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1 Edição 261 - Jul/07 O reino do bode Caprinocultura ... - Kit.net

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<strong>Edição</strong> <strong>261</strong> - <strong>Jul</strong>/<strong>07</strong><br />

O <strong>reino</strong> <strong>do</strong> <strong>bode</strong><br />

<strong>Caprinocultura</strong> cresce no semi-ári<strong>do</strong> nordestino, impulsionada por<br />

programas de apoio e pela demanda mundial por qualidade<br />

Texto José Augusto Bezerra*<br />

Fotos Ernesto de Souza<br />

O que é <strong>bode</strong>? Segun<strong>do</strong><br />

filólogos, é um substantivo<br />

masculino. Pode ser bicho (o<br />

macho da cabra, pai <strong>do</strong>s<br />

cabritinhos), sinônimo de<br />

confusão, protestante, caixinha<br />

envernizada para guardar coisas,<br />

situação embaraçosa, esta<strong>do</strong> de<br />

sonolência, irritação ou<br />

depressão. O termo possui<br />

muitos significa<strong>do</strong>s, conforme<br />

demonstra o "vocabodário",<br />

minivocabulário de expressões<br />

relacionadas à caprinocultura<br />

compila<strong>do</strong> por estudantes de<br />

Cabaceiras, PB, sob a<br />

SACA DE LÃ, uma das atrações<br />

turísticas de Cabaceiras, PB, terra de<br />

Beto I (ao la<strong>do</strong>), eleito o animal mais<br />

representativo da espécie na 9a Festa <strong>do</strong><br />

Bode Rei<br />

coordenação da pesquisa<strong>do</strong>ra, professora e jornalista Geneceuda Monteiro,<br />

que publicamos no correr das próximas páginas.<br />

1


O <strong>reino</strong> <strong>do</strong> <strong>bode</strong><br />

Texto José Augusto Bezerra*<br />

Fotos Ernesto de Souza<br />

Bode também pode ser o demo, um homem<br />

libidinoso, um mulato como o poeta, advoga<strong>do</strong> e<br />

abolicionista Luís Gonzaga Pinto da Gama<br />

(1830-1882), autor <strong>do</strong> poema "Quem Sou Eu?",<br />

no qual expôs a amplitude social da espécie - o<br />

folclorista Câmara Cascu<strong>do</strong> publica-o na íntegra<br />

em seu Dicionário <strong>do</strong> Folclore Brasileiro. Luís<br />

Gama inicia-o assim: "Se negro sou, eu sou<br />

<strong>bode</strong>/Pouco importa, o que isso pode?/Bodes há<br />

de toda a casta/Pois a espécie é muito vasta/Há<br />

cinzentos, há raja<strong>do</strong>s/Baios, pampas e<br />

malha<strong>do</strong>s/Bodes negros, <strong>bode</strong>s brancos/E,<br />

sejamos to<strong>do</strong>s francos/Uns plebeus e outros<br />

nobres/Bodes ricos, <strong>bode</strong>s pobres/Bodes sábios,<br />

importantes/E também alguns tratantes/Aqui<br />

nesta boa terra/Marram to<strong>do</strong>s, tu<strong>do</strong> berra..."<br />

REI BETO e seu<br />

<strong>do</strong>no, Adeilton de<br />

Farias, o Bibi, feliz da<br />

vida com o título de<br />

campeão<br />

Em Cabaceiras, município situa<strong>do</strong> a 183,8 quilômetros de João Pessoa e<br />

64,9 de Campina Grande, o <strong>bode</strong> é tu<strong>do</strong> isso e muito mais. É o rei. O<br />

impera<strong>do</strong>r <strong>do</strong> sertão. O animal cuja espécie, adaptada às condições<br />

adversas <strong>do</strong> semi-ári<strong>do</strong> nordestino, sustenta a economia de centenas de<br />

municípios e a vida de milhares de pessoas. Você já ouviu falar de sua<br />

majestade Beto I (primeiro e único)? Pois ele foi eleito Bode Rei 20<strong>07</strong> no<br />

mês passa<strong>do</strong>, numa festa à qual compareceram mais de 40 mil pessoas,<br />

inclusive <strong>do</strong> exterior. Mestiço de anglonubiano com SRD (sem raça<br />

definida), com 124 quilos de peso, ele derrotou reprodutores de sangue<br />

saanen, alpino, toggenburg ou boer, bichos <strong>do</strong> porte de Capitão, Graúna,<br />

Canário, Galego, Rifocina, Mancha<strong>do</strong> e Alemão - sim, Alemão. Os<br />

cabaceirenses pensaram em instituir um BBB (Big Bode Brasil) como<br />

brincadeira adicional às já programadas para os quatro dias de folia, a<br />

exemplo <strong>do</strong> "fórmula-<strong>bode</strong>", corrida de caprinos em raia, ou <strong>do</strong> "pega<strong>bode</strong>",<br />

na qual adultos e crianças tentam pegar cabritos soltos num cerca<strong>do</strong><br />

natural, mas optaram na criação <strong>do</strong> "Bé, Bé, Bode", também denomina<strong>do</strong><br />

"Bode Beleza Brasil", espécie de concurso para eleger o macho mais<br />

bonito, com votação pela inter<strong>net</strong>.<br />

2


Beto ganhou nota máxima nos<br />

quesitos "porte", "elegância" e<br />

"desenvoltura" ao desfilar no<br />

tapete vermelho diante <strong>do</strong> júri.<br />

Aclama<strong>do</strong> rei sob aplausos e<br />

vivas da multidão, subiu ao<br />

trono (um pratica<strong>do</strong> de madeira<br />

a <strong>do</strong>is metros <strong>do</strong> chão), onde<br />

permaneceu meia hora - coroa<br />

de couro na testa e manto<br />

também de couro no lombo -,<br />

PAISAGEM COMUM no Cariri<br />

tiran<strong>do</strong> fotos com turistas.<br />

Oriental Paraibano: terreno pedregoso,<br />

Depois, almoçou regiamente,<br />

mata verde no inverno e seca no verão,<br />

descansan<strong>do</strong> até às cinco da<br />

caprinos e ovinos cria<strong>do</strong>s soltos, em<br />

tarde (hora <strong>do</strong> chá), quan<strong>do</strong><br />

regime seminômade<br />

então saiu em carreata pelas ruas da cidade, escolta<strong>do</strong> pela Garota Bode<br />

