JA_260
pandemia
pandemia
Create successful ePaper yourself
Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.
Pandemia.
Jornal Arquitectos // Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
unique
collection
890X890mm
*
Unique is a stunning collection
of unglazed double and triple-
-loaded porcelain stoneware.
It offers an endless number
of concrete plates with
incomparable raw touch and
ultimate design.
Unique é uma coleção
deslumbrante feita em grés
porcelânico não esmaltado de
duplo e triplo carregamento. Este
produto oferece um número
infinito de placas de betão com um
toque cru inigualável e um design
de vanguarda.
Por que a obra-prima de
Michelangelo confia num
pavimento clássico?
No Museo della Pietà de Milão, caixas de
pavimento UDHOME e calhas de chão
OKB da OBO fornecem alimentação de
energia, de forma discreta e flexível, à
volta da obra-prima de Michelangelo.
A OBO celebra 60 anos de excelência
em sistemas de chão.
* 60 anos de história em sistemas de chão
www.obo.pt
Building Connections
www.feri-masi.com
MOEDA DE COLEÇÃO COMEMORATIVA
RENASCENÇA
O MODERNISMO
AUTORA
ELOÍSA BYRNE
AUTOR
RUI VASQUEZ
IDADE DO FERRO
E DO VIDRO
AUTOR
EDUARDO AIRES
O BARROCO
AUTOR
ANTÓNIO MARINHO
As moedas da série Europa - Idades da Europa refletem alguns dos principais movimentos artísticos europeus — o Renascimento,
o Barroco, a Idade do Ferro e do Vidro e o Modernismo — podem ser adquiridas nas lojas INCM ou online em www.incm.pt
Em 2020 será emitida uma moeda alusiva ao Gótico, da autoria de Eduardo Aires.
Lisboa
Rua da Escola Politécnica, 137
Rua D. Filipa de Vilhena, 12-12A
Porto
Rua Cândido dos Reis, 97
Coimbra
Rua Visconde da Luz, 98
Quando um perfil de PVC
torna-se arte
INOVAÇÃO, DESIGN e DESEMPENHO definem o VEKA
SPECTRAL. Uma nova tecnologia de acabamento para
sistemas de perfil em PVC VEKA que alia a perfeição do design
e uma excelente técnica para desenvolver projetos capazes de
estimular os sentidos.
O VEKA SPECTRAL combina laqueado e folhado, obtendo um
aspecto ultra-forte de acabamento sedoso, irresistível ao tato,
que repele impressões digitais e a sujeira, e lhe confere alta
resistência a intempéries, arranhões e abrasão.
Este acabamento superficial exclusivo possui uma ampla
variedade de cores para atender a qualquer requisito do design,
de acordo com as novas tendências arquitetônicas.
O VEKA SPECTRAL é o fruto de um trabalho inovador do
Grupo VEKA que constitui um ponto de viragem na fabricação
e no design de perfis em PVC.
VEKAPLAST IBÉRICA • C/ López Bravo 58 • 09001 Burgos
Teléfono +34 947 47 30 20 • www.veka.pt
SÉRIE ARQUITECTURA PORTUGUESA
MOEDA DE COLEÇÃO COMEMORATIVA PRATA PROOF
AUTOR
EDUARDO SOUTO DE MOURA
AUTOR
ÁLVARO SIZA
AUTOR
JULIÃO SARMENTO
Velvet
SUAVES COMO VELUDO
Descubra o toque único do solid surface
numa gama de lavatórios ultra-modernos
que irão preencher todas as medidas
Moeda da série Arquitetura Portuguesa, cunhada em prata 925/1000,
com 13,5 g de peso, e pode ser adquirida nas lojas INCM ou online em www.incm.pt
Lisboa
Rua da Escola Politécnica, 137
Rua D. Filipa de Vilhena, 12-12A
Porto
Rua Cândido dos Reis, 97
Coimbra
Rua Visconde da Luz, 98
Saiba mais em www.sanitana.com
conforto agora
Porquê usar
lã mineral
Volcalis?
Qualidade
do ar interior
Volcalis tem a melhor
classificação na qualidade
do ar interior A+.
Propriedades
acústicas
O ruído tem consequências
para a saúde. Ótimo
coeficiente de absorção
sonora (αw).
é mais fácil
Desempenho
térmico
Sabia que mais de 30%
da energia consumida em
Portugal é consumida pelos
edifícios? A lã mineral é um
excelente isolante térmico.
Resistência
ao fogo
A lã mineral tem uma
reação ao fogo A1
(é incombustível).
Índice
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Ficha Técnica
Editorial
Adriano Niel
Alexandre Alves Costa
Alexandre Burmester
Álvaro Siza Vieira
Ana Bordalo
António Bento Gonçalves
António Gil Machado
António Menéres
Atelier Peninsular
Avelino Oliveira
Bartolomeu Costa Cabral
Carlos Alho
Carlos Mineiro Aires
Carlos Santos
Célia Gomes
F. A. Ribeiro da Costa
Fátima Fernandes
Francisco Silva Dias
Guilherme Pedrosa
Helena Roseta
Hugo Merino Ferraz
Inês Alves
João Magalhães Rocha
João Santa-Rita
Jorge Cancela
José Alberto Rio Fernandes
José Miguel Fonseca
José Rui Marcelino, André Castro
2
5
6
7
8
9
10
11
12
13
14
15
16
17
18
19
20
21
22
23
24
25
26
27
28
29
30
31
32
33
Múltiplos
elementos
construtivos
Aconselhada para aplicações
não só na envolvente opaca
como também em elementos
interiores.
Baixo impacto
ambiental
Produzida à base de areia e
ligante de origem biológica.
Muito compressível permite
reduzir até 10 vezes a
necessidade de transporte.
Projetado
e fabricado
em Portugal
A fábrica da Volcalis
está localizada no centro
de Portugal e tem fácil
acesso às redes marítimas,
ferroviárias e rodoviárias.
volcalis.pt
Zona Industrial de Bustos · Aveiro · Portugal
T (+351) 234 751 533 · apoiotecnico@volcalis.pt
Aplicação
confortável
A lã mineral Volcalis tem
um toque suave, é fácil de
manusear, cortar e instalar.
Fast archi challenges: A cidade do confinamento
Pandemic
Quarantine
Luís Pedro Cerqueira
Luis Pinto de Faria
Mafalda Pinto Pinheiro
Manuel Lapão
Márcio de Campos
Marco Silva
Mónica Alcindor, Mariana Correia
Michel Toussaint
Miguel Amado
Nuno Abrantes
Paula Silva
Paulo Tormenta Pinto
Pedro Brandão
Pedro Ressano Garcia
Pitum Keil do Amaral
Raquel Maria Airosa
Sofia Aleixo
Vanessa Pires de Almeida
Fotografias de Paulo Santos
36
40
50
51
52
53
54
55
56
57
58
59
60
61
62
63
64
65
66
67
68
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Ficha Técnica
www.jornalarquitectos.pt
Publicação da Ordem dos Arquitectos
Travessa do Carvalho, 23
1249-003 Lisboa
+351 213 241 135
Registo ERC: 108271
ISSN: 0870-1504
Depósito Legal: 27626/89
Tiragem: 15.000
Director
José Manuel Pedreirinho
Conselho Editorial
José Manuel Pedreirinho
Michel Toussaint
Produção e edição de conteúdos
Ordem dos Arquitectos
Design Gráfico
DDLX
Impressão
Lusoimpress
Publicidade e Marketing
Maria Miguel
Dossier Fotográfico
Paulo Santos
Concurso IdeasForward
Conteúdos
Os textos foram fornecidos pelos seus autores em resposta ao convite e à call para
envio de artigos de opinião, lançada pelo CDN no âmbito da produção do Jornal
Arquitectos #260 Pandemia, um número especial, exclusivamente dedicado ao
tema. Os autores foram convidados a responder às três perguntas enunciadas na
call (poster na página ao lado). Ficou ao critério de cada um optar por responder
a cada uma delas individualmente, ou elaborar um texto único. As imagens
publicadas junto a cada texto são da responsabilidade dos autores, cujos nomes,
títulos e demais designações foram publicados por indicação dos mesmos.
Os textos respeitam a grafia original de cada um dos autores e aqueles que
ultrapassam o número de caracteres definido para esta publicação ficarão
disponíveis em versão integral em www.arquitectos.pt, juntamente com a versão
online deste JA.
2
3
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Editorial
José Manuel Pedreirinho
PRESIDENTE DO CONSELHO DIRECTIVO NACIONAL, TRIÉNIO 2017—2019
←
Um bom exemplo de
protecção: túnica, luvas,
óculos e uma máscara
nariguda que não só
assegurava as necessárias
distâncias como, cheia com
várias ervas, funcionava
como filtro protector.
© Paul Fürst (ca 1656),
Médico da Peste Negra.
Um jornal, tal como uma revista, é uma publicação periódica.
Infelizmente, e por múltiplas razões, essa não tem sido ao longo dos seus quase
quarenta anos de existência, a principal característica do J-A. Como órgão de comunicação
da OA com os seus membros, tem passado por decisões diversas com as quais as
diferentes direcções se têm adaptado às circunstâncias.
Justamente uma das decisões que a actual direcção tomou foi a de não deixar
compromissos, leia-se, neste caso, a escolha de uma equipa responsável pelas futuras
edições do J-A, que comprometessem uma próxima direcção.
Ponderámos então fazer um número conjunto com as revistas dos nossos colegas
espanhóis, o CSCAE, e italianos, o CNAPPC. Uma intenção que se mantém e tem vindo
a ser trabalhada, mas que tem sofrido sucessivos atrasos que os acontecimentos dos
últimos meses não ajudaram a resolver, e por isso se tem prolongado para além de todas
as previsões.
Foi justamente a conjugação desses acontecimentos com as necessidades de
periodização, bem como compromissos já assumidos pelo Jornal Arquitectos, que nos
levou à decisão de avançar com a publicação presente.
Uma publicação aberta à participação de todos os membros da OA, feita através de
uma call, mas para a qual convidámos também todos os anteriores presidentes da OA
e da AAP, sua antecessora, todos os presidentes ou directores das Faculdades ou cursos
de arquitectura existentes; todos os anteriores directores do J-A; todos os candidatos
à presidência do CDN nas próximas eleições. Convites que estendemos ainda a algumas
entidades exteriores à própria OA.
Convites que quase todos aceitaram, na medida das disponibilidades de tempo de cada
um, o que muito agradecemos.
Os tópicos propostos eram, parece-nos, simples e óbvios: pensar o presente face
a todas as mudanças que estamos a viver, e avançar pistas para o futuro.
Um futuro sobre o qual, naturalmente, nada sabemos mas para o qual se começam
a descortinar algumas pistas. Sobre a nova relação que teremos de desenvolver com o
ambiente e a sua conservação; sobre novos modos de viver o território, a cidade, a casa
ou o trabalho; sobre novos ou antigos materiais e tecnologias que iremos utilizar.
São muitas as incógnitas e quase nenhumas as certezas, mas considerámos ainda
assim que valia a pena uma reflexão alargada de um vasto número de arquitectos sobre
um tema, e uma situação que nenhum de nós, seguramente, imaginaria ter de enfrentar.
Ficará assim como testemunho de um tempo e de um lugar que são os nossos.
Uma reflexão que sempre pretendemos plural, e que, estou certo, nos fará concluir pela
inevitável e fundamental importância do papel do arquitecto na definição desse futuro que
todos iremos descobrir, juntos.
4
5
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Caos Imagético
Adriano Niel
MEMBRO N. O 25335
Os bons velhos tempos
Alexandre Alves Costa
MEMBRO N. O 424
Quando se tornou claro que a pandemia seria uma
grave crise sanitária e económica, o medo instalou-se.
Temeu-se o refrear da economia, a estagnação dos
projectos, o tardar das novas encomendas e a inerente
falta de sustentabilidade dos ateliers. No fundo, o medo
do desaparecimento. Certamente emergiram memórias
das feridas deixadas pela recente grande crise. A reacção
a este medo foi a possível, neste tempo que fez dos
dispositivos móveis o nosso único reduto. Como nunca
antes, o espaço físico foi substituído pelo espaço virtual.
E nós, arquitectos, operários do espaço físico, não tivémos
remédio senão tentar operar neste espaço virtual, com
ferramentas que nos são, ainda, alheias.
Esta necessidade de actuar neste espaço virtual trouxe
uma reacção marcadamente ansiosa e expansiva, que
contribuiu para que este entrasse num completo caos.
De um dia para o outro, recebemos uma incontrolável
avalanche visual e auditiva que nos entrou pelos dispositivos
adentro. Assistiu-se a uma ebulição cultural no espaço
virtual sem precedentes. Subitamente, multiplicaram-se
as exposições, filmes, teatros, conferências, directos e
publicações, em quantidades incalculáveis. No meio da
Arquitectura não foi diferente. Com o passar do tempo
assistiu-se a um impressionante babyboom de contas virtuais
de ateliers, um esforço evidente na actualização de sites, um
brotar de ciclos de conferências caseiras, uma cadência
hipertensa de publicações com imagens de projectos
concluídos ou embrionários, de processo criativo, ou até,
com maior bravura, de visitas às obras.
Em reacção a este medo que o vírus físico implantou
sobre nós, criámos (ou apenas enfatizámos), neste curto
espaço de tempo, uma espécie de vírus virtual. Este
ergueu-se sobre uma ânsia narcisista de querer estar à
tona: ser visto, seguido, comentado e gostado. Baseia-se
numa publicitação excessiva, incauta e, não raras vezes,
vazia. O seu produto define-se pela mera repetição,
ou pela arritmia de sentido, o que torna difícil, senão
mesmo impossível, a sua absorção. O resultado desta
hiperactividade virtual não é mais do que um infindável
plano desfocado. Como se, num exercício delirante,
recorrêssemos ao Photoshop, sobrepuséssemos todas
as caóticas fotografias de Learning From Las Vegas (com
um fade de trinta por cento) e fôssemos transportados
para a imagem resultante. Depois deste extenuante caos
imagético, larguemos o Photoshop e o espaço virtual,
foquemo-nos no espaço físico e no papel.
A pandemia atual, como outras que, no seu tempo,
aterrorizaram o mundo dito civilizado, constitui como que
um interregno na vida real que seguia o seu curso, cada
vez mais apressado. Integrar o seu desenvolvimento e os
seus efeitos no aperfeiçoamento da humanidade, como
fazem alguns adeptos dos estados de emergência e de
calamidade, é perverso e representa a sua aceitação como
nova normalidade e tendencial futuro apoio a um qualquer
regime autoritário.
A criação de novos desenhos para as máscaras
e a aceitação como natural de ecrãs divididos aos
quadradinhos com as pessoas à sua janela, não é tolerável.
Não podemos encontrar beleza, nem ocupação para os
designers num quadro de sofrimento de milhares de
pessoas. Não podemos integrar no nosso comportamento
os ensinamentos das trincheiras da guerra por mais gestos
de solidariedade a que tenham dado origem. Nunca
usámos as máscaras anti-gás para nos aperaltarmos para
a festa da vida social retomada.
Obviamente que temos que nos defender do inimigo e
lutar pela sua aniquilação e retomar o curso da vida como
conhecíamos anteriormente. Falaremos dos velhos tempos
como sempre falámos dos tempos à distância de duas
gerações, agora à distância de dois meses e correremos
os mesmos riscos de nostalgia compulsiva.
Não vão os arquitetos inventar novas tipologias para a
habitação onde as crianças possam andar de bicicleta ou
de skate. Não vamos usar como unidade de composição a
medida do distanciamento social e voltar à Carta de Atenas
com aquele distanciamento adoptado à escala da cidade
como afastamento entre blocos ou torres. Não vamos ficar
sem olfato e namorar ou fazer sexo virtual acompanhados
por imagens virtuais, nem habituar os cães a passear
sempre que nos apetecer respirar. Claro que voltaremos
a sentir as emoções tácteis que agora nos são proibidas
e deixaremos de esconder os sorrisos e a manifestação
dos sentimentos e dos desejos. Creio que saberemos
resistir como souberam os personagens do Farenheit 451
de Truffaut que, perante a destruição dos livros, cada um
decorou o seu para evitar a sua perda. Cada um que escolha
o seu que o ajudará a salvar da doença ou da demência.
Eu já escolhi um poema da Sophia, um soneto de Camões
e um romance do Camilo...
Sim, voltaremos à normalidade, tudo ficará como
nos bons velhos tempos onde se aceita que existam
milhares que não tem água potável para beber quanto
mais para lavarem as mãos de cinco em cinco minutos.
Continuaremos seguramente a não ter boletins, com
gráficos e curvas, sobre os mortos ou sobreviventes da
travessia do Mediterrâneo, ou das barracas onde vivem sem
take away, nem concertos transmitidos pela televisão.
Claro que voltaremos à normalidade, com os arquitetos
a serem desrespeitados e injuriados por quererem
transformar as moradas das instituições em obras de arte.
6
7
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Arquitectura e Pandemias
Alexandre Burmester
Presidente da Mesa da Assembleia Geral da OA
MEMBRO N. O 2060
Álvaro Siza Vieira
MEMBRO N. O 406
Ao longo do tempo da nossa evolução tivemos de alterar
e adequar o espaço em que vivemos de forma a melhor
nos adaptarmos às nossas necessidades. Esta intervenção
é feita em diferentes escalas dando origem às alterações
do território, da cidade, do edificado e dos objectos. O seu
desenho corresponde ao acto arquitectural.
Se o conceito a todos pertence, o engenho de construir
pertence às engenharias e a arte do seu desenho à
Arquitectura.
Vem isto a propósito da Pandemia que nos assola, mas
podia vir a propósito de qualquer outra circunstância e
muitas há que nos obrigam a constantemente reconsiderar
e a reavaliar a justeza do conceito e do desenho dos espaços
em que vivemos.
Muitas alterações na nossa forma de viver ocorreram
rapidamente motivadas pelo confinamento obrigatório
que as actuais circunstâncias nos obrigaram. Muitas
pessoas, que inevitavelmente ficaram em casa, equacionam
naturalmente a configuração da sua habitação face às
actuais necessidades de convívio e de trabalho simultâneo.
As entradas e as antecâmaras dos prédios e das habitações.
A configuração das lojas, dos restaurantes, dos hospitais,
dos ambientes de trabalho, dos espaços públicos, um
sem número de espaços cuja configuração nesta data não
cumprem as necessidades.
Uma série de objectos que não participavam do nosso
dia-a-dia passaram igualmente ao nosso vocabulário
cotidiano. Máscaras, palas, luvas, fatos, frascos de
desinfectantes, ventiladores, etc., marcam nesta altura
uma corrida à execução e ao desenho.
Outras pessoas que eventualmente saíram das cidades
para o interior, menos densificado e menos propenso à
infecção, trabalham à distância e questionam se calhar
qual a pertinência de viver nas cidades. Porventura
poderemos reequacionar nesta altura a importância de
uma descentralização. Sabemos que muitos trabalhos e
serviços estão a cumprir os mínimos e podendo cumprir
mais, tendo os seus funcionários espalhados à distância
das linhas de comunicação e não estando centralizados
num mesmo local.
Na história do urbanismo existem muitas razões
orientadoras do conceito das cidades, seu desenho e
construção; alguns deles e bastante pertinentes são as
razões de ordem sanitária. Bastará nos lembrarmos de
muitas operações de renovação e de demolição de zonas
antigas das cidades europeias, que foram justificadas
para cumprir requisitos de sanidade. Algumas ocorreram
inclusive durante estados de pandemia. Muitas das regras
de urbanismo e de construção, como por exemplo o RGEU,
têm por base princípios orientadores de saúde, tais como
o arejamento e a insolação, os revestimentos laváveis, etc.
Não estamos perante nada de novo na evolução do conceito
e desenho das cidades e das construções, estamos sim
perante condicionamentos novos.
Naturalmente que o condicionamento infeliz que
hoje vivemos trará consigo novos princípios de vivência.
Mesmo durando um tempo determinado, o que deixa
para já algumas dúvidas, trar-nos-á para sempre regras e
princípios orientadores da vivência do futuro.
Este é portanto, um acontecimento que transportará
para a Acto Arquitectural um novo desenho do espaço
em que vivemos ou, por outras palavras, motivo para
redesenhar a arquitectura.
O contributo dos arquitectos vem sendo considerado
irrelevante e incómodo. Só isso explica que as condições
de trabalho (para as quais não há quaisquer normas)
tornem impossível o trabalho responsável, até pelo
acréscimo de burocracia, de «plataformas», de contribuições.
As palavras que tenho nos ouvidos (e já de antes da
pandemia) são: arranjo isso por menos de metade. Ou lido,
em programas dos obrigatórios concursos públicos:
um dos critérios de classificação é o custo do projecto.
O contributo no pós-pandemia terá de ser, por aquilo
a que venho assistindo, a desistência.
8
9
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Arquitectura Marginal
[How will we live together?]
Ana Bordalo
Directora do curso de Mestrado Integrado em Arquitectura, Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes
MEMBRO N. O 7796
Os Incêndios Florestais em áreas
de Interface Urbano Florestal,
em tempos de COVID19
António Bento Gonçalves
Geógrafo
Presidente da Associação Portuguesa de Geógrafos
A questão coloca-se: como é que arquitetos e urbanistas
podem ajudar a sociedade em situações como as que
vivemos hoje? Historicamente existem vínculos entre a
arquitetura e a gestão de crises epidémicas, da Peste Negra
à Tuberculose. Com o objetivo de minimizar os efeitos
devastadores ao longo dos séculos fomos evoluindo nos
sistemas de construção, saneamento, ordenamento,
bem como na organização funcional de estruturas de
acolhimento para doentes e condenados.
A organização do território e das cidades é um dos
elementos estruturantes para a gestão de crises epidémicas.
A existência de estruturas básicas de saneamento é, hoje,
um dado adquirido como fator determinante para a
salubridade dos territórios e um contributo estruturante
para a saúde e bem-estar das populações.
A arquitetura e o urbanismo no período moderno, com
a Carta de Atenas, no início do século XX, estabeleceram
parâmetros de salubridade para as habitações, que hoje
ainda são referência. Quase um século depois, com as
questões de salubridade consolidadas (nos países ditos
evoluídos ou em vias de desenvolvimento), tornadas
invisíveis pela sua normalidade, constatamos que,
subitamente, sem aviso, novos alarmes soam:
constatamos que o mundo não estava preparado para se
fechar nas suas “unidades de habitação”.
A pandemia que hoje vivemos fechou no conforto
de casa a parte favorecida da sociedade: a que tem casa.
No entanto, continua a deixar na rua uma outra parte:
a que permanece sem habitação ou sistema básico de
saneamento. O COVID19, não fez desaparecer os campos
de refugiados, as favelas, ou outras situações
(de habitação) em limite de rutura.
Com esta preocupação o Mestrado Integrado em
Arquitetura do ISMAT, criou a linha de investigação
Arquitectura Marginal [How Will We Live Together?],
que procura, através da realização de conferências e
workshops internacionais, promover soluções de habitação
Workshop Arquitectura Marginal [How Will We Live Together?], Janeiro 2020
que visam dar respostas à necessidade de habitação
(espaço habitável) em situações de limite, promovendo
Portimão como cidade de acolhimento. O objetivo não
é criar soluções únicas e desprovidas de contexto, mas
conferir aos alunos a capacidade de gerar propostas
viáveis e, simultaneamente, desenvolver um pensamento
crítico. Pretende-se pensar a arquitetura como elemento
estruturante da sociedade, na sua componente social.
O nosso país reúne as condições para se poder afirmar que
possui um "piro ambiente", pois junta às caraterísticas
mediterrâneas, que conjugam a época quente com a época
seca, a feição atlântica, que lhe permite uma elevada
produtividade vegetal.
Nos últimos anos ocorreram em Portugal incêndios de
proporções/consequências significativas, responsáveis pela
perda de vidas humanas e causadores de grandes prejuízos,
alguns dos quais em territórios onde as áreas urbanas
estão em contacto e interagem com as áreas florestais,
ou seja, as interfaces urbano-florestais (IUF), onde, em
Portugal, ocorrem cerca de 90% do total das ignições.
Num contexto de tendência positiva para o acréscimo,
tanto do número como da dimensão e da capacidade
destruidora dos "grandes incêndios", é crucial planear e
gerir as áreas de IUF, por forma a torná-las mais resilientes,
pois, nessas áreas, o problema dos incêndios é devido,
na maioria das situações, e em primeiro lugar, ao fracasso
da implementação de uma estratégia de ordenamento do
território, bem como à ausência de planeamento, quer
a nível urbano, quer a nível florestal.
Com a situação de calamidade e o estado de
emergência, Portugal viu boa parte da sua população
confinada e, como consequência, entre 1 de janeiro e
21 de maio, o número de incêndios e a área ardida caiu
abruptamente. A título de exemplo, no distrito de Braga,
em 2020, em relação à década de 2010 a 2019, o número
de ocorrências caiu 90,6% (de 502, em média, para 47)
e a área ardida reduziu 93,1% (de 1.865,44 ha, em média,
para 129,66 ha).
Ora, com o desconfinamento a coincidir com um
período de temperaturas elevadas e sem ter havido a
“tradicional” redução da vegetação nos meses mais frescos
e húmidos, poderemos assistir a uma vaga de incêndios
florestais que atinja áreas de IUF e que coloque em risco
pessoas e edifícios, especialmente os que não estão tão
preparados para esta nova realidade dendrocautológica.
A segurança de pessoas e edifícios não passa apenas
pela limpeza do mato em seu redor, mas também, e
não menos importante, por tornar as habitações mais
resistentes aos incêndios, o que obriga a cuidados
especiais ao nível do telhado, das aberturas para ventilação,
das janelas, dos caleiros, das chaminés, da existência de
diversos pontos de abastecimento de água, das garagens
e dos jardins.
Neste sentido, os arquitetos, que têm um papel
importante na segurança dos edifícios em áreas de IUF,
deverão exigir legislação adequada e preparar as habitações
para futuras emergências globais, que virão potenciar o, já
de si, muito elevado risco de incêndio florestal nessas áreas.
10
11
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Um momento de transformação.
