10.06.2023 Views

JA_260

pandemia

pandemia

SHOW MORE
SHOW LESS

Create successful ePaper yourself

Turn your PDF publications into a flip-book with our unique Google optimized e-Paper software.

Pandemia.

Jornal Arquitectos // Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial


unique

collection

890X890mm

*

Unique is a stunning collection

of unglazed double and triple-

-loaded porcelain stoneware.

It offers an endless number

of concrete plates with

incomparable raw touch and

ultimate design.

Unique é uma coleção

deslumbrante feita em grés

porcelânico não esmaltado de

duplo e triplo carregamento. Este

produto oferece um número

infinito de placas de betão com um

toque cru inigualável e um design

de vanguarda.

Por que a obra-prima de

Michelangelo confia num

pavimento clássico?

No Museo della Pietà de Milão, caixas de

pavimento UDHOME e calhas de chão

OKB da OBO fornecem alimentação de

energia, de forma discreta e flexível, à

volta da obra-prima de Michelangelo.

A OBO celebra 60 anos de excelência

em sistemas de chão.

* 60 anos de história em sistemas de chão

www.obo.pt

Building Connections

www.feri-masi.com



MOEDA DE COLEÇÃO COMEMORATIVA

RENASCENÇA

O MODERNISMO

AUTORA

ELOÍSA BYRNE

AUTOR

RUI VASQUEZ

IDADE DO FERRO

E DO VIDRO

AUTOR

EDUARDO AIRES

O BARROCO

AUTOR

ANTÓNIO MARINHO

As moedas da série Europa - Idades da Europa refletem alguns dos principais movimentos artísticos europeus — o Renascimento,

o Barroco, a Idade do Ferro e do Vidro e o Modernismo — podem ser adquiridas nas lojas INCM ou online em www.incm.pt

Em 2020 será emitida uma moeda alusiva ao Gótico, da autoria de Eduardo Aires.

Lisboa

Rua da Escola Politécnica, 137

Rua D. Filipa de Vilhena, 12-12A

Porto

Rua Cândido dos Reis, 97

Coimbra

Rua Visconde da Luz, 98





Quando um perfil de PVC

torna-se arte

INOVAÇÃO, DESIGN e DESEMPENHO definem o VEKA

SPECTRAL. Uma nova tecnologia de acabamento para

sistemas de perfil em PVC VEKA que alia a perfeição do design

e uma excelente técnica para desenvolver projetos capazes de

estimular os sentidos.

O VEKA SPECTRAL combina laqueado e folhado, obtendo um

aspecto ultra-forte de acabamento sedoso, irresistível ao tato,

que repele impressões digitais e a sujeira, e lhe confere alta

resistência a intempéries, arranhões e abrasão.

Este acabamento superficial exclusivo possui uma ampla

variedade de cores para atender a qualquer requisito do design,

de acordo com as novas tendências arquitetônicas.

O VEKA SPECTRAL é o fruto de um trabalho inovador do

Grupo VEKA que constitui um ponto de viragem na fabricação

e no design de perfis em PVC.

VEKAPLAST IBÉRICA • C/ López Bravo 58 • 09001 Burgos

Teléfono +34 947 47 30 20 • www.veka.pt



SÉRIE ARQUITECTURA PORTUGUESA

MOEDA DE COLEÇÃO COMEMORATIVA PRATA PROOF

AUTOR

EDUARDO SOUTO DE MOURA

AUTOR

ÁLVARO SIZA

AUTOR

JULIÃO SARMENTO

Velvet

SUAVES COMO VELUDO

Descubra o toque único do solid surface

numa gama de lavatórios ultra-modernos

que irão preencher todas as medidas

Moeda da série Arquitetura Portuguesa, cunhada em prata 925/1000,

com 13,5 g de peso, e pode ser adquirida nas lojas INCM ou online em www.incm.pt

Lisboa

Rua da Escola Politécnica, 137

Rua D. Filipa de Vilhena, 12-12A

Porto

Rua Cândido dos Reis, 97

Coimbra

Rua Visconde da Luz, 98

Saiba mais em www.sanitana.com



conforto agora

Porquê usar

lã mineral

Volcalis?

Qualidade

do ar interior

Volcalis tem a melhor

classificação na qualidade

do ar interior A+.

Propriedades

acústicas

O ruído tem consequências

para a saúde. Ótimo

coeficiente de absorção

sonora (αw).

é mais fácil

Desempenho

térmico

Sabia que mais de 30%

da energia consumida em

Portugal é consumida pelos

edifícios? A lã mineral é um

excelente isolante térmico.

Resistência

ao fogo

A lã mineral tem uma

reação ao fogo A1

(é incombustível).

Índice

Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Ficha Técnica

Editorial

Adriano Niel

Alexandre Alves Costa

Alexandre Burmester

Álvaro Siza Vieira

Ana Bordalo

António Bento Gonçalves

António Gil Machado

António Menéres

Atelier Peninsular

Avelino Oliveira

Bartolomeu Costa Cabral

Carlos Alho

Carlos Mineiro Aires

Carlos Santos

Célia Gomes

F. A. Ribeiro da Costa

Fátima Fernandes

Francisco Silva Dias

Guilherme Pedrosa

Helena Roseta

Hugo Merino Ferraz

Inês Alves

João Magalhães Rocha

João Santa-Rita

Jorge Cancela

José Alberto Rio Fernandes

José Miguel Fonseca

José Rui Marcelino, André Castro

2

5

6

7

8

9

10

11

12

13

14

15

16

17

18

19

20

21

22

23

24

25

26

27

28

29

30

31

32

33

Múltiplos

elementos

construtivos

Aconselhada para aplicações

não só na envolvente opaca

como também em elementos

interiores.

Baixo impacto

ambiental

Produzida à base de areia e

ligante de origem biológica.

Muito compressível permite

reduzir até 10 vezes a

necessidade de transporte.

Projetado

e fabricado

em Portugal

A fábrica da Volcalis

está localizada no centro

de Portugal e tem fácil

acesso às redes marítimas,

ferroviárias e rodoviárias.

volcalis.pt

Zona Industrial de Bustos · Aveiro · Portugal

T (+351) 234 751 533 · apoiotecnico@volcalis.pt

Aplicação

confortável

A lã mineral Volcalis tem

um toque suave, é fácil de

manusear, cortar e instalar.

Fast archi challenges: A cidade do confinamento

Pandemic

Quarantine

Luís Pedro Cerqueira

Luis Pinto de Faria

Mafalda Pinto Pinheiro

Manuel Lapão

Márcio de Campos

Marco Silva

Mónica Alcindor, Mariana Correia

Michel Toussaint

Miguel Amado

Nuno Abrantes

Paula Silva

Paulo Tormenta Pinto

Pedro Brandão

Pedro Ressano Garcia

Pitum Keil do Amaral

Raquel Maria Airosa

Sofia Aleixo

Vanessa Pires de Almeida

Fotografias de Paulo Santos

36

40

50

51

52

53

54

55

56

57

58

59

60

61

62

63

64

65

66

67

68



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Ficha Técnica

www.jornalarquitectos.pt

Publicação da Ordem dos Arquitectos

Travessa do Carvalho, 23

1249-003 Lisboa

+351 213 241 135

Registo ERC: 108271

ISSN: 0870-1504

Depósito Legal: 27626/89

Tiragem: 15.000

Director

José Manuel Pedreirinho

Conselho Editorial

José Manuel Pedreirinho

Michel Toussaint

Produção e edição de conteúdos

Ordem dos Arquitectos

Design Gráfico

DDLX

Impressão

Lusoimpress

Publicidade e Marketing

Maria Miguel

Dossier Fotográfico

Paulo Santos

Concurso IdeasForward

Conteúdos

Os textos foram fornecidos pelos seus autores em resposta ao convite e à call para

envio de artigos de opinião, lançada pelo CDN no âmbito da produção do Jornal

Arquitectos #260 Pandemia, um número especial, exclusivamente dedicado ao

tema. Os autores foram convidados a responder às três perguntas enunciadas na

call (poster na página ao lado). Ficou ao critério de cada um optar por responder

a cada uma delas individualmente, ou elaborar um texto único. As imagens

publicadas junto a cada texto são da responsabilidade dos autores, cujos nomes,

títulos e demais designações foram publicados por indicação dos mesmos.

Os textos respeitam a grafia original de cada um dos autores e aqueles que

ultrapassam o número de caracteres definido para esta publicação ficarão

disponíveis em versão integral em www.arquitectos.pt, juntamente com a versão

online deste JA.

2

3



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Editorial

José Manuel Pedreirinho

PRESIDENTE DO CONSELHO DIRECTIVO NACIONAL, TRIÉNIO 2017—2019

Um bom exemplo de

protecção: túnica, luvas,

óculos e uma máscara

nariguda que não só

assegurava as necessárias

distâncias como, cheia com

várias ervas, funcionava

como filtro protector.

© Paul Fürst (ca 1656),

Médico da Peste Negra.

Um jornal, tal como uma revista, é uma publicação periódica.

Infelizmente, e por múltiplas razões, essa não tem sido ao longo dos seus quase

quarenta anos de existência, a principal característica do J-A. Como órgão de comunicação

da OA com os seus membros, tem passado por decisões diversas com as quais as

diferentes direcções se têm adaptado às circunstâncias.

Justamente uma das decisões que a actual direcção tomou foi a de não deixar

compromissos, leia-se, neste caso, a escolha de uma equipa responsável pelas futuras

edições do J-A, que comprometessem uma próxima direcção.

Ponderámos então fazer um número conjunto com as revistas dos nossos colegas

espanhóis, o CSCAE, e italianos, o CNAPPC. Uma intenção que se mantém e tem vindo

a ser trabalhada, mas que tem sofrido sucessivos atrasos que os acontecimentos dos

últimos meses não ajudaram a resolver, e por isso se tem prolongado para além de todas

as previsões.

Foi justamente a conjugação desses acontecimentos com as necessidades de

periodização, bem como compromissos já assumidos pelo Jornal Arquitectos, que nos

levou à decisão de avançar com a publicação presente.

Uma publicação aberta à participação de todos os membros da OA, feita através de

uma call, mas para a qual convidámos também todos os anteriores presidentes da OA

e da AAP, sua antecessora, todos os presidentes ou directores das Faculdades ou cursos

de arquitectura existentes; todos os anteriores directores do J-A; todos os candidatos

à presidência do CDN nas próximas eleições. Convites que estendemos ainda a algumas

entidades exteriores à própria OA.

Convites que quase todos aceitaram, na medida das disponibilidades de tempo de cada

um, o que muito agradecemos.

Os tópicos propostos eram, parece-nos, simples e óbvios: pensar o presente face

a todas as mudanças que estamos a viver, e avançar pistas para o futuro.

Um futuro sobre o qual, naturalmente, nada sabemos mas para o qual se começam

a descortinar algumas pistas. Sobre a nova relação que teremos de desenvolver com o

ambiente e a sua conservação; sobre novos modos de viver o território, a cidade, a casa

ou o trabalho; sobre novos ou antigos materiais e tecnologias que iremos utilizar.

São muitas as incógnitas e quase nenhumas as certezas, mas considerámos ainda

assim que valia a pena uma reflexão alargada de um vasto número de arquitectos sobre

um tema, e uma situação que nenhum de nós, seguramente, imaginaria ter de enfrentar.

Ficará assim como testemunho de um tempo e de um lugar que são os nossos.

Uma reflexão que sempre pretendemos plural, e que, estou certo, nos fará concluir pela

inevitável e fundamental importância do papel do arquitecto na definição desse futuro que

todos iremos descobrir, juntos.

4

5



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Caos Imagético

Adriano Niel

MEMBRO N. O 25335

Os bons velhos tempos

Alexandre Alves Costa

MEMBRO N. O 424

Quando se tornou claro que a pandemia seria uma

grave crise sanitária e económica, o medo instalou-se.

Temeu-se o refrear da economia, a estagnação dos

projectos, o tardar das novas encomendas e a inerente

falta de sustentabilidade dos ateliers. No fundo, o medo

do desaparecimento. Certamente emergiram memórias

das feridas deixadas pela recente grande crise. A reacção

a este medo foi a possível, neste tempo que fez dos

dispositivos móveis o nosso único reduto. Como nunca

antes, o espaço físico foi substituído pelo espaço virtual.

E nós, arquitectos, operários do espaço físico, não tivémos

remédio senão tentar operar neste espaço virtual, com

ferramentas que nos são, ainda, alheias.

Esta necessidade de actuar neste espaço virtual trouxe

uma reacção marcadamente ansiosa e expansiva, que

contribuiu para que este entrasse num completo caos.

De um dia para o outro, recebemos uma incontrolável

avalanche visual e auditiva que nos entrou pelos dispositivos

adentro. Assistiu-se a uma ebulição cultural no espaço

virtual sem precedentes. Subitamente, multiplicaram-se

as exposições, filmes, teatros, conferências, directos e

publicações, em quantidades incalculáveis. No meio da

Arquitectura não foi diferente. Com o passar do tempo

assistiu-se a um impressionante babyboom de contas virtuais

de ateliers, um esforço evidente na actualização de sites, um

brotar de ciclos de conferências caseiras, uma cadência

hipertensa de publicações com imagens de projectos

concluídos ou embrionários, de processo criativo, ou até,

com maior bravura, de visitas às obras.

Em reacção a este medo que o vírus físico implantou

sobre nós, criámos (ou apenas enfatizámos), neste curto

espaço de tempo, uma espécie de vírus virtual. Este

ergueu-se sobre uma ânsia narcisista de querer estar à

tona: ser visto, seguido, comentado e gostado. Baseia-se

numa publicitação excessiva, incauta e, não raras vezes,

vazia. O seu produto define-se pela mera repetição,

ou pela arritmia de sentido, o que torna difícil, senão

mesmo impossível, a sua absorção. O resultado desta

hiperactividade virtual não é mais do que um infindável

plano desfocado. Como se, num exercício delirante,

recorrêssemos ao Photoshop, sobrepuséssemos todas

as caóticas fotografias de Learning From Las Vegas (com

um fade de trinta por cento) e fôssemos transportados

para a imagem resultante. Depois deste extenuante caos

imagético, larguemos o Photoshop e o espaço virtual,

foquemo-nos no espaço físico e no papel.

A pandemia atual, como outras que, no seu tempo,

aterrorizaram o mundo dito civilizado, constitui como que

um interregno na vida real que seguia o seu curso, cada

vez mais apressado. Integrar o seu desenvolvimento e os

seus efeitos no aperfeiçoamento da humanidade, como

fazem alguns adeptos dos estados de emergência e de

calamidade, é perverso e representa a sua aceitação como

nova normalidade e tendencial futuro apoio a um qualquer

regime autoritário.

A criação de novos desenhos para as máscaras

e a aceitação como natural de ecrãs divididos aos

quadradinhos com as pessoas à sua janela, não é tolerável.

Não podemos encontrar beleza, nem ocupação para os

designers num quadro de sofrimento de milhares de

pessoas. Não podemos integrar no nosso comportamento

os ensinamentos das trincheiras da guerra por mais gestos

de solidariedade a que tenham dado origem. Nunca

usámos as máscaras anti-gás para nos aperaltarmos para

a festa da vida social retomada.

Obviamente que temos que nos defender do inimigo e

lutar pela sua aniquilação e retomar o curso da vida como

conhecíamos anteriormente. Falaremos dos velhos tempos

como sempre falámos dos tempos à distância de duas

gerações, agora à distância de dois meses e correremos

os mesmos riscos de nostalgia compulsiva.

Não vão os arquitetos inventar novas tipologias para a

habitação onde as crianças possam andar de bicicleta ou

de skate. Não vamos usar como unidade de composição a

medida do distanciamento social e voltar à Carta de Atenas

com aquele distanciamento adoptado à escala da cidade

como afastamento entre blocos ou torres. Não vamos ficar

sem olfato e namorar ou fazer sexo virtual acompanhados

por imagens virtuais, nem habituar os cães a passear

sempre que nos apetecer respirar. Claro que voltaremos

a sentir as emoções tácteis que agora nos são proibidas

e deixaremos de esconder os sorrisos e a manifestação

dos sentimentos e dos desejos. Creio que saberemos

resistir como souberam os personagens do Farenheit 451

de Truffaut que, perante a destruição dos livros, cada um

decorou o seu para evitar a sua perda. Cada um que escolha

o seu que o ajudará a salvar da doença ou da demência.

Eu já escolhi um poema da Sophia, um soneto de Camões

e um romance do Camilo...

Sim, voltaremos à normalidade, tudo ficará como

nos bons velhos tempos onde se aceita que existam

milhares que não tem água potável para beber quanto

mais para lavarem as mãos de cinco em cinco minutos.

Continuaremos seguramente a não ter boletins, com

gráficos e curvas, sobre os mortos ou sobreviventes da

travessia do Mediterrâneo, ou das barracas onde vivem sem

take away, nem concertos transmitidos pela televisão.

Claro que voltaremos à normalidade, com os arquitetos

a serem desrespeitados e injuriados por quererem

transformar as moradas das instituições em obras de arte.

6

7



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Arquitectura e Pandemias

Alexandre Burmester

Presidente da Mesa da Assembleia Geral da OA

MEMBRO N. O 2060

Álvaro Siza Vieira

MEMBRO N. O 406

Ao longo do tempo da nossa evolução tivemos de alterar

e adequar o espaço em que vivemos de forma a melhor

nos adaptarmos às nossas necessidades. Esta intervenção

é feita em diferentes escalas dando origem às alterações

do território, da cidade, do edificado e dos objectos. O seu

desenho corresponde ao acto arquitectural.

Se o conceito a todos pertence, o engenho de construir

pertence às engenharias e a arte do seu desenho à

Arquitectura.

Vem isto a propósito da Pandemia que nos assola, mas

podia vir a propósito de qualquer outra circunstância e

muitas há que nos obrigam a constantemente reconsiderar

e a reavaliar a justeza do conceito e do desenho dos espaços

em que vivemos.

Muitas alterações na nossa forma de viver ocorreram

rapidamente motivadas pelo confinamento obrigatório

que as actuais circunstâncias nos obrigaram. Muitas

pessoas, que inevitavelmente ficaram em casa, equacionam

naturalmente a configuração da sua habitação face às

actuais necessidades de convívio e de trabalho simultâneo.

As entradas e as antecâmaras dos prédios e das habitações.

A configuração das lojas, dos restaurantes, dos hospitais,

dos ambientes de trabalho, dos espaços públicos, um

sem número de espaços cuja configuração nesta data não

cumprem as necessidades.

Uma série de objectos que não participavam do nosso

dia-a-dia passaram igualmente ao nosso vocabulário

cotidiano. Máscaras, palas, luvas, fatos, frascos de

desinfectantes, ventiladores, etc., marcam nesta altura

uma corrida à execução e ao desenho.

Outras pessoas que eventualmente saíram das cidades

para o interior, menos densificado e menos propenso à

infecção, trabalham à distância e questionam se calhar

qual a pertinência de viver nas cidades. Porventura

poderemos reequacionar nesta altura a importância de

uma descentralização. Sabemos que muitos trabalhos e

serviços estão a cumprir os mínimos e podendo cumprir

mais, tendo os seus funcionários espalhados à distância

das linhas de comunicação e não estando centralizados

num mesmo local.

Na história do urbanismo existem muitas razões

orientadoras do conceito das cidades, seu desenho e

construção; alguns deles e bastante pertinentes são as

razões de ordem sanitária. Bastará nos lembrarmos de

muitas operações de renovação e de demolição de zonas

antigas das cidades europeias, que foram justificadas

para cumprir requisitos de sanidade. Algumas ocorreram

inclusive durante estados de pandemia. Muitas das regras

de urbanismo e de construção, como por exemplo o RGEU,

têm por base princípios orientadores de saúde, tais como

o arejamento e a insolação, os revestimentos laváveis, etc.

Não estamos perante nada de novo na evolução do conceito

e desenho das cidades e das construções, estamos sim

perante condicionamentos novos.

Naturalmente que o condicionamento infeliz que

hoje vivemos trará consigo novos princípios de vivência.

Mesmo durando um tempo determinado, o que deixa

para já algumas dúvidas, trar-nos-á para sempre regras e

princípios orientadores da vivência do futuro.

Este é portanto, um acontecimento que transportará

para a Acto Arquitectural um novo desenho do espaço

em que vivemos ou, por outras palavras, motivo para

redesenhar a arquitectura.

O contributo dos arquitectos vem sendo considerado

irrelevante e incómodo. Só isso explica que as condições

de trabalho (para as quais não há quaisquer normas)

tornem impossível o trabalho responsável, até pelo

acréscimo de burocracia, de «plataformas», de contribuições.

As palavras que tenho nos ouvidos (e já de antes da

pandemia) são: arranjo isso por menos de metade. Ou lido,

em programas dos obrigatórios concursos públicos:

um dos critérios de classificação é o custo do projecto.

O contributo no pós-pandemia terá de ser, por aquilo

a que venho assistindo, a desistência.

8

9



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Arquitectura Marginal

[How will we live together?]

Ana Bordalo

Directora do curso de Mestrado Integrado em Arquitectura, Instituto Superior Manuel Teixeira Gomes

MEMBRO N. O 7796

Os Incêndios Florestais em áreas

de Interface Urbano Florestal,

em tempos de COVID19

António Bento Gonçalves

Geógrafo

Presidente da Associação Portuguesa de Geógrafos

A questão coloca-se: como é que arquitetos e urbanistas

podem ajudar a sociedade em situações como as que

vivemos hoje? Historicamente existem vínculos entre a

arquitetura e a gestão de crises epidémicas, da Peste Negra

à Tuberculose. Com o objetivo de minimizar os efeitos

devastadores ao longo dos séculos fomos evoluindo nos

sistemas de construção, saneamento, ordenamento,

bem como na organização funcional de estruturas de

acolhimento para doentes e condenados.

A organização do território e das cidades é um dos

elementos estruturantes para a gestão de crises epidémicas.

A existência de estruturas básicas de saneamento é, hoje,

um dado adquirido como fator determinante para a

salubridade dos territórios e um contributo estruturante

para a saúde e bem-estar das populações.

A arquitetura e o urbanismo no período moderno, com

a Carta de Atenas, no início do século XX, estabeleceram

parâmetros de salubridade para as habitações, que hoje

ainda são referência. Quase um século depois, com as

questões de salubridade consolidadas (nos países ditos

evoluídos ou em vias de desenvolvimento), tornadas

invisíveis pela sua normalidade, constatamos que,

subitamente, sem aviso, novos alarmes soam:

constatamos que o mundo não estava preparado para se

fechar nas suas “unidades de habitação”.

A pandemia que hoje vivemos fechou no conforto

de casa a parte favorecida da sociedade: a que tem casa.

No entanto, continua a deixar na rua uma outra parte:

a que permanece sem habitação ou sistema básico de

saneamento. O COVID19, não fez desaparecer os campos

de refugiados, as favelas, ou outras situações

(de habitação) em limite de rutura.

Com esta preocupação o Mestrado Integrado em

Arquitetura do ISMAT, criou a linha de investigação

Arquitectura Marginal [How Will We Live Together?],

que procura, através da realização de conferências e

workshops internacionais, promover soluções de habitação

Workshop Arquitectura Marginal [How Will We Live Together?], Janeiro 2020

que visam dar respostas à necessidade de habitação

(espaço habitável) em situações de limite, promovendo

Portimão como cidade de acolhimento. O objetivo não

é criar soluções únicas e desprovidas de contexto, mas

conferir aos alunos a capacidade de gerar propostas

viáveis e, simultaneamente, desenvolver um pensamento

crítico. Pretende-se pensar a arquitetura como elemento

estruturante da sociedade, na sua componente social.

O nosso país reúne as condições para se poder afirmar que

possui um "piro ambiente", pois junta às caraterísticas

mediterrâneas, que conjugam a época quente com a época

seca, a feição atlântica, que lhe permite uma elevada

produtividade vegetal.

Nos últimos anos ocorreram em Portugal incêndios de

proporções/consequências significativas, responsáveis pela

perda de vidas humanas e causadores de grandes prejuízos,

alguns dos quais em territórios onde as áreas urbanas

estão em contacto e interagem com as áreas florestais,

ou seja, as interfaces urbano-florestais (IUF), onde, em

Portugal, ocorrem cerca de 90% do total das ignições.

Num contexto de tendência positiva para o acréscimo,

tanto do número como da dimensão e da capacidade

destruidora dos "grandes incêndios", é crucial planear e

gerir as áreas de IUF, por forma a torná-las mais resilientes,

pois, nessas áreas, o problema dos incêndios é devido,

na maioria das situações, e em primeiro lugar, ao fracasso

da implementação de uma estratégia de ordenamento do

território, bem como à ausência de planeamento, quer

a nível urbano, quer a nível florestal.

Com a situação de calamidade e o estado de

emergência, Portugal viu boa parte da sua população

confinada e, como consequência, entre 1 de janeiro e

21 de maio, o número de incêndios e a área ardida caiu

abruptamente. A título de exemplo, no distrito de Braga,

em 2020, em relação à década de 2010 a 2019, o número

de ocorrências caiu 90,6% (de 502, em média, para 47)

e a área ardida reduziu 93,1% (de 1.865,44 ha, em média,

para 129,66 ha).

Ora, com o desconfinamento a coincidir com um

período de temperaturas elevadas e sem ter havido a

“tradicional” redução da vegetação nos meses mais frescos

e húmidos, poderemos assistir a uma vaga de incêndios

florestais que atinja áreas de IUF e que coloque em risco

pessoas e edifícios, especialmente os que não estão tão

preparados para esta nova realidade dendrocautológica.

A segurança de pessoas e edifícios não passa apenas

pela limpeza do mato em seu redor, mas também, e

não menos importante, por tornar as habitações mais

resistentes aos incêndios, o que obriga a cuidados

especiais ao nível do telhado, das aberturas para ventilação,

das janelas, dos caleiros, das chaminés, da existência de

diversos pontos de abastecimento de água, das garagens

e dos jardins.

Neste sentido, os arquitetos, que têm um papel

importante na segurança dos edifícios em áreas de IUF,

deverão exigir legislação adequada e preparar as habitações

para futuras emergências globais, que virão potenciar o, já

de si, muito elevado risco de incêndio florestal nessas áreas.

