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desafetos: Relatos de homens pretos gays afeminados sobre o afeto e o desafeto

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(Des)Afetos:

Relatos de homens pretos gays

afeminados sobre o afeto

e o desafeto.

Maria de Fátima Souza


Copyright © 2023 by Maria de Fátima Souza

Projeto gráfico e diagramação

Estúdio: Azul Desconhecido

Ilustrações

Aline Macedo

Capa

Raquel Claro

CIP – Catalogação na Publicação

SOUZA, Maria de Fátima.

(Des)Afetos: Relatos de homens pretos gays afeminados sobre o afeto e o

desafeto / Maria Souza – 2023.

117 f. il.

Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação) apresentado a Faculdade Paulus de

Tecnologia e Comunicação – FAPCOM, São Paulo, 2023.

Área de Concentração: Livro-Reportagem.

Orientação: Profa. Dra. Vaniele Barreiros da Silva.

1.Livro-reportagem. 3.Entrevista 4.Jornalismo I.Souza, Maria de Fátima.

II.Título.

São Paulo

2023


Para todos os pretos gays que o afeto é

constantemente negado.


AGRADECIMENTOS

Agradeço à minha família por acreditarem em mim e terem

lutado para que hoje eu fosse uma mulher com acesso a privilégios

que não tiveram acesso. Aos meus amigos e a todas as

pessoas especiais que estiveram ao meu lado nessa turbulenta,

inconsistente e complexa passagem que é a vida, se pudesse

tornaria a paleta de todas as nossas noites em tons de amarelos

para que pudéssemos ser felizes e nossos elos inquebráveis. Aos

meus queridos entrevistados que foram imensamente generosos

e receptivos a mim e a este projeto, sem vocês nada disso

seria possível. E, surpreendentemente, decido que também é

importante agradecer a minha Maria interior, aquela que está

emocionada enquanto escrevo isto: por favor, lembre-se que

é capaz e talvez alguma potência que exista em você te leve a

outros patamares.


Quando escolhemos amar, escolhemos

nos mover contra o medo – contra

a alienação e a separação. A escolha

por amar é uma escolha por conectar

– por nos encontrarmos no outro.

– Bell Hooks.


Sumário

INTRODUÇÃO, 9

NALDINHO, 16

Com licença, professora, quero ser bonito também..........................17

QVVJFA?.........................................................................................20

De volta à liberdade..........................................................................26

ANDRÉ, 30

Reencontro.......................................................................................30

O cuidado é uma forma de demonstrar amor… mas não é a única.34

Amor de Mãe...................................................................................39

Prole de Condessa Mônica (part.1)..................................................45

Ouvir aquilo me machucou. Levantei a voz e senti a malícia...........48

Há + de 50 anos...............................................................................51

JOÃO, 56

Mesmo com privilégios, o desafeto me alcança.................................57

Triste, mamãe Oxum me falou que a gente sofre por falta de amor..63

Depois da tempestade, a calmaria.....................................................66

DOUGLAS, 72

Partir para ser livre.......................................................................74

Quando os negros vieram de África trouxeram uma planta pra fazer

defumação..................................................................................77

Não dá pra fugir dessa coisa de pele..............................................79


IVAN, 84

Perdido menino preto..................................................................86

Se tudo cai, ela levanta.................................................................88

Afinal, a arte transforma...............................................................90

Ismália........................................................................................93

MÁRCIO, 100

Não é preciso falar.....................................................................101

A Pantera do Brasil....................................................................103

Os malditos cristais....................................................................105

É bonita E é bonita....................................................................106

PLAYLIST, 112

SOBRE A AUTORA, 116

8


Introdução

Na obra Tudo sobre o amor: Novas perspectivas, a ativista,

teórica e professora Bell Hooks – pseudônimo de Gloria Jean

Watkins – fala sobre o amor, seus conturbados conceitos e

concepções, o que o compõe e, principalmente, nos alerta a

não ter medo do amor, já que ele pode transformar. Tudo o

que traz em sua escrita sobre o amor Bell relaciona à problemáticas

sociais dos Estados Unidos, como o racismo, o machismo,

a violência doméstica e outros. Dessa forma, os temas

abordados por ela cabem a sociedade de maneira universal,

já que encontram-se presentes em todos os locais, como no

Brasil e em cada um dos seus estados. A principal ideia que

Hooks reflete e acredita é que “o amor é o que o amor faz”, ou

seja, o amor é ação, ato. E, dentro deste ato banhado de vontade

e escolha, há o afeto, pois sem afeto não há amor. Falar

da presença ou ausência de afetividade sem citar e relembrar a

potência do amor, é impossível.

Como uma inspiração e um exemplo mais recente e

grandioso que retrata o amor e a afetividade temos AmarElo

do rapper, compositor e escritor paulista Leandro Roque de

Oliveira, conhecido popularmente como Emicida, propõe em

forma de álbum musical uma experiência social que circunda

o amor e o seu conceito, relacionando-os diretamente a pauta

racial, principalmente seu empoderamento, mas não excluindo

suas mazelas. Conduzido por um rap carregado de referências

não somente da música brasileira, mas também de parte

da sua cultura, aplica em cada faixa particularidades e características

pretas, sendo algumas delas: as vivências, as alegrias,

a espiritualidade, as frustrações, os aprendizados, as relações e

as afetividades, que muitas vezes são deixadas de lado. Dentre

9


todas as faixas, destaco a primeira e a oitava. Princípia com a

participação de Fabiana Cozza, Pastor Henrique Vieira e do

coro das Pastoras da Comunidade do Rosário, sendo a primeira

faixa, afirma que o amor, não somente sentimento, mas ato,

tudo suporta, pois “cuida com carinho. Respira o outro, cria

o elo”, evidenciando sua potência e a indiscutível necessidade

do afeto diário para além da sobrevivência, da vivência plena;

Enquanto, denominada Ismália, a oitava música fazendo referência

ao poema de Alphonsus de Guimaraens*, que a princípio

aborda a loucura devido ao amor, é “a metáfora do que é

ser preto no Brasil”, nas palavras do cantor. Com participação

de Larissa Luz e Fernanda Montenegro, a conversa entre Emicida,

Ícaro e Ismália cumpre o que se propõe: a música atinge a

profundidade da realidade preta, que busca o inalcançável, que

de longe almeja, mas o primeiro passo para a vitória também

pode ser o da queda.

Interseccionalizando ainda mais essa pauta: como é a realidade

de um preto gay no Brasil?

A marginalização do homem preto – embora amena

comparada a da mulher preta no Brasil – é cruel. O racismo

se faz tão impiedoso que, como resultado de sua onipresença,

desumaniza o corpo preto, seja ele mais ou menos retinto. A

solidão de pessoas pretas além de uma realidade inquestionável,

é um fruto das constantes violências e anulações das conquistas,

histórias e direitos do povo preto. Assim, quaisquer

questões individuais que possam divergir da característica de

pele é automaticamente inviabilizada, apagada. A estereotipação

e fetichização de corpos pretos – heranças dos tempos de

escravidão e de um Brasil colonial e decolonial culturalmente

favorável ao enbranquecimento social – contribuem para essa

desumanização. É desse fato que surge o “além de preto é viado?”,

pois para uma sociedade adoecida socialmente se é preto

10


ou estudioso, preto ou da favela, preto ou gay… mas as duas

coisas? É, para os ignorantes, o motivo perfeito para uma invisibilidade

maior. Portanto, assim como crianças brancas são

ensinadas a distinguir as características raciais e os privilégios

que possuem desde cedo, pessoas pretas são ensinadas a como

portarem-se em casos de racismo, como se defenderem e, na

maioria das vezes, a assumirem um papel de servidão, seja ele

para evitar conflitos ou como uma forma de segurança.

Os homens pretos são ensinados e forçados – por seus

cuidadores e responsáveis, como um método de proteção –, a

assumir um papel baseado em atitudes apontadas como brutas,

fortes e ativas, isto é, que reflita uma masculinidade exigida

socialmente. “Levando em conta os estereótipos de gênero que

atribuem às mulheres o papel dos sentimentos e da emotividade,

e aos homens o da razão e da não emoção, “homens de verdade”

teriam aversão a qualquer conversa a respeito do amor.”

(Hooks, Tudo Sobre o Amor: Novas Perspectivas, 1999.) E,

que apresentem-se pouco receptivos a criação e demonstração

de sentimentos afetuosos, mas que ao mesmo tempo saibam

como fornecer alguma forma de entretenimento a pessoas

brancas, como: trabalho braçal, lutas violentas, prazer sexual

e a realização de fetiches a partir de corpos perfeitos e órgãos

sexuais dotados. Aqueles, então, que não performam essas características

estão suscetíveis a maiores e mais frequentes ameaças

físicas ou emocionais.

O movimento LGBTQIAPN+ no Brasil evoluiu e, felizmente,

com maior constância, raqueia espaços e pautas sociais

que contribuem e fortalecem a causa, garantindo direitos e

respaldos até mesmo em leis. Como por exemplo, àquelas implantadas

no Estado de São Paulo: Lei Nº 10.948, 11/2001,

de autoria do ex-parlamentear Renato Simões (PT), que prevê

“penalidades a serem aplicadas à prática de discriminação em

11


razão de orientação sexual e dá outras providências” e a Lei

nº 15.082, de 07/2013, de autoria da deputada Leci Brandão

(PSOL) – uma mulher preta e pertencente a comunidade

LGBTQIAPN+ –, que altera aquela citada anteriormente e

acrescenta que a Secretaria da Justiça e da Defesa da Cidadania

pode firmar convênios com os municípios, Câmaras municipais

e com a Assembleia Legislativa.

A história e luta de pessoas pretas que identificam-se

como pertencentes à comunidade LGBTQIAPN+ foram e

continuam sendo constantemente apagadas. Houve personalidades

que fortificaram a cultura, história, luta gay e preta, que,

no entanto, têm marcado no enredo de suas vidas as dolorosas

marcas e desafetos de como é ser um preto gay no Brasil,

sendo alguns deles: Jorge Lafond, Madame Satã, Joãozinho da

Gomeia e muitos outros.

Em busca de maiores conhecimentos sobre esse preterimento

do afeto a homens pretos gays, assisti ao vídeo “Lidando

com as Feridas do Preterimento” na plataforma do You-

Tube do canal “Muro Pequeno” e encontrei um relato de um

usuário nos comentários que dizia:

“Nossa, que pauta necessária, quase não se ouve falar dessas

questões com tanta propriedade e profundidade. Eu sou

um homem negro, gay, másculo, periférico, entretanto todas

essas questões abordadas me atravessam. Sou considerado um

cara interessante, mas pelo visto só pelos meus poucos amigos.

Eles vivem a me indagar por que estou sozinho e eu não tenho

a menor ideia. Desde a adolescência que sempre quis namorar

sério, hj penso em casar, mas a impressão é de que quanto mais

penso, mais a realização se distancia. Talvez tenha perdido algumas

oportunidades justamente pelo fato da ideia de rejeição

me apavorar, pois, ela sempre me acompanhou desde o início

da adolescência ado ainda sonhava com as garotas bonitas do

12


bairro,em seguida me descobri gay e continuo a mesma saga.

Tipo, basta eu me interessar para não ser nem um pouco correspondido.

Confesso que rolam umas figurinhas pelas quais

tbm não tenho o menor interesse. Mas enfim, hoje acho que

administro melhor a questão da solidão, mesmo consciente de

que é foda. O que mais me aflige é a ideia de envelhecer nessa.

Muito obrigado por trazer questões tão importantes, que

muitas das vezes a gente pensa que só acontecem com a gente.

Que fomos o escolhido pra passar por aquilo e que estamos

sozinhos naquele rolê. Gratidão. Forte abraço.”

No continente africano, existe ao griô, ou “griote” na versão

feminina, o qual é um guardião da memória, de histórias

orais não escritas de uma comunidade ou um povo. Essa palavra

é destinada àquelas pessoas com a missão de transmitir ensinamentos

através das palavras, permeando culturas e gerações.

Com o intuito de furar a bolha e permear entre meios,

culturas e, se possível, gerações, escrevo este livro que possui

não somente diversas histórias e vivências, mas também ensinamentos

valiosos.

E, com o relato apresentado acima, mais do que qualquer

outro, esse é o tema principal deste livro: O Preterimento do

Afeto a Homens Pretos Gays e, que de alguma maneira, performem

feminilidade 1 .

1

Neste livro, o conceito de performances de feminilidade reflete

manias, trejeitos, maneiras de agir e de portar-se que em meio a

uma sociedade machista têm direta associação às ações realizadas

por pessoas que identificam-se como mulheres. Mas quando feitas

por pessoas que não se identificam com o gênero feminino, é motivo

de marginalização e preconceitos.

13


14


“Tantas dores que eu tentei esconder.

Queria tudo, me disseram: Isso não é pra você.

Julgamentos nos fizeram perder.

Livre demais pra quem não é conseguir entender”.

– Baco Exu do Blues, Autoestima.

15


Naldinho

13 de setembro, quarta-feira, Ronaldo manda um áudio preocupado

com a roupa que está vestindo para fazer nossa entrevista.

Ele achou que seria gravada com uma câmera: “Fui lerdo.

É (trabalho) preto, gay e afeminado… não estou assim.”,

envia uma foto. Está usando bermuda e uma camiseta regata

cinza, e o tranquilizo dizendo que pode usar o que preferir, e

que não terá câmeras, somente um gravador. Talvez, essa foi

uma das únicas vezes, se não a única, que Ronaldo se preocupou

em estar afeminado e não em não demonstra que é.

Nossa entrevista aconteceu no Parque Ibirapuera, já que

ele conhecia o lugar, em uma de suas folgas do mês. Encontro

com Ronaldo por volta das 16h30 no Portão 9, ele parecia

tímido, talvez inseguro. Vamos até uma área verde onde poderíamos

sentar e conversar com mais privacidade, chegando no

local enquanto nos arrumamos para sentar na grama, Ronaldo

me diz que já havia sido convidado para uma entrevista com

um tema parecido, mas rejeitou, pois não se sentia confortável.

Fico contente e agradeço por ter aceitado minha proposta

e que se sentiu pronto para ela. Afinal conversar sobre o afeto

e o desafeto vivido pode não ser algo fácil, e, com certeza, não

é o assunto que falamos com uma pessoa que conhecemos a

pouco. Com o roteiro em mãos, começo a entrevista e a conhecer

a história da primeira personagem deste livro.

16


Com licença, professora, quero ser

bonito também

Nascido na Bahia, Ronaldo viveu mil vidas em apenas 23

anos: veio para São Paulo, passou a morar sozinho, namorou,

casou, trabalhou, separou, e hoje busca se reerguer completamente

após essas intensas mudanças em sua vida.

Ronaldo nasceu em Itapicuru, em um local afastado da

zona urbana, onde cresceu aos cuidados de seus avós, já que

sua mãe passou a morar em São Paulo desde sua infância. Naldinho,

como prefere ser chamado, ajudava seu avô nas tarefas

da roça, brincava e ia à escola, como deveria ser. Sempre foi

bem cuidado e amado pelos avós, os aprendizados e convívio

era com eles. Mas sentia-se diferente das outras crianças. É

comum em alguma fase da vida sentirmos que estamos deslocados,

certo? Sendo uma criança preta criada por pessoas

pretas, reconhecia-se somente como criança, o que pode ser

assustador de acordo com as situações.

Em mais um dos seus dias na escola, participava de uma

dinâmica em sala com os colegas e a professora. “Cada um

deve dizer uma qualidade de cada amigo da sala”, ninguém

quis começar, então a professora prosseguiu: “Tudo bem, então

eu faço”. A sala era majoritariamente formada por meninas

e apenas dois meninos, Naldinho e um outro colega, ele

tinha cabelos lisos, loiros e olhos claros. Quando chegou a vez

desse colega, a professora fez questão de elogiar sua beleza e

de declarar que podia ter um futuro brilhante, caso decidisse

seguir o caminho correto, pelos estudos. Chegado o seu momento,

Naldinho ouviu que era um bom trabalhador, bom

no trabalho braçal e ajuda muito seu avô nas tarefas da roça.