O papel dos Arquitetos
António Gil Machado
Diretor da revista Vida Imobiliária
PANDEMIA,
também um desafio
para o arquitecto?
António Menéres
MEMBRO N. O 333
Temos um novo desafio coletivo para o futuro com a
presente emergência sanitária.
Como vão ser as cidades e os edifícios de amanhã?
O que vai ser diferente e como os espaços se têm de adaptar
às novas realidades? As habitações têm de incorporar
escritórios mais eficientes que não sejam o quarto das
visitas? Qual a dimensão exigida aos quartos dos hotéis?
Os escritórios vão ser locais temporários de reuniões,
porque passamos a realizar o trabalho individual a partir
de casa? Quais as consequências do distanciamento social
nas áreas comerciais? Como vai ser a mobilidade do futuro
nos edifícios?
A arquitetura como parte de uma sociedade plural
e multidisciplinar tem de estar na linha da frente das
respostas aos desafios que se impõem de forma coletiva.
Como o foram no passado, porque as preocupações
sanitárias sempre foram uma força decisiva na
transformação das cidades. Começámos a pavimentar as
ruas das cidades como resposta sanitária à peste negra, a
introdução do saneamento e das casas de banho teve uma
motivação de saúde pública. A preocupação sanitária foi ao
longo dos últimos três séculos um drive transformador das
cidades e que permitiu mais do que duplicar a esperança
média de vida humana ao longo deste período.
O impacto da presente crise sanitária vai ser longo
e profundo, desde logo em termos económicos, mas
também porque é um verdadeiro acelerador de tendências
que já eram claras na nossa sociedade. A digitalização
imposta pelo confinamento será a mais importante e
imediata, porque tivemos nas nossas vidas e organizações
de implementar em duas semanas o que andávamos há
muito a planear. O teletrabalho é agora uma realidade que
abraçamos como única alternativa. Descobrimos que uma
grande parte das viagens de trabalho são desnecessárias,
além de muito improdutivas e dispendiosas. Os processos
administrativos e a relação com a administração pública
podem finalmente dar um salto quântico, trazendo
para este século e adaptando os seus procedimentos
à digitalização.
Questionam-me sobre o papel da Ordem dos
Arquitectos no momento atual.
Respondo que é determinante em liderar uma discussão
que pode e deve dar um novo papel aos arquitetos no
desenho de cidades e edifícios que visam responder aos
desafios de hoje – uma sustentabilidade ambiental e
humana, com novos padrões de exigência sanitária.
De forma modesta, a revista Vida Imobiliária dará
o seu contributo com a organização da SEMANA DA
REABILITAÇÃO URBANA em versão digital. O mesmo
espaço de discussão, networking e exposição, para refletir
de forma global com os mais diversos stakeholders da fileira
da construção e do imobiliário. Nos dias 7, 8 e 9 de Julho
contamos com a liderança da Ordem dos Arquitectos para
iniciar a discussão do nosso futuro!
Quais os principais problemas que a actual situação
pandémica veio colocar à Arquitetura, às cidades e ao
território tal como os conhecíamos?
Tem sido um deixar andar, se pensarmos na progressiva
desertificação de muitas das mais importantes cidades
do interior, naturais aglutinadoras dos seus territórios
envolventes, cujo planeamento para uma melhor
implantação de uma agricultura moderna e de maior
interesse para o abastecimento nacional; a par de uma
enorme dispersão das pequenas e médias indústria que,
pelas suas próprias bases de implantação, fragéis e não
antecedidas de estudos de análise às suas melhores
potencialidades, quer a nível humano, quer a nível de
disponibilidades de terrenos de menor rentabilidade
agrícola; a par de redes viárias qualificadas, permitindo
menores encargos na colocação dos bens produzidos
junto dos maiores centros consumidores; tudo isto irá
repercutir-se numa mais lenta retoma nessas economias,
a par da crescente necessidade da modernização dos
métodos de produção, sempre confrontados com paralelas
ofertas, eventualmente aliciantes, dos mercados externos
concorrentes. Será oportuno, hoje mais do que nunca,
insistir na revisão do Regulamento Geral das Edificações
Urbanas, dando um outro sentido à organização e
dimensionamento de muitas das indicações contidas
no mesmo. A composição espacial da habitação, face à
introdução de novos equipamentos e às possibilidades
oferecidas pelas actuais tecnologias, são factores que
exigem a revisão destas normas, inexplicavelmente
adiadas, abrindo uma maior adequabilidade às
perspectivas que os tempos actuais exigem ao arquitecto.
Qual poderá ou deverá ser o contributo dos Arquitectos no
período pós pandémico (covid-19)?
A nível mais restrito, ou seja no próprio local de
trabalho, manter como regra as directrizes aconselhadas
pelo Ministério da Saúde. A nível externo, como seja no
acompanhamento das suas obras, insistir na observância
dessas mesmas directrizes, lembrando aos operários,
a saúde dos seus próprios familiares, face ao eventual
descuido de protecção durante as horas de trabalho,
sempre previsível de contágio num ambiente em que
os postos de trabalho não são fixos, como norma. E a
nível de cidadão, a par da sua consciência profissional,
a participação no combate à poluição das nossas cidades,
muito ampliadas pela emissão dos gases provenientes
do grande trânsito urbano que exige um estudo sério
e ao qual se junta, com maior ou menor frequência, a
existência de núcleos industriais cuja poluição se faz
sentir, comprovadamente, na saúde das populações
mais próximas. Um novo conceito do espaço verde é
fundamental para devolver à Cidade e aos seus habitantes
uma qualidade de vida, compatível com as possibilidades
que as tecnologias do século XXI nos oferecem.
Como podemos ou devemos preparar-nos para futuras
emergências globais, pandemias ou outras catástrofes
naturais?
Será naturalmente urgente repensar numa capacidade
de intervenção, consciente deste “mundo novo”, com
modelos de desenvolvimento, quiçá bem diferentes dos
modelos adaptados nestas últimas décadas. A troika
colocou-nos perante uma realidade de contenção
económica, face as muitas estratégias económicas “mal
avaliadas”, mas esta pandemia, obriga-nos a medidas
muito mais severas, face à dificuldade que o seu combate
exigirá, mesmo após a previsível disponibilidade de uma
ou várias vacinas de comprovada eficácia. Admito que
o próprio trauma provocado pela imensa perda de vidas
humanas, será um factor importante a admitir como
componente de defesa face a uma previsível e futura
catástrofe causada por um inimigo invisível, para quem
sempre será necessário criar novas armas de combate.
12
13
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
A cidade sem qualidades
Atelier Peninsular
Arquitetura no risco e o desígnio
de um futuro compreensivo
Avelino Oliveira
Presidente da Assembleia de Delegados da OA
MEMBRO N. O 6060
Se tivermos em conta que os homens, sem o auxílio mútuo,
vivem necessariamente na miséria e não cultivam a razão (...),
veremos com toda a clareza que para viver em segurança
e o melhor possível, eles tiveram necessariamente de unir-se e, assim,
fazer com que o direito que cada um tinha por natureza
a tudo se exercesse colectivamente e fosse determinado
já não pela força e apetite de cada um,
mas pela potência e a vontade de todos.
B. Espinosa, in “Tractatus politicus”, 1677.
A atual situação de pandemia e as medidas de controlo
revelaram as fragilidades de um modelo genérico de
desenvolvimento da Cidade. Antecipando os problemas
das alterações climáticas, é urgente pensar qual o nosso
futuro urbano.
A Cidade, enquanto construção coletiva, revela-se hoje
desumanizada por soluções genéricas, diluída da sua
forma e identidade. Substituída a ideia de comunidade,
e subtraída a habitação coletiva, os equipamentos
socioculturais, o ensino e a saúde pública, o vazio do
espaço público é hoje o resultado de uma economia
especulativa.
As vulnerabilidades reveladas no atual contexto,
mostram de forma pungente alguns dos problemas que
as alterações climáticas nos colocam. O nosso futuro
(urbano) depende, portanto, também significativamente
das lições que retiramos de momentos de crise. Hoje,
perante a necessidade do isolamento social, a resiliência
da população, testada nas mais variadas formas de
organização, pressiona a urgência de um planeamento
holístico e integrado.
Fundamentar a resiliência implica experiência.
No entanto, a história da Cidade constrói-se à escala da sua
arquitetura não só de modelos passados, mas sobretudo
de superações desenhadas precisamente em momentos
de crise. O plano urbano de Cerdà para Barcelona, a
integração de parques urbanos em Nova Iorque ou Boston
por Olmstead, o sistema de saneamento de Paris, e
posteriormente, as Unités d’Habitation de Le Corbusier,
assumiram um papel revolucionário na estrutura socio-
‐espacial das cidades.
Hoje, arquitetos, arquitetos paisagistas, engenheiros e
urbanistas devem, em conjunto com a comunidade, pensar
uma cidade capaz de se adaptar e conservar as suas funções
essenciais, estruturas e identidade.
Seremos capazes de garantir o acesso a uma habitação
de qualidade, a segurança alimentar e uma mobilidade
sustentável, partilhar abertamente o conhecimento e
implementar modelos de desenvolvimento económico
circular através de soluções ambientalmente sustentáveis?
Foi da gestão do risco que emanou a crise provocada
pela Pandemia COVID-19. Observa-se uma situação que
veio e irá provocar alterações significativas no ambiente
construído nas cidades e em todo o território. A mobilidade
foi o primeiro sector a sofrer as consequências da crise,
procurando mitigar o risco da contaminação exponencial.
O efeito deste medo urbano (Bauman, 2006) foi como se
o mundo carregasse no botão pause. Neste cenário, o setor
imobiliário tomou consciência que iria ser impactado
pelas ondas de choque de uma economia que travou
a fundo. E os produtores de espaço, nomeadamente
os arquitetos, tornaram-se espetadores atentos de um
processo que não conseguem controlar. Nada que as
palavras de Ulrich Beck (1992) não tivessem antecipado:
estes fenómenos são o resultado da modernização reflexiva
onde as consequências do desenvolvimento científico
e industrial acarretam um conjunto de riscos que não
podem ser contidos e onde ninguém pode ser diretamente
responsabilizado. Segundo Beck, a primeira modernidade
baseava-se nas sociedades confinadas ao Estado-nação,
onde as relações sociais, as redes e as comunidades
assumiam um caráter eminentemente territorial, mas
a globalização e a individualização favoreceram o
aparecimento de uma segunda modernidade cujos riscos
globais assentam em vulnerabilidades locais (riscos
ambientais, financeiros e segurança – terrorismo).
A questão atual é saber se os arquitetos saberão
fazer “arquitetura no risco”, criando espaços facilmente
adaptáveis à vida contemporânea e flexíveis para mudanças
ou ajustamentos no curto ou médio prazo. Casas que são
locais de trabalho, escritórios que passam a incluir lógicas
antes só aplicáveis a instalações hospitalares, espaço
público marcado pelo distanciamento social.
Se isso acontecer de forma consistente podemos colocar
o debate sobre a mudança do paradigma urbano centrado
numa complexidade ecossistémica, tão eficaz que funcione
como resposta aos pressupostos do paradigma evolutivo,
humanista e compreensivo. O padrão contemporâneo da
flexibilidade e da adaptabilidade assenta em processos
reflexivos (Friedman, 2002): o homem ajusta-se e
adequa-se à construção e a construção também se adequa,
suscetível de receber ações transformadoras, como as
nossas casas. Logo, a casa será a base das construções do
novo paradigma e, mais do que o espaço da organização
fixa (Hall, 1986), será uma “habitação ética”.
Estando a arquitetura obrigada a avaliar a cultura do
seu tempo, de que modo poderá, enquanto ferramenta,
potenciar a complexa rede de relações entre quem
investiga, quem decide, quem projeta e quem habita?
Apreendendo o risco e desenhando com métodos e
processos compreensivos, ou seja, não serão as áreas
tradicionais das ciências exatas a “contaminar” o processo
do projeto mas será a arquitetura a alterar o paradigma
disciplinar: a produção de espaços é uma ferramenta do
futuro.
Este texto foi editado devido à sua extensão.
Clique neste botão para ler o texto original.
Apontamentos bibliográficos:
Bauman, Zygmunt (2006), Confiança e Medo na Cidade, Lisboa, Relógio d'Água.
Friedman, Avi (2002), The Adaptable House – Designing Homes for Change, New
York, McGraw-Hill.
Hall, Edward [1966] (1986), A Dimensão Oculta, Lisboa, Relógio d’Água.
Oliveira, A. et al. (2020), “Como se transformarão as nossas cidade e as
nossas casas”. Texto disponível em www.publico.pt/2020/04/20/opiniao
Sneader, Kevin & Singhal, Shubham (2020), The future is not what it used to be:
Thoughts on the shape of the next normal, McKinsey & Company.
14
15
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Bartolomeu Costa Cabral
MEMBRO N. O 142
Da cidadania à sustentabilidade
da Arquitectura face ao Covid 19
Carlos Alho
MEMBRO N. O 1635
É-me solicitada uma colaboração no JA sobre o período
que estamos a atravessar respondendo a 3 perguntas:
• Quais os principais problemas para a arquitectura
provocados pela pandemia?
• Qual a contribuição dos arquitectos?
• Como preparar face a futuras emergências?
A principal consequência do confinamento é passar a
trabalhar em casa e ter menos ou quase nenhuns contactos
presenciais. Portanto há problemas para a prática
profissional, reuniões que têm de ser feitas on-line, assim
como contactos com câmaras e outras entidades. As
escolas estão fechadas e os alunos estudam em casa.
Mas esta situação também tem as suas vantagens. Uma
delas é não perder tempo com os transportes públicos ou
privados e que agora nos damos conta do tempo enorme
consumem.
Outra consequência vantajosa é aumentar o uso da casa,
e aí vem a importância acrescida do conforto e necessidade
de espaço das nossas casas, isto é, da qualidade da sua
arquitectura e da nossa relação afectiva com ela. Temos
de gostar do sítio onde vivemos com boa luz e boas
condições físicas e ambientais. Não são apenas os aspectos
estritamente funcionais, como o isolamento térmico e
acústico, mas a existência de uma harmonia e beleza que
são essenciais à vida.
Penso que a contribuição que os arquitectos podem
fazer é a que já faziam antes ao delinear espaços agradáveis
e belos tanto no exterior das construções como na sua
disposição urbanística criando ambientes urbanos
com escala, com atenção para a envolvente paisagística
e boa disseminação do equipamento. É necessária
uma contenção nas circulações pois o exagero de vias
automóveis é nocivo ao ambiente e há que reduzir o
trânsito motorizado.
Uma outra consequência para a Arquitetura, será a
necessidade de pensar em novas formas de habitar, no
sentido de uma maior solidariedade entre as pessoas
como por exemplo fazendo habitação partilhada, de modo
a ajudar os idosos e as pessoas em geral completando
as habitações e a privacidade de cada um com serviços
comuns, facultativos, de refeições, roupas, convívio e até
cultivo de hortas nos espaços livres, criando comunidades
de vida.
Relativamente a futuras emergências ou catástrofes
tenho pensado nesta situação e que temos tido muita sorte
em não haver um grande tremor de terra que viria ampliar
grandemente o que estamos a passar e que essa seria uma
verdadeira catástrofe.
Penso que na nossa actividade devia ser esta a principal
preocupação.
De acordo com a Science China Life 1 ,o provável habitat
natural dos coronavírus são os morcegos. Em dezembro
de 2019 o SARS-CoV-2 volta a aparecer na China 2 e
começa uma pandemia mundial que leva os especialistas
a recomendar que nos organizemos e habituemos a “viver
com o Coronavirus”.
No que se refere ao Território, temos de viajar menos
e mais afastados e mais próximos da natureza e com
maior isolamento social. Nas cidades passará a haver
uma redução na capacidade de uso do espaço útil para o
trabalho, serviços e lazer por pessoa, uso unidireccional
das vias e apropriação do espaço público assim como
maiores áreas por pessoa e exigências de higiene e
segurança na mobilidade e uso dos transportes.
Na Arquitectura deve-se repensar todos os sistemas
de ventilação e adequá-los ao sistema natural, elevadores
com ventilação natural, redução para metade dos limites
de ocupação nos equipamentos hospitalares, escolares e
aéreos dos inicialmente estabelecidos.
O coronavírus é a epidemia sanitária mais mortífera da
nossa época. “Devido a globalização intensa do tráfego
aéreo, o transporte de pessoas contagiadas fizeram no
mundo uma proporção matemática não linear, onde se
pensa que os números se repetem, mas, ao contrário, eles
triplicam de um dia para outro 3 .
Tendo em conta a velocidade do contágio, a
Organização Mundial da Saúde prevê o isolamento,
distanciamento de segurança evitando as aglomerações 4 .
Mas há responsáveis políticos e cientistas que têm
defendido outra estratégia, a do contato social, prevendo
que se trata de uma gripezinha e o contágio trará a
imunidade à comunidade. Porém, mesmo em países
desenvolvidos existem milhões de pessoas carentes de
informação, hábitos ou o devido apoio emergencial nas
redes hospitalares 5 .
Desde 2006 que há previsões da ascensão e queda das
civilizações, com a escassez de recursos, ameaça nuclear e
as desigualdades sociais em direcção ao colapso previstas
por Diamond 6 , outros consideram o aquecimento global
como mãe de todas as batalhas de acordo com Klein 7 , ou
a chegada da terceira Revolução Industrial defendida por
Rifkin 8 ou ainda nas previsões de Servigne 9 a civilização
industrial está prestes a afundar-se. Há soluções para todos
os acontecimentos que afectam a humanidade 10 .
Os Arquitectos procuram uma visão holística,
do retorno à natureza, às soluções mais verdes, ao
teletrabalho, a maior isolamento social e privacidade,
maior ocupação por mt2 por pessoa, maior contacto
físico com a terra e um maior uso e conhecimento das
tecnologias de comunicação e simulação à disposição do
homem.
Com este vírus os idosos e as pessoas com algum tipo
de deficiência ou maior carência económica acabam
por ser eliminadas como consequência dos avanços
desmedidos do capitalismo 11 . O que tem levado a uma velha
máxima como solução: “Se os ricos não tratarem da saúde
dos pobres, podem ter a certeza que mais cedo ou mais
tarde os pobres tratam da saúde dos ricos.”
1
Diário de Notícias, 23/01/2020 – 10:56. Acesso 07/05/2020
2
DGS – Direção Geral de Saúde – perguntas frequentes. Acesso 05/05/2020.
3
Paolo Giordano – Frente ao Contágio, 2020.
4
Revista Visão – Os dias mais longos contra a COVID-19
5
SUPER Interessante, maio 2020, p. 29 – Edição 265.
6
Jared Diamond, Biólogo e geografo americano – escreveu (Colapso, Gallimard 2006)
7
Naomi Klein, ambientalista canadense – O Mundo em Chamas – Um Plano B para o
Planeta
8
Jeremy Rifkin, norte americano futurólogo prevê a substituição das energias do
petróleo, gás e carvão por energia solar e eólica.
9
Pablo Servigne – colapsólogo francês – escreveu um pequeno manual de
colapsólogia, 2006
10
Revista Courrier Internacional – maio 2020 nº 291 – Repensar o Mundo
11
Le Point – França – 23/04/2020 - 11:42 – Acesso 02-05-2020
16
17
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Desafios da pandemia
Carlos Mineiro Aires
Bastonário da Ordem dos Engenheiros
Pandemias – desafios
e oportunidades para a cidade
Prof. Dr. Carlos Santos
Director da Faculdade de Arquitectura e Artes, Universidade Lusíada - Norte (Porto)
A pandemia causada pelo COVID-19 veio colocar-nos
inúmeros desafios, sobretudo pela forma inesperada
como se espalhou globalmente e originou uma nova crise
económica, a seguir à de 2009.
Então, sobretudo os jovens tiveram de partir, vimos as
empresas a fechar, empregos perdidos, salários indignos,
laços laborais debilitados e a esperança posta em causa.
Engenheiros e arquitetos, enquanto profissões
indissociáveis e complementares na área da construção,
foram particularmente afetados, já que os investimentos
decaíram para níveis nunca vistos, por falta de capacidade
do Estado para financiar a obra pública e de confiança e de
alavancagem financeira por parte dos privados.
Entretanto, a partir do meio da década, com a retoma
que aportou investimento privado, nacional e estrangeiro,
a reabilitação urbana e alguma construção nova criaram
trabalho e, sobretudo, alimentaram uma lucrativa atividade
imobiliária.
A par, o investimento público e os financiamentos comunitários
perspetivam uma década interessante, sobretudo
se alguma coisa for feita para dignificar estas profissões,
a começar pelos salários e honorários que são praticados,
situação que o Estado não pode continuar a ignorar.
Veio à evidência a qualidade do nosso SNS e a confiança
que temos nos serviços públicos indispensáveis, onde o
rejuvenescimento dos quadros da administração tem de ser
uma prioridade nacional.
A grande exposição da nossa economia ao turismo,
obriga-nos a repensar o modelo para o futuro e que tem
de passar pela criação de bens transacionáveis, o que é
possível, como agora ficou patente, pois a engenharia
permite que o país se reinvente.
Se queremos ter uma economia sólida teremos de
apostar numa nova industrialização do país, numa altura
em que não podemos perder a transição digital, agora
acelerada, e a competitividade.
As empresas vão ter de repensar a forma como
funcionam, pois o teletrabalho veio para ficar, permite
reduzir custos fixos, aumentar eficiências e reduzir a
poluição das mobilidades pendulares que resultam das
más ocupações do território e dos desajustamentos entre
os locais de trabalho e residências.
No ensino e no comércio também irão ocorrer
impactos, pois o ensino à distância é possível e as compras
online vulgarizaram-se.
As cidades, os edifícios, as infraestruturas públicas,
como é o caso de escolas e hospitais, a mobilidade, etc.,
também terão de ser repensadas com a introdução de
soluções que potenciem a sua adaptabilidade e resiliência.
No essencial, tarefas para engenheiros e arquitetos.
A saúde pública constituirá porventura um dos
fundamentos da evolução dos conceitos urbanísticos
ao longo da história da Humanidade. De facto, as
preocupações que estiveram subjacentes ao desenho
de novas cidades foram sempre, de alguma forma,
com o objetivo de obstaculizar os surtos epidémicos.
E se refletirmos nestes aspetos, fácil é verificar que eles
estão presentes em todas as tratadísticas de arquitetura
e de urbanismo e em sequência de eventos catastróficos
por que se passou.
Após a Peste Bubónica do século XIV e o consequente
confinamento surgiram os estudos da Cidade Ideal
Renascentista. De igual forma, no caso de grandes
problemas de saúde em Barcelona no século XIX a resposta
foi dada por Ildefonso Cerdá e, no início do século passado
com a Pneumónica, surgiram as propostas do Movimento
Moderno e da Carta de Athenas.
É um facto que as pandemias encontram na cidade o
seu campo ideal para expansão, muito pela sua estrutura,
dimensionamento do espaço público e demasiada
dependência de transportes públicos.
Num interessante artigo recente do New York Times
intitulado “Can City Life Survive Coronavirus?” o seu autor,
Micael Kimmelman, afirma que as pandemias são anti
urbanas, explorando o nosso impulso de congregar. E a
nossa resposta até ao momento de distanciamento social
não só vai contra o nosso desejo fundamental de interagir,
mas também contra a forma como construímos as nossas
cidades.
O que estará em jogo é a necessidade de repensar a
cidade e a arquitetura em face desta realidade que, de
tempos a tempos, a Humanidade tem que enfrentar.
A cidade é um ponto de densificação social e não está
preparada para uma “recessão social” porventura mais
devastadora que uma recessão económica.
Da atual experiência pandémica resulta clara a
necessidade de redimensionar as cidades, criando
estruturas policêntricas de menor densidade com
diminuição de estruturas e tempos de transporte com
o aumento dos espaços e equipamentos públicos que
as servem, criando novos tipos de socialização dos seus
habitantes e melhorando as condições de higienização
e saúde pública.
Para a reflexão e proposição de novos paradigmas,
tal como outrora, serão obviamente convocados todos
os Arquitetos.
18
19
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Pós
Célia Gomes
Candidata à presidência do Conselho Directivo Nacional, triénio 2020–2022
MEMBRO N. O 7051
O Renascimento do Desenho Urbano
Prof. Doutor Arq. F. A. Ribeiro da Costa
MEMBRO N. O 2408
Arquitectura, Cidades, Território encontravam-se em
estado de emergência antes, encontram-se agora e assim
continuarão no pós-Covid. Mas este não é o meio para
o debater uma vez que não há independência editorial
no JA. Não há independência editorial no JA. www.
arquitecturaperto.eu Não há independência editorial
no JA. Não há independência editorial no JA. Não há
independência editorial no JA. www.arquitecturaperto.
eu Não há independência editorial no JA. Não há
independência editorial no JA. Não há independência
editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não
há independência editorial no JA. Não há independência
editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não
há independência editorial no JA. Não há independência
editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não
há independência editorial no JA. Não há independência
editorial no JA. Não há independência editorial no JA.
www.arquitecturaperto.eu Não há independência editorial
no JA. Não há independência editorial no JA. Não há
independência editorial no JA. Não há independência
editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não
há independência editorial no JA. Não há independência
editorial no JA. Não há independência editorial no JA.
www.arquitecturaperto.eu Não há independência editorial
no JA. Não há independência editorial no JA. Não há
independência editorial no JA. Não há independência
editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não
há independência editorial no JA. Não há independência
editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não
há independência editorial no JA. Não há independência
editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não
há independência editorial no JA. Não há independência
editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não
há independência editorial no JA. www.arquitecturaperto.
eu Não há independência editorial no JA. Não há
independência editorial no JA. Não há independência
editorial no JA. www.arquitecturaperto.eu Não há
independência editorial no JA. Não há independência
editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não
há independência editorial no JA. Não há independência
editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não
há independência editorial no JA. Não há independência
editorial no JA. www.arquitecturaperto.eu Não há
independência editorial no JA. Não há independência
editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não
há independência editorial no JA.
