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DepoisDuranteAntes

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DEPOISDURANTEANTES N. o Ø


e por que não dinamitar tudo isso e seguir pelo caminho das coisas que não tem nome - e que não há sequer pretensão de nomeá-las?

essa foi uma das últimas vezes que a vi exposta ao vento.

o rosto que seria a única imagem do tempo de paz,

a atravessar o tempo de guerra.

me perguntei durante muito tempo se eu realmente a tinha visto.

ou se tinha criado esse momento de doçura pra resistir aos

momentos de loucura que estavam por vir.

e que só mais tarde é que se farão reconhecer.

por essas cicatrizes.

já que nada se distingue na memória de outros momentos.

no começo da terceira guerra mundial,

as casas viraram abrigos anti-bombas

pois era preciso se proteger do inimigo escandaloso e invisível.

comecei a alongar o corpo cada dia mais.

alongar pra caber no espaço sem medida.

alongar como se quisesse ter a certeza

de que está nas capacidades do corpo,

o retorno imediato a estudar a escrita

como possibilidade de fuga,

e não mais de aprisionamento.

o aprisionamento vindo da normatividade.

a mesma que sempre temeu dissidentes,

aqueles que tem capacidades outras.

tentam nos domar, tentam nos rotular.

e eles se esforçam.

eles se esforçam, incansavelmente,

para nos enquadrar à seus critérios.

dissidentes se transformam em ameaça,

porque são, acima de tudo, poder de conhecimento,

de discernimento e, portanto, de emancipação.

somos o defeito na armadura pelo qual se infiltram

a contestação e o questionamento.

o que quero mostrar é a escrita,

não o que está escrito.

como algo que brilha também fora do corpo,

engolindo o que salta do desejo.

a jota me ensinou a desejar profundamente

que o mundo como nos foi dado acabe.

e a atravessar o impossível por dentro.

atravessar o impossível por dentro

é tornar a escrita ilegível, pois a linguagem é

constrangimento.

para poder apenas observar a presença se dissolvendo

em movimento e gesto.

palavras-imagens que,

ao não dizer nada,

se transmutam em tudo.

escrever é outra tentativa de destruição de mundos.

mesmo assim, também é tentativa de reconstruir tudo

pelo lado de dentro.

é escrever pra não morrer.

medido e pesando todas as engrenagens,

as rodas dentadas,

aferindo os eixos milimetricamente,

examinando o oscilar silencioso das molas

e a vibração rítmica das moléculas

no interior dos aços e braços.

é na escrita, que percebo que o tempo não existe.

que passamos a existir,

ao mesmo instante,

como as vozes de nossas cabeças, que escrevem.

e nas cabeças de outres, que insistem em ler.

somos pincel.

somos olhos.

ouvimos com o olhar.

e o corpo?

o corpo também é alfabeto?

e, se foi o corpo que fez todos os embates,

todos os signos

todos os símbolos do mundo,

passando do cérebro pensante

para o braço que move

para o gesto da mão

para a ferramenta sobre algum suporte silencioso

durante milhares

e milhares de anos,

e agora?

agora que escrevemos com teclados?

agora que nos bombardeamos

e trocamos ternuras mediados por telas infinitas?

agora que, realmente encurtamos distâncias nas pontas dos dedos,

teremos deixado para trás o que realmente importa?

e o que realmente importa?

e o que realmente importa?

haverá agora uma necessária

evolução futura para as letras e as palavras?

ou perdemos tudo?

e, se as palavras foram feitas pelo corpo,

haveria um lugar melhor

para depositar essas palavras de volta

do que o próprio corpo?

