa essa

continuidade, que é pergunta com a qual a gente começou. Que

pergunta você acha que um artista, uma jovem artista quer fazer

dança contemporânea hoje, em dois mil e vinte e dois, não pode

deixar de se fazer? É isso, gente? Vocês podem entrar na pergunta

também se vocês acharem que ela está muito abstrata.

57

ELISABETE Uma pergunta para uma pessoa jovem?

TARINA É, para os jovens. Eu fui etarista agora, eu fui para as

pessoas jovens porque a gente já tá com as nossas corpas e

cabeças e corações cheios de questões.

ELISABETE Nossa, eu nem sei como formular em uma

pergunta. Mas eu acho que eu perguntaria isso, que foi

uma pergunta importante para mim, que é: o que há de

específico nisso que você escolheu como linguagem,

como princípio ativo, e que só pode ser feito aqui? Se

a gente está falando de dança, de movimento… Enfim,

na dança contemporânea o quê que só pode ser feito

aqui? O que é isso que você está perseguindo que só

pode ser feito aqui? O quê, de específico, você agarra

para o seu trabalho que só pode ser feito neste meio?

Pensando a dança contemporânea como um meio.

Para mim, foi importante entender o que de específico

eu estou perseguindo e por quê que eu não estou na

literatura ou no cinema - lugares nos quais depois

a gente possa até estar, como eu estou agora no

audiovisual, mas o que é que tem aqui que te interessa

de tão específico assim? Então, eu acho que encontrar

uma pedrinha, uma coisinha, e conseguir reduzir isso

a um lugar muito específico que é o que te interessa e

que está aqui nesse meio. Mas são muitas perguntas,

gente, eu tive que escolher uma, tá? Porque foi difícil.


(D)

TARINA Mas essas já são, na verdade, muitas, Bete. (risos)

ELISABETE É. (risos)

CLARICE Obrigada, gente, pela presença!

TARINA Valeu, gente!

ELISABETE Obrigada!! Eu agradeço muito. Olha, foi

uma delícia. Obrigada! Que linda essa comunidade, eu

quero ver as outras entrevistas agora, quero falar com

vocês depois. Já fiquei apegada, vamos falar mais.

CLARICE Eu agradeço aqui, em nome do projeto, à Tarina, à Soraya, à

Bete e a todas e todes que estiveram aqui com a gente. Muito obrigada!

58


59


60


TARINA

QUELHO

ENTREVISTAM

E

SORAYA

PORTELA

Entrevista

realizada

HELENA

VIEIRA

em

(E)

Junho

de

2022

61 CLARICE Oi, gente! A gente está aqui para a terceira entrevista Cabeça

Coração. Hoje estamos com a Helena Vieira e quem vai entrevistá-la é

Tarina Quelho e Soraya Portela. Lembrando que o Cabeça Coração faz

parte do projeto Futura que foi contemplado pela 31 a edição do Programa

Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo, através da

secretaria municipal de cultura. Estamos aqui todas as participantes do

Cabeça Coração, e a Aline Bonamin que também é coordenadora deste

projeto junto comigo. Então, vou deixar agora com vocês. Obrigada.

TARINA Oi, gente! Boa tarde, bom dia, boa noite - dependendo

do horário de quem está assistindo a gente. (risos) Meu nome

é Tarina, eu sou uma mulher, não sou branca, tenho um cabelo

bastante volumoso que não é liso, mas também não poderia dizer

que é crespo. Estou na frente de uma árvore, uma Jabuticabeira

que eu amo que está nesta casa desde que eu nasci. Eu estou na

casa dos meus avós.

SORAYA Olá a todas! Eu sou a Soraya Portela, falo aqui

de Teresina, Piauí. Sou uma mulher artista, tenho cabelos

encaracolados, sou uma mulher de pele clara, estou com

óculos, minhas bochechas são redondas, minha cara é roliça

- ainda bem, cheia de curvas. Atrás de mim tem uma parede

branca com quadros de uma mulher com os braços acima

da cabeça, tem uma galinha mulher, tem uns quadros meio

abstratos de riscos de tinta e do meu lado tem uma janela


(E)

azul com uma cortina e um gato preto acaba de passar por

aqui, chamado Cibalena. Então, vamos lá.

HELENA Eu sou Helena Vieira, estou aqui em um

fundo branco com uma porta. Sou uma mulher de pele

clara, de cabelos cacheados, sou uma mulher trans,

estou com um vestido preto de gola canoa.

62

TARINA Helena, então, primeiro de tudo, claro, agradecendo em

nome do projeto, não? Super, assim, por você ter topado conversar

com a gente. E a gente tem tentado, apesar do nome dessa coisa

que a gente tem tentado fazer ser entrevista, a gente tem tentado

que seja mais como uma conversa, mas é um misto. Esses dias

eu lembrei de uma história, e eu falei que a gente podia chamar

fofoca, não é? Porque a Silvia Federici fala que fofoca ou gossip, na

verdade, era sinônimo de amiga, não é? Então, quando você falava

assim eu tô indo gossip, quer dizer que eu estava indo com a minha

amiga. Então, de alguma forma, essa conversa entre amigas é uma

gossip e que depois foi apropriada como algo que é vergonhoso,

com a ideia de fofoca como uma coisa ruim, mas enfim. Então, só

para dizer que tudo isso está dentro das possibilidades da nossa

conversa. (risos) E pensando um pouco assim nas coisas que a

gente leu e em falas públicas suas, eu já queria começar jogando

para você uma pergunta que é a seguinte: qual que é a relação

ou o limite ou o fio de continuidade entre a militância e a criação

artística? E onde que essas práticas se sobrepõem ou não se

sobrepõem? Onde elas divergem e onde elas convergem? E como

que a imaginação opera nesses campos?

HELENA Nossa, é uma pergunta nada simples. São

muitas perguntas juntas. Bom, mas eu acho que a

primeira coisa é o quanto essa pergunta é importante,

sobretudo se a gente pega o fio da produção artística

do teatro, das artes plásticas, da dança nos últimos

dez anos, a gente vai ver que a gente passa por um

momento dos temas vinculados à arte feminista,

aos temas vinculados a uma produção baseada no

corpo socialmente descriminado, no corpo negro,

no corpo trans, a gente vai ver que essas temáticas

ganharam espaço dentro das artes. Essas temáticas

ganharam espaço dentro das artes e um conjunto de

reivindicações desses sujeitos também modificaram

a cena artística. Então, movimentos de artistas

trans, movimentos de artistas negros, o resgate de

uma perspectiva ancestral nas artes… Parece que

esse conjunto de forças nos últimos quinze anos, foi

uma tsunami na nossa cena artística de modo geral.

O que fez com que, inclusive, artistas que gozavam

de grandes renomes, mas que faziam uma arte mais

mainstream, mais clássica ou menos contestatórias


(E)

63

caíssem, fossem um pouco para a margem ou ficassem

com menos espaço e se instala em dado momento uma

zona de reivindicação, mas também uma zona de malestar.

Acho que isso é importante, não é? A entrada

desses novos sujeitos em cena, não é tranquila. Não é

tranquila. O fato de não ser uma entrada tranquila, e aí

tentem ver como eu estou vendo isso, eu estou vendo

como se houvessem por debaixo dos palcos, todo um

movimento tectônico de afetos e alguns afetos vão

construindo, então, uma série de embates no campo

das artes que também vão interferir na forma de

produção da arte, de modo que a gente vai ter uma

cena muito marcada para uma arte extremamente

engajada, extremamente vinculada à identidade, e

então, a arte se transforma ou a produção, a criação

artística em dado momento se transforma em uma

linguagem para falar de identidade. Ou ela aproximase

perigosamente de ser apenas uma ferramenta para

falar de identidade - o que eu acho extremamente

importante. Importante porque traz novos corpos,

novos discursos para o centro do debate. Contudo,

eu acho que a gente está em um momento que é

preciso dar um passo além, é preciso entender as

linguagens artísticas - e eu vou falar linguagem por

mero didatismo, porque eu não acredito hoje que

consiga se separar com clareza o teatro da dança,

a dança das artes plásticas e todos eles do cinema.

Eu não sei como é que a gente separa tudo isso. A

gente está no fundo de uma miscelânea. Bom, mas

eu vou falar as linguagens por didatismo. Então, eu

acho que para essas linguagens foram importantes os

processos que a gente viveu, mas a gente precisa dar

um passo além para que essas linguagens não sejam

só ferramentas de militância, mas que elas consigam

produzir criativamente discursos artísticos que não

desconsiderem aqueles corpos. Não se trata mais da

corporalidade meta-corporal que é o corpo negro em

cena falando do corpo negro ou o corpo trans em cena

falando do corpo trans, mas é estes corpos em cena

produzindo discursos multiplos, porque não me parece

bom existir uma sobrecodificação onde o conteúdo

se imponha sobre a forma. Então, por exemplo, eu fiz

algumas curadorias e eu fico com um sentimento de

que tudo parece tanto a mesma coisa. É como se a

gente estivesse - e isso é compreensível e é positivo,

mas é como se a gente estivesse em um momento

de looping, de repetição de que o mesmo discurso

é fundamento em determinadas corporalidades, a

gente está nessa hiperprodução de coisas parecidas.

Eu acho que esse é o nosso momento. A gente precisa


(E)

64

dar um passo para o além que é, talvez, reescrever

os clássicos, sei lá. Gente, olha, eu acho que eu estou

numa pira de voltar para o Édipo… E reescrever aquilo

à luz desses embates que se realizaram agora. Então,

toda arte, para mim, ela é política, mas nem toda ela é

engajada politicamente. E eu acho que não deveria ser

porque a linguagem da militância, a linguagem própria

do ativismo, ela funciona em determinadas camadas

do sujeito, não é? Se a gente parar para pensar como

é que nós, enquanto sujeitos, enquanto corpo, como

é que nós nos relacionamos com o mundo? Nós nos

relacionamos com o mundo em duas dimensões

fundamentais. A primeira dimensão é a dimensão dos

perceptos, que é aquela dimensão da nossa relação

racional com o mundo, então, o que eu percebo como

racional, o que eu consigo entender do ponto de vista

da razão e que pode se transformar em linguagem no

campo do simbólico. Então, tudo aquilo que eu posso

efetivamente pensar, é percepto. E há aquelas coisas

que nós aprendemos com o corpo, que são do âmbito

dos afetos, que é daquilo que se compõe com esse

corpo e o modifica produzindo algum saber; saber

este que nunca vai ser posto em linguagem porque

ele resiste à simbolização. Ele é um saber que ele

está ali sempre com uma insistência que deforma a

nossa capacidade de pensar nos termos da linguagem.

O corpo enquanto essa força, ele é um lugar onde a

arte é sua. De modo que a militância fala à razão, fala

aos perceptos. Mas a arte não pode se restringir ao

campo do simbólico como linguagem, ela precisa falar

ao corpo. E aí, é preciso então que nós não assistamos

mais ou vejamos apresentações e obras de arte para

perguntar o que isso significa ou o que isso quis dizer.

A pergunta deveria ser: o que isso fez comigo? O que

aconteceu em mim quando tive contato com aquela

obra? E aí, por isso, eu acho que é uma perda para a

potencialidade como instrumento, para os campos de

afetos, de intensidades. É um problema para as artes

se elas se permitirem ser polidas pelas linguagens do

ativismo - não que a linguagem do ativismo seja ruim

ou equivocada, mas porque a linguagem do ativismo

não tem o mesmo potencial de alcançar o mesmo

campo do sujeito que tem a linguagem da arte. De

modo que se o ativismo é inundado de arte, ele deixa

de falar direito; e se arte for inundada de ativismo,

ela deixa de falar direito. Não que esse corpo do

artista não possa ser uma coisa e outra ao mesmo

tempo, a minha questão é: a gente tem que avançar

um pouco nisso. A Suzan Sontag, em um texto dos

anos sessenta, chamado contra interpretação, fala


(E)

justamente que nós vivemos no império do sentido,

do significado sobre a forma e a gente está sempre

em busca de interpretar, de buscar o que foi dito. Mas

não é sobre buscar o que foi dito, e sim permitir que

a obra aconteça em você numa composição criadora.

Eu acho que tem um outro lugar para a arte que não

pode ser sobre codificado pelo ativismo, mas isso não

significa retirar da arte em suas múltiplas linguagens

o seu caráter político.

TARINA Maravilhosa. Fiquei lembrando de uma coisa que eu

gostaria de falar que é sobre perspectiva. Eu acho que tem uma

ideia de perspectiva, não é? Existe uma perspectiva trans sobre

o corpo trans, mas também existe uma perspectiva trans sobre

economia, sobre política, sobre moradia e, de alguma forma, eu

sinto isso que você está conversando também no campo das artes

de um modo geral. Esse salto de entender que é uma perspectiva e

não necessariamente um tema que se encerra em si mesmo, menos

um tema e um modo de ver ou de criar ou de sentir. Então, eu acho

fundamental isso aí que você trouxe para a nossa conversa e me

sinto muito tocada por isso.

65

SORAYA Eu fiquei pensando também, a partir disso que

você traz, e eu acho que tem um ponto bem importante que

é, assim, eu acho que também é um reflexo do momento

que a gente vive, que é a coisa de quem assiste ou quem

é espectador, quem é público. Para mim, eu gosto muito

mais de me relacionar e pensar como pessoa e não como

um grupo que tá ali enquanto lugar e, talvez, possa se

pensar ali numa comunidade temporária, não é? Que vive

uma experiência com uma coisa ali, todo mundo vai dividir

uma experiência, compartilhar uma experiência artística

ali. Isso que você falou me faz pensar no seguinte: é como

se as artistas, os artistas estivessem preocupadas em

criar uma coisa, em processar todas as questões que vem

junto com o trabalho artístico e o público, as pessoas que

vão assistir, ficam nesse outro lugar que é perguntar o que

é que isso significa, não é?É como se, realmente, a gente

confirmasse a nossa relação de viver em mundos separados

e portanto se relacionar com a criação, com a experiência

artística de maneiras também separadas, não é? Então, eu

fico pensando… Uma das perguntas que eu faço é: quando

você está no processo criativo de criação de um espetáculo,

de um livro, de uma fala - porque eu considero que a criação

pode estar numa fala, a criação pode estar numa palestra, a

criação pode estar uma obra artística, a criação pode estar

no texto, no livro, não é? Então, em que momento você se

pergunta onde as pessoas estão naquilo que você faz? Em

que momento eu considero as pessoas que eu nem sei quem

são, mas que vão estar comigo no compartilhamento de


(E)

66

uma experiência? Quando eu as considero no meu trabalho?

Aí, eu pergunto isso para você. Quando você vai falar,

quando você está pensando em um roteiro - como você

está fazendo agora, quando você vai criar um texto você

pensa sobre isso?

HELENA Eu acho que tem uma coisa que é: nós nunca

efetivamente nos relacionamos com o público. Nós

nos relacionamos sempre com a ideia que nós temos

do nosso público, de modo que a nossa relação é

sempre com a gente mesmo. Com a gente e com os

nossos estereótipos. Então, a gente está sempre se

relacionando com uma ideia de público que é produzida

por nós e é alimentada pela nossa bolha, seja ela qual

for, de modo que a nossa relação é sempre com a

gente mesmo. É esse o aprisionamento da linguagem.

Nós sempre nos relacionamos conosco e com as

imagens que nós mesmos produzimos, entre outras

coisas, não é? Então, sendo assim, a gente vive um

tempo - e, talvez, os editais ajudem nisso, que é a arte

virando arte de produto. A gente tem entregado muito

menos editais de formação, de processo; você tem

sempre mais editais de montagem, de apresentação,

editais que consideram o produto feito. Eu acho que o

enfoque nesse processo criativo nosso tem que ver se

a gente está gostando. O Guattari falou assim: onde

não tiver desejo, vá embora. Porque, às vezes, a gente

fica ah, meu deus, eu preciso fazer isso, precisa dizer

isso dessa maneira, dizer isso daquela forma, mas a

questão é: você está gostando? Eu consigo gostar

enquanto faço? E depois, criar um enfrentamento

com o público é sempre um enfrentamento com

outro de quem nós não sabemos o que esperar. Eu

sempre penso que se a obra for odiada é uma reação

incrível, porque pior que uma obra odiada é uma obra

que ninguém lembra, uma obra apática. Uma vez, eu

escrevi uma peça de teatro em Fortaleza, era uma

performance, e a gente foi processada pelo Ministério

Público por vilipêndio a símbolo religioso porque o ator

sangrava no Cristo enquanto passava um filme pornê

na tela, a peça chamava Histórias Compartilhadas. Aí,

um menino foi ao teatro do Dragão do Mar e levou a

avó dele, depois ele me mandou um e-mail contando:

olha, minha avó não fala mais comigo. Eu vi o título

Histórias Compartilhadas e pensei que era uma peça

de contar histórias, mas ela ficou tão assustada que

ela não fala mais comigo por causa da merda da sua

peça. E eu respondi: ah, que bom! Se a sua avó não fala

mais com você, é porque a peça teve efeito. (risos) A

arte precisa fazer as pessoas se moverem de alguma


(E)

67

forma, e isso não significa que vai ser sempre positivo.

Eu acho que tem muito mais a ver com gostar de estar

fazendo, com o desfrute que você tem no processo do

que com essa preocupação maior com o público. Isso,

claro, depende do seu processo de criar. Se você está

em um processo mercadológico, é outra coisa. Então,

o roteiro de mercado, para mim, é assim: você escreve

o que você quiser, eles vão cortar e depois você

adequa. A questão, para mim, é que a arte não pode

servir para nos aborrecer, aquele processo - ainda

que você tenha saído de caso sem vontade nenhuma

de ir, sei lá, para o ensaio, mas dentro do ensaio você

descobre que ah, foi bom ter saído de casa, foi ter

vindo ao ensaio. Porque se a arte que a gente faz não

estiver fazendo algo com a gente, ela não vai fazer

nada com o público. Esse é o ponto. Porque se a gente

planeja as coisas sempre no campo da linguagem,

ela não vai funcionar. Eu acho que tem que planejar

também as pausas, os silêncios, aquilo que está com a

gente, sabe? Você experiencia algo e dali, sei lá, surge

uma cena. Tem uma quantidade de brincadeiras, de

jogos que se faz nesse espaço como forma de criar

pertencimento com a criação. Eu acho que a criação

é uma espécie de território ao qual a gente aprende

a pertencer, mas quando a gente vai muito querendo

fazer dentro de uma receita, a gente vira estrangeiro

no território da criação. Eu acho que não funciona.

Eu acho que para a gente ser natural no território da

criação, a gente precisa ir lá para brincar.

TARINA Bom, Helena, eu lembrei de uma coisa, é um episódio

anedótico, mas é fato porque você estava falando: bom, a questão

não é se a pessoa gostou ou não gostou, mas se teve efeito. Não

gostar, inclusive, é um efeito. E, então, eu lembrei que, às vezes,

dependendo, inclusive, de quem gostou, é bom você ligar sua antena.

Eu tenho uma amiga que uma vez estava fazendo uma peça e uma

pessoa de reconhecidas opiniões reacionárias e retrógradas, disse

que gostou muito. Eu falei: olha, eu acho que você tem que olhar

para o que você está fazendo porque ou tem milagre acontecendo

no mundo ou tem alguma outra coisa acontecendo. (risos) E bom,

eu acho a brincadeira fundamental. Eu lembrei do livro do Brian

Massumi, O que os animais nos ensinam sobre política, onde ele

fala da improvisação e da brincadeira e de como, na verdade, não

há algo menor do que aquela, digamos assim, ação no mundo real

no momento do caçar - porque ele está falando de animais, mas

que é o brincar de caçar que introduz na caçada a possibilidade da

improvisação que é o que vai garantir a sobrevivência daquilo, não

é? Então, a brincadeira é a introdução…


(E)

68

HELENA É isso, eu vou concordar contigo. Nós,

quando crianças, nos relacionamos em primeiro lugar

com o mundo através da brincadeira e do lúdico. De

modo que essa ponte entre o mundo do qual não

fazemos parte e em que nós nos ligamos como lugar

em que a gente se nutre, se dá pela brincadeira. É a

brincadeira que é capaz de operar entre a razão e o

corpo para produzir uma outra coisa.

TARINA Incrível. Bom, vou seguir aqui. Uma outra questão que se

levantou ao te ouvir, porque realmente eu fiquei curiosa de ouvir a

sua elaboração sobre isso. Pensando da ideia da representação e

da representatividade e em sua certa crise da representatividade

- então, o que eu vou jogar, eu nem sei se é uma pergunta; é uma

tentativa de reflexão para te jogar uma tentativa de reflexão. Bom,

há alguns anos, eu li um artigo de um curador, alguém que tentava

estabelecer essa ponte entre a crise da representatividade e

a crise na representação, que tem a ver um pouco com o que a

gente estava falando sobre o lugar de onde se fala, porque hoje

se a personagem é uma pessoa trans, é uma pessoa trans que vai

fazer, não é ninguém fingindo que é, ninguém vai falar por ninguém,

ninguém vai representar ninguém… E por outro lado, essa crise de

representatividade ou legitimidade, ela é diferente para diferentes

pessoas, não é? Porque tem uma parcela de nós que nunca foi

representada, então, essa crise bate diferente porque nunca houve

legitimidade para essa parcela de nós - e nós sabemos quem

são, não temos ilusão em relação a isso. Por outro lado, a minha

pergunta vai no sentido de que a representatividade é fundamental

e ela tem efeitos no mundo, e a gente vê esses efeitos no mundo

e também os efeitos que acontecem quando ela não existe. Mas

tem um limite? Qual é o limite da representatividade e como é que

a gente negocia? Será que a representatividade tem um limite de

assimilação? Será que tudo é assimilável por isso? Então, eu acho

que a minha pergunta está um pouco nessa relação da captura e o

fugidio dessa captura e quais são os limites disso.

HELENA Bem, eu acho que a primeira coisa é que

quando a gente pensa política, os processos políticos,

seja a política partidária ou seja a política no sentido

mais amplo, a política das sociedades humanas

ocidentais. A gente está pensando que a política,

desde a modernidade, se dá por representação,

ela é uma política que funciona por identidade, pela

capacidade de aparecer para o espaço de aparição,

não é? Assim, a política no ocidente, quando a gente

olha para a Grécia, a gente vai ver que o que funda

esse mundo grego é a cisão Oîkos que é a dimensão

por área e Pólis que é a dimensão por espaço público.