10

11



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Um momento de transformação.

O papel dos Arquitetos

António Gil Machado

Diretor da revista Vida Imobiliária

PANDEMIA,

também um desafio

para o arquitecto?

António Menéres

MEMBRO N. O 333

Temos um novo desafio coletivo para o futuro com a

presente emergência sanitária.

Como vão ser as cidades e os edifícios de amanhã?

O que vai ser diferente e como os espaços se têm de adaptar

às novas realidades? As habitações têm de incorporar

escritórios mais eficientes que não sejam o quarto das

visitas? Qual a dimensão exigida aos quartos dos hotéis?

Os escritórios vão ser locais temporários de reuniões,

porque passamos a realizar o trabalho individual a partir

de casa? Quais as consequências do distanciamento social

nas áreas comerciais? Como vai ser a mobilidade do futuro

nos edifícios?

A arquitetura como parte de uma sociedade plural

e multidisciplinar tem de estar na linha da frente das

respostas aos desafios que se impõem de forma coletiva.

Como o foram no passado, porque as preocupações

sanitárias sempre foram uma força decisiva na

transformação das cidades. Começámos a pavimentar as

ruas das cidades como resposta sanitária à peste negra, a

introdução do saneamento e das casas de banho teve uma

motivação de saúde pública. A preocupação sanitária foi ao

longo dos últimos três séculos um drive transformador das

cidades e que permitiu mais do que duplicar a esperança

média de vida humana ao longo deste período.

O impacto da presente crise sanitária vai ser longo

e profundo, desde logo em termos económicos, mas

também porque é um verdadeiro acelerador de tendências

que já eram claras na nossa sociedade. A digitalização

imposta pelo confinamento será a mais importante e

imediata, porque tivemos nas nossas vidas e organizações

de implementar em duas semanas o que andávamos há

muito a planear. O teletrabalho é agora uma realidade que

abraçamos como única alternativa. Descobrimos que uma

grande parte das viagens de trabalho são desnecessárias,

além de muito improdutivas e dispendiosas. Os processos

administrativos e a relação com a administração pública

podem finalmente dar um salto quântico, trazendo

para este século e adaptando os seus procedimentos

à digitalização.

Questionam-me sobre o papel da Ordem dos

Arquitectos no momento atual.

Respondo que é determinante em liderar uma discussão

que pode e deve dar um novo papel aos arquitetos no

desenho de cidades e edifícios que visam responder aos

desafios de hoje – uma sustentabilidade ambiental e

humana, com novos padrões de exigência sanitária.

De forma modesta, a revista Vida Imobiliária dará

o seu contributo com a organização da SEMANA DA

REABILITAÇÃO URBANA em versão digital. O mesmo

espaço de discussão, networking e exposição, para refletir

de forma global com os mais diversos stakeholders da fileira

da construção e do imobiliário. Nos dias 7, 8 e 9 de Julho

contamos com a liderança da Ordem dos Arquitectos para

iniciar a discussão do nosso futuro!

Quais os principais problemas que a actual situação

pandémica veio colocar à Arquitetura, às cidades e ao

território tal como os conhecíamos?

Tem sido um deixar andar, se pensarmos na progressiva

desertificação de muitas das mais importantes cidades

do interior, naturais aglutinadoras dos seus territórios

envolventes, cujo planeamento para uma melhor

implantação de uma agricultura moderna e de maior

interesse para o abastecimento nacional; a par de uma

enorme dispersão das pequenas e médias indústria que,

pelas suas próprias bases de implantação, fragéis e não

antecedidas de estudos de análise às suas melhores

potencialidades, quer a nível humano, quer a nível de

disponibilidades de terrenos de menor rentabilidade

agrícola; a par de redes viárias qualificadas, permitindo

menores encargos na colocação dos bens produzidos

junto dos maiores centros consumidores; tudo isto irá

repercutir-se numa mais lenta retoma nessas economias,

a par da crescente necessidade da modernização dos

métodos de produção, sempre confrontados com paralelas

ofertas, eventualmente aliciantes, dos mercados externos

concorrentes. Será oportuno, hoje mais do que nunca,

insistir na revisão do Regulamento Geral das Edificações

Urbanas, dando um outro sentido à organização e

dimensionamento de muitas das indicações contidas

no mesmo. A composição espacial da habitação, face à

introdução de novos equipamentos e às possibilidades

oferecidas pelas actuais tecnologias, são factores que

exigem a revisão destas normas, inexplicavelmente

adiadas, abrindo uma maior adequabilidade às

perspectivas que os tempos actuais exigem ao arquitecto.

Qual poderá ou deverá ser o contributo dos Arquitectos no

período pós pandémico (covid-19)?

A nível mais restrito, ou seja no próprio local de

trabalho, manter como regra as directrizes aconselhadas

pelo Ministério da Saúde. A nível externo, como seja no

acompanhamento das suas obras, insistir na observância

dessas mesmas directrizes, lembrando aos operários,

a saúde dos seus próprios familiares, face ao eventual

descuido de protecção durante as horas de trabalho,

sempre previsível de contágio num ambiente em que

os postos de trabalho não são fixos, como norma. E a

nível de cidadão, a par da sua consciência profissional,

a participação no combate à poluição das nossas cidades,

muito ampliadas pela emissão dos gases provenientes

do grande trânsito urbano que exige um estudo sério

e ao qual se junta, com maior ou menor frequência, a

existência de núcleos industriais cuja poluição se faz

sentir, comprovadamente, na saúde das populações

mais próximas. Um novo conceito do espaço verde é

fundamental para devolver à Cidade e aos seus habitantes

uma qualidade de vida, compatível com as possibilidades

que as tecnologias do século XXI nos oferecem.

Como podemos ou devemos preparar-nos para futuras

emergências globais, pandemias ou outras catástrofes

naturais?

Será naturalmente urgente repensar numa capacidade

de intervenção, consciente deste “mundo novo”, com

modelos de desenvolvimento, quiçá bem diferentes dos

modelos adaptados nestas últimas décadas. A troika

colocou-nos perante uma realidade de contenção

económica, face as muitas estratégias económicas “mal

avaliadas”, mas esta pandemia, obriga-nos a medidas

muito mais severas, face à dificuldade que o seu combate

exigirá, mesmo após a previsível disponibilidade de uma

ou várias vacinas de comprovada eficácia. Admito que

o próprio trauma provocado pela imensa perda de vidas

humanas, será um factor importante a admitir como

componente de defesa face a uma previsível e futura

catástrofe causada por um inimigo invisível, para quem

sempre será necessário criar novas armas de combate.

12

13



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

A cidade sem qualidades

Atelier Peninsular

Arquitetura no risco e o desígnio

de um futuro compreensivo

Avelino Oliveira

Presidente da Assembleia de Delegados da OA

MEMBRO N. O 6060

Se tivermos em conta que os homens, sem o auxílio mútuo,

vivem necessariamente na miséria e não cultivam a razão (...),

veremos com toda a clareza que para viver em segurança

e o melhor possível, eles tiveram necessariamente de unir-se e, assim,

fazer com que o direito que cada um tinha por natureza

a tudo se exercesse colectivamente e fosse determinado

já não pela força e apetite de cada um,

mas pela potência e a vontade de todos.

B. Espinosa, in “Tractatus politicus”, 1677.

A atual situação de pandemia e as medidas de controlo

revelaram as fragilidades de um modelo genérico de

desenvolvimento da Cidade. Antecipando os problemas

das alterações climáticas, é urgente pensar qual o nosso

futuro urbano.

A Cidade, enquanto construção coletiva, revela-se hoje

desumanizada por soluções genéricas, diluída da sua

forma e identidade. Substituída a ideia de comunidade,

e subtraída a habitação coletiva, os equipamentos

socioculturais, o ensino e a saúde pública, o vazio do

espaço público é hoje o resultado de uma economia

especulativa.

As vulnerabilidades reveladas no atual contexto,

mostram de forma pungente alguns dos problemas que

as alterações climáticas nos colocam. O nosso futuro

(urbano) depende, portanto, também significativamente

das lições que retiramos de momentos de crise. Hoje,

perante a necessidade do isolamento social, a resiliência

da população, testada nas mais variadas formas de

organização, pressiona a urgência de um planeamento

holístico e integrado.

Fundamentar a resiliência implica experiência.

No entanto, a história da Cidade constrói-se à escala da sua

arquitetura não só de modelos passados, mas sobretudo

de superações desenhadas precisamente em momentos

de crise. O plano urbano de Cerdà para Barcelona, a

integração de parques urbanos em Nova Iorque ou Boston

por Olmstead, o sistema de saneamento de Paris, e

posteriormente, as Unités d’Habitation de Le Corbusier,

assumiram um papel revolucionário na estrutura socio-

‐espacial das cidades.

Hoje, arquitetos, arquitetos paisagistas, engenheiros e

urbanistas devem, em conjunto com a comunidade, pensar

uma cidade capaz de se adaptar e conservar as suas funções

essenciais, estruturas e identidade.

Seremos capazes de garantir o acesso a uma habitação

de qualidade, a segurança alimentar e uma mobilidade

sustentável, partilhar abertamente o conhecimento e

implementar modelos de desenvolvimento económico

circular através de soluções ambientalmente sustentáveis?

Foi da gestão do risco que emanou a crise provocada

pela Pandemia COVID-19. Observa-se uma situação que

veio e irá provocar alterações significativas no ambiente

construído nas cidades e em todo o território. A mobilidade

foi o primeiro sector a sofrer as consequências da crise,

procurando mitigar o risco da contaminação exponencial.

O efeito deste medo urbano (Bauman, 2006) foi como se

o mundo carregasse no botão pause. Neste cenário, o setor

imobiliário tomou consciência que iria ser impactado

pelas ondas de choque de uma economia que travou

a fundo. E os produtores de espaço, nomeadamente

os arquitetos, tornaram-se espetadores atentos de um

processo que não conseguem controlar. Nada que as

palavras de Ulrich Beck (1992) não tivessem antecipado:

estes fenómenos são o resultado da modernização reflexiva

onde as consequências do desenvolvimento científico

e industrial acarretam um conjunto de riscos que não

podem ser contidos e onde ninguém pode ser diretamente

responsabilizado. Segundo Beck, a primeira modernidade

baseava-se nas sociedades confinadas ao Estado-nação,

onde as relações sociais, as redes e as comunidades

assumiam um caráter eminentemente territorial, mas

a globalização e a individualização favoreceram o

aparecimento de uma segunda modernidade cujos riscos

globais assentam em vulnerabilidades locais (riscos

ambientais, financeiros e segurança – terrorismo).

A questão atual é saber se os arquitetos saberão

fazer “arquitetura no risco”, criando espaços facilmente

adaptáveis à vida contemporânea e flexíveis para mudanças

ou ajustamentos no curto ou médio prazo. Casas que são

locais de trabalho, escritórios que passam a incluir lógicas

antes só aplicáveis a instalações hospitalares, espaço

público marcado pelo distanciamento social.

Se isso acontecer de forma consistente podemos colocar

o debate sobre a mudança do paradigma urbano centrado

numa complexidade ecossistémica, tão eficaz que funcione

como resposta aos pressupostos do paradigma evolutivo,

humanista e compreensivo. O padrão contemporâneo da

flexibilidade e da adaptabilidade assenta em processos

reflexivos (Friedman, 2002): o homem ajusta-se e

adequa-se à construção e a construção também se adequa,

suscetível de receber ações transformadoras, como as

nossas casas. Logo, a casa será a base das construções do

novo paradigma e, mais do que o espaço da organização

fixa (Hall, 1986), será uma “habitação ética”.

Estando a arquitetura obrigada a avaliar a cultura do

seu tempo, de que modo poderá, enquanto ferramenta,

potenciar a complexa rede de relações entre quem

investiga, quem decide, quem projeta e quem habita?

Apreendendo o risco e desenhando com métodos e

processos compreensivos, ou seja, não serão as áreas

tradicionais das ciências exatas a “contaminar” o processo

do projeto mas será a arquitetura a alterar o paradigma

disciplinar: a produção de espaços é uma ferramenta do

futuro.

Este texto foi editado devido à sua extensão.

Clique neste botão para ler o texto original.

Apontamentos bibliográficos:

Bauman, Zygmunt (2006), Confiança e Medo na Cidade, Lisboa, Relógio d'Água.

Friedman, Avi (2002), The Adaptable House – Designing Homes for Change, New

York, McGraw-Hill.

Hall, Edward [1966] (1986), A Dimensão Oculta, Lisboa, Relógio d’Água.

Oliveira, A. et al. (2020), “Como se transformarão as nossas cidade e as

nossas casas”. Texto disponível em www.publico.pt/2020/04/20/opiniao

Sneader, Kevin & Singhal, Shubham (2020), The future is not what it used to be:

Thoughts on the shape of the next normal, McKinsey & Company.

14

15



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Bartolomeu Costa Cabral

MEMBRO N. O 142

Da cidadania à sustentabilidade

da Arquitectura face ao Covid 19

Carlos Alho

MEMBRO N. O 1635

É-me solicitada uma colaboração no JA sobre o período

que estamos a atravessar respondendo a 3 perguntas:

• Quais os principais problemas para a arquitectura

provocados pela pandemia?

• Qual a contribuição dos arquitectos?

• Como preparar face a futuras emergências?

A principal consequência do confinamento é passar a

trabalhar em casa e ter menos ou quase nenhuns contactos

presenciais. Portanto há problemas para a prática

profissional, reuniões que têm de ser feitas on-line, assim

como contactos com câmaras e outras entidades. As

escolas estão fechadas e os alunos estudam em casa.

Mas esta situação também tem as suas vantagens. Uma

delas é não perder tempo com os transportes públicos ou

privados e que agora nos damos conta do tempo enorme

consumem.

Outra consequência vantajosa é aumentar o uso da casa,

e aí vem a importância acrescida do conforto e necessidade

de espaço das nossas casas, isto é, da qualidade da sua

arquitectura e da nossa relação afectiva com ela. Temos

de gostar do sítio onde vivemos com boa luz e boas

condições físicas e ambientais. Não são apenas os aspectos

estritamente funcionais, como o isolamento térmico e

acústico, mas a existência de uma harmonia e beleza que

são essenciais à vida.

Penso que a contribuição que os arquitectos podem

fazer é a que já faziam antes ao delinear espaços agradáveis

e belos tanto no exterior das construções como na sua

disposição urbanística criando ambientes urbanos

com escala, com atenção para a envolvente paisagística

e boa disseminação do equipamento. É necessária

uma contenção nas circulações pois o exagero de vias

automóveis é nocivo ao ambiente e há que reduzir o

trânsito motorizado.

Uma outra consequência para a Arquitetura, será a

necessidade de pensar em novas formas de habitar, no

sentido de uma maior solidariedade entre as pessoas

como por exemplo fazendo habitação partilhada, de modo

a ajudar os idosos e as pessoas em geral completando

as habitações e a privacidade de cada um com serviços

comuns, facultativos, de refeições, roupas, convívio e até

cultivo de hortas nos espaços livres, criando comunidades

de vida.

Relativamente a futuras emergências ou catástrofes

tenho pensado nesta situação e que temos tido muita sorte

em não haver um grande tremor de terra que viria ampliar

grandemente o que estamos a passar e que essa seria uma

verdadeira catástrofe.

Penso que na nossa actividade devia ser esta a principal

preocupação.

De acordo com a Science China Life 1 ,o provável habitat

natural dos coronavírus são os morcegos. Em dezembro

de 2019 o SARS-CoV-2 volta a aparecer na China 2 e

começa uma pandemia mundial que leva os especialistas

a recomendar que nos organizemos e habituemos a “viver

com o Coronavirus”.

No que se refere ao Território, temos de viajar menos

e mais afastados e mais próximos da natureza e com

maior isolamento social. Nas cidades passará a haver

uma redução na capacidade de uso do espaço útil para o

trabalho, serviços e lazer por pessoa, uso unidireccional

das vias e apropriação do espaço público assim como

maiores áreas por pessoa e exigências de higiene e

segurança na mobilidade e uso dos transportes.

Na Arquitectura deve-se repensar todos os sistemas

de ventilação e adequá-los ao sistema natural, elevadores

com ventilação natural, redução para metade dos limites

de ocupação nos equipamentos hospitalares, escolares e

aéreos dos inicialmente estabelecidos.

O coronavírus é a epidemia sanitária mais mortífera da

nossa época. “Devido a globalização intensa do tráfego

aéreo, o transporte de pessoas contagiadas fizeram no

mundo uma proporção matemática não linear, onde se

pensa que os números se repetem, mas, ao contrário, eles

triplicam de um dia para outro 3 .

Tendo em conta a velocidade do contágio, a

Organização Mundial da Saúde prevê o isolamento,

distanciamento de segurança evitando as aglomerações 4 .

Mas há responsáveis políticos e cientistas que têm

defendido outra estratégia, a do contato social, prevendo

que se trata de uma gripezinha e o contágio trará a

imunidade à comunidade. Porém, mesmo em países

desenvolvidos existem milhões de pessoas carentes de

informação, hábitos ou o devido apoio emergencial nas

redes hospitalares 5 .

Desde 2006 que há previsões da ascensão e queda das

civilizações, com a escassez de recursos, ameaça nuclear e

as desigualdades sociais em direcção ao colapso previstas

por Diamond 6 , outros consideram o aquecimento global

como mãe de todas as batalhas de acordo com Klein 7 , ou

a chegada da terceira Revolução Industrial defendida por

Rifkin 8 ou ainda nas previsões de Servigne 9 a civilização

industrial está prestes a afundar-se. Há soluções para todos

os acontecimentos que afectam a humanidade 10 .

Os Arquitectos procuram uma visão holística,

do retorno à natureza, às soluções mais verdes, ao

teletrabalho, a maior isolamento social e privacidade,

maior ocupação por mt2 por pessoa, maior contacto

físico com a terra e um maior uso e conhecimento das

tecnologias de comunicação e simulação à disposição do

homem.

Com este vírus os idosos e as pessoas com algum tipo

de deficiência ou maior carência económica acabam

por ser eliminadas como consequência dos avanços

desmedidos do capitalismo 11 . O que tem levado a uma velha

máxima como solução: “Se os ricos não tratarem da saúde

dos pobres, podem ter a certeza que mais cedo ou mais

tarde os pobres tratam da saúde dos ricos.”

1

Diário de Notícias, 23/01/2020 – 10:56. Acesso 07/05/2020

2

DGS – Direção Geral de Saúde – perguntas frequentes. Acesso 05/05/2020.

3

Paolo Giordano – Frente ao Contágio, 2020.

4

Revista Visão – Os dias mais longos contra a COVID-19

5

SUPER Interessante, maio 2020, p. 29 – Edição 265.

6

Jared Diamond, Biólogo e geografo americano – escreveu (Colapso, Gallimard 2006)

7

Naomi Klein, ambientalista canadense – O Mundo em Chamas – Um Plano B para o

Planeta

8

Jeremy Rifkin, norte americano futurólogo prevê a substituição das energias do

petróleo, gás e carvão por energia solar e eólica.

9

Pablo Servigne – colapsólogo francês – escreveu um pequeno manual de

colapsólogia, 2006

10

Revista Courrier Internacional – maio 2020 nº 291 – Repensar o Mundo

11

Le Point – França – 23/04/2020 - 11:42 – Acesso 02-05-2020

16

17



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Desafios da pandemia

Carlos Mineiro Aires

Bastonário da Ordem dos Engenheiros

Pandemias – desafios

e oportunidades para a cidade

Prof. Dr. Carlos Santos

Director da Faculdade de Arquitectura e Artes, Universidade Lusíada - Norte (Porto)

A pandemia causada pelo COVID-19 veio colocar-nos

inúmeros desafios, sobretudo pela forma inesperada

como se espalhou globalmente e originou uma nova crise

económica, a seguir à de 2009.

Então, sobretudo os jovens tiveram de partir, vimos as

empresas a fechar, empregos perdidos, salários indignos,

laços laborais debilitados e a esperança posta em causa.

Engenheiros e arquitetos, enquanto profissões

indissociáveis e complementares na área da construção,

foram particularmente afetados, já que os investimentos

decaíram para níveis nunca vistos, por falta de capacidade

do Estado para financiar a obra pública e de confiança e de

alavancagem financeira por parte dos privados.

Entretanto, a partir do meio da década, com a retoma

que aportou investimento privado, nacional e estrangeiro,

a reabilitação urbana e alguma construção nova criaram

trabalho e, sobretudo, alimentaram uma lucrativa atividade

imobiliária.

A par, o investimento público e os financiamentos comunitários

perspetivam uma década interessante, sobretudo

se alguma coisa for feita para dignificar estas profissões,

a começar pelos salários e honorários que são praticados,

situação que o Estado não pode continuar a ignorar.

Veio à evidência a qualidade do nosso SNS e a confiança

que temos nos serviços públicos indispensáveis, onde o

rejuvenescimento dos quadros da administração tem de ser

uma prioridade nacional.

A grande exposição da nossa economia ao turismo,

obriga-nos a repensar o modelo para o futuro e que tem

de passar pela criação de bens transacionáveis, o que é

possível, como agora ficou patente, pois a engenharia

permite que o país se reinvente.

Se queremos ter uma economia sólida teremos de

apostar numa nova industrialização do país, numa altura

em que não podemos perder a transição digital, agora

acelerada, e a competitividade.

As empresas vão ter de repensar a forma como

funcionam, pois o teletrabalho veio para ficar, permite

reduzir custos fixos, aumentar eficiências e reduzir a

poluição das mobilidades pendulares que resultam das

más ocupações do território e dos desajustamentos entre

os locais de trabalho e residências.

No ensino e no comércio também irão ocorrer

impactos, pois o ensino à distância é possível e as compras

online vulgarizaram-se.

As cidades, os edifícios, as infraestruturas públicas,

como é o caso de escolas e hospitais, a mobilidade, etc.,

também terão de ser repensadas com a introdução de

soluções que potenciem a sua adaptabilidade e resiliência.

No essencial, tarefas para engenheiros e arquitetos.

A saúde pública constituirá porventura um dos

fundamentos da evolução dos conceitos urbanísticos

ao longo da história da Humanidade. De facto, as

preocupações que estiveram subjacentes ao desenho

de novas cidades foram sempre, de alguma forma,

com o objetivo de obstaculizar os surtos epidémicos.

E se refletirmos nestes aspetos, fácil é verificar que eles

estão presentes em todas as tratadísticas de arquitetura

e de urbanismo e em sequência de eventos catastróficos

por que se passou.

Após a Peste Bubónica do século XIV e o consequente

confinamento surgiram os estudos da Cidade Ideal

Renascentista. De igual forma, no caso de grandes

problemas de saúde em Barcelona no século XIX a resposta

foi dada por Ildefonso Cerdá e, no início do século passado

com a Pneumónica, surgiram as propostas do Movimento

Moderno e da Carta de Athenas.

É um facto que as pandemias encontram na cidade o

seu campo ideal para expansão, muito pela sua estrutura,

dimensionamento do espaço público e demasiada

dependência de transportes públicos.

Num interessante artigo recente do New York Times

intitulado “Can City Life Survive Coronavirus?” o seu autor,

Micael Kimmelman, afirma que as pandemias são anti

urbanas, explorando o nosso impulso de congregar. E a

nossa resposta até ao momento de distanciamento social

não só vai contra o nosso desejo fundamental de interagir,

mas também contra a forma como construímos as nossas

cidades.

O que estará em jogo é a necessidade de repensar a

cidade e a arquitetura em face desta realidade que, de

tempos a tempos, a Humanidade tem que enfrentar.

A cidade é um ponto de densificação social e não está

preparada para uma “recessão social” porventura mais

devastadora que uma recessão económica.

Da atual experiência pandémica resulta clara a

necessidade de redimensionar as cidades, criando

estruturas policêntricas de menor densidade com

diminuição de estruturas e tempos de transporte com

o aumento dos espaços e equipamentos públicos que

as servem, criando novos tipos de socialização dos seus

habitantes e melhorando as condições de higienização

e saúde pública.

Para a reflexão e proposição de novos paradigmas,

tal como outrora, serão obviamente convocados todos

os Arquitetos.

18

19



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Pós

Célia Gomes

Candidata à presidência do Conselho Directivo Nacional, triénio 2020–2022

MEMBRO N. O 7051

O Renascimento do Desenho Urbano

Prof. Doutor Arq. F. A. Ribeiro da Costa

MEMBRO N. O 2408

Arquitectura, Cidades, Território encontravam-se em

estado de emergência antes, encontram-se agora e assim

continuarão no pós-Covid. Mas este não é o meio para

o debater uma vez que não há independência editorial

no JA. Não há independência editorial no JA. www.

arquitecturaperto.eu Não há independência editorial

no JA. Não há independência editorial no JA. Não há

independência editorial no JA. www.arquitecturaperto.

eu Não há independência editorial no JA. Não há

independência editorial no JA. Não há independência

editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não

há independência editorial no JA. Não há independência

editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não

há independência editorial no JA. Não há independência

editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não

há independência editorial no JA. Não há independência

editorial no JA. Não há independência editorial no JA.

www.arquitecturaperto.eu Não há independência editorial

no JA. Não há independência editorial no JA. Não há

independência editorial no JA. Não há independência

editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não

há independência editorial no JA. Não há independência

editorial no JA. Não há independência editorial no JA.

www.arquitecturaperto.eu Não há independência editorial

no JA. Não há independência editorial no JA. Não há

independência editorial no JA. Não há independência

editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não

há independência editorial no JA. Não há independência

editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não

há independência editorial no JA. Não há independência

editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não

há independência editorial no JA. Não há independência

editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não

há independência editorial no JA. www.arquitecturaperto.

eu Não há independência editorial no JA. Não há

independência editorial no JA. Não há independência

editorial no JA. www.arquitecturaperto.eu Não há

independência editorial no JA. Não há independência

editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não

há independência editorial no JA. Não há independência

editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não

há independência editorial no JA. Não há independência

editorial no JA. www.arquitecturaperto.eu Não há

independência editorial no JA. Não há independência

editorial no JA. Não há independência editorial no JA. Não

há independência editorial no JA.