O QUE OS OLHOS NÃO VEEM ELIÉZER

DEPOISDURANTEANTES

DEPOISDURANTEANTES

ATOS - VIBRAÇÕES - PENSAMENTOS, ETC. B. BENEDICTO



PERGUNTA INFINITA PATRÍCIA ARAUJO DEPOISDURANTEANTES DEPOISDURANTEANTES TRAVESSIA RAO FREITAS



SONHO LAURA BERBERT DEPOISDURANTEANTES



Sonhei que você era enrolada por uma cobra

Que enrola todo o seu corpo e fica deslizando

Mas antes dela dar o bote você consegue matá-la

Eu vejo tudo há uma certa distância

O vai e vem da cobra o vai e vem da palavra

o vai e vem dos pés no tear

o vai e vem da máquina de costura

NOVELO SINUOSO SE RECONSTRUINDO SIMONE BARRETO DEPOISDURANTEANTES



LUTAR ANDA

IMPOSSÍVEL?

notas inconjunturais

para o futuro

As cisões, a gagueira e os engasgados

“Estes movimentos organizados, são puro carreirismo”

diziam alguns dos híbridos-ativistas. “Não podemos

confiar no Estado. Temos que destruir o cisheteropatriarcado.”

Essas novinhas aí, mal sabem o

que vivemos na ditadura”, “só ficam na internet e nas

universidades”, respodiam os primeiros das ONGs, dos

aparatos do Estado. Uma das muitas cisões nas formas

de lutar se desenhava. De um lado, a experiência e o

traquejo no seio do Estado dos mais velhos, de outro,

Helena Vieira

a visibilidade e acesso à informação dos mais novos.

Farpas trocadas de lado a lado, mas não as únicas nesta

peleja: empreededores, startups, empresas gayfriendly.

Identitários e Pós-Identitários. LGBTs e Queers. Humanos

e Monstros. Deusas e Ciborgues. Liberais e Socialistas.

Repetíamos prazerosamente a gagueira do “ ou isso ou

A leitura destas primeiras notas podem soar

pessimistas. Peço que não encarem desta forma.

São notas fotográficas do encadeamento triste dos

acontecimentos que, de alguma forma, contribuíram

pra que chegássemos onde estamos. Entre as paixões

da assimilação e a recusa das condições de movimento,

nós morreremos e temos transformado nossas lutas em

formas de morrer: de tédio, de raiva, de incompreensão.

aquilo”. Transformamos as lutas em carreira, em modo

de vida e fomos longe. Esquecemos, contudo, que

empoderar, no sentido de tomar parte no poder que

constitui o mundo, o reconhecimento e a cidadania, é

muito semelhante a tomar veneno. Trouxemos, para a

composição de nosso desejo por vida, a forma de poder

que tem incessantemente produzido a nossa morte,

com isso, constituímos nossas dinâmicas à imagem e

semelhança das que nos excluíram, produzindo, entre

Parto da compreensão de que precisaremos recriar

nós, competição, enfraquecimento, culpabilidade,

formas, alianças e corpos. Neste texto, reviramos os

belicosidade. A sede por direitos as vezes nos deixa

escombros e limpamos o terreno em busca de outros

a boca de tal forma aberta, que não atentamos para

encadeamentos possíveis, de outras composições.

tudo que pela goela nos desce. Estamos engasgados e

continuamos morrendo.

O estridente atordoamento

Que nossas vidas estão em risco, já sabemos. Que os

recursos para o desenvolvimento de projetos e ações

de promoção da cidadania LGBTI+ serão cortados, é

de se supor. Que o ódio social, acirrado pela extrema

polarização, irá inevitavelmente nos atingir, temos

ciência. Que sofremos uma derrota, não apenas

eleitoral, disso também temos conhecimento.

Todos estes temores e estas tragédias têm sido

anunciadas e lamentadas diariamente nas redes sociais,

em eventos, debates, palestras, análises de conjuntura,

conversas de amigos e tantas outras formas e meios

que temos utilizado pra externalizar a incredulidade

repleta de dor que nos abateu no último período. Se

tudo parecia, em algum momento, ir muito bem, nos

defrontamos novamente com o risco da morte e com

a fragilidade de nossas vidas, expostas ao ódio e a

violência cotidianas.