Esse espaço público, ele é o espaço de aparição, é

onde a política opera dentro de um palco de regimes


(E)

69

de visibilidade e de invisibilização, não é? As formas

de aparição dentro desse espaço são múltiplas. Tem

as formas de aparição no parlamento, tem as formas

de aparição no mundo da economia, das empresas,

etc., tem as formas de aparição das artes, dos artistas

e da indústria cultural, existem múltiplas formas de

aparição. Frequentemente, são os corpos que mais

aparecem que vão fazer com que as coisas se realizem

no mundo público, e também, por consequência, causar

impactos no mundo privado. Fazer com que as coisas

se realizem é a capacidade própria do humano que é a

capacidade de ação política e, por definição, uma ação

criadora, criativa. Bem, certos grupos ao longo do

tempo, começam a pleitear formas de aparição. Estão

aí, o movimento sufragistas, o intenso movimento

artístico dos anos cinquenta, de mulheres feministas

e da produção de arte feminista ao longo dos anos

cinquenta; depois o teatro dos oprimidos, os teatros

que vão trazer operários, negros e negras para o palco…

E as reivindicações dessas artes mais vanguardistas,

por assim dizer, até que elas se impõem também como

demanda para a indústria cultural, não queremos

mais negros e negras apenas como escravos, apenas

como empregadas domésticas, a transformação

da forma de representar a mulher, não é? Então, a

gente vai ter mais mulheres protagonistas que não

sejam dependentes de homens, mais narrativas sobre

mulheres que não sejam sexualizadas, e aí, a gente

vai ter a demanda pelas questões homosexuais onde

queremos ver beijo, queremos ver toque… É como

se os espaços onde se pode aparecer - porque a

política vai sempre pela aparição: o que não aparece,

não é político, esses espaços são sempre alvos de

uma série de reivindicações e aí, o que acontece é

que a capacidade de um grupo de fazer-se aparecer

nesse espaço, é representatividade; a representação

é a noção de que as coisas não vão funcionar pela

participação direta, mas pela mediação entre pessoas

e símbolos e etc. E a representatividade é, justamente,

quando determinados grupos organizados passam a

ocupar esse espaço de aparição de modo a contar

de alguma maneira histórias coletivas, não é? Que

é a ideia de escrevivência da Conceição Evaristo,

por exemplo. Histórias que, de alguma forma, sendo

histórias individuais, pertencem, de alguma maneira, à

coletividade. Contudo, e eu acho que isso é importante,

há sempre o risco de que o grupo que representa

engula os sujeitos supostamente representados de

modo que outros interesses possam vir a atravessar

o processo da representatividade. Eu acho que a


(E)

representatividade como pauta, como tema é um

bom começo, mas é um péssimo objetivo para o

final. Nas artes, nós podemos começar demandando

representatividade, mas se a gente tiver que demandar

isso para sempre, e se essa for a meta, significa que a

gente descobriu um jeito tedioso de morrer.

SORAYA Eu vi um vídeo seu, lembrei de um vídeo seu. Eu

fui no seu Instagram para conhecer a Helena do Instagram

também, como ela aparece no Instagram - falando em

aparição, não é? E eu vi um vídeo seu onde você estava

falando sobre como convocar as pessoas para pensar a

democracia e você falava nesse vídeo que, às vezes, tem

existências que precisam ainda fazer coisas muito básicas

e que elas não tem na carne a experiência da democracia,

não é? Então, como é que a gente pensa em convocar as

pessoas e querer que as pessoas tenham uma energia,

enquanto elas têm tantas outras preocupações estruturais

e básicas e nenhum tipo de relação com isso? Porque, às

vezes, a palavra é essa. Não sei, você tem a palavra mas ela

não está na sua carne, ela não está no seu dia a dia. Então, eu

fiquei com vontade de te ouvir falar mais sobre isso.

70

HELENA Foi no aniversário de vinte e cinco anos da

revista Cult e o que eu dizia era que nas eleições de 2018,

eu fui candidata a deputada federal, não é? Mas, nas

eleições de 2018, eu vi parte da esquerda e do campo

progressista convocando as pessoas para defender

a democracia e, para mim, havia uma convocatória

equivocada. Equivocada porque parte das pessoas, boa

parte da população brasileira não experimentou isso

que nós chamamos democracia, não é? Alguns, como

Boaventura de Sousa e Santos, usam o eufemismo

para chamar de democracias de baixa intensidade,

não é? Mas como a gente pode dizer assim: ah, mas

a polícia não vai mais te respeitar para populações

que se reuniam nas praças e eram perseguidas pela

polícia? Jovens negros das periferias, as mães desses

jovens, os pais desses jovens, os trabalhadores que

pegam dois ônibus lotados às cinco da manhã… Esses

sujeitos não experimentaram a democracia. Como

você pode ser convocado para defender algo que

você não experimentou? De modo que o convocatório

deveria ser para a gente construir uma democracia,

para a gente construir o Brasil, para a gente inventar

o Brasil. Porque a gente vem pensando essa coisa de

visibilidade e invisibilidade, mas nós temos inúmeras

parcelas da população brasileira que está submetida,

há anos, a regimes cruéis de invisibilidade, de morte,

gente que tem sido moída pelo país há séculos. A minha


(E)

71

questão é: a gente tem um Brasil para inventar e qual é

o esforço para fazer isso. Parte dos nossos políticos e

artistas, inclusive, têm se comportado como médicos

de um paciente terminal. Só fala coisa triste. Sabe

porque ninguém escuta a gente da esquerda? Porque a

gente só fala tragédia, a gente só fala tristeza, nós não

apresentamos para as pessoas o mundo de vida que

pode existir. A gente contesta esse mundo de morte,

esse mundo de fome, mas nós não as convocamos

a sonhar com um mundo sem fome, um mundo sem

pobreza. Porque nós ficamos chatos, melancólicos,

tomados por uma tristeza existencial que faz com que

ninguém nos escute porque nós somos aquelas pessoas

negativas. E eu acho que parte disso, desse esforço, tem

a ver com se as forças conservadoras que nos tomam,

se elas anunciam também tragédias e elas não querem

que as coisas mudem, as pessoas são conservadoras

porque elas tem medo do futuro, porque elas não

entendem o presente. O conservadorismo é uma

profunda incompreensão do presente. Eu dou sempre o

exemplo de que nós todos somos conservadores. Sabe

quando a gente diz assim: ah, a geração de hoje não

sabe o que é uma balada. Na minha época, quando eu

ouvia Kate Bush, era tudo! A gente sabia o que era uma

balada. Na minha época é que criança sabia ser criança.

Essa ideia de que o presente é sempre ruim e que o

passado é sempre melhor, isso é um afeto conservador.

E quando esse afeto conservador se transforma em

reação política, ele tenta fazer o mundo voltar ao que

era ou, no limite, conservar o que está. Então, não há

possibilidade de discutir o futuro. Eu acho que para

a gente que é das artes, a gente tem uma tarefa que

é provocar a imaginação, fazer com que as pessoas

possam imaginar o futuro. E para isso, não adianta

fazer uma obra falando para as pessoas o quanto

elas morrem, porque as pessoas sabem que estão

morrendo, as pessoas sabem as violências que sofrem.

A gente tem que fazer da arte um objeto de sonho,

não uma corporificação da hiper-realidade através da

linguagem artística. A realidade é dura demais.

TARINA Agora que você estava falando, eu fiquei lembrando de

um dos últimos livros do Tikkun, onde logo no começo, elas ou

eles, enfim, colocam essa ideia de que a gente está no momento

de falar da crise dos recursos naturais e aí, ele diz que é mais do

que uma crise dos recursos naturais, é uma crise dos recursos

subjetivos, não é? Esta crise é maior do que a outra e a tão grande

que faz a gente ter dificuldade de imaginar a outra, de imaginar uma

outra coisa para outra e não é uma tarefa realmente simples. Mas

é justamente porque não é simples, que nós não vamos nos, como


(E)

72

se diz isso? Não é nos reter, nos negar… Enfim, que nós não vamos

lidar com ela. E aí, pensando um pouco nesses desafios de tentar

entender eixos, cortes de possível aderência de luta, da criação

de - não sei se a palavra é comunidade, mas uma fabricação de

algo que seja comum e sobrecomum, como a gente já viu. Eu fiquei

pensando nas histórias do feminismo, aquela coisa dos 99%, que

vão um pouco nessa ideia da relação do feminismo como algo anti

capitalista, anti racista, porque no fundo tem uma sobreposição

entre essas lutas, então, eu acho que a pergunta é: quem é o inimigo

contra o qual a gente está lutando? Existe um inimigo? O nome

desse inimigo é capitalismo, e patriarcado? Então, eu acho que eu

te perguntaria, qual é o nome do seu inimigo? E você sente que

tem um inimigo que tem um chão comum e que pode gerar mais

aderência e onde a gente pode entender que em algum lugar onde

as demandas são muito diferentes, mas que tem algo que a gente

possa encontrar em comum? Ou, talvez, eu esteja sendo muito

conciliatória? E diria uma outra coisa, serão várias perguntas em

uma. Nesse sentido, qual é a dança entre a destruição e a reforma?

HELENA Nossa, que loucura! Bem, eu vou começar

contando a história de um texto que eu amo da Suely

Rolnik, chamado Amor: o impossível e uma nova

suavidade, ele está naquela coletânea de textos que

ela fez com o Guattari. Suely Rolnik começa contando

a história de Ulisses e Penélope, e ela vai dizendo que

Ulisses e Penélope vivem uma espécie de simbiose.

Penélope tece todas as noites e chora a partida de

Ulisses todas as noites, e pela manhã ela desmancha

o que está tecendo e recomeça a tecer e chorar de

novo. Ulisses parte e foge de Penélope. E Penélope

diz: Ulisses, você me mata com a sua vontade de

ausência. E ele responde: E você, me sufoca com a sua

vontade de presença. Ulisses só é Ulisses porque ele

está fugindo de Penélope, se um dia ele termina com

Penélope e vai embora de vez, ele perde a sua vontade

de fugir, e perdendo sua vontade de fugir, ele deixa de

ser o herói que ele é porque perdeu a vontade de fugir.

Penélope se reconhece como mulher e como rainha

na espera eterna por Ulisses, de modo que se Ulisses

chega e fica, ela também não consegue mais ser

Penélope. Então, eles ficam nessa relação simbiótica

que é uma dança tediosa que não muda nova, eles não

criam novos territórios do amor porque eles têm medo

da desterritorialização, eles têm medo de perderem a

si mesmos caso as coisas mudem. Então, às vezes,

a gente estabelece relações com aquilo que a gente

conflita que são, na verdade, relações simbióticas.

Sempre que me perguntam para que serve o ativismo,

eu respondo: para acabar. O objetivo de todo ativismo

é acabar, o objetivo do feminismo é deixar de existir,


(E)

73

o objetivo da luta LGBT é acabar. Primeiro, porque é

horrível ser ativista. Segundo, porque os problemas

que fundam essas lutas, deveriam deixar de existir, de

modo que as lutas deveriam acabar. Se você não acha

que o objetivo do feminismo é o fim do feminismo,

é porque então você, de alguma forma, está presa

nessa relação simbiótica de crer que você precisa

sempre estar nesse enfrentamento com o inimigo. O

risco dessas relações simbióticas, dessas relações

de enfrentamento, é que quando eu penso em quem

é meu inimigo - seja o capitalismo ou o patriarcado,

ele também me constitui e se esse inimigo deixa de

existir, eu também deixo de existir. Então, nessas

relações de confronto direto, de antagonismo, os dois

antagonistas se reforçam. Então, eu não gosto de

pensar, às vezes, em quem é o inimigo porque se eu

olhar para o inimigo, ele é tão grande e eu vou me sentir

tão pequena que eu vou desistir. Então, seguindo, a

Suely Rolnik diz que Ulisses e Penélope são uma

forma de morrer de tédio, mas existe aquele que não

suporta o tédio de habitar os territórios consolidados

e sai pelo mundo, flanando, flanando e não constrói

nada e não está em nenhum lugar. Isso ela chama de

máquina celibatária. A máquina celibatária enfrenta

outro jeito jeito de morrer, morrer de se desconstituir.

Porque de tanto não construir território nenhum, de

tanto ter medo das coisas que são fixas, acabam por

se dissolver no nada e morrer. E ela diz que são dois

jeitos de morrer, mas os dois matam entre não fazer

nada por ter medo na mudança e querer mudar demais

e nada construir. Então, eu penso que a gente, às vezes,

orbita um pouco entre essas duas coisas. O temor da

modificação e, às vezes, o excesso de modificação

que desconstrói qualquer forma de linguagem. A

gente precisa encontrar a regra de ouro, o caminho do

meio ou - a Suely Rolnik vai dar a saída do replicante,

de Blade Runner, mas que eu vou usar como a história

das travestis. Eu pesquiso travestis na ditadura, e se

tem uma coisa que me marca muito na história delas

é que não tem uma heroína. Não tem uma (inaudível),

não tem um Marighella, não tem nada disso porque

tratava-se de inventar estratégias para sobreviver,

para seguir vivas. Então, eu acho que não se trata de

encontrar o inimigo, mas de encontrar um objetivo

que é continuar vivo mais um pouco ou o suficiente

para por este mundo abaixo, entende?Porque destruir

o capitalismo, destruir o patriarcado… a gente não

vai conseguir fazer isso e a gente está cansada de

perder. A gente disse: fascistas não passarão, eles

passaram. A gente disse: A Dilma não vai sair, ela


(E)

74

saiu. A gente disse: fora Temer, ele não foi embora.

A gente disse: não vem, Bolsonaro, ele veio. A gente

só perde. Então, a gente precisa começar a colocar

uns objetivos menores para perder menos, entende?

Porque se a gente só perde, a gente vai desistindo.

Então, eu acho que está na hora de a gente perder

menos. E aí, se a gente quiser lutar logo contra o

capitalismo, a gente vai perder, sabe? Então, a gente

precisa continuar vivas para esperar vir outra coisa.

Eu sou uma pessimista ativa, eu me considero, porque

assim, eu acho que pode vir outras coisas, mas o que

pode vir pode ser ainda muito pior. Nós não sabemos.

Eu, inclusive, anseio, espero que venha alguma coisa,

pode ser pior, mas que seja outra coisa.

SORAYA Eu amei a pessimista ativa, achei ótimo. (risos)

Negativa ativa, não é? Eu tenho uma amiga que fala que

a gente precisa ser negativa um pouco também porque o

excesso de positividade, o excesso de realidade, na arte

também, que não sobra espaço para sonhar, não sobra

espaço para imaginar, não sobra espaço para o desejo

porque é tudo tão grande e tão urgente que a gente vai

deixando de considerar as lutas que acontecem ao mesmo

tempo, que são lutas de dimensões diferentes, mas que

estão acontecendo, as coisas estão acontecendo. Tem uma

palavra que eu escutei muito assistindo você, lendo coisas

que você falou, procurando saber sobre você. Tem uma

palavra que você usa muito que é conhecimento, conhecer,

e eu fiquei pensando em te perguntar isso: de que forma

para você o conhecimento é uma criação? Quando é que

o conhecimento é ação? E como é para você pensar que

tipo de conhecimento a arte produz ou faz nascer ou deixa

nascer ou possibilita nascer. Então, eu fiquei com vontade de

saber de que maneira você acha que o contexto possibilita

um conhecimento para um mundo que não existe mais.

HELENA Eu gosto sempre de pensar, eu sempre

digo isso, gosto de lembrar como é que se fala

conhecimento em francês, que é connaissances. Co

é um prefixo latino que indica junto: coeducativo,

coordenado, cooperativa.. E naissances é nascimento.

De modo que conhecimento é algo desde o princípio

que significa nascer juntos. Também em português

significa isso, só que é em Latim, não é? Então, essa

ideia de aquilo que nasce junto já coloca para nós um

desafio ético de que conhecimento é algo que não se

faz só, conhecimento é algo que demanda outros. E,

eu acho que nós temos uma falência, nesse momento,

das nossas referências. Quem a gente lia nos anos 80,

70, 60, 50, no século passado, parece que perdeu um


(E)

75

pouco a sua capacidade de explicar as coisas, é como

se as nossas referências não dessem mais conta de

explicar o mundo para a gente. Eu lembro que quando

o Bolsonaro foi eleito, eu comecei a trabalhar com

política, política e a arte são coisas que ficam, hoje em

dia, me puxando. Bom, e eu sabia a receita. Eu sabia

que para um político ganhar a eleição ele tem que fazer

isso, isso e isso, como sempre foi feito. Bolsonaro

exatamente o contrário, não é? E quando ele foi eleito,

eu lembro que eu olhei assim para o Sérgio Buarque de

Holanda, Gilberto Braga, todo mundo ali e falei: gatos,

vocês são os intérpretes do Brasil, mas vocês erraram,

tá? O homem cordial não existe, olha isso. Eu acreditei

em vocês e está tudo errado. Mas não é que estavam

errado, acontece que nós vivemos um tempo que é

um tempo outro, que não é mais aquele e a gente tem

conhecimentos novos por produzir, conhecimentos

capazes de explicar esse tempo, de explicar o trabalho

sem vínculo, de explicar a completa desmaterialização

das relações, de explicar a virtualização da vida, de

explicar a nova religião do tempo que é auto-ajuda

- a auto-ajuda é a religião do nosso tempo, não é?

A gente tem desafios de produção de conhecimento

agora, não é? E esse conhecimento também requer,

daqueles que se intitulam acadêmicos, intelectuais, o

silêncio. E aí, eu acho que exerce a minha proposta,

não é? A gente precisa ouvir as pessoas. Uma vez

eu estava numa reunião partidária, e alguém disse

assim: nós precisamos saber como nós vamos falar

de aborto na quebrada. Eu falei: gata, você de onde?

Ela respondeu: eu vim da periferia. Eu falei assim:

Então, elas já sabem, elas sabem chás abortivos há

gerações. A gente não precisa descobrir como falar, a

gente precisa ouvir e descobrir o que elas têm a dizer

para nós. Então, a questão é outra. Eu acho que a

gente tem um processo de escuta para se consolidar.

E um processo de escuta dos artistas também, não é?

A gente quer tanto, tanto que ouçam o que a gente faz

artisticamente, mas a gente dedica tão pouco tempo

ao ouvir o que os outros têm a dizer do fazer artístico

da existência, não é? Porque existir é fazer arte. Então

assim, a gente ouve muito pouco o que as pessoas

estão fazendo. Eu lembro que eu estava dando um

curso de cinema queer e eu falei assim: gente, olha,

não é aqui que vocês vão aprender cinema queer

porque o cinema queer é aquele que não tem espaço,

que não tem curso, que não é reconhecido como

cinema. O que eu estou ensinando para vocês aqui já

está constituído em contradição. Se você quiser fazer

cinema de verdade, vá ver o que estão construindo


(E)

76

as páginas dos meninos que se filmam andando de

skate, das pessoas que fazem humor e não-humor

amador, sabe? Vá ver o que se produz lá onde a gente

acha que não é cinema. Então, a gente transformou

as nossas práticas subversivas em tradição, não

é? Então, a gente tem uma tradição subversiva. Eu

sempre digo assim: vou ver uma performance e vai

ter alguém nu. Quase sempre eu acerto. Não porque

seja um problema a nudez, mas porque, de alguma

forma, se institucionalizou, não é? E a questão é: como

nós conseguimos novas estratégias que não sejam

mais tão capturáveis? E sabendo que essas novas

estratégias vão ser capturadas e a gente vai ter que

criar de novo. É por isso que a gente é artista. Para a

gente criar uma estratégia e eles capturarem e a gente

criar de novo. Então, eu acho que é esse processo.

Eu acho que conhecimento é isso. Conhecimento é

o processo de criar formas de seguir contestando o

mundo a partir do nosso corpo.

TARINA É, eu acho que é muito vitalizante ouvir você falar porque

eu acho que você consegue encontrar no discurso que você domina

muito bem, as fissuras que fazem ele não estar tão capturado, não

é? Porque é o que você falou, a linguagem é captura de alguma

forma, não é? Quando ela se instaura, já foi e aí você fica tentando

fugir ou o que é fugidio que é o excesso, que é esse excesso que é

a potência porque aquilo que não cabe ali é o que vai seguir. Então,

realmente, como eu falei, é muito vital te ouvir, é muito legal. E

aí, pensando nisso que você falou da escuta, eu fiquei pensando

que você já colocou para gente uma estratégia de sobrevivência

porque estar com a atenção em outra coisa já te tira desse lugar pré

capturado que normalmente é o lugar que é um imã, não é? Que está

constantemente nos atraindo de volta. E aí, nesse sentido, falando

ainda do discurso e da estratégia para além da escuta ou, talvez,

você já tenha dado a resposta para a pergunta que eu tinha. Mas

voltando um pouco no que a Soraya também trouxe… Como que

a gente abre espaços dentro da macro política para essa escuta?

Porque tem gente que está fora, que fala diferente, que não está

no academiquês, que não entende, mas que tem a experiência.

Eu falei aqui, outro dia, também em termos anedóticos, mas é

verdade, especificamente, sobre a questão da transgeneridade ou

da cisgeneridade, não é? Eu tenho um amigo, uma pessoa próxima

que é uma drag queen e é um pouco mais velha que eu, e há alguns

anos me falou assim: Tarina, você não sabe o que eu descobri

semana passada. Eu perguntei: o quê? Ele falou: eu descobri que

eu sou cis, fiquei chocada. (risos) Então, o que eu tô falando é que

tem um gap sempre entre dominar o discurso e a experiência. Não

é sempre, mas esse gap pode existir. O que seria uma estratégia

de linkar esse gap ou não tem que linkar?


(E)

77

HELENA Tem uma coisa que é assim. Quem ocupa

espaços, sejam eles quais forem, têm o dever ético de

ser traficante, traficante de saberes, traficante de fazer

caminhar as coisas entre vários lugares. Eu acho que

se tem é uma cartografia e a gente precisa começar a

estar em vários lugares e a transitar em lugares onde

não costumamos transitar e a experimentar realidades

que nós não costumamos experimentar, não é? Sei lá,

ir ver filme mainstream no cinema em lugar de ir ver

cinema de arte, por exemplo. Onde é que as pessoas

estão vendo cinema majoritariamente? É no shopping.