O mundo está no limiar de uma nova fronteira, quando

equacionamos o impacto da pandemia do coronavírus

SARS-CoV-2. As nossas cidades são o local propício para

a disseminação do vírus. As práticas higienistas, iniciadas

no século XIX, contribuíram para que hoje as cidades

sejam salubres, devido à aplicação de normas urbanísticas

sanitárias eficazes. No entanto, toda essa legislação não

conseguiu minimizar o impacto da transmissibilidade

viral, só possível pelo confinamento imposto. Quando

chegar o dia em que recuperarmos as nossas rotinas,

dar-se-á início a uma profunda reflexão de como deverá

ser pensado o espaço urbano. Para além de todas as

medidas de saúde pública necessárias à prevenção,

será fundamental pensarmos, a médio prazo, na forma

como as nossas cidades são desenhadas. Reconsiderar a

proliferação de grandes centros, periféricos, de comércio/

serviços e suspender as políticas de suburbanização

que obstinam no esvaziamento dos centros históricos,

devolvendo-os à população. A esperança numa rápida

recuperação assenta no pressuposto de que as cidades

contemplam uma infraestrutura eficiente que assenta na

alta densidade dos seus atores operacionais, contudo,

interagindo em espaços bem ventilados, visitados pelo sol,

tão necessários à extinção dos aerossóis virais. É incorreto

pensar que deveremos escolher entre debelar a doença ou

evitar a recessão económica. Os dois problemas coexistem

e deverão ser ambos equacionados. Com a redescoberta

do teletrabalho, a cidade reclamaria o ambiente urbano

para os cidadãos, passando a ser um local de contacto

social equilibrado e interatuante, potenciando a proteção

social de proximidade e onde o comércio local pudesse

ser diariamente utilizado. Tornar o ambiente urbano

denso de vida, mas garantindo a ordem sanitária, graças a

espaços bio-adaptáveis, que facilitem o convívio informal,

protegido e onde preservamos o sentido sociocultural

de comunidade. Transformar as vias rápidas urbanas em

avenidas atravessáveis ladeadas por passeios amplos e

expostos, com espaços de múltiplas opções de usufruto.

Evitar o aumento de grandes espaços de aglomeração.

Reconsiderar as políticas de habitação social que tem vindo

a gerar guetos discriminadamente estigmatizantes. Recriar

estruturas urbanas robustas que favoreçam a deslocação

pedestre e as ciclovias, onde o espaço verde seria o sistema

radicular que articularia a Pólis. Urge planear, de forma

participada, a cidade, estimulando o renascimento do

desenho urbano.

20

21



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Apontamentos para o futuro

Fátima Fernandes

Directora do Departamento de Arquitectura da Escola Superior Artística do Porto

MEMBRO N. O 3690

Francisco Silva Dias

Presidente da Associação dos Arquitectos Portugueses, triénio 1990-1992

MEMBRO N. O 165

Esta pandemia que tão velozmente se espalhou pelos

quatro cantos do mundo provocou uma sequência de

eventos para os quais o desafio tecnológico exige um ajuste

constante, por um lado, a novas e inesperadas experiências

de velocidade e, por outro, à quietude mais perturbadora.

Por isso, põe em questão a ideia de tempo e a ideia de

espaço como distância, tal como os entendíamos antes do

início de 2020.

A arquitetura, contrariando o que foi o seu contexto desde

as primeiras experimentações dos arquitetos modernos,

enfrenta agora um território que não é físico e dispõe de uma

condição excepcional que lhe permite iniciar finalmente e

com veemência as reformas sociais necessárias à construção

de uma nova utopia que estruture uma sociedade global.

Um pensamento genuinamente interdisciplinar que sustente

a harmonia entre o sistema humano e o sistema natural,

sem permitir que estes sejam desviados por uma visão

exclusivamente técnica e economicista.

Parecendo-nos escasso o sentido de tempo implícito

nos cânones contemporâneos – sujeitos a uma velocidade

vertiginosa que sufocava a quietude natural da vida – urge

procurar a forma de equilibrar os programas efémeros

exigidos com o meio físico de que ainda dispomos.

A resposta para este problema está no sábio cruzamento

dos valores do lugar com a dimensão universal da vida.

Esta tomada de consciência é extremamente importante

e é-o por duas razões: para a formação de uma atitude

que ofereça à cidade uma dimensão pública marcada pelo

carácter do lugar; e pela compreensão de que esta tem a

função de equilibrar os tempos vertiginosos e tensos da

condição global da vida contemporânea.

Necessitamos, por isso, de uma certa reflexão teórica

sobre a relação mais adequada entre esses espaços

destinados à função de habitar e a felicidade.

“Los edificios y los espacios tienen que asentarse bien,

estar bien dispuestos en el lugar: esa cualidad del buen

asentamiento les confiere un cierto aire de eternidad.

Este es el sentido de la arquitectura popular: hay que ser

realistas, hay que trabajar con lo que tenemos del modo

en que mejor sepamos hacerlo, y siempre con placer, con

humor, con cierto poder crítico, pensando en contribuir a

la felicidad de las personas (…)” 1

1

Távora, Fernando; “Nulla dies sine linea, Fragmentos de una conversación con

Fernando Távora”. Revista DPA, Documents de Projectes d’ Arquitectura n° 14. Edição de

Carlos Martí Arís. Departament de Projectes Arquitectònics. ETSAB UPC, 30 de

Março de 1998, p.10.

Aquela interrogação que intrigou várias gerações:

pode o bater das asas de uma borboleta em Java

provocar uma tempestade em Nova Iorque?

encontrou resposta numa pandemia que veio de longe,

e já deu a volta ao mundo, e que permite a um queiroziano

interpretar O Mandarim de forma inversa:

o toque de uma campainha na China pode matar idosos

em Lisboa?

Tudo isto são divagações possíveis porque a qualquer

um, constantemente martelado pela mensagem

#FiqueEmCasa, só resta refugiar-se na liberdade interior,

ou seja, na imaginação ou nos percursos da memória.

Verdade seja dita que são sinuosos, espiralados e, por

vezes, inexplicáveis os percursos da memória, pois tanto se

podem deter num facto como numa só palavra.

Para um arquiteto confinado, por tanto ter sido lida e

ouvida, é natural que agora surja e se imponha a palavra

casa

talvez também por há muito tempo, ainda a Ordem

se chamava Associação dos Arquitectos Portugueses,

ter feito parte de um grupo de trabalho encarregado

de elaborar um tesauro de termos de arquitetura e

urbanismo

e a evocação da palavra ter provocado uma espécie de

vórtice que fez convergir muitas outras elas começadas

pelo fonema que graficamente se representa por CA:

casulo, caixa, caracol (…com a casa às costas),

cadeado, capuz, capítulo, casal e casamento

(…quem casa, quer casa), cápsula, cabaz, cabeça ou

cachola (no sentido de sede do pensamento e coisa

fechada), cabana, cabaça, carapaça, caroço, canto

(sítio definido), cabine, camarote e câmara

(…música de câmara ou a cappella) e muitos mais

até à transcendente caaba.

e todas elas cabendo no sentido global de espaço limitado,

envolvente, de refúgio e de segurança.

Lembremo-nos, a propósito, que na harmoniosa língua

portuguesa casa também se pode dizer lar (…de lareira) ou

fogo e então estas palavras ganham o sentido emotivo de

relação e aconchego.

Se houvesse necessidade e fosse possível classificar o

vírus da pandemia sob o ponto de vista comportamental

ele seria cínico e cruel pois atafulhou casas, muitas vezes

para além de condições saudáveis de convívio, e esvaziou

a Cidade (a casa de todos) para aquém das condições de

sobrevivência coletiva.

Muito embora seja fraca a consolação assinale-se que

a pandemia colocou muitos cidadãos perante conceitos até

então distantes ou ignorados:

Índices e características numéricas representativas do

fenómeno, gráficos, curvas, previsões, “achatamento da

curva”, pirâmide etária, população de risco, proteção,

aglomeração, distanciamento…

e mais a interrogação surgida com perplexidade perante

o mapa do país:

por que razões as consequências da pandemia

apresentam implantações regionalmente tão

diferenciadas?

É quase certo que tudo isso está relacionado com as

assimetrias de desenvolvimento que o país apresenta, com

as formas de ocupação do solo, a densidade populacional,

os tipos de povoamento, a estrutura dos aglomerados

e, inclusivamente, com as anomalias que o atual parque

habitacional apresenta.

É concordância generalizada e aceite que nada será

igual e tudo será diferente antes e depois da pandemia.

Oxalá que assim seja e para melhor:

que haja casas para o maior número e que sejam

amáveis, isto é, que dê gosto estar e viver nelas e que

o território seja ordenado, produtivo e estimulante.

e que os arquitetos possam fazer uso pleno das suas

capacidades, não sejam só avaliados pelo feitio das

maquetes e desenhos que expõem e que a Arquitetura e o

Urbanismo sejam incontestavelmente reconhecidos como

um Serviço Público, que é como quem diz, visem o bem-

‐estar coletivo.

22

23



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Formas de Comunicar

Guilherme Pedrosa

MEMBRO N. O 24842

Aos arquitectos cabe escolher caminho

Helena Roseta

Presidente do Conselho Directivo Nacional da OA, triénios 2002-2004 e 2005-2007

MEMBRO N. O 4638

Jacques Tati, Jour de fête

Este ano a Primavera em Berlim foi cinzenta.

No ano passado o 1° de Maio foi celebrado em festa com

música, beijos e cerveja, as famílias montaram churrascos

em Tempelhof e os barcos turísticos cruzavam os canais do

sinuoso Spree.

Mas este ano caminho pela cidade com uma camisola

de malha, enrolado num farfalhudo cachecol e por vezes

abro a sombrinha tanto para me proteger da chuva como

da pessoa que está a tossir à minha frente.

Talvez este seja um tempo mais natural, só possível

porque o homem citadino saiu da sua rotina normal,

levando consigo toda a actividade que expande a sua

existência.

Os museus passaram a abrir portas em longos

percursos virtuais, os cinemas organizam secções on-line

e os comediantes deixaram de nos fazer rir em palco para

se re-inventarem diante das suas prateleiras e partilharem

connosco momentos de invulgar beleza com artistas a

renderem devida homenagem no estuque dos seus quartos.

Assim, se por um lado a grande festa que uniu o

mundo contra o VIH arrancou ao ritmo electrizante de

Freddy Mercury, o ruído deste século suspendeu-se em

tocante silêncio ao seguir a íntima oração do gentil Papa a

percorrer o doce abraço da grande praça cristã.

Foi esta nova intimidade que a reprodução virtual

descobriu nesta pandemia, isto porque como nunca antes

a aura do autêntico pareceu escapar da sua percepção

presencial para o eco contido e seguro do lar onde o

observador sente partilhá-lo em comunhão com tantos

outros, tão consternados como nós.

O trabalho de um Arquitecto é por definição um

trabalho de reprodução que comunica através da imagem

uma linguagem partilhada entre projectistas e construtores

capaz de materializar o abstracto de uma ideia. Ela é, por

isso, auto-referênciavel, cúmplice do Autor e integrada na

expectativa generalizada do meio.

Contudo, se o presente traz uma nova relação entre a

representação e o autêntico, como serão no futuro “Os

Atlas de Parede”, o lar subconsciente das nossas ideias,

quando levados por uma corrente de imagética cada vez

mais constante, onde a percepção reproduzida ganha uma

novo valor, distinto mas quiçá tão intrumentável para o

criador como o original.

We live in a world where there is more and more information,

and less and less meaning.

Simulacra et Simulation, Jean Baudrillard

Qual será por isso a importância da comunicação da

actividade, da fotografia, renderização e desenhos na

relação com a expectativa do mercado, do seu público

e jovens aprendizes com métodos de trabalho por

compreender?

Uma confirmação do que se espera ver ou de um ideal

do que se quer ser?

Enfim, espero não vos maçar.

Acreditem vou já terminar

pois quero sair e o Sol está de novo a brilhar…

Muito Obrigado!

Quais os principais problemas que a actual situação

pandémica veio colocar à Arquitetura, às cidades e ao

território tal como os conhecíamos?

A covid 19 tem sido um grande revelador das

desigualdades e desequilíbrios territoriais, económicos,

sociais e ambientais do mundo actual e do nosso país

em particular. O desafio principal é o da sustentabilidade

das nossas cidades e do nosso território. As alterações

climáticas são uma realidade, os eventos pandémicos

podem repetir-se, ainda nem sequer sabemos como lidar

com a covid-19. Temos de estudar mais e compreender

melhor que mudanças há que introduzir na nossa prática

profissional e no nosso quotidiano cidadão. Em épocas

de crise o futuro pode bifurcar: ou tentamos regressar

ao antigo “normal” de esbanjamento de recursos e

especulação desenfreada; ou procuramos assentar a vida

e a sociedade em novos valores. Aos arquitectos, cuja

função é exactamente projectar o futuro, cabe escolher

caminho. Que terá de passar por respeitar o território e a

paisagem, garantir habitação sustentável e contribuir para

a sobrevivência da vida no planeta.

Qual poderá ou deverá ser o contributo dos Arquitectos no

período pós pandémico (covid-19)?

Não há caminhos únicos. Cada arquitecto, cada atelier,

cada empresa tem de se interrogar sobre o que deve mudar

e melhorar. O direito à arquitectura está por cumprir.

À luz dos trágicos efeitos do covid-19, numa altura em que

a grande orientação é “fique em casa”, os mais ameaçados

são os que não têm casa ou não a têm em condições.

Temos de olhar para os espaços onde colocamos os mais

velhos – não podem ser meros depósitos de pessoas à

espera de morrer, têm de ser integrados na vida à sua

volta. E temos de ter cada vez maior atenção às condições

infra-estruturais básicas de higiene, conforto e mobilidade

– no espaço público, nos equipamentos colectivos e nas

habitações.

Como podemos ou devemos preparar-nos para futuras

emergências globais, pandemias ou outras catástrofes

naturais?

A formação e a prática da arquitectura devem integrar

mais conhecimento e mais inovação em matéria de

protecção civil e de prevenção de catástrofes, naturais

ou antrópicas. Sublinho a urgência de um novo olhar

sobre a vulnerabilidade sísmica no nosso território.

Ou a necessidade de re-habitar o edificado devoluto ou

abandonado. Temos de flexibilizar e inovar os usos do

tecido construído, gerir os habitats com parcimónia e

inteligência e reconciliar as casas que habitamos e o chão

que pisamos com os sistemas naturais que são o suporte da

vida. E temos de dialogar com as outras áreas disciplinares

e com os nossos concidadãos, para melhor formular as

questões às quais somos chamados a responder.

And in allowing the reproduction to come closer

to whatever situation the person apprehending it is in,

it actualizes what is reproduced.

The Work of Art in the Age of Mechanical Reproduction, Walter Benjamin

24

25



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

A cidade digital

Hugo Merino Ferraz

MEMBRO N. O 15588

Quando a realidade se mostra

ser uma construção frágil

Inês Alves

MEMBRO N. O 18087

Arquitecto Frank Lloyd Wright junto à maqueta da sua Boadacre City enquanto

conceito para o desenvolvimento suburbano. Rockefeller Center, Nova Iorque,

15 Abril 1935. © Keystone View Company/FPG/Archive Photos/Getty Images

A cidade deserta como nunca dantes visto, com regras

de distanciamento social e a higienização constante dos

espaços e coisas, poderia referir-se a uma cidade visitada

por Marco Polo numa das suas missões descritas a Kublai

Kan. Silenciosa e ausente do bulício e onde os espaços

desejam ser ocupados. Uma cidade contemplativa revelada

no espaço público e no edifício, que observa expectante por

novos sinais de apropriação.

Impedidos de a viver de uma forma física, somos

conduzidos a valorizar cada metro quadrado da cidade e,

mais do que nunca, ficarmos atentos aos pormenores e

momentos que outrora nos passavam despercebidos.

Os alçados, e em particular as varandas e as janelas,

ganham uma nova importância e surgem como novo

veículo de comunicação e expressão, reforçando o conceito

de vizinhança e espírito de bairrismo, mesmo nas grandes

cidades.

Numa primeira fase somos tentados a acreditar que

os danos colaterais da pandemia, na arquitetura em

particular, são arrasadores pela falta de encomenda, de

acompanhamento de obras, ou mesmo de trabalhar com

a equipa presente, explorando maquetes e desenhos em

espaço de atelier, mas na verdade não é bem assim.

As mudanças estão aí e não são de agora, apenas

ganharam uma nova importância e pertinência e têm tanto

de força como de fragilidade. Na verdade, elas têm vindo

a ser produzidas de forma lenta e paliada, atendendo

a interesses que lhe marcam o ritmo e a cadência. Em

2015 a ONU deu a conhecer os novos 17 objetivos de

desenvolvimento sustentável para os próximos 15 anos onde,

no seu 11º, pretende tornar as cidades e os assentamentos

humanos inclusivos, seguros, resilientes e sustentáveis.

Esta nova consciencialização vai muito além da

arquitetura, mas os arquitetos podem e devem ter um

papel ativo e determinante. Num processo de mudança

para a verdadeira revolução digital, temos de ser presentes

e participativos na elaboração de soluções integradas

com todos os intervenientes. A cidade digital está aí e

veio para ficar e é necessário repensar o nosso modelo

de participação na sua construção. Museus, concertos e

espetáculos, surgem agora online e deparamo-nos com uma

cidade despida, vazia e expectante, que passou a estar mais

disponível para ser vivida e menos consumida.

Estas mudanças representam uma oportunidade de

recomeço, de novos caminhos e desafios, mas para isso

será imprescindível uma consciencialização coletiva

liderada por governos centrais convictos, com uma

forte ligação às empresas e autarquias que, por sua vez,

cooperam com a comunidade em geral, representada por

associações, coletivos, grupos, etc.

A pandemia surge como o grande catalisador para

a mudança de atitudes e políticas de ordenamento do

território e (re)organização das cidades. O arquiteto tem

aqui, portanto, um papel principal como ator fundamental

no desenho da cidade e território e de formador das novas

gerações para uma mentalidade responsável e atenta à

importância do espaço construído e não construído. A

formação para a arquitetura atenta às novas realidades e

necessidades é da maior importância e relevância. Não

pode ocorrer de uma forma desprendida e isolada, mas

sim integrada num conjunto de medidas smart a tomar no

planeamento das cidades.

« (...) the future city will be everywhere and nowhere, and it will be

a city so greatly different from the ancient city or any city of today

that we will probably fail to recognize its coming as the city at all.»

Frank Lloyd Wright

A necessidade do confinamento trouxe consigo,

igualmente, a necessidade de reafirmação da habitação

enquanto abrigo. Mas não só: nela passamos a exprimir

outras atividades que outrora implicavam dinâmicas de

deslocação e cruzamentos público-sociais. A dinâmica

individual assumiu formatos desconhecidos (ou

esquecidos) num quotidiano tendencialmente mecanizado.

A casa adquiriu uma dimensão ampliada de expressão de

necessidades.

Por outro lado, as dinâmicas inter-relacionais foram

igualmente intensificadas num domínio virtual, através

das plataformas digitais a que hoje em dia temos acesso,

assegurando de alguma forma necessidades básicas de

coexistência. Ou seja, a intersubjetividade intrínseca ao

ser humano, viu-se continuada através de uma crescente

virtualização das relações.

Este expandir das dimensões humanas associadas

ao confinamento são únicas na história da humanidade,

isto, se tivermos em consideração que a última pandemia

mundial se deu há aproximadamente um século. Nunca

o mundo esteve tão pequeno aquando de uma pandemia.

Estamos próximos, mesmo que sozinhos em casa.

Este fenómeno arrasta consigo a importância de

refletirmos sobre que espaço privado é esse onde nos

confinamos, que permitirá ser continuidade de nós mesmo

na reinvenção do nosso quotidiano, e que espaço público

será esse também, onde nos relacionamos virtualmente

com os outros e onde, através da intersubjetivação, nos

definimos enquanto humanos e agentes sociais.

Se a dignidade de uma casa permite transpormos para

ela atividades e necessidades nunca antes acontecidas no

interior de 4 paredes, então o que será afinal permitido

quando esta dignidade da habitação não existe? Por

outro lado, se as plataformas digitais permitem que

nos continuemos a relacionar com os outros, então que

dinâmica social acontecerá quando não temos acesso a

esse espaço público alternativo?

A par da aparente expansão e reinvenção das dimensões

humanas e sociais latentes com o confinamento, existirá

também necessariamente uma intensificação das

diferenças abismais existentes no acesso democrático aos

espaços privado e público.

Não será uma urgência para arquitetura retomar a

temática da habitação e aproveitar o facto de que o mundo

encolheu para intensificar o papel social d@ arquitect@,

aparentemente em suspenso?

E qual terá sido o papel da arquitetura na encenação de

belos centros históricos que agora se esvaziaram – tanto

pelas suas ruas como pelas suas casas – dependentes de

fluxos sazonais?

26

27



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Quatro reflexões

João Magalhães Rocha

Director do Departamento de Arquitectura

Escola de Artes / Universidade de Évora

MEMBRO N. O 4803

A partir de casa

João Santa-Rita

Presidente do Conselho Directivo Nacional da OA, triénio 2014-2016

MEMBRO N. O 2203

Ortigia, Siracusa. Fotografia: João Rocha 2018

Quatro reflexões recorrem ao título de um dos livros de

Italo Calvino, como metáfora para outras propostas

de arquitetura. Um reflexo que surge do espaço do

confinamento, do novo silêncio da cidade, através de

imagens de uma outra tristeza, quase inimagináveis até há

muito pouco tempo.

Arte, inevitável e tão transformadora, sempre

sobrevivente em situações de devastação, Longhena

projeta a Basílica de Santa Maria della Salute em Veneza,

após a terrível presença da peste, Picasso pinta Guernica

após o bombardeamento da cidade Basca, Shostakovitch

compôs a 7ª Sinfonia, escutada em todo o centro de São

Petersburgo, durante os dias cruéis da guerra.

Sociedade, ficou claro, ficou a nu, que a nossa sociedade

é frágil, inteira de assimetrias, parte dela esquecida, parte

dela sem arquitetura. Ficou claro que, afinal, é vital a

economia, todos a conhecem, todos a desejam, modelos

de Marx, Keynes, Galbraith ou Samuelson. Mas pode a

economia (num período pós-pandemia), contribuir de

um modo definitivo para devolver dignidade à vida, à luta

contra a doença, a uma melhor fruição da cidade? Como

referia Freud em O Mal Estar na Civilização, “é impossível,

fugir à impressão de que as pessoas comumente

empregam falsos padrões de avaliação”. Existem falsos

padrões de avaliação na nossa sociedade (Europeia),

distorções cansativas, que não podem subsistir.

Sobrevivência, recordo o ano de 2000, em que como

assistente de Charles Correa, se trabalhou num projeto

colaborativo à distância. Envolveu as escolas de arquitetura

do MIT, Ahmedabad, Beirute e Chicago, para um

planeamento urbano para as regiões afetadas por um

sismo no Paquistão. Charles Correa, insistia em que se

pensasse a casa, como se fosse constituída por vários

núcleos, quer à escala da célula, quer à escala da cidade.

Os espaços não têm todos a mesma hierarquia, e uma

habitação pode ser projetada, tendo como princípio que

sofrerá várias destruições durante o seu tempo de vida.

O interessante é ponderar que a célula-base, mesmo

perdendo outros layers espaciais, resistirá nessa unicidade

estrutural e arquitectónica e continuará a albergar um

espaço digno de sobrevivência.

Habitamos em cidades, que estão longe de conseguirem

edificar essa necessidade simultânea do efémero e do

perene, de albergarem espaços híbridos, de emergência, de

autossuficiência. As nossas casas, habitáculo da memória,

terão que ser pensadas com o futuro, para um presente

mais volátil, fascinante, mas também mais incerto.

Quais os principais problemas que a actual situação

pandémica veio colocar à Arquitetura, às

cidades e ao território tal como os conhecíamos?

O primeiro problema que a pandemia veio colocar

foi recordar-nos da nossa fragilidade enquanto seres

humanos, e do modo como tal poderá afectar a nossa vida

nas suas diversas dimensões.

Uma dessas dimensões foi precisamente a “Casa”,

colocando-a no centro da nossa existência, não apenas

como o local do Habitar, que sempre foi, mas agora

também para uma esmagadora maioria, como o lugar,

ainda que temporário, de trabalho e de aprendizagem.

Mas essa “Casa” não foi a mesma para todos, no seu

contexto, na sua dimensão, no seu conforto, na privacidade

dos seus espaços. Como tal, a “Casa, a Habitação” terá

de forçosamente continuar a ser um caso de estudo e

de constante reflexão, por parte dos Arquitectos e dos

decisores na implementação de políticas, com vista à sua

adaptação a um mundo em constante evolução e mutação.

A Casa é e será sempre o nosso primeiro e último reduto.

A cidade, por seu lado, temporariamente suspensa na

sua plena vivência, deixou de ser um lugar vivido e vibrante,

tornando-se num lugar quase desabitado, paradoxal e

simultaneamente temido e desejado. As cidades resistiram

a muitas e diversas vicissitudes ao longo da sua história,

sendo a presente pandemia apenas mais uma entre as

muitas que se sucederam ao longo dos tempos. A presente

situação revelou igualmente a sua fragilidade do ponto de

vista da segurança de muitos dos seus espaços para a vida

em sociedade, contrapondo os aglomerados de menor

dimensão como mais seguros, sobretudo num país em

que a desertificação é uma realidade de difícil inversão,

importando como tal reflectir urgentemente sobre a mesma.

Qual poderá ou deverá ser o contributo dos Arquitectos no

período pós pandémico (covid-19)?

Os Arquitectos, a par de outros profissionais, poderão

repensar a organização dos diversos espaços de natureza

pública (interiores e exteriores), e das infra-estruturas

de transporte, de modo a que estes possam responder

a uma realidade que, apesar de temporária, veio colocar

questões a seu modo intemporais e universais, como seja

a dimensão e características dos espaços, como um factor

de qualificação da vida, de modo a que proporcionem o

bem-estar e a segurança.

Como podemos ou devemos preparar-nos para futuras

emergências globais, pandemias ou outras catástrofes

naturais?