Rei, Mariana Castro, escolhida entre as meninas mais bonitas da cidade.<br />

"Eu não esperava a vitória", diz o cria<strong>do</strong>r Adeilton Araújo de Farias, o<br />

Bibi, com o troféu de campeão nas mãos, 400 reais no bolso (ajuda de<br />

custo para o cria<strong>do</strong>r campeão) e largo sorriso no rosto. Bibi parecia<br />

sincero. Afinal, nunca houve um Bode Rei mocho. Nos oito concursos<br />

anteriores, venceram machos com portentosos chifres - critério com peso<br />

significativo no julgamento. Dono <strong>do</strong> plantel de 300 cabeças, entre<br />

caprinos e ovinos, ele contabilizava ganhos futuros devi<strong>do</strong> à valorização<br />

<strong>do</strong> animal e, por extensão, <strong>do</strong> próprio rebanho. "Um fazendeiro recusou<br />

cinco mil reais por seu campeão", conta, emendan<strong>do</strong> a frase com uma<br />

pergunta: "Sabe quanto custa um <strong>bode</strong> qualquer no Cariri?" A resposta já<br />

estava engatilhada: "Preço de carne". Ou seja, seis reais por quilo - os<br />

caprinos SRD pesam 60 quilos, em média.<br />

3


O mapa <strong>do</strong> <strong>reino</strong><br />

Cabaceiras ganha projeção nacional com a festa em<br />

homenagem aos caprinos e como pólo de produção<br />

cinematográfica<br />

O município situa-se no Cariri Oriental Paraibano,<br />

mesorregião da Borborema (o nome deriva da planta<br />

homônima, da qual se faz a cabaça, coité ou cuia).<br />

Caracteriza-se por afloramentos de rocha cristalina,<br />

clima quente e seco e vegetação típica da caatinga<br />

4


O <strong>reino</strong> <strong>do</strong> <strong>bode</strong><br />

Texto José Augusto Bezerra*<br />

Fotos Ernesto de Souza<br />

Cabaceiras é o município mais seco <strong>do</strong> Brasil,<br />

com precipitação média abaixo de 300 milímetros<br />

- no semi-ári<strong>do</strong>, varia de 500 a 700; no país, de<br />

1.200 a <strong>do</strong>is mil. O mais "agua<strong>do</strong>" <strong>do</strong> país é<br />

Calçoene, no Amapá, com média anual de 4.165<br />

milímetros, segun<strong>do</strong> pesquisas da Embrapa. Às<br />

vezes, não chove nem no inverno no Cariri. As<br />

nuvens passam bojudas sobre a cidade mas não<br />

deixam cair uma gota, conforme diz a população.<br />

Cabaceiras caracteriza-se pela aridez, clima seco,<br />

temperaturas altas durante o dia e amenas à noite,<br />

terreno pedregoso, formações rochosas<br />

imponentes, como a Saca de Lã (pedras<br />

retangulares empilhadas pela natureza) ou o<br />

Laje<strong>do</strong> <strong>do</strong> Pai Mateus, e pela vegetação arbustiva<br />

da caatinga, verde no inverno (o perío<strong>do</strong><br />

chuvoso, que vai de janeiro a julho na região),<br />

cinza, seca, espinhenta e rala no verão, quan<strong>do</strong> o<br />

Sol desidrata tu<strong>do</strong> e to<strong>do</strong>s.<br />

CABRA BOM Seu<br />

Sebastião,<br />

devidamente<br />

encoura<strong>do</strong>, com um<br />

pedaço de pau à guisa<br />

de caja<strong>do</strong>: "O <strong>bode</strong> é a<br />

cabeça da história"<br />

"É o <strong>reino</strong> <strong>do</strong> <strong>bode</strong>", afirma Sebastião de Lima, <strong>do</strong> povoa<strong>do</strong> da Tapera,<br />

incrustra<strong>do</strong> na fazenda Pai Mateus, de três mil hectares. Cabaceirense<br />

nato, pai de dez filhos, ele cuida de parte <strong>do</strong> rebanho da propriedade -<br />

cerca de mil cabeças, entre caprinos e ovinos - além de seus próprios<br />

animais, "50 bichinhos mirradinhos, sem nome, sem <strong>do</strong>cumento". Em sua<br />

opinião, o <strong>bode</strong> "é a cabeça da história" - exemplo de resistência à seca e à<br />

escassez hídrica e alimentar. "Sem o <strong>bode</strong>, o homem não vingaria no<br />

sertão", diz ele, taxativo. Com 4.920 habitantes, segun<strong>do</strong> o censo <strong>do</strong> ano<br />

2000 <strong>do</strong> IBGE, Cabaceiras abriga rebanho de 25 mil cabeças. Ou seja,<br />

cinco vezes mais que a população. No distrito de Ribeira, cerca de 1.400<br />

pessoas trabalham no curtimento e artesanato de couro, atividades<br />

responsáveis por 78% da receita gerada da prefeitura. Centenas de<br />

municípios nordestinos promovem eventos liga<strong>do</strong>s à caprinocultura.<br />

"Bode é rei em Cabaceiras/Prata, Monteiro, Sumé/Sertânia, Arcoverde,<br />

Crato/Juazeiro, Canindé/Dá show em Tejuçuoca/Faz festa em<br />

Itapipoca/Pombal, Souza e Catolé/Bode dita lei e regra/Em Icó, Tauá,<br />

Iguaçu/Campina Grande, Queimadas/Caxixola, Mulungu/Afoga<strong>do</strong>s da<br />

Ingazeira/Belo Jardim e Pesqueira/Bezerros, Caruaru...", cantam, em<br />

dueto, os cordelistas Manoel Monteiro e Dival<strong>do</strong> Lima, autores <strong>do</strong>s versos<br />

acima. O <strong>bode</strong> tem cadeira cativa no imaginário coletivo <strong>do</strong> sertanejo, ao<br />

la<strong>do</strong> <strong>do</strong> "Padim Ciço", <strong>do</strong> Conselheiro, de Lampião, da vaquejada, <strong>do</strong>s<br />

canta<strong>do</strong>res, <strong>do</strong> sanfoneiro, <strong>do</strong> baião (e de Gonzagão). Faz parte <strong>do</strong> dia-adia<br />

da população desde os tempos da colonização.<br />

5


"Recor<strong>do</strong> sem nenhuma vergonha e sem nenhuma saudade que ao nascer<br />

tive por berço uma esteira de piripiri e por ama-de-leite não uma bon<strong>do</strong>sa<br />

