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Instruções ao Cozinheiro

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Instruções ao cozinheiro

Ensinamentos de um mestre Zen sobre viver uma vida com sentido

Bernard Glassman & Rick Fields

Tradução de Monge Jorge Koho Mello


Dedico este livro ao meu mestre, Hakuyu Taizan Maezumi Roshi, que morreu em 14 de maio de

1995, na precoce idade de 64 anos. Maezumi Roshi foi o pai da nossa linhagem de prática neste país

(EUA) e na Europa, e um Mestre Cozinheiro no Zen. Desejo dedicar a ele os seguintes votos:

Brincando livremente no samadi da autorrealização e

da realização do outro,

Faço o voto para manter e nutrir

o Selo da Mente do Buda.

Vida após vida, nascimento após nascimento,

praticando diligentemente,

Eu faço o voto de nunca deixar morrer a semente de sabedoria

dos budas e ancestrais.

Verdadeiramente! Eu faço esse voto para você.

Em profunda gratidão,

Bernard Tetsugen Glassman


Sumário

Agradecimento

Prefácio à edição brasileira por Coen Roshi

Prefácio do tradutor Monge Koho Mello

Prólogo: Preparando o cardápio

O cardápio

O primeiro prato — Receitas para o espírito

1. A produção de uma cozinheira Zen

2. Como cozinhar

3. Limpar a cozinha é limpar a mente

O segundo prato — Receitas para aprender

4. A Mente de Principiante

5. Ingredientes básicos

O terceiro prato — Receitas para a subsistência

6. A Padaria Greyston

7. Tempo e dinheiro

O quarto prato — Receitas para a transformação social

8. Para quem você está cozinhando?

9. Albergue da Família Greyston

10. Budas bebês

11. Isso não é lixo

12. A refeição da autossuficiência

O quinto prato — Receitas para a comunidade

13. A Rede de Indra

14. Confeiteiros socialmente conscientes

15. Lucrar ou não lucrar

16. Serviço e oferenda

17. Como comer

18. Limpar a mesa

19. Começar de novo

Epílogo: O terceiro voto

Posfácio

Índice detalhado


Agradecimento

Uma profunda saudação a todos os habitantes da Mandala Greyston, especialmente aos residentes

pioneiros da Av. Warburton, 68, aos trabalhadores da Padaria Greyston e aos membros da

Comunidade Zen de Nova York, por sua coragem e dedicação para trabalhar com as partes

rejeitadas da sociedade e de si, em todas as dez direções.

Nosso mais profundo reconhecimento ao Mestre Zen Dogen e ao seu Tenzo Kyokun (Instruções ao

cozinheiro Zen), o qual nos inspirou. A tradução a que nos referimos aparece em From a Zen

Kitchen: Refining Your Life (De dentro de uma cozinha Zen: refinando sua vida), do Mestre Zen

Dogen e Kosho Uchiyama, traduzido para o inglês por Thomas Wright (John Weatherhill, Nova

York e Tóquio, 1983).


Prefácio à edição brasileira

Por Coen Roshi

Quando cheguei ao Zen Center de Los Angeles, Bernie Glassman era Tetsugen Sensei — o

primogênito discípulo transmitido por Maezumi Roshi.

De tempos em tempos, ele vinha visitar nosso Mestre, trazia presentes e a sua presença forte

e suave. Olhos grandes, despertos.

Quando vinha a Los Angeles (Tetsugen morava em Nova York), fazia sempre uma palestra

para toda a comunidade na sala de Zazen.

Tinha a capacidade de memorizar todas as perguntas que queríamos fazer antes de iniciar as

respostas. Memória incrível, inteligência brilhante.

Como eu era atendente pessoal na casa de Maezumi Roshi, muitas vezes lavei também as

roupas de Tetsugen Sensei, que aos poucos foi sendo chamado de Bernie por outras pessoas —

nunca por Maezumi Roshi, que sempre o chamou por Tetsugen —, seu nome de ordenação budista.

Lembro-me de que, na época, Tetsugen Sensei criticou o fato de eu ter feito voto de castidade

e celibato, enquanto aguardava receber os votos monásticos: “Isso não é natural nem saudável” —

disse à minha frente ao comentar com nosso Mestre — “em minha comunidade, eu não admito tais

votos”.

Nessa ocasião, Bernie Glassman já era chamado de Tetsugen Roshi — velho mestre, pois

havia discípulos seus que já eram professores do Darma.

De um palacete de pedras antigas, com lareiras em todos os cômodos, na cidade de Nova

York, ele se mudou para um bairro periférico e carente.

Abriu uma padaria e confeitaria, passou a fazer retiros de rua — onde ficava por mais de

cinco dias convivendo com os moradores de rua, como se fosse um deles.