Que fazer? Essa é, em muitos sentidos, a questão

que tem nos assombrado, a nós, militantes, ativistas,

artistas, intelectuais, professores e tantos outros LGBTs

engajados nas lutas sexo-gênero-dissidentes e também

aqueles que agora, em meio ao furor da queda do céu,

decidiram que é preciso constituir, inventar, tomar

partido em formas de luta/resistência/militância.

Contudo, experientes, novatos e atemporais, sentimonos,

invariamente, sem rumo.

A vontade e a urgência de ação são tragadas pela

desesperança, pelo medo, pelo individualismo,

pela culpabilidade e pela polifonia ensurdecedora

das opiniões que vociferamos nos muitos meios à

nossa disposição. “ A esquerda precisa aprender”, “o

movimento LGBT precisa agir”, “o pessoal dos direitos

humanos”, “O feminismo e as feministas”. Ou então,

no extremo oposto, vibramos e sorrimos, levamos

muito a sério a ideia de que “o poder nos quer tristes” e

então dançamos e gritamos, ensurdecedoramente, para

mostrar pra “eles” que continuamos vivas e felizes.

Ainda que nem tão felizes assim e nem tão vivas.

Seguimos nomeando, abstratamente, sujeitos coletivos

desincorporados, aos quais direcionamos nossas mais

severas críticas, como se, em nenhum momento ou sob

nenhum aspecto, tivéssemos nada com isso. Entre a

estridente busca de culpados e a louca euforia do “eles

não podem nos fazer tristes”, seguimos sem saber o que

fazer, abafando, com nossos gritos, risos e gemidos,

as interpelações do real em busca de nossa força

imaginativa.

O encantamento da bonança:

Estado e empoderamento

Temos encampado muitas lutas há muito tempo. Os

últimos anos, ao menos simbolicamente para LGBTIs

pareciam, no primeiro plano, repletos de avanços.

Reconhecimento institucional das demandas, editais,

presença no aparelho do Estado, lugares no Governo

Federal e nos governos subnacionais. Conferências.

Decretos. Espaço para diálogo. Tudo isso esteve lá,

ainda que apenas os ingleses vissem e que as mortes de

LGBTIs continuassem acontecendo, sem registros, sem

reconhecimento, sem rosto, sem advocacy.

Desfrutamos uma arrasadora paixão pelo Poder

Judiciário e com isso provocamos o Supremo Tribunal

Federal-STF. União Estável. Casamento. Mudança

no Registro Civil de pessoas trans direto no cartório.

Avanços fundamentais, defendidos por muitos e muitas

de nós. Eu mesma, em 2010, participei em Brasília de

um grande abraço coletivo ao Palácio do STF. Estávamos

mesmo apaixonadas por esta lufada de cidadania.

Na cultura também avançamos: Beijo gay, família

homoparental, novelas com personagens e atriz

trans. Cantoras e cantores transexuais, travestis e

drag queens. Nos elevamos como um tsunami nas

redes sociais. Páginas de ativismo e grupos. Conexões

múltiplas. Nos dividimos entre as muitas estratégias,

entre os muitos conflitos. Problematizamos as

nossas relações ao extremo. Nada poderia passar.

Absolutamente nada. O tempo era de pedir tudo e por

tudo abaixo. Estávamos finalmente, empoderados,

ainda que continuássemos morrendo.

Ebriamente empoderados, devería-se dizer. Das

margens do desejo e de alvos da violência, negociando

muito bem a nossa perversidade, acessamos, ainda

que marginalmente, os centros de poder. Não mais

armários, mas muito bem vestidos, certamente. Às

vezes muito coloridos, às vezes engravatados, às vezes

falando pajubá, às vezes usando charmosos termos em

inglês, tão na moda no mundo dos empreendedores.

Fizemos nossas pautas e vozes visíveis. Não apenas

na Parada LGBT, na Avon ou com os Doritos, mas

nas redes sociais, no nosso diário e incansável webativismo,

nos tornamos centenas de milhares de

híbridos: celebridade-ativista, celebridade-ativistamodelo,

celebridade-ativista-formadora de opinião,

celebridade-ativista-acadêmica. Milhares de seguidores.