'negra ladra' como a Guilhermina, <strong>do</strong> poeta (também paraibano) Augusto<br />

<strong>do</strong>s Anjos, mas uma dócil cabra preta de pelo luzidio, olhos amarela<strong>do</strong>s e<br />

tetas generosas", escreve Manoel Monteiro, da Academia Brasileira de<br />

Literatura de Cordel. Manuel lembra, a propósito, a frase <strong>do</strong> escritor, poeta<br />

e advoga<strong>do</strong> Ariano Suassuna, cria<strong>do</strong>r de <strong>bode</strong> na região de Taperoá, PB,<br />

em sociedade com seu primo Manoelito Dantas: "Uma das cenas mais<br />

bonitas, cavaleiras e fortes que já vi em minha vida foi a de um pai-dechiqueiro<br />

(reprodutor <strong>do</strong>minante) enorme e preto cobrin<strong>do</strong> uma vermelha<br />

e nova novilha-de-cabra, num pedaço áspero e bruto da caatinga<br />

sertaneja".<br />

Nada mais justo, portanto, <strong>do</strong> que a homenagem à espécie. Realizada este<br />

ano de 7 a 10 de junho, a Festa <strong>do</strong> Bode Rei é uma das iniciativas da<br />

prefeitura no senti<strong>do</strong> de incrementar a economia, valorizar a cultura, a<br />

história, o meio ambiente, a arquitetura e a gastronomia locais e resgatar a<br />

auto-estima da população, desgastada pela "pecha" de local mais seco <strong>do</strong><br />

país. Cabaceiras inverteu o senti<strong>do</strong> negativo de tal título, aproveitan<strong>do</strong>-o<br />

como instrumento de promoção turística. Uma das atrações é o Museu<br />

Histórico e Cultural <strong>do</strong> Cariri Paraibano, instala<strong>do</strong> na velha delegacia<br />

invadida há quase 100 anos pelo ban<strong>do</strong> <strong>do</strong> cangaceiro Antônio Silvino<br />

(18772-1944), famoso no sertão antes de Lampião começar suas<br />

estripulias. Há outras, como a Festa de São Bento, os festejos juninos, o<br />

"bumba-meu-<strong>bode</strong>", variação <strong>do</strong> bumba-meu-boi tradicional, com a<br />

substituição <strong>do</strong> boi pelo <strong>bode</strong> e a inclusão da ema, ave típica <strong>do</strong> Cariri,<br />

entre outras personagem <strong>do</strong> bumba-meu-boi tradicional, como a Catirina,<br />

a Burrinha, além <strong>do</strong>s 12 Cruzeiros, um <strong>do</strong>s quais motivo de romaria - foi<br />

erigi<strong>do</strong> em homenagem a Zefinha, menina de três anos assassinada em<br />

circunstâncias misteriosas.<br />

6


O <strong>reino</strong> <strong>do</strong> <strong>bode</strong><br />

Texto José Augusto Bezerra*<br />

Fotos Ernesto de Souza<br />

As atrações mais concorridas são, no entanto, o Laje<strong>do</strong> <strong>do</strong> Pai Mateus, a<br />

própria cidade, transformada em pólo cinematográfico, e a Festa <strong>do</strong> Bode<br />

Rei, com várias atividades interligadas: parque de exposições de animais,<br />

produtos e serviços, onde ocorrem o julgamento das raças e o concurso da<br />

cabra leiteira; arraial com barracões de madeira destina<strong>do</strong> à venda de<br />

artesanato; praça de apresentações musicais e praça da alimentação.<br />

Você conhece a chamada "culinária bodística", formada por tu<strong>do</strong> quanto é<br />

tipo de prato à base de <strong>bode</strong> (na verdade, cabritos, de carne mais tenra)? Já<br />

provou "estrogo<strong>bode</strong>" (estrogonofe com carne de <strong>bode</strong>), "qui<strong>bode</strong>" (quibe<br />

com...), "bedeoca" (tapioca feita com creme de leite e...). A variedade é<br />

enorme. Tem pizza, lasanha, hambúrguer, almôndega, lingüiça, buchada,<br />

suflê, churrasquinho, bife a rolê. Come-se muito MecBode, iguaria<br />

desenvolvida com ajuda técnica <strong>do</strong> Núcleo de Processamento de<br />

Alimentos da UFPA - Universidade Federal da Paraíba. A receita inclui<br />

hambúrguer de <strong>bode</strong> (obviamente), queijo, alface, tomate e cebola - não se<br />

põe gergelim nem aquele molho "especial" (em tempo: a grafia correta <strong>do</strong><br />

prefixo é "Mec" e não, "Mac" - é uma homenagem ao Ministério da<br />

Educação e Cultura). Quer beber alguma coisa? Tem "xixi de cabrita"<br />

(mistura de leite de cabra, aguardente, baunilha - ninguém revela a receita<br />

completa), "pinga-<strong>bode</strong>" (leite de cabra, cachaça e umbu), e outras<br />

bebidas. "Délícias", diz o povo.<br />

Em Cabaceiras, caprino é sinônimo de festa. A cidade embeleza seus<br />

casarões, igrejas, praças e ruas com bandeirolas, se pinta, passa perfume.<br />

De dia, é limpa, alegre, colorida como uma fêmea malhada ou um macho<br />

"tataruga" (mancha<strong>do</strong>). À noite, é transe, <strong>bode</strong>jo, som. Tu<strong>do</strong> se<br />

transforma. É hora das apresentações musicais, das companhias de dança,<br />

das quadrilhas da terra ou convidadas, <strong>do</strong> forró de pé-de-serra sacolejan<strong>do</strong><br />

os casais até o Sol raiar. Sua majestade, Beto I, já se recolheu. Tem muitos<br />

compromissos amanhã.<br />

7


Caminhos feitos de pedra<br />

Texto José Augusto Bezerra*<br />

Fotos Ernesto de Souza<br />

A pedra é o elemento<br />

preponderante no Cariri Oriental<br />

Paraibano, além da vegetação<br />

arbustiva característica da<br />

caatinga e da secura geral <strong>do</strong><br />

sertão. Elas estão sempre lá,<br />

pontilhan<strong>do</strong> a paisagem. A região<br />

abriga formações diversas, como<br />

a Saca de Lã e o sítio Manoel de<br />

Souza, com inscrições rupestres em grutas e lajes. A natureza caprichou<br />

principalmente no Laje<strong>do</strong> <strong>do</strong> Pai Mateus, elevação de rocha magmática de<br />