Não é no CineSesc, não é? Eu adoro os filmes de arte

do CineSesc, mas eu acho que é importante que a

gente assista também o que está ali no Cinemark,

sabe? Porque é o que está fazendo rir e chorar um

monte de gente, sabe? Tem o Jack Halberstam que

é o autor que escreveu A arte queer do fracasso, ele

escreve essa obra a partir do Bob Esponja, de A fuga

das galinhas, ele falou assim: eu estou vendo cinema

queer, arte queer onde vocês só vêm indústria cultural.

Porque, de certo modo, para a vanguarda intelligenza,

essa nova intelligenza, a classe artística, bom, a gente

é chato para caramba, esnobe para caramba com o

que é mais popular, não é? E a gente faz isso pensando

que a gente está sendo subversivo, mas na verdade,

a gente está só assumindo o comportamento de uma

nova elite cultural, não é? Então, eu acho que a gente

que olhar lá onde é que o vírus do fascismo da elite

cultural se insere na gente, e a gente ir lá experimentar

aquilo, sabe? O cinema mainstream, um filme de ação

boba… E a gente vai ver que a gente vai se reencontrar

com a nossa humanidade, o quanto a gente vai rir com

uma comédia besta que a gente acha absurda, o quanto

a gente vai chorar com uma comédia romântica besta.

E a gente fala assim: olha, gente isso é uma besteira.

Mas a gente está rindo disso, está afetado. Então,

eu acho que tem afetos, coisas que acontecem no

mundo que a gente precisa voltar a experimentar, não

é? O meu diretor de teatro passou um exercício para

a gente que era o exercício do dispositivo. Era assim:

ele nos dava um dispositivo pessoal e um dispositivo

relacional e no dispositivo pessoal, o meu era assim

- a gente ia montar uma cena de improviso, e o meu

dispositivo pessoal era: você está em um reality show

e o outro era fazer alguém dali cantar com você. Cada

pessoa recebia um pessoal e um relacional, e a gente

ia construindo a cena. Enquanto estava ali, sem dizer

qualquer coisa, eu tinha que ser uma pessoa que

estava num reality show e esse dispositivo atuou ali

fazendo a história funcionar. E eu falei: a gente precisa


(E)

78

trocar o dispositivo. Sabe quando você quer ir a um

lugar e você fala: não quero ser artista hoje, hoje vou

ser outra coisa. Não é? Então eu acho que a gente

precisa inventar formas de abandonar os lugares

ossificados em que nós estamos. Porque não dá para

fazer grandes coisas, não temos como transformar

os grandes problemas, as únicas coisas que nós

podemos dar conta são as coisas que nós fazemos.

De modo que, então, é preciso pensar estratégias

que nós possamos fazer a partir de nós e que possam

depois coligar com os outros e produzir experiência.

Essa experiência vai fazer com que os discursos se

adequem porque os discursos aprendem a ser ditos,

não é? Os discursos aprendem a se organizar a partir

de sujeitos. A questão é: nós não podemos supor que

não existam discursos capazes de falar com os outros

porque o que acontece é que quando a gente vai falar

com alguém da quebrada, da periferia, a gente fala

como se fosse alguém que não entendesse nada. Não,

eu falo do meu jeito. Se alguém não entender, pergunta.

Porque eu não vou diminuir ou supor que o outro não

tem capacidade de entender. Mas eu só acho que o

outro não é capaz de entender porque eu sou incapaz

de experimentar aquela realidade que entende tantas

outras coisas que eu sou capaz de entender, entende?

Então, eu acho que tem esse exercício que não é de

empatia, mas de alteridade, que é permitir-se ser

afetado nas forças que afetam o outro, na esperança

de construir uma forma de aliança (sic).

TARINA Nossa, Helena! A gente poderia ficar com você mais

umas três horas e eu acho que não esgotaria o assunto, porque

cada vez que você vai falando vão abrindo vão abrindo janelas,

não é? E como eu falei, fundamentais mesmo. Mas a gente está

se aproximando do nosso fim, temos ainda alguns minutos, e eu

me sinto até um pouco estranha na pergunta que eu vou te jogar

porque, eu acho, quase tudo que você falou é a resposta dessa

pergunta. Mas a gente tem pensado no projeto uma pergunta que

atravessa e que a gente fez para as outras pessoas que tiveram

aqui com a gente e que tem a ver com a palavra urgência. Então, o

que é urgente hoje na arte e no mundo, nesse mundo? E para você,

eu acho que eu acrescentaria: tem ordem de urgência? Porque é

eu acho que tudo que você falou está na ordem da urgência, enfim.

Como que isso rebate aí para você?

HELENA Eu acho que a gente tem primeiro um

problema. A urgência, de certa forma, é aquilo

que nos convoca, aquilo que urge, não é? E não

necessariamente aquilo precisa ser rapidamente feito.

No capitalismo, nós passamos a entender urgência


(E)

79

como aquilo que precisa ser rapidamente atendido,

urgência como velocidade, e a velocidade é inimiga

da reflexão detida, a velocidade é inimiga da criação.

Então, eu acho que a urgência que nós temos é resistir

a tudo aquilo que parece urgente. A urgência que a

gente tem é pelo silêncio, é pelo luto, sabe? É pelo

perdemos, não temos resposta agora, sabe? Eu acho

que a urgência que nós temos agora é pelo silêncio,

é por combater todas as urgências que se tornam

um barulho na nossa cabeça e nos impedem de ouvir

qualquer realidade. Nós não escutamos o mundo

porque nós ouvimos tanto o barulho das urgências,

são tantos despertadores, tantas notificações, tanta

coisa dizendo: corre, você precisa fazer, você precisa

dar uma resposta. Que a gente dá respostas ruins e

fordistas para tudo. Então, eu acho que a gente tem

um outro desafio que é, justamente, não atender às

urgências. Então, a urgência que eu tenho é: olha,

gente, pára. Nada é urgente, nada é tão urgente que

possa te convocar para expandir respostas erradas.

Sabe aquele momento em que você precisa desligar

todos os seus celulares e não atender a campainha?

Eu acho que nós estamos nesse momento.

TARINA Eu estou. (risos)

SORAYA É muito bom pensar essa coisa da urgência a partir

da lógica da velocidade, não é? Porque parece que coloca

toda urgência no mesmo lugar. A minha urgência é que

nem a sua e você tem que resolver ali. Eu fiquei pensando

o quanto a gente está ficando ensaiadas, não é? O quanto

que a gente vai para as conversas ensaiadas, vai preparadas

demais, editadas demais, não é?

HELENA Afogada em respostas.

SORAYA Menina, é uma loucura! E como é bom ir deixando

isso cair, deixar as ruínas aparecerem. Porque parece

também que a gente instala também um lugar de vigília

sobre o discurso do outro, não é? Eu ainda espero a gente ter

outro encontro porque eu quero muito ouvir você falar sobre

a economia do discurso - que é uma parada que me deixou

passada e eu fiquei querendo muito saber mais, conversar

mais contigo sobre isso. Eu adoro gente que levanta as

mãos, que levanta assim os braços para falar porque eu

acho que é dar o corpo para a fala mesmo, fazendo essa fala

acontecer no corpo, de fato. Bom demais. Como é que você

falou? Queria lembrar e não esquecer jamais. Não sei o quê

ativa… Pessimista ativa. Que ótimo! (risos)


(E)

80

TARINA Eu já acho que eu sou uma otimista passiva. (risos) Mas

a gente pode discutir isso em um outro momento. Mas eu acho

que isso que você trouxe sobre a urgência, para mim, tem uma

relação com a história do inimigo e do tamanho dos desafios com

os quais a gente tem que lidar, porque a palavra urgência ela se

insere também ou algo que eu não posso deixar de fazer hoje é

algo que se insere também na mesma família dessa grandiosidade

com a qual é difícil lidar, que é de uma escala que é difícil de lidar.

E aí, eu lembrei de um provérbio americano, que fala assim: por

quê deixar para amanhã o que eu posso fazer depois de amanhã?

(risos) É uma outra lógica, mas, para mim, rebate muito nisso que

você estava dizendo, que é a mesma ideia da escuta, não é? É

daqui, é desse lugar, é daqui que isso vai acontecer. Então, a ideia

da esperança também… A esperança é o efeito de estar no mundo,

assim, eu espero que amanhã eu abra meu olho e esteja viva, mas

ela envolve também um pessimismo ativo, talvez - agora a gente

vai roubar, a gente vai hashtaguear o seu pessimismo ativo. (risos)

Então, Soraya, se você me permite, a gente vai… Nossa, Helena! Eu

continuaria aqui e talvez a gente continue em outros momentos.

Quero te agradecer muito, e agradecer também a Clarice, a Aline

e todas as outras pessoas que estão envolvidas nesse projeto, que

ajudam na produção e fazem isso acontecer. Então, muito obrigada

a todes, a todas!

SORAYA Obrigada, Helena! Um prazer conhecer você.

Prazer continuar te conhecendo. Isso foi só o início. Que

nem a imagem da criança, não é? A criança conhece se

aproximando. Então, eu acho que projetos como esse da

Cacá, da Aline, dessa galera, são muito bons por isso, porque,

eu acho, que é uma oportunidade de emparelhamentos, não

é? De aproximações. E isso é muito massa.

CLARICE Gente, muito obrigada a vocês três por essa conversa. Helena,

eu sou sua fã. Sou sua fã, te sigo, troco likes e tudo mais. E é realmente

emocionante te ouvir aqui a partir das coisas que elas trouxeram e eu

estou muito feliz. Obrigada, que bom que você, desde o começo, acreditou

nesse projeto e sempre mandou carta de anuência. (risos) Valeu demais

por a gente ter conseguido fazer isso acontecer e estarmos juntas aqui.

E agora que eu estou sabendo que você está em São Paulo, quando a

gente for fazer coisas eu vou te dar um toque, vou te chamar, quero te

ver ao vivo.

HELENA Tá bom. Que bom! Tchau, gente. Beijos.

TODAS Obrigada!

SORAYA Estou aqui friviando, meu amor! (risos)


81


82


(F)

E SORAYA

PORTELA

TARINA

QUELHO

Entrevista

realizada

em

Agosto

de

2022

ENTREVISTAM

JOICE

BERTH

83 CLARICE Oi, gente! Boa noite! A gente está bem feliz de estar aqui hoje,

recebendo a Joice, que é a quarta entrevistada dessa série de entrevistas

Cabeça Coração do projeto Futura, que foi contemplado pela 31 a edição

do Programa Municipal de Fomento à Dança para a cidade de São Paulo,

através da secretaria municipal de cultura. Quem vai entrevistar a Joice

é a Soraya Portela e a Tarina Quelho. Vamos começar!

TARINA Oi, Joice! Boa noite!

JOICE Boa noite!

TARINA Estou muito, muito feliz de poder estar com você aqui!

Queria te agradecer em nome do projeto, mais uma vez, pela sua

presença. A gente tenta fazer uma coisa informal mesmo de uma

conversa, eu e a Soraya, a gente vai tentando uma entrar um pouco

também na lógica da outra, a gente tem um roteiro mas é um roteiro

bem aberto e vai muito de acordo com a química que rolar entre a

gente aqui. Então, eu falei, um pouco antes da gente se encontrar,

que eu ia relembrar aqui a Silvia Federici porque numa entrevista

que eu vi com ela, um podcast, ela falou isso em outros lugares

também que gossip era amiga, que é a palavra fofoca em inglês

e que depois virou uma coisa, enfim, que tem uma até uma carga

pejorativa, parece que é ruim mas que no fundo tinha a ver com

essa pessoa com quem você compartilhava coisas que, talvez,

você não fosse compartilhar em lugares públicos. Então, a fofoca,

no fundo, tem uma coisa de intimidade, até. Nessa construção


(F)

84

dessa intimidade tem um pouco de gossip, nesse sentido do

gossip, não é? E aí, bom, primeiro quero te dizer que eu sempre leio

o seu Instagram, a gente estava conversando um pouco sobre isso

também, sobre como a gente acompanha um pouco as crônicas

do que está acontecendo no Brasil e no mundo pela sua página do

Instagram. A gente fala gente, eu não sei o que está acontecendo

no mundo! Eu vou na página da Joice. (risos) Porque a gente

descobre o que tá acontecendo e não só, mas também com uma

perspectiva sempre muito apurada daquilo que está acontecendo.

E aí, como você é uma pessoa bem ativa nas redes sociais, eu

pensei em começar te perguntando uma coisa que tem a ver com

a criação dentro disso. Alguns, muitos anos atrás, o Boris Groys,

que é um cara que trabalha com design, pensando nessa ascensão

das redes sociais, ele dizia assim: bom, neste momento onde cada

um é o design de si próprio, qual é papel do artista? Então, em um

certo sentido, nas redes sociais que são campos onde todo mundo

também é o design de opinião de si próprio, qual é o papel do

intelectual, do teórico, do criador, e como é a criação nesse meio?

JOICE Bom, muito boa noite! Obrigada pelo convite. É

um prazer estar aqui conversando com vocês. Projeto

muito bacana e muito importante que vocês estão

fazendo, então, muito me honra ter sido uma das

escolhidas para trocar essas ideias, conversar e tudo

mais. Bom, a visão que eu tenho das redes sociais é

de um espaço de democratização da comunicação.

A gente tem histórico de formação desse nicho de

comunicação no país, que sempre foi excludente, não

é? Então, a gente chega e reivindica um lugar de fala

dentro desse esquema da comunicação e a gente

só consegue fazer isso por causa das redes sociais.

Porque na rede social, todo mundo é todo mundo.

Todo mundo é possível de existir ali, naquele espaço.

Todo mundo pode mostrar a sua criatividade. E você

vai depender, sim, você vai estar à mercê do algoritmo,

mas ainda assim é um espaço onde pessoas realmente

interessadas naquilo que você está fazendo, de alguma

forma vão te achar. Tem muitos conteúdos que eu

consumo na rede social, isso desde os tempos do

Facebook, que engrandeceram muito, que me levaram

para um caminho de pesquisa que sem a rede social,

eu não teria ido. Então, também vai muito também

do interesse das pessoas e daquilo que você está

produzindo. Então, para mim, nesse sentido de pensar

o papel do artista onde todo mundo é o design de si

mesmo e pensar em como é que fica o artista nisso,

o artista fica no lugar onde ele sempre esteve, que é

nesse cano por onde todas essas emoções vão escoar

de alguma forma, em algum momento com aquele

instrumental com que o artista trabalha. Então, se é


(F)

85

um músico, ele vai, de repente, sintetizar todas aquelas

informações que giram freneticamente na rede social

na música que ele está produzindo. Se ele é um pintor

ou escultor, enfim. Sabendo converter esse material

humano que a rede social nos coloca sem restrições,

eu acho que isso é muito engrandecedor. Eu acho que

os artistas melhoraram até, os seus posicionamentos,

a sua possibilidade de criação a partir das redes sociais

também. Eu acho que os artistas não se comunicam

mais da maneira como se comunicavam antes, as

redes sociais forçaram um pouco a revisão das coisas,

a revisão de modos de interagir com o público. E o

intelectual, ele não é um artista. Ele não está ali para

trabalhar com as emoções, ele está ali para provocar

um desconforto, para provocar um choque mesmo de

ideias, de opiniões e posicionamentos. O intelectual,

ele é o advogado do diabo e é ele quem vai fazer a

gente sair do lugar, se mexer um pouquinho, pensar

um pouco mais além. Ou pelo menos deveria ser essa

a função do intelectual. Eu ainda sou conectada com

o pensamento de Milton Santos que define muito

bem isso, não é? Milton Santos fala que existe uma

diferença entre o intelectual e o letrado. Como que o

Mano Brown pode ser um intelectual? Como Carolina

de Jesus pode ser uma intelectual? Eles podem

ser e eles são intelectuais porque eles provocaram

desconforto, eles provocaram o pensamento crítico a

partir do material de vida que eles tinham para colocar.

Ao passo que tem certas pessoas que são letradas,

muito letradas, são grandes acadêmicos, brilhantes

acadêmicos, cientistas, enfim, que nos trazem

uma série de informações que abastecem o nosso

pensamento, mas não são exatamente intelectuais. E

tem pessoas que sintetizam as duas coisas em si, elas

são letradas e também são intelectuais ao mesmo

tempo. Então, eu acho que o papel do intelectual em

rede social é, justamente, dar a cara a tapa, não é? Eu

tinha um ranço com essa palavra intelectual quando

era mais jovem, quando eu era muito rebelde, muito

rebeldezinha, subversivazinha. Então, só de falar em

intelectual (faz gesto de aflição)... A primeira vez que

falaram isso para mim, ih, nem vem! Porque vinha na

minha cabeça aquela pessoa toda certinha, falando

durinho, falando difícil e eu acho que nunca gostei

muito disso. Agora por que existia isso? Porque existe

uma barreira entre o intelectual e o povo. Eu acho que

não existe intelectual que não fala com o povo. Se

você não está falando com o povo, então você não

é intelectual. E aí a rede social quebrou isso, então

eu penso que o papel do intelectual na rede social,


(F)

86

infelizmente, é mais doloroso ainda do que no passado

porque é se expor e é muitas vezes ir na contramão do

que todo mundo tá falando, não é? Está todo mundo

dizendo, por exemplo, que o empoderamento é sair

nua na capa da revista e você vai ter que falar, como

intelectual, que não é bem assim, que não é por aí, pera

aí, vamos ponderar. Então, é isso, não é? E é isso que

muitas pessoas têm feito a duras penas. Não é fácil.

Você tem que ter um pouco de sangue de barata e

pouco de peito de aço porque também o viés negativo

da rede social, é a resposta violenta que você tem em

tempo real porque, às vezes, aquilo que você fala bate

como se fosse uma porrada e você também recebe de

volta esse contra-ataque de certas maneiras, assim,

que às vezes, incomoda muito. Então, muita gente

adoeceu, muita gente quis sair porque não gosta mais

da rede social, pegou pânico, pavor, ojeriza, não quer

mais saber nem ouvir falar de rede social. Então, eu

acho que é isso, ainda tem uns anos aí para a rede

social render tal qual a gente conhece agora, mas

também já se ensaia novos modos, porque eu acho

que comunicação vai acompanhando também as

mudanças que a sociedade vai experimentando.

SORAYA Agora vou eu aqui. Você vai falando e as janelas

vão abrindo assim, a cabeçona vai ficando desse tamanho.

(entre risos, faz gesto representando grandeza em torno

da cabeça) Boa noite, Joyce! Eu sou a Soraya, eu sou de

Teresina, Piauí. Mas eu estou trabalhando esses dias aqui

em Curitiba, por isso que eu estou morrendo de frio. Você

vai ver a diferença entre a roupa e a fala da pessoa. (risos)

Teresina é o oposto daqui.

JOICE Eu estive em Teresina e amei justamente por

causa do calor. Eu não gosto de frio, o frio me detona.

SORAYA Exatamente. Estamos juntas nessa. (risos) Você

falou dessa coisa das redes sociais e uma coisa que me

deixou bem feliz é que eu já te seguia e quando a Cacá falou

que a gente ia entrevistar a Joice, eu não liguei que essa

Joice era você, que era a Joice que eu seguia e que era Joice

onde eu ia toda vez quando estava acontecendo um assunto

que era um assunto que estava precipitado nas falas de

todo mundo, vamos dizer assim nas comunidades, eu ia lá

no teu Instagram e ia ver o que você escrevia. E aí, eu te

estudando para gente começar, estudando no no sentido de

procurar saber, de me interessar além das redes sociais que

era onde eu te conheci, vi que você falou, por exemplo, que

você escreve, você tem escrito e tem pensado em escrever

para pessoas. E isso me interessou muito porque essa coisa


(F)

87

de escrever também foi uma coisa que criou muitas marcas,

muitos traumas principalmente no nosso corpo de mulher,

nessa nossa relação de quem pode escrever e quem pode

dizer as coisas em escrito sobre as coisas do mundo. Por

muito tempo a gente foi afastada desse lugar de escrever

e de produzir essa intelectualidade, essa matéria intelectual

que é a escrita, as teorias. E aí, eu fiquei pensando quando

foi que isso aconteceu para você, esse momento em que

você percebeu, por exemplo, que você tinha que afinar a sua

escrita exatamente interessada nas pessoas, interessada

em alguém, interessada em que as pessoas pudessem se

entender no que você escreve. Eu acho que é nisso que

você fala muito, nessa importância de se reconhecer, se

reconhecer nas questões, se reconhecer nas urgências, nas

emergências, no que nos atravessa.

JOICE Olha, eu escrevo desde pequenininha. Assim,

eu comecei a criar o ato de escrever eu tinha uns

dezoito anos de idade. Eu ganhei uma agendinha, eu

fui a precoce da família, da parte da minha mãe eu sou

a mais velha, a primeira filha, a primeira neta, a primeira

sobrinha. Então, eu sempre fui hiper estimulada porque

eu fiquei um tempo convivendo com muitos adultos.

Eu não acho que isso foi exatamente positivo, mas

teve, sim, seu lado bom. Mas o fato é que eu fui tratada

de maneira diferente do que as outras crianças eram

tratadas, é como se a minha infância tivesse sido um

pouco ofuscada pela demanda dos adultos que eu

conseguia, até um certo ponto, responder. Então, no

Natal, enquanto todo mundo está ali ganhando um

presentinho, um brinquedinho, eu ganhei uma agenda.

Não ganhei uma boneca, não ganhei uma bola, não

ganhei um iô-iô, não ganhei uma peteca, uma pipa,

nada disso; ganhei uma agenda. Um diário, na verdade,

que era todo bonitinho, todo delicadinho, todo colorido,

vinha com uma caneta e uma com chave para trancar.

Aí, isso já me ganhou porque eu sempre tive essa coisa

de me preservar, mesmo criança. Eu cresci num

ambiente lotado de pessoas. A família do meu pai era

enorme, da minha mãe também enorme, sempre com

muita gente. Não que eu não gostasse, eu gostava,

mas eu sempre tive uma necessidade de, algum

momento, ficar sozinha, só comigo e preservar as

minhas coisas. E aí, eu falei mas tia, falei para a tia que

me deu (o diário), infelizmente, já falecida, era uma

pessoa muito querida, adorável, e eu perguntei para

ela: pra quê que serve isso aqui? E ela respondeu: é

para você escrever suas coisinhas, que você já está

ficando mocinha. Na verdade, eu não tinha oito anos

de idade, eu tinha dez anos de idade. Já está ficando


(F)

88

mocinha…Com dez anos de idade, eu já estava ficando

mocinha para minha família. E aí eu comecei a escrever

e tal, então sempre teve escrita muito cedo. Eu fui

estimulada à escrita, à leitura, essas coisas e tal.