Iniciou projetos de assistência social, com muito sucesso e apoio — tanto dos órgãos

governamentais como da comunidade judaica e dos membros dos grupos Zen-budista.

Veio nos visitar aqui no Brasil, a convite de Ovidio Waldemar, que, junto com o monge Jorge

Koho Mello, fez a tradução desta obra.

Nessa ocasião, visitamos o espaço do Via Zen, em Viamão, e ele sugeriu o nome do Templo

da Sanga — Sorinji —, que continua até hoje.

Eu estava me preparando para fazer a Transmissão do Darma para duas pessoas nessa

ocasião e, pela primeira vez, queria fazer tudo em português. Afinal, seria necessário que as pessoas

entendessem o que estavam copiando e estudando. Faltavam-me traduções que me ajudassem a

completar alguns trechos importantes, que nos meus documentos estavam todos em japonês.

Comentei com ele, e imediatamente Bernie Glassman — Tetsugen Roshi — se comprometeu

a fazer com que as traduções para o inglês, usadas por ele e por Maezumi Roshi, chegassem até

mim. Assim, pela primeira vez no Brasil, pudemos ter os textos da Transmissão do Darma em língua

local.

Tetsugen Roshi está presente nesses documentos e assim mantém seus votos, como aparecem

no início deste livro.

Graças a ele, e a suas discípulas e discípulos que me enviaram esse vasto material, pude

traduzir os textos sagrados da Transmissão dos Ensinamentos, que tem sido passada de geração em

geração, de pessoa a pessoa, há mais de mil anos.

O budismo surgiu na Índia há aproximadamente dois mil e seiscentos anos. No Japão, a

tradição Soto Zen ainda não celebrou seus mil anos de atuação contínua, mas os textos da


Transmissão são encontrados como parte das Cinco Escolas que surgiram na China Antiga e que

foram sendo trazidas ao Japão por vários monges, entre eles, o fundador da nossa Ordem — Mestre

Eihei Dôgen (lê-se Dooguen), que viveu entre 1200 e 1253.

Maezumi Roshi — Koun Taizan Hakuyu Daiosho —, nosso mestre de formação e de

ordenação, e para Tetsugen ou Bernie, mestre de Transmissão, era um grande apreciador do

Shobogenzo — O Verdadeiro Tesouro do Olho do Dharma —, obra principal de Mestre Dogen

Zenji.

Suas palestras, ensinamentos e leitura do Shobogenzo foram a grande fonte de inspiração

para que eu tomasse os votos monásticos e fosse completar minha formação no Japão, onde vivi por

doze anos.

Quando Maezumi Roshi entrou em Parinirvana – um Buda nunca morre, mas adentra

Parinirvana —, fui do Japão para Los Angeles junto a Kuroda Junnyo Roshi, irmão mais novo de

Maezumi Roshi. Talvez fosse o Memorial de 49 dias a ser realizado no Zen Center de Los Angeles.

Faz parte dos ritos funerários entoar preces de sete em sete dias, até completar 49 dias. Geralmente,

grandes mestres costumam ter seu funeral maior em local e data em que todos possam estar

presentes. Assim foi feito.

Durante minha estada no Japão, recebi a Transmissão do Darma de Yogo Suigan Roshi,

amigo e orientador de Maezumi Roshi. Logo, eu não pertencia mais à mesma linhagem da família de

discípulos e discípulas do que se tornou a White Plum Asangha. Nasci naquela linhagem, mas fui

adotada por outra, a pedido de Maezumi Roshi e com a minha concordância e de meu mestre, Yogo

Roshi.

Durante a celebração, discípulas e discípulos transmitidos participavam de um momento

especial: os restos mortais de Maezumi Roshi — vindos do Japão, onde ele fora cremado — estavam

sendo transferidos de uma grande urna para pequenas urnas, de forma que pudessem levar parte dos

ossos do Mestre para seus templos e comunidades.

Eu assistia a essa celebração comovida, até que Bernie Glassman se aproximou e me

convidou a participar e a colocar um dos ossos de Maezumi Roshi em uma das pequenas urnas.

Teria sido uma de suas falanges?

A capacidade de inclusão e respeito de Tetsugen Roshi, Bernie Glassman, ficou impressa em

mim, para sempre.

Algum tempo depois, ele se desligou oficialmente da ordem Soto Shu do Japão. Por causas e

condições que nunca sabemos como foram criadas, eu estava na sala da casa de Maezumi Roshi

quando os oficiais japoneses da ordem insistiam com Bernie Glassman para que não abandonasse a

Soto Shu. Ele, entretanto, já havia decidido e apontava valores éticos diferentes dos seus, inclusive

dizendo que havia discriminação preconceituosa na ordem e que ele não concordava com vários

aspectos da tradição. Seguiria independente, mesmo que no Japão ele continuasse sendo um monge

professor da Soto Shu.