um quilômetro de extensão sobre a qual equilibrou enormes blocos<br />

arre<strong>do</strong>nda<strong>do</strong>s de granito, esculpi<strong>do</strong>s ao longo <strong>do</strong>s séculos pela ação <strong>do</strong>s<br />

ventos. Situada a 20 quilômetros da cidade, é um local de beleza única,<br />

carrega<strong>do</strong> de mitos e mistérios.<br />

Segun<strong>do</strong> pesquisa<strong>do</strong>res, o laje<strong>do</strong> foi centro cerimonial ou local sagra<strong>do</strong><br />

para os povos indígenas pré-históricos que habitaram a região. O nome é<br />

atribuí<strong>do</strong> a um ermitão, talvez um escravo fugi<strong>do</strong> <strong>do</strong>s senhores nos tempos<br />

de escravidão - a lapa em que ele morava ainda se mantém intacta. Abriga<br />

inscrições nas paredes e lascas de pedra de formatos diversos usadas como<br />

mesa ou parede de proteção <strong>do</strong> abrigo.<br />

8


A Compadecida<br />

Texto José Augusto Bezerra*<br />

Fotos Ernesto de Souza<br />

Você viu o filme ou a minissérie O Auto da Compadecida, da TV Globo,<br />

baseada em obra homônima de Ariano Suassuna? Lembra de Fernanda<br />

Montenegro no papel de Nossa Senhora? De João Grilo (o ator Matheus<br />

Nachtergaele)? Chicó (Selton Mello)? Do cangaceiro interpreta<strong>do</strong> por<br />

Marco Nanini? Pois é! Várias cenas foram filmadas no município. Quem<br />

chega a Cabaceiras respira cinema antes de cruzar a ponte sobre o rio<br />

Taperoá, à entrada da cidade. A um quilômetro de distância é possível<br />

divisar o letreiro "Roliúde Nordestina", afixa<strong>do</strong> a enorme suporte de<br />

madeira, como na "Hollywood" norte-americana.<br />

A idéia é <strong>do</strong> escritor, advoga<strong>do</strong> e cineasta bissexto Willis Leal,<br />

idealiza<strong>do</strong>r, também, da Festa <strong>do</strong> Bode Rei. O dístico brotou como sátira e<br />

virou atrativo turístico, além de bom negócio. Orgulho <strong>do</strong>s cabaceirenses,<br />

o pólo cinematográfico local constitui-se <strong>do</strong> casario colonial, ruas e<br />

praças, uma cidade cenográfica construída perto <strong>do</strong> rio Taperoá, e a<br />

paisagem rural. Você lembra da mata seca ao longo da estrada de terra no<br />

filme Cinema, Aspirina e Urubus, <strong>do</strong> diretor pernambucano Marcelo<br />

Gomes? É Cabaceiras, no verão. No total, 23 produções tem como cenário<br />

o município, incluin<strong>do</strong> filmes de longa e curta-metragem e <strong>do</strong>cumentários.<br />

Fernanda Montenegro em "O Auto da Compadecida", e a quadrilha<br />

Xique-xique de Gurjão, PB, na festa<br />

9


Mini dicionário bodês<br />

Texto José Augusto Bezerra*<br />

Fotos Ernesto de Souza<br />

Durante <strong>do</strong>is meses, sob a coordenação da<br />

pesquisa<strong>do</strong>ra Geneceuda Monteiro, estudantes<br />

fuçaram livros, trata<strong>do</strong>s, textos de autores regionais<br />

e dicionários comuns, conversaram com<br />

professores, produtores rurais, parentes e vizinhos,<br />

sondaram a memória coletiva <strong>do</strong> município. O<br />

resulta<strong>do</strong> é o Minidicionário Bodês, listagem de<br />

substantivos, adjetivos, verbos, metáforas e<br />

expressões populares relacionadas caprinocultura.<br />

Confira:<br />

bafo-de-<strong>bode</strong> - s.m. pop mau hálito de quem bebe<br />

muita cachaça, catinga de boca<br />

barba-de-<strong>bode</strong> - s.f. barbicha rala<br />

barbicha-de-<strong>bode</strong> - s.f. barba pequena e rala semelhante à barba de <strong>bode</strong>;<br />

barba de a<strong>do</strong>lescente (pop)<br />

bê ou béééé - onomatopéia: som produzi<strong>do</strong> pelos caprinos em geral<br />

berrar - v. da onomatopéia bé (da voz da cabra), soltar berros, falar muito<br />

alto, gritar, rugir, chamar ou falar aos berros<br />

berra<strong>do</strong>r - s.m. aquele que berra<br />

berrante - s.m. que berra, cor forte, instrumento de sopro feito com<br />

chifres, usa<strong>do</strong> por boiadeiros em comitivas de ga<strong>do</strong><br />

berregar - v. berrar muito alto, freqüentemente<br />

berrego - s.m. berros altos, gritos contínuos<br />

berreiro - s.m. berros altos, gritaria, choro muito forte<br />

berro1 - s.m. som emiti<strong>do</strong> pelos caprinos, grito alto de gente rude<br />

<strong>bode</strong>1 - s.m. caprino em geral, macho da cabra, caixinha envernizada para<br />

guardar dinheiro, matula, farnel, segre<strong>do</strong>, mistério, de que os elementos de<br />

uma especialidade profissional procuram cercar os seus atos<br />

<strong>bode</strong>2 - s.m. pop. homem muito feio (figura<strong>do</strong>), mulato, crioulo, indivíduo<br />

libidinoso, sátiro, protestante (gíria nordestina para designar os adeptos<br />

desta corrente <strong>do</strong> cristianismo), cada uma das figuras <strong>do</strong> baralho, em<br />

especial o valete, mil-réis (gíria antiga), esta<strong>do</strong> de sonolência provoca<strong>do</strong><br />

por droga<br />

<strong>bode</strong>a<strong>do</strong> - adj. chatea<strong>do</strong>, amola<strong>do</strong>, amua<strong>do</strong>, mal-humora<strong>do</strong><br />

<strong>bode</strong>-expiatório - s.m. pessoa sobre quem se faz recair as culpas alheias<br />

ou a quem são imputa<strong>do</strong>s to<strong>do</strong>s os reveses<br />

<strong>bode</strong>iro - s.m. cria<strong>do</strong>r ou mata<strong>do</strong>r de caprinos<br />