A globalização do mundo permitiu novos modos de

vida entre os quais a capacidade de uma mobilidade

como nunca dantes vivenciada. Uma situação como a

actual demonstrou-nos uma vez mais a volatilidade do

mundo perante factos de diversa natureza, mas também

demonstrou a resiliência do Homem perante as maiores

adversidades com as quais se confronta.

As emergências são imprevisíveis no tempo e na sua

natureza, tudo o que podermos fazer, como sempre

fizemos, é manter viva a memória das fragilidades

detectadas no passado em presença de um determinado

fenómeno, procurando corrigi-las no momento seguinte.

Assim se reconstruiu Lisboa após o Terramoto, e assim

temos habitado esta cidade, conscientes da possibilidade

de retorno desse fenómeno, mas confiantes na nossa

capacidade de resistir ao mesmo.

28

29



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Mudamos a Natureza,

a Natureza muda-nos

Jorge Cancela

Presidente da Associação Portuguesa de Arquitectos Paisagistas

Pós 2020

José Alberto Rio Fernandes

Geógrafo, Catedrático da Universidade do Porto

Presidente da Associação Portuguesa de Geógrafos, Março 2016 - Abril 2020

Quais os principais problemas que a actual situação

pandémica veio colocar à Arquitetura, às

cidades e ao território tal como os conhecíamos?

Não há duas cidades iguais, não há dois territórios

iguais. Contudo a pandemia tornou-se a grande

equalizadora. Todas as cidades e territórios tiveram

de definir e concentrar-se no essencial, como abrigar,

respirar, beber, comer, excretar, acreditar. A energia, a

segurança, a saúde, a comunicação, a família, os amigos,

a vida no momento presente, tornaram-se os garantes

emocionais para resistir e ultrapassar “o” momento.

Garantir o funcionamento destes sistemas, que nos tempos

“normais” nem se dão por eles e que agora se tornaram tão

visíveis, é, foi e será o grande desafio. A sua superação é

uma prova extraordinária de resiliência. Por agora, bravo,

passámos na prova. Mas também vimos que há coisas

a melhorar, nomeadamente em termos de equidade no

acesso à comunicação digital, na solidariedade económica,

na dependência do exterior em coisas básicas, na

necessidade da qualificação ambiental e social das nossas

paisagens urbanas e peri-urbanas degradadas.

Qual poderá ou deverá ser o contributo dos Arquitectos

no período pós pandémico (covid-19)?

O essencial não mudou, mas reforçou-se a necessidade

do bom desenho dos espaços habitacionais e espaços

públicos, do bom planeamento e ordenamento.

É fundamental trabalhar em conjunto, perceber que

os sistemas fundamentais para a vida são integrados

e complexos. Em particular, evitar os gestos vazios de

sentido na procura exclusiva da forma em detrimento da

função. A Arquitectura e a Arquitectura-paisagista são

acima de tudo profissões responsáveis pelo desenho do

bom habitat da espécie, ou seja, actualmente de todas as

espécies que fazem com que a nossa não se extinga. São

profissões de intervenção, num mundo em mudança em

que já não há problemas ambientais, só sociais porque

“a natureza não precisa de nós, somos nós que precisamos

da natureza.” Saber com humildade e responsabilidade

o nosso papel na mesma, é essencial para a sobrevivência

em qualquer situação.

Como podemos ou devemos preparar-nos para futuras

emergências globais, pandemias ou outras catástrofes

naturais?

Em primeiro lugar perceber que estas emergências

da vida são “normais” e provavelmente repetíveis à

medida que o habitat da nossa espécie está cada vez mais

concentrado e mais extenso. A ecologia ensina-nos que

nenhuma espécie pode crescer para sempre, inclusive

a nossa. Algures no tempo encontraremos o limite

da distribuição dos recursos e é fundamental que nos

concentremos na equidade dessa distribuição. Ou então

serão sempre os mais fracos que mais sofrerão e essa

não é sociedade para qual os Arquitectos e Arquitectos

paisagistas querem contribuir.

As epidemias costumam marcar as cidades: profundamente, com

alterações planeadas e programadas, como a Paris de Haussmann

depois dos episódios de cólera de 1832 e 1948, ou mais

lentamente, como no Porto após a peste bubónica de 1899, em

que a separação entre a parte alta e a frente de rio (mais insalubre)

foi social e economicamente reforçada.

Como será agora, depois do covid-19, entre nós? Não sei!

Considero, contudo, que a experiência deverá desmentir os que

dizem que tudo vai ficar na mesma, mas afasto-me mais ainda

dos que sustentam que haverá grandes alterações! A partir do

que leio e ouço e das tendências que vinham já do “antes do

covid”, deixo três pontos e perguntas.

1. Queremos menos densidade.

A experiência de confinamento, afastamento do outro e valorização

da saúde, teve efeitos no aumento da venda de bicicletas

e produtos para cultivo, assim como procura de casas com

terreno. Além disso, aumentou o teletrabalho e a desconfiança

no transporte coletivo, o que pode reforçar uma nova separação

social. Será que vem aí o sprawl à americana e a casa eletrónica da

Terceira Vaga de Alvin Toffler?

2. A acessibilidade e a proximidade valem mais que mobilidade.

O comércio e serviços perto de casa convivem bem com o

comércio eletrónico. Mais importante do que ter muita mobilidade

e ir ao shopping e outras “coisas grandes” é o acesso ao que

queremos. Até porque, como aprendemos, em vez de irmos à

urgência dum grande hospital, pode ser melhor falar com um

médico sem sair do sítio, como é mais simples e barato um webinar

que viagem para evento internacional. Será que depois do

covid-19 deixaremos de ser inteligentes?

3. Damos mais importância ao bem-estar.

Mais importante que o consumo e a competição é a saúde,

incluindo a mental, pelo que a economia, o território, as cidades

e a arquitetura devem estar orientadas para o bem-estar, ou a

felicidade, como dirão os escandinavos. E é possível viver melhor

com menos, desde que se garanta o essencial. Para todos. Claro

que as forças do “mercado” são fortes... Quem ganha?

Pedem-me para dizer qual pode ser o contributo dos arquitetos.

Não resisto a adiantar alguns desafios/tendências:

Na densidade – projetar casas que sejam lugares de vida e não

apenas de residência, com menos luxo, mais respeito pela natureza

e a garantia da acessibilidade física e digital;

Na proximidade – projetar na conjugação de saberes, para a

(contínua) construção de espaços que cruzem habitação com

natureza e economia, promovendo eficiência, flexibilidade e

justiça espacial;

No bem-estar – “projetar com”, co-realizando construções e

cidades desejadas, respondendo/ antecipando as expetativas de

quem as habita/ vai habitar, para a melhoria das vidas individuais

e (sobretudo) em comum.

30

31



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Que papel para

o Arquitecto de

hoje e para o

de um amanhã?

José Miguel Fonseca

MEMBRO N. O 736

Business Center, Lisboa. Desenho de concepção: José Miguel Fonseca

Inovação pelo

Design em situação

de pandemia

José Rui Marcelino, André Castro

Designers

O modo como a acção do Arquitecto se pode ou deve

inscrever no exercício de uma prática experimental, inscrita

nas áreas do Planeamento e Ordenamento Territoriais, da

Urbanística e da Arquitectura é, a meu ver, absolutamente

crucial. Neste sentido entendo que o papel do Arquitecto

deve resultar também da consideração permanente das

seguintes questões:

Estará o Arquitecto, neste momento, em condições de

responder às actuais exigências de desenvolvimento da

e das sociedades, em que nos inserimos, de uma forma

responsável e útil?

A meu ver, o Arquitecto, para ser capaz de responder

a essas exigências, deve possuir uma formação

suficientemente abrangente nas áreas do Ordenamento

Territorial e da Urbanística e deve ser capaz de considerar,

quando do exercício da sua prática profissional (seja sob

que forma for), o entendimento do todo em detrimento

de uma visão parcial, que se pode tornar redutora. Deste

modo disporá das condições suficientes para responder

a qualquer solicitação.

O Arquitecto enquanto homem de visão global, com

a suficiente capacidade de síntese e de agregação de

valências pode, a meu ver, assumir a responsabilidade pela

execução de qualquer tipo de tarefa. No caso da elaboração

de Estudos, Planos ou Projectos e também na Coordenação

Global de Equipas Pluridisciplinares pode, se dispuser

dessas condições e capacidades, dar sentido ao trabalho

dos Especialistas, qualificando o seu e também verdadeiro

papel.

O Arquitecto enquanto homem de uma visão global,

possuidor de uma cultura da qual a humanística e o

artístico são indissociáveis, a que deve acrescer uma

formação experimental suportada no conhecimento

científico, deverá encarar o enquadramento da produção

do artefacto (sob qualquer que seja a sua forma) no seu

relacionamento com o âmbito mais vasto do facto social

e do facto político.

A acção e intervenção do Arquitecto devem ser

consideradas como contributos imprescindíveis na

resolução de alguns dos problemas com que todos nos

confrontamos e que afectam, de forma dramática, as

condições de vivência de um número significativo de

indivíduos, independentemente da sua condição?

Eu entendo que sim.

Os Arquitectos e as Arquitectas dispõem de capacidades

invulgares, tais como o conceber, o desenhar e o projectar.

Das mesmas não devem ser dissociados os aspectos

que se referem à imaginação, à intuição, à sensibilidade e

às capacidades que lhes permitem encontrar, ou mesmo

descobrir, uma outra forma de percepção da realidade

existencial, através de um outro modo de “Olhar”.

Têm agora, por maior ordem de razões, a possibilidade

de “se olhar”.

Se se quiserem “olhar”, considerando a memória e a

história, e também com uma visão prospectiva inscrita

no tempo, poderão procurar perceber aquilo que fizeram.

porque o fizeram, e como o fizeram, no desempenho do

seu papel.

Principais problemas que a atual situação pandémica veio colocar

à Arquitetura, às cidades e ao território tal como os conhecíamos.

As cidades, as pessoas e a mobilidade têm pela frente um

enorme desafio para ultrapassar a pandemia e aprender a viver

com uma nova realidade. Os transportes públicos, geralmente

associados a uma forma de mobilidade mais sustentável e

segura, enfrentam hoje grandes desafios para ultrapassar a

crise pandémica. Apesar de serem uma tendência de futuro nas

cidades sustentáveis – onde as pessoas, o transporte coletivo

e os meios suaves deverão prevalecer sobre o automóvel – os

transportes públicos enfrentam hoje um problema de confiança

por parte dos utilizadores: a segurança e conveniência dos

autocarros, metros, comboios e elétricos são postas em causa

durante a crise atual. Os operadores e a gestão dos transportes

das cidades precisam de agir rapidamente para procurar formas

de aumentar a segurança nos transportes coletivos e promover

a confiança dos passageiros, criando camadas de proteção em

cada uma dessas atividades e espaços. Para tal será necessário

recorrer à inovação com equipas multidisciplinares, com os

projetistas a terem um papel central na condução do processo:

Designers, Arquitetos e Engenheiros devem enfrentar este

desafio propondo produtos e serviços inovadores que permitam

proteger passageiros e operadores, aumentar a perceção de

segurança e privilegiar o uso dos transportes coletivos.

O contributo dos Arquitetos no período pós pandémico (covid-19).

As épocas de grandes desafios são impulsionadoras de inovação.

O trabalho de equipas multidisciplinares e a partilha do

conhecimento entre empresas, universidades, institutos, dentro

e fora de Portugal, serão essenciais para desenvolver novas

soluções disruptivas de base tecnológica – acesso a informação,

aplicações digitais dedicadas, materiais mais seguros e

higiénicos, novos layouts, entre outros. A Almadesign está já em

campo a trabalhar com associações empresariais, universidades,

institutos, hospitais, operadoras de transportes, na construção

de projetos inovadores na área de produtos médicos de suporte

de vida, sistemas de consultas remotas, mobilidade e transportes

coletivos e informação aos cidadãos. Acreditamos que devemos

aproveitar a crise atual para dar um novo impulso à inovação,

alavancando a indústria nacional de modo a dar resposta a

possíveis novos surtos ou futuras crises pandémicas.

Preparar-nos para futuras emergências globais, pandemias ou

outras catástrofes naturais.

Da logística à indústria dos plásticos e à indústria têxtil,

as empresas nacionais e os projetistas conseguiram dar

respostas rápidas às solicitações de mercado com soluções

inovadoras e disruptivas. Novos sistemas de produção,

sistemas de desenvolvimento de produto e prototipagem

rápida, digitalização e aplicações móveis foram algumas das

inovações que deram respostas imediatas durante o pico do

surto. Acreditamos que são necessárias uma grande partilha de

informação e colaboração internacional, mas é fundamental dar

resposta às solicitações nacionais através da indústria local que,

cada vez mais forte e inovadora, em colaboração com projetistas,

universidades e centros tecnológicos, já mostrou que é capaz de

reagir rapidamente e de se adaptar às solicitações numa altura

de emergência.

32

33



FAST ARCHI CHALLENGES

A cidade do confinamento

Foi com base neste conceito que surgiram os FAC (fast archi challenges), pequenos

concursos de reflexão sobre a arquitetura e a cidade em tempos de pandemia.

Pretendemos, com estes pequenos desafios de 48 horas, produzir um conjunto

de reflexões sobre o cenário atual das cidades e a nossa relação com as mesmas

e em particular com o edifício. De uma forma simples e expedita, era pedido aos

participantes, através de diferentes registos gráficos, que apresentassem a sua visão

da cidade com base num tema pré-definido.

Observar as cidades através das janelas e/ou meios de audiovisual, sejam eles os

telemóveis, portáteis ou televisões, permite-nos beneficiar de um distanciamento

da realidade, fundamental para construirmos uma reflexão isenta e até mais

profunda da cidade do confinamento. Assim, surgem as duas primeiras edições dos

FAC: Pandemic e Quarantine.

O primeiro, um exercício de ilustração cujo tema foi Empty Cities e onde era

pedido aos participantes que criassem uma ilustração em 48h que refletisse a sua

visão das cidades atuais fechadas às pessoas, sem trânsito, sem barulho, vazias.

O segundo, de fotografia de arquitetura, com o tema Architecture View Window,

onde se apelava aos participantes que, através das suas janelas, e sem poderem

sair de casa, fotografassem a arquitetura que observavam. Não se tratava apenas de

uma fotografia tirada da janela, mas sim um olhar crítico e artístico que refletisse a

quarentena, e a forma como a limitação física de percorrer a cidade afeta a forma

como a vemos e vivemos e, em particular, o edifício.

FAC Pandemic – Empty Cities

ilustração

1. o classificado

Gabriel Perucchi

Brasília, Brazil

FAC Quarantine – Architectural Window View

fotografia de arquitetura

1. o classificado

Marcos Paulo de Freitas Cambuí

Brasília, Brazil

www.if-ideasforward.com

35



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Pandemic

Empty Cities ilustração

FAC_046

Cansu Karaman

ISTAMBUL, TURQUIA

vencedor

FAC_068_1

Gabriel Perucchi

BRASÍLIA, BRASIL

A proposta vencedora apresenta-nos uma reflexão sobre

a cidade, onde interagimos com a mesma de uma forma

virtual. Se por um lado estamos confinados ao interior das

nossas habitações, por outro, e por via das redes sociais

e meios de comunicação, conseguimos estar nas ruas, ir

para o trabalho ou até mesmo a um restaurante através de

um simples telemóvel. Será esta uma quimera do futuro?

FAC_053

Stepan Andersen

SAINT PETERSBURG, RÚSSIA

36

37



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

FAC_012

Claire Trottier

STRASBOURG, FRANÇA

FAC_055

Lulia Carbunaru

BUCARESTE, ROMÉNIA

FAC_014

Luca Naso

ALBA, ITALIA

38

39



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Quarantine

Architectural Window View fotografia de Arquitetura

FAC_034

Maria Conduc

BUCARESTE, ROMÉNIA

vencedor

FAC_037

Marco Paulo de Freitas Cambuí

BRASÍLIA, BRASIL

Uma fotografia simples carregada de ironia e que nos

transporta para uma mensagem subliminar. A forma como

olhamos a cidade/arquitetura em tempos de quarentena.

Presos por uma rede vislumbramos uma cidade ao longe,

desfocada e sem cor.

FAC_09_2

Carlos Lima

LISBOA, PORTUGAL

40

41



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

FAC_013

Rakshita Jain

JAIPUR, INDIA

FAC_012

Iulia – Damaris Purice

NAVODARI, ROMÉNIA

42

43



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

FAC_028

Natália Cuntová

BARDEJOV, ESLOVÁQUIA

FAC_041_1

Anghel Oana Maria

GALATI, ROMÉNIA

44

45



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

FAC_038_1

Marius Vasile

BUCARESTE, ROMÉNIA

FAC_038_2

Marius Vasile

BUCARESTE, ROMÉNIA

46

47



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

FAC_09_1

Carlos Lima

LISBOA, PORTUGAL

FAC_039

Stefan Salavastru

BUCARESTE, ROMÉNIA

48

49



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

A planear é que a gente se entende

Luís Pedro Cerqueira

Presidente da Associação Portuguesa de Urbanistas

MEMBRO N. O 4123

COVID-19:

Entre a Consequência e o Pretexto

Luis Pinto de Faria

Coordenador do curso de Mestrado Integrado em Arquitectura e Urbanismo, Universidade Fernando Pessoa

MEMBRO N. O 6059

Ficar em casa expôs e acentuou globalmente assimetrias

sociais e sinalizou em Portugal a urgência de voltar

a incluir na agenda políticas há quase uma década

negligenciadas na estrutura governamental.

O termo CIDADE desapareceu em 2011 da agenda

política e da designação das secretarias de estado do

governo português. E para sonhar o futuro, hoje mais do

que anteriormente, “A planear é que a gente se entende”.

Os decisores necessitam do conhecimento e da

participação e experiência dos Urbanistas, Arquitetos e

Arquitetos Paisagistas para o planeamento e gestão das

atividades humanas no território e nas cidades.

O desafio que enfrentamos obriga-nos a pensar

em novos paradigmas e a adotar políticas capazes

de enquadrar a atuação humana nas exigências do

desconfinamento que deverá agilizar a nova normalidade.

O conceito de Território, Cidade ou Habitação no

mundo pós-Covid 19, e tendo ainda em conta as alterações

climáticas, impõe o abandono da retórica e exige a

interpelação dos Urbanistas, Arquitetos e Arquitetos

Paisagistas sobre as soluções a adotar na agenda urbana.

Assim os decisores políticos o compreendam.

Continuar a viver pressupõe uma sociedade responsável

e subentende o envolvimento do Estado. Restaurar

a confiança e reativar o tecido económico de forma

sustentada obrigam a satisfazer as necessidades gregárias

das populações, a ter presente a crescente centralidade das

Cidades nas agendas globais de desenvolvimento.

O Planeamento urbano, a arquitetura e o paisagismo

são a síntese para a integração no território e nos edifícios

dos critérios/opções das agendas urbanas numa perspetiva

de sustentabilidade, de adaptação às alterações climáticas,

de resiliência perante catástrofes ou crises e pandemias,

permitindo ainda a integração da transição energética e das

cidades digitais.

É de interesse público que o Urbanismo, a Arquitetura

e o Paisagismo sejam convocados para concretizar as

propostas das agendas supranacionais no planeamento da

adequação das cidades e do território aos novos desafios

que a realidade nos impõe.

A realidade mostra a importância de um desenvolvimento

urbano com visão de longo prazo assente numa

gestão proactiva, escorada no planeamento inclusivo

orientado para a sustentabilidade e resiliência das cidades,

preconizando um território integrador da igualdade de

género e de novas tecnologias e mobilidade.

Importa fomentar um desenvolvimento urbano

provavelmente de renascimento das cidades de média

dimensão em alternativa às grandes cidades. Aprender com

a reflexão possível sobre a realidade que a atual pandemia

nos impôs. As crises tornam possível iniciar e acelerar uma

transição!

Num momento em que habitação, confinamento,

mobilidade ou teletrabalho dominam o quotidiano é

oportuno chamar Urbanistas, Arquitetos e Arquitetos

Paisagistas e “Utilizar toda a sua imaginação e criatividade

para, quanto possível, conservar, restaurar e beneficiar os

tecidos urbanos antigos e recicla-los ou transformá-los de

forma a servirem a vida atual e antecipar a vida futura onde

se deverá manter ou desenvolver a qualidade humana.”

As principais bases de dados de indexação 1 revelam que em

março de 2020 foram publicados 1200 artigos científicos

sobre esta pandemia.

Apesar da área científica da arquitetura e do urbanismo

estar pouco representada neste “surto” de publicações,

os exemplos que têm vindo a público revelam sinais do

que poderá vir a ser o posicionamento da disciplina neste

contexto.

Um relance sobre estes estudos permite detetar a predominância

de duas abordagens: uma mais determinista,

alicerçada na capacidade técnica e tecnológica da disciplina

e empenhada na apresentação de “soluções” imediatas

para os desafios funcionais que se antecipam (medidas

com vista à prevenção de contágio; adequação dos espaços

de confinamento; ...) 2 ; e outra, mais reflexiva, inspirada

nos medos e incertezas da população quanto à avaliação

dos riscos higiénico-sanitário dos grandes aglomerados

populacionais 3 e com um discurso direcionado a um novo

“impulso à eco cidade”. 4

Parece ser unanime que:

A configuração/qualificação dos espaços teve um impacte

significativo, no modo como os territórios souberam

adaptar-se a esta crise e também na capacidade de resiliência

da população durante o confinamento;

Este surto está a contribuir para que a arquitetura se volte

a repensar técnica e metodologicamente no sentido de

melhor adequar a sua prática aos novos requisitos, medos

e ensejos da população;

A experiência desta pandemia, com o confinamento a

que obrigou, veio reavivar o debate sobre a relação espaço/

comportamento e contribuiu para uma maior literacia

ambiental e espacial da população.

Esta crise é indissociável do momento civilizacional de

exceção que a contextualiza: o impacte do “11 de setembro

de 2001”, as consequências da crise económica de 2007-

‐2008 ou os receios associados às catástrofes ambientais que

tem grassado pelo planeta. O conjunto de transformações

sociais, demográficas, económicas e políticas que a pandemia

acelerou confirma a necessidade de apuramento técnico

e metodológico da disciplina e também anuncia a inevitabilidade

de uma profunda revisão dos critérios de verdade e de

validação pelos quais a arquitetura é percecionada 5 .

Neste momento de transformação, agudizado pela CO-

VID-19, e em pleno esforço de reenquadramento num Lugar

cada vez mais plural e complexo, a disciplina, para além

da sua instrumentalidade, tende a reafirmar o seu papel

de mediadora na relação entre o homem e o seu “abrigo”,

como também, e de modo indissociável, entre o homem e

a sua “existência”, enquanto parte ativa e interdependente

do ecossistema global. O modo como habitamos e nos

relacionamos nesse Lugar; como nos orientamos nessa

encruzilhada de espaço, tempo e memória; como interagimos

com essa realidade natural/cultural, de mestiçagens,

contradições e verdades híbridas, volta a ser hoje lembrado,

agora a pretexto da COVID-19, como o desafio principal que

a arquitetura terá sempre de integrar e dar resposta.

1

Melo, Márcio et al. (2020), “Uma análise bibliométrica das pesquisas globais da

COVID-19”. Interamerican Journal of Medicine and Health (pré-publicação)

2

Giacobbe, Alyssa (2020).

3

Gang, Jeanne, “Architecture, Hope, & COVID-19”. A+U : Architecture and

Urbanism, May 2020.

4

Register, Richard (2002), Ecocities : Building cities in balance with nature,

California, Berkeley Hills Books, p. 94.

5

Nouvel, Jean, “Jean Nouvel in conversation – tomorrow can take care of itsef ”,

Architectural Design, vol. 63, 7/8, Julho-Agosto 1993, p. 10.

Este texto foi editado devido à sua extensão.

Clique neste botão para ler o texto original.

50

51



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Crónica de uma pandemia anunciada

Mafalda Pinto Pinheiro

MEMBRO N. O 24578

Reencontro:

Um passo atrás,

dois em frente

Manuel Lapão

MEMBRO N. O 3726

Cedro di Versailles, Giuseppe Penone, 2000-2003

Em 2015 numa palestra para o TED Talks, Bill Gates

profetizou: “Atualmente, o maior risco de uma catástrofe

global está num vírus altamente infecioso, não numa guerra.

Se algo matar 10 milhões de pessoas nas próximas décadas,

serão micróbios e não misseis”. Em boa verdade, desde o

início da humanidade, que as pestes, as febres e a cólera,

têm vindo a assolar a população mundial. Na atualidade,

com o ritmo frenético do crescimento urbano, a exploração

industrial desregulamentada em muitas partes do mundo

e a globalização, conjugada com a falta de investimento na

área da prevenção, mas acima de tudo regulamentação e

cooperação entre países e comunidades, veio propiciar um

desequilíbrio para o aparecimento de uma nova pandemia.

Contudo, também é verdade que muitas destas crises

vieram gerar transformações evidentes nos processos,

desde a implementação do sistema de saneamento, leis de

zonamento do território até à regulamentação habitacional

sobre iluminação e circulação de ar.

Numa visão geral sobre a atualidade, as tendências

pós-pandemia apontam para uma oportunidade de

desacelerarmos os impactos do Homem sobre o planeta.

Parte destas soluções já foram pensadas e projetadas

por grandes pensadores desde os anos 30, com o Arq.

Buckminster Fuller, que via na natureza um modelo de

eficiência máxima e de inspiração no design dos seus

projetos, até mais recentemente com o Arq. Stefano Boeri

que interliga a natureza no planeamento urbano e no

design dos edifícios, minimizando os efeitos da construção

e beneficiando não só o controlo da temperatura do ar,

assim como a absorção de grande parte do CO2 que as

cidades produzem.

Existe, portanto, uma oportunidade de revisitar o

passado reinventando-o com os avanços tecnológicos

do presente. Os edifícios do futuro partirão de uma

premissa não só de sustentabilidade mas também de

autossuficiência do mundo exterior, relativamente aos

recursos inerentes da sua utilização como o abastecimento

de água e aquecimento, minimizando assim, os riscos de

uma futura crise sanitária.