O mundo está no limiar de uma nova fronteira, quando
equacionamos o impacto da pandemia do coronavírus
SARS-CoV-2. As nossas cidades são o local propício para
a disseminação do vírus. As práticas higienistas, iniciadas
no século XIX, contribuíram para que hoje as cidades
sejam salubres, devido à aplicação de normas urbanísticas
sanitárias eficazes. No entanto, toda essa legislação não
conseguiu minimizar o impacto da transmissibilidade
viral, só possível pelo confinamento imposto. Quando
chegar o dia em que recuperarmos as nossas rotinas,
dar-se-á início a uma profunda reflexão de como deverá
ser pensado o espaço urbano. Para além de todas as
medidas de saúde pública necessárias à prevenção,
será fundamental pensarmos, a médio prazo, na forma
como as nossas cidades são desenhadas. Reconsiderar a
proliferação de grandes centros, periféricos, de comércio/
serviços e suspender as políticas de suburbanização
que obstinam no esvaziamento dos centros históricos,
devolvendo-os à população. A esperança numa rápida
recuperação assenta no pressuposto de que as cidades
contemplam uma infraestrutura eficiente que assenta na
alta densidade dos seus atores operacionais, contudo,
interagindo em espaços bem ventilados, visitados pelo sol,
tão necessários à extinção dos aerossóis virais. É incorreto
pensar que deveremos escolher entre debelar a doença ou
evitar a recessão económica. Os dois problemas coexistem
e deverão ser ambos equacionados. Com a redescoberta
do teletrabalho, a cidade reclamaria o ambiente urbano
para os cidadãos, passando a ser um local de contacto
social equilibrado e interatuante, potenciando a proteção
social de proximidade e onde o comércio local pudesse
ser diariamente utilizado. Tornar o ambiente urbano
denso de vida, mas garantindo a ordem sanitária, graças a
espaços bio-adaptáveis, que facilitem o convívio informal,
protegido e onde preservamos o sentido sociocultural
de comunidade. Transformar as vias rápidas urbanas em
avenidas atravessáveis ladeadas por passeios amplos e
expostos, com espaços de múltiplas opções de usufruto.
Evitar o aumento de grandes espaços de aglomeração.
Reconsiderar as políticas de habitação social que tem vindo
a gerar guetos discriminadamente estigmatizantes. Recriar
estruturas urbanas robustas que favoreçam a deslocação
pedestre e as ciclovias, onde o espaço verde seria o sistema
radicular que articularia a Pólis. Urge planear, de forma
participada, a cidade, estimulando o renascimento do
desenho urbano.
20
21
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Apontamentos para o futuro
Fátima Fernandes
Directora do Departamento de Arquitectura da Escola Superior Artística do Porto
MEMBRO N. O 3690
Francisco Silva Dias
Presidente da Associação dos Arquitectos Portugueses, triénio 1990-1992
MEMBRO N. O 165
Esta pandemia que tão velozmente se espalhou pelos
quatro cantos do mundo provocou uma sequência de
eventos para os quais o desafio tecnológico exige um ajuste
constante, por um lado, a novas e inesperadas experiências
de velocidade e, por outro, à quietude mais perturbadora.
Por isso, põe em questão a ideia de tempo e a ideia de
espaço como distância, tal como os entendíamos antes do
início de 2020.
A arquitetura, contrariando o que foi o seu contexto desde
as primeiras experimentações dos arquitetos modernos,
enfrenta agora um território que não é físico e dispõe de uma
condição excepcional que lhe permite iniciar finalmente e
com veemência as reformas sociais necessárias à construção
de uma nova utopia que estruture uma sociedade global.
Um pensamento genuinamente interdisciplinar que sustente
a harmonia entre o sistema humano e o sistema natural,
sem permitir que estes sejam desviados por uma visão
exclusivamente técnica e economicista.
Parecendo-nos escasso o sentido de tempo implícito
nos cânones contemporâneos – sujeitos a uma velocidade
vertiginosa que sufocava a quietude natural da vida – urge
procurar a forma de equilibrar os programas efémeros
exigidos com o meio físico de que ainda dispomos.
A resposta para este problema está no sábio cruzamento
dos valores do lugar com a dimensão universal da vida.
Esta tomada de consciência é extremamente importante
e é-o por duas razões: para a formação de uma atitude
que ofereça à cidade uma dimensão pública marcada pelo
carácter do lugar; e pela compreensão de que esta tem a
função de equilibrar os tempos vertiginosos e tensos da
condição global da vida contemporânea.
Necessitamos, por isso, de uma certa reflexão teórica
sobre a relação mais adequada entre esses espaços
destinados à função de habitar e a felicidade.
“Los edificios y los espacios tienen que asentarse bien,
estar bien dispuestos en el lugar: esa cualidad del buen
asentamiento les confiere un cierto aire de eternidad.
Este es el sentido de la arquitectura popular: hay que ser
realistas, hay que trabajar con lo que tenemos del modo
en que mejor sepamos hacerlo, y siempre con placer, con
humor, con cierto poder crítico, pensando en contribuir a
la felicidad de las personas (…)” 1
1
Távora, Fernando; “Nulla dies sine linea, Fragmentos de una conversación con
Fernando Távora”. Revista DPA, Documents de Projectes d’ Arquitectura n° 14. Edição de
Carlos Martí Arís. Departament de Projectes Arquitectònics. ETSAB UPC, 30 de
Março de 1998, p.10.
Aquela interrogação que intrigou várias gerações:
pode o bater das asas de uma borboleta em Java
provocar uma tempestade em Nova Iorque?
encontrou resposta numa pandemia que veio de longe,
e já deu a volta ao mundo, e que permite a um queiroziano
interpretar O Mandarim de forma inversa:
o toque de uma campainha na China pode matar idosos
em Lisboa?
Tudo isto são divagações possíveis porque a qualquer
um, constantemente martelado pela mensagem
#FiqueEmCasa, só resta refugiar-se na liberdade interior,
ou seja, na imaginação ou nos percursos da memória.
Verdade seja dita que são sinuosos, espiralados e, por
vezes, inexplicáveis os percursos da memória, pois tanto se
podem deter num facto como numa só palavra.
Para um arquiteto confinado, por tanto ter sido lida e
ouvida, é natural que agora surja e se imponha a palavra
casa
talvez também por há muito tempo, ainda a Ordem
se chamava Associação dos Arquitectos Portugueses,
ter feito parte de um grupo de trabalho encarregado
de elaborar um tesauro de termos de arquitetura e
urbanismo
e a evocação da palavra ter provocado uma espécie de
vórtice que fez convergir muitas outras elas começadas
pelo fonema que graficamente se representa por CA:
casulo, caixa, caracol (…com a casa às costas),
cadeado, capuz, capítulo, casal e casamento
(…quem casa, quer casa), cápsula, cabaz, cabeça ou
cachola (no sentido de sede do pensamento e coisa
fechada), cabana, cabaça, carapaça, caroço, canto
(sítio definido), cabine, camarote e câmara
(…música de câmara ou a cappella) e muitos mais
até à transcendente caaba.
e todas elas cabendo no sentido global de espaço limitado,
envolvente, de refúgio e de segurança.
Lembremo-nos, a propósito, que na harmoniosa língua
portuguesa casa também se pode dizer lar (…de lareira) ou
fogo e então estas palavras ganham o sentido emotivo de
relação e aconchego.
Se houvesse necessidade e fosse possível classificar o
vírus da pandemia sob o ponto de vista comportamental
ele seria cínico e cruel pois atafulhou casas, muitas vezes
para além de condições saudáveis de convívio, e esvaziou
a Cidade (a casa de todos) para aquém das condições de
sobrevivência coletiva.
Muito embora seja fraca a consolação assinale-se que
a pandemia colocou muitos cidadãos perante conceitos até
então distantes ou ignorados:
Índices e características numéricas representativas do
fenómeno, gráficos, curvas, previsões, “achatamento da
curva”, pirâmide etária, população de risco, proteção,
aglomeração, distanciamento…
e mais a interrogação surgida com perplexidade perante
o mapa do país:
por que razões as consequências da pandemia
apresentam implantações regionalmente tão
diferenciadas?
É quase certo que tudo isso está relacionado com as
assimetrias de desenvolvimento que o país apresenta, com
as formas de ocupação do solo, a densidade populacional,
os tipos de povoamento, a estrutura dos aglomerados
e, inclusivamente, com as anomalias que o atual parque
habitacional apresenta.
É concordância generalizada e aceite que nada será
igual e tudo será diferente antes e depois da pandemia.
Oxalá que assim seja e para melhor:
que haja casas para o maior número e que sejam
amáveis, isto é, que dê gosto estar e viver nelas e que
o território seja ordenado, produtivo e estimulante.
e que os arquitetos possam fazer uso pleno das suas
capacidades, não sejam só avaliados pelo feitio das
maquetes e desenhos que expõem e que a Arquitetura e o
Urbanismo sejam incontestavelmente reconhecidos como
um Serviço Público, que é como quem diz, visem o bem-
‐estar coletivo.
22
23
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Formas de Comunicar
Guilherme Pedrosa
MEMBRO N. O 24842
Aos arquitectos cabe escolher caminho
Helena Roseta
Presidente do Conselho Directivo Nacional da OA, triénios 2002-2004 e 2005-2007
MEMBRO N. O 4638
Jacques Tati, Jour de fête
Este ano a Primavera em Berlim foi cinzenta.
No ano passado o 1° de Maio foi celebrado em festa com
música, beijos e cerveja, as famílias montaram churrascos
em Tempelhof e os barcos turísticos cruzavam os canais do
sinuoso Spree.
Mas este ano caminho pela cidade com uma camisola
de malha, enrolado num farfalhudo cachecol e por vezes
abro a sombrinha tanto para me proteger da chuva como
da pessoa que está a tossir à minha frente.
Talvez este seja um tempo mais natural, só possível
porque o homem citadino saiu da sua rotina normal,
levando consigo toda a actividade que expande a sua
existência.
Os museus passaram a abrir portas em longos
percursos virtuais, os cinemas organizam secções on-line
e os comediantes deixaram de nos fazer rir em palco para
se re-inventarem diante das suas prateleiras e partilharem
connosco momentos de invulgar beleza com artistas a
renderem devida homenagem no estuque dos seus quartos.
Assim, se por um lado a grande festa que uniu o
mundo contra o VIH arrancou ao ritmo electrizante de
Freddy Mercury, o ruído deste século suspendeu-se em
tocante silêncio ao seguir a íntima oração do gentil Papa a
percorrer o doce abraço da grande praça cristã.
Foi esta nova intimidade que a reprodução virtual
descobriu nesta pandemia, isto porque como nunca antes
a aura do autêntico pareceu escapar da sua percepção
presencial para o eco contido e seguro do lar onde o
observador sente partilhá-lo em comunhão com tantos
outros, tão consternados como nós.
O trabalho de um Arquitecto é por definição um
trabalho de reprodução que comunica através da imagem
uma linguagem partilhada entre projectistas e construtores
capaz de materializar o abstracto de uma ideia. Ela é, por
isso, auto-referênciavel, cúmplice do Autor e integrada na
expectativa generalizada do meio.
Contudo, se o presente traz uma nova relação entre a
representação e o autêntico, como serão no futuro “Os
Atlas de Parede”, o lar subconsciente das nossas ideias,
quando levados por uma corrente de imagética cada vez
mais constante, onde a percepção reproduzida ganha uma
novo valor, distinto mas quiçá tão intrumentável para o
criador como o original.
We live in a world where there is more and more information,
and less and less meaning.
Simulacra et Simulation, Jean Baudrillard
Qual será por isso a importância da comunicação da
actividade, da fotografia, renderização e desenhos na
relação com a expectativa do mercado, do seu público
e jovens aprendizes com métodos de trabalho por
compreender?
Uma confirmação do que se espera ver ou de um ideal
do que se quer ser?
Enfim, espero não vos maçar.
Acreditem vou já terminar
pois quero sair e o Sol está de novo a brilhar…
Muito Obrigado!
Quais os principais problemas que a actual situação
pandémica veio colocar à Arquitetura, às cidades e ao
território tal como os conhecíamos?
A covid 19 tem sido um grande revelador das
desigualdades e desequilíbrios territoriais, económicos,
sociais e ambientais do mundo actual e do nosso país
em particular. O desafio principal é o da sustentabilidade
das nossas cidades e do nosso território. As alterações
climáticas são uma realidade, os eventos pandémicos
podem repetir-se, ainda nem sequer sabemos como lidar
com a covid-19. Temos de estudar mais e compreender
melhor que mudanças há que introduzir na nossa prática
profissional e no nosso quotidiano cidadão. Em épocas
de crise o futuro pode bifurcar: ou tentamos regressar
ao antigo “normal” de esbanjamento de recursos e
especulação desenfreada; ou procuramos assentar a vida
e a sociedade em novos valores. Aos arquitectos, cuja
função é exactamente projectar o futuro, cabe escolher
caminho. Que terá de passar por respeitar o território e a
paisagem, garantir habitação sustentável e contribuir para
a sobrevivência da vida no planeta.
Qual poderá ou deverá ser o contributo dos Arquitectos no
período pós pandémico (covid-19)?
Não há caminhos únicos. Cada arquitecto, cada atelier,
cada empresa tem de se interrogar sobre o que deve mudar
e melhorar. O direito à arquitectura está por cumprir.
À luz dos trágicos efeitos do covid-19, numa altura em que
a grande orientação é “fique em casa”, os mais ameaçados
são os que não têm casa ou não a têm em condições.
Temos de olhar para os espaços onde colocamos os mais
velhos – não podem ser meros depósitos de pessoas à
espera de morrer, têm de ser integrados na vida à sua
volta. E temos de ter cada vez maior atenção às condições
infra-estruturais básicas de higiene, conforto e mobilidade
– no espaço público, nos equipamentos colectivos e nas
habitações.
Como podemos ou devemos preparar-nos para futuras
emergências globais, pandemias ou outras catástrofes
naturais?
A formação e a prática da arquitectura devem integrar
mais conhecimento e mais inovação em matéria de
protecção civil e de prevenção de catástrofes, naturais
ou antrópicas. Sublinho a urgência de um novo olhar
sobre a vulnerabilidade sísmica no nosso território.
Ou a necessidade de re-habitar o edificado devoluto ou
abandonado. Temos de flexibilizar e inovar os usos do
tecido construído, gerir os habitats com parcimónia e
inteligência e reconciliar as casas que habitamos e o chão
que pisamos com os sistemas naturais que são o suporte da
vida. E temos de dialogar com as outras áreas disciplinares
e com os nossos concidadãos, para melhor formular as
questões às quais somos chamados a responder.
And in allowing the reproduction to come closer
to whatever situation the person apprehending it is in,
it actualizes what is reproduced.
The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction, Walter Benjamin
24
25
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
A cidade digital
Hugo Merino Ferraz
MEMBRO N. O 15588
Quando a realidade se mostra
ser uma construção frágil
Inês Alves
MEMBRO N. O 18087
Arquitecto Frank Lloyd Wright junto à maqueta da sua Boadacre City enquanto
conceito para o desenvolvimento suburbano. Rockefeller Center, Nova Iorque,
15 Abril 1935. © Keystone View Company/FPG/Archive Photos/Getty Images
A cidade deserta como nunca dantes visto, com regras
de distanciamento social e a higienização constante dos
espaços e coisas, poderia referir-se a uma cidade visitada
por Marco Polo numa das suas missões descritas a Kublai
Kan. Silenciosa e ausente do bulício e onde os espaços
desejam ser ocupados. Uma cidade contemplativa revelada
no espaço público e no edifício, que observa expectante por
novos sinais de apropriação.
Impedidos de a viver de uma forma física, somos
conduzidos a valorizar cada metro quadrado da cidade e,
mais do que nunca, ficarmos atentos aos pormenores e
momentos que outrora nos passavam despercebidos.
Os alçados, e em particular as varandas e as janelas,
ganham uma nova importância e surgem como novo
veículo de comunicação e expressão, reforçando o conceito
de vizinhança e espírito de bairrismo, mesmo nas grandes
cidades.
Numa primeira fase somos tentados a acreditar que
os danos colaterais da pandemia, na arquitetura em
particular, são arrasadores pela falta de encomenda, de
acompanhamento de obras, ou mesmo de trabalhar com
a equipa presente, explorando maquetes e desenhos em
espaço de atelier, mas na verdade não é bem assim.
As mudanças estão aí e não são de agora, apenas
ganharam uma nova importância e pertinência e têm tanto
de força como de fragilidade. Na verdade, elas têm vindo
a ser produzidas de forma lenta e paliada, atendendo
a interesses que lhe marcam o ritmo e a cadência. Em
2015 a ONU deu a conhecer os novos 17 objetivos de
desenvolvimento sustentável para os próximos 15 anos onde,
no seu 11º, pretende tornar as cidades e os assentamentos
humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.
Esta nova consciencialização vai muito além da
arquitetura, mas os arquitetos podem e devem ter um
papel ativo e determinante. Num processo de mudança
para a verdadeira revolução digital, temos de ser presentes
e participativos na elaboração de soluções integradas
com todos os intervenientes. A cidade digital está aí e
veio para ficar e é necessário repensar o nosso modelo
de participação na sua construção. Museus, concertos e
espetáculos, surgem agora online e deparamo-nos com uma
cidade despida, vazia e expectante, que passou a estar mais
disponível para ser vivida e menos consumida.
Estas mudanças representam uma oportunidade de
recomeço, de novos caminhos e desafios, mas para isso
será imprescindível uma consciencialização coletiva
liderada por governos centrais convictos, com uma
forte ligação às empresas e autarquias que, por sua vez,
cooperam com a comunidade em geral, representada por
associações, coletivos, grupos, etc.
A pandemia surge como o grande catalisador para
a mudança de atitudes e políticas de ordenamento do
território e (re)organização das cidades. O arquiteto tem
aqui, portanto, um papel principal como ator fundamental
no desenho da cidade e território e de formador das novas
gerações para uma mentalidade responsável e atenta à
importância do espaço construído e não construído. A
formação para a arquitetura atenta às novas realidades e
necessidades é da maior importância e relevância. Não
pode ocorrer de uma forma desprendida e isolada, mas
sim integrada num conjunto de medidas smart a tomar no
planeamento das cidades.
« (...) the future city will be everywhere and nowhere, and it will be
a city so greatly different from the ancient city or any city of today
that we will probably fail to recognize its coming as the city at all.»
Frank Lloyd Wright
A necessidade do confinamento trouxe consigo,
igualmente, a necessidade de reafirmação da habitação
enquanto abrigo. Mas não só: nela passamos a exprimir
outras atividades que outrora implicavam dinâmicas de
deslocação e cruzamentos público-sociais. A dinâmica
individual assumiu formatos desconhecidos (ou
esquecidos) num quotidiano tendencialmente mecanizado.
A casa adquiriu uma dimensão ampliada de expressão de
necessidades.
Por outro lado, as dinâmicas inter-relacionais foram
igualmente intensificadas num domínio virtual, através
das plataformas digitais a que hoje em dia temos acesso,
assegurando de alguma forma necessidades básicas de
coexistência. Ou seja, a intersubjetividade intrínseca ao
ser humano, viu-se continuada através de uma crescente
virtualização das relações.
Este expandir das dimensões humanas associadas
ao confinamento são únicas na história da humanidade,
isto, se tivermos em consideração que a última pandemia
mundial se deu há aproximadamente um século. Nunca
o mundo esteve tão pequeno aquando de uma pandemia.
Estamos próximos, mesmo que sozinhos em casa.
Este fenómeno arrasta consigo a importância de
refletirmos sobre que espaço privado é esse onde nos
confinamos, que permitirá ser continuidade de nós mesmo
na reinvenção do nosso quotidiano, e que espaço público
será esse também, onde nos relacionamos virtualmente
com os outros e onde, através da intersubjetivação, nos
definimos enquanto humanos e agentes sociais.
Se a dignidade de uma casa permite transpormos para
ela atividades e necessidades nunca antes acontecidas no
interior de 4 paredes, então o que será afinal permitido
quando esta dignidade da habitação não existe? Por
outro lado, se as plataformas digitais permitem que
nos continuemos a relacionar com os outros, então que
dinâmica social acontecerá quando não temos acesso a
esse espaço público alternativo?
A par da aparente expansão e reinvenção das dimensões
humanas e sociais latentes com o confinamento, existirá
também necessariamente uma intensificação das
diferenças abismais existentes no acesso democrático aos
espaços privado e público.
Não será uma urgência para arquitetura retomar a
temática da habitação e aproveitar o facto de que o mundo
encolheu para intensificar o papel social d@ arquitect@,
aparentemente em suspenso?
E qual terá sido o papel da arquitetura na encenação de
belos centros históricos que agora se esvaziaram – tanto
pelas suas ruas como pelas suas casas – dependentes de
fluxos sazonais?
26
27
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Quatro reflexões
João Magalhães Rocha
Director do Departamento de Arquitectura
Escola de Artes / Universidade de Évora
MEMBRO N. O 4803
A partir de casa
João Santa-Rita
Presidente do Conselho Directivo Nacional da OA, triénio 2014-2016
MEMBRO N. O 2203
Ortigia, Siracusa. Fotografia: João Rocha 2018
Quatro reflexões recorrem ao título de um dos livros de
Italo Calvino, como metáfora para outras propostas
de arquitetura. Um reflexo que surge do espaço do
confinamento, do novo silêncio da cidade, através de
imagens de uma outra tristeza, quase inimagináveis até há
muito pouco tempo.
Arte, inevitável e tão transformadora, sempre
sobrevivente em situações de devastação, Longhena
projeta a Basílica de Santa Maria della Salute em Veneza,
após a terrível presença da peste, Picasso pinta Guernica
após o bombardeamento da cidade Basca, Shostakovitch
compôs a 7ª Sinfonia, escutada em todo o centro de São
Petersburgo, durante os dias cruéis da guerra.
Sociedade, ficou claro, ficou a nu, que a nossa sociedade
é frágil, inteira de assimetrias, parte dela esquecida, parte
dela sem arquitetura. Ficou claro que, afinal, é vital a
economia, todos a conhecem, todos a desejam, modelos
de Marx, Keynes, Galbraith ou Samuelson. Mas pode a
economia (num período pós-pandemia), contribuir de
um modo definitivo para devolver dignidade à vida, à luta
contra a doença, a uma melhor fruição da cidade? Como
referia Freud em O Mal Estar na Civilização, “é impossível,
fugir à impressão de que as pessoas comumente
empregam falsos padrões de avaliação”. Existem falsos
padrões de avaliação na nossa sociedade (Europeia),
distorções cansativas, que não podem subsistir.
Sobrevivência, recordo o ano de 2000, em que como
assistente de Charles Correa, se trabalhou num projeto
colaborativo à distância. Envolveu as escolas de arquitetura
do MIT, Ahmedabad, Beirute e Chicago, para um
planeamento urbano para as regiões afetadas por um
sismo no Paquistão. Charles Correa, insistia em que se
pensasse a casa, como se fosse constituída por vários
núcleos, quer à escala da célula, quer à escala da cidade.
Os espaços não têm todos a mesma hierarquia, e uma
habitação pode ser projetada, tendo como princípio que
sofrerá várias destruições durante o seu tempo de vida.
O interessante é ponderar que a célula-base, mesmo
perdendo outros layers espaciais, resistirá nessa unicidade
estrutural e arquitectónica e continuará a albergar um
espaço digno de sobrevivência.
Habitamos em cidades, que estão longe de conseguirem
edificar essa necessidade simultânea do efémero e do
perene, de albergarem espaços híbridos, de emergência, de
autossuficiência. As nossas casas, habitáculo da memória,
terão que ser pensadas com o futuro, para um presente
mais volátil, fascinante, mas também mais incerto.
Quais os principais problemas que a actual situação
pandémica veio colocar à Arquitetura, às
cidades e ao território tal como os conhecíamos?
O primeiro problema que a pandemia veio colocar
foi recordar-nos da nossa fragilidade enquanto seres
humanos, e do modo como tal poderá afectar a nossa vida
nas suas diversas dimensões.
Uma dessas dimensões foi precisamente a “Casa”,
colocando-a no centro da nossa existência, não apenas
como o local do Habitar, que sempre foi, mas agora
também para uma esmagadora maioria, como o lugar,
ainda que temporário, de trabalho e de aprendizagem.
Mas essa “Casa” não foi a mesma para todos, no seu
contexto, na sua dimensão, no seu conforto, na privacidade
dos seus espaços. Como tal, a “Casa, a Habitação” terá
de forçosamente continuar a ser um caso de estudo e
de constante reflexão, por parte dos Arquitectos e dos
decisores na implementação de políticas, com vista à sua
adaptação a um mundo em constante evolução e mutação.
A Casa é e será sempre o nosso primeiro e último reduto.
A cidade, por seu lado, temporariamente suspensa na
sua plena vivência, deixou de ser um lugar vivido e vibrante,
tornando-se num lugar quase desabitado, paradoxal e
simultaneamente temido e desejado. As cidades resistiram
a muitas e diversas vicissitudes ao longo da sua história,
sendo a presente pandemia apenas mais uma entre as
muitas que se sucederam ao longo dos tempos. A presente
situação revelou igualmente a sua fragilidade do ponto de
vista da segurança de muitos dos seus espaços para a vida
em sociedade, contrapondo os aglomerados de menor
dimensão como mais seguros, sobretudo num país em
que a desertificação é uma realidade de difícil inversão,
importando como tal reflectir urgentemente sobre a mesma.
Qual poderá ou deverá ser o contributo dos Arquitectos no
período pós pandémico (covid-19)?
Os Arquitectos, a par de outros profissionais, poderão
repensar a organização dos diversos espaços de natureza
pública (interiores e exteriores), e das infra-estruturas
de transporte, de modo a que estes possam responder
a uma realidade que, apesar de temporária, veio colocar
questões a seu modo intemporais e universais, como seja
a dimensão e características dos espaços, como um factor
de qualificação da vida, de modo a que proporcionem o
bem-estar e a segurança.
Como podemos ou devemos preparar-nos para futuras
emergências globais, pandemias ou outras catástrofes
naturais?