Quando eu comecei a escrever, de fato, para pessoas,

não foi uma coisa que aconteceu de repente quando

eu acordei de manhã. Eu eu tive vontade de ser

jornalista em algum momento da minha adolescência,

essa vontade durou muito tempo e todo mundo achava

que eu queria ser igual a Glória Maria, eu achava a

Glória Maria o máximo, só que a Glória Maria

entrevistava pessoas e eu nunca tive, durante bom

período da minha adolescência, eu não tinha essa

desenvoltura de abordar as pessoas, de conversar, eu

era um pouco tímida, um pouco retraída, então não

passou pela minha cabeça fazer o que a Glória Maria

fazia; e,bora eu a achasse o máximo. O que eu queria

escrever porque eu já sabia que o jornalista escrevia e,

para mim, escrever era uma coisa interessante.E aí, o

mundo dá seus revertérios, as suas voltas, eu tive

filhos, voltei para faculdade e eu fui fazer arquitetura

que também é uma coisa que tem uma relação com o

trabalho manual de alguma forma e com o pensamento

também, não é? As pessoas tem uma ideia da

arquitetura como algo que só lida com decoração e tal,

mas não. Se você pega um Niemeyer, por exemplo, se

você pega uma Raquel Rolnik, você tem arquitetos

que são altamente formadores de opinião e

provocadores com o seus trabalhos e em outros

nichos também de atuação. Enfim, quando eu escrevi

pela primeira vez para pessoas numa escala mais

ampla, não era uma coisa planejada assim ah, eu vou

ser agora uma pessoa que vai fazer coluna no jornal,

na revista. Não, foi uma coisa espontânea. Eu entrei

para o coletivo feminista, e aí, eu por ser mãe, era a

única mãe da minha turma, era Dia das Mães e eu já

escrevi alguma coisa sobre as mães e as pessoas

gostaram. E aí, eu passei a escrever cada vez mais.

Nesse processo, você aprende muita coisa também

sobre você e sobre o outro que recebe aquilo que você

está escrevendo. Então, a comunicação escrita ela

tem o seu seus problemas que vem justamente do

fato da gente não está olhando no olho da pessoa,

então a pessoa não sente a energia que a gente está

emanando naquele momento. Então, eu posso

escrever assim: nossa, eu estou com muita raiva.

Vocês estão ouvindo eu falar, então sabem que eu não

estou com raiva, mas quem lê aquilo vai pensar que eu

estou quebrando a casa inteira. Então, esses problemas

dão uns nós na comunicação da gente e aí surgem


(F)

89

confusões homéricas. O Facebook foi um palanque,

um campo de guerra, de feminismo, de luta antiracista,

não é? As redes sociais vieram e a gente veio

com a escrita e a gente pegava pesado e a gente

tomava porrada e era uma coisa de louco e tal. Então,

eu acho que sobre isso foi me levando para esse

caminho porque, não parece, mas eu sou uma pessoa

extremamente pacífica, da conversa, do diálogo, do

‘vamos deixar disso’... Eu nunca fui de brigar na escola

e quando eu me envolvi em confusões grandes na

escola, eu saí na lábia, na conversa, sabe? Então, me

incomodava aquele clima de você escrever um texto e

ganhar cinquenta inimigos, sabe? “Ai, mas você está

falando dos homens, você é uma feminista, você está

confrontando o comportamento masculino”. Sim, mas

a ideia não é que o homem me odeia, quer me matar

com vários tiros de escopeta; a ideia é que ele se

transforme, que ele transforme o comportamento

dele. Então, eu acho que essa percepção foi me

levando a entender que para qualquer pessoa que

pretende se comunicar, a comunicação é uma via de

mão dupla. Se eu falo e vocês não entendem, então eu

preciso rever também o que eu estou falando. Porque

é muito fácil dizer assim: ah você não entendeu o que

eu escrevi. Às vezes, a pessoa pode não ter entendido,

mas, às vezes, eu posso ter escrito também de jeito

entroncado, que gerou margens para outros

entendimentos, não é? Então, eu passei a ter esse

cuidado porque também a gente vai por um caminho

em que você começa a ganhar uma notoriedade,

ganhar uma visibilidade, e a sua responsabilidade

também aumenta. Esses dias, eu estou agora colunista

do Terra, escrevendo textos semanais para o Terra

sobre essas questões de diversidade, de raça, gênero

e tal. E aí eu gosto muito de esporte, acho que o

esporte é muito importante. Tudo que é relacionado

ao corpo, eu acho extremamente importante. E aí, eu

fiquei muito comovida, muito tocada com a morte do

campeão de jiu-jitsu que era um cara que podia ter

seus problemas enquanto homem, porque a estrutura

machista está aí e ninguém sai ileso dela, mas era um

cara que inspirava outras pessoas, que teve uma

trajetória bonita, brilhante dentro do esporte, enfim, e

morreu de uma maneira super besta. Eu escrevi um

texto sobre isso para tentar alertar, tentar conscientizar

do quanto existe um ponto do sistema de opressão

onde também o feitiço se volta contra o feiticeiro.

Então, a gente tem uma estrutura que é racista, que é

machista e tal, e noventa e nove porcento dos danos

dessa estrutura, vai bater diretamente na gente, não


(F)

90

é? Os envolvidos diretamente são a negritude,

indígenas, mulheres, pobres e tal, mas tem aquele um

por cento que embora seja pequenininho em número, é

gigante na prática e esse é um caso desse um por

cento, quer dizer, o cara morreu porque a mentalidade

armamentista é altamente patriarcal, falocêntrica.

Aquele homem que depende de uma arma para se

auto afirmar como um homem, é o resultado de como

as masculinidades são formadas em uma sociedade

patriarcal. Então, eu quis colocar isso no texto, mas

teve pessoas que não entenderam e acharam que

estava acusando o cara. E aí também tem essa

questão do clickbait que a mídia gosta muito, não é? A

mídia hegemônica tem esses cacoetes e tal, e faz uma

chamada lá que algumas pessoas entenderem como

se eu tivesse culpando o campeão, que foi a vítima, o

Leandro Lo, como se eu estivesse o culpando por ele

ter sido assassinado. E eu: não, ‘pera lá, eu estou

falando que ele é vítima. Eu estou falando que os

homens precisam atentar também para o momento

onde eles se tornam vítimas do machismo. Então,

essa é uma questão em que os homens precisam

pensar, porque eles tem que lutar contra o machismo

também. “Não, você está dizendo que ele morreu

porque era machista.” Sabe, assim, o povo não

entendeu. E assim, não estava me incomodando nem

um pouco o fato de estar sendo muito xingada, sabe,

são pessoas que eu não conheço, não fazem parte da

minha vida. Mas eu tenho interesse social naquilo que

eu estou fazendo com a escrita. Então, eu quero que

eles entendam porque o entendimento deles

determina muitos outros entendimentos, porque eles

vão levar essa informação, levar esse raciocínio para

outras pessoas. E aí, eu falei: não, vamos tirar esse

texto do ar e eu vou escrever de um jeito que fique

mais explícito para que as pessoas entendam. Então,

reescrevi, as pessoas entenderam, então é isso, não

tem jeito, de vez em quando você tem que entender

que gerou margens para outras interpretações, então

vamos rebobinar, sou velhinha, sou do tempo da fita

cassete (risos) então, vamos rebobinar para fazer a

coisa acontecer do jeito certo.

TARINA Nossa, Joyce! Você falou tantas coisas incríveis agora.

Passaram tantas coisas pela minha cabeça enquanto você estava

falando. Mas, essa coisa de você, como a Soraya trouxe, ter esse

cuidado de estar escrevendo para alguém e da pessoa entender

aquilo que você tá falando porque, de fato, você trouxe várias

coisas que tem ligação direta com o nosso campo aqui do projeto,

que é corpo, que é relação entre corpo e mente, que é percepção


(F)

91

do mundo porque, de fato, para mim também, quando eu recebo

uma mensagem, toda vez que eu recebo uma mensagem escrita,

eu penso: calma, que tom será que a pessoa usou ao escrever

essa mensagem? Porque a palavra não contempla o aspecto

sinestésico emocional, a não ser que você agregue palavras ali, e

que nem sempre significam o que elas realmente significam. Como

você disse, ao dizer “eu estou com ódio”, não vai experienciar

como se eu gritasse “EU ESTOU COM ÓDIO!”, não é? Eu vou

sentir coisas diferentes, mas a letra não compreende. Com a letra

escrita, a gente ainda consegue fazer uma coisinha, uma dancinha

com ela, mas é mais complicado. E aí, também porque é do nosso

campo, eu lembrei desse cara que é o Alva Noë, porque ele fala

muito da ideia de presença, como tornar algo presente. Então,

em resumo é que eu penso muito a arte como isso, que eu acho

que é também o que você está falando com os seus escritos,

que é sobre você ter algo que você quer tornar presente, não é

qualquer coisa, e que se aquele algo não está presente daquela

forma, vamos tentar encontrar formas de tornar aquilo presente.

Bom, dando uma espiralada naquilo que a gente está conversando,

mas seguindo a mesma lógica, eu estava pensando numa coisa

que a gente conversa um pouco antes também, que é a ideia de

aliança. Então, sabendo que nós somos atravessadas de formas

diferentes pelos contínuos da racialidade, do gênero, das classes

e de tudo isso onde a gente habita de forma diferente. Então,

com certeza a gente experiencia as violências de formas muito

diferentes, embora a violência esteja posta para todo mundo que

vive num país que foi colonizado, a gente vive diariamente com

a continuidade dessa violência de uma maneira que em outros

lugares do mundo, eu acho, é muito diferente, então, para gente

tem um tempero que é muito particular. E eu acho que a pergunta

que eu tenho e te passo, é sobre a possibilidade de aliança sem

fantasiar uma possível homogeneidade que não existe. Então,

existe essa possibilidade de aliança? Quais são as práticas que

tornariam essa aliança possível? Ou eu estou sendo naive, e não é

o momento histórico para isso acontecer?

JOICE Você fala de alianças entre pessoas?

TARINA É, por exemplo, entre um possível feminismo que fosse

racializado, mas espectralmente contínuo. É fantasioso imaginar

esse feminismo? Porque a gente sabe que o feminismo negro

não é o mesmo feminismo que a algum tempo atrás o feminismo

dava de barato, que era, vou usar essa palavra também bastante

complexa, o feminismo Universal. Sendo que a própria ideia de

Universal já teria que ser discutida pelo próprio feminismo, mas

enfim, foi de outro jeito. Então eu falo mesmo numa aliança que é

entender que nós, que embora recebamos a violência de formas

diferentes, todos estamos imersos nessa violência e que essa

violência atravessa - eu volto, só para, talvez, deixar um pouco

mais presente isso sobre o que eu tô falando, na apresentação


(F)

92

do livro lá do Fred Moten, o cara que faz apresentação para ele,

ele fala que enquanto um homem achar que ele é legal porque ele

defende o direito das mulheres; enquanto uma pessoa branca achar

que ela está sendo incrível porque ela está defendendo o direito

das pessoas negras, não vai adiantar porque essa pessoa tem que

entender que ela também está fodida por esse sistema. Ele fala de

um jeito, inclusive, poético porque ele usa a música, ele fala: “essa

pessoa precisa entender que ela também está morrendo, mais

suavemente, mas ela também está morrendo.” Então, um pouco

nesse sentido… Tem sentido?

JOICE Eu acho possível. Acho que todas as alianças

são possíveis. Qualquer tipo de aliança entre pessoas

é possível. Mais do que possível, eu acho que ela é

desejável. Eu acho que ela é imprescindível. Se nós

somos seres sociais, a gente precisa socializar e

socializar tem seus embates, tem seus impasses. Cada

vez mais eu penso que a gente tem que discutir as

questões relacionadas às opressões, a gente tem que

discutir as questões da mulher, de gênero feminino,

a gente tem que discutir as questões relacionadas

à raça, classe social… A gente tem que discutir tudo

isso e entender tecnicamente tudo isso. Mas a gente

não pode, em nenhum momento, desconectar isso do

nosso humano, do nosso lado humano. Eu acho que

isso é uma cesão que vem sendo feita instintivamente,

a gente não percebe muito que a gente está lutando

por causa que, no fundo, no fundo, estão relacionadas,

acima de tudo, a pessoas, sabe? Então, nós temos

as nossas limitações humanas. É difícil para a gente,

é uma ignorância nossa, é uma involução nossa não

aceitar a diferença ou olhar para o diferente de uma

maneira… bom, nós somos condicionados a isso!

É fato. É histórico. A gente foi condicionado a esse

tipo de postura, mas justamente por saber que a

gente foi condicionado, que a gente já deveria estar

se mexendo para mudar essa essa questão dentro

da gente. A gente ainda é muito limitado. Fala-se

em diversidade, fala-se muito em diversidade, mas

ninguém está assimilando, de fato, isso. O outro

ainda causa um estranhamento por isso que a gente

vê uma polarização política, não é? Ah, mas o outro

tem uma opinião… E quando você vai ver, existe um

espelhamento ali dos dois lados, estão tendo a mesma

postura só que em pólos diferentes, não é? Isso

dificulta as alianças de se constituírem. Porque falando

tecnicamente, intelectual e cognitivamente dentro de

todos os nossos estudos feministas, a gente sabe

que é a união que vai fazer com que a gente consiga

retomar ou tomar o poder e se consolidar como ser


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93

social válido, humano e merecedor de tudo e mais um

pouco. Então tecnicamente isso está muito claro na

nossa mentalidade, mas subjetivamente não. Nós não

realizamos, lá dentro de nós, isso. Então, a pessoa

muitas vezes, olha para outra com uma superioridade,

não é? Porque assim, eu como psicanalista, eu que

estou aí nos caminhos da psicanálise e tal, a gente

aprende o seguinte: o que está no seu inconsciente,

ele vai sair de um jeito ou de outro. Você recalca daqui,

mas ele foge e vai por outro canto. Então se está no seu

inconsciente que você é uma pessoa superior, “olha, eu

sou uma feminista branca e aquela negrinha ali, né, eu

vou aturá-la porque ela é mulher como eu”. Se é isso

que está no seu inconsciente, em algum momento isso

vai escapar no seu comportamento, na sua maneira

de lidar com aquela pessoa, nas coisas que você for

fazer… Tudo é sintomático. Então, por exemplo, eu vou

fazer um evento aqui, não tem nenhuma mulher negra

sentada nessa mesa, ou vou organizar um projeto aqui,

mas quem manda é só branca, não é? Não vou chamar

nenhuma mulher negra aqui para estar no corpo de

organização desse projeto, não é? Nesse pequeno

espaço de poder que nós conseguimos construir

enquanto mulheres, as negras continuam de fora.

Agora, o que significa isso? Significa o tal do ato falho

que o Lacan fala e que nada mais é do que aquilo que

está no seu inconsciente saindo sem você perceber.

Não tem negras ali, não é porque você não acha uma

negra competente; não tem ali porque, no fundo, no

fundo, você não quer que ela esteja ali porque você

ainda enxerga, você ainda sente ela como subalterna.

Uma vez escrevi um texto, eu nem lembro para onde,

acho que foi para a Carta Capital, onde eu estava

esboçando essa reflexão do quanto o racismo, assim

como o machismo e todas as outras opressões, elas

são elementos políticos mas acima de tudo elas se

constituem também como emoção, como sentimento.

Então, você tem os sentimentos racializados, você tem

as emoções racializados e isso constrói uma barreira

invisível, é como se fosse uma parede de vidro, e você

tem uma relação com uma pessoa que é diferente

biologicamente de você pela cor da pele, pela genitália

ou pela vivência sexual e enfim, qualquer outra coisa,

então você adora aquela pessoa, você gosta daquela

pessoa, mas a aproximação com aquela pessoa vai

ter um limite porque existe ali o muro de vidro que é

justamente os nossos afetos racializados. Então, são

essas pequenas grandes dinâmicas que precisam ser

resolvidas, dentro ou fora da discussão feminista, antiracista

ou sei lá o quê, mas elas têm que ser abordadas.


(F)

94

Então, quando eu trago a questão da solidão da mulher

negra, que na verdade é o preterimento afetivo da

mulher negra, não é para causar. Eu até brinco com

isso em casa e digo: olha, existe a solidão da mulher

negra, mas também existe a solidão da mulher chata.

Então, às vezes, a gente também tem que admitir

que a gente é chata e que por isso a gente não tem

um companheiro. Mas é um assunto que precisa ser

discutido porque ele está nesse viés da racialização

dos afetos e sem a gente resolver isso, a gente não

anda com as nossas demandas políticas no feminismo,

na luta anti racista, LGBT, de classes e de tudo mais.

Então, as alianças são possíveis e a gente sabe,

cognitivamente, o quanto isso é fundamental para a

gente conseguir avançar na sociedade, mas as nossas

questões humanas, as nossas questões psíquicas,

subjetivas elas precisam ser muito bem avaliadas

e não podem ser negligenciadas porque senão elas

chegam lá dentro das rodinhas dos círculos de luta

social e elas vão impactar de jeito silencioso. “Ah,

porque agora estão com inveja de mim porque agora

sou uma feminista famosinha.” Ok, vamos destrinchar

isso daí, isso não pode ser um tabu, vamos conversar

sobre isso. “Ah, agora eu estou ali no movimento negro

e povo não quer falar comigo porque eu casei com um

branco.” Pera lá, vamos conversar sobre isso também.

Porque fica aquele silêncio, não é? E isso impacta de

uma maneira profunda naquelas lutas e inviabiliza

qualquer tipo de articulação e de aliança. Então, assim

as alianças são possíveis e elas são necessárias, mas

elas têm um viés subjetivo que precisa ser muito bem

resolvido para que elas funcionem.

SORAYA Eu fiquei pensando nisso que você falou e eu

fui atrás da coisa que você fala sobre empoderamento e

li um pouco mais sobre isso e a maneira como você traz,

para mim; foi muito interessante, por exemplo, encontrar

esse empoderamento que você fala; porque você traz o

empoderamento como um trabalho, como uma prática. E foi

a primeira vez que eu vi alguém falando de uma noção, de um

conceito, de uma coisa assim bem grandona, não é? De um

nome bem grandão que é empoderamento. E que se falou

tanto nesses tempos como uma prática, como uma atitude

e de pensar o empoderamento como uma coisa processual.

E eu achei bem interessante isso porque, agora linkando

o que você falou com o que a Tarina perguntou, o quanto

é importante a gente se perguntar sobre esses assuntos

que aparecem e que nos distanciam. Às vezes, por medo

de falar; às vezes, por medo desse lugar de divergência,

porque a gente é treinado para harmonizar o tempo inteiro, a


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95

positivar o tempo inteiro… E aí, eu fiquei pensando em como

é que a gente faz para entender esse empoderamento como

uma prática? No sentido de nos perguntar sobre coisas da

vida mesmo. O que é poder? E o quê que me causa essa

sensação de estar sob uma opressão em alguma situação,

nessa condição que se me apresenta como existência? E

quais as ideias de poder, as políticas de poder, isso tudo que

você fala, assim, eu queria que você falasse um pouco sobre

isso, sobre essa relação de empoderamento e eu até falei

para as meninas o tanto que eu achei bonito e poético essa

relação que você traz de um futuro trabalhável. Eu achei isso

tão maravilhoso! Porque não é sobre um futuro futuro, mas

é sobre um futuro daqui a um segundo, que pode ser daqui a

um segundo, como ele pode ser mais longo, como ele pode

ser mais curto, não é? Então eu queria que você falasse um

pouco sobre isso e também me veio uma uma coisa que

eu acho que eu li de uma fala que você fez também, que

eu acho que tem a ver, que é: quando é que a gente toma

uma posição, diante dessas coisas que a gente precisa

conversar? E que, talvez, a gente precise mesmo, de fato,

se colocar numa posição de conversar. E quando é que a

gente toma uma posição de condenação? E quando é que

a gente toma uma posição de reconhecimento? E quanto

isso é importante nesse momento em que as urgências são

tantas e as lutas precisam caminhar mesmo? Porque elas já

estão caminhando há muito tempo, ainda bem.

JOICE Ainda bem! Quando Jurema Werneck fala

“nossos passos vêm de longe”, é porque vem de longe

mesmo, não é? Seria uma uma grande arrogância da

nossa parte achar que… Bom, se a gente tem um boom

do feminismo, do movimento negro, da luta LGBT

neste momento, isso é uma coisa que está sendo

preparada desde lá atrás. E eu acho que isso serve

muito para a gente entender esse viés do futuro

trabalhável. A gente nesse momento… Os capitalismos

vão vindo aí e eles vão mexendo com a nossa

percepção, brincando com a nossa percepção e essa

coisa do imediatismo, sabe? É para ontem. Tudo é

para ontem. E não tem nada que possa ser para ontem.

Tudo é um processo. Você vai trabalhando lentamente,

a tentativa e o erro vão surgindo e você vai aprimorando,

você erra aqui e aí você conserta ali, e você percebe

que aquilo podia ser um pouco melhor… É isso você vai

trabalhando, não tem fórmula mágica, não tem. Nós

não somos a Jeannie, é um gênio, não é? Que mexe o

narizinho, mexe o rabinho e tudo está resolvido.

Infelizmente, a gente tem que trabalhar. E a nossa

mentalidade é programada para o imediatismo, não é?

Tem que acontecer amanhã. A gente perdeu a conexão


(F)

96

com o passado, no sentido de olhar e falar cara, o quê

que as nossas mais velhas passaram para que a gente

estivesse aqui hoje? Porque falar em ancestralidade,

todo mundo está falando, mas como a gente está

lidando com essa questão da ancestralidade é uma

coisa que me preocupa, porque as pessoas vão

esvaziando as questões de uma forma que tira da

gente esse pequeno poder que é lidar com esses

instrumentais que vão surgindo. A ancestralidade é

um conceito incrível e ele é incrível justamente porque

quando a gente pensa na nossa ancestralidade, a

gente olha para trás e pensa, por exemplo, que eu fui a

primeira mulher da minha família a ter o diploma

universitário. E aí, lá atrás, a minha avó trabalhou na

lavoura de café e ela trabalhou grávida e ela fazia o

próprio parto e ela voltava para o trabalho. Então,

esses avanços, que quando a gente olha para trás e

vê, você fala: poxa, eu sou uma pessoa especial porque

eu vim de pessoas especiais que prepararam todo o

território para que hoje eu tivesse aqui falando com

mulheres, trocando informações, me fortalecendo,

falando com outras pessoas e tudo mais. Então, assim,

o empoderamento, quando eu fui pesquisar mais a

fundo… E outra questão do imediatismo é isso, não é?