Porém, estas estratégias de pensamento e de atuação

terão que ser repensadas até ao tipo de comida que

colocamos nos nossos pratos. Uma vez que este é

apontado como o possível causador do Covid-19 nos

seres humanos. Assim, a agricultura urbana deverá

passar a fazer parte da nossa rotina diária. A produção

de pequenos cultivos, para além de nos proporcionar

segurança alimentar e oxigénio também está comprovada

que a interação física com as plantas é benéfica para a

nossa saúde mental. Impõe-se uma visão mais holística

não só sobre a construção mais sustentável de edifícios

mas também na relação entre estes, sempre com uma

abordagem multidisciplinar de complementaridade entre

as diferentes áreas.

Verifica-se que esta pandemia anunciada não é mais

do que o resultado do excesso de pressões que exercemos

sobre o nosso ecossistema e que, se não alterarmos o modus

operandi, outras virão com maior impacto e nesse caso

passaríamos a uma “Crónica de uma morte anunciada”.

Enquadro o tema através desta inspirada escultura, uma

metáfora e ilustração desta reflexão. Nada parecia indicar

que aquele cedro bem-nascido e melhor cuidado na

exclusiva escola de jardinagem de Versailles, depois de

quase 200 anos robustos, viesse a tombar pela fúria de uma

tempestade. Como ninguém poderia antever que viesse a

retomar uma outra vida pela mão de um grande criador.

O escultor italiano viu mais que a matéria inerte, (re)

encontrou nas suas entranhas outro ser, renascido numa

outra forma anterior de vida. Encontrou a primavera numa

árvore sem vida.

É imperioso acreditar que naquilo que existe tombado

podemos encontrar um tempo novo ainda que em parte

mais antigo. Voltar ao novo que é em grande medida

um tempo anterior: cidades e vilas com menos carros,

mais pessoas e crianças a brincar na rua, dar mais valor à

proximidade, à solidariedade, ao valor do nosso bairro, da

aldeia, sendo igualmente um tempo novo de conhecimento

e esperança e de alterações de modos de vida coletivos.

Quais os principais problemas que a atual situação

pandémica veio colocar à Arquitetura, às

cidades e ao território tal como os conhecíamos?

A pandemia veio expor os problemas que já eram

uma emergência – as cidades e os territórios estão

insuficientemente preparados e planeados, não têm a

resiliência e a flexibilidade para acomodar a vida de hoje e

muito menos os impactos brutais que estamos a viver.

Desfocados do essencial. Agora parados é mais

evidente. É imperioso valorizar na arquitetura, na

construção das cidades e no território, valores como o

conhecimento cientifico e os vínculos sociais, a qualidade

do ar, da água, do coberto vegetal, do ambiente, da saúde,

da segurança e, em geral, do equilíbrio dos ecossistemas e

da biodiversidade.

A falência da globalização. Deve valorizar-se a produção

local de bens essenciais, garantir a redução da mobilidade

imposta pela fragmentação urbana fazendo do quotidiano

um espaço mais equilibrado para trabalhar e viver, mais

flexível graças ao digital, multiplicando usos num mesmo

lugar, apostando na não dependência do exterior e nas

alternativas à motorização da vida quotidiana fixando-nos

em lugares de proximidade.

Qual poderá ou deverá ser o contributo dos arquitetos no

período pós-pandémico?

Liderar o conhecimento global e universal da

intervenção na cidade e no território. Responder para além

dos estímulos do mercado, antecipando e formulando

também respostas à dimensão social da arquitetura. Criar

melhores condições para a fixação de população nos

pequenos aglomerados, salvaguardando a paisagem na sua

dimensão social e cultural. Trabalhar no curto e no longo

prazo, começando já a articular respostas concertadas

entre o setor publico, o privado e o social.

Como podemos ou devemos preparar-nos para futuras

emergências globais, pandemias ou outras catástrofes

naturais?

Assegurar sobretudo resiliência aos territórios da

cidade ao campo – onde já existem boas experiências e

práticas, na auto-sustentabilidade quanto aos meios de

produção, à entreajuda e aos vínculos sociais, valorizando

os sentimentos de confiança, de vizinhança, de pertença e

de segurança.

Flexibilizar a gestão urbana, assegurando maior responsabilidade

nomeadamente aos arquitetos na procura de soluções

mais criativas e de melhoria do parque habitacional.

Encontrar novas soluções urbanas e no planeamento dando

alguns passos atrás para dar muitos outros em frente.

Este texto foi editado devido à sua extensão.

Clique neste botão para ler o texto original.

52

53



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Futuro Urbano Pós-Pandemia

Arq. Márcio de Campos

MEMBRO N. O 14674

(Sobre)Vivência

Marco Silva

MEMBRO N. O 26799

Após um período traumático de contenção de afectos e

afastamento físico, muitas questões se colocam tendo em

vista o futuro das cidades, dos comportamentos sociais e

das relações interpessoais. E são estes que, no tempo e no

espaço, continuarão a permitir a nossa coexistência. Os

ambientes construídos e as cidades são pontos de encontro

para que estas interacções aconteçam e perdurem. A

dimensão oculta que acontece nestes interfaces sociais,

por si só, é o espaço que nos aproxima, que nos distancia

e que torna possíveis as relações humanas sem que uma

determinada consciência revele essas evidências. Está,

intimamente, ligada à arquitectura e ao planeamento das

cidades. Já a obra literária A Dimensão Oculta, datada de

1966, da autoria do antropólogo Norte-Americano Edward

T. Hall, revelava uma análise profunda acerca do espaço e

como o ser humano se apropria dele.

Nas circunstâncias pós-pandemia este distanciamento

revela-se com outra carga e com outras consequências

sociais. No entanto, teremos que encarar estas novas

preocupações como oportunidades inadiáveis para a

mudança do actual modelo de cidade e das características

funcionais e construtivas dos edifícios. Urge um sentido

disruptivo de pensar os ambientes urbanos porque, de

facto, a relação com o espaço e a nossa recente percepção

sobre este, como indivíduo e como colectivo, leva-nos a

reflectir sobre diversos temas, tais como: modularidade,

reversibilidade, adaptabilidade, regenerabilidade,

habitabilidade, biodiversidade, sustentabilidade.

É necessária uma visão holística para colocar a natureza

e a biodiversidade em foco nos espaços urbanos através

da integração de nature-based solutions. Por outro lado, há

que introduzir novos sistemas construtivos sustentáveis

e fontes de energias renováveis que promovam uma

economia circular no sector da construção e que reduzam

as emissões de CO2 para a descarbonização no sector,

diminuindo, assim, a pegada ecológica e dotando as

cidades de ambientes mais saudáveis e inclusivos. Terão

que ser implementados novos sistemas dinâmicos e

evolutivos que permitam a desassemblagem como ponto

de partida para uma adaptação a novas necessidades

e programas que possam advir de outras emergências

futuras.

Este é o momento no qual os arquitectos têm um papel

fundamental na visão e transformação das cidades de uma

forma inovadora e resiliente, como ponto de partida para a

criação de valor económico, social e ambiental rumo a um

futuro sustentável.

Sem uma explicação concreta e absoluta, fomos rotinados

a que os meses passassem como semanas, as semanas

como horas, as horas como minutos, os minutos como

segundos e os segundos deixaram de existir. Existencialmente

foi nesta azáfama que fomos intercetados por algo

que nos fez refletir sobre o sentido de tempo e de lugar.

Às cidades faltou-lhes os seus elementos, quer sejam

eles naturais, artificiais, humanos, tangíveis ou intangíveis.

Neste período, a máquina cidade não funcionou ao

ritmo normal, ou pelo menos ao ritmo que todos nós lhe

incutimos. Objetivamente, a cidade sempre se ajustou aos

seus habitantes, mas hoje ela enfrenta problemáticas que

exigem resoluções instantâneas. A cidade sempre foi e será

um work in progress, muda a cada dia, hora e minuto.

Emergências globais, catástrofes, pandemias, guerras

ou qualquer outro evento terão a arquitetura como

parte fundamental da resolução. As transformações de

Haussmann em Paris (1853-1870) diretamente apontadas

ao controlo das rebeliões, acabaram por ser determinantes

perante a epidemia de cólera vivida nos meados do século

XIX; Paris pré-Haussmann é descrita em “Os Miseráveis” 1

de Victor Hugo como uma cidade insalubre, com traçado

medieval em que a população viva num amontoado de

casarios e em ruas sobrelotadas. Mais do que nunca, o

planeamento e a organização da cidade são essenciais para

todos os cenários presentes e futuros.

Irrefutavelmente a arquitetura é uma omnipresença para

todos, por isso ela tomou esta condição versátil e adaptável

a nós. Deste modo, a velocidade que estabelecemos

ao tempo também se conduz à arquitetura, já que

aparentemente tudo parece ser efémero e/ou transitório;

Estaremos nós a estabelecer um tipo de “arquitetura

descartável” que consiga responder momentaneamente as

nossas exigências, sendo destruída e reconstruída as vezes

que forem necessárias num curto espaço de tempo?

A verdade é que nós vivemos a arquitetura e a

arquitetura (sobre)vive por nós, indiscutivelmente trata-se

de uma simbiose.

1

Hugo, Victor, Os miseráveis, trad. Augusto Pinto, Grandes clássicos

da literatura universal, Estarreja, MEL Editores, 2009.

54

55



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Novas proxémias de

valores comunitários

Nós e a pandemia

Prof. Dra. Arquitecta Mónica Alcindor

Presidente do Conselho Científico da Escola Superior Gallaecia

Prof. Dra. Arquitecta Mariana Correia

Presidente do Conselho de Direcção da Escola Superior Gallaecia

Michel Toussaint

MEMBRO N. O 871

Estes momentos de confinamento obrigatório, aos

quais a nossa vida social foi submetida, proporcionaram

uma experiência única para se refletir sobre o papel da

arquitetura na vida individual e comunitária. A arquitetura

é uma das principais profissões responsáveis pela

construção dos edifícios nos quais ficamos confinados,

bem como pelos diferentes ambientes que definem o

espaço construído. Os nossos projetos podem exercer uma

clara influência nas relações humanas, pois somos um dos

principais agentes dos cenários em que o nosso quotidiano

ocorre. Como referido por Durkheim, a arquitetura é um

facto social material, ou seja, pode ser a petrificação de um

momento cultural.

Nos últimos anos, novas tipologias colaborativas

têm vindo a serem ensaiadas com maior dinamismo.

É o caso do cohousing, que surgiu baseado em design

intencional de habitação em comunidade. A pandemia

trouxe um novo desafio com outros riscos, que podem

passar despercebidos quando se tenta evitar a propagação

do vírus. Ao se colocar em primeiro lugar a segurança,

para se evitar o contágio, é possível que se promova

implicitamente um maior individualismo.

O principal objetivo desta reflexão, produto dos debates

tidos na esGallaecia nos distintos projetos do Mestrado

Integrado da Arquitetura e Urbanismo, é focalizar o papel

das emoções e do sentir da comunidade, em relação às

novas condições de segurança. Isso pode evitar que se sinta

o próximo como um adversário de quem nos deveremos

proteger. É importante ter em atenção a dinâmica do

espaço e do lugar e o papel da prática na construção

cultural dos lugares (Appadurai, 1988). Isso significa ser

sensível a uma abordagem baseada na retenção do senso de

comunidade, continuando com o trabalho de transformar

o “estar no mundo” em “estar em casa” (Han, 2020).

Os espaços devem continuar a gerar identidade,

reunindo grupos sociais heterogéneos, construindo

imagens da comunidade, estimulando redes de

relacionamento, regulando tempos coletivos. Em suma,

dando profundidade histórica ao “nós” (Cruces, 2010).

Evitando-se a exacerbação do individualismo, pode-se

combinar a ideia de um mundo de solidariedade, em

segurança, e com comunidades interdependentes.

A súbita invasão de um novo coronavírus que se supõe ter

sido transmitido de morcegos a humanos através de um

outro animal comido por estes, coloca imediatamente

a questão da nossa relação com a vida selvagem e,

mais amplamente o nosso lugar na Natureza, partindo

do princípio que somos animais nela incluídos, mas

extraordinariamente invasores sobre o planeta Terra,

provocando desequilíbrios cada vez maiores na medida em

que já ultrapassámos os 7 mil milhões de seres com mais

de metade deles urbanizados. As previsões para um futuro

próximo são assustadoras.

O cientista James Lovelock propôs o conceito de Gaia,

ou seja, do nosso planeta como um ser vivo onde foi a vida

que criou as condições para prosperar, como aconteceu

através dos tempos, deduzindo-se que a biodiversidade dos

sistemas ecológicos é fundamental para a sua prosperidade

incluindo a do ser humano. Timoyhy Morton, um

filósofo do Antropoceno, defende esta ideia e critica

veementemente que o covid 19 seja entendido como algo

que nos é exterior, que nos ataca e devemos lutar contra ele

como numa guerra.

Muitas das obras de Arquitetura, das intervenções nas

cidades, campos ou desertos, projetam-se e planeiam-se

isolando os humanos dos sistemas ecológicos e, ao mesmo

tempo, destroem-nos, em boa parte na procura do lucro

fácil e rápido ou da mais imediata sobrevivência, de acordo

com uma cultura económica que se reforçou com a última

globalização. Então como contrapor? Como procurar

encontrar equilíbrios? Gonçalo Ribeiro Teles avançou com

medidas legislativas e propostas de corredores ecológicos

nas cidades, mas esqueceu-se das cidades como um todo.

Elas são o ambiente biológico onde muitos de nós vivem.

Os arquitetos contemporâneos são os herdeiros de uma

tradição de trabalho com a complexidade que já Vitruvio

(século I a. C.) tinha modelizado e que fez caminho mau

grado a separação entre a Arte e a Técnica (e a Ciência) no

século XVIII, que tanto prejudicou a Arquitetura enquanto

disciplina. Hoje já ultrapassámos tal, e os arquitetos

têm um papel especial nas equipas multidisciplinares

de projeto. Deste modo os arquitetos estão preparados

para acolher, no seu modo de pensar e agir, uma maior

complexidade, nomeadamente incluindo a biodiversidade

nas cidades, nos seus espaços exteriores e interiores,

públicos ou privados e até a dar melhor respostas às

enormes desigualdades sociais que se têm aprofundado

nos últimos decénios.

Por fim, vale a pena lembrar um dos grandes arquitetos

da modernidade, esta que está na base destas crises que

hoje enfrentamos. Trata-se de Le Corbusier. Ele tentou

tomar o pulso de seu tempo e agir em conformidade.

Mas não esqueceu a nossa relação com a Natureza. Por isso

propôs os pilotis que permitiriam aos seres vivos prosperarem

pelo solo natural sem os obstáculos construídos,

propôs as coberturas em terraço ajardinadas que agora são

mais adotadas, e, no plano de urbanização de Chandigarh

incluiu generosos corredores verdes, um deles permitindo

os meandros de uma ribeira, para uma cidade fortemente

arborizada e ajardinada. Atualmente é considerada a cidade

onde melhor se vive na Índia. Le Corbusier morreu em

1965, mas o seu exemplo enquanto arquiteto que reconheceu

e trabalhou com a complexidade é ainda uma lição

acrescentada do que chamou de recherche patiente ou seja, ter

tempo para a reflexão (o que parece escassear hoje) e continuá-la

ao longo da vida profissional/intelectual.

Referências bibliográficas:

Appadurai, A. (1988), Introduction: Place and voice in anthropological

theory, Cultural anthropology, 3(1), 16-20.

Cruces, F. (2009), Símbolos de la ciudad. Lecturas de antropología urbana,

Madrid, UNED.

Han, B-C. (2020), La desaparición de los rituales. Una topología del presente,

Barcelona, Herder.

Este texto foi editado devido à sua extensão.

Clique neste botão para ler o texto original.

56

57



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Arquitectura do contexto de Pandemia

Miguel Amado

Coordenador do curso de Mestrado Integrado em Arquitectura, Instituto Superior Técnico

MEMBRO N. O 3726

A Arquitectura vai

mudar depois desta

pandemia? Não.

Nuno Abrantes

MEMBRO N. O 10503

Reabilitação do Bairro Machado Vaz, Campanhã, Porto.

Nuno Abrantes — Arquitectura Social, UzinaBooks 2019. Fotografia: Miguel Coelho

A situação de pandemia decerto não privará a humanidade

de fruir a sua maior criação. No limite, conduzirá a

mudanças nos modos de viver, trabalhar e socializar

em espaços que, como cidade, queremos transmitir às

futuras gerações. A arquitectura vê hoje o seu programa

construído através do articular de funções, áreas e espaços,

e, de repente, vê-se obrigada a garantir maior protecção

ao indivíduo com foco em requisitos de higienização e

distanciamento social. Este contexto, tendo implicação

na relação de dimensão do espaço destinado a actividades

e funções humanas, reforça o critério de flexibilidade e

adaptabilidade no programa de arquitectura. Esta nova

realidade vem exigir maior capacidade e rigor na solução.

A tendência recente de criação de espaços colaborativos

para habitar, trabalhar e conviver onde a partilha de

recursos tem sido procurada como vantagem económica,

poderá ser colocada em causa. As recentes soluções de

co-working e co-living, muito suportadas na rentabilização

económica do espaço, e no alcançar de maior inovação

da proximidade e interacção social, são hoje colocadas

em causa pela necessidade de distanciamento social e

o sucesso que o teletrabalho tem demonstrado. Assim,

o programa do arquitecto passa a ter de responder a

requisitos como o ser possível trabalhar, viver e descansar

num mesmo espaço.

Associada à questão, outra surgirá, como a separação

“virtual” entre espaço público e privado tanto no exterior

como no interior do ambiente construído. Estes elementos

terão impacto económico no investimento, mas também,

no contributo para preservar as condições para um elevado

nível de saúde pública, segurança e governança num

contexto inclusivo e de reforço da identidade comunitária.

E é aqui que o espaço público manterá o papel de lugar

fundamental do processo de reconfigurar a cidade

às exigências sociais de comportamento exigidas ao

funcionamento em sociedade.

Mas, se o distanciamento social contribui para o reforço

do sentimento de segurança mais imediato, coloca-se

a questão de como conseguirá o arquitecto manter as

condições para a intrínseca necessidade humana de

interacção social ou como é que a resposta ao programa

garante ao futuro utilizador a fruição das sensações e

ambientes criados como antes o fazia numa grande sala

de eventos ou numa actividade em grupo em espaços

construídos interiores ou exteriores. E é aqui que emerge

a urgência de nova resposta, já não apenas com suporte em

referências históricas e composição imagética, mas sim, de

dinamização de novos ambientes em que espaços criados

hoje irão permitir acomodar diferentes usos e assegurar

condições para um convívio social sem risco. Esta mesma

realidade e a sua transposição no programa da habitação

trará desafios para a redução da compartimentação

interior e uma maior área aos espaços para que estes

permitam o contacto permanente com o exterior, e que

diferentes actividades possam, em simultâneo, ter lugar.

Espaços cuja função não se restrinja a usos individuais,

mas sim partilhados, e que os requisitos de desempenho

de iluminação natural, acústica e térmica retomem o

papel que a arquitectura sustentável tem vindo a afirmar.

Em suma, a pandemia veio relembrar a discussão sobre a

prática do arquitecto e a questão do programa da habitação

segura, flexível e com acesso a serviços urbanos.

Nas últimas semanas surgiram alguns manifestos sobre

o que pode mudar depois desta pandemia Covid-19.

A maior parte passou despercebida em Portugal enquanto

andávamos a discutir as comemorações do 25 de Abril

de 1974.

As narrativas mais conhecidas, assinadas por políticos

ou artistas, são sobre economia, sociedade, ecologia, etc.,

e estão cheias dos lugares comuns habituais. As mais

inocentes falam no fim do Capitalismo, as mais moderadas

referem mudanças inevitáveis de “hábitos”. Temo que

o Capitalismo vai sair reforçado desta pandemia e que

algumas tradições tendem de facto a desaparecer.

Também na Arquitetura e Urbanismo surgiram algumas

manifestações sobre o pós-Covid.

Faço parte da minoria que acredita que esta pandemia

não vai provocar alterações relevantes. Na melhor das

hipóteses, vai apenas acelerar processos que já estavam em

mudança.

Aproveito este testemunho para eleger cinco pontos que

poderão caracterizar uma Arquitetura pós-pandemia, que

são exemplo do que acabei de referir.

1 - Os espaços terão que ser mais versáteis, polivalentes

e multifuncionais. Essa mudança já estava a ocorrer. Por

exemplo, a casa poderá ter um espaço que se reconfigura

de acordo com o que se pretende fazer em cada momento,

“estar”, trabalhar, fazer desporto, etc.

2 - As instalações sanitárias vão ser espaços com

maior importância. Podemos prever a separação das

loiças em compartimentos distintos, com o lavatório a

estar isolado na entrada. Já é vulgar em alguns países.

Poderá estar também na entrada da própria casa como

meio de desinfeção das mãos que passarão a ser lavadas

regularmente.

3 - Os edifícios terão de integrar varandas ou terraços

exteriores com áreas generosas. Poderão também incluir

uma “zona verde” comum para os moradores, permitindo

o encontro, ou uma estadia independente, mas segura.

4 - Os materiais dos “acabamentos” vão ter, para além

de uma manutenção mínima, características que dificultam

a propagação de vírus. Já acontece, por exemplo, em

edifícios hospitalares.

5 - A tecnologia terá também um papel mais

importante. Assistiremos à utilização generalizada de

sensores de luz, de reconhecimento de voz ou imagem

facial. Tudo para permitir abrir portas, usar elevadores etc,

sem tocar em puxadores ou botões. Já é usada em alguns

edifícios públicos.

É provável que estes períodos de confinamento se

repitam com maior periodicidade no futuro, permitindo

reflexões sobre o modo de habitar, nomeadamente pensar

como tornar a Arquitectura mais saudável e por isso

melhor.

Este texto foi editado devido à sua extensão.

Clique neste botão para ler o texto original.

58

59



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Prova de vida

Paula Araújo da Silva

Directora-Geral do Património Cultural, Janeiro 2016 - Fevereiro 2020

MEMBRO N. O 3001

O ensino da arquitetura

em tempo de confinamento

– A experiência do ISCTE

Paulo Tormenta Pinto

Director do Departamento de Arquitectura e Urbanismo / Sub-director da Escola de Tecnologias e Arquitectura

ISCTE - Instituto Universitário de Lisboa

MEMBRO N. O 5157

Pavilhão de madeira escurecida para o Martim

Moniz, desenvolvido em tempo de confinamento

pelos alunos Ana Sofia Silva, André Filipe, Basir

Azami, Jakob Stuwe, João Neves

Era impensável em janeiro imaginar a vida, hoje, neste dia

de maio, em que escrevo este texto a pedido pelo Colega

e Amigo José Manuel Pedreirinho sobre o momento que

atravessamos.

Sabemos que as alterações dos modos de vida e de

pensar vão mudando ao longo das gerações, mas não

sabíamos que tal se poderia verificar de um dia para o

outro, sem tempo de preparação.

A clausura doméstica imposta pelas circunstâncias,

obriga-nos a pensar, avaliando o ontem e o amanhã, para

além do nosso próprio e importante espaço que nos dá

(sempre) proteção.

Lá fora existe agora o dramático silêncio e insegurança,

fotograma do contínuo bulício da nossa atividade e vida

urbana, cheia de tensões e desequilíbrios, desigualdades

sociais e económicas.

O retorno não vai ser pacífico, nem imediato,

habituados que estávamos ao frenesim, à velocidade e à

globalização, à mudança de valores e princípios, que muito

contribuíram para a perda da nossa qualidade de vida.

Seguramente temos de equacionar novos conceitos e

formas do espaço, da cidade e do território onde vivemos,

redesenhando-os, propondo outras acessibilidades e

mobilidade nos percursos de atravessamento e passagem,

com os indispensáveis momentos de encontro e

sociabilidade, de lazer e recreio; eliminando a segregação

de grupos sociais e de suas precárias condições de

habitabilidade; preservando o Património edificado,

degradado, vítima eterna das estratégias políticas nas

cidades e nos territórios abandonados.

Encaminhada que esteja a questão de saúde pública

e de recuperação da economia, compete-nos também a

nós Arquitetos, com a Sociedade, entender estes sinais

de mudança, e propor a transformação necessária e

indispensável dos modos de habitar e de ocupar os

territórios!

A pandemia do novo coronavírus acelerou processos de

ensino à distância que há muito se falavam nas escolas

de arquitetura sem grande adesão por parte dos docentes.

De um dia para outro os cursos do Departamento

de Arquitetura e Urbanismo do ISCTE adaptaram as

suas práticas pedagógicas às medidas de confinamento

impostas pelo estado emergência e passaram a realizar-se

através da mediação de softwares de videoconferência

e de partilha digital de dados. As aulas de projeto,

tradicionalmente assentes em práticas tutoriais de

grande proximidade, passaram a processar-se na sua

maioria através de ZOOM, com partilha de elementos

gráficos. A produção de maquetas de grande dimensão foi

preterida, e em alguns casos compensada com simulações

tridimensionais de pequena dimensão, apresentadas pela

câmara do computador. As aulas teóricas, aparentemente

mais óbvias no atual sistema, passaram a ser dadas sem

o calor dos auditórios repletos de alunos que em massa

motivavam a eloquência dos docentes. O balanço desta reta

final de semestre é apesar de tudo positivo, somando-se,

ao pragmatismo da adaptação dos processos pedagógicos,

uma assiduidade constante por parte dos alunos, que

se traduziu na maior parte dos casos num aumento de

produção e consequente evolução de percurso.

A descodificação destes resultados carece, no entanto,

de uma análise mais fina. Deverá considerar-se que a

relações de proximidade entre alunos e professores já

estava garantida antes da pandemia. Que os trabalhos na

maior parte dos casos já estavam lançados e que os alunos,

devido ao confinamento, se apresentam disponíveis para

participarem nas aulas. A conjuntura também desafiou

o sentido de responsabilidade dos docentes, aguçando

uma renovação discursiva, portadora de novidade que em

muitos casos se estendeu à participação à distância de

convidados menos prováveis.