17


Definitivamente, isso não era o que a criança de Naldinho

gostaria de ouvir, algo que comprova isso é que depois de no

mínimo uma década depois, ele ainda se lembra do ocorrido.

“Também queria ouvir que era bonito”.

Já é conhecido e comprovado a partir de estudos, uma

das vertentes essenciais para a formação de um indivíduo em

processo de desenvolvimento educacional é o afeto, principalmente,

na relação professor-aluno. Como apenas um menino

preto, ansioso por um reconhecimento, sente-se em relação

aos estudos, escola e a si mesmo depois de momentos como

esse? Talvez, Naldinho lembra-se exatamente do ocorrido e

das palavras ditas até hoje pode refletir o quanto as palavras da

professora pesaram para o seu menino.

“A relação estabelecida entre professores

e alunos, constitui o elemento fundamental

do processo de ensino aprendizagem. É

por meio dela que professores aprendem e

ensinam, levando em consideração a realidade

que ambos vivenciam, construindo

uma relação de afeto e confiança.”

– Tárcia Gabriela Holanda Nunes em A Relação

Professor(a)/Aluno(a) no Processo

de Ensino Aprendizagem, 2017.

§

Para uma pessoa preta, há momentos na infância, quando de

alguma forma há um maior despreparo, inocência e pureza,

que são inesquecivelmente dolorosos devido a todas as nuan-

18


ces e intensidades do racismo. Para uma pessoa preta e gay…

Bom, a combinação de marcadores sociais tão “potentes” vindos

da homofobia e racismo, ainda mais no Brasil: O país que

mais mata LGBTs no mundo e onde 81% da população concorda

totalmente ou em partes que o país é racista (segundo

a pesquisa “Percepções sobre o Racismo no Brasil”, realizada

pelo Instituto Peregum e Projeto SETA – Sistema de Educação

por uma Transformação Antirracista), têm o poder lapidar

a dor na sua mais pura forma e transformá-la em diversas sensações,

traumas e sentimentos. Uma delas é a culpa.

Quando criança, Naldinho via pessoas ao seu redor zombar

ou mal dizer pessoas “desviadas” e entendia que ser igual a

elas era, então, errado e motivo de vergonha. Ao mesmo tempo,

o menino sentia-se diferente dos demais, devia agir como

“homem”, mas adorava dançar. Por que não devia dançar? Ou

melhor, por que não devia dançar do jeito que gostava? Em

suas palavras, Naldinho dança “solto”.

“Isso também me prende hoje em dia”, disse

ele. “Por isso que às vezes eu fico muito bêbado

na balada. Por causa disso, me dá vergonha de

dançar assim…”

Com apenas 22 anos, a culpa já foi mais presente na

vida de Naldinho. Ela o consumia – às vezes, ainda consome.

Quando compreendeu que sentia-se atraído por outros garotos,

tanto a partir de uma compreensão interna quanto devido

a comentários maldosos externos, o então adolescente preto

passou a envolver-se romanticamente com outros garotos.

Sempre escondido, claro. No entanto, algo curioso acontecia

toda vez que beijava um garoto: ele chorava. Chorava e pedia

perdão para Deus por suas atitudes. Naldinho não se enten-

19


dia, não entendia o motivo de ser diferente, cada lágrima de

culpa e confusão descia rasgando e lembrando que ele era tudo

aquilo que achou ser errado.

Foto: Arquivo pessoal.

QVVJFA?

“... lá você é o viadinho e pronto. E aqui não,

você é só mais um.”

Com 17 anos, Naldinho saiu da sua cidade na Bahia e veio

para São Paulo. Morando com sua irmã – que o encorajou

a mudar –, somente aqui conseguiu completar seu processo

de autoaceitação de forma mais amena, longe de tudo que o

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sufocava. Completou o colegial, conheceu novas pessoas, fez

amizades, visitou sua mãe – que também mora na cidade –,

sentiu saudades dos seus avós e, principalmente, sentia-se mais

liberto. Sua vida mudou tanto que começou a namorar, ele

com 19 anos e o rapaz com 30.

Como Naldinho já conhecia o Parque Ibirapuera? Seu

primeiro namorado, aqui identificado com o nome fictício

“Jorge”, o levou lá. Já que estava em um relacionamento, Naldinho

decidiu contar para a mãe e a irmã sobre ele e apresentar

Jorge para os parentes de São Paulo, mas não para os avós.

Quando estavam no parque, uma criança e mãe passaram

próximo ao casal e perguntou:

— Mãe, por que eles estão abraçados?

— Porque eles se amam!

Naldinho, que sorri enquanto relata o acontecimento,

achou a conversa entre mãe e filho linda.

A princípio, quando pensamos em um relacionamento

no qual uma pessoa é bem mais velha do que a outra, sempre

parece – talvez pelos históricos abusivos – que há uma relação

de dominância abusiva por parte da pessoa mais velha. Mas,

com Jorge não era assim. O namoro, apesar de ter durado apenas

alguns meses, foi bom. Jorge era respeitoso e as lembranças

do relacionamento são boas. Na época, no entanto, Naldinho

não era assumido, por isso ia para a Zona Leste de São Paulo

para poder ficar junto de Jorge. E, enquanto fala sobre esse

namoro, Naldinho parece tranquilo, não muito ansioso como

em outros momentos de nossa conversa.

Depois de alguns meses, Jorge decidiu colocar um fim no

relacionamento, disse que tudo o que Naldinho estava passando

aos seus 19, ele já tinha passado, e estavam em momentos

21


diferentes na vida. O que realmente faz sentido, já que com 30

anos ele era mais maduro e resolvido em relação a sua orientação

sexual, tinha mais experiências e aprendizados sobre seu

corpo e relações. Um fim de namoro quase sempre é difícil,

mas foi gostoso, afetuoso e honesto relacionar-se com esse homem

mais velho e preto, desde o início até o final.

§

“Eu comprei um shortinho pequeno e o menino

começou a me xingar todos. Que aquilo ali era

coisa de viadinho … E eu fiquei, nós somos o

quê? Nós somos o quê, cara?”

Alguns meses depois, Naldinho estava em um grupo de WhatsApp

com muitos integrantes, em conversas com os usuários,

um deles despertou o seu interesse, e aparentemente, o interesse

foi correspondido. Uma conversa em grupo virou uma

conversa privada, a conversa à distância virou um encontro e o

encontro virou um casamento. No fim do dia, Thiago (nome

fictício dado ao ex de Naldinho) voltou para casa com ele, que

na época, depois de morar na cidade com a irmã e a tia, já

morava sozinho.

— Uma coisa muito louca que os gays fazem. Eu fui conhecer

ele numa noite, a gente só ia curtir, se conhecer. E aí,

nos gostamos e eu vim pra casa com ele. Eu devia ter percebido

daí também, porque ele já veio junto. Não foi que eu falei:

“vamos casar”, ele veio junto, sabe? E já ficou e pronto.

Ao dizer “casamento”, Naldinho se refere a morar junto

com o Thiago, nada foi assinado para a união. Então, aquele

22


encontro para “conhecer” e “curtir” virou um casamento de 3

anos, 3 anos inconstantes, entre idas e vindas. Até esse casamento,

Naldinho nunca tinha se assumido para os avós, com

vergonha e sem coragem de fazer isso pessoalmente ou através

de uma ligação, ele gravou um vídeo e mandou para eles:

— Meu avô viu o vídeo e saiu chorando correndo, não

viu o vídeo todo. Minha avó viu, mandou mensagem e falou

que continuava sendo a mesma coisa, que não tinha nada a

ver, mas meu avô não quis nem saber. [...] depois eu tentei

conversar com ele de novo, ele falou que não precisava falar

disso. Mas eu fui para lá (Bahia) de férias esses tempos e foi

tranquilo, foi de boa, os dois.

Thiago tinha “problemas” para se relacionar com outras

pessoas, até mesmo com a família, que tinha uma condição

financeira melhor e era ainda o sustentava totalmente. Como

todo relacionamento abusivo, o início foi maravilhoso, embora

algumas atitudes denunciassem um futuro triste inerente.

Ainda no começo, por exemplo, depois de terem se relacionado

sexualmente e sem preservativos, Thiago contou que era

soropositivo, e questionou:

— Você vai me largar igual todo mundo faz?

— Não, nada a ver. Disse Naldinho.

Thiago fazia o tratamento do HIV no SUS, portanto

estava, até o momento, indetectável e não podia transmitir

a doença.

Após meses de casamento, as atitudes de ciúmes dele passaram

a ficar cada vez mais evidentes. Quando Naldinho não

chegava no horário “combinado” pós trabalho, ele ficava na

porta o esperando para ver se ele estava acompanhado ou o

confrontar sobre possíveis traições. Naldinho tinha medo dele

23


e de suas atitudes, principalmente no começo do namoro. Mas

a mesma medida que entre os dois, Thiago era agressivo também

era carinhoso e até compreensivo.

— No começo eu tinha medo dele. Eu tinha muito

medo dele.

— A gente sempre discutia. E ele ficava, queria quebrar

tudo. Ele tinha ansiedade depois dessas coisas também. Agressivo.

E a mãe dele dizia que era só não enfrentar: “É só não

enfrentar, deixa ele falar”. Eu deixava.

Em certo momento passou a usar de pronomes “femininos”

para se referir a Naldinho. O uso de pronomes femininos

para se referir a pessoas e amigos no meio gay é comum, não é

um problema entre eles, a não ser que tenho o objetivo de ser

pejorativo, para ofender. Naldinho também não liga de usarem

o pronome feminino com ele, a não ser que seja alguém

que não conheça ou com quem não tenha intimidade.

O problema é que as atitudes de Thiago eram voláteis e

o afeto limitado. Em público, o afeto era negado, não dava a

mão, não abraçava e beijava, mesmo com anos de casamento.

Quando iam sair, Naldinho que gosta de usar shorts curto,

roupas mais coloridas e outras peças que tendem a ser distinguidas

como “femininas” ou que poderiam chamar a atenção

de outros homens eram barradas ou criticadas por Thiago.

— Lembro também de um episódio que eu comprei

shortinhos pequenos, e o menino começou a me xingar todos,

que ali era coisa de viadinho, que não sei o quê. E eu fiquei,

nós somos o quê? Nós somos o quê, cara? E só que depois ele

começou a usar também, explicou a parte dele, que ele já tinha

sofrido também por causa disso.

Thiago passou a ter falas e atitudes mais agressivas, mas

disse que nunca bateria em Naldinho. Além disso, parou de

24


ser sustentado pelos pais e o único que trabalhava era Naldinho.

Dentro de 3 anos de convivência, Thiago teve um emprego

que durou apenas alguns meses devido a uma confusão

que causou.

Com ciúmes excessivos e atitudes desagradáveis, Thiago

não era quisto nos meios de convivência de Naldinho, seus

amigos não gostavam dele, nem sua mãe e irmã. Naldinho teve

que parar de visitar a casa da irmã, porque Thiago era inseguro

em relação ao marido dela, sua mãe alertava que o namorado

parecia tratar Naldinho como se ele fosse inferior, menos que

ele. Havia uma clara hierarquia no relacionamento. Mesmo

depois do fim do relacionamento, Naldinho acredita que algumas

das atitudes erradas de Thiago são justificáveis, pois ele

já tinha “passado por muita coisa, sofrido”.

— Você acha que essas atitudes dele se deviam pelo seu

jeito de ser? Ou você acha que também a sua cor de pele influencia

nisso? Você falou que ele era um homem branco, né?

— Olha, na cor de pele ele fala que gosta mais de gente

pretinha, sabe? O que mais atrai ele… Porém, eu não sei. Eu

não confio mais muito em branco. Então, talvez fosse também,

viu? Aí ele falava que gosta mais de negros. – E com

essa fala, Naldinho começou a relatar outros assuntos que se

lembrou. Deixou esse inacabado, mas muitas vezes o silêncio

ou o simples fato de trocar de assunto diz muito.

O que Naldinho não contava é que já próximo ao fim do

relacionamento, Thiago decidiu parar o tratamento do HIV,

ou seja, passou a transmitir novamente, mas não contou a sua

decisão para Naldinho. Um tempo depois de terminarem,

Naldinho começou a sentir-se mal e foi conversar com uma

amiga e ela lhe disse: Esse cara que tá querendo passar as coisas,

você não tá percebendo?

25


“Eu me senti muito estranho, estava muito inchado. O

povo falando que eu estava gordo. E eu fiquei muito inchado,

as pernas doendo, fiquei muito fraco. E aí eu fui no médico e

insisti em fazer o exame, quase que eles não queriam. E deu

que eu estava com HIV. Nessa que deu que eu estava com

HIV, ele já estava casado com outro, questão de semanas. E aí

eu fiquei na dúvida se contava ou não (para Thiago), conversei

com a psicóloga e ela falou que era uma escolha minha. [...]

Eu contei e ele (Thiago) não deu importância. Ele falou que

já tínhamos separado, que eu estava mentindo pra ele. E que

não sabia com quem eu tinha ficado quando eu estava casado

com ele ou já separado.”

Em algum momento da nossa entrevista perguntei:

— E no seu casamento, você acha que teve verdadeiramente

amor?

— Até hoje eu me pergunto isso, viu?

De volta à liberdade

Hoje, Naldinho continua trabalhador e faz seu tratamento

corretamente pelo SUS e ser soropositivo não afeta em nada a

sua vida, já que não pode transmitir e está indetectável. Além

disso, voltou a frequentar a casa da irmã, jogar futebol e a sair

com alguns amigos, mesmo que não com muita frequência.

E busca reencontrar parte do que perdeu no seu último relacionamento.

O afeto é indispensável, mas se possível acompanhado

sempre de uma pessoa que o respeite.

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Tenha acesso a mais informações do Ministério da Saúde

e a serviços do SUS para IST’s em: https://www.gov.br/aids/

pt-br

Nome: Ronaldo/ “Naldinho”

Idade: 23 anos

Músicas: Big D!!! - Duquesa,

A Música Mais Triste do Ano

- Luis Lins e Tempo Perdido -

Legião Urbana

O que gosta de fazer: Jogar

futebol e ir para a balada

27


28


A dùn íse bi ohun tí Òlodumarè l’owo sí. A sòrò íse bi

ohun tí Òlodumarè kò l’owo sí

(Fácil de fazer como aquilo que recebe a aprovação do

criador; difícil como aquilo que o criador não aprova)

– Provérbio Yorubá.

29


André

Reencontro

André não guarda datas que podem doer e por isso é difícil dizer

com certeza quando determinadas perdas aconteceram. É

uma maneira de proteger seus sentimentos, mas não é a única.

Quando chego para a nossa entrevista na sede da EternamenteSOU

1 , André me recebe com um sorriso e logo me

1

EternamenteSOU é uma associação sem fins lucrativos que deu

início às suas atividades em 2017, com o objetivo de atuar em prol

das pessoas 50+ que fazem parte da comunidade LGBTQIAPN+.

Por meio da implantação de serviços sociais e projetos voltados ao

atendimento psicossocial visando um respaldo contra o preconceito,

a intolerância e a invisibilidade sofrida por essas pessoas, a EternamenteSOU

desenvolve um trabalho integrado e multidisciplinar

com pessoas e profissionais voluntários. Proporcionando uma velhice

digna e ativa, além de garantir direitos humanos e promover a

cidadania dos cidadãos beneficiados, os projetos promovem a integração

social, atendimento psicológico e jurídico, oficina de canto,

sensibilizações em empresas e eventos que favoreçam a construção

de políticas públicas e consciência social sobre a causa das velhices

LGBTQIAPN+.

Saiba mais sobre a EternamenteSOU e seus serviços em: eternamentesou.org

30


apresenta ao seu amigo Átila, que acabara de ser roubado por

oito pessoas no centro da cidade, e a outros dois homens que

estavam em uma sala finalizando trabalhos de orçamento.

“Você pode esperar um pouquinho? Vou sacar um dinheiro

com o Átila para ele poder comprar um novo celular,

ele depende de um para trabalhar…”

Após alguns minutos aguardando no local, André está

de volta e vem direto a mim para conversarmos. Entramos

na segunda e única sala disponível no local para uma maior

privacidade, e, como já havia conhecido André, comecei de

uma maneira diferente: “Faz tempo que não nos vemos! Tem

novidades desde o nosso último encontro?”