A globalização do mundo permitiu novos modos de
vida entre os quais a capacidade de uma mobilidade
como nunca dantes vivenciada. Uma situação como a
actual demonstrou-nos uma vez mais a volatilidade do
mundo perante factos de diversa natureza, mas também
demonstrou a resiliência do Homem perante as maiores
adversidades com as quais se confronta.
As emergências são imprevisíveis no tempo e na sua
natureza, tudo o que podermos fazer, como sempre
fizemos, é manter viva a memória das fragilidades
detectadas no passado em presença de um determinado
fenómeno, procurando corrigi-las no momento seguinte.
Assim se reconstruiu Lisboa após o Terramoto, e assim
temos habitado esta cidade, conscientes da possibilidade
de retorno desse fenómeno, mas confiantes na nossa
capacidade de resistir ao mesmo.
28
29
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Mudamos a Natureza,
a Natureza muda-nos
Jorge Cancela
Presidente da Associação Portuguesa de Arquitectos Paisagistas
Pós 2020
José Alberto Rio Fernandes
Geógrafo, Catedrático da Universidade do Porto
Presidente da Associação Portuguesa de Geógrafos, Março 2016 - Abril 2020
Quais os principais problemas que a actual situação
pandémica veio colocar à Arquitetura, às
cidades e ao território tal como os conhecíamos?
Não há duas cidades iguais, não há dois territórios
iguais. Contudo a pandemia tornou-se a grande
equalizadora. Todas as cidades e territórios tiveram
de definir e concentrar-se no essencial, como abrigar,
respirar, beber, comer, excretar, acreditar. A energia, a
segurança, a saúde, a comunicação, a família, os amigos,
a vida no momento presente, tornaram-se os garantes
emocionais para resistir e ultrapassar “o” momento.
Garantir o funcionamento destes sistemas, que nos tempos
“normais” nem se dão por eles e que agora se tornaram tão
visíveis, é, foi e será o grande desafio. A sua superação é
uma prova extraordinária de resiliência. Por agora, bravo,
passámos na prova. Mas também vimos que há coisas
a melhorar, nomeadamente em termos de equidade no
acesso à comunicação digital, na solidariedade económica,
na dependência do exterior em coisas básicas, na
necessidade da qualificação ambiental e social das nossas
paisagens urbanas e peri-urbanas degradadas.
Qual poderá ou deverá ser o contributo dos Arquitectos
no período pós pandémico (covid-19)?
O essencial não mudou, mas reforçou-se a necessidade
do bom desenho dos espaços habitacionais e espaços
públicos, do bom planeamento e ordenamento.
É fundamental trabalhar em conjunto, perceber que
os sistemas fundamentais para a vida são integrados
e complexos. Em particular, evitar os gestos vazios de
sentido na procura exclusiva da forma em detrimento da
função. A Arquitectura e a Arquitectura-paisagista são
acima de tudo profissões responsáveis pelo desenho do
bom habitat da espécie, ou seja, actualmente de todas as
espécies que fazem com que a nossa não se extinga. São
profissões de intervenção, num mundo em mudança em
que já não há problemas ambientais, só sociais porque
“a natureza não precisa de nós, somos nós que precisamos
da natureza.” Saber com humildade e responsabilidade
o nosso papel na mesma, é essencial para a sobrevivência
em qualquer situação.
Como podemos ou devemos preparar-nos para futuras
emergências globais, pandemias ou outras catástrofes
naturais?
Em primeiro lugar perceber que estas emergências
da vida são “normais” e provavelmente repetíveis à
medida que o habitat da nossa espécie está cada vez mais
concentrado e mais extenso. A ecologia ensina-nos que
nenhuma espécie pode crescer para sempre, inclusive
a nossa. Algures no tempo encontraremos o limite
da distribuição dos recursos e é fundamental que nos
concentremos na equidade dessa distribuição. Ou então
serão sempre os mais fracos que mais sofrerão e essa
não é sociedade para qual os Arquitectos e Arquitectos
paisagistas querem contribuir.
As epidemias costumam marcar as cidades: profundamente, com
alterações planeadas e programadas, como a Paris de Haussmann
depois dos episódios de cólera de 1832 e 1948, ou mais
lentamente, como no Porto após a peste bubónica de 1899, em
que a separação entre a parte alta e a frente de rio (mais insalubre)
foi social e economicamente reforçada.
Como será agora, depois do covid-19, entre nós? Não sei!
Considero, contudo, que a experiência deverá desmentir os que
dizem que tudo vai ficar na mesma, mas afasto-me mais ainda
dos que sustentam que haverá grandes alterações! A partir do
que leio e ouço e das tendências que vinham já do “antes do
covid”, deixo três pontos e perguntas.
1. Queremos menos densidade.
A experiência de confinamento, afastamento do outro e valorização
da saúde, teve efeitos no aumento da venda de bicicletas
e produtos para cultivo, assim como procura de casas com
terreno. Além disso, aumentou o teletrabalho e a desconfiança
no transporte coletivo, o que pode reforçar uma nova separação
social. Será que vem aí o sprawl à americana e a casa eletrónica da
Terceira Vaga de Alvin Toffler?
2. A acessibilidade e a proximidade valem mais que mobilidade.
O comércio e serviços perto de casa convivem bem com o
comércio eletrónico. Mais importante do que ter muita mobilidade
e ir ao shopping e outras “coisas grandes” é o acesso ao que
queremos. Até porque, como aprendemos, em vez de irmos à
urgência dum grande hospital, pode ser melhor falar com um
médico sem sair do sítio, como é mais simples e barato um webinar
que viagem para evento internacional. Será que depois do
covid-19 deixaremos de ser inteligentes?
3. Damos mais importância ao bem-estar.
Mais importante que o consumo e a competição é a saúde,
incluindo a mental, pelo que a economia, o território, as cidades
e a arquitetura devem estar orientadas para o bem-estar, ou a
felicidade, como dirão os escandinavos. E é possível viver melhor
com menos, desde que se garanta o essencial. Para todos. Claro
que as forças do “mercado” são fortes... Quem ganha?
Pedem-me para dizer qual pode ser o contributo dos arquitetos.
Não resisto a adiantar alguns desafios/tendências:
Na densidade – projetar casas que sejam lugares de vida e não
apenas de residência, com menos luxo, mais respeito pela natureza
e a garantia da acessibilidade física e digital;
Na proximidade – projetar na conjugação de saberes, para a
(contínua) construção de espaços que cruzem habitação com
natureza e economia, promovendo eficiência, flexibilidade e
justiça espacial;
No bem-estar – “projetar com”, co-realizando construções e
cidades desejadas, respondendo/ antecipando as expetativas de
quem as habita/ vai habitar, para a melhoria das vidas individuais
e (sobretudo) em comum.
30
31
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Que papel para
o Arquitecto de
hoje e para o
de um amanhã?
José Miguel Fonseca
MEMBRO N. O 736
Business Center, Lisboa. Desenho de concepção: José Miguel Fonseca
Inovação pelo
Design em situação
de pandemia
José Rui Marcelino, André Castro
Designers
O modo como a acção do Arquitecto se pode ou deve
inscrever no exercício de uma prática experimental, inscrita
nas áreas do Planeamento e Ordenamento Territoriais, da
Urbanística e da Arquitectura é, a meu ver, absolutamente
crucial. Neste sentido entendo que o papel do Arquitecto
deve resultar também da consideração permanente das
seguintes questões:
Estará o Arquitecto, neste momento, em condições de
responder às actuais exigências de desenvolvimento da
e das sociedades, em que nos inserimos, de uma forma
responsável e útil?
A meu ver, o Arquitecto, para ser capaz de responder
a essas exigências, deve possuir uma formação
suficientemente abrangente nas áreas do Ordenamento
Territorial e da Urbanística e deve ser capaz de considerar,
quando do exercício da sua prática profissional (seja sob
que forma for), o entendimento do todo em detrimento
de uma visão parcial, que se pode tornar redutora. Deste
modo disporá das condições suficientes para responder
a qualquer solicitação.
O Arquitecto enquanto homem de visão global, com
a suficiente capacidade de síntese e de agregação de
valências pode, a meu ver, assumir a responsabilidade pela
execução de qualquer tipo de tarefa. No caso da elaboração
de Estudos, Planos ou Projectos e também na Coordenação
Global de Equipas Pluridisciplinares pode, se dispuser
dessas condições e capacidades, dar sentido ao trabalho
dos Especialistas, qualificando o seu e também verdadeiro
papel.
O Arquitecto enquanto homem de uma visão global,
possuidor de uma cultura da qual a humanística e o
artístico são indissociáveis, a que deve acrescer uma
formação experimental suportada no conhecimento
científico, deverá encarar o enquadramento da produção
do artefacto (sob qualquer que seja a sua forma) no seu
relacionamento com o âmbito mais vasto do facto social
e do facto político.
A acção e intervenção do Arquitecto devem ser
consideradas como contributos imprescindíveis na
resolução de alguns dos problemas com que todos nos
confrontamos e que afectam, de forma dramática, as
condições de vivência de um número significativo de
indivíduos, independentemente da sua condição?
Eu entendo que sim.
Os Arquitectos e as Arquitectas dispõem de capacidades
invulgares, tais como o conceber, o desenhar e o projectar.
Das mesmas não devem ser dissociados os aspectos
que se referem à imaginação, à intuição, à sensibilidade e
às capacidades que lhes permitem encontrar, ou mesmo
descobrir, uma outra forma de percepção da realidade
existencial, através de um outro modo de “Olhar”.
Têm agora, por maior ordem de razões, a possibilidade
de “se olhar”.
Se se quiserem “olhar”, considerando a memória e a
história, e também com uma visão prospectiva inscrita
no tempo, poderão procurar perceber aquilo que fizeram.
porque o fizeram, e como o fizeram, no desempenho do
seu papel.
Principais problemas que a atual situação pandémica veio colocar
à Arquitetura, às cidades e ao território tal como os conhecíamos.
As cidades, as pessoas e a mobilidade têm pela frente um
enorme desafio para ultrapassar a pandemia e aprender a viver
com uma nova realidade. Os transportes públicos, geralmente
associados a uma forma de mobilidade mais sustentável e
segura, enfrentam hoje grandes desafios para ultrapassar a
crise pandémica. Apesar de serem uma tendência de futuro nas
cidades sustentáveis – onde as pessoas, o transporte coletivo
e os meios suaves deverão prevalecer sobre o automóvel – os
transportes públicos enfrentam hoje um problema de confiança
por parte dos utilizadores: a segurança e conveniência dos
autocarros, metros, comboios e elétricos são postas em causa
durante a crise atual. Os operadores e a gestão dos transportes
das cidades precisam de agir rapidamente para procurar formas
de aumentar a segurança nos transportes coletivos e promover
a confiança dos passageiros, criando camadas de proteção em
cada uma dessas atividades e espaços. Para tal será necessário
recorrer à inovação com equipas multidisciplinares, com os
projetistas a terem um papel central na condução do processo:
Designers, Arquitetos e Engenheiros devem enfrentar este
desafio propondo produtos e serviços inovadores que permitam
proteger passageiros e operadores, aumentar a perceção de
segurança e privilegiar o uso dos transportes coletivos.
O contributo dos Arquitetos no período pós pandémico (covid-19).
As épocas de grandes desafios são impulsionadoras de inovação.
O trabalho de equipas multidisciplinares e a partilha do
conhecimento entre empresas, universidades, institutos, dentro
e fora de Portugal, serão essenciais para desenvolver novas
soluções disruptivas de base tecnológica – acesso a informação,
aplicações digitais dedicadas, materiais mais seguros e
higiénicos, novos layouts, entre outros. A Almadesign está já em
campo a trabalhar com associações empresariais, universidades,
institutos, hospitais, operadoras de transportes, na construção
de projetos inovadores na área de produtos médicos de suporte
de vida, sistemas de consultas remotas, mobilidade e transportes
coletivos e informação aos cidadãos. Acreditamos que devemos
aproveitar a crise atual para dar um novo impulso à inovação,
alavancando a indústria nacional de modo a dar resposta a
possíveis novos surtos ou futuras crises pandémicas.
Preparar-nos para futuras emergências globais, pandemias ou
outras catástrofes naturais.
Da logística à indústria dos plásticos e à indústria têxtil,
as empresas nacionais e os projetistas conseguiram dar
respostas rápidas às solicitações de mercado com soluções
inovadoras e disruptivas. Novos sistemas de produção,
sistemas de desenvolvimento de produto e prototipagem
rápida, digitalização e aplicações móveis foram algumas das
inovações que deram respostas imediatas durante o pico do
surto. Acreditamos que são necessárias uma grande partilha de
informação e colaboração internacional, mas é fundamental dar
resposta às solicitações nacionais através da indústria local que,
cada vez mais forte e inovadora, em colaboração com projetistas,
universidades e centros tecnológicos, já mostrou que é capaz de
reagir rapidamente e de se adaptar às solicitações numa altura
de emergência.
32
33
FAST ARCHI CHALLENGES
A cidade do confinamento
Foi com base neste conceito que surgiram os FAC (fast archi challenges), pequenos
concursos de reflexão sobre a arquitetura e a cidade em tempos de pandemia.
Pretendemos, com estes pequenos desafios de 48 horas, produzir um conjunto
de reflexões sobre o cenário atual das cidades e a nossa relação com as mesmas
e em particular com o edifício. De uma forma simples e expedita, era pedido aos
participantes, através de diferentes registos gráficos, que apresentassem a sua visão
da cidade com base num tema pré-definido.
Observar as cidades através das janelas e/ou meios de audiovisual, sejam eles os
telemóveis, portáteis ou televisões, permite-nos beneficiar de um distanciamento
da realidade, fundamental para construirmos uma reflexão isenta e até mais
profunda da cidade do confinamento. Assim, surgem as duas primeiras edições dos
FAC: Pandemic e Quarantine.
O primeiro, um exercício de ilustração cujo tema foi Empty Cities e onde era
pedido aos participantes que criassem uma ilustração em 48h que refletisse a sua
visão das cidades atuais fechadas às pessoas, sem trânsito, sem barulho, vazias.
O segundo, de fotografia de arquitetura, com o tema Architecture View Window,
onde se apelava aos participantes que, através das suas janelas, e sem poderem
sair de casa, fotografassem a arquitetura que observavam. Não se tratava apenas de
uma fotografia tirada da janela, mas sim um olhar crítico e artístico que refletisse a
quarentena, e a forma como a limitação física de percorrer a cidade afeta a forma
como a vemos e vivemos e, em particular, o edifício.
FAC Pandemic – Empty Cities
ilustração
1. o classificado
Gabriel Perucchi
Brasília, Brazil
FAC Quarantine – Architectural Window View
fotografia de arquitetura
1. o classificado
Marcos Paulo de Freitas Cambuí
Brasília, Brazil
www.if-ideasforward.com
35
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Pandemic
Empty Cities ilustração
FAC_046
Cansu Karaman
ISTAMBUL, TURQUIA
vencedor
FAC_068_1
Gabriel Perucchi
BRASÍLIA, BRASIL
A proposta vencedora apresenta-nos uma reflexão sobre
a cidade, onde interagimos com a mesma de uma forma
virtual. Se por um lado estamos confinados ao interior das
nossas habitações, por outro, e por via das redes sociais
e meios de comunicação, conseguimos estar nas ruas, ir
para o trabalho ou até mesmo a um restaurante através de
um simples telemóvel. Será esta uma quimera do futuro?
FAC_053
Stepan Andersen
SAINT PETERSBURG, RÚSSIA
36
37
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
FAC_012
Claire Trottier
STRASBOURG, FRANÇA
FAC_055
Lulia Carbunaru
BUCARESTE, ROMÉNIA
FAC_014
Luca Naso
ALBA, ITALIA
38
39
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Quarantine
Architectural Window View fotografia de Arquitetura
FAC_034
Maria Conduc
BUCARESTE, ROMÉNIA
vencedor
FAC_037
Marco Paulo de Freitas Cambuí
BRASÍLIA, BRASIL
Uma fotografia simples carregada de ironia e que nos
transporta para uma mensagem subliminar. A forma como
olhamos a cidade/arquitetura em tempos de quarentena.
Presos por uma rede vislumbramos uma cidade ao longe,
desfocada e sem cor.
FAC_09_2
Carlos Lima
LISBOA, PORTUGAL
40
41
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
FAC_013
Rakshita Jain
JAIPUR, INDIA
FAC_012
Iulia – Damaris Purice
NAVODARI, ROMÉNIA
42
43
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
FAC_028
Natália Cuntová
BARDEJOV, ESLOVÁQUIA
FAC_041_1
Anghel Oana Maria
GALATI, ROMÉNIA
44
45
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
FAC_038_1
Marius Vasile
BUCARESTE, ROMÉNIA
FAC_038_2
Marius Vasile
BUCARESTE, ROMÉNIA
46
47
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
FAC_09_1
Carlos Lima
LISBOA, PORTUGAL
FAC_039
Stefan Salavastru
BUCARESTE, ROMÉNIA
48
49
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
A planear é que a gente se entende
Luís Pedro Cerqueira
Presidente da Associação Portuguesa de Urbanistas
MEMBRO N. O 4123
COVID-19:
Entre a Consequência e o Pretexto
Luis Pinto de Faria
Coordenador do curso de Mestrado Integrado em Arquitectura e Urbanismo, Universidade Fernando Pessoa
MEMBRO N. O 6059
Ficar em casa expôs e acentuou globalmente assimetrias
sociais e sinalizou em Portugal a urgência de voltar
a incluir na agenda políticas há quase uma década
negligenciadas na estrutura governamental.
O termo CIDADE desapareceu em 2011 da agenda
política e da designação das secretarias de estado do
governo português. E para sonhar o futuro, hoje mais do
que anteriormente, “A planear é que a gente se entende”.
Os decisores necessitam do conhecimento e da
participação e experiência dos Urbanistas, Arquitetos e
Arquitetos Paisagistas para o planeamento e gestão das
atividades humanas no território e nas cidades.
O desafio que enfrentamos obriga-nos a pensar
em novos paradigmas e a adotar políticas capazes
de enquadrar a atuação humana nas exigências do
desconfinamento que deverá agilizar a nova normalidade.
O conceito de Território, Cidade ou Habitação no
mundo pós-Covid 19, e tendo ainda em conta as alterações
climáticas, impõe o abandono da retórica e exige a
interpelação dos Urbanistas, Arquitetos e Arquitetos
Paisagistas sobre as soluções a adotar na agenda urbana.
Assim os decisores políticos o compreendam.
Continuar a viver pressupõe uma sociedade responsável
e subentende o envolvimento do Estado. Restaurar
a confiança e reativar o tecido económico de forma
sustentada obrigam a satisfazer as necessidades gregárias
das populações, a ter presente a crescente centralidade das
Cidades nas agendas globais de desenvolvimento.
O Planeamento urbano, a arquitetura e o paisagismo
são a síntese para a integração no território e nos edifícios
dos critérios/opções das agendas urbanas numa perspetiva
de sustentabilidade, de adaptação às alterações climáticas,
de resiliência perante catástrofes ou crises e pandemias,
permitindo ainda a integração da transição energética e das
cidades digitais.
É de interesse público que o Urbanismo, a Arquitetura
e o Paisagismo sejam convocados para concretizar as
propostas das agendas supranacionais no planeamento da
adequação das cidades e do território aos novos desafios
que a realidade nos impõe.
A realidade mostra a importância de um desenvolvimento
urbano com visão de longo prazo assente numa
gestão proactiva, escorada no planeamento inclusivo
orientado para a sustentabilidade e resiliência das cidades,
preconizando um território integrador da igualdade de
género e de novas tecnologias e mobilidade.
Importa fomentar um desenvolvimento urbano
provavelmente de renascimento das cidades de média
dimensão em alternativa às grandes cidades. Aprender com
a reflexão possível sobre a realidade que a atual pandemia
nos impôs. As crises tornam possível iniciar e acelerar uma
transição!
Num momento em que habitação, confinamento,
mobilidade ou teletrabalho dominam o quotidiano é
oportuno chamar Urbanistas, Arquitetos e Arquitetos
Paisagistas e “Utilizar toda a sua imaginação e criatividade
para, quanto possível, conservar, restaurar e beneficiar os
tecidos urbanos antigos e recicla-los ou transformá-los de
forma a servirem a vida atual e antecipar a vida futura onde
se deverá manter ou desenvolver a qualidade humana.”
As principais bases de dados de indexação 1 revelam que em
março de 2020 foram publicados 1200 artigos científicos
sobre esta pandemia.
Apesar da área científica da arquitetura e do urbanismo
estar pouco representada neste “surto” de publicações,
os exemplos que têm vindo a público revelam sinais do
que poderá vir a ser o posicionamento da disciplina neste
contexto.
Um relance sobre estes estudos permite detetar a predominância
de duas abordagens: uma mais determinista,
alicerçada na capacidade técnica e tecnológica da disciplina
e empenhada na apresentação de “soluções” imediatas
para os desafios funcionais que se antecipam (medidas
com vista à prevenção de contágio; adequação dos espaços
de confinamento; ...) 2 ; e outra, mais reflexiva, inspirada
nos medos e incertezas da população quanto à avaliação
dos riscos higiénico-sanitário dos grandes aglomerados
populacionais 3 e com um discurso direcionado a um novo
“impulso à eco cidade”. 4
Parece ser unanime que:
A configuração/qualificação dos espaços teve um impacte
significativo, no modo como os territórios souberam
adaptar-se a esta crise e também na capacidade de resiliência
da população durante o confinamento;
Este surto está a contribuir para que a arquitetura se volte
a repensar técnica e metodologicamente no sentido de
melhor adequar a sua prática aos novos requisitos, medos
e ensejos da população;
A experiência desta pandemia, com o confinamento a
que obrigou, veio reavivar o debate sobre a relação espaço/
comportamento e contribuiu para uma maior literacia
ambiental e espacial da população.
Esta crise é indissociável do momento civilizacional de
exceção que a contextualiza: o impacte do “11 de setembro
de 2001”, as consequências da crise económica de 2007-
‐2008 ou os receios associados às catástrofes ambientais que
tem grassado pelo planeta. O conjunto de transformações
sociais, demográficas, económicas e políticas que a pandemia
acelerou confirma a necessidade de apuramento técnico
e metodológico da disciplina e também anuncia a inevitabilidade
de uma profunda revisão dos critérios de verdade e de
validação pelos quais a arquitetura é percecionada 5 .
Neste momento de transformação, agudizado pela CO-
VID-19, e em pleno esforço de reenquadramento num Lugar
cada vez mais plural e complexo, a disciplina, para além
da sua instrumentalidade, tende a reafirmar o seu papel
de mediadora na relação entre o homem e o seu “abrigo”,
como também, e de modo indissociável, entre o homem e
a sua “existência”, enquanto parte ativa e interdependente
do ecossistema global. O modo como habitamos e nos
relacionamos nesse Lugar; como nos orientamos nessa
encruzilhada de espaço, tempo e memória; como interagimos
com essa realidade natural/cultural, de mestiçagens,
contradições e verdades híbridas, volta a ser hoje lembrado,
agora a pretexto da COVID-19, como o desafio principal que
a arquitetura terá sempre de integrar e dar resposta.
1
Melo, Márcio et al. (2020), “Uma análise bibliométrica das pesquisas globais da
COVID-19”. Interamerican Journal of Medicine and Health (pré-publicação)
2
Giacobbe, Alyssa (2020).
3
Gang, Jeanne, “Architecture, Hope, & COVID-19”. A+U : Architecture and
Urbanism, May 2020.
4
Register, Richard (2002), Ecocities : Building cities in balance with nature,
California, Berkeley Hills Books, p. 94.
5
Nouvel, Jean, “Jean Nouvel in conversation – tomorrow can take care of itsef ”,
Architectural Design, vol. 63, 7/8, Julho-Agosto 1993, p. 10.
Este texto foi editado devido à sua extensão.
Clique neste botão para ler o texto original.
50
51
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Crónica de uma pandemia anunciada
Mafalda Pinto Pinheiro
MEMBRO N. O 24578
Reencontro:
Um passo atrás,
dois em frente
Manuel Lapão
MEMBRO N. O 3726
Cedro di Versailles, Giuseppe Penone, 2000-2003
Em 2015 numa palestra para o TED Talks, Bill Gates
profetizou: “Atualmente, o maior risco de uma catástrofe
global está num vírus altamente infecioso, não numa guerra.
Se algo matar 10 milhões de pessoas nas próximas décadas,
serão micróbios e não misseis”. Em boa verdade, desde o
início da humanidade, que as pestes, as febres e a cólera,
têm vindo a assolar a população mundial. Na atualidade,
com o ritmo frenético do crescimento urbano, a exploração
industrial desregulamentada em muitas partes do mundo
e a globalização, conjugada com a falta de investimento na
área da prevenção, mas acima de tudo regulamentação e
cooperação entre países e comunidades, veio propiciar um
desequilíbrio para o aparecimento de uma nova pandemia.
Contudo, também é verdade que muitas destas crises
vieram gerar transformações evidentes nos processos,
desde a implementação do sistema de saneamento, leis de
zonamento do território até à regulamentação habitacional
sobre iluminação e circulação de ar.
Numa visão geral sobre a atualidade, as tendências
pós-pandemia apontam para uma oportunidade de
desacelerarmos os impactos do Homem sobre o planeta.
Parte destas soluções já foram pensadas e projetadas
por grandes pensadores desde os anos 30, com o Arq.
Buckminster Fuller, que via na natureza um modelo de
eficiência máxima e de inspiração no design dos seus
projetos, até mais recentemente com o Arq. Stefano Boeri
que interliga a natureza no planeamento urbano e no
design dos edifícios, minimizando os efeitos da construção
e beneficiando não só o controlo da temperatura do ar,
assim como a absorção de grande parte do CO2 que as
cidades produzem.
Existe, portanto, uma oportunidade de revisitar o
passado reinventando-o com os avanços tecnológicos
do presente. Os edifícios do futuro partirão de uma
premissa não só de sustentabilidade mas também de
autossuficiência do mundo exterior, relativamente aos
recursos inerentes da sua utilização como o abastecimento
de água e aquecimento, minimizando assim, os riscos de
uma futura crise sanitária.