Deixou os cabelos e a barba crescerem, não usou mais os hábitos monásticos e se recusava a

fazer as liturgias tradicionais.

A essa altura, sim, passou a ser chamado por todos de Bernie, e sua aparência lembrava a de

um Patriarca da antiguidade, ao mesmo tempo em que era extremamente aberto e inclusivo em sua

maneira de ser e de viver.

Era doce e gentil.

Firme e suave.


Nunca desistia de seus propósitos e deixou uma linhagem de pessoas dedicadas ao Zen, à

liberdade de expressão e ao compromisso de uma vida ética.

Criou práticas para resgatar o povo da rua, os excluídos, os discriminados, os povos

originários e suas terras, bem como manteve viva a memória de todos que foram dizimados em

Auschwitz, em retiros anuais, sensibilizando a todos a respeito do que aconteceu e que nunca deve

ser esquecido para não ser repetido.

Aos poucos, Bernie se foi sem nunca ter ido.

Vive em nós.

Não apenas na memória, nos livros, nos vídeos e na obra de sua vida, mas em todos nós que

seguimos seus passos.

Passos que não deixaram pegadas nem na Terra nem nos Céus.

Apreciem esta obra e se inspirem para oferecer um grande banquete — o da sua vida — a

todos os seres, a todo o Ecossistema.

Somos a vida da Terra.

Cuidemos.

Mãos em prece.

Monja Coen

São Paulo, inverno de 2022


Prefácio do tradutor

Por Monge Koho Mello

Colaborar com a publicação deste livro em português significa para mim um grande mérito.

Penso que traduzir é sempre um desafio, pois, muito mais do que transpor palavras de um idioma

para outro, trata-se da responsabilidade de buscar transmitir com fidelidade a mensagem de uma

obra. No caso deste livro — Instruções ao cozinheiro: ensinamentos de um mestre Zen sobre viver

uma vida com sentido —, minha motivação é compartilhar os benefícios que sinto serem possíveis

de auferir com a leitura e a aplicação dos referenciais aqui contidos, os quais representam os frutos

de uma vida de prática, estudo e ação benéfica na sociedade.

A comunidade Zen Peacemakers me foi apresentada há mais de 20 anos por intermédio de

José Ovidio, meu amigo, professor e irmão no Darma. Pela afinidade com a visão de buscar meios

hábeis na aplicação dos ensinamentos budistas no cotidiano, me senti acolhido desde o início e com

espaço para manifestar minhas aspirações de agir de forma engajada na sociedade, mantendo meu

comprometimento com o caminho tradicional do Zen da Escola Soto.

Conheci pessoalmente Bernie Tetsugen Glassman Roshi antes de ler esta obra, o que, de

certa forma, possibilitou preparar em meu coração-mente o ambiente adequado para acolher em

profundidade os ensinamentos do livro. Ainda que já tivesse tido contato anterior com o texto

clássico Instruções ao cozinheiro Zen — “Tenzo Kyokun", em japonês — do Mestre Zen Eihen

Dogen (fundador da Escola Soto no Japão), a releitura contemporânea feita por Bernie sobre o tema

básico me descortinou novos horizontes, principalmente pela forma simples e profunda do texto, e

pelo elemento vivencial e pragmático que permeia toda a obra.

Poucas vezes tive a oportunidade de conviver com Bernie Glassman, mas em dois momentos

o impacto existencial foi decisivo. A primeira vez ocorreu em minha participação inaugural no

Retiro dos Zen Peacemakers nos campos de concentração de Auschwitz-Birkenau. As experiências

naquele retiro foram muito intensas em todos os sentidos. No intervalo do meio-dia, os participantes

recebem uma tigela de sopa, uma fatia de pão e um copo de água. Isso ocorre do lado de fora das

cercas de arame farpado que rodeiam o campo de concentração de Birkenau, uma vez que, numa

atitude de respeito com todos os seres que pereceram naquele local de horror, nos comprometemos

com a prática de não ingerir nem alimentos nem água dentro dos campos.

Aproveitei essa pausa para me apresentar a Bernie, conversar um pouco e partilhar minha

gratidão por estar ali, num espaço-tempo de prática gerado principalmente pela ação dele como

Professor do Darma budista — os ensinamentos tradicionais. Naquela ocasião, pude sentir o poder

de uma presença que acolhe todos os potenciais humanos que podemos manifestar, como, por

exemplo, sermos em alguma medida como as vítimas, mas também como os perpetradores daquela

brutal tragédia humana que lá é possível testemunhar. A naturalidade com que Bernie me ouvia, sua

simplicidade ao compartilhar de forma autêntica a compreensão dos meus sentimentos e motivações,

foi algo transformador. Sinto que ali foram nutridas algumas sementes que motivaram meu

engajamento posterior, de forma continuada, nos retiros anuais promovidos pelos Zen Peacemakers

nos campos de concentração, primeiro como participante e depois, progressivamente, como membro

da equipe organizadora e oficiante budista.