Foto: Sede EternamenteSou localizada no centro da cidade de São Paulo

– Maria Souza.

§

[10 de maio de 2023]

“Me fala sobre você”, foi assim que comecei nossa pri-

31


meira conversa quatro meses antes, queria conhecê-lo melhor,

e realmente conheci.

Paulo André foi a primeira pessoa que encontrei pessoalmente

para esse projeto. Em uma quarta-feira, no horário

de almoço, no centro da cidade também, mas dessa vez no

FOAESP – Fórum das ONG/AIDS do Estado de São Paulo

–, onde trabalha na área administrativa. Estava nervosa, pois

esse primeiro encontro significava que meu projeto estava finalmente

tornando-se realidade e claro não sabia o que esperar

dessa conversa. Não foi gravado, mas foi a primeira vez que o

ouvi falar sobre a sua vida. E a primeira vez em muito tempo

que André era ouvido.

§

De volta ao dia 25 de setembro, André começou a contar sobre

o Samba da Vela 2 , uma roda de samba com um funcionamento

diferente: O samba se inicia com uma vela sendo acesa

e só acaba quando o pavio acabar. Com 23 anos de existência,

o Samba da Vela homenageou o pai e a “mãe nº2” de André –

como é chamada pelo próprio –, conhecida no meio musical

como “Vó Suzana”, com isso ele e a sua família, por parte de

pai, estavam frequentando com maior frequência a comunidade

do samba.

2

O Samba da Vela é uma roda de samba criada no ano 2000 na

cidade de São Paulo, com a missão de dar voz ao compositor desconhecido

na grande mídia, e até os dias de hoje é um dos movimentos

culturais mais importantes do país. Beth Carvalho declarou-se

madrinha do Samba da Vela e com a sua importância na música

brasileira popularizou a roda de samba paulistana.

32


Foto: Marcelo Pereira, para EL PAÍS.

Depois de muito tempo sem visitar a quadra, quando

foi para a homenagem do pai, André foi confundido com o

genitor diversas vezes, e o momento do tributo foi mais difícil

do que o esperado. Nervosismo, emoção e lágrimas tomaram

conta dele, as palavras saíram trêmulas, mas todo o sentimento

foi sincero. Paulão era um bom pai, mas não era um homem

carinhoso com nenhum dos filhos, cuidava, sim, mas

demonstrar afeto? Não era o seu forte.

33


O cuidado é uma forma de demonstrar

amor… mas não é a única

“Meu pai mesmo eu não lembro de ter abraçado

nem de uma vez”

Paulo morava com a esposa Suzana e com os filhos do casal, e

ficava com André – que tem o mesmo nome do pai, Paulo André,

mas costuma ser chamado somente pelo segundo nome

– e a irmã quando a mãe deles, sua ex-esposa, não podia. Não

se importava em cuidar das crianças. O tempo de estadia deles

na casa do pai variava de acordo com a necessidade da mãe,

podia durar alguns dias, semanas, meses, anos... Paulo e Ivone

– nome fictício para a mãe de André – divorciaram-se quando

André tinha apenas um ano e a decisão partiu dela (como André

fez questão de evidenciar em nossa conversa).

Paulo cuidava e às vezes saía com as crianças e não as

tratava com diferença, o que um fazia, todos faziam. André

nunca sentiu alternância no tratamento ou cuidado com os

irmãos. Inclusive, se dava e, ainda dá, bem com cada um deles,

os ama verdadeiramente; o amor fraterno apesar de todas as

diferenças. As crianças cresceram juntas e embora não convivam

com frequência como na infância, falam-se diariamente,

como relatou André.

34


Foto: Arquivo pessoal.

O motivo para que precisasse ficar aos cuidados do pai

é que a mãe trabalhava muito e não podia ficar com André

e a irmã, e as crianças não podiam ficar sozinhas. Ivone era

doméstica, começava muito cedo e terminava muito tarde, de

manhã os patrões queriam o café passado e a mesa posta; de

noite tudo deveria estar limpo novamente, os filhos na cama e

as tarefas devidamente adiantadas para o dia seguinte, por isso,

Ivone dormia frequentemente na casa dos patrões. Frequentar

sua própria casa com essa rotina era praticamente impossível,

principalmente, no momento em que seus filhos estivessem

acordados, então a solução era deixar com o pai.

Hoje, como um homem adulto e analisando o passado,

André percebe e admite com maior clareza o jeito e “temperamento”

do pai. O amor era demonstrado através do cuidado,

nem sempre o “cuidado” está acompanhado do amor. Mas no

amor, sempre há cuidado. André consegue distinguir alguns

de seus sentimos e anseios, que quando era apenas um menino

não compreendia, sente falta do afeto do pai no seu conceito

mais cru: De um beijo na testa, um carinho ou abraço, e não

só faz falta para o homem que é hoje, mas também para aquela

criança que convivia sazonalmente com o pai.

35


— … Sim, tem o carinho de tratar bem, de trazer alimento,

de dar conforto na casa, mas eu até pensei em escrever

algumas coisas sobre abraços. Alguns abraços eu não lembro,

entendeu? […] Era meio frio nessa parte, assim. [...] Até com

meus irmãos mesmo, a gente não se abraça muito, dá um “oi”,

mas você não vê aquele abraço mais afetuoso, como tem com

os amigos que a gente se abraça todo dia, beija no rosto todo

dia, isso não tem na minha família.

— E você sente falta?

— Sinto, sinto, até de comentar, porque é estranho, estranho,

eu acho estranho. Meu pai mesmo eu não lembro de

ter abraçado nem de uma vez, não lembro. A minha mãe, sim.

Lembro de abraçar, porque tinha mais contato com a minha

mãe, mas com o meu pai eu não lembro de ter abraçado ele

nem de uma vez.

O porquê dessa “frieza” de Paulão, André não sabe, mas

ele mantinha seu jeitão com todos. O pai, se lembrou André,

em alguns momento foi também uma das pessoas que teceu

alguns comentários sobre o seu modo de ser, e de como ele devia

agir de forma mais masculina. Pensando na infância, André

disse que houveram poucas vezes que seu pai agia de maneira

negativa ou negava determinadas coisas, mas, às vezes,

o pequeno menino André queria essa demonstração, mesmo

que não soubesse como conseguir. André se recorda com um

pouco de resistência, e talvez um incômodo, um episódio que

serve como exemplo: Enquanto estava em um parque com sua

Tia Wanda, brincando com suas primas, o seu tio e pai das

crianças chegou até o local e todos foram até um bebedouro.

A cena assistida fez com que André pedisse para que o seu pai

o levasse ao parque, a resposta negativa entristeceu o menino,

pois o seu pedido foi feito em uma segunda-feira, folga de

36


Paulão. E tudo o que o garoto queria era que o pai apoiasse a

mão embaixo do bebedouro e desse, com a mão, a água em

sua boca para que ele bebesse.

— [...] eu fiquei um bom tempo magoado com isso, porque

eu queria ter essa cena do meu pai no bebedouro com a

mão e eu beber água. E eu não tive essa oportunidade, coisa

que é tipo um trauma, mas superei.

A frustração com a negativa e alguns comentários do pai

passou e o amor por ele permaneceu. Paulão, apesar de não ser

um homem afetuoso com seus filhos, era cuidadoso e mesmo

com alguns erros em toda a sua caminhada, sempre que precisavam

Paulão estava lá. Ensinava, educava, passeava. Cuidar,

era com ele. E a sua partida em consequência ao seu grave

quadro de infecção do vírus do Novo Coronavírus, deixou um

vazio e imensas saudades.

Declamação feita por André para seu pai no dia de seu

tributo no Samba da Vela:

Meu pai Paulão presença marcante

Presente, Zé Mane

No Samba da Vela és brilho constante

Caderno 23 anos do Samba Da Vela cultura e da identidade

do samba

À música, roda do samba a nossa nação Samba da Vela

No caderno 23, teu nome ecoa

Em cada acorde de cada canção cantada tua alma entoa

Compositor da vida Mestre do verso: Seu Zé Mane

No Samba da Vela és o seu universo.

Hoje nesta roda de família amigos compositores almas

37


da Ancestralidade da cultura e da identidade do samba

Com coração aberto

Homenageamos-te Seu Paulão

É o nosso certo trazem à vida tamanha reverência

Teu amor pelo samba

Em nossas vidas deixa a chama da vida

Tua voz, teu ritmo, tua poesia,

Em nosso coração, eterna sinfonia.

No calor da vela, na roda que gira,

Meu pai Paulão o Senhor Zé Mane

És eternidade no Samba da Vela

Tuas verdades compondo sonhos

Noite após noite

Segunda após segunda

Tua luz no samba brilha tão forte

Hoje e sempre, nossa saudade e homenagem

Sua vivência no Samba da Vela, é a nossa viagem

Na melodia eterna do samba, tu permaneces em nossos

corações, a saudade floresce

Seu Paulão Seu Zé Mané

– Paulo André Seixas.

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Amor de Mãe

“Quando e verde encontra o rosa

Toda preta é rainha”

– As Áfricas que a Bahia canta, Margareth Menezes.

A relação de mãe e filho entre André e Ivone é algo forte na

memória. A mãe foi a base para que André conhecesse e entendesse

sobre o amor, a segurança e a determinação, principalmente

a determinação de uma mãe preta em busca de um

futuro melhor não só para ela, mas para os seus filhos. E foi o

que Ivone fez: com coragem e uma imensa vontade, conseguiu

conquistar um lugar próprio e garantir em um futuro não tão

distante a residência na qual seus filhos moram atualmente.

Tal feito foi alcançado quando as crianças já eram um pouco

maiores. A vitória foi grande, mas não a única da mulher que

tanto inspirou e inspira André.

— Você sempre entendeu que ela tinha que estar fora de

casa para levar sustento ou era uma coisa que, às vezes, você

ficava com “raiva”? [...]

— Não, eu acho que até hoje eu sou bem compreensivo

nessa parte, porque sempre ela vinha, às vezes, de madrugada,

via a gente, ia embora de madrugada, entendeu?... Tinha isso

(tristeza/mágoa devido a ausência da mãe), mas era uma coisa

muito rápida, porque se você sair do trabalho… O seu patrão

quer o café às seis horas da manhã para ele ir trabalhar, então

ela vinha, mas não tão constante.

“[...] ela foi o máximo que ela pôde nessa época, antes de

ter o terreno, antes de ela construir a primeira casa.”

39


Mesmo ausente, Ivone conseguia fazer-se entender como

gostaria que seus filhos agissem, qual educação passava e deveria

transparecer, e esse fato parece evidente para André. Ivone

gostava que todas as roupas de cama fossem brancas, e essa é

uma das características que marcam as lembranças de André.

Saudoso e com brilho nos olhos, André relembra um hábito

que revisita sua mente: de quando a sua mãe os chamavam

para a cama e contava uma história para eles. Aquele momento,

com os lençóis branquinhos e esticados que pareciam nuvens

fofas, era onde sentia-se seguro.

— Eu era pequenininho, eu achava que estava deitado

dentro de uma nuvem. E aí, ela abria um livro e lia para a

gente, até a gente dormir. Acho que a coisa (lembrança) da

minha infância mais forte é essa. E ela lia, e aí a gente dormia,

e aí quando acordava ela já não estava, alguém ia chegar para

cuidar da gente.

“Então, essa é a lembrança mais forte, sim. Dela lendo

para a gente na cama. Sim, acho que é a mais forte!”

— Você acha que isso, esse fato da sua mãe ler para vocês

antes dela ir trabalhar, tem alguma importância para o André,

para a formação do André hoje?

— Eu acho que na parte do afeto, assim, do carinho, entendeu?

Da atenção que ela dá, né? Do conforto que você tem

ali de estar numa cama branquinha, tudo branquinho, coxa

branca, lençol branco dobradinho, embaixo a coxa e depois

vem a coberta, assim. Tudo branquinho, o travesseiro, tudo

branquinho, e ali, acho, que era o lugar mais seguro, mais

confortável que eu tinha com a minha mãe.

Ivone sempre respeitou o filho em seus momentos, nunca

o forçou a agir de um modo ou outro ou a ser algo que

não se identificava. André se lembra que a mãe foi a única

40


que nunca comentou, criticou ou zombou dele quando agia

de maneiras adotadas e entendidas pela sociedade como algo

exclusivamente feminino. Ela jamais fez ou faria isso, além de

não fazer parte do feitio da mulher, o amor e o acolhimento da

mãe eram tão grandes que, contrariando as atitudes de várias

outras pessoas da própria família de André ou da família dos

seus amigos, Ivone nunca precisou que André a falasse nada, o

silêncio para ela já era uma resposta.

Foto: Arquivo pessoal.

Não mais criança, André passou a conviver com diferentes

pessoas e a cativar seu próprio ciclo de amizade, a qual ele

carinhosamente chama de “família”, com isso conheceu histórias

nada agradáveis sobre aparentemente era o processo de se

assumir para os familiares e passou a ter medo que qualquer

pessoa fora do seu meio de amizade soubesse sobre sua orientação

sexual. Tinha medo de ser agredido, ser expulso de casa

mesmo a mãe nunca tendo adotado uma relação agressiva com

os filhos, mas não queria pagar para ver. As histórias inacreditáveis

dos amigos já eram o suficiente para que ele passasse a

viver um estilo de vida: familiares são familiares, amigos são

amigos. Nunca misturar os dois. Em toda a sua vida, a família

conheceu somente Átila (citado no início do capítulo), porque

41


sua sobrinha queria cortar o cabelo e Átila é cabeleireiro.

Claro, sua decisão de “dividir a vida em dois” não foi tomada

somente pelo receio de ser “descoberto” como gay, mas

como proteção de si e dos seus. Proteger de qualquer atitude

desconfortável movida pela maldade, e não se arrepende de ter

tomado essa decisão, que inclusive vive até os dias de hoje. A

preferência em ir à casa dos amigos e conhecer seus seus ciclos

e familiares sempre foi evidente e aceita por ele, a segurança

de ambientes sem conflitos e mal-estar gerados pelo preconceito

é algo que André preza. Quando ouvia comentários desagradáveis

sobre si ou pautas com as quais se identificava em

reuniões com membros da família, simplesmente não ligava.

Não existe arrependimento, inclusive, André e seus amigos só

frequentam e vão a lugares onde sintam-se verdadeiramente

confortáveis para serem quem realmente são.

— Você sentiu falta? Se arrepende de não ter levado eles

para se conhecerem, para se entrosar?

— Não, porque eu acho que a minha família… a gente

faz a família. Eu tenho a família de sangue e tenho “A” família

que são meus amigos. Todos os meus amigos, acho que no

mínimo, têm de 15 a 20 anos de amizade. Então, são amizades

que eu tenho desde de infância. E esse que você viu aqui,

o Átila, a gente era desde escola. Então, eu prefiro deixar os

meus amigos mais seguros e a gente não passar nenhum aborrecimento

ou tristeza com alguém de fora. Nem que se esse

“alguém de fora” seja da minha família.

Mesmo com a decisão de afastar parte da sua vida da “família”,

André nunca fez o mesmo com a mãe. Dona Ivone

perguntou a André duas vezes, nas palavras de André, “o que

ele era”, nas duas vezes a resposta foi a mesma: o silêncio. Depois

da segunda pergunta, Ivone disse “eu entendi”. A partir

42


daquele momento, nunca mais a mãe pediu netos, nunca mais

perguntou quando conheceria a “namorada” de André.

— Não precisei falar para ela. Ela foi respeitosa e a gente

falava sobre tudo, mas não falava da minha intimidade. Falava

de amigos, mas não falava de namorada ou namorado. Ela

nunca mais falou. Então, ela foi super respeitosa.