Não obstante os factos e os resultados, impera uma

inquietante estranheza, que recorda a interpretação

feita por Anthony Vidler, do conceito freudiano de

Das Unheimliche, em The Architectural Uncanny. Apesar

da familiaridade dos procedimentos recriados pela

digitalização do ensino de arquitetura, tudo na realidade

é angustiante e confuso, sem o recurso do verdadeiro

laboratório do ensino da arquitetura que reside na

apreensão do território pela experiência do corpo.

A sociedade, em acelerado processo de mudança, trará à

tona novos programas e até possivelmente novos modelos

de cidade que desafiarão os arquitetos na busca de novas

representações. Contudo, a base disciplinar da arquitetura

prevalecerá, estando dependente de uma sensibilidade

sobre a implantação, as proporções, as temperaturas, a

lisura ou aspereza dos materiais, ou o reconhecimento da

própria cultura arquitetónica – o maior desafio colocado

pela pandemia reside em transmitir esta base num

contexto pautado pelo temor e pelo confinamento.

60

61



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Três temas de

uma Pandemia

na Arquitectura?

Pedro Brandão

Presidente da Associação dos Arquitectos Portugueses, 1993-1995

MEMBRO N. O 1049

O tempo pergunta ao tempo...

Pedro Ressano Garcia

Diretor do Departamento de Arquitetura, Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias

MEMBRO N. O 4850

Que problemas se colocam? Que contributos para a

reflexão? Como nos preparamos?

O convite, que agradeço, para “assinalar um momento

em que nos confrontamos com mudanças no mundo…

e na forma do exercício da nossa profissão. O J–A propõe

três questões:

· Quais os problemas que a situação pandémica veio

colocar à Arquitetura, às cidades e ao território?

· Qual poderá ou deverá ser o contributo dos

Arquitectos no período pós pandémico (covid-19)?

· Como devemos preparar-nos para futuras emergências

globais, pandemias e/ou outras catástrofes?

…e ainda sugestões para enfoque: “A análise tipológica

(habitação, saúde, equipamentos escolares ou colectivos),

a prática profissional (a “dimensão arquitectónica”) e a

importância do desenho das cidades e da arquitectura, na

qualidade dos espaços, interiores ou urbanos...”.

Fazendo um esforço sobre os Problemas, Reflexões

e Preparações, que fizemos desde que existe a Ordem,

lembra-me algumas coisas, entre as quais uma corrupção

da ideia de representatividade, valorizando mais

interesses próprios que as responsabilidades públicas dos

arquitectos. A apetência para intervir nos domínios de

interesse público leva-nos com leviandade à oportunidade

de sermos nós a capturar, no caso, o prémio “assim vai

ficar tudo bem” (levar-nos-á a sermos nós a inventar o uso

do modelo de semáforos e os horários de frequência dos

espaços públicos urbanos em geral?).

Por definição, a Ética e a Responsabilidade profissional

são o âmago da finalidade e legitimidade da OA e a sua

máxima reside num serviço de interesse público (ou espaço

geral) a orientá-la. Ora, entre os últimos anos lembro-me,

aquando dos incêndios de 2017 que destruíram casas e

vidas, a um balbuciar de disponibilidade, acção da qual não

houve qualquer registo nem avaliação do serviço. Antes

disso, as exposições tidas por interessar – senão sustentar

– opiniões sobre exemplos e contributos, sugestões ou

critérios “inquestionáveis” e auto-legitimados afastam-se,

quase sempre, dos problemas, contributos e emergências.

A Arquitectura tem problemas! Como devemos

“reflectir”? ou prepararmo-nos? Para que servem, nestes

momentos de espaço associativo em processo eleitoral, se

somos hoje menos capazes de reflexão e ainda menos de

colocá-la ao serviço geral, se apenas nos exibimos como é

hábito, em bicos de pés?

Lembro-me, assim, quando noutras gerações se

discutiu e lutou com melhores insígnias, para defender

melhores modos de construir e de viver. Nesses outros

momentos defenderam-se patrimónios eruditos e

populares da arquitectura, noutros a habitação condigna

para o maior número, e (ainda a medo) os meios urbanos,

os espaços e os territórios herdados, como direitos da vida

a que todos têm direito.

Hoje, teremos recursos de conhecimento para

evidenciar ou iremos mais uma vez soltar a nova

oportunidade para publicar imagens de “gosto

sofisticado”? Talvez para novos centros de saúde, hostels

e lares “inovadores”, museus e outros locais de encontro

lúdico… O que faremos na Pandemia? Façamos antes

verdadeiras perguntas… sobre o que agora não sabemos

ainda responder: para que serve o Interesse Público na

Arquitectura? E... como começar de novo?

A história mostra-nos que as gerações anteriores

enfrentaram o isolamento social trazido por pandemias,

guerras ou desastres naturais. É novidade apenas para a

nossa geração – qual a diferença entre nós e os nossos

antepassados?

Antes de mais, o espaço da habitação era partilhado

por grupos alargados e famílias transgeracionais, as

vilas operárias albergavam grupos com forte sentido de

comunidade. Os pátios eram partilhados e os conventos

continham uma parte significativa da população. O que

mudou no tempo presente?

As famílias diminuíram, a unidade de habitação tem

vindo a ajustar-se ao estilo de vida assente no indivíduo.

Nunca houve tanta gente a viver sozinha.

Porém também é verdade que nunca houve tanta gente

ligada através dos meios digitais. A nossa condição física

passou a ter o acréscimo da nossa dimensão digital,

relacionada com o espaço do fluxo e um tempo maleável.

Partilhamos informação e estabelecemos relações

independentes do espaço e do tempo.

A pandemia veio proporcionar uma aceleração de

transformação da sociedade. As pessoas verificaram que

fazem muito sem sair de casa, o teletrabalho permitiu

expandir ações (ensino, reuniões, webinars, comércio,

etc.). A ligação à internet gera uma existência quase

omnipresente, liberta do espaço geográfico e do tempo

onde está o corpo. A realidade física e temporal torna-se

uma opção e deixa de ser uma condição mas o estado de

confinamento lança novas questões.

Cresce uma reflexão conjunta sobre os aspectos

positivos e os negativos. As emissões de CO2 baixaram,

o hiperconsumo freou, o tempo desacelerou embora a

partilha de dados continue a alimentar algoritmos que

geram uma nuvem de neurónios digitais.

A partilha de meios de transporte, da informação, a

geração própria e troca de energia, a produção das hortas,

são alguns indicadores da crescente nova forma de viver

em rede viabilizada pelo digital e suas aplicações. O acesso

à informação facilita uma comunidade mais esclarecida,

desperta para as novas oportunidades, com maior

consciência ambiental e atenta às alterações climáticas.

A legislação já começou a seguir esta tendência.

A arquitectura vai nesta direção, revendo os seus

paradigmas. No século XX o gosto dominante valorizou

grandes envidraçados, espaços rasgados pela transparência

com o exterior. Ao modernismo seguiu-se o minimalismo

com soluções que consomem mais energia, e exigem

maiores emissões de CO2 para visualmente parecer menos.

A cultura do século XXI valoriza o espaço fluído,

flexível, que utiliza materiais leves e mutantes, impõe

soluções de baixo consumo energético, equilíbrio térmico

passivo e materiais ecológicos. A geração que ascende

adere a uma nova estética que valoriza estruturas não

lineares, ambientes de mutação flexível e equilibrada com

soluções maleáveis capazes de seguir as dinâmicas do

meio ambiente, valorizando a adaptação da componente

ecológica. Será esta a geração que vai acelerar a

transformação?

62

63



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Pitum Keil do Amaral

MEMBRO N. O 299

Projetar o futuro pela voz do arquiteto:

Desafio e oportunidade

Raquel Maria Airosa

MEMBRO N. O 24477

Quem podia prever que o mundo – todo o mundo –

ia sofrer o horror de uma pandemia que está sacrificando

milhões de vítimas mortais e obrigando a sociedade a

constrangimentos e alterações na sua vida tão radicais

como os que estamos sofrendo – e não sabemos quando

terminarão?

Encontro-me no fim da vida. Naquela fase típica

em que o nosso pensamento é habitado por memórias,

revisitações de aquilo que foi o tempo que passamos por

cá, à observação do estado actual das coisas e a conjecturas

sobre o futuro que espera os nossos filhos e netos...

e todos os seres viventes neste planeta, afinal.

Neste conjunto de reflexões havia já um muito

considerável pacote de frustrações, recriminações,

preocupações e incertezas.

O surgimento da actual calamidade trouxe-nos,

cruelmente, uma angústia acrescida.

Se, honesta e sinceramente, posso dizer que tive uma

vida feliz, que pena me faz ver acumularem-se, nos nossos

dias, tantos problemas graves a atormentar-nos!

O planeta Terra já sofre de enfermidades cuja solução

se afigura bem difícil! Não nos fazia falta esta ameaça

invisível, insidiosa e mortal.

Penso nas alterações climáticas e tudo o que elas

implicam: calamidades naturais, incêndios, subida do nível

dos oceanos, extinção de espécies da fauna e flora, escassez

de água potável. Escassez de alimentos. E também na

poluição atmosférica, e dos solos, e das águas, causada

pelo excesso de população, pelas indústrias, pelas viaturas

e tudo o mais.

Situações que nos próprios, humanos, causámos.

E às quais estamos a reagir de que forma?

Com uma economia baseada num consumismo insaciável;

esbanjando matérias primas e fontes de energia; usando

a tecnologia para a produção constante de novas armas;

mantendo guerras intermináveis; aumentando o parque

automóvel; poluindo os oceanos...e a lista continuaria

por aí adiante.

Não para de aumentar a diferença entre ricos e

pobres (países e/ou pessoas). A população converge para

megalópoles que acumulam problemas urbanísticos

dramáticos, em especial de alojamento – das favelas

insalubres às torres de habitações com densidades

inimagináveis, psicóticas. A que se seguem as questões

dos transportes e deslocações.

Na Política, os interesses económicos condicionam

tudo: Trabalho, Saúde, Segurança, Educação, Cultura,

Desporto, Lazer.

A Justiça não é eficaz contra a corrupção, a violência,

a criminalidade, que estão presentes em quase todos os

sectores. Basta seguir os meios de comunicação social.

E há um pensamento que ocorre com frequência às

pessoas: E se toda a população do mundo aspirasse a uma

qualidade de vida minimamente justa?

– a comer, por exemplo, todos os dias – para começar

logo pelo mais elementar...

– a ter uma habitação,

– a ter saúde,

– a ter meios de subsistência.

Acho que já foi mais do que analisada esta hipótese

pelos entendidos. Para concluir que, tal como o planeta

está organizado, não tem capacidade para dar de comer

à população existente, quanto mais à que está crescendo

diariamente, a um ritmo acelerado.

A pandemia COVID-19 transformou a forma como vivemos

a nossa vida, a nossa casa e a cidade.

De forma catastrófica, desapareceram as cidades

em constante metamorfose, cheias de movimento e de

vida, que sensualizavam o investimento e a dinâmica

dos metabolismos individuais e coletivos, e forçou-nos o

isolamento, criando cidades-fantasma, enfraquecendo a

estrutura económica, desequilibrando sinergias e pedindo

a reflexão de uma nova forma de viver a cidade.

O grande ponto positivo neste problema é que de

projetar cidades compreendem muito bem os arquitetos,

o ponto negativo é que não têm sido utilizados, na sua

verdadeira grandeza, as suas competências técnicas e

intelectuais nos últimos tempos. Existe uma luta que se

prolonga entre os prazos curtos e os orçamentos reduzidos

versus a exigência de qualidade, e, ao mesmo tempo,

uma diminuição da área habitável potencializando mais

lucro versus a criação de espaços de qualidade e temos

perdido a luta aos poucos e poucos desvalorizando a arte e

diminuindo a qualidade do objeto arquitetónico.

Como é que se valoriza a arquitetura? A valorização da

arquitetura é feita pelos mesmos que a desvalorizam: as

pessoas. Qual tem sido o papel da arquitetura e qual será

no futuro? A arquitetura sempre funcionou como uma

resposta às grandes crises, pela forma como se molda

às necessidades da cidade e das pessoas, renascendo de

desastres, epidemias e guerras com novas soluções e ainda

mais resiliente. Ao mesmo tempo, a forma como projeta

a densidade das cidades tem um papel fundamental na

propagação das pandemias e é urgente repensar soluções.

Neste momento crítico começamos a compreender o

bem inestimável que é o conceito de espaço, bem como o

privilégio do exterior, e o problema existe na nossa casa,

no nosso bairro e do nosso local de trabalho até à escala

da cidade. Os arquitetos são desafiados a re-imaginar

e reestruturar as cidades para criar ruas e bairros mais

verdes, mais sustentáveis e resilientes, através de estratégias

pontuais catalisadoras de regeneração urbana, medidas que,

não sendo novas, terão toda uma escala significativamente

maior. Existe também um desafio na configuração de

espaços de trabalho e espaços públicos equacionando a

redução de fluxos, o aumento da utilização de automatismos

e tecnologia sem contacto e o investimento maior em

unidades de saúde e questionando-se a rentabilidade futura

de arranha-céus neste novo paradigma.

O maior desafio encontra-se na habitação. A falta de

espaço depende da incapacidade de acompanhar os valores

de mercado e a diminuição da procura pelo arquiteto é

agora visível na inadequação dos espaços à realidade que

nos foi imposta.

Num futuro distante, o trabalho remoto permitirnos-á

viver fora das cidades principais com as mesmas

oportunidades profissionais e outros privilégios, como

a flexibilidade de espaço e o aumento de espaço exterior,

revitalizando áreas despovoadas com cidades-satélite e

desenvolvendo a rede de transportes, oferecendo novos

postos de trabalho e revigorando o pequeno comércio,

diminuindo a densidade dos grandes centros urbanos.

As soluções irão aparecer gradualmente e de forma

intencional para corresponder às necessidades da nova

realidade, sendo importante a formulação de novas

políticas e regulamentos da responsabilidade das pessoas

competentes para garantir a qualidade de vida e das

soluções e, deste modo, revalorizar a arte de projetar.

64

65



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Crónica de uma docente de arquitectura

nos inícios da pandemia de Covid-19

Sofia Aleixo

MEMBRO N. O 4598

Os novos (ou velhos) desígnios da Cidade

Vanessa Pires de Almeida

MEMBRO N. O 15399

A 2 de Março Portugal tinha apenas 2 casos confirmados

de COVID-19, localizados a norte do país. Dois dias depois,

a Universidade de Évora emite uma circular onde desaconselha

a mobilidade. Nessa semana, anoto na minha agenda

“avisar Estónia do cancelamento da mobilidade docente

ERASMUS +”, programada para final de Abril, e escrevo

a lápis na esperança que a situação se alterasse.

A visita de estudo que tinha agendada a Lisboa com os

meus alunos de Projecto II, no dia 5, corria o risco de não

se efectuar. Nesse dia, os 9 casos confirmados no nosso

país e os quase 100.000 no mundo confirmavam a circular

do dia anterior, tornando expectável o impedimento de

deslocações de membros da academia. Teria mesmo de

enviar um mail para a Estónia.

Com autorização superior, um autocarro transportou

50 alunos do 1 ano do Mestrado Integrado em Arquitectura

a Lisboa. Aqui foram recebidos na Sala de Honra da

Fundação Calouste Gulbenkian, depois de terem visitado a

exposição onde tomaram contacto directo com 12 formas

diferentes de intervir no Jardim e de comunicar as suas

ideias, entre arquitectos nacionais e estrangeiros. Foi um

dia feliz, como são os dias de visita de estudo de arquitectura

com os alunos a qualquer cidade.

A aprendizagem pela experiência sensorial da arquitectura,

defendida por Juhani Pallasmaa, inclui o tacto, o cheiro,

a visão e as mensagens que transmitem ao nosso cérebro

que se “materializam” num repositório de memórias a que

nós, como arquitectos, recorremos no momento de projectar.

E por isso, as visitas de estudo em arquitectura proporcionarem

momentos únicos de despertar os sentidos, de

escutar a arquitectura, de sentir o movimento pelos espaços,

de saborear a luz que atravessa aquele vão e a sombra que

projecta em seu redor. Por isso, insubstituíveis no ensino.

13 de Março seria o dia em que um Decreto-Lei estabelecia

medidas excepcionais e temporárias relativas à situação

do COVID-19, suspendendo as actividades lectivas presenciais

em estabelecimentos de ensino públicos a partir

do dia 16. Foi autorizada pela Universidade a substituição

dessas aulas com a passagem temporária ao “regime de

teletrabalho como forma preferencial de desempenho da

actividade profissional”. Em resumo, os alunos tiveram

cinco semanas de aulas presenciais neste semestre.

Segunda-feira, 16 de Março: primeiro dia de confinamento,

em teletrabalho. A circulação nas ruas diminuiu,

nos supermercados fazem-se filas à porta e compram-se

enlatados, leite, congelados e café. Em casa, com o atelier

fechado e os colaboradores em teletrabalho, planeia-se a

semana de aulas e de trabalho, projecta-se o futuro próximo

na incerteza do presente. Diversos eventos e conferências

são cancelados. Enfim, teria sido uma semana cheia, esta

em que, no primeiro dia de aulas on-line, a 17, se registou o

primeiro óbito em Portugal e em que me apercebo que a última

vez que abracei e beijei os meus pais e as minhas filhas

foi… já há mais de uma semana. Na véspera de implementação

do estado de emergência, 23 de Março, Portugal regista

14 mortos e 1.600 casos.

A necessidade de manter a motivação e compromisso

que a prática diária de atelier gerava, a definição e atribuição

de tarefas significativas e minimamente interdependentes

para manter os contactos, e a demonstração de reconhecimento

pelo progresso do trabalho são dificuldades acrescidas

às tarefas de gestão normais, onde a manutenção

de uma cultura de atelier neste “novo normal” requer a

redefinição de estratégias. Mas mantenho a escrita a lápis,

semana a semana, do dia do retorno, do contacto pessoal,

da troca de ideias num coffee break com um lápis e o projecto

na mesa. E não há rato, nem écran, nem som que substitua

o cheiro do café que, com o entusiasmo, se entorna sobre o

projecto numa animada conversa sobre arquitectura.

No resgate de algumas das medidas de combate à

Pneumónica [“evitar a permanência em lugares fechados

onde haja grandes aglomerações”, “arejar-se largamente

as habitações e lugares de trabalho” (O Comércio do Porto, 15

junho 1918:1)], adotadas por Ricardo Jorge [numa altura

em que o Diretor-Geral de Saúde relatava: “não se oferece

profilaxia efetiva e eficaz a exercer contra tal epidemia

que não seja a higiene geral e assistência dos atacados

preferentemente em hospital de isolamento” (O Comércio

do Porto, 25 setembro 1918:1)], dois axiomas invadem,

atualmente, o pensamento na construção da cidade, de

um amanhã assombrado por epidemias: a carência, na

habitação, de espaços exteriores privados, qualificados e

confortáveis; e a grande dependência da sociedade de uma

gestão eficaz dos serviços públicos e privados, de imediato

acesso e empregabilidade pela população local.

Seria razoável pensar que o abandono das cidades

resolveria o problema da rápida propagação de

epidemias; porém, criaria outros, que emergem perante

as oportunidades, a diversidade e a escala das cidades,

nomeadamente com a gestão dos recursos disponíveis.

Com o confinamento, a distinção entre o necessário

e o supérfluo está a ser clarificada, e a hierarquia de

necessidades reposta, revelando, particularmente,

a importância de espaços exteriores privados, que

prolonguem a atividade rotineira de uma habitação,

nunca antes tão vivenciada, assim como de serviços que

demonstram ser imprescindíveis à sobrevivência de uma

sociedade, constantemente transformada a partir de

fenómenos como este, que desequilibram e alteram a

ordem preestabelecida.

Impõe-se, assim, analisar a cidade, partindo da

compreensão integral dos fenómenos que compõem a

vivência das comunidades, articulando, por meio de dados

recolhidos e modelos analíticos, os diferentes sistemas

que a integram, identificando padrões, procurando a

adequada otimização de recursos e, quem sabe, prever

as fragilidades de uma comunidade com a alteração de

variáveis.

A gestão dos serviços públicos [fornecimentos de

água, energia elétrica, comunicações eletrónicas, serviços

postais, recolha e tratamento de águas residuais e resíduos

sólidos urbanos, transporte de passageiros, saúde,

escolas,…] deve ser articulada com as necessidades das

comunidades, prevendo, e até moldando, quando crucial,

os seus comportamentos, em prol de uma eficaz gestão

urbana e, consequentemente, de uma confortável (con)

vivência.

Este texto foi editado devido à sua extensão.

Clique neste botão para ler o texto original.

66

67



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

Fotografias da Quarentena

Paulo Santos

68

69



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial

70

71



A GYPTEC, empresa portuguesa produtora de placas de gesso,

desenvolve soluções para construção e reabilitação, sendo

presença incontornável nas principais obras em toda a Península

Ibérica. As placas de gesso Gyptec são resistentes ao fogo, impacto

e humidade, e têm elevado desempenho térmico e acústico.

Mais do que placas de gesso, a Gyptec tem a solução!

Agora com isolamento

em lã mineral

Este produto de crescente procura no

sector da construção vem aumentar a

vasta gama de soluções disponibilizadas

pelas empresas do Grupo Preceram, e mais

diretamente complementar os sistemas de

placas de gesso da Gyptec Ibérica.

Da melhor matéria-prima

nasce o conforto

Ferramentas de

Apoio Técnico

Imagem: do.co.mo.mo_internacional https://www.docomomo.com/

Figueira da Foz • T (+351) 233 403 050 • apoiotecnico@gyptec.eu • www.gyptec.eu



297X890mm RT

A classic, slightly aged-looking ceramic wall tile

as old stone... with delicate random sparkles to

give each room a unique touch of light.

Um revestimento clássico de aspeto ligeiramente

envelhecido, como a pedra antiga ... com delicados

brilhos aleatórios, para dar um toque único de luz a

cada espaço.

www.pavigres.com


Anexo

Textos completos

Jornal Arquitectos // Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial


Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial // Anexo

Versão integral do texto da página 15.

Arquitetura no risco e o desígnio

de um futuro compreensivo

Avelino Oliveira

Presidente da Assembleia de Delegados da OA

MEMBRO N. O 6060

Foi da gestão do risco que emanou a crise provocada

pela Pandemia COVID 19. Foi consequência desse

risco que se observa uma situação que veio e irá

provocar alterações significativas no funcionamento

do ambiente construído, não só nas cidades, mas em

todo o território. A mobilidade foi o primeiro sector a

sofrer as consequências desta crise do risco – fronteiras

fechadas, proibição de circulação, tráfego aéreo comercial

encerrado, redes de transportes ferroviárias e rodoviárias

reduzidas e tremendamente condicionadas. Tudo

procurando mitigar o risco da contaminação exponencial

– procurando transformar uma curva cartesiana numa reta

de nível. O efeito deste medo urbano (Bauman) foi como

se o mundo carregasse no botão PAUSE. Neste cenário,

o sector imobiliário, subitamente, quase num espaço

sincrónico de umas horas, tomou consciência que iria ser

impactado pelas ondas de choque de uma economia que

travou a fundo. E os produtores de espaço, nomeadamente

os arquitetos, tornaram-se espetadores atentos de um

processo que não conseguem controlar e sentiram na

pele o que é viver numa sociedade de risco. Nada que as

palavras de Ulrich Beck (1992) não tivessem antecipado

quando afirmou que estes fenómenos eram o resultado

da modernização reflexiva onde as consequências do

desenvolvimento científico e industrial acarretava um

conjunto de riscos que não podem ser contidos e onde

ninguém pode ser diretamente ¬responsabilizado,

nem os afetados podem ser compensados. Segundo

o autor alemão a primeira modernidade baseava-se

nas sociedades confinadas ao Estado-nação, onde as

relações sociais, as redes e as comunidades assumiam um

caráter eminentemente territorial, mas a globalização,

a individualização favoreceram o aparecimento de uma

segunda modernidade cujos riscos globais assentam em

vulnerabilidades locais (riscos ambientais, financeiros

e segurança – terrorismo). O Estado assume, assim, um

papel central, um Estado-herói como se fosse a metafórica

imagem de um filme americano de ação e suspense

(se possível protagonizado por Tom Cruise), em que o

iminente desastre ocorre em câmara lenta, depois em

câmara muito lenta, terminando em flashes – diafragma

a diafragma – e onde o protagonista ou é salvo in extremis

ou morre para logo ressuscitar como um Jason Bourne

qualquer.

Mas se a ficção for derrotada pela crua realidade,

a questão atual é saber se os arquitetos saberão fazer

“arquitetura no risco”, criando espaço facilmente adaptável

à vida contemporânea e ao mesmo tempo flexíveis para

posteriores mudanças ou ajustamentos no curto ou

médio prazo. Casas que também são locais de trabalho,

escritórios que passam a incluir lógicas antes só aplicáveis

a instalações hospitalares, espaço público marcado por

dinâmicas de distanciamento social.

Só se isso acontecer de forma consistente podemos

colocar o debate sobre a mudança do paradigma

urbano centrado numa perspetiva de complexidade eco

sistémica, tão eficaz que funcione, não como um chavão

publicitário que promete transformar em ouro tudo o

que reluz, em limpo tudo que é sujo, mas como resposta

aos pressupostos do paradigma evolutivo, humanista e

compreensivo. O padrão contemporâneo da flexibilidade

e da adaptabilidade assenta, como refere Avi Friedman

(2002), em processos de simetria, reflexivos, através

dos quais o homem se ajusta e se adequa à construção;

mas a construção é também adequável, transformável,

suscetível de receber ações transformadoras, como as

nossas casas. Logo, a casa será a base das construções do

novo paradigma, e mais do que o espaço da organização

fixa como a classificava Edward Hall (1986) será uma

“habitação ética”, proveniente do ato de residir.

Numa sociedade mais humana e estando a arquitetura

obrigada a avaliar a cultura do seu próprio tempo, de

que modo pode ela, enquanto ferramenta, capacitar a

humanidade, no seu sentido mais amplo, potenciando a

complexa rede de relações existentes entre quem investiga,

quem decide, quem projeta, e quem habita?