A segunda ocasião marcante ocorreu quando da visita de Bernie ao Brasil, em 2012.

Acompanhei suas atividades em vários locais, colaborando eventualmente como seu tradutor. Em

São Paulo, Bernie ofereceu uma palestra nas dependências da Editora Palas Athena. Em um certo

momento da sua fala, ele explicou que, na sua opinião, todos os ensinamentos e práticas poderiam


ser resumidos em apenas um conceito, o despertar da consciência plena da absoluta Unidade da

Vida. Sinceramente, não tenho como explicar o que senti naquele momento, mas de súbito não

consegui continuar a tradução, só consegui chorar, imerso em um senso de maravilhamento, gratidão

e indescritível serenidade. Ovidio estava presente e assumiu a tarefa da tradução. Ainda hoje, revivo

com alegria aquele momento inexplicável.

Quando eu li este livro pela primeira vez, já residia na Suíça, o que me possibilitou maior

participação e engajamento nas diversas atividades promovidas pelos Zen Peacemakers. Ao longo

do caminho da prática, percebi a importância dos ensinamentos contidos nesta obra, os quais podem

representar um precioso apoio ao exercício de uma espiritualidade autêntica, firme nas suas raízes e

flexível nos frutos de suas manifestações individuais e coletivas. O referencial histórico tradicional

dos escritos de Mestre Dogen é visível a um olhar mais atento, mas o frescor da visão despretensiosa

e bem-humorada de Bernie Glassman é um convite generoso e desafiador à ação, pois alia a

sabedoria sutil e pragmática do Zen à sensibilidade sincera e atuante perante a inevitabilidade dos

sofrimentos humanos.

Com a lucidez de uma mente educada pela prática diligente, ao longo do texto, Bernie nos

desafia a aceitarmos nossa suficiência e utilizarmos todos os ingredientes de que dispomos no aqui e

no agora para preparar a refeição suprema de nossas existências, e oferecê-la na celebração do

contentamento que surge naturalmente do serviço que não se apega aos resultados das ações. Dessa

forma, efetivamente podemos assumir nossa parte na superação dos desafios pessoais e coletivos.

Pessoalmente, vislumbro neste livro a síntese da vida e da obra de Bernie Tetsugen

Glassman, um dos grandes mestres Zen contemporâneos. Em uma visão simplificada, considero que

aqui há uma referência básica para expressarmos nossas aspirações mais elevadas de gerar

benefícios na sociedade, com um modelo inclusivo e respeitoso à diversidade, e ,ao mesmo tempo, à

consciência de aspectos universais de nossas humanidades.

O caráter, em certa medida, revolucionário de algumas práticas propostas pelos Zen

Peacemakers é, ao mesmo tempo, um convite acolhedor e aberto ao coletivo de um mundo

caracterizado pela diversidade, mas também um desafio constante para assumirmos a intransferível

responsabilidade individual pela descoberta de sentido em nossas existências humanas. Por exemplo,

nos retiros de imersão em plena presença de realidades que nos são desafiadoras, somos chamados a

questionar a coerência existente entre nossos discursos e nossas ações na sociedade.

Usualmente, é uma experiência muito transformadora manter uma prática meditativa no

período de alguns dias em que convivemos deliberadamente com pessoas em situação de rua, em

grandes cidades do mundo, tendo conosco apenas um documento e a roupa do corpo, e abrindo mão

da maior parte dos nossos elementos de identidade social. Da mesma forma, representa uma imensa

oportunidade de aprendizado exercermos a escuta profunda, em estado de presença autêntica, num

círculo partilhado com pessoas que vivenciaram traumas históricos de violência e desrespeito às

mais elementares dignidades humanas, como nos campos de concentração já citados, ou em Ruanda,

na Bósnia, nos territórios dos povos nativos da América do Norte, nas zonas de conflito na Terra

Santa, em prisões, escolas e hospitais.

Num processo experiencial, cultivamos em nosso ser a realidade da interdependência. Nosso

espaço de Prática (zendo) passa a estar no mundo inteiro, nossa Comunidade de Prática (Sanga)

passa a ser constituída por todos os seres. Assim, aspiramos que ninguém seja deixado de fora do

círculo de sabedoria e compaixão infinita que inspira e motiva nossos corações e mentes.