<strong>bode</strong>-azul - especialista em comunicações (gíria da marinha brasileira)<br />

<strong>bode</strong>-preto1 - especialista em máquinas (gíria da marinha)<br />

<strong>bode</strong>-preto2 - pop. o demo, o coisa-ruim, o chifru<strong>do</strong>, belzebu e outros<br />

sinônimos <strong>do</strong> diabo<br />

<strong>bode</strong> rei1 - <strong>bode</strong> escolhi<strong>do</strong> através de concurso para ser coroa<strong>do</strong> como rei<br />

10


durante a festa tradicional de Cabaceiras, PB<br />

<strong>bode</strong> rei2 - s.m. nome da festa realizada anualmente no município de<br />

Cabaceiras, PB, para enaltecer os valores da caprinovinocultura,<br />

fortalecen<strong>do</strong> a economia local, o desenvolvimento turístico e cultural da<br />

região<br />

<strong>bode</strong>-rufia<strong>do</strong>r - adj. diz-se o rufião<br />

<strong>bode</strong>-rufião - s.m. pop. <strong>bode</strong> encarrega<strong>do</strong> de atiçar as cabras (sem cobrilas)<br />

para identificar quais estão no cio<br />

<strong>bode</strong>-verde - especialista em hidrografia (gíria da marinha)<br />

<strong>bode</strong>-vermelho - especialista em armamento (gíria da marinha)<br />

bodês* - s.m. pop. neologismo cabaceirense relativo ao vocabulário<br />

caprino, o "vocabodês"<br />

<strong>bode</strong>to - s.m. pop. <strong>bode</strong> novo<br />

<strong>bode</strong>-velho - s.m. pop. homem velho meti<strong>do</strong> a conquista<strong>do</strong>r<br />

bodiano - adj. neologista cabaceirense para designar tu<strong>do</strong> o que é<br />

relaciona<strong>do</strong> ao <strong>bode</strong><br />

bodinho1 - s.m. diminutivo de <strong>bode</strong>, <strong>bode</strong> novo, cabrito<br />

bodinho2 - s.m. pop. nome da<strong>do</strong> a carros populares (o antigo jeep, por<br />

exemplo), a<strong>do</strong>lescente namora<strong>do</strong>r<br />

bodístico - adj. outro neologismo cabaceirense: diz-se de to<strong>do</strong> o universo<br />

caprino<br />

bodum - s.m. fe<strong>do</strong>r de <strong>bode</strong> não castra<strong>do</strong>, mau cheiro<br />

bolotinho-de-cabra - s.m. brincadeira infantil, o mesmo que bostinha-decabra<br />

caba - adj. pop. variação de cabra, "caba-ruim", "caba-bom"<br />

cabra1 - s.f. a fêmea <strong>do</strong> <strong>bode</strong>, mulher que grita muito<br />

cabra2 - s.m. adj. pop. homem <strong>do</strong> Nordeste, cangaceiro, bandi<strong>do</strong>, pessoa<br />

de cor branca e cabelo crespo, filho de pai branco e mãe negra (ou viceversa),<br />

mulher devassa<br />

cabra arreta<strong>do</strong> (reta<strong>do</strong> ou arreita<strong>do</strong>) - s.m. pop. diz-se de um cabra<br />

bom, correto, merece<strong>do</strong>r de elogios (arreta<strong>do</strong> é uma palavra-ônibus que<br />

indica numerosas idéias apreciativas)<br />

cabra besta - s.m. pop. indivíduo vai<strong>do</strong>so, meti<strong>do</strong> a rico ou a bacana,<br />

orgulhoso, presunçoso<br />

cabra bom - s.m. pop. cidadão decente<br />

cabra caloteiro - s.m. pop. velhaco, aquele que não paga nem promessa a<br />

santo<br />

cabra da peste - s.m. pop. diz-se <strong>do</strong> indivíduo valente, corajoso,<br />

competente<br />

cabra frouxo - s.m. pop. diz-se <strong>do</strong> indíviduo covarde, medroso<br />

cabra macho - s.m. pop. corajoso, valente, forte, viril<br />

cabra nojento - s.m. pop. sujeito indecente, sem mo<strong>do</strong>s, vulgar<br />

cabra ruim - s.m. pop. diz-se de quem é mau<br />

cabra safa<strong>do</strong> - s.m. pop. homem de má ín<strong>do</strong>le, sem vergonha<br />

cabra sara<strong>do</strong> - s.m.. pop. indivíduo esperto, astuto<br />

cabra-cega - s.f. brincadeira em que uma criança de olhos venda<strong>do</strong>s tenta<br />

agarrar outra<br />

cabrão - s.m. pop. criança que berra muito, corno, chifru<strong>do</strong><br />

cabra-onça - s.m. pop. valentão<br />

cabra-seco - s.m. pop. valentão, destemi<strong>do</strong><br />

11


cabra-topetu<strong>do</strong> - s.m. pop. valentão, corajoso<br />

cabreiro1 - s.m. pastor de cabras<br />

cabreiro2 - adj. desconfia<strong>do</strong><br />

cabril - s.m. curral de cabras (OB o termo "aprisco", usa<strong>do</strong> às vezes como<br />

sinônimo de cabril, designa curral de ovelhas)<br />

cabriola - s.f. salto de cabras<br />

cabriolar - v. dar cabriolas<br />

cabrita1 - s.f. cabra pequena<br />

cabrita2 - s.f. mestiça ainda nova<br />

cabritar - v. saltar como os cabritos<br />

cabritinho1 - s.m. cabrito novinho<br />

cabritinho2 - s.m. pop. jovem moreno escuro ou mulato<br />

cabritismo - s.m. pop. agitação, sensualidade, libidinagem<br />

cabrito1 - s.m. <strong>bode</strong> novo, pequeno<br />

cabrito2 - s.m. pop. criança inquieta, menino dana<strong>do</strong><br />

cabroeira - s.f. coletivo, diz-se de um ban<strong>do</strong> de cabras ruins, ou cabras<br />

feios ou bandi<strong>do</strong>s<br />

cabruêra - s.f. nome de uma banda de música regional<br />

capa-<strong>bode</strong> - s.f. planta da caatiga que serve para fazer vassoura, caipira,<br />

matuto, mocorongo<br />

capro - s.m. o mesmo que <strong>bode</strong><br />

caprum - s.m. fe<strong>do</strong>r<br />

chupa-cabra - s.m. pop. apeli<strong>do</strong> da<strong>do</strong> a um cabra muito feio<br />