A resposta não é digital, nem tecnológica, nem

automática, nem smart, nem domótica. É, isso sim,

apreendendo o risco e desenhando com métodos e

processos compreensivos. Ou seja, não serão as áreas

tradicionais das ciências exatas a “contaminar” o processo

do projeto arquitetónico, mas antes o seu contrário, será

a arquitetura, como ação transdisciplinar, abrangente,

cultural e racional, a alterar o paradigma disciplinar pois

a produção de espaços é uma ferramenta do futuro.

Voltar ao texto resumido, página 15.

76

77



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial // Anexo

Versão integral do texto da página 51.

COVID-19:

Entre a Consequência e o Pretexto

Luis Pinto de Faria

Coordenador do curso de Mestrado Integrado em Arquitectura e Urbanismo, Universidade Fernando Pessoa

MEMBRO N. O 6059

Muito se tem escrito e falado relativamente ao que poderão

vir a ser as consequências do surto epidémico COVID-19

(Corona Virus Disease).

De acordo com os resultados de uma análise bibliométrica

efetuada às publicações disponíveis nas principais

bases de dados de indexação 1 , só durante o mês de março

de 2020 foram publicados 1200 artigos científicos sobre

esta pandemia.

Apesar da área científica da arquitetura e do urbanismo

ter pouca representatividade neste “surto” de publicações,

os exemplos que têm vindo a público revelam já alguns sinais

do que poderá vir a ser o posicionamento da disciplina

no contexto desta crise.

De facto, um breve relance sobre estes e outros estudos

também direcionados à avaliação do impacte da COVID-19

no modo de pensar e fazer arquitetura, permite detetar a

predominância de dois tipos de abordagens complementares:

uma de perfil mais determinista, alicerçada na capacidade

técnica e tecnológica da disciplina e empenhada

na apresentação de “soluções” imediatas para os desafios

funcionais que, entretanto, se antecipam (e.g. introdução

de medidas com vista à prevenção de contágio; adequação

dos espaços de confinamento) 2 ; e um segundo tipo de

abordagem mais reflexivo, inspirado nos medos e incertezas

da população quanto à avaliação dos riscos higiénico-

-sanitário dos grandes aglomerados populacionais 3 , e que

tende a direcionar o seu discurso ao que Richard Register

classificou como “impulso à eco cidade”. 4

Desde as perspetivas mais mecanicistas às mais românticas,

parece ser unanime concordar que:

A configuração/qualificação dos espaços teve um impacte

significativo, não só, no modo como os territórios souberam

adaptar-se a esta crise, como também, na capacidade resiliência

da população durante todo o período de confinamento;

Este surto epidémico está a contribuir para que a arquitetura

se volte a repensar técnica e metodologicamente no

sentido de melhor adequar o exercício da sua prática aos

novos requisitos, medos e ensejos da população;

No entanto, apesar destas propostas nos darem já alguns

sinais de como a disciplina está a reagir a esta pandemia,

considera-se que o verdadeiro significado desta crise

apenas será compreensível no contexto de um conjunto

alargado de transformações de ordem social, económica e

política que, à semelhança do que sucedeu na viragem do

século XIX para o século XX, não só sugere a referida necessidade

de revisão técnica e metodológica da disciplina,

como também induz um processo de revisão dos critérios

de verdade e validação pelas quais a arquitetura perceciona

a realidade e como é percebida nessa realidade.

De facto, nesta nova transição de século, o rápido crescimento

dos grandes centros urbanos, a reestruturação do

sistema produtivo, o desenvolvimento das novas tecnologias

da comunicação e da informação, os novos modelos

económicos, a industrialização moderna, os novos modelos

de organização social, bem como as ciências emergentes,

configuram um cenário passível de comparação com o

verificado na viragem de século antecedente sugerindo, por

analogia, que nos voltemos a questionar sobre uma nova

rotura paradigmática, ressonante do atual momento de

transformação, transversal às várias disciplinas e, a nosso

ver, preponderante na redefinição do modo de pensar,

fazer e encomendar arquitetura. 5

Não bastasse o impacte do flagelo do “11 de setembro

de 2001”; ou as consequências da crise económica de

2007-2008; ou ainda os receios associados às catástrofes

ambientais que tem grassado pelo planeta; o impacte do

fenómeno epidemiológico COVID-19 à escala global veio

consolidar não só um sentimento generalizado de desconfiança

e crítica aos modelos comportamentais e organizacionais

vigentes, como veio também reforçar a tese da

emergência de um novo paradigma civilizacional.

No entrecho deste momento de transição entre o

otimismo da “era do espetáculo” e a fragilidade e o medo

da nova “era da incerteza”, esta sequência de provações

veio não só revelar uma sociedade que metamorfoseou

como veio também questionar os critérios de verdade e de

validação pelos quais realidade era apreendida. No caso da

arquitetura, esta transformação ganha especial significado

quando se verifica o impacto da COVID-19, e em particular

do período de confinamento a que esta obrigou, no nível de

consciência e de literacia espacial da população.

Se por um lado, a crise politico-financeira conduziu a

que os outrora símbolos de prosperidade e de desenvolvimento,

inspirados em modelos socioeconómicos tidos

como de sucesso, se transformassem em símbolos dos

excessos do passado – agora já desajustados das reais

necessidades e aspirações da população –, pelo outro lado,

a excecionalidade do modo como indivíduos, populações

e comunidades se têm articulado entre si na resposta aos

recentes dramas socio-ambientais – cujo reconhecimento

tem sido amplamente difundido à escala global – veio

reforçar a possibilidade de se estar a dar início a uma outra

“globalização”, agora fundada numa verdadeira “interdependência

global” 6 , mais solidária e alicerçada num nova

consciência de pertença a um sistema global de interesse

coletivo.

Será no contexto deste momento de transformação,

agora agudizado pelo fenómeno da COVID-19, e em pleno

esforço de reenquadramento num Lugar cada vez mais

plural e complexo, que a disciplina da arquitetura, longe se

esgotar na sua instrumentalidade, tende hoje a reafirmar o

seu papel de mediadora na relação não só entre o homem

e o seu “abrigo”, como também, e de modo indissociável,

entre o homem e a sua “existência” – enquanto parte ativa

e interdependente do ecossistema global tal como hoje lhe

é revelado. O modo como habitamos e nos relacionamos

nesse Lugar; o modo como nos orientamos ou desnorteamos

nessa encruzilhada de espaço, tempo e memória; o

modo como interagimos com essa realidade natural/cultural,

de mestiçagens, contradições e verdades híbridas, volta

ser hoje lembrado, agora a pretexto da COVID-19, como o

desafio principal que a arquitetura terá sempre de integrar

e responder.

1

Melo, Márcio Et Al. “Uma análise bibliométrica das pesquisas globais da

COVID-19! In: Interamerican Journal of Medicine and Health. (pré-publicação)

2

A generalização de sistemas “touch-less” nos edifícios (e.g. ativação por voz

de portas e elevadores); a adoção de materiais antibacterianos na construção

de espaços e equipamentos públicos; ou a eliminação de espaços de espera em

edifícios de serviços e de saúde por via da introdução ou aperfeiçoamento de

sistemas tecnológicos de aviso e/ou chamada; são alguns exemplos das medidas

mais preconizadas. (Cfr. Giacobbe, Alyssa, 2020).

3

O que Gang refere ser o “(...) desejo de distanciamento à cidade” (Gang, Jeanne,

2020. Architecture, Hope, & COVID-19” In: A+U : Architecture and Urbanism;

May, 2020)

4

Referindo-se ao contexto de transição entre os séculos XIX e XX. REGISTER,

Richard – Ecocities : Building cities in balance with nature. California; Berkeley

Hills Books, 2002, p.94.

5

Segundo Jacques Ellul (1912-1994), apesar de detetarmos no Renascimento o

início da chamada «revolução científica», o mundo teve de esperar até ao final

do século XVIII para que essa «revolução» se manifestasse transversalmente a

todos os países e a todas as áreas de interesse da humanidade, e ficassem, então

reunidas as condições sociais, económicas e culturais necessárias para que se

tornasse inevitável o questionamento e/ou a revisão de muitas de premissas e

critérios até então tidos como garantidos. ELLUL, Jacques – The Technological

Society. New York; Vintage Books, 1964, p.42. (1954).

6

Morin, Edgar, (2020), Le confinement peut nous aider à commencer une

detoxification de notre mode de vie. In L’OBS, 28/03/2020

Voltar ao texto resumido, página 51.

78

79



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial // Anexo

Versão integral do texto da página 53.

Reencontro:

Um passo atrás, dois em frente

Manuel Lapão

MEMBRO N. O 3726

Sculpture

Cedar wood (sculpture); 630 x 160 (diameter) cm

Internationally renowned artist Giuseppe Penone emerged as a

protagonist of Arte Povera, a seminal art movement in Italy in the late

1960s. In sculptures, drawings, photographs, and installations, Penone

manifests the subtle dynamic between man and nature. Approximately

194 years old, Cedro di Versailles was a historic cedar tree from the park

of Versailles, where it was struck down by the forceful storms that hit

France at the end of 1999. Now part of a well-known series of sculptures

started in 1969, Penone carved into this monumental tree, revealing its

internal structure and returning it to a form from an earlier stage in life.

Cedro di Versailles, Giuseppe Penone, 2000-2003

Art Basel 2019

Introduzo o tema e enquadro-o através desta inspirada

escultura, que é também uma metáfora e ilustração desta

reflexão.

Na perspetiva de que é este o posicionamento geral

que nos importa projetar como forma de entendimento da

situação, assim como da sua projeção num futuro próximo.

Nada parecia indicar que aquele cedro bem-nascido e

melhor cuidado na exclusiva escola de jardinagem de Versailles,

depois de quase 200 anos robustos, viesse a tombar

pela fúria de uma tempestade. Como ninguém poderia

antever que após o seu aparente final, e destino certo, viria

a retomar uma outra vida pela mão de um grande criador,

Giuseppe Penone.

O escultor italiano viu mais que a matéria inerte, (re)

encontrou nas suas entranhas, outro ser como se renascesse

numa outra forma anterior de vida, dando-lhe de novo um

sinal de esperança. Encontrou a primavera numa árvore

sem vida.

Esta metáfora ajuda-nos a enquadrar a perplexidade

dos dias de hoje em que o mundo frenético de viagens e

movimentos sem parar, desabou, em cima de nós, imóvel e

tétrico.

É assim imperioso procurar, acreditar, que naquilo que

existe tombado podemos encontrar um tempo novo ainda

que em parte mais antigo.

Voltar ao novo que é em grande medida um tempo

anterior: cidades e vilas com menos carros, mais pessoas

e crianças a brincar na rua, dar mais valor à proximidade,

à solidariedade, ao valor do nosso bairro, da aldeia, sendo

igualmente um tempo novo de conhecimento e esperança e

de alterações de modos de vida coletivos.

Quais os principais problemas que a atual situação pandémica

veio colocar à Arquitetura, às cidades e ao território

tal como os conhecíamos?

A pandemia veio sobretudo expor os problemas que já

eram uma emergência – que as cidades e os territórios estão

insuficientemente preparados e planeados, não tendo assim

a resiliência e a flexibilidade necessária para acomodar já

a vida de hoje e muito menos estes impactos brutais que

estamos a viver e que sempre viveremos.

Desfocados do essencial. É necessário mais reflexão e

alargamento de conhecimentos tal como a proximidade

com o comum e a sociedade em geral, o coletivo, saindo

dos focos de interesse em que temos residido e pensar em

outras formas de habitar o mundo.

Deixámos para trás coisas que afinal nos fazem tanta

falta, a velocidade do querer sempre mais e mais depressa

não nos permitia ver. Agora parados é mais evidente.

A pandemia veio evidenciar que não estávamos focados

no essencial. É imperioso valorizar na arquitetura, na construção

das cidades e no território outros valores para além

da construção, como o conhecimento científico e os vínculos

sociais, a qualidade do ar, da água, do coberto vegetal,

do ambiente, da saúde, da segurança e em geral do equilíbrio

dos ecossistemas e da biodiversidade (encontrando,

criando e potenciando na cidade espaços ricos em habitats

com características naturais para acolher a fauna e a flora

selvagens e conciliá-los com as paisagens e o acolhimento

dos utilizadores e transeuntes).

A falência da globalização. Deve assim valorizar-se a

produção local de bens essenciais, a vida policêntrica, garantindo

a redução da mobilidade imposta pela fragmentação

urbana fazendo do quotidiano um espaço mais equilibrado

para trabalhar e viver, mais flexível graças ao digital,

multiplicando usos num mesmo lugar, apostando na não

dependência do exterior e nas alternativas à motorização da

vida quotidiana fixando-nos em lugares de proximidade.

Qual poderá ou deverá ser o contributo dos Arquitectos

no período pós pandémico (covid-19)?

Liderar o conhecimento global e universal da intervenção

na cidade e no território, ouvir, estudar, comparar,

sintetizar, programar, desenvolver ações e projetos e

acompanhar a execução. Passar a dar respostas para além

dos estímulos do mercado, antecipando-se e formulando

também respostas à dimensão social da arquitetura e ao comum.

Valorizar o mundo rural, como lugar de produção de

bens essenciais, criando melhores condições para a fixação

de população nos pequenos aglomerados, salvaguardando

a paisagem na sua dimensão social e cultural. Trabalhar no

curto e no longo prazo, mas começar já, articulando respostas

concertadas entre o setor público, o privado e o social.

Como podemos ou devemos preparar-nos para futuras

emergências globais, pandemias ou outras catástrofes

naturais?

Assegurar sobretudo resiliência aos territórios da cidade

ao campo - de resto onde já existem boas experiências e

práticas, quer na auto-sustentabilidade quanto aos meios

de produção, à entreajuda e aos vínculos sociais valorizando

os sentimentos de confiança, de vizinhança, de pertença e

de segurança. Voltar ao bairro, à aldeia dentro da cidade,

aos lugares de proximidade, à cultura dos sítios, sair do

buraco dos centros comerciais e dos engarrafamentos em

que nos metemos, viver o espaço público, o espaço comum,

voltar aos Rossios de ar livre de trocas comerciais, afetos e

prazeres comuns. Assegurar uma gestão flexível do espaço

público em função das dinâmicas sociais, emergências,

festividades, feriados etc.

Desmontar as ‘marquises’, apanhar sol, ventilar as

casas, requalificá-las nas acessibilidades, na segurança e na

gestão energética. Fomentar o caminho a pé, como primeira

forma de movimento pessoal. Assegurar a instalação de

fibra ótica e boa internet em todo o território, concorrendo

para a diminuição das assimetrias e desequilíbrios entre o

interior e o litoral.

Reduzir a intensidade de uso dos centros das cidades,

reduzindo igualmente e globalmente o stress sobre o planeta,

desenvolvendo políticas de mitigação da crise climática

como a arborização cuidada e intensa dos espaços públicos

e a transição energética.

Proteger os mais fracos, sobretudo os idosos (situação

agravada pela crise demográfica), repensar os modelos de

vida afunilados em equipamentos desumanos e desintegrados

dos seus contextos sociais, de conforto e de segurança.

Combater o isolamento social em geral fomentando modelos

mais inclusivos e de proximidade garantindo a todos

apoio social, sanitário e médico.

Flexibilizar a gestão urbana e a intervenção sobre a

cidade decadente, assegurando maior responsabilidade aos

principais protagonistas nomeadamente os Arquitetos na

procura de soluções mais criativas e de melhoria do parque

habitacional seja através de processos de substituição de

imóveis obsoletos seja na valorização dos logradouros e no

espaço público de proximidade.

Não deixa de ser paradoxal que seja necessário encontrarmo-nos

num estado de alarme para podermos disfrutar

das ruas (como sempre devia ser) mais silenciosas, respiráveis,

seguras, acolhedoras – ainda que social, económica e

culturalmente sem vida.

Passámos do benefício da cidade compacta favorecendo

as relações de proximidade para os problemas da sua sobreocupação

pela cidade turística e automóvel, acentuando

em simultâneo a extensão periférica cada vez mais desagregada,

vulnerável, predadora e insegura. É este modelo que

importa alterar profundamente, de resto já há muito exigido

antes da pandemia, a começar por inverter o modelo

da segmentação da cidade: dormitório, comércio - grandes

superfícies, concentração de serviços, cultura, desporto,

centro histórico e periferias. Toda a fragmentação por usos

e segmentos sociais implica um sobre-esforço coletivo,

conflituoso e caótico na conexão entre as partes. Por outro

lado, integrar na cidade os novos modos de vida, como o

escalonamento dos turnos de trabalho, a desmaterialização,

o teletrabalho, a mobilidade suave, a partilha, as funções

de proximidade, assim como o valor da cidade do grande

conhecimento, da humanização dos lugares comuns e do

encontro, da criatividade, e da inovação, também devem

estar sempre presentes nas novas soluções urbanas e no

planeamento dando alguns passos atrás para dar muitos

outros em frente.

Voltar ao texto resumido, página 53.

80

81



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial // Anexo

Versão integral do texto da página 57.

Reflexões em

plena pandemia

Michel Toussaint

MEMBRO N. O 871

A presença intempestiva do Covid 19 nas nossas vidas

tem suscitado rios de tinta (real e digital) nas publicações

p eriódicas generalistas. Para além da evidência de ser

ouvida mais a palavra do médico, em particular do epidemiologista,

mas também do político e este de modo mais

imediatista, outros conhecedores, investigadores, especialistas

ou artistas e até simples cidadão são ouvidos. Talvez

seja de ressaltar que os filósofos, habitualmente arredados

dos meios de comunicação, passaram agora a ter alguma

presença, provavelmente porque deles se espera uma reflexão

mais fundamentada, profunda e ampla que os outros.

No suplemento do jornal Público (Ípsilon) de

15.04.2020, vem uma entrevista a Timothy Morton, definido

como “filósofo do Antropoceno”, sendo o Antropoceno

uma nova era geológica da qual o ser humano é

inteiramente responsável. Tal deriva da consciência do

impacto da sua ação, sobretudo a partir da Revolução Industrial,

mas que se tem acelerado ultimamente, quer pela

última globalização, quer pelo crescimento populacional

que hoje atinge mais de 7 mil milhões de humanos e cuja

urbanização já ultrapassou mais da sua metade. Um outro

modo de considerar o planeta Terra, que certamente influenciou

a ideia da nova era geológica, foi lançado por James

Lovelock há cerca de quarenta anos e chama-se Gaia.

Com o nome da deusa grega que personificava o ambiente

onde os humanos vivem, designa a inter-relação entre os

seres vivos e o planeta de modo a formar um todo, afinal

um único “ser vivo”. Lovelock entende que foi esta inter-

-relação que manteve a possibilidade de aqui nascermos e

vivermos, criando um ambiente propício à expansão dos

seres vivos, mas numa simbiose frágil que, mais recentemente,

tem caminhado em processos de desequilíbrio

cada vez mais evidentes. Mas Lovelock, homem com mais

de 100 anos, num livro de 2019, aponta para uma revolução

já iniciada que produzirá um outro tempo por ele chamado

de Novacene, ou seja, uma evolução do Antropoceno

provocada pelo aparecimento da Inteligência Artificial

a caminho de uma utopia tecnológica onde os humanos

serão substituídos por cyborgs e que ele considera poder vir

a ser uma era melhor.

Esta é certamente uma discussão dos nossos dias,

mas exterior ao imediatismo da pandemia, enquanto o

conceito Gaia é próximo de Timothy Morton. Este considera

que “estamos a entrar numa nova fase da história do

planeta, com a Terra em alteração devido à ação dos seres

humanos”. Testemunhando os tempos que estamos a

viver, relata a sua experiência em Houston, EUA, dizendo

ser assustadora, “A resposta humana, política e económica

é de uma violência extrema. Trata do assunto como

se estivéssemos perante uma força da natureza, em vez

de ser algo que temos de lidar. Ainda ontem via títulos na

imprensa como: ‘O Choque! O Horror! Negros e pobres

são mais afetados pelo vírus!’ Quero dizer, por onde é que

andaram nas últimas décadas? Onde está a surpresa de

serem os mais vulneráveis?”

Mais adiante afirma que “hoje, apesar da ciência, é

como se as coisas não tivessem mudado muito. Continuamos

a pensar a ‘natureza’ como se fosse algo essencialista

que nos é exterior, negando as ambiguidades

das formas de vida. Continuamos a pensar que estamos

simplesmente a manipular outros seres num vácuo como

se fosse possível separar a ‘natureza’ ou o ‘meio ambiente’

do meio social.” Morton conclui que “nunca controlámos

o planeta. E foi assim que o fomos destruindo como

se vê com o aquecimento global, desde há muito que é

nítido que é necessário alterar a nossa relação com outras

entidades do universo – animais, vegetais, minerais e outras.

[…] Não podemos superar as nossas limitações ou a

nossa dependência face a outros seres. Apenas podemos

viver com eles. Os vírus não se eliminam. Vão e vêm. O

que fica provado, mais uma vez, é que existir implica coexistir”.

Em termos políticos, entende que “a generalidade

dos governantes só consegue pensar de forma monocromática”

e que “estamos há muito em guerra, mas contra a

vida. Não podemos resolver a pandemia ou o aquecimento

global se não retomarmos a inter-relação ecológica e

não olharmos de forma séria para o modelo insustentável

de habitar o planeta”.

Assim, o ser humano tem-se comportado e pensado

geralmente de modo simplista e apressado na obtenção

de resultados, ignorando a complexidade das realidades e

as interconexões de que os humanos fazem parte a todas

as escalas e dimensões. De facto, temos instrumentos e

conhecimentos para compreender o mundo, longe dos

reducionismos que muitos políticos, meios de comunicação

e outros despejam sobre os cidadãos para assentar os

seus poderes ideológicos e interesses pessoais ou de grupo

ou por mera ignorância. Trata-se afinal de compreender

e lidar com a complexidade. Talvez o mais importante

filósofo que tem abordado este tema seja Edgar Morin

que define complexidade, numa primeira aproximação,

como um “tecido (complexus: o que é tecido em conjunto)

de constituintes heterogéneos inseparavelmente associados”

e que “ coloca o paradoxo do um e do múltiplo. Numa

segunda aproximação, a complexidade é efetivamente o

tecido de acontecimentos, ações, interações, retroações,

determinações, surpresas, que constituem o nosso mundo

real” (Morin 2005, p.21). Com isto, o filósofo implica três

princípios de pensamento: o do diálogo, o da recursão 1

organizacional e o do princípio hologramático. Este último

tem muito a ver com a Arquitetura. Morin dá o exemplo

do holograma no qual o menor ponto de imagem contém

a quase totalidade da informação do objeto representado.

Não somente a parte está no todo o todo está na parte […]

Então a ideia do holograma ultrapassa o reducionismo,

que não vê senão as partes, e o holismo que só vê o todo”

(Mori 2005, pp. 98 a 100).

Vitrúvio escreveu que a “simetria é o arranjo entre os

membros da obra em si, e a relação entre as várias partes e

o todo de acordo com uma parte selecionada com padrão”

(Vitruvius 1960, p. 14). Mesmo que Vitruvio se inscreva na

Tradição Clássica desde os antigos gregos, e o seu caminho

dirigia-se à produção da obra perfeita, a consciência

da complexidade pode-se encontrar nesta afirmação, bem

como e sobretudo, no modelo de complexidade que é a

articulação entre Solidez, Adequação e Beleza. Hoje esta

conjugação de apenas três fatores é muito mais extensa e

complicada. Robert Venturi no seu célebre Complexity and

Contradiction in Architecture, cita Christopher Alexander ao

caracterizar um dos principais problemas da contemporaneidade:

“Ao mesmo tempo que os problemas crescem em

quantidade, complexidade e dificuldade, também mudam

mais depressa que anteriormente” (Venturi 1992, p. 16).

Alain Farrel propõe caminhos para responder a tal, uma

“abertura metodológica” que deveria “projetar-se sobre o

tipo de prática profissional dos arquitetos, permitindo alargar

notavelmente o papel que eles se atribuem tradicionalmente.

Do estatuto de criadores de objetos arquitetónicos,

mais ou menos funcionais, económicos, inseridos no sítio,

eles poderiam passar ao de donos de obra num sentido

mais forte, responsável por essa engenharia de sistemas complexos

que representam hoje a programação, a montagem,

a conceção e a realização de operações imobiliárias ou

urbanas de uma certa dimensão” Farrel 1999, p. 254).

Continuando a observar aquelas publicações periódicas,

num artigo, sobre escritórios em tempos de pandemia

e depois, publicado no Le Monde (L’Époque) de 4 de maio

de 2020, o jornalista interroga vários arquitetos. Patrick

Rubin, que tem um pequeno edifício de século XVII no

Marais em Paris onde habita, trabalha e até tem uma galeria,

afirma que “se um sítio não foi pensado para ter uma

segunda ou uma terceira vida, está condenado à partida”

e interroga-se: “Porque é que se constrói habitações num

lado e escritórios noutro? Porque não tudo junto? Um edifício

deve ser capaz de mudar a qualquer momento”. Para

este arquiteto, mudar é o desafio que parece colocar-se aos

escritórios das empresas à hora do covid 19, atirando para

o lixo “os open spaces que fizeram a felicidade dos ‘trinta

gloriosos”. Já Vincent Dubois, arquiteto do edifício-sede

do Le Monde, entende que há três questões para os escritórios,

uma tem a ver com o não tocar nas pessoas nem nos

elementos arquitetónicos e objetos, outra é o teletraba-

82

83



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial // Anexo

Versão integral do texto da página 57.

lho que conduz o escritório a ser um local de trocas e de

encontros virtuais e a terceira é a organização dos espaços

tendente à variação geométrica com, por exemplo, dez postos

de trabalho sem crise e três com crise. Enquanto Jean

Nouvel adverte que a organização do trabalho em termos

do espaço deve ter como escala temporal o decénio e que o

tempo da criação arquitetónica não é o de uma crise.