Porém, estas estratégias de pensamento e de atuação
terão que ser repensadas até ao tipo de comida que
colocamos nos nossos pratos. Uma vez que este é
apontado como o possível causador do Covid-19 nos
seres humanos. Assim, a agricultura urbana deverá
passar a fazer parte da nossa rotina diária. A produção
de pequenos cultivos, para além de nos proporcionar
segurança alimentar e oxigénio também está comprovada
que a interação física com as plantas é benéfica para a
nossa saúde mental. Impõe-se uma visão mais holística
não só sobre a construção mais sustentável de edifícios
mas também na relação entre estes, sempre com uma
abordagem multidisciplinar de complementaridade entre
as diferentes áreas.
Verifica-se que esta pandemia anunciada não é mais
do que o resultado do excesso de pressões que exercemos
sobre o nosso ecossistema e que, se não alterarmos o modus
operandi, outras virão com maior impacto e nesse caso
passaríamos a uma “Crónica de uma morte anunciada”.
Enquadro o tema através desta inspirada escultura, uma
metáfora e ilustração desta reflexão. Nada parecia indicar
que aquele cedro bem-nascido e melhor cuidado na
exclusiva escola de jardinagem de Versailles, depois de
quase 200 anos robustos, viesse a tombar pela fúria de uma
tempestade. Como ninguém poderia antever que viesse a
retomar uma outra vida pela mão de um grande criador.
O escultor italiano viu mais que a matéria inerte, (re)
encontrou nas suas entranhas outro ser, renascido numa
outra forma anterior de vida. Encontrou a primavera numa
árvore sem vida.
É imperioso acreditar que naquilo que existe tombado
podemos encontrar um tempo novo ainda que em parte
mais antigo. Voltar ao novo que é em grande medida
um tempo anterior: cidades e vilas com menos carros,
mais pessoas e crianças a brincar na rua, dar mais valor à
proximidade, à solidariedade, ao valor do nosso bairro, da
aldeia, sendo igualmente um tempo novo de conhecimento
e esperança e de alterações de modos de vida coletivos.
Quais os principais problemas que a atual situação
pandémica veio colocar à Arquitetura, às
cidades e ao território tal como os conhecíamos?
A pandemia veio expor os problemas que já eram
uma emergência – as cidades e os territórios estão
insuficientemente preparados e planeados, não têm a
resiliência e a flexibilidade para acomodar a vida de hoje e
muito menos os impactos brutais que estamos a viver.
Desfocados do essencial. Agora parados é mais
evidente. É imperioso valorizar na arquitetura, na
construção das cidades e no território, valores como o
conhecimento cientifico e os vínculos sociais, a qualidade
do ar, da água, do coberto vegetal, do ambiente, da saúde,
da segurança e, em geral, do equilíbrio dos ecossistemas e
da biodiversidade.
A falência da globalização. Deve valorizar-se a produção
local de bens essenciais, garantir a redução da mobilidade
imposta pela fragmentação urbana fazendo do quotidiano
um espaço mais equilibrado para trabalhar e viver, mais
flexível graças ao digital, multiplicando usos num mesmo
lugar, apostando na não dependência do exterior e nas
alternativas à motorização da vida quotidiana fixando-nos
em lugares de proximidade.
Qual poderá ou deverá ser o contributo dos arquitetos no
período pós-pandémico?
Liderar o conhecimento global e universal da
intervenção na cidade e no território. Responder para além
dos estímulos do mercado, antecipando e formulando
também respostas à dimensão social da arquitetura. Criar
melhores condições para a fixação de população nos
pequenos aglomerados, salvaguardando a paisagem na sua
dimensão social e cultural. Trabalhar no curto e no longo
prazo, começando já a articular respostas concertadas
entre o setor publico, o privado e o social.
Como podemos ou devemos preparar-nos para futuras
emergências globais, pandemias ou outras catástrofes
naturais?
Assegurar sobretudo resiliência aos territórios da
cidade ao campo – onde já existem boas experiências e
práticas, na auto-sustentabilidade quanto aos meios de
produção, à entreajuda e aos vínculos sociais, valorizando
os sentimentos de confiança, de vizinhança, de pertença e
de segurança.
Flexibilizar a gestão urbana, assegurando maior responsabilidade
nomeadamente aos arquitetos na procura de soluções
mais criativas e de melhoria do parque habitacional.
Encontrar novas soluções urbanas e no planeamento dando
alguns passos atrás para dar muitos outros em frente.
Este texto foi editado devido à sua extensão.
Clique neste botão para ler o texto original.
52
53
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Futuro Urbano Pós-Pandemia
Arq. Márcio de Campos
MEMBRO N. O 14674
(Sobre)Vivência
Marco Silva
MEMBRO N. O 26799
Após um período traumático de contenção de afectos e
afastamento físico, muitas questões se colocam tendo em
vista o futuro das cidades, dos comportamentos sociais e
das relações interpessoais. E são estes que, no tempo e no
espaço, continuarão a permitir a nossa coexistência. Os
ambientes construídos e as cidades são pontos de encontro
para que estas interacções aconteçam e perdurem. A
dimensão oculta que acontece nestes interfaces sociais,
por si só, é o espaço que nos aproxima, que nos distancia
e que torna possíveis as relações humanas sem que uma
determinada consciência revele essas evidências. Está,
intimamente, ligada à arquitectura e ao planeamento das
cidades. Já a obra literária A Dimensão Oculta, datada de
1966, da autoria do antropólogo Norte-Americano Edward
T. Hall, revelava uma análise profunda acerca do espaço e
como o ser humano se apropria dele.
Nas circunstâncias pós-pandemia este distanciamento
revela-se com outra carga e com outras consequências
sociais. No entanto, teremos que encarar estas novas
preocupações como oportunidades inadiáveis para a
mudança do actual modelo de cidade e das características
funcionais e construtivas dos edifícios. Urge um sentido
disruptivo de pensar os ambientes urbanos porque, de
facto, a relação com o espaço e a nossa recente percepção
sobre este, como indivíduo e como colectivo, leva-nos a
reflectir sobre diversos temas, tais como: modularidade,
reversibilidade, adaptabilidade, regenerabilidade,
habitabilidade, biodiversidade, sustentabilidade.
É necessária uma visão holística para colocar a natureza
e a biodiversidade em foco nos espaços urbanos através
da integração de nature-based solutions. Por outro lado, há
que introduzir novos sistemas construtivos sustentáveis
e fontes de energias renováveis que promovam uma
economia circular no sector da construção e que reduzam
as emissões de CO2 para a descarbonização no sector,
diminuindo, assim, a pegada ecológica e dotando as
cidades de ambientes mais saudáveis e inclusivos. Terão
que ser implementados novos sistemas dinâmicos e
evolutivos que permitam a desassemblagem como ponto
de partida para uma adaptação a novas necessidades
e programas que possam advir de outras emergências
futuras.
Este é o momento no qual os arquitectos têm um papel
fundamental na visão e transformação das cidades de uma
forma inovadora e resiliente, como ponto de partida para a
criação de valor económico, social e ambiental rumo a um
futuro sustentável.
Sem uma explicação concreta e absoluta, fomos rotinados
a que os meses passassem como semanas, as semanas
como horas, as horas como minutos, os minutos como
segundos e os segundos deixaram de existir. Existencialmente
foi nesta azáfama que fomos intercetados por algo
que nos fez refletir sobre o sentido de tempo e de lugar.
Às cidades faltou-lhes os seus elementos, quer sejam
eles naturais, artificiais, humanos, tangíveis ou intangíveis.
Neste período, a máquina cidade não funcionou ao
ritmo normal, ou pelo menos ao ritmo que todos nós lhe
incutimos. Objetivamente, a cidade sempre se ajustou aos
seus habitantes, mas hoje ela enfrenta problemáticas que
exigem resoluções instantâneas. A cidade sempre foi e será
um work in progress, muda a cada dia, hora e minuto.
Emergências globais, catástrofes, pandemias, guerras
ou qualquer outro evento terão a arquitetura como
parte fundamental da resolução. As transformações de
Haussmann em Paris (1853-1870) diretamente apontadas
ao controlo das rebeliões, acabaram por ser determinantes
perante a epidemia de cólera vivida nos meados do século
XIX; Paris pré-Haussmann é descrita em “Os Miseráveis” 1
de Victor Hugo como uma cidade insalubre, com traçado
medieval em que a população viva num amontoado de
casarios e em ruas sobrelotadas. Mais do que nunca, o
planeamento e a organização da cidade são essenciais para
todos os cenários presentes e futuros.
Irrefutavelmente a arquitetura é uma omnipresença para
todos, por isso ela tomou esta condição versátil e adaptável
a nós. Deste modo, a velocidade que estabelecemos
ao tempo também se conduz à arquitetura, já que
aparentemente tudo parece ser efémero e/ou transitório;
Estaremos nós a estabelecer um tipo de “arquitetura
descartável” que consiga responder momentaneamente as
nossas exigências, sendo destruída e reconstruída as vezes
que forem necessárias num curto espaço de tempo?
A verdade é que nós vivemos a arquitetura e a
arquitetura (sobre)vive por nós, indiscutivelmente trata-se
de uma simbiose.
1
Hugo, Victor, Os miseráveis, trad. Augusto Pinto, Grandes clássicos
da literatura universal, Estarreja, MEL Editores, 2009.
54
55
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Novas proxémias de
valores comunitários
Nós e a pandemia
Prof. Dra. Arquitecta Mónica Alcindor
Presidente do Conselho Científico da Escola Superior Gallaecia
Prof. Dra. Arquitecta Mariana Correia
Presidente do Conselho de Direcção da Escola Superior Gallaecia
Michel Toussaint
MEMBRO N. O 871
Estes momentos de confinamento obrigatório, aos
quais a nossa vida social foi submetida, proporcionaram
uma experiência única para se refletir sobre o papel da
arquitetura na vida individual e comunitária. A arquitetura
é uma das principais profissões responsáveis pela
construção dos edifícios nos quais ficamos confinados,
bem como pelos diferentes ambientes que definem o
espaço construído. Os nossos projetos podem exercer uma
clara influência nas relações humanas, pois somos um dos
principais agentes dos cenários em que o nosso quotidiano
ocorre. Como referido por Durkheim, a arquitetura é um
facto social material, ou seja, pode ser a petrificação de um
momento cultural.
Nos últimos anos, novas tipologias colaborativas
têm vindo a serem ensaiadas com maior dinamismo.
É o caso do cohousing, que surgiu baseado em design
intencional de habitação em comunidade. A pandemia
trouxe um novo desafio com outros riscos, que podem
passar despercebidos quando se tenta evitar a propagação
do vírus. Ao se colocar em primeiro lugar a segurança,
para se evitar o contágio, é possível que se promova
implicitamente um maior individualismo.
O principal objetivo desta reflexão, produto dos debates
tidos na esGallaecia nos distintos projetos do Mestrado
Integrado da Arquitetura e Urbanismo, é focalizar o papel
das emoções e do sentir da comunidade, em relação às
novas condições de segurança. Isso pode evitar que se sinta
o próximo como um adversário de quem nos deveremos
proteger. É importante ter em atenção a dinâmica do
espaço e do lugar e o papel da prática na construção
cultural dos lugares (Appadurai, 1988). Isso significa ser
sensível a uma abordagem baseada na retenção do senso de
comunidade, continuando com o trabalho de transformar
o “estar no mundo” em “estar em casa” (Han, 2020).
Os espaços devem continuar a gerar identidade,
reunindo grupos sociais heterogéneos, construindo
imagens da comunidade, estimulando redes de
relacionamento, regulando tempos coletivos. Em suma,
dando profundidade histórica ao “nós” (Cruces, 2010).
Evitando-se a exacerbação do individualismo, pode-se
combinar a ideia de um mundo de solidariedade, em
segurança, e com comunidades interdependentes.
A súbita invasão de um novo coronavírus que se supõe ter
sido transmitido de morcegos a humanos através de um
outro animal comido por estes, coloca imediatamente
a questão da nossa relação com a vida selvagem e,
mais amplamente o nosso lugar na Natureza, partindo
do princípio que somos animais nela incluídos, mas
extraordinariamente invasores sobre o planeta Terra,
provocando desequilíbrios cada vez maiores na medida em
que já ultrapassámos os 7 mil milhões de seres com mais
de metade deles urbanizados. As previsões para um futuro
próximo são assustadoras.
O cientista James Lovelock propôs o conceito de Gaia,
ou seja, do nosso planeta como um ser vivo onde foi a vida
que criou as condições para prosperar, como aconteceu
através dos tempos, deduzindo-se que a biodiversidade dos
sistemas ecológicos é fundamental para a sua prosperidade
incluindo a do ser humano. Timoyhy Morton, um
filósofo do Antropoceno, defende esta ideia e critica
veementemente que o covid 19 seja entendido como algo
que nos é exterior, que nos ataca e devemos lutar contra ele
como numa guerra.
Muitas das obras de Arquitetura, das intervenções nas
cidades, campos ou desertos, projetam-se e planeiam-se
isolando os humanos dos sistemas ecológicos e, ao mesmo
tempo, destroem-nos, em boa parte na procura do lucro
fácil e rápido ou da mais imediata sobrevivência, de acordo
com uma cultura económica que se reforçou com a última
globalização. Então como contrapor? Como procurar
encontrar equilíbrios? Gonçalo Ribeiro Teles avançou com
medidas legislativas e propostas de corredores ecológicos
nas cidades, mas esqueceu-se das cidades como um todo.
Elas são o ambiente biológico onde muitos de nós vivem.
Os arquitetos contemporâneos são os herdeiros de uma
tradição de trabalho com a complexidade que já Vitruvio
(século I a. C.) tinha modelizado e que fez caminho mau
grado a separação entre a Arte e a Técnica (e a Ciência) no
século XVIII, que tanto prejudicou a Arquitetura enquanto
disciplina. Hoje já ultrapassámos tal, e os arquitetos
têm um papel especial nas equipas multidisciplinares
de projeto. Deste modo os arquitetos estão preparados
para acolher, no seu modo de pensar e agir, uma maior
complexidade, nomeadamente incluindo a biodiversidade
nas cidades, nos seus espaços exteriores e interiores,
públicos ou privados e até a dar melhor respostas às
enormes desigualdades sociais que se têm aprofundado
nos últimos decénios.
Por fim, vale a pena lembrar um dos grandes arquitetos
da modernidade, esta que está na base destas crises que
hoje enfrentamos. Trata-se de Le Corbusier. Ele tentou
tomar o pulso de seu tempo e agir em conformidade.
Mas não esqueceu a nossa relação com a Natureza. Por isso
propôs os pilotis que permitiriam aos seres vivos prosperarem
pelo solo natural sem os obstáculos construídos,
propôs as coberturas em terraço ajardinadas que agora são
mais adotadas, e, no plano de urbanização de Chandigarh
incluiu generosos corredores verdes, um deles permitindo
os meandros de uma ribeira, para uma cidade fortemente
arborizada e ajardinada. Atualmente é considerada a cidade
onde melhor se vive na Índia. Le Corbusier morreu em
1965, mas o seu exemplo enquanto arquiteto que reconheceu
e trabalhou com a complexidade é ainda uma lição
acrescentada do que chamou de recherche patiente ou seja, ter
tempo para a reflexão (o que parece escassear hoje) e continuá-la
ao longo da vida profissional/intelectual.
Referências bibliográficas:
Appadurai, A. (1988), Introduction: Place and voice in anthropological
theory, Cultural anthropology, 3(1), 16-20.
Cruces, F. (2009), Símbolos de la ciudad. Lecturas de antropología urbana,
Madrid, UNED.
Han, B-C. (2020), La desaparición de los rituales. Una topología del presente,
Barcelona, Herder.
Este texto foi editado devido à sua extensão.
Clique neste botão para ler o texto original.
56
57
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Arquitectura do contexto de Pandemia
Miguel Amado
Coordenador do curso de Mestrado Integrado em Arquitectura, Instituto Superior Técnico
MEMBRO N. O 3726
A Arquitectura vai
mudar depois desta
pandemia? Não.
Nuno Abrantes
MEMBRO N. O 10503
Reabilitação do Bairro Machado Vaz, Campanhã, Porto.
Nuno Abrantes — Arquitectura Social, UzinaBooks 2019. Fotografia: Miguel Coelho
A situação de pandemia decerto não privará a humanidade
de fruir a sua maior criação. No limite, conduzirá a
mudanças nos modos de viver, trabalhar e socializar
em espaços que, como cidade, queremos transmitir às
futuras gerações. A arquitectura vê hoje o seu programa
construído através do articular de funções, áreas e espaços,
e, de repente, vê-se obrigada a garantir maior protecção
ao indivíduo com foco em requisitos de higienização e
distanciamento social. Este contexto, tendo implicação
na relação de dimensão do espaço destinado a actividades
e funções humanas, reforça o critério de flexibilidade e
adaptabilidade no programa de arquitectura. Esta nova
realidade vem exigir maior capacidade e rigor na solução.
A tendência recente de criação de espaços colaborativos
para habitar, trabalhar e conviver onde a partilha de
recursos tem sido procurada como vantagem económica,
poderá ser colocada em causa. As recentes soluções de
co-working e co-living, muito suportadas na rentabilização
económica do espaço, e no alcançar de maior inovação
da proximidade e interacção social, são hoje colocadas
em causa pela necessidade de distanciamento social e
o sucesso que o teletrabalho tem demonstrado. Assim,
o programa do arquitecto passa a ter de responder a
requisitos como o ser possível trabalhar, viver e descansar
num mesmo espaço.
Associada à questão, outra surgirá, como a separação
“virtual” entre espaço público e privado tanto no exterior
como no interior do ambiente construído. Estes elementos
terão impacto económico no investimento, mas também,
no contributo para preservar as condições para um elevado
nível de saúde pública, segurança e governança num
contexto inclusivo e de reforço da identidade comunitária.
E é aqui que o espaço público manterá o papel de lugar
fundamental do processo de reconfigurar a cidade
às exigências sociais de comportamento exigidas ao
funcionamento em sociedade.
Mas, se o distanciamento social contribui para o reforço
do sentimento de segurança mais imediato, coloca-se
a questão de como conseguirá o arquitecto manter as
condições para a intrínseca necessidade humana de
interacção social ou como é que a resposta ao programa
garante ao futuro utilizador a fruição das sensações e
ambientes criados como antes o fazia numa grande sala
de eventos ou numa actividade em grupo em espaços
construídos interiores ou exteriores. E é aqui que emerge
a urgência de nova resposta, já não apenas com suporte em
referências históricas e composição imagética, mas sim, de
dinamização de novos ambientes em que espaços criados
hoje irão permitir acomodar diferentes usos e assegurar
condições para um convívio social sem risco. Esta mesma
realidade e a sua transposição no programa da habitação
trará desafios para a redução da compartimentação
interior e uma maior área aos espaços para que estes
permitam o contacto permanente com o exterior, e que
diferentes actividades possam, em simultâneo, ter lugar.
Espaços cuja função não se restrinja a usos individuais,
mas sim partilhados, e que os requisitos de desempenho
de iluminação natural, acústica e térmica retomem o
papel que a arquitectura sustentável tem vindo a afirmar.
Em suma, a pandemia veio relembrar a discussão sobre a
prática do arquitecto e a questão do programa da habitação
segura, flexível e com acesso a serviços urbanos.
Nas últimas semanas surgiram alguns manifestos sobre
o que pode mudar depois desta pandemia Covid-19.
A maior parte passou despercebida em Portugal enquanto
andávamos a discutir as comemorações do 25 de Abril
de 1974.
As narrativas mais conhecidas, assinadas por políticos
ou artistas, são sobre economia, sociedade, ecologia, etc.,
e estão cheias dos lugares comuns habituais. As mais
inocentes falam no fim do Capitalismo, as mais moderadas
referem mudanças inevitáveis de “hábitos”. Temo que
o Capitalismo vai sair reforçado desta pandemia e que
algumas tradições tendem de facto a desaparecer.
Também na Arquitetura e Urbanismo surgiram algumas
manifestações sobre o pós-Covid.
Faço parte da minoria que acredita que esta pandemia
não vai provocar alterações relevantes. Na melhor das
hipóteses, vai apenas acelerar processos que já estavam em
mudança.
Aproveito este testemunho para eleger cinco pontos que
poderão caracterizar uma Arquitetura pós-pandemia, que
são exemplo do que acabei de referir.
1 - Os espaços terão que ser mais versáteis, polivalentes
e multifuncionais. Essa mudança já estava a ocorrer. Por
exemplo, a casa poderá ter um espaço que se reconfigura
de acordo com o que se pretende fazer em cada momento,
“estar”, trabalhar, fazer desporto, etc.
2 - As instalações sanitárias vão ser espaços com
maior importância. Podemos prever a separação das
loiças em compartimentos distintos, com o lavatório a
estar isolado na entrada. Já é vulgar em alguns países.
Poderá estar também na entrada da própria casa como
meio de desinfeção das mãos que passarão a ser lavadas
regularmente.
3 - Os edifícios terão de integrar varandas ou terraços
exteriores com áreas generosas. Poderão também incluir
uma “zona verde” comum para os moradores, permitindo
o encontro, ou uma estadia independente, mas segura.
4 - Os materiais dos “acabamentos” vão ter, para além
de uma manutenção mínima, características que dificultam
a propagação de vírus. Já acontece, por exemplo, em
edifícios hospitalares.
5 - A tecnologia terá também um papel mais
importante. Assistiremos à utilização generalizada de
sensores de luz, de reconhecimento de voz ou imagem
facial. Tudo para permitir abrir portas, usar elevadores etc,
sem tocar em puxadores ou botões. Já é usada em alguns
edifícios públicos.
É provável que estes períodos de confinamento se
repitam com maior periodicidade no futuro, permitindo
reflexões sobre o modo de habitar, nomeadamente pensar
como tornar a Arquitectura mais saudável e por isso
melhor.
Este texto foi editado devido à sua extensão.
Clique neste botão para ler o texto original.
58
59
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Prova de vida
Paula Araújo da Silva
Directora-Geral do Património Cultural, Janeiro 2016 - Fevereiro 2020
MEMBRO N. O 3001
O ensino da arquitetura
em tempo de confinamento
– A experiência do ISCTE
Paulo Tormenta Pinto
Director do Departamento de Arquitectura e Urbanismo / Sub-director da Escola de Tecnologias e Arquitectura
ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa
MEMBRO N. O 5157
Pavilhão de madeira escurecida para o Martim
Moniz, desenvolvido em tempo de confinamento
pelos alunos Ana Sofia Silva, André Filipe, Basir
Azami, Jakob Stuwe, João Neves
Era impensável em janeiro imaginar a vida, hoje, neste dia
de maio, em que escrevo este texto a pedido pelo Colega
e Amigo José Manuel Pedreirinho sobre o momento que
atravessamos.
Sabemos que as alterações dos modos de vida e de
pensar vão mudando ao longo das gerações, mas não
sabíamos que tal se poderia verificar de um dia para o
outro, sem tempo de preparação.
A clausura doméstica imposta pelas circunstâncias,
obriga-nos a pensar, avaliando o ontem e o amanhã, para
além do nosso próprio e importante espaço que nos dá
(sempre) proteção.
Lá fora existe agora o dramático silêncio e insegurança,
fotograma do contínuo bulício da nossa atividade e vida
urbana, cheia de tensões e desequilíbrios, desigualdades
sociais e económicas.
O retorno não vai ser pacífico, nem imediato,
habituados que estávamos ao frenesim, à velocidade e à
globalização, à mudança de valores e princípios, que muito
contribuíram para a perda da nossa qualidade de vida.
Seguramente temos de equacionar novos conceitos e
formas do espaço, da cidade e do território onde vivemos,
redesenhando-os, propondo outras acessibilidades e
mobilidade nos percursos de atravessamento e passagem,
com os indispensáveis momentos de encontro e
sociabilidade, de lazer e recreio; eliminando a segregação
de grupos sociais e de suas precárias condições de
habitabilidade; preservando o Património edificado,
degradado, vítima eterna das estratégias políticas nas
cidades e nos territórios abandonados.
Encaminhada que esteja a questão de saúde pública
e de recuperação da economia, compete-nos também a
nós Arquitetos, com a Sociedade, entender estes sinais
de mudança, e propor a transformação necessária e
indispensável dos modos de habitar e de ocupar os
territórios!
A pandemia do novo coronavírus acelerou processos de
ensino à distância que há muito se falavam nas escolas
de arquitetura sem grande adesão por parte dos docentes.
De um dia para outro os cursos do Departamento
de Arquitetura e Urbanismo do ISCTE adaptaram as
suas práticas pedagógicas às medidas de confinamento
impostas pelo estado emergência e passaram a realizar-se
através da mediação de softwares de videoconferência
e de partilha digital de dados. As aulas de projeto,
tradicionalmente assentes em práticas tutoriais de
grande proximidade, passaram a processar-se na sua
maioria através de ZOOM, com partilha de elementos
gráficos. A produção de maquetas de grande dimensão foi
preterida, e em alguns casos compensada com simulações
tridimensionais de pequena dimensão, apresentadas pela
câmara do computador. As aulas teóricas, aparentemente
mais óbvias no atual sistema, passaram a ser dadas sem
o calor dos auditórios repletos de alunos que em massa
motivavam a eloquência dos docentes. O balanço desta reta
final de semestre é apesar de tudo positivo, somando-se,
ao pragmatismo da adaptação dos processos pedagógicos,
uma assiduidade constante por parte dos alunos, que
se traduziu na maior parte dos casos num aumento de
produção e consequente evolução de percurso.
A descodificação destes resultados carece, no entanto,
de uma análise mais fina. Deverá considerar-se que a
relações de proximidade entre alunos e professores já
estava garantida antes da pandemia. Que os trabalhos na
maior parte dos casos já estavam lançados e que os alunos,
devido ao confinamento, se apresentam disponíveis para
participarem nas aulas. A conjuntura também desafiou
o sentido de responsabilidade dos docentes, aguçando
uma renovação discursiva, portadora de novidade que em
muitos casos se estendeu à participação à distância de
convidados menos prováveis.