Anos depois, Dona Ivone contou para André de um cisto

no intestino que tinha, mas já o tinha descoberto há treze

anos. E, o que era um grão de arroz cresceu e virou um mioma

de onze quilos. Esse quadro evoluiu para um câncer. Receber

a notícia de um câncer não é fácil, seja para o paciente ou para

aqueles que o acompanharão durante o tratamento. O tratamento

de Ivone durou um ano e meio, a primeira cirurgia foi

um sucesso, assim como o pós-operatório. Em certo momento

do tratamento, Ivone negou receber transfusão de sangue. O

motivo? Violava as Leis de Deus. André lembra que a mãe frequentou

diversas religiões em toda a vida, mas a da época em

questão não concorda com o ato de introduzir sangue no corpo

pela boca ou pelas veias, pois, de acordo com os preceitos

da religião, o procedimento contraria o que está previsto nas

passagens bíblicas. De acordo com Atos 24:15, por exemplo,

“Deus não se esquece dos que lhe são fiéis, e lhes restituirá a

vida por meio da ressurreição.”

Após algum tempo de negativa, Ivone aceitou realizar o

procedimento. A segunda cirurgia, que aconteceu em um hospital

público de Itabuna da Serra, onde morava, foi também

um sucesso, o que não se pode dizer sobre o pós-operatório.

Infelizmente, infecções e a falta de remédios fizeram com que

Dona Ivone não resistisse, faleceu. André não sabe a data da

morte da mãe, até mesmo seu relato sobre todo o tratamento

do câncer e cirurgias foi recheado de incertezas na linha do

43


tempo e de alguns procedimentos. Afinal, assim como tomou

medidas para sua proteção contra o preconceito, também adotou

medidas drásticas contra a dor da perda.

Dona Ivone foi mãe, trabalhadora, determinada, foi conforto

e segurança. Uma mulher que inspira André todos os

dias, e que o fez conhecer o afeto de perto.

Foto: Arquivo pessoal.

44


Prole de Condessa Mônica (part.1)

“Negro sem emprego, fica sem sossego”

– Dona Ivone Lara.

Foto: Palco da NostroMundo com a presença de drags queens e travestis

– Reprodução gay.blog.br

André não acha correto a ideia de uma pessoa LGBT-

QIAPN+ precisar se assumir, já que nunca foi preciso uma

pessoa hétero anunciar sua orientação sexual para a família, os

amigos ou quem seja. Mas devido a cultura preconceituosa e

heteronormativa 3 que há no Brasil e no mundo, é necessário

3

A heteronormatividade, desde uma perspectiva que enfatiza o caráter

produtivo da linguagem, é problematizada como um padrão

de sexualidade que regula o modo como a sociedade ocidental está

45


a autoaceitação, o “entender-se” como uma pessoa LGBT e

quais são seus gostos, vontades, mas tudo isso é uma construção,

um processo evolutivo que desenvolve-se durante a vida.

André, mesmo com receio das atitudes de terceiros, não teve

problemas em reconhecer-se como um homem gay. E, por respeitar

suas vontades, entre os seus 14 e 16 anos, André passou

a sair com os seus amigos, conhecer novos lugares, formas de

divertimento e, o melhor, sem ser julgado pelo seu jeito de

ser. Assim conheceu a vida noturna da cidade de São Paulo. E

mais tarde, passou a trabalhar em boates, na área administrativa

e gostava do que fazia.

André não se importava em trabalhar durante a noite, até

gostava. E por mais que fosse responsável pela administração

e gerência dos locais, trabalhar “na noite” – como diz André

– era mais livre, a convivência com pessoas diversas era boa

e não ficava refém da monotonia de um escritório fechado.

Anos antes do fechamento da pioneira casa noturna Nostro-

Mondo, André foi gerente da casa.

A revolta de Stonewall Inn em 69 e o simbolismo que

o bar possuía (e ainda possui) para a comunidade LGBT foi

a grande inspiração para que a Condessa Mônica – que na

época atuava na área da advocacia – investisse na criação e

inauguração do bar Top Room”. Localizado na Rua Consolação

número 2554, o bar foi estreado nas ruas de São Paulo

em abril de 1971, uma das épocas consideradas o ápice da ditadura

militar no Brasil, desde o golpe de 64. Com o governo

organizada. Apesar da força dessa regulação há indivíduos que escapam

à norma heterossexual. (PETRY, RODOLPHO ANALÍDIA;

MEYER, ELISABETH ESTERMANN DAGMAR. Transexualidade

e heteronormatividade: algumas questões para a pesquisa).

46


militar no poder, o termo “boate” não pôde ser adicionado ao

registro do empreendimento, já que era considerado sinônimo

de degeneração moral. A princípio, o Top Room funcionava

somente aos sábados e teve sucesso imediato na região, por

isso já em junho o empreendimento passou a funcionar em

dias úteis e aos finais de semana com a expressa autorização

do Juiz da Comarca de Cerqueira César, amigo da Condessa,

mais tarde, inclusive o nome alterou-se para “NostroMondo”

em homenagem ao juiz que era descendente de italianos.

Mesmo registrado como apenas um bar, NostroMondo

atraiu rapidamente pessoas que não se adequavam à sociedade e

suas normas na época, mais tarde denominados como LGBT’s.

A primeira boate LGBT do Brasil conduzida pela Condessa,

que nessa época já abandonara a advocacia, foi frequentada

não só pela cena da diversidade, mas também por famosos.

Dois anos antes da NostroMondo fechar as portas em

2014, André atuou como gerente da casa noturna e, com o

iminente fechamento da boate, foi demitido em 26 de janeiro

de 2013. No dia seguinte, no entanto, aconteceu o incêndio

da Boate Kiss, que além de ter sido uma tragédia que

matou 242 pessoas, colocou em cheque as administrações e

fiscalizações de outras casas noturnas. Embora, de acordo com

diversas evidências, inúmeras boates continuam – e ainda

continuam – atuando de maneira ilegal, André relatou que

após esse acontecimento, a dificuldade para ele encontrar um

emprego em boates, como estava acostumado, aumentou. Na

época, encontrar qualquer emprego de carteira assinada foi

uma constante luta.

Em resumo, André ficou dez anos desempregado. Conseguia

alguns bicos ou empregos temporários, mas um trabalho

de fato, no qual pudesse ter qualquer segurança financeira…

47


— Eu só trabalhava nessa área, tinha mais ou menos 20

anos que eu trabalhava nessa área.[...] Foi muito difícil, era subemprego,

era bico, muito bico. E eu era velho já, tinha mais

de 40. E aí, fiquei mais ou menos dez anos nesses subempregos,

bico aqui, bico ali…

Ouvir aquilo me machucou

Levantei a voz e senti a malícia

"A exceção só serve para confirmar a regra. E que regras são essas,

sociais e raciais, dentro da sociedade brasileira que, para alguns

vencerem determinadas barreiras, é muito fácil? Aliás, alguns

nem barreiras têm. A própria oportunidade da leitura, escrita,

da aquisição de produtos culturais já é uma aquisição dada.”

– Conceição Evaristo.

Quando uma criança vive em um círculo racial seguro, seja ele

constituído por poucas pessoas ou miscigenado, é um choque

quando cria-se contato com pessoas que não fazem parte desse

“pacto” de segurança. Como uma pessoa preta entende qual é

sua cor de pele e, devido a uma cultura racista, as dificuldades

e potência que há de ter em cada etapa da sua vida? E, principalmente,

quando uma pessoa preta passa a entender que o

racismo é um problema das pessoas brancas?

Certamente, a primeira pergunta, por mais que as possíveis

respostas sejam duras e complexas, é, por vezes, mais fácil

de ser abordada, compreendida e respondida. Já a segunda, ve-

48


remos com os relatos presentes neste livro, que muitas de nós,

pessoas pretas, ainda não absorvemos e agimos de acordo com

essa ideia – a ideia que, na verdade, o racismo é um problema

criado e alimentado por pessoas brancas –, não por incapacidade,

mas por opressão psicológica, emocional e emotiva.

Como diria a Neusa Santos Souza:

“Saber-se negra é viver a experiência de ter sido

massacrada em sua identidade, confundida em

suas expectativas, submetida a exigências, compelida

a expectativas alienadas.”

André percebeu-se preto a partir do preconceito e dos

muitos e repetitivos “nãos” que recebeu na vida, disse. Quando

criança não compreendia o motivo de tantas negativas

em relação a sua pessoa, o que ele fez de errado dessa vez?

A resposta é simples: nada. Como um menino preto, até determinada

parte da vida, protegido de experienciar violências

raciais, compreende que, para terceiros, a cor da sua pele é

sinônimo de problema?

— Eu nem sei explicar essa parte, não. Porque a gente já

está tão acostumado aos nãos, a parte negativa das coisas, que

pra gente já é normal, já é rotina. [...] sempre quando eu procurava

emprego, as pessoas falavam: “eu não estou precisando

de segurança”. E eu nunca trabalhei de segurança de casa noturna.

[...] Só porque eu sou negro, eu não posso ser o gerente

da casa noturna? Não posso ser gerente administrativo?

Hoje, em momentos que acha possível lutar por seus

direitos como uma pessoa preta, André o faz. Se necessário,

eleva o tom de voz para que todos o ouçam e gesticula exageradamente,

mesmo que as pessoas o vejam como “agressivo”

por impor-se em um caso de preconceito racial. Mas, não são

49


todos os momentos que passa por situações desagradáveis que

pode e consegue fazer isso, André, assim como outras pessoas

pretas que quando momentaneamente posicionam-se ao sofrer

racismo, avalia se pode, de alguma maneira, estar em desvantagem.

Caso esteja, prefere não se arriscar.

— Já sofri racismo, já briguei na rua por causa disso. Ninguém

pra me defender. Mas na maioria das vezes a gente deixa

disso. Porque se aquela pessoa tiver dinheiro, tiver condições

financeiras de ter um advogado de renome, eu, que moro na

periferia, não tenho condições de pegar um advogado. Se for

um advogado público, de repente, eu vou pegar uma pessoa

que está começando, que não vai me defender. Tem ONGs

que têm advogado pra isso. Hoje em dia, sim, eu sei onde

chegar pra conseguir meus direitos. Mas quando eu era novo,

não tinha a informação de onde buscar. Então a gente dava

uns dois passos atrás. A gente não sabia o que podia acontecer.

Hoje em dia, sim. Trabalho em ONG, aí você sabe que tem a

ligação entre as ONGs, trabalha com direitos humanos. Então

a gente tem uma facilidade maior. Hoje eu tenho. Hoje. Mas

antigamente eu não conhecia ONG. Eu não sabia o que era

direitos humanos. Não entendia que eu podia ter um advogado

de graça pra me defender. Hoje em dia eu sei que tem

muitas ONGs que fazem esse trabalho, ganham pra fazer esse

trabalho pra pessoas que não tem condições de lutar pelos seus

direitos pagando por um advogado.

50


Há + de 50 anos

“Então vira rotina. Eu não gostaria que fosse

rotina. Que essa rotina eu sei que não vai mudar

tão cedo…”

Foto: Arquivo pessoal.

Sendo um homem de 53 anos, André possui vivências acumuladas

como um homem preto e gay,e a partir delas adotou

diversas decisões e atitudes – além da separação de vida

família de sangue-família que escolheu – para garantir que o

seu bem-estar, autenticidade, segurança e emoções não sejam

afetados diariamente devido ao preconceito e o desafeto pelo

preconceito promovido. André acredita que quando era mais

novo vestia-se e tinha mais jeitos de uma pessoa considerada

“afeminada”, diz que com o tempo foi aprendendo a camuflar

algumas dessas características. Não costuma frequentar lugares

que não se adequam ao seu ciclo, em falar em ciclo, André pre-

51


za por estar acompanhado somente pode sentir-se à vontade,

seja no trabalho ou em suas amizades. Mas, infelizmente, não

pode controlar e planejar com quem convive ou não, como

no atual trabalho. Quando não se sente confortável ou seguro

em relação às companhias, André tenta assumir uma postura

blindada, controla o modo de falar, o que fala e como age.

Compondo o administrativo da FOAESP, André vivencia

situações constrangedoras e que, se tivesse escolha, preferia

não passar. O colega de trabalho com quem divide sala é uma

pessoa regada de preconceitos e não costuma comunicar-se

com André. De acordo com André, existem tarefas que seriam

mais fáceis e rápidas se houvesse uma comunicação mínima,

mas o colega nem o comprimenta e muitas vezes desde o horário

de entrada ao de saída não trocam nenhuma palavra.

Camisetas e falas que faziam referência a potência de pessoas

pretas (principalmente mulheres) também já foram questionadas

no ambiente de trabalho, mas, felizmente, mesmo esses

impasses André relatou que depois de desabafar com um amigo,

sentiu-se mais leve e pronto para continuar. Mesmo sem

comunicação, empatia ou respeito, seguirá resistente.

— [...] você está se divertindo, está num ambiente gostoso.

E aí, se soltam. E pra você não passar mal em ter o racismo,

em ter a LGBTfobia, a gente, eu pelo menos, não não

me demonstro fora do do meu ciclo. Eu sempre ando num

ciclo onde eu posso andar à vontade. Então são poucos lugares

que eu vou que não é no meu ciclo. Eu tenho que sempre ter

amizade e trabalho no meu ciclo que eu possa me sentir eu

mesmo, não preciso mudar nenhuma vírgula. [...] eu tenho 53

anos. Então você se acostuma a fazer isso. Então vira rotina.

Eu não gostaria que fosse rotina. Essa rotina eu sei que não

vai mudar tão cedo nem se eu tivesse filhos, nas gerações que

possam vir no futuro. Então eu tenho que me blindar mesmo,

52


pra viver a minha vida e tentar bloquear essas pessoas. Mas se

for uma coisa muito agressiva, aí eu vou pra cima. A gente tem

que criar provas, tudo tem que ter prova.

“Para a gente não ter essas agressividades, a gente entra

no nosso circuito de bar gay ou lugares underground que tem

de tudo, tem hétero, tem de tudo. E são pessoas que estão bem

com a sua sexualidade. Então, não tem problema. Faz tempo

que eu não frequento, não sei como que está. Mas, no Largo

da Batata, segunda-feira, se chama Dia do Garçom. Porque

a folga do garçom é famosa. E todo garçom não trabalha segunda-feira.

E você vai lá, você vê travesti, vê o casal hétero

vindo e se a esposa não quer dançar ele vai e dança com a

travesti, oferece bebida, é assim, como amizade. [...] Se é gay,

dança com homem, dança com mulher, vê a travesti beijando

um homem. Então, é isso que eu faço. É só o circuito que eu

me sinto bem. Então, hoje em dia, são raros momentos de

racismo, de qualquer LGBTfobia que possa ter. É difícil eu ter

agora. Porque me blindo dessa forma.”

Nome: Paulo André/ André

Idade: 53 anos

Músicas: Abençoado por deus

- Dexter, Cleber e Dona Kelly

O que gosta de fazer: Trabalho

voluntário das cozinhas

solidárias que assiste

frequentemente, É Tudo Pra

Ontem e Vovó Lili, e visitar a

sua escola de samba Vai-Vai

53


54


Foi na água de Oxum que eu achei morada

Foi no canto da alma que eu vi trovoada

Com o abraço de um rei, não faltava nada

Foi na casa de um rei que eu me vi em casa

– Na Água de Oxum, Hiran

(part. Margareth Menezes e Linn da Quebrada).

55


João

Para captar personagens para este projeto, elaborei um formulário

que compartilhei no Instagram com o intuito de que os usuários

que visualizassem e se identificassem como gays e pretos

pudessem preenchê-lo e disponibilizar-se a participar, ou, para

que pudessem compartilhar com pessoas que talvez tivessem

interesse em dar relatos de suas vivências. João foi o primeiro, e

por um bom tempo o único, a preencher o formulário.

Eu e João fizemos o colegial no mesmo lugar e durante

essa época nos conhecemos. João sempre foi gentil e extrovertido,

já eu mais fechada e oscilando entre a intro e extroversão

– a introversão conseguia lugar ao sol – com aquele com quem

eu costumava conviver. Por isso, mesmo por vezes permeando

os mesmos ciclos não tínhamos proximidade, lembro que em

uma época importante na minha vida escolar, a qual apresentaria

um trabalho obrigatório para a conclusão do segundo

ensino médio, estava no dia do meu aniversário no colégio

para assistir outras apresentações e João me viu, me abraçou,

beijou, desejou feliz aniversário e boa sorte na minha apresentação

que seria no dia seguinte. A partir daquele dia percebi

que não havia motivo pelo qual não me permitir viver uma

nova relação de amizade com aquele garoto que sempre que

convivemos fez questão do meu bem-estar e companhia.