As pessoas leem três linhas e opa, já sou especialista.

E aí, todo mundo está empoderado, está todo mundo

muito empoderado. Só que, de repente, a Mariele

aparece assassinada com quatro tiros no meio da

cara, no centro do Rio de Janeiro. Então, que

empoderamento é esse? Não é empoderamento,

porque se fosse, se a gente tivesse entendido… não

que a Mariele não tivesse morrido, não é isso. Mas é

entender o que é para a gente poder usar de maneira

consciente, estratégica para que um dia a gente não

perca mais uma Mariele. A gente perde quantas

Marieles por dia? Perde muitas ainda. Agora, quando a

gente compreende, por exemplo, ah, vamos falar de

empoderamento de um jeito certo, de um jeito sério,

então, tá. Então, vamos lá. De onde surgiu o

empoderamento? Surgiu de Paulo Freire. Paulo Freire!

Nosso Paulo Freire. Ele é o cara que planta ali uma

semente de empoderamento. Muita gente não sabe. O

pessoal está falando, o pessoal da direita falando em

empoderamento, empoderamento, empoderamento…

“Ai, eu empoderei, eu empoderei, eu empoderei” , e

falando mal do Paulo Freire. Como assim, não é? Olha

o nível em que a gente fica de desinformação. O start

do empoderamento é o Paulo Freire. Ele vem com a

teoria da conscientização crítica e ele usa pouco essa

palavra empoderamento, porque ele era um visionário


(F)

97

e sabia que poderia dar problema no futuro porque as

pessoas são preguiçosas, não querem pesquisar,

então, eu acho que ele já previa alguma coisa, então,

ele abandona o uso da palavra em um certo momento,

em um livro só é que ele cita a palavra empoderamento,

eu acho que umas quinze vezes, dezesseis vezes e

tal… Para tentar colocar essa coisa da teoria da

conscientização crítica. Quando você fala em

empoderamento, a primeira coisa que você tem que

pensar é que o poder tal qual nós o conhecemos, ele é

um conceito que já nasceu comprometido com a

opressão. Porque o poder tal qual nós o conhecemos

,ele tem que necessariamente ter alguém acima e

outro abaixo, quem está embaixo para sustentar quem

está em cima e quem está em cima, vai pisar em quem

está embaixo. É a tal da hierarquia. Isso é tão profundo,

não é? O Foucault, ele aprofunda muito nessa reflexão,

porque isso vai se ramificando por todas as instituições

sociais, então, em consequência, na ideia do casamento

heteronormativo, tem lá o marido e a esposa, o marido

é quem manda mais; a esposa, quem manda menos.

Então, já se criou uma hierarquia. Quando você tem

isso em termos de religião, você tem o padre e o padre

fica no altar, acima do restante das pessoas que estão

ali, então, já tem uma ideia de poder que é colocada

ali, não é? E aí, quando você pensa no professor, o

professor está em um lugar, da escola, de destaque.

Quando você pensa na educação com bases afro, nas

culturas africanas, quando você pensa, por exemplo,

NIgéria, Angola, Moçambique… As pessoas sentavam,

vamos fazer uma roda aqui, e tem um Griô no meio

passando as narrativas, as oralidades para as pessoas

ali de uma maneira igualitária e é como se todo mundo

estivesse abraçando ele. As coisas não são

desconectadas de um significado mais amplo. Então,

quando você tem um professor isolado na frente de

uma sala e todo mundo olhando só para ele, ninguém

pode olhar para o lado, só para aquela direção ali, você

está reforçando uma ideia hierárquica de poder. Então,

vamos discutir o poder? Se a gente continuar com

esse poder que é verticalizado, sempre vai ter as

relações de opressão. Agora, quando a gente começa

a pensar em uma forma de vivenciar o poder de forma

linear, todo mundo pode, todo mundo está no mesmo

patamar, aí a coisa começa a ficar diferente. Porque aí

não vai ter opressão. A relação fica igual, fica linear. E

aí você tem um processo para você chegar na

capacidade de praticar isso, de fato, você tem que ter

um fortalecimento, você tem que ter uma

transformação de ideias, de pensamentos, você vai


(F)

98

trabalhar a sua psique, então, você tem o pilar

psicológico no trabalho de empoderamento, tem o

pilar econômico porque ai, eu sou comunista, eu sou

socialista, eu sou anarquista… você pode ser o que

você quiser, mas a sociedade continua sendo

capitalista, infelizmente. Então, você tem que andar

por essa selva capitalista que já está consolidada

desde antes da gente chegar aqui, não é? Nasci e já

era assim o sistema.E você tem que se virar, porque

sem dinheiro…O que é que eu vou fazer sem dinheiro?

Não tem o que fazer. Tem mulheres aí, que não se

livram de situações de violência doméstica porque

não tem como custear sua própria vida, porque

depende do marido, não é? Então, como você vai falar

ah não, o dinheiro não importa? Infelizmente, o dinheiro

importa e a gente tem que achar caminhos para ter

esse dinheiro de uma maneira que contrarie um pouco

a lógica capitalista que é uma lógica que também

entra nessa ideia de hierarquia entre pessoas. E aí,

você tem um fortalecimento, uma reestruturação

cognitiva. Para poder entender tudo isso, eu preciso

me abastecer intelectualmente, então, tem que

consumir livros, palestras e tal, e aí você tem o

fortalecimento político. Angela Davis fala, e a gente

abaixa a orelha para compreender, que a política não

se restringe ao congresso nacional, às casas

legislativas, aos partidos. Não, a política vai muito

além. Respirar é um ato político. Levantar da cama de

manhã e decidir trabalhar ou se matar, é um ato

político. O que você compra no supermercado ou não

compra no supermercado, é um ato político. A gente

faz política o tempo inteiro porque política é o modo

com o qual a gente organiza a nossa vida e como a

sociedade organiza todas as outras vidas que estão ali

convivendo tangencialmente. Então, você tem todos

esses vieses para trabalhar no processo de

empoderamento. E se isso está sendo trabalhado,

você se torna uma pessoa empoderada, não é? O que

significa ser empoderada? Significa ser livre? Não,

significa que você criou uma consciência profunda a

ponto de entender exatamente quem você é,

socialmente falando, qual lugar que você ocupa, quais

as implicações que esse lugar que você ocupa trazem

para sua vida, como que você vai conseguir se livrar

disso, como você vai conseguir ajudar o seu grupo que

está nesse processo de descoberta disso tudo…

Porque você não desconecta o empoderamento

individual do coletivo, não é? Sozinhos nós somos

muito legais, mas juntos nós somos imbatíveis. Então,

é simbiótico. Eu me empodero e aí, eu sou um a mais


(F)

99

dentro da minha comunidade, apto a traçar um

caminho de trabalho, outro trabalho de transformação

social, então, empoderamento tem todo esse rolê que

não é de uma hora para outra, não é de um dia para o

outro. Tem pessoas que vão ter que parar um pouco

mais na parte psicológica, não é? Tem mulheres muito

bem-sucedidas que passaram por relacionamentos

abusivos, então, estão com o seu psicológico

totalmente detonado. Tem pessoas que estão com o

seu psicológico bacana, mas não sabem como podem

atuar politicamente dentro da estrutura para fragilizar,

para tencionar, para virar de pernas pro ar aquilo que a

gente precisa transformar, não é? Então, tem todas

essas questões. Agora, a última coisa que você me

perguntou foi sobre saber qual é o momento em que a

gente vai para o “arrebento” ou quando vai e põe o pé

no breque. Seria, mais ou menos, isso?

SORAYA Não, eu acho que não. Porque o que eu falei

do breque, para mim, vai quase como alisar a pessoa. No

nordeste, a gente chama assim, pelo menos, lá em Teresina

a gente fala assim sobre não alisar ninguém, tipo assim, não

deixar suave para ninguém. Eu acho que não é isso, mas

assim, é porque, às vezes, eu sinto que a gente está sempre

entre essa condenação e o reconhecimento. É quase como

se a gente estivesse atuando nessas duas posições: nos

processos de vigília enquanto a gente está menos nesse

lugar que você fala de entender quais são os aspectos da

vida mesmo. Porque se eu chegar para a minha mãe, que

tem setenta e oito anos, uma mulher de Brasil profundo,

se eu chegar para ela e disser: mamãe, você tem que se

empoderar, é quase como se eu deixasse de reconhecer nela

todo o caminho que essa mulher fez, inclusive para eu ser

quem eu sou como mulher hoje, nordestina, que estuda…

Não é?

JOICE É. Como eu estava falando dessa coisa

da ancestralidade, eu acho que a gente está em

um momento em que tem muitas pessoas novas

desconectadas do passado. A Bell Hooks tem um

conceito que eu gosto muito e que eu acho que cabe

para o momento, que é: por mais que a gente saiba

que uma direita tresloucada nesse país, que fala muita

bobagem e que é muito doida, enfim, extremamente

problemática… Mas quando eles dizem o seguinte:

você está com vitimismo, eu acho que a gente tem

que aproveitar tudo que gente ouve e refletir em cima

daquilo, porque nem toda crítica é dispensável e nem

toda crítica é apenas para te ofender, para te provocar.

E mesmo quando uma coisa é para te ofender, às


(F)

100

vezes, você pega aquilo e vira a chavinha ali, pega

aquilo para você e consegue transformar aquilo,

converter aquilo em um bônus para você mesmo.

Então, quando se fala dessa questão do vitimismo,

eu sei muito bem em que lugar eles querem colocar

a gente, mas a gente se põe nesse lugar também, se

prestar atenção. Porque as nossas avós, as nossas

mães, elas se viravam. Elas não tinham esse monte de

livros, elas não tinham essas referências intelectuais,

elas não tinham esses assuntos sendo discutidos

na televisão, mas isso não significa que elas eram

totalmente submissas e em muitos casos, significa

que as estratégias de luta delas eram outras. E a

gente precisa compreender essas estratégias, não

dispensar, achar que é bobagem. A minha avó tinha

que esperar o meu avô dormir para pegar a carteira

dele, pegar o dinheiro na carteira dele e ela fazia isso

com tanta precisão, tanto jeitinho que no dia seguinte

ele acordava e nem desconfiava que ela tinha pego

dinheiro dali. Poxa, é uma inteligência isso daí, sabe?

É uma inteligência, é uma estratégia inteligente. Ela

não podia com a força, ela ia com a inteligência e

surtia algum efeito. Ela fala, por exemplo, que o meu

avô proibia a minha tia de ir no baile, não queria que

ela saísse, que ela namorasse, nada. Então, o que ela

fazia? Ela dizia ah, tá, concordo com você e esperava

ele virar as costas, arrumava ela, levava ela no baile,

ela dançava, namorava, ficava ali olhando ela lá, depois

voltava e meu avô nunca nem desconfiou. Então,

ela criou uma filha com outra mentalidade porque

ela driblou os desmandos dele que, estruturalmente

falando, ela não tinha como confrontar. Porque era

uma coisa natural da época, o homem mandar na

mulher. Hoje em dia esse joguinho de cintura falta na

gente. Eu, por exemplo, muitas vezes fui no rebento

e perdi a oportunidade de virar o jogo ao meu favor.

E não só nessas questões relacionadas às relações

de gênero, de raça e tal, em outras questões da vida

também. Essa malandragem, essa coisa do capoeira,

não é? Às vezes, as pessoas não sabiam se capoeira

era luta ou era dança. Acabei de vir da audição de

trabalho super bonito que uma turma está fazendo em

homenagem ao mestre Moa que foi assassinado em

2001 por um bolsonarista. E o cara era um capoeirista,

era um mestre, não é? Um mestre e tal… E a capoeira

é uma coisa extremamente educativa para gente,

porque a capoeira é uma luta, mas ela também é uma

dança. Então, ela nos confunde. Você não sabe quando

está dançando ou quando tá lutando. E isso tem

faltado para gente, não é? A gente tem que retomar


(F)

101

isso que os nossos ancestrais deixaram para a gente.

Olha, o negócio é o seguinte: às vezes, você tem que

dançar e às vezes, você tem que lutar. E assim você

vai confundir o olhar do opressor. Então, de vez em

quando, você vira o jogo a seu favor na malandragem

e isso é uma coisa que a gente tem deixado de lado,

não tem aproveitado por pura arrogância intelectual.

Ah, não, mas é porque eu me formei na academia, eu

sou um acadêmico… Aí, você taca mil conceitos ali

e no fim das contas você cai em um relacionamento

abusivo e não consegue se livrar dele, você é

esmagado por aquele relacionamento abusivo mesmo

com todas as teorias que você estudou, mesmo com

tudo que você conseguiu construir, independência e

tudo mais, e você é uma mulher oprimida dentro da

sua própria casa, não é? Você não consegue nem ter

espaço para respirar, para tentar articular uma fuga

daquela situação, você precisa de alguém para vir e te

resgatar. Mas as nossas avós tinham caminhos, elas

tinham estratégias que funcionaram muito bem para

elas terem uma vida um pouco melhor. Então, assim,

nós temos muitos recursos hoje em dia que são muito

importantes, que nos servem muito, mas vale muito a

pena a gente olhar para o passado e tentar compreender

como que a subversão… como as mulheres mesmo

não sabendo o que era feminismo, como é que elas

conseguiam subverter alguns sinais de opressão na

vida delas, como é que elas conseguiam ali se virar

de alguma forma. Porque eu aprendi a ser feminista

com as minhas avós, e elas nem sabiam. Feminismo?

O quê que é isso? Eu não sei do que se trata. Nenhuma

delas estudou nem nada, mas as lições que elas me

deram sobre como se lida com as masculinidades,

eu carrego para a vida inteira. E assim, eu não gosto

muito de falar isso, mas eu fui casada e eu não passei

por metade do que eu vejo muitas mulheres por aí

passando, porque as minhas avós me ensinaram que

eu tinha que me impor desde o começo. Você não

depende de um homem para ser feliz e inteira, então

você se impõe. Se ele não aceitar, você cai fora e vai

viver a sua vida sozinha porque pode ser que seja mais

feliz para você. Então, eu acho que está faltando a

gente olhar um pouco para as nossas avós, enfim.

TARINA Nossas avós foram maravilhas, não é?

JOICE Nossa, muito maravilhosas!

TARINA Eu fiquei pensando enquanto você estava falando,

inclusive nessa coisa avós porque eu acho que isso é… Enfim,


(F)

102

tudo é complexo hoje, não é? Como você falou, tudo o que a gente

diz pode ser facilmente cooptado, e sequestrado para dizer algo

que não foi nem o que a gente intentou naquele momento, não

é? Mesmo quando a gente pensa em feminismo, pensar hoje na

palavra mulher, dizer mulher, dependendo do contexto de coisas

que você agrega a essa palavra, pode gerar já um monte de coisas

em cima dela também. Mas de alguma forma, historicamente

falando, essa coisa do cuidado que sempre foi relegado a nós ou

pelo menos nessa história de sociedade que a gente conheceu, eu

fiquei pensando nessa coisa, como você falou, do empoderamento

que tem uma diferença muito grande, e eu estava lendo alguma

coisa, tempos atrás também, do poder sobre em relação ao poder

para. E acho que isso que você conta das suas avós, me leva muito

para a ideia do poder para, não é? Então, é ter poder para fazer

uma coisa e, nesse sentido, é a potência. Não é poder sobre o

outro. Então, a gente não está interessada no poder sobre, a gente

está interessada no poder para, porque é o que vai promover a

nossa vida. Fiquei muito viajando também em como você traz

sempre, nessa nossa conversa aqui você trouxe várias vezes, algo

que é da escala da vida, que é da escala do subjetivo, mas que está

continuamente aí, não dá para separar. O fato é que o que eu como,

o que eu leio, com quem eu transo, sim, transformam a forma pela

qual eu vejo o mundo, não é? Os meus amigos desde a infância e

etc, etc, etc… Então, eu acho que essa escala do corpo, às vezes,

fica mesmo deslocada quando a gente entra em discussões

macropolíticas e, no entanto, elas, talvez, são as que mais fazem

as cagadas quando a gente acha que a gente está mandando super

bem nas discussões macropolíticas e o nosso ato falho famoso

aparece para nos dar uma rasteira, não é? Enfim, dito isso, a gente

tem trazido em algumas das entrevistas, a gente trouxe para todo

mundo em algumas, nas últimas três entrevistas a gente trouxe

a palavra urgência. Então, eu jogaria para você, primeiro, se essa

palavra faz sentido para você hoje, essa palavra urgência é uma

palavra que está no seu repertório de como você pensa o mundo

hoje e se ela está, o quê que é urgente?

JOICE Olha, eu acho que a palavra urgência faz sentido

porque a gente tem tanto problema, tanto problema,

não é? Muita coisa acontecendo ao mesmo tempo,

muito sofrimento no mundo, muita coisa, assim, sabe?

No meu trabalho, no meu trabalho principal que é

como assessora parlamentar, aliás, ao longo da minha

vida eu não tive trabalho onde eu ficasse só lidando

com as coisas legais, assim, adoraria poder lidar só

com arte, com dança, com música essas coisas são

tão boas e que são trabalhosas também, claro, não

é? Estão aí vocês que não me deixam mentir, são

trabalhosíssimas, mas é um trabalho um pouco mais

feliz, digamos assim. Ao longo da minha vida, eu

sempre trabalhei com a miséria, com a pobreza, com


(F)

103

o sofrimento na minha cara, assim, cara a cara.Tanto

como arquiteta, como urbanista. Eu trabalhei como

urbanista, fazendo regularização fundiária, remoção

de famílias, regularização de favelas, que é a parte

pesada do trabalho de um arquiteto urbanista e tal.

Trabalhei no hospital psiquiátrico lidando com pessoas

ali excluídas, abandonadas pela sociedade, tentando

se inserir, enfrentando todas aquelas questões que a

gente conhece muito bem, então, eu sempre tive de

cara com o sofrimento, não consigo me livrar e sair

disso. E, hoje em dia, como assessora parlamentar,

a mesma coisa, eu vivo esse ambiente porque eu

trabalho com um vereador que o carro-chefe de

atuação da vida política dele é Direitos Humanos,

inclusive é por isso que eu estou lá. Então ,você vê

todo sofrimento do povo, a fome, a miséria, o frio, uma

série de coisas e tal. Então, falar que urgência é uma

palavra que não faz sentido, seria leviano da minha

parte, não é? A urgência nesse contexto dos Direitos

Humanos, das liberdades individuais, da preservação

da vida, do acesso à infraestrutura básica de vida é

urgente garantir. É urgente que uma pessoa tenha

onde morar, é urgente que uma pessoa tenha o que

comer, é urgente que uma mulher não morra, dentro

da sua própria casa, assassinada por um cara que

jurou amá-la e respeitá-la até que a morte os separe,

sabe? É urgente que meninas não sejam estupradas,

molestadas, é urgente que a população negra não seja

assassinada sistematicamente, os meninos pretos da

periferia e as meninas negras, tem muitas urgências no

mundo, faz muito sentido. Agora, por outro lado, tem

uma turma que encara as urgências por outro lado, um

outro viés que, às vezes, chega a ser até estridente

para mim, sabe? Ai, eu tô com burnout e eu tenho

que desacelerar porque o urgência do mundo e não

sei o quê… Não que as pessoas mentais uma pessoa

não devam ser levadas à sério, claro que tem, não é?

Mas eu acho que o que eu quero dizer é o seguinte,

a gente precisa caminhar rumo a uma encruzilhada

onde a palavra urgência esteja ali bem no meio e essa

palavra urgência signifique a mesma coisa para todo

mundo, entendeu? Então, não é urgente para você que

tem uma casa e que na pandemia, pôde fazer o seu

lockdown, e você tem a sua academia onde você cuida

do seu corpo e a grande reclamação da sua vida é o

excesso de trabalho; e a reclamação do outro aqui na

periferia da zona norte, é a falta de trabalho, sabe?

Então, eu acho que a gente tem que caminhar para se

juntar numa encruzilhada onde a urgência signifique a

mesma coisa para todo mundo. Até porque eu penso


(F)

que esses problemas de ordem mental que estão só

se avolumando, são consequências do nosso descaso

com essas urgências que compõem o limite entre vida

e morte para algumas pessoas. Enquanto a gente

estiver pulando corpos, não adianta falar muito em

saúde mental. Que saúde mental a gente pode ter em

uma sociedade onde você pula corpos? Você sabe

que na periferia estão matando a rodo. Jacarezinho…

Você vê lá um vídeo, a favela sendo bombardeada,

as milícias e todas essas coisas assim, então, sabe?

Eu acho que urgência é uma palavra que faz total

sentido em alguns contextos e em outros, ela deve

ser reconectada com a realidade da vida para que ela

seja potencializada, e aí ela vai surtir efeito pra todo

mundo, não é? Aquela coisa, enquanto não está bom

para todos, não vai estar bom para ninguém. Essa é

uma consciência que é urgente de se criar.

TARINA Joice, então. Bom, para finalizar o nosso dia de hoje, não

sei se você ainda tem algo que você queria falar, mas eu queria te

agradecer muito! Não é, Soraya?

SORAYA Sim!

104

TARINA Foi incrível para a gente! Olha, o que acontece é que a

gente poderia ficar aqui muitas horas, não é? Você sabe. Mas,

enfim…

SORAYA Eu disse para as meninas: meu deus, essa mulher

tem muito assunto para a gente conversar! Porque a mulher é

arquiteta, é urbanista, é curadora, é escritora, é psicanalista,

é coisadona… (risos)

TARINA A gente tem que pensar em, para o futuro, fazer por

capítulos, não é? (risos)

SORAYA Eu queria muito perguntar uma coisa. Eu queria

muito perguntar uma coisa! Quando nasce, e eu digo nascer

como algo que brota a todo momento, porque eu acredito

que o que a gente faz é fazer corpo o tempo inteiro, fazer

esse para viver nesse mundo agora. Agora é aqui, é daqui

a um minuto, daqui a dois segundos, agora… E eu queria

perguntar para você, nesse sentido de nascer que eu falo,

quando nasce uma mulher arquiteta, urbanista, curadora,

psicanalista e interessada em pessoas, o que isso altera

no mundo? O que isso constrói de corpo no mundo? O quê

que isso constrói no mundo como o corpo? Eu fiquei com

vontade de perguntar isso para você.