Não obstante os factos e os resultados, impera uma
inquietante estranheza, que recorda a interpretação
feita por Anthony Vidler, do conceito freudiano de
Das Unheimliche, em The Architectural Uncanny. Apesar
da familiaridade dos procedimentos recriados pela
digitalização do ensino de arquitetura, tudo na realidade
é angustiante e confuso, sem o recurso do verdadeiro
laboratório do ensino da arquitetura que reside na
apreensão do território pela experiência do corpo.
A sociedade, em acelerado processo de mudança, trará à
tona novos programas e até possivelmente novos modelos
de cidade que desafiarão os arquitetos na busca de novas
representações. Contudo, a base disciplinar da arquitetura
prevalecerá, estando dependente de uma sensibilidade
sobre a implantação, as proporções, as temperaturas, a
lisura ou aspereza dos materiais, ou o reconhecimento da
própria cultura arquitetónica – o maior desafio colocado
pela pandemia reside em transmitir esta base num
contexto pautado pelo temor e pelo confinamento.
60
61
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Três temas de
uma Pandemia
na Arquitectura?
Pedro Brandão
Presidente da Associação dos Arquitectos Portugueses, 1993-1995
MEMBRO N. O 1049
O tempo pergunta ao tempo...
Pedro Ressano Garcia
Diretor do Departamento de Arquitetura, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias
MEMBRO N. O 4850
Que problemas se colocam? Que contributos para a
reflexão? Como nos preparamos?
O convite, que agradeço, para “assinalar um momento
em que nos confrontamos com mudanças no mundo…
e na forma do exercício da nossa profissão. O J–A propõe
três questões:
· Quais os problemas que a situação pandémica veio
colocar à Arquitetura, às cidades e ao território?
· Qual poderá ou deverá ser o contributo dos
Arquitectos no período pós pandémico (covid-19)?
· Como devemos preparar-nos para futuras emergências
globais, pandemias e/ou outras catástrofes?
…e ainda sugestões para enfoque: “A análise tipológica
(habitação, saúde, equipamentos escolares ou colectivos),
a prática profissional (a “dimensão arquitectónica”) e a
importância do desenho das cidades e da arquitectura, na
qualidade dos espaços, interiores ou urbanos...”.
Fazendo um esforço sobre os Problemas, Reflexões
e Preparações, que fizemos desde que existe a Ordem,
lembra-me algumas coisas, entre as quais uma corrupção
da ideia de representatividade, valorizando mais
interesses próprios que as responsabilidades públicas dos
arquitectos. A apetência para intervir nos domínios de
interesse público leva-nos com leviandade à oportunidade
de sermos nós a capturar, no caso, o prémio “assim vai
ficar tudo bem” (levar-nos-á a sermos nós a inventar o uso
do modelo de semáforos e os horários de frequência dos
espaços públicos urbanos em geral?).
Por definição, a Ética e a Responsabilidade profissional
são o âmago da finalidade e legitimidade da OA e a sua
máxima reside num serviço de interesse público (ou espaço
geral) a orientá-la. Ora, entre os últimos anos lembro-me,
aquando dos incêndios de 2017 que destruíram casas e
vidas, a um balbuciar de disponibilidade, acção da qual não
houve qualquer registo nem avaliação do serviço. Antes
disso, as exposições tidas por interessar – senão sustentar
– opiniões sobre exemplos e contributos, sugestões ou
critérios “inquestionáveis” e auto-legitimados afastam-se,
quase sempre, dos problemas, contributos e emergências.
A Arquitectura tem problemas! Como devemos
“reflectir”? ou prepararmo-nos? Para que servem, nestes
momentos de espaço associativo em processo eleitoral, se
somos hoje menos capazes de reflexão e ainda menos de
colocá-la ao serviço geral, se apenas nos exibimos como é
hábito, em bicos de pés?
Lembro-me, assim, quando noutras gerações se
discutiu e lutou com melhores insígnias, para defender
melhores modos de construir e de viver. Nesses outros
momentos defenderam-se patrimónios eruditos e
populares da arquitectura, noutros a habitação condigna
para o maior número, e (ainda a medo) os meios urbanos,
os espaços e os territórios herdados, como direitos da vida
a que todos têm direito.
Hoje, teremos recursos de conhecimento para
evidenciar ou iremos mais uma vez soltar a nova
oportunidade para publicar imagens de “gosto
sofisticado”? Talvez para novos centros de saúde, hostels
e lares “inovadores”, museus e outros locais de encontro
lúdico… O que faremos na Pandemia? Façamos antes
verdadeiras perguntas… sobre o que agora não sabemos
ainda responder: para que serve o Interesse Público na
Arquitectura? E... como começar de novo?
A história mostra-nos que as gerações anteriores
enfrentaram o isolamento social trazido por pandemias,
guerras ou desastres naturais. É novidade apenas para a
nossa geração – qual a diferença entre nós e os nossos
antepassados?
Antes de mais, o espaço da habitação era partilhado
por grupos alargados e famílias transgeracionais, as
vilas operárias albergavam grupos com forte sentido de
comunidade. Os pátios eram partilhados e os conventos
continham uma parte significativa da população. O que
mudou no tempo presente?
As famílias diminuíram, a unidade de habitação tem
vindo a ajustar-se ao estilo de vida assente no indivíduo.
Nunca houve tanta gente a viver sozinha.
Porém também é verdade que nunca houve tanta gente
ligada através dos meios digitais. A nossa condição física
passou a ter o acréscimo da nossa dimensão digital,
relacionada com o espaço do fluxo e um tempo maleável.
Partilhamos informação e estabelecemos relações
independentes do espaço e do tempo.
A pandemia veio proporcionar uma aceleração de
transformação da sociedade. As pessoas verificaram que
fazem muito sem sair de casa, o teletrabalho permitiu
expandir ações (ensino, reuniões, webinars, comércio,
etc.). A ligação à internet gera uma existência quase
omnipresente, liberta do espaço geográfico e do tempo
onde está o corpo. A realidade física e temporal torna-se
uma opção e deixa de ser uma condição mas o estado de
confinamento lança novas questões.
Cresce uma reflexão conjunta sobre os aspectos
positivos e os negativos. As emissões de CO2 baixaram,
o hiperconsumo freou, o tempo desacelerou embora a
partilha de dados continue a alimentar algoritmos que
geram uma nuvem de neurónios digitais.
A partilha de meios de transporte, da informação, a
geração própria e troca de energia, a produção das hortas,
são alguns indicadores da crescente nova forma de viver
em rede viabilizada pelo digital e suas aplicações. O acesso
à informação facilita uma comunidade mais esclarecida,
desperta para as novas oportunidades, com maior
consciência ambiental e atenta às alterações climáticas.
A legislação já começou a seguir esta tendência.
A arquitectura vai nesta direção, revendo os seus
paradigmas. No século XX o gosto dominante valorizou
grandes envidraçados, espaços rasgados pela transparência
com o exterior. Ao modernismo seguiu-se o minimalismo
com soluções que consomem mais energia, e exigem
maiores emissões de CO2 para visualmente parecer menos.
A cultura do século XXI valoriza o espaço fluído,
flexível, que utiliza materiais leves e mutantes, impõe
soluções de baixo consumo energético, equilíbrio térmico
passivo e materiais ecológicos. A geração que ascende
adere a uma nova estética que valoriza estruturas não
lineares, ambientes de mutação flexível e equilibrada com
soluções maleáveis capazes de seguir as dinâmicas do
meio ambiente, valorizando a adaptação da componente
ecológica. Será esta a geração que vai acelerar a
transformação?
62
63
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Pitum Keil do Amaral
MEMBRO N. O 299
Projetar o futuro pela voz do arquiteto:
Desafio e oportunidade
Raquel Maria Airosa
MEMBRO N. O 24477
Quem podia prever que o mundo – todo o mundo –
ia sofrer o horror de uma pandemia que está sacrificando
milhões de vítimas mortais e obrigando a sociedade a
constrangimentos e alterações na sua vida tão radicais
como os que estamos sofrendo – e não sabemos quando
terminarão?
Encontro-me no fim da vida. Naquela fase típica
em que o nosso pensamento é habitado por memórias,
revisitações de aquilo que foi o tempo que passamos por
cá, à observação do estado actual das coisas e a conjecturas
sobre o futuro que espera os nossos filhos e netos...
e todos os seres viventes neste planeta, afinal.
Neste conjunto de reflexões havia já um muito
considerável pacote de frustrações, recriminações,
preocupações e incertezas.
O surgimento da actual calamidade trouxe-nos,
cruelmente, uma angústia acrescida.
Se, honesta e sinceramente, posso dizer que tive uma
vida feliz, que pena me faz ver acumularem-se, nos nossos
dias, tantos problemas graves a atormentar-nos!
O planeta Terra já sofre de enfermidades cuja solução
se afigura bem difícil! Não nos fazia falta esta ameaça
invisível, insidiosa e mortal.
Penso nas alterações climáticas e tudo o que elas
implicam: calamidades naturais, incêndios, subida do nível
dos oceanos, extinção de espécies da fauna e flora, escassez
de água potável. Escassez de alimentos. E também na
poluição atmosférica, e dos solos, e das águas, causada
pelo excesso de população, pelas indústrias, pelas viaturas
e tudo o mais.
Situações que nos próprios, humanos, causámos.
E às quais estamos a reagir de que forma?
Com uma economia baseada num consumismo insaciável;
esbanjando matérias primas e fontes de energia; usando
a tecnologia para a produção constante de novas armas;
mantendo guerras intermináveis; aumentando o parque
automóvel; poluindo os oceanos...e a lista continuaria
por aí adiante.
Não para de aumentar a diferença entre ricos e
pobres (países e/ou pessoas). A população converge para
megalópoles que acumulam problemas urbanísticos
dramáticos, em especial de alojamento – das favelas
insalubres às torres de habitações com densidades
inimagináveis, psicóticas. A que se seguem as questões
dos transportes e deslocações.
Na Política, os interesses económicos condicionam
tudo: Trabalho, Saúde, Segurança, Educação, Cultura,
Desporto, Lazer.
A Justiça não é eficaz contra a corrupção, a violência,
a criminalidade, que estão presentes em quase todos os
sectores. Basta seguir os meios de comunicação social.
E há um pensamento que ocorre com frequência às
pessoas: E se toda a população do mundo aspirasse a uma
qualidade de vida minimamente justa?
– a comer, por exemplo, todos os dias – para começar
logo pelo mais elementar...
– a ter uma habitação,
– a ter saúde,
– a ter meios de subsistência.
Acho que já foi mais do que analisada esta hipótese
pelos entendidos. Para concluir que, tal como o planeta
está organizado, não tem capacidade para dar de comer
à população existente, quanto mais à que está crescendo
diariamente, a um ritmo acelerado.
A pandemia COVID-19 transformou a forma como vivemos
a nossa vida, a nossa casa e a cidade.
De forma catastrófica, desapareceram as cidades
em constante metamorfose, cheias de movimento e de
vida, que sensualizavam o investimento e a dinâmica
dos metabolismos individuais e coletivos, e forçou-nos o
isolamento, criando cidades-fantasma, enfraquecendo a
estrutura económica, desequilibrando sinergias e pedindo
a reflexão de uma nova forma de viver a cidade.
O grande ponto positivo neste problema é que de
projetar cidades compreendem muito bem os arquitetos,
o ponto negativo é que não têm sido utilizados, na sua
verdadeira grandeza, as suas competências técnicas e
intelectuais nos últimos tempos. Existe uma luta que se
prolonga entre os prazos curtos e os orçamentos reduzidos
versus a exigência de qualidade, e, ao mesmo tempo,
uma diminuição da área habitável potencializando mais
lucro versus a criação de espaços de qualidade e temos
perdido a luta aos poucos e poucos desvalorizando a arte e
diminuindo a qualidade do objeto arquitetónico.
Como é que se valoriza a arquitetura? A valorização da
arquitetura é feita pelos mesmos que a desvalorizam: as
pessoas. Qual tem sido o papel da arquitetura e qual será
no futuro? A arquitetura sempre funcionou como uma
resposta às grandes crises, pela forma como se molda
às necessidades da cidade e das pessoas, renascendo de
desastres, epidemias e guerras com novas soluções e ainda
mais resiliente. Ao mesmo tempo, a forma como projeta
a densidade das cidades tem um papel fundamental na
propagação das pandemias e é urgente repensar soluções.
Neste momento crítico começamos a compreender o
bem inestimável que é o conceito de espaço, bem como o
privilégio do exterior, e o problema existe na nossa casa,
no nosso bairro e do nosso local de trabalho até à escala
da cidade. Os arquitetos são desafiados a re-imaginar
e reestruturar as cidades para criar ruas e bairros mais
verdes, mais sustentáveis e resilientes, através de estratégias
pontuais catalisadoras de regeneração urbana, medidas que,
não sendo novas, terão toda uma escala significativamente
maior. Existe também um desafio na configuração de
espaços de trabalho e espaços públicos equacionando a
redução de fluxos, o aumento da utilização de automatismos
e tecnologia sem contacto e o investimento maior em
unidades de saúde e questionando-se a rentabilidade futura
de arranha-céus neste novo paradigma.
O maior desafio encontra-se na habitação. A falta de
espaço depende da incapacidade de acompanhar os valores
de mercado e a diminuição da procura pelo arquiteto é
agora visível na inadequação dos espaços à realidade que
nos foi imposta.
Num futuro distante, o trabalho remoto permitirnos-á
viver fora das cidades principais com as mesmas
oportunidades profissionais e outros privilégios, como
a flexibilidade de espaço e o aumento de espaço exterior,
revitalizando áreas despovoadas com cidades-satélite e
desenvolvendo a rede de transportes, oferecendo novos
postos de trabalho e revigorando o pequeno comércio,
diminuindo a densidade dos grandes centros urbanos.
As soluções irão aparecer gradualmente e de forma
intencional para corresponder às necessidades da nova
realidade, sendo importante a formulação de novas
políticas e regulamentos da responsabilidade das pessoas
competentes para garantir a qualidade de vida e das
soluções e, deste modo, revalorizar a arte de projetar.
64
65
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Crónica de uma docente de arquitectura
nos inícios da pandemia de Covid-19
Sofia Aleixo
MEMBRO N. O 4598
Os novos (ou velhos) desígnios da Cidade
Vanessa Pires de Almeida
MEMBRO N. O 15399
A 2 de Março Portugal tinha apenas 2 casos confirmados
de COVID-19, localizados a norte do país. Dois dias depois,
a Universidade de Évora emite uma circular onde desaconselha
a mobilidade. Nessa semana, anoto na minha agenda
“avisar Estónia do cancelamento da mobilidade docente
ERASMUS +”, programada para final de Abril, e escrevo
a lápis na esperança que a situação se alterasse.
A visita de estudo que tinha agendada a Lisboa com os
meus alunos de Projecto II, no dia 5, corria o risco de não
se efectuar. Nesse dia, os 9 casos confirmados no nosso
país e os quase 100.000 no mundo confirmavam a circular
do dia anterior, tornando expectável o impedimento de
deslocações de membros da academia. Teria mesmo de
enviar um mail para a Estónia.
Com autorização superior, um autocarro transportou
50 alunos do 1 ano do Mestrado Integrado em Arquitectura
a Lisboa. Aqui foram recebidos na Sala de Honra da
Fundação Calouste Gulbenkian, depois de terem visitado a
exposição onde tomaram contacto directo com 12 formas
diferentes de intervir no Jardim e de comunicar as suas
ideias, entre arquitectos nacionais e estrangeiros. Foi um
dia feliz, como são os dias de visita de estudo de arquitectura
com os alunos a qualquer cidade.
A aprendizagem pela experiência sensorial da arquitectura,
defendida por Juhani Pallasmaa, inclui o tacto, o cheiro,
a visão e as mensagens que transmitem ao nosso cérebro
que se “materializam” num repositório de memórias a que
nós, como arquitectos, recorremos no momento de projectar.
E por isso, as visitas de estudo em arquitectura proporcionarem
momentos únicos de despertar os sentidos, de
escutar a arquitectura, de sentir o movimento pelos espaços,
de saborear a luz que atravessa aquele vão e a sombra que
projecta em seu redor. Por isso, insubstituíveis no ensino.
13 de Março seria o dia em que um Decreto-Lei estabelecia
medidas excepcionais e temporárias relativas à situação
do COVID-19, suspendendo as actividades lectivas presenciais
em estabelecimentos de ensino públicos a partir
do dia 16. Foi autorizada pela Universidade a substituição
dessas aulas com a passagem temporária ao “regime de
teletrabalho como forma preferencial de desempenho da
actividade profissional”. Em resumo, os alunos tiveram
cinco semanas de aulas presenciais neste semestre.
Segunda-feira, 16 de Março: primeiro dia de confinamento,
em teletrabalho. A circulação nas ruas diminuiu,
nos supermercados fazem-se filas à porta e compram-se
enlatados, leite, congelados e café. Em casa, com o atelier
fechado e os colaboradores em teletrabalho, planeia-se a
semana de aulas e de trabalho, projecta-se o futuro próximo
na incerteza do presente. Diversos eventos e conferências
são cancelados. Enfim, teria sido uma semana cheia, esta
em que, no primeiro dia de aulas on-line, a 17, se registou o
primeiro óbito em Portugal e em que me apercebo que a última
vez que abracei e beijei os meus pais e as minhas filhas
foi… já há mais de uma semana. Na véspera de implementação
do estado de emergência, 23 de Março, Portugal regista
14 mortos e 1.600 casos.
A necessidade de manter a motivação e compromisso
que a prática diária de atelier gerava, a definição e atribuição
de tarefas significativas e minimamente interdependentes
para manter os contactos, e a demonstração de reconhecimento
pelo progresso do trabalho são dificuldades acrescidas
às tarefas de gestão normais, onde a manutenção
de uma cultura de atelier neste “novo normal” requer a
redefinição de estratégias. Mas mantenho a escrita a lápis,
semana a semana, do dia do retorno, do contacto pessoal,
da troca de ideias num coffee break com um lápis e o projecto
na mesa. E não há rato, nem écran, nem som que substitua
o cheiro do café que, com o entusiasmo, se entorna sobre o
projecto numa animada conversa sobre arquitectura.
No resgate de algumas das medidas de combate à
Pneumónica [“evitar a permanência em lugares fechados
onde haja grandes aglomerações”, “arejar-se largamente
as habitações e lugares de trabalho” (O Comércio do Porto, 15
junho 1918:1)], adotadas por Ricardo Jorge [numa altura
em que o Diretor-Geral de Saúde relatava: “não se oferece
profilaxia efetiva e eficaz a exercer contra tal epidemia
que não seja a higiene geral e assistência dos atacados
preferentemente em hospital de isolamento” (O Comércio
do Porto, 25 setembro 1918:1)], dois axiomas invadem,
atualmente, o pensamento na construção da cidade, de
um amanhã assombrado por epidemias: a carência, na
habitação, de espaços exteriores privados, qualificados e
confortáveis; e a grande dependência da sociedade de uma
gestão eficaz dos serviços públicos e privados, de imediato
acesso e empregabilidade pela população local.
Seria razoável pensar que o abandono das cidades
resolveria o problema da rápida propagação de
epidemias; porém, criaria outros, que emergem perante
as oportunidades, a diversidade e a escala das cidades,
nomeadamente com a gestão dos recursos disponíveis.
Com o confinamento, a distinção entre o necessário
e o supérfluo está a ser clarificada, e a hierarquia de
necessidades reposta, revelando, particularmente,
a importância de espaços exteriores privados, que
prolonguem a atividade rotineira de uma habitação,
nunca antes tão vivenciada, assim como de serviços que
demonstram ser imprescindíveis à sobrevivência de uma
sociedade, constantemente transformada a partir de
fenómenos como este, que desequilibram e alteram a
ordem preestabelecida.
Impõe-se, assim, analisar a cidade, partindo da
compreensão integral dos fenómenos que compõem a
vivência das comunidades, articulando, por meio de dados
recolhidos e modelos analíticos, os diferentes sistemas
que a integram, identificando padrões, procurando a
adequada otimização de recursos e, quem sabe, prever
as fragilidades de uma comunidade com a alteração de
variáveis.
A gestão dos serviços públicos [fornecimentos de
água, energia elétrica, comunicações eletrónicas, serviços
postais, recolha e tratamento de águas residuais e resíduos
sólidos urbanos, transporte de passageiros, saúde,
escolas,…] deve ser articulada com as necessidades das
comunidades, prevendo, e até moldando, quando crucial,
os seus comportamentos, em prol de uma eficaz gestão
urbana e, consequentemente, de uma confortável (con)
vivência.
Este texto foi editado devido à sua extensão.
Clique neste botão para ler o texto original.
66
67
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Fotografias da Quarentena
Paulo Santos
68
69
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
70
71
A GYPTEC, empresa portuguesa produtora de placas de gesso,
desenvolve soluções para construção e reabilitação, sendo
presença incontornável nas principais obras em toda a Península
Ibérica. As placas de gesso Gyptec são resistentes ao fogo, impacto
e humidade, e têm elevado desempenho térmico e acústico.
Mais do que placas de gesso, a Gyptec tem a solução!
Agora com isolamento
em lã mineral
Este produto de crescente procura no
sector da construção vem aumentar a
vasta gama de soluções disponibilizadas
pelas empresas do Grupo Preceram, e mais
diretamente complementar os sistemas de
placas de gesso da Gyptec Ibérica.
Da melhor matéria-prima
nasce o conforto
Ferramentas de
Apoio Técnico
—
Imagem: do.co.mo.mo_internacional https://www.docomomo.com/
Figueira da Foz • T (+351) 233 403 050 • apoiotecnico@gyptec.eu • www.gyptec.eu
297X890mm RT
A classic, slightly aged-looking ceramic wall tile
as old stone... with delicate random sparkles to
give each room a unique touch of light.
Um revestimento clássico de aspeto ligeiramente
envelhecido, como a pedra antiga ... com delicados
brilhos aleatórios, para dar um toque único de luz a
cada espaço.
www.pavigres.com
Anexo
Textos completos
Jornal Arquitectos // Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial // Anexo
Versão integral do texto da página 15.
Arquitetura no risco e o desígnio
de um futuro compreensivo
Avelino Oliveira
Presidente da Assembleia de Delegados da OA
MEMBRO N. O 6060
Foi da gestão do risco que emanou a crise provocada
pela Pandemia COVID 19. Foi consequência desse
risco que se observa uma situação que veio e irá
provocar alterações significativas no funcionamento
do ambiente construído, não só nas cidades, mas em
todo o território. A mobilidade foi o primeiro sector a
sofrer as consequências desta crise do risco – fronteiras
fechadas, proibição de circulação, tráfego aéreo comercial
encerrado, redes de transportes ferroviárias e rodoviárias
reduzidas e tremendamente condicionadas. Tudo
procurando mitigar o risco da contaminação exponencial
– procurando transformar uma curva cartesiana numa reta
de nível. O efeito deste medo urbano (Bauman) foi como
se o mundo carregasse no botão PAUSE. Neste cenário,
o sector imobiliário, subitamente, quase num espaço
sincrónico de umas horas, tomou consciência que iria ser
impactado pelas ondas de choque de uma economia que
travou a fundo. E os produtores de espaço, nomeadamente
os arquitetos, tornaram-se espetadores atentos de um
processo que não conseguem controlar e sentiram na
pele o que é viver numa sociedade de risco. Nada que as
palavras de Ulrich Beck (1992) não tivessem antecipado
quando afirmou que estes fenómenos eram o resultado
da modernização reflexiva onde as consequências do
desenvolvimento científico e industrial acarretava um
conjunto de riscos que não podem ser contidos e onde
ninguém pode ser diretamente ¬responsabilizado,
nem os afetados podem ser compensados. Segundo
o autor alemão a primeira modernidade baseava-se
nas sociedades confinadas ao Estado-nação, onde as
relações sociais, as redes e as comunidades assumiam um
caráter eminentemente territorial, mas a globalização,
a individualização favoreceram o aparecimento de uma
segunda modernidade cujos riscos globais assentam em
vulnerabilidades locais (riscos ambientais, financeiros
e segurança – terrorismo). O Estado assume, assim, um
papel central, um Estado-herói como se fosse a metafórica
imagem de um filme americano de ação e suspense
(se possível protagonizado por Tom Cruise), em que o
iminente desastre ocorre em câmara lenta, depois em
câmara muito lenta, terminando em flashes – diafragma
a diafragma – e onde o protagonista ou é salvo in extremis
ou morre para logo ressuscitar como um Jason Bourne
qualquer.
Mas se a ficção for derrotada pela crua realidade,
a questão atual é saber se os arquitetos saberão fazer
“arquitetura no risco”, criando espaço facilmente adaptável
à vida contemporânea e ao mesmo tempo flexíveis para
posteriores mudanças ou ajustamentos no curto ou
médio prazo. Casas que também são locais de trabalho,
escritórios que passam a incluir lógicas antes só aplicáveis
a instalações hospitalares, espaço público marcado por
dinâmicas de distanciamento social.
Só se isso acontecer de forma consistente podemos
colocar o debate sobre a mudança do paradigma
urbano centrado numa perspetiva de complexidade eco
sistémica, tão eficaz que funcione, não como um chavão
publicitário que promete transformar em ouro tudo o
que reluz, em limpo tudo que é sujo, mas como resposta
aos pressupostos do paradigma evolutivo, humanista e
compreensivo. O padrão contemporâneo da flexibilidade
e da adaptabilidade assenta, como refere Avi Friedman
(2002), em processos de simetria, reflexivos, através
dos quais o homem se ajusta e se adequa à construção;
mas a construção é também adequável, transformável,
suscetível de receber ações transformadoras, como as
nossas casas. Logo, a casa será a base das construções do
novo paradigma, e mais do que o espaço da organização
fixa como a classificava Edward Hall (1986) será uma
“habitação ética”, proveniente do ato de residir.
Numa sociedade mais humana e estando a arquitetura
obrigada a avaliar a cultura do seu próprio tempo, de
que modo pode ela, enquanto ferramenta, capacitar a
humanidade, no seu sentido mais amplo, potenciando a
complexa rede de relações existentes entre quem investiga,
quem decide, quem projeta, e quem habita?