A nossa amizade cresceu, até os dias de hoje, felizmente,

somos amigos e nunca me arrependi de ter me permitido

abrir para aquele garoto sorridente que me deu os parabéns.

Sei que ele não se lembra desse acontecimento, mas eu nunca

me esqueci.

56


Já que conhecia João, meu receio era de alguma forma

atrapalhar um processo de entrevista e escrita de suas histórias.

Talvez seja por esse motivo que quando nos encontramos para

realizar a entrevista eu fiquei mais nervosa do que qualquer

outra para este projeto.

Mesmo com privilégios,

o desafeto me alcança

“Ai, o João é uma pessoa divertida. Gosta muito de sair, de

conversar, conversar com várias pessoas, comer, se divertir.

Trabalha bastante, chora bastante. Mas é isso, né? A gente tá

aí, faço cursos, tô me formando em teatro. E... tamo correndo

atrás, né?

Pra ter um lugarzinho ao sol, quentinho”, foi o que João

disse quando pedi que se descrevesse.

João considera-se uma pessoa que cresceu com privilégios,

os quais sabe que muitas pessoas, em especial pretas e

gays, não possuíram e ainda não possuem, e diz ser grato por

tê-las. No entanto, percebe que mesmo com esses privilégios o

desafeto o encontra.

Sua infância deixou boas lembranças. Junto das primas,

ficava na casa dos avós, já que os pais trabalhavam durante o

dia e não poderia ficar sozinho. A avó cuidava muito bem das

crianças e elas davam-se bem entre si. Para João e suas primas

era normal que brincassem todos juntos, seja qual fosse a brincadeira,

inclusive de boneca e nunca teve receios sobre suas

57


atividades com as primas, era divertido. Ali, entre primos, não

existia brincadeira de menino e menina.

Nessa época, João diz que a mãe era pulso firme e muito

protetora, então além de viver na linha, qualquer pessoa que

tentasse ser maldosa com ele e a mãe notasse “ela já chegava

com tipo, quatro pedras na mão, tacava na pessoa e acabou,

acabou o assunto”. Por isso, qualquer comentário maldoso a

seu respeito não chegava a ele, porque a mãe não deixava que

acontecesse.

Foto: Arquivo pessoal.

Durante o período escolar, nunca foi uma pessoa desprezada

ou excluída, pelo contrário, não se lembra de encontrar

embates pelo seu caminho ou de ouvir falas preconceituosas

a seu respeito por ser preto e gay. Se não lhe falha a memória,

sempre esteve rodeado de amigos e encantava-se por criar

laços e conexões onde ia. As poucas vezes que lembra de ter

entrado em alguma discussão ou briga com colegas, estava

acompanhado e foi defendido por suas amigas.

— Então tipo eu sempre fui muito protegido nesse sentido,

sabe? Pelo menos que eu não lembre, sabe? Nunca sofri

bullying de uma pessoa ou algo do tipo, não sei se era por con-

58


ta de eu ser uma pessoa muito comunicativa, mas eu sempre

fui muito protegida, sabe? Ou por eu estar em uma turma que

era muito tranquila dos ensinos médios da vida.

Porém, mais a frente na entrevista, João se lembra de casos,

que relata serem isolados, os quais tentava não deixar-se

afetar todo o seu astral na adolescência. No colégio em que

estudávamos, João lembrou-se que havia um professor que todos

gostavam, mas o docente tinha costumes desagradáveis:

fazia comentários homofóbicos sobre ele e seu jeito.

— Ele era um pouco homofóbico comigo tipo, ai, dobra

muito o braço, não sei o que, se comporta nesse sentido

hum, mas era algo um pouco escrachado, incomodava, mas,

não era algo que eu absorvia pra mim. Não me deixava triste,

sabe? Era um pouco tipo assim, como piada. Só que como ele

brincava com todo mundo, pra não falar que era um negócio

só com você, era uma piada… Eram várias piadas que ele ia

soltando e no primeiro dia a gente ria, depois na terceira piada

a gente já entendeu porque que ele tá fazendo isso.

Foto: Acervo pessoal.

59


Além desse fato, também recorda de quando estava em

uma festa, chamada por ele de “social”, na casa de uma de suas

amigas, em que ele estava dançando e um dos garotos héteros

que ali estavam começou a olhá-lo com desprezo e fazer comentários

preconceituosos. “Tomara que ele não venha dançar

perto de mim”, dizia ele. A situação foi notada por João

e alguns de seus amigos, inclusive uma de suas amigas, aqui

chamada de Bruna – nome fictício, que encarou o garoto e

defendeu João. Ao lembrar do acontecido e como a amiga agiu

para garantir o bem-estar dele, o fez sorrir. Ali percebi que,

talvez, João não achasse que em sua vida tivesse vivido casos exclusivos

de desafetos e preconceito, mas que sua rede de apoio

era tão reconfortante para ele, que sempre que casos evidentes

de preconceitos surgissem ele sentia-se acolhido por ela.

Amante da arte, principalmente da atuação, João tem

uma boa relação com os pais, uma relação afetuosa e, hoje,

mais transparente e leve. Sua boa relação com a família é algo

que o agrada, pois gosta de desfrutar momentos em família.

Desde criança era praticante do catolicismo e frequentava

a paróquia Cristo Ressuscitado localizada na Travessa Poética

Musical no bairro Cidade Ademar. A igreja era de responsabilidade

do pároco Anthony John Conry, que fundou o colégio

no qual estudávamos. Já seus pais conheceram-se em um terreiro.

Com o passar do tempo, João sempre via o pai ir a centros

de umbanda, acender velas coloridas e rezar para orixás,

ouvia histórias vividas e contadas pela mãe na religião. Mas

embora presenciasse a prática das crenças do pai e a mãe permear

entre igrejas, centros espíritas e de umbanda, João optou

ser fiel da igreja católica e gostava do que fazia. As diferenças

de crenças nunca foram um problema dentro ou fora de casa

para a família.

60


Passou, então, a ser responsável por diversos afazeres da

Cristo – como era chamada a igreja pelos frequentadores. Coroinha,

participante do grupo de jovens e uma das pessoas

em quem Padre Tony confiava para encarregar responsabilidades

diárias da paróquia, João sentia-se bem na igreja Cristo

Ressuscitado e na presença das pessoas com quem convivia,

algumas delas com quem mantém amizade até hoje. Mas o

conforto não era o mesmo quando visitava outras paróquias,

sentia-se desconfortável e até receoso do modo que agiria em

frente àqueles que não estavam aos cuidados de Tony.

— A gente sabe que dentro da igreja do padre Tony, era

de um jeito que, tipo... Era muito aberto, muito acolhedor.

Só que, tipo, a igreja da rua de cima já não era. [...] Pra outra

igreja que tá falando que gay é do diabo. É um diabo. É um...

É um diabo dentro do corpo, sabe? Não só dentro da questão

evangélica, mas também dentro da católica, que tinha muito.

Então, tipo, eu tinha medo de ir em outra igreja. Por exemplo,

fomos chamados pra ir em uma igreja onde iria acontecer tal

coisa. [...] Eu tinha medo de ir. Porque eu sabia que ali dentro

já era um outro mundo, com outras regras, outras pessoas.

“Ele era muito da galera”, brinca João. Em toda a nossa

entrevista, João deixa evidente que muitas de suas boas experiências

no catolicismo deram-se à Tony. Em sua opinião, diferente

de outros párocos, o imigrante irlandês era progressista,

receptivo ao novo e à juventude e, o mais importante, nunca

ouviu o padre proferir a ele ou a qualquer pessoa palavras

ofensivas e insinuações negativas sobre orientação sexual.

— [...] minha mãe ia muito pra igreja também. E eu também

ia. E aí, eu ia em uma que, tipo, o padre de lá era muito

suave, né? O padre Tony, ele era sempre muito tranquilo. E…

E ali, eu entendi que eu poderia adorar (o sagrado), né? Fazer

61


uma ligação com o cristianismo que era muito forte, que eu

gostava também. Que me abriu muito as portas, que eu conhecia

outras pessoas. E que é aquilo: eu tive sorte. Eu não sei

se foi sorte. Eu não sei o que aconteceu, mas lá eu nunca fui

julgado por ser gay.

“Lá, tinha eu, uma bicha preta, gay, em um altar, ajudando

o padre a fazer a Eucaristia. Eu tava lá! Eu tava ajudando os

coroinhas a entrar pra levar a cruz. Então, tipo, eu tava nesses

meios. E eu tava ajudando em um todo, aponto de, tipo, ser

chamado pra ajudar a fazer a crisma dos jovens, a fazer encontros

de jovens que a gente organizava. A ir em outras igrejas e

conhecer outros papéis, outras pessoas. A conhecer também a

religião como um todo.”

Durante nossa conversa, diz ter tido sorte. Sorte por ter

frequentado uma igreja na qual foi acolhido e pôde ser quem

realmente era. Mas 2020 chegou e com ele a pandemia, devido

a fatalidade João parou totalmente de ir para a igreja:

“durante esse período eu já tava me questionando muito se era

aquilo ali que eu queria seguir mesmo…”

Em julho deste ano, padre Tony, devido a complicações

de saúde, faleceu aos 83 anos. Sua partida abalou aqueles que,

como João, conheciam e tinham um carinho pelo religioso.

Mas antes mesmo de seus questionamentos sobre a religião

que seguia, João passou a questionar outros fatores da vida,

a sentir-se deslocado em alguns âmbitos, via que seus amigos

tinham experiências que nunca tinha degustado. Nunca tinha

sido convidado para um encontro, nunca foi alvo de atos carinhosos,

mesmo que vergonhosos, de outros meninos, essas e

outras escassas emoções e vivências o fez ansiar pelo afeto.

62


Triste, mamãe Oxum me falou que a

gente sofre por falta de amor

“Mas ele virá

Virá, eu sei que virá

Sei que o amor virá”

– Chorojô, Os tincoãs.

“Então, a gente se priva muito de viver por

conta do próximo”

Ansiar por experiências e afeto pode ser agoniante e fazer com

que esse vazio demande tanto a ponto das pessoas tomarem

decisões, que, talvez se o vazio não se fizesse presente, não tomariam.

E, foi o que aconteceu com João.

Perguntei a João se já havia sido oferecido a ele relacionar-se

com homens comprometidos, ele me informou que

sim, recusou algumas e aceitou uma das ofertas, mas a relação

já chegou ao fim:

— Ele é do Rio e ele tava aqui a trabalho. E aí, durante

o período que ele esteve aqui em São Paulo, rolou algumas

coisas, algumas trocas e... Ele foi pro Rio e cada um seguiu

para o seu lado e acabou. [...] Eu acho que no momento que

eu aceitei ficar com aquele menino foi, primeiro, porque ele

tinha bom papo. E… e porque eu tava querendo. Eu tava

querendo sair, eu tava querendo ficar com pessoas, eu tava

querendo transar, eu tava querendo sentir uma pessoa, sabe?

Tipo, de querer... Querer mesmo estar ali, presente... Sendo

paparicada. Ele me pagou algumas coisas, tipo, lanche... E...

ingressos de cinema…

63


João acredita que ao atingirem os 20 anos, a maioria dos

gays são “adolescentes” com ânsia de viver tudo o que não

viveram na adolescência, conhecido também como adolescência

tardia. Por estarem preocupados com as outras pessoas e a

aceitação vinda delas, ao invés de “adolescer” como queriam.

Nunca tinha vivido experiências como essa quando adolescente:

ir ao cinema, andar de mão dada no shopping, escolher um

filme ruim propositalmente para que não precisasse assisti-lo.

Foi bom poder viver isso, foi instigante e pôde, finalmente,

sentir o gosto do afeto que a maioria das pessoas com quem

convive já havia vivido.

— A gente tá preocupado com o que nossos amigos estão

falando. O que a nossa mãe tá falando. O que a gente tá fazendo

de errado. Então, a gente se priva muito de viver por conta

do próximo. E quando a gente tem essa maioridade, podemos

pagar nossas contas, sair e conversar com outras pessoas. Ótimo,

a gente vai. [...] Putz, eu sempre quis ter um rolezinho

num shopping, um datezinho, como a minha amiga contou,

como o meu amigo contou na época. E, eu tinha medo de ter

esse datezinho, porque também, um shopping com pessoas

que a gente não conhece, um lugar público…

“A mídia influenciava muito também. Pelo menos pra

gente que era de periferia, ou que tinha muito contato com

novela, com coisa que passava ali na TV mesmo, né? E não era

falado. Gente, quando a gente ia ver um casal gay indo pra um

shopping junto em 2015, em 2016, sei lá? Não tinha. E quando

tinha era algo muito, tipo... ‘Vamos fazer uma piada com

isso? Como a gente pode estereotipar mais ainda essa gay?’ ”

Por ansiar receber e dar afeto, por ser uma pessoa que

tem necessidades e desejos sexuais, por estar aberto e em busca

do amor, João diz que se põe em situações, como a de ter

64


sido amante. Viveu primeiras vezes, para além do sexual, pôde

sentir o que o João de 15 anos não sentiu, e para ele, naquele

momento, fazia sentido ser conivente com a vida dupla de um

carioca na cidade de São Paulo. Recebeu, no entanto, migalhas

do que poderia ter sido muito mais, pois quando o homem

precisou, foi embora e nunca mais deu a João o gosto de

sentir aquele afeto que viveu, por pouco tempo, mas viveu.

Embora não tenha se submetido a ser novamente a segunda

opção de uma relação fadada ao fim, João costuma,

em aplicativos de relacionamentos e nas redes sociais, estar a

procura de pessoas novas com quem possa ir além do prazer:

criar intimidade.

§

Como o próprio deixou evidente e já citado, João é o tipo de

pessoa que gosta de ter boas relações onde for, seja na escola,

na igreja ou com sua família. Em mais de metade da entrevista,

João estava falando sobre os avós, então perguntei sobre sua

relação com eles, se houve algum estranhamento na relação

avós-neto quando souberam da sua orientação sexual, ele respondeu:

“Na verdade, a minha avó descobriu porque o meu

pai foi fazer o show na casa dela.”

Até o ensino médio, João nunca havia contado aos pais

e parentes sobre sua orientação sexual, por isso, em suas palavras,

ele passou a construir uma personagem dentro de casa,

na qual era mais fechado e quieto, enquanto na escola e na rua

era mais aberto e comunicativo. “Acho que eu nunca escutei,

né?”, perguntou ele. “Não”, respondi. Então contou:

— Foi bem no ensino médio quando a gente foi fazer a

65


festa junina, a quadrilha. E eu falei “Mãe, eu vou casar com

um amigo na zoeira ali e tal. É, na zoeirinha, né.” Aí ela falou

“Ah, você é gay?” Aí eu: “sou”.

“E foi bem nesse dia. Foi, tipo, foda-se. Falei. Ah, foda-

-se. E ai, tipo ela chorou bastante e tal. Enfim, aquelas histórias

de série. Onde a mãe descobre e fica: ‘Meu Deus do céu,

e agora?’ ”

Depois disso, quando o pai ficou sabendo foi até a casa

da avó e disse: que eu era gay e que ele não ia pagar pensão

porque ele não ia querer ter um filho viado.”

“Foi desse jeito. Foi bem tranquilo, né?”, questionou ele

com um toque de sarcasmo.

Depois da tempestade, a calmaria

Òsun sure fun wà kó ire tò é wá Alafiá ati pupò ayó òjòjò

(Que Oxum te abençoe e te traga muita paz e felicidade todos os dias)

– Provérbio Yorubá.

Foi um período difícil para a família, mas João se lembra que

nunca foi um problema para a avó, pois na rua em que vivem

tinham uma amiga da família, Fran, que é uma mulher trans.

E Fran, próxima da avó, soube do embate entre pais e filho

que estava acontecendo na casa do neto da amiga e decidiu

intervir como pôde: Como fazia tratamento em um centro

de acolhimento de trans e travestis, Fran, depois de muita in-

66


sistência, levou a mãe de João junto com ela, pois era dia que

teria consulta com terepeuta, mas ao chegar lá colocou a mãe

dele na sessão para que ela pudesse trabalhar dentro dela a

aceitação do filho.