(F)

105

JOICE Nossa, que pergunta complexa! (risos) Que

pergunta linda, não é? Olha, eu acho que isso constrói

no mundo uma opção de caminho de transformação.

Eu sou uma pessoa muito orgulhosa com a vida que

eu levo hoje em dia, com a possibilidade… Eu sou

espiritualista, meu caminho de exercício da fé é a

Umbanda, mas eu tenho uma paixão aí pelo melhor

de todas as religiões e então eu acredito que nada

da vida da gente é por acaso, se você atravessa o

caminho de alguém, você tem, de alguma forma, que

deixar algo bom plantado ali, independente da pessoa

sentir que você plantou ou não. Então, eu sou muito

grata pela oportunidade de poder plantar coisas boas

no caminho das pessoas, ainda que muitas vezes soe

como… as pessoas, às vezes, falam assim: nossa,

eu tomei um tapa na cara agora com isso que você

escreveu, mas eu sei que é uma maneira carinhosa

de dizer que de alguma forma mexeu com elas e é

como se eu devolvesse para o mundo aquilo que, um

dia, também fizeram por mim. Porque todas essas

referências que eu carrego e que me inspiram, a

Lélia, Sueli Carneiro, Milton Santos, as minhas avós,

a atriz de Hollywood, a vocalista da banda de póspunk

que eu sou apaixonada, todas essas mulheres e

homens, muitos homens, Paulo Freire… Todas essas

pessoas, elas me libertaram, assim, sabe? Eu não

sou uma pessoa presa ou senso comum e não me

obrigo a seguir uma linha de pensamento igualzinha.

Então, quando uma pessoa se conecta comigo, é esse

incentivo que eu vou dar para essa pessoa. Pensa fora

da caixa, não adota para sua vida aquilo que o senso

comum está tentando enfiar goela abaixo. Então,

eu acho que é isso que dá para construir no mundo,

é um caminho de descoberta de autolibertação em

algum nível, acho que é isso. Que vocês também

fazem, porque trabalhar com corpo, trabalhar com

a arte, isso é altamente transformador e as minhas

grandes referências de pensamento, elas vem muito

da arte, elas vem muito da emoção que um quadro me

desperta, que uma dança me desperta, não é? O corpo

é altamente comunicativo, não é? O dançarino, o

esportista, o capoeirista, enfim, são todos intelectuais

orgânicos também porque eles estão usando o corpo

como instrumento de transformação, de provocação,

não é? Então, é isso. Estamos aqui no mesmo barco

que é esse barco de provocar transformações no

caminho das pessoas que de alguma forma cruzam

com o nosso, não é? Acho que é por aí.

TARINA Fala, Soraya.


(F)

SORAYA Eu estou aqui pensando…

TARINA Bom, o nosso (caminho) transformou. Por uma hora, por

uma hora e alguma coisa… (sic) São os encontros mesmo, não

é? E como cada encontro, não dá para antecipar a potência dele.

Então, acho que assim, nós vamos com muito desejo de continuar,

mas nós vamos finalizando o nosso encontro de hoje. (risos)

Eu queria me desculpar. No começo, gente, eu esqueci de fazer

a minha descrição. Então, queria falar para vocês que estão me

ouvindo, que eu sou uma mulher não branca, eu sou racializada,

mas também não sou uma mulher negra. Estou com meu cabelo

preso, meu cabelo é preto meio ondulado. Tenho um rosto que eu

poderia associar com algo indígena. Estou sentada na frente de

uma parede branca, em uma cadeira e estou usando um casaquinho

porque o lugar onde eu estou, está frio.

JOICE Eu também? Tenho que fazer, não é?

TARINA Ah, sim, seria legal. E a Soraya também.

106

JOICE Bom, eu sou uma mulher negra, eu tenho cabelo

crespo, meio Chanel, na altura da orelha. Estou com

uma camisa preta, uns colares dourados. Estou com

batom vermelho e unhas vermelhas. Estou sentada

numa poltrona amarela, atrás de mim tem uma parede

roxa e uma outra parede azul, dá para ver uma cortina

branca e tem dois quadros também do meu lado,

quadros pequenos com traços em preto e verde.

SORAYA E eu sou a Soraya, sou uma mulher de pele clara,

tenho os cabelos cacheados, encaracolados, ondulados

na altura do queixo. Meu rosto é arredondado, minhas

bochechas são salientes porque eu sou uma mulher roliça.

Estou de óculos, estou vestido preto e atrás de mim tem

uma parede branca e do lado, uma grade que é uma porta e

uma janela. Muito obrigada, Joice! Obrigada; gente querida

desse projeto! Cacá, Aline, todas as meninas desse projeto

Cabeça Coração. Olha aí, a bichona!

CLARICE Obrigada, gente!

SORAYA Eu estou que nem pinto no lixo! (risos)

CLARICE (risos) Obrigada, Soraya, Tarina, Joice! É sempre muito

inspirador ouvir vocês três conversando e dessa vez não foi diferente.

Queria agradecer em nome de todas as participantes e dos participantes

do projeto. Obrigada demais, Joice, por ter tirado esse tempinho para

ficar com a gente!


(F)

JOICE Eu que agradeço! Desejo que o projeto seja um

sucesso absoluto. Vocês merecem!

CLARICE Valeu!

107


108


TARINA

(G)

QUELHO E SORAYA

PORTELA

Entrevista

realizada

ENTREVISTAM

em

Setembro

de 2022

CLARICE

LIMA

109 ALINE Boa noite! Hoje a gente encerra a

série de entrevistas Cabeça Coração com as

maravilhosas Soraya Portela e Tarina Quelho,

que hoje entrevistam a coreógrafa Clarice Lima,

diretora da Futura. Esse projeto foi contemplado

pela 31 a edição do Programa Municipal de

Fomento à Dança para a cidade de São Paulo,

Secretaria Municipal de Cultura. Uma boa

entrevista. Arrasem!

TARINA Bom, gente, boa noite! Bom, primeiro queria dizer que

é incrível poder estar entrevistando a Cacá, Clarice Lima hoje

aqui. E agradecer a você, Clarice, pelo convite para a gente estar

participando desse projeto como entrevistadoras. Acho que para

mim e para a Soraya foi um desafio e também foi um grande

aprendizado essas quatro entrevistas. Então, finalizar com você,

eu acho incrível e pertinente. Bom, gente, eu sou Tarina. Eu sou

uma mulher racializada, não sou branca. Tenho um cabelo preto

bem volumoso, passa um pouco do meu ombro. Estou vestindo

uma camisa xadrez e estou em um fundo branco, simples.

SORAYA Olá! Boa noite, Cacá! Boa noite a todas! Eu sou

a Soraya Portela. Eu sou uma mulher de pele clara, tenho

os cabelos encaracolados, estou com um negócio aqui no

cabelo amarrado, em cima da cabeça, bem na altura da

moleira. Tenho um rosto roliço, estou usando óculos, estou


(G)

usando uma blusa listrada e atrás de mim tem uma cortina

e uma janela e uma porta azul. Eu estou muito feliz de

entrevistar a Cacá. Eu sou muito fã dela, gente!

CLARICE Oi, eu sou a Clarice e muita gente me chama de Cacá. Eu

sou uma mulher branca. Eu tenho os cabelos castanhos claros, pouco

maiores que a altura do ombro, vários cabelos brancos juntos. Tenho

os olhos claros, estou vestindo uma blusa azul-marinho, meu fundo é

branco e estou usando fones de ouvido brancos. Muito legal estar aqui

com vocês!

110

TARINA Gente, então, vamos começar como a gente tem falado,

como a gente tem começado nas outras entrevistas, a gente vai

realmente meio que numa conversa… Gente, apareceu aqui no

quadro, para vocês saberem, o meu filho que é uma criança surda e

está aqui tentando conectar o aparelho dele de video game. Bom,

enfim, só para vocês saberem que ele apareceu no quadro. A gente

estava conversando hoje mais cedo, eu e a Soraya, como que, para

a gente, essa entrevista com a Clarice tem um tempero especial

porque a gente tem intimidade com a Clarice. Acho que nós duas

te conhecemos mais do que conhecemos as outras entrevistadas

que participaram do programa e nós já trabalhamos com você,

então, a gente conhece um pouco o seu processo de criação, mas

não totalmente e eu poderia dizer que a gente tem uma intimidade

com você, então, para a gente tem um outro sabor as perguntas

e as respostas também. Eu queria começar te perguntando… Eu

acho que você está chegando agora numa idade onde faz sentido

eu começar a falar de trajetória. Talvez há dez anos, seria estranho

eu te fazer uma pergunta sobre a sua carreira ou sua trajetória,

mas neste momento, você já produziu um monte de coisas e

está produzindo a tempo suficiente, até para a gente entender ou

imaginar ou tentar captar um tema ou algo que é recorrente. Então,

a minha pergunta para você é se você reconhece sistemas. Então,

quando você olha para a sua produção desde que você começou

como criadora, autora das suas obras, tem algum tema, algum

assunto que te persegue ou que você persegue? Você reconhece

isso ou não é exatamente assim que você pensa esse contínuo das

suas criações?

CLARICE Eu acho que tem algumas coisas que seguem. Que eu sigo e

que me seguem. Eu acho que gente é uma coisa que me interessa muito.

Trabalhar com gente, pensar propostas artísticas que juntem pessoas,

eu acho que isso é uma coisa que eu gosto muito. E não é em todos os

trabalhos que isso acontece, mas dentro disso é pensar em como uma

proposta artística pode aproximar pessoas tão diferentes. Isso é uma

coisa que eu gosto muito de imaginar. E eu acho que uma outra coisa é

um desejo de experimentar o espaço, o espaço cênico, o espaço onde os

corpos se movimentam, onde as coisas se movimentam. Eu diria que essas

duas coisas: o desejo de aproximar pessoas e também uma curiosidade

por organização de espaço enquanto coreografia e de formas de organizar


(G)

isso; são coisas que vendem bem. E pode ser estático como é no caso

das Árvores e que agora também tem o Bosque que é estático ou pode

ser loucamente, que tem a ver também com todo meu treinamento de

passing through e tudo isso, mas o que eu acho divertido dentro de uma

criação artística é a possibilidade de aprender coisas diferentes, então

assim, como é que processos artísticos me ajudam a aprofundar estudos?

É que não é necessariamente linear, não é sempre assim, às vezes, é um

buraco aqui, outro buraco ali. Ele vai fazendo buracos como se fosse um

grande papel que vai aprofundando em alguns lugares a partir desses dois

pontos que, para mim, são muito importantes.

TARINA Acho que você tocou em um assunto que foi uma coisa

que eu e a Soraya conversamos um pouco antes. Dessa coisa

das parcerias. Porque acho que tanto eu como a Soraya, na nossa

conversa, a gente reconheceu um pouco isso que você está

dizendo sobre esse seu interesse por gente e em como isso vai se

desdobrando em parcerias. então, seguindo nessa nossa conversa,

você poderia falar, talvez, um pouco para a gente de como você

entende parceria, o que é parceria, o que é colaboração, como que

essas gentes entram nos seus trabalhos e, particularmente, eu ia

te pedir para você falar um pouco da parceria com a Aline que é

alguém que está, talvez, mais continuamente com você. Não sei se a

palavra é parceira, não sei como vocês se nomeiam nessa história…

111

CLARICE É curioso porque são formas diferentes de estar juntas. Eu

me interesso por todas elas. Tem formas que são mais breves, tem

formas que são mais pontuais e têm formas mais longas, assim, de

gente que vai ficando mais tempo. Tem, às vezes, pessoas que é melhor

ser amigo, então, tem várias formas de você estar juntos dentro de

uma vida em que a criação é muito próxima de todo o resto que você

faz - que é um pouco como eu vivo; a criação, a dança, para mim, são

muito importantes na minha vida, é uma grande parte da minha vida.

Então, eu sempre procuro… ah, como é que eu junto essas pessoas, mas

sem ser muito preguiçosa? Sem chamar sempre quem está muito ali

na mão. Como é que a gente pode pensar em quem não está aqui na

sala? E pode também convidar outras pessoas para estar aproximando

outras formas de perceber o mundo para dentro disso? Eu acho que no

Cabeça Coração, trazer essas pessoas para estar juntas é um presente

para mim porque eu aprendo com todas elas e todos eles, então, é uma

forma de estar aprendendo e de criar um ambiente onde todo mundo se

sinta à vontade para estar se colocando. E com a Aline, realmente foi

uma coisa muito especial que aconteceu desde antes, mas eu acho que

no Intérpretes em Crise, que foi um espetáculo em dueto que a gente

fez, a gente estabeleceu uma relação muito legal de parceria mesmo,

de suporte, de construir uma coisa juntas para além da nomenclatura,

entendeu? Ela está junto comigo para construir o lugar dela fazendo isso.

Então, se isso é coordenadora do projeto da Futura ou se é assistente

de coreografia dos Bichos Soltos ou se é bailarina de sei lá o quê… mas

é uma ideia de construção. E eu, como diretora e coreógrafa, construo

formas de estar dirigindo e coreografando. E o que eu acho bonito na


(G)

Aline é que ela como bailarina, ela constrói formas de estar dançando

e essas formas não são dadas, não é? Então tem a ver com construção

de cuidado, construção de contexto, construção de continuidade. E ela,

assim… A Aline é ouro.

112

SORAYA Ai, que bonitinha! (risos) É bonito mesmo ver

essas parceiras longas, não é? Aproveitando isso, Cacá, que

você fala de parceria e do interesse em aproximar gente,

do lugar da criação como esse lugar de aprender, inclusive,

aquilo que já sabe, então, como você mexe naquilo que

você já sabe também e também aprende outras coisas…

Eu fiquei pensando assim, existe uma diferença em dançar

o seu trabalho e dançar o trabalho de outra pessoa? Quais

são os pontos dentro dessa maneira de estar? Eu acho que

quando você trouxe a Aline nessa relação, eu achei bonito

porque você falou que a Aline acha o lugar dela de trabalho

no trabalho de outra pessoa, no teu trabalho, nessa junção

que vocês fazem. Então, qual é… Eu acho que não é nem

estabelecer diferenças, mas é assim, quais são os pontos

de trabalhar, dançar a dança de outra pessoa e dançar a

tua dança, ou seja, um projeto em você está mais pensando

ele, criando ele, é seu trabalho e o trabalho de uma outra

bicha. Como eu te vejo, por exemplo, ter parcerias muito

recorrentes, não é? Com o Christian, com a própria Tarina…

Em trabalhos, assim, com pessoas que eu te vejo dançando

mais, estabelecendo essas parcerias…

CLARICE Eu acho que quando eu danço os meus trabalhos, tem várias

outras preocupações que entram, não é? Porque tem a prática de ser uma

bailarina, tem a prática de pensar a coreografia, pensar a direção, pensar

a iluminação, pensar a produção, pensar todas essas coisas. E eu acho

um luxo, na verdade, hoje em dia pensar em dançar com outra pessoa

porque eu tenho que pensar menos coisas, o que, às vezes, inclusive,

não é tão fácil porque você entra tanto em um jeito que, às vezes, pode

até soar um pouco estranho. Porque você está tão acostumado a pensar

no dançar junto com o dirigir e o coreografar, só que tem outra pessoa

pensando isso, então, claro que sempre você colabora com as pessoas

com as quais trabalha em outras questões também que não só o do

dançar, mas eu acho que existe uma inteligência no dançar que, para

mim, agora essa inteligência está em todos os lugares e, às vezes, focar

só em um lugar é um pouco mais difícil porque eu estou menos treinada

para isso, ultimamente. Eu estou mais treinada para o tudão assim.

TARINA E, Clarice, eu estava lembrando agora com a Soraya,

conversando, eu acho que há uns dez anos você me falou, uma vez,

que você tinha uma frustração, não sei se a palavra é essa, mas que

você gostaria muito que no Brasil tivesse uma companhia de dança

para que você pudesse ser bailarina dessa companhia - não sei se

você vai se lembrar disso… Eu fiquei pensando, refletindo, sobre

como você acabou criando uma estrutura que te possibilitou, não


(G)

113

dançar numa companhia, mas criar esses espaços de convivência,

de comunidade onde é possível alguma criação emergir. Então,

voltando ainda no tema em que eu estava, que eu estou nesse tema,

acho que por várias razões da trajetória, o que transformou na

sua percepção de dança desde que você decidiu profissionalizar…

Primeiro assim, você decidiu? Você profissionalmente pensou: ah,

eu vou ser bailarina, eu sou bailarina. Porque tem gente que toma

essa decisão conscientemente e tem gente que, não sei, eu acho

que tem várias formas de adentrar nesse mundo. Então, desde que

você se viu bailarina, transformou a sua percepção de dança? E aí,

eu vou ser ousada. O que você acha que hoje é a dança?

CLARICE Tá. A minha formação toda foi de bailarina, inclusive, eu acho

que isso diz muito também sobre como eu crio. Eu crio a partir de quem

dança, eu não crio a partir de quem dirige. E, parte dessa minha formação

eu fiz fora do Brasil, e lá fora tinha muitas companhias, tinha muitas

audições. E eu lembro que quando eu voltei para cá e estava em São Paulo,

porque, sim, em São Paulo tem muitas companhias super importantes

que estão atuando há muito tempo, muitas companhias novas que estão

nascendo, mas que naquele momento não tinha uma percepção, talvez,

do lugar da audição que é esse lugar de uma companhia estabilizada

e que você não precisasse ser bailarina do balé, mas que tivesse um

lugar de companhias contemporâneas, mais experimentais, porém que

tivesse uma certa profissionalização mais estável. Então, quando eu

cheguei em São Paulo, estava no início do fomento, mas o fomento já

existia, então começou a ter já grupos em São Paulo. porém, teve um

momento que, para mim, foi muito importante nisso tudo, porque eu

trabalhava bastante tempo com o Jorge Garcia que é um coreógrafo

que eu gosto muito, trabalhei muitos anos sendo assistente dele ou

dançando com ele, e foi quando a Telma e o Christian me chamaram

para o projeto da Desaba, e nesse momento os dois ganharam, e eu

falei sim para os dois. E falei gente, eu estou dando sim para os dois. E o

Jorge ganhou o fomento, e o Christian e a Telma ganharam também. E

nesse momento, eu conversei com o Jorge e falei Jorge, eu estou afim

de dar um pouco mais de atenção para as minhas criações. Porque o com

o Jorge era um esquema de companhia todos os dias, e nos dias em que

ele não estava, eu tinha que estar, porque eu era assistente dele, eu que

tinha que organizar a galera, então, sobrava menos tempo. Então, para

mim, ali foi um marco de tipo: não, beleza, daqui eu estou afim de focar

mais em criar as minhas coisas do que estar trabalhando no esquema

de companhia de outro coreógrafo. Então, eu acho que tem essas duas

coisas respondendo a primeira parte da pergunta. A segunda parte, eu

acho que dança pode ser muitas coisas, agora o que eu gosto… Eu tenho

gostado muito de ver corpos em movimento, isso é uma coisa que eu

tenho gostado muito, isso é uma coisa que eu tenho perseguido muito

porque eu acho que danç, hoje em dia, pode ser muita coisa.

TARINA Só para fazer um adendo… Eu estou um pouco com a

Joice, na nossa última entrevista, na cabeça porque, às vezes,

você fala uma coisa… Só para re-contextualizar o que eu falei…


(G)

Porque eu acho que quando você, com mais de dez anos atrás,

talvez vinte anos atrás, falou disso, eu acho que também não era

tanto com relação a… como se diz? Não considerar o que existia,

mas muito mais a precariedade que era, não é? Porque o que a

gente chamava de companhia no Brasil naquela época e apesar

dos fomentos a gente sabe como ainda é precário você manter um

trabalho contínuo, então, eu acho que tinha muito mais a ver com a

percepção dessa precariedade da continuidade do que de existirem

profissionais com quem você poderia trabalhar como o bailarino

ou não. Não é? Acho que era mais essa nesse sentido que, como

você bem falou, o fomento transformou, mas o fomento é uma

ação, não é? E então, eu acho que ainda não existe uma política

que pensa todos os aspectos em que a produção ou a continuidade

da produção em dança precisam acontecer, não é? Mas enfim…

Adorei…

CLARICE Com certeza. É só a gente ver o orçamento que é destinado

ao fomento e o orçamento que é destinado para a companhia paulista

de dança, não é? Que é para uma companhia ganhar… Eu não sei se é

mais ou quase o mesmo valor que vinte companhias recebem, então, é

realmente muito complexo.

114

TARINA Ah e adorei você falar que você está gostando de corpos

em movimento. Eu também. Então, vamos perseguir isso. (risos)

SORAYA E eu queria aproveitar essa conversa aí das

companhias, das coisas que se pensava numa determinada

época, para agora Cacá, e eu lembro que você foi uma das

primeiras pessoas que foi convidada, no núcleo, para dar

um… naquela época era chique dizer workshop, não é? Eu

me lembro. Menina, e eu procurava saber o que diabo era

esse negócio de workshop, então era tipo uma coisa assim,

há uns quinze anos, eu acho, há uns dezesseis anos, mais

ou menos, dezessete, por aí… E você foi uma das pessoas

que o Marcelo convidou para ir lá, porque você estava nesse

trânsito Amsterdã-Brasil, não é? E você era uma jovem

bailarina ali, naquela época, não é? Começando e tal… Eu

lembro que tinha um negócio que você estava fazendo

que era meio vídeo, meio performance, do negócio das

aeromoças, da comunicação lá dos aviões… E eu me lembro

disso e também você foi a minha primeira professora de

improvisação. (risos) Olha, sou fã desde esse dia, desde

este tempo. E, para mim, tem uma coisa que a gente tava

conversando, eu e Tarina que eu acho que quando a gente

vai entrevistar alguém, essa pessoa traz assunto. E eu acho

que um dos assuntos que você traz e que eu lembro é uma

artista que migrou, migrou do seu país para estudar em

outro e migrou da sua região, que é o nosso querido Ceará,

para São Paulo, não é? Para viver essa coisa artística, essa

coisa da dança, não é? Então, para você, como é isso? Como


(G)

115

foi isso? Como é que é essa coisa e quais são as… os pontos,

assim, que te pegam nisso, que te mantém viva aí nessa

nessa tua história? De uma artista que precisou migrar por

muitas razões, mas eu acho que isso é um ponto importante,

assim, você acha que ainda precisa? Porque naquela época

as bichas saíam dos seus lugares para ir para outro rolê.