Nesses poucos anos de convivência e prática com a Comunidade Zen Peacemakers, constato

ser possível ressignificar as experiências de profundo aprendizado que vivenciamos nessas formas


de prática não-convencionais. Mesmo nas situações mais desafiadoras, através dos ensinamentos de

referência e das metodologias baseadas no cuidado e no respeito à diversidade, acessamos recursos

que nos permitem desenvolver uma lucidez que vê além das circunstâncias transitórias, e a nutrir um

senso de esperança real, baseado na ação compassiva e eficiente, que compreende os efeitos da

ignorância fundamental que reside em não termos consciência da Unidade de toda a Vida.

Muito além da minha compreensão, a inspiração originada nos princípios da cozinha Zen

partilhados neste livro me ensina constantemente a nutrir, em primeiro lugar, as sementes virtuosas

em meu coração-mente, e a confiar no fato de que o primeiro passo é reconhecer, em gratidão, que a

Vida provê mais do que necessito e, portanto, nessa suficiência essencial sempre há muito a

partilhar, em estado de contentamento pelas oportunidades cotidianas de praticar a generosidade sem

apegos.

Celebro a oportunidade de participar da publicação deste livro no Brasil. Aspiro que este

texto possa nutrir gerações de praticantes de qualquer tradição espiritual em suas motivações de

gerar benefícios a todos os seres, na sua forma individual incomparável de manifestação, onde quer

que estejam, sejam quais forem suas habilidades e qualificações, pois cada ser tem um banquete

único a ofertar. E que possamos cultivar a lucidez profunda de ver a realidade como ela é, e assim

despertar para a maravilhosa revelação de sabedoria contida em cada momento de nossas existências

humanas tão preciosas.

Se eu tivesse de pedir algo ao finalizar este texto, solicitaria que considerassem o que aqui

escrevi da forma como Bernie sabiamente posicionava as nossas visões da realidade: são apenas

minhas opiniões.

Cuidem-se bem e apreciem suas vidas.

Fraternalmente, em reverência.

Koho Mello

Zürich Zen Center

Suíça, verão de 2022


Prólogo: Preparando o Menu

Quando comecei meus estudos no Zen, meu professor me deu um koan, uma pergunta Zen, para

responder: Como você pode prosseguir a partir do topo de um poste de trinta metros de altura?

Você não pode usar sua mente racional para responder a esse koan — ou qualquer outro

questionamento Zen — de uma maneira lógica.

Você poderia meditar por um longo tempo, retornar ao mestre Zen e dizer: “A resposta é

viver plenamente”.

Esse é um bom começo. Mas é somente a parte racional e lógica da resposta. Você tem de ir

além, tem de demonstrar a resposta, tem de incorporar a resposta. Você tem de mostrar ao mestre

Zen como viver plenamente neste momento. Você tem de manifestar a resposta na sua vida, nos seus

relacionamentos cotidianos, no mercado, no trabalho, tanto quanto no templo ou na sala de

meditação.

Quando vivemos a vida plenamente, nossa vida torna-se o que os Zen budistas chamam de

“refeição suprema”.

Nós preparamos essa refeição suprema ao utilizar os ingredientes disponíveis para fazer a

melhor refeição possível e então a ofertamos.

Este livro trata de como cozinhar a refeição suprema de sua vida.

Este livro trata de como pisar fora do poste de trinta metros de altura.

Este livro trata de como viver plenamente no mercado.

E em qualquer outra esfera de sua vida.

A maioria das pessoas vem me ver na condição de professor Zen, pois sente que algo está

faltando em sua vida. Até poderíamos dizer que a maioria das pessoas vem ao Zen porque está de

algum modo faminta.

Talvez elas sejam bem-sucedidas nos negócios, mas sintam que negligenciaram os aspectos

mais profundos e “espirituais” da vida. Essas pessoas vêm ao Zen em busca de sentido. Outras

pessoas dedicaram tanto tempo à busca espiritual que terminaram negligenciando sua subsistência.

Essas pessoas vêm ao Zen para “recompor suas vidas”.

Há pessoas que querem praticar Zen por questões de saúde. Elas consideram particularmente

úteis a postura e a respiração que acompanham a meditação Zen. A prática regular da meditação

Zen, por exemplo, reduz a pressão sanguínea e melhora a circulação. Os pulmões funcionam

melhor, de forma que você consegue respirar mais profunda e intensamente.

Outras pessoas são levadas ao Zen em função do “autodesenvolvimento”. Elas vêm ao Zen

porque querem ser mais realizadas ou para se tornarem pessoas “melhores”.

Finalmente, é claro, há pessoas que praticam Zen por razões espirituais. Essas pessoas

querem experienciar satori ou kensho. “Satori” significa, literalmente, despertar, e “kensho”

significa, de forma estrita, ver a nossa verdadeira natureza. Essa visão é obtida não com os olhos,

mas com todo o nosso corpo e mente.