João sabe que Fran foi uma pessoa importante em sua

vida, porque sua atitude ajudou ele e seus pais a terem a relação

boa e afetuosa que possuem hoje. Quando ele diz que

foi uma pessoa com privilégios, entendi também, que além

da rede apoio que teve e tem, mesmo houvesse momentos de

embate interno com os pais ou outras pessoas, sempre teve

uma boa, e até mesmo, rápida solução. Mas até mesmo uma

pessoa com privilégios como João, se vê em situações que, se

pudesse, mudaria.

Hoje, por seus tios serem conservadores, decidiu se afastar

do primo mais novo. João ajudava a avó a cuidar do menino,

por isso criou um carinho especial por ele, mas quando a

criança começou a crescer e ter maia consciência do que fala e

faz, João pensou que deveria ser a hora de se afastar dele.

— Gente, eu vou parar de falar com esse menino porque

eu não quero ser tipo – não existe, a gente sabe disso, mas o tio

Bolsonaro não sabe ou finge que não sabe – “influência”, né.

Não tem como a gente tipo: ‘ah, eu vi um gay, agora eu virei

gay também’ mas sempre tem esse argumento. E aí, eu cortei

muito o laço com o meu priminho por conta disso.

— E você se arrepende disso ou acha que foi só um jeito

de lidar com as coisas?

— Cara, eu não me arrependo. Para mim, acho que foi

uma proteção.

§

67


Hoje, João depois de muito refletir sobre seguir em uma religião

na qual sentia-se aceito somente em um lugar, a comunidade

do padre Tony, decidiu conhecer a umbanda. E nela

se encontrou, vive e fortalece sua espiritualidade. A umbanda

também foi e é uma porta para maior conhecimento e potência

da sua negritude, que ainda é trabalhada em seu interior. É

no terreiro do Pai João, localizado na Vila São Paulo, que João

bate cabeça, aprende os fundamentos da religião e faz desenvolvimento

mediúnico.

Foto: Acervo pessoal.

68


Foto: Acervo pessoal.

Nome: João Victor Correia/

João

Idade: 23 anos

Músicas: É eclético e não tem

uma música que pense “é

a melhor música da minha

vida”, escuta pop, funk, pop

Brasil. Bigger - Beyoncé é uma

música que o deixa leve e, para

ele, Summer Renaissance -

Beyoncé, é “tudo”.

O que gosta de fazer: Atuar,

sair para balada, assistir peças,

ir ao cinema e ao parque e,

apesar de fazer tempo que não

pratica, adora ler.

69


70


No caminho da luz, todo mundo é preto.

– Emicida, Principia

(part. Fabiana Cozza, Pastor Henrique Vieira

e Pastoras do Rosário).

71


Douglas

Após mais de uma hora no trânsito de São Paulo, chego ao

Botanikafé próximo às 20h e encontro com Douglas, que me

recebe com um sorriso e um abraço. É a segunda vez que nos

vemos, vou ao banheiro no segundo andar e quando volto ele

está me esperando no final da escada. Sou apresentada a seus

colegas de trabalho, ao ambiente e ao chefe encarregado da

cozinha naquela quinta-feira, dia 26 de outubro. Pede para

que eu me acomode em uma mesa em frente a cozinha, pega

um café para beber e me avisa que tem apenas alguns minutos

para conversarmos, pois tinha que voltar a trabalhar.

— Como vamos fazer? Pergunta ele. Você pode gravar a

correria (da cozinha) e depois eu finalizando seu prato.

— Claro, pode ser desse jeito mesmo.

Fui até o Botanikafé para fazer algumas fotos de Douglas

enquanto durante o horário de funcionamento do local.

Douglas é cozinheiro e trabalha doze horas por dia. Antes do

nosso tempo de conversa acabar, pergunto se ele tem algo para

me contar, pois já fazia algum tempo que tínhamos nos visto.

— Eu? Não.

— Nada?

— Por que?

— Nada, normalmente as pessoas se lembram de alguns

acontecimentos depois da primeira conversa.

— Acho que o que eu tinha para falar era aquilo. Não

tenho mais nada pra falar, quer me perguntar alguma coisa?

— Sim. O que você acha que chama atenção na sua história

de vida?

72


— O que chama atenção na minha história… O jeito

como eu levo a vida. Aconteça o que acontecer, sempre levo a

vida bem, tô sempre bem.

Douglas me contou sobre a viagem de apenas três dias

para o Rio de Janeiro e como adorou a cidade. Então foram

três dias bem aproveitados, porque Douglas não queria voltar.

Depois de finalizar uma parte das gravações e fotos, Douglas

insistiu para me preparar um prato vegetariano e escolheu

a opção do cardápio. Quando finalizou, me sentei na mesa

para comer. Enquanto degustava a refeição, me lembrei de

algo que Douglas havia me dito em nossa primeira conversa

em sua casa: não é um homem que costuma demonstrar afeto,

mas sempre que quer demonstrar afeto para alguém, ele cozinha

para a pessoa.

Foto: Prato feito por Douglas - Maria de Fátima Souza.

73


Partir para ser livre

Deixe-me ir

Preciso andar

Vou por aí a procurar

Rir pra não chorar

– Preciso me encontrar, Cartola.

Em um hospital da Parada Taipas, zona norte de São Paulo,

foi onde Douglas nasceu e foi adotado logo ao sair da maternidade.

Com apenas um ano de idade toda a sua família se

mudou para Santa Cruz da Conceição, no interior do estado,

e foi nesse município que passou toda a sua infância e adolescência.

No entanto, sempre foi seu desejo voltar para a cidade

de São Paulo.

Em Santa Cruz, Douglas morava com seu pai, mãe e irmão

mais velho. Douglas lembra que, no geral, teve uma infância

tranquila. Amava o irmão e era próximo a ele e a mãe,

já do pai… nem tanto. Perguntei a Douglas quando passou a

se reconhecer como gay e ele lembra-se exatamente quando

percebeu que era um garoto que gostava de outros garotos:

foi quando estava debaixo de uma escada da escola no ano de

2011 e se apaixonou por um menino que conheceu. “Eu achei

muito estranho, na verdade”, afirmou Douglas. Mas antes de

definitivamente apaixonar-se por alguém, já não gostava de

atividades associadas ao masculino, como jogar bola.

— Eu gostava de pentear cabelo de boneca, gostava de ver

minha mãe costurar. Mas foi a partir disso, em 2011, quando

eu conheci esse menino.

74


— E como foi esse processo de autoaceitação? Foi tranquilo

pra você?

— Eu achava que onde estava não ia ser suficiente pra

mim, sabe?

— Como assim?

— As pessoas eram muito... As pessoas eram muito... Até

meu pai, meu irmão falavam algumas coisas meio absurdas.

Então eu queria logo fazer 18 anos pra não viver aquilo, sabe?

Não poder viver do jeito que eu queria. Mas a autoaceitação...

Foi fácil. Acho que foi mais com o tempo também, né? Depois

você vai descobrindo pessoas que te respeitam do jeito que

você é.

Sobre “se assumir”, Douglas se preocupava somente com

os pais e pessoas próximas saberem sobre sua orientação sexual,

mas não pretendia contar para ninguém, pois ouviu o

irmão dizer que se tivesse um irmão gay, ele ia matar. Quando

contou para a mãe sua orientação sexual:

— Daí eu preferi esperar os 18 e ir embora. É. Mas daí

minha mãe descobriu antes. E... Aí ela falou que já sabia. Eu

me perguntei, por que não falou antes, né? Por que ela não

falou antes sobre isso? Enfim… Aí ela contou pro meu pai.

Meu pai também. Meu pai só tinha medo de alguém me bater,

falou que era pra fazer alguma luta. E só.

Mas a partir do momento em que o irmão soube que Douglas

era gay, a relação de irmãos mudou. O irmão mais velho

aparentemente decidiu cortar os laços da relação entre os dois,

mal conversavam e tudo o que Douglas ouvia do irmão o deixava

chateado. E mesmo com o irmão vendo que os pais respeitavam

Douglas e não o mal tratavam por ser gay, o irmão nunca

mais foi o mesmo. Por isso, agora que está adulto procura em

outras pessoas a aceitação e relação que não teve com o irmão.

75


— Tive que conhecer pessoas fora da família pra que me

respeitassem do jeito que eu era. Porque o meu irmão não é

uma pessoa fácil de lidar. [...] Meus pais perceberam que se

eles não me respeitassem do jeito que eu sou, eles iam me ter

distante. E aí, começaram a me respeitar do jeito que eu sou.

— E você acha que isso te marcou muito?

— Eu acho que sim. Fico procurando vários irmãos fora,

né? Tem vários amigos meus que eu considero muito irmão.

São muito mais do que o meu irmão.

Mesmo com a decepção e a briga com o irmão, Douglas

diz que sente falta dele, mas voltar a ter uma relação com ele

não seria fácil. Ele acredita que talvez o irmão possa mudar

caso tenha um filho algum dia. Mas fora isso, acha difícil a

mudança por parte do primogênito.

— Cê sentia muita falta ou ainda sente?

— Ah, eu sinto. Eu sinto, mas assim, também acho que é

melhor não ter perto, entendeu? Sendo irmão, eu sinto saudade,

sim, de conversar e tal, mas assim, do jeito que ele é, não...

“[...] no dia que, possivelmente, ele tiver um filho e se arrepender

das coisas que ele falou. Eu quero que ele fale, quero

ouvir da boca dele. [...] É só ele assumir tudo o que ele fez,

entendeu?

Por sentir-se deslocado em Santa Cruz da Conceição e a

convivência dentro de casa não ser como gostaria, ao completar

dezoito anos, não pensou duas vezes em partir para fazer

faculdade de gastronomia em águas de São Pedro.

76


Foto: Arquivo pessoal.

Quando os negros vieram de África

trouxeram uma planta pra fazer

defumação

Douglas afirma que sempre teve dificuldades para se soltar,

para falar sobre sentimentos e sobre si. Então, mesmo durante

a faculdade, que era um lugar onde sentiu ser mais aceito e

que podia finalmente conectar-se a pessoas que realmente o

respeitavam, ainda assim era difícil ser quem ele queria ser e

agir como gostaria, até que conheceu a maconha.

— Mas, eu acho que eu comecei a falar mais depois que

eu comecei a fumar mesmo. Foi que tudo melhorou. Isso foi

na época da faculdade e muita coisa mudou, sabe? Conheci

muita gente de fora.

— Com quantos anos você tem mais ou menos?

77


— Eu entrei com 18.

— Mas você acha que foi nessa idade que você conseguiu

ser mais sincero com os sentimentos? Mais aberto, talvez?

— Sim. Com as sensações e etc… Eu acho que não sei ser

sincero, mas talvez saber evitar (situações). Sei lá, só se afastar

(de situações e pessoas) que você não quer. Não sei se isso é uma

forma de...É uma forma também de autoconhecimento, né?

Quando chegamos a essa parte da entrevista, talvez Douglas

sentiu-se mais à vontade e pediu para acender seu cigarro

de maconha. E em meio a conversa sobre a maconha e como

a erva o fez enxergar novas maneiras de agir e sentir, Douglas

confessou que não é uma pessoa afetuosa e todos que convivem

com ele sabem dessa característica dele. Seja em amizades

ou relacionamentos amorosos, Douglas não consegue

demonstrar. O motivo? Ele também não sabe. Talvez devido

a algum trauma do passado ou a relação que tinha e ainda

tem com a família. Mas diz sentir-se mal por não conseguir

se expressar como gostaria, “como uma ansiedade meio que se

culpando por não conseguir falar”.

§

Douglas nunca pediu por carinho, não pede carinho, por saberem

que não gosta, seus amigos não costumam agir de forma

muito afetuosa com ele, como ficar dando beijo, abraços

ou fazer um cafuné. Mas disse que se alguém começa a fazer

um carinho em seu cabelo ou na cabeça, ele não pede para a

pessoa parar, ele deixa, já que a sensação é boa.

78


Foto: Douglas na cozinha do Botanikafé, Maria de Fátima Souza.

Não dá pra fugir dessa coisa de pele

Diferente de algumas pessoas que se reconhecem como preta

desde a infância, mas com o tempo vão adquirindo letramento

sobre o assunto de raça, Douglas só se reconheceu como

um homem preto em 2020. Antigamente, todas as atitudes

79


racistas que as pessoas tinham, ele entendia apenas como maldade.

Hoje, ao entender sua cor de pele, revive lembranças

do passado e compreende o que realmente aconteceu. Para

além de reconhecer-se como preto, Douglas tenta entender o

movimento preto.

Ao parecer um pouco envergonhado por relatar que seu

entendimento sobre sua raça aconteceu somente em 2020,

Douglas conta como foi seu despertar, evidenciando, que por

mais que fuja, não dá para fugir dessa “coisa” de pele:

— E como foi? Perguntei.

— Foi horrível. Horrível? Foi horrível. O Uber chamou

a polícia pra mim, porque ele achou minha atitude de mudar

a rota suspeita. Eu estava no hospital, daí chamou o Uber, e aí

começou a chover no meio do caminho, e eu sabia onde tinha

uma farmácia, pedi pra ele ir até a farmácia, que era perto de

casa, depois de lá, já ia pra cá. Ele não quis mudar a rota, e eu

aceitei. Falei: “tá bom, então”. Nisso, ele parou num posto e eu

pedi pra cancelar a corrida, estava perto da farmácia, então, já

que ele não queria fazer o caminho, eu não ia fazer.

“Aí, depois saindo da farmácia, dois policiais: ‘mão na cabeça,

a mão na cabeça’, e eu comecei a rir, porque eu não sabia

o que estava acontecendo. Sim. Aí... Eles começaram a fazer

um monte de perguntas, pedindo pra eu desbloquear meu celular,

um monte de outras coisas… Perguntaram onde eu trabalhava,

tava fazendo… E eu expliquei tudo. Depois, no fim,

eles falaram que o Uber achou a minha atitude suspeita. Depois

daquilo a minha cabeça, assim, mudou completamente.

80


a

Nome: Douglas Corrêa/

Douglas

Idade: 27 anos

Músicas: Cheiro de Amor

- Maria Bethânia, Principia

- Emicida (part. Fabiana

Cozza, Pastor Henrique Vieira

e Pastoras do Rosário) e Não

Existe Amor em SP - Criolo

O que gosta de fazer:

Cozinhar e F1 (fumar um)

81


82


Entenda, olhos podem não enxergar a grandeza em você,

que está dentro

Venha sentar-se em seu trono

Você sabe que não vai ficar derrubado por muito tempo

Sempre que estiver em dúvida e sozinho

Apenas lembre-se de que você é o rei desse reino

– Keys To The Kingdom - Tiwa Savage, Mr. Eazi.

83


Ivan

Quando se fala sobre a cultura brasileira muitos elementos

vêm à mente, já que a nossa cultura é rica e diversa. E dentre

esses elementos que a compõem está a arte drag. Por isso, sabia

que seria de grande enriquecimento para esse livro houvesse a

colaboração de homens pretos gays que dão vida a drags.

Assim que abri o perfil do Instagram de Ivan, pude sentir

sua potência. Não por uma possível estética prezada na rede

social, mas devido às fotos, legendas e músicas postadas. Naquele

momento, soube que deveria convidá-lo, mas estava

sem esperança que me respondesse. Enviei, expliquei resumidamente

o projeto e o convidei. Pouco tempo depois recebo a

seguinte mensagem:

“Claroooo amore eu super topo participar, sim

Eu sei exatamente o que é sofrer com isso.”

Ivan dá vida a drag queen Samantha Dior, presente na

cena drag há mais de uma década e vencedor da terceira temporada

de Academia de Drags, reality show apresentado por

outra persona potente no meio LGBTQIAPN+ e negro, Silvetty

Montilla.

84


Foto: Arquivo pessoal.

Foto: Arquivo pessoal.

85


Perdido menino preto

Nascido e criado na cidade de Santos, no litoral do estado

de São Paulo, Ivan ainda enquanto criança, não conhecia a

potência que poderia ter. O menino preto não tem boas lembranças

de grande parte da infância.