Você acha que isso continua ainda? Ainda precisa? Ainda

acontece muito? Como é? E quais são as discussões e

pontos que isso traz no fazer artístico? Nas implicações

disso, das distribuições, da fruição da coisa toda…

CLARICE Nossa Soraya, você falando agora eu me dei conta que eu

fui embora do Ceará há vinte anos, ou seja, eu moro há mais tempo

fora do Ceará do que no Ceará. Eu morei dezenove anos no Ceará, com

dezenove anos eu fui para fora estudar dança e bom, e sigo fora do

Ceará, não é? Nossa, realmente o tempo vai passando. E sim, quando

eu fui, não tinha uma faculdade de dança, não tinha um curso de dança

no Ceará. Tanto é que… Mas tinha os do Brasil, não é? Mas eu fui com

uma amiga que era a Rosana e ela falava ah gente se é para sair do Ceará,

vamos conhecer outros cantos, vamos aprender outras línguas, vamos

ver aí outras coisas. E hoje em dia morar em São Paulo, eu acho que me

dá uma outra perspectiva, sabe? Muda um pouco a forma que eu vejo

as coisas. Eu não acho que São Paulo é o Brasil, eu não acho que a zona

oeste e o centro de São Paulo são São Paulo, não é? Então, eu acho que

abre um pouco mais de perspectiva, assim, do que você é, onde você

está, o que você faz, o tamanho das coisas, a intensidade das coisas, não

é? Em lugares diferentes, as mesmas coisas têm outras intensidades. E

eu acho que eu também, eu não sei se foi o período que eu fui, mas tem

um grande ganho de quando eu fui viajar fora é que eu sempre conheço

alguém que conhece alguém. É muito curioso isso. Às vezes, tem uma

pessoa que eu não sei quem é, mas de repente conhece uma pessoa

com quem eu estudei quinze anos atrás em Amsterdã. Então, eu nem

falava dessa palavra network e eu acho que network também não é nada

imediato, assim, é uma coisa que, realmente, depois de um tempo você

começa a entender. Mas eu acho curioso assim… Outra vez, eu encontrei

com uma diretora de festival, aí: - ah, por acaso você conhece a fulana?

- Ah, fulana?! Fulana é maravilhosa! Conheço demais. E aí, de repente se

encontra em algum lugar em comum que ajuda a construir diálogos, não

é? Que podem dar em alguma coisa e podem não dar em nada, eu acho

que tudo isso também são as loterias da vida. Mas, eu acho que para

mim hoje o que faz muito sentido é isso, é sempre olhar as coisas de

perspectivas diferentes, assim, porque é isso e por mais que a gente fale

do fomento, aqui de São Paulo, quando você olha as políticas para dança

em outros estados e você vê o quão mais precário é, também ajuda

a gente a tanto pensar lá o que é que pode melhorar quanto também,

assim, gente, tá, mas não bora reclamar tanto assim, não. É ruim, mas

olha o tanto que a gente consegue fazer a partir disso, não é? Eu acho que

é isso. Muda um pouco a perspectiva porque te dá mais referência de

diferentes contextos e isso, para mim, é muito rico. Se faz sentido hoje,


(G)

eu não sei, tem que perguntar para essa juventude, não é? Para a galera

aí do Enem porque eu não sei mesmo.

116

TARINA É que eu acho que você focou um pouco na sua própria

resposta, não é? Porque quer a gente queira ou não, as escolas são

catracas, não é? Em um certo sentido, as escolas que você faz,

os professores que você tem, te colocam no mundo de outro jeito

e a gente ainda vive uma situação onde é, claro, se você estudou

em determinadas escolas, especialmente se você esteve fora do

Brasil, essas catracas se abrem de outras formas. Então, acho que

ainda não mudou, como você colocou, isso não é uma coisa tão

mensurável e nem tão imediata. Porque daqui a dez anos você

encontra alguém que também fez aquilo, e que as outras pessoas

que não tiveram lá, não fizeram aquilo e não tiveram aquela

experiência e não tem esse tipo de contato. Acho que também os

próprios assuntos, não é? As coisas que se discutem nos lugares…

Embora hoje tudo esteja muito globalizado, enfim. Mas voltando

naquilo que você falou, você falou ali atrás um pouco do passing

through, não é? Então eu estava pensando aqui… Porque eu fui ler

como você se apresenta e você fala diretora, coreógrafa, bailarina

e professora. Então, pensando no seu trabalho como professora,

eu pensei em te perguntar um pouco sobre o passing thru e o

flying low e o David (Zambrano)... Algo que você transformou

ali do David é o seu chão de movimento, de onde você puxa suas

criações ou não é? Tem uma divisão? Para mim, eu sempre tenho

essa curiosidade. Quando a gente é professora de uma coisa,

como que aquela coisa nos alimenta ou não… a gente cria duas

personalidades meio paralelas que uma dá a última coisa e outra

cria de um jeito que não necessariamente conversa com aquela

coisa, não é?

CLARICE Eu acho que o passing through que é uma das técnicas que o

David Zambrano desenvolveu, que é uma espécie de improvisação em

tempo real, é uma coisa que eu sempre persigo mesmo quando, às vezes,

eu vou contra. Mas ele me ajudou muito a olhar para o espaço e pensar

diferentes tipos de organização espacial porque é muito simples e é uma

técnica que eu gosto muito porque você pode fazer com criança, você

pode fazer com idoso, você pode fazer com gente que não faz dança…

Que para mim, é diferente do flying low, então, eu gosto muito porque

eu sinto que me dá muitas ferramentas que, às vezes, estão na criação

mas, às vezes, também são formas só de aquecer a percepção do corpo

para fazer o que você quiser, entendeu? Eu acho que traz percepções do

corpo, de atenção, de prontidão - essa palavra é um pouco complexa,

mas que me ajuda a estar atenta ao que eu preciso fazer. Acho flying

low é mais uma técnica específica que eu gosto, mas que eu também

acabo nunca aprofundando porque é uma técnica tão específica para

profissionais que acaba que os profissionais não tem dinheiro para pagar

as aulas de dança, então, acaba que eu não dou muito essa muito essa

aula e tudo bem também, mas eu acho que o passing through é uma


(G)

coisa que me atravessa, que segue me atravessando, não é? Passando

através. (risos)

SORAYA E Cacá, tem uma coisa que eu gosto muito no seu

trabalho são os nomes das coisas. Eu acho que outro ponto

que você traz no seu trabalho, para mim, é uma certa ironia,

um tipo de ironia, um certo humor que eu gosto. Eu acho que

não é nem ironia, é humor mesmo porque eu acho que ironia

é outra coisa. E eu gosto disso porque não é esconder o que

é ruim ou o que dói, o que a gente tem medo, essa coisa toda

que a gente anda mexendo como assunto… Mas eu acho que

é mais sobre como você trata esses assuntos de uma maneira

que seja prazerosa também. Então, pensando em uma das

peças que é Dançar Dói, que vem em cima dessa coisa de

chorar e tudo… Eu fiquei com vontade de te perguntar pelo

quê ainda, como artista da dança, como mulher artista da

dança, a gente ainda precisa chorar? Por qual motivo a gente

ainda precisa chorar para continuar a dançar?

117

CLARICE É, eu acho que tem duas coisas aí, não é? Acho que a questão

do humor é cearense, não é? Eu acho que tem a ver com o ser cearense e

de não se levar muito a sério, entendeu? E, para mim, não se levar muito

a sério tem a ver até com uma fala do Gilberto Gil, que eu acho incrível,

onde ele fala: “Gente, arte não é especial. Arte não é especial, arte é igual

alimentação, é igual a educação, é igual a saúde, é igual a todas essas

coisas que são básicas. Então, assim, eu gosto de pensar nessa ideia

que eu não sou especial e acho que essa coisa do humor, da ironia traz

um pouco de quebrar esse lugar do artista que tem que ser sério, cheio

de referências. Legal, acho demais. É muito bom estudar, mas, assim,

também é muito bom se divertir, não é? E como é que a gente pode ter

essas duas coisas? Bom, e quando eu criei o Intérpretes em Crise que

tem essa coisa do dançar dói e que é super forte, vinha muito de um

desejo muito gigante de querer dançar mesmo, e do fazer do bailarino, do

fazer da dança e passeia muito por tudo isso, não é? E aí, pensar o que

é que nos faz chorar hoje enquanto artista da dança, para mim, é pensar

o que é que faz chorar hoje a mulher no mundo, entendeu? É andar na

rua e se sentir medo, é saber que os boys na dança vão ser sempre hiper

valorizados, vão ser melhor pagos, vão ter mais destaque, são todas as

coisas que estão intrínsecas à nossa sociedade, é saber que, talvez, o

Bolsonaro pode vir a ganhar essa eleição. E aí, se isso ocorre, a gente

vai ficar péssimos. Vai ser pior ainda, pior do que está para a cultura e

para grana. Como é que vai ter? Vou conseguir pagar as contas? Não

vou conseguir pagar as contas? Então, eu sempre acho engraçado essa

pergunta como é não sei o que para você que é da dança? Gente, é igual

a você normal, não é, não?! Se a gente vive numa sociedade patriarcal,

racista, transfóbica, você vai ter isso. Não é assim, como se na dança

você não tivesse mais nada disso. Não, tem em todo canto, inclusive, na

dança, não é? Então, para mim, isso é muito forte apesar que também

tem um lugar de acolhimento dentro do fazer artístico, muitas vezes

de acolhimento do diferente, do outro, da outra, mas também não é um


(G)

ambiente blindado em que a gente está isento de todas essas mazelas

que a gente vive quando sai de casa.

118

TARINA Clarice, pensando um pouco nisso, você falou de chorar

por tudo que a gente pode chorar por ser mulher hoje no mundo,

então pensando um pouco nisso também, eu vou te fazer uma

pergunta que, talvez, eu fizesse para mim também, fizesse para

a Soraya fizesse para todas nós que é: quando a gente começou

a se fazer essas perguntas? Porque eu acho que, embora sejamos

diferentes, eu sou um pouco mais velha mas a gente tem gerações

próximas, não é? Acho que em algum momento isso entrou na

nossa criação e no nosso campo, e entrou e eu vejo no Futura

uma continuidade do que já vinha vindo lá das suas criações, mas

quando que isso apareceu? Isso é um assunto no Futura? Isso é

uma coisa que fica ali mastigando e que está no campo aberto

dessa criação? Eu estou pensando nisso porque, também, da

última vez em que a gente conversou rapidamente, você e Aline

estavam estudando a Donna Haraway e aí eu fiquei pensando e até

estava falando com a Soraya que eu acho que a Donna Haraway

tem uma, bom, eu vou dizer que ela tem uma pegada otimista. Eu

acho que ela tem uma coisa otimista porque ela fala “não vamos

nos deprimir. Está bom, estamos no luto, vamos sofrer, mas vamos

sofrer em companhia, vamos sofrer transformando”. Então, acho

que a minha pergunta para você é: quando que o feminismo , se eu

posso usar essa palavra, apareceu para você enquanto palavra?

Ele apareceu para você enquanto palavra e isso detonou algo

desse projeto ou não? Essa palavra faz parte do seu vocabulário?

CLARICE Faz, é uma palavra que faz bastante parte e eu consigo

localizar, mais ou menos, porque foi, mais ou menos, em torno do período

em que eu fiquei grávida da Nina. Que da Nina, eu fiquei grávida em

2016/2017, foi em torno daquele período, mas eu me aproximei dela

muito intuitivamente, não foi uma coisa vamos estudar o feminismo, eu

acho que teve a ver também com o boom das marchas do 8M, não é? 8

de Março que foi uma marcha que estava sendo bem forte em São Paulo,

pelo menos, e que era um lugar de ir com minhas amigas, não é? Então

eu lembro que teve ensaio, que a gente cancelou o ensaio e foi para a

marcha. Então, começou um pouco ali, tocando nisso intuitivamente.

Mas isso, por ter vivido uma experiência onde uma pessoa… Um homem,

dentro de um contexto, trouxe muitas questões para mim. Bom, muitas

questões que me fizeram me sentir menor, me fizeram sentir menos, me

fizeram sentir muito mal comigo mesma. E eu fiquei me perguntando o

porquê de uma pessoa dentro de um contexto estar me fazendo sentir

assim. E como um movimento de proteção mesmo, que hoje em dia eu

entendo como um movimento de proteção, eu falei vou trabalhar com

mulher agora. Vou trabalhar com mulher, vou trabalhar com mulher! Eu

quero trabalhar com mulher. Quero entender como é isso, entender

como é esse negócio, porque quando eu ia trabalhar só com as mulheres,

eu me sentia muito bem, eu não sentia nada disso. E infelizmente, graças

a Deus existe terapia para isso, por esse modo de operar de uma pessoa,


(G)

119

eu comecei a criar uma certa resistência a trabalhar com outros homens

porque eu quase projetava esse lugar de trauma que rolou, entendeu?

Então, eu falei não, eu estou precisando trabalhar com mulher, em um

lugar em que eu me sentia mais segura. E aí, a partir disso, foram vindo

conversas, foram vindo textos, foram vindo outras referências e que foi

me fortalecendo muito, me fortalecendo muito mesmo. Foi um processo

bastante longo, mas que tem a ver com o Cabeça Coração também, que

tem a ver com um projeto que a gente fez durante a pandemia que é o

Você sabe que eu não confio em você, não sabe? Que tem a ver com

aproximar outras pessoas. Então, assim, mais do que estudar o feminismo,

me interessava chamar a Ísis para vir falar e ouvir o que é que ela falava

ou chamar a Amanda para vir falar e ouvir o que ela falava… E aí, depois,

em outro momento, chamar o i gonçalves para vir falar e ver como é que

isso atravessava ele. Eu até digo assim nossa, gente, eu acho que foi

um momento de cura porque nesse último laboratório Cabeça Coração,

a gente resolveu, a gente entendeu que nesse momento eu já me senti,

assim, mais fortalecida por essa rede que eu construí, por tudo que eu

consegui estudar nesse período e falei agora eu estou pronta, bora abrir

para todo mundo. Para todas, todes e todos que agora eu me sinto mais

fortalecida nesse lugar de como foi importante para mim o feminismo

de me dar ferramentas para entender uma série de mecanismos que

uma pessoa operou, mas que a sociedade, como um todo, opera o tempo

inteiro e não me abalar. E entender que as coisas são assim, entender

onde é que eu posso me proteger e seguir em frente. Porque eu gosto de

gente, eu gosto dos boys, eu gosto das manas, eu gosto de todo mundo.

Mas rolou isso, assim, e foi bem nesse período, sabe Tarina? É engraçado

porque, às vezes, eu fico pensando, por exemplo, no projeto DR que é

uma grande referência na minha vida, que era um projeto da Tarina com

mais três bailarinas. Mais três, não era? Vocês eram quatro? Bom, para

mim, era um projeto super feminista, mas essa palavra não estava ali

rondando, não era?

TARINA É sim, mas eu acho que eu faço essa pergunta para mim também

porque eu reconheço isso tudo e não era uma palavra que estava presente

para a gente, não é? E éramos eu, a Laura Bruno, a Mara Guerreiro e a

Sheila Arêas. E a gente ficou uns anos fazendo e, de fato, quando eu

olho para trás eu falo gente, mas essa palavra! E aí, também eu já me

desculpo aqui por ter usado essa palavra no singular, porque na verdade

são vários feminismos, múltiplos. Eu acho que alguns aos quais a gente,

talvez, vou dizer por mim, tive acesso antes, muito antes, talvez, não

fizessem sentido e acho que a partir do momento que a gente - que eu,

pelo menos, fui entrando em contato com outros feminismos foi, talvez,

fazendo mais sentido também para mim. Mas eu acho super importante

tudo que você falou porque como a gente reincide, não é?! É muito forte.

A gente estava falando, eu com a Soraya, antes também que a Michele

Alexander que eu lembrei, que é uma mulher que fala sobre a luta prisional

nos Estados Unidos, sobre o sistema carcerário americano e tal… Ela

tem uma frase que é maravilhosa, ela fala assim: “o racismo evolui e

se modifica na mesma medida em que ele é contestado” e é a mesma

coisa com todos os ismos, é a mesma coisa com o machismo. Então,


(G)

120

acho que a gente patina, a gente tava conversando, em reconhecer o que

que é um movimento de transformação e o que que é um movimento

de reforma do antigo, não é? Porque, às vezes, parece que a casca está

muito transformada, mas as relações não estão e a gente continua

caindo nas mesmas coisas. Isso que você fala, eu super reconheço,

a gente tem medo. Parece que o tempo inteiro a gente vai falar uma

coisa que é impertinente, que está errada ou que não é coerente. E eu

lembrei também, só pra finalizar isso - que, na verdade, não vai finalizar

agora, não é? (risos) Porque não é uma coisa que dá pra finalizar, mas a

Bonnie, minha professora lá do BMC (Body-Mind Centering), a Bonnie

Bainbridge Cohen que é uma senhorinha, professora de movimento, foi

bailarina e tal… Eu estava em um workshop dela uma vez e uma menina

bem jovem, assim, bom, os workshops são bem grandes, então têm entre

cem e cento e cinquenta pessoas e tem, assim, os professores mais

importantes de BMC do mundo e fica aquela tensão e tem a Bonnie… E

essa menina quis fazer uma pergunta e ela começou falando assim: é…

desculpa… E aí, antes dela fazer a pergunta, a Bonnie falou: “eu posso

te pedir uma coisa? Não pede desculpa antes de falar. Porque quando

uma mulher pede desculpa antes de falar, faz uma coisa com a minha

cabeça.” Eu pensei: gente, que louco! Porque é isso, não é? A gente está

constantemente pedindo desculpa por uma coisa que a gente nem sabe

o que é, não é? Então, eu achei super forte isso que você falou porque,

no fundo, são esses incômodos ou esses machucados como o também

as alegrias e as potências que a gente encontra, que vão movendo a

nossa criação e intuitivamente, como você falou. Eu adoro também

a palavra intuitivo porque eu acho que a intuição, ela é o pensamento

enquanto corpo, enquanto presença no momento presente daquilo que

é antes ou concomitante, não sei a elaboração, mas que realmente está

na presença da experiência, não é? E que não necessariamente, porque

acho que também esse tema é um tema nosso e essa nossa própria

conversa tem a ver com isso que é a experiência não necessariamente

se traduz como uma elaboração intelectual, coerente, tal, tal, tal e isso

acaba se tornando também uma prisão para a gente e para todas as

outras mulheres que, às vezes, não manipulam bem os conceitos e aí,

também se sentem imediatamente excluídas, então estão duplamente

excluídas, não é? Ela já não participa do mundo e tem medo de participar

do próprio mundo porque, de novo, a mesma violência se reproduz. E por

isso que as nossas conversas aqui estão sendo tão legais porque a gente

pode falar o que a gente pensa, não é, Soraya?

SORAYA É. E aí, Cacá, pegando isso tudo que a Tarina fala,

tem várias perguntas que eu queria fazer, mas eu escolhi essa.

Eu gosto muito de ouvir, ler quando uma bicha se apresenta

como coreógrafa porque parece que a coreografia virou uma…

parece que é quase como se fosse diferente de ser criadora

ou fosse diferente de ser dramaturgista e é, de fato, ocupa

áreas diferentes da criação. Mas eu acho bonito quando uma

pessoa diz: eu sou coreógrafa, eu sou artista coreógrafa. E eu

queria que você falasse um pouco desse lugar da coreografia,

de como você lida com esse conceito, com esse modo de


(G)

121

atuar na dança, esse modo de criar, quais são os contornos em

que uma coreógrafa atua, em que ela está ali e se posiciona.

E aí, eu queria te perguntar qual é a coreografia que você diz,

assim: eu tenho que fazer essa coreografia, no meu tempo

de coreógrafa eu vou fazer isso. Tem essa coreografia que

tu diz assim: ai, eu gostaria de coreografar isso, eu tenho um

desejo, um impulso de fazer isso. Ou se você já teve também,

porque às vezes a gente já teve e está lidando muito mais

com a coisa toda, mas, enfim, era isso.

CLARICE Eu acho que coreografia é uma palavra muito importante.

Inclusive, eu tenho, ultimamente, quando eu consigo assistir alguma peça

de dança - o que é muito difícil, eu tenho olhado nas fichas técnicas. Aí

tem diretor, dramaturgo, elenco - não tem mais nem dançarino porque

não se sabe se é dançarino ou é bailarino, tem essa questão. Então,

elenco, intérprete… E aí, eu falei: gente, bote a palavra coreografia. Ou

então laboratório. Ah, eu vou dar um laboratório. É laboratório de quê?

De física, de química..? Vamos voltar a usar a palavra dança que eu acho

que é o nosso grande ouro, entendeu? Assim, porque eu acho que está

tudo mais que certo em aproximar a dança de outras coisas e pegar

essa palavra coreografia e esgarçar, colocar ela em outros cantos. Mas

eu acho que é o nosso ouro, assim, é pensar tudo isso junto, não é? E

eu tenho gostado muito, achei até curioso, porque a próxima Bienal de

Artes aqui de São Paulo, está usando o termo coreografia. Então, bora

ver o que é que vai trazer disso tudo, não é? E de peça, é engraçado,

eu tenho uma peça que eu amo, amo, amo muito, muito, muito, muito

mesmo. Que é a Dance da Lucinda Childs, eu amo demais! Toda vida

que eu não sei o que fazer, eu olho ela. Porém, é engraçado porque, por

exemplo, o Supernada é completamente inspirado no Menu de Heróis

da Weyla Carvalho, de Teresina. Eu vi o Menu de Heróis e falei: eu quero

fazer uma coisa para criança bem louca igual ao que ela faz. Bom, então,

quando eu fiz Árvores, eu lembro muito precisamente porque eu tinha

acabado de assistir Um Conto Idiota do Jorge Garcia que tem a cena da

morte lá que eles fazem e que uma pessoa fica de cabeça para baixo.

Eu pensei: meu Deus, a pessoa está de cabeça para baixo, que loucura!