Todas essas razões são válidas. O Zen pode ajudar você a restabelecer o equilíbrio em sua

vida e ser benéfico para a sua saúde. O Zen pode ajudar você a examinar suas prioridades pessoais

de modo que possa realizar mais.

O Zen também pode melhorar sua saúde psicológica. A prática do Zen não elimina conflitos

e lutas, mas ajuda a colocar nossos problemas em perspectiva. A prática do Zen propicia


estabilidade, de forma que, se algo nos abalar ou algo inesperado nos fizer vacilar, conseguimos

recuperar nosso equilíbrio mais rapidamente.

A prática do Zen também pode nos ajudar de muitas outras formas. Pode nos dar uma

experiência de paz interior e pode fortalecer nossa concentração. Pode nos ajudar a aprender como

superar nossos preconceitos e visões parciais. Pode nos ensinar formas de trabalhar com mais

eficiência. Esses são todos efeitos benéficos, mas, em certo sentido, todos ainda são “efeitos

colaterais”.

No nível mais profundo e básico, o Zen — ou qualquer caminho espiritual, nesse aspecto —

é muito mais do que uma lista do que podemos ganhar com sua prática. Na realidade, o Zen é a

realização da unidade da vida em todos os seus aspectos. Não é apenas a parte pura ou espiritual da

vida: é a vida em sua totalidade. Suas flores, montanhas, rios, riachos, o coração da cidade e as

crianças desabrigadas da Rua Quarenta e Dois. É o céu vazio e também o céu nublado e o céu com

poluição. É o pombo voando no céu sem nuvens, o pombo defecando em um céu sem nuvens e

caminhar sobre as fezes dos pombos na calçada. É a rosa crescendo no jardim, a rosa cortada

destacando-se no vaso da sala, o lixo onde jogamos a rosa e o composto onde jogamos o lixo.

Zen é a vida — a nossa vida. É chegar à conclusão de que todas as coisas nada mais são do

que expressões de mim mesmo. E que eu mesmo nada mais sou do que a plena expressão de todas

as coisas. É uma vida sem limites.

Há muitas metáforas diferentes para uma vida assim. Mas a que eu achei mais útil e mais

significativa vem da cozinha. Os mestres e mestras Zen denominam uma vida que é vivida plena e

completamente, sem nada deixar de lado, a “refeição suprema”. E uma pessoa que vive uma vida

assim, uma pessoa que sabe como planejar, cozinhar, apreciar, servir e oferecer a refeição suprema

da vida, é chamada de cozinheiro ou cozinheira Zen.

A posição do cozinheiro ou cozinheira é uma das mais elevadas e mais importantes num

mosteiro Zen. Durante o século XIII, Dogen, o fundador da maior escola Zen-budista no Japão,

escreveu um manual famoso, chamado Instruções ao cozinheiro Zen 1 . Nesse livro, ele relata sua

perigosa viagem marítima até a China para encontrar um mestre verdadeiro. Quando finalmente

chegou ao seu destino, tendo sobrevivido a tufões e piratas, ele foi forçado a permanecer a bordo do

navio enquanto os oficiais chineses examinavam seus documentos.

Um dia, um velho monge chinês veio ao navio. Era o tenzo, ou cozinheiro principal, do seu

mosteiro, como disse a Dogen, e como no dia seguinte seria feriado, o primeiro dia da primavera,

ele queria oferecer aos monges algo especial. Ele havia caminhado doze milhas para ver se poderia

comprar alguns dos renomados cogumelos shitake trazidos por Dogen do Japão, que queria

adicionar à sopa de macarrão que planejava servir na manhã seguinte.

Muito impressionado com o monge, Dogen lhe pediu que ficasse para o jantar e que ali

passasse a noite. Mas o monge insistiu que tinha de retornar ao mosteiro imediatamente.

“Mas certamente”, disse Dogen, “outros monges poderiam preparar a refeição na sua

ausência”.

“Eu fui encarregado dessa tarefa”, respondeu o monge. “Como eu posso deixá-la para os

outros?”

1

Zen cook (no original em inglês) pode ser traduzido como cozinheiro Zen ou cozinheira Zen. No título do livro,

escolhemos usar o gênero masculino, mantendo a referência ao ensinamento do mestre Dogen. No entanto, para

favorecer uma linguagem mais inclusiva, decidimos, em conjunto com o tradutor, intercalar a flexão de gênero ao longo

do livro. Desta forma, no primeiro, terceiro e quinto capítulos, você vai se deparar com o uso mais frequente do gênero

feminino — como se Bernie estivesse falando sobre e com cozinheiras Zen — e nos outros capítulos vai encontrar maior

uso do gênero masculino. Aqui no prólogo, decidimos colocar as duas flexões, sempre que possível. Sabendo que é uma

decisão imperfeita, ainda binária, esperamos com esse gesto oferecer um texto mais diverso e atual (N. de E.).