Compartilhamentos. Likes. Dispensamos coletivos,

partidos, ONGs e todas estas organizações e instituições

que nos pareciam tão fora de moda. Livres. Individuais.

Liberais. Empoderadas e cheias de opinião.

***

Assombradas observamos o avanço da extrema-direita

e do conservadorismo. Os barulhentos pastores, alvos

frequentes do nosso riso, assaltaram o poder em

nosso país. Os milicos conservadores. O baixo clero

do Congresso Nacional. Todas essas assombrações

possuíram nossa sociedade.

De onde veio tanto ódio? É uma reação aos nossos

avanços, pensamos. De certa forma. Contudo, onde

estávamos nós que não conseguimos aplacar, com

todas essas conquistas, nem um pouquinho desse

conservadorismo virulento que se mostra agora, mas

que não é novo e nem desconhecido pra nenhum de

nós? Para quais audiências estávamos falando?

Não se trata aqui de distribuir culpas. Essa categoria,

fundante do punitivismo, não tem nada a nos dizer.

Trata-se de que possamos, frente a este estado de

coisas, revisitar os lugares pelos quais passamos e

tentar perceber aquilo que nos passou invisível e que,

de alguma maneira, nos permita reduzir os abismos e

as fronteiras com as quais somos obrigados a conviver

agora. Sejam os abismos entre nós, sejam aqueles que

nos distanciam dos “ eles”, aos quais gozosamente

chamamos fascistas.

Frente à óbvia justeza de nossas pautas, pensávamos,

nada tinha para ser dito. Armadilha da moralização.

Iludidamente acreditamos que deveríamos convencer

apenas o Estado, afinal, é onde está o poder. Ele nos

garantiria segurança. Ingenuamente esquecemos

que, o Estado, manifesta-se no mundo através dos

governos, que refletem, em alguma medida o ethos

social. Convencer a todos? Pra que? Não são óbvios

os nossos direitos, quem a isso se opor só pode ser

fascista. Fascistas não passarão! E passaram, os de fato e

os de ocasião. Passaram e, sem nada ter dialogado com

ninguém, assaltaram o poder. Somos Cassandra e não

dispomos mais de nenhuma credibilidade.

Com nossas palavras de ordem gastas. Com nossas

performances paradoxalmente cristalizadas em muitas

tradições. Frente à incapacidade representativa do

conjunto dos nossos ‘movimentos LGBTs’, que, em

dado momento, transformaram suas reivindicações

na totalidade da vida dos sujeitos pretendidamente

representados, resta-nos o melancólico apego às zonas

confortáveis e conhecidas, ainda que infrutíferas, das

formas e modelos de sempre. As mesmas palavras

gastas. As mesmas bandeiras esgarçadas. A mesma

eterna cantilena, profundamente maniqueísta.

Seguimos morrendo.

Fim

não temos memória em português

apenas pequenos cadernos de aflições

encarnados em plantas anciãs

e se não falamos outra lingua,

que inventemos as nossas memórias,

a memória amalgamada com fluidos

inventemos os nossos nomes,

para não nos nomearem

desejamos um peixe voador dentro do barco.

um peixe que caia subitamente

e que bata as asas até morrer.

um peixe que bata as asas até morrer

o desterro é um presságio

PRESSENTIMENTO JONAS VAN DEPOISDURANTEANTES

LUTAR ANDA IMPOSSÍVEL? NOTAS INCONJUNTURAIS SOBRE O FUTURO HELENA VIEIRA

DEPOISDURANTEANTES



RASTROS E COLISÕES INFINITAS TERRORISTAS DEL AMOR DEPOISDURANTEANTES



EL DESIERTO PELIGROSO CHARLES LESSA DEPOISDURANTEANTES



DEPOISDURANTEANTES

PASSAGEM DAVID FELÍCIO + JORGE SILVESTRE



ONDE ESTÃO

SEUS ÁLBUNS

DE FAMÍLIA?