A resposta não é digital, nem tecnológica, nem
automática, nem smart, nem domótica. É, isso sim,
apreendendo o risco e desenhando com métodos e
processos compreensivos. Ou seja, não serão as áreas
tradicionais das ciências exatas a “contaminar” o processo
do projeto arquitetónico, mas antes o seu contrário, será
a arquitetura, como ação transdisciplinar, abrangente,
cultural e racional, a alterar o paradigma disciplinar pois
a produção de espaços é uma ferramenta do futuro.
Voltar ao texto resumido, página 15.
76
77
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial // Anexo
Versão integral do texto da página 51.
COVID-19:
Entre a Consequência e o Pretexto
Luis Pinto de Faria
Coordenador do curso de Mestrado Integrado em Arquitectura e Urbanismo, Universidade Fernando Pessoa
MEMBRO N. O 6059
Muito se tem escrito e falado relativamente ao que poderão
vir a ser as consequências do surto epidémico COVID-19
(Corona Virus Disease).
De acordo com os resultados de uma análise bibliométrica
efetuada às publicações disponíveis nas principais
bases de dados de indexação 1 , só durante o mês de março
de 2020 foram publicados 1200 artigos científicos sobre
esta pandemia.
Apesar da área científica da arquitetura e do urbanismo
ter pouca representatividade neste “surto” de publicações,
os exemplos que têm vindo a público revelam já alguns sinais
do que poderá vir a ser o posicionamento da disciplina
no contexto desta crise.
De facto, um breve relance sobre estes e outros estudos
também direcionados à avaliação do impacte da COVID-19
no modo de pensar e fazer arquitetura, permite detetar a
predominância de dois tipos de abordagens complementares:
uma de perfil mais determinista, alicerçada na capacidade
técnica e tecnológica da disciplina e empenhada
na apresentação de “soluções” imediatas para os desafios
funcionais que, entretanto, se antecipam (e.g. introdução
de medidas com vista à prevenção de contágio; adequação
dos espaços de confinamento) 2 ; e um segundo tipo de
abordagem mais reflexivo, inspirado nos medos e incertezas
da população quanto à avaliação dos riscos higiénico-
-sanitário dos grandes aglomerados populacionais 3 , e que
tende a direcionar o seu discurso ao que Richard Register
classificou como “impulso à eco cidade”. 4
Desde as perspetivas mais mecanicistas às mais românticas,
parece ser unanime concordar que:
A configuração/qualificação dos espaços teve um impacte
significativo, não só, no modo como os territórios souberam
adaptar-se a esta crise, como também, na capacidade resiliência
da população durante todo o período de confinamento;
Este surto epidémico está a contribuir para que a arquitetura
se volte a repensar técnica e metodologicamente no
sentido de melhor adequar o exercício da sua prática aos
novos requisitos, medos e ensejos da população;
No entanto, apesar destas propostas nos darem já alguns
sinais de como a disciplina está a reagir a esta pandemia,
considera-se que o verdadeiro significado desta crise
apenas será compreensível no contexto de um conjunto
alargado de transformações de ordem social, económica e
política que, à semelhança do que sucedeu na viragem do
século XIX para o século XX, não só sugere a referida necessidade
de revisão técnica e metodológica da disciplina,
como também induz um processo de revisão dos critérios
de verdade e validação pelas quais a arquitetura perceciona
a realidade e como é percebida nessa realidade.
De facto, nesta nova transição de século, o rápido crescimento
dos grandes centros urbanos, a reestruturação do
sistema produtivo, o desenvolvimento das novas tecnologias
da comunicação e da informação, os novos modelos
económicos, a industrialização moderna, os novos modelos
de organização social, bem como as ciências emergentes,
configuram um cenário passível de comparação com o
verificado na viragem de século antecedente sugerindo, por
analogia, que nos voltemos a questionar sobre uma nova
rotura paradigmática, ressonante do atual momento de
transformação, transversal às várias disciplinas e, a nosso
ver, preponderante na redefinição do modo de pensar,
fazer e encomendar arquitetura. 5
Não bastasse o impacte do flagelo do “11 de setembro
de 2001”; ou as consequências da crise económica de
2007-2008; ou ainda os receios associados às catástrofes
ambientais que tem grassado pelo planeta; o impacte do
fenómeno epidemiológico COVID-19 à escala global veio
consolidar não só um sentimento generalizado de desconfiança
e crítica aos modelos comportamentais e organizacionais
vigentes, como veio também reforçar a tese da
emergência de um novo paradigma civilizacional.
No entrecho deste momento de transição entre o
otimismo da “era do espetáculo” e a fragilidade e o medo
da nova “era da incerteza”, esta sequência de provações
veio não só revelar uma sociedade que metamorfoseou
como veio também questionar os critérios de verdade e de
validação pelos quais realidade era apreendida. No caso da
arquitetura, esta transformação ganha especial significado
quando se verifica o impacto da COVID-19, e em particular
do período de confinamento a que esta obrigou, no nível de
consciência e de literacia espacial da população.
Se por um lado, a crise politico-financeira conduziu a
que os outrora símbolos de prosperidade e de desenvolvimento,
inspirados em modelos socioeconómicos tidos
como de sucesso, se transformassem em símbolos dos
excessos do passado – agora já desajustados das reais
necessidades e aspirações da população –, pelo outro lado,
a excecionalidade do modo como indivíduos, populações
e comunidades se têm articulado entre si na resposta aos
recentes dramas socio-ambientais – cujo reconhecimento
tem sido amplamente difundido à escala global – veio
reforçar a possibilidade de se estar a dar início a uma outra
“globalização”, agora fundada numa verdadeira “interdependência
global” 6 , mais solidária e alicerçada num nova
consciência de pertença a um sistema global de interesse
coletivo.
Será no contexto deste momento de transformação,
agora agudizado pelo fenómeno da COVID-19, e em pleno
esforço de reenquadramento num Lugar cada vez mais
plural e complexo, que a disciplina da arquitetura, longe se
esgotar na sua instrumentalidade, tende hoje a reafirmar o
seu papel de mediadora na relação não só entre o homem
e o seu “abrigo”, como também, e de modo indissociável,
entre o homem e a sua “existência” – enquanto parte ativa
e interdependente do ecossistema global tal como hoje lhe
é revelado. O modo como habitamos e nos relacionamos
nesse Lugar; o modo como nos orientamos ou desnorteamos
nessa encruzilhada de espaço, tempo e memória; o
modo como interagimos com essa realidade natural/cultural,
de mestiçagens, contradições e verdades híbridas, volta
ser hoje lembrado, agora a pretexto da COVID-19, como o
desafio principal que a arquitetura terá sempre de integrar
e responder.
1
Melo, Márcio Et Al. “Uma análise bibliométrica das pesquisas globais da
COVID-19! In: Interamerican Journal of Medicine and Health. (pré-publicação)
2
A generalização de sistemas “touch-less” nos edifícios (e.g. ativação por voz
de portas e elevadores); a adoção de materiais antibacterianos na construção
de espaços e equipamentos públicos; ou a eliminação de espaços de espera em
edifícios de serviços e de saúde por via da introdução ou aperfeiçoamento de
sistemas tecnológicos de aviso e/ou chamada; são alguns exemplos das medidas
mais preconizadas. (Cfr. Giacobbe, Alyssa, 2020).
3
O que Gang refere ser o “(...) desejo de distanciamento à cidade” (Gang, Jeanne,
2020. Architecture, Hope, & COVID-19” In: A+U : Architecture and Urbanism;
May, 2020)
4
Referindo-se ao contexto de transição entre os séculos XIX e XX. REGISTER,
Richard – Ecocities : Building cities in balance with nature. California; Berkeley
Hills Books, 2002, p.94.
5
Segundo Jacques Ellul (1912-1994), apesar de detetarmos no Renascimento o
início da chamada «revolução científica», o mundo teve de esperar até ao final
do século XVIII para que essa «revolução» se manifestasse transversalmente a
todos os países e a todas as áreas de interesse da humanidade, e ficassem, então
reunidas as condições sociais, económicas e culturais necessárias para que se
tornasse inevitável o questionamento e/ou a revisão de muitas de premissas e
critérios até então tidos como garantidos. ELLUL, Jacques – The Technological
Society. New York; Vintage Books, 1964, p.42. (1954).
6
Morin, Edgar, (2020), Le confinement peut nous aider à commencer une
detoxification de notre mode de vie. In L’OBS, 28/03/2020
Voltar ao texto resumido, página 51.
78
79
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial // Anexo
Versão integral do texto da página 53.
Reencontro:
Um passo atrás, dois em frente
Manuel Lapão
MEMBRO N. O 3726
Sculpture
Cedar wood (sculpture); 630 x 160 (diameter) cm
Internationally renowned artist Giuseppe Penone emerged as a
protagonist of Arte Povera, a seminal art movement in Italy in the late
1960s. In sculptures, drawings, photographs, and installations, Penone
manifests the subtle dynamic between man and nature. Approximately
194 years old, Cedro di Versailles was a historic cedar tree from the park
of Versailles, where it was struck down by the forceful storms that hit
France at the end of 1999. Now part of a well-known series of sculptures
started in 1969, Penone carved into this monumental tree, revealing its
internal structure and returning it to a form from an earlier stage in life.
Cedro di Versailles, Giuseppe Penone, 2000-2003
Art Basel 2019
Introduzo o tema e enquadro-o através desta inspirada
escultura, que é também uma metáfora e ilustração desta
reflexão.
Na perspetiva de que é este o posicionamento geral
que nos importa projetar como forma de entendimento da
situação, assim como da sua projeção num futuro próximo.
Nada parecia indicar que aquele cedro bem-nascido e
melhor cuidado na exclusiva escola de jardinagem de Versailles,
depois de quase 200 anos robustos, viesse a tombar
pela fúria de uma tempestade. Como ninguém poderia
antever que após o seu aparente final, e destino certo, viria
a retomar uma outra vida pela mão de um grande criador,
Giuseppe Penone.
O escultor italiano viu mais que a matéria inerte, (re)
encontrou nas suas entranhas, outro ser como se renascesse
numa outra forma anterior de vida, dando-lhe de novo um
sinal de esperança. Encontrou a primavera numa árvore
sem vida.
Esta metáfora ajuda-nos a enquadrar a perplexidade
dos dias de hoje em que o mundo frenético de viagens e
movimentos sem parar, desabou, em cima de nós, imóvel e
tétrico.
É assim imperioso procurar, acreditar, que naquilo que
existe tombado podemos encontrar um tempo novo ainda
que em parte mais antigo.
Voltar ao novo que é em grande medida um tempo
anterior: cidades e vilas com menos carros, mais pessoas
e crianças a brincar na rua, dar mais valor à proximidade,
à solidariedade, ao valor do nosso bairro, da aldeia, sendo
igualmente um tempo novo de conhecimento e esperança e
de alterações de modos de vida coletivos.
Quais os principais problemas que a atual situação pandémica
veio colocar à Arquitetura, às cidades e ao território
tal como os conhecíamos?
A pandemia veio sobretudo expor os problemas que já
eram uma emergência – que as cidades e os territórios estão
insuficientemente preparados e planeados, não tendo assim
a resiliência e a flexibilidade necessária para acomodar já
a vida de hoje e muito menos estes impactos brutais que
estamos a viver e que sempre viveremos.
Desfocados do essencial. É necessário mais reflexão e
alargamento de conhecimentos tal como a proximidade
com o comum e a sociedade em geral, o coletivo, saindo
dos focos de interesse em que temos residido e pensar em
outras formas de habitar o mundo.
Deixámos para trás coisas que afinal nos fazem tanta
falta, a velocidade do querer sempre mais e mais depressa
não nos permitia ver. Agora parados é mais evidente.
A pandemia veio evidenciar que não estávamos focados
no essencial. É imperioso valorizar na arquitetura, na construção
das cidades e no território outros valores para além
da construção, como o conhecimento científico e os vínculos
sociais, a qualidade do ar, da água, do coberto vegetal,
do ambiente, da saúde, da segurança e em geral do equilíbrio
dos ecossistemas e da biodiversidade (encontrando,
criando e potenciando na cidade espaços ricos em habitats
com características naturais para acolher a fauna e a flora
selvagens e conciliá-los com as paisagens e o acolhimento
dos utilizadores e transeuntes).
A falência da globalização. Deve assim valorizar-se a
produção local de bens essenciais, a vida policêntrica, garantindo
a redução da mobilidade imposta pela fragmentação
urbana fazendo do quotidiano um espaço mais equilibrado
para trabalhar e viver, mais flexível graças ao digital,
multiplicando usos num mesmo lugar, apostando na não
dependência do exterior e nas alternativas à motorização da
vida quotidiana fixando-nos em lugares de proximidade.
Qual poderá ou deverá ser o contributo dos Arquitectos
no período pós pandémico (covid-19)?
Liderar o conhecimento global e universal da intervenção
na cidade e no território, ouvir, estudar, comparar,
sintetizar, programar, desenvolver ações e projetos e
acompanhar a execução. Passar a dar respostas para além
dos estímulos do mercado, antecipando-se e formulando
também respostas à dimensão social da arquitetura e ao comum.
Valorizar o mundo rural, como lugar de produção de
bens essenciais, criando melhores condições para a fixação
de população nos pequenos aglomerados, salvaguardando
a paisagem na sua dimensão social e cultural. Trabalhar no
curto e no longo prazo, mas começar já, articulando respostas
concertadas entre o setor público, o privado e o social.
Como podemos ou devemos preparar-nos para futuras
emergências globais, pandemias ou outras catástrofes
naturais?
Assegurar sobretudo resiliência aos territórios da cidade
ao campo - de resto onde já existem boas experiências e
práticas, quer na auto-sustentabilidade quanto aos meios
de produção, à entreajuda e aos vínculos sociais valorizando
os sentimentos de confiança, de vizinhança, de pertença e
de segurança. Voltar ao bairro, à aldeia dentro da cidade,
aos lugares de proximidade, à cultura dos sítios, sair do
buraco dos centros comerciais e dos engarrafamentos em
que nos metemos, viver o espaço público, o espaço comum,
voltar aos Rossios de ar livre de trocas comerciais, afetos e
prazeres comuns. Assegurar uma gestão flexível do espaço
público em função das dinâmicas sociais, emergências,
festividades, feriados etc.
Desmontar as ‘marquises’, apanhar sol, ventilar as
casas, requalificá-las nas acessibilidades, na segurança e na
gestão energética. Fomentar o caminho a pé, como primeira
forma de movimento pessoal. Assegurar a instalação de
fibra ótica e boa internet em todo o território, concorrendo
para a diminuição das assimetrias e desequilíbrios entre o
interior e o litoral.
Reduzir a intensidade de uso dos centros das cidades,
reduzindo igualmente e globalmente o stress sobre o planeta,
desenvolvendo políticas de mitigação da crise climática
como a arborização cuidada e intensa dos espaços públicos
e a transição energética.
Proteger os mais fracos, sobretudo os idosos (situação
agravada pela crise demográfica), repensar os modelos de
vida afunilados em equipamentos desumanos e desintegrados
dos seus contextos sociais, de conforto e de segurança.
Combater o isolamento social em geral fomentando modelos
mais inclusivos e de proximidade garantindo a todos
apoio social, sanitário e médico.
Flexibilizar a gestão urbana e a intervenção sobre a
cidade decadente, assegurando maior responsabilidade aos
principais protagonistas nomeadamente os Arquitetos na
procura de soluções mais criativas e de melhoria do parque
habitacional seja através de processos de substituição de
imóveis obsoletos seja na valorização dos logradouros e no
espaço público de proximidade.
Não deixa de ser paradoxal que seja necessário encontrarmo-nos
num estado de alarme para podermos disfrutar
das ruas (como sempre devia ser) mais silenciosas, respiráveis,
seguras, acolhedoras – ainda que social, económica e
culturalmente sem vida.
Passámos do benefício da cidade compacta favorecendo
as relações de proximidade para os problemas da sua sobreocupação
pela cidade turística e automóvel, acentuando
em simultâneo a extensão periférica cada vez mais desagregada,
vulnerável, predadora e insegura. É este modelo que
importa alterar profundamente, de resto já há muito exigido
antes da pandemia, a começar por inverter o modelo
da segmentação da cidade: dormitório, comércio - grandes
superfícies, concentração de serviços, cultura, desporto,
centro histórico e periferias. Toda a fragmentação por usos
e segmentos sociais implica um sobre-esforço coletivo,
conflituoso e caótico na conexão entre as partes. Por outro
lado, integrar na cidade os novos modos de vida, como o
escalonamento dos turnos de trabalho, a desmaterialização,
o teletrabalho, a mobilidade suave, a partilha, as funções
de proximidade, assim como o valor da cidade do grande
conhecimento, da humanização dos lugares comuns e do
encontro, da criatividade, e da inovação, também devem
estar sempre presentes nas novas soluções urbanas e no
planeamento dando alguns passos atrás para dar muitos
outros em frente.
Voltar ao texto resumido, página 53.
80
81
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial // Anexo
Versão integral do texto da página 57.
Reflexões em
plena pandemia
Michel Toussaint
MEMBRO N. O 871
A presença intempestiva do Covid 19 nas nossas vidas
tem suscitado rios de tinta (real e digital) nas publicações
p eriódicas generalistas. Para além da evidência de ser
ouvida mais a palavra do médico, em particular do epidemiologista,
mas também do político e este de modo mais
imediatista, outros conhecedores, investigadores, especialistas
ou artistas e até simples cidadão são ouvidos. Talvez
seja de ressaltar que os filósofos, habitualmente arredados
dos meios de comunicação, passaram agora a ter alguma
presença, provavelmente porque deles se espera uma reflexão
mais fundamentada, profunda e ampla que os outros.
No suplemento do jornal Público (Ípsilon) de
15.04.2020, vem uma entrevista a Timothy Morton, definido
como “filósofo do Antropoceno”, sendo o Antropoceno
uma nova era geológica da qual o ser humano é
inteiramente responsável. Tal deriva da consciência do
impacto da sua ação, sobretudo a partir da Revolução Industrial,
mas que se tem acelerado ultimamente, quer pela
última globalização, quer pelo crescimento populacional
que hoje atinge mais de 7 mil milhões de humanos e cuja
urbanização já ultrapassou mais da sua metade. Um outro
modo de considerar o planeta Terra, que certamente influenciou
a ideia da nova era geológica, foi lançado por James
Lovelock há cerca de quarenta anos e chama-se Gaia.
Com o nome da deusa grega que personificava o ambiente
onde os humanos vivem, designa a inter-relação entre os
seres vivos e o planeta de modo a formar um todo, afinal
um único “ser vivo”. Lovelock entende que foi esta inter-
-relação que manteve a possibilidade de aqui nascermos e
vivermos, criando um ambiente propício à expansão dos
seres vivos, mas numa simbiose frágil que, mais recentemente,
tem caminhado em processos de desequilíbrio
cada vez mais evidentes. Mas Lovelock, homem com mais
de 100 anos, num livro de 2019, aponta para uma revolução
já iniciada que produzirá um outro tempo por ele chamado
de Novacene, ou seja, uma evolução do Antropoceno
provocada pelo aparecimento da Inteligência Artificial
a caminho de uma utopia tecnológica onde os humanos
serão substituídos por cyborgs e que ele considera poder vir
a ser uma era melhor.
Esta é certamente uma discussão dos nossos dias,
mas exterior ao imediatismo da pandemia, enquanto o
conceito Gaia é próximo de Timothy Morton. Este considera
que “estamos a entrar numa nova fase da história do
planeta, com a Terra em alteração devido à ação dos seres
humanos”. Testemunhando os tempos que estamos a
viver, relata a sua experiência em Houston, EUA, dizendo
ser assustadora, “A resposta humana, política e económica
é de uma violência extrema. Trata do assunto como
se estivéssemos perante uma força da natureza, em vez
de ser algo que temos de lidar. Ainda ontem via títulos na
imprensa como: ‘O Choque! O Horror! Negros e pobres
são mais afetados pelo vírus!’ Quero dizer, por onde é que
andaram nas últimas décadas? Onde está a surpresa de
serem os mais vulneráveis?”
Mais adiante afirma que “hoje, apesar da ciência, é
como se as coisas não tivessem mudado muito. Continuamos
a pensar a ‘natureza’ como se fosse algo essencialista
que nos é exterior, negando as ambiguidades
das formas de vida. Continuamos a pensar que estamos
simplesmente a manipular outros seres num vácuo como
se fosse possível separar a ‘natureza’ ou o ‘meio ambiente’
do meio social.” Morton conclui que “nunca controlámos
o planeta. E foi assim que o fomos destruindo como
se vê com o aquecimento global, desde há muito que é
nítido que é necessário alterar a nossa relação com outras
entidades do universo – animais, vegetais, minerais e outras.
[…] Não podemos superar as nossas limitações ou a
nossa dependência face a outros seres. Apenas podemos
viver com eles. Os vírus não se eliminam. Vão e vêm. O
que fica provado, mais uma vez, é que existir implica coexistir”.
Em termos políticos, entende que “a generalidade
dos governantes só consegue pensar de forma monocromática”
e que “estamos há muito em guerra, mas contra a
vida. Não podemos resolver a pandemia ou o aquecimento
global se não retomarmos a inter-relação ecológica e
não olharmos de forma séria para o modelo insustentável
de habitar o planeta”.
Assim, o ser humano tem-se comportado e pensado
geralmente de modo simplista e apressado na obtenção
de resultados, ignorando a complexidade das realidades e
as interconexões de que os humanos fazem parte a todas
as escalas e dimensões. De facto, temos instrumentos e
conhecimentos para compreender o mundo, longe dos
reducionismos que muitos políticos, meios de comunicação
e outros despejam sobre os cidadãos para assentar os
seus poderes ideológicos e interesses pessoais ou de grupo
ou por mera ignorância. Trata-se afinal de compreender
e lidar com a complexidade. Talvez o mais importante
filósofo que tem abordado este tema seja Edgar Morin
que define complexidade, numa primeira aproximação,
como um “tecido (complexus: o que é tecido em conjunto)
de constituintes heterogéneos inseparavelmente associados”
e que “ coloca o paradoxo do um e do múltiplo. Numa
segunda aproximação, a complexidade é efetivamente o
tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações,
determinações, surpresas, que constituem o nosso mundo
real” (Morin 2005, p.21). Com isto, o filósofo implica três
princípios de pensamento: o do diálogo, o da recursão 1
organizacional e o do princípio hologramático. Este último
tem muito a ver com a Arquitetura. Morin dá o exemplo
do holograma no qual o menor ponto de imagem contém
a quase totalidade da informação do objeto representado.
Não somente a parte está no todo o todo está na parte […]
Então a ideia do holograma ultrapassa o reducionismo,
que não vê senão as partes, e o holismo que só vê o todo”
(Mori 2005, pp. 98 a 100).
Vitrúvio escreveu que a “simetria é o arranjo entre os
membros da obra em si, e a relação entre as várias partes e
o todo de acordo com uma parte selecionada com padrão”
(Vitruvius 1960, p. 14). Mesmo que Vitruvio se inscreva na
Tradição Clássica desde os antigos gregos, e o seu caminho
dirigia-se à produção da obra perfeita, a consciência
da complexidade pode-se encontrar nesta afirmação, bem
como e sobretudo, no modelo de complexidade que é a
articulação entre Solidez, Adequação e Beleza. Hoje esta
conjugação de apenas três fatores é muito mais extensa e
complicada. Robert Venturi no seu célebre Complexity and
Contradiction in Architecture, cita Christopher Alexander ao
caracterizar um dos principais problemas da contemporaneidade:
“Ao mesmo tempo que os problemas crescem em
quantidade, complexidade e dificuldade, também mudam
mais depressa que anteriormente” (Venturi 1992, p. 16).
Alain Farrel propõe caminhos para responder a tal, uma
“abertura metodológica” que deveria “projetar-se sobre o
tipo de prática profissional dos arquitetos, permitindo alargar
notavelmente o papel que eles se atribuem tradicionalmente.
Do estatuto de criadores de objetos arquitetónicos,
mais ou menos funcionais, económicos, inseridos no sítio,
eles poderiam passar ao de donos de obra num sentido
mais forte, responsável por essa engenharia de sistemas complexos
que representam hoje a programação, a montagem,
a conceção e a realização de operações imobiliárias ou
urbanas de uma certa dimensão” Farrel 1999, p. 254).
Continuando a observar aquelas publicações periódicas,
num artigo, sobre escritórios em tempos de pandemia
e depois, publicado no Le Monde (L’Époque) de 4 de maio
de 2020, o jornalista interroga vários arquitetos. Patrick
Rubin, que tem um pequeno edifício de século XVII no
Marais em Paris onde habita, trabalha e até tem uma galeria,
afirma que “se um sítio não foi pensado para ter uma
segunda ou uma terceira vida, está condenado à partida”
e interroga-se: “Porque é que se constrói habitações num
lado e escritórios noutro? Porque não tudo junto? Um edifício
deve ser capaz de mudar a qualquer momento”. Para
este arquiteto, mudar é o desafio que parece colocar-se aos
escritórios das empresas à hora do covid 19, atirando para
o lixo “os open spaces que fizeram a felicidade dos ‘trinta
gloriosos”. Já Vincent Dubois, arquiteto do edifício-sede
do Le Monde, entende que há três questões para os escritórios,
uma tem a ver com o não tocar nas pessoas nem nos
elementos arquitetónicos e objetos, outra é o teletraba-
82
83
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial // Anexo
Versão integral do texto da página 57.
lho que conduz o escritório a ser um local de trocas e de
encontros virtuais e a terceira é a organização dos espaços
tendente à variação geométrica com, por exemplo, dez postos
de trabalho sem crise e três com crise. Enquanto Jean
Nouvel adverte que a organização do trabalho em termos
do espaço deve ter como escala temporal o decénio e que o
tempo da criação arquitetónica não é o de uma crise.