frei-<strong>bode</strong> - s.m. pop. diz-se de protestantes<br />

mec-<strong>bode</strong> - s.m. sanduíche feito com hambúrguer de carne de <strong>bode</strong>, prato<br />

típico da gastronomia bodística cabaceirense<br />

(Obs.: a grafia correta é "mec", conforme a pronúncia de "mac" em inglês)<br />

mijo-de-ovelha - adj. Pessoa imprestável<br />

pai-de-chiqueiro - s.m. o reprodutor, cabra fe<strong>do</strong>rento<br />

pé-de-<strong>bode</strong> - s.m. pop. apoio feito com as duas mãos para erguer alguém,<br />

sanfona de oito baixos<br />

pé-de-cabra - s.m. alavanca de ferro com uma das extremidades fendidas<br />

à semelhança <strong>do</strong> pé da cabra, instrumento utiliza<strong>do</strong> para arrombar portas<br />

pega <strong>do</strong> <strong>bode</strong> - s.f. brincadeira realizada durante a Gincana <strong>do</strong> Bode Rei<br />

em Cabaceiras<br />

pinga-<strong>bode</strong> - s.f. bebida alcoólica à base de cachaça e leite de cabra<br />

pizza-<strong>bode</strong> - s.f. pizza recheada com carne de <strong>bode</strong>, prato típico da<br />

gastronomia bodística cabaceirense<br />

vocabodário - s.m. neologismo cria<strong>do</strong> para designar o conjunto de<br />

palavras e expressões bodísticas<br />

vocabodês - s.m. diz-se <strong>do</strong> dialeto caprino<br />

x-<strong>bode</strong> - s.m. sanduíche com queijo e carne de <strong>bode</strong>, prato típico da<br />

gastronomia bodística cabaceirense<br />

xixi-de-cabra - s.m. licor refina<strong>do</strong> que não deixa "bafo de <strong>bode</strong>"<br />

DITOS POPULARES<br />

Isso vai dar <strong>bode</strong> - vai acabar em confusão<br />

Amarrar o <strong>bode</strong> - ficar de mau humor<br />

Estar de <strong>bode</strong> amarra<strong>do</strong> - mal humora<strong>do</strong><br />

Dormir com as cabras - estar feden<strong>do</strong><br />

12


Vou capar o <strong>bode</strong>! - expressão utilizada pelo pai cuja filha foi desonrada<br />

por algum cabra safa<strong>do</strong><br />

Não vou segurar cabra para <strong>bode</strong> mamar! - não facilitar as coisas para<br />

os outros, principalmente quan<strong>do</strong> se trata de pessoas preguiçosas ou<br />

oportunistas, o mesmo que "não vou criar galinha para dar pinto a<br />

ninguém"<br />

Prendam suas cabritas que meu <strong>bode</strong> está solto! - expressão utilizada<br />

por pais de a<strong>do</strong>lescentes em fase de namoro, principalmente pelo pai<br />

orgulhoso da boa aparência e virilidade de seu filho<br />

Olha só onde fui amarrar meu <strong>bode</strong>! - exprime a concordância com<br />

idéias malucas, se meter em confusão, entrar em famílias desajustadas etc.<br />

Aonde vão as cabras?<br />

Cria<strong>do</strong>res começam a modernizar seus rebanhos no sertão,<br />

caminhan<strong>do</strong> para longe <strong>do</strong> estigma de atividade de subsistência<br />

Como se sabe, os caprinos são animais exóticos,<br />

introduzi<strong>do</strong>s no Brasil no perío<strong>do</strong> colonial. Das<br />

caravelas, pularam na praia e logo se<br />

embrenharam pelo sertão, acompanhan<strong>do</strong> os<br />

desbrava<strong>do</strong>res. Entregues à própria sorte,<br />

diminuíram em porte, peso e capacidade<br />

reprodutiva no correr <strong>do</strong>s séculos, como artifício<br />

natural para subsistir no ambiente hostil. Em<br />

compensação, adquiriram altos níveis de<br />

rusticidade e resistência às <strong>do</strong>enças, em<br />

condições de suportar a escassez hídrica e<br />

alimentar característica <strong>do</strong> semi-ári<strong>do</strong> no verão.<br />

REBANHO TÍPICO<br />

Mistura de raças, com<br />

prevalência de animais<br />

SRD<br />

13


Aonde vão as cabras?<br />

Raças caprinas, como moxotó, repartida, marota,<br />

canindé, graúna e azul, ou ovinas, como morada<br />

nova e rabo-largo, resultam de longo processo de<br />

seleção natural. Criaram-se sozinhas no semiári<strong>do</strong>,<br />

como o sertanejo. Até 20, 30 anos atrás,<br />

tanto elas quanto ele dependiam exclusivamente<br />

<strong>do</strong>s humores da natureza para sobreviver. A<br />

caprinovinocultura, vocação natural da região,<br />

era atividade incipiente. Historicamente, os<br />

animais sempre foram cria<strong>do</strong>s em regime<br />

seminômade, soltos pela caatinga, sem<br />

suplementação alimentar. Não havia recursos,<br />

conhecimento e apoio técnico para tanto. A<br />

ZÉ LINO, em sua<br />

população dispunha de caprinos e ovinos<br />

plantação de palma:<br />

(deslana<strong>do</strong>s, naturalmente) simultaneamente,<br />

"Para vencer no sertão,<br />

como garantia de sobrevivência: <strong>do</strong>is rebanhos no<br />

o caboclo tem que ser<br />

mesmo lugar, em convivência harmoniosa, a não<br />

arrocha<strong>do</strong>"<br />

ser em situação extrema - os ovinos preferem a vegetação rasteira; os<br />

caprinos, a mais alta, embora comam de tu<strong>do</strong>.<br />

"Comem até pedra", brinca José Nilo Pereira Irmão, o Zé Preto, produtor<br />

de leite em Cabaceiras. Segun<strong>do</strong> ele, os caprinos são mais resistentes: "O<br />

carneiro agüenta bem o tranco na seca, mas se a coisa aperta...", compara,<br />

lembran<strong>do</strong> <strong>do</strong>s anos em que foi obriga<strong>do</strong> a queimar macambira, xiquexique,<br />

cardeiro, facheiro, coroa-de-frade, qualquer vegetal disponível para<br />

salvar o rebanho. "Quan<strong>do</strong> não tinha mais nada pra dar pro bicho, a gente<br />

fazia uma coivara, queimava as plantas para aproveitar o miolo, misturava<br />

com restos de folha seca, galho caí<strong>do</strong>, qualquer coisa ao alcance da mão, e<br />

dava pra ele comer." Durante séculos, foi o procedimento comum de<br />

"manejo". Com raras exceções, ninguém fazia silagem no inverno para<br />

garantir o sustento <strong>do</strong>s animais no verão. Agora, graças a programas de<br />

financiamento, assistência técnica e apoio a comercialização, o sertanejo<br />

vêm a<strong>do</strong>tan<strong>do</strong> técnicas racionais de produção, investin<strong>do</strong> em<br />

melhoramento, manejo, nutrição.<br />

OUTROS REIS Rifocina e Capitão,<br />

concorrentes de peso no concurso <strong>do</strong><br />

Bode Rei deste ano: por pouco não<br />

14


<strong>do</strong> governo federal com os estaduais para distribuir leite a famílias pobres.<br />