Ivan deixa evidente que tem uma família muito carinhosa,

afetiva, amorosa e receptiva. Então, sim, era um preto afeminado

desde criança, e esse fato nunca foi um problema para

a família. Enquanto esteve aos cuidados da família, sempre foi

uma criança feliz. Mas Ivan já não pode dizer a mesma coisa

sobre suas experiências na escola.

— Você se considera um preto gay afeminado?

— Sim, sou uma preta… um preto gay afeminado desde a

minha infância. Sabe, assim, aquela "mancha” da família? Você

sai e falam: “iiiiih!” Eu era essa criança. Desde pequena eu já

dançava, então eu era muito expressivo, muito alegre, muito

pra frente… O que foi muito bom, porque eu tenho uma família

muito carinhosa, muito amorosa e muito receptiva com

tudo. Embora eu seja uma família de religiões diversas – desde

religiões de matriz africana a religiões evangélicas – meus parentes

são muito abertos a tudo. São pessoas muito boas.

Durante o tempo em que o pequeno Ivan não entendia-se

com um menino gay e privou-se de a agir como ele

mesmo, sua vida foi normal. No entanto, quando seu jeito

dito socialmente como “afeminado” começou a transparecer e

Ivan começou a se empoderar disso, sua vida mudou de cabeça

para baixo.

Sofria constantes agressões físicas e verbais, a escola não

86


tomava partido e Ivan não contava para sua mãe com medo

da reação que teria ao saber que o filho era gay. A sétima série,

diz Ivan, foi a pior fase da sua vida até os dias de hoje. Repetiu

três vezes esse ano escolar devido às violências. Já que as violências

não cessavam, Ivan, por decisão própria, parou de frequentar

a escola. Passou meses fingindo ir estudar, mas ficava

escondido em casa. Até o momento que o conselho tutelar foi

acionado e sua mãe procurada.

— O que dificultou a minha vida foi o colégio. A escola,

lidar com outras crianças foi bem difícil. [...] começou a vir o

bullying, começou a vir as agressões, que foi na sétima série,

que foi a pior fase da minha vida, acho que até hoje. Para você

ter uma noção, eu repeti três vezes a sétima série. Porque foi

bullying atrás de bullying, violência atrás de violência, o que

me dificultou muito.

— E como você agia diante dessas agressões?

— Na verdade, eu não agia. Só parei de ir para a escola.

Na verdade, eu comecei a cabular aula e até fiquei dois meses

e meio sem aparecer na escola. Segui… Depois que eu sofri

uma das agressões mais fortes, eu fiquei um mês e meio sem

ir para a escola. E ninguém sabia, porque eu saía de casa para

ir para a escola e seguia a minha vida normal. Só não entrava

dentro da escola.

“Mas, graças a Deus, graças a minha mãe também,

que ela é uma pessoa muito maravilhosa,

que não me deixou parar, não me deixou.”

87


Se tudo cai, ela levanta

Mãe solteira, Irene – nome fictício – trabalhava muito para

poder sustentar o filho. Era enfermeira e fazia mais turnos do

que o comum para poder ganhar uma renda extra, por isso

Ivan passou a maior parte do tempo com a sua avó até seus

dez anos, mas foi nessa época que ela faleceu. Ivan nunca teve

muito contato com a família do pai, por isso, passou a morar

com seus tios. Os tios são religiosos, mas nunca trataram Ivan

de forma diferente, sempre foram cuidadosos e respeitosos enquanto

ele permaneceu na casa deles. Sendo os filhos de sua

avó compostos por quatro irmãos, todos são, mesmo com a

distância, unidos ainda hoje.

Irene, mesmo que passando grande parte do tempo trabalhando

e longe do filho, sempre teve uma relação afetuosa

com o garoto. Atenciosa e generosa, a mãe de Ivan não se importava

com o modo de ser do filho, pelo contrário, tentava

ao máximo fazer suas vontades. Já crescido e entre a transição

do sexto para o sétimo ano, Ivan, fã de Sandy e Júnior, pediu

para que a mãe lhe comprasse materiais escolares com o tema

da dupla e assim a mãe o fez.

Com essas pequenas atitudes em entre a infância e adolescência,

Ivan afirma que nunca precisou assumir-se gay, qualquer

pessoa que olhasse para ele entendia suas preferências e

que não se adequava ao meio heteronormativo.

— Então, tipo, eu não precisei me assumir. Só você de

olhar aquela pessoa, sabe? É bicha. Então, isso foi muito difícil.

Difícil das outras pessoas entenderem. Isso foi o que mais

complicou, assim, para mim, sabe? Foi o que mais dificultou

a minha vida.

88


No entanto, ao mesmo tempo que sua vida na escola foi

piorando com o tempo, o pequeno ficava feliz por poder usar

e ser o que queria e gostava.

Quando o Conselho Tutelar procurou Irene e ela descobriu

o que estava acontecendo com o filho na escola, conversou

com toda a família e “abriu a mente dela”, como ressaltou

Ivan. Tirou o filho da escola em que ele sofria constantes

violências e passou a procurar novos lugares onde ele poderia

estudar. Foi Irene quem não deixou Ivan desistir dos estudos,

não importava quando, mas o filho terminaria a escola.

— Tipo: “não, você vai continuar. Você vai estudar. Nem

que a gente tenha que te mudar de 20 escolas, a gente vai te

mudar para 20 escolas de violência, mas você vai estudar.”

Foi nesse momento também que Ivan começou a fazer

sessões de terapia com profissionais disponibilizados pelo

Conselho tutelar, algo que o ajudou bastante, pois o garoto

acreditava que ele era o culpado por todas as agressões sofridas.

Ivan tem memórias felizes e repletas de amor com a mãe

e quando as conta o sorriso chega rapidamente ao seu rosto,

como quando conta de seu aniversário de sete anos:

— Tanto é que a minha festa de sete anos de idade foi

da Pocahontas. Então, tipo, foi um aniversário de princesa.

Então, eu sempre tive tudo o que eu quis, sabe, assim? Tudo o

que eu quis ela sempre me deu.

De instituição em instituição escolar, o, agora já não tão

pequeno, Ivan finalmente encontrou-se em uma escola para a

tranquilidade e felicidade de Irene. Localizada em São Vicente,

a escola tradicional do lugar incentivava a arte, algo que

Ivan se identifica, além de ter sido acolhido por pessoas que

até hoje são suas amigas. Assim, Ivan pôde finalizar o colegial

cercado de pessoas que o amavam e respeitavam.

89


Foto: Arquivo pessoal.

Afinal, a arte transforma

Imagem: Reprodução Twitter.

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— Bom, meu nome é Ivan, tenho 34 anos, sou drag queen.

Sou a pessoa que dá voz à drag da Samantha Dior há 13

anos. E a minha carreira de drag começou muito como uma

brincadeira, como um modo de me expressar, uma brincadeira

com os meus amigos, nada muito sério. E por intermédio

deles, eu acabei entrando num concurso e ganhei. Isso foi tomando

uma proporção mais séria e hoje em dia eu encaro

como uma profissão também.

Durante sua nova fase de vida e em uma nova escola e,

dessa vez, com amigos, Ivan foi encorajado pelos mesmos a

participar de um concurso de novos talentos no Guarujá, mas

“só na brincadeira”, como disse Ivan. Com apenas 16 anos,

Ivan e outros dois amigos inscreveram-se no concurso e improvisaram

uma roupa para que o garoto pudesse, pela primeira

vez, performar em um palco.

— Foi aí que entrou a drag na minha vida. Foi por isso

que, acho que foi muito isso, essa minha paixão pela arte drag

veio muito disso. De poder mostrar aquilo que eu sempre fui.

Mas que eu tive que esconder, infelizmente, por conta das outras

pessoas, sabe? E a minha paixão pela arte drag veio muito

disso. De estar ali no palco podendo ser eu.

“Podendo mostrar para os outros quem eu sou.

Essa pessoa que durante anos eu tive que esconder

por conta do bullying, por conta da homofobia,

de tudo. Poder mostrar ali, poder colocar

ela pra fora ali nesse pequeno momento em cima

do palco, pra mim é algo libertador.”

Embora tenha seguido profissionalmente na área da saúde

assim como sua mãe, Ivan apaixonou-se pela arte drag e

como as performances podiam o empoderar. Investiu na car-

91


reira de drag queen e passou a conhecer mais o meio artístico

e suas nuances. Com o nome “Samantha Dior”, a drag queen

de Ivan foi polida e cuidada por ele, já que o fazia tão bem da

vida à essa persona.

Em 2021, Samantha Dior foi selecionada para participar

do Reality Show “Academia de Drags”. Dior foi a vencedora

da edição.

— E eu fui aprimorando a minha drag. E eu fui me entendendo

como pessoa queer através da minha drag. Então

hoje, aquela pessoa que eu sempre escondi na época de escola,

pode se mostrar. Então hoje em dia eu consigo andar de cropped

na rua, com uma bolsa super espelhada rosa, vestindo

realmente aquilo que eu sempre tive vontade de vestir. Graças

a minha drag. Foi por ela que eu consegui essa força pra mostrar

pras pessoas quem eu sou e parar de me esconder.

Foto: Arquivo pessoal.

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Ismália

“‘Ismália’ teve como inspiração o poema de mesmo nome escrito

pelo mineiro Alphonsus de Guimaraens (pseudônimo de

Afonso Henrique da Costa Guimarães). “Geralmente, a tônica

dada a esse texto é a romântica, ou melhor, a loucura de

amor. Eu enxergo de outra maneira, que é a metáfora do que

é ser preto no Brasil”, explica o rapper.”

Esse é um trecho do que se encontra no site do Laboratório

Fantasmas sobre o música Ismália presente no álbum

AmarElo do Emicida. Ismália foi tudo o que consegui pensar

enquanto entrevistava Ivan e ele me falava sobre suas relações

amorosas, a sua sensação de que agora a luta é outra.

Depois que passou pelas violências devido à homofobia

e superou parte delas, Ivan estava em meios acolhedores em

casa e com um grupo de amigos no qual também havia outras

pessoas LGBTQIAPN+, mas todos brancos. A princípio, não

teve nenhum problema para Ivan, mas com o passar do tempo

descobriu o preconceito racial no meio gay:

— Quando eu conheci os meus amigos. Quando eu me

senti acolhido num grupo de amigos, eu também comecei a ver

uma outra parte difícil de ser gay que é sobre relacionamentos.

Sobre as pessoas não quererem se relacionar comigo. E aí, foi

um outro baque que eu venho trabalhando há muito tempo.

“Que é uma falta de afeto. Uma falta de... Falta de tudo.

Porque eu me entendi como gay, ótimo… Beleza! ‘Vamos

sair?’ ‘Vamos.’ Todos os meus amigos estão ficando com outras

pessoas e eu não.

93


Ivan se reconhece como uma pessoa preta, mas não ainda

está em processo de entender sua negritude, como lidar com

ela e com o racismo vivido frequentemente dentro e fora da

comunidade.

— Eu ainda estou me entendendo, para ser bem sincero.

Para ser bem sincero de verdade, eu ainda estou me entendendo

como um homem negro. E tem sido bem difícil, não vou

mentir, porque essa pauta racial, essa luta racial ela é muito

dolorida, porque quando você vai entendendo tudo, você vai

se machucando. Cada vez mais por... E às vezes eu tento não...

Sabe assim quando você tenta camuflar tudo isso?

— Sim. Para você não sofrer tanto.

— Então muitas vezes eu falo, não vou pensar nisso agora,

porque eu ainda não estou completamente curado de tudo.

Não estou com as minhas feridas completamente curadas.

Mesmo com toda a potência que Samantha Dior mostrou

para Ivan, ele possui inseguranças quando trata-se de pautas

de negritude e com a falta de afeto no meio gay com pessoas

pretas. Em seus trinta e quatro anos, Ivan nunca namorou. Já

se relacionou com outros homens, mas essas relações nunca

evoluíram. Sempre.

— E de tantas frustrações e decepções. Por todos esses

anos e anos, hoje em dia eu me vejo como uma pessoa sozinha.

Como uma pessoa que… que não quer se relacionar. Porque

eu não quero me machucar.

— Entendi.

— Então tipo... Acho que muito dessa autoproteção do

“eu não posso me machucar, eu não quero me machucar. Então

eu não vou nem me abrir para um relacionamento.”

— Entendi, então você acha como uma proteção você

tomou partido de não se abrir para relacionamentos?

94


— Sim, sim. Porque infelizmente as pessoas objetificam

muito... Ou me objetificam como um fetiche de sair com uma

drag queen ou me objetificam com o corpo do homem negro,

que tem que ser másculo, sarado, e são coisas que eu não sou…

“E as pessoas não me olhavam com outros olhos. Além

desse dia da objetificação. Não me olhavam com carinho, com

afeto, com um possível olhar de um futuro relacionamento.

Então por todas essas frustrações e mágoas, eu me vejo hoje

em dia como uma pessoa sozinha. Muito como uma casca

mesmo para não me machucar. De novo, de novo, como eu já

me machuquei várias outras vezes.”

Foto: Arquivo pessoal.

§

Dia 26 de setembro, enquanto escutava Ismália em busca de

inspiração para escrever este projeto, ainda não tinha conhecido

o sorriso tímido de Ivan. Essa música, para mim é fascinante,

li textos sobre sua letra e composição. A melodia me elevou

95


pensamentos e com eles em mente abri uma folha em branco

no computador e comecei a escrever. Para uma pessoa exigente

consigo mesma, até que eu tinha gostado do resultado. Mas não

havia passado pela minha cabeça que, dias depois, conheceria

uma pessoa que se encaixaria perfeitamente em tudo que entendo

sobre Ismália, em tudo o que escrevi inspirada nessa canção.

Como Ismália e Ícaro, sonho

Sonho, sempre sonho

como Ismália quando enlouqueceu

sonho do meu apogeu

alcançar aquilo que vejo

que ouço, mas nunca toco

Miros, não me podes!

Pois sonho, sempre sonho

em conhecer aquilo que vejo,

mas que não sinto

Em alcançar o brilho

da estrela maior

E mesmo com a coragem que

me é preciso,

quando dou o salto para

o desconhecido

meu destino é sempre

como o de Ismália

e Ícaro

96


Me reerguendo, torno-me novamente forte

mas me dizem que não posso

Não posso ter o que quero

Por que não posso alcançar o que desejo?

E no fim, espero que

assim como Ismália e Ícaro

a história vele meu nome

“Aqui jaz aquele, que em busca do amor,

não desistiu”

– Maria Souza.

Nome: Ivan

Idade: 34 anos

Músicas: Ex-Factor - Lauryn Hill

O que gosta de fazer: Dançar

97


98


Ojú tó Ribi tí ko fo, a ira de ló ńdúró

(Os olhos que viram o mal e não ficaram cegos,

é só esperar para ver o bem)

– Provérbio Yorubá.

99


Márcio

Dia 10 de outubro, chego ao Centro Esportivo e Educacional

da Freguesia do Ó (CEEFÓ) a convite de Márcio para acompanhar

uma de suas partidas de vôlei semanais que começa às

20h. Quando estou indo até a quadra coberta, que aparentemente

é o único local ainda aberto dentro do centro, o segurança

me vê e pergunta se estou com os “meninos” da quadra,

respondo que sim e subo alguns lances de escada. Durante a

subida encontro uma placa com os dizeres “Aqui respeitamos

o seu nome social”, então tive certeza que estava indo na direção

correta.

Quando cheguei a quadra, Márcio, que vestia um uniforme

verde e uma faixa azul na cabeça, me cumprimentou, me

apresentou para as pessoas sentadas no banco e disse para que

eu ficasse à vontade e fizesse todas as fotos que eu precisasse

para o livro. Quando me convidou para assistir um de seus

jogos, disse que preferia que eu fosse em uma terça-feira, pois

era o dia que jogava com as “bichas babadeiras”.

Neste nosso segundo encontro, além de captar imagens

e vídeos, pude conhecer um pouco mais do Márcio e o ver

praticar uma das coisas que mais ama: jogar vôlei.

100


Foto: Márcio na quadra de vôlei do CEEFÓ, Maria de Fátima Souza.

Não é preciso falar

A minha pele preta, é meu manto de coragem

Impulsiona o movimento

Envaidece a viadagem

– Bixa Preta, Linn da Quebrada.