Noutra entrevista, desta vez ao historiador da Medicina,
Marc Honigsbaum, que o Público apresentou na sua edição
de 10 de maio de 2020, este considera que “O nosso ambiente
arquitetónico é um dos fatores que ajudam a compreender
como é que esse tipo de vírus [novo coronavírus]
se propaga. As cidades e a sobrepopulação são exemplos
claros. Os prédios muito altos aumentam as possibilidades
de contacto social”. E dá o exemplo de um hotel em
Hong Kong ter sido um foco de covid 19, provavelmente a
partir dos elevadores. Mas acusa também a climatização
dos espaços interiores, cujo objetivo é o conforto humano,
de espalhar o agente patogénico através de aerossóis com
base nos tanques de água armazenada para a refrigeração.
E igualmente cita o caso dos hospitais, onde os ventiladores,
para nebulizar os doentes, aumentam o potencial de
propagação do vírus. Poderiam ser lembrados muitos mais
exemplos concretos relacionados com os espaços arquitetónicos
interiores e exteriores no contexto das cidades
contemporâneas, nos campos ou nas praias, etc. Mas
como Jean Nouvel adverte, a pressa derivada de uma crise
como a da presente pandemia não pode constituir assento
exemplar, apenas pode ser faísca para reflexão e para o
desenvolvimento de conhecimentos mais alargados.
Basta recordar Timothy Morton ou o conceito de Gaia
de James Lovelock. A Arquitetura tem espelhado o que
se tem pensado sobre a relação Natureza-Homem, mas,
em geral continua a proceder como há muitas dezenas de
anos, criando espaços protegidos cada vez mais artificializados
e uniformizados, procurando repelir tudo o que
parece ameaçar a suposta integridade humana. Vejam-se
os exemplos mais flagrantes das cidades construídas com
os abundantes petrodólares nos desertos da península
Arábica para os seus cidadãos, excluindo os emigrantes
pobres, que são os seus operários-construtores vindos da
Índia, Paquistão ou Bangladesh, aqueles vivendo à custa
de enormes dispêndios energéticos e circulando em suv’s
climatizados por ruas de múltiplas faixas. Ou as cidades
chinesas, como Wuhan onde nasceu a pandemia, eriçadas
de torres de dezenas de pisos, construídas em poucas
dezenas de anos numa pressa que tem a ver com a ascensão
ao poder do Mundo do país e às gigantescas migrações
internas, copiando aliás a imagem das cidades americanas
que Hong Kong já tinha pioneiramente seguido. A mesma
atitude tem-se visto na Europa como na City londrina ou na
zona bancária de Frankfurt, apesar da existência, no continente,
de algum experimentalismo alternativo ou algumas
tentativas em alterar o rumo.
Face a tudo isto, entre a atual pandemia e a mais vasta
crise ecológica da qual as alterações climáticas são uma
faceta, há que perguntar se o papel do arquiteto fica inalterado
ou se reduz se ele insistir em tal. Alain Farrel apontou
um caminho, o do alargamento dos fatores que se inscrevem
no projeto, da expansão do tempo de ação e reflexão
do arquiteto, não se centrando apenas no ato de projetar
e, sobretudo, aprofundar a muito antiga tradição de saber
lidar com a complexidade, pois o mundo, as regiões e as
cidades, o habitat humano, enfrentam novos problemas
que somam aos mais antigos, necessitando, no campo
da Arquitetura, de novas sínteses. E, tal como Timothy
Morton nos adverte, estendendo a diversidade biológica
do habitat humano, tornando-o menos exclusivista e mais
aberto às realidades da vida no planeta Terra.
1
Edgar Morim explica que esta palavra tem a ver, por exemplo, com “um processo
onde os resultados e os efeitos são, ao mesmo tempo, causas e produtores do que
os produzem”
Bibliografia:
Belanciano, Vítor, Timothy Morton “podemos ter mais pandemias, mas
também um futuro diferente daquele que vislumbramos agora”. In: Ípsilon/Público
15 de maio de 2020
Carpentier, Laurent, Mon bureau dans la vie d’après. L’Époque/Le Monde, 4 de Maio
de 2020
Farrel, Alain, Architecture et complexité. Le troisième labyrinthe. Paris: Les Éditions
de la Passion, 1999
Lovelock, James; Appleyard, Bryan Novacene. The Coming Age of
Hyperintelligence. Allen Lane/Penguin, Random House UK, 2019
Morin, Edgar, Introduction à la pensée complexe. Paris: Éditions du Seuil, 2005
Neto, Ivo, “A crise económica é uma consequência do desinvestimento na
saúde”. In Público, 10 de maio de 2020
Venturi, Robert, Complexity and Contradition in Architecture. New York: The
Museum of Modern Art, 1992
Viruvius, The ten books on architecture. New York: Dover Publications, 1960
Voltar ao texto resumido, página 57.
84
85
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial // Anexo
Versão integral do texto da página 58.
Arquitectura do contexto de Pandemia
Miguel Amado
Coordenador do curso de Mestrado Integrado em Arquitectura, Instituto Superior Técnico
MEMBRO N. O 3726
A realidade de uma situação de pandemia decerto não
nos irá privar de continuar a fruir as vantagens da cidade
enquanto uma das maiores criações da humanidade.
No limite, poderá conduzir a que ocorram mudanças
nos modos de viver, trabalhar e socializar em espaços
que hoje conhecemos e pretendemos preservar e manter
disponíveis para futuras gerações. Até há pouco tempo, a
arquitectura via o seu programa construído, qualquer que
fosse a geografia, articulando conjuntos de interacções
funcionais de áreas e de optimização de relações espaciais
adaptadas aos futuros utilizadores. No entanto, e quase
de um dia para o outro, surgiram pressupostos adicionais
que se reflectem na necessidade de uma maior protecção
do indivíduo quando no espaço social, tendo como foco
as condições de higienização e de afastamento social. Este
contexto, tendo implicação nas relações de dimensão e
proporção de todos os espaços destinados a acomodar
actividades e funções de necessidades humanas, reintegra
e reforça o critério da flexibilidade e adaptabilidade no
programa de arquitectura. Esta realidade, de âmbito
global, veio colocar maior exigência na acção do arquitecto
e na qualidade das suas respostas e soluções, as quais
terão impacto na economia e no consumo de recursos. As
tendências recentes de criação de espaços colaborativos
para habitar, trabalhar e conviver, onde a partilha de
recursos tem sido entendida como vantagem económica
podem, eventualmente, ser colocados em causa. O
caminho para soluções de co-working e co-living, muito
suportados numa rentabilização económica do espaço
em primeiro plano, e na promoção da inovação resultante
da maior interacção social, em segundo plano, tomam
agora outra importância face à eficácia comprovada que
o teletrabalho, iniciado nos princípios dos anos 90 com
a revolução digital, teve. Este contexto irá colocar ao
arquitecto um elemento adicional no seu programa, que
resulta das exigências e características que o espaço terá
de responder para possibilitar as actividades de trabalhar,
viver e descansar em conjunto.
Associadas a esta questão, novas questões surgirão
que vão desde a separação ou limite “virtual” entre
espaços público e privado, tanto no exterior como no
interior do ambiente construído. Este critério, não será
apenas um ponto de enquadramento de funções, com
impacto económico nos investimentos e na sua gestão,
mas sim, uma questão de preservação de condições para
que, de modo passivo, se assegure um elevado nível de
saúde pública, segurança e de governança num ambiente
inclusivo de uma identidade comunitária. É neste ponto
que o espaço público se mantém como lugar fundamental
no processo de reconfigurar a cidade às exigências de
mudança imprevistas que as sociedades rapidamente vêm
atravessando.
Mas, se a necessidade de distanciamento social poderá
contribuir para o reforço do sentimento de segurança
mais imediato, coloca-se, no entanto, a questão de
como é que o arquitecto conseguirá manter as condições
para a intrínseca necessidade humana de interacção
social. Ou mesmo, como é que a resposta ao programa
dará garantia ao futuro utilizador de que pode fruir das
sensações e ambientes criados como antes o fazia numa
grande sala de eventos ou numa actividade em grupo nos
espaços construídos interiores ou exteriores. E é aqui
que emerge a urgência de novas respostas, já não apenas
suportadas em referências de cultura e composição
imagética ou eficiências de desempenho, mas sim na
dinamização de novos ambientes em que espaços como
hoje os imaginamos nos permitam acomodar diferentes
utilizações e nos assegurem em simultâneo condições para
um convívio social sem risco. E aqui se retomam modelos
humanistas de vivência na cidade como a figura do “corral
de vecinos” planeados por Cerdá para Barcelona, e no
qual a habitação tem desenvolvimento e proporciona um
contacto com o espaço exterior através da figura do pátio,
da praça e da avenida que, mesmo sendo contido, assegura
relações de vizinhança que hoje se reconhecem essenciais
à situação de confinamento. Desta recente realidade, e da
sua necessária transposição para o programa da habitação,
surgirão desafios como a redução da compartimentação
interior e uma maior área nos espaços que permitam o
contacto com o exterior, onde, diferentes actividades
possam ter lugar em simultâneo. Espaços cuja função
não se restrinja apenas a um uso individualizado, mas
sim partilhado, e no qual, os requisitos de desempenho
de iluminação natural, acústica e térmica retomem o
papel que a arquitectura sustentável tem vindo a afirmar.
Por outro lado, o sentimento de segurança reforçado
pelo maior contacto visual com os espaços exteriores
envolventes, proporcionados com a varanda, pode vir a
assumir-se como um critério determinante para que a
rede de conectividade entre espaços livres verdes, praças e
avenidas validem a sua função bioclimática no contributo
para a qualidade da vida em áreas urbanas.
Em suma, a pandemia veio recolocar numa posição
primeira da prática do arquitecto, a questão do programa
da habitação segura, flexível e com acesso a serviços
urbanos, de modo a que novas situações de confinamento
não resultem em maiores problemas sociais no contexto da
vida individual e colectiva de quem na cidade vive.
Voltar ao texto resumido, página 58.
86
87
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial // Anexo
Versão integral do texto da página 66.
Crónica de uma docente de arquitectura
nos inícios da pandemia de Covid-19
Sofia Aleixo
MEMBRO N. O 4598
WHO Coronavirus Disease (COVID-19) Dashboard. Data last updated: 2020/5/24, 10:00am CEST.
Acedido em https://covid19.who.int/?gclid=EAIaIQobChMI34SUlq3P6QIVytvVCh1k8AgbEAAYASAAEgJQ1vD_BwE
Ao estado de emergência de saúde pública de âmbito
internacional, declarado pelo diretor-geral da Organização
Mundial de Saúde (OMS) Tedros Ghebreyes no dia 30 de
janeiro de 2020 seguiu-se a 11 de fevereiro, o anúncio do
nome oficial da doença que se espalhava rapidamente de
continente em continente. Tedros Ghebreyes estaria longe
de pensar que apenas um mês depois estaria a declarar o
nível de pandemia de COVID-19. Nesse dia, 11 de março,
estávamos numa quarta-feira e estavam 59 casos confirmados
em Portugal.
11 dias de ensino
Tendo sido detectados os primeiros casos de COVID-19 na
Europa a 21 de Fevereiro, a 2 de Março Portugal tinha apenas
dois casos, localizados a norte do país, num continente
já com 594 casos e com 724 casos no Pacífico Ocidental.
Atenta, a 4 de Março a Universidade de Évora emite uma
circular onde considera “totalmente desaconselhável a
mobilidade”, requerendo a decisão da deslocação a entrega
de uma declaração de responsabilidade pelo próprio sendo
que, no caso de regressar de países afectados, deveria o
docente manter o período de quarentena de 14 dias. A listagem
de medidas de acautelamento que deveriam ser tomadas,
nomeadamente sobre o sistema de saúde no local de
destino, e sobre as limitações à mobilidade que poderiam
vir a ser decretadas, como os cancelamentos de voos ou implementação
de medidas de quarentena, era desmotivadora
de qualquer vontade de aprender e ensinar no estrangeiro
nesta fase. Nessa semana, escrevo na minha agenda “avisar
Estónia do cancelamento da mobilidade docente ERAS-
MUS +”, programada para final de Abril, e escrevo a lápis
na esperança que a situação se alterasse.
A visita de estudo que tinha agendada a Lisboa com os
meus alunos de Projecto II, no dia 5, corria o risco de não
se efectuar. Nesse dia, os nove casos confirmados no nosso
país e os quase 100.000 no mundo confirmavam a circular
do dia anterior, tornando expectável o impedimento de
deslocações de membros da academia. Teria mesmo de
enviar um mail para a Estónia, lamentando a impossibilidade
de manter esta deslocação à Faculty of Architecture
and Design, na RISEBA University of Applied Sciences, e
procurar reaver o valor do bilhete antecipadamente comprado.
As aulas que preparei sobre Évora e Riga, a cidade
velha medieval classificada Património Mundial da UNES-
CO 11 anos após Évora, e reconhecida como a cidade com a
melhor colecção de edifícios art nouveau da Europa, teriam
de ficar para outra oportunidade.
No dia seguinte, com autorização superior, uma vez
que a perigosidade registada em Lisboa não era diferente
da registada em Évora, ou seja, sem casos COVID-19, um
autocarro transportou cinquenta alunos do primeiro ano
do Mestrado Integrado em Arquitectura a Lisboa. Aqui
foram recebidos em visita orientada pelo colega Carlos
Carrilho, na Sala de Honra da Fundação Calouste Gulbenkian,
depois de terem visitado a pedagógica exposição
temporária “Novo Jardim Gulbenkian – 12 Projetos de
Arquitetura” onde tomaram contacto directo com doze
formas diferentes de intervir e de comunicar, entre arquitectos
nacionais e estrangeiros. Foi um dia feliz, como são
os dias de visita de estudo de arquitectura com os alunos
a qualquer cidade, e mais ainda a este lugar desenhado
(e redesenhado em 2002) pelos arquitectos paisagistas
Gonçalo Ribeiro Telles e Viana Barreto, e a este complexo
de edifícios cuja obra inaugurada em 1969 foi projectada
pelos arquitectos Ruy Jervis d’Athouguia, Pedro Cid e
Alberto Pessoa (com uma cuidada atenção permanente da
arquitecta Teresa Nunes da Ponte em acções de renovação,
restauro e reabilitação).
A dificuldade de alunos de primeiro ano entenderem
“o que é arquitectura” e “o que não-é arquitectura”, em
entenderem o papel da história, da teoria e da filosofia na
arquitectura, levou à discussão sobre o que são referências
em arquitectura? no primeiro semestre deste ano lectivo.
E por isso, nesse momento inicial do segundo semestre
desenvolvíamos em Projecto II o trabalho de interpretação
e representação (em grupos de alunos) dos princípios de
arquitectura contemporânea defendidos pelo arquitecto
Valerio Olgiati (Suíça, 1966) no manifesto “Non-referential
architecture”, escrito por Markus Breitschmid (Suíça,
1958), e publicado em 2018. Ao considerar que o mundo
em que vivemos hoje não tem significados universais, e
como tal não tem referências, a arquitectura deve basear-
-se noutros princípios que não os cânones estabelecidos
anteriormente. O objectivo era explorar uma arquitectura
baseada nos significados dos próprios edifícios e da forma
como eles, como entidades, fazem sentido ou potenciam
“sense-making”, na experiência do espaço arquitectónico
onde os princípios de unidade, ordem, e novidade se conjugam,
considerando o princípio da contradição, e sendo
explícitos na sua construção.
Ao explorar esta noção de ideia projectual, aplicada ao
“objecto arquitectónico” ou à “peça de arquitectura”, surgiu
a discussão sobre o contexto, a história, as memórias e
as pessoas como entidades ausentes do processo criativo.
Ora nada melhor que a visita, a experiência sensorial de um
lugar arquitectónico de excelência, onde os contextos social
e histórico foram determinantes para o projecto, para
melhor entender as contradições ou reafirmar as certezas.
A aprendizagem pela experiência sensorial da arquitectura,
defendida por Juhani Pallasmaa (Finland, 1936),
inclui o tacto, o cheiro, a visão e as mensagens que transmitem
ao nosso cérebro que se “materializam” num
repositório de memórias a que nós, como arquitectos,
recorremos no momento de projectar. E, por isso, as visitas
de estudo em arquitectura proporcionarem momentos
únicos de despertar os sentidos, de escutar a arquitectura,
de sentir o movimento pelos espaços, de saborear a luz que
atravessa aquele vão e a sombra que projecta em seu redor.
Por isso, indispensáveis no ensino da arquitectura.
Com estes alunos, essa oportunidade de aprendizagem
na Fundação Calouste Gulbenkian foi explorada, e creio
ter deixado memórias. No entanto, na semana seguinte,
com a divulgação do Plano de Contingência da Universidade
de Évora e com o fecho de algumas escolas, pressentia-se
que em breve seria decretada a suspensão das
actividades lectivas presenciais em todas as Instituições de
Ensino Superior, o que viria a acontecer nessa noite, pelo
que o tema debatido em sala de aula foi como planear as
semanas de trabalho até às férias da Páscoa, procurando
transmitir calma e tranquilidade sobre um assunto onde o
desconhecido ganhava cada vez mais espaço nas conversas
cruzadas. Assumindo-se que se poderiam retomar as aulas
presenciais a 14 de Abril, foram definidas metodologias de
trabalho para a realização das tarefas individualizáveis (em
grupos de três alunos) e tarefas comuns no exercício em
curso, o que seria um motivo de encontros on-line fora das
horas de aula e, caso o retorno ao Colégio dos Leões não
fosse possível, o exercício prático seguinte seria adaptado
de forma a poder ser realizado em isolamento, nas casas
de cada aluno, com o acompanhamento dos docentes em
sessões síncronas.
13 de Março seria o dia em que o Decreto-Lei n.º 10-
A/2020 estabelecia medidas excepcionais e temporárias
relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus,
e no seu Artigo 9º suspendia as “actividades lectivas e
não lectivas e formativas com presença de estudantes em
estabelecimentos de ensino públicos” a partir da seguinte
segunda feira. Prorrogada até ao dia em que escrevo este
texto, foi autorizada pela Universidade a substituição de
aulas presenciais com a passagem temporária ao “regime
de teletrabalho como forma preferencial de desempenho
da actividade profissional”. Foi ainda determinada a substituição
pelo ensino à distância, numa combinação da plataforma
Moodle (interacção assíncrona com os estudantes)
com a plataforma Zoom/Colibri (sessões síncronas), tendo
sido proporcionada uma brevíssima formação em avaliação
on-line. Em resumo, os alunos tiveram cinco semanas de
aulas presenciais neste semestre.
88
89
Jornal Arquitectos
Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial // Anexo
Versão integral do texto da página 66.
A adaptação do processo de ensino e aprendizagem
não presencial
Segunda-feira, 16 de Março: primeiro dia de confinamento,
em teletrabalho. A circulação nas ruas diminuiu,
nos supermercados fazem-se filas à porta e compram-se
enlatados, leite, congelados e café. Em casa, com o atelier
fechado e os colaboradores em teletrabalho, planeia-se
a semana, projecta-se o futuro próximo na incerteza do
presente. Diversos eventos e conferências são cancelados.
A viagem à Faculdade do Porto para apresentar o projecto
das Revistas de Ideias e Cultura, e a revista de arquitectura
“A Construcção Moderna”, publicada entre 1900 e 1919,
é cancelado; telefono ao Luís Andrade e à Patrícia Faustino;
agradeço à Clara Pimenta do Vale, ao Rui Fernandes
Póvoas, ao João Pedro Xavier e ao Domingos Tavares.
Teremos de agendar para outra data. A visita ao Palácio
de D. Manuel em obra, a pedido da Madalena Moreira aos
alunos da Uc de Estaleiros, é cancelada. A reunião anual da
Sociedade Portuguesa de Estudos de História de Construção,
é cancelada. Enfim, teria sido uma semana cheia, esta
em que, no primeiro dia de aulas on-line a 17 de Março, se
registou o primeiro óbito em Portugal e em que me apercebo
que a última vez que abracei e beijei os meus pais e as
minhas filhas foi… já há mais de uma semana. Na véspera
de implementação do estado de emergência, 23 de Março,
Portugal regista 14 mortos e 1600 casos.
Esta semana decorreu de forma dispersa, com alunos
em transição entre Évora e o retorno à casa de família, o
retomar de hábitos, o confinamento ao espaço da casa,
as viagens difíceis para os alunos estrangeiros, principalmente
brasileiros. O trabalho em curso prosseguiu com o
estudo de uma casa moderna de um arquitecto Português,
com apresentações em zoom do progresso do trabalho,
comentários aos desenhos e maquetas e à análise por
dados da pesquisa efectuada ainda antes do confinamento.
O trabalho foi apresentado na semana sete, com partilha
de powerpoints em écrans, com os grupos bem estruturados
e previamente organizados.
Na semana oito foi lançado o exercício de projecto que
procurou explorar a situação única de confinamento a
que os alunos, aliás, todos, estávamos sujeitos. Primeiro
o clássico exercício de levantamento arquitectónico do
quarto e sanitário onde residiam, levantou a realidade social
dos alunos e o seu contexto. O estímulo a uma posição
crítica sobre o espaço que tão bem conheciam foi apoiado
numa análise SWOT que se revelou denunciadora de diversos
problemas, tendo o ensino da arquitectura encontrado
uma oportunidade de reflectir sobre como resolver problemas.
O retorno após as férias da Páscoa revelou o Exercício
de Projecto que aliou o conhecimento do espaço de confinamento,
aos requisitos da Direcção-Geral de Saúde para
situações de isolamento, e a casa moderna anteriormente
estudada. O projecto de uma unidade de isolamento, um
edifício a construir em diálogo com a identidade da casa
moderna deveria ser implantado no terreno do lote e
proporcionar espaços de descanso, alimentação, higiene
e lazer.
Se para alguns o exercício foi aliciante e explorado
dentro dos critérios indicados, para outros a situação de
isolamento e por vezes de dificuldade na ligação à internet,
terá sido desmotivante porque a cultura da sala de aula, da
discussão e partilha entre os alunos (do mesmo ano e mais
velhos) e entre eles e os professores, não é directa nem imediata.
A comunicação, tão facilitada pelos dispositivos móveis,
parece que encontra no ambiente educativo barreiras
que alguns não conseguem superar. Preferem não ser vistos,
preferem não falar, a dedicação e empenho na procura
de soluções que respondam aos comentários dos professores
é pouca e por vezes nula. E os docentes ficam colocados
numa posição em que se sentem responsáveis pela falta de
ânimo ou estímulo à participação, sem as ferramentas que
eventualmente poderiam auxiliar nesse sentido.
A adaptação de alunos e docentes foi muito rápida e
muito autodidacta, quer no ensino quer na aprendizagem,
quer na avaliação. Não sabendo como agir, procura-se
simular on-line o ambiente da sala de aula, mas as aulas
não podem ser iguais. Não estamos em ensino à distância,
estamos em ensino em continuidade com o iniciado em
sala de aula, procurando manter uma cultura de atelier on-
-line (zoom) e off-line (conferências e leituras no Moodle).
Mas as competências que será necessário avaliar, no caso
específico deste semestre, serão as que se referem à capacidade
de migrar de um sistema para outro, à capacidade
de resiliência, à capacidade de não desistir, à capacidade de
ser criativo (nomeadamente na procura de materiais para
concretizar maquetas de representações tridimensionais
do espaço arquitectónico).
A educação on-line em arquitectura tem de se reinventar.
Estamos num súbito e imposto work-in-progress
sobre o qual temos de reflectir, aprender com as melhores
práticas de quem já o pratica há tempo, e procurar métodos
adicionais de reduzir o medo e contribuir para uma sanidade
mental que nos deixe ser livres de criar e de viver um período
tão importante na formação dos nossos alunos. No
futuro próximo prevê-se já o aumento do ensino à distância
no ensino superior, com diversidade de webminars evitando
os custos, financeiros e ambientais, de deslocações
de académicos e praticantes. Esta realidade aumentará a
desigualdade que já se pressente, nomeadamente na disponibilidade
de meios informáticos, bem como o impacto
socioeconómico trará uma inevitável recessão económica
global, levantando questões sobre o número de alunos
que procurarão a universidade, o curso de arquitectura em
particular. Talvez uma consciência ambiental nesta jovem
geração procure uma arquitectura amiga do ambiente, uma
vez que se observaram claramente os resultados das restrições
à circulação e à ocupação de edifícios de escritórios/
fábricas na diminuição na poluição do ar. Talvez os programas
funcionais com objectivos turísticos, muito utilizado
em exercícios académicos que encontram em edifícios com
características monumentais e/ou patrimoniais a hotelaria
como a resposta para a sua “preservação e salvaguarda”,
devam ser reequacionados para o bem-estar na habitação,
no centro de dia ou no jardim de infância. A ideia de que o
turismo é a salvação do património, desde o pequeno edifício
de acompanhamento no centro histórico, ao palácio
nos arredores de uma quinta outrora de produção, encontrará
agora a habitação residencial como resposta permanente
num período de incerteza. Será esta a oportunidade
de repensar o ensino do papel do arquitecto na sociedade.
Enfim, e referindo brevemente o impacto desta pandemia
nos arquitectos que, como eu, coordenam os seus
ateliers e as equipas de projectistas, trará certamente um
repensar as grandes estruturas que, agora em teletrabalho,
testaram a coordenação de equipas e a produtividade na
resposta pelo que estou em crer que os ateliers irão repensar
os investimentos nas suas instalações. A necessidade de
manter a motivação e compromisso que a prática diária de
atelier gerava, a definição e atribuição de tarefas suficientemente
significativas e minimamente interdependentes para
manter os contactos entre colaboradores, e a demonstração
de reconhecimento pelo progresso e desenvolvimento
do trabalho são dificuldades acrescidas às tarefas de gestão
normais num atelier onde as obras pararam, e onde a manutenção
de uma equipa coesa e participativa neste “novo
normal” se torna o motivador da redefinição de estratégias.
Mas mantenho a escrita a lápis, semana a semana, do dia
do retorno, do contacto pessoal, da troca de ideias num
coffee break com um lápis e uma cópia do projecto impressa
na mão, que promovem o risco sobre o papel. E não há
rato, nem ecran, nem som que substitua o cheiro do café
que, com o entusiasmo, se entorna sobre o projecto numa
animada conversa sobre arquitectura.
Voltar ao texto resumido, página 66.
90
91