"As coisas melhoraram muito no sertão", afirma, lamentan<strong>do</strong>, porém, a<br />

falta de luz e água. O programa Luz para To<strong>do</strong>s ainda não o alcançou - ele<br />

está na fila.<br />

O problema maior, segun<strong>do</strong> ele, é a água: o riacho Salga<strong>do</strong>, que corta a<br />

propriedade, não correu este ano, obrigan<strong>do</strong>-o a buscá-la, duas vezes por<br />

dia, num poço artesiano perto da cidade. "Minha vida sempre foi essa:<br />

lutar com os animais. O caboclo tem que ser arrocha<strong>do</strong> para vencer no<br />

sertão." Aparentemente, Zé Lino está vencen<strong>do</strong> a refrega com a natureza:<br />

ganhou cinco <strong>do</strong>s últimos seis concursos de leite realiza<strong>do</strong>s nas festas <strong>do</strong><br />

Bode Rei.<br />

Aonde vão as cabras?<br />

Segun<strong>do</strong> o pesquisa<strong>do</strong>r<br />

Francisco Luiz Ribeiro da Silva,<br />

da Embrapa Caprinos, sediada<br />

em Sobral, CE, a<br />

caprinovinocultura brasileira<br />

começou a se modernizar por<br />

volta de 1980, com a introdução<br />

de raças exóticas especializadas<br />

na produção de carne e leite,<br />

investimentos em pesquisas,<br />

melhoramento genético, práticas<br />

racionais de manejo, controle<br />

higiênico e sanitário, programas<br />

de fomento e assistência técnica.<br />

SOFISTICAÇÃO Segun<strong>do</strong><br />

especialistas, a qualidade <strong>do</strong> queijo de<br />

cabra brasileiro, como o <strong>do</strong> tipo boursin<br />

já equivale à <strong>do</strong>s europeus<br />

Hoje, o Nordeste concentra 93% <strong>do</strong> rebanho nacional, segun<strong>do</strong> da<strong>do</strong>s de<br />

2005 <strong>do</strong> IBGE - Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. O Sudeste<br />

vem em segun<strong>do</strong> lugar, com 2,38%, segui<strong>do</strong> pela região Sul (2,01%),<br />

Norte (1,48%) e Centro-Oeste (1,13%). Ou, seja, tem <strong>bode</strong> em to<strong>do</strong>s os<br />

cantos <strong>do</strong> país. O rebanho nacional é de 10,3 milhões de indivíduos. As<br />

regiões com maior concentração de caprinos são Itaparica, PE, com 49,7<br />

cabeças por quilômetro quadra<strong>do</strong>, Cariri Ocidental Paraibano (31,9),<br />

Juazeiro, BA (30,1), Sertão <strong>do</strong> Moxotó, PE (27,1), Cariri Oriental<br />

Paraibano (22,4), Chapada <strong>do</strong> Apodi, RN (21,8), Alto Capibaribe, PE (21),<br />

Angicos, RN (17,8), Esperança, PB (17,7) e Petrolina, BA (17,5), de<br />

acor<strong>do</strong> com da<strong>do</strong>s da Embrapa - o levantamento é de 2003. A<br />

caprinocultura brasileira cresceu 35% nos últimos 30 anos, segun<strong>do</strong><br />

estimativas da empresa. Com exceção da região Sul, todas registraram<br />

aumento significativo nos plantéis.<br />

15


Outra vitória<br />

Comparativo <strong>do</strong> valor nutricional em 100 g de carne<br />

Gordura<br />

(g)<br />

Gordura<br />

saturada<br />

(g)<br />

Calorias<br />

(kcal)<br />

Proteínas<br />

(mg)<br />

Ferro<br />

(mg)<br />

Caprino 2,8 0,85 131 25 3,5<br />

Frango 3,8 1,2 239 22,5 1,6<br />

Bovino 17,2 7,3 263 25,0 3,1<br />

Ovino 17,2 7,8 253 23,6 1,5<br />

Suíno 25,8 9,4 333 22,6 2,9<br />

Fonte: USDA<br />

"Temos tu<strong>do</strong> para continuar crescen<strong>do</strong>, mas é preciso muito trabalho para<br />

profissionalizar a atividade, estruturar o merca<strong>do</strong> produtivo e estimular o<br />

consumo", diz Vicente Ribeiro, presidente da Capripaulo - Associação<br />

Paulista <strong>do</strong>s Cria<strong>do</strong>res de Caprinos. Em sua opinião, é preciso investir em<br />

padronização, escala comercial, qualidade nos produtos (carne, leite e<br />

deriva<strong>do</strong>s) e sistemas de produção que promovam o bem estar <strong>do</strong> animal.<br />

Nesse quesito, o semi-ári<strong>do</strong> leva vantagem - o problema é conciliar<br />

extensionismo com produtividade. De qualquer forma, o setor começa a<br />

deslanchar, embora a região ainda esteja longe de alcançar o estágio de<br />

produção de centros de excelência <strong>do</strong> Nordeste e demais regiões <strong>do</strong> país,<br />

onde os rebanhos são direciona<strong>do</strong>s para produtos de maior valor agrega<strong>do</strong><br />