O pequeno Márcio foi uma criança feliz e muito amada pela

sua família. O cuidado e afeto no meio familiar nunca foi escasso.

Sempre muito próximo dos irmãos, Márcio cresceu em

um ambiente que tem orgulho da história que carrega.

101


Ainda criança, Márcio, seu irmão e alguns amigos descobriram

o amor pelo esporte, principalmente pelo vôlei e por

meio dessa paixão em comum, todos viveram juntos em momentos

importantes, como quando ingressaram em um time

de vôlei. Nessa época, Márcio entendeu como um homem gay,

mas nunca achou que fosse preciso falar, nem para os amigos,

nem para a família. Os irmãos e grupo de amigos com o qual

convivia era, na opinião de Márcio, muito entrosado e nunca

foi necessário que um deles disse “sou gay”, todos já sabiam.

A sua orientação sexual nunca foi um problema para a sua família,

mesmo com qualquer confusão interior que o menino

pudesse ter, família era sinônimo de conforto e afetividade.

— Eu me reconheci gay acho que aos meus 12, 13 anos.

Até pode ser antes. Porque eu já olhava para os meus primos e

para a figura masculina diferente. Agora para a gente se entender

gay de verdade. Leva um tempo para sua cabeça, porque

você se questiona de um monte de coisa. “Por que eu sou assim?

Por que eu gosto disso? Por que eu não gosto daquilo?”

[...] Quando eu descobri, só sorri. Eu só sorri para a vida, mas

quando você vai descobrindo sobre a maldade que existe, aí

você vai ficando com um pouco de medo do mundo. Sabe?

E, graças a Deus, posso dizer uma coisa para você: Eu nunca

precisei usar máscaras em lugares para as pessoas não olharem

para mim. [...] Eu sempre fui eu, sabe?

O vôlei é responsável por tantas lembranças e vivências

boas que Márcio até hoje carrega no peito, como quando foi

passou a frequentar boates e viu-se novamente apaixonado,

mas dessa vez pela arte drag.

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A Pantera do Brasil

“A Márcia Pantera veio pra dominar minha vida, né? Veio

pra mudar tudo. Mas acho que a Márcia Pantera, quando ela

aconteceu na minha vida, ela aconteceu numa gentileza. Acho

que na verdade a Márcia Pantera veio de uma plantação de

como Márcio sempre foi, sabe? E de como as pessoas sempre

me receberam. É claro que não foi sempre tudo tão lindo, tão

maravilhoso, mas eu lembro que ser a Márcia e quem é a Márcia...

A Márcia tem muito do Márcio. Tem muito, mas tem

muito, tem muito do que eu amo fazer. Acho que eu nunca

pensei em ser famoso, né? Nunca pensei em ser famosa como

Márcia. Eu sempre pensei em dar sempre o melhor de mim.”

Para falar de Márcia Pantera é necessário falar de Nostromondo,

pois foi lá em que grande parte de sua arte teve início.

Márcio fez questão de abordar essa era da Pantera, acredita

que foi na Nostromondo que aprendeu muito sobre arte drag

e onde “estudou” pessoas, principalmente como lidar com as

pessoas. Nessa época, Márcia era a performance entre shows,

fazia lip syncs de Shirley Metscher, Whitney Houston e Donna

Summer, mas recebeu como presente de uma amiga uma

LP 1 chamada Fox, e foi a partir dessa LP que uma nova versão

de Márcia surgiu, incrementando seu espetáculo e conquistando

de vez o público das festas noturnas. A partir dessa nova

versão de Márcia que também surgiu o “bate cabelo”, prática

que Márcia é pioneira.

1

Na língua inglesa, LP é a sigla para “Long Play” ou “Long Playing”,

também conhecida como disco de vinil.

103


Mas algo que se faz presente na vida de Márcio assim que

atingiu um maior entendimento sobre si como pessoa, é que

não vai deixar a Pantera engolir o Márcio. Devido a toda a sua

potência como drag queen, Márcio entende que às vezes as

pessoas vão se referir a ele como Márcia e utilizar pronomes femininos,

o que não o incomoda. No entanto, como forma de

proteção, passou a pedir para as pessoas que o acompanham

em lugares públicos chamarem-no de Márcio.

— Eu não quero perder quem eu sou: Márcio. Não quero

perder. E eu não tenho problema que me chamem de Márcia,

mas hoje eu consigo consertar. “Só não me chame de Márcia,

você pode me chamar de Pantera ou pode me chamar de Márcio.

Mas esse feminino não se encaixa a mim nesse momento.”

— Você acha que isso é uma forma de proteção, segurança?

— Maria, sim, porque, assim, de repente estou em um

ambiente com pessoas que nem vão entender, e aí chamam

Márcia. “Márcia, Márcia”, aí eu falo “oi” e a outra pessoa fala

“esse negão é a Márcia?” Com um olhar preconceituoso. E a

gente não sabe do outro. A gente nunca vai saber da cabeça do

outro, a intenção do outro, da maldade do outro.

Imagem: Reprodução Drag Brunch Brasil.

104


Os malditos cristais

“A droga fez eu trocar a minha família por ela.

E trocar minha avó, trocar minha mãe, trocar

meu irmão. Trocar um monte de gente que eu

troquei por causa dela.”

Já conhecido no LGBT e fazendo performances em todas as casas

noturnas mais frequentadas nas noites de São Paulo, Márcio

adquiriu um vício, que mal sabia ele, mudaria toda a sua vida.

Márcio foi usuário de crack por catorze anos e, com o passar

do tempo de uso, a droga foi consumindo-o a cada dia um pouco

mais. Gastou tudo o que havia conquistado e passou a pedir dinheiro

emprestado com quem confiava nele e em Márcia.

Devido a droga, não esteve presente em diversos momentos

cruciais para a família, sejam eles comemorações ou o falecimento

de entes queridos, como o de sua avó. E, enquanto

relata sobre suas dificuldades e perdas que teve durante o tempo

em que esteve sob o efeito de drogas, as lágrimas escorrem

pelo seu rosto.

— Eu sei o que é estar morto vivo. Eu sei o que a droga

fez, o que me escravizou. Eu sei o que a droga me aliviou. Eu

sei o que a droga me fez trocar: A droga fez eu trocar a minha

família por ela, trocar minha avó, trocar minha mãe, trocar

meu irmão. Trocar um monte de gente que eu troquei por causa

dela. O tanto de tempo que eu fiquei dentro dessa merda da

droga. O tanto de pessoas que me julgaram. O tanto que me

apedrejaram. O tanto que eu tive que todos os dias me alimentar

de uma pequena sementinha que eu não acreditava mais.

“Eu não acreditava em Deus, não tinha fé, não tinha

nada: “Não acredito que Deus está me deixando nesse buraco

105


e eu não consigo sair.” [...] Eu precisei passar por tudo isso

para entender a força que eu tinha dentro de mim depois de

muito tempo e me reerguer. E esse reerguer não é reerguer financeiramente,

é reerguer de alimentar de novo meu coração,

alimentar de novo a minha alma. De que a minha passagem

não poderia ser assim. E depois que eu vi que alguns amigos

morrerem por causa de droga, morrerem por violência, morrerem

por tanta coisa e eu ainda estava aqui… amigos que

morreram por causa da AIDS, por causa de tanta coisa [...] Eu

esqueci de mim. Eu esqueci quem era o Márcio…”

Com ajuda da potência e força de Pantera, Márcio conseguiu

excluir totalmente o crack de sua vida e, a partir dessa

nova chance, reconquistar o que havia perdido e viver o amor

e afeto que tanto merecia. Kennedy era o homem por quem

Márcio era apaixonado na época e, hoje, com uma relação longa,

Kennedy e Márcio são casados e felizes à sua maneira.

É bonita

E é bonita

“Viver

E não ter a vergonha

De ser feliz

Cantar e cantar e cantar

A beleza de ser

Um eterno aprendiz”

– O que é o que é?, Gonzaguinha.

Como forma de proteção, Márcio diz que, por mais que sempre

106


queira “bater de frente” com o preconceito, hoje, escolhe suas

batalhas. Preza, principalmente, pela saúde e bem-estar dele e

dos seus. Mas sempre é possível evitar e escolher todas as batalhas

com as quais lidamos diariamente. Muitos acontecimentos

gostaríamos de não enfrentar, principalmente quando são derivados

do preconceito, e Márcio conhece bem esse desejo.

Em outubro de 2014, Márcio ao chegar a casa noturna

Danger, localizada no bairro da República em São Paulo, para

mais uma de suas performances sofreu um ataque racista violento.

“Não olha pra trás não, seu macaco”, foi o que Márcio

ouviu enquanto esperava a porta da boate abrir. Ao perguntar

se essa fala seria direcionada para ele, a resposta dos criminosos

foi começar a gritar “macaco!”, Márcio levantou o capacete de

moto que usava e foi agredido. Em entrevista ao Extra online,

afirmou: Na hora que eu levantei o capacete, voaram em mim.

Unharam minha cara, machucaram minha boca, deslocaram

minha clavícula, me morderam.”

Com base em uma pesquisa coletiva e sistematizada

de dados, o Observatório de

Mortes e Violências LGBTI+ no Brasil divulgou

que no ano de 2021 ocorreram 316 mortes de

pessoas LGBTs de maneira violenta, desse

número 285 foram assassinatos, 26 suicídios

e 5 outras causas não-listadas. Dentre as

316 mortes, 112 foram vítimas pretas e pardas,

e 45,89% das mortes foram de pessoas

gays (aqui, relacionamento entre pessoas

que identificam-se como homens). O estudo

comprovou que as mortes de LGBTs no Brasil

aumentaram 33,33% de 2020 a 2021.

107


Segundo o Anuário Brasileiro de segurança

pública, a soma dos dados

disponibilizados pelos estados que

registram dados de lesão corporal

dolosa, homicídio doloso ou estupro

contra pessoas LGBTQIANP+ no ano

de 2021 aumentou 35,2%, registrando

1.719 casos, comparado a 2020, que

registrou 1.271.

Reprodução: Extra online.

108


Reprodução: Extra online.

§

Mesmo com todas as mazelas que já enfrentou e que ainda enfrenta,

durante toda a nossa entrevista, Márcio deixou diversos

aspectos de sua vida evidentes, pareceu ser sincero em cada

palavra que disse, ainda mais quando falava sobre o seu amor à

vida, a viver cada dia e saborear as pequenas alegrias e vitórias

diárias, que muitas vezes para ele é simplesmente perceber sua

força a favor de sua sobriedade.

Acredito que não há nada que possa exemplificar o amor

que Márcio tem pela vida do que suas próprias palavras. Estes

foram nossos primeiros segundos de entrevista:

— Quem é o Carlos?

— Quem é o Carlos? Acho. Não, acho não, tenho certeza

que o Carlos é um cara muito sonhador. Que ama as pessoas

109


que ama, o esporte, que ama, a família, que ama o meu trabalho

e, principalmente, que se ama. O Carlos tem tanto amor a tudo

que ele faz, que eu não quero perder tempo com coisas que não

sejam concretas e realmente interessantes para minha vida.

“O Carlos foi uma criança aí superficialmente, feliz. Foi

um adolescente, é muito feliz. Então acho que o Carlos tem

vários adjetivos assim, sabe de gentileza, carinho, amor e tanta

coisa. Eu gosto de ser como eu sou, exatamente como eu sou.”

Foto: Márcio na quadra de vôlei do CEEFÓ, Maria de Fátima Souza.

Foto: Márcio na quadra de vôlei do CEEFÓ, Maria de Fátima Souza.

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Foto: Márcio na quadra de vôlei do CEEFÓ, Maria de Fátima Souza.

Nome: Carlos Márcio José /

Márcio

Idade: 34 anos

Músicas: Todas da Whitney

Houston, Tina Turner, Beyoncé,

Gal Costa e Marina lima

O que gosta de fazer: Praticar

vôlei, ir a praia, nadar e andar

de moto.

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Playlist

A música me inspira, me move e tem a capacidade de intensificar

ou amenizar meus sentimentos, sejam quais forem. Sem

a grande potência que a música tem em mim, não teria finalizado

este projeto, pelo menos não a tempo. Sem AmarElo de

Emicida, Pajubá de Linn da Quebrada, QVVJFA? de Baco e

muitas outras obras de mulheres, travestis, drags pretas e os

ritmos da cultura Afro-brasileira e do BallRoom, muitos conceitos

inseridos neste projeto não se fariam presentes.

Pensando nisso e com a tentativa de fugir de qualquer higienização

cultural, para que você, leitor, tenha uma experiência

completa enquanto lê este livro, criei uma playlist para que

possa não só entender os temas abordados com maior profundidade,

que aqui a música pode proporcionar, mas também

para que você conheça mais da cena preta e LGBTQIAPN+.

A compreensão de que a música é uma forma de resistência,

principalmente para pessoas marginalizadas socialmente,

é de extrema importância, e a partir deste pensamento determinadas

vivências, letras e musicalidades podem finalmente

ser apreciadas e reverenciadas, e deixarem de ser associadas ao

antro, mas ao resistir, ao existir e a denúncia presente mesmo

em canções com ritmos dançantes.

A escolha das músicas partiu da ideia de trabalhar e consumir

artistas pretos – sejam eles da comunidade LGBT ou

não – mas que expressam vivências e sentimentos ressaltados

por cada personagem presente neste livro. Além de também

haver o óbvio interesse de unir diferentes recursos e produtos

em um. Neste livro há citações, músicas, imagens e poemas,

todos com o intuito de dar ainda mais profundidade às experi-

112


ências e histórias aqui contadas. Sem excluir também a minha

vontade de de alguma forma evidenciar o respeito e a gratidão

à generosidade de cada um dos homens pretos que me recebeu

em suas vidas durante estes últimos meses.

Essa playlist fala sobre afetos e desafetos, dores e alegrias,

é para refletir e celebrar. Por favor, aprecie, chore, rogue e dance

ao som dessas músicas.

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Vejo a vida passar num instante

Será tempo o bastante que tenho pra viver?

Não sei, não posso saber

Quem segura o dia de amanhã na mão?

Não há quem possa acrescentar um milímetro a cada estação

Então, será tudo em vão? Banal? Sem razão?

Seria, sim, seria se não fosse o amor

O amor cuida com carinho, respira o outro, cria o elo

No vínculo de todas as cores, dizem que o amor é amarelo

É certo na incerteza

Socorro no meio da correnteza

Tão simples como um grão de areia

Confunde os poderosos a cada momento

Amor é decisão, atitude

Muito mais que sentimento

Alento, fogueira, amanhecer

O amor perdoa o imperdoável

Resgata dignidade do ser

É espiritual

Tão carnal quanto angelical

Não tá no dogma, ou preso numa religião

É tão antigo quanto a eternidade

Amor é espiritualidade

Latente, potente, preto, poesia

Um ombro na noite quieta

Um colo para começar o dia

Filho, abrace sua mãe

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Pai, perdoe seu filho

Pais é reparação, fruto de paz

Paz não se constrói com tiro

Mas eu o miro, de frente, na minha fragilidade

Eu não tenho a bolha da proteção

Queria guardar tudo que amo

No castelo da minha imaginação

Mas eu vejo a vida passar num instante

Será tempo o bastante que tenho para viver?

Eu não sei, eu não posso saber

Mas enquanto houver amor

Eu mudarei o curso da vida

Farei um altar para comunhão

Nele eu serei um com o mundo

Até ver o ubuntu da emancipação

Porque eu descobri o segredo que me faz humano

Já não está mais perdido o elo

O amor é o segredo de tudo

E eu pinto tudo em amarelo

– Principia, Emicida (part. Fabiana Cozza, Pastor

Henrique Vieira e Pastoras do Rosário).

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Sobre a autora

Fruto de um amor jovem, Maria de Fátima nasceu no ano de

2001, e é jornalista graduada na FAPCOM. Amante de livros

e de tudo o que possa fazer com que a sua imaginação e os seus

sentimentos flutuem e cresçam, escreveu seu primeiro livro

em 2023 como um projeto de trabalho de conclusão de curso

(TCC), que aborda o afeto e o desafeto vivido por homens

pretos, gays e afeminados a partir de relatos de personagem

que adequam-se ao tema.

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