Noutra entrevista, desta vez ao historiador da Medicina,

Marc Honigsbaum, que o Público apresentou na sua edição

de 10 de maio de 2020, este considera que “O nosso ambiente

arquitetónico é um dos fatores que ajudam a compreender

como é que esse tipo de vírus [novo coronavírus]

se propaga. As cidades e a sobrepopulação são exemplos

claros. Os prédios muito altos aumentam as possibilidades

de contacto social”. E dá o exemplo de um hotel em

Hong Kong ter sido um foco de covid 19, provavelmente a

partir dos elevadores. Mas acusa também a climatização

dos espaços interiores, cujo objetivo é o conforto humano,

de espalhar o agente patogénico através de aerossóis com

base nos tanques de água armazenada para a refrigeração.

E igualmente cita o caso dos hospitais, onde os ventiladores,

para nebulizar os doentes, aumentam o potencial de

propagação do vírus. Poderiam ser lembrados muitos mais

exemplos concretos relacionados com os espaços arquitetónicos

interiores e exteriores no contexto das cidades

contemporâneas, nos campos ou nas praias, etc. Mas

como Jean Nouvel adverte, a pressa derivada de uma crise

como a da presente pandemia não pode constituir assento

exemplar, apenas pode ser faísca para reflexão e para o

desenvolvimento de conhecimentos mais alargados.

Basta recordar Timothy Morton ou o conceito de Gaia

de James Lovelock. A Arquitetura tem espelhado o que

se tem pensado sobre a relação Natureza-Homem, mas,

em geral continua a proceder como há muitas dezenas de

anos, criando espaços protegidos cada vez mais artificializados

e uniformizados, procurando repelir tudo o que

parece ameaçar a suposta integridade humana. Vejam-se

os exemplos mais flagrantes das cidades construídas com

os abundantes petrodólares nos desertos da península

Arábica para os seus cidadãos, excluindo os emigrantes

pobres, que são os seus operários-construtores vindos da

Índia, Paquistão ou Bangladesh, aqueles vivendo à custa

de enormes dispêndios energéticos e circulando em suv’s

climatizados por ruas de múltiplas faixas. Ou as cidades

chinesas, como Wuhan onde nasceu a pandemia, eriçadas

de torres de dezenas de pisos, construídas em poucas

dezenas de anos numa pressa que tem a ver com a ascensão

ao poder do Mundo do país e às gigantescas migrações

internas, copiando aliás a imagem das cidades americanas

que Hong Kong já tinha pioneiramente seguido. A mesma

atitude tem-se visto na Europa como na City londrina ou na

zona bancária de Frankfurt, apesar da existência, no continente,

de algum experimentalismo alternativo ou algumas

tentativas em alterar o rumo.

Face a tudo isto, entre a atual pandemia e a mais vasta

crise ecológica da qual as alterações climáticas são uma

faceta, há que perguntar se o papel do arquiteto fica inalterado

ou se reduz se ele insistir em tal. Alain Farrel apontou

um caminho, o do alargamento dos fatores que se inscrevem

no projeto, da expansão do tempo de ação e reflexão

do arquiteto, não se centrando apenas no ato de projetar

e, sobretudo, aprofundar a muito antiga tradição de saber

lidar com a complexidade, pois o mundo, as regiões e as

cidades, o habitat humano, enfrentam novos problemas

que somam aos mais antigos, necessitando, no campo

da Arquitetura, de novas sínteses. E, tal como Timothy

Morton nos adverte, estendendo a diversidade biológica

do habitat humano, tornando-o menos exclusivista e mais

aberto às realidades da vida no planeta Terra.

1

Edgar Morim explica que esta palavra tem a ver, por exemplo, com “um processo

onde os resultados e os efeitos são, ao mesmo tempo, causas e produtores do que

os produzem”

Bibliografia:

Belanciano, Vítor, Timothy Morton “podemos ter mais pandemias, mas

também um futuro diferente daquele que vislumbramos agora”. In: Ípsilon/Público

15 de maio de 2020

Carpentier, Laurent, Mon bureau dans la vie d’après. L’Époque/Le Monde, 4 de Maio

de 2020

Farrel, Alain, Architecture et complexité. Le troisième labyrinthe. Paris: Les Éditions

de la Passion, 1999

Lovelock, James; Appleyard, Bryan Novacene. The Coming Age of

Hyperintelligence. Allen Lane/Penguin, Random House UK, 2019

Morin, Edgar, Introduction à la pensée complexe. Paris: Éditions du Seuil, 2005

Neto, Ivo, “A crise económica é uma consequência do desinvestimento na

saúde”. In Público, 10 de maio de 2020

Venturi, Robert, Complexity and Contradition in Architecture. New York: The

Museum of Modern Art, 1992

Viruvius, The ten books on architecture. New York: Dover Publications, 1960

Voltar ao texto resumido, página 57.

84

85



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial // Anexo

Versão integral do texto da página 58.

Arquitectura do contexto de Pandemia

Miguel Amado

Coordenador do curso de Mestrado Integrado em Arquitectura, Instituto Superior Técnico

MEMBRO N. O 3726

A realidade de uma situação de pandemia decerto não

nos irá privar de continuar a fruir as vantagens da cidade

enquanto uma das maiores criações da humanidade.

No limite, poderá conduzir a que ocorram mudanças

nos modos de viver, trabalhar e socializar em espaços

que hoje conhecemos e pretendemos preservar e manter

disponíveis para futuras gerações. Até há pouco tempo, a

arquitectura via o seu programa construído, qualquer que

fosse a geografia, articulando conjuntos de interacções

funcionais de áreas e de optimização de relações espaciais

adaptadas aos futuros utilizadores. No entanto, e quase

de um dia para o outro, surgiram pressupostos adicionais

que se reflectem na necessidade de uma maior protecção

do indivíduo quando no espaço social, tendo como foco

as condições de higienização e de afastamento social. Este

contexto, tendo implicação nas relações de dimensão e

proporção de todos os espaços destinados a acomodar

actividades e funções de necessidades humanas, reintegra

e reforça o critério da flexibilidade e adaptabilidade no

programa de arquitectura. Esta realidade, de âmbito

global, veio colocar maior exigência na acção do arquitecto

e na qualidade das suas respostas e soluções, as quais

terão impacto na economia e no consumo de recursos. As

tendências recentes de criação de espaços colaborativos

para habitar, trabalhar e conviver, onde a partilha de

recursos tem sido entendida como vantagem económica

podem, eventualmente, ser colocados em causa. O

caminho para soluções de co-working e co-living, muito

suportados numa rentabilização económica do espaço

em primeiro plano, e na promoção da inovação resultante

da maior interacção social, em segundo plano, tomam

agora outra importância face à eficácia comprovada que

o teletrabalho, iniciado nos princípios dos anos 90 com

a revolução digital, teve. Este contexto irá colocar ao

arquitecto um elemento adicional no seu programa, que

resulta das exigências e características que o espaço terá

de responder para possibilitar as actividades de trabalhar,

viver e descansar em conjunto.

Associadas a esta questão, novas questões surgirão

que vão desde a separação ou limite “virtual” entre

espaços público e privado, tanto no exterior como no

interior do ambiente construído. Este critério, não será

apenas um ponto de enquadramento de funções, com

impacto económico nos investimentos e na sua gestão,

mas sim, uma questão de preservação de condições para

que, de modo passivo, se assegure um elevado nível de

saúde pública, segurança e de governança num ambiente

inclusivo de uma identidade comunitária. É neste ponto

que o espaço público se mantém como lugar fundamental

no processo de reconfigurar a cidade às exigências de

mudança imprevistas que as sociedades rapidamente vêm

atravessando.

Mas, se a necessidade de distanciamento social poderá

contribuir para o reforço do sentimento de segurança

mais imediato, coloca-se, no entanto, a questão de

como é que o arquitecto conseguirá manter as condições

para a intrínseca necessidade humana de interacção

social. Ou mesmo, como é que a resposta ao programa

dará garantia ao futuro utilizador de que pode fruir das

sensações e ambientes criados como antes o fazia numa

grande sala de eventos ou numa actividade em grupo nos

espaços construídos interiores ou exteriores. E é aqui

que emerge a urgência de novas respostas, já não apenas

suportadas em referências de cultura e composição

imagética ou eficiências de desempenho, mas sim na

dinamização de novos ambientes em que espaços como

hoje os imaginamos nos permitam acomodar diferentes

utilizações e nos assegurem em simultâneo condições para

um convívio social sem risco. E aqui se retomam modelos

humanistas de vivência na cidade como a figura do “corral

de vecinos” planeados por Cerdá para Barcelona, e no

qual a habitação tem desenvolvimento e proporciona um

contacto com o espaço exterior através da figura do pátio,

da praça e da avenida que, mesmo sendo contido, assegura

relações de vizinhança que hoje se reconhecem essenciais

à situação de confinamento. Desta recente realidade, e da

sua necessária transposição para o programa da habitação,

surgirão desafios como a redução da compartimentação

interior e uma maior área nos espaços que permitam o

contacto com o exterior, onde, diferentes actividades

possam ter lugar em simultâneo. Espaços cuja função

não se restrinja apenas a um uso individualizado, mas

sim partilhado, e no qual, os requisitos de desempenho

de iluminação natural, acústica e térmica retomem o

papel que a arquitectura sustentável tem vindo a afirmar.

Por outro lado, o sentimento de segurança reforçado

pelo maior contacto visual com os espaços exteriores

envolventes, proporcionados com a varanda, pode vir a

assumir-se como um critério determinante para que a

rede de conectividade entre espaços livres verdes, praças e

avenidas validem a sua função bioclimática no contributo

para a qualidade da vida em áreas urbanas.

Em suma, a pandemia veio recolocar numa posição

primeira da prática do arquitecto, a questão do programa

da habitação segura, flexível e com acesso a serviços

urbanos, de modo a que novas situações de confinamento

não resultem em maiores problemas sociais no contexto da

vida individual e colectiva de quem na cidade vive.

Voltar ao texto resumido, página 58.

86

87



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial // Anexo

Versão integral do texto da página 66.

Crónica de uma docente de arquitectura

nos inícios da pandemia de Covid-19

Sofia Aleixo

MEMBRO N. O 4598

WHO Coronavirus Disease (COVID-19) Dashboard. Data last updated: 2020/5/24, 10:00am CEST.

Acedido em https://covid19.who.int/?gclid=EAIaIQobChMI34SUlq3P6QIVytvVCh1k8AgbEAAYASAAEgJQ1vD_BwE

Ao estado de emergência de saúde pública de âmbito

internacional, declarado pelo diretor-geral da Organização

Mundial de Saúde (OMS) Tedros Ghebreyes no dia 30 de

janeiro de 2020 seguiu-se a 11 de fevereiro, o anúncio do

nome oficial da doença que se espalhava rapidamente de

continente em continente. Tedros Ghebreyes estaria longe

de pensar que apenas um mês depois estaria a declarar o

nível de pandemia de COVID-19. Nesse dia, 11 de março,

estávamos numa quarta-feira e estavam 59 casos confirmados

em Portugal.

11 dias de ensino

Tendo sido detectados os primeiros casos de COVID-19 na

Europa a 21 de Fevereiro, a 2 de Março Portugal tinha apenas

dois casos, localizados a norte do país, num continente

já com 594 casos e com 724 casos no Pacífico Ocidental.

Atenta, a 4 de Março a Universidade de Évora emite uma

circular onde considera “totalmente desaconselhável a

mobilidade”, requerendo a decisão da deslocação a entrega

de uma declaração de responsabilidade pelo próprio sendo

que, no caso de regressar de países afectados, deveria o

docente manter o período de quarentena de 14 dias. A listagem

de medidas de acautelamento que deveriam ser tomadas,

nomeadamente sobre o sistema de saúde no local de

destino, e sobre as limitações à mobilidade que poderiam

vir a ser decretadas, como os cancelamentos de voos ou implementação

de medidas de quarentena, era desmotivadora

de qualquer vontade de aprender e ensinar no estrangeiro

nesta fase. Nessa semana, escrevo na minha agenda “avisar

Estónia do cancelamento da mobilidade docente ERAS-

MUS +”, programada para final de Abril, e escrevo a lápis

na esperança que a situação se alterasse.

A visita de estudo que tinha agendada a Lisboa com os

meus alunos de Projecto II, no dia 5, corria o risco de não

se efectuar. Nesse dia, os nove casos confirmados no nosso

país e os quase 100.000 no mundo confirmavam a circular

do dia anterior, tornando expectável o impedimento de

deslocações de membros da academia. Teria mesmo de

enviar um mail para a Estónia, lamentando a impossibilidade

de manter esta deslocação à Faculty of Architecture

and Design, na RISEBA University of Applied Sciences, e

procurar reaver o valor do bilhete antecipadamente comprado.

As aulas que preparei sobre Évora e Riga, a cidade

velha medieval classificada Património Mundial da UNES-

CO 11 anos após Évora, e reconhecida como a cidade com a

melhor colecção de edifícios art nouveau da Europa, teriam

de ficar para outra oportunidade.

No dia seguinte, com autorização superior, uma vez

que a perigosidade registada em Lisboa não era diferente

da registada em Évora, ou seja, sem casos COVID-19, um

autocarro transportou cinquenta alunos do primeiro ano

do Mestrado Integrado em Arquitectura a Lisboa. Aqui

foram recebidos em visita orientada pelo colega Carlos

Carrilho, na Sala de Honra da Fundação Calouste Gulbenkian,

depois de terem visitado a pedagógica exposição

temporária “Novo Jardim Gulbenkian – 12 Projetos de

Arquitetura” onde tomaram contacto directo com doze

formas diferentes de intervir e de comunicar, entre arquitectos

nacionais e estrangeiros. Foi um dia feliz, como são

os dias de visita de estudo de arquitectura com os alunos

a qualquer cidade, e mais ainda a este lugar desenhado

(e redesenhado em 2002) pelos arquitectos paisagistas

Gonçalo Ribeiro Telles e Viana Barreto, e a este complexo

de edifícios cuja obra inaugurada em 1969 foi projectada

pelos arquitectos Ruy Jervis d’Athouguia, Pedro Cid e

Alberto Pessoa (com uma cuidada atenção permanente da

arquitecta Teresa Nunes da Ponte em acções de renovação,

restauro e reabilitação).

A dificuldade de alunos de primeiro ano entenderem

“o que é arquitectura” e “o que não-é arquitectura”, em

entenderem o papel da história, da teoria e da filosofia na

arquitectura, levou à discussão sobre o que são referências

em arquitectura? no primeiro semestre deste ano lectivo.

E por isso, nesse momento inicial do segundo semestre

desenvolvíamos em Projecto II o trabalho de interpretação

e representação (em grupos de alunos) dos princípios de

arquitectura contemporânea defendidos pelo arquitecto

Valerio Olgiati (Suíça, 1966) no manifesto “Non-referential

architecture”, escrito por Markus Breitschmid (Suíça,

1958), e publicado em 2018. Ao considerar que o mundo

em que vivemos hoje não tem significados universais, e

como tal não tem referências, a arquitectura deve basear-

-se noutros princípios que não os cânones estabelecidos

anteriormente. O objectivo era explorar uma arquitectura

baseada nos significados dos próprios edifícios e da forma

como eles, como entidades, fazem sentido ou potenciam

“sense-making”, na experiência do espaço arquitectónico

onde os princípios de unidade, ordem, e novidade se conjugam,

considerando o princípio da contradição, e sendo

explícitos na sua construção.

Ao explorar esta noção de ideia projectual, aplicada ao

“objecto arquitectónico” ou à “peça de arquitectura”, surgiu

a discussão sobre o contexto, a história, as memórias e

as pessoas como entidades ausentes do processo criativo.

Ora nada melhor que a visita, a experiência sensorial de um

lugar arquitectónico de excelência, onde os contextos social

e histórico foram determinantes para o projecto, para

melhor entender as contradições ou reafirmar as certezas.

A aprendizagem pela experiência sensorial da arquitectura,

defendida por Juhani Pallasmaa (Finland, 1936),

inclui o tacto, o cheiro, a visão e as mensagens que transmitem

ao nosso cérebro que se “materializam” num

repositório de memórias a que nós, como arquitectos,

recorremos no momento de projectar. E, por isso, as visitas

de estudo em arquitectura proporcionarem momentos

únicos de despertar os sentidos, de escutar a arquitectura,

de sentir o movimento pelos espaços, de saborear a luz que

atravessa aquele vão e a sombra que projecta em seu redor.

Por isso, indispensáveis no ensino da arquitectura.

Com estes alunos, essa oportunidade de aprendizagem

na Fundação Calouste Gulbenkian foi explorada, e creio

ter deixado memórias. No entanto, na semana seguinte,

com a divulgação do Plano de Contingência da Universidade

de Évora e com o fecho de algumas escolas, pressentia-se

que em breve seria decretada a suspensão das

actividades lectivas presenciais em todas as Instituições de

Ensino Superior, o que viria a acontecer nessa noite, pelo

que o tema debatido em sala de aula foi como planear as

semanas de trabalho até às férias da Páscoa, procurando

transmitir calma e tranquilidade sobre um assunto onde o

desconhecido ganhava cada vez mais espaço nas conversas

cruzadas. Assumindo-se que se poderiam retomar as aulas

presenciais a 14 de Abril, foram definidas metodologias de

trabalho para a realização das tarefas individualizáveis (em

grupos de três alunos) e tarefas comuns no exercício em

curso, o que seria um motivo de encontros on-line fora das

horas de aula e, caso o retorno ao Colégio dos Leões não

fosse possível, o exercício prático seguinte seria adaptado

de forma a poder ser realizado em isolamento, nas casas

de cada aluno, com o acompanhamento dos docentes em

sessões síncronas.

13 de Março seria o dia em que o Decreto-Lei n.º 10-

A/2020 estabelecia medidas excepcionais e temporárias

relativas à situação epidemiológica do novo Coronavírus,

e no seu Artigo 9º suspendia as “actividades lectivas e

não lectivas e formativas com presença de estudantes em

estabelecimentos de ensino públicos” a partir da seguinte

segunda feira. Prorrogada até ao dia em que escrevo este

texto, foi autorizada pela Universidade a substituição de

aulas presenciais com a passagem temporária ao “regime

de teletrabalho como forma preferencial de desempenho

da actividade profissional”. Foi ainda determinada a substituição

pelo ensino à distância, numa combinação da plataforma

Moodle (interacção assíncrona com os estudantes)

com a plataforma Zoom/Colibri (sessões síncronas), tendo

sido proporcionada uma brevíssima formação em avaliação

on-line. Em resumo, os alunos tiveram cinco semanas de

aulas presenciais neste semestre.

88

89



Jornal Arquitectos

Número 260 // Junho 2020 // Edição Especial // Anexo

Versão integral do texto da página 66.

A adaptação do processo de ensino e aprendizagem

não presencial

Segunda-feira, 16 de Março: primeiro dia de confinamento,

em teletrabalho. A circulação nas ruas diminuiu,

nos supermercados fazem-se filas à porta e compram-se

enlatados, leite, congelados e café. Em casa, com o atelier

fechado e os colaboradores em teletrabalho, planeia-se

a semana, projecta-se o futuro próximo na incerteza do

presente. Diversos eventos e conferências são cancelados.

A viagem à Faculdade do Porto para apresentar o projecto

das Revistas de Ideias e Cultura, e a revista de arquitectura

“A Construcção Moderna”, publicada entre 1900 e 1919,

é cancelado; telefono ao Luís Andrade e à Patrícia Faustino;

agradeço à Clara Pimenta do Vale, ao Rui Fernandes

Póvoas, ao João Pedro Xavier e ao Domingos Tavares.

Teremos de agendar para outra data. A visita ao Palácio

de D. Manuel em obra, a pedido da Madalena Moreira aos

alunos da Uc de Estaleiros, é cancelada. A reunião anual da

Sociedade Portuguesa de Estudos de História de Construção,

é cancelada. Enfim, teria sido uma semana cheia, esta

em que, no primeiro dia de aulas on-line a 17 de Março, se

registou o primeiro óbito em Portugal e em que me apercebo

que a última vez que abracei e beijei os meus pais e as

minhas filhas foi… já há mais de uma semana. Na véspera

de implementação do estado de emergência, 23 de Março,

Portugal regista 14 mortos e 1600 casos.

Esta semana decorreu de forma dispersa, com alunos

em transição entre Évora e o retorno à casa de família, o

retomar de hábitos, o confinamento ao espaço da casa,

as viagens difíceis para os alunos estrangeiros, principalmente

brasileiros. O trabalho em curso prosseguiu com o

estudo de uma casa moderna de um arquitecto Português,

com apresentações em zoom do progresso do trabalho,

comentários aos desenhos e maquetas e à análise por

dados da pesquisa efectuada ainda antes do confinamento.

O trabalho foi apresentado na semana sete, com partilha

de powerpoints em écrans, com os grupos bem estruturados

e previamente organizados.

Na semana oito foi lançado o exercício de projecto que

procurou explorar a situação única de confinamento a

que os alunos, aliás, todos, estávamos sujeitos. Primeiro

o clássico exercício de levantamento arquitectónico do

quarto e sanitário onde residiam, levantou a realidade social

dos alunos e o seu contexto. O estímulo a uma posição

crítica sobre o espaço que tão bem conheciam foi apoiado

numa análise SWOT que se revelou denunciadora de diversos

problemas, tendo o ensino da arquitectura encontrado

uma oportunidade de reflectir sobre como resolver problemas.

O retorno após as férias da Páscoa revelou o Exercício

de Projecto que aliou o conhecimento do espaço de confinamento,

aos requisitos da Direcção-Geral de Saúde para

situações de isolamento, e a casa moderna anteriormente

estudada. O projecto de uma unidade de isolamento, um

edifício a construir em diálogo com a identidade da casa

moderna deveria ser implantado no terreno do lote e

proporcionar espaços de descanso, alimentação, higiene

e lazer.

Se para alguns o exercício foi aliciante e explorado

dentro dos critérios indicados, para outros a situação de

isolamento e por vezes de dificuldade na ligação à internet,

terá sido desmotivante porque a cultura da sala de aula, da

discussão e partilha entre os alunos (do mesmo ano e mais

velhos) e entre eles e os professores, não é directa nem imediata.

A comunicação, tão facilitada pelos dispositivos móveis,

parece que encontra no ambiente educativo barreiras

que alguns não conseguem superar. Preferem não ser vistos,

preferem não falar, a dedicação e empenho na procura

de soluções que respondam aos comentários dos professores

é pouca e por vezes nula. E os docentes ficam colocados

numa posição em que se sentem responsáveis pela falta de

ânimo ou estímulo à participação, sem as ferramentas que

eventualmente poderiam auxiliar nesse sentido.

A adaptação de alunos e docentes foi muito rápida e

muito autodidacta, quer no ensino quer na aprendizagem,

quer na avaliação. Não sabendo como agir, procura-se

simular on-line o ambiente da sala de aula, mas as aulas

não podem ser iguais. Não estamos em ensino à distância,

estamos em ensino em continuidade com o iniciado em

sala de aula, procurando manter uma cultura de atelier on-

-line (zoom) e off-line (conferências e leituras no Moodle).

Mas as competências que será necessário avaliar, no caso

específico deste semestre, serão as que se referem à capacidade

de migrar de um sistema para outro, à capacidade

de resiliência, à capacidade de não desistir, à capacidade de

ser criativo (nomeadamente na procura de materiais para

concretizar maquetas de representações tridimensionais

do espaço arquitectónico).

A educação on-line em arquitectura tem de se reinventar.

Estamos num súbito e imposto work-in-progress

sobre o qual temos de reflectir, aprender com as melhores

práticas de quem já o pratica há tempo, e procurar métodos

adicionais de reduzir o medo e contribuir para uma sanidade

mental que nos deixe ser livres de criar e de viver um período

tão importante na formação dos nossos alunos. No

futuro próximo prevê-se já o aumento do ensino à distância

no ensino superior, com diversidade de webminars evitando

os custos, financeiros e ambientais, de deslocações

de académicos e praticantes. Esta realidade aumentará a

desigualdade que já se pressente, nomeadamente na disponibilidade

de meios informáticos, bem como o impacto

socioeconómico trará uma inevitável recessão económica

global, levantando questões sobre o número de alunos

que procurarão a universidade, o curso de arquitectura em

particular. Talvez uma consciência ambiental nesta jovem

geração procure uma arquitectura amiga do ambiente, uma

vez que se observaram claramente os resultados das restrições

à circulação e à ocupação de edifícios de escritórios/

fábricas na diminuição na poluição do ar. Talvez os programas

funcionais com objectivos turísticos, muito utilizado

em exercícios académicos que encontram em edifícios com

características monumentais e/ou patrimoniais a hotelaria

como a resposta para a sua “preservação e salvaguarda”,

devam ser reequacionados para o bem-estar na habitação,

no centro de dia ou no jardim de infância. A ideia de que o

turismo é a salvação do património, desde o pequeno edifício

de acompanhamento no centro histórico, ao palácio

nos arredores de uma quinta outrora de produção, encontrará

agora a habitação residencial como resposta permanente

num período de incerteza. Será esta a oportunidade

de repensar o ensino do papel do arquitecto na sociedade.

Enfim, e referindo brevemente o impacto desta pandemia

nos arquitectos que, como eu, coordenam os seus

ateliers e as equipas de projectistas, trará certamente um

repensar as grandes estruturas que, agora em teletrabalho,

testaram a coordenação de equipas e a produtividade na

resposta pelo que estou em crer que os ateliers irão repensar

os investimentos nas suas instalações. A necessidade de

manter a motivação e compromisso que a prática diária de

atelier gerava, a definição e atribuição de tarefas suficientemente

significativas e minimamente interdependentes para

manter os contactos entre colaboradores, e a demonstração

de reconhecimento pelo progresso e desenvolvimento

do trabalho são dificuldades acrescidas às tarefas de gestão

normais num atelier onde as obras pararam, e onde a manutenção

de uma equipa coesa e participativa neste “novo

normal” se torna o motivador da redefinição de estratégias.

Mas mantenho a escrita a lápis, semana a semana, do dia

do retorno, do contacto pessoal, da troca de ideias num

coffee break com um lápis e uma cópia do projecto impressa

na mão, que promovem o risco sobre o papel. E não há

rato, nem ecran, nem som que substitua o cheiro do café

que, com o entusiasmo, se entorna sobre o projecto numa

animada conversa sobre arquitectura.

Voltar ao texto resumido, página 66.

90

91



Hooray! Your file is uploaded and ready to be published.

Saved successfully!

Ooh no, something went wrong!