- cortes especiais, queijos e outros deriva<strong>do</strong>s.<br />

O merca<strong>do</strong> nacional vem crescen<strong>do</strong> ano após ano, fazen<strong>do</strong> justiça às<br />

qualidades da carne caprina, a mais saudável, se comparada à bovina,<br />

ovina, suína e de frango (veja quadro abaixo). Contém menos gorduras,<br />

menos calorias, mais proteínas e ferro. Apreciada há séculos na Europa<br />

(Portugal, Espanha e Itália, por exemplo), Ásia, África, caiu no gosto das<br />

classes mais abastadas <strong>do</strong> Centro-Sul <strong>do</strong> país, jogan<strong>do</strong> de uma vez por<br />

terra o preconceito contra o "cheiro" - o cabrito, abati<strong>do</strong> até um ano de<br />

idade, não possui o cheiro característicos <strong>do</strong>s reprodutores, animais não<br />

castra<strong>do</strong>s. Antigamente, por necessidade, se abatia qualquer animal à mão,<br />

inclusive os velhos.<br />

A gastronomia brasileira abriu o fogão para os caprinos. Chefes de<br />

cozinha afama<strong>do</strong>s, como Sérgio Arno, de São Paulo, vem crian<strong>do</strong> receitas<br />

especiais com cabrito. Ele fez pesquisas na capital paulista, maior centro<br />

consumi<strong>do</strong>r <strong>do</strong> país, para descobrir se a carne teria tanta receptividade<br />

quanto o queijo e descobriu que sim. Então procurou fornece<strong>do</strong>res, pronto!<br />

Os fregueses habituais de seu restaurante, o La Vecchia Cucina,<br />

consomem seis cabritos por semana. Uma <strong>do</strong>s pratos mais pedi<strong>do</strong>s é<br />

"Cabrito assa<strong>do</strong> lentamente ao vinho branco com polenta frita", cuja<br />

receita publicamos ao la<strong>do</strong>. Experimente. Bom apetite.<br />

16


Cabrito com polenta (Rendimento: 4 pessoas)<br />

Ingredientes<br />

• 1,3 kg de carne de<br />

cabrito<br />

• 200 g de cenoura picada<br />

(equivale a 2 xícaras de<br />

chá)<br />

• 250 g de cebola picada (2<br />

e 1/2 xícaras)<br />

• 250 g de salsão pica<strong>do</strong> (2<br />

e 1/2 xícaras)<br />

• 800 ml de vinho branco<br />

(1 garrafa)<br />

• 50 g de manteiga (cerca de 5 colheres de sopa)<br />

• 250 ml de óleo (1 copo)<br />

• 40 g de extrato de tomate (2 colheres de sopa)<br />

• 70 ml de molho pelatti (tomate sem casca)<br />

• 70 ml de molho demi-glacê<br />

• 500 ml de cal<strong>do</strong> de carne<br />

• Ervas finas, sal e pimenta a gosto<br />

Mo<strong>do</strong> de fazer<br />

Pique a cenoura, a cebola e o salsão. Tempere o cabrito com sal e<br />

pimenta, cubra-o com os legumes, regue com o vinho branco e deixe<br />

marinar por um dia. No dia seguinte, retire os legumes <strong>do</strong> marina<strong>do</strong>,<br />

salpique farinha e frite em óleo e manteiga até <strong>do</strong>urar. Misture o<br />

extrato de tomate, o molho pelatti, o molho demi-glacê, o cal<strong>do</strong> de<br />

carne e jogue-o sobre o cabrito. Asse em forno a 150 graus por uma<br />

hora e meia.<br />

ACOMPANHAMENTO<br />

Ingredientes<br />

• 200 g de farinha para polenta<br />

• 480 g de cal<strong>do</strong> de carne<br />

• 30 g de manteiga<br />

• 80 g de queijo parmesão<br />

• Sal e pimenta a gosto<br />

Mo<strong>do</strong> de fazer<br />

Aqueça o cal<strong>do</strong> de carne, tempere com sal e pimenta, jogue a<br />

manteiga, a farinha de polenta e deixe cozer. Para finalizar, adicione<br />

o parmesão. Coloque em uma forma quadrada e deixe esfriar. Corte<br />

a polenta em bastão, aqueça o óleo e frite.<br />

Montagem<br />

Coloque o cabrito cozi<strong>do</strong> numa bandeja e regue-o com um pouco de<br />

molho. Disponha a polenta frita, decore e sirva.<br />

• Colaborou Camila Damato<br />

17


Dicas de criação<br />

Dóceis, resistentes, fáceis de lidar, as cabras podem ser manejadas<br />

em instalações rústicas, pequenas, com mão-de-obra familiar<br />

É preciso considerar alguns itens importantes ao se implantar um criatório:<br />

1 - preço (uma cabra de boa produtividade, consideran<strong>do</strong> raças de boa<br />

aptidão leiteira, varia de 300 a três mil reais); 2 - lotação mínima (25<br />

cabras em lactação); 3 - área mínima (1,2 a 1,5 metro quadra<strong>do</strong> para cada<br />

animal); 4 - capril bem estrutura<strong>do</strong> (acima); 5 - investimento financeiro<br />

(25 mil reais, dependen<strong>do</strong> da região, da mão-de-obra e <strong>do</strong>s animais); 6 -<br />

retorno financeiro (entre três e cinco anos); 7 - reprodução (um parto por<br />

ano). A estrutura que mostramos acima é ideal para sítios, chácaras e<br />

pequenas fazendas.<br />

Um <strong>do</strong>s aspectos mais importantes é a alimentação. As cabras são animais<br />

herbívoros. Precisam de forragens e grãos, além de sais minerais. Existem<br />

misturas especiais para caprinos. Devem ser oferecidas em cochos<br />

separa<strong>do</strong>s daqueles destina<strong>do</strong>s às forragens. Água é fundamental. Elas<br />

bebem de cinco a seis litros por dia, em média. "A metade da raça se faz<br />

pela boca", diz provérbio árabe.<br />

• É importante que a construção ofereça conforto para<br />

as cabras. Ela deve contar com uma estrutura que<br />

permita o manejo <strong>do</strong>s animais sem lhes causar dano<br />

físico e estresse<br />

• O capril é feito de madeira com baias para cada fase<br />

de desenvolvimento <strong>do</strong> animal. Recomenda-se instalar<br />

18


com orientação leste-oeste, em terrenos altos, com<br />

pouca umidade, sem correntes de ventos frios, porém<br />

areja<strong>do</strong>s, em locais de boa disponibilidade de água<br />

potável<br />

• O piso deve ser suspenso, de 50 centímetros a 1,8<br />

metro <strong>do</strong> solo, para facilitar a limpeza. No caso, é<br />

feito com sarrafos de três centímetros de espessura<br />

por cinco de largura<br />

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