Rodrigo Lopes

Cheguei na casa da minha mãe bem na hora do almoço. Ela se chama Edilza.

Demorava pouco mais de uma hora para chegar de ônibus lá na Serrinha,

bairro onde cresci e que fica na periferia de Fortaleza. Naquela tarde, era só

ela e eu. Lembro que isso foi em julho de 2018. Um ano bem babado... Enfim,

perguntei pelas fotos de infância. Não tinha todas ali pois outra parte estava

com o meu pai. A separação aconteceu quando a gente ainda era criança.

“A gente” quer dizer eu e a Sylvia, minha irmã. Pensou, pensou e entrou no

quarto dizendo que ia pegar as fotografias e me mostrar. Não vi de onde ela

tirou, mas fiquei me perguntando há quanto tempo estavam guardadas.

Quando entrei, percebi que uma coisa tinha sido colocada sobre a

cama. Foi chegando mais perto que reparei: a coisa, na verdade, era uma

bolsa de pano fechada. Sentamos. No tempo dela, minha mãe foi desatando

o nó e tirou, um a um, alguns álbuns e fotos soltas. Contava as histórias que

ia lembrando. É, boa parte estava guardada ali, mas tinham outra espalhada

pela casa. Às vezes, dentro de algum porta-retrato ou pendurada na parede.

Em outras, encaixadas – por um triz – naquela brecha que fica entre um

espelho e a sua própria moldura.

Peguei a bolsa e fui andando até a casa do meu pai, Luiz. Não, não

é tão longe. É que os dois ainda moravam no mesmo bairro. O céu estava

bem azul, bem bonito. Faz tempo que eu não ia lá. Entramos no quarto e

fiquei observando ele procurar algo dentro do guarda-roupa. Isso, na parte

de cima. Tirou de lá uma pasta azul, fininha, daquelas de plástico. O elástico,

mesmo gasto, não deixava nada escapar. Enquanto meu pai falava das fotos,

sem querer, me perdi em pensamentos com a pasta nas mãos e deslizava os

dedos pelas linhas que davam textura à ela. O engraçado é que antes de abrir,

já dava para ver as fotos, ou pelo menos, as que estavam sobre as outras.

Assim como a bolsa, a pasta também tinha um ar de arquivo, de

álbum, porque reunia algo ali, mesmo que as imagens não estivessem

organizadas ou classificadas. Poucas fotos dos meus avós por parte de pai –

e só uma dos meus avós por parte de mãe. Entre as mais antigas, encontrei

algumas de quando ele migrou de Várzea Alegre, cidade onde nasceu, para

São Paulo no fim da década de 1980. Nessa mesma época, outras tias e tios

meus também viveram despedidas na rodoviária indo para o sudeste. Depois

disso ele conheceu minha mãe. Ela tinha vindo de Varzelândia, norte de

Minas… Mas aí é outra história.

*

Enquanto abria cada álbum de família, tive a estranha sensação de não ter

encontrado nada novo. Menos no sentido de já ter visto tudo e mais como se

o álbum tivesse um compromisso de mostrar aquilo o que já foi visto. Mesmo

quando a gente se depara com ele pela primeira vez. Os álbuns eram todos

parecidos por dentro e por fora: cheio de páginas transparentes para colocar

as fotos dentro e com capa de papel. Cada um foi sendo organizado de um

jeito e por razões que desconheço. Lembramos das festas de aniversário, de

cerimônias religiosas e de eventos que aconteceram na escola. Foi uma forma

de recordar e acompanhar como alguns ritos se repetiram ao longo do tempo.

Se essa repetição indica que, no álbum, o tempo parece uma forma

circular e por isso, ensimesmada, me sinto atraído a pensar um tempo

espiralar… Passado, presente e futuro... Ao mesmo tempo... E o que isso

quer dizer? Talvez, que quando encontramos partes do nosso passado,

podemos tecer uma relação com a forma como vivemos e também com a

que queremos viver. Ou não.