Aquilo me inspirou profundamente e eu botei um negócio que virou outra

coisa, assim, tudo vira outra coisa, mas é isso, tem os inalcançáveis e

tem os do momento, por exemplo, eu estou no momento que eu estou

assistindo muitas coisas do Bruno Beltrão e eu acho que ele foi incrível,

tudo que ele produziu… E eu falei: gente, eu já vi essa peça. E assim,

como estudo, entendeu? Então, se eu lhe disser, hoje, duas pessoas que

estão assim bem fortes da dança, são elas o Bruno Beltrão e a Lucinda

Childs porque eu estou tentando pensar grande. (risos)

TARINA Dupla maravilhosa! Gostei das ref (risos).

SORAYA Olha, eu acho que você traz uma coisa tão simples

e eu acho que, assim, é como a gente deixa as coisas

encontrarem a gente, não é? Porque, às vezes, eu acho que

a gente fica nessa fissura de ir atrás dos assuntos e assistir


(G)

122

um filme, às vezes, te dá um negócio de que aquilo tem a

ver com o que você está vivendo, com aquilo que você está

precisando falar de uma maneira, comunicar de uma maneira

que não é na fala, que não é escrevendo uma teoria, uma

tese, um artigo científico, é dançando aquilo, não é? Então,

às vezes, eu sinto que a gente vai fechando essas aberturas,

não é? Esse te pegar, assim. O que é que te pega? Qual é a

coisa que te espanta? Como diz o Daniel Munduruku, e que

a gente prende levando um espanto. Então, é bonito e eu

gosto muito porque coreografia é uma coisa que eu acho

tão maravilhosa, é uma palavra e um conceito tão massa

de estudar e tem pouca coisa para estudar sobre isso. Mas

enfim, eu queria te perguntar também uma coisa, Cacá, que

tipo de artista você é? Assim, se você fosse pensar… Porque

dizem que tem muitas categorias de pessoas, têm muitas

categorias de mulher,,tem muitos tipos de várias coisas,

ainda bem. Porque todo dia, todo dia eu me pergunto que

tipo de artista eu sou. Que tipo de artista eu sou? E eu fico

com vontade de saber. Que tipo de artista você é? Se você

fosse, assim, pensar hoje, não precisa ser para vida toda,

não. É só hoje.

CLARICE Eu acho que eu tenho dois tipos. Tem o multitask que são

muitas tarefas ao mesmo tempo e o bipolar-show. O bipolar-show

reina em mim também. Eu sou maravilhosa, eu sou uma bosta. Eu sou

maravilhosa, eu sou uma bosta. Eu sou maravilhosa, eu sou uma bosta.

E fazendo mil coisas. Pensando tudo isso e fazendo mil coisas, dando

conta de mil coisas. Então, eu acho que tem o multitask e o bipolarshow.

(risos)

TARINA Clarice, achei incrível você falar - porque acho que eu

nunca tinha ouvido você tão assim nitidamente, organizadamente

colocando como que as referências vão entrando nos trabalhos,

não é? Falando de coisas que você viu e tal. Porque para mim você

é muito, falando dos temas que cada pessoa traz consigo, para

mim você é muito isso, você é tudo acontecendo ao mesmo tempo

e agora. Então, você é capaz de ter o seu Instagram organizado e

o seu site, você dirige aqui e tem dois filhos e tem não sei o quê…

E acho que quando você estava descrevendo, eu fui entendendo

um pouco a sua mente também, como que a sua mente vê uma

coisa e viaja. Dizem que tem tipos de cérebros diferentes e que

tem tipos de cérebro que tem dificuldade de concentração e muita

facilidade de associação, não é? E que esses cérebros, em teoria

- ai, tudo bem, tudo isso é ridículo, mas enfim, que são modos de

organizar o pensamento do que eles chamam de “criativo”. Mas aí,

pensando um pouco naquilo que você citou e que você curte do

Gil quando ele fala que não tem nada de especial em ser artista,

e talvez não tenha mesmo. Talvez, o que tenha de especial é que,

hoje, não é todo mundo que pode exercer essa não-especialidade,

porque seria incrível se todo mundo pudesse, não é? Como você


(G)

123

falou, é básico a gente criar, a gente improvisar, a gente estar no

mundo. Então, eu queria voltar um pouco naquilo que a Soraya

estava falando sobre o tipo de artista que você é na sua criação de

agora. Hoje você falou em Bruno Beltrão e Lucinda Childs, não é?

Tudo bem, mas o que é o ponto de, não sei se são essas palavras

que você usa também, não sei se a palavra é incômodo, não sei

se a palavra é curiosidade, não sei se a palavra é certeza, mas o

que é que você está movendo junto com as suas parceiras, nesse

momento, dessa criação da qual essa entrevista faz parte? Se é

que tem algo possível de se elaborar disso…

CLARICE Quando a gente estava entrevistando a Joice, ela falou alguma

coisa que tinha a ver com o esvaziamento do conceito de ancestralidade,

mas também trazendo a importância de se olhar para trás e aí, eu fiquei

pensando… Fiquei tentando pensar, por exemplo, eu trabalhei durante

muitos anos com o Christian, o Christian Duarte, e aprendi muitas coisas

com ele, mas parece que a coisa mais importante que eu aprendi com

ele foi que eu podia ser livre, eu podia fazer o que eu quisesse, eu podia

experimentar o que eu quisesse. Quer experimentar? Pega o negócio,

bota no chão, experimenta. Então, eu acho que nesse momento eu estou

querendo… Hoje, eu finalmente voltei a conseguir experimentar as coisas.

Essa palavra ser livre é muito complexa, mas tem a ver também com

acreditar em forças estranhas - e talvez, o nome da próxima peça seja

esse, forças estranhas, mas de ser mais intuitiva, de deixar que as coisas

aconteçam mais assim, entendeu? Que te pegue meio assim e você vai,

você não sabe direito o que é, mas você vai e você experimenta, você

faz. Você dá um pouco mais de tempo do que o imediatismo do agora,

não é? Porque a gente sempre quer ver logo o resultado e dá tempo de

não saber. Então, eu estou muito interessada em continuar sem saber

um pouco as coisas, mas continuo muito com essa vontade de mover.

Eu acho que essa palavra que a Chris Greiner trouxe também no começo

dessas entrevistas, que era anarquia, anarquia é uma palavra em que eu

tenho pensado muito, sabe? Então, tem essas essas coisas e que, para

mim, foi um grande presente o começo desse projeto em que a gente teve

quatro meses para experimentar coisas juntas, aprender umas com as

outras, trazer uma coisa ah, eu estava estudando isso, ah mas isso tem a

ver com aquilo, e não necessariamente alguém tem que ser especialista

para a gente poder conversar sobre as coisas. Então, se colocar nesse

lugar de aprender com essas outras forças. Eu estou nessa fé, dessa

coisa um pouco mais… Ah, sei lá, sabe? Assim, desse negócio que está

preso aí há um tempo, sabe? Dois anos, pandemia, não sei o quê… E aí,

eu estou afim de soltar. (risos)

TARINA Você me deu várias imagens. Eu visualizei várias coisas,

vamos ver depois… (risos) A gente ainda tem um tempinho, se a

gente quiser fazer mais uma pergunta, Soraya. Eu tenho ainda uma

última, não sei você.

SORAYA Joga na roda, joga na tela. (risos)


(G)

124

TARINA A gente ficou conversando também, tentando entender

os temas que apareceram nas outras entrevistas e acho que sobre

alguns você falou também… Eu acho que eu queria fazer duas

perguntas em uma. Uma delas é porque eu falei que quando a Chris

veio, foi a primeira entrevista, então para linkar com essa aqui, em

algum momento além de que ela trouxe a ideia da anarquia como

algo, eu não sei se fundamental ou imprescindível, mas como algo,

pelo menos, coerente com o momento em que a gente vive. E ela

colocou alguma coisa… Ela colocou assim: a gente - e eu entendi

“a gente” como a gente artistas, a gente intelectual, não muda

mesmo as coisas, não é? Mas eu entendi isso de uma maneira

positiva. Eu entendi isso como a gente não muda as coisas de uma

determinada forma, a gente muda de outra. A gente muda de um

modo que não é o modo pelo qual o professor muda quando ensina

o aluno, a gente muda de um modo que não é o modo pelo qual

o político, quando propõe uma lei, muda uma coisa - partindo do

princípio de que muda alguma coisa que propôs (risos). Então, nas

duas perguntas e uma pergunta tem a ver com essa da Chris que é:

o que você acha que se transforma através da arte? Transforma?

E se transforma, transforma em quê? Transforma em você ou

transforma em quem vê? Algo se transforma ou isso é um acaso?

E aí, acho que a outra pergunta, também fechando um ciclo, eu

acho que a gente foi movendo essa pergunta no decorrer dessas

cinco entrevistas e a gente foi chegando no modo de fazer essa

pergunta, e acho que tem muito a ver com isso que a gente tem

falado, de ir construindo, acho que, nesse sentido, eu posso dizer,

Soraya vou dizer em seu nome também porque a gente conversou

muito sobre essas coisas, não é? E essa ideia da construção

também, para a gente, foi presente nesse processo.

Mas a pergunta, essa que a gente foi transformando, é: a ideia de

urgência é pertinente? Essa palavra faz sentido ou não faz sentido?

E se ela faz sentido, o que é urgente? Eu acho que você respondeu

um pouco disso em várias das suas respostas, mas mesmo assim,

eu vou pedir para te ouvir falar ainda mais uma vez.

CLARICE O que transforma, não é? Essa foi a primeira pergunta. Bom,

eu acho que todo mundo que possa passar por alguma atividade, alguma

ação artística, é uma coisa incrível. Eu acho que é uma coisa que a

gente não necessariamente valoriza dentro do sistema que a gente tem,

entendeu? Assim, numa escala de zero a dez, qual a sua satisfação em

ter participado dessa atividade? Entendeu? Não é por aí o sistema de

valorização de uma experiência artística. Então, não sei se é a palavra

seria o transforma, mas eu acredito que move coisas aí, move coisas,

inclusive, dentro do mesmo lugar, mas dá uma movida até você se

reorganizar de novo, não é? Então, eu acho que é realmente incrível, mas

é difícil falar sobre isso porque eu não acho que é da ordem do racional,

não acho que é da ordem da palavra, eu não acho que eles se enquadram

no sistema de valor que a gente tem, entendeu? Porque é isso: você

comeu essa comida, de zero a dez, quanto ela vale? Eu nem sei se dá


(G)

para dizer isso também com comida… Mas, assim, tem um negócio aqui

não cabe muito nesse nosso sistema e que é o lugar de outras formas de

perceber e de dar valor a algo que acontece com você, não é? É isso. E,

para mim, o que é urgente agora é eleger o Lula. Para mim, isso é o que

é urgente nesse momento, é eleger Lula Presidente para que o país não

continue com o bolsonarismo. Para mim, isso é a coisa mais importante

nesse momento.

TARINA (risos) A melhor resposta que a gente teve nesse ciclo de

perguntas ou, no mínimo, a mais factível. É, realmente, achamos

uma coisa urgente e, finalmente, depois de alguns meses e muitas

entrevistas, concordamos em uma urgência necessária. (risos)

CLARICE Eu acho.

125

SORAYA Eu acho massa! (risos) Eu achei digno, muito bom.

Eu estou super satisfeita. Tem uma palavra, Cacá, que eu

lembro que… Sabe o que eu fazia, Cacá? Eu fazia o seguinte:

todas as vezes no meu percurso de artista e tal, que é bem

recente, vamos dizer assim, diante de tanta gente que já

é artista há não-sei-quanto-tempo. Eu não era artista,

não era das aulas de dança. Eu queria ser atriz de cinema,

inspirada na minha avó, mas aí, não deu certo e eu fui para o

teatro e no teatro, eu conheci o Marcelo. E aí que eu comecei

nessa história de núcleo, de arte contemporânea que eu

adoro. E eu lembro que você, depois que eu te conheci - e

que eu acho que aquilo foi muito importante porque você era

uma pessoa muito próxima, em termos de idade, da gente

ali, você estava começando também, estudando e tudo,

então, assim, a gente teve aula com alguém que estava

começando. A gente não teve aula com alguém que já

estava (no circuito). E isso, eu acho muito importante numa

formação. Como é que você entende as importâncias daquilo

que você aprende, não é? Com quem está com vontade de

estar fazendo uma coisa. Então, muitas vezes, para pensar

um projeto, para escrever um workshop, eu fui no seu site;

olhava lá e via como você organizava suas coisas e aquilo

me inspirava. Por isso que eu perguntei para você sobre

essa coisa de migrar, de entender quais são as importâncias

das coisas artisticamente… Eu adoro a maneira como você

traz o nome também que isso era uma pergunta que eu ia

fazer - só para você pensar depois, qual é a importância

do nome numa criação? Acho que pouco se fala sobre isso

também, não é? Então, são perguntas que vão ficando por

aí, para a gente conversar mais. E outra pergunta que eu

queria deixar aqui, já que a gente está fechando esse ciclo

de perguntas, é uma pergunta que eu acho muito importante

se fazer. Você se vê envelhecendo e dançando? Que é uma

das coisas que a gente não pensa e que, por muito tempo,

o trabalho artístico de uma bailarina, de uma criadora era


(G)

super pequeno, não é? Tinha uma validade, não é? Isso é

uma coisa que eu queria no deixar aí no ar, para gente ir para

as próximas entrevistas…

TARINA Mas se você quiser, Clarice, dizer umas palavrinhas. Se

você se sentir… Você ainda não está tão próxima, mas já sente um

pouco desse contínuo?

126

CLARICE Já. Já sinto. E acho que quanto mais próxima eu estou das

coisas, mais eu levo as coisas de boa e também começo a entender como

é que a gente pode olhar para elas de forma mais potente e menos…

Que eu acho que tem com esse negócio, essa coisa meio debochada,

de não se levar muito a sério, entendeu? Sabe, assim, como é que pode

olhar para cada momento do nosso ser, porque quando eu vejo umas

coisas dos jovens, eu falo: gente! Jesus! Mas é isso mesmo, aquilo era

daquele tempo, entendeu? E que massa que naquele tempo eu conheci

tanta gente legal também e que me um monte de coisas juntas, não é? E

eu acho que essa coisa de aproximar gerações, sejam elas quais forem,

super rico, sabe? Porque eu acho que, por um momento, a gente só se

aproximou de um jeito, sabe? Como é que a gente aproxima de outros

jeitos diferentes? Porque eu também não sou essa coisa romântica de

ah, eu só quero trabalhar com as minhas galeras da minha geração. Eu

acho incrível também poder trabalhar com o povo jovem, eu acho incrível

poder trabalhar com gente mais velha, mas como é que a gente aproxima

de outras formas que não sejam sempre as mesmas? Porque a gente

é acostumado ao professor, àquela (figura) que tem toda a sabedoria

do mundo e aqui (do outro lado) os jovens que estão estudando. Não,

tem um monte de coisas que eu aprendo com os jovens, tem um monte

de coisas que eles aprendem comigo, tem um monte de coisas que eu

aprendo com a minha avó, tem um monte de coisas que a gente aprende

de todos os lados, não é? Então, como é que a gente consegue deixar

esse caminho possível? Como é que a gente permite isso? Porque

sempre que a troca acontece, a gente cresce, a gente aprende coisas aí

nesse caminho, não é?

TARINA Gente, então falando em troca, acho que a gente vai

finalizando por aqui, a não ser que vocês ainda queiram falar alguma

coisa. Mas eu queria agradecer a Clarice pelo convite, pelo projeto,

agradecer você por ter se disposto a ser nossa entrevistada e dizer

que, para mim, os encontros são sempre muito fundamentais. Eu

estava assim, antes de começar, eu até falei com a Soraya que

eu estava me sentindo exausta. E como a nossa conversa foi

me energizando! Porque, de fato, o encontro ele tem isso. Gente

quando se encontra tem isso, pode ser uma desgraceira, pode

ser o fundo do poço, mas também pode ser o emergir de alguma

coisa muito potente porque ninguém consegue mesmo prever a

potência dessa coisa que é o encontro. Então, eu quero agradecer

a vocês por terem tornado a minha noite mais potente. E é isso,

gente, obrigada!


(G)

CLARICE Obrigada, Tarina e Soraya!

CLARICE Valeu!

SORAYA Obrigada, bichas! Foi massa fazer parte dessa

Cabeça Coração, dessa Futura.

127


128


129


(H)

ANTES

DE

TERMINAR

POR

SORAYA

PORTELA

130 Aqui no Piauí, de onde sou, usamos uma palavra–ação–saber popular

que é “curiar”, procurar saber sobre algo que está acontecendo, ou seja,

“você curia” sem estar no lugar de protagonista. Curiar é saber tudo, é

um interesse voraz por algo e ficar feliz porque aquilo existe.

Uma coisa importante antes de lançar essa coleção de pensamentos é que

elas são misturas de elaborações anotadas em meus antigos cadernos

de artistas, em situações de leituras e estudos solitários que fiz sem

precisar ser vista. Também pedaços de coisas escritas atravessadas por

aulas, oficinas, coisas que assisti de outros artistas, contextos artísticos

ou não, mas que no tempo em que esse projeto aconteceu foram ativadas

ao lembrar que poderia ser feita para alguém específico.

COLEÇÕES DE PEDAÇOS DE PENSAMENTOS, PERGUNTAS,

PENSAMENTOS FRASES, PENSAMENTOS PALAVRAS,

PENSAMENTOS NOÇÕES, PENSAMENTOS SEM ORNAR,

PENSAMENTOS SEM SERVENTIA, PENSAMENTOS SEM FIM…

Quando conhecer é criação?

Quando a arte se torna uma arte analfabeta, que fala com a fala dos outros?

Onde não tiver desejo, vá embora.

De que maneira você materializa seu processo criativo?


(H)

Poder falso - poder ficcional - universos ficcionais - imaginação.

Junto, não existe outra maneira.

Tudo é exercício.

De que maneira a pesquisa pode oportunizar outras temporalidades?

Qual a sua espacialidade como coreógrafa?

Que categoria de mulheres está na sua prática como ativista?

Onde suas criações e suas práticas como artista tem te posicionado?

Dançar para descobrir que dança é essa, práticas que vem do encontro.

A gente vive ainda um momento de medo, de fazer vigília nas falas das

pessoas que muitas vezes nos levam mais à condenação e menos ao

reconhecimento do que está acontecendo, de entender o contexto e

deixando para trás questionamentos do que isso significa. Como não

paralisar diante de tanta coisa para dar conta historicamente?

Matéria - descansar - isso é um vidro, isso é uma tampa que abarca a garrafa.

Objeto - uso - relação de uso.

131

Inteligência da estrutura.

Como sustentar o espaço de não saber na criação o lugar de performer

e de coreógrafa?

Como está o mundo quando uma dança nasce?

Que corpos estão sendo feitos por esse mundo?

Nesse momento tem se falado cada vez mais sobre lugares de

representatividade, existe diferença entre o lugar de “se apresentar” e o

lugar de “se representar”?

Sobre o corpo - falar e comunicar tem diferença?

De que maneira podemos nos mover para não extraírem nosso prazer?

Quais as mordaças desse tempo?

Quando a gente fala pelos outros? É possível falar pelos outros?

Possibilidades de escutas e o lugar de fala.

Como do meu lugar consigo elaborar as questões?

Você pensa em desistir e começar outra coisa? Quando isso acontece, o

que te faz retomar?

Qual a última coisa que você fez que não deu certo?


(H)

Qual foi a última dança que você viu que te fez chorar de emoção?

Sorrir? Ficar ofendida?

O que comunica o que você dança? Quando vocês faz o que faz?

Como criar lugares de sentir amor no mesmo mundo que nos mata?

Como a espacialidade - arquitetura tem definido o alcance do corpo?

Opressões estruturais - estética e afinidade.

Arquitetura como mudança social.

Uma prática cotidiana para a igualdade.

Reconstruir uma sociedade pelo aprimoramento do humano?

Por que mulheres tão empoderadas são perigosas?

No Brasil ainda se criam muros para isolar comunidades.

separabilidade - estética - espacialidade

Defeitos sociais - ou se nega e naturaliza ou se valoriza demais.

132

A história branca a ser seguida.

Como a arquitetura e o urbanismo no desenho das cidades reforçam o medo?

Como assim educação e informação privilegiada?

Como as lutas feministas podem vazar de uma relação de apagar incêndio?

Como desenvolver uma relação de responsabilidade sobre outras vidas

sem precisar ser mãe? Sem delegar isso à maternidade?

Que noções orbitam sua pesquisa sobre empoderamento?

Quais os conceitos estáveis vinculados ao feminismo?

Ativismo e militância, quais as relações disso com as redes sociais? Isso

tem relação com o sistema educacional?

Criar com humor. Criar com outros. Que noções, assuntos orbitam as

suas criações?

Que tipo de artista você é?

Qual a última vez que você dançou com alguém?

Um cheiro em cada bicha que entrar em contato com esse texto.


(I)

ANTES

DE

TERMINAR

POR

CLARICE E ALINE

LIMA BONAMIN

133 Antes de terminar essa publicação queremos agradecer às pessoas que

fizeram parte do grupo de pesquisa Cabeça Coração - Amanda Dias,

Karen Marçal, i gonçalves, Marcela Costa, Natália Mendonça e Patrícia

Árabe - que moveram e imaginaram outras formas de estar juntas/es,

criando no presente a Futura.

Obrigada Tarina Quelho e Soraya Portela pela parceria, confiança e

escuta na construção sensível de cada pergunta.

Obrigada Rafael Petri e Marina Nogueira pela produção de cada encontro.

Obrigada Christine Greiner, Elisabete Finger, Helena Vieira e Joice Berth

que acreditaram no nosso projeto e que toparam estar com a gente

compartilhando pesquisa, criação, pensamentos, sonhos, cabeça e coração.


134


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139


Entrevistas

realizadas

on-line

entre os meses de

Abril e Setembro

de 2022

Projeto

gráfico

Transcrição e

edição de texto

Mateus Acioli

Estúdio Tropical

Aliás

Editora

Esse projeto foi realizado com apoio do Programa Municipal de Fomento

à Dança para a cidade de São Paulo - Secretaria Municipal de Cultura





R. Sebastiao Pereira, 110

Sta. Cecilia, Sao Paulo/SP

@

futura________

futurafutura.org

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