“Mas por que um ancião venerável como o senhor desperdiça seu tempo fazendo o trabalho

pesado de um cozinheiro principal?”, persistiu Dogen. “Por que você não utiliza seu tempo

praticando meditação ou estudando as palavras dos mestres?”

O cozinheiro Zen deu uma gargalhada, como se Dogen tivesse dito algo muito engraçado.

“Meu caro amigo estrangeiro”, disse ele, “está claro que você ainda não compreende do que se trata

a prática do Zen. Quando tiver a oportunidade, por favor, venha me visitar no mosteiro para que

possamos discutir essas questões mais profundamente.”

E, com isso, ele apanhou seus cogumelos e começou a longa jornada de volta ao mosteiro.

Dogen, por fim, visitou e estudou com o cozinheiro Zen em seu mosteiro, assim como com

muitos outros mestres. Quando finalmente retornou ao Japão, Dogen se tornou um celebrado mestre

Zen. Mas ele nunca esqueceu as lições que aprendeu com o cozinheiro Zen na China. Era dever do

cozinheiro Zen, escreveu Dogen, fazer a melhor e mais suntuosa refeição possível com quaisquer

que fossem os ingredientes disponíveis, mesmo que ele dispusesse apenas de arroz e água. O

cozinheiro Zen usava o que tinha, em vez de reclamar ou dar desculpas sobre o que não possuía.

Em certo nível, Instruções ao cozinheiro Zen de Dogen trata da forma correta de preparar e

servir refeições para os monges. Mas, em outro nível, diz respeito à suprema refeição — nossa

própria vida —, a qual é tanto o maior presente que podemos receber quanto a maior oferta que

podemos fazer.

Eu pratiquei o Zen e estudei as instruções de Dogen por muitos anos para aprender a me

tornar um cozinheiro Zen capaz de preparar essa refeição suprema. Eu levantava cedo, por volta das

cinco e meia, toda manhã, e sentava em zazen, ou meditação Zen, por muitas horas. Com meu

professor eu estudei koans — frases Zen paradoxais tais como: “Qual é o som de uma única mão

batendo palmas?” Finalmente, recebi uma transmissão para ensinar na escola do Zen que Dogen

havia fundado.

Os princípios que aprendi em meu estudo do Zen — os princípios do cozinheiro ou

cozinheira Zen — podem ser usados por qualquer pessoa como um guia para viver uma vida plena

nos negócios, em casa e na comunidade.

Alguém que é chefe de cozinha dedica muitos anos ao seu aprendizado, preparando e

servindo milhares de refeições. Alguns cozinheiros e cozinheiras mantêm suas receitas e métodos

em segredo. Mas outros estão dispostos a destilar seus anos de experiência — incluindo fracassos,

enganos e sucessos — em receitas que todos possam usar para preparar suas próprias refeições.

Neste livro, eu destilei meus anos de experiência como cozinheiro Zen e incluí nele meus princípios

e receitas para a refeição suprema da vida.

O Zen está baseado nos ensinamentos do Buda. O Buda não era Deus, ou outro nome para

Deus, ou mesmo um deus. O Buda foi um ser humano que teve uma experiência de despertar por

intermédio de seus próprios esforços. O despertar ou a iluminação do Buda aconteceu através da

prática de meditação.

O que o Buda descobriu? Há muitas respostas diferentes para essa pergunta. Mas a tradição

Zen que eu estudei diz simplesmente que, quando o Buda alcançou a realização, ele abriu os olhos

para ver a estrela da manhã brilhando no céu e exclamou: “Que maravilhoso, que maravilhoso!

Tudo é iluminado. Todos os seres e todas as coisas são iluminados sendo exatamente como são”.

Então, o primeiro princípio do cozinheiro ou cozinheira Zen é que nós já temos tudo de que

precisamos. Se olharmos cuidadosamente nossas vidas, perceberemos que temos todos os

ingredientes de que precisamos para preparar a refeição suprema. A cada momento, nós

simplesmente pegamos os ingredientes que estão à mão e fazemos a melhor refeição que podemos.


Não importa se temos muito ou pouco. O cozinheiro ou cozinheira Zen apenas olha para o que está

disponível e começa com o que tem.

A refeição suprema da minha vida tomou diversas formas surpreendentes. Eu fui um

engenheiro aeronáutico, um estudante e um professor do Zen. Também fui um empreendedor que

abriu uma padaria de sucesso e um ativista social que fundou o Albergue da Família Greyston,

provendo moradia permanente e treinamento em autossuficiência para famílias desabrigadas.

Também estou envolvido em começar um hospital terminal para pessoas vivendo com HIV e um

centro inter-religioso.