Nesse sentido, a foto pode funcionar como meio visual que mostra

imagens de família. Imagens produzidas segundo um tempo de exposição que

afeta as poses que também são afetadas pela capacidade técnica da câmera. As

fotos analógicas e digitais que consegui reunir foram produzidas entre 1980

e 2014 e passaram por cidades no Ceará, São Paulo e Minas Gerais. Desde

a época em que meus pais se conheceram até a minha formatura do ensino

médio. Muitas lacunas. Tiradas pelos meus pais, amigas/os, vizinhas/os e

eventualmente por fotógrafas/os. Outras foram dadas por pessoas queridas.

As poucas fotos impressas durante a adolescência me levam a considerar

que criar álbuns em redes sociais, como o Orkut e o Facebook, pode ter sido

um fator que afetou esse momento desse arquivo.

E o álbum era preenchido somente com fotos? Bom, outros

vestígios da história da minha família foram adicionados também. Boletim

escolar, pingente, convite de aniversário, amostras grátis de perfume,

moedas, bíblia e panfletos evangélicos. Nas duas casas, os álbuns estavam

guardados dentro do quarto. Se, na casa, esse espaço não é conhecido como

um ambiente de circulação, isso torna o quarto um espaço mais restrito.

Mesmo assim, o reconhecimento de uma pessoa como “familiar”, seja por

laços afetivos, sanguíneos e outros, parece produzir uma posição estratégica

para reunir essas memórias.

*

No fim do dia, os arquivos ainda pertenciam aos meus pais e a noção de

pertencimento se tornou um problema. O verbo “pertencer”, assim como

qualquer palavra, guarda muitos sentidos. Ser propriedade de alguém.

Ser parte do domínio de alguém. Ser da obrigação ou responsabilidade de

alguém. Como eles cuidavam bem dos álbuns, entendi que não faria sentido

levar comigo tudo o que foi encontrado. Pedi apenas que me deixassem ficar

com uma parte das memórias.

Dei sinal e peguei o ônibus de volta para a casa onde eu morava

com o Douglas, meu namorado. A linha 359 se chamava Santa Tereza, mas

até isso já mudou. Olhando pela janela, fiquei tentando adivinhar: Como

seria lidar com as memórias? Como seria escrever com as imagens? Qual

o papel de um texto quando processos de pesquisa em arte se confundem

com processos para curar traumas? Esse seria um caminho para ensaiar uma

ética das fotografias de família? Ainda não consegui responder a nenhuma

dessas perguntas, porque me perdi seguindo as histórias, as geografias e

tantas outras linhas que marcaram os meus álbuns.

ONDE ESTÃO SEUS ÁLBUNS DE FAMÍLIA? RODRIGO LOPES

DEPOISDURANTEANTES



clímax

dois segundos antes do beijo

atravessa o tal pensamento

meu deus se eu estiver enganada

meu deus quem é esse homem

meu deus o que ele faz quando não vejo

ele não percebe

abro um sorriso

sem querer, droga

SENTIMENTO 1 MATHEUSA DOS SANTOS TXT + ALMEIDA DA SILVA IMG DEPOISDURANTEANTES

você vai perguntar

eu vou dizer não foi nada

agora o pensamento está passando por você

autorretrato cinco

estou muito apaixonada

a) pela pessoa certa mas ela está a quilômetros de distância

b) pela pessoa errada mas ela me corresponde

c) pela pessoa errada mas ela ronca de noite e eu acostumei

d) pela pessoa certa mas me casei com outra

e) pela pessoa errada e ela me deixa falando sozinha

f) pela pessoa certa mas demorei a descobrir

estou muito triste

a) porque as relações duram pouco mesmo com zelo

b) porque roubaram minha bicicleta

c) mas na verdade estou bem feliz

d) mas devo continuar meu caminho e deixar falar

e) e é o que temos pra hoje

rituais

das flores:

a) passarinho para deixar de fofoca

b) cupuaçu para lembrar da minha avó fazendo o doce

c) arnica para usar cabeça como bússola. decidir um norte

d) no plano espiritual o maracujá é um transmutador

tinturas

a) angico, jatobá, jenipapo, cajueiro, sucupira, cravo e hortelã

b) para diabetes: pata de vaca branca, carqueja, canela, boldo e camomila

folha de mangueira no cházinho e também amora

diminui colesterol

nenhuma dieta pode durar mais de 21 dias

o seu corpo está morrendo eu te convido

para a boa morte



DEPOISDURANTEANTES N. o Ø

Dados internacionais de catalogação na publicação (CIP) · Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil

DepoisDuranteAntes / [curadoria Samuel Tomé, Jorge Silvestre].

Fortaleza, CE: Estúdio S, 2021.

ISBN 978-65-996390-0-5

1. Artes 2. Colagem 3. Desenho 4. Fotografia 5. Pintura 6. Comunicação visual

7. Memória I. Tomé, Samuel. II. Silvestre, Jorge.

21-87530 CDD-700.14

Índices para catálogo sistemático:

1. Comunicação visual: Artes 700.14

Maria Alice Ferreira - Bibliotecária - CRB-8/7964

ALMEIDA DA SILVA

SENTIMENTO 1

B. BENEDICTO

ATOS - VIBRAÇÕES - PENSAMENTOS, ETC.

CHARLES LESSA

EL DESIERTO PELIGROSO

DAVID FELÍCIO

PASSAGEM

+ fotografia da capa

ELIÉZER

O QUE OS OLHOS NÃO VEEM

+ projeto gráfico

para não pertencer aos tempos

entre uma máscara pff2 e outra de pano por cima, escapamos de sermos engolidos pelo tempo.

não enquanto escolha, porque sabemos os milhares que não tiveram essa chance, mas aqui

estamos para tentar com palavras e imagens contar essa história. porque, antes de tudo, nossa

necessidade de comunicar, que foi totalmente transformada, é maior que o medo, é ação para

existirmos amanhã e movimentarmos a língua, os olhos, as mãos. nos movermos mesmo que

presos dentro de casa. porque, antes de tudo, há uma casa-corpo que se movimenta quando o

ar entra nos pulmões, quando a saliva chega à boca, quando o sangue passa da cabeça aos pés.

para não atrofiar os músculos, precisamos uns dos outros. sabemos de nossas existências e

as exercitamos nestas páginas translúcidas, que condensam agonia, felicidade, dor e frescura.

esperamos que estas folhas também se desloquem entre os tempos, porque percebemos que

movimento é sinônimo de vida, bem como prisão é antônimo. que elas fiquem amareladas e

desapareçam pelos tempos.

HELENA VIEIRA

LUTAR ANDA IMPOSSÍVEL?

NOTAS INCONJUNTURAIS SOBRE O FUTURO

JONAS VAN

PRESSENTIMENTO

LAURA BERBERT

SONHO

JORGE SILVESTRE

PASSAGEM

+ curadoria

+ fotografia still

+ cólofon

MATHEUSA DOS SANTOS

SENTIMENTO 1

PATRÍCIA ARAUJO

PERGUNTA INFINITA

RAO FREITAS

TRAVESSIA

RODRIGO LOPES

ONDE ESTÃO SEUS ÁLBUNS DE FAMÍLIA?

SAMUEL TOMÉ

SEM COMEÇO NEM FIM

+ curadoria

+ projeto gráfico

SIMONE BARRETO

NOVELO SINUOSO SE RECONSTRUINDO

TERRORISTAS DEL AMOR

RASTROS E COLISÕES INFINITAS

PAPEL LINHA D’ÁGUA 48G/M 2

TIPOGRAFIAS SWISS 721 e GANDHI SERIF

TIRAGEM 700 EXEMPLARES

º

SECRETARIA ESPECIAL DA MINISTÉRIO DO

CULTURA TURISMO



SEM COMEÇO NEM FIM SAMUEL TOMÉ

DEPOISDURANTEANTES

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