Claro, a refeição suprema é muito diferente para cada um de nós. Mas, de acordo com os

princípios do cozinheiro ou cozinheira Zen, sempre consiste em cinco “pratos” principais, ou

aspectos da vida. O primeiro prato envolve espiritualidade; o segundo prato é composto de estudo e

aprendizagem; o terceiro prato lida com o meio de vida; o quarto prato é feito de ação social ou

mudança; e o último prato consiste em relacionamento e comunidade.

Cada um desses pratos é uma parte essencial da refeição suprema. Assim como todos nós

precisamos de certos tipos de alimentos para compor uma refeição completa que nos sustente e

nutra, também precisamos de todos esses cinco pratos para viver uma vida plena.

Não é suficiente simplesmente incluir todos esses pratos em nossa refeição. Nós temos de

preparar os cinco pratos no momento certo e na ordem correta.

O primeiro prato, espiritualidade, ajuda-nos a perceber a unicidade da vida e proporciona um

ponto de quietude como centro de todas as nossas atividades. Esse prato consiste em certas práticas

espirituais, que poderiam ser rezar ou ouvir música, dançar ou fazer caminhadas, ou passar algum

tempo sozinho — qualquer coisa que nos ajude a perceber ou recordar a unidade da vida, o que

Buda quis dizer quando falou: “Que maravilhoso, que maravilhoso”.

O segundo prato é estudar e aprender. O estudo nos traz perspicácia e inteligência. As

pessoas normalmente estudam antes de começar algo, mas eu gosto que o meu estudo — seja a

respeito do meio de vida, ação social ou espiritualidade — ocorra simultaneamente com minhas

práticas de subsistência, de ação social ou de espiritualidade. Dessa forma, o estudo nunca é algo

meramente abstrato.

Uma vez que tenhamos estabelecido a clareza que vem da quietude e do estudo, nós

podemos começar a ver como preparar o terceiro prato, que é o meio de vida. Esse é o prato que nos

sustenta no mundo físico. É o prato do trabalho e dos negócios — a carne e as batatas. Cuidar de

nós mesmos e nos sustentar no mundo são coisas necessárias e importantes para todos nós, não

importa quão “espiritual” pensemos que somos.

O prato da ação social surge naturalmente dos pratos da espiritualidade e do meio de vida.

Uma vez que começamos a cuidar das nossas próprias necessidades básicas, nos tornamos mais

conscientes das necessidades das pessoas ao nosso redor. Reconhecendo a unidade da vida, nós

naturalmente nos aproximamos das outras pessoas, porque percebemos que não estamos separados

delas.

O último prato é o prato dos relacionamentos e comunidade. Esse é o prato que integra em

um todo harmonioso cada parte aparentemente separada das nossas vidas. É o prato que transforma

todos os outros — espiritualidade, meio de vida, ação social e estudo — em um alegre banquete.

Todos os pratos formam a refeição suprema da nossa vida. Mas não é uma questão de tentar

organizar nossa vida de forma que preparemos quantidades iguais de cada prato. Nós todos

precisamos de diferentes ingredientes e diferentes quantidades em momentos diferentes das nossas

vidas.


A esta altura da sua vida, talvez você precise focar no seu meio de vida ou talvez deva

colocar o foco na espiritualidade. Você deve reavaliar sua situação constantemente. Você não faz

uma refeição satisfatória usando quantidades iguais de sal e açúcar — precisa olhar para sua

situação e descobrir quanto de cada ingrediente é necessário naquele momento específico.

Bolos pintados também são reais

A refeição suprema é uma metáfora. Usualmente dizemos que metáforas não são a realidade

que elas descrevem. Nós dizemos, por exemplo, que “o mapa não é o território”. Ou, como diz o

ditado Zen, “você não pode comer bolos pintados”.

Isso é verdade tanto quanto pode ser. Mas, como a maioria das verdades, é apenas a metade

ou talvez três quartos da verdade. Dogen foi mais fundo quando escreveu em sua maior obra,

Shobogenzo, que “bolos pintados são reais também”. Mapas, receitas e manuais de instruções são

feitos de palavras reais e imagens que transmitem informação real sobre nossas vidas e o mundo em

que vivemos. Um mapa pode nos ajudar a ir daqui para lá; uma receita pode nos ajudar a fazer um

pão delicioso; e palavras que vêm da experiência e do coração podem nos ajudar a viver de forma

mais plena e completa.

Então, este livro é o meu bolo pintado. Minha esperança é que ele o ajude a descobrir e a

praticar os princípios antigos e ainda atuais do cozinheiro e da cozinheira Zen, de forma que você

possa preparar a suprema refeição para si e para os outros, momento após momento. Porque a

refeição suprema — sua própria vida — é o maior presente que você pode receber e a maior oferta

que você pode fazer.

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